Você está na página 1de 90

CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA

Prof. Marcos Aurélio Fernandes

UnB – Fil: 2019.1

TEXTO 11

4.2. A FILOSOFIA GREGA CLÁSSICA: PLATÃO E ARISTÓTELES

4.2. ARISTÓTELES

4.2.1. A VIDA

Aristóteles nasceu em 384/3 a. C., de pais gregos, em Estagira, antiga cidade da


Trácia, localizada na península Calcídica. O seu pai, Nicômaco, era médico. Segundo
alguns, seu pai foi médico do rei macedônio Aminta III, um dos predecessores de Felipe
II. Com 17 anos, em 367/6, Aristóteles veio para Atenas. Ali ele entrou para a Academia,
de Platão, e ficou até a morte deste, em 348/7.

No ano 348 o rei da Macedônia Filipe II tomou a cidade de Olinto, vizinha de


Estagira. Os atenienses se sentiram ameaçados. Isso provocou uma forte reação anti-
macedônica liderada pelo orador Demóstenes, dando ocasião aos seus discursos
chamados “Filípicas”. Aí Filipe II é considerado um bárbaro. Em 347, com a morte de
Platão, Aristóteles deixa Atenas. Busca estadia em Artaneu, junto ao tirano Hérmias,
com cuja parenta (irmã? Sobrinha?) ele se casa. Hermias, que era aliado de Filipe II, foi
morto em 341 pelos persas. Em sua homenagem Aristóteles escreveu um Hino à Virtude,
que foi posto sobre uma estátua de Hermias em Delfos, lugar do santuário de Apolo. De
343 a 336 Aristóteles esteve na corte macedônia na qualidade de preceptor do

1
adolescente Alexandre, o futuro Alexandre Magno. Catálogos antigos da obra de
Aristóteles relatam que o Estagirita teria dedicado a Alexandre um diálogo intitulado
“Do Reino” e outro intitulado “Alexandre – ou das Colônias”. Entretanto, nos escritos
que nos foram conservados Aristóteles nunca fala de Alexandre, nem da conquista da
Pérsia, que foi o evento político-militar mais extraordinário do fim do século IV. Na
Política, Aristóteles considera a Pólis, típica de Atenas, como a organização sócio-política
mais perfeita e o reino fundado sobre uma inteira nação (ethnos), como uma
constituição de tipo primitivo, mais adequada aos bárbaros que aos gregos. É provável
que Aristóteles não tenha considerado as empresas conquistadoras de Alexandre como
um desdobramento de seu ensinamento. Alexandre Magno se associou ao trono de
Filipe II no ano 340, com 16 anos. Em 335, com a morte de seu pai, Alexandre torna-se
o monarca da Macedônia. Em 327, Alexandre manda matar Calístenes, sobrinho de
Aristóteles, sob a acusação de conjuração e por lhe negar prestar o obséquio da
genuflexão.

Em 335, Aristóteles retorna a Atenas e escreve uma Elegia a Eudemo, na qual


narra de alguém – provavelmente ele mesmo – que, entrando na Ática, elevou um altar
à amizade

“do homem que aos maus não é nem mesmo


permitido louvar, o qual só ou por primeiro entre os
mortais, mostrou claramente com a sua vida e com
o ensinamento de seus discursos, de que modo o
homem se torna ao mesmo tempo bom e feliz”.
É incerto se o Eudemo da Elegia fosse o amigo de Aristóteles já morto numa
batalha de Dion contra Dionísio II, de Siracusa, no ano 354, ou se seria o seu discípulo, a
quem Aristóteles irá dedicar um escrito de ética: a Ética Eudêmia. É possível que o
homem que teria erguido tal altar seria o próprio Aristóteles, de retorno a Atenas e que
o homem excelente celebrado fosse o seu antigo mestre, Platão.

Quando completou 50 anos (c. 334), Aristóteles fundou em Atenas a sua própria
escola, no jardim dedicado a Apolo Lício (o Luminoso), que por isto se chamou Liceu.
Nessa escola, que possuía um pátio para passeio, chamado Perípato, eram ministrados
cursos de física, zoologia, psicologia, ética, política, retórica, poética e filosofia primeira
(mais tarde chamada pelos discípulos de “Metafísica”).

2
Em 324, chega a Atenas a notícia da morte prematura de Alexandre, na Pérsia. O
partido anti-macedônico se insurge e começa uma perseguição a Aristóteles. Ele é
acusado de impiedade. Aristóteles se retira de Atenas e se refugia na ilha Eubea, terra
natal de sua mãe, Féstide, onde a família ainda possuía uma casa. Segundo uma tradição,
Aristóteles teria fugido para impedir que os atenienses pecassem uma segunda vez
contra a filosofia (a primeira teria sido na morte de Sócrates). Pouco tempo depois, no
ano 322/1, Aristóteles morreu (portanto, tendo cerca de 63 anos).

No seu testamento, Aristóteles nomeou executor de sua vontade o governador


Antípatros. Torna herdeiro o seu sobrinho Nicanor. Encarrega Teofrasto de cuidar de
seus filhos, ou seja, a filha Pítias, que herdou o nome da mãe, já morta então, e o filho
menor Nicômaco, a quem Aristóteles dedicou um escrito de ética, chamado Ética a
Nicômaco. Dispôs que Nicanor se casasse com sua filha Pítias. E recomendou vivamente
o cuidado de Erpílides, em razão do afeto que esta lhe tinha demonstrado. Essa teria
sido companheira ou mesmo esposa de Aristóteles após a morte de sua primeira
mulher, Pítias. Recomenda também que seus escravos fossem libertados, que os seus
ossos fossem depositados ao lado dos de sua esposa Pítias e que Nicanor pagasse um
voto que ele tinha feito de erguer em Estagira duas estátuas, uma dedicada a Zeus
Salvador e outra a Atenas Salvadora.

Aristóteles foi um homem dedicado à família e aos amigos. Era, sobretudo, um


pesquisador e um pensador. Ele nasceu, pensou e morreu. Nisso está o essencial de sua
vida. Para ele, a vida dedicada ao pensamento, a vida contemplativa, o Bíos Theoretikós,
era a máxima forma de vida. Embora se interessasse vivamente pela política, pela vida
ativa, nunca atuou como governante, apenas como conselheiro de governantes. Além
disso, Aristóteles foi muito feliz nessa forma de vida prezou acima de tudo. A política,
ao contrário, trouxe-lhe amargas experiências: a perda dos mais caros e as decepções.

4.2.2. O CAMINHO PARA O E DO SABER.

Em Aristóteles, o “philein” da “philosophia” se torna órecsis, isto é, um aspirar


pelo saber, eidenai. Na primeira proposição dos seus escritos sobre “filosofia primeira”,

3
chamados de “Metafísica”, ele põe como ponto de partida a seguinte declaração:
Πάντες ἄνθρωποι τοῦ εἰδέναι ὀρέγονται φύσει – pantes anthropoi tou eidénai orégontai
physei: “todos os homens, por natureza, aspiram ao saber”.

4.2.2.1. A ARRANCADA: PERCEPÇÃO, MEMÓRIA E EXPERIÊNCIA.

A palavra para saber, aqui, é “eidénai”, ou seja, um saber por ter visto. É que
“eidénai” remete-nos a “idein”, que é um ver essencial. De fato, “idea” ou a “eidos” é
aquilo que o ente mostra de si mesmo, o aspecto, a fisionomia, o tipo, a forma ou a
estrutura essencial de alguma coisa. Por isso, Aristóteles segue falando do amor ao ver
e de seu papel na vida do homem:

Sinal disso é o amor pelas sensações: de fato,


estes (os homens) amam as percepções por si
mesmas, mesmo independentemente das suas
utilidades, e, mais do que todas, amam as
percepções da vista: com efeito, não só com a
finalidade da ação, mas também sem ter alguma
intenção de agir, nós preferimos o ver, em certo
sentido, a todas as outras percepções. E o motivo
está no fato de que a vista nos faz conhecer mais que
todas as outras sensações e nos torna manifestas
numerosas diferenças entre as coisas (Metafísica A,
980 a 21-27).
Nós amamos conhecer o que os sentidos nos revelam até mesmo para além do
útil, isto é, para além daquilo que é necessário para a sustentação da vida. Os sentidos
são amados não só enquanto são úteis para a vida, mas também enquanto são
“cognoscitivos”, ou seja, enquanto oferecem conhecimento. Por isso, dentre os
sentidos, o que maximamente nós amamos é o sentido da visão, que maximamente
apresenta este caráter cognoscitivo. A visão é maximamente cognoscitiva, pois, oferece
um conhecimento mais certo e abrange uma maior multiplicidade de objetos. A certeza
provém da imaterialidade. Quanto mais a capacidade cognoscitiva é maior, tanto mais
é imaterial, tanto mais certa ela é também. A visão permite conhecer todos os corpos,
celestes e terrestres, tudo aquilo que participa da luz e da cor. Só não permite conhecer
as qualidades sensíveis próprias dos outros sentidos, as tangíveis, as audíveis, etc. A

4
força da demonstração a posteriori de que parte Aristóteles se deixa dizer assim: se nós
amamos mais naturalmente os sentidos mais cognoscitivos, não somente por causa da
utilidade da vida, mas por causa do próprio conhecimento, se amamos o conhecimento
por causa do próprio conhecimento, é porque há um conhecimento mais nobre do que
o conhecimento sensitivo, ao qual o conhecimento sensitivo está ordenado.

Graças à predominância da vista no conhecer da percepção (aisthesis), nós


chamamos de “ver” também a outras formas de conhecer. No homem, o conhecimento
transcende a percepção sensível (aisthesis) e as imagens sensíveis (phantasíai), próprias
também aos animais. O homem é o vivente que transcende o conhecimento sensível
(percepção sensorial, imaginação e memória), que ele compartilha com os outros seres
vivos, e que se abre na claridade do conhecimento inteligível. Segundo a experiência e
a compreensão grega, o homem é o vivente que se atém ao “lógos” (Zoon logon ekhon).
Aristóteles constata que, no homem, a memória (mnéme) gera a experiência (empeiria).
Da experiência, por sua vez, o homem passa à arte, isto é, o saber inventivo (tékhne), e
à ciência (episteme). Arte e ciência, por sua vez, se baseiam no raciocínio (logimós).

Enquanto os outros animais vivem com


imagens sensíveis e com recordações, e pouco
participam da experiência, o gênero humano vive,
por sua vez, também da arte e do raciocínio. Nos
homens, a experiência deriva da memória: de fato,
muitas recordações da mesma coisa chegam a
constituir uma experiência única. A experiência, pois,
parece ser algo de semelhante à ciência e à arte: com
efeito, os homens adquirem ciência e arte a partir da
experiência. A experiência, de fato, (...), produz a
arte, enquanto a inexperiência produz o mero acaso.
A arte se gera quando, de muitas observações da
experiência, se forma um juízo geral e único que
pode ser referido a todos os casos semelhantes
(Metafísica A, 980 b 26 – 981 a 7).

Vemos, aqui, que a experiência (empeiria) é o ponto de partida do conhecimento


intelectivo no qual o homem vive. A experiência pressupõe a percepção (aisthesis), pelo
qual o real se nos vem ao encontro e de encontro e se nos dá a cada vez na sua
singularidade. O homem, enquanto vivente sensível, é um ente que se deixa afetar pelo

5
“comércio” (intercâmbio) com os outros entes por meio de sua sensibilidade (os cinco
sentidos). Ele é um ser receptivo, capaz de se deixar impressionar pelo real por meio da
abertura de sua sensibilidade. À percepção, como condição da experiência, se junta,
então, a memória (mnéme), pela qual nós apreendemos e recolhemos aquilo que nos é
dado como o percebido. Muitas recordações sobre uma coisa formam uma experiência
daquela coisa. Mas, a experiência não tem apenas o sentido passivo-receptivo de
acolher as doações do real por meio da percepção e da memória articulando-as num
conhecimento. A experiência tem também o sentido ativo de “ir ao encontro do real” e
de “pôr à prova” o conhecimento que nós podemos ter dele. A experiência não é
somente o modo como o real nos encontra, mas também o modo como nós vamos ao
encontro do real, movidos pelo desejo de conhecer, pela aspiração de saber. Neste
sentido, experimentar significa um ir de encontro a algo que, de imediato, não nos toca.
O que se deve experimentar é, aqui, algo a ser buscado. Trata-se de abrir caminho para
uma nova descoberta, através do olhar em volta, do procurar, do examinar, do espiar,
do procurar saber como estão as coisas, como elas se comportam e se relacionam umas
com as outras.

De uma maneira ainda mais ativa, experiência significa “pôr à prova” o nosso
conhecimento das coisas, do real. Trata-se, agora, de um provar como as coisas se
comportam, atendo-se ao horizonte de uma determinada interrogação, de uma
determinada indagação ou inquirição, e isto no modo do “se-então”. Neste ponto, o
examinar da experiência se transforma num observar, que, por sua vez, pode lançar mão
de outros instrumentos de apreensão e de visualização. O experimentado, antes
determinado como um buscado, agora é caracterizado como algo que é perseguido e
indagado, ou seja, é pesquisado. Por fim, o ir de encontro, que lança mão de recursos
de observação e que examina pondo à prova, repetidamente, as conexões e relações
dos estados de coisa (como as coisas se comportam), visa a apreensão de determinadas
regularidades do “se-então”. Este pôr à prova da empeiria (experiência), portanto, lida
sempre com o recurso da hypólepsis (conjectura). A conjectura, porém, assim como a
opinião (doxa) podem se enganar (pseudesthai), diz Aristóteles no sexto livro da Ética a
Nicômaco (VI, 3, 1139 b 18). Por sua vez, as cinco formas do homem descobrir a verdade

6
(aletheuein) são: arte (tékhne), ciência (episteme), prudência (phronesis), sabedoria
(sophia) e intelecto (nous) (Ética a Nicômaco VI, 3: 1139 b 17-18).

4.2.2.2. AS CINCO VIAS DO DESENCOBRIMENTO DO ENTE E DO SER

No sexto livro da Ética a Nicômaco (VI, 3, 1139 b 18), Aristóteles anuncia e expõe
as cinco disposições estáveis e adquiridas (héxeis), pelas quais o homem exerce sua
capacidade de ser descobridor e abridor da verdade, isto é, cinco estados ou modos de
ser descobridor do homem, cinco formas de (aletheúein):
(téchne),(epistéme), (phrónesis),  (sophía)
e(noûs)1. Estes modos do ser-descobridor do homem são chamados também de
virtudes dianoéticas (intelectuais). São diversas maneiras de o homem exercitar o
conhecimento intelectual, seja numa perspectiva prática, visando a produção de obras
ou a ações, seja numa perspectiva teórica, visando o desvendamento da verdade por
causa do próprio desvendamento da verdade. O primeiro modo é o conhecimento
chamado epistheme – ciência, o saber essencial daquilo que é permanente e
estruturalmente invariável no universo. O segundo modo é o conhecimento próprio da
téchne – a competência, o entendimento, o saber próprio da habilidade inventiva,
projetiva e criativa, enfim, da arte. O terceiro modo é o conhecimento chamado
phronesis – o saber como sabedoria prática da vida, prudência, sensatez, juízo, bom
senso, tino. O quarto é o conhecimento chamado sophia – o saber que se volta para os
primeiros princípios de tudo (metafísica). O quinto, última e mais elevado modo de
conhecimento, porém, chama-se nous – o pensamento, o intelecto, como pura intuição,
pura percepção do Ser.

Aristóteles escreve:



1
Ética a Nicômaco VI, 3: 1139 b 17-18.

7



Numa tradução em forma de paráfrase, poderíamos dizer:

Sejam cinco os modos nos quais a alma (isto


é, o ser, o viver do homem, seu existir), quer no
afirmar, quer no negar, realiza o abrir e manifestar
do ente: o ser-entendido na produção, na fabricação,
no manuseio e na ocupação de algo (arte); o saber
(ciência); a circumvisão e a visão penetrante,
transparente e de longo alcance no que concerne às
ações humanas (sageza ou prudência); o
compreender do todo (sabedoria ou sapiência); o
visar percebedor do ser (intelecto ou inteligência). A
conjectura, porém, bem como a opinião, podem
enganar, iludir, ser falsas.
Aristóteles diz que todos os modos, com exceção do (nous), são
(metá lógou) – isto é, são exercidos com o falar, são exercícios ou
realizações que se acontecem no medium do discurso. No discurso, está em jogo o
(aletheúein), o revelar, o abrir e manifestar do ente. Esta é uma
determinação de ser do ser-homem mesmo. O homem realiza a sua vida, cumpre o seu
ser-homem, sendo descobridor e abridor do ente no seu ser e trazendo à fala o ente
aberto e manifestado no discurso. É o que quer dizer a expressão:
(aletheúei he psyché). Mas o homem, vale dizer, o discurso humano,
pode também não cumprir esta função descobridora e abridora do ente mesmo no
tocante ao seu ser. Isso se dá pela ignorância; pela opinião dominante e o seu falatório;
e pelo erro. O ser descobridor e abridor das coisas mesmas é uma possibilidade do existir
humano. Nele, o homem realiza o seu poder-ser. É virtude (vigor, potência). Entre os
cinco modos, há a (sophía) – a (philosophía): o ser-decidido e resoluto
para a verdade, isto é, para o ser-verdadeiro. Seu interesse e sua preocupação constante
é com o ser e estar na verdade do homem. Somente sendo e estando na verdade – no
círculo aberto da manifestação das coisas mesmas – é que o homem realiza plena e
propriamente o seu poder-ser homem, o humano dele e nele mesmo. Entretanto, isto,
o ser e estar na verdade, requer do homem uma luta. É o dom de uma conquista.
Somente se libertando continuamente da não verdade para a verdade é que o homem
realiza o seu ser-homem plena e propriamente.

8
A) A TECHNÉ (ARTE)

A concepção grega de téchne se dá em vários níveis e amplitudes. Ponto de


partida desta concepção é o fato de que o homem se ergue e se produz a si mesmo,
configurando o seu mundo. Esta autoprodução do homem e de seu mundo a partir da
terra e do céu, dos elementos e dos domínios de seres prejacentes ao homem e ao seu
mundo, isto é, a partir da physis, e em concriatividade com ela, se chama téchne. Num
primeiro sentido, téchne diz o saber pelo qual acontece o erigir e o instalar-se do homem
em meio à physis, ou seja, o saber que rege e guia toda iniciativa humana em meio à
realidade em seu contínuo surgimento.

Num segundo sentido, a téchne quer dizer um saber no sentido de entender


operativamente de alguma coisa, de dominar, de ser capaz da produção de alguma
coisa, qualquer que seja (produção em sentido amplo).

Num terceiro sentido, a téchne significa o saber projetivo e reflexivo que é capaz
de produção, mas num sentido mais estrito, ou seja, no sentido de fabricar artefatos,
quaisquer que sejam.

Num quarto sentido, a téchne quer dizer o saber de uma visão projetiva e
reflexiva que tem o poder de um operar manifestador, que põe em obra a beleza (tó
kalón), o esplendor, da physis): estamos aqui no domínio de criação próprio das artes
do belo, as belas-artes, com sua poética, sendo mais a poesia, arte da palavra e do canto,
a arte das artes.

A téchne tem uma essência manifestadora: ela é um dos modos do acontecer da


verdade, um dos modos de acontecer o desencobrir e desvelar daquilo que, de alguma
maneira, é e está sendo (o ente). A palavra téchne conecta-se a téko e a tíkto: produzir
no sentido de procriar e criar. Procriar e criar, porém, entendidos ao modo grego,
querem dizer: dar à luz, no sentido de “pôr no mundo”. Por isso, o sentido mais
originário de téchne não é tanto o fazer e aprontar, mas o saber procriador, que dá à
luz, ou seja, que põe no mundo, traz para o aberto, para o manifesto. Trazendo à luz
uma possibilidade de ser e realizando-a ao pôr no mundo uma obra, a téchne acontece

9
como um aletheúein, como um des-encobrimento. A téchne des-encobre o eidos, ou
seja, o perfil de uma possibilidade de ser, o qual atua como forma, isto é, como
arquétipo, como forma originária, formadora, como princípio doador do ser e
determinador do modo de ser, ou seja, do perfil específico, do ser-assim, do mostrar-se
típico de um ente. Ela desencobre, portanto, possibilidades de ser e novas dimensões
de aparecimento de obras. A pro-dução da téchne imita, pois, a pro-dução da physis.
Também ela é um conduzir do não-ser ao ser, da não presença à presença, e, por
conseguinte, um conduzir do encobrimento ao desencobrimento.

O deixar-viger concerne à vigência daquilo


que, na pro-dução e no pro-duzir, chega a aparecer
e apresentar-se. A pro-dução conduz do
encobrimento para o desencobrimento. Só se dá no
sentido próprio de uma pro-dução, enquanto e na
medida em que alguma coisa encoberta chega a des-
encobrir-se. Este chegar repousa e oscila no
processo que chamamos de desencobrimento. Para
tal, os gregos possuíam a palavra alétheia2.

O desencobrimento da téchne acontece, pois, como inventividade, engenho,


criação. A téchne é um deixar-viger, um deixar-ser, um trazer à presença, no sentido de
deixar ficar de pé e repousar em si mesma uma obra. Deixar-ser não é descuidar.
Também não é, meramente, cuidar do que já é. Deixar-ser é deixar-ser. É confiar-se
àquela abertura, em que tudo se manifesta, em que todo o ente encontra paradeiro, e
que todo o ente que se manifesta traz consigo, ou seja, é confiar-se à alétheia, ao des-
encobrimento. Mais do que o pôr-em-obra do ente, a téchne se sobressai no seu próprio
como o pôr-em-obra do ser. Contudo, esse caráter próprio e excelente da téchne)
acontece, de uma maneira singular, na obra como obra de arte:

Os gregos chamavam de modo especial


téchne a arte em sentido próprio e a obra d’arte,
porque é a arte que, de modo mais imediato, erige e
esculpe em algo, que está presente (a obra), o Ser,
isto é, o aparecer, que se apresenta a si mesmo. A
obra d’arte não é, em primeiro lugar, obra,
porquanto é confeccionada, é feita, mas porque

2
Heidegger, M. Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, p. 16.

10
opera o Ser em um ente. Operar significa aqui pôr em
obra, na qual, como no que aparece, chega a brilhar
a physis, o brotar imperante, que vigora. Pela obra
d’arte, como o Ser que é, tudo, que aparece e pode
ser encontrado, é confirmado, torna-se inteligível,
acessível e compreensível como ente ou não-ente.

Visto que a arte erige e faz aparecer, num sentido acentuado, o Ser, como ente,
na obra, a arte vale, a bom direito, como o poder-pôr em obra, simplesmente dito, como
téchne. O poder-pôr em obra é o operar manifestativo do Ser no ente. O saber consiste
nesse abrir e manter aberto reflexivo e operante. Por ser um tal saber é que a arte é
téchne, e não, por pertencerem, à sua efetivação, habilidades “técnicas, instrumentos e
materiais de obras”3.

B) A EPISTÉME (CIÊNCIA)

A episteme guarda um íntimo parentesco com a téchne. Ela tinha um significado


todo próprio com uma conotação artesanal, técnica, artística4. O que estava em questão
era um saber, que era poder, no sentido de ser capaz de, de dominar com habilidade e
competência, a produção de uma obra. Tratava-se de um saber que era competente no
tomar pulso da gênese de uma obra que vinha à luz por meio da inventividade humana.
Por isso, era possível, no domínio da linguagem ordinária, uma identificação ou
intercâmbio semântico, no mundo grego, entre episteme, competência, e téchne,
produção sapiente ou sapiência produtora. Na verdade, porém, episteme não é somente
e antes de tudo um saber que é poder, no sentido de domínio, competência, maestria.

3
Heidegger, M. Introdução à Metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987, p. 181-182.

4
“Técnica”, não no sentido da tecnologia moderna. “Artística”, não no sentido da estética moderna. É
que, para nós hoje, o artístico é entendido no sentido das “belas artes” e estas são interpretadas
esteticamente, no horizonte de compreensão da relação sujeito e objeto, com suas vivências, tanto as
vivências de quem cria (o autor, o artista), como as vivências de quem aprecia a obra de arte (o
expectador, o apreciador, o desfrutador). E, para nós, hoje, o técnico é entendido no sentido da
tecnologia, que é interpretada segundo o modo de ser impositivo da técnica moderna, segundo o qual o
homem se vê desafiado e provocado a, sempre de novo, descobrir o real como o que é disponível para
uma produção exploradora e exploratória.

11
Ela é não só e antes de tudo um “entender de” alguma coisa, mas “entender-se com”
alguma coisa. Epístatai significa, originariamente, permanecer em face a alguma coisa.
Epístasis significa estar diante de algo, permanecer em face de algo, dando a atenção ao
seu mostrar-se. Episteme, portanto, tem um sentido de permanência atenta: dirigir a
intenção a alguma coisa, manter com atenção esta intenção. Como um atirador diante
de sua mira, por exemplo. “Entender-se com” tem, portanto, este sentido de tender
para algo, tem em mira algo, numa permanência atenta, receptiva, adequada,
apropriada para ela, para o seu mostrar e viger.

Em todo o saber, ou seja, em toda a arte e em toda a ciência, entendidas estas


de modo grego, está operante a filosofia. Em que sentido? No sentido de que nestes
saberes o homem está cultivando um relacionamento com o ser e com a verdade. Todo
o saber é um modo de o homem se posicionar em relação ao ser, tanto em relação ao
ser do que ele é, quanto em relação ao ser do que ele não é. E este relacionamento, em
todo o saber, é um aletheúein, isto é, uma espécie de desvelamento, de descobrimento.

