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crônicas sobre

o trecho,
bulinações e
alguns afetos

R O G E R I O A L M E I DA
crônicas sobre
o trecho,
bulinações e
alguns afetos

R O G E R I O A L M E I DA

Santarém/PA. 2024
Copyrigth © 2024 by Rogerio Almeida

Amazônia: crônicas sobre o trecho,


bulinações e alguns afetos
Rogerio Almeida

Obra selecionada no Edital da Lei Paulo Gustavo

Ilustrações de capa e interior do livro


Ricardo Rezende

Revisão
Maria de Nazaré Barreto Trindade

Projeto Gráfico, diagramação e capa


Luciano Silva
www.rl2design.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

A447a Almeida, Rogério Henrique


Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos /
Rogério Almeida. — Santarém: [s. n.], 2024.

180 p. : il. color.


ISBN 978-65-00-91182-4

1. Crônicas brasileiras. 2. Literatura brasileira - Amazônia. 3. Fron-
teiras na literatura. 4. Migração interna na literatura. I. Título.

CDD: 22. ed.: B869.8

Elaborado por Miriam Alves de Oliveira CRB/2 – 583


Dedicado à amiga Rose Bezerra, filha de garim-
peiros de Itaituba, que desde jovem correu o trecho
em busca de dias menos doridos.
Aos manos/as de tempo de república em Mara-
bá: Marcos e Gilberto Leite, Eliana, Deibson, Marle-
ne, Genivaldo e Narelda, as crianças Raíssa e Rebeca,
e a Heloísa Aquino (ex companheira).
Às pessoas que correram e continuar a correr o
trecho sob a lua do meio dia ou o sol da meia noite.
Aos dissabores, amores, tristezas, alegrias, conhe-
cimento e amigos/as que as andanças proporcionaram.
À Thulla Christina Esteves, minha companheira
querida, igualmente, uma trecheira!
Agradecimentos

Ao esmero, rigor e poética da revisora


Maria de Nazaré Barreto Trindade
Ao professor e padre Ricardo Rezende,
pela cessão dos desenhos de capa e do inte-
rior do livro;
Juliano Almeida, pelo texto de prefácio;
Charles Trocate, pelo texto da orelha
Encruzas, trechos –
abre caminhos

É muita história, é muita onda nesse mar de andanças. Leio


o livro com o sabor de ser um companheiro de trecho de Rogé-
rio, ouvindo suas crônicas errantes. Histórias vividas, vistas, escu-
tadas ou rememoradas nos ônibus, rodoviárias, bares e outras pa-
ragens das quebradas das terras e águas da fronteira amazônica.
Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos se
faz de memória, da experiência do autor nos percursos de tra-
balhador pela Amazônia, caminho no qual se vê envolto pelo
enigma do “trecho”. Nesse trajeto, encontra sempre narradores
dispostos a rememorar causos, suas sortes e azares, contando,
assim, ao se dispor ao exercício da escuta, de uma fonte infinita
de prosa, onde tal enigma se elabora.
Pelo mesmo prosear falado nesse universo, o livro refaz
essa viagem, se lançando em especulações, experimentações e
experiências em torno de questões que o conceito evoca. Seu
texto é, assim, todo feito de frases curtas, telegráficas, imagéti-
cas, uma espécie de diário de bordo, no qual histórias, memórias
e impressões vão compondo a natureza múltipla da perspecti-
va de onde ele se insinua, uma vez que o trecho é inseparável
daquilo que ele é. É assim, nessa toada, de busão ou de carro,
sobre estradas como o solo lunar entre Santa Inês e Brejo do
Meio, que vamos viajando.
O trecho nasce no caldo do desmatamento, da flores-
ta que sucumbe em nome do saque, colocando sob ameaça
todos os seus encantados e saberes ancestrais com os quais
ela conflui. Saque permanente: vidas, terra, floresta, minério,
água, energia... Se a ideia de fronteira descreve a morfolo-
gia estrutural dessa forma capitalista da Amazônia, o trecho
nos conduz à experiência de suas dobras, dos mundos criados
nas fissuras da máquina de mover e moer gentes. O trecho
também descreve uma paisagem, figura e fundo que agrupa
natureza e cultura, o tempo histórico e o da geologia. Ele
é desenhado pelas linhas de lugares e superfícies que o li-
vro percorre, como os travessões na Transamazônica ou nos
buracos nas estradas. Gambiarra para fazer a vida encarnar
o possível, o trecho são rastros, movimentos, justaposições,
confluências de histórias que compartilham o chão Amazô-
nico no tempo presente do Antropoceno.
Essa forma etnográfica de se voltar a esse universo, olhan-
do desde dentro, de seus tipos, paisagens visuais e sonoras, das
estradas, bares e da boroca desloca a periferia ao centro e abre
acesso ao coração pulsante de suas tragédias, mazelas e da po-
esia de sua re-existência. Se o trecho produz violência e morte,
ele também é feito de lugares de afeto, territórios de amores,
romances, da beleza fugidia de momentos épicos vividos ou
narrados entre tragos e deslocamentos, como sintetizam os
flashes de ”Ver-o-Peso – rascunhos de uma tarde de sábado”.
Vamos, então, conhecendo, vários personagens e seus
“mundos diaspóricos”, como os heróis do bar da Dona Neusa,
em Ananindeua, a miríade da trupe que preenche as veias do
Ver-o-Peso, em Belém, e Raimundo de Assis, maranhense, o
garimpeiro de terra firme e os sonhos de El Dorado que mo-
vem as gentes pelo trecho, Antonia, maranhense de Bacabal,
Antônio do Açaí, homem negro de Marabá, a bebê Manu via-
jando num ônibus, Arigó, de Santarém, ferido com o esporão
de arraia, a escravização que persiste entranhada Ribamar da
Conceição, nascido em Carolina, e que desde a década de 1970
vive em Marabá, Pezão ou João Batista, ex-castanheiro negro,
Dilma, dona de bar na feira da folha 28 em Marabá, Tita, mu-
lher negra de Cachoeira de Arari, no Marajó, Docinho, e um
amor que nasceu no trecho, Esmeralda, nordestina trabalhan-
do na casa de brancos, Virgínia e seu bar-boutique na orla de
Santarém, Dona Delza, afetos de mãe de nove décadas, mulher
que verga mas não quebra, Socorro, Graça, Roselys, Maria, mu-
lheres nordestinas, mulheres do Maranhão, Seu Benedito, Zé
Escangalhado e Dona Joana, povo de Viração, São Luís, Ange-
lina, filha de juazeiro embrenhada na Amazônia em lutas pela
educação e moradia, Raimundinho, piauiense aquilombado nas
terras de Carajás, Mira, dona de um box e uma das inventoras
das sociabilidades do Veropa, e de quem figuras como Chi-
cão tomavam benção, André, trecheiro que se fez malandro,
doutor em sobrevivência no Ver-o-Peso, Amauri, o dono do
boteco mais underground de Sá Viana, em São Luís, para onde
confluiam pororocas de gente da Ufma nos idos anos 90 para
ouvir-dançar e se embriagar de rocknroll, o começo da farra
de noites sem fim, Seu Zé, dono do bar Carecão em Mara-
bá, ele que um dia bamburrou em Serra Pelada, Pernambuco,
mecânico e biqueiro de toda sorte, ex-viciado. O trecho tem
um feitiço, como um destino traçado de que o caminhante não
pode desviar. “Antigos e novos peões e meninas prosseguem na
encruza no trecho, às vezes, em busca de dias menos doridos.
Um lugar ao sol, nestas paragens, sempre inclemente, untado
por fumaça de queimadas e poeira”. Mas tem Iara, a jovem de
16 anos que adora ler e, quiçá aponta para outros destinos, uma
saída do feitiço, trecho afora.
O livro se move rápido. Está na Transamazônica, está em
Marabá, está em São Luís, daqui a pouco em Belém e Santa-
rém. Estás no Tocantins, estás no Xingu, na baía do Guajará, no
Amazonas, no Tapajós. Pequenas comunidades, Cabelo Seco,
Z-30, Liberdade, Juá, Salvação, Curuá, Taim, Itapecuru Mirim,
Tororomba, Água Rasa. Olhados como trecho, esses pequenos
lugares quase invisíveis são o palco central do grande enredo
Amazônico, como se, se existe uma grande história atravessan-
do aí, é da sola dos sapatos, botas, chinelas e pés descalços dos
homens e mulheres trabalhadores e vagabundos de que ela é
feita. Longas viagens de dias em ônibus. Viagens de trem.
O trecho é, antes de tudo, feito por gentes não brancas. E
nessa diáspora, se muito se devota aos cultos neopentecostais,
por toda a parte estão as marcas das religiosidades africanas
transformadas desde além-mar. Estão na Noite de Iansã na
Casa de Teuci, nos alimentos – vatapás, carurus, iguarias de
macumba, quiabos de Xangô, na presença de Seu Zé e da Pom-
ba Gira. Está na encruzilhada, na encruza, imagem recorrente
que entrecorta o trecho.
“No trecho, possibilidades. Encruza, cruzada. Equilibrista
de circo sem rede de proteção. O trecho é o quintal de desen-
contros. Encontros de estranhos sob o guarda-chuva de infi-
nidades de tempos. O tempo do capital, o tempo do peão, o
tempo da puta, o tempo do funcionário público, o tempo do
homem da roça, o tempo do sem terra e teto, o tempo do an-
cestral, o tempo do malandro, o tempo do pistoleiro, o tempo
do “puliça”. Tic-tac sobre todas as cabeças. O muque é a justiça
no trecho. Rasteira, 38, peixeira. Bucho a sangrar”.
Como ensinaram Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino nas
páginas de Fogo no mato: A ciência encantada das macumbas,
as encruzilhadas e suas esquinas são campos de possibilidade,
lugar onde a gargalhada debocha e reinventa a vida. A encru-
zilhada, como forma do trecho fecundada pela ancestralidade,
é avessa à pureza ou à linearidade, conjuga seus paradoxos, ao
invés de resolvê-los. O trecho é, nesse sentido, um modo sin-
gular de ser no mundo.
Nesse lugar, se tecem balaios e borocas que desafiam a ló-
gica e os sentimentos coloniais, que se organiza de modo biná-
rio e polar, estabelecendo cortes entre o certo e o errado, o bem
e o mal, deus e o diabo... É isso que o trecho desmantela em
suas invenções, que junta culturas e constrói mundos, embora
nem sempre com sucesso.
Não por acaso, dentro dessas referências que evocam a
presença de ancestralidades não-brancas no trecho, o livro é
aberto com um sacrifício de um porco. “O anjo da guarda não
zela pela goela de porcos”, os versos já nos situam nos riscos
e incertezas do trecho. Muitas partidas sem despedidas. Fre-
quentemente, no trecho, é melhor assim.
O livro se divide em três partes: Trechos, Bulinações e
Afetos. A primeira é a parte mais longa da viagem e desdobra
os sentidos caleidoscópicos do trecho. Os tempos de pandemia
percorrem-no, por vezes. O trecho, a um só tempo, se assombra
e segue como se não existisse amanhã. “Como se não existisse
amanhã”, traço que configura uma temporalidade túrgida de
presente. Violência, canções populares, puteiros, pistolagem,
dramas, tramas dos garimpos, peões... Fala da saudade de quem
está distante, jogado ao trecho, como no belo “Léguas e léguas a
nos separar, riomar....”, em que uma São Luís infinita e impreg-
nada de afetos-memórias aparece seduzindo o narrador, que
sofre de saudade.
Na segunda parte, o sexo transborda pelo trecho, em suas
bulinações, quase amores, paixões de carnes se fundindo, tesão
e gozos nas camas e redes de quartinhos rotos mal iluminados,
sudoreses intensivas até o sol raiar sob o calor tropical dessas
inveredas amazônicas. Uma ode ao desejo feminino no trecho.
A última parte lembra que, se o trecho é árido e traiçoei-
ro, por vezes, fazendo chorar mesmo o mais valente, ele tam-
bém faz muita gente querida, dele brotam grandes amizades
e sentimentos. Os afetos dos matriarcados, os amigos idos
pelo tempo implacável, memórias, nostalgias, a estranheza
dos dias de pandemia.
3 partes, 3 poemas que parecem rasgar o chão seco, quen-
te e embrutecido das paisagens pelas quais o livro movimenta
surgem pelas páginas de Amazônia. Se Rogério pergunta se a
poesia é possível no trecho, fico com a impressão de que essa é
a única forma respirável de vida por essas paragens.
A vida, a mesma que se sucede nos pés das árvores de
frutas nos quintais e ruas das cidades que aparecem no último
texto do livro, essas frutas que meninos e pássaros se amarfa-
nham pra comer, a vida que resiste ao largo dos homens, de
seu tempo, é o sopro de teimosia de todas essas tantas gentes
confluindo pelo trecho. Malungo, é assim que se chamam uns
aos outros os parceiros dessa jornada.

Juliano Almeida
Antropólogo e andante do trecho

Janeiro, Rio de Janeiro, 2024


Sumário
Esboço de apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

Parte I - Trecho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
Cabeça de porco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
Trecho, afinal, o que seria? . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
Trecho: tintas ralas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24
Rabiscos sobre o Trecho . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
Entre a PA 150 e nenhum lugar . . . . . . . . . . . . . . 30
Travessões amazônicos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
Rabiscos sobre o trecho – Marabá/PA- São Luís/MA. . . 35
A viagem de Assis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
Ao pôr do sol no Baixo Amazonas. . . . . . . . . . . . . 40
As águas altas do Tapajós . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
Crônica do trecho em tempo decrise e cheia de rios. . . . 45
Entre São Luís e Carajás 20 anos depois. . . . . . . . . . 47
Traços sobre o trecho no natal de 2014 . . . . . . . . . . . 51
Esporão de arraia em pé de arigó. . . . . . . . . . . . . . 56
Feira, chuva, cerveja e dedos de prosa.... . . . . . . . . . . 59
Inusitado cotidiano. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
Lamentos de um cego no trecho. . . . . . . . . . . . . . 61
Marabá – relatos de pessoas nemtão invisíveis assim. . . . 63
Mundo do açaí - esquálidos apontamentos . . . . . . . . . 66
Não chega aos 25. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
Noite de Iansã na Casa de Teuci. . . . . . . . . . . . . . 69
Novo, velho ano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
O bar da Dilma na Feira da 28. . . . . . . . . . . . . . . 73
Léguas e léguas a nos separar, riomar..... . . . . . . . . . . 75
O natal de novembro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
O quintal da senhorinha de Ananindeua. . . . . . . . . . 78
Alenquer. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78
Os “espertos” do trecho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
Os heróis do Bar da D. Neusa . . . . . . . . . . . . . . . 81
Parada de Trecho - Pernambuco, o ex-drogado . . . . . . . 83
Planalto Santareno: notas sobre umavisita à Ipaupixuna. . 84
Pandêmico natal: nada de Roberto Carlosou carnaval. . . 86
Porcas linhas de BR distante. . . . . . . . . . . . . . . . 89
Prosa de Feira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92
Rua do Ouro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
Sobre hidroxicloroquina, malária, Tucuruí e
outras bandidagens. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
Tailândia, um relato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100
Tita, a sapeca de Cachoeira do Arari. . . . . . . . . . . . 102
Uns punhados sobre vida e prosa. . . . . . . . . . . . . . 107
Ver-o-Peso de minhas saudades . . . . . . . . . . . . . . 110
Ver-o-Peso – rascunhos de uma tarde de sábado. . . . . . 114
A encruza Santarém, Altamira e Marabá,para onde?? . . . 116
Esmeralda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
Bar do Parque - entre anões, profissionais do
sexo e aposentados. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122
Cenas de Belém. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
Diário de Bordo – Santarém-Marabá sob o
sol inclemente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126
Iara, a menina que adora ler. . . . . . . . . . . . . . . . . 130

Parte II - Bulinações. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133


Os conselhos que você me deu. . . . . . . . . . . . . . . 133
Maldito professor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134
A menina dança. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136
Brava travessura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
Danação em rede de algodão. . . . . . . . . . . . . . . . 139
Pano pouco. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141
Tapajós - o bar-boutique de Virginia. . . . . . . . . . . . 141
Vento do desassossego . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
DF: entre amores, uvas, cães e elefantes. . . . . . . . . . . 144
A irmã do táxi. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147

Parte III - Afetos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149


Alguém mandou. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
Delza 9.0. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150
Socorro Salcher, presente!. . . . . . . . . . . . . . . . . . 152
Angelina, a filha de Juazeiro nas brenhasda Amazônia. . . 155
Raimundo do Cepasp, o cabra do trecho ou seria fronteira?.159
A Mira partiu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
A triste partida de um malandro. . . . . . . . . . . . . . 164
Sol do meio dia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167
Bar do Amauri – o buteco mais undergrounddo Sá Viana. 168
Naqueles dias. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 172
São João Amofinado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173
Seis da manhã. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 174
Pomares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175

O autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 178
Rogerio Almeida 19

Esboço de
apresentação

Terça-feira. Noite de 07 de fevereiro de 2017. Nacio-


nalmente o dia é dedicado à luta dos povos indígenas. Bar da
Ana, bairro Cabelo Seco, Marabá, sudeste do Pará. Naque-
la encruza os rios Itacaiúnas e Tocantins convergem. Cabelo
Seco é quebrada de negros. Daí advém o nome. A alcunha
tem caráter pejorativo.
Chovia a cântaros. Os encantados pareciam saber da des-
pedida do antropólogo Juliano Almeida, mineiro de nasci-
mento, paraense por adoção. É funcionário da Funai. No dia
seguinte migraria para o Rio de Janeiro para fazer pós-gradu-
ação. Almeida foi linha de frente na defesa dos territórios dos
povos indígenas em fronteira agromineral marcada por cons-
tantes tensões entre os povos e o Estado, grileiros, fazendeiros,
camponesas e mineradoras, em particular com a Vale. Na terra
de Carajás foi rebatizado. Era estimado.
Ana, a anfitriã da despedida e dona do bar é filha de mi-
grantes do Nordeste. Eric Belém, coordenador da Funai é nati-
20 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

vo da cidade, Ayala Ferreira é dirigente do MST. Todos negros.


Estão entre os que se fizeram presente no rito.
O bairro é o principal espaço de manifestação por ocasião
do Dia da Consciência Negra. Em meio a cervas, petiscos, pro-
sas e, ainda, algumas lágrimas, germinou e ideia de compilar
em livro, alguns registros das andanças que eu fazia. Juliano
ponderava o que a gente comentava a partir do olhar antro-
pológico. Violência, canções populares, puteiros, pistolagem,
dramas, tramas dos garimpos, peões eram temas das nossas in-
quietações sobre o trecho. O lugar da incerteza e da esperança.
Ali todos eram migrantes ou filhos de errantes. Não se salvava
nenhum.
É o trecho um ambiente hostil por excelência? É certa a
sua aridez, contudo, mesmo dele, brotam jardins de amizades
e afetos. Se for verdade que é na luta que a gente se encontra,
como invocou o samba da Mangueira de 2019, ali havia con-
vergências.
Na condição de trabalhador precarizado por algum tem-
po, corri Marajó, Baixo Tocantins, Baixo Amazonas, Xingu,
Araguaia-Tocantins, capital e região metropolitana e o Bico do
Papagaio. O trecho é uma espécie de ajuntamento de escritos
por estas errâncias.
Rogerio Almeida 21

Parte I
Trecho

Cabeça de porco

O anjo da guarda não zela pela goela de porcos


Estes a cada domingo fenecem em quentes manhãs
A morte emerge como se espetáculo fosse
Bordoadas na cabeça antecedem a peixeirada fatal na jugular
O sangue esguicha
A plateia vibra
Cães, gatos e aves circundam o ambiente
O corpo jaz sobre a folha da bananeira
Olhos fora da órbita
O caldeirão sobre a lenha aquece a água para o pela
O ventre é rasgado de ponta a ponta
As tripas retiradas
O pelo arrancado por diferentes facas
É pinga! É batuque! É comunhão!
Até o bicho ganhar o asseio final da fervura
22 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

E as partes repartidas entre os convivas


Findo o ritual
Segue a vida
Remova-se a cata da babugem para outra engorda de filhotes
Maracanã, Iguaíba, Ribamar, Pindoba, Rio Anil e Maioba

Trecho, afinal, o que seria?

O dito mundo culto compreende o trecho como um es-


paço entre dois pontos no tempo e no espaço. Triste ortodoxia.
Todavia, no vasto universo amazônico, o trecho é o horizonte
do despossuído. O não-lugar. A vida em movimento. Mutação.
O trecho não é mãe. Nem pai. Soa mais como incerteza. Um
penhasco desconhecido ao peão. Elevado trapézio do circo da
vida, sem rede ou equipe de socorro. Socorro!!! Não entendo
nada. Um rio raso para toda dor que há no mundo. Um rio
fundo. Vastidão de violência em combustão. Fronteira capital
em acumulação primitiva. Armadilha para animal.
O trecho é bruto. Encruza de estranhos. Mundo de des-
confiados, ornado de solidariedade e traição. Vida em farrapos
nos confins do humano conservado em calda de álcool. No tre-
cho, logo cedo, o primeiro carinho é dado pelo beiço da morte
em cama de pensão entupida de pulgas.
O trecho, paixão. Desassossego. Privação. Privado de tudo
resta o peito mudo. Privado de tudo resta a gota de suor a in-
fernizar o olho cego. No trecho, ao que se agarrar senão à es-
perança? Os desencontros constituem a família nas andanças
Rogerio Almeida 23

do trecho. A boroca é a mala que acomoda tudo que a pobreza


permitiu acumular durante toda uma jornada de errância. Pas-
so em falso sobre mar em chamas. Lonjuras de tudo.
Tudo que queria era tirar você deste lugar. Carregar tu
para o Círio em Belém, ou delírios em Macapá. Amor sobre a
mesa de bilhar. Riqueza ligeira em garimpo da Guiana Fran-
cesa, mon amour.
No trecho, a dor não possui cancela, trava ou tramela. Amor
de peão desconhece barreira. No toca fita do carro, uma canção
me faz lembrar você. Acendo mais um cigarro, driblo a rua da
delegacia de polícia, esbarro no puteiro. Barracão de zinco. Bar-
racão prisão. Escravo por dívida não tem salvação. Escorre água.
Escorre sangue em um banquete de ossos. Bem sabe quem fez
a seringa sangrar ou catou ouriço de castanha em Marabá. Tudo
tarda. A sorte escapa. Menino sem calça, bainha sem faca na for-
quinha do somehome ou no cogó da onça em quatro bocas com
fome. Trecho, seria uma masmorra sem cela?
O trecho não é mãe, nem pai. Menos ainda um amor ou
parente distante...um rio raso. Um rio fundo...abismo de rosas
em riomar de tempestades. Anotações realizadas entre Alen-
quer e Santarém. Choro sufocado pela fome em amar. O trecho
é o lugar onde a vida encarna o que é possível. Retalhos de
gentes despedaçadas no caminho. Juntadas no caminho. Sepa-
radas...O trecho devora o humano. Mói, mastiga, judia, maltra-
ta, cospe e descarta. Peixeira cravada em bucho de criança na
Sexta-Feira Santa.
Trecho. Trincheira. Sem terra, sem lar, sem família...er-
rante desposado pelo álcool e drogas em alguidar, onde a rede
24 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

acomoda o corpo sem vida, e o rosto da morte não usa véu. No


trecho, morre-se de trairagem, vingança, desamor, bala e malá-
ria. A cova não é funda em terra medida. Terra que querias ver
dividida.
A educadora Rose Bezerra, peã do trecho desde tenra ida-
de, assim, o espelha: “Trecho é mais sobre o presente. O pas-
sado guardado apenas na memória revivida nos detalhes soltos
do caminho... o futuro é só esperança. Qualquer lugar torna-se
lugar..”
Existirá vida para além da terceira margem do rio? O tre-
cho, afinal.......o que seria? O que seria? O que seria????
*O esboço do texto foi gerado na madrugada do dia 06 de
julho de 2023, em travessia de rio entre Alenquer-Santarém/
PA. Para a presente versão contou com as observações da edu-
cadora e peã do trecho Rose Bezerra.

Trecho: tintas ralas

É possível alguma poesia no trecho? Trecho é como as


pessoas mais simples tratam a fronteira. Como se fosse uma
identidade: “peão do trecho”. Garimpeiros, biscateiros, am-
bulantes, prostitutas, operários de grandes obras, camponeses,
peões de fazendas, pistoleiros... Os que buscam alguma coisa.
Quem sabe felicidade. Os desgarrados do mundo. Uns pensam
em amor, fortuna, sossego, trabalho....
O sudeste do Pará é o trecho em questão. Marabá é a
cidade polo. A Transamazônica a corta. Em algumas partes a
Rogerio Almeida 25

rodovia passa por duplicação. O município com cerca de 300


mil habitantes lembra uma cidade de filme de faroeste. Tudo
soa embrutecido. O rio Tocantins o irriga. Há quem ironize
que poderiam explodir o lugar não fosse o rio. Uma jovem
negra, gordinha, filha de garimpeiro com uma dona de casa,
explica sobre a trilha sonora que impera na região. Ela fez fa-
culdade. Ao contrário dos pais migrantes. A música sertaneja
e de “dor de corno” ou dos cabarés cortam bairros e vilas. “Vou
pedir à lua que ilumine a rua. Saber onde você se esconde”....
não tenho ideia da autoria. Faz sucesso por aqui. Um clássico.
Vamos falar assim.
A moça argumenta que as canções expressam em certa
medida a trajetória do migrante. É gente que não tem nada
em sua maioria. Aí você pode encontrar esperança, amor, as
desventuras da vida, os fracassos e alguns sucessos.....as soli-
dões.....a fronteira é porrada. Às vezes somente com cachaça
para aguentar o tranco, arremata.
As feiras configuram um excelente lugar para sacar essas
coisas. A Feira da 28 fica em um dos núcleos urbanos da cidade
de Marabá. É verão, Tempo de queimada. O sol é escaldante.
As bancas estão repletas de belas melancias. Umas caixas de
madeira com telas protegem a carne de sol das moscas e cães.
O trecho é um mundo de migrantes. Uma festa de nordes-
tinos. Num bar e restaurante da Folha 28, uma senhora manda.
É enérgica. Um peão de fazenda pede a cerveja. Exige uma
música. Ela dispara: não sentou um tijolo. Quer pedir música.
O peão fica quieto. Joga bilhar com o parceiro. Paga adiantado
a ficha do jogo. Não demora e vai embora.
26 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

O bar é simples. Asseado. Alguém chega com o violão.


Tarde de sábado. Um gordo de meia idade afina. Canta tímido.
A roda vai se formando. Cantam fregueses e trabalhadores do
bar. A dona também. Amado Batista, Bartô Galeno, José Rico
e Milionário, Almir Rogério, Fernando Mendes, Adelino Nas-
cimento....e por aí afora.
Uma moça esconde as lágrimas atrás dos óculos escuros.
Tem cabelos tingidos de amarelo. É forte. Mas, lagrima. Pen-
sará em que?

Rabiscos sobre o Trecho

É o trecho a plenitude da instabilidade? Trecho: mobi-


lidade e cativeiro. Escravidão por dívida. Na canção Peão de
Trecho, Zé Geraldo defende que o trecho seja: “ Uma parte
do mundo é nossa morada/A outra parte é nosso quintal”. O
sol não brota em todo quintal. Ao contrário, proliferam cercas.
Farpado arame. Um menino da porteira por bala crucificado.
Negócios. Nelore batizado por pastor neopentescostal.
O trecho é febre. Garimpos, barragens, matas de juquira,
cercas, gado, castigo, estradas. Sol sem fim. Paixões, desilusões,
canções de amor. Malárias cravadas nas paredes das memórias
de puteiros. Abajur lilás. Baton vermelho. Vermelho sangue.
Rupinol, Tetrex, Quinina, Engov. Desventuras, amizade, trai-
ragem, capataz. Aposta. Mesa de bilhar. Peixe grande, peixe
pequeno. Trago de pinga com tira gosto de poeira. Cigarro de
terceira. Traje encharcado de suor. Aridez sem pouso.
Rogerio Almeida 27

No trecho, possibilidades. Encruza, cruzada. Equilibrista


de circo sem rede de proteção. O trecho é o quintal de desen-
contros. Encontros de estranhos sob o guarda-chuva de infi-
nidades de tempos. O tempo do capital, o tempo do peão, o
tempo da puta, o tempo do funcionário público, o tempo do
homem da roça, o tempo do sem terra e teto, o tempo do an-
cestral, o tempo do malandro, o tempo do pistoleiro, o tempo
do “puliça”. Tic-tac sobre todas as cabeças. O muque é a justiça
no trecho. Rasteira, 38, peixeira. Bucho a sangrar.
O trecho, iniquidade. Filho bastardo de violências múl-
tiplas: Estado, capital, oligarquias, empresas transnacionais,
migrações....um fio de novelo sem fim. Labirinto, minotauro.
Salve-se quem puder. Em algumas ocasiões, até solidariedade,
como conta uma filha de garimpeiros: “quando o peão tá nos
braços da morte é comum a cotização para socorrer o moribun-
do. Rola até mandar de avião”.
O trecho tem a musculatura das gentes que saíram ou fo-
ram saídas de suas terras natais. As secas forçaram as andanças
dos parentes do Nordeste. No Maranhão, o maior exportador de
tensões sociais do país, conforme o antropólogo Alfredo Wag-
ner, soma-se ao quadro o avanço da fronteira do grande capital.
Contudo, os manos do Sul, - os campesinos -, igualmente foram
desterrados sob a mesma violência. Revolução verde. Verde san-
gue. Transgênico universo. Acumulação primitiva.
O que é o peão do trecho? À primeira vista, a gente do
trecho é composta, em sua maioria, por homens. Migram
em busca do delírio dourado em bamburrar em algum ga-
rimpo. O fracasso os empurra para os braços da juquira em
28 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

qualquer fazenda para defender um troco. Juquira e grileiro


não são lá de muitos afetos. Não à toa o Pará é mister em
trabalho escravo. O trecho não manda recado. É tiro, porra-
da, morte e impunidade.
A labuta na terra socorre muitos dos peões do trecho.
Filhos e filhas. Trecho, faculdade sem parede. Alegria, desen-
cantamento. As organizações de luta pela terra têm em seus
quadros migrantes. Nas fileiras, muitos tombaram. No caso do
Massacre de Eldorado, dos 19 executados pela PM do Pará em
1996, 11 eram oriundos do Maranhão.
José Dutra da Costa, dirigente da Fetagri executado em
Rondon do Pará, idos de 2000, era filho da terra de Gullar.
Estima-se que pelo menos 40% da população do sul e sudeste
do estado do Pará seja composta por estes errantes das lonjuras
de seus locais de origem.
A dor de cotovelo é a trilha sonora a reinar no trecho.
Filme triste que faz chorar. Nesta seara, poetas e cancioneiros,
muitas das vezes, são filhos do trecho. O garimpo, o amor dis-
tante ou o impossível amor, por conta da ausência de condições
da reprodução econômica e social, a “traição” são elementos
motivadores/transpiradores das canções. Sofrência em elevado
grau de concentração. Atômica bomba. No trecho, quem espe-
ra nunca alcança. Não se ouve conselho.
Rememorar é preciso. Viver não é preciso. Numa das afa-
madas canções, que invoca a lua para saber onde o grande amor
se esconde, o autor (que escapa à memória) dispara à queima
roupa: “eu vou pedir a lua/para iluminar a rua/saber onde você
se esconde/eu vou te procurar. Oh lua, oh lua cor de prata/me
Rogerio Almeida 29

diga por favor/aonde anda aquela ingrata.” Borba de Paula en-


toa a canção. Ainda bem que não é o Gato.
Nas andanças pelo trecho, por entre risos, rios, afagos, tra-
gos, amassos e errâncias, uma arrebatou o meu pobre coração,
Cofrinho de Amor. Uma canção exaltação que relaciona a pes-
soa amada ao sonho da riqueza no garimpo, o versejador assim
alumeia a sua musa, “Você é meu céu/É minha vida/O meu
peso/A minha medida/ Meu cofrinho de amor.” Noutra fra-
se invoca a presença da pessoa querida, “Volta meu bem/Meu
amor/Minha vida/Estou lhe esperando/Volta depressa que o
meu coração está quase parando”. A canção é interpretada por
Elino Julião. Um dos hits dos anos de 1970/1980, quando a
“conquista” da fronteira amazônica se consolida em definiti-
vo. Saque em permanência: vidas, terra, floresta, minério, água,
energia.....oxigênio!
Nestes tempos Bartô Galeno reinava nas emissoras de rá-
dio AM, era o cara em nove de cada dez casas de tolerância.
A balada “No toca fita do meu carro” tomava todos os cantos.
Tal piolho em cabeça de menino. Logo na primeira estrofe, ele
manda o recado sobre a ausência do grande amor, onde, consta,
“No toca fita do meu carro/Uma canção me faz lembrar você/
Acendo mais um cigarro/E procuro lhe esquecer/Do meu lado
está vazio/Você, tanta falta me faz.”
O escrete é de primeira, assim como seus hits, onde cons-
tam Carlos Alexandre (Feiticeira), Marcelo Reis (Placa de
Venda), Evaldo Braga (Sorria, sorria!), Raimundo Soldado
(Não tem jeito que dê jeito), Adelino Nascimento (Secretária
da beira do cais) e Júlio Nascimento (Leidiane).
30 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

A ausência ou as lonjuras da pessoa amada são combustí-


veis para a criação das canções. Os bares desprovidos de gran-
des atrativos, os puteiros em geral, a exemplo da Rua do Es-
corre Água em Tucuruí, o bem afamado puteiro denominado
de Canela Fina, em Marabá, os inúmeros em Santarém, estra-
tegicamente localizados à beira do belo Tapajós, glorificados
durante o boom da extração do ouro na década de 1980 são
alguns elementos da aquarela do trecho.
O trecho é um fio sem fim....muitas das inquietações aqui
buriladas tiveram como palco bares de Marabá e da vida, exem-
plo do Bar da dona Dida, na Feira da 28, Carecão, na Cidade
Nova, no Bar da Ana, no Cabelo Seco....ao lado de manas, ma-
nos e monas de primeira linha...muitos e muitas, filhos e filhas
do trecho, das errâncias...
O trecho, beijo na boca...unzin...aperreio de solitários,
andanças pelo Bico do Papagaio, onde o filho chora e a mãe
nem faz ideia das dores, não sabe, desconhece.... “Minha
vida é andar por este país/Pra ver se um dia descanso fe-
liz.....” No trecho, fumaça...amores, dissabores, sabenças...
gente que vem, gente que vai...Trecho, roçado de ventos, jar-
dim de tempestades...

