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Lau ra Cavalcante Padilha

NOVOS PACTOS
Publicação patrocinada
pelo Instituto do Livro
e das Bibliotecas

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Ao escrever sobre M ia
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Hé ldcr Macedo,
Florbe la Espanca
ou Eça de Q ueirós,
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NOVOS PACTOS,
OUTRAS FICÇÕES,
Laura Cava lca nte
Paclilh a, presta um UNIVERSIDADE DE SANTIAGO DE COMPOSTELA
bom serviço a todos os FACULTADE DE FILOLOXÍA
inte ressados pelas
aprox imações BIBLIOTECA
I iterá ri as ele língua Este libra en empréstimo terá que ser devolto antes da última data sinalada.
portuguesa . Sa iba o
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os estudantes, bem
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procura - e
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portuguesa .

ISBN 972 - 810-222-4


PI~ÓXJ:\1AS EDIÇÕES
NOVO IMBONDEIRO

Caminhos c Figuras
da Filosofia do Direito
Luso-Brasileira
de António Bnv Teixeira
t:studos c documentos

O Café Centauro
- Crónica provinciana
de Norberto Á vila
Textos de Teatro

A filha do capitão
de A. S. Púehckinc
Trad. de Manuel de Scabra
Biblioteca essencial

Monção
de Vimala Devi
Autores portugueses

A marca na areia
de Lidio Mosca Bustamantc
Autores estrangeiros

As marés do Bacilon
Vol.ll
A balada de Kaloy Bura
de llenrique Abranchcs
Literaturas africanas

Ilhas riqueza,
NOVO IMBONDEIRO ilhas miséria
editores de Laura Areias
Estudos c documentos

NOVOS PACTOS, OUTRAS FICÇÕES Esse personagem,


de Laura Cava lcante Padilha
o vendedor
fo i composto em caracteres Times New Roman, corp o 12
de Aloyzyo Filho
e impresso em papel lO R 90 gramas
Vade-mécum
para TEXTUAL
por Gráfica Maiadouro, SA.
Da presente edição foram retirados 30 exemplares
numerados e assinados pela autora,
que constituem reserva do Ed itor.
Laura Cavalcante Padilha

NOVOS PACTQS,
Editor
JOSÉ MANUEL DA NÓBREGA
OUTRAS FICÇOES
Ensaios sobre literaturas
Título
NOVOS PACTOS, OUTRAS FICÇÕES afro-luso-brasileiras
Autor
LAURA CAVALCANTE PADILHA

Copyright © 2002
TEXTUAL e LAURA CAVALCANTE PADILHA

Direitos reservados para a edição em lingua portuguesa


TEXTUAL

Projecto gráfico
TEXTUAL

Capa
Cinto N'gongo (Angola). Amuleto de protecção,
representando gémeos de parto duplo ou múltiplo

Ilustrações
Ilustração de Fernando Júlio (Pág. 231)
"0 Pensador", estatueta Tchokwé (pág. 339)
Máscara de Muana Puó, a rapariga (Pág. 342) NOVO IMBONDEIRO
Organização de
Ana Maria de Oliveira
e Ana Paula Campos Lisboa, Outubro 2002
Impressão e acabamento
Gráfica Maiadouro, SA

ISBN 972-8102-22-4
Depósito legalu0 187 OI 8/02
estudos e documentos
Proibida a reprodução total ou parcial da obra sem a prévia autorização do editor colecção dirigida pelo Prof. Dr. Pires Laranjeira, da Universidade de Coimbra
Para Mathusalém,
por aquele 17 de fevereiro,
origem de tantos e profundos pactos,
como o que nos trouxe Nina e Luca.
APRESENTAÇÃO

Os textos aqui reunidos foram sendo escritos e publica-


dos nos últimos dez anos, ou talvez um pouco mais. Representam algumas
das minhas reflexões sobre as literaturas africanas - e de modo muito
especial a angolana - , bem como sobre a brasileira produzida por afro-
-descendentes e um pouco sobre a portuguesa, a lembrar meu início
académico e uma antiga e nunca esquecida sedução.
De certo modo, os ensaios, distribuídos em três partes, significam
minhas próprias ficções, ou um outro de mim, construído a partir das falas
literárias que me "abisma(ra)m", usando o termo, tal como o propõe
Roland Barthes, em seus Fragmentos de um discurso amoroso. Por outro
lado, devo admitir que, mesmo passando por uma selecção, não há como
superar as repetições inevitáveis e sempre reveladoras de uma espécie de
obsessão teórico-metodológica que está na base das, ou dá o suporte às
pesquisas que venho desenvolvendo e que foram/são financiadas pelo
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq).
Assim, embora os textos estejam localizados numa determinada
parte, eles estabelecem um elo com os outros, num diálogo de recorrên-
cias que se desdobram e suplementam. O arranjo é, pois, mais de ordem
pessoal do que teórico-conceitual, por assim dizer, obedecendo um pouco
à natureza das imagens que vou querendo fixar. Também, às vezes, tradu-
zo os textos em língua estrangeira, sobretudo, ou quase sempre, quando o
ensaio se originou de uma apresentação oral, como o leitor perceberá. Mas
nem isso está fundado num plano lógico.
8 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 9

De um lado, portanto, encontram-se os textos literários, como


pontos de partida ou como teias onde o meu próprio imaginário se deixou
prender. Ancoradouros. De outro, fazem-se ouvir as vozes críticas que
funcionam, parodiando um pouco o poeta Mário de Sá-Carneiro, como
pilares de uma ponte que vai de mim para os outros, ou seja, as produções
literárias e seus autores. A ponte, porém, não é de tédio, mas de gozo e
fruição. Por ela realizo minhas travessias e deixo solto o meu olhar que
não cessa de alumbrar-se frente ao desdobrado mar das obras literárias
escritas em língua portuguesa, principalmente, mas não só, no século XX.
Não foi tarefa fácil chegar ao título, dificil de aprisionar. A princí-
pio, seria Travessias do olhar, mas Helder Macedo e Fernando Gil já ti-
nham feito suas Viagens, também do olhar. Então, cheguei aos pactos que PREFÁCIO
geram ficções, que geram novos pactos, que geram outras ficções, num
nunca acabar. Talvez isso represente, ao fim e ao cabo, o meu próprio
gosto pelo moto-contínuo, fim que é sempre e também um novo princípio, "( .. .) O exercício da crítica não é separa-
como nas rodas da infância, onde, juntos, ouvíamos histórias, contávamos vel das opções básicas de quem o realiza".
e cantávamos, sabendo, com os nossos mais velhos, que a palavra é dádi-
António Cornejo Pojar1
va e uma forma de rito iniciático pela qual se unem a tradição e a trans-
formação, soldando as pontas da vida.
Ao referir os problemas então actuais da crítica literária lati-
Aos que me ajudaram nesta travessia, o meu obrigada, e a certeza
de que, como diz o provérbio cabinda, recuperado por Paula Tavares, "as no-americana, de que a brasileira é parte integrante, Cornejo Polar afirmava,
coisas delicadas tratam-se com cuidado". A ficção, em seus múltiplos des- em 1977, ser indispensável uma consulta constante da peculiaridade do
dobramentos, é algo para além de delicado, daí o meu cuidado de atra- objecto em estudo, pois uma das linhas fundamentais da actividade dessa
vessá-la muito, mas muito devagar. Recupero os versos de Edimilson de crítica é - considerava o critico peruano - , a par da pesquisa dessa
Almeida Pereira, em companhia de quem, uma vez mais, fecho uma apre- pecualiridade e do rigor de um aparato científico-metodológico, a "impor-
sentação: tante tarefa de descolonização", ou seja, a sua "integração no processo de li-
bertação social".* Considerava ele- e Laura Cavalcante Padilha com ele,
Vou pôr em palavras como o prova este livro, objecto imediato que me leva a lembrar Cornejo
o que não é possível. Polar que, sem cair em qualquer "beligerante isolacionismo", era/é
São águas-palavras importante criarem-se instrumentos crítico-metodológicos para - e eu
que se dissolvem. complemento-os - se recortar universos literários simultaneamente próxi-
mos e distantes dessoutro do "ocidente branco-europeu", como o são os lati-
no-americano(s) e afi·icano(s). Afinal, ambos acredita(va)m que essas lite-
No texto, como na vida.
raturas, sendo postulações objectivas e desiderativas de uma identidade
nacional, vão além do signo linguístico e remetem para "categorias supra-
-estéticas: o homem, a sociedade, a história" (Polar, 2000, p. 16).
Laura
E assim, numa posição temerária, "entre a obediência e a rebe-
lião", para não cair nem em exercícios críticos, em que o texto é pretexto,

1. Antonio Cornejo Polar, O Condor Voa: Literatura e Cultura Latino-ameri-


canas. Org. de Mario J. Valdés. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2000, pp. 22-23.
lO Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 11

nem em isolacionismos e em essencialismos, o crítico periférico - e para se constituir, passara por um outro processo de desterritorialização,
Laura é-o duplamente-, a contramão do "cânone ocidental", tem a árdua minerado no ensaio "A semântica da diferença". De outra parte, encenan-
tarefa de expor o fundamento de que as letras, africanas, neste caso, são do, ensaisticamente, em contraponto, as dobras narrativas costuradas por
parte integrante de uma realidade e de uma história que transita entre rótu- Assis Júnior, Alfredo Troni, Castro Soromenho, Mia Couto, Helder
los que vão do pós-colonial (Cornejo Pojar fala, e com justeza, de "neo- Macedo e Eça de Queirós, Laura articula postulações literárias de origens
colonial") ao pós-modernismo, um dos lugares problematizantes da civilizacionais e temporalidades históricas diferentes - Europa
actividade ensaística de Laura. Afinal, não disse Polar que "o exercício da (Portugal), África (mormente Angola) e América (Brasil)-, fazendo evi-
crítica não é separável das opções básicas de quem o realiza"? (Polar, denciar, nesta travessia de olhar crítico, a cumplicidade entre diferenças,
2000, p. 17). num jogo de semânticas espácio-temporais em que a heterogeneidade se
Vêm estas considerações, em contraponto, sobre a crítica das lite- torna produtiva. Neste rastreamento dialógico com as letras primícias, sua
raturas que se formaram - e ainda se produzem - sob o signo de "antiga e nunca esquecida sedução", a obra queirosiana - ou eciana,
beligerâncias várias (externas e internas), a propósito dos ensaios que como muitas vezes o texto de Laura imprime-, desdobra-se em espan-
compõem a presente colectânea. Trata-se de um macrotexto ensaístico que tos sexistas e racialistas, também ideológicos e culturais. E com que
a autora optou por recortar com os significantes "pactos" e "ficções", "espantado" prazer reli, navegando na urdidura interpretativa de Laura,
inseminados pela semântica da originalidade e da outridade. Ficamos, Eça de Queirós, um dos maiores romancistas de língua portuguesa, que
nós, leitores, avisados de que deveremos convocar outros protocolos de todo o estudante já leu e qualquer professor de literatura ou de língua por-
leitura para acompanhar o adentramento crítico que é feito das obras que, tuguesa já trabalhou, certamente inúmeras vezes, com um objectivo ou
sendo as mesmas, embora- algumas são-no-, neles se mineram outros com outro, na sua aula! E, no entanto, reler, por via indirecta, Os Maias,
lugares. Intitulou-o, Laura, Novos Pactos, Outras Ficções e coube-me, A Ilustre Casa de Ramires, O Primo Basílio, A Cidade e as Serras, ou um
por fortuna da amizade, e só por isso, a temerária tarefa de o apresentar. ou outro dos seus contos, foi encetar novos rumos intrepretativos, com
Os ensaios reunidos em Novos Pactos, Outras Ficções confirmam passagem por África, com o olhar esgazeado por vezes, mas que, diferen-
o lugar de Laura Cavalcante Padilha - depois de A Ilustre Casa de temente do anjo (benjaminiano) de Paul Klee, não apontou- nem aponta
Ramires: o Espaço do Desejo (1989) e Entre Voz e Letra: o Lugar da -para "ruína sobre ruína", mas para novas e cada vez mais instigantes
Ancestralidade na Ficção Angolana (1995) -,como uma das mais con- leituras de Eça de Queirós, cuja obra ganha, para mim, outros bordados
ceituadas vozes críticas das literaturas de língua portuguesa no Brasil, e, interpretativos.
particularmente, no campo dos estudos literários africanos de língua por- Mas as malhas de género, raça e etnia são também destecidas no
tuguesa, da literatura angolana. E isso não apenas pela substância de que rasteio da diferença - um dos pilares da contínua interrogação da autora
esse percurso se faz, mas também, e sobretudo, creio eu, pelo investi- ao cânone- entre tempos africanos diferentes. Em "Novas fiandeiras de
mento na busca de mais valias do diálogo entre as literaturas de língua palavras", Laura traz das margens do cânone não apenas temas, mas tam-
portuguesa, pensadas no sentido da articulação de convergências, sem bém sujeitos poéticos e autorais para que se possa ouvir "o grito diferente
silenciar as suas singularidades, nacioqais e estilísticas, antes tornando-as e, através dele, a fala dos excluídos dos rituais canónicos". Acompanhar o
estridentes, para as fazer significar. desvelamento das sombras do género, em que são expostos os "silêncios
Compõe-se esta colectânea de 29 ensaios, escritos para revistas da rompidos" no corpo da tradição, isto é, a marca da mulher, muitas vezes
especialidade, colectâneas de recorte temático e comunicações a congres- também sinalizada pelo estigma da cor, é um dos percursos obrigatórios
sos e conferências e, embora eclécticos em termos substantivos, e até de desta colectânea: de Alda Espírito Santo, Alda Lara e Noémia de Sousa,
intenção, primam, todos, pelo rigor da linguagem e pela sólida ancoragem suas interlocutoras privilegiadas na sonorização da fala feminina anti-colo-
teórica, sem nunca caírem no terrorismo terminológico. Dividida em três nial, a Odete Semedo, Vera Duarte e, principalmente, Paula Tavares, que a
partes, a primeira, "Dobras narrativas", começa por perseguir, pelos cami- insistência crítica torna modelar dessa performance de visibilização, a
nhos da ficção angolana pós-independência, a obra de dois dos maiores dicotomia, mais do que "silêncio vs. grito" do "corpo-em-diferença", é do
escritores angolanos, Boaventura Cardoso e Pepetela, mostrando a sua alumbramento da representação do corpo feminino.
performance desterritorializante dentro do sistema literário nacional, que, Aliás, a escrita ensaística de Laura privilegia a estética da pri-
12 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 13

vação, pelo resgate dessoutra fala, poética ou referencial, que vem de língua portuguesa, no Brasil e em Portugal. Neste ponto, quem acompa-
África e não consta do "cânone acidental", para pensar- não por ressen- nha o trabalho de Laura Padilha facilmente se apercebe do seu conheci-
timento, avisa ela, "respondendo" a Harold Bloom- as contradições que mento do que se faz em África em termos teóricos, seja em língua por-
0 habitam, recuperando Linda Hutcheon, um dos seus interlocutores na tuguesa, francesa ou inglesa (veja-se a bibliografia), o que mostra que esta
construção do tecido teórico destes novos pactos que nos são propostos. brasileira, não obstante não abdicar do seu lugar de onde olha as literaturas
Mas nessa travessia pelos trilhos dos "arquivos do silêncio" (Jacques Le africanas- por "estradas deliciosamente marginais do conhecimento críti-
Goff), lugares originais são garimpados, para que não se pense tratar-se de co"-, busca na sua investigação, uma heterodoxia não apenas do lugar da
um trabalho de "simples" análise textual, a noção canegando, aqui, todas crítica mas também da teoria.
as insuficiências de interlocução contextual que tal actividade pode sug- Heterodoxia que a terceira parte, significativamente dedicada a
erir. Por exemplo, torna-se significativo, no jogo de visibilização das frac- "Diálogos, reconversões, contaminações", realiza: contaminações discursi-
turas e lacunas do edificio canónico eurocêntrico - "branco-ocidental" vas e genológicas, diálogos inter-artísticos e intertextuais que pontualizam
- , e masculino, a convocação de publicações como No Reino de Caliban, convergências de intenções, reconversões de saberes e de preceitos pri-
Mensagem, Jornal de Angola, Encontro com Escritores para ilustração da mordiais e derivações imagéticas, que operam ressignificações outras
dupla privação estética do feminino que o tecido canónico dos países de sobre os mesmos sentidos do memorável (um fio de pesquisa que remonta
língua portuguesa manifesta. Outrossim, o seu instrumental teórico é uma a Entre Voz e Letra)- e acompanhar a leitura contrapontística da poesia
sinfonia de diferentes históricos, diferença de tempo e lugar, e de con- de Ruy Duatie de Carvalho e de Francisco José Temeiro, por um lado, e de
temporaneidades diversas. Vale, no entanto, enfatizar dois aspectos que Edimilson Pereira, por outro, ilustra essa convergência processual de res-
ressaltam desse trabalho de tecelagem de preceitos: o primeiro é a neces- gatar velhas palavras em novas formas.
sidade de interrogar o cânone, atingindo-o no seu fundamento, e o segun- O fio do tecido ensaístico deste livro é a diferença, considerada
do é que tal interrogação só é produtiva quando dialogante. Assim, os o grande articulador dessas "outras ficções", ou seja, um dissenso inter-
interlocutores privilegiados na urdidura dos seus preceitos operacionais nalizado na própria tecelagem textual e que é capturada pela recepção
trazem tanto a voz da ciência literária como do instrumental para o aden- crítica, a partir do Brasil, lugar de onde Laura lê. A tensão entre o local
tramento da enunciação cultural que habita as malhas textuais. E só para e o global, entre dicções que se digladia(va)m, em produtivo recontro,
referir alguns dos mais insistentes - Walter Benjamin, Roland Bmihes, até à distensão do arco literário, harmoniza-se na escrita pelo luminoso
Tzvetan Todorov, Northrop Frye dialogam tanto com Boaventura de desvelamento que, inteligente e criativamente, Laura Cavalcante Padi-
Sousa Santos, Edward Said, Homi Bhabha, Fredric Jameson e Linda lha empreende neste livro. Com estes ensaios, os estudos literários
Hutcheon como com os africanos Manuel Rui (Monteiro), Hemique africanos de língua portuguesa ganham um (re)dimensionamento teóri-
Abranches, Kwame Anthony Appiah, Georges Ngal, Alassane Ndaw, Pius co- já agora minha antiga obsessão-, tão necessário devido à postu-
Ngandu Nkashama, Mohamadou Kane, Tidjani Serpos, Makhouta-Mbou- ra exclusivamente analítica que o tem dominado, que consiste muitas
kou ou com o senegalês Makhily Gassama, sem dúvida o interlocutor vezes em retirar o texto do contexto do qual emerge, rasurando-lhe a sua
privilegiado de Laura. Sem falar da contribuição brasileira que chega pela historicidade. Neste sentido, e parafraseando Makhily Gassama, tão
pena do incontornável Antonio Candido, Alfredo Bosi, Silviano Santiago, caro a Laura, a sua fala crítica é feita de palavras parteiras, na medida
Leda Matiins, Vera Queirós - para só citar alguns poucos da galeria em que, pela convocação de sabedorias antigas (no caso, no sentido do
daqueles que perspectivam a literatura como sistema de signos inserido saber do substrato cultural), articulam-se outros saberes que permitem
numa série social. Para além de outros críticos, africanos e brasileiros, de responder a questões actuais que tais literaturas (se) põem.
que um olhar pelas notas de referência dará conta, com os quais o diálo- Já tivera eu o privilégio de conhecer muitos dos textos (quase
go se estabelece para se chegar ao "inconsciente político" dos textos e todos) que ora são apresentados em forma de livro. No entanto, lê-los
torná-lo inteligível à sociedade e utilizável pela cadeia alimentadora da segundo a organização sequencial da autora deu-lhes outras (novas) si-
imagem da identidade nacional. Por isso, o que seu trabalho tem vindo a gnificações, firmaram-se novos pactos entre emissor e receptor (eu) -
mostrar, também, é a necessidade de conhecimento da outridade teórica, como quereria o destinador desta actividade de leitura que eu empreendi.
porventura uma das maiores lacunas dos estudos literários africanos de Não houve, pois, repetição na leitura dos ensaios que compõem o presente
14 Laura Cavalcante Padilha

livro desta professora da Universidade Federal Fluminense com a qual


tive a fortuna de me cmzar um dia, no já longínquo ano de 1984, em
Lisboa, era eu ainda estudante na Faculdade de Letras. Passaram-se
muitos anos: eu fiquei (apenas) mais velha, ela, mais velha e sábia ...

Inocência Mata
Rio de Janeiro, 22 de Agosto de 2001
Novos pactos, outras ficções 17

FACA AMOLADA:
TRADIÇÃO E RUPTURA EM
BOAVENTURA CARDOSO!
"O velho de milénios também pode
atingir a modernidade: basta que se
apresente como uma negação da
tradição e que nos proponha ou-
tra".

Octavio Paz

O pacto com a modernidade literária dá-se em Angola há


aproximadamente quatro décadas. O salto qualitativo chega quando o pro-
dutor textual se conscientiza de que o moderno pode ser encontrado naque-
le "velho de milénios" a que se refere o crítico mexicano. Retomam-se pro-
cedimentos artístico-verbais característicos da tradição oral e o "horizonte
estético"- é ainda de Paz a expressão transforma-se. A tradição antiga
faz-se, dessa feita, tradução do novo, sendo "uma das máscaras que a mo-
dernidade ostenta" (PAZ, 1984, p. 20-21).
No caso específico de Boaventura Cardoso, é certo que, quando, em
1977, edita o seu primeiro livro- Dizanga dia mue-nhu- já se encontrava
bastante sedimentado o edificio da moderna ficção de Angola. Esta cons-
trução começara a ter os seus alicerces firmados em 1952, mais exactamente
com três narrativas curtas nesse ano publicadas: A praga, de Óscar Ribas,
Náusea, deAgostinho Neto e VôvôBartolomeu, deAntónio Jacinto. Como já
afirmei- Entre voz e letra, 1988-, tais produções representam, no panora-
ma literário, três formas distintas de mentar angolanamente o texto em prosa,
dentre outras que se poderiam recortar por vias diversas de pesquisa.

1. Publicado em Singularidades de uma cultura plural. Organização de Cleonice


Berardinelli, Gilda Santos, Teresa Cristina Cerdeira. Rio de Janeiro/Lisboa,
Universidade Federal do Rio de Janeiro/Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação
José Bonifácio/Fundação Cultural Brasil-Portugal, 1992, pp. 316-320.
18 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 19

Retomando o que no texto referido afi1mei, penso que aquelas históricas passa a ser a matéria da carpintaria narrativa: cf. Juca meu avi/o
obras se ligam a maneiras arquetípicas de pensar/dizer o texto, aproximan- (pp. 81-95). Em certo sentido, os textos funcionam quase como um pacto
do-o de exemplos discursivos anteriores, que o imaginário percebe como autobiográfico, com a vivência pessoal do sujeito da grande enunciaç-ão
sendo nacionais; sempre seguindo o eixo da tradição oral. No caso de Ribas, "escorrendo" pelas fendas- quase veias em sangue- abertas no corpo
ele traz para a cena, dando-lhes absoluta precedência, os usos e costumes da da narrativa. Talvez advenha dessa vivência o privilégio que ganha na
sua terra. O conto de Neto abre um lugar de adensamento do suporte ideo- obra o olhar infantil, cuja inocência se perde quando se pula do jogo da
lógico, faca que se amola para cortar os liames que unem a produção de bola para o da própria existência que a todo o custo se deve preservar. Meu
bens culturais do colonizado à do colonizador. Já António Jacinto busca a toque e Nostempo de miúdo são representações do procedimento.
desalienação da forma artística que deve passar a corresponder ao conteúdo Fica bastante explícita a função didáctico-pedagógica das narrati-
que a obra literária, mobilizada ideologicamente, procura disseminar. Aqui vas que compõem Dizanga, dentro da melhor tradição da modemidade
a adaga tenta atingir o ceme do próprio gozo estético. literária angolana. Para atingir o objectivo formador que se pretende, o
O corpo negro do discurso é, nesse momento de ruptura, "montado" discurso de Boaventura entrega-se eroticamente à própria fala do seu
pelo branco e, da margem onde se encontra, grita a força da sua diferença, povo. No enfrentamento entre palavras próprias e alheias - recorro a
desafiante olhar para a utopia da fala hegemónica que se segue, querendo afir- Bakhtin - , o sujeito da enunciação busca tomar própria a fala semi-
mar, para manter, o primado do centro: -alheia que era a sua, herança do colonizador. Para tanto: "a impregna com
sua intenção, com seu acento, [... ] a domina, relacionando-a com sua ori-
o meu poema é um poema que já quer entação semântica e expressiva" (1986, p. 105).
e já sabe O texto assim concebido não pode ser apenas lido, mas pede para
o meu poema sou eu-branco ser ouvido e falado. Os suportes gráficos, morfo-sintático e semântico
montado em mim-preto obedecem aos ditames dessa falescrita que Boaventura, seguindo a
a cavalgar pela vida. tradição já estabelecida por produtores como Luandino Vieira, reforça. A
(JACINTO, 1985, p. 51) expressão angolana é buscada preferentemente nos musseques, lugar pri-
vilegiado da cenarização narrativa. Com aquela expressão, representa-se
A partir de Dizanga dia muenhu, desde a escolha do título, a festa da palavra marginal que, radicalizada, reafirma a sua alteridade.
Boaventura mostra querer tomar ainda mais afiado o corte da faca que, Pode-se estender, para os contos de Dizanga, o que Femando Martinho
por exemplo, a linguagem luandina tomara afiadíssima. O título, em afirma para os de O fogo da fala: "A maioria dos contos do volume [ficará
quimbundo, é o que é, sem qualquer movimento de tradução. O leitor não valorizada] com uma leitura em voz alta, de modo a percorrer-se integral-
angolano deve procurar meios que lhe possibilitem conhecer a outra lín- mente o ciclo proposto[ ... ]: fala-escrita-fala" (Prefácio de O fogo, 1980,
gua que não lhe acena com qualquer facilidade escamoteadora. Com p. 14). Confrontem-se as seguintes passagens:
isso, o escritor mostra o lugar de onde quer e vai falar. E não dá qualquer
passo para além da fronteira que a "língua da tribo" demarca entre ele e o Kuateno! Kuateno! O grito rebentou no ventre atmosférico rapi-
outro. Na Lagoa da vida, como num útero, os mores 2 culturais e simbóli- damente na kazucutice do Xamavo. [ .. .]. Kuateno! Kuateno! Tudo
cos do homem angolano parecem querer renascer, com as estórias que nas corridas para acaçar o dinheiro na panda de Nga Xica rou-
sobre ele se contam. E os signos que traduzem isso fazem-se cada vez bado. Na berrida os fiscais também estavam.
mais opacos e intratavelmente nacionais. (p. 47)
Nessa primeira obra, de um lado, está o passado mais recente, ou
seja, o da trama de opressões que leva àquele "sessenta e um quente" que Pernas velozes pisávamos espaço rectangulm; suarentas catingas
o narrador recupera em Nostempo de miúdo (pp. 57-62); de outro, repre- transpirávamos, nós camisolados, eles costas reluzentes. Na cor-
senta-se o presente pós-libertação, quando a nova correlação de forças rida outravez, jogada agora no campo de lá, avança Totoxe [ ..},
corta, miá, miá, mialálá.
2. Bens. (N. E.) (p. 57)
Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 21
20

Cabeçacabisbaixo Bàstião sai. [. ..]. Cerco espaço capequeno, é entrecortada por frases em português, para que se possam cruzar, na via
passarinho sem voa, a vida é. de mão dupla linguística, os dois códigos sobre os quais se apoia o texto.
(p. 70) Os signos, dessaforma entrecruzados, n:wvimentam-se em orgíaca
rotação: "Tat'etu uala mu diulu, Teteca! Mamã! Fechaste o portão? Sim
O jàgo da fala, segunda obra do autor, representa, no panorama da mamã. Dijina dié adiximane, ungana ué uize kokuetu. Xé! É quê? [ ... ] é
sua novelística, um salto estético. Quase ousaria dizer que, "pós-moderna- parece é o gato" (p. 69).
mente", o fogo consome a sua própria fala anterior, o discurso perde bas- Quase sempre, tal fala babélica é um dos traços da caracterização
tante do carácter formativo que ainda existia em Dizanga e a radicalização do nível actancial. O nanador, esse, preserva o seu lugar de consumidor
desloca-se para o ceme da fala literária que mais e mais se adensa como alto da cultura letrada, adquirida, sobretudo, no livro pmiuguês, literário ou
"língua da tribo". não. Isto, entretanto, não significa que aquele que conta deixe de participar
A imagem do fogo é, aliás, uma das mais significativas na trama da roda comunicacional do seu povo: no jogo representativo, assume o
do tecido textual de Boaventura. A palavra artística é fogo que alimenta a papel do contador da oralidade cuja fala e gestualidade o leitor-ouvinte
fogueira da criação. Nesta fogueira, a língua portuguesa como que se facilmente reconhece, por ser ele também convidado a participar da roda.
dobra, qual feno em brasa, ao uso angolano. Makhily Gassama, autor serre- Ao assumir o seu papel, o nanador com frequência usa um registo que
galês, a propósito da submissão da palavra europeia ao uso do falante oscila entre poesia e prosa. Daí o poder afirmar-se, para os seus contos, o que
africano, afirma que Octavio Paz, na obra citada, diz sobre o romance que considera "o género
moderno por excelência e o que melhor expressa a poesia da modernidade: a
Esquecemos que a História nos condenou, a nós, negro- poesia da prosa", (1984, p. 53). Nos contos, "prosa e poesia empenham-se
-afi·icanos, a nos exprimir em português, em espanhol[...} são as numa batalha" (idem p. 54), em que não há vencedor. Ficam eles, assim, num
palavras da França, precisamente, que se devem dobrm; subme- entrelugar genérico que lhes confere uma nova dimensão artística.
ter-se para ganhar os contornos, por vezes tão sinuosos, tão Por outro lado, a leitura de O fogo da fala revela ao leitor não-
complexos de nossos pensamentos; é necessário que elas admi -angolano a significação africana da palavra que, como ensina Gassama,
tam desvios, já que se arriscaram a atravessar os mares é objecto de verdadeiro culto naquele continente. Por ela, o mundo
(1978, p. 21) invisível se pode transportar para o visível, não por meio de ideias
abstractas, mas pelo prolongamento concreto deste visível que elas repre-
A questão linguística não se restringe, no entanto, apenas ao uso sentam. O conto "Pai Zé canoa miúdo no mar" é emblemático nesse sen-
do português fora da norma culta em·opeia. Também as línguas nacionais, tido. A sua leitura possibilita que se aquilate o poder da força mágica da
sobretudo o quimbundo, assumem um novo status de objecto literário nas palavra, sempre um mais-além de si mesma, ainda segundo Gassama:
produções da modemidade. Desse modo, a herança cultural do silenciador "falar, para o negro africano, é por todos os motivos 'parir' o verbo,
sofre uma transformação profunda, ao expressar-se na língua do silencia- colocá-lo no mundo como se fosse um ser vivo" (1978, p. 54).
do. Sendo um mesmo, tal herança é já um outro, diferente do original. Ao perseguir, cada vez mais densa e tensamente, esse valor mais-
Pensando a questão das línguas nacionais, vale assinalar que, para -além do verbo africano, Boaventura chega à obra publicada em 1987, A
grande parte da população angolana, é essa língua que vem do berço o morte do velho Kipacaça, e com ela dá um salto no seu salto estético.
principal instrumento para que se estabeleçam aquelas "solidariedades Diferentemente das duas outras, o título é tirado de uma das nanativas, o
particulares" a que se refere Benedict Anderson: "O que os olhos são para que obriga o leitor a direccionar para ela o seu olhar. Também fica bas-
o amante [ ... ] a língua é para o patriota. [ ... ] Por meio dessa língua, que se tante evidente que o produtor textual abandona qualquer projecto forma-
encontra no colo da mãe e se abandona apenas no túmulo, reconstituem-se tivo que antes tenha tido. São os mores culturais do homem angolano que
passados, imaginam-se solidariedades, sonham-se futuros" (1989, p. 168). saltam para o centro da cena discursiva e de lá comandam e organizam a
É paradigmática, em todos os sentidos, se se quer reflectir sobre festa de prazer do texto.
esse espaço de fala babélica que os textos recuperam, a cena da reza do O elemento principal que será mobilizado para se obter esse novo
padre-nosso em quimbundo, no conto "Mona Kasule é ngamba". A oração efeito estético é a tradição oral que não é apenas recuperada, como se dá
22 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 23

em obras anteriores, mas é usada como uma fonte de produção de senti- O herói Kipacaça, caçador de fama, grande contador de estórias,
dos novos pelos quais se radicaliza a dimensão artística do objecto. Tudo não se auto-representa. Como os heróis das narrativas populares, sim-
isso, no entanto, exige que o olhar do receptor procure outros sinais, mire boliza a voz colectiva que nunca se permitiu emudecer. Por isso, o velho
noutra direcção, para o que deve usar o seu e o repertório que leituras é marca, corte, ferida e cicatriz.
anteriores de textos angolanos lhe ofereceram. Quando esse missosso 4 contemporâneo se fecha, antes de
Essa re-orientação do olhar se extasiará, ao perceber as demandas Kipacaça entrar na metafórica "roda dançante", ele diz: "Eu estou
do novo objecto artístico que se delineia pela mistura plurilinguística, uma morto!!! Katumbila é o novo Kipacaça!" (95). Ou seja: a vida partida em
das suas marcas mais profundas. Recuperando uma fala de Manuel Rui, duas que se rejunta, mostrando que o novo (Katumbila) só ganhará a
chega-se à ideia de plurilinguismo e à de pátria, multiplicada: "Ser pátria dimensão ontologicamente angolana se carregar como seu o nome do
assim, multilinguística e multicultural, é ser-se mais rico para a criativi- velho: Kipacaça. O novo não vale apenas por si, mas pelo que o gesto de
dade [ ... ].Numa pátria assim, sempre o real se decifra por ângulos cada transformação alquímica lhe confere: o peso da tradição, pois que esta é o
vez mais diferentes e a própria criação é a multicriatividade, pelo que é principal elemento de produção de sentido no contexto africano.
essencial: o homem" (1981, p. 33). Com relação, por fim, ao discurso hegemónico do ocidente, A
Nessa linha de raciocínio, percebe-se que A morte do velho morte do velho Kipacaça mostra-nos toda a força de sedução da nova fala
Kipacaça procura os caminhos da "multicriatividade" herdada da mátria da literária angolana. Em forma de moto-contínuo, retomo Octavio Paz: "O
tradição oral. Sem que se pretenda negar as conquistas do discurso literário novo nos seduz não pela novidade, mas sim por ser diferente; e o dife-
eurocêntrico - o que seria rematada tolice - , busca-se a garimpagem do rente é a negação, a faca que divide o tempo em dois: antes e agora"
que há de potencial artístico numa forma discursiva que "o mais-saber" do (1984, p. 20).
ocidente marcou com um sinal menos. A margem é convidada a mostrar o Concluo: faca amolada.
sentido da sua fala, e o que antes era silêncio agora se faz grito.
Talvez o leitor, acostumado com uma concepção discursiva
emergida de outra margem chamada América Latina, descubra paren-
tescos, relações, ilações entre as narrativas desta obra de Boaventura e as
produções do chamado realismo mágico hispano-americano. Mas se
relações há, só se pode buscá-las nessa "fala marginal", tramada muito
mais na falta- penso em Lacan- que no excesso. Fala desafiadora, que
às vezes parece delirante; fala que desliza, negaceia, escorre por fendas,
sulcos, buracos, sempre se apresentando como "língua de alguma tribo".
Ela afirma e reafirma uma presença num lugar que se julgava vazio. Por
isso incomoda e muitas vezes é negada.
O velho Kipacaça, montado na .sua pacaça de "tamanho gigante,
chifres dourados, peito debruado, patas luzentes" (p. 94), aparece, no final
do relato, para dançar no seu próprio komba 3, festa da sua morte. Mas vai
além disso: ele torna visíveis, por "montá-los", os mitos que estão na base
de todo um sistema de representação simbólica que discursivamente se
manifesta em makas, missossos, provérbios, adivinhas, enfim, ém formas
pelas quais o imaginário se revela, desde os tempos em que o tempo não
era. Memória recuperada. Festa da linguagem ...

3. Óbito. A Autora fala em festa, e, efectivamente, o komba tem um ar festivo,


sobretudo aos olhos estrangeiros, com música, dança e batuque. (N. E.) 4. História, conto, em quimbundo. (N. E.)
24 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 25

territoriais angolanas onde, ao invés de marcas brancas, avultaram senza-


las e quimbos, como negros sinais.
Essas duas Angolas, conforme a história mostra continuam
' '
mesmo depois da independência, dentro e fora do texto literário, a excluir-
-se ou, pelo menos, a defrontar-se, como avalia Aníbal, personagem de A
geração da utopia, romance de Pepetela:

FICÇÃO ANGOLANA PÓS-75 Há duas Angolas, elas se defrontaram. Duas Angolas prove-
PROCESSOS E CAMINHOS! nientes dessa cisão da elite, a urbana e a tradicional. [ ..]. Feliz-
mente nesta guerra houve um empate, nenhuma destruiu a outra.
Mas continua a haver duas Angolas. Temos de tapar esse fosso,
"Tradição e ruptura espelham-se reci- voltar a criar as pontes.
procamente e a dialéctica dos dois termos (1992, p. 306)
esclarece a quantas andamos nessa
Em certa medida, a ficção contemporânea, em seu empenho ideo-
grande esquina que é a história do nosso
tempo." lógico de contribuir para a construção da nacionalidade, por diversos proces-
sos e caminhos, busca definir os limites do que significa uma fala literária
Gerd Bornheim própria. Nesse sentido, acirra-se o desejo de recuperar tudo aquilo que é
percebido pelo imaginário como representativo de um passado local onde se
fincam as profundas raízes de uma identidade nacional que como se sabe
Desde há muito que tenho insistido na eficácia simbólica ' '
está ainda em processo de formação, dada a diversidade étnica existente.
de dois espaços que com frequência servem de base para a cenarização de
Esse mergulho em busca da raiz, sem qualquer traço de nostalgia,
contos, novelas e/ou romances angolanos. Trata-se, por um lado, de
perpassa produções nanativas surgidas contemporaneamente em Angola,
Luanda, sem sombra de dúvida o locus privilegiado da ficção contem-
ou mesmo fora dela, como se dá com Patriotas, de Sousa Jamba (1991),
porânea; e não só. Os textos revelam prazer especial em exaltar o seu
romance originalmente publicado em inglês. Tais textos empenham-se em
fascínio, no deliberado empenho de recuperá-la mitopoeticamente. Ao
construir pontes entre as duas Angolas ou estabelecer um traço de união
lado desse primeiro lugar "assinalado", aparece um outro, se não de forma
~ntre ambas, não importando a facção ideológica a que o escritor pertença.
tão reiterada, com certeza igualmente densa. Trata-se da Lunda, sempre
E certo que o sonho de unificação absoluta está ainda distante, mas a
representada como um espaço de resistência onde os modos de vida auto-
ficção empenha-se em fixar os contornos da face nacional, empreendi-
justificativos dos povos de origem resistiram pelos séculos, o que justifi-
mento dificil já que a visão histórica do colonizador foi o elemento
ca o facto de ser a região uma das mais importantes no extenso e diverso
responsável pela tentativa de redução da policromia cultural de origem em
panorama cultural de Angola.
monocromia, rasurando-se o diverso e implantando-se a falsa premissa de
A partir de tais considerações, pode-se reafirmar que Lunda e
uma unidade territorial e política controlada pela metrópole ou, se quiser-
Luanda não se auto-representam apenas, mas se fazem metáforas da
mos, pelo ocidente. Pode-se aqui lembrar o que Edward Said afirma sobre
existência de duas Angolas. A cidade à beira-mar plantada é o espaço
como se efectivou o domínio desse mesmo ocidente que dispunha de uma
por excelência onde se condensaram os sinais da presença do colonizador
branco e a sua forma ocidental de demarcação urbana. Já o berço de Lueji espécie de "arquivo" a facilitar-lhe o trabalho de achatamento das dife-
significa uma forma de condensação imagística de outras realidades renças: "O que unificava o arquivo era uma família de ideias e um
conjunto de valores que se tinha provado efectivo de vários modos"
(1990, p. 52).
1. Publicado em Discursos. Estudos de Língua e Cultura Portuguesa, no 9. O intelectual deste fim de século, ao perseguir a diferença e insis-
Coimbra, Universidade Aberta, pp. 89-100, 1995. tir na policromia, não pretende regressar às origens- impossível retorno.
26 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 27

Pertencendo à esfera urbana, reconhece a distância existente entre ele e o angolanidade na força da sua diferença, sempre um múltiplo. Tenta-se ree-
outro que, nos longínquos quimbos e senzalas, vive ainda muito perto do screver a frase histórica por tantos séculos apagada: o eu, ou seja, o local,
legado da tradição ancestral. Manuel Rui faz-se um dos arautos desse volta a ser o grande sujeito cultural (cultura autóctone), enquanto o éze
saber, ao mostrar os laços de cumplicidade existentes entre ele e o nóma- passa a ser efectivamente o outro da cultura transplantada, retomando
da tribal, apesar de todo o fosso que parece separá-los: "Nem eu nem o ainda Said ou mesmo lembrando Todorov.
nómada pensamos em regressar ao antes de. Tudo para nós é depois, a par- Muitos são os procedimentos possíveis para se chegar a essa resul-
tir de agora. E nem sequer é redescoberta, mas sim afirmação transfor- tante multicriativa. Dentre eles, destaco sempre o gozo com que a letra
madora" (1979, p. 543). abraça a voz, organizando-se uma festa cosmogonicamente ritualística que
Há, pois, o lugar do letrado e o do não-letrado, mas o poeta não se manifesta por uma fala híbrida, quase cerimónia de iniciação. Para dizer
os percebe como excludentes. Dito de outro modo: o eixo da tradição de tal festa na qual a tradição e a transformação ocupam a cena, convoco
ancestral e o da transformação se entrecruzam. Como em jogo de espe- aqui dois ficcionistas da prosa contemporânea que parecem apontar duas
lhos, um traz em si a imagem do outro, multiplicada. Desse modo, não soluções estéticas e ideológicas distintas, para se obter um mesmo resulta-
obstante toda a força mítica das raízes, fincadas no solo do "antes de", não do simbólico-cultural: Boaventura Cardoso e Pepetela.
se quer perder a consciência do presente, percebido COllfO uma pulsão Desde a sua primeira obra, a colectânea de contos Dizanga dia
transformadora. Daí o poeta dizer: "Eu, letrado, transformo-me quando muenhu (1977), Boaventura, como em "Faca amolada" analisei, radicaliza
me falo e escrevo em parte oraturizado" (idem). a sua postura estética, deixando clara a direcção do seu olhar e o lugar
Nesse feixe de falas e tempos, precisa-se recortar a questão da lín- donde fala. Neste, como no segundo livro, também de contos, O fogo da
gua de expressão dos textos literários, o português, por sua vez também fala (1980), há um claro acumpliciamento com o homem do povo
um legado da cultura transplantada, parte do arquivo ou biblioteca de que angolano, sujeito privilegiado das acções narrativas, situadas, sobretudo,
fala Said. Tal língua é, ao lado das nacionais, uma das formas através das na cidade de Luanda, e mais precisamente ainda, nos musseques ou
quais "se reconstituem passados, imaginam-se solidariedades, sonham-se noutros bairros populares que nela existem. A cada novo texto, aprofunda-
futuros", como bem sintetiza BenedictAnderson (1989, p. 68). Não é gra- -se o sentido daquilo que já nomeei como festa da palavra marginal, com
tuita, pois, a cena, ainda em A geração da utopia, em que a personagem o sujeito da enunciação atiçando as chamas da fogueira da sua cultura
Elias, ao se atribuir o título de bispo, assim se explica: "Tinha de ser um autóctone. Isso explica porque o fogo se vai tornando um elemento mais e
título em língua de todos, portanto em português" (p. 284). Continuando a mais significativo na produção textual do ficcionista. Assim, o elemento
seguir a trilha aberta por Anderson, verifica-se que, ao lado da língua de ígneo se faz presença obsessiva na terceira colectânea, A morte do velho
origem, se levanta essa outra força, o português, também ela um dos pilares Kipacaça (1987), até se transformar na principal força representativa do
onde se sustenta a comunidade imaginada que é aquela nação africana, romance O signo do fogo (1992).
sendo uma das línguas que liga afectivamente muitos angolanos a seus O conjunto da obra de Boaventura deixa claro, pois, que ele tem
mortos. plena consciência da força africanamente mágica da palavra, sempre um
Não se trata de deixar as culturas autóctones em segundo plano, mais além de si mesma. A palavra artística é, em sua percepção criadora,
pois elas souberam resistir à tentativa de aniquilamento e, hibernando, fogo que alimenta a f01ja dessa mesma criação. Nessa forja- e a imagem
embora, como afirmou Amílcar Cabral, permaneceram vivas. A resultante recorrente do ferreiro no romance se faz elemento metafórico basilar -
histórica desse entrecruzamento ou do diálogo entre o próprio e o alheio delineia-se um novo referente e a cultura europeia dobra-se, qual ferro em
pode-se definir ainda - recorrendo-se, uma vez mais, a Manuel Rui, no brasa, à cultura de origem que a cada passo parece querer devorá-la. Vale
mesmo texto -pelo multilinguismo. notar, em O signo do jàgo, a atomização dos mitos do ocidente, transforma-
Recuperando, nas malhas do texto escrito, a fala ancestral que nas dos em algo profundamente africano. Assim, a mitologia grega é convocada
rodas, à volta das fogueiras, contava estórias, sempre formas de dizer a para que se invertam os valores dos sinais. O fogo é trazido da ilha de
História, o produtor artístico contribui para o renascimento simbólico da Delfos, mas o ferreiro ou o forjador não se permite apenas ler como
identidade, soterrada, mas viva. Enlaça-se, como quer boa parte da críti- Hefestos. Maior que ele é Xangô ou Shangô, ou talvez ainda, Ogum, ambos
ca, nessa recuperação, o ético ao estético e dessa forma reafirma-se a guerreiros. O primeiro, principahnente, com o seu machado de duplo gume
28 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 29

e o olhar que tudo vê. Todo o passado do saber clássico encontra lugar no folha branca do papel, "malha no ferro em brasa" da sua própria criação
romance, mas se desimobiliza, transportando-se, como o fogo, para um transformadora, queimando-se com ela, para ver renascido o sentido
outro lugar, "excêntrico", dito e redito como apenas angolano. Repensam-se histórico da sua própria alteridade. Mesmo tomando várias formas, o ferro
as margens e o processo de incorporação dá-se pelos caminhos do esfacela- jamais deixa de ser ele mesmo matéria-prima que se faz maleável, desde
mento e da "outridade". Repetindo Linda Hutcheon: que submetida ao fogo transformador. Boaventura, no acumpliciamento
com o destino histórico do seu povo, acredita, e por isso repete muitas
O movimento no sentido de repensar as márgens e as fronteiras é vezes, que "Amanhã o fogo fecundará esta terra" (p. 105). Tento comple-
nitidamente um afastamento em relação à centralização junta- tar: fecundada, tal terra parirá seus novos filhos, sempre outros em relação
mente com seus conceitos associados de origem, unidade e monu- à experiência histórica anterior.
mentalidade que actuam no sentido de vincular o conceito de cen- Quanto à obra de Pepetela, bastante vasta e diversificada, me ate-
tro aos conceitos de eterno e universal. O local, o regional e o rei apenas àquelas em que o ficcionista reflecte sobre o projecto de criação
não-totalizante são reafirmados à medida que o centro se vai da nacionalidade, mormente por um diálogo mais fecundo entre a ficção
tornando uma ficção - necessária, desejada, mas apesar disso e a história. Tal projecto é percebido pelo imaginário do escritor como
uma ficção. algo que só pode ser atingido, num primeiro momento, pela revolução e,
(1991, p. 85) no pós-independência, pela interacção das duas Angolas, a urbana e a
tradicional, no sentido da citação atrás recuperada. Desde Mayombe
Nesse processo de reapropriação, Boaventura, como já afirmei (1980) percebe-se a tentativa do autor de, partindo da realidade fragmen-
anteriormente também, busca a fecundação da terra pelo fogo, não apenas tada, estabelecer as bases de um projecto de nacionalidade que, neces-
das armas fisicas, como parece também deixar claro nesse e noutros tex- sariamente, teria de passar pela diferença, marca elementar dos fios for-
tos, mas, acima de tudo, recuperando a própria identidade do angolano, madores do vasto tapete da identidade angolana, sempre um múltiplo.
sujeito de um destino histórico que lhe fora negado por séculos. Ele quer Mas será talvez em três romances em particular que esse diálogo entre a
mostrar - tanto no quimbo onde se assiste ao komba alegre e dançante ficção e a história se faz mais denso e/ou tenso, com o produtor artístico
do Velho Kipacaça, quanto nas mas de Luanda onde a brasa vermelha do aprofundando o mergulho na alteridade, sem nunca perder de vista o glo-
amor de Tutuxa incendeia e quase mata- a eficácia simbólica dos mitos bal: Yaka (1983), Lueji (1988) e A geração da utopia (1992).
de origem, sempre colocados numa margem vazia pela visão redutora do As acções de Yaka são precedidas de uma "Nota prévia" assinada
eurocentrismo, incapaz de.destrinçar-lhe os segredos, como se dá na visão pelo "Autor". Ali, os laços entre ficção e história se estabelecem, quando,
do conto "A morte do velho Kipacaça", que empresta nome à colectânea: falando sobre "o círculo yaka", o enunciador o considera "apenas uma
"Inesper~damente surge fogueira grande se alastrando. [ ... ]. Água! ideia errante, cazumbi 2 antecipado da nacionalidade", embora alerte tam-
Aguué! Agua! Aguué!- o grito, gritante. [ ... ].Vem vindo galopante: a bém para o facto de que o núcleo da obra será uma "estátua", "pura
fogueira. Eh! No crepitar das chamas tem grunhidos de animais. Vem ficção", portanto (1984, p. 6). De uma forma ou de outra, transformando a
vindo galopante, fogosa: a fogueira." (1987, p. 93-4) estátua em elemento de permanência que une os diversos momentos danar-
A roda do komba de Kipacaça e o malho do ferreiro, mesmo que rativa, a estender-se entre 1890 e 1975, sempre em forma de fragmentos-
neles se reconheça o laivo da utopia, buscam reafirmar a força mítica e "A boca" (1890/1904); "Os olhos" (1917); "O coração" (1940/41) ; "O
multicriadora do que o desejo artístico percebe como sendo capaz de plas- sexo" (1961) e "As pernas" (1975) -,o narrador procura estabelecer uma
mar a nação, como uma "comunidade política imaginada - e imaginada relação entre passado, presente e futuro, apresentados dialéctica e dinami-
como implicitamente limitada e soberana", de acordo com Anderson camente. Todo o movimento do texto se faz no sentido de desvendar o enig-
(idem, p. 14). Noutras palavras: a roda e o malho dizem de Angola na for- ma da estátua, enigma esse sempre a perseguir a personagem Alexandre
ça da sua diferença, daí que o narrador de O signo do fogo a cada passo Semedo, grande costurador dos tempos que se sucedem no romance.
reitere: "No fogo estava a solução. O ferreiro ergue o braço musculado e A exemplo do que fizera anteriormente com a máscara em Muana
malha no ferro em brasa" (p. 97).
Como o artista que, munido do seu instrumental de trabalho, na 2. Do quimbundo, nzumbi, espírito, alma do outro mundo. (N. E.)
30 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 31

Puó (1969), também com a estátua Pepetela tenta dar forma a um "sonho passam em dois grandes núcleos temporais: num passado mais remoto
real que todos procuram. Procura que cria vida" (1978, p. 170). Para isso, onde se inscreveu o mito da formação do império lunda, criado pela rai-
representa-a como símbolo falante e organizador, ao transformá-la num nha Lueji, e num futuro- em relação ao momento da enunciação- às
dos contadores da estória dos Semedo. A sua voz se entrelaça com a de vésperas do ano 2000, quando uma segunda Lueji, bailarina, vai repre-
Alexandre e a do narrador ornnisciente, mostrando, nessa ruptura calei- sentar, em Luanda, a história feita estória dançada da primeira. Nesse
doscópica do ponto de vista, a impossibilidade de pensar-se a estória, processo de recuperação, o fundamento é a busca do original, mas sem
duplo da história, fora da perspectiva dialéctica. qualquer traço de xenofobia, e a pista final é fornecida pelo narrador,
Vale notar que só o bisneto de Alexandre, Joel, ao optar pela acção quando diz nascer do encontro entre tradição e transformação, "um género
revolucionária, se torna capaz de desvendar o enigma de Yaka, cuja próprio, nacional, indo buscar temas e passos à tradição dos camponeses,
decifração o bisavô, branco comerciante de Benguela, tanto perseguira, sem misturando por vezes as culturas de origem, e estilizando com recurso ao
conseguir. Nesse momento de revelação, mostra-se o desprezo que o negro que de mais avançado se fazia no Mundo" (p. 170).
escultor devotava ao branco senhor da dominação. Diz Joel: "-A estátua Dá-se, assim, nesse novo projecto, o enlace entre o próprio e o
representa um colono, avô; Repare bem. É o que o escultor pensava dos alheio, síntese percebida como a forma de se poder construir uma nação
colonos. Ridicularizados. Veja o nariz. Burros e ambiciosos!" (p. 294). que seja plenamente angolana. A tradição e a transformação acasalam-se
Enigma desvendado, a estátua readquire a função utilitária, como no balé de Lu que dança Lueji, daí o romance dizer, deslocando para a
se dá com o objecto artístico nas comunidades tradicionais. Isso explica música o que se pode afirmar para o presente histórico vivido pela jovem
por que será a sua a voz que fechará a narrativa, deixando-se ouvir plena- nação:
mente no epílogo, encerrado em forma de pergunta, que, para ser respon-
dida, pedirá outra estória, num colar sem fim: "Posso então me desequili- essa música que nos aponta a possibilidade de futuro, porque
brar do soco e ficar em cacos pelo chão, a boca para um lado, os olhos renascida dum passado livre, embora também servil, como tudo
pelo mar, o coração embaixo da terra, o sexo para o Norte e as pernas para que existe neste Mundo no qual afinal nos inscrevemos por
o Sul? Ou será melhor aguardar ainda?" (p. 302). direito próprio, o direito de sermos nós, redescobertos, maravi-
Processo semelhante será retomado em A geração da utopia, não lhados com a nossa existência de sempre, orgulhosos por sermos
com uma pergunta final, mas com um laivo de triste ironia, resultante da diferentes e tão iguais aos outros.
plena consciência de que será dificil, pelas vias abertas na própria obra, (p. 471)
atingir o estágio daquela "Procura que cria vida", anunciada em Muana
Puó. Daí a constatação final do narrador, alertando para a quase motie da
utopia: "Como é óbvio, não pode existir epílogo nem ponto final para uma
estória que começa por portanto." (p. 316).
O fecho de Lueji, também com uma pergunta, é bastante distinto
dos outros dois. Tal pergunta dimensiona a humanidade da mítica figura de
Lueji, a criadora do império lunda e uma das personagens-núcleo do nar-
rado, juntamente com a bailarina Lu que a representa no palco, em forma
de dança. Diz o texto, encerrando sua fala: "Lueji criou o Império e criou
as condições da sua destruição. Só podia ser assim. Porquê culpá-la da sua
humanidade?" (p. 483). No fundo dessa cena, talvez, ecos da recente
história de Angola na qual A geração mergulha tão fundo.
No romance Lueji, o diálogo entre tradição e transformação
atinge um ponto culminante no espaço da contemporaneidade ficcional
angolana. Não é gratuito o facto de os dois territórios simbólicos, Luanda
e Lunda, serem a base da cenarização narrativa do texto, cujas acções se
32 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 33

Couto, significava, então, o "olho da vida" (Terra sonâmbula, 1992, p.


17). Bem aberto, ele mirava, com alegria expectante, a estrada livre onde
o passante, que era a esperança utópica, não temia deparar-se com quál-
quer sinal de ruína. Pensando em Benjamin e na sua leitura já clássica do
quadro Angelus novus, de Klee (1994, p. 226), e parodiando-a, não have-
ria ainda o olhar esgazeado do anjo que, pelo contrário, em serena postu-
ra, aguardaria a sua hora de voar rumo ao futuro.
A SEMÂNTICA E depois de 75? A resposta vem sendo sistematicamente dada em
DA DIFERENÇA! obras do porte do romance de Mia Couto atrás referido. Nele, em dado
instante, o narrador da principal estória encaixada, Kindzu, conta o nasci-
mento do irmão mais novo, pelo pai nomeado de "Vinticinco de Junho"
(idem, p. 17), dia da independência de Moçambique. A ironia corrosiva dá
"Falar é existir de modo absoluto para o
o tom a seguir, quando se ressalta que o nome do caçula, por ser "dema-
outro."
siado", "ficou sendo só Junho. Ou de maneira mais miudinha: Junhito"
Frantz Fanon (idem). Tal corrosão ganha intensidade por representar Junhito o "último
habitante" do "ventre" de sua mãe (idem). Se lembrarmos o facto de ter
sido o significante mãe, na série literária anterior, maximizado como
duplo da terra africana, nada mais se precisa acrescentar. O narrador, no
Se aceito a postulação de Fanon para quem, como deixa
entanto, não pára aí e faz questão de mostrar o processo de zoomorfiza-
patente a epígrafe, "falar é existir para o outro", posso pensar que as liter-
ção do personagem que, vestido com uma roupagem de frango, é confi-
aturas africanas em língua oirtuguesa se fazem, a partir principalmente da
nado ao galinheiro, perdendo a faculdade da fala humana, até que um dia
segunda metade do século XX,falas-em-diferença, ganhando plena visi-
desaparece.
bilidade dentro e fora do espaço intercultural construído pelos falantes
A rasura do jogo irónico, cuja marca é a crueldade, barra a possi-
daquela mesma língua. Tal inserção - irruptora e em certa medida bas-
bilidade de realização do sonho e, com ela, chega a ameaça de fechamen-
tante desestabilizadora da pulsão colonialista- nasce sob o signo da rup-
to do "olho da vida". Estamos, assim, no quadro de Klee, com o olhar
tura da solidariedade orgânica com os padrões estéticos do ocidente bran-
esgazeado, para Benjamin, do anjo da história, cujas asas abertas e tangi-
co-europeu (NGAL, 1994). Cria-se, assim, um outro lugar de enfrenta-
das pelo vento impedem o voo para o futuro. Vemos, com Mia Couto, o
menta e luta que hoje já não se deixa rasurar. A diferença, jamais sinóni-
amontoado de ruínas a subir em direcção ao céu da pós-independência de
mo de essencialismo (e a lição é de SAID, 1995), dá o contorno dessa fala
Moçambique, a partir da parábola de "Vinticinco de Junho".
que busca a sua identidade nas forças simbólicas e afectivas (já agora,
Obras também como A geração da utopia (1992), O desejo de
BHABHA, 1995), encenadas nos bastidores da produção literária, isto é,
Kianda (1995), de Pepetela, ou Orgia dos loucos (1990), de Ungulani Ba
no lugar imaginado onde o homem afúcano teimosamente lutava por se
Ka Khosa ou mesmo Quem me dera ser onda (1991), de Manuel Rui
tornar sujeito do seu próprio destino.
Monteiro, mostram a crueza do novo processo histórico. Por isso, os tex-
Nesse momento histórico de desvestimento dos véus encobri-
tos se tornam disfóricos e passam a reflectir o dificil aprendizado das
dores da diferença - o do tempo das lutas pelas independências - , os
independências, como postulam, entre outros, o mesmo Georges Ngal e
textos escrevem a nação entressonhada, a partir da construção do emedo
ainda P. Ngandu Nkashama (19_ _). Tal mudança cria outras e surpreen-
da utopia. No caso particular de Angola, narrativas, por exemplo, de
dentes correlações de forças ficcionais, embora não represente uma rup-
Arnaldo Santos, Boaventura Cardoso, Jofre Rocha, Luandino Vieira e do
tura absoluta com os padrões artísticos das obras produzidas nas décadas
próprio Pepetela atestam isso. O sonho, repetindo o moçambicano Mia
imediatamente anteriores (cf. PADILHA, 1995).
1. Texto publicado em Cânones & Contextos. 5" Congresso Abralic-Anais, Rio de É disso que o presente texto vai tratar, tomando Pepetela e Mia
Janeiro, ABRALIC, 1997, v. 1. pp. 257-262. Couto como vozes privilegiadas que nos chegam pelas narrativas O dese-
34 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 35

jo de Kianda e Terra sonâmbula, respectivamente. Nelas buscarei algu- Há três espécies de homens:· os vivos, os mortos e os que
mas recorrências temáticas e/ou discursivas, como, por exemplo, o andam no mw:
entrelace da voz e da letra, a ampliação do campo linguístico do português (Platão)
e a intenção pedagógica ou iniciática a que se acopla um acirramento do
plano crítico e contestatório do narrado. Tais traços, dentre outros igual- Patenteia-se, pelo mosaico epigráfico, o jogo aditivo de amplia-
mente elencáveis, já estavam presentes nas malhas ficcionais africanas, ção atrás referido, sob o qual se esconde uma proposta de inversão do sen-
quando se acirrou o anseio de descolonização e permanecem depois que tido das origens. Para tanto, o produtor recolhe referentes simbólicos e
se entoam as melodias das independências, só que, algumas vezes, em afectivos buscados em três universos: o africano, o da sua experiência
jogo de inversões ou distanciamentos. pessoal e o universal (passe o termo), suplementando-os.
Começo pela questão da recuperação, no universo narrativo Invertendo o sentido das origens, tal como as interpreta o euro-
escrito, da tradição e, em consequência, da oralidade. Vale antes notar, centrismo, inicia-se a montagem das epígrafes pela tradição de Matimati,
com Alain Ricard ( 1995), ser chegada a hora de se pensarem algumas pos- região de Moçambique que dá o mote do título do romance pelo qual,
tulações sem os clichés dualistas que as recobrem e que não contribuem aliás, se estabelece o pacto ficcional (terra sonâmbula). Como nos ritos,
para o avanço dos estudos literários africanos. Assim, ao invés de atribuir começa-se convocando a força ancestral, sem o que nada pode ter bom
à África apenas o peso da tradição oral e do arcaico, deixando para a êxito. A seguir, é o próprio romance que antecipa a sua voz, ao resgatar-
Europa o papel da modernidade que se associa naturalmente ao universo -se a do personagem Tuahir e, por trás dela, a do sujeito cultural e ser da
da escrita, quero-me debruçar sobre a inter-relação de ambas as coisas. linguagem, que é o próprio Mia Couto. A fala de Tuahir faz-se o pilar da
Interessa-me o isto e o aquilo e, não, o isto ou o aquilo. As produções do ponte que liga a origem africana ao lugar~ ponto de chegada e não de par-
pós-75 exigem e clamam pela aditiva, mais que pela alternativa ou exclu- tida, como seria previsível~ ocupado por Platão. O jogo inter-parentéti-
siva. Para realizar este objectivo desconstrutor em certo sentido, tomo co também nos revela surpresas. Ali, os substantivos próprios Matimati e
Terra sonâmbula como um primeiro paradigma, iniciando o percurso pela Tuahir aparecem precedidos por elementos que os introduzem e explicam,
arqueologia do seu jogo epigráfico e, a seguir, desmontando uma cena da o qu~ não se dá com o nome de Platão, que dispensaria o gesto explicati-
obra que nos dá uma instigante pista para a decifração de um dos seus vo. E como se fosse, e ponto, daí a força que o seu próprio texto vai pas-
enigmas e da ficção contemporânea de modo geral. Tais epígrafes e cena sar a ter. No tapete criado pelos fios das epígrafes, desenha-se, pois, o cír-
deixam patente o desejo de ampliação dos referenciais simbólicos e de culo da sabedoria onde a filosofia da origem ~africana ~, qual serpente,
inversão que o mundo moderno exige. morde o "rabo" da outra, greco-ocidental.
Ritualisticamente, como mandam os preceitos, mergulhamos no
universo aditivo africano, fundado na sabedoria, mais que no saber.
~As três epígrafes:
Já agora, a "cena iniciática" de que participam um velho e um
menino:
Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os
homens dormiam, a terra se movia espaços e tempos afora. ~Então vai acender uma fogueira lá fora.
Quando despertavam, os habitantes olhavam o novo rosto da O miúdo se levanta [... ] Depois se senta ao lado da
paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados fogueira, ajeita os cadernos e começa a ler[ ... ]
pela fantasia do sonho. -Que estás afazer rapaz?
(Crença dos habitantes de Matimati) -Estou a ler.
-É verdade, já esquecia. Você era capaz le1: Então leia
O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar em voz alta que é para me dormecer.
a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos,
para nos fazerem parentes do futuro. O miúdo lê em voz alta. Seus olhos se abrem mais que a voz que,
(Fala de Tuahir) lenta e cuidadosa, vai decifi·ando as letras. (p. 14)
36 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 37

