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São João Clímaco

Escada do céu
Tradução de João Mendes de Almeida Júnior
Escada do céu
São João Clímaco
1º edição — junho de 2019 — CEDET
Título original: La Santa Escala.

Os direitos desta edição pertencem ao


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Editor:
Nelson Dias Corrêa

Tradução:
João Mendes de Almeida Júnior

Preparação de texto:
Danilo Carandina

Diagramação:
Thatyane Furtado

Capa:
Mariana Kunii

Desenvolvimento de eBook:
Loope Editora — www.loope.com.br

Conselho Editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo

FICHA CATALOGRÁFICA
João Clímaco, São
Escada do céu / São João Clímaco; tradução de João Mendes de Almeida Júnior
— Campinas, SP: Ecclesiae, 2019.

Título original: La Santa Escala.

ISBN: 978-85-8491-131-8

I. Autor. II. Título. 1. Cristianismo.


CDD — 230

ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO

1. Cristianismo — 230

Reservados todos os direitos desta obra.


Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja
ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de
reprodução, sem permissão expressa do editor.
Índice

Capa
Folha de Rosto
Créditos
Prólogo
I
II
III
IV
V
Capítulo I. Da renúncia e menosprezo do mundo
Capítulo II. Da morti cação das paixões e vitória sobre apetites e
afetos
Capítulo III. Da verdadeira peregrinação
I
II
Capítulo IV. Da perfeita obediência
I
II
III
IV
Capítulo V. Da penitência
I
II
Capítulo VI. Da memória da morte
Capítulo VII. Do pranto de compunção
I
II
Capítulo VIII. Da morti cação da ira
Capítulo IX. Do esquecimento das injúrias
Capítulo X. Do horror à detração
Capítulo XI. Do comedimento nas palavras
Capítulo XII. Da veracidade
Capítulo XIII. Da solicitude e diligência
Capítulo XIV. Da temperança e do jejum
Capítulo XV. Da castidade
I
II
III
Capítulo XVI. Horror à avareza e coragem na pobreza
Capítulo XVII. Da piedosa sensibilidade
Capítulo XVIII. Prevenção contra o sono vicioso e disposição para os
ofícios divinos
Capítulo XIX. Das sagradas vigílias
Capítulo XX. Prevenção contra o temor temerário ou pueril
Capítulo XXI. Prevenção contra a vanglória
Capítulo XXII. Prevenção contra a soberba
Capítulo XXIII. Horror à blasfêmia
Capítulo XXIV. Da mansidão e simplicidade
Capítulo XXV. Da altíssima humildade, vencedora de todas as paixões
I
II
III
Capítulo XXVI. Da discrição
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
Capítulo XXVII. Da sagrada quietude do corpo e da alma
I
II
Capítulo XXVIII. Da oração
Capítulo XXIX. Da paz de espírito
Capítulo XXX. Da união e vínculo das três virtudes teologais: fé,
esperança, caridade
PRÓLOGO
I

São João Clímaco compôs duas obras notabilíssimas: uma é a Escada


do céu, também denominada Escada santa, Escada do paraíso; outra é
a Carta ao pastor. A Escada do céu, alegoria da escada que o
patriarca Jacó viu em sonho, formada de trinta degraus,
correspondentes aos trinta anos da vida privada de Jesus Cristo, é
dividida por isso em trinta capítulos. O santo autor aplica esta escada
misteriosa da Escritura à escada das virtudes. É este o livro que tomei
a peito traduzir para o português, não obstante a minha pouca
competência.
Procurei a bibliogra a dessa obra na História geral dos autores
sagrados e eclesiásticos, por Dom Remy Ceillyer1, onde vi que foi
originalmente escrita em grego e está no tomo LXXXVIII da
Patrologia grega, colunas 631–1210. O citado Remy Ceillyer refere
muitas edições de São João Clímaco em línguas vivas, a saber: uma,
italiana, impressa em Veneza, por Marinelli, em 1585; outra em grego
vulgar, pelos cuidados de Margonius, bispo de Citera, impressa nesta
mesma cidade em 1590; outras, espanholas, uma das quais impressa
em Toledo, em 1504, outra, em Salamanca (é a tradução do Fr. Luiz
de Granada), em 1571; outras francesas, impressas em Paris, em 1654
e em 1661, além de uma versão livre que apareceu em 1784. Uma
dessas edições francesas é a tradução de Arnaud D’Andilly.
Não consegui encontrar as traduções francesas e a italiana; mas,
felizmente, na Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro, havia e há um
exemplar que, por intermédio da Casa Laemmert, pude adquirir. Nas
páginas do frontispício desse livro acha-se o seguinte:
Livro de São João Clímaco, chamado Escada espiritual, no qual são descritos os
trinta degraus, por onde podem subir os homens ao cume da perfeição. Agora
novamente posto em romance pelo padre Fr. Luiz de Granada, e com anotações
suas aos primeiros cinco capítulos, para inteligência deles. Impresso com licença
em Alcalá de Henares, em casa de Sebastião Martinez. Ano de 1571. Está
taxado em dois reais. Foi examinado este livro pelo R. P. F. Francisco Foreiro,
examinador de livros pelo reverendíssimo e sereníssimo cardeal infante D.
Henrique, inquisidor geral nestes reinos de Portugal, etc. Por mandado dos
senhores do conselho, passe um livro que se intitula São João Clímaco,
traduzido do latim em romance, pelo padre Fr. Luiz de Granada, no qual não
acho doutrina que não seja católica romana; e assim me parece que se deve
imprimir, porque contém grandes conselhos para os que querem renunciar o
mundo, e muitos avisos para os que o hão renunciado.

Feita em S. Francisco de Madrid,


a 18 de novembro de 1564.
Fr. Francisco Pacheco

Por aqui se vê que Fr. Luiz de Granada fez a tradução, tendo em


vista outra tradução espanhola. Ele próprio diz que romanceou, isto é,
deu forma amena e vulgar; mas, teve também de fazer, em grande
parte, tradução nova. E assim o refere na sua dedicatória “À muito
alta e muito poderosa Rainha de Portugal Dona Catarina, nossa
senhora”, nos seguintes termos:
Entre os livros que, tratando do instituto e costumes da vida religiosa, nos
caram daquela gloriosa antigüidade e tem prevalecido contra a injúria dos
tempos, dois, sereníssima senhora, sobre todos, se tornam notáveis: as
Conferências, de João Cassiano, e a Escada espiritual (ou Escada do céu), de
São João Clímaco.
O primeiro, até agora não tem tido intérprete castelhano, o que, aliás seria de
muita utilidade, visto estar em latim escuro para os menos versados em
latinidade, além da necessidade de proporcionar o gozo de tão excelente
doutrina a muitos religiosos e religiosas, que de todo não sabem o latim; mas, o
segundo, que é mais breve, posto que não menos difícil de ser entendido, teve
muitas traduções em diversas línguas.
Este livro foi originalmente escrito em grego e, por duas vezes, foi traduzido
para o latim. Destas traduções, uma é antiga, muito escura e bárbara; outra,
feita por Ambrosio Camaldulense (o mesmo que traduziu as obras de São
Dionísio), é nova e elegante. Também foi traduzido nas línguas toscana e
castelhana, sendo que, nesta, duas vezes: destas traduções, uma é também
antiga, e tão antiga, que di cilmente se entende; outra, que é muito nova, feita
por um aragonês ou valenciano, não é menos obscura e difícil, tanto pela
di culdade do livro, como por muitos vocábulos peregrinos e estrangeiros de
que está recheada. Parecendo-me que bastaria, para inteligência do livro, mudar
estes vocábulos e tornar claras algumas frases e alguns períodos, assim comecei
a fazer; mas, vendo-me forçado a recorrer algumas vezes à fonte original, achei
que, em muitas partes, era tão diferente da letra do autor o sentido do
intérprete, que fui forçado a tomar de novo todo o trabalho da tradução.
Este trabalho me foi tão grande, que, se desde o princípio eu o previsse, por
ventura não me atreveria a ele, conquanto o dê por bem empregado, para que
saia à luz, como convém, uma obra de tão excelente autor e de tão alta e
maravilhosa doutrina. E se a alguém parecer que estes livros não devem ser
postos em vulgar, por não conservarem na tradução a graça do original, a isto
se responde que é necessário haver livros santos e devotos em língua tal, que
possam ser entendidos; a m de serem lidos nos mosteiros, à lição ordinária, à
comida e ceia em seus refeitórios, assim como nos coros e capítulos das ordens
dos augustinianos, franciscanos, bernardos e outras, e mesmo nas horas de
trabalho manual correspondam a este santo propósito, do que os escritos pelos
Santos Padres antigos, tão assinalados, não só na santidade, como na
experiência e doutrina, nas coisas da religião. Além disso, posso ainda mais
facilmente escusar-me, alegando que não z coisa nova em traduzir este livro,
porque já estava ele traduzido, limitando-me eu a tornar fácil, el e claro,
aquilo que se achava em estilo escuro, perplexo e escabroso.
Eu quis oferecer à Vossa Alteza este trabalho, porque, além de ser a nossa
ordem sustentada pela vossa Real prudência e magni cência, também entendi
que não vinham estes escritos fora do vosso religiosíssimo e santo propósito;
pois, segundo se lê do beato S. Martinho, de tal maneira preenchia a dignidade
de bispo, que nem por isso desamparava o propósito de monge, assim Vossa
Alteza, pela piedade e clemência, de tal maneira cumpre as obrigações do estado
de rainha, que não deixa de ter espírito e costumes de religiosa; como também
se lê daquela beata virgem Cecília, que, andando por fora vestida de sedas e
rendas, trazia junto às carnes um cilício. Receba, pois, Vossa Alteza, com sua
costumada serenidade, este pequeno presente, para que, quando alguma vez for
aos mosteiros da Madre de Deus, ou da Esperança, a respirar com Deus dos
trabalhos contínuos do governo, tenha com que recrear algum tanto o espírito
na leitura deste divino livro. Nossa Senhora ampli que e engrandeça a muito
alta e poderosa pessoa e estado de Vossa Alteza com perpétuos favores do céu.

Fr. Luiz de Granada

Não estranhem os leitores que seja dado, nessa dedicatória, o título


de “Vossa Alteza” à Rainha D. Catarina, viúva de D. João III, e
regente de Portugal. Outrora, somente o imperador tinha o
tratamento de “Vossa Majestade”; os outros reis tinham o tratamento
de “Vossa Alteza”, “Vossa Serenidade”, “Vossa Graça”. Depois de
1741 é que o título “Majestade” foi generalizado a todos os reis e
rainhas.
Em seguida a essa dedicatória, Fr. Luiz de Granada faz esta outra a
seus leitores:
Ao leitor cristão.

Dos quatro degraus com que São Bernardo arma uma escada espiritual, por
onde os verdadeiros religiosos sobem ao cume da perfeição, o primeiro é a
lição, o segundo a meditação, o terceiro a oração, e o quarto a contemplação,
para o qual se ordenam todos os outros. Os quatro degraus de tal maneira estão
entre si travados, que o primeiro dispõe para o segundo, o segundo para o
terceiro, o terceiro para o quarto; porque a lição dá matéria de meditação, a
meditação, uma vez acendida desperta a oração, e a oração perfeita vem parar
na contemplação, onde a alma, esquecida de todas as coisas e de si mesma,
docemente repousa e adormece em Deus. Por aqui se vê que a lição, como
semente e princípio de todos os outros degraus, assinaladamente é pasto e
mantimento da alma, recolhimento do coração, despertadora da devoção,
porque estes são ofícios próprios da palavra de Deus. E como a lição, para estes
e outros ns, deva ser tão familiar e cotidiana ao verdadeiro religioso, não sei se
para isto seria possível achar mais conveniente leitura do que a deste bem-
aventurado padre, que neste livro tão alta e divinamente tratou do instituto e
costumes da vida religiosa.
Para tratar desta matéria, requer-se principalmente santidade e experiência
das coisas espirituais, porque é isto que principalmente faz os homens sábios
nesta doutrina, como disse o Profeta: Por teus mandamentos, Senhor, entendi,
querendo signi car que o exercício e cumprimento dos mandamentos de Deus é
o principal mestre desta celestial loso a. Ora, um tal magistério não faltou a
este glorioso padre, que, depois de ter vivido dezoito anos debaixo da
obediência de um santo velho, esteve quarenta na soledade, perseverando em
contínuos jejuns, orações, e exercícios de virtudes, vivendo vida mais que
humana; e, por conseguinte, as palavras de sua doutrina não podem ser
tomadas como de puro homem, e sim como de homem escolhido de Deus, para
que sua doutrina aproveite, não só aos de seu tempo, mas também aos que
venham nos tempos futuros.
Outra particularidade tem esta celestial doutrina: é que toda ela vai, nos
respectivos lugares, conferida e con rmada com diversos exemplos daqueles
Santos Padres que em seu tempo oresceram, bem assim com alguns insignes
milagres, muitos dos quais o mesmo santo, que os refere, viu com os seus
próprios olhos. Destarte é o leitor suavissimamente recreado pela variedade e
doçura da história; e, por outro lado, com isso se nos representa aquela idade
de ouro, aquele século bem-aventurado em que oresceram aqueles
gloriosíssimos padres, dignos de eterna memória, que foram os Paulos,
Antônios, Hilariões, Macarios, Arsênios e outros ilustríssimos varões que
viviam por aqueles desertos do Egito, Tebas e Cítia, uns apartados em soledade,
outros presidindo a grandes companhias e enxames de monges, derramados por
todos aqueles desertos, vivendo vida de anjos na terra: cujos exemplos
humilham nossa soberba, confundem nossa presunção e, declarando-nos o
estado da verdadeira e perfeita religião que então havia, nos envergonham e dão
a entender a pobreza a que agora estamos reduzidos.
Abunda, outrossim, em maravilhosas semelhanças e comparações: porque
este glorioso padre espiritualizava em sua alma todas as coisas que via e, de
todas as ores, fazia favos de mel com que a apascentava; e isto poderá ser
apreciado em todo o decurso do livro, especialmente em uma recapitulação feita
depois do capítulo da “Discrição”.
Declara também in nitas maneiras de laços, tentações, enganos e artes de
nossos inimigos, como homem muito experimentado nesta guerra espiritual, e
assim também nos provê de competentes remédios para tudo isto; porém, no
que mais admirável se mostra, é nas de nições que dá dos vícios e virtudes,
pintando com brevidade e elegância todas as condições e propriedades do vício
e da virtude, de modo tal que, para conhecer a natureza destas coisas, ou
mesmo para louvor ou condenação delas, nada se pode desejar de mais
completo.
E não menos admirável é no declarar a causalidade e dependência que há
entre uns vícios e outros, explicação essa que constitui uma principal parte da
doutrina moral; pois, assim como, nas outras ciências, é principal ofício
declarar as causas das coisas, assim também o é nesta ciência divina. Entendidos
muito bem os vícios que um vício acarreta, e as virtudes geradas por uma
virtude, logo se move o homem a amar a esta e aborrecer o outro, pela
fecundidade de bens ou de males que cada coisa destas traz consigo. E isto o faz
este santo com uma singular graça; pois, ao m de cada capítulo, quase sempre
sói tomar o vício e pô-lo à questão de tormento, isto é, a perguntas, até fazê-lo
confessar toda a sua genealogia e parentela, a saber, quem é seu pai, sua mãe,
seus irmãos, seus lhos e lhas, seus inimigos e contrários e, nalmente, quais
os que lhe fazem a guerra e lhe cortam a cabeça. Por isso, chama-se o livro
Escada espiritual, pela ordem e conseqüência com que nele são tratados tanto
os vícios, como as virtudes; e o autor mereceu o cognome de Clímaco, que em
grego κλιμαξ quer dizer “escada”, por ter ele ordenado e traçado tão altamente
todo o livro com esta ordem e conseqüência de degraus espirituais, começando
pelo primeiro, que é a renúncia do mundo, e acabando no último, que é o das
três virtudes teologais, e das virtudes heróicas, que são dos ânimos já purgados
e no último grau de perfeição.
Faz também muito nca-pé na morti cação das paixões e apetites (que é uma
das principais coisas que nesta doutrina devem ser recomendadas), porque a
natureza humana, como é inimiga do trabalho e amiga do prazer, quando quer
dar-se à virtude, anda à cata de orinhas e leite da devoção e dos gostos de
Deus, furtando o corpo às labutações e aos exercícios da morti cação,
necessários para vencer as nossas más inclinações. E nisto carrega ele tanto a
mão, que a alguns pareceu demasiado, isto é, pareceu a alguns que queria fazer
um homem quase estóico e de todo sem paixões. Mas, não há tal: ele faz
capítulos apropriados sobre espirituais afetos, como sejam o pranto, a dor, o
temor, o amor, o gozo espiritual e outros, recomendando os bons, desterrando
os maus, e espiritualizando e santi cando os indiferentes; aliás, é comum estilo
dos doutores, quando querem tirar os homens de um extremo a que estão muito
inclinados, dobrá-los fortemente até o outro extremo, a m de que quem no
meio termo.
Para tudo isto não falta ao nosso autor eloqüência ensinada, mais pelo
Espírito Santo do que por indústria humana, como pode o discreto leitor bem
apreciar, não só pelos epítetos, pelas mil maneiras de metáforas e guras de que
ele usa, como pelos muitos afetos suavíssimos que intromete na doutrina, não
inventados por arte, mas nascidos do ímpeto interior e gosto do espírito,
verdadeira e natural eloqüência que a arte pretende imitar. Isto resplandece no
capítulo e degrau quinto, sobre a “Penitência”, no qual são descritas as
penitências e asperezas que faziam os monges santíssimos de um mosteiro
denominado “Cárcere”. E porque alguns fracos pudessem desmaiar ou temer
demasiadamente, considerada a grandeza e rigor das penitências que aí são
narradas, foi acrescentada, no m do capítulo, uma anotação, para amenizar e
ensinar o uso desta doutrina, que serve, não para desmaiar os corações, mas
para ver quão admirável é Deus em seus santos, e para humilhar e confundir
toda a nossa presunção e soberba com os seus exemplos.
Não sei se, para os tempos que correm, seria possível achar doutrina mais
conveniente, pela qual tão a propósito sejam confundidas todas as blasfêmias e
loucuras dos hereges; pois, se é verdade que toda a sabedoria é de Deus (que,
como diz Daniel, é o mestre e corregedor dos sábios), claro está de ver quanto
mais perto estava o espírito do Senhor de ensinar um homem que, depois de
dezoito anos de obediência, viveu quarenta em soledade vida de anjo, do que a
uns brutos animais que nenhuma outra coisa fazem senão comer e beber, nem
souberam, em toda a vida, que coisa é jejuar um dia, nem estar uma noite com
Deus em oração. Pois este santo lósofo, cheio desta sabedoria celestial,
aprendida, em parte, deste Espírito e, em parte, dos ditos e feitos daqueles
ilustríssimos e santíssimos padres antigos, nada mais profere senão gemidos,
trabalhos, lágrimas, vigílias, jejuns, orações, penitências, obediência, sujeição,
cânticos de Salmos, sofrimento de injúrias, maceração da carne, abnegação de si
mesmo, morti cação de paixões, imitação de Cristo, castidade, piedade,
silêncio, continência, esmola, juntando sempre trabalhos a trabalhos, obras a
obras, e ensinando desta maneira a amar, crer e con ar em Deus. Esta é a
loso a que o Espírito Santo ensina aos seus, e que todos os santos professaram
e ensinaram; o contrário dela dogmatiza a loso a do mundo, do Diabo, e da
carne.
Para que o leitor cristão comparticipe de todos esses bens, tomei a tarefa de
traduzir este livro, tradução que, como já disse, achei muito mais di cultosa do
que pensava: primeiramente, pela variedade de traduções, o que me obrigou
freqüentemente a comparar, examinar e ponderar o sentido mais conforme à
intenção do autor; segundo, porque o nosso autor era grande amigo da
brevidade, ou por serem muito sábios aqueles para quem ele escrevia, ou
porque, sendo ele, como parece, grande amigo do silêncio, e tendo sido
impelido a falar, buscou falar o menos que lhe fosse possível. Daí resulta que,
algumas vezes, propõe questões e não as responde; outras vezes, propõe
comparações e não as aplica; e, assim, as deixa como alegorias, ou como
enigmas. Outras vezes, por uma sentença contrária, quer que se entenda a
outra, sem explicá-la; outras vezes, corta o raciocínio, deixando a sentença
suspensa ao juízo do leitor. E, sendo ele em tais lugares tão escuro quanto
profundo, tive eu de deixar o ofício de intérprete e tomar o de parafrasta,
estendendo a brevidade para explicação da sentença. E, assim como nestes
lugares acrescento palavras e cláusulas, em dois ou três, apenas, as suprimo, por
se referirem a coisas que só os sábios podem compreender exatamente.
Com todas estas diligências, ainda assim não ousarei a rmar que acertei
sempre na tradução, antes suspeito que em muitos pontos errei e mais erraria,
se não me ajudassem os comentários de Dionísio Cartuxano, varão religioso e
doutíssimo, que, entre outros trabalhos, tomou também o de glosar este livro.
Por certo não fora mal empregado o trabalho de algumas anotações que z
aos cinco primeiros capítulos, a m de declarar o estilo e intenção do autor,
tanto mais quanto suas sentenças, muitas vezes debaixo de breves palavras,
compreendem grandes avisos, como, por exemplo, quando diz que, na oração,
deve estar o homem diante de Deus como o réu sentenciado à morte diante do
juiz. En m, o intento do autor é a formação do perfeito religioso, tal que,
vivendo na carne, viva como se estivesse fora dele, segundo escreve São
Jerônimo a Eustáquio. Este é o m desta obra e para este m é ordenado todo o
mais.
II

Esta crítica, feita pelo próprio Fr. Luiz de Granada, dispensa a


reprodução da crítica de Dom Remy Ceillyer; mas, não dispensa
alguns esclarecimentos bibliográ cos que o mesmo Ceillyer nos
fornece, nem a notícia da Carta ao pastor, outra obra de São João
Clímaco, à qual Fr. Luiz de Granada não faz referência.
O pastor a quem ele se dirige é o mesmo abade de Raithu. O
verdadeiro pastor é aquele que pode, por seus cuidados e por suas
orações, chamar ao aprisco as ovelhas desgarradas; para isso, lhe é
necessário ser iluminado por Deus, ter experiência da conduta das
almas, ser tão casto de corpo e de espírito, que possa dispensar o
auxílio e os remédios dos outros. Em suas instruções públicas, deve
colocar-se em lugar elevado, a m de fazer-se ouvir melhor; empregar
palavras ásperas para corrigir aqueles que estacam no caminho da
virtude; velar com o máximo cuidado sobre aqueles que caem na
tibieza e no desânimo; não perder de vista aqueles que a tentação põe
em perigo de perecer; chorar e gemer por eles perante Deus;
compadecer-se de suas fraquezas; animar-se de uma santa cólera
contra o vício, sem temer contristar por algum tempo aqueles que se
acham sob a pressão desse demônio. Ele aconselha os superiores a que
repreendam os inferiores, advertindo-os que se corrijam, atribuindo a
si mesmos a culpa que queiram fazer recair sobre os outros; e, quando
um certo pudor impedir a repreensão com liberdade, façam-na por
escrito.
O modo de agir não deve ser o mesmo para com todos os que se
apresentam para a conversão: aos que se apresentarem acabrunhados
sob o peso de seus pecados e prestes a cair no desespero, é preciso pôr-
lhes diante do jugo de Jesus Cristo; pelo contrário, aos que estiverem
cheios de estima de si próprios, fazer-lhes notar que o caminho do céu
é rude e estreito. O superior deve estudar perfeitamente o espírito e o
coração daqueles que se acham sob sua disciplina: não deve nem
abater-se nem elevar-se imprudentemente, mas, imitando a discrição
de São Paulo, deve ora humilhar-se para consolar e edi car os fracos,
ora elevar-se para confundir e abater os soberbos.
Há duas classes de pessoas que se apresentam para professar em
religião: umas são carregadas de pecados, outras são inocentes. O
superior deve indagar das primeiras as culpas que cometeram, e isto
por duas razões: uma, a m de que a confusão destes pecados torne-as
tão profundamente humildes, que permaneçam na modéstia e em
estado de verdadeira penitência; outra, a m de que, pela memória das
chagas que tinham quando entraram para o mosteiro, concebam por
aquele que trabalhou em curá-las, uma afeição sincera.
Cuidado [acrescenta São João Clímaco] em não ser demasiadamente exato e
severo no repreender até as menores culpas: de outro modo, não imitarás a
bondade de Deus, que sofre um número in nito de defeitos nossos. Dá um
alimento mais sólido aos que correm com ardor na carreira da vida espiritual;
mas, não alimentes senão com leite aqueles que caminham mais devagar, tendo
menos coragem e virtude, porque um alimento muito forte os lançaria em
languidez.

É da prudência do superior observar aqueles que lhe contradizem e


lhe resistem com audácia, e repreendê-los com palavras duras em
presença de pessoas elevadas em dignidade, a m de dar temor aos
outros; e deve usar desta severidade, ainda que os religiosos quem
vivamente ressentidos desta humilhação, pois que o bem e a cura de
muitos são preferíveis à pena e à dor de um só.
Entre aqueles que se incumbem da conduta dos outros, uns,
fervendo de caridade, fazem por seus subordinados mais do que
podem; outros, porém, se empregam na direção do próximo a
contragosto e como que forçados, não obstante terem recebido de
Deus a graça e as luzes necessárias ao cargo. São João Clímaco louva
os primeiros e censura os segundos; mas, é de parecer que um pastor
pode dispensar-se de fazer um bem por um maior bem, por exemplo,
fugir ao martírio, não por temor nem por covardia, mas para utilidade
de seu rebanho. O superior deve tomar todas as medidas necessárias
para experimentar a vocação de cada um; testemunhar maior doçura e
caridade que antes, aos religiosos que lhe confessaram culpas, a m de
aumentar sua con ança, suportar com paciência as imperfeições dos
seus subordinados, mas nunca sofrer que desobedeçam formalmente
às suas ordens.
O mais agradável de todos os presentes que possam ser oferecidos a Deus [diz
ele] é o de consagrar-lhe as almas pela penitência. Todo o universo não é
comparável a uma só alma, porque o universo, sendo corruptível, passará, e as
almas, sendo imortais, subsistirão eternamente. Mas, para socorrer e consolar
aqueles que empreendemos fazer entrar na calma das paixões e na paz interna
da alma, precisamos da graça de Deus.

Antes de concluir sua carta, descreve como o excelente superior que


ele teve, no seu mosteiro, dirigia os religiosos, as leituras, as orações, o
número de Salmos que esse superior mandava recitar, as vigilâncias
que exercia, os cuidados que tinha até no modo de alimentação de
cada um, e termina:
Todos executam pontualmente, sem o menor murmúrio, as suas ordens. Ele
tinha à sua disposição uma laura, isto é, um certo número de celas situadas no
deserto e longe uma das outras, para onde enviava de seu mosteiro os religiosos
que tinham atingido a uma virtude assaz sublime para viver constantemente na
soledade.

Lamentamos não ter encontrado livro algum, onde por extenso haja
tradução desta Carta ao pastor; mas, já muita, já é mesmo superior ao
nosso merecimento, a consolação de ter encontrado a Escada do céu,
traduzida em espanhol por Fr. Luiz de Granada.
III

Os intérpretes e comentadores da Escada do céu, além de Arnaud


D’Andilly e Fr. Luiz de Granada, foram: João, abade de Raithu, a
cujas instâncias foi escrita a obra, e que a traduziu para o latim; Elias,
metropolitano de Creta ou de Cândia, que, em três volumes, fez os
seus comentários em grego vulgar; Dionísio Cartuxano, a quem se
refere Fr. Luiz de Granada; Isseltius, doutor amengo, que comentou a
versão latina de Ambrosio Camaldulense; e outros a que já nos
referimos. Mas, a edição seguida nas antigas Bibliotecas dos Padres, é
a feita em grego e em latim, por Matheus Radérus, que reviu um
grande número de manuscritos, e impressa nas o cinas dos célebres
irmãos Cramoisy, em 1633.
O citado Ceillyer aproveita algumas notas de Arnaud D’Andilly e
analisa os comentários do abade de Raithu, do qual transcreve, como
mais notável, a de nição da consciência, que ele não distingue da lei
natural: Conscientia est scintilla divini luminis in homine condito
subseminata a principio […] ostendens ei bonum et malum, et haec
conscientia vocatur lex naturalis, isto é, “Consciência é uma centelha
da luz divina, como que semeada no homem desde o momento de sua
criação, manifestando-lhe o bem e o mal, e esta consciência chama-se
lei natural”.
Mas, não há necessidade de acrescentar coisa alguma às anotações
de Fr. Luiz de Granada, o admirável dominicano, que, nas línguas da
Península Ibérica, é considerado entre os clássicos mais autorizados, e
que, na literatura ascética, tem proeminente lugar de honra. Como
está dito na sua dedicatória à Rainha D. Catarina, o Clímax ou
Escada do céu é um livro destinado àqueles que aspiram à perfeição
cristã; mas, excetuados os cinco primeiros capítulos, e o 27°, que
quase completamente se referem aos que renunciaram ou pretendem
renunciar o mundo, e o penúltimo, que se refere às virtudes heróicas,
os outros são quase completamente aplicáveis a todos os estados.
Aliás, o perfeito cumprimento dos deveres de cada estado encerra a
mais sublime santidade; pois, como lembram São Francisco de Sales e
outros, na criação, Deus ordenou que todas as plantas produzissem
frutos, mas cada uma segundo seu gênero, juxta genus suum. O
próprio São João Clímaco, no estupendo capítulo sobre a “Discrição”,
nos explica o alcance da sua doutrina, quando diz que “o Demônio, às
vezes, incita-nos a obras que excedem as nossas forças, como sejam
grandes abstinências, vigílias, longas orações, etc., para que, não
podendo fazer o que queremos, deixemos de fazer o que podemos”; e
os Santos Padres não deixam de notar, em muitas de suas obras, que
há nos santos coisas que são para admirar e não para imitar.
IV

Qual tenha sido o lugar e qual tenha sido o ano do nascimento de São
João Clímaco, nada há de certo a respeito disso; mas, os seus escritos
são do m do século VI ou princípio do século VII; e, tendo ele
passado sua mocidade e quase toda a sua vida na montanha do Sinai,
conjecturam que tivesse nascido na Palestina e que ali mesmo
aprendesse as belas letras e, em geral, as ciências humanas, nas quais
era muito versado. Aos dezesseis anos renunciou o mundo para
receber o jugo da vida monástica em um mosteiro do monte Sinai:
conta-se que um piedoso abade, chamado Strategio, assistindo à sua
pro ssão, predisse que esse jovem religioso seria um dos grandes
luzeiros do mundo.
Durante dezoito anos esteve ele sob a direção disciplinar de um
santo velho chamado Martírio, mantendo-se na mais perfeita
obediência; e, durante esse tempo, Santo Anastácio, solitário da
mesma montanha do Sinai, predisse que aquele jovem seria o futuro
abade do mosteiro. No m dos dezoito anos de exercícios e el
sujeição, São João Clímaco viu falecer o velho Martírio; e esta morte
despertou nele o desejo de abraçar a vida dos anacoretas, isto é, a
soledade. Escolheu para isto um lugar chamado Tola, a cinco milhas
de uma igreja; e, a essa igreja, aos sábados e domingos, vinha ele,
como os outros solitários, para ouvir a Missa e comungar. Assim
perseverou, por espaço de quarenta anos, com grande alegria e fervor
de seu espírito, em oração, trabalho de mãos, meditação das grandes
verdades da religião, sobretudo a meditação da morte. Sua abstinência
era perfeitamente regulada: comia de tudo, porém em mínima
quantidade, a m de que, comendo de tudo, evitasse a nota de
singularidade e vanglória, e, comendo pouco, vencesse a
intemperança. De tal maneira apagou a chama da luxúria, que já não
lhe dava esforço a resistência aos incentivos da carne. Venceu a
avareza, essa idolatria dos bens da terra, na frase do Apóstolo, com a
largueza e misericórdia para com os outros e com a escassez para
consigo, a m de que, contentando-se com o pouco, não tivesse
necessidade de cobiçar o muito, que é o próprio desta pestilência;
venceu a acídia e a preguiça com a memória da morte; venceu a ira
com a obediência; venceu a soberba e a frota de vícios que ela traz
consigo, levantando contra ela a memória da Paixão de Cristo e a
virtude da humildade. Deus lhe concedeu o dom das lágrimas; ele
recolhia-se a uma cova, situada à raiz do monte, para secretamente e
longe dos outros solitários levantar vozes ao céu, gemer, suspirar,
chorar, como se recebesse cautérios de fogo, cortes de ferro a ado, e
como se lhe estivessem arrancando os olhos. Dormia apenas o
su ciente para conservar a substância do entendimento e não
desfalecer com a demasia das vigílias. O curso de sua vida era
perpétua oração e constante exercício no amor de Deus; e o seu
descanso consistia em ler os Livros Sagrados e os Santos Padres,
especialmente São Gregório Nazianzeno, São Basílio, Cassiano e São
Nilo.
Mas, por maior que fosse o seu desejo de viver solitário, teve de
ceder a instâncias de um monge, chamado Moisés, e tomá-lo para
discípulo. Conta-se que, achando-se o bem-aventurado São João
Clímaco em sua cela, meditando e rezando, caíra em delicado sono e
teve a visão de uma pessoa de rosto e hábito venerável, que lhe dizia:
“Tu dormes tão seguro, e Moisés, teu discípulo, corre perigo!”.
Despertando apressadamente, começou a rezar pelo discípulo, a quem,
logo que regressou, perguntou se lhe tinha acontecido alguma coisa;
Moisés, então, referiu que estava dormindo debaixo de uma
enormíssima pedra, quando, parecendo-lhe ouvir a voz do mestre que
o despertava, cheio de temor dera um salto para fora, e, logo depois, a
pedra despenhou-se e caiu em terra.
O nosso santo era também médico de secretas chagas. Conta-se que,
chegando-se a ele um monge, chamado Isaac, pediu-lhe que o curasse
de uma tentação e paixão carnal que o devorava; e, maravilhado o
santo com essa humilde con ssão, consolou o monge, convidando-o a
rezarem juntos e a con ar na misericórdia e clemência de Deus. O
monge Isaac, vendo-se logo livre de tão estranha e sensual paixão,
cou atônito e deu graças a Deus e ao seu servo.
As virtudes do santo já provocavam a inveja a alguns que viam a
sua cela como um ponto de visita dos que iam pedir-lhe conselhos; e,
desejando ele, à imitação do Apóstolo, tirar a ocasião de caluniar aos
que a buscam, determinou calar-se durante algum tempo e recolher-se
ao silêncio. Seus êmulos, maravilhados desta humildade, vendo que
tinham estancado uma fonte de celestiais exortações, vieram, eles
próprios, compungidos, pedir o costumado pasto de sua doutrina. E,
por m, quando já ele tinha chegado aos 85 anos, todos os monges do
mosteiro do monte Sinai, com um mesmo afeto e desejo, o forçaram a
tomar o cargo de abade, para que os dirigisse e conduzisse na vida
espiritual, como mestre e pastor.
Por esse tempo, outro bem-aventurado, João, abade de Raithu,
mosteiro situado junto ao Mar Vermelho, a algumas léguas do
mosteiro do Sinai, escreveu-lhe a seguinte carta:
Ao admirável varão, igual aos anjos, padre de padres, doutor excelente, João,
abade do mosteiro do monte Sinai, João, pecador, abade do mosteiro de Raithu,
saúde no Senhor.
Nós, que tão apartados estamos da perfeição, ó venerável padre, sabemos que
a singular e perfeita obediência não examina o que é mandado, especialmente
quanto às coisas conformes ao talento que Deus vos liberalizou; e, por isso,
determinamos suplicar-vos e pôr em prática aquele mandado do Profeta:
Pergunta a teu pai e ele te ensinará, e aos antigos e eles te responderão. Por esta
carta, prostrados diante de vós, vos suplicamos que, como pai comum de todos,
e como o mais antigo na luta dos espirituais trabalhos, e como o mais
avantajado em agudeza de entendimento e em perfeição de todas as virtudes,
tenhais por bem descrever, a nós, rudes e ignorantes, as coisas que, na
contemplação divina, como outro Moisés, neste mesmo monte vistes; e daí vos
digneis trazer-nos as tábuas divinamente escritas, com a doutrina para o novo
Israel, isto é, para aqueles que inteira e perfeitamente saíram deste Egito
espiritual e do mar tempestuoso deste mundo. E do mesmo modo que, com essa
língua divinal, como com outra vara, zestes maravilhas nesse mar, assim agora,
inclinado por nossos rogos, vinde diligentemente ensinar-nos a perfeição da vida
monástica. Não é por lisonja que assim vos falamos: nada mais dizemos do que
aquilo que todos vêem, entendem e dizem. Con amos no Senhor, que
receberemos em breve as vossas letras, esculpidas pelo Espírito de Deus, pelas
quais direitamente sejam guiados os que sem erro desejam caminhar, letras que
serão como uma escada que chega até as portas do céu, pela qual subam com
segurança, sem que as espirituais malícias e os príncipes das trevas do mundo
possam impedir a subida; pois, assim como o santo patriarca Jacó, sendo pastor
de ovelhas, viu em sonho aquela escada que chegava até o céu, também a verá e
armará o mestre das racionais ovelhas. Seja Deus sempre convosco.
São João Clímaco tomou esta rogativa por uma ordem vinda de
Deus, e assim respondeu:
Recebi vossa venerável carta, produto de vosso humilde e limpo coração, a qual
considero um preceito e mandamento que excede as minhas forças. Era próprio
de vós pedir-me a mim, rude e ignorantíssimo, regras de doutrina e virtude; e, se
não me compelisse o medo e o perigo de sacudir de mim o jugo da obediência,
recusaria o encargo. Melhor fora que tivésseis procurado outros mais
exercitados; mas, como a verdadeira obediência consiste, segundo dizem os
Santos Padres, exatamente no cumprimento das coisas que parecem exceder as
nossas forças, tomei ousadamente a tarefa, fazendo este debuxo delineando as
regras da vida espiritual, certo de que vós, como grande mestre que sois, haveis
de acrescentar as cores e preencher as faltas. Não é a vós que eu dirijo esta
pequena obra, mas àqueles que nessa santa congregação recebem de vós, do
mesmo modo que nós, as instruções de um sábio como vós sois. Rogo a todos
aqueles a cujas mãos vier este livro, que, se nele acharem algo de proveitoso,
não o atribuam senão ao socorro de Jesus Cristo; a mim, paguem com orações
suplicando a Deus que me dê o prêmio do bom propósito, não mirando a
minha ignorância e simplicidade. Como a viúva do Evangelho, não ofereço
muito, mas ofereço de boa vontade aquilo que tenho; aliás, Deus não atende
tanto ao valor das ofertas e dos trabalhos, quanto à alegria do propósito e ao
fervor da vontade.

Depois de haver dirigido por algum tempo o mosteiro do Sinai, São


João Clímaco voltou à soledade, deixando como sucessor na abadia
seu irmão Jorge, anacoreta da mesma montanha, e que ali tinha
passado setenta anos na prática de todas as virtudes. Quando São
João Clímaco achava-se nas últimas horas de vida, veio seu irmão
visitá-lo, e em lágrimas lamentou que o santo o deixasse sem socorro e
sem assistência. “Não te a ijas [respondeu-lhe o santo], se eu tiver
algum poder perante Deus, ele não vos deixará um ano no mundo”.
Com efeito, Jorge morreu dez meses depois de seu irmão.
V

Os gregos celebram a festa de São João Clímaco a 30 de março de


cada ano, dia que lhes parece ter sido o de sua morte; e o calendário
da Igreja consagrou esse dia à sua memória. Eu nasci no dia 30 de
março em 1856: minha mãe, minha boa e santa mãe, foi a primeira
pessoa de quem ouvi o nome do santo do dia do meu nascimento; dois
irmãos meus, Maria e Fernando, este já chamado ao seio de Deus,
nasceram nesse mesmo dia, aquela em 1858 e este em 1860; meu pai,
cuja vida foi uma escada de virtudes e cujos últimos anos foram de
contínua penitência e constante oração, incitou-me a promover a
construção de uma capela dedicada a São João Clímaco, nos limites
dos municípios desta capital e de São Bernardo, assistiu à cerimônia
da bênção do local, celebrada pelo padre Cesar de Angelis, da
Companhia de Jesus, e foi o primeiro signatário do respectivo auto.
Ali atualmente está formado um bairro, que os moradores do lugar
denominaram “bairro de São João Clímaco”, no que, a nal, foi
consagrado nos atos o ciais do governo de São Paulo. Sirva a capela
de ponto de retiro espiritual; e Deus se digne abençoar este meu
esforço como penitência dos meus pecados.

São Paulo, 24 de Agosto de 1902.


João Mendes de Almeida Júnior

1 Paris, Louis Vivès, Rue Delambre 13, 1882. Tomo XI, pp. 676 a 695
CAPÍTULO I

Da renúncia e menosprezo do mundo

Deus, em sua incompreensível bondade in nita, houve por bem


honrar com a dignidade do livre-arbítrio as suas criaturas racionais.
Destas, umas podem ser chamadas amigos seus, outras éis e legítimos
servos, outras de todo o ponto inúteis, outras bárbaros e apartados
dele, outras seus inimigos e adversários. Amigos de Deus são aquelas
intelectuais e espirituais substâncias que com ele moram. Servos éis
são aqueles que, sem preguiça e sem cansaço, obedecem à sua
santíssima vontade. Servos inúteis são aqueles que, depois de haver
sido lavados com a água do Santo Batismo, não guardam o que nele
assentaram e capitularam. Bárbaros são aqueles que estão arredados
de sua santa fé. Adversários e inimigos são aqueles que, não contentes
de ter sacudido de si o jugo da Lei de Deus, perseguem aos que
procuram guardá-la. Cada uma destas classes de pessoas requer
especial tratado; mas, o nosso propósito é tratar somente daquelas que
justamente merecem ser chamadas delíssimos servos de Deus. Foram
estes que, com a força potentíssima da caridade, nos impeliram a
tomar esta carga; e, por obediência, sem tergiversar, estenderemos a
nossa rude mão, tomaremos a pena, molhá-la-emos na tinta da
humildade, para escrever em seus brandos e piedosos corações, como
em tábuas espirituais, as palavras de Deus. Todavia, e antes de tudo,
consignemos que Deus se oferece e propõe, por verdadeira vida e
saúde, a todos os que têm vontade e livre-arbítrio, sejam éis ou
in éis, justos ou injustos, religiosos ou irreligiosos, seculares ou
monges, sábios ou ignorantes, sãos ou enfermos, moços ou velhos,
como a comunicação da luz, a vista do sol e o curso do tempo, que
são feitos para todos. E começaremos pelas de nições de alguns
vocábulos que mais aproveitam ao nosso propósito.
Irreligioso é criatura racional e mortal, que por sua própria vontade
foge à vida, tratando de tal maneira com o seu Criador como se
acreditara que ele não existe. Iníquo é aquele que violentamente torce
o entendimento da Lei de Deus, para conformá-la com seu apetite e,
sendo de contrário parecer, pensa que crê na palavra de Deus. Cristão
é aquele que trabalha, quanto ao homem é possível, por imitar a Jesus
Cristo, tanto em suas obras, como em suas palavras, crendo
rmemente na Santíssima Trindade. Amante de Deus é aquele que,
ordenadamente e como deve, usa de todas as coisas naturais e nunca
deixa de fazer o bem que pode. Continente é aquele que, no meio das
tentações e laços, trabalha, com todas as suas forças, para alcançar
paz e tranqüilidade de coração e bons costumes. Monge é uma ordem
e modo de viver de anjos, estando em corpo mortal; monge é aquele
que traz sempre os olhos da alma postos em Deus, e faz oração em
todo o tempo, lugar e negócio; monge é uma perpétua contradição e
violência da natureza, e uma vigilantíssima e infatigável guarda dos
sentidos; monge é um corpo casto, uma boca limpa, e um ânimo
esclarecido com os raios da divina luz; monge é um ânimo a ito e
triste, o qual, trazendo sempre diante dos olhos a memória da morte,
sempre se exercita na virtude.
Renúncia e desamparo do mundo é um ódio voluntário e um
abandono das coisas da natureza, pelo desejo de gozar do
sobrenatural. Todos os que abandonam voluntariamente as
comodidades, prazeres e mais bens da vida presente, devem fazê-lo, ou
pela esperança da glória futura, ou pela memória de seus pecados, ou
pelo amor de Deus: se alguém tal zesse por outras causas, sua
renúncia seria indiscreta e temerária; contudo, qual for o m e termo
de nossa vida, tal será o prêmio que receberemos de Jesus Cristo, juiz
e remunerador de nossos trabalhos. Aquele que saiu do mundo para
descarregar-se do peso de seus pecados, trabalhe por imitar os que
estão sobre as sepulturas chorando os mortos, e não deixe de
derramar contínuas e fervorosas lágrimas e de gemer profundamente
do íntimo do coração, até que Jesus Cristo levante a pedra do sepulcro
(que é a dureza do coração) e ressuscite Lázaro (que é o nosso cego
espírito), livrando-o dos pecados, isto é, ordenando aos ministros (que
são os anjos) que o desatem das ataduras dos vícios e deixem-no ir
para a bem-aventurada liberdade da alma, isto é, para a santa
tranqüilidade da consciência.
Todos nós que desejamos sair do Egito e da sujeição ao faraó, temos
necessidade de algum Moisés, que nos sirva de medianeiro para com
Deus, o qual medianeiro, guiando-nos por este caminho, com a ajuda,
tanto de suas palavras, como de suas obras e de sua oração, levante
por nós outros as mãos para Deus, a m de que, guiados por tal
capitão, passemos o mar dos pecados e façamos volver as espadas a
Amaleque, príncipe dos vícios. Alguns, ados em si mesmos,
acreditaram não ter necessidade de guia, e caram enganados.
Os que saíram do Egito, tiveram Moisés por capitão; os que saíram
de Sodoma, tiveram um anjo por guia. Os primeiros, isto é, os que
saíram do Egito, são guras daqueles que procuram sanar as
enfermidades de sua alma com a cura e diligência do médico
espiritual; mas, os segundos, isto é, os que saíram de Sodoma,
signi cam aqueles que, estando cheios de imundícies e torpezas
corporais, desejam grandemente ver-se livres delas, os quais têm para
isso necessidade de um homem que seja semelhante aos anjos, porque,
segundo a corrupção das chagas, assim temos necessidade de
sapientíssimo médico para a cura delas.
E, verdadeiramente, aquele que, vestido desta carne mortal, deseja
subir ao céu, tem necessidade de suma violência, contínuos e
infatigáveis trabalhos, especialmente nos princípios, para conseguir
desabituar-se de deleites, e para que o coração, que antes era
impassível ao sentimento de seus males, venha a afeiçoar-se a Deus e a
ser santi cado com a castidade, mediante o atentíssimo estudo e
exercício das lágrimas e da penitência. Trabalho, grande trabalho e
amargura de penitência, eis o necessário especialmente para aqueles
que estão mal-habituados, até que o nosso miserável ânimo,
acostumado à carniçaria e à guloseima dos vícios, torne-se amante da
contemplação e da castidade, ajudando-nos para isso das virtudes da
simplicidade, da morti cação da ira, e de uma grande e discreta
diligência. Porém, com tudo isto, nós, que somos combatidos de
vícios, conquanto não tenhamos alcançado bastantes forças contra
eles, con emos em Jesus Cristo; e, com fé rmíssima, lhe apresentemos
humildemente a fraqueza e a enfermidade de nossa alma, e, sem
dúvida, alcançaremos seu favor e graça, procurando sumir
perpetuamente o nosso merecimento no abismo da humildade. Saibam
com certeza os que nesta formosa, dura e arriscada batalha entram,
que vão meter-se em um fogo, se desejam in amar seu coração com o
fogo do divino amor. Portanto, prove cada um a si mesmo, e desta
maneira chegue-se a comer deste pão com amargura, e a beber deste
suavíssimo cálix com lágrimas, a m de que não entre nesta milícia
para seu juízo e condenação. Se é verdade que nem todos os batizados
se salvam, vigiemos com temor e atenção, que não corram também
este mesmo perigo os que professam em religião. Por isso, os que
desejam fazer rme fundamento de virtude, todas as coisas deste
mundo negarão, todas desprezarão, todas porão debaixo dos pés, e
todas examinarão; e, para que este fundamento seja tal, há de ter três
colunas com que se sustente, as quais são: jejum, castidade, inocência.
Todos os que são principiantes em Jesus Cristo, começarão por estas
três coisas, tomando para exemplo os que são crianças na idade, pois
que, nas criancinhas, não há dobrez, nem dureza de coração, nem
ngimento, nem desmedida cobiça, nem ventre insaciável, nem
movimento de vícios desonestos: porque de um se segue o outro e,
conforme a cheia dos manjares, assim se acende o fogo da luxúria.
É coisa aborrecida e muito perigosa que aquele que começa, comece
com frouxidão e brandura, porque sói ser isto indício manifesto de
futura queda. Por isso, é coisa muito proveitosa começar com grande
ânimo e fervor, ainda que depois seja necessário conter algum tanto
este rigor.
A alma que começou a pelejar varonilmente, e depois algum tanto
se debilitou e enfraqueceu, muitas vezes é ferida e provocada ao bem
com a memória da antiga virtude e diligência, como com um aguilhão
e açoite; e alguns, por este caminho, voltaram ao passado vigor, e
renovaram suas primeiras asas.
Tantas quantas vezes a alma se achar fora de si, por haver perdido
aquele benemérito e amável calor da caridade, faça diligente
inquirição, investigue por que causa o perdeu, e arme-se contra essa
causa com todas as forças, porque não poderá introduzi-lo por outra
porta que não seja aquela por onde saiu.
Aqueles que, somente por temor, começam o caminho da renúncia,
por ventura parecerão semelhantes ao incenso que se queima, o qual
ao princípio cheira muito e depois pára em fumaça; aqueles que,
somente tendo em vista o galardão, sem outro móvel, se resolvem a
isto, são como pedra de atafona, que sempre anda no mesmo sítio,
sem dar passo adiante, nem aproveitar mais. Mas, aqueles que
deixaram o mundo só por amor de Deus, estes, desde logo, mereceram
o acrescentamento deste fogo, que, como se estivesse no meio de um
grande bosque, sempre vai alastrando cada vez mais.
Há uns que edi cam com pedras sobre ladrilhos; há outros que
sobre terra levantam colunas, há outros que, caminhando a pé,
esquentados os membros e nervos, mais ligeiramente andam. Quem lê,
entenda o que signi ca esta parábola. Os primeiros, isto é, aqueles que
sobre ladrilhos assentam pedras, são aqueles que sobre excelentes
obras de virtudes se elevam à contemplação das coisas divinas, mas
que, não estando bem fundados em humildade e paciência, caem, por
falta de segurança nos alicerces, quando se desencadeia uma grande
tempestade. Os segundos, que sobre terra edi cam colunas, são
aqueles que, depois de haver passado pelos exercícios e trabalhos da
vida monástica, querem logo voar à vida solitária, os quais, por falta
de virtude e de experiência, são facilmente enganados por inimigos
invisíveis. Os terceiros são aqueles que, debaixo de obediência, nos
quais o Senhor infunde o espírito da caridade, com a qual, in amados
e esforçados, acabam prosperamente o caminho.
E já que somos chamados por Deus, que é nosso Rei e Senhor,
corramos alegremente, para que, se por ventura o prazo de nossa vida
for curto, não nos achemos estéreis e pobres à hora da morte, e não
venhamos a morrer de fome. Procuremos agradar nosso Rei e Senhor,
como os soldados ao seu; porque, depois de professados nesta milícia,
mais estreita conta se nos há de pedir. Temamos a Deus, ao menos
como os homens temem alguns animais ferozes; pois, vi alguns que,
querendo furtar, deixaram de fazê-lo, não por temor de Deus, mas de
medo dos cães que ladravam, de modo que aquilo que não foi evitado
pelo temor de Deus, o foi pelo temor dos cães. Amemos a Deus, ao
menos como amamos aos amigos; pois, também vi muitas vezes
alguns que, havendo ofendido a Deus e provocado a sua ira, nenhum
cuidado tiveram de recuperar sua amizade, ao passo que, havendo
incomodado a alguns dos amigos com a mínima ofensa, trabalharam
com toda a diligência e indústria, e com toda a a ição e con ssão de
sua culpa, para reconciliarem-se, metendo neste empenho terceiros,
dentre outros amigos e parentes, e oferecendo muitas dádivas e
presentes.
No princípio da renúncia não se praticam as virtudes sem trabalho,
amargura e violência; mas, depois que começamos a aproveitar, com
muito pouca ou nenhuma tristeza as praticamos; e depois que a
natureza está já absorvida e vencida com o favor e alegria do Espírito
Santo, então obramos já com gozo, alegria, diligência e fervor de
caridade. Quanto mais dignos são de louvor os que, logo ao princípio,
abraçam as virtudes e cumprem os mandamentos de Deus com fervor
e alegria, tanto são mais de chorar os que, tendo vivido muito neste
exercício, as exercitam com trabalho e pesadume, se porventura as
exercitam.
Não devemos condenar aquelas maneiras de renúncia, que parecem
ter sido feitas por acaso; pois, tenho visto alguns delinqüentes que,
fugindo, encontraram por acaso o Rei, foram recebidos em seu
serviço, contados entre seus cavaleiros, e recebidos em seu palácio e à
sua mesa. Vi também algumas vezes caírem, descuidadamente, alguns
grãos de trigo da mão do semeador, os quais se apoderaram muito
bem da terra e vieram depois a dar grande fruto. Vi também alguns
irem à casa do médico para outro negócio, os quais acertaram em
receber nela saúde que não tinham e recuperar a vista quase perdida.
E deste modo acontece que, algumas vezes, são mais rmes e estáveis
as coisas que sucedem sem nossa vontade do que as que de propósito
tivessem sido feitas.
Ninguém, considerando os seus muitos pecados, diga que é indigno
da pro ssão e vida dos monges, nem se engane com esta cor e
aparência de humildade, para deixar de seguir a senda estreita da
virtude e dar-se a vícios: isto é embuste do Demônio e ocasião para
perseverar nos pecados. Aliás, onde as chagas estão mais stulosas e
purulentas, aí é assinaladamente necessária a diligência e destreza de
sábio médico.
Se um rei mortal e terreno, nos chamando a seu serviço ou à sua
milícia, não há coisa que nos detenha, nem buscamos ocasião para
escusar-nos e, ao contrário, deixamos tudo, e vamos servi-lo e
obedecer com suma alegria, não recusemos obedecer ao Rei dos reis,
ao Senhor dos senhores, a Deus, que nos chama à ordem desta milícia
celestial; porque será depois difícil a escusa diante daquele seu terrível
e espantoso tribunal.
Pode ser que aquele que está preso e aferrolhado aos negócios do
século, dê alguns passos e ande, ainda que com impedimento e
trabalho; pois também acontece que aquele que tem grilhões ou
cadeias nos pés, ande, ainda que mal e trabalhosamente. Aquele que
vive no mundo sem mulher, mas com cuidados e negócios, é
semelhante ao que tem algemas nas mãos e, por isso, ainda pode, se
quiser, correr livremente à vida monástica, ou solitária; mas, aquele
que tem mulher é semelhante ao que está de pés e mãos atados.
Ouvi uma vez a certos negligentes que, vivendo no mundo, me
diziam: “Como poderemos nós, morando com nossas mulheres e
cercados de cuidados e negócios de república, viver vida monástica?”.
Aos quais respondi: “Fazei todo o bem que puderdes; não injurieis a
ninguém, não digais mentira, não tomeis o alheio, não queirais mal a
ninguém, não vos levanteis contra ninguém, freqüentai as igrejas e os
sermões, usai de misericórdia com os necessitados, não escandalizeis,
nem deis mau exemplo a ninguém, nem sejais favorecedores de bandos
de malfeitores, nem vos empregueis em meter discórdias, senão em
desfazê-las, e contentai-vos com o uso legítimo de vossas mulheres:
porque, se isto zerdes, não estareis longe do reino de Deus”.
Preparemo-nos com alegria e sem temor para esta gloriosa batalha,
não acovardando-nos, nem desanimando pelo temor de nossos
adversários: pois, Deus está conosco. Os nossos adversários, posto que
de nós não sejam vistos, vêem muito bem a gura de nossas almas; e,
se nos virem acovardados e medrosos, tomam armas mais fortes
contra nós, apesar de contarem com a nossa fraqueza e covardia.
Portanto, com grande ânimo devemos tomar contra eles as armas da
alegria e da coragem, porque ninguém é poderoso para vencer a quem
alegre e animosamente peleja.
Nosso Senhor costuma a usar de uma maravilhosa concessão aos
principiantes e novos guerreiros, temperando e moderando-lhes as
primeiras batalhas, a m de que não voltem ao mundo, espantados da
grandeza do perigo. Portanto, gozai sempre no Senhor e tomai isto
por sinal de chamamento, e da piedade e providência paternal que ele
tem de vós outros. Outras vezes também acontece que este mesmo
Senhor, quando vê as almas fortes no princípio, lhes aparelha mais
fortes batalhas, desejando mais cedo coroá-las.
Sói o Senhor esconder aos homens do século as di culdades desta
milícia (posto que, sob outro respeito, melhor se poderiam chamar
facilidades), porque, se isto conhecessem, não haveria quem quisesse
deixar o mundo.
Oferece os trabalhos de tua juventude a Jesus Cristo, e na velhice te
alegrarás com as riquezas de uma quietíssima paz e tranqüilidade;
pois, as coisas que recolhemos e ganhamos na mocidade, depois nos
sustentam e consolam, quando estamos fracos e debilitados na velhice.
Trabalhem os moços, ardentemente, e corram com toda a sobriedade e
vigilância; pois, a morte, tão incerta, nos está aguardando a cada
hora. Além disto, temos inimigos perversíssimos, fortíssimos,
astutíssimos, potentíssimos, invisíveis e despidos de todos os
impedimentos corporais, e que nunca dormem, os quais, tendo fogo
nas mãos, trabalham com todo o estudo por abrasar e queimar o
templo vivo de Deus. Ninguém, por ser moço, dê ouvidos aos
demônios, que costumam dizer: “Não maltrates tua carne para que
não venhas cair em enfermidades e doenças”; pois, deste modo, sob a
cor da discrição, muitas vezes fazem o homem muito brando e piedoso
para consigo. E nesta idade di cilmente se encontra quem de todo
morti que sua carne, ainda que se abstenha de muitos e delicados
manjares; porque uma das principais astúcias de nosso adversário é
tornar brando e fraco o princípio da nossa pro ssão, para depois fazer
o m semelhante ao princípio.
Aqueles que elmente desejam servir a Jesus Cristo devem, antes de
tudo, com grandíssima diligência, buscar os lugares, os costumes e a
quietude, assim como os exercícios, que acharem mais acomodados a
seu propósito e espírito, segundo o conselho dos padres diretores
espirituais, e segundo lhes der a entender a experiência de si próprios;
pois, nem a todos convém morar nos mosteiros, especialmente àqueles
que são tocados do vício da gula no comer e no beber; nem a todos
convém seguir a quietude da vida solitária, especialmente àqueles que
são inclinados à ira. Observe cada um diligentemente, como dito é, o
estado que mais se lhe coaduna, porque três maneiras de estados e
pro ssões contém a vida monástica: o primeiro é o da vida solitária, o
estado dos monges anacoretas; o segundo é o da companhia de dois
ou três que vivem em soledade; o terceiro é o dos que servem na
obediência dos mosteiros. Ninguém, pois, se desvie, como diz o Sábio,
destes estados, nem para a direita nem para a esquerda: siga pelo
caminho real. Entre estas três maneiras de estados, a do meio foi
muito proveitosa para muitos, porque ai daquele que está só, que se
cair em tristeza espiritual, ou no sono, ou na preguiça, ou na
descon ança, não terá entre os homens quem o levante; ao passo que
onde estão ajuntados dois ou três em meu nome, diz o Senhor, aí estou
no meio deles. En m, será el e prudente monge aquele que,
guardando seu fervor inteiro até o m da vida, persevere sempre,
acrescentando cada dia fogo a fogo, fervor a fervor, desejo a desejo, e
diligência a diligência.

ANOTAÇÕES
Para inteligência deste capítulo, leitor cristão, hás de pressupor, que
segundo se colige da doutrina dos Santos Padres, a renúncia tem três
graus: o primeiro é deixar, por amor de Deus, todas as coisas do
mundo, como o Salvador o aconselhava àquele mancebo do
Evangelho; o segundo é deixar-se a si mesmo, que é deixar a própria
vontade, com todos os apetites e paixões de nossa alma, para fazer de
nós mesmos verdadeiro sacrifício, holocausto a Deus; o terceiro é que
nosso espírito pura e inteiramente se ofereça a Deus, se transporte
para Deus, se junte com Deus, que é o m dos graus passados, porque
tanto mais se ajuntará nosso espírito com Deus, quanto mais apartado
estiver das coisas do mundo e de si mesmo. Do primeiro destes três
graus se trata neste primeiro capítulo; do segundo, que é o da
morti cação das paixões, se trata no seguinte; e do terceiro se trata
conseqüentemente no capítulo terceiro, conquanto em cada um se
toque algo do que pertence ao outro. Porque familiar coisa é a este
santo (como o é a todos os que, escrevendo, seguem o instinto e o
magistério do Espírito Santo) não ter tanto em conta o o e
conseqüência das matérias e a ligação das cláusulas e sentenças,
quanto seguir o ditame e movimento deste espírito divino que os
ensina, como se mostra no autor daquele tão espiritual livro,
Contemptus mundi, e em outros muitos.
O que muito há de notar neste capítulo, e quase todo este livro, é o
rigor, trabalho e diligência, que este insigne mestre pede a todos os que
verdadeiramente se determinam a buscar Deus, especialmente nos
princípios de sua conversão, até desfazerem-se os maus hábitos da
vida passada, para que se veja claro por autoridade de tão grande
varão, que esta empresa não é de frouxos e folgazões, mas de valentes
e esforçados cavalheiros, conforme aquela sentença do Salvador, que
diz: O reino dos céus padece força e os esforçados são os que o
arrebatam.
CAPÍTULO II

Da morti cação das paixões e


vitória sobre apetites e afetos

Aquele que ama verdadeiramente a Deus e que verdadeiramente deseja


gozar do reino dos céus; aquele que verdadeiramente se arrepende de
seus pecados e que deveras está impressionado com a memória das
penas do inferno e do Juízo Final, e com o temor da morte, este, coisa
alguma amará desordenadamente. Não lhe fatigarão os cuidados do
dinheiro, nem da fazenda, nem dos pais, nem dos irmãos, nem de
qualquer outra coisa mortal e terrena; mas antes, abominando e
sacudindo de si todos os cuidados, e aborrecendo com um santo ódio
sua mesma carne, despido de tudo, seguro e ligeiro seguirá a Jesus
Cristo, com os olhos sempre no céu, de onde, com toda a con ança,
esperará o socorro, segundo as palavras do Profeta, que diz: Eu não
me turbei, seguindo-te, Pastor meu, e nunca desejei o dia do homem,
isto é, o descanso e felicidade que sóem desejar os homens.
Grandíssima confusão é, por certo, a daqueles que, depois de sua
vocação, isto é, depois de terem sido chamados, não por homens mas
por Deus, olvidados disso, se aplicam a outros cuidados que, na hora
da última necessidade, não os possam valer: isto, como disse o Senhor,
seria voltar a cabeça para trás depois de ter posto a mão à charrua, e,
portanto, não ter aptidão para o reino dos céus; e ele o disse como
quem sabe quanto são escorregadios os primeiros princípios da nossa
pro ssão, e quão facilmente voltaremos ao século, se tivermos
conversação familiar com pessoas do século. A um mancebo que lhe
disse: Dai-me, Senhor, licença para ir enterrar meu pai, ele respondeu:
Deixa aos mortos o enterrar seus mortos.
Sóem os demônios, depois de havermos deixado o mundo, pôr-nos
diante dos olhos alguns homens misericordiosos e esmoleres, que
vivem no mundo, fazendo-nos notar as virtudes que eles têm e de que
carecemos, e fazendo-nos crer que eles são bem-aventurados e nós
outros uns miseráveis pecadores: isto fazem os demônios, muitas
vezes, para que, sob a capa desta adúltera e falsa humildade, nos
devolvam ao mundo, ou para que, permanecendo em religião,
vivamos descon ados e desconsolados nela. Há alguns religiosos que,
com soberba e presunção, desprezam, como aquele fariseu do
Evangelho, os homens que vivem no mundo, não se recordando de
que está escrito: Aquele que está em pé, trate de não cair. Outros há
que, não por soberba, mas para evitar este despenhadeiro da
descon ança e conceber maior esforço e alegria por se verem livres do
mundo, desprezam ou, ao menos, dão pouca estimação aos costumes
dos que nele vivem. Mas, todos nós que temos em pouco nossa
pro ssão, lembremo-nos do que o Senhor disse àquele mancebo que
havia guardado quase todos os mandamentos: uma coisa te falta; vai e
vende teus bens e dá-os aos pobres, faz-te por amor de Deus pobre e
necessitado de alheia misericórdia. Por aí se vê que, sobrepujando em
virtudes aos que vivem no mundo, nada mais fazemos do que aquilo
que é próprio da nossa pro ssão. Se desejamos correr ligeira e
alegremente por este caminho, estimando-o no que ele merece,
consideremos atentamente que o Senhor chamou mortos aos homens
que no mundo vivem, dizendo a um deles: Deixa aos mortos o
enterrar seus mortos. Não foram causa as riquezas para que aquele
mancebo rico deixasse de receber o Batismo (e claramente se enganam
os que pensam que por esta causa lhe mandava o Senhor vender sua
fazenda): não era esta a causa, mas sim querer levantá-lo à altura do
estado de nossa pro ssão. E para ser reconhecida a glória dela, deveria
bastar este argumento: aqueles que, vivendo no mundo, se exercita em
jejuns, vigílias, trabalhos e outras semelhantes a ições, quando entram
na vida monástica, como em uma o cina e escola de virtude, não
fazem caso daqueles primeiros exercícios; e, pressupondo-os muitas
vezes adúlteros e ngidos, começam com outros novos fundamentos.
Vi muitas e diversas plantas de virtudes de homens que viviam no
mundo, as quais se regavam com a água lodosa da vanglória, se
mondavam com ostentação e aparência de mundo, e se estercavam
com o estrume dos louvores humanos; vi que estas plantas,
transplantadas para terra deserta, apartadas da vista e companhia dos
homens, e privadas do sobredito lavor, logo secaram, porque as
árvores criadas com este trato, não sóem dar fruto em terra seca.
Quem tiver perfeito ódio ao mundo, estará livre de tristeza do
mundo; mas quem está tocado da afeição das coisas do mundo, não
estará de todo livre desta paixão, porém di cilmente deixará de
entristecer-se quando se achar privado do que ama. Em todas as coisas
temos necessidade de grande temperança e vigilância; mas, sobretudo,
nos havemos de extremar em procura desta liberdade e pureza de
coração.
Conheci no mundo alguns homens, que, vivendo com muitos
cuidados, ocupações, a ições e vigílias do mundo, ainda assim
escaparam dos movimentos e ardores da própria carne; entretanto,
estes mesmos, entrando nos mosteiros, ali vivendo livres de cuidados,
caíram torpe e miseravelmente nestes vícios. Observemo-nos muito,
olhemo-nos muito para nós mesmos, a m de que não nos aconteça
que, pensando caminhar por caminho estreito e di cultoso,
caminhemos por caminho largo e espaçoso, e assim vivamos
enganados. Estreito caminho é a a ição do ventre, a perseverança nas
vigílias, a água por medida, o pão por taxa, o beber a purga saudável
das ignomínias e vitupérios, a morti cação das nossas próprias
vontades, o sofrimento das ofensas, o menosprezo de nós mesmos, a
paciência sem murmuração, o tolerar fortemente as injúrias, e não
indignar-se contra os que nos infamam, o não queixar-se dos que nos
desconsideram, e o abaixar-se humildemente aos que nos consideram.
Bem-aventurados os que por esta via caminham, porque deles é o
reino dos céus. Ninguém entra no tálamo celestial para receber a
coroa dos grandes santos, se não tiver cumprido a primeira, a
segunda, e a terceira maneira de renúncia, convém saber:
primeiramente, há de renunciar o que estiver fora de si, como são os
pais, parentes, amigos e tudo o mais; em segundo lugar, há de
renunciar sua própria vontade; em terceiro lugar, há de acautelar-se
contra a vanglória, que muitas vezes sói acompanhar a obediência,
sendo que a este vício mais sujeitos estão os que vivem em companhia
dos que moram em soledade. Sai, diz o Senhor, do meio deles, apartai-
vos e não toqueis em coisa suja ou profana. Quem ressuscitou os
mortos? Quem expeliu os demônios? São estas as insígnias dos
verdadeiros monges, as quais o mundo não merece receber, porque, se
as merecesse, supér uos seriam os nossos trabalhos e a solidão de
nossas celas.
Quando, depois da nossa renúncia, os demônios incendiam
importunamente o nosso coração com a memória de nossos pais e
irmãos, então principalmente temos de tomar contra eles as armas da
oração e de in amar nosso coração com a memória do fogo eterno,
para com ela apagarmos a chama danosa daquele outro fogo.
Os mancebos que, depois de se haverem dado a deleites e vícios da
carne, querem entrar em religião, procurem excitar-se com toda a
atenção e vigilância em honestos trabalhos; e terminem por abster-se
de todo o gênero de vícios e deleites, a m de que não venham ter
piores os ns do que tiveram os princípios. Muitas vezes o porto que
costuma ser de salvação, também o é de perigos, como bem o sabem
aqueles que navegam por este mar espiritual. E coisa miserável é
perderem-se no porto os navios que estiveram salvos em alto mar.