Entre a PA 150 e nenhum lugar

PA 150. O sol é abrasador. Avizinha-se o natal, esquálido.


As queimadas ardem. O sol soa alaranjado. Tudo parece mais
árido que o habitual. Até o vazio do peito. Coberto por uma
Rogerio Almeida 31

poeira e fuligem da floresta que arde em chamas. Fogo que não


cessa. Crime sem castigo. Seja dia. Seja noite.
O sol, a poeira, a fuligem, o vazio e as histórias tristes
despontam no horizonte. Ferem de morte a esperança. Ar-
dem no olho. Não tem cabra macho que aguente. Tudo é té-
dio. Cercas a proteger grilos, gado e monocultivos de dendê.
Império colonial. “Ah, está terra ainda vai cumprir seu ideal”,
ironiza Chico Buarque.
“Volta que o caminho dessa dor me atravessa”, a passio-
nalidade da canção de Hooker ( Johnny) retumba no oco do
ouvido. O asfalto, o calor inclemente e a cerca integram a banal
paisagem. Uma cabeça de gado aqui. Outra ali. A caçar uma
fresta de sombra sob o linhão de energia.
Os buracos da rodovia fazem acordar a cada solavanco.
O gosto amargo da cerva consumida antes do embarque do-
mina a boca. Vencida pela ausência de outras bocas, bundas,
bucetas e drops.
“Nos bares da Aurora me lamentei” segue a canção parida
em terras de Capiba. A viagem teima madrugada adentro. E já
é outra canção antes da bateria do aparelho do celular deixar de
respirar. “Se você acha que a sua indiferença vai acabar comi-
go...eu sobrevivo..,a solidão será o seu castigo.”
A poética de puteiro não cabe num coração minado. Des-
de “gito” em quebradas de Gullar. Na fronteira entre a Camboa
e a Liberdade, quando Galeno (Bartô) reinava. Mas, poderia
ser Lupicínio, para parecer sofisticado.
Labaredas de queimada afrontam em uma curva fechada.
A vegetação seca estala. Até parece festa se São João. Por um
32 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

instante parece que vai tomar o bus. Não há a quem reclamar.


Nem ao Curupira, Matinta Pereira ou ao Boitatá.
Os primeiros raios do dia dão sinal de vida. Anunciam
a chegada à cidade destino. É lindo ver o rio Tocantins de
cima da ponte. Não existe certeza se vale a pena a viagem.
Todavia, daqui a pouco será uma nova partida, em outra PA,
BR ou riomar.
Os descaminhos transbordam entre as linhas da mão. Mapa
sem destino? O vento é forte. E nada em assanhar a sua cabeleira.
Não haverá chuva neste fim de ano. Nem adianta orar.
Alerta o serviço de meteorologia. Contudo, quem sabe, na volta
para casa você esbarre em algum bolero de Waldick Soriano ou
uma balada de Fernando Mendes.
Crônica classificada em 2º lugar na antologia Amazônia,
selo Off Flip, 2023*.

Travessões amazônicos

Travessão nos rincões amazônicos é muito mais que a has-


te superior da baliza do goleiro. Ele leva ao âmago do coração
de lugar nenhum no meio do nada. No meio de tudo, quando
em tempos remotos predominava uma frondosa e densa flores-
ta. Lonjuras e distâncias onde um intrépido passeante ocasio-
nal duvidaria de que alguém ali morasse.
A denominação de Travessão predomina a sudoeste do
estado do Pará. Noutras paragens, vicinal é o termo adotado.
Uma imagem de satélite sobre a Transamazônica destes beirais
Rogerio Almeida 33

sugere uma espinha de peixe, onde a rodovia seria a coluna


dorsal, e os travessões as espinhas.
Esse conjunto de travessões encarna vetor de povoamento
e de saque da floresta. Legal e ilegal, com ênfase no segun-
do. Projeto de colonização do século passado. O slogan todos
conhecem. O enquadramento do vazio demográfico. Aquela
parada da terra sem homem. Terra que precisa povoar!
Uma parte expressiva da rodovia dos milicos ainda
desconhece o asfalto. Em particular a fração a oeste, entre
Rurópolis e Uruará, onde impera o saque ilegal de madei-
ra, marcado pela presença de uma gambiarra batizada de
Transuruará. Alguns a denominam de atalho para alcançar
Santarém de forma mais ligeira. Vice-versa. A desventura
não paga o risco.
Ali o bicho pega. O coro come. Todo mundo sabe da ile-
galidade. Até os carrapatos dos bois, que aqui e ali, quando
da passagem diurna pela rodovia, mais parecem bolinhas de
algodão em meio ao pasto. Réstias de floresta, cercas, pasto,
estrada de chão, e inúmeras pinguelas sobre igarapés e riachos
imperam entre Santarém e Marabá. Uns 1.200 km, aproxima-
damente. A aventura dura 24h de busão, com direito a restau-
rantes avaliados por cruzes, e não por estrelas. A ordem é fazer
o sinal de cruz e invocar uma proteção.
Esguia, alta e loira, uma jovem grávida, com um menino
acomodado no dorso e puxando mais uns três barrigudin, pede
ao motorista do busão que pare nas proximidades de uma bo-
dega. Ali existe um Travessão. Muitos motoristas já conhecem
os moradores e as referências dadas. Surpreende a capacidade
34 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

em identificar, mesmo no escuro breu em noite de chuva, o


Travessão onde residem.
A moça e a sua prole destoam dos traços, vocabulário usa-
do e sotaque que marcam o povo originário das bandas de cá.
A moça e sua trupe integram um exército de camponeses ex-
propriados do Sul, quando a partir de lá, a tal “revolução verde”
os expulsou para estas latitudes. Expropriados de suas posses
sentaram praça na “estranha” selva.
Na página 18 do Jornal Bandeira 3, editado em 1975 pelo
jornalista Lúcio Flávio Pinto, esclarece que o projeto do gover-
no era assentar às proximidades de Altamira umas 2 mil famí-
lias de camponeses do Sul do país. A meta era incrementar a
produção mecanizada de ciclo curto e perene, com a utilização
de adubo e corretivos químicos. Com a colaboração de coope-
rativa do Vale do Juí o projeto ambicionava comercializar além
da madeira, os produtos da roça. A colonização oficial tinha
denominação de Projeto de Integração e Colonização (PIC).
Tristes trópicos. Muitos tombaram de bala ou malária. A
bala que tomba sem-terra não mata saudade. Travessões. Vici-
nais. Vicissitudes. Violência em Estado bruto e puro à paisana
ou farda, com as benções da vossa excelência Justiça. Justiça
para quem?
Ao contrário da terra de trabalho que almeja, o errante encon-
tra na cova rasa a terra que queria ver dividida. Ah, João, Ah, Ca-
bral....Ah, Josué, nunca via tamanha desgraça...quanto mais sonho
se tem, mais urubu ameaça...
Rogerio Almeida 35

Rabiscos sobre o trecho – Marabá/PA-


São Luís/MA

Minha terra tem palmeira, onde o babaçu abunda na mes-


ma proporção de estrada marcada pela buraqueira. Caso quei-
ras conhecer de perto o “solo lunar”, basta percorrer o território
entre Brejo do Meio e Santa Inês. Ocorre tanto buraco, tanto
buraco, que convive em harmonia um buraco dentro de outro
buraco. Sem a devida delicadeza, lembra a matryoshka.
A buraqueira rivaliza em imundície com a rodoviária de
Santa Inês. Aportamos na cidade por volta das 6h da manhã,
vindos de Marabá, sudeste do Pará. Às proximidades da rodo-
viária, em área de um posto de gasolina, jovens ao som do funk
testemunhavam o amanhecer do dia. Uma viatura da guarda
municipal passa ao largo. Bem ao largo....
As principais vias de Marabá estão bem sinalizadas e lim-
pas. Ao menos as consideradas centrais. O trânsito flui sem
maiores problemas. Ao contrário de Santarém, em certa medi-
da marcada por vias que não facilitam a fluidez, e os motoristas
não economizam em buzinadas. Tocar a buzina jorrasse leite e
mel, Santarém seria Canaã.
Ao contrário da cidade de Santa Inês, em Imperatriz, exis-
te uma nova rodoviária. Maior e mais arejada que a anterior, que
ficava apertada às proximidades do Centro. Foi em Imperatriz,
após correr o mundo, que Manoel da Conceição sentou praça. O
dirigente sindical, educador e ambientalista por esses dias somou
86 anos. É uma referência da luta popular do país. Saravá Mané!!!
Todo respeito, admiração e apreço. Baixinho arretado da porra!
36 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Docinho e eu corremos Marabá-São Luís com a missão


de festejar Mainha. Uma demanda reprimida: Dia das Mães,
aniversário de 90 anos, São João, e o natal antecipado. 14h de
estrada. Felizmente o busão estava vazio.
Santa Inês, tal Marabá, tem a feição da brutalidade. Exce-
lente entreposto para o Véio da Havan erguer seus monstren-
gos espelhados em duvidoso gosto e simbolismo de coloniali-
dade. Santa Inês tributava uma das mais agradáveis maconhas
da terra. Uma liga. Após o trago classificá-la como “é do índio”,
representava certificado de qualidade. Terra de pistolagem.
Desconheço se mantém o serviço como dantes.
Marabá (PA), Imperatriz (MA), Santa Inês (MA), entre
outras cidades, eram respeitáveis e temidas na região por conta
da reputação em possuir escrete de primeira linha da pistolagem.
Fala-se que até escritório existia. Em Santa Inês comemos uma
parte de um pão de queijo mais massudo de todos os tempos
em local até arrumado, todavia, tomado por um som em elevado
volume a executar sofrência. O estilo hegemoniza o trecho.
Tudo soa pacato e sem pressa nestas paragens. No povo-
ado de São Vicente um nelore pasta em um local que lembra
uma praça. No percurso é possível avistar além das palmeiras
de babaçu, buracos e inúmeros tanques de criação de peixe. Uns
parecem bem cuidados, outros abandonados. Os tanques de
peixe constituem elemento novo na composição do ambiente
da região.
10h 30 era a previsão de chegada em São Luís. Apesar de
todos os buracos no trecho de Santa Inês conseguimos chegar
às 11h. Na cidade cercada de água por todos os lados, um mo-
Rogerio Almeida 37

vimento de artistas empreende uma batalha contra a instalação


de símbolo da loja Havan. Nos solidarizamos e formamos filei-
ras neste combate que afronta a cidade Patrimônio Mundial da
Humanidade pela Unesco.
25 de julho. O Sampaio enfrentou o CRB, infelizmente,
saiu vencido em casa, 2X3. Sampaio Corrêa é o time de cora-
ção de Mainha. É a maior torcida de todo o Maranhão. Aten-
de pela alcunha de Bolívia Querida, por conta do colorido do
manto sagrado, verde, amarelo e encarnado.

A viagem de Assis

Raimundo de Assis é negro. Soma uns 60 anos. Mas, a


carapinha ainda não sinaliza a idade física. É dono de riso fácil.
Parece religioso. O conheci no bairro da Terra Firme, em Be-
lém, na noite de sábado, 28 de abril, na porta da igreja Domin-
gos de Gusmão. Fui observar um cortejo cultural que integra
o projeto do Museu Paraense Emílio Goeldi em parceria com
representações da comunidade, chamado Território da Memó-
ria. Assis foi rezar.
A casa religiosa é tutelada pelo Padre Bruno, reconhecido
pela militância junto às crianças e adolescentes em Belém. A
igreja mantém um centro que incentiva o acesso à cultura de
crianças e adolescentes no bairro estigmatizado pela violência
nos programas policiais de rádio e TV, e no caderno do mesmo
gênero dos impressos. No centro da igreja são ofertados cursos
de canto, teatro, violão, construção de instrumentos, entre outros.
38 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Assis é migrante do Maranhão. Migrantes compõem 70%


da população da Terra Firme. Desse total parte significativa é
proveniente do Maranhão. A informação foi repassada durante
uma conversa informal, por uma educadora que participou de
uma pesquisa da Secretaria Municipal de Educação.
O nosso personagem tem corpo esguio. Fruto da herança
genética e do árduo trabalho na roça e garimpos. Saiu de Ba-
cabal, região central do Maranhão ainda moço. Queixa-se que
naquele tempo a atividade na roça era dura, e os dividendos
magros. Resolveu aventurar-se nos garimpos de Rondônia, na
Amazônia, onde grandes corporações erguem mega-hidrelétri-
cas no rio Madeira.
A viagem tem ares de algo épico. A busca por fortuna de
forma mágica num lugar distante, assim como os europeus fi-
zeram em tempos remotos. Na busca do Eldorado, Assis che-
gou a viajar a pé por mais de 15 dias. O maranhense vendeu
“os quase nada” que tinha em Bacabal. Separou de uma moça, a
qual havia jurado amor eterno.
Um amigo iria com ele. Na hora do “pega pra capar”, ele
refugou, conta Assis, que carrega os óculos no bolso da camisa
alinhada. Tenho pressa para saber da história. O garimpeiro
aposentado pede calma, e ri. A chuva que antecipou o cortejou
cultural da Terra Firme nos empurrou para a proteção da porta
da igreja. Ali a prosa se desenrolou. Num trecho da viagem
de Assis surge um par. Seguem juntos. O trecho é a pé. Tudo
muito difícil, conta o aventureiro. “Não havia abrigo. Uma casa
ficava a quilômetros da outra. Tínhamos que pedir socorro para
Rogerio Almeida 39

os moradores, e nem todos gostavam da ideia de abrigar gente


estranha”, rememora Assis.
O garimpeiro lembra que numa casa morava um casal. O
homem, bem desconfiado. Arredio a visitantes. Quando chega-
ram à casa dos moradores o homem tinha ido caçar. A mulher
informa que ele não iria permitir que ficassem. A noite se apro-
xima. O cabra chega a casa com um veado nas costas.
Assis explica a situação. O dono da casa não concorda que
fiquem nem nos arredores do sítio. O candidato a garimpeiro
oferece serviço de tirar o coro do animal. O moço aceita o desa-
fio. Rápido a dupla tira o coro e faz os cortes no bicho. Ganham
uma noite de abrigo. Não havia água.
A fonte ficava um pouco longe. O dono da casa pede que o
visitante acompanhe a mulher até o local. No caminho a moça
estranha que ele tenha deixado o pouso da dupla de viajante. A
dona da casa explica que o homem guarda em uma caixa com
dinheiro e vários relógios. Avalia que é de outros passantes.
Noutro dia a dupla segue o rumo. Assis conta que fez di-
nheiro no rio Madeira num garimpo de cassiterita. “Não tinha
de comprar nada. Cheguei. Fiz roçado e comecei a tarefa. Dei
sorte e consegui perto de duas toneladas. Enchi um saco de 60
quilos com cruzeiro” narra o viajante.
O ex-agricultor recorda que ficou mais de ano sem fazer
nada. Apenas gozando a fortuna da sorte em sua terra natal. A
torrar os cruzeiros em farras e bem fazeres a antigos amigos.
Conta ele que comprava os produtos dos agricultores e os dis-
tribuía na cidade. O afortunado lembra as aventuras amorosas
40 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

com as estrangeiras na fronteira da Venezuela e Bolívia, e das


dificuldades com a língua dos vizinhos. Ele recorda das farras em
Santarém e Manaus, nos momentos da viagem de volta a Belém.
Depois do garimpo com cassiterita aventurou-se com o
ouro. No caso do ouro ele virou mergulhador. Como mergulha-
dor no rio Madeira quase foi a óbito num acidente. Ele conta
que nesse tempo tinha mulher em Belém. Um primo o so-
correu. Recebeu os primeiros cuidados. Teve uma espécie de
apagão após o mergulho. Ficou desacordado.
Quando deu conta estava em Belém. Parte do dinheiro
subtraído por um primo em Rondônia, que segundo ele, apos-
tava na morte do parente. O mergulho quase fatal o obrigou a
aposentar. Hoje lamenta ter gasto os recursos do garimpo em
farras. A chuva cessa. Muitos jovens estão na igreja. Assis aden-
tra. Eu sigo em busca do local do cortejo. A despedida ocorre
respeitosamente. Como se fôssemos antigos companheiros de
viagem. Uns malungos.
A viagem de Assis contraria a trilha de Francisco, o Santo.

Ao pôr do sol no Baixo Amazonas

Fim de tarde. Tempo de sol. Calor inclemente. O rio re-


siste em não recuar. O céu lembra delírios de Van Gogh. Uma
explosão de cores. Tons sobre tons. Uma garça aqui. Outra ali.
Urubu abunda por todos os flancos. O urubu é o cão vira lata
da cidade. Em todo canto assalta lixos e lixeiras.
Rogerio Almeida 41

O Legislativo local deveria conceder ao bicho alguma


honraria ou comenda, tão onipresente ele é na urbe. Santarém,
cidade carniça. Cidade esgoto. É a pior em saneamento básico
do país. Santarém- te quero bem!
Beira de riomar. Dias estivais. Braçais fazem grana. Brisa
para pés inchados. Vez em quando um pato selvagem faz a co-
lheita nos rios. E mesmo botos dão o ar da graça. Nesta época
do ano morcegos brincam em vertiginosos rasantes sobre os
rios Tapajós e Amazonas, tão bem versejados na obra de Bene-
dicto Monteiro. Morcego topgun.
À primeira vista os morcegos soam andorinhas. Ledo en-
gano. Morcegos vampirizam orçamento público. Nada de en-
gano. Barra de ouro. Orações sem educação. Frações de clas-
se. Frações de gente de quinta. Pátria. Patrimonialismo. Lima
Barreto cravou logo cedo. Os Bruzundangas que o diga. Tá
uma barra a vida por aqui. Arriscoso. Belicoso.
A orla é a joia da cidade. Fluxos e refluxos de circuitos
equidistantes concorrem. Balsas de sojas. Barcos com gentes
de todos os cantos. Em todo canto aqui tem gente. Indígena
região. A pilhagem insiste. Aos nativos, resta r-existir. Faz mais
de 500 anos que os povos indígenas o fazem. Cabanagem. Eles
indicam a contramão da destruição.
A orla é magnética. Famílias afrontam a cidadela com as
suas cadeiras de praia. Cadeiras de beira de rio. Cadeiras le-
ves. Alguns carregam tralhas de pesca. Bebidas, comidas e cães.
Faça chuva ou faça sol, há sempre alguém a pescar. Uns por
esporte. Outros por necessidade de proteína. A fome tomou
42 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

a cidade. A fome tomou o país. Milícias. Digitais em mortes.


Planalto Central. Lavanderia imobiliária.
Uma frondosa palafita abriga espaço para o vasto e di-
versificado artesanato. Parada para gente de além riomar. Pa-
lafita é tecnologia da arquitetura local. Sabença ancestral em
selecionar a madeira mais apropriada e durável. Um luxo na
encruza. É milenar o saber. Tão significativo quanto o asiáti-
co. Parada de beira de rio. Civilização da várzea. Vanguarda.
Santarém, buracos a consomem tal um câncer. Santarém, co-
roa, te quero bem.
À frente da palafita, que também é restaurante, uma tela
de led jorra anúncios sobre transeuntes. Estranhos tempos sel-
vagens. A fauna da orla não é exótica. Exceto as pessoas de-
dicadas ao culto ao corpo. Raro ver alguém armado com um
livro na mão. Ambulantes defendem um troco com negócios da
China. Venda de brinquedos e diferentes balões. Badulaques.
Dia desses ainda pego um para Docinho. Um desses cheios de
luzinhas. Como se fossem vagalumes em cela.
Um imigrante negro vende raspa-raspa. Uma mistura de
suco com gelo. Os herdeiros de Woodstock também estão por
ali. Principais alvos dos “puliça”. Selvagem mundo. Estranho
mundo. Se o meu nome não fosse Rogerio, seria Raimundo.
Moribundo. Mulambo de gente.
Labirintos. Becos, furos, igapós e vicinais. Encantada flo-
resta. Reentrâncias em mim. Léguas e léguas. Mata, água, rio e
medo. Perdido. Aqui, ali e acolá. Desprovido de óculos e lam-
parina. Visagem. Mote de estórias de cantoria de cego em festa
de cangaceiro.
Rogerio Almeida 43

As águas altas do Tapajós

As águas do Tapajós tomaram o asfalto. Havia tempo não


subiam tanto. Desde 2009. Tudo anda muito estranho no plane-
ta. Sempre que as águas sobem neste patamar implica em aper-
reio para comerciantes que operam na orla na cidade. Sempre
que as águas sobem é aperreio para os menos abastados.
Onde é possível, marombas (pontes improvisadas) socor-
rem em alguns trechos. Fato que não ocorre nas quebradas, a
exemplo de logradouros como Juá e o Salvação (Minha Casa,
Minha Vida), entre outros.
Na quebrada, desprovida de asfalto e do serviço do sanea-
mento, tudo vira um rio de lama. No Salvação, o exótico reside
da casa obedecer ao padrão do Sul do país. Numa cidade em
que a média de temperatura é de 30º, o morador foi agraciado
com aquecedor. Daqueles que fica no telhado. Seria o padrão
universalizante um projeto de extermínio?
Águas altas. As embarcações de madeira ficam rente ao
asfalto. São elas que carregam o povo de várias comunidades
da cidade, a exemplo de Arapiuns, Boim, Lago Grande; e
de outros municípios, como Juruti, Monte Alegre, Manaus,
Macapá, Oriximiná, Óbidos...o povo viaja em rede. Longas
horas.
As embarcações de madeira é que socorrem as comunida-
des locais. Num fluxo trazem as pessoas e as suas produções;
noutro, levam gêneros necessários ao cotidiano dos morado-
res ribeirinhos. Não raro, apesar do risco, carregam botijões de
gás. Apesar do elevado preço. Carregam ainda produtos que
44 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

alimentam os comércios das localidades ribeirinhas. E, ainda


eletrônicos, cachaça, cervejas e refrigerantes.
Na intenção de minimizar a tensão das águas sobre o
asfalto e o comércio, as autoridades implantam bombas para
devolver as águas ao rio. Uma estranha engenharia. Inúmeras
bombas passam a integrar o desenho na orla da cidade. O ruído
do motor, diuturnamente, ecoa no horizonte, onde sempre há
alguém a pescar.
Nesta época do ano, comentam os antigos, o normal seria
ás aguas já terem recuado. O padrão seria não ocorrer tanta
chuva. Todavia, como tem chovido esses dias. Nas águas altas
os antigos recomendam passeio na Floresta Encantada, bandas
de Alter. Réu confesso, anuncio, ainda não o fiz. Alter do Chão
é obra colonial. Parada de Pombal, o marquês. Na moral, trata-
-se de território do povo Borari.
As águas altas fazem as letras que nomeiam as embarca-
ções flutuarem. Como se um balé fosse. Alaranjado horizonte,
rosa, multicor de fim de tarde remete a uma explosão de luz. A
fumaça dos churrasquinhos inebria os locais de embarque.
Tudo anda muito estranho ultimamente. Estruturas de me-
tal afrontam o rio. O afã da administração pública reside em
organizar o espaço da orla a partir do tamanho das embarcações,
onde conforme o tamanho de cada uma é estipulado um local, e
a respectiva taxa a ser paga à prefeitura. O que não existia antes.
Sejam as águas baixas ou altas, sempre que ocorre a lua
cheia, o rio fica uma beleza. E, sempre que a lua alumeia o rio,
é o melhor momento para pescar, o cultivar a terra, o universo
de encantados a zelar tudo ao redor. É sabença.
Rogerio Almeida 45

As águas altas do rio enchem o meu peito de melancolia.


Lavam, levam o teu retrato.
Enquanto o punhal da luz do sol vaza os zoio.

Crônica do trecho em tempo de


crise e cheia de rios

Antônia beira a casa dos 60 invernos. Padece de hérnia


de disco. Tem um joelho bichado. É uma senhora de estatura
mediana. Boleada, com se diz por aqui. Maranhense de Ba-
cabal, lá no meiâo do estado. Bacabal é uma cidade marcada
pela pecuária.
No Pará, a senhora aportou no garimpo de Água Bran-
ca, no município de Itaituba, no oeste do Pará na década
de 1980. No auge da mineração. Não tardou, correu para
Alenquer, até alcançar Curuá. Todas são cidades irrigadas
pelo caudaloso Amazonas.
Antônia é mãe de cinco filhos, sendo duas mulheres e três
homens. Somente um dos rapazes mora com ela. Anda meio
avoada da cabeça depois de uma temporada na capital do Ama-
zonas, onde moram as meninas. O tratamento é realizado com
o guia espiritual. A proximidade com Manaus colabora com o
processo migratório. A viagem de barco dura uns três dias.
Pela rodovia, Antônia viajou quase dois dias. Cortou o
estado de oeste ao sudeste para encontrar outra parcela da fa-
mília, que mora no município de Parauapebas, marcado pela ri-
queza mineral, que contrasta com os indicadores sociais. Foram
46 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

umas cinco horas de barco, e perto de dia e meio na BR 163, na


Transamazônica [BR 230], e a PA 150.
É tempo de chuva. No percurso é comum peões a fazerem
gambiaras em pinguelas (pontes de madeira). E como tem pin-
guela no trecho. Bem como caminhões quebrados. No períme-
tro do município de Placas, no oeste, e em Novo Repartimento,
no sudeste o número era expressivo.
Amazônia. Terra de migrante. Terra de peão de trecho. Em
Uruará, no oeste no Pará, uma escola faz referência ao fenômeno:
Escola do Migrante. A cidade é conhecida pelo tráfico ilegal de
madeira. Uma rodovia foi erguida para a missão, a Transuruará.
Por aqui, até os carapanãs contam as histórias de crimes.
A circulação de ônibus ainda não foi suspensa no estado.
Por conta da crise do Covid 19, as empresas estão fazendo des-
contos de até 30%. Com receio do fechamento das rodoviárias,
o número de pessoas era expressivo no ônibus que fez o trecho
Santarém-Marabá. 1.200km. Estima-se que somente uns 400
km com asfalto. Antônia faz a viagem para o enterro do pai.
Enfermo há mais de três anos. Ela conta que ele era bravo. Be-
liscava e chutava o cuidador quando da hora do banho.
Tempo de chuva. Tempo de águas grandes. Vidas líquidas.
Na cidade de Marabá o rio Tocantins desabriga moradores em
vários bairros. Mesmo os idosos do asilo São Vicente foram
para abrigos precários montados com compensados. Bairros da
Liberdade, Carajás e São Félix estão entre os impactados pelas
águas do Tocantins. No abrigo montado na área da Colônia de
Pescadores, Z-30, na frente do Núcleo Cidade Velha, na frente
da cidade, as águas expulsaram os desabrigados pela segunda vez.
Rogerio Almeida 47

Entre São Luís e Carajás 20 anos depois

Peguei o trem em Parauapebas para São Luís do Maranhão.


E o trem danou-se naquelas brenhas a ranger os trilhos, vencer
misérias, solidões e distâncias. A queimar diesel por mais de 14
horas, a cortar áreas indígenas, quilombolas e territórios campo-
neses, a desagregar laços de amizade, solidariedade e familiares.
Vez em quando a trucidar gentes e animais. E o trem danou-se....
Não havia ar condicionado na classe econômica do trem
da Vale quando pela vez primeira corri o trecho. O magote de
tempo tem perto de duas décadas. A ferrovia já somava pou-
co mais de 10 anos. Tempos idos. Dias em que a professora
Maria Celia Coelho organizou o livro sobre a primeira década
da Estrada de Ferro de Carajás (EFC), pelo Núcleo de Altos
Estudos Amazônicas da UFPA.
A neófita geógrafa Elis Miranda assinava um relato sobre
a viagem do trem entre Parauapebas, no sudeste do Pará, até o
porto do Itaqui em São Luís, no Maranhão. Perto de 1000 km
separam uma das principais províncias minerais do mundo da
capital ludovicense.
Naqueles dias a classe econômica do trem era uma versão
atualizada da senzala. O calor causticante fazia crianças e ido-
sos passarem mal. O odor de vômitos e diarreias enchiam os
vagões. Uma sofrência só. O povo do trecho cheio de esperança
carregava o bucho vazio. O povo levava todos os penduricalhos
que a pobreza permitia arrastar.
Os párias cheiravam a suor forte e cigarros vulgares. Em
trajes rotos aguardavam a liberação do portão em busca de um
48 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

lugar para sentar no vagão. A pobreza não tem cadeira nume-


rada no maior trem do mundo.
Meio mundo de gente a buscar dias menos doridos. Um
turbilhão de humilhação. Entre um vagão e outro era permi-
tido fumar. Havia um vão que concedia a entrada do vento.
Mesmo vão que gente a padecer de mal de amor se jogava para
fora do veículo.
Naquele tempo, homens, mulheres e crianças a cada pa-
rada das 14 estações em que o trem corta, afrontavam as ci-
dadelas das janelas dos vagões da classe econômica. Vendiam
de tudo: água, carne de caça, peixe frito, milho assado, maçãs,
biscoitos, etc.
Naqueles dias era vetado ao cliente da classe econômica
percorrer para fora do seu quadrado. Ao passageiro da classe
executiva tudo era permitido. A locução do veículo anuncia a
próxima estação: Nova Vida. Serão cinco minutos para embar-
que e desembarque. Fosse naquele tempo, eu procuraria um
milho assado.
As mãos calejadas da roça e outras tarefas deixavam as
garrafas pet sujas por fora. Uma mistura de poeira com o de-
gelo dos frascos. O tempo do trem é pouco. Os que arriscavam
passar sob o vagão, vez em quando não obtinham êxito. A car-
reira do trem de passageiro é desaperreada. E, sempre que o
trem de carga cruza o trecho, ele se acanha e para. É a lei do
mercado. Força de contrato. O trem de passageiro é só uma
compensação ao saque.
Naquele tempo, os anos 90 emitiam os derradeiros suspi-
ros. Por conta do Massacre de Eldorado, prestes a contabilizar
Rogerio Almeida 49

22 anos de impunidade, o Estado reconheceu em grande es-


cala várias áreas ocupadas por sem-terra de diferentes filiações
como projetos de assentamento da reforma agrária. Em parti-
cular, na Amazônia. Ênfase nas terras do massacre.
Naqueles dias idos a onda privatista entregou a Vale de mão
beijada. Tanto tempo depois, a lama da Vale sufocou Mariana
nas Minas Gerais. Feriu de morte o Rio Doce e toda vizinhança.
O rio não tá para peixe, que o diga o povo de Barcarena.
O tempo do trem é pouco. Na estação de Presa de Porco o
cronômetro impõe três minutos para embarque e desembarque.
O tempo do trem de passageiro é pouco. Durante a semana,
três dias são dedicados para ir ou voltar de Parauapebas a São
Luís, e vice-versa. É reggae, bumba meu boi, rumba e brega.
Vizinhanças, arraiais, puteiros e corruptelas.
Todos os dias, por inúmeras vezes, o trem de carga não
cessa. É o maior do mundo. Mais de 300 vagões. Umas três
locomotivas a fazer a máquina correr. A fazer a máquina rodar.
Riqueza a sangrar por mais de 30 anos. Quem vai colocar os
pontos nos IS? Quem vai colocar tudo na ponta do lápis, a Lei
Kandir em xeque?
Corre o dia. Metade da viagem. Mais de meio dia. Açai-
lândia/MA escapa ao alcance dos olhos. Corre o tempo. O
monocultivo de eucalipto impregna a paisagem. Açailândia
era uma perna do polo de gusa do Projeto Grande Carajás.
Marabá/PA a outra. A decadência nubla o polo desde os anos
iniciais da década de 2000. Passados perto de 20 anos. Tudo
mudado. Menos de 60 minutos separam Nova Vida de Presa
de Porco. Corre o trem.
50 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

É tempo de chuva. Os dormentes antes de madeira dão lu-


gar a dormentes de cimento. Enquanto o minério de ferro consi-
derado de melhor teor do planeta, na Serra Norte, em Parauape-
bas míngua, a Serra Sul (S11D), em Canaã dos Carajás pulsa.
A EFC está em fase de duplicação por conta do atual/ velho
cenário de saque. É ouro! É ferro! É níquel! É cobre! É minério
de tudo que é jeito. É o fim do caminho? Quem cobrará pelo
sangue derramado dos ancestrais? É desmatamento! É execução!
É massacre! É trabalho escravo a dar de pau! Aos contrários é
processo na vara cível e criminal! O caminho tem fim?
Quase 20 anos depois o trem de passageiro melhorou.
Tanto a classe considerada executiva, como a catalogada como
econômica contam com ar condicionado. Não existe mais vão
entre um vagão e outro. Existe um vagão dedicado a refeição e
o de lanchonete, que também atende com refeição. No trem de
passageiro não há vagão para indignação.
Os dias atuais continuam a desorganizar os territórios an-
cestrais. Agora o epicentro é Canaã. Em São Luís, a comu-
nidade do Taim tem sofrido pressões a ceder suas terras aos
interesses do grande capital. Em Itapecuru Mirim, ainda no
Maranhão, são os quilombolas os afrontados. Entre Canaã a
São Luís onde existe leite e mel a jorrar? E o trem danou-se
naquelas brenhas.....
Rogerio Almeida 51

Traços sobre o trecho no natal de 2014

Diário de Bordo 22 e 23 de dezembro - Marabá, São Luís

Partida

Eu vou voltar pro interior. Vou me casar com Terezinha. Vou


trabalhar de encanador. Ou lavrador.

