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Tomáš Špidlík

A ARTE DE PURIFICAR O
CORAÇÃO

2a edição – 2007

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Spidlík, Tomás
A arte de purificar o coração / Tomás Spidlík ; [tradução Euclides
Martins Balancin]. — 2. ed. — São Paulo: Paulinas, 2007. — (Coleção água
viva)

Título original: L’arte di purificare il cuore ISBN 978-85-356-1534-0

1. Deus 2. Espiritualidade I. Título. II. Série.


CDD-231.7

Índices para catálogo sistemático:


1. Comunicação de Deus com o homem : Purificação : Doutrina cristã :
Cristianismo 231.7
2. Purificação : Comunicação Deus-homem :
Doutrina cristã : Cristianismo 231.7

Título original da obra: L’arte di purificare il cuore


© Centro de Cultura e Formação Cristã (CCFC) - Arquidiocese de Belém -
PA,
com licença da Editora Lipa, Roma.
Direção-geral: Flávia Reginatto
Editora responsável: Vera Ivanise Bombonatto
Tradução: Euclides Martins Balancin
Copidesque: Maria Tereza Voltarelli
Coordenação de revisão: Andréia Schweitzer
Revisão: Leonilda Menossi e Patrizia Zagni
Direção de arte: Irma Cipriani
Gerente de produção: Felício Calegaro Neto
Editoração eletrônica: Sandra Regina Santana
Capa: Cristina Nogueira da Silva sobre detalhe de um mosaico do Atelier dei Centro
Aletti

Paulinas
Rua Pedro de Toledo, 164 04039-000 - São Paulo - SP (Brasil) Tel.: (11) 2125-
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5
Índice

Índice........................................................................................3
Introdução................................................................................9
1. O mistério do bem e do mal............................................11
De onde provém o mal?...................................................11
Podemos aceitar a explicação do dualismo cósmico?..12
Todavia, em nossa carne, como diz são Paulo (cf. rm 7),
oculta-se o pecado; a carne se opõe ao espírito. Como
devemos entender essa oposição?..................................12
Como os antigos filósofos estóicos e também a moral
cristã ensinam a domar as paixões. São estas, então,
que devem ser consideradas como um mal?................13
Então, segundo o ensinamento cristão, o que deve ser
considerado “mal”? Quem é responsável por ele ter
vindo ao mundo?..............................................................14
No entanto, há no mundo tantos males dos quais não
nos sentimos culpados!....................................................14
2. A serpente no paraíso do coração...................................16
Qual a origem do pecado? Como interpretar a
narrativa bíblica sobre a serpente no paraíso?..............16
Como é que um simples pensamento pode causar o
mal?.....................................................................................16
Donde provêm tais impulsos para o mal?....................17
Todavia, no evangelho está escrito que o mal provém
do coração e não das coisas externas (mt 15,19). E
então?..................................................................................18
Então, vivemos sempre expostos às tentações.............18
Apesar disso, estamos internamente divididos. Isso
não é agradável. E, talvez, até mesmo cansativo.........19
Onde podemos encontrá-las?..........................................20
Essas experiências dos antigos monges ainda são
acessíveis e úteis às pessoas de hoje?.............................21
Costuma-se dizer que o verdadeiro pecado só acontece
quando intervém o livre consentimento que se dá ao
pensamento mau. Mas como saber, com segurança, se
consentimos livremente ou não?....................................21
O que é sugestão?..............................................................22
O que quer dizer “colóquio”?.........................................23
Por que o combate vem somente em terceiro lugar?...24
O que é consentimento?...................................................24
O que é paixão?.................................................................25
Então, só se chega ao pecado no quarto estágio?.........26
3. A vigilância do coração....................................................28
Sede vigilantes...................................................................28
O exemplo de Jesus...........................................................29
“Contradizer”....................................................................30
A força do nome de Jesus................................................31
Não seria melhor chamá-la de oração “a Jesus”?.........32
Podemos dizer que desse modo se eliminam as
sugestões para o mal?.......................................................33
A “sobriedade espiritual”, a atenção.............................33
É possível ficar sempre atento? Quem pode evitar as
distrações?..........................................................................34
Como educar-nos para estarmos atentos?.....................35
O ideal apatheia dos cristãos............................................36
Quatro paixões fundamentais.........................................37
Podemos eliminar todas as paixões? Além disso: Seria
bom tornar-nos completamente insensíveis?................38
Então, em que sentido devemos entender a apatheia tão
louvada pelos padres gregos?.........................................40
A apatheia e a caridade......................................................40
4. O discernimento dos espíritos........................................42
Rejeitar os pensamentos? Não todos, certamente!.......42
Por que se fala de “espíritos”, quando se trata de
pensamentos?....................................................................42
Quem é capaz de distinguir os bons dos maus
pensamentos?....................................................................43
Ainda existem profetas capazes de interpretar a voz de
deus?...................................................................................44
mas quem tem um pensamento suspeito não o revela
de bom grado a uma outra pessoa!................................45
Como é possível contar ao padre espiritual cada
pensamento?......................................................................45
Há muitas pessoas assim?...............................................46
Qual é a regra fundamental?...........................................46
Essa regra pode ser aplicada sempre?...........................47
Muitas vezes nos sentimos perturbados. Isso é normal?
.............................................................................................47
Como devemos nos comportar nesse estado de
desolação interior?............................................................48
Todavia, o desgosto nos enfraquece, tira-nos a vontade
de resistir!...........................................................................49
Por que experimentamos esses estados de ânimo tão
desagradáveis?..................................................................49
As provações, porém, não devem ser exageradas!......50
Cada um de nós tem suas fraquezas pessoais. Muitos
se desculpam, dizendo: “meu caráter é esse”. É
possível vencer os próprios defeitos?............................50
Como pode alguém conhecer a si mesmo?...................51
Muitos santos descreveram suas experiências para os
seus discípulos. Onde podemos lê-las?.........................52
5. Os oito pensamentos maus..............................................53
É possível fazer uma lista de todos os pensamentos
maus?..................................................................................53
Que lista tradicional é essa?............................................53
É a mesma lista dos “sete pecados capitais”.................54
O que é a gula?..................................................................54
A luxúria............................................................................55
A avareza............................................................................56
A tristeza, a inveja.............................................................57
É lícito querer superar o sucesso do outro?..................58
A ira.....................................................................................59
A ira descontrolada..........................................................59
Como vencer a explosão da ira?.....................................60
A preguiça..........................................................................61
A preguiça espiritual........................................................62
A tibieza segundo são Bernardo.....................................63
A soberba...........................................................................63
A soberba, o “último demônio”......................................64
A vanglória........................................................................65
Pode-se dizer que a soberba é a raiz de todos os outros
vícios?.................................................................................66
Mas que mal há em amar a si mesmo?..........................66
O que fazer para não se ter vontade própria?..............67
6. A experiência pessoal.......................................................69
As tentações sob a aparência de bem.............................69
Quando nos damos conta de ter feito essa triste
experiência, já não é tarde demais?................................70
JÁ notamos a regra fundamental: aquilo que perturba
provém do demônio.........................................................71
E se não percebermos logo essa perturbação?..............71
Há uma expressão que requer explicação: o
pensamento nos leva para algo mau ou fútil. Quantas
coisas fúteis passam pela nossa mente! São assim tão
prejudiciais?.......................................................................71
a fantasia é uma força natural que se desenvolve
segundo leis próprias?.....................................................72
Não somente as imagens da fantasia, mas também os
raciocínios podem ser fúteis!...........................................73
Como podemos saber, antecipadamente, se um
problema é ou não importante para a nossa vida?......74
Então devemos considerar nocivos os pensamentos
que não são coerentes com a vida?.................................75
Então, para distinguir bem se os pensamentos são úteis
ou não, devemos conhecer sua própria identidade?...76
Como podemos saber qual é a nossa vocação?............77
7. O método psicofisico dos esicastas.................................78
Ioga cristã?.........................................................................78
A paz do corpo..................................................................79
O movimento dos esicastas.............................................79
O peregrino russo.............................................................81
O método da oração incessante do “peregrino russo” 81
O texto clássico de Nicéforo............................................83
O simbolismo do corpo....................................................84
Sentar-se numa posição humilde....................................86
A cela fechada, a penumbra............................................87
A respiração.......................................................................87
Fixar a atenção onde está o coração...............................88
O calor.................................................................................90
Sensação de paz e de harmonia......................................90
O controle da energia vital..............................................91
Perigos a serem evitados..................................................91
Aviso prático......................................................................92
8. Orar “no coração”.............................................................94
Elevação da mente ou do coração?.................................94
Perigo de sentimentalismo?.............................................94
O coração na Bíblia...........................................................95
A integridade humana considerada de modo “estático”
.............................................................................................96
A oração do coração sob o aspecto “estático”...............97
A oração do coração sob o aspecto “dinâmico”...........98
Como podemos perceber a situação do coração?.........99
O coração, fonte de revelação........................................100
O coração puro, fonte de contemplação de deus.......101
O coração conhece a deus mediante as inspirações
interiores...........................................................................102
A oração do coração descrita pelos santos ocidentais
...........................................................................................103
Conhecer a si mesmo para conhecer a Deus...............104
A atualidade da oração do coração..............................105
Epílogo - Paul Claudel: o coração.....................................107
Introdução

Vamos começar com alguns textos característicos:

“Esta é a aliança que farei com a casa de Israel a


partir daquele dia — oráculo do Senhor —: colocarei a
minha lei no seu coração, vou gravá-la em seu coração”
(Jr 31,33).

“Que ele faça Cristo habitar em vossos corações


pela fé, e que estejais enraizados e bem firmados no
amor. Assim estareis capacitados a entender, com todos
os santos, qual a largura, o comprimento, a altura, a
profundidade...; e conhecereis também o amor de Cristo,
que ultrapassa todo conhecimento, para serdes repletos
da plenitude de Deus” (Ef 3,17-19).

“Pode acontecer que o ar sensível se torne menos


presente à respiração de nossos sentidos exteriores do
que o Espírito de Deus se torne íntimo ao nosso coração,
aí soprando, sem cessar, a sua lembrança e habitando
cada vez mais em nós...” (Martyrius Sahdônâ, autor
siríaco do século VII).

“Puro de coração é quem despreza as coisas


terrenas e procura as celestes, nunca cessando de adorar
e de ver o Senhor Deus verdadeiro com o coração e o
espírito puro” (São Francisco de Assis).
“Não é a demasiada ciência que satisfaz a alma, e
sim sentir e saborear interiormente as coisas” (Santo
Inácio de Loyola).

“O nosso coração é, na verdade, a raiz e o centro


da vida. Ele mostra se o estado de ânimo da pessoa é
bom ou mau e motiva as outras suas forças à ação. A
seguir, depois que elas realizaram a sua obra, o coração
recebe dentro de si o resultado dessas ações para reforçar
ou enfraquecer o sentimento que caracteriza a disposição
permanente da pessoa. Portanto, parece que ao coração
dever-se-ia entregar a orientação da vida. De fato, muitos
pensam assim, outros, menos. Na realidade, é o que
acontece com muitas pessoas e menos com outras. Pode
ser também que, no começo, fosse assim. Mas
sobrevieram as paixões, atrapalhando tudo. Quando
essas estão presentes, nosso coração não é um sinaleiro
seguro, nossas impressões não são como deveriam ser,
nossos gostos são perversos e levam à dissipação a ação
das outras forças. Portanto, o programa é este: mantém o
teu coração sob controle e submete a uma severa crítica
todos os teus sentimentos, gostos e inclinações. Quando
tiver sido purificado das paixões, teu coração poderá agir
à vontade” (Teófanes, o Recluso, autor espiritual russo,
falecido em 1894).

“A religião é uma relação pessoal com Deus. Por


isso, o contato com a divindade não é possível senão na
profundidade do meu eu, na profundidade do coração,
porque, como diz Pascal, Deus é sensível ao coração” (B.
Vyšeslavcev, teólogo russo, falecido em 1954).
1.
O mistério do bem e do mal

DE ONDE PROVÉM O MAL?


É a pergunta que as pessoas se fazem
continuamente, embora estejam sempre convencidas de
que o problema do mal nos coloca diante de um mistério.
Antes do cristianismo, podemos distinguir,
esquematicamente, três diferentes respostas
fundamentais que se costumam dar a essa questão:

1. A do dualismo cósmico: há, no mundo, dois


tipos de forças que lutam entre si: as forças das
divindades boas e as das divindades más; a luz e as
trevas. O bem apresenta-se como mais forte, mas sua luta
contra o mal é permanente.

2. A do dualismo antropológico: o bem e o mal


existem no próprio ser humano. A luta entre eles se
manifesta como oposição da carne ao espírito. Os desejos
da carne nos levam ao mal; o espírito, por sua vez, nos
eleva para o alto. Todavia, mediante a ascese, a pessoa
pode enfraquecer a influência da carne e, assim, fortificar
o espírito.

3. A do dualismo moral: não é a carne em si que


conduz ao mal, e sim as “paixões”. A virtude consiste,
pois, em vencer as paixões e viver segundo a razão.
PODEMOS ACEITAR A EXPLICAÇÃO DO DUALISMO
CÓSMICO?

Essa concepção, própria das antigas religiões


orientais, reflete-se nas fábulas, as quais são os
documentos mais antigos da literatura humana. Nelas
encontram-se fadas boas, bruxas más e príncipes que
lutam contra os dragões. As crianças ouvem, de bom
grado, tais narrativas, porque há uma clara distinção
entre aquilo que é bem e aquilo que é mal. No final,
manifesta-se a fé na vitória do bem. Entretanto, no fundo,
essa concepção contradiz a revelação cristã. Tudo aquilo
que existe foi criado por Deus. E tudo o que Deus criou é
bom. Portanto, não podemos admitir a existência de
forças do mal independentes de Deus, contemporâneas a
ele, como também não podemos admitir a existência de
seres maus, por natureza, desde o início.

TODAVIA, EM NOSSA CARNE, COMO DIZ SÃO


PAULO (CF. RM 7), OCULTA-SE O PECADO; A
CARNE SE OPÕE AO ESPÍRITO. COMO DEVEMOS
ENTENDER ESSA OPOSIÇÃO?

De fato, na Bíblia e na literatura ascética, a “carne”


é vista como a fonte do mal. Contudo, esse termo não
deve nos levar ao erro. “Carne” não significa o corpo
humano. É um termo usado no sentido moral, para
indicar o conjunto das tentações causadas pelo pecado, o
qual já encontrou morada dentro de nós. Chama-se
também “concupiscência”, da qual se diz que “provém
do pecado, nos atrai para o pecado, mas, em si mesma,
ainda não é pecado”.

Por isso, seria um erro acreditar que o nosso corpo,


o componente material do ser humano, seja mau. O
corpo de Cristo é santo e nós somos chamados a
santificar o nosso corpo em união com ele.

COMO OS ANTIGOS FILÓSOFOS ESTÓICOS E


TAMBÉM A MORAL CRISTÃ ENSINAM A DOMAR AS
PAIXÕES.
SÃO ESTAS, ENTÃO, QUE DEVEM SER
CONSIDERADAS COMO UM MAL?

O termo “paixão” pode ser entendido de dois


modos. Em sentido positivo, como um desejo sensível
bom, quando indica uma tendência natural: por exemplo,
o desejo de comer quando se tem fome, a alegria de se
poder locomover, a vontade de se casar no tempo
oportuno etc. E em sentido negativo, quando as paixões,
excedendo as medidas e tornando-se dificilmente con-
troláveis, nos conduzem ao mal.

Todavia, nem mesmo as paixões, em si, são


pecado. Com a graça de Deus, o ser humano possui
normalmente a liberdade e a força para vencer as
inclinações ao mal. E se, por acaso, a paixão fosse tão
forte a ponto de levar o ser humano a perder a liberdade
ou o conhecimento do bem e do mal, ele cometeria, como
dizem os moralistas, um pecado apenas em sentido “ma-
terial”, mas diante de Deus, tal pecado se justificaria por
causa da extrema fraqueza da pessoa.
ENTÃO, SEGUNDO O ENSINAMENTO CRISTÃO, O
QUE DEVE SER CONSIDERADO “MAL”? QUEM É
RESPONSÁVEL POR ELE TER VINDO AO MUNDO?

Somente o pecado é um verdadeiro mal, isto é,


resultado de um livre consentimento do ser humano ao
mal. Por conseguinte, só a pessoa é responsável pelo mal
que se apodera do seu coração e, por meio dele, entra no
mundo.

Os santos Padres da Igreja escreveram homilias


sobre o tema “Deus não é a causa dos males” (são
Basílio). Esses santos padres interpelam a pessoa com
estas palavras: “Não coloques a culpa nem em Deus nem
no diabo, nem no mundo, nem na carne com suas
paixões, mas a atribui a ti mesmo, e somente a ti mesmo”.

São João Crisóstomo escreveu um tratado cujo


título é: “Ninguém pode ser prejudicado a não ser por si
mesmo”.

Parece uma triste constatação? E, de fato, é. Mas há


também o reverso da medalha: se, por um lado, somos
nós mesmos que causamos o mal, por outro, nós mesmos
podemos tentar repará-lo.

NO ENTANTO, HÁ NO MUNDO TANTOS MALES


DOS QUAIS NÃO NOS SENTIMOS CULPADOS!

Os santos Padres distinguem os males “físicos”


dos males “morais”. O mal moral é o pecado. Os males
físicos são as doenças, a morte, as catástrofes naturais, as
perseguições etc. Sua origem longínqua também está no
pecado, o qual remonta à primeira desobediência de
Adão.

Os males físicos têm um caráter punitivo. E é


exatamente por isso que servem para o bem, quando
aceitos em espírito de penitência. Os sofrimentos nos
colocam de sobreaviso, para não buscarmos, no mundo, a
nossa felicidade definitiva, e sim para dirigirmos a nossa
mente a Deus.
2.
A serpente no paraíso do coração

QUAL A ORIGEM DO PECADO? COMO


INTERPRETAR A NARRATIVA BÍBLICA SOBRE A
SERPENTE NO PARAÍSO?