ANOTAÇÕES
Neste capítulo se trata do segundo grau de renúncia, que consiste na
morti cação dos apetites e afetos, como os tem morti cados somente
aquele que deveras e de todo o coração está afeiçoado às coisas
divinas. E repete-se muitas vezes esta palavra, deveras, para dar a
entender que não é qualquer grau de devoção que causa este afeto,
mas a verdadeira, grande e profunda afeição do amor de Deus;
porque, assim como uma luz grande escurece e ofusca outra menor,
como o sol faz às estrelas, assim o amor de Deus, quando é muito
grande, como sói ser o dos santos, anuvia e escurece todos os outros
peregrinos amores. Daí decorre que assim como, na balança, quanto
mais sobe um lado, tanto mais baixa o outro, e vice-versa; assim
quanto mais cresce o amor de Deus, tanto mais decresce o amor do
mundo, e vice-versa. Bem-aventurado seria aquele que, despedido o
amor do mundo, só se sustentasse com o amor de Deus; porque esse
seria como outro espiritual Jacó, a quem foi dado, por bênção, que
coxeasse de um pé e de outro casse são. Aliás, ninguém pense que
por isto é excluído aqui o amor e afeição dos parentes, amigos e
benfeitores, porque isto é natural e devido, quando é bem-ordenado,
amando-os e querendo-os por Deus, compadecendo-nos de seus
trabalhos. Tudo isto, porém, se há de fazer, de maneira que não seja
enredado nosso coração neste laço, por demasiada afeição, como
muitas vezes acontece.
CAPÍTULO III

Da verdadeira peregrinação
I

Peregrinação é desamparar com toda a constância tudo quanto nos


impede o propósito e exercício de piedade, que é louvar e buscar a
Deus. Peregrinação é um coração vazio de toda a vã con ança,
sabedoria não conhecida, prudência secreta, fugida do mundo, vida
invisível, propósito não revelado, amor do desprezo, apetite de
angústias, desejo do divino amor, abundância de caridade,
aborrecimento de passar como sábio ou como santo e um profundo
silêncio da alma. Sói muitas vezes, ao princípio, fatigar aos servos de
Deus esta maneira de vida tão árdua, e vai se acalmando o fogo deste
desejo de afastar-se da pátria e dos seus, desejo que nos provoca a ser
a igidos e desprezados por amor de Deus; mas, é de notar que, por
maior e mais louvável que seja esta peregrinação, deve ela, por isso
mesmo, ser examinada com toda a atenção.
Consideremos que, como diz o Salvador, ninguém é louvado como
profeta entre os seus e em sua pátria; e vejamos que não seja para nós
ocasião de vanglória a peregrinação e saída da pátria. A peregrinação
verdadeira é uma perfeita separação de todas as coisas, com intento de
jamais, tanto quanto seja possível, separar de Deus o nosso
pensamento. Peregrino é amador de perpétuo pranto, arraigado nas
entranhas pela memória de seu Criador. Peregrino é aquele que
despede e expele sempre a memória e afeição de todos os seus,
enquanto lhe são impedimento para ir a Deus.
Quando te determinares a peregrinar e a apartar-te à soledade, não
te detenhas no mundo à espera de levar contigo as almas dos que
estão ainda presos a ele, pois pode acontecer que, durante este tempo,
te assalte o inimigo e arrebate o teu bom propósito. Muitos tem
havido que, pretendendo levar consigo alguns destes preguiçosos e
negligentes, pereceram juntamente com eles, apagando-se-lhes com a
dilação a chama deste divino fogo e divina inspiração. E, por isso,
logo que sentires em ti esta chama, corre apressadamente, porque não
sabes se se apagará tão depressa, de sorte que ques às escuras. Nem
todos nós somos obrigados a salvar os outros, porque, como diz o
Apóstolo, cada um responde a Deus por si; e, em outro lugar, diz: Tu
que ensinas a outros, como não te ensinas a ti mesmo? Isto é como se
dissera: as necessidades e obrigações dos outros, não as conhecem
todos; mas, as suas próprias, cada um as conhece e assim é obrigado a
acudir a elas.
Tu, que te determinas a peregrinar, guarda-te do demônio guloso e
vagabundo, isto é, daquele que, com título de peregrinação, pretende
cevar a curiosidade e o apetite da gula, contando com os convites e
hospedagens que achará em diversos lugares, visto que a peregrinação
sói dar ocasião a este demônio. Grande coisa é haver morti cado a
afeição de todas as coisas perecíveis; e a peregrinação é mãe desta
virtude. Aqueles que, por amor de Deus, andam peregrinando, hão de
deixar todos os afetos do século, e estar como mortos para suas
coisas, a m de que não pareçam, por uma parte, apartados do
mundo, e, por outra, presos às suas afeições. Aqueles que se afastaram
do século, não mais queiram ter qualquer relação com o século,
porque muitas vezes os vícios, que de muito tempo estão adormecidos,
facilmente costumam despertar. Nossa mãe Eva, contra sua vontade,
saiu do paraíso; mas, o monge, pela sua, se desterrou de sua pátria.
Aquela foi expulsa, a m de que não voltasse a comer da árvore da
desobediência; este, para não padecer perigo de seus incentivos
carnais, foge, como de um açoite, da vizinhança destes lugares do
mundo, porque o fruto que não se vê com os olhos, não move tanto o
coração.
Também quereria que não ignorasses outra maneira de engano, de
que usam os demônios: muitas vezes eles nos aconselham que não nos
apartemos dos seculares, dizendo-nos que maior coroa será se, vendo
mulheres e andando no meio dos laços, escaparmos deles, vivendo
limpamente, lutando com as nossas paixões e vencendo-as.
Depois de haver peregrinado alguns anos fora de nossa pátria, e de
haver alcançado um pouco de religião, ou de compunção, ou de
abstinência, logo os demônios começam a combater-nos com alguns
pensamentos de vaidade, incitando-nos a regressar à nossa pátria,
para edi cação e exemplo de todos aqueles que antes nos viram viver
desordenadamente no século. Se, por ventura, temos algumas letras,
ou alguma graça no falar, então nos apertam mais fortemente,
incitando-nos a voltar ao século para guardar as nossas almas e as
almas dos outros; e, deste modo, conseguem que a fazenda que no
porto adquirimos com trabalho, no mar alto a percamos. Não
imitemos a mulher de Loth, mas ao mesmo Loth; porque a alma que
voltar ao lugar de onde saiu, cará como uma estátua que não se
move e dissolver-se-á como sal, antes que outra vez possa facilmente
voltar a Deus. Foge do Egito; e de tal maneira fujas, que nunca mais
voltes, porque os corações que a ele voltaram, não gozaram daquela
quietíssima e pací ca terra de Jerusalém. Contudo, não é mau que
aqueles que, no princípio de sua conversão, deixaram a pátria e todas
as coisas com ela, para conservarem-se na infância de sua pro ssão e
fechar a porta a tudo quanto a pudesse prejudicar, voltem a ela, depois
de con rmados e adiantados na virtude e perfeitamente purgados, a
m de fazer outros participantes da salvação que alcançaram; pois,
aquele grande Moisés, que viu a Deus e foi escolhido para procurar a
salvação de sua gente, muitos perigos passou no Egito e muitas
a ições e trabalhos passou neste mundo por essa causa.
Peregrino é aquele que, como homem de outra língua e morador em
uma nação estrangeira, entre gente desconhecida, vive somente
consigo e no conhecimento de si mesmo. Ninguém pense que
desamparamos nossa pátria e nossos parentes porque os aborrecemos
(jamais Deus queira que tal seja a nossa intenção), mas para fugir ao
dano que de sua parte nos possa vir. Nisto temos, como em tudo o
mais, a doutrina e o exemplo do nosso Divino Salvador, que muitas
vezes desamparou a seus pais; e, sendo-lhe dito por alguns que
procurasse sua mãe e seus irmãos, logo o Mestre nos ensinou este
santo ódio e liberdade de coração, dizendo: Minha mãe e meus irmãos
são os que fazem a vontade de meu Pai, que está nos céus. Seja teu pai
aquele que pode e quer trabalhar contigo e ajudar-te a descarregar a
carga de teus pecados; tua mãe seja a compunção, que te lave das
manchas e sujidades da alma; teu irmão seja aquele que juntamente
contigo trabalha e peleja no caminho do céu; tua mulher e
companheira que de ti nunca se afaste, seja a memória da morte; teus
lhos muito amados sejam os gemidos do coração; teu servo seja teu
corpo; e sejam teus amigos os santos anjos, que na hora da morte te
poderão ajudar, se agora procurares fazê-los familiares e amigos teus.
Esta é a geração espiritual daqueles que buscam Deus. Antes
desagradar a nossos pais do que a Deus, porque este nos criou e
remiu, ao passo que aqueles muitas vezes destruíram aos que amaram
e foram causa de sua condenação aos tormentos eternos. O amor de
Deus exclui o amor desordenado dos pais, e quem acreditar que estes
dois amores juntos podem conciliar-se, engana-se; pois, como já disse
o Salvador, ninguém pode servir a dois senhores. Por essa mesma
razão, disse ele em outro lugar: Não vim trazer paz à terra, mas
guerra, porque veio apartar os que amam a Deus dos que amam o
mundo, os terrenos e materiais dos espirituais, os ambiciosos dos
humildes. De tal por a e separação se alegra o Senhor, quando são
feitas por seu amor. Cuida com atenção em que não ques
secretamente tomado do amor de teus parentes; vendo-os naufragando
no dilúvio das misérias e trabalhos deste mundo, não vás
desprovidamente socorrê-los e perecer juntamente com eles nesse
mesmo dilúvio. Não lastimes os pais e amigos que choram tua saída
do mundo, para que não tenhas sempre de chorar: quando eles te
procurarem como abelhas, ou, para melhor dizer, como vespas, e
começarem a fazer lamentações a teu respeito, volta a toda a pressa e
fortalece teu coração com a memória da morte e com a consideração
de teus pecados, para que com uma dor ofusques outra dor. Muitas
vezes eles prometem-nos que tudo se fará à nossa vontade; mas, assim
procedem enganosamente, com intenção de atalhar-nos o caminho e
trazer-nos à sua vontade.
Quando nos separarmos do mundo, seja o nosso retiro nos lugares
mais humildes, menos públicos, e mais apartados das consolações do
mundo. Se fores nobre, esconde, quanto puderes, e em coisa alguma
mostres a limpeza e nobreza de tua linhagem, para que não pareças
nas palavras um e nas obras outro, nas palavras, pregando humildade,
e, nas obras, vaidade. Ninguém peregrinou tanto como aquele grande
patriarca, a quem foi dito: Sai de tua terra e do meio de teus parentes e
da casa de teus pais. Assim foi ele chamado a viver entre gente
bárbara e de língua estranha. Os que procuraram imitar esta tão
admirável peregrinação, algumas vezes foram pelo Senhor levantados
a grande glória; entretanto, aquele que é verdadeiramente humilde
deve escusar-se a esta glória, e defender-se dela com o escudo da
humildade, posto que divinamente lhe seja concedida. Quando os
demônios nos louvam por esta virtude da peregrinação, ou por outra
qualquer insigne virtude, devemos logo recorrer com grande atenção à
memória daquele Senhor, que peregrinou por nós desde o céu até a
terra; e acharemos que, ainda mesmo que vivêssemos por todos os
séculos, não poderíamos imitar a pureza desta peregrinação. Qualquer
afeição desordenada de parentes ou não parentes, que pouco a pouco
nos acarreta ao amor das coisas do mundo e amortece em nós o fogo
do amor de Deus, há de ser evitada com toda a diligência; pois, assim
como é impossível olhar com um dos olhos o céu e com o outro a
terra, assim também o é, estando com o corpo e com o espírito
afeiçoados ao mundo, dedicar afeição pura às coisas do céu.
Com grande trabalho e fadiga se alcança a virtude e se formam os
bons costumes; e pode acontecer que aquilo que com muito trabalho,
e em muito tempo, se alcançou, em pouco tempo se perca. Aquele que,
depois de ter renunciado ao mundo, quer viver e conversar com os
homens do mundo, ou morar perto deles, é certo que há de cair nos
mesmos perigos e enlaçar seu coração nos mesmos pensamentos. E se
não se enlaçar, ao menos julgando e condenando aos que assim se
enlaçam, ele também se enlaçará.
II

Os principiantes costumam a ser tentados em sonhos. Não se pode


negar que o nosso conhecimento é imperfeito e cheio de toda a
ignorância; porque, como está escrito, o paladar julga da qualidade
dos manjares e o ouvido da verdade das sentenças. Assim como o sol
descobre a fraqueza dos olhos, assim as palavras declaram a rudeza
dos entendimentos; entretanto, a caridade nos obriga a tratar de coisas
que excedem à nossa faculdade. Penso, pois, ser coisa necessária
acrescentar a este capítulo alguma coisa sobre os sonhos, para que não
ignoremos de todo este gênero de enganos, usado por nossos
adversários; mas primeiro que tudo, convém explicar que coisa seja
sonho.
Sonho é movimento do espírito em corpo imóvel; pois, tal costuma
estar o corpo quando sonhamos. Fantasia é engano dos olhos
interiores da alma adormecida, o que se dá quando aquilo que não é,
se representa como se fora, por estar impedido o uso da razão.
Fantasia é alienação da alma, estando o corpo a velar, o que se dá
quando a alma está como fora de si e com apreensão veemente de
alguma coisa. Fantasia é a apreensão ou imaginação que passa logo e
não permanece.
A causa por que entendemos tratar aqui dos sonhos, é manifesta.
Depois que, por amor de Deus, deixamos nossas casas e parentes e nos
afastamos deles para a peregrinação, então começam os demônios a
perturbar-nos em sonhos, representando-nos nossos pais e parentes
tristes e a itos, ou mortos por nossa causa, ou postos em necessidades,
ou em caso de morte; ora, quem dá crédito a tais sonhos é semelhante
àquele que corre atrás de uma sombra para alcançá-la.
Os demônios, também tentadores de vanglória, às vezes se fazem
profetas revelando-nos em sonhos algumas coisas que eles, com a sua
consumada astúcia, podem conjecturar, a m de que, vendo realizado
o que vimos em sonhos, quemos espantados e pensemos que já
estamos muito vizinhos da graça dos Profetas, e com isto nos
ensoberbeçamos. Muitas vezes acontece, por secreto juízo de Deus,
que o Demônio seja verdadeiro com aqueles que lhe dão crédito, assim
como saia mentiroso para com os que não fazem caso dele; e, como
ele seja espírito, vê todas as coisas que se passam nos ares, adivinha
que alguém há de morrer, di-lo por sonhos a alguns destes que são
mais fáceis em crer, e assim os vai dominando. Porém, nenhuma coisa
futura sabe o Demônio de ciência certa, senão por conjecturas; e, por
este modo, até os feiticeiros uma ou outra vez costumam adivinhar a
morte. Muitas vezes acontece que os demônios se trans guram em
anjos de luz, ou tomam guras de mártires, assim se nos representam
em sonhos, e, quando despertamos, enchem-nos de alegria e soberba:
este é um dos sinais de suas armadilhas, porque os bons anjos, ao
contrário, nos representam tormentos, juízos e separações, deixando-
nos temerosos e tristes, quando despertamos. Os que começam a crer
no Demônio nestes sonhos, depois vêm a ser enganados por ele fora
dos sonhos; por isso, é próprio de loucos e de maus o dar crédito a
tais vaidades. É verdadeiro lósofo aquele que nenhum crédito lhes
dá; pois, deves sempre dar crédito a quem te prega pena e juízo. E se
isto te mover à desesperação, também o atribuas ao Demônio.

ANOTAÇÕES
Neste capítulo se trata do terceiro grau da renúncia, que consiste no
contínuo desejo da união de nossa alma com Deus, para cujo m se
faz o homem peregrino e estranho a todas as coisas do mundo, não só
com o corpo, fugindo de sua pátria, como com a alma, desterrando de
si o amor desordenado de todas as coisas, para que, solto o coração
destas cadeias, possa sem impedimento voar para Deus e unir-se com
ele e repousar nele, sem que ninguém lhe perturbe este repouso, nem
lhe desperte deste sono, que se faz imperfeitamente nesta vida e
perfeitamente na glória. Depois deste terceiro grau, que é a
peregrinação, também se trata neste capítulo de muitas coisas que,
conquanto não sejam da essência da peregrinação, estão anexas a ela,
ou como causa ou como efeito. Dizemos isto para que não se
maravilhe nem se confunda o leitor, vendo coisas tão distintas das que
o título promete, ou querendo-as violentamente reduzir todas ao
assunto do título.
CAPÍTULO IV

Da perfeita obediência
I

Vem agora muito a propósito tratar da obediência, para doutrina dos


novos cavalheiros e guerreiros de Jesus Cristo; pois, assim como ao
fruto precede a or, assim à obediência precede a peregrinação, ou do
corpo, ou da vontade. Com estas duas virtudes, como com duas asas
douradas, levanta-se até o céu a alma do varão santo; e a isso, por
ventura, se referia o Profeta, cheio do Espírito Santo, quando disse:
Quem me dera asas como as da pomba, para voar pela vida ativa e
descansar na contemplação e na humildade! Penso que não será
razoável passar em silêncio o hábito e as armas destes fortíssimos
guerreiros: devem eles ter, primeiramente, um escudo, que é a grande e
viva fé e lealdade para com Deus e para com o mestre que os exercita,
a m de que, aparando e recebendo nele os golpes dos pensamentos de
in delidade, usem, logo e bem, da espada do espírito, cortando com
ela todas as suas próprias vontades; revistam-se de uma forte couraça
de mansidão e de paciência, contra a qual nada possa qualquer gênero
de injúria e desacato, e que faça cair todas as setas de palavras más;
tenham também um elmo salvador, que é a oração espiritual, elmo que
guardará a cabeça de sua alma; e, além disto, tenham os pés não
juntos, mas um adiante, aparelhado para executar a obediência, e o
outro atrás, posto em contínua oração. É este o hábito, é essa a
armadura dos verdadeiros obedientes; vejamos, agora, que coisa seja a
obediência.
Obediência é perfeita abnegação da alma, abnegação declarada por
exercício e obras do corpo; obediência é perfeita abnegação do corpo,
declarada com fervor e vontade da alma: porque, para a perfeita
obediência, é necessário que tudo concorra, tanto o corpo como a
alma; e tudo é necessário que se negue, quando a obediência o exige.
Obediência é obra sem exame, morte voluntária, vida sem
curiosidade, porto seguro, escusa perante Deus, menosprezo do temor
da morte, navegação impávida, caminho pelo qual dormindo se
transita. Obediência é sepulcro da própria vontade e ressureição da
humildade; pois, o verdadeiro obediente, a nada resistindo, fazendo
sem discernimento tudo o que lhe é mandado (quando não é
claramente mau), con ando humildemente na discrição de seu
prelado, santamente desta maneira morti cando sua alma, seguras
contas de si dará a Deus. Obediência é resignar, com grande discrição,
a própria discrição.
No princípio deste santo exercício, para morti car os membros do
corpo ou a vontade da alma, há trabalho. No meio, às vezes há
trabalho, às vezes descanso; mas, no m, há perfeita paz,
tranqüilidade e morti cação de toda a desordenada perturbação.
Então, este bem-aventurado acha-se obediente, vivo e ao mesmo
tempo morto, vivo por ver que fez sua própria vontade, morto por
temer sempre a carga da própria vontade.
Todos vós que desejais despojar-vos de empecilhos para passar esta
carreira espiritual; todos vós que desejais pôr o jugo de Jesus Cristo
sobre o pescoço e vossas cargas sobre os ombros dos outros; todos vós
que desejais assentar-vos e inscrever-vos no livro dos servos, para
receber por este assentamento carta de alforria na perpétua liberdade
da vida eterna; todos vós que desejais passar a nado o grande mar do
mundo em ombros alheios: sabei que há para isto um caminho breve,
porém áspero especialmente nos princípios, qual é o estado de
obediência. Quem quiser entrar por esse caminho, saiba desviar-se do
principal perigo, que é o amor e contentamento de si mesmo, e jamais
lhe pareça que é su ciente para reger-se e governar-se a si mesmo.
Quem escapar disto, tenha a certeza de que chegará às coisas
espirituais e honestas quase antes de principiar a caminhada; pois,
obediência é não crer o homem, nem ar-se de si mesmo, até o m da
vida, nem mesmo nas coisas que pareçam boas, sem a autoridade de
seu pastor.
Quando, pelo amor de Deus, determinarmos inclinar a cerviz à
obediência, devemos, antes de entrar nesta milícia (se em nós há
alguma centelha de juízo e discrição), examinar com todo o cuidado o
pastor que tomamos, a m de que não nos aconteça tomar marinheiro
por piloto, enfermo por médico, vicioso por virtuoso, de sorte que, em
vez de encontrar porto seguro, nos metamos em um golfo tempestuoso
e venhamos a ser apanhados em naufrágio certo. Mas, depois que
tivermos entrado nesta carreira, já não nos é lícito julgar o nosso bom
mestre em coisa alguma, ainda que ele, como homem que é, tenha
quaisquer pequenos defeitos; e, se assim não zermos, pouco
aproveitaremos da obediência. Aos que querem ter esta inviolável
con ança nos mestres, convém muito notar com diligência as virtudes
e obras louváveis que seus mestres praticam, e guardá-las em
memória, a m de taparem a boca aos demônios, quando estes
quiserem demolir essa con ança; pois, quanto mais viva em vosso
espírito estiver esta con ança, tanto mais pronto estará o corpo para
os trabalhos da obediência. Porém, aquele que tiver caído em
in delidade para com seu prelado, tenha-se caído da virtude da
obediência, porque tudo o que carece de fundamento de fé vai mal
edi cado; e, por isso, quando algum pensamento te instigar a que
julgues ou condenes teu prelado, deves fugir tanto como de um
pensamento desonesto; nem jamais te aconteça dar lugar, nem
entrada, nem princípio, nem descanso a esta serpente. Fala com este
dragão e diz-lhe: ó, perversíssimo enganador, não tenho eu de julgar o
meu guia, e sim ele a mim; não sou eu o seu juiz, é ele o meu.
As armas dos mancebos são o canto dos Salmos; a muralha, são as
orações; o lavatório, as lágrimas de penitência. Mas, a bem-
aventurada obediência, dizem que é semelhante à con ssão do
martírio, porque nela se faz o homem sacrifício de si mesmo; pois,
quem está sujeito e obedece ao império de outrem, pronuncia sentença
contra si mesmo. Aquele que, por amor de Deus, obedece
perfeitamente, ainda em caso e coisa que não lhe pareça ser
completamente razoável, todavia se escusa ao juízo divino, pondo a
carga sobre seu prelado. Aquele, porém, que em algumas coisas quer
cumprir a sua vontade e nessas o prelado manda como ele deseja, não
pratica verdadeira obediência; e, portanto, se são más, o próprio
prelado fará bem em repreendê-lo por obedecer, e se calar-se, tenho a
dizer apenas que ele toma esta carga sobre si. Aqueles que com
simplicidade se sujeitam ao Senhor, caminham perfeitamente; porque
não se metem a examinar nem deslindar curiosamente os
mandamentos de seus maiores, curiosidade a que os demônios sempre
nos provocam.
Antes de tudo, convém que somente a nosso juiz confessemos
nossas culpas; e estejamos aparelhados para confessá-las a todos, se
por ele assim for mandado, porque as chagas descobertas à toda a luz
podem não corromper-se nem a stular-se, como aconteceria se as
tivéssemos encobertas ou secretas. Uma vez, vindo eu a um mosteiro,
tive ocasião de observar um juízo de um excelente pastor que o
governava. Um ladrão veio tomar hábito; o bom pastor e
sapientíssimo médico mandou que o deixassem estar com toda a
quietação e descanso por espaço de sete dias, a m de que, durante
este tempo, visse o estado e a ordem do mosteiro. Passado esse prazo,
chamou-o o pastor a sós, e perguntou-lhe se lhe parecia bem morar
naquela companhia; e, como ele respondesse, com toda a sinceridade,
que sim e de muito boa vontade, o pastor tornou-lhe a outra pergunta,
isto é, perguntou-lhe que males havia cometido no século; e, como
pronta e discretamente os confessasse todos, para melhor prová-lo,
disse o padre: “Quero que todas essas culpas confesses em presença de
todos os religiosos”. Ele, como verdadeiro penitente e como homem
que aborrecia de coração todas as suas maldades, pondo de lado toda
a humana vergonha e confusão, respondeu que assim o faria e que, se
ao padre aprouvesse, as diria em voz alta mesmo no meio da praça de
Alexandria. Reunidos, pois, todos os religiosos (que eram em número
de 230) na igreja, em um dia de domingo, lido o Evangelho e
acabados os mistérios divinos, mandou o padre que trouxessem aquele
réu. Foram buscá-lo alguns religiosos, que o apresentaram de mãos
atadas atrás, revestido de um aspérrimo cilício, coberta de cinza a
cabeça, e disciplinando-o mansamente entre as espáduas; e, ao chegar
ele à porta da igreja, mandou-lhe aquele sagrado padre, com voz
terrível, que parasse, porque não era digno de transpor os umbrais
daquela porta. O réu, ferido com o golpe desta voz proferida com tão
grande conselho e sabedoria, caiu prostrado em terra, tremendo de
pavor e debulhado em lágrimas. Diante deste doloroso espetáculo
caram todos estupefatos, e prorromperam em pranto e gemidos; pois
nenhum deles entendia do que se passava. Então, aquele padre
maravilhoso médico mandou-lhe que dissesse em público todos os
pecados que havia cometido; e ele obedeceu, fazendo com toda a
humildade, e com grande espanto dos presentes, a narração minuciosa
de tudo, sem deixar de dizer todas as maneiras de homicídios,
feitiçarias, furtos, e outras coisas que não é lícito escrever. E, depois de
haver-se assim confessado, mandou o padre tonsurá-lo e recebê-lo na
companhia dos religiosos. Maravilhado eu da sabedoria deste santo
padre, perguntei-lhe depois, em reserva, porque tinha feito tão
extraordinária forma de juízo; e ele, como verdadeiro médico, me
disse que a fez por duas causas: a primeira, para livrar aquele
penitente da eterna confusão mediante aquela presente confusão; a
segunda, para que alguns religiosos, que lá se achavam e que ainda
não tinham confessado inteiramente suas culpas, se movessem por
aquele exemplo à completa con ssão, sem a qual ninguém será salvo.
Outras muitas coisas admiráveis e dignas de memória vi naquela
santíssima congregação e no pastor dela, das quais estou habilitado a
contar-vos algumas, porque não pouco tempo ali estive, atendendo
grande e continuamente à vida e maneira de convivência daqueles
anjos da terra, e maravilhando-me de ver como imitavam aos do céu.
Primeiramente, eram entre si muito unidos por um estreitíssimo
vínculo de caridade, e (o que é muito mais de maravilhar) amando-se
tanto como se amavam, não havia entre eles atrevimento nem
con ança demasiada, nem soltura de palavras ociosas; trabalhavam,
com muito estudo, no empenho de não se escandalizarem uns aos
outros, nem serem uns ocasião de pecado ou de mal para outros.
Depois, se acontecia que algum manifestasse rancor contra outro, o
santo pastor desterrava-o, como a homem condenado, para outro
mosteiro. Uma ocasião, tendo um deles amaldiçoado a outro, o santo
pastor mandou que pusessem aquele fora da companhia, dizendo que
não era razoável sofrer no mosteiro demônios visíveis e invisíveis. Vi
eu naqueles santos coisas grandemente proveitosas e dignas de
admiração. Vi uma companhia de muitos que, com o vínculo da
caridade, eram todos um só em Jesus Cristo, e todos muito
exercitados em obras da vida ativa e contemplativa; pois de tal modo
se despertavam e aguilhoavam uns aos outros para as coisas de Deus,
que quase não tinham necessidade de ser admoestados pelo pai
espiritual, chegando ao ponto de ter entre si ordenadas certas
maneiras de exercícios e admoestações a propósito. Acontecia, por
exemplo, que algum deles, na ausência do prelado, proferia qualquer
palavra ociosa, ou danosa, ou de murmuração: o irmão que esta
ouvisse fazia-lhe secretamente um convencionado sinal, para que
olhasse por si e moderasse suas palavras; e se, por ventura, o
admoestado não via ou não atendia, então o outro se prostrava em
terra diante dele, e logo se ia. Quando algumas vezes se juntavam para
conversar, toda a prática versava sobre a memória da morte e do Juízo
Final.
Não quero passar em silêncio a virtude singular do cozinheiro
daquele mosteiro. Observando eu que ele, perseverando em tão
contínua e constante ocupação, estava sempre muito recolhido, e que,
além disso, havia alcançado a virtude do pranto, roguei-lhe
humildemente que me quisesse descobrir como tinha merecido esta
graça. Importunado por meus rogos, respondeu-me em poucas
palavras: “Nunca pensei que servia a homens, mas a Deus; sempre
tive-me por indigno de quietude e repouso; e a vista deste fogo
material me faz sempre chorar e pensar no ardor do fogo eterno”.
Quero contar outras virtuosas singularidades que vi entre eles.
Percebi que, nem mesmo assentados à mesa, cessavam dos espirituais
exercícios, e usavam de certos sinais com que uns aos outros se
exortavam à oração, mesmo enquanto estavam comendo; faziam isto,
não só quando estavam à mesa, mas também quando por acaso se
encontravam, ou quando algumas vezes se ajuntavam. Se acontecia
que qualquer deles cometesse alguma falta, vinham os outros pedir-
lhe, com toda a instância, que lhes desse cargo de dar conta daquela
culpa ao pai espiritual e de receber a penitência dela; e, como aquele
grande varão conhecesse esta piedosa contenção de seus discípulos,
usava de mais branda correção, e, as mais das vezes ou quase sempre,
não queria averiguar nem fazer pesquisa do autor do delito. Se a
algum deles acontecia estar por ando com outro irmão, aquele que
acaso por ali passava, prostrando-se a seus pés, assim os amansava; se,
por ventura, percebia que guardavam lembrança de alguma injúria,
logo fazia-o saber ao padre que, depois do abade, tinha cargo do
mosteiro, e trabalhava com todo o estudo para que não se pusesse o
sol sobre a sua ira; e se, todavia, continuassem endurecidos e
por ados, não tinham licença para comer até que um ao outro se
perdoassem; por m, se não quisessem submeter-se, expeliam-nos do
mosteiro.
Muitos daqueles santos varões eram assinalados e admiráveis em
vida ativa e contemplativa, e em discrição e humildade. Vi ali uns
velhos reverendos, de muito venerável presença, os quais estavam
como meninos, aparelhados para obedecer e correr para uma parte ou
para outra, merecendo grande glória com este exercício de humildade.
Vi alguns que, havia cinqüenta anos, militavam debaixo da
obediência, os quais, perguntando-lhes eu que consolação ou que
fruto haviam alcançado de tanto trabalho, uns me respondiam que,
por tal meio, tinham chegado ao abismo da humildade, com a qual
estavam livres de muitos combates do inimigo, e outros me
respondiam que, por ali, chegavam a perder o sentimento das injúrias
e desonras. Vi outros daqueles varões dignos de eterna memória,
cobertos de cãs, porém com rostos angélicos, os quais chegaram a
uma profundíssima inocência, cheia de simplicidade, alcançada com
grande fervor de espírito e temor de Deus. Primeiro se acabarão os
meus dias de vida que eu possa explicar todas as virtudes que ali
observei; e, como a santidade daquela gente chegava até o céu, tenho
por melhor adornar esta doutrina com os exemplos de seus trabalhos
e virtudes, do que com a baixeza das minhas palavras.
II

Um religioso, chamado Isidoro, que era dos principais de Alexandria,


renunciou o mundo há poucos e entrou para este mosteiro. Aquele
maravilhoso pastor, ao recebê-lo, conjecturando, pelo aspecto da
pessoa e por outras circunstâncias, ser ele homem áspero, intratável,
soberbo e inchado com a vaidade do século, determinou vencer a
astúcia dos demônios pelo seguinte artifício. Disse ao referido Isidoro
que, se realmente queria tomar jugo de Jesus Cristo, antes de tudo se
exercitasse nos trabalhos da obediência; a isto respondeu o noviço
que, assim como o ferro está sujeito às mãos do ferreiro, assim ele
queria sujeitar-se a tudo o que lhe mandasse o superior; replicou o
padre: “Pois, quero, irmão, que estejas à porta do mosteiro e te
prostres aos pés de todos os que entrarem e saírem, dizendo-lhes:
‘roga, por mim, padre, que sou pecador’”. O noviço obedeceu como
um anjo a Deus; e, depois de sete anos empregados naquela
obediência e de ter alcançado por esse meio uma profundíssima
humildade e compunção, quis o padre, após tão grande exemplo de
paciência, levantá-lo à companhia dos religiosos e honrá-lo com as
ordens sacras, como verdadeiramente merecedor. Mas, ele, deitando
ao padre muitos rogadores (entre os quais, eu), conseguiu que o
deixassem naquele mesmo lugar, como até então, até que acabasse sua
carreira, dando a entender com estas palavras que se aproximava o
seu último dia de vida. E assim foi; passados mais dez dias naquela
ignomínia e sujeição, foi chamado à glória. Sete dias depois, morreu
também o porteiro do mosteiro, ao qual o bem-aventurado varão
prometera que, se tivesse alguma cabida com o Senhor, trataria do
modo de tê-lo como seu companheiro perpétuo, e muito em breve; e
isso foi para nós certíssimo indício de seus merecimentos por tão
perfeita obediência e humildade. Uma vez parei à porta do mosteiro
para perguntar-lhe como prosseguia e se sentia sua alma naquele
exercício; e ele, querendo dar-me aproveitamento, disse-me: “A
princípio fazia conta que estava vendido por meus pecados e, assim,
com suma amargura e violência, prostrava-me aos pés de todos;
apenas passado um ano, já eu fazia isto sem violência e sem tristeza,
esperando de Deus o galardão de minha paciência; passado outro ano,
de todo o coração comecei a ter-me por indigno da convivência do
mosteiro e da participação dos divinos sacramentos; e, por m,
cheguei a considerar-me indigno de levantar os olhos e de encarar
qualquer pessoa, e assim, cravados os olhos em terra, e não menos o
coração do que o corpo, rogava aos que entravam e saíam que
zessem oração por mim”.
Outro religioso, de nome Lourenço, que estava naquele mosteiro
havia mais de 48 anos, chamado pelo abade, veio pôr-se de joelhos
diante dele para receber a bênção; mas, depois de se levantar, não lhe
tendo dito o abade coisa alguma, deixou-se ele ali car: era a hora da
comida e estávamos todos assentados à mesa, de sorte que o monge
permaneceu em pé diante da mesa, sem comer, sem mover-se durante
talvez mais de uma hora, sem dizer palavra, até o m de uma hora. E,
somente ao levantarmo-nos da mesa, mandou-lhe o abade que se
dirigisse ao sobredito Isidoro e lhe recitasse o princípio do Salmo 34.
Eu estava com aquilo tão incomodado, que não ousava encarar aquele
octogenário; mas, por m, não deixei de tentar o santo velho,
perguntando-lhe em que pensava quando se achava naquela posição e
situação. Ele respondeu-me que havia posto em seu pastor a imagem
de Jesus Cristo, e que, assim imaginando, parecia-lhe que estava não
diante de uma mesa de homens, mas diante do altar de Deus; de sorte
que, pela grande caridade e sincera con ança que depositava em seu
pastor, fazia oração e não dava entrada a pensamento mau contra ele,
nem lugar nem tempo ao espírito mau contra si.
E qual era aquele bem-aventurado pastor de espirituais ovelhas,
assim o era o procurador do mosteiro, que Deus lhe havia dado, casto
e moderado como qualquer dos outros, e manso como muito poucos.
Quis, pois, o grande padre experimentá-lo, repreendendo-o para
utilidade dos outros; e, sem haver causa alguma, mandou expulsá-lo
da igreja. Eu, sabendo que o monge era inocente, em reserva com o
padre, louvava e encarecia sua inocência, ao que me respondeu
sapientissimamente: “Bem sei que é inocente; mas, assim como é cruel
coisa tirar o pão da boca de quem está a morrer de fome, assim é coisa
prejudicial, quer ao prelado, quer aos súditos, não procurar aquele
para estes quantas coroas vir que podem merecer, exercitando-os com
injúrias, abjeções e escárnios, porque, se isto não zer, produzirá três
inconvenientes: primeiro, privará o súdito devoto do mérito da
paciência; segundo, defraudará a outros do bom exemplo de sua
virtude; terceiro (e é o principal), muitas vezes aqueles que parecem
perfeitos e muito sofredores de trabalhos, se durante muito tempo os
prelados, considerando-os já acabados em virtudes, deixam-nos sem
prová-los, ou sem repreendê-los, ou sem exercitá-los com alguma
manha de doestos e injúrias, acontece que, a nal, perdem ou
menoscabam aquela modéstia e sofrimento que tinham”. E,
continuando, acrescentou: “Ainda que a terra seja boa, se lhe falta o
lavor e a irrigação, quero dizer, o exercício do sofrimento das
ignomínias, costuma a tornar-se silvestre e infrutuoso, a produzir
espinhos de pensamentos desonestos e de danosa seguridade; e por
isso é que aquele grande Apóstolo, escrevendo a Timóteo, manda-lhe
que admoeste e repreenda aos súditos oportuna e importunamente”.
Mas, como eu replicasse àquele santo pastor, alegando a avançada
idade do monge, e também que muitos, repreendidos sem causa, e até
às vezes com causa, saíam e desgarravam da manada, respondeu-me,
como um armário de sabedoria, o seguinte: “A alma que, por amor de
Deus, está enlaçada, com vínculo de fé e amor, a seu pastor, sofrerá até
derramar o sangue e nunca desfalecerá, mormente se antes tiver sido
espiritualmente ajudada com a cura de suas chagas, e regalada com os
benefícios e consolações espirituais, recordando-se daquele que disse
que nem anjos, nem principados, nem virtudes, nem qualquer outra
criatura, nos poderão apartar da caridade de Jesus Cristo; mas, aquela
que não estiver assim enlaçada, fundada, ou para melhor dizer, colada
a ele, maravilha será não estar debalde em um mosteiro, porque a
obediência dela não é verdadeira, porém ngida”. E, certamente,
aquele varão não foi defraudado em sua esperança; ao contrário,
ofereceu a Jesus Cristo muitas dessas oferendas puras e limpas”.
Deleitável coisa é ver e ouvir a sabedoria de Deus, encerrada em
vasos de barro. Maravilhava-me de ver a fé e paciência insuperável
nas ignomínias e injúrias, e às vezes nas perseguições dos que de novo
vinham ao século, aquelas sofridas da mão do abade, como também
de outros que eram muito menores que ele. Por isso, para edi cação
minha, perguntei a um dos religiosos, que, havia quinze anos, estava
no mosteiro, e que se chamava Abacyro, constantemente injuriado por
quase todos, e às vezes expulso da mesa pelos ministros, por ser esse
religioso um tanto incontinente da língua, perguntei-lhe eu: “Que é
isto, irmão Abacyro, que te vejo cada dia expulsar da mesa e, algumas
vezes, estar nela sem comer?”. A isto respondeu-me ele: “Crê, padre,
no que vos digo: estes meus padres provam-me para ver se quero ser
monge, e não porque me queiram injuriar; sabendo eu ser esta a
intenção do padre e de todos os outros, facilmente e sem moléstia
sofro tudo, há quinze anos, e espero sofrer mais, porque, quando
entrei para o mosteiro, eles me disseram que, até os trinta anos,
provavam aos que deixavam o mundo, o que, aliás, é muito acertado,
porque o ouro não se puri ca senão na forja”. Este nobre Abacyro
faleceu no segundo ano depois que vim a este mosteiro; e, quando
esteve para morrer, disse aos padres: “Graças dou ao Senhor, e a vós,
padres, que, para bem da minha alma, continuadamente me tentastes;
por isso, até agora hei vivido livre das tentações do inimigo”. O abade
mandou inumá-lo muito justamente, como a um confessor de Jesus
Cristo, no lugar reservado aos santos que ali estavam sepultados.
Parece-me que farei grande agravo aos amantes da virtude, se calar
a virtude e batalha de um religioso chamado Macedônio, que era o
primeiro o cial do mosteiro. Uma vez, dois dias antes da festa da
Epifania, este santo varão pediu ao abade licença para ir a Alexandria,
por causa de certos negócios que lhe eram necessários, cando, porém,
de voltar em tempo de acudir aos deveres do seu ofício e aparelhar o
que convinha para a festa. Mas, o Demônio, inimigo de todos os bons,
rodeou o negócio de tais circunstâncias que ele não pôde vir para o
dia daquela sagrada solenidade; e, como regressasse um dia depois, o
abade o privou de seu ofício e o mandou car no mais baixo lugar dos
noviços. Aceitou este castigo o bom ministro de paciência e príncipe
de todos os ministros no sofrimento, e isto tão sem tristeza, sem pesar,
como se fora outro e não ele, o penitenciado. Havendo cumprido por
quarenta dias esta penitência, mandou-lhe o abade voltar para o seu
primeiro lugar; passado, porém, um dia rogou o religioso Macedônio
que o deixassem na humildade daquela ignomínia, alegando ter
cometido na cidade um grave delito. Mas, o abade, sabendo que ele
dizia isto mais por humildade do que por verdade, cedeu entretanto ao
honesto desejo daquele bom trabalhador: ali estava, pois, o venerável
ancião no lugar e classe dos noviços, pedindo sinceramente a todos
que rogassem a Deus por ele. E este grande varão declarou-me que
havia procurado com tanto empenho essa maneira de humildade e
penitência, porque nunca se sentira tão descarregado de todo gênero
de tentações e tão cheio da doçura da divina luz, como naqueles dias.
De anjos é não cair, porque os anjos, quando caíram, tornaram-se
demônios; de homens, porém, é cair e, quando tenham caído,
levantar-se.
Um padre, que tinha cargo da procuradoria do mosteiro, contou-me
que, quando era mancebo, caíra em gravíssima falta; mas, como tinha
por costume nada deixar encoberto na cova de sua alma, agarrou a
serpente pela cauda e logo descobriu a sua chaga ao médico. Este,
sorrindo, tocou-lhe levemente a face e disse-lhe: “Anda, lho, exercita
o teu ofício como fazias antes, sem temor algum”. E ele, o então
mancebo, que tinha o emprego de guardar animais, esforçado com
uma fé rmíssima e recuperando em poucos dias a saúde perdida,
corria por seu caminho adiante, cheio de alegria e paz de espírito. Isto
re ro, a m de que por aí se veja claro o fruto que se segue de revelar
logo nossos pecados ao padre diretor espiritual.
Há, em todas as ordens de criaturas, muitos graus e diferenças.
Naquela companhia de religiosos havia diferentes graus de
aproveitamento; e o abade proporcionava a cura, não só ao estado,
como ao temperamento do doente. Assim, se o abade via que algum
deles era amigo de ostentação em presença dos seculares que vinham
ao mosteiro, dirigia-lhe palavras ásperas em presença deles e
mandava-o ocupar-se nos ofícios mais baixos da casa, para que a
vanglória perseguisse a si mesma, fugindo à presença dos homens que
ela mesma antes procurava.
Não quis o Senhor que eu partisse daquele mosteiro sem provisão
das orações de um santo e admirável varão, chamado Mena, que tinha
o lugar imediato ao do abade no regimento do mosteiro, e que faleceu
poucos dias antes de minha partida, depois de ter vivido cinqüenta
anos no mosteiro e de haver servido em todos os ofícios. Três dias
depois do seu falecimento, quando celebrávamos o costumado ofício
dos defuntos por alma de tão grande padre, subitamente o lugar onde
esteve o seu corpo encheu-se de um odor de maravilhosa suavidade.
Permitiu, pois, aquele grande abade que fosse descoberto o lugar onde
o sagrado corpo jazia; e, feito isto, vimos todos que das preciosíssimas
plantas de seus pés, como de duas fontes, emanava um suavíssimo
ungüento. Então, o abade, voltando-se para todos, disse: “Vede,
irmãos, como os suores de seus cansaços e trabalhos foram recebidos
por Deus como um ungüento preciosíssimo!”. Deste beatíssimo padre
Mena contavam os padres daquele lugar muitas e grandes virtudes,
entre as quais esta: querendo o abade experimentar-lhe a paciência,
uma vez, quando, segundo o costume, veio prostrar-se a seus pés e
pedir sua bênção, o deixou estar assim prostrado, desde o princípio da
noite até a hora de matinas, sem dar-lhe a bênção; e só a essa hora,
acudindo a dar-lhe a bênção, repreendeu-o como a homem
impacientíssimo e que tais coisas fazia por vaidade e ostentação. Sabia
muito bem o abade quão fortemente fá-lo-ia sofrer com isso; mas, quis
dar este público exemplo para edi cação de todos. Um discípulo deste
santo Mena, que conhecia por inteiro os segredos de seu mestre,
contou-me que, durante todo o tempo em que esteve assim prostrado,
aquele padre não dormiu, e rezou todo o Saltério de Davi.
Estando nós outros um dia em oração, viu o abade certos religiosos
ocupados a conversar, aos quais, conquanto fossem clérigos e dos mais
antigos, mandou à porta da igreja, por espaço de sete dias,
prostrarem-se em terra perante todos os que por ela entrassem e
saíssem. Outra vez, vi que um religioso, aliás mais atento que os
outros no cantar dos Salmos, mudava de semblante e posição,
especialmente no princípio dos hinos, à guisa de quem falava com
outros; perguntando-lhe eu que signi cava aquilo, ele, desejando dar-
me proveito do exemplo, respondeu que, no princípio do ofício
divino, costumava recolher seus pensamentos e sentimentos, e dizer-
lhes: “Vinde, adoremos e prostremo-nos ante Jesus Cristo, nosso Deus
e nosso Rei”.
Não deixarei de engastar na coroa de nossa obra mais esta
esmeralda. A rmava eu uma vez, perante alguns daqueles fortíssimos
anciãos, as vantagens da quietude da vida solitária; e eles, com sereno
e alegre rosto, sorrindo, me disseram: “Nós, como homens terrenos,
escolhemos instituto e maneira de viver que não se levantasse muito
da terra; e, entendendo que, conforme a medida de nossa enfermidade,
nos convinha escolher a espécie de perigos e batalhas, pareceu-nos
mais seguro lutar com os homens, que a tempo se embravecem e a
tempo se amansam, do que com os demônios, que sempre estão
encarniçados e armados contra nós”. Mas, um daqueles varões, com
dulcíssimo e alegre coração, deu-me, em poucas palavras, completa
resposta com a suma de toda a vida religiosa: “Se verdadeiramente
[disse ele] hás bem penetrado o sentido daquelas palavras do
Apóstolo: Tudo posso naquele que me conforta; e se o Espírito Santo
sobreveio em ti com o orvalho da castidade e com a sombra da
paciência, cinge teus lombos com a cinta da obediência; e, levantando-
te da ceia da quietude, lava com espírito de contrição os pés de teus
irmãos, isto é, derruba-te aos pés de teus irmãos com um coração
abjeto e humilhado, e põe à porta do teu coração cortinas e guardas
severíssimas; trabalha também para que tua alma esteja sempre xa e
imutável nesse corpo tão movediço, e que tenha uma intelectual
quietude entre os movimentos e discursos desses membros tão
articulados; e, sobretudo, procura no meio dos desassossegos, estar
com ânimo quieto e repousado; refreia a desvairada e furiosa língua,
para que não se desmande em contradizer e por ar, e peleja contra
essa raivosa senhora setenta vezes ao dia; crava na cruz de tua alma
uma dura bigorna, que, martelada muitas vezes com injúrias,
escárnios, maldições e doestos, persevere sempre inteira, lisa, plana e
imóvel; despe-te de todas as tuas próprias vontades, como de uma
vestidura de confusão; e, assim despido, começa a correr pela carreira
da virtude; reveste-te de uma couraça de fé, tão forte que nenhum tiro
da in delidade possa romper; detém com o freio da castidade o
sentido do tato, que desavergonhadamente sói desmandar-se; reprime,
com a contínua meditação da morte, a curiosidade dos olhos, para
que, a cada hora, não queiram mirar a graça e a formosura dos
corpos; refreia também, com o perpétuo cuidado de ti mesmo, a
curiosidade do espírito, que, não zelando por si, quer, entretanto,
condenar o próximo; antes procura sempre usar de toda a caridade e
misericórdia para com os outros, porque todos conhecerão que somos
discípulos de Jesus Cristo, se, ajuntados em um só espírito, amarmo-
nos uns aos outros; bebe a cada hora escárnios e vitupérios como água
viva; pois, o santo rei Davi, tendo esquadrinhado tudo quanto havia
de alegre debaixo do céu, veio, a nal, a dizer que nada é tão digno de
admiração e alegria como morarem os irmãos quais fossem um só;
aqui, aqui, [dizia-me este bom amigo] vem estar juntamente conosco;
e, se não temos alcançado este grande bem da obediência, resta-nos,
conhecendo a nossa fraqueza, viver em soledade apartados desta
batalha, cujos guerreiros, confessemo-lo, são bem-aventurados: e
roguemos a Deus que lhes dê paciência”. Confesso que fui vencido e
convencido pelas palavras deste bom padre e mestre excelentíssimo, o
qual, com a autoridade do Evangelho e dos Profetas, muito mais que
com a força do amor sinceríssimo, havia contradito ao meu parecer; e
daí resultou que, de muito boa mente, dei a vantagem e a vitória ao
estado de obediência.
Resta-me, todavia, contar uma proveitosíssima virtude daqueles
bem-aventurados; e, dita esta, voltarei como quem sai do paraíso, a
entrar no sarçal da minha enfadonha doutrina. Tendo o abade
expulsado um religioso, por haver maltratado de palavras a outro,
aquele religioso perseverou à porta do mosteiro, durante sete dias,
pedindo humildemente perdão e entrada; e, sabendo o abade que ali se
achava ele, durante todo aquele tempo, sem comer, resolveu ceder,
impondo-lhe, porém, a retirada para a casa onde estavam os que
faziam penitência por seus pecados; e a isso se submeteu o persistente
e arrependido religioso. E já que se oferece ocasião de mencionar este
lugar, sou obrigado a descrevê-lo: estava situado a uma milha do
mosteiro principal e chamava-se “cárcere”, pois como verdadeiro
cárcere, era destituído de toda a humana consolação; não se via ali
vapor de fumaça, nem vinho, nem azeite para comer, mas somente
ervas. Neste lugar mandava o abade encerrar todos os que, depois do
seu chamamento, haviam pecado gravemente; e só os tirava dali
depois que o Senhor o avisasse do perdão de seus erros. E não estavam
todos juntos, mas apartados cada um por si, ou quando muito, dois a
dois. Havia o abade posto na direção do cárcere um grande e
assinalado varão, chamado Isaac, que obrigava todos aqueles presos
voluntários a uma quase perpétua oração; e para desterrar a preguiça,
mandava-os tecer folhas de palmeira, abundantes por ali. Esta é a
vida, este o estado, este o propósito dos que verdadeiramente buscam
a face do Deus de Jacó.
III

Quando repreendidos pelos nossos superiores, nos a igimos,


lembremo-nos dos nossos pecados, para que, vendo o Senhor a
angústia que quer fazer-nos padecer, nos alivie juntamente dos
pecados e da angústia, convertendo a nossa dor em alegria; porque,
segundo a qualidade e quantidade das dores de nosso coração, assim
suas consolações sóem alegrar nossas almas. Não nos olvidemos,
então, daquele que disse ao Senhor: Quantas e quão grandes
tribulações me destes, 0 Senhor; e, depois de voltado a mim, me
ressuscitastes e tirastes dos abismos! Bem-aventurado aquele que,
diariamente provocado com doestos e injúrias, sofre com paciência,
fazendo força a si mesmo, porque este se alegrará com os mártires e
será coroado com os anjos. Bem-aventurado o monge que, a toda hora
do dia, se considera merecedor de abjeção e confusão. Bem-
aventurado aquele que morti cou sua vontade até o m da vida, e
entregou todo o encargo e providência de si a seu mestre e diretor
espiritual, porque esse será colocado à direita daquele Senhor, que foi
obediente até a morte.
Aquele que despede de si a repreensão justa ou injusta, despediu de
si toda a vida; mas, aquele que sofre a repreensão, presto alcançará
perdão de seus pecados. Manifesta a Deus, do íntimo de teu coração,
a fé e caridade sincera que tens para com o teu diretor espiritual; e
Deus secretamente lhe descobrirá esta tua con ança, para que daí em
diante te ame e trate dos negócios de tua salvação com maior estudo e
atenção. Aquele que está aparelhado para descobrir todas as serpentes
dos maus pensamentos, dá de si grande mostra de fé; mas, aquele que
as encobre no segredo de seu coração, vai por mau caminho.
Se alguém quiser examinar a caridade que tem para com seus
irmãos, observe se chora nas culpas deles e se se alegra em suas graças
e aproveitamento. Aquele que é por ado em levar por diante o seu
parecer, ainda que verdadeiro seja, tenha por certo que o Demônio o
move a isso: se tal zer, tratando com seus iguais, por ventura se
emendará com a repreensão dos maiores; se, porém, tiver esta
pertinácia contra o parecer dos sábios, já este mal não se poderá curar
só com arte humana. Aquele que não é humilde nas palavras, não o
será nas obras, porque, sendo in el no pouco, também o será no
muito: esse não fará caso da autoridade dos maiores, de sorte que
trabalhará em vão no estado de obediência, do qual não tirará fruto.
Aquele que guarda sua consciência limpa, vivendo sujeito ao diretor
espiritual, esse esperará a morte como quem espera um sono, sem
temor algum, porque sabe que, à hora da morte, não tanto a ele, como
ao diretor espiritual, serão pedidas as contas.
Quem, não tendo sido forçado por obediência, recebeu algum cargo
ou administração, e nesse cargo ou administração foi mal sucedido,
não atribua a causa desta culpa a quem lhe deu as armas, mas a quem
as tomou; pois, havendo recebido armas para pelejar contra o inimigo,
as volveu contra si e atravessou o próprio coração com elas. Se,
porém, recebeu o cargo ou administração forçado por obediência,
declarando primeiro sua fraqueza, não se a ija, porque, se cair, não
morrerá.
A alma que sempre pensa na con ssão de seus pecados, com este
freio se aparta deles, porque os pecados que fugimos de confessar,
como coisa que se faz às escuras e sem temor de ninguém, mais
facilmente costumamos cometê-los. Quando o nosso superior estiver
ausente, devemos gurá-lo e pô-lo diante de nós, fazendo de conta que
está observando nosso modo de conversar, de falar, de comer e de
dormir: se, então, fugirmos de tudo que lhe pudesse ser desagradável,
poderemos crer que temos realmente alcançado uma livre e sincera
obediência. Os meninos preguiçosos e frouxos sóem folgar na
ausência do mestre; os meninos diligentes e aplicados sóem considerar
essa ausência como muito prejudicial.
Um daqueles muito aprovados varões, a quem perguntei como a
virtude da obediência acarreta a da humildade, respondeu-me: “O
devoto obediente, ainda que tenha o dom das lágrimas, ainda que
ressuscite mortos, ainda que seja vencedor em todas as batalhas, pensa
que tudo isto alcançou pelas orações de seu diretor espiritual, e assim
ca livre da inchação da soberba”. Realmente, como poderá alguém
gloriar-se daquilo que crê não ter alcançado por si, mas pelo auxílio
de seu diretor espiritual? O solitário não tem este socorro; e, por isso,
mais entrada tem contra ele a vanglória, quando imagina que, só por
seu trabalho, alcançou o que tem. Quando aquele que está debaixo da
obediência escapar de dois laços, desobediência e soberba, cará
perfeito servo de Jesus Cristo.
Trabalha o Demônio contra os obedientes, umas vezes por sujar
seus corpos com feios humores, outras vezes por fazê-los duros de
coração, insofríveis, secos, amigos de comer e beber, preguiçosos para
a oração, sonolentos, e cerrados de entendimento: tudo isso para que,
vendo-se eles assim, como quem nenhum fruto tira do instituto da
obediência, saiam deste estado e voltem atrás, sem considerarem no
grande motivo e matéria de profundíssima humildade, que nisto Deus
lhes ocasionará por singular dispensação. Muitas vezes, com
sofrimento e paciência, foi vencido o Demônio, artista de tais enganos;
vencido, porém, este inimigo, logo atrás dele se levanta outro com
uma tentação contrária. Assim, por exemplo, tenho visto muitos
obedientes devotos, alegres, abstinentes, estudiosos e fervorosos, os
quais, com o favor do diretor espiritual, haviam alcançado tudo isso;
mas, eis que acometidos pelos demônios com a insu ação de que já
estavam dispostos e hábeis para a soledade, por onde poderiam chegar
ao cume da suma e suavíssima virtude, tais obedientes caíram neste
laço, deixaram porto seguro e engolfaram-se em alto mar: e, aí,
sobrevindo-lhes tempestade, faltou-lhes piloto que os governasse, e
naufragaram desastradamente. É necessário que o mar se revolva, se
conturbe e embraveça, para que torne a lançar à terra toda a matéria e
lixo que os rios lhe trouxeram; assim também é necessário que o
obediente seja muito vexado por contrariedades, com os exercícios da
vida monástica, e com a disciplina do diretor espiritual, para que
despeça de si toda a imundície de paixões e vontades próprias trazidas
do mundo. Feitos estes exercícios, poderemos mais seguramente
passar à vida solitária, certos de que, após estas ondas e tempestades,
seguir-se-á grande tranqüilidade ou bonança.
Aquele que em certas coisas obedece ao diretor espiritual, e em
outras não obedece, assemelha-se a quem umas vezes põe álcool nos
olhos e outras vezes põe cal; pois, se um edi ca, outro destrói, de sorte
que é trabalhar em vão. Ninguém se engane com espírito de soberba,
revelando culpas ao mestre sob nome de outra pessoa; pois, ninguém
pode livrar-se da eterna confusão sem alguma confusão. Abra cada um
sua chaga e mostre ao médico, dizendo-lhe: “É minha esta chaga, é
minha esta ferida; fui eu a causa dela, eu, somente eu; a culpa foi
minha, somente minha; ninguém mais foi autor dela, nem homem,
nem espírito, nem corpo, nem outra qualquer coisa, mas somente a
minha negligência”. E quando assim te confessares, lho, hás de estar,
na postura do corpo, na gura do rosto, nos pensamentos, como um
réu sentenciado à morte, postos os olhos em terra, e, se possível for,
prostrado e debulhado em lágrimas ante o médico e mestre, como se
estivesses aos pés de Jesus Cristo. Sóem os demônios incitar-nos a que
não nos confessemos, ou, ao menos, a que façamos isso em nome de
outros, como acusando a outros de algum pecado; isto é coisa
horrível, que jamais devemos praticar.
Se, como é certo, o costume pode tanto, que todas as coisas dele
dependem e se vão atrás dele, sem dúvida muito mais poderoso será
ele no bem do que no mal; pois, tem em Deus um auxiliar. Não
queiras, lho, desfalecer com o trabalho de muitos anos, e trabalha
sempre até que aches em tua alma aquela bem-aventurada quietude e
paz a que todos caminhamos. E se ao princípio te ofereceste, por amor
de Deus, de todo o coração, a todo o gênero de ignomínias, não
tenhas por coisa indigna confessar, com o rosto e ânimo humilde,
todas as suas culpas a teu ajudador e mestre, como se as confessasses a
Deus. Muitas vezes vi réus que, com miserável hábito, e com a força
de veemente con ssão e suplicação, abrandaram a severidade do juiz e
trocaram a sua dureza em misericórdia. Por isso, aquele glorioso
precursor de Jesus Cristo, antes de batizar aos seus que a ele vinham,
pedia-lhes esta humilde con ssão de culpas, para melhor prover à sua
salvação. E não nos maravilhemos, se após esta con ssão formos
combatidos e tentados, porque mais vale pelejar com a soberba da
carne do que com a soberba do espírito.
Não corras logo, nem te movas facilmente, quando ouvires contar
as vidas dos padres solitários, chamados anacoretas. Tu militas no
exército dos mártires, e, ainda que te aconteça ser ferido na batalha,
não te hás de sair logo do exército dos irmãos; pois, então,
principalmente, temos necessidade do médico, quando somos feridos.
Se alguém, tendo ajudador, tropeçou e caiu, faltando este, não só
cairá, mas de todo perecerá; e, quando algumas vezes caímos,
faltando-nos ajudador, logo os demônios se aproveitam do momento,
instigando-nos a ir para a soledade, sob pretexto de fugir das ocasiões,
mas no intento de acrescentar outras feridas.
Quando acontecer que nosso médico, clara e evidentemente se
escusa com a insu ciência de suas forças, busque-se outro, porque,
sem auxílio de sábio médico, poucos saram. Quem poderá negar que
um navio, salvo no meio de bravas ondas, em tormentosa tempestade,
deixaria de naufragar se não tivesse um bom piloto? Mas, sem dúvida,
merecedores são de grande pena diante de Deus aqueles que, tendo
experimentado em suas chagas, e aproveitado, a sabedoria do médico,
deixam-no e tomam outro. Não queiras, lho, fugir às mãos daquele
que primeiro te ofereceu a Deus, porque em toda a vida não acharás
outro a quem prestes tanta reverência. Não é coisa segura, para o
soldado bisonho, entrar logo em desa o, nem tampouco para o
religioso noviço passar à soledade; porque, assim como aquele corre
perigo no corpo, este padecerá na alma. Mais valor, diz a Escritura,
tem dois juntos do que um: e assim é melhor estar o lho juntamente
com o pai, para que, com sua ajuda e diligência, intervindo a graça
divina, possa pelejar contra a força de suas paixões e maus costumes.
Aquele que priva o discípulo desta providência, é como aquele que
priva o cego de guia, a manada de pastor, o menino de cautelas de
seus pais, o enfermo de médico, o navio de piloto. E aquele que, sem
ajuda do diretor espiritual, quer pelejar contra os espíritos maus,
maravilha será que não venha a morrer nas mãos de tais inimigos.
Aqueles que, no princípio da enfermidade, vão curar-se à casa dos
médicos, atendam para a qualidade das dores que padecem; aqueles
que vão à casa da obediência, atendam para a humildade que têm.
Naqueles, a diminuição das dores é sinal de melhoras; nestes, o
acrescentamento da humildade e do menosprezo e repreensão de si
mesmos é indício de salvação. Seja tua consciência o espelho em que
mires a sujeição e obediência que tens, porque ela te dirá a verdade.
Da obediência nasce a humildade e, da humildade, a tranqüilidade de
ânimo; pois, o Senhor, como disse o Profeta, se lembrou de nós em
nossa humildade e nos livrou de nossos inimigos. Portanto, não será
incongruência dizer que da obediência nasce a tranqüilidade; pois, por
ela se alcança a humildade, que é mãe da tranqüilidade, visto ser uma
o princípio da outra, como Moisés da lei. E, depois, a lha aperfeiçoa
a mãe, isto é, a humildade à obediência, como Maria à sinagoga.
Aqueles que, vivendo em soledade, estão sujeitos ao diretor
espiritual, só têm por adversários os demônios; mas, aqueles que
vivem em congregação, têm contra si, não só os demônios, como os
homens. Aqueles primeiros, como têm sempre o mestre diante de si,
guardam com mais cuidado seus mandados; os outros, porém, como
algumas vezes o perdem de vista, mais vezes os transgridem. Contudo,
se forem diligentes e sofredores de trabalhos, suprirão esta falta com o
sofrimento das injúrias e merecerão dobradas coroas.
Ainda mesmo estando em religião, tenhamos tento conosco, porque
não raro acontece perderem-se as naves no porto, especialmente
aquelas que criam dentro um verme roedor, que em nós é o vício da
ira. Enquanto estamos debaixo da mão de nosso mestre, com sumo
silêncio confessemos nossa ignorância; e a isso nos acostumemos,
porque o varão calado é lho da loso a, e comumente é de muito
saber. Vi uma vez um religioso arrebatar a palavra da boca do seu
mestre, dando a entender que sabia bem do que se tratava; e descon ei
da sua sujeição, pois dela tirava mais soberba que humildade.
Considera com toda a vigilância, e examina com toda a diligência,
quando e como se há de antepor o ministério, isto é, o serviço do
próximo, à oração; porque nem sempre se há de fazer isso, mas
quando a obediência ou necessidade da caridade o pedir. Considera
também atentamente, quando estás em companhia de outros irmãos,
que não queiras parecer mais santo do que eles: dois males daí
surgem, um, para os outros, que consiste em turbá-los com essa falsa
aparência, outro, para ti, qual seja o tirares disso soberba e
arrogância. Procura ser, no íntimo de teu ânimo, diligente e solícito;
mas, não o mostres exteriormente com o hábito, ou com palavras e
sinais desusados. E nisto deves ter todo o empenho, ainda que não
sejas inclinado a isto, muito mais deves trabalhar para seres em tudo
semelhante aos irmãos, e não te tornares vaidosamente diferente. Vi
uma vez um mau discípulo, que inoportunamente gloriava-se das
virtudes de seu mestre; parecendo-lhe que ganhava honra com a
fazenda alheia, ao contrário tirou daí desonra, porque todos
estranhavam que tão ruim fruto tivesse sido produzido por tão boa
árvore.
Não pensemos ter já alcançado a virtude da paciência, quando
sofremos as repreensões de nosso pai: é preciso, além de sofrer
constantemente as repreensões, que sejamos escouceados de todos os
homens; pois, se ao pai sofremos, somos disso devedores pelo cargo
que de nós tem. Bebe com suma alegria as repreensões e escárnios que
qualquer homem te der a beber, como se fora água de vida; porque é
isso saudável purgante com que expilas de ti todo o regalo e luxúria.
Sem dúvida, uma tal beberagem fará nascer em tua alma uma íntima e
profunda castidade; e a luz formosíssima de Deus esclarecerá teu
coração. Nenhum de vós descuidadamente se glorie em si mesmo,
quando perceber que sua vida exemplar é de notável proveito à
congregação de seus irmãos; porque os ladrões estão mais perto
daquilo em que ninguém pensa. Recorda-te do que disse o Senhor e,
depois que tiveres feito tudo quanto te for mandado, dize: Servos
somos sem proveito, o que estamos obrigados a fazer, zemos; e, como
delicadamente examina Deus em seu juízo nossos trabalhos, à hora da
morte se verá. O mosteiro é um céu terrenal; e, por isso, tais
procuremos ter os corações, quais os têm os anjos do céu divinal.
Algumas vezes, neste céu terrenal, uns têm os corações como de pedra,
outros como de cera, para que, assim, aqueles fujam à soberba, e estes
se consolem em seus trabalhos. Pouco fogo basta para abrandar a
cera; um pouco de ignomínia, levada com paciência, bastou algumas
vezes para abrandar, adoçar, e tirar toda a ferocidade, toda a dureza e
toda a cegueira de um coração.
Uma vez vi dois que estavam secretamente escutando e observando
os trabalhos e gemidos de um religioso, que nisso se exercitava: um
fazia-o com desejo de imitá-lo, outro para desdenhar dele em público,
logo que se oferecesse ocasião, e distrair assim o servo de Deus de seu
exercício. Não verás quão diferentes faz nossas obras o olho da
intenção.
Não queiras ser indiscretamente calado, para que não sejas
desabrido aos outros com o peso do teu silêncio; pois, como está
escrito, há tempo de falar e tempo de calar. Nem tampouco sejas
refalsado em tuas palavras, nem quereloso, ou criminoso, quando algo
te fazem; pois, isto é próprio dos perturbadores da paz e da concórdia.
Tenho visto algumas almas perecerem por frouxidão, assim como
tenho visto outras perecerem por uma aparente gravidade; e
maravilhei-me de ver esta variedade nos vícios, dos quais uns são
claros e manifestos, outros paliados com cor de virtude.
Aquele que mora em companhia de religiosos, algumas vezes não
aproveita tanto com o canto dos Salmos quanto com a oração secreta;
porque muitas vezes a atenção ao canto nos impede de alcançar a
virtude e entendimento deles. Batalha, com todas as tuas forças, e
reprime sem cessar a imaginação irrequieta, recolhendo-te dentro de ti
mesmo em todo o tempo e, ainda mais, no tempo da oração e dos
ofícios divinos; pois, em geral, a oração dos que vivem debaixo de
obediência é muito batida de pensamentos que distraem a atenção.
Não te entristeças, porém, se, quando estás em oração, o inimigo se te
entra sutilmente e, como ladrão, secretamente te rouba a atenção;
con a em Deus, desde que te esforças, quanto podes, para recolher os
pensamentos que ligeiramente correm de um ponto a outro; porque
somente aos anjos é dado estar livre desses furtos.
Aquele que está rmemente disposto a não sair desta batalha até o
m da vida, ainda que o cerquem mil mortes de corpo e alma, não é
tão facilmente combatido de pensamentos e utuações; porque estas
dúvidas interiores, e esta instabilidade, e mudança de lugares, sempre
sóem gerar ocasiões de perigos e trabalhos e guerra de pensamentos.
Aqueles que são inclinados a mudar de lugares, e fáceis de efetuar tais
mudanças, vivem muito errados; porque nada impede tanto o fruto do
nosso aproveitamento como essa série de mudanças feitas com
facilidade e temeridade.
Se te encontrares com algum médico não conhecido, ou com alguma
o cina de medicina espiritual, atende diligentemente, como um
caminhante curioso, e examina secretamente tudo quanto ali vires; e
se achares, por meio destes o ciais e ministros, algum socorro ou
remédio para tuas enfermidades, especialmente para a inchação da
soberba, que procuras evacuar, prende-te com segurança, vende-te
pelo ouro da humildade, e faz lavrar escritura da venda rmada pela
mão da obediência, chamando por testemunhas os santos anjos. Deves
ter sempre em consideração que, deixando este lugar e sossego por tua
vontade, já perdes o fruto do contrato e o preço por que Jesus Cristo
te redimiu. Faz de conta que o mosteiro é teu túmulo; e a memória
dele te deve admoestar de que ninguém sai da sepultura até a comum
ressureição de todos. E se alguns saíram como aconteceu na
ressureição de Jesus Cristo, pensa como depois morreram, e roga ao
Senhor que espiritualmente te não aconteça o mesmo.
Quando os fracos e preguiçosos sentem que lhes mandam coisas
graves, sóem então louvar a virtude da oração; mas, quando lhe
mandam coisas fáceis, então fogem dela como de fogo. Há alguns que,
estando ocupados em qualquer ofício e ministério, para consolação ou
edi cação do irmão, interrompem o ofício para acudi-lo na
necessidade espiritual: e fazem bem. Outros há, porém, que isto fazem
por preguiça, outros por vanglória, dizendo que se querem dedicar a
coisas espirituais, inutilizando assim o bem que fazem com a má
intenção com que obram. Não é possível que o Diabo seja contrário a
si mesmo; e disto te persuadam os que negligentemente vivem na
soledade, ou no mosteiro, aos quais o Demônio, incitando a mudar de
lugares, sob color de virtude, não o faz por mudar de vontade e sim
para enganá-los mais sutilmente. Por isso, quando somos
importunamente tentados a passar a outro lugar, tomemos isso por
indício de aproveitamento; porque, se ali não aproveitássemos, não
seríamos tão tentados do inimigo para sair.
IV