Manhã de 22 de dezembro. Marabá. Sudeste paraense.


Amazônia. Tempo de chuva. Vésperas do nascimento de Jesus
Cristo, dizem, o filho de Deus. Busão lotado. Criança saindo
pelo ladrão. Gritos. Gente entulhada de bagulho. Despedidas
na plataforma. Lágrimas. Vestes exalam odor de outras estra-
das. Poeira de outros rincões. Famílias de muitas paragens: Piauí,
Ceará....Maranhão. Gente indo ao encontro dos seus celebrar a
quadra natalina. Talvez eu chegue amanhã em São Luís. Busão
lotado. Muitos sotaques. Batalhão de histórias. Nenhuma nação.

KM 06 –

O ocaso da minha vida o dado não abolirá

Tempo nublado. Penduricalhos toscos enfeitam a rodoviá-


ria do km 06 em Marabá. A canção sertaneja enche o ambiente
farto de gente em trânsito. É daqui que as pessoas alcançam a
estação de trem da Vale. Crianças vendem água, maçã, casta-
nha, bolos... Daqui até Santa Inês são 11 horas de sacode.
52 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Destino –

“Minha vida é andar por este país. Pra ver se um dia descanso
feliz...”

Recife é o destino do busão da Guanabara. Rock e serta-


nejo é a trilha sonora. Vez em quando ecoa um louvor. Historias
de vida e de morte quebram a monotonia da viagem. Crianças
dormem. A canção de Pablo parece um encosto: Saudade meu
bebê... Em Marabá ela foi por uns 10 dias a alvorada. Na madru-
gada o apito do trem da Vale sufoca o latido dos cães. O barulho
dos grilos. A sinfonia dos sapos. O cio dos felinos. Menos o saque.

Araguaia-Tocantins

E voltar pra casa todo fim de ano... cantando um bolero de Wal-


dick Soriano.

Duas pontes ajudam a superar os rios Araguaia e Tocan-


tins na região do Bico do Papagaio, no trajeto de Marabá a
Imperatriz. Antes eram as balsas que acudiam a travessia. O
barato era consumir peixe frito nos entrepostos no intervalo
de tempo de espera das embarcações. Tudo improvisado. Latas
de tintas forradas com barro serviam de fogareiro. Farinha de
puba e pimenta compunham o luxuoso acompanhamento. Ali
nasceu o merchandising. Os empreendedores da beira do rio
não ocultavam a marca Suvinil.
Rogerio Almeida 53

Saque no trecho

“Lua. Oh lua cor de prata. Me diga por favor, aonde anda


aquela ingrata...”

Extrativismo mineral e de energia, pecuária, monocultu-


ras de grãos e do exótico eucalipto dominam a paisagem entre
Açailândia a Santa Inês, no estado do Maranhão. A estrada é
sinuosa. É serra. No meio de tudo a agricultura familiar ainda
respira em paragens como Bom Jesus, Nova Vida e Buriticupu.
Terra de Luiz Vila Nova. Terra de lutador. Terra de lavrador,
onde aquele que mata também pode morrer.
A ferrovia de Carajás corre em paralelo. Encontra-se
em fase de duplicação. No século passado, quando corri o
trecho pela primeira vez, a estrada era de poeira. O comér-
cio era incipiente. A pistolagem ativa, assim como a disputa
por madeira. Numa unidade de conservação havia onça. É
tempo de corte do eucalipto. Pilhas de troncos da madeira
ornam o trecho.

Antônio do açaí

“Garçom. Aqui nesta mesa de bar, eu hoje vou me embriagar...”

Antônio tem pouco mais de 50. O chapéu de couro ocul-


ta a carapinha grisalha. O comerciante de açaí em Marabá é
um negro encorpado na labuta do roçado. Ele é pai de seis
filhos. Duas mulheres e quatro homens. Um formado, dois na
54 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

faculdade e os demais fechando o curso médio. É o orgulho do


negociante que apenas sabe desenhar o nome.
Após 25 anos de casório caiu na catrevagem. A “compa”
era brava. Riscava o corpo do cabra com peixeira. Ameaçava
furar o bucho. Após o ocaso do primeiro enlace engatou cinco
ajuntamentos. O derradeiro durou sete anos. Faz dois meses
que a amada pegou o beco. Ele sofre. Declara amor.
Ele viaja com uma filha e dois netos rumo a Campo
Maior, no Piauí, cidade conhecida pela apicultura. Foi uma
das filhas que encontrou a parentela no facebook. Troca de
fotos e contatos telefônicos precedeu o reencontro com a fa-
mília depois de 27 anos de apartamento. Antônio fala sem
parar. Pode ser ansiedade.

Santa Inês

“Se eu te amo e tu me amas. Um amor a dois profana”.

Caldo de ovos é o prato principal no menu da rodoviária


de Santa Inês, interior do Maranhão. Rivaliza em importância
com a panelada, iguaria festejada no sul e sudeste paraense. A
cidade é um entroncamento. O ar é árido. Rude. Típica cidade
parida no muque da fronteira. A moça negra de cabelos verme-
lhos amamenta a cria. A avó cochila e prende o outro rebento.
A casa tá cheia. Bancas de produtos genéricos competem com
o escasso espaço. Vende-se de tudo. Bichinhos de pelúcia, brin-
quedos de plástico, relógios. Tudo colorido. Entre os viajantes,
um baiano cata latas em silêncio.
Rogerio Almeida 55

Criança a bordo

“Nós gatos já nascemos pobres....porém já nascemos livres”.

Manu é pixixita. Cabelo enfeitado com Maria Chiquinha.


Uma de cada lado. Fruto do amor de um caminhoneiro cearen-
se com uma maranhense com feição indígena. Mulher de anca
grande e formas renascentistas. A bebê tem nariz de bola. Sob
ele um riso fácil. Acena. Faz graça. Não chorou única vez no
percurso de 12 horas entre Marabá a Santa Inês. Viaja com os
pais e uma irmã mais velha. As netas de Antônio brincam com
ela. Crianças enchiam o busão.

São Luís

“Pra que chorar se o importante da vida é sorrir...”

São Luís. Clima ameno. Vento forte. A especulação imo-


biliária sufocou dunas e mangues. A bosta tomou conta do mar.
A maioria das praias é imprópria para banho. Na Litorânea
abastados desfilam grife. Um maluco puxa sono sobre redes de
dormir. No Atlântico navios em fila aguardam o instante do
carregamento do saque do minério dos Carajás.

••••••••

Laranja é a cor do uniforme do gari. Os que operam nas


praias de São Luís lembram ninja, só que em tom feliz. Usam
56 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

além de botas, calças, blusa de manga longa, chapéu, óculos e


um pano que protege boca e nariz da areia da praia carregada
pela força do vento.

Na areia da praia desenhei seu nome como um enfeite a Ieman-


já. Mimo que a maré alta num piscar de olhos engoliria.

Esporão de arraia em pé de arigó

Faz dois meses que Arigó luta com uma ferida no pé es-
querdo, na altura do tornozelo. Esporão de arraia o feriu ao
afrontar o rio Tapajós. Em tempo de seca do rio o cuidado
urge. É comum as arraias nas beiras. Os antigos ensinam que
é necessário zelo no caminhar, e, é aconselhado arrastar os pés
nos beirais dos rios. Desta forma, ao se deparar com o animal,
ele segue em fuga e não ataca o estranho visitante de sua mo-
rada. A tática reside em não pisar o bicho.
A dor é insuportável, contam os agraciados com o esporão.
Falam que dura mais de 24h. Arigó lembra que um colega faz
um mês que não consegue se locomover. Pelo fato de o amigo
não poder se deslocar, o cabra sente-se feliz em poder andar,
mas, tá aperreado com a demora na cura da ferida.
O machucado resulta de uma pescaria em praia de Bel-
terra, no Baixo Amazonas. O negro atarracado, de uns sessenta
verões é uma espécie de “faz-tudo” de um prédio recém-ergui-
do nas proximidades do Mercadão 2000, em Santarém. Arigó
acompanhou um estranho em praia de Belterra, quebrada que
Rogerio Almeida 57

ele, apesar de nativo, filho de um cearense com uma caboca do


Pará, desconhecia.
Em Belterra, lá no comecinho do século passado, o multi-
milionário Ford intentou o monocultivo de seringueira. Neste
período abundava a migração de nordestinos para a Amazônia.
Processo animado pelo governo Vargas. Ainda hoje é possível
notar resquícios do monocultivo e do maquinário da época. E
muita gente a lembrar a história.
Prosa para muitas garrafas de café. No prédio do patrão,
Arigó faz tudo. Mostra os apartamentos vazios a pretensos fu-
turos inquilinos. São quatro andares. Tudo sem elevador. O ho-
mem zela pela limpeza, carrega pacotes e malas de moradores/as.
No dia em que fomos conhecer um apartamento de vista
para o rio, uma senhora parecia se deslocar em férias rumo às
praias da região. A senhora branca, portadora de vitiligo, tra-
java bermuda, chapéu para se proteger de um sol inclemente
e óculos escuros. O negro a ajudou na empreita em descer as
malas e sacolas até o portão. No calor do momento não havia
reparado para a distinção de classe. Ao papel em condição de
subalternização do senhor.
Somente depois, ao retomar a leitura do premiado livro
Torto Arado, do geógrafo baiano Itamar Vieira Junior, bem
como às lembranças de obras de Dalcídio Jurandir, a situação
clareou. Soma-se ao quadro, o episódio ocorrido em Minas Ge-
rais, aquele em que um professor manteve por longos anos uma
senhora negra em condição análoga à escravidão. Recordei ainda
casos de trabalho escravidão na cadeia da produção do açaí no
Marajó e em fazendas e carvoarias do sul e sudeste do Pará.
58 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Não sei exatamente ser esse o caso de Arigó. Ele porta


boné, chinelos, camisa e bermudas simples. Tudo desprovido
de grife. Tudo adquirido ali mesmo pelos arredores do Merca-
dão. Tem a fala mansa e pausada. Faz as coisas sem a agonia das
horas dos grandes centros. Tem a pressa do balanço das redes
ribeirinhas, do navegar de antigas embarcações da região.
Arigó é uma denominação pejorativa dada aos migran-
tes nordestinos por estas paragens, em particular o cearense.
O termo invoca pouca sabença, leseira, matutice, bocó, etc. Ao
contrário do termo desqualificador, na orla da cidade, eles he-
gemonizam o comercio de varejo. Aquele que vende de tudo:
tralha de pesca, panos, roupas, redes, eletrônicos importados da
China. E, alguns, militam ainda na agiotagem. A prática por
aqui mata. Mata quem deve, e também o “emprestador”. Por
estas paragens morre o bravo, morre o manso.
Na cidade os arigós são respeitados pelo apego ao trabalho.
Sempre abrem os comércios independentes de feriados pátrios
ou religiosos. Mesmo agora, quando do nascimento do filho
do Deus, ou do primeiro dia do ano. Assim como o restante da
cidade, a orla passa por profundas modificações. A cidade se
verticaliza a olhos vistos. A especulação imobiliária desfila com
a desenvoltura de um rinoceronte.
E, em terra de arraias, botos e cuias, até delegado grila e es-
pecula, favorece garimpo, e prende quem da floresta intenta cuidar.

Ao largo do rio, o barco segue....Amazonas....Tapajós...


Arapiuns....
Rogerio Almeida 59

Feira, chuva, cerveja e dedos de prosa....

É tempo de chuva. Ontem à tarde teve uma linda. Tudo


cinza na baía do Guajará. Os barcos protegidos com lona azul
para não molhar os viajantes que seguiam rumo à Barcarena,
Ilha das Onças e tantos outros lugares. O município abriga as
maiores fábricas de alumínio do Brasil.
Ver o Peso. O vento era forte. A água da chuva cobria todo
o mercado. Tempo de muitas frutas. Um colorido entusiasman-
te: tinha cupuaçu, bacuri, pupunha, banana, mangustão, uxi,
graviola, cupuaçu, taperebá, mamão, melancia e maracujá.
Sexta de carnaval. Uma bandinha fazia a animação das
bancas que vendem cerveja. Dois reais e o pedido é atendido. O
chato era ouvir partes dos hinos de clubes de futebol. Um casal
beijava-se apaixonado. Os velhos aumentavam feitos pretéritos.
Ou simplesmente inventavam?
Um dizia-se militar dos tempos da ditadura, e agente na
área de segurança nacional no sudeste do estado. O discurso
animado por várias cervejas transbordava para a delação de
nomes conhecidos da sociedade local. “Prestei serviço para as
famílias, mas não matei ninguém....”O militar da reserva não
cessava de falar. Conta que recebia “por fora” para prestar servi-
ço privado para os ricos da região.
Relembra dos cabarés antigos, dos tempos de garimpo e
da pistolagem.....diz ter morado na região entre 1977 a 1988.
Ao apagar das chamas da Guerrilha do Araguaia, quando os
castanhais foram apropriados indevidamente por oligarquias.
60 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Dias em que a região registrou o maior número de execuções e


chacina de camponeses.
Ao lembrar de Sebastião da Terezona, um reconhecido
pistoleiro da região, fala com solidariedade: o coitado foi mor-
to covardemente. Nunca fez mal a ninguém....matava somente
quem não prestava.

Inusitado cotidiano

Mormaço. Chuva fina. Boteco de terceira. Uma gorda de


cabelo tingido de amarelo enfeita uma caixa de isopor com
propaganda de água mineral. Um som mal equalizado em úl-
timo volume executa um sertanejo. O peito da mulher salta do
corpete. Mamilo róseo. Róseo pitanga.
A cena ocorre no Entroncamento. Território considerado
barra pesada. Ele fica na fronteira entre Belém e Ananindeua.
No trecho rivalizam um shopping, igrejas evangélicas e uma
universidade privada. Inusitada tríade comercial. Encruza.
O entroncamento é um corre constante. Homem franzi-
no, cara recheada de espinhas saca do bolso da bermuda uma
coleção de celulares. Uns seis. Exibe em glória as peças. Tem
de tudo que é modelo e tamanho. Penso: ladrão. Mais coisas de
outro bolso. Umas tampinhas. Como se fossem forminhas para
a produção de doce.
A ferramenta é usada em jogo de azar. Oculta uma pedrinha,
feijão, grão de milho, café... O esperto usa sempre três forminhas,
um tamborete e um papelão que ganha status de mesa em qual-
Rogerio Almeida 61

quer lugar. Empresa fácil de desmontar ao menor sinal de “puli-


ça”. A mística reside em quem acertar em que forminha a pedra
ou genérico se encontra. Tem gente que acredita na parada.
Minutos depois sócios do consórcio chegam ao local. Con-
tabilizam celulares e uns cento e tantos reais. Festejam. Calcu-
lam a próxima cilada. Sobre uma mesa de bilhar, peões de uma
empresa de cargas compartilham gorjetas e brejas. Adiante es-
tivas descarregavam esquifes, enquanto as senhoras apanham
crianças na escola. Chuva fina. Quase meio dia. Melhor partir.

Lamentos de um cego no trecho

Amazônia. O calor é escaldante. Racha a taboca, como


se diz no trecho. Em média 40º na sombra. Clima incensado
por poeira e queimadas. “Cu do diabo” resmunga um vizinho
de mesa. Numa feira de cidade média, o cão espia a máquina
a assar os frangos. Ao lado um monte de sacos de carvão. Nu-
tro preferência pelo frango assado em brasa. Acredito que fica
mais saboroso. O frango assado é a salvação do solteiro ou do
preguiçoso. Frango assado é posição.
No restaurante acanhado, dono de raras cadeiras, duas se-
nhoras gordinhas zelam pela comida. Dez “paus” o prato feito
(PF). É bem servido. Paga o preço. O movimento é tímido.
Mas, todos os dias, ao meio dia, uns cinco peões religiosamente
tomam uma mesa.
Além de comida, o restaurante negocia cerveja em lata.
Duas grandes TVs exibem jogos ou programas de esporte, con-
62 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

forme o calendário e o horário das pelejas. Um aparelho fica na


entrada da empresa, e a segunda na parede externa. A TV da
rua é sucesso de público. Pode até ser jogo da segunda divisão.
À frente do aparelho sempre precipita uma pequena multidão
a insultar o técnico, como ocorre nos jogos do Papão.
Em dois sacos um senhor acomoda a empresa. Os sacos
estão amarrados a um banco de metal. O corpo do nego-
ciante de badulaques eletrônicos é franzino. Estranho um
senhor a negociar eletrônicos: brinquedos, pendrives, rádios
e outros penduricalhos. O chapéu protege a cabeça do sol.
Ele acomoda os sacos sobre a mesa que ocupo. De um dos
sacos ecoa um choro clássico, Lamentos, atribuídos a Pixin-
guinha e Vinicius de Morais. Parada do começo do século
passado. Indago ao comerciante informal: “ é um choro. É
rádio? Ele responde: “um pendrive. Negocio. ” Ele não in-
sistiu em passar a peça para frente. Apanhou o PF e seguiu
porta afora.
À porta um senhor cego e negro estaciona. Com o olhar
típico de quem não enxerga dana-se a contar as cédulas de
um dos bolsos da camisa encardida. Há várias de cem reais.
Uma delas cai. A parceira dele não nota. Alguém avisa. Ain-
da existe humanidade na aridez diária, presumo. Ela agrade-
ce por mais de uma vez. “ Deus o guarde!” “Deus o guarde!”
“Deus o guarde!”
Rogerio Almeida 63

Marabá – relatos de pessoas nem


tão invisíveis assim

Ribamar da Conceição tem 58 anos. É pai de sete filhos


fruto de relacionamentos com seis mulheres diferentes. Diz
ter 13 netos. Conceição é natural da cidade de Carolina, sul do
Maranhão, região do cerrado. Um conjunto de cachoeiras é o
principal atrativo da cidade, sendo Pedra Caída a mais festejada.
Aos 13 anos Ribamar já era órfão de pai e mãe. Junto
com ele quatro irmãos. Todos estão dispersos pelo mundo.
Desde então não tem notícias deles. Sabe que uma irmã mora
em Xambioá, no estado do Tocantins. O rio Araguaia separa
Xambioá do município de São Geraldo do Araguaia, no Pará.
Conceição ambiciona rever a irmã. Um recado num programa
de rádio é a opção adotada.
Ele conta que assim que a orfandade aportou um senhor o
levou para Belém. Não se adaptou e desceu para Marabá, local
conhecido pela migração de maranhenses. Na década de 1970
labutou de tudo. O ciclo da castanha e o movimento da Guer-
rilha do Araguaia pulsavam. Os rios eram as principais vias de
comércio e comunicação entre a região, a capital e o exterior.
Tempo de batelão. Foi catador de ouriço da castanha. Um sím-
bolo de riqueza da época escoado pelo caudaloso rio Tocantins.
Conceição tem os dentes em desalinho e o traje roto. Não
refuga um trago de pinga. Ri fácil. Já foi juquireiro. Uma es-
pécie de mato comum em pastos de fazendas locais. Hoje ele
trabalha como cuidador de sítio. É caseiro. E sempre que pode
faz roça nas vazantes do rio, onde planta de um tudo: milho,
64 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

melancia e maxixe em particular. Nestes dias de sol deixou o


local para receber o troco e tomar umas em Marabá.
Por um instante Pezão, como é conhecido o negro João Ba-
tista não nasceu no dia de São João. Veio ao mundo uma hora
depois. Na madruga do dia 25 de junho. Ele tem 66 anos. Como
Conceição trabalhou em castanhais da região. A frondosa casta-
nheira e o mogno abundaram no sul e sudeste do estado, até o
fim da década de 1970, antes dos incentivos econômicos e fiscais
promoverem a pecuária extensiva. No auge do ciclo da castanha
a safra boa alcançava até 50 mil hectolitros, conta Batista.
Pezão parece bem articulado. Relembra histórias de pes-
soas afortunadas e de outras nem tanto assim. O negro conta
que um senhor de sobrenome Almeida era mais rico que os
Mutran nos tempos dos castanhais. Oligarquias. Ele lembra
que Almeida morrendo de amores por uma senhora casada
solicitou a Pezão que o ajudasse no processo de galanteio. O
afortunado Almeida prometia tudo. Um belo dia o marido da
senhora viajou e a empreita foi realizada. O destino foi uma
fazenda. Final de semana em festa.
Na volta não contavam que o marido chegasse tão cedo.
A moça foi expulsa de casa e acolhida pelo rico Almeida. Deu
casa e dinheiro. A maranhense de cor branca hoje é dona de
hotel em beira de praia em São Luís, conta Batista. Pezão foi
jurado de morte pelo corneado, promessa que não se realizou.
O nosso interlocutor é um fumante contumaz. O papo rola em
momentos diferentes. Um no bar da Ana.
O bar fica na beira do rio, no bairro do Cabelo Seco. Ana
é uma negra encorpada, irmã de Batista. O outro dedo de prosa
Rogerio Almeida 65

ocorre no dia seguinte num boteco que abriga os “pés inchados”


da comunidade. A história do bairro Cabelo Seco se confunde
com a fundação da cidade de Marabá, forjada a partir da dinâmi-
ca de trocas comerciais ocorridas no rio Tocantins. O bairro fica
na parte antiga da cidade, conhecida como Cidade Velha, que
concentra o comércio, bancos e o estádio de futebol da cidade.
A sociodiversidade do bairro reflete o processo de migra-
ção da região, marcada pela presença de nordestinos com ênfa-
se no estado do Maranhão, em particular da população negra.
Os varais de roupa nas ruas é uma marca do logradouro. Apesar
de algumas vias serem barrentas e não indicadas para abrigar
varais. Tudo ainda soa um tanto quanto bucólico, até a especu-
lação imobiliária alcançar o lugar.
66 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Mundo do açaí - esquálidos apontamentos

Junho. Tempo de copa. O Nordeste em festa. É verão na


Amazônia. Ainda assim chove. É entressafra do açaí. O pro-
duto de caboclos virou coqueluche em academias de abonados
nas principais praças do país, e mesmo em escala mundial, en-
tre os surfistas da Califórnia. Aqui o comum é consumir após o
almoço para dormir. Lá é tido como energético. Aqui, charque,
camarão, peixe frito e tapioca fazem par com a iguaria. Lá, ce-
reais e banana. Açaí agora é marca. Como analisam os sabidos,
foi ressignificado. Antes fonte de proteína de pobres, hoje, pa-
rada de descolado ou bombado.
No dito mundo globalizado, pós um monte de coisas, a prin-
cipal rede de TV do país já escalou em uma de suas telenovelas
uma barraca de açaí em praia do Rio. O Pará agora é moda. “No-
vos” expedicionários não cessam de brotar no cais. A redescobrir
um mundo tantas vezes saqueado. Um mundo pré-colombiano.
É tempo de entressafra. Em Belém o litro do açaí grosso
é comercializado a uns R$20,00. Desde muito tempo, vende-
dores adensam o produto com farinha de tapioca e corante. E
mesmo com papel, como tem atestado a vigilância sanitária nas
periferias da cidade.
Os negociantes da Feira do Açaí, um espaço dentro do
complexo Ver o Peso, informam que nesta época o açaí con-
sumido em Belém é proveniente do Amapá. Vem congelado.
As vezes ocorre perda por conta disso. Mas, quem consome
o produto em Belém ou em outras praças, não calcula que a
cadeia produtiva engendra a superexploração do trabalho de
Rogerio Almeida 67

ribeirinhos, num contexto marcado pela apropriação de ter-


ras públicas por coronéis. E mesmo por gente que conhece a
letra da lei, como ocorre entre Cachoeira do Arari e Ponta de
Pedras, e na cidade suspensa de Afuá, região fronteiriça com o
Amapá, apenas para pontuar algumas.
Existem fábricas na região metropolitana de Belém. Elas
verticalizam a produção transformando o fruto em polpa, que
é comercializada com agregação de valor para os estado do Sul
e Sudeste. Não raro, as mesmas famílias que são “donas” das
terras controlam também as fábricas. Tentáculos em cadeia.
Quem faz o trabalho pesado mora em casa de madeira.
Na maioria das vezes sem os serviços básicos: energia e água
encanada, por exemplo. Pensar em saneamento é heresia. O
lixo flutua entre nascentes, igarapés, furos e rios. Não há nada
de bucólico nos rios marajoaras povoados de lixo. E a maioria
das pessoas fora da região, não imagina que lá existe mais que
búfalos, como é comum a ênfase nas lentes dos comerciais ou
angulação de parcela do jornalismo da região ou fora dela.
No complexo xadrez do mundo do açaí, algumas famílias se
apropriam de faixas de terras. A divisão do território é realizada
a partir de marcos geográficos da região. Furos por exemplo. E às
vezes, o sobrenome da família acaba por nomear o lugar.
O extrativista é o responsável pelo manejo e coleta do fru-
to, e repassa o produto ao “dono” da terra, que também é o dono
do barco, e que possui agente que negocia a safra no Porto do
Açaí ou no Porto da Palha, no bairro do Guamá, em Belém. O
que lhe cabe neste jogo desigual depende do poder do patrão.
Tudo é feito fora da lei.
68 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Não existe relação trabalhista. Após anos de labuta, aquele


que perde a força para o trabalho é convidado a sair da área
sem nenhuma compensação. E os que questionam a relação são
expulsos por jagunços, espancados e ameaçados. E pasmem,
colocados sob as barras da lei. Em terra de coronel, polícia e
justiça estão a seus préstimos. E não se fala mais nisso. Quem
consome o açaí aqui, não sabe do duro mundo do Marajó, a
mais empobrecida região do Pará.

Não chega aos 25

Tu não vais chegar aos 25. Todos diziam, tamanha era a


sua dedicação ao álcool e à boemia. Um cavalo. Um cavalo do
cão. Não conhecia limite. Desdenhava das fronteiras das que-
bradas. Era pouquinho. Um filete de gente armado de óculos
fundo de garrafa para enxergar um palmo diante do nariz. Não
enxergava nada bem.
Encarava qualquer parada. Salão de reggae, puteiro, brin-
cadeira de bumba meu boi indiferente ao sotaque, samba, la-
dainha de santo. Tudo por algum trago de álcool. Cachaça, co-
nhaque, batida. Os caralho. Puxou maca em Unidade Básica
de Saúde. Falam, pré- coma. Não comia quase nada entre sexta
a segunda feira, quando a garganta não suportava nem água,
tamanha era a inflamação promovida pelos excessos.
Fumava que nem uma caipora. Um fedor só. Uma bomba
atômica de mágoas e privações em busca de uma Janis Joplin
para pisar em seu coração com as sandálias de Lampião. Dan-
Rogerio Almeida 69

çar xote, forró e baião. “Sua presença era um deboche às proba-


bilidades de sobrevivência”. Como não morre, uns indagavam.
Não aberava de briga. Ainda que pouquinho. Correu de bala,
peixeira e de traço de capoeira. Caiu em gaiola de camburão
em algumas ocasiões. A primeira vez somava uns 15 anos.
A velha veraneio vascaína. Tempos de Febem. Lá, foi tudo
bem. Apenas uns instantes na sala de espera até ser dispensado
por vagabundagem. O agente perguntou ao puliça, “e o cegui-
nho”? “Apenas briga em um futebol no parque. Nada demais.
Insultou a gente”, respondeu.
A resignação familiar diante das privações o feria de mor-
te. Tal a fome ou a peixeira cravada no bucho. Resignação de
matar. Peixeira de sangrar o olho bom. O álcool e a rua assim
encarnaram refúgio. Um sofá abandonado em entrada de hu-
milde casa em um bairro periférico chamego. Xodó com moça
negra. Sexo ali mesmo. Tinha de ser antes do amanhecer. Antes
do povo sair para o corre.
Corre, já é segunda. Dia de apanhar os livros no bar do
Amauri, o pescador, área do Itaqui-Bacanga. Água por todos
os lados.

Noite de Iansã na Casa de Teuci

As velas deixaram o espaço mais quente. Havia vela em tudo


que é canto no terreiro de Teuci na noite de segunda feira. A
celebração era dedicada à Santa Bárbara. Iansã ou Oyá no sincre-
tismo religioso. Esposa de Ogum e de Xangô, o deus dos raios.
70 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Ela é considerada a senhora dos ventos e da tempestade. Deusa


da espada do fogo, dona da paixão, da provocação e do ciúme.
Os ensinamentos explicam que a entidade feminina não
nutre simpatia por afazeres domésticos. Possui mais inclina-
ção para as batalhas e as lutas. Prefere os caminhos de risco
e aventuras. Mantém relação com os Eguns (o espirito dos
mortos). Eparrei é a sua saudação. Iansã é o Orixá do arreba-
tamento e da paixão. Tudo nele parece abissal. As zangas e os
dramáticos arrependimentos.
Vermelho e laranja enfeitam o lugar. São as cores do Orixá.
Logo na porta de acesso ao salão principal dois cálices de vinho
festejam um ornamento da indumentária de Iansã, o chifre. As
luzes de natal contrastam com a alvura dos trajes dos devotos
que dançam em movimento circular em sentido anti-horário.
Rosas vermelhas enfeitam o altar colocado em local estratégico
no salão. Bem ao centro.
O senhor negro encurvado pelo tempo e de pés descalços
agita o xekerê (cabaça com miçangas). As pernas são cambotas.
Lembra o nativo marajoara. Três ogãs garantem a percussão.
Uma pequena procissão ao redor do quarteirão precedeu a ce-
lebração no terreiro. Cantos são entoados. Os tambores se agi-
tam. Não tarda e os transes começam. Eparrei.
O espaço no terreiro é generoso. Pelo menos umas cinco
famílias compartilham o território. Os frequentadores que
chegam mais cedo garantem estacionamento para o carro
no vão que separa o portal principal ao acesso do salão. E
como tem carro de bacana. Sem falar nos carros que ficam
no portão.
Rogerio Almeida 71

Não existe problema para acessar o terreiro. Em todas


as ocasiões em que visitei o espaço nunca alguém veio in-
quirir sobre a minha presença. Os visitantes podem ocupar
dois espaços. Um logo na entrada do salão. São bancos de
madeira. E outro no terreiro propriamente dito. Os paren-
tes e os mais próximos podem ficar em cadeiras de plástico.
Adultos, jovens e crianças formam o círculo. Cantam, dan-
çam e batem palmas.
Lembro São Luís. Os becos, as ruas, os tambores, o mar e en-
cantarias. A Casa de Euclides. O tambor de crioula. Daqui a pouco
tem mais tambor na Casa de Teuci em homenagem à Iansã.

Novo, velho ano

Av. Paulista. Garoa. Primeiras horas do novo, velho ano.