O capítulo terceiro do livro do Gênesis narra a


história do primeiro pecado: a tentação de comer o fruto
proibido, a conversa de Eva com a serpente sedutora, o
consentimento de Adão, a expulsão do paraíso.

Os santos Padres acreditam que a experiência de


cada pessoa confirma e prolonga, na história, aquilo que
o livro do Gênesis narra nos primeiros capítulos. Cada
um de nós possui um paraíso, isto é, o coração criado por
Deus num estado pacífico. Da mesma forma, cada um de
nós vive a experiência da serpente a qual penetra em
nosso coração para nos seduzir.

Orígenes (e com ele concordam muitos outros


santos Padres) escreve: “A fonte e o começo de todo
pecado é o pensamento” (em grego, logismos).

COMO É QUE UM SIMPLES PENSAMENTO PODE


CAUSAR O MAL?

Não se trata de um simples pensamento, mas de


um pensamento impuro, mau. Para sermos sinceros,
aquilo que muitas vezes chamamos de tentações não são
nem mesmo verdadeiros pensamentos, e sim, imagens da
fantasia às quais acrescentamos a sugestão de estar
realizando alguma má ação.

São Máximo, o Confessor, ilustra essa situação


com exemplos da vida diária. Ele afirma, por exemplo,
que a faculdade de pensar não é um mal e nem mesmo é
mal. A mulher não é um mal, como também não é um
mal pensar numa mulher. Entretanto, na mente de um
homem inclinado à sensualidade, a imagem de uma
mulher não permanece sempre pura, mas se mistura com
um impulso carnal, o qual sugere um ato contra a lei de
Deus. Do mesmo modo, o dinheiro e a bebida não são
um mal em si. Podem, entretanto, se tornar pedra de
tropeço, por causa dos impulsos impuros que a eles se
acrescentam.

Dizemos que é “puro” aquilo ao qual nada se


acrescenta: assim, fala-se de ouro puro, água pura etc. Da
mesma forma, os pensamentos são puros até que não se
lhes acrescentam impulsos que podem levar a fazer o
mal.

DONDE PROVÊM TAIS IMPULSOS PARA O MAL?


Os santos Padres comparam o coração humano a
uma “terra prometida”, na qual os filisteus, os babilônios
e outros povos pagãos atiram lanças e flechas, isto é, más
sugestões. Tais pensamentos “diabólicos”, “carnais”,
“impuros” não podem ter origem em nosso coração, pois
este foi criado por Deus. Então, vêm “de fora”. Não
pertencem ao nosso modo natural de pensar. Enquanto
permanecem “fora” de nós, não são pecado. Tornam-se
um mal somente a partir do momento em que os
aceitamos consciente e livremente, isto é, quando nos
identificamos com eles.

TODAVIA, NO EVANGELHO ESTÁ ESCRITO QUE O


MAL PROVÉM DO CORAÇÃO E NÃO DAS COISAS
EXTERNAS (MT 15,19). E ENTÃO?
Com certeza. Mas devemos ficar atentos à maneira
como explicamos esse texto.

Do coração da pessoa provém o pecado, porque o


consentimento ao mal se dá a partir de dentro dela, por
sua livre vontade.

Os pensamentos maus, os desejos passionais, por


assim dizer, nos rodeiam continuamente. Muitas vezes
ocupam a nossa fantasia e a nossa mente. Constituem a
fraqueza humana, após o pecado dos nossos primeiros
pais. Em si, porém, ainda não são um verdadeiro mal. A
Igreja afirma que a concupiscência provém do pecado e
conduz ao pecado; porém, em si, ela não é pecado.

ENTÃO, VIVEMOS SEMPRE EXPOSTOS ÀS


TENTAÇÕES...

A vida do ser humano na Terra é uma luta, afirma


Jó (7,1). E um provérbio acrescenta: “Quem não quer
lutar, não deve nem mesmo viver”. Todavia, não se deve
exagerar a dificuldade dessa luta. O Pseudo-Macário,
antigo escritor místico, compara a nossa alma a uma
grande cidade. No centro há um belo castelo, perto dele
fica a praça do mercado e, ao redor, a periferia. O
inimigo, isto é, o pecado original, ocupou a periferia,
quer dizer, os nossos sentidos. Por isso, é neles que nos
sentimos freqüentemente perturbados. Tais perturbações,
porém, chegam muitas vezes até a praça do mercado, ou
seja, aí onde se começa a discutir se devemos acolher um
pensamento ou rejeitá-lo. Contudo, no castelo interior,
onde a nossa liberdade é que manda, o pecado não pode
penetrar, a não ser que lhe abramos a porta, por meio do
nosso livre consentimento.

Também santa Teresa d’Ávila fala do “castelo


interior” da nossa alma, onde podemos conversar com
Deus, o Hóspede divino, sem que as perturbações
periféricas, de alguma maneira, no impeçam de fazê-lo.

APESAR DISSO, ESTAMOS INTERNAMENTE


DIVIDIDOS. ISSO NÃO É AGRADÁVEL. E, TALVEZ,
ATÉ MESMO CANSATIVO...

As pessoas espirituais procuram não apenas evitar


o pecado, mas também purificar o coração, porque, assim
fazendo, voltam a ter paz interior.

Para falar de ascese, os autores monásticos usam o


termo grego praxis, indicando, assim, a prática espiritual.
Eles, porém, fazem distinção entre “prática exterior” -
que consiste apenas em evitar os atos pecaminosos - e
“prática interior” - que tem como objetivo a purificação
do coração.
Infelizmente, muitas vezes os ensinamentos
morais que nos são propostos limitam-se à prática
exterior: “Não se deve fazer isso; pode-se fazer aquilo”. E
isso, talvez, possa explicar por que, não raro, quando se
sentem muito aflitas, as pessoas não sabem mais o que
fazer. E, como a aplicação de leis exteriores não as ajuda,
vão em busca de outras soluções, recorrendo aos mais
disparatados métodos propostos por falsos misticismos,
bem como aos médicos, às drogas etc.

Na maioria das vezes, tais pessoas se esquecem de


que a espiritualidade cristã oferece orientações
eficacíssimas para se obter a paz.

ONDE PODEMOS ENCONTRÁ-LAS?


Os monges que optaram por uma vida de solidão
eram peritos na busca da paz interior. Procuravam a
tranqüilidade, afastando-se do mundo. Mas logo se
davam conta de que a solidão em si mesma não pacifica.

Santo Antão Abade, por exemplo, refugiou-se no


deserto, mas foi assaltado pelos “demônios”, isto é, por
uma quantidade de pensamentos e de fantasias que o
deixaram inquieto. Então, teve de aprender a vencer tais
“demônios”. Somente após uma longa luta interior,
conquistou a arte de vencê-los. A partir daí sua solidão
tornou-se um lugar de paz.

Tal experiência era tão comum, tão conhecida, que


uma lei estatal do império bizantino proibiu os monges
de se refugiarem no deserto, na solidão, antes de ter
vivido no mosteiro, durante dez anos, a vida ascética.
Portanto, antes de enfrentar a vida de eremita, os monges
deviam aprender a dominar os próprios pensamentos e
fantasias.

ESSAS EXPERIÊNCIAS DOS ANTIGOS MONGES


AINDA SÃO ACESSÍVEIS E ÚTEIS ÀS PESSOAS DE
HOJE?

O interessante é que, em nossos dias, exatamente


porque as pessoas sentem particular necessidade dessas
experiências e por aumentarem os pedidos, se traduzem
e publicam textos da antiga espiritualidade que falam
sobre o tema do combate interior. Para citar um exemplo
conhecido, basta lembrar como, ultimamente, se estão
multiplicando as traduções da Filocalia, de Nicodemos
Agiorita. O texto é uma coletânea de numerosos trechos
patrísticos nos quais se ensina como chegar à pureza de
coração, que é condição para a oração e para a
tranqüilidade de vida.

COSTUMA-SE DIZER QUE O VERDADEIRO PECADO


SÓ ACONTECE QUANDO INTERVÉM O LIVRE
CONSENTIMENTO QUE SE DÁ AO PENSAMENTO
MAU.MAS COMO SABER, COM SEGURANÇA, SE
CONSENTIMOS LIVREMENTE OU NÃO?

Há pessoas escrupulosas que, na confissão, se


acusam de “ter tido pensamentos maus”. No entanto, não
sabem responder quando lhes perguntam se consentiram
ou não. Os antigos monges sabiam que tal incerteza é
muito prejudicial para a paz da alma. Por isso,
propuseram uma cuidadosa análise do processo mental
que se dá durante as tentações interiores. Geralmente se
distinguem cinco estágios de penetração da malícia no
coração: 1) a sugestão; 2) o colóquio; 3) o combate; 4) o
consentimento; 5) a paixão.

Tudo isso requer, é claro, uma explicação.

O QUE É SUGESTÃO?
Este primeiro nível chama-se também “contato”. É
a primeira imagem fornecida pela fantasia, a primeira
idéia, o primeiro impulso. Assim, por exemplo, um
avarento que vê dinheiro solto e tem a idéia: “Eu poderia
escondê-lo”. Do mesmo modo, pode sobrevir-nos o
pensamento de que somos melhores do que os outros, o
impulso de deixar de trabalhar etc. Nesses casos, ainda
não tomamos nenhuma decisão. Simplesmente
constatamos que se nos oferece a possibilidade de fazer o
mal, e este se apresenta de forma agradável. Os
principiantes na vida espiritual se assustam: confessam
ter tido “pensamentos maus” até na igreja e durante a
oração.

Conta-se que santo Antão Abade subiu ao telhado


com um seu discípulo que se queixava amargamente dos
seus pensamentos maus. Ali, ordenou-lhe que agarrasse
o vento com a mão. Depois de um certo tempo,
acrescentou: “Se não podes agarrar o vento, muito menos
conseguirás agarrar os pensamentos maus!”. Queria,
assim, demonstrar que nessas primeiras sugestões ainda
não existe culpa alguma e que, enquanto vivermos, não
poderemos livrar-nos delas. Elas se assemelham às
moscas que, tanto mais nos importunam, mais
impacientes nos tornamos.

O QUE QUER DIZER “COLÓQUIO”?


Esse estágio recorda o relato de Gn 3, quando Eva
começa a conversar com a serpente. Se não dermos
atenção à primeira sugestão, ela se vai como veio. Mas
geralmente a pessoa não faz isso; pelo contrário, deixa-se
provocar e começa a refletir. Desta forma, diz o avarento:
“Se eu pegar esse dinheiro, poderei depositá-lo no
banco”. Depois lhe vem à mente que tal ação não é
honesta e, pior ainda, perigosa, uma vez que alguém
poderia ficar sabendo disso. Então, pensa: “Seria melhor
manter o dinheiro escondido”. Não é capaz de decidir
nada, mas a questão do dinheiro fica na cabeça durante o
dia. O mesmo acontece com quem está com raiva de
alguém. Por um bom tempo, fica pensando em quem lhe
causa tanta ira: imagina-se batendo nele, ofendendo-o, e
depois, perdoando-o generosamente. Em seguida, reflete
de novo sobre o que lhe poderia fazer... Vai esquecê-lo
somente depois de muito tempo.

Qual é a culpa presente nesses “colóquios”


interiores? Quem nada decidiu não pode ter cometido
pecado. Mas quanto tempo e quanta energia vital se
perdem nessas “conversas” interiores insensatas!
POR QUE O COMBATE VEM SOMENTE EM TERCEIRO
LUGAR?

Estamos no terceiro estágio. Um pensamento que,


após longo colóquio, se instalou no coração não se deixa
expulsar facilmente. A pessoa sensual tem uma fantasia
tão poluída por imagens impuras que não consegue
libertar-se delas. Contudo, ainda é livre para não
consentir. Pode e deve sair vitoriosa dessa sua luta, mas
isso implica muita fadiga: deve lutar. Sua vontade precisa
permanecer firme, repetindo a si mesma: “Sinto uma
forte atração pelo pecado. No entanto, não quero
consentir. Decido livremente o contrário. E me sinto
capaz de resistir”.

O QUE É CONSENTIMENTO?
É o quarto estágio. Quem perdeu a batalha decide
executar, na primeira ocasião que tiver, aquilo que o
pensamento mau lhe sugere, dando seu livre
consentimento à sugestão da malícia. Nesse estágio,
comete-se o pecado, no sentido verdadeiro. E mesmo que
não se concretize exteriormente, o pecado permanece
interiormente. Trata-se daquilo que a moral chama de
“pecado da mente”. Infelizmente, as pessoas pouco
instruídas e inexperientes confundem os conceitos.
Acreditam que só pensar no pecado já seja ato peca-
minoso. Assim, essas pessoas se tomam escrupulosas e
confessam que não conseguem se libertar dos “pecados
da mente”.
Como sair dessa confusão? É preciso saber parar e
perguntar-se: “O que estou sentindo é atração pelo
pecado? Gosto disso? Sinto-me sensivelmente muito
atraído a realizá-lo? Vou cometê-lo? Não! Decido não
cometê-lo”. Esta última decisão nos deve consolar. No
momento em que a tomarmos, teremos descoberto a
nossa liberdade.

A pessoa é essencialmente aquilo que decide e não


aquilo para o qual a atração dos sentidos a leva. No
momento em que dermos livre consentimento ao mal,
estaremos também fazendo experiência do pecado.

O QUE É PAIXÃO?
É o último estágio, o mais trágico. Quem sucumbe
aos pensamentos maus, muitas vezes enfraquece,
progressivamente, o seu próprio caráter. Nasce, então,
uma constante inclinação para o mal, que pode tornar-se
forte a ponto de ser muito difícil resistir-lhe. É
precisamente a paixão que torna a pessoa escrava da
bebida, do abuso do sexo, da ira incontrolada etc.

Pode-se dizer que a liberdade já se tenha destruído


nesse indivíduo?

São diferentes as opiniões a esse respeito. Hoje,


alguns psicólogos, e também alguns juristas, consideram
anormais as pessoas caracterizadas por fortes paixões.
Conseqüentemente, não as acusam a não ser de fraqueza
exagerada.
Ao contrário, os antigos santos Padres, como, por
exemplo, são João Crisóstomo, repetem também a esses
tipos de pessoas: “Basta querer!”. Portanto, na ótica dos
santos Padres, também a pessoa passional e fraca
continua sendo um ser humano. Por isso, possui uma
vontade, mas como que adormecida. É preciso acordá-la.

Nesse sentido, um problema particularmente atual


é o daqueles que se drogam. A experiência demonstra
que é necessário um cuidado especial para despertar-lhes
e reforçar-lhes a vontade. É igualmente necessária uma
extraordinária ajuda da graça de Deus.

Um antigo monge, curado de uma forte paixão


sexual, considerava-se, pela graça de Cristo, um
ressuscitado dentre os mortos.

ENTÃO, SÓ SE CHEGA AO PECADO NO QUARTO


ESTÁGIO?

É bom repetir: o verdadeiro pecado depende do


livre consentimento. Isso deve consolar os escrupulosos
que se espantam com os pensamentos e desejos maus
que, não raramente, confessam ter. Também se
entristecem quando tudo isso volta, mesmo depois da
confissão. O que fazer, quando sentimos tais tentações?
Devemos parar e dizer a nós mesmos: “O que quero
fazer? O que decido?”. Diante de Deus, a pessoa é aquilo
que livremente quer e não aquilo que sente contra a
própria vontade. A descoberta da própria liberdade é
muito importante para o progresso na vida espiritual.
No entanto, continua sendo verdade que os
pensamentos maus que atraem a nossa atenção são
desagradáveis. Quais os meios para evitar isso? A esse
respeito, as pessoas que vivem segundo o espírito
aprendem a prática que se chama atenção ou vigilância do
coração, ou ainda, sobriedade mental.
3.
A vigilância do coração

SEDE VIGILANTES
“Sede vigilantes, permanecei firmes na fé”, escreve
são Paulo aos coríntios (1Cor 16,13).

O porteiro vigilante permanece sempre atento,


guarda o portão para que nenhum estranho entre na
casa. Em sentido espiritual, Evágrio diz que é preciso
colocar um guarda vigilante na porta do coração. Que ele
nunca se distraía, mas examine cada pensamento que se
apresenta, perguntando-se: “Você é um dos nossos ou é
nosso inimigo?”.

Os cinco “estágios” ou “níveis” de penetração que


acabamos de descrever nos dão uma sensação de
segurança moral. De fato, vimos que o pecado não é
cometido logo no primeiro estágio, mas apenas no
quarto, quando há o consentimento. Antes, durante o
“colóquio”, não pecamos, e nem mesmo durante o
“combate”. Entretanto, devemos dizer que em tais
estágios perdemos muito tempo e muita energia
espiritual, entretendo-nos com os pensamentos e
resistindo muito pouco às sugestões deles. Portanto, feliz
a pessoa que consegue vencer o pensamento mau desde a
primeira sugestão.
O EXEMPLO DE JESUS
Como podemos expulsar o pensamento contra a
nossa vontade? Do ponto de vista psicológico, isto
constitui um grande problema.

Todavia, será que existe alguém livre das


sugestões? Os ascetas se perguntavam se o próprio Jesus
ficou isento ou também foi vítima delas.

É claro que para nós é difícil entrar na


interioridade do Salvador. O evangelho, porém, nos diz
que também Cristo foi tentado pelo diabo (Mt 4,1-11).
Suas tentações foram semelhantes às nossas tentações.
Apresentaram-se sob forma de sugestões: “Manda que
estas pedras se transformem em pães... Joga-te daqui
abaixo... Eu te darei tudo isso, se caíres de joelhos para
me adorar”.