Se, no gênero de vida em que te achas, vês claramente que os olhos de


tua alma estão de todo sem luz e sem aproveitamento, trabalha por
sair desse modo de vida o mais depressa que puderes, e para passar a
outro mais aproveitável. É verdade que o mal em todo o lugar é mal, e
o bem em todo o lugar é bem; mas, em todo o caso, para isso não
deixa de ajudar a condição do lugar. Palavras injuriosas e afrontosas
foram muitas vezes causa de mortes e discórdias; mas, nas religiões, a
gula, isto é, o regalo no comer e beber, foi causa da perda delas. Se
trabalhares por subjugar essa raivosa senhora, em todo o lugar terás
quietude e repouso, ao passo que, se ela tiver senhorio sobre ti, em
todo o lugar padecerás perigo. O Senhor ilumina os olhos cegos dos
obedientes, para verem as virtudes de seus mestres, e cega-os para que
não vejam seus defeitos; o Demônio, porém, procede de modo inverso.
Seja para nós exemplo, seja para nós forma de obediência, o metal
vivo a que chamam azougue, o qual, posto que permanecendo
debaixo de quaisquer outros materiais, está sempre puro e livre de
qualquer mistura: assim convém que esteja sempre nossa alma, ainda
que se derrame e envolva em todos os negócios da obediência. Aqueles
que são cuidadosos e solícitos na guarda de si mesmos, não julgam os
descuidados e frouxos, a m de que não sejam mais gravemente
condenados do que eles. Jó foi louvado como justo, porque, vivendo
no meio dos maus, jamais se meteu a julgá-los. As injúrias, os agravos
e menosprezos, para a alma do obediente, são amargos como a
babosa; mas, os elogios, as honras e boa reputação, para os que
andam à caça destas coisas, são doces como o mel. Contudo, a babosa
purga as fezes dos maus humores, mas o mel acrescenta a cólera.
Acreditemos seguramente nos que têm cargo de nós, ainda mesmo
que nos mandem coisas que, à primeira face, pareçam contrárias ao
nosso propósito e aproveitamento; porque, então, a con ança se
examina na forja da humildade, sendo certo que o maior argumento
da vossa lealdade para com eles é o fato de obedecermos sem
escrúpulo a ordens contrárias às que esperávamos.
Da obediência, como já dissemos, nasce a humildade; e, da
humildade, a discrição, como alta e elegantemente o prova o grande
Cassiano; e pela discrição se infunde na alma uma luz claríssima, que
algumas vezes, por especial dom de Deus, chega a conhecer e prover
às coisas futuras. Quem, pois, não correrá com alegre ânimo por este
caminho da obediência? Desta singular virtude dizia aquele cantor:
Preparaste, Senhor, pela doçura de tua saúde a doçura de tua mesa e
de tua presença no coração do pobre, que é o verdadeiro obediente e
humilde.
Alguns dos desobedientes, quando vêem a facilidade e brandura do
diretor espiritual, trabalham por inclinar sua vontade ao que eles
querem: pois saibam que perdem a coroa da obediência, porque não
há obediência sem perfeita renúncia da própria vontade, e de todo este
artifício e ngimento. Há alguns que, recebido o mandado, quando
entendem que não é conforme ao gosto e interesse do que o manda,
não o querem cumprir; outros há que, mesmo percebendo ser a
intenção diversa das palavras, todavia obedecem simplesmente às
palavras: parece que, neste caso, melhor obedeceu quem mais escutou
a intenção do que as palavras.
Seria eu mau e desumano se deixasse de narrar as coisas admiráveis
que contou-me João Sabbayeta, excelente varão, de mim muito
amado. E que este varão estava livre de paixões e longe de toda a
mentira, e assim em obras como em palavras limpo, dou disso bom
testemunho pela experiência que dele tenho. Contou-me ele que havia
em um mosteiro, na Ásia, um velho negligentíssimo e muito
destemperado, ao qual se referia, não para condená-lo, mas para dar
testemunho da virtude. Tinha este um discípulo moço, chamado
Acácio, simples de ânimo e vontade, porém, no siso e na razão,
prudentíssimo, o qual padeceu tantos trabalhos com este velho, que
pareceriam incríveis, se os quisesse referir todos; pois, não só o
maltratava com injúrias e desonras e ignomínias, como com castigo de
mãos quase cotidiano. O moço sofria tudo isso, não como insensível,
mas como quem entendia o que isto lhe importava, até que, passados
nove anos debaixo da obediência daquele cruel e áspero velho, veio a
falecer e foi sepultado no cemitério dos padres. Cinco dias depois de
sua morte, foi o tal velho comunicar a outro ancião, que ali morava, a
morte de Acácio. Este venerável ancião, declarando duvidar do caso,
foi com o outro ao cemitério; e, ali, como se falasse com um vivo,
perguntou: “Irmão Acácio, por ventura estás morto?”. De dentro do
sepulcro o morto obediente respondeu assim: “Como pode estar
morto o homem dado à obediência?”. Então aquele cruel velho, que
pouco antes se chamava seu mestre, espantado, caiu em terra
debulhado em lágrimas, e pediu ao abade do mosteiro que desse
licença para edi car uma cela a par daquela sepultura. E, vivendo ali,
dizia sempre aos padres: “Homicida sou, rezai por mim”.
Outra coisa me contou o mesmo santo varão, como quem contava
de outro, e esse outro não era senão ele próprio, como depois o
averigüei. Outro mancebo foi dado por discípulo, no mesmo mosteiro
da Ásia, a um monge manso e benigno. Como visse o discípulo que o
velho o honrava e tratava mansamente (o que é coisa perigosa para
muitos), pensou prudentemente que lhe convinha ir para outro
mosteiro, pediu e conseguiu facilmente a licença para sair, porque o
velho tinha mais outro discípulo. Partiu, pois, com uma carta de
recomendação, para um mosteiro situado na região do Ponto. Logo na
primeira noite que passou neste mosteiro, o moço viu em sonhos
certas pessoas que lhe pediam contas de sua vida, e que, depois de
terrível e temeroso exame, deram-lhe a entender que devia cem libras
de ouro. Despertando e entendendo a visão, permaneceu no mosteiro
obedecendo a todos sem diferença, sofrendo menosprezos e injúrias,
como a peregrino estrangeiro, porque não havia ali outro monge
estrangeiro além dele. Passados três anos, tornou às visões, isto é, viu
em sonhos uma pessoa que lhe disse estarem pagas apenas dez libras
daquela soma; e, despertando, compreendeu que tinha necessidade de
sofrer mais trabalhos e ignomínias. Resolveu, então, ngir-se de bobo
e tonto, porém sem deixar de exercer com toda a exatidão os deveres
do cargo que tinha; e, vendo os padres a ordem e alegria com que
servia, lançaram-lhe às costas as maiores cargas e trabalhos do
mosteiro. Perseverava ele nesta maneira de vida, até que, no m de
treze anos, voltaram-lhe as visões para lhe dizer que a dívida já estava
paga por inteiro: e isto porque, cada vez que os padres o tratavam
asperamente, logo se recordava dessa dívida, sofrendo tudo com muita
paciência.
Trabalhemos com todas as forças todos nós que tememos a Deus, a
m de que não se nos pegue alguma malícia, astúcia, aspereza, ou
maldade, na escola da virtude; sói muitas vezes acontecer que, por tais
meios, os demônios procuram impedir a nossa carreira. Os inimigos
do rei não se armam contra os lavradores, ou contra os pescadores, ou
pessoas tais; mas contra aqueles que pelo rei foram armados
cavalheiros e dele receberam o escudo, a espada, o arco e a vestidura
militar: contra estes se enfurecem e a estes procuram causar dano, e,
por isso, não deve o varão religioso descuidar-se. Vi muitas vezes
alguns meninos de maravilhosa simplicidade que iam à escola para
estudar e aprender sabedoria; mas, em vez disso, aprenderam astúcia e
malícia que se lhes pegou da má companhia dos outros. Quem
aprende uma arte com todo o estudo e diligência, há de aproveitar
dela; uns conhecem o seu aproveitamento, outros há que, por
dispensação de Deus, não o conhecem. Ótimo cambista ou mercador é
aquele que, dia por dia, conta suas perdas e ganhos; se apontarmos em
um memorial, hora por hora, as nossas faltas, facilmente se conhecerá
a conta do dia.
O louco, quando é repreendido e condenado, a ige-se e acabrunha-
se; e para impor silêncio a quem o repreende, pede-lhe perdão,
prostrado a seus pés, não por humildade, mas por horror ao trabalho.
Quando fores repreendido, cala-te e recebe esse cautério de tua alma,
ou, para melhor dizer, recebe essa lâmpada de castidade; e, quando o
médico acabar de queimar, então humildemente roga que te perdoe,
porque, no fervor da repreensão, por ventura não aceitará ele tua
penitência.
Nós que vivemos nos mosteiros, a toda a hora nos convém pelejar,
especialmente contra dois inimigos, a ira e a gula; porque estes dois
vícios mais medram em companhia do que em soledade. Costuma o
Demônio causar, aos que vivem na humildade da sujeição, um grande
desejo de virtudes que não podem alcançar, assim como, aos que
vivem em soledade, faz desejar virtudes alheias ao propósito deste
instituto. Examina diligentemente o ânimo dos maus súditos, e verás
as suas pretensões derramadas em pensamentos e desejos de soledade,
de grandes jejuns, de contínua oração, de sumo menosprezo do
mundo, de perpétua memória da morte, de contínua compunção, de
perfeita morti cação da ira, de altíssimo silêncio, e de excelentíssima
castidade: o Demônio fá-los desejar tudo isto, para, sob o color desses
bens, fazê-los passar à vida solitária sem que estejam para ela maduros
e dispostos; o Demônio fá-los desejar tais bens antes do tempo, para
evitar que perseverem na companhia do mosteiro e que os consigam
quando for tempo. Por outro lado, aos que vivem vida solitária, o
mesmo Demônio põe diante deles a glória dos obedientes, o cuidado
dos hóspedes e peregrinos, o amor dos irmãos, a doçura da
conversação familiar, o serviço dos enfermos, e outras coisas que não
pertencem tanto a seu estado, a m de fazê-los também instáveis e
inconstantes. Poucos sem dúvida são os que vivem como convém na
soledade; e só estes são notavelmente recreados com a divina
consolação para o sofrimento dos trabalhos e para vitória das
batalhas.
Para acertar na escolha de mestre conveniente, examina a qualidade
de tuas paixões e inclinações. Se te sentes inclinado à luxúria e deleites
do corpo, busca um padre que não saiba que coisa é ter conta com o
ventre, isto é, que não esteja aparelhado para receber sempre hóspedes
em casa, a m de que esta hospedagem não te faça matéria e ocasião
de gula. Se fores duro de cerviz e soberbo, busca padre irritável e
enérgico, isto é, nem manso nem brando. Não busquemos padres que
ostentem espírito profético, mas os escolhamos entre os humildes e
tais que seus costumes e habitação sejam convenientes para a cura das
nossas enfermidades. Ótimo meio de obedecer prontamente é pensares
que o padre te quer provar em todas as vicissitudes: e assim nunca te
enganarás. Se, sendo continuamente repreendido pelo padre, quanto
mais te repreende mais con ança nele tens, conjectura é muito grande
de que o Espírito Santo mora em ti invisivelmente, e que a virtude do
Altíssimo te faz sombra. Não te glories, nem te alegres, se sofres com
paciência as ignomínias; antes, chora porque zeste coisas dignas de
ignomínia e indignaste contra ti o ânimo do padre.
Uma coisa te quero dizer, da qual te maravilhes; e, olha, não
duvides, porque tenho por mim uma sentença de Moisés. Conquanto
seja, por sua natureza maior culpa pecar contra Deus do que contra o
homem, até certo ponto mais perigoso é pecar contra o padre diretor
espiritual do que contra Deus; pois, se provocarmos a ira de Deus, o
nosso padre o aplacará, como fez Moisés a Deus, quando o povo
pecou contra o mesmo Deus; se, porém, ofendermos ao nosso padre,
não teremos quem nos reconcilie com Deus, como aconteceu a Datan
e Abiron, quando pecaram contra o mesmo Moisés.
Examinemos com muita atenção e vigilância o que devemos fazer
em cada tempo, porque, algumas vezes, quando somos repreendidos
por nosso pastor, convém calar e sofrer alegremente, outras vezes
convém dar a razão do que zemos. A mim, parece-me que devemos
calar sempre que a repreensão redunda somente em ignomínia nossa,
porque, então, é tempo de ganhar; mas, nas coisas que redundam em
injúria de outro, convém dar razão, pela obrigação que nos impõe o
vínculo da paz e da caridade.
Todos aqueles que se retiraram da obediência, te poderão muito
bem declarar a utilidade dela, porque melhor avaliarão o céu em que
estavam. Aquele que caminha para Deus e procura alcançar a perfeita
quietude da alma, tenha por grande detrimento passar algum dia sem
sofrer alguma ignomínia ou palavra áspera. Assim como as árvores
batidas de grandes ventos lançam mais fundas raízes, assim os que
estão debaixo da obediência, por combates que sempre padecem, têm
mais profundas as raízes da virtude. Aquele que, tendo morado em
soledade e não sendo hábil para ela, conheceu sua inabilidade e foi
entregar-se à obediência, esse tal, estando cego, abriu os olhos e, sem
trabalho, viu a Jesus Cristo. Irmãos, irmãos, torno a dizer, irmãos que
correis, e irmãos que lutais, virem a vossos ouvidos as palavras do
Sábio: Como o ouro, que se examina na frágua, assim o Senhor
examinou os justos; e na frágua da vida monástica os recebe como em
perfeito holocausto.

ANOTAÇÕES
Neste capítulo terás notado, leitor cristão, quão alto seja o estado de
obediência, quão seguro e de quanto merecimento. Entre outras
excelências deste estado, uma delas é, como diz São Tomás, tornar
obras de religião, que é a soberana virtude, as obras comuns das
outras virtudes; e livra também o homem de in nitas perplexidades,
deixando-o certo de que, pelo menos, não erra em obedecer ao
homem que está em lugar de Deus, e do qual o próprio Deus disse:
Quem vos ouve a mim ouve, e quem vos despreza a mim despreza.
Esta certeza, não a tem o homem em todas as outras obras boas que
faz, porque não é de todos fazer o que é bom, somente por ser bom,
especialmente quando excede as nossas forças; e, por isso, disse um
grave doutor que mais queria colher palhas do chão, por obediência,
do que empreender obras grandes por sua própria vontade.
Contudo, não tomem isto tão ao pé da letra as mulheres devotas
que vivem no mundo, isto é, não tomem daqui ocasião para dar a seus
diretores espirituais ou confessores uma obediência tal, que não
queiram dar passo algum sem eles; pois, conquanto isto seja em si
bom, dadas certas circunstâncias e ocorrendo certos requisitos,
faltando qualquer deles, poderá o Demônio, sob color de virtude,
fazer o que sempre faz nas amizades muito estreitas, e dar maus e
desastrados ns ao que se começou com bons princípios. Ninguém,
portanto, se deve arriscar a este perigo, que é muito grande e muito
disfarçado; mas isto não exclui a con ssão, nem o tomar conselho
com os padres diretores espirituais em coisas graves e escrupulosas.
Aqui poderás também notar um proveitosíssimo e muito louvável
costume dos padres daquele tempo, em que tanto orescia a disciplina
da vida monástica: era o de provar e exercitar os que entravam em
religião com muitas maneiras de repreensões, castigos, vexações e
trabalhos. E isto faziam, não por um ano ou dois, mas por muitos
anos, para aproveitar na devoção, no fervor do espírito, e nas virtudes
da humildade, da obediência, da morti cação das paixões, da
abnegação de si mesmo, e assinaladamente da paciência e da discrição.
Prouvera a Deus que isto também se praticasse agora em nossos
tempos, porque muito mais apurados seriam aqueles que cassem nas
religiões; e tanto mais convinha isso, quanto mais di cultoso é, nestes
tempos, expelir de religião quem nela foi recebido.
Ocasiões havia, então, para tantas ignomínias e vexações, porque,
naqueles tempos, como vimos, uma das maneiras religiosas de viver
era a de estarem dois discípulos debaixo da disciplina de um padre
velho, a quem serviam como um servo serve a seu senhor. E estes
mestres, uns, pelo seu natural temperamento, outros por exercício de
virtude, usariam dessas ocasiões para repreender, castigar, e tratar
asperamente seus discípulos. Por ser isso coisa muito ordinária
naquele tempo, o autor carregou a mão no encarecimento da virtude
da paciência, não só para que o discípulo não caísse com a carga e
voltasse para trás, como para que não perdesse matéria de tão grande
aproveitamento. Se em nossos tempos não têm os religiosos estas
ocasiões tão freqüentes, podem tê-las os noviços com seus mestres, as
mulheres com seus maridos, porque o sofrimento destas coisas é de
grande merecimento e de grandíssimo aproveitamento. E assim
conheço muitas mulheres casadas, que, suportando com paciência as
irritações e maus tratos da parte de seus maridos, chegam a um
elevado grau de perfeição.
Também pela doutrina deste capítulo, e ainda de todo este livro,
entenderás bem quanto mais robusta era a virtude naqueles tempos;
pois, agora andamos a buscar coisas que menos trabalho nos tragam,
devoções agradáveis, e, quando muito, orações e exercícios espirituais.
Conquanto a oração seja de muito proveito, não há de ser só, mas
acompanhada com o exercício das outras virtudes, especialmente com
a morti cação da própria vontade e das paixões; pois, assim como
para abrandar o ferro não basta abrandá-lo com o calor da frágua,
mas ainda é preciso o golpe do martelo para dar-lhe a gura, assim
não basta abrandar nosso coração com o calor da devoção, mas ainda
é preciso gurar as virtudes na bigorna da morti cação.
Por isso com muita razão, exclamou o Sábio: Quem achará a
mulher forte? Achareis muitas almas devotas, que gostam de rezar, de
meditar, de confessar-se, de comungar, de ler bons livros, de tratar de
Deus, e de dar um pedaço de pão por seu amor; mas, ainda assim,
quem achará a mulher forte, que é a alma forte? Forte para vencer a
natureza, para domar a carne, para quebrar a própria vontade, para
cruci car as paixões, para romper com o mundo, para rir-se de seus
juízos, para calçar aos pés os seus ídolos, para receber com cara alegre
os trabalhos e a ições, para rir-se das injúrias, para con ar nos
perigos, para não elevar-se na prosperidade nem abater-se com a
adversidade, para andar sempre solícita, fervorosa e diligente em todas
as coisas do serviço de Deus e bem do próximo, olvidando seu próprio
interesse: quem a achará nos tempos que correm?
CAPÍTULO V

Da penitência
I

Penitência é um modo de renovação do Santo Batismo. Penitência é


outro novo concerto de vida com Deus. Penitente é comprador de
humildade. Penitência é repúdio perpétuo de toda consolação
corporal. Penitência é um coração descuidado de si mesmo pelo
contínuo cuidado de satisfazer a Deus, isto é, um coração que sempre
se está acusando e condenando. Penitência é lha da esperança e
desterro da desesperação. Penitente é réu livre de confusão pela
con ança que tem em Deus. Penitência é reconciliação do Senhor
mediante as boas obras contrárias aos pecados. Penitência é
sofrimento voluntário de tudo o que nos possa dar pena. Penitente é
o cial de trabalhos e tormentos próprios. Penitência é uma forte
a ição do ventre e uma veemente dor da alma. Todos vós que tendes
ofendido a Deus, vinde de toda a parte, juntai-vos, ouvi as grandes
coisas que vou contar-vos e que Deus descobriu à minha alma para
edi cação vossa.
Ponhamos no primeiro e mais honrado lugar desta narração as
obras penitenciais daqueles veneráveis trabalhadores, que
voluntariamente tomaram estado e hábito de servos amesquinhados.
Tendo eu sido informado de que, no mosteiro apartado, a que acima
me referi, chamado cárcere, era grande o estado e humildade dos
santos penitentes que ali moravam, roguei àquele padre que me zesse
levar para lá, a m de ver o que ali se passava. Concedeu-me ele isto
benignamente; e, então, fui a essa região dos que choram, onde vi
coisas que o olho do negligente não viu, a orelha do descuidado não
ouviu, e o coração do preguiçoso não desejou.
Vi, digo eu, palavras, exercícios, e coisas poderosas para fazer força
a Deus e para inclinar sua clemência com grande presteza; vi alguns
daqueles santos réus, a passar noites inteiras ao sereno, velando até a
madrugada; e, quando eram combatidos e carregados de sono, faziam
força à natureza, sem querer tomar descanso, antes repreendendo-se e
injuriando-se a si mesmos, despertando-se uns aos outros,
contemplando o céu dolorosamente, e pedindo dali socorro com
gemidos e clamores.
Vi outros que estavam em oração, com as mãos atadas atrás, à
maneira de presos e réus; e, inclinando até o chão seus rostos pálidos,
clamavam que não eram dignos de levantar os olhos para o céu, nem
de falar com Deus na oração, de sorte que assim ofereciam a Deus
suas almas caladas e emudecidas, cheias de trevas e de confusão. Vi
outros que estavam assentados no chão, cobertos de cinza e de cilício,
escondendo o rosto entre os joelhos e que, às vezes, davam com a
fronte em terra.
Vi outros que feriam-se sempre nos peitos, como que arrancando a
alma do corpo com grandes suspiros. Entre estes havia alguns que
regavam o solo com lágrimas, e havia outros que miseravelmente se
lamentavam porque não as tinham. Muitos deles davam grandes
alaridos sobre suas almas (como sóem fazer sobre os corpos dos
mortos), não podendo sofrer a angústia de seu espírito. Outros havia
que bramavam do íntimo de seu coração, retendo dentro de si o som
dos gemidos; e, algumas vezes, não podendo conter-se, subitamente
rebentavam em vozes.
Vi ali alguns que, na gura do corpo, e nos pensamentos e obras,
estavam como alienados e atônitos, e feitos de mármore para a
grandeza da dor, quase insensíveis para as coisas desta vida: tinham
eles já sumido suas almas no abismo da humildade e secado as
lágrimas com o fogo da tristeza. Outros vi assentados em terra, tristes,
com os olhos baixos, meneando as cabeças, e arrancando gemidos e
bramidos, à guisa de leões, do íntimo de seu coração.
Alguns havia que, cheios de esperança, buscando a perfeita remissão
de seus pecados, faziam oração; outros, com inefável humildade,
tinham-se por indignos de perdão, dizendo que não eram bastantes
para dar conta de si a Deus. Uns pediam para ser aqui atormentados,
a m de acharem misericórdia na outra vida; outros havia que,
carregados e alquebrados ao peso da consciência, diziam bastar-lhes
ser livrados dos tormentos eternos, ainda que não gozassem do reino
de Deus, se isto fora possível. Vi ali muitas almas humildes e contritas,
e com o grande peso da penitência inclinadas e abaixadas ao solo, as
quais se dirigiam a Deus com frases e palavras tais, que poderiam
mover compaixão às próprias pedras: “Sabemos muito bem”, diziam
eles, “que somos merecedores de todos os tormentos e penas; ainda
que juntássemos todo o mundo a rogar por nós, nem assim somos
bastantes para satisfazer a multidão de nossas dívidas; por isso,
Senhor, só vos rogamos que não nos interpeleis em vosso furor, não
nos castigueis em vossa ira, nem nos atormenteis conforme as
justíssimas leis de vosso juízo, mas com a vossa brandura e
misericórdia; já nos contentaríamos com car livre daquela vossa
terrível ameaça e daqueles ocultos tormentos, nunca vistos nem
ouvidos, porque não ousamos pedir-vos que de todo sejamos livres de
trabalhos e penas; pois, com que rosto, com que ânimo nos
atreveremos a isto, depois de ter sujado nossa pro ssão e depois
daquele primeiro e misericordiosíssimo perdão?!”.
Ali, por certo, ó dulcíssimos amigos, ali veríeis as palavras de Davi
postas em obra: veríeis homens carregados de tribulações e misérias,
continuamente encurvados e tristes, exalando mau cheiro dos corpos
maltratados e quase putri cados pelos maus tratos; veríeis homens
que, assim como viviam sem cuidado de sua própria carne, às vezes se
esqueciam de comer seu minguado pão, outras vezes o juntavam com
cinza, e mesclavam a água com gemidos. Os ossos se lhes haviam
pegado à pele e secado como feno. Nem ouviríeis ali outras palavras
que não fossem como estas: “Ai de mim! Miserável que sou; perdoai,
Senhor; perdoai, Senhor; tende piedade de mim!”. Muitos eram vistos
com a língua de fora à guisa de cães sedentos, outros se queimavam ao
calor de um sol ardentíssimo, outros, pelo contrário, se esfriavam a
um canto umidíssimo. Outros havia que apenas tomavam um gole
d’água para não secarem-se de sede, deixando de beber a quantidade
que lhes era necessária; outros, semelhantemente, comiam um
pedacinho de pão e atiravam fora o restante, dizendo que não eram
merecedores de comer manjar de homens, pois tinham vivido como
bestas. No meio de tais exercícios, que lugar podia ter ali a rixa, ou a
palavra viciosa, ou a ira, ou o furor? Apenas sabiam que entre os
homens havia ira, tanto o ofício de chorar tinha apagado neles a
chama do furor. Onde estava ali a por a? Onde a alegria
desordenada? Onde a vã con ança? Onde o regalo e cuidado do
corpo? Onde sequer fumaça de vanglória? Onde a esperança de
deleites? Onde o gosto do vinho? Onde o apetite e deleites da gula? De
nada disso havia ali qualquer lembrança; e, por ventura, a igia-os o
cuidado de alguma coisa terrena? Por ventura, cogitavam ali de julgar
os feitos dos homens? Nada disto acharíeis, porque toda a sua
preocupação era chamar o Senhor: entre eles só se ouvia a voz da
oração.
Uns havia que, batendo fortemente aos peitos, como se já estivessem
mesmo às portas do céu, diziam: “Abre-nos, Piedoso Juiz, a porta;
abre-a, a nós que a fechamos com os nossos pecados”. Outros diziam:
“Mostra-nos, Senhor, teu rosto, e seremos salvos”. Outros diziam:
“Aparece, Senhor, a estes pobrezinhos, que estão em trevas de morte”.
Outros diziam: “Sejamos logo, Senhor, prevenidos com vossas
misericórdias, porque estamos muito empobrecidos”. Alguns outros
diziam: “Por ventura haverá o Senhor por bem enviar sua luz sobre
nós? Por ventura tem chegado nossa alma a pagar esta dívida
intolerável? Por ventura voltará o Senhor a ter conhecimento de nós,
ou lhe ouviremos alguma vez dizer aos que estão presos — saí livres
—, e aos que estão assentados no inferno das trevas — recebei luz?”.
Tinham a morte sempre diante dos olhos, e uns aos outros
perguntavam, e diziam: “Que m será o nosso? Que sentença será
aquela? Por ventura pode nossa oração chegar à presença do Senhor?
Ou foi com razão desprezada e confundida? E se chegou a Ele, quanto
pôde aplacá-lo, quanto aproveitou? Por ventura os anjos de nossa
guarda terão já se aproximado de nós, ou todavia estão longe? Pois, se
eles não se acercarem de nós, inútil e sem fruto será todo o nosso
trabalho, porque não terá nossa oração nem virtude de con ança, nem
asas de limpeza com que possa chegar a Deus, se os anjos que têm
cargo de nós, não a tomam e oferecem-na”.
Outras perguntas se faziam tais como estas: “Por ventura temos
aproveitado, irmãos? Por ventura alcançamos o que pedimos? Por
ventura nos receberá o Senhor e nos recolherá em seu seio como
antes?”. A isto respondiam alguns: “Quem sabe, irmãos, se o Senhor
revogará sua sentença (como disseram os Ninivitas), alçará a mão e
não descerá sobre nós o Seu açoite? Não deixemos nós de fazer o que
estiver de nossa parte; se ele nos abrir a porta, bem, e, se não abrir,
bendito seja ele, que justamente no-la fechou; perseveremos
chamando-o, até o m de nossa vida, para que ele, vencido com a
nossa perseverança, nos abra a porta de sua misericórdia”. Com estas
e outras semelhantes palavras se despertavam e incitavam ao trabalho,
dizendo: “Corramos, irmãos, corramos, porque necessário é correr e
muito correr, pois caímos daquele tão alto estado de nossa companhia;
corramos, irmãos, e não perdoemos a esta perversa e imunda carne,
cruci quemo-la, pois foi ela primeiro quem nos cruci cou”.
Tinham calos nos joelhos do contínuo uso da oração, os olhos
desfalecidos e fundos dentro das órbitas, as pestanas caídas; as faces
avermelhadas pelo ardor das lágrimas que por elas corriam; as caras
amarelas, pálidas, como de defuntos; os peitos abatidos com o bater
constante, e, a alguns, saía da boca a saliva misturada com sangue.
Onde estava ali o regalo da cama, onde a curiosidade das vestiduras?
Tudo estava roto, andrajoso, sujo. Que comparação há entre estes
trabalhos e os daqueles que são atormentados pelos demônios, ou
daqueles que choram sobre as sepulturas, ou daqueles que vivem no
desterro, ou daqueles que cumprem a pena dos parricidas e
malfeitores? Todos estes tormentos que contra sua vontade padecem
os outros homens são muito pequenos comparados com as penas
voluntárias que esses santos padeciam; e peço-vos, irmãos, que não
tenhais por fabuloso isto que aqui digo.
Rogavam estes santos varões algumas vezes àquele grande juiz, isto
é, ao pastor do mosteiro, que mandasse lançar-lhes cadeias de ferro ao
pescoço e às mãos, e os metesse de pés em um tronco, não os tirando
dali senão para a sepultura.
Mas quando chegava a hora extrema da morte, era coisa terrível ver
o que então se passava. Quando algum deles estava a expirar,
enquanto se achava em perfeito juízo, punham-se-lhe os outros em
derredor, chorando, e, com um hábito e gura miserável e muito
tristes palavras, meneavam as cabeças e perguntavam ao moribundo:
“Que é isto, irmão? Que se faz contigo? Que dizes? Que esperas? Que
suspeitas? Alcançaste aquilo que com tanto trabalho buscavas?
Chegaste onde desejavas? Conseguiste tua esperança? Tens rme
con ança, ou ainda vacilas? Obtiveste verdadeira liberdade de
espírito? Sentiste por ventura alguma luz em teu coração, ou estás
ainda cheio de trevas e confusão? Soou a teus ouvidos aquela voz de
alegria que pedia Davi, ou, por ventura, te parece que ouves a outra
que diz: ‘Vão os pecadores para o inferno, lançados nas trevas
exteriores; seja deixado o mau, para que não veja a glória de Deus’?
Que dizes, irmão? Conta-nos, para que possamos conjecturar o que
nos está reservado; pois, o teu prazo já está ndo, e nunca mais o
recomeçarás, ao passo que nossa causa está pendente”. A isto
respondiam uns, dizendo: “Bendito seja o Senhor, que não permitiu
caíssemos nas garras de nossos inimigos”. Outros, gemendo, diziam:
“Por ventura passará nossa alma a água intolerável e o encontro dos
espíritos deste ar?”. Isto diziam eles, considerando quão incerto, quão
terrível, quanto para temer é aquele divino juízo. Outros mais
tristemente respondiam: “Ai daquela alma que não guardou sua
pro ssão inteira e limpa, porque nesta hora saberá o que lhe está
aparelhado!”.
Vendo e ouvindo tudo isso, pouco faltou-me para não cair em
grande desesperação, considerando o meu modo de viver regalado e
negligente, e comparando-o à a ição daqueles santos; pois, como
pensais que era aquele lugar? Tudo aquilo era escuro, hediondo, sujo,
desgraçado, e, nalmente, tal que bem merecia o nome de cárcere; de
sorte que só o aspecto do lugar era mestre de lágrimas e perfeita
penitência. Mas, sem dúvida, as coisas que aos outros parecem
di cultosas e impossíveis, se fazem fáceis e agradáveis aos que re etem
na queda que deram da virtude e riquezas espirituais que possuíam;
porque a alma, que, despida da primeira vestidura da caridade, caiu
da esperança de alcançar aquela bem-aventurada paz e tranqüilidade,
e perdeu o selo da castidade, e foi despojada das riquezas da graça e
da divina consolação, e infringiu assim aquele assento que com Deus
capitulara, e secou aquela formosíssima fonte de lágrimas; essa alma,
quando se recorda de tão grandes perdas, é ferida e compungida com
tamanha dor, que não só recebe com alegria estes trabalhos, mas ainda
procura cruci car-se e despedaçar-se com a violência destes exercícios,
enquanto nela perdurar qualquer centelha de verdadeiro temor e amor
de Deus.
Tais eram, por certo, as almas desses bem-aventurados, que,
guardando em seus corações o forte sentimento da excelência e altura
das virtudes que tiveram, lembravam-se da felicidade daqueles dias
antigos e daquele fervor com que serviam a Deus. E assim clamavam
ao Senhor, dizendo: “Onde estão aquelas antigas misericórdias, que
houvestes por bem mostrar a nossas almas?”. Outro, como o santo Jó,
dizia: “Quem me dera agora aquele estado em que vivi nos primeiros
dias, em que me guardava Deus, quando resplandecia a candeia de sua
luz sobre meu coração, candeia que eu próprio desviei de mim!”. E
desta maneira, trazendo à memória suas antigas virtudes e exercícios,
choravam como meninos, dizendo: “Onde estão aquelas doces
lágrimas que agora se nos tornam amargas? Onde aquela con ança,
onde a esperança daquela beatíssima quietude, onde aquela lealdade
para com o nosso Pastor, onde aquela oração pura, e caz, poderosa?
Pereceram todas estas coisas; e, como se nunca foram vistas,
desfaleceram”. E, com grandes lamentações e gemidos, uns rogavam
ao Senhor que entregasse seus corpos a todos os trabalhos, para que
fossem atormentados nesta vida; outros, que lhes desse algumas
grandes enfermidades; outros, que os privasse da vista dos olhos e que
cassem um espetáculo miserável a todos; outros, que viessem a ser
toda a vida contrafeitos e mendigos, contanto que se livrassem dos
tormentos eternos.
II

Não sei, padres meus, como deixei-me estar muitos dias entre aqueles
santos penitentes, arrebatado e suspenso como quei na admiração de
coisas tão grandiosas. Depois de estar ali trinta dias, voltei, com o
coração quase a arrebentar, para o mosteiro principal, e apresentei-me
àquele grande padre, que, vendo-me de rosto mudado e quase atônito,
compreendendo a causa desta mudança, disse-me: “Que é isto, padre
João? Viste as batalhas dos que trabalham?”. “Vi, padre, vi”, respondi
eu, “e quei espantado; tenho por mais ditosos os que assim choram,
depois de haverem caído, pois para aqueles a queda foi ocasião de
uma seguríssima e beatíssima ressurreição”. “Assim é, por certo”,
replicou ele. E acrescentou: “Estava aqui, haverá dez anos, um
religioso muito solícito e diligente, e tão grande trabalhador, que,
vendo-o eu com tanto fervor, comecei a temer a inveja do Demônio e a
recear que tropeçasse em alguma pedra quem tão ligeiramente corria.
E foi tal como eu receava: veio ele um dia a mim, mostra-me a sua
ferida, busca o emplastro, pede o cautério, e angustia-se imensamente.
Vendo que o médico não queria tratá-lo rigorosamente (porque a
culpa era digna de misericórdia), lançou-se ao chão, agarrou-se-lhe
aos pés, e, regando-os com muitas lágrimas, pediu que o condenassem
ao cárcere. Tal foi a insistência, que a clemência do médico teve de
converter-se em dureza, isto é, de satisfazer o estranho desejo do
enfermo, que logo correu ao cárcere, fez-se companheiro dos que
choravam e participante de sua tristeza, até que ferido gravemente no
coração com o cutelo a ado no grande amor de Deus, tão grande dor
e pena recebeu de havê-lo ofendido, que em oito dias entregou sua
alma ao Senhor. Eu mandei trazer seu cadáver para este mosteiro,
como merecedor de toda a honra, e o sepultei no cemitério dos padres.
E não faltou a quem o Senhor descobrisse que, ainda não se havia
levantado de meus pés, já estava perdoado. Não é isto de maravilhar,
porque, tendo ele em seu coração aquela mesma fé, esperança e
caridade da pública pecadora, com as mesmas lágrimas, com que
regou meus vis pés, alcançou o mesmo perdão”. Já me tem acontecido
ver almas, que serviram aos amores do mundo quase até perder o siso,
as quais, tomando ocasião de penitência da experiência deste amor,
transferiram o seu amor para Deus; e, abraçando-o com uma
insaciável caridade, alcançaram perdão de seus pecados, como aquela
de quem foi dito: Perdoaram-se-lhe muitos pecados, porque muito
amou.
Bem sei, admiráveis padres, que a alguns parecerão incríveis estas
coisas, a outros difíceis de acreditar, e para outros podem ser ocasião
de desesperação; mas, para o varão forte, são setas de fogo, que
incendeiam o fervor em seu coração. Haverá outros que, conquanto
não se estimulem tanto, carão conhecendo sua fraqueza e,
confundindo-se e envergonhando-se com estes exemplos, alcançarão
verdadeira humildade. O varão negligente, porém, não ouça o que
contamos, a m de não deixar de fazer o pouco que faz com toda a
con ança, e de cumprir-se, em relação a ele, o que disse o Senhor: Ao
que não tem alegria e prontidão de ânimo, deixem esse pouco que
tem. Verdade é que esses tais, não só disto, mas de tudo quanto
possam, tiram pretexto para favorecer sua negligência.
Saibamos que não sairemos do lago da maldade, sem nos sumirmos
no abismo da humildade; mas, uma é a humildade triste dos que
choram, outra a dos repreendidos pela consciência, outra a alegre
humildade que Deus infunde na alma dos varões perfeitos. Não
curemos de explicar com palavras esta terceira espécie de humildade,
porque em vão trabalharemos para isso; mas, da segunda espécie sói
ser indício o sofrimento e a paciência nas injúrias.
Das quedas dos homens e dos juízos de Deus, ninguém poderá dar
inteira razão, porque esta matéria excede toda a faculdade de nosso
entendimento. Algumas quedas vêm por negligência nossa; outras, por
um desamparo de Deus, que com uma maravilhosa e sábia
dispensação permite cair o homem, como aconteceu ao príncipe dos
Apóstolos; outras há também que vêm por castigo merecido por
nossos pecados. Mas, um padre me a rmou que as quedas que vêm
por aquela piedosa providência de Deus, em pouco tempo se
restauram, porque não sofrerá ele que perseveremos muito tempo no
mal, que para nosso proveito permitiu. Todos nós que caímos,
trabalhemos, antes de tudo, por fazer resistência ao espírito da tristeza
desordenada; porque esta sói acudir ao tempo da oração para impedi-
la, privando-a da nossa primeira con ança. Não te perturbes, se cada
dia cabes e cada dia te levantas; persevera varonilmente, porque o
anjo da guarda terá atenção a isso, e considerará tua paciência.
Enquanto a chaga está fresca e correndo sangue, fácil é o remédio;
mas, quando está velha e quase stulosa, requer muito trabalho,
cautério, ferro e fogo, e di cultosamente sara. Muitas chagas há, que
o tempo torna incuráveis; mas, a Deus nada é impossível. Antes da
queda, os demônios fazem-nos Deus muito compassivo; depois da
queda, muito duro e rigoroso. Não te importes com aquele que,
depois de tua queda, e da tua penitência, e das tuas boas obras, por
pequenas que sejam, vem dizer-te que é nada tudo quanto fazes em
relação à culpa: muitas vezes acontece que pequenos presentes e
pequenos serviços de pessoas humildes possam mitigar a ira do juiz;
assim, as boas obras, por pequenas que sejam, aplacam a Deus,
especialmente quando procedem da grande caridade e humildade do
coração. Aquele que verdadeiramente se a ige e castiga por seus
pecados, tem por perdidos todos os dias em que não chora, ainda que
neles, por ventura, pratique algumas boas obras, porque seu principal
intento é fazer penitência.
Nenhum daqueles que se a ige com lágrimas de penitência, logo
pense que está seguro no m da vida, porque ninguém pode ter certo
aquilo que está incerto. Concedei-me, Senhor, diz o Profeta, o
refrigério do testemunho da boa consciência ao partir desta vida: este
testemunho está onde está o Espírito Santo, e onde está uma profunda
e perfeita humildade; e disso ninguém pode ter certa segurança.
Aqueles que, sem estas virtudes, saem da vida, não se iludam. Os que
servem ao mundo não morrem com esta consolação, que só os bons
alcançam; mas, alguns há que, exercitando-se em esmolas e obras de
piedade, conhecem o proveito disto no m da jornada. Quem pensa
em chorar e fazer penitência de seus pecados, deve andar tão ocupado
neste negócio, que não tenha olhos para ver as lágrimas, nem as
quedas, nem os negócios dos outros. O cão, mordido por alguma fera,
costuma a embravecer contra ela ferocissimamente com a dor da
ferida; e assim o verdadeiro penitente costuma a embravecer contra
sua própria carne, nascendo daí o ódio santo contra si mesmo.
Vejamos não nos aconteça que o deixar de repreender-nos a
consciência, proceda mais de falsa con ança do que da própria
inocência. Um dos grandes indícios de estarem já saldadas as dívidas,
é ter-se o homem sempre por devedor. Nem isto é razão para
descon ar: quem desespera se suicida, porque nada há de maior ou de
igual à misericórdia de Deus. Também é sinal de diligente e solícita
penitência, se de verdade nos tivermos por merecedores de todas as
tribulações que nos vierem, tanto visíveis como invisíveis, e de muitas
mais.
Depois que Moisés viu a Deus na sarça, voltou ao Egito, que gura
as trevas do mundo, para ocupar-se nos ladrilhos e obras de faraó;
mas, depois, regressou à sarça, ou para melhor dizer, ao monte de
Deus. Assim também aquele grande Jó de rico se fez pobre, mas,
depois de empobrecido, lhe foram dobradas as riquezas: quem
entender o mistério que aqui está encerrado, jamais desesperará. A
queda dos que têm sido negligentes depois do seu chamamento, é
muito perigosa, porque enfraquece a esperança de alcançar aquela
quietíssima tranqüilidade e paz que se acha em Deus; pois, já se
dariam por muito bem livrados, se se vissem saídos da cova em que
caíram.
Observa diligentemente e considera que nem sempre voltamos pelo
mesmo caminho ao lugar de onde saímos, mas às vezes por outro mais
curto. Vi eu dois religiosos que, em um mesmo tempo e da mesma
maneira, caminhavam, dos quais um, conquanto velho, trabalhava
muito, o outro, que era seu discípulo, chegou mais depressa do que ele
e entrou primeiro no monumento da humildade: monumento, sim,
porque na humildade deseja o verdadeiro penitente ser sepultado,
aniquilado, e não nos corações dos homens. E a causa de haver este
chegado mais depressa foi porque fazia isso com maior fervor, pureza
e diligência.
Guardemo-nos todos contra o erro de Orígenes, erro muito
agradável aos maus, pelo qual, enaltecendo demasiadamente a divina
misericórdia, ca derrogada a retidão da divina justiça. Em minha
meditação, ou para falar mais claro, em minha penitência, é razoável
que arda o fogo da oração, queimando tudo o que for contrário a ela.
Finalmente, se desejas fazer verdadeira penitência, teu exemplo, ou
forma de verdadeira penitência, sejam aqueles santos réus de que
zemos menção; e isto te escusará o trabalho de ler muitos livros, até
que amanheça em tua casa a luz de Jesus Cristo, Filho de Deus, para
ressuscitar tua alma com a perfeita e estudiosa penitência.

ANOTAÇÕES
Aqui podes ver, leitor cristão, de que modo e forma fazem penitência
aqueles em quem Deus infundiu espírito de verdadeira e perfeita
penitência, e a quem abriu os olhos, com sua divina luz, para ver a
formosura da virtude, a fealdade do pecado, as astúcias do Demônio,
a vaidade do mundo, o rigor do juízo divino, o horror das penas do
inferno; porque do conhecimento que Deus infunde na alma, nasce
este grande sentimento da penitência. E ainda que isto, por um lado,
pareça incrível, considerada a fraqueza humana, por outro lado, não o
é, considerando a graça divina, considerando que à caridade pertence
amar a Deus sobre tudo o que se pode amar, considerando que Deus é
o maior de todos os bens, e que, portanto, perdê-lo, é o maior dos
males.
Pois, se vemos cada dia os extremos que fazem algumas mulheres
por morte do marido, e as mães por morte de seus lhos, e outros por
outras causas, pelas quais chegam até a cair de cama e a morrer de
pena, e, às vezes, a suicidar-se, que maravilha é que uma alma se
entregue a todos os extremos para conseguir ou não perder o maior de
todos os bens, isto é, Deus?
Mas, nem por isso deve o cristão descon ar e desmaiar ante o rigor
daquelas penitências; porque os santos, extremados, tanto na
sublimidade da vida, como na perfeição da penitência, neles há sempre
matéria para admiração, porém nem sempre e em tudo há obrigação
de imitá-los.
Os exemplos e o rigor destas penitências são narrados para três
efeitos: primeiro, para vermos como a graça de Deus obra maravilhas
em homens tão fracos; segundo, para vermos que a nossa fraqueza
não impede o merecimento do favor de Deus; terceiro, para nos
humilharmos e desterrar de nossa alma toda a presunção de que temos
sofrido o su ciente para dispensar a misericórdia de Deus.
CAPÍTULO VI

Da memória da morte

Assim como antes da palavra deve haver consideração, assim antes do


compungido pranto, a memória da morte e dos pecados.
Memória da morte é morte cotidiana, é morrer cada dia. Memória
da morte é perpétuo gemido em todas as obras. Temor da morte é
propriedade natural que nos veio pelo pecado da desobediência.
Temor veemente da morte é indício grande de não se acharem de todo
perdoados os pecados. Esta maneira de temor, não a teve Jesus Cristo,
que aliás receou a morte pela condição da natureza que havia tomado.
Assim como, entre todos os manjares, é muito necessário e
proveitoso o pão, assim, entre todas as maneiras de considerações, é
muito proveitosa a da morte. A memória da morte faz que os que
vivem em mosteiros se exercitem em trabalhos e asperezas, e tenham
um doce desejo e apetite de padecer injúrias por amor de Deus. Mas,
aos que vivem em soledade, apartados de todos os desassossegos do
mundo, faz que, deixados todos os outros cuidados, insistam em uma
perpétua oração e guarda diligentíssima de suas almas, virtudes estas
que são mães e lhas da memória da morte, porque dela nascem e a
ela ajudam. Quanto mais livre está o homem das outras paixões e
cuidados, tanto mais disposto está para pensar em sua morte; e
quanto mais nela pensa, mais se descuida do resto.
Assim como, não obstante a semelhança, há muita diferença entre a
prata e o estanho, assim há diferença entre o temor natural da morte e
o que não é natural, isto é, entre o temor que procede da natureza e o
temor que procede dos pecados. E um dos grandes sinais para
conhecer quão proveitosa é a memória da morte, é a abnegação de
nossa própria vontade e a perda de afeição às coisas visíveis. Muito
louvável é aquele que todas as horas a deseja. Verdade é que nem todo
o desejo da morte é digno de ser louvado: porque, alguns há, que
vencidos com a força do costume, continuadamente pecam; e, por
isso, desejam a morte com humildade para não pecar mais; outros há
que não querem fazer penitência, e, por isso, chamam a morte com
desesperação. Outros há que, movidos com espírito de caridade,
desejam sair deste corpo para verem-se com Jesus Cristo.
Duvidam alguns por que causa, sendo-nos tão proveitosa a
memória da morte, não quis o Senhor que soubéssemos a hora dela;
entretanto, não consideram quanto é isto maravilhosamente ordenado
para nossa salvação. Ninguém, geralmente, sabendo a hora certa da
morte, receberia logo o Batismo ou entraria em religião; e, só depois
de gasto todo o tempo de sua vida em maldades e pecados, vendo
aproximar-se a hora de sua partida desta vida, cada um correria ao
Batismo e à penitência, isto é, depois de haver envelhecido nos vícios,
faria uma penitência, não tanto louvável ou virtuosa quanto
necessária.
Tu, que choras os teus pecados, não dês ouvidos a quem te faz Deus
muito brando e muito misericordioso, porque isso acaba por expelir
de tua alma esse pranto que tens e esse tão seguro temor; mas, deves
encarecer e contar com a misericórdia de Deus, quando te vires
tentado de desesperação. Quem por uma parte trabalha para trazer
consigo a memória da morte e do Juízo Final e, por outra parte, se
entrega aos cuidados do mundo, é semelhante àquele que, nadando,
quer bater palmas com uma mão na outra. A memória da morte,
quando é poderosa e e caz, deixa o apetite dos manjares, tornando
assim enfraquecidas as paixões. A falta da contrição e da dor, cega os
corações; e a abundância dos manjares seca a fonte das lágrimas. A
sede e as vigílias quebram a pedra de nosso coração; e, quebrada esta,
saltam as águas vivas. Duras parecem estas coisas aos amigos da gula,
e incríveis aos negligentes; mas, o varão exercitado provará estas
coisas alegremente e, depois de havê-las provado, alegrar-se-á com
elas. Aquele, porém, que não as provou, cará triste, porque padecerá
trabalhos e di culdades nestes exercícios, até que o costume de
trabalhar torne doces os trabalhos.
Assim como os padres determinam que a perfeita caridade faz o
homem perseverante no bem e o livra do pecado, assim também
determino que o perfeito sentimento da morte livra o homem de
qualquer temor vão, porque então não teme senão o que é razoável
temer.
Muitos são os atos e exercícios interiores de nosso espírito, como
sejam: dirigir a intenção a Deus em tudo quanto fazemos, memória de
Deus, memória do reino dos céus, memória da presença divina
(segundo o Profeta, que disse: Traga eu sempre o Senhor diante dos
olhos), memória das intelectuais e soberanas criaturas (que são os
anjos), memória da morte, e dos encontros que se seguem a ela, e da
sentença do juiz, e dos tormentos do purgatório, e do inferno. As
primeiras destas coisas são grandes; mas, as últimas ajudam
grandemente para não cair em pecado.
Um monge do Egito me contou que, tendo xado profundamente a
memória da morte em seu coração, e, querendo uma vez dar pasto ao
lodo desta carne, esta memória, à guisa de um aguazil, de tal modo o
sobressaltou, que fê-lo deixar o que havia começado, sem que pudesse
ele, por toda a vontade, despedir de si essa memória.
A outro religioso, que morava aqui, junto a um lugar chamado
Tola, acontecia muitas vezes car atônito e fora de si, pensando na
morte; e, depois disto, cava como insensível, parecendo que estava
morto, de tal sorte que os religiosos, encontrando-o nesse estado, o
traziam carregado a braços.
Tampouco deixarei de contar a história de um monge solitário, que
morava em um lugar chamado Coreb, o qual, havendo vivido
negligentemente, sem cuidado algum de sua alma, veio a nal a
adoecer e a chegar à agonia da última hora. E, quando todos
supunham que já ele havia despedido a alma do corpo, ao cabo de
uma hora voltou a si, rogando aos que então se aproximaram, entre
os quais estava eu, que saíssemos de sua cela; e, fechando a porta à
pedra e lodo, perseverou dentro dela, sem falar com ninguém,
alimentando-se apenas a pão e água, isto durante doze anos. E
estando assentado e atônito, resolvia em seu coração o que naquele
arrebatamento havia visto, permanecendo calado, sem mudar a
posição do rosto, pelo qual corria lágrimas cuja força não podia
conter. Estando ele já propínquo à morte, derrubamos a porta da sua
cela, entramos todos, e lhe pedimos que nos dissesse qualquer palavra
de edi cação: “Perdoai-me, padres”, disse-nos ele; “ninguém que
sinceramente souber que coisa é pensar na morte terá jamais o
atrevimento de pecar”; e, dito isto, expirou. Ficamos todos
maravilhados, vendo tão mudado e tão outro aquele que antes fora
tão negligente; e, depois o enterramos em cemitério próximo. Passados
alguns dias, indo nós buscar suas sagradas relíquias, não as achamos,
fazendo-nos assim o Senhor certos daquela louvável penitência, e
dando por isso con ança a todos os que a zeram verdadeira, ainda
que tenham vivido negligentemente.
Dizem que o abismo é lugar de água sem fundo: assim a meditação
atenta da morte cria em nós uma inefável e profundíssima castidade e
fervor de espírito, o que se prova pelo fato que acabamos de narrar.
Os justos desta qualidade acrescentam cada dia temor a temor; e
nunca cessam disto, até que vem a consumir-se a mesma virtude dos
ossos, como o assinalou o Profeta quando disse: Pela contínua voz de
meus gemidos os ossos pegaram-se-me à pele. E tenhamos por certo
que é este também um dom de Deus, como os outros; pois, muitas
vezes, passando pelas sepulturas e corpos dos mortos, estamos duros e
insensíveis, e, outras vezes, por coisas muito somenos, nos
compungimos e enternecemos. Aquele que está morto para todas as
coisas, esse teve verdadeiramente memória da morte; mas, aquele que
está demasiadamente afeiçoado às criaturas, nada fez em seu proveito,
porque ele próprio se amarra às dependências da vida.
Não queiras descobrir a todos com palavras o amor que lhes
consagras; mas, roga a Deus que secretamente o mostre, porque de
outro modo te faltará tempo para esta signi cação e também para o
estudo da compunção. Não te enganes, obreiro louco, pensando que
podes reparar a perda de um tempo com outro; porque não basta o
dia de hoje para saldar perfeitamente as dívidas de hoje. Muito bem
disse um sábio que não se pode viver um dia bem vivido senão
pensando que é o último. E, o que mais é de maravilhar, até os gentios
pensavam e determinavam que a suma de toda a loso a é a memória
e meditação da morte.
CAPÍTULO VII

Do pranto de compunção
I

Pranto é tristeza da alma e sentimento de coração a ito, que busca


com ardor o que deseja e, se o não alcança, continua buscando-o com
sumo trabalho e solicitude. Pranto é estímulo ou aguilhão de ouro,
ncado pela santa tristeza em nosso coração para guarda dele, isto é,
para despojar a alma de toda a paixão em que se possa enlaçar.
Compunção é perpétuo tormento da consciência e humilde
conhecimento de si mesmo, que refrigera o ardor e fogo do coração.
A continência e o silêncio são virtudes próprias dos que aproveitam
neste pranto, assim como o não irar-se e o esquecimento das injúrias o
são dos que já aproveitaram; mas, dos perfeitos e consumados nisto, é
profunda humildade do ânimo, desejo de ignomínias, fome voluntária
de moléstias e trabalhos, não condenar os que pecam, ter compaixão
das necessidades alheias, segundo o que pudermos e mais ainda do
que pudermos. Os primeiros são dignos de ser aceitos, os outros são
dignos de ser louvados; mas, bem-aventurados são aqueles que têm
fome de a ições e ignomínias, porque esses serão fartos daquele
manjar que nunca farta.
Tu, que alcançaste a virtude do pranto, procura guardá-lo com
todas as tuas forças; porque, se não está muito fortemente arraigado
na alma, sói ir-se e desaparecer. Especialmente o fazem fugir os
desassossegos, deleites e cuidados das coisas desta vida; mas,
sobretudo, o muito falar e chocarrear de todo o desfaz, como o fogo à
cera. Atrevimento parece o que eu vou dizer; porém, não deixa de ser
até certo ponto uma verdade. É algumas vezes mais e caz que o
Batismo a fonte das lágrimas depois do Batismo; porque aquele lava
os pecados passados, e esta lava também os futuros, dando virtude e
grande espírito para evitá-los. Aquele é sujado por nós depois que, na
infância, o recebemos; mas, com esta o lavamos e renovamos.
A tristeza e os gemidos chamam a Deus, e as lágrimas do temor
levam a embaixada; mas, as que procedem do amor dizem que nossas
orações foram ouvidas e recebidas. Assim nada é mais consentâneo
com a humildade do que o pranto, assim nada é mais oposto a ela do
que a risada desavergonhada. Ó continente, trabalha com todas as
tuas forças para conservar esta alegre tristeza da santa compunção, e
nunca cesses de trabalhar nela, até que, já puri cado do amor das
coisas terrenas, ela te levante ao alto e te apresente a Jesus Cristo.
Não deixeis de considerar e de imprimir fortemente no íntimo de
teu coração aquele abismo de fogo eterno, aqueles cruéis ministros,
aquele severo Juiz, que então a nenhum mau perdoará, e aquele
in nito caos do fogo infernal, aquelas covas e masmorras profundas,
aqueles terríveis despenhadeiros e descidas, aquelas horríveis imagens
e guras dos que ali estão: tudo isto, para que, se em nossa alma
restam alguns incentivos de luxúria, sejam afogados neste temor e
dêem lugar à limpa e perpétua castidade, de sorte que, com a graça do
pranto, resplandeça mais que a própria luz. Persevera na oração,
tremendo como o réu em presença do juiz, para que, tanto com o
hábito interior como com o exterior, possas mitigar a ira do Senhor;
pois, não despreza ele a alma que está como viúva, oprimida em sua
presença, nem importuna e fatiga com trabalhos aquele que não os
pode padecer.
Se alguém alcançou as lágrimas interiores da alma, qualquer lugar
lhe é oportuno e conveniente para chorar; mas, aquele que tem
lágrimas exteriores deve buscar lugares e modos convenientes para
este exercício. Assim como o tesouro secreto está mais guardado, e
mais seguro de ladrões, do que o que está na praça, assim também
está o tesouro das graças espirituais. Não sejas semelhante, tu que
choras, aos que enterram os mortos, os quais hoje choram e amanhã
comem e bebem sobre eles, celebrando suas endechas; mas, procures
ser como os que estão condenados por sentença a cavar nas minas dos
metais, os quais a cada hora são açoitados e maltratados pelos
feitores.
Aquele que chora e, logo depois, se desmanda em risos e deleites, é
semelhante ao que apedreja um cão guloso com pedaços de pão; pois,
parece que com o pranto despede de si os deleites, mas, de fato, os
detém ao pé de si.
Procura sempre andar com um semblante triste, mas modesto, a m
de que não pareça ostentação de santidade. E trabalha sempre por
estar atento e cuidadoso da guarda do teu coração; porque os
demônios não temem menos a verdadeira tristeza, do que o ladrão
teme o cão. Alguns que choram trabalham por não pensar em coisa
alguma durante aquele tempo bem-vindo; mas, fazem mal, porque as
lágrimas que surgem sem pensamento e atenção do ânimo, são brutas
e impróprias da criatura racional.
Quando te deitas na cama, essa posição, ou postura que nela tomas,
seja para ti a gura do defunto na sepultura; e deste modo dormirás
menos. Quando estiveres comendo à mesa, recorda-te da miserável
sorte em que te hás de ver, quando fores manjar de vermes; e deste
modo morti carás o apetite das guloseimas. Quando estiveres
bebendo, não te olvides daquela intensa sede que os maus padecem
nas chamas do inferno; e assim poderás fazer melhor força à natureza.
Quando nosso padre diretor espiritual nos exercita com injúrias,
ameaças e ignomínia, recordemo-nos da terrível sentença e maldição
do juiz eterno; e, deste modo, com mansidão e paciência, como uma
faca de dois gumes, degolaremos a tristeza que dali seguir-se. Pouco a
pouco, segundo o que se escreve em Jó, cresce e míngua o mar; assim
com paciência e perseverança pouco a pouco vão crescendo esses
exercícios de virtudes em nós. Durma contigo todas as noites a
memória do fogo eterno, e contigo também desperte; e, deste modo,
não terá senhorio sobre ti a preguiça, ao tempo de te levantares para
cantar os Salmos. Finalmente, até a mesma vestidura tua seja tal que
te convide a chorar; pois, vês que por esta causa se vestem de luto os
que choram os mortos.
Se não choras, chora porque não choras; e se choras, compreende
que tens razão para chorar, porque, por teus pecados, caíste de um tão
alto e quieto estado em um estado tão baixo e miserável. Aquele igual
e retíssimo juiz sói, em nossas lágrimas, ter em consideração a
condição de nossa natureza, como faz em tudo o mais; e assim vi eu
muito pequenas gotas de lágrimas derramarem-se como sangue; e
estimei em mais a grandeza da dor dos que choravam, do que a
abundância de suas lágrimas; e assim penso que também o estimará
Deus.
Não convém aos que choram ocupar-se em sutis e profundas
questões de teologia, as quais pertencem a um mais alto estado,
porque esta ocupação sói impedir o pranto. O teólogo é comparado
ao que está magistralmente assentado em um muladar, com um cilício,
fazendo penitência dos seus pecados. E, por causa desta proporção,
penso que aquele grande Davi, que sem dúvida foi doutor
sapientíssimo, respondeu assim aos que lhe pediam cantos: Como
cantaremos os cânticos do Senhor em terra alheia? Como se dissesse:
quando estamos atentos à consideração de nossos vícios e misérias,
não estamos em situação de cantar os cânticos dos divinos louvores.
Assim como as criaturas umas vezes se movem por si mesmas,
outras vezes recebem das outras o movimento, assim também o
acontece na compunção. Daí resulta que, quando nos vem um grande
pranto, sem que tenhamos procurado ou trabalhado para isso,
aceitemos de boa vontade e aproveitemo-lo; pois, o Senhor se nos
entrou pelas portas a dentro sem ser chamado, oferecendo-nos
misericordiosamente esta esponja da divina tristeza e este refrigério de
lágrimas piedosas, com as quais lavamos os nossos pecados. Por isso,
trabalha por conservar esta graça como o brilho dos olhos, até que ela
se vá por si mesma, porque é muito melhor a virtude desta compunção
do que a alcançada por nosso estudo e trabalho. Não alcançou a graça
do pranto aquele que chora quando quer, nem mesmo aquele que
chora nas coisas que quer, mas aquele que chora como Deus quer.
Algumas vezes se misturam as enganosas lágrimas da vanglória com as
lágrimas que provêm de Deus; e isto prudentemente conheceremos,
quando percebermos que, não obstante o correr das lágrimas,
conservamos maus propósitos em nosso coração.
A compunção, propriamente falando, é uma dor do ânimo, que
carece de toda a soberba e que não admite consolação alguma,
pensando a toda hora na resolução e termo da vida, e esperando,
como uma água fresca, a consolação com que Deus sói visitar os
monges humildes. Aqueles que, com todas as suas forças, trabalharam
por alcançar este piedoso pranto, sói comumente aborrecer sua vida
como matéria perpétua de dores e trabalhos; e, assim, também
aborrecem a seu próprio corpo como a verdadeiro inimigo. Quando
naqueles que parece chorarem segundo Deus, vires, por outro lado,
obras ou palavras de ira ou soberba, tem por certo que tais lágrimas
não nascem desta saudável compunção. Que conveniência há entre a
luz e as trevas? Natural coisa é a falsa e adúltera compunção gerar
soberba.
Assim como o fogo acende e consome as palhas, assim as lágrimas
castas consomem todas as sujidades visíveis e invisíveis de nossas
almas.
Determinação é dos padres, que é coisa muito escura e di cílima de
averiguar a razão e valor das lágrimas, especialmente nos que
começam; pois, procedem elas de muitas e diversas ocasiões, isto é, da
condição natural do homem, de Deus, de a ições e trabalhos bem ou
mal sofridos, da vanglória, da sensualidade, de amor, da memória da
morte, e de outras muitas causas. Examinadas, com o temor de Deus
todas estas lágrimas, para vermos as que nos convêm, trabalhemos
para alcançar aquelas que procedem da memória de nossa morte e
resolução; pois, essas são limpíssimas e livres de toda a enganosa
suspeita, porque nelas não há odor de secreta soberba, antes há
morti cação dela, aproveitamento no amor de Deus, aborrecimento
do pecado, e uma formosíssima e felicíssima quietude, livre de todo o
estrondo e perturbação.
Aquele que, continuamente chorando, aproveita no caminho de
Deus, cada dia tem festas e banquetes espirituais; mas, aquele que
continuamente vive em festas e banquetes corporais, depois o pagará
com pranto perpétuo. Assim como os réus não têm alegria no cárcere,
assim também os monges não têm senão solenidade nesta vida. Por
isso, aquele santo amador do pranto suspirava e dizia: Tirai, Senhor,
minha alma do cárcere, a m de que se alegre em vossa luz inefável.
Procura estar dentro de teu coração como um alto rei, assentado na
cadeira da humildade, mandando ao riso que se vá, e ao doce pranto
que venha e venha; e a teu servo, ou, para melhor dizer, a teu tirano,
que é teu corpo, mandando que faça o que for para tua virtude. Se
alguém trabalhou para revestir-se deste bem-aventurado e gracioso
pranto, como de uma roupa de festa, este saberá muito bem qual seja
o espiritual riso e alegria da alma.
Quem será tão ditoso, que tenha gasto todo o tempo de sua vida tão
piedosa e religiosamente na conversação da vida monástica? Que
jamais tenha passado dia, hora, momento, que não tenha gasto no
serviço de Deus e obras religiosas, pensando sempre com muita
atenção não ser possível revogar o tempo passado e gozar duas vezes
de um mesmo dia nesta vida? Bem-aventurado aquele que levanta seus
olhos para contemplar aquelas celestiais e intelectuais virtudes, como
fazem os anjos; mas, também será bem-aventurado aquele que rega
suas faces com chuva de águas vivas, pois, por este estado, passam os
homens ao primeiro, que é de tanta felicidade.
Vi eu alguns pobres mendigos muito importunos, que com alguns
donaires inclinaram os ricos à misericórdia, e também vi alguns
pobres necessitados de virtude, os quais, não com donaires nem
palavras graciosas, porém humildes e signi cadoras de dor e de
confusão, arrancadas do íntimo do coração, importunando e
perseverando, venceram aquela invisível natureza, e a inclinaram à
piedade.
Aquele que se ensoberbece com a graça de suas lágrimas e condena
aos que as não têm, é semelhante ao que, tendo recebido armas do
imperador contra seus inimigos, usou delas contra si. Não tem Deus
necessidade de nossas lágrimas, nem quer que o homem chore
puramente só por angústia de seu coração, mas pela grandeza do
amor a Deus, acompanhado com alegria do coração. Deixa o pecado
à parte, e logo serão ociosas as lágrimas que por estes olhos sensíveis
se derramam; pois, não é necessário cautério onde não há chagas
pútridas. Não havia lágrimas em Sião antes do pecado, como
tampouco as haverá depois da ressurreição geral; porque, destruído o
pecado, então fugirão a dor, a tristeza, o gemido.
Vi em alguns este piedoso pranto, e vi-o também em outros, que se
lamentavam como se dele carecessem; e, com esta formosa castidade
de sua alma, estavam mais livres dos ladrões, isto é, da vanglória.
Desses está escrito: O Senhor faz cegos aos sábios. Algumas vezes
sóem estas lágrimas levantar aos mais levianos; pelo que são-lhes
tiradas por dispensação divina, a m de que, vendo-se privados delas,
as busquem com maior diligência e se conheçam por miseráveis, se
a ijam com gemidos, dor e confusão de ânimo (coisas estas que
suprem seguramente a falta das lágrimas), conquanto eles, para seu
proveito, não o entendam.
Acharemos algumas vezes, se observarmos atentamente, que os
demônios pretendem rir-se de nós: por exemplo, quando estamos
muito fartos, nos resolvem em lágrimas para parecermos mais
devotos; e, quando estamos jejuando, nos secam as fontes dos olhos,
para que, enganados com isto, nos entreguemos aos deleites da gula.
Considerando eu atentamente a natureza desta grande compunção,
quei muito maravilhado de ver como aquilo que, por um lado, se
chama pranto e tristeza, tem consigo anexo gozo e alegria, como o
favo tem o mel. Isto nos indica, não só uma grande maravilha, como
uma grande misericórdia de Deus, que entorna em nossa alma um
grande deleite, para consolar secretamente aos tristes e desconsolados
por seu amor.
II

