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Escada do céu
Tradução de João Mendes de Almeida Júnior
Escada do céu
São João Clímaco
1º edição — junho de 2019 — CEDET
Título original: La Santa Escala.
Editor:
Nelson Dias Corrêa
Tradução:
João Mendes de Almeida Júnior
Preparação de texto:
Danilo Carandina
Diagramação:
Thatyane Furtado
Capa:
Mariana Kunii
Desenvolvimento de eBook:
Loope Editora — www.loope.com.br
Conselho Editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
FICHA CATALOGRÁFICA
João Clímaco, São
Escada do céu / São João Clímaco; tradução de João Mendes de Almeida Júnior
— Campinas, SP: Ecclesiae, 2019.
ISBN: 978-85-8491-131-8
1. Cristianismo — 230
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Prólogo
I
II
III
IV
V
Capítulo I. Da renúncia e menosprezo do mundo
Capítulo II. Da morti cação das paixões e vitória sobre apetites e
afetos
Capítulo III. Da verdadeira peregrinação
I
II
Capítulo IV. Da perfeita obediência
I
II
III
IV
Capítulo V. Da penitência
I
II
Capítulo VI. Da memória da morte
Capítulo VII. Do pranto de compunção
I
II
Capítulo VIII. Da morti cação da ira
Capítulo IX. Do esquecimento das injúrias
Capítulo X. Do horror à detração
Capítulo XI. Do comedimento nas palavras
Capítulo XII. Da veracidade
Capítulo XIII. Da solicitude e diligência
Capítulo XIV. Da temperança e do jejum
Capítulo XV. Da castidade
I
II
III
Capítulo XVI. Horror à avareza e coragem na pobreza
Capítulo XVII. Da piedosa sensibilidade
Capítulo XVIII. Prevenção contra o sono vicioso e disposição para os
ofícios divinos
Capítulo XIX. Das sagradas vigílias
Capítulo XX. Prevenção contra o temor temerário ou pueril
Capítulo XXI. Prevenção contra a vanglória
Capítulo XXII. Prevenção contra a soberba
Capítulo XXIII. Horror à blasfêmia
Capítulo XXIV. Da mansidão e simplicidade
Capítulo XXV. Da altíssima humildade, vencedora de todas as paixões
I
II
III
Capítulo XXVI. Da discrição
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
Capítulo XXVII. Da sagrada quietude do corpo e da alma
I
II
Capítulo XXVIII. Da oração
Capítulo XXIX. Da paz de espírito
Capítulo XXX. Da união e vínculo das três virtudes teologais: fé,
esperança, caridade
PRÓLOGO
I
Dos quatro degraus com que São Bernardo arma uma escada espiritual, por
onde os verdadeiros religiosos sobem ao cume da perfeição, o primeiro é a
lição, o segundo a meditação, o terceiro a oração, e o quarto a contemplação,
para o qual se ordenam todos os outros. Os quatro degraus de tal maneira estão
entre si travados, que o primeiro dispõe para o segundo, o segundo para o
terceiro, o terceiro para o quarto; porque a lição dá matéria de meditação, a
meditação, uma vez acendida desperta a oração, e a oração perfeita vem parar
na contemplação, onde a alma, esquecida de todas as coisas e de si mesma,
docemente repousa e adormece em Deus. Por aqui se vê que a lição, como
semente e princípio de todos os outros degraus, assinaladamente é pasto e
mantimento da alma, recolhimento do coração, despertadora da devoção,
porque estes são ofícios próprios da palavra de Deus. E como a lição, para estes
e outros ns, deva ser tão familiar e cotidiana ao verdadeiro religioso, não sei se
para isto seria possível achar mais conveniente leitura do que a deste bem-
aventurado padre, que neste livro tão alta e divinamente tratou do instituto e
costumes da vida religiosa.
Para tratar desta matéria, requer-se principalmente santidade e experiência
das coisas espirituais, porque é isto que principalmente faz os homens sábios
nesta doutrina, como disse o Profeta: Por teus mandamentos, Senhor, entendi,
querendo signi car que o exercício e cumprimento dos mandamentos de Deus é
o principal mestre desta celestial loso a. Ora, um tal magistério não faltou a
este glorioso padre, que, depois de ter vivido dezoito anos debaixo da
obediência de um santo velho, esteve quarenta na soledade, perseverando em
contínuos jejuns, orações, e exercícios de virtudes, vivendo vida mais que
humana; e, por conseguinte, as palavras de sua doutrina não podem ser
tomadas como de puro homem, e sim como de homem escolhido de Deus, para
que sua doutrina aproveite, não só aos de seu tempo, mas também aos que
venham nos tempos futuros.
Outra particularidade tem esta celestial doutrina: é que toda ela vai, nos
respectivos lugares, conferida e con rmada com diversos exemplos daqueles
Santos Padres que em seu tempo oresceram, bem assim com alguns insignes
milagres, muitos dos quais o mesmo santo, que os refere, viu com os seus
próprios olhos. Destarte é o leitor suavissimamente recreado pela variedade e
doçura da história; e, por outro lado, com isso se nos representa aquela idade
de ouro, aquele século bem-aventurado em que oresceram aqueles
gloriosíssimos padres, dignos de eterna memória, que foram os Paulos,
Antônios, Hilariões, Macarios, Arsênios e outros ilustríssimos varões que
viviam por aqueles desertos do Egito, Tebas e Cítia, uns apartados em soledade,
outros presidindo a grandes companhias e enxames de monges, derramados por
todos aqueles desertos, vivendo vida de anjos na terra: cujos exemplos
humilham nossa soberba, confundem nossa presunção e, declarando-nos o
estado da verdadeira e perfeita religião que então havia, nos envergonham e dão
a entender a pobreza a que agora estamos reduzidos.
Abunda, outrossim, em maravilhosas semelhanças e comparações: porque
este glorioso padre espiritualizava em sua alma todas as coisas que via e, de
todas as ores, fazia favos de mel com que a apascentava; e isto poderá ser
apreciado em todo o decurso do livro, especialmente em uma recapitulação feita
depois do capítulo da “Discrição”.
Declara também in nitas maneiras de laços, tentações, enganos e artes de
nossos inimigos, como homem muito experimentado nesta guerra espiritual, e
assim também nos provê de competentes remédios para tudo isto; porém, no
que mais admirável se mostra, é nas de nições que dá dos vícios e virtudes,
pintando com brevidade e elegância todas as condições e propriedades do vício
e da virtude, de modo tal que, para conhecer a natureza destas coisas, ou
mesmo para louvor ou condenação delas, nada se pode desejar de mais
completo.
E não menos admirável é no declarar a causalidade e dependência que há
entre uns vícios e outros, explicação essa que constitui uma principal parte da
doutrina moral; pois, assim como, nas outras ciências, é principal ofício
declarar as causas das coisas, assim também o é nesta ciência divina. Entendidos
muito bem os vícios que um vício acarreta, e as virtudes geradas por uma
virtude, logo se move o homem a amar a esta e aborrecer o outro, pela
fecundidade de bens ou de males que cada coisa destas traz consigo. E isto o faz
este santo com uma singular graça; pois, ao m de cada capítulo, quase sempre
sói tomar o vício e pô-lo à questão de tormento, isto é, a perguntas, até fazê-lo
confessar toda a sua genealogia e parentela, a saber, quem é seu pai, sua mãe,
seus irmãos, seus lhos e lhas, seus inimigos e contrários e, nalmente, quais
os que lhe fazem a guerra e lhe cortam a cabeça. Por isso, chama-se o livro
Escada espiritual, pela ordem e conseqüência com que nele são tratados tanto
os vícios, como as virtudes; e o autor mereceu o cognome de Clímaco, que em
grego κλιμαξ quer dizer “escada”, por ter ele ordenado e traçado tão altamente
todo o livro com esta ordem e conseqüência de degraus espirituais, começando
pelo primeiro, que é a renúncia do mundo, e acabando no último, que é o das
três virtudes teologais, e das virtudes heróicas, que são dos ânimos já purgados
e no último grau de perfeição.
Faz também muito nca-pé na morti cação das paixões e apetites (que é uma
das principais coisas que nesta doutrina devem ser recomendadas), porque a
natureza humana, como é inimiga do trabalho e amiga do prazer, quando quer
dar-se à virtude, anda à cata de orinhas e leite da devoção e dos gostos de
Deus, furtando o corpo às labutações e aos exercícios da morti cação,
necessários para vencer as nossas más inclinações. E nisto carrega ele tanto a
mão, que a alguns pareceu demasiado, isto é, pareceu a alguns que queria fazer
um homem quase estóico e de todo sem paixões. Mas, não há tal: ele faz
capítulos apropriados sobre espirituais afetos, como sejam o pranto, a dor, o
temor, o amor, o gozo espiritual e outros, recomendando os bons, desterrando
os maus, e espiritualizando e santi cando os indiferentes; aliás, é comum estilo
dos doutores, quando querem tirar os homens de um extremo a que estão muito
inclinados, dobrá-los fortemente até o outro extremo, a m de que quem no
meio termo.
Para tudo isto não falta ao nosso autor eloqüência ensinada, mais pelo
Espírito Santo do que por indústria humana, como pode o discreto leitor bem
apreciar, não só pelos epítetos, pelas mil maneiras de metáforas e guras de que
ele usa, como pelos muitos afetos suavíssimos que intromete na doutrina, não
inventados por arte, mas nascidos do ímpeto interior e gosto do espírito,
verdadeira e natural eloqüência que a arte pretende imitar. Isto resplandece no
capítulo e degrau quinto, sobre a “Penitência”, no qual são descritas as
penitências e asperezas que faziam os monges santíssimos de um mosteiro
denominado “Cárcere”. E porque alguns fracos pudessem desmaiar ou temer
demasiadamente, considerada a grandeza e rigor das penitências que aí são
narradas, foi acrescentada, no m do capítulo, uma anotação, para amenizar e
ensinar o uso desta doutrina, que serve, não para desmaiar os corações, mas
para ver quão admirável é Deus em seus santos, e para humilhar e confundir
toda a nossa presunção e soberba com os seus exemplos.
Não sei se, para os tempos que correm, seria possível achar doutrina mais
conveniente, pela qual tão a propósito sejam confundidas todas as blasfêmias e
loucuras dos hereges; pois, se é verdade que toda a sabedoria é de Deus (que,
como diz Daniel, é o mestre e corregedor dos sábios), claro está de ver quanto
mais perto estava o espírito do Senhor de ensinar um homem que, depois de
dezoito anos de obediência, viveu quarenta em soledade vida de anjo, do que a
uns brutos animais que nenhuma outra coisa fazem senão comer e beber, nem
souberam, em toda a vida, que coisa é jejuar um dia, nem estar uma noite com
Deus em oração. Pois este santo lósofo, cheio desta sabedoria celestial,
aprendida, em parte, deste Espírito e, em parte, dos ditos e feitos daqueles
ilustríssimos e santíssimos padres antigos, nada mais profere senão gemidos,
trabalhos, lágrimas, vigílias, jejuns, orações, penitências, obediência, sujeição,
cânticos de Salmos, sofrimento de injúrias, maceração da carne, abnegação de si
mesmo, morti cação de paixões, imitação de Cristo, castidade, piedade,
silêncio, continência, esmola, juntando sempre trabalhos a trabalhos, obras a
obras, e ensinando desta maneira a amar, crer e con ar em Deus. Esta é a
loso a que o Espírito Santo ensina aos seus, e que todos os santos professaram
e ensinaram; o contrário dela dogmatiza a loso a do mundo, do Diabo, e da
carne.
