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lógico e científico notória ligação com a corte macedônica, Aristóteles passou a ser perse-
guido. Foi então que decidiu abandonar Atenas, dizendo querer evitar que
os atenienses “pecassem duas vezes contra a filosofia” (a primeira vez
teria sido com Sócrates).
Gilberto Cotrim Apaixonado pela biologia, dedicou inúmeros estudos à observação da
Mirna Fernandes natureza e à classificação dos seres vivos. Tendo em vista a elaboração
de uma visão científica da realidade, desenvolveu a lógica para servir de
ferramenta do raciocínio.
Nascido em Estagira, na Macedônia, Aristóteles (384-322 a.C.) foi, ao
lado de Platão, um dos mais expressivos filósofos gregos da Antiguidade. Da sensação ao conceito
Há informações de que teria escrito mais de uma centena de obras sobre
os mais variados temas, das quais restam apenas 47, embora nem todas Segundo Aristóteles, a finalidade básica das ciências seria desvendar
de autenticidade comprovada. Desempenhou extraordinário papel na or- a constituição essencial dos seres, procurando defini-la em termos reais.
ganização do saber grego, acrescentando-lhe uma contribuição que Ao abordar a realidade, o filósofo reconhecia a multiplicidade dos se-
impactou a história do pensamento ocidental. res percebidos pelos sentidos como elementos do real. Assim, tudo o que
Filho de Nicômaco, médico do rei da Macedônia, provavelmente her- vemos, pegamos, ouvimos e sentimos tinha realidade para Aristóteles.
dou do pai o interesse pelas ciências naturais, que se revelaria posterior- Por isso ele rejeitava a teoria das ideias de Platão, segundo a qual os
mente em sua obra. Aos 18 anos foi para Atenas e ingressou na Academia dados transmitidos pelos sentidos não passam de distorções, sombras ou
de Platão, onde permaneceu cerca de vinte anos, com uma atuação ilusões da verdadeira realidade existente no mundo das ideias. Para
crescentemente expressiva. Com a morte de Platão, em 347 a. C, a desta- Aristóteles, a observação da realidade por nossos sentidos leva-nos à
cada competência de Aristóteles o qualificava para assumir a direção da constatação da existência real de inúmeros seres individuais, concretos,
Academia. Entretanto, seu nome foi preterido por ser considerado estran- mutáveis.
geiro pelos atenienses.
Decepcionado com o episódio, deixou a Academia e partiu para a Ásia
Menor. Pouco tempo depois foi convidado por Felipe II, rei da Macedônia,
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Método indutivo vesse totalmente separado da realidade concreta, perceptível aos nossos
sentidos, pertencendo a outro mundo, como dizia Platão. Por que não pen-
Assim, para Aristóteles, a ciência deveria partir da realidade sensorial sar que o inteligível está aqui mesmo, neste mundo, e que opera dentro
— empírica — para buscar nela as estruturas essenciais de cada ser. Em das próprias coisas?
outras palavras, a partir da existência do ser individual, devemos atingir
sua essência, seguindo um processo de conhecimento que caminharia do Matéria e forma
individual e específico para o universal e genérico.
O filósofo entendia, portanto, que o ser individual, concreto, único cons- Foi o que supôs Aristóteles. Ele era um grande observador da natureza
titui o objeto da ciência, mas não é o seu propósito. A finalidade da ciên- — considerado por muitos o primeiro biólogo que existiu — e achava que
cia deve ser a compreensão do universal, visando estabelecer definições o sensível e o inteligível deviam estar unidos, metidos um no outro. So-
essenciais que possam ser utilizadas de modo generalizado. mente a análise ontológica permitiria identificá-los e separá-los, mas essa
Desse modo, a indução (operação mental que vai do particular ao ge- separação seria apenas conceitual, pois, na realidade mesma, o sensível
ral) representa, para Aristóteles, o processo intelectual básico de aquisi- e o inteligível andariam sempre juntos. Para o filósofo, “as coisas são o
ção de conhecimento. É por meio do método indutivo que o ser humano que são em sua própria natureza”, ou seja, o ser verdadeiro deve ser
pode atingir conclusões científicas, conceituais, de âmbito universal. imanente.