Para Aristóteles, com a téchne e a epistéme, o homem alcança uma


transcendência em relação à vida animal, que também lhe pertence, em virtude do
conhecimento do universal. A experiência (empeiria) diz respeito ao que é cada vez (o
singular) e ao que é em devir, em mutação. Já a arte e a ciência trabalham com o que é
geral ou universal, ou seja, com aquilo que pode ser referido a todos os casos
semelhantes. Tanto na arte (téchne) como na ciência (episteme) o homem transcende a
experiência, ou seja, transcende o singular na direção do universal. É que arte e ciência
são saberes e o saber implica apreensão e a compreensão do universal. Por meio do
saber, portanto, o homem se ergue ao “kathólou”, ao universal. A palavra “kathólou” é
um advérbio e vem de “tò hólon”: o todo, aquilo que constitui a unidade (hén) das coisas,
o “universum” (versus unum: voltado, vertido, para o e no um). “kathólou” é uma
contração de “katá hólou” e significa, literalmente, “quanto ao todo”, “relativo ao todo”.
O contrário de “kathólou” é “tò kath’hékaston”: aquilo que é pertinente ao que se dá a
cada vez, ou seja, o singular.

Aristóteles reconhece que, na arte, como em toda a produção e ação, o que está
em questão é, cada vez, o singular. É o que acontece, por exemplo, com a arte de curar,

12
a medicina. O médico não cura propriamente o “homem”, mas este ou aquele homem,
a cada vez.

De fato, o médico não cura o homem a não ser


acidentalmente, mas cura Kallía ou Sócrates ou qualquer outro
indivíduo que traz um nome como estes, ao qual, justamente,
acontece de ser homem. Portanto, se alguém possui o discurso (lógos)
sem a experiência (empeiria) e conhece o universal (tò kathólou) mas
ignora o singular (kath’ékhaston) que está incluído naquele, muitas
vezes errará a cura, porque aquilo a que a cura se dirige é, justamente,
o singular.
Entretanto, uma arte só é arte à medida que ela se torna um saber e um
compreender. E, só temos saber e compreender quando há a apreensão daquilo que é
universal. A diferença entre o homem experiente num fazer e um homem que tem um
saber e um compreender é que aquele segue o singular, o que se dá caso por caso, e
este segue o universal, ou seja, as leis que regem todos os casos de uma determinada
espécie. Outra diferença está no fato de que o “empírico”, embora conheça o “o quê”,
não conhece o “porque” das coisas. Além do conhecimento do universal, o saber que
nasce de um compreender (sophia), é caracterizado também pelo conhecimento do
“porquê” (tò dióti) e a causa (aitía). Assim, os mestres em uma arte são aqueles que têm
não somente a experiência, mas também a perícia e a maestria que lhes dá o
conhecimento dos “porquês” e das “causas”. Os mestres não somente fazem alguma
coisa seguindo o acaso, como os trabalhadores meramente braçais, mas eles sabem o
que fazem seguindo as regras. Eles são mais sábios (sophóteroi) do que os meros
operários braçais.

Do mesmo modo que a arte (téchne), também a ciência (episteme) se atém ao


universal. A arte é aplicação do universal ao singular: “nasce a arte quando um único
juízo universal, aplicável a todos os casos semelhantes, é formado de uma multidão de
noções adquiridas por experiência” (Metafísica A, 1, 981 a). A arte é uma “hexis”, isto é,
uma atinência, uma disposição permanente, habitual, que implica o pensamento, a
reflexão (metà logou), em vista da produção de alguma coisa (poiesis). Por implicar o
pensamento, a reflexão, a razão (lógos), a arte é sempre um processo de
desencobrimento de possibilidades criativas (aletheuein): ela é uma disposição racional
“alethous”, ou seja, que se empenha pela verdade – descoberta – de possibilidades de
criação. É um saber projetar e pôr no mundo, fazer vir ao ser, alguma obra. Entretanto,

13
diferentemente da ciência, a arte se atém ao que pode ser diverso de como é ou o que
pode acontecer de modo diverso de como acontece (Tó endechómenon allos), o que
pode ser ou não ser produzido, o que pode ser produzido de um modo ou de outro
modo, enfim, o contingente. Contingente é aquilo que acontece por acaso ou aquilo que
é produzido pela inventividade do homem ou ainda aquilo que o homem põe no mundo
a partir de sua liberdade.

Diferentemente, a ciência (episteme) diz respeito não somente ao universal, mas


também ao “necessário” (que é o contrário do “contingente”), ou seja, o que não pode
ser diversamente do que é ou o que não pode acontecer de modo diverso de como
acontece (med’ endéchesthai allos). Episteme é, pois, o que existe “de necessidade” (ex
anánkes). É aquilo que é eterno (aídion): o que não nasce nem se corrompe. É ciência,
ainda, aquilo que pode ser ensinado ou aprendido. Todo ensinamento, porém, provém
de conhecimentos anteriores, ou seja, procede ou mediante a epagogé (“indução”) ou
mediante o syllogismós (“silogismo”). Aristóteles trata da epagogé nos Analíticos
Primeiros. Epagogé é a elevação do pensamento que vai do singular (o que se dá a cada
vez – tò kath’ékaston) ao universal (o que se dá todas as vezes – tò kathólou ). Os
medievais traduzirão epagogé com inductio (indução) e a definiram como “a
singularibus ad universale progressio” (progressão desde o singular para o universal). O
Syllogismós (silogismo) é o protótipo do raciocínio dedutivo. O silogismo científico, que
deve partir de premissas verdadeiras, é a apódeixis (demonstração). Da apódeixis
(demonstração), Aristóteles fala nos Analíticos Segundos. Demonstração é o silogismo
que parte de premissas verdadeiras. É uma dedução (apagogé – deductio) que procura
provar a verdade das conclusões que são derivadas das premissas reconhecidas ou
admitidas como verdadeiras. A demonstração opera a dedução das propriedades que
invariavelmente acompanham uma essência, que é imutável e que é também causa
produtiva.

A ciência (episteme) é um hábito (héxis) que permite a demonstração (apódeixis).


Por sua vez, demonstrar é apresentar o “porquê”, é indicar, é fazer e deixar ver os
princípios e as causas das coisas. Assim, ensinar é muito mais do que “transmitir
informação”, é conduzir o aprendiz a aprender. E aprender é muito mais do que
“assimilar informação” ou “conhecimento”, é apreender e compreender os

14
fundamentos das coisas. Nós aprendemos algo quando apreendemos um nexo de
fundamentação: a diferença e a referência entre o que é fundamento e o que é fundado.
Assim, a aprendizagem se dá quando conseguimos intuir as formas típicas dos casos
singulares e de seus similares e, ademais, intuir os casos singulares a partir de leis
universais ou quando, por fim, conseguimos articular os princípios (que são universais e
indemonstráveis) e as consequências destes princípios, por meio da inferência.

C) A PHRÓNESIS (PRUDÊNCIA. SAGEZA).

No início da Ética a Nicômaco, Aristóteles diz: “Toda arte (techne) e toda


investigação (methodos), assim como toda ação (práxis) e toda decisão (proaíresis),
manifestamente mira um determinado bem”. A práxis (ação), assim como a phýsis
(natureza) e a téchne (arte), é uma forma de poíesis (produção). O homem faz coisas
(arte) porque precisa fazer-se, melhor, precisa perfazer-se a si mesmo (práxis). O homem
se per-faz porque a sua existência é, essencialmente, um por-fazer, uma tarefa. Isso quer
dizer: o homem se perfaz porque sua existência é, fundamentalmente, um ter que ser,
um ter que se responsabilizar por constituir a si mesmo a partir do fundo da liberdade.
Portanto, a téchne - o fazer artesanal/artístico –, encontra o seu pleno sentido na práxis,
ou seja, na ação da liberdade, pela qual o ser humano se perfaz a si mesmo. O fazer
(téchne) é transitivo: passa para alguma coisa, que é fabricada, produzida, constituída.
O agir (práxis) é intransitivo: retorna para o próprio ser humano, redunda na sua
transformação e maturação.

O vigor, que possibilita a perfeição, ou seja, a consumação de uma obra em sua


excelência chama-se areté – o que os latinos traduziram por virtus, virtude. A virtude se
revela plenamente na obra. Assim, o vigor da natureza eclode e vem à luz nas suas obras:
no espetáculo do céu e da terra. O vigor da arte, nos artefatos, invenções, criações do
engenho e do gênio humano. O vigor da ação, nas obras da liberdade e da
responsabilidade humana: naquele algo de novo que o homem, por meio de suas
decisões, inaugura, funda, institui historicamente.

15
Toda ação é consumação. O sentido da ação se consuma na obra. Consumar
significa trazer o poder-ser ao seu sumo, ao seu máximo e extremo. O sentido, a
consumação de uma ação se chama telos – o que os latinos traduziram por finis, fim. O
fim da ação não é simplesmente a meta que a regula, nem o acabamento em que ela se
aquieta, nem a finalidade a que ela se presta. O fim da ação é o seu sentido. O fim é o
princípio de estruturação, de surgimento, crescimento e consumação. É princípio que
rege o começo, o desenvolvimento e a maturação da ação. Por isso, o fim é a causa
principal da ação.

Toda ação é um empenho em vista de um bem. O telos da ação, quer dizer, o


sentido em vista do qual se dá a ação, é um determinado bem (agathon tini). A ação, à
medida que se cumpre num bem-fazer, ou seja, num fazer virtuoso, se presta a trazer à
luz um bem. Nisso está a sua prestação de serviço, a sua serventia. Há uma gradação
entre fazer-bem, fazer um bem e fazer o Bem. Virtude é fazer bem um bem. O que torna
bom um bem e o que torna boa e virtuosa uma ação é o Bem puro e simples (to agathon
haplos). O Bem é o sentido de toda genuína ação. É por sua força e graça que toda ação
se torna verdadeiramente boa.

O Bem é aquilo que deixa e faz ser. É o que concede ser e vigor a todas as coisas,
a todas as obras, a todas as ações. É o que produz o que é devido. Na verdade, a ação
do homem não pode fazer o Bem. Em todo o empenho da ação o homem precisa doar-
se para receber a doação de vigor que lhe advém do próprio Bem. Com efeito, em última
instância, uma ação é boa não porque faz o Bem, mas é boa porque o Bem a faz, ou seja,
a deixa eclodir, surgir, consumar-se. Por isso, o Bem é o to ariston (o mais vigoroso, o
melhor). O bem supremo de todas as ações boas (to panton akrotaton ton prakton
agathon) se chama, por sua vez, eudaimonia (felicidade, bem-aventurança). Felicidade
(eudaimonia) quer dizer: plena auto-realização do homem, a consumação de sua relação
de pertencimento ao Bem. Então, o homem se torna uma propriedade do Bem. Nele
atua bela e vigorosamente (eu) o vigor extraordinário e divino do Bem (daimon, theion).

A felicidade é um bem viver (eu zen). A boa vida (euzoia), contudo, consiste em
viver segundo a virtude (areté). A felicidade é “a atuação de uma vida plena, segundo
uma virtude consumada”. É eupraxia (boa ação, boa obra, êxito, vida realizada). Isto
quer dizer: o homem é feliz quando ele põe em obra, realiza, consuma numa operação

16
(energeia), as suas possibilidades mais próprias e excelentes de ser; quando ele está em
pleno uso (chresis) de suas possibilidades. O fim da ação é a ação mesma. É o seu
sentido, mais do que sua meta, seu resultado ou sua finalidade. O fim da ação é a plena
atuação de seu poder-ser, é sua consumação, maturação e êxito.

Entretanto, a ação vive em apertos: ela se move na indigência da existência


humana, que é uma existência sempre condicionada por urgências e premências, que
vêm à luz na contínua mudança das situações. Por isso, a ação requer, sempre de novo,
deliberação (bouleuesthai) e decisão (proaíresis).

Para ser estável, a felicidade precisa ser uma forma de vida, um modo de viver –
um Bios. Há duas formas de vida que liberam ao homem o acesso à felicidade. Uma, é o
bíos politikós – a “vita activa”, aquela vida, na qual o homem assume sua
responsabilidade de agir em favor do todo da comunidade e da sociedade em que ele
convive, compartilhando do mesmo mundo histórico, das decisões em que está em jogo
o destino comum de um povo (Pólis). Trata-se, portanto, de uma vida que encontra
sentido na ação, na práxis, onde o homem atua a sua capacidade de criação histórica.
Nesse sentido, um homem é feliz quando ele é capaz de dedicar-se a uma obra, em que
ele atua não somente em benefício de si mesmo, mas também sua capacidade de cuidar
de tudo e de todos. Esta vida é boa.

O caminho, porém, para o homem realizar a vida boa é a areté. Areté (virtude) é
excelência da alma. É um vigor e uma nobreza de alma, onde o homem deixa e faz atuar
o melhor de si mesmo. É disposição apaixonada (pathos), é atitude apropriada e estável
(hexis), é ação (práxis). Como tal, a virtude se cumpre na operação excelente das
potencialidades da alma (enérgeia) e se consuma na obra perfeita (érgon) da liberdade
humana, em que o homem chega à plena realização de sua essência.

As potências da alma operam de modo excelente quando são regidas pelo logos
(pensamento, razão). No homem, a potência do desejo (orexis), por exemplo, pode
aparecer de dois modos: como cobiça (epithymia) ou como vontade (boulesis). Assim, o
desejo pode ser uma tendência ou propensão que segue um ímpeto cego, e então é
cobiça; ou pode ser uma tendência ou propensão iluminada pelo pensamento, e então
é vontade. Da mesma maneira, as emoções, paixões e afetos (pathoi) precisam ser

17
regidos pelo logos. À medida que isso acontece, elas se transformam em disposições
estáveis da alma (hexeis).

A alma boa, íntegra, é aquela que é regida pelo logos. Quando as potências da
alma são regidas pelo logos, a ação torna-se a atuação de virtudes éticas. “A virtude do
homem deve ser aquela disposição pela qual o homem se torna bom e pela qual ele leva
à perfeição a sua obra”. Guiado pelo logos, o homem encontra a justa medida em todas
as suas paixões e em todas as suas ações. A justa medida, porém, é sempre um meio
(mesotes), ou seja, um equilíbrio, que se dá entre o excesso e o defeito. O meio não é
dado por um cálculo abstrato e absoluto. É, antes, concreto e relativo, ou seja,
correspondente a cada homem e à respectiva situação em que ele, cada vez, se
encontra.

O homem, por sua natureza, há de viver segundo o logos. Ele é o ser vivente que
se apega ao lógos (zoon logon echon – animal rationale). Quando suas ações são
conforme o lógos, tornam-se virtuosas, justas, éticas. Logos é o nome grego para Ser
(einai), Uno (hen), Bem (agathon), Verdade (aletheia). Conformando-se ao Logos, pois,
o homem se torna mais propriamente o que ele é, realiza suas potencialidades mais
próprias e excelentes; torna-se um em si mesmo, inteiriço, integrado consigo e com a
ordem dos seres; torna-se bom em seu ser, em seu sentir e em seu agir, pois bom é
aquilo que se integra com o todo; torna-se, enfim, verdadeiro.

No homem, o Logos é a capacidade de pensar e de dizer: é pensamento e


linguagem. Essas potencialidades são o modo como o homem pode se integrar com a
ordem do kósmos. Quando o homem faz bom uso dessas possibilidades eminentes, que
lhe foram concedidas, ele realiza mais plenamente o seu ser.

O homem é o lugar onde acontece a revelação do Ser, a alétheia (a verdade). O


quarto modo é o da phronesis (tino, discernimento, prudência). Ela pertence ao domínio
da práxis. A práxis (ação) é o empenho livre e concreto do homem no mundo, no tocante
aos seus relacionamentos com os outros e consigo mesmo. Empenho que se cumpre na
dimensão do pensamento e da linguagem, e que funda o mundo histórico da
convivência humana, com suas comunidades e sociedades (a Pólis). Este empenho,
determinado pela liberdade, é cada vez situado. Coloca-se, a cada vez, numa situação.
A partir de cada situação, o homem precisa se responsabilizar pelo que ele é e se torna.
18
Por isso, o empenho livre e concreto do homem é marcado pela estrutura do cuidado.
O que o homem é, o seu ser, está sempre colocado sob seus cuidados, entregue à sua
responsabilidade. O que o homem é resulta sempre de uma sua responsabilização, do
modo como ele, historicamente, assume o que ele pode ser. Por isso, em todo o seu
empenho no mundo, marcado pela liberdade, como em todo o seu comportamento,
determinado pela responsabilidade, o homem precisa sempre de novo definir o que ele
pode ser, isto é, o que ele é capaz de ser: como ele pode ser-com-os-outros, no mundo
compartilhado da convivência, e como ele pode ser consigo mesmo, podendo, a cada
vez, ganhar-se ou perder-se na sua identidade, pois o seu ser está sempre em jogo, em
questão. Por isso, a práxis requer, sempre de novo, decisão (proaíresis). E toda a decisão
visa um bem.

A téchne (arte) é uma forma de conhecimento que cresce através da tentativa,


que comporta sempre erro e acerto no projetar e no produzir as coisas inventadas pelo
homem. Já a phronesis (tino) é uma forma de conhecimento que não suporta
experimentos. Não se faz experimentos com a própria liberdade. A responsabilidade
dessa forma de conhecimento é de tal seriedade e gravidade, que, a cada instante, o
que está em jogo é a própria existência do homem, o ganhar e o perder de seu sentido.
A cada situação, pesa sobre o homem a incumbência de tomar decisões. E, nessas
decisões, ele precisa dizer, sempre de novo, quem ele é e se torna, isto é, quem ele é
capaz de ser. A virtude na téchne é engenhosidade, isto é, habilidade e competência de
produção. A virtude na phronesis, porém, é o acerto da medida justa no devido tempo.
É o saber que cresce com a própria ação, no seu caráter medial. No âmbito daquelas
coisas que estão sempre em devir, surgindo e perecendo, mudando, se transformando,
a phronesis é, segundo Aristóteles, a disposição mais nobre (beltiste hexis) de
conhecimento e desvelamento (aletheuein).

Phronesis é um tino para a ação (práxis). É a visão clara e transparente no que


diz respeito às ações humanas. Phronesis foi traduzida para o latim como “prudentia”,
indicando a capacidade de “ver longe” (prudens = porro videns). É, portanto, uma
capacidade do intelecto, uma virtude intelectual. Esta visão não se deixa tornar opaca
pelas paixões da alma, ou seja, pelos prazeres e pelas dores. Para a phronesis, o erro não

19
é meramente um desacerto operacional. É, ao contrário, um desatino da própria
liberdade. É desvario.

O que a phronesis (o tino, o discernimento, a prudência) tem em mira é o possível


na ação, o que lhe é viável, factível. Seu foco é a boa ação, a ação exitosa (eupraxia). Ela
visa o Bem, enquanto princípio (arché) e sentido (telos) da ação. O Bem é aquilo em
função de que, por ‘mor de que (hou heneka), a ação se empenha. Aquilo que ela tem
em mente e para o que tende, quando acontece concretamente. Com efeito, toda ação
é um empenho por realizar finitamente o vigor inesgotável do Bem. Um empenho que
procura se definir, se consumar, numa obra, em que o vigor do Bem aparece e reluz.

A phronesis (o tino) não somente encara a vida de um ponto de vista prático,


melhor, práxico, isto é, do ponto de vista da ação. A phronesis é, ela mesma, vida (zoe).
Ela é a claridade em que se movimenta a vida da práxis em meio à convivência humana
(bios politikós). Ela é uma forma de orientação bem esclarecida do homem no mundo
da convivência e da ação histórica. Ela é a perspicácia ética em meio aos apertos das
circunstâncias, as quais se mostram instáveis, mudando de tempos em tempos,
causando surpresas, trazendo esperanças e ameaças.

A phronesis (o tino, o discernimento, a prudência) é a percepção do bem do mais


elevado bem homem (to akrotaton agathon anthropinou): da plena realização de suas
mais próprias possibilidades, da felicidade (eudaimonia). Ela se volta para aquilo que é
mais digno de atenção, mais grave e mais sério, na existência humana (spoudaiotate).
Ela busca conhecer não somente a felicidade do indivíduo, mas também a felicidade da
comunidade e da sociedade como um todo (Pólis). Por isso, ela é a competência de um
saber da convivência humana, de um saber político (epistheme politike).

A phronesis (o tino, o discernimento, a prudência) é o saber de uma atitude ou


disposição prática, isto é, referente à ação (praktike hexis). Tal atitude ou atinência se
apega ao bem da ação. Segue-o e persegue-o, no acontecer da própria ação. Passo por
passo ela não o perde de vista. Busca-o, vai atrás dele, se conforma a ele, como o seu
horizonte universal (katholou).

Em meio a essa investigação operativa, a phronesis (o tino, o discernimento, a


prudência) precisa, sempre de novo, deliberar bem (eu bouleuesthai). A deliberação, se

20
por um lado, não acontece sem reflexão (ela é meta logou/kata logismon), por outro,
não se esgota na reflexão (não é hexis meta logou monon). Ela é um momento da ação
concreta. Como tal, precisa de um olhar para as particularidades e singularidades, uma
atenção diferenciada para as possibilidades individualizadas (ta kath’ekasta). A
phronesis é, assim, o conhecimento e a descoberta do que é devida a cada momento na
ação humana. Ela tem que levar em consideração, por isso, o ponto de partida, o meio,
o modo, o tempo da ação, assim como quem nela está implicado.

A phronesis é um saber que cresce e amadurece somente com o tempo (chronos),


melhor, a partir da experiência (ex empeirias). É um saber diferente do saber
matemático, abstrato. É um saber experiencial, concreto. Por isso, carece da
maturidade, que só a idade, isto é, a experiência pode dar. Por isso, assinala Aristóteles,
o jovem, mesmo quando é perspicaz para o conhecimento matemático, carece de tino
e pode ser impreciso nas suas deliberações e ações.

O conhecimento, na phronesis se cumpre, primeiramente, como e com a reflexão


(logos, logismos). A reflexão é um diálogo de si consigo mesmo (logidzesthai), em que o
homem procura conquistar o melhor conselho para a sua ação.

No conhecimento da phronesis, entretanto, a alma humana não se detém no


logos (reflexão, razão). Ela precisa, no exercício da reflexão, de uma percepção originária
do Bem. A recepção e a percepção do evidência do Bem na reflexão e na ação é dada
pelo nous (intelecto, pensamento). Com efeito, a evidência do Bem só pode ser
percebida e recebida, numa visão simples e imediata (noein). No homem, porém, o
noein (perceber, inteligir) não acontece de uma vez. Ele se dá por meio do pensamento
que discorre, passo por passo, sobre as diversas possibilidades. O noein é, pois, dianoei
(inteligir), dianoia (intelecção). Daí, o fato de a phronesis ser chamada de virtude
dianoética (intelectual).

A consumação da phronesis é a tomada de decisão (proaíresis). É na decisão que


o homem se assume a si mesmo, se responsabilizando pelo seu ser e pelo cuidado de
tudo aquilo que lhe toca. A decisão, porém, só se torna o que ela é na ação. Somente
agindo é que um homem mostra estar de fato decidido.

21
Porque a phronesis se consuma na decisão, ela não é nunca um conhecimento
desinteressado e desapaixonado. Ela é, ao contrário, um saber plenamente interessado
e apaixonado pelo que está em questão em sua responsabilização.

Na decisão, o homem não simplesmente escolhe entre isso ou aquilo. Sobretudo,


ele escolhe a si mesmo. Define o que ele quer e pode ser.

O decisivo, entretanto, não é que aconteça qualquer ação. Mas que aconteça
uma ação boa, justa, ética. Uma ação na qual o homem atue o melhor de si mesmo, o
melhor de suas possibilidades de ser.

A boa decisão (euboulia), portanto, traz à luz uma vontade reta. A retidão
(orthotes) da vontade, porém, acontece quando ela é bem direcionada para o foco da
ação, que é o Bem. A vontade reta se funda, pois, numa reta compreensão (orthos logos)
das coisas. A reta compreensão conduz à reta decisão, que é acompanhada de uma
transparência na própria compreensão (dianoia).

A boa decisão (euboulia) é um saber, mas um saber que se conquista numa busca
da evidência do que é melhor para o homem. Este saber exige investigação,
perscrutação. Não se realiza como que por instinto, nem como repentina presença de
espírito, de um só golpe.

Para ser acertada, a decisão precisa partir da evidência universal do Bem, da


intuição e percepção daquilo que é melhor para o homem, que o conduz à plena
realização de suas melhores possibilidades. Ela tem que deixar aparecer, vir à luz
(phainesthai), a evidência do próprio Bem. Ela tem que deixar o Bem falar por si mesmo.
Depois, precisa levar em conta todas as particularidades e individualidades das
circunstâncias, que compõem a situação concreta em que este homem, naquele “aqui e
agora”, se encontra – consideração essa que só acontece mediante uma percepção
concreta e sensível (aisthesis). Só então é que ela pode chegar a uma conclusão precisa
do que é devido, do que precisa acontecer.

A boa decisão (euboulia) é a retidão no que diz respeito ao que convém


(sympheron) na concretude e na singularidade de uma decisão histórica. Ela é a
consumação, a plenitude, o sentido da phronesis. Ela é uma visão do instante. A intuição
do que, na singularidade de um instante, se impõe como o bem a ser feito.