Para que o leitor cristão comparticipe de todos esses bens, tomei a tarefa de
traduzir este livro, tradução que, como já disse, achei muito mais di cultosa do
que pensava: primeiramente, pela variedade de traduções, o que me obrigou
freqüentemente a comparar, examinar e ponderar o sentido mais conforme à
intenção do autor; segundo, porque o nosso autor era grande amigo da
brevidade, ou por serem muito sábios aqueles para quem ele escrevia, ou
porque, sendo ele, como parece, grande amigo do silêncio, e tendo sido
impelido a falar, buscou falar o menos que lhe fosse possível. Daí resulta que,
algumas vezes, propõe questões e não as responde; outras vezes, propõe
comparações e não as aplica; e, assim, as deixa como alegorias, ou como
enigmas. Outras vezes, por uma sentença contrária, quer que se entenda a
outra, sem explicá-la; outras vezes, corta o raciocínio, deixando a sentença
suspensa ao juízo do leitor. E, sendo ele em tais lugares tão escuro quanto
profundo, tive eu de deixar o ofício de intérprete e tomar o de parafrasta,
estendendo a brevidade para explicação da sentença. E, assim como nestes
lugares acrescento palavras e cláusulas, em dois ou três, apenas, as suprimo, por
se referirem a coisas que só os sábios podem compreender exatamente.
Com todas estas diligências, ainda assim não ousarei a rmar que acertei
sempre na tradução, antes suspeito que em muitos pontos errei e mais erraria,
se não me ajudassem os comentários de Dionísio Cartuxano, varão religioso e
doutíssimo, que, entre outros trabalhos, tomou também o de glosar este livro.
Por certo não fora mal empregado o trabalho de algumas anotações que z
aos cinco primeiros capítulos, a m de declarar o estilo e intenção do autor,
tanto mais quanto suas sentenças, muitas vezes debaixo de breves palavras,
compreendem grandes avisos, como, por exemplo, quando diz que, na oração,
deve estar o homem diante de Deus como o réu sentenciado à morte diante do
juiz. En m, o intento do autor é a formação do perfeito religioso, tal que,
vivendo na carne, viva como se estivesse fora dele, segundo escreve São
Jerônimo a Eustáquio. Este é o m desta obra e para este m é ordenado todo o
mais.
II
Lamentamos não ter encontrado livro algum, onde por extenso haja
tradução desta Carta ao pastor; mas, já muita, já é mesmo superior ao
nosso merecimento, a consolação de ter encontrado a Escada do céu,
traduzida em espanhol por Fr. Luiz de Granada.
III
Qual tenha sido o lugar e qual tenha sido o ano do nascimento de São
João Clímaco, nada há de certo a respeito disso; mas, os seus escritos
são do m do século VI ou princípio do século VII; e, tendo ele
passado sua mocidade e quase toda a sua vida na montanha do Sinai,
conjecturam que tivesse nascido na Palestina e que ali mesmo
aprendesse as belas letras e, em geral, as ciências humanas, nas quais
era muito versado. Aos dezesseis anos renunciou o mundo para
receber o jugo da vida monástica em um mosteiro do monte Sinai:
conta-se que um piedoso abade, chamado Strategio, assistindo à sua
pro ssão, predisse que esse jovem religioso seria um dos grandes
luzeiros do mundo.
Durante dezoito anos esteve ele sob a direção disciplinar de um
santo velho chamado Martírio, mantendo-se na mais perfeita
obediência; e, durante esse tempo, Santo Anastácio, solitário da
mesma montanha do Sinai, predisse que aquele jovem seria o futuro
abade do mosteiro. No m dos dezoito anos de exercícios e el
sujeição, São João Clímaco viu falecer o velho Martírio; e esta morte
despertou nele o desejo de abraçar a vida dos anacoretas, isto é, a
soledade. Escolheu para isto um lugar chamado Tola, a cinco milhas
de uma igreja; e, a essa igreja, aos sábados e domingos, vinha ele,
como os outros solitários, para ouvir a Missa e comungar. Assim
perseverou, por espaço de quarenta anos, com grande alegria e fervor
de seu espírito, em oração, trabalho de mãos, meditação das grandes
verdades da religião, sobretudo a meditação da morte. Sua abstinência
era perfeitamente regulada: comia de tudo, porém em mínima
quantidade, a m de que, comendo de tudo, evitasse a nota de
singularidade e vanglória, e, comendo pouco, vencesse a
intemperança. De tal maneira apagou a chama da luxúria, que já não
lhe dava esforço a resistência aos incentivos da carne. Venceu a
avareza, essa idolatria dos bens da terra, na frase do Apóstolo, com a
largueza e misericórdia para com os outros e com a escassez para
consigo, a m de que, contentando-se com o pouco, não tivesse
necessidade de cobiçar o muito, que é o próprio desta pestilência;
venceu a acídia e a preguiça com a memória da morte; venceu a ira
com a obediência; venceu a soberba e a frota de vícios que ela traz
consigo, levantando contra ela a memória da Paixão de Cristo e a
virtude da humildade. Deus lhe concedeu o dom das lágrimas; ele
recolhia-se a uma cova, situada à raiz do monte, para secretamente e
longe dos outros solitários levantar vozes ao céu, gemer, suspirar,
chorar, como se recebesse cautérios de fogo, cortes de ferro a ado, e
como se lhe estivessem arrancando os olhos. Dormia apenas o
su ciente para conservar a substância do entendimento e não
desfalecer com a demasia das vigílias. O curso de sua vida era
perpétua oração e constante exercício no amor de Deus; e o seu
descanso consistia em ler os Livros Sagrados e os Santos Padres,
especialmente São Gregório Nazianzeno, São Basílio, Cassiano e São
Nilo.
Mas, por maior que fosse o seu desejo de viver solitário, teve de
ceder a instâncias de um monge, chamado Moisés, e tomá-lo para
discípulo. Conta-se que, achando-se o bem-aventurado São João
Clímaco em sua cela, meditando e rezando, caíra em delicado sono e
teve a visão de uma pessoa de rosto e hábito venerável, que lhe dizia:
“Tu dormes tão seguro, e Moisés, teu discípulo, corre perigo!”.
Despertando apressadamente, começou a rezar pelo discípulo, a quem,
logo que regressou, perguntou se lhe tinha acontecido alguma coisa;
Moisés, então, referiu que estava dormindo debaixo de uma
enormíssima pedra, quando, parecendo-lhe ouvir a voz do mestre que
o despertava, cheio de temor dera um salto para fora, e, logo depois, a
pedra despenhou-se e caiu em terra.
O nosso santo era também médico de secretas chagas. Conta-se que,
chegando-se a ele um monge, chamado Isaac, pediu-lhe que o curasse
de uma tentação e paixão carnal que o devorava; e, maravilhado o
santo com essa humilde con ssão, consolou o monge, convidando-o a
rezarem juntos e a con ar na misericórdia e clemência de Deus. O
monge Isaac, vendo-se logo livre de tão estranha e sensual paixão,
cou atônito e deu graças a Deus e ao seu servo.
As virtudes do santo já provocavam a inveja a alguns que viam a
sua cela como um ponto de visita dos que iam pedir-lhe conselhos; e,
desejando ele, à imitação do Apóstolo, tirar a ocasião de caluniar aos
que a buscam, determinou calar-se durante algum tempo e recolher-se
ao silêncio. Seus êmulos, maravilhados desta humildade, vendo que
tinham estancado uma fonte de celestiais exortações, vieram, eles
próprios, compungidos, pedir o costumado pasto de sua doutrina. E,
por m, quando já ele tinha chegado aos 85 anos, todos os monges do
mosteiro do monte Sinai, com um mesmo afeto e desejo, o forçaram a
tomar o cargo de abade, para que os dirigisse e conduzisse na vida
espiritual, como mestre e pastor.
Por esse tempo, outro bem-aventurado, João, abade de Raithu,
mosteiro situado junto ao Mar Vermelho, a algumas léguas do
mosteiro do Sinai, escreveu-lhe a seguinte carta:
Ao admirável varão, igual aos anjos, padre de padres, doutor excelente, João,
abade do mosteiro do monte Sinai, João, pecador, abade do mosteiro de Raithu,
saúde no Senhor.
Nós, que tão apartados estamos da perfeição, ó venerável padre, sabemos que
a singular e perfeita obediência não examina o que é mandado, especialmente
quanto às coisas conformes ao talento que Deus vos liberalizou; e, por isso,
determinamos suplicar-vos e pôr em prática aquele mandado do Profeta:
Pergunta a teu pai e ele te ensinará, e aos antigos e eles te responderão. Por esta
carta, prostrados diante de vós, vos suplicamos que, como pai comum de todos,
e como o mais antigo na luta dos espirituais trabalhos, e como o mais
avantajado em agudeza de entendimento e em perfeição de todas as virtudes,
tenhais por bem descrever, a nós, rudes e ignorantes, as coisas que, na
contemplação divina, como outro Moisés, neste mesmo monte vistes; e daí vos
digneis trazer-nos as tábuas divinamente escritas, com a doutrina para o novo
Israel, isto é, para aqueles que inteira e perfeitamente saíram deste Egito
espiritual e do mar tempestuoso deste mundo. E do mesmo modo que, com essa
língua divinal, como com outra vara, zestes maravilhas nesse mar, assim agora,
inclinado por nossos rogos, vinde diligentemente ensinar-nos a perfeição da vida
monástica. Não é por lisonja que assim vos falamos: nada mais dizemos do que
aquilo que todos vêem, entendem e dizem. Con amos no Senhor, que
receberemos em breve as vossas letras, esculpidas pelo Espírito de Deus, pelas
quais direitamente sejam guiados os que sem erro desejam caminhar, letras que
serão como uma escada que chega até as portas do céu, pela qual subam com
segurança, sem que as espirituais malícias e os príncipes das trevas do mundo
possam impedir a subida; pois, assim como o santo patriarca Jacó, sendo pastor
de ovelhas, viu em sonho aquela escada que chegava até o céu, também a verá e
armará o mestre das racionais ovelhas. Seja Deus sempre convosco.
São João Clímaco tomou esta rogativa por uma ordem vinda de
Deus, e assim respondeu:
Recebi vossa venerável carta, produto de vosso humilde e limpo coração, a qual
considero um preceito e mandamento que excede as minhas forças. Era próprio
de vós pedir-me a mim, rude e ignorantíssimo, regras de doutrina e virtude; e, se
não me compelisse o medo e o perigo de sacudir de mim o jugo da obediência,
recusaria o encargo. Melhor fora que tivésseis procurado outros mais
exercitados; mas, como a verdadeira obediência consiste, segundo dizem os
Santos Padres, exatamente no cumprimento das coisas que parecem exceder as
nossas forças, tomei ousadamente a tarefa, fazendo este debuxo delineando as
regras da vida espiritual, certo de que vós, como grande mestre que sois, haveis
de acrescentar as cores e preencher as faltas. Não é a vós que eu dirijo esta
pequena obra, mas àqueles que nessa santa congregação recebem de vós, do
mesmo modo que nós, as instruções de um sábio como vós sois. Rogo a todos
aqueles a cujas mãos vier este livro, que, se nele acharem algo de proveitoso,
não o atribuam senão ao socorro de Jesus Cristo; a mim, paguem com orações
suplicando a Deus que me dê o prêmio do bom propósito, não mirando a
minha ignorância e simplicidade. Como a viúva do Evangelho, não ofereço
muito, mas ofereço de boa vontade aquilo que tenho; aliás, Deus não atende
tanto ao valor das ofertas e dos trabalhos, quanto à alegria do propósito e ao
fervor da vontade.