Sob as marquises em traje e cobertores em desalinho, seres hu-
manos buscam abrigo. Contraditórias contradições, no espaço
dedicado a grandes negociatas e desfiles de patos amarelos pes-
soas passam privações.
“Tenho fome. Me ajude” roga um cartaz de papelão segu-
rado por um adulto em um dos acessos do metrô. Não há tanta
luz na avenida. São escassos os enfeites nas edificações. “Ou-
trora ocorria uma espécie de competição entre as empresas”,
informa Thulla, a companheira. “O normal era tudo iluminado
até o dia 10 de janeiro”, arremata.
Tal um carro alegórico pós- desfile de carnaval, o palco
que abrigou shows da virada do ano ainda ocupa a rua. Gal
72 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

e Jorge Ben foram as atrações principais. Tempo lento. Ao


menos esta noite, a via opera assim. Grupos e casais de todas
as tendências e idades circulam na mesma velocidade. Alguns
assistiram ao novo longa-metragem de Spike Lee no Espaço
das Artes.
Os conflitos raciais configuram o centro de gravidade. En-
tendi como uma provocação à reflexão sobre a aurora/ocaso
dos nossos dias. A película ilumina arenas onde rivalizam os
grupos Pantera Negras e a KKK. Cenas de violências nos dias
atuais ocorridas nos EUA encerram o filme, entrecortadas por
discursos de ativistas e do atual presidente. Antes do acender
das luzes decretando o fim da sessão, ecoam gritos em oposição
ao presidente do Brasil, e aplausos ao filme.
O mesmo desfecho teve o delicado musical dedicado à
vida de Elza Soares, encenado num espaço do Sesc. A apote-
ose ocorreu durante a canção que protesta sobre a carne negra
do mercado sendo a mais barata. Assim como os/as Panteras
Negras, as intérpretes cometeram o gesto do punho cerrado e o
braço erguido em protesto. Comovente. Confesso: as lágrimas
ocorreram em mais de uma ocasião.
Estranhamento: árvores no centro da medusa concreta.
Novo, velho ano. Portela celebra Clara Nunes, Mangueira
em um samba suntuoso exalta o povo preto [Brasil, meu nego
deixa eu te contar aquilo que a história não conta..] enquanto
Salgueiro invoca Xangô. Oxalá nos alumie.
Rogerio Almeida 73

O bar da Dilma na Feira da 28

Dilma é branca. Usa óculos. É esguia. Tem pernas finas. É


desprovida de bunda, no entanto é dona de um protuberante
bucho. Parece ser de cerveja. Há 30 anos peleja com bar. O
atual tem proteção divina. Fica defronte da Igreja Sagrada Co-
ração de Jesus, na Feira da Folha 28, em Marabá. O logradouro
não tem água há mais de um mês. Neste período do ano o sol
é inclemente. As nuvens de poeira fazem par com as de fumaça
das queimadas rurais e urbanas. A sensação é de 40º pra diante.
Quatro mesas tomam a calçada do bar de Dilma. Além de
cerveja a comerciante vende comida. Panelada é o prato prin-
cipal. Influência nordestina. Em particular do Maranhão. Ali,
aposentados, apontadores do jogo de bicho e outros habituês
dão vida ao local. A proprietária é econômica com as palavras.
Muda de expressão ao receber um telefonema que informa da
morte do filho de uma amiga. O garoto de 20 e poucos anos
enfrentava a morte após um acidente de moto.
O cavalo ferro é o principal veículo usado na cidade. So-
mente de moto-taxistas legais são 700, em uma cidade com uns
300 mil habitantes. O clima árido coaduna-se com o aspecto
rude de uma cidade erguida sob a violência de grandes projetos,
e a corrida por riqueza fácil em inúmeros garimpos em tempos
de ditadura.
Um carro com som automotivo toma o lugar. O reper-
tório ao ritmo de seresta desfila clássicos do trecho: Bartô
Galeno, Alípio Martins, Raimundo Soldado e outras canções
antigas que retratam a dor de cotovelo. Soa que o sofrimento
74 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

pela perda da mulher amada ou a distância da família e da


terra natal integra o DNA da fronteira. Melancolia em eleva-
do grau de concentração.
Uns seis bebuns compartilham pinga e sobras de comida.
Dançam. Celebram a vida e a morte. Um faz performance em
atirar em pessoas: Pa! Pa! Pa! Cai na gargalhada. Festeja. Tem-
po de eleição. A caminhada do ex- prefeito que disputa assento
no legislativo estadual recua. É persona non grata entre os fei-
rantes. Uma negra magra buchuda comercializa churrasco de
gato. Brinca com consumidores e comerciantes. Divide espetos
com os vizinhos.
O sol avança sobre a empresa de Dilma. Sem cerimônias,
um senhor que estava na mesa da frente ocupa uma cadeira no
local em que estou. Não existe constrangimento. Bom dia é um
luxo. Ironizo: “o senhor já tem 60 anos?” Ele confirma que sim.
Brinco: “então pode tudo’.
Não tarda mais duas pessoas tomam as cadeiras que esta-
vam vazias. Proseiam. Fazem pilhéria. Arquitetam uma fraude
no SUS para facilitar uma operação de hérnia de um amigo
goiano. Sob o sol escaldante de uma tarde a cerveja corre solta.
É tempo de praia. Um dos ocupantes é dono de barco. Outro
sugere uma suruba fluvial: tem umas meninas ai pra gente levar
para passear. Como tá o barco? “que tal a gente fazer no dia das
crianças, em outubro, quando celebro o meu aniversário?”

Sem despedidas, pago a conta e pego o beco.


Rogerio Almeida 75

Léguas e léguas a nos separar, riomar....

O mar, o mar, o mar, tanto mar. Tão vasto é o mar a nos


apartar. Lonjuras da terrinha e de Mainha. Assada carne de
porco. Obituário do lugar. Léguas e léguas a nos separar. Mi-
lhas de distância. Casa das Minas. Baía de São Marcos. Oh
triste São Luís, cercada de águas por todos os lados. Macondo
de Gullar, a cada junho assalta-me a melancolia. Saudoso do
meu lugar fico a chorar, a lembrar os batuques dos bumba meu
bois. Forte e brutal, qual um tsunami a destroçar máscaras, ar-
rogâncias, arranha ceus, cadetrais, palácios e casas de cambio,
oh saudade tamanha. Oh! medonha saudade.
Qual uma úlcera, devora-me com violência. Saudade sem
fim de belas toadas entoadas pela gente pé rachado. Desprovida
de posses. Expropriada por oligarquias e capitais. Oh Mara-
canã, Maioba, Madre Deus, oh meu Deus, onde estais Iguaíba,
Pindaré, brincadeira do mestre Leonardo?Oh minha pequena
África, Oh meu querido quilombo... Upaon Açu..grande, gran-
de....lonjuras!
Em mim, o florete da ausência do calor das fogueiras a
afinar pandeirões dos brincantes fere fundo. Ferida de mor-
te. Ranhuras de amor não correspondido. Tão vasto é o mar a
nos apartar. Lonjuras da gula da boca de uma deusa, oh divina
dama...oh minha pequena África, Oh meu querido quilombo.
Camboa. Viração. Brincadeiras de Rosário e Axixá. Azulejos
coloniais no fundo dos zoio, paralelepipedos. Pedras de canta-
ria. De encantaria. Judiaria
76 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

O natal de novembro

É tudo água ao redor. Água de mar. Atlântico. Em sua


maioria imprópria para banho. Não existe tratamento de cocô
na Ilha do Amor, São Luís, Maranhão. Navios por todo canto.
Lembra uma batalha naval. É bosta por todo o mar. Não são
de guerra as embarcações. São de saque dos minérios das terras
dos Carajás, no sudeste do Pará. Uma cartografia de dor. Ah,
dona Janaína...tanto mar..luz a ferir os zoin...
Ah! Encantados da floresta! É mina, é ferrovia, é porto,
é saque, é soco, é sangue...é um riomar de maldades. São
Luís do Mará. Tão bela. Tão turva. Vesga, talvez. Bulida,
bolada, boleada, baleada. Ferida de morte por interesses ca-
pitais. Dunas e mangues sufocados. Capitais interesses. Pa-
lácios. Palafitas. Caranguejos. Homens. Homens. Caranguejos.
Pontes de madeira. Penínsulas. Portos. Drogas por entre vilas e
vielas. Fechados condomínios em paragens de cortiços da velha
cidade. Ah Aluísio.
Nela, uma cidade de pretxs, dois jovens brancos de par-
tidos caretas disputam a cadeira do Palácio de La Ravardière.
Colonização. Colonialidades. Êh lambaê, lambaio....Há uns
dois anos não pisava nas areias da praia da cidade, creio. Mai-
nha contabiliza bem mais tempo. Prestes a somar 90 verões,
manteve o confinamento por oito meses. Mainha é de danar.
Virada. Viração. Magrinha, apoiada pelo neto Jonatha, arro-
deou um pedaço de areia na Praia do Caolho. Tudo água ao
redor. Tudo tranquilo. Uns cabras com a rede a teimar em peixe
encontrar. Caymmi, Dorival, Bnegão...
Rogerio Almeida 77

Comovente observar o zelo do neto a amparar a avó. Bem


como o carinho do bisneto Franklin. É ele quem toca o terror
e mantém a chama da casa acesa. Rede de cuidados/trutas/tre-
tas/carabinas/baionetas: Cristiane (irmã), Isabella (sobrinha).
Diferentes gerações. Oxigênio.
Antes da partida, dedo de prosa com velho amigo de tem-
pos de faculdade, Antônio Carlos (Tontonho). Tempo pouco
para 20 anos de hiato. Pouca breja para tanto assunto. Naqueles
idos corria o trecho entre a área do Itaqui-Bacanga-São Fran-
cisco e adjacências. Pinga, breja, sativa. Bar do Amauri (Sá Via-
na), Seu Adalberto (Reviver), Olho de Pombo (São Francisco),
Bar do Jósimo (Rua do Alecrim-Centro).
Um tiro curto foi a viagem. Três dias. Dois dedicados à
Delza. Arretada. Valente. Valentia. Valentina. Memória em dia.
Labareda. Ela não é de comer na rua. Escabreada. Desconfia
do tempero e asseio alheios. No entanto, abriu uma exceção, e
até elogiou o prato.
A viagem de bate/volta foi o natal antecipado. Insistên-
cia da compa. Thulla Cristina. Um presente! A todos fez fe-
liz. Chorei escondido no pós-almoço. Inventei de lavar louça.
Assim, tudo se misturava à água do enxague de pratos, talha-
res e panelas. Água de sal dos meus zoin, sabão, punhados de
saudades, alegria a confraternizar na pia, escorrer pelo ralo em
tempos sinistros. Tudo misturado, rumo ao mar. Ah, Janaína...
Iemanjá...

Docinho, obrigado!
78 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

O quintal da senhorinha de Ananindeua

Flores enfeitam a copa do pé de pitomba. Após uma poda


drástica a mangueira retoma a forma antiga. O jambeiro está
em rejubilo. Carregado, frondoso e imponente. Toma um canto
do quintal de uma da casa de uma senhorinha. A árvore lembra
a beleza de uma mulata do Lan.
O quintal da senhorinha abriga ainda laranjeira, limoeiro,
uma árvore que lembra um pé de cupuaçu, palmeira de pu-
punha, noni e flores que desconheço. No mamoeiro carregado
passarinhos fazem carnaval fora de época. Abrigam-se no inte-
rior do fruto no café da manhã. Quem não anda bem de saúde
é o pé de graviola. Ele tem galhos escuros. Os frutos nascem,
chegam a ganhar forma e logo definham, ficam escuros e caem.
A senhorinha lembra mainha. Tem o corpo franzino. É
pequena. Bem magrinha. Ela cria galinhas e cães. Lembra a
Hilda exilada em seu sítio apinhado de gatos. Toda manhã a
solitária senhora fala com os bichos. Raia com eles ao servir
o café da manhã. Não sei o nome dela, que toda tarde quando
não chove toma sol na calçada.

Alenquer

O rio é a vida nesse lugar. Há água por todos os lados. Águas


e gentes. A civilização da várzea, em certa medida explicada na
Rogerio Almeida 79

literatura de Benedicto Monteiro, filho de Alenquer, distante


umas três horas em viagem de lancha de quem sai de Santarém.
85 passageiros e três tripulantes é a capacidade da embarcação.
A viagem é contra a correnteza, assim como os obstáculos
em nossas vidas. Há ar-condicionado, TV, banheiros e um ser-
viço que negocia refrigerante, água, lanche e cerveja. A lancha
é veloz. O acrílico da janela que protege o viajante da água do
rio, não facilita a melhor visão das margens do rio.
Ainda assim é possível observar os troncos das árvo-
res nos beirais. Como fosse uma intervenção artística. Uma
composição onde constam as gentes, a floresta viva e em
decomposição, os bichos, - o gado em particular-, as casas
avarandadas de alvenaria, bem como palafitas. É tempo de
chuva. Em Santarém, indígenas celebram a vida em uma
olimpíada, organizada por eles próprios. O Baixo Amazonas
é território indígena.
O mundo das águas e embarcações da região passa por
uma metamorfose abissal. Por conta do capital, o ferry boat ga-
nha corpo nos portos da cidade de Santarém, a cidade polo da
região. O aço a disputar com as estruturas tradicionais de ma-
deira dos barcos que fazem o transporte das cidades vizinhas.
O mundo agoniado do capital a rivalizar com o mundo
lento. Circuitos equidistantes numa possível estruturação da
totalidade. O grande capital e a dinâmica local. O Tapajós e o
Amazonas. Um com tonalidade azul/esverdeada, o outro barrento.
A correr em paralelo.
80 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Os “espertos” do trecho

O trecho é por excelência o espaço da desordem, da ilega-


lidade e da esperteza? Mesmo boteco sem atrativos na Cidade
Velha, cidade de Marabá, sudeste paraense prenhe de mara-
nhense. A tinta do cabelo de uma pessoa do sexo masculino
destoa das rugas do rosto. O traje é roto com pretensão a ele-
gante. A fala estridente enche o ambiente. Fala em voz alta,
como se quisesse que todos soubessem do cargo que ocupa
como assessor de deputado.
O sujeito foi comunicador num programa policial da ci-
dade. Desfilava nas praças com carros pegos no Detran como
fiel depositário. O pequeno espaço enche. Perto do meio dia.
Um vereador processado por compra de votos na última eleição
aumenta o escrete de “espertos”. Todos fazem galhofa com a
possibilidade de prisão do mesmo.
Eles comentam o “mensalinho” pago pelo prefeito da ci-
dade. R$ 40 mil reais seria o mimo concedido pelo chefe do
executivo para ter projetos e contas aprovadas. Maurino Ma-
galhães, um pentecostal deixou a cidade em frangalhos. Pra-
ticamente saiu fugido do município. Fornecedores e barnabés
passaram o fim de ano à míngua.
O assessor não cessa de falar. Conta de tramoias e esque-
mas. E que se faz necessário uma articulação para garantir a
coordenação da UFPA de Marabá. “A intenção do deputado
é ganhar essa direção”, dispara o tagarela. Ele liga para uma
emissora de rádio. Pede que mandem abraços para o deputado
e seus pares. Informa que o mesmo visita uma vila. Na loteria,
Rogerio Almeida 81

num desses recursos de propaganda interna, uma TV exibia a


face do ilustre parlamentar da Câmara Federal.
Ele é de verniz conservador. Certa vez embriagado numa
feira agropecuária vociferou contra o MST. Intimou que os fa-
zendeiros organizassem milícias e a defesa das propriedades. E
mesmo que matassem os sem terra, caso fosse necessário. Não
conheço ninguém do espaço. Sempre fico só. Opção para faci-
litar deslocamento ou ficar um pouco mais. Tomo a derradeira
cerveja. Belisco uns pedaços de carne de porco. Fico a fitar as
moças que passam. Preferência pelas rechonchudas. Renascen-
tista coração.

Vou espiar o rio Tocantins, que nesta época do ano toma a ci-
dade. Respiro fundo. E sigo para o ponto de ônibus. Pego uma
espiga de milho verde. Matuto sobre as incertezas.

Os heróis do Bar da D. Neusa

Pitolé tem um metro e meio. O homem magro adota o


grisalho cabelo sempre curto. Bebe todo dia. Religiosamente
paga com o dinheiro adquirido em sua transportadora uma bu-
chudinha no buteco da D. Neusa. Pitolé é um empreendedor
do setor de transporte. É um “burro sem rabo”. Aquele que faz
frete em uma carroça de madeira. No caso dele, um carro de
mão. Devidamente identificado. Trata-se da Transpitolé.
O autônomo mora na Rua do Fio, bairro da Guanaba-
ra, quebrada de Ananindeua, região metropolitana de Belém.
82 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Pitola, como é tratado pelos íntimos, cumpre a rotina em


comprar a pinga e apostar no coelho. Todos na comunidade
comentam que ao contrário dos demais papudinhos, Pitolé
nunca pede. Defende o troco na estiva sob o céu inclemente
ou a chuva torrencial.
Vez em quando o senhor que deve somar umas 50 pri-
maveras aparece com a face em desgraça. Resultado de algum
acidente movido pela embriaguez. Louro, que se encontra na
mesma faixa etária, rivaliza no ramo de negócios de Pitolé. Ao
contrário de Pitolé, sempre que sobra algum troco, Louro toma
uma breja e fuma um preto. Desinibido, pede cigarro e cerva.
Não é tão magro como Pitolé. Em comum, os empreendedores
da quebrada possuem como hábito exibir o corpo. Quase sem-
pre estão desprovidos de camisa.
O Bar da Neusa é a referência para encontrar os dois, além
de aposentados, desempregados, funcionários públicos, profes-
sores, policiais e gente com dívida com a justiça. Alguns com o
tornozelo ornado por uma pulseira preta. É o Bar da D. Neusa
uma catedral de vencidos? Ali me divirto com as narrativas de
Dicó. Um senhor de mais de 70 anos. Aporta no lugar sempre
de bike cargueira. A magrela é um instrumento usado pelos
idosos que trocam um dedo de prosa ali.
Dicó é atravessador no negócio de filé. Já mexeu com rinha
de galo, onde cumpria o papel de treinador e negociante, onde
orgulha-se em ter feito inúmeras estrelas. Um king da rinha.
Ele é doutor em puteiros da Pedreira. Um dia quero roubar
essa história. Vai custar uns litrões de breja, consumo favorito
do bem humorado senhor.
Rogerio Almeida 83

Parada de Trecho - Pernambuco, o ex-drogado

Pernambuco tem quase 60 janeiros. Tem a cara amassada


por inúmeras quedas. Algumas provocadas por conta do con-
sumo de cachaça. A boca é meio pensa para o lado esquerdo.
A estatura é média. É mecânico de ofício. Mas, faz bico de que
tudo que é coisa. No Domingo de Ramos danou a puxar prosa
após matar algumas doses de pinga. Fazia sol no Bar do Care-
cão. O boteco do vascaíno fica na Cidade Nova, núcleo urbano
da cidade de Marabá. Como uma obrigação religiosa, sempre
que baixo na cidade vou tomar benção ao seu Zé (Carecão).
Ex-garimpeiro que um dia bamburrou em Serra Pelada.
O local é um canto sagrado de veteranos que curtem do-
minó. Não é o meu caso. Seu Zé tem uma penca de filhos. To-
dos tomam benção a ele. Um o beija no rosto. Fico comovido.
Na prole, belas herdeiras. Eu opto em ocupar o balcão. Foi lá
que a prosa brotou. “Fazia 12 anos que não falava com a minha
mãe. Hoje eu consegui”, conta o emocionado “peão do trecho”.
Lágrima sobre lágrima, ele conta que por 14 carnavais foi vicia-
do em crack. “A pedra quase me mata. Não tinha coragem de
falar com a minha mãe sendo viciado”, dispara entre soluços e
intercalando um cigarro e cusparadas na calçada.
O peão conta que morou em Curionópolis. O amigo Pe-
lado queria subir com ele para Marabá. Preferiu correr o trecho
só. Um dia Pelado baixou na cidade, caçou confusão e o PM
Paraná adiantou o encontro dele com o superior. Casado com
uma cearense brava, ele promete que o dia faz uma merda e
manda a cônjuge para o quinto dos infernos. Reclama que ela
84 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

faz tudo que ele não gosta. “Ela pagou tatuagem para o meu
menino. Para eu ficar mais chateado, também bancou um brin-
co”, narra contrariado o “pé inchado”.
Na verdade o menino não é filho biológico. Trata-se de
um sobrinho. Pernambuco rememora que a irmã foi embu-
chada por um vocalista da banda de forró Mastruz com Leite.
“Minha irmã é negra do beiço virado. Não quis a criança e eu
fiquei”, recorda entre mais um punhado de lágrimas. Segundo
ele o rapaz de 21 anos faz faculdade.
Por conta das inúmeras quedas e toucas que comete por
conta do álcool, o filho balbuciou que tinha saudade quando ele
usava somente a pedra. Segundo Pernambuco, o menino disse
que ele fumava e dormia. Agora cai e dorme na rua, e o rapaz
tem de apanhá-lo. Pernambuco é filho da pequena Trindade.
Ex-distrito de Ararapina. “Olha, eu poderia tá bem. Minha
família é bem lá. Primos já foram prefeitos. Mas, não quero
voltar”, narra o migrante.
Quase meio dia. Os fregueses ganham o rumo. O bar fica
vazio. Carecão fecha para o almoço, e só abre segunda. Um aper-
to de mão sela a nossa despedida. Até outro retorno a Marabá. O
trindadense dá as costas e segue rumo a Transamazônica.

Planalto Santareno: notas sobre uma


visita à Ipaupixuna

Cazula é sobrenome de ascendência Italiana e lusa, conta


dona Irani, que vem a ser a mãe de Leandro, este professor de
Rogerio Almeida 85

Geografia da UFOPA. Os ancestrais da família baixaram em


terra brasilis ao apagar das luzes do século de XIX, cuja missão
consistia em substituir o braço escravo de África na cultura
do café em solo paulista. Dava-se assim a origem ao colonato,
como explica José de Souza Martins, em Cativeiro da Terra.
Tão explorados, quanto aqueles, os migrantes europeus
ajudaram a operar a máquina da cadeia do café, esta responsá-
vel pelo processo de “modernização” do país. Martins dispara
que a racionalidade do trabalho do colono continuou a ser a
mesma realizada pelo escravo, mudando somente a forma de
organização social do trabalho, do trabalho coletivo do eito,
para o trabalho familiar.
A migração subsidiada pelo Estado colaborou na confor-
mação na nova mão de obra, e consequentemente, no cálculo
capitalista da produção cafeeira, que antes residia no tempo de
vida do escravo, este considerado como capital fixo na contabili-
dade da época. O escravo integrava o patrimônio. O Museu do
Migrante, localizado em São Paulo, evidencia parcela da história.
Irani baixou Santarém outro dia. Leandro a levou para co-
nhecer o povo Munduruku do planalto. Visita mediada pelo
cacique Manoel da aldeia Ipaupixuna. Ela faz fronteira com o
território de remanescentes de quilombolas do Tiningu. Apro-
ximadamente, uns 40km de lonjura da sede do município.
O planalto sofre influência do mundo das águas do rio
Amazonas e do Tapajós. Ali abundam igarapés, furos e rios, e
o formoso Lago do Maicá, objeto de disputa e saques de di-
ferentes frentes. Açaí, pescado, floresta secundária ajudam na
composição da várzea.
86 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

A missão consistia em levar uns canos para dá vazão à


água do poço da comunidade, que irá alimentar um roçado. No
caminho apanhamos uma boia para o almoço. Um cadinho de
carne. A recepção para a dona Irani foi a melhor possível.
A senhora assaltou acerola no meio do caminho, degustou
da refeição produzida pela indígena Graciene, provou da pu-
punha, iguaria que não conhecia. Trocou prosa, tomou café. Os
distantes mundos não pareciam estranhos. Talvez aproximados
pela dor e agruras pretéritas, soavam antigos parentes. Dias-
póricos mundos. Não foi possível provar do açaí, nesta época
do ano, rareia. Nas aldeias e quilombos, o tempo passa desa-
perreado. As crianças correm desinibidas pelo chão de terra,
despreocupadas com a dinâmica dos ponteiros dos relógios dos
não índios.

Pandêmico natal: nada de Roberto Carlos


ou carnaval

Seis horas para cozinhar o peru é a estimativa otimista em


forno de fogão normal. Em um possante levaria umas três. A
criatura tem perto de cinco quilos. Tudo somente para uma pes-
soa. O cônjuge de Guzzi puxou Minas Gerais para ver a família.
O trecho São Paulo Minas Gerais em dias de festa demanda
mais tempo que o normal. Assim como o cozimento do peru em
forno vulgar doméstico, tudo pode acontecer em dias de festa nas
rodovias. Em casa, o gás acabar; na rodovia, uma carreta de com-
bustível capotar, pegar fogo e bloquear a via nos dois sentidos.
Rogerio Almeida 87

“Patos de MG” anda saudoso da família. Pai e manos.


Gente de festa farta, bebidas e rango. Ozzi e Frida farão com-
panhia à Guzzi na ceia. São felinos. Traquinos. Derrubam ár-
vores de natal e TVs. Ozzi anda viciado em tomate. É um gato
negro. Assalta a geladeira e mocoza os frutos em seu local de
dormir. Estranho vício. Frida, acizentada, é bruta. É gata de
rua. Adotada nas Gerais puxou São Paulo.
Tempos de pandemia. Terminais rodoviários e aeroportos
entupidos de gente como se não existisse amanhã em um país
sem governo. “Patos” sairá direto do trampo para a rodoviária.
O embarque será antes da meia noite do dia 23. A viagem até
Congonhas deve durar umas dez horas, caso tudo se desenrole
sem problemas. A cidade abriga esculturas em pedra-sabão do
mestre Aleijadinho. A praça das esculturas é um sabão. Fácil de
cair. Queda em cada estação.
Natal pandêmico. Famílias separadas. O melhor presente
nos últimos anos. Nada de treta em ceia. Cada macaco no seu
galho. Sobram as ligações cordiais. Mainha, agoniada, talvez
com o intento em ficar quieta, ligou às 18h. Manifesta um ban-
zo por conta da perda da prima-irmã Socorro, que partiu a três
meses acometida por Covid. Calhou da data da passagem ser o
dia 24. Missa de três meses de partida. Nada de ceia. Despeja
umas mágoas. Fim de papo. É hora de retomar a breja. As cos-
telas de porco estão no forno. O molho arde no fogão. Tem um
nome esquisito.
Docinho (Thulla Esteves) troca mensagens sobre o as-
sado do Peru com a Guzzi. Em seguida parte para a ligação
para os parentes distantes. Mary é a primeira. Ela foi quem
88 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

acolheu a Guzzi quando aportou em São Paulo. Mary é es-


posa do tio de Docinho. Afetividades daqui. Doçuras de lá. A
bola agora é com o tio. Odontólogo aposentado desde sem-
pre devotado à pinga.
Prestes a somar 80 primaveras anuncia em tiro curto
diagnóstico de cirrose. Parece levar tudo na esportiva. Em
seguida conta que já tomou a dose do dia. “Fazer o que, já te-
nho os dias contados”, ironiza. Arritmia, diabetes, hipotireoi-
dismo, hipertensão, cirrose, ansiedade, TOC. O pulso ainda
pulsa. “Égua da genética. PQP”, dispara o tio. A pauta des-
camba para saúde. O tio acredita da sabença do vírus. Deve tá
pensando nas mutações do mesmo. “Nunca mais seremos os
mesmos”, acredita.
Pandêmico natal. Nada de carnaval ou show de Roberto
Carlos. Na rodoviária, “Patos” dorme no busão. Acorda às 5h
pensando em BH. Nem imagina que ainda tá em São Pau-
lo. Uma carreta de combustível tombou, incendiou e tomou as
duas pistas. Então, é natal...
“Patos” ficou mais de cinco horas no busão por conta de
um acidente com carreta. Rodovia desobstruída, o pneu fura.
Não tá fácil. O bravo mineiro aporta em sua terra natal quase
vinte e quatro horas após o seu embarque em viagem que du-
raria umas dez horas.
Após mais de seis horas o peru assa. Farofa de banana
para o acompanhamento. As costelas do suíno arriscam quei-
mar após duas horas. Tudo deu certo. Tudo saboroso. Arroz e
purê para as costelas. Brejas, brejas e mais brejas...risos sobre
as prosas..chamegos..Comemos para além do necessário. Sono.
Rogerio Almeida 89

A mangueira em quintal vizinho eclipsa a lua em quarto cres-


cente. Porta aberta em solitário corredor acometido por vento
forte que emana do rio Tapajós.

Porcas linhas de BR distante

É tempo de milho. Fácil de encontrar em feiras e praças


no interior do vasto mundo do Pará. Assado ou cozido. E os
derivados, como a pamonha. É tempo de chuva. A baixada em
qualquer canto padece. Assim como as rodovias. O rio Tocan-
tins se avoluma sobre as periferias de Marabá, abandonada pelo
ex-prefeito, evangélico praticante, Maurino Magalhães.
O mandato do “irmão” foi catapultado a pior administra-
ção que a cidade já experimentou, avalia um taxista. Há lixo
em todo canto. Os salários e alguns benefícios como ticktes de
alimentação e outras gratificações não foram pagas.
O fim de ano foi na pindaíba: nada de salário e décimo
terceiro. Salame (PPS) o novo chefe do executivo da cidade
noticia que a prefeitura foi saqueada. O “abacaxi” não foi repas-
sado pelo ex- prefeito, que encontra-se no estrangeiro. A via-
gem de Belém até o sudeste do Pará poderia ser agendado para
algum rally. O trecho entre o município de Moju e Tailândia
rivaliza em buraqueira com a distância que separa Jacundá de
Nova Ipixuna, bem como o que divisa Marabá de Parauapebas.
Existe tanto buraco no trecho que é possível encontrar um
buraco dentro de outro buraco. Duas empresas monopolizam
o transporte até o sudeste do Pará. Ambas com carros em con-
90 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

dições precárias. O busão da empresa Açailândia havia tanta


baratinha, que elas brincavam de ciranda sobre e em torno dos
meus pés. A entoar canções de Lia de Itamaracá. Algumas mo-
çoilas reclamaram. Nada adiantou.
Durante o dia o ar condicionado não funciona. E tudo fica
mais desconfortável com o odor do banheiro. E tome buraco.
E susto. E medo de assalto por conta da péssima condição das
rodovias. O monopólio das empresas anda tão grave que neste
período só há vaga para embarcar para o município na próxima
terça feira, 08 de janeiro. A concorrência por uma vaga no bu-
são ocorre ainda em fins de semana nos dois sentidos: Belém-
-Marabá. Marabá-Belém. Muito se deve a agenda de projetos
de mineração, e às obras de infraestrutura do governo federal,
que incrementa o número de viajantes.
O antes ativo movimento camponês encontra-se acomo-
dado ou em estado de letargia. Tem-se o cenário do terceiro go-
verno petista na esfera federal, que em certa medida esvaziou
as organizações dos principais quadros. E pode-se ainda avaliar
como exitosa a estratégia da política de reforma agrária desenha-
da pelo Banco Mundial para a América Latina, Ásia e África,
em condicionar o movimento, atendendo em certa medida al-
gumas reinvindicações. Os camponeses controlam fatia expres-
siva do território de 36 municípios. Mas, por conta das políticas
públicas, que incentivam o uso intensivo dos recursos locais, em
particular minérios e energia, parecem no canto do ringue.
Acuados pela realidade do cenário de esvaziamento da po-
lítica de reforma agrária, e sem a capacidade de construir uma
possibilidade de desenvolvimento para o lugar a partir de tal
realidade, o futuro da categoria é uma interrogação.
Rogerio Almeida 91
92 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Prosa de Feira

Prosa de feira não requer pressa. Exige paciência no ouvir as


sabenças dos mais velhos. Os desaperreados em mundo marcado
pela agonia do tempo ligeiro. Papo de feira é samba miudinho.
Riscado com os pés no chão. Rosto coladinho. É o perder das
horas. É o achar do riso do causo contado com a mais profunda
convicção de fato testemunhado. Ainda que inventado, vale a
versão derradeira. Remodelado pelo passar de boca em boca em
outras feiras, mastigado em puteiros de corruptelas, assobiado
em bares desprovidos de estrelas, botequins sem tramelas.
Sob um calor de uns 40º, na feira da 28, em Marabá, um
conviva mandou a letra sobre macacos com malária. Tudo su-
cedeu nos anos de 1980. O pai do cabra operava a frente do
desmatamento, técnica batizada por especialistas como supres-
são vegetal. Um mimo. “No some home os macacos tremiam
de tanta febre que não conseguiam trepar nas árvores”, conta
ele, que estufava o peito coberto pela camisa do Paysandu, que
acabara de levar uma peia do Remo, 3x2, placar final.
Tempo de floresta. Tempo de onça. Some home era uma
denominação dada ao local onde era comum a presença delas.
Mas, também, local de execução de castanheiros que operaram
na floresta para oligarquias locais na coleta de frutos. O trecho
nos anos de 1980 era bem agitado. Garimpo de Serra de Pe-
lada, edificação da barragem de Tucuruí, ferrovia de Carajás,
siderúrgicas, carvoarias. O entreato da destruição.
O comum era o peão correr o trecho em várias frentes.
Obras, fazendas, garimpos, pistolagem, alguns filiados na luta
Rogerio Almeida 93

pela terra. Um dos proseadores é natural das Gerais. Fez boa


parte deste percurso labiríntico de sobrevivência na fronteira
distante. Correu Tucuruí. Sabe das tramas da Rua do Escorre
Água, das malárias e cloroquina, do DDT, de nuvens de cara-
panã, dos servidores da Sucam.
Ainda hoje um causo é rememorado. Segundo a lenda,
nestes dias, quando alguém com camisa com botões aportava
na cidade, os macacos acometidos por malária pulavam sobre
o visitante à caça dos botões calculando que era comprimido
de cloroquina.
Áridos anos de1980. O desmatamento fazia festa. A ordem
residia nesta prática. O civilizar assim era entendido. E, a partir
de tal angulação, a floresta cedeu lugar aos bois, às rodovias, às
hidroelétricas, à ferrovia, às fazendas, às siderúrgicas e às mine-
radoras. Perdi o pai de malária no trecho de Ourilândia, Tucumã,
conta um dos proseadores. Naqueles tempos a viagem durava
dias. Tudo era mato. Bagulhos puxados pelas tropas de burros.
A malária arrebenta o fígado. O peão é obrigado a ficar
sem tomar álcool. O pai do rapaz foi desmatar para projeto de
mineração Onça Puma. Hoje, sob controle da Vale. Parada de
níquel a expropriar camponeses e indígenas. A treta tá na justi-
ça. O estranho se fez presente em terra de ancestrais indígenas.
Gavião, Xikrin, Kayapó, Parakanã e Suruí cantavam aos deuses
pela terra que um dia abrigou mognos e castanheiras.
A mata sucumbiu devorada pela gula do grande capital
com endosso federal. Com as matas, vão-se as lendas, os encan-
tados, a sabença ancestral. Os meninos de hoje desconhecem
as mandingas do Curupira, do Boitatá, da Cobra Norato e da
94 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Mãe D’água. Menos ainda sabem de causos. Patentes, coturnos


e gandolas era a “ordem’ do dia. Ao espiar os diários eletrônicos
atuais, tudo soa como uma grande ironia. Pelas bandas de cá, a
vida não é valsa.