O conceito escola, por exemplo, é o resultado da observação sistemá- Seguindo essa linha de raciocínio, Aristóteles concebeu a noção de
tica das diferentes instituições às quais se atribui o nome escola. Somen- que todas as coisas estariam constituídas de dois princípios inseparáveis:
te dessa maneira o conceito escola pode ter sentido universal, já que
reúne em si os componentes essenciais aplicáveis ao conjunto das múlti- • matéria (hyié, em grego) — o princípio indeterminado dos
plas escolas concretas existentes no mundo. seres, mas que é determinável pela forma;
• forma (morphé, em grego] — o princípio determinado em si
Hilemorfismo teleológico próprio, mas que é determinante em relação à matéria.
Mais interessado na vida natural que seu mestre Platão, Aristóteles Assim, tudo o que existe é composto de matéria e forma, daí o nome
formulou uma teoria da realidade que ficou conhecida como hilemorfismo hilemorfismo para designar essa doutrina. Note, porém, que é a forma
teleológico. Para explicá-la, é preciso relacionar conceitos de sua física que faz as coisas serem o que são, enquanto a matéria constitui apenas o
com os de sua metafísica. substrato que permanece. Nos processos de mudança, é a forma que muda;
Se observarmos a natureza como fazia esse pensador, veremos que ela a matéria mantém-se sempre a mesma. Por exemplo: se um anel de ouro
tem ciclos constantes e regulares. As plantas e os animais nascem, cres- é derretido para converter-se em uma corrente de ouro, muda-se a forma
cem e morrem. Cada organismo constitui um todo orgânico, ordenado e (de anel para corrente), mas mantém-se a matéria (ouro).
coeso. Apesar da diversidade e multiplicidade de entes, parece haver uma Como você pode perceber, apesar de revalorizar o sensível, Aristóteles
ordem interna e externa a cada um deles que conduz à sucessão dos acon- não desprezava totalmente a concepção de ideias eternas de seu mestre,
tecimentos. mas a trazia de volta a este mundo, batizava-a com outro nome (forma) e
Portanto, ficava difícil para Aristóteles conceber que o inteligível esti- a complementava com o que supôs faltar para que ela pudesse explicar
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todas as classes de seres e as mudanças do real. Substância e acidente
Potência e ato Por outro lado, em virtude de certas condições climáticas, uma árvore
frutífera pode não vir a dar frutos (o que contraria sua potência de dar
Aristóteles também retomou o problema da permanência e da mudan- frutos), ou então as folhas da árvore podem se apresentar queimadas ou
ça (a clássica polêmica entre Heráclito e Parmênides) e realizou uma revi- ressecadas, em consequência de um clima seco.
ravolta: sem questionar o estatuto da mudança em si, procurou analisar a Aristóteles classifica esses casos, ou qualidades do ser, como aciden-
realidade que muda (o ser imbricado no não ser), entendendo que o tes, ou seja, algo que ocorre no ser, mas que não faz parte de seu ser
movimento existe e que não se encontra fora das coisas. essencial. Isso significa que, para o filósofo, devemos distinguir em todos
Desse modo, observou que uma semente não é uma planta, assim como os seres existentes o que neles é:
um livro não é uma planta. Mas a semente pode tornar-se uma árvore,
enquanto o livro não pode. Isso quer dizer que, em todo ser, devemos substancial — atributo estrutural e essencial do ser; aquilo
distinguir: que mais intimamente o ser é e sem o qual ele não é. Assim,
todo ser tem sua substância, de modo que devem existir tan-
o ato — a manifestação atual do ser, aquilo que ele já é tas substâncias quantos seres existam (pluralismo ontológico);
(por exemplo: a semente é, em ato, uma semente); acidental — atributo circunstancial e não essencial do ser;
a potência — as possibilidades do ser (capacidade de ser), aquilo que ocorre no ser, mas que não é necessário para defi-
aquilo que ainda não é mas que pode vir a ser (por exemplo: a nir a natureza própria desse ser.
semente é, em potência, a árvore).