1 Paris, Louis Vivès, Rue Delambre 13, 1882. Tomo XI, pp. 676 a 695
CAPÍTULO I
ANOTAÇÕES
Para inteligência deste capítulo, leitor cristão, hás de pressupor, que
segundo se colige da doutrina dos Santos Padres, a renúncia tem três
graus: o primeiro é deixar, por amor de Deus, todas as coisas do
mundo, como o Salvador o aconselhava àquele mancebo do
Evangelho; o segundo é deixar-se a si mesmo, que é deixar a própria
vontade, com todos os apetites e paixões de nossa alma, para fazer de
nós mesmos verdadeiro sacrifício, holocausto a Deus; o terceiro é que
nosso espírito pura e inteiramente se ofereça a Deus, se transporte
para Deus, se junte com Deus, que é o m dos graus passados, porque
tanto mais se ajuntará nosso espírito com Deus, quanto mais apartado
estiver das coisas do mundo e de si mesmo. Do primeiro destes três
graus se trata neste primeiro capítulo; do segundo, que é o da
morti cação das paixões, se trata no seguinte; e do terceiro se trata
conseqüentemente no capítulo terceiro, conquanto em cada um se
toque algo do que pertence ao outro. Porque familiar coisa é a este
santo (como o é a todos os que, escrevendo, seguem o instinto e o
magistério do Espírito Santo) não ter tanto em conta o o e
conseqüência das matérias e a ligação das cláusulas e sentenças,
quanto seguir o ditame e movimento deste espírito divino que os
ensina, como se mostra no autor daquele tão espiritual livro,
Contemptus mundi, e em outros muitos.
O que muito há de notar neste capítulo, e quase todo este livro, é o
rigor, trabalho e diligência, que este insigne mestre pede a todos os que
verdadeiramente se determinam a buscar Deus, especialmente nos
princípios de sua conversão, até desfazerem-se os maus hábitos da
vida passada, para que se veja claro por autoridade de tão grande
varão, que esta empresa não é de frouxos e folgazões, mas de valentes
e esforçados cavalheiros, conforme aquela sentença do Salvador, que
diz: O reino dos céus padece força e os esforçados são os que o
arrebatam.
CAPÍTULO II
ANOTAÇÕES
Neste capítulo se trata do segundo grau de renúncia, que consiste na
morti cação dos apetites e afetos, como os tem morti cados somente
aquele que deveras e de todo o coração está afeiçoado às coisas
divinas. E repete-se muitas vezes esta palavra, deveras, para dar a
entender que não é qualquer grau de devoção que causa este afeto,
mas a verdadeira, grande e profunda afeição do amor de Deus;
porque, assim como uma luz grande escurece e ofusca outra menor,
como o sol faz às estrelas, assim o amor de Deus, quando é muito
grande, como sói ser o dos santos, anuvia e escurece todos os outros
peregrinos amores. Daí decorre que assim como, na balança, quanto
mais sobe um lado, tanto mais baixa o outro, e vice-versa; assim
quanto mais cresce o amor de Deus, tanto mais decresce o amor do
mundo, e vice-versa. Bem-aventurado seria aquele que, despedido o
amor do mundo, só se sustentasse com o amor de Deus; porque esse
seria como outro espiritual Jacó, a quem foi dado, por bênção, que
coxeasse de um pé e de outro casse são. Aliás, ninguém pense que
por isto é excluído aqui o amor e afeição dos parentes, amigos e
benfeitores, porque isto é natural e devido, quando é bem-ordenado,
amando-os e querendo-os por Deus, compadecendo-nos de seus
trabalhos. Tudo isto, porém, se há de fazer, de maneira que não seja
enredado nosso coração neste laço, por demasiada afeição, como
muitas vezes acontece.
CAPÍTULO III
Da verdadeira peregrinação
I
ANOTAÇÕES
Neste capítulo se trata do terceiro grau da renúncia, que consiste no
contínuo desejo da união de nossa alma com Deus, para cujo m se
faz o homem peregrino e estranho a todas as coisas do mundo, não só
com o corpo, fugindo de sua pátria, como com a alma, desterrando de
si o amor desordenado de todas as coisas, para que, solto o coração
destas cadeias, possa sem impedimento voar para Deus e unir-se com
ele e repousar nele, sem que ninguém lhe perturbe este repouso, nem
lhe desperte deste sono, que se faz imperfeitamente nesta vida e
perfeitamente na glória. Depois deste terceiro grau, que é a
peregrinação, também se trata neste capítulo de muitas coisas que,
conquanto não sejam da essência da peregrinação, estão anexas a ela,
ou como causa ou como efeito. Dizemos isto para que não se
maravilhe nem se confunda o leitor, vendo coisas tão distintas das que
o título promete, ou querendo-as violentamente reduzir todas ao
assunto do título.
CAPÍTULO IV
Da perfeita obediência
I
ANOTAÇÕES
Neste capítulo terás notado, leitor cristão, quão alto seja o estado de
obediência, quão seguro e de quanto merecimento. Entre outras
excelências deste estado, uma delas é, como diz São Tomás, tornar
obras de religião, que é a soberana virtude, as obras comuns das
outras virtudes; e livra também o homem de in nitas perplexidades,
deixando-o certo de que, pelo menos, não erra em obedecer ao
homem que está em lugar de Deus, e do qual o próprio Deus disse:
Quem vos ouve a mim ouve, e quem vos despreza a mim despreza.
Esta certeza, não a tem o homem em todas as outras obras boas que
faz, porque não é de todos fazer o que é bom, somente por ser bom,
especialmente quando excede as nossas forças; e, por isso, disse um
grave doutor que mais queria colher palhas do chão, por obediência,
do que empreender obras grandes por sua própria vontade.
Contudo, não tomem isto tão ao pé da letra as mulheres devotas
que vivem no mundo, isto é, não tomem daqui ocasião para dar a seus
diretores espirituais ou confessores uma obediência tal, que não
queiram dar passo algum sem eles; pois, conquanto isto seja em si
bom, dadas certas circunstâncias e ocorrendo certos requisitos,
faltando qualquer deles, poderá o Demônio, sob color de virtude,
fazer o que sempre faz nas amizades muito estreitas, e dar maus e
desastrados ns ao que se começou com bons princípios. Ninguém,
portanto, se deve arriscar a este perigo, que é muito grande e muito
disfarçado; mas isto não exclui a con ssão, nem o tomar conselho
com os padres diretores espirituais em coisas graves e escrupulosas.
Aqui poderás também notar um proveitosíssimo e muito louvável
costume dos padres daquele tempo, em que tanto orescia a disciplina
da vida monástica: era o de provar e exercitar os que entravam em
religião com muitas maneiras de repreensões, castigos, vexações e
trabalhos. E isto faziam, não por um ano ou dois, mas por muitos
anos, para aproveitar na devoção, no fervor do espírito, e nas virtudes
da humildade, da obediência, da morti cação das paixões, da
abnegação de si mesmo, e assinaladamente da paciência e da discrição.
Prouvera a Deus que isto também se praticasse agora em nossos
tempos, porque muito mais apurados seriam aqueles que cassem nas
religiões; e tanto mais convinha isso, quanto mais di cultoso é, nestes
tempos, expelir de religião quem nela foi recebido.
Ocasiões havia, então, para tantas ignomínias e vexações, porque,
naqueles tempos, como vimos, uma das maneiras religiosas de viver
era a de estarem dois discípulos debaixo da disciplina de um padre
velho, a quem serviam como um servo serve a seu senhor. E estes
mestres, uns, pelo seu natural temperamento, outros por exercício de
virtude, usariam dessas ocasiões para repreender, castigar, e tratar
asperamente seus discípulos. Por ser isso coisa muito ordinária
naquele tempo, o autor carregou a mão no encarecimento da virtude
da paciência, não só para que o discípulo não caísse com a carga e
voltasse para trás, como para que não perdesse matéria de tão grande
aproveitamento. Se em nossos tempos não têm os religiosos estas
ocasiões tão freqüentes, podem tê-las os noviços com seus mestres, as
mulheres com seus maridos, porque o sofrimento destas coisas é de
grande merecimento e de grandíssimo aproveitamento. E assim
conheço muitas mulheres casadas, que, suportando com paciência as
irritações e maus tratos da parte de seus maridos, chegam a um
elevado grau de perfeição.
Também pela doutrina deste capítulo, e ainda de todo este livro,
entenderás bem quanto mais robusta era a virtude naqueles tempos;
pois, agora andamos a buscar coisas que menos trabalho nos tragam,
devoções agradáveis, e, quando muito, orações e exercícios espirituais.
Conquanto a oração seja de muito proveito, não há de ser só, mas
acompanhada com o exercício das outras virtudes, especialmente com
a morti cação da própria vontade e das paixões; pois, assim como
para abrandar o ferro não basta abrandá-lo com o calor da frágua,
mas ainda é preciso o golpe do martelo para dar-lhe a gura, assim
não basta abrandar nosso coração com o calor da devoção, mas ainda
é preciso gurar as virtudes na bigorna da morti cação.
Por isso com muita razão, exclamou o Sábio: Quem achará a
mulher forte? Achareis muitas almas devotas, que gostam de rezar, de
meditar, de confessar-se, de comungar, de ler bons livros, de tratar de
Deus, e de dar um pedaço de pão por seu amor; mas, ainda assim,
quem achará a mulher forte, que é a alma forte? Forte para vencer a
natureza, para domar a carne, para quebrar a própria vontade, para
cruci car as paixões, para romper com o mundo, para rir-se de seus
juízos, para calçar aos pés os seus ídolos, para receber com cara alegre
os trabalhos e a ições, para rir-se das injúrias, para con ar nos
perigos, para não elevar-se na prosperidade nem abater-se com a
adversidade, para andar sempre solícita, fervorosa e diligente em todas
as coisas do serviço de Deus e bem do próximo, olvidando seu próprio
interesse: quem a achará nos tempos que correm?
CAPÍTULO V
Da penitência
I
Não sei, padres meus, como deixei-me estar muitos dias entre aqueles
santos penitentes, arrebatado e suspenso como quei na admiração de
coisas tão grandiosas. Depois de estar ali trinta dias, voltei, com o
coração quase a arrebentar, para o mosteiro principal, e apresentei-me
àquele grande padre, que, vendo-me de rosto mudado e quase atônito,
compreendendo a causa desta mudança, disse-me: “Que é isto, padre
João? Viste as batalhas dos que trabalham?”. “Vi, padre, vi”, respondi
eu, “e quei espantado; tenho por mais ditosos os que assim choram,
depois de haverem caído, pois para aqueles a queda foi ocasião de
uma seguríssima e beatíssima ressurreição”. “Assim é, por certo”,
replicou ele. E acrescentou: “Estava aqui, haverá dez anos, um
religioso muito solícito e diligente, e tão grande trabalhador, que,
vendo-o eu com tanto fervor, comecei a temer a inveja do Demônio e a
recear que tropeçasse em alguma pedra quem tão ligeiramente corria.
E foi tal como eu receava: veio ele um dia a mim, mostra-me a sua
ferida, busca o emplastro, pede o cautério, e angustia-se imensamente.
