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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE DIREITO
GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS

SAMUEL SILVEIRA DAVID

FICHAMENTO DO TEXTO

CARTA ENCÍCLICA
«RERUM NOVARUM»
“SOBRE A CONDIÇÃO DOS OPERÁRIOS”
PAPA LEÃO XIII

PORTO ALEGRE
2021
Introdução
Escrita no século XIX durante o ápice das lutas políticas entre os operários e os
patrões, “Rerum Novarum” é uma carta opinativa do Papa da época, Leao XIII, que
discursa sobre a situação que a sociedade se encontrava e os movimentos políticos
emergentes, como o comunismo. Com isso, o texto em si parece uma resposta direta ao
“Manifesto Comunista”, de Karl Marx, tentando refutar suas teorias e apresentar uma
nova solução que seja coerente com os objetivos da Igreja, sempre colocando a religião
em primeiro lugar, protegendo os interesses Apostólicos e a administração independente
da religião católica, indo contra o que contra os valores cristãos consideram funesto e
buscando a harmonia entre as classes conflituosas. Assim, se resume o objetivo do texto
como a identificação dos direitos e deveres que devem reger sobre a Igreja, o Estado, a
classe operária, a classe rica e as sociedades católicas para que se consiga uma harmonia
e tranquilidade sobre a sociedade conflitante, além da refutação da solução
socialista/comunista.
Entretanto, para se ter uma visão crítica se deve antes escolher uma teoria
norteadora para análise do texto, para assim entende-lo melhor sobre uma perspectiva
diferente. Como “Rerum Novarum” é uma carta altamente opinativa e acusatória sobre
a teoria comunista da resolução da luta de classes, é de interesse compreender as duas
partes da discussão, tanto a acusatória, a Igreja católica com sua solução harmonizadora
e religiosa, quanto a acusada, o comunismo marxista com sua solução revolucionária e
crítica. Assim, se utilizará o “Manifesto Comunista” e suas citações, além da história do
catolicismo em si, para retrucar contra críticas de Papa Leão XIII e sua deliberação
sobre a luta de classes.
O conflito das classes e sua causa
O texto identifica a necessidade de uma solução da crise humanitária que estava
ocorrendo na Europa durante o século XIX, onde as vítimas, os operários, sofrem
diariamente de abusos físicos e de uma miséria aguda. Se deve vir em auxílio dessa
“classe inferior”, que tanto sofre devido à falta de uma proteção, criada a partir da
destruição das corporações e da falta de religiosidade e princípios nas leis e instituições
públicas, deixando-os completamente indefesos. Deve-se destacar que sempre foi o
julgamento da igreja que a usura da sociedade moderna deve ser condenada e tida como
danoso à sociedade, já que é ela que agrava o mal e deixam os homens ávidos,
gananciosos e ambiciosos demais, criando um monopólio dos ricos e opulentos que
comandam uma massa desprotegida. Tendo em vista todos esses problemas, é
compreensível como que a classe operária busca uma solução, algo que, devido a teorias
que “instigam o pobre ao ódio invejoso contra os que possuem”, como o comunismo,
acaba por se criar um conflito entre as duas classes.
A “solução” socialista
Se observa agora como, supostamente, os socialistas buscam remediar esse
problema com a instigação da classe inferior, pretendendo suprimir toda a propriedade
privada, ditando que os bens do indivíduo devem ser comuns a todos, sendo esses
administrados pelos municípios ou o Estado, pregando um ideal de igualdade e
repartição das riquezas entre todas os cidadãos. Entretanto, a teoria em si é ineficaz em
finalizar o conflito e acabaria por prejudicar o operário, além de ser algo extremamente
injusto por violar o direito legitimo e natural da propriedade, viciando as funções do
Estado e subvertendo totalmente o edifício social.
A violação da propriedade privada
A maior crítica ao socialismo do texto se encontra na noção de que é do interesse
do partido comunista se apropriar de toda propriedade privada, definida como aquela
que foi conquistada com trabalho e pode ser utilizada como bem quiser. Aqui, já se
encontra que a abolição da propriedade privada é contra o interesse de todas as classes,
inclusive os operários, já que esses não vão poder usufruir de seu labor, roubando-os
toda esperança de engradecerem seu patrimônio e viver uma vida melhor.