Tal cena remete-nos ao arquetipicamente moçambicano, só nacionais africanas foram o veículo por excelência das produções orais,
que na clave da inversão pela qual a própria tradição se reinventa. por sua vez uma prática de resistência, a partir do facto colonizatório. Não
Os alicerces simbólicos lá estão, como sempre estiveram, isto é, vou aqui repetir o que por diversas vezes afirmei (PADILHA, 1993, 1994
como base de sustentação do edifício cultural dos povos africanos: e 1995), mas não posso deixar de lembrar o facto de não ser absoluto e/ou
a noite, a fogueira, o menino, o mais velho e a estória e seu deslum- plenamente extensivo o uso do português nas nações africanas que o
bramento linguajeiro. A inversão, no entanto, desfaz cristalizações, adoptam como língua oficial. Deixando de lado a questão genérica desse
quando é o menino que lê, contando a estória para o velho adorme- uso, gostaria de me ater à discussão sobre a utilização, pelo escritor, de um
cer, ao invés do usual contrário. Também como parte do jogo, o con- instrumento linguístico pelo qual o dominador exercitou ele próprio o seu
tado nasce da magia da letra e não do encanto da voz (outra origem rasu- poder de exclusão.
rada). Sendo a mesma, a cena é já uma outra com os sinais da antiga equação Em Aspects de la critique ajhcaine, Tidjani Serpos (1987) vai-se
invertidos. Não mudando, embora, a força do rito, o narrador da letra, griô** contrapor a T. Melone para quem o escritor africano, ao usar uma língua
do mundo africano moderno, insiste que os olhos, ao percorrerem o texto, "se europeia como veículo das suas produções, se estaria enfraquecendo como
abrem mais que a voz". Esta deixa, assim, de ser a decifradora do mundo sujeito histórico, já que a força da sua ancestralidade se alimentaria da
antigo, para surgir renascida no gozo da letra, já agora o objecto privilegia- seiva da sua língua de origem. Serpos desloca a discussão para a questão
do do jogo enigmático da decifração nova esfinge. principal, isto é, para o facto de que, na verdade, o que significa, no acto
Esses mesmos processos de ampliação e de inversão reactualizam- de criação, é muito mais a leitura feita pelo artista dos elementos da sua
-se em O desejo de Kianda, cujas acções se passam no largo do Kinaxixi, lá cultura do que propriamente o uso desta ou daquela língua (c f. p. 24 da
onde No antigamente, na vida, havia a "gorda água da lagoa do Kinaxixi, a obra). Por tal leitura se estabelece o vínculo placentário ou epidérmico com
suja gorda água de todas as nossas lagoas infantis", no dizer de um dos arqui- o sentido maior da cultura e, não, pelo uso de uma língua europeia.
tectos do sonho angolano de liberdade que é Luandino Vieira, seu autor Interessa-me ressaltar o facto do crítico nigeriano, com acuidade, apontar
(1977, p. 92). Na novela de Pepetela, a queda sucessiva dos prédios, metá- que "o escritor não está fora da língua de que se vai utilizar: ele trabalha a
fora da ruína do projecto político-ideológico angolano e da própria guerra; a língua ao mesmo tempo em que esta o trabalha" (p. 25, traduzi).
água que brota, escura, na base do prédio em construção abandonado e onde O duplo trabalho - do escritor e da língua de que se vale -
se abrigam os novos despossuídos da história; o desejo de liberdade da ganha muita nitidez quando se comparam textos de diversos produtores
provavehnente zangada Kianda, cuja mafumeira um dia se cortara, desejo africanos expressos em português. Há uma incorporação cada vez mais
pelo qual ela quer soltar-se até mesmo das amarras míticas que a prendem- instigante de termos, expressões, estruturas sintácticas e morfológicas das
são todos índices ou anúncios da outridade que parece querer renascer dos línguas nacionais, ao mesmo tempo que a língua europeia, base da expres-
escombros da reafirmação da alteridade, já agora aprisionantemente cristali- são, bafejada por esses novos ventos, vai deixando de ser europeia para
zada nas teias do sonho histórico desfeito. A diferença da diferença, eis, ganhar contornos angolanos, moçambicanos, santomenses, etc,. Ao
talvez, um dos sentidos possíveis do que se soterra no missosso dos novos aceitar o risco de atravessar o(s) oceano(s), ela, a língua, transforma-se
tempos, inventado por Pepetela. Sem abandonar os elementos da tradição, noutra coisa, sem abdicar de ser ela mesma, como esclarece Makhily
ultrapassa-os, pela transfmmação pela qual aquela mesma tradição se rein- Gassama (1978). Citando-o textualmente em tradução livre e recuperando
venta, continuando, ao fim e ao cabo, a gritar por Angola e seus "máximos a sua própria experiência de africano e falante do francês (é de origem
sinais", buscando aqui uma metáfora tão ao gosto de Luandino Vieira. senegalesa): "são as palavras da França, precisamente, que se devem
Passando para a questão da ampliação do campo normativo da dobrar, submeter-se, para ganhar os contornos por vezes tão sinuosos, tão
língua portuguesa, vejo que ela se vincula a esse encontro do rio da voz complexos dos nossos pensamentos" (p. 20).
com as águas do mar da letra. Sabemos que, desde sempre, as línguas Cria-se, por toda essa complexa sinuosidade linguística, um espaço
------~·· ---·---- de festa no texto africano moderno onde, qual papagaio de papel de seda
**Do francês, griot, trovador, menestrel; poeta e músico, guardião da tradição solta no céu - outra metáfora tomada de empréstimo a Luandino Vieira - ,
oral nas antigas colónias francesas; na cultura umbundo, nganji, o contador de a língua portuguesa amplia o seu espaço, volteando com novas e surpreen-
histórias, o que guarda a memória da família. (N. E.) dentes cores e cintilações. Dois exemplos bastam. Um, tirado de texto
38 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 39

escrito antes de 75, emAngola, por um dos arquitectos intelectuais do sonho ou no "maravilhoso"- aqui usando uma categoria precária já que fun-
de uma terra alegremente livre e desperta (o mesmo Luandino) e o segun- dada no olhar ocidental - as suas diversas formas de camuflagem.
do, buscado na terra, já sonâmbula, de Mia Couto, mas nem por isso fecha- Encapsulava-se o signo linguístico e literário e, com isso, amenizavam-se
da ao convite para participar da festa linguajeira: os riscos, embora não se pudesse evitar a prisão e/ou o exílio dos produ-
tores textuais.
a) De No antigamente, na vida: No pós-75, a intenção pedagógica continua a fazer-se a marca de
grande parte das obras que não perderam o seu profundo imbricamento ao
Acácia de S. Tomé, um senhor que nos ensinou, ele quem contexto sócio-político onde se geram. Dá-se, então, e uma vez mais, o
que disse, a gente rimos. De S. Tomé? Um belo pau, as folhas dele afiamento do gume crítico do texto que, para enunciar a morte do sonho
asas de mosca só, piápia, engole no ar pensa é o catato verde, utópico, tal como se configurava nas duas décadas anteriores, principal-
com suas flores abafadoras d'oiro aromático, como é santo- mente, se vai valer de uma série de imagens de morte, destruição, loucu-
mense? Uma árvore simples, sem catembices, pode ser do terra ra, de ruína, enfim. Caem os prédios do Kinaxixi, no texto de Pepetela,
do Vivi, sangue-azul dos mulatos dos brasis [ .. .]? Em baixo de embora os seus habitantes, mesmo com a intimidade desventrada, conti-
pau de nossa floresta lacúnica folhas todas são estreito zinco nuem vivos, excepção feita para a menina Cassandra que não cai apenas,
para tanta chuva de beleza. mas, em livre voo, vai ao encontro da Kianda nas escuras águas da
(Idem, p. 158) recomposta lagoa do Kinaxixi. Assassina-se o porco Carnaval da Vitória,
em claro ritual antropofágico, na novela Quem me dera ser onda, de Manuel
b) Em Terra sonâmbula: Rui Monteiro. Desfila, em Orgia dos loucos, do moçambicano Ba Ka
Khosa, uma legião de desesperados, cujos sonhos, como vagas, rebentam
Despertei, no meio da noite, ainda o escuro não se apa- contra os duros paredões dos penedos da realidade histórica desfavorável.
gara. [ .. .}. Meu peito bumbunava, acelerado [ .. .}. Lá, no pleno O velho e o menino de Terra sonâmbula encontram ruínas e corpos mortos,
mar, uma fogueirita pirilampejava [ .. .}. novas construções da guena. Desesperadamente para o jovem Muidinga,
ambos ficam presos na estrada igualmente morta de onde ele só escapa pelo
Hesitei me dirigir de encontro ao lumezito [ .. .}. Mas o concha, imaginário, ao ler os cadernos do outro jovem, Kindzu, onde, em claro jogo
sozinho, começou de viajar. Sulcava seu caminho zigue-zagueiro. especular de nadificações, se narram estórias de morte, perdas, denocadas,
[ .. .] fantasmas e destruição, como se dá com a zoomorfização e desaparecimen-
De repente caiu dentro do meu concha um tchóti, um desses anões to de "Vinticinco de Junho".
que descem dos céus. A canoa se revoltinhou com o choque e eu As cores, porém, não ficam assim tão sombrias, seja pela possibili-
quase me desembarquei. Olhei o anão e descreditei, duvidoso. dade de se realizar, nem que por miragem ou gesto contemplativo, o sonho
(Idem, p. 63-4) de se chegar ao mar, estrada natural abe11a para o reencontro da liberdade e
da esperança (cf. Aníbal de A geração da utopia); os meninos de Quem me
Eis, assim, os novos frutos colhidos na viagem da língua pelas dera ser onda ou mesmo a Kianda e Kindzu nos textos aqui tomados como
estradas atlânticas e índicas, onde se amplia sua história e o seu campo se paradigmas); seja pela ce11eza da existência da inevitável presença do arco-
alarga, oceânico. -íris - significante recorrente em várias narrativas - há uma réstea de luz
Por fim, uma palavra sobre a intenção iniciática dos textos con- que insiste em não se apagar. Não podemos esquecer que estamos diante de
temporâneos, como postula Ngal, ou pedagógica, como venho defenden- produtores africanos, cujo imaginário não pode fechar as comportas da festa
do há algum tempo. Sabemos que tal intenção representa uma das princi- da vida. Apesar de. Ou por isso mesmo.
pais características das produções da oralidade. Com o advento da escrita Tudo o que até agora se elencou justifica, já como forma de con-
da diferença, ela emigra para a série literária da África de modo geral e da cluir, a cena final dos textos sobre os quais esta leitura se debruçou. Assim
de língua portuguesa em especial. No tempo da luta, dadas as condições se encerra O desejo de Kianda, quando, frente aos nossos olhos, desfilam
históricas criadas pela censura pidesca, tal intenção buscava na metáfora e se vêem
Novos pactos, outras ficções 41
40 Laura Cavalcante Padilha

fitas de todas as cores do arco-íris [ .. .}, iluminando a noite de


Luanda, descerem a rua da Missão e a calçada que levava até à
marginal[. .. } com as águas que formavam gigantesca onda inun-
dando toda a Avenida [. ..} e em cima dela vinham as fitas de
todas as cores [. ..} agora que a Ilha de Luanda voltava a ser ilha
e Kianda ganhava o alto mm; finalmente livre.
(1995, p. 119)
JOGO DE CABRA-CEGA:
O mesmo se dá quando Kindzu chama por Gaspar, para nós FICÇÃO ANGOLANA~
Muidinga, na cena final de Terra sonâmbula, e "o menino estremece
como se nascesse por uma segunda vez" (p.218). As folhas que caem dos DESTERRITORIALIZAÇAOl
cadernos, espalhando-se "pela estrada" e as letras que "se vão conver-
tendo em grãos de areia", transformam, no manifesto do texto, os escritos "Uma vez estabelecida a liminaridade do
do personagem-narrador, que é Kindzu, "em páginas de terra", como diz espaço-nação, sua d(ferença volta-se da
a frase final da obra. No latente, a transformção é ainda mais poderosa, fi'onteira 'externa 'para a jinitude 'interna' e
pois o que se transmuda é a desesperança do próprio produtor Mia Couto. a ameaça da diferença cultural deixa de ser
Como moçambicano que é, ele fala da ressurreição que habita o lado de um problema de 'outro 'povo. Transforma-se
lá de qualquer morte. Na clave da magia, que deslimita o possível, dá-se numa questão do povo como um. "
o milagre da transformação e o sonho se vai fazer de novo "o olho da
Homi Bhabhao
vida", enquanto a terra pode ainda gerar o seu próprio renascer. Pela pala-
vra, africana, na semântica de sua diferença. Sempre ou até que.
Ponteio
O problema que se põe - quando se pensa a produção
literária dos países africanos de língua oficial portuguesa, que só há duas
décadas conseguiram entoar a melodia das independências -diz respeito
à forma como se representa, na malha dos textos, a questão da diferença,
percebida no pós-colonialismo, não mais como uma tensão entre o próprio
e o alheio, mas como o enfrentamento entre o próprio e ele mesmo.
Dizendo de outro modo: ao realizarem o entressonhado desejo de ter de
volta "a vida livre e os gritos agudos da azagaia" (TENREIRO, 1982, p.
71), superando a morte causada pela ferida aberta no corpo histórico-cul-
tural autóctone, os africanos não mais vão encontrar o rosto do opressor
projectado no espelho barrado da história, mas a sua própria face ali
reflectida e vincada por marcas de profundas contradições. A este
propósito, e por exemplo, o ensaísta zairense P. Ngandu Nkashama
ressalta a existência, no mundo pós-colonial, de um fosso aberto entre
"l 'Africain soumis au pauperisme permanent et la classe dirigeante, plus

1. Texto publicado em Gragoatá: Revista do Instituto de Letras da UFF. no 1.


Niterói, EdUFF, pp. 97-110, 2. sem. 1996.
42 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 43

particulierement la nouvelle bourgeoisie africaine quis 'est substituée cenado na trama textual, evidencia a sua natureza antitética e antinómica,
à l'ancien colonisateur pour opprimer; plus brutalement encare, !e se se toma como ponto de referência o paradigma branco-ocidental. No
paysan" (19 _ _, p. 51). afã desterritorializante de angolanizar a dicção literária, aqueles mesmos
No momento das chamadas lutas de libertação, os textos arquitec- escritores vão-se voltar para as práticas discursivas ancestrais da orali-
tam imaginariamente o projecto de estabelecimento das fronteiras da futura dade, percebidas como uma forma possível de luta contra a hegemonia do
nação, seja como territorialidade fisica, seja como territorialidade literária. discurso do colonizador. Dá-se o que Octavio Paz preceitua em Os filhos
Tal esboço alicerça-se na vontade de cadaveirizar o colonizador e as suas do barro, ou seja, que o traço da modernidade se pode encontrar no velho
centenárias práticas de apagamento histórico-cultural. No pós-independên- de milénios, se este rompe uma tradição, instaurando uma outra. Resgato
cia, cumprido o objectivo, vão-se buscar outras formas de delimitação terri- uma das suas falas: "ungido pelos mesmos poderes polémicos do novo, o
torial, tanto no nível ideológico, quanto no estético. Vale a pena, por tudo antiquíssimo não é um passado: é um começo" (1984 p. 21). No ensaio
isso, não obstante o facto destas reflexões terem como alvo o pós-colonialis- Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século
mo, voltar um pouco no tempo, no sentido de tornar mais evidentes os dois XX (PADILHA, 1995), procurei comprovar a questão, retomada como
movimentos aqui esquematicamente descritos. mote em "Faca Amolada" (1991).
Uma observação preliminar, no entanto, faz-se necessária: creio Vale ainda lembrar, pensando no mundo colonial, que o imaginário
ser muito temerário pensarem-se as literaturas africanas escritas em por- recalcado pelo etnocentrismo nunca se rasurou totalmente, ressurgindo nas
tuguês como um todo, já que apenas no discurso hegemónico do colo- manifestações culturais, muitas vezes clandestinas e sempre comandadas
nialismo os sujeitos polifonicamente diversos se podem amalgamar num pela memória ancestral. A tradição oral, repito, - devido, sobretudo, ao
conjunto uniforme, baptizado como África portuguesa, antes como facto de ligar-se a práticas sociais e colectivas, e ainda por sua explícita
Portugal ultramarino ou por outras designações similares. Um xossa, um intenção pedagógica e edificante (IV\NE, 1982) - é o principal instm-
ronga, um cuanhama, um quicongo, um mandinga, embora invisibilizados mento de manutenção daquele imaginário, tornando-se um dos mais sólidos
na cartografia imaginária do silenciador, continuaram a manter-se xossa, mecanismos de preservação da força da palavra africana e da sabedoria por
ronga, cuanhama, quicongo, mandinga, apesar de ou por isso mesmo. ela veiculada. Recuperar, pois, a tradição significa trazer para a cena do
Assim, abdicando de todo e qualquer gesto autoritariamente inclusivo, texto a marca da alteridade, para com ela atingir-se, a um só tempo, a mod-
este texto falará de Angola, tomada aqui como um paradigma possível ernidade e a descolonização da fala literária.
para que se exercite o jogo da desconstmção logocêntrica, sempre um Desse modo, como a crítica sobejamente aponta, os textos pro-
jogo de cabra cega, pela necessidade mesma de se lograr o logro. duzidos no tempo que antecede imediatamente a independência de Angola
Lembro, a propósito, a instigante provocação de Linda Hutcheon, cujas vão-se fazer armas de combate (ANDRADE, 1977), em duplo sentido.
palavras, em eco, faço minhas, e não pela primeira vez: "Quando o centro Empunhando-as, a identidade se mantém. Manuel Rui Monteiro, compre-
começa a dar lugar às margens, quando a universalização totalizante cisão e poeticidade, já disse e mais uma vez com ele o reitero: "E agora o
começa a desconstmir-se a si mesma, a complexidade das contradições meu texto se ele trouxe a escrita? O meu texto tem que se manter assim
que existem dentro das convenções[ ... ] começam a ficar visíveis" (1991, oraturizado e oraturizante. Se eu perco a cosmicidade do rito perco a luta
p. 86). [ ... ] eu não posso retirar do meu texto a mma principal. A identidade"
(1985).
A produção literária da pré-independência tem como um dos
Primeiras fintas alvos, por tudo isso, a desterritorialização (DELEUZE, GUATTARI,
1975), processo que significa um gesto de intervenção pelo qual um
Nos textos produzidos - e aqui vou-me ater principalmente aos gmpo minoritário se faz ouvir. A obra, designada pelos autores como
narrativos- entre 50 e 75, fica patente o compromisso dos escritores em "menor", recorre com frequência a um conjunto de vozes colectivas e, de
tornar visíveis as profundas contradições geradas no útero do mundo colo- maneira insistente, a mensagens políticas. A diferença torna-se o princi-
nial, mundo este esquizofrenicamente cindido em dois, segundo a metá- pal traço semântico dos textos produzidos em tal contexto, pois eles,
fora de Frantz Fanon (1979). O universo simbólico, imagisticamente reen- objectivando desconstmir o discurso hegemónico, vão-se valer de
44 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 45

estratégias distintas para se constrnírem como seu contrário. A vida tenta cultural ou mesmo propor uma impossível volta às origens. A partir
lograr a morte, como comprova o personagem João Vêncio, de Luandino mesmo do facto de que a forma de expressão vai permanecer, em boa
Vieira, núcleo da narrativa paradigmática que leva o seu nome - João parte do território nacional, sendo o português, já se pode ter um indicador
Vêncio: os seus amores (1968, só publicada em 1979). Toda a fala de da força da herança recebida, o que não se deve confundir com aceitação
Vêncio é uma forma de exorcizar a morte, não apenas ao nível do indi- passiva dessa mesma força. Makhily Gassama dá-nos a dimensão do
víduo, mas principalmente a morte dos ritos e mitos que desenham a face processo, quando diz que as palavras oriundas, no caso, da França, é que se
da alteridade angolana. Corpo solto, voz em riste, o colonizado fala na devem submeter aos pensamentos africanos, em sua diferença, contornos e
fala final do romance de Luandino: "-Este muadié tem cada pergun- sinuosidades (1978, p. 20).
ta! ... : missangas separadas no fio, a vida do homem? Da de maria-segun- Tais contamos e sinuosidades fazem da língua portuguesa em
da, de cada cor, cores? Kana, ngana! ... Cada coisa que ele faz é ele todo Angola um mesmo que é já um outro. Mais uma vez a metáfora da cabra-
-cada cor é o arco-íris" (1987, p. 89). -cega pode ser aqui convocada. A diferença das línguas nacionais abala o
edificio hegemónico da língua imposta pela dominação e de certo modo
impede que se consolide o etnocentrismo ou se aceite a sua fatalidade. A
Fim de jogo língua portuguesa, ao dobrar-se às necessidades dos seus novos utentes,
faz-se ela própria um instrumento que se volta contra o processo de domi-
O desaparecimento do colonizador, ou a sua morte, como quer nação, abrindo-se para o dialogismo cultural que passa a veicular.
Albert Memmi (1977), traz como consequência o fim do colonizado. O Acredito ser válido, neste ponto, lembrar que pensar a diferença não si-
jogo chega ao seu momento final. Mas não assim o logro, se pensamos gnifica pactuar com e/ou referendar o essencialismo, mas gritar a existên-
com o mesmo Nkashama, atrás citado, que a opressão não desaparece, cia de um múltiplo que, como faca amolada, cmia qualquer possibilidade
porém se acentua, pois o seu sujeito não está fora da fronteira, mas dentro de o mesmo se construir como única verdade. Edward Said, exemplar-
dela. Pepetela, em As aventuras de Ngunga antecipadamente anuncia isso, mente, adverte sobre a prática do essencialismo: "O problema com as teo-
quando o personagem-menino, depois de enfrentar os "tugas" pelas armas, rias essencialistas e exclusivistas, ou com as barreiras e os lados, é que
vai-se deparar com a realidade dos mais velhos- ancestralmente os donos elas dão origens a polarizações que mais absolvem e perdoam a ignorân-
da sabedoria- como Kafuxi e Chipoya que, nas palavras do mesmo meni- cia e a demagogia do que facilitam o conhecimento" (1995, p. 65).
no, "são uns exploradores todos eles, e nomeados pelo Movimento para No quadro assim posto, vê-se que, de um lado, o projecto ideológico
dirigir o povo." (1988, p. 78). Vale lembrar ter sido o texto escrito em 1972, dos textos pós-75 vai sofrer uma mudança, dada a expulsão de campo sofri-
no Hongue. E também o foi no tempo da festa expectante da utopia da li- da pelo colonizador. Por outro lado, esteticamente, tais textos continuam a
betiação. Utopia que se fará distopia, ou seja, quase doença congénita, na apostar na desconstrução ou na desterritorialização, se quisermos. Nesse
viagem de volta do sonho, como os textos produzidos no pós-7 5 vão pouco sentido, a tradição segue sendo um dos mananciais onde o imaginário vai
a pouco, e cada vez mais, patenteando. matar a sede de alteridade. A intenção, ao mesmo tempo didáctica e lúdica
A questão a ser colocada é se, na nova correlação de forças, os dos textos orais, permanecerá como a base de sustentação de boa parte da
textos continuam a plasmar-se como fala desterritorializante em relação produção narrativa, só que com os sinais simbolicamente modificados, no
aos modelos transplantados pelos modos de representação artístico-ver- que se refere ao plano ideológico, como deixa claro o conto "Cinco dias
bais do ocidente branco. Neste fim de jogo, deve-se indagar como se com- depois da independência", de Sim, camarada (1985), de Manuel Rui, cena-
portam os sinais externos da equação da diferença que é a angolanidade e rização, de um lado, da manutenção dos valores estéticos e, de outro, das
se ela permanece sendo, ou não, uma presença significante. recentes formas de enfrentamento entre a(s) nova(s) ca-bra(s) cega(s) e o(s)
O conjunto de textos narrativos, a meu ver, ainda aposta na força que tenta(m) não ser por ela(s) aprisionado(s).
dessa diferença, o que não significa praticar a sintaxe da segregação ou da As cenas narrativas do conto têm como núcleo temático um grnpo
negação do outro, mas tão somente dar visibilidade às contradições exis- de pioneiros que se fazem os olhos avançados do Movimento Popular de
tentes nas convenções, sejam elas próprias ou alheias. Ao assumir-se Libertação de Angola (MPLA). Em sua deambulação pelas mas de
como sujeito da nova oração histórica, o angolano não deseja a solidão Luanda, eles vão-se deparando com acções que negam os objectivos da
46 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 47

luta, como a festa onde não falta bebida e comida, contrariamente ao que consequentemente, de recepção que se afastam dos propostos nos chama-
se passa com relação ao povo da cidade, festa que é descrita como "uma dos anos da guerra.
festa igual a tantas outras festinhas e festarolas da pequena burguesia do Uma vez mais a ficção de Manuel Rui pode ser aqui convocada
ÉME" (1985, p. 122). como exemplo desses novos contratos. Desta vez, chamo para a roda do
Dentre os miúdos que compõem o grupo, destaca-se o pioneiro meu texto Quem me dera ser onda (1982) e Crónica de um nnijimbo (1989).
que se esforça por salvar uma mulher grávida, escondendo-a num esgoto Ambas as obras continuam a ser tributárias do griotismo 2 , seja pela sua con-
e ensinando-lhe o sentido da luta. Inverte-se, nesse gesto, a prática de um cepção como falescrita, seja pela sua intenção crítica aliada ao ludismo,
mais velho iniciar um mais novo nos caminhos do conhecimento, já que como já disse, um modo de intervir no real, no melhor estilo da tradição
o iniciador é um menino e a iniciada, uma adulta, o mesmo que se dá em ancestral.
Terra sonâmbula (1992), de Mia Couto, quando o menino inicia o velho. Em Quem me dera ser onda, os principais personagens são três
Também o fogo, presença marcante na vida cultural africana, emigra dos meninos - Beto, Ruca e Zeca - que, na nova sociedade, deixam de re-
toros das fogueiras a iluminarem as noites e as estórias, para as armas das presentar os pequenos e atentos "guerrilheiros" do conto anterior, para
duas facções angolanas em luta na segunda guerra de libertação. Há, pois, encontrarem, na defesa da vida de um porco, Carnaval da Vitória, o
uma fundamental transformação: os que se enfrentam metonimicamente oprimido, o motivo para desafiarem as imposições dos dominadores. No
em forma de nós e eles já não são mais os angolanos e os portugueses, mas nome do animal, aliás, não há gratuidade, se lembrarmos ser o carnaval da
tão somente angolanos, dolorosamente incluídos e excluídos no refrão do vitória a festa comemorativa da derrota dos sul-africanos no sul de
pioneiro que, com sua sabedoria, reconhece o barulho dos tiros, gritando: Angola, em 27 de março de 1976.
No narrado, de novo a consciência crítica e a sabedoria não mais
É deles pertencem aos mais velhos da comunidade representada - os pais dos
é nosso meninos, os responsáveis ou líderes do edificio onde vivem, os dirigentes
é nosso educacionais, etc., - mas aos mais novos, empenhados na luta pela
é nosso manutenção dos antigos ideais que, no presente, parecem estar esqueci-
é deles dos. A alegoria do porco faz-se uma forma de reescrever tais desvios. A
(p. 156) solução narrativa encontrada é a do humor e da ironia que, a cada momen-
to, vão desconstruindo a fachada de aparências em que se transformou a
O texto mostra, assim, o palco de enfrentamento onde se lançam prática política, sobretudo pelo esvaziamento do discurso que a sustenta.
as bases do projecto de fundação do novo país emergente e, nelas, as fis- A redacção escolar escrita pelo menino Ruca desvela as fissuras existentes
suras que já o ameaçam. Volto a Nkashama e à observação por ele feita no edificio político angolano:
sobre a tensão vida e morte, após as independências e a forma como esse
processo se presentifica no espaço da representação romanesca (19__, p. O meu pai é um reaccionário porque não gosta de peixe
51). fi'ito do povo e ralha com a minha mãe. Ele é que é um burguês
É esta questão política que toma corpo de várias maneiras distin- pequeno mas diz que carnaval da vitória é um burguês. Por isso
tas na ficção angolana pós-75, cada vez de forma mais insistente, sobre- lhe quer matar só por causa de comer a carne. Carnaval da
tudo em face da consciência das grandes diversidades étnicas, da múltipla vitória é revolucionário porque quando meu pai bateu em mim e
variedade linguística e da forte percepção da existência de territoriali- no meu irmão Zeca ele lhe quis morde1: Nós não vamos deixar
dades bem marcadas e em certo sentido excludentes. Fica difícil pensar- matar carnaval da vitória porque a luta continua e o responsável
-se a nação nascida com a independência, já não diria como uma unidade, da comissão de moradores não sabe as palavras de ordem que os
esse impossível, mas mesmo como uma comunidade imaginada, marcada pioneiros é que lhe ensinam.
pelo companheirismo profundo e horizontal de que fala Benedict Ander- (1984, p. 37)
son (1989). Tais conflitos e contradições representam-se nas malhas tex-
tuais, o que leva ao estabelecimento de outros contratos de produção e, 2. Do fr. griot. Aqui no sentido da expressão da oralidade passada à escrita. (N. E.)
48 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 49

Como na série literária anterior, cabe às crianças o papel de fi- E o meu sonho ... se jài. Com ele começa a vossa fala.
gurar o novo, ou seja, o futuro. Diferentemente, porém, da utópica espe- (1988, p. 186)
rança, marca da infância vivida em alegria, por exemplo, nos bairros po-
pulares de Luanda onde os "tugas", a PIDE e os cipaios que os serviam Fala do receptor que se mobilizara com as várias estórias do cão,
significavam o outro agressor, agora, a repressão está do lado de cá da heroicamente decidido a acabar com os já referidos desconcertos da
arena do convívio social, sendo todos parte da construção discursiva de sociedade recém-organizada com o fim das lutas. Fala do leitor que acom-
uma mesma frase histórica. Por isso, o narrador acumplicia-se com os panhara o diário da menina, através de cuja escrita vira o comportamento
meninos e os seus loucos sonhos de salvar o seu ideal. Comprova-o o de alguns angolanos desejosos de repor o mundo em seu antigo lugar,
fecho do relato, quando ele muda o registo ironicamente corrosivo para como acontece com o pai da autora do diário, que faz dos trabalhadores
o lírico, dizendo, mesmo já sabendo o leitor da irreversibilidade da morte bailundos da "quinta" escravos contratados, no melhor estilo da sociedade
de Carnaval da Vitória, ou seja, do esfacelamento dos sonhos antigos: colonial. Fala de todos os que, lendo/ouvindo a estória do crescimento da
buganvília ou acompanhando as imagens da toninha, reconhecem a asfi-
Cá embaixo, os meninos confiavam na força da esperan- xia da realidade, a opor-se ao encanto do sonho.
ça para salvar "carnaval da vitória". E Ruca, cheio daquela O texto lima o gume afiado da sua lâmina crítica em todos os sen-
fúria linda que as vagas da Chica/a pintam sempre na calma do tidos. Vejamos dois momentos dessa fala cortante, extraídos do diário.
mm; repetiu a fi·ase de Beta: Sobre a buganvília, não mais metáfora da ansiada libe1iação, como no
-Quem me dera ser onda! cmpus literário imediatamente anterior, mas sinal da violência predatória
(p. 69) de um sistema injusto, diz a menina: "Encontrámos a trepadeira de bagos
vermelhos morta. O Lucapa ganiu de pena[ ... ] A buganvília, crescendo,
Convém notar que tal cena de contemplação marinha retoma no matou a trepadeira. Detesto a buganvília [ ... ] . Eu disse que ela era voraz,
final de O cão e os caluandas, de Pepetela (1988), obra que se vale de matava tudo" (p. 140).
algumas estratégias já articuladas na novela anterior, estabelecendo com Sobre os contratados dos novos tempos, tão espoliados como os
ela um diálogo muito interessante. É o que já demonstrou o ensaio "A que a revolução libertara, regista-se - "Os trabalhadores bailundos can-
nova escrita africana de língua portuguesa", de Inocência Mata ( 1992), tam no seu sítio e agora são mais vozes e é mais triste o canto. Dois
onde a autora confronta as duas narrativas, intertextualizando-as, a partir kissanges acompanham. O luar permite ver a cara deles à volta da
do seu traço satírico. Penso com ela que os textos vão buscar na ironia fogueira. Mais homens cantam mais mulheres ausentes, por isso mais
contundente e no procedimento alegórico os seus elementos estilísticos triste é o canto" (p. 165).
por excelência, lançando mão do humor como forma de tornar porosa a Os elementos, antes convocados para dizer da esperança ou para
dura carapaça da realidade social. Como no texto de Manuel Rui, o que reforçar a cultura em diferença - "buganvília", "canto", "kissange", o
fecha o relato de O cão e os caluandas é o registo lírico, ao qual sucede a estar "à volta da fogueira", etc.,- retomam-se para com eles se reafirmar
consciência do objecto estético, representada pela obra em seu jogo clara- o contrário da utopia e aprofundar a dureza contida na denúncia da morte
mente metaficcional e que remete tamb6m para as fórmulas finais das pro- do sonho. A "toninha" fica cada vez mais longe, não se aproximando da
duções da oralidade. Resgatando a última imagem do cão e a sua luta praia ...
inglória para consertar/concertar um mundo em desconcerto, diz o nar- A morte do porco e a do cão, o olhar inocente das crianças, úni-
rador:
cas a verem o desconcerto e a se manterem alertas na luta pela preser-
vação dos antigos ideais de solidariedade e amor, enlaçam as duas obras
[ ...} o Sol nascente encontrou-o [ .. .] deitado de vez na areia do onde a memória exerce um papel preponderante. O contraponto histórico
ancoradouro do Kapossoka, as patas na água do mm; os olhos estabelecido entre as práticas colonizatórias e o presente da jovem nação
fixos na língua verdamarela dos coqueiros do Mussulo. Procu- torna-se mais importante que as acções individuais dos seres narrativos.
rando, num gesto derradeiro para lá do mar, o vulto duma toni- Há uma tentativa explícita de desautomatizar metáforas já cristalizadas,
nha, algas como cabelos?
como a querer anunciar-se a definitiva morte da heroic(a)idade, contida
50 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 51

na proposta, já agora sonho adiado, dos textos precedentes. A tradição nar- texto que chega às mãos do leitor, na proposta da efabulação, é a recolha
rativa ancestral, porém, continua a oferecer o modelo discursivo de que se feita pelo escritor da fala de Vêncio. Tal escritor estivera sempre mudo na
valem as duas obras, segundo já afirmei, fortemente tributárias do grio- contação do outro. A voz, e a lição é da obra, precisa da letra pàra
tismo, como também o é Crónica de um mujimbo. "sacralizar-se". O trecho a seguir é exemplar, funcionando quase como
Esta novela tem a forma de uma adivinha, que é uma das narrativas um manifesto do projecto ficcional da moderna literatura de Angola:
mais populares da oralidade angolana. Ao contrário, porém, do que ocorre
tradicionalmente, ela não se resolve, já que o leitor fica sem saber qual era o [ ...]Necessito sua água, minha sede é ignorância ...
segredo tão ciosamente guardado pelo burocrata, mas espalhado, em forma Tem a quinda, tem a missanga. Veja: solta, mistu-
de mujimbo, pelos quatro cantos da cidade de Luanda. O aburguesamento do ra-se; não posso arrumar a beleza que eu queria. Por isso aceito
responsável, os seus sinais exteriores de riqueza, o seu autoritarismo, o seu sua ajuda. Acamaradamos. Dou o fio, o camarada companheiro
medo, etc., são mostrados com humor e ironia pelo narrador. Como os anti- dá a missanga - adiantamos fazer nosso colar de cores ami
gos quimbandas que abriam o ventre dos animais para ler o destino nas suas gadas.
vísceras, este narrador- e sob sua representação a própria figura autoral- (1987, p. 13)
procura desvelar o interior do poder dirigente, para mostrar os seus vazios e
contradições, único destino que lhe parece caber na história. Explicita-se, no constelado imagístico proposto por Luandino pela
Uma vez mais se convocam as estratégias do texto oral, respon- voz de Vêncio, o que o mais das vezes a ficção mticula de forma latente: o
sáveis pelo efeito de falescrita já referido. A coloquialidade é uma das "fio" da voz ganhando fmma e consistência pelo que a ela se adiciona, a "mis-
principais marcas do relato, assim como, no nível temático, se evidencia sanga" da letra. De voz e letra se compõe o colar da obra pronta, já colorido
a intenção didáctica. Explicando o significado da palavra mujimbo, deste pelos "pedaços encantatórios", referidos por Manuel Rui. A diferença revela-
modo se expressa um dos personagens, revelando o sentido maior da pro- -se num lugar situado entre uma realização e outra. Os seus elementos semân-
dução literária angolana e da encenação da voz e da letra, no jogo grióti- ticos inscrevem-se nesse espaço intervalar onde o griô e o escritor "acama-
co, não sem abdicar de todo da ironia, marca do relato, radam", fazendo surgir o texto ficcional que, escrito, se ultrapassa no exercí-
cio de "passa palavra". Tal exercício vai fazer-se o traço principal do aparato
Mujimbo é uma palavra chokwé que significa mensagem. [ .. .] O semântico dos textos escritos em Angola nas duas últimas décadas, quando os
mujimbo é uma virtude desta sociedade [ ...}. O povo em geral produtores demonstram de forma cada vez mais densa e tensa o desejo de
tem que andar no passa palavra. No fimdo, é o continuar dos recuperar o seu universo simbólico, confetindo-lhe "força e vitalidade" e,
mecanismos da tradição oral. [ ...]. O mujimbo atinge o seu assim, perturbando "os vários padrões (chavões, imagens, abstrações) pelos
apogeu quando chega alguém dotado de criatividade e capaci- quais" Angola e, de forma lata, a África, são representadas, usando aqui
dade narrativa. Um griô, pá! Um contadm: Daí para a fi·ente, o palavras de Edward Said (1990, p. 295).
mujimbo passa a integrar pedaços encantatórios, localizações no Se entendo guetização, com Manuel Rui, como sendo o
tempo e no espaço, elementos dramáticos e outros que insinuam
a sua veracidade. fenómeno que ocorre sempre que, por determinadas razões de
(1989, pp. 92-93) ordem histórica, económica, política e social, um grupo, na posi-
ção de dominador, afasta e separa o dominado pela diferença,
A obra de Manuel Rui e a de outros ficcionistas angolanos sig- identificando esta como inferioridade, ao mesmo tempo que o
nificam esse exercício de "passa palavra". O produtor da escrita é uma dominado se insere na diferença como único princípio e fim
espécie de orquestrador, integrando, na sua partitura, "pedaços encan- (texto policopiado, 19_ _),
tatórios". Volto a João Vêncio, para reiterar o seu carácter de narrativa
emblemática do processo ficcional angolano moderno. O personagem- posso afirmar que o esforço, não obstante a vitória sobre o corpo político-
-título, como se sabe, é um prisioneiro, visto como sociopata, que, na cela -cultural do dominador, continua sendo da ficção lutar contra o empareda-
dividida com um preso político, o escritor, lhe vai contando a sua vida. O mento do gueto, para o que transforma os sinais negativos do fenómeno em
52 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 53

força positiva e realimentadora do novo sujeito histórico e literário. as culturas de origem, e estilizando com recurso ao que de mais
Quando se interseccionam, por exemplo, textos como A geração da utopia, avançado se fazia no Mundo.
de Pepetela (1992) e Patriotas, de Sousa Jamba (1991), não obstante o (1989, p. 170)
afastamento do projecto ideológico de que os dois se nutrem, vê-se que tais
diferenças ideológicas se anulam pela vontade de ambos de se mostrarem É do Mundo, pois, que vem, de um lado, o fogo da revolução li-
como "ficções fundadoras" - a expressão é de Homi Bhabha - , pelas bertadora, no caso ainda um grito de estertor da utopia socialista, parece-
quais se esboçam as tradições nacionais. Pouco impotia se, no caso, o me, antes que o sólido se desmanchasse no ar. É, por outro lado, também
primeiro romance se escreva em potiuguês e que o sujeito da grande enun- do Mundo que chegam os passos transformadores do balé de Lueji, ao
ciação seja membro do MPLA e que o segundo se tenha escrito em inglês mesmo tempo metáfora da própria obra literária, por sua vez metonímia
e o seu autor pertença à UNITA. Interessa é que os dois textos traçam o do próprio, repito, projecto nacional. Este Mundo, deste modo alegoriza-
dese-nho da duplicidade que afinal subjaz a todo o processo, dando a do, "contamina" o que seria puramente local, estilizando-o, como quer
dimensão de que "o 'local' da cultura nacional não é unificado nem Pepetela. Se o balé de Lueji coloca os violinos para se harmonizarem aos
unitário em relação a si mesmo, nem deve ser visto como 'outro' em xingufos, Hefestos, cujo fogo é trazido no Anadiomena, ha1moniza-se
relação ao que está fora ou além dele. A fi·onteira tem o rosto de Jânus", com Ogum e/ou Xangô, nessa moeda de dupla face da cultura angolana.
ainda citando o mesmo Bhabha, na tradução de que disponho de modo Fazendo do que seria um substantivo comum algo próprio, os produtores
policopiado. textuais incluem o global no local, pelo processo de "contaminação"
Há um traço recorrente e que encontro, não por acaso, em outros acima referido que, ao fim e ao cabo, organiza a festa da diferença, dester-
dois textos cujas dicções se afastam em certo sentido, mas que olham para ritorializante em todos os sentidos.
o projecto estético-ideológico da nova ficção angolana de um mesmo Para dizer da força de Angola e da sua tradição transformadora,
ponto de vista. Falo de Lueji, de Pepetela (1989) e de O signo do fogo, de Pepetela recria a figura lendária da rainha Lueji, fundadora da Lunda, e
Boaventura Cardoso (1992). Enquanto a obra do segundo demonstra o dá-lhe a face da moderna bailarina Lu, num tempo em que o futuro é já
desejo de se aproximar cada vez mais, no que se refere ao modo de pro- presente. A modernidade de Lu faz de Lueji a própria tradição transfor-
dução do texto, de uma falescrita, o primeiro deixa patente um profundo mada, como venho com frequência afirmando. O balé diz isso, assim
(re)co-nhecimento das técnicas romanescas do ocidente europeu, muito como o romance e a recente história nacional. Por outro lado, no logro de
embora sem abdicar do lugar angolano da escrita, se me faço entender. não convocar jamais e explicitamente Ogum e/ou Xangô, só dizendo de
Trata-se, no caso, da utilização de um traço gráfico escolhido para a recu- Hefestos que o inclui e reinventa na metáfora do feneiro - quando o fogo,
peração de um mesmo substantivo, Mundo, alegorizado pela maiúscula. a fmja e o machado os unem numa mesma e poderosa inscrição-, o velho
Cito trechos em que o traço aparece: de milénios retoma e o ancestral é um novo começo no romance de
Boaventura, seja ele ancestral grego ou africano. Mas será sempre
-em O signo: ANGOLANO.
Nada disso, no entanto, faz esquecer as contradições e os
O ANADIOMENA tinha vindo não se sabia de onde. Era enfrentamentos tão abertamente representados por Pepetela na novela O
muito provável que o navio tivesse vindo de Delas ou de Delfos. desejo de kianda (1995), onde a ruína benjaminiana da história ganha uma
Porém, certeza indubitável é que ele tinha trazido concentrado o forma de plena representação. Os edifícios a ruírem, o rumor surdamente
novo fogo dos santuários que Hefestos tinha espalhados pelo resmungante da zangada Kianda, presa sob as construções, na sua antiga
Mundo, assim. lagoa do Kinaxixi, agora aterrada, a libertação final não apenas das "amar-
(1992, p. 347) ras" portuguesas, mas também das peias que o angolano por sua vez cons-
- emLueji: truiu, tudo isso quase que nos levaria a poder acreditar no renascimento
da utopia, depois da última devastação. Diz o texto na sua fala final que
E aí foi nascendo um género próprio, nacional, indo buscar retomo, como fiz com outros textos aqui igualmente recuperados antes
temas e passos à tradição dos camponeses, misturando por vezes que o silêncio da não-palavra retornasse e com ela a ameaça da morte nar-
54 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 55

rativa. Eis o fecho da obra de Pepetela que simbólica e sintomaticamente


revitaliza a metáfora paradigmática do arco-íris, já atrás apresentada
através da fala de João Vêncio. A cena final fecha-se com a queda de João
Evangelista abraçado ao computador, sob os escombros, e que "por isso
também não viu"

fitas de todas as cores do arco-íris saírem do lugar da lagoa do


Kinaxixi [ ...} com as águas que formavam gigantesca onda inun- SINOS E LEMBRANÇAS
dando toda a Avenida e indo chocar em baixo da Fortaleza con-
tra a antiga ponte que os portugueses encheram de entulho e
ECOS DE DOIS ROMANCES
pedras e cimento, fazendo a Ilha deixar de ser ilha para ficar
península[...} contra o qual [istmo} a onda gigantesca se abateu
ANGOLANOS
e em cima dela vinham as fitas de todas as cores [ .. .], se mis- FINISSECULARESI
turando as águas que vinham da lagoa com as águas do mar e as
cores vivas se espalhando a caminho da Carimba, agora que a "O sino dobra por quem pensa que por ele o
Ilha de Luanda voltava a ser ilha e Kianda ganhava o alto mm; faz; [ ... }Nenhum homem é uma ilha comple-
finalmente livre. ta em si mesma; todo o homem é um pedaço
(1995, p. 119) do continente, uma parte da terra firme. Se
um torrão de terra for levado pelo mar, a
A liberdade reencontrada em novo acto de inaugurar o sonho, bar- Europa fica menor como se tivesse perdido
rado para Vêncio, para os meninos que queriam ser onda, para o cão a ten- um promonitório, ou perdido o solar de um
tar alcançar a toninha. Novo jogo se anuncia? Novas cabras-cegas apare- teu amigo, ou o teu próprio. A morte de qual-
cem, com as "fitas de todas as cores do arco-íris" a tentarem, agora ale- quer homem diminui a mim, porque na
gremente coloridas, vendar, para desvendar, os não menos cegos olhos da humanidade me encontro envolvido; por
história? Só um novo projecto ficcional- ou mesmo a continuação do isso, nunca perguntes por quem os sinos
dobram; eles dobram por ti."
que está em curso -poderá disso nos falar, talvez, quem sabe, quando as
buganvílias alegremente reflorirem ou a kianda 3 resolva habitar outra vez John Donne,
as águas claras da sua lagoa do Kinaxixi, para que os meninos brinquem traduzido por Paulo Viziolio
suas brincadeiras "juadas" ou empinem seus papagaios de papel de seda,
alegremente jogando seus jogos infantis, sem que a memória da dor os
impeça de sonhar seus sonhos onde moram todas as cores do arco-íris. Na sala escura, um grupo de quase adolescentes
brasileiros segue o infinito sofrimento do Inglês- ou Jordan, inscrito na
longilínea e tensa figura de Gary Cooper. O personagem vive seu
momento final, tentando, antes de se deixar abater pela morte, atingir,
com a sua arma, o chefe do grupamento fardado que se locomove ao
fundo da cena. De repente, a tela escurece rasurando a imagem em preto
e branco. Parece ter chegado o fim de Jordan e do filme. Mas a imagem
vai-se reabrindo, com a projecção, no écran, de um enorme e cinzento
3. Divindade ierofânica, que na cultura quimbundo representa a deusa das águas sino. E ele dobra, dobra ...
das lagoas e dos rios, mas de facto uma entidade assexuada, a que os pescadore~
da Ilha de Luanda e os homens ligados ao mar continuam a solicitar protecção. 1 Comunicação apresentada no Colóquio em Homenagem a Cleonice Berar-
(N. E.) dinelli, Figuras da Lusofonia. Lisboa, 1999 (no prelo).
56 Laura Cavalcante Padilha
Novos pactos, outras ficções 57

Alguns anos depois, foi a vez do romance de Ernest Hemingway


tion qui est bien plus qu 'une image; une indication, un index de
(1940), origem do roteiro do filme de Sam Watson (1943), ser lido e dis- la "patrie ".
cutido por outro grupo de jovens estudantes de Letras, que, ávidos, viam
(1992, p. lll)
nas palavras de Marx - para eles um quase novo testamento - o anún-
cio da chegada da revolução. Vivia-se o fim da década de 50, com as suas
Aqui e agora, porém, quero deixar o tempo das eufóricas metá-
utópicas promessas. E a luta de Jordan em Por quem os sinos dobram ali-
foras, para me debruçar mais detidamente sobre o projecto ficcional
mentava a nossa espera, assim como também o fazia, com suas aulas
angolano deste fim de século, construído num tempo em que o sonho de
transformadoras, a jovem professora Cleonice Berardinelli, a maga dos
liberdade enfim realizado não significou a construção da felicidade e da
textos portugueses e a madrinha das nossas esperanças.
paz. As minas continuam a explodir, matando ou criando uma multidão de
Não é gratuita, pois, a escolha em começar este texto de agora
mutilados; os campesinos (e não só), em fuga, deixam os seus lares, bus-
com uma volta no tempo e como forma de homenagem a quem, deixando
cando Luanda como um modo de fugir da guerra, enquanto um incontá-
Portugal, caminhou por quatro anos comigo pelas sendas dos textos
vel número de crianças, não mais pioneiras, mas com olhar esgazeado
angolanos; daí a razão para que eles sejam aqui convocados.
pela fome, perambula sem rumo pelas ruas das cidades. De pouco
Porquê Donne, Hemingway e Watson para falar de ficção
adiantou o momento de alegria de ganharem uma bandeira, como can-
angolana? Porque recente pesquisa feita em jornais e/ou revistas como o
taram André Mingas e Manuel Rui.
Boletim Mensagem da Casa dos Estudantes do Império (1948-1964) e
Elejo assim, como metonímias possíveis dessa nova ficção, os
com exemplares do Jornal de Angola dos anos 50 mostrou, de forma
textos Parábola do cágado velho (1996), de Pepetela e Maio, mês de
inequívoca, não só a importância literária de Hemingway, mas a força do
Maria (1997), de Boaventura Cardoso. Eles tematizam todo um quadro de
cinema como um dos veículos artísticos privilegiados no processo de for-
enfrentamentos e ruínas pelo qual se reduz, como bem postula o brasileiro
mação dos que viriam a ser os novos ficcionistas angolanos deste século.
Frei Betto, "a distância entre o desejável e o possível" (1999, p. 17).
Talvez, para eles, como para nós, jovens brasileiros de então, ficasse soan-
Ambas as obras, ao optarem por uma forma de representação alegórica,
do a bela frase de Jordan, a um passo da morte: "Por um ano combati pelo
transformam-se duplamente em parábolas, palavra que não por acaso abre
que acreditava estar certo. Se vencermos aqui, venceremos em toda a
o título da obra de Pepetela. Elas são parábolas, de um lado, por signifi-
parte. O mundo é belo e merece que se lute por ele- e dói-me deixá-lo"
carem, como na tradição oral, um compromisso ético com os receptores,
(1941, p. 413).
uma forma de colocar em circulação um ensinamento moral, indispensá-
Enredam-se, na fala do personagem de Hemingway, as ideias
vel para a continuação do grupo como tal. São-no também porque, recu-
tutoras que se vão transformar em supreendentes imagens nos modernos
sando-se a deixar de ser uma arma de combate, disparam os seus pro-
textos ficcionais angolanos: o combate por uma causa; a fé na vitória
jécteis que descrevem outras espécies de curvas- ou parábolas- no céu
final; a força do colectivo; a firme crença na beleza do mundo, além, é
da história. A este propósito, ao propor uma leitura do romance de
claro, da inexorabilidade da morte, cuja grandeza em certa medida se
Pepetela, também enfatizando a questão da alegoria e entretecendo-a com
exalta. Tais elementos imagísticos ressurgem com força, para citar apenas
a fábula e a parábola, afirma Carmen Tindó Seco o que já agora estendo
um autor, nas narrativas de Luandino' Vieira. Dou como exemplo A vida
para Maio- "Oscilando entre a parábola, a fábula e a alegoria, o texto de
verdadeira de Domingos Xavier (1974); Nós, os do Makulusu (1975) e os Pepetela apresenta uma estrutura dramática bem tecida, capaz de enfatizar
contos de Luuanda (1964) onde, num deles, sobreleva a metáfora do
os conflitos histórico-sociais vividos por Angola" (1998, p. 256).
cajueiro ou outra forma de dizer resistência e, assim, tecer a malha da
Optam as duas formas romanescas, nesse sentido, por cenari-
inquebrantável esperança no futuro. Lembro, a propósito dessa ficção, o
zarem a ruína e a devastação criadas pelas guerras internas que impedem
que diz Louis Marin:
a construção plena da nova nação que, desde 1975, é Angola. Sem se
fechar marcadamente num acontecimento histórico definido, embora nos
Ce n 'est pas un récit, mais la représentation de l 'ecart entre !e
faça intuir tratar-se do enfrentamento actual entre o MPLA e a UNITA,
moment heureux du passé présent et la permanente présence de
Pepetela decide-se pela representação em aberto, enquanto Boaventura
l'état de bonheur. Cet écart est la lettre- !e texte: représenta-
escolhe, desde o título, o momento político de ruptura da solidez ideoló-
Novos pactos, outras ficções 59
58 Laura Cavalcante Padilha

magoria, ela pode ser usada como elemento para a explicação da trans-
gica do Movimento Popular de Libertação de Angola, representado pelo
formação em "fantasmas" das mulheres amadas pelos personagens,
fraccionismo do 27 de Maio de 1977, liderado por Nito Alves, José Van
respectivamente Munakazi (mulher, em umbundu) e Zefa. A primeira,
Dúnen e Sita Vales.
muito mais jovem que Ulume, acede, depois de muito negar, em ser sua
Tais enfi·entamentos, de modo geral, rasuraram, e ainda rasuram, a
segunda esposa, restabelecendo-se, com isso, a velha estrutura poligâmi-
noção de quem é ou onde está o inimigo, mudando as regras do jogo do nós
ca, banida pela nova ideologia vigente. Impulsionada pela sua juventude
e dos outros ou ainda, como diz um personagem de Parábola, fazendo com
e pela força do sonho de Calpe (cidade imaginária e mítica surgida pela
que não se saiba mais quem ou "quais são os nossos dos outros" (1996, p.
primeira vez em Muana Puó [1978], do mesmo Pepetela), deixa o
100). Conforme se reitera em Maio, cresce a "desconfiança entre nós e eles"
pequeno quimbo e desaparece, levando o marido a imergir na "outra dor,
(1997, p. 178) e, desse modo, não há qualquer possibilidade de coesão inter-
a profunda, a que não mais o abandonaria" (p. 128). Mas Munakazi, quase
na. Para denunciar esse estado de coisas, os ficcionistas retomam a ances-
no fim da nanativa, volta, dando oportunidade a que o narrador, com o seu
tral prática de fazer do contado um compromisso com o colectivo e sua
"saber só de experiências feito", assim nos relate tal regresso:
ordenação, razão por que, como modernas parábolas, vão exercitar novos
tipos de persuasão, sem abdicarem da sua intenção, ao mesmo tempo,
didáctica, simbólica e iniciática, pensando com o crítico zairense Georges A Muari parou de varre1; para contemplar aquela suspeita de
Ngal (1994, p. 25). mulher que tomou o carreira de entrada do kimbo. Um esqueleto
São vários os pontos de intersecção entre os romances, a começar, desgrenhado e andrajoso, um cazumbi, sem dúvida. A Muari esta
do ponto de vista temático, pelo facto de encenarem histórias de famílias va velha e muito já tinha visto, por isso não deu o grito histérico
que, no quotidiano da guerra, são os grupos sociais mais duramente por que muito homem e mulher dariam ao serem confrontados com
ela atingidos. Os núcleos dessas histórias são os seus dois chefes. Em um espírito descarnado como aquele.
Parábola, Ulume, que significa homem em umbundu, além do seu nome, (p. 168)
como signo fónico, permitir, na pronúncia portuguesa, criar-se um jogo
com "o lume". Em Maio, o chefe é João Segunda, cujo nome também per- Por sua vez, Zefa, esposa de Segunda, morre subitamente na
mite várias leituras, ligando-se a coisificação e secundariedade. Os dois viagem de fuga de Dala Kaxibo para Luanda. O seu espírito, porém, não
personagens tangenciam-se, além do jogo onomástico, por vários outros deixa a nova casa familiar, talvez aprisionado pelo profundo amor do
factores: têm uma mesma origem rural; são velhos; pais de três filhos, etc. marido- cf. por exemplo, a pergunta muda do amigo: "Era normal assim
Mas é a questão dos dois filhos homens que ambos possuem e que dei- tão tanto amor?"(p. 183). João entabula com a morta longas e demoradas
xam a casa, tangidos pelas injunções da guerra, o que mais os irmana. conversações; por isso mesmo, o narrador, em sua omnisciência, vai
Sabe-se que uma das consequências mais dramáticas dessa mostrando a perplexidade dos outros face ao facto do personagem contin-
mesma guerra em Angola é o ter quebrado a solidez do clã familiar. No uar a conviver com o espírito da mulher, glosando, com seus comentários
caso de João Segunda, o desaparecimento do filho Hermínio transtorna-o grióticos, a forte influência dela sobre ele:
e à família, obrigando-o a viajar por Angola inteira, para encontrá-lo, sem
sucesso. No caso de Ulume, o quadro dramatiza-se ainda mais, quando os Apesar de fisicamente morta, Segunda lhe conhecia bem
filhos abandonam a casa e o quimbo, para lutarem em lados opostos na pelo tom de voz se ela estava bem disposta, o que ela queria dizer
guerra, tomando-se ferozes inimigos. Na relação pais vs. filhos dramati-
quando levava muito tempo a lhe responder [ .. .} assim ele que
za-se o enfrentamento entre a tradição antiga e as transformações advin- ficava a saber quando ela lhe dava anuência para certos assun-
das com as ordens de poder vigentes e em conflito. Rompe-se a solidez e
tos, ou quando que discordava [. ..}No fundo se podia dizer dona
o equilíbrio da estrutura clânica, o corpo familiar fragmenta-se e quase Zefa defunta falecida quem que tomava decisões mais impor-
colapsa.
tantes dos moradores do Bairro do Balão. Quem que sabia era só
Tal ruína não se restringe, entretanto, apenas à família, como um
ele, mais ninguém. Eh! Eh! Eh! Podia ser?
agrupamento social de base, mas se expande para a cenarização e o clima (pp. 113-114)
de fantasmagoria em que imergem Ulume e Segunda. Quanto à fantas-
60 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 61

O mundo fantasmagórico estende-se pelos quatro cantos do con- João Segunda quando que chegou nas terras que ele tão queri-
tado, sobretudo à cenarização externa, tão morta quanto Zefa e tão espec- damente conhecia [. ..] chorou muito soji'ido ao ver ninguém nas
tral como Munakazi. Como se sabe, no sistema de pensamento africano, sanzalas, ninguém nos campos, tudo abandonado, o total vazio
não se exclui o real empírico de uma outra ordem do real, não tangível, [. .. } Fora na antiga casa dele e lhe encontrou devastada, portas
mas nem por isso menos real. Diz, a propósito, o crítico nigeriano Tidjani escancaradas, o tecto reduzido a algumas vigas de madeira,
Serpos: paredes demolidas [ .. .] Que Segunda confirmou: vendaval tinha
afinal chegado nas terras dele de lá em Da/a Kaxibo, e tudo
/'une des richesses dans l'évolution de la narration romanesque ventara muito varrido.
c'est justement pour un auteur réaliste d 'écrire un récit oú la (Maio, pp. 183-184)
magie, la sorcellerie, les incantations et les charmes jouent un
rôle capital pour mieux rendre compte du réel [ ...] les éléments O cheiro de pólvora e queimado; as nuvens de fumo; a destruição
surnaturels, mythologiques n 'ont pas defrontieres. do Vale da Paz; o total vazio; a devastação e o vento a varrerem tudo. Ao
(1987, p. 250) invés da aurática esperança contida na me-ditação de Donne, na beleza
plástica do filme de Watson e/ou na mensagem de Hemingway, inscrita
A esse recorte, pode acrescentar-se o comentário do ficcionista sobretudo na figura de Jordan, encontram-se, nos textos ficcionais
Mia Couto, ao aludir ao facto de que o escritor moçambicano - o que é angolanos desse fim de século, a desolação, o despedaçamento, a devas-
extensível ao angolano - tação e a perda. Esfacela-se a terra, contando o fim da beleza do mundo.
Rasura-se o sentido do conhecido, suspende-se a própria temporalidade.
trabalha num mundo repleto de mitos, fantasmas e crenças. Há Nasce disso a importância simbólica dos momentos de encontro entre
certa pressa em qualificar tudo isso como sendo obscurantismo Ulume e o velho cágado da Munda que, como explica o texto, é "outra
e calcular que, num jitturo próximo, toda a gente pensará segun- forma de dizer montanha" (p. 11), ou seja, movimento para o alto:
do padrões racionalistas de acordo com os moldes europeus do
chamado sentido prático da realidade[ ...} as nossas circunstân- É um momento especial a meio da tarde em que tudo parece
cias históricas e sociais tornam difícil impor a ji'onteira clássica parar [ ... } Como se a vida ficasse em suspenso, só, na luminosi-
entre realismo e fantasia. dade dum céu enxuto. [ ...} é um instante de beleza, pois vê o
(1986, p. 47) mundo parado a seus pés. Como se um gesto fosse importante,
essencial, mudando a ordem das coisas. Odeia e ama esse
A relação de Ulume com o cágado; de Segunda com a sua cabra instante e dele não pode escapar.
Tulumba; a presença dos cães e a sua mutação; a subida de Na Sr de (p. 12)
Fátima aos céus; o aparecimento da figura de Munakazi também, quando
a granada explode, quase matando Ulume, etc., são exemplos da inter- A alusão ao "instante de beleza" e à impmiância do gesto reme-
penetração das fronteiras a que se referem Serpos e Mia Couto. Quando tem-nos para a frase de Jordan, para a grandeza da sua acção solidária em
essa ordem se parte, o sentido do mundo se perde, daí a cenarização entrar oposição à contemplação solitária de Ulume. Mas não estamos mais em
em processo de fragmentação e ruína, rompendo-se o equilíbrio até então tempos de certezas; por isso, as coisas já não são, mas organizam-se
vigente, quando tudo estava no seu justo lugar, até a morte e seu sentido: "como se fossem". O amor transita para o seu contrário, o ódio. A acção
não é uma escolha do sujeito, daí não poder "escapar" do instante sus-
Ficaram o dia todo atrás dos penhascos, a ver as explosões matar pensivo. Não se tem mais a consciência de pertença ao conhecido ou
as pessoas e os animais, a destruir as casas, a cavar buracos tangível do mundo. Mas vive-se a estranheza, representada, no caso de
enormes nas nakas. O Vale da Paz estava cheio de fitmo, das Segunda, por Finisterra, "lugar que não tinha geografia" (p. 135). Opõe-
explosões e dos incêndios, e cheirava a pólvora e a queimado. -se, assim, ao sonho de Calpe, tal como aparecia em Muana Puó e que,
(Parábola, p. 144) reaparecendo em Parábola, se revela um falhanço. Em Finisterra,
62 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 63

Segunda só encontra a fazenda Boa Morte com o comandante São tais tesouros que Boaventura e Pepetela insistem em descre-
Staffordshire e seus cães, antimetáforas da paz e da felicidade ver, como que para acordar a terra arrasada no seu exterior, transfundin-
perseguidas. do-lhe a sua própria seiva simbólica de que, por exemplo, a beleza da
O resultado de tudo isso é a imersão dos personagens Ulume e Munda ou as paisagens naturais de Maio são as grandes projecções plás-
Segunda no luto e na melancolia, sucedendo-se, nos relatos, incontáveis ticas. Lembrando o passado que, embora precário, fora vivido em estado
cenas de meditação e ensimesmamento. Como ensina Walter Benjamin, de felicidade, os ficcionistas o transformam no par do futuro, para pode-
"a meditação é própria do enlutado" (1984, p. 163), significando o luto, rem ainda acreditar um pouco no presente. Este, dentro da correlação de
em sua visão teórica, "o estado de espírito em que o sentimento reanima forças ideológicas dominantes que negam o passado e barram o futuro, só
o mundo vazio sob a forma de uma máscara, para obter desse mundo uma se permite representar enquanto não receber a fusão da seiva realimenta-
satisfação enigmática" (idem, p. 162). dora da esperança, pela fragmentação alegórica e pelo olhar saturnino.
Ulume e Segunda, melancólicos, são seres saturnais, ainda Os dois romances, assim, aproximam-se de uma forma de repre-
Benjamin, com Panofsky, a partir da pintura de Dürer. Isso explica, segun- sentação que, sendo demarcada temporalmente, se pode aqui reafirmar
do o estudo do autor, os seus dons divinatórios, além das constantes via- como uma ideia, mais do que como uma escola literária restrita. Refiro-
gens e/ou mudanças- cf. Origem do drama barroco alemão, edição aqui -me, ainda e sempre com Benjamin, ao Barroco. Interessante que, até do
citada, p. 171 e seguintes. A melancolia conduz-nos, também com o teóri- ponto de vista linguístico, ou seja, da natureza híbrida do discurso, que
co alemão, à alegoria que, de acordo com ele, "é o único divertimento [ ... ] transita entre letra e voz, se pode pensar nessa aproximação. Diz Sérgio
que o melancólico se permite" (idem, p. 207). A alegoria é, assim, o pro- Paulo Rouanet, na apresentação da Origem, que o Barroco
cedimento representativo escolhido pelos dois ficcionistas angolanos para
nos apresentarem a sua pintura do fragmentário, da ruína e do precário [ .. .]já conhecia essa tensão entre nome e palavra, sob a forma
que se fazem elementos de força dentro de seus universos ficcionais, sem- de uma oposição entre a linguagem oral, livre expressão da
pre de acordo com as regras do jogo da sua própria economia discursiva. criatura, e essencialmente onomatopaica - nomeando assim as
Para plasmar, por imagens artístico-verbais, portanto, a ruína da coisas com o nome que verdadeiramente lhes c01·responde - e a
história, as estórias elas mesmas são cenarizadas como tal, fulcrando-se linguagem escrita, reino das significações, sobre as quais pesa
em alegorias que- Benjamin, de novo- "são no reino dos pensamen- toda a tristeza do homem exilado.
tos o que são as ruínas no reino das coisas" (p. 200). O cágado, a cabra, a (1984, p. 17)
Munda, o Bairro do Balão, as fazendas Boa Morte e Juventude Operária,
a destruição, a loucura, a morte e, em Maio, de forma especialíssima, os Esse exílio, a consciência do precário e do apenas transitório, a
cães, transformam-se, no plano da representação, em imagens alegorica- melancolia, enfim, levam-nos a poder opor o mundo das certezas fic-
mente plasticizadas da ruína de Angola, percebida como um projecto cionais antigas ao das controvérsias finisseculares. Voltando a Jordan,
nacional falhado política e ideologicamente. como metáfora da fé na vitória final e, consequentemente, às narrativas
Segunda e Ulume são, pois, representações ficcionais da grande ángolanas que exaltam essa mesma certeza, é possível pensar que, na cena
melancolia que se estende dos homens à própria nação, como construção aludida atrás, o personagem de Hemingway não volta o seu olhar para
imaginária. Faz sentido, assim, a sucessão, nos relatos, das cenas em que baixo, mas mira, recto, o ponto distante onde está o inimigo que precisa
ambos os personagens olham para o chão, como se quisessem perfurar "o abater. O mesmo se dá com a dramática cena final de Domingos Xavier,
solo com seus olhos" (BENJAMIN, idem, p. 175). Daí, também, a sua com o luar banhando o ensanguentado corpo do personagem, a que sucede
relação com o cágado e a cabra, o que os obriga a olhar igualmente para a festa cosmogónica do anúncio da sua heróica morte. Em contrapartida,
baixo. Como angolanos, e dentro do sistema de pensamento tradicional, a é outro o sentido do sangue, no mundo sem aura e/ou heroicidade de
terra é sua mãe, daí o irmanarem-se a Saturno que, como eles, brota da Ulume e Segunda, onde a controvérsia é a base de tudo. Por isso, a repre-
terra-mãe. Volto a Benjamin: "As inspirações da mãe-terra despontam sentação naturalista cede lugar à alegórica, pois, de novo Benjamin, ape-
aos poucos para o melancólico, durante a noite da meditação, como nas com um delito se pode contar outro delito. Só a melancolia pode reinar
tesouros que vêm do interior da terra" (idem, p. 175). nesse mundo sem paz.
64 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 65

Mas Parábola e Maio apontam ainda na direcção da luz, não se


pennitindo encerrar sem uma nota de esperança, mesmo que seja na rapi-
dez do final, como breve cintilação. Isso explica por que os narradores, que
se comportam como o lavrador benjaminiano cujo conhecimento do seu
mundo é irrestrito, acabem os textos com um movimento para o alto, uma
mudança na direcção do olhar. Ulume, no parágrafo que encerra o
romance, conta a voz narrante, que "Olhou para o céu e viu as estrelas
aparecer. Tinha também Muiza, a V énus dos brancos, a mais linda de todas O SAPALALO
as estrelas. E Ulume, o homem, sorriu para ela" (p. 180).
Na estória de Segunda, iniciada com a sua morte, quando chega o OU UMA CASA
final, retornando-se narrativamente ao princípio e somos informados de que
ele "estava navegando nas derradeiras águas" (p. 230), o narrador relata-nos
ENTRE DOIS MUNDOS
o episódio da Santa, dizendo que ela EM BENGUELAI
estava se erguer sozinha, a se levitar lenta em direcção ao céu,
parecia um foguetão a ser lançado, toda resplandecente ilumina- "Irrecuperável é cada imagem do presente
da na escuridão da noite. Povo todo [ ...] estava [ ... ] olhm; exta- que se dirige ao presente, sem que esse pre-
siado, aquela luz que foi se indo, desaparecendo até se confimdir sente se sinta visado por ela. "
com as milhares de cintilantes estrelas.
Walter Benjamin
(p. 230)

Temos aí uma mesma teia entretecida pelos mesmos fios imagís- "Dá um certo gozo subverter a história."
ticos que encontramos em Domingos Xavier. Há um idêntico movimento Pepetela
para o alto; reaparecem o céu, as estrelas e o gesto de confiança. Ulume
libel'ta-se pelo sorriso e Segunda pela morte, ocorrida em plena festa.
Nesse momento, africanamente, convoca-se um feminino, como possibi-
Tomando por verdade a frase proferida por Alexandre
lidade de renovação, daí a alusão a Muiza e à Santa. Esse redireciona-
Semedo, personagem da obra Yaka, de Pepetela -"Cada coisa tem em si
mento do olhar nos faz poder de novo acreditar que, se vencermos aqui,
venceremos em toda a parte. O sorriso de Ulume e a euforia do povo a cultura, a História, de sua criação" (1984, p. 294) -,pode-se estendê-
-la para a criação do próprio espaço romanesco, cujas marcas mais evi-
indicam que os sinos ainda podem dobrar por nós.
dentes são o hibridismo e a polissemia cultural. Com a estória da família
Semedo, desenvolvida entre o Ultimatum (Portugal, 1890) e a Indepen-
dência (Angola, 1975), depara-se o leitor com o encontro dos mundos
europeu e africano do qual se originará, em turbulência, a nação angolana,
do modo como se apresenta nas malhas da história contemporânea.
A narrativa encena as negociações de sentido (SANTOS, 1995)
que contribuem para a formação da identidade nacional angolana, identi-
dade jamais passível de ser, no entanto, confundida com um constructo

1. Publicado em Escrever a casa portuguesa, organização de Jorge Fernandes da


Silveira, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1999, pp. 351-363.
66 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 67

monolítico, dada a diversidade das etnias de origem, onde vários foram "os romanesca. Em seu tempo histórico, procura, no que se associa em certa
nomes colectivos", "os mitos de linhagem comum" ou "memórias históri- medida a Walter Benjamin, "arrancar a tradição do conformismo", para
cas partilhadas", tomando aqui três dos seis atributos recortados por com isso "despertar no passado as centelhas da esperança", resgatando
Anthony Smith (1997, p. 37). Tal encontro de mundos, ou de águas de mar aqui palavras textuais do crítico alemão (1994, p. 224). Escolhe, para
e rio, é reescrito em Yaka, significando o romance um meio possível de fazê-lo, os dois segmentos étnicos - negro e branco - que se
desvelamento do segredo, ainda recorrendo a Smith, da complexa e multi- enfrentaram no palco do teatro colonizatório, tendo a ligá-los um idêntico
dimensional construção do que, a falta de melhor termo, continuamos a processo de afastamento ou marginalização da cena onde se representava
chamar angolanidade. Uma outra frase do mesmo Alexandre Semedo, con- a história metropolitana.
tida no seu caderno de memórias, fonte na qual a própria narrativa se O segmento branco, lugar simbólico focalizado de forma mais
dessedenta, pode servir de metáfora para a trama do segredo e seu canse- directa pelo olho-câmara do narrador, compõe-se de indivíduos perce-
quente desvelamento- '"No segredo da adaga cuvale está a mensagem bidos, de um modo ou de outro, como cidadãos portugueses de segunda
duma cultura para outra; não forçosamente antagonismo, por ser uma classe. Uma parte deles é constituída por pessoas que, por motivos políti-
arma; mas mensagem duma diferença nascida no passado dos homens que cos ou económicos, são obrigadas a deixar Portugal, algumas delas em
a fizeram e usaram,'" (p. 211). busca da "árvore das patacas", referenciada no próprio texto (p. 154). No
Tem-se, pois, o segredo da adaga cuvale, no presente pertença do primeiro grupo ainda se encontram os brancos nascidos em Angola (com
branco Alexandre, a tentar dizer o segredo da nação, por sua vez a dizer- especial ênfase para o protagonismo de Alexandre Semedo). Tal nasci-
se no segredo do romance. Entrelaçando-se, os três "segredos" con- mento torna-se absolutamente estigmatizador, pois a "mácula" inscreve-se
tribuem para a ressignificação da mensagem transmitida por culturas nos documentos oficiais onde se declara a condição humilhante de "bran-
excludentes na sua origem, dadas as suas singulares negociações de sen- cos de segunda" atribuída a esses "mal nascidos". A propósito, convém
tido. Convoca-se, desse modo, o passado com o fim de por aí se encontrar recuperar a fala esclarecedora de um dos assinalados pelo epíteto, o per-
a diferença que não comporta qualquer ideia de essencialismo (SAID, sonagem Ernesto - "O certo é que s<m branco de segunda por ter nascido
1995). Busca o produtor textual, no jogo de decifrações assim posto, uma aqui. Não tenho acesso a todos os graus do funcionalismo público. Isso
forma de narrativizar a nação, no sentido postulado por Homi Bhabha quer dizer alguma coisa. Cada vez me convenço mais que os tipos tinham
(1996). A esse propósito, Maria Geralda de Miranda vê em Yaka um texto razão em querer a independência" (p. 56). A categoria "brancos de segun-
revelador da tensão histó-ria/ficção, afirmando, dentre outras coisas, que, da" torna manifesto, portanto, o drama vivido de modo latente pelos ou-
pela obra, Pepe-tela busca "recuperar a memória do povo de Angola, para tros da mesma cor, oriundos da metrópole.
reconstituir a história da nação angolana" (1995, p. 48), o que se dá, con- No segmento negro, ou seja, entre os percebidos como seres de
tinua a pesquisadora, sobretudo pela rasura da "mistificação colonialista" "última classe", ou não-cidadãos, também vamos encontrar, a par da
(p. 43). A isso acrescento: e pela tentativa de representação da multidi- ausência de quaisquer direitos ou respeito humano, uma ressegmentação
mensionalidade étnica angolana. bastante significativa. De um lado, o romance resgata os personagens que
Complexificando o que até eutão era visto como um singular uni- resistem (sejam de extracção histórica ou não), mostrando-os como indi-
dimensional, o sujeito do pacto narrativo parece querer preencher os víduos arraigados às tradições étnicas de origem e que se revoltam contra
vazios da história oficial da colonização, com a sua escrita deliberada- os surdos ditames da dominação. Um exemplo paradigmático pode encon-
mente a contrapelo com a qual, repetindo a epígrafe, sente "um certo gozo trar-se na lendária figura de Mutu-ya-Kevela resgatada narrativamente
[de] subverter a História". E ele continua, na mesma entrevista concedida pelas malhas da ficção. Contrapondo-se a tal resistência, os assimilados,
ao JL: "Sabe-se que se passou assim, mas dá um certo gozo tentar ou seja, na visão deAlbert Memmi, os colonizados que perdem a memória
preencher todos os buracos do meio com coisas que se sabem perfeita- cultural, imergindo, seja na "anmésia", seja na "cegueira interessada"
mente impossíveis" (1997, no 693, p. 9). (1977, pp. 94 e 105). É revelador o pensamento de Alexandre Semedo
Com a sua tentativa de "preencher todos os buracos do meio", sobre Tuca, seu colega de infância, ex-soldado da tropa, recrutado durante
Pepetela busca encenar o emaranhado de "impossíveis"- ao fim e ao um tempo para fazer uma "guerra preta" (p. 106): "Tuca foi embora, mais
cabo não tanto assim - , recuperando-os no tecido da sua efabulação frio que ao vir, nunca mais voltou, apesar da promessa. Um preto bom, o
68 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 69