Quatro causas dos seres
Conforme essa concepção, todas as coisas naturais são ato e potên-
cia, isto é, são algo e podem vir a ser algo distinto. Uma semente pode Observe agora que, quando falamos de uma semente que se transfor-
tornar-se uma árvore se encontrar as condições para isso, do mesmo modo ma em árvore e em um anel que se converte em corrente, estamos nos
que uma árvore que está sem flores pode se tornar, com o tempo, uma referindo a duas classes distintas de seres. No primeiro caso, temos um
árvore florida, manifestando em ato aquilo que já continha intrinseca- ser natural, no qual a mudança (ou movimento) ocorre por um princípio
mente como potência. Enfim, potência e ato explicam a mudança no mun- interno, intrínseco, conforme explicou Aristóteles. No segundo caso, por
do, o movimento e a transitoriedade das coisas. sua vez, temos um ser artificial, cuja transformação (ou movimento) se
Relacionando essas dualidades de princípios nos seres (matéria e for- dá por um princípio externo, extrínseco.
ma; potência e ato), podemos observar um paralelismo entre matéria e Em outras palavras, os seres naturais modificam-se, basicamente, de
potência e entre forma e ato: a matéria indeterminada é o ser em potên- acordo com sua própria natureza, enquanto os seres artificiais dependem
cia; a forma é o ser em ato. em boa medida de elementos externos para que isso ocorra.
Há, portanto, princípios intrínsecos e extrínsecos que levam os seres
ao movimento, à passagem da potência ao ato. Esses princípios são o que
o filósofo denominou causas.
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Aristóteles distinguiu quatro tipos de causas fundamentais: tar o soldado grego. O escultor (causa eficiente) necessita ter um objeti-
vo para trabalhar, pois “todo agente obra por um fim”. Com esse objetivo
causa material — refere-se à matéria de que é feita uma em mente, o escultor escolherá a pedra mais adequada (causa material)
coisa. Exemplo: o mármore utilizado na confecção de uma es- e uma figura heróica de soldado (causa formal) para entalhar.
tátua;
causa formal — refere-se à forma, à natureza específica, Primeiro motor
à configuração de uma coisa, tornando-a “um ser propriamente
dito”. Exemplo: uma estátua (em forma) de homem e não de Aristóteles também refletiu sobre a questão da origem do mundo.
cavalo; Para ele, o mundo é eterno, isto é, nunca teve um princípio e nunca terá
causa eficiente — refere-se ao agente, àquele que pro- um fim, tendo em vista que as próprias noções de princípio e de fim con-
duz diretamente a coisa, transformando a matéria tendo em trariam sua concepção de movimento.
vista uma forma. Exemplo: o escultor que fez a estátua (em Vejamos por que ele pensava assim. Se o movimento é a passagem da
forma) de homem; potência ao ato — em que varia a forma, mas se mantém a matéria (como
causa final — refere-se ao objetivo, à intenção, à finali- vimos anteriormente) —, isso implica que há sempre um algo antes (do
dade ou à razão de ser de uma coisa. Exemplo: a intenção de qual se parte) e um algo depois (ao qual se chega), como o anel que se
exaltar a figura do soldado grego. converteu em correntinha ou a semente em árvore. Portanto, é impossível
conceber o “começar” do mundo sem entrar em contradição, pois faltaria
Nos seres artificiais (como a estátua de nosso exemplo), todas essas o ponto de partida do movimento (o algo antes que possibilita o movi-
causas intervêm, sendo as duas últimas extrínsecas a esses seres. mento). E é igualmente inconcebível o “terminar” do mundo, pois nesse
Nos seres naturais, a causa eficiente não ocorre, pois eles podem sur- caso faltaria o ponto de chegada do movimento. Desse modo, Aristóteles
gir e ser o que são por natureza, isto é, fazem-se por si mesmos, não concluiu que o mundo é um movimento eterno, sem começo nem fim.
dependendo de uma causa externa. O problema dessa conclusão é que ela não explica totalmente o pro-
blema do movimento do mundo, pois tudo que se move deve ter sido colo-
Mundo finalista cado em movimento por algo (um agente motor), que, por sua vez, foi
colocado em movimento por algo mais, e assim pordiante. E como essa
E a causa final, será que ela se dá também nos seres naturais? sequência não pode continuar infinitamente, pois deve se deter em al-
Aristóteles entendia que sim. Para ele, as vidas animal e vegetal, em seus gum ponto ou em algo, que seria a causa primeira do movimento. Assim,
processos biológicos de crescimento e de reprodução, estariam expres- ponderou Aristóteles, “tem de haver algo que seja eterno, substância e
sando justamente a finalidade contida em sua própria natureza. Nesse ato, e que mova sem mover-se” [Metafísica, XII, 7, 1072a]. É então que o
sentido, a causa final sobrepõe-se à causa formal nos seres naturais, iden- filósofo formula a doutrina do primeiro motor ou motor imóvel, a causa
tificando-se mutuamente. primeira de todo movimento.