Se aprofundando mais no benefício da propriedade privada a classe inferior, se
observa que a razão fundadora da noção de trabalho é a conquista de um bem que lhe
sustenta a vida e lhe aumenta o patrimônio. Assim, o trabalho, ou seja, a obtenção de
um salário, faz com que seja possível a obtenção de bens móveis e imóveis através da
conversão desse salário, que, assim, configura a propriedade privada como um direito
intrínseco do labor humano, sendo tão legítimo quanto sua renumeração. Logo, a
retirada da propriedade privada seria o mesmo que roubar o salário do trabalhador,
retirando sua liberdade econômica e possibilidade de crescer seu patrimônio
A legitimidade natural da propriedade privada
Há uma diferenciação entre os animais e os homens, que, ao invés de seguirem
apenas seus instintos sobre o que observam no presente, possuem a capacidade de
planejar para o futuro e, devido a sua natureza sensitiva, se aproveitar dos objetos
físicos e corpóreos da maneira mais efetiva. Entretanto, o que realmente nos destaca dos
outros seres da natureza é a nossa capacidade raciocinativa que nos dá não apenas a
capacidade de se utilizar dos bens que encontramos, mas também a possibilidade de
reconhecimento de um direito estável e perpétuo de sua posse, permanecendo-nos úteis
e nossos após terem nos servido, criando assim a propriedade.
Ela surge assim da capacidade da razão humana, que dá ao homem um
entendimento de uma infinidade de objetos e de como suas ações os afetam, julgando-as
como aptas tanto no presente quanto no futuro. Com isso, se identifica como que o
homem deve não apenas ser dono dos frutos, mas da terra que lhe deu os frutos, já que
consegue observar e compreender os dois.
Corroborando com essa teoria, se observa como a natureza deu ao homem as
necessidades e as ferramentas para sacia-las, com a terra pertencendo àquele que a
utiliza a partir desse conceito. Ademais, a noção de que Deus deu a todos a terra não
demonstra uma advertência contra a propriedade privada, mas sim um incentivo, já que
ele a deu a nenhum homem em particular, deixando aos povos e a indústria humana o
direito da separação da terra, que os fizeram assim em relação a necessidade. Cabe-se
também destacar que esse não é um conceito injusto, já que aqueles que não possuem
terra suprem suas necessidades através do trabalho, que, através do produto que ajuda a
produzir, é renumerado e assim comuta por suas carências e, pela economia, uma futura
propriedade.
Ademais, através dos direitos intrínsecos à propriedade privada e noções que
seriam afetadas negativamente sob um governo socialista, se cabe destacar a família e a
sua relação com o Estado. A família, sendo uma pequena sociedade, mas que, porém,
vem anteriormente ao Estado, possuí o direito natural de existir e ser regida conforme os
recursos e as vontades do seu chefe, o pai, algo que só pode ser atingido com a
propriedade privada, que alimenta e educa, e a herança, que dá providência e segurança,
algo que, num regime socialista, seria erradicado e substituído pela intervenção do
Estado. Com essa invasão estatal sobre a sociedade familiar, limitando-a nas suas ações
e deveres, se violará um direito que deveria ser inviolável, substituindo a providência
paterna, natural e lógica, com a estatal, forçada e danosa.
Assim, se define como a propriedade privada é um princípio inalienável e que
possuí a legitimação da natureza e de Deus. Através dela, o homem consegue satisfazer
suas necessidades que lhe foram dadas naturalmente, e, caso não as tenha, se substituí
pelo trabalho aos que tem. Sua abolição prejudicaria a todos, com o socialismo sendo
um sistema onde todos seriam iguais, porém iguais na miséria, indigência e nudez, fora
da natureza do homem, perturbando a tranquilidade pública e, através da invasão da
família, desnaturando as funções do Estado.