Tuca, pensou Alexandre. Com alma de branco ... E nem notou, estava a merciantes brancos, alguns deles em Yaka a princ1p10 mostrados no
ser tão irónico como os olhos da estátua yaka, ao lhe contar a conversa" apogeu trazido pela força económica da borracha, enquanto, no Camaxilo
(p. 196). retratado por Soromenho, aqueles comerciantes são surpreendidos em
Unindo os dois núcleos representativos do segmento negro, a total pleno coração da decadência financeira e até fisica. Representam-se, em
exclusão da cena da história oficial, pois que, pela cor da pele, todos se Terra morta, a propósito, sempre sentados à varanda das suas casas híbri-
transformam em objectos dessa mesma história, quando não são dela das onde convivem com as mulheres negras com as quais têm filhos
totalmente eclipsados. O romance, em seu afã de preencher os vazios mulatos, como procurei analisar em ensaio anterior (1995). Outra cena
lacunares do relato pré-estabe-lecido sobre o colonialismo português em recorrente é a dos negros que vendem a borracha aos brancos, sendo por
África, caminha na contracorrente, ao mostrar que, nas regras do jogo de eles roubados nos armazéns onde se dão as transacções tanto dessa venda,
exclusão e rasura, o negro torna abissal a marginalização do branco colo- quanto da compra, pelos espoliados, de bens de consumo. O infantilismo
nial e ainda a de um terceiro elemento que, na tensão étnica, se coloca com que os naturais da terra são retratados pelo imaginário europeu é
entre estes dois primeiros segmentos, pairando numa espécie de limbo outro traço de união, assim como o é a configuração dos mulatos e sua
histórico-social: o mulato. marginalização (cf. TORRES, 1978).
Vale aqui notar, quase em forma de parêntese, os sólidos laços Entre o colonialismo, e o apagamento por ele provocado, e a soli-
dialógicos pelos quais se podem enlaçar Yaka e os romances de Castro dariedade representada pela emergência do nacional, voltando a pensar
Soromenho que compõem a trilogia do Camaxilo, especialmente Terra exclusivamente em Yaka, o romance propõe um terceiro termo: a resistên-
morta (1949). Ambos os autores enfatizam a ruína da casa colonial por- cia. Ela narrativiza-se através das várias revoltas que, excluídas do prin-
tuguesa, mostrando-lhe as caves sombrios, as salas escuras, os quartos cipal núcleo espacial enfocado e quase sempre recuperadas em forma de
mais secretos. Escancaram-se, por eles, as portas do "mundo seguro de si, rememoração, vão desconstruindo a solidez do mundo centrado em si que
que esmaga com suas pedras os lombos esfolados pelo chicote" (FANON, é o mundo colonial, pensando com Fanon. Tais revoltas significam sem-
1979, p. 39). Libera-se, em consequência, a "tensão muscular do colo- pre uma resposta dos negros mais conscientes - com frequência líderes
nizado" (idem) e esta, por seu turno, manifesta-se em forma de revoltas, tribais ou clânicos- frente a uma tentativa de rapinagem de brancos ines-
enfrentamentos e lutas. Há, nos romances, um surdo embate entre quase crupulosos cujos tentáculos se estendem para as suas terras e bens. Cada
todos os colonos brancos e grande parte dos colonizados negros, embate um desses massacres de brancos contra negros recebe, na pompa do dis-
intermediado pelos mulatos, por sua vez o resultado da união entre ambos. curso oficial, o nome de guerra, aliás, quase "santa", com a qual se
Os mestiços plasmam-se como indivíduos em estado de suspensão escreve mais um "heróico" capítulo da colonização portuguesa.
sócio-histórica e político-cultural, sempre mostrados como "objectos" É assim com a "guerra" dos bailundos ( 1902), quando diz o nar-
manipulados pelos pais brancos (cf. filhos de Agripino e dos colonos de rador: "A partir daí, os bailundos dobraram a espinha e nunca mais foram
Terra morta), frequentemente excluídos do clã familiar, no caso de Yaka, um problema. Até hoje" (p. 45). Com a do Seles (1917), quando então a
igualmente branco (c f. Ofélia, filha de Alexandre) e vistos, por fim, com voz narrante esclarece- "Naquela terra da Gabela, vermelha boa para o
profunda desconfiança pelos negros seus (des)iguais. café, o vermelho da terra ficou mais vermelho, mais viscoso, do sangue
Liga o romance de Soromenho ao de Pepetela uma mesma visão de sumbes e bailundos. Aquela terra do Seles, do Uco, da Conda, do
de mundo marcada por um profundo processo de anomia. O chicote, Hiove, mais viscosa, mais vermelha" (p. 123).
metonímia da força bruta, tanto dilacera os corpos fisicos como os cultu- O mesmo se passa com a "guerra" dos cuvales (1941), quando
rais, embalsamando ainda os sonhos de uma existência digna e solidária. Aquiles, filho de Alexandre, assassina Tyenda, filho de Vilonda, e
Reitera-se, no conjunto ficcional assim formado, que o colonialismo, Bartolomeu Espinha, símbolo acabado da rapina, aproveita o facto para, a
como preceitua Boaventura de Sousa Santos, é o pólo oposto da soli- pretexto de vingar a morte do cunhado Aquiles, por sua vez morto por
dariedade. O espaço romanesco reitera, desse modo, o espoliamento, o Vilonda, conseguir com os soldados arrasar a pequena onganda cuvale e
saque, a cobiça, enfim, a usura imperialista. assim roubar todo o gado. A onganda, no caso, cuja extensão simbólico-
Alguns elementos da efabulação fazem-se os mesmos nas narra- cultural é indimensionável, significa, na obra, "o coração" da terra - cf.
tivas dos dois autores. Nelas encontramos, por exemplo, o grupo de co- título do capítulo - e o sentido da resistência de todo um povo. De novo
70 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 71

ao vermelho do sangue se misturam as cinzas da tena calcinada e a neces- dizer, embora o episódio de Vilonda seja um pacto com o que seria o
sidade de abandonar o sagrado solo: coração da terra, como a seguir se verá.
Por tal via de raciocínio, pode-se observar que, no romance, os
Os cuvale se dispersaram no deserto [ ...] se meteram no mar da colonizados tanto se deixam ler nas versões mais contundentes de
Esquimina e da Lucira, sem os bois [ ... ]. Haka, os olhos dos Vilonda, Mutu-ya-Kevela e outros que a seu lado resistem, como se
cuvale sem os bois! Os tarros de leite, as cabaças de fazer man- podem representar como Acácio, Alexandre (com todas as restrições que
teiga, tudo arcl~u nas cubatas. a narrativa ela própria lhe impõe) ou, de modo mais alargadamente sim-
bólico, como Joel, o bisneto de Alexandre, membro do MPLA. O quadro
Haka, os olhos dos cuvale sem os bois! E o coração dialéctico assim posto justifica por que, pela morte violenta gerada pela
deles, então! ganância colonial, se possam interligar pelas imagens textuais, por exem-
(p. 187) plo, dois velhos·- Vil onda e Acácio - plasmados na narrativa como
seres para a liberdade, insubmissos a qualquer tipo de sujeição. Não por
A passagem torna-se uma espécie de síntese da perda e, de certo mero acaso a obra os privilegia em certo sentido, enquanto, no mesmo
modo, da resistência pela qual o coração da terra, metaforicamente, movimento, caricaturiza os que estão de fonna sorrateira colocados na
mesmo imerso na dor da destruição, permanece vivo, alimentando os antecena de suas mortes: Agripino e Bartolomeu Espinha. É muito signi-
mitos que servirão de suporte para o sonho da nação a emergir das cinzas ficativo o facto de que Acácio, português de nascimento, tenha um komba,
da história. Vejo a nação angolana como um conjunto a ser pensado de quando, em contrapartida, Ernesto, branco de segunda, ganha apenas um
forma étnica, usando a teorização do mesmo Anthony Smith, forma cuja óbito europeu. Também se faz mais significativo ainda que as balas assas-
característica peculiar" se encontra "na ênfase dada a uma comunidade de sinas de Vilonda lhe deixem intacto o coração.
nascimento e de cultura nativas". E o autor continua: Relativizando conceitos em certa medida irreconciliáveis e abso-
lutos, Pepetela, como sujeito da grande enunciação, mostra uma forma
Ao passo que o conceito ocidental estabeleceu que um possível de recriação do pilar mítico do processo colonizatório, o que se
indivíduo deve pertencer a uma nação, mas pode escolher a qual, explicita desde logo na "Nota prévia" estrategicamente firmada pelo
ele ou ela, pertence, o conceito não ocidental ou étnico não per- "Autor". Propõe-se nela uma "leitura" da estátua, dando-se um mote para
mite esta amplitude. Quer permanecesse na sua comunidade, as leituras que se farão a seguir: do romance e, em seus desvãos, da
quer emigrasse para uma outra, o indivíduo continuava a ser, de história oficial angolana como um todo. Cito: "E a estátua é pura ficção.
forma inevitável e orgânica, um membro de sua comunidade de Sendo a estatuária yaka riquíssima, ela poderia ter existido. Mas não. Por
origem, para sempre por ela marcado. acaso. Daí a necessidade de a criar, como mito recriado. Até porque só os
(Idem, p. 25) mitos têm realidade. E como nos mitos, os mitos criam a si próprios,
f<üando" (p. 6).
O romance deixa isso bastf.mte claro. Mesmo massacrados, os Diante de tal fala recriadora, a pergunta que se pode pôr, de saída,
bailundos, seles e cuvales não deixam de sê-lo, pois têm a ligá-los, "antes de é como recortar os conceitos colonizador/colonizado no processo de do-
mais e acima de tudo, uma comunidade de descendência comum" (Smith, minação imperialista português. Dito de outro modo: como entender o que
idem, ibidem). É essa comunidade, estendida depois, mesmo que de forma sempre foi uma ficção sobre o sentido do colonialismo português, pois a
problemática, a Angola, que o texto, em certo sentido, exalta, mostrando-lhe ideia mesma de uma hegemonia lusíada nunca passou de um mito recria-
a complexidade. do? Ao tentar recuperar, a partir de fragmentos ou segmentos, mais do que
No entanto, um dos grandes méritos da obra de Pepetela é não se por capítulos encadeados, 85 anos da história do império ultramarino por-
limitar a uma só perspectivação ou pactuar com qualquer tentação tuguês, em sua versão angolana, discute o produtor, pela via transfor-
maniqueísta. O olho-câmara do narrador não prioriza, por isso mesmo, matória da ficção, os engodos do processo como um todo e, principal-
nenhum dos segmentos étnicos que compõem o polimorfo espaço cultu- mente, a exclusão histórica dos actantes que representam, na cena colonial
ral. Deliberadamente ele relativiza a identidade colonizada, por assim directa, a narrativa ao mesmo tempo mistificada e mistificadora do colo-
72 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 73

nialismo. No jogo de desocultamento proposto pelo romance, ressignifi- modificado, o sapalalo é casa de brancos colonizadores; já a estátua, obra
cam-se acontecimentos, relativizam-se procedimentos, dialectizam-se de um negro jaga, retrata um branco e o profundo desprezo que o criador
propostas. Enfim, escancara-se, pelas vias efabulativas, o processo pelo sente pelo colono nela estilizada. No fundo, são "dinamismos" que,. a
qual a terra e seus homens se vão transformar no estado-nação e nos seus princípio contrapostos, se integram na imaginação criativa de um angolano
cidadãos. branco, chamado Artur Pestana, mas rebaptizado, para sempre, como
Dois núcleos imagísticos se projectam como figurações Pepetela. De "símbolo mais acabado do colonialismo"- fala de Joel, p.
emblemáticas nas malhas do tecido polissémico "fabricado" pela imagi- 297 - o sapalalo transforma-se em espaço de resistência transfiguradora;
nação criativa de Pepetela: a estátua yaka ou jaga e o sapalalo, em quim- de "símbolo" riquíssimo do coração pulsante de um povo, a estátua Yaka
bundo sabalalu, ou seja, casa de dois andares. Ambas as representações se passa a ser um objecto aprisionado pela cultura antagonista, rasurando
solidarizam, por assim dizer, num mesmo recorte espacial, porquanto a embora, com os seus azuis "olhos de berlinde", qualquer possibilidade de
estátua, "membro", em certo sentido, da própria família Semedo, "habita" sonho de hegemonia portuguesa. A sua presença narradora, mais que nar-
o sapalalo, a ele integrada como integrada está no quotidiano familiar e no rativa, traz o dissenso, a emoção, a fala fora-do-lugar, que muda tudo. Mais
imaginário do patriarca. É o principal objecto do acervo pessoal do que ver, ela diz, reinaugurando o próprio sentido do verbo criador, daí a
"museu" de Alexandre, cuja sala, por isso mesmo, se africaniza. Tal sabedoria de sua fala final, relactivizadora e expectante:
"museu", no período de domínio de Bartolomeu Espinha, muda-se para o
quarto do protagonista e, perdendo a harmonia anterior, passa a revelar a Bem, já posso fechar estes olhos transparentes que tantas
desintegração do espaço familiar, em exclusão com a terra onde se coisas viram. Minha criação está aí em torrentes de esperança, a
implanta - "Quando Donana morreu, Eurídice e Bartolomeu fizeram anunciada chegou.
pressão e o punhal, as máscaras, a estátua yaka, as quindas e cestarias, Posso então me desequilibrar do soco e ficar em cacos
tudo isso saiu da sala. Também as mobílias de verga. [ ... ]. Alexandre pelo chão, a boca para um lado, os olhos pelo mar, o coração
levou tudo para o quarto dele" (p. 196). embaixo da terra, o sexo para o Norte e as pernas para o Sul? Ou
No refazimento do tecido da memória de Alexandre, teia onde o será melhor aguardar ainda?
romance se origina, o narrador insiste no facto de aquele personagem mer- (p. 302)
gulhar no silêncio e na contemplação dos objectos nos quais a sua história
pessoal estagia. Pensando nisso - e sem a intenção de revisitar em pro- A nação angolana, tal como emerge narrativamente das páginas de
fundidade a fenomenologia - , não me posso fu1iar a convocar Gaston Yaka, é imaginada de forma étnica. Vale a pena resgatar, uma outra vez,
Bachelard e A poética do espaço (s/d). Diz ele que o espaço-do-viver "em Smith e o que diz sobre a concepção étnica de nação, para que eu mesma
seus mil alvéolos, retém o tempo comprimido" (p. 24) sendo, pois, a casa possa prosseguir: "A questão que aqui se põe é que, nesta concepção, a
nação pode fazer remontar as suas raízes a uma linhagem comum imputa-
[ .. .] um dos maiores poderes de integração para os pensamentos, da, e que os seus membros são irmãos e irmãs, ou pelo menos primos,
as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princí- diferenciados por laços familiares com estrangeiros" (idem, p. 26).
pio que faz a ligação é o devaneio. O passado, o presente e o Não é, pois, gratuito o facto da base narrativa ser as relações fami-
fitturo dão à casa dinamismos diferentes, dinamismos que fi'e- liares, sempre contrapostas entre si, quando não se reduplicam. Muito em-
quentemente intervêm, às vezes se opondo, às vezes estimulando- bora o olhar narrador focalize preferencialmente uma família branca em
-se um ao outro. [ .. .]Ela é cmpo e alma. Benguela, sua expansão- casamentos, nascimentos, etc.,- e decadên-
(p. 23) cia, a questão das raízes étnicas fortalece-se, quando aquele mesmo olhar
repousa sobre o grupo cuvale, desde a instauração da materialidade narra-
Assim como o romance, em seu sonho utópico, reitera a "inte- tiva, momento em que se lança a fala discursiva inaugural - "O primeiro
gração" dos "pensamentos, [ ... ] lembranças e [ ... ] sonhos" de homens em vagido de Alexandre Semedo estalou em tena cuvale" (p. 8).
sua origem tão díspares, o sapalalo e a estátua jogam o mesmo jogo, só Excluído do espaço-casa ao nascer, Alexandre de certo modo se
que em via de mão dupla, por assim dizer. Com um nome quimbundo, já introduz no universo cuvale. O seu palio acontece sob uma árvore,
74 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 75

instante no qual cai das mãos da escrava que o ampara, mordendo o solo passa a habitar o cimo da pitangueira existente no seu quintal, quando se
sagrado daquele povo banto. Uma sua reflexão parece tudo esclarecer: dá a sua morte física. Refazendo angolanamente o fim como um princí-
"Até hoje gostaria de saber se caí por cima de algum matrindinde, se a pio, de novo o protagonista morde a terra, ascendendo, não só em relação
árvore meu primeiro tecto não era por acaso a mulemba sagrada dos à árvore, mas à categoria de ancestral, como Vilonda - "Leva esse sabor
cuvale, o centro do Mundo ... " (pp. 11-12). Nesse sentido, por seu nasci- e cheiro de terra molhada para cima da pitangueira, onde fica a balouçar,
mento, ele se faz irmão de Vilonda do qual narrativamente é um duplo para sempre" (p. 301).
explícito, a meu ver. Também, por isso, no segmento de força da obra, "O Também não é casual a adopção de Joel pelos cuvales, o que o
Coração" (pp. 125-188), eles se interligam de forma tão significativa, leitor, juntamente com Alexandre, fica sabendo pela fala antecipatória da
sobretudo se os vemos como patriarcas dos seus clãs e como os sujeitos Yaka para este último, nos momentos finais da sua vida. Se a namuilo
dos espaços-do-viver pelo texto e no referido segmento privilegiados. O (vaca sagrada) prediz a desgraça para Vilonda, com o seu gesto revelador
sapalalo de Alexandre é o outro da onganda de Vilonda, lugares quase de enfiar a cabeça na cubata do patriarca, os olhos da estátua falam para
sagrados para ambos e onde se juntam os membros das famílias por eles Alexandre, rompendo um mutismo de 80 anos. Na sua última visão e den-
criadas- tro do sistema de indagações que é a sua marca pessoal, ouvimos/vemos,
pela voz narradora, a sua derradeira intervenção - "o patriarca vê agora
Sabia o fitinha o que significava o sapalalo? Joel perto da Bibala, deitado no chão à sombra duma árvore, será a
mulemba sagrada dos cuvale, o centro do Mundo, onde moram todos os
[ .. .] sapalalo de madeira, de dois pisos e por isso era um espíritos dos antepassados?" (p. 300).
sapalalo, com cinco quartos e uma imensa sala. Varandas nos Conclui-se, pois, ser o povo cuvale o elo de ligação do romance, o
dois lados e atrás. A frente para a rua, a varanda era no piso outro que se esconde por detrás da máscara branca representada, nas teias
superim: Coisa linda esse sapalalo em ruínas. narrativas, pelo protagonismo da família Semedo. Inverte-se, dessa forma, a
(p. 129) equação criada por Fanon- "pele negra, máscaras brancas". Temos, em
contrapartida, "pele branca, máscaras negras", com a força da ancestralidade
cultural africana a mostrar-se na sua pujança. Alexandre, começo da cadeia
Vilonda contempla a onganda, agora grande, composta
- se deixarmos de lado a figura do pai, Oscar Semedo- e Joel, seu último
pela sua cubata, as cubatas das duas mulheres, a cubata da irmã
elo, beijam ou mordem a terra outra, metafórica e metonimicamente dela
abandonada pelo marido, o curral central para os vitelas e, do
fazendo a terra própria, seu gosto e seu sal.
outro lado, o grande curral. Yaka seria, por tal via interpretativa, uma forma possível de escre-
(p.l34).
ver-se/inscrever-se o "elao, a pedra dos sacrifícios, ao lado da qual fica a sua
fogueira, a do fogo sagrado" (p. 135), mesmo que, na aparência, ou a uma
Por outro lado, se Vilonda continua resistindo até à morte, Ale- leitura mais ingénua, se enfoque uma família de brancos em seu sapalalo,
xandre também o faz com o seu mutismo e falsa surdez, passando a ser no dizer de Joel, repito, "o símbolo mais acabado do colonialismo" (p. 297).
uma outra estátua, ou esfinge, se quisermos. O amor do cuvale pelo filho É sobre a ruína desse símbolo branco - o casarão vai da ruína à restau-
Tyenda resgata-se no amor de Alexandre pelo bisneto Joel. Ao morrerem, ração/expansão e novamente à ruína que o romance se debruça. Para
ambos os velhos se transformam, sempre de acordo com os preceitos que tanto, acumplicia-se com a história para subvertê-la e escrever o não canóni-
alimentam os ritos da ancestralidade angolana. Os seus espíritos passam a co, o meramente possível, no jogo esfíngico da sua ficção. O sapalalo,
habitar árvores e, pelos caminhos do animismo, base e sustentação do espaço intersticial onde as fronteiras dos mundos deliberadamente se con-
edificio religioso banto, tornam-se parte do "centro do mundo", lugar de fundem, torna-se, por tal jogo, a imagem da casa histórico-cultural
expansão da sabedoria. Desse modo, o espírito de Vilonda, explicita o angolana, implantada no terreno de uma realidade temporal onde não é mais
texto, permanece na "mulemba estranhamente nascida num morro enci- possível sonhar com qualquer espécie de volta às origens, mas onde o pre-
mado por uma grande pedra azul" (p. 300), ou seja, no morro e pedra que sente se deixa emprehhar por reminiscências, pelas quais se podem ressig-
integralizam com a personagem a imagem da sua vigilância. Já Alexandre nificar o coração da terra e as centelhas da sua esperança.
76 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 77

e incivilização. O impmiante é reiterar, porém, que nas dobras desse


mesmo pano, se mostra/esconde um sujeito histórico-cultural que as
proibições colonialistas sempre ocultaram, por seu jogo de opacidades e
rasuras.
O quadro assim posto serve para que se possa mensurar, pela
metonímia, a importância dessa nova textualidade que começa a emergir na
segunda metade do século XIX, passando a cobrir também o corpo do livro,
NASDOBRASDOSPANOS abrigo do novo panejamento cultural. Gostaria de realçar que isso só é pos-
sível pelo próprio facto de existir, na Angola urbana de então, uma camada
-FEMININO E TEXTUALIDADE social constituída por negros e "bastante culta, cultivando a literatura e a

EM DUAS NARRATIVAS arte, pertencendo a dois tipos de cultura, a afi·icana e a europeia", como afir-
ma, dentre outros, Henrique Guena, no prefácio de O segredo da morta, de
FUNDACIONAIS ANGOLANAS António de Assis Júnior (1979, p. 15). O quadro reverte-se mais tarde, ainda
segundo o prefaciador, pois "à medida que a sociedade colonial se estrutu-
ra[ ... ] aquela 'pequeno-burguesia' vai definhando, ao mesmo tempo que se
"Entender as proibições é também com-
aniquilam as estruturas e as culturas nacionais angolanas" (idem, p. 21).
preender a força das resistências e a ma- Justifica-se, por tudo isso, a minha opção por reflectir sobre o
neira de contorná-las ou subvertê-las. " período de existência dessa "pequeno-burguesia", utilizando aqui a
palavra no sentido aspeado que lhe dá Henrique Guerra, sem outras dis-
Michelle Perroto cussões conceituais. Para tanto, fiz uma segunda opção, a de escolher duas
obras que me parecem encenar a tentativa de reversão do quadro simbóli-
co até então dominante. São elas: a novela Nga Mutúri, de Alfredo Troni
Quando Cordeiro da Matta, pela voz do eu-lírico, diz, em (1882) e o romance O segredo da morta, já citado e que, não obstante
poema de 1889- "Uma quissama" -,ter visto nas mas uma mulher que, datar-se de 1929, toma o fim de oitocentos e o ano de 1900 como base da
"não sendo europeia dama", se fazia "a mais sedutora preta/das regiões da sua temporalidade narrativa, e não por mero acaso.
Quissama", ele leva o seu leitor a encenar, pelo imaginário, algo novo no Ambos os autores se debruçam sobre as formas de relações sociais
que diz respeito à corporeidade feminina consagrada anteriormente. Não urbanas, não importando a questão de Troni ser pmiuguês e da geração de
se vestir à europeia é assumir-se, pela forma de concepção da cobertura Eça e Antero, e Assis Jr., um angolano pertencente à referida camada social.
do corpo, como um outro, em diferença. A mulher encenada no e pelo Identifica-os ainda a forma de circulação primeira dos textos, isto é, são fol-
texto, portanto, marca-se pelo signo da alteridade (angolana/africana), não hetins publicados em jornais. O primeiro aparece no Diário da Manhã, em
se permitindo confundir mais com a fixada pelo modelo poético hege- Lisboa, embora Troni já vivesse em Luanda, e o segundo em A Vanguarda,
mónico. Os panos e suas dobras a envolvem, fazendo-a significar. periódico desta última cidade. Separa-os o espaço de tempo de 31 anos.
O "objecto" cultural surpreendido pelo olhar, naquele momento, Uma breve palavra ainda deve ser dada sobre o período enfocado
afirma, desse modo, a sua pertença a uma "cultura insurgente", para usar por ambos os textos. Ele se estende, mais ou menos, por 30 e/ou 40 anos,
uma expressão de Homi Bhabha (1998, p. 205), deixando-se surpreen- ou seja, vai do último quartel do século XIX até a primeira década do sécu-
der no quotidiano da cidade. Por outro lado, sendo os panos informes - lo XX, quando emerge, segundo Mário Pinto de Andrade, o protona-
se o ponto de referência é a moda europeia, com os seus recortes e cos- cionalismo. Falando do fim do século XIX, diz o mesmo crítico: "No trans-
turas- eles como que se amoldam ao corpo, tomando-se dele uma exten- curso do século passado, diversas personalidades nativas de Angola
são e sendo uma espécie de segunda pele que não tem como, aos olhos do deixaram marcas da sua presença a evidenciar talentos versáteis na literatu-
outro, receber a qualificação de "traje", sempre pensado como europeu. O ra, com particular incidência no jornalismo doutrinário, e também em estu-
pano, para concluir, está fora do padrão simbólico e é traço de não-cultura dos de caráter histórico, etnológico e filológico" (1997, p. 50).
78 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 79

Convém lembrar que a novela e o romance, em seu pioneirismo, do processo pelo qual aquele imaginário social se revela. Em Nga Mutúri,
deixam entrever, ao tentar o resgate de tais marcas, uma fissura pela qual não há ainda a consistência de O segredo, um elo mais forte da cadeia que
pode atravessar um olhar menos ingénuo que verá a cena colonial, con- levará à pujança sígnica. Na novela, o referente simbólico é surpreendido
tornando os obstáculos interpostos pela ideologia dominante. Tomo aqui mais em seus traços externos do que como densa ou tensa representação
o conceito de ideologia de empréstimo a Fredric Jameson, que por sua vez da diferença. No romance, as principais figuras de mulher -Ximinha
o retoma de Althusser. Ele diz entender "o termo ideologia no sentido pro- Belchior e Elmira, ou Kapaxi - associam-se, pela extensão metafórica, a
posto por Althusser, ou seja, como estrutura de representações que per- Jinga, rainha da Matamba, e uma das faces mais expressivas da resistên-
mite ao sujeito individual conceber ou imaginar a sua relação vivida com cia angolana. A região focada é, também tradicionalmente, um dos
realidades transpessoais, tais como a estrutura social, ou a lógica colecti- espaços da rainha- Dondo, Quissanga, Capacala, etc.,- daí o ter sido
va da História" (1992, p. 27). escolhida, a região, como encenação do "local da cultura".
Desse modo, ao representarem, nas dobras dos panos dos seus tex- É claro que Ndreza, a personagem de Troni, é plasmada como
tos, isto é, dos tecidos que entretecem, "a estrutura social, ou a lógica alguém marcado pela resistência e que usa o logro como forma de vencer
colectiva da História", tanto Troni como Assis Jr. vão surpreender a fissura os obstáculos. Assim, não gratuitamente, passa de escrava a mulher livre e
atrás referida, pela qual a dureza do sistema colonial começa a flecth: Não abastada. O individual, no entanto, predomina sobre o colectivo, diferente-
é ainda a fractura, mas um certo abalo, pois que ela, a fractura, só virá com mente do que se dá no romance, onde as mulheres ganham consciência
a descolonização que, sabemos com Fanon, permitirá a emergência de maior da sua condição, ampliando o que era promessa no texto de 1882.
novos sujeitos históricos, ou do homem novo, o que levará a um também Lembremos uma cena de "desvestimento" que aparece nas duas obras.
mundo novo para o autor (1975). A fenda, por outro lado, possibilitará ao Maria de Castro, a narradora oral da história que é convertida em letra por
olhar arguto do leitor realizar a nova travessia, sempre em ricochete com um segundo e "culto" narrador, tem a sua vida recuperada, antes de
o próprio olhar dos produtores textuais. começar a contar. Diz o narrador letrado, então, que ela, "dezasseis anos
Surgem, então, e ainda com Jameson, "outros níveis interpreta- depois, já livre de compromissos maritais e do traje europeu com que na
tivos" que transformam o "mecanismo textual", passando a dar-se um novo sua infância alegrara seu velho pai, voltara para o Dondo [ ... ] e se entre-
"investimento ideológico" (1992, p. 27). Ambas as nanativas se fazem, gara ao negócio da quitanda, então de razoáveis proventos" (1979, p. 50).
pelo exposto, fundacionais no quadro geral da ficção angolana, com os cor- Também Ndreza passa por processo semelhante, só que, ao invés
pos encenados das mulheres da terra a metonimizarem o próprio corpo tex- de "desvestir-se", é "desvestida", sendo objecto mais que sujeito da acção,
tual insurgente que também já se quer afirmar como da tena. Tal corpo tex- como se dá com Maria de Castro. Esta é livre, contrariamente à então
tual, na sua lógica interna, vai disseminando as fendas abertas por essa menina que passa à condição de escrava, perdendo as suas características
outra "lógica colectiva da História" que no século XIX começa a ganhar étnicas de origem, embora os panos permaneçam: "Que a mandaram
alguma consistência. A relação mulher x terra constitui grande força sim- lavar, e desmanchar-lhe o lindo penteado seguro pelo ngunde e tacula que
bólica no imaginário angolano, como sabemos. Não é por acaso, portanto, lbe fizera a mama, tirando-lhe as missangas e os búzios e todos os
que as duas narrativas tomam figuras. femininas como núcleos das suas enfeites. Que lhe vestiram uns panos bonitos" (1973, p. 34). A roupa da
acções. Elas, as mulheres, e os textos onde se abrigam, funcionam como a terra identifica Maria e N dreza, ambas mulheres de corpos insurgentes e
cabeça de um corpo inscrito como se fosse o de um cometa que atrás de si cobertos de panos.
deixa o brilho da sua cauda. Representam fontes geradoras de resistência Mesmo que de forma apenas esquemática, convém recuperar,
pelas quais os valores da terra ganham luz e força. Percebe-se que um outro neste ponto, o enredo das duas narrativas e um pouco do seu desdobra-
"imaginário social" busca formas através das quais possa tornar-se "o mento, como modo certo de avivar as cores do quadro analítico em con-
sujeito do discurso e o objecto da identificação psíquica", como indica strução. Nga Mutúri conta a história de Ndreza, conforme visto anterior-
Bhabha, ao analisar a redefinição do processo simbólico proposta por mente, menina de um quimbo que, como forma de pagamento da dívida
Fanon e Kristeva (1998, p. 217). de um tio, é dada como escrava a um branco do qual se torna "mucama",
As obras enfocadas, tanto pela distância temporal, como pela for- primeiro numa cidade não nomeada e, depois, em Luanda, principal refe-
mação pessoal e histórica dos seus produtores, apresentam graus distintos rência espacial do texto.
80 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 81

Dyntro da previsibilidade narrativa, o patrão e amante, jamais Inicia-se, desse modo, com a novela, a costura dos "retalhos e
nomeado, adoece e Ndreza, embora sem o status de dona - confronte-se restos da vida quotidiana" que, no romance de 29, de forma mais orgâni-
a surra de chicote que o senhor lhe manda aplicar, ao surpreendê-la com ca, se transformam pouco a pouco nos "signos de uma cultura nacional
um jovem da região da Jinga (e eis de novo a metáfora)-, reina na casa, coerente" que, embora de maneira embrionária, tenta, pelo "próprio acto
mas mantendo sempre o seu papel subalterno. Morto o senhor, fica com de performance nanativa", interpelar "um círculo crescente de sujeitos",
essa mesma casa, passa a fazer negócios e a praticar agiotagem, sem perder se não nacionais, como indica Bhabha, que venho citando (1998, p. 207),
nunca a sua principal marca: o pendor para o logro. Por outro lado, ela tam- já "protonacionais", voltando à categorização de Andrade, que assim
bém decide não manter mais qualquer relação sexual, facto motivado por define o período:
um episódio em que não fica claro se engravida ou se é acometida por
doença venérea, depois de um relacionamento brevíssimo com um amigo [ .. .] o protonacionalismo abrange o período histórico de emer-
do patrão morto- "Nga Mutúri é invejada. Não quer homem. Surra e gência de um discurso que se distingue pelo seu triplo carácter
Sena são dois fantasmas que se levantam diante da sua imaginação, quan- fi·agmentário (no pensamento e na acção), descontínuo (na tem-
do tem alguma veleidade amorosa. Nada, não cai" (1973, p. 61). para/idade) e ambivalente (no seu posicionamento face ao siste-
A mulher ganha, assim, a total liberdade, fazendo-se dona do seu ma colonial).
corpo e controlando os seus próprios impulsos sexuais. Por outro lado,
acumula capital, o que não impede que às vezes seja enganada. É clara a [ ...} o ideário protonacionalista elabora-se a partir do lança-
sua tentativa de aproximar-se o mais possível da cultura branca, seguindo mento do jornal O Negro, em1911, e falece no início dos anos 30,
a trajectória do assimilacionismo, o que não consegue totalmente, pois é submerso pelas contradições inerente ao Movimento Naciona-
incapaz de "pôr a toalha direita" (idem), embora conheça o lugar dos gar- lista Africano.
fos e das facas. Também não consegue dominar o código linguístico do (1997, p. 77)
outro, para além do sócio-cultural, como revela a cena final do texto, com
o narrador desenhando-lhe a caricatura de falsa assimilada, pelo que se Sendo o texto de Assis Jr. de 1929, ele vai ligar-se, naturalmente,
torna, ele também, um agente do logro que se distancia da figura-base do a esse movimento que Andrade chama de protonacionalista, daí talvez a
seu nanar: sua opção por encenar o fecundo momento em que Angola pode começar
a mostrar a sua face. O incons-ciente político, sabemos com Jameson, não
Para concluir, manda a verdade que se diga que às vezes, dá saltos. Percebe-se, nesse sentido, portanto, uma continuidade, daí o
quando come cola e gengibre, entra muito pela genebra. facto de se poder estender, para o século XIX angolano, o que Antonio
Fica animada, com os olhos brilhantes, fala muito, e tem Candido analisa com relação ao século XVIII brasileiro, ou seja:
frequentes arrotos ruidosos. "Observam-se nele a ocorrência de temas novos e novas maneiras de
Então volta-se para a gente e diz: tratar velhos temas [ ... ] que permitam exprimir de maneira mais adequa-
-Isto são falatos. da uma realidade física e social diferente; esta, nascida da dinâmica inter-
(Idem, p. 64)
na da colonização" (1987, p. 168).
Como reforço descritivo do quadro social onde Ndreza, depois Tal "realidade física e social diferente" torna-se o centro da atenção
Mutúri - palavra que quer dizer viúva - , se move, aparecem o óbito do romancista, que busca, nas várias figuras de mulher, as cores do quadro
pomposo do patrão; as missas pelo aniversário do passamento; as festas temático por ele desenhado. As mulheres são as pistas da adivinha lançada
do quintal; a forma de praticar o comércio; as normas e leis que sustentam na roda da "contação". Uma vez decifrada, a resposta que surge é Angola,
a organização administrativa da colónia, etc,. Angola, mesmo que de na força da sua diferença. Ao leitor do texto escrito, basta tentar recortar e
modo bastante esquemático, toma lugar na cena do texto, cantando o can- colar aquelas figuras de mulher, para que diante dos seus olhos smja um
tar do seu povo, não obstante o faça dentro de um modo de concepção nar- novo corpo que toma forma e lugar na cena da representação.
rativo mais europeu que autóctone e, portanto, repito, mais distanciado Para citar apenas algumas dessas mulheres, recordo: as duas
culturalmente. Ximinhas, isto é, a morta (Belchior) e a louca (Cangalanga), metáforas da
82 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 83

terra sem corpo ou senso, de acordo com o olhar redutor do outro; Elmira ou Entre o dizer próprio e o alheio o romance tenta equilibrar-se, é
Kapaxi que, com a primeira Ximinha, será um dos motores do narrado; claro que sempre reforçando o primeiro em detrimento do segundo. O
Clara, a mãe de Elmira; a narradora Maria de Castro; a velha criada Maceca, local nele toma assento, resgatando-se pela espaciotemporalização. O
etc. Todas se tornam as faces poliédricas de uma cultura que já se pode fazer leitor é convidado a transportar-se para o interior e para o passado, vistos
ouvir, através da fenda aberta no pesado manto de silêncio que a envolvia como lugares e momento privilegiados e a privilegiarem-se:
e/ou lhe defmmava as linhas do corpo. Ao se vestirem metaforicamente de
panos e assim também revestirem a textualidade de que emergem, as figuras Quem, em 1900, se transportasse para qualquer dos pon-
de mulher desvestem os referentes culturais hegemónicos e uma outra reali- tos do interi01; não esperaria, como outrora se fazia, pela saída
dade social, como bem aponta Candido, "nascida da dinâmica interna da co- do Cunga ou Serpa Pinto [ .. .} Embarcava ... e seguia.
lonização" já encontra formas de expressar-se. Creio residir aí a necessidade Dando, situado na zona baixa e banhado pela margem
das descrições desses corpos de mulher e de sua forma de vestir-se, mesmo direita do Quanza, tem por apeadeiro Casoalala.
quando se representam cenas de morte e de óbitos, como se pode depreender (pp. 38 e 39)
nas duas passagens que seguem:
É, pois, nesse lugar e nesse tempo- Dondo, 1900- que se si-
[ .. .] muitas raparigas, todas com seus panos negros a cheirar tuam as mulheres unidas em forma de forte cadeia, para o bem (amizade,
muito, à tinta. almoços, alianças) e para o mal (traições, vinganças, morte, loucura). A
(Nga Mutúri, 1973, p. 44) primeira a se apresentar na cena narrativa é a Doida dos Cahoios, Ximinha
Cangalanga, convocada no segundo capítulo - "Uma sombra". Surge,
- Tirei das malas seis pares de panos e cinco xailes de pois, numa dupla margem: é negra e louca, sendo vista
seda para mortalha da nossa amiga [ .. .} Enfim, são costumes a
que não devemos jitgir ... como uma pobre mulher, ainda nova, [ .. .} de passo incerto e
(O segredo, 1979, p. 221) olhar vago, os panos a arrastarem e a baba a cair dos lábios[ .. .}

Ximinha Cangalanga, mais conhecida por a Doida dos


Retomando o que em 1995 já expus, reitero que o romance, nas
Cahoios.
suas "Preliminares", escolhe, na clave da ambivalência apontada por
(p. 46)
Andrade, e através da convocatória a Anatole France, uma modelização
europeia. Assim, mostra-se tal "dizer" europeu, reconvocando-se a seguir,
Repare-se que de novo se apresenta a ambivalência, sobretudo se
o "dizer" da terra, como nos mostram as citações abaixo:
nos recordarmos ter Camilo Castelo Branco, um dia, escrito A doida do
Candal (1867) e que o primeiro título pensado para o romance de Assis Jr.
No criterioso dizer de Anatole France, a insensibilidade seria A doida dos Cahoios. Se mantido, aprofundaria ainda mais a ironia
que experimentamos na mudança da nossa vida provém do facto que é o traço mais forte do texto, sem dúvida.
de nos compararmos aos c01pos lançados à corrente dos rios A Doida é o elemento, portanto, de partida, a ignição do motor
(p. 35, primeira frase do texto) que porá o texto em movimento. A seguir vem Maria de Castro que com
a sua fala introduz a história de Clara e Elmira, o nascimento desta, a
Tempos áureos, tempos bons esses, no dizer dos que deles amizade com Ximinha Belchior, etc. O enredo que poderia ser linear vai-
viveram quitandeiras de fazendas e vendedoras de nzua na -se apresentando por volteios, e, principalmente, pelos jlash-backs e
quitanda do Bungo e Rua dos Mercadores, onde a moleca de encaixes. A cadeia de mulheres se suplementa pela cadeia narrativa, com
ombros nus, ao entardecer, apregoava o mbiji ia ukange ni fari- uma história a puxar outra, como nas rodas da tradição oral.
nha ... Rapidamente lembro que Elmira é assinalada pelo nascimento, já
(p. 36, destaques do texto) que a mãe tem uma gravidez de hebu, quer dizer, uma gravidez que se
84 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 85

estende muito além dos nove meses. Já adulta, casada, mãe e moradora na fala da terra, na aparência também "morta", mas que jamais se deixa calar,
região de origem da Jinga, transforma-se em comerciante, indo buscar espalhando as sementes da insurgência. O nativismo é, por sua vez,
mercadorias em aldeias distantes. Como Ndreza, acredita na força do semente do nacionalismo. Para reverter o quadro e vestir os panos, será
logro e, mesmo branca, assume-se para os chefes e mais velhos de uma preciso vencer os perigos do campo minado e das armadilhas postas pelo
das aldeias como sobrinha de soba, no que é referendada pelo adivinho, outro. A história da libertação, como sabemos, levará os novos sujeitos
segundo seu relato ao marido, "um preto alto, magro e feio, acompanhado históricos a atravessar tais campos e superar tais armadilhas. Transformar-
de cestos, bancos e tacula" e que diz ser ela, "de facto [ ... ] filha da -se-á em dor e sofrimento, então, o alegre e sedutor corpo das quissamas
herdeira do trono da Ginga" (p. 176). de Angola. As mulheres serão lembradas por suas faces de mães dolo-
Outro elo a ligá-la à personagem de Troni é a viuvez que con- rosas, como a de Ximinha. Elas serão cantadas um dia e outras promessas
segue vencer a custo, ao contrário da outra. Tal viuvez a leva, de novo, lhes serão feitas por seus filhos. Agostinho Neto:
para o Dondo, palco das acções. Nesse momento, o texto "convida" o
leitor a fazer mais uma viagem, como tantas que já induzira. Ela trilha o Amanhã
caminho da Jinga, estofo simbólico de sustentação do arcabouço textual, entoaremos hinos à liberdade
sempre empenhado em traçar o caminho da resistência. Este tomará, a quando comemorarmos
partir de 1961, forma de luta armada, movimento que levará à fratura da a data da abolição desta escravatura
libertação. Nós vamos em busca de luz
Não por acaso é a resistência também a principal marca anímica os teus filhos Mãe
de Ximinha Belchior, a morta, e a responsável pela loucura da homónima (todas as mães negras
e por uma série de mortes em cadeia. Ela se plasma, antes da doença e nos cujos filhos partiram)
tempos da felicidade, como sendo mulher de força "varonil": Vão em busca de vida
(1979, o. 35)
Nova ainda, era contudo dotada daquela energia varonil e em-
preendedora, desenvolvendo [ ...} os seus próprios negócios, que Se considero Ximinha uma dessas mães - ela tem o filho arran-
a tornavam, senão independente, pelo menos senhora da sua cado pelo pai branco que o leva para Lisboa - , posso pensar estar a sua
vontade. A maternidade não conseguira modificar-lhe [ .. .] o figura sotenada sob a capa dessa "Mãe", alegorizada pela maiúscula no
ardor dos negócios, que, por intermédio das suas quitandeiras, poema de Neto.
cresciam a olhos vistos I Ela é um elo da cadeia das mulheres que se querem de Angola,
(p. 141) como Ndreza, Elmira, Maria de Castro, as que aparecem nas nanativas
orais, etc. Todas se vestem de panos e revestem textos hoje bem antigos,
O romance nana, portanto, a trajectória dessas "senhoras" cuja çom as suas imagens que rompem o corpo cultural transplantado, tentan-
vontade soberana as leva a querer ser livres, dedicar-se aos negócios, do substituir o das "europeias" damas, para, e de mãos dadas com a pró-
cuidar dos filhos e expandir a sua sabedoria. Lutam, superam as adversi- pria tena, significar.
dades e, mesmo mortas, não perdem a sua força, como Ximinha, vingan-
do-se dos traidores. Confronte-se a sua última e longa fala, marcada, no
campo da letra, pelas reticências que mostram o seu cansaço e prolongam-
-lhe as queixas e ameaças: "[ ... ] do outro mundo falarei ... Tive dinheiro,
jóias e haveres; aquelas malas repletas, hoje quase nada contêm ... E são os
inimigos de ontem que hoje se apossam do que não é seu [ ... ] Sim eu
tinha ... eu vi. .. eu falarei. .. lá ... mas eu falarei ... " (p. 227).
Tal fala interminável e insubordinada, disseminadora da loucura e
da morte entre os "traidores", pode ser lida como metonímia da própria
86 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 87

Em A ilustre casa de Ramires, de Eça de Queiroz, (1900) se dá a


plasticização narrativa desse sonho, o que explica por que Gonçalo Mendes
Ramires, no final do romance, "silenciosamente, quase misteriosamente,
arranjara a concessão d'um vasto prazo de Macheque, na Zambézia, hipote-
cara a sua quinta histórica de Treixedo, e embarcara em começos de Junho
no paquete Portugal, com o Bento, para a África" (1947, p. 400). Dessa sua
aventura, Gonçalo retoma "até mais bonito, e sobretudo mais homem"
OLHARES DO EXÍLIO (idem, p. 409), porém mantida a força de sua europeia brancura, porquanto
a "África nem de leve lhe tostou a pele" (idem, ibidem).
(A EXPATRIAÇÃO Essa partida do personagem já aparecera, em forma de desejo,
nalgumas das suas manifestações oníricas e no seu próprio discurso. O
DE NEGROS E BRANCOS segundo dos seus sonhos torna-se paradigmático desse lugar que a África
NA CENA COLONIAL ocupava no imaginário português do século XIX. Por ele, fica-se saben-
do, através da voz narrante, que Gonçalo, depois de um duro pesadelo,
AFRICANAY acordara, para readormecer "logo, muito longe, sobre as relvas profundas
d'um prado d' África, debaixo de radiosas flores, que brotavam através de
pedregulhos d'ouro" (1974, p. 59).
"O sentido do silêncio não é algo acres- A visão onírica dos "pedregulhos d'ouro" reforça a da "árvore das
centado, sobreposto pela intenção do locu- patacas", criando o emaranhado da ilusão de África, principalmente se se
tor; há um sentido no silêncio. " pensa o homem português pauperizado. Este, ao contrário de Gonçalo, que
vai do "prado" sonhado para o "prazo" produtivo, não tinha um dom antes
Eni Orlandi
do nome, nem uma lenda familiar que o sustentasse. A sua rota nem sempre,
por tudo isso, foi marcada pelo sucesso, como bem demonstram as histórias
O acordo resultante da Conferência de Berlim (1884- narradas pela ficção colonial, produzida basicamente no início do século XX,
-1885) impõe a Portugal uma mudança na forma de organizar politica- mas que, com :frequência, focaliza o final do XIX.
mente a ocupação colonial africana. Ao invés do modelo mercantilista até Talvez valha a pena aqui abrir um parêntese, para lembrar a forma
então predominante, ganha vulto, principalmente, o de assentamento do como, por exemplo, Alda Lara, poetisa angolana, analisa, em 1948, essa
homem português no interior das colónias. Redirecciona-se o fluxo migra- arrancada colonial portuguesa, o que faz numa saudação de boas-vindas aos
tório, de modo a garantir o povoamento dos territórios ultramarinos. estudantes ultramarinos reunidos na Casa dos Estudantes do Império,
A partir de uma propaganda governamental bem sucedida, passa saudação que se publica no primeiro número do Boletim Mensagem (1948):
a ter outro significado, no imaginário .do cidadão comum, a questão da
possibilidade de uma nova aventura pelos caminhos do mar, como se [ ..} nós somos os colonizadores do século XX, assim como nos-
fosse factível a reintegração do esfacelado mito do herói marinheiro, sos pais o foram, erguendo casas, constituindo família, fomen-
povoador daqueles mesmos caminhos. Como em África medrava a fron- tando indústrias, e embora em seu proveito, sacrificando muitos
dosa "árvore das patacas", além dessa urgência nacional de nova arranca- anos da sua vida, por uma causa que iria provocar o desenvolvi-
da, corporifica-se o sonho da própria expansão individual, pois os fru- mento da Colónia! ...
tos daquela árvore estariam à disposição plena dos que quisessem traba- (1996, p. 6)
lhar e, assim, progredir.
Fechado o parêntese, gostaria de afirmar que me interessa perquirir,
1. Pu~licado em Ipotesi: Revista de Estudos Literários. v. 3°. 2., Juiz de Fora, a partir dessa e de outras análises e tomando pontualmente algumas obras
Editora UFJF, 1999, pp. 59-68. narrativas produzidas entre 30 e 60, nas colónias e/ou na metrópole, a
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questão, por um lado, da colonização da terra africana no século XIX e, por quadradinhos. Afazer de mesa de cabeceira, um caixote ao alto,
outro, a da desterritorialização e da exclusão geradas pelos aparatos de domi- com uma vela entalada no gargalo duma garrafa. Junto da
nação imperialista, que tanto segregavam o colono branco, quanto o negro janela, um velho lavatório de ferro esmaltado. E era tudo.
colonizado. Ambos os segmentos étnicos vão perdendo pouco a pouco os (Idem, p. 36)
seus referentes culturais e a sua condição de sujeitos da história.
No espaço narrativizado nos textos da chamada literatura colonial, Alguns, como o próprio protagonista deste romance de Reis
portanto, brancos e negros se fazem sujeitos subalternos, no sentido grams- Ventura, conseguem acumular terras e capital, criando o latifúndio ultra-
ciano do termo, tão bem trabalhado por Hugo Achugar (1996). Sem iden- marino. Vale notar, contudo, que a concretização do sonho não os livra da
tidade, perambulam por territórios pintados como marginalizados pela con- profunda crise existencial gerada pelo arrancar das suas raízes, o que os
cepção de mundo hegemónica no ocidente. Isso faz com que, embora se leva a um penoso estado de dor e sofrimento. Um conto exemplar, nesse
afastando pela força excludente da relação dominador/dominado, os dois sentido, é "O regresso" da obra de Eduardo Teófilo. A ele voltarei adiante.
grupos étnicos se aproximem pelas leis da segregação e da subordinação, Quanto aos negros, não obstante viverem na sua terra de origem,
geradoras do código normativo que controla a sua não-cidadania ou a sua falta-lhes o chão de cada dia. Trocam as aldeias pelo contrato nas roças
cidadania de segundo grau. É o que, desde agora, tentarei discutir. ou fazendas, com frequência o palco das acções narrativas. É aí que se
desenrola o enredo do seu despaisamento interior, a sua subalternidade, o
seu medo.
1 - Raízes fora do lugar Como os narradores estão sempre muito mais próximos dos bran-
cos, já que sobre eles incide preferencialmente o seu olho-câmara, o sofri-
Obras como Almas negras (João de Lemos, 1937); Brancos e mento deles patenteia-se de maneira mais evidente numa série de histórias
negros (Guilhermina de Azeredo, 1956); Cafuso (Reis Ventura, 1957) que os têm como actantes privilegiados. Ao contrário também do que se
e/ou Quando o dia chegar (Eduardo Teó:filo, 1962), escolhidas como poderia prever, a solidão não contribui para que se solidifiquem as relações
microcorpus para estas reflexões, demonstram a força da expatriação e do afectivas, seja no que concerne aos iguais, seja entre os diferentes. As ilhas
despaisamento acima apontados. A partir, sobretudo, de um movimento de afectividade e de mais forte interacção, quando as há, restringem-se
que no corpo dos textos discursivamente se reitera pela expressão ir para, quase sempre aos negros e representam-se em forma de batuques e danças
percebe-se o trânsito de tais sujeitos fora do lugar que se transformam, que o narrador, na origem ele também um branco-europeu, quase nunca
metaforicamente, também em raízes fora do lugar. compreende, daí o descrevê-los/narrá-los como bárbaros e primitivos; pura
No caso dos brancos, o ponto de partida quase sempre é a aldeia animalidade:
natal, de onde saem em busca de um novo território onde arreigar-se. Os
espaços que inicialmente ocupam são tão subalternos como eles - a ter- Na selva virgem, os machos e as fémeas; gentio primitivo; instin-
ceira classe dos navios; os pequenos quartos; as minúsculas casas de pau- tos soltos I E a mãe Natura [ ..] a reger a orquestra bárbara dos
a-pique, as decadentes lojas. Basta que se confrontem passagens como filhos inocentes, que vão dançar![.. .] A gente negra, dança!
essas de Cafuso, de Reis Ventura: ·
E ouvem-se ao longe soar os tam-tans, e sente-se o
A loja tinha um aspecto enxovalhado e pobre[ ..]. Do tecto cheiro dos cmpos suados[.. .} e os negros dançam!
pendiam, em !assas espirais, algumas dessas fitas pegajosas que (Almas negras, 1937, p. 70)
servem de visgo às moscas. Em toscas prateleiras de amoreira ali-
nhava-se a mercadoria Volto agora ao conto "O regresso", para exemplificar o estado de
(1957, p. 34) morte em que imergem principalmente os personagens brancos. A narra-
tiva tem como eixo estruturador o desejo de torna-viagem do "senhor
[ ..} quartinho que dava para os quintalejos das trasei- Rosa", velho que se move com "os passos lentos da doença" (1962,
ras. Havia uma cama de ferro, coberta com uma colcha aos p.188), metafórica e metonimicamente. Ele experimenta a crise de um
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sujeito em trânsito que, no passado, se entregou ao sonho africano e que, um conhecimento maior da construção simbólica do homem negro, cuja
na actualidade narrativa, o vive, apesar de seus recursos financeiros como "alma" só exteriormente é capturada.
pesadelo. O fim iminente acina, no personagem, a ânsia de regr~esso à De que África fala, então, e no caso, João de Lemos? De uína
terra-mãe, o desejo de rever o "paraíso perdido", cujas cores mais se avi- África misteriosa, quase "jarra etrusca", no dizer da poetisa moçambicana
vam com a paleta da memória. O sonho se dá pelo avesso daquele que fora Noémia de Sousa. Exótica, seus habitantes "pri-mitivos" são flagrados na
sonhado no passado. Assim, ao Fevereiro onde vive "abafado por aquele plena força de sua "animalidade carnal", como bem demonstra esta pas-
calor tórrido, exasperadamente boiando [... ] no meio daquela humidade sagem do conto "Evocação",
pegajosa e mortiça"(idem, p.l89), ele responde com o devaneio, deste
modo recuperado pelo omnisciente narrador: "Como seria bom estar sen- Há fogo nas veias que latejam! Verniz de suor nos corpos des-
tado à lareira enfarruscada da casa velha e arruinada da sua aldeia, ouvin- nudados.
do tombar lá fora a chuva miúda ou a neve esfalripada" (1962, p. 190). [ ..}
Desse modo, como estruturas em eco, o Fevereiro do presente Embriaguez dos sexos que se buscam e prometem, delí-
queima o sujeito despaisado, aumentando o peso sufocante do exílio e rio de carne e dos sentidos, ânsias de gozo, indefinido, dinâmico,
fazendo com que a memória se abra para outros distantes fevereiros em místico e sensual.
que o frio e a neve, relembrados, aquecem o desejo do sujeito, repito, fora Os negros dançam, os negros riem!
do lugar. Do seu lugar. (1937, p. 69)
O que era libertação, ou o sonho de, no passado, se transforma em
prisão e a antiga cadeia da pobreza da origem perde o negror, iluminando- O plano descritivo desta e de outras narrativas do c01pus traba-
-se pela vontade de regresso e pela saudade. As raízes arrancadas de lá lhado sustenta tal visão exótica que impede as tentativas de compreensão
mostram a sua fragilidade, ao crescerem no solo de cá. São liames que o - quando as há - do branco que, mesmo quando se representa como
sujeito, não obstante percebendo a sua existência, anseia por tirar do solo, inculto, exulta por não ser um "bárbaro". Abundam, assim, nas malhas tex-
avaliado, ao fim e ao cabo, como hostil. Elas boiam também fora do lugar. tuais, significantes pejorativos como "bárbaro", "selvagem", "primitivo",
Rizomas, mais que raízes profundas, aqui tomando a palavra rizoma em etc., além do epíteto "misteriosa" atribuído a África. O conto "Oração da
seu sentido literal, embora sem perder de vista totalmente o recorte deleu- tarde", ainda de Almas negras, é um óptimo exemplo do processo. Nele o
siano do termo. narrador se refere a "um ponto perdido da África misteriosa" (idem, p.
O conto "O regresso" desemboca na previsibilidade da morte do 239), de "paisagem selvática" (p. 240) e, ao enfocar a prece feita pelos
senhor Rosa, exactamente quando o navio se aproxima da mítica cidade, habitantes do lugar (uma Avé Maria), chama-a de "cântico bárbaro" (p.
que é Lisboa, e se encontra no ponto, conforme diz o texto, onde o "mar 247). Também em Cafitso (1957), o narrador do romance se reporta ao
[... ]já não era mar, mas o rio ancestral e esplendoroso" (1962, p. 209). "mistério da selva africana, plena de mil presenças vigilantes e hostis".
Como o narrador participa da teia também mítica da marinheira identi- Diante do batuque, lembra o "sortilégio da grande loucura negra" e as
dade portuguesa, é dele o conjunto adjectivo pelo qual se exalta a força da "faces desvairadas pelo demónio do vinho e da luxúria", bem como a
ancestralidade e do esplendor contidos naquele ponto zero onde toda a "excitação do [... ]primitivismo escravizado aos instintos" (p. 68-69).
aventura um dia auraticamente começara. Aventura do povo e de cada Nesse conjunto geral, a mulher negra, mais que o homem, é pintada
homem que com ela sonhara. com as cores de uma estereotipia absoluta, significando um mero objecto de
Quanto aos negros, eles são absolutamente percebidos e, conse- posse do branco- e não só- que a ela se refere como "minha negra". É
quentemente, narrados como um outro sem lugar de qualquer espécie, desprovida de vontade, apagando-se qualquer traço de identidade e dife-
aparecendo, no plano comparativo e imagístico, como um dos muitos ani- rença. Vale a pena lembrar o conto "Mãe e filho", da obra Brancos e negro,
~ais africanos. Como já reiterei, deles pouco o narrador colonial se apro- de Guilhermina de Azeredo, não por acaso outra mulhet~ só que branca:
xnna. Em Almas negras, de João de Lemos, percebe-se uma tentativa de
enfocá-los, desde o título. No entanto, se bem analisado o discurso que E ela, a bárbara, pára de comer e acaricia com ambas as mãos
sustenta a ideologia dos contos, vê-se o predomínio da barra que impede os pés do seculo, o seu seculo, o seu pai, o seu senhor. Considera-
92 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 93

-se mais insignificante que o pó da sandália de ma/anca que ele os sombrios sotãos daquela casa abandonada pelos "donos", assim como
usa; é a sandália dele mesmo, a formiga que ele pisa, o cão que o faz com as suas escuras salas e os seus quartos mais secretos.
ele enxota. Escancaram-se, na teia romanesca, as portas do "mundo seguro de si, que
(1956, p. 43) esmaga com suas pedras os lombos esfolados pelo chicote", usando
palavras de Fanon (1979, p. 39). Libera-se, em consequência, a "tensão
A ideologia colonial, bem marcada nos textos, mostra que a nova muscular do colonizado" (idem), manifestada em forma de revoltas e
rota colonizatória portuguesa dos fins do século XIX e início do XX não enfrentamentos do segmento negro, o que gera um surdo embate étnico.
significa, mais uma vez, um aprofundamento das raízes transplantadas para O espaço ficcionalizado por Soromenho é marcado por um pro-
as colónias, mas, como já apontei, a criação de um mar de rizomas a se fundo processo de anomia. O chicote de cavalo marinho, metonímia da
espalharem, ao invés de mergulharem nos recônditos da terra simbólica. força bruta e da dominação, tanto dilacera os corpos fisicos como os cul-
Nesse processo de desenraízamento, não se cria uma zona de fronteira onde turais, embalsamando ainda os sonhos de uma existência digna e solidária.
os dois segmentos se viessem a cruzar. Os vínculos se desfazem e não há Reitera-se, por essa desterritorialização imagística, reflexo da ideológica,
qualquer possibilidade de recontextualização nem romântica da identidade que o colonialismo, como preceitua Boaventura Santos (1995), é o pólo
(cf. SANTOS, 1995, p. 145). Sucedem-se explosões de violência e racismo: oposto da solidariedade.
"E o cheiro? meu amigo. Escolhi uma delas, a que me pareceu menos unta- Ao separar os brancos da administração dos velhos colonos,
da. Sim, que elas usam qualquer espécie de gordura[ ... ] a fixar o cabelo[ ... ] igualmente brancos, mas arruinados pela derrocada do sonho da borracha,
As 'luenas' ~ão são bem pretas" (Quando o dia chegar, 1962, p. 158). Soromenho, através da voz narrante, escancara algo que a ficção anterior
Mats uma vez reafirmo que, no plano ideológico, os actantes se- apenas indiciara. Ou seja: que não pode haver solidariedade no espaço
parados pela barra étnica se aproximam pelo facto de se excluírem da limite da grande exclusão social que o colonialismo edifica, voltando a
plen~ cidadania. Aproximam-se por não se fazerem sujeitos, mas objectos Boaventura Santos. Não por acaso, a burocracia colonial (civil ou militar)
mampula?os pelos principais arquitectos do drama da colonização que é colocada no alto de uma encosta suave, enquanto os comerciantes deca-
nunca deixaram o "conforto" metropolitano. Aproxima-os 0 serem, por- dentes, desprotegidos do poder central, ficam em baixo. Evidencia-se,
tanto, não-cidadãos ou cidadãos de segunda, o que quase dá no mesmo. É desse modo, toda a força da exclusão intragrupal, o que leva a uma aproxi-
o não q~e os aproxima: não têm direitos; não têm voz; não têm lugar. mação maior dos colonos aos autóctones, principalmente pelo facto de
Desenrmzados, sonambulamente planam sobre a história, sem poder viverem com negras, com as quais têm filhos mulatos. Na visão colonial,
escrevê-la. São o outro do outro, como bem aponta Castro Soromenho em esses brancos não o são mais. Cafrialisam-se e deixam de ser percebidos
Terra morta (1949). como iguais. Isso explica as cenas de morte e hemiplegia que se sucedem
não só em Terra morta, mas um pouco em Viragem (1957) e bem mais em
A chaga (1970).
2 - O outro do outro Em Terra Morta, o velho José Calado morre, e o nanador flagra-o,
jazente sobre a cama, "barba por fazer, sem botas, porque os pés incharam
O romance Terra morta, se se Üga ao projecto da literatura colo- tanto que nem os chinelos serviam"(1949, p. 183). Já Anacleto fica "para-
nial por certos aspectos, por outros o ultrapassa, pensando a terra angolana lítico do lado direito", daí aparecer-lhe uma baba que lhe "escorria pela boca
~?mo ~m~ espécie de máscara mortuária, consoante o que em outro lugar torcida"(p.206). Os disformes pés e a "boca torcida", eis as imagens finais
Ja analisei (19~5). Por plasmar a questão do limite da opressão, o texto de do sonho da arrancada colonial. Não se trata mais de se edificar o outro
Soromenho vat além dos limites ideológicos da chamada ficção colonial, lugar, mas de construir o seu avesso, ou o outro do outro.
representando um estágio de consciência crítica que desembocará na Falta, para fechar este texto, enfocar como o negro e, já agora, o
acção revolucionária das obras produzidas por angolanos - e não só - mulato se desenham nesse mundo em estado de absoluta anomia, pintado
no pós-61. Nele se enfatiza a ruín~ da casa colonial portuguesa da qual 0 pelas tintas da ficção de Soromenho. Se há um limite para a perda da iden-
sonho se despede por completo. E proibido sonhar - parece ser este o tidade, esse limite é destacado em Terra morta. No romance dramatiza-se
lema da obra, dentro do projecto da ficção neo-realista. O nanador mostra a "frustração da história" a que se reporta Albert Mellllni, ao mostrar que,
Novos pactos, outras ficções 95
94 Laura Cavalcante Padilha

no final do processo, o colonialismo "terá apodrecido o colonizador e des-


truído o colonizado" (1977, p. 100).
É dessa destruição que fala o romance, seja pela assimilação
estropiada de cipaios e capitas, seja pela resistência, até à morte, de um
personagem como Xá-Mucuari, mostrado como um velho soba, o último
grande soba do Camaxilo, de olhar duro e um ódio antigo, que lhe anda-
va sempre nas palavras e nos gestos, a todos que serviam aos brancos
(1949, p. 115).
PARTES DE ÁFRICA:
É interessante notar que ao ódio que se devota ao cipaio Caluis, o
texto responde com a afectividade e o respeito igualmente devotados a
A SEDUÇÃO DE UM 1
Xá-Mucuari. Mas o destino de ambos é a morte, ponto final da devastação CADERNO DE MAPAS
gerada por todo o humilhante processo. Valeria notar, ainda, a presença
das velhas negras, mães dos mulatos que representam, no dizer de
"A melhor poesia é sempre uma pesquisa,
Alexandre Pinheiro Torres (1978) "a juventude" nesse velho mundo em
uma tentativa de darforma inteligível ao des-
conflito. Só pela cumplicidade da mãe negra com o filho mulato é que se
nhecido."
cria uma zona de não-exclusão, melhor dizendo, de solidariedade. Vale a Helder Macedo
pena sair de Terra morta e citar a fala do velho Lourenço de A Chaga: "Só
nos filhos mulatos salvaríamos o homem que se perdeu em cada um de "E sim, bem sei que nunca ninguém voltou
nós. [... ] O mulato regressa à mãe, porque a mãe é da sua terra, do seu por escrever nem por ser escrito, e que
povo. A mãe é a África. [... ]As raízes pertencem à terra" (1970, p. 112). sobram só os mapas onde todas as ilhas são
Temos, pois, aqui, de volta, as raízes. Diferentemente, porém, do imaginárias.
que se viu, agora grita-se a sua pertença à terra. Portanto, fora do sonho Helder Macedo
erigido lá, cria-se alguma coisa do lado de cá. Os pés ficam firmes e a
boca distorce. O olhar deixa de ser de exílio, para significar o seu oposto.
Ganha corpo uma outra ideia de território, isto é, de algo que ultrapassa a O narrador de Partes de Aji~ica (1991) tem o vício das
de tena. Se ainda não se tem a nação, já se tem a rota para chegar até ela. metáforas, ao contrário do pai que, em seu modo de ver, não o tem. As
E nessa rota, nesse mergulho mais fundo da raiz no solo, cria-se uma escaramuças verbais entre ambos, e encenadas na obra, são um embate
forma de pertença e o próprio já pode começar a dizer, com clareza, da sua entre a metáfora e a sua negação. Escolhê-la como elemento balizador do
diferença e a edificar o seu lugar na história, fincando-se no solo como texto é a última pirraça do menino da Zambézia que, depois, via "o sol
nova e poderosa raiz. nascer vermelho e repentino, no cais do Pijiguiti" (p. 53). Talvez nem pai
nem filho tivessem consciência de que o mais velho fazia metáforas sem
o saber e que o livro em potência, carregado pelo menino antigo, seria,
no futuro, um modo de disseminação do pai-em-metáfora, como compro-
va o poema-fecho do romance onde tudo se diz para dizer do pai.
Como nenhum vício pode deixar de ser compartilhável e exten-
sível, o leitor de Partes de África é também tomado por tal força irrupto-
ra e, no meu caso, principalmente após a leitura do fragmento de Um

1. Publicado em Literatura e História: três vozes de expressão portuguesa.


Organização de Tânia Franco Carvalhal e Jane Tutikian. Porto Alegre: Ed. da
UFRGS, 1999, 77-84.
96 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 97

drama jocoso, comecei a buscar o caminho metafórico como forma de fala ou de que fala o sujeito enunciador. E ele completa - "Las prácticas
tecer meu próprio tapete interpretativo. Por isso, elegi a imagem do teóricas postcoloniales son asociadas con individuas que provienen de
"caderno de mapas" e já agora explico porquê. sociedades con fuertes herencias coloniales, que han estudiado y/o están
Em tempos nos quais a reprodutibilidade técnica, tal como a en algún lugar del corazón del imperio" (1996, p.15).
pensa Benjamin, foi levada às últimas e internetianas consequências, pen- Helder Macedo ou, mais propriamente, quem no texto se apre-
sar em "cadernos de mapas" é incorrer no anacronismo revelador de ve- senta como um nanador-autor, no melhor estilo machadiano, ao deixar
lhas idades e percursos. No entanto, a leitura do romance de Helder Londres para escrever o seu livro em Sintra, opta por iluminar seu mapa-
Macedo despertou-me o fascínio adonnecido pelos mapas-mudos conti- -memória em pleno coração, só que do ex-império. Desse modo, no
dos nos cadernos de outrora que nós - alunos sentados em compridos romance-quase-ensaio preenche os espaços do que antes do seu gesto era
bancos que ladeavam a mesa da sala de aula (outra cena ressurgida no vazio e silêncio, quando não fora silenciamento. Pelas mãos do perso-
texto)- tínhamos de "iluminar". Ah! os tempos! Naqueles cadernos não nagem-narrador, sob cuja pele habita a persona autoral (ao fim e ao cabo
desenhávamos nem escrevíamos, muito menos os preenchíamos. também puro ente ficcional, pois quem se diz já não é quem diz), se vão
Iluminávamo-los. compondo traços, colocando-se linhas que tanto podem ser montanhas,
Reencontro este mesmo movimento de iluminação em Partes de rios ou cidades, dependendo do exercício.
Apica, desde quando o narrador nos fala da "galeria de sombras no que O mapa-mudo é o convite a uma viagem pelo apenas possível e
foi a casa dos [... ] pais" (p. 9), onde se guardava "a história de uma boa nele a imaginação navega, "tornando todas as ilhas [... ] imaginárias",
parte do colonialismo português do último império" (idem). Sombras e como resgata uma das epígrafes. Daí surge a sua poderosa sedução, ainda
história pelo texto iluminadas, a partir do segmento inaugural do romance mais por ser pelo traço do próprio sujeito que as linhas se recriam.
que funciona como uma espécie de grande mote organizador da narrativa.
Não por acaso, a meu ver, aparece nele, cintilante, o significante mapa,
assim reiterado: Caderno fechado no 1

