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TEXTO 11
4.2. ARISTÓTELES
4.2.1. A VIDA
1
adolescente Alexandre, o futuro Alexandre Magno. Catálogos antigos da obra de
Aristóteles relatam que o Estagirita teria dedicado a Alexandre um diálogo intitulado
“Do Reino” e outro intitulado “Alexandre – ou das Colônias”. Entretanto, nos escritos
que nos foram conservados Aristóteles nunca fala de Alexandre, nem da conquista da
Pérsia, que foi o evento político-militar mais extraordinário do fim do século IV. Na
Política, Aristóteles considera a Pólis, típica de Atenas, como a organização sócio-política
mais perfeita e o reino fundado sobre uma inteira nação (ethnos), como uma
constituição de tipo primitivo, mais adequada aos bárbaros que aos gregos. É provável
que Aristóteles não tenha considerado as empresas conquistadoras de Alexandre como
um desdobramento de seu ensinamento. Alexandre Magno se associou ao trono de
Filipe II no ano 340, com 16 anos. Em 335, com a morte de seu pai, Alexandre torna-se
o monarca da Macedônia. Em 327, Alexandre manda matar Calístenes, sobrinho de
Aristóteles, sob a acusação de conjuração e por lhe negar prestar o obséquio da
genuflexão.
Quando completou 50 anos (c. 334), Aristóteles fundou em Atenas a sua própria
escola, no jardim dedicado a Apolo Lício (o Luminoso), que por isto se chamou Liceu.
Nessa escola, que possuía um pátio para passeio, chamado Perípato, eram ministrados
cursos de física, zoologia, psicologia, ética, política, retórica, poética e filosofia primeira
(mais tarde chamada pelos discípulos de “Metafísica”).
2
Em 324, chega a Atenas a notícia da morte prematura de Alexandre, na Pérsia. O
partido anti-macedônico se insurge e começa uma perseguição a Aristóteles. Ele é
acusado de impiedade. Aristóteles se retira de Atenas e se refugia na ilha Eubea, terra
natal de sua mãe, Féstide, onde a família ainda possuía uma casa. Segundo uma tradição,
Aristóteles teria fugido para impedir que os atenienses pecassem uma segunda vez
contra a filosofia (a primeira teria sido na morte de Sócrates). Pouco tempo depois, no
ano 322/1, Aristóteles morreu (portanto, tendo cerca de 63 anos).
3
chamados de “Metafísica”, ele põe como ponto de partida a seguinte declaração:
Πάντες ἄνθρωποι τοῦ εἰδέναι ὀρέγονται φύσει – pantes anthropoi tou eidénai orégontai
physei: “todos os homens, por natureza, aspiram ao saber”.
A palavra para saber, aqui, é “eidénai”, ou seja, um saber por ter visto. É que
“eidénai” remete-nos a “idein”, que é um ver essencial. De fato, “idea” ou a “eidos” é
aquilo que o ente mostra de si mesmo, o aspecto, a fisionomia, o tipo, a forma ou a
estrutura essencial de alguma coisa. Por isso, Aristóteles segue falando do amor ao ver
e de seu papel na vida do homem:
4
força da demonstração a posteriori de que parte Aristóteles se deixa dizer assim: se nós
amamos mais naturalmente os sentidos mais cognoscitivos, não somente por causa da
utilidade da vida, mas por causa do próprio conhecimento, se amamos o conhecimento
por causa do próprio conhecimento, é porque há um conhecimento mais nobre do que
o conhecimento sensitivo, ao qual o conhecimento sensitivo está ordenado.
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“comércio” (intercâmbio) com os outros entes por meio de sua sensibilidade (os cinco
sentidos). Ele é um ser receptivo, capaz de se deixar impressionar pelo real por meio da
abertura de sua sensibilidade. À percepção, como condição da experiência, se junta,
então, a memória (mnéme), pela qual nós apreendemos e recolhemos aquilo que nos é
dado como o percebido. Muitas recordações sobre uma coisa formam uma experiência
daquela coisa. Mas, a experiência não tem apenas o sentido passivo-receptivo de
acolher as doações do real por meio da percepção e da memória articulando-as num
conhecimento. A experiência tem também o sentido ativo de “ir ao encontro do real” e
de “pôr à prova” o conhecimento que nós podemos ter dele. A experiência não é
somente o modo como o real nos encontra, mas também o modo como nós vamos ao
encontro do real, movidos pelo desejo de conhecer, pela aspiração de saber. Neste
sentido, experimentar significa um ir de encontro a algo que, de imediato, não nos toca.
O que se deve experimentar é, aqui, algo a ser buscado. Trata-se de abrir caminho para
uma nova descoberta, através do olhar em volta, do procurar, do examinar, do espiar,
do procurar saber como estão as coisas, como elas se comportam e se relacionam umas
com as outras.
De uma maneira ainda mais ativa, experiência significa “pôr à prova” o nosso
conhecimento das coisas, do real. Trata-se, agora, de um provar como as coisas se
comportam, atendo-se ao horizonte de uma determinada interrogação, de uma
determinada indagação ou inquirição, e isto no modo do “se-então”. Neste ponto, o
examinar da experiência se transforma num observar, que, por sua vez, pode lançar mão
de outros instrumentos de apreensão e de visualização. O experimentado, antes
determinado como um buscado, agora é caracterizado como algo que é perseguido e
indagado, ou seja, é pesquisado. Por fim, o ir de encontro, que lança mão de recursos
de observação e que examina pondo à prova, repetidamente, as conexões e relações
dos estados de coisa (como as coisas se comportam), visa a apreensão de determinadas
regularidades do “se-então”. Este pôr à prova da empeiria (experiência), portanto, lida
sempre com o recurso da hypólepsis (conjectura). A conjectura, porém, assim como a
opinião (doxa) podem se enganar (pseudesthai), diz Aristóteles no sexto livro da Ética a
Nicômaco (VI, 3, 1139 b 18). Por sua vez, as cinco formas do homem descobrir a verdade
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(aletheuein) são: arte (tékhne), ciência (episteme), prudência (phronesis), sabedoria
(sophia) e intelecto (nous) (Ética a Nicômaco VI, 3: 1139 b 17-18).
No sexto livro da Ética a Nicômaco (VI, 3, 1139 b 18), Aristóteles anuncia e expõe
as cinco disposições estáveis e adquiridas (héxeis), pelas quais o homem exerce sua
capacidade de ser descobridor e abridor da verdade, isto é, cinco estados ou modos de
ser descobridor do homem, cinco formas de (aletheúein):
(téchne),(epistéme), (phrónesis), (sophía)
e(noûs)1. Estes modos do ser-descobridor do homem são chamados também de
virtudes dianoéticas (intelectuais). São diversas maneiras de o homem exercitar o
conhecimento intelectual, seja numa perspectiva prática, visando a produção de obras
ou a ações, seja numa perspectiva teórica, visando o desvendamento da verdade por
causa do próprio desvendamento da verdade. O primeiro modo é o conhecimento
chamado epistheme – ciência, o saber essencial daquilo que é permanente e
estruturalmente invariável no universo. O segundo modo é o conhecimento próprio da
téchne – a competência, o entendimento, o saber próprio da habilidade inventiva,
projetiva e criativa, enfim, da arte. O terceiro modo é o conhecimento chamado
phronesis – o saber como sabedoria prática da vida, prudência, sensatez, juízo, bom
senso, tino. O quarto é o conhecimento chamado sophia – o saber que se volta para os
primeiros princípios de tudo (metafísica). O quinto, última e mais elevado modo de
conhecimento, porém, chama-se nous – o pensamento, o intelecto, como pura intuição,
pura percepção do Ser.
Aristóteles escreve:
1
Ética a Nicômaco VI, 3: 1139 b 17-18.
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8
A) A TECHNÉ (ARTE)
Num terceiro sentido, a téchne significa o saber projetivo e reflexivo que é capaz
de produção, mas num sentido mais estrito, ou seja, no sentido de fabricar artefatos,
quaisquer que sejam.
Num quarto sentido, a téchne quer dizer o saber de uma visão projetiva e
reflexiva que tem o poder de um operar manifestador, que põe em obra a beleza (tó
kalón), o esplendor, da physis): estamos aqui no domínio de criação próprio das artes
do belo, as belas-artes, com sua poética, sendo mais a poesia, arte da palavra e do canto,
a arte das artes.
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como um aletheúein, como um des-encobrimento. A téchne des-encobre o eidos, ou
seja, o perfil de uma possibilidade de ser, o qual atua como forma, isto é, como
arquétipo, como forma originária, formadora, como princípio doador do ser e
determinador do modo de ser, ou seja, do perfil específico, do ser-assim, do mostrar-se
típico de um ente. Ela desencobre, portanto, possibilidades de ser e novas dimensões
de aparecimento de obras. A pro-dução da téchne imita, pois, a pro-dução da physis.
Também ela é um conduzir do não-ser ao ser, da não presença à presença, e, por
conseguinte, um conduzir do encobrimento ao desencobrimento.
2
Heidegger, M. Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, p. 16.
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opera o Ser em um ente. Operar significa aqui pôr em
obra, na qual, como no que aparece, chega a brilhar
a physis, o brotar imperante, que vigora. Pela obra
d’arte, como o Ser que é, tudo, que aparece e pode
ser encontrado, é confirmado, torna-se inteligível,
acessível e compreensível como ente ou não-ente.
Visto que a arte erige e faz aparecer, num sentido acentuado, o Ser, como ente,
na obra, a arte vale, a bom direito, como o poder-pôr em obra, simplesmente dito, como
téchne. O poder-pôr em obra é o operar manifestativo do Ser no ente. O saber consiste
nesse abrir e manter aberto reflexivo e operante. Por ser um tal saber é que a arte é
téchne, e não, por pertencerem, à sua efetivação, habilidades “técnicas, instrumentos e
materiais de obras”3.
B) A EPISTÉME (CIÊNCIA)
3
Heidegger, M. Introdução à Metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987, p. 181-182.
4
“Técnica”, não no sentido da tecnologia moderna. “Artística”, não no sentido da estética moderna. É
que, para nós hoje, o artístico é entendido no sentido das “belas artes” e estas são interpretadas
esteticamente, no horizonte de compreensão da relação sujeito e objeto, com suas vivências, tanto as
vivências de quem cria (o autor, o artista), como as vivências de quem aprecia a obra de arte (o
expectador, o apreciador, o desfrutador). E, para nós, hoje, o técnico é entendido no sentido da
tecnologia, que é interpretada segundo o modo de ser impositivo da técnica moderna, segundo o qual o
homem se vê desafiado e provocado a, sempre de novo, descobrir o real como o que é disponível para
uma produção exploradora e exploratória.
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Ela é não só e antes de tudo um “entender de” alguma coisa, mas “entender-se com”
alguma coisa. Epístatai significa, originariamente, permanecer em face a alguma coisa.
Epístasis significa estar diante de algo, permanecer em face de algo, dando a atenção ao
seu mostrar-se. Episteme, portanto, tem um sentido de permanência atenta: dirigir a
intenção a alguma coisa, manter com atenção esta intenção. Como um atirador diante
de sua mira, por exemplo. “Entender-se com” tem, portanto, este sentido de tender
para algo, tem em mira algo, numa permanência atenta, receptiva, adequada,
apropriada para ela, para o seu mostrar e viger.