22
O saber da phronesis (do tino) é, portanto, decisivo para a ética. É um saber, no
entanto, que só acontece na maturação da própria capacidade de ação. Esse saber não
vem de fora e não pode ser ensinado externamente. Ele é o dom de uma conquista
pessoal, de uma maturação existencial.

Aristóteles nos lembra que o homem só pode ver e conhecer o Bem à medida
que é bom. Só conhecemos, no fundo, aquilo que já somos. Conhecemos o Bem à
mesma medida em que somos bons. Ser bom é a condição primeira para conhecermos
o Bem e fazermos o Bem. Conhecimento e ação são decorrências do ser. Por isso, o
maior cuidado do homem deve ser o cuidado pelo seu poder-ser, o cuidado pelo que ele
é e se torna, a cada novo, passo, a cada nova ação. Só vemos aquilo que somos. Mas
também só somos aquilo que vemos. É um círculo. Mas não se trata de um círculo
vicioso. É, ao contrário, um círculo virtuoso. Circular nessa circularidade, porém, é a
dinâmica da liberdade, na qual o homem já sempre se encontrou e se encontra a si
mesmo.

D) A SOPHIA (SABEDORIA, FILOSOFIA PRIMEIRA)

O quarto modo do aletheúein é o conhecimento chamado sophía – o saber que


se volta para os primeiros princípios de tudo. O quinto, última e mais elevado modo de
conhecimento, porém, chama-se nous – o pensamento, o intelecto, como pura intuição,
pura percepção do Ser.

Os homens inventaram muitas artes e ciências que estão voltadas ou às


necessidades ou aos prazeres da vida. São artes e ciências que se ocupam ou com a
produção de uma obra (poiesis) ou com a ação do homem no mundo histórico da
convivência (práxis). Entretanto, enquanto o homem permanece unicamente voltado
para o útil, o agradável, ele não experimenta uma maior liberdade, sempre premido
pelas circunstâncias, contingências e dependências, ele permanece servil. Por isso, o
conhecimento mais importante e nobre é aquele que transcende o mundo das
ocupações e preocupações, que supera a dimensão do útil e agradável, é aquele que se
cultiva na “skholé”. De início, “skholé” significa, simplesmente, ter tempo livre. Livre de

23
que? Resposta: ter tempo livre do “negócio” – o que significa, por outro lado, ter tempo
livre para o “ócio”: para a diversão e a festa, a brincadeira e o jogo. Depois, a “skholé”
passa a significar ter o tempo livre para a “theoria”. Esta palavra grega pode ser
entendida como contemplação: o ato de ver e considerar alguma coisa com admiração
e atenção, guiado pelo desejo de conhecer a verdade por causa da própria verdade. Por
tudo isso, uma “episteme theoretiké”, isto é, uma ciência que se concentra em ser toda
“theoria” é mais nobre do que uma “episteme poietiké”, ou seja, um entender cuja
competência ou maestria se concentra na produção de alguma obra, que possa servir
de utilidade ou de deleite para o homem.

Com o theoretiké somos remetidos ao bíos theoretikós - a “vita contemplativa”,


aquela vida, na qual o homem se dedica a realizar a paixão de conhecer, de investigar a
verdade, de pensar, de trazer à fala a sua referência com o Ser, de fruir da contemplação
do vigor suave e poderoso do Bem. Esta é, enfim, a felicidade perfeita (he teleia
eudaimonia). Trata-se de uma felicidade que não pode ser ameaçada pela mudança das
situações, das circunstâncias e condições da ação. É que, na contemplação, ao homem
basta o contentamento de simplesmente ser, de simplesmente estar presente, junto
daquilo que nunca se ausenta, aquilo que é sempre, o imutável, o eterno, o divino. O
divino é o que permanece sempre o mesmo. O conhecimento do divino, pois, é o
máximo da felicidade, ainda que seja o mais difícil de se alcançar:

No que concerne às substâncias eternas, os


frágeis conhecimentos que nós temos delas nos
trazem, contudo, em razão da excelência dessa
contemplação, mais alegria que todas as coisas que
nos circundam, da mesma maneira como frágil olhar
fugidio que se volta para pessoas amadas nos doa
mais alegria e alegria maior do que o conhecimento
exato de muitas outras coisas5.
A “sophia” aparece, agora, para nós, não só como uma “tekhné” (saber criador
que se atém a princípios) ou como “episteme” (conhecimento que se atém ao universal
e à conjunturas necessárias), mas, para além disso, como “episteme theoretiké”.

5
ARISTÓTELES, De partibus animalium, I, 5, 644 b 31-35. Apud SCOT, Duns, Sur la connaissance de Dieu et
l’univocité de l’etant (Ordinatio I – Distinction 3 – Première Partie; Ordinatio I – Distinctio 8 – Première
Partie; Colatio 24). Paris: Presses Universitaires de France, Collection Epiméthée, 1988, p. 107-108, 338.

24
A palavra episteme deriva do particípio
epistámenos. Assim se chama o homem enquanto
competente e hábil (competência no sentido de
appartenance6). A filosofia é episteme tís, uma
espécie de competência, theoretiké, que é capaz de
theorein, quer dizer, olhar para algo e envolver e
fixar com o olhar aquilo que perscruta7. É por isso
que a filosofia é episteme theoretiké. Mas que é isto
que ela perscruta? Aristóteles di-lo, fazendo
referência às pròtai arkhai kaì aitíai. Costuma-se
traduzir: “as primeiras razões e causas”8 – a saber,
do ente. (Heidegger, O que é isto – a filosofia? , p.
33).
A filosofia, a aspiração à “sophia”, é portanto, um empenho teorético de
questionamento9 que perscruta os princípios primeiros ou fundamentos primordiais
(pròtai arkhaí) e aquilo que responde, como condições de possibilidade originárias, pelo
vir ao ser de todas as coisas (pròtai aitíai). Ora, desde os primórdios da “philosophia”,
os homens que se tornaram competentes e hábeis na “theoria” perscrutavam a “arkhé”
de tudo, a origem ou princípio primeiro de tudo, ou, de modo plural, as “arkhaí”, os
princípios ou fundamentos, que, de modo necessário, originam e regem tudo quanto
há. Muitos pensadores da “physis”, com efeito, perscrutavam os “elementos”
(stoikheia), as “raízes” (rizómata), as “sementes” (spérmata), como fundamentos
simples do esquema (skhéma) e da ordem (táksis) universal. Embora muitas vezes
presos ao mundo material ou sensível, sua investigação tendia para uma compreensão
do Todo (pan ou holon). Diz Aristóteles:

Ora, se investigamos as causas e os princípios


supremos (akrotátas), é evidente que estes devem
ser causas e princípios da natureza nela mesma
(physeos kath’auten). Se, pois, também aqueles que
investigavam os elementos dos entes (stoikeia ton
onton), investigavam estes princípios supremos,
necessariamente estes elementos não eram
elementos do ente por acidente, mas do ente
enquanto ente. Por conseguinte, também nós

6
A palavra francesa “appartenance” significa: atinência, pertença, atribuição, domínio.
7
Em alemão: “auszuschauen nach etwas um dieses, wonach sie Ausschau hält, in den Blick zu nehmen und
im Blick zu behalten“. „Ausschau halten nach“ = „ausschauen nach“ = procurar com os olhos, espreitar =
„die Augen aussehen nach“ = procurar ver com toda a força.
8
“die ersten Gründen und Ursachen”.
9
Perguntar: aitéo. “Aitía” é o que responde pela origem de algo, ou seja, causa.

25
devemos investigar as causas primeiras do ente
enquanto ente (Metafísica Gama 1, 1003 a, 28-32).
A filosofia passa assim, de uma interpretação ôntica (do ente), para uma
interpretação ontológica (do ser). Desde os seus primórdios, a filosofia é um questionar
e investigar (zetéo) que busca perscrutar as determinações fundamentais enquanto tal
(physis – kath’ auté), ou seja, as determinações do ser não deste ou daquele âmbito do
ente, mas do ser de tudo quanto é. A filosofia é, portanto, desde os seus primórdios,
uma investigação do “ente enquanto ente”, ou seja, do ente no todo, do ente não
enquanto é isto ou aquilo, mas do ente enquanto é, do ente no tocante ao ser. A questão
fundamental da filosofia é, pois: a partir de que o ente é determinado como ente? – ou
seja, a partir de que o ente é determinado quanto ao seu ser? A filosofia investiga o
ente, mas não de modo positivo, isto é, como algo já posto e já dado, mas investiga o
ente buscando sondar os fundamentos ou as profundezas do ser. Ela é investigação
ôntica – uma consideração do ente – mas apenas à medida que ela é uma interpretação
ontológica – uma compreensão explícita do ser. Ora, somente uma tal ciência ontológica
pode ser universal:

Há uma ciência que considera o ente


enquanto ente10 e aquelas propriedades que lhe
competem enquanto tal. Esta ciência não se
identifica com nenhuma das ciências particulares: de
fato, nenhuma das outras ciências considera o ente
enquanto ente de modo universal, mas, depois de
ter delimitado uma parte do ente, cada uma estuda
o que é concomitante a esta parte. Assim fazem, por
exemplo, as matemáticas (Metafísica Gama 1003 a
20 – 26).
Filosofia é, assim, ciência ontológica (do ser), ciência fundamental (dos princípios
primeiros; das determinações fundamentais do ser), ciência universal (que abrange tudo
quanto há, que abarca o todo). Ela é investigação que pergunta, indaga, questiona,
perscruta o ser: que é o que há de mais vasto, pois abrange tudo; e o que há de mais
profundo, por ser o fundamento a partir do que tudo é e é aquilo que é. Este
questionamento é, pois, não somente universal, mas também radical, fundamental,
originário. Trata-se, em virtude desta universalidade e radicalidade, de uma investigação

10
Estin episteme tis he theorei to on he on.

26
difícil, pois, sempre de novo, conduz a “aporias”, isto é, ao inacessível. Temos nós, hoje,
experiência da necessidade desta questão e da sua dificuldade? Heidegger, no início de
seu tratado, chamado “Ser e Tempo”, partia do fato de que para os contemporâneos,
esta pergunta não faz nenhuma sentido e a necessidade e importância dela já não é
sentida, e, por isso, considerava necessário, antes de tudo, despertar um sentido para a
necessidade de colocar esta questão, antes mesma de tentar responde-la:

... pois é evidente que de há muito sabeis o


que propriamente quereis designar quando
empregais a expressão ´ente`. Outrora, também nós
julgávamos saber, agora, porém caímos em
aporia”11. Será que hoje temos uma resposta para a
pergunta sobre o que queremos dizer com a palavra
“ente”? De forma alguma. Assim sendo, trata-se de
colocar novamente a questão sobre o sentido de ser.
Será que hoje estamos em aporia por não
compreendermos a expressão “ser”? De forma
alguma. Assim, trata-se de despertar novamente
uma compreensão para o sentido dessa questão 12.
Há filosofia à medida que houver questionamento pelo sentido de ser, a
pergunta que indaga pelo que significa “ente” – o que está sendo. Esta é a pergunta que
perpassa toda a história da filosofia. E o diálogo dos filósofos no decorrer do tempo se
configura segundo o modo como cada um, participando no debate sobre o sentido do
ser, imposta a sua investigação, dando à pergunta, na medida em que isso lhe é possível,
e segundo o horizonte de seu tempo, certa transparência de pensamento. As diferenças
das filosofias testemunham, assim, um “parentesco no mesmo”, ou seja, uma
participação plural no diálogo (dialégesthai) entorno de uma única e mesma pergunta:
o que é aquilo que é, o que significa “ser”? A filosofia está sempre a caminho do ser em
seus encontros com o ente. É partir da compreensão do ser do ente (da sua “entidade”)
que as filosofias pensam o mundo, o homem, até mesmo Deus. E, no entanto, neste
encaminhamento a filosofia sempre de novo experimenta que o ser – aquilo que ela
busca – se lhe dá como o inacessível. Por isso, a resposta encontrada nunca esgota a
pergunta. Ela é apenas o indício de uma doação oblíqua, nunca direta, e, por isso
mesmo, misteriosa, do ser na compreensão da totalidade do ente. Trata-se de uma

11
Platão, Sofista, 244 a.
12
Heidegger, prólogo de Ser e Tempo.

27
experiência pré-predicativa e pré-temática. Por isso, o tema central de cada filosofia -
o modo como cada uma responde ao que significa “ser” – nunca nomeia diretamente o
“ser”, apenas acena, a partir de um caminho singular e em meio a uma destinação
histórica, para ele, enquanto o que provoca o filósofo a pensar. Este diálogo e esta
pergunta em torno do ser é, portanto, o que há de perene e de idêntico em toda a
história da filosofia, é aquilo que constitui a sua necessidade e possibilidade mais íntima.
Disto nos fala o próprio Aristóteles, quando diz que a pergunta pelo ser é o que há de
mais arcaico, de mais atual e de perene em toda a história da filosofia.

O passo para a “filosofia”, preparado pela


sofística, só foi realizado por Sócrates e Platão.
Aristóteles então, quase dois séculos depois de
Heráclito, caracterizou este passo com a seguinte
afirmação: Kaì de kaì tò pálai te kaì nyn kai aeì
zetoúmenon kaì aeì aporoumenon, tí tò ón?
(Metafísica, VII, 1, 1028 b 2 ss). Na tradução isso soa:
“Assim, pois, é aquilo para o qual (a filosofia) está em
marcha já desde os primórdios, e também agora e
para sempre e para o qual sempre de novo não
encontra acesso (e que é por isso questionado): que
é o ente? (tì tò ón)”. A filosofia procura o que é o ente
enquanto é. A filosofia está a caminho do ser do
ente, quer dizer, a caminho do ente sob o ponto de
vista do ser. Aristóteles elucida isto, acrescentando
uma explicação ao tì tò ón, que é o ente?, na
passagem acima citada: toutó esti tís he ousía?
Traduzido: “Isto (a saber, tì tò ón) significa: que é a
entidade do ente?” O ser do ente consiste na
entidade. Esta, porém – a ousía –, é determinada por
Platão como ideia, por Aristóteles como enérgeia
(Heidegger: O que é isto – a filosofia?, p. 33).

E) O NOUS

O (nous) é a mais alta determinação do ser do homem13.

13
Nos antigos Nous foi nome para a própria inteligência divina. O “nous” (percepção ou inteligência
espiritual) está presente já nos primórdios do pensamento grego. Diógenes Laércio traz um aforismo

28
Os gregos tinham a palavra “aísthesis”, que quer dizer a percepção sensitiva com
sua intuição e evidência, e tinham o verbo “noein” que significava o perceber intelectivo
com sua intuição e evidência. A aísthesis é a simples percepção sensitiva de alguma
coisa. A aísthesis é uma forma de descobrimento. A visão, por exemplo, descobre cores;
a audição, descobre sons; o paladar, sabores etc. Na percepção e para ela algo se torna
acessível. Cada aísthesis tem a sua evidência. A evidência visual é diversa da evidência
auditiva, da evidência tátil etc. Do mesmo modo, cada aísthesis tem sua verdade. Esta
verdade consiste no seu ser-descobridor. Deste modo, quando a visão descobre cores
acontece uma verdade perceptiva visual. Na medida em que, pelo modo próprio de
descobrir que cada percepção sensitiva realiza, tornar-se acessível o ente que lhe
corresponde nela e para ela, pode-se falar de uma verdade da percepção sensitiva.

Por sua vez, verdadeiro é o noein, o perceber intelectivo, à medida que desvela,
numa simples apreensão, o ser do ente em sua simplicidade, bem como as suas
determinações simples14. O noein é um perceber (vernehmen) que é um receber
(annehmen) o dar-se do ser mesmo em sua simplicidade e em suas determinações
simples, ele realiza uma intuição, que tem a sua própria evidência. Trata-se da evidência
ontológica. O noein é, pois, um relacionamento de ser com o ser. É o acontecer do
desvelar do ser, que está sempre vigente no encontro com o ente, quer no descobrir do
ser do ente que não somos e que nos vem ao encontro dentro do mundo, quer no abrir-
se do ente que somos. Em todo o caso, este desvelamento do ser se dá de modo
estruturalmente prévio, como constitutivo, como condição de possibilidade, de todo o
descobrimento do ente que não somos, bem como de toda abertura do ente que somos.
A apreensão do ente enquanto ente, ou seja, a apreensão do ser e de suas
determinações simples e originárias, está na base de todo e qualquer apreensão. A

atribuído a Tales de Mileto, segundo o qual “de todos os seres, [...] o mais rápido é o nous, pois ele
percorre tudo”. Pitágoras o identificava com a Mônada, que é o Bem, que é Deus (Aécio I, VII, 18). Para
Anaxágoras, o nous atua junto com o ápeiron, para deixar e fazer surgir o kósmos. O nous
(Inteligência/Espírito) é a potência ativa. O ápeiron (indeterminado) é o caos, a potência
passiva/receptiva. Ambos, combinados, formam o kósmos (o todo do ente). Na linguagem de Aristóteles,
o nous é enérgeia, princípio de realização, ato, e o ápeiron (caos) é dýnamis, capacidade passiva-receptiva,
em potência para esta realização. O Espírito é eterno (fr. 14); é autocrático; existe separadamente mónos),
sem se misturar a nada (fr. 12). É ele que realiza a separação dos elementos confundidos (fr. 13). Assim,
“ele é o Princípio primeiro de todas as coisas”, é “a causa da beleza e da ordem”, segundo testemunho de
Aristóteles.

14
Ser e Tempo I, p. 64.

29
compreensão do ser é estruturalmente prévia a e a base de toda compreensão15. Por
ser o mais simples e o mais comum, o ser, em sua doação, não chama a atenção.
Vivemos sempre na apreensão e compreensão do ser, embora só muito raramente é
que o tornamos tema de nosso estudo, de nossa meditação. O ser é o que há de mais
claro. E, no entanto, tematicamente, nós nos relacionamos com sua evidência como o
morcego com a luz. Quando tentamos, em vendo, trazer à explicitação o ver do ser nós
investigamos como que às apalpadelas16. O ser é o que nos é mais próximo. Nós somos
sempre nesta proximidade mais próxima do ser. Vivemos no modo de ser-o-aí para o
ser. O desvelamento do ser está sempre acontecendo em nós e para nós. E, no entanto,
tematicamente, o ser nos é o mais distante. Em sendo, quer dizer, em vivendo na
abertura da compreensão e intepretação, bem como da linguagem e do discurso,
apreendemos e compreendemos ser, vivemos, pois, na sua proximidade mais próxima.
Mas, tematicamente, ignoramos o ser. Vivemos, assim, no esquecimento do ser.

A palavra “nous” vem da raiz “snu”, que tem a ver com farejar. Quer dizer: ter o
sentido dirigido a. “Nous” significa, assim, a percepção espiritual, a apreensão
intelectual do sentido de ser, o pensamento, portanto. Os medievais traduzem ora por
“mens” (mente), ora por “intellectus”. É a disposição receptiva à manifestação do ser, à
verdade. “Nous” diz, também, “insight”, vislumbre das possibilidades de ser,
inventividade, portanto. Também tem a ver com a consciência (syneidesis), isto é, com
o saber de si por parte do homem no tocante à sua orientação total na vida. Pode ser,
portanto, teorético ou prático. É o mais elevado no homem, o mais nobre, o divino no
homem. É ele que está na raiz dos outros quatro modos de desencobrimento do ente e
do ser.

A humanidade do homem consiste em ser o lugar onde irrompe e se instaura a


percepção do ser, aquilo que os gregos dos primórdios, em especial Parmênides,
chamaram de  (noein). Esse perceber é, fundamentalmente, um receber e acolher
o presentear-se do ser, dando-se e retirando-se, desvelando-se e velando-se, em toda
apresentação e representação do ente enquanto ente.

15
Ser e Tempo I, p. 28.
16
Aristóteles. Cf. Logik, p. 180

30
O pensar é um ver. Um ver simples e imediato. Aquele ver que acontece como a
evidência do ser. Aquele ver que nos constitui como o espaço de abertura da iluminação
do ser, e, por conseguinte da configuração do mundo. Esse ver coincide com o simples
fato de existirmos. Pois existir é ser esse ver, é ser essa iluminação, essa claridade do
ser. Ser homem é suportar essa abertura. Esse ver somos nós mesmos. Entretanto, nem
sempre vemos que vemos. Nem sempre apreendemos essa apreensão do ser, que
somos nós mesmos. Nem sempre nos damos conta de que somos esse ver e que o
simples fato de existirmos já nos constitui como essa abertura da iluminação do ser. Se
essa apreensão da evidência do ser é o que nos faz ser o que somos, nem sempre
estamos acordados para essa mesma evidência, a evidência do “eu sou”, onde o “sou”
põe o próprio eu e todas as suas possibilidades.

Pensar é perceber o ser. A percepção do ser não é somente recepção e


acolhimento, mas é também recolhimento. O pensar é um perceber recolhido e um
recolhimento perceptivo, aquilo que os gregos chamaram de  (légein). Pensar é
colher e recolher, apreender e compreender o ser como  (logos), isto é, como o
Um unificador de tudo. Pensar é deixar-ser a unidade do ser na multiplicidade dos entes
e a multiplicidade dos entes na unidade do ser. É deixar-ser a identidade na diferença e
a diferença na identidade. Esse deixar-ser, porém, é, fundamentalmente, uma decisão
e um cuidado. Pensar é cuidar do Todo, é obediência ao apelo, que veio à tona no dito
do poeta Periandro, e que diz:    (meléta to pan): cuida do ser em todo o
ente.

A língua portuguesa ainda guardou, na semântica do verbo “pensar”, esse


sentido de cuidado. Num uso mais raro e arcaico, com efeito, pensar significa “cuidar ou
tratar convenientemente de alguma coisa”. É nesse sentido que Manuel Bandeira
escreve num verso: “As grandes mãos da sombra evangélica pensam / as feridas que a
vida abriu em cada peito”17. As mãos pensam feridas no sentido de cobri-las de
cuidado, de tratá-las com desvelo, de encobri-las de proteção, de, através do
tratamento, deixá-las curar, isto é, deixar que o corpo mesmo, na sua vitalidade,
reconstitua o que está dilacerado, reintegre o que está cortado, recobre vigor e dê

17
BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira, p. 14. Apud Holanda Ferreira, Aurélio B. Dicionário Aurélio,
verbete “Pensar”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

31
consistência ao que está enfermo. Pensar é curar, isto é, é cuidar de reconduzir tudo ao
vigor originário do ser, que tudo une e reúne, que tudo congrega e integra.

O cuidado por colher, acolher e recolher o sentido do ser em toda a concreção


do ente aparece na formação da palavra latina intellectus. Essa nos remete ao verbo
intelligere, que se compõe de inter ou intus mais legere que significa “ler”. Nesse
sentido, o verbo intelligere pode ser interpretado como ler por entre as linhas, ler nas
entrelinhas, isto é, recolher o fio dourado do sentido do ser por entre as tessituras das
significações do ente. Tomás de Aquino distinguia o intellectus da ratio. O intellectus
está para a ratio como o repouso para o movimento, como a plenitude do encontro para
a carência da busca. O intellectus se dá como simples aprehensio, ou seja, como simples
apreensão, a saber, simples e direta captação do ser. Simples é a evidência do ser, pois
o ser se dá todo, inteiro, a cada vez, e de maneira direta e imediata, numa evidência
originária, tão originária que não chama atenção para si, mas concede-se a si mesmo
como o que há de mais comum e ordinário, retraindo-se no pudor de sua humildade. O
mistério de ser, de fato, se dá igualmente e todo por toda a parte e em todo o momento,
no aparecer de cada coisa, da mais sublime à mais ordinária. Como nos conta uma
história chinesa, que evoca a onipresença do mistério de ser sob o nome do Tao
(caminho):

Mestre Tung Kwo perguntou a Chuang: “mostre-


me onde pode o Tao ser encontrado”. Respondeu
Chuang-Tzu: “não há lugar onde ele não possa ser
encontrado”. O primeiro insistiu: “Mostre-me, pelo
menos, algum lugar preciso onde o Tao possa ser
encontrado”. “Está na formiga”, disse Chuang. “Está ele
em algum dos seres inferiores?” “Está na vegetação do
pântano”. “Pode você prosseguir na escala das coisas?”
“Está no pedaço de taco”. “E onde mais?” “Está neste
excremento”. Com isto, Tung Kwo nada mais podia dizer.
Mas Chuang continuou: “Nenhuma de suas perguntas é
pertinente. São como perguntas de fiscais no mercado,
controlando o peso dos porcos, espetando-os nas suas
partes mais tenras. Por que procurar o Tao examinando
‘toda escala do ser’, como se o que chamássemos
‘mínimo’ possuísse quantidade inferior do Tao? O Tao é
Grande em tudo, Completo em tudo, Universal em tudo,

32
Integral em tudo. Estes três aspectos são distintos, mas a
Realidade é o Uno”18.

Pensar é ser. É ser a abertura da revelação da Grandeza de ser, dando-se e


retraindo-se, como presença e ausência, em toda a parte e a todo o momento. A
Grandeza de ser não é maior nas coisas grandiosas e sublimes e menor nas coisas
pequenas e ordinárias. A Grandeza de ser é grande em tudo: completa, universal, íntegra
em tudo. O pensar é a exposição e o recolhimento desta Grandeza de ser. E esta é a
essência do intelecto. A palavra intellectus diz, aqui, portanto, não uma potência entre
outras da mente, mas a essência mesma da mente: a “flor do intelecto” (nóou anthos)
de Proclo, o ápice da mente (apex mentis) de Boaventura, o fundo da alma (Grund der
Seele) de Mestre Eckhart. Trata-se daquela abertura abissal e originária em que a alma
se dá como centelha (scintilla) do espírito, isto é, enquanto faísca e cintilação do fogo
divino, cujo abrir-se e fechar-se instantâneo, constituem o lugar do salto em que o
mundo se faz mundo.