Domingo. Dia de feira. Pamonha. Milho verde. Prosa. Cerve-


ja. Bunda de mulata. Muque de peão.

Rua do Ouro

Rua do Ouro, centro do município de Tucumã, sul do


Pará. O nome da rua justifica um dos emblemas do lugar, a mi-
neração. Na década de 1980 a febre do ouro provocou o fluxo
de vários monomotores ao município. Não há nada de nobre
no logradouro. Os botecos são simples. Alguns com estrutura
de madeira. Ali ficam uns puteiros. Nada atraentes. No trecho,
a “Casa de Tolerância” integra o espaço socioeconômico, polí-
tico e cultural.
Quase vinte e três horas num dia de semana. Tudo pacato.
Uma jovem loira toma cerveja com um senhor que sinaliza em-
briaguez. Ela conta da viagem aos EUA. Ele ouve sem atenção.
Tenta curar o porre num prato de sopa. Combinam o serviço.
Tomo duas cervejas com o parceiro de viagem. E vamos embora.
Rua acima uma placa divertida chama a atenção: Chur-
rasco do Maranhão com o signo de um japonês gordinho. Três
jovens atendem no lugar: Érica, Leila e Renata. A primeira
é mais encorpada. Negra do Maranhão. A dona de riso largo
Rogerio Almeida 95

tem uma bunda farta. A segunda é a menor. Tem feição indíge-


na. Simpática. Já terceira é mediana. Cabelos longos e parece a
mais jovem do grupo. O sutiã aperta os seios que transbordam
da camiseta. A cada noite uma saraivada de cantadas. Experi-
mentamos o churrasco antes de dormir.
A Rua do Ouro fica perto da rodoviária erguida pela Vale,
que explora níquel na fronteira com Ourilândia do Norte e ou-
tras cidades. Calçar ruas, garantir algumas edificações, bancar
festival disso ou daquilo constitui agenda da corporação como
estratégia de relação com a comunidade e de comunicação. E
ainda barganha com o artificio de “responsabilidade social”.
Umas miçangas, diante do que abocanha/fatura e das fraturas
que promove.
Informantes indicam que no pico da obra era comum o
deslocamento de jovens das cidades da redondeza no incre-
mento do serviço sexual. A divisória das principais avenidas
das cidades servia como butiques de carne humana. A força do
capital a tudo subordina?
Na região, após a exploração do ouro sucedeu a madeireira.
Nos dias atuais existem produtores de cacau e pecuária leiteira.
Os colonos, alguns com mais de vinte anos de vínculo com a
terra podem ser tratados de médios produtores. Alguns possuem
mais de 200 cabeças no rebanho, um carro adequado para o des-
locamento nas estradas de terra, camionetes com tração.
Explosões nos fornos da fábrica obrigaram a mineradora
a suspender a operação. A recuperação é demorada. E nos bas-
tidores a tendência é que a Vale deseja se desvencilhar do em-
preendimento. Assim como outros projetos da corporação no
96 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Pará, o projeto Onça Puma, adquirido da empresa canadense


Canico Resource Corp tende a pressionar territórios já definidos
como projetos de assentamentos, modalidades de reservas am-
bientais e áreas indígenas.
Os atropelos nos processos de licenciamento obrigaram
a mediação do Ministério Público Federal (MPF). A institui-
ção tem sido a principal no cenário jurídico nas pelejas para
a efetivação dos direitos violados das comunidades atingidas
pelo grande capital. Projetos de grande envergadura provocam
a desagregação e turbinam as disputas internas na comunida-
de. Mesmo entre os representantes de deus isso tem ocorrido:
pastores e padres cooptados em algumas localidades advogam
em favor da empresa. Ajudam a azeitar “as negociações” entre
as famílias expropriadas e a mineradora.
Aos que de alguma forma tensionam e encaminham
denúncias a tática muda. Passa pela tentativa de cooptação,
persuasão ou oferta de mimos ($$$) e ainda o isolamento.
Chove no trecho que de vez em quando tem a rodovia toma-
da por boiadas. Os hotéis mais bacanas erguidos para abri-
gar o staff da empresa e das terceirizadas estão vazios por
conta da suspensão do projeto. Um tombo, como se comenta
por estas barrancas.
Desde o ano passado uns projetos de reassentamento fo-
ram efetivados, como o União, fruto da negociação da área co-
nhecida como Campos Altos. A assessoria jurídica ficou por
conta da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a técnica a cargo
da ONG Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical
e Popular (Cepasp).
Rogerio Almeida 97

O processo ainda não encerrou. Algumas famílias ainda


aguardam negociações. Mas, alguns locais já parecem fantas-
mas, como a Vila Minerasul, no município de São Félix do
Xingu. O diapasão da expropriação do capital segue o mesmo
desde os tempos de Cabral.

Sobre hidroxicloroquina, malária, Tucuruí e


outras bandidagens

Conheci hidroxicloroquina a partir de uma piada recor-


rente pelos arredores de Tucuruí, sudeste paraense, idos da
década de 90. A cidade abriga a maior hidroelétrica genuina-
mente nacional, a quarta do mundo, a produzir energia no rio
Tocantins. Terra de vida. Terra de morte matada, onde o filho
chora e a mãe nunca chega a saber, se a dor é de amor, se a dor é
de doer ou se a dor é de morrer. O projeto integrou o portfólio
da ditadura civil militar, que ergueu os pilares para o aprofun-
damento da condição colonial da Amazônia.
U$$ 700 milhões era o custo estimado do projeto pensado
e erguido para subsidiar empresas do capital mundial da cadeia
do alumínio, Albras e Alunorte/CVRD/Norsk Hidro e o capi-
tal japonês, em Barcarena/PA, e Alumar/Alcoa/BHP Billiton,
em São Luís/MA. A obra que fez a fortuna da firma Camargo
Corrêa foi a ruína para milhares de pessoas ao redor. Indígenas
(Parakanã), camponeses e outros.
O custo final do negócio da China, ninguém sabe ao certo.
O governo calcula em U$$ 4,5 bilhões, outros em U$$ 10 bi-
lhões. O estudo da Comissão Mundial de Barragens estima em
98 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

U$$ 7,5 bilhões, conta ensaio de Lúcio Flávio Pinto publicado


em boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi, em 2012.
No mesmo ensaio o jornalista explicita que a obra durou
37 anos até chegar ao fim. Como se diz por aqui, penseee na
roubalheira, desde a sua concepção na década de 1970 até o en-
cerramento da usina. A empreita catapultou o senhor Sebastião
Camargo, o dono da firma, a figurar como o primeiro brasileiro
bilionário nas páginas da Forbes e da Fortune.
A sangria não cessa, Pinto adverte que o subsídio de ener-
gia bancado pelo Estado e pela sociedade durante 20 anos, -
desde os anos 1980 aos anos de 2000, - para as empresas Albras
e Alunorte, totaliza uns U$$ 2 bilhões, dinheiro suficiente para
construir outra planta industrial. Somente as usinas do Pará
consomem 3% de toda energia do país. Água e energia repre-
sentam os principais insumos da cadeia. Tá ligado no saque das
pessoas de bem?
As 23 turbinas da usina são responsáveis por quase 10%
de toda energia gerada do país. A usina é tida como a maior
obra pública já erguida na Amazônia, e consta entre as cin-
co maiores do país. Assim como em Belo Monte, Delfim
Neto, um dos baluartes da ditadura, mediou as negociatas
para a compra das turbinas de Tucuruí. Como adverte Pinto
e outros intelectuais, a bandidagem foi possível por conta
do regime ditatorial, sustentado pelas Forças Armadas, em
particular o Exército.
Rogerio Almeida 99

Desgraçadamente, o mesmo modus operandi do Estado au-


toritário se registrou na construção de Belo Monte, no rio Xingu,
em tese, em plena “democracia” sob a insígnia do PT, e com a
“consultoria” do mesmo Delfim Neto. A mesma desgraça dese-
jam impor ao Tapajós, com o projeto da hidroelétrica de São Luiz.
Vim aqui somente para falar de malária e da hidroxicloro-
quina, mas, como um bagulho puxa o outro. Por conta do lago
que a usina de Tucuruí gerou, os indicadores de malária eram
expressivos, assim como a produção de gás metano, por conta
da floresta submersa, e por consequência, mosquitos de tudo
que é jeito e tamanho. Penseee! A concentração de peões na
obra fez germinar o território do Escorre Água, espaço reser-
vado às delícias da carne e do amor fortuito.
E a piada? A piada residia em dizer que na cidade havia
tanta malária, que quando alguém usava camisa com botões os
macacos assaltavam a pessoa pensando que era comprimido de
hidroxicloroquina. Vários colegas do trecho foram agraciados
com uma ou mais cruzes de malária, como se diz estas para-
gens, ou algum tipo de hepatite. Mais de duas décadas a rodar
por aí, cabeça caiada, algumas cruzes de amores cravada ao pei-
to, ainda continuo invicto de malária e hepatites...o que contar
para os netos???
Ah, quando gitinho foi acometido por sarampo no sertão
do Maranhão. Mas, aí, já são outros quinhentos. Tristeza pra
mais de metro, de fazer até o burro da carroça chorar.
100 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Tailândia, um relato

O calor cozinha a carapaça cansada. O ar não funciona.


260 quilômetros separam Tailândia da capital do Pará. A via-
gem vai durar cinco horas no micro ônibus com capacidade de
umas 20 pessoas. Madeira, carvão e pimenta do reino domina-
ram a economia da região.
Em 2008 por conta de ações do Ibama a cidade virou pra-
ça de guerra. Literalmente, tocaram fogo em tudo. Trabalho
escravo, desmatamento, produção de carvão, grilagem de terra,
pistolagem eram alguns dos crimes.
Rogerio Almeida 101

Rabo quente, era a denominação dada para as parelhas de


fornos. Atualmente, no percurso via a PA 150, predomina o mo-
nocultivo do dendê da Vale a expropriar as populações locais.
O motorista, um cabeludo ao estilo vocalista de banda
grunge, sabe o horário e os locais onde apanhar os operários
do monocultivo, que tem como objetivo a geração de biodie-
sel. Uma política de Estado. Além dos operários, funcionários
da educação formam a clientela do transporte. Uma senhora
de meia idade bem apessoada é a cobradora. É ela que atende
o celular e garante a fidelidade de usuários diários. Sabe o
nome de todos.
A falta de ar obriga que as janelas fiquem abertas. A poeira
e a fumaça de queimadas acompanham boa parte da viagem.
Não há rádio ou TV. É a prosa que acode para tomar o tem-
po. Senhores hegemonizam a dianteira do carro. A maioria é
evangélico. O papo corre solto. Fala-se sobre tudo: economia,
politica, região, saúde e ecologia. O Papão joga às 19h contra o
Ceará. A crise é a pauta. Sobram xingamentos contra o gover-
no. Sobre os desastres naturais buscam no apocalipse a explica-
ção. “É preciso se ligar no movimento. Atenção na palavra do
senhor” crava um dos senhores. “Tudo tende a piorar”, emenda
outro. Eles comentam sobre tsunamis, terremotos, seca....
Proseiam ainda sobre o tempo de antigamente, quando não
se usava tanto remédio para a criação dos animais. Associam o
câncer ao uso excessivo de aditivos de engorda e crescimento de
galinhas e do gado. Comentam ainda o cultivo de roças, quando
tratavam algumas culturas com remédio feito a partir do fumo
de rolo. Fico feliz pela consciência ambiental dos coroas.
102 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Antes de um acidente com uma balsa de uma empresa que


presta serviço para a Vale derrubar parte da ponte sobre o rio
Guamá, perto da cidade de Mojú, a viagem era realizada em três
horas. O calor incomoda. Apesar disso, consigo dormir. Quando
há sinal de internet, ouço Flores de Amsterdam, de Lui Coimbra.

Tita, a sapeca de Cachoeira do Arari

Tita é encorpada. Tem 110 quilos adquiridos em pouco


mais de 53 anos. A mulher negra de cabelos curtos pintados em
tom caju não tem letra. Aprendeu a ler, escrever e fazer conta
por necessidade. Desde cedo trabalha. Aos 15 já lavava rou-
pa de “branco”. O peso de Tita é distribuído em 1m55. Sente
dores nos joelhos, pés e nas costas. No corpo inteiro. Ficar por
muito tempo sentada ou em pé causa desconforto. Cerveja e
samba é o seu ponto fraco. Ela conta que é comum ficar porre
em casa em fins de semana.
Um box na praça central de Cachoeira do Arari é o ganha
pão da autônoma. Cachoeira integra o arquipélago do Marajó.
A região é a mais empobrecida do estado do Pará. Possui o pior
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil. Para
tentar melhorar a situação, quatro médicas cubanas aguardam
o registro no Conselho Regional de Medicina (CRM) para
poder iniciar as atividades de medicina preventiva. Enquanto
isso não ocorre, elas dividem o tempo entre passeios e estudos.
Duas das quatro médicas não eram aguardadas pela prefeitura.
Elas aportaram em Cachoeira no dia 01 de novembro.
Rogerio Almeida 103

Sobre o meio ambiente, um técnico da prefeitura informa


que a vegetação é quase intacta nas áreas de várzea, o que pode-
ria servir de apelo para uma política ambiental. No fim de ou-
tubro, Cachoeira do Arari passou a integrar a política estadual
de municípios verdes.
Tita comercializa alimentação, biscoitos, velas e bebidas.
O “leite de onça” é produzido com álcool e leite condensado.
Uma auxiliar é o quadro funcional da empresa. A assistente
tem namorada ou “marida”, como elas costumam galhofar. Ie-
manjá é a cabeça de Tita. Uma imagem fica no pé da TV. Atrás
a foto de um sobrinho. Ela acredita que a entidade protege a
ela e ao parente. Após muito tratamento conseguiu engravidar.
A criança nasceu com quilo e meio. Hoje é adulta.
O Aracu frito é o petisco da casa. O peixe tem muitas
espinhas. Estima-se que 42% da população de 22 mil pessoas
de Cachoeira do Arari mantenham laços com a pesca. 9 mil
pescadores estão cadastrados no ministério. Vicente, o “Beca”
ex- coordenador da Colônia de Pescadores Z40 é vice-prefeito
da cidade. Atualmente ocorre um recadastramento para verifi-
car a procedência do número.
Beca é o terceiro ex-presidente de colônia a ser vice pre-
feito. Claudionor, hoje secretário de obras já ocupou o cargo.
Ele na década de 1990 foi presidente do Grupo de Trabalho
da Amazônia (GTA). Uma espécie de central que aglutinava
inúmeras representações do campo popular de todos os estados
da Amazônia Legal. O GTA contava com financiamento in-
ternacional pós Eco-92. Além da Z40, existem a colônia Z-26
e um sindicato de pescadores para representar a categoria.
104 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Dalcidio Jurandir é o filho mais ilustre de Cachoeira do


Arari. Jurandir é madeira que cupim não rói. Um gigante. O
município vive sob a ditadura das águas. As águas da baía nes-
ses dias são bem agitadas. O navio de dois andares Coman-
dante Marcos sacode como se fosse afundar. Véspera do dia de
finados. Os mais descontraídos fazem festa, enquanto outros
vomitam, e alguns conseguiam até dormir. O medo viaja junto
por três horas. Algumas pessoas usam colete. Uma jovem não
cessa a conversa ao celular, apesar dos solavancos da embarca-
ção. A feição traduz a miscigenação: os olhos são puxados, os
lábios carnudos e os cabelos lisos.
O Porto de Camará é uma espécie de entroncamento. É
ponto de chegada dos navios. De lá é possível seguir para Sal-
vaterra ou Soure e Cachoeira, separada do porto por duas horas
de viagem em micro ônibus numa precária estrada. O padre
italiano Giovanni Gallo deu visibilidade internacional para o
município a partir da edificação do Museu do Marajó, antes
sediado na vizinha cidade de Santa Cruz do Arari. O mesmo
padece de problemas constantes para a sua manutenção.
Esses dias em letras desenhadas um aviso em papel A4
apelava para a contribuição de visitantes para o pagamento da
conta de energia elétrica. Itaci, uma espécie de “faz tudo” conta
que o pico de visitas é em janeiro, por conta do festejo de São
Sebastião. Naquele dia do fim de outubro de 2013 éramos os
primeiros visitantes.
Um Museu é uma festa de criatividade. Compensados,
fotos, fios, pegadinhas e formas de interação provocam o visi-
tante numa trilha sobre a história milenar da região, tributária
Rogerio Almeida 105

de sociedades complexas. A neta do ex presidente do EUA,


Anna Roosevelt, e também arqueóloga assina artigos sobre a
região e o Baixo Amazonas. O espólio de Gallo encontra-se
numa imbricada rede de disputa, que envolve população local,
pesquisadores e empresários radicados em Belém. Por conta de
uma prestação de contas com limites junto ao Ministério da
Cultura, o Museu tem problemas para a captação de recursos.
Pecuária bubalina, pesca, cultura da mandioca, extrativismo
do açaí e produção de abacaxi conformam a base da economia
local. Nos dias atuais a monocultura de arroz integra a paisagem
dos campos naturais. Toma cerca de 6 mil hectares. Com endosso
federal, estadual e do setor rural do estado, a família Quartieiro se
apossou de porções de terras. Promove queimadas e no arrastão
de corrente faz sucumbir bacuriçais em algumas ilhas, Santa Cruz
é uma delas. O agrotóxico é lançado a partir de avião. A família
ocupava a área indígena Raposa Serra do Sol em Roraima.
As terras do Marajó foram de sesmarias, e ainda hoje há
“coronel” que manda na freguesia: Monteiro e Liberato de
Castro são dois deles. O último tem rusgas com remanescentes
de quilombolas numa localidade conhecida como Tororomba,
no rio Gurupá. O extrativismo do açaí é o centro de gravidade
do conflito. O quilombola mais aguerrido, Teodoro Lalor, foi
morto este ano em Belém em 2013, às vésperas de um encontro
estadual para debater as demandas da categoria. Ele vinha sen-
do ameaçado de morte. Mas, o caso foi noticiado como questão
passional. Os parceiros não acreditam na tese. Além de contro-
lar vastas extensões de terra, Castro elegeu a filha como prefeita
da cidade vizinha, Ponta de Pedras.
106 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Fim de tarde de sexta feira. A praça é agitada. Motos cir-


culam de um lado outro para outro. Ninguém usa capacete.
Além de bares e lanchonetes, a praça abriga a sede da prefei-
tura. Dali é possível avistar os trapiches. As cercas de proteção
possuem motivos marajoaras. Uma placa prestes a cair do Mu-
seu do Marajó dá boas vindas em vários idiomas.
Os “pés inchados” da cidade compartilham “buchudinhas”.
Trocam insultos. Riem. Choram. Empurram uns aos outros.
As TV´s do local exibem o jogo do Paysandu contra o Joinville.
O “Papão da Curuzu” está prestes a cair para a terceira divisão
do campeonato nacional. Perdeu de 4X2.
Tita tem namorado. Ele tem 16 anos a mais que ela, é o
dono do box que ela administra. A jovem senhora fala sacana-
gem com a desenvoltura de um hábil ponta direita do Botafogo,
enquanto outra gordinha trata das unhas dos pés e mãos. Uma
moto taxista de estatura mediana e corpo franzino aguarda a
vez na manicure. O cabelo pintado de amarelo tem arranjos
em cachos. As sobrancelhas desenhadas moldam olhos sapecas.
“Tigrão” é o apelido do parceiro de Tita. “Outro dia ele
chegou de Belém. Eu doida para colocar o bloco na rua e ele
roncando. Deixei ele dormir um cadinho, e na madruga o coro
comeu”, conta com alegria juvenil. A comerciante parece gos-
tar de dedo de prosa. Encaixa uma história na outra. O causo
agora é sobre o desenho nas “xotas” das madames. A pilhéria é
de responsabilidade de uma enteada que mora na capital. Tra-
balha em casa de gente rica. Entre risos a negra narra que as
madames fazem bigodinhos na periquita. Aqui a gente mesmo
passa o aparelho, Tita engasga de tanto rir.
Rogerio Almeida 107

Uns punhados sobre vida e prosa

Réu, confesso, o prosear é o meu vício, chamego, cela. É


um matutar sobre a existência nas faculdades sem paredes.
Clarão de sabença. Não arrenego. Peço, não encrespe a minha
cachola com a ditadura das horas, obrigações, tempo marcado
para isso, e para aquilo. Prosear é uirapuru liberto de gaiola.
Prosear, rio do quintal do meu viver. Barco sem pressa.
Atitude revolucionária. Ação anticapital e antimanicomial por
excelência. Um atropelo desse tempo agoniado. Esse tempo de
correria desembestada e desenfreada.
A prosa é o mel no fel do cinza céu do Planalto Central.
Terapia horizontal a invocar Freire, Elino Julião, Kid Murin-
gueira, Caymmi, Áurea Martins, Maria Bonita, Lampião. Trago
desde gitinho o hábito em prosear ou macunricar a prosa alheia.
Ensimesmado quando não enturmado, depois...tudo é riso.
Quando criança, na Rua da Viração, na Camboa, em São
Luís, tinha por hábito arrodear uma roda de dominó dominada
por senhores das redondezas. Alfaiates, enfermeiros, funcioná-
rios públicos e desocupados. A intenção não era aprender a
jogar, residia em ouvir as prosas de histórias antigas do bairro.
Coisas de valentia, futebol, amores, canções, puteiros...ali
ouvi sobre as vivências de dois meninos do bairro que fizeram
glória no Vasco e no São Paulo, Porquinho e Canhoteiro. Tem-
po sem pressa. Creio que o defensor do tricolor paulista fez
mais sucesso. Tem até biografia.
Em minha alma a conversa fiada viceja. Vira e mexe, deita
e rola. Acomoda-se na rede. É pura bossa. É o perder das ho-
108 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

ras. Um jardim para criações de escrevinhamentos futuros. Um


saque sobre a memória alheia. Docinho (Thulla Esteves), às
vezes, não compreende. Calcula que estou de sem-vergonhice.
Zanga, passa raio. Desconfia.
Nos dias recentes, a Garapeira Ypiranga, na cidade de
Santarém, tem sido meu oásis. Vez em quando uma iguana
despenca das árvores dos arredores. Um susto. O bicho arro-
deia dali, corre pra lá, até sumir. Alcançar um canto sossegado.
Uma nova árvore. No derradeiro 07 de setembro, o acanhado
espaço somou 99 anos.
A garapeira foi plantada na Praça da Matriz. Bem no Cen-
tro da cidade. Fala-se que é um termômetro da popularidade
de políticos. Mais eficiente que qualquer instituto do riscado
de pesquisa. Cabra passar por lá, e ninguém acenar, lascou-se.
Professor Paulinho, vulgo Maradona, professor Eládio, ex
marinha mercante e professor, e o operador de agiotagem do
mercado oficial financeiro, Silvane costumam fazer par nas bar-
ricadas do prosear e brejas. Fala-se de tudo um cadinho. Amo-
res, dissabores, contas a pagar, grana ausente, histórias a perder
de vista de garimpo, sendo as do Cripurizão as mais recorrentes.
Dona Rosilda rivaliza em idade com a instituição de caldo
de cana. É funcionária da Secretaria de Cultura. Devota bom
tempo na Praça da Matriz. Faz fé no bicho, uns gracejos, e
pimba, filou um lanche.
O cego Carlinhos, exímio interprete de Vicente Celestino,
tá de gancho do balcão da firma. Fez criancice. Jogou um copo
de caldo de cana no Buba. Buba é o atendente fixo da firma,
que conta ainda com Dabanha e o Foguinho. É o Buba que
Rogerio Almeida 109

desenrola quando a casa recebe gringo. Ele se vira com inglês


e espanhol. Rosilda e Carlinhos são de paz. A questão são os
malas. As almas sebosas, como se diz em Pernambuco.
Antes da pandemia, seu Cacheado e Dona Ninita, ladea-
dos pela filha Dalila tomavam de conta do lugar. O casal tá de
resguardo por conta da peste. Somente o casal soma mais de
seis décadas de casa. Pastel de vento, coxinhas e bolo são algu-
mas das iguarias negociadas no estabelecimento quase secular.
Fatiar o bolo é exercício de Junior Cacheado, o delegado, que
sempre bate ponto em qualquer hora do dia.
Prosa aglutina. Contudo, também desagrega. Peão que
pisa errado no quadrado, logo é desautorizado. O prosear
ajunta o povo que aporta das comunidades vizinhas: Ara-
piuns, Aritapera e Boim. Caboquices de pescador. Um trago
de conhaque. Riso certo. Canções antigas de casas de tole-
rância. Elino Julião, Bartô, Fernandes Mendes, Carlos André
e Odair José. Combustível potente para o filosofar sobre as
dores de amor. O Tapajós é testemunha. Tanto é o falar so-
bre as canções das dores que acometem o cotovelo, que ao
lembrar de prosas sobre um histórico puteiro de Marabá, o
Canela Fina, que sucedeu a inspiração que geraram os versos
que seguem.

Homem, confesso
Vencido
Chorei
No Canela Fina, chorei
Tudo por conta do pé na bunda que levei
110 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Depois de todo amor que te dei


Chorei, meu sangue derramei
Malárias no garimpo colecionei
Trairagem, bala, vícios
Tudo do pouco que ganhei, te dei
Findo o sofrido e amaldiçoado dinheiro do trecho
O seu desprezo foi tudo que herdei
Chorei, vencido
Derrotado
Sem uma cama para voltar
Na porta do Canela Fina
Chorei.....até definhar...
Sem o seu amor encontrar....
Sem bandeiras, barrancos, um lar...
Um fio de luz de algum luar .....

Ver-o-Peso de minhas saudades

“30 real o pendrive com mais de mil músicas. Música para


chifre a dar de pau. Promoção” anuncia o equipamento de som
montado sobre uma bicicleta, sob um sol inclemente e um Ver
o Peso coalhado de gente em plena pandemia.
Agonia em ziguezague. Ruído ao redor. Frigideiras em
chamas. Peixe, fígado, frango e carne. Minissaia. Miniblusa.
Frondosas mamas ao calor. Fios de suor. Vida por um fio. Boca
sem dentes. Cigarro ao canto. Pandemia em carnaval. O locu-
tor da sonora bicicleta anuncia furo de reportagem: “tomem
Rogerio Almeida 111

conhecimento. Nova onda do corona se aproxima. Fiquem em


casa. Ela pegará somente os cornos”.
Existe uma espécie de tara sobre o tema em Belém. Nem
José escaparia à galhofa. Sobraria para o Espirito Santo o pa-
pel de pé de pano. Taxar o outro de corno é quase uma insti-
tuição na capital paraense. Qualquer dia desses um edil pro-
põe uma data oficial no calendário municipal. Fico a imaginar
a comemoração....
É recorrente entre os “motora” de busão o aceno da mão
com dois dedos em sinal de chifre. Nas “rádia” da cidade os
programas mais populares celebram o fenômeno. Fazem dedi-
cação aos acometidos pelo “mal”, colocam no ar provocações de
ouvintes contra colegas de trabalho ou de bar.
Pedintes. Ambulantes. Hippies. Camelôs. Meninas em
enlace de mãos. Adiante a senhora adverte transeunte: “atente
com pulseiras, cordões e brincos”. Faz mais de 20 anos que
ando pelo Veropa. Nenhum B.O até o momento. Até celular já
esqueci em barracas e o mesmo foi devidamente devolvido. Há
três anos não pisava na área. Indaguei do marajoara Tadeu para
a dona Socorro, vizinha de barraca, ela informa que o mesmo
operou de vesícula. “Tamo aqui tocando a firma dele enquanto
ele se recupera”, comunica.
Pergunto do Jean, o “Coração de Boi”, no caso em questão,
não se trata de relação com chifre, mas, uma anomalia que o
mesmo diz ter – coração grande -, o que o impede de fazer tra-
balhos braçais. No entanto, o mesmo sempre é visto a bailar em
festas de aparelhagem em excelente performance, a esbanjar saú-
de. Ele negociava CDs e DVDs nos gloriosos dias da pirataria.
112 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Não vi o menino que organizava a roda de samba aos sá-


bados. Vende de tudo. O cabra se defendia na percussão e no
canto. Saca toda a discografia do Bezerra. A “banda” é formada
com a turma do mercado. No Ver o Peso o peão tem de jogar
nas 11. Se virar como for possível. A paga da roda de samba
era o litrão para a galera. Vez em quando rolava até tira-gosto.
Também não enxerguei um fiel escudeiro do sambista. A dupla
formava uma espécie de Cosme e Damião do pedaço. Ele ne-
gociava isqueiros.
Notei ao largo a senhora negra, que mediava sexo com jo-
vens para os veteranos do espaço. Vez em quando andava com
uma criança. Dizia que era neta. Uns alertavam: “qualquer dia tu
puxas uma cana por conta disso”. Uma das pernas parecia bem
inchada. Vender panos de cozinha é o caô por ela aplicado. Pa-
recia bem acabrunhada. Assim como um tatuador de obras ro-
tas. Um das antigas. Velhos barcos de trapiche sem idas e vindas.
Outro “brother” das antigas, que vi em cadeira de rodas
após ser agraciado por batida da “puliça” e ser alvejado por vários
tiros, tá roliço. Tá toba, como se diz em minha terra. Quando em
recuperação pelos tiros recebidos, ele rodava o mercado de cadei-
ra de rodas auxiliado por um ajudante. Uma das pernas era cheia
daqueles ferros de recuperação. Ele é do DI (Distrito Industrial),
de Ananindeua, reconhecida quebrada da crônica policial.
“ Caralho doido, tu ainda tá na pista, maluco. Égua, nem a
Covid tomba vocês”, o saúdo. Ele sorri e pede um copo de cer-
veja. Defender-se é preciso. Morrer não é preciso. Sol de moer.
Gente. Gente. Gente aos montes. Não vi tanto cabo eleitoral
a sacudir bandeira. A mesma bicicleta do pendrive propaga o
Rogerio Almeida 113

número de candidato ao legislativo de uma cidade em franga-


lhos. Ao fim do anúncio, vaias sucediam. Patriotas, creio que
era o partido.
Um ex-atleta do Remo, esguio, negro sempre anda apru-
mado. Tá sempre na área. Ele diz ter feito parte da esquadra que
derrotou o Flamengo no século passado em pleno Maracanã
por 2x1, em 1975. Vez primeira que um time do Norte fez tom-
bar o time de Zico, Rondinelli e Junior em pleno Maracanã.
Alcino e Mesquita foram os responsáveis pelos tentos do
Remo, enquanto Zico diminuiu pelo Urubu, em peleja tes-
temunhada por 30 mil pessoas no mês de outubro, quando é
celebrado o Círio em Belém. Terá sido milagre? O ex-atleta
sempre toma uma no Veropa, faz circuito nas imediações da
rodoviária, corre puteiros inclassificáveis. Ele se diz advogado.
Fui agraciado com dedo de prosa com ele. Treta que ganhou
em riqueza com um comparsa de 83, Seu Benedito, um cea-
rense morador da comunidade de Corta Corda, em Santarém,
oeste paraense.
O senhor atarracado é peão de trecho. Diz ter chegado do
Ceará, onde tem filho juiz. Sempre repete a prosa com orgu-
lho. Já expansivo pelas cervejas consumidas, dana a provocar o
advogado. Chamá-lo de bandido e de corno. O ex-atleta leva
na esportiva.
O baixinho alvo alega que o esportista anda com esposa
de “puliça”.
Tudo é riso até o negro esguio chamar o baixinho de vea-
do. Zanga. Troca de rispidez. Fim de linha. Fim de papo. Cada
um para o seu lado. Uma jovem gordinha em trajes mínimos,
114 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

altura mediana, fofura a transbordar as vestes, a tudo espia. Tal


um felino selvagem a espreitar a lebre.
Ao contrário do Veropa, no Mercado de São Braz, abun-
davam cabos eleitorais de diferentes tendências, com proemi-
nência à candidatura do professor psolista. Um farrapo, assim
se encontra o belo mercado, tomado por lixo e urubus. Espelho
do desprezo de duas legislaturas tucanas, cujo principal empe-
nho reside em tudo privatizar.
Ver o Peso de minhas graças. Mercado de peixe, carne,
ratos, urubus e garças. Ver o Peso de minhas de alegrias e má-
goas. Ver o rio-mar, contemplar as ancas das moças e senhoras,
sorrir com os convivas dos causos contados, o corre aquieta.
Até breve, espero.

Ver-o-Peso – rascunhos de uma tarde de sábado

Sábado de sol do Saara. Ver o Peso. Meio dia. Casa cheia.