Vendo que o médico não queria tratá-lo rigorosamente (porque a
culpa era digna de misericórdia), lançou-se ao chão, agarrou-se-lhe
aos pés, e, regando-os com muitas lágrimas, pediu que o condenassem
ao cárcere. Tal foi a insistência, que a clemência do médico teve de
converter-se em dureza, isto é, de satisfazer o estranho desejo do
enfermo, que logo correu ao cárcere, fez-se companheiro dos que
choravam e participante de sua tristeza, até que ferido gravemente no
coração com o cutelo a ado no grande amor de Deus, tão grande dor
e pena recebeu de havê-lo ofendido, que em oito dias entregou sua
alma ao Senhor. Eu mandei trazer seu cadáver para este mosteiro,
como merecedor de toda a honra, e o sepultei no cemitério dos padres.
E não faltou a quem o Senhor descobrisse que, ainda não se havia
levantado de meus pés, já estava perdoado. Não é isto de maravilhar,
porque, tendo ele em seu coração aquela mesma fé, esperança e
caridade da pública pecadora, com as mesmas lágrimas, com que
regou meus vis pés, alcançou o mesmo perdão”. Já me tem acontecido
ver almas, que serviram aos amores do mundo quase até perder o siso,
as quais, tomando ocasião de penitência da experiência deste amor,
transferiram o seu amor para Deus; e, abraçando-o com uma
insaciável caridade, alcançaram perdão de seus pecados, como aquela
de quem foi dito: Perdoaram-se-lhe muitos pecados, porque muito
amou.
Bem sei, admiráveis padres, que a alguns parecerão incríveis estas
coisas, a outros difíceis de acreditar, e para outros podem ser ocasião
de desesperação; mas, para o varão forte, são setas de fogo, que
incendeiam o fervor em seu coração. Haverá outros que, conquanto
não se estimulem tanto, carão conhecendo sua fraqueza e,
confundindo-se e envergonhando-se com estes exemplos, alcançarão
verdadeira humildade. O varão negligente, porém, não ouça o que
contamos, a m de não deixar de fazer o pouco que faz com toda a
con ança, e de cumprir-se, em relação a ele, o que disse o Senhor: Ao
que não tem alegria e prontidão de ânimo, deixem esse pouco que
tem. Verdade é que esses tais, não só disto, mas de tudo quanto
possam, tiram pretexto para favorecer sua negligência.
Saibamos que não sairemos do lago da maldade, sem nos sumirmos
no abismo da humildade; mas, uma é a humildade triste dos que
choram, outra a dos repreendidos pela consciência, outra a alegre
humildade que Deus infunde na alma dos varões perfeitos. Não
curemos de explicar com palavras esta terceira espécie de humildade,
porque em vão trabalharemos para isso; mas, da segunda espécie sói
ser indício o sofrimento e a paciência nas injúrias.
Das quedas dos homens e dos juízos de Deus, ninguém poderá dar
inteira razão, porque esta matéria excede toda a faculdade de nosso
entendimento. Algumas quedas vêm por negligência nossa; outras, por
um desamparo de Deus, que com uma maravilhosa e sábia
dispensação permite cair o homem, como aconteceu ao príncipe dos
Apóstolos; outras há também que vêm por castigo merecido por
nossos pecados. Mas, um padre me a rmou que as quedas que vêm
por aquela piedosa providência de Deus, em pouco tempo se
restauram, porque não sofrerá ele que perseveremos muito tempo no
mal, que para nosso proveito permitiu. Todos nós que caímos,
trabalhemos, antes de tudo, por fazer resistência ao espírito da tristeza
desordenada; porque esta sói acudir ao tempo da oração para impedi-
la, privando-a da nossa primeira con ança. Não te perturbes, se cada
dia cabes e cada dia te levantas; persevera varonilmente, porque o
anjo da guarda terá atenção a isso, e considerará tua paciência.
Enquanto a chaga está fresca e correndo sangue, fácil é o remédio;
mas, quando está velha e quase stulosa, requer muito trabalho,
cautério, ferro e fogo, e di cultosamente sara. Muitas chagas há, que
o tempo torna incuráveis; mas, a Deus nada é impossível. Antes da
queda, os demônios fazem-nos Deus muito compassivo; depois da
queda, muito duro e rigoroso. Não te importes com aquele que,
depois de tua queda, e da tua penitência, e das tuas boas obras, por
pequenas que sejam, vem dizer-te que é nada tudo quanto fazes em
relação à culpa: muitas vezes acontece que pequenos presentes e
pequenos serviços de pessoas humildes possam mitigar a ira do juiz;
assim, as boas obras, por pequenas que sejam, aplacam a Deus,
especialmente quando procedem da grande caridade e humildade do
coração. Aquele que verdadeiramente se a ige e castiga por seus
pecados, tem por perdidos todos os dias em que não chora, ainda que
neles, por ventura, pratique algumas boas obras, porque seu principal
intento é fazer penitência.
Nenhum daqueles que se a ige com lágrimas de penitência, logo
pense que está seguro no m da vida, porque ninguém pode ter certo
aquilo que está incerto. Concedei-me, Senhor, diz o Profeta, o
refrigério do testemunho da boa consciência ao partir desta vida: este
testemunho está onde está o Espírito Santo, e onde está uma profunda
e perfeita humildade; e disso ninguém pode ter certa segurança.
Aqueles que, sem estas virtudes, saem da vida, não se iludam. Os que
servem ao mundo não morrem com esta consolação, que só os bons
alcançam; mas, alguns há que, exercitando-se em esmolas e obras de
piedade, conhecem o proveito disto no m da jornada. Quem pensa
em chorar e fazer penitência de seus pecados, deve andar tão ocupado
neste negócio, que não tenha olhos para ver as lágrimas, nem as
quedas, nem os negócios dos outros. O cão, mordido por alguma fera,
costuma a embravecer contra ela ferocissimamente com a dor da
ferida; e assim o verdadeiro penitente costuma a embravecer contra
sua própria carne, nascendo daí o ódio santo contra si mesmo.
Vejamos não nos aconteça que o deixar de repreender-nos a
consciência, proceda mais de falsa con ança do que da própria
inocência. Um dos grandes indícios de estarem já saldadas as dívidas,
é ter-se o homem sempre por devedor. Nem isto é razão para
descon ar: quem desespera se suicida, porque nada há de maior ou de
igual à misericórdia de Deus. Também é sinal de diligente e solícita
penitência, se de verdade nos tivermos por merecedores de todas as
tribulações que nos vierem, tanto visíveis como invisíveis, e de muitas
mais.
Depois que Moisés viu a Deus na sarça, voltou ao Egito, que gura
as trevas do mundo, para ocupar-se nos ladrilhos e obras de faraó;
mas, depois, regressou à sarça, ou para melhor dizer, ao monte de
Deus. Assim também aquele grande Jó de rico se fez pobre, mas,
depois de empobrecido, lhe foram dobradas as riquezas: quem
entender o mistério que aqui está encerrado, jamais desesperará. A
queda dos que têm sido negligentes depois do seu chamamento, é
muito perigosa, porque enfraquece a esperança de alcançar aquela
quietíssima tranqüilidade e paz que se acha em Deus; pois, já se
dariam por muito bem livrados, se se vissem saídos da cova em que
caíram.
Observa diligentemente e considera que nem sempre voltamos pelo
mesmo caminho ao lugar de onde saímos, mas às vezes por outro mais
curto. Vi eu dois religiosos que, em um mesmo tempo e da mesma
maneira, caminhavam, dos quais um, conquanto velho, trabalhava
muito, o outro, que era seu discípulo, chegou mais depressa do que ele
e entrou primeiro no monumento da humildade: monumento, sim,
porque na humildade deseja o verdadeiro penitente ser sepultado,
aniquilado, e não nos corações dos homens. E a causa de haver este
chegado mais depressa foi porque fazia isso com maior fervor, pureza
e diligência.
Guardemo-nos todos contra o erro de Orígenes, erro muito
agradável aos maus, pelo qual, enaltecendo demasiadamente a divina
misericórdia, ca derrogada a retidão da divina justiça. Em minha
meditação, ou para falar mais claro, em minha penitência, é razoável
que arda o fogo da oração, queimando tudo o que for contrário a ela.
Finalmente, se desejas fazer verdadeira penitência, teu exemplo, ou
forma de verdadeira penitência, sejam aqueles santos réus de que
zemos menção; e isto te escusará o trabalho de ler muitos livros, até
que amanheça em tua casa a luz de Jesus Cristo, Filho de Deus, para
ressuscitar tua alma com a perfeita e estudiosa penitência.
ANOTAÇÕES
Aqui podes ver, leitor cristão, de que modo e forma fazem penitência
aqueles em quem Deus infundiu espírito de verdadeira e perfeita
penitência, e a quem abriu os olhos, com sua divina luz, para ver a
formosura da virtude, a fealdade do pecado, as astúcias do Demônio,
a vaidade do mundo, o rigor do juízo divino, o horror das penas do
inferno; porque do conhecimento que Deus infunde na alma, nasce
este grande sentimento da penitência. E ainda que isto, por um lado,
pareça incrível, considerada a fraqueza humana, por outro lado, não o
é, considerando a graça divina, considerando que à caridade pertence
amar a Deus sobre tudo o que se pode amar, considerando que Deus é
o maior de todos os bens, e que, portanto, perdê-lo, é o maior dos
males.
Pois, se vemos cada dia os extremos que fazem algumas mulheres
por morte do marido, e as mães por morte de seus lhos, e outros por
outras causas, pelas quais chegam até a cair de cama e a morrer de
pena, e, às vezes, a suicidar-se, que maravilha é que uma alma se
entregue a todos os extremos para conseguir ou não perder o maior de
todos os bens, isto é, Deus?
Mas, nem por isso deve o cristão descon ar e desmaiar ante o rigor
daquelas penitências; porque os santos, extremados, tanto na
sublimidade da vida, como na perfeição da penitência, neles há sempre
matéria para admiração, porém nem sempre e em tudo há obrigação
de imitá-los.
Os exemplos e o rigor destas penitências são narrados para três
efeitos: primeiro, para vermos como a graça de Deus obra maravilhas
em homens tão fracos; segundo, para vermos que a nossa fraqueza
não impede o merecimento do favor de Deus; terceiro, para nos
humilharmos e desterrar de nossa alma toda a presunção de que temos
sofrido o su ciente para dispensar a misericórdia de Deus.
CAPÍTULO VI
Da memória da morte
Do pranto de compunção
I
Com muita razão se comparam as virtudes àquela escada que Jacó viu
em sonho e os vícios àquela cadeia que caiu das mãos de São Pedro.
As virtudes, travadas uma na outra, em razão de uma natural
causalidade e conseqüência, formam uma perfeita escada que nos
conduz até o céu; mas, os vícios, enlaçados como anéis ou elos, por
esta mesma ordem e conseqüência, formam uma espiritual cadeia, que
tem os homens presos ao pecado e os leva ao inferno. E, como vimos
que o furor da ira tem por lha a memória das injúrias, é razoável que
agora tratemos disto.
Memória das injúrias é acrescentamento do furor, guarda dos
pecados, ódio da justiça, destruição das virtudes, veneno da alma,
verme roedor constante, confusão da oração, perda da caridade, cravo
a ncado no coração, dor aguda, amargura voluntária, pecado
perpétuo, maldade que nunca dorme, e malícia de toda a hora. Este
tenebroso e molestíssimo vício é da ordem dos que geram e são
gerados de outros vícios; e, por isso, trataremos dele mais brevemente.