Para Aristóteles, a causa final é a mais importante de todas, pois é Observe que o primeiro motor só poderia ser imóvel, porque, do con-
ela que articula todas as outras causas. Isso fica claro no exemplo da trário, precisaria de algum outro motor que causasse seu mover. Portanto,
estátua do soldado ateniense, cuja finalidade (causa final) era a de exal- para ser o primeiro, deve ser necessariamente imóvel, apesar de causa-
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dor de todo movimento existente no mundo.
Agora você pode estar se perguntando: “Como pode algo imóvel gerar
movimento?”. Aristóteles respondeu que é por atração, pois todas as coi-
sas tendem àquilo que é bom, belo ou inteligente, e o primeiro motor — GRANDE RACIONALISMO
entendido como ato puro e perfeição — é tudo isso, ou seja, o primeiro
motor funciona como causa final do mundo.
Vemos, assim, por que a concepção de mundo aristotélica é considera-
da teleológica, pois há uma primazia da causa final. É, enfim, o para quê,
a finalidade, o tetos, aquilo que determina a passagem da potência ao
O conhecimento parte
ato, comandando o movimento do real.
da razão
Ética do meio-termo
Aristóteles define o ser humano como ser racional e considera a ativi- Gilberto Cotrim
dade da razão, o ato de pensar, como a essência humana. Assim, para ser Mirna Fernandes
feliz, o ser humano deve viver de acordo com sua essência, isto é, de
acordo com sua racionalidade, sua consciência reflexiva. Orientando seus
atos, a razão o conduzirá à prática da virtude.
Para Aristóteles, a virtude consiste no meio-termo ou justa medida de
equilíbrio entre o excesso e a falta de um atributo qualquer. Exemplos: a Durante o século XVII, a confiança no poder da razão no processo de
virtude da prudência é o meio-termo entre a precipitação e a negligência; conhecimento chega a seu auge no contexto da filosofia, à qual a ciência
a virtude da coragem é o meio-termo entre a covardia e a valentia insana; ainda se mantinha vinculada. Por isso a produção filosófica dessa época
a perseverança é o meio-termo entre a fraqueza de vontade e a vontade costuma ser denominada grande racionalismo.
obsessiva. No campo das teorias do conhecimento, racionalismo designa a dou-
Por isso a ética aristotélica costuma ser referida como uma ética do trina que privilegia o papel da razão no processo de conhecer a verdade.
meio-termo.
René Descartes
COTRIM, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Fundamentos de filosofia. 2. ed.
São Paulo: Saraiva, 2013, p. 225-229. René Descartes (1596-1650) nasceu em La Haye, França, em uma fa-
mília de prósperos burgueses. Decepcionado com a formação tomista-
aristotélica que recebera no colégio jesuíta de La Flèche, decidiu buscar a
ciência por conta própria, esforçando-se por decifrar o “grande livro do
mundo”. Em suas inúmeras viagens pela Europa, estabeleceu contatos
com vários sábios de seu tempo, entre eles Blaise Pascal.
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Vejamos algumas concepções básicas de seu pensamento. tem.
A metafísica cartesiana também incluía uma substância infinita (res
Dúvida metódica infinita), relativa a Deus, o ser que teria criado todas as coisas. Mas essa
substância não seria parte deste mundo, pois o Deus cartesiano é trans-
Descartes afirmava que, para conhecer a verdade, é preciso, de início, cendente, está separado de sua criação.
colocar todos os nossos conhecimentos em dúvida. É necessário questi-
onar tudo e analisar criteriosamente se existe algo na realidade de que Idealismo
possamos ter plena certeza.