[ .. .] estantes com livros de leis anotados à margem, mapas de Um caderno de mapas fechado é habitado pelos fantasmas de
Ajhca com círculos a cores todos os mapas existentes que, por sua vez, são traços imaginários.
(p. 9) Portanto, com ele se está em pleno coração da ficção. A escolha do cami-
nho para o preenchimento, no caso de Partes de Aji-ica, passa pela
[.. .] mas há sombras que a memória pode imaginar nos mapas geografia e pela história e o exercício ilumina lugares, pessoas e factos,
entreabertos. Os mapas já se mudaram, trocados por outros os tal como a memória os pode alcançar, daí a não-correspondência plena
nomes dos sítios e mantidos os nomes dos sítios mudados. entre o que foi e o que dele se diz ou se sabe:
(p. 1O, destaques meus)
memórias d!fitsas
O livro acompanha, entreabrindo-se como os antigos mapas, da vida dispersa
todas as mudanças de sítios exteriores e/ou interiores, partes da história num mapa mudado
ressurgidas nos exercícios de iluminação que ora destacam o indivíduo, a pá de calcário
ora tiram da sombra acontecimentos colectivos, de forma especial a der- os gonzos as cordas
rocada do império colonial português e o nascimento das cinco nações
e a terra apressada
africanas. O romance se faz, em todos os sentidos, um romance pós-colo-
nial, por suas opções e possibilidades estruturais (MIGNOLO, 1996). sobre ti e mim.
(p. 172)
Como aponta este mesmo crítico, quando se quer estabelecer a teorização
pós-colonial, deve-se considerar como um dos eixos o facto de se expli- A tentativa do romance é tirar a terra, abrir o cofre de sombras, ou
citar, nas produções assim catalogadas, "o lugar geo-cultural" de onde seja, fazer da potência do caderno fechado o acto da escrita. Com isso:
98 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 99

levantar véus, subverter ordens. Dizer o que se não disse. Expor-se. Portugal com a heroicidade dos Joões antigos transformada na pequenez
Desvelar-se. Fazer a viagem de volta. Iniciar-se, como parte de um rito de alma de João de Távora, quase um jogo com Távola e, principalmente,
secular, muito embora já tenha passado o tempo da iniciação que, no a junção de Cristóvão de Távora e D. João de Portugal, actantes da cena
entanto, em África sempre pode renascer. A partir do caderno, empreende- de Alcácer Quibir. Basta que comparemos o Drama com outro registo
-se, pois, outra "viagem iniciática", às vezes dolorosa, muito dolorosa, semiótico e artístico que é o filme de Manuel de Oliveira, "NON" ou A vã
como sói acontecer nas cerimónias dessa natureza. glória de mandar, por sua vez também texto feito de espelhos partidos da
Fechado, o caderno era urna de sombras. Dentro dele tudo era história de Portugal.
sólido, apesar de desmanchável no ar: o pai; o império; a família; os mas- O caderno fechado é, pois, um convite para que se releia a trajec-
sacres; os primeiros amores e o amor definitivo; as guerras de libertação; tória histórica de Portugal, no que concerne sobretudo ao último império,
os sonhos revolucionários ou o tempo da formação; a reorganização do dando voz aos que, na trama imperial, não a tiveram. Assim, passam a
estado democrático português; o auto-exílio na Inglaterra; a euforia segui- falar Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e, acima de todos,
da pela ressaca cívica das novas nações africanas e por aí fora. O livro Moçambique e Guiné-Bissau, lugares onde a infância se inscreveu e, no
torna-se um extenso palimpsesto ou um bloco mágico, nesses tempos pós- presente da abertura do caderno, se reescreve em forma de uma "viagem
-freudianos. Cada página é habitada pelos fantasmas das que foram apa- aos interstícios dos destinos" (p. 70), empreendida pelo sujeito histórico-
gadas e guardadas pelo caderno, à espera da hora da iluminação, que -ficcional chamado Helder Macedo.
chega, por exemplo, quando o narrador usa as suas "metáforas compósi-
tas da imaginação e da memória" (p. 73). O texto dessa forma concebido
faz-se "ponte suspensa num rio sem margens" (p. 74). Ao mesmo tempo,
memória do indivíduo e do cidadão; do artista e do homem de ideias, O trabalho de Penélope
enfim, do sujeito histórico e do ser ficcional.
Entre as sombras fantasmáticas do caderno emergem alguns pon- Na sua leitura de Proust, diz Benjamin que o ficcionista "não
tos luminosos que crescem e ultrapassam as margens. São as vozes em descreveu na sua obra uma vida como ela de facto foi, e sim, uma vida
constelado de escritores do passado e do presente ou, no dizer do narrador, lembrada por quem a viveu [ ... ]. Pois o importante, para o autor que
rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido da sua rememoração, o tra-
Os amigos [. ..} aqueles com quem se podia ir para toda a parte, balho de Penélope da reminiscência" (1994, p. 36). O mesmo se pode
como o Camões ou o Cesário ou o Teixeira-Gomes, ou o Jorge de aplicar a Partes de Afi·ica e a Helder Macedo. O romance revela o traba-
Sena quando mordia o sabor a destino na boca da vida,· os co- lho da reminiscência, sempre a outra face do espelho do esquecimento. A
nhecidos [. ..} por exemplo o Sá de Miranda, leitura atenta, isso dou o nome de iluminação de mapas-mudos, na lógica do palimpses-
grandes barretadas respeitosas [ ...],· os outros, mistura entre os to, pela qual se exercita um jogo de velar/desvelar.
logo se vê e os já se viu e até logo. No conjunto da obra, partindo dessa lógica, percebe-se um tecido
(p. 160) que não apresenta, a uma primeira leitura, os fios muito nítidos, pelo menos
para os leitores pouco acostumados com produções não-ocidentais, por
A leitura da obra revela esses muitos outros, às vezes mais que assim dizer. Trata-se de uma forma de pensar e organizar o texto que, radi-
amigos, como Machado, todos jogando "na mesma equipa" (p. 159) cuja cando embora numa dicção branco-europeia, se deixa engravidar pelo sémen
camisa é pintada com o emblema e cores da língua portuguesa. Daí a pro- da cultura textual africana que tem na voz um dos seus mecanismos de
posta de adaptação do libreto de D.' Giovanni, de Mozart, nesta língua. Tal resistência e sustentação. Na estrutura mais profunda do romance, assiste-se
adaptação, no jogo de espelhos de Borges, faz com que Um drama jocoso a uma surda luta contra a mudez e o silenciamento em todos os níveis. Para
seja e não seja a ópera, cuja sedução no imaginário do produtor textual é vencer o embate, em certa medida, o produtor recria, nas malhas da escrita,
de tal ordem que algumas das suas passagens se resgatam no original. a roda africana da contação onde todos têm vez e voz. Com o Drama,
No Drama, mudado o tom de sério para bufo, mudam-se as von- ouvem-se Medeiros e Mozart; com a bela judia Raquel narrativiza-se o mote
tades; apequenam-se as grandezas e em certa medida se reescreve dado pelo soneto camoniano; com a cena 14 daquele mesmo Drama, fala
100 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 101

Cesário pela voz do narrador, no momento ímpar do amanhecer em Lisboa, Se deixo, no entanto, o caminho da dicção ocidental e penso no
etc. A palavra passa de um para outro, pois se está, pela rememoração, na tapete da oralidade africana, tais motes podem-se ler como as frases ini-
roda africana. Em seu centro, organizando a festa da linguagem, o novo griô ciais das adivinhas, propostas como enigmas a serem decifrados. Ligando
dos tempos modernos (ou pós-, se quiséssemos), qual seja, o múltiplo nar- essas adivinhas, formam-se grandes ilhas imaginárias, espécies de blocos
rador que é personagem e se declara autor. Ele tenta não deixar que a palavra que significam, por assim dizer, a adivinha-mestra que encerra a brin-
caia no vazio do silêncio, lá onde se esconde a sua morte. cadeira da decifração. No caso do romance, um desses blocos representa
O texto oferece-se na sua materialidade como um espaço gozoso e, a constmção do pai-em-metáfora, que podemos ler como o colonizador de
se não se abre formalmente com a :ti·ase anunciadora "Karingana ua boa vontade a que se reporta Memmi (1977), representação essa adensa-
karingana", nem por isso deixa de se apresentar como um exercício de inter- da pelas lianas de ternura atadas pelo narrador. Outra das ilhas teria a ver
venção no real, quando a sabedoria ancestral é convocada para manter vivos também com a constmção, só que partida, do sujeito narrante, submetido
os referenciais simbólicos do gmpo. De certa maneira, o narrador liga o seu a tantos exílios, sempre na fronteira dos mundos, sem ser daqui nem de lá.
papel de professor da Cátedra Camões ao de contador mais velho, cuja meta Cada leitor, nesse jogo de esconde-esconde tão africano, elegerá
é iniciar os mais novos que não possuem ainda os segredos e mistérios do a sua adivinha-síntese. O que interessa aqui, contudo, é a forma composi-
gmpo. Na comunidade de troca formada pelo contador do livro e os seus cional da obra, quando o enigma parece significar uma das chaves discur-
leitores-quase-ouvintes, tudo é convívio, pa1iicipação, força colectiva. sivas. Por isso, o trabalho de Penélope do narrador-personagem-autor con-
Ninguém, no entanto, pode contar em África, se não houver siste em inquirir a esfinge, refazendo pontes, tentando encontrar as mar-
assentimento do gmpo. No caso do romance, esse convite à participação gens, tecendo/destecendo o tapete da sua obra que ao mesmo tempo como
é uma espécie de pedido de pennissão aos ancestrais que, mesmo sem ficção escreve e, como pacto histórico, desescreve, ao mostrar uma face
serem vistos, fazem parte integrante da roda. É o que se explicita no seg- nada cordial do último império português. Opta pelo disfarce ou, se
mento 1 - "Em que o autor se dissocia de si próprio e desdiz o propósi- quiséssemos, pela cerimónia mascarada:
to do seu livro" (pp. 9-10). Nela se convocam os pais, principalmente o
pai, ancestral entre os ancestrais. Entreabrem-se os mapas, tece-se a remi- [ .. .] este livro não é sobre mim mas a partir de mim, condutor
niscência e, não por acaso, assim se fecha a saudação participativa: biograficamente qualificado das suas factuais ficções [ .. .]. Nos
tais romances já vindimados os autores disfarçam-se até quando
E agora, tendo definido as finnteiras ausentes desta minha grave se não disfarçam. Neste, que nunca se sabe quando é romance e
viagem e, de novo poeta em anos de prosa, tendo prenunciado com quando não é, o meu disfarce é não me disfarçar
os ecos literários pertinentes o verdadeiro não-propósito dos meus (p. 150)
plurais romances, poderei começm; como cumpre, depois do
princípio. Como africano, por sua origem, sabe que só convencerá se apre-
(p. 10) sentar o contado como vivido; como europeu consentido, refaz o cami-
nho da tradição, tornando a história acontecida pura ficção. Trilha, assim,
Princípio do livro, convite da roda, pedido de assentimento. a via contrária, muito embora chegue à mesma praia imaginária traçada
Gostoso convívio. em antigos mapas dos viajantes, sequiosos de mar e, ao mesmo tempo, de
Não há como destacar aqui tudo o que, no romance, é parte de terra. Mas isso é chegar ao título, enigma maior, e ao meu próprio tempo
África em forma de refazimento de velhos saberes ou dizeres africanos. de concluir.
Fico apenas com um desses aspectos da composição do texto, isto é, com
os motes já anunciados. Num primeiro momento, pode pensar-se neles tão
somente como uma forma de percurso textual que vem das cantigas Caderno fechado ll 2 ou Partes de A.frica
0

medievais peninsulares, passam, por exemplo, pelas endechas camonia-


nas, chegam a Garrett, Camilo, Machado, etc. Abrem os capítulos - do 2 O nanador parece não deixar dúvida sobre o que significa o títu-
ao 12-, interrompendo-se nos três seguintes, para ressurgirem nos finais. lo da sua obra e repete-o várias vezes. Cito dois desses momentos:
102 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 103

[. ..] como metáfora até me dá jeito para as minhas Partes de Pelo pai, e pela África. Ambos irremediavelmente perdidos no
Aji·ica, pelo menos até ve1: presente histórico, mas de qualquer modo percebidos pelo imaginário
(p. 107) como os pontos-origem- do homem e do cidadão. Desse modo, a terra
representada nos versos finais do poema deixa de ser apenas o pó fisico
[. ..] comunicação em forma de fivela, atando aquilo que que desceu um dia sobre o morto corpo do pai, para se fazer a terra-enig-
já disse nestas minhas já quase concluídas partes de Aji·ica. ma, talvez um outro jeito de dizer pátria. A força desta terra, aspergida
(p. 160) sobre ele e sobre o pai, para sempre os assinalou, fazendo com que, aí sim,
eles jamais pudessem deixar de ser Partes de Afi'ica, mapas-mudos ilumi-
O significante partes é, pois, pensado como substantivo e justifi- nados e irremediavelmente presos pelas cordas dessa poderosa e esfingi-
ca-se pelo facto de o produtor querer mudar a visão histórica que o ca sedução.
império tem da colónia, sempre entendida como um todo orgânico, estru-
turado em torno da idéia imóvel e rarefeita do mesmo, lembrando Said
(1995). O movimento de rasura imperialista consiste em anular a dife-
rença, já que - e volto a Said- "o espaço colonial deve ser transforma-
do a tal ponto que não mais pareça estranho ao olhar imperial" (p. 285).
Ver a África em partes e em sua diferença é o desafio e mais uma pirraça
do narrador. A sua vingança.
A minha leitura primeira do romance fez-me aceitar o explícito
convite que assim me era feito, o que ainda mais se reforçou com a metá-
fora do mosaico, presente no texto desde o seu movimento inaugural. Tal
metáfora vai enlaçando os vários capítulos cuja estruturação com ela
directamente se acumplicia, visto que tais capítulos se organizam, no todo
romanesco, como fragmentos e não como unidades composicionais, de
acordo, por exemplo, com o que a lógica iluminista apontava como dese-
jável para as narrativas do século XIX e não só. A solução estética do
romance segue, pois, a proposta de desmascaramento ideológico, ao
mesmo tempo reforçada e ampliada pela visão substantiva do significante
partes.
No entanto, penso haver uma outra possibilidade de leitura, para
mim mais fascinante e que me surgiu quando cheguei à minha própria
metáfora interpretativa, ou seja, quando fui iluminando meus mapas.
Nesse momento, o até então visto como um substantivo se fez verbo e me
habitou. Na cena romanesca, é como se o ser narrante, com a ironia a ele
habitual, dissesse, olhando-se no vasto espelho da história vivida: partes
de Aji·ica, pois é de lá que vens e disto não te deves esquecer. Não impor-
ta quem sejas hoje ou o que digas ser; esta é a tua origem, teu ponto de
partida, teu marco zero.
Por essa via, as brigas com o pai se explicariam porque ele partiu
para a África e, não, dela, o que muda tudo. O livro seria, assim, uma últi-
ma tentativa de convencimento e, ao mesmo tempo, um gesto dobrado de
amor.
104 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 105

e entre os quais está condenada a oscilar" (1992, p. 43). Iluminando o já


referido esquema rímico, encontramos os tennos contrários, no caso,
"glória" e "vício", a que se opõem, no extremo do quadrado, os contra-
ditórios, a saber: para "glória", "não-glória" e, para "vício", "não-vício".
Tais termos se tensionam e as relações entre eles constroem duas direcções
de sentido: "dilatação" e "devastação". A imagem torna as coisas mais
claras:
POR TERRAS DE ÁFRICA
COM HELDER MACEDO
E MIA COUTO~
"E também as memórias gloriosas
dilatação devastação
Daqueles reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De 4fi'ica e de Ásia andaram devastando"

Luís de Camões

Os termos semânticos em tensão no texto, apontados pela econo-


O início da segunda oitava do primeiro canto de Os mia analítica do quadrado, recebem um investimento de valor, que liga a
Lusí~d~s (edição de ~97~) es~abelece, pelo seu esquema rímico, relações euforia a "dilatação" e a disforia a 1'devastação". Com isso, torna-se fácil
s.emanti~as bastante slg.mficativas, quando o objecto de interesse do inves- mapear a consciência ideológica que subjaz aos versos ou, como quer
tigador e o facto colomal ou, se se quiser, a arrancada imperial portugue- Jameson, "os pontos conceituais além dos quais essa consciência não
sa p~l?s "mares nunca dantes navegados" (I, 1). Assim, em jogo de pares pode ir".
?p.osltivos, encontram~se o~ adjectivos 'gloriosas/viciosas' e os gerúndios Por outro lado, além do esquema dramático proposto pelo quadra-
dilata~do/?evastando ,' Evidente que a "glória" (ou a sua memória) e a do semiótico, pode-se escolher uma via mais simples, ou seja, uma
e'~~~~~ao tem como nucleos gerad~res os sujeitos da dominação colonial pesquisa no dicionário, sempre guia seguro para percorrermos as trilhas
( Ieis ), apanhados em pleno movimento ascensional. Do lado dos ou- léxico-semânticas. Debrucemo-nos, pois, sobre os verbetes "vicioso" e
tros, em tu?~ diferentes ~os mesmos, ou do "nós", como quer Todorov "devastar", abandonando os lexemas "glorioso" e "dilatar" pelos quais se
( 1989), o VICIO e a necessidade da sua destruição. garante o valor eufórico do poema, cujo acto enunciativo "cantar"-
Neste ponto, pode-se recorrer à construção do quadrado semiótico tem como alvo o resgate da memória das "armas e [... ] barões assinala-
pro~o~to por Gre~mas. Segundo Lucia Teixeira (1996), tal quadrado indica dos" (I, 1). Com Caldas Aulete ficamos sabendo ser vicioso: "adj. Que
o mmimo de sentido de um texto, apontando para as categorias semânticas tem vícios, que está habituado ao vício//Habitado por gente dada aos
fundamentais que o discurso deverá recobrir. De acordo com Jameson 0 vícios ou à vida licenciosa: As terras viciosas de África e Ásia (Camões,
quadrado "mapeia os limites de uma consciência ideológica específic~ e Lus. I, 2)" (1958, v. 5, 5288b). Já sobre devastar, lemos: "v, tr. Assolar,
marca os pontos conceituais além dos quais essa consciência não pode ir, anuinar, destruir, despovoar" (idem, v. 2, 1483b). Ou seja: quatro séculos
depois mantém-se a "consciência ideológica", sem qualquer contestação.
1. C? te~to ~?i publicado em "Veredas: Revista da Associação Internacional de Estabelecendo uma colagem dos significantes, temos que a África,
Lusitamstas . v. 1, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1998, pp. 243-259. como a Ásia, são "terras" (o plural é sempre forma de elidir as diferenças)
106 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 107

"habitadas por gente dada aos vícios ou à vida licenciosa". Se acompanhar- no pós-75. Há todo um empenho de dizer o até então silenciado, rompen-
mos um dos exegetas da edição de 1972, ora usada, tais terras representa- do-se um mutismo de séculos. De espectadores, os novos sujeitos querem
riam as "habitadas pelo gentio, não cristão" (p. 49). De um modo ou de outro, tornar-se actores da nova cena que lhes é dada representar.
há uma quase exigência "divina" de que sejam "assoladas, arruinadas, Paulatinamente, transformam-se em protagonistas de si mesmos, ao
destruídas, despovoadas". Abre-se, por esse jogo semântico, o cenário do mesmo tempo que se debruçam sobre a mesa anatómica onde jaz o corpo
drama colonial, marcado pelo signo da violência e da ruína. Pura disforia. da história da colonização pelo outro escrita, para analisar os segredos até
Vale a pena aqui lembrar Fanon: "O servo é de essência diferente da do ca- então escondidos nas suas entranhas. Encontram-se, uma vez mais, a
valeiro, mas uma referência ao direito divino é necessária para legitimar essa euforia e a disforia, só que mudados os referentes originais. Outras são as
diferença estatutá1ia. Nas colónias, o estrangeiro vindo de qualquer pmie se "memórias gloriosas", modifica-se o estatuto das "terras viciosas", assim
impôs com o auxílio dos seus canhões e das suas máquinas" (1979, p. 30). como "dilatação" e "devastação" ganham inesperados e surpreendentes
Na ponta extrema da cadeia do acto devastador da colonização, sentidos. Parodiando o texto que, por sua magia linguajeira, sagrou o
ainda seguindo bem de perto Fanon, encontra-se o seu contrário, ou imaginário dos homens que se expressam em língua portuguesa, podemos
seja, a descolonização, só que, no presente caso, igualmente distante dizer que outros valores mais altos se levantam.
quatro séculos depois. Ela também representa um gesto de violência, Desses valores falam Helder Macedo e Mia Couto em seus
pelo qual passam a exigir um novo estatuto tanto ao que é pintado, no primeiros romances, respectivamente, Partes de Áfi·ica (1991) e Terra
poema camoniano, como "selvagem mais que o bruto Polifemo" (V, sonâmbula (1992). Os dois escritores ligam-se pelo próprio facto de terem
28), quanto à terra, no que aqui interessa, apresentada como a "dura nascido em Moçambique, por possuírem uma idêntica origem étnica e,
Moçambique", cujas características são a "falsidade e má vileza" mais que tudo, pela consciência de ambos, de um lado, do papel do inte-
(idem, 84). Pela descolonização, ao mesmo tempo se transformam a lectual colonizado e, de outro, da força feiticeira da palavra artística, fio
terra e o homem: enquanto a primeira passa a cobrar a sua condição de que tudo tece. Em suas ficções, ambos não excluem África de Portugal-
nação livre e soberana, este luta por deixar de ser o paciente para fazer- e como fazê-lo se tudo se diz em pmiuguês? -,mas formam uma sequên-
-se o agente de uma nova história. Não obstante o peso da dor e da cia coordenada aditiva ou adversativamente, neste último caso, às vezes,
guerra, tal momento, em termos ideológicos, caracteriza-se pela mais opondo-se, mas não se excluindo.
plena euforia, palavra intencionalmente repetida neste texto. Manobram, para criar esse eixo coordenado, os cordões da
Muda-se, em tal perspectiva, o sujeito da cena histórica escrita memória da sua terra; para Mia, Moçambique, e, para Helder, parte de
pela pulsão colonialista, assim como o sentido pedagógico e protagónico África, parte de Portugal. Laço a atá-los, também, está a forma como pro-
de nação (BHABHA, 1995). Medem-se os contrários e, como resultante duzem as suas narrativas, a partir da certeza da ruína dos utópicos sonhos
final do processo, ficcionalizam-se várias e outras "epopeias". Recor- que marcaram o passado. Dizendo de outro modo: pensam ambos a de-
rendo, mais uma vez, à lucidez de Fanon, com ele repetimos que a des- vastação, mais que a dilatação. Para expressar isto, interseccionam-se pela
colonização esQolha deliberada de um registo artístico-verbal que transita entre o
bronze da letra e o cristal da voz, ou, como venho insistindo em afirmar
transforma espectadores sobrecarregados de in essencialidade em desde muito, entre a voz e a letra (PADILHA, 1995). Criam-se, no escrito
actores privilegiados, colhidos de modo quase grandioso pela que se quer oral, outras redes de relação, nascendo daí um hibridismo que
roda-viva da história. Introduz no ser um ritmo próprio, transmi- acaba por se fazer um dos alicerces não só dos romances, mas da cultura
tido por homens novos, uma nova linguagem, uma nova humani- por eles veiculada como um todo. Disso tentarei falar, a partir de agora,
dade. A descolonização é, na verdade, criação de homens novos. com meu próprio texto assumindo a pessoalidade de um eu que, atento, vê
(1979, p. 26) este trançado narrativo de um distante ponto do mapa-múndi, embora a
ele se sinta interligado pela língua, nossa mátria.
Tal criação se faz a marca das relações discursivo-ideológicas das
literaturas produzidas no momento em que se acirram as lutas de liber-
tação africanas e, depois delas, ao se escreverem as nações em formação
108 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 109

representado pela frase de Platão. Pedindo perdão pela extensa citação,


creio ser válido recuperar o tapete epigráfico em seu conjunto:

Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os


1 -Uma vez mais, Xerazade ou o novo olhar do anjo homens dormiam, a terra se movia espaços e tempos afora.
Quando despertavam, os habitantes olhavam o novo rosto da
Ambos os romances se abrem por epígrafes que são um modo de paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados
convocar uma outra voz (ou vozes) para começar a erigir em letra o e di fi- pela fantasia do sonho.
cio imaginário. (Crença dos habitantes de Matimati)
Partes de Aji·ica, de início, é "iluminada" pela voz de Camões:
"Tem o tempo sua ordem já sabida./0 mundo não." Estabelece-se, já por O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar
aí, o pacto com o desconcerto do mundo, marca dos versos do poeta qui- a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos,
nhentista e o primeiro dos motes propostos pelo romance, que com eles para nos fazer parentes do futuro.
procura jogar seu jogo de adivinhas. Dou, como exemplo do processo (Fala de Tuhair)
motivador, a frase que abre o fragmento - mais que capítulo - 3: "Se o
futuro torna inevitável o passado, o passado, antes de saber que o é, não Há três espécies de homens:
se compadece com tais determinismos históricos e pode ser apenas uma os vivos, os mortos e os que andam no mar.
questão de mau feitio" (p. 17). O resto do fragmento se encarrega de des- (Platão)
dobrar tal mote em narrativa.
Em seu conjunto, o romance, pois, desenvolve os versos camonia- A segunda das três epígrafes é o resgate da fala de um dos perso-
nos quando tenta reordenar o mundo pessoal e o tempo histórico do nar- nagens do romance, Tuhair; que funciona, assim, como seu elemento ante-
rador que, ao invés de cantar as glórias memoráveis do império português, cipatório. Ela interliga a fala ancestral da origem (na sua versão moçambi-
diz da morte e impossível renascimento dos "barões assinalados". Para cana) à fala igualmente ancestral do ocidente (via Grécia), sendo o vão da
tanto, recupera a derrocada do último império português, ao mesmo tempo ponte que se estende, ligando os dois pilares míticos, ambos, por sua vez,
que, com afiado bisturi, lacera o corpo do sonho representado pelo 25 de os elementos de sustentação do imaginário do moderno escritor africano.
Abril. Auto-exilado, o narrador redesenha o passado da construção impe- Este, como o seu personagem, é o ponto de intersecção entre as duas ances-
rial, declarando, em seu deliberado tom irónico: tralidades. Amplia-se, assim, o plano dos referenciais simbólicos, tornan-
do-se outras as "memórias gloriosas" erigidas em palavras pelo romance.
De mal-entendidos são os impérios feitos. Nos desdobramentos das histórias veiculadas pelos textos, ga-
Quando os mal-entendidos começaram a esclarecer-se, quando o nham vulto as figuras dos narradores que as conduzem. Suas formas de
desconhecido deixa finalmente de ser reconhecido por aquilo que forjar o contado fazem com que ora se afastem, ora se aproximem.
não é, e a norma da diferença se integra na norma que diferen- Afasta-os o facto de Terra sonâmbula ser concebida- no que respeita à
cia, então é porque já chegou o tempo do fim dos impérios, quan- estória encaixante - em terceira pessoa. O narrador representa-se como
do o pós-imperialismo se pode tornar na consequência positiva ornnisciente, já que tudo vê e sabe. Os seus personagens principais são o
de ter havido impérios. já referido Tuhair, de nome arabizado, que se encontra preso num ponto
(p. 167) qualquer de uma "estrada morta", sem poder sair do lugar. Se para o
menino, ansioso pela transformação, o acontecimento é negativo, para o
Já as epígrafes de Terra sonâmbula- três- são partes desdo- velho, com a sua sabedoria, torna-se positivo. Da interacção mais
bradas do percurso do romance, por um lado, e, por outro, da própria novo/mais velho nasce a estória, ela própria um exercício de sabedoria
ficção moçambicana como um todo. Partindo do mítico, ou das origens conduzido pela experiência do sujeito narrante. É o que comprova a cena
ancestrais autóctones, amplia-se na direcção do canonicamente ocidental a seguir transcrita, onde o narrador diz sobre Muidinga que
110 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 111

[. ..} ele queria uma vez mais partir, tentar descobrir nem sabia o tada na primeira pessoa, Um drama jocoso traz à cena um outro "autor",
quê, uma réstia de esperança, uma saída daquele cerco. o Medeiros, alçando-se no texto uma outra "voz", no caso, de terceira pes-
- Você quer sail; não é? soa. Sendo uma peça dramática, a sua recuperação pelo contador prinéi-
- Quero tio. Esta estrada está morta. pal encena-a como uma nanativa, já que os longos trechos contados vão
Esta estrada está mortal? Mas não entende que isso é bem mais além do que simples rubricas. Dou como exemplo o trecho
muito bom, esta estrada estar morta é que nos dá boa segurança? abaixo transcrito:
-Mas nós, desta maneira, não vamos a lado nenhum ...
-Isso quer dizer que também aqui não chega ninguém. - A umca coisa que posso fazer - disse João
(p. 69) finalmente - é contar-te toda a verdade. Vai parecer ridículo,
vais começar por achar improvável. [. ..]Aproximou-se de Elvira,
Por seu turno, o romance de Helder Macedo é contado na acariciou-lhe o cabelo como se numa despedida. Dirigiu-se
primeira pessoa, em deliberado jogo de mostra-esconde ou de verdade vs. depois lentamente para a janela, donde o rio parecia muito longe,
ficção. O narrador finge-se de eu-autoral, o que contribui para confundir- ao fundo, esparsamente iluminado pelos barcos fimdeados.
-lhes as máscaras. Alguns críticos da obra a consideram uma quase auto- (p. 98)
biografia, levantando os índices claramente escancarados pelo texto.
Todavia, é impossível não duvidar de muita coisa, ao mesmo tempo que o Em Terra sonâmbula, os "Cadernos de Kindzu" são contados na
leitor tende a querer acreditar em tudo. A esfinge olha-nos com o seu ar primeira pessoa, havendo uma nítida transformação do plano discursivo,
ironicamente imperturbável, rindo dos que insistem em desvendar os seus com o texto romanesco tangenciando o poético pela multiplicidade de ima-
enigmas: gens surpreendentes e de incríveis jogos linguajeiros. Assim se inicia o
"Primeiro" dos onze cadernos:
Se este livro fosse uma autobiogrcifia ou um romance a
fingir que não, seria agora necessário preencher a passagem do Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme
tempo com episódios que marcassem a transição entre os cinco e esperas e sofrências. Mas as lembraças desobedecem, entre a
os doze anos do narrador, entre a Zambézia do Pimpão e a Lisboa vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente.
onde um personagem sem nome e que, como muitos outros, não Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei
vai aparecer mais, teve como única fimção diegética pôr um de novo uma sombra sem voz.
chapéu em cima da cabeça. (p. 15)
(p. 29)
Há, pois, nos dois romances, um claro desejo de prologamento do
Quanto à aproximação entre o dois romances, esta se dá pelo gozo narrativo, como se fosse- e sabemos com Xerazade que o é - pre-
facto de serem a experiência e a memória os elementos responsáveis pelo ciso narrar para não morrer (TODOROV, 1970). Os dois grandes blocos
mover-se das engrenagens do relato, pensando com Benjamin (1994). A narrativos encaixados - o drama e os cadernos - surgem envoltos em
experiência se apresenta em forma de um ritual de compartilhamento. misteriosas peripécias, como se se tratasse de uma narrativa policial. Os
Ambos os narradores (ou macro-narradores, para ser mais precisa), cadernos são encontrados em "uma mala, fechada, intacta", ao lado do
querem dividir com os que os lêem, e quase ouvem, as histórias das suas corpo de um homem "mmio a tiro" (p. 12) e que deve ser (não há disso
terras e das suas tradições. Comportam-se como os lavradores de que nos plena certeza, pois ele já está morto) Kindzu, autor declarado dos escritos.
fala o mesmo Benjamin, só que não mais assim tão sedentários. Ampliam Este disputará com o primeiro narrador a posição de principal, se se toma
os seus horizontes e, para fazê-lo, em gesto que reforça o sentido de o conjunto formado pelos blocos e capítulos.
comunhão, ouvem/lêem também as estórias que nos repassam, alargando Trata-se de "cadernos escolares, gatafunhados com letras incer-
o campo da experiência interpessoal, como os velhos marinheiros. tas" (p. 13). Uma vez abe1ios, transformam-se no grande tesouro do meni-
Nesse sentido, se a estória encaixante de Partes de Afi·ica é con- no Muidinga e no epicentro do deslumbramento que toma o velho, quan-
112 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 113

do ouve as estórias na voz do menino que para ele as lê. Inverte-se, assim, lheu-os." Como nada é gratuito em Partes de Ajrica, posso pensar, a par-
o sentido da ancestral cadeia da oralidade, como adiante se verá, pois é o tir desta cena patética, noutros "ceguinhos" históricos cujo "sentido de
menino que conta e, não, o velho. orientação" igualmente se perdeu e que se encontram a rondar até ao pre-
Os cadernos resgatam a história mais recente de Moçambique, sente a casa portuguesa, tão celebrada pelo imaginário lusíada. Essa é uma
contada de várias formas diferentes, quase sempre pela via alegórica e/ou das passagens do texto encaixado que se faz um instrumento de decifração
irónica. É o que se dá com a primeira da série de estórias rememoradas e muito importante no jogo de mostra-esconde do texto ficcional.
fixadas na escrita por Kindzu. Trata-se do relato sobre "Vinticinco de Concluindo, penso que ambos os romances se tocam no que
junho", menino que é assim nomeado em homenagem à independência do chamaria o gosto pelo suplemento, no sentido derridiano do termo. As
país. O pai, acreditando que o garoto vai morrer, esconde-o no galinheiro, várias narrativas neles encaixadas vão trazendo o excesso imprescindível
para evitar a tragédia. Pouco a pouco a criança vai perdendo suas carac- para a prática da decifração. Num tempo em que o centro cedeu lugar às
terísticas humanas, identificando-se com os animais que a cercam, até que margens (HUTCHEON, 1991), onde não se pode mais pensar no totali-
um dia foge sem deixar rasto: zante como solução, deve-se necessariamente passar da ideia de comple-
mento para a de suplemento, em tudo mais operacional. Cada nova narra-
Depois, Junhito já nem sabia soletrar as humanas palavras. tiva traz esse a mais que cabe a nós, leitores, buscar surpreender. O des-
Esganiçava uns cóóós e ajeitava a cabeça por baixo do braço. E dobramento faz-se infinito e, por outro lado, cada um desses encaixes pro-
assim adormecia. longa o gozo narrativo, não deixando que se concretize a morte, pelo
Uma manhã, a capoeira amanheceu sem ele. Nunca mais, o silêncio da não-palavra.
Junhito. No meio de tantos silêncios trazidos pela história, essa voz encadea-
(p. 20) da da narrativa se transforma num gesto de resistência. Num primeiro
momento, parece até que, impotentes frente à ruína da história, eles mesmos o
O "Drama", por seu turno, de autoria de um "tal Luís Garcia de anjo de Klee com o seu esgazeado olhar, os sujeitos da grande enunciação -
Medeiros", amigo do narrador, chega às mãos deste em forma de manus- Mia e Helder- compactuam com a ideia de falhanço das utopias libertárias.
crito, percorrendo um tortuoso caminho, durante um ano. Ele acompanha Mas é preciso, "cavando" o barro narrativo, ir buscar os suplementos, os
a clave alegórica e irónica dos "Cadernos", representando uma reescrita silêncios, o olhar confiante. Veremos, então, que, apontando embora para o
de Don Giovanni, de Mozart, só que em tom quase oposto ao libreto: desconce1to e/ou o sonambulismo das terras em desencanto, os dois romancis-
"Tinha política, sexo, violência, mas nem chegava a ser bem violência, era
tas insistem em não deixar de sonhar, lutando para preservar o último reduto
mais uma espécie de pequeno sadismo salazarista, uma coisa torpe sem da utopia que lhes é dada viver. Aí reside a sua força. Há um pacto com a espe-
causa nem propósito que perturbava por muitas vezes não se saber qual rança que se pode sintetizar talvez tanto pela metáfora da "ponte suspensa num
era exactamente a atitude do autor" (p. 88).
rio sem margem" (PA, 74), quanto pela certeza de Tuhair e do escritor Mia
No fragmento 13, há uma proposta de explicação do processo Couto de que, para se "encontrar caminho do céu", deve-se "escolher só os
transpositivo. Tem-se, pois, uma obra de terceiro grau, já que o narrador
carreirinhos", pois os "grandes caminhos nunca[ ... ] levariam lá" (TS, 57).
do romance se propõe a fazer "alguns cortes" no segundo texto, em A ponte que insiste em se manter alada; o carreirinho que leva ao
relação ao primeiro de Mozart, por sua vez um elo na cadeia da tradição céu, talvez outra forma de dizer paz. O sonho impossível. O abandono do
sobre o mito de D. João que surge no universo oral, transpondo-se para o grande projecto, da grande acção e, em consequência, do grande ~elato. A
escrito na primeira recuperação de Tirso de Molina.
estética do precário e do possível, para começar tudo de novo, sempre
Tudo pareceria uma grande brincadeira, mas ficamos sabendo que contando estórias que contam estórias que contam estórias. Quem sabe, se
não o é. Torna-se paradigmático do caráter bissémico do Drama o episó- no final, a História, ela mesma, não se possa reescrever. Os textos não
dio da "orquestra de ceguinhos" (p. 91 e 92) que toca na celebração de trazem resposta. Só o novo olhar de um anjo também novo poderá trazê-
João de Távora. No final do fragmento 13 tomamos conhecimento de que -la. Até lá ...
os seus membros foram "vistos a rondar pelas proximidades da casa.
Estavam bêbados, tinham perdido o sentido de orientação. A polícia reco-
114 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 115

damente o mosaico de sentidos de Partes de Afi·ica, embora, no mani-


festo, não passe de uma breve cintilação:

2 - Era, porque sempre será, uma vez ... É certo que havia também o Pimpão, mas esse era tão
velho [.. .]. Contava-me as histórias do namarrocolo com demo-
Como tenta deixar claro o encaminhamento anterior, tanto o ras pedagógicas de bardo, enumerando todos os bichos grandes
romance de Helder Macedo como o de Mia Couto recusam-se a ser ou de que o esperto coelhinho conseguia sempre triunfar [.. .].
apenas voz ou apenas letra. Criam, para obter tal efeito estético, mecanis- Repetia cada frase várias vezes sempre com as mesmas palavras,
mos pelos quais o escrito se deixa enlaçar pelo oral, e vice-versa. Em certo imitava as vozes dos bichos, das plantas, do fogo, do vento, dos
sentido, pode-se aplicar para ambos - mesmo se aceite a catalogação de rios, conjurava os movimentos e as formas com as suas grandes
"português" para o de Helder- o que diz Appiah sobre a luta hoje trava- mãos da cor da terra, acocorados ambos no jeito afi·icano que ele
da pela ficção africana entre um eu autoral e um nós que é a base do par- me tinha ensinado e que era como o namarrocolo se sentava para
tilhamento colectivo da oralidade (1997, p. 124). Esse traço de enfrenta- contar e para ouvir histórias.
menta confere a marca da diferença dessas produções que, muito embora
reconheçam a sua pertença ao mundo do escrito, teimam em não abdicar
da condição ancestral de serem o veículo da palavra consagrada pela voz. Tudo está aqui posto: a voz; a roda; a gestualização, enfim, a
Fica evidente, pela leitura de Partes de 4/i'ica, que o lugar da fala encenação griótica, sempre a forma de concertar o desconcerto.
do narrador é o do ocidente branco-europeu. O seu imaginário foi ali- Por outro lado, econtramos noutro traço no tecido romanesco que
mentado pelos mitos literários que estiveram na própria base de sua for- se faz um dos fios privilegiados no entrelace da voz e da letra. É o jogo
mação. Como nos antigos palimpsestos, ele escreve sobre algo onde de adivinhas, já aqui referido. A um leitor não "iniciado" nas malhas da
alguém já escreveu. A cada passo o leitor atento, seguindo as pistas tex- textualização africana, cada fragmento se inicia com um mote, o que já
tuais, vai descobrindo as inscrições soterradas, os traços, as marcas que basta. No entanto, como afirmei em texto de 1997 sobre o romance, se se
são a fmja onde o romance se molda. Camões toma-se o primeiro desses abandona o caminho da dicção ocidental, para penetrar-se na estrada mais
forjadores, desde a epígrafe, talvez até por haver "transformado a cele- que viva da oralidade africana, tais motes se permitem ler como as frases
bração épica do Império numa visão da harmonia do mundo no fim dos iniciais das adivinhas, sempre propostas pelos contadores como enigmas
impérios" (p. 171). Com a dele se misturam as vozes de Ganett, Machado, a serem desvendados. O romance, em seu todo, seria a adivinha-mestra
Cesário, Peçanha, Nobre etc., sem falar na força da ópera de Mozart. que encerra a brincadeira da decifração. Cada leitor escolhe, pois, a sua
Tudo levaria a crer que a letra, aliada ao vector alto da cultura, via preferida, já que não há como fechar as comportas das inúmeras pos-
teria todos os privilégios e reverências no corpo do romance. Mas não é o sibilidades de sentido abertas pela força da palavra, sempre um além de si
que se dá. mesma, no universo cultural africano. Ninguém fica imóvel. Acocorado,
Há uma breve cena reveladora da espécie de contaminação narra- como o namarrocolo, sim. Imobilizado, jamais.
tiva que se estabelece no romance. Ela fala-nos sobre "as histórias do A tentativa de compartilhamento narrativo por parte do sujeito
namarrocolo" contadas pelo velho negro Pimpão, na Zambézia. A técnica enunciador também é uma forma de oralização do escrito, no presente
griótica de Pimpão como que se estende ao texto como um todo, onde caso, um esforço para chegar mais perto da diferença. Há como que uma
cada fragmento se abre com uma proposta de adivinha, a ser decifrada recriação da roda comunitária e prazerosa onde todos têm vez e voz,
pelo contado. Por outro lado, as repetições; a tentativa de gestualizar a segundo afirmei no texto de 1997. Ouve-se, por exemplo, a voz do amigo
escrita, que tem no Drama jocoso o seu ápice; a forma clara como a voz Medeiros e, sob ela soterrada, a do próprio Mozart; com a bela e sacrifi-
do sujeito da narrativa se deixa ouvir, etc., são alguns dos elementos da cial Raquel se narrativiza o soneto camoniano, com o narrador, no arroubo
arquitectura romanesca que nos remetem às ancestrais estórias contadas à dos seus quinze anos, procurando "servi-la como pudesse" (p. 50), como
beira da fogueira, sempre como uma forma de resistência e preservação. Jacob; no plano familiar e pessoal, escutam-se as falas do avô, do pai, dos
Vale a pena, por isso, recuperar a cena contaminadora que altera profun- tios, dos alegres amigos, da amada; no literário, as dos escritores da sua
116 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 117

preferência, especialmente convocados. A cada momento, o narrador cede vidualista e atomizado que o eu das sociedades pré-capitalistas;
a vez a outro sujeito, tecendo-se a trama do passa-palavra, tão ao gosto é uma criatura das modernas relações económicas.
africano.
(1997, p. 125)
Pelo exposto, posso pensar que, em Partes de Africa, o ponto de
partida é a letra, mas ela caminha prazerosa em direcção à voz, com ela O jogo epigráfico do romance de Mia Couto é paradigmático da
dançando, ora um pas-de-deux, ora ao ritmo de um batuque como os que nova maneira de se pensar o texto africano moderno. Parte-se da tradição
se ouvem tanto na Zambézia, quanto nas margens do Pijiguiti, na Guiné. ancestral, no caso da "crença dos habitantes de Matimati", para, no seu
O menino antigo, parte dos dois universos, guardou, no cofre da sua extremo, chegar-se à tradição impmiada com a dominação do outro, ou seja,
memória, os ecos do mundo onde o seu próprio corpo se inscreveu. Já a Platão, acessado pela escrita. No meio de ambas, como já foi referido, o
adulto, abre o cofre e encontra, de novo acocorado com o velho Pimpão, velho Tuhair que, conforme a narrativa mostrará, continua a ser o senhor da
as estórias que contam de estórias que contam estórias. Por ter aprendido sabedoria, cujo grande pilar de sustentação é a oralidade, mesmo estando,
a esperteza do namarrocolo, não só enfrenta os "animais maiores", mas como personagem que é, centrado no universo da escrita.
também faz da sua nanativa alguma coisa híbrida que não se permite Fora da cena aberta pelas epígrafes, há, no entanto, e ainda, o
demarcar com rígidas fronteiras, pois se apresenta fragmentada em partes menino Muidinga, o agente presentemente vivo da transformação.
de um mesmo arcabouço simbólico que o imaginário constmiu. Letrado, ele tem como acessar os "Cadernos" de Kindzu, outro letrado.
No caso de Terra sonâmbula, outro é o ponto de partida, em ter- Na longa noite africana, apresenta-se como um griô dos novos tempos,
mos de discursividade. Mia Couto é um sujeito cultural da voz, seu marco lendo/contando as estórias neles contidas para o seu mais-velho. Como já
zero. No entanto, ele ultrapassa a contingência cultural, utilizando toda a discuti em "Semântica da diferença" (1997), há uma tomada de cena nodal
sofisticação a que Georges Ngal se refere, ao analisar The interpreters, de no "primeiro capítulo" do texto. Achados os "Cadernos", o menino lê-os
Wole Soyinka. Resgato-lhe as palavras: "On a donc affaire à des romans para o velho, à beira de uma fogueira, ateada justamente com a capa
dominés par des intrigues complexes ou le 'discours ancestral'mêlé à la daqueles mesmos cadernos. Atende, assim, ao pedido de Tuahir, que diz:
'dislocation sophistiqué de l 'écriture moderne 'est utilisé scienmment par "leia em voz alta que é para me dormecer". Eis o texto:
le romancier pour mieux promouvoir l'image d'un homme nouveau"
(1994, p. 89).
O miúdo lê em voz alta. Seus olhos se abrem mais que a voz que,
Como se viu noutros pontos deste texto, a busca de tal homem lenta e cuidadosa, vai decifrando as letras. Ler era coisa que ele
novo é uma das marcas das literaturas africanas produzidas no bojo do apenas agora se recordava saber. [ .. .] A lua parece ter sido
processo de descolonização. Basta que se pense, por exemplo, tomando chamada pela voz de Muidinga. A noite toda se vai enluarando.
Angola como paradigma, em Luandino Vieira, Pepetela, Boaventura Pratinhada, a estrada escuta a estória que desponta dos cader-
Cardoso, Manuel Rui, etc. Todos, como postula Ngal a respeito de nos: "Quero pôr os tempos ... "
Soyinka e de outros, transitam pela tensão entre a criação e a mptura. O (p. 14)
nanador de Terra sonâmbula, obtendo o mesmo efeito híbrido de Partes
de África, mapeia de outra forma o se~ produto artístico-verbal. A voz Recompõe-se a cena organizadora da cultura ancestral: noite,
continua a ter o mesmo ensinamento das origens, daí o produtor com ela fogueira, velho, criança, nisso que venho chamando de força de alumbra-
acumpliciar-se para iniciar a sua travessia. No entanto, ele não pode mais mento. Contudo, descristaliza-se o rito, com a magia da estória, logo, da
fugir das "trapaças" da letra, sucumbindo ao seu profundo encanto. palavra, nascendo da letra, pelo que, inicialmente, os olhos "se abrem mais
Lembro Appiah, quando afirma sobre o escritor africano moderno: que a voz". Mas esta continua a comandar o espetáculo, já que é ela quem
convoca a lua, como nos ritos de origem. A estrada, dada como morta, des-
Ao assumir tão apaixonadamente a herança da palavra impressa, perta do seu sono para "escutar" a voz saída dos cadernos e sempre base do
ele entrou inevitavelmente no novo tipo de eu literário que vem velho encantamento. Assim, não se trata mais da voz ou da letra, mas do seu
com o prelo, um eu que certamente é produto das mudanças na entrelace que forma o entrelugar onde o imaginário mata a sua sede de dife-
vida social e na tecnologia do mundo. Esse novo eu é mais indi- rença e dá asas ao seu sonho de futuro.
119
Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções
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É interessante abrir aqui um parêntese para lembrar que os versos


encerra o contado. Claro que o movimento aqui é de ordem pessoal, mas,
de um modo ou de outro, está-se diante de uma cena de morte e possível
camonianos usados como epígrafe por Helder Macedo - "Tem o tempo
sua ordem já sabida./0 mundo não."- como que retornam na frase inau- renascimento, pois, ao falar do pai morto e do seu sepultamento, incluí-se
gural do "Primeiro Caderno de Kindzu" que, é bom que se lembre, não é o na cena uma imagem de não-morte, até mesmo pelo facto de o pai, em seu
segundo capítulo da obra, mas o primeiro da série de blocos encaixados momento último, se imortalizar na letra do filho:
intercapitularmente: "Quero pôr os tempos em sua mansa ordem, conforme
esperas e sofrências" (p. 14). Desse modo, a ordem do tempo opõe-se ao Fiquei com a vida
desconcerto do mundo, feito de "esperas e sofrências". Camões vem que sobrou de ti
chegando de mansinho, para pmiícipar da roda composta por Tuhair, o penso colado
Muidinga, Kindzu e ainda a noite, a lua e a fogueira. Todos juntos reforçam na fonte estancada
o vínculo placentário entre as duas culturas interseccionadas por uma a carnejáfria
mesma língua, que se transforma no cordão a interligar o corpo da mãe e [ .. .]
do filho. memórias difitsas
Com acuidade, o crítico Tidjani Serpos, contrapondo-se a T. da vida dispersa
Melone, aponta, a propósito de o escritor africano usar uma língua europeia num mapa mudado
como veículo da sua expressão artística, que "l'écrivain n 'est pas extérieur a pá de calcário
à la langue qu 'il va utiliser: il travaille la langue autant que celle-ci !e tra- os gonzos as cordas
vaille" (1987, p. 25). Este duplo trabalho acaba por se tornar uma das mar- e a terra apressada
cas do novo texto africano moderno e, em certo sentido, confere-lhe a sua sobre ti e mim.
máscara de alteridade. No caso, o português vai ganhando sinuosidades e (p. 172)
contornos africanos pela incorporação de lexemas e estluturas das línguas
nacionais angolanas, moçambicanas, guíneenses, etc,. Submete-se, assim, Se entendo o sepultamento como um gesto simbólico de se colo-
aos novos imperativos históricos, uma vez que correu o deliberado risco de car uma "semente" na terra para que algo venha a "renascer", posso pen-
atl·avessar os oceanos. sar que ambos os romances se tocam pela celebração do parto de alguma
Reafirmo, já começando a trilhar um caminho conclusivo, o coisa nova uma forma possível de resistência, e aposta no sonho de uma
' .
carácter híbrido dos romances Partes de Aji'ica e Terra sonâmbula em seu última utopia. A terra, para Mia; o pai, para Helder. Duas ongens ou
trânsito entre a voz e a letra, embora, no primeiro, a cenarização em África inscrições que não se permitem rasurar ou desescrever. Nesse lugar
(cuja importância é reafirmada no título) seja apenas uma de suas extremo, com a derradeira réstia da luz prateada da esperança e do futuro,
"partes", porquanto a outra decorre na Europa. A segunda obra está ful- tanto europeus desiludidos quanto africanos desesperados estão cantand~,
crada em Moçambique, mas, tentacularmente, se recusa a nela prender-se, a partir das "memórias gloriosas", uma última fronteira onde po~sam VIl'
fazendo como os personagens ou o autocarro queimado que, mesmo sem a "guardar, de novo, suas vidas". Partidas ou sonâmbulas, pouco tmpm'ta.
saírem do lugar, se movem porque a terra ela própria se move, recusando Porque vidas.
a atonia. Tal movimento ressurge na fala de Nhamataca, outro velho, e um
dos figurantes no relato. Ele se dedica a "cavar" a terra para "fazer" um
rio, metáfora da transformação ainda possível. Diz ele que as águas desse
futuro rio que, com obstinação, tenta fazer nascer "haveriam de nutrir as
muitas sedes, confeitar peixes e terras. Por ali viajariam esperanças,
ínçumprídos sonhos. E seria o parto da terra, do lugar onde os homens
guardariam, de novo, suas vidas" (p. 94-95).
Não por acaso, o romance de Helder Macedo resgata também a
imagem de uma "cova" na sua última cena, ou seja, no poema lírico que
120 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 121

Vale observar que a encenação acima referida não se dá de forma


linear, mas por um processo de reduplicação constante que toma a forma
de vários encaixes, sendo o principal deles a novela escrita/reescrita por
Gonçalo, A torre de Dom Ramires. As reduplicações tornam a narrativa
abissal, uma vez que cada novo encaixe - ou recontagem - aprofunda
o mergulho no contado, como se fosse impossível parar de dizer o mesmo
A ILUSTRE CASA que, uma vez dito, é já um outro, sempre e sempre mais.
O passado retoma fantasmaticamente embrulhado e embrulhan-
E AS LANÇAS METIDAS do-se no presente da efabulação. Assim, mesmo que tome a forma pes-

EMAFRICA 1 soalizada de história de família, ele salta para o colectivo da nação, pela
metonímia. O processo de retorno fica patente no teor da novela, roubado
ao poema do tio Duarte que é ampliado, pela via da cultura popular, no
"A experiência burguesa no século XIX fado do Videirinha, por sua vez alimentado e ultrapassado, em certa medi-
foi a um só tempo riquíssima, ji·anca e da, pelo cientificismo da pesquisa erudita do padre Soeiro. Mas é sempre
misteriosa, regular e caótica. " o passado que volta para inseminar o presente, tornando, dessa feita, o
futuro um pouco mais possível.
Peter Gay
Percebe o leitor atento, na galáxia textual assim formada, um
ponto que se deixa ver com nitidez maior e a olho nu: a tentativa de supe-
"Eu não tenho história; sou como a Repúbli-
ração de dificuldades de várias ordens, que tanto dizem respeito 1) ao
ca do Vale de Andorra!... Que documentos,
Jesus? Eu só tenho a minha carta de bacha- criador da letra - Eça, que enfrenta, através de Lopo de Baião, talvez o
rel formado ... " fantasma dos fantasmas, o da bastardia; 2) à criatura de papel- Gonçalo,
sempre metido em seus buracos e muros, acossado por medos; tremores;
Eça de Queiroz covardias; sensação de dependência, etc., e 3) à comunidade imaginada
(ANDERSON, 1988) a que criador e criatura pertencem- o Portugal
imperial, pós-Conferência de Berlim (1885), pós "mapa cor-de-rosa" e,
A experiência burguesa, tal como o Portugal finissecular consequentemente, pós-Ultimatum (1890).
a encena, é flagrada de forma ora naturalista, ora alegórica no romance A O quadro assim posto explica porque fui buscar a expressão
ilustre casa de Ramires que agora se torna centenário. O leitor consegue "meter uma lança em África" para mote do título deste ensaio. Ela deve
surpreendê-la numa série de entrelaces imagísticos e discursivos que ser entendida em seu significado literal, ou seja, "realizar empreendi-
muitas vezes, em jogo de mostra-esconde, se vão aos poucos revelando, menta muito difícil". Considero A ilustre casa a estória, por excelência,
mesmo com escamoteamentos e negaças, seja no plano dos sujeitos da realização de alguns dos empreendimentos difíceis do século XIX
históricos representados, seja no colectivo onde ficcionalmente se português, como um todo, e dos sujeitos históricos (fictícios ou não) nele
inserem. Para além disso, e comprovando a assertiva de Peter Gay de que alocados.
"só o indivíduo se regozija com o poder ou lança sobre o mundo a sua vin- A pena de Eça de Queiroz e, por ela, a de Gonçalo Mendes Ramires
gança. O mais é metáfora" (1988, p. 22), tais entrelaces vão colocando à funcionam como uma espécie de lanceta pela qual se abrem alguns simbóli-
flor da narrativa o capítulo censurado ou a história percebida como ine- cos abcessos, espalhados pelo corpo social e histórico da nação. A heróica
xistente pelo próprio Eça de Queiroz, como em ensaio anterior procurei idade -pensada e dita como heroicidade - relativiza-se, quando o feito de
demonstrar (PADILHA, 1989). Tructesindo, sem qualquer grandeza, se consagra ao final da novela. Ao
invés de alegria, o nojo e a abjecção por patie de Gonçalo que o recriara e às
1. Publicado em Eça de Queiroz. A ilustre Casa de Ramires. Organização de
Beatriz Benini, São Paulo, EDUC, 2000, pp. 171-184. suas já então deslustradas armas. Diz o texto:"[ ... ] abandonada a banca onde
tanto labutara não sentia o contentamento esperado. Até esse suplício do
122 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 123

Bastardo lhe deixara uma aversão por aquele remoto mundo Afonsino, tão ligação orgânica -pressuposta pela matriz política do Estado
bestial, tão desumano!"2 (1948, p. 377). liberal- entre a lógica da dominação política e as exigências da
O presente narrativo - basicamente o Verão durante o qual acumulação de capital [.. .} concretiza-se e fortalece-se atrav~s
Gonçalo escreve a sua novela e se elege deputado por Vila Clara, sem se de múltiplas e sucessivamente mais profimdas intervenções do
considerarem aqui os recortes finais, isto é, vida na corte e depois os qua- Estado.
tro anos em África - também obedece à mesma ordem de apequena- (1995, p. 81)
mento e falta de grandeza. A cena do alto da torre, quando a "festa acaba",
mostra o processo de consciencialização deste apequenamento, sobretudo As contradições, ambiguidades, as figuras complexas, enfim, que
pela comparação da sua com outras vidas que considera mais gloriosas marcam o fim do século, são lancetadas e postas a nu pela pena de Eça,
(artistas, pensadores, inventores, reformadores, etc.). Percebe, então, o sempre com atilada ironia e também quase sempre com muita dor. Os
sem sentido do que antes lhe parecia a maior de todas as realizações: espaços fisico, psíquico, social e mesmo narrativos de A ilustre casa
demonstram isso de forma às vezes naturalista, outras vezes alegórica,
Deputado! Para quê? Para almoçar no Bragança, galgar de como atrás afirmei. A vida vivida na província, ou seja, em Oliveira e em
tipóia a ladeira de S. Bento, e dentro do sujo convento { ..} boce- seus arredores pelos Cavaleiros, Barrolos, Lucenas, Lousadas, etc., mi-
jar com a inanidade ambiente dos homens e das ideias, e dis- metiza directamente a experiência pequeno-burguesa do século XIX, o
traidamente acompanhar, em silêncio ou balando, o rebanho do mesmo acontecendo com os ecos da vida intelectual e política de Lisboa,
S. Fulgêncio, por ter desertado o rebanho idêntico do Braz Pmio e/ou Coimbra que, em alusões directas ou por ricochete, chegam ao
Victorino. universo da aldeia, da vila e da pequena cidade. Já na clave da alegoria
(p. 397) comparecem os avós ramíricos 3 em sua desguarnecida grandeza. Entre
um e outro lugar, Gonçalo, último varão em nada assinalado.
Tanto a acção de Tructesindo é mostrada como animalizada, A cena vivida na igreja de Santa Maria de Craquede mostra como
quanto o é a dos representantes do legislativo moderno, dóceis ovelhas o solar de Santa Irinéia reduplica o claustro ou a "crastaAfonsina" ( p. 265)
comportadas. Não me parece de todo absurdo estender, para o fim do que guarda "os cofres de granito, a que o tempo raspara as inscrições e as
século XIX português, as considerações feitas por Homi Bhabha a datas" e que abrigavam os restos mortais dos "homens de orgulho e força"
propósito do fim do XX, ou seja, que ele representa um "momento de (p. 266). Entaipado nos seus buracos e muros, preso ao "cofre" do solar,
transição em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras com- Gonçalo é alegoricamente mostrado como um sobrevivente da "honra"
plexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, antiga, daí o ter de armar-se cavaleiro, como a narrativa mostrará. A
inclusão e exclusão." (1998, p. 19)
decadência da sua vida e as estratégias de sobrevivência que traça mimeti-
O século XIX pode ser pensado como um tempo marcado pela zam, por outro lado, toda a história da própria sociedade do seu tempo, ali-
oscilação e pela ambiguidade. A esse propósito, Fernando Mourão adverte mentada pelo sonho do que foi, sem saber bem o que é ou o que poderá
que há uma série de "circunstâncias, nprmalmente muito pouco claras - ainda vir a ser. Justifica-se por que ele precisa meter uma lança em África,
o sigilo, a falta de clareza e a ambiguidade - [que] fazem parte de uma para alçar-se, por tal feito, para fora de seu "cofre de granito". Quando,
estratégia de sobrevivência, quer no plano externo quer no interno" (1995, vencida a eleição, sobe ao eirado da sua velha torre, "robusta sobrevivên-
p. 435). Da sua parte, Boaventura de Sousa Santos reafirma que, ao longo cia do Paço acastelado" (p. 8), da qual é reflexo especular, consegue ver
do século em pauta,
melhor o que se passa fora e dentro dele, podendo deixar de ser a espada
encimada sobre o túmulo, a negrejar com "a sua corrente de ferro penden-
o dualismo Estado-sociedade civil{ ..} explica a ambiguidade da
do do punho, a folha roída pela ferrugem das longas idades" (p. 266). A ida
forma política e da actuação do Estado neste período. É que a
para a África será o rompimento com tais idades e a tentativa de realizar
2. As transcrições de A ilustre casa serão feitas a partir da Edição do Centenário (1948), sozinho o dificil empreendimento da sua própria vida.
da Lello & Irmão, adaptando-se a grafia às normas ortográficas actnais. As maiúscu-
las do texto original serão mantidas e só se indicarão as páginas das citações. (N. A.) 3. Neologismo da Autora, a patiir de Ramires. (N. E.)
124 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 125