A violação dos ensinamentos de Marx e a “legitimidade” da propriedade burguesa
Aqui no texto se encontra um dos maiores equívocos teóricos quando se trata das
refutações do comunismo marxista, que dita que ele busca retirar daqueles aquilo que
lhe é devido, desnaturalizando a noção de propriedade privada e causando um caos que
afetará todas as classes. Para aqueles que leram “O Manifesto comunista”, a falha dessa
crítica é óbvia: o comunismo não se importa com a propriedade pessoal, dos móveis e
imóveis que o texto declara tão santos. O que a revolução comunista tem como objetivo
é a retirada do Capital da mão dos que abusam de seu poder para oprimir a sociedade
toda, ou seja, a propriedade burguesa, transformando-a numa propriedade coletiva e que
pertence a todos que trabalharam nela. Assim, se observa que “Apenas o caráter social
da propriedade se transforma. Ela perde seu caráter de classe”1, provando assim que
tirar daquele o que é seu não é o objetivo do comunismo.
Ademais, como se encontra no livro de Marx, a burguesia já anda reprimindo a
propriedade, com o pequeno burguês e o camponês medieval se encontrando sem outra
opção do que vender suas terras e serem explorados pela mão dos ricos. A mais-valia,
ou seja, o resultado do trabalho injusto que os operários praticam, dão para seus patrões
um Capital absurdo e que não os pertence, sendo algo que deveria ser de todos que
participaram do processo produtivo, mas que acaba pertencendo a somente um, como
Marx diz: “ (O trabalho do proletário) Cria capital, quer dizer, propriedade que explora
o trabalho assalariado e que só pode se multiplicar se criar mais trabalho assalariado que
possa ser novamente explorado. A propriedade, em sua forma atual, move-se no
antagonismo entre capital e trabalho”. Logo, se prova também que o texto se importa
apenas com um tipo de propriedade: a burguesa, com sua retórica de “o melhor para
todos” sendo apenas uma fachada para disfarçar a clara parcialidade que possuem em
relação aos patrões.

1
KARL MARX E FRIEDRICH ENGELS, “Manifesto Comunista”, página 35
A solução católica
Definido assim o conflito e a solução socialista, Papa Leão XIII começa agora a
delinear sua teoria que supostamente harmonizaria a luta de classes e tranquilizaria a
sociedade conturbada. Com isso, vale-se destacar que se trata de uma solução
completamente religiosa e, em certos pontos, aplicável apenas caso toda a população
fosse católica, tratando o ateísmo ou até mesmo a existência de outras religiões como
um empecilho para sua aplicação, algo que será discutido.
Mesmo assim, o texto organiza esse plano em obrigações a certas partes da
sociedade, ditando como que a esses seus direitos e deveres, além de justificar certas
características atreladas a suas responsabilidades. Com isso, pode-se separar a solução
católica em: obrigações dos operários e patrões, a função da igreja, o concurso do
Estado e as associações católicas.
As obrigações dos operários e patrões
Antes de tudo, deve-se destacar uma inevitabilidade da sociedade: a igualdade é
impossível. Os homens são diferentes por naturezas, com alguns sendo mais adequados
a um trabalho bruto e outros a uns mais sutis, se diferenciando pela força, inteligência,
talento e outras questões que os moldam de certa maneira. Isso, com o fato do trabalho
ser algo natural e inerente ao humano, desmitifica uma das questões mais polêmicas da
situação moderna: a luta de classes não é algo nato entre operários e patrões, sendo uma
imposição socialista que não é natural.
Assim, é apenas questão de tempo de a natureza tomar seu caminho correto e
que as classes compreendam que a harmonia e a tranquilidade beneficiariam a todos. O
Capital necessita do trabalho, e o trabalho necessita do Capital, criando assim uma
relação simbiótica que irá entrar em concordância com o passar do tempo, já que a
beleza da harmonia e da ordem é muito melhor do que a bruteza e selvageria do
conflito. Assim, através das verdades religiosas da Igreja, é capaz de se encontrar uma
reconciliação entre os patrões e os operários.
