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Como devemos nos abandonar à

Providência?
 fr. Reg. Garrigou-Lagrange, O. P.

Em outro momento, disséramos porque devíamos nos confiar e


abandonar à Providência: por causa de sua sabedoria e bondade,
temos de sempre nos dirigir a ela, de corpo e alma, sob a condição
do cumprimento do deveres cotidianos e da lembrança de que, se
permanecermos fiéis nas pequenas coisas, obteremos a graça para
o sermos nas grandes.

Vejamos agora como devemos nos confiar e abandonar à


Providência, segundo a natureza dos acontecimentos que
dependem ou não da vontade humana, do espírito desse abandono
e das virtudes em que se deve inspirar.

DOS DIFERENTES MODOS DE SE ABANDONAR À PROVIDÊNCIA

SEGUNDO A NATUREZA DOS ACONTECIMENTOS1

Para entender esta doutrina da santa indiferença, convém notar,


como amiúde o fazem os autores espirituais2, que o abandono não
se deve exercer do mesmo modo em face dos acontecimentos que
não dependem da vontade humana, das injustiças dos homens e das
faltas e suas conseqüências.

Caso sejam fatos que não dependam da vontade humana, como


acidentes de impossível previsão, doenças incuráveis, o abandono
nunca seria demais. Seria inútil a resistência, e só serviria para nos
infelicitar; por sua vez, a aceitação em espírito de fé, confiança e
amor conferirá grandes méritos a esses sofrimentos inevitáveis3
. Em circunstâncias dolorosas, cada vez que se diga fiat, haverá
novos méritos; a verdadeira provação tornar-se-á santificante. Mais
ainda, no abandono lucraremos as provações possíveis, que talvez
não se abatam sobre nós, como lucrou Abraão ao se preparar com
perfeito abandono para a imolação do filho, a qual o Senhor depois
não mais exigiu. A prática do abandono modifica as provações atuais
ou futuras em meios de santificação, e tanto mais quanto for tal
prática inspirada por um imenso amor a Deus.

Caso sejam sofrimentos provindos da injustiça dos homens, da


malícia, dos maus atos, das calúnias, que fazer? Falando acerca das
injúrias, das admoestações imerecidas e afrontas, das detrações que
atingem nossa pessoa, diz São Tomás4 que é mister estar preparado
para suportá-las com paciência, segundo as palavras de Nosso
Senhor: “Se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a
outra” (Mt. 5, 39). Algumas vezes, acrescenta ele, convém
responder, seja pelo bem de quem insulta, para reprimir sua audácia,
seja para evitar o escândalo que poderia nascer das detrações ou
calúnias. Se acreditamos no dever da resposta e assim no da
resistência, façamo-lo recomendando-nos ao Senhor para a
felicidade da empresa.

Em outras palavras, devemos lamentar e reprovar tais injustiças, não


porque ferem o amor-próprio ou o orgulho, mas porque são ofensa a
Deus e comprometem a salvação de culpados e escandalizados. No
que respeita a nós, devemos vislumbrar na humana injustiça a justiça
divina que nos deu ocasião de expiar outras faltas, reais, que
ninguém nos reprova. Convém considerar nessa provação a
misericórdia divina, que por isso quisera nos separar das
criaturas, livrar das afeições desordenadas, do orgulho, da tibieza,
defrontando-nos com a necessidade premente de recorrer à oração
de súplica fervorosa. Por vezes, as injustiças são, no ponto de vista
espiritual, como cortes de bisturi dolorosíssimos, mas libertadores.
Os sofrimentos causados devem mostrar o preço da justiça
verdadeira, para nos inclinar não apenas a praticá-la em face do
próximo, mas engendrar a beatitude nos que tem sede e fome de
justiça e serão saciados – como consta no Evangelho.

O desprezo dos homens, em lugar de produzir a perturbação ou


amargura, pode ser grandemente salutar, e revelar a vaidade da
glória humana, em contraste com a beleza da glória divina, como
bem entenderam os santos. Esse é o caminho que leva à verdadeira
humildade, e faz aceitar e amar o ser tratado como pessoa digna de
desprezo.

Finalmente, caso sejam inconvenientes de outros gêneros,


resultados não da alheia injustiça contra nós, mas de nossas
próprias faltas, imprudências ou fraquezas, que fazer?