Resta saber, já agora, que África é essa a oferecer-se a Gonçalo, ficcionais desenvolvem as ideias dos pensadores positivistas que defen-
num outro plano, para que nela possa meter a sua lança e a relação que a deram posturas essencialistas para a cultura europeia (Renan, Temple,
obra, por essa via, vai estabelecer com a questão imperial, apresentada de Datwin, Kidd, etc.). E ele continua, afirmando que tais pensadores e os
forma deliberadamente ambígua em A ilustre casa de Ramires. artistas que desenvolveram literariamente as suas concepções proclamam
Para começar, vou buscar o conceito de imperialismo a Edward "que os europeus deviam dominar, e os não-europeus ser dominados."
Said, a seguir mostrando como ele se configura na obra de Eça. O con- (1995, p. 143). A ilustre casa- e quero o jogo linguístico- ilustra muito
ceito: "Num nível muito básico, o imperialismo significa pensar, colo- bem tal postura, não por apresentar não-europeus dominados, mas por
nizar, controlar terras que não são nossas, que estão distantes, que são pos- silenciá-los, deixando apenas brechas e fissuras para que se possa desco-
suídas e habitadas por outros" (1995, p. 37). bri-los.
Um exemplo da realização do conceito na obra aparece na ideo- Há dois episódios que considero paradigmáticos quando preciso
logia e nas palavras do representante directo, no texto, da administração pensar a questão da subordinação e a sua consequência natural, quando há
portuguesa, Gouveia, que diz: insubordinação, que é a violência. Tais episódios fazem-se ainda mais pa-
radigmáticos quando se vê que, no seu final, a África é convocada explici-
[. ..] ele, como Governo, venderia Lourenço Marques e Maçam- tamente, sempre como forma de tornar o castigo ainda mais definitivo e
bique, e toda a Costa Oriental! E às talhadas! Em leilão! Ali, contundente. Trata-se dos enfrentamentos de José Casco - o lavrador
toda a Aji·ica, posta em praça, apregoada no Terreiro do Paço! com quem Gonçalo não honrara a palavra empenhada, na questão do
[. ..] Pelo são princípio de que todo o proprietário de terras dis- arrendamento da quinta- e de Ernesto de Nacejas- o caçador que, com
tantes, que não pode valorizar por falta de dinheiro ou gente, as a sua arrogância, atemoriza a personagem, levando-a a sustos e correrias.
deve vender para consertar o seu telhado. No primeiro episódio, a violência do Casco é só ameaça e, como
(p. 42) sempre, Gonçalo foge. Já refeito, resolve castigar o lavrador, momento em
que acabará por ter um pretexto para se aproximar do grande inimigo,
Aí estão os alicerces simbólicos da ideia do império, visto como André Cavaleiro, iniciando a trajectória rumo à eleição. O lavrador é
algo absolutamente natural. As terras do outro são tidas como "nossas" e preso e a esposa vai à Torre interceder por ele. Nesse momento, ao ser
portanto, podem ser leiloadas, já que "nossa" propriedade. Os povos aí exis-' interrompido no seu trabalho, Gonçalo exclama: "Um dia vendo casa e
tentes não contam, uma vez que, e volto a Said, o "imperium" é sempre quinta, emigro para Moçambique, para o Transvaal, para onde não haja
pensado como "um dever planeado, quase metafísico de governar povos maçadas ... " (p. 186). É a primeira irrupção da África na continuidade da
subordinados, inferiores ou menos avançados" (p. 41 ). E é por aí que quero cena, o que volta quando a mulher do lavrador, em desespero, grit~: "Ai
continuar as minhas reflexões: pela invisibilidade desses povos, pela ausên- que me prenderam o meu homem, que mo vão mandar para a Africa
cia da sua face ou voz, por sua paginação em branco, enfim, em A ilustre degredado!" (p. 187).
casa, espaço narrativo onde, na bela frase de Jorge Fernandes da Silveira, Deixando os comentários para o final, tomo, agora, o segundo
"a África é representada como um lugar de acumulação, ou seja, uma episódio, ou seja, o primeiro gesto de violência física cometido por
imagem, uma metáfora, um termo de comparação em que se acumulam as Gonçalo, quando, armado e cavaleiro, entra no espaço da lenda, ao
relações de amor e ódio, de perda e lucro do português com a sua pátria" chicotear o caçador de Nacejas. Aqui a complexidade simbólica torna-se
(1999, p. 44). maior. Primeiro, porque a arma de Gonçalo é um chicote de cavalo-mari-
Ela é dita, mas não fala, razão por que só vamos conhecer a aven- nho, "afiado como um cutelo", "uma arma terrível" (p. 309). E ninguém
tura de Gonçalo indirectamente pela carta da prima e pela acumulação dos melhor que os africanos para saber quanto de verdade há nessas afir-
bens que chegam à Torre, para transformá-la. No mais, é só imagem, com- mações. O chicote de cavalo-marinho foi, juntamente com a palmatória,
plexa figura de ausências que não chega a rasurar o silêncio do não-visto um instrumento de violência e suplício para o negro. Confronte-se a
onde se aninha.
descrição da sede administrativa portuguesa na Lunda, em Angola, tal
Volto à questão da subordinação, para prosseguir. Ao referir-se ao como aparece em A chaga (1970), de Castro Soromenho: "De ambos os
romance europeu do século XIX, Said afinna que os grandes produtores lados do boné, [... ]estavam penduradas as palmatórias escuras do sangue
126 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 127

das mãos dos negros, e por cima, como cobra em fuga, um chicote de ca- a que retrata, por exemplo, Alfredo Troni, em Nga Muturi. Ele pertence à
valo-marinho zebrava a cal da parede" (p. 55). mesma geração coimbrã de Eça e Antero e acaba por viver em Luanda,
Ao armar-se do chicote e usá-lo contra o caçador, não só Gonçalo onde exerce a advocacia e o jornalismo, morrendo em 1904. O nascimen-
se ramiriza, mas começa a sua arrancada para a África, onde aquela re- to é em Coimbra, 1845.
presentava a principal arma fisica da dominação. Como se dá com o A noveleta foi publicada em 1882, em Junho e Julho, no Diário
Casco, o castigo para Ernesto e o jovem amigo, também chicoteado, é o da Manhã e republicada no mesmo ano, Julho e Agosto, no Jornal das
degredo. A frase, agora é da autoria do Barrolo: "E mesmo feridos ainda Colónias, ambos portugueses, o que revela a sua importância. O texto,
necessitavam castigo tremendo d' África!" (p. 337). como é previsível, nas malhas tecidas pelo olhar imperial, só aparece em
Lugar de onde nunca mais se volta, o espaço destinado ao "casti- forma de livro em 1973, com prefácio de Mário António.
go tremendo", a África aparece no narrado sempre ligada aos que detêm o Também a leitura ganhará novo fôlego se o seu objecto for O se-
poder sobre o destino dos outros, no caso, os três aldeões subalternos. Por gredo da morta, romance do angolano António de Assis Júnior (Luanda,
outro lado, par~ o sujeito da dominação, mesmo que parcial ou precária, 1935 e Lisboa, 1960), igualmente aparecido em forma de folhetim, no jor-
aquela mesma Africa muda de estatuto no plano da representação. Passa a nal A Vanguarda (1929), editado em Luanda, e, sob forma de livro, em
ser o lugar da acumulação e do lucro fáceis, já que, e volto a Said, "os fac- 1935. Apesar de ser uma obra, portanto, do século XX, as acções nanadas
tos do império estão associados à possessão sistemática, a espaços vastos passam-se no fim do século XIX vão de 16/3/1899 a 16/3/1900- na
e por vezes desconhecidos, [... ] a atividades aventurosas ou fantasiosas, importante vila comercial de Angola, o Dondo, que cresce em prestígio
como a emigração, o enriquecimento" (1995, p. 101). depois que o caminho-de-ferro passa a ligar o litoral ao interior.
É o que aparece no sonho de Gonçalo a quem sucede um terrível A noveleta e o romance filiam-se numa vertente narrativa cuja
pesadelo: "Readormeceu logo, muito longe, sobre as relvas profundas d'um marca principal reside na ficcionalização do papel da mulher na sociedade
prado d' África, debaixo de coqueiros sussunantes, entre o apimentado angolana do século XIX. Tais obras enfocam, assim, figuras femininas da
aroma de radiosas flores, que brotavam através de pedregulhos d'ouro. terra e as estórias do quotidiano por estas vivido e que sempre envolvem
Dessa perfeita beatitude o arrancou o Bento, ao meio dia" (p. 59). Note-se traições, mortes em série, trabalhos compatiilhados, acumulação de bens,
o tracejado exótico pelo qual se recupera o espaço africano, percebido como etc. O leitor interessado verá como tais estórias, aparentemente tão sim-
uma fonte de enriquecimento fácil e de libertação do sujeito metropolitano: ples, reescrevem a questão da predação colonial, sempre mostrada como
coqueiros, o aroma de pimenta, as radiosas flores, os pedregulhos de ouro. um gesto de usura e cobiça. Seja a viúva (Muturi) representada por Troni,
O estereótipo criado pela cultura imperialista, assim, cria duas Áfricas: a sejam as diversas outras mulheres que atravessam a narrativa de Assis
dos subalternos para os quais ela é o inferno e para os agentes da dominação Júnior, as figuras femininas desses e de tantos outros relatos produzidos em
para quem é o paraíso. O enriquecimento final de Gonçalo é a realização da África são em tudo diferentes das que desfilam pelas páginas do romance
utopia do sonho. europeu do século XIX, aí incluída A ilustre casa. Às mulheres cabe, por
Julgo ainda que não há como pensar a imersão da África no estarem quase sempre sozinhas no mundo, a luta pela manutenção dos re-
coração narrativo de A ilustre casa sem uma referência à questão da ferenciais da cultura autóctone, razão por que estabelecem um pacto
vivência ultramarina do seu personagem principal. Antes, porém, gostaria explícito com o que, à falta de melhor termo, chamo de africanidade,
de lembrar que a realidade das colónias é bastante diferente da que a obra enfrentando qualquer obstáculo que se interponha entre elas e os valores da
de Eça parece querer constmir, ao mostrar Gonçalo como um quase des- sua terra a que visceralmente se acham ligadas. Elas estabelecem um con-
bravador, a edificar uma casa de vinte janelas e ao se fazer fazendeiro em traponto flagrante com as heroínas romanescas inventadas pela ficção oci-
Macheque, na Zambézia. Uma leitura de textos literários e mesmo de dental, mesmo a realista que, como se sabe, lhes pretendeu dar um outro
outra ordem produzidos nas então chamadas províncias ultramarinas vão- estatuto.
-nos mostrar uma outra coisa, em tudo diferente do que o romance deixa Volto, depois do ponteio, ao final de A ilustre casa e à escrita da
entrever, quando expande a sua própria ideologia imperialista. África como lugar/não-lugar. Quero lembrar tão somente que, na versão
Para que se proceda a uma leitura em contraponto, tal como pos- folhetinesca do romance, publicada na Revista Moderna (1897), não
tula Said, pode-se comparar a África em ausência de A ilustre casa, com aparece a aventura africana de Gonçalo, o que é absolutamente sintomáti-
128 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 129

co. Remeto para a Edição Crítica de 1999, p. 31 a 33, para maiores Analisando o romance Mansfield Park, de Jane Austen, Edward Said
esclarecimentos sobre as alterações existentes entre as duas versões, no tece considerações excelentes sobre a questão da propriedade periférica
que concerne à questão. que, segundo ele, é validada pela central, da qual se faz o "sustentáculo
Como a crítica sobejamente apontou, e aponta, a última vez que o económico" (1995, p. 119). Antes mesmo de ler a carta, o receptor do
leitor "vê e ouve" Gonçalo na obra é na cena da torre, quando, ainda no texto já pudera comprovar isso, ao lhe serem mostradas as benfeitorias
eirado, ele responde ao Bento que não demorará a descer. A frase é mais da velha casa de Santa Irinéia, tornadas possíveis com os bens acumu-
que simbólica, iniciando com um não prefigurativo: "Não. A festa acabou, lados na colónia. A referência à prosperidade e à nova propriedade, a
Bento" (p. 398). A partir daí, o narrador se apossa completamente da sua "grande casa[ ... ] com vinte janelas e pintada de azul" (p. 410), contida
criatura e do seu contado. Gonçalo é falado, mas já não fala mais, como a na carta, só referenda o que já se expusera ao olhar do leitor, ou seja, que
África para a qual partirá. Não regressa, portanto, à cena narrativa de o lucro não se reaplica no "lá", daí o facto de a própria narrativa não sair
forma directa. No último capítulo, aquele narrador trará de volta algumas do "cá", ou seja, do espaço do viver metropolitano, o verdadeiro bene-
figuras, sempre dentro do espaço principal do solar: Gracinha, Titó, ficiário, em todos os sentidos.
Gouveia e o padre Soeiro, cujas falas se fazem ouvir. No mais, ele se limi- Explica-se, por essa via de raciocínio, porque o texto se encarrega
ta a ceder a sua própria voz a Maria Mendonça, autora da carta, mostran- de responder ao Gouveia, quando a voz do narrador, soterrada sob a de
do que só ela é responsável pelo que é dito sobre Gonçalo. O clima cria- Maria, diz: "o primo Gonçalo declara que já não vende o prazo nem por
do é, assim, de desconfiança, pois o leitor já conhece as fantasias da oitenta contos. Para felicidade completa, até achou um bom adminis-
prima, sendo obrigado a relativizar o teor do que escreve. trador" (p. 410). Se lembro que Gouveia o tempo todo era chamado de
Uma coisa é certa, quando se situa a obra no contexto romanesco administrador, a ironia se faz mais do que flagrante. O proprietário,
do século XIX. A volta de Gonçalo reitera o imaginário imperialista da emiquecido pela multiplicação dos bens, declara que fica.
época, quando aventureiros e viajantes são mostrados como tendo encon- Por outro lado, poder-se-ia ler o acto de preservação dos terri-
trado "a mina do rei Salomão", ou seja, retornam ricos e bem sucedidos. tórios dominados como a emersão do sentimento patriótico que é, para
A leitura da carta propicia um diálogo mais exacerbado entre Fernando Mourão, uma característica do fim do século XIX português.
Gracinha (que defende a África) e Gouveia que reforça a ideologia do tex- Cito-o:
to, a qual, por sua vez, se deixa flagrar na narrativa de Maria Mendonça;
nos episódios de violência atrás citados; na análise da venda de Lourenço Em decorrência de substanciais mudanças de atitudes, como
Marques, etc. Diz o administrador: "Tenho horror à África [... ] Boa para resultado do ultimatum [ ..] emergiu um sentimento patriótico
vender [... ] é como essas quintarolas [... ] que a gente herda [... ], n'uma que veio a influenciar a mentalidade portuguesa a partir dessa
terra muito bruta, muito distante, onde não se conhece ninguém, [... ] só data, a par do início do estabelecimento de correntes migratórias
habitada por cabreiros, e com sezões todo o ano" (p. 411-412). "brancas" para as colónias.
A acreditar-se na carta, a imagem de Gonçalo contradiz directa- (1995, p. 433)
mente isso. A terra não é bruta, pois nela ele plantou e colheu; o reencon-
tro com o ex-fotógrafo mostra que lá havia mais que "cabreiros" e, por No entanto, penso que o referido acto reforça a ideia de que as
fim, o ar saudável do retornado nega a existência de tantas sezões. Mas há colónias representam uma forma de sustento da metrópole, ou seja, no
pontos reveladores do facto de se ver a África como um mero quintal por- dizer de Said, ao analisar Mansjield Par/c "fontes de recursos a ser visi-
tuguês. O inconsciente político do texto (JAMESON, 1992) mostra que tadas, comentadas, descritas ou aprecia-das por razões domésticas, para
nele se escondem "miríades de elementos conflitantes e contraditórios" vantagens metropolitanas" (1995, p. 135). A ilustre casa serve, pois, como
(idem, p. 51) pelos quais se patenteia o mais absoluto nonsense colonial, um espelho, a exemplo do que se passa no conjunto dos bons romances
ideia, aliás, tão bem trabalhada por Homi Bhabha (1998, p. 177-197). europeus do século, a reflectir o facto de que
Escolho dois dos elementos que me parecem configurar o referi-
do nonsense, sem obedecer à ordem da carta e da palavra de Maria Nos grandes impérios ocidentais, o lucro e a perspectiva de mais
Mendonça. O primeiro deles diz respeito à acumulação e ao lucro. lucro foram[. ..] de grande importância[. ..] [o que] permitia que
130 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 131

pessoas decentes aceitassem a ideia de que territórios distantes e império no imaginário português - e, de resto, europeu - do século
respectivos povos deviam ser subjugados e, por outro, revigorava XIX: a obtenção de quanto lucro fosse possível acumular, sem se deixar
as energias metropolitanas. transformar pelo outro.
(idem, p. 41) Se aceito, pois, a premissa de Gouveia de que Gonçalo é igual a
Portugal, posso ver, nas suas energias revigoradas pela África, as metro-
O segundo elemento - e para mim a mais afiada ponta da lança politanas também renovadas. Assim, a sua história, como a de Portugal,
- é uma quase consequência natural do primeiro: o racismo que, com ganha sentido, fazendo-se em tudo diferente da República do Vale de
Kwame A. Appiah (1995), chamo de intrínseco, ou seja, aquele que leva Andorra, citada por Eça de Queiroz. O inconsciente político, como o indi-
o sujeito histórico a considerar hegemónica a própria raça a que pertence vidual, fala, mostrando a trama da sua teia e a força dos elementos confli-
em detrimento das outras, sempre inferiores e, pmianto, passíveis de su- tantes e contraditórios que o habitam e que a acutilada pena do escritor
bjugação. Não há, no romance, gestos explícitos de ódio racial que é a conseguiu lancetar e pôr a nu, como se fôra o instmmento de um exímio
marca do racismo extrínseco, para Appiah. Não considero nem mesmo o cimrgião.
horror do Gouveia uma demonstração disso.
A cmia, em sua manifestação racista, diz, em júbilo, sobre a nova
imagem de Gonçalo: "Não imaginas como vem ... óptimo! Até mais boni-
to e sobretudo mais homem. A África nem de leve lhe tostou a pele.
Sempre a mesma brancura"(p. 409). Vê-se, assim, que quem volta é o viri-
lizado conquistador e que o grande perigo foi evitado: não houve qualquer
quebra da hegemonia do padrão racial. A pele não foi "contaminada" e a
brancura - o maior de todos os tmnfos do ocidente - saiu vitoriosa.
Permanece a supremacia do gmpo humano a que Gonçalo pertence, já que
a sua pele resistiu.
Não é esta a primeira vez em que o racismo se manifesta em A
ilustre casa. A primeira surge na fala de Titó, quando expressa que "tam-
bém ele, se arranjasse um capital, dez ou quinze contos, tentava a África,
a traficar com o preto ... " (p. 120). A frase diz tudo. Comentá-la seria pura
tautologia. A segunda vem na voz do Cavaleiro que, relatando, para
Gonçalo, como encontrara Lisboa, exclama: "Um horror! [... ] O Central
infestado de mosquitos. Muito mulato. Uma Tunis, Lisboa! ... " (p. 204).
Duas pragas igualmente repelentes para a personagem: mosquitos e
mulatos. Por isso mesmo, André não se sente na asseada Europa, mas na
suja Tunis. O desprezo pela diferença fica flagrante nos dois exemplos de
racismo intrínseco do texto, para além do da fala de Maria Mendonça.
O quadro posto, às claras, pela carta, portanto, e para já ir con-
cluindo, comprova que a subjugação dos povos colonizados, habitantes de
terras distantes e exóticas, é facto banal e corriqueiro. O importante é não
se "cafrealizar" pelo contacto directo. De certo modo, a brancura de
Gonçalo, como as armas dos velhos avós, não é perdida na aventura ultra-
marina e ele obtém duas vitórias: revigora as suas próprias energias e
supera o risco de ver/ter tostada a sua pele. À sua volta, depois de metida
uma lança em África, é a comprovação mais cabal do lugar simbólico do
132 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 133

que se dá com o próprio fazer literário no qual também as malhas se


entretecem cautelosamente. Bordar (a talagarça ou o papel) seria uma
forma de superação do estado de solidão, para além de significar o pro-
longamento do gozo que tanto atinge o artista da palavra, quanto a bor-
dadeira e, por fim, os amantes, no jogo de subentendidos.
Observe-se que o corpo feminino domina a cena, e olhos e joe-
AS CASAS QUEIROSIANAS lhos são focalizados mais directamente pelo olho-câmara do narrador que,
nesse momento, vê com Carlos. A plasticidade dá o tom e por ela a inti-
E O SEU midade se torna quase palpável, a exemplo do que se repetirá noutros
romances e contos, quando o narrador parece fazer um zoam sobre as suas
BORDADO DE ESPANTOS personagens, flagrando-lhes as suas vivências afectivas no interior dos
próprios lares. O procedimento dá ao leitor a dimensão exacta da
importância da composição espacial no bordado narrativo, constituindo-
-se a casa o palco preferido para a encenação da experiência burguesa do
A representação imagística das casas é um traço que se Portugal oitocentista. Não é outro, parece-me, o sentido da abertura de O
repete obsessivamente nas malhas do extenso tapete ficcional queirosiano, primo Basílio, com o casal formado por Jorge e Luísa sendo flagrado na
tornando-se mesmo o motivo principal da tela em cujo fundo outros íntima manhã ociosa de um domingo:
desenhos se sucedem e harmonizam. A metáfora do bordado e seu tecer,
aliás, é claramente proposta em Os Maias, quando se intensifica o proces- Tinham dado onze horas no cuco da sala de jantar. Jorge
so de sedução vivido por Carlos e Maria Eduarda. A cena passa-se na casa fechou o volume de Luís Figuier [. ..], espreguiçou-se, bocejou e
recém-ocupada pela jovem, na rua de São Francisco. Lá, ao receber disse:
Carlos na intimidade da sua sala de estar, ela põe-se a bordar, gesto que Tu não vais te vestir, Luísa?
desperta a seguinte reação no enamorado: "Com que felicidade profunda -Logo.
ele viu desdobrar-se essa talagarça. Devia ser um faisão de plumagens
(1970, v. I, p. 555)
rutilantes" (1970, v. II, p. 250).
Páginas adiante, a metáfora reaparece, já agora permitindo-nos Segue, então, nesta primeira página do romance, a descrição da
surpreender a questão do próprio fazer literário, sempre um modo de pro- mulher que também ocupa a sala: o seu corpo, as suas mãos, o seu hábito
longamento do gozo criativo. No manifesto, a frase de Maria Eduarda ref- de leitura de jornais. Vem, depois, outra descrição minuciosa, apesar de
ere-se ao estado da arte do próprio processo de sedução, mas no latente breve, dessa mesma sala e do "silêncio recolhido e sonolento de manhã de
possibilita outras ilações: missa" e da "vaga quebreira" que "amolentava". Tudo é monotonamente
igual na casa que a tempestade do adultério tão fotiemente atingirá, trans-
-Parece que nunca se acaba, esse bordado![... ] formando o "rumor dormente" daquele domingo no ruído ensurdecedor
Com a talagarça desdobrada sobre os joelhos, ela res- dos gritos e imprecações de Juliana; no choro convulso de Luísa e no
pondeu sem erguer os olhos: ruminar rancoroso de Jorge, todos viventes tomados pelo espanto.
- E para que se há de acabar? O grande prazer No mesmo sentido, a casa da S. Joaneira e de Amélia passa da sua
é andá-lo a jaze1; pois não acha? Uma malha hoje, outra malha aparente tranquilidade para o absoluto desequilíbrio, causado pela
amanhã, torna-se assim uma companhia ... Para que se há-de gravidez da jovem e pela pusilanimidade do padre. A morada é, aliás, um
querer chegar logo ao fim das coisas? espaço marcado pela hipocrisia, capa sob a qual se encobre a relação
(idem, p. 275) amorosa da S. Joaneira com o cónego. Ao descobri-la, sem querer, Amaro
acha tudo um "escândalo", pensando: "que gente era aquela, a S. Joaneira
Pelo processo de extensão metafórica, pode perceber-se aqui o e a filha, que viviam assim sustentadas pela lubricidade tardia de um
134 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 135

velho cónego? [seu mestre de Moral] [ ... ] As duas mulherinhas, que quinta de S. Olávia e pelo palacete de Benfica (a Tojeira seria mero
diabo, não eram honestas! Recebiam hóspedes, viviam da concubinagem" acessório), dá-se o império do masculino, primeiro na relação de Afonso
(1970, v. I, p. 295). e Pedro, após a morte da mulher do primeiro, e, depois, daquele com o
A casa dessas "duas mulherinhas" caracteriza-se, pmianto, por ser o neto, Carlos. Tal espaço é interdito para Maria Monforte, como também
palco perfeito da encenação de amores proibidos, o que, para Amaro, passa para Maria Eduarda, a neta tornada amante do irmão. Em universo tão cer-
a representar um álibi apaziguador. A obra é, como um todo, igualmente per- radamente masculino- vejam-se os almoços, jantares, gmpos de jogos,
feita para que se possa dimensionar a questão do processo de sedução, de iní- visitas, etc., - só resta estratificada uma imagem familiar de mulher.
cio - no caso de Amaro e Amélia - , encoberto por uma aparente teia de Trata-se da Condessa de Runa, imobilizada num retrato, mas que, por ser
ingenuidade, adequado disfarce para o desejo que, qual fiandeira ágil e apres- sogra de Afonso, está de antemão excluída da linhagem masculina.
sada, vai tecendo seu manto, mesmo antes da revelação atrás descrita -
No salão nobre, raramente usado, todo em brocados de
A hora do jantar sobretudo era a sua hora perigosa e veludo cor de musgo de Outono, havia uma bela tela de Cons-
feliz, a melhor do dia. A S. Joaneira trinchava, enquanto Amaro table, o retrato da sogra de Afonso, a Condessa de Runa, de tri-
conversava cuspindo os caroços das azeitonas na palma da mão corne de plumas e vestido escarlate de caçadora inglesa, sobre
e enfileirando-os sobre a toalha [ .. .] Amélia às vezes erguia-se um fim do de paisagem enevoada.
para ir buscar uma faca, um prato ao aparador. Amaro queria (1970, v. 2, p. 17)
levantar-se logo, atencioso.
-Deixe-se estar, deixe-se estm; senhor pároco! - dizia O retrato da Condessa é outra das metáforas organizadoras no
ela. E punha-lhe a mão no ombro, e os seus olhos encontravam-se. conjunto imagístico do romance, no que diz respeito ao processo de
(p. 291) exclusão das mulheres. Ela se apresenta como uma "caçadora", vestida de
vermelho e com chapéu de três pontas. Este nos leva, pelo significante
Vale notar que, no bordado das casas, o "faisão mtilante", repre- escolhido, "tricorne", a pensar nas mulheres-demónio entre as quais "A
sentado pelas figuras de mulher, vai dando lugar a "cenas de caça" pro- dama pé-de-cabra", de Alexandre Herculano é exemplo perfeito.
tagonizadas apenas por homens, o que equivale a dizer que os person- A presença da Condessa mostra que as mulheres expulsas da
agens femininos se vão esfumaçando nos últimos romances do autor, família continuam, porém, a exercer os seus poderes "malignos", mesmo
secundarizando-se. Talvez Os Maias, pela densa constelação estelar das à distância e/ou "mineralizadas" pela morte não nos esqueçamos que a
suas casas, signifique um momento de transição entre o domínio, precário Monforte e a filha são dadas como mortas para Afonso, sendo um vazio
embora, das mulheres no espaço privado do lar- Luísa, Amélia, Juliana, absoluto para Carlos que delas nada soube ou sabe. Desse modo, não é por
S. Joaneira, a própria Titi Patrocínio, por exemplo,- e o seu quase desa- mera casualidade que, quando o Ramalhete mi sob o peso do incesto,
parecimento nos textos em que o forte das acções se masculiniza. É assim Afonso morre, a casa é abandonada, etc., a tela permanece, por sua forte
no velho solar de Santa Irinéia, em A il?~stre casa de Ramires, como tam- inscrição metafórica, fazendo-se mesmo o mote que prepara o fecho da
bém o será no palacete do 202 e no velho casarão de Tormes em A cidade obra, em processo recolhitivo tão ao gosto de Eça.
e as serras. Um ponto, no entanto, não se altera na tela bordada das casas:
o espanto que toma conta das personagens e se manifesta, via de regra, No salão nobre os móveis de brocado, cor de musgo,
pelos movimentos do olhar, ou seja, por essa espécie de janela da alma, a estavam embrulhados em lençóis de algodão, como amorta-
ligar o mundo exterior ao interior dos seres. Parece ser somente pelo olhar lhados, exalando um cheiro de múmia a terebentina e cânfora. E
-mostrado com frequência a atravessar as janelas fisicas das casas- no chão, na tela de Constable, encostada à parede, a Condessa
que os sujeitos em crise têm como escapar das armadilhas criadas pelas de Runa, erguendo o seu vestido escarlate de caçadora inglesa,
suas precárias condições vivenciais e afectivas. parecia ir dar um passo, sair do caixilho dourado, para partir
O caráter de transição de Os Maias advém do facto de que, no também, consumar a dispersão da sua raça ...
núcleo considerado o espaço principal e formado pelo Ramalhete, pela (p. 475)
Novos pactos, outras ficções 137
136 Laura Cavalcante Padilha

Só a Condessa, portanto, não deixa o casarão, como Pedro, imobi- A escada era escura e feia [ ... ]
lizado noutro retrato e igualmente jogado ao chão, cuja imagem se volta [Na] sala de jantar [ ... ] diante da famosa chaminé de .
contra a parede, como a não querer ver a mína da casa e a reforçar o proces- carvalho lavrado, flanqueada à maneira de cariátides, pelas duas
so de fuga que sempre o caracterizara. A sua proximidade da janela é índice figuras de núbios, com os olhos rutilantes de cristal, Maria
bissémico: de um lado, parece reiterar o seu permanente desejo de pular Eduarda começou a achar o gosto do Craft excêntrico [ ... ].
para fora da casa e da vida, eternamente a "suicidar-se"; de outro, pode re- [ ... } o quarto que devia ser o seu desagradou-lhe com o
presentar o gesto alucinado de busca também eterna de Maria Monforte, seu luxo estridente e sensual [ ... ] a alcova resplandecia como o
como o texto já mostrara, ao recuperar-lhe a história. Eis a cena: interior de um tabernáculo profanado, convertido em retiro lasci-
vo de serralha ...
(p. 292 e 293)
Carlos, no entanto, fora examinm; junto da janela, um
quadro que pousava no chão, para ali esquecido e voltado para Tudo exagera e parece excessivo na casa, pensada para ser o palco
a parede. Era o retrato do pai, de Pedro da Maia, com suas luvas
ideal do amor igualmente ideal de Carlos e Maria Eduarda. Ela aponta
de camurça na mão, os grandes olhos árabes na face triste e páli-
para o desequilíbrio e o nome que se lhe apõe é claro índice de que os seus
da que o tempo amarelecera mais. futuros donos não serão os dois sujeitos culturais, mas dois "animais", já
(p. 479) que o incesto é um tabu cultural.

Repare-se, pelo gesto a seguir, que, enquanto o quadro da bisavó Maria Eduarda achou originalíssimo o nome de Toca.
é deixado no chão, o do pai é erguido por Carlos que Devia-se até pintar em letras vermelhas sobre o portão.
-Justamente, e com uma divisa de bicho -disse Carlos
Colocou-o em cima de uma cómoda. E atirando-lhe uma rindo. - Uma divisa de bicho egoísta na sua felicidade e no seu
leve sacudidela com o lenço: buraco: 'Não me mexam!'.
-Não há nada que me faça mais pena, do que não ter (p. 293)
um retrato do avô! ... Em todo o caso este sempre o vou levar para
Paris. A escolha da cor vermelha é traço a aproximar a Condessa e a bis-
(Idem) neta Maria Eduarda, ambas reinando no mundo dos "bichos": a primeira,
por seu escarlate vestido de "caçadora"- para mais inglesa- e a segu-
Assim, enquanto a Condessa fica atada à teia da casa e da família, da, por esconder-se na "toca" cujo nome seria igualmente pintado de ver-
mína (e o jogo com Runa é muito bom) entre ruínas, Pedro da Maia, elo melho, com "uma divisa de bicho". Identifica-as o enquadramento pela
da linhagem masculina, não se encerrará no Ramalhete, indo ocupar outro cor, pela condição familiar e, sobretudo, pela exclusão da ordem masculi-
espaço fora do clânico. Afonso, irretratável porque da ordem do mito, e, na dos Maias.
portanto, como pura lembrança, num p~·üneiro nível não poderá deixar o Por outro lado, há, como em texto anterior afirmei (1997), um
seu mausoléu, outra múmia a cheirar a "terebentina e a cânfora." jogo gráfico e anagramático a ligar, pela intersecção dos conjuntos das
Voltando à questão de representarem Os Maias uma transição no letras, S. Olávia espaço onde Carlos é criado pelo avô para que nele se
processo de composição espacial das casas, lembro o facto de que, em desenvolvesse "exclusivamente o animal", armado "de uma grande supe-
torno de Maria Eduarda, se constmirá um outro núcleo habitacional que a rioridade física. Tal e qual como se não tivesse alma." (p. 53)- à casa
tem como centro: a morada da ma de S. Francisco e a de Olivais, ou a dos Olivais, palco do incesto. Assim, S. Olávia x Olivais torna-se jogo de
Toca, ou o local do incesto para onde as outras casas parecem inexoravel- espelhos pelo anagrama, jogo que já indicia a reacção de espanto a tomar
mente confluir. As primeiras impressões que esta mesma Toca causa na conta de todos, aí incluído o leitor, quando o incesto se revelar. A sensação
protagonista são desagradáveis, como o narrador vai recolhendo e pas- que fica é a de que não há maneira do homem fugir da sua condição de
sando para o leitor, no jogo de espantos que deseja criar: títere de um destino inexorável.
138 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 139

Diferentemente dos romances anteriores, não há mulheres, a não Voltando à Ilustre casa, não há como deixar de lembrar a cena de
ser as criadas, seja na velha casa de Santa Irinéia, em A ilustre casa, seja no instauração do contado, quando o o1mÜsciente narrador nos mostra
palacete do 202 ou mesmo no casarão de Tormes, em A cidade e as serras, Gonçalo à sua mesa de "trabalho"~ num claro recorte irónico ~a olhar ·
como já ah·ás afirmei. Sabemos que Gracinha participa, pela memória e por a paisagem enquadrada na moldura dos batentes das janelas, como se
suas visitas escassas à Torre, do espaço do viver do innão Gonçalo, assim fosse uma pintura à sua frente desdobrada. Ele está na "livraria, clara e
como, no final, a esposa de Jacinto. No entanto, elas não pertencem ao larga" que
corpo dessas casas. Por outro lado, o estado anímico de Gonçalo e de
Jacinto segue de perto o de personagens anteriores, por sua improdutivi- [ .. .} respirava para o pomar por duas janelas, uma de peitoril e
dade, pelo papel de vencidos na vida, pela falta de clareza dos objectivos a poiais de pedra almofadadas de veludo, outra mais rasgada, de
atingir e por uma certa fraqueza espiritual. A ruína ronda-os, seja na forma varanda, ji'escamente perfianada pela madressilva [ ... ]. E daí,
financeira, no caso de Gonçalo ~ para além da própria casa, sobretudo a da sua cadeira de couro, Gonçalo Mendes Ramires [ ... ] avista
Torre~, seja na ruína corporal de Jacinto que, novo embora, tinha o nariz va sempre a inspiradora da sua novela - a Torre, a antiquíssi-
afilado entre "duas rugas muito fundas, como as de um comediante cansa- ma Torre, quadrada e negra sobre os limoeiros do pomar [ ... }
do [ ... ] o bigode murcho, caído em fios pensativos e [ ... ] corcovava." robusta sobrevivência do Paço acastelado, da falada Honra
(1970, v. 2, p. 731 ). Para intensificar as cores do quadro, as expressões que de Santa Irinéia, solar dos Mendes Ramires desde os meados do
mais o definem são "Que maçada!" ou "Que seca!", como o romance obses- século X
sivamente reitera. Mesmo o excessivo progresso tecnológico, de que se vale (1970, v. 2, p. 485)
com larga abundância, ao invés de libe1iá-lo, aprofunda ainda mais o seu
mergulho numa espécie de amontoado de ruínas que o tolhe para a vida. A extensa citação justifica-se pela importância de que a cena se
Nesse mundo assim conflagrado, o olhar adquire uma importân- reveste, de um lado, para o desdobramento das acções narrativas cujo
cia fundamental nos dois romances, principalmente em A ilustre casa, sujeito é o fidalgo, sobrevivente, tanto quanto a sua Torre, de um tempo
com Gonçalo. Vem daí a enorme força que as janelas, varandas, mirantes, de honra e grandeza que o seu viver presente, fundado na não-honra e não-
etc. representam no narrado. Já em A cidade e as serras, no 202, o olhar -grandeza, esfacela e ironicamente reduz a ruínas; de outra parte, tal cena
de Jacinto não tem nenhum ponto de fuga que não seja o excesso tecno- se pennite ler, se se tomam as casas como objecto do olhar-leitor, como
lógico, sempre a barrar qualquer hipótese de paisagem ou abertura para uma metáfora que dá sentido à obra de Eça como um todo, dentro do sis-
fora, como mostra a descrição da janela que deveria deixar ver os Campos tema de relações ou do processo que tal obra representa, pensando com
Elíseos, mas onde José Fernandes acaba por descobrir "outra portentosa Argan (1995).
rima de volumes, todos de história religiosa, de exegese religiosa, que Se, por um lado, tais casas se fazem sólidas construções na teia
trepavam montanhosamente até aos últimos vidros, vedando, nas manhãs ficcional, colando-se à imaginação do leitor de modo indelével, por outro,
mais cândidas, o ar e a luz do Senhor." (Idem, p. 733) elas transformam-se em ruidosas ruínas, símbolo perfeito da vida impos-
O quadro reverte-se nas serras, principalmente depois que o sível de sujeitos em crise que jamais conseguem escapar dos seus buracos
casarão de Tormes passa por uma reforma geral, quando, segundo o nar- e muros, ou da toca onde se abrigam os seus igualmente impossíveis dese-
rador, José Fernandes, ou quem com ele fale, ficamos sabendo do facto jos. Vê-se, assim, que, se tal maneira de conceber os espaços do viver se
de que filia numa tendência romanesca do século XIX no ocidente, pela qual a
casa é o cenário recorrente para a dramatização das tensões e hipocrisias
Todas as janelas do solar rebrilhavam, com vidraças burguesas, não há como deixar de perceber que tal recurso representativo
novas, bem polidas. ganha, nos textos queirosianos, uma surpreendente dimensão.
[ ... }As três janelas, sem cortinas, contemplavam a bele- As casas funcionam como uma obsessão fantasmática, tornando-se
za da serra, respirando um delicado e macio m; que se perfuma- uma espécie de sintoma ficcional no quadro geral das obras. Sob ele talvez
va nas resinas dos pinheirais, depois nas roseiras da horta. se encubra o fantasma maior, isto é, o da própria bastardia, que interditou a
(p. 811) Eça a casa das casas, a paterna, primeira inscrição ou inscrição original do
140 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 141

ser, como ensina Bachelard (1882-1962). Talvez isso justifique o porquê do


espanto e da dor que habitam os seres e se reflectem no espaço de seu-
-viver, sempre assinalado com o sinete da mína, de uma forma ou de outra.
Tal quadro explica igualmente porque as janelas acabam por adquirir um
peso representativo tão grande quando as casas são lidas. Por elas, as
janelas, se restabelece a possibilidade de fuga, nem que seja pelo simples
gesto de olhar. A visão, nesses casos, é "panorama", pensando com
Merleau-Ponty, ou seja, uma possibilidade de se exercer ainda um ce1io TRAVESSIAS DO OLHAR
domínio sobre o mundo que pesa e esmaga. Resgato a fala do filósofo: "a
visão é panorama; pelo buraco dos olhos e do fundo do meu reduto invisí-
vel domino o mundo e o encontro lá onde ele está" (1971, p. 79). "A v1sao é panorama; pelo buraco dos
A abertura das janelas e a visão-panorama que as atravessa impe- olhos e do fimdo do meu reduto invisível
domino o mundo e o encontro lá onde ele
dem a total asfixia dos sujeitos colocados nas tocas do seu viver, entaipa-
está."
dos nos seus muros e como que soterrados sob pesadas portas, como a da
sacristia que, da janela da cozinha da casa do sineiro, Amélia, aflita, reite- Merleau-Pontyol
radamente vê, quando nela se posta, segundo o romance, "vigiando a
porta maciça da sacristia de que ela conhecia uma por uma as chapas
negras de ferro" (1970, v.l p.440). Em tais imaginárias casas, com suas As janelas são o ponto de fuga, por excelência, dos
"chapas negras de ferro", reinam o espanto, a prisão anímica e a impossi- sujeitos ecianos. A seu respeito, Lucette Petit, em Le champ du signe
bilidade de realizações produtivas que levassem os sujeitos narrativos a (1987), assim se expressa: "L' importance des fenêtres, dans les apparte-
terçarem as suas armas, vencendo a ameaça do nada e, principalmente, ments ou les protagonistes s 'étiolent, n 'est pas négligeable" (p. 20). A
libertando-se da teia da sua imensa e avassaladora solidão. As casas con- autora considera ainda o valor metonímico de tal espaço, citando Philippe
tam-nos tudo isso, fiandeiras a bordar infindáveis talagarças de espanto. Hamon e a sua consideração de que a janela representa sempre uma aber-
tura para um fragmento textual, deixando entrever a sua organização para-
digmática.
O texto que agora começo por apresentar quer partir da bela leitu-
ra da crítica francesa, acrescentando às janelas e semelhantes varandas,
terraços, mirantes, etc.,- o suplemento do olhar que as atravessa. Tal tra-
vessia dá-se em dois sentidos, sempre tomando como referência os per-
sonagens centrais da narrativa: de dentro para fora, tendo o protagonista
como único sujeito da acção de olhar e, de fora para dentro, quando ele,
ocupando a cena da janela, se transforma em objecto da visão de outros,
ao mesmo tempo em que os vê.
Sabemos que, via de regra, os sujeitos queirosianos sofrem de
uma extraordinária inapetência pela vida, com frequência aprisionados
em muros que lhes parecem intransponíveis. Esta inapetência atinge
mesmo alguns, como Carlos e Jacinto, que padecem do excesso de ter, em
detrimento do ser. A acção produtiva como que se eclipsa do universo re-
presentado e os personagens são apanhados no exercício da mais absoluta
ociosidade, meros objectos do seu destino histórico, ao invés de agentes de
uma história pessoal em transformação. Nesse sentido, o espaço por eles
142 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 143

habitado parece aprofundar a espécie de prisão anímica em que se encon- de um amplo horizonte, a abrir-se para o ponto cego do infinito ou do uni-
tram, daí que as janelas ganhem força, ao se fazerem pontos de fuga, pela verso, para usar uma palavra do texto: "Na cidade (como notou Jacinto)
sua abertura metonímica. nunca se olham, nem lembram os astros[ ... ]. Mas na serra,[ ... ] um Jacinto,
Não me parece, pmianto, mero acaso o facto de tais espaços um Zé Fernandes, livres, bem jantados, fumando nos poiais de uma janela,
sobressaírem desde a instauração dos primeiros passos da narrativa, até ao olham para os astros e os astros olham para eles" (p. 806).
seu final. Tomo três exemplos de entre os muitos passíveis de escolha, para De certo modo, está-se de novo frente a uma cena de descoberta,
começar: Os Maias, A ilustre casa de Ramires e A cidade e as serras. como já se dera com Gonçalo, quando, vencida a eleição, subira ao eirado
Em Os Maias (1888), a primeira e a penúltima descrição do da sua torre e, pelo olhar, entrara em interlocução com os astros frente a ele
Ramalhete recuperam a mesma imagem das "janelinhas abrigadas à beira desdobrados. Para ambos, e por estarem no alto, ver torna-se saber ou, mais
do telhado" (1970, v. 2, p. 15 e 475), a sugerir o instável equilíbrio que especificamente, começar a saber. Marilena Chauí, a partir do jogo
será a tónica de toda a narrativa na qual as contradições e ambiguidades ver/saber, analisa a gama de sentidos de specio-specto. Valho-me de pmie
do sujeito em crise e da sociedade do seu tempo dão o tom principal. Já das suas considerações para pensar que Gonçalo e Jacinto olham "com e por
na última imagem da casa, as janelinhas fecham-se, a indiciar a proxi- esperança", (CHAUÍ, 1988, p. 36), ao mesmo tempo do alto e para o alto.
midade do próprio fecho narrativo: "sombrio casarão[ ... ] com as paredes Nesse momento, são seres expectantes. Inicia-se, com o gesto, o processo
severas, a sua fila de janelinhas fechadas" (idem, p. 480). Em contraparti- de transformação de suas existências, mesmo que com uma forte dose de
da, o terraço de Afonso da Maia, com a vista barrada do mar, contrasta ambiguidade, como o desfecho das obras mostrará, ao apontar para a
com o ar sombrio da casa e o apequenamento das janelas. Tal vista "era solução ordeiramente apaziguante e apaziguada dada aos destinos de
como uma tela marinha, encaixilhada em cantarias brancas, suspensa do ambos.
céu azul em face do terraço, mostrando, nas variedades infinitas de cor e Outros textos de Eça reiteram a percepção das janelas como pon-
luz, os episódios fugitivos de uma pacata vida de rio" (idem, p. 18-19). tos de fuga. É assim com as da Ricoça onde Amélia é fechada para escon-
Também é uma tela, em A ilustre casa de Ramires (1900), - der sua gravidez impossível, bem como será assim com aquela que
encaixilhada nas "duas janelas da livraria, uma de peitoril e poiais de aparece no quarto do adultério do Paraíso, onde Luísa também vai tentar
pedra [ ... ], outra mais rasgada, de varanda, frescamente perfumada pela realizar, escondida, sua relação amorosa com o primo Basílio. A abertura
madressilva, que se enroscava nas grades" (1970, v. 2, p. 485) - que se cria a tela expressionista onde a triste paisagem da rua sintetiza, por
abre aos olhos do leitor, através do olhar do personagem. O quadro tem, metonimizar, todo o desamparo que a oprime quando se dá conta da
como motivo principal, como sabemos, "a Torre, a antiquíssima Torre, degradação do Paraíso, o que a desgosta. Ela encontra fora, duplicando-
quadrada e negra sobre os limoeiros do pomar" (idem). No final da narra- -se, o mesmo abandono, a pobreza e a menos-valia que se projectam no
tiva, aparece uma outra casa, em tudo diferente do antigo solar e assim seu próprio interior, sobretudo quando, em jogo especular explícito, a sua
descrita na carta da prima Maria: "grande casa, próximo do rio, com vinte janela se abre para uma outra, onde "uma rapariga esguedelhada embala-
janelas e pintada de azul" (p. 710). Assim, o horizonte antes barrado se va tristemente no colo uma criança doente que tinha crostas grossas de
expande, atingindo a amplidão do rio, que é o Zambeze. chagas na sua cabecinha cor de melão" (1970, v. I, p. 675).
O terceiro exemplo pode ser buscado em A cidade e as serras Parando por aqui a análise do primeiro movimento, retomo o
(1901), onde, se as janelas não se apresentam nas primeiras cenas narrati- segundo, ou seja, o que se dá de fora para dentro, com o protagonista sendo
vas, nem por isso perdem a sua força imagística no contado. Desse modo, o tema da tela da qual a janela é a moldura. Ele é o objecto do olhar; o
àquela ')anela rasgada sobre os Campos Elíseos" do 202 e da civilizada espetáculo, não mais o simples espectador que, obviamente, não deixa de
Paris, esmagada por uma "pmientosa rima de volumes, todos de história ser, já que está à janela. É o que se dá com Juliana, quando se expõe, em
religiosa, de exegese religiosa que trepavam montanhosamente até aos últi- meio corpo, para os passantes da rua, sempre aos domingos. Ela prepara-se
mos vidros, vedando, nas manhãs mais cândidas, o ar e a luz do Senhor" para ser olhada - ao mesmo tempo em que olha, é claro: "aos domingos,
(1970, v. 2, p. 733), vão-se opor as "janelas desvidraçadas" do casarão de quando não passeava, encostava-se a uma janela, com o lenço sobre o peito-
Tormes, onde começa o processo iniciático, por assim dizer, de Jacinto. A ril para não roçar as mangas, e ali estava imóvel, a olhar, com o seu broche
narrativa, então, coloca em cena olhos e olhares que se fazem espectadores de filigrana e a cuia dos dias santos" (p. 597).
144 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 145

Também a jovem loura, personagem do conto "Singularidades de reduplica na janela do que a olha, numa ptojecção abissal. O desejo, mar-
uma rapariga loura", igualmente chamada Luís a, se faz tema do quadro cado pelo sinete da recusa de José Matias, como saberá o leitor adiante, é
aberto ao olhar de Macário. Ela, ou melhor, o seu rosto, tão "louro" quan- ricocheteado pelo de Elisa que se expõe e não se recusa. Assim, terraço e
to os seus cabelos, na expansão metonímica, espreita e é espreitada pelo janela se fazem eles também corpos eróticos a tocarem-se no delírio do
futuro sujeito amoroso. Cito trechos que compõem a cena: olhar, embora, no plano fisico, o acto não se possa consumar, como os
dois amantes no inferno de Dante: Paolo e Francesca. Já os jardins, cor-
"A rapariga loura reparou naturalmente em Macário, e natural- pos mais próximos um do outro, prolongam o gozo e enlaçam cada vez
mente desceu a vidraça, correndo por trás uma cortina de cassa mais o desejo, a princípio por dez longos anos, desde a primeira noite em
bordada. [ ... } A cortina ergueu-se devagarinho e o rosto louro que ele a "avistou[ ... ] no terraço à luz da lua!" (idem, p. 473), e mesmo
espreitou. depois do segundo casamento de Elisa. De acordo com o narrador, um
[ ...} Não a podia ver pela manhã [ .. .] Só pela tarde, a filósofo declarado; entre os amantes de puro olhar, e cito, "rescendiam
cortina se franzia, se corria a vidraça, e ela, estendendo uma [ ... ]todas as flores dos dous jardins" (idem, p. 488).
almofadinha no rebordo do peitoril, vinha encostar-se mimosa e No final da narrativa, quando Elisa, seguindo os passos predile-
fi·esca com o seu leque. " ctos das mulheres ecianas, troca a ordem estabelecida pela desordem do
(1947, v. VIII, p. 276) desejo fisico e de uma relação amorosa proibida, tendo ela também o seu
"amante", José Matias, degradado fisica, moral e socialmente, desce da
O movimento no conto é o mesmo do romance. O que muda é a janela sobranceira e passa a esconder-se no "portal negro", onde morrerá.
beleza e o frescor da segunda mulher, em oposição à figura que sabemos Antes, continuará, por três longos anos a olhar, com o seu "olho em
dura e desagradável da outra. O lenço faz-se almofada; o peitoril é o brasa", as janelas da nova casa de Elisa. Ela deixa-se contemplar, procu-
mesmo e a cuia e o broche se transformam no leque, que acena, velado. rando preservar as regras do jogo por ambos estabelecidas. No escuro da
Ambas são o centro da tela e do espectáculo. Elas obrigam a um olhar para rua e do portal negro onde José Matias, como diz o texto, "ficava esma-
o alto, em relação à rua, mas não em relação a Macário, obviamente. gando os olhos turvos na fachada negra [da] casa", o protagonista, e volto
Também expondo-se no alto de uma janela e olhando, ao mesmo à narrativa, "avivava desesperadamente o lume [do cigarro], como um
tempo em que é olhada, agora de modo mais impressionista, mas fazen- farol, para guiar na escuridão os amados olhos dela, e lhe mostrar que ali
do-se igualmente o centro da tela, vamos encontrar Maria da Piedade, pro- estava, transido, todo seu e fiel!" (pp. 492-493). O paroxismo do olhar
tagonista do conto "No moinho". Logo que o texto se instaura, lemos: atinge, assim, no corpo da ficção queirosiana, um dos seus ápices.
"era, para a gente que às tardes ia fazer o giro até ao moinho, um encanto Servindo, portanto, como ponto de fuga para os olhos ou como
sempre novo vê-la por trás da vidraça, entre as cortinas de cassa, curvada moldura da tela onde o sujeito se expõe à contemplação do outro, as
sobre a sua costura, vestida de preto, recolhida e séria" (idem, p. 315). janelas e iguais se fazem obsessivas presenças nas narrativas ecianas. Elas
Ela também se projecta no que vê, do alto onde está locada: "A se deixam atravessar por olhares expectantes, maçados, atónitos, disper-
mesma paisagem que ela via da janela era tão monótona como a sua vida" sos, desesperançados, etc,. É como se elas fossem cortadas por dois
(idem, p. 318). O encanto, por conseguinte, só existe para os que a vêem grandes olhos que, por sua abertura, nos levam a pensar que pertencem a
e não para o que vê, até que ela muda o sentido da sua vida, transforman- sujeitos em crise ou em busca de um lugar no mundo.
do-se na "Vénus" que esmaga e eclipsa a antiga "Santa". Neste ponto, gostaria de lembrar dois ensaios que acabaram por
Será talvez no conto "José Matias" que a representação imagísti- se tornar seminais para o meu próprio. Encontram-se na obra O olhar,
ca dos espaços de olhar atinge o seu ápice. Neste texto, tudo são janelas, organizada por Adauto Novaes e publicada em 1988. O primeiro é de
por assim dizer, e o próprio olho ganha a sua dimensão mais plena, trans- Marilena Chauí, já aqui citado, "Janela da alma, espelho do mundo" (pp.
formando-se na principal e escancarada janela do ser. Há uma chuva de 31-63) e o segundo, de Sérgio Cardoso, "O olhar dos viajantes" (pp. 347-
infinitas especularidades, com o olhar de José Matias a buscar obsessiva- -360). De Chauí, quero retomar a oposição "olho passivo versus olho
mente o de Elisa, nele se reflectindo, e vice-versa. Ainda o terraço, espaço poderoso" (p. 33), bem como a ideia de que, e cito-a, "o olho do obser-
onde ela também olha o outro, nos primeiros movimentos do texto, se vador se faz medida do visível e prepara, na filosofia, o advento de um
146 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 147

sujeito do conhecimento que se julga capaz de evidência e de intuição" to, e ficou" (1947, v. VIII, p. 495) se justifique pelo facto de ter com-
(idem, p. 37). De Cardoso, interessa-me recuperar a noção da diferença preendido a força da sua inapetência para a acção e que a sua contem-
que ele, com Merleau-Ponty, estabelece entre ver e olhar: plação não conseguiu desenvolver toda a potência do seu próprio olhar.
Ele ficou aprisionado para sempre no espelho, convexo demais. Volto a
O ver; em geral, conota no vidente uma certa discrição e passivi- Marilena Chauí, para lembrar que "o olhar apalpa as coisas, repousa sobre
dade ou, ao menos, alguma reserva. Nele um olho dócil, quase elas, viaja no meio delas, mas delas não se apropria" (1988, p. 40). A falha
desatento, parece deslizar sobre as coisas; e as espelha e regis- trágica de José Matias foi não ter percebido isso a tempo.
ta, reflete e grava [ .. .]. Com o olhar é diferente. Ele remete, de Para começar a concluir, pergunto: pode-se falar num olhar da
imediato, à actividade e às virtudes do sujeito, e atesta a cada ficção queirosiana como um todo, a atravessar outras espécies de janelas?
passo nesta acção a espessura da sua inferioridade. Seria lícito, ainda, estender-se para tal ficção a imagem de uma grande
(Idem, p. 348) janela, sempre a emoldurar quadros onde os sujeitos fora de lugar, de
olhos esgazeados e/ou perplexos seriam o motivo da representação pictó-
Creio haver algum sentido em se afirmar que os olhares que rea- rica? Tais olhos não estariam tentando alcançar o sentido de um mundo
lizam as suas travessias por janelas e iguais cumprem o trajecto da pas- atingido por uma transformação tão rápida que não se deixa aprisionar? A
sividade para a potência ou do "ver" para o "olhar". Eles estão na base da metáfora da perda das malas por Jacinto, que não consegue dar conta da
representação do processo pelo qual o sujeito caminha da alienação para rapidez da mudança de comboio, não se poderia estender para a própria
o conhecimento e atinge, mesmo que às vezes de modo ainda precário, "a organização da ficção como um todo? E o eléctrico que Carlos e Ega se
espessura de sua interioridade". esforçam por alcançar?
Gonçalo, por exemplo, antes da "visão" do adultério da irmã (pela Talvez a resposta a tais indagações demande um mergulho analíti-
audição das falas de André e Gracinha) e da vitória na eleição, vê simples- co mais profundo que agora só se pode esboçar. Creio, no entanto, que o
mente o mundo que o cerca. No mirante da Torre, porém, ele passa a olhar, grande olho que se vê através dessa extraordinária janela ficcional pode
de certo modo aprendendo a ver, pois, como afirma Merleau-Ponty, "ao ser pensado como o de alguém a tentar compreender o tempo em trans-
mesmo tempo é verdade que o mundo é o que vemos e que, contudo, pre- formação acelerada que anula os valores do confortável mundo antigo,
cisamos aprender a vê-lo" (1971, p. 34). Assim, caminha para o conheci- nem por isso menos contraditório. As propriedades rurais de Gonçalo,
mento, o mesmo acontecendo com Jacinto que, na serra, tal como o reen- Jacinto e Afonso; a vila de Maria da Piedade com o seu moinho quere-
contra José Fernandes, é capaz de dar risadas ao ler D. Quixote e entender presenta "um recanto da natureza digno de Corot" (1947, v. VIII, p. 323),
a humana mensagem de Sancho, segundo o amigo (1970, v. 2, p. 828). etc., talvez sejam uma forma de o olhar se apaziguar, dentro da clave da
Maria da Piedade, por sua vez, passa, depois da cena no moinho nostalgia e mais sereno, mas nem assim mais feliz.
e da partida de Adrião, a olhar e a olhar-se, assumindo pouco a pouco o O olhar, portanto, que se deixa surpreender nesta grande janela
seu corpo e sexualidade, em princípio mediatizadamente pela leitura dos ficcional aberta aos olhos do leitor, como o do esgazeado anjo, tão bem
romances e, depois, na relação fisica C011) o - para o nanador- antipáti- analisado por Benjamin, aponta a "ruína sobre a ruína" (1994, p. 226). Ele
co praticante da botica. Também os olhos trêfegos de Ega, após o conhe- parece reproduzir, com os "seus olhos escancarados, a sua boca dilatada"
cimento do incesto, se esgazeiam e ele começa a poder ver o outro lado (idem), a própria expressão de Ega, pelo jogo onomástico, quase Eça. Por
das coisas do seu "civilizado" mundo e que não fazem apenas parte do outro lado, aquela janela do 202, rasgada para os Campos Elísios, mas
passado ou, como pensa, "do tumulto da Meia Idade" (1970, v. 2, p. 418) atulhada de livros religiosos, a tapar "o ar e a luz", pode sintetizar o
ou dos "livros onde vêem, como invenções subtis da arte, para dar à alma "amontoado de ruínas" trabalhado por Benjamin. Parece que também Eça
humana um terror novo" (idem). Frente a frente com tal "terror novo", ele de Queiroz se deixa tocar, asas abertas, "rosto [ ... ] dirigido para o passa-
cresce como sujeito, passando a ter um papel decisivo e maduro no palco do" (idem), pela tempestade do progresso. O futuro, como o céu de Paris,
das acções do romance. fica barrado e só a própria janela da sua ficção se faz o ponto de fuga por
Por fim, penso de novo em José Matias. Talvez a última imagem onde atravessa o seu espantado e, às vezes, mais que nostálgico olhar.
que dele temos- "arregalou os olhos, exclamou Oh! Com grande espan-
FIANDEIRAS
DE PALAVRAS
Novos pactos, outras ficções 151

A DIFERENÇA
INTERROGA o CANONE 1

"Quando o centro começa a dar lugar às


margens, quando a universalização tota-
lizante começa a desconstruir a si mesma, a
complexidade das contradições que existem
dentro das convenções [.. .] começam a fiem·
visíveis."
Linda Hutcheon

Pensar o cânone é pensar não só nas contradições que


habitam as convenções, como quer Linda Hutcheon (1991), mas, sobretudo,
no jogo de poder que subjaz ao processo da sua sedimentação. Se é verdade
que acção e discurso, ao interagirem, contribuem para que os homens se dis-
tingam entre si (ARENDT, 1989), também não é menos verdadeiro que tal
distinção atinge o universo literário, fazendo com que, em última instância,
os textos se submetam aos mesmos aparatos de dominação, através dos quais
as ideologias garantem a sua própria hegemonia. Interrogar o cânone, para
conhecer os elementos da sua sustentação, é um dos primeiros passos no sen-
tido de reafirmar-se a força da diferença, colocando-se "em xeque os meca-
nismos de poder a ele subjacentes" (REIS, 1992, p. 68).
Recmiando o caso das literaturas africanas de língua portuguesa de
forma geral e, de modo muito pmiicular, o da angolana, objecto da minha
pesquisa, vemos começar a impor-se a construção do cânone nas três últi-
mas décadas deste século. Acontece com tais literaturas o ocorrido com a
brasileira no século XIX, quando aquela construção se vincula "à fundação
literária da nacionalidade, num 'regresso' à origem, no sentido de demarcar
um centro", ainda citando Roberto Reis (p. 78) que remete, por seu turno,
para Flora Sussekind.
--~---~------

1. O texto foi publicado em Mulher e Literatura: (trans)formando identidades.


Organização de Rita Terezinha Schmidt, Porto Alegre, Palloti, 1997, pp. 61-69.
153
Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções
152
(cinquenta e três), enquanto em São Tomé e Príncipe, para 7 (sete), há
Já a partir dos anos 60 alguns textos, no plano historiográfico e duas e nenhuma na Guiné-Bissau, onde, aliás, só se regista o nome de
c.rítico, procuram dar visibilidade às literaturas africanas, tirando-as do um poeta. No entanto, fui um pouco além da questão do género, procu-
hmbo cul~1~al onde se encontravam; as antologias, por exemplo, têm um rando interseccioná-la com uma outra que lhe é suplementar: a de raça.
papel decisivo neste processo. Tais textos, a meu ver, não se preocupam Tenho a consciência de que o período recortado por Ferreira se encaixa no
em "canonizar" a produção, mas dedicam-se muito mais a trazer à tona 0
contexto colonial, já que, se os volumes se publicam após 1975, a
corpus .literário dos cinco países, que já se marcasse, de alguma forma, pesquisa naturalmente lhe é bem anterior. Assim, os escritores acham-se
pelo.c~r:~ da alteridade. A década de 70 é fundamental nas regras do jogo
situados naquela "margem colonial" a que se refere Homi Bhabha e onde
de vis~bihdade e consequente canonização. Uma obra básica é a antologia
No remo de Caliban, em três volumes, organizada por Manuel Peneira, a cultura do Ocidente revela sua "diferença", seu texto-limite,
excelente em todos os sentidos para a comprovação do meu ponto de assim como sua prática de autoridade desloca uma ambivalência
vista. O segu~do volume, consagrado a Angola e a São Tomé e Príncipe que representa uma das mais significativas estratégias discursi-
(197.6), se fara a base destas reflexões iniciais que se ampliarão em certa vas e físicas do poder discriminatório - quer seja racista ou
medida quando, contrapontisticamente, me valer do número um sobre
sexista, periférico ou metropolitano.
c.abo Verde e Guiné-Bissau (1975). Já o terceiro, que abarca Moçam- (1992, p. 177)
bique (1985), não será aqui utilizado.
O outro texto-base para esta exposição é Encontro com escritores A questão da raça não recebe um tratamento homogéneo nos dois
de Michel Laban, cuja estrutura, assim se apresenta: Angola (2 v.), 199l volumes. Enquanto para Cabo Verde o dado se omite, para a Guiné, ainda no
e Cabo Verde (2 v.), 1992. Tal obra surge, portanto, no momento históri- mesmo volume, ele começa a surgir. O único poeta guineense apresenta-se
co. em que .a construção canónica encontra o seu apogeu, por assim dizer, assim: "António Baticã Ferreira (Canchungo, Cacheu, Guiné-Bissau,
seJa pelas múmeras publicações literárias, seja pelo considerável acervo 25.12.1939). Negro. Filho de soba" (1975, p. 323). A opção feita em relação
crítico que legitima boa parte delas. a Cabo Verde recebe a seguinte justificativa de Manuel Ferreira, na intro-
. Interessa-me, de algum tempo a esta data, indagar o cânone, para dução - "E porque é assim e porque negro ou mestiço ou branco são ali
venfi:ar o lugar nele ocupado pelas produções femininas, sabendo que expressões esvaziadas do sentido corrente ou pelo menos ali perderam a
este canone se formou sob o signo da modernidade e ainda que tais lite- carga comum, de caso pensado decidimos, e por uma questão de rigor, não
r~turas emergem no bojo de uma revolução libertadora, de cunho socia-
considerar a cor de seus poetas" (idem, p. 42).
hst~, que a~re a cena das independências e, consequentemente, permite a Tal consideração, ao contrário, faz-se uma evidência no volume
sednnentaçao dos projectos nacionais. Lembrando o facto de 0 acervo II, quando o quadro se altera de forma substancial. Os dados bio-biblio-
crítico dessas literaturas se ter forjado inicialmente fora da África- na gráficos dos poetas seguem a ordem já referida para a Guiné-Bissau. A
Euro~a e nas, Américas, com Portugal e Brasil à frente - , começo por
"catalogação racial" abre o verbete, depois do local e data do nascimento,
quest~onar ate que ponto o cânone, "consagrado" por outras vozes que não
salvo nos casos em que o dado se omite, mormente se o poeta é branco e
as afncanas, ~e submeteu aos mesmos mecanismos de dominação e poder de origem portuguesa. Desse modo, no caso de Angola, do total, em
que sempre tiveram como meta elidir as diferenças, sobretudo se 0 objec- números aproximados, 56% de escritores são brancos; 36%, mestiços e
to recortado são questões como as de género e raça. Parafraseando apenas 8%, negros, segundo a terminologia do autor. Quanto a São Tomé
Edward Said, e substituindo o termo oriente por África reafirmo ser a e Príncipe, dos sete, quatro são mestiços (incluindo Alda do Espírito
relação entre a África e o resto do ocidente (se é que al~uma vez aquela
Santo) e três, negros.
fez parte deste) "uma relação de poder, de dominação, de graus variados Puxando agora a outra ponta do poder discriminatório, tento
de uma complexa hegemonia" (1990, p. 17). destecer as malhas da questão do género. Já no primeiro volume, ao apre-
. A leitura do .v?lume II de No reino de Caliban mostra-nos que a sentar a cabo-verdeana Yolanda Morazzo, única mulher relacionada, é
poesia angolana femmma começa a surgir na década de 50, facto este con- mostrado, inicialmente, o facto de ela ser neta de outro poeta, José Lopes;
firmado também com respeito a Cabo Verde onde, em 36 (trinta e seis) depois, o de ser "casada com o pintor Fernando Cmz" (p. 138, itálico
poetas, só há uma mulher. No caso de Angola, há 6 (seis), para 53
154 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 155

meu). Em nenhum outro verbete se aponta a condição civil de qualquer livresca, legitimador na sua essência. Remeto, para um mais fundo mer-
autor. O jogo da legitimação, bem o sabemos, exige de uma mulher o ser gulho no cânone, a Bibliografia das literaturas afi'icanas de expressão
filha d'algo ou esposa de alguém. Mas o pesquisador não pára aí. Diz-nos portuguesa, organizada pelo mesmo Manuel Ferreira e por Gerald Moser
que ela (e o retrato nos mostra ser branca), pela altura, era "professora da e que procura dar conta não só do cmpus literário, mas do acervo crítico,
Alliance Française, em Luanda, onde reside" (ibidem). Logo, a sua for- assim como das revistas, antologias, etc., escritas até à data da feitura do
mação cultural alta legitima-a mais ainda. texto e da sua publicação, em 1983.
Das seis escritoras angolanas arroladas, três recebem a explícita Voltando ao Encontro. São ao todo entrevistados, no caso
chancela de brancas (Ermelinda Xavier, Alda Lara e Manuela de Abreu), angolano, 26 (vinte e seis) escritores, dos quais só uma mulher, Paula
du~s são-no, mas não se nomeia o facto (Lilia da Fonseca e Amélia Veiga, Tavares. Seguindo, conscientemente ou não, a hierarquia africana, Laban
CUJas fotos o mostram) e só uma, mestiça (Maria Eugénia Lima). Três têm começa pelos mais velhos: Óscar Ribas, Raúl David, Aires de Almeida
formação universitária. Quatro possuem obras publicadas; três receberam Santos, Uanhenga Xitu, António Jacinto, etc. Nesse jogo reverentemente
prémios; Alda Lara, morta, empresta o seu nome a uma premiação hierárquico, não me parece mero acaso que a entrevista de Paula Tavares
literária e tem reforçada a sua condição de "casada com 0 escritor seja a última do volume II, na relação individual, seguida apenas pelo que
Orlando Albuquerque" (1976, p. 109, itálico meu). Quanto às de São o entrevistador chama de "Encontro com Jovens Escritores". Não pre-
Tomé, são ambas mestiças e, enquanto se ressalta a condição de militante cisamos vestir a pele de xamãs, adivinhos ou quimbandas para saber o que
de Alda do Espírito Santo, facto que a leva à p1isão, Maria Manuela significa tal lugar no enunciado organizativo.
Margarido legitima-se pelo seu nível universitário, pelas funções públicas Valeria abrir um parêntese para dizer apenas que, em relação a
exercidas em Paris e, obviamente, por "ser casada com o escritor Alfredo Cabo Verde, embora não tenha analisado os dois volumes como pretendia,
Margarido" (p. 468, itálico meu).
o quadro sofre uma pequena alteração. Orlanda Amarílis é a única mulher
O quadro revelado pela leitura da antologia surpreende um leitor convocada e ocupa um lugar entre os mais velhos: é a sétima entre os 25
"menos avisado". Por ele, mostra-se que no "reino" dos poetas angolanos (vinte e cinco) entrevistados. Um dado interessante: a escritora está há
há um predomínio de homens brancos, assim como, no reduzido universo muito tempo fora da sua terra natal, tendo-se radicado em Portugal- e já
da autoria feminina (só 11%) continua a preponderância desse mesmo ele- aqui sou eu a querer enfatizar o facto- com o marido, Manuel Ferreira,
mento. Não há uma autora sequer "absolutamente negra", se me enten- hoje já falecido e, sem sombra de dúvida, uma das figuras-núcleo do uni-
dem. Evidencia-se a força castradora do sistema colonial que abre as por- verso de tais literaturas. Quanto a Cabo Verde, fico por aqui.
tas da educação formal ao branco, que se faz, assim, o senhor absoluto da Antes de entrar na entrevista de Paula Tavares, com a qual encer-
letra, enquanto o negro dela é excluído. Também a "mestiçagem" se ro estas reflexões, sou tentada a lembrar um facto bastante sintomático.
~ostr~ como uma possibilidade de emergência social. No calabouço do Neste encontro de escritores angolanos tão radicalmente masculino, em
sllencmmento, a mulher negra representa-se como um absoluto não-lugar dado momento, na entrevista de Aires de Almeida Santos (coisa que não
no mundo letrado. E trata-se da África, onde a mulher se destaca como se repetirá mais) irrompe uma terceira voz, feminina, de Maria Luísa
principal elemento de sustentação da estrutura social, força aglutinadora Dolbeth e Costa a dizer assim: "Com uma grande amiga, Paula Tavares,
por excelência de uma construção simbólica marcada pela matrilineari- lançámos um projecto de pesquisa - talvez se venha a realizar no
dade, e não só.
futuro ... -em relação à maneira como a personagem feminina é enca-
Passando de forma breve e apenas esquemática para o Encontro rada na literatura angolana." (1991, v. I, p. 104).
com escritores, de Michel Laban, vemos que quase 20 anos após as inde- Desse modo, Paula, a única mulher a ser convidada para partici-
pendências o quadro discriminatório permanece, no que concerne apenas par da roda, tem o seu nome trazido à cena por outra mulher, Luísa, que
à autoria feminina, já que o organizador não lanceta a ferida racial como fala de um projecto de pesquisa sobre "a maneira como a personagem
parecem fazer outros textos, mesmo que inconscientemente. Talvez seja feminina é encarada na literatura angolana". É como se o recalcado pelo
prudente recordar o facto de que a produção feminina seguiu, nestas últi- próprio texto, em última instância, explodisse, e o outro, no caso, a mu-
mas décadas, a trilha aberta em No reino de Caliban, seja pelas várias lher, saísse da sombra do silêncio e, ganhando voz, mostrasse a força da
antologias publicadas antes ou depois desta, seja pelo sistema da produção sua fala. O momento é breve, mas intenso em sua cintilação metafórica.
156 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 157