O pensar constitui a nós mesmos em nosso relacionamento de ser com o ser de


tudo o que é. O pensar é um receber, um estar aberto, para manifestação, a revelação,
a doação do ser de tudo o que é. Este pensar não é uma propriedade do homem. O
homem é que é uma propriedade deste pensar. Ser homem é pertencer ao pensar.
Pensar, porém, é ser. Pensar é a abertura que deixa irromper, vir à evidência, tornar-se
“fenômeno” o ser de tudo o que é. O pensar, portanto, deixa ser o ser de tudo o que é.
Este pensar nos constitui: nós o somos, sempre, desde que somos homens. Ser-homem
é pertencer a esta abertura da manifestação do ser de tudo o que é.

O pensar que somos não incide sobre, antes, coincide com o ser do que é. O ser
não está fora do pensar e nem o pensar está fora do ser. Pois o pensar, que nos constitui
como homens, consiste em percepcionar o ser de tudo o que é. Os gregos chamam de
noein a este percepcionar do ser. Este percepcionar é, antes de tudo, um admitir. É uma
recepção, uma aceitação e um acolhimento da realidade: um deixar vir de encontro
aquilo que se mostra, que aparece, tal como se mostra. Percepcionar é também um
tomar depoimento do que o que se mostra e aparece como sendo diz de si. Ora,
fenômeno é o que aparece, isto é, o que se manifesta, e, se manifestando, se divulga,

18
MERTON, Thomas. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 2002 (10ª Ed.), p. 182-183.

33
dá notícia de si. “Phainomenon”, fenômeno, vem de “phainesthai”: pôr-se a brilhar,
aparecer no próprio brilho19. Pensar é o a recepção que acolhe e recolhe o dar-se de
tudo aquilo que se põe a brilhar, que aparece no seu próprio brilho. Além disso, noein
(pensar = percepcionar) significa também um deter esta aparição do ser em si mesmo,
e, por conseguinte, um conter esta aparição na forma do conceito.

4.2.3. O LÓGOS APOPHANTIKÓS E SUA FUNÇÃO DE DESENCOBRIMENTO DO ENTE


E DO SER

Aristóteles diz que todos os modos, com exceção do (nous), são


(metá lógou) – isto é, são exercidos com o falar, são exercícios ou
realizações que se acontecem no medium do discurso. No discurso, está em jogo o
(aletheúein), o revelar, o abrir e manifestar do ente. Esta é uma
determinação de ser do ser-homem mesmo. O homem realiza a sua vida, cumpre o seu
ser-homem, sendo descobridor e abridor do ente no seu ser e trazendo à fala o ente
aberto e manifestado no discurso. É o que quer dizer a expressão:
(aletheúei he psyché). Mas o homem, vale dizer, o discurso humano,
pode também não cumprir esta função descobridora e abridora do ente mesmo no
tocante ao seu ser. Isso se dá pela ignorância; pela opinião dominante e o seu falatório;
e pelo erro. O ser descobridor e abridor das coisas mesmas é uma possibilidade do existir
humano. Nele, o homem realiza o seu poder-ser. É virtude (vigor, potência). Entre os
cinco modos, há a (sophía) – a (philosophía): o ser-decidido e resoluto
para a verdade, isto é, para o ser-verdadeiro. Seu interesse e sua preocupação constante
é com o ser e estar na verdade do homem. Somente sendo e estando na verdade – no
círculo aberto da manifestação das coisas mesmas – é que o homem realiza plena e

19
Heidegger, M. A caminho da linguagem, 104.

34
propriamente o seu poder-ser homem, o humano dele e nele mesmo. Entretanto, isto,
o ser e estar na verdade, requer do homem uma luta. É o dom de uma conquista.
Somente se libertando continuamente da não verdade para a verdade é que o homem
realiza o seu ser-homem plena e propriamente. O homem não vive no puro nous, no
pensar puro e simples. Mas vive, antes, no dianoein, isto é, no pensar que discorre, no
lógos.

4.2.3.1. A INFRA-ESTRUTURA DA LINGUAGEM NO PENSAMENTO


OCIDENTAL A PARTIR DE ARISTÓTELES.

No início do tratado, posteriormente intitulado Peri Hermeneías, traduzido para


o latim como De interpretatione, Aristóteles diz o seguinte:

De um lado, os sons da voz são símbolos das


disposições da alma, de outro, as marcas escritas o são dos
sons da voz. E assim como as letras não são as mesmas para
todos, do mesmo modo também os sons. São idênticas em
todas as disposições da alma, das quais os sons são os
primeiros signos, como já são também as mesmas coisas, das
quais aquelas são semelhanças.

Tentando outra tradução, que traga à tona de maneira mais evidente o sentido
do texto citado:

São, pois, aquelas coisas que se dão na ressonância


da voz, símbolos das paixões (afecções, disposições) na alma,
e as coisas que são escritas são símbolos daquelas coisas que
se dão na ressonância da voz. E assim como as coisas escritas

35
não são as mesmas para todos, do mesmo modo também os
sons da voz não são os mesmos. Aquelas coisas de que isso
(coisas escritas e sons da voz) são primordialmente signos
(coisas que mostram), são para todos (os homens) as
mesmas paixões da alma, e as coisas, das quais estas
(paixões da alma) formam apresentações assemelhadas, são
igualmente as mesmas.

A tradução entende os σημεῖα (semeia – os signos, aquelas coisas que mostram),


os σύμβολα (symbola - os símbolos – o que é lançado junto, e, nessa junção, deixa e faz
com que um se atenha ao outro) e os ὁμοιώματα (homoiómata – as apresentações
assemelhadas, as semelhanças) como um mostrar, no sentido de deixar aparecer, o que,
por sua vez, encontra-se no âmbito do desencobrimento (αλήθεια – alétheia).

O texto de Aristóteles se mantém numa fala esclarecida e sóbria, que torna


visível a clássica estruturação que abriga a linguagem como fala. As letras do alfabeto20
mostram os fonemas21. Os fonemas mostram as disposições na alma22. As disposições
na alma mostram as coisas que que lhe con-cernem23. O mostrar configura e sustenta
as escoras dessa construção. De maneira variada, o mostrar conduz algo para um
aparecer, deixando, assim, apreender o que aparece e permitindo que se discuta o que
se apreende.

Semainein é um conceder semata (acenos, indícios, indicações). A palavra grega


no singular é “sema”: indício, vestígio, marca distintiva, senha, sinal. “Sema” é também
presságio, augúrio, auspício. É ainda o astro ou uma constelação, da qual se tiram
indicações na orientação concernente ao céu. É, por fim, o túmulo, a tumba.

O falar acontece por amor do dizer. Dizer é mostrar. Mostrar, no falar, é conceder
acenos, dar indícios, oferecer indicações, oferecer sinais. Mas tudo isso acontece no
sentido de um anunciar, que se cumpre como um revelar, um divulgar, um mencionar

20
τὰ γραφόμενα – tá graphómena
21
τὰ ἐν τῇ φωνῇ - tá en te phoné
22
παθήματα τῆς ψυχῆς – pathémata tês psykhês
23
πράγματα - prágmata

36
(fazer menção de, referir, relatar, expor, narrar), um lembrar, um recordar e um
comemorar. O anunciar é entendido, pois, pelos gregos, como um mostrar, deiknymi.
Da mesma raiz de “deiknymi” (mostrar) é o verbo latino “dicere”: dizer. Dizer é mostrar,
isto é, deixar e fazer ver, trazer à evidência alguma coisa. O sinal, pois, no falar, precisa
ser entendido na dinâmica do dizer, isto é, do mostrar.

4.2.3.2. A FUNÇÃO MOSTRADORA DO LÓGOS. O APOPHAÍNESTHAI.

Aristóteles, fundador decisivo da investigação do(lógos) no ocidente,


experimentou o sentido do légein), do falar, na sua função de (deloûn):
tornar manifesto aquilo de que se fala, ou seja, aquilo que, na fala, está em causa, em
questão. A fala, enquanto (lógos)-(deloûn), torna patente isto que, nela,
requer vir à fala. Com maior acuidade, esta função se cumpre no
(lógos apophántikós), ou seja, como (apóphansis),
pro-posição ou e-nunciado (“juízo”). A pro-posição apresenta, porém, uma estrutura
tríplice: é demonstração (Aufzeigung); é predicação (Prädikation); e é comunicação
(Mitteilung) ou declaração (Heraussage). O momento fundamental é a demonstração24.
Trata-se de mostrar, de um deixar ver (sehen lassen) o que está em causa a partir dele
mesmo.

O (lógos apophántikós) é aquele que cumpre a função de


(apophaínesthai)25: trazer à luz, deixar ver - (phaínesthai) o
(phainómenon), o que vem à luz, o que se mostra a si mesmo por si mesmo.
Neste sentido, a fala cumpre sua função originária quando é fenomeno-lógica, isto é,
quando é um (lógos) propriamente dito, quando deixa vir à fala, manifesta,
torna patente, o que se abre e vem à luz. “O(lógos) leva o fenômeno, isto é,

24
Aqui usa-se esta palavra sem a conotação lógico-matemática. Não podemos entrar, aqui, no caráter de
predicação e de comunicação-declaração. Nem podemos, por brevidade, tratar do caráter de
(phoné metá phantasías) – articulação verbal em que algo é visualizado; nem,
ainda, do caráter de (sýnthesis), de com-posição, do(lógos
aphophantikós) que, pensado a partir da (apóphansis), da demonstração, consiste em deixar
e fazer ver algo como algo, na medida em que se dá em conjunto com outro.
25
Cfr. De interpretatione cap. 1-6; Met. Z. 4 e Eth. Nic. Z.

37
aquilo que se põe à disposição, a aparecer por si mesmo, a brilhar à luz de seu mostrar-
se (cf. Ser e Tempo, § 7B)”26. A fala, no acontecer do discurso humano, é sempre de novo
e de modo novo provocada a deixar ver aquilo de que fala, seja para o próprio falante,
seja para os que o escutam, e que conversam e dialogam, no falar uns com os outros.

O (lógos apophántikós), a fala demonstrativa é provocada,


pois, a cumprir a sua função fenomeno-lógica, isto é, a função de (légein)
enquanto (apophaínesthai). Isso implica, essencialmente, que a fala seja
verdadeira. A verdade, porém, não consiste, aqui, em mera concordância ou adequação
entre o enunciado e a coisa em questão. A verdade da fala consiste, antes, na realização
do (lógos) como (aletheúein). Isso quer dizer: retirar do encobrimento
(Verborgenheit) o fenômeno que está em questão na fala, ou seja, aquilo de que a fala
está falando, e deixá-lo ver (alethés), ou seja, como des-encoberto
(Unverborgenes). Entretanto, a fala pode não cumprir esta função fenomeno-lógica, de
desencobrimento do fenômeno. Com efeito, ela pode, pelo contrário, enganar -
(pseúdesthai) – no sentido de encobrir, ou seja, de propor algo, fazendo-o
passar por aquilo que ele não é. A pro-posição da fala humana nunca pode ser, neste
sentido, o lugar primordial da verdade, visto que ela pode ser sempre desencobridora
ou encobridora.

Aristóteles diz:
(Estì dè
lógos... apophantikós... em ho tò aletheuein e pseúdesthai hypárchei): é um discurso
demonstrador aquele em que pode haver o ser-descobridor (o verdadeiro) ou o ser-
encobridor (o falso) (Peri Hermeneias IV 17 a 2). A proposição é verdadeira ou falsa.
Tomando por medida isto a que o enunciado se refere, ela é verdadeira se o dá a
conhecer, se o torna manifesto (hermeneía). Se ela, porém, em vez de descobrir e dar
acesso ao ente enquanto tal, a partir dele mesmo, ela o encobrir e vedar este acesso
fazendo-o passar por aquilo que ele não é, então ela é falsa.

26
P. 188.

38
4.2.3.3. A LINGUAGEM COMO CONVERSAÇÃO. HERMENEIA.

Aristóteles, no De Anima (tratado sobre a alma – isto é, a vida, o ser do vivente)


[420b] diz que o ente, enquanto vivente, necessita da língua, para duas funções, a saber,
por um lado, para saborear, por outro, para a linguagem, isto é, para a conversa que
emerge da lida com as coisas: (he diálektos)27. O uso da língua para o
saborear é necessário para muitos seres vivos. É mais difuso. Já o uso da língua para a
hermenéia), quer dizer, para o conversar, para o dirigir a palavra a alguém e
o discutir sobre algo com os outros (conversar sobre algo) está aí, em vista da melhor
vida, isto é, de garantir o mais próprio ser, a mais própria realização do ser de um vivente
(o homem) em seu mundo e com o seu mundo (bíos polítikós + bíos theoretikós). Nesta
passagem, (hermenéia) equivale a (he diálektos), o discurso no
sentido da conversa, da discussão coloquial no círculo da convivência cotidiana, na
circulação do diálogo, no exercício da pluralidade.

(He diálektos), a conversa coloquial, a discussão, ou seja,


 (he hermenéia), se dá e se realiza no modo do lógos
apophántikós), do discurso mostrador. Assim,  (he hermenéia) é a fala, não
no mero sentido de vocalização e locução, mas a fala no sentido do discurso mostrador,
isto é, da fala que deixa e faz ver algo, que deixa e faz descobrir alguma coisa, por partir
da coisa mesma que há de ser descoberta. Trata-se daquela fala que retira o que diz
daquilo de que está falando. Deste modo, (he hermenéia) é a fala no
sentido da (apóphansis), do discurso revelador. O discurso no sentido de
falar de alguma coisa ocupa-se com o (deloûn): tornar evidente, manifestar,
mostrar, tornar noto, fazer saber, revelar28. Este revelar, no entanto, de início e na maior
parte das vezes, não tem o sentido teorético, mas prático. No ser ou existir cotidiano,
na vida prática, na convivência plural entre os homens, em que está em jogo o deliberar
e o querer, o que se busca revelar, como diz Aristóteles na Política (A 2, 1253a 14ss) é

27
Esta expressão -(he diálektos) – significa colóquio, conversação, discussão; linguagem
comum; mas também modo de falar, inflexão; daí: língua, dialeto; dicção, estilo; locução particular de um
lugar. Também se usa esta expressão para dizer a linguagem e a expressão de um instrumento musical.
28
Cf. o adjetivo (délos): visível, manifesto, claro, evidente. é o nome de uma ilha, terra natal
do deus Apolo e de sua irmã a deusa Artemis (Sol e Lua).

39
) (tò symphéron kaì tò blaberón) – de um lado, o que
contribui, o que convém, para a vida, e, de outro lado, o que é danoso, nocivo. Isto quer
dizer que  (he hermenéia), enquanto discurso coloquial cotidiano, é a fala
que se dá no diálogo entre os homens, enquanto esta busca fazer manifesto o ente (o
real) que se tem em vista, no seu caráter de contribuição (conveniência, vantagem,
préstimo) e de não contribuição (nocividade, dano). Assim, Péricles, num discurso
reportado por Tucídides, apresenta-se como um homem competente para saber
(- gnonaí) e para tornar noto (- hermeneúsai) aquelas coisas que são
necessárias, devidas, oportunas, para a pólis)29.

Na Poética, Aristóteles, falando das partes constitutivas da tragédia30, inclui a


(léxis)31. E sentencia:
(légo dé,..., léxin eínai
tèn dià tes onomasías hermeneían) – digo pois que o discurso é o tornar noto
(hermeneía) através do uso de nomes – (onomasía)32.

Um dos escritos de Aristóteles recebeu o nome de (Perì


hermeneías). O nome não foi dado pelo próprio Estagirita. Este título, porém, já era
conhecido na época de Andrônico de Rodes (séc. I a. C.), principal organizador dos
escritos de Aristóteles. Uma hipótese é que este título tenha surgido na primeira
geração após a de Teofrasto (+287 a.C.). O texto parece ser um esboço inacabado. O
interesse do tratado ( - pragmateía) se dirige para o (lógos),
discurso, enquanto (apóphansis): o enunciado, no sentido da proposição
mostradora, declaratória. Sua função é deixar ver o ente (o real) em seu ser e estar
descoberto.

29
De Bello Peloponnesiaco. Apud Heidegger, M. Ontologia (Hermenêutica da faticidade). Petrópolis:
Vozes, 2013, p. 16-17.
30
Estas são seis: Mýthos: narração; ethe: modos habituais de comportamento, usos, costumes, caráteres;
léxis: o discurso; diánoia: pensamento; ópsis: espetáculo; e melopoiía: música.
31
Léxis significa discurso; modo de falar, dicção, elocução, estilo; língua; palavra, frase, expressão;
significado literal de um texto; trecho de um texto ou um texto mesmo. Remete a légo): recolher, colher,
escolher > contar, expor, narrar; falar, dizer; declarar, anunciar; querer dizer; ordenar; recitar; declamar;
afirmar, revelar; fazer saber; numerar; narrar.
32
Onomasía quer dizer: uso de nomes, denominação; linguagem, expressão. Posteriormente: designação.
O verbo onomázo quer dizer chamar pelo nome, voltar-se a outro usando a palavra, nomear, enumerar;
dar nome, denominar; exprimir, dizer; dedicar, consagrar; designar.

40
4.2.3.4. O HOMEM COMO “ZOON LÓGON ÉCHON / ANIMAL RATIONALE”

Lógos significa discurso, a totalidade do que foi dito e do que é dizível. Os gregos
não têm um termo único para “linguagem”. Falam de lógos (discurso), de mythos
(narração concernente ao extraordinário), de épos (palavra cantada, poesia)... Lógos é
discurso. A totalidade do discurso é mais do que a totalidade de um léxico. Discurso é a
capacidade fundamental do homem de poder discorrer, discursar, falar de algo.

O ser-homem do homem é, para a experiência dos gregos, marcado pela


capacidade de discorrer e discursar. O homem é zoon logon echon – o vivente que tem
enquanto posse essencial a possibilidade (possibilitadora) do discurso. O vivente não
humano (os bichos) é zoon álogon – um ser vivo que não tem esta possilidade. A tradição
ocidental, a partir dos gregos, entendeu o ser do homem como um pertencimento à
linguagem: o homem como (zoon logon echon), vivente, cuja
vitalidade consiste no exercício do relacionamento com o (lógos), a linguagem.

À base da compreensão relacionamento entre homem e linguagem, pois, está a


determinação grega: (ánthropos: zoon logon echon) –
homem: vivente que vive no elemento da linguagem. Assim como o peixe vive no
elemento água; como o pássaro vive no elemento ar; assim também o homem vive no
elemento linguagem. Foi sobre esta compreensão que se cultivou e desenvolveu a
consideração e a discussão do lógos entre os gregos; depois, a gramática lógico-
especulativa medieval; depois, a doutrina teológica da linguagem de Jakob Boehme;
depois, a filosofia da linguagem do iluminismo, onde o animal racional ascende à
determinação de subiectum (sujeito). A humanidade do homem se encontra na
linguagem (Humboldt). Nele, a animalidade é determinada pela racionalidade. E razão
é lógos (Hamann)33.

A origem da fórmula “animal rationale” está na expressão grega:


(zoon logon echon). A definição tradicional, que se tornou um fio
condutor decisivo para a compreensão do ser do homem no ocidente, se apoia sobre

33
Aqui, a linguagem deixa de ser um mero objeto da investigação filosófica, e passa a ser o seu domínio,
o seu medium essencial. Só então é que surge, propriamente, a filosofia da linguagem.

41
uma determinada posição da mirada da consideração do pensamento e uma
determinada perspectiva a respeito desse mesmo ser. No modo como ela é de costume
assumida, no entanto, permanece inquestionada no tocante ao seu sentido e no tocante
aos seus motivos originários. Ela se apresenta, usualmente, desarraigada do chão de sua
origem34.

Este chão encontra-se na filosofia grega. Uma indicação decisiva nos vem de
Aristóteles, mais precisamente da sua Ética a Nicômaco (cf. I, 7, 1098 a 3 s). Em jogo está
a investigação a respeito do mais alto bem entre os bens alcançáveis através da ação, a
saber, a (eudaimonía), a felicidade. Esta, enquanto estado de plenitude de
realização do ser do homem, é o fim de todas as ações humanas. A felicidade é o bem
mais perfeito; é aquilo que o homem, em última instância, busca por si mesmo: é
escolhida por si mesma e não em vista de outra coisa. Ela é um bem autossuficiente. É
mais do que um bem funcional, isto é, limitado por um préstimo e uma serventia. Por
ser o bem mais perfeito e por ser autossuficiente, a felicidade é o sumo bem do homem.
É o penhor pelo qual se empenham todas as ações humanas. É o que consuma,
preenche, dá plenitude à ação. O bem de um ente acontece à medida que ele
corresponde ao conceito de sua essência. Isto é: quando este ente realiza a sua obra
mais própria a partir de sua atividade. Mas, qual é a obra (- érgon) e a atividade
(- práxis) própria do homem? O viver (zên) não é a obra própria do
homem, com efeito, ele tem em comum o viver com as plantas. Também a vida dos
sentidos (- zoé aisthetiké) não é a realização própria do homem, com
efeito, ele tem em comum essa vida sensitiva com o cavalo, com o boi, ou com qualquer
outro animal. Resta, portanto, a vida que se caracteriza como
(praktiké tis toû lógon échontos), isto é, certa vida
concernente à práxis, à ação, que tem por característica ater-se ao “lógos”.

É neste contexto que surge o que se tomou, no ocidente, por definição do


homem. O (ánthropos: homem) é o (zôon: vivente, animal) ao qual se
atribui o viver na (práxis: ação) se atendo ao (lógos). As três
determinações conjugadas constituem a essência do homem: /

34
Cf. Heidegger, Martin. Ontologie (Hermeneutik der Faktizität) – Gesammtausgabe Band 63. Tübingen:
Vittorio Klostermann, 1995, p. 26.

42
/(zoè / praktikè / toû lógon échontos). O homem é o
vivente que, segundo o seu modo de ser, tem a possibilidade de agir. Para ele, ser é
viver, e viver é agir. A sua não é mera vida, (zoé), mas sim (bíos), vida, no
sentido de “existência”, isto é, de ação35. A ação não é, aqui, mera atividade. Mas é o
empenho do cuidado com as coisas, com o humano mesmo, com tudo o que é, enfim,
com o Todo. Esta é a vida que é própria do homem. A questão que surge, então, é: qual
é o máximo (bíos), quer dizer, a suprema possibilidade existencial do cuidado, o
modo de ser, no qual o homem satisfaz ao seu poder-ser próprio em máxima medida,
aquele em que o homem propriamente é? Há o comportamento prático que é dirigido
para a realização de algo pertencente à vida em comunidade, ao (bíos
politikós)36. Este, no entanto, se dá no momento prático, o (kairós: momento
oportuno), e visa uma obra, uma realização momentânea, algo determinado
temporalmente, algo historicamente delimitado, e, enquanto tal, está orientado para
um ser, que, para os gregos, não é propriamente ser, não é o ser autêntico: o temporal,
o que está submetido ao movimento (em sentido amplo), isto é, à mudança.

O propriamente ser, para os gregos, com efeito, é o que é sempre, o que


permanece, o que se dá em presença estável, constante. Por isso, o modo de ser mais
elevado, a possibilidade existencial suma, se dará com a orientação do comportamento
humano para o (aeì on), o que está sendo sempre. Isto que está sendo sempre,
não é algo que o homem possa ter em mãos, mas sim algo que o homem pode ter em
vista, no sentido do considerar e do investigar, a saber, no sentido do
(theoreîn), da indagação e perscrutação pura do ser como tal, que não objetiva
resultados práticos, mas que tem como escopo a verdade pela verdade, isto é, o
desvelamento pelo desvelamento. Nisso, o homem obtém a máxima proximidade
possível ao que maximamente é, embora o homem só consiga manter-se nesta

35
A palavra “existência” tem, aqui, o sentido restrito ao modo de ser humano, enquanto um ente
determinado pela liberdade e pelo referimento de ser ao ser do ente como um todo (insistência na
verdade do ser).
36
Cf. Ética a Nicômaco I, 5, 1095 b 18.

43
realização por determinado tempo, tendo que retornar sempre de novo aos apertos, às
premências da ação, quer dizer, do cuidado, na vida em comunidade37.

Entretanto, o que significa o (lógos) neste contexto? Certamente, não


significa o mesmo que “ratio”, razão. Significa, antes, fala, no sentido do discurso, da
conversa38. O (lógos) é, aqui, mais do que (voz). É o falar no sentido do falar
uns com os outros em comunidade, no mundo compartilhado da convivência, na ação,
isto é, nas ocupações e preocupações do cuidado cotidiano. Isso implica um falar do
homem a respeito do mundo em que ele é, vive, existe (no sentido do agir, do cuidar).
O mundo é tido pelo homem como aquilo de que ele fala na comunicação com os outros,
na conversa. O (lógos) é tanto o falar como o falado. Ele tem a função de
(apophaínesthai): deixar e fazer ver aquilo de que fala para quem se fala.
No discurso, aquilo de que se fala, aquilo a partir de que se discorre, há de se tornar
manifesto e acessível para os outros39. O discurso deve ter a função de (deloûn),
isto é, de trazer uma coisa que está em questão para o seu mostrar-se no falar, que é,
ao mesmo tempo, um falar sobre algo, um falar uns com os outros e um falar no sentido
de pronunciar-se de quem fala. É trazer isso que se fala à sua datidade, de modo que se
possa experimentar como a coisa é40. O (lógos), assim, está em função do
 (aletheúein): do desvelamento do ente no seu ser.