Dentre as faltas e suas conseqüências, há de se distinguir o que


existe de desordenado, de culpável e de humilhação salutar. A
despeito do que diga o amor-próprio, não saberíamos penitenciar o
bastante o desregramento da alma como injúria feita contra Deus e
contra a mesma alma, não raro com prejuízo da alma do próximo.
Quanto à humilhação salutar que daí resulta, devemos aceitá-la com
total abandono, como se diz no Salmo 118, 71-75: “Bonum mihi, quia
humiliasti me, Domine, ut discam justificationes tuas... Cognovi,
Domine, quia aequitas judicia tua, et in veritate tua humiliasti me... –
Foi-me bom ter sido afligido, para que aprendesse os teus estatutos.
Melhor é para mim a lei da tua boca do que milhares de outro ou
prata. As tuas mãos me fizeram e me formaram; dá-me inteligência
para entender os teus mandamentos. Os que te temem alegraram-
se quando me viram, porque tenho esperado na tua palavra. Bem sei
eu, ó Senhor, que os teus juízos são justos, e que segundo a tua
fidelidade, me afligiste”.
:
A humilhação que resulta das faltas é o verdadeiro remédio contra a
estima exagerada de nós mesmos, estima conservada malgrado o
desapreço ou desprezo que outrem nos manifesta. Sob a
humilhação que vem de fora, podemos endurecer por orgulho,
queimar-nos o incenso que nos é recusado. É uma das formas mais
sutis e perigosas do amor-próprio e do orgulho. Quer corrigir-nos a
misericórdia divina, por meio da humilhação oriunda das próprias
faltas; em sua bondade, ele as faz se disputarem contra si, de modo
a avançarmos; deste modo, enquanto nos aplicamos, é forçoso
aceitar as humilhações com abandono perfeito. Bonum mihi, quia
humiliasti me, Domine... Esta é a via que conduz à prática da palavra
profunda da Imitação, tão fecunda para quem realmente a
compreende. Amare nesciri et pro nihilo reputari: Amar ser ignorado
e reputado como nada. Há de se viver dessa doutrina, segundo a
natureza dos acontecimentos, dependam eles ou não de nós.

COMO SE DEVE ABANDONAR À PROVIDÊNCIA?

Como dizem os quietistas, seria este um espírito que amesquinha a


esperança de salvação, sob pretexto de alta perfeição?

Muito ao contrário, deve este ser um grande espírito de fé, de


confiança e de amor.

A vontade de Deus, traduzida em seus mandamentos, é de que


esperemos nele, obrando com confiança a nossa salvação,
quaisquer que sejam os obstáculos; essa vontade está no domínio
da obediência, e não no do abandono. A vontade de abandono
respeita ao bel prazer da vontade de Deus, com relação ao futuro
incerto e aos fatos que acontecem diariamente no curso da vida,
como a saúde, a doença, o sucesso e os infortúnios5.

Sob o pretexto da perfeição, sacrificar a salvação, a beatitude


eterna, seria algo absolutamente contrário à inclinação natural à
:
felicidade, inclinação que, semelhante à nossa natureza, vem de
Deus. Seria contrário à esperança cristã, não apenas àquela dos
fiéis, mas a dos santos que, durante as maiores provações,
heroicamente esperaram “contra toda esperança humana”, segundo
aquilo de São Paulo, quando tudo parecia perdido. Enfim, tal
sacrifício da beatitude eterna seria contrária a mesma caridade
cristã, que nos faz amar a Deus por si mesmo, e desejá-lo possuir
para glorificá-lo pela eternidade.

A inclinação natural, que vem de Deus e nos faz desejar a felicidade,


não é desordenada, pois já ela impulsiona o amar a
Deus, soberano bem, mais que a nós mesmos. Demonstrou-o São
Tomás: Assim, disse ele, no organismo a mão está naturalmente
inclinada para amar o todo acima de si, e caso seja necessário, para
se sacrificar. Assim a galinha, por instinto, junta os pintinhos sob as
asas, como disse Nosso Senhor, e caso seja necessário, se sacrifica
para preservá-los do gavião; porque ama inconscientemente o bem
da espécie, mais que a si mesma. Essa inclinação natural existe no
homem, sob uma forma superior. Amando o bem do que é superior
em si, o homem ama mais ainda o Criador; cessar de querer a
perfeição e a salvação é desviar-se de Deus. Não há como sacrificar
o desejo de salvação ou de beatitude eterna, sob o pretexto de alta
perfeição, como pensaram os quietistas.

Longe disso, o abandono a Deus é exercício excelente das três


virtudes teologais, da fé, da esperança e da caridade, por assim
dizer mescladas uma nas outras.

É verdade afirmar que Deus purifica o desejo de salvação, o amor-


próprio que nele se mescla, por meio das incertezas que ele permite
nos acometam, obrigando-nos a amá-lo mais à puridade.