O texto da entrevista de Paula Tavares representa um desloca-


mento metonímico em relação aos demais. Enquanto o que se pergunta
aos homens pertence, via de regra, à esfera do público - relação com 0
passado colonial; participação na luta; papéis representados na antiga e/ou
nova sociedade angolana; influências; factos sobre a obra, etc., - sem
querer, a conversa com Paula toma outros rumos, escorrega e, trazendo
"cheiros, sons, corais, canções" (v. II, p. 849), passa para a esfera do pri-
vado e, muito, pela condição da mulher na sociedade angolana. Diria que,
ao começar, a entrevista é como as outras, mas, depois, vai tocando um
SILÊNCIOS
corpo-em-diferença, feminino, expondo-o aos olhos do leitor atento. ROMPIDOS]
Tal diferença mostra-se desde a forma como Paula se refere ao
seu único livro publicado até então, Ritos de passagem. Ela diz: "Não
escrevi este caderno, com o objectivo de escrever um livro" (ibidem).
Também a diferença se acentua quando procura centrar a sua fala na sua A palavra portuguesa, legado e imposição do processo
própria c~ndição, referi~do-se à sua como "uma linguagem de mulher" (p. colonizatório europeu, toma-se, mormente na segunda metade do século
851), assim como deseJa ver na sua voz "uma voz [... ] que falasse só XX, pertença ao mesmo tempo pessoal e colectiva dos escritores
enquanto mulher" (p. 852), daí a sua "relação quase fisica com as coisas africanos. Assim, ela, a palavra, começa a desconstruir-se para a seguir
com aquilo que está à volta, os cheiros, os frutos" (p. 853). Também pens~ reconstruir-se como fala do outro. Até então, a assimilação como que cons-
e faz pensar sobre "a situação da mulher na sociedade africana da mulher tituía uma espécie de barreira de linguagem e de expressão simbólica,
. '
enquanto umdade de produção fundamental dessa mesma sociedade, da interposta entre a maioria dos produtores literários e as soluções estéticas
mulher e~ torno da qual tudo girava e que, ao mesmo tempo, parecia um por eles encontradas. Com isso colocava-se em cheque a força dos valores
ser nada Impmi~nte em relação a essa mesma sociedade" (pp. 849-850). ancestrais, sobretudo no que dizia respeito à sua potencialidade de supe-
. Dramatiza-se, na fala de Paula, a situação da própria mulher- ração das armadilhas imaginárias contidas nos modelos ocidentais.
-e~cntora com relação ao ritual canónico de hierarquização e poder, ou Quanto à produção das mulheres, malgrado a sua incursão pela
seJa, a sua expulsão de um cânone que insiste em apontar um centro no chamada "literatura colonial", o acesso ao texto verbal era-lhes duas vezes
qual são apagadas as diferenças. Estas, assim elididas, vão-se abrigar na barrado: por serem mulheres e por serem africanas. Encher de palavras o
margem que, paradoxalmente, é o lugar da plena germinação. Tudo isso silêncio histórico foi para elas uma árdua e dificil conquista. Mesmo
se pode resumir na imagem do grito recalcado pelos que manipulam os depois das independências, quando as nações se constituíram como comu-
cordéis da dominação e do silenciamento. Daí a importância da frase que nidades políticas imaginadas - territorialmente limitadas e organizadas
se pode tomar como sendo a síntese da própria Paula, como escritora de modo soberano (ANDERSON, 1989, p. 14) -,o acesso das mulheres
angolana, e da sua. entrevista: "Eu sinto-my melhor quando grito" (p. 860). à condição de produtoras textuais não foi facilitado. A formação canónica
T~l':'ez seJ~ este grito que nós, pesquisadoras que elegemos 0 em tais nações submeteu-se aos mesmos aparatos ideológicos e aos mesmos
texto femmmo ~fncano como objecto de estudo, estejamos a perquirir, mecanismos de dominação cuja meta, como se sabe, é elidir as diferenças,
sabendo, co~ Lmda Hutcheon, que a "diferença sugere a multiplicidade, sobretudo no que conceme a questões como as de raça e género. A obra
a heterogeneidade e a pluralidade, e não a oposição e a exclusão binárias" Encontro com escritores, organizada por Michel Laban (quatro volumes:
(19~1, p. 89). Assim sendo, é fundamental interrogar o cânone para tentar dois referentes a Angola, 1991, e dois dedicados a Cabo Verde, 19922) serve
ouvir a voz dos que foram compulsivamente nele silenciados pelos como exemplo do procedimento. São entrevistados pelo autor, no conjunto,
ap.aratos de,d~minação. No caso presente: o negro e a mulher. Quem sabe
SeJa esta a umca forma de se chegar à terceira margem, lá mesmo onde é 1. Publicado em Ellipsis. Journal of the American Portuguese Studies
Association. Urbanus, v. 1, 1999, pp. 66-79.
possível ouvir-se o grito da diferença e, através dele, a fala dos excluídos 2. Quando este texto foi escrito não haviam saído os volumes concernentes a
dos rituais canónicos. Moçambique.
158 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 159

meia centena de escritores, entre os quais aparecem apenas duas mulheres: a compreender as aspirações africanas, devido às forças ideológicas que o
angolana Paula Tavares e a caboverdiana Orlanda Amarilis. sustentavam. O quadro assim posto justifica as diversas intervenções na
Tornam-se paradigmáticos, para se compreender o processo de Casa, o impedimento à circulação do Boletim e, na então provín~ia
exclusão que atinge o colonizado e, em especial, as mulheres, estes dois ver- angolana, o fechamento de uma segunda Mensagem, não por acaso subm-
sos, ainda inéditos e sem título, de Paula Tavares: "Enche de palavras o titulada "A Voz dos Naturais de Angola".
silêncio/Com medo de resistir morrendo". O vazio entre os verbos finais As duas "Mensagens" instituem-se como produções simbólicas
remete para o vazio histórico que obrigava o africano a, em silêncio o mais capazes de romper o emudecimento do colonizado, muito embora a sua
das vezes, ser o sujeito em tensão das acções de "resistir" e "morrer", sobre- voz com frequência deva modular-se abafadamente, como modo de burlar
~do. em se ~ratando de mulher duplamente colonizada. A descolonização a todo-poderosa censura pidesca. A metáfora e, em certo sentido, a
sigmfica, pms, uma forma de ruptura do silêncio, tanto ao nível estético, metonímia aí encontram um espaço ideal para realizarem a sua festa lin-
quanto ao ideológico e vários foram os movimentos neste sentido. Dentre guajeira. Proliferam .os pseudónimos e outras formas de escamoteamento
eles, destaca-se o papel representado pelo Boletim Mensagem, da Casa dos e auto-preservação, criando-se uma "articulação estratégica das 'coorde-
Estudantes do Império (CEI), editado, com interrupções, embora, entre nadas do saber'", repetindo Homi Bhabha que, por sua vez, usa uma
1948 e 1964, em Lisboa, cidade-sede da Casa, fundada em 1944. expressão de Michel Foucault (BHABHA, 1992, p. 190). Pouco a pouco
Embora admitindo a condição histórica de ultramarinos, os estudantes vão surgindo faces nacionais bem marcadas no meio do nevoeiro da
~ a su~ ~ublicação transforn1aram-se numa força de resistência à avançada opressão colonialista. Desalicerça-se o Ultramar e alicerçam-se, pelas
Impenahsta, mesmo que de início os seus editores e/ou colaboradores não malhas da diferença, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e
tivessem disso consciência plena. A partir da Mensagem da CEI, como se dará São Tomé e Príncipe, não obstante o facto de, nas publicações, algumas
com outras produções culturais africanas, há um certo enfraquecin1ento dos faces se fazerem mais nítidas do que outras. A descolonização grita a sua
poderosos laços da dominação colonial, tomando-se patente o antagonismo urgência, transforma-se em inadiável imperativo histórico e consolida-se,
cultural que cavava um fosso entre a "Metrópole" (o mais das vezes grafada banhada em sangue, de 1961 a 197 5.
na série com a inicial maiúscula) e as suas "colónias" - aqui, a percepção e A participação no Boletim é eminentemente masculina, dentro
consequente grafia do substantivo com a minúscula é um índice do complexo do previsível, mas as mulheres igualmente nele tomam parte. Como
de colonizado de que fala Fanon (1979). meio de construir, pela trilha da escrita, a nação entresonhada, com
Pouco a pouco toma vulto em suas páginas uma consciência de auxílio da argamassa da ancestralidade cultural, duas imagens tomam
n~ci,o~alida?e talvez vinculada a e/ou explicada pela correcção das forças vulto e se fazem recorrentes nas páginas mensageiras: a da mulher e a
histoncas VIgentes entre 40 e 50 e que contribuíram decisivamente para a do seu duplo, a terra, significando esta o lugar de nascimento, a pátria
difusão de um imaginário cultural cuja base de sustentação era 0 naciona- (HOBSBAWN, 1990). A recorrência a imagens de mulheres torna-se,
lismo. São factores importantes nessa trama: o advento da segunda Guerra pois, uma constante na publicação da CEI, aparecendo com a mesma
M~ndial e o .re~orço que se dá, no pós-guerra, àquele mesmo imaginário, intensidade em textos masculinos e femininos. Nos primeiros, como
veiculado pnncipalmente pelos mass media, o cinema e a rádio à frente. afirl11a Inocência Mata, ela faz-se metáfora genesíaca, pois a mulher é
Reforça-se o processo de consciencialização, ao mesmo tempo individual sempre vista em África como fonte primeira da vida individual e clâni-
e colectiva, emergindo o sentimento nacional como diferença e não mais ca. Nos textos femininos, além de permanecer como metáfora, a repre-
como a outra face do mesmo que Portugal e a construção histórica do sentação adentra a metonímia, esclarecendo a crítica santomense que,
"Ultramar" simbolizavam. "como metonímia, [ ... ], a mulher é também indivíduo com as suas
Sendo produzida numa nação europeia -não importando a auto- dores e frustrações pessoais, as suas esperanças e desejos. E nessa dua-
-percepção de Portugal como um fora/dentro em relação à Europa (SAN- lidade (como indivíduo e como entidade político-cultural: a mátria), a
TOS, 1~9~).- e datando de ~948, Mensagem de algum modo participa da figura da mulher emerge com facetas humanas" (1994, fls. 4-5).
cena histonca onde se assiste ao apogeu do nacionalismo, segundo Expondo de outro modo: ao mesmo tempo em que diz das origens e
Hobsbawn (1990). Transforma-se, em ceiia medida e sob certas condicio- com elas tenta entrever a nação por vir, a mulher igualmente se diz.
nantes, numa resposta possível à impotência do estado salazarista para Engendra-se a nação femininamente. Os dois corpos abraçam-se num
160 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 161

mesmo movimento, buscando, no momento histórico vivido, uma igual político-sociais do imperialismo toma-se o principal vector da nova cor-
forma de dizer-se, no caso, pela continguidade metonímica, principal- relação de forças que é a descolonização. Ao invés da sensualidade da
mente: negra, cujo corpo "esfingico e fatal" era contado na série literária ante.:
rior, o que se vêem são imagens de dor e sofrimento, como em "Godido",
Ah, essa sou eu: publicado por Noémia de Sousa com o pseudónimo deVera Micaia (sepa-
[. .. } rata dedicada à Poesia de Moçambique, [19__], p. 37):
corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis pelos chico-
tes da escravatura ... Minha mãe silenciosa oferecendo-me suas costas
Aji'ica da cabeça aos pés ah, essa sou eu! nuas
(Noémia de Sousa. "Se me quiseres conhe- [ ...}
cer". Mensagem, n° 3, ano XIV, 1962, p. 45) Minha mãe me vir belekar
h~Ímilde e sofredora, com suas tocantes canções
A estética da privação é então usada para, através dela, se plas- de acalentar.
marem colectivamente as imagens do corpo torturado africano que aos
Fazendo par com o sofrimento, a representação da mulher como
poucos perde a ideia de uma unidade composicional, para ganhar o con-
um feixe de energia onde o sujeito histórico em formação busca as forças
. tomo específico das nações emergentes. Há uma busca das origens para,
necessárias para a luta. No mesmo poema-
desse modo, estmturar-se a diferença. Tal busca pode ganhar tanto uma
representação individual (imagens da infância), quanto gmpal (imagens Ah, mas eu não me deixei adormecet:
da tradição ancestral, sobretudo em forma de resgate da oralidade). Levantei-me e gritei contra a noite sem lua
Surgem, assim, no plano da representação, os quimbos, os musseques, as [ ... }
chanas, as savanas etc., ao lado de relatos e/ou rememorações de um míti- Ainda grito,
co tempo infantil onde não se hierarquizavam completamente brancos ou porque quero ser ainda, sempre, pela vida fora,
negros, pobres ou ricos. Tal .tempo, malgrado a "pessoalidade" do eu-lh·i- o que fui outrora: ·
co ou da do ser-narrante, era percebido pelo imaginário também como Rainha nas costas de minha Mãe!
uma constelação, composta por várias figuras. Ganha força, na trama tex-
tual, a energia nacional de que fala Gramsci (1985) e que é, sobretudo, O Boletim Mensagem da CEI abriga essa força em movimento que
colectiva, representando o conjunto das relações intemas de uma nação. A é a.descolonização. Por tudo isso, torna-se hoje um material valioso quan-
ligar os diversos pontos do mapa, a configuração simbólica da naÇão do se quer propor, como no presente caso, uma leitura da configuração
emergente como mulher e mãe, sob as mais diversas formas emblemáti- imagística da mulher entre 40 e 60. As suas páginas abrigam, no conjunto,
cas e em graus distintos de conscientização. Na série, pode apresentar-se textos em certo sentido canónicos das modemas literaturas africanas
de maneira ampliada, como África, ou já ganhando definição específica, expressas em língua portuguesa, não apenas de autoria feminina.
como em "Luanda", poema de Luandíno Vieira (no 3, ano XIV, 1962, pp.
8-9). De um modo ou de outro, privilegiam-se as imagens de mulher como
reforço do quadro composicional da estética da privação. Um coro e três solistas
Desfilam, pelos textos literários ou pelos seus contrafortes -
traduções, ensaios, editais, resenhas, etc.,- mães vitimizadas pelo aban- Se a mulher, no ocidente branco-europeu, se viu excluída da
dono dos filhos em todo o continente ou figuras sociais determinadas história (PERROT, 1988) ou se se fez apenas uma sombra (CUNNIN-
como: as quintandeiras de Angola; as lavadeiras e vendedoras de peixe de GHAM, 19_ _), o mesmo não se pode dizer das africanas, em especial
São Tomé e Príncipe; as flageladas das secas de Cabo Verde; as traba- quando se pensa na etnia bantu. A este propóstico há, num dos números
lhadoras mrais de Moçambique, com os seus filhos às costas. A represen- da Mensagem, um pequeno ensaio paradigmático de Hemique Abranches,
tação de tais corpos vitimados pelas injustas imposições ideológicas e cujo título é "O conflito entre o clã e a família". Nele se deixa claro o
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valor simbólico da mulher na formação das comunidades de origem: pleta: "Em casos de domínio alguém tem que ser dominador, e as rapari-
"todos os membros do grnpo eram parentes por descenderem de uma mu- gas, neste caso, são quem se submete" (idem). A subalternidade feminina .
lher comum" que "dá nome ao grupo", o que explica o facto deste reunir é, pois, um facto consumado para ela.
as "condições essenciais para que possa ser chamado de clã uterino" (no É completamente outra a postura crítica de Maryse Taveira.
11, ano XV, 1963, p. 48). Mudando a direcção do olhar, elege as mulheres como receptoras do seu
Quanto à questão específica da participação das mulheres na CEI texto, não por mero acaso intitulado "Mensagem à juventude feminina".
e em Mensagem, vemos que elas representam elementos de mobilização Em rota de colisão com Lara, ela adve1ie, ao mesmo tempo que conclama,
histórica. Justifica-se, assim, por que o texto inaugural do primeiro
número da série, fora a sua apresentação, seja de autoria feminina (LARA, A mulher é racional como qualquer ser humano, e, assim, ela
1948); porque, em 1958, Inácia de Oliveira se torna a directora da publi- pode exigir o que humanamente lhe cabe de direito na vida. Exi-
cação, editando dois números e porque, no ano seguinte, Leonor Gil e gil; sim, exigir que esses direitos que sempre foram nossos nos
Maria Natália Antunes participam da direcção da Casa, tomando apenas sejam atribuídos com toda a justiça. Mas para isso é necessário
três acontecimentos. uma luta sã e árdua da nossa parte.
Considerando o conjunto da publicação e nele os modos de inter- (p. 11)
venção femininos, privilegiámos os que se referem à produção textual de
modo geral, literária ou não. Ora mais conscientes da sua importância Mudaram-se os tempos, mudaram-se as vontades. Mais que uma
histórica, ora menos; ora aceitando até com certa dose de euforia a lição de Camões é esta a máxima a que se chega, ouvindo as vozes em con-
existência ideológica do ultramar; ora denunciando as diversas formas de traponto de mulheres igualmente colonizadas e dependentes e o sentido de
dominação dela resultantes; ora ingénuas, ora muito avisadas, as mulhe- aceitação ou luta das suas duas falas.
res, como novas fiandeiras dos tempos modernos, tecem palavras para No coro formado pelas várias vozes femininas de Mensagem, três
com elas romper velhos silêncios. se tornam as principais solistas, se se leva em conta, sobretudo, o seu
Dois momentos desses modos de intervenção podem aqui servir papel no processo de formação da moderna literatura dos seus países e na
de paradigma das flutuações ideológicas das mulheres no curso da da própria diáspora africana de língua portuguesa. Pela ordem em que
existência do Boletim. Trata-se de dois textos dogmáticos assinados aparecem no Boletim são elas: Alda Lara (Angola, então estudante de
respectivamente por Alda Lara (1948, n° 1, ano I, pp. 2-9) e por Maryse medicina); Alda do Espírito Santo (São Tomé e Príncipe, professora
Taveira (1959, n° 2, ano II, pp. 11-12), segundo a confusa numeração da primária) e Noémia de Sousa, que usa também o pseudónimo de Vera
série. Ambos estabelecem um contraponto entre si e mostram como as Micaia (Moçambique, jornalista). De certa forma, com tais figuras de
mulheres se viam no espelho da ordem social do seu tempo. mulher se caminha de um sentido estreito de pátria - percebido, como
Alda Lara, na palestra com a qual recebe e saúda os novos estu- mostra Hobsbawn em relação ao século XVIII, como o lugar onde se
dantes, deixa patente que os pensa como um masculino. O texto, simbóli- nasceu (1990, p. 28) -,para uma consciência nacional que, no caso das
ca e sintomaticamente, intitula-se "Os colonizadores do século XX" e então colónias portuguesas, toma a forma de um movimento "para a inde-
aceita a inevitabilidade da colonização e do ultramar. Por outro lado, ao pendência e a descolonização", identificado "com o anti-imperialismo
referir-se à necessidade de que os estudantes regressem às suas terras de socialista/comunista", segundo a análise do mesmo Hobsbawn (p. 177). A
origem, o que se dará depois de concluídos os estudos, ela imagina-os, nação imaginada, na produção textual dessas mulheres, tem, no entanto,
nesse devir, casados com metropolitanas, suas futuras "auxiliares", em um mesmo ponto de convergência: a identificação do sujeito feminino
contacto com quem "os criados negros hão-de absorver uma civilização com uma mátria mais do que com uma pátria. Tal processo identificatório
maior" (p. 8). Os desvios ideológicos dessa fala são flagrantes demais leva-as a eleger as mulheres como actantes, de um lado, do drama africano
para que mereçam comentários, mas a perplexidade do leitor não pára aí. da pauperização e, de outro, como a força motriz da cosmogonia do con-
Focando as "raparigas africanas", também estudantes, diz a autora tex- tinente. Os poemas "Presença", de Alda Lara (Mensagem, sln, Maio de
tualmente que o seu papel "embora sendo importante não é primordial 1962) e "Se me quiseres conhecer", de Noémia de Sousa, já citado, ates-
como o vosso" e que elas devem seguir os futuros maridos, pois- e com- tam a impmiância do processo.
164 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 165

Alda Lara: exuberante, contrapondo-a à da cidade metropolitana, com os seus ruídos


cinzentos, onde o eu-lírico está quase como um exilado, no melhor estilo,
E apesar de tudo
por exemplo, do romantismo brasileiro do século XIX:
Ainda sou a mesma!
Livre e esguia Regressar. ..
Filha eterna de quanta rebeldia Poder de novo respirar
me sagrou. (oh! ... minha terra! ...)
MãeAjrica! aquele odor escaldante
Mãe forte da floresta e do deserto. que o húmus vivificante
(p.7) do teu solo encerra!
(p.15)
Noémia de Sousa:
O tom desse primeiro poema muda-se um pouco nos que subse-
E nada mais me perguntes quentemente se publicam em Mensagem, muito embora o sujeito lírico
se é que me queres conhecei~ .. continue a falar de fora para dentro. Tem-se rememoração mais do que
Que eu não sou mais que um búzio de carne acção e há uma marca claramente exortativa, seja no soneto "De longe"
onde a revolta de Ajrica se congelou, (separata Mensagem Angolana, 1948, p. 4), seja em "Rumo" (n°' 8/9/10,
seu grito inchado de esperança. ano I, 1949, pp. 5-6), onde se lê: "é tempo, companheiro!/Cami-
nhemos .. ./Lá longe a Terra chama por nós" (p. 5).
A produção de Alda Lara é o primeiro estágio, por assim dizer, do A atitude anímica do eu-lírico nos poemas é a de alguém que está
proc~sso de m~r~ulho no sentimento nacional. A princípio, na saudação já como que exilado da concreta realidade histórica do país natal; daí Alfredo
ref~nda, ela d~nge-se aos estudantes ultramarinos como "os jovens que Margarido (Mensagem, s/n°, Maio de 1962) descrever a poetisa como "des-
serao os colomzadores futuros" e/ou como os "colonos modernos, os pre- garrada", o que justifica pelo facto da sua poesia assentar "em grande parte
cursores da nova epopeia" (p. 2). O processo colonizatório não é recorta- numa atitude utópica que desconhece os elementos da realidade" (pp. 11-12).
do como um exercício de dominação, mas como uma resultante da anan- Paradoxalmente, o poema "Presença", último publicado neste mesmo número
cada épica dos colonos portugueses, principalmente no século XIX. do Boletim, onde se anuncia a sua morte, representa uma aproximação maior
Opõe-se, no manifesto do texto, Metrópole a colónias, no jogo de ape- em relação ao objecto do canto poético que deixa de ser a tena natal para ser
quenamento atrás sublinhado. No entanto, e em consonância com a África, percebida em forma de um todo simbólico, como atrás se viu. Terra,
própria propaganda do Estado Novo, ela exalta Angola, mostrando a no poema, é sinónimo desse todo. O eu-lírico aproxima-se mais do povo, ale-
"força he~cúlea dessa colónia jovem e transbordante de energia, catorze gorizado pela maiúscula:
vezes mawr que Portugal continental" (p. 4). Fechando a sua fala exorta
Terra!
o estudante, de volta à terra, a "estreitar com mais força os laços qt;e unem
Ainda sou a mesma!
a M~tr~~ole à gran~e colónia", para que ele venha a "ter um dia um lugar
Ainda sou
na h1stona da colomzação moderna" (p. 9). A metrópole é o grande sujeito
a que num canto novo
no texto de Lara que se acumplicia com o estabelecido e reforça os
pura e livre,
aparato_s i~eológicos existentes. Apesar de ser assinada por uma mulher, a
saudaçao e branca, europeia e machista.
me levanto
ao aceno do teu Povo! ...
Ainda no primeiro Boletim, aparece o já hoje clássico poema
(p. 8)
"Regresso", onde se conobora a visão quase edénica da terra natal, não
nomeada, e onde "natureza" se opõe a "cultura", por assim dizer.
Tal aproximação do objecto toma vulto nos dois textos de Alda do
Incorpora, em certa medida, a estereotipada visão da África selvagem e
Espírito Santo, publicados em 1949 e 1963. O primeiro deles é "Luares de
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África" (no 7, ano I, pp. 13-15). Ao contrário do que possa sugerir o títu- intensificam-se as imagens da privação e da espoliação económica, e o
lo, o breve ensaio não remete para uma visão do mundo natural, mas, sentido de denúncia da fala poética que conscientemente vai adensando os
ironicamente, faz-se uma denúncia clara da vitimização da mulher contornos da face nacional, vincada pela rasura histórica de séculos de
africana. De saída, contrapõe-se à estereotipia da visão de África, tal silenciamento.
como se apresentava, por exemplo, em "Regresso". O sujeito recusa-se a Aprofundando o mergulho em busca de uma face nacional a ser pro-
vê-la como "grande continente de calor, terra grande de gente escura, de jectada no espelho de uma nova história, chega-se à poesia de Noémia de
flora ridente e esquisita", e diz: Sousa, a solista entre as solistas, como a seguir se verá. Dela, 40 anos depois
da edição clandestina de Sangue negro (1951), o poeta António Jacinto, na
Eu não vejo essa Áfi'ica. Vejo a África real e abraço no meu pro- entrevista concedida a Michel Laban, dirá: "Lemos os poemas de Noémia de
blema os luares escondidos dessa terra prodigiosa de séculos de Sousa e a primeira impressão é que tínhamos sido lesados: a Noémia tinha
esquecimento [ .. }sigo passo a passo a história da mulher de pele escrito os poemas que nós gostaríamos de ter escrito- é esta a sensação!"
bronzeada- que é a minha história, das avós dos meus avós e da (1991, v. I, p. 166). Antes dele, na própria Mensagem da CEI (n° 1, ano XV,
geração futura. 1963), afirma Alfredo Margarido - "Basta ler esse poema único que é
(p. 13)
'Deixa passar o meu povo' para sentirmos, vibrante, uma marcha fecunda,
impaciente, ordenada, inexorável de um povo que Noémia de Sousa car-
rega no sangue, não apenas na pele, mas na consciência" (p. 28). O poeta
Para encenar tal África e dar vazão à sua fome de denúncia, Alda do e o crítico, homens do tempo da escritora, captaram o movimento de base
Espírito Santo busca a imagem da "Negra", valendo-se também do processo
da sua manifestação poética que se afirma como moçambicana: a ino-
de alegorização pela maiúscula. Chama-a de "mártir", descreve a sua "sina
vação e a consciência da identidade. Tal processo será o centro do inte-
fatal", mostrando-a como "a última que é a última entre os negros que já são
resse e de nosso próprio mergulho, embora epidérmico, em Sangue negro,
últimos na concepção dos demais povos da categoria civilizada" (p. 14).
até hoje não editado, mas cuja cópia clandestina continua a correr pelas
Coloca-se, pois, no palco histórico, a questão da raça e a do género: negro e
mãos do público-leitor da literatura de Moçambique, nação que os seus
negra·totalmente silenciados, esta ainda mais do que aquele. Conclama-se a
textos ajudaram a construir. 3
transfmmação histórica e surge, manifesta no texto, a palavra libertação.
Em Mensagem da CEI aparecem, ao todo, três dos seus poemas,
Assim se encerra em revolta "Luares de África", que subverte o até então
além de diversas alusões à sua obra. Dois deles já foram aqui citados -
confmiável quadro da realidade afi'icana, tão ao gosto dos aparatos ideológi-
"Se me quiseres conhecer" e "Godido" - . O terceiro, "Samba", é publi-
cos do dominador:
cado duas vezes na separata dedicada à Poesia de Moçambique e em 1959
(n° 1, ano II). Em virtude de a pmie seguinte destacar a obra da escritora
[ .. .} a sua voz não se levanta. Morre na distância. Ela nem voz como um todo, deixamos de lado o que concerne ao Boletim.
tem. É escrava. -É mulher negra. [. .. } É vítima de todos. [. ..]. A
nossa raça não poderá erguer~se enquanto se não tentar dar à
mulher- às últimas da sociedade- um campo aberto com o O alumbramento de um corpo - África
privilégio de se poderem considerar com direitos.
(p. 15) Não por acaso, a obra Sangue negro abre com epígrafes de Miguel
Torga e Carlos de Oliveira, neo-realistas portugueses. Os versos do segun-
A busca de tais direitos é o movente da intervenção poética de do -"Para quem espera, como nós,/é sempre a hora de cantar"- tornam-
Alda do Espírito Santo, como se dá com "Angolares", único poema da -se emblemáticos do projecto poético de Noémia de Sousa, se se leva em
autora a aparecer na série da Mensagem (pelo menos nos 28 números de
que dispomos). Muito embora o objecto do olhar sejam os pescadores de 3. Posteriormente, de facto, em Setembro de 2001, Sangue negro, de Noémia de
São Tomé, que navegam em seu "barquinho da fome", "remando, reman- Sousa, foi editado em Maputo, pela AEMO, em edição que a Autora quis manter
do/no mar dos tubarões /p'la fome de cada dia" (n° 2, ano XV, p. 17), intacta, sobre a versão original de 1951. (N. E.)
168 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 169

conta que tal projecto se equilibra entre os pólos da espera e do canto- assumir marcas discursivas explícitas de um sujeito-mulher, a sua poesia
-libertação. Não dispondo ainda- entre 1948 e 1951, período em que se irrompe em forma de um feminino convulsionado pela revolta e por uma
escrevem os textos, todos datados - das armas com as quais pudesse liber- inadiável ânsia de libertação:
tar-se plenamente e submetido ao silenciamento histórico-cultural, o sujeito
lírico assume a consciência da força do seu canto como uma estratégia de - quero o som único das marimbas chopes,
resistência. Valendo-se da arma do outro, a escrita, tal sujeito vai tentar o feitiço estranho da viola cheia de icuembo do Daíco,
minar-lhe o poder nessa hora de expectativas e desejo de transformação armada toda em poesia,
(MONTEIRO, 1985). vazando lágrimas coloridas de melodia
Entretanto, a espera anunciada não significa passividade, mas pelos becos noturnos da Munhuana!
deve ser tomada como sinónimo de esperança nos 43 poemas da colec-
tânea. Por eles, Noémia faz jorrar o "sangue negro" de um povo e alça a Pedindo para deixar passar o seu povo, ela declara:
sua voz por sobre o vazio da história da opressão colonialista. Não é gra- "Nervosamente/eu sento-me à mesa e escrevo/[ ... ] deixa passar o meu
tuito o facto da primeira parte da obra e do poema de abertura se povo". Mobilizada por esse nervosismo, solta a voz, como forma de
chamarem "Nossa voz". A não-gratuidade reforça-se ainda mais pelo resistência e preservação, mantendo, assim, a tradição ancestral que tinha
facto deste texto inicial ser dedicado a José Craveirinha, tão empenhado nesta voz um instrumento de mobilização colectiva. A roda onde o texto
quanto ela, Noémia, em gritar pela liberdade: oral circulava era congraçante e extensiva e um meio de transmitir ao
povo os conhecimentos indispensáveis para conservá-lo culturalmente
Nossa voz ergueu-se consciente e bárbara vivo. Tudo se dava pela força da performance dos velhos contadores no
sobre o branco egoísmo dos homens antigo mundo africano. Por isso, e em certa medida, pode-se ver, na voz
sobre a indiferença assassina de todos que em feminino se deixa ouvir nas páginas de Sangue negro, uma exten-
[ .. .} são e um resgate da tradição já transformada, daí o facto de o sujeito
nossa voz trespassou a atmosfera conformista da negar-se a ficar solitário, exigindo a presença de outras vozes, o que faz
cidade do seu um canto colectivo. Cantam com e pela voz de Noémia: os seres
e revolucionou-a. 4 vitimados da sua terra; os torturados corpos marcados "pelos chicotes da
escravatura" dentro e fora da África, enfim, os negros de todo o mundo.
A voz desse modo erguida e caracterizada como "shipalapala" e Como na tradição, o eu do griô só se realiza quando se faz um com os que
"atabaque" liberta o grito do eu-lírico, feminino em sua configuração mais o ouvem. E é isso que o canto de Noémia propõe: desdobrar-se como um
profunda. Fazendo-se uma forma de mobilização do corpo histórico, ele, colectivo.
o grito, feminiliza, por sua vez, a própria dicção poética, pela busca fre- A nação surgida nas malhas desse canto mobilizador é igualmente
mente de dizer o até aí indizível, já que, como explícita Lúcia C. Branco feminilizada, pois está tentando dizer o indizível naquele momento
- "A tentativa de dizer o indizível parece ser, de facto, um traço recor- histórico. Assim, ambas, mulher e nação, têm a ligá-las o desejo de esta-
rente da escrita feminina. Simbólica, enquanto linguagem verbal, essa belecer um outro sentido para as suas fronteiras, atravessando-as (BHA-
escrita resiste[ ... ], buscando 'encostar' a palavra à coisa e atingir o além BHA, 1992). Identifica-as o mesmo impulso de revolta e luta, daí Noémia
do signo" (1989, p. 112). dizer: "O que importa/é que se abra a porta." Tem-se, portanto, movi-
O principal traço significante da escrita de Noémia é a sua femi- mento, ao invés de passividade. Deslocam-se as barreiras. Adentra-se o
nilidade, essa vontade de "encostar a palavra à coisa", que, no caso, é a reino do próprio, o fundo da sua fala-grito; seu anseio. E isso se realiza na
nação imaginada. Tenta, com o procedimento, ultrapassar os signos ainda língua legada pelo outro que se quer vencer. Ela torna-se o veículo da
restritivos do discurso da nação. Por outro lado, mesmo muitas vezes sem expressão poética e, sendo portuguesa, embora, já não o é mais, pois fez-
4.Não se apontam as páginas das citações dos poemas de Sangue negro por a sua
-se diverso o sentido da comunidade humana que dissemina e que, neste
numeração não ser sequencial, na cópia de que dispomos e que, como se pode pre- novo tempo histórico, se busca (SAID, 1995). Estabelece-se, pois, o con-
ver, se faz um material fi:ágil. traponto; cria-se o dissenso, especialmente pelo estrangeirismo que o
170 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 171

código verbal passar a significar, quando é seminado pela língua nacional se coloca. É como se buscasse fortalecer a energia nacional, no sentido
moçambicana, ou melhor, por uma delas- cf. o título da terceira parte da gramsciano. Ganha corpo, assim, um "novo processo de subjectividade" e
obra, "Munhuana", e os versos que seguem, por exemplo: por ele assiste-se ao "espetáculo da alteridade", usando expressões de
Homi Bhabha (1992, p. 180). Começa a desmoronar-se o edifício
Eu não percebo o teu português eurocêntrico da cultura imperialista. Atam-se outros nós com os fios dessa
patrão, mas sei o meu Iandim nova subjectividade, dita também como nós. O desejo de transformação é
que é uma língua tão bela mostrado como um desejo de todos, o que o torna mais ameaçador. A voz
e tão digna como a tua, patrão. que verbaliza o anseio de mudança faz-se, no quadro assim posto, uma
agenciadora da força colectiva:
Nesse trajecto em certo sentido genesíaco, o corpo-poema do eu-
-lírico e o da nação por vir são mentados como mulher e mãe em suma Não mais, na noite...
como mátria. Ambos se vestem com a capulana, traje típico f~minino d~ E nós iremos de mãos dadas,
Moçambique, daí a razão de o significante ser por diversas vezes convo- amigo,
cado nos poemas de Sangue negro- cf. "quente capulana negra"; "nos- pelos trilhos abertos de Moçambique
sos corpos capulanas quentes", "capulana de ternura"; "capulana negra da mergulhados no clarão eterno do dia infindável.
noite sem estrelas", etc .. A roupa, pela sua cor, "negra", e por servir de
protecção- "ternura", "quente"-, confunde-se com o corpo de África A representação do quotidiano moçambicano é um meio de forta-
e c.om o corpo da mulher, oferecendo-se-lhes como uma segunda pele. Os lecer a ânsia de libertação. Identifica-se o povo com a nação que se dese-
dms corpos cobrem-se de signos nacionais e representam-se por uma ja ver emergir. No discurso de Noémia de Sousa já se delineia um sentido
mesma pulsão amorosa, plasmando-se imagisticamente como parte do de nação (BHABHA, 1995) que não se confunde mais com o conceito de
"clã uterino" de que fala Abranches. Explica-se, por tal via, porque, ao ultramar ou com o sentido da nação imaginada que é Portugal. Desfilam
lado do signo mãe, smja um outro, irmão, um dos grandes nucleari- pelos poemas as figuras anónimas do dia-a-dia moçambicano, ressaltan-
zadores da poesia de Noémia. do-se, dentre elas, as das mulheres vitimadas pela privação e em tudo
Os actantes que desfilam pelas cenas poéticas, sejam eles ho- diferentes daquelas que, nas etnias de origem, garantiam a face simbólica
mens ou mulheres e/ou seres do passado pessoal do eu-lírico ou do seu do grupo. Uma esplêndida metáfora dessa vitimização aparece em
~re:ente histórico-social, todos se abrigam sob a capulana do significante "Moças das docas" que dá voz às prostitutas de Moçambique, com os seus
mnao, adensado no "Livro de João", outro dos segmentos da coletânea. "corpos submissos escancarados" e consumidos pelo cigarro, álcool,
João 1!endes, o iniciador político, transforma-se na síntese dessa repre- enfim, pela miséria. No entanto, pelo facto de a mulher conter em si o
sentaçao, tornando-se o irmão entre os irmãos. O gesto fraterno, no entan- embrião da resistência e da vida em expansão, o poema fecha-se na clave
to, não se esgota nele; pelo contrário. Busca os magaíças, as mananas, os da esperança:
meninos miseráveis, as prostitutas, alguns personagens da história socia-
lista contemporânea, como o líder comunista brasileiro Luis Carlos E para além de tudo,
Prestes, .e os negros de todo o mundo, dos quais Billie Holliday é exem- por sobre Índicos de desesperos e revoltas,
plo, assim como Robeson e Marian, todos americanos. O movimento fatalismo e repulsas,
fraterno, inclusivo mais que tudo, pode-se bem sintetizar nestes versos de trouxemos esperança.
"Solidão" - "Quero esta maré índica de irmãos,/vazando e enchendo à
minha volta, a toda a hora,/sempre viva, humana, presente!" O esquecimento da privação e a resposta da esperança vão-se
O mesmo impulso fraternalmente inclusivo leva a poetisa a eleger transformar "no alicerce para lembrar a nação, para repovoá-la, imagi-
o_pronome da primeira pessoa do plural, nós, e todos os demais que lhe nando a possibilidade doutras formas opostas e libertadoras de idenfi-
sao correlatos, como outra constelação nuclear. Embora sem abrir mão da cação cultural" (BHABHA, 1995, p. 25). Sangue negro é um impulso de
sua pessoalidade, Noémia constrói por palavras a teia do colectivo no qual repovoamento da nação, a partir da sua identificação cultural com os va-
173
Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções
172

lores africanos, impulso que se manifesta nos interstícios metafóricos dos


textos poéticos. Sai-se de Portugal, chega-se a África e jogam-se as ânco-
ras em Moçambique.
O tempo surgido no novo agenciamento das forças de transfor-
mação é, pois, percebido como um tempo messiânico pelo qual o passado
é pensado em sua relação de simultaneidade com o futuro, fazendo-se o
presente uma breve cintilação (BENJAMIN, 1980). Projecta-se uma nova
humanidade, pintada com as tintas da utopia e com as cores da "Paz e
A ENCENAÇÃO 1)0 CORPO
Fraternidade" ou com as de uma "nova vida plena de harmonia"- cf. "Se POR TRES
me quiseres conhecer".
Como nas antigas comunidades de origem, no ventre de uma mu- POETISAS AFRICANAS!
lher começa a gerar-se um novo clã, só que não mais dentro do discurso
mítico, mas nos intrincados caminhos da escrita literária, sempre inespe-
'?"
"Eu procuro signos, mas d e que.
rado alumbramento. Tal clã, no caso da palavra poética e no desejo da
cidadã Noémia de Sousa, recebe o nome de nação e, escrevendo-se na teia Roland Barthes
da linguagem, inscreve-se no grupo social como proposta de ruptura e
reconversão. Ruptura, porque rasura o conceito de imperialismo, perce-
bido como o domínio de um outro que, de fora, tem o controle da terra Na voz das mulheres "assimiladas", o outro- português
(SAID, 1995). Reconversão, porque, buscando o passado, com ele procu- _ e seu modelo poético, pouco passível de discussão, principalme?te
ra "contaminar" o futuro e assim fazer falar o mesmo de uma identidade porque, sendo africanas, ocupavam, do ponto de vista do, olhar eur~ce~­
que por tanto tempo teve de esconder-se. trico 0 fundo do fundo da cena histórico-cultural deste seculo, e .nao so.
Com o seu grito feminino, com o seu corpo África convulsionado o m.'odo como pensavam/escreviam a poesia radicava no que v1nh~ de
pela revolta, N oémia de Sousa escreve a nação imaginada, africanamente "lá", conforme se pode perceber nos versos de "Ch?r,.?" ~ ~e. Ermelm~a
dando-lhe forma de mulher. Para tanto, como nos ritos de origem, espa- Xavier, uma barcarola em redondilhas, na melhor trad1çao 1benca, e escn-
lha sobre a terra o seu Sangue negro, preparando-a para que nela surja ta nos anos 50:
uma nova vida, ou seja, uma nação livre e soberana chamada
Moçambique. Ai barco que me levasse
a um rio que me engolisse
donde eu não mais regressasse
p 'ra que mais ninguém me visse!
Ai barco que me levasse
sem vela ou remos, nem leme
p 'ra dentro de todo o olvido
onde não se ama nem teme.
[ .. .]
Ai barco que me levasse
toda estendida em seu fundo!

-l p blicado em 0 despertar de Eva: género e identi.dade na ficção de língua


p~rt~guesa, organização de Maria Luíza Ritzel Remédtos, Porto Alegre, EDIPU-
CRS, 2000, Coleção Memória das Letras 3, pp. 165-184.
175
174 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções

Nesga de céu a bastar-me signos. Escolho, em forma de primeiro mote, a questão da desterritoria-
toda a saudade do mundo! lização (DELEUZE e GUATTARI, 1977), conceito que, pelo excessivo
(Antologias de poesia, v. I, 1994, p. 57) uso, pode correr o risco de esvaziamento. Consid~rando-o, porém, ~orno
portador de justificada eficácia teórico-metodológ1ea, retomo-o aqm, por
Na voz das mulheres "revolucionárias", em contrapartida, o perceber que as poetisas africanas contemporâneas buscam outras formas
próprio -africano -ressurgido com o projecto colectivo da descolo- de desterritorialização pelas quais possam ainda minar a chamada grande
nização e com o sonho de criação de um corpo nacionalmente soberano. literatura, tentando encontrar meios de reforço da sua própria diferença.
Nesse momento, ouvem-se as vozes-espadas dos/das poetas que se No entanto, o caminho escolhido afasta-se do percorrido pelas anteces-
"armam" para gritar a sua diferença e rebeldia. É o que faz, em "Se me soras, ou seja, elas buscam a territorialidade do próprio corpo, como
quiseres conhecer", Noémia de Sousa, também nos anos 50. O seu texto lugar de inscrição, ao invés da terra, como adiante veremos. Procuram
projecta uma nova face, moçambicana, ao mesmo tempo esculpida com as uma forma outra de um sujeito feminino e, por isso mesmo, fragmenta-
cores da dor antiga e do orgulho renascido: do, estar na linguagem e de o poema estar na branca folha de papel. Com
isso há uma tentativa de abalar o edificio estético ainda androcêntrico,
Se me quiseres conhecer; embora africano, abrindo-se o texto para novas e, às vezes, surpreen-
estuda com olhos bem de ver dentes encenações de sentido. Ela, a escrita, que já se quer feminina,
esse pedaço de pau preto caminha, pois,
que um desconhecido irmão maconde
de mãos inspiradas
talhou e trabalhou
em terras distantes lá do norte. Do silêncio ao grito
Ah, essa sou eu:
órbitas vazias no desespero de possuir a vida, Para se pensar a oposição silêncio vs. grito na poesia africana pro-
boca rasgada em feridas de angústia, duzida por mulheres, vale lembrar o esforço feito pelas ocidentais para, a
mãos enormes, espalmadas, partir basicamente dos fins do século XIX e início do século XX, encenar
erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça, o seu corpo-em-diferença. Sem rótulos temporais rígidos e assumindo o
corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis risco da generalização, convoco um nome: Virgínia Woolf. Ele é um dos
pelos duros chicotes da escravatura ... marcos possíveis dessa tentativa de reescrita da mulher por si mesma.
Torturada e magnifica, Na África, porém, tal processo retarda-se, pelas razões históricas
altiva e mística, já esboçadas. De qualquer modo, é bom reiterar-se que as poetisas
AjNca da cabeça aos pés, africanas adiam o pacto explícito com as questões de género, melhor
- ah, essa sou eu! dizendo, do seu género. Mesmo quando se tramam com intensidade maior
(Antologias de poesia, v. 11, 1994, p. 217) as redes das falas poéticas femininas, como vimos em "Silêncios rompi-
dos" (1999), que aqui retomo,- por exemplo, Alda Lara (Angola), Alda
A pergunta a ser posta, neste momento, é: decorridos quase 25 do Espírito Santo (São Tomé e Príncipe) e Noémia de Sousa (Maçam-
anos das independências dos países africanos de língua oficial portuguesa bique), hoje partes do cânone africano em formação, por assim dizer-,
(1975), o que cantam as vozes femininas libertadas? De que fala, como tais questões não ganham a força previsível em tempos de Simone de
fala, para quem fala, por que fala a mulher inscrita nas páginas da poesia Beauvoir, Clarice Lispector, Anai:s Nin, entre outras. Os textos femininos
hoje escrita? produzidos em África mostram que, em graus distintos de conscientiza-
O texto, que ora começa a articular-se, propõe-se como uma ten- ção, embora, as produtoras pensam a sua contingência histórica de colo-
tativa de resposta a tais indagações ou, por outras palavras, e voltando à nizadas, mais do que se vêem como sujeitos de género. Por outras
epígrafe (BARTHES, 1981), como o resultado da minha própria busca de palavras: o género quase silencia, até aos anos 80, enquanto a pertença das
176 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 177

mulheres enunciadoras a África, a uma causa e/ou a uma etnia se exalta. Eu acho que quando comecei a escrever, isso foi uma opção, no
O nós se faz maior que o eu, durante o processo de libertação. Que fale fundo dar voz àqueles que não têm voz, um bocado isso. E reivin-
Alda do Espírito Santo: dicar qualquer coisa. Naquela altura estávamos já a pensar
numa independência, que 'este país é nosso', muito no ar, sem ir
Mas nós queremos ainda uma coisa mais bela. muito além disso ... jovens a quem tudo parecia possível ... No fim
Queremos unir as nossas mãos milenárias, é, isso, não poder escrever doutra maneira. Também, para mim,
das docas, dos guindastes,
quando eu dizia África era Moçambique.
das roças, das praias,
(1994, p.l17)
numa liga grande, comprida,
dum pólo a outro da terra
O acto de "dar voz ao outro" adia o de se dar voz e a seu corpo.
p 'los sonhos dos nossos filhos
Se compararmos o que declara outra poetisa, Paula Tavares, também
para nos situarmos todos do mesmo lado da
numa entrevista, só que a Michel Laban, veremos como esse corpo silen-
canoa. ciado vai ganhando contorno mais definido e se dizendo como alteridade,
(No reino de Caliban, v. II, 1976, p.458) em "uma linguagem de mulher", como ela diz. Confiramos outras partes
desta entrevista, em montagem por mim aqui proposta:
O eu-lírico surgido no texto tem, por tudo isso, como seu duplo,
a África, daí o corpo telúrico fazer-se uma imagem mais que forte em poe-
O que eu queria era encontrar um caminho poético para
mas como, por exemplo, "Presença africana", de Alda Lara, texto no qual
expressar essa relação quase fisica com as coisas, com aquilo
a mulher se identifica totalmente com a terra, vista como "mãe" e/ou
que está à volta, os cheiros, os frutos [ .. .] enquanto mulhe1~ ao
"irmã", e na sua força exuberante de natureza, mais que de cultura
mesmo tempo que há essa preocupação da voz própria, também
E apesar de tudo há muitos gritos que normalmente nós, como mulheres - [ ...} -
ainda sou a mesma! somos ensinadas a guardar para nós próprias: a sensualidade é
Livre e esguia, um deles. A mulher[... ] não põe cá fora os problemas que tem em
filha eterna de quanta rebeldia relação à sua própria sensualidade. E eu achei que podia pôr
me sagrou. isso.
Mãe-África! . [ ..}
Mãe forte da floresta e do deserto, Eu sinto-me melhor quando grito.
ainda sou (1991, v. li, pp. 853 e 861)
a Irmã-Mulher
de tudo o que em ti vibra É esse "grito", apontado por Paula Tavares, que se adensa cada
puro e incerto .... vez mais no tecido poético tramado, hoje, pelas mulheres africanas. Pela
metáfora ou pela metonímia, o sujeito lírico vai-se relacionando de
(Poesia, 1979, p.l5)
maneira, usando as palavras da entrevistada, "quase fisica com as coisas",
0 que leva a uma outra forma de percepção dessas mesmas coisas. A
O silêncio, na representação do corpo feminino, justifica-se, no maneira de estar na linguagem como que se desimobiliza, criando-se uma
quadro assim posto, em virtude da existência de outros silêncios que cla- nova correlação de forças imagístico-discursivas.
mavam, com mais urgência, para serem rompidos. A ânsia - retomando Chega-se, por tal via, a outras soluções, seja no grafema poético,
o que afirmei atrás - de criar um corpo nacional, fincando-o por fortes pela busca de um novo modo de dispor os versos na brancura do papel;
raízes na terra fisica e simbólica, como que adiou essa mirada para si seja, por exemplo, na deliberada rasura das fronteiras entre a poesia e a
mesma, por parte das mulheres, entre os anos 50 e 70. Ouçamos Noémia prosa; seja, ainda, pelo abalo do edificio linguístico, isto é, pelo facto de
de Sousa, mais uma vez, agora em entrevista concedida a Patrick Chabal: o texto incorporar, com frequência, as outras línguas nacionais africanas
178 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 179

que convivem com o português, isso quando a produtora não opta por ver- das fronteiras", usando a expressão de Linda Hutcheon (1991, p. 95). Não
sões distintas do poema, como se verá, dizendo-o, ora em português, ora dá para pensar as literaturas africanas, sem se levar em conta tal lin-
num dos idiomas locais. guagem, ainda mais se o olhar mira seus recônditos, ou seja, a fala das
Irmanam-se, nessa pulsão transformadora, por exemplo, tanto a mulheres, duplamente "ex-cêntricas". E volto a Linda Hutcheon para
produção da mesma Paula Tavares (Angola) quanto a de Vera Duarte fechar este parênteses teórico:
(Cabo Verde) e a de Odete Costa Semedo (Guiné-Bissau), respectiva-
mente nas obras: Ritos de passagem (1985); Amanhã amadrugada (1993) Ser ex-cêntrico, ficar na fronteira ou na margem, ficar dentro e,
e Entre o ser e o amar (1996). Todas elas nos levam- também como apesar disso, fora é ter uma perspectiva diferente, que Virginia
leitoras com género ou seja, repetindo Vera Queiroz, como um "elemento Woolf [ .. .}já considerou como sendo 'alienígena e crítica', uma
marcado na recepção das obras e implicado tanto no texto, quanto no perspectiva que está 'sempre alterando seu foco 'porque não pos-
efeito estético" (1997, p. 58)- a querer desvestir as artimanhas dos seus sui força centralizadora.
(Idem, p. 96)

Corpos femininos encenados em papel Creio que os textos poéticos aqui buscados significam um exercí-
cio de "alteração de foco", uma recusa explícita de aceitarem qualquer
força centralizadora, como norma ou cadeia. É como se aquele corpo de
O próprio facto de ter trazido Barthes como mote epigráfico e o que fala Barthes- "molengo, morno, na maciez exacta, fofinho" (1981,
de ter escolhido a questão do corpo como categoria representativa privi- p. 62) - resolvesse expandir-se, no jogo claro vs. escuro da letra no
legiada, já mostram o trançado teórico do meu texto, que, de forma evi- papel. Ouve-se, então, a voz outra, em diferença, mas sem qualquer
dente, passa pelo próprio Roland Barthes e por Hélene Cixous. No entan- empenho de negação. Este texto quer surpreender, justamente, um pouco
to, a teoria não se faz meu objecto agora, daí porque a terceira voz críti- do exercício ex-cêntrico que tanto se representa na metáfora do corpo de
ca, já atrás manifesta, de Vera Queiroz, pode bem sintetizar o meu per- mulher como escrita, quanto na metonímia, ou seja, no dizer de Vera
curso, aqui e agora. Falando sobre Barthes e Cixous, na obra Crítica Queiroz, do corpo do texto como escritura. Para começar,
literária e estratégias de género (1997), e sobre a questão da volta de
~mb~s ao corpo, como metáfora e metonímia de inscrição do sujeito, da
1dent1dade e da escrita, diz a autora brasileira, que aqui ecoo:
1 - Novos grafemas de cheiros e tactos
Existe um núcleo comum a ambos os projectos ~ o de Barthes e
o de Cixous ~ que reside na abertura propiciada pela noção de Em Ritos de Passagem, de Paula Tavares, há uma parte - a
texto ao stljeito que lê e ao stljeito que produz a escritura: tanto primeira- chamada "De cheiro macio ao tacto" (pp. 7 a 17). O compro-
numa, quanto noutra perspectiva, estão inscritas determinadas misso sinestesicamente perturbador já se firma pela migração da maciez
(culturais, históricas) que participam ao mesmo tempo do campo para o cheiro e, não, para a previsibilidade do tacto. Primeiro gesto de
metafórico (o cmpo enquanto discurso, escrita) e do campo rebeldia ou de alteração de foco, no dizer de Virgínia Woolf.
metonímico (o cmpo enquanto escritura). Já africanamente dispostos a perconer o rito da leitura, ou da ora-
(1997, p. 69) lidade fantasiada de escrita, a partir do primeiro poema, "Cerimónia de
passagem", nós, leitores, nos preparamos para o jogo, enunciado no mote:
Isto posto, em termos teóricos, só gostaria de mais uma achega, "a zebra feriu-se na pedra/a pedra produziu lume", como nas cerimónias
para voltar aos textos africanos escritos por mulheres: lembrar a importân- antigas. Ou seja: aguardamos todos a luz do conhecimento, advindo do
cia dos estudos de género para a desconstrução da fixidez canónica e, em gesto de ler/ouvir o texto e, assim, nos colocarmos na cena, também,
consequência, para o estabelecimento de uma. "linguagem das margens e como neófitos à espera da nossa iniciação.
180 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 181

A surpresa toma-nos, porém. Preparados para encontrar um corpo purpurina


de mulher - a patiir do pacto de autoria da capa, consolidado pela pis- corta os lábios ávidos
cadela cúmplice do título da primeira patie: cheiro/maciez/tacto - , com sabor ácido
deparamo-nos com uma série de poemas cujos títulos remetem para vege- da vida
tais, principalmente frutos: "A abóbora menina", "O maboque", "A anona", encandesce de maduro
"O mirangolo", "O mamão", etc,. Só "O matrindindi", um insecto, escapa e cai
do encadeamento previsível. Mesmo assim, por ser o último texto, acaba
por servir de elemento de preparação para a patie seguinte, já que a circu- submetido às trezentas e oitenta e duas
laridade do canto do matrindindi remete à da própria cerimônia ritual: feitiçarias do fogo
"cresce, multiplica-se, canta/ao fim da tarde/entre Julho e Agosto" (p. 17). transforma-se em geleia real:
Na leitura dos poemas que falariam/falam de vegetais, e não da ILUMINA A GENTE.
mulher, de novo, no entanto, nova surpresa. As cascas dos frutos escondem (p. 12)
corpos de mulher, como se fossem falsos invólucros. Que disso fale
Essa "iluminação" erótica deixa fluir a sensualidade represada (cf.
A nêspera
entrevista), ao mesmo tempo que, como consequência gráfica, cria a neces-
Doce rapariguinha-de-brincos sidade de desimobilizar a página do livro, rompendo com a previsibilidade
amarelece o sonho e buscando outros grafemas para o corpo do poema ali encenado. Não há
deixa que o orvalho como aceitar (ou "submeter-se" a) regras rígidas. O corpo só se submete "às
de manso feitiçarias do fogo", ou seja, às da transformação do impulso reprimido em
lhe arrepie a pele. puro gozo. O texto abre-se, assim, para a sua relação de desejo; insiste na
SABE APOUCO sua perversão. Volto a Barthes e ao que diz sobre "a figuração":
(p. 14)
A figuração seria o modo de aparição do corpo erótico (em qual-
A sensualidade aflora. O jogo de mostra-esconde acirra..:se. O quer grau e sob qualquer modo que seja) no perfil do texto. Por
erotismo toma o seu lugar na cena, pela fenda, pelo rasgo, pela nesga exemplo: [ ... } o próprio texto, estrutura diagramática e não imita-
entreaberta. Barthes:
tiva, pode desvelar-se sob a forma de corpo, clivado em objectos
O lugar mais erótico de um cmpo não é lá onde o vestuário se fetiches, em lugares eróticos. Todos estes movimentos atestam uma
entreabre? [. ..} é a intermitência, como o disse muito bem a psi figura do texto, necessária à fruição da leitura.
canálise, que é erótica: a da pele que cintila entre duas peças (1977, pp. 72 e 73)
[ ...], entre duas bordas [. . .]; é essa cintilação mesma que seduz,
ou ainda: a encenação de um aparecimento-desaparecimento. Penso ser essa "figuração" barthesiana o que o leitor/a leitora
(1977, p. 16)
atento( a) encontra em Ritos de passagem, de Paula Tavares. A estrutura
diagramática da obra revela-se, aos nossos olhos, como corpo, e corpo de
Para encenar o mostra-esconde, com o manifesto sendo a com- mulher. Ouve-se o grito calado. Rompe-se o silêncio. A diferença diz-se.
portada pele do latente pulsante, o sujeito lírico deixa, às vezes, o femini- O vazio, ou a falta, encena-se e, como ensina Lucia Castello Branco, "é
no das frutas para convocar o outro, masculino, e, desse modo, soltar a no vazio, na ausência, na lacuna que se situa e se constrói o conceito de
pulsão erótica escamoteada feminino" (1994, p. 63) e, consequentemente, de sujeito ocupante de uma
outra margem, não capturável, a não ser pelo balbucio linguajeiro:
O mirangolo
O mamão
Testículo adolescente Frágil vagina semeada
182 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 183

pronta, útil, semanal nossa realização em relação à nossa cultura e de produção de


nela se alargam as sedes sentido que nela enxergamos.
no meio (idem, p. 41)
cresce
insondável A busca desses novos "processos significativos", bem como o
o vazio ... empenho dos produtores literários africanos em geral, e das produtoras
em particular, em engendrar, nos textos, uma nova produção de senti-
(p.15)
dos, vão levar ao apagamento - quando não ao esfacelamento - dos
Vazio que só pode pactuar com o precário, com o quase-que, com contornos rígidos que separavam os chamados géneros literários.
o apenas intuído e, por isso mesmo, quer propor uma Passa a haver um imbricamento dos antes estanques e excludentes
padrões que regem os paradigmas tradicionais. Confundem-se as li-
nhas, desmoronam-se as paredes, grita-se o outro lugar discursivo.
É isso o que parece buscar, no plano formal, a obra Amanhã amadru-
2 - Rasura de fronteiras gada da cabo-verdiana Vera Dumie. A rasura das fronteiras já se presentifica
no título da obra, um explícito jogo de possibilidades sígnicas, quando se pensa
a incorporação/desincorporação, tanto do artigo definido feminino (a), quanto
Afirma Linda Hutcheon, ao insistir na importância das reivindi-
do morfema indicador deste mesmo feminino (igualmente a). Assim: será o
cações dos movimentos negro e feminista, que
advérbio amanhã? Será o substantivo a manhã? Será o adjectivo amadruga-
da, ou o substantivo a madrugada? E vai por aí, cabendo ao receptor escolher
O pensamento negro e feminista demonstrou-nos como é possível
o rumo a tomar no tapete ou no gramado onde pisará para poder, ele mesmo,
fazer com que a teoria saia da torre de mmjim e entre no mundo
entrar no jogo da produção de sentido ...
maior da práxis social [ .. .}As mulheres ajudaram a desenvol-
O sujeito da grande enunciação, por sua vez, ao recusar--se a
ver a valorização pós-moderna das margens e do ex-cêntrico, co-
assumir, como sua, a fixidez gráfica do que se convenciona chamar de
mo uma saída com relação à problemática de poder dos centros
poema, encontra uma forma de superação das armadilhas escondidas na
e às oposições entre masculino e feminino .
crença num sentido único, numa única via; num único possível. Encena,
(1988, p. 35)
com isso, a sua rebeldia frente ao modelo canonizado, ao mesmo tempo
que, como sujeito do enunciado poético, mostra a consciência da sua frag-
Tal atitude, cujo alvo maior está na desconstmção, leva ao ques-
mentação de mulher e a imposição de grilhões e linhas constritivas que
tionamento da ideia de uma fixidez cêntrica que dita as normas e regras
restringem a sua participação no palco do mundo. Escolho um fragmento
reguladoras do exercício da autoridade e do poder, basicamente branco,
do seu "Momento XI" (num conjunto de XV, na primeira parte), para
masculino e heterossexual. Na busca da implosão dos códigos hegemóni-
exemplificar o procedimento:
cos vigentes no ocidente, as fronteiras, antes.rígidas, passam a ser porosas,
empenhando-se o discurso literário, dentre outros, em criar novas formas Não me reconheço em mim. Sinto-me carente e à minha
de organização que reiterem, seja a morte do sentido único, seja o valor volta apertam-se-me os círculos concêntricos de involuntária
das diferenças. Voltando a Linda Hutcheon: clausura. Sons estranhos e profundos vindos dos mais interiores
de mim e de um tempo remotíssimo continuamente se despeda-
O abandono do desejo e da expectativa de um sentido indiscutí-
çam de encontro a uma parede castrante erguida não sei por
vel e único e a passagem para um reconhecimento do valor das
quem, erguida não sei por quê.
diferenças, e até das contradições, poderiam ser um primeiro
.À noitinha, qual feiticeira medrosa, percorro os meus
passo experimental para a aceitação da responsabilidade pela
interiores em busca de saídas. Sem cessar percorro-me nos meus
arte e pela teoria como processos significativos. Por outras
labirintos.
palavras, talvez pudéssemos começar a estudar as implicações da (1993, p. 39)
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Os "círculos concêntricos", as "paredes castrantes", a prisão inte- dos", eu diria, trazem a forma versificada, dentro da previsibilidade já
rior, os "labirintos", eis as imagens dos liames a constringirem o ser frag- estatuída pela teoria dos géneros literários.
mentado, que, em certo sentido, se inventa no "gesto de escritura que não Paradoxalmente, nos poemas em prosa, o lírico supera a pulsão
passa de um gesto de fundação do sujeito", repetindo Lucia Castello épica, enquanto, na parte versificada, embora o sujeito não deixe de sere-
Branco (1994, p. 60). Daí a palavra não dicionarizada por Aurélio presentar, o compromisso sócio-político da enunciadora parece encontrar
Buarque de Hollanda, "esquisso", subtítulo do "Momento XI", a oferecer- cores mais densas e um palco para encenar-se, principalmente pela euforia
-se como enigma ou como a palavra mágica da "feiticeira" que talvez da liberdade recém-construída com a independência, haja a consciência da
queira propor um jogo com o português esquissa que significa esboço. dor e da perda, enfim, da chuva-sangue pela qual a liberdade se fecundou:
Se o leitor de Paula Tavares se surpreende com os deslocamentos
metonímicos, o de Vera Duarte surpreende-se com os deslocamentos for- Não mais mortes violentas
mais e por essa nomeação outra. Talvez valha aqui notar, dentre tantos Irmãos nossos nós próprios
exemplos possíveis, a ligarem ambas as produtoras e seu gosto pelos Nos tarrafais de todas as terras
deslocamentos, o sentido que a palavra caderno tem para as duas. Na Por termos ousado saber
entrevista a Laban, diz Paula: "Esse pequenino caderno não é senão essa [ .. .]
procura: ir buscar alguns caminhos, ir ao encontro dessas coisas que me Hoje nossas mãos ternas
preocupam" (1991, v. II, p. 850, itálico meu). Já as quatro partes do livro e nossos braços calejados
deVera se nomeiam também Cadernos, ganhando subtítulos e datações: vão libertar-nos das correntes
que não nos deixavam viver
CADERNO I- 15 momentos de um longo poema que não nos deixavam amar
(idem, p. 94)
dedicado ao amor (1985)
CADERNO II- exercícios poéticos (1980) Portanto, no fim do livro, que é temporalmente a possibilidade do
CADERNOIII- poemas de bloqueio e de amor e seu começo, o eu-lírico de mulher, a exemplo das poetisas antigas, evoca
ausência (1975-1980) o "companheiro", como o fizera, em suas buscas iniciais, Alda Lara e
CADERNO IV- de quando se soltaram as amarras Noémia de Sousa. Só que Vera o faz usando o tom do discurso amoroso,
(1975). mas invocando, nesse momento de busca erótica do outro na clave do
desejo, também a terra, elemento chave do antigo percurso da fala femi-
O caderno da mulher, eis esse objecto pequeno e íntimo, quase nina. Assim, juntos, homem, mulher e tena (estas duplos uma da outra),
diário, ou lugar para se resgatar as coisas aprendidas, sempre deslocadas. são convidados a realizar o mítico rito da fecundação, ao mesmo tempo
Memória e uma forma de tecê-la/destecê-la. Volto a Lucia Castello do corpo-mulher como pessoalidade e do corpo-terra, como preceitua o
Branco, parceira desta travessia. Falando do sujeito que memorializa, ela
saber ancestral:
diz: "Este é o seu insano oficio: tecer, çom a urdidura do esquecimento, a
trama da lembrança; traçar, com os riscos de uma escrita apagada pelo e à noite quando o escuro vier
tempo, as letras de uma nova escrita, que o levará a uma outra estória, a despir-me-ei de tudo menos de ti
um outro tempo, a um outro lugar!" (idem, p. 41). abraçar-te-ei forte quanto puder
A busca desse "outro" talvez explique por que, em Amanhã e, sobre esta terra
amadrugada, o mais antigo, temporalmente (1975), venha ao término do sagrada
livro, no fim que é também princípio, seja no jogo da memória, seja no da abriremos nossas comportas.
circularidade, tão africana miticamente. Também tal facto nos pode ajudar (idem, p. 104)
a entender por que os dois primeiros cadernos se escrevam em prosa que
se nomeia como poesia -no primeiro, aqui e ali aparecem versos tradi- Compmias antes cerradas, quando não se podiam romper as águas
cionalmente compostos. Já os dois últimos, mais antigos e "comporta- represadas da feminilidade e não se podia soltar, para que se ouvisse
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palavras de Odete, depois de citar Mia Couto ("cada homem é uma raça"):
"Por assim ser, e considerando-me pertencente às duas culturas, senti-me
encorajada a publicar alguns dos meus escritos em edição bilingue: por-
tuguês e kriol, de modo a proporcionar aos leitores um espaço de lazer,
3 - Uma fala de mulher em expansão reflexão, crítica, e encontro consigo mesmo" (1996, p.7).
Na clave da ambiguidade assim criada e, a partir mesmo do seu
A questão da língua de expressão dos textos afhcanos faz-se hoje horizonte de expectativas -Odete escreve para um receptor tão em trân-
um tema recorrente e, às vezes, de debate acirrado dentro do espaço crítico sito como ela e que, por isso mesmo, pode divertir-se, reflectir, criticar e
dessas literaturas. A chamada "eurofonia" é objecto de reflexão por parte de auto-encontrar-se no texto-espelho - , o livro apresenta-se como um
todos que se debmçam sobre as produções literárias da África, sobretudo entrelugar escorregadio, daí o título das suas duas partes: "Oscilações" e
porque os projectos nacionalistas vão dar uma ênfase bastante grande às lín- "Entre o ser e o amar". Ou seja: o sujeito enunciador propõe o trânsito, a
guas de origem, sempre um múltiplo, não só no continente, como em cada dupla possibilidade, fazendo do seu texto não o isso ou o aquilo, mas o
país. Diz Kwame Anthony Appiah: "É que os intelectuais de toda a parte isso e o aquilo e, pmianto, abrindo-o para uma terceira via. Nesse mo-
estão hoje empenhados - seja como voluntários, seja como convocados ou mento, ao ocupar a terceira margem, ele, o texto - e volto à palavra que
resistentes - numa luta pela articulação das suas respectivas nações: e em aqui me interessa - se encena como fala de mulher, em processo de
toda a parte, ao que parece, a língua e a literatura são centrais nessa articu- expansão.
lação" (1997, p.85). O quadro acima descrito justifica por que o livro, como materiali-
Ao focar a literatura negra escrita em fi:ancês, também um outro críti- dade, também se inquiete, quando a produtora, além de propor a tradução,
co de origem afi'icana, Makhily Gassama, insiste em mostrar em que medida resolve que os poemas devem seguir a sua errância, caminhando lado a
tal língua europeia se faz estrangeira frente ao modo como, no caso, o serre- lado. Por isso, ao abrir a obra e procurar, ávido( a), a folha da direita, lugar
galês concebe a vida. E ele continua: onde se fixa tradicionalmente o primeiro texto, o(a) leitor(a) seja obriga-
do(a) a voltar os olhos para a página da esquerda, onde, aninhada, repousa
[. ..] la Zangue Fançaise est, pau r naus, une Zangue étrangere, une a versão em crioulo do que se escreve, à direita, em português. E o que na
Zangue apprise non pas des le berceau mais à un âge oú nos sens fala inaugural da obra e nas duas folhas, como se de uma se tratasse, vem
sont vivement ébranlés par toute sortes de sollicitations. [ ...}. On escrito? À esquerda: "Na kallingu ke n na skirbi nel". À direita, a rápida,
aime entendre parler sa Zangue maternelle comme l 'on aime e talvez menos gostosa e doce, tradução (sem dúvida até fonicamente
entendre battre son coeur dont la moindre défaillance inquiete. mais dura): "Em que língua escrever". Tentando recuperar o jogo gráfico
Toute Zangue maternelle est douce, éolienne. que de antemão sei ser irrecuperável, transcrevo as segunda e terceira
(1978, p. 17 e 18) estrofes de ambos:

Esse empenho em miicular, pela escrita, a sua própria nação Na kal I ingu ke n na skirbi nel Em que língua escrever
(APPIAH), articulando-se o falante, por sua vez, como um sujeito outro
que tenta captar a doçura de sua língua materna, para assim fazer ouvir o Na kal lingu ke n na skirbi Em que língua escrever
batimento do seu coração (GASSAMA), é o que o(a) leitor(a) atento(a) Pa n konta fasafias di mindjeris Contando os feitos das
encontra ao ler/ escutar Entre o ser e o amm; de Odete Costa Semedo. A mulheres
alteração de foco dos poemas (WOOLF) obtém-se quando o sujeito da Ku omis di fia tchon? E dos homens do meu chão?
grande enunciação delibera que vai apresentar os seus textos na língua Kuma ke n na papia di Como falar dos velhos
materna, trazendo igualmente a "estrangeira" (que já também é sua) para no omis garandi Das passadas e cantigas?
a cena, numa instigante proposta de tradução. Neste momento, represen- Di no pasadas ku no kantigas?
ta-se, ao mesmo tempo, a fragmentação do sujeito nacional e a da mulher, Pa n kontal na kriol? Falarei em crioulo?
ambos "ex-cêntricos" - mais uma vez Linda Hutcheon - , daí as Na Ja~iol ke n na kontal! Falarei em crioulo!
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Ma kal sinal ke n na disa Mas que sinais deixar Anos ... mindjeris ku omis d'e tchon
Netus di no djorson? Aos netos deste século? Ke firmanta no storia

O n na ten ku papia Ou terei que falar Portanto: as mulheres e os homens do chão guineense é que vão
na e lingu lusu Nesta língua lusa firmar/fazer/construir a história, transformada em estória que é plural-
Ami ku ka sibi E eu sem arte nem musa mente colectiva. Tal gesto, como um corpo falante, não tem tradução,
Nin n ka ten kin ke na oioin Mas assim terei palavras para ficando lá, intratável - Barthes, outra vez - , na língua que carrega o
Ma si i bin sedu sin deixar afecto nos seus ombros. Já agora, traduzindo Gassama: "Toda a língua
N na ten palabra di pasa Aos herdeiros do nosso século materna é doce, eólica". Vento que é linguagem. E é preciso mais?
Erderus di no djorson Toda a obra Entre o ser e o amar se desdobra desse modo. Odete,
Ma kil ke n ten pa konta Em crioulo gritarei como Clarice Lispector e Gabriela Llansol, entre outras, sabe - e ence-
N na girtal na kriol A minha mensagem na que sabe - ser preciso procurar uma forma que mostre a habitação
Pa rekadu pasa di boka Que de boca em boca linguajeira da mulher nesse espaço vazio, lacunar, onde tudo apenas pode
pa boka Fará a sua viagem ser. Assim, não é preciso traduzir sempre. Faz-se necessário buscar ou-
Tok i tchiga si distinu tras formas de inscrição, no caso, desenhos, para que os olhos do(a)
(p. 10 e 11) leitor(a) não deixem de ir de um lado para outro, eles próprios claras
ondulações. Nada deve ficar imóvel nesse jogo; daí a busca do a-mais,
do suplemento que, com Jacques Derrida, sabemos não querer preencher
Vê-se, na materialidade gráfica, portanto, que o crioulo guarda, qualquer falta na origem, mas simplesmente "acrescentar-se como um
em seu ventre, o português antigo, mas o ultrapassa, fazendo dele uma pleno a um pleno", como "o apêndice, o codicilo, o post-scriptum"
outra coisa, com a rasura da origem. De outra parte, também, se a "lógi- (1967, p. 200).
ca", quase ia dizendo ocidental, se rearticula nos versos em português, nas Vale notar que os lugares de inscrição não mudam. Sempre os tex-
suas metáforas (c f. "E eu sem arte nem musa"), o sabor cheio de saberes tos em português se mantêm na folha da direita, sendo traduções, ou não,
está no crioulo, que se expande nos versos, nalguns pontos de modo o mesmo se dando com os que se expressam em crioulo. Às vezes, no
intraduzível- cf. última estrofe onde a correspondência entre as linhas se texto traduzido em português, um traço, a atestar a maternidade da outra
esfacela. Por tudo isso, e explicitando a regra do seu jogo, ela, a enuncia- fala, ou a sua intradução: "Numa esteira de n bafíala" (p.67), a traduzir "N
dora, continua adiante, dizendo: e stera de n bafíala" (p. 66) ou, ainda, "Passos de as almas ... " (p. 71 ), o
outro de "Tuada d'asalmas ... " (p. 70). Aqui, o português do início, "as
Na rekadu n na disal tambi Deixarei recado almas" já se apresenta como crioulo, "asalmas", que volta a sangrar o por-
na nfodja Num pergaminho tuguês do presente, trazendo o estranhamento pelo efeito bumerangue:
N e lingu di djinti Nesta língua lusa
Que mal entendo N sukta n si11ti Escuto e sinto
(p. 10 e 11) Falas Vozes
Kantigas di dinoti Canções da noite
Opõe, desse modo, o "pergaminho", ou seja, o "cofre" da escrita, à voz- Uba na ubadu Uivos, gritos
"Na rekadu n na disal tambi na n fodja/N e lingu di djinti". Esse recado, Girta na girtadu Lamentos
em língua de gente, qual vento, fará a sua viagem noutro sentido. Isso Miskifía na miskifíadu
explica o final do poema em crioulo, intraduzido/intraduzível para o por- Tuada d'asalmas ... Passos de asalmas ...
tuguês, abrindo-se uma clareira na folha da direita, vazia pelo direito do Es i fora di nos É o insólito.
"chão": (pp.70-71)
Novos pactos, outras ficções 191
190 Laura Cavalcante Padilha

Quando o livro vai buscando o caminho do seu fim, os poemas vemar linguagens, mas um modo de se fazerem "a própria fala, o gesto de
em crioulo tomam a cena, enqu~nto os em português desaparecem, para govemar princípios" - outro verso de Paula Tavares - , lembro os mitos
voltar esta língua no texto final. A esquerda, ou seja, em seu papel princi- bantos de origem, sempre organizados em torno do feminino, como se dá
pal, os poemas em crioulo dialogam com novos desenhos, à direita, onde com o de "Onhoka, a serpente sábia, a que contém na sua cabeça todos os
se vêem faces e corpos em primeiro plano e com forte expressão facial ou séculos da sapiência do Povo" (ABRANCHES, 1981, p.19).
corporal: "Na rostu", "Djon gagu" e "Nunde fia diritu" (pp. 100 a 105). Resgato, ainda, como parte da homenagem, a ilustração de
Dando-lhes sequência, o último lance do jogo, a dupla poética "N ka pur- Fernando Júlio, a última da obra de Odete, para que este texto se encerre,
fia" vs. "Não disse nada". Por sua brevidade, resgato os poemas, como ele próprio, como um gesto de encenação de um feminino africano:
forma de ir concluindo o meu próprio texto:

N kapurjia Não disse nada

N papia di lingu Falei da língua


Di mingua Da míngua
Di letra Da letra
N seletra lla kasabi (So)letrei a minha nostalgia
N lei n pasmadu Lendo pasmado
Ke ku ka pudi kaba Nos olhos desmesurados
Na udjus rinkadu O infinito
(pp. 106-107)

A porfia e o dizer, ambos querendo representar-se como letra,


palavra que não muda, de um lado e de outro. Letra que se quer delibera-
damente in-completa, sabendo-se fragmento, margem, mais do que sonho
de qualquer completude. O gênero já não precisa afirmar-se, porque o
sujeito engendrado se percebe mais como um ser, do que como mulher.
Por essa razão, o adjectivo, único momento de inscrição pessoal, marca-
-se como masculino, pasmado e, não, como um previsível feminino.
Assim o gênero se expande e amplia, ganhando, por essa sua não-mar-
cação, outros contamos. O ser é maior, .em certo sentido, ultrapassando a
contigência do seu "gendramento".
Para terminar: aquela "África da cabeça aos pés", duplo explícito de
Noémia de Sousa, na sua ânsia pela terra, agora diz-se na materialidade da
escrita de Odete Semedo, na sua voz/letra ou, se quisermos, no pergaminho
e no vento da sua encenação poética, igualmente como africana "da cabeça
aos pés". A exemplo de Paula Tavares e Vera Duarte, ela reafirma-se e
expande-se em feminino, através de imagens que, partindo do fragmento,
chegam a uma terceira margem, lá onde acena o seu entrelugar discursivo.
Como forma, portanto, de homenageá-las e às outras poetisas
africanas contemporâneas, que buscam uma forma não apenas de go-
192 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 193

obras de poesia - Ritos de passagem (Luanda, 1985) e O lago da lua 2


(Lisboa, 1999) -além de uma outra de crónicas, O sangue da buganvília
(Praia, Mindelo, 1998).
Começando por esta última, lembramos que os textos nela
reunidos foram apresentados num programa radiofónico e semanal da R.
D. P. África (Lisboa) e cobrem o período de 1996 ao início de 1998. O tema
básico das crónicas são as questões ligadas a Angola, principalmente, e em
PAULA TAVARES segundo plano, a África de modo geral, formando um painel elucidativo da