Aquele que desterrou de sua alma a ira, desterrou também a
memória das injúrias; mas, se aquela estiver viva, nunca deixará de
amamentar tal lha. Por outro lado, aquele que conservar a caridade,
desterrará a ira; mas, se quiser manter inimizades, a muito grandes
trabalhos se obriga. A mesa e o convite caritativamente oferecidos
muitas vezes reconciliaram os desavindos; e as dádivas e presentes
abrandam o coração. A mesa curiosamente aparelhada serve para
granjear amizade, posto que, não raras vezes, pela janela da caridade,
tem entrado a fartura do ventre; por isso, havemos de tal maneira
procurar os bens, que não abramos a porta aos males.
Notei, uma vez, um fato que maravilhou-me, isto é, maravilhei-me
de ver como um demônio curava a outro demônio, conquanto mais
isto fosse dispensação de Deus, que por todas as vias encaminha nosso
bem, do que obra do Demônio: a paixão do ódio foi bastante para
apartar uns infelizes que, desde muitos dias, estavam amancebados, de
sorte que a memória das injúrias quebrou um forte vínculo de
impureza. Muito longe está a memória das injúrias do grande e
verdadeiro e natural amor; mas, muitas vezes, este amor, ainda que
limpo, vem a degenerar em amor sujo. E, por isso, quando é
suspeitosa a condição das pessoas, sempre deve o homem se acautelar
do amor, porque, as mais das vezes, se dá caça à pomba quando o
amor sensível degenera em amor sensual.
Quem for mordido da memória das injúrias, recorde-se das que lhe
fez o Demônio e embraveça contra ele; e, se quiser travar inimizades,
trave-as com seu corpo, que é um inimigo falso e enganoso, e que,
quanto mais se regala, mais nos prejudica. Sóem os que têm memória
das injúrias apoiar-se na autoridade das Escrituras, torcendo-as ao
sentido que lhes apraz e pretendendo, com falso zelo, defender seu
mau propósito. Baste, para confusão destes, a oração que o Salvador
nos ensinou e que não poderemos recitar sinceramente, se tivermos a
memória das injúrias.
Se, depois de muito esforço, não puderes de todo desterrar esta
paixão, ao menos trabalha, com as palavras e com o rosto, por
mostrar a teu inimigo quanto isto te pesa; assim, por haver tido esta
dissimulação para com ele, terás a nal vergonha de não lhe dedicares
o amor que lhe deves, acusando-te e remordendo-te com isto a própria
consciência. E, então, te hás de considerar livre desta enfermidade,
não quando rogares por teu inimigo, não quando lhe ofereceres
dádivas e presentes, não quando o trouxeres a comer na tua mesa,
mas quando, ocorrendo-lhe alguma calamidade espiritual ou corporal,
te compadeceres dele, e assim te sintas como se tu mesmo a padecesse.
O monge solitário, que dentro de sua alma guarda a memória das
injúrias, é como um basilisco que está dentro de sua cova, o qual,
onde quer que vá, leva consigo sua peçonha. No madeiro apodrecido
se geram vermes; e, muitas vezes, nos homens que parecem mansos e
amantes de uma falsa quietude, está encerrada a ira.
Grande remédio é para desterrar esta memória a memória das dores
de Jesus, quando o homem, considerando tanta clemência e paciência,
compreende que, esquecendo as injúrias do próximo, alcançará
perdão e, retendo e sustentando a lembrança delas, se faz indigno da
misericórdia divina; pois, muito bom meio é o trabalho e a aspereza
da vida para alcançar perdão dos pecados, porém muito melhor é o
perdão das injúrias, segundo o que está escrito: Perdoai e sereis
perdoados.
Por isso, bem se vê que um dos grandes argumentos e indícios da
verdadeira penitência é o olvido das injúrias; e aquele que, guardando
as inimizades, pensa que faz penitência, é semelhante a quem, estando
a dormir, sonha que corre.
Já me aconteceu ver alguns que saudavelmente exortavam outros ao
perdão das injúrias; e, tendo eles também que perdoar, de tal modo se
moveram e envergonharam com suas próprias palavras, que vieram a
perdoar e a curar sua própria enfermidade com o remédio dado para a
enfermidade alheia. Ninguém tenha esta cega paixão por simples e
pequeno vício, porque muitas vezes chega a alterar os espirituais
varões.
CAPÍTULO X
Do horror à detração
Da veracidade
Da solicitude e diligência
Da temperança e do jejum
Da castidade
I
Da piedosa sensibilidade
Entre os que estão nas casas dos reis mortais e terrenos, há alguns que,
livres e desembaraçados, não têm outro cargo ou ofício senão o de
fazer-lhes a corte; há outros que têm funções de servir em alguma
coisa, como, por exemplo, trazer na mão as maças, as insígnias reais,
o escudo, ou a espada. E grande é a diferença entre uns e outros,
porque aqueles primeiros sóem ser os parentes e privados dos reis, ao
passo que estes são servos e ministros de sua casa. Vejamos agora
diligentemente de que maneira devemos assistir a nosso Deus e Rei
Soberano, nas orações e exercícios espirituais que se celebram à tarde
e à meia-noite.
Nestas sagradas vigílias, há uns que, desprendidos de todos os
cuidados do mundo, levantam as mãos puras a Deus com uma
perfeitíssima oração; outros há que assistem diante dele, ao mesmo
tempo, cantando Salmos; outros lêem livros espirituais e devotos;
outros, mais fracos e imperfeitos, fazem algum trabalho manual, para
por esse meio pelejarem fortemente contra o sono; outros se exercitam
na meditação da morte, procurando assim alcançar compunção e dor
de suas culpas. De todos estes, os primeiros e os últimos se ocupam
em vigílias e exercícios muito agradáveis a Deus; os segundos, que
cantam os Salmos, cumprem com isto o instituto da vida monástica,
da qual é próprio este exercício; os terceiros, que são os que lêem e
trabalham estão em grau inferior, conquanto Deus estime e receba os
serviços conforme a pureza da intenção e o fervor do espírito.
O olho que vela alimpa a alma, e o sono demasiado a embota e
cega. O monge velador é inimigo da concupiscência, mas o
dorminhoco é companheiro dela. As vigílias apagam o incêndio da
carne e livram dos sonhos. Os olhos chorosos e o coração terno e
atento à guarda de si mesmo examinam prudentemente todos os seus
pensamentos, digerem e assimilam o mantimento da palavra de Deus
com o calor da meditação, morti cam e domam as paixões, apertam e
enfreiam a língua, e expelem todas as vãs fantasias e representações. O
monge velador aproveita o sossego e tranqüilidade da noite, para
pescar os seus pensamentos, a m de examiná-los e julgá-los. O
monge diligente, logo que soa a sineta que chama à oração, contente,
diz: “Alegra-te, alegra-te”; mas, o negligente diz: “Ai de mim, ai de
mim!”. A mesa e a comida mostram os gulosos, e o exercício da
oração mostra os que amam a Deus: os primeiros, à vista da mesa
posta, se regozijam, os segundos se entristecem. O muito sono é
causador do esquecimento; mas, as vigílias purgam e acrescentam a
memória de Deus. Das videiras e do lagar colhem os lavradores suas
riquezas; das orações e dos exercícios espirituais colhem as suas os
monges.
O sono demasiado é pesado companheiro, porque tira a metade da
vida, e às vezes, mais. O mau monge vela quando está ocupado em
fábulas e conversações; mas, quando chega a hora da oração, logo se
lhe fecham os olhos. O monge vaidoso mostra-se muito religioso e
prudente nas palavras; mas, quando chega a hora da lição, não pode
abrir os olhos de sono.
Quando soar aquela trombeta nal, ressuscitarão os mortos;
quando começar a soar a voz das palavras ociosas, velarão os que
dormiam. O tirano do sono, às vezes, é amigo enganoso, porque,
depois que estamos perto dele, vai-se e combate-nos fortemente com
fome e sede. Quando vamos orar, diz-nos que levemos algum serviço
manual para não perder tempo, porque de outro modo não pode
impedir a oração dos que velam. Este é o primeiro inimigo que
combate os principiantes, ou para fazê-los mais negligentes ao
princípio, ou para abrir a porta ao espírito de concupiscência.
Enquanto não estivermos livres deste inimigo, não deixemos de cantar
em companhia dos outros, porque muitas vezes teremos vergonha de
dormir, temendo o juízo dos presentes. O cão é inimigo das lebres e o
espírito de vanglória é inimigo do sono.
Acabado o dia, o mercador assenta-se para contar suas perdas e
ganhos; e o mesmo faz o verdadeiro monge, acabado o ofício dos
Salmos. Abre os olhos depois da oração e verás as quadrilhas de
demônios, que, combatidos na oração, depois dela trabalham por
enganar-nos com maus pensamentos e representações.
Está atento e vela sobre ti, para que conheças aqueles que sóem
roubar as primícias de nossas almas; esses ladrões são os demônios,
que em um momento roubam o que se ganhou em muito tempo. Com
esses roubos fazem eles que os monges andem para diante e para trás
como caranguejos.
Acontece algumas vezes que, a dormir, estejamos meditando as
palavras dos Salmos, pelo costume deste louvável exercício; acontece
outras vezes que os demônios preparam sonhos como esses, para que
nos ensoberbeçamos. Outros gêneros de sonhos não quisera eu revelar,
se não me compelissem a isso: a alma que cada dia, sem cessar, pensa
nas palavras de Deus, sói também entre sonhos ocupar-se neste mesmo
exercício; e é isto um prêmio do primeiro trabalho, prêmio que serve
para evitar as imaginações e sonhos desvairados.
CAPÍTULO XX
Horror à blasfêmia
Da mansidão e simplicidade
Da altíssima humildade,
vencedora de todas as paixões
I
Tem esta virtude seus degraus para subir até Deus; e, conforme tais
degraus, dá frutos diversos, um como de trinta, outro como de
sessenta, outro como de cem. A este último degrau chegaram aqueles
que alcançaram a bem-aventurada tranqüilidade, senhora de todas as
paixões. No segundo estão os fortes cavaleiros de Jesus Cristo, que
varonilmente trabalham e pelejam pela virtude; mas, ao primeiro
todos podem chegar. Aquele que verdadeiramente conhece a si mesmo,
nunca será enganado, para que se meta a empreender maiores coisas
do que pode; e xará o pé, com segurança, neste bem-aventurado
ternário da humildade. As aves pequenas temem o gavião; e os
amantes da humildade, a voz da desobediência e da contradição.
Muitos se salvaram sem graça de profecia, e de ciência, e de
revelações, e de milagres, e de prodígios; mas, sem humildade,
ninguém jamais entrou no tálamo do céu, e esta virtude é guarda el
daqueles dons, e aqueles dons algumas vezes foram ocasião de matar
esta virtude nos que estavam bem fundados nela. Também foi
maravilhosa dispensação de Deus, para os que não se queriam
humilhar, que ninguém lhes conhecesse mais as chagas do que o olho
do vizinho; daí se segue que ninguém deve agradecer esta virtude de
conhecer-se a si mesmo, a si, mas a Deus, e ao próximo. Este nos tira
as cataratas dos olhos da alma, isto é, a presunção e a vaidade.
Aquele que é de coração humilde, sempre tem por suspeitosa e
enganadora sua própria vontade, e por tal a aborrece; e, em suas
orações, auxiliado por uma fé rmíssima, sói aprender de Deus,
obedecê-lo prontamente e à voz de seus superiores, sem pôr olhos nos
defeitos deles, con ando em Deus, que, quando foi mister, ensinou até
por intermédio de uma jumenta aquilo que era necessário e convinha.
