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Ano Letivo 2020/2021 Prof.

ª Adelina Rodrigues
Disciplina Filosofia
Texto de apoio 11º ano

O FUNDACIONALISMO CLÁSSICO (OU EMPIRISTA)


Tal como Descartes, David Hume recorre a uma abordagem fundacionalista para responder ao
desafio cético. No entanto, contrariamente ao que acontecia no fundacionalismo cartesiano, que encarava a
experiência sensível com enorme suspeita, o fundacionalismo proposto por Hume atribui o estatuto de
crenças básicas justamente às crenças que provêm da nossa experiência sensível imediata, como por
exemplo: “Estou, neste momento, a ter uma experiência da cor azul.”

Impressões e Ideias
Para Hume, o conteúdo das nossas mentes – as perceções – deriva da experiência e pode ser dividido
em duas categorias: as impressões, dados da nossa experiência imediata; e as ideias, que são cópias
enfraquecidas das impressões. Por sua vez, as nossas ideias dividem-se em ideias simples e complexas. As
ideias simples correspondem a impressões simples (que não podem ser divididas noutras impressões). As
ideias complexas correspondem à combinação de duas ou mais ideias simples. Essas combinações podem
ter origem na memória e, nesse caso, têm a mesma configuração que tinham na experiência, ou na
imaginação. Por isso, as ideias são compostas de uma forma relativamente livre, podendo aparecer juntas
duas ideias que na experiência estavam separadas, como acontece com a ideia de sereia, por exemplo.

O Princípio da Cópia

Assim, para Hume todas as ideias são, direta ou indiretamente, cópias de impressões. Este princípio
ficou conhecido como Princípio da Cópia. Hume recorre ao argumento do cego de nascença para justificar a
sua confiança no Princípio da Cópia. Segundo este argumento, uma vez que um cego de nascença não tem
qualquer impressão de cores, então ou este não pode imaginar a cor azul, ou existem ideias que não
correspondem a qualquer impressão. Mas o facto é que um cego de nascença não pode imaginar a cor azul.
Portanto, não existem ideias que não correspondem a qualquer impressão.

Além disso, para Hume, o facto de, à partida, ninguém se mostrar capaz de apresentar um
contraexemplo ao Princípio da Cópia – porque, graças à distinção entre ideias simples e complexas, todas as
propostas acabam, de uma forma ou de outra, por ser reconduzidas à experiência – fortalece a sua confiança
naquele princípio.

A Bifurcação de Hume

Hume reduz todo o conhecimento humano a dois tipos: relações de ideias e questões de facto. As
relações de ideias correspondem ao tipo de conhecimento que pode ser obtido apenas mediante a análise
do significado dos conceitos envolvidos numa proposição. Por exemplo, para saber que a proposição “Os
solteiros não são casados” é verdadeira, basta saber o significado dos conceitos de casados e de solteiros.
Trata-se de uma verdade necessária, pois a sua negação – há solteiros casados – implica uma contradição
nos termos. Este tipo de conhecimento é característico de áreas como a matemática, a geometria e a lógica.
As questões de facto correspondem ao tipo de conhecimento que só pode ser obtido através das impressões
(ou seja, através da experiência) e que nos fornece informação verdadeira acerca do mundo. Por exemplo,
“A neve e branca” é uma questão de facto, pois, para se saber que a neve é branca é preciso ter experiência
da neve e da sua cor. Não existe nada nos conceitos de “neve” e de “brancura” que torne a proposição “A
neve não é branca” uma contradição nos termos. Este tipo de conhecimento é característico de ciências
como a física, por exemplo.

Princípio de Associação de Ideias

Segundo Hume existem três princípios de associação de ideias: a semelhança, a contiguidade e a


causalidade.

A semelhança consiste na associação de duas ideias que são de algum modo parecidas. A
consideração de uma delas conduz-nos à consideração da outra. Por exemplo, é natural que a contemplação
de um retrato nos faça pensar na pessoa retratada.

A contiguidade consiste na associação de duas ideias que são contíguas no espaço ou no tempo. A
consideração de uma delas evoca a consideração da outra. Por exemplo, se sei que a sala de estar se situa
no alinhamento da entrada da minha casa, é natural que me venha à mente a representação de um desses
espaços de cada vez que penso no outro. O mesmo acontece quando dois acontecimentos são contíguos no
tempo; se é costume jantar depois do pôr do sol, é natural que pense em comida de cada vez que o Sol se
põe.