Mas, porque não falte ocasião de e cacíssimo pranto e saudável dor,


quero contar aqui uma dolorosa história, para edi cação das almas.
Um religioso, chamado Estevam, que morava neste lugar, desejou
muito a vida quieta e solitária; e depois de se haver exercitado, por
muitos anos, nos trabalhos da vida monástica, e alcançado graça de
lágrimas e de jejuns, com outros muitos privilégios de virtudes,
edi cou uma cela à raiz do monte, onde Elias, nos tempos passados,
teve aquela visão. Este padre de tão religiosa vida, desejando ainda
maior trabalho de penitência, passou-se dali para outro lugar,
chamado Sydes, destinado aos monges anacoretas. Depois de ter
vivido com muito rigor neste lugar, desviado setenta milhas do
povoado, fora do caminho, e inacessível a toda a humana consolação,
voltou dali no m da vida, desejando morar na primeira cela daquele
sagrado monte. Tinha ele ali dois discípulos muito religiosos, da terra
da Palestina, que mantinham em guarda a sobredita cela. E depois de
ter vivido uns poucos dias nela, caiu em enfermidade e morreu. Um
dia antes de sua morte, subitamente cou atônito e pasmado, com os
olhos abertos, olhando para uma parte e para outra do leito; e como
se estivessem ali pessoas a lhe fazer perguntas e a lhe exigir contas,
pronunciava ele em presença de todos os que ali estavam, à guisa de
quem respondia, frases como estas: “É certo, assim é, mas por isso
jejuei tantos anos”; “Não é exato, não z isso”; “É verdade, mas
chorei e servi tantas vezes ao próximo por causa disso”; e, uma vez,
disse: “É verdade, não tenho que dizer senão que há em Deus
misericórdia”.
E era por certo temeroso espetáculo assistir àquele invisível e
rigorosíssimo juízo, em que, o que era ainda mais para temer, faziam-
lhe carga do que não havia praticado. Miserável de mim! Pois aquele
tão grande exemplo de virtudes, monge havia quarenta anos, dotado
da graça das lágrimas, em alguns de seus pecados nada tinha que dizer
em sua defesa! Ai de mim, ai de mim! Onde estava ali aquela voz do
Profeta Ezequiel: Em qualquer dia que o pecador se converta, não
guardarei memória de sua maldade? Nada pôde ele responder. Por
quê? Glória seja dada ao Senhor, que é quem o sabe. Contaram-me
que este padre, estando no ermo, dava de comer, em sua própria mão,
a um leopardo. E, sendo tal, partiu-se desta vida, deixando-nos
incertos sobre qual fosse seu juízo, seu termo, e a sentença e
determinação de sua causa.
Assim como a viúva, se lhe ca um só lho, descansa toda sobre ele
e não tem outro consolo abaixo de Deus; assim a alma, depois de
haver caído e perdido a Deus pelo pecado, um dos maiores consolos
que lhe ca para o tempo de sua partida, são as lágrimas e a
abstinência.
Essas almas não modulam curiosamente a voz quando cantam os
Salmos, porque estas coisas interrompem e apagam o pranto. Se tu
por este meio o pensas alcançar, tem por certo que está muito longe de
ti; porque o pranto é uma dor certa e xa da alma, acompanhada com
fervor de espírito, o qual é precursor daquela beatíssima quietude e
tranqüilidade que se acha em Deus. E em muitos este pranto preparou
a alma para Deus, limpando nela todos os espinhos e asperezas dos
vícios.
Um varão de Deus, exercitado nesta virtude, me contou que, tendo
determinado muitas vezes travar guerra cruel contra a vanglória,
contra a ira, contra a gula, a virtude do pranto, dentro de si mesmo,
lhe dizia secretamente: “Não te exaltes com vanglória, porque me
retirarei de ti”; e o mesmo lhe dizia em outras tentações, ao que ele
respondia: “Nunca te serei desobediente, até que me apresentes a Jesus
Cristo”.
A grandeza do pranto merece consolação e a limpeza do coração
merece luz do entendimento; e esta luz é uma secreta operação de
Deus, entendida sem entender-se e vista sem ver-se. Esta luz ou
iluminação é uma secreta obra de Deus na alma, mediante a qual se
lhe dá um natural conhecimento da verdade; e se diz que é conhecida
sem conhecer-se, porque o homem sente a sua e cácia na alma, mas
não sabe de onde ela vem, segundo o que está escrito: O espírito sopra
onde quer; ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para
onde vai.
E assim mesmo se escreve em Jó: Se vier a mim, não o verei; e, se se
for, tampouco o entenderei.
Consolação é refrigério de ânimo a ito, o qual alegra e docemente
incute coragem no meio das dores: tal como se alegra o menino,
quando, depois de haver perdido de vista sua mãe, a torna a ver rindo
e chorando ao mesmo tempo. É costume de Nosso Senhor, quando vê
as almas a itas e abatidas com a consideração de seus pecados,
perigos e tentações, recriá-las com um novo espírito e alento, e
converter as lágrimas de tristeza em lágrimas de paz e alegria. As
lágrimas tiram o temor da morte; e, depois que esse temor expeliu
outro temor, logo vem uma clara luz de alegria sobre a alma. Atrás
desta alegria, segue-se logo a or da caridade; pois, com tais dons,
cresce esta nobilíssima virtude, juntamente com a experiência de ver-se
o homem desta maneira reforçado, alegrado, visitado de Deus, o que
constitui nela um grande incentivo de amor.
Mas, com tudo isto, te aviso que não te es logo de qualquer gozo,
ainda que seja interior; mas, antes aparta-o algumas vezes de ti, como
indigno que és, com a mão da humildade; porque, se fores fácil em
recebê-lo, poderá ser que recebas o lobo em vez do pastor, isto é, o
gozo do Demônio pelo gozo de Deus. Não queiras correr
apressadamente à contemplação, em tempo que não é para isso
conveniente, isto é, quando o teu estado e a tua obrigação te chamam
a outro exercício; pois, se isto zeres, essa mesma contemplação não
se juntará perpetuamente contigo como castíssimo vínculo do
matrimônio.
O menino, quando começa a conhecer seu pai, recebe grande alegria
logo que o vê; mas, se ele, por alguma causa se ausenta e depois
regressa, o menino enche-se de alegria e tristeza ao mesmo tempo: de
alegria, por ver quem tanto desejava; de tristeza, recordando-se de
quanto tempo cou privado daquela honesta e formosa companhia.
Assim também a alma devota se alegra com a doce presença e
experiência de Deus e se entristece quando lhe falta; mas, quando lhe é
restituída, goza por ter recuperado o desejado bem e se entristece por
ver que pode perdê-la pelo pecado. Também a mãe do menino
algumas vezes de indústria se esconde, e alegra-se se o vê solícito e
a ito à sua procura: com essa dor provoca-o a nunca apartar-se dela e
a querê-la ainda mais. Assim faz aquela eterna sabedoria com a alma
devota, da qual muitas vezes se aparta sem que ela tenha culpa; e,
vendo-a entristecida e a ita por pensar que perdeu esta presença por
sua culpa, alegra-se de vê-la solícita, visita-a depois suavemente,
ensinando a andar daí em diante mais cuidadosa e a pôr mais cobro
nesta graça.
Aquele que está sentenciado à morte pouco se lhe dará por sair a
passeios, nem por ordenar andaimes para ver festas; assim também
aquele que está todo entregue ao pranto, pouco se lhe dará pelos
deleites ou pela glória do mundo, ou pelas ofensas que lhe façam. O
pranto é uma certa e perseverante dor da alma penitente, acréscimo
diário de tristezas a tristezas, de dores a dores, quais padece a mulher
que pare; e, por isso, disse muito bem um Santo Doutor: Vejo alguns
chorando, mas, se aquelas lágrimas saíssem do coração, não se
moveriam tão cedo ao riso.
Justo e santo é o Senhor, que assim como consola os bons solitários
e amigos da quietude, assim também consola os bons súditos e amigos
da obediência; e aquele que não vive como deve em qualquer destes
estados, tenha-se por privado desta graça.
Tem cuidado, quando estás no mais profundo pranto, de atropelar
de ti aquele perverso cão, que te representa Deus cruel e rigoroso;
pois, se bem o consideras, esse mesmo cão pintá-lo-á muito brando e
misericordioso quando te solicita para o mal.
O exercício das boas obras causa a freqüência e continuação, e esta
continuação constitui hábito e produz gosto delas; aquele que chegou
a este grau de virtude, di cilmente decairá. Por isso, disse um doutor,
os perfeitos não costumam cair subitamente, mas pouco a pouco,
descuidando-se e afrouxando-se no fervor. Ainda que tenhas subido a
um altíssimo grau de vida, todavia o deves ter em suspeita enquanto
não o acompanhas de tristeza e dor.
As lágrimas que geram o temor do juízo divino fazem o homem
temeroso, e diligente, e guardador de si mesmo; mas, as que procedem
da caridade imperfeita, são fáceis de perder, ou por vanglória, ou por
negligência, ou por dissolução, ou por demasiada seguridade. E não
carece de admiração ver como o mais baixo por natureza às vezes leva
vantagem ao que é mais alto, as lágrimas do temor às lágrimas do
amor imperfeito.
Há vícios que secam a fonte das lágrimas, como sejam os vícios da
carne, jogos, risotas, convites, e palestras; outros há que geram
maiores males, como sejam os vícios espirituais, isto é, a soberba, a
ambição, o desejo de louvor, e outros, pelos quais também costuma o
homem a cair em vícios sujos e bestiais. Pelos vícios da primeira
classe, veio Loth a cometer incesto; mas, pelos segundos, caíram os
anjos do céu.
Grande é a astúcia de nossos inimigos, quando fazem que as fontes
das virtudes se tornem fontes de vícios, incitando-nos a usar mal das
virtudes principais, presumindo vaidosamente, jactando-nos e
gloriando-nos delas, e fazendo dos benefícios de Deus motivos de
soberba, vanglória, estimação de si mesmo e desprezo dos outros.
Sói a gura e disposição dos lugares mover à compunção, como são
as celas e mosteiros pobres, postos entre montes e brenhas, em lugares
solitários. Disto temos o exemplo em Elias, em São João Batista, e em
nosso Divino Salvador, que sem necessidade sua e para exemplo nosso
se apartava aos montes a orar. Hei visto também que algumas vezes,
no meio das praças e desassossegos das cidades, sóem acompanhar-
nos as lágrimas; e isto bem pode ser artifício do Demônio, para que,
supondo não recebermos dano do bulício do mundo, não temamos
permanecer nele.
Uma palavra basta algumas vezes para secar o pranto que em muito
tempo se recolheu; e seria grande maravilha se uma só bastasse para
restituir o que a outra destruiu. Sirva-nos isto de aviso, para que
ponhamos grande cobro no que com tanta di culdade se alcança e
com tanta facilidade se perde. Não seremos acusados, irmãos, ao
tempo das contas, por não ter feito milagres, ou por não ter tratado de
altas matérias de teologia, nem tampouco por não haver chegado ao
cúmulo da contemplação; mas, seremos acusados porque não
choramos de dor dos pecados que cometemos.
CAPÍTULO VIII

Da morti cação da ira

Assim como o fogo se apaga com a água, com as lágrimas se apaga a


chama da ira e do furor; e, por isso, será coisa conveniente que,
havendo tratado já do pranto, tratemos agora da morti cação da ira.
A ambição é um apetite insaciável de honras e louvores, assim
como, pelo contrário, a perfeita morti cação da ira é um insaciável
desejo de desprezos; de maneira que, assim como a ira é apetite de
vingança, assim a perfeita morti cação dela é desejo de ignomínia.
Morti cação da ira é vitória e senhorio da natureza, não fazendo caso
nem dando pelas injúrias, virtude esta que se alcança com grandes
suores e batalhas.
Mansuetude é um estado constante e imóvel da alma, que persevera
de uma mesma maneira entre os vitupérios e os louvores, entre a boa e
a má fama. O princípio da morti cação da ira consiste em fechar a
boca estando o coração turbado; o meio, em ter também quieto o
coração com muito pequeno sentimento das injúrias; o m, em ter
uma estável e xa tranqüilidade no meio dos encontros e sopros dos
espíritos maus.
Ira é disposição para o ódio secreto, a qual procede da memória das
injúrias arraigada no coração. Ira é desejo de fazer mal a quem nos
ofendeu. Fúria é um arrebatado fogo e movimento do coração que
dura pouco. Amargura de coração é uma desabrida paixão e
movimento de nosso ânimo. Furor é uma acelerada paixão do ânimo,
que descompõe e desordena todo o homem por dentro e por fora.
Assim como, em saindo o sol, fogem as trevas, em começando a
propagar-se e estender-se o suavíssimo odor da humildade, desterra-se
todo o furor e amargura do coração.
Alguns, sendo muito sujeitos à paixão da ira, são muito negligentes
para curá-la; não se lembram, os miseráveis, daquela ameaça da
Escritura: No momento da ira está a perdição e sua queda. Assim
como a pedra do moinho mói mais trigo em um momento do que a
mão em um dia, assim esta furiosa paixão pode, em um momento,
causar mais dano do que outras em muito tempo. Assim veremos
também que um fogo, soprado por grandes ventos, faz maior dano,
quando se solta ao campo, do que outro pequeno, ainda que dure
mais tempo. Por isso, muita cautela deve haver contra esta desaforada
paixão.
Assim como uma pedra, cheia de quinas, se envolve-se e se esfrega
com outras pedras, chega a adelgaçar-se e a despontar-se, perdendo
aquela aspereza que tinha; assim também o homem irascível e áspero,
junta-se com outros homens ásperos e vive em companhia deles, de
duas uma: ou amansar-se-á, ou fugirá às ocasiões de ira. E estas fugas
serão o espelho de sua fraqueza e o incentivo para a humildade de seu
coração.
O furioso é um endemoninhado voluntário, que, tomado da paixão
e do furor, contra sua vontade cai e faz-se em pedaços; e digo contra
sua vontade, porque o furor da paixão, quanto diminui o uso da
razão, tanto impede a liberdade da vontade. Nada há que menos
convenha aos penitentes do que o furor da ira, porque, devendo ter a
conversão acompanhada com suma humildade, esse furor é
grandíssimo argumento de soberba. Se é certo que o termo da
suprema humildade é não alterar-se em presença do ofensor, antes
amá-lo com quieto e sossegado coração; assim também é certo que o
termo do furor será quando, estando sós, nos embravecemos com
palavras e gestos furiosos contra o ofensor. Se, como realmente é e se
diz, o Espírito Santo é a paz da alma e a ira é a perturbação dela, com
razão também se dirá que uma das coisas que mais fecham as portas
do Espírito Santo, e que mais depressa o fazem fugir depois de vindo,
é esta paixão.
Como sejam muitos e cruéis os lhos da ira, um deles, conquanto
adúltero e mau, ocasionalmente veio a ser proveitoso; pois, vi alguns
que, embravecidos com a ira, vomitando a causa do furor que de
muitos dias tinham em suas entranhas concebida, foram aplacados
pelo ofensor, com penitência, humildade e satisfação, uma vez
entendida a causa de sua indignação. E desta maneira o que o furor
havia desmanchado, a virtude da humildade consertou, conforme o
que está escrito: O varão irascível levanta contendas e o paciente
aplaca as levantadas. E em outro lugar: A resposta branda amansa a
ira e as palavras duras despertam o furor.
Vi alguns que, mostrando por fora uma aparente longanimidade e
mansidão, tinham arraigada a memória da injúria no íntimo de seu
coração: esses os tive eu por piores do que os manifestamente furiosos,
porque assim, com esta maliciosa dissimulação, sujavam a pomba
branca da simplicidade e mansidão. Convém, pois, armar-nos contra
esta serpente da ira, tanto mais quanto ela tem por auxiliar a nossa
mesma natureza, do mesmo modo que a serpente da luxúria.
Vi alguns tão in amados do furor da ira que até perdiam o apetite e
deixavam de comer, acrescentando assim, com esta desaforada
abstinência, um veneno a outro veneno.
Vi também alguns que, tomados desta paixão, entregavam-se aos
deleites da gula, para com isto se consolarem da impossibilidade da
vingança, caindo assim de um despenhadeiro em outro.
Vi, porém, outros que, mais prudentes, como sábios médicos,
tomaram refeição moderada e, ajudando-se desta natural consolação
juntamente com a razão, despediram de si o sentimento; e disto
tiraram muito fruto, para saberem daí em diante reger-se e não
entregar-se à ira.
Também o canto e melodia moderada dos Salmos amansa o furor,
como o fazia a música de Davi, quando Saul era atormentado. Do
mesmo modo o desejo e gosto das consolações divinas desterra da
alma toda a amargura e furor, assim como também desterra as
consolações e deleites sensuais; pois, este gosto celestial não menos
aproveita contra o furor da ira do que contra os deleites da carne, dos
quais muitas vezes o furioso não quer gozar por conservar-se em sua
paixão. Convém muito que tenhamos repartidos e ordenados nossos
tempos, e determinado o que em cada um deles devemos fazer, para
que, não achando lugar em nós a ociosidade e o fastio das coisas
espirituais, não haja entrada para a ira e para outros inimigos.
Estando eu, em certa ocasião, junto à cela de uns solitários, ouvi
que estavam entre si altercando com grande furor e sanha,
embravecendo-se contra certa pessoa que os havia ofendido, e rixando
com ela como se a tivessem presente: admoestei-os el e
caritativamente a que não vivessem mais em soledade, se não queriam
de homens fazer-se demônios, tornando-se cruéis e apodrecendo com
semelhantes paixões. Vi também outros, amigos de comer e beber, e de
regalos, os quais, por outra parte, pareciam brandos, amorosos e
mansos de condição, a ponto de terem alcançado fama de santidade: a
esses, ao contrário, aconselhei que passassem à soledade (a qual sói
cortar como navalha todas as ocasiões destes deleites e regalos), se não
queriam de criaturas racionais fazer-se brutos, dando-se a vícios
próprios destes. Vi outros, mais miseráveis, que nem cabiam na
companhia, nem na soledade, aos quais aconselhei que de modo
algum se governassem por si mesmos, e aos mestres deles
benignamente admoestei que condescendessem com eles, deixando-os
tempos na companhia, tempos na soledade, e ocupando-os ora em
uns, ora em outros exercícios, com tal condição que, abaixada a
cerviz, em tudo e por tudo obedecessem ao seu governador.
Aquele que é amigo de deleites faz dano a si; e, quando muito, pode
fazê-lo a outrem com o mau exemplo; mas, o furioso e irado, à
maneira do lobo, muitas vezes perturba toda a manada, revolve toda
uma comunidade, ferindo e mordendo muitas almas. Grave coisa é
estar turbado o coração com o furor da ira, como se queixava o
Profeta quando exclamava: Turvam-se com o furor meus olhos.
Porém, mais grave coisa é, quando à turbação do coração se
acrescenta a aspereza das palavras; e, sobretudo, muito mais grave
coisa é, e muito contrária a toda a monástica, angélica e divina
conversação, querer satisfazer com as mãos o furor.
Se quiseres tirar a palha do olho do outro, ou te parece a ti que a
queres tirar, não a tires com uma viga na mão: quero dizer não queiras
curar o vício de outro com palavras injuriosas e movimentos feios,
mas com brandura e mansa repreensão; pois, o Apóstolo não disse a
seu lho Timóteo: açoita, fere, mas, argüi, roga, repreende com toda a
paciência e doutrina. E se for necessário castigo de mãos, seja isso
poucas vezes; e ainda não o deves fazer por ti, mas por mão alheia. Se
atentamente observarmos, acharemos alguns que, sendo muito sujeitos
à paixão da ira, são por outra parte muito dados a jejuns e vigílias, e
ao recolhimento da soledade: isto é astúcia do Demônio, a m de levá-
los, sob a capa da penitência e do pranto, a exercícios desordenados, a
m de torná-los melancólicos e acrescentarem a matéria do furor.
Se um lobo, como já dissemos, ajudado do Demônio, basta para
revolver e destroçar todo um rebanho, também um religioso muito
discreto, como um vaso de óleo, ajudado do bom anjo, mudará a fúria
da tempestade em serena tranqüilidade, e porá o navio a salvo; e,
sendo desta maneira exemplo e modelo de todos, receberá de Deus tão
grande coroa por esta paci cação, quão grande castigo receberá o
outro por aquela perturbação.
O princípio deste bem-aventurado sofrimento consiste em sofrer
ignomínias com dor e amargura da alma; o meio, em sofrê-las sem
tristeza e amargura; e o m, em tê-las por suma glória e louvor. Notei
uma vez uma coisa miserável nos que estão sujeitos à ira, coisa essa
procedia de uma secreta soberba de si mesmos; pois, vinham depois a
irar-se de puro corrimento, por se verem vencidos da ira. E maravilhei-
me muito de ver como estes emendavam uma queda com outra queda;
e tive lástima deles, vendo como perseguiam um pecado com outro
pecado; e espantei-me tanto de ver tão grande astúcia nos demônios,
que pouco faltou para desesperar de meu remédio.
Se alguém, vendo-se dia a dia vencido da soberba, da malícia, da
hipocrisia, deseja tomar as armas da mansidão e da paciência contra
estes vícios, este tal trabalhe por entrar na o cina de algum mosteiro
como quem entra em uma batagem ou lavanderia; e, se quiser ser
perfeitamente curado, busque a companhia dos religiosos mais
rigorosos e ásperos, a m de que, sendo ali vexado e provado com
injúrias, e trabalhos, e disciplinas, e pisado e açoitado de seus
prelados, que a sua alma como um pano batido e limpo de todas as
imundícies de pecados que tinha. E não é muito dizer que as injúrias e
opróbrios são como um lavatório espiritual para as almas; pois,
mesmo na linguagem vulgar, dizemos, quando injuriamos alguém, que
o deixamos muito bem ensaboado.
Uma é a morti cação da ira que procede da dor e penitência dos
principiantes, e outra é a dos perfeitos: a primeira está atada com a
virtude das lágrimas como com um freio; mas, a outra está como uma
serpente degolada com um cutelo a adíssimo, isto é, com a
tranqüilidade do ânimo, que, como rainha e senhora, tem subjugadas
todas as paixões. Vi eu uma vez três monges, que haviam sido
ofendidos e injuriados: dos quais, um reprimia a ira do coração com o
silêncio das palavras; outro, alegrava-se com a ocasião de
merecimento que se lhe havia deparado, doendo-se ainda da culpa do
ofensor; outro, não considerando mais do que o dano do próximo,
derramava muitas lágrimas. E assim era muito doce espetáculo
contemplar estes três santos obreiros, a um dos quais movia o temor
de Deus, ao outro o desejo do galardão, e ao outro, tão somente, a
sincera e perfeita caridade.
Assim como a quentura dos corpos enfermos, sendo uma, não
procede de uma só causa, senão de muitas e diversas; assim o ardor e
movimento da ira (e por ventura também o das outras paixões)
procederá também de muitas causas; e, por isso, não será de razão
assinalar uma só regra para coisas tão várias, de sorte que cada um
deve ordenar a medicina conforme a disposição e diligência do
enfermo. Nesta conformidade, o primeiro remédio será que trabalhe
cada um por entender a causa de sua paixão; e, conhecida a causa,
ponha o cutelo à raiz, e busque remédio assim de Deus, como dos
homens, isto é, do magistério dos varões espirituais. E os que desejam
juntamente conosco losofar nesta matéria, entrem em uma intelectual
audiência, semelhante à que se usa no século (onde sóem os juízes
examinar e sentenciar os réus), e aí procurem inquirir as causas e
efeitos destas paixões e o remédio delas. Seja, pois, atado este tirano
com as cordas da mansidão, e açoitado com o açoite da
longanimidade; seja pela caridade apresentado ao tribunal da razão; e,
posto a tormentos, sejam-lhe feitas estas perguntas:
— Diz-nos, ó louco e torpíssimo tirano, os nomes dos pais que te
geraram, e dos teus malvados lhos e lhas, e também daqueles que te
destroem e matam?
Inquirido desta maneira, responderá assim:
— Muitos são os que concorrem para a minha existência, e o pai
que me gerou chama-se orgulho. Minhas mães são a vanglória, a
cobiça, a gula e, algumas vezes, a luxúria. Minhas lhas são a
memória das injúrias, a inimizade, a por a, e a malquerença. Os
adversários que agora me têm preso são a mansidão e a morti cação
da ira; e quem está de alcatéia contra mim é a humildade.
CAPÍTULO IX

Do esquecimento das injúrias

Com muita razão se comparam as virtudes àquela escada que Jacó viu
em sonho e os vícios àquela cadeia que caiu das mãos de São Pedro.
As virtudes, travadas uma na outra, em razão de uma natural
causalidade e conseqüência, formam uma perfeita escada que nos
conduz até o céu; mas, os vícios, enlaçados como anéis ou elos, por
esta mesma ordem e conseqüência, formam uma espiritual cadeia, que
tem os homens presos ao pecado e os leva ao inferno. E, como vimos
que o furor da ira tem por lha a memória das injúrias, é razoável que
agora tratemos disto.
Memória das injúrias é acrescentamento do furor, guarda dos
pecados, ódio da justiça, destruição das virtudes, veneno da alma,
verme roedor constante, confusão da oração, perda da caridade, cravo
a ncado no coração, dor aguda, amargura voluntária, pecado
perpétuo, maldade que nunca dorme, e malícia de toda a hora. Este
tenebroso e molestíssimo vício é da ordem dos que geram e são
gerados de outros vícios; e, por isso, trataremos dele mais brevemente.
Aquele que desterrou de sua alma a ira, desterrou também a
memória das injúrias; mas, se aquela estiver viva, nunca deixará de
amamentar tal lha. Por outro lado, aquele que conservar a caridade,
desterrará a ira; mas, se quiser manter inimizades, a muito grandes
trabalhos se obriga. A mesa e o convite caritativamente oferecidos
muitas vezes reconciliaram os desavindos; e as dádivas e presentes
abrandam o coração. A mesa curiosamente aparelhada serve para
granjear amizade, posto que, não raras vezes, pela janela da caridade,
tem entrado a fartura do ventre; por isso, havemos de tal maneira
procurar os bens, que não abramos a porta aos males.
Notei, uma vez, um fato que maravilhou-me, isto é, maravilhei-me
de ver como um demônio curava a outro demônio, conquanto mais
isto fosse dispensação de Deus, que por todas as vias encaminha nosso
bem, do que obra do Demônio: a paixão do ódio foi bastante para
apartar uns infelizes que, desde muitos dias, estavam amancebados, de
sorte que a memória das injúrias quebrou um forte vínculo de
impureza. Muito longe está a memória das injúrias do grande e
verdadeiro e natural amor; mas, muitas vezes, este amor, ainda que
limpo, vem a degenerar em amor sujo. E, por isso, quando é
suspeitosa a condição das pessoas, sempre deve o homem se acautelar
do amor, porque, as mais das vezes, se dá caça à pomba quando o
amor sensível degenera em amor sensual.
Quem for mordido da memória das injúrias, recorde-se das que lhe
fez o Demônio e embraveça contra ele; e, se quiser travar inimizades,
trave-as com seu corpo, que é um inimigo falso e enganoso, e que,
quanto mais se regala, mais nos prejudica. Sóem os que têm memória
das injúrias apoiar-se na autoridade das Escrituras, torcendo-as ao
sentido que lhes apraz e pretendendo, com falso zelo, defender seu
mau propósito. Baste, para confusão destes, a oração que o Salvador
nos ensinou e que não poderemos recitar sinceramente, se tivermos a
memória das injúrias.
Se, depois de muito esforço, não puderes de todo desterrar esta
paixão, ao menos trabalha, com as palavras e com o rosto, por
mostrar a teu inimigo quanto isto te pesa; assim, por haver tido esta
dissimulação para com ele, terás a nal vergonha de não lhe dedicares
o amor que lhe deves, acusando-te e remordendo-te com isto a própria
consciência. E, então, te hás de considerar livre desta enfermidade,
não quando rogares por teu inimigo, não quando lhe ofereceres
dádivas e presentes, não quando o trouxeres a comer na tua mesa,
mas quando, ocorrendo-lhe alguma calamidade espiritual ou corporal,
te compadeceres dele, e assim te sintas como se tu mesmo a padecesse.
O monge solitário, que dentro de sua alma guarda a memória das
injúrias, é como um basilisco que está dentro de sua cova, o qual,
onde quer que vá, leva consigo sua peçonha. No madeiro apodrecido
se geram vermes; e, muitas vezes, nos homens que parecem mansos e
amantes de uma falsa quietude, está encerrada a ira.
Grande remédio é para desterrar esta memória a memória das dores
de Jesus, quando o homem, considerando tanta clemência e paciência,
compreende que, esquecendo as injúrias do próximo, alcançará
perdão e, retendo e sustentando a lembrança delas, se faz indigno da
misericórdia divina; pois, muito bom meio é o trabalho e a aspereza
da vida para alcançar perdão dos pecados, porém muito melhor é o
perdão das injúrias, segundo o que está escrito: Perdoai e sereis
perdoados.
Por isso, bem se vê que um dos grandes argumentos e indícios da
verdadeira penitência é o olvido das injúrias; e aquele que, guardando
as inimizades, pensa que faz penitência, é semelhante a quem, estando
a dormir, sonha que corre.
Já me aconteceu ver alguns que saudavelmente exortavam outros ao
perdão das injúrias; e, tendo eles também que perdoar, de tal modo se
moveram e envergonharam com suas próprias palavras, que vieram a
perdoar e a curar sua própria enfermidade com o remédio dado para a
enfermidade alheia. Ninguém tenha esta cega paixão por simples e
pequeno vício, porque muitas vezes chega a alterar os espirituais
varões.
CAPÍTULO X

Do horror à detração

Todos sentem que da memória das injúrias nasce a detração; e, por


isso, convém tratar deste vício depois de seus antecessores neste
presente lugar.
Detração é lha do ódio, enfermidade sutil, secreta e escondida
sanguessuga, que chupa todo o suco da caridade; ngimento de amor,
desterro da castidade interna da alma, corruptora do coração e
também das palavras.
Assim como há algumas mulherinhas desavergonhadas ou
publicamente más, e outras que secretamente cometem maiores
culpas; assim também acontece, entre as paixões e vícios, que uns
(como, por exemplo, a gula e a luxúria) são mais públicos e
desavergonhados, ao passo que outros (tais como a hipocrisia, a
malícia, a tristeza mundana, a memória das injúrias, a bisbilhotice,
etc.), mais secretos e dissimulados, são muito piores que aqueles,
porque, parecendo uma coisa, encobrem outra, isto é, sob a cor da
virtude e do zelo, trazem grande veneno. Ouvi uma vez a certas
pessoas detraindo de outras; e, repreendendo-as por isto, quiseram
dar-me satisfação do que diziam, alegando que o faziam por caridade
e para proveito daquelas de quem detraíam. Repliquei-lhes que
cessassem aquele estranho modo de fazer caridade, mesmo para não
tornarem mentiroso Aquele que disse: Perseguia eu ao que
secretamente detraía de seu próximo. Se amas a teu próximo, não
digas mal dele, aconselha-o e roga secretamente a Deus por ele, que é
esta a caridade que a Deus agrada.
Tu que queres julgar e condenar o próximo, pensa quão diferentes
são os juízos de Deus dos juízos dos homens; pois, Judas esteve no
coro dos Apóstolos, o bom ladrão no número dos homicidas; e
entretanto, em um momento se fez entre ambos tão completa
mudança.
Se alguém quiser vencer o espírito da detração, não atribua a culpa
a quem a fez, mas ao Demônio que a suscitou, pois o Demônio é o
autor universal de todos os males. Vi um que, publicamente, pecou e,
secretamente, fez penitência; e, havendo-o eu julgado por mau, depois
achei que, perante Deus, era ele inocente, pois já o havia aplacado
com sua penitência. Não tenhas demasiado respeito a quem diante de
ti diz mal de seu próximo; antes lhe dize: “Cala-te, irmão, porque, se
não fazes o que este faz, pode ser que faças coisas piores, e que ele,
por ventura, não fará; pois, como o podes condenar?”. E, assim, com
uma só medicina, curarás a ti e também ao próximo.
Entre os caminhos que há para alcançar perdão dos pecados, um
dos mais curtos é este: não julgar a ninguém. Pois verdadeira é aquela
sentença que diz: “Não queirais julgar e não sereis julgados”. Salvo o
dever de autoridade e de confessor, tão contrário ao espírito da
verdadeira penitência é o julgar o próximo, quanto a água é contrária
ao fogo.
Ainda que vejas alguém pecar na hora de expirar, não o condenes.
Alguns há que publicamente caíram em grandes pecados e que, depois,
secretamente, zeram maiores bens. Por isso, se enganam os que
julgam as vidas dos outros, seguindo mais a fumaça do que o sol, isto
é, seguindo mais a suspeita do que o claro conhecimento da verdade.
Ouvi-me, rogo-vos, os que sois rigorosos juízes dos outros. Se é
verdade, como o é, que cada um será julgado com o juízo que julgar,
claro está que, conforme a culpa que atribuirmos a nosso próximo,
viremos, por justo juízo de Deus, a ser condenados nas ações
semelhantes que praticarmos. A causa por que somos tão fáceis em
julgar os delitos dos outros é por não termos o cuidado que
deveríamos ter de chorar e emendar os nossos; pois, se algum,
afastando o véu do amor próprio, contemplar diligentemente seus
males, nenhum cuidado o fatigará mais nesta vida do que este,
considerando que não tem tempo su ciente para lamentar-se, ainda
que lhe restassem cem anos de vida e ainda que o rio Jordão,
convertido em lágrimas, viesse manar de seus olhos. Observei
atentamente a gura e natureza do pranto e não achei nele rastro de
detração, nem condenação de ninguém.
Os demônios procuram sempre uma de duas, ou fazer-nos pecar ou
fazer-nos julgar aos que pecam, a m de, como cruéis homicidas,
destruírem uma coisa com a outra. Ao menos, sinal muito certo é de
que guarda a memória das injúrias, e de que tem o coração eivado de
inveja, aquele que facilmente vitupera a doutrina e as obras do
próximo; pois, a causa disto sói ser o espírito de ódio, em que
miseravelmente está o homem caído e despenhado. Conheci eu alguns
que secretamente cometiam grandes pecados, os quais, para parecerem
justos, agravavam e encareciam muito os pecados veniais dos outros.
Julgar o próximo nada mais é do que usurpar desacatadamente a
cadeira e a dignidade de Deus, a quem somente pertence o ofício de
julgar os outros. Condenar o próximo nada mais é do que matar o
homem a si mesmo. Assim como a soberba só, sem outro qualquer
vício, é bastante para condenar ao que a tem, assim também o é, em
casos, o julgar e condenar a outros; pois, vemos que o fariseu do
Evangelho foi por esta causa condenado. O sábio vindimador colhe as
uvas maduras e deixa as verdes; assim, o religioso e prudente varão
anda sempre notando, com grande estudo, as virtudes dos outros, e
não faz como o néscio, que anda sempre esquadrinhando defeitos,
segundo aquilo que está escrito: Puseram-se a esquadrinhar as
maldades e desfaleceram neste escrutínio. A suma de tudo isto seja
que, mesmo com teus olhos vendo alguém pecar, não o condenes por
isso, nem te es deles, porque também estes se podem enganar.
CAPÍTULO XI

Do comedimento nas palavras

Vimos, no capítulo precedente, quão perigoso vício é o de julgar o


próximo, e como também este vício contamina os varões espirituais
que julgam os outros, conquanto mais propriamente sejam eles
julgados e atormentados com sua própria língua.
Vem agora a propósito declarar em poucas palavras a causa e a
porta por onde este vício entra e sai e torna a entrar.
Loquacidade é lha da vanglória, pela qual ela se descobre e sai à
praça. Loquacidade é argumento certo de pouco saber, porta da
detração, mãe das truanices, o cial de mentiras, perda da compunção,
causadora da preguiça, precursora do sono, desterro da meditação, e
destruição da guarda de si mesmo. Mas, o silêncio, pelo contrário, é
mãe da oração, reparo da distração, exame de nossos pensamentos,
atalaia aos inimigos, incentivo da devoção, companheiro perpétuo do
pranto, amigo das lágrimas, despertador da memória da morte, pintor
dos tormentos eternos, inquisidor do juízo divino, causador da santa
tristeza, inimigo da presunção, esposo da quietude, adversário da
ambição, acrescentamento da sabedoria, obreiro da meditação,
aproveitamento secreto, e secreta subida a Deus, segundo aquilo que
está escrito: O varão justo assentar-se-á na soledade, e calar-se-á
porque levantou-se sobre si.
Aquele que conhece seus pecados enfreia sua língua; mas o tagarela
ainda não chegou a conhecer-se. O estudioso amador do silêncio
chega-se a Deus e assiste sempre, diante dele, no segredo de seu
coração; e assim é por ele familiarmente iluminado e ensinado.
O silêncio de nosso Salvador produziu admiração e reverência a
Pilatos, que o julgava, como dizem os Evangelistas. A voz baixa e
calada, assim como é conforme ao ânimo humilde, assim também é
contrária e destituída da vanglória. Uma palavra disse São Pedro e
chorou depois de havê-la dito, porque se recordou daquilo que está
escrito: Eu disse, guardarei meus caminhos para não pecar com minha
língua, e do outro que disse: Mais vale cair do alto do que cair da
própria língua.
Não quero tratar muito desta matéria, conquanto as muitas astúcias
deste vício me incitem a isso. Falando comigo um grande varão (cuja
autoridade para mim era de grande peso), falando da quietude da vida
solitária, dizia que este vício se gerava de uma destas coisas, convém a
saber: ou do mau costume de muito falar (porque a língua, como
membro corporal, sempre se move no que está habituada), ou da
vanglória (que é amiga do falar) e não menos também da fartura do
ventre, porque o muito falar sempre anda junto com o muito comer:
de onde aconteceu que muitos, com o trabalhar para refrear o ventre,
facilmente puderam refrear a língua.
Aquele que se ocupa na memória da morte corta rente as palavras
demasiadas; e aquele que tem alcançado a virtude do pranto foge do
muito falar, como quem foge do fogo. Aquele que ama a quietude da
soledade cerra sua boca; e aquele que folga de sair em público a tratar
com os homens, este vício o tira de sua cela. Aquele que já sentiu o
ardor do altíssimo e divino fogo do Espírito Santo foge ao trato e
companhia dos homens como a abelha foge da fumaça; pois, assim
como a fumaça faz mal às abelhas, assim a companhia dos homens faz
mal ao espírito de recolhimento. De poucos é fazer que a água do rio
corra direita, se não tiver madre por onde corra, nem ribeiras que o
detenham; mas de muito poucos é conter a língua e domar este tão
poderoso monstro.
CAPÍTULO XII

Da veracidade

Da pedra e do ferro saltam centelhas, e da loquacidade e tagarelice


nascem as mentiras.
Mentira é desterro da caridade e perjúrio é negação de Deus.
Ninguém que tenha bons sentimentos terá a mentira por pequeno
pecado, vendo com que terrível sentença a condenou o Espírito Santo,
quando disse: Destruirás a todos os que dizem mentiras. E, então, que
será daqueles que acrescentam maldade à mentira, con rmando-a com
juramento? Vi alguns que se gabavam de dizer mentiras e palavras
ociosas para provocar o riso: prejudicaram com isso os ouvintes,
fazendo-lhes perder as lágrimas e a devoção.
Quando os demônios vêem que, começando alguém a dizer tolices,
logo voltamos as costas e fugimos, então pretendem iludir-nos,
insinuando-nos a não entristecer o irmão que fala, ou a não querer
mostrar-nos mais santos e mais espirituais do que os outros. Não
consintas neste pretexto e salta daí sem mais tardar; pois, de outro
modo, levarás o coração cheio de imagens e guras das coisas que
ouviste, as quais se te representarão e inquietarão depois, ao tempo da
oração.
E não te contentes de fugir; mas, com religiosa severidade, ataca a
prática iniciada, se para tanto tiveres autoridade, interceptando-a com
a memória da morte e do Juízo Final. Aliás, menos mal será receberes
disto algum pouco de vanglória, aproveitando aos outros, do que
ouvires com um danoso silêncio tais coisas, prejudicando a ti e aos
outros.
O ngimento ou dissimulação é mãe da mentira e às vezes também
matéria dela; pois, como alguns bem o a rmam, a dissimulação nada
mais é do que mentira arti ciosa, que mais perniciosa se torna quando
traz anexo o juramento. Quem teme a Deus, muito longe está de toda
a mentira, porque traz sempre dentro de si um juiz muito íntegro, que
é a própria consciência.
Assim como entre as paixões e perturbações do ânimo, há umas
mais prejudicais do que outras, assim também acontece o mesmo entre
as mentiras. Uns mentem de medo do tormento, outros mentem sem
coação alguma, uns mentem para conseguir algum prazer, outros
mentem só por hábito e gosto de mentir, uns mentem para fazer
intriga, outros mentem para caluniar e causar dano ao próximo. E,
conforme a matéria e a qualidade, assim é mais grave ou mais leve a
culpa.
As penas que os príncipes cominam contra os mentirosos servem
para desterrar a mentira; mas o exercício das lágrimas e do pranto de
todo a destroem. Muitas vezes, sob pretexto de causa justa ou
necessidade, nos incitam alguns a dizer mentiras; e o que é perdição de
nossa alma nos querem fazer crer que é justiça, alegando para isto o
exemplo de Raab, que ngiu uma mentira. E desta maneira, dizem que
procuram a vantagem dos outros com o seu dano próprio, sem se
lembrarem de que, segundo disse o Senhor, não aproveita ao homem
ganhar todo o mundo se padece detrimento em si próprio. Não sabe a
criancinha que coisa é mentira, nem tampouco a alma perfeita e limpa
de toda a maldade. Aquele que está tomado do vinho, diz verdade,
quer queira quer não; mas, aquele que está embriagado com o vinho
da compunção nem sabe que coisa é dizer mentira.
CAPÍTULO XIII

Da solicitude e diligência

Um dos ramos da loquacidade é, como vimos, a acídia. Preguiça é a


aversão ao trabalho, acídia é ainda a relaxação de ânimo, morte do
espírito, ódio da própria pro ssão e, portanto, para os monges,
menosprezo da vida monástica: faz os seculares bem-aventurados e
Deus áspero e rigoroso; para o cantar dos Salmos está fraca, para a
oração enferma, para o serviço da casa como de ferro, para a obra de
mãos diligente, e, para a obediência pesada. O varão sujeito e
obediente está longe da preguiça e, com o exercício das coisas
sensíveis, aproveita nas inteligíveis.
A vida monástica resiste à preguiça; mas, por outro lado, a acídia é
tão perpétua companheira do monge solitário, que não o deixará e o
combaterá em todos os dias de sua vida. Passando a acídia pela cela
do solitário, sorriu, e, chegando às portas dela, determinou fazer ali
sua morada. Ao amanhecer, visita o médico os enfermos, mas a acídia
visita os monges ao meio-dia: recomenda-nos o recebimento dos
hóspedes, incita-nos a dar esmolas com o trabalho de nossas mãos,
admoesta-nos também a visitar os enfermos, alegando o dito do
Evangelho: Enfermo estava e viestes a mim; aconselha-nos a ir
consolar os tristes e pusilânimes; e, sendo ela pusilânime, diz-nos que
vamos a reforçar os que o são.
Quando estamos em oração, nos traz à memória alguma coisa que
convém fazer; e, carecendo ela de razão, não há coisa que não faça
para tirar-nos dali com carradas de razão. Todas estas obras nos
aconselha, não com o espírito de caridade nem de virtude, senão para
que, sob a capa do bem, nos aparte dos exercícios espirituais.
Três horas ao dia acarreta este espírito de acídia febre e dor de
cabeça e outros semelhantes acidentes; mas, quando chega a hora da
nona, posta a mesa, começa a cessar tudo isso, e salta de seu lugar,
para tornar ao enfraquecimento e sentir peso ao voltar o tempo da
oração. Aos que estão em oração fatiga com o sono; e com
importunos bocejos tira-lhes o verso da boca.
Cada um se vence, quanto aos outros vícios e perturbações, com sua
virtude contrária; mas a acídia é morte perpétua de toda a vida
religiosa. A alma varonil e robusta levanta e ressuscita o espírito
morto e caído; mas a acídia e a frouxidão destroem de um golpe todas
as riquezas das virtudes, porque fecha a porta a todos os bons
exercícios.
Como seja este um dos vícios capitais, convém que dele tratemos do
mesmo modo que dos outros e acrescentando mais o que vou dizer.
Enquanto não chega a hora de cantar os Salmos, não aparece a
acídia; mas, com o ofício divino, logo abre os olhos e ressuscita.
No tempo em que nos combate a acídia, então é que se descobrem
os cavalheiros esforçados, que arrebatam o reino dos céus; e que não
há muita coisa que igualmente dê ao monge tanta matéria de coroas.
Se considerares atentamente, verás que este vício faz cansar aos que
estão de pé cantando os Salmos, e aos que estão assentados faz que se
recostem à parede, para que estejam mais a seu gosto; aos que estamos
na cela convida a sair e fazer ruído com os pés, sob pretexto de não
ser possível ter o corpo quieto. O principal remédio contra este mal é
o pranto, porque quem chora seus pecados não sabe que coisa é
acídia.
Atemos também este tirano com a memória dos pecados, açoitemo-
lo com o trabalho de mãos, levemo-lo arrastado com o desejo e
consideração dos bens eternos; e, estando em pé, seja por ordem de
juízo perguntado:
— Dize-nos, remisso e dissoluto tirano, quem é o pai que tão mau
lho gerou, quem são os teus lhos, quem são os que te combatem, e
quem, nalmente, te corta a cabeça?
E ele responderá:
— Eu, entre os verdadeiros obedientes, não tenho onde reclinar a
cabeça; mas moro em companhia dos que buscam a quietude da
soledade, se não vivem com grande resguardo. Os pais que me
geraram e deram nome são muitos; pois sou gerado umas vezes pela
insensibilidade, outras pelo olvido das coisas celestiais, outras até
mesmo pela demasia dos trabalhos. Meus lhos legítimos são a
instabilidade ou mudança de lugares, a desobediência do padre diretor
espiritual, o olvido do juízo divino, e às vezes também o desamparo de
minha própria pro ssão. Meus contrários, que agora me prendem, são
o cantar dos Salmos, o trabalho de mãos, e a memória da morte; mas
quem me corta a cabeça é a oração acompanhada com esperança
rmíssima dos bens futuros. E, se quiseres saber quem seja o pai da
oração, pergunta no lugar competente.
CAPÍTULO XIV

Da temperança e do jejum

Determinando tratar da gula, necessariamente agora, mais do que


nunca, havemos de losofar contra nós mesmos; pois, grande
maravilha seria haver homem de todo perfeitamente livre da gula.
Gula é hipocrisia e ngimento do ventre, que, depois de farto, nos
faz crer que tem necessidade de mais, e, depois de cheio quase a
arrebentar, ainda diz que padece de fome.
Gula é inventora de sabores e acepipes e descobridora de novos
regalos: apertaste-lhe uma veia, sai ela por outra; atalhaste-a por uma
parte, rompe por outra; vencida esta, vieste a ser vencido por outra;
em suma, tantos incentivos do nosso apetite tem este vício, que, se te
escapas de um perigo, vens logo a cair em outro.
Gula é engano de juízo, o qual nos leva a crer que temos
necessidade de comer e beber tudo o que se nos põe diante; e com isto
traga o homem, não só a temperança, como a penitência e a
compaixão; pois, desde que o glutão venha a consumir tudo, nada lhe
ca para socorrer o próximo.
A fartura dos manjares é mãe da concupiscência carnal; e a a ição
do ventre gera a caridade. Aquele que afaga o leão com mão branda,
por ventura o amansará; mas, aquele que afaga e regala o corpo,
embravece-o contra si. O judeu goza no sábado e com a festa, mas o
monge, dado à gula, goza no sábado, e no domingo, e com a festa, e
com a véspera dela; antes de tempo conta os dias que faltam para a
Páscoa e, muitos dias antes, começa a aparelhar a comida; vindo o
hóspede à casa, logo ferve em caridade com o apetite da gula; e seu
próprio dano, diz ele que é consolação do próximo. O servo de Deus,
porém, só pensa nas graças que merecerá.
Muitas vezes acontece que a gula e a vanglória disputam o pobre
monge, como a um escravo vendido em leilão: a gula incitando-o a
quebrar o jejum, a vanglória a que não perca o crédito comendo
muito. Mas, o monge sábio fugirá de ambos os vícios e, a seu tempo,
com um vencerá o outro; porque, para não dar mau exemplo,
guardará o jejum e, para conservar a natureza, comerá com
temperança.
Quando arde o fogo da carne, castiguemo-la fortemente; e, em todo
o lugar e tempo, guardemos abstinência. Mas, depois de apagado este
fogo (o que é di cílimo nesta vida acontecer de modo completo),
então já pode ser mais moderada a nossa abstinência. Vi uma vez
alguns padres velhos darem licença e bênção a alguns moços, que não
eram seus discípulos, para beberem vinho, exortando-os a afrouxar a
regra da abstinência: se estes padres velhos forem pessoas de
autoridade e vida religiosa, conhecidos por suas virtudes, é razoável
obedecê-los moderadamente; mas se forem frouxos e negligentes, não
nos importemos com esta licença e bênção, mormente se formos
combatidos dos ardores da carne.
Quando nossa alma deseja e procura manjares diversos e delicados,
entendemos que este apetite é natural; e, por isso mesmo, é necessário
velar e trabalhar com toda a indústria, pelejando com esta potência
enganadora e astuciosa. Se cedermos, levantaremos contra nós
mesmos grandes batalhas e armaremos nós mesmos os laços em que
havemos de cair. Para a resistência, convém primeiramente abstermo-
nos de todos os manjares que podem engordar o corpo, e
especialmente dos quentes, a m de que não lancemos azeite sobre a
chama; depois, abstenhamo-nos dos que são mais suaves e deleitosos.
Procuremos comer, se nos for possível, somente viandas levianas,
dessas que, como os legumes, facilmente se enchem o estômago, a m
de que, com este enchimento, apaguemos o apetite insaciável. Por
outro lado, sendo os manjares levianos, mais fácil se torna a digestão,
mais livre a respiração, e mais fraco o calor que nos açoita. Se
prestarmos atenção, veremos que todos os manjares fumegantes e
vaporosos ajudam muito, com seu calor, a despertar em nossos corpos
estímulos e movimentos carnais.
Deves desviar-te daquele espírito mau, que te aconselha a dilatar a
hora da comida para depois da costumada hora da refeição do
mosteiro; pois, além de ser isso uma abstinência indiscreta, com essa
singularidade perturbarás o regime da comunidade. Aliás, há
abstinência dos inocentes e abstinência dos culpados: aqueles não têm
outros movimentos e tentações senão os su cientes para conhecer que
são homens; mas, estes até à morte batalham cruamente sem admitir
tréguas nem tratados de paz. Àqueles principalmente é dado conservar
uma perpétua moderação e tranqüilidade de ânimo, mediante as quais
perseverem sempre de uma maneira, como se morassem naquela
altíssima região do ar ou do céu, onde não chegam os torvelinhos e
nevoeiros deste mundo inferior; mas, a estes convém trabalhar para
aplacar a Deus com perpétua compunção e a ição do corpo e da
alma. Ao varão perfeito é dado viver em alegria e consolação e livre de
todos os cuidados das coisas mortais; mas, ao que está ainda no meio
da batalha convém lutar e pelejar, a m de que não ande, como o
sensual, de festas em festas e de convites em convites, sonhando, como
o glutão, em comidas e banquetes.
Prende com rigor o ventre, para que o ventre não te prenda; porque,
se assim não zeres, virás depois guardar com vergonha e confusão a
abstinência que então não guardaste. Muito bem entendem isto os que
miseravelmente caíram; mas, os verdadeiros eunucos do Evangelho
(que são os castos) não sabem disto por experiência, posto que o
possam saber por especulação e luz de Deus. Circuncidemos o pecado
da luxúria com a memória do fogo eterno; porque alguns que neste
pecado caíram, por havê-lo cortado com este cutelo, foram depois
forçados a amputar cruelmente seus próprios membros, operação esta
que, longe de conter o pecado, redobra-lhe a fúria.
Se prestarmos atenção, veremos que todos os nossos prejuízos,
perdas e danos, pela máxima parte, nascem deste vício da gula. A
alma daquele que jejua, ora com sobriedade e atenção; mas, a alma do
intemperante é cheia de imagens e pensamentos torpes. A fartura do
ventre secou as fontes das lágrimas; mas, se o ventre se secar com a
abstinência, produzirá fontes de águas.
Aquele que, obedecendo ao ventre, pretende vencer o espírito da
concupiscência, é semelhante ao que quer apagar as chamas do fogo
lançando-lhe azeite. A igido o ventre, se humilha o coração e,
regalado, se ensoberbece. Volve os olhos sobre ti e mira-te no
princípio do dia, ao meio-dia, e à tarde, antes da refeição: por aí verás
palpavelmente a utilidade do jejum, porque, de manhã, está mais vivo
o apetite vicioso da carne, à hora da sesta está mais amortecido, ao
pôr do sol, antes da refeição, está já caído e humilhado.
A ige o ventre e enfreiar-se-á a língua, porque esta também toma
forças com os muitos manjares. Peleja sempre contra o ventre e,
mesmo por amor dele, procura, com todo o estudo, a temperança e a
sobriedade; pois, se nisto trabalhares, o Senhor logo será teu
auxiliador. Mais cabe nos odres brancos e estendidos do que nos
apertados e enrugados; assim, quanto mais se dilata e desenruga o
ventre, maior é a sua capacidade, ou, por outra, o ventre em dieta se
estreita e aperta e, estreitado e apertado com o uso da temperança,
naturalmente se contenta com pouco e saudavelmente jejua.
A sede, sofrida com paciência, algumas vezes apagou a sede; mas,
querer apagar a fome com a fome, coisa é cruel e impossível e, por
isso, seja também discreta esta nossa abstinência. Se alguma vez te
molestar ou te vencer o apetite da gula, doma-o com trabalhos; e se
isto não podes por tua fraqueza ou má disposição, peleja contra ele
com orações e vigílias. E se teus olhos se carregarem de sono, exerce-te
em alguma obra de mãos; mas, se te não fatigares, não a tomes, a m
de que ques mais desembaraçado para orar, visto que não é para
todos rezar e trabalhar ao mesmo tempo.
Também te quero avisar que muitas vezes o Demônio está sobre
nosso estômago, e faz que o homem nunca se sinta farto, ainda que
haja comido todo o Egito e bebido todo o rio Nilo. Depois de
havermos comido demasiadamente, vai-se o espírito da gula e envia
sobre nós o da concupiscência, que, aproveitando do que está feito,
arrebata-nos, tenta-nos, incendeia-nos, visto que, estendido e cheio o
ventre, não é difícil in amá-lo: chega sorrindo, ata-nos de pés e mãos
com o sono, faz de nós o que quer, sujando nossos corpos e almas com
fantasias, imundícias e evacuações de humores. E é coisa digna de
grande admiração ver uma substância sem corpo, qual é o nosso
espírito, encher-se de mazelas com a fealdade e imundícia do corpo; e,
como depois, pela abstinência, é restaurada na delicadeza de sua
natural condição.
Se prometeste a Cristo ir pelo caminho áspero e estreito, a ige o
ventre; porque, se o regalares, tem por certo que transgrediste o
acordo e concerto que com Deus zeste. Está atento e ouve o Senhor,
que diz: Largo e espaçoso é o caminho do ventre, leva à perdição da
concupiscência, e muitos são os que caminham por ele. Pelo contrário,
tão estreita é a porta, tão estreito é o caminho do jejum que leva à
vida da castidade, quão poucos são os que vão por ele.
Príncipe dos demônios é Lúcifer, que caiu, e príncipe dos vícios,
como incentivo de todos eles, é a concupiscência da gula. Quando te
assentares à mesa cheia de muitos manjares, apercebe-te com a
memória do juízo e da morte; pois, mesmo assim, com di culdade
resistirás à força da concupiscência. Quando chegares o vaso à boca
para beber, recorda-te do fel e vinagre dados ao Senhor; e assim
beberás com temperança, ou, ao menos, com gemido e conhecimento
do pouco que fazes em comparação do que fez ele por ti.
Não te iludas, irmão; tem por certo que nunca te livrarás de faraó,
nem celebrarás a Páscoa Celestial, senão comendo alfaces amargas e
pão sem sal. As alfaces amargas são a a ição e a violência do jejum; o
pão simples é o espírito livre de toda a soberba. Imprime no íntimo de
teu coração aquelas palavras do Salmista: Quando os demônios me
eram molestos, vestia-me de cilício, e humilhava minha alma com o
jejum, e chorava no íntimo de meu coração.
Jejum é violência que se faz à natureza, circuncisão de todos os
deleites do gosto, morti cação dos incentivos da carne, cutelo de maus
pensamentos, libertação dos sonhos, limpeza da oração, lume da
alma, guarda do espírito, desterro da cegueira, porta da compunção,
humilde suspiro, contrição alegre, morte da palrice, matéria de
quietude, guarda da obediência, alívio do sono, saúde do corpo, causa
de tranqüilidade, perdão de pecados, entrada e deleites de paraíso.
Tudo isto é o jejum; porque, para todas estas coisas, o jejum ajuda e
dispõe com sua virtude e a todas estas coisas a gula opõe obstáculos.
Interpelamos, pois, a gula, perguntemos a este tirano, como aos
outros, e ainda muito mais a este do que aos outros; a este, que é
mestre perverso dos nossos inimigos, porta dos vícios, queda de Adão,
dano de Esaú, morte dos israelitas, desonra de Noé, perdição dos de
Gomorra, crime de Loth, destruição dos lhos de Eli, Adail e
precursor das imundícias: perguntemos, digo, quem o gerou, quem
sejam seus lhos, quem são os que o maltratam e quem, nalmente, o
mata.
— Diz-nos, ó tirana e violenta senhora dos mortais (aos quais
zestes servos teus e compraste com o preço da insaciabilidade), diz-
nos por onde entras em nós, que fazes depois da entrada, qual a tua
saída e como escaparemos de tuas mãos? Então, exasperada com as
nossas injúrias, ela ferozmente responderá:
— Porque me injuriais, sendo meus servos e vassalos do pecado?
Como presumis apartar-vos de mim, estando eu ligada com vossa
mesma natureza em pecados concebida? A porta por onde entro é a
qualidade e sabor dos manjares; e o costume e obrigação necessária de
comer é causa de minha insaciabilidade, assim como a causa da minha
intemperança é o mau hábito que tenho de comer antes de tempo,
além da falta de contrição e do olvido da morte. Os nomes de meus
lhos, para que os quereis saber? Se me puser a contá-los, multiplicar-
se-ão sobre as areias do mar; todavia, direi os nomes dos principais e
mais queridos meus. O meu lho primogênito é a lascívia; o segundo é
a cegueira de espírito; o terceiro é a dureza de coração; seguem-se o
sonho, o mar dos pensamentos, as ondas das paixões sujas, o abismo
profundíssimo das secretas invenções de torpezas, a preguiça, a
palrice, a con ança de si mesmo, as chocarrices, as risotas
desenxabidas, a por a, a dureza de cerviz, o enfado da palavra de
Deus, a insensibilidade para as coisas espirituais, a prisão da alma, a
inchação da soberba, a ousadia, a afeição às coisas do mundo, e as
despesas e gastos excessivos e suntuosos. A todas estas coisas sucedem
oração suja, ondas de pensamentos e, algumas vezes, calamidades e
desastres não pensados; e, depois, a desesperação, que é o maior dos
males. A memória dos pecados é quem me faz guerra, mas não me
vence; a memória atenta da morte tem comigo perpétua inimizade;
mas, nada há, entre os homens, que perfeitamente me destrua. Aquele
que, dentro de sua alma, tem o Espírito Santo e faz-lhe oração,
consegue d’Ele não deixar-me agir; mas, aqueles que não têm provado,
por experiência, a suavidade deste Divino Espírito, todos esses,
geralmente, são meus prisioneiros, porque se amarram com a
suavidade de meus deleites: pois, onde faltam os deleites espirituais,
não podem faltar os sensuais.
CAPÍTULO XV

Da castidade
I

Dissemos que um dos lhos da gula é a concupiscência carnal. Aqueles


que guardam os preceitos do jejum e da abstinência não são dados à
luxúria; pois, conquanto permaneçam lhos de Adão e mortais, muito
se aproximam dos anjos. Deus assim dispôs, diz Gregório Nazianzeno,
para que não fosse imortal também o nosso dano.
Castidade é uma virtude que nos torna familiares e vizinhos das
substâncias altíssimas e incorporais. Castidade é alegre aposento e
antecâmara de Jesus Cristo. Castidade é escudo celestial do coração
terreno. Castidade é abnegação da natureza humana e um
maravilhoso vôo da substância mortal e corruptível às substâncias
imortais incorruptíveis. Casto é aquele que com um amor venceu
outro amor. Casto é aquele que com o fogo do espírito venceu o fogo
da carne. Continência é um nome geral de todas as virtudes, porque
toda a virtude pode chamar-se continência e freio do vício contrário.
A regra da perfeita castidade é esta: devemos mirar os corpos
animados com a mesma simplicidade com que miramos os
inanimados.
Nenhum daqueles que trabalham por alcançar esta virtude pense
que por seus trabalhos ou indústria há de alcançá-la; porque não é
possível a ninguém viver, por si só, na própria natureza.
O princípio da castidade é não consentir em pensamentos
desonestos, nem em torpes fantasias; o meio é ser algumas vezes
inquietado em movimentos sensuais, que procedem da repleção de
manjares; o m é ter morti cado os movimentos desordenados,
mesmo os que poderiam surgir durante o sono. Não é casto somente
quem guardou limpo o lodo desta carne, porém muito mais o é aquele
que sujeitou perfeitamente os membros deste corpo à vontade do
espírito. Grande é, por certo, aquele cujo coração com vista alguma se
altera; e maior é aquele que com o amor e contemplação da formosura
celestial vence o perigo da vista dos olhos, abrasadora dos corações.
Aquele que triunfa deste vício com a virtude da oração, é semelhante
ao leão que peleja, isto é, aquele que, lutando e pelejando com este
vício, o faz fugir, é semelhante ao que leva de vencida o seu inimigo;
mas, aquele que de todo desarmou e aniquilou o ímpeto desta paixão,
ainda que viva em carne, já parece que ressuscitou da sepultura.
Se é argumento certo de verdadeira e perfeita castidade não padecer,
nem entre sonhos, imaginação nem in amação do corpo, também está
no m do vício carnal aquele que, mesmo velando, padece, só com a
concepção dos maus pensamentos, os efeitos da concupiscência.
Aquele que, com suores e trabalhos, batalha contra este adversário, é
semelhante ao que derruba seu inimigo com uma funda; aquele que
peleja armado de abstinência e de vigílias, é semelhante ao que fere
com uma maça; mas aquele que está revestido de altíssima humildade,
perfeita morti cação da ira, e desejo dos bens celestiais, é semelhante
ao que matou seu inimigo e o enterrou debaixo da arena, isto é,
debaixo do conhecimento de que somos pó e cinza, de sorte que,
depois da vitória, não que matéria de vanglória. Assim, uns têm este
tirano preso com a corrente dos trabalhos, outros com a da profunda
humildade, outros com a da especialíssima luz e favor do céu: a
primeira corrente é comparada à lua cheia e clara, a segunda ao
luzeiro da manhã, a terceira ao sol do meio-dia; e todas têm seu
primeiro anel no céu.
A raposa se nge de adormecida para caçar o pássaro; e o Demônio,
algumas vezes, nge castidade em nosso corpo, deixando de tentar-nos
durante algum tempo, a m de que, com esta falsa con ança, nos
exponhamos a perigos em que podemos perecer. Não creias, em tempo
algum, no lodo de tua carne, nem te es de ti mesmo, até que, depois
de ressuscitado, vás receber Jesus Cristo. Nem deves con ar, se, por
virtude de abstinência, deixas de cair; porque tampouco comia aquele
que foi precipitado do céu nos abismos. Alguns varões doutíssimos
explicam a renúncia como uma inimizade e luta perpétua e contra o
corpo, e contra a concupiscência da gula: os principiantes que caem
no vício da carne, comumente caem por darem-se a deleites e bom
tratamento do corpo; os medianos sóem cair, não só pelo regalo da
carne, mas também pela soberba do espírito, a m de que por ela
conheçam sua própria enfermidade e miséria; porém, os perfeitos, se
caem, caem comumente por terem julgado os outros.
Alguns tiveram por bem-aventurados os eunucos, por terem, desde
logo, se visto livres do tirânico senhorio da carne; mas, eu tenho por
muito mais bem-aventurados aqueles que, com o trabalho e luta
cotidiana e com o cutelo da razão, se zeram eunucos pelo reino dos
céus. Vi alguns que caíram vencidos mais pela força da paixão do que
por vontade, sempre, porém, havendo vontade e, portanto, culpa. Vi
outros que por sua vontade quiseram cair e não puderam; e a estes,
tive por mais miseráveis do que os que cada dia choram, pois chegam
a tal estado que, despedindo-os de si o próprio vício, eles não querem
despedir de si o fedor do vício. Miserável é aquele que caiu, porém
muito mais miserável é aquele que foi causa de que outro caísse,
porque leva consigo a carga própria e a alheia.
Não queiras vencer o espírito de concupiscência, dirigindo-lhe
argumentos porque ele também sabe disputar e tem a vantagem de ser
ajudado pela nossa mesma natureza. Aquele que presume, somente
com a própria indústria, vencer por si só a sua carne, trabalha em vão;
porque, se o Senhor não destruiu a casa da carne para edi car a do
espírito, em vão trabalha aquele que, somente pelo jejum e pelas
vigílias, a quer edi car. Apresenta ante os olhos do Senhor a natural
enfermidade e fraqueza de tua carne, reconhecendo humildemente tua
miséria: e assim receberás em tuas entranhas o dom da castidade.
O apetite carnal é desavergonhado, feroz, cruel e desumano; ocupa
o coração de quem a ele se entrega, e todavia causa-lhe tormentos
sensíveis, tais como se ardesse em uma fornalha; torna o homem
miserável e insensível ao temor de Deus, e fá-lo desprezar a memória
dos tormentos eternos, aborrecer a oração, não comover-se à vista dos
corpos dos mortos, como se fossem pedras; e, naquela hora malvada,
fá-lo besta bruta, privando-o do uso da razão com a força da
concupiscência. E se Deus não abreviasse os dias deste espírito mau,
quero dizer, se não lhe diminuísse as forças, esgotaria até a última gota
de sangue no barro sujo com ele amassado. E não é isto de
maravilhar; porque todas as coisas criadas desejam naturalmente
juntar-se com suas semelhantes, e assim o sangue deseja o sangue, o
verme o verme, o lodo o lodo, e a carne também a carne. Por isso,
nós, os monges, que fazemos guerra à natureza e procuramos alcançar
o reino dos céus, pretendemos com artifício, diligência e graça vencer
e enganar o nosso enganador. Bem-aventurados aqueles que nunca
tiveram de entrar neste gênero de batalhas; supliquemos
humildemente a Deus que nos livre deste despenhadeiro, porque
aqueles que dele caíram, muito longe se acham da subida e descida da
escada de Jacó. E, se desejarem levantar-se, terão necessidade de
muitos suores, dores, a ições, trabalhos, fome, sede, e suma aspereza e
pobreza de todas as coisas.
Assim como nas batalhas visíveis não pelejam todos da mesma
maneira, nem com armas de uma só espécie, assim também o fazem
nossos inimigos espirituais, quando pelejam conosco; pois cada um
tem seu ofício, e sua entrada, e sua maneira de pelejar. Daí procedem
quedas sobre quedas, umas mais cruéis do que outras, de sorte que
quem não olhar para si, ou não zer logo penitência nas quedas
menores, logo virá a cair nas maiores.
Costume é do Demônio acometer, com todo o ímpeto de malícia e
com todo o estudo e arte, e com todas as suas forças, principalmente
aos que estão no meio da batalha e na vida monástica, a m de fazê-
los cair em algum vício não conforme à natureza. Acontece que alguns
dos que são assim combatidos, tratando com mulheres, não são
solicitados desta paixão, julgando-se por isso seguros, sem
perceberem, os miseráveis, que há quedas maiores, e que, onde há
maior queda, não é necessária a menor. Por duas causas aqueles cruéis
demônios sóem acometer mais por este lado do que pelo outro: uma,
porque esta ocasião do vício está mais à mão; outra, por ser esta
queda mais grave e merecedora de maior castigo. Sei eu de um
mancebo, que chegou a um alto grau de virtude, e que, depois, caiu
miseravelmente neste vício: tão certo é que pode alguém pecar
corporalmente sem tocar outro corpo. Nós trazemos sempre conosco
uma perpétua ocasião de morte e de quedas, especialmente na
mocidade. Chamo morte a esta carne, minha e não minha, amiga e
inimiga; pois assim a chamou o Apóstolo das Gentes, quando disse:
Desventurado que sou, quem me livrará do corpo desta morte. E um
grande teólogo a chamou virtuosa escrava, escura como a noite.
Segue-se, portanto, que, a carne sendo morte, quem vencer a carne
não morrerá.
Coisa digna de perguntar qual é o maior: aquele que ressuscitou, ou
aquele que nunca morreu? Alguns dizem que o segundo é mais bem-
aventurado; mas, outros dizem que o primeiro imita a ressurreição de
Jesus Cristo.
II