As obrigações dos operários
A situação de pobreza não é uma de vergonha, sendo a humildade uma virtude
divina que aproxima os miseráveis a Jesus e sua situação enquanto em vida, fazendo
assim a vontade divina se inclinar a favor dos pobres. Mesmo assim, sua situação
material ainda deve ser o suficiente para sobreviver de maneira saudável e adequada
enquanto na terra, já que, por mais que o pós vida seja o objetivo de todos, é de ser
esperado um mínimo de dignidade enquanto vive. Por isso, se define o direito dos
operários de obter, pelo trabalho, pelo o menos o mínimo para viver uma vida plena e
saudável, algo que será discutido no tópico de renumeração adequada.
Seja como for, com todo direito vem um dever, com a dos pobres sendo a de
fornecer tudo o que prometeu pelo trabalho, de maneira integral e honesta. Ele não deve
lesar o seu patrão e sua propriedade, já que essa foi obtida legitimamente e sua
destruição pela raiva e o ódio reflete também no operário. Suas reivindicações devem
ser não violentas e sem a presença de sedições, com as greves sendo uma afronta ao seu
contrato de trabalho. Além disso tudo, eles devem entender o seu lugar e não cair nas
falácias de homens perversos, que buscam utilizar sua raiva para suas próprias
motivações políticas, prometendo assim uma esperança exagerada, que conduz a
sociedade à esterilidade e à ruína das fortunas.
As obrigações dos patrões
A riqueza, o objeto de ganância de vários homens, é, na visão católica, um
empecilho para a entrada no Céu, já que é fácil de se corromper e pecar pela luxuria e
avidez. Mesmo assim, isso não significa que ela não possua um uso adequado, com a
caridade sendo um dever de qualquer bom cristão que possua um excesso que possa ser
doado, legitimando assim nos olhos de Deus sua posse e utilização. Com isso, pode-se
observar como que os ricos e patrões atuais possuem grandes falhas, não percebendo
que sua pós vida e entrada no Céu pode estar em risco.
Assim, se define as obrigações dos patrões como as seguintes: Tratar o
empregado como o homem de Deus que ele é, respeitando sua integridade e não o
tratando como um escravo, animal ou instrumento de lucro, algo que vai completamente
contra a vontade divina; Possuir em interesse o bem corporal e espiritual daqueles que
empregam, tendo certeza de que eles tenham o suficiente para ser uma pessoa completa
e saudável, sempre cuidando com a proteção da sua alma, seus hábitos e seu espírito da
família, já que assim não seja corrompido por noções exteriores; Respeito as limitações
físicas dos seres humanos, com as viagens de trabalhos tendo ser equivalentes ao limite
saudável humano e, principalmente, respeitando que as crianças e as mulheres não
devem ser submetidas ao trabalho forçado e bruto, já que essas devem focar apenas em
serem educadas, no caso infantil, e com trabalhos mais sutis e femininos, no caso
mulheril; Entretanto, a principal função de um bom empregador é garantir que o salário
seja pago e o que é devido aos trabalhadores lhe sejam dados, com uma exploração
indevida sendo considerada um dos maiores crimes como patrão, sendo os que fazem
isso criminosos que clamam a vingança dos céus.
A domesticação dos operários e a falta de interesse burguesa
Aqui se observa claramente o real objetivo das obrigações e direitos do operário:
a domesticação do proletário. Se declaram como que a pobreza é algo nobre e desejado,
fazendo assim que os pobres se sintam na vantagem enquanto na verdade são
profundamente explorados, para que, como seus “deveres” demonstram, não causem
problemas aos seus patrões. A burguesia é violenta e mortífera, danificando a alma e o
corpo dos trabalhadores até seu limite, e depois descartando-os como animais de labor.
Assim, pela noção da autodefesa, é o verdadeiro dever do proletário é garantir sua
existência, pelo meio que lhe for mais adequado. Greves, tomada da propriedade
burguesa, revolução, todos esses são direitos do proletário oprimido, daquele que não
aceita sua condição desumana e danosa, sendo essa “uma virtude cristã” ou não.