De anjos é nunca desvairar em pecado; porque assim ouvi a um
anjo da terra, que dizia: “Não me acusa minha consciência, mas nem
por isso me tenho por justo, porque o Senhor é quem me há de
julgar”. Convém, pois, que sempre nos repreendamos e acusemos,
para que, com esta vileza voluntária, lavemos as culpas não
voluntárias; porque se de outro modo zermos, à hora da morte será
rigorosamente julgado quem aqui não se julgou.
Aquele que pede a Deus menos do que merece, alcançará mais do
que merece, como aconteceu ao Publicano, que, pedindo perdão,
alcançou justiça, e ao Bom Ladrão, que, pedindo memória de si no
reino dos céus, alcançou o mesmo reino. Não pode ser visto o fogo em
sua mesma região; e assim não se há de ver na perfeita e sincera
humildade nenhuma coisa material, isto é, nenhuma afeição terrena e
sensual.
A gura e a disposição exterior do corpo representam a virtude e a
disposição da alma; em todo o caso, convém que as obras e guras
exteriores de humildade acrescentem e exercitem a virtude interior da
humildade.
Acho que Manassés foi um dos homens que mais pecaram neste
mundo, porque profanou o templo de Deus com ídolos e encheu
Jerusalém de sangue de inocentes; se todo o mundo jejuasse, não
satisfaria dignamente a penitência por tais culpas. Contudo, pode a
humildade curar males tão incuráveis. Davi bem o compreendeu,
quando disse: Porque, Senhor, se quisesses sacrifício, oferecer-te-ia;
mas não te alegrarás com sacrifícios; sacrifício maior é o espírito
atribulado; o coração contrito e humilhado, Senhor, não desprezarás.
Esta bem-aventurada humildade foi tal que, tendo Davi praticado
homicídio e adultério, mereceu perdão.
Sentença é daqueles Santos Padres, dignos de eterna memória, que
os trabalhos e exercícios corporais de virtude são caminho para a
humildade. Eu acrescento a isto a obediência e a retidão de coração,
virtudes estas que contrariam a soberba. Se a soberba, de anjos, fez
demônios, também a humildade, de demônios, pode fazer anjos.
Portanto, os que estão caídos não desmaiem, se trabalham por
levantar-se. Demo-nos pressa e trabalhemos com todas as forças para
subir ao cume desta virtude, ou ao menos, para subir sobre seus
ombros; e se a nossa preguiça nos impedir de subir, ao menos nos
agarremos a seus braços e não nos deixemos cair deles, pois quem
deles cair não alcançará prêmio eterno. Os nervos e caminhos para
alcançar esta virtude não são fazer milagres; mas, são o
desprendimento de todas as coisas e a peregrinação da alma, que é o
menosprezo cordial de todas elas, e o encobrir cautamente nossa
sabedoria, e o falar com simplicidade e sem artifício, e dar esmola, e a
dissimulação da nobreza, e o desterro da vã con ança, e o silêncio e o
freio da língua, e, por cúmulo, o estado de pobreza, e o viver
baixamente como um pobre mendigo; porque, então, se declara nossa
loso a e nossa sabedoria, e nosso amor para com Deus, pois que,
podendo ser grandes, fugimos constantissimamente à grandeza.
Se algumas vezes te armares contra algum vício, aproveita-te para
isso da companhia e socorro da humildade, e com ela vencerás. Com
ela andarás sobre as serpentes e basiliscos, pisarás o dragão, que é o
pecado, e a desesperação, e o Demônio, e este corpo venenoso. A
humildade é um celestial instrumento, poderoso para levantar a alma
do abismo do pecado até o céu. Quem é o pai desta formosa virtude?
Não te direi, responde ela, sem que possuas a Deus.
CAPÍTULO XXVI
Da discrição
I
Sabem todos os que têm aprendido letras qual seja a doutrina dos que
começam, qual a dos medianos e qual a dos perfeitos. Convém, pois,
ter grande atenção, e vigiar que não estejamos toda a vida em
exercícios de principiantes; porque grande confusão é ver um velho
andar na escola com os meninos. Para isso será coisa muito proveitosa
e saudável saber este espiritual abecedário de vinte e quatro letras,
próprio dos principiantes, conquanto não deixe de ser comum a todos,
e que é o seguinte: obediência, jejum, cilício, cinza, lágrimas,
con ssão, silêncio, humildade, vigílias, fortaleza, frio, trabalho,
miséria, menosprezo de si mesmo, contrição, olvido das injúrias
recebidas, fraternidade, mansidão, fé simples e alheia de toda a
curiosidade, desterro dos cuidados do século, amável e santo ódio de
nossos pais, repúdio de todo o afeto desordenado, simplicidade junta
à inocência, e vileza voluntária. Mas, as virtudes dos que aproveitam
são estas: esperança fácil, quietude, discrição, memória contínua da
conta do Juízo Final, misericórdia, hospitalidade, correção discreta e
modesta, oração livre de toda a perturbação, desterro da avareza. E as
virtudes e o m daqueles espíritos e corpos que religiosamente hão
chegado ao cúmulo da perfeição nesta carne mortal são estes: coração
xo sempre ou quase sempre em Deus, caridade perfeita, fonte de
onde sempre manem arroios de humildade, peregrinação da alma ou
olvido e desamparo de todas as coisas transitórias, participação
copiosa da luz divina, oração pura e livre de todo o derramamento,
desejo da morte, aborrecimento da vida enquanto é matéria de
perigos, fugida do corpo para a soledade, abismo de ciência, casa de
mistérios, guarda de segredos divinos, intercessor da salvação do
mundo, ser poderoso para fazer força a Deus, ser companheiro dos
anjos em seu serviço, ser morada espiritual e templo vivo de Cristo,
ser procurador da salvação dos homens, Deus dos demônios, senhor
dos vícios, senhoreador do corpo, reformador da natureza, peregrino
entre os pecados, aposento da bem-aventurada tranqüilidade, imitador
do Senhor mediante a ajuda do mesmo Senhor.
Necessidade temos de grande solicitude e vigilância quando estamos
enfermos; pois, quando os demônios nos vêem assim doentes, e que
não podemos por isso usar de exercícios corporais contra eles, atenta
a nossa fraqueza, então nos combatem mais fortemente: aos homens
do mundo com tentações de ira e algumas vezes de blasfêmia; aos
apartados do mundo, se têm abundância de coisas necessárias, com
tentações de gula e luxúria; e aos que estão em lugares onde carecem
de toda a humana consolação, como convém a cavaleiros de Cristo,
importunam com tentações de acídia e de perpétua tristeza.
Notei uma vez que este lobo da sensualidade, por uma parte,
acrescentava dores ao enfermo, por outra, no meio das mesmas dores,
despertava nele desonestos movimentos, e molestava-o com a
evacuação de feios humores; e era coisa muito para espantar ver tão
viva e tão in amada a tentação da carne entre tão cruéis estímulos de
dores. Outra vez, chegando-me a vez de visitar os enfermos, vi alguns
deles com grande consolação e compunção, mediante as quais, com o
favor de Deus, não sentiam as dores que padeciam; e tão contentes se
achavam com sua enfermidade, que desejavam permanecer nela,
vendo que assim, como por uma pena saudável, se livravam de muitos
vícios e perigos. Glória, pois, a Deus, que com um lodo havia lavado e
relevado outro.
Nossa alma, que é substância espiritual, está revestida de um
sentido e conhecimento intelectual, que é aquela luz de que Deus nos
participou para conhecer o bem e o mal. Esta luz, que, conquanto não
seja nossa, está em nós por mão de Deus, nunca cessemos de esclarecê-
la e acrescentá-la por todos os lados; porque, estando ela clara e
resplandecente, todos os sentidos exteriores também o estarão,
obedecendo-a e conformando-se com ela, e isto é o que conhecia um
Sábio, quando dizia: Acharás dentro de ti um sentido e uma luz
divina.
Uma coisa é a Providência de Deus; outra, seu auxílio; outra, sua
guarda; outra, sua misericórdia; outra, sua consolação. A primeira
pertence a todas as criaturas; a segunda, aos éis; a terceira, aos éis
que também têm esperança e caridade; a quarta, aos que servem em
sua casa como seus domésticos, que são os religiosos; e a última, aos
que o amam tão extremosamente que merecem nome de familiares
amigos seus, e que assim são por ele maravilhosamente consolados.
III
A discrição é candeia nas trevas, guia dos transviados, e luz dos cegos.
O varão discreto é inventor de saúde, e puri cador de enfermidade.
De duas causas procede maravilharem-se os homens de coisas
pequenas: ou de sua grande ignorância, ou do desejo de conservar-se
em humildade, desejo que leva-os a engrandecer e magni car as obras
de seus próximos. Trabalhemos, com todas as nossas forças, não só
para lutar, mas também para fazer guerra aos demônios; pois, quem
luta, às vezes fere, e às vezes é ferido; mas, quem faz guerra, sempre
persegue como vencedor ao inimigo. Aquele que vence os vícios, fere
os demônios; e se deixa crer que tem pecados e encobre suas virtudes,
engana com isto aos inimigos e assim se torna mais inexpugnável. Um
dos religiosos foi uma vez injuriado por outro, e não sentindo com
isto alteração alguma em seu ânimo, começou secretamente a fazer
oração e a derramar lágrimas naquela ignomínia, escondendo assim
secretamente a sua tranqüilidade. Outro religioso, não tendo cobiça
alguma do primeiro lugar, deixou acreditar que alimentava uma tal
ambição. Mas, quem explicará com palavras a castidade daquele que,
quase sob color de pecar, entrou no lugar público das más mulheres, e
ali converteu logo uma delas? Todos estes tiveram necessidade de
muita atenção e vigilância, para que, pretendendo enganar ao
Demônio, não fossem, ao contrário, enganados por ele, não obstante
serem esses, sem dúvida, aqueles de quem disse o Apóstolo: Como
enganadores, ainda que verdadeiros.
Assim como são diversas as vistas dos olhos humanos, assim são
diferentes as iluminações e resplendores causados na alma por virtude
daquele sol intelectual, produtor de todas as luzes. Uma é a luz que
causa lágrimas corporais, outra a que causa lágrimas espirituais; uma
é a luz que entra pelos olhos do corpo, outra a que entra pelos olhos
intelectuais da alma; uma é a luz da palavra de Deus, outra a que
nasce espontaneamente na alma com uma espiritual alegria; uma é a
luz da soledade, outra a da obediência. Além destas, há outra luz
singular, que por sua própria natureza levanta a alma sobre si, e a
junta com Jesus Cristo por uma tão alta e secreta maneira, que não se
pode explicar.
E declarando cada uma destas sobreditas maneiras, digo que uma é
a luz que vem produzir no homem lágrimas corporais, quando
considerando ele a gravidade de seus pecados, se resolve todo em
lágrimas exteriores; outra é a que produz lágrimas espirituais, quando
o homem considera os muitos benefícios e promessas de Deus, e com
isto se move a uma piedosa devoção e amor. Uma é a luz que concorre
com a vista dos olhos corporais, quando, contemplando a fábrica
maravilhosa deste mundo, e a formosura e ordem das criaturas, nos
elevamos à contemplação do Criador, segundo o conselho do Profeta
Isaías: Levantai vossos olhos para ver quem criou todas estas coisas;
outra é a luz que concorre com a vista dos olhos intelectuais, quando,
considerando a elevação e pureza daquelas intelectuais substâncias, e
especialmente daquela que in nitamente excede a todas, que é Deus,
nos levantamos à contemplação da majestade e soberania do Criador.