Em nossa experiência humana (como já vimos ao


descrever de que maneira o pensamento mau penetra no
coração), depois da sugestão, muito freqüentemente
segue o “colóquio”, isto é, a conversa com o pensamento.
Nessa conversa se ponderam e se pesam as razões pró e
contra de uma determinada opção.

Jesus evitou essa conversa com a sugestão.


Simplesmente deu uma resposta pronta, recusando
aquilo que Satanás lhe sugeria. Ele agiu como fazemos
nós quando estamos ocupados e alguém nos convida
para sair. Sem hesitar, respondemos: “Não posso”. E a
conversa acaba.
Da mesma forma como nos comportamos com as
pessoas que nos molestam injustamente, devemos nos
comportar com as sugestões do maligno.

“CONTRADIZER”
O termo grego para o costume de contradizer é
antirrhêsis. Tornou-se tradicional, porque Evágrio
escreveu um livro com o título Antirrheticus (Instruções
para contradizer). O autor observou que Jesus, para
responder ao diabo, usara os textos da Sagrada Escritura:
“Não se vive somente de pão, mas de toda palavra que
sai da boca de Deus... Não porás à prova o Senhor teu
Deus... Adorarás o Senhor, teu Deus, e só a ele prestarás
culto”.

A Sagrada Escritura nos revela a vontade de Deus.


Seus ensinamentos são, portanto, uma arma contra as
insinuações diabólicas. O evangelho cita apenas três
dessas frases contra três tentações específicas. Entretanto,
na vida humana, as sugestões para o mal se apresentam
das mais variadas formas.

Por outro lado, também a Sagrada Escritura


contém muitíssimos trechos que podemos repetir quando
um pensamento mau assoma à nossa mente. Evágrio
escolheu os melhores deles e os ordenou segundo as oito
categorias genéricas dos pensamentos maus: contra a
gula, a luxúria, a avareza, a tristeza, a ira, a preguiça e a
soberba. Os monges aprendiam de cor esses trechos a fim
de estarem sempre prontos para rebater a tentação que se
apresentava. Por exemplo: quando alguém era tentado a
se meter inutilmente nas questões alheias, era
aconselhado a dizer aquilo que Jesus disse a são Pedro,
quando este quis saber o que aconteceria com são João:
“Que te importa? Tu, segue-me” (Jo 21,22).

Lê-se, com freqüência, nos documentos


hagiográficos, que um santo monge “sabia de cor toda a
Sagrada Escritura”. O leitor moderno não é capaz de
acreditar nisso. Por exemplo, como é possível guardar na
memória as listas de tantos nomes contidos nas diversas
gerações das quais fala o Antigo Testamento? Trata-se de
um engano.

A expressão “saber de cor toda a Sagrada


Escritura” indica a arte da direção espiritual: quando
uma tentação era revelada ao padre espiritual, este,
conhecendo o tipo de tentação, aconselhava o texto da
Bíblia mais adequado para combatê-la.

A FORÇA DO NOME DE JESUS


A prática da contradição, a antirrhêsis, revelou-se
muito útil, embora ao povo simples pudesse parecer um
tanto complicada. Perguntava-se, então: quem pode,
quando chega a tentação, lembrar-se imediatamente de
um texto da Bíblia adequado para combatê-la? Não se
poderia simplificar essa prática, encontrando um único
texto adequado para todas as ocasiões?

Os devotos se convenceram, pouco a pouco, que


invocando o nome de Jesus “põem-se em fúga todos os
demônios”. Por isso, começou-se a repetir
freqüentemente a assim chamada “Oração de Jesus”. Sua
fórmula tradicional, no Oriente, é: “Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tende piedade de mim, pecador!”

Os diretores espirituais apontam-na como força


libertadora do coração, defesa fácil e eficaz contra toda
tentação e distração da vida.

NÃO SERIA MELHOR CHAMÁ-LA DE ORAÇÃO “A


JESUS”?
De fato, trata-se de uma invocação dirigida a Jesus
e soa assim: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tende
piedade de mim, pecador!”. Diz-se “Oração de Jesus”
porque assim foi literalmente traduzida do grego. Os
monges orientais recitam-na freqüentemente: contam o
número das invocações servindo-se de umas contas
parecidas com as do terço latino. O famoso peregrino
russo quis harmonizá-la, unindo-a às batidas do coração
e à respiração. Ele a considera o método mais eficaz para
se chegar à oração incessante. Antes de tudo, ela serve
como “resposta” aos pensamentos maus. Quando, por
exemplo, aparece a sugestão de alguém se vingar de uma
ofensa recebida, ele responde a esse pensamento,
dizendo: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tende
piedade de mim, pecador!”. E assim se faz, quando surge
qualquer outra tentação.

PODEMOS DIZER QUE DESSE MODO SE ELIMINAM


AS SUGESTÕES PARA O MAL?

Era o que supunham alguns quietistas. Mas os


santos Padres da Igreja dizem o contrário. O combate
espiritual é a essência da ascese cristã. Se há momentos
de trégua, estes são um dom especial de Deus, ou uma
tentação do inimigo que quer seduzir o ser humano,
levando-o a acreditar falsamente que está a salvo das
suas insídias.

João Clímaco explica isso com este exemplo: a


raposa às vezes finge que está dormindo, para que os
passarinhos se aproximem com segurança. Então, ela
pula de repente sobre eles. Assim faz o diabo com as
pessoas.

Portanto, nesta vida, as sugestões más são


inevitáveis. Não existe tempo ou espaço tão sagrados a
ponto de serem inacessíveis às tentações. Contudo, o
homem espiritual, perito em combatê-las, “responde”
com prontidão, adquire sempre mais facilidade para o
combate, de modo que, no fim, acaba fazendo isso com
um certo prazer, porque, ao fazê-lo, descobre sua própria
liberdade e a força sobrenatural.

A “SOBRIEDADE ESPIRITUAL”, A ATENÇÃO

A paz do coração não é duradoura, a não ser que


seja protegida por uma constante atenção às perturbações
as quais, provenientes “de fora”, tendem a se infiltrar na
pessoa. Por isso, a vigilância do coração se chama, no
vocabulário dos ascetas, “sobriedade espiritual” ou
simplesmente “atenção”. O verdadeiro ato humano é
consciente e livre. Quanto mais diminui a consciência,
mais nos tornamos vítimas da imaginação, dos sonhos,
das impressões obsessivas, de toda espécie de “letargia”.
Até mesmo na escola, o sucesso do professor depende de
que as crianças “estejam atentas”.

A oração, elevação da mente a Deus, é impensável


sem a atenção. Os autores gregos usam um jogo de
palavras intraduzíveis. Em grego, atenção se diz prosochê,
e oração, proseuchê. Duas palavras parecidas. Por isso,
dizem que a primeira é mãe da segunda. Na liturgia
bizantina, antes de qualquer momento importante, o
diácono canta exatamente esta advertência: “Proso- chê,
atenção!”.

É POSSÍVEL FICAR SEMPRE ATENTO? QUEM PODE


EVITAR AS DISTRAÇÕES?

É difícil dizer em que consiste a atenção. Uma


definição simples seria: “presença psicológica naquilo
que se faz”. Quando alguém está guiando um carro e não
pensa senão naquilo que vê na estrada, está guiando de
maneira segura. Contudo, ao contrário, pode estar com
uma grande preocupação familiar, de tal modo que,
embora esteja com os olhos fixos na estrada, a sua
“cabeça”, os seus pensamentos estão em outro lugar.
Nesses momentos, pode facilmente acontecer um
acidente.

Às vezes, também os santos, que oram


intensamente, são cegos e surdos quanto ao que acontece
ao lado deles. Lê-se a respeito de são Bernardo, que não
sabia dizer como era o teto da cela onde habitava.
Evidentemente, tinha outras coisas em que pensar.
A capacidade de se concentrar totalmente facilita
muito o trabalho. É um dom da natureza e de Deus. Mas
isso não é para todos. Ao contrário, muitas vezes
encontramos pessoas incapazes de se concentrarem.
Abrem um livro e se põem a pensar em mil outras coisas,
menos naquilo que estão lendo. Quando falam, pulam de
um assunto para outro. Podemos supor que, para tais
pessoas, vêm à mente sabe-se lá quantas e quais
estranhas coisas quando começam a rezar!

COMO EDUCAR-NOS PARA ESTARMOS ATENTOS?


Há pessoas que sofrem de distrações de modo
anormal. Deixemos de lado o fato de que há médicos
prudentes que sabem como curá-las. No entanto,
podemos observar que, muitas vezes, a falta de
concentração resulta de um mau hábito. Nesses casos,
grande força de vontade pode provocar uma melhora até
rápida.

Certo psicólogo tinha em seu quarto um grande


aquário com vários tipos de peixes raros. Ao lado, havia
algumas cadeiras nas quais se sentavam seus pacientes,
que, durante a terapia, não conseguiam prestar atenção à
leitura. A seguir, pedia que cada qual seguisse, com o
olhar, os movimentos de um único peixinho. No começo,
não conseguiam, mas depois de alguns exercícios não
perdiam de vista seu peixinho, nem mesmo ob-
servando-o durante meia hora. Após tais exercícios, os
pacientes confessaram que podiam, sem se distraírem,
acompanhar a leitura mental até por meia hora.
Há, porém, momentos em que para prestar
atenção não basta fazer exercícios. Por exemplo, um
torcedor de futebol acompanha a partida por um bom
tempo, sem se distrair. E mesmo se quiséssemos distraí-
lo, não seria fácil, uma vez que é particularmente difícil
distrair uma pessoa, desviando-lhe a atenção já
focalizada noutro lugar. Com razão dizem os psicólogos
que a atenção é filha do interesse.

Os ascetas cristãos afirmavam a mesma coisa,


aplicando esse princípio à oração: a concentração em
Deus depende do amor que, segundo antigo dito
monástico, é o “fogo ardente do coração que desfaz, da
mente concentrada em Deus, as nuvens dos pensamentos
maus e inúteis”.

Isso nos leva a tratar a questão da assim chamada


apatheia, a insensibilidade para o mal.

O IDEAL APATHEIA DOS CRISTÃOS


O termo apatheia é de origem estóica. É por isso
que até hoje se diz “tranqüilidade estóica”.

Nas Odes de Horácio se lê: “Conserva a tua mente


tranqüila, quer nas dificuldades, quer nos momentos
felizes”.

Essa paz da alma constitui, segundo os estóicos, a


maior felicidade humana. Mas como consegui-la? Os
cristãos ensinam a combater os pensamentos maus. Os
estóicos têm em mente sobretudo o último estágio da
penetração no coração, isto é, o da paixão.
Paixão, em grego, se diz pathos. A negação se
expressa com o prefixo “a”. Assim, pela união dos dois
termos, tem-se apatheia, a qual indica o estado de quem
eliminou as paixões e “superou toda espécie de medo,
tristeza, concupiscência evoluptuosidade” (Epíteto).

QUATRO PAIXÕES FUNDAMENTAIS


Paixão é um movimento sensível de atração ou de
repulsa em relação a alguma coisa. Assim, dizemos, por
exemplo: alguém é “apaixonado jogador de cartas”; um
nacionalista sente uma “apaixonada aversão” pelo
representante de um outro povo; alguém toca violino
“com paixão”; ou ainda: “um moço ama uma jovem com
forte paixão”.

Por esses exemplos, percebemos que há muitos


tipos de paixões. Todas elas alteram a serenidade e
diminuem a nossa liberdade.

Epíteto repropõe o esquema que os estóicos


tinham descoberto para indicar “quatro paixões
fundamentais”. A nossa tranqüilidade, diziam os
estóicos, pode ser perturbada tanto por algum fato mau
quanto por algum fato alegre, isto é, quer pelo mal, quer
pelo bem que provocam em nós. Se o mal está presente,
ficamos tristes; se o prevemos para o futuro, ficamos com
medo. Quando gozamos de coisas boas do tempo
presente, provocamos a voluptuosidade; quando
pensamos que poderemos gozá-las no futuro, nasce em
nós a concupiscência.
Portanto, existem quatro paixões capitais: a
tristeza, o medo, a voluptuosidade e a concupiscência.
Essas paixões podem ser comparadas a quatro mulheres
briguentas, morando numa mesma casa. Não haverá paz
até que as quatro não sejam expulsas.

PODEMOS ELIMINAR TODAS AS PAIXÕES? ALÉM


DISSO: SERIA BOM TORNAR-NOS
COMPLETAMENTE INSENSÍVEIS?

Quando os cristãos orientais adotaram o termo


apatheia para expressar o ideal da paz interior, foram
severamente criticados por são Jerônimo, porque,
segundo ele, esses autores queriam fazer do ser humano
um anjo ou uma pedra sem sentimentos. Mas os anjos,
assim como Deus, não podem ter movimentos sensíveis,
uma vez que tais movimentos estão ligados ao corpo.
Mas o ser humano não pode viver sem sentir a atração
dos sentidos. Caso contrário seria como uma pedra
insensível ou estaria doente.

Será que não é natural sentir fome, sede, atração


para brincar, para amar? É por isso que também os
autores escolásticos rejeitam a apatheia.

Entretanto, é preciso distinguir as paixões boas,


isto é, a atração para o bem, das paixões más, que nos
impelem para o mal. As paixões boas devem permanecer
sob controle. Nesse sentido, até a cólera pode ser boa,
quando, por exemplo, na medida certa, alguém se lança
contra o mal, como fez Jesus ao expulsar os vendilhões
do templo (Mt 21,12ss).
Para evitar enganos, é preciso antes determinar
melhor o que significa o termo “paixão”. Para os autores
orientais indica a inclinação ao mal. Considerada assim, é
desejável que a “paixão” seja destruída e que o coração
esteja totalmente livre dela.

Ao contrário, os autores ocidentais chamam de


paixão toda atração sensível tanto para o mal como para
o bem. Portanto, distinguem as paixões “ordenadas” das
“desordenadas”. Conseqüentemente, a perfeição consiste
não em extirpar ou destruir as paixões, mas somente em
controlá-las, em “ordená-las”. As paixões são, portanto,
como cavalos com freios: é preciso conduzi- los pelo
caminho certo, mas nunca enfraquecê-los ou matá-los.

ENTÃO, EM QUE SENTIDO DEVEMOS ENTENDER A


APATHEIA TÃO LOUVADA PELOS PADRES GREGOS?

Ela não é ausência de sofrimentos ou de


sensibilidade. O “faquirismo” em si mesmo não é uma
perfeição humana.

A delicadeza dos sentimentos naturais é um valor


positivo. Não podemos pretender que o ser humano
perfeito seja livre das “sugestões” dos pensamentos
maus. Contudo, diz Evágrio, “essas sugestões já não o
comovem”, não são mais perigosas para ele.

Podemos dizer que tal pessoa seja já impecável?


Seria dizer demais. Adão pecou até no paraíso terrestre.

A escolha do bem ou do mal permanece sempre


livre. Mas para quem chegou à apatheia, a escolha do bem
é fácil e jovial. Equivale à força da alma pura. Os rapazes
fortes se alegram quando conseguem derrotar os mais
fracos, e, quando atacados, riem. Diante dos
pensamentos maus, a pessoa livre ri-se deles, e não teme
ser vencida por eles.

Comentando essa força interior, são João Clímaco


chama a apatheia de “ressurreição da alma, a qual
acontece antes da ressurreição dos corpos”.

A APATHEIA E A CARIDADE
Longe de ser uma espécie de insensibilidade
cadavérica, a apatheia — insensibilidade cristã — é, antes,
um “fogo devorador”, o fogo divino que queima todas as
tentações assim que estas surgem. O seguinte exemplo
fornecido por santo Efrém é de estilo bem popular, mas
muito expressivo: quando a sopa está quente, nenhuma
mosca consegue se aproximar; os insetos caem nela
somente quando ela esfria. Do mesmo modo, o coração
abrasado de amor a Deus destrói os pensamentos que a
ele se opõem.

“Se amamos sinceramente a Deus, esse nosso amor


expulsa as paixões más”, diz são Máximo, o Confessor. É
a caridade que reúne todas as forças do ser humano, sob
a guia do Espírito Santo.

Segundo Vladimir Losskij, é esse o ideal


encarnado na Virgem Maria, a qual “representa o cume
da santidade... Ela permaneceu sem pecado, sob o
domínio universal do pecado”.
4.
O discernimento dos espíritos

REJEITAR OS PENSAMENTOS? NÃO TODOS,


CERTAMENTE!

Até agora, falamos dos pensamentos maus que são


causa do pecado. Mas, se é verdade que todo mal começa
com um pensamento, é igualmente verdade que o bem
começa com um pensamento, um pensamento bom
chamado “inspiração”. Portanto, é preciso saber
distinguir entre esses dois tipos de pensamento. As
biografias dos santos contam as muitas experiências que
eles faziam nesse sentido, como também os muitos erros
que cometiam por não saberem “fazer o discernimento
dos espíritos”.

POR QUE SE FALA DE “ESPÍRITOS”, QUANDO SE


TRATA DE PENSAMENTOS?

O capítulo 12 do Apocalipse retoma e completa a


narrativa do Gênesis sobre a origem do pecado,
resumindo, em muitos pontos, a doutrina da Bíblia sobre
o demônio e sobre o seu papel na história da salvação.
Representa, também, o confronto pessoal que opõe Cristo
ao “sedutor”, ao “príncipe deste mundo”. Nessa
perspectiva, os santos Padres interpretam diversos
acontecimentos da vida de Cristo.
Também a vida espiritual dos cristãos é vista como
um combate contra os demônios. A Bíblia apresenta ao
ser humano opções, das quais ele não pode fugir.
Contudo, às vezes são colocados obstáculos a tais opções.
De fato, em oposição à voz divina, à voz da consciência,
outra voz se faz ouvir: a das sugestões para o mal, de
satanás. Como discernir uma da outra? Nas Cartas do
Novo Testamento, os autores usam explicitamente a
expressão “discernir os espíritos” (1Cor 12,10; cf. ljo 4,1).
“Discernimento dos espíritos” significa o campo onde o
combate espiritual começa e onde fundamentalmente já
se decide.