Aparelhos de TV ligados em canais diferentes. Um barulho
dos diabos é a trilha sonora que embala a praça de alimenta-
ção. Não existe sofisticação. Bancos rotos acomodam bundas
nativas e de além rio-mar. A barraca controlada pela Thais tem
lugar privilegiado. Recebe o vento que vem da baía do Guajará.
Fica perto do banheiro e de onde se embarca para o município
de Barcarena. A cidade é conhecida mundialmente por abrigar
plantas industriais da cadeia de produção de alumínio.
Misturados aos comerciantes e visitantes do lugar, uma
horda de zés e marias. Uns pedem uns trocados, alguns assal-
Rogerio Almeida 115

tam, outros simplesmente enchem a cara de cana. A famo-


sa buchudinha. A Tatá é uma morena simpática. Riso fácil.
Menos de 40 anos, mãe dois filhos. Uma já taluda. Sempre
trata os visitantes de meu amor. Ela não trabalha nas terças
e quartas. Alega que o movimento não paga a empreitada de
dia inteiro.
Além de cerveja ela vende cigarros, refrigerantes e tira
gosto de queijo, azeitona e presunto. Tatá gosta de dançar. Na-
mora com moço casado. E diz não ter mais ilusões com o amar.
Num banco da barraca da Thais um senhor atarracado e barri-
gudo puxa um cochilo.
Noutro banco o sax alto repousa dentro do estojo. Ele in-
tegra uma banda que anima as tardes do mercado. Além dele o
time de músicos é composto por um surdo e um trompete. O
titular da percussão está atrasado. O trompetista chega após o
despertar do saxofonista. Ele reclama de ressaca. Ligam para o
dono do surdo, são informados que o mesmo não irá ao merca-
do por conta da extração de um dente. Um deles exclama: “logo
hoje que o mercado tá cheio”. Apelam para o plano B.
Não tarda o reserva da percussão chega. O saxofonista es-
colhe a melhor palheta antes de começar. Afina o surrado ins-
trumento. Outro senhor, veterano de guerra no mercado entoa
canções antigas. O pontapé para a festa foi dado. No portfólio
de canções tem de tudo: músicas antigas, merengues, salsas, e
em particular hinos de clubes de futebol. E não se pode deixar
de executar os hinos dos escretes locais, Remo e Paysandu, uma
perema só. A moça que repara as unhas dos pés e mãos dos
populares troca carícias com o namorado. Deu folga para os
116 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

alicates e esmaltes. A rodada do boné entre os biriteiros banca


o cachê da trupe.
Sapo, um negro encorpado comercializa bolas e peixeiras.
Estranha combinação. Reclama da ex- esposa. Faz graça com
a jovem que atende na barraca do Tadeu, vizinho de Tatá. Ele
como a mãe, uma antiga barraqueira dedicada à boêmia, co-
leciona filhos. A mãe nunca deixou de beber, mas, mora hoje
num interior.
Ao sair de cena, a banda toca uma canção top dos dias de
glória do rádio: “recebi um telegrama do meu velho pai, me
pedindo para voltar...o meu pai é fazendeiro na ilha do Marajó
no estado do Pará...” Na falha a memória, Zito Borborema é o
linha de frente da canção.

A encruza Santarém, Altamira e Marabá,


para onde??

A depender do clima, a viagem entre Santarém, oeste do


Pará, à Marabá, sudeste do estado, toma aproximadamente 24h.
Ocorre em sua maior parte pela Transamazônica. Um desafio.
Seja no verão. Seja no inverno. A rodovia é uma criação da dita-
dura civil-militar (1964-1985). Fez a riqueza de poucos, adian-
tou a morte de muitos. A estrada que remodelou o processo
de colonização na Amazônia, naturalizou a grilagem de terras,
chacinas, execuções, assassinatos, expropriações e a impunidade.
Dos 1.200km, menos da metade possui asfalto. A primei-
ra cidade é irrigada pelos rios Tapajós e o Amazonas, enquanto
Rogerio Almeida 117

a segunda pelos rios Tocantins e o Araguaia. O oeste paraen-


se é considerado de colonização antiga, enquanto o sudeste é
avaliado como de colonização recente. Altamira, irrigada pelo
rio Xingu, encontra-se no meio do caminho. Lula e Dilma
ali ergueram a hidroelétrica de Belo Monte. Um dos maiores
crimes contra a diversidade social da região, em particular os
povos indígenas.
Neste trecho Irmã Dorothy foi executada, no município
de Anapu. Ele abriga um importante polo de cacau, Medi-
cilândia, em particular. O município é referência ao ditador
considerado o mais sanguinário, Emílio Garrastazu Médici.
Os nomes de algumas cidades representam signos desta época.
Brasil Novo é vizinha, enquanto Novo Progresso encontra-se
noutro extremo.
Sobre a barragem, não faltaram alertas das ciências sobre a
inviabilidade da obra. Um painel independente de especialistas
o realizou. O governo petista fez ouvido de mouco. E, assim,
a obra abençoou a fortuna de velhacos políticos, a exemplo de
Edson Lobão, um borra botas da família Sarney. O economista
Delfim Neto, veterano da ditadura, serviu de consultor. Ema-
ranhadas tramas.
A encruza entre as três cidades polo, Santarém, Altamira e
Marabá é complexa. Grandes projetos desde os anos 1960 re-
modelam o espaço desta triangulação. Pelo fato em ter concen-
trado boa parte dos investimentos das políticas de desenvolvi-
mento baseadas em polos de madeira, de pecuária, de energia
e de mineração, o sudeste paraense igualmente aglutina toda
ordem de mazelas resultante dos programas.
118 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Nos anos de 1980 a hidroelétrica de Tucuruí foi erguida no


rio Tocantins. Demorada obra a contemplar fatias da burguesia.
Apesar de o Pará ser um dos maiores produtores de energia, a
população em geral paga uma das taxas mais abusivas do país.
Preço de arrancar o rim. O diagnóstico aponta para o impe-
rativo do saque. Destacam-se nesta triste aquarela de perdas e
danos elevados índices de desmatamento, recorde em trabalho
escravo e a liderança em indicadores de assassinatos e chacinas
de camponeses. Por conta de polo de gusa, abatedores e demais
atividades, os rios Tocantins e Araguaia encontram-se em si-
tuação de indigência. Privado lucro, socialização das desgraças.
Não raro um odor insuportável, em combinação com
fumaça de queimadas toma a cidade de Marabá todo fim de
tarde. Com relação à rotina da fumaça das queimadas para o
tratamento de pasto das fazendas, ela ocorre, também, sempre
ao amanhecer do dia. Lá pela metade do ano. Tempo em que
crianças e idosos tomam os hospitais com crises respiratórias.
Nesta época do ano a Transamazônica é pura poeira. O
que se costuma nomear por terminal rodoviário, neste períme-
tro, em sua maioria, não passa de mero improviso. Lanches e
refeições representam o possível.
Na estrada há três dias, um senhor branco, aparentando
uns 60 anos, tem como destino a cidade de Ourilândia do Nor-
te, no sul do Pará. Partiu da região de Sinop, Mato Grosso.
Reconhecido território de grilagens de terras. O próprio nome
da cidade é uma referência a uma empresa de colonização.
O operador de máquinas pesadas tem como missão traba-
lhar em fazenda recém-adquirida pelo patrão, que segundo o
Rogerio Almeida 119

senhor, tem como objetivo o cultivo de soja. Ourilândia é terri-


tório de mineração da Vale, assentamentos da reforma agrária,
indígenas Xikrin e pecuária. E, pelo que consta, agora, soja. Um
dia teve ouro.
O operador de máquinas a todo instante indagava se já es-
tava perto. Como uma ladainha, repetia a todos os interessados
que estava na estrada há dias. Correu a BR 163, Cuiabá-San-
tarém, a rodovia da soja. O setor almeja consolidar o oeste do
Pará como um corredor de exportação.
A pedra fundamental foi a construção ao arrepio da lei do
porto da Cargil, em Santarém, no início dos anos 2000. Re-
centemente um conjunto de portos tomou o espaço do distrito
de Miritituba, no município de Itaituba. Tanto num, quanto
noutro, expropriar é regra.
Peões e meninas do trecho são facilmente identificados no
busão. Ambos costumam viajar em grupo. As meninas exage-
ram nos trajes e maquiagem. Saindo de Santarém no sentido à
Altamira, ou o sentido contrário, Rurópolis costuma ser o ponto
de descida. Trata-se da quebrada para se tomar outro veículo em
direção à Itaituba e Moraes de Almeida. O garimpo impera.
Como diz a canção: o bagulho é doido e a chapa é quente.
Exemplo é a garimpagem em terras do povo Munduruku em
Jacareacanga, onde a FAB (Força Aérea Braseilria) carregou
bandidos para audiência com a pessoa que ocupa a cadeira de
Ministro do Meio Ambiente. O avesso, do avesso, do aves-
so....A mesma FAB da cocaína da viagem presidencial.
A turma do trecho não economiza em falas. Rememoram
as tretas no derradeiro local de labuta. As aventuras e desven-
120 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

turas no jogo e no amor. Outro segmento são os peões de fa-


zenda, estão sempre munidos de chapéus, botas e exagerados
cintos ornados por grandes fivelas.
Para uma pessoa paciente no exercício da escuta, a prosa
não rareia. Um experimentado andante da rodovia, morador de
quase todos os cantos onde era possível uma ocupação remu-
nerada, declara: “Agora andar por aqui tá uma beleza. Tá tudo
ajeitado. Já fiquei aqui por uns dez dias. Era esse o tempo para
se chegar à Marabá. Aí, o comércio aproveitava e metia a faca
em nós. Tudo caro.”
Antigos e novos peões e meninas prosseguem na encruza
no trecho, às vezes, em busca de dias menos doridos. Um lugar
ao sol, nestas paragens, sempre inclemente, untado por fumaça
de queimadas e poeira.

Esmeralda

(Be3Al2(SiO3)6) é a composição química da gema esme-


ralda. É preciosa. Incide no Brasil, Zimbábue e Afeganistão. É
tida como rara. Os esotéricos a consideram a pedra do amor e
da estabilidade financeira. A corda e a caçamba.
Desprovida de grana e de amor, Esmeralda correu o Nordes-
te para a cidade grande. Baixou São Paulo. Tom Zé defende que
São Paulo é a maior cidade nordestina fora do Nordeste. A nor-
destina Esmeralda trabalhava na casa de branco. Fazia de tudo:
limpar casa, lavar e passar a roupa e preparar o rango. Bandas da
Água Rasa. Trabalhava para um povo que se dizia de Portugal.
Rogerio Almeida 121

O cabra fazia contabilidade, trambiques e afins. Tinha


como deleite os braços da agiotagem. Uma valsa aqui. Outra
ali. De pinote em pinote levava a vida perdulária. Quando as
tramas rodavam a favor juntava o povo para passear em litorais
do país. O insano pelo Corinthians fez a cabeça da filha. Toda-
via, o caçula bandeou Barra Funda. O velho enfartou no dia em
que o menino declarou o seu amor ao Porco. E, pior, no dia em
que o moleque vibrou com gol do rival em plena via pública...
garoto sem coração....nem ligou para o pai tombado ao chão...
A mulher do portuga era da Educação. Havia sido miss
ou rainha de alguma coisa no interior. Por conta da coloração
dos zoio, achava-se a Marilyn. Não devotava trabalho. Passa-
va mais tempo no estaleiro. Colecionava licenças. Por milagre
conseguiu aposentadoria. Sabe Deus como... A dona era uma
verdadeira comédia. Após se apartar do Portuga virou habituê
de bailes da melhor idade. Curtia uma birita com o mesmo afã
em que fugia do trabalho. Num dos bailes furou blitz.
Ao ser alcançada pela viatura tentou carteirada. Tretar era
a sua especialidade. Para a guarda de baixa estatura disparou:
“Oh baixinha, tu sabes com quem está falando? Eu sou pro-
fessora....se a memória não trai, coube ao torcedor do Porco
acudir a dona educadora na delegacia...vexame? Mas qual o
quê....A dona educadora tinha como esporte a mudança da ca-
beleira. Acumulava perucas. Em um tobogã de parque aquático
durante deleite de fim de semana familiar, perdeu o adereço
capilar. Ao se certificar da perda durante a descida, convocou o
amasio: oh Manoel, ache a minha peruca....oh homi emprestá-
vel...gritava...para a alegria dos convivas
122 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Um dia atrás do outro. Até que, certo dia, Esmeralda acor-


dou com a pá virada. Danou-se que não batia bem da cachola.
Incorporou tanto o personagem que acabou no Juqueri. To-
mava remédios e choques na cabeça. Por conta da encenação,
passou a receber pensão, e o Cinema Novo perdeu uma estrela.
Oh Glauber....
O portuga ficava ressabiado com a secretária. Temia que ela
tivesse um acesso e colocasse vidro moído em sua vitamina afro-
disíaca. Além da “conge”, o sujeito colecionava outros amores.
Tomar o “elixir do amor” fazia parte da rotina do Manoel. Uma
espécie de obrigação de cardíaco. Remédio de uso contínuo..
A hóspede do Juqueri teve um enlace com um indígena.
O originário tinha habilidades de corte e costura. Assim como
Lampião. Só não metia peixeira em bucho alheio. Quando
Esmeralda bateu as botas, ninguém sabia o que fazer. Menos
ainda para onde mandar o corpo. Todos desconheciam paren-
tes. Esmeralda não era ninguém. Ninguém sabia quase nada da
gema de coloração esverdeada. A pedra preciosa da estabilida-
de financeira e do amor.

Bar do Parque - entre anões, profissionais do


sexo e aposentados

Sol quente. Perto de 40º na Praça da República. Cerveja


no Bar do Parque é o socorro. Apesar das férias o local tá cheio.
Uma turma do Projeto Rondon circula na área. Ceará, um senhor
encorpado, entre um gole de água e gracejos ironizando o Pay-
Rogerio Almeida 123

sandu, comercializa triturador de verduras. Ao fim do expediente


ele joga fora a tritura de dia inteiro: repolhos, cenouras, couves e
beterrabas. Penso que poderia ter um destino mais nobre.
Taxistas, biscateiros, profissionais do sexo flutuam por ali.
O espaço na década de 1980 foi local de agrupamento de ati-
vistas políticos e artistas. Duas vezes por mês, desde o ano pas-
sado, um coletivo intitulado Canalha ocupa a praça ao fim da
tarde. Faz rodas de samba, choro, carimbó e afoxé. Manifestos
disso e daquilo e coisa e tal.
Não há energia elétrica. Gelo socorre o freezer. Um senhor
de estatura modesta, cabeça branca disputa espaço no pequeno
balcão. Ceará brinca com ele. Diz que uma senhora com quem
ele fez sexo na semana passada foi a óbito, e que a causa mortis
foi a língua. A língua do Orlando parece ser célebre entre os
habitues do bar. Todos brincam.
Segunda cerveja. A prosa desfila. Iolanda, negra de uns 40
anos, corpo esguio engrossa o coro. Vestido negro com flores em
cinza não oculta o sutiã e toscas tatuagens. A migrante de São
Luís defende-se como profissional do sexo. Ela morou no bairro
chamado Anjo da Guarda, próximo ao porto do Itaqui, que es-
coa o minério saqueado na Serra de Carajás, a sudeste do Pará.
Iolanda pede cerveja para Orlando. Causos pipocam no in-
tervalo de goles de cerveja. Ela alisa o pau do Orlando. Amassa.
Ele ri. Fica vermelho. Não é de vergonha. Ela explica que é do
trecho. Já andou meio mundo entre o Maranhão e o Pará. Con-
ta que um francês de 70 anos banca o apartamento dela.
Orlando é aposentado e conhecedor de todos os putei-
ros do circuito da Cidade Velha. É uma pessoa habilitada para
124 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

consultor no assunto, e a produção de guia de puteiros na Ci-


dade Velha de Belém.
E tome amasso de Iolanda no pau de Orlando. Até o papo
ser interrompido por um anão embriagado. O pequeno cida-
dão traja somente um short verde. Ele reclama por uma dose
de cachaça. No Bar do Parque não vende pinga. Somente ovos
coloridos, café, conhaque e coisa e tal. Conhaque para o anão.
Toma a metade do copo em único tiro. O nanico que diz já ter
sido atleta do time de futebol Gigantes do Norte, - um escrete
de anões organizado pela Tuna Lusa - faz graças para Iolanda.
Elogia. Diz que ela é gostosa e coisa tal. Fica inconveniente, faz
flexões com uma das mãos nas costas.
Após quase meter a cabeça contra a parede no Bar do Parque
resolve ir embora. A energia volta. O problema ocorreu na Av. José
Malcher. Uns três caminhões operavam para equacionar o sinistro.
Terceira cerveja. Orlando aconselha que o melhor dia para
visitar a Praia do Outeiro é segunda feira. Ele explica com en-
tusiasmo o modus operandi. “A gente chega na barraca, pede
uma cerva, algo para comer. Não tarda as meninas encostam e
pedem algo. Meu chefe, a trepada morre por no máximo vinte
contos. E todos ficam felizes”, arremata o aposentado. Pago a
cerveja e sigo para contemplar a baía do Guajará no Ver o Peso.
Mais cerva na barraca do finado PC.
O carimbozeiro Curuperé e trupe encostam e puxam o
som. Tento ajudar na percussão. Curiosos espiam. Vez em quan-
do o chapéu circula. É mais de treze horas. A Preta chega. Pago
a conta e vou embora para uns dedos de prosa. e coisa...e coisa...
Rogerio Almeida 125

Cenas de Belém

13h. Sol a cozinhar a carapaça cansada. Faz 40º na som-


bra. Um jovem cruza a Av. Conselheiro de moletom. Capuz
sobre a cabeça. Depois eu é que sou o maluco. Daqui a pouco
a chuva precipita. O ponto de busão não tem proteção. Apa-
nho um livro de Mia Couto para presentear uma pessoa espe-
cial. Almoço no terminal rodoviário. Sempre no mesmo lugar.
Sempre o mesmo prato: peixe.
O calor é infernal. A cerva no boteco do Bigode socorre.
Um mala puxa papo. Tenho imã para malas. Ele já soma umas
seis garrafas sob a mesa. Bebe com uma prostituta mulata. Ela
tem as marcas da noite na face: olheiras e uma baita cicatriz do
lado esquerdo do rosto. E outra no queixo.
Não estou afins de papo. Pago a conta. No quiosque da ro-
doviária latinhas de cerveja. Mesmo canto, mesmo banco, mes-
mas atendentes. Coisa de velho. Seu Catiá cruza o passeio. Tem
uns 80 anos. É ás no violão sete cordas. Todo fim de semana
baixa na Casa do Gilson, a catedral do samba e do choro. Catiá
tem fama de mal humorado.
Fico preso por conta da chuva. Perco a soneca pós-rango.
Quando a chuva se esvai a tarde já caminha para o fim. Um
casal de idosos procura o ponto de ônibus. Desfilam de mãos
dadas. Ambos com a cabeça branca. Parecem recém-enamora-
dos. Morro de inveja.
Décimos, frações de segundos, porções de instantes, coisas
desimportantes......
126 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Diário de Bordo – Santarém-Marabá sob o sol


inclemente

O café ocorreu às 7h no km 140. Pão de queijo e pingado


(café com leite). O pão de queijo nas bandas de cá possui ou-
tro calibre. É maior e massudo. Dois pães e você praticamente
entope o bucho por boas horas. A empresa Ouro e Prata faz o
corre. Estranhamente a lotação não tá completa. Ouro e Prata
soa emblemático em área de garimpo, a exemplo de cidades
como Moraes de Almeida, Jacareacanga e Itaituba.
Vez em quando nova pesquisa sobre a presença de mercú-
rio no rio Tapajós é anunciada. O mercúrio é usado nos garim-
pos. Três horas separam Santarém de Rurópolis. Uma espécie
de entrocamento de quem vem ou vai para as cidades com forte
incidência de garimpo.
É uma bagaceira. Gente cheia de malas e pacotes. Fora
os barrigudin. Mês de férias das crianças. Abraços de despedi-
da. Vai com Deus aos montes. O busão lotou. Até aqui existe
asfalto. Muita gente sem máscara. Funcionários da empresa e
passageiros. O motora implica com uma jovem que carrega um
pequeno cão. Ameaça levar o bicho para o bagageiro.
Faz sol. Não avistei as meninas do garimpo. Em Ruró-
polis a empresa francesa Dryfus almeja erguer uma estação de
transbordo de soja. Outro grupo a instalação de um complexo
de Pequenas Centrais Hidroelétricas (PCHs). Fazer pequenas
PCHs é um drible no licenciamento ambiental. Grandes obras
promovem a expropriação das comunidades locais. Desde Ca-
Rogerio Almeida 127

bral a trilha do saque ganha em volume. Antigamente era a


Transbrasiliana que fazia o trecho nas quebradas.
No século passado era permitido fumar. E até carregar pe-
quenos animais. Tipo galinha, pato e porco. Viajar na empresa
significava aventura garantida. No busão que contava com ar
condicionado, era a primeira coisa a quebrar. Em seguida pneu
estourava, e outras coisas desmantelavam. O busão parava mais
que bicicleta de padeiro. As encruzas da vida. A gente se per-
de. A gente se acha. Na encruza deparei com Docinho. Ela do
Sudeste, eu do cangaço. Temperos distintos na panela do diabo.
Segue o busão. Poeira. A estrada acidentada faz as vidra-
ças tilintarem. Uma sinfonia. Uruará. Cidade imortalizada pelo
tráfico de madeira. Existe um atalho que reduz a distância até
Santarém em uns cem quilômetros e pouco. É a Transuruará.
É nela que o bicho pega. Quando os órgãos públicos de fiscali-
zação contavam com recursos e gente era comum operações de
apreensão de madeira.
Anos atrás fizemos o trajeto durante a noite. Entramos na
trilha às 19h em trajeto Marabá-Santarém. Ainda era o perí-
odo de disciplinas da pós. Gleice, Nete e Cleide completavam
a trupe. Risco nas alturas. No caminho, forquilhas. Erramos
umas três vezes. Nada de energia elétrica. Menos ainda sinal de
internet. Determinado momento o pânico era tamanho que o
medo sufocou a necessidade em urinar.
Aportamos na estrada de Curuá Una umas 2h da manhã.
Tudo fechado. Única pizzaria em frente a uma casa de mú-
sica sertaneja resistia. Até que tentamos comer, todavia, não
128 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

foi possível. Por preguiça em tirar as malas empoeiradas e um


estresse de viagem, resolvemos em seguir a trilha do tráfico de
madeira. Crime que até as pulgas dos cães mais sardentos de
toda a região conhecem.
Na trilha do saque, gente com motosserra, caminhões ca-
valo do cão. Tais caminhões ganharam o apelido pelo fato de
não contarem com a boleia tradicional. É o motor somente e a
carroceria improvisada. No busão, um pioneiro narra as tramas
de esquiva do Ibama. Um ipê vendido a R$1200. Pavulagens de
pesca, mulherada. Rios Iriri e Curuá.
Alcançamos Altamira. A cobertura de internet não co-
bre todo o trecho. Todavia, por todo o percurso existe pin-
guela. Trata-se de uma ponte de madeira. Ela fica sobre
córregos, igarapés e rios. Onde existe água há buritizeiros,
açaiçais, ingazeiras. Aves, peixes e outros bichos. Veredas.
Rosa. Guimarães.
Corremos Placas, Medicilândia e Brasil Novo. As derra-
deiras cidades possuem relação com a ditadura. Medicilândia
faz referência ao mais sangrento ditador, enquanto Brasil Novo
representa uma loa ao desenvolvimentismo. Assim como Novo
Progresso. Entre Placas até Anapu o cacau abunda. Superou a
Bahia. Nestes trechos tombaram Avelino (Santarém) nos anos
de 80, Dema (Altamira), Brasília (Castelo dos Sonhos). Todos
dirigentes sindicais. Dorothy Stang tombou em Anapu. Aonde
o capital senta praça instala-se a violência.
Altamira abriga Belo Monte. Trambolho idealizado na
ditadura e viabilizado no governo do PT. Velhas raposas no
Rogerio Almeida 129

rolo: Delfim, Lobão....grandes empreiteiras. A corrupção vem


de longe. Tempos dos generais. Faz calor. O ar condicionado
do busão sai vencido do combate. O busão lembra um micro
ondas. Até Altamira tudo é poeira. Metade da viagem. Sabe
Deus onde será o jantar.
Anapu. Parada para a janta e verter água, lavar a ven-
ta. Aqui mataram Dorothy e um monte de camponeses. Aqui
prenderam arbitrariamente o Pe. Amaro e o incriminaram.
Mais da metade do trecho. Busão lotado. Daqui para frente o
sudeste do estado se avizinha. Após a bacia do Amazonas, do
Xingu será a vez da bacia do Araguaia-Tocantins. Uma imen-
sidão. Um mundo farto de diversidade social. O cansaço toma
o corpo. Uns cogitam a chegada em Marabá por volta de 2h
da madruga. Fico surpreso. Geralmente seria por volta das 5h
em diante.
Marabá. Cidade polo do sudeste do estado. Cidade ta-
lhada na brutalidade do avanço do grande capital. Terra de
migrantes. Comecei a andar na região do Bico do Papagaio
no fim dos anos 90. Dois anos após o Massacre de Eldorado.
Tempos áridos. Clima de desconfiança. Qualquer um era con-
siderado como elemento suspeito. Um X9. Aqui foi a minha
pós-graduação sem parede. Devo muito às andanças nestas
quebradas. Saravá.
Santarém, Altamira e Marabá. Cidades polos. Cidades
configuradas pelo avanço do grande capital. Em todas elas exis-
tem universidades federais. Estranhamente, elas não dialogam
entre si, apesar das proximidades cimentadas pela presença do
130 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

grande capital. Marabá. Faz praia. O movimento de vai e vem


de gente é agitado.

Fim de tarde. Pôr do sol. Docinho defende que é mais belo


que o de Santarém, Discordo. É mais belo o rio que corre na
minha aldeia.

Iara, a menina que adora ler

A mãe tem feição indígena. Garante o sustento numa bo-


dega simples, escondida numa viela próxima a uma BR. Enten-
de-se melhor com os números. Desde os 17 anos de idade trata
com o assunto. Pedreiro, aposentados, funcionários públicos
e biscateiros frequentam o lugar. A filha, ao contrário, parece
uma jovem saída de romance parnasiano.
Iara, a rainha das águas, tem 16 anos. Nunca fumou. Mas,
padece de enfisema e outras chagas da respiração. É bem clari-
nha e magra. Cabelos encaracolados. Nos derradeiros dias tem
se indisposto com Maquiável, O Príncipe. Até onde a minha
ignorância deixa alcançar, - tão robusta - a obra é fundamental
para se entender coisas sobre a política.
Em tempos de hiperconectividade, Iara parece uma me-
nina fora do comum, fora do eixo, fora do esquadro. A mãe
da adolescente gasta tempo em visitas a sebos. Explica que o
quarto é cheio de livros. Queixa-se dos preços dos livros novos.
Rogerio Almeida 131

A jovem que se declara incondicional admiradora de Cla-


rice Lispector aguarda a digestão de O Príncipe para encarar
Utopia de Tomas Morus. Alan Poe já foi devorado pelo apetite
literário da rainha das águas, que aprendeu inglês por conta
própria, e exercita a língua estrangeira com os filhos do pastor
da igreja que frequenta. Um estadunidense.
A menina que adora ler, quase nunca vê televisão, surpre-
ende com a intenção profissional. Ela deseja ser engenheira
civil. As primeiras pedras para a construção do alicerce são as
melhores, uma leitura bacana, ainda que ela confesse simpatia
por Agatha Christie.
Rogerio Almeida 133

Parte II
Bulinações

Os conselhos que você me deu

Os conselhos que você me deu


Sem eu pedir
Fizeram-me chorar
Fizeram-me sorrir
Deixaram-me sem dormir
Os conselhos que você me deu
Sem eu pedir
Provocaram em mim um rio de ódios
Um mar de amor
Amor, o mar...quando quebra
É bonito...
Os conselhos que você me deu
Fizeram-me puxar ferro
Quando o mais terno é malhar sobre as rimas
Puxar uma daqui
134 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Remover outra pra lá


Chamar aquela para dançar
Enquadra
Olho fechado
Rosto colado
Cheiro no cangote: patchouli ou almíscar?
Sem eu pedir
Os conselhos que você me deu
Transpiração em breques de Moreira
Malícia de Ismael
Melodia de Ivone
Poesia de Melodia
Sirene de puliça
Estácio
Gonzaguinha
Um samba
Quem sabe?

Maldito professor

Frasco de Leite de Rosas. Róseo, rosinho, clarinho, tal as


mamas da deusa em desassossego fora do corpete em tarde mo-
dorrenta sob o úmido trópico do Equador. Rodovia. Periferia.
Calor. Colo de cafajeste, divã de viúva de meia idade. Alvinha.
Olhos claros. Toda lua. Viúva de pilantra, servidor do sistema
de segurança. Uma pororoca de bandidagem de diferentes pa-
tentes e nuances.
Rogerio Almeida 135

— Nunca imaginei em encontrar nos braços de um roto


professor o calor e o fogo de antigo amor. Em flagrar a calcinha
umedecida ao primeiro beijo. Ao primeiro toque. À primeira
bulinação em minha intimidade. Minha buceta, o rio Amazo-
nas. Acesa. Lava de vulcão. Você me faz perder o pouco juízo. A
reclamar o falo inteiro, até o talo, com a urgência de um navio
à deriva. Filho de uma puta!
Perdida. Perdida. Mil vezes perdida. Avalia a dama de
confortáveis salões da capital, encarcerada na cela franciscana
do operário da educação. Porra é essa? Indaga, por entre livros
e anotações espalhados por todos os cantos.
— Que faço eu cá, em colchão desprovido de cama, en-
charcado de fluídos de outras fêmeas, sob uma rede sempre ar-
mada, em quarto sem o aconchego de ar condicionado? Estarei
louca? Reflete a senhora, ao deparar-se na encruza em meio ao
redemoinho de crises sobre valores. Encharcada. Toda molha-
da. Múltiplos gozos. A pele lanhada pela barba por fazer. Gula
de faminto. Boca. Dedo. Rola.
— Seu maldito! Vagabundo! Tens a escuta que os outros
não me ofertam. Não fazes juízo das minhas bobagens. Ape-
nas escuta, beija, carinha, abusa, chupa e morde. Violas o meu
corpo e a minha alma. Maldito! Demônio! Meu vagabundo
preferido. Ajoelhada no colchão, os cotovelos apoiados na rede,
como em prece, ergue a bunda ao céu e ordena: - Vai, vai, enfia
tudo....me bate, morde, beijaaaaa...maltrata....
O afago era quase rotina. Sempre que as angústias precipi-
tavam sobre o seu ser, corria para os braços do malandro. Fazia
a assepsia da face dele. Frasco de Leite de Rosas, pacote de
136 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

algodão, pinça, estreia de calcinha, seios ao léu. A cada tentativa


de palavra, o sufocava com um beijo, mamas ou a xota.

— Morra! Morra, morra, maldito!!! Morra!

A menina dança

Homem negro de meia idade em loja de departamento


a desfilar em setor dedicado às mulheres. Arruma os grossos
óculos de grau. Olha, mede, calcula. Um segurança, igualmente
negro o espia, segue, persegue, espreita. Negro sempre é suspei-
to em alguns espaços. Em noutros, também. Incomodo. Des-
conforto. Herança colonial.
O cabra tem pressa. Caça uma peça íntima para um affair
de tardes modorrentas no trópico úmido sob chuva ou sol. Fê-
mea que transborda, enche uma cama. Ancas parideiras. Pernas
roliças. Mamas proporcionais. Boca carnuda. Fome de retiran-
tes vivida em inúmeras secas. Musa de Botero. Fina cintura.
Obra de rodas de samba e carimbó.
Um corredor à direita. Outro à esquerda. Pimba! Um
baby-doll preto é a escolha. Algo provocante. Cheio de assa-
nhamento. Ele pede para embrulhar para presente. Um pa-
cote encarnado. Batom lilás. O desenho das vestes valoriza as
costas. Nudez.
A menina dança. Até o sol raiar. A menina estrebucha de
prazer. Urra. Revira os zoio. Morde o errante. Tira pedaço. Per-
de a noção das horas. As horas na alcova é a terapia. O escape
Rogerio Almeida 137

de obrigações sem fim. Exigências a perder de vista. A alcova é


um oásis. Ao menos, por um momento. Vereda.
A menina dança. A menina estuda. A menina trampa. A
menina trepa. Até o sol raiar. A menina trapaceia privações. A
menina dribla tristezas. A menina trampa. A menina trepa. Até
o sol raiar.
Ele a enche de comida, bebida, afeto, poesia, gozos, go-
zadas, gozações, transpirações. É devorado por ela de todas as
formas. Ela tem a fúria e a urgência de quem pulou fogueiras.
20 anos nas costas de um casamento que perdeu o sal. Reben-
tos na algibeira da responsabilidade. Obrigações.
Alcova. Açude. Folia. Ali tudo era céu de estrelas em pra-
zeres. Um São João sem fim em São Luís. Carnaval de Recife.
Um maracatu em baque virado. Jongo na Serrinha. Quando
ele a presenteou com as vestes negras embrulhadas em pacote
encarnado ela lagrimou em silêncio.

Nunca havia recebido nada de presente. Mimo que ela devol-


veu com a gula de um condenado prestes a perder a cabeça em
um cadafalso. Ela o devorou. Nada sobrou no prato, além das
vestes ao largo.