Aristóteles reconhece que, na arte, como em toda a produção e ação, o que está
em questão é, cada vez, o singular. É o que acontece, por exemplo, com a arte de curar,
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a medicina. O médico não cura propriamente o “homem”, mas este ou aquele homem,
a cada vez.
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diferentemente da ciência, a arte se atém ao que pode ser diverso de como é ou o que
pode acontecer de modo diverso de como acontece (Tó endechómenon allos), o que
pode ser ou não ser produzido, o que pode ser produzido de um modo ou de outro
modo, enfim, o contingente. Contingente é aquilo que acontece por acaso ou aquilo que
é produzido pela inventividade do homem ou ainda aquilo que o homem põe no mundo
a partir de sua liberdade.
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fundamentos das coisas. Nós aprendemos algo quando apreendemos um nexo de
fundamentação: a diferença e a referência entre o que é fundamento e o que é fundado.
Assim, a aprendizagem se dá quando conseguimos intuir as formas típicas dos casos
singulares e de seus similares e, ademais, intuir os casos singulares a partir de leis
universais ou quando, por fim, conseguimos articular os princípios (que são universais e
indemonstráveis) e as consequências destes princípios, por meio da inferência.
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Toda ação é consumação. O sentido da ação se consuma na obra. Consumar
significa trazer o poder-ser ao seu sumo, ao seu máximo e extremo. O sentido, a
consumação de uma ação se chama telos – o que os latinos traduziram por finis, fim. O
fim da ação não é simplesmente a meta que a regula, nem o acabamento em que ela se
aquieta, nem a finalidade a que ela se presta. O fim da ação é o seu sentido. O fim é o
princípio de estruturação, de surgimento, crescimento e consumação. É princípio que
rege o começo, o desenvolvimento e a maturação da ação. Por isso, o fim é a causa
principal da ação.
O Bem é aquilo que deixa e faz ser. É o que concede ser e vigor a todas as coisas,
a todas as obras, a todas as ações. É o que produz o que é devido. Na verdade, a ação
do homem não pode fazer o Bem. Em todo o empenho da ação o homem precisa doar-
se para receber a doação de vigor que lhe advém do próprio Bem. Com efeito, em última
instância, uma ação é boa não porque faz o Bem, mas é boa porque o Bem a faz, ou seja,
a deixa eclodir, surgir, consumar-se. Por isso, o Bem é o to ariston (o mais vigoroso, o
melhor). O bem supremo de todas as ações boas (to panton akrotaton ton prakton
agathon) se chama, por sua vez, eudaimonia (felicidade, bem-aventurança). Felicidade
(eudaimonia) quer dizer: plena auto-realização do homem, a consumação de sua relação
de pertencimento ao Bem. Então, o homem se torna uma propriedade do Bem. Nele
atua bela e vigorosamente (eu) o vigor extraordinário e divino do Bem (daimon, theion).
A felicidade é um bem viver (eu zen). A boa vida (euzoia), contudo, consiste em
viver segundo a virtude (areté). A felicidade é “a atuação de uma vida plena, segundo
uma virtude consumada”. É eupraxia (boa ação, boa obra, êxito, vida realizada). Isto
quer dizer: o homem é feliz quando ele põe em obra, realiza, consuma numa operação
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(energeia), as suas possibilidades mais próprias e excelentes de ser; quando ele está em
pleno uso (chresis) de suas possibilidades. O fim da ação é a ação mesma. É o seu
sentido, mais do que sua meta, seu resultado ou sua finalidade. O fim da ação é a plena
atuação de seu poder-ser, é sua consumação, maturação e êxito.
Para ser estável, a felicidade precisa ser uma forma de vida, um modo de viver –
um Bios. Há duas formas de vida que liberam ao homem o acesso à felicidade. Uma, é o
bíos politikós – a “vita activa”, aquela vida, na qual o homem assume sua
responsabilidade de agir em favor do todo da comunidade e da sociedade em que ele
convive, compartilhando do mesmo mundo histórico, das decisões em que está em jogo
o destino comum de um povo (Pólis). Trata-se, portanto, de uma vida que encontra
sentido na ação, na práxis, onde o homem atua a sua capacidade de criação histórica.
Nesse sentido, um homem é feliz quando ele é capaz de dedicar-se a uma obra, em que
ele atua não somente em benefício de si mesmo, mas também sua capacidade de cuidar
de tudo e de todos. Esta vida é boa.
O caminho, porém, para o homem realizar a vida boa é a areté. Areté (virtude) é
excelência da alma. É um vigor e uma nobreza de alma, onde o homem deixa e faz atuar
o melhor de si mesmo. É disposição apaixonada (pathos), é atitude apropriada e estável
(hexis), é ação (práxis). Como tal, a virtude se cumpre na operação excelente das
potencialidades da alma (enérgeia) e se consuma na obra perfeita (érgon) da liberdade
humana, em que o homem chega à plena realização de sua essência.
As potências da alma operam de modo excelente quando são regidas pelo logos
(pensamento, razão). No homem, a potência do desejo (orexis), por exemplo, pode
aparecer de dois modos: como cobiça (epithymia) ou como vontade (boulesis). Assim, o
desejo pode ser uma tendência ou propensão que segue um ímpeto cego, e então é
cobiça; ou pode ser uma tendência ou propensão iluminada pelo pensamento, e então
é vontade. Da mesma maneira, as emoções, paixões e afetos (pathoi) precisam ser
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regidos pelo logos. À medida que isso acontece, elas se transformam em disposições
estáveis da alma (hexeis).
A alma boa, íntegra, é aquela que é regida pelo logos. Quando as potências da
alma são regidas pelo logos, a ação torna-se a atuação de virtudes éticas. “A virtude do
homem deve ser aquela disposição pela qual o homem se torna bom e pela qual ele leva
à perfeição a sua obra”. Guiado pelo logos, o homem encontra a justa medida em todas
as suas paixões e em todas as suas ações. A justa medida, porém, é sempre um meio
(mesotes), ou seja, um equilíbrio, que se dá entre o excesso e o defeito. O meio não é
dado por um cálculo abstrato e absoluto. É, antes, concreto e relativo, ou seja,
correspondente a cada homem e à respectiva situação em que ele, cada vez, se
encontra.
O homem, por sua natureza, há de viver segundo o logos. Ele é o ser vivente que
se apega ao lógos (zoon logon echon – animal rationale). Quando suas ações são
conforme o lógos, tornam-se virtuosas, justas, éticas. Logos é o nome grego para Ser
(einai), Uno (hen), Bem (agathon), Verdade (aletheia). Conformando-se ao Logos, pois,
o homem se torna mais propriamente o que ele é, realiza suas potencialidades mais
próprias e excelentes; torna-se um em si mesmo, inteiriço, integrado consigo e com a
ordem dos seres; torna-se bom em seu ser, em seu sentir e em seu agir, pois bom é
aquilo que se integra com o todo; torna-se, enfim, verdadeiro.
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é meramente um desacerto operacional. É, ao contrário, um desatino da própria
liberdade. É desvario.
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por um lado, não acontece sem reflexão (ela é meta logou/kata logismon), por outro,
não se esgota na reflexão (não é hexis meta logou monon). Ela é um momento da ação
concreta. Como tal, precisa de um olhar para as particularidades e singularidades, uma
atenção diferenciada para as possibilidades individualizadas (ta kath’ekasta). A
phronesis é, assim, o conhecimento e a descoberta do que é devida a cada momento na
ação humana. Ela tem que levar em consideração, por isso, o ponto de partida, o meio,
o modo, o tempo da ação, assim como quem nela está implicado.
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Porque a phronesis se consuma na decisão, ela não é nunca um conhecimento
desinteressado e desapaixonado. Ela é, ao contrário, um saber plenamente interessado
e apaixonado pelo que está em questão em sua responsabilização.
O decisivo, entretanto, não é que aconteça qualquer ação. Mas que aconteça
uma ação boa, justa, ética. Uma ação na qual o homem atue o melhor de si mesmo, o
melhor de suas possibilidades de ser.
A boa decisão (euboulia), portanto, traz à luz uma vontade reta. A retidão
(orthotes) da vontade, porém, acontece quando ela é bem direcionada para o foco da
ação, que é o Bem. A vontade reta se funda, pois, numa reta compreensão (orthos logos)
das coisas. A reta compreensão conduz à reta decisão, que é acompanhada de uma
transparência na própria compreensão (dianoia).
A boa decisão (euboulia) é um saber, mas um saber que se conquista numa busca
da evidência do que é melhor para o homem. Este saber exige investigação,
perscrutação. Não se realiza como que por instinto, nem como repentina presença de
espírito, de um só golpe.
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O saber da phronesis (do tino) é, portanto, decisivo para a ética. É um saber, no
entanto, que só acontece na maturação da própria capacidade de ação. Esse saber não
vem de fora e não pode ser ensinado externamente. Ele é o dom de uma conquista
pessoal, de uma maturação existencial.
Aristóteles nos lembra que o homem só pode ver e conhecer o Bem à medida
que é bom. Só conhecemos, no fundo, aquilo que já somos. Conhecemos o Bem à
mesma medida em que somos bons. Ser bom é a condição primeira para conhecermos
o Bem e fazermos o Bem. Conhecimento e ação são decorrências do ser. Por isso, o
maior cuidado do homem deve ser o cuidado pelo seu poder-ser, o cuidado pelo que ele
é e se torna, a cada novo, passo, a cada nova ação. Só vemos aquilo que somos. Mas
também só somos aquilo que vemos. É um círculo. Mas não se trata de um círculo
vicioso. É, ao contrário, um círculo virtuoso. Circular nessa circularidade, porém, é a
dinâmica da liberdade, na qual o homem já sempre se encontrou e se encontra a si
mesmo.
23
que? Resposta: ter tempo livre do “negócio” – o que significa, por outro lado, ter tempo
livre para o “ócio”: para a diversão e a festa, a brincadeira e o jogo. Depois, a “skholé”
passa a significar ter o tempo livre para a “theoria”. Esta palavra grega pode ser
entendida como contemplação: o ato de ver e considerar alguma coisa com admiração
e atenção, guiado pelo desejo de conhecer a verdade por causa da própria verdade. Por
tudo isso, uma “episteme theoretiké”, isto é, uma ciência que se concentra em ser toda
“theoria” é mais nobre do que uma “episteme poietiké”, ou seja, um entender cuja
competência ou maestria se concentra na produção de alguma obra, que possa servir
de utilidade ou de deleite para o homem.
5
ARISTÓTELES, De partibus animalium, I, 5, 644 b 31-35. Apud SCOT, Duns, Sur la connaissance de Dieu et
l’univocité de l’etant (Ordinatio I – Distinction 3 – Première Partie; Ordinatio I – Distinctio 8 – Première
Partie; Colatio 24). Paris: Presses Universitaires de France, Collection Epiméthée, 1988, p. 107-108, 338.
24
A palavra episteme deriva do particípio
epistámenos. Assim se chama o homem enquanto
competente e hábil (competência no sentido de
appartenance6). A filosofia é episteme tís, uma
espécie de competência, theoretiké, que é capaz de
theorein, quer dizer, olhar para algo e envolver e
fixar com o olhar aquilo que perscruta7. É por isso
que a filosofia é episteme theoretiké. Mas que é isto
que ela perscruta? Aristóteles di-lo, fazendo
referência às pròtai arkhai kaì aitíai. Costuma-se
traduzir: “as primeiras razões e causas”8 – a saber,
do ente. (Heidegger, O que é isto – a filosofia? , p.