Costume é do espírito de concupiscência pintar-nos um Deus


clementíssimo, perdoando este vício como natural a todos os homens;
mas, se prestarmos atenção, veremos que os mesmos demônios que,
por um lado, nos fazem Deus misericordioso antes da queda, depois
dela nô-lo fazem rigoroso e severo. Assim, quando nos incitam a
pecar, nos encarecem sua clemência, e, depois do pecado, sua
inviolável justiça, para fazer-nos desesperar. E, quando com este
desespero se junta uma desordenada tristeza, de tal maneira derrubam
nosso coração, que nem nos deixam conhecer nossa culpa, nem fazer
penitência dela. Morte, porém, que seja a desesperação, logo volvem
estes tiranos a engrandecer-nos a mesma clemência, para derrubar-nos
na mesma culpa.
Deus é uma substância puríssima, incorruptível, sem corpo; e, por
isso, convenientissimamente se deleita com a castidade e pureza de
nossos corpos. Pelo contrário, aqueles espíritos feios e sujos se
alegram sumamente e refocilam-se na lama da luxúria; e, por isso,
pediram ao Senhor que, expelindo-os do corpo de um
endemoninhado, deixasse-os entrar em uma manada de porcos que ali
estavam, gura deste vício.
A terra orvalhada é a mãe da doçura, pela suavidade dos frutos que
produz; e a vida solitária, acompanhada com o orvalho da obediência,
é mãe da castidade. Algumas vezes aquela bem-aventurada pureza do
nosso corpo, alcançada na soledade, padece perigo se nos chegamos
ao mundo; mas, aquela que procede da obediência, mais rme e mais
segura permanece, guiada pelo padre diretor espiritual.
Vi algumas vezes a soberba tornar-se ocasião de humildade,
quando, conhecendo o homem, com a luz de Deus, a grandeza deste
mal, tomou daí motivo para humilhar-se; e, vendo isto, recordei-me
daquele que disse: Quem conhecerá os juízos de Deus e a altura de
seus conselhos? Pois, para muitos foi a soberba e fausto a causa de
manifesta queda; e esta mesma queda, para os que quiseram
aproveitar-se dela, veio-lhes a ser também ocasião e motivo de
humildade. Aquele que pretende vencer o espírito de concupiscência
comendo e bebendo à farta, é como quem quer apagar fogo
derramando azeite; mas, aquele que somente com a abstinência
pretende vencê-lo, é como quem quer não submergir-se nas ondas
nadando com uma só mão, porque a nossa abstinência, sem a
companhia da humildade, não produz efeito algum.
Aquele que se vê tentado mais fortemente de um vício do que de
outros, arme-se principalmente contra ele; porque, se este não for
vencido, pouco aproveitará pelejar contra os outros. E depois que
tivermos morto, como Moisés, este gigante, logo veremos a Deus na
sarça da humildade.
Sendo eu uma vez tentado, senti em minha alma uma alegria sem
fundamento, despertada em mim por aquele lobo astuto, a m de
enganar-me; e eu, como uma criança, pensei que isto era alguma coisa,
até que, depois, conheci o engano; por isso, sei quanto convém ter os
olhos abertos para conhecer tais perigos.
Todo o pecado do homem, diz o Apóstolo, está fora do seu corpo,
exceto o pecado da carne, porque enfeia com sujos humores a mesma
substância da carne. Quando os homens caem em outros pecados,
dizem que foram enganados; quando pecam neste, dizem que caíram,
e ao mesmo vício chamam lapso ou queda da carne. A causa disso é
que, sendo a razão natural o mais alto grau da dignidade essencial do
homem, a força da concupiscência carnal oblitera a razão e derruba o
homem do trono da dignidade racional na baixeza da natureza bestial.
O peixe foge ligeiramente do anzol, e assim o ânimo amigo de
deleites foge da quietude da soledade. Quando o Demônio quer armar
laços para este vício, esquadrinha diligentemente as condições e
inclinações das partes, e põe a centelha do fogo onde sabe que mais
depressa se levantará a chama.
Algumas vezes os que são amigos de deleites são compassivos,
misericordiosos, ternos de coração, e assim fáceis de parecer
compungidos; ao contrário, os amantes da castidade são alguma vez
rigorosos e severos, mas nem por isso a castidade perde seu valor e
aquele vício sua fealdade.
Um varão sapientíssimo me propôs esta questão: “Qual é o pecado
mais grave, deixando de parte o homicídio e a abnegação de Cristo?”.
Respondi-lhe que é a heresia. Replicou-me ele: “Como, então, a Igreja
recebe os hereges, logo depois de abjurarem, à comunhão e
participação dos sagrados mistérios, e custa tanto a admitir a isto
àquele que caiu em concupiscência pública e escandalosa, ainda que se
tenha confessado e recebido absolvição? E como, então, faz isto, até
por autoridade e indicação ou ordenação dos Apóstolos?”. Espantei-
me eu com esta réplica, e não me atrevi a treplicar, porque não deixei
de entender a fealdade desta culpa pela gravidade da penitência.
Esquadrinhemos diligentemente e examinemos, enquanto cantamos
os Salmos e ofícios divinos, quando a suavidade e doçura que ali
sentimos é do espírito de Deus, ou se é do espírito mau que às vezes se
introduz nos cânticos. Não queiras, mancebo, ser ignorante e cego
para o conhecimento de ti mesmo e de tuas coisas; pois, soube eu que
uma vez, estando alguns fazendo oração por seus amigos e parentes, a
memória deles despertou em suas almas uma centelha de amor não
limpo, sem que eles o compreendessem e, antes, pensando que haviam
cumprido a lei da caridade.
Acontece algumas vezes caírem os homens, de modo muito sujo,
com um só toque corporal, de onde parece que o sentido do tato é o
mais delicado e perigoso. Deves, pois, guardar tua mão de qualquer
toque próprio ou alheio. Ninguém poderá chamar-se perfeitamente
santo, se perfeitamente não tiver sujeitado o corpo ao espírito, tanto
quanto nesta vida seja possível.
Quando estamos na cama deitados, devemos estar mais compostos
e atentos a Deus; pois, então, a alma, quase despojada do corpo, luta
com os demônios e, se se achar envolvida em alguns deleites,
facilmente cairá. Durma sempre contigo a memória da morte, e
desperte também contigo a devota meditação da oração que nos
ensinou Jesus Cristo: não acharás ajuda mais e caz nem mais
excelente para o tempo do sono.
Muitos pensam que a causa dos sonhos desonestos, e de outros
fenômenos que nos acontecem durante o sono, procede somente da
repleção dos manjares; mas, eu sei de alguns que, prostrados em
extremo por grandes enfermidades e abstinências, padeciam deste
mesmo mal. Perguntei uma ocasião a um discreto monge acerca disto,
e ele me disse que, entre sonhos, há uma efusão de humor que procede
do muito comer e o regalo do corpo, e há outra, que procede da
soberba, quando, por havermos passado muito tempo livres deste
pecado da carne, nos enchemos de orgulho e metemo-nos a julgar os
outros. Tudo isto pode acontecer aos enfermos; e se algum há que, por
divina graça, se ache livre de todas estas coisas, é mercê do Senhor.
Contudo, pode alguém padecer desta mesma ilusão sem culpa sua, por
inveja do Demônio, permitindo-o Deus para que, por esta sorte de
calamidade, esteja mais segura e guardada a virtude da humildade.
Ninguém queira reproduzir ou retratar de dia os sonhos que teve de
noite; porque é isto que exatamente pretendem os demônios, que,
quando nos assaltam durante o sono, preparam-se para fazer-nos
guerra quando estivermos acordados.
Ouçamos também outra astúcia dos nossos inimigos. Assim como
dos manjares contrários à saúde, uns prejudicam desde logo, e outros
mais tarde, assim também o fazem as coisas com que o Demônio
pretende derrubar as nossas almas. Vi eu certos homens que, tratando-
se regaladamente, nem por isso eram logo tentados; vi também outros
que, tratando com mulheres, não eram desde logo acometidos de
maus pensamentos. Estes, enganados com esta con ança e vivendo
descuidadamente, pensando que em sua cela teriam paz e segurança,
vieram depois a cair, estando sós, neste despenhadeiro. Qual seja este
perigo que nos pode acontecer, assim no corpo como na alma, estando
sós e sem companhia, sabe-o quem passou por ele, mas não quem nele
jamais se achou. E no tempo deste combate sói ajudar muito o cilício,
e a cinza, e a perseverança constante nas vigílias da oração, e o desejo
de pão, e a língua seca e não farta d’água, e a habitação nas covas dos
mortos, e sobretudo, a humildade de coração, e, sendo possível, o
socorro do padre diretor espiritual, ou do irmão solícito encanecido,
cuja experiência nos ajude. Para mim seria maravilha que alguém,
destituído deste socorro, tivesse o poder de guardar a nave segura
neste golfo tão perigoso; mas, em todo o caso, para Deus nada é
impossível.
Nem sempre é devida a mesma pena à culpa idêntica; pois,
conquanto a culpa seja uma, as circunstâncias das pessoas são
diversas, de sorte que a mesma culpa pode ser cem vezes mais
castigada em um do que em outros. E esta gravidade é graduada
segundo a pro ssão e estado de cada um, os lugares, os costumes, os
benefícios recebidos, e outras semelhantes coisas, visto que, como está
escrito: a quem mais derem, mais estreita conta pedirão.
Um religioso me revelou um admirável e supremo grau de castidade.
Dizia ele que, mirando a formosura e graça dos corpos, se levantava
seu espírito em grande admiração da formosura e glória do soberano
artí ce que os havia formado; e com este espetáculo se acendia mais
em seu amor e derretia-se em lágrimas. E certamente era coisa de
espanto ver aquilo que para outro seria precipício e escândalo, ser
para este, sobre toda a natureza, matéria de merecimento e de coroa.
Aqueles que pudessem perseverar neste modo de sentir, parece que,
antes da comum ressurreição, já teriam alcançado a glória da
incorrupção. Pela mesma regra nos havemos de reger, ouvindo as
músicas e cantos profanos; pois, aqueles que ardentemente amam a
Deus, sóem in amar-se em seu amor e debulhar-se em lágrimas, tanto
com as músicas seculares, como com as espirituais, ao passo que os
carnais e sensuais tomam daqueles incentivos de perdição.
Alguns, como já dissemos, são mais tentados, estando nos lugares
apartados, o que não é de maravilhar; porque aí estão mais à vontade
os demônios, que, por nossa salvação, foram desterrados para os
desertos e abismos. Também ao solitário combatem fortemente os
espíritos maus, para que, descon ado do seu aproveitamento, volte
para o século. E, ao contrário, durante o tempo em que estamos no
século, se afasta de nós, para que, con ados nesta falsa segurança,
permaneçamos e nos embaracemos no século. Outras vezes acontece
que não sentimos as tentações do Demônio, pela insensibilidade de
nossa alma calejada no mal, ou para melhor dizer, porque os nossos
mesmos pensamentos já se zeram demônios. Outras vezes acontece
que os demônios, de sua vontade, se vão e nos deixam, para dar-nos
matéria de soberba e presunção, porque este vício vale por todos os
outros.
III

Ouvi, vós que desejais alcançar a virtude da castidade, outra arte e


astúcia deste enganador. Algumas vezes o espírito de concupiscência se
esconde até o m, incitando neste interim o monge a coisas de
devoção, e fazendo-lhe derramar lágrimas quando lhe acontece estar
falando com mulheres, persuadindo-o a pregar-lhes a memória da
morte e do dia do juízo, a virtude da castidade e outras, para que, por
ocasião dessas palavras, ditas indiretamente e com falsa espécie de
religião, acudam os miseráveis ao lobo como a pastor, e crescendo o
atrevimento com o costume, venha depois o triste monge a ser tentado
e despenhado neste vício. Portanto, procuremos com toda a diligência
nunca ver o fruto de que não queremos tomar o gosto. Maravilha
seria, se algum de nós se tivesse por mais robusto do que aquele
grande Profeta Davi, que caiu tão feiamente por não ter posto cobro
na vista.
É tão alta e tão singular a glória e louvor da castidade, que alguns
dos Santos Padres se atreveram a chamá-la impassibilidade, fazendo o
homem casto quase celestial e divino. Outros disseram que ninguém,
depois do gosto e experiência deste vício, poderá conseguir chamar-se
verdadeiramente casto; mas, eu penso de modo contrário, e digo que
não somente é possível, como também fácil, se o pecador quiser
enxertar a árvore silvestre e montesina em uma formosa e frutífera
oliveira, convertendo-se e juntando-se com Deus por verdadeira
penitência. Se fora virgem no corpo aquele a quem Deus entregou a
chave do céu, algum valor teria aquela opinião.
Vária é, e de muitas cores, esta serpente da concupiscência carnal.
Assim, acomete aos virgens, incitando-os à experiência; acomete aos
que já caíram, despertando-lhes a memória do passado deleite. Dos
primeiros, há muitos a quem a ignomínia deste mal faz que sejam
menos tentados; mas, os segundos, padecem perturbações e batalhas
mais cruéis, posto que algumas vezes aconteça o contrário.
Quando nos levantamos de dormir pací cos e quietos, sinal é de
que os anjos secretamente nos consolam; e isto fazem-nos
especialmente quando o sono nos encontrou com muita oração e
recolhimento. Também acontece levantarmo-nos alegres do sono em
consequência de alguns sonhos ou visões: isto, porém, é obra do
Demônio, para enganar-nos e tornar-nos presumidos. Vi o mau, isto é,
o Demônio, exaltado e furioso, como os cedros do monte Líbano;
passei diante dele por meio da abstinência, e já não era tão grande o
seu furor; busquei-o depois, humilhando meus pensamentos, e não se
achou rastro dele, porque a abstinência enfraquece sua fúria, mas a
humildade o derruba de todo.
Aquele que venceu seu corpo, venceu a natureza, tornando-se
superior a ela e quase igual aos anjos. Grande maravilha é, por certo,
que uma coisa material e corpórea seja poderosa para combater e
vencer uma substância espiritual e sem matéria, como são os
demônios; porém, mais maravilha é que um homem, vestido de corpo,
pelejando com a astutíssima matéria deste corpo, vença e faça fugir os
inimigos espirituais, que não têm corpo.
Grande foi a providência que teve Deus de nós, prendendo e
detendo, com a natural vergonha, o atrevimento da mulher; porque, se
ela, de sua própria vontade, tivesse por costume acometer ao varão,
grandíssimo perigo correria a salvação dos homens.
Os Santos Padres assinalados na graça da discrição dizem que uma
coisa é o primeiro ímpeto do que tenta, outra a tardança no
pensamento, outra o consentimento, outra a luta, outra o cativeiro,
outra a paixão do ânimo. Primeiro ímpeto, dizem eles, é uma imagem
que se representa em nosso coração e passa logo. Tardança é detença
em mirar aquela imagem que se nos representa, ou com alguma
alteração ou sem ela. Consentimento é movimento com que já nosso
ânimo se inclina e se aplica àquela imagem com algum deleite. Luta é
quando há por a e peleja de parte a parte, e com igual virtude peleja o
homem, e por sua própria vontade vence ou é vencido. Cativeiro é um
violento roubo de nosso coração, que se deixa levar por sua afeição,
derrubando e tirando a alma de seu assento e estado. Paixão é
propriamente aquela imagem que por largo tempo se assenta em nosso
ânimo viciosamente, a qual, pela força do costume, se transforma em
mau hábito, de sorte que, a nal, o vício é abraçado com toda a força
da vontade. Dentre estes graus, o primeiro, que é o ímpeto, não é
pecado, porque não está nas mãos do homem impedir estes primeiros
movimentos; o segundo, que é a tardança, já tem algum pecado,
porque já se poderia impedir; o terceiro, que é o consentimento, é de
maior ou menor culpa, conforme a maior ou menor perfeição do
tentado; o quarto, que é a luta, é causador, ou de coroas ou de penas,
conforme formos ou vencedores ou vencidos; o quinto, que é o
cativeiro do pensamento, é repreensível de um modo no tempo da
oração e dos ofícios divinos, e de outro modo fora deles, de um modo
nos pensamentos de coisas más, e de outro nos das que não o são; o
sexto, que é a paixão, ou se há de purgar nesta vida com digna
penitência, ou se há de castigar na outra. E, portanto, aquele que, com
grande presteza e diligência, corta aquele primeiro movimento, isto é,
o ímpeto, que é a raiz, de um golpe cortou cerce todos os outros.
Alguns dos Santos Padres de mais alto espírito e discrição,
assinalam outra espécie de movimento mais sutil, que se chama sub-
repção, ou titilação da carne: é um movimento acelerado e
momentâneo, que, como o vento, passa pela alma sem qualquer
dilação de tempo e mais ligeiro do que tudo o que se possa dizer ou
imaginar, e que, em brevíssimo espaço, sem tardança e sem
consentimento (e às vezes sem obra de entendimento, somente com a
apreensão dos sentidos exteriores e da imaginação), passa pela alma.
Se houver alguém que, conhecendo a gura e a instabilidade do
homem, tiver recebido a luz de Deus para conhecer a sutileza deste
pensamento, este nos poderá já explicar de que modo, com um
simples toque, ou com ouvir alguma música, fora de toda a nossa
intenção e pensamento, a alma padeça esta súbita e secreta alteração
de deleite.
Dizem alguns que dos pensamentos desonestos nascem os
movimentos feios do corpo; dizem outros que, pelo contrário, dos
sentidos do corpo geram-se os maus pensamentos da alma. A razão
daqueles é que, se o entendimento ou ânimo não concorre com as
nossas obras, não se poderá seguir movimento do corpo; mas, os
outros alegam que a malícia e corrupção de nosso corpo, vinda pelo
pecado, é tal que, algumas vezes, a simples vista de uma coisa
formosa, um simples toque de mão, algum odor suave, o canto de
alguma doce música, qualquer destas coisas é bastante para gerar em
nossa alma maus pensamentos. Esta matéria será, todavia, melhor
ensinada, por quem tiver recebido mais luz do Senhor; pois, são estas
coisas grandemente necessárias e proveitosas aos que querem alcançar
a virtude da discrição. Os que vivem com simplicidade e retidão de
coração não têm necessidade de tanta resolução nestas matérias,
porquanto nem de todos é a ciência, nem de todos esta bem-
aventurada simplicidade, que é uma certa e rme couraça contra todas
as malícias do inimigo.
Alguns vícios há que do íntimo do coração procedem e partem para
o corpo, e outros que do corpo partem para o coração. Estes últimos
são muito comuns aos que vivem no mundo, porque andam entre os
objetos e perigos; mas, os outros são mais próprios dos que vivem fora
do mundo, por estarem mais longe destas ocasiões. Quanto a isso, o
que vos posso dizer é que nos maus buscareis prudência, e não a
achareis, nem para deslindar estas matérias, nem para outro assunto
de virtude.
Quando algumas vezes pelejamos fortemente contra o espírito de
concupiscência, e o fazemos fugir de nosso coração com a pedra do
jejum e com o cutelo da humildade, vendo-se assim desterrado do
coração, apega-se como verme a nosso corpo, despertando nele
alterações e movimentos. Sóem ser vítimas desta tentação aqueles que
estão sujeitos ao espírito da vanglória, porque, muito cheios de si, por
se verem livres da guerra dos pensamentos, Deus permite que caiam
naquela doença. E conhecerão da verdade disto, depois que se
recolherem à quietude da soledade; porque, se aí zerem diligente
inquirição e escrutínio de si mesmos, acharão um pensamento, que
estava escondido no segredo de seu coração, como serpente em um
muladar, e este pensamento era o de que, por seu próprio trabalho e
fervor de espírito, haviam alcançado esta virtude. Não compreendem
os miseráveis aquilo que disse o Apóstolo: Que tens tu, que não hajas
recebido, ou só por graça ou mão de Deus, ou pela oração e ajuda do
outro? Olhem, pois, para si, diligentemente; e trabalhem, com todo o
estudo, por desterrar dos esconderijos do coração, e com suma
humildade, aquela sobredita serpente, a m de que, livre dela, possam
já em algum tempo despir as túnicas de peles, que são os afetos
carnais e mortais, e cantar a Deus o hino triunfal da castidade, que
aqueles meninos cantam no Apocalipse.
Tem também por estilo este espírito mau aguardar o melhor tempo
e aproveitar boa monção para o assalto. Assim, quando vê que
estamos em tal tempo e lugar, que não podemos exercitar-nos na
oração corporal contra ele, então principalmente nos acomete; e, por
isso, convém muito aos que não têm alcançado a perfeita oração
mental, exercitar-se nela. Tanto é isto conveniente que, quando o
Demônio vê que estamos em lugar onde, pelo respeito dos presentes,
não podemos levantar as mãos postas, bater nos peitos, despertar-nos
com gemidos e prantos, levantar os olhos para o céu, e estar de
joelhos, então aproveita para mais combater-nos; e, quando não
estamos armados com a rmeza e estabilidade do bom propósito, e
com a secretíssima virtude da oração, facilmente prevalece contra nós.
Em tais circunstâncias, esconde-te e recolhe-te, o mais depressa
possível, a um lugar secreto, e levanta, se puderes, para o céu, os olhos
interiores de tua alma; e, se não puderes, levanta os exteriores e
estende as mãos em gura de cruz, para que, com esta gura e modo
de orar, desbarates todo o poder de Amaleque e o confundas. Dirige-te
a quem te pode salvar, não tanto com palavras eloqüentes e sábias,
quanto com uma simples e humilde oração, começando sempre por
este verso: Tende piedade de mim, Senhor. Então, experimentarás a
virtude do Altíssimo e, com o socorro daquele Senhor invisível,
perseguirás invisivelmente os inimigos invisíveis. Quem desta maneira
está acostumado a pelejar, muito presto poderá perseguir e pôr em
fuga, a um simples aceno, seus inimigos; mas, este modo de vitória tão
celebrada, costuma a ser dado em prêmio de trabalhos aos éis amigos
de Deus.
Conheci no mosteiro um solícito e virtuoso monge, que, sendo
molestado pelo Demônio com maus pensamentos, não havendo ali
lugar conveniente para aquela maneira de orar, ngiu que ia fazer uma
necessidade natural e ali começou a pelejar contra os inimigos com
fortíssima oração; sabendo eu disso e estranhando-lhe a indignidade
do lugar, respondeu-me ele que mais sujos do que o lugar eram os
pensamentos que então o assaltaram.
Os demônios trabalham primeiramente por escurecer e cegar nosso
entendimento; e, feito isto, incitam-nos a tudo o que querem, porque
sabem que, depois de cerrados os olhos de nossa alma, poderão
roubar nosso tesouro. Mas, o espírito de concupiscência é
poderosíssimo, entre todos os vícios, para causar esta cegueira, a tal
ponto que, uma vez apoderando-se do homem, leva-o a praticar coisas
de loucos; tão certo é isso que, quando a alma volta a si, não somente
tem vergonha dos outros, como de si mesma, recordando-se dos atos
torpes que praticou, das palavras que proferiu, dos gestos que fez, e
cando atônita da cegueira em que caiu. É tal este espírito, quando
chega a dominar, que não há afeição pura, não há dever, não há
responsabilidade que o possa conter, nem infâmia que não leve a
praticar; e o miserável que deixou-se subjugar por ele, afrontando
tudo, até o extremo do cinismo, chega a persuadir-se de que o resto do
gênero humano é composto de cegos.
Despede de ti com todas as tuas forças aquele inimigo, que te
impede de fazer boas obras, de velar e de orar, depois de haveres
caído; recorda-te daquele que disse: Porque minha alma é triste, por
ter sido assaltada e derrubada por seus inimigos, eu a vingarei,
contrariando e maltratando aos que a maltrataram. Quem é esse que
venceu seu corpo? Aquele que alquebrou seu coração. Quem é esse
que alquebrou seu coração? Aquele que negou-se a si mesmo. E como
não cará despedaçado e desfeito aquele que por sua própria vontade
está morto? Há, entre os viciosos, uns mais viciosos que outros; e,
assim, vereis alguns terem chegado a tão grande extremo de maldade,
que eles mesmos publicam, com grande ostentação, prazer e
contentamento, suas desonestidades e até suas infâmias. Outros se
exibem com todas as suas mazelas, mais por cegueira e estupidíssima
vaidade, do que mesmo por simples concupiscência.
Não sei de que maneira possa prender meu corpo, para examiná-lo
e julgá-lo como aos outros: antes que o amarre, solta-se; antes que o
julgue, me reconcilio com ele; antes que o castigue, amanso-me e
inclino-me à misericórdia, procurando por sua saúde e provendo-o do
necessário. Depois, como atarei aquele que naturalmente amo? Como
me livrarei daquele com quem, até o m da vida, estou unido? Como
destruirei aquele que juntamente comigo me resiste? Como farei que
seja casto e livre de corrupção aquele que, por natureza, é corruptível?
Como persuadirei com razões aquele que se tornou semelhante aos
brutos? Se eu o prender com o jejum, entrego-me a ele julgando ao
próximo; se, deixando de julgar, alcanço vitória, logo se levanta
contra mim a soberba. É ele meu companheiro e inimigo, meu auxiliar
e meu adversário, meu defensor e meu enganador, por isso que, para
mim, em certas coisas, é instrumento do bem e, em outras,
instrumento do mal. Se o regalo, combate-me; se o a ijo, debilita-me;
se lhe dou descanso, ensoberbece-se e não quer sofrer açoite ou
castigo; se o entristeço demasiadamente, corro perigo; se o ro, não
me ca instrumento com que alcance as virtudes.
Quem, pois, entenderá, quem alcançará este tão grande segredo que
está em mim? Quem saberá a causa desta composição e deste gênero
de harmonia tão estranha, que faz de mim mesmo amigo e inimigo de
mim mesmo? Diz-me, natureza minha, mas diz-me por piedade, de
que maneira me livrarei de ti, como poderei fugir a este natural perigo,
pois já tenho prometido a Jesus Cristo tomar armas contra ti! Como
vencerei tua tirania? E ela, respondendo contra si mesma, parece que
dirá assim:
— Não te quero dizer coisa nova. Eu tenho um pai dentro de mim,
que é o amor natural que uma carne tem a outra carne cujo lho é a
in amação sensual. Tenho também uma ama, que é o deleite, a qual
me amamenta e regala como a um lho. A mãe geral deste deleite é a
gula, porque sem ela não há deleite corporal. As ocasiões da
in amação interior e dos pensamentos desonestos são a memória dos
deleites e das obras passadas. Eu concebo em meu ventre maldades, e
depois venho a parir quedas e misérias; e estas quedas, por mim
geradas, vêm depois a causar a desesperação e a morte. Se com tudo
isto chegares a ter olhos com que profundissimamente conheças a
grandeza de tua miséria e da minha, faço-te saber que, humilhando-te
com este conhecimento até os abismos, me atarás as mãos; se
alquebrares a concupiscência da gula, me atarás os pés, para que não
possa passar adiante; se puseres teu pescoço sob o jugo da obediência,
carás livre de mim; e se possuíres a virtude da humildade me cortarás
a cabeça.
CAPÍTULO XVI

Horror à avareza e coragem na pobreza

Muitos doutores sapientíssimos costumam tratar da avareza depois de


haverem discorrido sobre a concupiscência. Terão lá suas razões;
porque este espírito de avareza é de mil cabeças.
Avareza ou cobiça é geração de ídolos, lha da in delidade,
inventora de achaques de enfermidades, profeta de velhice, adivinha
da esterilidade da terra, fome presente pelo terror da fome futura. O
avarento é infrator e escarnecedor do Evangelho. Aquele que está
entregue ao pranto e dor de seus pecados, não só se olvida de sua
fazenda, como também de seu próprio corpo; e, sendo mister, o
maltrata e castiga.
Não digas que por amor dos pobres amontoas dinheiro; pois sabes
que, com dois guinéus, comprou aquela viúva o reino dos céus. O
varão misericordioso e o avarento se encontraram, e o último chamou
de indiscreto ao primeiro. Mas aquele que venceu a avareza tirou de si
a matéria de todos os cuidados, ao passo que aquele que está cativo
dela jamais fará oração pura; aliás, acontece que o princípio da
avareza é pretender fazer esmola e o m dela é o aborrecimento dos
pobres. Enquanto o homem amontoa riquezas, algumas vezes é
misericordioso; mas, depois que se vê rico e cheio, aperta e fecha as
mãos.
Vi alguns pobres de dinheiro que, olvidados desta sua pobreza e
conversando com os pobres de espírito, vieram depois a fazer-se
verdadeiramente ricos. O monge cobiçoso a toda hora alega aquelas
palavras do Apóstolo: Quem não trabalha não coma; mas deve pensar
também naquelas outras do mesmo Apóstolo: Estas mãos ganharam
de comer para mim e para todos que estavam comigo.
Desprendimento e pobreza é desterro dos cuidados, seguridade da
vida, caminho livre e desembaraçado, morte da tristeza e guarda dos
mandamentos.
O monge desapegado é senhor de todo o mundo, porque pôs todos
estes cuidados em Deus, e mediante a fé, possui todas as coisas; nem
mesmo tem precisão de revelar aos homens suas necessidades; todas as
coisas que se lhe oferecem, as toma como da mão do Senhor; fazendo-
se inimigo de toda a afeição demasiada, considera todas as coisas que
tem, como se as não tivesse; e se passar à vida solitária, terá tudo por
demais. Mas, aquele que se entristece por alguma coisa transitória,
não sabe ainda qual seja o verdadeiro desapego. O varão desapegado
faz puríssima oração, enquanto o cobiçoso padece nela muitas
imagens.
Aqueles que humildemente perseveram na santíssima sujeição,
muito apartados se acham da cobiça; pois, que coisa podem ter como
própria os que seu próprio corpo ofereceram por amor de Deus ao
império de outro? Verdade é que um só dano padecem estes, qual seja
o de estarem muito prontos e aparelhados para a mudança de lugares,
o que nem sempre é proveitoso.
Vi eu alguns monges que, por ocasião de trabalhos, alcançaram a
virtude da paciência; mas, tenho por mais bem-aventurados aqueles
que, por amor de Deus, procuraram diligentemente alcançar esta
virtude. Aquele que tem prelibado os bens do céu, facilmente despreza
os da terra; mas, aquele que procura alcançar este desapego com um
m diverso do m devido, em duas coisas recebe agravo, pois carece
dos bens presentes e dos bens futuros.
Guardemo-nos, ó monges; não pareça que somos mais descon ados
do que as aves, que vivem sem solicitude e sem guardar nos celeiros.
Grande é aquele que, por amor de Deus, renunciou à posse dos
dinheiros; mas, santo é quem renunciou sua própria vontade; porque,
se aquele receberá, em bens temporais e espirituais, cem vezes mais,
este receberá a vida eterna com direito e título de herdeiro.
Nunca faltarão ondas no mar, nem ira e tristeza no coração do
avarento. Aquele que menosprezou a matéria da avareza, livre está de
todos os pleitos e por as; mas, aquele que ama a fazenda, pelejará, às
vezes até a morte, a propósito de uma agulha. A fé rme e constante
em Deus desterra os cuidados da alma; mas a memória da morte ainda
até o mesmo corpo nos fará negar por Deus.
Não houve no santo Jó rastro nem fumaça de avareza (que é o amor
do dinheiro); e, por isso, vendo-se privado de tudo, perseverou sem
turbação. A cobiça é raiz e é chama de todos os males; pois, ela é
quem gera e alastra as maldades, os furores, as invejas, as mortes, os
divórcios, as inimizades, as tempestades, a memória das injúrias, a
crueldade e, nalmente, todos os males. Uma faísca de fogo basta
algumas vezes para queimar todo um bosque; uma só virtude, como é
o desapego, basta para desterrar todos os males. E esta virtude nasce
do gosto de Deus e do cuidado solícito da conta que havemos de dar.
Bem sabe quem atentamente leu o que acaba de ser dito, que a
avareza, mãe de males, tem por lho muito principal a insensibilidade;
pois, seus nervos, isto é, os avarentos cam insensíveis e duros como
pedras para as coisas de Deus. E, talvez, por essa via, tem, segundo a
de nição dos padres, o lugar imediato ao da soberba na cadeia dos
vícios capitais.
CAPÍTULO XVII

Da piedosa sensibilidade

Insensibilidade é amortecimento do espírito antes da morte do corpo.


Insensibilidade é carecer de todo o sentimento para as coisas de Deus,
tanto nas forças superiores como nas inferiores da alma.
Insensibilidade é prolixo descuido, privação de saudável dor,
negligência convertida em hábito. Insensibilidade é negligência
quali cada, de tal modo arraigada na alma por longo costume, que
veio a converter-se em dureza e obstinação habitual, como a água, de
muito tempo gelada, se converte em pedra de cristal.
Esta insensibilidade é lha da presunção, impedimento do fervor,
empecilho da fortaleza, ignorância da compunção, porta da
desesperação, desterro do temor de Deus, mãe do esquecimento; e
este, depois de gerado, aumenta a insensibilidade, de sorte que o lho
vem a fazer-se pai de sua própria mãe.
O insensível é lósofo louco, intérprete da verdade condenado por
si mesmo, pregador contra si próprio, mestre de ver cego. Disputa
sobre a sanidade das chagas e ele próprio as arranha e exaspera; fala
contra a enfermidade e come coisas nocivas à saúde; prega contra os
vícios e anda sempre envolto neles; e, quando contra o vício, o corpo
luta por alcançá-lo; às vezes, trata da morte, mas vive como se não
tivesse de morrer. Discorre serenamente sobre a separação do corpo e
da alma, e dorme descuidado, como se tivesse de viver eternamente;
aconselha a abstinência e trabalha por servir ao apetite da gula; lê as
coisas do Juízo Final e sorri; trata da fuga da vanglória e na mesma
preleção deixa-se prender nela; fala sobre as vigílias e logo se
espreguiça e cai no sono; louva a oração e foge dela como de um
açoite; engrandece a obediência e é o primeiro a insurgir-se; exalta os
que não se deixam prender pelas afeições do mundo e não tem
vergonha de pelejar por um vil pedaço de pão.
Estando irado, torna-se desabrido; e depois torna a irar-se por se ver
desabrido, o que é acrescentar um pecado a outro pecado. Quando se
acha farto, arrepende-se de haver comido; e, passado algum tempo,
torna a fartar-se. Diz que o silêncio é bem-aventurado e louva-o
falando demais; recomenda a mansidão expondo iradamente tal
doutrina.
Quando re ete e volta a si, geme; e, meneando a cabeça, torna a
fazer coisas dignas de gemidos. Condena o riso e, sorrindo, trata da
virtude do pranto. Acusa-se de vanglória e com esta mesma acusação
busca a glória. Discorre sobre a castidade e mira os rostos com
coração desonesto; e, estando no século, louva muito aos que seguem
a soledade do deserto. Glori ca os misericordiosos e sacode de si e
repreende os pobres. Sempre é acusador de si mesmo, mas não trata
de corrigir-se.
Vi eu muitos destes, que, ouvindo tratar do passo da morte e do
juízo eterno, derramavam lágrimas; e, com as lágrimas a correr pelos
olhos, atiravam-se à comida: e maravilhei-me de ver como esta
perniciosa e hedionda senhora, a gula, fortalecida com esta grande
insensibilidade, pode cativar e prender o próprio pranto.
Mas, parece que, até aqui e tanto quanto basta, tenho, com o pouco
que sei, descoberto as feridas e enganos desta cruel megera. Se houver
alguém que, com o auxílio do Senhor e com experiência, possa prover
de remédio a estas feridas, não lhe pese dá-lo; porque, nesta parte,
confesso claramente minha fraqueza, por ver-me fortemente preso e
tomado desta peste. Nem mesmo eu poderia por mim alcançar suas
artes e enganos, se não a tivesse prendido com grande esforço,
examinando-a fortemente, açoitando-a com dois açoites, um do temor
de Deus, outro da infatigável oração, de modo a fazê-la confessar o
que tenho dito. E, assim, esta violentíssima e perversíssima senhora
pareceu-me que dizia:
— Aqueles que estão aliados a mim, e que já são familiares meus,
riem-se vendo os mortos; estando em oração, permanecem duros
como pedras e cheios de trevas; e, vendo a sagrada mesa do altar,
chegam-se a ela, como se fossem comer qualquer outro manjar.
Quando vejo alguns, compungidos e derramando lágrimas, faço deles
burla; e o pai que me gerou, ensinou-me a matar todos os bens que
nascem do fervor do espírito. Eu sou mãe do riso, ama do sono, amiga
da fartura; não me condôo, quando repreendida; e estou sempre ao
lado da falsa e aparente religião.
Espantado, pois, com as palavras desta malvada fera, perguntando-
lhe, assombrado, qual fosse o nome de seu pai, respondeu-me ela que
não tinha um só, mas muitos geradores:
— A mim, — disse ela — a fartura me fortalece, o tempo me faz
crescer, o mau costume me con rma; e aquele que estiver prisioneiro
do costume, só se livrará de mim pelo braço poderoso de Deus.
Persevera tu em grandes vigílias, e pensa com profundíssima e
perpétua consideração no juízo de Deus, e, deste modo, algum tanto
me remirás. Observa diligentemente a ocasião em que nasci em ti, e
peleja constantemente contra esta mãe que me concebeu. Entra muitas
vezes nas covas em que estão enterrados os mortos, faze ali oração,
traze sempre diante dos olhos a imagem deles, sem que jamais se
apague da tua memória; e, se dentro de ti debuxares esta imagem com
o cinzel duro do jejum, a piedosa sensibilidade será um teu hábito
quase natural.
CAPÍTULO XVIII

Prevenção contra o sono vicioso e


disposição para os ofícios divinos

Sono é união e reconciliação das forças da natureza, imagem da


morte, ócio e descanso dos sentidos. Um é o sono, e tem muitas
ocasiões e causas de onde procede, assim como a concupiscência e as
outras paixões; porque umas vezes procede da natureza, outras dos
manjares, e outras dos demônios, e às vezes também de grandes e
excessivos jejuns, com os quais, fatigada, a carne busca consolação no
sono. Assim como os que estão acostumados a beber muito, hão de
vencer pouco a pouco este mau costume, se quiserem ser temperados;
assim também o hão de fazer os que estão acostumados a muito
dormir. E por isso, à entrada da religião, devem os principiantes
pelejar atentissimamente contra esta paixão, porque é coisa muito
di cultosa curar o longo costume.
Observemos diligentemente, quando soa a trombeta celestial que
nos chama às matinas, e notaremos que, juntando-se os monges
visivelmente, se juntam os demônios invisivelmente; e alguns se põem
ao lado de nossa cama, quando despertamos, e nos incitam a repousar
outro poucochinho. “Espera”, dizem eles, “até que se acabe o
invitatório, e assim irás à igreja”. Outros tratam de carregar-nos de
sono, quando começarmos a entrar em oração. Outros nos acarretam,
então, dor veemente de intestinos, ou coisa semelhante. Outros nos
movem a falar uns com os outros na igreja. Outros nos representam à
nossa alma imaginações torpes. Outros nos admoestam a que, como
fracos, nos reclinemos sobre a parede e, às vezes, nos fazem bocejar a
miúdo. Outros nos movem ao riso no tempo da oração, para que com
isto se mova Deus à indignação contra nós. Outros, com suma
preguiça, nos incitam a correr com os versos muito apressadamente; e
outros, pelo contrário, a dizê-los muito devagar, não por devoção, mas
pelo deleite e suavidade que tomam no canto. Outras vezes, pegando-
se-nos à boca, de tal maneira a fecham, que mal parece que se pode
abrir.
Aquele que, quando ora, pensa no íntimo de seu coração, que
assiste na presença de Deus, estará como uma coluna imóvel; e não
será de nenhuma destas maneiras sobreditas escarnecido do Demônio.
O verdadeiro obediente é todo esclarecido de Deus quando se chega à
oração; e muitas vezes é ali maravilhosamente consolado e visitado,
porque antes da oração se aparelha, como um forte lutador, para
assistir a Deus e resistir aos pensamentos desvairados, além de já estar,
pelo mérito de seu puríssimo e perfeito ministério, incendido e
abrasado em seu amor.
A todos é possível orar em comunidade, e muitos há que se acham
melhor orando com um só; mas a oração solitária é de muito poucos.
Cantando em coro com a comunidade, nem todas as vezes te será
possível oferecer oração pura e livre de vários pensamentos; mas, para
exercício de teu espírito, deves especular as palavras que se cantam, e
orar atentamente quando esperas que se acabe o verso do outro coro.
Não mistures ao tempo destas orações canônicas obras de mãos de
qualquer condição que sejam, proveitosas ou não, necessárias ou não;
reparte, porém, a cada coisa destas seu tempo, conforme
manifestamente nos representou aquele anjo que ensinou o grande
Antônio, que a tempos orava, e a tempos entendia em obras de mãos,
e, trocando assim os exercícios, lhe declarou o que havia de fazer. A
forja mostra a neza do ouro; mas, a qualidade da oração atentíssima
descobre o estudo e a caridade dos monges para com Deus.
CAPÍTULO XIX

Das sagradas vigílias

Entre os que estão nas casas dos reis mortais e terrenos, há alguns que,
livres e desembaraçados, não têm outro cargo ou ofício senão o de
fazer-lhes a corte; há outros que têm funções de servir em alguma
coisa, como, por exemplo, trazer na mão as maças, as insígnias reais,
o escudo, ou a espada. E grande é a diferença entre uns e outros,
porque aqueles primeiros sóem ser os parentes e privados dos reis, ao
passo que estes são servos e ministros de sua casa. Vejamos agora
diligentemente de que maneira devemos assistir a nosso Deus e Rei
Soberano, nas orações e exercícios espirituais que se celebram à tarde
e à meia-noite.
Nestas sagradas vigílias, há uns que, desprendidos de todos os
cuidados do mundo, levantam as mãos puras a Deus com uma
perfeitíssima oração; outros há que assistem diante dele, ao mesmo
tempo, cantando Salmos; outros lêem livros espirituais e devotos;
outros, mais fracos e imperfeitos, fazem algum trabalho manual, para
por esse meio pelejarem fortemente contra o sono; outros se exercitam
na meditação da morte, procurando assim alcançar compunção e dor
de suas culpas. De todos estes, os primeiros e os últimos se ocupam
em vigílias e exercícios muito agradáveis a Deus; os segundos, que
cantam os Salmos, cumprem com isto o instituto da vida monástica,
da qual é próprio este exercício; os terceiros, que são os que lêem e
trabalham estão em grau inferior, conquanto Deus estime e receba os
serviços conforme a pureza da intenção e o fervor do espírito.
O olho que vela alimpa a alma, e o sono demasiado a embota e
cega. O monge velador é inimigo da concupiscência, mas o
dorminhoco é companheiro dela. As vigílias apagam o incêndio da
carne e livram dos sonhos. Os olhos chorosos e o coração terno e
atento à guarda de si mesmo examinam prudentemente todos os seus
pensamentos, digerem e assimilam o mantimento da palavra de Deus
com o calor da meditação, morti cam e domam as paixões, apertam e
enfreiam a língua, e expelem todas as vãs fantasias e representações. O
monge velador aproveita o sossego e tranqüilidade da noite, para
pescar os seus pensamentos, a m de examiná-los e julgá-los. O
monge diligente, logo que soa a sineta que chama à oração, contente,
diz: “Alegra-te, alegra-te”; mas, o negligente diz: “Ai de mim, ai de
mim!”. A mesa e a comida mostram os gulosos, e o exercício da
oração mostra os que amam a Deus: os primeiros, à vista da mesa
posta, se regozijam, os segundos se entristecem. O muito sono é
causador do esquecimento; mas, as vigílias purgam e acrescentam a
memória de Deus. Das videiras e do lagar colhem os lavradores suas
riquezas; das orações e dos exercícios espirituais colhem as suas os
monges.
O sono demasiado é pesado companheiro, porque tira a metade da
vida, e às vezes, mais. O mau monge vela quando está ocupado em
fábulas e conversações; mas, quando chega a hora da oração, logo se
lhe fecham os olhos. O monge vaidoso mostra-se muito religioso e
prudente nas palavras; mas, quando chega a hora da lição, não pode
abrir os olhos de sono.
Quando soar aquela trombeta nal, ressuscitarão os mortos;
quando começar a soar a voz das palavras ociosas, velarão os que
dormiam. O tirano do sono, às vezes, é amigo enganoso, porque,
depois que estamos perto dele, vai-se e combate-nos fortemente com
fome e sede. Quando vamos orar, diz-nos que levemos algum serviço
manual para não perder tempo, porque de outro modo não pode
impedir a oração dos que velam. Este é o primeiro inimigo que
combate os principiantes, ou para fazê-los mais negligentes ao
princípio, ou para abrir a porta ao espírito de concupiscência.
Enquanto não estivermos livres deste inimigo, não deixemos de cantar
em companhia dos outros, porque muitas vezes teremos vergonha de
dormir, temendo o juízo dos presentes. O cão é inimigo das lebres e o
espírito de vanglória é inimigo do sono.
Acabado o dia, o mercador assenta-se para contar suas perdas e
ganhos; e o mesmo faz o verdadeiro monge, acabado o ofício dos
Salmos. Abre os olhos depois da oração e verás as quadrilhas de
demônios, que, combatidos na oração, depois dela trabalham por
enganar-nos com maus pensamentos e representações.
Está atento e vela sobre ti, para que conheças aqueles que sóem
roubar as primícias de nossas almas; esses ladrões são os demônios,
que em um momento roubam o que se ganhou em muito tempo. Com
esses roubos fazem eles que os monges andem para diante e para trás
como caranguejos.
Acontece algumas vezes que, a dormir, estejamos meditando as
palavras dos Salmos, pelo costume deste louvável exercício; acontece
outras vezes que os demônios preparam sonhos como esses, para que
nos ensoberbeçamos. Outros gêneros de sonhos não quisera eu revelar,
se não me compelissem a isso: a alma que cada dia, sem cessar, pensa
nas palavras de Deus, sói também entre sonhos ocupar-se neste mesmo
exercício; e é isto um prêmio do primeiro trabalho, prêmio que serve
para evitar as imaginações e sonhos desvairados.
CAPÍTULO XX

Prevenção contra o temor temerário


ou pueril

O temor temerário é fruto da vanglória e lho da in delidade; é


paixão de menino em alma velha nos vícios e fraca na virtude; é falta
de fé acerca dos males que não vemos, porque desta falta de fé sói
nascer este temor; é conhecimento dos perigos antes que venham,
porque deste conhecimento e previsão nasce também este temor. Pode
também de nir-se assim: temor temerário é uma paixão de nosso
apetite sensitivo, que entristece e desmaia nosso coração com a
representação dos males que nos podem acontecer. Temor temerário é
também privação da verdadeira con ança e seguridade.
A alma soberba é escrava do temor, porque, con ada em si mesma,
não merece o favor e esforço de Deus; e assim teme o soído e a
sombra das coisas, segundo está escrito: Espantá-los-á o soído da
folha que voa pelos ares.
Os que choram e os que desesperam, igualmente carecem de temor:
uns, porque, temendo seus pecados, não fazem caso dos outros vãos
temores; outros, porque, tendo os males por certos e presentes, não
temem os futuros. Os medrosos muitas vezes vêm a estar com esta
paixão como insensíveis e atônitos, e isto com muita razão; porque
Deus, justo como é, desampara os soberbos e deixa-os em suas mãos,
para que os outros aprendam a humilhar-se por exemplo deles.
Todos os que são vangloriosos sóem ser tímidos e pusilânimes;
porque, em castigo de sua soberba, permite Deus que sejam entregues
a esta tão vil paixão, que é própria de mulheres, de meninos, e de
homens vis, para que, assim como se gloriam em vão, temam também
em vão. Mas não se segue, por isto, que todos os que carecem deste
temor sejam humildes; pois, vemos que os ladrões e os que andam a
desenterrar os mortos, carecem deste temor, e nem por isso são
humildes.
Não receies ir de noite aos lugares onde tiveste algum temor;
porque, se te deixares vencer de coisa tão pouca, virá a envelhecer-se e
acompanhar-te perpetuamente esta paixão tão vil e tão para rir. E
quando a estes lugares fores, cinge as armas da oração; e quando
chegares a eles, levanta as mãos e açoita os inimigos com o nome de
Jesus, porque não há no céu, nem na terra, outras armas melhores do
que estas. E, libertado desta peste, louva a teu libertador, porque, se
fores agradecido, ele terá cuidado de libertar-te sempre.
Ninguém pode encher o ventre com um bocado, mas comendo
pouco a pouco, e assim ninguém poderá subitamente despedir de si
este temor, senão pouco a pouco. Segundo é maior ou menor o pranto
e dor dos pecados, assim o é esta paixão do temor; porque quem
menos chora mais teme, e quem mais chora menos teme. E que esta
paixão seja algumas vezes do Demônio, declarou-o um daqueles três
amigos de Jó, o de nome Elifaz, quando disse: Passando o espírito
diante de mim, eriçaram-se os pêlos da minha carne.
Algumas vezes também a Providência Divina permite em nós esta
covardia e mulheril fraqueza, para cura de nossa soberba. Aquele que
é verdadeiro servo do Senhor, só do Senhor tem temor; mas, quem não
teme ao Senhor quase sempre teme a própria sombra. Quando o
espírito mau invisivelmente assiste a nós, espanta-se o corpo; mas,
assistindo o anjo bom, alegra-se o coração dos humildes. E, sentindo
nós por este afeto a presença de sua vinda, corramos logo à oração,
porque o nosso piedoso guardador vem orar conosco e ajudar-nos.
CAPÍTULO XXI

Prevenção contra a vanglória

Costumam alguns doutores, tratando dos vícios capitais, distinguir a


vanglória da soberba; e, com ela, fazem oito vícios capitais.
Mas, Gregório Teólogo, e com ele muitos outros doutores, não
admitem mais de sete; e eu os sigo nisto.
A diferença que há entre estes dois vícios é a mesma que há entre
um menino e um homem feito, ou entre o trigo e o pão; porque a
vanglória é o princípio e a soberba é o m. Tratar deste princípio e
deste m muito por extenso, será tarefa di cultosa e prolixa,
semelhante à daquele que quisesse curiosamente tratar do peso dos
ventos.
Vanglória, segundo sua espécie, é mudança da ordem natural,
corrupção dos costumes, e descobridora dos defeitos alheios.
Quem é dado à vanglória muda a ordem natural das coisas,
atribuindo à criatura o que é próprio do Criador; corrompe os
costumes, estragando as boas obras que faz com o mau m com que
as pratica, e anda sempre esquadrinhando e acusando os defeitos
alheios, para engrandecer-se com o abatimento dos outros.
É isso a vanglória segundo sua espécie.
Mas, segundo sua qualidade, vanglória é dissipação dos trabalhos,
perda dos suores, derramamento dos tesouros, precursora da soberba,
lha da in delidade (pois nega a Deus o que deve), tempestade no
porto (pois nas mesmas boas obras padece perigo), formiga na eira (a
qual formiga, mesmo sendo pequena, faz dano a todos os frutos e
trabalhos do lavrador). Espera a formiga que se limpe o trigo; e a
vanglória, que se faça montão de riquezas espirituais. Aquela goza em
furtar; esta goza em destruir.
Alegra-se o espírito da desesperação quando vê multiplicarem-se os
vícios; e o da vanglória, quando vê crescerem as virtudes. A porta do
primeiro é a multidão das chagas, e a do segundo é a riqueza dos
trabalhos.
Considera diligentemente e acharás que esta malvada peste não
deixa o homem até a morte e até a sepultura; de sorte que se intromete
em tudo: nas vestimentas, nas pompas, nos perfumes; em suma, em
tudo quanto há. Sobre todas as coisas resplandece o sol; e em todos os
bons estudos e exercícios se alegra a vanglória. Assim, por exemplo:
jejuo, glorio-me disso; quebro o jejum, para que me não tenham por
abstinente, e glorio-me também de ver a cautela e dissimulação que
nisto tenho; se me visto bem, sou vencido desta peste; se me visto mal,
também me glorio na vileza de minhas vestes; se falo, glorio-me, e se
me calo, também glorio-me. En m, de qualquer maneira que queira
sacudir de mim este abrolho, sempre ca uma ponta para cima.
O vanglorioso é el honrador dos ídolos; pois, parecendo em
algumas obras honrar e agradar a Deus, procura agradar aos homens,
e não a Ele. Todo o homem que serve a esta vã ostentação, tenha por
certo que seu jejum é sem prêmio e sua oração sem fruto, porque um e
outra o faz pelo respeito dos homens. O monge amigo da vanglória
em duas coisas padece dano; pois, a igindo seu corpo com trabalhos,
nem por isso recebe galardão. Quem não se rirá do servo da vanglória,
que, estando a cantar os Salmos, movido por ela, umas vezes ri e
outras chora?
Esconde algumas vezes o Senhor de nossos olhos os bens que
possuímos; mas, o nosso louvador, ou, melhor, o nosso enganador,
com seus louvores, abre os nossos olhos e, abertos estes, se
desvanecem todas as nossas riquezas. O lisonjeiro é ministro dos
demônios, adail da soberba, destruidor da compunção, derramador
dos bens, e guia cego e descaminhado; pois, como disse o Profeta:
Povo meu, os que te chamam bem-aventurado, esses são os que te
enganam.
Alta coisa é sofrer as injúrias forte e alegremente; porém, santa
coisa é fugir aos louvores humanos, que são causa de nosso dano. Vi
uns que choravam e que, sendo por isso louvados por outros, iravam-
se desordenadamente por se verem louvados; e desta maneira
trocaram uma paixão por outra.
Ninguém sabe o que está no homem senão o espírito do homem que
está dentro dele; e, por isso, tenham vergonha e emudeçam os que em
rosto nos chamam bem-aventurados. Quando vires que teu próximo
ou teu amigo te maltrata com suas palavras em presença, ou em
ausência, então assinaladamente hás de mostrar tua caridade para
com ele e louvá-lo. Grande coisa é sacudir da alma os louvores dos
homens; mas muito maior é sacudir os dos demônios, quanto
tacitamente nos louvam, fazendo crer que valemos alguma coisa.
Não é humilde aquele que se abate e diz mal de si (pois quem há
que não sofra a si mesmo?), mas aquele que, maltratado e injuriado de
outro, guarda para com ele salva e inteira a caridade. Notei uma vez
que o espírito da vanglória revelou a um monge os maus pensamentos
com que combatia a outro: para que, ouvindo este da boca daquele o
que se passava em seu coração, o tivesse por profeta e o louvasse e
apregoasse por bem-aventurado, e assim o ensoberbecesse.
Não dês ouvidos a esse inimigo, quando te aconselha a que recebas
algum bispado, ou principado de mosteiro, ou algum magistério e
ofício proeminente; pois, é coisa de grande trabalho arredar o cão do
talho do açougue, isto é, morti car o apetite da própria honra e
excelência. Sói também este mesmo espírito, quando vê alguns que
tiram proveito do propósito da quietude, e no estado de tranqüilidade
e recolhimento, incitá-los a que, deixando o ermo, vão para o século,
dizendo-lhes: “Corre, vai tratar da salvação das almas que perecem”.
Assim como uma é a forma e a cor dos que nascem na Etiópia e
outra a das estátuas de pedra (porque uma procede de princípios
naturais e outra de arti ciais), assim uma é a vanglória dos que vivem
nos mosteiros e outra a dos que vivem na soledade. A primeira sói
adiantar-se aos que vêm ao mosteiro, incitando os monges mais
levianos a que saiam a recebê-los e se prostrem a seus pés; de maneira
que, estando tão cheia de soberba, nge humildade e, a propósito
disso, compõe e endereça os costumes, o hábito, as palavras e a
maneira de andar. Fala com voz baixa e mansa; entrementes, tem os
olhos bem atentos às mãos dos visitantes, a ver se trazem algo que lhes
dar. Chama-os senhores, e pais, e remediadores de sua vida, depois de
Deus. Quando estão assentados à mesa, exorta-os à abstinência; e
agrava muito os defeitos dos inferiores para mostrar seu zelo. Aos
negligentes no cantar aos Salmos, esforça-os e anima-os a cantar; e aos
mudos e sem voz, acrescenta-lhes a formosura da voz; e aos que estão
sonolentos e pesados, desperta-os e fá-los velar: tudo isto a m de
agradar aos que vêm e ganhar crédito para com eles. Lisonjeia ao que
preside o coro, e deseja ter para si aquela preeminência; e, enquanto
os hóspedes se despedem, chama-o pai e mestre. Aos mais honrados,
louvando-os, faz soberbos; e aos desprezados diz que sóem ter
memória das injúrias.
A vanglória muitas vezes, para os seus, foi causa de ignomínia;
porque, enjoada deles, levou-os à prática de coisas com que,
descobrindo sua vaidade e ambição, vieram, por isto, a cair em grande
vitupério e confusão. Esforça-se a vanglória por fazer os homens
enfatuarem-se das graças naturais e das sobrenaturais; e com estas
armas derruba os miseráveis.
Já vi este demônio perturbar e fazer fugir a outro seu irmão e
companheiro. Uma vez, estando um monge a irar-se contra outro,
neste comenos, tendo chegado certos hóspedes seculares, subitamente
ele desistiu da ira com o espírito da vanglória, vendo que não podia
servir a ambos os espíritos, pois um pedia o contrário do outro.
Aquele que se há entregado à vanglória vive duas vidas, que a nal
se destroem e se anulam em seus resultados; pois, com o corpo e o
hábito, está no mosteiro, e, com o espírito e os pensamentos, vive no
mundo. Se trabalhamos para alcançar a graça soberana, trabalhemos
também por alcançar a glória soberana; pois, aquele que gostar da
glória do céu facilmente desprezará a da terra. E muito me havia de
maravilhar se alguém pudesse desprezar a esta sem o gosto daquela.
Muitas vezes, porém, acontece aos que, em algum tempo tendo sido
destruídos e despojados pela vanglória, depois tendo entendido e
condenado este danoso princípio, mudaram a intenção, acabarem com
louvável m aquilo que haviam começado.
Aquele que se ensoberbece com as habilidades naturais (como sejam
a agudeza, a sabedoria, a lição, a pronunciação, o engenho, e outras
coisas que, nascendo conosco, não se alcançam por nosso trabalho),
este tal nunca de Deus receberá bens sobrenaturais, porque quem é
in el no pouco também o será no muito: e tal é o servo da vanglória.
Muitos pretenderam, à força de trabalhos e asperezas corporais,
alcançar suma tranqüilidade e riquezas de graças, e operação de
milagres, e dom de profecia: e todo o seu trabalho foi vão, porque não
entenderam os miseráveis que estes dons não se alcançam com a força
de trabalhos e sim com suma humildade. Bem entendido: os trabalhos
ajudam muito para conseguir a virtude, se forem acompanhados de
humildade, como, por exemplo, aconteceu a Daniel e seus
companheiros; mas aquele que pretende alcançar dons de Deus
somente por trabalhos, pôs perigoso fundamento a seu desejo, ao
passo que aquele que sempre se conhece por devedor, receberá
subitamente riquezas de graças não esperadas.
Acautela-te a que nunca obedeças ao Demônio, quando te
aconselha a descobrir tuas virtudes para edi cação dos ouvintes; pois,
que proveito tem o homem de ganhar todo o mundo em detrimento de
si mesmo? Nada edi ca tanto os ouvintes como a humildade dos
costumes, e as palavras e maneiras de conversação sem ngimento e
sem frouxidão; e isto é para os outros exemplo e motivo para não
serem soberbos, e não vejo coisa que melhor seja para edi car os
homens.
Um religioso, espírito atento e prudentíssimo, contou-me que,
estando uma vez em companhia de outros, vieram a ele os demônios
da soberba e da vanglória e, assentando-se um à sua direita, outro à
sua esquerda, um deles o aconselhou a praticar qualquer ato
contemplativo, ou a dar conta de alguma obra que tivesse praticado
quando estava no ermo. “Despedi-o de mim”, disse ele, mandando-o
para trás e acusando-o de exercitar meios de fazer mal. Logo o outro,
que estava do outro lado, aconchegando-se mais ao religioso, disse-lhe
ao ouvido: “Alegra-te, procedeste como um santo varão, porque
venceste minha desavergonhada mãe”. E ele, muito a propósito,
repeliu também a este assim: “Apartem-se já e tenham vergonha os
que me dizem: ‘Alegra-te, que bem zeste’”.
Perguntando eu, ao mesmo padre, como pode a vanglória ser
princípio e mãe da soberba, respondeu-me assim: “Os louvores
insu am e levantam a alma: e depois que ela se levanta, a soberba a
eleva até o céu e de lá a derruba para os abismos”.
Uma honra há que nos vem por parte do Senhor, segundo Ele disse:
Eu honro aos que me honram. Há outra que nos vem por obra do
Demônio, da qual está escrito: Ai de vós, quando vos louvarem os
homens. A primeira, conhecerás claramente quando, estimando-a por
teu dano próprio, a contradisseres com todas as tuas forças,
escondendo tua virtude e modo de viver onde quer que te achares.
Mas a segunda, conhecerás quando zeres alguma coisa, por pequena
que seja, a m de ser vista dos homens; pois, este malvado espírito
sempre nos incita a ngir e mesmo fazer alarde de virtudes que não
temos, alegando para isso o Evangelho, que diz: Assim resplandeça
vossa luz diante dos homens, para que vejam vossas boas obras e
glori quem a vosso Pai que está nos céus.
Tem acontecido que o Senhor pusesse ódio entre o vanglorioso e a
vanglória, permitindo que por ela viesse o homem a cair em alguma
grande ignomínia e que por isso viesse a aborrecê-la. O princípio deste
santo ódio é guardar a boca de palavras de vanglória e amar a vileza e
ignomínia, o meio é cortar todos os exercícios e obras de vanglória,
como sejam as singularidades, hipocrisias, ou obras tais; e o m (se é
possível achar m no abismo) é chegar a fazer coisas em presença dos
outros, coisas tais que nos possam acarretar desprezo e ignomínia,
sem que, entretanto, sejam escandalosas, e isto sem sentimento e dor.
Este grau de perfeição é para muito poucos.
Aqui é de notar que nem sempre se há de usar de uma mesma
medicina contra esta doença; mas, segundo a variedade dela, assim o
hão de ser os remédios. Por isso, quando nós mesmos chamamos a
vanglória, ou quando, sem ser chamada, os outros nô-la oferecerem,
ou quando tentamos fazer alguma coisa endereçada à vanglória,
recordemo-nos, então, de nosso pranto e de nossa secreta e temerosa
oração; e com isto nos defenderemos das importunações deste vício e
de sua desvergonha. Se isto não bastar, invoquemos logo a memória
da morte: e se ainda assim não vencermos, tenhamos temor da
confusão e ignomínia que resulta da mesma vanglória, porque está
escrito: Aquele que se exaltar será humilhado.
Quando os aduladores se puserem a louvar-nos, ponhamos logo
diante de nossos olhos a multidão de nossos pecados e nos acharemos
indignos dos elogios que nos fazem. A alguns daqueles que são dados
à vanglória, Deus concede-lhes o que desejam, antes mesmo que por
suas orações o peçam, a m de que não venham a se tornar soberbos,
crendo que o alcançaram por sua oração. Aqueles que têm o coração
sensível, não são muito tocados deste vício; pois, a vanglória é
desterro da simplicidade, é ngida religião, é ngida conversação.
Há um verme que, depois de crescido, cria asas e voa alto: assim a
vanglória consumada gera a soberba, que é guia, princípio e
consumação de todos os males.
CAPÍTULO XXII

Prevenção contra a soberba

Soberba é negação de Deus, invenção dos demônios, desprezo dos


homens, mãe da condenação, lha dos louvores humanos, argumento
de esterilidade espiritual, desterro da ajuda de Deus, precursora da
loucura, ministra das quedas, matéria de pecados, fonte de ira, porta
do ngimento, castelo dos demônios, guarda dos delitos, obradora de
crueldade, rigoroso inquisidor das culpas alheias, juiz cruel dos
homens, adversário de Deus, a raiz de blasfêmias.
O princípio da soberba é o m da vanglória; o meio é o menosprezo
do próximo, a jactância das próprias virtudes, a estimação de si
mesmo, e o ódio da repreensão; mas, o m é a negação da ajuda
divina, e con ança em suas próprias forças, e espírito e obras do
Demônio. Ouçamos, pois, atentamente, todos os que desejamos livrar-
nos deste despenhadeiro.
Sói esta crudelíssima peste criar-se em nós, mesmo por ocasião das
graças, porque desde logo nos vai incitando a negar a Deus. Vi um que
com a boca dava graças a Deus e com o coração se gloriava, como
aquele fariseu que dizia: Deus, graças vos dou, etc. E este foi
condenado por sentença proferida pelo próprio Jesus Cristo.
Dizem alguns lósofos que são doze as paixões da alma, que sóem
arrebatar-nos quando se desmandam a coisas feias e ignominiosas;
mas, o amor desordenado da própria excelência, que é a raiz da
soberba, só esse, às vezes, faz tanto dano quanto todas as outras. O
monge que tem altos pensamentos, contraria fortemente ao que lhe
mandam; mas, o que os tem humildes, não sabe contrariar nem
repugnar. Não pode o cipreste inclinar-se até a terra, nem o monge
soberbo humilhar-se e obedecer. O homem de alto coração deseja
dominar e mandar; e, por este meio, se encaminha sua perdição: e
assim o permite Deus. Se o Senhor resiste aos soberbos, quem terá
compaixão deles? E se todos eles têm perante Deus o coração sujo,
quem será poderoso para limpá-los? A repreensão é, para o soberbo,
ocasião de maior queda; e o Demônio é o estímulo que os aguça, e o
desamparo de Deus faz que venham a car fora de si e a perder o siso!
E os dois primeiros males (que são os dois primeiros graus sobreditos
da soberba) algumas vezes os puderam curar os homens; mas, o
terceiro, que é negar a ajuda de Deus (como a negaram alguns
hereges), só Ele é quem o pode curar. Aquele que sacode e despede de
si a repreensão, dá a entender que está tocado desta enfermidade; mas,
aquele que com humildade a recebe, livre parece estar desta
pestilência. Se uma criatura tão nobre caiu do céu somente por causa
da soberba, sem outro algum vício sensual, razão há para perguntar se
bastará a verdadeira humildade para levar ao lugar onde a soberba
derruba.
A soberba é perda dos trabalhos e das riquezas da virtude.
Clamaram os soberbos e não houve quem os salvasse; e a causa disso
foi que clamaram com soberba, pois não cortaram a raiz e as ocasiões
dos males contra os quais oravam. Um santíssimo e discretíssimo
velho repreendeu espiritualmente a um religioso soberbo, que, como
cego, lhe respondeu assim: “Perdoa-me, padre, que nem me glorio em
vão, nem sou soberbo”. Ao que replicou o santo velho: “Pois como
poderás tu descobrir mais claramente que estas tocado da soberba,
senão dizendo ‘não sou soberbo’?”. A esses tais convém muito a
devota sujeição, e um humilde e baixo instituto de vida, e
consideração atentíssima daquelas virtudes claríssimas dos Santos
Padres, virtudes que parecem exceder a natureza. E deste modo
poderá car a estes doentes alguma esperança de salvação.
Vergonha é ensoberbecer-se o homem com os atavios e ornamentos
de outro; extrema loucura é levantar-se com os dons de Deus e gloriar-
se dos bens para que Deus determinou alguém antes de nascer; pois,
está claro que não é fazenda própria. Certamente, as virtudes que
alcançaste depois de nascido, são de Deus, assim como o é o mesmo
nascimento, depois do qual as alcançaste. Nem as virtudes que
alcançaste sem o uso da tua alma, podes chamar tuas; e essas são
nenhumas, pois ninguém obra sem a alma e essa também é dádiva de
Deus. Do mesmo modo, nem as vitórias que alcançaste sem o
ministério do corpo, serão tuas; porém, essas, também nenhumas são,
pois o corpo com que trabalhaste não é menos dádiva e obra de Deus.
Em suma, tudo é de Deus.
Não te tenhas por seguro enquanto não ouvires a sentença nal;
pois, vês que aquele que havia entrado no tálamo e se assentado à
mesa, foi despedido dela, atado de pés e mãos, e lançado nas trevas
exteriores. Não levantes a cerviz, nem te engrandeças, sendo, como o
és, de barro e lama; pois, vês caídas do céu aquelas nobres
inteligências, criadas com tanta graça e livres de toda a matéria e
corrupção. Depois que o Demônio há tomado o lugar nos corações
dos soberbos, começa a aparecer-lhes entre sonhos, ou em alguma
visão, em gura do santo anjo ou de algum mártir, revelando-lhes
algumas maneiras de graças, segundo a eles se lhes a gurava, para
que, deste modo, venha a apoderar-se deles perfeitamente e fazer-lhes
perder o siso. Pensa bem que, mesmo padecendo mil mortes por Jesus
Cristo, não poderíamos acabar de satisfazer por nossas culpas, nem de
pagar-lhe o que lhe devemos; pois, uma coisa é o sangue do senhor,
outra é a do servo, outra (digo) segundo a dignidade, não segundo a
substância. Nunca deixemos de examinar-nos e julgar-nos, nem de pôr
os olhos nas vidas e costumes daqueles claríssimos padres que
resplandeceram como lanternas do céu, examinando-os e cotejando-
nos com eles; porque, então, veremos evidentemente que não temos
chegado aos primeiros princípios da verdadeira santidade e religião, e
que ainda vivemos como seculares.
Monge é um olhar do ânimo humilde e despido de todo o
levantamento e soberba; é um hábito e gura corporal não menos
humilde e constante do que o próprio espírito. Monge é o que desa a
aos inimigos, assim como a bestas ferozes, irritando-os e provocando-
os a pelejar, quando fogem dele, dizendo com o Profeta: O Senhor é
minha luz e minha sabedoria, a quem temerei? Monge é um espírito
todo absorto e transportado para Deus e uma perpétua tristeza da
vida, porque a esta perfeição deve ansiar o verdadeiro monge. Monge
é aquele que de tal modo está afeiçoado no amor das virtudes, como
os carnais e mundanos nos seus deleites e vícios. Monge é uma luz que
perpetuamente está alumiando os olhos do coração; porque ao
verdadeiro monge pertence participar continuamente desta divina luz
e resplendor. Monge é um abismo de humildade, o qual sacode sempre
de si todo o espírito alheio, isto é, tudo o que é contrário à humildade,
com a qual principalmente está ele adornado. A soberba e o fausto
desterram sempre de si a memória dos pecados, porque esta é
produtora de humildade.
Soberba é uma suma pobreza da alma, a qual imagina que tem
riquezas, estando na miséria, e pensa que tem luz, estando em trevas.
Esta abominável pestilência não somente evita que vamos para diante,
como também derruba-nos do alto. O soberbo é como uma maçã que
por fora está sã e formosa e por dentro está podre. O monge soberbo
não tem necessidade de demônio que o tente; pois, ele próprio é para
si demônio, inimigo e adversário. Muito longe estão as trevas da luz e
assim a soberba o está de toda a virtude. Há nas almas dos soberbos
palavras de blasfêmia; mas, nas dos humildes, há dons do céu. O
ladrão não queria ver o sol, nem o soberbo quer ver os humildes e
mansos. Não sei de que maneira os soberbos se esconderão de si
mesmos; pois, tendo-se por livres de paixões e vícios, ao cabo da
jornada vieram a conhecer sua nudez e pobreza. Quem estiver tocado
desta pestilência, necessidade tem do socorro de Deus, porque vã é a
saúde do homem.
Achei eu, uma vez, que esta enganadora serpente sem cabeça entrou
em meu coração trazido nos ombros de sua mãe, que é a vanglória:
eu, então, atei-as ambas com o vínculo da obediência, açoitei-as com o
açoite da humilde sujeição e pobreza, e forcei-as a que me dissessem
como haviam entrado em mim. E elas me responderam:
— Nós não temos princípio nem nascimento, porque somos
príncipes e geradores de todos os vícios. Quem nos faz cruel guerra é a
contrição do coração, acompanhada da sujeição. Não suportamos
car sujeitas ao império de ninguém; e, por isso, zemos uma revolta
até no céu. E, para dizer-te tudo em uma palavra, nós somos
causadoras de tudo quanto é contrário à humildade. Ora, as coisas
contrárias à humildade são inumeráveis, e todas as coisas que são
favoráveis à humildade nos são contrárias. Nós tivemos lugar no céu;
e, assim sendo, para onde poderás fugir de nós? Nós temos por estilo
levantar tempestades e perseguições contra os amadores das
ignomínias, e da obediência, e da mansidão, e contra os que se
olvidam das injúrias e têm por ofício servir às necessidades dos
próximos. Nossas lhas são todas as quedas das pessoas espirituais,
que sempre caem por soberba; ou, por outra, são a ira, a detração, a
amargura de coração, a vozeria, o furor, a blasfêmia, a hipocrisia, o
ódio, a inveja, a contradição, a desobediência, e o querer ser regido
mais pela cabeça própria do que pela alheia. Uma só coisa há na qual
desfalece todo o ímpeto de nossas forças, e é esta: se, com entranhado
afeto de teu coração, te acusares e humilhares sempre diante de Deus,
poderás vencer-nos logo: porque o cavalo da soberba é a vanglória em
que está montada; mas, a santa humildade se rirá do cavalo e do
cavaleiro, cantando suavissimamente aquele cântico espiritual que diz:
Cantemos ao Senhor, porque gloriosamente se engrandeceu; pois, ao
cavalo e ao cavaleiro derrubou no mar, isto é, no abismo da
humildade.
CAPÍTULO XXIII