Brava travessura

Nas imediações da rodoviária, desprovido de grandes atra-


tivos, mas, aconchegante, a rabaça da dona era o que de mais
bacana existia no bar. Redonda. Uma lua cheia. Farol de des-
138 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

validos e solitários, que ali aportavam para bebericar uma breja


e espiar uma partida de futebol, fazer uma fé no bicho, con-
tar potocas ou tentar aplacar derrotas da vida. E, claro, medir
aquela obra de arte esculpida por deus.
Mulher de fé, puxou magistério. Não sei por que cargas
d’agua o abandonou ou por ele foi largada. Mulher de fé, de-
votava Nazaré, batia cabeça no terreiro, riscava samba, adorava
música e inventava coisas na cozinha. Uma costela de suíno fez
sucesso. Venceu prêmio regional. O buteco era antigo. Herança
do pai. Seria padrasto?
Um sujeito, ali não sabe exatamente como aportou. Se foi
só ou acompanhado. Se sóbrio ou embriagado, não sabe. O cer-
to é que não errava o rumo. Ambiente familiar, mãe, irmão e
rebentos colaboravam na empresa. Havia horário para fechar.
Era cedo. Antes da meia noite. Somente os mais íntimos po-
diam ficar no interior do bar após as portas baixarem. Alguns
minutos para a derradeira breja.
Era necessário repor estoque e fazer um breve asseio no
ambiente. Quando deu por si, já estava ali, a ajudar na firma,
a contemplar de perto aquela coisa divina, matar a sede de
beijos e afagos daquela dona. E, que afagos. Loucuras de fa-
zer esquecer todas as faturas pendentes, brigas no trabalho e
intrigas de parentes.
Havia risco de alguém de chegar. O que tornava tudo mais
excitante e pulsante. Tapajós e Amazonas em arrebentação.
Naquele instante problemas deixavam de existir. Valia o risco.
Os extras eram realizados em outros cantos, becos, veredas, em
outros bares ou em outros lares.
Rogerio Almeida 139

Toda segunda, após o tambor para Exu era certo o encon-


tro. As vestes eram estrategicamente selecionadas para facilitar
a pegação. Onde ele morava, em prédio quase sem inquilinos,
por conta das exigências espartanas da dona portuguesa, as
preliminares eram realizadas em cada vão de escada. Às vezes,
mesmo nas cadeiras da entrada do prédio sob luz rala em rua
sem quase movimento. Bulinações, retirada de vestes, boca nas
mamas, boca na rola, boca na buceta...mãos ágeis em operação.
Tensões. Tesões.
Natal. Seria o réveillon? Encontraram-se. Rua vazia. Noi-
te de carícias, delícias, malicias. Lá pelo meio da manhã, a
despedida. Ela em vestido encarnado. Entre beijos calientes,
a excitação e a renovação de votos de tesão. Em pé, no centro
da sala, ela virou de costas, a calcinha de banda, ele atracou
naquela obra de arte, e ali se deu o boas festas e feliz ano novo.

Seriam eles cavalos de alguma cigana e seu Zé ???

Danação em rede de algodão

Dias. Tudo bem contigo? Espero que sim. Sonhei que a


gente se bulia numa rede algodão. Havia apreensão em seus
olhos. O risco da chegada inesperada de alguém. O desassosse-
go de interrupção do rito amoroso. Um flagrante. Crime pas-
sional. Gritos, insultos, soco, faca e bala. Corpos nus desprovi-
dos de vida. Um sobre o outro. Um dentro do outro. Angu de
sangue. Notícia de jornal.
140 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

A tarde estava tomada de chuva. Céu de amor em casa


avarandada. Passarinhos em revoada. Vento suave. Folhas e fru-
tos ao chão. Rede de algodão. Cheirosinha. Amaciante de bu-
linação. Você a judiar do meu corpo e da minha alma. O cego
forte. Rijo. Qual um sorvete de doce algodão a enfrentar vento
de praia no litoral do Maranhão. Touro de São Sebastião.
Ecumênico ateu a rogar por forças a Jesuscristinho, Nossa
Senhora de Nazaré, e aos tambores do candomblé. Mautiner
atômico em maracatu aperreado em ladeira da Cidade Velha.
Danação dos diabos em ebulição. Arrebatação. Arrebentação.
Tensões. Tesões. Muro de arrimo em ruínas. Só ruínas.....
Sonhei que a gente se bulia numa rede de algodão. Um
forró fora da quadra de São João abençoado pelas maldades
do deus Baco. Capitães da areia em capoeira. Um combate de
bocas e pernas.
Bulinação de rede. Pressas e desassossegos. Agonia e len-
tidão. Suspiros profundos entregozos. Tempestade tropical.
Beira de rio. Amores líquidos. Café forte. Cuscuz de arroz em
forma de coração. Cochilo profundo. Sem forças. Moribundo
do amor sob laje de grande cidade.
Sem pernas para fuga, acorrentado aos braços de uma
deusa de ébano à espera do juízo final... o sol...há de brilhar
mais uma vez....
Rogerio Almeida 141

Pano pouco

O pano é pouco para a bunda vasta. A dona ao se escan-


char sobre a moto a tudo expõe. Menos a alma, que em nada se
encaixa: partido, credo, norma ou casta. A moça, fluída tal água
de rio, corre entre as brechas das pedras no caminho. Ranhuras
na memória.
O pano pouco a quase nada oculta. Riso, vergonha, dores,
valores, horrores da vida. Dolores. Dólares. Duran. Máscara de
pandemia. Folia e carnaval. Musa de bateria. Corpo, peso, me-
dida. Anca de fêmea parideira. Fieira de filhos. Cinzas às quar-
tas. Fantasia barracão. O momo chora o fim da folia. O morro
ressoa os derradeiros repiques da bateria.
Vida, cobra coral. Bonita e vingativa. Vendeta. Armadilha
para cegos, o requebro para lá, e para cá da graciosa musa de
ébano em pouco pano para a bunda vasta. Anseio de faminto,
o naufragar no istmo de suas pernas. Poeta, Pelintra, pilantra,
vencido. Afogado.

Tapajós - o bar-boutique de Virginia

As pernas são torneadas. As nádegas generosas. Parecem


ocultar a idade. Sonegar a raça de Virginia (homenagem a
Wolf ). Apesar das ancas de negra, a comerciante é clara. O
acanhado comércio é um hibrido de boutique popular e bo-
tequim. Fica na orla de Santarém. Metá-metá, com se diz por
estas paragens.
142 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

O botequim, que também vende refeição, ocupa o espaço


menor. O interior acomoda três mesas de forma apertada. Pela
manhã, quando faz sombra, a comerciante espalha mesas e ca-
deiras na calçada. Minúsculo também é o banheiro, que fica
próximo ao local onde a refeição é preparada.
Virginia, que adota shorts que lhe valorizem as formas,
possui três funcionárias. Uma cozinha, a outra atende a clien-
tela, e a terceira fica na loja. Estivas, marítimos e comerciantes
frequentam a casa, cravada em uma travessa à beira do rio Ta-
pajós, que corre em paralelo ao Amazonas.
No perímetro do empreendimento do comércio de Vírgi-
nia, predominam lojas que vendem máquinas e equipamentos
de barcos, e de insumos para a atividade de pesca ou lavoura. É
possível encontrar ainda pequenos mercados, padarias e outras
boutiques igualmente populares. A lavoura não deu boa este
ano. Tempo de seca.
Nesta época do ano, em anos considerados normais, o rio
Tapajós já teria avançado sobre a avenida. Alcançado as lojas.
Nas feiras, abacaxis e bananas são comercializados mesmo que
nanicos. Uma caixa de papelão serve de depósito dos CDs pi-
ratas do bar. A sofrência é a trilha sonora, entrecortadas por
causos de garimpos e viagens da região. Noutro dia, um senhor
desprovido dos membros superiores, sorvia cerveja como se o
mundo fosse findar daqui a segundos.
O garimpeiro de estatura pequena, gaba-se em ser bom
de tiro. Por 15 anos peregrinou em garimpos do Pará, Mato
Grosso e das Guianas. Atualmente é dono de loja de roupas.
Com um amigo agenda visita ao puteiro assim que a loja fe-
Rogerio Almeida 143

char. Espero voltar ao local, outros causos conhecer. E, quem


sabe contemplar as formas de Virginia ou a ternura dos rios.

Vento do desassossego

Vrum......vrum......vrum... assobia o vento na fresta da


janela dela. Ela imagina, Gata Borralheira, Cinderela. Lua
cheia. Na mata ao redor Saci Pererê, Curupira, Mapinguari,
Matinta, Vasconcelos, Naná brincam de ciranda. Encantados,
encantarias. Pés a amassar a folhagem, ramagem. O vento...
jangadas ao mar.
Grota de água. Vereda. Era de incertezas. Ao notá-la an-
siosa, o vento cochicha no ouvido dela que o navegar é a saída
diante das trevas ao redor. Amazonas, Tapajós. Cais. Bajaras ao
riomar. Guitarra, fado, barco de teimosias e saudades. O vento
assobia. Horizonte destino. Ninho vazio. Choro de Sebastião.
O mundo é um moinho. A rua, o bairro, a vastidão, des-
vãos, quedas, levantes, murro, muro, declaração de amor, abala-
do, a balada. Escangalhado peito. Pleito, Iara, Janaína, Iemanjá.
Segue o rio....Segue o mar....águas noszoinho....
O vento assobia saudade. Caymmi...Viração... Gullar...
vrum....vrum....vrum..... Corro o que denominamos de escri-
tório. A parte que dá para a Silvino Pinto. Caminhões, carros,
ambulâncias e motos. Um universo de ruídos. Luz por todas as
latitudes. Ela parece sempre à espreita. A vigiar o que faço, por
onde ando no labirinto do lar, a hora do asseio, a medir cada
movimento. O meu tamanho. Vazio tamanho. O mundo.
144 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Uma maratona o deslocamento do quarto maior até à co-


zinha. Tomo água. Espio as coisas. Às vezes sento na cama da
nossa alcova. Leio livro físico. Tateio coisas sobre a tese no
note combalido de quedas. No entanto é na sala farta onde
mais me demoro.
O vento corre por todos os flancos. Assanha fantasmas.
Versos. Assombrações. Tesões. Babo a ausência dos seus mami-
los. Em cada canto da casa imagino um carinho. Afago. Aperto
o pau. Imagino sua boca. Uma trepada inesperada fora de ho-
rário e do prumo. Calculo a calcinha de banda. O falo em você
até o talo. Sinto seus gemidos no oco dos meus ouvidos. As
pernas bambas. A mordida em seus lábios. O suspiro de êxtase.
Vento na fresta da janela. Desassossego. À esquina, judia-
ria de Trevisan. Quintana a acenar da janela da quitanda. Um
trago. Samba de Ismael, “se você disser, que me tens amor”. O
vento...vrum....vrum...sirene de ambulância.
No interfone, carteiro.

DF: entre amores, uvas, cães e elefantes

O céu de Brasília é o mais belo do país. Acreditam alguns.


Parece pertinho da terra. Soa que na próxima curva esbarrare-
mos nele, em mergulho no Paranoá. Irônico o mais belo céu
cobrir um Congresso dos mais ordinários do planeta. Um ni-
nho de biltres. Existe exceção?
Há pés de jaca em todo canto em Brasília. E alguns abaca-
teiros. Abacateiro, como poetiza, Gil, eu também sou do mato.
Rogerio Almeida 145

Distâncias amazônicas. Quando em Brasília, tudo era estra-


nhamento. O preço das coisas em particular. Distrito Federal,
banca de negócios. Ao contrário do jogo do bicho, não vale o
escrito. Menos ainda o declarado em público.
Em andanças por lá, em um fim de ano gravado e crava-
do na memória, ao espiar o céu, toda nuvem encontrada guar-
dava a forma do rosto de um elefante ou uma montanha das
Gerais. Um riso largo. Um jeito de andar meio desengonçado
da musa conspiradora.
Vez em quando ela conspira em sonhos. Assim como um
cão que babou a bermuda em sua parte frontal antes da ceia do
natal. E, a cara gigante do elefante. A carona de um elefante
estampa a garrafa do licor Amarula. Nunca bebi tanto Ama-
rula como naquele natal no Planalto Central. Idos dos últimos
suspiros da década de 1990 para os dias iniciais de 2000. Uma
encruza civilizatória. Licor, uvas, uvas aos borbotões, sorvetes,
iogurtes. Baco, Dionisio, José Celso e Dona Ivone Lara. Uva
nas bocas, mamas, buceta. O exercício residia em sugar a uva
da catedral do amor, besuntar o pinguelo. Beijar, lamber, sugar.
Até o êxtase.
Amor aos borbotões. Camburões de gozo. Baba de quia-
bo a saltar da boca. Fúria de retirante da seca em banquete de
pratos das Minas, Gerais. Um contínuo de foda. Cansaço não
existia. Amor no chão, sofá, cama e banheiro. Fome de tudo.
Comidinhas, breja, pinga, vinho e Amarula. Licor na veia. Ma-
ruleira é uma planta da flora africana. É considerada a árvore
dos elefantes. O fruto é matriz para a produção de licor. Assim
explica um site de curiosidades sexuais. Amarula é a bebida do
146 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

tesão. Afrodisíaca. Bomba atômica considerada essencial para


um amor inicial.
Naquele natal no Distrito Federal pequenos papais- noéis
em escadas enfeitavam janelas dos apartamentos. A cena si-
mulava um cara em desencanto. Um suicida. Pelo menos, aos
meus olhos. Um destempero ante a gula do casal, quando tudo
é carnaval. Nenhuma ladeira de Olinda vencia a vontade de
ajuntamento. A todo momento. Ela, uma bela e encorpada
moça. Cria de família sírio libanesa. Mulher de encher uma
cama inteira. Devotava poesia. Manoel de Barros em particu-
lar. Barrancas do Pantanal. Contudo, para honrar os boletos
do mês, indispunha-se em uma assessoria de sindicato. Parada
nada poética.
“A vida é o fio do tempo. A morte o fim do novelo. Mi-
nas, Minas, é hora de partir. Vou-me embora pra bem longe...”.
Caymmi e Pinheiro não explicam onde sucedeu o Desenredo.
O cabra radicado no Norte, um migrante nordestino, educador
das fileiras de movimentos sociais ou seria educando? Em um
novembro, na Praça Mauá, Rio, ao realejo de dona Ivone Lara
e incensados por uma nuvem de fumaça de maconha, deu-se
o aconchego, “mas quem disse que eu te esqueço, mas quem
disse que em mereço”. Pense na saudade, “saudade amor, que
saudade, que vira pelo avesso” foi a trilha sonora. Mauá, Vila
Cruzeiro. Lonjuras ....
Rogerio Almeida 147

A irmã do táxi

O sol. A lua. As duas bandas da bunda em riomar de es-


plendor. Luz que a tudo ofusca. A dona, de olhos gateados, não
é negra. Nem indígena ou alvinha. A coisa mais mimosa que o
olho míope já espiou sob a luz do candeeiro do desassossego é
a mistura de tudo. As meninas do Brasil.
Crosta de coxinha tostada. Não era filha de Maria. Nem
de Eva. Marieva. A microcalcinha que adota é obra de satanás.
No peito, um coração febril. Fabril. Um coração de lata. Todo
santo dia, carnaval.
A dona do glúteo em questão tem inclinações indefectí-
veis para festivais de bulinações na mesma proporção que de-
vota à fé. Seria o contrário? Religiosamente, todo dia, cumpri
com as obrigações dizimistas em um espaço neopentecostal.
Destes que possuem uma filial em cada canto da cidade. A
rivalizar com as redes de farmácias.
Divorciada, zela sozinha por dois rebentos em idade de
universidade, um cão pitbull e um felino de rua. Defende um
troco como motorista de táxi. Seria uma lenda urbana? A via-
tura é toda emperiquitada. Os faróis possuíam cílios. Não lem-
bro se ela mesma os produziu ou comprou em algum lugar. O
badulaque despertava a curiosidade dos transeuntes.
A autônoma não é miúda. Nem grande. Talvez média.
Possui uma perna menor que a outra. Ao andar, manca. O in-
terior do carro exala o odor de jardim de vó. Puro jasmim. Tal
a condutora. Não é faladeira, nem hermética. Usa a palavra na
medida exata. Sem importunar o viajante.
148 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Viagem vem. Viagem vai. Até que um dia, a viagem fin-


dou na horizontal, precedida de um jantar. Como reza a regra
do cinismo: já que vou ser comido por você, paga ao menos...
Naquele momento deus não existia. A sagrada escritura pa-
decia de abandono. Tudo valia. Nada valia. Dionísio, Baco e
afins imperavam.
A moça não é Remo. Nem Payssandu. Talvez Tuna. Tem
a boca doce como uma sapoti. A carne macia como uma jaca
bago duro. Talvez caju, como acredita Valença. Mama mamilo
na mesma desenvoltura que um falo. Engole tudo, até o talo.
Nenhuma defesa a barra. Um ás em ressuscitar moribundos.
Médico a auscultar cada tantinho do corpo. Um afago ali, outro
acolá. A buceta, um regalo. Tão doce, quanto a boca. Jorrará
leite e mel?
Para a Garrincha nas maneirices dos gramados da arte de
amar, ao menos naquele momento, o pecado não existia. Entre
tapas, mordidas, beijos, chupadas em todos os flancos, ao longe,
na solitária rua da periferia, ouviam-se apenas alguns murmú-
rios: aí Jesus, aí Jesus, aí Jesus....
Rogerio Almeida 149

Parte III
Afetos

Alguém mandou

No morro, entre rimas, lágrimas, zincos e madeiras


Balas, balas, balas aos montes
Como se fossem nuvens de gafanhotos
Balas, balas, balas em toneladas
A cada instante, todos os dias, durante todo o ano
Balas, balas, balas de todos os calibres
Sobre o alvo do corpo negro
Balas em crianças, balas em adultos e balas em velhos
A bala mata toda a família com único disparo
A bala abala a quebrada inteira
O surdo
Cansado, silencia velório das derradeiras crianças alvejadas
Flor da idade
Morte à queima roupa
Alguém mandou...
Mandou matar de bala, de raiva e de fome...
150 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Delza 9.0

Delza, 9.0. Tal bambu verga, mas não quebra. No embor-


nal da trajetória traz algumas tempestades, amores, desatinos,
uma montanha de teimosias. Nove décadas nas costas, guarda
na memória prodigiosas histórias de perseguição aos comunis-
tas Maria Aragão e William Moreira Lima, ambos médicos.
Alertava: “não te mete com política. Olha o que fizeram com
Maria e Willliam....”
Na provinciana São Luís, ironicamente tratada por Ferreira
Gullar como Macondo, cursou Filosofia no Palácio Cristo Rei.
Prédio cravado na Praça Gonçalves Dias. Foi da primeira tur-
ma no tempo em que se estudava latim e francês. Relembra de
recitais de poesia, da bandinha do coreto...da Igreja dos Remé-
dios....é religiosa do seu jeito....vai à igreja fora do horário de
missa...devota Conceição...e ia à festa do terreiro de dona Ana,
na época, localizado à Rua Venceslau Brás, no bairro da Camboa.
Muitos dos colegas do curso de Filosofia garantiram as-
sento na UFMA como docentes. Ela rememora que por conta
do cônego Ribamar Carvalho foi preterida em detrimento da
amante do religioso. Tantas vezes ouvi essa história que ainda
hoje guardo na memória. “Aquele maldito cônego......”
Nos anos de 1970 foi mãe solo, - como se diz nos dias
atuais - de dois barrigudinhos. Um casal. Imagina ser mãe sol-
teira numa província do Nordeste do século passado, ter curso
superior, ser professora que ajuda a pensar? Na Viração, onde
passamos boa parte da infância e adolescência, quando do
aperreio de grana, os pregoeiros socorriam no fiado. Seu Be-
Rogerio Almeida 151

nedito, negociador de carne de porco era o mais frequente. Era


um senhor negro proveniente da Maioba. Pedaço de colchão e
costela era o recorrente.
Vem daí minha preferência pela carne suína, creio. Havia
também um cabra que negociava jaçanã. Uma ave que é pura
cartilagem. Comum na região da Baixada Maranhense. Quase
nenhuma carne. A receita consistia em fazer a mesma com ar-
roz, uns pedações de abóbora, arrocha na farinha e segue o flu-
xo da vida de aperreios. Carências acudidas pela irmã, primas e
amigas. Comunal. Matriarcal.
O fiado também existia no caderno das quitandas. Lem-
bro do comércio do Zé Escangalhado e dona Joana. Lá sempre
rolava uma roda de samba e choro. Camboa, Liberdade, Dia-
mante. Bairros sonoros. Macumbas, blocos de carnaval, escola
de samba, brincadeiras de bumba meu boi. Todo ano, no São
João, o Boi de Rosário brincava na porta de uns parentes do
bairro, dona do Carmo.
Meninas traquinas. Creio que de forma inconsciente
havia uma consciência de classe. As carências, a condição de
mãe solo, a emancipação as aproximava na solidariedade. Uma
aquilombação de mulheres numa ilha em que tudo tardava
para chegar. Gullar lembra que as informações sobre a Semana
de Arte Moderna só aportaram na Ilha após duas décadas da
sua realização.
Delza é franzina. Não sei de onde tirou tanta força para
criar dois barrigudinhos, dois netos, e hoje convive com o
bisneto Franklin, que a tira para dançar nas aulas de educa-
ção física, e dispara “bisa, você é dura”.... Sempre cantarola
152 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

canções antigas. E critica: “olha, isso tem letra...não são es-


sas coisas de hoje”. A professora do tempo do mimeografo
hoje usa rede social para falar comigo pelo menos umas duas
vezes por semana. Passa raio, carão, sermão....indaga do pul-
mão, doszoio, do coração...
Delza é Bolívia e Corinthians de coração. Ao falar com
Docinho (Thulla), minha companheira, sempre puxa o assunto
futebol. O Timão... sabe dos nomes dos jogadores, lembra o
placar do derradeiro jogo... reclama da ruindade dos caras...oh
time ruim, e ri.....diz que vai mandar email para o presidente
do clube e reclamar da escalação.
Delza ri, toma uma breja....sofre com a chuva...e dança
com o bisneto....o carinhoso...Saravá Delza, como milhares de
nordestinas, uma mulher arretada!!!

Socorro Salcher, presente!

Socorro, Graça, Roselys, Maria e Delza. Mulheres do Nor-


deste. Mulheres do Maranhão. Um matriarcado pesado. Todas
elas vinculadas à educação. Exceto Graça, que era dona de casa,
desposada por um professor. A solidariedade e o companhei-
rismo serviram como guia. Riram e choraram juntas. Festeja-
ram, tomaram umas, cozinharam e compartilharam comida e
lágrimas. Às crianças não era permitido ficar perto da cozinha
no momento do preparo do rango.
Aos domingos o porco era sagrado. Quando faziam va-
tapás e carurus, ou outras iguarias de macumba, aquelas que
Rogerio Almeida 153

demandavam quiabo, lembro que ficava à espreita para comer


as sementes. Hábito que perdurou por longo tempo. Quiabo é
iguaria de Xangô. Somente agora compreendo a relação. Sem-
pre considerei aquela semente saborosa.
Elas sempre se irmanaram. Delza e Maria são irmãs de
sangue. As demais são primas. No entanto, era como se irmãs
fossem desde sempre. Mulheres unidas pela condição de in-
dependência. Rebarbadas, diriam os machistas. Todas com fi-
lhos, ocupando postos de trabalho, a enfrentarem toda ordem
de barreiras e preconceitos. Obstáculos de todos as formas, em
todos os cantos. Na rua, no local de trabalho, na Igreja, etc.
Socorro era professora de Português. Militou nas redes
públicas do município, do estado e no Colégio Universitário
da UFMA. Trabalhava em todos os horários para criar três
rebentos. Dois meninos e uma menina: Leopoldo, Janilson e
Neta. Morava no Planalto Pingão. Depois vieram os netos, em
seguida bisnetos.
A gente se virava na fronteira da Camboa/Centro, rua da
Viração, no perímetro da Silva Jardim e a Celso Magalhães.
Pertinho da Caema. Visitar a tia/avó Edinete no Planalto re-
presentava uma aventura. Preparo de uma semana. O cheiro do
combustível do busão provocava enjoo.
Edinete devotava uma cerva. Era enfermeira de um hos-
pital do Bairro de Fátima. Quebrada de festa. Creio que era no
Hospital de nome Riod. Edinete era a mãe de Socorro.A ex-
tensa jornada de trabalho causou na tia problemas de audição.
Horas a fio em sala de aula. O problema fazia com que ela sem-
pre falasse como se em sala de aula estivesse. Educar é puxado.
154 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Uma educadora do tempo do giz de louça, nada recomendável


para uma pessoa afetada por asma.
A tia sempre dizia que eu não poderia contrair matrimô-
nio sem antes ajudar mainha. Sempre mandava a letra: “a sua
mãe, assim como as outras, sempre trabalharam muito para
criar vocês. Antes de qualquer coisa tens de ajudar a sua mãe. ”
Decepciono. Nunca tive o suficiente para retribuir como deve-
ria todo o penar de uma mãe solo em plena década de 70. Elas
passaram pela ditadura, hiperinflação e recessões.
Não lembro do envolvimento de nenhuma delas na polí-
tica partidária. Mainha sempre contava as histórias de Maria
Aragão e de William Moreira Lima. Rememorava as persegui-
ções da “puliça”, as prisões. Ambos eram médicos e militantes
do Partido Comunista. Vez em quando falava do poeta Ferreira
Gullar e da família dele. O clássico Poema Sujo imortalizou a
quebrada onde fui criado. Gullar nasceu na Viração.
O matriarcado definha. Graça partiu de forma precoce.
Creio que com menos de 50 anos. Já tem tempo. Eu não mora-
va mais em São Luís. Em seguida partiu Roselys. Era elegante.
Uma negra esguia. Fala mansa. Era crente. A única da tropa.
Mas, não chata. Era desprovida da missão em converter os pa-
rentes. Sempre a rir dos impropérios de Maria, a mais desbo-
cada, mãe de cinco filhos.
Do matriarcado original, sem citar as outras tantas tias
postiças, restavam Delza, Maria e Socorro. Era comum elas
comungarem um rango, uma cerva, risadas, dores de barriga,
descaminhos de filhos e netos, amores e desamores, lembranças
Rogerio Almeida 155

de quando jovens, aventuras do Centro da cidade, do Anjo da


Guarda, do bairro Fátima e do Anil.
Socorro partiu hoje. Era a que mais frequentava o hospital.
Inúmeras cirurgias no front de batalha. A beirar os 90, restam
Maria e Delza. A teimar. A enfrentar uma pandemia presas em
casa. Separadas, não por birra, que nessa idade....ohhhh

Ah, Valter, o tio de sangue é o bendito fruto neste time da pesada


de mulheres.

Angelina, a filha de Juazeiro nas brenhas


da Amazônia

Figura de Barca (Carranca) é feita pra espantar maus es-


píritos, ensinam os antigos filhos nascidos às margens do Velho
Chico, na ilharga da Bahia, lá pras bandas de Juazeiro. Figura
de monstro. Cara de dragão, cavalo ou leão. Arte do Mestre
Guarani. Carranca na proa e a fé em Bom Jesus da Lapa pro-
tegem no navegar. O enfrentar os rios da vida, as ameaças, as
guerras, as nuvens autoritárias. Espantar o Negro D´água, o
Caboco D água e o Minhocão. Os encantados do rio.
O rio é a vida do lugar. Pai e mãe de famílias a perder de
vista a renca de filhos. O pescador João e dona Pedrina não
desmentem a prosa. A bulinar sob a lua e o céu de estrelas
fizeram uns 10 barrigudinhos. Do mote de menino a Angeli-
na é a quarta. Em andanças em oposição à correnteza do rio
156 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

formou-se em Engenheira Agrônoma. Só quem nasceu na al-


gibeira do aperreio sabe o quanto é motivo de festejo ver um
filho formar.
E quando a menina/o é rebarbada/o e faz duas faculdades
então...lá na outra margem do rio Angelina cismou em fazer
Biologia. Petrolina/Juazeiro, Juazeiro/Petrolina. A ponte. O va-
por. Vai e vem. Todas duas umas coisas lindas. Anos de 1970.
Anos de ditadura. A copa do mundo de futebol transformada
em pingente de oficial. Euclides já disse: “O Nordestino é antes
de tudo um forte”. Sertões. Preá. Calango. Trecho. Migrar por
dias melhores é sina de parente.
Angelina correu Piauí. Defendeu-se em função no Incra
e na Secretaria de Agricultura. Em 1978, Copa do Mundo de
Futebol da Argentina, se aprochegou com Raimundinho para
nunca mais se apartar. Idas e vindas. Vazantes e cheias. A vida.
O rio. O mar. A poeira. A estrada. Marabá. Amazônia. Ro-
dovia. Distante lugar. Meio do mundo. Meio do mato. Lugar
de vida. Lugar de morte. Outro rio. Castanha. Onça. Ouro de
tolo. Raul. Encontros. Desencontros. A fronteira é faculdade
sem parede.
Nas lonjuras de casa Ana Luiza foi a amizade primeira.
Amizade no trecho é valendo. Valentia. Os laços foram feitos
na Escola da Igreja Batista. Em Nova Ipixuna, na época um
puxadinho de Marabá, sucedeu o casório oficioso. Em Ipixuna
Raimundinho fazia um troco em atividade de topografia.
Em 1981 veio ao mundo o rebento primeiro, João, dois
anos adiante apeou o Thiago. E, em seguida caiu no colo da
família a Das Neves, juntinha com a Jane. Anos de 1980. Ari-
Rogerio Almeida 157

dez na selva. Anos de violações contra indígenas e campone-


ses. Naturalização de mortes. Mortes aos montes. Impunes
em sua maioria.
Anos de peleja no Movimento de Educação de Base
(MEB), outras amizades, a Jaide, Júlia Furtado, Nagila e tantas
outras. Nestes tempos forjaram o Centro de Educação, Pesqui-
sa e Assessoria Sindical e Popular (Cepasp), e em definitivo
sentou praça nas fileiras da educação. Embrenhou-se em lutas
pela educação, moradia, e coisa e taus, Laranjeiras, Liberdade.
A fronteira é faculdade sem parede.
O Nordestino antes de tudo é um forte. Depois de anos
de escola cismou em cursar Matemática. Ainda hoje, prestes a
somar sete décadas de existência, mantém vínculo com a escola.
O jeito de falar da Bahia carrega até hoje. Aquele jeito desaper-
reado. Sem agonia. “Raiiiiii....cadê tu?”
Lindo caminhar se faz no caminho. Angelina pelejou na
Escola Liberdade e na Escola Paulo Freire. Enfrentou junto
com outras professoras a perseguição de prefeitos por militar
no PT. Tempos idos. Ao lado Julia Furtado, Maria Vieira e
Jaide labutou por mais de década na sub sede do Sintepp. A
fronteira é terra de migrantes. Outro dia a filha de Juazeiro foi
reconhecida como cidadã marabaense.
“Peixinho”, o professor e poeta João Martins é o único ir-
mão que tem como vizinho em terras distantes do Velho Chi-
co. Dinalva, outra parente, habita o Peba faz mais de 20 anos.
Jailson (Caião), um sobrinho, pelos idos do começo dos anos
2000 aportou em Marabá. Nas encruzas da vida fez uma opção
equivocada, e encontra-se noutro plano.
158 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Tenho dito, a fronteira é faculdade sem parede. Em casa


de Angelina nunca faltou um lugar para armar a rede, um gole
de pinga, um prato de comida, prosa, amizade. As Brigadas Po-
pulares e atividades na Comuna Cepasp animam os seus dias
de militante, e três netos, os momentos de afeto.
Em casa de Angelina e Raimundinho é bem vindo o peão
do trecho, o moribundo, o poeta, o cantor, o contador de causo,
o doutor em porra nenhuma. Sabença de quem enfrenta a cor-
renteza desfavorável dos rios da vida com a força das carrancas
do Velho Chico, a fé em Bom Jesus da Lapa e a solidariedade
dos pares. Axé!!!
Rogerio Almeida 159

Raimundo do Cepasp, o cabra do trecho ou


seria fronteira?

O mar da história é agitado. Cheio de ameaças e guerras.