33).
A filosofia, a aspiração à “sophia”, é portanto, um empenho teorético de
questionamento9 que perscruta os princípios primeiros ou fundamentos primordiais
(pròtai arkhaí) e aquilo que responde, como condições de possibilidade originárias, pelo
vir ao ser de todas as coisas (pròtai aitíai). Ora, desde os primórdios da “philosophia”,
os homens que se tornaram competentes e hábeis na “theoria” perscrutavam a “arkhé”
de tudo, a origem ou princípio primeiro de tudo, ou, de modo plural, as “arkhaí”, os
princípios ou fundamentos, que, de modo necessário, originam e regem tudo quanto
há. Muitos pensadores da “physis”, com efeito, perscrutavam os “elementos”
(stoikheia), as “raízes” (rizómata), as “sementes” (spérmata), como fundamentos
simples do esquema (skhéma) e da ordem (táksis) universal. Embora muitas vezes
presos ao mundo material ou sensível, sua investigação tendia para uma compreensão
do Todo (pan ou holon). Diz Aristóteles:
6
A palavra francesa “appartenance” significa: atinência, pertença, atribuição, domínio.
7
Em alemão: “auszuschauen nach etwas um dieses, wonach sie Ausschau hält, in den Blick zu nehmen und
im Blick zu behalten“. „Ausschau halten nach“ = „ausschauen nach“ = procurar com os olhos, espreitar =
„die Augen aussehen nach“ = procurar ver com toda a força.
8
“die ersten Gründen und Ursachen”.
9
Perguntar: aitéo. “Aitía” é o que responde pela origem de algo, ou seja, causa.
25
devemos investigar as causas primeiras do ente
enquanto ente (Metafísica Gama 1, 1003 a, 28-32).
A filosofia passa assim, de uma interpretação ôntica (do ente), para uma
interpretação ontológica (do ser). Desde os seus primórdios, a filosofia é um questionar
e investigar (zetéo) que busca perscrutar as determinações fundamentais enquanto tal
(physis – kath’ auté), ou seja, as determinações do ser não deste ou daquele âmbito do
ente, mas do ser de tudo quanto é. A filosofia é, portanto, desde os seus primórdios,
uma investigação do “ente enquanto ente”, ou seja, do ente no todo, do ente não
enquanto é isto ou aquilo, mas do ente enquanto é, do ente no tocante ao ser. A questão
fundamental da filosofia é, pois: a partir de que o ente é determinado como ente? – ou
seja, a partir de que o ente é determinado quanto ao seu ser? A filosofia investiga o
ente, mas não de modo positivo, isto é, como algo já posto e já dado, mas investiga o
ente buscando sondar os fundamentos ou as profundezas do ser. Ela é investigação
ôntica – uma consideração do ente – mas apenas à medida que ela é uma interpretação
ontológica – uma compreensão explícita do ser. Ora, somente uma tal ciência ontológica
pode ser universal:
10
Estin episteme tis he theorei to on he on.
26
difícil, pois, sempre de novo, conduz a “aporias”, isto é, ao inacessível. Temos nós, hoje,
experiência da necessidade desta questão e da sua dificuldade? Heidegger, no início de
seu tratado, chamado “Ser e Tempo”, partia do fato de que para os contemporâneos,
esta pergunta não faz nenhuma sentido e a necessidade e importância dela já não é
sentida, e, por isso, considerava necessário, antes de tudo, despertar um sentido para a
necessidade de colocar esta questão, antes mesma de tentar responde-la:
11
Platão, Sofista, 244 a.
12
Heidegger, prólogo de Ser e Tempo.
27
experiência pré-predicativa e pré-temática. Por isso, o tema central de cada filosofia -
o modo como cada uma responde ao que significa “ser” – nunca nomeia diretamente o
“ser”, apenas acena, a partir de um caminho singular e em meio a uma destinação
histórica, para ele, enquanto o que provoca o filósofo a pensar. Este diálogo e esta
pergunta em torno do ser é, portanto, o que há de perene e de idêntico em toda a
história da filosofia, é aquilo que constitui a sua necessidade e possibilidade mais íntima.
Disto nos fala o próprio Aristóteles, quando diz que a pergunta pelo ser é o que há de
mais arcaico, de mais atual e de perene em toda a história da filosofia.
E) O NOUS
13
Nos antigos Nous foi nome para a própria inteligência divina. O “nous” (percepção ou inteligência
espiritual) está presente já nos primórdios do pensamento grego. Diógenes Laércio traz um aforismo
28
Os gregos tinham a palavra “aísthesis”, que quer dizer a percepção sensitiva com
sua intuição e evidência, e tinham o verbo “noein” que significava o perceber intelectivo
com sua intuição e evidência. A aísthesis é a simples percepção sensitiva de alguma
coisa. A aísthesis é uma forma de descobrimento. A visão, por exemplo, descobre cores;
a audição, descobre sons; o paladar, sabores etc. Na percepção e para ela algo se torna
acessível. Cada aísthesis tem a sua evidência. A evidência visual é diversa da evidência
auditiva, da evidência tátil etc. Do mesmo modo, cada aísthesis tem sua verdade. Esta
verdade consiste no seu ser-descobridor. Deste modo, quando a visão descobre cores
acontece uma verdade perceptiva visual. Na medida em que, pelo modo próprio de
descobrir que cada percepção sensitiva realiza, tornar-se acessível o ente que lhe
corresponde nela e para ela, pode-se falar de uma verdade da percepção sensitiva.
Por sua vez, verdadeiro é o noein, o perceber intelectivo, à medida que desvela,
numa simples apreensão, o ser do ente em sua simplicidade, bem como as suas
determinações simples14. O noein é um perceber (vernehmen) que é um receber
(annehmen) o dar-se do ser mesmo em sua simplicidade e em suas determinações
simples, ele realiza uma intuição, que tem a sua própria evidência. Trata-se da evidência
ontológica. O noein é, pois, um relacionamento de ser com o ser. É o acontecer do
desvelar do ser, que está sempre vigente no encontro com o ente, quer no descobrir do
ser do ente que não somos e que nos vem ao encontro dentro do mundo, quer no abrir-
se do ente que somos. Em todo o caso, este desvelamento do ser se dá de modo
estruturalmente prévio, como constitutivo, como condição de possibilidade, de todo o
descobrimento do ente que não somos, bem como de toda abertura do ente que somos.
A apreensão do ente enquanto ente, ou seja, a apreensão do ser e de suas
determinações simples e originárias, está na base de todo e qualquer apreensão. A
atribuído a Tales de Mileto, segundo o qual “de todos os seres, [...] o mais rápido é o nous, pois ele
percorre tudo”. Pitágoras o identificava com a Mônada, que é o Bem, que é Deus (Aécio I, VII, 18). Para
Anaxágoras, o nous atua junto com o ápeiron, para deixar e fazer surgir o kósmos. O nous
(Inteligência/Espírito) é a potência ativa. O ápeiron (indeterminado) é o caos, a potência
passiva/receptiva. Ambos, combinados, formam o kósmos (o todo do ente). Na linguagem de Aristóteles,
o nous é enérgeia, princípio de realização, ato, e o ápeiron (caos) é dýnamis, capacidade passiva-receptiva,
em potência para esta realização. O Espírito é eterno (fr. 14); é autocrático; existe separadamente mónos),
sem se misturar a nada (fr. 12). É ele que realiza a separação dos elementos confundidos (fr. 13). Assim,
“ele é o Princípio primeiro de todas as coisas”, é “a causa da beleza e da ordem”, segundo testemunho de
Aristóteles.
14
Ser e Tempo I, p. 64.
29
compreensão do ser é estruturalmente prévia a e a base de toda compreensão15. Por
ser o mais simples e o mais comum, o ser, em sua doação, não chama a atenção.
Vivemos sempre na apreensão e compreensão do ser, embora só muito raramente é
que o tornamos tema de nosso estudo, de nossa meditação. O ser é o que há de mais
claro. E, no entanto, tematicamente, nós nos relacionamos com sua evidência como o
morcego com a luz. Quando tentamos, em vendo, trazer à explicitação o ver do ser nós
investigamos como que às apalpadelas16. O ser é o que nos é mais próximo. Nós somos
sempre nesta proximidade mais próxima do ser. Vivemos no modo de ser-o-aí para o
ser. O desvelamento do ser está sempre acontecendo em nós e para nós. E, no entanto,
tematicamente, o ser nos é o mais distante. Em sendo, quer dizer, em vivendo na
abertura da compreensão e intepretação, bem como da linguagem e do discurso,
apreendemos e compreendemos ser, vivemos, pois, na sua proximidade mais próxima.
Mas, tematicamente, ignoramos o ser. Vivemos, assim, no esquecimento do ser.
A palavra “nous” vem da raiz “snu”, que tem a ver com farejar. Quer dizer: ter o
sentido dirigido a. “Nous” significa, assim, a percepção espiritual, a apreensão
intelectual do sentido de ser, o pensamento, portanto. Os medievais traduzem ora por
“mens” (mente), ora por “intellectus”. É a disposição receptiva à manifestação do ser, à
verdade. “Nous” diz, também, “insight”, vislumbre das possibilidades de ser,
inventividade, portanto. Também tem a ver com a consciência (syneidesis), isto é, com
o saber de si por parte do homem no tocante à sua orientação total na vida. Pode ser,
portanto, teorético ou prático. É o mais elevado no homem, o mais nobre, o divino no
homem. É ele que está na raiz dos outros quatro modos de desencobrimento do ente e
do ser.
15
Ser e Tempo I, p. 28.
16
Aristóteles. Cf. Logik, p. 180
30
O pensar é um ver. Um ver simples e imediato. Aquele ver que acontece como a
evidência do ser. Aquele ver que nos constitui como o espaço de abertura da iluminação
do ser, e, por conseguinte da configuração do mundo. Esse ver coincide com o simples
fato de existirmos. Pois existir é ser esse ver, é ser essa iluminação, essa claridade do
ser. Ser homem é suportar essa abertura. Esse ver somos nós mesmos. Entretanto, nem
sempre vemos que vemos. Nem sempre apreendemos essa apreensão do ser, que
somos nós mesmos. Nem sempre nos damos conta de que somos esse ver e que o
simples fato de existirmos já nos constitui como essa abertura da iluminação do ser. Se
essa apreensão da evidência do ser é o que nos faz ser o que somos, nem sempre
estamos acordados para essa mesma evidência, a evidência do “eu sou”, onde o “sou”
põe o próprio eu e todas as suas possibilidades.
17
BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira, p. 14. Apud Holanda Ferreira, Aurélio B. Dicionário Aurélio,
verbete “Pensar”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
31
consistência ao que está enfermo. Pensar é curar, isto é, é cuidar de reconduzir tudo ao
vigor originário do ser, que tudo une e reúne, que tudo congrega e integra.
32
Integral em tudo. Estes três aspectos são distintos, mas a
Realidade é o Uno”18.