QUEM É CAPAZ DE DISTINGUIR OS BONS DOS


MAUS PENSAMENTOS?

A tarefa dos profetas foi a de testemunhar a voz de


Deus. E os livros sapienciais foram escritos para ensinar-
nos a distinguir a voz da sabedoria da voz da insensatez.

Esse problema nunca deixou de ocupar um lugar


de primeiro plano na literatura espiritual. Contudo, a arte
de discernir os pensamentos é, antes de tudo, um dom de
Deus. Para são João, a experiência espiritual é uma
“unção”, um estado de luz (1Jo 2,20.27).

Santo Antão Abade diz: “É preciso muita oração e


muita ascese para que, após ter recebido do Espírito o
carisma do discernimento dos espíritos, possamos
conhecer aquilo que diz respeito a cada um dos
demônios...”. Além disso, esse conhecimento é fruto de
uma longa observação. De fato, mediante a experiência,
podemos adquirir um “senso” especial, uma intuição
espiritual, até nos tornarmos capazes de reconhecer
aonde cada pensamento poderia nos conduzir.

AINDA EXISTEM PROFETAS CAPAZES DE


INTERPRETAR A VOZ DE DEUS?

A pergunta é inteiramente justificada. No Antigo


Testamento, fala-se dos profetas, e também no Novo há
referência à presença deles nas comunidades cristãs.

O dom da profecia era particularmente apreciado


pelos santos Padres da Igreja. Então, por que, hoje, parece
que os profetas não mais existem?

A palavra “profeta” recebeu um significado


pejorativo. Isto por causa da difusão de falsos profetas
que surgiram da seita dos montanistas. Todavia,
“profeta” é alguém que fala em nome de Deus. Neste
sentido, esse carisma continua sendo essencial para a
Igreja. E interessante observar que, nas Igrejas orientais,
um bom padre espiritual era chamado de profeta. Sua
principal função era, de fato, a de reconhecer e dizer qual
inspiração era boa e qual devia ser considerada como
sugestão do mal. Por isso, aconselhava-se, sobretudo aos
jovens, a revelarem ao padre espiritual “cada
pensamento”, deixando-o decidir o que se devia fazer.
MAS QUEM TEM UM PENSAMENTO SUSPEITO NÃO
O REVELA DE BOM GRADO A UMA OUTRA PESSOA!

De fato, santo Inácio ilustra essa experiência com o


seguinte exemplo: um falso amante, quando quer seduzir
uma jovem, fica sempre escondido e quer manter tudo
em segredo. Porque, se a jovem contasse tudo ao pai, este
saberia como acabar com a história. Do mesmo modo, ao
sugerir-nos alguma coisa errada, o diabo procura
convencer-nos a não contar nada ao padre espiritual. De
fato, quando um pensamento mau é revelado, facilmente
se consegue vencê-lo. É por isso que se insiste sobre a
necessidade de ter um bom padre espiritual, isto é, de ter
alguém ao qual possamos contar, com absoluta
confiança, os nossos pensamentos. E isto sobretudo no
começo da caminhada espiritual, quando o principiante
sente ainda muita dificuldade em discernir.

COMO É POSSÍVEL CONTAR AO PADRE ESPIRITUAL


CADA PENSAMENTO?

É preciso não cair num engano. Quando falamos


de “pensamento”, não entendemos aqui tudo aquilo que
pensamos. Estamos falando apenas de sugestões, isto é,
das inspirações que nos levam a decidir se devemos ou
não fazer alguma coisa, depois de reconhecer sua
bondade presumida ou real. Por isso, é prudente pedir
conselho não à primeira pessoa que aparece, mas sim a
um “padre espiritual”, isto é, a alguém que temos certeza
de que tem a assistência do Espírito Santo e conhece os
corações. Somente quem possui tais requisitos pode
dizer, como um profeta, o que Deus quer de nós.
HÁ MUITAS PESSOAS ASSIM?
Na verdade, não se encontram a qualquer
momento. É preciso procurá-las com cuidado. Por outro
lado, já os antigos monges se lamentavam de não
conseguir encontrar um bom padre espiritual. Então,
surgiu a idéia de estabelecer alguns princípios, algumas
regras, para se reconhecer a bondade ou a malícia das
sugestões interiores.

Um exemplo interessante desse esforço encontra-


se no livro dos Exercícios espirituais, de santo Inácio de
Loyola. Ele sentia grande necessidade de ser capaz de
distinguir entre os dois tipos de sugestões, porque, após
a sua conversão, errara várias vezes, achando ser
inspiração divina aquilo que não passava de uma ilusão.
Depois, guiado pela própria experiência, estabeleceu,
para si e para outros, algumas “regras para o
discernimento dos espíritos”. Todavia, antes dele, outros
mestres de espírito haviam feito a mesma experiência.
Então, algumas “regras” tornaram-se tradicionais.

QUAL É A REGRA FUNDAMENTAL?


Quando santo Antão Abade se retirou para o
deserto, fez a sua primeira experiência de discernimento
dos pensamentos. Podemos distingui-los de acordo com
o efeito que produzem.

As sugestões boas produzem “uma alegria


inefável, bom humor, coragem, renovação interior,
firmeza dos pensamentos, força e amor a Deus”. As
outras, ao contrário, trazem consigo “medo, perturbação
e desordem nos pensamentos, tristeza, ódio contra os
ascetas, preguiça, aflição, lembrança dos pais, temor da
morte. Enfim, maus desejos, pusilanimidade com relação
às virtudes e desordem com relação aos costumes”.

Esta regra foi simplificada num axioma: “Aquilo


que perturba vem do diabo, ao passo que Deus pacifica o
coração”.

ESSA REGRA PODE SER APLICADA SEMPRE?


Em geral vale sempre, mas sua aplicação não pode
ser mecânica. De fato, quando alguém está entorpecido
em seus maus hábitos, sacudi-los e, em certo sentido,
incomodá-los, é, então, obra da graça divina.

Portanto, é preciso distinguir também os vários


sentimentos de paz. Nem sempre a paz vem de Deus. Há
também uma paz ilusória, que vem do mundo. Somente
o evangelho nos promete a verdadeira paz, que é
duradoura e conduz ao bem.

MUITAS VEZES NOS SENTIMOS PERTURBADOS.


ISSO É NORMAL?
As primeiras experiências não são facilmente
perceptíveis. Em geral, nós nos damos conta do nosso
estado interior somente quando é, num certo sentido,
mais duradouro. Então dizemos aos outros: “Deixem-me
em paz. Estou de mau humor e isso não vai passar
logo!”.
Os livros de espiritualidade não falam de mau
humor, mas usam a palavra “desolação”. Esses livros
mostram como ela influencia nossas relações com Deus e
o desempenho dos nossos deveres religiosos.

No livro dos Exercícios, santo Inácio descreve-a da


seguinte forma: “Entendo por desolação... a noite escura
da alma, sua perturbação, a inclinação às coisas torpes, a
inquietação devida a vários tipos de agitações e
tentações, quando a alma não confia, está sem esperança,
sem amor e se encontra totalmente preguiçosa, indife-
rente, triste e como que separada do seu Criador e
Senhor”.

Em termos modernos, podemos traduzir isso


como desgosto, frustração, dúvidas a respeito de todos e
de tudo.

COMO DEVEMOS NOS COMPORTAR NESSE ESTADO


DE DESOLAÇÃO INTERIOR?

Todos dizem: “Devemos reagir, não nos deixar


levar pela perturbação”. Mas como e por onde começar?

Antes de tudo, confiar em nossa própria liberdade.


O mau humor insinua uma quantidade de projetos
errados. E é lógico: quando a balança está descontrolada,
não pesa direito. Por isso, devemos ficar firmes e não
mudar a decisão tomada anteriormente, quando nos
sentíamos bem. Desta forma, acabamos vivendo uma boa
experiência: descobrimos que somos fortes e capazes de
fazer o contrário daquilo que o mau humor, no momento
presente, nos insinua a fazer.

TODAVIA, O DESGOSTO NOS ENFRAQUECE, TIRA-


NOS A VONTADE DE RESISTIR!

É exatamente nesses momentos que devemos


despertar essa vontade de resistir, de fazer o contrário
daquilo que estaríamos naturalmente propensos a
realizar.

Santo Inácio propõe um exemplo que pode parecer


banal, mas expressa bem a idéia. Ele diz que o diabo se
comporta conosco como uma mulher briguenta. Quando
a enfrentamos com firmeza, ela se cala. Ao contrário,
quando desanimamos e começamos a fugir, ela nos
persegue com maior ferocidade.

POR QUE EXPERIMENTAMOS ESSES ESTADOS DE


ÂNIMO TÃO DESAGRADÁVEIS?

Para enfrentarmos esta situação, os autores


espirituais lembram-nos a narrativa bíblica de Jó. Todos
os seus sofrimentos tornaram-se prova de sua virtude.

A desolação espiritual é, portanto, uma dura


provação, sobretudo para aqueles que desejam dedicar-se
à vida de oração. Santa Teresa d’Ávila, monja
contemplativa, sofreu esse tipo de provação durante
vários anos, mas depois foi recompensada com grandes
visões.
Todo cristão precisa, de certo modo, ser provado
pelas desolações. Somente assim ele se dará conta de que
a verdadeira devoção não se mede apenas pela
intensidade de belos sentimentos vividos. Não é somente
quando nos sentimos bem que tudo corre bem.

AS PROVAÇÕES, PORÉM, NÃO DEVEM SER


EXAGERADAS!

Deus não prova a pessoa senão na medida certa e


sempre lhe dá uma força especial para superar as
dificuldades exteriores e interiores. Além disso, na
desolação, sempre se deve esperar que o momento difícil
irá passar.

Encontrou-se até uma determinada regra na


evolução espiritual. Quando alguém decide enveredar
pelo caminho da vida espiritual, no começo, geralmente
se sente cheio de coragem e entusiasmo. Depois, vem o
estado de aridez da alma, de desgosto pelas coisas
espirituais. Finalmente chega uma consolação mais sólida
e duradoura do que a anterior.

CADA UM DE NÓS TEM SUAS FRAQUEZAS


PESSOAIS. MUITOS SE DESCULPAM, DIZENDO:
“MEU CARÁTER É ESSE”. É POSSÍVEL VENCER OS
PRÓPRIOS DEFEITOS?

Assim como há doenças corporais, há também as


fraquezas da alma. Uma pessoa tem tendência a ser
melancólica; outra se irrita facilmente; outra, ainda, é
preguiçosa por natureza.
Também quanto a isso podemos lembrar um
exemplo de santo Inácio. Ele diz que o diabo se comporta
como um general que pretende tomar posse de um
castelo. Primeiramente analisa quais são os pontos fracos
para, em seguida, atacar, partindo exatamente dali. Tal
como um bom defensor, coloca seus melhores soldados
nos postos de guarda que prevê que serão atacados.
Assim devemos fazer nós: concentrar nossa atenção onde
mais facilmente erramos e, portanto, onde somos mais
vulneráveis. É por isso que devemos conhecer-nos bem
para nos proteger bem.

COMO PODE ALGUÉM CONHECER A SI MESMO?


A experiência nos ensina. A esse respeito é
importante o exercício conhecido como “exame de
consciência”, que é recomendado sobretudo à noite, antes
de dormir. Contudo, erra quem acredita que a atenção
deva se concentrar somente nos pecados. Mais
importante é fazer a nós mesmos estas perguntas: “Hoje,
quais pensamentos oprimiram meu coração e ocuparam
minha mente? O que produzem nela: perturbação ou
paz? Para onde pretendem conduzir-me?”.

Os pensamentos são como os amigos. Logo


aprendemos a distinguir os falsos dos verdadeiros.
Certos santos afirmavam que sabiam distinguir as
sugestões boas das más até pelo seu “cheiro”, pela
maneira como se apresentavam.
MUITOS SANTOS DESCREVERAM SUAS
EXPERIÊNCIAS PARA OS SEUS DISCÍPULOS. ONDE
PODEMOS LÊ-LAS?

Muitos autores espirituais falaram sobre o


“discernimento dos espíritos”.

No século V, Diádoco de Fótica coletou aquilo que


os santos Padres diziam sobre esse assunto. Já citamos
santo Inácio de Loyola, que escreveu aquilo que tinha
vivido e experenciado, estabelecendo algumas regras de
conduta para o discernimento dos espíritos.

Também Escúpulo expõe os princípios do


discernimento, num pequeno livro intitulado Combate
espiritual. O mais famoso, porém, é o catálogo de Evágrio
(do final do século IV) sobre os “oito espíritos de
malícia”, no qual se encontra uma lista (que pretende ser
completa,) dos vários tipos de tentações que, sem dúvida,
levam ao mal.
5.
Os oito pensamentos maus

É POSSÍVEL FAZER UMA LISTA DE TODOS OS


PENSAMENTOS MAUS?

A primeira vista, parece impossível. De fato, as


sugestões do mal são tão numerosas e diferentes que
ninguém consegue contá-las. Contudo, devemos também
dizer que certos vícios são freqüentes. Por isso, já a
literatura da época helenística apresenta catálogos de
vícios. Por outro lado, desde o Novo Testamento
encontramos vários exemplos dessas listas. Foi no final
do século IV que Evágrio propôs a lista dos oito
“pensamentos genéricos”, lista que mais tarde se tornou
tradicional, porque nela podemos colocar e descrever as
várias tentações que geralmente atacam a pessoa.

QUE LISTA TRADICIONAL É ESSA?


Em seu Tratado prático, Evágrio a propõe da
seguinte forma: “Oito são, ao todo, os pensamentos
genéricos que abarcam todos os pensamentos [maus]: o
primeiro é o da gula, depois o da luxúria, o terceiro é o
da avareza, o quarto é o da tristeza, o quinto é o da ira, o
sexto é o da acídia, o sétimo é o da vanglória, o oitavo é o
da soberba”.
É A MESMA LISTA DOS “SETE PECADOS
CAPITAIS”...

De fato, é a mesma. Contudo, são Gregório Magno


mudou- lhe a ordem. A soberba foi colocada em primeiro
lugar, como raiz de todos os outros vícios. Além disso,
soberba e vanglória são consideradas como um único
vício. Assim, o número foi reduzido para sete. O termo
grego “acídia” não era bem compreendido. Por isso,
começou a se falar simplesmente de “preguiça”. A
tristeza totalmente perversa que se manifesta quando nos
entristecemos, em vez de gozamos pelo sucesso do nosso
próximo, foi definida como “inveja”, termo que, no
catálogo latino, substitui o da “tristeza”. Chegamos,
assim, à lista apresentada em nossos catecismos. Pouco
importa se ela nos é proposta nesta ou noutra ordem. O
importante é que os autores espirituais procuram
analisar em que consiste tais vícios, quais pensamentos
nos sugerem e quais os remédios para combatê-los.

O QUE É A GULA?
Um dito popular diz: “Não se vive para comer,
mas come- se para viver”.

A finalidade da comida é, portanto, manter a


saúde do corpo. Este deve ser mantido em tal estado que
possa servir à alma. As necessidades corporais são
diferentes conforme a constituição de cada um, o
trabalho que exerce, as circunstâncias nas quais o
alimento é comido. A própria natureza, nos animais e nas
plantas, nos mostra como cada qual se deve comportar.
Plantas e animais procuram e pegam da natureza apenas
aquilo de que cada um necessita.

São Basílio demonstra, com muitos exemplos


concretos, a validade dessa lei natural. Por conseguinte, o
ser humano deve seguir tal lei, consciente e livremente,
dentro do objetivo querido por Deus.

O pensamento mau da gula, escreve Cassiano, nos


sugere comer antes do tempo estabelecido, incita-nos a
comer demasiadamente e nos faz ir em busca de
alimentos, não por sua verdadeira utilidade, e sim, tão-
somente, para satisfazer a gulodice.

À mesa, a pessoa educada deve dar a impressão de


que, a qualquer momento, possa ser chamada a ocupar
outro lugar, e que ela o fará tranqüilamente. Para o
cristão, pode-se também acrescentar: aquilo que o
caracteriza é o fato de estar sempre pronto a dar a
precedência ao espírito, quando se vê diante dos prazeres
sensíveis.

A LUXÚRIA
Atribui-se a Buda o seguinte dito: “O ferrão do
instinto sexual é mais agudo do que a ponta que se usa
para domar os elefantes selvagens; queima mais do que o
fogo e possui um dardo que penetra até a alma”. Não nos
deve espantar o fato de tal instinto ser tão intenso, pois se
trata do instinto de preservação do gênero humano.
Entretanto, é preciso ressaltar que o ser humano deve se
conservar e se multiplicar de modo humano, com
decisões livres e morais. Na vida prática, são inúmeras as
aplicações da continência sexual. Os livros de moral estão
cheios delas.

O primeiro e mais importante apoio para se


guardar a castidade é aprender a distinguir bem. Para
consolação daqueles que se sentem perturbados e cheios
de dúvidas, a Igreja não se cansa de repetir aquilo que ela
mesma estabeleceu: “A concupiscência provém do
pecado e leva a pessoa a pecar. Ela, porém, não é
pecado”. Não sentir tentações contra a castidade é um
dom excepcional de Deus. Quando nos vêm sugestões
que nos impelem a cometer atos imorais, quando a
fantasia nos apresenta imagens impuras, devemos
aprender a parar e perguntar-nos: “O que eu quero e vou
decidir? O contrário da sugestão”! Há também meios que
são recomendados para ajudar a pessoa a prevenir o
excesso de sentimentos sexuais: a guarda dos sentidos, a
oração e, principalmente, o trabalho constante. Se o ócio é
o pai dos vícios, o trabalho nos faz esquecê-los e nos
tranqüiliza a alma.