E, vez em quando, os fatos põem o mundo de pernas para o ar.
Colocam tudo em suspenso. É pandemia, é a distância dos seus
entes queridos, são rusgas, e a ameaça a uma debilitada jovem
denominada democracia, aqui do lado de baixo do equador. O
mar da história vez em quando sacode a vida das pessoas, e ten-
de a desagregar os laços familiares, de parentesco e de amizade.
Promove a busca por outros caminhos, incentiva a aventura
por dias melhores em outros cantos que não a terra de origem.
Navegar é preciso, diria o poeta.
Migrar, rebateria o outro. A Amazônia é um mundo de
migração. Assim, como São Paulo, “a maior cidade nordestina
fora do Nordeste”, como brinca Tom Zé. Migrar é a busca por
dias menos doridos. Migrar é busca por ar. Migrar é um dos
maiores fenômenos dos nossos dias. Migrar é um ato pela vida.
Um aquilombar em outro lugar.
Incremento dos modos de produção, avanço das tecno-
logias, as desigualdades sociais, crises econômicas e políticas,
guerras, desastres naturais, falta de terras para cultivar e au-
sência de oportunidade de trabalho são alguns dos fatos mo-
tivadores do migrar. A migração tem tecido longo nas terras
dos Carajás, no sudeste do Pará. Raimundo Gomes, natural
do Piauí, que hoje soma ano de vida faz parte deste ambiente.
Isidoro e Rosa, os pais baixaram nas terras do Pará para labutar
em castanhais. A prole totaliza nove almas. É gente.....
160 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Isidoro era chefe de barracão de castanhal no povoado de-


nominado de Barreira Branca, de senhor conhecido por Dio-
nor. Rosa fazia as atividades do lar e zelava pela educação dos
“barrigudin”. Quando Raimundinho somou 60 anos os pais
ainda estavam neste plano, hoje não mais.
Contradições é o mar da vida. Isidoro no comando da
caderneta/contabilidade do barracão de oligarquias rurais, o
filho comunista. Raimundinho é um educador na essência da
palavra. A forjar trincheiras do educar. Educação na práxis
do libertar.
Já dizia João Cabral de Melo Neto, “um galo sozinho não
tece uma manhã”. E nas lidas da vida o educador somou com
muitos pares. Criaram o Centro de Educação de Pesquisa, As-
sessoria Sindical e Popular (Cepasp) na década de 80. O espaço
ganhou outros ares. Agora é uma comuna. A luta no campo e
na cidade. Terra e moradia. Cidadania, ainda que franzina. Diz
a lenda que o ‘comandante”, - como os mais jovem tratam o
educador -, desde miudinho era sabido. E, por isso foi enviado
para escola em Marabá. Cantídia foi quem garantiu abrigo ao
rebento alheio. No estranho mundo da migração as vezes ocor-
rem acolhidas.
Pelo que contam Angelina e o Thiago, a primeira, compa-
nheira de Mundinho há mais de 40 anos, e o segundo, rebento,
Isidoro e Rosa puxaram a mula do castanhal e conseguiram
montar um hotel na Av. Antônio Maia, o Hotel Santa Rita.
Nestes tempos o agrônomo e cientista social migrou para Be-
lém para cursar universidade. Em prosas sobre políticas e can-
ções, o militante manifestou em várias ocasiões não morrer de
Rogerio Almeida 161

amores pela capital. O motivo ao certo nunca compreendi. Lá


se defendia como era possível, até vender trecos no Ver o Peso.
O mercado é a mãe dos errantes. A república e a casa de
estudantes a família dos migrantes. Assim foi a lida do pai de
João e Thiago, vindos ao mundo na tumultuada década de 1980.
Os meninos são os rebentos biológicos. Tem a Maria das Ne-
ves, adotiva, radicada em São Luís/MA e a Jane. Após a “facul-
dade” do Ver o Peso, aprovado em Agronomia, o “comandante”
caiu em sala de aula da rede pública e cursinho a ministrar aula
de matemática. Fazer as contas no organizar a luta no educar.
Nem só de trabalho vive o cabra. Nas férias Raimundinho
adotava o bairro do Cabelo Seco como chamego ao lado dos
parças Ademir Martins e do poeta e escritor Ademir Braz (Pa-
gão), dentre outros ilustres devotos da luta, poesia e birita. Na
brecha do tempo corria comunidades rurais ao lado dos manos/
as de atividades do Movimento de Educação de Base (MEB).
MEB, CPT e CEBs, a santa trindade de alinhamento na forma-
ção dos sindicatos combativos. Foram fundamentais nas pelejas.
Militar por direitos nestas plagas distantes sempre foi
atividade de risco. Mundinho é testemunho de enterros a per-
der de vista. Contam os antigos que quando da morte José
Cláudio e Maria, mortos há pouco tempo em Nova Ipixuna,
a voz do comandante embargou no momento do discurso da
despedida. A fronteira faz gente querida. Apesar da aridez.
O trecho faz chorar mesmo o mais valente, ainda que tenha
consciência de classe.
Anos de 1970. Sombrios dias. Tempos de militarização da
Amazônia. Dias da Guerrilha do Araguaia. Em 1976, já com
162 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

o “canudo” Raimundinho senta praça em Marabá. Dona Rosa


não nutria simpatia pela militância do filho. Por ironia, vários
militares tinham no hotel dos pais de Raimundinho como mo-
rada. “O bagulho era doido”. Contraditório. Por conta do que
ouvia dos militares, Rosa corria terço pela proteção do filho.
Em tramas com parentes pintou uma chance legal de voltar à
terra natal. A oportunidade era um trampo no INCRA. Em
1977 se alinha com a Angelina por conta de atividade no Pro-
jeto de Integrado de Colonização (PIC), na cidade de Elizeu
Martins/PI, onde a companheira labutava.
O agrônomo era escalado para atividade em David Caldas.
O começo de tudo. Gelada, música e pá. A labuta era mediada
por contratos marcado por intervalos de desemprego. O mar da
história distancia. Aproxima. O mar da história arrebenta so-
bre a rocha a fazer outros desenhos, criar outros mapas, juntar
outras letras e gramáticas. Angelina puxou Juazeiro/BA, en-
quanto Raimundinho correu trecho para Marabá. Chão de dá
em doido. Não havia zap. A carta acodia o recomeço. E, assim,
assado, Angelina caiu na estrada a conhecer Marabá.
A fronteira é madrasta e o comunista fez enlace na Igreja de
São Francisco. Tinha até vela. Já faz quarenta e tantos anos. Chi-
co curte bicho e a natureza, assim como Mundinho. O mar da
história faz cada uma. Quem acreditaria que o comandante aven-
turaria Serra Pelada em busca de riqueza mágica? “Rodado” na
década de 1980 o agrônomo encarou a peleja. Ganhou um troco,
fez lambança pra burro, e comprou a casa onde mora até hoje.
Casa que sempre abriga outros errantes: gente de pé ra-
chado da roça, brancos pobres, pesquisadores, e por aí vai. Há
Rogerio Almeida 163

sempre um armador para uma rede. Um prato de comida, uma


dose de pinga, uma prosa amena. Outro dia a matutar ocorreu
que o cafofo do Raimundinho tem a feição de um quilombo.
Um território alternativo. Barricada, talvez. Esse dedo de prosa
era somente para felicitar o educador, já tá a se estender em
demasia, a transbordar maresias, a lembrar que “o homem co-
letivo sente a necessidade de lutar”.

A Mira partiu

A Mira nos deixou numa manhã de domingo ensolarado.


Tinha um pouco mais de 60 anos. Era uma negra magra. Mais
de 30 anos de Ver o Peso. Solteira. Tinha uns seis filhos. Todos
criados com a venda de comida e cerveja de uma barraca. Não
sei que matemática operou para tal proeza. Nunca a vi com a
face amarrada.
Ela jogava no bicho, tomava cerveja, disputava no palito
com os convivas. Todos os “malucos” estão amuados: André,
“Doutor”, Chicão, Tadeu, Vanzeler, “Careca”, Miltinho, a Ne-
gona do Bicho, a Gordinha do DVD Pirata....Chicão é um
negro que trabalha com embarcações. Tem mais de cem quilos
e altura superior a 1.80m.
Talvez fosse o frequentador mais carinhoso com a Mira.
Pagava refeição para ela. Às vezes comprava peixe e pedia a ela
fazer uma peixada. Compartilhava com quem quisesse. Sempre
que Chicão visitava o Ver o Peso tomava bença da comerciante.
Um sinal de afeto e respeito. Às vezes a tratava de mãe.
164 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Tudo foi muito rápido após o diagnóstico. Pouco mais de


duas semanas. O mercado ficou menos alegre com a ausên-
cia da Mira. O box dela fica próximo à área de embarque dos
barcos que levam a Barcarena. Frente para a Baia do Guajará.
Sempre que chove molha os frequentadores. O vento é forte.
O que torna o ambiente agradável. Não tive coragem de ir vi-
sitá-la no hospital.
A filha informou que ela havia definhado rápido. Falava
com a voz embargada sobre o quadro. Esses anos de Ver o Peso
não recordo do carinho dos filhos. Um ou outro passava lá. Os
homens pareciam mais próximos. A visita de um deles sempre
a alegrava. Ela dizia que ele nunca causara problemas. Ele apa-
renta uns 30 anos. Parece calmo. Esses dias ele apareceu por lá.
Os próximos dias serão amofinados.

A triste partida de um malandro

Não tinha nem pai nem mãe. Oscilou entre São Luís e
Belém. O Ver-o- Peso o aninhou. Assim se fez malandro. Indo
e voltando. Um doutor honoris em sobrevivência. Pouco mais
de um metro e setenta. Uns 90 quilos. Cabelos encaracolados.
Quase sempre em desalinho. Cantarolava samba de raiz sem
nunca completar uma letra.
Sempre usava camisa de manga comprida, apesar do calor de
Belém. Talvez para ocultar as cicatrizes das brigas em que se me-
teu. Era claro. E sempre andava armado com um lenço para enxu-
gar o suor que escorria da testa. Vendeu de tudo. Não sei se a alma.
Rogerio Almeida 165

Em terra de Nazaré, a Nossa Senhora, foi devoto do jogo


de porrinha e do carteado. Havia em seus olhos, que um dia
bamburraria no jogo do bicho. Nega e Careca ofertavam a ele
um número do dia. “Hoje vai ser cachorro”. Era comum a asso-
ciação com algum sonho ou pesadelo. Aprendi que sonhar com
morte é jacaré. Nunca entendi a lógica.
Raro era o malandro recusar um copo de cerveja. Às vezes
quando aportava na barraca da Mira, já havia mamado umas
doses de conhaque em outros cantos. Foi um ás em comprar
fiado. As pessoas brigavam, mas, assim que ele honrava a dívida,
voltavam a cair na lábia do suburbano. Um dia ele contou onde
morava. Sei que é uma quebrada. Não lembro o nome do lugar.
Foi casado. Teve dois filhos. Eles ainda são pequenos. Pelo
jeito, o enlace com a mãe das crianças foi tarde. A aparência do
“jogador” beirava a casa dos 50. Outro dia levou o casal de re-
bentos para passear no lugar que lhe deu a sobrevivência. Neste
dia não o vi ingerir bebida. E nem ofereci. Mas, são tantas as
distrações no mercado.
Por um tempo o velho de guerra se enrolou com uma
evangélica. A missão da irmã era ingrata. Desentortar o ma-
landro do Ver-o-Peso com mais de 30 anos de praça. Parece
que chegou perto. Por uns tempos ele sumiu da área. Aparecia
vez em quando. Nessas aparições, após o encontro com a reli-
giosa renunciou ao álcool. Ia ao mercado para matar a saudade
dos companheiros de porrinha e outros jogos. Ela chegou a ir
buscá-lo do front algumas vezes.
Narram no mercado que por conta dela puxou seis meses
de cadeia. As informações são desencontradas. Uns dizem que
166 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

ela, para se vingar da infidelidade do malandro, o denunciou


por agressão e pedofilia. Não sei se procede a fofoca. O certo é
que ele ficou vendo o sol nascer quadrado. Ele nunca recordava
o meu nome. E fazia mais de três anos que a gente tomava
umas cervas sempre na mesma barraca. Pedi a ele lembrar o
nome do goleiro do São Paulo. Faz uns 20 dias que ele desen-
carnou. A Rai que informou. Ela atende na barraca que foi
da Mira. O nosso QG. Estava com os olhos marejados. Não
reclamou da dívida. Parecia triste com os derradeiros capítulos
da vida de André.
“Acho que foi com você, naquele dia, que ele tomou as úl-
timas cervejas”, falou Rai. Uma senhora de meia idade. Cabelos
tingidos de amarelo. André perdia peso a olhos vistos. Todos
calculavam ser AIDS. Ele era frequentador dos “inferninhos”
que flutuam nos arredores do Ver- o- Peso. Naquele dia ele
reclamava de dor no estômago. Tomou de tudo que os biritei-
ros e erveiras indicavam. Ele acreditava que era úlcera. Pouco
mais de um mês internado foi a óbito. Morreu pele e osso. Foi
sepultado como indigente. Num desses sacos pretos que o pes-
soal do IML cata mortos na periferia. Foi vítima de um câncer
no pâncreas.

Chove em Belém. Quem sabe, uma homenagem aos entes invi-


síveis que partem ser tempo de dizer adeus.
Rogerio Almeida 167

Sol do meio dia

Ao raiar do dia a fantasia volta para o barracão, diz a can-


ção. Apito final. Fim de jogo. Fim de festa. Apagam-se as luzes.
Fecha-se o portão. Acabou o carnaval. Na encruza do ocaso
da celebração, pierrot e colombina tomam caminhos opostos.
Seu Zé Pelintra e dona Pomba Gira a tudo fitam. Guarda-se a
bandeira. Silencia o repique. Apartação.
A apartação é foda. Indo e voltando. Tombo de capoeira.
Chão de caco de vidros. Tempestade. A separação carregou tudo
que é possível acomodar em uma caixa de sapatos tamanho 38.
Levou a vesícula, o apêndice, o marca passo, o composto vitamí-
nico da melhor idade, até as pedras dos rins. Mesmo os óculos
de grau e o retrato em preto e branco de férias de natal.
Ficaram de fora o riso e a alegria, que nem cabem no pei-
to, onde sempre é folia. A separação é cura. Demasiada fratu-
ra. Às vezes, difícil de cicatrizar. Unha encravada em pisante
apertado acomodado em busão lotado. Siso a perturbar o sono.
“Quem me vê sorrindo acha que estou alegre/Meu sorriso é
por consolação”. Profundidade de Cartola.
A separação cura-se em altar de botequim. Na floresta en-
cantada de Alter do Chão. São João do Maranhão. Valei-me
Santo Antônio, São Pedro e São Marçal. Fogueira em lágrimas
nas toadas de bumba meu boi embaladas a tragos de conha-
que forte e cigarro fuleiro sob o sol inclemente no bairro do
João Paulo. Um turbilhão de lágrimas a desfilar confronte ao
batalhão. Pai Francisco e Catirina a bailar. Choro de onça no
desterro do meu peito.
168 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

A separação, fratura. Tortura das horas, quando o mun-


do era quase meu...te foste de mim. Poesia de Barata. Terra
em transe sem transa. A porta trancada por mil cadeados.
Chave extraviada. Rima em alto mar desprovida de bússola.
Bravura. Nau sem vela. Lampiões de gás. Damas na janela.
Drama/trama?

Bar do Amauri – o buteco mais underground


do Sá Viana

Anos 1990. Fim de século. O tornado da cartilha neolibe-


ral varria boa parte do planeta. A ordem residia em responsa-
bilidade fiscal, privatizar e desregulamentar. Azeitar a estrutura
para melhorar a desenvoltura do capital. Saciar a gula das cor-
porações. A ferrar os países ao redor. Naturalizar a fagocitose
da usura ultraliberal.
Nas perifas do Brasil setores populares empenhavam es-
forços em colocar nos trilhos demandas represadas por mais de
duas décadas de ditadura. Tempo em recolocar representações
da classe trabalhadora de pé. Tristes trópicos. O Estado ao cen-
tro pressionado pela agenda das agências multilaterais e pelos
setores populares.
Mother Love Stone, Pearl Jam, Alice Chains e Stone Pi-
lots, entre outras iniciativas encarnavam o que ficou conhecido
como sonoridade Grunge, a emanar a partir de Seatle e fazer
a cabeça da moçada. Mais que sonoridade, representava estilo.
Abaixo da linha do Equador, a partir dos mangues do Reci-
Rogerio Almeida 169

fe, jovens turbinavam elementos de matriz africana. Guitarra


de Maia. As alfaias ganharam o Brasil e o mundo. É mangue.
Maracatu pesado. Caranguejo com cérebro. É beat. É bite. É
Chico. É Science.
São Luís. O mar toma a cidade. Água por todos os lados.
Nos beirais da UFMA, na área Itaqui-Bacanga, no bairro
do Sá Viana, um buteco fuleiro acolheu uns meninos erran-
tes. Havia de tudo. Comunista, anarquista, liberal, maluco,
maloqueiro, até policial. Creio que o nome dele era Wilson.
Negro retinto. Estudante de artes. Quando o álcool trans-
bordava em sua cuca, ficava um saco. Baixava nele a essência
do capitão do mato.
O Bar do Amauri era simples. Contudo, bem localizado.
Ficava numa esquina. Colado a um ponto de ônibus. Ao lado
da UFMA. Ozimo, estudante de Física, creio, era o mais fiel e
frequente habitue. Mesas de sinuca. Um som precário executa-
va as fitas cassetes de rock, levadas pelos frequentadores.
Ozimo é grande. Em todos os sentidos. Cara de mal. O
rosto abrigava uns buracos de espinhas remanescentes da ju-
ventude. Cabelo longos. Um coração de borboleta. Chorava de
amor quando tocava uma canção de axé do Araketu. Não sei a
responsável pela judiaria. Oz toca múltiplos instrumentos. To-
davia, sempre andava armado com uma gaita.
Um bar. Um canto. Um lugar de abrigo de renegados que
se opunham ao Bambu Bar. Contraponto. Algumas mesas aju-
davam na composição do salão, onde era recorrente desafio de
xadrez. Fábio, estudante de Direito e o mano Lavousier empe-
nhavam horas sobre o tabuleiro.
170 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Nunca aprendi a mexer nem nos peões. Saber de torres e


reis nem pensar, sacar a construção do processo do xeque-mate
passava ao largo. Sacava nada. Nem o movimento dos cavalos.
E por falar neles, as carroças logo na estrada do bar represen-
tavam o cartão de visitas. Bar do Amauri. Um território de paz
entre os diferentes.
Uma pororoca confluía para o bar. Os meninos e meninas
de Filosofia - os Ribas -, a turma das artes, Silvia, Mônica, Cé-
lida, Núbia (Letras), Fabiano Lumbrega (Ciências Sociais), os
cabras do rock, Carlos Pança (Pereira), estudante de Ciências
Econômicas faz parte da banda Amnésia, enquanto Pedro e
Beto integram ainda hoje a Comportamento Estranho. Amau-
ri, vulgo Billy Podrão, compunha a Fome. Havia mais gente.
Os nomes e faces escapam.
Amnésia, Comportamento Estranho e Fome descortina-
ram no Amauri um movimento coletivo para a realização de
shows. Os meninos já agitavam o movimento em outros cantos
da cidade, a exemplo do bairro Cohatrac. Assim nasceu a Coo-
perativa do Rola o Rock. Havia até identidade visual no bar do
Camarada Amauri.
Se a memória não falha, o pescador, carroceiro e comer-
ciante era filho da Baixada Maranhense. A turma que cursava
Comunicação Social fazia os espetáculos de rock do Bar do
Amauri repercutirem na mídia local. Era rotina a inclusão na
agenda cultural e nas editorias de cultura, capas de cadernos,
pauta nos programas de rádio.
Amauri vez em quando apresentava uns peixes fritos para a
rapaziada. Pescado ali pertinho, na barragem do Bacanga. Lan-
Rogerio Almeida 171

che para amenizar a larica. Estica, modela e castiga. Território


livre. O senhor raramente usava camisa ou quando a usava não
a abotoava. Era comum ele guardar os nossos cadernos e livros
na sexta para a gente apanhar na segunda. Bar do Amauri. O
começo da farra, que desembocava para a Praia Grande, depois
para o reggae do Espaço Aberto, no São Francisco, até encerrar
numa praia ou seria um novo recomeçar de festejos?
Amauri ficou todo orgulhoso ao ver o nome do bar na
agenda da TV. Os parentes do interior ligaram para ele. Ga-
nhei umas Belcos devidamente quentes como agradecimento.
O Joacy Jamis era o responsável pela produção dos cartazes.
Não mais entre nós. Vivo entre nós. Fanzineiro, roqueiro, punk,
poeta e diagramador. Amauri vendia bem quando da realização
dos shows. Era tempo da cerveja Belco. O freezer não ajudava
muito. O comum era a breja quase tirada da grade. Conhaque
com limão e mel também fazia parte do repertório etílico.
A turma avaliava que o bar não resistiria ao avanço do ca-
pital. À especulação imobiliária. Dito e feito. Estrategicamen-
te localizado, possuía a régua e o compasso para um comércio
com maior musculatura. Um comércio da fé que espoca em
todo canto com a rapidez e violência de uma pandemia. A pro-
fecia se realizou.
O camarada Amauri partiu na semana passada. Padecia
de úlcera crônica. Ao seu jeito tolerou e abrigou uma horda
de gente inquieta em jornada de formação política, cultural,
afetiva, e coisa e tal. Após o êxito de venda de breja e pinga no
primeiro show organizado pela Cooperativa do Rock, Amauri
indagava: “Quando faremos outra orquestra?”
172 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Naqueles dias

A partir da Rua da Viração, berço de Gullar, o Ferrei-


ra, enviarei a esquadra de aviões produzidos de isopor para o
Detrito Federal. Tudo para atazanar a posse. Na infância, em
São Luís, era comum metamorfosear as bandejas de isopor do
supermercado Lusitana [extinto] em aviões.
Você podia simplesmente lançar ao vento, ou amarrar uma
linha de costura subtraída do kit familiar. As talas dos coquei-
ros faziam parte da arquitetura de papagaios e curicas. As ve-
lhas Havaianas colaboravam na composição de carros, tratores
e caminhões e afins na condição de rodas. Havaianas inúmeras
vezes otimizadas com pregos e arames para incrementar a lon-
gevidade. O atrito ao chão promovia um barulhinho bom.
A engenharia de lata tinha nas embalagens do óleo de Sa-
lada o outro componente. Naqueles dias, qualquer pedaço de
rua ganhava ares de arena sofisticada para peladas e outras ati-
vidades: rouba bandeira, pica esconde, amarelinha, cai no poço,
e outras brincadeiras que a memória não alcança.
Nenhum quintal escapava impune à sanha da tropa da
rua e vizinhança. Era comum assaltar os pés de manga rosa,
cajá, goiabeira, carambola, etc. E tudo ficava mais lindo quan-
do a herdeira do pomar tomava banho descuidada. Era a visão
do paraíso.
Naqueles dias distantes a soma das meias da gurizada
ganhava status de bola após o catecismo [nunca concluído].
Uma fatia do Atlântico era a nossa piscina de luxo. Ali, na
frente da Praça Gonçalves Dias, após a fuga da Igreja dos Re-
Rogerio Almeida 173

médios. Naqueles dias, a pobreza era rica em inventividade.


Nas noites de queda de energia, havia mais luz. As estrelas
alumiavam sagas sem fim.

São João Amofinado

Finda o mês de maio. Adeus Maria. Até qualquer dia.


Quem sabe, ano que vem, em aboie o guarnicê....neste ano, pro
modo de um praga maldita, será necessário adiar a festa. Zelar
a vida. Polir a esperança. Adeus Maria...até qualquer dia....que
neste ano, o guarnicê desdobra somente no meu coração, en-
quanto o fio de saudade parte-me ao meio. Bruto, tal peixeira
de valente.
Adeus Maria. Adeus Coração. Até qualquer dia. Neste
ano, nada de fogueira e balão. A vacina não chegou para todos.
Para muitos, a morte tornou em noite o dia. Milhares tomba-
dos na algibeira da estupidez planaltina, que ora, maltrata e
zomba sobre as cruzes espalhadas país afora, a perder de vista.
Um rio de lágrimas. Mar de indignação.
Maria, junho ronrona na porteira do dia. O sol arde na
moleira. O onça, mufino, acomodado em um canto, reclama o
rufar do pandeirão preso em uma escapula de rede. O onça sem
pandeirão e matraca não é ninguém. A trinca da boiada an-
seia o assobio do apito do amo, a convocar para o ensaio final.
Aquele que precede ao batizado do batalhão.
Querida, nada de tropeada na quadra junina. Tudo é vazio
no terreiro do Brasil. Nada mais banzo que um arraiá calado.
174 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Desprovido de bandeiras, sem barracas de quitutes: maçã do


amor, cachaça, milho assado e cozido, cocada, mingau de milho
de branco entupido de coco.
Santo Antônio, São João, São Pedro e Marçal não terão
paga de promessa. Pai Francisco, Catirina, caboclo de pena, bur-
rinha, a fileira de índia, tudo em retiro. Eh João Paulo de Mar-
çal, Maioba, Maracanã, Iguaíba, Pindoba, Ribamar.....como é
bom o tropear.....o virar o dia em aboio da sabença ancestral.....
Adeus Maria, que ano vem, quero chorar uma pororoca de
mundo, que seja de felicidade de brincante, feliz pelo seu bata-
lhão nas ruas....ao som dos tambores de África, Maranhão.....

Seis da manhã

6h da manhã. Tudo escuro ao redor. Mangas no chão do


caminho até a padaria. Pão doce para Docinho. Na copa das
mangueiras garças aninhadas. Lembra véu de noiva. Sobre o
asfalto o branco de fezes das aves impera. No meio fio o esgoto
corre para o rio. Cachorros latem ao longe. Mio de gatos em
cio. Telhados. Nada de eira, nem beira. Matos em telhas.
A cidade acaba de sair da bandeira preta da pandemia.
Soma perto de 600 mortos. Famílias em luto. Governo de an-
tas. Uns bostas. Incertezas. Avizinha-se de Manaus a cidade.
Orvalho nos meus olhos. Na parte superior de prédio ecoa
um som alto dos tempos da discoteca. Ruas vazias. Um segu-
rança atravessa a larga avenida sem pressa. Segue de bicicleta
rumo ao trabalho.
Rogerio Almeida 175

Feira da Candilha. Tudo quieto. Silêncio quebrado pelas


sirenes de ambulâncias e das viaturas de polícia. O som po-
tente de um carro explode como se bomba fosse. Sertanejo.
Uma praga daninha. Danosa. Ao redor, hospitais, laboratórios
e delegacia de polícia. Vargas com Silvino Pinto. Encruza. Ah,
tem o comércio do senhor Alves e pés de cabaça. Alves vende
de tudo, de pão a parafuso.
Espio os postes. Monte de fios em nós. Estranha rede.
O advento da fibra ótica transformou as estruturas. Soa como
uma intervenção artística. Aquelas que a gente não entende
nada. O sentido da coisa. Tudo entrelaçado. Lembra o cu do
diabo ou da gia, diria Mainha. Frestas de luz no céu da cidade.
Passa um pouco das 6h. Caminho sem pressa. O asfalto, além
de mangas caídas e fezes de garça, guarda os sinais da chuva
da madrugada. Uma serenata. Bom para dormir. A chuva da
madrugada abole o uso do ventilador. A chuva da madrugada
acalenta a alma.

Domingo. A chuva agiganta a preguiça. Espio Ouricuri, docu-


mentário sobre João Vale. Comovido.

Pomares

Cajueiros, cajueiros, cajueiros donos de frutos vermelhos,


fazem sombra em casas simples acomodadas em chão de terra
batida. Cajueiros, cajueiros, cajueiros, quando velhos, sem ga-
lhos, sem folhas e sem frutos afinal, indicam o fim da jornada.
176 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

Pés de caju abundam nas imediações onde moro. Assim como


de outras frutas. Bananeiras, por exemplo, ocupam o centro da
rua em alguns casos. Jambo e manga competem em exuberância.
As crianças, logo cedo, quando caminham para a escola,
catam do chão os frutos derrubados pela derradeira chuva. As
mangas mais machucadas por conta da queda ganham o status
de bola. Vermelho, vermelho sangue, quando em tempo de flo-
rir, o jambeiro forma tapetes vermelho sob a árvore. Lindo de
morrer. Lindo de ver. E, até desenhar a palavra amor.
Roxo, roxo, roxo chão. Assim fica a calçada onde incide a
azeitona roxa. Roxo tipo açaí. A iguaria tem guarida em vários
quintais. Vastos quintais, a acomodarem um mundo de pássa-
ros e assombrações, além de pitangueiras e goiabeiras. Pomares.
Ninhos. Folhagem a forrar o chão. Caroços de açaí frutificam
ao lado de cocos.
Rogerio Almeida 177
178 Amazônia: crônicas sobre o trecho, bulinações e alguns afetos

O autor
Nasceu sob o signo de Virgo em São Luís/MA. Desde
o fim da década de 1990 mora no estado do Pará, residin-
do em várias cidades, entre elas: Marabá, Belém, Ananindeua
e Santarém. A condição precária de trampo possibilitou que
ele conhecesse outras regiões do estado, a exemplo do Marajó,
Xingu e o Baixo Tocantins, e a delicada região do Bico do
Papagaio, na condição de prestador de serviços como educa-
dor ou como colaborador de ONGs. Além do Pará e estados
fronteiriços, conviveu com a garoa de São Paulo por um ano.
A lavra que ora se apresenta resulta destas andanças. Ao me-
nos, o que conseguir registrar e zelar ao longo dos anos. É
graduado em comunicação social (UFMA), possui mestrado
em planejamento do desenvolvimento (NAEA/UFPA), com
dissertação laureado com o Prêmio NAEA/2008, e doutorado
em Geografia Humana/USP. É professor do curso de Gestão
Pública e Desenvolvimento Regional, na Universidade Fe-
deral do Oeste do Pará (Ufopa). Gosta de samba, maracatu,
bumba meu boi e outros batuques.
Nos derradeiros dias tem empenhado esforços em pro-
dução de ensaios. Em 2022 foi laureado com menção honrosa
em concurso nacional do Instituto Moreira Salles (IMS), e um
segundo é finalista em concurso internacional promovido pela
Fundação Res Publica, Lisboa. Ambos possuem como foco a
Amazônia. Email: araguaia_tocantins@hotmail.com
Rogerio Almeida 179

Enquanto o sol se agiganta


Buzinas despertam periquitos, que saem em revoada
Da sacada da casa ou nave, a tapuia a rede embala
Fio de tucum
Fio de algodão
Sonhará com o quê: cachos de açaí ou flores em buquê?
A vida, por um fio
Aço de linhão
Em um ronronar de rabetas no rio
Amazonas, amarelo, amar-elo, mar sem fim
Amazonas, amarelo barro, amarelo barro de gente
Amar-elo mar sem fim, Amazonas
Sob o estribilho do tatear do capital
Que a tudo fagocita
Até o sorriso da tapuia, após o coito matinal
Amazonas, amarelo, amar-elo, mar sem fim
Amazonas, amarelo barro, amarelo barro de gente
Amar-elo mar sem fim, Amazonas
ROGERIO ALMEIDA nos surpreen-
de sempre, e esta reunião de textos li-
terários é a prova disso. Um dos poucos
cronistas que conheço que escreve como
fala e fala como escreve, discernindo-se
dos personagens, mas os conhecendo
por inteiro, porque escrever não é isolar
histórias. É, sobretudo, submetê-las ao
corpo social, cuja a única condição para o
escritor é ser realista por qualquer estilo
que queira escrever.
Este livro talvez esteja a anos sendo
escrito e, por isso, o seu valor literário, por-
que esta decisão de escrever em trânsito
subverte o romance ou mesmo o conto
estático, ou personagens enquadrados no
canônico, ou como deve ser a mobília de
uma boa crônica. É um livro de parlamen-
tos, ou de razões inglórias, mesmo quan-
do do desfecho, aliás, o seu brilhantismo
é a polifonia, um sem fim de personagens,
cada um com o seu transtempo e o seu
modo de transver o que lhe circunda.
É um livro de nômades, de gente que
se desloca sem nunca chegar ou que che-
gando, se desloca, afortunados ou não,
são personagens que edificam a vida so-
cial, criam e recriam suas ambições, tra-
fegam validando a descontinuidade e o
tino sensível do autor em saber elucidar,
operacionalizar a fala como valor de tro-
ca, produto social.
Mas, o que mais chama a atenção é
o cerne dos que se movem, o trecho- que
poderá ter inúmeros apelidos e neste
livro tem, assim como as paragens, as
corrutelas, as cidadelas, as transrodo-
vias que fazem migrar a imaginação. O
autor biografa tudo o que vê e dele so-
ergue a conjuração espontânea do que é
feito a dúvida e a pureza - neles lugares
de habitação - as feiras e seus aromas, o
feérico Urubu, cachorros, peixes, pastéis,
gente que trai e é traída, o outro imiscuí-
do, aguardentes, arrepios da pele e a luta
entre os que têm e os que não têm, por
assim dizer, o padrão da luta de classes
em solo setentrional.
Por fim, este livro tem a totalidade de
uma obra inigualável, seja pela experiên-
cia de escrever reportagens – a primeira
experiência literária do autor e a sofisti-
cada paciência de compor o enredo que
a vida transborda aos que vivem mais da
falta do que do excesso. Diria que este li-
vro expõe uma espécie de filosofia do tre-
cho ou manual do que é não viver vivendo.
Do começo ao fim, de trás para frente, ou
inverso, ou do meio para o início, é como
se percorrêssemos os milímetros, sem
cansar, uma jornada de desapego.

Charles Trocate, filósofo e poeta


Vicinal do Limão,
Palmares, Parauapebas, Pará
Janeiro de 2024
O TRECHO NASCE NO CALDO DO DES-
MATAMENTO, da floresta que sucumbe
em nome do saque, colocando sob ameaça
todos os seus encantados e saberes ances-
trais com os quais ela conflui. Saque perma-
nente: vidas, terra, floresta, minério, água,
energia... Se a ideia de fronteira descreve a
morfologia estrutural dessa forma capitalis-
ta da Amazônia, o trecho nos conduz à expe-
riência de suas dobras, dos mundos criados
nas fissuras da máquina de mover e moer
gentes. O trecho também descreve uma pai-
sagem, figura e fundo que agrupa natureza
e cultura, o tempo histórico e o da geologia.
Ele é desenhado pelas linhas de lugares e
superfícies que o livro percorre, como os tra-
vessões na Transamazônica ou nos buracos
nas estradas. Gambiarra para fazer a vida
encarnar o possível, o trecho são rastros,
movimentos, justaposições, confluências
de histórias que compartilham o chão Ama-
zônico no tempo presente do Antropoceno.
Juliano Almeida

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