Fazendo uma aplicação metódica da dúvida, o filósofo percebeu que a Descartes concluiu, porém, que o pensamento (ou consciência) é algo
única verdade totalmente livre de dúvida era que ele pensava. Deduziu mais certo que qualquer corpo, pois ele considerava a matéria “algo ape-
então que, se pensava, existia (“Penso, logo existo”). Para Descartes, nas conhecível, se é que o é, por dedução do que se sabe da mente”
essa seria uma verdade absolutamente firme, certa e segura, que por (RUSSELL, História da filosofia ocidental, v. 2, p. 88).
isso mesmo deveria ser adotada como princípio básico de toda a sua Essa é uma concepção idealista, tanto em termos ontológicos como
filosofia. Era sua base, seu novo centro, seu ponto fixo. epistemológicos, pois prioriza o ser pensante em contraposição à maté-
É preciso ressaltar que o termo pensamento é utilizado pelo filósofo ria, bem como a atividade do sujeito pensante em relação ao objeto pen-
em um sentido bastante amplo, abrangendo tudo o que afirmamos, nega- sado.
mos, sentimos, imaginamos, cremos e sonhamos. Assim, o ser humano
seria, para ele, uma substância essencialmente pensante. Racionalismo
Herança cartesiana
O mundo físico ria da gravitação de Newton destruiu a ideia de que ela precisa estar em
contato para interagir, porque a gravidade atua entre corpos tão separa-
dos como a Terra e o Sol. Durante o século XX, os físicos estabeleceram
uma teoria da matéria de acordo com a qual ela não é sólida (no nível
atômico, consiste em partículas muito separadas que vibram num espaço
vazio), nem impenetrável (pode ser penetrada por radiação, por exem-
Tim Crane plo), nem se conserva (pode se converter em energia), e suas interações
fundamentais (como descrito na mecânica quântica) são mais
probabilísticas que determinísticas. E, no nível mais fundamental já des-
coberto, encontramos entidades cuja própria natureza é ambígua: por exem-
Somos todos seres físicos que vivem num mundo físico. Mas
plo, os fótons, constituintes da luz, podem ser tratados como partículas e
em que consiste esse mundo? Ele é feito apenas das coisas como ondas.
que podemos ver e tocar, ou tudo o que é descrito pela ciên-
cia — e até entidades sobrenaturais — deveria também ser Fisicalismo
incluído nele?
Dadas essas descobertas sobre a matéria, um materialismo propria-
mente científico deveria se tornar uma forma de fisicalismo — a ideia de
que tudo o que existe é físico no sentido científico estrito, e assim as
Que é o mundo físico? Em sentido comum, é o mundo dos objetos físi- forças e campos existem em termos iguais aos da própria matéria. Com
cos do dia a dia à nossa volta. Em sentido mais científico e estrito, é o efeito, a física moderna inclui as forças entre as coisas mais fundamen-
mundo como concebido pelas ciências físicas. De acordo com nossa con- tais que existem. Segundo a opinião ortodoxa corrente, há quatro forças
cepção cotidiana, as coisas e os objetos físicos são materiais, ou seja, fundamentais, não explicáveis a partir de outras: gravidade,
feitos de matéria. Já na concepção científica mais estrita, as coisas físi- eletromagnetismo e as forças nucleares forte e fraca (essas forças me-
cas não precisam ser feitas de matéria no sentido comum. Um campo nos famosas mantêm unido o interior do átomo). A tentativa de explicar
elétrico e uma força como a gravidade não são feitos de matéria e, no essas quatro forças em função de uma força última é às vezes chamada
entanto, são coisas físicas. de “teoria da grande unificação” (GUT, na sigla em inglês) ou, num exa-
Essas duas concepções do mundo físico correspondem a duas doutri- gero absurdo, de “teoria de tudo” (TOE).
nas filosóficas distintas: materialismo e fisicalismo. O materialismo, se- Mas o mundo inteiro é físico? Alguns dizem que existem fenômenos
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totalmente fora do mundo natural: fantasmas, anjos, espíritos etc. Muitas estar relacionada a algum fator ainda não descoberto ou a uma “variável
dessas ideias, no entanto, carecem de formulação clara e base empírica. oculta”, e por isso, apesar de seu sucesso empírico, a teoria quântica
Uma alternativa mais séria é a ideia de que os fenômenos mentais (pen- ainda não está completa.