A AVAREZA

A parcimônia é uma virtude. Contudo, não é fácil


dizer quando se transforma em avareza. Apresentamos
quatro regras que colocam de sobreaviso e advertem
aqueles que poupam muito:

1. Não é permitido apropriar-se das coisas contra a


lei, contra o Decálogo, por meio do furto.

2. Os bens podem ser adquiridos honestamente. O


avarento pensa que tudo aquilo que ele conquistou é seu,
de modo absoluto, e que não é obrigado a dar nada a
ninguém, nem mesmo aquilo que lhe é supérfluo.

3. O trabalhador procura um lugar onde lhe é


possível ganhar dinheiro. O avarento o faz de tal modo
que perde o interesse pelos outros valores. Procura
somente as atividades das quais pode tirar vantagens de
lucro.

4. Não somente os religiosos, mas também os


leigos devem praticar, de algum modo, a virtude da
pobreza, isto é, procurar o bem-estar que convém ao
próprio estado, mas sem exagerar. Os avarentos colocam
demasiada confiança em seu dinheiro, esquecem-se de
Deus e se mostram duros para com o próximo. Desta
forma, a própria vida deles sofre com isso. Além do di-
nheiro, os avarentos não têm interesses culturais nem
outros ligados a um divertimento sadio. Guardam o
próprio tesouro na terra, não no céu (cf. Mt 6,19ss).

A TRISTEZA, A INVEJA

Quando estamos tristes, manifestamos a convicção


de que algo não está indo bem e desejamos que
desapareça. É, portanto, uma espécie de ódio. Todavia, o
único mal verdadeiro que o cristão deve odiar é o
pecado. Ao contrário, se alguém fica triste por causa da
vida como tal, pela companhia dos outros, pelo fato de
estar sozinho etc., é porque lhe falta fé na Providência de
Deus e em sua obra.

A tristeza é perigosa. Paralisa a coragem de


continuar trabalhando, orando, e faz com que os nossos
vizinhos se tornem antipáticos. Os autores monásticos,
que descrevem minuciosamente esse vício, consideram-
no como o pior inimigo da vida espiritual.

Há vários tipos de tristeza. Um deles é vicioso


desde o início: é a tristeza por causa do bem que uma
outra pessoa usufrui. Esse tipo de tristeza pode ser
definido como inveja.

Segundo são João Crisóstomo, o invejoso é pior do


que o avarento. De fato, se este se contenta com o que
tem, o invejoso faz de tudo para que os outros não
tenham nada: “Talvez ele mesmo não se levante por ser
preguiçoso, mas é capaz de dar um salto para fazer cair
quem está em pé”. Se sentimos desprazer quando alguém
é bem-sucedido, precisamos ficar atentos e, com um
pouco de boa vontade, esforçar-nos para não ceder a tais
sentimentos.

É LÍCITO QUERER SUPERAR O SUCESSO DO


OUTRO?

Não podemos negar que, na sociedade atual, haja


uma contínua luta para aumentar o próprio sucesso
econômico, esportivo, no trabalho etc. O importante é
que tudo isso seja feito honestamente, sem sentimentos
de antipatia. Quando se trata de competir para se ter
mais bens espirituais, esse tipo de emulação é
recomendável.

Santo Antão Abade colocava-se como o último de


todos em tudo; somente na virtude queria superar a
todos. Mas, para que a emulação não degenere, é preciso
que realmente se trate de virtudes autênticas.

A IRA
A cólera começa com sentimentos de aversão
contra aquilo que - realmente ou apenas na imaginação -
se apresenta como obstáculo ao nosso caminho. A
primeira coisa que queremos fazer é tirá-lo da nossa
frente. Vem-nos uma idéia de como fazer isso. Nasce,
então, a ira, que pode ser justa ou injusta.

Que ira pode ser considerada justa? O único e


verdadeiro obstáculo para o bem é o mal. Podemos e
devemos, portanto, encher-nos de ira contra o mal. Este,
porém, deve ser um mal real, não imaginário.

No sentido pleno da palavra, devemos irar-nos


contra o pecado, contra o diabo, contra os pensamentos
maus. Quando se trata de pessoas, a ira é justificável
somente quando conduz ao bem, à derrota do mal e,
portanto, quando beneficia o próximo.

Exemplo de uma ira que se justifica é, como já


vimos, a de Cristo ao expulsar os vendilhões do templo
(Mc 11,15ss; Jo 2,14ss). É claro que a cólera tem de ser
proporcionada, controlada, moderada.

A IRA DESCONTROLADA
Que ira deve ser considerada injusta? Do
sentimento de desprazer nascem, muitas vezes, o ódio e o
desejo de vingança. É quando sentimos prazer pela
desgraça alheia, humilhamos alguém com palavras e o
difamamos diante dos outros. Passamos, depois, a agir.

A ira se manifesta mais freqüentemente com a


explosão de sentimentos que são mais fortes do que o são
juízo.

Uma pessoa assim é, segundo são João


Crisóstomo, louca, epiléptica voluntária. Não é possível
dirigir-lhe a palavra senão depois que o impulso da ira
desapareça. O melhor conselho que podemos dar-lhe é
aquilo que alguns ditos populares afirmam: “respirar
profundamente”, “contar até dez” e “quebrar o pau; não,
porém, na cabeça do outro”.

Muito mais perigosa é a ira que permanece,


mesmo depois que a explosão dos sentimentos já passou.
Então, a pessoa começa a refletir com frieza sobre a
vingança, recusando-se a perdoar.

Segundo são Gregório de Nissa, quem se


comporta dessa maneira afasta-se do reino de Deus. Não
receberá perdão, porque não perdoa os outros. Deus não
intervirá a favor de quem quer fazer justiça com as
próprias mãos.

COMO VENCER A EXPLOSÃO DA IRA?


Nas biografias dos santos Padres do deserto,
conta-se de uma certa pessoa que estava cheia de ira. Foi
curada repetindo a seguinte oração: “Nós te
agradecemos, Senhor, por não precisarmos de ti, porque
a justiça, nós a procuramos por nós mesmos”.
São Doroteu compara o irado a um cão que morde
uma pedra. Em sua cegueira, ele nem enxerga a pessoa
que atirou a pedra. É preciso, pois, procurar raciocinar.

“Podeis irar-vos, contanto que não pequeis” - diz


São Paulo em sua carta aos Efésios (4,26). Ele mesmo
tinha um temperamento explosivo. Por isso, sabia por
experiência própria como alguém pode ficar irado ao se
encontrar, de repente, diante do mal, da desonestidade e
das dificuldades.

Todavia, esse impulso não nos deve levar ao


pecado, para que não cheguemos a expulsar um mal com
outro mal. De resto, são Paulo estabelece um tempo
prudente para a pessoa irada se acalmar; até o
entardecer: “Não se ponha o sol sobre a vossa ira” (Ef
4,26). A ira se cura definitivamente com a prática das
virtudes contrárias: a mansidão, a paciência, a fé na
Providência.

A PREGUIÇA
O termo grego akêdia tem um sentido mais amplo
do que o seu correspondente latino “preguiça”. Significa
um estado geral de desprazer, de cansaço, de
desinteresse: é a “tibieza”. Esse estado recebe também o
nome de “demônio do meio-dia” (cf. SI 90 [91],6), aquele
que assalta o monge na metade do dia, ou seja, quando
desapareceu o entusiasmo, a vontade de trabalhar. De
fato, os monges se levantavam muito cedo. Por isso, ao
meio-dia, já se sentiam cansados.
O mesmo se dá, de forma alegórica, ao chegarmos
ao meio-dia da vida, quando desaparece o entusiasmo
juvenil.

Evágrio está convencido de que se trata de um


“demônio perigosíssimo”, porque o desgostoso e o
preguiçoso não têm mais vontade de resistir. Então, o
inimigo encontra neles uma presa fácil.

A PREGUIÇA ESPIRITUAL
É esse o nome que os autores latinos dão à acídia.

Ludovico Da Ponte enumera nove manifestações


dessa preguiça: 1) medo exagerado dos obstáculos que
poderemos encontrar; 2) aversão a tudo aquilo que causa
fadiga; 3) negligência na observância dos mandamentos,
da ordem e das regras; 4) instabilidade no bem, em
manter os propósitos; 5) incapacidade de resistir às
tentações; 6) aversão àqueles que são zelosos e que, por
isso, se tornam odiosos, por serem diligentes em observar
as regras; 7) perda de tempo precioso; 8) liberdade
concedida aos sentidos, à curiosidade, ao prazer de se
divertir e de usar tudo; 9) negligência nos principais
deveres do próprio estado, esquecimento do fim último,
descuido dos motivos religiosos no agir.

A TIBIEZA SEGUNDO SÃO BERNARDO


Para são Bernardo, a “tibieza” é “sombra da
morte”. A pessoa tíbia assemelha-se a uma vinha não
cultivada, a uma casa sem porta nem janelas. A tibieza
tira do coração humano a alegria espiritual; aumenta a
fadiga do dia e, ao mesmo tempo, diminui os méritos da
pessoa. É como um verme que devora na raiz as
principais virtudes, ainda que, por fora, continue como
sempre.

O preguiçoso esconde seus talentos na terra (Mt


25,25ss). Não quer ser nem muito bom nem muito mau.
Por isso, a essa pessoa aplicam-se as palavras do
Apocalipse: “Conheço a tua conduta. Não és fria, nem
quente. Oxalá fosses fria ou quente! Mas porque és
morna, nem fria nem quente, estou para vomitar-te de
minha boca” (Ap 3,15-16).

A SOBERBA

Todos concordam em afirmar que a soberba é


aquilo que se poderia definir como o supra-sumo de
todos os vícios e pecados. Por outro lado, os bons
também confessam que têm “pensamentos de orgulho”
os quais não podem ser assim tão maus. Portanto, nós
mesmos, até sem nos darmos conta, fazemos distinção
entre duas soberbas: uma grave e outra menos grave. Os
autores orientais falam de dois vícios semelhantes, mas
bem diferentes: a vaidade e a soberba.

Em ambos os casos, nós nos atribuímos algum


bem e, por isso, queremos ser estimados: mas esse bem
não é mérito nosso. Buscamos a glória. Mas essa glória
pode ser séria ou “ilusória”, isto é, podemos nos
vangloriar de alguma coisa que é digna de admiração ou
gostamos de ser louvados por coisas pequenas, ridículas,
fúteis.
Para os ascetas, a única coisa que merece a glória é
a graça, a participação na vida de Deus. Somente ele nos
torna participantes da sua glória. Por isso, o cristão não a
atribui a si mesmo, mas crê firmemente que é um dom de
Deus. A imagem clássica da soberba é, portanto, a do
fariseu que ora assim: “Deus, eu te agradeço, porque não
sou como os outros homens: ladrões, desonestos, adúl-
teros, nem como este publicano” (Lc 18,11). O orgulhoso
exige admiração e veneração por aquilo que, sem mérito
seu, recebeu de Deus. É por isso que ele se considera
melhor do que os outros.

A SOBERBA, O “ÚLTIMO DEMÔNIO”

Percebe-se que exatamente aqueles que se


esforçam por levar uma vida espiritual estão mais
expostos ao perigo do verdadeiro orgulho. Tal vício é o
“último demônio” que ataca aqueles que se libertaram
dos “sete anteriores”. E é mais forte do que todos os
outros. Leva a pessoa a se considerar superior aos outros,
por causa de suas próprias boas obras, do seu
conhecimento teológico, da sua vocação ao estado
religioso.

Diz-se que o orgulho precede a queda. O


orgulhoso cai facilmente no pecado. O teólogo, que se
orgulha de seus conhecimentos, acaba professando erros.
Segundo Teodoreto de Ciro, a auto-suficiência do próprio
julgamento” é a doença mais grave dos intelectuais que
perderam a humildade, porque eles desprezam toda
iniciativa e os conselhos dos outros. O dito preferido
deles é: “ou do meu jeito ou estou fora”.
A VANGLÓRIA

A vaidade é um vício bem menor. Há quem


admire a si mesmo por ter cabelos bonitos; outros, por ter
uma bela voz. Há quem se admire por causa de suas
capacidades intelectuais, e quem, por suas origens
nobres. E há, também, quem busque a glória nas coisas
“fúteis”, de pouco valor, se comparados aos verdadeiros
valores da vida.

São Francisco de Sales diz que, embora se trate de


uma “paixãozinha” ridícula (apesar disso, as pessoas
conseguem se vangloriar!), tem uma vida longa: dizem
que desaparece somente meia hora após a morte do ser
humano. Até o último suspiro estamos ligados ao
respeito humano.

Em seu estado mais evoluído, a vaidade leva à


falta de sinceridade, às mentiras, provoca desavenças,
ajuda a gastar à-toa o dinheiro. Nesse caso, a vanglória se
chama também “respeito humano”, no pior sentido: para
não perder a admiração, a pessoa cai nos vícios e, para
ser louvada, chega até a cometer pecados.

Os autores espirituais comparam a vanglória a um


ladrão que acompanha um viajante, fingindo ir para o
mesmo lugar. Mas depois, de repente, o assalta.

O vaidoso muitas vezes trabalha, observa os


mandamentos, freqüenta a igreja. Quanto mais zeloso,
mais deseja ser louvado. No final, porém, perde os
méritos adquiridos por suas boas obras, porque, de fato,
não as realizou por Deus, e sim por vanglória.
Por isso, muitas vezes acontece aquilo que são
Paulo escreve: “O que é loucura para o mundo, Deus o
escolheu para envergonhar os sábios, e o que para o
mundo é fraqueza, Deus o escolheu para envergonhar o
que é forte. Deus escolheu o que no mundo não tem
nome nem prestígio, aquilo que é nada, para assim
mostrar a nulidade dos que são alguma coisa. Assim,
ninguém poderá gloriar-se diante de Deus” (1Cor 1,27-
29).

PODE-SE DIZER QUE A SOBERBA É A RAIZ DE


TODOS OS OUTROS VÍCIOS?

É o que afirma São Gregório Magno. Portanto, na


sua lista, ele a coloca em primeiro lugar. Para Evágrio, o
fundamento de todos os oito vícios é o amor-próprio (em
grego philautia, que outros chamam de “vontade
própria”).

MAS QUE MAL HÁ EM AMAR A SI MESMO?


A esse respeito, é preciso prestar atenção para não
se cometer engano. O Evangelho manda amar ao
próximo como a nós mesmos (cf. Mt 22,39). Não diz “não
amar a si mesmo”. Os escolásticos repetiam o adágio:
“Quem não é bom para consigo mesmo, também não
poderá ser bom para com os outros”.

O cristianismo quer unir ambos os amores, o de si


mesmo e o do outro, num único amor. Quem recusa essa
união, só ama a si mesmo. Este amor, porém, sozinho é
egoísta e perverso. Amando a si mesmo, o egoísta
também se destrói, uma vez que rompe as relações com
os outros, enfraquecendo, assim, o seu ser “pessoa”.

São Máximo, o Confessor, assim define a philautia:


“É o amor de si contra si mesmo”. O amor verdadeiro é
fonte de todas as virtudes; o egoísmo, ao contrário, é a
raiz dos vícios.

O QUE FAZER PARA NÃO SE TER VONTADE


PRÓPRIA?

É preciso tomar cuidado para não nos


enganarmos, quando usamos esse termo. A vontade livre
é um dos maiores dons de Deus.

São João Crisóstomo escreve: “Para se salvar, basta


querer”. Enfraquecer a vontade é tornar a pessoa menos
capaz de realizar quer um trabalho, quer a perfeição
espiritual à qual ela mesma está inclinada.

Nesse contexto, soam estranhas as exortações de


são Doroteu de Gaza, de são Bento e de outros que
advertem severamente ser necessário “destruir
totalmente a própria vontade”, para assim se poder
aceitar a vontade de Deus ou a vontade do legítimo
superior.

Já dissemos que a origem de todo mal é um


pensamento mau, uma sugestão para o pecado. A ela se
une uma atração para o objeto proibido: a inclinação à
avareza, à bebedeira etc. Sabemos que podemos e
devemos resistir a essas sugestões. Mas, às vezes, nos dá
vontade de aceitá-las como se fossem lícitas. Então, por
exemplo, procuramos justificar a avareza com a ne-
cessidade de poupar; começamos a chamar de “senso de
justiça” a recusa a perdoar etc.

Vários autores chamam de “vontade própria” essa


tendência de justificar, com pretextos sagrados, a
inclinação ao mal. Sem dúvida, tomada nesse sentido,
deve ser destruída antes que se torne origem de todos os
males. Quem é corrupto não só comete crimes, mas
também consegue justificá-los. É uma situação triste. Pior
ainda é quando pessoas aparentemente devotas gostam
de justificar a própria hipocrisia, inclusive usando textos
da Sagrada Escritura. O único remédio para essa
perversão é procurar sinceramente a vontade de Deus e
submeter-se a quem a transmite espiritualmente.
6.
A experiência pessoal

AS TENTAÇÕES SOB A APARÊNCIA DE BEM


A lista dos oito pensamentos maus (ou dos sete
vícios capitais) é como que o fundamento dos manuais de
moral cristã. Nessa lista, enumeram-se todos os casos de
pecado, de forma “objetiva”, válida para todos. Os
pensamentos que sugerem tais ações são certamente
imorais. Todavia, nem todos os pensamentos que nos
vêm à mente são assim tão claramente determinados. Os
especialistas em vida espiritual observam que o demônio
às vezes toma a forma de anjo da luz (cf. 2Cor 11,14) e
engana sob a aparência de bem. Assim, por exemplo,
uma sugestão pode, no início, parecer boa. Só depois, por
experiência própria, percebemos que nos levou ao mal.