A causalidade consiste na associação de duas ideias que ocorre quando representamos duas ideias
como correspondendo a uma relação causa-efeito. A consideração da causa transporta a nossa mente para
a consideração do efeito. Por exemplo, se pensarmos numa ferida, é comum pensarmos na dor que
naturalmente lhe está associada.

O Problema da Causalidade

A ideia de causalidade coloca um enorme desafio ao empirismo de Hume, pois, visto que a sua
negação não resulta em qualquer contradição, não se trata de uma relação de ideias. Mas uma vez que não
parece haver nenhuma impressão que lhe corresponda, também não parece tratar-se de uma questão de
facto, apoiada pela experiência.

Para dar resposta ao problema levantado pela ideia de causalidade, Hume recorre à experiência
mental do Adão Inexperiente, que consiste em imaginar alguém que embora seja “dotado da mais forte
capacidade e razão natural” ainda não tenha tido qualquer experiência das regularidades do mundo. Como
consequência dessa falta de experiência, por mais dotada que essa pessoa fosse de um ponto de vista
racional, seria incapaz de inferir qualquer efeito apenas pela simples ocorrência da sua causa. Se imaginarmos
que essa pessoa adquire mais experiência do mundo e das suas regularidades, percebemos que isso bastaria
para que se tornasse capaz de fazer mais inferências. O objetivo dessa experiência mental é mostrar que a
ideia de causalidade não se funda na razão, mas sim na experiência da conjunção constante de dois objetos
ou acontecimentos.

Assim, a solução de Hume para o problema da causalidade consiste em assumir que a ideia de
relação causal, ou conexão necessária entre dois acontecimentos, não é mais do que a expectativa de que
um deles – o efeito – irá ocorrer sempre que o outro – a causa – ocorra. Esta expectativa resulta do hábito,
ou costume, isto é, da experiência que temos de uma conjunção constante desses acontecimentos.
O Problema da Uniformidade da Natureza (ou Problema da Indução)

O problema da causalidade conduz Hume à constatação de que a nossa crença na uniformidade da


natureza é racionalmente injustificável. Segundo o Princípio da Uniformidade da Natureza, causas
semelhantes terão efeitos semelhantes, ou dito de outra forma, a natureza irá comportar-se no futuro
conforme se tem comportado até hoje. No entanto, Hume considera que não há maneira de justificar
racionalmente a nossa confiança neste princípio. Por maior que seja o número de casos em que
experimentamos uma determinada regularidade, jamais teremos justificação racional para acreditar que
essa regularidade se irá manter no futuro. Isto acontece porque este princípio assenta numa inferência
indutiva. Mas Hume considera que a nossa confiança na indução não pode ser dedutivamente demonstrada
– uma vez que o seu contrário não implica uma contradição – nem inferida a partir da experiência, pois isso
conduzir-nos-ia a uma petição de princípio, uma vez que estaríamos a inferir a eficácia da indução a partir
dos seus sucessos passados, ou seja, a justificar a nossa confiança na indução por processos indutivos.

O Problema do Mundo Exterior

Uma vez que os objetos reais (fora das nossa mentes) não variam o seu tamanho em função da nossa
perspetiva, mas os objetos de que temos experiência variam, Hume conclui que aquilo que está presente na
nossa mente quando temos uma determinada experiência não são os objetos reais, mas sim uma imagem
ou representação mental dos mesmos. No entanto, se nunca temos um acesso direto aos objetos do mundo
exterior, como poderemos estar certos de que eles existem e são a causa das nossas perceções?

Hume considera que, uma vez que se trata de uma questão que diz respeito à existência, uma
investigação desta natureza deve ser resolvida com recurso à experiência, mas a nossa experiência não pode
alguma vez estender-se para além das nossa impressões e estas, conforme acabamos de constatar, não
devem ser confundidas com os objetos exteriores em si mesmos considerados. Assim, uma vez que nunca
poderemos sair do interior das nossa mentes, nunca seremos capazes de verificar se, de facto, existe uma
correspondência entre as nossa perceções e os objetos exteriores, nem tampouco poderemos alguma vez
ter justificação para acreditar na existência dos mesmos.