A tradução de (zôon lógon échon) não é uma mera


transposição de uma língua para outra. É o salto de um horizonte de experiência
histórica para outro. Nele, perde-se o chão do (aletheúein), da experiência
da verdade enquanto desvelamento. A “veritas” romana é uma experiência diversa da
(alétheia) grega. Esta palavra decisiva para se acessar a humanidade histórica
grega, (alétheia), foi traduzida por “veritas” em latim.

Os latinos traduziram-na por veritas, uma


experiência comunitária totalmente diversa, que veio dar

37
Cf. Ética a Nicômaco X, 8, 1178 b 3 s; 1178 b 28 ss. Também: Heidegger, Martin. Die Grundbegriffe der
antiken Philosophie – Gesammtausgabe Band 22. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1993, p. GA
22, p. 312-313.
38
Cf. Heidegger, Martin. Ontologie (Hermeneutik der Faktizität) – Gesammtausgabe Band 63. Tübingen:
Vittorio Klostermann, 1995, p. 21.
39
Cf. Heidegger, Martin. Sein und Zeit. Tübingen: Niemeyer, 1986, p. 32-33.
40
Cf. Heidegger, Martin. Grundbegriffe der aristotelischen Philosophie – Gesammtausgabe Band 18.
Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2002, p. 19-20.

44
nas línguas neolatinas as formas de verdade, verità,
vérité, verdad, etc. É toda uma outra palavra, com toda
uma outra experiência comunitária de mundo, de
universo e realidade. O eixo de concentração e
recolhimento do processo histórico se desloca dos
espetáculos dados nas realizações pela retirada de
retração da realidade para os ordenamentos imperiais e
as decisões curiais impostos por um parâmetro de
rendimento e disposição. Começa a rolar história abaixo
a avalanche da funcionalidade, que vai aumentando por
todos os lados a voracidade de sua força de redução e
estreitamento41.

O “homo”, enquanto “animal rationale”, da humanidade histórica romana, é o


“homo loquax” (eloquente) e, ao mesmo tempo, o “homo faber” (fazedor): o homem
marcado pelo pragmatismo na vida, pelo utilitarismo na política, pelo realismo na arte.
A compreensão romana da verdade (veritas) traz consigo uma perspectiva como que
jurídica. A “veritas” (verdade) é uma espécie de justiça (iustitia): é a “aequitas”
(equidade) enquanto “rectitudo” (retidão) da “recta ratio” (da reta razão). Junto com a
tradução de (alétheia) por “veritas”, se deu a tradução de (lógos) por
“ratio”. Também aqui a tradução se deu deixando para trás o solo da experiência grega
da linguagem e do pensamento. No contexto da própria língua latina, “ratio” remete ao
verbo “reor”: tomar algo por algo, supor, asserir, julgar, contar com algo. Daí: comparar,
avaliar, ponderar, calcular. Tudo isso supõe, pois, a dimensão operativa de um
pensamento calculador, funcional, no exercício do poder. A “ratio”, razão, é o
pensamento que discorre, isto é, que corre de referência em referência, de algo para
algo; é o pensamento discursivo que presta contas do ente e de suas conjunturas: dos
casos, das ocorrências, dos estados-de-coisa, em que a realidade se efetiva. “Rationem
reddere” é, justamente, dar razão de alguma coisa, ou seja, prestar contas e justificar,
fundamentar, enfim. É com base nesta “ratio” que o ocidente elegerá, na técnica, a
verdade do fazer; na ciência, a verdade do conhecer; e no cristianismo, a verdade do
crer.

A romanidade constitui o horizonte do humanismo ocidental-europeu. Nela, a


autocompreensão do homem se transforma: o (zôon lógon échon) –
o vivente que é constituído pelo seu relacionamento com o (lógos), da tradição

41
Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia Grega: uma introdução. Teresópolis-RJ: Daimon, 2010, p. 243-244.

45
grega, se torna o “animal rationale”: o vivente que discursa, raciocina, calcula. É pela
mediação do romano, que o grego irá ser recebido, quer dizer, compreendido e
interpretado, na Europa, que terá no elemento romano um de seus componentes
essenciais. Isto vale tanto para a época do humanismo medieval, latino ou bizantino, que
assimilará também a determinação bíblica do homem como ser criado “à imagem e
semelhança de Deus” (cfr. Gn. 1, 27) e como “filho de Deus” (cfr. 1 Jo 3, 2); como para a
época do humanismo moderno, que irá compreender o ser do homem como
“subjectum”, como sujeito, isto é, como fundamento e sustentáculo da totalidade do
real, interpretado como obiectum; sujeito, que, como agente, impele todas as coisas
para uma produção incessante, segundo os cálculos da ciência e da técnica, decretando,
assim, o poder planetário do “homo faber”.

4.2.3.5. DISCURSO SIGNIFICATIVO (QUE DÁ A COMPREENDER ALGO): O


LÓGOS ENQUANTO SEMANTIKÓS

O lógos está relacionado com o nous, com o noein: o pensar, no sentido do


perceber... o ente enquanto ente. O homem é aquele ente que é capaz de perceber o
ente enquanto ente, de compreender o ser, e de trazer o ser, que é compreendido, à
linguagem, no discurso.

Aristóteles, Da interpretação, c. IV, 16 b 33 – 17 a 1:



(esti de logos hapas men semantikos, ouch hos


organon de, all’ hosper eiretai kata syntheken). Todo o discurso é significativo (dá a
compreender algo), não como instrumento, mas, como já fora dito, como acordo.

O discurso dá a compreender. Este dar a compreender, porém, não tem o carater


de um funcionar, como acontece junto aos órgãos... O significar, o dar a compreender,
não tem o caráter de funcionamento como aquele dos órgãos, que, postos em atividade,
desempenham algo forçosamente. Ele não é (phýsei), por natureza – um

46
processo natural, como a digestão ou a circulação do sangue. O dar-se do discurso é
(katà synthéken)...

No capítulo 2 (16 a 26 – 29) Aristóteles disse:

O (katà synthéken) quer dizer que nenhum dos nomes (melhor:


palavras) é por natureza, mas é sempre que o símbolo acontece, uma vez que mesmo
os sons inarticulados, como os dos bichos, indicam algo, sendo que nenhum destes sons
é nome (palavra).

A palavra não é como que o resultado de um funcionamento orgânico, de um


processo fisiológico, ela não acontece com base numa conexão física. É algo diferente
dos sons emitidos pelos animais para se comunicarem. Um vivente, melhor, um animal
emite sons para se comunicar. Mas os seus sons não são vozes articuladas significativas.
Os gritos, os alaridos, de animais não são palavras. Sua comunicação não é fala. O berrar
de um bezerro, o mugir de uma vaca, o balar de uma ovelha, o balir de um cordeiro, o
arrulhar de uma pomba, o latir de um cão, o miar de um gato – tudo isso não é fala. Seus
sons não são vozes significativas. Indicam alguma coisa. Mas o seu indicar não tem o
sentido de significar alguma coisa. Significar é dar a conhecer algo como algo a alguém42.
Fumaça indica fogo. Bandeira branca indica rendição. Indicar, porém, não é significar.
Todo significar é um indicar, mas nem todo indicar é significar. Significar é dar a
conhecer, no sentido de dar a compreender algo como algo.

A palavra é uma voz significativa. Os animais emitem vozes. Esta são indicativas.
Mas não são significativas, isto é, não dão a compreender algo como algo. Ao entoar a
sua voz, no exercício da fala, desde o princípio, o homem já se encontra na abertura da
compreensão e da compreensibilidade. Somente porque a essência do homem consiste
em ser capaz do lógos, do discurso, é que a voz humana, em sua articulação, pode ser
significativa, isto é, pode dar algo a compreender. A significação não é algo que vem de
fora e se agrega à voz. A significação não é um suplemento da voz. O que acontece é o
inverso: o som é que é suplemento da significação. A cunhagem da voz segue
ontologicamente à formação de significações, isto é, está a priori fundada nela.

42
Em Tomás, no âmbito da vox, situa-se a palavra (verbum). A palavra é uma realização especial do signo
(signum), que por sua vez é "aquilo pelo que alguém chega a conhecer algo de outro" (III,60,4).

47
Significações são expressáveis através de vozes. As palavras são vozes dotadas de
significações. Isto é: significações que são pensadas vêm à expressão como palavras. A
voz se torna palavra à medida que é dotada de significação. O lógos (discurso) é phoné
(voz). No entanto, ele não é primeiramente phoné e, depois, algo mais, além disso. O
lógos é desde o princípio phoné semantiké – voz que dá a compreender (cf. cap. 2, 16 a
19).

A palavra é katà synthéken – instituída no ser-uns-com-os-outros, no mundo da


compartilhado da convivência, segundo um pacto, um acordo, uma combinação, uma
convenção. Quando isto acontece? Sempre que o símbolo acontece. O katà synthéken
está, pois, fundado na gênese do símbolo. Porém, é preciso cuidar para não impor a
Aristóteles a nossa compreensão usual hodierna de símbolo. O que é, para a experiência
do homem grego, (sýmbolon)? (symbolé) significa encontro,
entrelaçamento, confluência, conexão, juntura, pacto. Quer dizer: colocar juntas uma
coisa e outra, mantê-las juntas, reter uma junto à outra, conjugá-las. Com isso,
(sýmbolon) significa a juntura, a costura, a articulação. Quer dizer: não se
trata de uma mera aproximação entre uma coisa e outra, mas de uma combinação, em
que uma coisa é retida junto da outra. (sýmbolon) diz este estar retido um no
outro, o estar mantido junto, o estar conjugado, combinado. (sýmbolon)
diz, pois, o comum-pertencer. É a exibição de uma identidade constituída na alteridade.
Na origem, era o sinal de reconhecimento de um comum-pertencer, de uma identidade
que se dava na diferença. Cf. o exemplo das duas metades de um anel (p. 352).
(sýmbolon) queria dizer, pois, pacto, acordo, combinação, que instituída,
constituía, uma identidade entre diferentes.

O manter-junto num comum pertencer, sýmbolon, e o acordo, synthéke, são


características lógos (discurso) e da ónoma (palavra). É preciso acontecer tal comum
pertencer e tal acordo para haver discurso e palavra. Tal acontecimento falta ao bicho.
Os sons dos bichos indicam algo. Mas não significam algo, isto é, não dão a compreender
algo. O homem se mantém junto ao ente no ser com o outro como ser-no-mundo. No
exercício deste ser-junto ao ente, deste ser-com os outros, deste ser-no-mundo, é que
voz vem a ser símbolo. Então as vozes se tornam significativas, isto é, dão a compreender
algo enquanto algo. Visando este dar a compreender, fundamental no ser-junto ao ente,

48
no ser-com o outro, no ser-no-mundo, é que as vozes acontecem como símbolos. O
acontecer do símbolo, portanto, é o dar-se da transcendência. Só há linguagem naquele
ente cuja essência é transcendência.

A interpretação de que Aristóteles estaria do lado de uma antiga teoria segundo


a qual a linguagem não seria (phýsei), por natureza, mas sim (thései), por
convenção, é problemática. Não se há de confundir o (katà synthéken)
de Aristóteles com o (thései) da antiga tese, segundo a qual os homens produzem
os sons estabelecendo os significados deles por convenção, como que numa
combinação: por tal ou tal termo entenderemos isto ou aquilo. Isto tem lugar, mas é
uma interpretação superficial. Não se vê a génese do símbolo. Aristóteles pode até ter
partido daquele interpretação, mas viu mais profundamente a gênese do símbolo, do
discurso, da linguagem. Aristóles viu que as palavras surgem do acordo essencial entre
os homens, na medida em que o ser-homem implica no ser-junto ao ente e no ser-uns-
com-os-outros, pelo exercício da convivência num mundo circundante e num mundo
compartilhado. Não se trata, portanto, de um acordo acidental, isto é, casual, fortuito,
mas sim de um acordo essencial.

Todo discurso é significativo, isto é, dá a compreender. Mas nem todo o discurso


é mostrador: (esti
de logos hapas men semantikos... apophantikos de ou pas): todo o discurso é
significativo (dá a compreender), mas nem todo é mostrador. De interpretatione c. IV,
17 a 2.

Isto é: embora todo o discurso vise dar a compreender algo, nem todo o discurso
tem a tendência de simplesmente mostrar o que ele tem em vista como tal. Somente o
lógos apophantikós, o discurso mostrador, a proposição enunciativa (ou declarativa) é
que assume esta tendência como sua função. O pedido, por exemplo, é um lógos
semantikós, mas não é um lógos apophantikós. O pedido – o pedir algo a um outro – é
um exercício do discurso que não visa explícita e prioritariamente mostrar alguma coisa,
embora dê a compreender algo. Os discursos assim, não apofânticos, pertencem, diz
Aristóteles, ao âmbito da retórica e da poética. Já o tratado que leva o nome de Perì
Hermeneía trata do lógos apophantikós (à teoria do lógos aphophantikós se chamou de
episteme logike, isto é, de ciência lógica).
49
4.2.3.6. O LÓGOS (DISCURSO) COMO SÝNTHESIS E DIAÍRESIS (COMPOSIÇÃO
E DIVISÃO).

Mas, o que constitui o lógos apophantikós, o discurso mostrador? De


Interpretatione, c. 4, 17 a 2: é apophantikós somente aquele lógos
(en ho to aletheuein e pseudesthai
hyparchei) – em que tem lugar o ser verdadeiro ou falso (conforme a tradução
corrente)... Heidegger procura recuperar, porém, a compreensão grega da verdade
como desencobrimento. No lógos apophantikós residem, como basilares, como
fundamento e algo constituitivo, essencial, o aletheúein e o pseúdesthai. O discurso
mostrador pode dar lugar ao engano, à ilusão. Na ilusão, se apresenta algo, de tal modo
que se faz passar algo por aquilo que ele não é. O discurso mostrador pode enganar-se
(pseudesthai), isto é, pode encobrir, em vez de desencobrir aquilo de que está
discorrendo. Mas pode também retirar do encobrimento (aletheúein), dar acesso,
tornar aberto e manifesto, patente, aquilo de que está discorrendo. O lógos
apophantikós, o discurso mostrador, isto é, que pretende deixar e fazer ver, pode, assim,
ser desencobridor ou encobridor. Isso é da sua essência. Quer dizer: é uma possibilidade
intrínseca do discurso mostrador desencobrir ou encobrir.

O lógos é a possibilidade do falar e do dizer. O homem é o ente que é capaz de


falar, isto é, de dizer. Isto quer dizer, amplamente: de dar a compreender (logos
semantikos). A partir disso e para além disso, o homem é capaz de discorrer de algo no
sentido de mostrar, isto é, de deixar ver este algo a partir dele mesmo e como ele mesmo
(logos apophantikos). Este discorrer, porém, tem dupla possibilidade, intrinsecamente:
desencobrir ou encobrir. Isso não é uma propriedade casual, acidental, do discurso
mostrador, enunciativo, declarativo. É algo essencial, uma possibilidade intrínseca dele.
Mesmo o ser encobridor pertence à essência do ser mostrador. Somente o que tem a
tendência e a pretensão de mostrar, de deixar ver, pode encobrir, vedar o acesso,
enganar.

50
No logos apophantikos a tendência do falar e dizer, do discurso, é deixar-ver
aquilo sobre que versa, a que se refere. Ou ele retira do encobrimento ou ele promove
o encobrimento. Donde vem esta dupla possibilidade intrínseca do logos apophantikos?
Qual o seu fundamento? Aristóteles dá alguma indicação em Peri Psychés (De anima)
livro gamma, capítulo 6. O texto trata da essência da vida e dos graus do vivente: zoon
logon echon – zoon alogon. O terceiro livro trata do vivente-homem. Este é um zoon
logon echon. O traço distintivo do homem é o logos. Em Gamma 6, 430 a 27, Aristóteles
fala de uma synthesis noematon, isto é, de uma composição do que é percebido. O
fundamento da possibilidade do desencobrimento ou do encobrimento está na
formação desta unidade (por composição ou reunião do que é percebido). Na base do
lógos está uma nóesis, um perceber (intelectivo). Este é um perceber formador de
unidades. Intelectus (intelecto). Intellegere: colher e recolher o que está entre, de
permeio, reunindo, formando uma unidade. Tanto o poder ser verdadeiro
(desencobridor) quanto o poder ser falso (encobridor) do discurso mostrador se funda
neste caráter do nous, do intelecto, do perceber recolhidor, reunidor, compositor,
formador de unidade.

A sýnthesis (composição) é a condição de possibilidade tanto do


desencobrimento quanto do encobrimento... (cf. 430 b a 1). O discurso mostrador é
sýnthesis no sentido de pretender mostrar algo na unidade das suas determinações.
Algo é percebido como isto ou como aquilo. O discurso pretende mostrar algo enquanto
algo (por exemplo, o quadro enquanto branco ou enquanto não branco). Esta estrutura-
enquanto é a condição de possibilidade do lógos, do discurso.

No “enquanto” é pensada uma relação. Mas não se há de entender relação em


sentido formal, vazio, vago. O relacionar desta relação tem o caráter de uma ligação de
representações. O “syn” da “synthesis” significa um estar-junto, uma unidade. A
synthesis, composição, é uma totalidade, que não é mero ajuntamento de pedaços, mas
sim uma totalidade que é anterior às partes. Não se trata, pois, de um todo derivado,
mas sim de uma totalidade originária.

Aristóteles diz também que tudo aquilo que ele disse, isto é, trouxe à luz, sob o
título de synthesis, composição, pode ser tomado e nomeado como diaíresis, tomar uma
coisa fora da outra, separar, dividir. Um exemplo dado por Aristótles: “o branco não é
51
branco”. Aqui se dá, no fundo, um tomar em conjunto de branco e não branco. Mas este
tomar em conjunto, este compor (synthesis), é também um tomar um-fora-do-outro.
Na proposição enunciativa só se pode tomar duas representações e mantê-las juntas
caso se as mantém também separadas. A synthesis noematon, a composição daquilo
que é percebido/pensado (modernamente: representação) já é, desde o princípio,
também diaíresis, um tomar uma coisa fora da outra, uma separação. O perceber
(intelectivo) é, pois, um tomar-junto-que-mantém-separado, um reunião separadora.
Esta unidade de síntese e diérese é o fundamento, a possibilidade essencial, intrínseca,
possibilitadora de que o lógos possa ser desencobridor (alethés – “verdadeiro”) e
encobridor (pseudos – “falso”).

No capítulo 1 Aristóteles diz: peri gar synthesin kai diairesin esti to pseudos te kai
to alethes: na esfera da síntese e da diérese (composição e divisão, separação) é que
acontece o falso (encobridor) e o verdadeiro (desencobridor), a saber, do logos
apophantikos, do discurso mostrador (proposição enunciativa, declarativa). (16 a 12 s).
Na Metafísica ( E 4, 1027 b 19), Aristóteles diz que tanto o alethés (desencobridor –
verdadeiro) quanto o pseudos (encobridor – falso) se dá na esfera da synthesis e diaíresis
(composição e separação). Funda-se nisso. Como é possível que uma estrutura seja, ao
mesmo tempo, compositora e separadora? Eis o problema. Heidegger diz que a resposta
a este problema só se alcança compreendendo a essência do “enquanto” e do mundo.

O logos apophantikós é a de-monstração (fenomenológica) de algo naquilo que


ele é e segundo aquilo que ele é, ou não é (cf. Cap. 5, 17 a 20). A enunciação simples
(haplé apophansis) tem duas formas: ou ela é apophansis tinos kata tinos ou é
apophansis tinos apo tinos. Isto é: é katáphasis ou apóphasis ( Cap. 5, 17 a 23) –
afirmação ou negação. O logos é phasis: mostração. (phasis: dizer ou mostrar; daí vem
a palavra fase – ex.: as fases da lua). A de-monstração ou é uma de-monstração que
mostra algo de algo pondo, atribuindo, ou é uma de-monstração que mostra algo de
algo retirando. Afirmação e negação. Se eu digo: o quadro é negro; o quadro não é
vermelho. A de-monstração pode ser posta em obra atribuindo algo a algo (o quadro é
negro) ou retirando, abjudicando, denegando algo de algo (o quadro não é vermelho).
Afirmação e negação. Se eu digo: dois mais dois é igual a cinco, não é igual a quatro,

52
mantém-se a mesma estrutua e dinâmica. Só que os enunciados, tanto afirmativo,
quanto negativo, são encobridores (falsos).

Se toda proposição enunciativa, declarativa, é ambas as coisas, composição e


separação, então pode-se dizer o mesmo para a afirmação e para a negação: tanto a
afirmação quanto a negação são composição e separação. Não considerar a afirmação
como composição e a negação como separação. Tanto a afirmação quanto a negação
são composição e separação, ao mesmo tempo, não uma coisa depois da outra. As
distinições de composição e separação, por um lado, e de afirmação e negação, por
outro lado, se dão em dimensões diferentes. A distinção de afirmação e negação
pertencem à apophansis, isto é, ao discurso mostrador, de-monstrador, declarativo. Já
a distinção de composição e separação é originária e concerne às estruturações dos
fenômenos. Isto tem a ver com a estrutura-enquanto e com o mundo.

Afirmação e negação são formas do discurso mostrador. Mesmo a negação se


mantém na tendência da mostração. Por exemplo: o quadro não é vermelho. Reside
neste enunciado a tendência a mostrar o que o quadro é e não é. Ambas as formas estão
na possibilidade do ser-verdadeiro e do ser-falso. Isso se funda na estrutura conjunta do
enunciado, que é synthesis e, ao mesmo tempo, diaíresis. A unidade desta estrutura é a
essência do nous (intellectus).

Lógos (discurso)

Phoné semantiké (voz significativa)

Lógos apophantikós (discurso mostrador)

53
Katáphasis (afirmação)..................................................apóphasis (neg)

Aletheúein (desencobrir) – pseúdesthai (encobrir)

Sýnthesis (composição)

Noeîn - Noûs

(perceber-pensar-inteligir)

Diaíresis (divisão)

No noein acontece um tomar-junto e um tomar-um-fora-do-outro que se dá num


ao-mesmo-tempo e num em-separado43. Não é assim que primeiramente vem o tomar-
junto e depois o tomar-um-fora-do-outro. Ambos são simultâneos. São um e, ao mesmo
tempo, separados. O intelecto é, em sua essência, formador de unidade. O formar um e
unidade em geral é, a cada vez, a íntima tarefa do intelecto. O um, a unidade, é uma
determinação essencial do ser e do pensar (do intelecto)44.

O que, porém, é percebido neste tomar-junto e tomar-um-fora-do-outro? O que


é o caráter fundamental do percebido e do perceptível enquanto tal e em geral? A
resposta a esta pergunta há que se entrever a partir da estrutura íntima do logos
apophantikós, da apóphansis. Ele tem duas formas fundamentais. No início do capítulo
6 do De Interpretatione, Aristóteles apresenta brevemente: a de-monstração é atribuir
algo a algo (afirmação) ou retirar algo de algo (negação). Ela é a de-monstração do
ocorrente como não ocorrente, do não ocorrente como ocorrente, do ocorrente como
ocorrente e do não ocorrente como ocorrente (juízo formal negativo, juízo formal
positivo, juízo positivo verdadeiro e juízo negativo verdadeiro)45. Dito de maneira
genérica: de-monstração é o deixar ver o ocorrente como tal. A ocorrência do ocorrente,
porém, como presença, e justamente como presença constante, é aquilo que a
antiguidade compreendeu sob o ser do ente. Apophansis é o deixar ver do ente

43
Metafísica E 4, 1027 b 23 ss.
44
Cf. Aristóteles, De Anima, Gamma 6, 430 b 5 s: to de hen poioun, touto ho noûs hékaston.
45
De interpretatione, cap. 6, 17 a 25 ss.

54
enquanto ente, enquanto aquilo que ele é e como ele, a cada vez, é. O enunciado,
porém, não se restringe ao ocorrente que se dá justamente agora, mas concerne
também ao ente fora do tempo-agora respectivo, isto é, concerne também ao passado
e ao futuro. Não somente o atual, mas também o que foi e o que será concernem ao
enunciado. No cap. 5, 17 a 22 ss, Aristóteles diz que o enunciado simples é voz
significativa acerca e na esfera do ocorrente e, respectivamente, do não ocorrente, a
saber, no modo, como os tempos são mantidos um fora do outro (presente, perfeito e
futuro).