Pouco depois da sua conversão, santo Inácio


acreditava ser um santo propósito praticar o jejum
radical. O resultado, porém, foi uma grave doença no
estômago. Inácio reconheceu, depois, que havia se
deixado tapear, não reconhecendo o engano escondido
sob falsa aparência de bem. Isto aconteceu porque sua
alma, como ele mesmo confessa, ainda era ingênua na
arte de combate espiritual.
QUANDO NOS DAMOS CONTA DE TER FEITO ESSA
TRISTE EXPERIÊNCIA, JÁ NÃO É TARDE DEMAIS?

Não há dúvida, e é exatamente por isso que se


recomenda confrontar as sugestões que percebemos
interiormente com os conselhos do padre espiritual.
Quem conhece a vida espiritual adquire um faro mais
fino e consegue distinguir o pensamento angélico do
demoníaco pelo seu “cheiro”. O mesmo se dá com o ser
humano.

Uma pessoa me disse: “No começo, eu não presto


atenção àquilo que alguém diz, mas ouço mais a sua voz.
Assim, raramente me deixo enganar pelas belas palavras.
É pela voz que percebo se há alguma tapeação”.

É interessante notar que tais observações podem


ser feitas também quanto aos pensamentos que nos vêm
à mente. Santo Inácio fala de regras “de um maior
discernimento dos espíritos” adequado àqueles que já
realizaram um certo progresso na vida interior. Nesses
casos, fica-se menos atento àquilo que o pensamento
sugere e se presta mais atenção ao modo como o
pensamento se apresenta. Foi assim que santo Antão
Abade também aprendeu a distinguir os espíritos:
observando os vários estados psicológicos que os
pensamentos produzem na alma.
JÁ NOTAMOS A REGRA FUNDAMENTAL: AQUILO
QUE PERTURBA PROVÉM DO DEMÔNIO...

Contudo, também notamos que tal princípio não


pode ser aplicado mecanicamente. Além disso, a
perturbação que experimentamos pode ser muito sutil,
não facilmente observável...

Santo Inácio afirma: “Àqueles que vão do bom


para o melhor, o anjo bom toca a alma doce e
suavemente, como uma gota d’água que entra numa
esponja; ao passo que o mau toca a alma do mau de
forma aguda, com estrépito e inquietação, como quando
a gota d’água cai na pedra”.

E SE NÃO PERCEBERMOS LOGO ESSA


PERTURBAÇÃO?

É preciso seguir o desenvolvimento do


pensamento. Inácio descreve-o assim: “Devemos prestar
muita atenção ao curso dos nossos pensamentos; se o
princípio, o meio e o fim são todos bons e levam
unicamente ao bem, é um sinal do anjo bom. Mas se o
curso dos nossos pensamentos nos leva a algo mau ou
fútil, ou menos bom do que aquilo que a alma se
propusera fazer antes; ou mesmo, se ele enfraquece,
inquieta e perturba a alma, tirando-lhe a paz, a
tranqüilidade e a calma, é evidente que isso provém do
espírito mau, inimigo do nosso bem e da salvação
eterna”.
HÁ UMA EXPRESSÃO QUE REQUER EXPLICAÇÃO: O
PENSAMENTO NOS LEVA PARA ALGO MAU OU
FÚTIL. QUANTAS COISAS FÚTEIS PASSAM PELA
NOSSA MENTE! SÃO ASSIM TÃO PREJUDICIAIS?
Teófanes, o Recluso, autor espiritual russo, julga
tais pensamentos com severidade. Ele acha que podem
ser mais prejudiciais do que os pensamentos
expressamente maus. Não admite que a pessoa honesta
fique, por muito tempo, pensando em projetos
pecaminosos. Quanto tempo se perde imaginando coisas
inúteis! Certas pessoas vivem a tal ponto concentradas
que não percebem o que se está falando.

Teófanes comenta essa atitude, dizendo


ironicamente: “Concentradas, sim, mas em coisas
fúteis!”. Se não há nisso verdadeira tentação para o mal, é
também verdade que se perde muito tempo precioso. E
mais: depois disso, têm-se uma sensação de vazio e uma
crescente melancolia, que enfraquece as forças da alma.

A FANTASIA É UMA FORÇA NATURAL QUE SE


DESENVOLVE SEGUNDO LEIS PRÓPRIAS?

Sem dúvida! Certa vez, um médico enviou ao seu


colega uma paciente com uma carta na qual dizia: “Eu
acho que esta senhora não tem doença alguma, a não ser
na sua fantasia”. O outro médico lhe respondeu: “A
doença dela é muito séria, pois é a sua fantasia que está
doente; e essa é uma faculdade importantíssima em nossa
vida”. Do mesmo parecer é Teófanes, autor espiritual já
citado, o qual considera particularmente perigoso deixar
correr, sem o controle da mente, as imagens montadas
pela fantasia. Quer as imagens interiores, quer as
exteriores, são como que o “material bruto” que deve
servir para se formar uma opinião sadia, um julgamento.
O arquiteto construtor é a razão. Se esta fica inativa, as
imagens, o “material bruto”, se acumulam na confusão.
Não constroem um “castelo interior” na mente, mas sim
uma espécie de amontoado de ruínas intelectuais.

As pessoas afetadas por esse tipo de doença são


facilmente reconhecíveis: não conseguem falar nem
pensar com disciplina, pulam de um assunto para outro,
por serem incapazes de seguir uma linha coerente na
conversa.

NÃO SOMENTE AS IMAGENS DA FANTASIA, MAS


TAMBÉM OS RACIOCÍNIOS PODEM SER FÚTEIS!

Sem dúvida. Teófanes nos adverte também sobre


esse perigo. Mais do que a fantasia, a razão é um dom
preciosíssimo de Deus. Ela nos deve guiar no caminho da
vida. Portanto, não pode perder sua função vital.

Seguindo os santos Padres gregos e a filosofia


idealista alemã, Teófanes procurou distinguir os dois
termos: “razão” e “intelecto”. Ele afirma que a “razão”
trabalha mecanicamente, distingue o verdadeiro do falso,
porém, não se preocupa com o valor que o seu
julgamento tem para a vida. O “intelecto”, ao contrário,
julga o valor dos pensamentos que ocupam a nossa
mente.
Segundo Teófanes, o “racionalismo” é outra
epidemia perigosa do nosso tempo, semelhante àquela
provocada pelo abuso da fantasia. O “racionalista”, no
sentido pejorativo da palavra, gasta muita energia
colocando-se problemas que a razão sozinha não pode
resolver ou ocupando-se de questões que não lhe dizem
respeito. Enquanto isso, perde o sentido daquilo que se
refere diretamente à sua vida. Assim, na vida religiosa, os
racionalistas desejam resolver os mistérios da fé, mas não
se colocam a pergunta de como viver tais mistérios para
se salvarem.

COMO PODEMOS SABER, ANTECIPADAMENTE, SE


UM PROBLEMA É OU NÃO IMPORTANTE PARA A
NOSSA VIDA?

Os autores espirituais nos dão um conselho


prático, mas sábio: “Age quod agis”, isto é, preocupa-te
com o que deves fazer agora! Cada momento tem a sua
exigência.

O momento da oração não é adequado para se


pensar no trabalho. E um determinado trabalho requer
que a atenção esteja toda orientada para a sua execução e
não para o que se deverá fazer mais tarde.

Quando falamos com alguém, é bom prestar


atenção ao que ele diz. No entanto, é melhor esquecer
isso quando vamos dormir.

Lê-se nas recordações de um diretor espiritual que


um jovem monge lhe perguntou por que não conseguia
viver com tranqüilidade no mosteiro. O diretor espiritual
lhe respondeu: “Jamais ficarás tranqüilo nem terás mais
paz. No inverno, pensas quando vai chegar a primavera.
Na Páscoa, pensas nos trabalhos no campo que terás de
fazer no verão. Enquanto estás trabalhando, ficas
preocupado e pensas quando o trabalho irá acabar; e,
quando chega o momento de descanso, ficas preocupado
com a quantidade de trabalho que te espera. Em resumo,
nunca pensas no presente, mas sempre no futuro”.

ENTÃO DEVEMOS CONSIDERAR NOCIVOS OS


PENSAMENTOS QUE NÃO SÃO COERENTES COM A
VIDA?

Esse é um importante princípio do discernimento


dos espíritos. Podemos explicar isso com uma
comparação tirada do mundo artístico.

Um professor da Academia de Belas Artes estava


dando as notas aos desenhos apresentados pelos alunos.
Um desses desenhos foi considerado péssimo. Para
alguém que não entendia do assunto, tal avaliação do
professor lhe pareceu injusta, pois o desenho considerado
assim tão negativamente lhe agradava: representava uma
jovem de traços delicados e com um ramalhete de flores.
Então, o professor lhe explicou os motivos do seu jul-
gamento, aparentemente tão severo. Cobriu parte do
desenho com um pedaço de papel, deixando ao
espectador a tarefa de adivinhar qual seria a idade
daquela pessoa, uma vez que aparecia apenas a mão dela
segurando o ramalhete de flores. Era a mão de uma
jovem. Mas, repetindo o mesmo procedimento para
outras partes do corpo desenhado, notou-se que o pé
parecia o de uma mulher adulta e se poderia até mesmo
dizer que as costas era de um homem. Em outras
palavras, cada particular parecia bonito, porém, não se
harmonizava com a pessoa.

Do mesmo modo, os projetos incoerentes com a


vocação pessoal destroem a imagem de Deus da qual a
pessoa é portadora.

No romance Os irmãos Karamazov, o racionalista


Ivã acaba ficando louco, com dupla personalidade. Bem
diferente era o resultado a que levava a sugestão, muitas
vezes repetida, que Teófanes, o Recluso, dava aos seus
filhos espirituais: unir a cabeça ao coração, pensar na
identidade espiritual dada pelo Espírito que reside no
coração. Por isso, os melhores padres espirituais são
aqueles que possuem a cardiognose, isto é, o
conhecimento dos corações. E é por isso que podem
julgar quais são os pensamentos que se devem preservar
e quais os que devem ser rejeitados.

ENTÃO, PARA DISTINGUIR BEM SE OS


PENSAMENTOS SÃO ÚTEIS OU NÃO, DEVEMOS
CONHECER SUA PRÓPRIA IDENTIDADE?

Sim, mas no sentido espiritual, isto é, identidade


entendida como vocação divina. Quando se fala de
vocação em “sentido profano”, nós a consideramos como
opção de trabalho, de lugar na sociedade, de modo de
viver, escolha feita na idade madura. Aos olhos de Deus,
porém, a nossa vocação precede a nossa existência. Ao
criar o ser humano, Deus já tem em mente a vocação
específica dele, a obra para a qual é chamado. Aqueles
que a seguem fielmente, pintam, por assim dizer, um
quadro perfeito, uma imagem de Deus com toda a sua
perfeição.

O exemplo clássico é a vida de Maria Santíssima:


escolhida para ser a Mãe de Deus, ela realizou tudo
aquilo que correspondia a esse chamado.

COMO PODEMOS SABER QUAL É A NOSSA


VOCAÇÃO?

Não podemos dar uma resposta em poucas


palavras. Contudo, podemos mostrar o princípio
fundamental do qual provêm as outras aplicações
concretas: é a voz do coração puro que nos mostra o
caminho que Deus nos indicou para seguir. As vozes da
malícia, que procuram nos desviar desse propósito, vêm
“de fora”.

Esse princípio, evidentemente, necessita ser,


depois, explicado. Vamos fazer isso passo a passo. Antes
de tudo, será mais fácil descrever como é que um
pensamento vem “de fora”, para depois conseguirmos
compreender a voz interior do coração.
7.
O método psicofisico dos esicastas

IOGA CRISTÃ?

Em nossos dias, há muitas pessoas, não apenas no


Extremo Oriente, mas também na Europa, que praticam a
ioga. Elas garantem que se trata de um exercício eficaz
para se conquistar a paz da alma.

A Sagrada Congregação para a Fé se viu obrigada


a advertir sobre os perigos inerentes a esse tipo de
exercício. É claro que o fiel não pode aceitar algumas das
teorias que muitas vezes acompanham a ioga, quando
contradizem o ensinamento cristão. Isso, porém, não vale
para a ioga praticada como espécie de exercício muito
útil para a pessoa que vive nas cidades e já perdeu o con-
tato com a natureza. Além disso, em nossa sociedade
tecnicista, a pessoa pensa que pode exercitar o corpo em
vários tipos de atividade esportiva, sem levar em conta a
sua alma. E, inversamente, acha que pode dedicar-se às
atividades do espírito, esquecendo e desprezando o
próprio corpo. A esse respeito, quem pratica a ioga quer
restabelecer a unidade perdida entre esses dois
elementos.

É claro que isso tem implicações também no


campo da oração. Quando alguém reza intensamente,
certas atitudes erradas do corpo geram cansaço e até
neurose. Ao contrário, uma posição corporal correta
ajuda a concentração na oração.

Que conclusões práticas podemos tirar disso?

A PAZ DO CORPO
Temos de admitir que, nas considerações
psicológicas dos autores gregos antigos, assim como na
linguagem dos ascetas cristãos, aparece um ponto fraco: a
atitude negativa para com a realidade corpórea. Os
cristãos não podiam considerar a matéria como coisa má.
Por outro lado, os ascetas sempre estiveram convencidos
de que o corpo criado por Deus continua sendo, após o
pecado, a esfera mais exposta às tentações do diabo. A
renúncia ao corpo é, por conseguinte, objeto constante de
exortações ascéticas.

Mas quanto ao “uso” do corpo e às suas posições


na oração, vamos encontrar apenas breves acenos em
notas ocasionais.

Sob esse ponto de vista, portanto, o “método


físico” dos monges do Monte Atos, dos séculos XIV-XV,
representa um progresso. Os antigos esicastas do Egito e
do Sinai não tiveram dúvida de que a paz da alma se
irradie no rosto e pacifique as paixões do corpo. O
método físico pretende ressaltar o aspecto oposto: os
pacíficos exercícios das funções corpóreas tranqüilizam a
alma e a dispõem à oração.
O MOVIMENTO DOS ESICASTAS
Para muitos contemporâneos foi uma descoberta
saber que muitos exercícios ioga já eram praticados pelos
monges cristãos, há vários séculos. Acenamos àqueles
que vivem no Monte Atos. Eles fazem parte de uma
grande corrente de espiritualidade oriental chamada
“esicasmo”.

O termos grego hesychia significa calma, paz,


repouso, tranqüilidade. Desde o início, entre os santos
Padres do deserto, havia muitos “esicastas” que
acreditavam ser sua vocação o dedicar-se inteiramente à
oração, não se preocupando com nenhuma outra coisa.
Consideravam como condição necessária para tal vida a
paz exterior e a interior. Por isso, viviam na solidão e
praticavam o controle dos pensamentos, a “vigilância
interior”, entendida no sentido já explicado por nós.

Mais tarde, essa tendência encontrou uma calorosa


recepção no Monte Atos onde, no início do século XIV,
Nicéforo, um monge de origem calabresa, inventou um
“método físico” para facilitar a oração, usando algumas
posições do corpo.

Na verdade, o despertar desse tipo de oração se


deu graças à difusão da Filocalia, antologia de textos dos
santos Padres e dos autores esicastas, sob os cuidados de
Macário de Corinto († 1805) e de Nicodemos Agiorita (†
1809). Agora, essa obra é muito conhecida também no
Ocidente. Além disso, graças às numerosas edições de
Relatos de um peregrino russo, o Ocidente tomou
conhecimento da “Oração de Jesus”, típica jaculatória do
método esicasta. Mediante essas publicações é que
cresceu o interesse por esse sistema, que promete a
conquista da paz, por meio de um “método físico”.

O PEREGRINO RUSSO
Vamos começar com esse escrito um tanto tardio.
Contém a instrução do método corporal, exposta de
modo rudimentar. Seu autor é desconhecido. Em 1881
foram publicados em Kazan’, na Rússia, quatro relatos
nos quais um devoto peregrino narrava a sua busca para
adquirir o dom da oração incessante, pela repetição
contínua da Oração de Jesus. Várias vezes reimpressos
em russo e traduzidos em outras línguas, tais relatos se
tornaram não somente uma das mais conhecidas obras
da literatura espiritual, como também uma fonte de
grande importância para o estudo da espiritualidade.

O MÉTODO DA ORAÇÃO INCESSANTE DO


“PEREGRINO RUSSO”
O método dessa oração pode ser seguido, etapa
por etapa, nos Relatos. A narrativa começa propondo o
problema capital da oração contínua: como “orar
incessantemente” (1Ts 5,16)?

O peregrino encontrou um starets, isto é, um padre


espiritual, perito na “Oração de Jesus”. Recebeu dele a
ordem de recitar três mil jaculatórias ao dia, para
adquirir o hábito de rezar a oração de Jesus com a boca, a
fim de que tal repetição se tornasse um hábito
espontâneo, embora ainda meramente externo, um
movimento dos lábios. Em seguida, o starets mandou-o
recitar seis mil orações ao dia.

O peregrino conseguiu fazer isso a duras penas.


Mas, depois, exercitou-se a tal ponto nessa repetição que
o hábito passou do estado de vigília para o sono. Os
lábios se moviam até mesmo quando ele dormia.

O peregrino sentia-se feliz e começou a crer que


havia chegado a orar sem interrupção. E fez mais. Para
esconder o fato de orar na presença dos outros, deixou de
mover os lábios e tentou dizer a oração movendo apenas
a língua.

Finalmente, pareceu-lhe que havia se acostumado.


O processo, porém, não podia terminar aí. A oração
devia chegar ao estágio no qual a invocação de Jesus se
uniria às batidas do coração. Eis o que ele fez, e como,
mais tarde, ensinou o método a um cego: “Imagina o teu
coração: dirige o olhar como se olhasses através do peito
o mais vivamente que puderes, e escuta atentamente
como ele dá uma batida atrás da outra. Quando estiveres
acostumado, procura adequar às palavras da oração cada
batida do coração, sem perdê-lo de vista. Isto é, na
primeira batida, dirás: ‘Senhor’; na segunda: ‘Jesus’; na
terceira, ‘Cristo’; na quarta: ‘tende piedade’; na quinta:
‘de mim’. Repete isso muitas vezes”.