O Ceticismo Moderado De Hume

Embora sustente que a crença na uniformidade da natureza e no mundo exterior não são
racionalmente justificáveis, Hume não considera que estas devem ser abandonadas, pois não podemos viver
sem as assumir como verdadeiras. Assim, Hume defende apenas a adoção de um ceticismo moderado como
forma de nos protegermos contra o dogmatismo, as decisões precipitadas e as investigações demasiado
especulativas, distantes da experiência e sem suporte empírico.

Objeções ao fundacionalismo clássico (ou empirista)

Contraexemplo do tom azul desconhecido

O próprio David Hume prevê a possibilidade de se encontrar um contraexemplo ao Princípio da Cópia


e, embora o desvalorize, a verdade é que esse contraexemplo pode minar a nossa confiança no Princípio que
tem como alvo. Esse contraexemplo consiste em imaginar uma situação em que alguém é colocado perante
uma determinada gradação de tons de azul, sendo um dos tons dessa gama propositadamente omitido. O
problema surge porque alguém que nunca tenha tido a experiência desse particular tom de azul pode, ainda
assim, formar uma ideia a seu respeito, mesmo na ausência de uma impressão que lhe corresponda. Ora,
isso não seria possível se, de facto, todas as nossas ideias fossem cópias de impressões.

Objeção à imagem da mente como tábua rasa

Fodor considera que para aprender uma língua temos de poder representar as suas regras de
funcionamento, o que significa que qualquer processo de aprendizagem de uma língua pressupõe a
existência prévia de algum conhecimento linguístico. Uma vez que quando nascemos temos a capacidade
de aprender uma língua, Fodor aceita que é necessária a existência de um conhecimento linguístico inato.
Se encararmos este conhecimento inato do funcionamento da língua como genuíno conhecimento acerca do
mundo, teremos de abandonar a ideia de que, à nascença, a mente é uma tábua rasa (ou folha em branco).

Objeção do homúnculo

A objeção do homúnculo consiste no seguinte: se as nossas mentes não têm acesso ao mundo
exterior, mas apenas a uma série de imagens ou representações mentais dos mesmos, é como se fôssemos
um homúnculo (uma pessoa minúscula) fechado numa espécie de cinema privado no interior da nossa
mente, onde nos são apresentadas imagens ou representações dos objetos do mundo exterior. Mas os
problemas levantados a propósito da nossa relação com o mundo exterior também se aplicam à relação
desse homúnculo com as imagens presentes no ecrã do seu cinema mental. Se a natureza da explicação se
mantiver inalterada, acabaremos por supor a existência de outro homúnculo dentro da mente do primeiro,
e assim sucessivamente, caindo, numa regressão infinita de homúnculos.

Objeção baseada na argumentação a favor da melhor explicação

Russell rejeita as conclusões céticas de Hume, pois considera que a sua ideia de “fundamento
racional” (ou “racionalmente justificável”) é demasiado estreita. Hume parece admitir que nenhuma crença
está racionalmente justificada, a menos que exista uma prova definitiva da sua verdade. Para Russell pode
ser racional acreditar numa crença, mesmo na ausência deste tipo de prova, pois pode simplesmente
acontecer que de entre as alternativas disponíveis para explicar a nossa experiência exista uma hipótese mais
plausível do que todas as outras, pelo que é mais racional acreditar na sua verdade do que em qualquer uma
das alternativas. Este tipo de argumentação designa-se argumentação a favor da melhor explicação e é um
bom exemplo de abdução – um processo de inferência que se apoia num conjunto de dados para extrair com
um certo graus de plausibilidade uma conclusão que vai além dos mesmos. Russell acredita que a existência
de um mundo exterior às nossa mentes regido pelo princípio da causalidade é uma explicação da nossa
experiência muito mais simples e apelativa do que qualquer cenário cético que possamos imaginar. Por isso,
considera que temos uma justificação racional para acreditar nisso. O mesmo se aplica à ideia de causalidade:
é mais razoável aceitarmos que o mundo é, de facto regido por relações causais, do que assumir que a
existência de conjunções constantes é apenas acidental.

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