Horror à blasfêmia

Dissemos que da soberba nasce a blasfêmia, lha tão malvada e até


mais cruel do que a própria mãe; inimigo terrível, e o que mais é,
duro, di cílimo de revelar ao médico espiritual, ou de descobri-lo na
con ssão, resultando daí que para muitos veio a ser causa de
desesperação, consumindo-se a vítima na perda da esperança de livrar-
se. Nem de outro modo o verme consome e corrompe o madeiro.
Este malvadíssimo espírito chega muitas vezes a aproveitar
propositalmente o tempo da sagrada comunhão, para incitar-nos a
blasfemar de Deus e dos sagrados mistérios que ali se administram.
Daí se infere claramente que não é nossa alma quem fala dentro de si
aquelas malvadas e intoleráveis palavras, e sim o Demônio, inimigo de
todos os bons, o qual foi por isso derrubado do céu, onde se insurgiu
contra Deus, proferindo contra ele palavras de blasfêmia e injúrias. Se
fossem, em tal momento, nossas aquelas malvadas palavras, como se
compadeceria com isto recebermos nós aquele dom do céu, adorando-
o e reverenciando-o? Como poderíamos nós juntamente amaldiçoar e
benzer? Muitos há a quem este perversíssimo enganador e destruidor
das almas fez sair fora de si e perder o juízo; pois, como dissemos, não
havendo pensamento mais vergonhoso do que este, sendo assim
di cílimo descobri-lo ao médico espiritual, muitas vezes veio a tornar-
se um hábito. Bem fácil é compreender que nada fortalece mais aos
demônios, e aos maus pensamentos, do que tê-los encobertos, sem
revelá-los ao mestre de nossa alma.
Ninguém atribua a si a causa das palavras de blasfêmia que profere;
pois aquele Senhor que é conhecedor dos corações, sabe muito bem
que estas invenções e palavras não são nossas, mas de nossos inimigos.
A embriaguez algumas vezes é causa de atos desastrosos; a soberba
muitas vezes é causa destes pensamentos. Ora, aquele que, tomado do
vinho, praticou algum ato desastroso, não será castigado pelo que fez,
mas pela causa por que o fez; e isto mesmo acontece à blasfêmia, que
algumas vezes procede da soberba, como já está dito.
Quando estamos orando, então é que principalmente nos perturbam
estas fantasias e pensamentos; e, acabada a oração, logo se vão,
porque não sóem perturbar senão aqueles que pelejam contra eles.
Este espírito mau não se contenta de blasfemar de Deus e de todas as
coisas divinas, mas também fala intelectualmente dentro de nós
algumas sujíssimas palavras; e isto faz, ou para que deixemos a
oração, ou para derrubar-nos em alguma desesperação. Por este
caminho apartou ele a muitos da oração e também da sagrada
comunhão; a outros, enfraqueceu seus corpos com o espírito de
tristeza, e a outros com demasiados jejuns sem dar-lhes jamais
descanso. E isto o faz, não só entre os homens do século, como entre
os da vida monástica, fazendo-lhes crer que nenhuma esperança lhes
ca de salvação, e que são piores e mais miseráveis que todos os in éis
e que os mesmos gentios.
Aquele que é tentado deste espírito de blasfêmia, e deseja livrar-se
dele, tenha por certo que não é sua calma a causa destes pensamentos,
mas aquele sujíssimo espírito teve o atrevimento de dizer ao Senhor:
Tudo isto te darei, se caindo em terra me adorares. E, por isso,
também nós, não fazendo caso das coisas que ele diz, seguramente e
sem temor digamos: “Aparta-te de mim, Satanás; somente a meu
Senhor adorarei e a ele só servirei; tuas palavras e teus maus intentos
se volvam contra ti; e tua blasfêmia caia sobre tua cabeça no presente
e no futuro século”. Aquele que por outro meio quiser pelejar contra
este espírito de blasfêmia, será semelhante ao que quiser deter um
relâmpago com as mãos; pois, como resistir ou lutar contra aquilo que
subitamente passa, como vento, por nosso coração, diz uma palavra
em um momento, e já desaparece? Os outros espíritos perseveram,
detêm-se e dão tempo aos que pelejam contra eles; mas, este, pelo
contrário, logo que aparece desaparece, e, falando uma palavra, logo
passa.
Sói este perverso espírito deter-se mais nas almas dos homens puros
e simples, porque estes se perturbam e estremecem com tais
pensamentos; e, por isso, cremos que padecem disto, não por soberba,
mas por inveja dos demônios. Se deixarmos de julgar e condenar o
próximo, menos temeremos os pensamentos de blasfêmia, porque essa
é uma das raízes e causas desta tentação. Assim como quem está
encerrado em sua casa ouve as palavras dos que passam pela rua, mas
não fala com eles, assim a alma que mora dentro de si mesma,
ouvindo as palavras de blasfêmia que o Demônio fala ao passar por
ela, perturba-se e estremece, conquanto não seja ela quem as fala.
Aquele que despreza este espírito mau e não faz caso dele, esse o
vencerá; mas, aquele que de outro modo se quer defender
(especialmente se o teme muito), quanto mais o temer, mais vezes será
por ele inquietado, porque o mesmo temor despertará muitas vezes
esta tentação. Quem quiser com palavras vencer este espírito, é
semelhante a quem quiser ter encerrados ou presos os ventos.
Um monge virtuoso foi muito tentado deste espírito por espaço de
vinte anos; e, durante este tempo, nunca deixou de macerar sua carne
com jejuns e vigílias. E como com esta medicina não achasse remédio,
escreveu uma carta a um santíssimo velho, descrevendo a sua doença,
entregando-a de mão própria, prostrado a seus pés, sem mirar-lhe o
rosto. Depois que o santo velho leu a carta, sorriu; e, levantando-o do
chão, disse-lhe: “Põe, lho meu, tuas mãos sobre meus ombros”. E,
como o religioso assim o zesse, disse-lhe o velho: “Sobre mim caia
este pecado, lho meu, todo o tempo que te combateu e que daqui por
diante te combater, contanto que nenhum caso faças dele”. Com estas
palavras, de tal maneira cobrou esforço e alento o religioso, que, antes
de sair da cela do velho, já a tentação se tinha desvanecido. Isto me foi
contado pelo próprio a quem tal acontecera, dando graças a Deus por
este benefício.
CAPÍTULO XXIV

Da mansidão e simplicidade

Antes do sol sai a luz da manhã e à humildade precede a mansidão,


como nos declarou a mesma luz (que é o Senhor) quando disse:
Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração. Justo é, pois, e
conforme a ordem natural, gozar da luz antes do sol; pois, a este
ninguém pode ver, se primeiro não vê esta luz, como se colige daquele
dito.
Mansidão é conservar-se a alma em um mesmo estado sem
perturbação alguma, quer nas honras, quer nos desgostos. Mansidão
é, nas perturbações e a ições do próximo, fazer oração por ele com
suma compaixão. Mansidão é uma rocha alta, que está sobre o mar
da ira, rocha em que se desfazem todas as ondas furiosas, sem cair e
sem inclinar-se mais para uma parte do que para outra. Mansidão é
rmeza da paciência, porta da caridade, ministra do perdão, con ança
na oração, argumento de discrição; porque o Senhor (como diz o
Profeta) ensinará aos mansos seus caminhos. Mansidão é aposento do
Espírito Santo, segundo aquilo que está escrito: Sobre quem repousará
meu espírito senão sobre o humilde e manso, e que trema de minhas
palavras? Mansidão é ajudadora da obediência, guia dos irmãos, freio
dos furiosos, vínculo dos irados, ministra de gozo, imitação de Jesus
Cristo, condição de anjos, prisão de demônios, e escudo contra as
amarguras do coração.
O Senhor repousa nos corações dos mansos; mas, a alma do furioso
é aposento do inimigo. Os mansos herdarão a terra, ou (para melhor
dizer) serão senhores dela; mas, os homens loucos e furiosos serão
destruídos e desprezados dela. A alma mansa é lha da simplicidade;
mas, a alma irada é casa e aposento de malícias. A alma do manso
receberá as palavras da sabedoria, porque o Senhor guiará no juízo
dos mansos, ou, para melhor dizer, na virtude da discrição. A causa
disto é que a alma quieta e tranqüila, está muito disposta e aparelhada
para ser dirigida e iluminada pelo Espírito Santo. A alma reta é
familiar companheira e esposa da humildade; mas, a má é lha moça e
louca da soberba. As almas dos mansos serão cheias de sabedoria;
mas, nas almas dos irados, moram as trevas e a ignorância. O irado e
o dissimulado se encontraram e não se achou palavra reta entre eles.
Se abrires o coração do primeiro, acharás loucura; se abrires o do
segundo, acharás maldade.
A simplicidade é um hábito e disposição da alma, que carece de
variedade, e não sabe que coisa é perversa intenção, nem é movido
com algum mau pensamento. Malícia é astúcia, ou (para melhor dizer)
maldade e mentira de demônios, a qual sempre pensa que não é
entendida dos outros; e digo que é maldade de demônios, porque
pecar por malícia é pecar, não por fraqueza ou ignorância (como sóem
pecar comumente os homens), mas por eleição e vontade deliberada
(como pecam os demônios), que toda a sua astúcia empregam em
buscar como fazer maior mal. Hipocrisia é estado contrário à
disposição do corpo e da alma, cheio de suspeitas e más intenções,
porque o hipócrita em tudo se contrafaz, querendo parecer outro,
suspeitando que os outros sejam como ele. Inocência é disposição e
estado da alma, alegre e seguro e livre de toda a suspeita e astúcia,
porque o verdadeiro inocente, assim como não faz mal a ninguém,
assim também não suspeita mal de ninguém. Retidão é intenção alheia
de curiosidade, afeto inteiro e sem corrupção, palavras simples, e sem
nenhum ngimento nem artifício, e uma limpíssima natureza de
ânimo, que, apartado de toda a malícia, trabalha por conservar-se
naquela pureza em que foi criado, comunicando-se a todos e
mostrando-se afável e caritativo para com todos.
Malícia ou malignidade é perversão da verdadeira retidão, intenção
enganada, dispensação in el e não conforme à justiça, juramento
arti cioso com palavras falsi cadas, profundidade de pensamentos
sutilíssimos e perversíssimos, abismo de enganos, mentira acostumada
e convertida em hábito, soberba já tornada natural, contradição da
humildade, ngimento da penitência, afastamento do pranto, ódio da
con ssão, defensão do próprio juízo e vontade, causadora de quedas,
estorvadora do levantamento delas, sofrimento de injúrias arti cioso e
dissimulado, gravidade louca, religião ngida, e vida endiabrada.
Fujamos, pois, do despenhadeiro do ngimento e do lago da malícia
e astúcia, ouvindo a sentença daquele que disse: Os que
maliciosamente vivem serão destruídos. Estes, como a verdura das
ervas, desfalecerão logo; e serão pasto dos demônios. Assim como
Deus é caridade, assim é retidão e igualdade; e por isso, disse o Sábio,
nos Cânticos, falando com ele: Os retos são os que te amam. E o pai
deste mesmo Sábio disse em um Salmo: Bom e reto é o Senhor: e assim
diz que salva aos retos de coração. E em outro lugar: Justo é o Senhor,
e amante da justiça, e os seus olhos tem postos na retidão e igualdade.
A primeira propriedade dos meninos (quando começam a crescer) é
simplicidade livre de toda variedade; e, enquanto a teve aquele
primeiro Adão, não viu a torpeza de sua carne. Boa é, e bem-
aventurada, aquela simplicidade natural com que alguns nascem,
porém muito mais bem-aventurada e excelente é aquela que,
desterrada toda a malícia, com trabalhos e suores se alcançou. Porque,
em verdade, aquela primeira está guardada e amparada de todas as
perturbações e de toda a multiplicidade e variedade de negócios; mas,
esta é geradora e sustentadora de uma altíssima e humilde mansidão.
E àquela primeira não se deve muito grande galardão; mas, a esta
segunda, deve-se prêmio incomparável. Todos os que desejamos
alcançar o espírito do Senhor, cheguemo-nos a ele como discípulos a
mestre, para dele aprender: e isto com grandíssima simplicidade, e sem
nenhum ngimento, nem variedade, nem malícia, nem curiosidade;
porque, sendo ele puríssimo e simplicíssimo, assim quer que sejam
simples e inocentes os que vêm a ele. E nunca jamais verás a
simplicidade apartada da humildade.
O malicioso é adivinho mentiroso, o qual pensa que pelas palavras
entende os pensamentos, e pelo hábito, gura e movimentos do corpo,
imagina que penetra todos os intentos e segredos do coração. Vi
alguns homens retos terem aprendido a ser maliciosos da companhia e
exemplo dos maus; e maravilhei-me de ver como puderam estes perder
tão depressa a condição natural com que nasceram e, além disso, o
privilégio da graça. Aqui é de notar que os retos facilmente podem
cair; mas, os perversos di cultosamente podem mudar e alcançar a
verdadeira retidão. Verdade é que a peregrinação, e a sujeição, e a
guarda da boca, puderam muitas vezes maravilhosamente mudar e
curar muitas coisas que pareciam incuráveis.
Se a ciência ensoberbece a muitos, observa se por ventura se segue
daqui que a simplicidade e ignorância poderá humilhar a outros. E, se
queres um verdadeiro documento, e um certo modelo e m desta santa
simplicidade, põe os olhos naquele bem-aventurado Paulo, o simples
discípulo de Santo Antônio; porque tão grande e tão apressurado
aproveitamento entre os monges, como foi este, ninguém viu, ninguém
ouviu, e ninguém por ventura verá. O monge simples é um jumento
racional e obediente, o qual leva sua carga perfeitamente até pô-la nas
mãos de quem o guia. Não contradiz o animal ao que o ata, nem a
alma reta ao que a manda; segue ao que a conduz e, até que a matem,
não sabe contradizer.
Di cultosamente entrarão os ricos no reino dos céus; e os loucos e
sábios nesta virtude da simplicidade. As quedas fazem muitas vezes
temperados aos maus (quando são homens avisados), dando-lhes
saúde e inocência quase contra a sua vontade. Trabalha, com todas as
tuas forças, por enganar às vezes tua prudência e sabedoria,
desestimando-a e sujeitando-a ao parecer dos outros; e, fazendo isto,
acharás saúde e retidão em Cristo Jesus nosso Salvador.
CAPÍTULO XXV

Da altíssima humildade,
vencedora de todas as paixões
I

Quem, com palavras sensíveis, pretender explicar a natureza, os afetos


e propriedades admiráveis da divina caridade, e da santa humildade, e
da bem-aventurada castidade, e da ilustração e iluminação e santo
temor de Deus, e da seguridade e con ança que os seus nele têm; e
pensar que poderá dar a entender a excelência destas virtudes aos que
delas não gozam; parece-me que será semelhante a quem quisesse,
com palavras e exemplos, explicar o sabor do mel aos que nunca o
comeram. Este em vão se esforçará, por mais que diga do sabor do
mel; mas, aquele será ignorante mestre de sua doutrina, ou ensinará
com espírito de vanglória, usurpando ofício que lhe não pertence.
Chegamos, pois, ao momento de tratar de um tesouro escondido em
vasos de barro, isto é, em nossos corpos, tesouro cuja condição e
qualidade não podem ser conhecidas e explicadas com palavras. Só o
título basta para dar in nito trabalho a quem quiser esquadrinhar e
explicar com palavras o que nele se contém: é este título santa
humildade. Todos os que são movidos pelo espírito de Deus, se juntem
aqui, entrem conosco neste intelectual e sapientíssimo concílio,
trazendo espiritualmente em suas mãos as tábuas da sabedoria,
escritas por mão de Deus, para que com elas nos ajudem a entender
este segredo.
Ajuntados, pois, deste modo, e feita diligente inquirição,
examinemos a virtude deste venerável título. Ouçamos as noções que
cada um dá. Humildade é esquecimento atentíssimo de todos os bens
que temos praticado. Humildade é ter-se o homem por mais baixo de
todos e pelo maior pecador. Humildade é conhecimento da alma,
mediante o qual vê o homem sua própria fraqueza e miséria.
Humildade é adiantar-se a pedir perdão ao próximo e aplacar sua ira,
ainda que tivesse sido por ele agravado. Humildade é conhecimento
da graça e misericórdia de Deus. Humildade é sentimento do ânimo
contrito e negação da própria vontade.
Ouvindo eu todas estas noções, comecei, dentro de mim mesmo, a
examinar, com muita diligência e vigilância, a doutrina destes bem-
aventurados padres; e não a pude entender só pelo que ouvi. E, assim,
último de todos, como o cão que recolhe as migalhas da mesa,
esforçando-me por dar uma de nição, disse: “Humildade é uma graça
da alma, que só pode ser entendida pelos que têm experiência dela.
Humildade é um dom de Deus e um nome inefável de suas riquezas;
porque aquilo que Deus dá a quem dá humildade, assim como não se
pode entender, também não se pode declarar por palavras. Aprendei
de mim, disse o Senhor; não de anjo, nem de homem, nem de livro,
mas de mim, isto é, de meu ensino, de minha luz, e das operações
interiores que eu obro em vossas almas morando nelas, como quem
diz: aprendei que sou humilde e manso no coração, e nas palavras, e
nos sentidos, e achareis descanso de batalhas e alívio da guerra de
vossos pensamentos”.
Esta virtude tem diversos graus, e diversos efeitos ou fatos
correspondentes a esses graus. Assim como a mesma vide tem um
aspecto no inverno, outro na primavera, outro no estio, assim a
humildade tem uma maneira nos que começam (que estão quase como
no frio do inverno), outra nos que aproveitam (que são como a orida
primavera), e outra nos perfeitos (que são como o caloroso estio).
Todos estes graus, entretanto, conduzem a uma mesma alegria e fruto
de virtude, e cada um deles tem seus sinais próprios.
Quando começa a orescer o ramo desta santa vide, logo
começamos a desterrar de nossa alma toda a ira e furor, e a desdenhar
toda a fama e honra do mundo, posto que isto não seja feito sem
alguma dor e trabalho, por ser no princípio. Mas, depois que esta
nobilíssima virtude começa a crescer em nosso ânimo na idade
espiritual, logo chegamos a ter em nenhuma conta todo o bem que
fazemos, e pensamos que, dia por dia, aumentamos a carga de nossas
dívidas com culpas secretas que nós mesmos ignoramos; pois, ainda
que algumas de nossas obras sejam meritórias e louváveis, muitas
outras vão acompanhadas de negligências, e todas são baixas para o
que Deus merece, e por tais convém que as tenha o humilde servo de
Deus. Além disso, este humilde servo de Deus suspeita que a
abundância dos dons celestiais que recebeu, há de ser para si matéria
de maior castigo e tormento, porque pensa que nem os agradece como
merecem, nem usa deles como deve; e, assim, ca a alma inteira e
humilde no meio de todos estes dons celestiais, porque se encerra com
segurança dentro da consideração de sua pequenez, como em um
castelo inacessível, ouvindo somente o ruído e a grita dos ladrões, e
permanecendo segura e livre de todos eles.
Da quantidade desta virtude, isto é, até onde pode crescer, não
poderei dizer; e mais impossível é dizer de sua qualidade, isto é, de sua
dignidade e e cácia. E, portanto, falemos de suas propriedades e de
sua natureza.
A perfeita penitência, e o pranto com que se lavam todas as máculas
da alma, e a santíssima humildade, tanto diferem entre si como o pão
da farinha. Primeiramente, o coração é alquebrado e moído pela
virtude da contrição e penitência; e, mediante a água do perfeito
pranto, este coração alquebrado e moído, se amassa e mistura, como a
farinha com a água; e, depois, cozido com o fogo do Senhor, se
endurece, e ca feito o pão da santíssima humildade, livre já de toda a
levedura e de todo o fausto e inchação. Vem assim a juntar-se em uma
virtude esta santa cadeia, composta de três anéis, ou para melhor
dizer, não cadeia, mas arco-íris, que resplandece com suas cores, de
sorte que este sagrado ternário tem suas propriedades, nas quais o que
é sinal de uma é também sinal para conhecer outra, como o procurarei
demonstrar com autoridades e exemplos.
A primeira e principal propriedade que tem este admirabilíssimo
ternário é um suavíssimo e muito alegre sofrimento de ignomínias, que
a alma abraça e espera com as mãos levantadas para o céu, a m de
amansar suas paixões e consumir a fonte de seus pecados. A segunda
propriedade é a vitória de toda a ira e, com isso, a temperança em
comer e beber, e em todos os outros deleites, a m de que não se
derrame por uma parte o que se recolhe por outra, nem busque o
homem este gênero de deleites e consolos para passar aqueles
trabalhos. O terceiro e perfeitíssimo grau é uma in delidade el, isto
é, não se ar o homem demasiadamente em seus merecimentos, e
contínuo desejo de ser ensinado e admoestado pelos outros.
O m da lei e dos Profetas é Jesus Cristo, para justiça de todos os
crentes; mas, o m de todas as paixões desordenadas é a vanglória e a
soberba dos maus, quando chegam a gloriar-se do mal que zeram: a
humildade, porém, mata todas essas paixões, porque guarda de todo o
veneno moral. Com efeito, onde aparecerá ali o veneno da hipocrisia?
Onde a peçonha da traição? Onde alguma serpente que queira fazer
seu ninho, e que não seja logo expelida da cova do coração, e
desenterrada, e morta? Onde está este santo ternário, penitência
chorosa e humilde, não há ódio, nem aparência de contradição,
porque o Senhor se recordou de nós em nossa humildade e nos livrou
de nossos inimigos.
O monge humilde não quererá inquirir curiosamente dos segredos
que lhe são escondidos; mas, o soberbo até dos juízos de Deus quer
disputar. Uma vez, os demônios apareceram invisivelmente a um
muito discreto e religiosíssimo padre, dizendo-lhe que era bem-
aventurado; e ele respondeu-lhes sapientissimamente: “Nada ganhais
com esta vossa tentação: se deixardes de louvar-me, ganharei com a
vitória desta batalha; se, todavia, por ais em louvar-me, quanto mais
me louvardes, tanto mais conhecerei quão longe estou de tais
louvores, e com isso me abaterei; ide-vos, portanto, e, se não quereis
ir-vos, dar-me-eis matéria de alcançar maior humildade”. Então, eles,
feridos com o golpe desta espada de dois gumes, desapareceram e
foram-se.
Que tua alma não seja como um canal em que a água às vezes corre
e às vezes não corre, esgotando-se com o ardor da soberba e da
vanglória: seja antes fonte perpétua de uma bem-aventurada
tranqüilidade, produzindo o rio da pobreza do espírito e menosprezo
do mundo. Recorda-te, irmão, que os vales multiplicam o trigo; e vale
é alma humilde, que permanece sem mudar-se e sem arrogância entre
os montes da soberba. Não diz a Escritura: “jejuei, velei, dormi no
chão”; mas, humilhei-me e livrou-me o Senhor.
A penitência nos ressuscita; o pranto chama à porta do céu; mas, a
santa humildade o abre. Eu adoro a Trindade em Unidade e a Unidade
em Trindade; eu presto reverência a essas três virtudes imitadoras
deste venerável mistério, porque são uma na graça e diferentes entre
si. O sol ilumina tudo o que é bem ordenado. Se faltar o sol, todas as
coisas se encherão de trevas; se faltar a humildade, todas serão
hediondas e vãs. Há um lugar no mundo que viu uma só vez o sol, o
fundo do Mar Vermelho; muitas vezes, porém, um só pensamento
gerou a virtude da humildade. Um só dia houve em que todo o mundo
se alegrou, o dia da Ressurreição de Jesus Cristo; e esta é uma virtude
que os demônios não podem imitar.
Um caso é ensoberbecer-se, outro não ensoberbecer-se, e outro
humilhar-se: o primeiro julga de tudo e de todos; o segundo não julga
a ninguém; o terceiro julga-se e condena-se a si mesmo. Uma coisa é
ser humilde, outra trabalhar por ser humilde, e outra louvar os
humildes; a primeira é dos perfeitos, a segunda é dos obedientes, a
terceira, porém, é comum aos verdadeiros éis.
Aquele que é humilde de coração, não recebe dano com as palavras,
nem com os louvores de ninguém; pois, a porta não descobre o
tesouro que não está em casa. O cavalo, que está só, parece que corre
muito; mas, quando corre em companhia de outros, que lhe levam
vantagem, então se vê claro que não corre tão veloz quanto parecia. O
mesmo acontece ao religioso quando está só, ou quando está em
companhia de outros que lhe levam vantagem; porque comum coisa é
pensar de si muito aquele que com ninguém se compara.
Diz esta santa virtude: “Quem está namorado de mim e casado
comigo, não repreenderá, não julgará, não desejará mandar, não
enganará ninguém com palavras sofísticas e equívocas; pois, após este
casamento, não se lhe põe lei, visto que não se chama jugo e carga de
lei aquilo que se faz de pura vontade”. Uma vez, começaram os
malvados demônios a derramar louvores no coração de um fortíssimo
cavaleiro de Jesus Cristo, que corria a esta virtude; mas, este cavaleiro,
movido por inspiração de Deus, achou um curtíssimo atalho para
vencer a malícia destes espíritos perversos; e, para isto, escreveu na
parede de sua cela os nomes de algumas altíssimas virtudes, tais como
os da perfeita caridade, da angélica humildade, da limpíssima oração,
da incorruptível castidade, e assim das outras. Quando aqueles maus
pensamentos começavam a surgir-lhe, respondia ele aos demônios:
“Vamos à prova disto”; e, lendo todos os títulos, dizia a si mesmo:
“Depois que tiveres alcançado todas estas virtudes, verás ainda quão
longe estás de Deus, porque, feito tudo isto, nada mais serás do que
um servo inútil, que fez o que era obrigado a fazer; e se, então, não
serias mais do que isso, que serás agora?”.
II

Qual seja a substância e a natureza deste sol tão claro, isto é, da


humildade, não tenho su ciência para dizê-lo; mas, pelos seus efeitos e
propriedades, poderemos de algum modo conhecer-lhe a substância.
Humildade é uma sombra e proteção de Deus, a qual faz que não
tenhamos olhos para ver nossas boas obras. Humildade é um abismo
de vileza, o qual torna o homem inexpugnável a todos os ladrões.
Humildade é torre de fortaleza contra a qual não será poderoso o
pensamento da maldade, torre diante da qual caem todos os seus
contrários, e que fará voltarem as costas todos os seus inimigos. Além
destas propriedades, que são argumentos e indícios de riquezas
espirituais, há uma que não se pode ver e que está escondida no
íntimo do coração, qual seja um profundíssimo desprezo de si mesmo.
E conhecerás, tanto quanto seja possível conhecer, se tens esta santa
substância, na intensidade de uma inefável luz, e em um amor incrível
da oração, que te acompanhará; pois, aos humildes é dada muito
copiosa graça, pela qual são grandemente incitados a fazer oração e
nesta receber maravilhosa luz. E antes destas virtudes é dado ao
homem um coração inocente, e infenso a acusar e a indignar-se contra
os defeitos dos outros. Desta grande substância procede um grande
ódio de todo o gênero de vanglória; e aquele que profundamente se
conhece e se despreza, já semeou na terra a semente desta virtude, pois
que só assim oresce e nasce a humildade. Aquele que conhece a si
mesmo já tem alcançado um íntimo sinal do temor de Deus, pelo qual,
caminhando diligentemente, chegará à porta da caridade.
A humildade é porta do céu; por ela, disse o Senhor, entra-se e por
ela sai-se da vida sem temor, pois que achar-se-á pasto e verdura no
paraíso. Todos os que quiserem passar por outra porta, só com gura
e aparência de humildade, ladrões são de sua própria vida. Nunca
deixemos de examinar-nos e inquirir nossas faltas, se desejamos
realmente conhecer-nos. E se de todo o coração tivermos sempre o
próximo por melhor que nós, justa é para conosco a divina
misericórdia.
Impossível é de neve sair chama; porém, mais impossível é alcançar
humildade aquele que busca glória dos homens. Muitos são os que
chamamos pecadores, e por ventura assim o pensamos; mas, com tudo
isto, o tempo da injúria e da ignomínia declara qual seja nosso
coração. Aquele que se dá pressa por chegar a este quietíssimo estado,
nunca desista de examinar atentamente seus costumes, suas palavras,
suas intenções, suas opiniões, suas perguntas, suas indústrias, suas
disposições, seus intuitos, suas regras, seu instituto de vida, seus
desejos, e suas orações, ordenando todas estas coisas para alcançar
aquele m: até que, com a ajuda de Deus e destes documentos de
humildade, venha a livrar a barquinha de sua alma do bravíssimo e
tempestuosíssimo pélago da soberba; porque, se car livre desta,
facilmente, como aquele Publicano, satisfará por todos os seus
pecados.
Alguns tem havido que, depois de voltados para Deus e perdoados
de seus pecados, zeram deles perpétua matéria de humildade, dando
com eles bofetadas em seu ânimo tendente à soberba. Outros há que,
considerando a paixão de Jesus Cristo, conhecendo por ela quanto lhe
devem, se humilharam de coração. Outros também se humilham e se
têm por vilíssimos com a consideração dos defeitos em que caem a
cada passo. Outros zeram muito familiar a si mesmos esta mãe,
pondo os olhos nas tentações, e enfermidades, e quedas, que cada dia
lhes sucedem. Tem havido também outros (e não saberei dizer se os há
também agora), que tomaram por motivo para humilhar-se os mesmos
dons e benefícios de Deus, ainda que tivessem tirado deles muito
proveito, tendo-se por indignos destas riquezas e crendo que com isto
crescia mais a obrigação de suas dívidas. Esta é, pois, a verdadeira
humildade, esta a bem-aventurança, este o perfeito e consumado
prêmio dos trabalhos que se passam nesta vida.
Quando souberes que alguém, em poucos anos, alcançou aquela
altíssima tranqüilidade e paz do coração, senhora de todas as paixões,
pensa que outro não foi o caminho que seguiu senão o desta bem-
aventurada virtude. Sagrado carro é de duas rodas, a caridade e a
humildade: aquela exalta e esta conserva aos que estão assim
exaltados, para que não caiam.
Uma coisa é a contrição, outra o conhecimento, e outra a
humildade. A contrição nasce da queda, porque aquele que cai
pecando, alquebra seu coração arrependendo-se; e orando com
vergonha, porém com con ança diante de Deus, sustenta-se com este
báculo da esperança, e com ele repele o cão da desesperação.
Conhecimento é uma verdadeira e segura compreensão de sua própria
medida e pequenez, e perpétua memória ainda dos mais leves pecados.
Humildade é doutrina espiritual de Jesus Cristo, escondida
espiritualmente no íntimo de nossa alma por aqueles que são
merecedores desta virtude.
Aquele que diz ter já sentido a fragrância e suavidade desta virtude,
e com tudo isto se altera e move seu coração quando é louvado, ou
entende a força das palavras que lhe dirigem e é tocado do fumo dos
louvores, não se engane; falta-lhe qualquer coisa para chegar ao cume
desta virtude. Ouvi a um que, com todo o afeto de seu ânimo, dizia:
“Não a nós, Senhor, não a nós, mas a teu nome se dá glória”. Este
sabia que não é coisa fácil guardar a natureza inteira e livre desta
vaidade.
Se o cúmulo e o modo da maior soberba é ngir o homem virtudes
que não tem, a m de alcançar honra, parece que argumento de
altíssima humildade é representar em casos algumas faltas que o
homem não tenha, para ser tido em menor conta. Disto temos
exemplo naquele bem-aventurado padre Simeão, que, sabendo que o
governador da província vinha visitá-lo como a varão famoso e santo,
tomou nas mãos um pedaço de pão e outro de queijo, assentando-se à
porta de sua cela, e começou a comer como tonto, de sorte que, à vista
disso, o governador o desprezou. Homens assim não fazem caso do
que dizem os homens, porque, mediante a oração, alcançaram de
Deus virtude tal, que espiritualmente edi cam e satisfazem a todos. É
isto uma perfeita peregrinação, que consiste no menosprezo das coisas
do mundo, a tal ponto que corremos alegremente em busca de
ignomínias, para alcançar vitória contra a vaidade; entretanto, não
vos deveis perturbar pela grandeza dessa abnegação, porque só de
grandes varões é consentir em ser desestimados e escarnecidos dos
seus, e ninguém pode, de um salto, subir todos os degraus desta
escada espiritual. Verdade é que alguns feitos notáveis houve, entre os
santos, obrados por especial instinto do Espírito Santo, os quais são
mais de maravilhar do que de imitar, e para os quais nem todos têm
licença, se não tiverem o mesmo espírito que neles determinou tais
feitos. E isto conheceremos todos nós que somos discípulos de Deus,
não porque os demônios nos obedeçam, mas porque nossos nomes
estão inscritos no céu da humildade.
Quando as ramagens do cedro estão estéreis e sem fruto,
naturalmente sobem direitas; mas, quando se inclinam, sóem carregar-
se de frutos. Bem sabe a signi cação disto aquele que prestar atenção;
pois, o mesmo acontece com as nossas almas, que, quanto mais
estéreis se acham, tanto mais se enchem de vaidade e se elevam, e
quanto mais se humilham e abaixam, tanto mais sóem fruti car.
III

Tem esta virtude seus degraus para subir até Deus; e, conforme tais
degraus, dá frutos diversos, um como de trinta, outro como de
sessenta, outro como de cem. A este último degrau chegaram aqueles
que alcançaram a bem-aventurada tranqüilidade, senhora de todas as
paixões. No segundo estão os fortes cavaleiros de Jesus Cristo, que
varonilmente trabalham e pelejam pela virtude; mas, ao primeiro
todos podem chegar. Aquele que verdadeiramente conhece a si mesmo,
nunca será enganado, para que se meta a empreender maiores coisas
do que pode; e xará o pé, com segurança, neste bem-aventurado
ternário da humildade. As aves pequenas temem o gavião; e os
amantes da humildade, a voz da desobediência e da contradição.
Muitos se salvaram sem graça de profecia, e de ciência, e de
revelações, e de milagres, e de prodígios; mas, sem humildade,
ninguém jamais entrou no tálamo do céu, e esta virtude é guarda el
daqueles dons, e aqueles dons algumas vezes foram ocasião de matar
esta virtude nos que estavam bem fundados nela. Também foi
maravilhosa dispensação de Deus, para os que não se queriam
humilhar, que ninguém lhes conhecesse mais as chagas do que o olho
do vizinho; daí se segue que ninguém deve agradecer esta virtude de
conhecer-se a si mesmo, a si, mas a Deus, e ao próximo. Este nos tira
as cataratas dos olhos da alma, isto é, a presunção e a vaidade.
Aquele que é de coração humilde, sempre tem por suspeitosa e
enganadora sua própria vontade, e por tal a aborrece; e, em suas
orações, auxiliado por uma fé rmíssima, sói aprender de Deus,
obedecê-lo prontamente e à voz de seus superiores, sem pôr olhos nos
defeitos deles, con ando em Deus, que, quando foi mister, ensinou até
por intermédio de uma jumenta aquilo que era necessário e convinha.
De anjos é nunca desvairar em pecado; porque assim ouvi a um
anjo da terra, que dizia: “Não me acusa minha consciência, mas nem
por isso me tenho por justo, porque o Senhor é quem me há de
julgar”. Convém, pois, que sempre nos repreendamos e acusemos,
para que, com esta vileza voluntária, lavemos as culpas não
voluntárias; porque se de outro modo zermos, à hora da morte será
rigorosamente julgado quem aqui não se julgou.
Aquele que pede a Deus menos do que merece, alcançará mais do
que merece, como aconteceu ao Publicano, que, pedindo perdão,
alcançou justiça, e ao Bom Ladrão, que, pedindo memória de si no
reino dos céus, alcançou o mesmo reino. Não pode ser visto o fogo em
sua mesma região; e assim não se há de ver na perfeita e sincera
humildade nenhuma coisa material, isto é, nenhuma afeição terrena e
sensual.
A gura e a disposição exterior do corpo representam a virtude e a
disposição da alma; em todo o caso, convém que as obras e guras
exteriores de humildade acrescentem e exercitem a virtude interior da
humildade.
Acho que Manassés foi um dos homens que mais pecaram neste
mundo, porque profanou o templo de Deus com ídolos e encheu
Jerusalém de sangue de inocentes; se todo o mundo jejuasse, não
satisfaria dignamente a penitência por tais culpas. Contudo, pode a
humildade curar males tão incuráveis. Davi bem o compreendeu,
quando disse: Porque, Senhor, se quisesses sacrifício, oferecer-te-ia;
mas não te alegrarás com sacrifícios; sacrifício maior é o espírito
atribulado; o coração contrito e humilhado, Senhor, não desprezarás.
Esta bem-aventurada humildade foi tal que, tendo Davi praticado
homicídio e adultério, mereceu perdão.
Sentença é daqueles Santos Padres, dignos de eterna memória, que
os trabalhos e exercícios corporais de virtude são caminho para a
humildade. Eu acrescento a isto a obediência e a retidão de coração,
virtudes estas que contrariam a soberba. Se a soberba, de anjos, fez
demônios, também a humildade, de demônios, pode fazer anjos.
Portanto, os que estão caídos não desmaiem, se trabalham por
levantar-se. Demo-nos pressa e trabalhemos com todas as forças para
subir ao cume desta virtude, ou ao menos, para subir sobre seus
ombros; e se a nossa preguiça nos impedir de subir, ao menos nos
agarremos a seus braços e não nos deixemos cair deles, pois quem
deles cair não alcançará prêmio eterno. Os nervos e caminhos para
alcançar esta virtude não são fazer milagres; mas, são o
desprendimento de todas as coisas e a peregrinação da alma, que é o
menosprezo cordial de todas elas, e o encobrir cautamente nossa
sabedoria, e o falar com simplicidade e sem artifício, e dar esmola, e a
dissimulação da nobreza, e o desterro da vã con ança, e o silêncio e o
freio da língua, e, por cúmulo, o estado de pobreza, e o viver
baixamente como um pobre mendigo; porque, então, se declara nossa
loso a e nossa sabedoria, e nosso amor para com Deus, pois que,
podendo ser grandes, fugimos constantissimamente à grandeza.
Se algumas vezes te armares contra algum vício, aproveita-te para
isso da companhia e socorro da humildade, e com ela vencerás. Com
ela andarás sobre as serpentes e basiliscos, pisarás o dragão, que é o
pecado, e a desesperação, e o Demônio, e este corpo venenoso. A
humildade é um celestial instrumento, poderoso para levantar a alma
do abismo do pecado até o céu. Quem é o pai desta formosa virtude?
Não te direi, responde ela, sem que possuas a Deus.
CAPÍTULO XXVI

Da discrição
I

A virtude da discrição tem também seus graus como as outras


virtudes. Nos principiantes, discrição é verdadeiro conhecimento dos
seus defeitos e do seu aproveitamento; nos medianos, é uma notícia
intelectual, pela qual sabem a diferença entre o bem e o mal, e entre o
bem natural e o bem espiritual; mas, nos perfeitos, é uma ciência
alcançada por luz e ensinamento de Deus, ciência tal que de ne e
explica todas as dúvidas. Em suma, discrição é um verdadeiro
conhecimento da vontade de Deus acerca do que devemos fazer em
todo o tempo, lugar e negócio, conhecimento que sóem ter os limpos
de coração, de corpo e de boca, porque esta limpeza é necessária para
participar dos raios da divina luz. Discrição é uma consciência limpa e
um conhecimento apuradíssimo para as coisas de Deus.
Aquele que com religiosa piedade derrubou os três primeiros e
principais vícios, que são a soberba, a avareza, e a luxúria, vencidos
estes, derrubam os outros, que destes três primeiros nascem; mas,
quem não venceu a estes três, não vencerá uns nem outros. Aquele que
tiver ouvido ou visto algum religioso que tenha aproveitado e subido
sobre toda natureza na vida monástica, e não entender como seja isto
possível, não faça da sua ignorância argumento de incredulidade,
porque onde mora Deus, que é sobre toda natureza, não é muito
fazerem-se coisas sobre natureza.
De três princípios gerais procedem todas as batalhas que se
levantam contra nós: ou de nossa negligência, ou de nossa soberba, ou
da inveja dos demônios. Destes três, o primeiro é miserável, o segundo
miserabilíssimo, o terceiro, porém, é bem-aventurado. Em todas as
coisas estejamos atentos ao testemunho de nossa consciência, por ela
observemos a parte por onde sopra o vento do Espírito Santo, e
distendamos as velas, seguindo a maneira de vida e exercícios a que
Deus nos chama, quando são conformes à luz de sua doutrina.
Três despenhadeiros nos preparam os demônios em tudo o que
temos de fazer segundo Deus: primeiramente, trabalham por impedir-
nos a boa obra; se o não conseguem, procuram levar-nos a fazê-la
indevidamente, faltando alguma necessária circunstância,
especialmente a pureza da intenção; e, se nisto ainda forem vencidos,
então secretamente se chegam à nossa alma, louvando-nos e dizendo-
nos que somos bem-aventurados,
porque fazemos coisas segundo Deus. Contra a primeira astúcia é
grande auxílio a consideração e cuidado solícito de nossa morte;
contra a segunda, a sujeição, a obediência, o menosprezo de si mesmo;
mas, contra a terceira, vale o acusar-se o homem sempre e viver
descontente de si mesmo. Porém, isto, até que entre o fogo de Deus no
santuário de nossa alma, de sorte a aniquilar-se em nós a força dos
maus costumes, será trabalhoso para nós. Deus Nosso Senhor é um
fogo vivo, que consome e desfaz todos os movimentos e ardores de
nossa concupiscência, nossas trevas, nossa presunção, nossa cegueira
interior e exterior, visível e invisível, em suma, todos os nossos
pecados. Mas, os demônios, quando se apoderam de nossas almas,
escurecendo a luz de nosso entendimento, nada deixam, a nós
miseráveis, nada deixam que seja agradável a Deus, nem temperança,
nem discrição, nem conhecimento, nem reverência, e ao contrário só
nos deixam insensibilidade, indiscrição, privação da vista interior, e
desterro da contrição. Conhecem claramente tudo isto aqueles que
zeram penitência depois de haverem caído na lascívia, aqueles que
desterraram de si sua louca con ança, e aqueles que mudaram em
vergonha sua desvergonha, os quais, depois de tão grande cegueira,
abrem os olhos, voltam a si, e envergonham-se de si mesmos.
Se no dia de nossa alma não se nos faz tarde, pondo-se-nos o sol
deixando-nos nas trevas, enquanto durar esta luz, os ladrões não
furtarão, nem matarão, nem porão a perder nossas almas. Furto é
perda da substância e da fazenda. Furto é obrar o que não é bom,
crendo que o é; pois, então, ca a alma defraudada e como que
roubada do prêmio do verdadeiro bem. Furto é cativeiro da alma não
conhecido, que é quando a alma, sem sentir, ca sujeita ao Demônio.
Morte da alma é cometer obras malvadas, com as quais morre o
espírito racional; pois, é privado de sua verdadeira luz e vida, que é
Deus. Perdição é a desesperação que se segue depois de acabada a
maldade.
Ninguém diga que há impossibilidade nos preceitos do Evangelho,
porque almas houve que zeram ainda mais do que é mandado no
Evangelho. A prova disto é aquele santo varão, que amou mais ao
próximo do que a si mesmo, isto é, mais do que a sua própria vida,
expondo-se por ele em caso que não era obrigado a expô-la. Estejam
con ados e esforçados os humildes (ainda que sejam tentados de
diversos vícios e perturbações, e ainda que caiam em todas estas
covas, e estejam enredados em muitos laços, e padeçam muitas
enfermidades), porque no m o Senhor os curará; e, depois que
estiverem sãos, virão a ser médicos, luzeiros, e governadores de todos,
guardando e contendo os que estiverem para cair, mediante a
experiência daquilo que padeceram. Mas, se alguns há, que todavia
estão sujeitos às tentações dos vícios passados, e estes com breves e
simples palavras podem admoestar os outros (pela experiência que
têm como homens operados, que sóem ser bons cirurgiões),
admoestem-nos, porque poderá acontecer que alguma vez, tendo
vergonha dessas mesmas palavras, se esforçarão por bem obrar; mas,
nem por isso, tomem cargo da governação dos outros.
A estes tais poderá acontecer o que aconteceu a uns que estavam
caídos em um atoleiro, os quais, achados enlameados, avisavam aos
caminhantes do modo por que haviam ali caído, para que não caíssem
eles da mesma maneira: isto espiritualmente tem acontecido algumas
vezes, e o Senhor Todo-Poderoso tirou do lamaçal aos que assim
procuraram a salvação dos outros.
Ó monges humildes, observai como é grande e bravo este pélago
por onde navegais, pélago cheio de espíritos maus, de rochedos, de
redemoinhos, de corsários, de bestas marinhas, de ventos
tempestuosos, e de bravas ondas. Pelos rochedos, entendo
espiritualmente a ira furiosa e repentina, na qual muitas vezes se
despedaça nossa alma como o navio nas pedras do mar. Pelos
redemoinhos, entendo acontecimentos inopinados, que cercam nossa
alma, e a põem em perigo de desesperar, e sumir-se nos abismos. Pelas
bestas marinhas, entendo estes selvagens e feros corpos nossos.
Corsários são os crudelíssimos espíritos da vanglória, que nos roubam
as mercadorias e trabalhos das virtudes, quando nô-las fazem praticar
por vanglória. Vento tempestuoso é a soberba, que nos levanta até as
alturas e de lá nos derruba nos abismos; e as ondas são este ventre
inchado e cheio de manjares, que com seu próprio ímpeto nos lança
aos vícios.
II

Sabem todos os que têm aprendido letras qual seja a doutrina dos que
começam, qual a dos medianos e qual a dos perfeitos. Convém, pois,
ter grande atenção, e vigiar que não estejamos toda a vida em
exercícios de principiantes; porque grande confusão é ver um velho
andar na escola com os meninos. Para isso será coisa muito proveitosa
e saudável saber este espiritual abecedário de vinte e quatro letras,
próprio dos principiantes, conquanto não deixe de ser comum a todos,
e que é o seguinte: obediência, jejum, cilício, cinza, lágrimas,
con ssão, silêncio, humildade, vigílias, fortaleza, frio, trabalho,
miséria, menosprezo de si mesmo, contrição, olvido das injúrias
recebidas, fraternidade, mansidão, fé simples e alheia de toda a
curiosidade, desterro dos cuidados do século, amável e santo ódio de
nossos pais, repúdio de todo o afeto desordenado, simplicidade junta
à inocência, e vileza voluntária. Mas, as virtudes dos que aproveitam
são estas: esperança fácil, quietude, discrição, memória contínua da
conta do Juízo Final, misericórdia, hospitalidade, correção discreta e
modesta, oração livre de toda a perturbação, desterro da avareza. E as
virtudes e o m daqueles espíritos e corpos que religiosamente hão
chegado ao cúmulo da perfeição nesta carne mortal são estes: coração
xo sempre ou quase sempre em Deus, caridade perfeita, fonte de
onde sempre manem arroios de humildade, peregrinação da alma ou
olvido e desamparo de todas as coisas transitórias, participação
copiosa da luz divina, oração pura e livre de todo o derramamento,
desejo da morte, aborrecimento da vida enquanto é matéria de
perigos, fugida do corpo para a soledade, abismo de ciência, casa de
mistérios, guarda de segredos divinos, intercessor da salvação do
mundo, ser poderoso para fazer força a Deus, ser companheiro dos
anjos em seu serviço, ser morada espiritual e templo vivo de Cristo,
ser procurador da salvação dos homens, Deus dos demônios, senhor
dos vícios, senhoreador do corpo, reformador da natureza, peregrino
entre os pecados, aposento da bem-aventurada tranqüilidade, imitador
do Senhor mediante a ajuda do mesmo Senhor.
Necessidade temos de grande solicitude e vigilância quando estamos
enfermos; pois, quando os demônios nos vêem assim doentes, e que
não podemos por isso usar de exercícios corporais contra eles, atenta
a nossa fraqueza, então nos combatem mais fortemente: aos homens
do mundo com tentações de ira e algumas vezes de blasfêmia; aos
apartados do mundo, se têm abundância de coisas necessárias, com
tentações de gula e luxúria; e aos que estão em lugares onde carecem
de toda a humana consolação, como convém a cavaleiros de Cristo,
importunam com tentações de acídia e de perpétua tristeza.
Notei uma vez que este lobo da sensualidade, por uma parte,
acrescentava dores ao enfermo, por outra, no meio das mesmas dores,
despertava nele desonestos movimentos, e molestava-o com a
evacuação de feios humores; e era coisa muito para espantar ver tão
viva e tão in amada a tentação da carne entre tão cruéis estímulos de
dores. Outra vez, chegando-me a vez de visitar os enfermos, vi alguns
deles com grande consolação e compunção, mediante as quais, com o
favor de Deus, não sentiam as dores que padeciam; e tão contentes se
achavam com sua enfermidade, que desejavam permanecer nela,
vendo que assim, como por uma pena saudável, se livravam de muitos
vícios e perigos. Glória, pois, a Deus, que com um lodo havia lavado e
relevado outro.
Nossa alma, que é substância espiritual, está revestida de um
sentido e conhecimento intelectual, que é aquela luz de que Deus nos
participou para conhecer o bem e o mal. Esta luz, que, conquanto não
seja nossa, está em nós por mão de Deus, nunca cessemos de esclarecê-
la e acrescentá-la por todos os lados; porque, estando ela clara e
resplandecente, todos os sentidos exteriores também o estarão,
obedecendo-a e conformando-se com ela, e isto é o que conhecia um
Sábio, quando dizia: Acharás dentro de ti um sentido e uma luz
divina.
Uma coisa é a Providência de Deus; outra, seu auxílio; outra, sua
guarda; outra, sua misericórdia; outra, sua consolação. A primeira
pertence a todas as criaturas; a segunda, aos éis; a terceira, aos éis
que também têm esperança e caridade; a quarta, aos que servem em
sua casa como seus domésticos, que são os religiosos; e a última, aos
que o amam tão extremosamente que merecem nome de familiares
amigos seus, e que assim são por ele maravilhosamente consolados.
III

Muitas vezes acontece que aquilo que para um é medicina, para


outro seja veneno; e o que mais é, aquilo que para um, aplicado em
seu tempo, é medicina, aplicado em outro tempo, lhe poderá ser
corrupção. Vi um médico ignorante e mal ponderado, que se pôs a
desonrar e injuriar um enfermo alquebrado e perturbado; e esse
médico nenhum outro benefício fez ao enfermo senão o de fazê-lo
desesperar. Vi também outro médico engenhoso e sábio, que curou a
inchação e soberba de um coração com o cautério da ignomínia, e
com isto evacuou todo o mau humor que nele havia. Vi também um
enfermo que se pôs a beber a purga da obediência, para curar com ela
as imundícies de sua alma, e vi-o mover-se e andar, e não dormir nos
exercícios das virtudes. E outro vi que, tendo os olhos de sua alma
enfermos, perseverando no silêncio e quietude, foi remediado. Quem
tem ouvidos para ouvir, ouça.
Alguns há que naturalmente são inclinados à continência, ao
repouso da soledade, à castidade, à mansidão, à compunção, e a não
presumir de si mesmos; e não sei qual seja a razão disto, nem me
atrevo a esquadrinhar com curiosidade e soberba as obras de Deus.
Outros há que, pelo contrário, têm um natural muito repugnante a
todas estas virtudes, os quais, não obstante, insistem com grandes
forças em contrariar a si mesmos; e, ainda que estes algumas vezes
resvalem e caiam, contudo isso os abraço eu, e os tenho por melhores
que os outros. Não tenhas, homem, altos pensamentos, nem te
engrandeças nas riquezas que alcançaste sem trabalho; porque aquele
Senhor muni cente, conhecedor de teus males, de tua perdição, e de
tua fraqueza, determinou prevenir-te e salvar-te com sua graça, por
sua bondade e misericórdia. Quem, buscando com grande diligência
um tesouro escondido, consegue achá-lo, quanto maior foi o trabalho
que empregou, tanto maior é o cuidado que tem em guardá-lo; e
aqueles que alcançam riquezas sem trabalho, facilmente as gastam e
desperdiçam. Di cultosa coisa é vencer as paixões a que de muito
tempo estamos acostumados; mas, aqueles que cada dia as
acrescentam, obedecendo a seus apetites, estes nada ganharão
deixando o mundo, visto que não deixaram a si mesmos. A Deus,
porém, nada é impossível.
Foi-me proposta uma questão di cílima, superior à capacidade do
meu engenho, e que não vi até agora tratada em livro algum. A
questão era esta: quais sejam os principais lhos dos oito vícios
capitais, e qual dos três principais (soberba, avareza, luxúria) é pai e
princípio dos outros cinco. Eu, confessando francamente minha
ignorância, ouvi daqueles bem-aventurados padres do mosteiro esta
solução: a concupiscência da gula é mãe da concupiscência carnal; a
vanglória, da acídia; e a tristeza desordenada e a ira são origem dos
outros três vícios, assim como a vanglória é princípio da soberba,
como já cou demonstrado. Eu, depois disto, quis saber daqueles
varões dignos de eterna memória que vícios são os que nascem destes
oito principais, e qual propriamente nasce de qual. Então, eles, com
rosto brando e alegre, sem qualquer reponta de soberba, me disseram:
“Nenhuma ordem nem razão de prudência há nas coisas desvairadas e
loucas, senão antes confusão e perversão de toda a ordem”. E isto
provavam com verdadeiros exemplos, dos quais vamos referir alguns,
para que por eles possam ser perfeitamente entendidos outros muitos.
A risada sem propósito umas vezes nasce da lascívia, outras da
vanglória (quando alguém dentro de si mesmo torpemente se gloria), e
outras vezes nasce de deleites e regalos. O muito sono umas vezes
procede destes mesmos deleites, outras vezes do jejum (quando os que
jejuam se ensoberbecem por isso), e outras vezes procede da preguiça,
e outras vezes, da mesma natureza. O muito falar umas vezes nasce do
muito comer e outras da vanglória. A acídia ora procede de deleites e
regalos, ora do menosprezo do temor de Deus. A blasfêmia
propriamente é lha da soberba, e algumas vezes também virá de
julgar o próximo na mesma culpa que temos, ou também da inveja
dos demônios. A dureza de coração traz origem às vezes da fartura, e
muitas vezes da insensibilidade e da afeição viciosa e carnal; e esta
afeição procede da concupiscência carnal, e da vanglória, e da
avareza, e de outras muitas coisas. A malícia se deriva da inchação e
da soberba, e também da ira. A hipocrisia principalmente procede de
estar o homem muito contente de si mesmo, e de querer reger-se por
sua própria cabeça e não pela alheia. As virtudes contrárias a estes
vícios de contrárias causas se geram; e, para não ser mais prolixo,
mesmo porque me faltaria antes tempo do que matéria, a virtude que
degola todos esses males é a humildade, e quem possuí-la será
vencedor em toda a linha.
A mãe de todos os males é o deleite acompanhado com malícia, e
quem a estes dois males estiver preso, não verá a Deus; nem nos
bastará a vitória do primeiro, se não vencermos o segundo.
Aprendamos, irmãos, a temer a Deus do temor que os homens têm aos
príncipes e às bestas feras; e aprendamos também a amá-lo do amor
que os homens do mundo têm à formosura dos corpos, porque não há
inconveniente em trazer exemplos dos viciosos e dos vícios para as
virtudes.
Assim como acontece algumas vezes que, colhendo água da fonte, a
voltas d’água, apanhamos alguma rã, assim também acontece que,
quando queremos exercitar as virtudes, se intrometam com elas
secretamente alguns vícios, que estão anexos a elas e têm com elas
semelhança, o que é muito para temer. Esclareçamos isto com
exemplos: com a hospitalidade se sói juntar a gula; com a caridade, a
demasiada familiaridade, a loquacidade, o julgar o próximo, e o amor
carnal; com a prudência, a malícia; com a mansidão, a preguiça; com
a afabilidade, a lisonja; com a gravidade, a ociosidade; com a justiça,
o zelo desabrido e indiscreto, e a por a, e o contentamento de si
mesmo, e o reger-se por seu próprio parecer, e a dureza, e a
desobediência, porque todos estes vícios têm cor e imagem de justiça.
Com o silêncio se junta às vezes a soberba, a presunção de saber mais
que os outros, e juízo temerário, e descontentamento dos feitos de
outros, impaciência contra os que falam, amargura de coração e
indiscrição. Com a esperança anda muitas vezes anexa a preguiça, e a
negligência, e a tibieza da penitência e da contrição. Com a vida
solitária se mistura a acídia, a ociosidade, ou o exercício inútil e sem
proveito. Com a castidade, a arrogância e o desabrimento. Com a
humildade, o silêncio danoso no tempo em que é calcada a justiça.
Mesmo com a discrição, a astúcia, e a reputação da própria
su ciência; e com todas as virtudes sói muitas vezes juntar-se a
vanglória, que é como colírio de todas elas, ou melhor, como um
veneno mortal que as corrompe a todas.
Deus não fez coisa má, nem a criou. Enganaram-se, pois, os que
disseram que havia alguns vícios naturais em nossa alma; não
observaram eles que nós mesmos somos os que, com os nossos abusos,
pervertemos as propriedades e habilidades naturais que Deus nos deu.
Ponhamos exemplos: deu-nos virtude natural de gerar lhos, e nós
usamos deste benefício para a torpeza de nossos deleites; deu-nos
estímulo natural de ira, para usar dele contra a antiga serpente, e nós,
entretanto, usamos dele contra nossos próximos; deu-nos natural zelo
e amor para alcançar virtudes, e nós usamos disto para viciosos
intentos. Tem nossa alma natural desejo de glória, mas não da vã, e
sim da verdadeira e soberana; tem desejo de engrandecer-se, mas isto
contra os demônios, para não sujeitar-se a eles; tem também gozo e
alegria, mas no Senhor e na prosperidade do próximo. Recebemos
memória para guardar as injúrias, mas contra os inimigos da alma;
recebemos também apetite para a comida, mas não para a gula e
intemperança.
Não nos entristeçamos, quando, pedindo algo ao Senhor, não
formos logo ouvidos. Todos os que pedem alguma coisa ao Senhor, e
não alcançam logo o que pedem, será por alguma destas causas: ou
porque pedem fora de tempo, ou porque pedem indignamente ou com
alguma vanglória, ou porque, se conseguissem o que pedem, se
levantariam com soberba, ou porque, se alcançassem o que desejavam,
se tornariam negligentes.
IV

A doutrina e os costumes, e a boa ou má criação que tivemos na


meninice, nos acompanham sempre, mesmo na vida monástica,
ajudando-nos ou desajudando-nos. A vida monástica há de ser
perfeita em tudo, e assim há de ser exercitada principalmente no
espírito e exercícios internos, e assim também nos pensamentos,
palavras e obras, e na morti cação das paixões, e, nalmente, em
todas as coisas, para que, como diz o Apóstolo, seja o varão de Deus
perfeito e esteja aparelhado para todas as boas obras; porque, de
outro modo, não será vida monástica, e muito menos angélica, como é
razão que o seja.
A luz dos monges são os anjos, e a luz dos homens são os monges.
Trabalhemos, pois, ó monges, por ser um perfeitíssimo modelo, sem
dar a ninguém motivo de escândalo, nem de ofensa; porque as obras
dos monges são exemplos e regras de viver que se propõem a todos.
A nal de contas, se os monges, que são a luz do mundo, se fazem
trevas, os homens do mundo, que são as trevas, mais se escurecerão.
Portanto, se me quereis obedecer, ó monges obedientes, convém, em
todo o caso, que não sejamos instáveis em nossos costumes, nem
dividamos nossa miserável alma em diversos estudos e afetos; porque,
estando assim divididos, não poderemos pelejar contra dez vezes cem
mil milhares de inimigos, cujas astúcias não poderemos alcançar e
descobrir. E acastelemo-nos principalmente no sinal da Cruz e no
nome da Santíssima Trindade, contra os três principais inimigos de
nossa alma, que são amor de honra, amor de fazenda, e amor de
deleites, que são os três primeiros dos vícios capitais e dos quais
procedem todos os outros.
Se verdadeiramente andar em nossa companhia aquele que
converteu o mar em terra seca, também o nosso Israel, que é nossa
alma contempladora de Deus, passará pelo mar do século sem temor
de suas ondas furiosas, e verá os egípcios, que são os pecados,
afogados no mar das lágrimas; mas, se aquele não estiver conosco,
quem poderá sofrer o bramido das ondas, que são os furiosos ímpetos
e paixões de nossa carne? Se ressuscitar o Senhor em nós, dando-nos
espírito de vida ativa, logo serão dissipados seus inimigos; e se nos
chegarmos a ele por meio da vida contemplativa, fugirão de sua casa e
da nossa os que a ele e a nós aborrecem. Trabalhemos por aprender os
mandamentos de Deus, mais com suores, e dores, e exercícios de
virtudes, do que com palavras e leitura de livros, conquanto isto
também não careça de seu fruto.
Esta idade presente tem fortemente degenerado e declinado para a
malícia, e toda ela está cheia de soberba e ngimento. Por ventura,
ainda é imitado o exemplo dos padres antigos na aspereza dos
trabalhos corporais; mas, com isto estamos muito longe de ter as
graças que eles tiveram, e nunca, segundo penso eu, a natureza esteve
tão necessitada delas como agora. E com toda a justiça padecemos
esta falta, porque os trabalhos corporais só deleitam a Deus quando
feitos com simplicidade e humildade, e, aos que estas virtudes têm,
assinaladamente se comunica ele.
Quando virmos algum dos cavaleiros de Cristo a padecer
enfermidades corporais, não atribuamos a causa disto a seus pecados,
mas antes, recebendo-o com pura e simples caridade, como um de
nossos membros e como um soldado que cai ferido da batalha, lhe
façamos um bom tratamento e lhe prestemos todo o serviço. Umas
enfermidades nos vêm para purgação de nossos pecados, outras, para
humilhação de nosso ânimo; pois, Nosso Senhor muitas vezes, quando
vê alguns mais preguiçosos para o exercício dos trabalhos, humilha
sua carne por meio da enfermidade, assim como por um mais leviano
e mais fácil exercício; e às vezes com isto também livra-lhes a alma de
alguns vícios e maus pensamentos.
Todas as coisas que nos acontecem, visíveis ou invisíveis, de
necessidade as havemos de tomar ou virtuosamente, ou viciosamente,
ou de uma mediana maneira. Vi três religiosos, que tendo recebido um
mesmo dano, um o sofreu mal, outro não recebeu com isso demasiada
pena, e o terceiro o tomou com grande alegria. Vi também alguns
lavradores, que semearam suas sementes com diversas intenções: um
semeou para alegar riquezas, outro para pagar a seus credores, outro
para ter com que prestar serviços e fazer presentes a seu senhorio,
outro para ganhar honra de bom lavrador com a formosura da
lavoura e da messe, outro para quebrar com isto o olho a alguns seus
êmulos e inimigos, outro para que não o tivessem os homens por
preguiçoso e folgazão. Estes vários lavradores e sementes signi cam os
jejuns, e as vigílias, e as esmolas, e os ministérios, e ofícios de
caridade, e outras coisas semelhantes; e os que tais sementes semeiam
devem examinar espiritualmente suas intenções, conforme o que aqui
está explicado.
V