Ligada às batidas do coração, a oração é, por assim


dizer, inseparável da própria vida. Ao menos assim a
entendeu o peregrino, o qual, dessa maneira, encontrou a
sua felicidade: “Quando alguém me insulta, não penso
senão na benéfica oração de Jesus. Imediatamente, a
cólera ou o pesar desaparecem completamente. O meu
espírito se tornou simples, de verdade. Nada me
desagrada, nada me preocupa, nada do que é exterior me
retém... Quando um frio violento me atinge, recito a
oração com mais atenção e logo me sinto quente e
confortado. Se a fome é muito insistente, invoco mais
vezes o nome de Jesus Cristo, e não me lembro de ter
passado fome”.

O TEXTO CLÁSSICO DE NICÉFORO


O texto do peregrino é, como dissemos, tardio.
Além disso, aquilo que se chama “método físico”, isto é,
o uso dos meios corporais para se chegar à concentração
mental, aí é exposto apenas em parte. A exposição
tradicional completa encontra-se no opúsculo do monge
atônita Nicéforo: Sobre a sobriedade e a guarda do coração. O
famoso texto, retomado da Filocalia, diz: “Senta-te numa
cela tranqüila, em algum canto escondido e faze aquilo
que eu te digo: fecha a porta, eleva o espírito acima de
qualquer objeto fútil e temporal. Depois, apóia a barba no
peito; dirige o olhar, com toda a tua mente, para o meio
do ventre, ou seja, para o umbigo; segura a respiração do
ar que passa pelo nariz, de tal modo que não expires
facilmente, e procura mentalmente dentro de tuas
vísceras para aí encontrar o coração, onde residem as
faculdades da alma. No começo, encontrarás trevas e
barreira impenetrável. Contudo, se perseverares e fizeres
esse exercício dia e noite, então encontrarás, - ó milagre!,
- felicidade sem fim. Quando o espírito encontrar o lugar
do coração, verá logo coisas jamais conhecidas antes,
verá a temperatura que há no meio do coração, verá a si
mesmo todo luminoso, cheio de discernimento. Daí em
diante, qualquer pensamento [mau] que se apresentar,
antes que se desenvolva e tome forma, será afugentado
pela invocação do nome de Jesus, que o expulsa e destrói.
Desse momento em diante, o espírito, cheio de aversão
aos demônios, se inflamará com a ira que é segundo a
natureza, ou seja, para combater os inimigos espirituais.
O resto aprenderás com a ajuda de Deus, quando te
exercitares na guarda da mente, conservando Jesus no
coração, porque foi dito: ‘senta-te na cela e esta te
ensinará tudo’”.

O SIMBOLISMO DO CORPO
No método do peregrino russo encontramos
praticamente dois elementos “físicos” da oração: as
batidas do coração e a respiração.

Nicéforo nos apresenta outros: a posição do corpo


(notemos que para a ioga são as “posições” que contam e
não os movimentos, como na ginástica clássica), o fixar a
atenção em certas partes do corpo (o coração, o umbigo),
o controle da respiração, o ambiente apropriado. Tais
elementos “físicos” são postos em relação direta com
certos efeitos “psíquicos”: visões luminosas (os esicastas
falam da “luz do Tabor”), prontidão em discernir, santa
ira contra os demônios.

Os seguidores da “yoga cristã” encontram, neste


trecho, vários pontos de apoio e estão convencidos de
que o método de Nicéforo pode ser desenvolvido com a
ajuda das experiências indianas ou japonesas.

Até que ponto podemos seguir esse caminho?


Cremos que seja importante fazer uma observação
prévia. Foi mostrado, com acerto, que a relação
fundamental com a realidade é diferente no Oriente e no
Ocidente. O ocidental, aconteça o que acontecer,
concentra a sua atenção em descobrir a relação entre
causa e efeito. A atitude dos orientais é diferente. Diante
daquilo que acontece, eles se perguntam: “O que significa
isso que estamos observando? De que realidade
escondida pode ser símbolo?”.

Essas duas atitudes existem também quando se


fala do método físico na oração. Normalmente, a pessoa
ocidental pergunta: “Que efeito produz a respiração
diminuída? E fixar a atenção no coração?”.
Conseqüentemente, o método físico se torna, para os
ocidentais, uma espécie de cultura da ginástica adaptada
aos contemplativos.

Os orientais, ao contrário, buscam também aqui o


simbolismo e se perguntam: “Qual o significado que se
pode dar às batidas do coração, à respiração e à
percepção de calor?”. Essa era a atitude dos santos
Padres que defendiam o culto das imagens sacras e a
contemplação da natureza visível. Essa deve ser a atitude
a assumir-se no que diz respeito à função do corpo na
oração, de modo que o orante, como escreve Orígenes,
“traga no corpo a imagem dos sentimentos da alma”. Em
resumo, devemos ser capazes de compreender também
os vários estados e os sentimentos corporais como
“imagens” do estado espiritual da alma.

Até certo ponto, todos nós fazemos isso. Unir as


mãos, ajoelhar-se, fazer uma inclinação profunda são
sinais tradicionais da oração. Mas por que o simbolismo
deveria terminar aqui? Não podemos dar um sentido
simbólico e espiritual também à respiração, às batidas do
coração, à concentração nele? Os defensores do método
físico estão convencidos de que ele seja um meio eficaz
para se chegar à oração contínua, porque, desta forma,
nós a associamos às funções vitais que nunca se interrom-
pem. É sob esse aspecto que podemos considerar cada
um dos elementos corporais, tão recomendados pelos
esicastas, como adequados à oração.

SENTAR-SE NUMA POSIÇÃO HUMILDE

Consciente ou inconscientemente, o corpo toma


parte dos movimentos da alma, dos pensamentos, dos
desejos, dos sentimentos, das decisões. Há, porém, uma
grande diferença entre o movimento do corpo e a sua
posição. O movimento é símbolo de um ato que passa.
Por exemplo, erguemos a mão para dizer aos outros:
“Estejam atentos ao que digo!”. A posição é, ao contrário,
sinal de um estado que perdura. Quando nos sentamos
comodamente, dizemos aos outros que queremos ficar
naquele lugar. O corpo, obrigado a ficar numa posição,
acomoda a tal estado, não sabemos como, os nervos, os
músculos e a circulação.
O ideal da oração oriental, e sobretudo da esicasta,
é atingir um estado (katastasis), a uma disposição estável
do coração, a “estar simplesmente com Deus”, a sentir a
sua presença. Quem se assenta numa posição humilde,
simboliza e reforça com esse gesto tal disposição e repete
espontaneamente: “Senhor, tende piedade de mim,
pecador”.

A CELA FECHADA, A PENUMBRA


Fechar a porta do quarto quer dizer que queremos
ficar sozinhos. Os esicastas levavam uma vida eremita,
solitária. Por isso, repetiam muitas vezes o conselho:
“Permanece na tua cela, ela te ensinará tudo”. Queriam,
assim, receber instruções não de estranhos, mas das
inspirações que nascem do coração. Não seria, porém,
correto crer que a solidão espiritual nasça apenas da
ausência de um contato com as outras pessoas. Mais
importante ainda é a “solidão do coração”, que consegue
eliminar as “conversas” produzidas pelos pensamentos
que perturbam. Eles são provocados também pelos
vários objetos que vemos ao nosso redor. O quarto pouco
iluminado é um ambiente que perde formas e cores.
Torna-se, então, um convite a procurar Deus bem além
das imagens ou dos conceitos, levando-nos a senti-lo
como pura luz que invade o coração.

A RESPIRAÇÃO
A regularidade da respiração sintonizada com a
oração é um exercício natural para quem deseja tão-
somente saborear as palavras da oração, no ritmo da
própria vida. Os termos “respirar” e “viver” são também
lingüisticamente aparentados, nas várias línguas. Em
eslavo, a palavra “verdade” (istina) significa
originalmente “aquilo que existe e respira”. Quem une o
nome de Jesus a cada respiração deseja perceber como a
realidade de Cristo penetra e dá vida a tudo aquilo que
existe. Mas quem respira regularmente sente a
necessidade de diminuir o ritmo e até mesmo de detê-lo.

A vida espiritual se dá aqui na terra e é, ao mesmo


tempo, vida eterna. Deus é dono do tempo. E o ser
humano, em união com ele, procura deter aquilo que
passa.

Quem pratica ioga diz que a diminuição da


respiração diminui o ritmo biológico da vida e o
envelhecimento. Com este método, o cristão pode viver a
experiência do “tempo escatológico”: não quer avaliar o
curso da vida de acordo com o relógio, mas segundo a
proximidade com Cristo.

A respiração implica três fases: inspirar, segurar a


respiração e expirar. Quem inspira vive a dependência
do mundo. Unir essa fase à oração de Jesus significa
sentir a dependência dele, que é a Vida do mundo, no
sentido espiritual. Expirar é o alívio de quem se sente em
plena posse da própria vida e quer doá-la, distribuí-la ao
seu redor.

FIXAR A ATENÇÃO ONDE ESTÁ O CORAÇÃO

Na ioga, atribui-se uma notável importância à


localização do pensamento, unindo-o a um órgão que lhe
deveria corresponder, segundo a estrutura psicofísica do
ser humano. Supõe-se que os vários pensamentos tenham
a sua “sede natural” em certos órgãos. Os esicastas
afirmam que a oração deve estar concentrada no coração,
inclusive em sentido material, fixando o peito,
ligeiramente à esquerda.

Certo bispo oriental (que também era médico),


defensor da oração do coração, procurou fazer um
resumo dos seus estudos sobre essa questão. Ele
distingue quatro localizações. Afirma que o pensamento
pode ser localizado 1) no centro craniano cerebrofrontal;
2) no centro orofaríngeo; 3) no centro peitoral; 4) no
centro cardíaco.

O centro craniano cerebrofrontal está situado entre


as sobrancelhas. Corresponde ao pensamento abstrato de
uma inteligência pura. Pode ser um pensamento muito
intenso, lúcido, mas também muito instável.
Concentração desse tipo requer muita força de vontade,
que implica fadiga e gasto de energias.

Colocado no centro orofaríngeo, o pensamento


perde seu caráter abstrato e entra no dinamismo da vida.
Mas ainda é instável.

O pensamento situado no centro peitoral, no meio


do peito, participa da respiração; então adquire um ritmo
mais estável.

Todavia, maior estabilidade se obtém quando a


localização está fixada exatamente no coração.
Segundo a ioga, a respiração está mais unida à
“idéia”, enquanto o coração, ao “sentimento”. Para os
monges russos, o “sentimento do coração” implica uma
disposição estável e, portanto, um “estado” de oração.
Por isso, os autores aconselham freqüentemente: “Desce
da cabeça para o coração!”.

O CALOR
A respiração regulada produz efeitos de calor, os
quais se difundem por todo o corpo, a partir do peito, e
dão sensação de alegria. A pulsação se torna mais forte e
pode vir acompanhada por fenômenos de visões
luminosas. Nessas ocasiões, porém, todos os autores
espirituais advertem severamente: trata-se de efeitos
naturais, não é a graça! Seria um erro perigoso crer que se
trata de experiência mística. O valor desses sentimentos
depende do uso que deles se faz para o bem da oração.
Tanto o calor como a luz são imagens do Espírito Santo.
Como imagens, podem servir para elevar a mente para a
realidade que representam. Contudo, procurá-las por si
mesmas seria pura idolatria.

SENSAÇÃO DE PAZ E DE HARMONIA

O método físico, quando bem exercido, produz


calma, harmonizando, no mesmo ritmo, as diversas
funções vitais: a batida do coração, a respiração, o
caminhar, a oração vocal e os pensamentos bons que a
acompanham. Tudo isso nos leva a pensar na paz de
Deus, que é um dom messiânico (cf. Lc 2,14; 19,38 etc.).
Todavia, essa sensação de paz buscada mediante o
método físico poderia facilmente degenerar no quietismo,
no qual alguém pretende a paz sem qualquer outra fi-
nalidade. Ao contrário, essa harmonia deve ser entendida
como disposição de alguém que concentra todas as suas
forças para melhor ouvir a voz de Deus e que se
predispõe a combater, como se estivesse num castelo
interior, os “demônios” que vêm “de fora”.

O CONTROLE DA ENERGIA VITAL


A respiração bem regulada permite, como diz a
ioga, levar a quantidade de prâna, de que o homem
dispõe, ao grau máximo de sua intensidade. Então, a
nutrição por meio do alimento externo se reduz ao
mínimo. Também os esicastas cristãos estão convencidos
de que o método físico supõe a prática do jejum, às vezes
bem rigoroso, mas ao mesmo tempo alegre, acompa-
nhado de sensação de liberdade interior em relação às
necessidades do corpo. Quantos exemplos disso
podemos encontrar nas biografias dos santos monges!

PERIGOS A SEREM EVITADOS


Talvez pareça exagerada a insistência com que
alguns autores cristãos permitiam a prática do método
físico somente sob a supervisão de um padre espiritual
perito. Por que tantas precauções? O método é simples!

Para uma pessoa que lhe escreveu, preocupada


nesse sentido, o bispo russo Inácio Brjancaninov deu a
seguinte resposta: “O método é simples, mas tu não és!”.
Nem todos são igualmente capazes de viver e aprofundar
o simbolismo, como também de passar do sinal à
realidade espiritual que se procura. Acontece, aqui, como
no caso do ícone: deter-se, sem ir além, significa fazer da
imagem um ídolo, e do caminho, um obstáculo para a
elevação da mente a Deus.

Viver o próprio corpo como símbolo espiritual é


ainda mais difícil, porque poderia degenerar no culto do
corpo e dos sentimentos carnais. Certos exercícios
“físicos” produzem, quase automaticamente, sentimentos
que se assemelham às consolações espirituais: calma,
alegria de estar sozinho, bem como fenômenos de luzes e
calor. Confundir tudo isso com as verdadeiras
consolações espirituais seria um dos desvios mais
temidos pelos autores espirituais. E esforçar-se para dar-
lhe um significado místico, quando a vida do ser humano
não corresponde a um tal nível, seria uma espécie de
esquizofrenia que leva a aberrações mentais.

AVISO PRÁTICO
Em todo caso, não devemos exagerar nem mesmo
com as precauções. Podemos tentar algo simples até
sozinhos. Por exemplo: estamos num ambiente tranqüilo.
A mão direita toma a esquerda para sentir o ritmo do
pulso. Procuremos harmonizar a respiração ou também o
caminhar com o mesmo ritmo. Depois de conseguir fazer
isso, repitamos uma breve oração-jacu- latória adequada
ao nosso estado de ânimo, aos sentimentos que nos
dominam. Rezando assim, por algum tempo, a experiên-
cia nos ensinará como aproveitar esse estado pacífico
para tornar mais intenso nosso diálogo com Deus Pai.
Desse modo, a oração se simplifica ao máximo,
mas, por outro lado, envolve todo o nosso ser, a alma e o
corpo. Assim a pessoa se sente unida a si mesma e
também com Deus.

A cultura técnica atual tornou-se extremamente


“analítica”. Por isso, o ser humano, em seu
subconsciente, se sente atraído por aquilo que o ajuda a
viver na própria integridade para chegar, assim, ao
menos em alguns momentos, “a um estado no qual se
possui, no corpo mortal, uma imagem da felicidade eter-
na” (Cassiano).
8.
Orar “no coração”

ELEVAÇÃO DA MENTE OU DO CORAÇÃO?

A definição tradicional da oração diz que ela é “a


elevação da mente a Deus”. Sua origem remonta a Platão.
Os autores cristãos adotaram-na, mas também a
interpretaram, para torná-la mais completa. Não é apenas
a mente que deve ser ativa na oração, e sim a pessoa
toda, embora a função decisiva caiba à alma. Nela
distinguimos três faculdades: o intelecto, a vontade e o
coração. Cada uma dessas três “faculdades” pode ser
mais ou menos dominante nos vários tipos de oração.

Conhecemos a oração intelectiva, reflexiva. A


oração “ativa”, aquela que se faz a partir de uma decisão
da vontade a qual formula bons propósitos. A mais
perfeita, porém, segundo os autores do Oriente cristão, é
aquela na qual predominam os “sentimentos do
coração”.

Téofanes, o Recluso, escreve: “Quando orardes,


procurai fazer de tal modo que vossa oração brote do
coração. Em seu verdadeiro sentido, a oração não é senão
um suspiro do coração dirigido a Deus. Quando falta
esse impulso, não se pode falar de oração”.
PERIGO DE SENTIMENTALISMO?
Se não é perigoso, ao menos parece banal dizer
que a verdadeira oração e a religião devem cultivar
sobretudo os “sentimentos do coração”. O homem
prudente reflete e decide segundo a sã razão. Os
sentimentos são reações secundárias e muito mutáveis.
De fato, a Igreja condenou a sentença dos “modernistas”
do século passado, a qual afirmava que a religiosidade
teria sua origem no subconsciente, nos sentimentos
irracionais. Para responder a essa grave objeção é preciso
esclarecer bem o que se entende por coração e seus
sentimentos.

O CORAÇÃO NA BÍBLIA

A linguagem moderna distingue três atividades


diferentes da nossa alma: pensar, querer, sentir. Temos,
portanto, três faculdades separadas: o intelecto, a
vontade e o coração.

Essa terminologia não pode ser aplicada aos textos


bíblicos, uma vez que neles não se fazem tais distinções
psicológicas. Fala-se de modo espontâneo, como o povo
simples também faz hoje.