samentos, sentimentos etc.) não são físicos. Dado o conceito de “físico”
descrito acima, é realmente improvável que algum fenômeno mental seja
físico, já que eles não figuram nas categorias da física corrente e aceita. CRANE, Tim. In: PAPINEAU, David (editor-geral). Filosofia: grandes pensa-
No entanto, os fisicalistas alegam que há modos de vincular estados da dores, principais fundamentos e escolas filosóficas. Trad. Maria da
mente. descritos em termos mentais, a estados do cérebro descritos em Anunciação Rodrigues e Eliana Rocha. São Paulo: Publifolha, 2009, p. 16-
termos físicos. Por exemplo. alguém pode identificar certa experiência 17.
visual com um estado do córtex visual. Essa estratégia busca mostrar que
a mente existe, mas que é na verdade algo físico. Se estiver correta, o
mundo físico pode realmente ser tudo o que existe.
Mas esses dois pontos de vista não precisam conflitar. Podemos consi- Muitas ideias são apresentadas como “científicas” para se valer da
derar que o poder da ciência vem do casamento que faz de conjetura autoridade da ciência em nossa cultura. Mas como dizer se uma teoria,
ousada e evidência experimental e ainda acreditar que os processos que como a astrologia ou a acupuntura, é mesmo cientifica? Uma resposta foi
guiam os cientistas em seu trabalho são mais complexos que a simples defendida pelo influente filósofo da ciência Karl Popper (1902-94). Segun-
determinação de descobrir a verdade. Um dos fatores que permite que do ele, as teorias científicas são marcadas por sua refutabilidade. Diga-
essas duas visões se conciliem é a estrutura social da ciência. mos que se encontre uma evidência de que a astrologia é falsa. É prová-
Considere, por exemplo, um experimentalista cujo trabalho é bem re- vel que os astrólogos respondessem que ela não refuta realmente sua
cebido se for bem-sucedido em descobrir evidências incômodas para teo- teoria. Para Popper, essa é uma atitude fundamentalmente anticientífica:
rias em voga e que distingue entre as consequências de conjeturas rivais. o espírito científico reagiria dizendo: “O.k., a teoria está errada; vamos
O experimentalista pode ser motivado pelo desejo de ser bem-sucedido tentar fazer uma melhor”. Com base nisso, não apenas doutrinas margi-
desse modo, e pode também querer ver algumas conjeturas refutadas por nais como a astrologia podem ser criticadas, mas também a psicanálise e
razões pessoais. Mas, uma vez que o resultado é a revelação de proble- a explicação marxista da história. Nesses e em outros casos, a teoria é
mas nas teorias correntes e as novas conjeturas são submetidas a escru- sustentada de modo que não pode ser refutada. Assim, para Popper, a
tínio rigoroso, a obra do experimentalista irá contribuir realmente para a irrefutabilidade não é um sinal de que uma teoria é verdadeira, mas de
descoberta de verdades. que há algo intelectualmente abaixo do padrão nela.
O modelo de ciência apresentado até aqui se baseia muito nas ciênci-
as físicas e biológicas, em particular a física. Mas a ciência contemporâ- MORTON, Adam. In: PAPINEAU, David (editor-geral). Filosofia: grandes
nea é uma estrutura grande e variada, que incorpora muitas disciplinas pensadores, principais fundamentos e escolas filosóficas. Trad. Maria da
diversas, da astronomia teórica à sociologia e à psicologia. Em algumas Anunciação Rodrigues e Eliana Rocha. São Paulo: Publifolha, 2009, p. 98-
disciplinas, as teorias não são formuladas matematicamente, ou (como 99.
nas áreas da ciência médica) experimentos controlados são difíceis. Na
maioria das disciplinas, os cientistas se engajam em muitos tipos de
atividades, e uma estrutura social coordena as atividades de teóricos,
experimentalistas (ou outras pessoas que coletam dados) e outros. É difí-
cil e importante, no entanto, descobrir se há algo como um “método cien-
tífico” único aplicável às ciências. Podemos aceitar que encontramos em
modos científicos de pensar nossas ferramentas mais eficazes para en-
tender o mundo sem ser forçados à conclusão adicional de que essas
ferramentas precisam ser usadas todas juntas, ou que há um só conjunto
de instruções sobre como usá-las melhor.