Além disso, cabe-se a pergunta: por que a burguesia seguiria seus deveres? Na
modernidade, os capitalistas são os donos de tudo, controlam os Estados e o poder
político de maneira nunca antes vista, não tendo um motivo para tratar o empregado de
maneira adequada, já que, pelo incentivo do sistema do Capital, o operário é somente
um objeto que pode ser utilizado para lucrar. O respeito da infância e do feminino é
inexistente na mente burguesa, que vê todos como uma massa trabalhadora pronto para
ser utilizado. Assim, se identifica que o único jeito do proletariado cessar sua opressão é
lutando por si mesmo, buscando poder político e protegendo sua saúde e existência, já
que essas não são de interesse do patrão.
A comunhão dos bens de natureza e a graça
Definido assim os direitos e as obrigações da classe, o texto busca agora ir um
passo além, se utilizando de conceitos religiosos para tentar, através de noções católicas,
uma aproximação das classes. Segundo o autor, a verdadeira amizade entre os operários
e patrões surge quando se identificam todos como filhos de Deus, que partilham a
mesma dor e as mesmas virtudes. Considerando todos como apenas humanos e, logo,
partindo do mesmo Pai, se observará como que o tesouro da graça estará presente na
alma da sociedade, e, assim, resolvendo o conflito geral através da fé cristã.
A igreja e a questão social
Partindo agora para outro agente social, a Igreja ganha uma forte presença na
construção de uma sociedade mais tranquila e sem conflitos. Para o autor, é de direito e
dever a resolução da luta de classes pelos instrumentos da Igreja, onde, através dos
evangelhos, pode influenciar os bons cristãos suavizando os conflitos. São as
qualificações da Igreja como determinadora dessa luta: a regulação dos bons costumes e
hábitos, a melhoria da vida dos miseráveis através das instituições caridosas e,
principalmente, a vontade de ajudar todos de maneira imparcial e geral, já que é Mãe
tanto dos pobres quanto dos ricos, julgando as leis e instituições públicas com medida e
prudência para um fim que beneficiará a todos.
Se referindo a comunhão geral e a noção da caridade e graça já citado, se
encontra como que somente a Igreja possuí os instrumentos para aplicação dessa noção,
já que, através da influência nas almas das pessoas, ela consegue fazer todos se amarem
como irmãos, seguindo Deus e seus comandos divinos, algo visto na sua História e os
benefícios que vieram a todas as sociedades com seu surgimento. Logo, a sociedade
humana só pode ser curada através da Igreja, sua Mãe eterna, que os faz a voltarem na
sua origem e compreenderem melhor o caminho que deveriam ter tomado. Seguindo os
costumes cristãos, se consegue o favorecimento de Deus, reduzindo o desejo excessivo
do dinheiro e da ganância pela frugalidade católica e fazendo todos se contentarem com
uma vida humilde e virtuosa, dissipando assim as maiores desigualdades e aproximando
todos como filhos de Deus.
A irrelevância moderna da Igreja e sua hipocrisia histórica
O quão eficiente realmente é a igreja e o papa quando se trata no auxílio da
classe operária? Para o autor, eles são os únicos que conseguem unir todos e consertar a
sociedade, mas nessa afirmação exagerada se encontra uma verdade que teoria
comunista adverte: a igreja cada vez se encontra mais irrelevante, e isso lhe causa medo.
O catolicismo organizado já foi uma grande potência no cenário político, com a idade
média sendo seu pico de poder, onde tudo e todos respondiam diretamente ao Papa e
suas vontades. Entretanto com o avanço da burguesia ele foi se encontrando cada vez
mais pequeno e irrelevante, se encontrando numa sociedade em que não possuí mais
influência. Assim, o clérigo só possuí duas opções: apoiar o socialismo de maneira
vingativa e de interesse próprio, como é no caso descrito no “Manifesto comunista” do
socialismo aristocrata, ou, o caso observado no texto, apoiar a burguesia e tentar se
inserir forçadamente no cenário político, buscando as láureas do apoio tanto burguês
quanto proletário, sendo que apenas tem de interesse a volta da sua época em poder.
Ademais, há um viés importante nessa discussão, observada no texto quando
esse afirma que a igreja católica beneficia a todos desde sua concepção, com a História
provando que seus interesses é o bem de todos. Então, se utilizando de seus próprios
argumentos da propriedade e respeito à todas as classes, devemos identificar sua
hipocrisia que permeia em seu histórico.