O pensar que somos não incide sobre, antes, coincide com o ser do que é. O ser
não está fora do pensar e nem o pensar está fora do ser. Pois o pensar, que nos constitui
como homens, consiste em percepcionar o ser de tudo o que é. Os gregos chamam de
noein a este percepcionar do ser. Este percepcionar é, antes de tudo, um admitir. É uma
recepção, uma aceitação e um acolhimento da realidade: um deixar vir de encontro
aquilo que se mostra, que aparece, tal como se mostra. Percepcionar é também um
tomar depoimento do que o que se mostra e aparece como sendo diz de si. Ora,
fenômeno é o que aparece, isto é, o que se manifesta, e, se manifestando, se divulga,
18
MERTON, Thomas. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 2002 (10ª Ed.), p. 182-183.
33
dá notícia de si. “Phainomenon”, fenômeno, vem de “phainesthai”: pôr-se a brilhar,
aparecer no próprio brilho19. Pensar é o a recepção que acolhe e recolhe o dar-se de
tudo aquilo que se põe a brilhar, que aparece no seu próprio brilho. Além disso, noein
(pensar = percepcionar) significa também um deter esta aparição do ser em si mesmo,
e, por conseguinte, um conter esta aparição na forma do conceito.
19
Heidegger, M. A caminho da linguagem, 104.
34
propriamente o seu poder-ser homem, o humano dele e nele mesmo. Entretanto, isto,
o ser e estar na verdade, requer do homem uma luta. É o dom de uma conquista.
Somente se libertando continuamente da não verdade para a verdade é que o homem
realiza o seu ser-homem plena e propriamente. O homem não vive no puro nous, no
pensar puro e simples. Mas vive, antes, no dianoein, isto é, no pensar que discorre, no
lógos.
Tentando outra tradução, que traga à tona de maneira mais evidente o sentido
do texto citado:
35
não são as mesmas para todos, do mesmo modo também os
sons da voz não são os mesmos. Aquelas coisas de que isso
(coisas escritas e sons da voz) são primordialmente signos
(coisas que mostram), são para todos (os homens) as
mesmas paixões da alma, e as coisas, das quais estas
(paixões da alma) formam apresentações assemelhadas, são
igualmente as mesmas.
O falar acontece por amor do dizer. Dizer é mostrar. Mostrar, no falar, é conceder
acenos, dar indícios, oferecer indicações, oferecer sinais. Mas tudo isso acontece no
sentido de um anunciar, que se cumpre como um revelar, um divulgar, um mencionar
20
τὰ γραφόμενα – tá graphómena
21
τὰ ἐν τῇ φωνῇ - tá en te phoné
22
παθήματα τῆς ψυχῆς – pathémata tês psykhês
23
πράγματα - prágmata
36
(fazer menção de, referir, relatar, expor, narrar), um lembrar, um recordar e um
comemorar. O anunciar é entendido, pois, pelos gregos, como um mostrar, deiknymi.
Da mesma raiz de “deiknymi” (mostrar) é o verbo latino “dicere”: dizer. Dizer é mostrar,
isto é, deixar e fazer ver, trazer à evidência alguma coisa. O sinal, pois, no falar, precisa
ser entendido na dinâmica do dizer, isto é, do mostrar.
24
Aqui usa-se esta palavra sem a conotação lógico-matemática. Não podemos entrar, aqui, no caráter de
predicação e de comunicação-declaração. Nem podemos, por brevidade, tratar do caráter de
(phoné metá phantasías) – articulação verbal em que algo é visualizado; nem,
ainda, do caráter de (sýnthesis), de com-posição, do(lógos
aphophantikós) que, pensado a partir da (apóphansis), da demonstração, consiste em deixar
e fazer ver algo como algo, na medida em que se dá em conjunto com outro.
25
Cfr. De interpretatione cap. 1-6; Met. Z. 4 e Eth. Nic. Z.
37
aquilo que se põe à disposição, a aparecer por si mesmo, a brilhar à luz de seu mostrar-
se (cf. Ser e Tempo, § 7B)”26. A fala, no acontecer do discurso humano, é sempre de novo
e de modo novo provocada a deixar ver aquilo de que fala, seja para o próprio falante,
seja para os que o escutam, e que conversam e dialogam, no falar uns com os outros.
Aristóteles diz:
(Estì dè
lógos... apophantikós... em ho tò aletheuein e pseúdesthai hypárchei): é um discurso
demonstrador aquele em que pode haver o ser-descobridor (o verdadeiro) ou o ser-
encobridor (o falso) (Peri Hermeneias IV 17 a 2). A proposição é verdadeira ou falsa.
Tomando por medida isto a que o enunciado se refere, ela é verdadeira se o dá a
conhecer, se o torna manifesto (hermeneía). Se ela, porém, em vez de descobrir e dar
acesso ao ente enquanto tal, a partir dele mesmo, ela o encobrir e vedar este acesso
fazendo-o passar por aquilo que ele não é, então ela é falsa.
26
P. 188.
38
4.2.3.3. A LINGUAGEM COMO CONVERSAÇÃO. HERMENEIA.
27
Esta expressão -(he diálektos) – significa colóquio, conversação, discussão; linguagem
comum; mas também modo de falar, inflexão; daí: língua, dialeto; dicção, estilo; locução particular de um
lugar. Também se usa esta expressão para dizer a linguagem e a expressão de um instrumento musical.
28
Cf. o adjetivo (délos): visível, manifesto, claro, evidente. é o nome de uma ilha, terra natal
do deus Apolo e de sua irmã a deusa Artemis (Sol e Lua).
39
) (tò symphéron kaì tò blaberón) – de um lado, o que
contribui, o que convém, para a vida, e, de outro lado, o que é danoso, nocivo. Isto quer
dizer que (he hermenéia), enquanto discurso coloquial cotidiano, é a fala
que se dá no diálogo entre os homens, enquanto esta busca fazer manifesto o ente (o
real) que se tem em vista, no seu caráter de contribuição (conveniência, vantagem,
préstimo) e de não contribuição (nocividade, dano). Assim, Péricles, num discurso
reportado por Tucídides, apresenta-se como um homem competente para saber
(- gnonaí) e para tornar noto (- hermeneúsai) aquelas coisas que são
necessárias, devidas, oportunas, para a pólis)29.
29
De Bello Peloponnesiaco. Apud Heidegger, M. Ontologia (Hermenêutica da faticidade). Petrópolis:
Vozes, 2013, p. 16-17.
30
Estas são seis: Mýthos: narração; ethe: modos habituais de comportamento, usos, costumes, caráteres;
léxis: o discurso; diánoia: pensamento; ópsis: espetáculo; e melopoiía: música.
31
Léxis significa discurso; modo de falar, dicção, elocução, estilo; língua; palavra, frase, expressão;
significado literal de um texto; trecho de um texto ou um texto mesmo. Remete a légo): recolher, colher,
escolher > contar, expor, narrar; falar, dizer; declarar, anunciar; querer dizer; ordenar; recitar; declamar;
afirmar, revelar; fazer saber; numerar; narrar.
32
Onomasía quer dizer: uso de nomes, denominação; linguagem, expressão. Posteriormente: designação.
O verbo onomázo quer dizer chamar pelo nome, voltar-se a outro usando a palavra, nomear, enumerar;
dar nome, denominar; exprimir, dizer; dedicar, consagrar; designar.
40
4.2.3.4. O HOMEM COMO “ZOON LÓGON ÉCHON / ANIMAL RATIONALE”
Lógos significa discurso, a totalidade do que foi dito e do que é dizível. Os gregos
não têm um termo único para “linguagem”. Falam de lógos (discurso), de mythos
(narração concernente ao extraordinário), de épos (palavra cantada, poesia)... Lógos é
discurso. A totalidade do discurso é mais do que a totalidade de um léxico. Discurso é a
capacidade fundamental do homem de poder discorrer, discursar, falar de algo.
33
Aqui, a linguagem deixa de ser um mero objeto da investigação filosófica, e passa a ser o seu domínio,
o seu medium essencial. Só então é que surge, propriamente, a filosofia da linguagem.
41
uma determinada posição da mirada da consideração do pensamento e uma
determinada perspectiva a respeito desse mesmo ser. No modo como ela é de costume
assumida, no entanto, permanece inquestionada no tocante ao seu sentido e no tocante
aos seus motivos originários. Ela se apresenta, usualmente, desarraigada do chão de sua
origem34.
Este chão encontra-se na filosofia grega. Uma indicação decisiva nos vem de
Aristóteles, mais precisamente da sua Ética a Nicômaco (cf. I, 7, 1098 a 3 s). Em jogo está
a investigação a respeito do mais alto bem entre os bens alcançáveis através da ação, a
saber, a (eudaimonía), a felicidade. Esta, enquanto estado de plenitude de
realização do ser do homem, é o fim de todas as ações humanas. A felicidade é o bem
mais perfeito; é aquilo que o homem, em última instância, busca por si mesmo: é
escolhida por si mesma e não em vista de outra coisa. Ela é um bem autossuficiente. É
mais do que um bem funcional, isto é, limitado por um préstimo e uma serventia. Por
ser o bem mais perfeito e por ser autossuficiente, a felicidade é o sumo bem do homem.
É o penhor pelo qual se empenham todas as ações humanas. É o que consuma,
preenche, dá plenitude à ação. O bem de um ente acontece à medida que ele
corresponde ao conceito de sua essência. Isto é: quando este ente realiza a sua obra
mais própria a partir de sua atividade. Mas, qual é a obra (- érgon) e a atividade
(- práxis) própria do homem? O viver (zên) não é a obra própria do
homem, com efeito, ele tem em comum o viver com as plantas. Também a vida dos
sentidos (- zoé aisthetiké) não é a realização própria do homem, com
efeito, ele tem em comum essa vida sensitiva com o cavalo, com o boi, ou com qualquer
outro animal. Resta, portanto, a vida que se caracteriza como
(praktiké tis toû lógon échontos), isto é, certa vida
concernente à práxis, à ação, que tem por característica ater-se ao “lógos”.
34
Cf. Heidegger, Martin. Ontologie (Hermeneutik der Faktizität) – Gesammtausgabe Band 63. Tübingen:
Vittorio Klostermann, 1995, p. 26.
42
/(zoè / praktikè / toû lógon échontos). O homem é o
vivente que, segundo o seu modo de ser, tem a possibilidade de agir. Para ele, ser é
viver, e viver é agir. A sua não é mera vida, (zoé), mas sim (bíos), vida, no
sentido de “existência”, isto é, de ação35. A ação não é, aqui, mera atividade. Mas é o
empenho do cuidado com as coisas, com o humano mesmo, com tudo o que é, enfim,
com o Todo. Esta é a vida que é própria do homem. A questão que surge, então, é: qual
é o máximo (bíos), quer dizer, a suprema possibilidade existencial do cuidado, o
modo de ser, no qual o homem satisfaz ao seu poder-ser próprio em máxima medida,
aquele em que o homem propriamente é? Há o comportamento prático que é dirigido
para a realização de algo pertencente à vida em comunidade, ao (bíos
politikós)36. Este, no entanto, se dá no momento prático, o (kairós: momento
oportuno), e visa uma obra, uma realização momentânea, algo determinado
temporalmente, algo historicamente delimitado, e, enquanto tal, está orientado para
um ser, que, para os gregos, não é propriamente ser, não é o ser autêntico: o temporal,
o que está submetido ao movimento (em sentido amplo), isto é, à mudança.