É preciso abandonar-se a Deus com espírito de fé, acreditando que,


:
como diz São Paulo (Rm. 8, 28), tudo concorre para o bem na vida
daqueles que amam a Deus e que perseveram no seu amor. Este ato
de fé é o mesmo do santo homem Jó, que ao ficar privado dos bens
e dos filhos, permaneceu submisso a Deus, ao declarar: O
Senhor deu, o Senhor tirou, que seja louvado o nome do Senhor (Jó
1, 21).

Foi desta forma que Abraão preparou-se para obedecer a Deus, que
lhe ordenava a imolação do filho; e foi com grande fé e boa vontade
que abandonava o devir de sua raça à vontade divina. Recorda-o
São Paulo, ao escrever na Epístola aos Hebreus 11, 17: “Pela fé
ofereceu Abraão a Isaque, quando foi provado; sim, aquele que
recebera as promessas ofereceu o seu unigênito. Sendo-lhe dito: Em
Isaque será chamada a tua descendência, considerou que Deus era
poderoso para até dentre os mortos o ressuscitar”.

Claro, nossas provações são bem menores, apesar de parecer às


vezes pesadas, por causa da fraqueza.

Pelo menos, a exemplo dos santos, acreditamos que o Senhor em


tudo obra o bem, seja enviando a humilhação e a secura, seja nos
cumulando de honrarias e consolações. Como nota o pe. Piny, não
há fé maior e mais viva do que acreditar que Deus dispõe tudo para
o bem das almas, mesmo que pareça destruí-las, e lhes desfazer os
melhores desejos; mesmo que permita a calúnia, a degradação
irreversível da saúde ou coisas ainda mais dolorosas. Eis uma grande
fé, pois é acreditar no que parece menos crível: que Deus eleva ao
rebaixar; e não somente de modo abstrato e teórico, senão que de
modo prático e vivido. É experimentar o que diz o Evangelho: “Quem
se eleva (como o fariseu) será humilhado; quem se humilha (como o
publicano) será elevado” (Lc. 18, 14). É viver a palavra do Magnificat:
“Deposuit potentes de sede, et exaltavit humiles; esurientes implevit
bonis, et divites dimisit inanes – O Senhor abateu os orgulhosos, e
:
elevou os humildes; encheude bens os famintos, e os ricos
despediu-os com as mãos vazias” (Lc. 1, 52). Devemos todos ser
pequenos pela humildade, e famintos dum vivo desejo pela verdade
divina, que é o verdadeiro pão da alma.

Cumprindo os deveres cotidianos, devemos nos abandonar ao


Senhor com espírito varonil de fé. É mister fazê-lo com confiança
filial em sua paternal bondade. A confiança (fiducia ou confidentia) é,
afirma São Tomás, a firme ou forte esperança que vem da grande fé
na bondade de Deus, autor da salvação. O motivo formal da
esperança é a bondade de Deus, sempre caridosa, segundo as
promessas, Deus auxilians.

“Bem-aventurado, cantam os salmos, os que confiam no Senhor”


(Sl. 2, 12). “Os que confiam nele são como a montanha de Sião; ela
não se abala, porque permanece sempre sobre sua base” (Sl. 124, 1).
“Conserva-me, Senhor, porque espero em vós” (Sl. 15, 1). “Vós sois o
meu refúgio, jamais serei confundido” (Sl. 30, 1).

Escrevendo sobre Abraão, que mau-grado a idade avançadíssima,


acreditou na promessa divina, de que se tornaria pai de inumeráveis
nações, diz São Paulo (Rm. 40 18): “Em esperança, creu contra toda
esperança; ...não duvidou da promessa de Deus por incredulidade,
mas foi fortificado na fé, dando glória a Deus, e estando certíssimo
de que o que ele tinha prometido também era poderoso para fazer”.

De igual modo, cumprindo nosso dever cotidiano, devemos esperar


de Nosso Senhor a realização de sua palavra: “As minhas ovelhas
conhecem a minha voz, e eu conheço-as, e elas me seguem...
ninguém as arrebatará da minha mão” (Jo. 10, 28). Como nota o pe.
Piny: depois de cumprir com siso o dever, o abandonar-se
confiadamente nas mãos do Senhor é ser de fato ovelha. Aquiescer
sempre com suas ordens; rezar com amor para que tenha piedade
:
de nós; arrojar-se confiante nos braços da misericórdia com faltas e
remorsos – não é a melhor forma de escutar a voz do Bom Pastor?
Depor em seu seio todos os temores do passado e do futuro, num
santo abandono que, longe de se opor à esperança, constitui-se em
sacratíssima confiança filial, unida ao amor purificante.