A propriedade privada, tão supostamente sagrada para o papa Leão XIII, não se
encontra assim durante o reino do catolicismo durante a idade média. Podemos dar
inúmeros exemplos, sejam as cruzadas que tomam reinos inteiros de maneira ilegítima e
violenta, sejam as inquisições que retiram dos judeus, muçulmanos ou “hereges” tudo o
que conquistaram com seu próprio trabalho, ou até mesmo as invasões europeias das
américas, patrocinadas fortemente pelo papa e seus missionários. Quando se observa a
história da igreja, tão supostamente benéfica para todas as classes, se encontra a tomada
injusta e violenta da propriedade privada e pessoal, roubando dos não-cristões tudo o
que lhe são devidos, demonstrando assim a hipocrisia de um papa acusar o comunismo
de querer fazer o mesmo, além de demonstrar a falta de interesse da igreja de proteger
os interesses de todas as classes.
O concurso do Estado
Definida as obrigações das classes e da Igreja, cabe-se agora definir qual que são
os direitos e obrigações do Estado e suas leis e instituições enquanto se trata da questão
do operário. Antes de tudo, o Estado em si é considerado pelo autor como todo governo
que corresponde os preceitos da razão natural e ensinamentos divinos. Sendo assim, a
primeira função do Estado se trata da garantia da prosperidade nacional, onde, através
de seu poder e influência, busca criar uma sociedade espontânea e perpétua, melhorando
as relações privadas e públicas para que se desenvolvam de maneira adequada. Para
isso, se deve priorizar os costumes puros e religiosos, fundados nas questões morais de
justiça e ordem. Ademais, deve haver um foco no progresso da indústria, no comércio,
na agricultura e outros elementos econômicos, aperfeiçoando esses de maneira que a
vida material dos cidadãos também se beneficie. Cabe-se aqui definir que o Estado deve
ser completamente imparcial, não priorizando uma classe de cidadãos sobre a outra, já
que todos, nos olhos de Deus e do povo, são considerados iguais e dignos de mesmo
tratamento. Quanto mais se prezar por esses valores, mais se servirá o interesse comum
e se amenizará a luta de classes que, com o passar do tempo, se tornará menos
necessária.
Entretanto, há uma obrigação do Estado que deve ser seguida obrigatoriamente:
o respeito da liberdade do cidadão e a não interferência dos particulares. A vida
doméstica e a familiar são de providência Divina e paterna, seguindo apenas os
princípios naturais e regulada pela economia própria, tendo de ser respeitada pelo
Estado fundamentalmente, caso o contrário, perde a legitimidade que lhe foi dada pelo
povo. Mesmo assim, ainda se trata de responsabilidade do Estado a garantia da
segurança de todos de sua comunidade, buscando o bem de todos de maneira imparcial.
Assim, caso há um caso de abuso ou interferência na liberdade de outros, é dever estatal
intervir de maneira adequada e moderada, protegendo assim os interesses de todos.
As Obrigações e limites do Estado
Cabe assim uma delimitação mais específica de qual é o papel do Estado na
solução católica da questão operária, sempre mantendo em vista que esse deve ser
imparcial e respeitoso a liberdade individual. Assim, se define que as obrigações do
Estado são as seguintes: a proteção dos interesses coletivos; a salvação comum e
particular de todos seus cidadãos; fazer reinar a paz e a tranquilidade na sociedade;
respeito a economia doméstica que deve ser seguida apenas conforme os mandamentos
de Deus e as leis naturais; respeito e honra à religião; fazer florescer os bons costumes;
graduar a justiça religiosamente; e, principalmente, se assegurar que nenhuma classe
possa oprimir a outra impunemente.
Entretanto a questão que possuí maior controvérsia é aonde que o Estado pode
aplicar sua força e de que maneira, tendo em vista em que respeita ou não a liberdade
individual. Assim, se define as seguintes noções norteadoras da execução do Estado:
1. A proteção da propriedade particular: Deve-se garantir que o que foi
legitimamente obtido não possa ser danificado, protegendo os interesses do
proprietário e impondo nos agressores a força total do Estado. Nos casos de
greves violentas, é dever estatal reprimir os agitadores, beneficiando assim
os patrões e os bons operários que entendem que aquilo que é seu não pode
ser despojado ou danificado.