35
A palavra “existência” tem, aqui, o sentido restrito ao modo de ser humano, enquanto um ente
determinado pela liberdade e pelo referimento de ser ao ser do ente como um todo (insistência na
verdade do ser).
36
Cf. Ética a Nicômaco I, 5, 1095 b 18.
43
realização por determinado tempo, tendo que retornar sempre de novo aos apertos, às
premências da ação, quer dizer, do cuidado, na vida em comunidade37.
37
Cf. Ética a Nicômaco X, 8, 1178 b 3 s; 1178 b 28 ss. Também: Heidegger, Martin. Die Grundbegriffe der
antiken Philosophie – Gesammtausgabe Band 22. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1993, p. GA
22, p. 312-313.
38
Cf. Heidegger, Martin. Ontologie (Hermeneutik der Faktizität) – Gesammtausgabe Band 63. Tübingen:
Vittorio Klostermann, 1995, p. 21.
39
Cf. Heidegger, Martin. Sein und Zeit. Tübingen: Niemeyer, 1986, p. 32-33.
40
Cf. Heidegger, Martin. Grundbegriffe der aristotelischen Philosophie – Gesammtausgabe Band 18.
Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2002, p. 19-20.
44
nas línguas neolatinas as formas de verdade, verità,
vérité, verdad, etc. É toda uma outra palavra, com toda
uma outra experiência comunitária de mundo, de
universo e realidade. O eixo de concentração e
recolhimento do processo histórico se desloca dos
espetáculos dados nas realizações pela retirada de
retração da realidade para os ordenamentos imperiais e
as decisões curiais impostos por um parâmetro de
rendimento e disposição. Começa a rolar história abaixo
a avalanche da funcionalidade, que vai aumentando por
todos os lados a voracidade de sua força de redução e
estreitamento41.
41
Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia Grega: uma introdução. Teresópolis-RJ: Daimon, 2010, p. 243-244.
45
grega, se torna o “animal rationale”: o vivente que discursa, raciocina, calcula. É pela
mediação do romano, que o grego irá ser recebido, quer dizer, compreendido e
interpretado, na Europa, que terá no elemento romano um de seus componentes
essenciais. Isto vale tanto para a época do humanismo medieval, latino ou bizantino, que
assimilará também a determinação bíblica do homem como ser criado “à imagem e
semelhança de Deus” (cfr. Gn. 1, 27) e como “filho de Deus” (cfr. 1 Jo 3, 2); como para a
época do humanismo moderno, que irá compreender o ser do homem como
“subjectum”, como sujeito, isto é, como fundamento e sustentáculo da totalidade do
real, interpretado como obiectum; sujeito, que, como agente, impele todas as coisas
para uma produção incessante, segundo os cálculos da ciência e da técnica, decretando,
assim, o poder planetário do “homo faber”.
46
processo natural, como a digestão ou a circulação do sangue. O dar-se do discurso é
(katà synthéken)...
A palavra é uma voz significativa. Os animais emitem vozes. Esta são indicativas.
Mas não são significativas, isto é, não dão a compreender algo como algo. Ao entoar a
sua voz, no exercício da fala, desde o princípio, o homem já se encontra na abertura da
compreensão e da compreensibilidade. Somente porque a essência do homem consiste
em ser capaz do lógos, do discurso, é que a voz humana, em sua articulação, pode ser
significativa, isto é, pode dar algo a compreender. A significação não é algo que vem de
fora e se agrega à voz. A significação não é um suplemento da voz. O que acontece é o
inverso: o som é que é suplemento da significação. A cunhagem da voz segue
ontologicamente à formação de significações, isto é, está a priori fundada nela.
42
Em Tomás, no âmbito da vox, situa-se a palavra (verbum). A palavra é uma realização especial do signo
(signum), que por sua vez é "aquilo pelo que alguém chega a conhecer algo de outro" (III,60,4).
47
Significações são expressáveis através de vozes. As palavras são vozes dotadas de
significações. Isto é: significações que são pensadas vêm à expressão como palavras. A
voz se torna palavra à medida que é dotada de significação. O lógos (discurso) é phoné
(voz). No entanto, ele não é primeiramente phoné e, depois, algo mais, além disso. O
lógos é desde o princípio phoné semantiké – voz que dá a compreender (cf. cap. 2, 16 a
19).
48
no ser-com o outro, no ser-no-mundo, é que as vozes acontecem como símbolos. O
acontecer do símbolo, portanto, é o dar-se da transcendência. Só há linguagem naquele
ente cuja essência é transcendência.
Isto é: embora todo o discurso vise dar a compreender algo, nem todo o discurso
tem a tendência de simplesmente mostrar o que ele tem em vista como tal. Somente o
lógos apophantikós, o discurso mostrador, a proposição enunciativa (ou declarativa) é
que assume esta tendência como sua função. O pedido, por exemplo, é um lógos
semantikós, mas não é um lógos apophantikós. O pedido – o pedir algo a um outro – é
um exercício do discurso que não visa explícita e prioritariamente mostrar alguma coisa,
embora dê a compreender algo. Os discursos assim, não apofânticos, pertencem, diz
Aristóteles, ao âmbito da retórica e da poética. Já o tratado que leva o nome de Perì
Hermeneía trata do lógos apophantikós (à teoria do lógos aphophantikós se chamou de
episteme logike, isto é, de ciência lógica).
49
4.2.3.6. O LÓGOS (DISCURSO) COMO SÝNTHESIS E DIAÍRESIS (COMPOSIÇÃO
E DIVISÃO).
50
No logos apophantikos a tendência do falar e dizer, do discurso, é deixar-ver
aquilo sobre que versa, a que se refere. Ou ele retira do encobrimento ou ele promove
o encobrimento. Donde vem esta dupla possibilidade intrínseca do logos apophantikos?
Qual o seu fundamento? Aristóteles dá alguma indicação em Peri Psychés (De anima)
livro gamma, capítulo 6. O texto trata da essência da vida e dos graus do vivente: zoon
logon echon – zoon alogon. O terceiro livro trata do vivente-homem. Este é um zoon
logon echon. O traço distintivo do homem é o logos. Em Gamma 6, 430 a 27, Aristóteles
fala de uma synthesis noematon, isto é, de uma composição do que é percebido. O
fundamento da possibilidade do desencobrimento ou do encobrimento está na
formação desta unidade (por composição ou reunião do que é percebido). Na base do
lógos está uma nóesis, um perceber (intelectivo). Este é um perceber formador de
unidades. Intelectus (intelecto). Intellegere: colher e recolher o que está entre, de
permeio, reunindo, formando uma unidade. Tanto o poder ser verdadeiro
(desencobridor) quanto o poder ser falso (encobridor) do discurso mostrador se funda
neste caráter do nous, do intelecto, do perceber recolhidor, reunidor, compositor,
formador de unidade.
Aristóteles diz também que tudo aquilo que ele disse, isto é, trouxe à luz, sob o
título de synthesis, composição, pode ser tomado e nomeado como diaíresis, tomar uma
coisa fora da outra, separar, dividir. Um exemplo dado por Aristótles: “o branco não é
51
branco”. Aqui se dá, no fundo, um tomar em conjunto de branco e não branco. Mas este
tomar em conjunto, este compor (synthesis), é também um tomar um-fora-do-outro.
Na proposição enunciativa só se pode tomar duas representações e mantê-las juntas
caso se as mantém também separadas. A synthesis noematon, a composição daquilo
que é percebido/pensado (modernamente: representação) já é, desde o princípio,
também diaíresis, um tomar uma coisa fora da outra, uma separação. O perceber
(intelectivo) é, pois, um tomar-junto-que-mantém-separado, um reunião separadora.
Esta unidade de síntese e diérese é o fundamento, a possibilidade essencial, intrínseca,
possibilitadora de que o lógos possa ser desencobridor (alethés – “verdadeiro”) e
encobridor (pseudos – “falso”).
No capítulo 1 Aristóteles diz: peri gar synthesin kai diairesin esti to pseudos te kai
to alethes: na esfera da síntese e da diérese (composição e divisão, separação) é que
acontece o falso (encobridor) e o verdadeiro (desencobridor), a saber, do logos
apophantikos, do discurso mostrador (proposição enunciativa, declarativa). (16 a 12 s).
Na Metafísica ( E 4, 1027 b 19), Aristóteles diz que tanto o alethés (desencobridor –
verdadeiro) quanto o pseudos (encobridor – falso) se dá na esfera da synthesis e diaíresis
(composição e separação). Funda-se nisso. Como é possível que uma estrutura seja, ao
mesmo tempo, compositora e separadora? Eis o problema. Heidegger diz que a resposta
a este problema só se alcança compreendendo a essência do “enquanto” e do mundo.
52
mantém-se a mesma estrutua e dinâmica. Só que os enunciados, tanto afirmativo,
quanto negativo, são encobridores (falsos).
Lógos (discurso)
53
Katáphasis (afirmação)..................................................apóphasis (neg)
Sýnthesis (composição)
Noeîn - Noûs
(perceber-pensar-inteligir)
Diaíresis (divisão)
43
Metafísica E 4, 1027 b 23 ss.
44
Cf. Aristóteles, De Anima, Gamma 6, 430 b 5 s: to de hen poioun, touto ho noûs hékaston.
45
De interpretatione, cap. 6, 17 a 25 ss.
54
enquanto ente, enquanto aquilo que ele é e como ele, a cada vez, é. O enunciado,
porém, não se restringe ao ocorrente que se dá justamente agora, mas concerne
também ao ente fora do tempo-agora respectivo, isto é, concerne também ao passado
e ao futuro. Não somente o atual, mas também o que foi e o que será concernem ao
enunciado. No cap. 5, 17 a 22 ss, Aristóteles diz que o enunciado simples é voz
significativa acerca e na esfera do ocorrente e, respectivamente, do não ocorrente, a
saber, no modo, como os tempos são mantidos um fora do outro (presente, perfeito e
futuro).
O que isso quer dizer fica claro em contraste com a outra parte do discurso,
rhéma. Aristóteles diz: rhéma dé esti tò prossemainon chrónon, hou méros oudèn
semaínei chorís, kaì éstin aeì ton kath’ hetérou legoménon semeîon. (Cap. 3, 16 b 6 ss).
[Um dizer, um verbo, é aquilo que visa além disso o tempo, a cuja essência pertence,
visar além disso o tempo, a saber, além daquilo que, de resto, no verbo é visado; é
sempre uma significação, que significa (dá a compreender) de tal modo que ela é
55
referida àquilo sobre o que é falado]. Todo verbo, assim, segundo sua significação
íntima, se dirige a algo, sobre o que a fala discorre, a algo, que enquanto ente, enquanto
ente assim e assim, é colocado como subjacente. No verbo, portanto, se dão dois
momentos essenciais característicos: co-visar tempo e, no significar (dar a
compreender), estar referido a algo, sobre o que versa o discurso, ao ente. Isto quer
dizer que toda posição do ente necessariamente está referido ao tempo. Todo
enunciado é de-monstração do ente segundo o que e como ele é. No discurso
enunciativo, assim, o discurso é a respeito do ser do ente – seja do ser-agora, seja do ser
no sentido do ter sido, seja do ser no sentido do que virá-a-ser. Que, no enunciado, a
fala discorre sobre o ente no seu ser, vem à expressão em termos de linguagem no “é”.