Uma é a luz que procede de ouvir a palavra de Deus, quando pela
prédica e pelo ensino que recebemos nos elevamos à inteligência das
coisas da fé e dos mistérios divinos; e há também outra espiritual
alegria, que procede da mesma alma, quando considera as inspirações
de Deus e os movimentos espirituais que dentro de si tem sentido. Há
ainda outra alegria, que nasce da quietude e repouso da soledade, que
é o gozo espiritual dos solitários, que, orando, cantando, meditando e
amando, se alegram no Senhor; há outra que procede da obediência,
que é a alegria dos monges que vivem em comunidade, os quais
entranhadamente se deleitam nos exercícios e obras da santa
obediência. Além destas, há outra singular luz e alegria, que levanta a
alma sobre si e a junta com Jesus Cristo, mediante esta luz intelectual,
por uma maneira secreta e inefável: é quando a alma, por mão de
Deus, tocada com um fervorosíssimo amor, e iluminada tão
copiosamente que vem a car absorta na contemplação do mesmo
Deus, ca de tal modo extasiada, que toda vem a ser arrebatada e
sumida na fonte daquele claríssimo resplendor e levada às riquezas de
sua glória; e assim, inefavelmente, e com uma grandíssima
tranqüilidade, vem a car-se, e a repousar, e dormir e deleitar-se em
seu mesmo Criador. E isto é o objeto da mística Teologia, que é o
conhecimento afetivo e amoroso de Deus, mediante aquele altíssimo
dom do Espírito Santo, m de todos os outros dons, que se chama
Sabedoria, que, conhecendo e ardendo em sapientíssimo amor, como
que se transfunde em Deus.
Há virtudes e há mães de virtudes, que são as causas das outras
virtudes; e são estas mães de virtudes que o varão discreto procura
mais alcançar. Destas costuma ser Deus o mestre; mas, das outras, o
são os homens, conquanto Deus e os homens possam ser mestres de
umas e de outras. Uns recebem de Deus o começo e ordem da boa
vida; e outros, não só o princípio, como também o m. E a virtude diz
respeito a um m in nito, que é Deus, como disse aquele cantor dos
hinos celestiais: Vi o m de toda a consumação da lei, que é teu
mandamento grandioso, amplo, in nito. Se alguns bons e santos
trabalhadores, depois de terem aproveitado no exercício das virtudes
morais, passam ao das teologais e dos dons intelectuais, especialmente
no dom da sabedoria; se a caridade com isto nunca desfalece; e se o
Senhor guarda o princípio de nossa entrada com temor e a saída com
amor: sem dúvida a posse deste tesouro é um in nito m, porque
nunca deixaremos de aproveitar nele, subindo continuamente de grau
em grau, sem cessar, pelo caminho da perfeição.
XI
Não há quem não saiba que são bem-aventurados os pací cos, pois
por tais os apregoa o Senhor. Mas, vi também serem bem-aventurados
outros, que turbavam a paz e criavam guerra saudável. Soube, por
exemplo, que duas pessoas se amavam uma a outra com desonesto
amor, e que, sabendo disto um varão santíssimo e prudentíssimo
meteu-se de permeio e começou a semear discórdia entre ambos; e
desta maneira com prudência humana venceu a malícia dos demônios.
Verdade é que nem neste caso, nem em outro qualquer, é lícito mentir;
porém louva-se o feito pela raiz de onde procedeu, que foi a caridade.
Assim como são contrárias entre si as bodas e os funerais, assim o
são a presunção e a desesperação; contudo, os demônios são tão
maus, que muitas vezes juntam em um mesmo sujeito um e outro,
fazendo o mesmo pródigo e escasso, assim como também o fazem
presunçoso e descon ado. Há alguns espíritos maus, que sóem, ao
princípio da conversão, interpretar-nos as Sagradas Escrituras; e isso
principalmente obram naqueles que são propensos à vanglória ou que
são ensinados em ciências humanas, para que, enganando-os pouco a
pouco, os conduzam a heresias e blasfêmias. E poderemos tomar por
conjectura disto a turbação, e a desordenada e torpe alegria em que se
sói derramar nossa alma ao tempo em que recebe a tal interpretação.
Se alguma vez, depois de haver amanhecido já em nossa alma o
verdadeiro sol de justiça, vem ele a fazer ocaso, escondendo-nos sua
graciosa presença e a luz de sua consolação, daqui se seguem logo
trevas na alma e se faz noite; durante este tempo, o homem acha tudo
escuro e cerrado, lhe parecendo não descobrir luz por parte alguma; o
céu se lhe faz de metal, e a terra de ferro; ali se acha envolto em tanta
obscuridade de paixões, e confusão de pensamentos, que às vezes
suspeita haver perdido de todo a graça divina; nessa noite, que é a
obscuridade da alma, passam todas as bestas selvagens, isto é, as
paixões ferozes e bestiais da ira, da impaciência, da indignação e da
inveja, bramindo e pedindo seu manjar, isto é, querendo engolir a
nossa esperança de perseverar no bem começado, para atiçar e
renovar as nossas más inclinações. Porém, depois que torna a sair o
sol, que é a luz alegre da divina consolação, mediante a virtude da
humildade, com a qual o homem, convencido pela experiência das
misérias, se abaixou e humilhou a Deus, logo todas estas bestas feras
de paixões e tentações abandonam essas almas humildes e se recolhem
aos seus covis, isto é, aos corações dos homens sensuais e soberbos.
Não desmaiemos, se logo ao princípio de nossa conversão nos
achamos muito inclinados aos vícios. Na porta das virtudes, logo à
entrada, é necessário que nos façam guerra todas as relíquias dos
vícios e maus costumes passados; porque, não só os demônios se
armam e recrudescem contra nós para recuperar sua fazenda, como
também a novidade da vida boa é pesada para quem está acostumado
à má vida. E ademais, as bestas feras, que estavam dentro de nossa
alma escondidas, não se entendia naquele tempo quanto eram más,
porque o homem não conhecia a si mesmo; mas, depois, quando
começa ele a examinar-se, começa também a parecer-lhe que é pior do
que quando estava no século, não porque assim o seja mas porque
então não se via e agora se vê.
Quando os que se acercam já da perfeição virem que, em algum
pequeno delito, são vencidos do Demônio, trabalhem com toda a
diligência por aproveitar, em quanto lhes seja possível, cem vezes tanto
mais do que foi aquilo em que desfaleceram, para recuperar aquela
pequena perda com maior lucro. Assim como os ventos algumas vezes
nada mais fazem do que encrespar um pouco a planura do mar
sossegado, e outras vezes o revolvem de baixo para cima, levantando
as ondas até o céu: assim hás de entender que o mesmo fazem os
espíritos maus e tenebrosos. Quer isto dizer que, nos que perseveram
continuamente em seus vícios, levantam-se grandes ondas de paixões e
tempestades no mar de seu coração; mas, nos que já têm aproveitado,
não sóem fazer mais do que encrespar as águas de nossas paixões,
alterando levemente a paz de sua alma. Os que têm aproveitado
conhecem facilmente esta sua alteração, porque mantêm sua
costumada paz e tranqüilidade e, com isso, o juízo claro de sua razão.
Os perfeitos, então, conhecem desde logo qual seja a intenção dos
demônios, e a de Deus, e a de sua própria consciência; pois, os
demônios não nos acometem desde logo com coisas abertamente más,
e é por isso que esta matéria é muito escura e di cultosa de
determinar.
Quando estivermos velando e tristes por nossos pecados, lembremo-
nos daquele mandamento que o Senhor deu a São Pedro, no qual
mandava-o perdoar, se fosse mister, setenta vezes sete; pois é certo que
esta lei de tanta misericórdia, dada ao homem pelo Senhor, muito mais
a guarda ele do que o homem. Quando, porém, nos começarmos a
elevar por ocasião de nossos merecimentos, recordemo-nos da outra
sentença do Senhor: Quem guardar toda a lei e ofendê-la com um só
vício, que é principalmente a soberba por havê-la guardado, torna-se
réu e violador de toda a lei. O cervo, dizem que mata todas as
serpentes venenosas, mas a humildade mata a todas as intelectuais e
invisíveis serpentes.
XIII
Da oração
Da paz de espírito
ANOTAÇÕES
Para entendimento deste capítulo, é de notar que o autor, estando
prestes a chegar ao m do livro e ao último degrau desta escada
espiritual, trata do estado perfeitíssimo dos santos, e das virtudes
perfeitíssimas deles, as quais se chamam virtudes heróicas, ou virtudes
do ânimo já puri cado. Na virtude se consideram três graus: o
primeiro, quando há forte peleja contra as paixões; o segundo, o do
meio, quando, morti cadas as paixões, a obra é feita com facilidade,
prontidão e suavidade; o último, o supremo, é o das virtudes heróicas,
que tiveram alguns grandes santos, chegados que foram ao termo de
sua perfeição, purgados de todas as fezes e escórias das paixões,
afeições e coisas terrenais. Destas virtudes é que trata neste capítulo
este santo varão.
Conquanto estas virtudes não sejam de todos, todavia são postas
aqui, para que entendamos até onde pode levantar a Divina Graça os
homens nesta vida, e assim vejamos o que perdemos por nossa
negligência, e também para que nos humilhemos e abaixemos a cerviz
de nossa soberba, vendo quão longe estamos desta tão grande
perfeição que muitos santos alcançaram. E não pense o homem que,
por chegar alguma vez a ter alguma virtude, ou algum ato de virtude
que em algo se pareça com essas, não pense que já tem chegado a este
felicíssimo estado; porque uma coisa é possuir todas ou quase todas as
virtudes com perpetuidade neste grau, e outra é chegar alguma vez a
ter alguma virtude semelhante a estas, pois, como disse Aristóteles,
alguma vez acontece que a vida do sábio se pareça em um momento
tal qual é eternamente a vida do primeiro princípio. Desta matéria
veja quem quiser a São Tomás, na Ia IIae, q. 61, art. 5, onde achará
coisas mais altas do que as que se dizem neste capítulo, e algumas
ditas por boca de gentios.
CAPÍTULO XXX
Depois de tudo que temos até aqui tratado, seguem-se as três virtudes:
fé, esperança, caridade; com as quais estão unidas e travadas todas as
outras virtudes e dons do Espírito Santo, visto que todas elas se
ordenam a estas três; e estas três dirigem, informam e aperfeiçoam a
todas elas. A maior é a caridade, pois o mesmo Deus se chama
caridade, conquanto caridade incriada. A primeira destas três virtudes,
que é a fé, aparece-nos como raio que procede daquela verdade
incriada, para alumiar nosso entendimento. A segunda, que é a
esperança, é como luz com a qual o coração é alumiado para esperar
as promessas divinas. A terceira, que é a caridade, é como um círculo
perfeito, que inclui dentro de si todas as virtudes, pois é motivo de
todas elas e a todas comunica sua perfeição. Finalmente, a primeira
pode todas as coisas em Deus; a segunda anda sempre ao redor de sua
misericórdia e livra a alma de confusão; a terceira permanece para
sempre e nunca deixa de correr, porque aquele que está tocado deste
bem-aventurado furor, não pode já repousar.