4.2.3.7. ÓNOMA (NOME) E RHEMA (VERB0)

A partir desta estrutura unitária do lógos apophantikós se pode entender o que


o Aristóteles diz das partes que subsistem no discurso. Estas partes são caracterizadas
como ónoma e rhéma. O critério da diferença característica de ambos é o tempo. Num,
o ser-no-tempo é cosignificado e, na verdade, essencialmente (rhéma). No outro
(ónoma) esta cosignificação não se dá. Ónoma quer dizer a palavra, o nome, aquilo que
nomeia algo. O que é ónoma? Aristóteles diz: ónoma men oun esti phoné semantiké katà
synthéken áneu chrónou, hes medèn méros esti semantikòn katà ménon. (cap. 2, 16 a 19
s) [A denominação, porém, é, pois, uma voz que significa com base num acordo, sem
que no nomear o tempo como tal seja visado – é um todo em que nenhuma parte,
tomada por si, significa alguma coisa]. Por exemplo: no nome Kallippos (belo cavalo): as
sílabas individuais, tomadas por si, não significam algo. Já kalos hippos pode formar um
enunciado: o cavalo é belo. As partes do enunciado significam por si algo. Nomear é um
significar (dar a compreender) sem tempo.

O que isso quer dizer fica claro em contraste com a outra parte do discurso,
rhéma. Aristóteles diz: rhéma dé esti tò prossemainon chrónon, hou méros oudèn
semaínei chorís, kaì éstin aeì ton kath’ hetérou legoménon semeîon. (Cap. 3, 16 b 6 ss).
[Um dizer, um verbo, é aquilo que visa além disso o tempo, a cuja essência pertence,
visar além disso o tempo, a saber, além daquilo que, de resto, no verbo é visado; é
sempre uma significação, que significa (dá a compreender) de tal modo que ela é

55
referida àquilo sobre o que é falado]. Todo verbo, assim, segundo sua significação
íntima, se dirige a algo, sobre o que a fala discorre, a algo, que enquanto ente, enquanto
ente assim e assim, é colocado como subjacente. No verbo, portanto, se dão dois
momentos essenciais característicos: co-visar tempo e, no significar (dar a
compreender), estar referido a algo, sobre o que versa o discurso, ao ente. Isto quer
dizer que toda posição do ente necessariamente está referido ao tempo. Todo
enunciado é de-monstração do ente segundo o que e como ele é. No discurso
enunciativo, assim, o discurso é a respeito do ser do ente – seja do ser-agora, seja do ser
no sentido do ter sido, seja do ser no sentido do que virá-a-ser. Que, no enunciado, a
fala discorre sobre o ente no seu ser, vem à expressão em termos de linguagem no “é”.
Mas, mesmo ali onde este “é” falta – por exemplo: o passáro voa embora – o rhéma
(verbo) está a cada vez não só em uma determinada forma temporal, mas, com esta,
está já co-significado um respectivo (a cada vez) ser-no-tempo, sobre o qual a fala
discorre.

4.2.3.8. O SER COMO CÓPULA NO ENUNCIADO

No enunciado se discorre a cada vez sobre ente, mas, ao mesmo tempo, sobre
ser. Melhor: não sobre o ser, mas a partir do ser, do ente, como ele é, em seu ser. O
enunciado discorre a partir dos entes, isto é, sobre o ente, como ele, enquanto ente é,
o ente no tocante a ele mesmo (: onta hos onta). Aristóteles caracteriza
o tema da investigação da filosofia primeira (metafísica) como o (on he on).
Temos, aqui, uma ambiguidade. No primeiro caso (: onta hos onta) eu me
dirijo ao ente mesmo; eu permaneço junto das suas condições. No segundo caso -
(on he on) – eu considero o ente, enquanto ele é um ente, eu não examino suas
propriedades, mas eu o tomo, enquanto ele é, na perspectiva do fato de ele ser
determinado pelo seu ser. Eu o considero na perspectiva do seu ser. Visado é, neste
caso, o ente; o escopo é o seu desencobrir e encobrir. E, no entanto, co-compreendido
e co-visado é o ser – não acidentalmente e posteriormente, mas justamente em seu
caráter desencobridor. Ex.: a neve é instável. O “é” tem, aqui, um papel central. O “é”
constitui um momento estrutural essencial do enunciado. Ele é a cópula, o liame ou o
56
nexo, aquilo que une sujeito e predicado. A questão é: o que é visado com o “é”? Neste
comportamento perceptivo demonstrador para com o ente no discurso mostra-se um
compreender guia do “é”, do ser (não só do ente). A que pertence este ser?

No enunciado vem à luz, se expõe, o “é” – e o ser. O ser vem à luz no: isto é, não
é, foi, será. Do ente se diz o ser em uma notável variedade. Que, no discurso, o ser é
dizível, isto é trazido à fala no enunciado simples.

Como o “é” está dentro do logos e o que ele propriamente significa?46

Se nós pronunciamos os verbos em si e por si, então eles são nomes e significam
algo. Por exemplo: se em vez de dizer “o pássaro voa” eu digo somente e meramente
“voar”, então este “o voar” é um nome e significa algo. Aquele que assim se pronuncia
pára o pensamento e aquele que escuta se detém interiormente. Aquele que pronuncia,
diz tais palavras em e por si – o voar –, este traz o pensamento a uma parada,
pensamento que, de resto, é sempre um pensar que atravessa, que corre, percorre e
discorre, se movimentando na forma do enunciar: isto e isto é assim e assim. (Por isso,
o pensar que enuncia e julga é chamado por Aristóteles de um pensar que vai através,
que atravessa, um pensar que progride de uma coisa para outra). No mero nomear eu
não passo de uma coisa para outra, mas o pensamento se detém junto de algo e
permanece parado nisso, visa o nomeado mesmo. O pensamento não corre através, não
percorre, não discorre. De modo correspondente, aquele que ouve estas palavras ,
repousa interiormente, junto daquilo que é nomeado, ele não progride para uma outra
coisa, na forma do progresso: a é b. Mas se é ou não é, ainda não é significado. As
nomeações em si e por si não são sem significado – dão a compreender algo – e, no
entanto, elas ainda não visam que o nomeado, p. ex.: o voar, é ou, respectivamente, não
é. As palavras que são usadas nestas nomeações não dizem de algo, se está voando ou
não voando. Mas, o que é que ainda não vige aí? O que é que falta? Qual a diferença
entre “o voar” e “está voando”? O que é visado com este “está”?

Aristóteles diz: o ser e o não ser não é sinal da coisa, mesmo se dizes o ente nele
mesmo por ele mesmo meramente. O ser e o não ser não visa a coisa em questão, um
ente assim ou assim, mesmo se nomeies e dizes o ente, o sendo-ser, nele mesmo,

46
De Interpretatione c. 3, 16 b 19 ss.

57
meramente, nuamente, despojado disso ou daquilo, por ele mesmo. O ser nele mesmo
nada é. Ser e nada: o mesmo. O ser não é nenhum ente, nenhuma coisa e nenhuma
propriedade coisal, nada de ocorrente. No entanto, significa algo, a saber, certa
composição. Isto é: no entanto ser significa algo; se eu digo “é” e “não é”, eu
compreendo, contudo, algo junto. Mas, o que significa tò eínai? De início, no mais
próximo, o significar é um co-significar-por-adição, e, na verdade, sýnthesin tina, uma
certa synthesis, vinculação, união, unidade, que, sem algo que subjaz junto, não é
percebida/compreendida. Esta unidade, o ser, porém, não pode ser percebida e
compreendida sem o que jaz-junto, o co-sub-jacente, que enquanto junto é perceptível.

A partir desta curta mas fundamental interpretação da significação do ser


enquanto “é” de Aristóteles nós haurimos algo tríplice:

1) A significação-guia do “é” é o significar-por-adição. Não é um significar


autônomo, como o nomear de algo, mas na função de significação enquanto tal, a
significação de ser e “é” já está referida àquilo que é;

2) Nessa função de significar-por-adição o “é” significa synthesis, vinculação,


unidade;

3) O “é” não significa prágma, uma coisa que está em questão ou uma
meramente uma coisa.

O “é” da cópula se reconduz à synthesis. O poder ser-verdadeiro (aletheúein) e o


poder ser-falso (pseúdesthai) também. Synthesis lá e synthesis cá é o mesmo? Caso sim,
pertence também ao “é” da cópula a diaíresis? Ser é o caráter de ser-ligado e o caráter
de ser-tomado-um-fora-do-outro? Eis uma questão a se pensar... mas que não podemos
tratar aqui e agora...

4.2.4. O ENTE/SER SE DIZ DE MUITOS MODOS

A filosofia é a investigação do ser de tudo quanto há. A palavra “ser”, no entanto,


tem quatro significados básicos, segundo Aristóteles. São eles:

1) ser segundo os esquemas das categorias;


58
2) ser por acidente;

3) ser como potência e ato.

4) ser enquanto verdadeiro.

Estes quatro modos, no entanto, precisam ser entendidos sempre a partir da


ousia. Vejamos um por um destes modos.

4.2.4.1. O SER NOS ESQUEMAS DAS CATEGORIAS

As categorias são, ao mesmo tempo, modos de ser e modos de dizer o ente em


referência ao seu ser. Mais precisamente: são esquemas ou figuras do dizer (logos
apophantikós) em que se mostram os modos de ser do ente. Com outras palavras, ainda:
são determinações do ser do ente, perspectivas em que o ser do ente se dá a conhecer
e a dizer.

A palavra “categoria” vem do grego, kategoria, que significa, na linguagem


ordinária, “acusa”. O uso ordinário da palavra remontava ao falar-uns-com-os-outros na
convivência pública da Polis. O espaço privilegiado, aberto à discussão, onde os cidadãos
discutiam os destinos da Polis era a “agora”, a praça, o fórum, o espaço público onde
acontecia o intercâmbio de mercadorias, de opiniões, bem como os discursos
endereçados ao público, as assembleias, os julgamentos etc. Daí o verbo “kategorein”,
que significava, originariamente, dizer alguma coisa publicamente na cara de alguém,
daí, acusar em público, acusar numa assembleia ou num julgamento. Aristóteles
assumiu este verbo da linguagem ordinária e deu a ele uma conotação lógico-filosófica.
“Kategorein” passou a significar, num juízo, atribuir um predicado a um sujeito e
“kategoria” tomou o significado de “predicado” de uma proposição. Aristóteles usou a
expressão “kategoriai tou ontos” para dizer aqueles predicados mais abrangentes e
originários que se podem atribuir ao ente enquanto ente. A tradição chamou as
categorias do ente de “gêneros supremos”, por serem gêneros que não podem se tornar
espécies de outros gêneros. Trata-se de predicados universais, que se referem ao ente

59
enquanto ente, isto é, ao ente no seu todo. São chamadas, em latim, de
“praedicamentum”, predicamento – de praedicare: dizer diante de, dizer publicamente,
proclamar. A lógica procurou ordenar os predicamentos de modo a dispô-los em
superiores e inferiores.

A lista das categorias ou predicamentos varia na obra de Aristóteles. Na obra


dedicada a este problema – Categorias IV, 1 b – se apresenta a lista mais completa,
constando de dez tipos de predicamentos do ente: 1. Ousia, como categoria
fundamental, aquilo que responde à pergunta “ti to on?” – o que é o ente? – o “ti estin”,
o “o que é” do ente, sua vigência, presença, sua entidade, na linguagem tradicional, a
substância, ou seja, em linguagem ontológica, o que subsiste em si mesmo, com
consistência própria, o substrato (hypokeimenon) das manifestações de uma coisa; em
linguagem lógica, o sujeito, aquilo de que se fala ou se diz alguma coisa, aquilo de que
se predica. Por exemplo: “Sócrates”. 2. Poson – a quantidade, o que é inerente a uma
coisa por si mesma, devido à sua matéria. Por exemplo: “Sócrates é de um metro e
setenta de altura”. 3. Poion – a qualidade, o que é inerente a uma coisa por si mesma,
devido à sua forma. Por exemplo: “Sócrates é branco”. 4. Pros ti – a relação, o que é
inerente à coisa, mas não por si mesma, e sim em referência a outra coisa. Por exemplo:
“Sócrates é pai de três filhos”. 5. Pou – em latim, o “ubi”, isto é, o onde. Trata-se de uma
determinação que se dá como uma medida extrínseca à coisa, a partir do lugar natural
que cabe a esta coisa no universo, como “no alto” para o fogo, “embaixo” para a terra.
Quando digo, por exemplo, que “Sócrates é natural de Atenas”, no predicado vem à fala
a categoria do “onde”. 6. Pote – o quando, o que se dá como uma medida extrínseca à
coisa, a partir do tempo. Por exemplo: “morto em 399 a.C.”. 7. Keisthai – o situs, o que
indica a disposição das partes do sujeito, o modo como o sujeito está disposto, posto ou
posicionado. Por exemplo: “Sócrates está sentado”. 8. Echein – o “habitus”: é atinência
extrínseca, ou seja, modo de se ter com e de se ater a (habere); na nossa linguagem mais
usual: o “ter a ver” de alguma coisa com outra coisa. Quando digo: “Sócrates está
calçado”, no predicado aparece uma relação extrínseca entre o sujeito e algo que tem a
ver com ele ou com o qual ele tem a ver: o calçado. 9. Poiein – actio: pôr em obra, atuar,
agir, fazer – quando a coisa é o princípio da ação. Por exemplo: “Sócrates ensina”. 10.

60
Paschein – passio: sofrer, ser atingido, afetado – quando a coisa é o termo ou o fim da
ação, como, por exemplo: “Sócrates foi condenado à morte”.

Todas as categorias são “ente” ou modos de ser. Entretanto, todas as categorias


têm um significado de “ente” à medida que ou são “ousia” (sustância) ou se referem a
uma “ousia” (substância). No esquema das categorias, pois, há um primeiro significado
fundamental ente, que é o significado de “ousia” (substância). Há, pois, um modo
fundamental e principal de se dizer o ser do ente: a “ousia”. Todos os outros modos são
“atributos” ou “predicados” da “ousia”.

“Ousia” significa, em primeiro lugar, de modo predominante e acima de tudo,


algo que é presente em sua singularidade aí: este homem, este cavalo. Presença em
sentido eminente e primário, portanto, é o permanecer de algo que, por si mesmo
perdura no ser, algo que é cada vez este, o singular (kath’ekaston), o “este aqui” (tode
ti). Presença, em sentido eminente e primário, é, portanto, o “que é” (hoti estin) (a
existência). Ao “este aqui” existente os medievais chamarão de “substantia prima”
(substância primeira). Presença, em sentido secundário é “aquilo que o ente é” (ti estin)
(a essência) e as determinações de seus aspectos e de sua proveniência (espécie,
gênero). O “eidos” (a espécie, o gênero) é uma determinação do ente singular (tóde ti).
Neste caso, os medievais falarão de substantia secunda (substância segunda).
Aristóteles, portanto, pensa a essência a partir do existente, os universais a partir do
singular, invertendo, assim, o modo de considerar o ser de Platão.

4.2.4.2. SER COMO ACIDENTE

“Ousia” diz a presença daquilo que é. Contudo, a presença daquilo que é se dá


sempre numa multiplicidade de manifestações, que são copresentes àquele ente. O ser
como copresença no ente, com aquilo que não é propriamente o ente, mas que lhe é
concomitante (symbebekós), o que, às vezes, casualmente, acontece com ele e lhe
sobrevém chama-se acidente (accidens). Assim como a “ousia” é a categoria
fundamental, os acidentes são categorias que se fundam sobre a categoria da substância

61
> qualidade, quantidade, relação, onde, quando, etc. O acidente é casual, fortuito,
contingente, transitório. A substância é essencial, necessária, permanente.

4.2.4.3. SER COMO POTÊNCIA E ATO

O ser se dá ainda como “on dynamei”, ente em potência, possibilidade; e como


“enérgeia”, ente em ato, realidade.

Ambos os modos pressupõem o movimento (kinesis). O movimento é aqui


entendido como determinação do ser: como devir, como mutação no ser. O movimento
é a realidade do possível como possível (he tou dynamei ontos entelécheia). “Dynamis”
significa possibilidade. Trata-se não de uma possibilidade em sentido abstrato e
negativo (como ausência de contradição), mas de possibilidade em sentido concreto e
positivo: como capacidade, poder no sentido de aptidão e disponibilidade para alguma
coisa. É neste sentido que a madeira se dispõe a se tornar mesa. Aristóteles pensa a
passagem da possibilidade à realidade a partir da “poiesis”, isto é, da produção de
alguma coisa, a partir, do pôr-em-obra de alguma coisa. A obra (ergon) é o sentido da
poíesis (produção, criação, geração). Em toda operação – quer seja da natureza, quer
seja do fazer ou do agir humano – se dá a passagem do não-ser para o ser, da não
vigência para a vigência, da ausência para a presença. A obra surge no tomar corpo dessa
passagem. Ela revela o vigor de um poder-ser que eclode, surge e repousa. O sentido da
obra é atuar e revelar este poder-ser. Na passagem criadora que gera a obra Aristóteles
assinala os seguintes momentos:

• 1. O momento do poder-ser, isto é, da disponibilidade de algo (hyle = matéria)


para ser utilizado na produção de uma obra determinada: o “on dynamei” o ser
in potentia (em potência, como possibilidade). Este momento se refere às
condições para deixar surgir, para produzir algo de novo.

• 2. O momento em que o poder-ser é atuado e vai se recolhendo no vigor da obra:


a enérgeia – que os latinos traduziram por actus, ato.

62
O movimento da produção ou do pôr em obra visa uma consumação (telos). Na
sua consumação a obra repousa, pois atingiu a plenitude de sua gênese. O ser como
plenitude e consumação, como quietude, chama-se entelécheia – que os latinos
traduziram por perfectio, perfeição. Nesse momento, o poder-ser foi atuado
plenamente. A obra chegou à sua consumação e maturação. O seu sentido se cumpriu.
Está consumado.

4.2.4.4. SER COMO VERDADEIRO

O ser verdadeiro e falso são, de início, possibilidades do dizer (legein no sentido


do logos apophantikos), ou seja, da proposição declarativa, da predicação, asserção ou
enunciação, em suma, do juízo. A enunciação ou predicação (apophansis) se dá através
de um compor ou reunir (syntesis) e de um separar ou diferenciar (diairesis). Ex.: o
quadro é verde. A cópula “é” (ser) articula, numa composição e numa separação o “ser-
negro” (predicado) e o “quadro” (sujeito). O “ser-negro” (cor) e o “quadro” são coisas
diversas. Entretanto, a predicação une estes diversos: o “ser-negro” apresenta-se como
um atributo ou predicado do “quadro”. A enunciação pode se dar na forma afirmativa
(kataphasis) e na forma negativa (apophasis). Tanto em uma como em outra há
“syntesis” (reunião, composição) e “diairesis” (separação, diferenciação). O dizer, no
entanto, é verdadeiro, quando mostra, isto é, descobre ou desencobre aquilo que é e
como é, afirmando ou negando. O dizer é falso quando encobre, propondo como sendo
aquilo que não é e como não sendo aquilo que é.

O ser verdadeiro do juízo, portanto, não está nas coisas mesmas (en tois
pragmasin), mas na percepção do ser (en dianoia). Contudo, a possibilidade de ser
verdadeiro do juízo se funda sobre o ente, ou seja, nas coisas mesmas (en tois
pragmasin) e não na percepção do seu ser (en dianoia). A verdade predicativa, portanto,
pressupõe e se funda sobre a verdade manifestativa: aquilo que o ente mostra de si
mesmo. Os medievais dirão que o ente é “manifestativum sui” (manifestativo de si
mesmo).

63
Sobre a verdade manifestativa do ente se funda, pois, a possibilidade de ser
verdadeira de toda a apreensão do ente por parte do homem. Aristóteles traz três
formas de o homem apreender o verdadeiro do ente. São elas: a percepção, o juízo e o
intelecto. A percepção sensível (aisthesis) é sempre simples e verdadeira. O juízo (legein
como dianoein) pode ser verdadeiro ou falso, ou seja, desencobridor ou encobridor,
como vimos acima. Já o intelecto, a simples apreensão do ser (noein) não traz consigo
nenhuma composição ou decomposição, mas, de uma maneira simples apreende o que
simplesmente se mostra: o ser e suas determinações. Não há um noein falso; o que pode
acontecer é não se dar um noein: o agnoein (o ignorar o ser).

4.2.5. O SER COMO, FUNDAMENTALMENTE, OUSÍA (SUBSTÂNCIA).

« Tò dè on légetai mèn polakhós ». O ente vem à fala de múltiplos modos. Isto é:


o ente é chamado ente em muitos sentidos – ou ainda: o ente se diz em muitos
significados (Cfr. Metafísica Gama 2, 1003 a 33). Esta indicação de Aristóteles é decisiva.
Vejamos o que isto quer dizer.

O ente apresenta múltiplos significados. Portanto, também o ser se deixa


compreender em muitos sentidos. Mas “ser” não é equívoco (homonymos), assim como
não é unívoco (synonymos). O significado de “ser” não é disparatado. “Ser” tem muitos
significados, mas este múltiplos significados trazem consigo uma referência a algo de
uno, a uma determinada “natureza” (pros hen kai mian tina physin). “Ser” é, portanto,
análogo. Uma palavra é análoga quando tem vários significados, mas todos os
significados se relacionam a um significado básico (a um primum analogatum, dirão os
medievais). Um exemplo de analogia pode ser encontrado no uso da palavra “saudável”
- a caminhada é saudável, um remédio é saudável, um rosto corado é saudável, um
organismo é saudável. Chamamos de saudável o que conserva a saúde, o que produz a
saúde, o que é sinal de saúde, mas, propriamente saudável é aquilo que pode adoecer:
o organismo, o corpo vivente. Do mesmo modo, o ente, segundo Aristóteles, é vigente
em diversos sentidos e tal diversidade emerge das relações que o ente tem com aquilo
que é propriamente: a ousia (vigência, presença, consistência, substância).

64
Assim, portanto, também o ente se diz em
muitos modos, mas todos em referência a um único
princípio: algumas coisas são chamadas de ente
(seres) porque são “ousíai”47; outras, porque são
“pathe ousias”48; outras, porque são “hodòs eis
ousían”49; outras, por sua vez, porque são
corrupções, ou privações, ou qualidade, ou causas
produtoras ou geradoras seja da “ousía” seja
daquilo que se refere à “ousía”; ou porque são
negações destas, ou seja, da substância mesma. (Por
isso, também o não-ser dizemos que “é” não-ser)
(Metafísica Gama 2, 1003 b 5-11).

Ente tem muitos significados. Mas esta multiplicidade não equívoca, ou seja,
disparata. Todos os significados articulam uma unidade, à medida que todos se referem
a um significado básico, fundamental, ou seja, à “ousía”.

É evidente, portanto, que os entes serão


objetos de uma única ciência, justamente enquanto
entes. Todavia, em todo o caso, a ciência tem como
objeto, essencialmente, aquilo que é primeiro (tou
protou), ou seja, aquilo de que (ex hou) depende e
em virtude de que (di’ ho) todo o resto é
denominado. Portanto, se este primeiro é a “ousía”,
o filósofo deverá conhecer os princípios (tàs arkhàs)
e as causas (tàs aitías) das substâncias.

Há, pois, uma ciência que estuda o ente enquanto ente, ou seja, as
determinações fundamentais e universais do ente, de tudo aquilo que é, de tudo aquilo
que há. O ente enquanto ente já deve, porém, ser dado ao homem, e já deve lhe ter sido
proposto para que ele possa, enquanto filósofo, investigá-lo. No livro Kapa da Metafísica
(1061 a 28 – 1061 b 17), Aristóteles mostra a distinção entre a filosofia que trata deste
“primeiro” – o ente enquanto ente e, respectivamente, a “ousía” – e as outras ciências.
Assim, por exemplo, a física estuda o ente, mas apenas enquanto em movimento; a
matemática também estuda o ente, mas apenas enquanto tem a ver com a quantidade

47
“Ousíai” é plural de “ousía”: uma vigência ou presença; algo que subsiste em si mesmo; substância.
48
Estados daquilo que vigora em si mesmo; “afecções” que afetam aquilo que é em si mesmo, “afecções”.
49
Vias que conduzem à presença, à vigência, à substância.

65
e com o contínuo; já a filosofia estuda o ente não enquanto isto ou aquilo, não enquanto
sob este ou aquele aspecto particular, mas, justamente, enquanto ente. Isto quer dizer:
a filosofia estuda o ente no todo, o ente no tocante à universalidade do ser, e isto, a
partir daquilo que é primeiro e fundamental no ente: a “ousia”.

4.2.6. A OUSÍA COMO ENÉRGEIA (ATO: REALIDADE CONSUMADA).

O pensamento de Aristóteles só pode se diferenciar do de Platão à medida que


há algo de comum entre ambos os pensadores. De fato, também Aristóteles parte da
compreensão do ser como ousía, vigência, presença. Também ele pensa a ousía como o
a priori transcendental-ontológico. Trata-se, aqui, da anterioridade do ser em relação
ao ente, da presença em relação a tudo quanto se torna presente e se apresenta, da
realidade, em relação às realizações e ao real.

O ser, a realidade já é sempre mais antigo do


que todo sendo e qualquer real. Por isso o ser, a
realidade já era e se tinha realizado para todo sendo
ser e todo real realizar-se. Antes do sendo ser o que
é, o ser já era. É o que Aristóteles expressa numa
fórmula lapidar: tó ti ên eînai, “o ser que, de alguma
maneira, já era em todo sendo” (Leão, 2010, p. 179-
180).
Que fenômeno é este? Esta é a própria fenomenalidade de todo o fenômeno.
Em tudo o que está sendo, em sua vigência, se recolhe o ser e o não-ser, o ser e o vir a
ser, o ser e o aparecer. Do mesmo modo, em tudo o que está sendo, acontece identidade
e diferença: tudo o que está sendo, enquanto vige entre o aparecer e o desaparecer,
entre o apresentar-se e o ausentar-se, se recolhe no ser e acolhe o não-ser, sendo si
mesmo para si mesmo (identidade) e sendo outro para outros (diferença). Tudo está
vindo a ser o que já era: terra está vindo a ser terra, água, vindo a ser água, ar vindo a
ser ar, fogo vindo a ser fogo, enfim, cada fenômeno, cada ente, cada real, está vindo a
ser o ser que ele já era. As coisas não somente se transformam em outras coisas. Elas
também, e, antes de tudo, se formam a partir de si mesmas, em referência a si mesmas

66
(identidade) e em referência ao que elas mesmas não são, ao outro de si mesmas
(diferença) (Cfr. Leão, 2013, p. 27; 34-35).