Não há quem não saiba que os demônios, e os vícios, e as


perturbações, que são movimentos desordenados da alma, se apartam
de nós; mas, nem todos sabem de que maneira se faça este
apartamento. Sóem apartar-se os vícios, não só dos éis, mas também
dos in éis, cando quase sempre um; este, deixa-o o Demônio para
encher o lugar de todos eles, como princípio de todos os outros, por
ser tal e tão venenoso que bastou para derrubar até do céu. Há uma
certa maneira de apartarem-se os vícios da alma, e é quando a matéria
deles se consome e gasta com o fogo do Espírito Santo, que entra na
alma, assim como a lenha se consome com o fogo material.
Algumas vezes também se vão os demônios e nos deixam, para que,
assegurados e descuidados com a paz e com a sua partida, durmamos
no caminho de Deus; e, assim, pilhando-nos despercebidos, voltam a
assaltar a alma miserável. Também sei que estas bestas feras se
costumam esconder, quando já deixam a alma habituada e
acostumada a viver mal; pois, então, a própria alma, por força do
costume, como criança de leite que mama nos dedos, se incumbe de
tomar armas contra si.
Conheci eu uma maneira de tranqüilidade na alma, a qual procedia
de uma grande pureza e simplicidade; pois, justa é a ajuda do Senhor,
que salva os retos de coração e os livra de muitos males, sem que eles
o sintam, como às criancinhas, que, estando despidas, não sentem que
estão nuas.
A malícia é vício que está na natureza, conquanto não esteja nela
naturalmente; porque não é Deus criador de vícios; antes nos criou
com virtudes naturais, das quais muitas permanecem em quase
integridade: entre essas, uma é a compaixão e esmola, a qual se acha
até entre os gentios; outra é a caridade, entendida como amor natural,
a qual se acha até entre os animais mudos, que algumas vezes
mostram e têm sentimento da morte dos outros; outra é a delidade
que guardam os homens entre si, e a con ança de uns nos outros,
como acontece entre os que navegam, emprestam, tomam remédios
medicinais, etc., esperando bom sucesso. Se caridade é natural virtude,
como acima foi dito, e consistindo na caridade o vínculo e
cumprimento da lei de Deus, não está muito longe da nossa natureza o
cumprimento da lei de Deus; pois, tem a nossa natureza em si este
princípio e disposição, conquanto isto não baste sem a divina graça.
Envergonhem-se, portanto, os que se escusam do exercício das
virtudes, alegando impossibilidade. Eu confesso que são sobre a
natureza as virtudes da castidade, humildade, oração, vigílias, jejuns,
morti cação da ira, e perpétua compunção. De algumas destas
virtudes são mestres os homens, de outras os anjos, e de outras
assinaladamente Deus, palavra e sabedoria eterna, aliás geral
ensinador de todos.
Regra é que, de dois males inevitáveis, se há de escolher o menor, e,
pelo contrário, de dois bens, o maior; daí resulta que, quando estamos
em oração, se por outro lado vêm os irmãos a nós, de sorte a ser
necessário ou deixar a oração ou deixá-los tristes, é melhor deixar a
oração que deixar a caridade, porque a oração é uma particular
virtude, ao passo que a caridade abrange todas as virtudes. Sendo eu
mancebo, chegando uma vez a um castelo, e sentando-me à mesa para
comer, vi-me logo tentado de dois vícios, a vanglória e a gula; porém,
temendo eu o lho que nasce da gula, inclinei-me mais à vanglória,
conquanto devesse eu evitar ambos, o que seria melhor do que vencer
um vício com o outro.
Nos varões espirituais se acham às vezes alguns vilíssimos vícios,
que neles caram por maravilhosa dispensação de Deus, a m de que,
acusando-se de tais vilezas, aliás sem gravidade, alcancem seguríssimas
riquezas de humildade. Di cultosa coisa é, para quem vive sem
sujeição, alcançar logo verdadeira humildade; pois, por experiência
vemos que aqueles que querem saber alguma arte, sem ajuda de
mestre, desvairam naquilo que fazem. Em duas coisas assinaladamente
puseram os padres a vida ativa, e com muita razão: na morti cação
dos apetites e deleites, e na humilde sujeição e obras de obediência.
Também há duas maneiras de pranto, uma que degola os pecados com
a dor da contrição, outra que cria em nossos corações humildade, com
o reconhecimento das próprias misérias e fraquezas. Em todas as
nossas perturbações, assim nos vícios como nas virtudes, nunca
deixemos de esquadrinhar solicitamente onde estamos, se nos
princípios, no meio, ou no m. Todas as guerras que os demônios
movem contra nós, procedem de uma das três causas, ou do apetite de
deleites, ou da soberba e levantamento do coração, ou da inveja dos
mesmos demônios. Destes tentados, os últimos são felicíssimos, os do
meio infelicíssimos, mas os primeiros andam inutilmente até o m à
cata de gostos e deleites que os satisfaçam.
VI

Há um afeto íntimo, por outra, um hábito virtuoso, que se chama


sofredor de trabalhos: quem for dotado deste dom celestial não
temerá, não furtar-se-á aos trabalhos. Com este venerável hábito
estiveram guarnecidas e armadas as almas dos santos mártires,
quando tão fortemente sofriam os tormentos e tão pouco caso faziam
deles.
Uma coisa é a guarda dos pensamentos, e outra a guarda do ânimo;
e vai tanta diferença quanto dista o Oriente do Ocidente. A primeira é
apartar os pensamentos bons dos maus, para deixar estes e acolher
aqueles; mas, a segunda é guardar a alma de todo o afeto
desordenado, de modo a nem dar lugar a maus pensamentos. Uma
coisa é orar contra os pensamentos, outra é lutar contra eles, outra
desprezá-los e não fazer caso deles: destas três maneiras, a do meio se
aproveita da primeira, que aliás nem sempre pode, tão bem como a
segunda, rechaçar os inimigos, que a terceira de todo o ponto sacode e
faz fugir.
Não é de todos alcançar aquela bem-aventurada paz e tranqüilidade
de que gozam os perfeitos, ainda que de todos seja poder salvar-se e
reconciliar-se com Deus. Não tenham que ver contigo aqueles lhos
estrangeiros (que são os hereges), os quais querem esquadrinhar
curiosamente a repartição das graças e dons de Deus, e das luzes e
revelações que por uma secreta e inefável dispensação outorga aos
homens: claramente são conhecidos esses tais, quando secretamente
insinuam que Deus faz acepção das pessoas; pois se mostram lhos da
soberba, querendo julgar a Deus, deixando de considerar que, onde
não há dívidas e apenas dádivas, não tem lugar a acepção de pessoas.
Muitas vezes o espírito de cobiça e de avareza nge humildade, para
com isso granjear o que deseja; e assim também o espírito da
vanglória nos incita a dar esmolas para alcançar honra, e o mesmo faz
o espírito da sensualidade para encontrar pretextos e ocasiões de
pecar.
Dizem alguns que os demônios pelejam entre si uns com outros; e
eu digo que todos eles estão armados e conjurados para nossa
perdição. A todas as nossas obras, tanto exteriores como interiores,
hão de preceder duas coisas, a saber, grande desejo e rme propósito,
coisas que por obra de Deus se criam em nossas almas, porque, se isto
não preceder, não se segue o mais.
Não sejas desabrido de severo juiz, quando vires alguns ensinando
grandes coisas e vivendo negligentemente; porque muitas vezes com a
utilidade da doutrina é suprido o defeito das obras. Nem todos têm de
tudo: uns se assinalam mais em palavras do que em obras, outros mais
em obras do que em palavras, e muito poucos são os que têm boa e
igual disposição para umas e para outras.
Guardemo-nos de compensar a falta dos regalos e deleites corporais
com a abundância de sono; pois, seria isso obra de grande ignorância,
visto que é derramar por um lado o que se recolheu por outro. Ao
contrário, vi que alguns valorosos servos de Deus, tendo dado um
pouco mais de regalo e mantimento ao seu corpo, zeram-no depois
pagar o que havia comido, tendo-o toda a noite em pé e velando; e
com isto o ensinaram a fugir e dar de mão aos deleites corporais, para
não ver-se em outra que tal.
Sói tentar fortemente o espírito de avareza aos que nada possuem, e,
quando não os pode vencer, põe-lhes diante o socorro dos pobres; e,
com isto, algumas vezes vem a enredar nos negócios do mundo os que
estavam dele livres.
Se todas as coisas que há debaixo do céu, como diz o Eclesiastes,
tem seu tempo apropriado, não deixam também de entrar nesta conta
as coisas espirituais e sagrados exercícios; e, por isso, consideremos
diligentemente sobre cada tempo em que cada coisa se deve fazer. E,
primeiramente, entre os que pelejam, há tempo de tranqüilidade, e
também de perturbações, por não serem tão destros os que pelejam.
Há tempo de lágrimas, e tempo de secura e dureza de coração. Há
tempo de sujeição e obediência, e tempo de mandar e tomar o leme
nas mãos. Há tempo de jejum, e tempo de comunicação e refeição. Há
tempo de guerra contra este corpo nosso inimigo, e tempo de
morti car o fervor de nossas concupiscências. Há tempo de inverno e
tempestade da alma, e tempo de serenidade de espírito. Há tempo de
tristeza do coração, e tempo de gozo espiritual. Há tempo de ensinar, e
tempo de aprender. Há também, por ventura, tempo em que Deus
permite imundícies e quedas para curar nossa soberba; e há tempo em
que Deus conserva a alma em sua pureza por causa de sua humildade.
Há tempo de luta, e tempo de segura folgança; tempo de recolhimento
e quietude solitária, e tempo de necessária (posto que não dissoluta)
distração. Finalmente, há tempo de infatigável oração, e tempo de
puríssimo serviço e ministério, sem nenhum ngimento. Portanto, não
tomemos antes do seu tempo o que é próprio de cada tempo,
querendo prevenir as coisas com a nossa soberba; nem busquemos
calor em tempo de inverno, nem fruto no tempo de sementeira,
porque tempo há de semear trabalhos, e tempo há de colher graças
inefáveis. E de outro modo não alcançaremos no tempo próprio
aquilo que é próprio do tempo.
VII

Uns, por inefável providência de Deus, recebem adiantadamente o


prêmio de seus trabalhos; outros, recebem-no no meio dos trabalhos;
outros, no m dos trabalhos; e outros só o recebem à hora da morte,
dispondo-o assim a mesma inefável providência de Deus. Aqui há
justa causa para perguntar qual destas quatro classes de pessoas seja
mais humilde, porque tanto o que menos trabalhou como o que mais
trabalhou, cada um por seu lado tem razão para mais humilhar-se.
Há uma sorte de desesperação, que procede dos muitos pecados, e
da carga da consciência, e de uma intolerável tristeza que faz sumir a
alma nesse abismo da desesperação com a grandeza dessa carga. Há
outra sorte de desesperação, que nasce da soberba e presunção,
soberba pela qual nos consideramos não merecedores da calamidade e
trabalho que nos veio, como se pudéssemos julgar do que merecemos.
E quem estudar com atenção estas duas condições deste mal, verá que
os da segunda se entregam por isso a todo o gênero de vícios; mas, os
da outra acharam sua perdição no exercício da virtude, por não
tomarem a contrição no seu devido ponto, vindo assim a naufragar
mesmo dentro do porto. Todavia, há remédio seguro para qualquer
destes males: um se remedia com a esperança e a abstinência, e outro
com a humildade e com o não julgar o próximo.
Não devemos maravilhar-nos, nem turbar-nos como em coisa nova,
quando virmos alguns que, falando boas palavras, fazem más obras; e
isto para que, por ventura, não nos ensoberbeçamos julgando o
próximo, pois por causa da soberba caiu do céu aquela serpente. E
esta forma e regra hás de ter em todos os teus bons intentos, e em
todo o gênero de vida, em obediência ou fora dela, em obra exterior
ou interior, para conhecer se o que fazes é segundo Deus. Quando,
sendo principiante, pões mão em alguma boa obra, se com a execução
dela não crescer mais tua humildade, conjectura grande é de que não
foi toda feita segundo Deus. E este acrescentamento sinal
principalmente é para os principiantes, porque, para os que já estão
mais aproveitados, por ventura será o cessarem ou diminuírem-se com
isto as guerras e tentações; mas, nos perfeitos, o sinal disto é
abundância e acrescentamento da divina luz.
As coisas que de si são pequenas, por ventura não o são aos olhos
dos grandes penitentes, como acontece nos pecados veniais; mas, as
que são grandes na estima dos pequenos, nem por isso se segue que de
verdade sejam grandes. Quando o ar está carregado de nuvens, vemos
mais claramente os resplendores do sol; e, quando nossa alma está
perdoada de seus pecados e livre das nuvens de suas paixões, então
participa dos raios da divina luz. Uma coisa é pecado; outra,
ociosidade; outra, negligência; outra, vício, e outra, queda. Pecado é
infração da lei de Deus, por pensamento, por palavra, ou por obra.
Negligência é fazer as obras com frouxidão e tibieza. Vício é pecado
público e escandaloso. Queda é acrescentar ao pecado desesperação,
que é o pior dos males.
Alguns há que têm por coisa excelentíssima fazer milagres e ser
assinalados nas graças gratis datas, não considerando que há outras
graças mais excelentes, como a caridade, a humildade, e outras
virtudes tais, que, quanto mais ocultas são, tanto mais seguras se
acham e livres de perigo. O varão heróico, que já está perfeitamente
purgado, conquanto não veja perfeitamente a alma do próximo,
todavia entende a disposição que nela há, segundo aquilo que está
escrito: Assim como se re etem na água os rostos dos que se miram
nela, assim os corações dos homens estão descobertos aos prudentes.
Mas, os que vão pelo caminho da perfeição, estes por algumas
conjecturas calculam o que há nas almas dos outros, segundo aquilo
que também está escrito: A vestidura do corpo, o riso dos dentes, e o
andar do homem dão testemunho dele.
Coisa é digna de perguntar qual seja a causa por que, sendo nossa
alma criatura espiritual, não vê as substâncias espirituais que se
chegam a ela. Parece que a causa disto é esta maravilhosa liga e
conjunção que tem com o corpo, a qual só é entendida por aquele que
a fez, e da qual decorre que a alma não pode entender as coisas senão
começando pelos sentidos e aproveitando-se de imagens corporais.
Muitas vezes uma faísca de fogo queimou toda uma montanha, e
um pequeno buraco esgotou uma cuba de vinho; assim também
acontece que um pequeno vício, ou uma ocasião de pecado (como foi
em Davi a vista de Betsabé), seja causa de grandes danos. Muitas vezes
acontece que o descanso e o bom tratamento do corpo não despertem
o ardor da concupiscência, mas, ao contrário, despertem a virtude da
alma e o ódio do mesmo regalo do corpo; outras vezes acontecerá que,
com a a ição e maceração do corpo, haja ardores e movimentos
sensuais, para que por aqui vejamos como não devemos con ar em
nós mesmos, mas em Deus, que por secretas maneiras sói morti car
esta carne. Verdade é que assim um como o outro caso podem ser
astúcia do Demônio, para que por este caminho nos faça deixar o
jejum e ter demasiado cuidado de nosso corpo.
Quando percebemos que alguns nos amam segundo Deus, tenhamos
cuidado de não ser atrevidos nem demasiadamente con ados para
com eles; porque nada há que mais depressa desfaça esta caridade e a
converta em ódio do que esta maneira de atrevimento. A vista de
nossa alma é muito espiritual, muito formosa, e muito clara, como
aquela que, depois dos anjos, excede a todas as espécies e formas
criadas; e, por isso, os homens viciosos, se de todo não estão
chafurdados na lama da carne, quando são tratados pelos bons
benigna e caritativamente, chegam a afeiçoar-se à formosura das
almas destes, e às suas virtudes, e às vezes a converter-se a Deus por
este meio. Mas, se nada há tão contrário à puríssima natureza de Deus
como a matéria, também nada haverá de tão contrário ao nosso
espírito como nossa carne, e ao conhecimento intelectual como a
afeição sensual.
Quando estamos recolhidos à cama para tomar repouso, então é
que vem o espírito sujo atirar-nos setas de pensamentos torpes; e isto o
faz para que, não levantando-nos por preguiça a tomar contra ele as
armas da oração, nos adormeçamos com estes maus pensamentos e
tais tenhamos depois os sonhos. Há entre os espíritos maus um, que se
chama precursor, o qual nos acomete logo que despertamos e trabalha
por infeccionar o primeiro de nossos pensamentos. Mas, dai ao
Senhor as primícias do dia, porque todo o resto será daquele que
primeiro o tiver ocupado. Um servo de Deus me disse que, desde o
princípio da manhã, sabia qual tinha de ser a jornada de todo o dia,
dando assim a entender que, cumprindo inteiramente os exercícios
espirituais daquela hora, tudo o mais lhe sucederia bem, e ao revés,
quando não os cumpria.
A demasiada solicitude em negócios faz que os homens do mundo
sintam menos e gozem menos da Providência de Deus; mas, nos
religiosos, faz que participem menos da luz divina. Os imperfeitos e de
fraco ânimo entendam que são visitados de Deus com as calamidades
e açoites do corpo; mas, os perfeitos conjecturarão sua visitação com a
presença do Espírito Santo e com o acrescentamento das graças.
Aquele que já tem todo o gosto nas coisas do céu, se se apartam dele
em alguns negócios, logo voltam, como melhor podem, com seu
coração ao céu; mas, ao contrário, aqueles que têm seu gosto na terra,
conquanto alguma vez se levantem às coisas do céu, logo se voltam
com seu coração às coisas da terra.
Muitos são os caminhos da virtude e da perfeição, e daí decorre que
pode ser contrário a um o que é saudável a outro, porque a tentação
que a um vence, a outro coroa; e, conquanto a intenção de ambos
fosse agradável a Deus, aquele que a princípio teve boa intenção, foi
a nal vencido. Os demônios, quando nos tentam e encontram
resistência, trabalham para fazer-nos dizer ou praticar qualquer
excesso de represália que não convenha; e, quando não o podem
conseguir, estando nós já quietos e vencedores, incitam-nos a louvar a
Deus com uma soberba ação de graças.
Uma criatura há que recebeu o ser de Deus, não em si, mas em
outro, isto é, em nosso corpo; e coisa maravilhosa é ver como ela
permanece depois da morte, estando fora daquele em quem recebeu o
ser. As boas mães parem boas lhas; e Deus é criador destas mães, que
são as virtudes que ele infunde nas almas, de onde nascem as lhas
espirituais, que são as boas obras. E esta regra pode também ser
aplicada nas coisas contrárias, que são os vícios, cujo autor, porém, é
aquele de quem está escrito: Mentiroso é o pai da mentira.
VIII

Moisés, ou por outra, Deus por Moisés, manda que os tímidos e


covardes não vão à batalha; e por isto se nos ensina que ninguém se
meta a fazer coisas superiores às suas forças, a m de que não venha a
ser o último erro pior que o primeiro.
Assim como o cervo, fatigado com o calor do sol, deseja as fontes
das águas, assim os verdadeiros monges desejam entender o
beneplácito da Divina Vontade, nas coisas que hão de fazer. Esta
matéria compreende muitas coisas e muito di cultosas de declarar,
para poder saber quais sejam aquelas obras que se hão de fazer logo,
sem nenhuma dilação, para não cair na ameaça daquele que disse: Ai
de quem anda dilatando de um dia para outro, e de um tempo para
outro! E também para poder saber quais sejam aquelas que se hão de
fazer devagar, e com muito conselho, segundo aquela sentença que diz:
Com acordo e deliberação se tratam os negócios da guerra; e segundo
a outra que diz: Todas as coisas se façam honesta e ordenadamente.
Não é das coisas menos difíceis julgar brevemente e sem erro das
coisas di cultosas de averiguar; pois, vemos que aquele Profeta, em
quem falava o Espírito Santo, muitas vezes fez oração para isso,
dizendo: Ensina-me, Senhor, a fazer tua vontade, ou: Guia-me, Senhor,
com o conhecimento de tua verdade, ou: Ensina-me o caminho,
Senhor, por onde eu chegue a levantar a ti minha alma, afastando-a de
todos os cuidados e perturbações do século.
Todos os que desejam aprender qual seja a vontade de Deus,
trabalhem primeiro, com toda a diligência, por morti car a sua. E
atrás disto, fazendo oração com fé e inocente simplicidade, e
perguntando, com suma humildade e sem perplexidade de coração, o
parecer dos padres, ou dos irmãos, recebam como da boca de Deus o
que eles santamente aconselham, ainda que os que são perguntados
não sejam muito espirituais, nem muito perfeitos; porque não é Deus
injusto, para que consinta serem enganadas aquelas almas que, com fé
e inocência, humildemente se sujeitam ao juízo e conselho do
próximo. E ainda que sejam mudos, e menos sutis, e menos sábios,
aqueles a quem pedimos conselho, imaterial é e invisível aquele que
pelos tais responde. Os que, sem dúvidas nem vacilações, guardam
esta regra, estão cheios de uma grande e profunda humildade; porque,
se o profeta Eliseu profetizou e declarou seus mistérios ao som e
música de um saltério, mais excelente do que este som e música é o
espírito racional, para que Deus queira ensinar aos humildes por ele.
Contudo, há muitos que, por estarem muito contentes de si
mesmos, querem saber de si e por si mesmos o que é agradável a Deus;
e, em vez de seguirem aquele perfeito e fácil caminho, tiveram sobre
este caso muitos e diferentes pareceres e opiniões. E, na verdade, não
faltam limitações e regras com que isto se tenha de entender,
conquanto a humildade deixe grande carga àquele que é mestre de
humildades, e dê sabedoria aos peregrinos, para salvá-los de errar.
Outros houve que, desejando saber o que nisto se deve fazer,
procuraram primeiramente apartar sua vontade de todo o gênero de
afeição, sem inclinar-se mais a uma parte do que à outra, e sem ter
mais conta com o sim do que com o não; e, apresentada ao Senhor sua
alma despida de toda a própria vontade por meio de uma ardentíssima
oração, vieram depois de certo tempo a ter conhecimento do que era
mais agradável à Divina Vontade, ou por meio de alguma secreta
inspiração com que Deus os iluminou, ou com o tirar perfeitamente de
sua alma uma das duas opiniões que os tinham perplexos. Outros há
que, por outro meio, alcançaram conhecer a Divina Vontade, isto é,
pelos impedimentos e contradições que não os deixaram sair com o
que pretendiam, conforme aquilo que disse o Apóstolo: Quisemos vir
a vós uma e duas vezes, e Satanás nos impediu esse caminho,
permitindo-o assim o Senhor. Outros, pelo contrário, correndo-lhes
um próspero tempo e sobrevindo-lhes um súbito e não esperado
socorro, tomaram isto por conjectura de ser esta a vontade de Deus,
recordando-se de que é geral condição sua ajudar e obrar juntamente
com aquele que se dispõe a fazer o que deve.
Aquele que possui a Deus dentro de si mesmo e goza dos
resplendores de sua luz, sói ser ensinado por ele daquela segunda
maneira, acerca do que deve fazer, assim nos negócios acelerados,
como nos que pedem tardança, ainda que não seja em certo e limitado
tempo; mas, andar utuando e vacilando muito tempo nestas
determinações e juízos, indício grande é de alma que carece de luz e
que é tocada de alguma vanglória, porque muito longe está de Deus a
injustiça, e Deus nunca cerra a porta aos que o amam com humildade.
Devemos sempre e em tudo examinar perante Deus a nossa
intenção, assim nas coisas que se hão de fazer logo, como nas que se
hão de deixar para depois; porque todas as coisas que fazemos
propriamente por amor de Deus, e não por outros intentos, despindo
nosso coração de toda a viciosa afeição, e de toda a imundície, nos
serão contadas como se fossem perfeitas, ainda que não sejam
completamente tais. A inquirição das coisas que estão sobre nós não
sói ter seguros ns: o juízo de Deus acerca de nós é muito secreto,
porque, por uma maravilhosa dispensação, muitas vezes nos esconde
sua Divina Vontade, conhecendo que, se a soubéssemos, não o
obedeceríamos, e assim seria maior a nossa culpa.
O coração reto e dirigido a Deus está livre de toda a variedade das
coisas, isto é, de toda a instabilidade e ngimento; e assim navega
mais seguro na pequena nave da inocência. Há algumas almas
fortalecidas com o amor de Deus, e com humildade de coração, as
quais alegremente empreendem algumas obras que parecem exceder
suas forças, como sejam grandes abstinências, e vigílias, e largas
orações, etc. E há também corações soberbos, que empreendem estas
mesmas obras, não com espírito de Deus, mas com desejo de honra ou
de louvor humano; intenção dos demônios é incitar-nos a este gênero
de obras que excedem nossas forças, para que, não podendo fazer o
que queremos (entristecendo-nos e a igindo-nos por esta causa),
venhamos a deixar de fazer o que podemos. Vi algumas pessoas que
tinham os corpos e também os espíritos fracos, as quais, considerando
os seus muitos pecados, empreendiam maiores obras e trabalhos do
que pediam suas forças, e assim não podiam levá-las ao cabo, e muitas
vezes passar do princípio; a estas pessoas disse eu que não media nem
estimava Deus tanto a penitência pela quantidade dos trabalhos
quanto pela grandeza da humildade. Faz mau uso da razão aquele
que, ouvindo as virtudes dos santos, virtudes tais que excedem os
termos da natureza, desespera de si mesmo; pois, ao contrário, essas
virtudes deveriam servir-lhe de proveito, se não para incitá-lo à
imitação daquela santa fortaleza, certamente para dar-lhe
conhecimento claro de sua própria fragilidade, mediante a virtude da
beatíssima humildade.
O Senhor considera sempre o propósito e a intenção; mas, nas
coisas que se podem fazer, considera também a obra. Grande é, por
certo, aquele que não deixa de fazer o que pode; maior, porém, é
aquele que, pelo mérito de sua humildade, se esforça por fazer coisas
que podem exceder a faculdade de suas forças. Mas, algumas vezes, os
demônios não nos deixam fazer coisas fáceis e proveitosas, e incitam-
nos a fazer coisas de grande di culdade e trabalho, para que, não
podendo sair com estas e largando as outras, quemos sem andar e
sem voar.
IX

Muitas vezes a persuasão enganosa de alguns foi causa de


grandíssimos males; e outras vezes o foi a companhia familiar dos
homens perversos; e outras vezes a mesma alma perversa basta para
causar sua perda sem ajuda de ninguém. Quem escapar dos dois
primeiros perigos, por ventura se livrará do terceiro; mas, quem está
no terceiro, em todo o lugar será perverso, pois nenhum lugar há mais
seguro do que o céu, e ali foi mau Lúcifer. Apartemo-nos de todos os
que com má vontade pelejam contra nós, quer sejam in éis, quer
sejam hereges; mas, isto façamos depois da primeira e da segunda
correção, como aconselha o Apóstolo. Em todo o caso, nunca
cessemos de fazer bem aos que desejam saber a verdade, e de uns e dos
outros nos utilizemos para nosso bem, de uns para o exercício da
penitência, e dos outros para o da misericórdia.
Há, entre os maus espíritos, uns piores que os outros, os quais nos
aconselham a nunca empreender o pecado sós, para que assim nos
tornemos merecedores de maior castigo. Soube eu que um aprendeu
de outro um mau costume, e aquele que o ensinou voltou a si, fez
penitência, e apartou-se do mal; mas, não lhe valeu a penitência para
alcançar a emenda de seu mau discípulo.
Grandíssima, e verdadeiramente grandíssima, e muito di cultosa de
entender, é a malícia dos demônios, e de muito poucos conhecida, e
ainda desses poucos, segundo penso, não totalmente conhecida. Daqui
nasce que muitas vezes, vivendo delicadamente e fartos de
mantimento, velamos com atenção, como se estivéssemos em jejum; e,
pelo contrário, jejuando e vivendo em pobreza, somos miseravelmente
subjugados pelo sono; vivendo apartados em soledade, camos duros
e sem devoção, ao passo que, morando com os outros, muitas vezes
nos compungimos; estando quase mortos de fome, somos tentados em
sonhos, ao passo que, com o ventre cheio, passamos sem tentação;
outras vezes, com a fome, estamos escurecidos e sem sentimento de
compunção, ao passo que, depois de beber vinho, estamos alegres e
fáceis para ela. Explique estas coisas aquele que tiver virtude e graça
do Senhor, porque eu, como quem carece desta luz, não me julgo
su ciente para isso; todavia, digo que nem sempre estas alterações e
mudanças procedem dos demônios, mas da nossa compleição e da
massa vil e suja que nos coube em sorte. E, para discernir todos estes
acontecimentos, tão di cultosos de averiguar, façamos sempre a Deus
sinceríssima oração; e se, depois dela, perseveram estas mesmas
alterações, grande indício é este de que não procedem dos demônios,
mas de nossa mesma compleição. Também a Divina Providência
muitas vezes quer fazer-nos bem com coisas contrárias, escrevendo
direito por linhas tortas.
Grandíssima coisa é não querer esquadrinhar curiosamente o
abismo dos juízos de Deus, porque todos os curiosos navegam na nau
da soberba; contudo, algumas coisas estamos obrigados a dizer, por
causa da fraqueza de muitos. Perguntou alguém a um varão sábio,
qual a causa por que, conhecendo o Senhor as quedas de alguns, antes
que caíssem os havia primeiro enriquecido com grandes dons;
respondeu ele que isso fez o Senhor para tornar mais cautos os varões
espirituais, e mostrar com isso a liberdade de nosso alvedrio, e para
que não tivessem escusa no dia do Juízo os que assim caíram.
A lei velha, como imperfeita, disse ao homem: “Olha por ti”; mas o
Evangelho, como sapientíssimo, disse: Se teu irmão pecar contra ti, vê
e repreende-o entre ti e ele, etc. Portanto, se tua repreensão, ou por
outra, se tua admoestação é limpa e humilde, não deixes de fazer o
que manda o Senhor, especialmente nas coisas que te são possíveis;
mas, se não tens chegado a isto, ao menos cumpre diligentemente o
que manda a lei. E não te maravilhes se, por causa de tuas
repreensões, teus grandes amigos fazem inimigos; porque eles, que se
mostram tão sensíveis, não sentem que são instrumentos do Demônio
para a guerra contra os que fazem o que devem.
Se todas as coisas criadas conservam sua própria natureza, e
perseveram no estado em que foram criadas; se, como diz aquele
grande teólogo Gregório, eu sou parte divino e parte misturado com o
barro; e se alguma criatura permanece agora em outra disposição
diferente daquela em que foi criada (como aconteceu ao homem,
desde que foi alterado pelo pecado original): segue-se que há de
apetecer aquilo que lhe é natural, e que, com toda a arte e com todo o
estudo, deve cada um exaltar este barro da terra e colocá-lo junto ao
trono de Deus. E ninguém para isso se escuse com a di culdade da
subida, porque o caminho já está desbravado e a porta já aberta para
todos por Jesus Cristo, por sua Paixão, Ressurreição e Ascensão.
Grandemente me maravilhou ver como, tendo nós a Deus
Onipotente e a seus santos anjos por ajudadores para as virtudes, e
não havendo outro atiçador de vícios senão o Demônio, somos tão
ligeiros e fáceis para cair neles. Não quero, nem penso tratar desta
matéria; mas, se alguém deseja oferecer a Jesus Cristo um coração
casto, e um corpo limpo, trabalhe com toda a diligência por morti car
a ira e guardar abstinência, porque sem estas duas virtudes todo o
nosso trabalho é inútil.
X

A discrição é candeia nas trevas, guia dos transviados, e luz dos cegos.
O varão discreto é inventor de saúde, e puri cador de enfermidade.
De duas causas procede maravilharem-se os homens de coisas
pequenas: ou de sua grande ignorância, ou do desejo de conservar-se
em humildade, desejo que leva-os a engrandecer e magni car as obras
de seus próximos. Trabalhemos, com todas as nossas forças, não só
para lutar, mas também para fazer guerra aos demônios; pois, quem
luta, às vezes fere, e às vezes é ferido; mas, quem faz guerra, sempre
persegue como vencedor ao inimigo. Aquele que vence os vícios, fere
os demônios; e se deixa crer que tem pecados e encobre suas virtudes,
engana com isto aos inimigos e assim se torna mais inexpugnável. Um
dos religiosos foi uma vez injuriado por outro, e não sentindo com
isto alteração alguma em seu ânimo, começou secretamente a fazer
oração e a derramar lágrimas naquela ignomínia, escondendo assim
secretamente a sua tranqüilidade. Outro religioso, não tendo cobiça
alguma do primeiro lugar, deixou acreditar que alimentava uma tal
ambição. Mas, quem explicará com palavras a castidade daquele que,
quase sob color de pecar, entrou no lugar público das más mulheres, e
ali converteu logo uma delas? Todos estes tiveram necessidade de
muita atenção e vigilância, para que, pretendendo enganar ao
Demônio, não fossem, ao contrário, enganados por ele, não obstante
serem esses, sem dúvida, aqueles de quem disse o Apóstolo: Como
enganadores, ainda que verdadeiros.
Assim como são diversas as vistas dos olhos humanos, assim são
diferentes as iluminações e resplendores causados na alma por virtude
daquele sol intelectual, produtor de todas as luzes. Uma é a luz que
causa lágrimas corporais, outra a que causa lágrimas espirituais; uma
é a luz que entra pelos olhos do corpo, outra a que entra pelos olhos
intelectuais da alma; uma é a luz da palavra de Deus, outra a que
nasce espontaneamente na alma com uma espiritual alegria; uma é a
luz da soledade, outra a da obediência. Além destas, há outra luz
singular, que por sua própria natureza levanta a alma sobre si, e a
junta com Jesus Cristo por uma tão alta e secreta maneira, que não se
pode explicar.
E declarando cada uma destas sobreditas maneiras, digo que uma é
a luz que vem produzir no homem lágrimas corporais, quando
considerando ele a gravidade de seus pecados, se resolve todo em
lágrimas exteriores; outra é a que produz lágrimas espirituais, quando
o homem considera os muitos benefícios e promessas de Deus, e com
isto se move a uma piedosa devoção e amor. Uma é a luz que concorre
com a vista dos olhos corporais, quando, contemplando a fábrica
maravilhosa deste mundo, e a formosura e ordem das criaturas, nos
elevamos à contemplação do Criador, segundo o conselho do Profeta
Isaías: Levantai vossos olhos para ver quem criou todas estas coisas;
outra é a luz que concorre com a vista dos olhos intelectuais, quando,
considerando a elevação e pureza daquelas intelectuais substâncias, e
especialmente daquela que in nitamente excede a todas, que é Deus,
nos levantamos à contemplação da majestade e soberania do Criador.
Uma é a luz que procede de ouvir a palavra de Deus, quando pela
prédica e pelo ensino que recebemos nos elevamos à inteligência das
coisas da fé e dos mistérios divinos; e há também outra espiritual
alegria, que procede da mesma alma, quando considera as inspirações
de Deus e os movimentos espirituais que dentro de si tem sentido. Há
ainda outra alegria, que nasce da quietude e repouso da soledade, que
é o gozo espiritual dos solitários, que, orando, cantando, meditando e
amando, se alegram no Senhor; há outra que procede da obediência,
que é a alegria dos monges que vivem em comunidade, os quais
entranhadamente se deleitam nos exercícios e obras da santa
obediência. Além destas, há outra singular luz e alegria, que levanta a
alma sobre si e a junta com Jesus Cristo, mediante esta luz intelectual,
por uma maneira secreta e inefável: é quando a alma, por mão de
Deus, tocada com um fervorosíssimo amor, e iluminada tão
copiosamente que vem a car absorta na contemplação do mesmo
Deus, ca de tal modo extasiada, que toda vem a ser arrebatada e
sumida na fonte daquele claríssimo resplendor e levada às riquezas de
sua glória; e assim, inefavelmente, e com uma grandíssima
tranqüilidade, vem a car-se, e a repousar, e dormir e deleitar-se em
seu mesmo Criador. E isto é o objeto da mística Teologia, que é o
conhecimento afetivo e amoroso de Deus, mediante aquele altíssimo
dom do Espírito Santo, m de todos os outros dons, que se chama
Sabedoria, que, conhecendo e ardendo em sapientíssimo amor, como
que se transfunde em Deus.
Há virtudes e há mães de virtudes, que são as causas das outras
virtudes; e são estas mães de virtudes que o varão discreto procura
mais alcançar. Destas costuma ser Deus o mestre; mas, das outras, o
são os homens, conquanto Deus e os homens possam ser mestres de
umas e de outras. Uns recebem de Deus o começo e ordem da boa
vida; e outros, não só o princípio, como também o m. E a virtude diz
respeito a um m in nito, que é Deus, como disse aquele cantor dos
hinos celestiais: Vi o m de toda a consumação da lei, que é teu
mandamento grandioso, amplo, in nito. Se alguns bons e santos
trabalhadores, depois de terem aproveitado no exercício das virtudes
morais, passam ao das teologais e dos dons intelectuais, especialmente
no dom da sabedoria; se a caridade com isto nunca desfalece; e se o
Senhor guarda o princípio de nossa entrada com temor e a saída com
amor: sem dúvida a posse deste tesouro é um in nito m, porque
nunca deixaremos de aproveitar nele, subindo continuamente de grau
em grau, sem cessar, pelo caminho da perfeição.
XI

Jesus Cristo corporalmente fugiu de Herodes, sendo todo poderoso:


aprendam daqui os atrevidos a não meterem-se em manifestas
tentações e perigos. Ninguém ponha o pé onde possa escorregar; e não
dormirá o anjo da guarda. Isto é de muito cuidar, porque às vezes a
fortaleza sói andar, em uma mesma companhia, com a animosidade
carnal, como se sói juntar o cipreste com a sarça. Vivamos sempre
com um perpétuo e solícito cuidado de nunca dar entrada em nosso
coração a qualquer pensamento, ou sombra de pensamento, de que, só
por nós, somos alguma coisa e prestamos para alguma coisa. Faze
diligente inquirição, e busca continuamente todos os indícios e
argumentos que tens para conhecer teus vícios; e, então, verás que são
muitos. Nem podemos perfeitamente conhecer os nossos vícios,
estando tão cercados e enfermos deles, ou por fraqueza do nosso
entendimento, ou por estarmos já tão habituados a eles, que, a nosso
juízo, têm mais imagem de natureza do que de culpa.
Grande discrição é mister para saber quando, em que, e como
havemos de pelejar de frente contra os vícios, e quando havemos de
furtar-lhes o corpo e fugir deles; porque muitas vezes é melhor que,
conhecida a nossa fraqueza, voltemos as costas e fujamos, para não
morrer às mãos deles. Por isso, convém saber que há alguns vícios de
sua natureza desabridos e penosos, como a ira, a inveja, o rancor, o
ódio, o desejo de vingança, a impaciência, a indignação, a amargura
de coração, a tristeza, a preguiça, e outros que tais; e há outros que,
pelo contrário, trazem consigo deleite, como sejam os pecados carnais,
o comer e beber demais, o jogar e rir destemperadamente, o falar sem
regra, e outros gostos e contentamentos sensuais, que, quanto mais
neles pomos os olhos, tanto mais levam nosso coração. Contra estes
últimos vícios havemos de pelejar fugindo, isto é, apartando-nos das
ocasiões deles e desviando deles a vista e a memória com toda a
presteza; mas, contra aqueles outros, convém pelejar lutando de
frente, observando atentamente a sua natureza e condição, para
melhor vencê-los, o que se faz com menor perigo, por não serem tão
pegajosos. Todavia, quanto à ira e ao desejo de vingança, há casos em
que é preferível furtar o corpo, não pensando em coisas que possam
incitar-nos ao furor.
Consideremos também diligentemente, quando e como poderemos
evacuar a cólera com alguma medicina amarga, que é morti car o
furor da ira com a contrição dos pecados. Consideremos também
quais sejam os demônios que nos humilham, quais os que nos incitam
a pecados que nos levantam, quais os que nos incitam a fazer males
descobertos, e quais os que nos incitam a fazer males encobertos sob
color de virtude; quais os que escurecem nosso entendimento com a
multiplicidade e derramamento de pensamentos desassossegados, e
com desejo e apetite de coisas sujas; quais os que ngem alumiar o
nosso entendimento, para melhor enganá-lo trans gurando-se em
anjos de luz, como acontece aos hereges; quais sejam os tardios e
preguiçosos, que deixam de tentar-nos por muito tempo, para tomar-
nos de sobressalto; quais os astutos e manhosos, que, sob color de
bem, pouco a pouco nos vão levando ao mal (perigo esse que, tanto
mais di cultosamente se conhece, quanto maior seja a aparência de
bem); quais os que nos fazem tristes e quais os que nos fazem alegres,
porque, quando não podem derrubar-nos em desordenada tristeza,
procuram derramar-nos em vã alegria.
Há entre os demônios alguns muito invejosos, que se afastam dos
santos varões e deixam de tentá-los, para não dar-lhes matéria de
coroas e merecimentos, tentando-os mesmo com coisas que não os
possam vencer. Nem te maravilhes se os demônios algumas vezes
suscitam bons pensamentos, para depois eles mesmos contradizerem e
resistirem a estes pensamentos, fazendo-nos crer que a resistência vem
de nossos corações.
Não são combatidos dos mesmos vícios os que na velhice e na
mocidade se convertem a Deus, senão muitas vezes de diversos e
contrários; mas, a humildade é geral e certíssima penitência e medicina
para uns e para outros. Aos homens pertence curar os carnais e
luxuriosos; aos anjos, os iníquos e malvados; mas, Deus é a quem
quase sempre cabe curar e remediar os soberbos, tal é a malícia e
di culdade da cura.
Perguntou-me uma vez um padre muito esclarecido em letras quais
eram os espíritos maus que ensoberbeciam os homens, fazendo-os
pecar, e quais os que os humilhavam; e eu, confessando a minha
ignorância, pedi-lhe que me esclarecesse sobre isso. E ele respondeu-
me em poucas palavras: “O espírito sensual, e o da ira, e o da
preguiça, não sóem ensoberbecer o ânimo do homem, antes, como
vícios vis, o abatem; mas, ao contrário, o espírito que nos incita a
desejar grandes riquezas, principados, e vaidades, e a muito falar, estes
acrescentam um mal a outro mal, que é o da soberba ao da culpa; e
com este se junta o espírito que nos faz julgar temerariamente os
próximos e tê-los em pouco”.
A alma diligente e fervorosa provoca os demônios, e com isto os
desa a; e multiplicadas as batalhas, multiplicam-se as coroas, porque
só quem peleja será coroado. Aquele que não se perturba nem se
enfraquece nos acontecimentos que se oferecem, esse, como fortíssimo
guerreiro, será pelos anjos honrado e glori cado. Três noites esteve
Jesus Cristo debaixo da terra, e depois ressuscitou, e assim aquele que,
em três tempos, vencer, não morrerá; entendo por esses três tempos o
princípio, o meio, e o m da obra, nos quais o Demônio sói tentar, ou
o princípio, o meio, e o m da vida, porque quem a este m chegar
com vitória, para sempre viverá.
XII

Não há quem não saiba que são bem-aventurados os pací cos, pois
por tais os apregoa o Senhor. Mas, vi também serem bem-aventurados
outros, que turbavam a paz e criavam guerra saudável. Soube, por
exemplo, que duas pessoas se amavam uma a outra com desonesto
amor, e que, sabendo disto um varão santíssimo e prudentíssimo
meteu-se de permeio e começou a semear discórdia entre ambos; e
desta maneira com prudência humana venceu a malícia dos demônios.
Verdade é que nem neste caso, nem em outro qualquer, é lícito mentir;
porém louva-se o feito pela raiz de onde procedeu, que foi a caridade.
Assim como são contrárias entre si as bodas e os funerais, assim o
são a presunção e a desesperação; contudo, os demônios são tão
maus, que muitas vezes juntam em um mesmo sujeito um e outro,
fazendo o mesmo pródigo e escasso, assim como também o fazem
presunçoso e descon ado. Há alguns espíritos maus, que sóem, ao
princípio da conversão, interpretar-nos as Sagradas Escrituras; e isso
principalmente obram naqueles que são propensos à vanglória ou que
são ensinados em ciências humanas, para que, enganando-os pouco a
pouco, os conduzam a heresias e blasfêmias. E poderemos tomar por
conjectura disto a turbação, e a desordenada e torpe alegria em que se
sói derramar nossa alma ao tempo em que recebe a tal interpretação.
Se alguma vez, depois de haver amanhecido já em nossa alma o
verdadeiro sol de justiça, vem ele a fazer ocaso, escondendo-nos sua
graciosa presença e a luz de sua consolação, daqui se seguem logo
trevas na alma e se faz noite; durante este tempo, o homem acha tudo
escuro e cerrado, lhe parecendo não descobrir luz por parte alguma; o
céu se lhe faz de metal, e a terra de ferro; ali se acha envolto em tanta
obscuridade de paixões, e confusão de pensamentos, que às vezes
suspeita haver perdido de todo a graça divina; nessa noite, que é a
obscuridade da alma, passam todas as bestas selvagens, isto é, as
paixões ferozes e bestiais da ira, da impaciência, da indignação e da
inveja, bramindo e pedindo seu manjar, isto é, querendo engolir a
nossa esperança de perseverar no bem começado, para atiçar e
renovar as nossas más inclinações. Porém, depois que torna a sair o
sol, que é a luz alegre da divina consolação, mediante a virtude da
humildade, com a qual o homem, convencido pela experiência das
misérias, se abaixou e humilhou a Deus, logo todas estas bestas feras
de paixões e tentações abandonam essas almas humildes e se recolhem
aos seus covis, isto é, aos corações dos homens sensuais e soberbos.
Não desmaiemos, se logo ao princípio de nossa conversão nos
achamos muito inclinados aos vícios. Na porta das virtudes, logo à
entrada, é necessário que nos façam guerra todas as relíquias dos
vícios e maus costumes passados; porque, não só os demônios se
armam e recrudescem contra nós para recuperar sua fazenda, como
também a novidade da vida boa é pesada para quem está acostumado
à má vida. E ademais, as bestas feras, que estavam dentro de nossa
alma escondidas, não se entendia naquele tempo quanto eram más,
porque o homem não conhecia a si mesmo; mas, depois, quando
começa ele a examinar-se, começa também a parecer-lhe que é pior do
que quando estava no século, não porque assim o seja mas porque
então não se via e agora se vê.
Quando os que se acercam já da perfeição virem que, em algum
pequeno delito, são vencidos do Demônio, trabalhem com toda a
diligência por aproveitar, em quanto lhes seja possível, cem vezes tanto
mais do que foi aquilo em que desfaleceram, para recuperar aquela
pequena perda com maior lucro. Assim como os ventos algumas vezes
nada mais fazem do que encrespar um pouco a planura do mar
sossegado, e outras vezes o revolvem de baixo para cima, levantando
as ondas até o céu: assim hás de entender que o mesmo fazem os
espíritos maus e tenebrosos. Quer isto dizer que, nos que perseveram
continuamente em seus vícios, levantam-se grandes ondas de paixões e
tempestades no mar de seu coração; mas, nos que já têm aproveitado,
não sóem fazer mais do que encrespar as águas de nossas paixões,
alterando levemente a paz de sua alma. Os que têm aproveitado
conhecem facilmente esta sua alteração, porque mantêm sua
costumada paz e tranqüilidade e, com isso, o juízo claro de sua razão.
Os perfeitos, então, conhecem desde logo qual seja a intenção dos
demônios, e a de Deus, e a de sua própria consciência; pois, os
demônios não nos acometem desde logo com coisas abertamente más,
e é por isso que esta matéria é muito escura e di cultosa de
determinar.
Quando estivermos velando e tristes por nossos pecados, lembremo-
nos daquele mandamento que o Senhor deu a São Pedro, no qual
mandava-o perdoar, se fosse mister, setenta vezes sete; pois é certo que
esta lei de tanta misericórdia, dada ao homem pelo Senhor, muito mais
a guarda ele do que o homem. Quando, porém, nos começarmos a
elevar por ocasião de nossos merecimentos, recordemo-nos da outra
sentença do Senhor: Quem guardar toda a lei e ofendê-la com um só
vício, que é principalmente a soberba por havê-la guardado, torna-se
réu e violador de toda a lei. O cervo, dizem que mata todas as
serpentes venenosas, mas a humildade mata a todas as intelectuais e
invisíveis serpentes.
XIII

Recapitulemos tudo o que acabamos de dizer.


A fé viva é mãe da renúncia, porque, representando-nos a excelência
e formosura dos bens futuros, nos faz desprezar os presentes; assim
como, pelo contrário, a in delidade é causa de abraçá-los e estimá-los
em muito. A esperança rme é porta para despedir as afeições e
paixões de nosso coração; e, pelo contrário, a pouca con ança em
Deus e em sua Providência é causa do desordenado afeto dos homens
às coisas terrenas. A caridade estável é raiz e causa do menosprezo de
todas as coisas transitórias, porque, caminhando para Deus e
suspirando por ele, tudo o mais considera-se secundariamente; mas,
pelo contrário, o amor desordenado de si mesmo faz o homem amar o
caminho pela pátria, e o desterro pelo reino, e o Criador pela criatura.
Considerando atentamente as coisas naturais, podemos entender a
natureza e condição das coisas espirituais, como pelos exemplos
seguintes se verá:
Assim como é impossível que a serpente despeça de si a casca
antiga, a não ser entrando por buraco apertado, assim nós nunca
despiremos a túnica do velho homem e os costumes e maus hábitos de
muitos anos, a não ser entrando pela estreita senda dos jejuns e do
sofrimento das ignomínias.
Assim como a avestruz, por ter o corpo muito carregado de carnes,
não pode voar até o alto do céu, assim tampouco voarão até lá os que
regalam e engordam seu corpo.
Assim como a lama, depois que seca, já não serve para os porcos,
assim a carne, depois de enfraquecida e seca pela abstinência, não dá
lugar a que os demônios nela se refocilem.
Assim como a lenha verde abafa quase sempre a chama e levanta
grande fumaça, assim a tristeza desordenada enche a alma de fumo e
de trevas e seca as fontes das lágrimas.
Assim como com o ferro duro se lavra o brando (como fazem os
ferreiros), assim com a companhia do bom e fervoroso servo de Deus
cura-se o negligente.
Assim como os ovos das aves, se estão encobertos e quentes debaixo
do esterco, vêm a receber vida e a produzir outras aves, assim os maus
pensamentos, quando escondidos no coração sem se revelarem a quem
os possa curar, vêm comumente a sair à luz e a realizar-se.
Assim como os cavalos parelheiros, com sua mesma carreira, se
incitam a correr uns aos outros, assim também o fazem os que
religiosamente vivem em alguma santa companhia.
Assim como as nuvens encobrem o sol, maus pensamentos
escurecem e matam a luz da alma.
Assim como aquele que vai sentenciado à morte não fala, nem cura
de festas, nem de espetáculos, nem de outras coisas semelhantes, assim
aquele que, de todo o coração, chora seus pecados, não pensará em
regalar seu ventre.
Assim como os pobres conhecem mais claro sua pobreza quando
vêem os tesouros dos reis, assim a alma se humilha quando lê os
exemplos ilustres e vidas memoráveis dos santos.
Assim como a pedra imã, por uma secreta virtude que tem, atrai a si
o ferro, assim a força e tirania dos maus costumes que já zeram
hábito na alma a levam após de si ao que estava habituada.
Assim como o óleo lançado ao mar, segundo dizem, mitiga a
braveza das ondas, assim o jejum apaga quase violentamente os
incentivos furiosos da carne.
Assim como a água represada, ou encerrada nos tanques, se levanta
e sobe ao alto, assim a alma, apertada por angústias e tribulações,
subindo a Deus pela oração e penitência, alcança salvação.
Assim como aquele que traz perfumes, ainda que não o queira, é
conhecido pelo odor, assim aquele que traz Deus em sua alma, por
suas palavras e por sua humildade, não pode deixar de ser conhecido.
Assim como os grandes ventos revolvem o fundo do mar, assim uma
das paixões que mais transtornam a alma é o furor da ira.
Assim como aqueles que somente ouviram mas não viram não têm
tão vivos os desejos das coisas de que apenas ouviram falar, assim os
castos e puros no corpo não têm tão veementes as paixões e
movimentos sensuais de sua alma.
Assim como os ladrões não vão de boa vontade ao lugar onde vêem
as armas e os ministros da justiça, assim também os espirituais ladrões
não acometem tão facilmente a alma que vêem armada com a oração.
Assim como o fogo não produz de si neve, assim o ambicioso e
desejoso de honras não alcançará a honra celestial, pois um desejo
contradiz a outro.
Assim como acontece muitas vezes que uma faísca pode queimar
todo um monte, assim um só bem há, bastante para destruir todos os
males, qual seja o bem da caridade, que cobre os muitos pecados.
Assim como não podemos matar as bestas feras sem armas, assim
não podemos alcançar a mansidão e morti cação de ira sem
humildade.
Assim como não pode um homem naturalmente viver sem comer,
assim não pode um homem salvar-se sem cuidado e vigilância; pois, o
cuidado e vigilância são o sustento da boa vida do homem.
Assim como o raio do sol, entrando em casa por um pequeno
buraco, a alumia toda e faz que se veja tudo quanto há nela, até os
átomos muito miúdos que estão no ar, assim o temor de Deus,
entrando em uma alma, descobre até as mínimas culpas que há nela.
Assim como os caranguejos são fáceis de apanhar, porque já vão
para diante, já voltam para trás, e não seguem caminho direito, assim
a alma inconstante em seus bons exercícios, que já vai para diante, já
volta para trás, já ri, já chora, já se regala, nunca jamais poderá
aproveitar.
Assim como estão fáceis de ser assaltados por ladrões os que
dormem muito pesado sono, assim os que, vivendo no mundo, onde
os homens andam entre tantos perigos, trabalham por alcançar as
virtudes, estão muito em perigo de ser assaltados por inimigos.
Assim como aquele que peleja com um leão, se um pouco desviar os
olhos do lugar, está logo morto, assim o será aquele que pelejar contra
sua carne, se se descuidar de mirar por ela e se a regalar
demasiadamente.
Assim como estão em perigo de cair os que sobem por uma escada
velha e apodrecida, assim estão muito prestes a cair os que sobem
pelas honras, dignidades e potências do mundo, que são muito
contrárias à humildade.
Assim como não é possível esquecer-se do pão quem tem fome,
assim não é possível que se olvide da morte e do Juízo eterno quem
deseja salvar-se.
Assim como a água apaga as letras, assim as lágrimas tiram os
pecados; e assim como os que não têm água buscam outras maneiras
de apagar, borrar, ou riscar as letras, assim as almas a quem falta a
água das lágrimas trabalham com tristezas, e gemidos, e dor profunda,
para desfazer seus pecados.
Assim como a abundância de esterco cria multidão de vermes, assim
a abundância dos manjares é causa de maus pensamentos, e quedas, e
sonhos desvairados.
Assim como quem tem os pés atados não pode andar (porque o
impedem as ataduras), assim quem cogita de entesourar na terra, não
pode caminhar para o céu; porque esta afeição o tem preso e assim o
impede neste caminho.
Assim como a ferida fresca tem fácil o remédio, assim, pelo
contrário, as chagas velhas di cilmente se curam, quando seja mesmo
possível curá-las.
Assim como não é possível que o morto ande, assim não é possível
salvar-se aquele que descon a. Aquele que, guardando inteira a fé,
comete pecados, é semelhante ao homem que não tivesse olhos; mas,
aquele que faz boas obras e não tem fé, é semelhante àquele que lança
água em um algibe roto.
Assim como o navio, se tem bom piloto, sói com ajuda de Deus
navegar prosperamente e tomar porto seguro, assim a alma,
governada por bom pastor, caminha prosperamente para o céu.
Assim como aquele que caminha sem guia por caminho
desconhecido, se perde muitas vezes (ainda que seja em outras coisas
homem muito prudente), assim aquele que, na vida prática, pretende
governar-se só por sua cabeça, facilmente se perderá (ainda que seja
muito ensinado nas doutrinas e ciências humanas). Quando alguém,
depois de haver cometido muitos e graves pecados, se acha
inabilitado, por falta de saúde, para fazer penitência, caminhe pela
estrada da santa humildade, e de seus exercícios: porque não achará
outro mais conveniente meio para sua saúde.
Assim como os que muito tempo hão padecido uma grave
enfermidade não podem em um momento alcançar saúde, assim
tampouco os vícios, mesmo que procedam de um só vício de alguns
dias acostumado, se podem vencer em pouco tempo. Trabalha por
conhecer a quantidade e os graus de cada um dos vícios e virtudes que
há em ti, para que assim possas conjecturar melhor a maneira do teu
aproveitamento.
Assim como padecem notável detrimento os que trocam ouro por
barro, assim também o padecem os que, por cobiça de bens temporais,
publicam os espirituais. Muitos alcançaram em breve espaço perdão
de seus pecados, mas ninguém alcançou a bem-aventurada
tranqüilidade subitamente, porque para isto temos necessidade de
largo tempo, e de ajuda de Deus, e de singular graça sua.
Assim como o bom lavrador observa as aves que freqüentam as
sementeiras, assim devemos observar que gênero de aves façam dano à
sementeira de nossas virtudes, quando está debaixo da terra, quando
está em folha, quando está em grão para a sega, a m de que,
conforme a isto, nos previnamos e armemos os laços convenientes.
Assim como é coisa indigníssima e injusta que se mate quem está
com uma febre, assim de nenhum modo convém que ninguém
desespere antes que se lhe arranque a alma do corpo.
Assim como é coisa torpe e desonesta que quem acaba de enterrar
seu pai vá logo casar-se ao voltar do enterro, assim também o é que os
que ainda estão chorando seus pecados busquem honra e descanso na
glória do século presente.
Assim como uma maneira de aposento convém aos cidadãos e outra
aos delinqüentes, assim convém que seja diferente o estado dos que
choram por suas culpas e o dos inocentes.
Assim como o imperador não despede de seu exército o cavaleiro
que recebeu muitas feridas na batalha por seu serviço, antes o honra e
engrandece mais, assim o Imperador celestial coroa e engrandece ao
monge que tem recebido grandes encontros e combates do inimigo.
O juízo e conhecimento do bem e do mal é natural propriedade de
nossa alma, mas o pecado escurece e torna nublada esta luz que Deus
nos deu; e a sanidade e inteireza deste juízo é princípio da diminuição
dos males, da qual nasce a luz que chamamos da consciência.
E a consciência é uma admoestação e repreensão do anjo da guarda,
que nos foi dado desde o princípio de nossa vida, o qual, conquanto se
dê a todos, se dá principalmente aos cristãos: de onde nasce que estes
comumente pecam com maior remorso da consciência do que os que
não o são.
E esta diminuição dos males pouco a pouco vem a produzir o
apartamento e abstinência deles.
E esta abstinência é o princípio da penitência, e a penitência, da
salvação; e o princípio da salvação é o bom propósito.
E do bom propósito nasce o sofrimento dos trabalhos, do qual são
também princípio as virtudes.
E o princípio das virtudes é como uma or espiritual que promete o
fruto das boas obras.
E das virtudes nasce o exercício e continuação delas, e esta
continuação faz hábito, e este hábito faz o homem obrar com
facilidade e suavidade.
E daqui procede o santo temor de Deus; e este temor faz guardar os
seus mandamentos; e a guarda de seus mandamentos é argumento de
caridade; e o princípio da caridade é abundância de humildade; e a
abundância de humildade é mãe da tranqüilidade; e a posse da
tranqüilidade é plenitude da caridade.
E aqueles que, por meio desta bem-aventurada tranqüilidade, são
puros e limpos de coração, chegam a ser perfeita morada de Deus, e
lhes é dado ver a Deus, a quem seja glória em todos os séculos dos
séculos.
CAPÍTULO XXVII

Da sagrada quietude do corpo e da alma


I

Sendo nós miseráveis como uns escravos comprados por dinheiro, e


tendo vivido sujeitos a vilíssimos vícios, por isso mesmo temos um
pouco de conhecimento dos enganos, costumes, impérios e astúcias
dos demônios, que, tão miseravelmente e por tão largo tempo,
estiveram apoderados de nossa alma. Outros há mais ditosos que, por
magistério do Espírito Santo, conhecem isto melhor. Uns há que, pela
dor da enfermidade, conhecem o bem da saúde; outros há que, pelo
mesmo gozo e desejo da saúde, conhecem a tristeza da enfermidade.
Por isso, nós, fracos como somos, temos muito de losofar nesta obra
sobre o porto sossegadíssimo da quietude, como quem sabe bem que,
à mesa do santo convento, assiste sempre o perverso cão da vanglória,
buscando algum pedaço de pão, isto é, alguma alma, para levá-lo e ir
comê-lo às escondidas. Desejando, pois, não dar lugar a este cão com
a matéria de nossa doutrina, e evitar a ocasião que anda ele sempre a
buscar, não me pareceu ser coisa justa tratar agora da paz com os
guerreiros daquele imperador soberano, os quais, no fervor da
batalha, pelejam com grande constância de ânimo. Aqueles que
fortemente pelejam, receberão também coroas de paz e tranqüilidade;
e, para não entristecer algum deles, sempre diremos alguma coisa
desta matéria, como debaixo de forma de discrição.
A quietude do corpo é um conhecimento de moderação de todos os
sentidos, e de toda a gura e movimentos do homem exterior; mas, a
quietude da alma é conhecimento e ciência de todos os pensamentos e
movimentos interiores, e moderação de todos eles, e uma reta atenção
para com Deus, que por nenhuns ladrões pode ser roubada, para que
desta maneira todo o homem, dentro e fora de si, esteja perfeitamente
composto e quieto. O amigo da quietude traz sempre consigo um
cuidado forte, perpétuo, e vigilante, que está sempre às portas de
nosso coração, repelindo ou matando todos os maus pensamentos que
se chegam a ele. Muito bem entenderá isto quem tem chegado ao
íntimo da quietude, mas não quem ainda é menino e principiante, pois
que não o há experimentado. O prudente seguidor da quietude não
tem necessidade de ser ensinado com muitas palavras, porque, na
verdade, as palavras, se declaram e entendem melhor com as obras.
O princípio da quietude é apartar de nós todo o estrondo e
desassossego interior, como coisa que turba o íntimo silêncio e paz de
nossa alma; mas, o m dela é não temer já estes desassossegos e estar
no meio deles quieto e sossegado. O amigo da quietude, saindo da
cela, não sai com as palavras dela, porque não deixa por isso de falar
dentro de seu coração com Deus, como quando nela estava. É todo ele
manso; e como um aposento de caridade, move-se di cultosamente a
falar, mesmo ao impulso da ira. Mas, pelo contrário, aquele que
carece desta virtude, tudo isto tem ao revés, e assim vive sujeito às
paixões; e, estando com o corpo encerrado na cela, com o espírito
anda derramado pelo mundo.
É verdadeiro seguidor da quietude aquele que trabalha com todas as
suas forças, estando em corpo mortal, por imitar a condição e
tranqüilidade daquelas substâncias espirituais. O gato está sempre em
espia para caçar o rato; mas, a intenção do quieto solitário está
sempre atenta para caçar o rato intelectual, que é o mau pensamento
ou o Demônio que vem estragar sua alma. Não te pareça vil e baixo
este documento; porque, se assim não o sentes, não tens ainda sabido
que coisa é quietude. O verdadeiro e profundo monge não é como o
fraco que está arrimado ao mais profundo, e assim se descuida às
vezes com as costas que tem nele; porque o monge tem necessidade de
suma vigilância, e de uma alma alheia e livre de toda a presunção. E
muitas vezes acontece que àquele primeiro, que é descuidado, ajuda o
outro, que é cuidadoso; mas, ao segundo, que é diligente, ajudam os
santos anjos, porque sóem estas intelectuais virtudes assistir
juntamente com o espiritual seguidor da virtude, e ministrar com ele, e
morar alegremente nele, como em um propósito muito agradável.
Mas, que seja o que acontece aos que fazem o contrário disto, não
quero ao presente dizer, aliás já de si está manifesto.
Grande é a profundidade dos mistérios e doutrinas da nossa
religião, e não poderá a alma do solitário entrar neles sem perigo, se
com curiosidade os quiser esquadrinhar. Não é coisa segura nadar o
homem vestido, nem tampouco tratar dos mistérios da teologia o
homem apaixonado. A cela do verdadeiro solitário é seu próprio
corpo, onde traz a alma recolhida, esteja onde estiver; e dentro dele
está a escola da verdadeira sabedoria. Aquele que, estando ainda
sujeito às paixões e enfermidades de sua alma, quiser viver em
soledade, semelhante é àquele que, saltando do navio ao mar, queira
chegar à terra com uma tábua. Não faltará quietude em seu tempo aos
que pelejam contra sua própria carne, se tiverem quem os saiba guiar;
pois, aquele que, sem guia, pretende alcançá-la, tem necessidade de
virtude de anjo. Mas, eu falo agora daqueles que verdadeiramente
pretendem alcançar quietude, tanto do corpo como do espírito.
O solitário negligente falará mentiras, e como por guras quererá
dar a entender aos homens o fruto de sua quietude; mas, depois,
quando deixa a cela, põe a culpa aos demônios e não deixa de ver, o
miserável, que já está ele próprio feito Demônio. Vi eu alguns
amadores desta sagrada quietude, os quais, por meio dela, fartaram,
sem jamais fartar-se, o incendiadíssimo desejo que tinham de Deus,
acrescentando cada dia fogo a fogo e desejo a desejo.
Solitário é uma imagem de anjo terreno, que, com o papel do desejo
e letras de santa solicitude, livrou sua oração de toda a frouxidão e
tibieza. Solitário é aquele que pode, em verdade, dizer com o Profeta:
Aparelhado está meu coração, Senhor, aparelhado está meu coração.
Quieto é aquele que diz: Eu durmo e vela o meu coração. Cerra a
porta à cela de teu corpo para não sair fora dela, e a porta de tua
língua para não falar, e a janela interior de tua alma para não dar
entrada aos espíritos sujos. A calma e o sol do meio-dia declaram a
paciência do marinheiro, e a falta das coisas necessárias, a do quieto
solitário: aquele, enfadado da calma, atira-se ao mar, mas este,
fatigado com a inatividade, vai ao povoado.
Não temas as ilusões que o Demônio pretende fazer-te com alguns
sonidos, barulhos, estrondos enfeitiçados; pois, o verdadeiro pranto
não sabe que coisa é temor da carne, nem se dá nada por isso. Aqueles
cuja alma sabe verdadeiramente orar, falam com Deus rosto a rosto
como quem fala com o rei ao ouvido; aqueles que coram de boca, são
semelhantes aos que falam ao rei diante do senado; mas, aqueles que
moram no século, são como os que, estando no meio de povo
desassossegado, falam ao rei como de longe. Quando o homem se
cansar com o trabalho de mãos, levante-se e faça oração; e, depois,
assentando-se, torne a continuar varonilmente o trabalho da primeira
obra.
E se tu estás dentro nesta arte de orar, entenderás muito bem tudo
isto.
Assenta-te como em uma atalaia no mais alto de tua alma, e daí
examina e observa a ti mesmo diligentemente (se sabes fazer este
ofício); e, então, entenderás de que maneira, em que tempo, e por que
parte, e quantos, e quais são os ladrões que querem entrar em tua
vinha e furtar os cachos.
Aquele que desperta da quietude, sutil e diligentemente, e com suma
ciência, pelo mesmo caso desa a e provoca contra si os demônios, que
como soberbos desejam mais provar suas forças no mais forte.
Ninguém pode tão claramente, como este, descobrir as malícias e artes
inumeráveis dos demônios; pois, aquele que alcançou esta maneira de
quietude solitária, tem grande conhecimento da profundidade das
obras e mistérios divinos. Mas, não chegará a esta profundidade quem
primeiro não tiver ouvido ou visto os desassossegos e estrondos das
ondas e dos ventos deste mar e sofrido parte destes trabalhos.
Con rma isto o grande apóstolo São Paulo, o qual, se não tivera
sido levado ao paraíso, como a uma secretíssima quietude, nunca por
certo ouviria os segredos e mistérios que ouviu. O olvido da alma
quieta receberá de Deus grandes coisas; e, assim, esta santíssima
quietude dizia em Jó: Por ventura, pensas que minha alma receberá
dele grandes coisas? Quieto solitário é aquele que, sem aborrecimento
de ninguém, foge de todos, para não cortar o o da divina doçura,
como quando alegre e prontamente buscava a companhia de todos.
Anda, vê e distribui todos os teus bens, e reparte-os com os pobres e
enfermos, para que eles te ajudem, com o socorro de suas orações, a
alcançar esta solitária quietude; toma tua cruz às costas por meio da
obediência e leva sobre ti fortemente a carga da morti cação da
própria vontade; e, então, vem, segue-me, e te conduzirei à posse desta
beatíssima e sossegadíssima quietude, e te ensinarei, estando em carne
mortal, a considerar a esclarecida conversação e obras das intelectuais
virtudes, que são os anjos. Estes nunca se fartam nos séculos dos
séculos de louvar ao Criador, nem tampouco se farta esse que já
entrou no céu da quietude, de fazer o mesmo ofício. Não têm cuidado
aqueles anjos (como substâncias espirituais que são) das coisas
corporais, nem tampouco o têm estes homens, que, conquanto
naturalmente corporais, já se levantaram, pela virtude, sobre a
natureza frágil e corruptível. Não estão aqueles solícitos de negócios
de fazenda, nem de dinheiros, nem estão estes temerosos das
perseguições e açoites dos espíritos maus. Não têm aqueles espíritos
celestiais desejo de criatura visível, nem estes espíritos terrenos, e ao
mesmo tempo celestiais, têm apetite de alguma vista ou coisa sensível.
Nunca desistem aqueles de arder em caridade, nem estes de contender
com eles neste mesmo exercício. Não ignoram aqueles as riquezas do
seu aproveitamento, nem estes de todo ignoram a subida de seu amor.
E assim não desistirão de trabalhar até chegar à glória dos sera ns, e
sempre trabalharão por imitar a pureza dos anjos. Bem-aventurado
aquele que tiver de ser o que espera; e anjo será quando tiver
alcançado o que espera.
II