Aquele que determina falar da caridade, determina falar de Deus; e
querer falar de Deus é coisa perigosa e perplexa aos que não miram
cautamente a empresa que tomam. Deus é caridade; e, por isso, quem
determina falar do m desta virtude, se faz semelhante a quem
quisesse medir a areia do mar.
Caridade, segundo sua qualidade, é semelhança de Deus, segundo
nos homens se pode achar; porque caridade é uma semelhança
participada do Espírito Santo, o qual essencialmente é amor do Pai e
do Filho, de onde nasce que, com qualquer outra virtude, não se faz o
homem mais semelhante a Deus do que com esta. Mas, segundo sua
e cácia, caridade é uma saudável embriaguez, que docemente
transporta o homem a Deus e o tira de si; segundo sua propriedade,
caridade é fonte de fé, abismo de longanimidade, e mar de humildade,
não porque seja causa destas virtudes quanto à essência delas, e sim
quanto ao exercício de seus atos. A caridade tudo crê, tudo espera, e
em tudo humilha elevando e eleva humilhando àquele que a tem.
Finalmente, a caridade perfeita é desterro de toda a má intenção e
pensamento, porque a caridade, como diz o Apóstolo, não pensa mal.
A caridade e tranqüilidade, e o espírito e adoção de lhos de Deus,
só nos nomes se distinguem; porque assim como a luz, o fogo e a
chama
concorrem em uma mesma obra, assim também o fazem estas três
virtudes. Segundo a medida ou falta da divina luz, assim tem a alma o
temor de Deus, porque aquele que de todo está sem gênero algum de
temor, está cheio de caridade, ou está morto em sua alma. Verdade é
que da perfeita caridade nasce o verdadeiro e santo temor de Deus, o
qual também acrescenta o mesmo amor de Deus, de onde nasce. Não
será coisa desordenada, nem fora de propósito, se tomarmos exemplo
das coisas humanas para declarar a qualidade dos santos desejos, do
temor, do fervor, do zelo, da servidão e do amor de Deus, como um
furioso enamorado do mundo anda perdido pelo que ama. Bem-
aventurados aqueles que temem a Deus, como os malfeitores e
sentenciados à morte temem o juiz e o executor da sentença. Bem-
aventurado aquele que anda tão solícito no serviço de Deus, como
alguns prudentes criados andam no serviço de seus senhores. Bem-
aventurado aquele que com tão grande zelo vela e está atento no
estudo das virtudes, como o marido zeloso no que toca à honestidade
de sua mulher. Bem-aventurado aquele que de tal maneira assiste ao
Senhor em sua oração, como alguns ministros assistem diante de seu
rei. Bem-aventurado aquele que trabalha por aplacar a Deus e
reconciliar-se com ele, como alguns homens procuram aplacar e
buscar a graça das pessoas poderosas de que têm necessidade.
Não anda a mãe tão ligada ao lho que cria a seus peitos, como o
lho da caridade anda sempre ligado a seu Senhor. Aquele que
verdadeiramente traz sempre diante dos olhos a gura do que ama, e o
abraça no íntimo de seu coração com grande deleite, nem em sono
pode repousar, e então lhe parece que vê a quem deseja e que trata
com ele. Isto se passa no amor dos outros corpos, e o mesmo também
se passa no amor dos espíritos. Com esta seta estava ferido aquele que
dizia: Eu durmo (pela necessidade da natureza) e vela o meu coração
(pela grandeza do amor), isto é, abrasado com o fogo da caridade,
ferido com a seta do amor de Deus. A causa da fome não é muito fácil
de averiguar, mas a causa da sede é mais clara e notória, porque todos
sabem que o ardor do sol é causa dela; por isso, aquele que
ardentemente desejava a Deus, dizia: Teve minha alma sede de Deus,
que é fonte viva.
Se a presença e rosto daquele que verdadeiramente amamos nos
altera e, deixada toda a tristeza, nos enche de alegria, que fará a face
do Senhor, quando invisivelmente entra em uma alma pura e limpa de
toda a mancha? O temor de Deus, quando sai do íntimo do coração,
sói derreter e consumir toda a essência de nossa alma; por isso orava o
Profeta dizendo: Encrava, Senhor, minhas carnes contra o teu temor;
mas, a santa caridade a sói abrasar e de todo consumir, segundo
aquele que disse: Feriste nosso coração, feriste nosso coração. Outros
há a quem faz alegres e enche de resplendor e de luz, conforme as
palavras do Profeta: E nele esperou meu coração, e minha carne com
isto oresceu, e meu rosto com a alegria do coração reverdeceu. Mas,
quando já todo o homem está unido com a divina caridade, e todo,
por assim dizer, argamassado nela, então exteriormente mostra uma
claridade e serenidade que resplandecem no corpo como em um
espelho claro. E esta glória sensível alcançou assinaladamente aquele
grande contemplador de Deus, Moisés.
Aqueles que têm chegado a este grau (que faz dos homens anjos),
muitas vezes se olvidam do manjar corporal e muitas poucas vezes têm
apetite dele, o que não é muito de maravilhar; se muitas vezes uma
paixão veemente, como é uma tristeza grande, ou coisa tal, faz ao
homem olvidar-se do comer, não é muito que quem tem tomado o
gosto deste manjar incorruptível, se olvide das necessidades naturais
do corpo corruptível; pois, está já por graça levantado sobre a
natureza. O corpo está já feito como incorruptível depois de
puri cado pela chama da castidade, com a qual se apagaram as outras
chamas de apetites, de onde vem que muitas vezes, nem mesmo no
manjar que comem, recebem gosto. A água, que está debaixo da terra,
mantém e rega as raízes das plantas, mas as almas destes se sustentam
e regam com o fogo da caridade.
O acrescentamento do temor é princípio da caridade; mas, o m da
castidade é disposição para a celestial Teologia, que é o conhecimento
de Deus; pois, como diz o Profeta, os apartados e desterrados do leite
(isto é, dos afetos e deleites desta vida) são especialmente ensinados
por Deus. Aquele cujos sentidos e potências estão perfeitamente
unidos com Deus, esse é por ele secretamente, no íntimo de sua alma,
instruído e dirigido; mas, os que não estão com ele ajuntados, não
poderão falar dele sem perigo, pois aos tais repreende ele por seu
Profeta, dizendo: Ao pecador disse Deus: Porque tu ensinas minhas
justiças e tomas meu testamento em tua boca? Aquele verbo
substancial e não criado aperfeiçoa a castidade de nossa alma,
morti cando a morte com sua presença; e, sendo esta morti cada,
logo o discípulo da Teologia é ilustrado por Deus, porque o verbo de
Deus (que procede de Deus) casto é e casti cador das almas, o qual
permanece nos séculos dos séculos. Mas, aquele que não conhece a
Deus (com esta maneira de conhecimento experimental), quando fala
de Deus, fala dele árida e escolasticamente; e a virtude da castidade
perfeita faz a seu discípulo verdadeiramente sábio e, como tal, a rma
e confessa o mistério da Santíssima Trindade, que em sua alma
resplandece.
Aquele que ama a Deus, também ama a seu próximo, e este segundo
é argumento do primeiro. Aquele que ama a seu próximo, não sofrerá
que se murmure dele em sua presença. Aquele que diz amar a Deus, e
ira-se contra seu irmão, semelhante é ao que, estando a sonhar, pensa
que corre.
A esperança é fortaleza da caridade, porque por esta virtude espera
ela seu galardão. A esperança é abundância de riquezas invisíveis. A
esperança é tesouro antes do tesouro, descanso dos trabalhos, porta
da caridade, cutelo da desesperação, imagem e representação das
coisas ausentes. A falta de esperança é desterro da caridade; mas, pelo
contrário, assim que amanheceu a esperança viva, começou a aparecer
a caridade. Com a esperança se aliviam os trabalhos e se suspendem as
fadigas, e esta é a que anda sempre ao redor da misericórdia de Deus,
e esta misericórdia ao redor de quem nela espera. O monge abraçado
com a esperança é vencedor da acídia, da qual triunfa com o cutelo
que ela lhe põe nas mãos. Esta maneira de esperança viva procede da
experiência dos dons celestiais, porque aquele que não há
experimentação destes, não carece de dúvida e perplexidade em sua
esperança. Esta mesma esperança se enfraquece com a ira, porque a
esperança não confunde, nem deixa envergonhado ao que espera, ao
contrário da ira, que envergonha o homem irado.
A caridade é dadora de profecia. A caridade é obradora de milagres.
A caridade é abismo de luz. A caridade é fonte de fogo, o qual quanto
mais cresce, tanto mais consome e abrasa a alma sedenta. A caridade é
mãe da paz, fonte de sabedoria, raiz de imortalidade e glória. A
caridade é imitação e estado dos anjos e aproveitamento dos séculos
(que é de todos os escolhidos), cujo aproveitamento se mede pela
caridade.
Dize-nos, pois, agora, ó formosa entre todas as virtudes, onde
apascentas tuas ovelhas e onde dormes ao meio-dia? Alumia,
rogamos, nossas almas, rege-as, guia-as neste caminho, porque
desejamos subir a ti, porque tu tens senhorio sobre todas as coisas,
porque tu agora feriste nossas almas e o íntimo de nossas entranhas, e
já não podemos esconder a chama. Onde iremos quando te tenhamos
louvado? Tu tens senhorio sobre o mar de nosso coração, tu amansas
e forti cas as ondas de nossas paixões; tu humilhas e feres a soberba
de nossos pensamentos e, com teu braço, desbaratas teus inimigos,
fazendo inexpugnáveis teus amigos.
Desejo, pois, saber de que maneira te viu Jacó, arrimado ao alto
daquela escada. Rogo-te queiras ensinar, a este curioso perguntador,
qual seja a espécie desta celestial subida, qual o modo, qual a
disposição e conexão destes espirituais degraus, que o verdadeiro
armador teve, dispôs, e ordenou em seu coração, para subir por eles.
Desejo também saber qual seja o número deles e quanto tempo para
esta subida se requer; porque aquele que por experiência trabalhou
nesta subida e viu esta visão, nos remeteu aos doutores que nos
ensinassem, e ou não quis, ou não pode dizer-nos coisa mais clara.
A estas vozes minhas, a caridade, como uma rainha que baixava do
céu, pareceu-me que dizia aos ouvidos de minha alma: “Ó fervoroso
amante, se não fores destacado da matéria desse corpo, não poderás
entender qual seja minha formosura; e a causalidade e ordem, que as
virtudes têm entre si, te ensinarão a composição desta escada; no alto
dela, estou eu assentada, como o testi cou aquele grande conhecedor
dos segredos divinos, quando disse: fé, esperança, caridade, mas a
maior de todas é a caridade!”.
Subi, pois, irmãos; subi, ordenando alegremente os degraus desta
escada em vosso coração, recordando-vos daquele que disse: Vinde e
subamos ao monte do Senhor, à casa do nosso Deus, que fez nossos
pés ligeiros como de cervos, e nos pôs em lugar alto, para que sejamos
vencedores neste caminho. Correi, rogo-vos, ao lado daquele que diz:
Apressemo-nos a receber o Senhor em unidade de fé e conhecimento
de Deus.
Jesus Cristo, sendo de trinta anos, segundo a plenitude da idade
visível, está posto no trigésimo degrau desta escada espiritual, segundo
a idade invisível; porque Jesus Cristo é Deus e Deus é caridade, como
disse São João. A Jesus Cristo, Deus e Homem verdadeiro, império,
fortaleza, causa de todos os bens, a Jesus Cristo vitória e louvor, assim
como foi, é, e será por todos os séculos dos séculos. AMEN.