E A SEMEADURA postura crítica da autora sobre os acontecimentos resgatados por sua fala.
Mesmo sendo produzidas fora do seu país de origem, elas --como num
DAPALAVRAl jogo de espelhos, ou,. às vezes, "uma espécie de viagem ao contrário, onde
o importante é chegar e mascarar uma funda desorientação" (1998, p. 20)
-surpreendem, sejam momentos de um passado de esperas e lutas ("O dia
"Um grito espeta-se faca na gar- seguinte", pp. 22-23); seja o sonho adiado de uma nação sem guerras e
ganta da noite" sangue ("Filhos do clã de Novembrino", pp. 76-77); seja, por fim, a certeza
Paula Tavares de um tempo sem norte, cuja marca é a dor e o sofrimento causados pela
guerra e pela implosão daquele mesmo sonho, como se pode ler em "Os
"A palavra é um pacto com o tem- dias da independência" - "Passaram vinte e um anos e não se trata já de
po. Mesmo que seja um tempo jis- maioridade, a maioridade agora atinge-se mais cedo e em dor, trata-se sim
surado entre realidade e sonho de olhar no espelho a nossa própria velhice e a velhice da pátria apodreci-
entre vivido e por vive1; entre ruído da pela guerra, fermentada de fome, adiada de projectos" (p. 73).
e silêncio"
O quadro assim pintado ameniza-se, quando o leitor atento
Paula Tavares
percebe que a esperança, africanamente, não morre e a "buganvília",
mesmo retorcida, continua a fazer com que seu sangue fecunde a terra
tão amada. Os textos representam uma espécie de "grito-faca" a tentar
Duas epígrafes de uma mesma autora, já enumerada no
quebrar o silêncio, pois o sujeito histórico reconhece a necessidade de
título, podem parecer um excesso, desnecessária repetição. Mas este texto
preenchê-lo, de qualquer modo e com muita urgência:
quer-se assim, algo preso à circularidade dos ritos que, africanamente,
acompanham o homem do nascimento à morte, em todo os passos por que
vai semeando a vida, multiplicada por palavras perante as quais se dobra Faz falta a palavra grito a crescer por cima desse
e que o constituem. silêncio todo, construída livremente com o respeito antigo pelo
lugw~ mas trazendo as novas do tempo, dos participantes e das
Esse pacto com a multiplicação da palavra, sempre forma de
semear a vida, faz-se um dos principais eixos de sustentação da obra de promessas.
Ana Paula Tavares ou, simplesmente, Paula Tavares, nascida na Huíla, É preciso que a palavra acolha esta mais-valia de tantos
região do sul de Angola, em 1952. Como cidadã, a escritora participou anos de espera e silêncio e se solte e proteste e renasça na plan-
activamente - e ainda participa mesmo à distância- do processo de tação das consciências.
(p. 33)
constmção, e já agora reconstmção histórica do seu país, criado em 1975
com a independência. No campo da produção literária, publicou duas As crónicas patenteiam a necessidade de aumentar a força dessa
"palavra grito", para se romper o silêncio do presente de uma Angola de-
1. Publicado em A/rica & Brasil: letras em laços. Organização de Maria do
Carmo Sepúlveda Campos e Maria Teresa Salgado, Rio de Janeiro, Atlântica, ** Depois da publicação deste texto, a poetisa publicou Dizes-me coisas amar-
2000, pp. 287-302. gas como jhttos, Lisboa, Caminho, 2001.
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vastada pela guerra infindável, agente de uma terrível destruição. Como pelas pessoas
cidadã comprometida com o destino histórico de seu país, Paula Tavares e, ergue-se lúcida
debruça-se, com certa frequência, sobre as mulheres e as crianças da sua emjeans
pátria, uma vez que sobre elas desaba, com maior ímpeto, o peso da pela planície ...
insanidade dos senhores da guerra: [ .. .]
É um belo animal sixty
O rosto mais visível da devastação e da guerra tem olhos movido a blues
de criança, tão grandes e espantados como os símbolos das pin- pela cidade!
turas rupestres mais antigas.
(1985, p. 35)
A sua trajectória fez-se em câmara lenta num filme de
quanto do campo:
terror com uma duração igual e coincidente com as suas próprias
vidas. Está escuro
(p. 93) moram os fumos no eumbo
estou sentada
Se pensarmos no título desta crónica- "A princesa e os meninos contando pelos dedos
à volta da fogueira"- e lembrarmos os versos da canção exultante e fes- a memória dos dias
tiva de Manuel Rui e André Mingas, tão entoada pelos pioneiros, podere-
mos, com maior clareza, depreender o sentido da desilusão e do desespero [crescer com a massambala/
da fala da cronista. Explica-se também por que se volta, pela via da mater- saltar o cercado enquanto núbil
nidade, para outras mulheres da terra que, como ela própria, sonharam, ser circuncidada apenas pelo amor
sacrificaram-se e viram esvair-se o sentido das suas histórias e o da morrer às tuas mãos]
História, tal como o preceitua Walter Benjamin. Nasce daí uma absoluta (1999, p. 26)
cumplicidade com a face feminina de Angola, como se observa em
"Silêncio, sacrifício, serviço" (pp. 102-1 03), quando tece ácidos comen- As mulheres em seu conjunto e ela mesma, como indivíduo
tários sobre ·as comemorações oficiais do Dia Internacional da Mulher: naquelas projectado, fazem-se "oleiras" que "conhecem todas as cores da
terra" (p. 62). Por isso mesmo, resistem, como a buganvília, tomada como
As mãos que tecem o tempo, moldam o barro, já impri- significante principal no jogo do título e como símbolo de uma esperança
miram na face da história a sua impressão digital. Com o próprio não consumada, mas nem por isso desfeita, no sentido do que nos revela
corpo agitam a cidade e prolongam o campo. a crónica que dá título à obra:
Março é pouco para desfiar os segredos que a história
guarda com o zelo de quem t,em medo de descobrir de si própria Dessa fragilidade [do jacarandá] não padece a bugan-
uma nova dimensão. vília, no seu silêncio retorcido e insondável. Está. Desafia. San-
Mas, dizem-me os amigos, com silêncio, sacrificio e gra abundantemente de qualquer corte e renasce no chão pinga-
serviço, as mulheres estão a escrevê-la. do com a teimosia das espécies que resistem.
(p. 103)
"Pau que fica de pé no meio do vento: as raízes agarram-
Os dois textos de poesia a seguir transcritos são, por outro lado, e -se à terra"
também, uma forma diversa de resgate ou de tecelagem da "impressão
digital" feminina de Angola, tanto do ponto de vista da cidade, diz o provérbio cabinda e eu posso confirmar que já vi bugan-
vílias de flores, que afinal são folhas de muitas cores, de pé no
Longocircuita-se de amor meio do vento, como a cobra do arco-íris.
196 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 197

Assim as nossas raízes de ferreiros muito antigos vão Modesta filha do planalto
resistindo ao vento e à tempestade destes últimos tempos que, mais combina, farinhenta
que o vento ou a areia do deserto, nos experimenta os corpos e vai os vários sabores
retorcendo as almas. do frio.
(pp. 34-35) Cheia de sono
mima as flores
Tais corpos de mulher, duplos do "solo sagrado da terra" aqui e esconde muito tímida
lembrando outra poetisa, a são-tomense Alda do Espírito Santo, corpos- o cerne encantado.
-buganvília, ressurgem nos poemas que, ao invés de tematizarem a guer- (1985, p. 13)
ra, como muitas das crónicas, celebram a vida, sempre nascida também do
sangue, só que lustrai. No entanto, é bom que se reitere, no último dos Outras vezes, o surgimento dos corpos dá-se de forma mais enig-
livros, O lago da lua, a guerra se faz presente em "November without mática, espalhando-se em significâncias obscuras, bem ao gosto do jogo da
water", por exemplo, com a sua desolação e gerando uma legião de cri- sabedoria e da iniciação, como se dá em "História de amor da princesa
anças despossuídas, tão contrárias em tudo ao mundo antigo: Ozoro e do húngaro Ladislau Magyar", poema de natureza dramática e
com raízes na tradição oral:
Olha-me p 'ra estas crianças de vidro
cheias de água até às lágrimas
enchendo a cidade de estilhaços Voz de Ozoro:
procurando a vida
nos caixotes do lixo. Tate Tate
Olha-me estas crianças meus todos parentes de sangue
transporte os do lado do arco
animais de carga sobre os dias os do lado do cesto
percorrendo a cidade até aos bordos tate tate
carregam a morte sobre os ombros porque me acordas para um homem para a vida
despejam-se sobre o espaço se ainda estou possessa de um espírito único
enchendo a cidade de estilhaços. aquele que não se deu a conhecer
(1999, p. 36)
meu bracelete entrançado
não se quebrou e é feito das fibras da minha
própria essência
O mundo a chegar ao seu limite, metaforizado pela expressão "até
cordão umbilical
à", no caso, "às lágrimas" e "aos bordos" da "cidade". Crianças sem lugar
a parte da mãe
num país onde a família extensiva do clã e das aldeias, e mesmo dos
meu bracelete entrançado ainda não se quebrou.
espaços urbanos, tornava impossível a ideia de menores abandonados.
Voltando aos corpos de mulheres que se sucedem nas duas obras (1999, p. 48)
poéticas, pode-se afirmar que eles vão surgindo, na festa linguajeira, aos
olhos do leitor deslumbrado, desdobrando-se em mitos, ritos, provérbios As palavras, nos poemas de Paula Tavares, dançam danças anti-
epigráficos ou mesmo versificados, símbolos, metáforas. Às vezes, a re- gas; espalham ritmos inusitados e contribuem para, pelo imaginário,
presentação se desloca para as coisas, também femininas, como se dá com semear Angola, por múltiplos e surpreendentes sinais, parodiando João
os vegetais, na primeira parte dos Ritos. Como exemplo possível, Vêncio, personagem de Luandino Vieira. Tais palavras e os seus sentidos
tomamos "A nocha", duplo claro de outra mulher igualmente "filha do vão-se fundindo no branco silêncio da página, em jogos gráficos cheios de
planalto", no caso, da Huíla: deslocamentos, principalmente nos Ritos. Um exemplo:
Novos pactos, outras ficções 199
198 Laura Cavalcante Padilha

ALPHABETO frágil, soji'ida, mas resistente e com a possibilidade de crescer


sempre na lavra dos poetas.
Dactilas-me o cmpo ( 1998, p. 49)
deAaZ
e reconstróis Quando o leitor, principalmente, e talvez, o não-angolano, abre a
asas mala da poesia de Paula Tavares, ele se espanta com o que aí encontra. A
sedas sua lavra, sempre a receber cuidados de mulher, é fértil e dela se. pode
puro espanto obter abundante colheita, como naquelas já distantes dos antigos qmmbos
por debaixo das mãos e senzalas da sua terra. Há um sentido de dádiva e compartilhamento no
enquanto abertas que escreve, daí a importância de se conhecer bem o que a an~ecena d~s
aparecem, pequenas seus textos guarda: mitos e ritos ancestrais; a força da sabedona; a noçao
as cicatrizes. da circularidade cíclica do tempo; a magia da terra; a dimensão cos-
(1985, p. 32) mogónica da palavra. Tudo isso se reúne e traz um sentido de celebração
para o conjunto dos poemas, também vestidos ou pintados para uma espé-
Ao brincar assim com o silêncio do branco, incorporando os vazios cie de festa da iniciação.
às palavras escritas, a poetisa parece querer retomar um antigo preceito Como se sabe, os ritos iniciáticos, sempre um modo de preser-
angolano, por ela resgatado numa das crónicas e que diz: "Pode ser que o vação dos mitos e saberes antigos, são os pilares de sustentação dos vários
silêncio seja a mãe da própria origem". A que, ainda no mesmo texto, acres- grupos étnicos africanos que, justamente por ca~sa deles, não perder~m a
centa: "Todas estas coisas são demasiado antigas para não serem sua face identitária, por assim dizer. Como exphca Alassane Ndaw, cltado
respeitadas" (1998, pp. 32-23). em tradução livre, "O africano tradicional permanece fiel a si próprio
Os poemas reunidos nas duas obras e publicados com um intervalo porque ele tem o sentido de seu lugar no Universo e a co~sciência d?
de 14 anos, vão apresentando outras soluções formais, reforçam sempre a princípio sagrado que o habita. Não se trata de um vago conceito metaflsl-
ideia, por um lado, que são o produto de uma fala de mulher cujo corpo se co, mas de uma realidade, de uma m1ssao . ~ ond e cad a h ornem se move.1"
apresenta como o de um sujeito de desejo, e, por outro, de que são um modo (1983, p. 67). .
possível de exercitar o respeito pelas coisas antigas. O sujeito feminino (ou O quadro assim posto justifica porque o colectlvo tem uma força
o eu-lírico, se quiséssemos) mascara-se de várias formas, "pronunciando as tão grande na organização sócio-cultural. O africano, mes~o ?oje,
palavras mágicas que nos introduzem no universo de fazedores da palavra, percebe-se como uma parte integrante do universo, tendo consc1enc1a de
de semeadores de sentidos" (1998, p. 20). ser um com o cosmo. De certa forma, tal facto faz com que, mesmo con-
Como agente da semeadura de tais sentidos, Paula Tavares, tanto siderando a morte um desequilíbrio, perceba o imaginário que ela não é
a mulher como a cidadã, não deixa morrer suas "Utopias", não importan- um fim mas um princípio, dentro das leis da ancestralidade.
do nem mesmo a marca de bloqueio do seu tempo ou ainda a dor de ver . 'Os ancestrais são os espíritos dos antepassados (familiares, clâni-
os olhares esgazeados de "crianças de vidro", expectantes e precocemente cos, etc.,) que, embora ausentes do plano flsico do fenó~e~o, conti~uam
estilhaçadas pela contingência da guerra. Os seus textos fazem-se uma a exercer o seu poder, sob a forma de "instruções" transmitidas aos vtv.os,
espécie de traço de união (MAIMONA), a ligar os mundos novos aos quase sempre pela abalizada palavra dos mais velhos. Tudo se transmite,
antigos, cujos preceitos e saberes lhes dão o necessário apoio simbólico. assim, pela teia da sabedoria, sendo a memória o grande instrumento de
Ela, a poetisa, sabe, voltando à crónica "Utopias", que preservação- cf. HonoratAguessy, 1980; Maurice Glélé, 1981; Thomas
e Luneau, 1975; Makhily Gassama, 1978, etc,. No mesmo poema sobre a
A palavra dos poetas, ou de quem como eles não se es- princesa Ozoro, lemos:
queceu da mala da poesia, é um acto de coragem assumida no
limite, tantas vezes da própria vida. Meu nome é memória e com as velhas treinei
Celebre-se assim a matéria da palavra, sua consistência cada .fala
200 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 201

- a do caçador nas suas caçadas para o sul saltar o cercado


- a dos homens no seu trabalho (idem, p. 30)
- o canto das mulheres nas suas lavras
- a das raparigas no seu andar Os poemas de Paula mostram, seja pelo plano da sua estrutura
- o canto da rainha na sua realeza física, seja pelo que tematizam, esse corpo de mulher, em sua diferença,
- o som das nuvens na sua chuva tanto pela questão do género, quanto no que concerne a uma identidade
Na lavra da fala faço meu trabalho, como a casa sem nacional. É, desse modo, um corpo duplamente tatuado, com a plena cons-
porta e sem mobília, não tão perfeita como a casa onde o rei ciência de si próprio, como evidencia o poema-pórtico que dá nome à últi-
medita, tão redonda como a casa onde Ozoro e as meninas apren ma colectânea:
deram a condição de mulheres.
(1999, pp. 51-52) No lago branco da lua
lavei meu primeiro sangue
Tal condição de mulher, aprendizagem e não pressuposto de um Ao lago branco da lua
g.énero, retoma nos poemas de Paula que mostram, muitas vezes, 0 apri- voltaria cada mês
SiOnamento das leis da tradição ou, se quiséssemos, o seu poder cerceador para lavar
que pede para ser desobedecido no mundo novo, muito embora seja quase meu sangue eterno
sempre acatado, principalmente nas comunidades não urbanas: a cada lua
No lago branco da lua
- o acatamento: versos iniciais de "Rapariga": misturei meu sangue e barro branco
e fiz a caneca
Cresce comigo o boi com que me vão trocar onde bebo
Amarraram-me já às costas, a tábua Eylekessa a água amarga da minha sede sem fim
Filha de Tembo o mel dos dias claros.
organizo o milho Neste lago deposito
Trago nas pernas as pulseiras pesadas minha reserva de sonhos
Dos dias que passaram ... para tomar.
Sou do clã do boi (1999, p. 11)
Dos meus ancestrais ficou-me a paciência
O sono profimdo do deserto, Reforça-se, neste e noutros poemas, a ideia de um tempo
a falta de limite ... cíclico, circular. Tempo de mulher, sangrante, e tempo africano, "não
(1985, p. 27)
cumulativo" (Thomas e Luneau, 1975, p. 57), sempre percebido como
permanência e, por isso mesmo, guardado nos diversos ritos culturais, o
- a desobediência: do amor entre eles:

Hoje levantei-me cedo Meu pau de mundjiri


pintei de tacula e água fi·ia tem o leite venenoso
o cmpo aceso de todas as plantas da savana
não bato a manteiga escorre-me por dentro
não ponho o cinto um ar de fogo
mesmo assim não é disso que morro
vou todas as feridas de sangue
202 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 203

não esgotaram o meu rio Enfim, a língua é uma espécie de segunda pele, impres-
tropeço nas sandálias de couro de boi são digital, única, pessoal, mas transmissível, contagiosa poderia
morro porque estou ferida de amm: mesmo dizer-se. ·
(idem, p. 13) Os contadores de histórias do meu país sabem como usar
as suas línguas maternas para realizarem as tarefas de Deus, a
Repare-se que são os elementos da natureza os significantes con- transmutação do cmpo em voz e, uma vez voz, repetir o murmúrio
vocados para criar o quadro do desejo amoroso e isso, é claro, pelo da tradição que assim se fortalece e se transforma em pedra de
próprio facto de, em África, a natureza ser um com o homem, dentro das tanto durm:
regras do animismo. É como se o sujeito lírico que fala quisesse, ao {. ..]
mesmo tempo, penetrar o sentido das coisas e ser por ele penetrado,
À força de voz e no meio da língua fundamos o nosso
expandindo, assim, o seu próprio conhecimento de si próprio e delas. Com lugar no mundo e inventamos a utopia quando a terra gela a fi-i o
o procedimento, ainda, tenta aproximar-se do leitor que, como ele, parti- intenso.
cipa da grande festa do universo, pela união de todas as coisas existentes. (1998,p.l4)
Voltando a Alassane Ndaw: "Conhecer uma coisa é ser um com ela, estar
em seu interior, abordá-la de dentro. Permanecendo no exterior, não se Dá-se, nos textos poéticos de Paula Tavares, essa transmutação de
pode jamais conhecer uma coisa em sua essência. E, para conhecer as um corpo de mulher em voz e, com isso, ela funda um lugar artístico insti-
coisas não é preciso dissecá-las, mas uni-las a outra coisa" (1983, p. 103). gante no espaço literário construído, na contemporaneidade, pela língua
A busca da poesia por Paula Tavares talvez obedeça a essa imen- portuguesa. Como as mais velhas, senhoras da sabedoria, ela vai proce-
sa necessidade de conhecimento das coisas, significando uma tentativa de dendo à transformação alquímica, engrossando a realidade com os seus
a elas se unir para descascar as palavras, como se fossem frutos. Para modernos cantos encantatórios. Por eles, ela se submete, e a nós também,
tanto, às vezes as inventa, recriando-as, buscando-lhes inesperadas asso- como indiciam versos de "O mirangolo" - "às trezentas e oitenta e
ciações. Em entrevista concedida a Michel Laban, ela declara: duas/feitiçarias do fogo" e igualmente "ILUMINA A GENTE" (1985, p.
12). É um quase canto de quianda (ou sereia), tentando atrair o outro.
[ .. .] às vezes há sons que no universo da língua portuguesa, Muitas vezes esse outro se configura como o ser amado, evocado na força
não encontro [ .. .]. Há sons que eu penso que são característicos do desejo amoroso, sempre pela voz e pelo corpo do sujeito feminino que
de uma língua banto, que sempre andou à minha volta e na qual enuncia (seria anuncia?) o (ou no?) poema:
eu não penetrei porque não a falo. Talvez por isso sinta tanto a
necessidade de inventar palavras que não existem em português. O meu amado chega e enquanto despe as
sandálias de couro
(1991, p. 861)
marca com o seu perfume as fronteiras do meu
quarto.
Os dois universos linguísticos, o angolano e o português (legado
Solta a mão e cria barcos sem rumo no meu
da colonização), vão-se amalgamando nos poemas, basicamente escritos COlpO.
nesta última, ou seja, na língua materna da autora, como esclarece. Mas as
Planta árvores de seiva e folhas.
sonoridades, o plano associativo, as expansões vão modificando o idioma
Dorme sobre o cansaço
de base e os poemas atingem assim uma outra fi·onteira onde as culturas se
embalado pelo momento breve da esperança.
entrecruzam e suplementam- cf. Boaventura de Sousa Santos, 1996 e
Traz-me laranjas. Divide comigo os intervalos
Homi Bhabha, 1998. Neste ponto, a poetisa, de certo modo, refaz o trajec- da vida.
to dos contadores de histórias da sua terra, de cuja herança os seus próprios
Depois parte.
poemas, ao interseccionarem corpo e voz, se fazem tributários. Na crónica
de abe1tura de O sangue das buganvílias, "Língua materna", ela diz: ············································································
Novos pactos, outras ficções 205
204 Laura Cavalcante Padilha

Deixa perdidas como um sonho as belas Chegas


sandálias de couro. eu digo sede as mãos
fico
(1999, p. 19) bebendo do ar que respiras
a brevidade
De certa forma, a poetisa vai constmindo uma espécie de grito de
mulher, daí o sentido da primeira epígrafe deste texto - "Uin grito espe- assim as águas
ta-se faca/na garganta da noite." O importante, parece-nos, é a consciên- a espera
cia do potencial da palavra que, africanamente, não se deixa aprisionar em o cansaço.
modelos rígidos e se espalha, doando-se, insistimos, femininamente. (1999, p. 39)
Tal relação quase física com as coisas, pelo resgate de cheiros e
tactos, explode num sem número de poemas da autora. Já aqui foi citado
Os textos cheios de erotismo de Paula Tavares buscam um outro
"A nocha". Vale lembrar, agora, e como comprovação daquela relação, "A
lugar para o feminino, representando uma outra forma possível de ence-
manga": nação para um grito que, como ela mesma admite, ficou por tanto tempo
Fruta do paraíso calado na garganta das mulheres. Tal resgate se representa não de uma
companheira dos deuses forma escancarada, mas por jogos de escamoteamentos, piscadelas cúm-
as mãos plices e, o mais das vezes, como pura cintilação, como a da faca, a cortar
Tiram-lhe a pele a noite. Ele realiza-se, portanto, num jogo de intermitências e de
dúctil mostra-escondes tão ao gosto de Roland Barthes (1977) e pelo qual
como, se, de mantos explode uma nova e surpreendente cartografia feminina, como mostram
se tratasse os versos de "O Japão" (1999, p. 45):
surge a carne chegadinha
fio afio Meu corpo é um grande mapa muito antigo
ao coração: percorrido de desertos, tatuado de acidentes
leve habitado por uma floresta inteira
morno um coração plantado
mastigável dentro de um jardim japonês
o cheiro permanece regado por veias finas
para que a encontrem com um lugar vazio para a alma.
os meninos
pelo faro.
(1985, p. 16)

A sensualidade, também ela um desdobramento de cheiros, gos-


tos e tactos, mostra-se inteira, deslocada para o fmto e tão palpável como
ele. Noutros poemas e de forma menos comportada do que aquela resul-
tante do deslocamento, a sensualidade feminina pede passagem, dizendo
presente. Aparece, então, um outro tipo de postura, quando se pensa que
tradicionalmente foi o sujeito lírico masculino quem liberou sua pulsão
amorosa nas asas da poesia:
Novos pactos, outras ficções 207
206 Laura Cavalcante Padilha

trando a força do seu entrecruzamento. A resultante é a urgência da ruptura


com os liames do colonialismo e a abertura dos caminhos da pós-colonia-
lidade. É como se da mãe e da terra fosse nascer um filho sagrado para a ·
liberdade. Este novo canto se diz, naquele momento histórico, tanto em
versão feminina, quanto em masculina. Exemplifico, recorrendo

à voz feminina de Alda Lara (Angola):


CORPO E TERRA: Mãe-.Ájhca
UM ENTRECRUZAMENTO Mãe forte da floresta e do deserto
ain,da sou
SIMBÓLICO a irmã-mulher
EM FALAS POÉTICAS de tudo o que em ti vibra
puro e incerto!
DE MULHERES AFRICANAS (In Jomal de Angola, no 29, Maio/1956)

e ao canto masculino que se deixa ouvir na voz de Marcelino dos


A expansão colonial mostra-se como uma acção masculi- Santos, ou Kalungano, (Moçambique):
na, cujos sujeitos são os "barões assinalados", movidos pela fé e pelo
império - aqui recorrendo ao paradigma ético camoniano. Por sua vez, a Ai
reacção anti-colonial africana sustenta-se num aparato simbólico no qual a mãe negra chorando
mulher e a terra, vistas como corpos femininamente entrecruzados, ofe- Ai
recem o alicerce para que uma nova "épica" se venha a escrevet: Diz, a este doce terra gemendo
propósito, Mário de Andrade na introdução da sua Antologia temática: nas capulanas de areia fina
embrulhando teus filhos
(In Antologia temática, 1975, p. 103)
Dois pontos permanentes de apoio confimdidos no mesmo signi-
ficante simbólico: a mãe e a terra. O canto da mãe desemboca em
sonhos, esperança e certeza, a canção da terra, revelando as fi- O entrelace sígnico mulher/terra será, portanto, um dos vectores
guras vivas da alienação quotidiana, as feridas da agressão exte da formação das chamadas modernas literaturas africanas produzidas em
rim; enraíza um comportamento. português, quando elas decidem representar, no trançado da letra, a sua
(1975, v. 1, p. 11)
identidade, erigindo-se como diferença frente ao legado europeu. Partindo
de tal princípio, procurei rastrear, em jornais produzidos entre os fins dos
anos 40 e 60, a fala poética feminina que neles então circulava, para ver
Tal busca de um outro enraizamento simbólico como que como se dá o acumpliciamento entre tal fala e a nova correlação de forças
vai subverter o sentido ou os termos da equação colonial, introduzindo- estético-ideológicas que se começa a dimensionar e pela qual se torna
-lhe uma espécie de suplemento, ou seja, um dado novo que não a elimi- visível aquilo que o imperium marcou com o selo da invisibilidade (SAID,
na, mas lhe "pode alterar o cálculo", conforme postula Homi Bhabha 1995, p. 41). Escolhi, para tanto, o Boletim Mensagem, editado pela Casa
(1998, p. 219). Justifica-se, por essa via, o surgimento de um novo canto dos Estudantes do Império (CEI), em Lisboa, entre 1948 e 1964, com inter-
poético que vai ressemantizar os dois significantes, mulher e terra, mos- rupções embora, e, ainda, o Jornal de Angola, órgão da Associação dos
Naturais de Angola e que sai, num primeiro momento, em Luanda, entre
1. Texto apresentado no VII Congresso da Abralic, Salvador, 2000. 1954 e 1961. Lembro ter sido esta mesma Associação a que congregara os
209
208 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções

Novos Intelectuais que, em 1948, haviam dado o famoso grito de "Vamos Matta, igualmente angolano (FERREIRA, 1976, p. 36). Diz o soneto de
descobrir Angola!", Viriato da Cmz, um dos artífices da nova dicção 1954:
literária, à frente.
Se a leitura do Boletim reforçou a minha hipótese inicial de que Negra bonita, perco-me em vaidade
as vozes femininas ali contidas, na sua grande maioria, tentavam romper Quando te vejo, porque és sempre linda
o silêncio e subverter as leis da invisibilidade do corpo africano (cf. Vestindo luto, duma noite infinda
"Silêncios rompidos", 1999), a do jornal revelou-me surpresas, quase ia A que teus olhos trazem claridade!
dizendo, em cadeia. Fica patente ainda que o processo de antologização, [. .. ]
igualmente uma ocorrência cultural dos anos 60 e 70, elege as falas das Ai linda negra, meu prazer em dor!
mulheres "rebeldes", conferindo-lhes um espaço canónico, enquanto as Tantos pecados no teu cmpo em fogo!
vozes "assimiladas" mergulham numa espécie de limbo, praticamente Tantas virtitdes na tua alma ein flor! ...
calando-se. (JA, no 2, Janeiro/1954)
Interessante notar que tais vozes "assimiladas" formam a base do
cmpus poético construído a partir do Jornal de Angola, como a seguir se A se observar, a voluptuosidade, duplo do pecado, presente no
verá. Por outro lado, observa-se que o procedimento se reforça, quando se "corpo em fogo da negra", bem ao gosto da ca~t~grafia ~o olhar col.onial,
verifica a maneira pela qual as mulheres, sobretudo as angolanas, são pen- a que se opõe, na mais absoluta pobreza metafonca, a virtude, contida na
sadas pelo periódico que as presenteia com um suplemento a elas dirigi- "alma em flor". Não fosse o pacto autoral da aposição do nome, e o poem.a
do e que teve, entre 54 e 61, várias denominações. poderia ser pensado como produto elaborado po~ um imaginário masculi-
Todo esse conjunto de dados evidencia o facto de ser a mulher no, para além de branco, condição a que a poetisa parece pertencer, pelo
branca e europeia, mesmo que travestida de africana, o objecto do olhar distanciamento do "objecto" para o qual se volta. .
editorial, tomando uma espécie de assento simbólico nas páginas do jor- No número 49 do jornal, Maria Joana comparece mats uma vez,
nal, como um primeiro movimento de análise concluiu. De um modo ou voltando ao tema da negra que passa e é surpreendida pelo olhar dos que
de outro, fica claro, por esse levantamento inicial, que o coro das várias a vêem. De novo, uma clara filiação a Cordeiro da Matta, tanto de ".A uma
vozes femininas orquestradas pelo Jornal de Angola se revela como com- quissama", quanto de "Kicôla!". No entanto, enquanto o poeta o~tocen­
portadamente conservador, excepção feita para as de Alda Lara, atrás cita- tista tenta surpreender a diferença e o arcabouço de. valore~ ~fncanos,
da, Alda do Espírito Santo (São Tomé) e Noémia de Sousa (Moçambique), traduzindo-os em versos, Maria Joana insiste no traceJado exotlco, apro-
cujos poemas se estampam em três números distintos, consoante o que fundando a sensação de distanciamento. O título é "Quando ela passa", e
mais adiante retomarei. Estabelece-se, antecipando um pouco, um con- retomo os tercetos finais:
traponto flagrante entre tais vozes e as demais, pelo facto mesmo de aque-
las insistirem no recorte de um corpo cultural - e até flsico - em tudo Rosto de bronze, olhos de quimbanda .. .
diferente das outras. Panos rodados ... lenço posto à banda .. .
O meu objectivo, neste momento, não é propor uma leitura de todos Perna bem feita ... corpo delicado ...
os poemas (30) aparecidos no jornal no espaço de tempo recortado, mas tão
somente destacar o sintoma de europeização, tanto no que respeita à dicção Se ela aparece, curvam-se as jlorinhas ...
poética, quanto no que se refere à imagem de mulher, ambas nele erigidas. Ficam caladas, sempre, as avezinhas ...
Começo, assim, pelo primeiro texto, surgido no segundo número do periódi- E há quem, parado, a siga extasiado.
co e datado de 30/01/54. Ele já nos pennite surpreender a manifestação sin- (JA, no 49, Fevereiro/1958)
tomática. Trata-se do soneto "Negra bonita", de Maria Joana Couto. Cito a
primeira e última estrofes, para ilustrar o tracejamento exótico com que a
De novo, a mesmice metafórica; o excesso das reticências; os
mulher negra é apresentada, de forma absolutamente oposta àquela "mais
sedutora preta/da região da Quissama", exaltada, em 1891, por Cordeiro da diminutivos que apequenam tom e rima e, sobretudo, o retrato externa-
210 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 211

mente exótico da negra que passa. Note-se, ainda, o significante parado filiação ao corpo cultural do ocidente branco-europeu. Tal corpo é o
pelo qual se elide a diferença entre o sujeito-autoral feminino e o da con- principal demarcador territorial da fala das mulheres cujo imaginário ora
templação poética, masculino. A negra se expõe, e mesmo existe, para ser se volta para uma cetia tradição da terra, ora, e com maior vigor, para o
contemplada por um homem a quem extasia, como objecto que é. legado da poesia metropolitana de sabor mais passadista, por assim dizer.
O segundo texto poético feminino, aparecido em Abril de 54, traz Como os poemas deixam entrever, é forte a presença de Flm·bela Espanca,
de novo a ideia central das flores, desta vez pela voz de Maria Alice Veiga como, às vezes, o é a de Cordeiro da Matta, mas já desprovidos ambos de
Pereira Sampaio. Parece uma descrição escolar versificada pela qual se sua própria marca de mptura e/ou ·rebeldia.
resgata um outro olhar sobre algo igualmente negro, o café, só que sur- Nessa espécie de volta a uma tradição de fins de oitocentos e/ou
preendido na brancura original das suas flores, a partir do próprio título início de novecentos, toma lugar nos textos o tema do amor impossível,
"Flores do café". Há a mesma inconsistência metafórica, revelando-se, reservando-se à mulher o papel de um sujeito que espera, ao mesmo
uma vez mais, o inconsciente político do texto, ou a sua "consciência ideo- tempo que a contemplação se faz maior que a acção, principalmente uma
lógica específica" (JAMESON, 1992, p. 43): acção para a mudança. Não emerge da maior parte dos poemas uma iden-
tidade africana de mulher e a voz que se ouve não é a de um sujeito pro-
Brancas e lindas! ... priamente gendrado, mas a de uma vaga alma anelante, sempre queixosa
Flores eternas f e a implorar pela atenção do ser amado. A dor é, pois, a sua marca regis-
Eterno véu de noivas perdidas, tada, consequência quase natural do ser mulher. O quadro mostra-se nos
Neve e espuma de saudosos amores. versos de "Descrença", de Maria Eugénia Lima, cujo tom oscila entre
Em mármore convertidas, vitimização e conformismo:
Pálidas, lindas,
Brancas Flores! ... Nasci mulhe1; nasci na dor
(JA, n" 5, AbriV1954) E para a dor nasci
Açoitaram meu c01po de inocente
A insistência no branco como valor dominante; o tom descritiva- E logo uma lágrima sentida
mente laudatório; o olhar "de fora"; a não-marcação do sujeito como pos- Deslizou, lentamente,
suidor de um género; as reticências e exclamações, etc., aproximam as Simbolizando a Vida!
vozes das duas poetisas, revelando o lugar cultural de onde falam e o sis- (JA, n" 22, Outubro/55)
tema ético que lhes dá sustentação imaginária. Não por acaso, o terceiro
poema - e parando por aqui a sequenciação - é uma reiteração desse ou mesmo reaparece em "Sombras" de alguém que se assina
espaço de fala branco-ocidental. É de novo um soneto, chama-se "Salomé" Haydé/
e procura recuperar o supmie mítico que o ocidente confere a tal figura de
mulher, vista como uma manifestação do mal. Pela voz, já agora de Etelvina Desespero o dia
Guimarães, retoma a lascívia da dançarina lúbrica, cuja fala o último terce- Que morre
to resgata, depois de descrever-lhe os gestos: Pelo manto cinzento
Desespero a tristeza
Ela arrancando os véus exclama inquieta: Da minha alma
-Entrega-me a cabeça do profeta Que soji-e
(JA, n" 76, Abril/60)
P 'ra aquela boca, enfim, poder beijm:
(JA, n" 7, Agosto/1954)
2. Trata-se, de facto, de Haydée Vall, e o poema aparece publicado com o título
"Desespero", no livro da autora, Pôr do sol, Luanda, 1961, p. 19. No que se tran-
Os poemas de autoria feminina que se sucedem nas páginas do creve do poema, bem mais longo, falta o verso "Que o cobre", entre o terceiro e
Jornal de Angola explicitam, portanto, o seu alicerce simbólico e a sua o quarto versos. (N. E.)
212 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 213

O fundamento maior do plano temático é, pois, a solidão do indi- Talvez seja a busca dessa "antiguidade de manhã" o motor pos-
víduo que ainda não se assumiu como um sujeito histórico africano, mar- sível do novo grito poético de mulheres africanas, grito que não se quer
cando-se pela alienação. Não há um movimento na direcção do colectivo, mais submerso ou aprisionado em qualquer simbólica gaiola - "gaiola
em consonância com o que se dava noutras manifestações poéticas con- insubmersa/de nunca existirem pássaros". Ele surge irruptoramente como
temporâneas de autoria africana. O trançado afectivo estabelece-se em novo sintoma em três das centenas de páginas do Jornal de Angola. Trata-
torno de um abstracto amado ausente e, por duas vezes, tem como núcleo -se de poemas que abalam a mesmice do cmpus. São eles: "Presença", de
a mãe, também mostrada como ausência. O tom é sempre de desabafo e a Alda Lara (maio/56); "Lá no Água Grande", de Alda do Espírito Santo
morte, com a sua ameaça de desequilíbrio, fecha o círculo restritivo onde (outubro/60) e "Negra", de Noémia de Sousa (Setembro/61).
a mulher que fala nos poemas se permite aprisionar: Em "Presença", já citado anterionnente, emerge o corpo físico da
terra, recuperado pelos seus traços naturais, ao mesmo tempo em que o
Quando eu morrer hás-de me chorar num grito local da cultura começa a emergir. Surgem bairros e ruas ("Ingombotas",
"Rua 11 ")· o "dendém"· os "dongos"· as "acácias" etc O eu-lírico tenta
De tua confissão. ' ' ' ' .
O amor que não tive, darás do infinito identificar-se com essa mesma terra, pelo viés da rebeldia. A emoção toma
conta do ritmo do verso; as exclamações e reticências, ainda fortes pre-
Nossa eterna união.
senças, ganham nova roupagem e dimensão. Rasura-se a previsibilidade e
(JA, no 57, Dezembro/57)
a "terra do cantador" (CANDIDO, 1987, p. 140) toma seu lugar na cena
textual, começando a apresentar-se como diferença:
Convém aqui notar que a autora da quadra acima, pmie final do
poema "Vingança", é a paulista Wanda de Almeida Prado que comparece
E apesar de tudo
com seis poemas em números diversos do jornal, para além de assinar ou-
Ainda sou a mesma!
tras matérias. Num conjunto formado por trinta poemas, portanto, tem uma
Livre e esguia,
expressiva pmiicipação, sendo o nome de poetisa mais repetido. Outras há
Filha eterna de quanta rebeldia
que assinam dois ou três textos poéticos, mas nada que se lhe compare.
Mesagrou.
As produções de Wanda são uma ~spécie de reforço do que aqui
Mãe-África!
venho chamando de fala feminina territorializada e que transita nos limi-
[. ..]
tes impostos quase sempre pela cultura branco-ocidental, para a qual
Minha terra! minha eternamente ...
aquela fala devia ser obedientemente passiva, sobretudo nos países peri-
Terra das acácias,
féricos e dependentes onde o modelo mais se actualiza. Se se pensa na
Dos dongos,
força irruptora de poetas de língua portuguesa dentro da África, como a
Dos cólios baloiçando
de Noémia de Sousa, ou mesmo portuguesas como Fiama Hasse Paes
Mansamente ... mansamente ...
Brandão e/ou Maria Teresa Horta, há um flagrante contrasenso ou, pelo
Terra!
menos, dissenso. Como sempre cito versos de Noémia, gostaria de lem-
Ainda sou a mesma,
brar outros de "Tatuagem", de Teresa Horta, de cujo jogo metafórico,
Ainda sou a que num canto novo,
aliás, me vou valer. Ela diz:
Pura e livre, me levanto,
Ao aceno do teu povo.
Beijo-vos (JA, n° 29, Maio/56)
a todos nos meus lábios
onde antiguidade de manhã Fica clara, no poema, voltando à lição de Candido, a emergência
é gaiola insubmersa de um "estado de euforia" pelo qual o exotismo -presença forte no texto
de nunca existirem pássaros -se transforma "em estado de alma". Vê-se, como se dá em relação ao
(1961, p. 13) romantismo brasileiro, que, naquele momento histórico dos anos 50, a
214 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 215

"ideia de pátria se vinculava estreitamente à de natureza e em parte Animalidade, magia ...


extraía dela sua justificativa" (idem, p. 141). O certo, porém é que emerge E não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias.
o que aqui vou chamando de sinais em diferença, pelos quais se estabe- (JA, no 110, Setembro/61)
lece um ruído no corpus.
Tais sinais ressurgem, quatro anos depois, no no 88, emparelhan- Os versos de Noémia retomam o paradigma da ética colonial camo-
do-se com um outro texto da mesma Wanda de Almeida Prado ("É a niana, virando-o pelo avesso. A "gente remota" que aparece na primeira
solidão que temos"), ainda vazado na pessoalidade de um sujeito indivi- estrofe do Canto I de Os Lusíadas ("E entre gente remota edificaram"), ao
dual. Trata-se de "Lá no Água Grande", de Alda do Espírito Santo, que tomar o seu lugar no novo texto, devolve o petardo, fazendo dos antigos
transforma totalmente a visão solitária do eu-lírico do poema anterior na sujeitos, estes sim, "gentes estranhas". Assim, denuncia-se o exotismo, o
acção solidária de um sujeito colectivo emergente, que obriga a que se distanciamento e a incapacidade da tradução do outro. Mostram-se os
mude a direcção do olhar: vazios das palavras ou do descritivismo e descobrem-se os véus pelos quais
o outro se invisibilizara. Elege-se, como novo paradigma, um outro corpo
Lá no 'Agua Grande' a caminho da roça cultural. Canta-se a diferença, reforçando-se, uma vez mais, o parentesco
Negritas batem que batem co 'a roupa na pedra entre corpo de mulher e corpo da terra, símbolos entrecruzados que não se
Batem e cantam modinhas da terra. deixam mais capturar pela vacuidade da palavra alheia.
Cantam e riem em riso de mofa Por isso mesmo, seguindo o chamamento de Alda Lara, para que
Histórias cantadas, arrastadas pelo vento. se entoasse um canto novo; atendendo ao convite de Alda do Espírito
Santo, para que se ouvissem as vozes e as histórias da terra, Noémia de
(JA, no 88, Outubro/60)
Sousa mostra a urgência da transformação do sujeito que precisa ser
África, para, desse lugar, dela poder falar, pelo menos na contingência
Muda-se o ritmo, parodiando Camões, porque se muda a vontade
daquele momento histórico onde o essencialismo ainda era pensado como
e a gaiola, antes fechada, bóia, insubmersa, voltando à metáfora de Teresa
valor, o que hoje é discutível:
Hmia. Os cantos da terra, as suas histórias, as suas modinhas, o riso
entram na cena e o mesmo cede lugar à diferença do outro, no que o
poema diz e na forma como o diz. E ainda bem
Quase um ano depois, em Setembro de 1961, e opondo-se Ainda bem que nos deixaram a nós
diametralmente à visão de Maria Joana em "Negra bonita", Noémia de Do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma,
Sousa aprofunda o sentido do mergulho cultural, ao esculpir, por palavras, sofi~imento
a sua "Negra": A glória única e sentida de te cantar
Com emoção verdadeira e radical,
Gentes estranhas com se.us olhos cheios de outros mundos A glória comovida de te cantar toda amassada
Quiseram captar seus encantos Moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: Mãe.
Para elas só de mistérios profundos (JA, idem, ibidem)
De delírio e feitiçaria ...
Teus encantos profimdos de Aji~ica Aí está o pilar de sustentação de uma nova épica que, partindo da
Mas não puderam ideia de terra, começa a querer dizer da nação por vir. Outras são, pois, as
Em seus formais e rendilhados cantos, "memórias gloriosas" e os textos as querem exaltar, mostrando o pulsar de
[ .. .] peitos que, tão ilustres quanto os outros, não se querem mais lusitanos.
E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual Sabem-se e reforçam-se como africanos. Por isso mesmo, procuram ins-
Jarra etrusca, exotismo tropical, crever-se como corpo e terra, para sempre entrecruzados e, pelo gesto cul-
Demência, atracção, crueldade tural inclusivo, insistem na sua diferença que já pode ser escrita.
216 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 217

feminina, título de um dos seus livros, dizendo, entre outras coisas: "O
protótipo feminino é um enigma, qualquer que seja a aparência que o
imaginário tente lhe dar. [... ] Como o desejo, a feminilidade escapa às
palavras e mantém-se noutra parte que não aquela aonde se mostra"
(1987, p.33).
Tentando uma forma possível de decifração desse enigma, convo-

FLORBELA ESPANCA co Florbela e Alda, vendo em seus textos dois modos possíveis de estar no
feminino e uma busca de dizer o interdito, seja no plano absolutamente
E ALDA LARA- DOIS MODOS individual (FLORBELA), seja na mescla entre este e o colectivo (ALDA).
A poesia da primeira, se a situamos na série literária do seu país, significa
DE ESTAR NO FEMININO! ao mesmo tempo um outro elo na cadeia da tradição - é uma sonetista
excelente - e uma ruptura, pois se instala na linguagem como mulher e
sujeito de um desejo que não se pode calar. Por isso, abandono o que em
"Eu sou a que no mundo anda perdida, sua produção é legado de Camões, Antero e António Nobre, seu querido
Eu sou a que na vida não tem norte, Anto, para acompanhar o sentido dessa ruptura, ou seja, as imagens e for-
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte mas de expressão pelas quais se desvela um ser feminino dobrado sobre as
Sou a crucificada ... a dolorida ... " suas ânsias.
"Eu", Florbela Espanca Gladys Swain, em "A alma, a mulher, o sexo e o corpo: as metamor-
foses da histeria no fim do século XIX", fala-nos sobre o ser humano e o seu
"Trago os olhos naufragados "desdobramento" fundamental. Diz a ensaísta: "Pettencemos, ao mesmo
em poentes cor de sangue ... tempo, ao visível e ao invisível. Temos um corpo que pettence ao domínio das
[ ...} coisas. E nos apreendemos interiormente como outra coisa: qualquer que seja
Só nos olhos naufragados a maneira de pensá-la, ela está no registro do invisível" (1986, p.l9). Alguns
estes poentes de sangue ... versos de Flm·bela podem aqui ser convocados para mostrar a maneira aguda
Só na carne rija e quente, pela qual o eu-lh'ico percebe esse desdobramento como um mal-estar de um
este desejo de vida! corpo ressentido, habitado por algo que não se nomeia e que só metonimica-
mente pode dizer-se:
·Donde venho, ninguém sabe,
e nem eu sei f"
Tortura do pensar! Triste lamento!
"Anúncio", Alda Lara
Quem nos dera calar a tua voz!
Quem nos dera, cá dentro, muito a sós,
O "anúncio" de um "eu", talvez tentativa de decifração Estrangular a hidra, num momento!
do enigma do ser mulher, já pelo jogo epigráfico procura ligar a por- ("Angústia", p. 48)2
tuguesa Florbela Espanca à angolana Alda Lara, em certa medida uma das
ou:
suas herdeiras poéticas. Por que decifração do enigma? Porque sempre a
mulher foi pensada como símbolo da falta, como um corpo marcado pela Ah! De Boabdilfiti lágrima na Espanha!
ausência, socialmente uma segunda via e, sexualmente, puro objecto de E foi de lá que eu trouxe esta ânsia estranha!
prazer. Gerard Pommier lacanianamente insiste em recortar A excepção Mágoa não sei de quê! Saudade louca!
("O meu mal", p. 79)
1. Publicado em Morcego Cego, no 1, Florianópolis, Editora UEPG, Mu-
seu/Arquivo da Poesia Manuscrita, 1997 (separata), pp. 51-61. 2. Todas as citações são da edição de 1982 dos Sonetos.
218 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 219

ou ainda: dida. "Fanatismo", é um dos momentos altos da referida busca. Por ser um
dos textos mais conhecidos de Florbela, cito apenas o primeiro quarteto:
Mas que eu não era Eu não o sabia
E, mesmo que o soubesse, o não dissera ... Minh 'alma, de sonhar-te, anda perdida
Olhos fitos em rútila quimera Meus olhos andam cegos de te ver!
Andava atrás de mim ... e não me via! Não és sequer razão do meu viver,
("Eu" p. 115) Pois que tu és já toda a minha vida I
(p. 72)
Vale notar que a busca torturada do eu-lírico, o dilaceramento do
corpo e do ser, a procura insana, o debater-se apaixonado, o movimento Tanatos, porém, responde a eras e a dor, forma de também mor-
convulsivo dos próprios versos, projecção do que se passa no sujeito, etc., rer, ganha impulso nos versos e como que anula a ânsia do eu de conti-
nos remetem à questão da histeria, tal como começa a emergir, transfor- nuar no outro, outrando-se. Não se viabilizam formas pelas quais - e
mada, no fim do século XIX. É então que se dá, ainda segundo Gladys aqui invoco os Fragmentos de um discurso amoroso, de Barthes- o ser
Swain - e ela sublinha a frase - , "o nascimento de uma nova mulher, possa abismar-se em plenitude no outro de seu desejo que se mostra como
signo de uma outra habitação do corpo" (idem, ibidem). Como poucas um interdito. Há a procura, mas não a consumação, conforme indicam os
vozes femininas portuguesas, Florbela demonstra a experiência convul- versos seguintes:
sionária de um corpo que escapa ao controle do eu, de forma alucinada,
No lânguido esmaecer das amorosas
Silêncio, meu Amor, não digas nada! Tardes que morrem voluptuosamente
Cai a noite nos longes donde vim ... Procurei-O no meio de toda a gente
Toda eu sou alma e amor, sou um jardim, Procurei-O em horas silenciosas I
Um pátio alucinante de Granada! [ .. .]
("Blasfémia" p. 177) E nunca O encontrei! ... Prince Charmant ...
[. ..]
Em toda nossa vida anda a quimera
Tecendo em frágeis dedos fi·ágeis rendas ...
Eis a imagem-síntese da voz que fala nos sonetos florbelianos:
-Nunca se encontra Aquele que se espera! .. .
"Um pátio alucinante de Granada". Ele explode na força de uma pontua-
("Prince Charmant ... "p. 84)
ção exuberante, feita de múltiplas exclamações e infinitas reticências.
Também este "pátio" se revela por metáforas instigantes e por um aden-
samento da primeira pessoa do singular, desde a primeira obra, Livro de Nasce, do enfrentamento entre vida e morte, o grito, protesto do ser
mágoas, de 1919, ano que é, num mundo sem acasos, o mesmo ano da que não se submete ao aprisionamento do corpo cuja ahna, estelarmente tan-
publicação de Além do princípio do praze1; de Freud. Neste texto, o autor tas, o ultrapassa. Tal grito se faz, na materialidade discursiva, a marca histéri-
recorta o conceito de instinto de morte e aproxima a histeria da neurose ca dos versos de Florbela, a sua forma de entrar em convulsão, pela lin-
traumática, vendo em ambas a "abundância de [ ... ] sintomas motores guagem. Volto a Gérard Pommier e lá encontro: "o grito na sua polissemia
semelhantes" (1975, p. 21). vai evocar o Todo, a plenitude enfim alcançada. Ele constitui o eco conciso
Todo o quadro sintomático revel!ldo por Freud se acha presente da totalidade dos sons" (idem, p. 81). Devo lembrar ainda ser o grito de que
nos sonetos de Florbela, escritos entre 1919 e 1930, tempo em' que a fala Pommier o orgástico, e que este, embora em latência no texto de
Psicanálise também se sedimenta. Vemos na cena de seus textos o Florbela, em certa medida, é ultrapassado pelo histérico, absolutamente ma-
enfrentamento entre eras, ou seja, a pulsão da vida, e tanatos, a da morte. nifesto. Não é uma voz apenas, mas todo um corpo em convulsão que acaba
A busca da renovação dinâmica, marca de eras, tem um alvo: um tu, por revelar a não-aceitação do ser feminino em deixar-se aprisionar pela teia
obsessivamente invocado como fotma do eu encontrar a continuidade per- histórica feita de sombras, lançando-se, pelo gesto convulsionado, para fora
Novos pactos, outras ficções 221
220 Laura Cavalcante Padilha

dos limites da masmorra que só a loucura pode vencer. A lucidez de Florbela, Há-de ser seiva no botão repleto,
comprovada no próprio facto da escritora se submeter à rigidez formal do Voz no murmúrio do pequeno insecto,
soneto, faz com que o sujeito enunciador acesse a linguagem, dando forma Vento que enfim a as velas sobre os mastros I ...
às suas imagens-pranto para, a seguir, refluir, em ricochete, em direcção ao
lugar onde ela, a lucidez, se dissolve em seu contrário, ou seja, na "Loucura", Há-de ser Outro e Outro num momento
nome, aliás, de um dos sonetos, do qual cito a primeira e a última estrofes: Força viva, brutal, em movimento,
Astro arrastando catadupas de astros!
Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada (p. 190)
Pavorosa! Não sei onde era dantes.
O mal-estar do feminino em Florbela, seu mergulho dilacerado
Meu solm; meus palácios, meus mirantes!
em si-mesma, enfim, todo esse quadro vai criar um espaço elíptico na
Não sei de nada, Deus, não sei de nada! ...
série literária portuguesa e não se pode pensar a produção feminina sem
[ .. .]
se parar- e quanto!- nos seus textos. Ela se fará uma referência abso-
Ó pavoroso mal de ser sozinha!
luta para as poetisas de língua portuguesa deste século, daí porque trago a
Ó pavoroso e atroz mal de trazer
angolana Alda Lara para a cena do meu próprio texto, por vê-la como uma
Tantas almas a rir dentro da minha!
das herdeiras do legado poético de Florbela. Nalguns dos seus poemas
(p. 194)
pode-se ouvir, nítido, o eco da outra fala, ou seja, a da "Castelã da Tris-
Preso em sua individualidade narcísica, "esfinge olhando, na teza" (p. 36). É o que se dá em "Círculo", aqui citado na íntegra, para que
planície enorme ... " (p. 186), centrado em sua própria contingencialidade, as vozes das duas poetisas se ouçam plenamente num quase dueto:
o eu-lírico vê, no outro do seu desejo, o duplo perfeito, reflectido no jogo
Todo o caminho é belo se cumprido.
especular erótico. Dificilmente se cria o espaço do nós, fusão de eu e tu.
Ficar no meio é que é perder o sonho.
Está cada um no seu lugar e, via de regra, o tu se representa como ausên-
É deixá-lo apodrece1; no resumido
cia, interdito que é. Há um soneto instigante no conjunto da obra de
círculo, da angústia e do abandono.
Florbela, bastante revelador dessa ausência: "Eu não sou de ninguém". No
primeiro quarteto, composto de linhas pontilhadas, emerge a barra inter- É ir de mãos abertas, mas vazias,
posta entre o desejo e a sua realização. Diante delas, o leitor emudece e o de coração completo, mas chagado.
texto impõe o silêncio da sua não-voz, metáfora, por sua vez, da impossi- É ter o sol a arder dentro de nós,
bilidade, ao mesmo tempo, de estar no outro, no feminino e no indizível cercado,
do desejo. A mudez da leitura e a nudez das linhas sem palavras, pontos por grades infinitas ...
só, é um dos raros momentos em poesia, já que o pontilhamento se faz
com reticências e não em linha corrida. :Vale a pena resgatar o soneto na Culpa de quem, se fiz o que podia,
íntegra, não obstante a sua dimensão: na hora dos descantes
e das lidas?

Ah I ninguém diga que foi minha!


Ah! ninguém diga ...

Minha, a culpa,
Eu não sou de ninguém!... Quem me quiser
de ter dentro do peito,
Há-de ser luz do Sol em tardes quentes;
Nos olhos de água clara há-de trazer tantas vidas! ...
(1979, p. 7)
As fúlgidas pupilas dos videntes I
222 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 223

Em Alda Lara, o traço histérico cede lugar ao melancólico, com 0 O outro do par amoroso não está ausente, mas não tem o primado
ritmo se adoçando pela presença da tristeza que, segundo Julia Kristeva, absoluto nos textos. O eu-lírico não mergulha numa auto-contemplação
"conduz sempre ao campo enigmático dos afectos: angústia, medo ou ale- narcísica, mas, pelo contrário, busca no colectivo formas de também
gria" (1989, p.27), afectos estes sempre tão presentes nos versos da tornar-se sujeito. Os despossuídos são contemplados com ternura e soli-
angolana. A convulsão transforma-se numa prostração que se intercala dariedade. Por isso, "Testamento", o primeiro texto da colectânea Poesia,
com doses de euforia, como nos versos seguintes: deixa imediatamente claro o movimento solidário para o outro, marca re-
gistada do sujeito enunciador. Cito o início e o fim do poema, bastante
E apesar de tudo, longo:
ainda sou a mesma!
Livre e esguia, A prostituta mais nova
filha eterna de quanta rebeldia do bairro mais velho e escuro,
me sagrou. deixo os meus brincos, lavrados
Mãe-Africa! em cristal, límpido e puro ...
[ .. .]
("Presença Aji'icana" p. 15)
Quanto aos meus poemas loucos,
As exclamações, também presentes, perdem a intensidade, assim esses, que são de dor
como as reticências, ainda bastante usadas, se amenizam. O soneto dá sincera e desordenada ...
lugar a poemas mais longos, de ritmo quebrado, às vezes com soluções esses, que são de esperança,
inesperadas. Os versos se espraiam soltos, livres das grades das rimas rígi- desesperada mas firme,
das. Por outro lado, quanto à presença de um tu, elemento nuclearizador deixo-os a ti, meu amor ...
do plano apelativo, percebe-se que não há mais um centramento no outro
Para que, na paz da hora,
do desejo erótico, mas um movimento de interacção participativa, pela
em que a minha alma venha
constelação de segundas pessoas do singular. É o que se dá com a invo-
cação do filho por haver: beijar de longe os teus olhos,

vás por essa noite fora ...


Meu filho: com passos feitos de lua,
que os teus braços sejam longos oferecê-los às crianças
como a minha esperança que encontrares em cada rua ...
nos longos dias ...
(pp. 3-4)
("Herança", p. 9)

ou com o vocativo "innão": O sentimento de exílio é uma presença nos poemas, mas em sen-
tido diferente do de Florbela - castelã fechada na masmona de sonhos,
Se pudesses entender fantasias e desejos não realizados. Alguns desses poemas de exílio foram
este pulsar sem medida escritos em Lisboa, quando factualmente ela, Alda, estava a léguas de dis-
terias chegado ao fim ... tância de Angola, a terra natal. O poema abaixo dá bem a dimensão do
Mas estou junto a ti, sentimento e do desejo de voltar. Lembro alguns de seus versos -
irmão,
diz-me então Não mais o pregão das varinas
que mais te importa? nem o ar monótono, igual
("Presença", p. 10) do casaria plano ...
Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 225
224

Hei-de ver outra vez as casuarinas Amplia-se, desse modo, o espectro do "estar em", quase ia dizen-
a debrum· o oceano ... do, "estar entre". Florbela abismava-se em sua solidão existencial e se
[ .. .} reafirmava como mulher, convulsionada em suas ânsias. Alda busca 11
Sede ... Tenho sede dos crepúsculos aji'icanos interacção e, sem negar a sua contingencialidade feminina, mostra querer
todos os dias iguais, e sempre belos, ultrapassá-la, para ver cumprido o seu sonho. Talvez com ambas, mas pela
de tons quasi irreais ... voz da angolana onde está soterrada a da portuguesa, também como mu-
Saudade ... Tenho saudade lher, eu possa fechar este texto, repetindo:
do horizonte sem barreiras ...
das calemas traiçoeiras, Todo o caminho é belo se cumprido.
das cheias alucinadas ... Ficar no meio é que é perder o sonho.
("Regresso", p. 18)

Voltando um pouco à questão dos pronomes pessoais nos textos,


penso que, nos versos de Alda Lara, não há as ilhas do eu e do tu, mas o nós
como continente. É um nós solidário, à procura de um futuro marcado pela
pulsão da vida, ou seja, por eras, puro dinamismo. No momento histórico
por ela vivido como colonizada, é como se tanatos não pudesse ter vez, a
não ser aqui e ali, no jogo da figuração poética. Deixa-se de lado o narci-
sismo individual, para conclamar-se o nós que vou aqui chamando conti-
nental, em oposição ao movimento insular do eu de Flm·bela.
Um dos poemas fundamentais na trajectória lírica de Alda é
"Rumo", pois nele aparecem as bases do projecto do reencontro
necessário com a própria alteridade africana, maior do que o recorte da
pessoalidade do sujeito como mulher. É um outro modo de estar no femi-
nino onde se encontram duas fonnas de representação da diferença da
alteridade: ela é mulher e angolana, portanto, duplamente colonizada, daí
a convocação que faz, no poema citado:

É tempo companheiro!
Caminhemos ...
Longe, a terra chama por nós,
e ninguém resiste à voz
da Terra! ...
[. .. }
Vamos!
que outro aceno nos inflama ...
Ouves?
É a Terra que nos chama ...
E é tempo companheiro!
Caminhemos ...
("Rumo", pp. 20-21)
DIÁLOGOS,
RECONVERSOES,
CONTAMINAÇOES
Novos pactos, outras ficções 229

O ARCO TENSO
DE UMA LITERATURA!

Fará a África parte do Ocidente?


A pergunta talvez se revele inadequada se se tem em mãos
o mapa-mundi e se mira "com olhar sphyngico e fatal,/0 Occidente, futuro
do passado", como queria Pessoa (1965, p. 71). No entanto, ganha certa
procedência quando se estende diante de nós o extenso e diverso tapete cul-
tural dos povos de origem daquele continente. Nesse sentido, a leitura das
literaturas africanas, um dos mosaicos desse tapete, reforça a percepção do
afastamento, pois, muitas vezes, as produções textuais enfatizam uma
forma totalmente diversa de elaboração do espaço artístico-verbal.
O factor geográfico dialoga, portanto, com o facto cultural con-
creto, sobretudo quando aquelas literaturas assumem mais e mais a força
da sua alteridade, ou do local, o que não significará um fechamento sobre
si mesmas ou uma renúncia ao global. A resultante é que os textos, arco
tenso, firmar-se-ão neste século como um entrelugar onde a fala própria
interage com a alheia, criando-se uma terceira margem. Ali, tais falas,
entrecruzadas, constroem-se como uma outra, em diferença.
Por ser impossível falar-se da África como se fora algo monolítica-
mente uniforme, mesmo se o objectivo mais próximo é a fracção geopolítica
dominada, a partir do século XV, por Portugal, tomo Angola como centro das
minhas reflexões. Interessa-me, em particular, o processo de formação da sua
literatura, marcado pelo diálogo - nem sempre sereno - entre a cultura
branco-europeia e a negro-afHcana. Vale reite-rar que, só para fins de mera
exposição didáctica, me vou referir a uma cultura angolana não pluralizada.
Reafirmo, contudo, a improcedência deste singular. Só o olhar redutor do
outro, reflectido na sua designação igualmente redutora, transforma a poli-

1. O texto foi publicado originalmente em Cadernos de Letras da UFF, n° 7,


Diálogo de culturas, Niterói, Instituto de Letras, 1993, pp. 64-72.
230 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 231

cromia cultural em monocromia, mesmo se se entende ter a redução um ocupava nas reflexões da cultura metropolitana. Estabelece-se, então, um
carácter apenas semântico. Angola é o nome que o colonizador inventou para pacto de reafirmação do local, em detrimento do que é percebido como
fazer do múltiplo um uno indiferenciado e, assim, mais facilmente espalhar as estrangeiro. Em Philosophia popular em provérbios angolenses - e o
leis da sua "fé" e do seu "império". nome é já em si significativo- Cordeiro da Mata, em 1891, exorta: "Por
Deixo, neste ponto, o geral para me ater à literatura, começando isso, patrícios meus, embora vos custe, embora seja com sacrifício, dedi-
por ~istinguir uma literatura feita em Angola de uma outra que já se pode cai algumas horas de lazer para a fundação da literatura pátria. Nada de
cons1dera~ d~ Angola e, em consequência, descobrindo os primeiros pas- desanimar. Avante!" (Apud ERVEDOSA, 79, p. 33).
sos desta ultlma no fim do século XIX. Até então, o quadro cultural reve- A exemplo do que Antonio Candido analisa em relação ao século
lava a presença de duas ilhas distintas. Numa estavam os textos escritos XVIII no Brasil, haverá, no século dezanove angolano, uma "tendência
na terra, mas cuja dicção era radicalmente lusíada. A marca africana (e 0 genealógica" (a expressão é do crítico brasileiro) pela qual se sedimenta
termo é aqui proposital) era dada, seja pela ambientação cenográfica, seja uma vontade de "escolher no passado local os elementos adequados a uma
pela presença de personagens e/ou vozes negras. Tudo tracejado com 0 visão que de certo modo é nativista, mas procura aproximar-se o mais pos-
estilete do exotismo, como demonstra o seguinte trecho de um dos contos sível dos ideais e normas europeias" (CANDIDO, 1987, p. 173). As ilhas
de Almas negras, datado de 1937, mas que reflecte bem esta visão exóti- começam a querer perder a sua excludência. Nesse momento, é impor-
ca da terra angolana, marcada pelo primitivismo e pela barbárie: tante o papel representado pelas línguas nacionais, até então uma ausên-
cia no registo poético, a não ser como claro reforço do estado de "barbárie
Na selva virgem, os machos e as fêmeas; gentio primitivo; instin- civilizacional" em que estavam imersos os naturais da terra, cuja expres-
tos soltos f E a mãe Natura, descabelada e nua [ ...] a reger a são era a ameaça de nova Babel.
orquestra bárbara dos filhos inocentes, que vão dançar! Uma composição de Cordeiro da Mata - "Kicôla!"-, faz-se
[ .. .] emblemática desse diálogo tímido entre uma dicção europeia e uma outra
E ouvem-se ao longe soar os tam-tans, e sente-se o cheiro que se entremostra como angolana. É interessante observar serem, segun-
dos cmpos suados [ .. .] e os negros dançam f do o poeta, os seus uma "imitação duns versos de João E. da C. Toulson".
Detecta-se, pois, uma linha a unir pontos que, interligados, já poderiam ir
(1937, p.70) formando o arcaboiço de uma tradição poética angolana, embora se reco-
nheça a sua incipiência:
. _ Em pó!o opo.sto, a segunda ilha. Nela vivifica, fecundo, o corpus da
trad1çao 01~1, tao vanado quanto variados são os grupos étnicos de origem. Nesta pequena cidade,
As produçoes desse cmpus fizeram-se, secularmente, elementos importan- vi uma certa donzella
tíssimos. no. jogo s?cial i?teractivo, pois, no universo dos povos ágrafos, que muito tinha de bella,
contar s1gn1ficava 1mped1r a morte cultural. Aliando o aspecto festivo e de fada, huri e deidade -
lúdic~ ~o peda~ógico,. os textos representavam formas de preservação da
memona colectlva. Circulando nas línguas nacionais, eles reforçavam 0 a quem disse: - "Minha q 'rida,
perfil clânico e, com ele, a identidade. Impunham uma barreira ao domi- peço um beijo por favor";
nador ~ue, só no século XIX, pela importância atribuída às pesquisas [ ...]
etnológ1cas e/ou etnográficas, se interessará cada vez mais por essas mani-
festações até então deixadas na sombra. A percepção redutora do ocidente - Nquàmi - âmi, ngna - iame
estigmatizava tais manifestações, pois via-as como produções folclóricas "não quero, caro senhor"
marginais, reveladoras do "menos-saber" de povos "selvagens", como bem disse sem mudar de cor;
demonstra a passagem do conto de João de Lemos, antes citada. - Macuto quangandall'ami.
Um grupo de intelectuais da terra começa, pmianto nas últimas "não creio no seu amor".
décadas de oitocentos, a problematizar o vazio que o pas;ado original (Apud FERREIRA. 1976, p. 37)
233
232 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções

Se Cordeiro da Mata revela serem os seus versos imitação de ou- do Brasil, nosso irmão,
tros de Toulson, ele cala-se sobre o parentesco desta "donzella", que o eu- disseram:
"-É preciso criar a poesia brasileira
-lírico vê passar na rua da "pequena cidade", com a "passante" de
Baudelaire já transformada na "Milady" dos "Deslumbramentos" de de versos quentes, fortes como o Brasil,
sem macaquear a literatura lusíada".
Cesário Verde. Em texto posterior, "Uma quissama", o entrelace das falas
Angola grita pela minha voz,
torna-se evidência maior:
pedindo a seus filhos nova poesia!
(Apud FERREIRA, 1976, p. 85,
Em manhã jha, nevada,
destaque do texto)
n 'essas manhãs de cacimba
em que uma alma penada
não se lembra de ir ao limbo; A "nova poesia" procederá a uma mudança de eixo em dois senti-
eu vi formosa, correcta, dos principais. De um lado, a busca de u~a outra dicção poética "d~s­
não sendo europeia dama macaqueadora" da sintaxe literária metropohta~~· ~~ grupo bast~nt~ sig-
a mais sedutora preta nificativo de produtores lança-se nesta "cruzada , Vmato da Cruz a frente,
das regiões da Quissama. com textos como "Makezú", onde o pregão da velha vendedora, sur-
(Ibidem, p. 36) preendida também na rua da cidade- "Kuakié! Makezú, Makezú" -,e
não traduzido é o reforço da atitude anímica de mergulhar em busca da
Em "Kicôla!", anterior, no tempo da publicação no mesmo raiz: "- 'É p~quê nossas raiz/Tem força do makezú! ... "' (FERREIRA,
Almanach de lembranças, editado em Lisboa, a "Uma quissama" (1888 idem, p. 165). , " d
e 1891 ), embora não havendo uma ruptura com a hegemónica dicção Um texto quase manifesto dessa proposta nova e o Po.ema a
europeia, o quimbundo causa um ruído, interferindo na comunicação do alienação", de António Jacinto, cujas estrofes iniciais revelam o 1mpass.e
código de base. O traço exótico, é certo, ainda se presentifica, estileta- histórico vivido pelo imaginário do eu-lírico já consciente de sua alten-
do, sobretudo quando o poeta traduz a fala da terra, além de sangrá-la dade:
pelo itálico. Ela, ao invés da outra, apresenta-se como a estrangeira,
pois precisa de tradução. Não obstante isso, lá está, furo pelo qual se Não é este ainda o meu poema
entrevê o que a cena poética sempre escondera, ao pactuar com o per- o poema da minha alma e do meu sangue
verso jogo cultural de escamoteamento da alteridade. A língua própria é, não
nesse momento, não apenas um objecto de estudo e pesquisa (o que Eu ainda não sei nem posso escrever o meu poema
Cordeiro da Mata ele próprio realizará com o seu dicionário de quim- o grande poema que sinto já
bundo ), mas parte sumarenta da poesia. circular em mim
A busca de uma literatura pátria. intensifica-se no século XX, (1985, p. 48)
sobretudo quando, em 1948, os Novos Intelectuais lançam o seu grito de
"Vamos descobrir Angola!". Os anos da guerra (1961-1975) acirram o
Para buscar os elementos que procedessem à "transfusão" poéti-
sentido da procura, fazendo do diálogo intercultural algo mais tenso, no
momento em que a própria poesia empunha, para impor, as suas "armas". ca, 0 sujeito vai para as ruas e lá, no quotidiano do seu povo, re.colhe as
Em 1958, Maurício Gomes, voz em eco com a de Cordeiro da Mata, grita imagens com as quais se pode compor o quadro expressivo da d1ferença.
em "Exortação", poema publicado na sugestiva Antologia de poesias E ele prega:
angolanas:
O meu poema anda por aí fora
Ribeiro Couto e Manuel Bandeira envolto em panos garridos
poetas do Brasil vendendo-se
234 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 235

vendendo Não basta, a meu ver, porém, o "desmacaqueamento" sintático.