A pessoa pode observar-se externamente, como se


manifesta no corpo. Mas todos sabem que seu valor
interno pode ser diferente. Por exemplo, alguém pode
falar com gentileza, mas no seu coração pode estar
alimentando o ódio.
Com o termo “coração” queremos dizer toda a sua
vida interior. Por isso, até na Bíblia se diz que a pessoa
em seu “coração” reflete, decide e reage às escondidas.
Quando diz que ela guarda algo no coração, significa que
não pode esquecê-lo. Concluindo: nesses textos, o
coração não significa uma das faculdades da alma, e sim
a pessoa toda, com todas as suas faculdades e sua atitude
fundamental para com as demais pessoas, para com Deus
e para com o mundo.

Quando a Escritura diz que devemos amar a Deus


“com todo o coração”, quer dizer “com toda a (tua) alma
e com todo o (teu) entendimento” (Mt 22,37), “com toda a
(tua) força” (Mc 12,30; Lc 10,27).

Essa integridade humana pode ser considerada


sob duplo aspecto: um “estático” e outro “dinâmico”. É
claro que isso precisa ser explicado. Lembremo-nos da
nossa experiência comum. Um jovem, por exemplo, ama
a sua namorada com todo o coração, não nutre nenhum
sentimento contrário e decide casar-se com ela com plena
liberdade. Essa é a disposição dele hoje. Amanhã será
assim? Não temos certeza.

Chamamos de “estática” essa atitude de hoje, a


disposição do momento presente. Depois, o jovem se casa
com a namorada e, como marido, lhe é fiel e a ama por
toda a vida. Podemos chamar de “dinâmica” essa
disposição estável, que dura ao longo de todas as
peripécias da vida.
A INTEGRIDADE HUMANA CONSIDERADA DE
MODO “ESTÁTICO”

Vamos tentar explicar melhor isso, com um


exemplo concreto. Estou muito ocupado, porque tenho
de terminar um trabalho urgente. Por falta de sorte,
aparece um visitante inoportuno. O que devo fazer?
Mandá-lo embora? Sei que ele ficaria entristecido com
isso. Então, decido recebê-lo com gentileza, mas
forçadamente.

Quando agimos dessa maneira, levados pela


caridade, fazemos certamente um ato meritório. Ávida
nos obriga a tais sacrifícios. Percebemos, porém, que não
são atos plenamente normais pois, dentro de nós, há uma
divisão. Fazemos o bem, porém não “com todo o
coração”. O ideal seria saber superar essas divisões e agir
de maneira espontânea, “com toda a alma”.

A ORAÇÃO DO CORAÇÃO SOB O ASPECTO


“ESTÁTICO”
Quantas vezes permanecemos internamente
divididos durante a oração! Começamos a rezar os
salmos, com boa vontade. Mas a mente voa e surgem
pensamentos disparatados.

E o que dizer dos sentimentos? Rezamos para a


salvação do nosso próximo, mas ao mesmo tempo
sentimos antipatia por ele. Como seria bonito rezar com
todo o coração! É possível? Os autores espirituais estão
convencidos que sim. Os vários “métodos de meditação”
são apenas um exercício nesse campo. Lembremo-nos do
método de meditação inaciana. Aí nos são recomendados
muitos elementos: colocar-se na presença de Deus;
escolher a posição do corpo adequada à oração; imaginar
o lugar (por exemplo, quando meditamos no mistério do
Natal, a gruta onde Jesus nasceu); refletir no sentido das
palavras do Evangelho ou do texto da oração; decidir
quais conclusões tomar para a nossa vida; fazer isso com
todo afeto e pedir a graça a Deus pela intercessão dos
santos. Notemos que são expostos, de modo analítico,
vários aspectos da nossa atividade, mas a finalidade é
permanecermos inteiramente unidos na oração. Então, a
pessoa ora por inteiro, com grande intensidade e grande
paz.

A ORAÇÃO DO CORAÇÃO SOB O ASPECTO


“DINÂMICO”
O coração, sob o aspecto “dinâmico”, significa a
unidade da pessoa no decorrer da vida. O que sou?
Aquilo que decidi ontem ou aquilo que pretendo
amanhã? Como somos “no coração”, somos
habitualmente, não apenas agora, mas em qualquer
momento. A oração, nesse sentido, significa uma disposi-
ção estável, duradoura. Essa oração é, por natureza,
contínua, inseparável da pessoa. O melhor exemplo desse
estado nos é descrito na biografia de são Francisco de
Assis, onde se lê: “Toda a sua intuição e todo o seu afeto
estavam voltados para o Senhor... Assim (pode-se dizer)
não era tanto um homem que rezava, e sim ele mesmo
inteiramente transformado em oração viva”. Nesse
sentido, também santo Tomás de Aquino define a
devoção como “inclinação da vontade para todo bem”.
Sem dúvida, é assim que se deve interpretar também o
texto na meditação inaciana que exorta a se acrescentar o
“afeto” às reflexões racionais e aos propósitos concretos.
Com isso, certamente, não se entende qualquer
sentimento banal, mas o esforço para que a verdade
meditada se torne a nossa mentalidade normal.

Espera-se que um verdadeiro amante da música


toque o seu instrumento toda vez que apareça a ocasião.
Do mesmo modo se espera que a pessoa humilde de
coração manifeste essa sua atitude em todas as
circunstâncias. Quem adquiriu o hábito de orar no
coração eleva o espírito a Deus em todos os momentos.

COMO PODEMOS PERCEBER A SITUAÇÃO DO


CORAÇÃO?

Esse é um problema antigo e sempre atual. Os


livros de moral nos ajudam a distinguir cada ato.
Podemos julgar o valor deles da seguinte forma: roubar é
um mal, dar esmolas é um bem etc. Um confessor,
mesmo que o encontremos pela primeira vez, pode nos
dizer, julgando segundo os critérios tradicionais, se, num
determinado caso concreto, agimos bem ou mal. No
entanto, ele se cala, quando se pergunta: “Como sou aos
olhos de Deus? Qual é a minha situação diante da
eternidade?”.

O coração permanece um mistério, a parte


escondida do ser humano, aquela que somente Deus
conhece. Por outro lado, também a pessoa deve e pode
conhecer a si mesma, medir o seu progresso na vida
espiritual. Os autores monacais nos asseguram que a
alma está presente a si mesma e a pessoa, conforme o
grau de sua inocência, de sua pureza interior, tem uma
intuição direta de si mesma.

Segundo Téofanes, o Recluso, a noção de coração


inclui essa forma de conhecimento integral e intuitiva de
si mesmo. Trata-se dos “sentimentos do coração”. “A
função do coração consiste em sentir tudo aquilo que se
refere à nossa pessoa”. Evidentemente, nem todos os
“sentimentos” têm o mesmo valor. Sua infalibilidade e
utilidade para a vida espiritual dependerão da pureza do
coração.

O CORAÇÃO, FONTE DE REVELAÇÃO


Portanto, o coração tem uma voz que se faz ouvir.
O mesmo Teófanes escreve: “Por conseguinte, sempre e
continuamente, o coração percebe o estado da alma e do
corpo, como também as impressões multiformes que
nossas ações particulares, espirituais e corporais
produzem, os objetos que nos rodeiam ou com os quais
nos deparamos, a nossa situação exterior e, em geral, o
decorrer da nossa vida”. Vemos e pensamos muitas coi-
sas. Contudo, somente o coração nos diz qual é o valor
que elas possuem para a nossa vida.

O coração garante a autenticidade da nossa fé. Os


fiéis não são capazes de provar, com argumentos
racionais, a fé que têm em Cristo. Todavia, o sentimento
do coração lhes dá a certeza de estarem no caminho certo
da salvação: “Aquele que crê no Filho de Deus tem este
testemunho dentro de si” (1Jo 5,10).

O coração puro nos leva a conhecer também os


outros. Os famosos padres espirituais, como os startsi
russos, surpreendiam por seu conhecimento dos corações
(cardiognose). Diziam que são Serafim de Sarov lia nos
corações das pessoas como se estes fossem um livro
aberto. E é interessante que não consideravam isso como
dom milagroso. Diziam que Deus nos criou para que nos
conheçamos reciprocamente. O pecado é como que uma
muralha que se coloca entre as pessoas. Para quem chega
à pureza de coração, os corações dos outros estão abertos.
Portanto, uma vez que o coração se purifica sobretudo
pelo amor, somente quem ama o outro pode
compreendê-lo.

O CORAÇÃO PURO, FONTE DE CONTEMPLAÇÃO DE


DEUS

“Ver Deus em todas as coisas”: com estas palavras,


os autores orientais definem a contemplação cristã. É um
ideal sublime, e, por outro lado, um programa para todos
os cristãos. É justo, porém, que nos perguntemos como
chegar lá.

A palavra contemplação, em grego theôria, indica


“ver”. Toda pessoa deseja ver a realidade com a qual
entra em contato. Há, porém, várias maneiras de ver. A
primeira é com os olhos. Não se pode ver a Deus desse
modo, pois ele é invisível. O nosso intelecto, que formula
idéias claras e princípios abstratos, nos oferece uma visão
superior. Todavia, nem mesmo por esse caminho se
chega a Deus, uma vez que ele supera todo entendimento
humano. Entretanto, Cristo nos prometeu a visão de
Deus: “Felizes os puros de coração, porque verão a Deus”
(Mt 5,8).

Martyrius Sahdônâ, místico siríaco, escreve: “Ah!


o olhar puro do coração que vê bem, graças à sua pureza,
Aquele diante do qual os serafins cobrem o rosto! Onde,
pois, [Deus] será amado a não ser no coração? E onde se
manifestará senão aí? Bem-aventurados os puros de
coração, porque verão a Deus”.

llm autor oriental escreveu recentemente e com


acerto que, se o coração puro é aquele que ama, as
palavras de Leonardo da Vinci são proféticas em relação
a todo intelectualismo moderno: “Um grande amor é
filho de um grande conhecimento”; ama-se o belo que já
se conhece. Contudo, nós, cristãos, podemos dizer o
contrário: “Um grande conhecimento é filho de um
grande amor”.

“Deus é amor” (1Jo 4,8). Sem o amor, portanto, é


impossível conhecê-lo.

O CORAÇÃO CONHECE A DEUS MEDIANTE AS


INSPIRAÇÕES INTERIORES

Vimos que o homem é muitas vezes invadido por


inúmeros pensamentos. Para se julgar a utilidade deles
para a vida, é preciso examinar não somente aquilo que
dizem, mas também de onde provêm. Sob esse aspecto,
os santos Padres procuram, em primeiro lugar, distinguir
se provêm “de fora” ou “de dentro”. Os pensamentos
que chegam de fora têm causas muito variadas: vimos
algo que nos faz pensar, ouvimos um relato, alguém nos
“sugeriu” uma idéia.

Os autores espirituais experimentaram que até o


demônio sugere muitas coisas para nos destruir. Por
outro lado, estamos convencidos de que Deus também
nos fala por meio das inspirações. O Espírito Santo nos
sugere idéias. Mas sua maneira de se aproximar de nós é
diferente daquela do inimigo; de fato, sua voz se faz
ouvir a partir “de dentro”.

Os autores siríacos descrevem essa experiência


com uma metáfora. Eles dizem que o coração se parece
com uma fonte. Se é pura, o céu se reflete nela. De modo
semelhante, no coração puro se refletem os pensamentos
divinos. Quem está habituado a ouvi-los, não necessita
de outros ensinamentos. Esses autores dão o nome de
“oração do coração” à escuta das inspirações divinas no
próprio interior.

A ORAÇÃO DO CORAÇÃO DESCRITA PELOS


SANTOS OCIDENTAIS

Com freqüência se diz que a “oração do coração” é


própria da Igreja oriental e que os ocidentais a
desconhecem. Todavia, é interessante comparar, com os
textos orientais, a brevíssima, mas bem-sucedida
descrição que santo Inácio de Loyola inseriu em seu livro
Exercícios espirituais, onde se fala do discernimento dos
espíritos. Ele afirma: “Somente Deus nosso Senhor pode
dar consolação à alma, sem uma causa prévia, porque é
próprio do Criador entrar, sair e realizar moções nela,
elevando-a inteiramente ao amor da sua divina grandeza.
Digo sem causa, isto é, sem nenhum sentimento anterior
ou conhecimento de um determinado objeto...”. A arte
consiste em saber acolher as verdadeiras moções.

Na antiga biografia de são Francisco se lê que


muito freqüentemente ele tinha essas intuições e que não
as deixava escapar. Ao contrário, aceitava-as com muita
atenção. Assim, ao caminhar com os outros, ao lhe
sobrevir uma “iluminação”, deixava-os prosseguir,
enquanto ele se detinha a escutar essa voz de Deus. Diz-
se ainda que, nesses momentos, ele colocava a mão no
coração (gesto recomendado pelos esicastas) “e aí falava
com Deus, respondia ao seu juiz, suplicava ao seu Pai,
conversava com o Amigo e deleitava [a sua alma] com o
seu Esposo”.

CONHECER A SI MESMO PARA CONHECER A DEUS

O pensamento cristão retomou e desenvolveu o


adágio esculpido no templo de Delfos, e que nos foi
transmitido por Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”. Mas,
para os autores cristãos, o que significa exatamente
conhecer a si mesmo? Não se trata de um conhecimento
psicológico, e sim do assim chamado conhecimento
“moral”: trata-se de saber que bem somos capazes de
realizar, que virtude devemos praticar.
São Basílio, porém, fala de um conhecimento de si
ainda mais sublime, “teológico”: conhecer a Deus,
contemplando a sua imagem em nossa alma e ouvindo a
voz do Espírito no próprio coração. É esta última que se
exercita na assim chamada “oração do coração”.

A ATUALIDADE DA ORAÇÃO DO CORAÇÃO

A respeito dessa oração “do coração”, muitas


vezes se diz que é um privilégio dos ascetas orientais; os
ocidentais não a conhecem.

É verdade que os orientais falam freqüentemente


dessa oração. O teólogo russo B. Vyseslavcev escreve: “Se
religião é relação pessoal com Deus, então o contato com
a divindade não é possível a não ser nas profundezas do
meu ‘eu’, na profundeza do coração, porque Deus, como
diz Pascal, é sensível ao coração”. Entretanto (coisa
surpreendente!), vamos encontrar uma das melhores
descrições, embora brevíssima, dessa oração no texto já
citado de santo Inácio de Loyola sobre os pensamentos e
as atitudes que não têm “uma causa exterior”.

Vivemos numa sociedade técnica e nos


acostumamos a pensar que tudo o que acontece tem uma
causa externa e que todo movimento seja fruto de um
impulso vindo de outra força. Os psicólogos positivistas
nos ensinaram que a alma da criança é uma tabula rasa, na
qual encontraremos apenas aquilo que os outros
escreverem. Por isso, a sociedade procura “doutrinar-
nos”, no sentido bom ou mau do termo. Assim, o ser
humano acostumou-se a ouvir somente os outros e não
presta mais atenção às inspirações que lhe vêm ao
coração e que provêm do Espírito.

É um privilégio dos artistas ter “inspirações”, mas


isso não é exclusivo deles. Na vida espiritual, cada pessoa
deve ser “artista” e compor a própria vida sob a guia do
“Artista” supremo.

São Francisco de Assis afirma: “Puros de coração


são os que desprezam as coisas terrenas e procuram as
celestes, nunca cessando de adorar e de ver o Senhor
Deus verdadeiro, com o coração e com um espírito
puro”.
Epílogo - Paul Claudel: o coração

“Quem não acompanharia com prazer e simpatia,


durante um concerto, a mímica do regente de orquestra?
(E talvez, para apreciá-la totalmente, seria preferível ser
surdo!) Seus subordinados estão em fila diante de nós,
uma fila atrás da outra, cada qual obedientíssimo a cada
sussurro silencioso seu. Infelizmente, depois não vemos
senão as costas do regente, não podemos ver seu olhar
irrequieto, desesperado ou triunfante, severo, suplicante,
insistente, ameaçador, persuasivo, olhar que passa dos
violinos para os contrabaixos e as trompas. Sua mão
direita detém, como um raio, o arco que toca o
instrumento humano, enquanto a mão esquerda,
imperiosa ou benevolente, com os cinco dedos abertos e a
palma delicada e vibrante, acaricia, como a cabeleira,
como os pêlos de um cão não bem domesticado, o animal
inteligente e multiforme que o ouve. E de sua pupila faz
brotar o som. A mão direita fornece a medida com
autoridade e com doçura, mas a mão esquerda, em
variadíssimos detalhes, dá o sentimento. Ela insinua o
toque”.

Assim acontece na estrutura espiritual dentro de


nós. Há um dirigente da nossa “máquina orgânica”, o
qual nos dá a medida, mas, ao mesmo tempo, forma
dentro de nós, expressa e qualifica o sentimento. É o
coração esse aparelho douto e complicado, munido de
muitas chaves, ventilações e estantes. Ele é chamado para
dirigir dentro de nós uma orquestra orgânica e dar-lhe a
medida da vida. Ele pulsa, mas ao mesmo tempo ouve.
Não é por acaso que foi dado às suas partes superiores o
nome de “aurícula”. Ele recebeu do Sopro da boca do
Eterno o impulso, duradouro e circular em Adão.
Todavia, não se contenta com isso, continua a dar novos
impulsos...

“Inveni cor meum”, diz o profeta. Encontrei meu


coração! Que descoberta! Nada menos do que o meu
coração! Nada menos do que o cerne da minha pessoa!
Algo que existia antes de mim, algo que, no meu peito,
continua a pulsação de Adão. Algo que sabe mais de
mim mesmo e pede para ser interrogado de outra
maneira mais do que com palavras. Algo que, dentro de
nós, no centro, é encarregado de cuidar do ser, que se
interessa e responde por ele. Algo que comparamos a
uma sarça ardente, àquela que arde sem se consumir...

Quando o Mestre diz: “Dá-me o teu coração”, quer


dizer: “Meu filho, dá-me aquilo que é o centro de ti
mesmo, a tua causa, o princípio regulador da tua vida, o
teu ritmo sensível, afetivo e inteligível. Achega-te à tua
fonte! Pulsa comigo!”.

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