Consiste o amor puríssimo no alimentar-se da vontade de Deus, a


exemplo de Nosso Senhor, que disse: O meu alimento é fazer a
vontade daquele que me enviou e de cumprir sua obra” (Jo. 4, 34).
“Não busco a minha vontade, mas a vontade do Pai que me enviou”
(Jo. 5, 30). “Eu desci do céu, não para fazer a minha vontade” (Jo. 6,
38). Não existe modo mais nobre, mais perfeito, mais puro de amar a
Deus, senão fazer da divina vontade a minha, cumprindo sua
vontade positiva e abandonando-se em seguida a seu bel prazer.
Para as almas que seguem esse caminho. Deus é tudo; no final,
podem afirmar: Deus meus et omnia. Deus é o centro, e só nele
estão em paz, ao submeter todas as aspirações a seu bel prazer, ao
aceitar tranqüilamente tudo que ele faz. Nos momentos mais difíceis,
Santa Catarina de Sena recordava-se desta palavra do Mestre:
“Pensa em mim, que eu pensarei em ti”.

Raras são almas que chegam a tal perfeição. Mas é mister tentar.
São Francisco de Sales escreve: “Nosso Senhor ama com amor
delicadíssimo aqueles felizes que se abandonam à divina providência
sem divagar em considerações acerca da natureza, aproveitável ou
danosa, dos efeitos dessa providência; estão certos de que nada se
enviaria do amantíssimo coração paternal, nem que tal seria
permitido acontecer, de que não lucrassem o bem e a utilidade, uma
vez que depositamos nele toda a confiança... Quando (no
cumprimento do dever cotidiano) nos abandonamos de todo à
providência divina, Nosso Senhor cuida de tudo e nos conduz... A
alma está junto dele como um menino junto à mãe; quando ela o põe
no chão para caminhar, ele o faz até que sua mãe o pegue
:
novamente no colo; quando ela o quer carregar, ele se larga em seus
braços: não diz nada nem pensa para onde vão, mas se deixa levar
ou conduzir para onde praz à sua mãe. Igualmente para esta alma,
que ama a vontade do bel prazer de Deus em tudo o que lhe
acontece, e se deixa levar, e não obstante caminha, cumprindo
denodadamente o que é da vontade de Deus positiva.” A exemplo de
Nosso Senhor, pode dizer verdadeiramente: “O meu alimento é fazer
a vontade de meu Pai”; é aí que ela encontra a paz, aquela paz que já
mora em nós, como vida eterna começada, “inchoatio vitae
aeternae”.

La Vie Spirituelle Septembre 1931 n°143

Tradução: Permanência

Fonte: www.salve-regina.com

1. São FRANCISCO DE SALES, L'Amour de Dieu, livro VIII, cap. v, e 1.


IX, cap. I a VII.
2. São FRANCISCO DE SALES, L'Amour de Dieu, loc. cit., e Entretiens
II e XV. - DE CAUSSADE, Abandon, t.11, p. 279. Apêndice, 2° p. Cf.
Dom VITAL LEHODEY. Le Saint Abandon,' Paris, Amat, 1919, 3ª parte:
O abandono no que respeita aos bens naturais do corpo (saúde e
doença) e da alma (distribuição desigual dos dons naturais), aos
bens da opinião (humilhações, perseguições), aos bens espirituais
essenciais (graça e glória), às variedades espirituais da via comum
(os insucessos e as faltas, as provações, as consolações), às
variedades espirituais na via mística...
3. Provações existiram que tranformaram vidas, como as que se
vêem na biografia do pe. Girard, intitulada Vinte e Dois Anos de
Martírio. Após seu diaconato, a tuberculose óssea acometeu esse
santo padre, a qual o imobilizou por vinte e dois anos sobre uma
cama, onde sofrera crudelissimamente e oferecera todos os dias tais
:
sofrimentos aos padres de sua geração. Ele, que padecia a dor de
nunca poder celebrar a missa, unia-se deste modo, diariamente, ao
sacrifício de Nosso Senhor perpetuado no altar. A doença, em vez de
destruir a vocação, transfigurou-a.
4. IIa IIae Q.72 a.3, et q.73, a. 3, ad 3um
5. Cf. São FRANCISCO de SALES, Amour de Dieu, t. ils:, c. v, e
B0SSUET, États d'oraison, 1. VIII, 9

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