Mas, mesmo ali onde este “é” falta – por exemplo: o passáro voa embora – o rhéma
(verbo) está a cada vez não só em uma determinada forma temporal, mas, com esta,
está já co-significado um respectivo (a cada vez) ser-no-tempo, sobre o qual a fala
discorre.
No enunciado se discorre a cada vez sobre ente, mas, ao mesmo tempo, sobre
ser. Melhor: não sobre o ser, mas a partir do ser, do ente, como ele é, em seu ser. O
enunciado discorre a partir dos entes, isto é, sobre o ente, como ele, enquanto ente é,
o ente no tocante a ele mesmo (: onta hos onta). Aristóteles caracteriza
o tema da investigação da filosofia primeira (metafísica) como o (on he on).
Temos, aqui, uma ambiguidade. No primeiro caso (: onta hos onta) eu me
dirijo ao ente mesmo; eu permaneço junto das suas condições. No segundo caso -
(on he on) – eu considero o ente, enquanto ele é um ente, eu não examino suas
propriedades, mas eu o tomo, enquanto ele é, na perspectiva do fato de ele ser
determinado pelo seu ser. Eu o considero na perspectiva do seu ser. Visado é, neste
caso, o ente; o escopo é o seu desencobrir e encobrir. E, no entanto, co-compreendido
e co-visado é o ser – não acidentalmente e posteriormente, mas justamente em seu
caráter desencobridor. Ex.: a neve é instável. O “é” tem, aqui, um papel central. O “é”
constitui um momento estrutural essencial do enunciado. Ele é a cópula, o liame ou o
56
nexo, aquilo que une sujeito e predicado. A questão é: o que é visado com o “é”? Neste
comportamento perceptivo demonstrador para com o ente no discurso mostra-se um
compreender guia do “é”, do ser (não só do ente). A que pertence este ser?
No enunciado vem à luz, se expõe, o “é” – e o ser. O ser vem à luz no: isto é, não
é, foi, será. Do ente se diz o ser em uma notável variedade. Que, no discurso, o ser é
dizível, isto é trazido à fala no enunciado simples.
Se nós pronunciamos os verbos em si e por si, então eles são nomes e significam
algo. Por exemplo: se em vez de dizer “o pássaro voa” eu digo somente e meramente
“voar”, então este “o voar” é um nome e significa algo. Aquele que assim se pronuncia
pára o pensamento e aquele que escuta se detém interiormente. Aquele que pronuncia,
diz tais palavras em e por si – o voar –, este traz o pensamento a uma parada,
pensamento que, de resto, é sempre um pensar que atravessa, que corre, percorre e
discorre, se movimentando na forma do enunciar: isto e isto é assim e assim. (Por isso,
o pensar que enuncia e julga é chamado por Aristóteles de um pensar que vai através,
que atravessa, um pensar que progride de uma coisa para outra). No mero nomear eu
não passo de uma coisa para outra, mas o pensamento se detém junto de algo e
permanece parado nisso, visa o nomeado mesmo. O pensamento não corre através, não
percorre, não discorre. De modo correspondente, aquele que ouve estas palavras ,
repousa interiormente, junto daquilo que é nomeado, ele não progride para uma outra
coisa, na forma do progresso: a é b. Mas se é ou não é, ainda não é significado. As
nomeações em si e por si não são sem significado – dão a compreender algo – e, no
entanto, elas ainda não visam que o nomeado, p. ex.: o voar, é ou, respectivamente, não
é. As palavras que são usadas nestas nomeações não dizem de algo, se está voando ou
não voando. Mas, o que é que ainda não vige aí? O que é que falta? Qual a diferença
entre “o voar” e “está voando”? O que é visado com este “está”?
Aristóteles diz: o ser e o não ser não é sinal da coisa, mesmo se dizes o ente nele
mesmo por ele mesmo meramente. O ser e o não ser não visa a coisa em questão, um
ente assim ou assim, mesmo se nomeies e dizes o ente, o sendo-ser, nele mesmo,
46
De Interpretatione c. 3, 16 b 19 ss.
57
meramente, nuamente, despojado disso ou daquilo, por ele mesmo. O ser nele mesmo
nada é. Ser e nada: o mesmo. O ser não é nenhum ente, nenhuma coisa e nenhuma
propriedade coisal, nada de ocorrente. No entanto, significa algo, a saber, certa
composição. Isto é: no entanto ser significa algo; se eu digo “é” e “não é”, eu
compreendo, contudo, algo junto. Mas, o que significa tò eínai? De início, no mais
próximo, o significar é um co-significar-por-adição, e, na verdade, sýnthesin tina, uma
certa synthesis, vinculação, união, unidade, que, sem algo que subjaz junto, não é
percebida/compreendida. Esta unidade, o ser, porém, não pode ser percebida e
compreendida sem o que jaz-junto, o co-sub-jacente, que enquanto junto é perceptível.
3) O “é” não significa prágma, uma coisa que está em questão ou uma
meramente uma coisa.
59
enquanto ente, isto é, ao ente no seu todo. São chamadas, em latim, de
“praedicamentum”, predicamento – de praedicare: dizer diante de, dizer publicamente,
proclamar. A lógica procurou ordenar os predicamentos de modo a dispô-los em
superiores e inferiores.
60
Paschein – passio: sofrer, ser atingido, afetado – quando a coisa é o termo ou o fim da
ação, como, por exemplo: “Sócrates foi condenado à morte”.
61
> qualidade, quantidade, relação, onde, quando, etc. O acidente é casual, fortuito,
contingente, transitório. A substância é essencial, necessária, permanente.
62
O movimento da produção ou do pôr em obra visa uma consumação (telos). Na
sua consumação a obra repousa, pois atingiu a plenitude de sua gênese. O ser como
plenitude e consumação, como quietude, chama-se entelécheia – que os latinos
traduziram por perfectio, perfeição. Nesse momento, o poder-ser foi atuado
plenamente. A obra chegou à sua consumação e maturação. O seu sentido se cumpriu.
Está consumado.
O ser verdadeiro do juízo, portanto, não está nas coisas mesmas (en tois
pragmasin), mas na percepção do ser (en dianoia). Contudo, a possibilidade de ser
verdadeiro do juízo se funda sobre o ente, ou seja, nas coisas mesmas (en tois
pragmasin) e não na percepção do seu ser (en dianoia). A verdade predicativa, portanto,
pressupõe e se funda sobre a verdade manifestativa: aquilo que o ente mostra de si
mesmo. Os medievais dirão que o ente é “manifestativum sui” (manifestativo de si
mesmo).
63
Sobre a verdade manifestativa do ente se funda, pois, a possibilidade de ser
verdadeira de toda a apreensão do ente por parte do homem. Aristóteles traz três
formas de o homem apreender o verdadeiro do ente. São elas: a percepção, o juízo e o
intelecto. A percepção sensível (aisthesis) é sempre simples e verdadeira. O juízo (legein
como dianoein) pode ser verdadeiro ou falso, ou seja, desencobridor ou encobridor,
como vimos acima. Já o intelecto, a simples apreensão do ser (noein) não traz consigo
nenhuma composição ou decomposição, mas, de uma maneira simples apreende o que
simplesmente se mostra: o ser e suas determinações. Não há um noein falso; o que pode
acontecer é não se dar um noein: o agnoein (o ignorar o ser).
64
Assim, portanto, também o ente se diz em
muitos modos, mas todos em referência a um único
princípio: algumas coisas são chamadas de ente
(seres) porque são “ousíai”47; outras, porque são
“pathe ousias”48; outras, porque são “hodòs eis
ousían”49; outras, por sua vez, porque são
corrupções, ou privações, ou qualidade, ou causas
produtoras ou geradoras seja da “ousía” seja
daquilo que se refere à “ousía”; ou porque são
negações destas, ou seja, da substância mesma. (Por
isso, também o não-ser dizemos que “é” não-ser)
(Metafísica Gama 2, 1003 b 5-11).
Ente tem muitos significados. Mas esta multiplicidade não equívoca, ou seja,
disparata. Todos os significados articulam uma unidade, à medida que todos se referem
a um significado básico, fundamental, ou seja, à “ousía”.
Há, pois, uma ciência que estuda o ente enquanto ente, ou seja, as
determinações fundamentais e universais do ente, de tudo aquilo que é, de tudo aquilo
que há. O ente enquanto ente já deve, porém, ser dado ao homem, e já deve lhe ter sido
proposto para que ele possa, enquanto filósofo, investigá-lo. No livro Kapa da Metafísica
(1061 a 28 – 1061 b 17), Aristóteles mostra a distinção entre a filosofia que trata deste
“primeiro” – o ente enquanto ente e, respectivamente, a “ousía” – e as outras ciências.
Assim, por exemplo, a física estuda o ente, mas apenas enquanto em movimento; a
matemática também estuda o ente, mas apenas enquanto tem a ver com a quantidade
47
“Ousíai” é plural de “ousía”: uma vigência ou presença; algo que subsiste em si mesmo; substância.
48
Estados daquilo que vigora em si mesmo; “afecções” que afetam aquilo que é em si mesmo, “afecções”.
49
Vias que conduzem à presença, à vigência, à substância.
65
e com o contínuo; já a filosofia estuda o ente não enquanto isto ou aquilo, não enquanto
sob este ou aquele aspecto particular, mas, justamente, enquanto ente. Isto quer dizer:
a filosofia estuda o ente no todo, o ente no tocante à universalidade do ser, e isto, a
partir daquilo que é primeiro e fundamental no ente: a “ousia”.
66
(identidade) e em referência ao que elas mesmas não são, ao outro de si mesmas
(diferença) (Cfr. Leão, 2013, p. 27; 34-35).
Como conceber, então, o singular, o individual, o que é a cada vez (tóde ti) em
sua positividade? Como Aristóteles encontrou uma possibilidade de repensar a ousía, o
ser, a presença, a realidade, de modo a dar conta de conceber o singular e o mutável
em sua positividade?
A obra vige a partir de um ser pro-duzido: ou seja, trazido para fora, trazido para
a luz, posto no desvelado. Há dois modos de pro-dução: a physis – o deixar que algo
emerja e se abra por si mesmo; e a poiesis – o pôr algo diante de si no sentido de
perfazer, ou seja, de aprontar e de fabricar. Na posição da obra se dá a composição de
movimento e repouso, ou seja, de motilidade e quietude. A quietude, no entanto, não
é a privação do movimento, mas sim a completude, a consumação do movimento:
50
“Eidos” deriva do verbo arcaico e poético “eídomai”: apareço, sou visto. Significa o aspecto em que algo
se faz ver, como também, o brilho, o esplendor, a beleza que reluz neste fazer-se ver.
51
“Genos” vem do verbo “gígnomai”: nasço, venho a ser. Significava raça, descendência, proveniência.
52
Cfr. Aristóteles: Categorias 5, 2a 11-19.
68
aquilo que, na terminologia escolástica, se chamará de “essentia” (essência). A essência
responde à pergunta “o que é?” um ente (em grego: “tí estin?”; em latim: “quid est?”).