Como conceber, então, o singular, o individual, o que é a cada vez (tóde ti) em
sua positividade? Como Aristóteles encontrou uma possibilidade de repensar a ousía, o
ser, a presença, a realidade, de modo a dar conta de conceber o singular e o mutável
em sua positividade?

A mesma essência do ser, o ser presente ou


vigente, que Platão pensa para o koinón da idea,
Aristóteles concebe para o tóde ti como a enérgeia.
Enquanto Platão não pode nunca admitir o ente
individuado como o ente verdadeiro e próprio,
enquanto Aristóteles incluiu o individuado no ser
presente, Aristóteles pensa em modo mais grego do
que Platão, ou seja, de modo mais adequado à
essência do ser inicialmente decidida (N II, p. 372-
373).
Mas, o que significa “enérgeia”? O que diz esta palavra no pensamento de
Aristóteles? A palavra “enérgeia” remete a “ergon”: obra. Entretanto, aqui a obra é
pensada a partir do movimento e do repouso, bem como do desvelamento. A obra é
aquilo que veio a ser, que se erigiu, crescendo e aparecendo, apresentando-se
estavelmente no desvelado. A obra é, pois, uma presença, algo que repousa em si
mesmo, numa estabilidade, numa subsistência, numa quietude: ela é uma “ousía”, e o
é no modo da “prote ousia”, ou seja, da singularidade, do “a cada vez” (kath’hekaston),
do “este aqui” (tóde ti).

A obra vige a partir de um ser pro-duzido: ou seja, trazido para fora, trazido para
a luz, posto no desvelado. Há dois modos de pro-dução: a physis – o deixar que algo
emerja e se abra por si mesmo; e a poiesis – o pôr algo diante de si no sentido de
perfazer, ou seja, de aprontar e de fabricar. Na posição da obra se dá a composição de
movimento e repouso, ou seja, de motilidade e quietude. A quietude, no entanto, não
é a privação do movimento, mas sim a completude, a consumação do movimento:

A casa que está lá é enquanto posta em


evidência no seu aspecto, exposta no desvelado, está
neste aspecto. Estando, repousa na forma externa
do aspecto. A quietude do pro-duzido não é um
nada, mas um recolhimento. Recolheu em si todos
67
os movimentos do produzir a casa, os finalizou no
sentido da delimitação que dá o acabamento –
péras, télos – não do mero cessar. A quietude
custodia a consumação do movido. Aquela casa é
como ergon. “Obra” quer dizer aquilo que repousou
na quietude daquilo que tem o aspecto de – estando
de pé, jazendo –, aquilo que repousou no ser
presente do desvelado (N II, p. 368).
A partir desta exposição do ser-obra, no horizonte da compreensão grega, o que
significa “enérgeia”? Resposta: O viger como obra em obra, ou, o ser-obra: o ser posto
no desvelado, o ser posto ali, na proximidade, o ser posto de modo ereto. Aristóteles
inventou então a palavra “entelékheia”: o estar-no-fim, no sentido do estar consumado,
na plenitude da presença, como um “tóde ti”: um este aqui, um singular, um indivíduo.

Para Aristóteles, “ousía” em sentido predominante, em primeiro lugar e acima


de tudo, seria o “hypokeímenon kath’autó”, o “sujeito”, o subjacente em sentido
eminente. Por sua vez, a presença em sentido eminente e primordial, que, por isso,
Aristóteles chama de “prote ousía”, a presença primordial, primária, a “substância
primeira”, segundo a terminologia tradicional, é o permanecer de alguma coisa que, por
si mesma, a cada vez permanece e se mantém no ser, prejaz, jaz de antemão na
vizinhança, na proximidade. Ser diz respeito, em primeiro lugar, portanto, ao
permanecer daquilo que a cada vez perdura: à prote ousía, que é a ousía do
“kath’hékaston”: do que se dá a cada vez, quer dizer, o “respectivo”, o singular, o
individual (ex.: “este homem aqui”, “este cavalo aqui”). Em sentido secundário (deutera
ousía), porém, “ousía” é a presença do aspecto (eidos50: aspectus: espécie), do modo de
ser no qual o ente singular se apresenta, ou então a proveniência essencial deste
aspecto (genos51: gênero)52.

Para Aristóteles, portanto, ser (presença/vigência) em sentido primário é o “hóti


estin”, literalmente, o “que é” do que está sendo (ente), aquilo que, na terminologia
escolástica, se chamará de “existentia” (existência). E ser (presença/vigência) em
sentido secundário é o “tí estin”, literalmente, o “o que é” do que está sendo (ente),

50
“Eidos” deriva do verbo arcaico e poético “eídomai”: apareço, sou visto. Significa o aspecto em que algo
se faz ver, como também, o brilho, o esplendor, a beleza que reluz neste fazer-se ver.
51
“Genos” vem do verbo “gígnomai”: nasço, venho a ser. Significava raça, descendência, proveniência.
52
Cfr. Aristóteles: Categorias 5, 2a 11-19.

68
aquilo que, na terminologia escolástica, se chamará de “essentia” (essência). A essência
responde à pergunta “o que é?” um ente (em grego: “tí estin?”; em latim: “quid est?”).
Já a existência responde “que um ente é (quod est)” à pergunta se um ente é (an sit?). A
distinção de essência e existência, portanto, nomeia uma diferença no ser: a existência
nomeia que o ente é; a essência nomeia o que o ente é. Falando numa linguagem
escolástica, Aristóteles estabelece o primado da existência sobre a essência, invertendo
o pensamento de Platão, que apresentava o primado da essência sobre a existência. Isso
obriga-nos a reportar aquela “gigantomachia perì tes ousias”, de que fala Heidegger na
introdução de Ser e Tempo, no primeiro parágrafo: o combate de gigantes acerca do
ser, ou melhor, acerca da entidade do ente enquanto ousia: presença, vigência (SZ, p.
2).

Entretanto, a iniciativa de Aristóteles foi mais bem sucedida do que a de Platão?


Em que medida? Por mais que Aristóteles pense de modo mais adequado à essência do
ser tal como esta se tornou manifesta no início do pensar grego, em que ser e vir a ser,
ser e não-ser, ser e aparecer ainda se mantinham numa tensão criadora, a saber, como
physis (surgimento) e alétheia (desencobrimento), Aristóteles ainda pensava em
contraposição a Platão e, neste sentido, em dependência dele, ou melhor, em
dependência do pensamento “metafísico” que com ele começou. A resposta de
Heidegger soa assim:

Todavia, Aristóteles pôde pensar por sua vez


a ousía como a enérgeia somente como contra-
ataque em relação à ousía como idea, de tal maneira
que ele mantém então o eidos como presença
subordinada no patrimônio essencial do ser presente
do ente presente em geral. Que Aristóteles pense
nos termos indicados de modo mais grego que
Platão não quer dizer, todavia, que ele chegue, de
novo, mais próximo do pensamento inicial do ser.
Entre a enérgeia e a essência inicial do ser (alétheia
– physis) está a idea. Ambos os modos da ousía, a
idea e a enérgeia formam na reciprocidade da sua
distinção a estrutura fundamental de toda
metafísica, de toda verdade do ente enquanto tal. O
ser manifesta a sua essência nestes dois modos: o ser
é presença enquanto manter-se do aspecto. O ser é o
perdurar daquilo que é a cada vez em tal aspecto.
Esta dupla presença subsiste com base no ser
69
presente e é, por isso, presença como constância,
viger duradouramente, demorar (N II, p. 373, grifo de
Heidegger).

4.2.7. DA FÍSICA À FILOSOFIA PRIMEIRA ENQUANTO TEOLOGIA

O movimento é entendido como mutação ou transformação de alguma coisa em


potência para alguma coisa em ato. No movimento há um antes e um depois. O tempo
é o número (a medida) do movimento. A essência do tempo, no entanto, é o agora. O
tempo é, portanto, eterno.

Quanto mais elevado em seu ser é o ente, no todo do cosmos, tanto mais o seu
movimento é perfeito e tanto mais ele mostra a eternidade em si mesmo. O movimento
das coisas terrenas é imperfeito, pois é constituído de gênese e corrupção. O movimento
das coisas celestes é perfeito, pois entre elas não há corrupção. O movimento mais
perfeito é o das esferas celestes: movimento circular. O movimento circular é mais
perfeito pois no círculo tudo retorna sempre de novo ao seu ponto de partida. Cada
momento do círculo é princípio e fim, ao mesmo tempo. Trata-se de um movimento
constante e permanente. Dentre os vários “céus” (esferas celestes), o primeiro céu é o
que move todos os demais, é o mais perfeito e apresenta um movimento perpétuo
circular.

O primeiro céu, no entanto, move todas as coisas, sendo ele mesmo movido.
Aquilo que move tudo sem ser movido por nada, este é o que não conhece nenhuma
mutação, nenhuma passagem da possibilidade para a realidade: é o que é pura
realidade, pura energeia, presença autônoma e autossubsistente por excelência, o
divino (theion), o deus (theos). Isto que está na quietude, o divino, é o telos de todo o
movimento. Ele move todas as coisas “hos eromenon” (como amado) e “hos orekton”
(como desejado). Ele é vida e seu viver consiste no pensar. Ele é pensamento que se
pensa a si mesmo (noesis noeseos).

O “proton kinoun akineton” (primeiro movente imóvel) é divino (theion), melhor,


é o que há de mais divino (theiotaton). Ele é o ente mais digno (timiotaton on), a “ousia”
mais autêntica e em sentido mais próprio. A filosofia primeira é, assim, ao fim, teologia.
70
A metafísica se constitui, pois, como uma ciência fundamental, mas em uma
duplicidade:

• Primeiro, ela é uma ciência do ente enquanto ente (ontologia) e isso


significa, em sentido primordial, da “ousia” (usiologia).
• Por fim, ela é uma ciência do ente por excelência, da “ousia” em sentido
mais elevado, do deus (theos) ou do divino (theion) mais divino
(theiotaton), quer dizer, é teologia.
Esta estrutura onto-teo-lógica caracteriza a filosofia enquanto metafísica.

4.2.8. O MOVIMENTO E O TEMPO

Na FÍSICA (IV, 10-14), Aristóteles trata de um dos problemas mais desafiadores


e, no entanto, mais importantes da filosofia: o tempo. Neste tratado como um todo,
está em questão a physis. A physis é caracterizada pelo movimento (kínesis / metabolé
– mudança).

Os cinco capítulos da secção que fala do tempo tratam de:

1) C. 10 – impostação aporética do problema do tempo. Aporia significa: o não


poder passar adiante, não tem uma via de saída. Impasse. Duas questões são
colocadas: 1) se o tempo entra no âmbito do ente ou do não ente. Aporia da
existência; 2) qual é a natureza ou a essência do tempo? Aporia da essência.
2) C. 11 – definição do tempo: o tempo é isto: o número do movimento segundo
o anterior e o posterior.

71
3) C. 12 – determina com mais precisão a relação entre o movimento e o tempo:
o movimento é no tempo e é medido pelo tempo, mas também o tempo é
no movimento e é medido pelo movimento53.
4) C. 13 – fala da unidade do tempo na multiplicidade dos agora. Esta unidade
é synécheia, a unidade do contínuo. Coesão do tempo: coesão dos agora. O
agora é o que mantém unido, coeso, o tempo. O agora é fim e é início.
Determinações do tempo (sempre a partir do agora).
5) C. 14 – Trata do anterior e do posterior em relação ao antes e depois. O que
está em questão no tempo não é o antes e depois em geral (há um antes e
depois também no espaço), mas do antes e do depois no movimento.
Questão: onde e como é o tempo? O tempo é na alma como a verdade é no
intelecto. O tempo é número. O número é no intelecto que numero. Mas, em
que sentido?

Aristóteles parte dos lógoi exoterikoí – Trata-se de uma aproximação ao tempo


a partir da concepção vulgar, comum. Partindo dos pareceres comuns, Aristóteles
realiza uma investigação a respeito do tempo, em torno dele, na sua esfera fenomenal,
conduzindo a discussão através de aporias.

A primeira aporia é se o tempo entra no âmbito do ente ou do não ente (Aporia


da existência). Parece que o tempo não existe ou existe a duras penas e de modo
obscuro. O passado não é mais e o futuro ainda não é. Mas o passado e o futuro compõe
o tempo – seja o tempo tomado indefinidamente seja o tempo tomado
determinadamente. Aquilo que é composto de não ser não parece poder participar do
ser. Isto remete a Parmênides. Cf. também a posição dos céticos, que negam a existência
do tempo. Caso se parta da posição de que o tempo existe a duras penas e de modo
obscuro: é necessário, se o tempo existe, que seja divisível totalmente e que todas ou
ao menos algumas de suas partes existam. Se as partes do tempo parecem não existir,
no entanto o tempo é divisível. Não se pode, partindo da não existência das partes,

53
Pergunta fundamental para Heidegger: o que significa ser-no-tempo? Intratemporalidade (Ser e Tempo,
§§ 80-81). Em Heidegger: intratemporalidade: o ser no tempo de um ente que não tem o modo de ser do
Dasein. Temporalidade: modo de ser do Dasein.

72
concluir que o tempo não existe absolutamente, porque precisamente é algo de
divisível, ainda que o seu modo de ser seja obscuro. O modo de ser do tempo é obscuro.

O agora não é uma parte do tempo, porque a parte tem duas características: 1)
é medida do todo; 2) contribui para constituir o todo. No entanto: no tempo os agoras
não são simultâneos uns em relação aos outros. Todo agora perece ao advir o agora
sucessivo. Ser simultâneo significa ser em um só e mesmo agora... Aristóteles discute
dialeticamente o problema de se o agora em cada agora é o mesmo ou é diverso. As
duas hipóteses são expostas – que o agora é o mesmo; que o agora não é o mesmo.
Ambas são refutadas por suas consequências contraditórias. O tempo é alteridade
incessante ou identidade permanente?

Aristóteles deixa esta primeira aporia sem avanço. Só a retoma no cap. 14.

A aporia da existência, no entanto, põe em evidência:

1) Que o tempo é divisível;


2) Que é contínuo;
3) Que é infinito e que se pode considerá-lo em uma porção limitada.

A segunda aporia é a da essência do tempo: ti d’estin ho chrónos kai tis auton he


physis – o que é o tempo e qual a sua natureza.

Aristóteles começa discutindo duas “endoxai” (pareceres autorizados) a respeito


desta pergunta:

1) Primeira “endoxa”: o tempo é a esfera do universo (Pitagóricos, Arquitas).


2) Segunda “endoxa”: o tempo é o movimento do todo, do universo (Platão).

Crítica de Aristóteles: “a parte do movimento circular é ainda um certo tempo,


mas não é mais movimento circular. Aquilo que é tomado, de fato, é parte do
movimento circular, mas não movimento circular”. Não é próprio do todo aquilo que
não é verdadeiro da parte (Tópicos, V, 5). Depois, havendo vários céus no universo,
haveria vários tempos diversos.

3) Terceira “endoxa”: o tempo é movimento e mudança.

73
A simples identidade entre tempo e movimento é contestada por Aristóteles.
a) Subtraído o empo ao movimento do universo se o aplica às substâncias
particulares. Mas se assim fosse haveria uma pluralidade de tempos
diversos. O tempo, no entanto, é igual por toda a parte e se estende a
todas as coisas.
b) O movimento pode ser rápido ou lento, mas o tempo não. Rapidez e
lentidão se definem a partir do tempo (rápido: o que se move muito em
pouco tempo; lento: o que se move pouco em muito tempo). Logo,
tempo não é movimento.

Em toda esta discussão o tempo deixa de ser uma determinação do universo e


da esfera celeste extrema e passa a ser uma determinação do movimento. O tempo não
é, porém, movimento.

No capítulo 11, todavia, Aristóteles diz: mas o tempo não é nem mesmo sem
movimento. Quando não há mudança no nosso pensamento parece que o tempo não
passou... A sucessão da qual não se tem consciência é percebida como uma
simultaneidade. Cf. a estória dos heróis da Sicília... Estados de inconsciência e de
anestesia – neles não se percebe o movimento... logo, não se tem consciência do tempo.
A alteridade dos agoras é tirada.

A percepção do movimento está relacionada com a percepção da alteridade dos


agora. A percepção do movimento é acompanhada pela percepção do tempo. Isto é
verdade mesmo quando não é percebido nenhum movimento exterior, mas é percebido
o movimento na alma. O tempo é para Aristóteles um “sensível comum” ligado ao
movimento.

Resume-se esta exposição até agora sobre o tempo, por parte de Aristóteles,
num silogismo:

O tempo não é movimento

74
Mas o tempo não é sem movimento

Logo, o tempo é algo do movimento (tes kinéseos ti).

Aristóteles expõe assim a definição do tempo:





Touto gár estin ho chrónos, arithmòs kinéseos katà tò próteron kaì hýsteron.

Isto justamente é o tempo, algo contado a partir do movimento que vem ao


encontro no horizonte do anterior e do posterior (a partir do movimento que vem ao
encontro com vistas ao antes e ao depois).

O tempo é algo que encontramos previamente junto ao movimento, junto a algo


que se movimenta. O tempo não é algo na coisa ou junto à coisa movida. O tempo é algo
do movimento. O tempo é algo junto ao movimento e não junto ao movido. O
movimento é no tempo, ele é intra-temporal. O tempo é um número junto ao
movimento – ou: o tempo é o movimento na medida em que tem um número (Física,
219b 3s).
O tempo é um número. Mas, não dizemos que os números são extratemporais?
A expressão número é ambígua: (arithmós) deve ser entendido aqui no sentido
de (arithmoúmenon). O tempo é número não no sentido daquilo que se
usa para contar, daquilo que conta, mas o número no sentido do contado. O tempo é o
que é contado junto ao movimento. O tempo é algo contado junto ao movimento que
vem ao encontro com vistas ao antes e ao depois, no horizonte do anterior e do
posterior (p. 350).
Que significa este “com vistas ao antes e ao depois”? Nós perseguimos o
movimento e contamos o tempo “no horizonte do anterior e do posterior”:
próteron kaì hýsteron) – estas duas palavras podem ser
traduzidas como “antes” e “depois”, mas também como anterior e posterior. Anterior e
posterior são determinações temporais. Aristóteles parece estar dizendo: o tempo é o
que é contato junto ao movimento que vem ao encontro no horizonte do tempo (do

75
anterior e do posterior). O tempo é algo que vem ao encontro no horizonte do tempo.
Parece uma mera tautologia. O tempo é o anterior e o posterior. Ou seja: o tempo é o
tempo. Erro lógico?
E se tempo cá e tempo lá tiver sentidos diversos? Tempo vulgar e tempo
originário? Heidegger vê nesta aparente tautologia o nexo entre o tempo vulgar e o
tempo originário54. O tempo vulgar só pode ser interpretado a partir do tempo
originário. Em todo o caso, para evitar parecer que Aristóteles esteja incorrendo numa
tautologia costuma-se traduzir próteron kaì hýsteron) como
“antes e depois”. Isso para não parecer que Aristóteles está definindo o tempo por meio
de um recurso ao tempo...
Tempo tem a ver com mudança (metabolé). A mudança é o caráter
mais geral do movimento. Mudança que concerne à substância: gênese e corrupção
(passagem do não ser ao ser e do ser ao não ser); mudança que concerne à qualidade:
alteração (o tornar-se outro de uma qualidade, por exemplo, de uma cor); mudança que
concerne à quantidade: crescimento e diminuição; mudança que concerne ao lugar:
movimento local, locomoção. Este movimento é chamado em grego: (phorá). É a
passagem de um lugar para outro. Lugar se diz em grego: (topos). Nele, o movido
é o que é levado de um lugar para outro.
A mudança é de algo para algo. Este “de algo para algo” não precisa ser
concebido necessariamente de maneira espacial. Heidegger chama de dimensão esta
estrutura (mudança de algo para algo)55. Aristóteles chama o caráter dimensional de
(mégetos): extensão ou grandeza. Este conceito não tem o caráter
primariamente espacial. A dilatação tem o caráter do contínuo. Diz um estender-se em
si fechado. Coesão, constância. O movimento segue a continuidade. Sentido ontológico:
a continuidade precede o movimento em sua essência. É condição de possibilidade do
movimento. É a priori.

54
O tempo compreendido de maneira vulgar, isto é, o tempo que vem ao encontro imediatamente, deve
poder vir à luz a partir da temporalidade (tempo originário do DASEIN). O tempo vem ao encontro em
uma contagem do movimento dirigida (dirige-se o olhar segundo o antes e o depois, o anterior e o
posterior). Contamos o tempo com vistas ao antes e depois, no horizonte do anterior e posterior.
55
Melhor: dilatação. É um sentido de extensão que não implica a caráter espacial. Bergson, por não ter
compreendido isto, entendeu mal o conceito aristotélico do tempo (no sentido de uma espacialização do
tempo).

76
A priori do movimento são: grandeza e continuidade. Aqui está em jogo um nexo
fundacional a priori. Para se pensar tempo é preciso pensar movimento, para se pensar
movimento é preciso pensar grandeza e continuidade. Grandeza, porém, não há de ser
pensada como grandeza extensiva do espaço (x Bergson). O tempo segue ao
movimento. Quando acompanhamos um movimento o tempo nos vem ao encontro,
sem que o visemos expressamente. Nós visamos, antes, o movido. Com o movido, nós
percebemos o movimento. O movido é cada vez este-aqui. Nos vemos
concomitantemente o movimento com o movido, mas não vemos o movimento
enquanto tal. Num movimento que é uma locomoção (mudança de lugar): percebemos
que o movido se move de lá para cá ou de cá para lá. Transição. Dizemos: aqui-agora,
outrora lá, posteriormente lá... lá agora, lá agora... Dizemos, de maneira tácita.
O que é contado na sequência numérica da transição no horizonte do “de algo
para algo”, quer o expressemos quer não, são os agoras. Ao movido se segue o agora.
Isto é: ele é concomitantemente visto na experiência do movimento. Isto é: é
concomitantemente contado. Isto que é concomitantemente contado ao
acompanharmos um movimento, isto é, isto que é dito, isto é o tempo.
Os agoras são contados e também contam (os lugares). O tempo conta e é
contado. Tempo é algo contado junto ao movimento, na medida em que vejo o
movimento no horizonte “de algo para algo”. Os agoras são dizíveis e compreensíveis
no horizonte do anterior e do posterior. Qual a origem do agora?
Antes e depois não têm sentido necessariamente temporal. Nem espacial.
Porém, em primeiro lugar, concebemos o antes e o depois em sentido espacial. Na
contagem do movimento o antes e depois tem sentido temporal de anterior e posterior.
Eles possuem uma distância em relação ao agora. O agora é o limite para aquilo que
passou e para aquilo que está por vir. O tempo é mantido coeso pelos agoras. O tempo
é explicitado com vistas ao agora.
O agora contado no movimento é cada vez outro. Em cada agora, o agora é um
outro, mas cada agora diverso é, enquanto agora, de qualquer modo sempre um agora.
Enquanto diversos, os agoras são o mesmo, cada vez um agora. O agora é o mesmo na
sua essência – mas é cada vez outro no seu existir. Identidade na essência, alteridade na
existência. O agora articula e delimita o tempo com vistas ao anterior e posterior.