Notória coisa é que, em todas as maneiras de estados e disciplinas, há


diversidade de graus de vontades e de pareceres, porque nem todas as
obras dos homens são logo perfeitas, ou por falta de fervor e
diligência com que se hão de fazer, ou por falta de virtude, que,
quando é imperfeita, faz também suas obras imperfeitas. Nesta
conformidade dizemos que há diversos graus entre os que entram
neste porto da soledade, ou melhor, neste pélago e abismo, pois para
muitos assim o é. Há alguns que escolhem a vida solitária, para que,
como fracos, se ajudem dela para refrear sua língua e os movimentos e
paixões de seu corpo. Outros há inclinados à ira, os quais, vivendo em
companhia de outros, não a podem subjugar; e, por isso, querem
morar sós. Outros há que fazem isto por serem de ânimos levantados
e soberbos, pelo que se determinam a navegar por seu próprio parecer
e conselho, mais do que pelo magistério de outro. Outros o fazem,
porque, postos em meio de coisas materiais e terrenas, não podem
abster-se do desejo delas e, por isso, fogem para a soledade. Outros há
que fazem isto para, com o aparelho da quietude, se empregarem com
maior fervor e estudo no serviço de Deus. Outros, para açoitar e
a igir seus corpos, pelos pecados cometidos, mais secreta e mais
livremente. Outros também haverá que façam isto para alcançar
crédito e glória entre os homens. Há também outros (se, quando
venha o Filho do Homem, ache algum destes sobre a terra), há
também outros que escolheram esta santa e solitária quietude, para
gozar dos deleites divinos e pela sede ardentíssima que tinham do
amor e da doçura divinas: os quais não se dispuseram a isto senão
depois que deram libelo de repúdio a todo o gênero de acídia, porque
este vício é uma espécie de sensualidade na vida solitária.
No meu fraco entender, como mestre e edi cador pouco sábio, hei
contado e assentado os degraus desta escada espiritual: veja agora
cada um em que degrau se acha. Quero dizer: considere cada um se
escolheu esta vida para viver por seu próprio parecer, ou para alcançar
glória dos homens, ou pela soltura de sua língua, ou pelo
desenfreamento de sua ira, ou para fugir às ocasiões dos apetites e
afetos desordenados, ou para tomar vingança de seu corpo e de suas
culpas, ou para viver com maior fervor de espírito por alcançar o
suavíssimo fogo da divina caridade. Entre estes graus ou degraus se
pode também dizer aqui que os últimos serão os primeiros, pois que
aqueles pretendem o mais alto m. Sete são as obras da semana deste
presente século (que são as que acabamos de referir), das quais umas
são aceitas por Deus, outras não; mas, entre as referidas, ainda há a
oitava, que é a última, a qual, por sair da conta da semana, signi ca o
estado do século vindouro, como uma miragem e primícias da vida
bem-aventurada que nele se vive. Observe cautelosamente o monge
solitário as horas e tempos em que sóem acudir as bestas feras (isto é,
os demônios), a fazer dano em sua fazenda; porque, de outro modo,
não lhes poderá armar convenientes laços. Se já perfeitamente se
apartou aquela mulher má, a quem deste libelo de repúdio, isto é, a
acídia, não será necessário o trabalho contra ela; mas, se, todavia,
por ada e desavergonhadamente te acomete, não vejo como possas
descansar.
Qual a causa por que não houve menores lâmpadas nos mosteiros
dos tabenensiotas, fundados por São Pacômio no deserto da Cítia,
onde estavam aqueles bem-aventurados padres anacoretas, que viviam
em soledade? Quem entender isto, entenda-o; porque eu não o posso
explicar, nem quero prosseguir nestes escaninhos e funduras do
repartimento das graças e obras de Deus. Há alguns que tratam de
morti car e diminuir seus vícios; há outros que, vivendo nos
mosteiros, perseveram em cantar Salmos e orações; e há outros que,
postos no profundo da soledade, se ocupam atentamente no exercício
da divina contemplação. Segundo a qualidade dos degraus desta
escada espiritual, poderá cada um determinar a qualidade e valor
destes exercícios; e aquele que, por virtude de Deus, tem capacidade
para entender e exercitar alguma coisa destas, tenha-la e aproveite-se
dela. Há algumas almas negligentes, que habitam nos mosteiros, as
quais, achando ali alguma ocasião para sua frouxidão e preguiça,
vieram a cair perfeitamente no despenhadeiro de sua perdição. Outros
há que, pelo contrário, desterraram e sacudiram de si esta perdição e
negligência com a companhia e bom exemplo dos outros: e isto
aconteceu não só aos religiosos tíbios e negligentes, como aos
diligentes, que com o exemplo dos bons se esforçavam e passavam
adiante. Da mesma regra e discrição podemos usar entre os que vivem
em soledade: muitos, que a princípio eram bons e foram como tais
recebidos, mais tarde foram reprovados, por se terem declarado
homens que folgavam de reger-se por seu próprio parecer e de viver
onde pudessem fazer sua própria vontade, pelo que procuravam esta
maneira de vida. Outros de tal maneira foram recebidos, que se
tornaram solícitos e fervorosos com o temor de Deus, e com a
memória e cuidado do juízo divino e das penas no inferno.
Nenhum dos que sentem em si perturbações de furor, ou de
soberba, ou de hipocrisia e ngimento, ou de memória de injúrias, se
atreva sequer a ver as pisadas da quietude e vida solitária, a m de que
não venha por isto a receber maior dano, caindo em alguma loucura
ou enganos do inimigo. Mas, aquele que está limpo destas
perturbações conhecerá o que convém, conquanto não por si só,
segundo penso, mas ajudado do conselho dos sábios. Os sinais,
exercícios e argumentos dos que acertadamente escolheram a quietude
da vida solitária são estes: tranqüilidade de ânimo livre das ondas das
perturbações do século, puríssima intenção, arrebatamento em Deus,
a ição e castigo perpétuo do corpo, memória contínua da morte,
oração incessante e insaciável, guarda inviolável de si mesmo, morte
da luxúria, olvido de toda a mortal afeição que não for segundo Deus,
morto do mundo, isto é, de todos os apetites mundanos, fastio da
gula, abundância de sabedoria, fonte de discrição, lágrimas prontas e
aparelhadas em todo o tempo, continuado silêncio, e quaisquer outras
virtudes que sejam conformes à soledade e contrárias à multidão
amiga de murmurações e falatórios. Mas, os sinais dos que escolhem
este estado indevidamente são estes: falta de riquezas espirituais, ira
demasiada, memória da injúria recebida, diminuição da caridade,
espírito de inchação e de soberba, temor pueril e desordenado, e
outros males que daqui se seguem e que de propósito calarei.
E já que a matéria chegou a estes termos, parece-me necessário
tratar aqui também dos que vivem debaixo de sujeição e obediência,
porque com eles principalmente falo neste livro; pois, os que deste
número legítima e puramente se aplicam a esta formosíssima virtude,
são estes os sinais que, segundo a determinação dos Santos Padres,
hão de ter, e que cada dia crescem, e se fazem maiores, até chegar a
devida perfeição: acrescentamento daquela primeira humildade com
que entraram na religião, diminuição da ira como resultado da
evacuação do fel da soberba, exercício da caridade, desterro dos
vícios, livramento do ódio que nasce da repreensão, morti cação de
toda a desonestidade e regalo, morte da acídia, acrescentamento do
fervor, amor da misericórdia, ignorância de toda a soberba. Quando
falta água na fonte, não se pode chamar fonte; e claro está de ver o
que daqui se segue, a saber, que não merecerá nome de religioso quem
não tem estas condições de religioso. A mulher que não guarda a fé a
seu marido, suja seu corpo; mas, a alma que não guarda a pro ssão e
assento que fez com Deus, essa suja seu espírito. E o que se segue
daquela primeira culpa é desonra, ódio, castigo, e (o que é mais
miserável) apartamento e divórcio; mas, o que se segue desta outra são
torpezas, olvido da morte, insaciabilidade do ventre, derramamento
dos olhos, obras de vanglória, sono demasiado, dureza de coração,
insensibilidade da alma, praça de pensamentos, cativeiro do coração,
turbação de paixões, desobediência, contradição, in delidade, coração
sem nenhuma palpitação de con ança de sua salvação, muito falar,
viciosas afeições, e (o que é ainda mais grave) reputação e con ança
de si mesmo, e (o que é ainda mais miserável) um coração sem graça
de compunção, e portanto, as mais das vezes (principalmente naqueles
que não têm o exercício da consideração), um coração eivado de
insensibilidade, que é a mãe de todas as quedas, especialmente da
soberba.
Três vícios, dos oito capitais, sóem principalmente acometer aos que
vivem em obediência: a ira, a inveja e a luxúria; mas, os outros cinco,
que são a soberba, a vanglória, a acídia ou preguiça, a avareza e a
gula, sóem mais ordinariamente combater os seguidores da soledade.
O solitário, que peleja contra a acídia, muitas vezes ganha menos com
isto, porque gasta nesta luta o tempo que fora melhor empregado na
oração e contemplação com que se vence melhor esta paixão. Estando
eu uma vez na cela, assentado e carregado deste vício em tal grau, que
pensava em deixar a cela, vieram certos homens visitar-me e puseram-
se a louvar-me como a solitário com grandes louvores e apregoando-
me bem-aventurado: tanto bastou para que logo, e nesse ponto, o
espírito da vanglória zesse fugir de mim o da acídia; e quei
maravilhado de ver como esse mau abrolho é contrário a todos os
espíritos bons e maus.
Toma tento e em todas as horas observa os movimentos dessa
esposa e perpétua companheira tua, que é a tua carne; observa tanto
os primeiros movimentos, que são sem culpa, como os que se seguem
depois destes, os quais podem ser com culpa, e mesmo as paixões e
apetites mais veementes e as contradições que sóem haver entre eles,
quando uns querem um e outros outro: tudo isto se há de considerar,
para que o homem se conheça e se repare com o tempo, e corte os
passos ao inimigo. Aquele que, por virtude do Espírito Santo,
alcançou a verdadeira paz e tranqüilidade do ânimo, é só quem
entende muito bem por experiência todas estas matérias.
O principal negócio desta quietude solitária é dar de mão e sacudir-
se de todos os outros negócios, sejam lícitos ou ilícitos: não porque os
lícitos sejam maus, mas porque podem ser impeditivos de outro bem
maior, salvo quando caem debaixo de preceito e obrigação. De outra
maneira, se abrirmos a porta indiscretamente a um, por ali também se
escoarão outras e outros. A oração do solitário não seja preguiçosa,
mas devota e contínua, e uma perpétua ocupação da alma com Deus,
mediante uma ardentíssima caridade, a qual há de ser tão constante e
tão xa que nenhuns ladrões a possam roubar. Impossível é que aquele
que jamais aprendeu letras possa ler; porém, muito mais impossível é
que aquele que não livrou seu coração de cuidados e afeições, possa
ter perfeita oração e contemplação.
Estando eu uma vez em santo exercício, com um ardentíssimo
desejo de Deus, vim a car fora de mim, parecendo-me que estava
entre os anjos, onde o Senhor com os raios de sua luz iluminava
minha alma desejosa de sua presença. Perguntando eu a um deles de
que maneira estava o formosíssimo Filho de Deus antes de tomar a
nossa forma visível, não me pôde ensinar, porque não lhe deram
licença para isso; e rogando-lhe que me dissesse de que maneira estava
agora, respondeu-me que estava na mesma natureza e pessoa divina
que antes, assentado à direita do Padre, sobre todas as hierarquias e
coros de anjos. Repliquei que coisa é a direita, e o estar, e a cadeira no
Criador, respondeu-me ele que era impossível ouvir isto com ouvidos
corporais; e mais incendido meu desejo com esta resposta, rogava-lhe
que me chegasse a tempo em que isto pudesse eu saber, enquanto fosse
desatando-me desta carne. A isto me respondeu ele: “Ainda não é
chegada a hora disso, por falta do fogo incorruptível, visto não ter
chegado tua caridade a tal estado que tal mereça. Como se tenha isto
passado, ou estando minha alma dentro deste barro, ou fora dele, não
o posso dizer”.
Coisa é di cultosa e trabalhosa vencer o sono do meio-dia em
tempo de estio, para o que, então, principalmente, convém ocuparmo-
nos em alguma obra de mãos. Também sei eu que o espírito de acídia
sói ser precursor do espírito de sensualidade carnal, para que,
resolvendo e derrubando o nosso pesado corpo em um pesado sono,
suje depois nossos corpos e almas com sonhos desonestos. E se tu
resistires a estes fortemente, também os inimigos te combaterão
poderosamente, para fazer-te fugir do campo e arredar-te da batalha,
vendo que não aproveitas nela. Mas, tem tu por certo que nenhum
sinal há mais claro de que os demônios estão vencidos do que
combaterem-nos eles fortemente. Quando saíres da cela a algum
negócio, trabalha muito por conservar o que adquiriste nela; porque
sóem as aves voar depressa e sair de casa quando acham a porta
aberta. Um o de cabelo, um pelinho qualquer perturba a vista; e um
pequeno cuidado, a quietude da alma. A verdadeira quietude é deixar
de parte todas as obras dos sentidos e imaginações, e despedir-se de
todos os cuidados, ainda que sejam lícitos, para dedicar-se só a Deus,
de tal modo que, muitas vezes, venha a olvidar-se até de comer seu
pão e das necessidades de sua carne; pois, não mente aquele que diz:
Quem quer apresentar sua alma a Deus e, por outro lado, deixa-se
prender por cuidados, semelhante é ao que se esforça por andar
depressa, depois de ter atado seus pés com um forte laço.
Poucos há que tenham chegado ao cume da loso a e sabedoria do
mundo; mas, muito poucos são aqueles que chegaram ao cume desta
celestial loso a da quietude, os quais por gesto e experiência sabem
que coisa seja aquietar-se interiormente, e repousar em Deus, e cantar
com o Profeta: Em paz juntamente dormirei e descansarei. Aquele que
ainda não tem conhecimento vivo e amoroso de Deus, não está apto
para esta quietude, porque passará nela muitos perigos. Esta santa
quietude, que para os que são dignos é saudável, sói as xiar os
ignorantes e indignos; porque o homem naturalmente é preguiçoso
para as obras em que não toma gosto, e não tendo estes tomado o
gosto da doçura de Deus, vêm a gastar o tempo em distrações de
coração (com que o Demônio os prende), e em tristezas e tédios
espirituais, e outros desordenados movimentos da alma.
Aquele que tiver chegado à formosura da perfeita oração, este
fugirá da gente como o onagro, que é o asno selvagem. Aquele que,
cercado de paixões, mora no deserto, considera como e de que
maneira lhes há de resistir; e vem a propósito o dito daquele santo
Gergio Arzelayta: “Tenho notado que o espírito da vanglória e da
carnal concupiscência sóem principalmente pela manhã combater os
monges; ao meio-dia, o da acídia, ira e tristeza; mas, à noite, que é o
tempo da refeição dos monges, acometem-nos os sujos tiranos do
ventre, que são os demônios da gula”.
Mais vale o pobre súdito, que vive em obediência, do que o monge
solitário dado a distrações com cuidados e perturbações. Aquele que
diz haver entrado no estado da quietude com deliberação e conselho, e
se julga dispensado de examinar cada dia o que neste estado ganha, ou
não o tomou com este conselho, ou está dominado pelo vício da
soberba.
Quietude é assistir sempre diante de Deus com uma perpétua e
atentíssima devoção e reverência, estando sempre, enquanto seja
possível, em adoração a ele, e oferecendo-lhe sacrifício de louvor e
obediência no altar de seu coração. Trabalha para que a memória de
Jesus esteja unida com teu espírito, e então conhecerás quão grande
seja a utilidade da quietude.
A culpa própria do súdito obediente é fazer sua vontade, e a do
monge solitário é cessar da oração. Se te alegras sensualmente com a
vinda dos religiosos à tua cela, ca sabendo que, estando nela, não te
dedicas a Deus, mas à acídia ou preguiça. Seja-te exemplo de
perseverança na oração aquela viúva do Evangelho, que
importunamente era perseguida de seu adversário; mas, exemplo de
quietude seja-te aquele grande solitário Arsênio, semelhante aos anjos,
o qual muitas vezes despedia aos que a ele vinham, para não deixar o
mais pelo menos. Certo é que os demônios sóem persuadir a uns
curiosos visitadores, amigos de andar de uma parte para outra, que
vão muito a miúdo visitar aos muito dados a exercícios da quietude; e,
por isso, amado irmão, não deixes de entristecer piedosa e
religiosamente aos tais, despedindo-os de ti, porque até poderá ser que
com esta saudável tristeza venham a emendar-se. Todavia, considera
diligentemente, não arranques a boa erva no afã de arrancar a má; por
outra, sob color desta virtude não cerres a porta ao que, por ventura
com saudável sede, vem colher água de tua fonte. E assim para isto,
como para tudo o mais, te é necessária a candeia da discrição.
A vida dos solitários, e também dos que vivem em congregação, se
há de governar, em tudo e por tudo, conforme o ditame da
consciência, e se há de exercitar com todo o estudo e devoção. Aquele
que anda por esta carreira como deve, trabalha por endereçar e
encaminhar todos os seus desejos, palavras e pensamentos, exercícios
e movimentos, com todo o fervor e afeto, obrando todas as coisas
segundo Deus, e como quem as está fazendo diante de Deus. Mas, se
algumas vezes assaltado pelos demônios, afrouxa neste exercício,
argumento é de que não há chegado à perfeição da virtude. Declararei,
diz o Profeta, minha proposição no saltério: isto é, o conselho de meu
coração, como o fazem os que não têm ainda perfeita discrição; mas,
eu declararei minha vontade a Deus na oração, e lhe signi carei minha
necessidade, para que ele venha suprir em mim esta falta de discrição,
e me ensine o que devo fazer nas coisas em que não estou certi cado
por sua lei. A fé é asa da oração, sem a qual não pode voar a Deus. Fé
rme é um estado da alma xo e forte, sem vacilação, de tal modo que
não possa ser movido por adversidade alguma; e isto pertence à fé
con rmada com a caridade e com a inteligência da alma puri cada.
Fiel é não só aquele que crê que Deus pode todas as coisas, mas que
também crê que poderá todas as coisas nele. A fé é dadora de coisas
não esperadas, como aconteceu àquele ditoso ladrão que desde a cruz
alcançou o reino do céu. A graça é mãe da fé; e o trabalho virtuoso, e
o coração reto, a con rmam e fazem mais perfeita; a retidão do
coração é causa do trabalho virtuoso; e o trabalho, da perfeição da fé.
A mãe dos solitários é esta fé tão nobre e tão fora de toda vacilação;
pois, se o solitário não tiver esta fé, como se aquietará? O temor do
juiz faz o preso estar encerrado no cárcere, mas o temor de Deus faz o
solitário estar na cela: e não tem aquele tão grande medo às perguntas
do tormento, quanto este tem ao exame do Juiz eterno. Sumo temor é
necessário, ó claríssimo irmão, a ti que vives na soledade, porque não
há coisa que mais ajude a vencer a acídia, perseguidora do solitário,
do que este santo temor. Considera muitas vezes aquele que está preso
quando o juiz virá ao cárcere; mas, este bom trabalhador mira sempre
quando há de vir o que lhe há mandar sair desta vida. Naquele está
sempre uma perpétua carga de tristeza, mas neste, uma fonte de
lágrimas.
Se juntamente com isto trouxeres na mão o báculo da paciência,
presto deixarão os cães, que são os demônios, de atrever-se e
desavergonhar-se contra ti. Paciência é ânimo forte, que com trabalho
algum é alquebrado, nem desordenadamente perturbado e alterado.
Paciência é estar apercebido e armado contra os vexames e trabalhos
cotidianos. Paciência é cortar todas as ocasiões de turbação, não
tomando, nem interpretando os feitos ou ditos de outros por injúria
nossa. Paciência é estar sempre solícito e ocupado na guarda de si
mesmo. Não tem tanta necessidade de mantimento este bom
trabalhador quanto tem de paciência, porque, se lhe faltar o
mantimento, não deixará de receber a coroa, mas se lhe faltar a
paciência, perdê-la-á. O varão paciente habitua-se a morrer e não
sentirá a morte; porque trabalha por não sentir as adversidades, como
se já estivesse morto, e de sua mesma cela faz monumento onde jaz
sepultado. A paciência é lha do pranto e da esperança; porque aquele
que carece destas duas virtudes, servo é da acídia e da tristeza.
Trabalha por saber o cavaleiro de Jesus Cristo, com que inimigos há
de pelejar de longe, e com que inimigos há de pelejar de perto; porque
tempos há em que lutar com o adversário é matéria de coroas, e fugir
da luta faz o homem perdido. Da matéria acima não é possível dar a
todos a mesma regra, porque não é uma a condição e qualidade de
todos, nem todos temos os mesmos afetos, nem se podem tratar estas
coisas com palavras. Aviso-te que muito atentamente te guardes de um
espírito mau, que em todas as coisas te combate sem cessar, no estar,
no andar, no assento, no movimento, na oração, no sono: é o espírito
da vanglória, o qual, mesmo quando dormimos, nos faz sonhar coisas
com que depois nos desvaneça.
Muitos que andam por esta carreira da santa quietude trabalham
por exercitar sempre em suas almas aquela obra espiritual, que o
Salmista signi cou, dizendo: Ponha eu o Senhor sempre diante de
meus olhos. Para isso, é de saber que nem todos os pais espirituais de
que o Espírito Santo nos provê com seus dons são de uma mesma
espécie. Com efeito, há uns que se exercitam conforme este dito do
Senhor: Com vossa paciência possuireis vossas almas; outros,
conforme este: Velai e fazei oração; outros, conforme este: Aparelha
tuas obras para o tempo da partida; outros, conforme o dito do
Profeta: Humilhei-me e livrou-me o Senhor; outros têm sempre os
olhos postos naquelas palavras: Não são iguais as paixões desta vida à
glória futura que em nós será revelada; outros atentissimamente estão
ponderando aquelas palavras: Entendei isto, vós que vos olvidais de
Deus, para que não venha quem vos arrebate, pois pode não haver
então quem vos livre. Todos estes correm; mas, um é o que com menos
trabalho recebe a coroa: é aquele que se dá à divina contemplação,
porque a ela está anexa uma grande suavidade.
Nenhum dos que desejam edi car a torre, ou a cela da soledade,
comece a entender nisso antes que, assentado e recolhido na oração,
entre consigo em conta e observe se tem as propriedades necessárias
da perfeição, que para isto se requerem, a m de que não aconteça
que, abrindo os alicerces e não prosseguindo na obra, dê matéria de
riso aos inimigos, e de escândalo aos imperfeitos.
Examina diligentemente a doçura e suavidade espiritual que sentes;
não seja por ventura procurada por amargos médicos, isto é, por
falsos enganadores, que são os demônios, que às vezes sóem fazer isto.
De noite insiste muito mais na oração, e pouco no cantar dos Salmos;
e de dia, outra vez, segundo tuas forças, te aparelha para um e para
outro. A lição devota ajuda muito para iluminar o entendimento e
recolher o espírito derramado; porque as palavras da Escritura são
palavras do Espírito Santo, as quais regem e dirigem os que a elas se
chegam. Tu que serás operário procura que a lição sirva para ensinar-
te como hás de obrar, porque a isto se destina a lição, e se já foras
destro em obrar, não te seria tão necessária a lição; contudo, procura
sempre alcançar a verdadeira sabedoria mais com trabalhos e virtudes
do que com livros. Nem te atrevas, sem que estejas guarnecido de
especial virtude, a ler aqueles livros, ou matéria que em alguma coisa
te podem causar dano, quando são tais que excedem tua capacidade;
porque, quando as matérias são di cultosas e escuras, sóem também
escurecer e confundir os fracos espíritos e entendimentos. Um copo de
vinho basta para dar notícia e o gosto de uma grande vasilha de
vinho; uma palavra de um solitário às vezes descobre todo o seu
espírito e perfeição interna.
Trabalha por ter muito xo e muito guardado o olho interior da
alma contra todo o gênero de levantamento e presunção; porque,
entre os portos espirituais, nenhum há mais perigoso do que este.
Quando saíres fora, toma tento na língua; porque esta sói, em pouco
tempo, derramar e destruir muitos trabalhos. Procura ter uma maneira
de vida alheia de toda a curiosidade; porque não há coisa que tanto
atrapalhe a vida do solitário quanto este vício, que, esquadrinhando a
vida alheia, faz o homem olvidar a sua.
Quando alguns vierem a visitar-te, além do serviço da hospedagem,
trata com eles coisas necessárias e proveitosas, para que não só sirvas
a seus corpos, mas também a suas almas. Se eles forem mais solícitos
do que nós, procuremos edi cá-los mais com o silêncio do que com as
palavras; se, porém, forem irmãos e do nosso mesmo estado, com
temperança deixemos abrir a porta do silêncio, conquanto seja melhor
tê-los a todos por superiores. Querendo eu uma vez impedir aos novos
na religião o trabalho corporal, para que não lhes fosse impedimento e
lhes ocupasse o tempo do exercício espiritual, desisti deste propósito,
recordando-me daquele santo velho, de quem se escreve que, para
vencer o sono da noite, andava levando e trazendo cargas de areia, em
uma ponta do hábito, de um lado para outro da cela.
Assim como falamos diferentemente no mistério da santíssima e
beatíssima Trindade e no da santíssima Encarnação do Filho de Deus,
naquele pondo uma só natureza em três pessoas, que são o Padre, o
Filho, e o Espírito Santo, neste uma só pessoa em três naturezas, que
são divindade, alma e carne, assim são os estudos que convêm à vida
quieta e solitária, e outros os que convêm à vida da sujeição e
obediência. Disse aquele Apóstolo: Quem conhecerá o sentido do
Senhor? Mas, eu digo: quem conhecerá o sentido do homem, que com
o corpo e com o espírito alcançou a verdadeira soledade?
CAPÍTULO XXVIII

Da oração

Oração, segundo sua condição e natureza, é união do homem com


Deus; mas, segundo seus efeitos e operações, oração é guarda do
mundo, reconciliação com Deus, mãe e lha das lágrimas, perdão dos
pecados, ponte para passar as tentações, muralha contra as
tribulações, vitória das batalhas, obra de anjos, mantimento das
substâncias incorpóreas, gosto da futura alegria, obra que não se
acaba, veio de virtudes, procuradora das graças, aproveitamento
invisível, mantimento da alma, luz do entendimento, cutelo da
desesperação, argumento da fé, desterro da tristeza, riqueza dos
monges, tesouro dos solitários, diminuição da ira, espelho do
aproveitamento, indício da medida das virtudes, declaração de nosso
estado, revelação das coisas futuras, e signi cação da clemência divina
aos que perseveram chorando nela.
Tudo isto se diz ser a oração; porque, para todas estas coisas, ajuda
o homem, pedindo e alcançando a caridade, e a devoção, e a graça, as
quais nos administram todas estas coisas.
A oração (para aqueles que direitamente oram) é um espiritual juízo
e tribunal de Deus, que precede o tribunal do juízo posterior à morte;
porque nela o homem se conhece, se acusa, se escusa, pede
misericórdia, para evitar que Deus o condene, como diz o Apóstolo.
Levantemo-nos, pois, irmãos; ouçamos esta grande ajudadora de
todas as virtudes, a qual em alta voz clama e diz assim: Vinde a mim
todos os que trabalhais e estais carregados, que eu vos reforçarei;
tomai meu jugo e achareis descanso para vossas almas e medicina para
vossas chagas, porque meu jugo é suave e cura grandes chagas. Nós
que nos chegamos a falar e assistir diante de nosso Deus, não façamos
isto sem aparelho, para que, observando-nos aquele longânime e
misericordioso Senhor sem armas e sem vestidura digna do seu real
acatamento, não mande a seus criados e ministros que, atados de pés e
mãos, nos desterrem de sua presença e nos lancem em rosto a
negligência e interrupção de nossas orações.
Quando te fores apresentar à face do Senhor, procura levar a
vestidura de tua alma cozida com o o daquela virtude que se chama
olvido das injúrias; porque de outra maneira nada ganharás com a
oração. Seja todo o o da oração simples, sem multiplicação e
elegância de palavras, pois com uma só palavra se reconciliaram com
Deus o Publicano do Evangelho e o Filho Pródigo.
Um é o estado dos que oram, porém nele há muita variedade e
diferença de orações: pois, há uns que assistem diante de Deus como
diante de um amigo e senhor familiar, oferecendo-lhe louvores, não
tanto por sua própria salvação como pela de outros, como fazia
Moisés; outros há que lhe pedem maiores riquezas e maior glória e
con ança; outros pedem instantemente para de todo carem livres do
inimigo. Alguns há que pedem honras e dignidades; outros, perfeita
paga de suas dívidas; outros, o livramento do cárcere desta vida;
outros desejam ter como responder às acusações e objeções do divino
juízo.
Mas, antes de tudo, ponhamos, à entrada de nossa oração, uma
sincera ação de graças; em segundo lugar, venham do íntimo afeto de
nosso coração a con ssão e contrição; e, depois, signi quemos nossas
necessidades e façamos nossas petições. Esta é uma muito boa ordem e
maneira de orar, a qual foi revelada por um anjo a um dos monges.
Se alguma vez te viste acusado diante do tribunal de algum juiz
visível, não tens necessidade de outro exemplo para entender de que
maneira hás de estar na oração diante de Deus; mas, se nunca te viste
nisso, nem tampouco viste outros nesse ato, põe os olhos nos rogos
que fazem aos médicos os que têm de ser cauterizados, ou operados,
para que daqui aprendas a gura de ânimo com que hás de orar.
Não uses de palavras adornadas e elegantes na oração; porque,
muitas vezes, as palavras dos meninos, pura e simplesmente ditas, e
quase tartamudeando, bastaram para aplacar seu pai que está nos
céus. Não trabalhes por falar demasiadas palavras na oração, para
que não se distraia teu espírito, inquirindo e buscando muitas coisas
que dizer. Uma palavra do Publicano aplacou a Deus e outra el
palavra salvou o bom ladrão. Falar muito na oração foi, muitas vezes,
ocasião de encher-se a alma de diversas imagens de coisas e de perder
a atenção; mas, falar pouco, ou uma palavra na oração, sói recolher
mais o espírito. Quando em alguma palavra de oração tua alma sente
alguma suavidade e compunção, persevera nela; porque, então, o
nosso anjo ora juntamente conosco.
Não te chegues à oração, con ado em ti mesmo, ainda que seja
grande tua pureza; antes chega-te com suma humildade, e assim
receberás maior e mais segura con ança. E ainda que tenhas subido
até o último degrau das virtudes, todavia pede com humildade perdão
dos pecados, pois ouves clamar a São Paulo e dizer: Eu sou o primeiro
dos pecadores. O sal e o azeite sóem adubar os guisados, mas a
castidade e as lágrimas levantam muito a oração.
Se desterrares de ti a ira e te revestires de mansidão, não passarás
muito tempo sem que venhas libertar tua alma do cativeiro de suas
paixões. Enquanto não temos alcançado uma xa e estável maneira de
orar, somos semelhantes aos que ensinam andar aos meninos; porque
assim andamos pouco e embaraçadamente como andam estes.
Trabalha, quanto puderes, por levantar teu espírito ao alto, e também
por tirá-lo às vezes da inteligência das próprias palavras que vais
dizendo, para suspendê-lo a Deus, tanto quanto te seja possível; e se,
por tua imperfeição, caíres disto, trabalha por volver ao mesmo o,
porque própria é de nossa alma esta miserável instabilidade, mas a
Deus também é próprio fazê-la estar xa somente nele. E se neste
exercício pelejares varonilmente sem cessar, presto virá em ti quem
ponha cerca e termos ao mar de teus pensamentos, e diga: Até aqui
chegarás e não passarás adiante.
Não é possível atar e ter preso o espírito; mas quando sobrevém o
Criador dos espíritos, todas as coisas obedecem. Se alguma vez tiveste
olhos para mirar a majestade e resplendor do verdadeiro sol de justiça,
poder-lhe-ás falar com o acatamento e reverência que se lhe deve; mas,
se nunca o miraste com esses olhos, como lhe falarás desta maneira?
O princípio da boa oração é despedir o homem de si, logo à entrada,
todas as ondas de pensamentos que ali se levantam, e isto fazer com
um só secreto império da alma, que de tudo isto se sabe sacudir; o
meio é ter todo o espírito atento às coisas que diz ou que pensa; o m
é transportar-se e arrebatar-se o homem para Deus.
Uma é a alegria da oração dos que oram em soledade; pois, aquela,
por ventura, não carece algumas vezes de imaginações e fantasias, mas
esta é toda cheia de humildade. Se te exercitares e te acostumares a
trazer o coração recolhido, não o deixando sair muito longe de casa,
muito perto de ti estará quando te assentares à mesa; mas, se o
deixares andar solto por onde quiser, nunca o poderás ter contigo.
Aquele grande obreiro de grande e perfeita oração dizia: Quero
dizer cinco palavras sentidas na igreja, etc. Mas, isto não convém
tanto aos principiantes; e, assim, nós outros acrescentamos à
qualidade (que é o estudo da devoção) a quantidade (que é a multidão
de palavras). Destas, como fracos que somos, temos necessidade; e
pelo segundo chegamos ao primeiro. Dizia um santo varão: Faze
oração fervorosa e limpa por aquele que a faz com coração sujo e
derramado.
Por isso, é de saber que uma coisa é imundície na oração, e outra
desterro, e outra furto, e outra mácula. Imundície é assistir diante de
Deus revolvendo no coração maus pensamentos. Desterro é ser ali o
homem preso e levado a outra parte com cuidados inúteis. Furto é
quando, secretamente e sem que o sintamos, se distrai e derrama nossa
atenção. Mácula é qualquer ímpeto de paixão que naquele tempo nos
sobrevém e mancha nossa oração.
Quando zermos nossa oração em companhia de outros,
procuremos recolher nosso coração, e procuremos despertar
interiormente nossa devoção sem mostrar exteriores. Mas, se estamos
sós (onde não haja ocasião de louvores humanos, nem temor dos
olhos de quem nos observa), aproveitemo-nos também de guras e
gestos exteriores para ajudar a devoção, tais como bater nos peitos,
levantar os olhos para o céu, prostrar-nos em terra, estender os braços
em cruz, e outras coisas semelhantes; porque muitas vezes acontece
que o espírito dos imperfeitos se levanta com isto e se conforma com
os movimentos exteriores.
Todos os que desejam alcançar mercê do Rei, e assinaladamente os
que pedem remissão de suas dívidas, têm necessidade de grande
contrição e sentimento do coração. Se nos consideramos presos no
cárcere, ouçamos àquele que diz a Pedro: Cinge a cinta da obediência
e descalça os sapatos de tuas próprias vontades; e, despido e livre
delas, chega-te ao Senhor, pedindo-lhe de todo o teu coração somente
que se cumpra a sua vontade. E ele logo virá a ti, tomará em sua mão
o governo de tua alma para regê-la. E, levantando-te do amor do
século, e corrupção dos deleites, despede de ti os cuidados supér uos,
aparta as imaginações, e nega teu mesmo corpo: porque a oração não
é outra coisa senão alienação e apartamento de todo este mundo
visível e invisível; isto é, que com tanta atenção te convertas a Deus,
que te olvides de todas as coisas. Por isso, dizia o Profeta: Que tenho
eu que ver no céu, que quis eu de ti sobre a terra, senão ligar-me
sempre a ti por meio da oração e sem distração alguma? Uns há que
desejam riquezas; outros, honra; outros, outras coisas mortais e
terrenas: mas, para mim, todo o meu bem e meu desejo é ligar-me a
Deus, e pôr nele a esperança da minha tranqüilidade, que só ele pode
dar-me.
A fé é asa da oração, sem a qual não pode voar ao céu. Façamos
instantemente, nós que estamos sujeitos a diversas paixões e
perturbações, oração a Deus; porque todos os que assim a zeram,
chegaram a este porto de bem-aventurada tranqüilidade, depois de
passado o golfo destas paixões e perturbações. Recordemo-nos
daquele juiz do Evangelho, que, conquanto não temesse a Deus como
a Deus, mas importunado pela viúva, lhe fez justiça; e não menor o
fará aquele Juiz soberano, se for importunado pela alma que pelo
pecado cou viúva, porque lhe fará justiça contra o adversário de seu
corpo e também contra os outros, que são os maus espíritos.
Sói o Senhor incendiar mais em seu amor aos homens agradecidos,
ouvindo mais presto sua oração. Ao contrário, dilata a petição dos
ingratos, para que, como os cães, com a sua fome e sede mais atiçadas
pela dilação, perseverem em sua demanda; pois, costume é dos cães,
quando se lhes dá logo o pão que pedem, abocanhá-lo logo e fugir de
quem o deu. Não digas, depois de haver estado em oração, que nada
aproveitaste; pois, já aproveitaste em estar ali. Que coisa pode ser
mais alta do que chegar-se ao Senhor e perseverar com ele nesta
unidade? Não teme tanto o condenado a pena de sua condenação,
quanto teme o estudioso amador da oração, quando assistido nela
ante a majestade de Deus, pensa em não ofender ali os olhos daquele a
quem se apresenta. Por isso, com a memória deste exemplo, pode
sacudir de si neste tempo todo o gênero de paixão, de ira, de a ição,
de derramamento de coração, de cansaço, de fastio e de qualquer
outra tentação ou pensamento desvairado.
Aparelha-te para a oração com perpétua oração (que é trazendo
sempre o coração recolhido e devoto), e desta maneira entrarás logo
em calor começando a orar, e aproveitarás muito em pouco tempo.
Conheci eu alguns que resplandeciam na virtude da obediência, e que
procuravam com todas as suas forças trazer sempre Deus em sua
memória, os quais corriam ligeiramente ao estudo da oração, onde
muito presto recolhiam seu espírito e derramavam de si fontes de
lágrimas, porque já estavam para isso aparelhados por meio da santa
obediência.
Quando cantamos os Salmos em companhia de outros, soem
inquietar-nos as imaginações mais do que quando oramos em
soledade; porém, com tudo isso, aquela oração é ajudada com o fervor
e exemplo dos outros e esta outra muitas vezes combatida com o vício
da acídia. A delidade do cavaleiro para com o seu capitão se
descobre na guerra, mas a caridade do verdadeiro monge para com
Deus se descobre na oração, se está nela como deve, de sorte que a
oração é que declara o estado e disposição em que está tua alma. Por
isso com muita razão dizem os teólogos que é ela um verdadeiro
espelho do monge. Aquele que se ocupa em alguma obra, e não quer
desistir dela chegando ao tempo da oração, não sendo obra de
obrigação, entenda que padece engano do inimigo; porque a intenção
sua é furtar-nos esta obra com os impedimentos e negócios da outra.
Quando alguém te pedir que faças oração por ele, não te escuses,
ainda que não tenhas alcançado a virtude da oração, porque a fé e a
humildade daquele que pediu, foi, muitas vezes, causa de salvação ao
que orou. Outrossim, não te ensoberbeças por teres sido de Deus
ouvido quando oraste por outro; porque hás de crer que a fé daquele
valeu para com Deus. Sóem os mestres pedir cada dia conta aos
alunos do que uma vez lhes ensinaram; e Deus, em cada oração, nos
pede justamente conta da graça que nos deu, para ver em que a
empregamos e como a agradecemos. Portanto, devemos solicitamente
notar, quando atentamente oramos, que os demônios algumas vezes
nos tentam de ira, o que fazem para privar-nos do fruto da oração.
Em todos os exercícios das virtudes, especialmente no da oração,
convém exercitar-nos com grande vigilância e atenção; e, então, a
alma chega a orar desta maneira, quando há chegado já a estar
senhora da ira. Não descon es quando se dilatar o cumprimento de
tuas petições, porque a fazenda que se ganhou com muitas orações,
com muito tempo, e com muito trabalho, mais segura é e mais
durável. Aquele que tem chegado já a possuir o Senhor, não tem tanta
necessidade de esforço em dispor-se para a devoção, porque o Espírito
Santo roga dentro dele em gemidos que não se podem declarar. Não
admitas na oração visões e guras sensíveis, para que não venhas a
perder o siso e sair de ti. Tem outra virtude a oração, e é que nela
mesma se descobrem grandes indícios de haver sido recebida e ouvida
nossa petição; e com tal virtude ca o homem livre de muitas
perplexidades e angústias.
Se fores amigo da oração, sejas também da misericórdia; porque
esta fará que sejas misericordiosamente de Deus ouvido, pois tu
também por ele ouviste o próximo. Na oração recebem os monges
aquele cento por um (que o Senhor prometeu ainda neste século), com
a abundância de bens que ali se dão, e depois receberão a vida eterna.
O fervor do Espírito Santo com que às vezes o homem é visitado,
desperta a oração; e, depois que a tem despertado e levado ao céu, ele
ca em nossa alma e se aposenta nela.
Dizem alguns que é melhor a oração que a memória da morte; eu,
contudo, louvo em uma pessoa duas substâncias, e assim também
louvo em um mesmo exercício estas duas virtudes. Entretanto,
absolutamente falando, a oração é mais excelente, porque se chega
mais o homem a Deus falando com ele, está mais perto da
contemplação, por ela se alcançam muitas coisas que se pedem, o que
não acontece com a memória da morte, a qual, aliás, para outras
coisas vale muito.
O bom cavalo, quanto mais entra na carreira, mais ferve e mais
deseja passar adiante: por esta carreira entendo o cantar dos Salmos e
por este cavalo o monge que os canta, o qual, quanto mais entra na
espiritual carreira, mais se acende em devoção e mais deseja passar
adiante. E este cavalo é o que desde longe palpita a guerra; e, assim
aparelhando-se com tempo para ela, se faz inexpugnável.
Cruel coisa é tirar a água da boca de quem tem sede; porém, mais
cruel é apartar-se da oração a alma, quando ora com um grande afeto
de compunção, e privá-la deste tão doce estado, e tão digno de ser
desejado, antes que perfeitamente se acabe esta oração. E, portanto,
nunca te apartes da oração, até que vejas perfeitamente acabado por
divina dispensação o fogo e a água que ali se te deu, que é o fervor da
caridade e a água da compunção; pois, por ventura, não acharás outro
lance tão aparelhado para negociar o perdão dos teus pecados.
Muitas vezes acontece, a quem há começado a gostar de Deus na
oração, perder com uma palavra o que tinha nas mãos, e sujar sua
alma, e, estando na oração não achar o que deseja, como costumava: e
por essa palavra entendo ou algum pensamento desvairado que ali
recolhemos, ou por ventura alguma palavra de jactância que depois
daquela hora falamos. Uma coisa é contemplar, com o coração, as
coisas celestiais e divinas; e outra é que o mesmo coração, à maneira
de príncipe ou de pontí ce, faça ofício de olhar para si e examinar os
animais que há de oferecer a Deus em sacrifício, isto é, as paixões que
há de morti car e as obras de justiça que há de fazer, para que se
conheça a si mesmo e entenda tudo o que faz.
Alguns há, como diz Gregório Teólogo, que, vindo sobre eles o fogo
do Espírito Santo, de tal maneira os abrasa que os purga e puri ca;
mas, outros há a quem este divino fogo, depois de purgados, alumia,
segundo a medida de sua perfeição: porque este mesmo fogo umas
vezes é fogo que consome e outras vezes é luz que alumia. De onde
nasce que alguns, acabando sua oração, saem dela como de uma
fornalha que os há purgado e, assim, sentem em sua alma um certo
alívio e descarga do peso de suas culpas, apesar de não terem disso
certeza; ao passo que outros saem dela cheios de luz e vestidos de duas
vestiduras, isto é, de alegria e humildade. Se os que hão orado não
saírem da oração com algum destes afetos, podem conjecturar de si
que oraram à maneira de judeus, mais com o corpo do que com o
espírito. Se o corpo, chegando-se a outro corpo contrário, recebe dele
alguma impressão ou alteração, como não a receberá aquele que com
mãos inocentes se chega ao sacratíssimo corpo de Cristo? Muito bem
podemos contemplar, por nós mesmos, o nosso Celestial e
Clementíssimo Rei, conforme a semelhança de algum rei terrenal, o
qual, algumas vezes por si mesmo, e outras por secretas maneiras, faz
mercês aos seus, conforme a qualidade de humildade que em nós acha,
e segundo a qual se repartem e comunicam estes dons. Assim como é
abominável ao rei da terra aquele que, estando diante dele, fala
familiarmente com os inimigos dele, assim também o é aquele que,
assistindo diante de Deus na oração, abre por sua vontade a porta a
pensamentos sujos. Quando se chegar a ti este perverso cão, fere-o
com armas espirituais, e se todavia perseverar ladrando
desavergonhadamente, não cesses de feri-lo.
Pede mercês a Deus por meio do pranto, busca pela obediência e
chama pela longanimidade; porque quem desta maneira pede, recebe;
quem assim busca, acha; e quem assim chama, abre.
Se, estando em oração, queres rogar a Deus por alguma mulher,
considera que isto seja com tal recato e discrição, que o Demônio não
te assalte de través e te roube o coração. Assim mesmo, quando na
oração choras e acusas teus pecados, seja de tal maneira que não
tomes ocasião para, mediante a representação e imagens deles,
enlaçar-te em alguma paixão. Quando chega o tempo da oração, não
hás de tratar ali dos cuidados necessários, nem de outros negócios
peregrinos, ainda que sejam bons, a m de que com esta ocasião, não
te roube o melhor aquele ladrão; aliás, cerrada a porta a todas estas
coisas, (como diz o Senhor), ora ao teu pai em escondido.
Aquele que traz continuamente o báculo da oração para sustentar-se
nele, não tropeçará; e se acontecer tropeçar, não cairá de todo, porque
a oração ajudá-lo-á a levantar-se fazendo piedosamente força a Deus.
Quanta seja a autoridade da oração, entre outros argumentos, não é
o menor ver os impedimentos e imaginações que o Demônio nos
representa ao tempo em que estamos cantando os Salmos em
comunidade; pois, tal não faria aquele perverso inimigo, se não
sentisse o grande proveito que daí nos vem. Também se conhece o
fruto desta virtude com a vitória contra este mesmo inimigo e suas
tentações; como diz o Profeta: Conheci, Senhor, que me quiseste,
porque não consentiste que o meu inimigo se alegrasse sobre mim, e,
como diz o Salmista: No tempo da batalha clamei, Senhor, a ti com
todo o meu coração, isto é, com meu corpo, com minha alma e com
meu espírito, porque onde estão estes ajuntados, ali está o Senhor no
meio deles.
Nem os exercícios corporais, nem os espirituais, igualmente convêm
a todos, a uns convêm mais estes, a outros aqueles. Daqui nasce que
uns se dão melhor com o cantar mais depressa, outros mais devagar,
porque aqueles se defendem da distração dos pensamentos com o
cantar apressado, e outros dizem que com o cantar vagaroso guardam
melhor a disciplina religiosa. Se continuadamente zeres oração ao
Rei do céu contra os inimigos de tua alma, tem esforço e con ança,
porque, antes de muito tempo e trabalho, eles mesmos fugirão de ti, a
m de te não darem ocasião e matéria de tantas coroas com o açoite
da oração. Tem sempre fortíssimo ânimo e constância neste exercício
e, assim, terás a Deus por mestre de tua oração, porque ele te ensinará
como hás de orar.
Ninguém pode aprender, com palavras, a ver; pois, isto é coisa que
naturalmente se faz e não se aprende. Assim, digo eu, ninguém pode
aprender, por doutrina de outro, quanta seja a formosura da oração.
Esta tem em si mesma a Deus por mestre, o qual ensina ao homem a
sabedoria, e dá oração ao que ora, e abençoa os anos e obras dos
justos.
CAPÍTULO XXIX

Da paz de espírito

Tratemos do céu terrenal, que é a bem-aventurada tranqüilidade, isto


é, a perfeição e ressurreição espiritual da alma antes da comum
ressurreição. Aqui haveis de ver como nós, estando em um
profundíssimo lago de ignorância, e postos no meio de perturbações e
da sombra da morte deste miserável corpo, com grande atrevimento e
ousadia, queremos losofar sobre este céu terrenal.
Este céu, que vemos, está aformoseado com estrelas, e não menos
está adornada esta bem-aventurada tranqüilidade com o ornamento
das virtudes; pois, nenhuma outra coisa penso que seja esta
tranqüilidade senão um íntimo e espiritual céu de nossa alma, onde
não chegam as impressões peregrinas e turbulentas que se criam na
média região de nossa sensualidade, no qual céu, posta a alma do
varão perfeito, despreza ele todos os enganos dos demônios como
coisa de escárnio. Possui, pois, verdadeira e propriamente, esta
tranqüilidade ou impassibilidade, aquele que purgou já sua carne de
toda a mácula de corrupção; levantando seu espírito sobre todas as
criaturas, olvidando-se de todas elas, sujeitou a si todos os seus
sentidos, não usando deles senão conforme a razão; e assistindo
sempre com sua alma ante a face do Senhor, trabalha, mesmo além da
medida de suas forças, por chegar-se mais e mais a ele, fazendo tudo,
tudo, tudo por amor, contemplação e imitação dele. Outros há que,
de nindo esta bem-aventurada tranqüilidade, dizem ser ela a
ressurreição da alma antes da ressurreição do corpo; e explicam que
este estado nada mais é do que um traslado e imitação daquela pureza
e vida dos bem-aventurados, tanto quanto segundo a condição desta
mortalidade é possível. Outros dizem que esta virtude é um perfeito
conhecimento de Deus, conhecimento tão alto que tem o segundo
lugar depois do conhecimento dos anjos.
Esta perfeita perfeição dos perfeitos de tal maneira santi ca o
homem, e assim o arrebata sobre todas as coisas terrenas, que, depois
de haver ele entrado neste porto celestial, a maior parte desta vida
carnal gasta em estar absorto e extasiado em Deus, como se a sua
conversação, como disse o Apóstolo, já fosse nos céus. Deste estado
fala muito bem aquele que o experimentara: Grandemente, Senhor,
hão sido levantados e exaltados os deuses fortes da terra,
denominando deuses a esses homens divinais que estão levantados
sobre todas as criaturas do mundo. Tal foi um daqueles Santos Padres
do Egito, de quem se escreve que, quando algumas vezes, orando em
companhia de outros, não ousava levantar as mãos, conservando-as
postas, porém inclinadas, para baixo. Há entre estes bem-aventurados
uns mais perfeitos que outros; porque uns há que aborrecem
grandemente os vícios, e outros há que insaciavelmente estão
enriquecidos de virtudes.
Também a castidade se chama, de certo modo, tranqüilidade; e com
razão, porque é como umas primícias da comum ressurreição e da
incorrupção das coisas corruptíveis. Esta tranqüilidade mostrou o
Apóstolo, quando disse que possuía em sua alma o sentido do Senhor.
E esta mesma ensinou que a possuía aquele glorioso Antônio, quando
disse que não tinha medo de Deus; porque a perfeita caridade tinha-
lhe lançado fora o temor. E o mesmo mostrou que tinha aquele
glorioso padre Effren, da Síria, o qual, vendo-se neste estado, rogou a
Deus que volvesse-lhe e renovasse-lhe as batalhas antigas, para não
perder a ocasião e matéria de coroas. Quem, como este sírio, entre
aqueles padres gloriosos, alcançou essa tranqüilidade antes da glória
futura? O rei Davi, sendo entre os profetas tão esclarecido, disse:
Concede-me, Senhor, um pouco de refrigério; mas, aquele glorioso
cavaleiro achava-se muitas vezes tão cheio deste celestial refrigério,
que, não podendo a fraqueza do sujeito sofrer a grandeza desta
consolação, dizia: Detém, Senhor, um pouco as ondas de tua graça.
Tem chegado à posse desta virtude aquela alma que está tão
transformada, tão inclinada e afeiçoada às virtudes, como os homens
muito viciosos a seus vícios. Por aí se vê que, se o cúmulo do vício da
gula é chegar a tal extremo que, sem ter apetite ou gana alguma de
comer, se incite o homem a comer e a romper o ventre com manjares,
o m da abstinência será ter chegado a tão grande temperança, que,
mesmo tendo fome, se abstenha do manjar, quando o pede a razão,
por estar já a natureza livre e não sujeita a desordenados apetites. E se
o cúmulo da luxúria é chegar o homem a tão grande furor e incêndio
da carne, que se afeiçoe a bestas mudas e a pinturas sem alma, será
sem dúvida o m da perfeita e heróica castidade guardar seus sentidos
tão inocentes em todas as coisas que veja, como se carecesse de alma.
E se o cúmulo da avareza é nunca ver-se o homem farto, nem deixar
de amontoar, ainda que se veja muito rico, será o m da perfeita
pobreza não fazer caso, nem a igir-se de modo algum pela falta das
coisas ainda mais necessárias ao corpo. E se o cúmulo da ira é carecer
de paciência em qualquer descanso e repouso que o homem tenha, o
m da paciência será que, em qualquer tribulação em que se achar,
pense que tem descanso. E se o cúmulo da vanglória é ngir o homem
mostras e guras de santidade (ainda que não esteja presente ninguém
que o louve), o m de perfeita humildade será não alterar-se nosso
coração com movimentos de vanglória, em presença dos que nos estão
orando e louvando. E se o pélago da ira é embravecer-se o homem
consigo mesmo, ainda que não haja quem o provoque à ira, será o
abismo da longanimidade conservar a mesma tranqüilidade de ânimo,
tanto com a presença, como com a ausência, dos que nos desonram e
maldizem. E se é espécie de perdição, ou de soberba, orgulhar-se o
homem com um hábito vil, argumento será de muito saudável
humildade conservar a alma inalterada no meio das grandes
dignidades e feitos ilustres. E se é argumento de homem
completamente vicioso obedecer ao Demônio em todas as coisas que
nos propõe, será indício de beatíssima tranqüilidade poder dizer com
e cácia: “Não conhecia eu ao maligno, nem quando se desviava de
mim, nem quando vinha para mim”; porque para todas as suas coisas
estava já como insensível.
Aquele que mereceu chegar a este estado, vivendo na carne, não se
torna impecável; mas tem Deus dentro de si, para regê-lo e governá-lo
em todas as suas palavras, e obras, e pensamentos, conforme a sua
santíssima lei. E este tal pode já com o Profeta dizer: Ouvirei falar em
mim o Senhor Deus, cuja doutrina está acima de todas as ciências e
doutrinas. E ensinado e afetado desta maneira, dizer com o mesmo
Profeta: Quando aparecerei ante a face de meu Deus? E isto porque já
não suporta a força e e cácia deste desejo e, assim, busca aquela
imortal formosura, que Deus, com o barro desta carne, determinou
dar à nossa alma, quando a criou.
Quem em tal estado vive, vive ele, mas já não ele, porque vive em
Jesus Cristo, como disse aquele que havia combatido o bom combate,
e acabado sua carreira, e guardado sua fé. Não basta uma só pedra
preciosa para fazer uma coroa real; mas, aqui, não bastam todas as
virtudes para alcançar esta tranqüilidade, se em uma só formos
negligentes. Imaginemos que a tranqüilidade é o mesmo palácio real,
que está no céu, e que dentro de tão nobre cidade, ao redor do
palácio, estão muitos aposentos e habitações; o muro desta celestial
Jerusalém é o perdão dos pecados, porque quem a ele chega está
perdoado. Corramos, pois, irmãos, corramos, para que mereçamos
gozar da entrada e aposento neste palácio real; mas, se for tão grande
nossa miséria, que, impedidos por alguma carga, ou paixão nossa, não
possamos lá chegar, ao menos trabalhemos por ocupar alguma
morada perto deste tálamo e palácio divino. E se ainda isto nos
impede nossa tibieza, ao menos procuremos ser recebidos dentro deste
sagrado muro; pois, aquele que, antes do m da vida, não entrar nele,
depois virá a morar no deserto e soledade dos demônios e dos vícios.
Por isso, orava aquele santo que dizia: Com o favor de Deus passarei
o muro; e outro, que em pessoa de Deus dizia: Vossos pecados
atravessarão um muro entre vós e Deus.
Rompamos, irmãos, este muro edi cado com a nossa desobediência;
procuremos receber a quitação de nossas dívidas, porque no inferno
não há quem as salde, nem quem as possa perdoar. Demo-nos pressa,
pois, irmãos, e entendamos no negócio da nossa pro ssão, porque
estamos inscritos no recrutamento do nosso Celestial Imperador, para
pelejar nesta guerra. Não nos escusemos com a carga de nosso corpo,
nem com a condição do tempo, nem com o ser tão desprezível a nossa
natureza; pois, todos nós, que fomos lavados e regenerados no
Batismo, recebemos poder para fazer-nos lhos de Deus. Conhecei, diz
o Senhor, que eu sou Deus, eu sou vossa tranqüilidade e redenção dos
pecados. Esta santa tranqüilidade levanta da terra e do esterco dos
vícios os espíritos humildes; e a caridade os junta com os príncipes do
povo do Senhor, e os assenta com os espíritos angélicos.

ANOTAÇÕES
Para entendimento deste capítulo, é de notar que o autor, estando
prestes a chegar ao m do livro e ao último degrau desta escada
espiritual, trata do estado perfeitíssimo dos santos, e das virtudes
perfeitíssimas deles, as quais se chamam virtudes heróicas, ou virtudes
do ânimo já puri cado. Na virtude se consideram três graus: o
primeiro, quando há forte peleja contra as paixões; o segundo, o do
meio, quando, morti cadas as paixões, a obra é feita com facilidade,
prontidão e suavidade; o último, o supremo, é o das virtudes heróicas,
que tiveram alguns grandes santos, chegados que foram ao termo de
sua perfeição, purgados de todas as fezes e escórias das paixões,
afeições e coisas terrenais. Destas virtudes é que trata neste capítulo
este santo varão.
Conquanto estas virtudes não sejam de todos, todavia são postas
aqui, para que entendamos até onde pode levantar a Divina Graça os
homens nesta vida, e assim vejamos o que perdemos por nossa
negligência, e também para que nos humilhemos e abaixemos a cerviz
de nossa soberba, vendo quão longe estamos desta tão grande
perfeição que muitos santos alcançaram. E não pense o homem que,
por chegar alguma vez a ter alguma virtude, ou algum ato de virtude
que em algo se pareça com essas, não pense que já tem chegado a este
felicíssimo estado; porque uma coisa é possuir todas ou quase todas as
virtudes com perpetuidade neste grau, e outra é chegar alguma vez a
ter alguma virtude semelhante a estas, pois, como disse Aristóteles,
alguma vez acontece que a vida do sábio se pareça em um momento
tal qual é eternamente a vida do primeiro princípio. Desta matéria
veja quem quiser a São Tomás, na Ia IIae, q. 61, art. 5, onde achará
coisas mais altas do que as que se dizem neste capítulo, e algumas
ditas por boca de gentios.
CAPÍTULO XXX

Da união e vínculo das três virtudes


teologais: fé, esperança, caridade

Depois de tudo que temos até aqui tratado, seguem-se as três virtudes:
fé, esperança, caridade; com as quais estão unidas e travadas todas as
outras virtudes e dons do Espírito Santo, visto que todas elas se
ordenam a estas três; e estas três dirigem, informam e aperfeiçoam a
todas elas. A maior é a caridade, pois o mesmo Deus se chama
caridade, conquanto caridade incriada. A primeira destas três virtudes,
que é a fé, aparece-nos como raio que procede daquela verdade
incriada, para alumiar nosso entendimento. A segunda, que é a
esperança, é como luz com a qual o coração é alumiado para esperar
as promessas divinas. A terceira, que é a caridade, é como um círculo
perfeito, que inclui dentro de si todas as virtudes, pois é motivo de
todas elas e a todas comunica sua perfeição. Finalmente, a primeira
pode todas as coisas em Deus; a segunda anda sempre ao redor de sua
misericórdia e livra a alma de confusão; a terceira permanece para
sempre e nunca deixa de correr, porque aquele que está tocado deste
bem-aventurado furor, não pode já repousar.
Aquele que determina falar da caridade, determina falar de Deus; e
querer falar de Deus é coisa perigosa e perplexa aos que não miram
cautamente a empresa que tomam. Deus é caridade; e, por isso, quem
determina falar do m desta virtude, se faz semelhante a quem
quisesse medir a areia do mar.
Caridade, segundo sua qualidade, é semelhança de Deus, segundo
nos homens se pode achar; porque caridade é uma semelhança
participada do Espírito Santo, o qual essencialmente é amor do Pai e
do Filho, de onde nasce que, com qualquer outra virtude, não se faz o
homem mais semelhante a Deus do que com esta. Mas, segundo sua
e cácia, caridade é uma saudável embriaguez, que docemente
transporta o homem a Deus e o tira de si; segundo sua propriedade,
caridade é fonte de fé, abismo de longanimidade, e mar de humildade,
não porque seja causa destas virtudes quanto à essência delas, e sim
quanto ao exercício de seus atos. A caridade tudo crê, tudo espera, e
em tudo humilha elevando e eleva humilhando àquele que a tem.
Finalmente, a caridade perfeita é desterro de toda a má intenção e
pensamento, porque a caridade, como diz o Apóstolo, não pensa mal.
A caridade e tranqüilidade, e o espírito e adoção de lhos de Deus,
só nos nomes se distinguem; porque assim como a luz, o fogo e a
chama
concorrem em uma mesma obra, assim também o fazem estas três
virtudes. Segundo a medida ou falta da divina luz, assim tem a alma o
temor de Deus, porque aquele que de todo está sem gênero algum de
temor, está cheio de caridade, ou está morto em sua alma. Verdade é
que da perfeita caridade nasce o verdadeiro e santo temor de Deus, o
qual também acrescenta o mesmo amor de Deus, de onde nasce. Não
será coisa desordenada, nem fora de propósito, se tomarmos exemplo
das coisas humanas para declarar a qualidade dos santos desejos, do
temor, do fervor, do zelo, da servidão e do amor de Deus, como um
furioso enamorado do mundo anda perdido pelo que ama. Bem-
aventurados aqueles que temem a Deus, como os malfeitores e
sentenciados à morte temem o juiz e o executor da sentença. Bem-
aventurado aquele que anda tão solícito no serviço de Deus, como
alguns prudentes criados andam no serviço de seus senhores. Bem-
aventurado aquele que com tão grande zelo vela e está atento no
estudo das virtudes, como o marido zeloso no que toca à honestidade
de sua mulher. Bem-aventurado aquele que de tal maneira assiste ao
Senhor em sua oração, como alguns ministros assistem diante de seu
rei. Bem-aventurado aquele que trabalha por aplacar a Deus e
reconciliar-se com ele, como alguns homens procuram aplacar e
buscar a graça das pessoas poderosas de que têm necessidade.
Não anda a mãe tão ligada ao lho que cria a seus peitos, como o
lho da caridade anda sempre ligado a seu Senhor. Aquele que
verdadeiramente traz sempre diante dos olhos a gura do que ama, e o
abraça no íntimo de seu coração com grande deleite, nem em sono
pode repousar, e então lhe parece que vê a quem deseja e que trata
com ele. Isto se passa no amor dos outros corpos, e o mesmo também
se passa no amor dos espíritos. Com esta seta estava ferido aquele que
dizia: Eu durmo (pela necessidade da natureza) e vela o meu coração
(pela grandeza do amor), isto é, abrasado com o fogo da caridade,
ferido com a seta do amor de Deus. A causa da fome não é muito fácil
de averiguar, mas a causa da sede é mais clara e notória, porque todos
sabem que o ardor do sol é causa dela; por isso, aquele que
ardentemente desejava a Deus, dizia: Teve minha alma sede de Deus,
que é fonte viva.
Se a presença e rosto daquele que verdadeiramente amamos nos
altera e, deixada toda a tristeza, nos enche de alegria, que fará a face
do Senhor, quando invisivelmente entra em uma alma pura e limpa de
toda a mancha? O temor de Deus, quando sai do íntimo do coração,
sói derreter e consumir toda a essência de nossa alma; por isso orava o
Profeta dizendo: Encrava, Senhor, minhas carnes contra o teu temor;
mas, a santa caridade a sói abrasar e de todo consumir, segundo
aquele que disse: Feriste nosso coração, feriste nosso coração. Outros
há a quem faz alegres e enche de resplendor e de luz, conforme as
palavras do Profeta: E nele esperou meu coração, e minha carne com
isto oresceu, e meu rosto com a alegria do coração reverdeceu. Mas,
quando já todo o homem está unido com a divina caridade, e todo,
por assim dizer, argamassado nela, então exteriormente mostra uma
claridade e serenidade que resplandecem no corpo como em um
espelho claro. E esta glória sensível alcançou assinaladamente aquele
grande contemplador de Deus, Moisés.
Aqueles que têm chegado a este grau (que faz dos homens anjos),
muitas vezes se olvidam do manjar corporal e muitas poucas vezes têm
apetite dele, o que não é muito de maravilhar; se muitas vezes uma
paixão veemente, como é uma tristeza grande, ou coisa tal, faz ao
homem olvidar-se do comer, não é muito que quem tem tomado o
gosto deste manjar incorruptível, se olvide das necessidades naturais
do corpo corruptível; pois, está já por graça levantado sobre a
natureza. O corpo está já feito como incorruptível depois de
puri cado pela chama da castidade, com a qual se apagaram as outras
chamas de apetites, de onde vem que muitas vezes, nem mesmo no
manjar que comem, recebem gosto. A água, que está debaixo da terra,
mantém e rega as raízes das plantas, mas as almas destes se sustentam
e regam com o fogo da caridade.
O acrescentamento do temor é princípio da caridade; mas, o m da
castidade é disposição para a celestial Teologia, que é o conhecimento
de Deus; pois, como diz o Profeta, os apartados e desterrados do leite
(isto é, dos afetos e deleites desta vida) são especialmente ensinados
por Deus. Aquele cujos sentidos e potências estão perfeitamente
unidos com Deus, esse é por ele secretamente, no íntimo de sua alma,
instruído e dirigido; mas, os que não estão com ele ajuntados, não
poderão falar dele sem perigo, pois aos tais repreende ele por seu
Profeta, dizendo: Ao pecador disse Deus: Porque tu ensinas minhas
justiças e tomas meu testamento em tua boca? Aquele verbo
substancial e não criado aperfeiçoa a castidade de nossa alma,
morti cando a morte com sua presença; e, sendo esta morti cada,
logo o discípulo da Teologia é ilustrado por Deus, porque o verbo de
Deus (que procede de Deus) casto é e casti cador das almas, o qual
permanece nos séculos dos séculos. Mas, aquele que não conhece a
Deus (com esta maneira de conhecimento experimental), quando fala
de Deus, fala dele árida e escolasticamente; e a virtude da castidade
perfeita faz a seu discípulo verdadeiramente sábio e, como tal, a rma
e confessa o mistério da Santíssima Trindade, que em sua alma
resplandece.
Aquele que ama a Deus, também ama a seu próximo, e este segundo
é argumento do primeiro. Aquele que ama a seu próximo, não sofrerá
que se murmure dele em sua presença. Aquele que diz amar a Deus, e
ira-se contra seu irmão, semelhante é ao que, estando a sonhar, pensa
que corre.
A esperança é fortaleza da caridade, porque por esta virtude espera
ela seu galardão. A esperança é abundância de riquezas invisíveis. A
esperança é tesouro antes do tesouro, descanso dos trabalhos, porta
da caridade, cutelo da desesperação, imagem e representação das
coisas ausentes. A falta de esperança é desterro da caridade; mas, pelo
contrário, assim que amanheceu a esperança viva, começou a aparecer
a caridade. Com a esperança se aliviam os trabalhos e se suspendem as
fadigas, e esta é a que anda sempre ao redor da misericórdia de Deus,
e esta misericórdia ao redor de quem nela espera. O monge abraçado
com a esperança é vencedor da acídia, da qual triunfa com o cutelo
que ela lhe põe nas mãos. Esta maneira de esperança viva procede da
experiência dos dons celestiais, porque aquele que não há
experimentação destes, não carece de dúvida e perplexidade em sua
esperança. Esta mesma esperança se enfraquece com a ira, porque a
esperança não confunde, nem deixa envergonhado ao que espera, ao
contrário da ira, que envergonha o homem irado.
A caridade é dadora de profecia. A caridade é obradora de milagres.
A caridade é abismo de luz. A caridade é fonte de fogo, o qual quanto
mais cresce, tanto mais consome e abrasa a alma sedenta. A caridade é
mãe da paz, fonte de sabedoria, raiz de imortalidade e glória. A
caridade é imitação e estado dos anjos e aproveitamento dos séculos
(que é de todos os escolhidos), cujo aproveitamento se mede pela
caridade.
Dize-nos, pois, agora, ó formosa entre todas as virtudes, onde
apascentas tuas ovelhas e onde dormes ao meio-dia? Alumia,
rogamos, nossas almas, rege-as, guia-as neste caminho, porque
desejamos subir a ti, porque tu tens senhorio sobre todas as coisas,
porque tu agora feriste nossas almas e o íntimo de nossas entranhas, e
já não podemos esconder a chama. Onde iremos quando te tenhamos
louvado? Tu tens senhorio sobre o mar de nosso coração, tu amansas
e forti cas as ondas de nossas paixões; tu humilhas e feres a soberba
de nossos pensamentos e, com teu braço, desbaratas teus inimigos,
fazendo inexpugnáveis teus amigos.
Desejo, pois, saber de que maneira te viu Jacó, arrimado ao alto
daquela escada. Rogo-te queiras ensinar, a este curioso perguntador,
qual seja a espécie desta celestial subida, qual o modo, qual a
disposição e conexão destes espirituais degraus, que o verdadeiro
armador teve, dispôs, e ordenou em seu coração, para subir por eles.
Desejo também saber qual seja o número deles e quanto tempo para
esta subida se requer; porque aquele que por experiência trabalhou
nesta subida e viu esta visão, nos remeteu aos doutores que nos
ensinassem, e ou não quis, ou não pode dizer-nos coisa mais clara.
A estas vozes minhas, a caridade, como uma rainha que baixava do
céu, pareceu-me que dizia aos ouvidos de minha alma: “Ó fervoroso
amante, se não fores destacado da matéria desse corpo, não poderás
entender qual seja minha formosura; e a causalidade e ordem, que as
virtudes têm entre si, te ensinarão a composição desta escada; no alto
dela, estou eu assentada, como o testi cou aquele grande conhecedor
dos segredos divinos, quando disse: fé, esperança, caridade, mas a
maior de todas é a caridade!”.
Subi, pois, irmãos; subi, ordenando alegremente os degraus desta
escada em vosso coração, recordando-vos daquele que disse: Vinde e
subamos ao monte do Senhor, à casa do nosso Deus, que fez nossos
pés ligeiros como de cervos, e nos pôs em lugar alto, para que sejamos
vencedores neste caminho. Correi, rogo-vos, ao lado daquele que diz:
Apressemo-nos a receber o Senhor em unidade de fé e conhecimento
de Deus.
Jesus Cristo, sendo de trinta anos, segundo a plenitude da idade
visível, está posto no trigésimo degrau desta escada espiritual, segundo
a idade invisível; porque Jesus Cristo é Deus e Deus é caridade, como
disse São João. A Jesus Cristo, Deus e Homem verdadeiro, império,
fortaleza, causa de todos os bens, a Jesus Cristo vitória e louvor, assim
como foi, é, e será por todos os séculos dos séculos. AMEN.

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