Já a existência responde “que um ente é (quod est)” à pergunta se um ente é (an sit?). A
distinção de essência e existência, portanto, nomeia uma diferença no ser: a existência
nomeia que o ente é; a essência nomeia o que o ente é. Falando numa linguagem
escolástica, Aristóteles estabelece o primado da existência sobre a essência, invertendo
o pensamento de Platão, que apresentava o primado da essência sobre a existência. Isso
obriga-nos a reportar aquela “gigantomachia perì tes ousias”, de que fala Heidegger na
introdução de Ser e Tempo, no primeiro parágrafo: o combate de gigantes acerca do
ser, ou melhor, acerca da entidade do ente enquanto ousia: presença, vigência (SZ, p.
2).
Quanto mais elevado em seu ser é o ente, no todo do cosmos, tanto mais o seu
movimento é perfeito e tanto mais ele mostra a eternidade em si mesmo. O movimento
das coisas terrenas é imperfeito, pois é constituído de gênese e corrupção. O movimento
das coisas celestes é perfeito, pois entre elas não há corrupção. O movimento mais
perfeito é o das esferas celestes: movimento circular. O movimento circular é mais
perfeito pois no círculo tudo retorna sempre de novo ao seu ponto de partida. Cada
momento do círculo é princípio e fim, ao mesmo tempo. Trata-se de um movimento
constante e permanente. Dentre os vários “céus” (esferas celestes), o primeiro céu é o
que move todos os demais, é o mais perfeito e apresenta um movimento perpétuo
circular.
O primeiro céu, no entanto, move todas as coisas, sendo ele mesmo movido.
Aquilo que move tudo sem ser movido por nada, este é o que não conhece nenhuma
mutação, nenhuma passagem da possibilidade para a realidade: é o que é pura
realidade, pura energeia, presença autônoma e autossubsistente por excelência, o
divino (theion), o deus (theos). Isto que está na quietude, o divino, é o telos de todo o
movimento. Ele move todas as coisas “hos eromenon” (como amado) e “hos orekton”
(como desejado). Ele é vida e seu viver consiste no pensar. Ele é pensamento que se
pensa a si mesmo (noesis noeseos).
71
3) C. 12 – determina com mais precisão a relação entre o movimento e o tempo:
o movimento é no tempo e é medido pelo tempo, mas também o tempo é
no movimento e é medido pelo movimento53.
4) C. 13 – fala da unidade do tempo na multiplicidade dos agora. Esta unidade
é synécheia, a unidade do contínuo. Coesão do tempo: coesão dos agora. O
agora é o que mantém unido, coeso, o tempo. O agora é fim e é início.
Determinações do tempo (sempre a partir do agora).
5) C. 14 – Trata do anterior e do posterior em relação ao antes e depois. O que
está em questão no tempo não é o antes e depois em geral (há um antes e
depois também no espaço), mas do antes e do depois no movimento.
Questão: onde e como é o tempo? O tempo é na alma como a verdade é no
intelecto. O tempo é número. O número é no intelecto que numero. Mas, em
que sentido?
53
Pergunta fundamental para Heidegger: o que significa ser-no-tempo? Intratemporalidade (Ser e Tempo,
§§ 80-81). Em Heidegger: intratemporalidade: o ser no tempo de um ente que não tem o modo de ser do
Dasein. Temporalidade: modo de ser do Dasein.
72
concluir que o tempo não existe absolutamente, porque precisamente é algo de
divisível, ainda que o seu modo de ser seja obscuro. O modo de ser do tempo é obscuro.
O agora não é uma parte do tempo, porque a parte tem duas características: 1)
é medida do todo; 2) contribui para constituir o todo. No entanto: no tempo os agoras
não são simultâneos uns em relação aos outros. Todo agora perece ao advir o agora
sucessivo. Ser simultâneo significa ser em um só e mesmo agora... Aristóteles discute
dialeticamente o problema de se o agora em cada agora é o mesmo ou é diverso. As
duas hipóteses são expostas – que o agora é o mesmo; que o agora não é o mesmo.
Ambas são refutadas por suas consequências contraditórias. O tempo é alteridade
incessante ou identidade permanente?
Aristóteles deixa esta primeira aporia sem avanço. Só a retoma no cap. 14.
73
A simples identidade entre tempo e movimento é contestada por Aristóteles.
a) Subtraído o empo ao movimento do universo se o aplica às substâncias
particulares. Mas se assim fosse haveria uma pluralidade de tempos
diversos. O tempo, no entanto, é igual por toda a parte e se estende a
todas as coisas.
b) O movimento pode ser rápido ou lento, mas o tempo não. Rapidez e
lentidão se definem a partir do tempo (rápido: o que se move muito em
pouco tempo; lento: o que se move pouco em muito tempo). Logo,
tempo não é movimento.
No capítulo 11, todavia, Aristóteles diz: mas o tempo não é nem mesmo sem
movimento. Quando não há mudança no nosso pensamento parece que o tempo não
passou... A sucessão da qual não se tem consciência é percebida como uma
simultaneidade. Cf. a estória dos heróis da Sicília... Estados de inconsciência e de
anestesia – neles não se percebe o movimento... logo, não se tem consciência do tempo.
A alteridade dos agoras é tirada.
Resume-se esta exposição até agora sobre o tempo, por parte de Aristóteles,
num silogismo:
74
Mas o tempo não é sem movimento
Touto gár estin ho chrónos, arithmòs kinéseos katà tò próteron kaì hýsteron.
75
anterior e do posterior). O tempo é algo que vem ao encontro no horizonte do tempo.
Parece uma mera tautologia. O tempo é o anterior e o posterior. Ou seja: o tempo é o
tempo. Erro lógico?
E se tempo cá e tempo lá tiver sentidos diversos? Tempo vulgar e tempo
originário? Heidegger vê nesta aparente tautologia o nexo entre o tempo vulgar e o
tempo originário54. O tempo vulgar só pode ser interpretado a partir do tempo
originário. Em todo o caso, para evitar parecer que Aristóteles esteja incorrendo numa
tautologia costuma-se traduzir próteron kaì hýsteron) como
“antes e depois”. Isso para não parecer que Aristóteles está definindo o tempo por meio
de um recurso ao tempo...
Tempo tem a ver com mudança (metabolé). A mudança é o caráter
mais geral do movimento. Mudança que concerne à substância: gênese e corrupção
(passagem do não ser ao ser e do ser ao não ser); mudança que concerne à qualidade:
alteração (o tornar-se outro de uma qualidade, por exemplo, de uma cor); mudança que
concerne à quantidade: crescimento e diminuição; mudança que concerne ao lugar:
movimento local, locomoção. Este movimento é chamado em grego: (phorá). É a
passagem de um lugar para outro. Lugar se diz em grego: (topos). Nele, o movido
é o que é levado de um lugar para outro.
A mudança é de algo para algo. Este “de algo para algo” não precisa ser
concebido necessariamente de maneira espacial. Heidegger chama de dimensão esta
estrutura (mudança de algo para algo)55. Aristóteles chama o caráter dimensional de
(mégetos): extensão ou grandeza. Este conceito não tem o caráter
primariamente espacial. A dilatação tem o caráter do contínuo. Diz um estender-se em
si fechado. Coesão, constância. O movimento segue a continuidade. Sentido ontológico:
a continuidade precede o movimento em sua essência. É condição de possibilidade do
movimento. É a priori.
54
O tempo compreendido de maneira vulgar, isto é, o tempo que vem ao encontro imediatamente, deve
poder vir à luz a partir da temporalidade (tempo originário do DASEIN). O tempo vem ao encontro em
uma contagem do movimento dirigida (dirige-se o olhar segundo o antes e o depois, o anterior e o
posterior). Contamos o tempo com vistas ao antes e depois, no horizonte do anterior e posterior.
55
Melhor: dilatação. É um sentido de extensão que não implica a caráter espacial. Bergson, por não ter
compreendido isto, entendeu mal o conceito aristotélico do tempo (no sentido de uma espacialização do
tempo).
76
A priori do movimento são: grandeza e continuidade. Aqui está em jogo um nexo
fundacional a priori. Para se pensar tempo é preciso pensar movimento, para se pensar
movimento é preciso pensar grandeza e continuidade. Grandeza, porém, não há de ser
pensada como grandeza extensiva do espaço (x Bergson). O tempo segue ao
movimento. Quando acompanhamos um movimento o tempo nos vem ao encontro,
sem que o visemos expressamente. Nós visamos, antes, o movido. Com o movido, nós
percebemos o movimento. O movido é cada vez este-aqui. Nos vemos
concomitantemente o movimento com o movido, mas não vemos o movimento
enquanto tal. Num movimento que é uma locomoção (mudança de lugar): percebemos
que o movido se move de lá para cá ou de cá para lá. Transição. Dizemos: aqui-agora,
outrora lá, posteriormente lá... lá agora, lá agora... Dizemos, de maneira tácita.
O que é contado na sequência numérica da transição no horizonte do “de algo
para algo”, quer o expressemos quer não, são os agoras. Ao movido se segue o agora.
Isto é: ele é concomitantemente visto na experiência do movimento. Isto é: é
concomitantemente contado. Isto que é concomitantemente contado ao
acompanharmos um movimento, isto é, isto que é dito, isto é o tempo.
Os agoras são contados e também contam (os lugares). O tempo conta e é
contado. Tempo é algo contado junto ao movimento, na medida em que vejo o
movimento no horizonte “de algo para algo”. Os agoras são dizíveis e compreensíveis
no horizonte do anterior e do posterior. Qual a origem do agora?
Antes e depois não têm sentido necessariamente temporal. Nem espacial.
Porém, em primeiro lugar, concebemos o antes e o depois em sentido espacial. Na
contagem do movimento o antes e depois tem sentido temporal de anterior e posterior.
Eles possuem uma distância em relação ao agora. O agora é o limite para aquilo que
passou e para aquilo que está por vir. O tempo é mantido coeso pelos agoras. O tempo
é explicitado com vistas ao agora.
O agora contado no movimento é cada vez outro. Em cada agora, o agora é um
outro, mas cada agora diverso é, enquanto agora, de qualquer modo sempre um agora.
Enquanto diversos, os agoras são o mesmo, cada vez um agora. O agora é o mesmo na
sua essência – mas é cada vez outro no seu existir. Identidade na essência, alteridade na
existência. O agora articula e delimita o tempo com vistas ao anterior e posterior.
77
O agora é cada vez fim e início. Remete sempre ao não-mais e ao ainda-não.
Estes, o não-mais e o ainda-não pertencem ao tempo, ao seu conteúdo. O agora tem o
caráter de transição. O agora é transitório. Os agoras da sucessão do tempo não são
pedaços... Não confundir o contínuo do fluxo temporal com o contínuo da agregação
espacial. O agora (e, respectivamente, o tempo) sempre se acha aberto enquanto
transição... O agora está segundo a sua essência ligado ao porvir.
O agora não é o limite de um movimento; é seu número... são coisas diversas. O
limite de algo pertence ao modo de ser do limitado... Isso não vale para o número. O
número não depende da materialidade e nem do modo de ser da coisa: por exemplo,
dez cavalos, dez árvores... O que caracteriza o número é poder determinar, delimitar,
algo de tal modo que ele se mostre como independente daquilo mesmo que é limitado.