2. Impedir as greves: A sedição é uma atitude mesquinha que parte do ódio e
vingança das massas, sendo essas ações prejudiciais não só para os patrões,
mas para toda sociedade, que é danificada pela falta de comércio e produção.
Por terem posto em risco a tranquilidade pública, os grevistas devem ser
parados com a força do Estado.
3. Proteger os bens da alma: O Estado sempre deve possuir o bem espiritual dos
seus cidadãos como um de seus principais objetivos, por isso, deve-se
incentivar o desenvolvimento religioso e espiritual. Se faz isso com o
respeito dos feriados católicos e folgas no domingo, sempre tendo em vista
que esses não devem serem utilizados para alforria, mas sim para meditação
profunda e religiosa.
4. Proteção do trabalho dos operários, das mulheres e das crianças: Um
operário é apenas um humano, e assim seus limites devem ser respeitados,
não abusados como se ele fosse um objeto de produção. Devem ser levados
em consideração fatores como a qualidade do trabalho, onde ele é feito e em
que estação do ano, para que assim se encontre um período adequado e
saudável para que não se prejudique a saúde dos trabalhadores. Cabe-se
destacar que o exigido do homem não é o mesmo da mulher e das crianças.
Na infância, não se deve entrar na oficina enquanto não tiver uma idade
adequada, e, no feminino, há trabalhos adequados para o sexo, com
preferência a “arranjos domésticos” e na educação dos filhos. Ademais, o
respeito do descanso no domingo, o dia do Senhor, deve ser respeitado
obrigatoriamente.
5. O quantitativo do salário dos operários: Um assunto controverso, é
geralmente definido como: uma vez que livremente se aceite o salário, o
patrão cumpre todos os seus compromissos desde que o pague, não sendo
obrigado a mais nada, com a justiça só sendo lesada caso ele se recusasse a
satisfazer suas condições. Entretanto, a verdade é mais complicada, já que é
da natureza a subsistência, e o necessário deve ser algo obrigatório no salário
de um trabalhador. Assim, seguindo a justiça natural que é devido a todos, o
salário deve ser o suficiente para garantir a subsistência do operário sóbrio e
honroso, sendo aquele que é forçado a aceitar um contrato por menos que
isso um injustiçado que deve ser protegido. Cabe-se destacar: não é
obrigação do Estado definir esses valores, mas sim facilitar a discussão entre
os operários e os patrões, auxiliando onde pode.
Assim, garantindo todos esses direitos, além de proteger da propriedade privada,
se aproximará as classes, amenizará as lutas políticas e a separação do povo,
aumentando assim a prosperidade na nação inteira e tranquilizando a sociedade de
maneira harmoniosa.
As obrigações com a burguesia e os limites com o proletariado
Aqui se prova a verdadeira intenção que o autor tinha com sua “solução”: a
limitação do proletariado e a proteção da burguesia. O Estado, na concepção do texto,
serve somente para oprimir a classe oprimida, tirando seus direitos de greve e de
autoproteção. Se utilizando de noções como “defesa da tranquilidade” e “ações
prejudiciais a todos”, Leão XIII tenta tirar do proletariado o que lhe é por direito,
fazendo assim para proteção da propriedade burguesa e seu Capital. Assim, a greve,
uma ferramenta importante para os operários que buscam condições de vida melhor, se
torna uma “sedição” que danifica a sociedade inteira, quando na verdade a única coisa
que ela prejudica são os interesses da burguesia.
Seja como for, se observa a clara parcialidade com o patrão quando se trata das
obrigações do Estado relacionado a esse. Por que o proletariado merece toda a força
estatal, impedindo suas greves e protegendo a propriedade burguesa, enquanto a
proteção do trabalho infantil e feminino e a definição do quantitativo do salário dos
operários são necessárias apenas “o auxílio do Estado”? Os interesses do proletário
então só dependem da boa vontade da burguesia, que pode agir como bem quiser sem
medo de repercussão e limitação, com o Estado servindo apenas para “guia-la”,
enquanto força os operários a agir conforme os interesses do patrão.