77
O agora é cada vez fim e início. Remete sempre ao não-mais e ao ainda-não.
Estes, o não-mais e o ainda-não pertencem ao tempo, ao seu conteúdo. O agora tem o
caráter de transição. O agora é transitório. Os agoras da sucessão do tempo não são
pedaços... Não confundir o contínuo do fluxo temporal com o contínuo da agregação
espacial. O agora (e, respectivamente, o tempo) sempre se acha aberto enquanto
transição... O agora está segundo a sua essência ligado ao porvir.
O agora não é o limite de um movimento; é seu número... são coisas diversas. O
limite de algo pertence ao modo de ser do limitado... Isso não vale para o número. O
número não depende da materialidade e nem do modo de ser da coisa: por exemplo,
dez cavalos, dez árvores... O que caracteriza o número é poder determinar, delimitar,
algo de tal modo que ele se mostre como independente daquilo mesmo que é limitado.
O tempo como número não pertence ao ente mesmo que ele conta. Não está preso ao
conteúdo material do movido, nem ao seu modo de ser. Kant diria: o tempo é uma forma
da intuição. O tempo é número do movimento. Enquanto tal ele está em condições de
medir o movimento. O tempo não é apenas algo contado. Ele é algo que conta. Ele é
medida.
O tempo não é um elemento pontual. É transição. Olha para trás e para frente.
Cada parte do tempo tem o caráter de transição. Não é ponto. Não é pedaço. Por isso,
o tempo não pode ser despedaçado. Por ser transição o agora está em condições de
tornar acessível o movimento enquanto movimento (transição). Passagem.
O agora não é limite, mas número. Enquanto transição, é número possível.
Medida numérica possível do movimento. Ele sempre mede um de......até... Isso implica
duração (por quanto tempo...). O tempo é número e medida: (arithmós) e
(métron).
O ser no tempo do movimento é o seu ser medido. A intratemporalidade das
coisas e processos se distingue do modo como os agoras são no tempo. Os agoras são
no tempo constituindo o tempo... As coisas e os processos são no tempo na medida em
que são contados, isto é, no número, como o numerado. Intratemporalidade significa:
ser abarcado pelo tempo como número.
O tempo não pertence ao ente que é no tempo. O tempo é mais-além ... Kant: o
tempo é aquilo no interior do que se dá uma ordem... É um horizonte abrangente, em

78
cujo campo previamente dado é possível estabelecer uma ordem com vistas à sua
sucessão. O tempo mede quão grande é a transição.
Movimentos anímicos também estão no tempo. A alma também tem o caráter
de movido. Quando não há nenhuma alma, há ou não há tempo? Quando não há
nenhuma alma então não há nenhum contar, ninguém que conta, e se não há ninguém
que conta, não há nada contável e nada contado. Quando não há nenhuma alma, não
há tempo (?????). Aristóteles coloca isso como uma questão... Questiona também a
outra possibilidade. O antes e o depois são no movimento e o tempo é ele mesmo o
movimento, o antes e o depois, como algo contado.
Aristóteles apenas toca tangencialmente o problema... O tempo é mais objetivo
do que todos os objetos. O tempo é subjetivo... O que é o tempo e como é o tempo? Os
conceitos de objetivo e subjetivo não conseguem interpretar o tempo nem a alma. O
tempo não é sem a alma, daí não se segue que o tempo é psíquico. Ele é na alma... e é
em toda a parte, na terra, no mar, no céu... Está em jogo, aqui, um nexo fundacional:
dimensão, constância, movimento e tempo. Aristóteles fornece apenas uma
interpretação explícita da compreensão natural (vulgar) do tempo...

4.2.9. A VIDA E A PSYCHÉ (ALMA).

Já dizíamos que o ser para os gregos é experimentado como surgir (physis), como
viver (zoe) e como permanecer (ousia). Vamos tentar entender, agora, como a ontologia
da substância (ousia), que é uma ontologia do ato (energeia, entelecheia) e potência
(dynamis) incide sobre a ontologia do vivente, em Aristóteles.

Aristóteles trabalha uma ontologia da vida na sua obra Peri Psychés. Psiché é algo
assim como o fundamento do ser do ente que vive. Ser, para o vivente, é viver. Trata-se
de um modo de ser não redutível aos princípios da natureza material, ou seja, daqueles
corpos que são privados de vida. O que é privo de vida não morre. Só pode morrer,
aquilo que vive. Psyché é o nome para o princípio do ser dos viventes.

Característico do vivente é o movimento (kinesis) que se orienta em um


determinado ambiente = o movimento em direção àquilo que é relevante para a vida.
Nas plantas (phyomena), o movimento aparece na dinâmica de nascer, nutrir-se,
79
crescer, envelhecer, degenerar, morrer, mesmo permanecendo fixa. Portanto,
movimento não tem, aqui, o sentido de deslocamento ou movimento local. O princípio
de vida do vivente planta é chamado depois de “alma vegetativa”.

No animal, o movimento tem como ponto de partida e como senso de orientação


a percepção (aisthesis). Trata-se de um movimento capaz de discernir (krinein) o que é
favorável e o que é contrário à vida. A dinâmica deste movimento implica, portanto, dois
tipos básicos: o seguir (diokein) e o fugir (pheugein).

Onde se dá percepção concomitantemente acontece também um sentir-se bem


(hedone = prazer) e um sentir-se mal (lype = dor) > sensação como um estar disposto
em si mesmo deste ou daquele modo. A percepção tem em vista alguma coisa que se
apresenta numa significado favorável ou desfavorável. A percepção, portanto, não é
uma mera observação. Aquilo que é apreendido pelo animal não é neutro. O vivente
apreende as coisas em referência ao que é desejável (oreksis = desejo, aspiração,
tendência: appetitus). A alma, enquanto princípio de vida de um vivente que se
comporta a partir da percepção (sentidos) é chamada de “alma sensitiva”.

As ousiai (substâncias) são em primeiro lugar corpos (somata). Mas os corpos se


articulam em privados de vida e viventes. Alguns, com efeito, apresentam no seu ser o
“ter vida” (echein zoen). Os que têm vida tem a sua gênese (genesis) e o seu movimento
(kinesis) através de si mesmos (di’autou). A origem (arche) e a consumação (telos) está
nele mesmo: ele é por si mesmo, ele nasce, mantêm-se e morre por si mesmo. O vivente
tem em si mesmo o poder-ser. A alma é a presença de um poder-ser que se atém à vida
(dynamei zoen echontos). Anima est actus primus corporis physici potentia vitam
habentis. Alma é a realidade primordial de um ente corpóreo ou de um corpo natural
que se atém à vida em seu poder-ser.

Com outras palavras, alma é aquilo pelo que o vivente tem vida, tem o seu poder-
viver, e o tem em si mesmo e por si mesmo, em sua autonomia. A alma é realidade
primordial (actus primus) pois o vivente vive, mesmo quando não exerce nenhuma outra
atividade, por exemplo, enquanto dorme. Alma é, portanto, “entelecheia”, realidade
primeira, e princípio autônomo de realização de toda potencialidade de um corpo

80
vivente, de um “organismo”. Ela é um modo de ser que determina a presença do vivente
em seu poder-ser e em seu ser plenamente realizado.

4.2.10. A VIDA HUMANA E A ÉTICA.

Aristóteles é o autor de dois tratados de ética, intitulados, respectivamente, Ética


a Nicômaco (Ética Nicomaquéia) e Ética a Eudemo (Ética Eudêmia). Há ainda outro
tratado, chamado Grande Ética, atribuído a ele, mas que deve ser de um discípulo. Os
três tratados têm uma estrutura semelhante, que é a seguinte:

1. O bem supremo ou a felicidade;

2. As virtudes éticas em geral e as virtudes éticas em particular;

3. As virtudes dianoéticas ou intelectuais;

4. Os vícios, a incontinência;

5. A amizade;

6. A virtude perfeita, a felicidade completa.

A investigação começa com a questão: “o que é o bem supremo?”. Para


Aristóteles, o bem supremo ou a felicidade do homem consiste em agir conforme à
virtude. Por isso, a investigação logo se detém em investigar a virtude. A virtude, porém,
podem ser vistas em duas dimensões: como virtude do caráter – virtudes éticas; e como
virtude do intelecto – virtudes dianoéticas. Quando pergunta o que caracteriza a virtude
ética em geral, Aristóteles remete à teoria do “meio termo”: que a virtude não é nem
carência, nem excesso, mas a boa medida no ânimo e na ação. Aristóteles empreende,
em seguida, uma investigação sobre as condições gerais da ação - voluntariedade,
escolha, deliberação, o querer, a responsabilidade –, para, imediatamente depois,
examinar cada virtude ética em particular.

Para Aristóteles, virtuoso é aquele agir que se cumpre conforme a diánoia: a reta
razão, o intelecto. Entre as virtudes intelectuais destacam-se, para a questão da ética, a
phrônesis (‘sabedoria prática’, ‘prudência’) e a sophia (‘sabedoria’ no sentido pleno).

81
A investigação se estende, ainda, à indagação sobre os vícios, sobre o prazer e
sobre a amizade. Por fim, Aristóteles retoma o tema da felicidade, perguntando qual
seria a felicidade perfeita. A resposta é que a felicidade perfeita se encontra naquela
forma de vida que Aristóteles chamou de “bíos theoretikós”, ou seja, a forma de vida
dedicada à theoria: à contemplação, ao pensamento. Para ele, o “bíos politikós” – a vida
ativa, a vida política – é bom, mas não o melhor. As últimas indagações versam sobre a
educação e sobre os bons costumes, para terminar com um exame sobre os bons
legisladores, discussão que será retomada na Política.

A investigação termina de modo inesperado, evidenciando a necessidade de se


recolocar melhor a própria questão.

4.2.10.1. O ESTATUTO DA FILOSOFIA ÉTICA

Para Aristóteles, a Ética se denomina “he perí ta anthropéia philosophia”, ou seja,


o saber filosófico acerca das coisas humanas. É “theoria ethiké” – a contemplação e
consideração que toma como tema o ethos, quer dizer, a existência humana como tal.

A Ética é, para Aristóteles, de certa maneira, um saber político (politiké tis).


Político, aqui, se refere à Pólis: a comunidade histórica em que o homem está inserido.
A existência humana é, como tal, co-existência, existência compartilhada, ser-com-os-
outros, partilhar do mesmo mundo histórico, ser incumbido, na co-responsabilidade, do
cuidado com tudo e com todos (ocupação e preocupação).

O estudo do ethos se faz num caminho de investigação (méthodos). É também


caracterizado como um tratado, ou seja, como uma abordagem direta das coisas em
questão (pragmatéia). Em que consiste este método e abordagem de investigação das
coisas humanas? Primeiramente, o ponto de partida são as opiniões ou pareceres que
são difusos sobre as questões levantadas (dóxai). Nem toda opinião, contudo, é digna
de consideração, mas somente aquelas mais autorizadas ou que parecem ter
argumentos a seu favor (endoxa). A investigação é, num primeiro momento, pois, um
exame crítico das opiniões. Em seguida, a investigação deve examinar o grau de

82
evidência dessas opiniões, bem como aquilo que elas deixam esquecido ou velado.
Nesse segundo momento, a investigação precisa seguir os fenômenos (tá phainomena),
ou seja, aquilo que vem à evidência numa percepção clara e distinta (tá phainomena
katá ten aisthesin). A investigação é, portanto, fenomenológica. Seus momentos são:

• liberar as opiniões das obscuridades e imprecisões;


• contrapor as opiniões opostas para encontrar o que é verossímil entre
elas;
• resolver as questões voltando à evidências das coisas mesmas;
• demonstrar a razão de ser das opiniões incorretas.
O estudo da ética não é um estudo neutro. Ele tem um sentido prático de
formação e de transformação do ser humano que a ele se dedica:

“O presente tratado não se propõe como


escopo um puro conhecimento, como os outros, de
fato, não estamos indagando para saber o que é a
virtude, mas para nos tornarmos bons, porque, de
outro modo, não haveria nada de útil nele”.

A filosofia ética é uma filosofia que aborda a existência humana concreta. Ela
tem a sua própria precisão (akribéia). Ela não deve ser um discurso genérico e abstrato.
Necessita, antes, ser um discurso atento à concretude e às infindas particularidades que
povoam a existência humana. A reflexão filosófica ética não substitui a sensatez e a
sabedoria ética (phrônesis), que o homem forma a partir de sua educação e de sua
experiência. Neste sentido, ela não acrescenta nada. Ela só pode mesmo é, para quem
tem essa sensatez e sabedoria, ajudar a clarificar, a encorajar (protepsasthai) e exortar
(parormesai).

4.2.10.2. O Bem

O Bem é o primeiro tema da Ética em Aristóteles. O início da Ética a Nicômaco é


decisivo:

83
“Toda arte (techne) e toda investigação
(methodos), assim como toda ação (práxis) e toda
decisão (proaíresis), manifestamente mira um
determinado bem”.
A práxis (ação), assim como a phýsis (natureza) e a téchne (arte), é uma forma
de poíesis (produção). Acontece poíesis (produção) ali onde se dá a passagem do não ser
para o ser.

A natureza é a poíesis originária: ela cria por si mesma os seres do universo – o


céu e a terra e tudo o que aí se origina – minerais, vegetais, animais, homens e espíritos.

A téchne (artesanato/arte) é um relacionamento do homem com as coisas. É uma


habilidade e uma competência, um saber e um poder, que se afirma como capacidade
inventiva, projetiva e criativa, isto é, como engenho do homem. Por ela surge o mundo
humano com todos os seus artefatos, isto é, com todas as coisas de uso, com todas as
obras-de-arte, com tudo aquilo que o homem produz, cultiva, trabalha, constrói, edifica,
funda, institui. Trata-se, portanto, do domínio da cultura.

A práxis (ação) é o empenho livre e concreto do homem no mundo, no tocante


aos seus relacionamentos com os outros e consigo mesmo. Empenho que se cumpre na
dimensão do pensamento e da linguagem, e que funda o mundo histórico da
convivência humana, com suas comunidades e sociedades (a Pólis). Este empenho,
determinado pela liberdade, é cada vez situado. Coloca-se, a cada vez, numa situação.
A partir de cada situação, o homem precisa se responsabilizar pelo que ele é e se torna.
Por isso, o empenho livre e concreto do homem é marcado pela estrutura do cuidado.
O que o homem é, o seu ser, está sempre colocado sob seus cuidados, entregue à sua
responsabilidade. O que o homem é resulta sempre de uma sua responsabilização, do
modo como ele, historicamente, assume o que ele pode ser. Por isso, em todo o seu
empenho no mundo, marcado pela liberdade, como em todo o seu comportamento,
determinado pela responsabilidade, o homem precisa sempre de novo definir o que ele
pode ser, isto é, o que ele é capaz de ser: como ele pode ser-com-os-outros, no mundo
compartilhado da convivência, e como ele pode ser consigo mesmo, podendo, a cada
vez, ganhar-se ou perder-se na sua identidade, pois o seu ser está sempre em jogo, em
questão. Por isso, a práxis requer, sempre de novo, decisão (proaíresis).

84
Toda criação da natureza (physis) e todo o trabalho do homem, ou seja, todo o
seu fazer e todo o seu agir – toda habilidade inventiva (téchne) e toda capacidade de
ação (práxis) –, se cumprem plenamente numa obra (érgon).

A obra é o sentido da poíesis (produção, criação, geração). Em toda operação –


quer seja da natureza, quer seja do fazer ou do agir humano – se dá a passagem do não-
ser para o ser, da não vigência para a vigência, da ausência para a presença. A obra é
surge no tomar corpo dessa passagem. Ela revela o vigor de um poder-ser que eclode,
surge e repousa. O sentido da obra é atuar e revelar este poder-ser.

Na passagem criadora que gera a obra Aristóteles assinala três momentos:

1. O momento em que o poder-ser é ainda uma simples possibilidade abstrata –


a dýnamis – que os latinos traduziram por potentia, potência. Este momento se refere
às condições para deixar surgir, para produzir algo de novo.

2. O momento em que o poder-ser está em operação – a enérgeia – que os latinos


traduziram por actus, ato. Este momento se refere à eclosão da obra, o estar em obra,
o acontecer do trabalho, em seu inacabamento. Nesse momento, com efeito, o poder-
ser ainda não conquistou sua plenitude.

3. O momento em que o poder-ser se cumpriu, se realizou plenamente, se


consumou – a entelécheia – que os latinos traduziram por perfectio, perfeição. Nesse
momento, o poder-ser foi atuado plenamente. A obra chegou à sua consumação e
maturação. O seu sentido se cumpriu. Está consumado.

A palavra “perfeição” nos remete ao processo do perfazer, do consumar de uma


produção. Perfeição é perficere: consumar. Consumar, por sua vez, significa levar ao
sumo, ou seja, levar algo ao extremo da sua própria possibilidade de ser.

O homem faz coisas porque precisa fazer-se, melhor, precisa perfazer-se a si


mesmo. O homem se per-faz porque a sua existência é, essencialmente, um por-fazer,
uma tarefa. Isso quer dizer: o homem se perfaz porque sua existência é,
fundamentalmente, um ter que ser, um ter que se responsabilizar por constituir a si
mesmo a partir do fundo da liberdade. Portanto, a téchne - o fazer artesanal/artístico –
, encontra o seu pleno sentido na práxis, ou seja, na ação da liberdade, pela qual o ser

85
humano se perfaz a si mesmo. O fazer (téchne) é transitivo: passa para alguma coisa,
que é fabricada, produzida, constituída. O agir (práxis) é intransitivo: retorna para o
próprio ser humano, redunda na sua transformação e maturação.

O vigor, que possibilita a perfeição, ou seja, a consumação de uma obra em sua


excelência chama-se areté – o que os latinos traduziram por virtus, virtude. A virtude se
revela plenamente na obra. Assim, o vigor da natureza eclode e vem à luz nas suas obras:
no espetáculo do céu e da terra. O vigor da arte, nos artefatos, invenções, criações do
engenho e do gênio humano. O vigor da ação, nas obras da liberdade e da
responsabilidade humana: naquele algo de novo que o homem, por meio de suas
decisões, inaugura, funda, institui historicamente.

Toda ação é consumação. O sentido da ação se consuma na obra. Consumar


significa trazer o poder-ser ao seu sumo, ao seu máximo e extremo. O sentido, a
consumação de uma ação se chama telos – o que os latinos traduziram por finis, fim. O
fim da ação não é simplesmente a meta que a regula, nem o acabamento em que ela se
aquieta, nem a finalidade a que ela se presta. O fim da ação é o seu sentido. O fim é o
princípio de estruturação, de surgimento, crescimento e consumação. É princípio que
rege o começo, o desenvolvimento e a maturação da ação. Por isso, o fim é a causa
principal da ação.

Toda ação é um empenho em vista de um bem. O telos da ação, quer dizer, o


sentido em vista do qual se dá a ação, é um determinado bem (agathon tini). A ação, à
medida que se cumpre num bem-fazer, ou seja, num fazer virtuoso, se presta a trazer à
luz um bem. Nisso está a sua prestação de serviço, a sua serventia. Há uma gradação
entre fazer-bem, fazer um bem e fazer o Bem. Virtude é fazer bem um bem. O que torna
bom um bem e o que torna boa e virtuosa uma ação é o Bem puro e simples (to agathon
haplos). O Bem é o sentido de toda genuína ação. É por sua força e graça que toda ação
se torna verdadeiramente boa.

O Bem é aquilo que deixa e faz ser. É o que concede ser e vigor a todas as coisas,
a todas as obras, a todas as ações. É o que produz o que é devido. Na verdade, a ação
do homem não pode fazer o Bem. Em todo o empenho da ação o homem precisa doar-
se para receber a graça que lhe advém do próprio Bem. Com efeito, em última instância,

86
uma ação é boa não porque faz o Bem, mas é boa porque o Bem a faz, ou seja, a deixa
eclodir, surgir, consumar-se. Por isso, o Bem é o to ariston (o mais vigoroso, o melhor).
Trata-se, aqui, do Bem supremo de todas as ações boas (to panton akrotaton ton prakton
agathon).

4.2.10.3. A VIRTUDE ÉTICA

Areté (virtude) é excelência da alma. É um vigor e uma nobreza de alma, onde o


homem deixa e faz atuar o melhor de si mesmo. É disposição apaixonada (pathos), é
atitude apropriada e estável (hexis), é ação (práxis). Como tal, a virtude se cumpre na
operação excelente das potencialidades da alma (enérgeia) e se consuma na obra
perfeita (érgon) da liberdade humana, em que o homem chega à plena realização de sua
essência.

As potências da alma operam de modo excelente quando são regidas pelo logos
(pensamento, razão). No homem, a potência do desejo (orexis), por exemplo, pode
aparecer de dois modos: como cobiça (epithymia) ou como vontade (boulesis). Assim, o
desejo pode ser uma tendência ou propensão que segue um ímpeto cego, e então é
cobiça; ou pode ser uma tendência ou propensão iluminada pelo pensamento, e então
é vontade. Da mesma maneira, as emoções, paixões e afetos (pathoi) precisam ser
regidos pelo logos. À medida que isso acontece, elas se transformam em disposições
estáveis da alma (hexeis).

A alma boa, íntegra, é aquela que é regida pelo logos. Quando as potências da
alma são regidas pelo logos, a ação torna-se a atuação de virtudes éticas.

“A virtude do homem deve ser aquela


disposição pela qual o homem se torna bom e pela
qual ele leva à perfeição a sua obra”
Guiado pelo logos, o homem encontra a justa medida em todas as suas paixões
e em todas as suas ações. A justa medida, porém, é sempre um meio (mesotes), ou seja,
um equilíbrio, que se dá entre o excesso e o defeito. O meio não é dado por um cálculo

87
abstrato e absoluto. É, antes, concreto e relativo, ou seja, correspondente a cada
homem e à respectiva situação em que ele, cada vez, se encontra.

“Primeiramente, então, se deve considerar


quanto segue: que, por natureza, realidades deste
tipo são destruídas pelo excesso e pelo defeito (com
efeito, se deve servir daquilo que é evidente como
testemunha daquilo que é obscuro), como se vê
também no caso do vigor físico e naquele da saúde:
de fato, os exercícios excessivos e os apoucados
destroem o vigor; do mesmo modo, ter comida e
bebida em excesso, ou ter muito pouco, destrói a
saúde, enquanto a justa medida a produz, a
aumenta, a defende. Ora, as coisas estão neste pé
também para a temperança, a coragem e as outras
virtudes. De fato, quem foge de tudo, quem tem
medo de tudo, e não suporta nada, se torna covarde,
e, do mesmo modo, quem é indulgente com todo o
prazer e não renuncia a nada é intemperante, quem,
ao contrário, foge a todos os prazeres, como gente
selvagem, torna-se de certo modo insensível.
Portanto, a temperança e a coragem destruídas pelo
excesso e pelo defeito, mas são preservadas pela
medianidade (mesotes)”.
O meio não é dado, pois, por uma medida-padrão, por um padrão de ação
imposto exteriormente. É, pelo contrário, dado a partir do equilíbrio interior e pelo bom
direcionamento da alma ao medir-se com as suas circunstâncias e com as condições de
sua ação. A ação virtuosa é o equilíbrio do vigor e da ternura, da força e da suavidade,
da firmeza e da flexibilidade, da sensibilidade e da razão. Virtude é vigor de raiz: é
quando a ação haure sua força do próprio Bem, dele vem e para ele retorna. Podemos
dizer que a forma da virtude ética é, portanto, medial. O medial é a forma con-creta, isto
é, crescida com o próprio movimento, pelo qual um processo deslancha, vinga, alcança
êxito. Trata-se de uma dinâmica que acontece como a vigência de um poder-ser, que vai
se intensificando na sua regência, que vai se erigindo, se erguendo; e, nesse erguer-se,
se abre, surge, nasce; e, nascendo, cresce, se adensa, toma corpo, ganha presença, fica
apessoado; e, nessa apresentação de si, incandesce e brilha.

88
4.2.10.4. A VIRTUDE DIANOÉTICA DA PHRONESIS (cf. 4.2.2. letra b)

4.2.10.5 . A FELICIDADE

Ser feliz é “ser do Bem” (pertencer ao bem). Felicidade (eudaimonia) quer dizer:
plena auto-realização do homem, a consumação de sua relação de pertencimento ao
Bem supremo. Então, o homem se torna uma propriedade do Bem. Nele atua bela e
vigorosamente (eu) o vigor extraordinário e divino do Bem (daimon, theion).

A felicidade é um bem viver (eu zen). A boa vida (euzoia), contudo, consiste em
viver segundo a virtude (areté). A felicidade é “a atuação de uma vida plena, segundo
uma virtude consumada”. É eupraxia (boa ação, boa obra, êxito, vida realizada). Isto
quer dizer: o homem é feliz quando ele põe em obra, realiza, consuma numa operação
(energeia), as suas possibilidades mais próprias e excelentes de ser; quando ele está em
pleno uso (chresis) de suas possibilidades. O fim da ação é a ação mesma. É o seu
sentido, mais do que sua meta, seu resultado ou sua finalidade. O fim da ação é a plena
atuação de seu poder-ser, é sua consumação, maturação e êxito.

Entretanto, a ação vive em apertos: ela se move na indigência da existência


humana, que é uma existência sempre condicionada por urgências e premências, que
vêm à luz na contínua mudança das situações. Por isso, a ação requer, sempre de novo,
deliberação (bouleuesthai) e decisão (proaíresis).

Para ser estável, a felicidade precisa ser uma forma de vida, um modo de viver –
um Bios. Há duas formas de vida que liberam ao homem o acesso à felicidade. Uma, é o
bíos politikós – a “vita activa”, aquela vida, na qual o homem assume sua
responsabilidade de agir em favor do todo da comunidade e da sociedade em que ele
convive, compartilhando do mesmo mundo histórico, das decisões em que está em jogo
o destino comum de um povo (Pólis). Trata-se, portanto, de uma vida que encontra
sentido na ação, na práxis, onde o homem atua a sua capacidade de criação histórica.
Nesse sentido, um homem é feliz quando ele é capaz de dedicar-se a uma obra, em que
ele atua não somente em benefício de si mesmo, mas também sua capacidade de cuidar
de tudo e de todos. Esta vida é boa.

89
Excelente, porém, é outra forma de vida – o bíos theoretikós - a “vita
contemplativa”, aquela vida, na qual o homem se dedica a realizar a paixão de conhecer,
de investigar a verdade, de pensar, de trazer à fala a sua referência com o Ser, de fruir
da contemplação da vigor suave e poderoso do Bem. Esta é, enfim, a felicidade perfeita
(he teleia eudaimonia). Trata-se de uma felicidade que não pode ser ameaçada pela
mudança das situações, das circunstâncias e condições da ação. É que, na contemplação,
ao homem basta o contentamento de simplesmente ser, de simplesmente estar
presente, junto daquilo que nunca se ausenta, aquilo que é sempre, o imutável, o
eterno, o divino.

90

Você também pode gostar