O tempo como número não pertence ao ente mesmo que ele conta. Não está preso ao
conteúdo material do movido, nem ao seu modo de ser. Kant diria: o tempo é uma forma
da intuição. O tempo é número do movimento. Enquanto tal ele está em condições de
medir o movimento. O tempo não é apenas algo contado. Ele é algo que conta. Ele é
medida.
O tempo não é um elemento pontual. É transição. Olha para trás e para frente.
Cada parte do tempo tem o caráter de transição. Não é ponto. Não é pedaço. Por isso,
o tempo não pode ser despedaçado. Por ser transição o agora está em condições de
tornar acessível o movimento enquanto movimento (transição). Passagem.
O agora não é limite, mas número. Enquanto transição, é número possível.
Medida numérica possível do movimento. Ele sempre mede um de......até... Isso implica
duração (por quanto tempo...). O tempo é número e medida: (arithmós) e
(métron).
O ser no tempo do movimento é o seu ser medido. A intratemporalidade das
coisas e processos se distingue do modo como os agoras são no tempo. Os agoras são
no tempo constituindo o tempo... As coisas e os processos são no tempo na medida em
que são contados, isto é, no número, como o numerado. Intratemporalidade significa:
ser abarcado pelo tempo como número.
O tempo não pertence ao ente que é no tempo. O tempo é mais-além ... Kant: o
tempo é aquilo no interior do que se dá uma ordem... É um horizonte abrangente, em
78
cujo campo previamente dado é possível estabelecer uma ordem com vistas à sua
sucessão. O tempo mede quão grande é a transição.
Movimentos anímicos também estão no tempo. A alma também tem o caráter
de movido. Quando não há nenhuma alma, há ou não há tempo? Quando não há
nenhuma alma então não há nenhum contar, ninguém que conta, e se não há ninguém
que conta, não há nada contável e nada contado. Quando não há nenhuma alma, não
há tempo (?????). Aristóteles coloca isso como uma questão... Questiona também a
outra possibilidade. O antes e o depois são no movimento e o tempo é ele mesmo o
movimento, o antes e o depois, como algo contado.
Aristóteles apenas toca tangencialmente o problema... O tempo é mais objetivo
do que todos os objetos. O tempo é subjetivo... O que é o tempo e como é o tempo? Os
conceitos de objetivo e subjetivo não conseguem interpretar o tempo nem a alma. O
tempo não é sem a alma, daí não se segue que o tempo é psíquico. Ele é na alma... e é
em toda a parte, na terra, no mar, no céu... Está em jogo, aqui, um nexo fundacional:
dimensão, constância, movimento e tempo. Aristóteles fornece apenas uma
interpretação explícita da compreensão natural (vulgar) do tempo...
Já dizíamos que o ser para os gregos é experimentado como surgir (physis), como
viver (zoe) e como permanecer (ousia). Vamos tentar entender, agora, como a ontologia
da substância (ousia), que é uma ontologia do ato (energeia, entelecheia) e potência
(dynamis) incide sobre a ontologia do vivente, em Aristóteles.
Aristóteles trabalha uma ontologia da vida na sua obra Peri Psychés. Psiché é algo
assim como o fundamento do ser do ente que vive. Ser, para o vivente, é viver. Trata-se
de um modo de ser não redutível aos princípios da natureza material, ou seja, daqueles
corpos que são privados de vida. O que é privo de vida não morre. Só pode morrer,
aquilo que vive. Psyché é o nome para o princípio do ser dos viventes.
Com outras palavras, alma é aquilo pelo que o vivente tem vida, tem o seu poder-
viver, e o tem em si mesmo e por si mesmo, em sua autonomia. A alma é realidade
primordial (actus primus) pois o vivente vive, mesmo quando não exerce nenhuma outra
atividade, por exemplo, enquanto dorme. Alma é, portanto, “entelecheia”, realidade
primeira, e princípio autônomo de realização de toda potencialidade de um corpo
80
vivente, de um “organismo”. Ela é um modo de ser que determina a presença do vivente
em seu poder-ser e em seu ser plenamente realizado.
4. Os vícios, a incontinência;
5. A amizade;
Para Aristóteles, virtuoso é aquele agir que se cumpre conforme a diánoia: a reta
razão, o intelecto. Entre as virtudes intelectuais destacam-se, para a questão da ética, a
phrônesis (‘sabedoria prática’, ‘prudência’) e a sophia (‘sabedoria’ no sentido pleno).
81
A investigação se estende, ainda, à indagação sobre os vícios, sobre o prazer e
sobre a amizade. Por fim, Aristóteles retoma o tema da felicidade, perguntando qual
seria a felicidade perfeita. A resposta é que a felicidade perfeita se encontra naquela
forma de vida que Aristóteles chamou de “bíos theoretikós”, ou seja, a forma de vida
dedicada à theoria: à contemplação, ao pensamento. Para ele, o “bíos politikós” – a vida
ativa, a vida política – é bom, mas não o melhor. As últimas indagações versam sobre a
educação e sobre os bons costumes, para terminar com um exame sobre os bons
legisladores, discussão que será retomada na Política.
82
evidência dessas opiniões, bem como aquilo que elas deixam esquecido ou velado.
Nesse segundo momento, a investigação precisa seguir os fenômenos (tá phainomena),
ou seja, aquilo que vem à evidência numa percepção clara e distinta (tá phainomena
katá ten aisthesin). A investigação é, portanto, fenomenológica. Seus momentos são:
A filosofia ética é uma filosofia que aborda a existência humana concreta. Ela
tem a sua própria precisão (akribéia). Ela não deve ser um discurso genérico e abstrato.
Necessita, antes, ser um discurso atento à concretude e às infindas particularidades que
povoam a existência humana. A reflexão filosófica ética não substitui a sensatez e a
sabedoria ética (phrônesis), que o homem forma a partir de sua educação e de sua
experiência. Neste sentido, ela não acrescenta nada. Ela só pode mesmo é, para quem
tem essa sensatez e sabedoria, ajudar a clarificar, a encorajar (protepsasthai) e exortar
(parormesai).
4.2.10.2. O Bem
83
“Toda arte (techne) e toda investigação
(methodos), assim como toda ação (práxis) e toda
decisão (proaíresis), manifestamente mira um
determinado bem”.
A práxis (ação), assim como a phýsis (natureza) e a téchne (arte), é uma forma
de poíesis (produção). Acontece poíesis (produção) ali onde se dá a passagem do não ser
para o ser.
84
Toda criação da natureza (physis) e todo o trabalho do homem, ou seja, todo o
seu fazer e todo o seu agir – toda habilidade inventiva (téchne) e toda capacidade de
ação (práxis) –, se cumprem plenamente numa obra (érgon).
85
humano se perfaz a si mesmo. O fazer (téchne) é transitivo: passa para alguma coisa,
que é fabricada, produzida, constituída. O agir (práxis) é intransitivo: retorna para o
próprio ser humano, redunda na sua transformação e maturação.
O Bem é aquilo que deixa e faz ser. É o que concede ser e vigor a todas as coisas,
a todas as obras, a todas as ações. É o que produz o que é devido. Na verdade, a ação
do homem não pode fazer o Bem. Em todo o empenho da ação o homem precisa doar-
se para receber a graça que lhe advém do próprio Bem. Com efeito, em última instância,
86
uma ação é boa não porque faz o Bem, mas é boa porque o Bem a faz, ou seja, a deixa
eclodir, surgir, consumar-se. Por isso, o Bem é o to ariston (o mais vigoroso, o melhor).
Trata-se, aqui, do Bem supremo de todas as ações boas (to panton akrotaton ton prakton
agathon).
As potências da alma operam de modo excelente quando são regidas pelo logos
(pensamento, razão). No homem, a potência do desejo (orexis), por exemplo, pode
aparecer de dois modos: como cobiça (epithymia) ou como vontade (boulesis). Assim, o
desejo pode ser uma tendência ou propensão que segue um ímpeto cego, e então é
cobiça; ou pode ser uma tendência ou propensão iluminada pelo pensamento, e então
é vontade. Da mesma maneira, as emoções, paixões e afetos (pathoi) precisam ser
regidos pelo logos. À medida que isso acontece, elas se transformam em disposições
estáveis da alma (hexeis).
A alma boa, íntegra, é aquela que é regida pelo logos. Quando as potências da
alma são regidas pelo logos, a ação torna-se a atuação de virtudes éticas.
87
abstrato e absoluto. É, antes, concreto e relativo, ou seja, correspondente a cada
homem e à respectiva situação em que ele, cada vez, se encontra.
88
4.2.10.4. A VIRTUDE DIANOÉTICA DA PHRONESIS (cf. 4.2.2. letra b)
4.2.10.5 . A FELICIDADE
Ser feliz é “ser do Bem” (pertencer ao bem). Felicidade (eudaimonia) quer dizer:
plena auto-realização do homem, a consumação de sua relação de pertencimento ao
Bem supremo. Então, o homem se torna uma propriedade do Bem. Nele atua bela e
vigorosamente (eu) o vigor extraordinário e divino do Bem (daimon, theion).
A felicidade é um bem viver (eu zen). A boa vida (euzoia), contudo, consiste em
viver segundo a virtude (areté). A felicidade é “a atuação de uma vida plena, segundo
uma virtude consumada”. É eupraxia (boa ação, boa obra, êxito, vida realizada). Isto
quer dizer: o homem é feliz quando ele põe em obra, realiza, consuma numa operação
(energeia), as suas possibilidades mais próprias e excelentes de ser; quando ele está em
pleno uso (chresis) de suas possibilidades. O fim da ação é a ação mesma. É o seu
sentido, mais do que sua meta, seu resultado ou sua finalidade. O fim da ação é a plena
atuação de seu poder-ser, é sua consumação, maturação e êxito.
Para ser estável, a felicidade precisa ser uma forma de vida, um modo de viver –
um Bios. Há duas formas de vida que liberam ao homem o acesso à felicidade. Uma, é o
bíos politikós – a “vita activa”, aquela vida, na qual o homem assume sua
responsabilidade de agir em favor do todo da comunidade e da sociedade em que ele
convive, compartilhando do mesmo mundo histórico, das decisões em que está em jogo
o destino comum de um povo (Pólis). Trata-se, portanto, de uma vida que encontra
sentido na ação, na práxis, onde o homem atua a sua capacidade de criação histórica.
Nesse sentido, um homem é feliz quando ele é capaz de dedicar-se a uma obra, em que
ele atua não somente em benefício de si mesmo, mas também sua capacidade de cuidar
de tudo e de todos. Esta vida é boa.
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Excelente, porém, é outra forma de vida – o bíos theoretikós - a “vita
contemplativa”, aquela vida, na qual o homem se dedica a realizar a paixão de conhecer,
de investigar a verdade, de pensar, de trazer à fala a sua referência com o Ser, de fruir
da contemplação da vigor suave e poderoso do Bem. Esta é, enfim, a felicidade perfeita
(he teleia eudaimonia). Trata-se de uma felicidade que não pode ser ameaçada pela
mudança das situações, das circunstâncias e condições da ação. É que, na contemplação,
ao homem basta o contentamento de simplesmente ser, de simplesmente estar
presente, junto daquilo que nunca se ausenta, aquilo que é sempre, o imutável, o
eterno, o divino.
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