As associações católicas
Um dos maiores motivos da crise moderna é a falta de instituições de suporte
que ajudam o operário a poder se defender contra as opressões, algo presente por causa
da destruição das antigas oficinas medievais. Entretanto, com o agrupamento de bons
homens, tanto patrões como operários, é possível a remediação da luta de classes.
Assim, surgem as associações, que, segundo o texto, devem evoluir para finalmente
conseguir lidar com os conflitos modernos, compreendo que os interesses dos
particulares mudaram e que devem ser protegidas. Nessa categoria, se encontram as
confrarias, as congregações e ordens religiosas, que desde sempre ajudaram
caridosamente todas as classes sociais.
Cabe-se aqui uma advertência: a proteção dessas associações é de grande
importância nas sociedades, com o Estado possuindo a obrigação de garantir sua
segurança e prática imparcial e sem invasões exteriores, protegendo assim o interesse
das pequenas sociedades. Os fins dos particulares são sagrados e naturais, que, caso não
sejam contra a tranquilidade pública e não incitem a violência, devem ser protegidos a
todo custo.
Assim, se encontra o ápice da evolução dessas associações: as associações
católicas. Um dos maiores perigos modernos é o fato de operários se juntarem para
agirem conforme o interesse de líderes ocultos e nefastos, ditando palavras hostis a
segurança das nações e os valores cristãos. Logo, para os bons operários cabe-se a
decisão: atrelar-se a essas sociedades desnaturadas e que a religião tem tudo a temer, ou
criarem suas próprias associações, que, por serem um partido que busca ir contra o mal
e a intolerância da sociedade e que tem como fim diluir o bem no seio da sociedade, é
impossível de não ser escolhida. Esse grupo de homens zelosos se tornam então
conhecedores da situação atual, protegendo assim as pessoas dedicadas ao trabalho
honesto, produzindo uma prosperidade e equidade que regulam as relações entre os
operários e patrões. Além do mais, essas associações, presentes de todos os tipos de
pessoas, enraízam um nos outros lembranças de seus deveres religiosos, levando-os a
moderação e humildade, incentivando a caridade e coordenando todos os excessos e
criando uma harmonia e concórdia mais perfeita. São de grande organização e número,
agindo de diversas formas e fins, até mesmo com católicos ricos que não olham a
despesas para fundar e propagar essas sociedades, criando assim uma sociedade boa e
honesta que busca o bem de todos.
Seus objetivos são simples: buscam o aperfeiçoamento religioso e moral, sempre
tendo em vista a doutrinação do operário, incitando nele a piedade e a caridade,
fielmente ligado à Igreja e suas obrigações, sempre observando o respeito aos feriados e
dias festivos. Através do fundamento da religião, o foco muda para o melhoramento da
sociedade no geral, atribuindo a cada membro funções conforme suas habilidades e
talentos, distribuindo-as inteligentemente para não causar injusta. A massa comum
também deve ser administrada, sempre com respeito e integridade, tendo em vista que
todos são filhos de Deus, dando auxílio para aqueles que precisam e conciliando os
patrões e os operários, lembrando-os de seus direitos e deveres.
Conclusão
O texto do Papa Leão XIII então se trata da busca de uma solução para um
problema da sociedade moderna, se utilizando de conceitos religiosos e opinativos para
conseguir amenizar e, futuramente, acabar com a luta de classes. Através de obrigações
e deveres de diversos agentes sociais, a Igreja busca uma resolução pacífica e cristã para
o mal do século
Entretanto, quando se observa o texto num viés comunista se encontra uma
verdade mais conversadora e que é contra o interesse do proletariado, se utilizando de
conceitos hipócritas e mal fundados, se critica o socialismo e tenta substituí-lo por uma
solução que só beneficiaria a burguesia. Assim, os interesses de uma classe irrelevante
são observados como uma luta desesperadora por uma volta no poder, favorecendo a
classe dominante para assim oprimir junto a classe que diz querer proteger. Logo, se
observa a verdadeira intenção do texto “Rerum novarum” sobre as condições dos
operários: quer que continue assim, em prol da igreja e seus interesses.

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