"malimonje malimonjée" Fazia-se necessário desenhar a nova relação semântica. Nesse momento,
O meu poema corre nas rua como diz Candido, referindo-se ao século XIX brasileiro, cresce "o dese-
com um quibalo podre à cabeça jo de inventar um passado que já fosse nacional, marcando desde cedo a
oferecendo-se diferença em relação à mãe-pátria" (1987, p. 175, itálico do texto).
oferecendo No caso de Angola, uma vez que o passado nunca se perdeu de
"carapau sardinha matona todo, talvez haja reinvenção mais que invenção. Os escritores, seja na
ji ferrera ji ferreréee ... " poesia, seja na prosa, tentarão reconstmir, no espaço textual escrito, o
(idem) edifício da sabedoria ancestral, pactuando com a força cosmogónica da
palavra africana. Como os antigos griôs da oralidade, eles farão dos seus
textos formas de manutenção e reforço do perfil do grupo como tal, como
Aqui não se tem mais o sublinhado, marca do estrangeirismo da
fala própria, como já propusera Viriato. A voz do povo da ma, a alegria dos modo de anunciar o tempo novo:
panos, mostrando uma outra forma possível de expressão e de se vestir o
corpo, metáfora do próprio novo vestir-se do poema, tudo é recuperado do Aquilo que eu sei
alguém mo legou.
quotidiano que, transfigurado pela linguagem artística, procura dar a
Pai palavra
justeza do tom. A tentativa, negando a proposta do título, é de desalienação,
Mãe Palavra
daí a busca consciente de um outro lugar expressional. Ou, como diria no
Palavra anterior
vídeo O grande desafio (Luanda, 1987) o próprio Jacinto: era necessário
encontrar uma forma nova para um conteúdo apontado pelo imaginário vem e transforma já o meu jitturo
(RUY DUARTE, 1982, p. 45)
como também novo. Estavam lançadas as bases do moderno projecto
estético-ideológico da literatura angolana. É simbólico e sintomático, por-
tanto, em todos os sentidos o fecho do "Poema da alienação": As palavras sobrecarregam-se do peso com que as culturas
africanas sempre as envolveram, já que, em tais comunidades, falar nunca
foi um gesto gratuito, mas uma forma de manter activa a cadeia da força
O meu poema foi feito para se dar vital. Por isso mesmo elas são o agente da transformação que tornará o
para se entregar futuro algo melhor. Surge daí o seu excesso significante, a que se refere
sem nada exigir Makhily Gassama (1978). Pássaros viajeiros, como ensina este mesmo
Mas o meu poema não é fatalista crítico senegalês, elas são de todos, não sendo de ninguém. Origem e fim.
o meu poema é um poema que já quer Legado, sempre.
e já sabe Aredescoberta, pelos caminhos da escrita, desse peso ancestral da
o meu poema sou eu-brancq palavra é a pedra sobre a qual uma nova carga semântica se alicerça,
montado em mim-preto mesmo que a língua herdada do colonizador continue a ser o código bási-
a cavalgar pela vida co da expressão artístico-verbal. É como se a língua portuguesa sofresse
(idem, p. 51) um processo de canibalização e, uma vez engolida, passasse a ser pmie
integrante do corpo cultural renovado pelo rito antropofágico. Ela é
Não parece haver dúvida sobre o lugar do sujeito e do objecto. O pertença do novo sujeito histórico, sendo por ele, em certa medida, "pari-
"eu-branco" a interagir com o "mim-preto". Por outras palavras: 0 cava- da" em contexto totalmente diverso. Continuando um mesmo, ela é já um
leiro co~ o seu saber e as suas rédeas, e o cavalo com a sua força, ambos outro, pois não é reconhecida totalmente pelos usuários originais para
centauncamente compondo uma imagem do que se passava naquele mo- quem soa, às vezes, como decididamente estrangeira. Calibã olha Prós-
m~nto históri:o de r~~ersão de ~xpectativa. No tabuleiro, armado, o jogo, pero e sabe ser impossível sentir mais qualquer espécie de medo.
CUJas peças sao o ongmal e o simulacro. Sempre como arco entesado. Distende-se o arco e o diálogo dolorido apazigua-se:
236
Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 237
Não há lugar achado
sem lugar perdido.
Casam-se além, as falas de um lugm;
no encontro da memória
com a matriz.
A ausência, só,
impõe ao cotpo a urgência do equilíbrio
não entre o corpo e as formas
da paisagem
RECONVERSÕESl
mas entre as margens
da permanência a haver. "Houve um tempo
(RUY DUARTE, 1988, p. 12) para contar as histórias
e saber as palavras
As ilhas já não se excluem. As margens encontram um ponto de em sua hora profimda."
equilíbrio naquela terceira de que falava inicialmente, com a fala própria e a
Edimilson de Almeida Pereira
alheia a se retroalimentarem reciprocamente.
O actual momento da literatura angolana- numa nação definida "Eis a Palavra, é esta
pela independência - pode-se surpreender muito bem em obras como a que não dorme
Hábito da terra, de Ruy Duarte de Carvalho, de onde se extraiu o trecho a que não cessa de aguardar
do poema citado no parágrafo anterior, ou no Cântico barroco, de no coração dos homens. "
Henrique Abranches, de 1987. A sua leitura permite que se surpreenda um
processo consciente de reelaboração dos mitos, nos dois sentidos. Ruy Duarte de Carvalho
Um novo tecido parece cobrir, por tudo isso, o corpo cultural "no
encontro da memória/com a matriz", encontro que fará surgir, na voz
melancólica de Abranches, a "Canção de Ndon Kishote", a dialogar, lado Nas falas poéticas de Edimilson Pereira e de Ruy Duarte
a lado, nas páginas do livro, com "O Pensador", poema-homenagem a um encontra-se um mesmo significante nuclear, palavra, pelo qual se esta-
dos maiores símbolos nacionais. Lado a lado no livro, repito, e na vida belece uma espécie de pacto dos escritores com um dos elementos de sus-
cultural angolana contemporânea, fazendo do local o global e vice-versa, tentação simbólica do edificio das culturas africanas. Rastreando a re~e de
sem que se possa deslindar mais onde acaba a memória e começa a matriz. sentidos nucleada pelo significante, é possível estabelecer, a partir de
agora e com os dois produtores textuais, um diálogo entre Brasil e Angola,
pelos caminhos da poesia. Tal diálogo se alicerçará, também, ou sob:etu-
do, no desejo dos poetas de reinventarem, através do tapete de suas n~.a­
gens, alguns mitos que, passando por um processo de reconversao,
transmudam velhos saberes em novas formas.
Fonnas que têm a ver com língua e multiplicidade. Saber~s que,
ficando na África ou atravessando oceanos, se fizeram o sal do ahmento
que manteve o negro-africano culturalmente vivo, quan~o, sil.enciado na
sua própria terra ou espalhado pelo mundo, lutava para nao deixar morrer
o que nele era identidade e diferença.

1. Publicado em Via Atlântica. Publicação da Area de Estudos Comparados de


Literatura de Língua Portuguesa. no 1, São Paulo, Bartira, 1997, pp. 142-152.
238 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 239

Nesse jogo de vida contra morte, encontra-se, vale repeti-lo, a tensa supremacia, mesmo depois de decretada a abolição das escrava-
força da palavra, o sal do sal, daí Ruy Duarte, em versos, afirmar em turas ou de concretizada, à pressa, a sua expulsão das colónias que domi-
Ondula, savana branca: nava pela força e pelo medo. Edward Said, com acuidade e a esse propósi-
to, adverte que "Os ocidentais podem ter saído fisicamente das suas anti-
Não espanta o gado, a palavra gas colónias na África e na Ásia, mas conservaram-nas não apenas como
quando é boa, mercados, mas também como pontos no mapa ideológico onde conti-
nem apodrece nuaram a exercer domínio moral e intelectual" (1995, p. 58).
quando exposta ao tempo ... O "mapa ideológico", referido por Said, se não se altera de todo,
(1982, p.32) ganha outros contornos nalguns textos de Edimilson Pereira e/ou de Ruy
Duarte. Este último deixa claro, na comunicação "Tradições orais, expe-
O saber antigo é, no jogo assim armado, mote e memória. Não riência poética e dados da existência", a mudança do sentido cartográfico
querendo ou podendo voltar à origem, estar lá, como no princípio, é como operada quando, por exemplo, o poeta letrado traduz a outridade que se
se aquele saber se desse à luz de novo, parindo-se, uma vez mais, na teia encontra guardada no acervo da tradição ancestral. A recuperação das
da escrita. Reconverte-se, quando se encontra para ele a "semântica nova" palavras textuais do poeta-ensaísta - num dos trechos da aludida comu-
a que se refere Manuel Rui Monteiro, quando diz: "Eu sou o poeta escrito nicação - oferece um gancho significativo para que se sedimente a pro-
[ ... ]. Da oratura à escrita. De uma língua a outra, já interferida para uma posta de um diálogo possível entre ambos os autores e, por extensão, entre
semântica nova: a da minha identidade" (1981, p. 29). Brasil e Angola, na clave de uma reflexão sobre o imaginário africano:
Significando a palavra, no sistema de pensamento africano, um mais
além de si mesma, ela conserva o saber e o sabor. Em África, a palavra faz- [ .. .] se é verdade que ao traduzir e adaptai; para a minha língua,
-se uma forma de preenchimento dos vazios criados pela ausência do ser, fontes da expressão oral africana, eu lhes transferi a marca da
modo pelo qual se prolonga a sensação da presença do ausente entre os que minha própria linguagem poética, também é sem dúvida verdade
ficaram. De maneira idêntica, ela procederá em relação à terra, a partir da que, ao fazê-lo, eu estaria introduzindo as marcas de um imagi-
forçada viagem do homem negro pelos mares do mundo, transmudando o nário OUTRO na própria língua portuguesa e na minha própria
vazio da ausência no pleno de uma presença significante. produção poética, pessoal e intransmissível nos termos da sua
As artimanhas da palavra africana criam, no imaginário negro, força e imagética especificas.
uma espécie de festa de recomposição cosmogónica onde se encontram e (Anais, 1995, p. 75)
se retroalimentam o tangível e o intangível, o presente e o passado, o
visível e o invisível, a vida e a morte. Com isso, ela, a palavra, comanda- Tanto Edimilson Pereira - em obras como O livro de falas ou
da pela memória, o mestre de cerimónias da festa "deixa de ser um sim- Kalunbungu (1987) ou Arvore dos Arturos & outros poemas (1988) - ,
ples instrumento de comunicação [ ... ], para se tornar uma espécie de quanto Ruy Duarte- com Ondula, savana branca (1982) e Hábito da
petardo que ilumina a noite negra, ou um~ espécie de vara mágica capaz terra (1988) -,por exemplo, tentam encenar, a par das diferenças contex-
de mexer com o mais fundo do [ ... ] ser" (GASSAMA, 1978, pp. 44-45. tuais que os separam e da questão fundamental da intransmissibilidade das
Itálicos do texto ). 2 suas experiências poéticas, o "imaginário OUTRO" a que se refere o
Uma das imagens proposta por Gassama, a do petardo, apresen- angolano. Em certos momentos, no universo lírico por eles criado, as suas
ta-se como produtiva para o leitor de algumas obras de Edimilson Pereira expressões confundem-se num mesmo movimento de busca e captura de
e/ou Ruy Duarte, cujos versos se fazem como que uma forma de ilumi- um corpo cultural absolutamente marcado pela violência da mordaça
nação do universo cultural africano que o ocidente branco-europeu por histórica e pela tentativa de rasura, pela dominação. Propondo as suas
tanto tempo insistiu em transformar numa página tão branca quanto ele. A reconversões literárias, tentam reencenar a experiência anterior do homem
rasura foi o caminho encontrado pelo silenciador para reafirmar a sua pre- africano, retecendo, pela linguagem, os seus valores, a sua fé, a sua dife-
rença, enfim. Dão-lhe visibilidade e, com isso, enfatizam os seus gestos de
2. As traduções da obra Kuma, de Makhily Gassama, são da autora deste ensaio. resistência cultural, dentro e fora da África, e o seu modo de dizer "pre-
240 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 241

sente", pedagógica e protagonicamente, usando termos de Homi Bhabha A palavra "manifestar-se" não é, no contexto, nada gratuita. Por
(1995). ela, o lá e o cá se interligam, no diálogo possível de forças que se suple-
Exemplar, nesse sentido, é a afirmativa feita pelo próprio mentam, com a fala do mensageiro dos orixás fazendo-se ouvir no seu
Edimilson e por Núbia Gomes, no texto introdutório da obra sobre os justo "primeiro lugar". Encenam-se um tu e um eu, assim "manifestados":
Arturos, grupo negro de Minas Gerais, obra onde se resgata a vida da "O cavalo das indagações me prostrará. Tua razão e tristeza talvez me
comunidade por ambos pesquisada. Ao comentarem a força do culto do reconfortem" (idem). A roda começa a sua volta e, por isso, logo a seguir
passado, praticado por membros do grupo, afirmam os estudiosos que vêm os "Emissários", até que as falas-texto se encerram, depois dos seus
vários movimentos de inclusão, com "Roda", poema de fechamento onde se
\

[ .. .] entre aqueles que resistem, cultivando o legado dos anteces- lê: "As palmas nos abraçam e com elas iniciamos/a celebração de conchas
sores, as origens permanecem sacralizadas, revelando um pas- e batidas essenciais" (p. 33). O eu e o tu enlaçam-se em forma de nós.
sado que se distancia. Para esses, a sua identidade deve incor- Ligados e ligações, sempre.
porar o significado amplo da existência do homem no tempo e no É ainda a fidelidade o elo que religa os passos poéticos de Ruy
espaço. Duarte, quando nas suas "reconversões", atr·avessa as doze "clareiras" onde
(1988, p. 13) mitopoeticamente reencontra e reconstrói "Koumen", o "texto iniciático dos
pastores Peul", no segmento de Ondula, intitulado também "Peul" (pp. 50-
Na esteira desse "legado cultivado", tornam-se significativos os -65). No fim do trajecto circular, cumpridas as etapas do rito, diz o eu-lírico
subtítulos de Ondula e de O livro de falas. São eles, respectivamente: - em forma de preceito e levantando algumas dobras do sagrado que está
Expressão oral africana: versões, derivações, reconversões (e foi aí que se na base do texto-origem e que ressurge contaminado pela fala-em-liberdade
buscou o título deste ensaio) e Achados da emoção inicial. Ambos os tex- do sujeito poético, novo quimbanda do mundo da escrita:
tos esforçam-se por traduzir, a partir do pacto estabelecido pelos subtítulos, Toma, por fim, as jujubas guardadas
algo que emigra de uma língua para outra; de um tempo para outro; de uma
na matriz do mundo.
forma de expressão para outra. Na tentativa de recriarem, de um modo Só as alcança quem chegou aqui.
quase iniciático, não a origem, esse impossível, mas a sua memória, os dois Estás na fronteira do saber dos homens.
poetas praticam, no dizer do de Angola, "o exercício de uma arriscada e sub- Daqui para a frente é divina
til manobra de equilíbrio entre fidelidade e liberdade" (1982, p. 5).
a ciência ao teu dispor.
Os dois últimos substantivos, aliás, fazem-se altamente represen- Foroforondou agora cuidará de ti.
tativos do processo ou do "exercício" desenvolvido pelos produtores tex- (p. 65)
tuais, quando, travestidos em eu-lírico, soltam a sua emoção, não como se
fora um início, mas como uma iniciação. A fidelidade é, então, uma espé- A "duodécima clareira" confi1ma o atingimento dos pontos-limite,
cie de confirmação de fé, alargada pela consciência da liberdade dos representados, nas malhas dos versos, pelas expressões "matriz do mundo",
sujeitos literários. "fronteira do saber" e pela percepção de uma "ciência divina" que só pode
Em O livro de falas, por exemplo, pela fidelidade se estabelecem ser atingida, quando se consolida a iniciação e se chega à plenitude do saber
os mais profundos laços do dizer poético de Edimilson Pereira com ritos possível. Ou seria sabedoria? Nesse ponto, o até então neófito se liberta das
e preceitos que estão na base da correlação de forças simbólicas e sócio- amarras do não-conhecimento, pois já compartilha aquela plenitude que só
-culturais de uma parcela mais que significativa dos negros brasileiros. alcança quem atingiu a última fronteira da iniciação.
Esses laços, nos quais se apertam os nós da tradição herdada, levam o A liberdade então conseguida é o máximo a que pode aspirar o
poeta a pactuar com o mundo antigo, escancarando as portas do espaço iniciado. No entanto, para o poeta, que não deixa em certa medida de ser
ritual da iniciação. Tudo isso justifica porque o eu-lírico começa a trajec- também um iniciador, é outro o sentido desta liberdade. Ela consolida-se
tória das suas falas, convocando, em "Visitação", texto inaugural da obra, quando aquele mesmo poeta se faz o sujeito pleno da sua linguagem,
Exu, ou seja, o ser que "se manifesta em tudo aquilo que vem em primeiro momento no qual se abre uma outra espécie de porta, ou seja, a do reino
lugar ... " (1987, p. 3). onde nomear é ser, fazendo coro com Octavio Paz (1982). Nisso consiste
242 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 243

o salto da poesia, o impulso que a faz existir. A sua grande demanda. No A noite é escura
caso específico de Edimilson Pereira e de Ruy Duarte, o salto se dá quan- vazia não é.
do, fiéis ao saber antigo, eles o ultrapassam com o seu "dizer festivo" e (1982, p. 45)
absolutamente livre de qualquer prisão modelar. Nas palavras do poeta
angolano, tal "dizer festivo" nasce da consciência de que O "dizer festivo" do poeta brasileiro e angolano liga-se aos ritos
iniciáticos, explícita ou implicitamente, pouco impmia. Os seus textos dei-
Um texto é como um esforço de existir: A intenção de um lado, xam-se perpassar por uma certa aura de animismo, o principal fundamento
uma proposta vaga, uma moral herdada. Do outro lado o curso da religião tradicional africana, de acordo com vários dos seus estudiosos,
das palavras, a esteira do seu eco, os sons e os gestos seguidos em especial Maurice Glélé (1981). É óbvio que, mesmo se o assunto é
uns aos outros, um som que pede um som e essa resposta é já um religião tradicional, não há como se pensar, no caso da África, numa
bolbo de emoção autónoma de força para florir madura, à revelia unidade absoluta, dada a complexidade do continente e a extensão da sua
da intenção primeira. diversidade cultural. No entanto, o animismo permanece sendo um dos
(Hábito, 1988, p. 9) traços distintivos da estrutura do pensamento religioso do negro-africano.
A natureza, por tal urdidura simbólica, torna-se um lugar assina-
Aqui talvez se enuncie o sentido (se é que existe o singular) da lado para o homem, estabelecendo com ele uma espécie de comunhão
liberdade do dizer poético, sempre o rebentar de uma emoção que, mágica. Daí o poder afirmar-se que aquele homem ocupa um "fora-den-
chegando "por causa de", se solta e segue o seu próprio rumo, "apesar de". tro" em relação a ela, sendo a paisagem exterior uma extensão da interior
Mesmo como um redizer, o poema, em seu lançar-se para fora da terra da e vice-versa. Por outro lado, ela, a natureza, representa o principal reduto
linguagem, apenas diz, como na magia encantatória de qualquer primeira dos ancenstrais. Falando a sua fala, descodifica as suas mensagens e,
vez. Não importa que Edimilson anuncie, como título de uma das suas pelos sinais que emite, transmite-os aos seres vivos. Assim, tudo se diz
obras, que ela signifique a recontagem de Contos afi'icanos: reinvenção de com a ou pela natureza que consolida a existência humana, fazendo-se a
imagens (in Árvore dos Arturos). O que conta mesmo é o facto consenti- forma de religamento entre os vivos e os mortos e, consequentemente,
do de que, ao reinventar as velhas imagens já cristalizadas nos contos, ele destes com os orixás.
as está inventando, delas fazendo a matéria primeira de um dizer inaugur- Ruy Duarte e Edimilson Pereira, como conhecedores dos antigos
al; com isso demarca o espaço habitado pelo signo poético, sempre preceitos, tramam, com os fios dos seus versos, as mais várias imagens da
intratável, no dizer de Roland Barthes (1981). Inventam-se, assim, por natureza, recriando-as nos seus tapetes textuais. Poemas como "Berg-
exemplo, "Os dois construtores", na sua origem uma narrativa de Angola, -dâmaras" ou "As pedras" são dois exemplos paradigmáticos do processo
mas já não mais uma narrativa de Angola, quando os versos dizem coisas de retecelagem. No primeiro, Ruy Duarte convoca a nuvem, "com a cauda
como: "A chuva arranhou o céu/mordeu os olhos da teri·a" ou "A terra que se arrasta." Com ela o eu-lírico dialoga, na sua fala religante: "Tu,
perde os olhos/o céu amanhece de medo." (1988, p. 48). chuva, que beberei nas pedras/protegido pelo espírito do meu amigo!"
Não é mais, também, o provável ~onto bambara, cujo subtítulo, na (1982, p. 21). Também Edimilson Pereira, em "As pedras", reencena as
teia entretecida pela poesia de Ruy Duarte, é "Ensinamento oral do Koré" nuvens, quando diz: "O lodo e o tempo./ Também as nuvens são irmãs."
que se lê como uma das derivações propostas pelo poeta. Para além de ser Confirmando o animismo que dá direcção e forma ao seu olhar, o eu-líri-
um acto de transformação, os versos significam uma invenção libertária, co que se encena na linguagem assim encerra o poema- "No espaço das
como comprova o final do texto: pedras/até o sol que se apaga/deixa o rubor do seu gesto." (1987, p. 19).
Por esses e outros textos, não há como negar que a natureza se faz uma
Acalmai-vos com o homem, nas telas do imaginário africano.
fi'agmentadores alados do crepúsculo Makhily Gassama, o interlocutor privilegiado na presente fala,
eu sou a Palavra descreve a fragilidade do homem, sempre colocado no meio de forças
a abóboda celeste maiores que ele, sejam elas naturais ou sobrenaturais. No seu afã de recu-
o encontro dos espaços. perar o visível e o invisível, já que os dois representam ordens de pensa-
244 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 245

mento suplementares, a poesia vai reflectir tal simbolização, fazendo-se, Hoje templo luta
por sua vez, "um universo cujos elementos constitutivos pertencem tanto plenilúnio.
ao 'visível' quanto ao 'invisível' e frequentemente ao 'visível' e ao (Livro, p.23)
'invisível' ao mesmo tempo" (Gassama, op. cit., p.47).
Idêntica postura anima um outro poeta-ensaísta, Manuel Rui O mesmo sucede quando, em vários poemas de Hábito da terra,
Monteiro, já aqui referido. Em comunicação apresentada na VI Ruy Duarte explora todas as possibilidades da página, como se dá com a
Conferência de Escritores Afro-Asiáticos realizada em 1979 em Luanda de número 43 da obra. Nela aparece o segundo poema de "Noção geográ-
' "Afinal, o'
ele faz uma espécie de profissão de fé poética, ao declarar que fica" e os versos assim se organizam: quatro, a comporem uma estrofe no
poema é maior quando repito um verso numa cadência de gado tran- alto da folha:
sumante ou quando lhe introduzo o ritmo do galho partido de uma plan-
ta mínima ou quando faço da miragem mais água que hei-de-ter" (1981, São os caudais do silêncio
p. 34). Adiante, no mesmo texto, Manuel Rui acrescenta: "Criamos cria- a densidade grata do vazio.
tividade. E criar para nós, somos nós homens que nos acrescentamos à É o silêncio
natureza" (p. 34). tangente às curvas do tempo.
O gesto de "acrescentar-se à natureza" é um dos elos a ligar Ruy
e Edimilson e o seu esforço consentido de apresentar, soldados, homem e um último, solto, como esquecido no fim da página, quando, depois de
e natureza. Como se trata de repensar a África, eles mostram que homem um tempo poético em branco, surge o fecho:
e natureza vão além, interligando-se a uma terceira ordem que os ultra-
passa. Está formada, por tal embricamento, a cadeia da força vital, que A cama horizontal de uma distância.
tudo explica e justifica. Os dois poetas buscam, como forma de dizer-se
e dizer o seu universo simbólico, o ritmo das estações; a figura dos ani- Há uma tentativa de desimobilizar a escrita, um afã de capturar a
mais e os seus sentidos ocultos, como o do boi, por exemplo; a dureza "matéria viva, palpitante de vida", outra frase de Gassama (idem, p. 22),
das pedras; o fugidio ou a gravidez das nuvens - a "mãe do gordo ven- tal como se apresenta na trama da oralidade. O poeta, para conseguir o
tre" (RUY DUARTE, 1982, p. 21) -;os sons, marca de tudo o que há; efeito de apreensão dessa palpitação de vida, faz como os velhos quim-
a força do raio que, ao cair, "povoa o chão", na fala de Edimilson (1987, bandas e escolhe o que, ainda com Gassama, se poderia chamar de
p. 30), etc. Celebrantes, cantam a união homem/natureza, reiterando as "palavra-parteira". Ela "se carrega do essencial da mensagem do poeta."
leis de solidariedade que a regem. (op. cit., p. 55), daí porque parece acessório tudo que a rodeia. No dizer
Sabendo, repito, que a palavra deve ser cultuada, "como se fosse textual do crítico,
um ser vivo" (GASSAMA, 54), Edimilson e Ruy fazem uma poesia de
sugestão mais que de tentativa de representação do real. Buscam as vir- é, pelo poder quase místico dessa palavra mágica que surgem de
tudes encantatórias das palavras, intensificando o seu ritmo tonal. um modo aparentemente gratuito outras palavras, outras ima
Exploram, como poucos, os silêncios dos espaços em branco, as pausas gens que não são mais que ornamentos, facilitadores da trans
dos versos, a sua respiração, as suas imagens inesperadas, enfim, todo 0 missão da mensagem. Por vezes, quase gratuita do ponto de vista
poder de sedução da palavra que, como pássaro viajante que é - outra do sentido, mas plena de vida e feiticeira do ponto de vista do
expressão do crítico senegalês Gassama - , não se permite aprisionar, signo, ela transmite ao conjunto do poema um sopro e lhe dá uma
ficando nas mãos dos poetas o bater trémulo das suas asas. Cito densidade que ele não poderia adquirir de outro modo.
Edimilson: (idem)

O chão em meialua. No diálogo aqui proposto, vê-se que a questão teórica das
Ontem os lábios minguantes "palavras-parteiras" se encaixa como luva. Elas são o constelado que per-
ao sereno. mite o renascimento do saber antigo, enchendo-o de vida outra vez. Elas
246 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 247

o reconvocam, reconvertendo-o. Falando, por exemplo, de nuvens, de


pedras, de gado, de Verão, de raio, de silêncio, de Exu, de chão, os poe-
tas estão dizendo de vida, de sabedoria, de solidariedade, de morte, de
transformação. Reconstroem, em imagens, a diferença de uma cultura por
tanto tempo esquecida nos domínios da escrita, enquanto se mantinha
inteira nas malhas da oralidade.
As "palavras-parteiras" de Edimilson Pereira e de Ruy Duarte não
só contribuem para reacender aquele saber antigo, como aram a terra da
linguagem, fazendo nela rebentar novos e surpreendentes fmtos. Quando
VELHAS PALAVRAS
se calam, porque versos e livros chegam ao fim, elas não se ausentam, mas E IDADES'
continuam presentes a iluminar a noite da memória. Da nossa memória,
brasileira ou africana.
"Coração cadáver porque bates e
porque esperas?"
Francisco José Tenreiro
"Recito a religião dos calos. "
Ed:imilson de Ahneida Pereira

Francisco Tenreiro, poeta de São Tomé, e Edimilson de


Almeida Pereira, poeta do Brasil, unem-se no mesmo gesto de olhar o
corpo cultural recoberto do homem negro, corpo que séculos de silencia-
menta forjaram a ferro em brasa. Tenreiro- "Coração em África"- e
Edimilson - coração brasileiro, por exemplo, "Em Cuba com Nicolas
Guillén"- fazem-nos ouvir cantos de celebração a um povo sa(n)grado
na diferença dos seus traços etna-culturais, sempre apresentados em
oposição aos do branco-europeu, senhor do ocidente.
Pela memória, os poetas unem os pontos, cerzindo o esgarçado
tecido. Yoltam, em seus versos, o tempo das origens. Da dor. Dos antepas-
sados. Dos cantos. Dos grilhões. Das velhas palavras. Das antigas idades.

Tenreiro:

Noite de grande lua


e um cântico subindo
do porão do navio.
----~----

1. Originalmente publicado em inglês em Brazil and the discove1y of America -


Narrative, histmy,fiction, 1492-1992. Edited by Bernard Me Guirk and Solange
Ribeiro de Oliveira, Great Britain: Edw:in Mellen Press, 1996, pp. 92-101.
248 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 249

O som das grilhetas originais inscritas pela sua cultura: cabelo rapado ao centro e argola no
marcando o compasso! nariz. Vendo-o fugir, Colombo chama-o, e ele, ao despedir-se, na língua
(1982, p.72) do conquistador, lembra-lhe que este jamais aprendera a sua. A força de
Utapan reside nessa rua de sentido duplo pela qual transita entre a fala
própria e a alheia.
Edimilson: A segunda recorrência, mais antiga, encontro-a na dramatização
dominado vs. dominador em A tempestade, de William Shakespeare, texto,
Na memória reza a presença aliás, que pode ser lido no filme de Scott. Calibã e Próspero são, quando se
dos antepassados em luta. pensa a questão colonizatória, os principais actantes no jogo dramático. O
Uns com a fé resguardada primeiro, centro do meu interesse mais imediato, é apresentado na rubrica
outros com o braço em riste. introdutória das dramatis personce como um "ser disforme e selvagem"
(1988, v. II, p. 915). O vilão Trículo, vendo-o, exclama: "O que aqui temos?
Na capela em ruína trabalha Um homem ou um peixe? Morto ou vivo? É um peixe [ ... ]. Tem pemas de
a herança dos negros antigos. homem! As barbatanas parecem braços!" (Idem, p. 936).
Não há paredes nem domingos: Este ser, apresentado física e psiquicamente como monstro, fora o
há sinos, lembranças e Arturos primitivo dono da ilha, no presente do texto, sob o domínio de Próspero. Tal
(1988, p.99) ilha chega-lhe como legado da mãe Sycorax, segundo os exegetas- cf.
Roger Toumson, por exemplo, uma feiticeira africana. Pela origem mater-
Com as vozes trançadas desses dois autores, tentarei - eu na, Calibã já se marca, portanto, como filho de uma mulher duplamente
mesma, cerzideira, nesta hora, de um tecido bordado pela diferença cul- assinalada: africana e feiticeira. Recebe, assim, o corte e a cicatriz da dife-
tural - inscrever as minhas reflexões. O cuidado primeiro, no acto de rença e da exclusão. Por isso, o seu corpo está "pronto" para receber o prin-
cerzidura, deve ser o de encontrar a justeza do tom. Nem panfletário, nem cipal instrumento da dominação: o chicote. Lembro a fala de Próspero:
ameno. Só assim: o justo tom. Por isso, pergunto, na tentativa de atar os "Escravo mentiroso que só o chicote pode comover, não a bondade, eu te
primeiros fios: que dimensão ganha o ser negro num ocidente que é - ou tratei, apesar de não passares de uma coisa imunda, com humana solicitude"
se quer- branco? O que significa ser África, quando tudo parece dizer (idem, p. 924). A coisa, em exclusão: o dominado. O homem, em sua "bon-
Europa? dade": o dominador. A corda que os enlaça: o chicote.
Duas imagens me vêm à mente. Uma, recorrência mais próxima, Outra fala, igualmente sintomática, aparece nessa mesma cena.
leva-me ao filme A Missão, de Ridley Scott, e à cena em que um enorme Numas edições, é atribuída a Miranda. Na por mim consultada, pertence
sino, inscrição da cristandade, é levantado, com o inominável esforço de a Próspero, o que, a meu ver, está mais de acordo com o contexto da obra.
homens e animais. Enquanto o campanário, altaneiramente branco, o Tal réplica dá a dimensão exacta do jogo colonizatório na sua brutalidade.
espera, o sino, erguendo-se, vai, escuro .e grande, tomando toda a tela, Recupero-a na versão brasileira de Óscar Mendes e outros:
como metáfora sobremodo evidente daquele "poder mais alto" ali "ale-
vantado", em nome da "Fé" e do "Império", parodiando Camões. O seu Escravo repugnante, que nunca abrigará um bom sentimento,
soar longo contamina o já agora (e para sempre) "paraíso perdido" dos sendo capaz de todo o mal! Tive pena de ti. Tive o trabalho de en-
naturais da terra e, como fala soberana, os conduz às duras trilhas da sinar-te a falm: A todo o momento, eu te ensinava uma coisa e ou-
mudez histórica. tra. Quando tu, feito um selvagem[ ..}, balbuciavas como um bru-
A figura do índio aculturado Utapan é bastante significativa. to, dotei teu pensamento de palavras que o deram a conhecer.
Colombo ensina-lhe língua e costumes europeus, levando-o, inclusive, (idem, ibidem)
para Espanha. A sonoridade do seu nome - Utapan - faz lembrar a do
sino. Em dado instante, decidido a retornar ao grupo a que pertence, o per- Reconhece-se aqui o recobrimento cultural da palavra do silen-
sonagem desveste-se da indumentária ocidental, revestindo-se das marcas ciador, única percebida como capaz de nomear. O balbuceio de Calibã (ou
250 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 251

os seus gmnhidos na visão do outro) instaura a desordem no saber orde- novas formas de organizar a luta. Não é à toa que Agostinho Neto invoca a
nado do "civilizado", como no filme se dá com os sons incompreensíveis metáfora de "Bamako", momento-lugar de reversão da expectativa do des- .
de Utapan e seus pares. A fala em diferença vem sempre marcada pelo fer- tino do homem negro:
rete da incomunicabilidade, parecem dizer peça e filme.
Estendendo tais considerações para a questão negro-africa- Bamako!
na, podemos inferir que, pelo facto de não ser a fala desses povos desco- ali estão os nossos braços
dificada pelo "sujeito" do saber, é ela percebida como uma não-fala. ali soam as nossas vozes
Como a sua nomeação não é decifrada, torna-se uma não-nomeação. ali o brilho esperança dos nossos olhos
Devido ao corpo do negro se revestir de uma pele mais pigmentada, é ele se transforma imenso numa força irrepreensível
visto como um corpo-outro, quase intersecção entre macaco e homem. da amizade
Marca-se, por tudo isso, por um sinal menos. Faz-se "coisa" frente ao secas as lágrimas choradas nos séculos
olhar do outro e torna-se passível de aprisionamento e escravização. na Áfi·ica escrava de outros dias
O "nós", pensando com Todorov (1989), desconhece e repudia os vivificado o sumo nutritivo do fi·uto
"outros" e o perfume cultural por eles exalado. Chega-se, por essas vias, o aroma da terra
a uma primeira lição a ser extraída de A tempestade e de A Missão: para em que o sol desencanta kilimanjaros gigantes
deixar de ser "abominável" e não representar ameaça, ao dominado só sob o céu azul da paz.
(1979, p. 92)
cabe não esboçar qualquer gesto de revolta, esperando a dádiva de ter de
volta o que é seu. A segunda lição: a execrabilidade da diferença. Para que Paz que só seria conseguida quando o homem africano pudesse ter
esta possa ser digeri da pelo não-canibal (e alguma vez o senhor o é?) tor- de volta o que, por legado materno - cf. Calibã e Utapan- jamais pode-
nam-se necessários o silêncio e a anulação. Aqui vale indagar: nesse jogo ria deixar de ser seu: a sua própria terra.
perverso, que dimensão se atribui ao tempo da dor? No Brasil, como na América em geral, fez-se longa e dificil a trajec-
Tal tempo, vivido nas roças de café e açúcar do Brasil ou nos vas- tória do negro, sempre o terceiro elemento de um jogo racial perverso. Na
tos campos de algodão dos Estados Unidos, por exemplo, é peça funda- história da literatura brasileira, de Sílvio Romero, encontro: "Os negros para
mental quando se recorta o tema da identidade negro-africana. Mesmo no aqui transpmiados estavam ao que suponho por factos, no momento primeiro
espaço original essa durée dolorosa existe. Não obstante a sua condição do fetichismo, phase primordial da idade theologica" (1902, p. 56). Enquanto
de dono da terra, o negro nunca passou de uma entre as tantas "mercado- tal- e retomo as palavras do autor - , "os índios achavam-se no período da
rias" extraídas do continente africano. Mercadoria, aliás, bem menos astrolatria, momento mais adiantado do estado fetichista" (idem). Por essas tri-
valiosa, na percepção de Duarte Pacheco, citado a partir de Nei Lopes lhas, o crítico prenuncia a sua conclusão: "no estudo dos povos que formaram
(1988): "Nesta terra [ ... ] não há ouro nem sabem o que é, mas nela há a actualnação brasileira o primeiro logar há-de ser dado ao portuguez" (p. 57).
razoavelmente cobre muito fino [ ... ]; nesta terra se resgatam alguns O capítulo VI da obra - "As raças que constituíram o povo brasileiro. O
escravos em pouca quantidade e até agora não sabemos que aqui haja mestiço"- apresenta-se revelador. Nele, o ensaísta debmça-se mais detida-
outra mercadoria" (p. 102). E Dumie Pacheco falava do tempo-centro do mente sobre o índio, dedicando-lhe sessenta e nove parágrafos; a seguir vem o
coração humanista! europeu (pmiuguês), com quinze; o mestiço é aquinhoado com cinco e o
Esse estado de reificação do homem negro perdura lá e cá, até ao negro, finalmente, com dois. Os números falam por si.
momento em que, consciente da sua mudez histórica, ele se rebela, buscan- Noventa e um anos depois da primeira edição da História de
do uma ordem revolucionária. Nesse instante, o recalcado explode e a noite Romero, é caso para nos perguntarmos: como entra a produção negra na
engravida-se de punhais, parafraseando o belo subtítulo do primeiro volume formação do cânone da literatura brasileira? Também vale indagar como
de Antologia temática da poesia africana, organizada pelo angolano Mário os formadores de opinião pública ou os estamentos 2 de poder, que confe-
de Andrade: "Na noite grávida de punhais" (1976). Cresce em força o
canto-grito, um dia entoado, dentre outros, por Zumbi, no contraforte dos 2. Palavra do jargão sociológico brasileiro; segundo o dicionário Aurélio, "cada
seus Palmares. Pelos séculos, esse canto-grito adensa-se e encontram-se um dos grupos da sociedade com status jurídico próprio". (N. E.)
Novos pactos, outras ficções 253
252 Laura Cavalcante Padilha

rem a chancela de valor a uma dada obra literária, vêem e/ou avalizam tal imagem, nela se reconhecendo. Só assim deixará de ser um objecto daque-
produção e o espaço a ela reservado nos meios de circulação do livro. E la mesma história, transformando-se em seu sujeito. A palavra ancestral,
as indagações por aí iriam, num nunca acabar. que atravessou mares, cortou rios e florestas, far-se-á de novo ouvir, afia- ·
Deixando as lacunas para pensar a plenitude da voz em diferença da como as lâminas do machado de dois gumes de Xangô, ou seja, daque-
do negro-africano, vale tracejar a questão do uso da palavra nas comu- le que foi, nas palavras de Edimilson Pereira, "outrora o quarto monarca
nidades ágrafas de origem. Na África, falar não é um gesto gratuito. Pelo da cidade de Oyo, e permanece rei entre os deuses" (1991, p. 208).
contrário: é um acto integrador dos vários elementos constitutivos da E é com este texto de Edimilson, prece a/de Xangô, que gostaria
cadeia da força vital. Também essa palavra dita é pertença do colectivo e, de, em moto-contínuo, chegar ao fim das minhas reflexões. Convido o
como atributo aglutinador, emana sempre dos antepassados fundadores. poeta, uma vez mais, a patiicipar da roda, dele fazendo o mestre-de-ceri-
Se a escrita imortaliza o seu sujeito, a oralidade sagra o seu, con- mónias de uma fala que se quer celebração das velhas palavras e idades.
ferindo-lhe um peso extraordinário no corpo social. Geralmente os senho- Idades e palavras .que o dominador lutou por tornar vazias, mas que,
res do dito são os "mais velhos" do grnpo, não só pela idade mas pelo intratáveis, continuam a forjar os traços das faces dos negros de todo o
papel que nele exercem. A eles cabe ordenar o caos, mantendo a identi- mundo, ainda - ou muitas vezes - os despossuídos da história. Que o
dade clânica, transmitindo os mistérios da iniciação, enfim, impedindo o digam os esqueléticos corpos etíopes; os rostos crispados nas mas em
esfacelamento da alteridade e/ou a morte dos mitos. guerra de Los Angeles; a tragédia dos meninos e dos seus sacos de cola de
As estórias contadas africanas são formas escamoteadas de nar- sapateiro nas grandes cidades brasileiras. É em homenagem a todos que
rar-se a história de cada comunidade, de modo tal que os neófitos não te- falo com Edimilson/Xangô:
nham acesso ao conhecimento. Só o já-iniciado se torna capaz de destecer
Vem-me de velhas idades a oficina dos raios. O louvor não per-
os fios do saber grnpal que a todos irmana, atando-os em teias invisíveis
doa a fúria das mulheres perdidas? A calma dos machados dese-
ao olhar do outro, senhor da dominação.
ja o inimigo. Sofri no amor dos anjos, mas coroei pedra e raio.
Todo o trabalho arqueológico do pesquisador das culturas negro-
Velhas palavras são rainhas e homens esquecidos, a decifração
-afi'icanas consiste no desvelamento daquelas teias, redescobrindo o mundo
das máscaras. Ó paz, a pupila rasgada dos incêndios perfitma
escondido e fazendo-o vir à tona. Decifrar-se-á, assim, a história nas estórias,
ouvindo-se os silêncios, seguindo-se traços e rastos, buscando-se córregos e a celebração dos humilhados.
remansos escondidos na mata escura do tempo. Então, em toda a pujança Sem temer o lugar comum: AXÉ!
aparecerá a fertilidade existente num lugar estigmatizado pelo ocidente como
espaço vazio: a margem. Africanamente é este o território onde se escondem
as delícias, como bem descreve o escritor angolano Henrique Abranches em
"Depois do vendaval":

A Margem!
É justamente o nome que os caçadores ribeirinhos costu-
mam dar àquele lugar de encantos. É um lugar fértil, de boa
caça, denso de criaturas humanas - gente que se desloca -
cautelosamente.
(1962, 4 ; 39)

A densidade de tais "criaturas humanas", desssa "gente que se


desloca cautelosamente" deve ser buscada por nós, pesquisadores. A voz
cultural calada alçar-se-á, soberana, iluminando as marcas do mundo anti-
go. Olhando-se ao espelho da história, o negro verá nele reflectida a sua
254 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 255

Acentos, tempos,
a urgência de um sinal
que a emoção comanda.

A emoção da urgência.
A urgência da emoção
anterior à norma.
DE NARCISOS A norma: tradução
(1988, p. 13)
E ESPELHOS! Estamos diante do mesmo quadro simbólico, só que dito de
maneira diversa. O poeta angolano, como já fizera o brasileiro, travestido
de eu-lírico, mostra a urgência, seja de "um sinal"- e eu o penso como
O título deve menos a um dos mitos fundadores da cul- sendo de apaziguador reconhecimento -, seja de emoção, surgida,
tu,ra branco-ocidental que ao já quase canónico verso de Caetano Veloso: informe, antes que a norma a capture, sempre em exercício de tradução, ou
"E que Narciso acha feio o que não é espelho", assim como ao constela- mais uma vez, e repetindo, reconhecimento. A identidade assusta-se face à
do imagístico do poema-canção onde tal verso se insere. Chocado com a diferença. Para vencer espanto e impasse, fazem-se necessários o pacto
visão de São Paulo ou, simplesmente "Sampa", que o leva para 0 mais com a transformação e a urgência da captura de sinais que sustentem o chão
absoluto outro lugar de si mesmo, o eu-lírico esclarece, na sequência- da estrada pela qual se dará o trajecto para o outro. Só assim se diminuem
"E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho/nada do que não era as distâncias e o antes diferente encontra a forma pela qual se traduz a
antes quando não somos mutantes". norma que o sustentará daí por diante.
Representa-se, por aí, o papel da tradição, ou do velho, como 0 Em Noa Noa: viagem ao Taiti (1893), Paul Gauguin também
elemento de segurança do sujeito que só é capaz de "ler" o ainda para ele exercita esse movimento de tradução. Para ilustrar, recorro às suas
não codificado, quando se deixa bafejar pelo vento da transformação, impressões iniciais, quando o pintor diz que se encontrava "cego", ao
fazendo-se mutante. De qualquer modo, o gesto de fecundar o velho pela chegar à ilha, razão porque não consegue dimensionar a beleza da rainha
muta?ão do novo, ~ara realiza~-se plenamente, exige tradução, ou seja, Marau, viúva do rei Pomaré:
uma Imagem outra, Igualmente Impactante, na qual o sujeito se reconheça,
me~mo que no futuro. Só então a dificuldade se dissolverá e se chegará à Tendo acabado de chegar [ .. .] eu encontrava-me de certa forma
lucidez da compreensão. No caso da canção, Rita Lee é este agente, cego. E assim vi na já madura rainha uma robusta mulher
mutante à hora futura, como o observador que nela se projectará. A figu- comum, com alguns remanescentes de beleza [ .. .] Quando voltei
ra da "mutante" substitui, pois, a imagem da deselegância das outras a vê-la mais tarde, compreendi o seu encanto maori; o sangue
meninas. Cito os versos: "Ainda não havia para mim Rita Lee/a tua mais taitiano voltou a ter supremacia; a lembrança de seu ancestral
completa tradução". [ ... } conferia-lhe [ ... } uma real qualidade de imponência.
Semelhante ideia, de algo que precisa ser traduzido para ganhar (1977, p. 12)
corpo e voz, reaparece nos versos do angolano Ruy Duarte de Carvalho
quando em "Aprendizagem do dizer festivo", exercício poético de abertur~ Deixo a partir de agora Noa Noa e Gauguin, um quase apenas
de Hábito da terra (1988), encontramos a tentativa de entrecruzar memórias parêntesis reforçador, para ficar com Caetano e Ruy Duarte, meus
e ~atrizes diversas que enformam a cultura angolana e, em consequência, próprios motes espácio-temporais, lembrando que podemos prosseguir,
ahmentam o poema em seu nascer. Recupero o expressivo fragmento: recorrendo a uma outra imagem tutora do processo que os dois textos nos
dão suporte para começar a analisar. O movimento de aproximação -
1. Texto originalmente publicado em Metamorfoses 1, Rio de Janeiro, Cosmos, precedido, reitero, por espanto e impasse - dá-se sempre em zonas de
para a Cátedra Jorge de Sena!UFRJ, 2000, pp. 143-152. fronteira que, no caso presente, tanto se pode representar pelo cruzamen-
256 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 257

to da Ipiranga com a Avenida São João, quanto, no exercício do texto suas belas Aft"Dgrajias da memória, texto sobre o "Reinado do Rosário no
angolano, pelo que se dá "no encontro da memória/com a matriz" (idem, Jatobá", completa: "Com nossos ancestrais vieram as suas divindades,
p. 12). Nestes momentos entrecruzados, e aqui vale recorrer, uma vez seus modos singulares e diversos de visão do mundo, sua alteridade lin-
mais, à "Aprendizagem", sempre haverá, ou, como diz o poema angolano, guística, étnica, técnica, religiosa, cultural, suas diferentes formas de
organização social e de simbolização do real" (1997, pp. 25-26).
Há um lugar
A isso eu mesma acrescentaria: com os nossos ancestrais, vieram
que invade outro lugar
os seus próprios ancestrais, compreendido o termo como significando os
e este lugar
espíritos dos mortos de um dado grupo étnico ou familiar. É o que refere
estará presente noutro.
(idem, ibidem) Gauguin, ao lembrar o ancestral de Marau, Tati, cujo nome ele também
resgata. Dos antepassados fundadores emanava e ainda emana a força de
Tais versos deixam clara a impossibilidade da crença em qualquer sustentação simbólica dos sujeitos culturais.
essência ou, ainda, a impossibilidade do sonho de qualquer "pureza" ori- Vale a pena aqui, talvez, oferecer uma breve explicação que ajude
ginal. Os lugares, por se encontrarem, invadiram-se, contaminando-se, o a armar o jogo de identidades e diferenças. Na África, como por várias
que muda tudo. O que passa a ter força é o cruzamento dos sinais, a pos- vezes afirmei, a morte não desfaz os laços exístentes na terra ou leva os
sibilidade do múltiplo, o reinado do híbrido, sempre pelas margens, ou seres desencamados para uma distante e inconsútil morada divina. Pelo
por lugares fora-do-lugar. Não há afastamento, mas fecundação, como, contrário, no cimo de árvores, por isso mesmo feitas sagradas, ou transmu-
aliás, parecem apontar os versos de Edimilson Pereira: dados noutras partes da natureza, os antepassados permanecem territoria-
lizados, a velarem pelos seus. Os laços de pertença não se desfazem, mas
Um rio não divide apertam-se, tomando-se mais fmies. Cabe aos mais velhos de uma dada
duas margens. comunidade, sempre seres iniciados ritualmente, descodificar os sinais emi-
O que se planta nos lados tidos pelos ancestrais, fazendo-os circular pela encenação da sabedoria
é o que o separa. oral por excelência - e que tem na sacralidade da palavra sempre um além
(1989, p. 13)
de si mesma, o seu principal sustentáculo simbólico.
Mostra-se, assim, a cetieza da inexistência de margens vazias, ao Ora, ao serem arrancados do seu mundo de origem, ao fazerem-se
mesmo tempo em que se deixa patente a urgência de se pensar uma ter- "peças", tudo isso ficava lá. Voltando à afirmativa de Leda Martins, diria que
ceira margem, signo tão caro a autores como Guimarães Rosa (Brasil), lá como que se soterravam: o modo de viver; comer; vestir; amar; a língua que
Luandino Vieira (Angola) e/ou Mia Couto (Moçambique). Os três, entre falavam; o ten·itório que conheciam e, principahnente - entre tantas outras
tantos outros, constroem, pelas suas obras, a possibilidade de germinação coisas - , as marcas visíveis dos seus sagrados ancestrais, que lhes davam as
das terras da linguagem, com distintas plantações atiístico-verbais que são directrizes ético-sociais. Despaisados, sem referências tangíveis, os africanos
o duplo das ético-culturais. transplantados fizeram da vivência perdida memória, e, com ela, traçaram o
Para discutinnos, aqui e agora, os problemas de identidade e camillho da resistência e da tentativa de manutenção do seu tapete identitário,
diferença cultural, muito se teria a considerar ou diferentes caminhos se sempre múltiplo, uma vez que não há uma singular identidade africana, mas
poderiam percorrer. Narciso no espelho, vou escolhendo o que me diz, um tecido feito de muitos fios étnicos. A resistência da memória, no entanto,
isto é, o que se plantou nos lados da África e o que se replantou no Brasil, não permitiu a morte do legado de lá, por assim dizer, que encontra formas de
criando-se confluências e separações. Identidades e diferenças. Começo, reterritorializar-se e difundir-se. Leia-se, a esse propósito, os belos versos de
pelas trilhas escolhidas, por pensar Edimilson de Ahneida Pereira, que não me canso de citar:

As memórias de lá e o seu replantio Os negros estão chegando


com seus tambores: silêncio.
Disse Hemy Louis Gates (1988), e com frequência o repetimos, Os negros cantam velados.
que os negros não viajaram sozinhos. A este propósito, Leda Martins, nas [. ..]
258 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 259

Os negros Arturos com seus "não tinha" história; religião; língua civilizada; música; literatura, etc.
terços de contas. Silêncio: Assim, houve uma tentativa de recalcá-la, apagando-a de todas as cons-
são mil negros guardados. truções simbólicas oficiais do país, o sistema escolar sempre à frente,
(1991, p.-) como tradução que é de tais construções. Zumbi e outros líderes, como
Dandara, foram apenas negros rebeldes que as armas da ordem, sempre
Dentro da lógica do processo de reterritorialização ou replantio, o branca, souberam calar ou destruir. Só que tal ordem se esqueceu e
que havia nas novas terras - americanas, basicamente - e se aproxima- esquece de que já não é tão branca como isso ...
va do que havia lá, no mundo para sempre perdido e que, a partir do rito De um modo ou de outro, houve uma tentativa de apagamento do
da árvore do esquecimento, devia ser apagado também para sempre, foi brilho-força da negritude, seja por desejo do próprio sujeito, seja por
tomado com nova significação. O mundo outro se recodificou ou sobre- imposição do olhar branco dominante. Lembro, como exemplo possível
codificou, melhor dizendo, cobrindo-se de velhos sinais e sincretizando- deste último facto, o branqueamento de Chiquinha Gonzaga, em recente
-se. As identidades e as diferenças entrecruzaram-se, no encontro da série televisiva, pela escolha de duas "alvas" actrizes para representá-la.
memória com a nova matriz ou das memórias de lá com as matrizes de cá, Fora isso, vale a pena rastrearmos como a iconografia brasileira
pensando especificamente no Brasil. O colonizador, ao chegar à África, embranqueceu alguns dos nossos "gurus" culturais, claro que canonizados
dominando-a, começara o mesmo processo que o esclavagismo levou às por pertencerem ao vector alto dessa mesma cultura. É o caso, para ficar-
últimas consequências, pela disseminação diaspórica do homem negro. mos tão somente com dois exemplos panteónicos, de Machado de Assis e
Sobre tal questão, gostaria de retomar Kwame Anthony Appiah, Carlos Gomes. Basta fecharmos os olhos e recuperarmos a fixação icóni-
autor ganês que, em Na casa de meu pai (1997), reitera o hibridismo funda- ca das suas figuras, quando mais velhos, sobretudo, que não teremos disso
mental que marca o encontr·o das culturas na vasta diáspora africana. Ao qualquer dúvida.
referir-se à "múltipla[ ... ] herança do escritor africano", por exemplo, ele diz Duas excepções, igualmente dentre outras possíveis, são agora
ser impossível "ignorar o fato inegável de que as referências de Soyinka a convocadas aqui: a de Cruz e Souza, cujo sonho de brancura é exaltado
Eurípides são tão reais quanto o seu recurso a Ogum" (1997, p. 101). Eu diria por uma certa crítica como sendo a principal marca imagística dos seus
que, aqui pelo Brasil, Oxum e Nossa Senhora da Conceição já se deram, entre textos, e a de Lima Barreto, por sua própria condição de sujeito fora-do-
outr·os, as mãos e seguem, altaneiras, a comandar a festa simbólica do seu -lugar, por ser alcólico, e ter sido frequentemente internado em mani-
povo, no dia 8 de Dezembro. Alguns insistem em não ver isso. Pobres nar- cómios. De resto, os negros fizeram-se cada vez mais brancos, na cons-
cisos que pensam que "a feia fumaça" é capaz de "apagar as estr·elas". No trução iconográfica nacional, sempre que se alçaram ao panteão canónico.
entanto, o céu abriga, no seu negro-azul multiplicado, a beleza das suas Uma outra coisa que vale a pena rastrear é a forma como os per-
sonagens negros se representaram no espaço romanesco brasileiro. Cito
dois exemplos, ambos buscados no final do século XIX. Eles parecem-me
Estrelas acesas paradigmáticos. Trata-se de O cortiço, de Aluísio de Azevedo (1890) e de
O bom crioulo, de Adolfo Caminha (1895). No primeiro, representa-se a
Durante a escravatura, os senhores brasileiros suportavam o que negra Bertoleza, não por acaso pintada como gorda concubina do por-
os negros faziam- já que eles não eram vistos como homens, mas como tuguês João Romão, e a sua morte, encenada como pura escatologia e
meros objectos ou animais de carga -por acharem seu legado inofensivo punição ordeira. Com ela, Bertoleza, se encerra o contado, com o seu
e desprovido de valor semântico e cultural. Depois da libertação, o que suicídio pelo metonímico e metafórico rasgar do ventre com a faca de cor-
não se pode confundir com liberdade, que tem a ver com plena cidadania, tar peixe. No segundo, o autor debruça-se sobre uma dupla exclusão do
tudo que se referia à cultura africana transplantada passou a ser visto sujeito- negro e homossexual- numa das mais tensas condensações do
como ameaça a ser estirpada: o candomblé e, logicamente, os deuses afro-descendente na sociedade brasileira e o seu mais que absoluto fora-
negros; os batuques; a capoeira; o samba, e por aí fora. O eterno jogo de -do-lugar.
Narciso e o seu espelho ... Surge, porém, e vou-me ater a um ponto apenas no vasto mapa
Desse modo, continuou a ser mais fácil rasurar a África- ela cronológico, a revisão que se faz, no nosso século XX, a partir dos anos
260 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 261

60. Sedimenta-se, então, no campo da produção cultural de modo geral e letra" (SANTIAGO) a complexidade do universo simbólico reterritoria-
na literária, de forma específica, o que Homi Bhabha chama de "movi- lizado. Retornam, transfonnados pelo instrnmental miístico, os orixás; a
mento suplementar de escrita" (1996, p. 24). Partindo da lógica do suple- sabedoria dos teneiros; as tradições orais; a performance corporal; o bater
mento (DERRIDA, 1967), sempre um processo pelo qual se acumulam dos tambores, isso para não falar dos Reinos do Rosário, outro belo
presenças, ao invés de se pensarem incompletudes na origem, Bhabha dá replantio, Nossa Senhora, mutante, à frente. O texto A roda do mundo
a sua própria contribuição, afirmando pontualmente sobre o "discurso da (1996) é um bom exemplo desse acender deliberado das estrelas. A obra
minoria" que reúne poemas de Aleixo e Edimilson, com texto de apresentação de
Antonio Risério que, por sua vez, mesmo não sendo negro, debrnça-se
Sua estratégia de intervenção é semelhante ao que os procedi
sobre o legado iornbano, como ele mesmo afirma, para participar "no
mentos parlamentares reconhecem como uma questão suplemen
processo político-cultural de desrecalque e afirmação das vertentes domi-
tm: É uma questão suplementar ao que se encontra na pauta, mas
nadas que foram fundamentais para a formação biocultural brasileira"
como ocorre "depois" do original, ou "em acréscimo" a ele,
(1996, p. 19). Ao traduzir orikis, Risério, no dizer de Haroldo de Campos,
oferece a vantagem de introduzir um sentido de "secundaridade"
o faz "segundo os preceitos da tradução criativa, transcriação ou tradução-
ou atraso na estrutura original. A estratégia suplementar sugere
-arte" (idem, p. 11 ). Mas é sempre tradução, ou seja, busca de outro corpo-
que "acrescenta r" não precisa "somar", mas pode perturbar
-voz, mesmo que pelas malhas da poesia.
o cálculo. (1996, p. 23) Voltando à Roda do mundo, lá encontramos a apresentação dos
poetas mineiros feita pelo baiano:
Como venho afirmando já há algum tempo, essa noção desestabi-
lizadora de "perturbação do cálculo" é produtiva quando queremos pensar o [ ..} dois jovens brasileiros que retrabalham coisas (e espíritos)
jogo de identidades e diferenças, a partir da questão da África, com os seus originários de lugares distintos do continente africano. O univer
desdobramentos. Mesmo ganhando um certo espaço antes, as literaturas so em que Edimilson se move é essencialmente banto. Mundo de
africanas de língua portuguesa, por exemplo, revelam uma pujança surpreen- Zambi, inquices, ingomas, calundu, congado e calunga. Já o ho-
dente a partir dos anos 60, desenhando, cada vez de forma mais nítida, os rizonte de Ricardo Aleixo é basicamente jeje-iorubano, vindo em
traços da alteridade da sua face cultural. Basta lembrarmos nomes como os linha directa dos veneráveis orikis de orixá.
de António Jacinto e Agostinho Neto (Angola); José Craveirinha, e Noémia (1996, p. 9)
de Sousa (Moçambique); Alda do Espírito Santo (São Tomé e Principe);
Gabriel Mariano (Cabo Verde), etc., só para citarmos alguns poetas. É essa "linhagem directa" que nos permite vislumbrar as dife-
Quanto ao Brasil, assiste-se, nesses quarenta anos, a um sistemáti- renças que formam a nossa própria e múltipla identidade cultural. Elas
co subir ao palco literário de muitos autores afro-descendentes que se ganham, de forma mais deliberada e consciente, repito, um espaço de
aproveitam disso para, por um lado, perturbar o cálculo da hegemónica força no grande corpo nacional brasileiro, que tem no literário uma das
ordem estabelecida, denunciando exclusões e apagamentos e, por outro, suas manifestações mais pujantes. Chega de exclusões, parecem gritar
utilizar aquele palco para encenar a peça da sua própria condição étnica, essas novas vozes que querem apenas poder entoar a canção do reconhe-
portanto, identitária. Mostram, assim, a força simbólica e o significado cimento identitário, sabendo que sempre haverá, soterrrado num lugar, um
estético da sua cultura transplantada. Fazem-se paradigmáticas do proces- outro, perdido. Para encontrá-lo, só seguindo "o caminho das estrelas"
so obras como o belo e contundente Quarto de despejo, de Carolina de (NETO), sempre acesas, uma vez que também sempre existirão
Jesus; o Teatro Experimental do Negro e peças como Sortilégio, do próprio
Abdias do Nascimento, criador do movimento; a comovente A cor da ter-
nura ou mesmo Balé das emoções, de Geni Guimarães, entre outros. Lugares achados e perdidos
De forma cada vez mais deliberada e consciente, poetas como
Edimilson Pereira e Ricardo Aleixo, entre outros, procuram encenar a cul- Salvador fica um pouco soterrada em Sampa, assim como a
tura negra e o seu múltiplo simbolismo, re(a)presentando "nas malhas da África sob a Europa e esta, depois, naquela, no efeito bumerangue. Tudo
262 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 263

se recria e reinventa, tr·aduzindo-se. A pintura de Gauguin é invadida por no encontro da memória


cores e formas do Taiti, vencendo ele próprio a perplexidade e inércia que o com a matriz.
fazem, em dado momento, perguntar o porquê da dificuldade, ensaiando ele A ausência, só,
mesmo uma resposta. Neste momento, no jogo metafórico do texto, a palavra impõe ao cmpo a urgência do equilíbrio
raça aparece, magnetizada: "Por que hesitava eu em vetier todo aquele ouro não entre o cmpo e as formas
e todo aquele júbilo da luz solar na minha tela? Velhos hábitos europeus, da paisagem
provavelmente - toda essa timidez de expressão característica das nossas mas entre as margens
raças degeneradas" (1977, p. 19). Reparemos, ainda, que Gauguin usa a da permanência a have1~
palavra verter para explicar o processo tradutório, impossível para quem não (1988, p. 12)
atravessou ainda a fronteira, mas está apenas na sua borda.
Quero, pois, costurar esta minha conclusão, retomando os produ- Só nas margens de tal pennanência entrecruzada é que Narciso
tivos conceitos de margem e fronteira. Neles, há mais inclusão que compreenderá a beleza do que não é espelho ou, melhor dizendo, do que
exclusão, pois sustentam-se na intercomunicação entre o fora e o dentro. está para além do seu espelho.
A noção de fronteira e de cruzamento parece-me fundamental quando o
objectivo é a discussão das identidades e das diferenças, como venho ten-
tando demonstrar até aqui. Sou compelida a voltar a uma citação de que
gosto muito, do pesquisador português Boaventura de Sousa Santos, para
quem "A forma cultural de fronteira [ ... ] alimenta-se dos fluxos cons-
tantes que a atravessam. A leveza da zona fronteiriça torna-a muito sen-
sível aos ventos. É uma porta de vai-vem, e como tal nunca está escan-
carada, nem nunca está fechada" (1995, pp. 154-155).
Tais fluxos ajudam-nos a entender melhor porque não se pode mais
pensar, como excludentes, as ilhas das identidades e das diferenças.
Construíram-se pontes e, continuando a ser o que são, ambas foram já atra-
vessadas umas pelas outr·as. Isso não significa reforçá-las e/ou, sobretudo,
negá-las, como o ocidente teimosamente, com seu jogo cêntrico, quis fazer.
O próprio e o outro são sujeitos em mutação, dependendo das "viagens do
[nosso] olhar", aqui lembrando o título bem instigante de Hélder Macedo e
Fernando Gil (1998). As máscaras não são fixas, mas mutáveis.
Gostaria, por tudo isto, de concluir, dizendo que não dá mais para
rasurar o outro, qualquer que ele seja. É preciso reconhecê-lo e incluí-lo
em nós mesmos, como Gauguin fez com o seu corpo, telas e objectos, e
Caetano, incorporando-se a Sampa. Só poderemos tomar lugar na grande
frase da história, se nos pensarmos como seu sujeito e seu objecto, pois -
e me vou calando, apenas fazendo eco com a voz de Ruy Duarte de
Carvalho, mais uma vez na "Aprendizagem do dizer festivo" e retomando
o começo, no jogo tão africanamente caro da sabedoria,

Não há lugar achado


sem lugar perdido.
Casam-se além, as falas de um lugar,
264 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 265

ensinam as naves
do canto.
(1998, p. 4)

A surpresa trazida pelas imagens inesperadas, como a das "tur-


malinas entre/vírgulas"; o perfeito jogo versificatório; a consciência do
poder alquímico da palavra poética, sempre resultado de um labor arte-
POR TRAÇOS E GESTOS sanal, deixam clara a filiação dos versos a um modo de produção artística
cujo molde nos vem do ocidente branco-europeu. No entanto, não se fica
nesse lugar, pelo próprio facto de o poeta propor outras sonorizações que
"Os negros estão chegando
levam a outros ritmos; aparecem outros traços; outros gestos; outra espé-
com seus tambores: silêncio.
cie de corporificação das imagens tutoras. É como se a memória buscasse
Os negros cantam velados.
[ .. .} apoiar-se num outro suporte simbólico, possibilitando o resgate de uma
Os negros Arturos com seus outra espécie de canto que aquele mesmo ocidente tentou, com argúcias
terços de contas. Silêncio: múltiplas e não menos múltiplas artimanhas, rasurar.
são mil negros guardados. " Assim procedendo, Edimilson faz um explícito pacto com a não-
-morte da cultura negro-africana, parecendo saber- e aqui cito Comejo
Edimilson de Almeida Pereira Polar- que

a vitória sobre a morte, o seu deslocamento do tempo em que


sucede e a sua reinstalação noutro, aberto e talvez de algum mo-
A poesia de Edimilson de Almeida Pereira, ou simples- do reversível, tem a ver com uma consciência ritual da história e
mente Edimilson, se por um lado encena uma tradição ibérica que vem com a linguagem que lhe seria própria: a do som ,encantatório da
dos romanceiros/cancioneiros medievais, por outro debruça-se sobre a voz humana.
tradição africana - quase sempre, mas não só na sua versão banta - , (2000, p. 295)
buscando esgarçar os véus do silêncio que se abateu sobre a herança trans-
plantada nos tumbeiros. Por isso, afirma em "Casas e nomes", texto onde Edimilson, com seu lavor poético, faz-se cúmplice dessa "cons-
se pode perceber, nas assonâncias propostas e no plano consonantal, a ciência ritual da história", procurando recuperá-la em textos que não se
sonoridade sincopada dos tambores: querem só letra, mas voz e canto. Busca encenar, por isso mesmo, gestos
ancestrais, tracejando, como foguetes na noite, linhas luminosas pelas
O perdido quais se recuperam os riscos de uma memória negra, também ancestral.
tornou-se encanto Como diz um dos versos da epígrafe, nos seus textos "Os negros cantam
os iletrados velados" (1991, p. 124), daí o pedido, quase ordem, para que se fique em
se inventam letra silêncio, no mesmo silêncio sagrado em que se permanecia para ouvir as
os doentes velhas estórias quase sempre contadas à volta das fogueiras, nas desdobra-
sua dança. das noites africanas. Justifica-se, assim, por que, em "Instrução do homem
Os que não rezam pela poesia em seu rigoroso trabalho", o eu-lírico convoque, como ele-
se descobrem mento simbólico privilegiado, o diquixi (ou o seu nome). Como se sabe,
tantos. esta é uma das figuras recorrentes nos missossos angolanos, objecto do
Turmalinas entre temor dos personagens e dos ouvintes das estórias, sobretudo pela multi-
vírgulas plicidade das suas cabeças:
266 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 267

O nome diquixi se arrumou na sombra. É de sua natureza habitar mas os gestos restam
os vãos as eiras: entre o que há-de-sa como vida jittura.
O lápis, mais que a vontade, quer o nome e a coisa, a familia da Resposta é a lida,
palavra num cmpo. Esclarecido. tudo o mais pergunta,
[ ... ] ciência partilhada.
Se o diquixi nem fosse, mas coisa reles: fio e pavio, tecido e teia (1995 b, p. 33)
- ainda assim, como furtá-lo em sua mudança.
Para além dos textos de Edimilson, encontramos infinitos outros
Melhor escritura a que revela revel. exemplos de reterritorialização da memória africana entre nós que vão das
(1995 a, p. 29) mais simples, às práticas simbólicas mais complexas, englobando uma
série de encenações culturais que nos mostram terem os negros das
Pela força mágica da escrita poética, sempre uma forma de reve- Américas transformado o desconhecido no conhecido, pelo caminho da
lação feita à revelia, até mesmo Foucault (palavra e coisa) senta na roda ressignificação. Despaisados, depois de pisarem o chão de morte dos tum-
do possível, traçando com o diquixi, nome escrevível, o perfil de um lugar beiros e de desconhecidas terras, eles lutaram para manter vivos alguns
sígnico novo pelo qual o poeta tenta juntar heranças heterogéneas, outra traços identitários pelos quais se reafirmava a sua diferença como sujeitos
vez Cornejo Polar, criando um terceiro lugar ou uma terceira margem para étnicos e histórico-culturais.
o rio da cultura: É claro - e por isso o termo ressignificação - que não se pode
mais pensar tal diferença como um valor em si, dos outros excluído, con-
Mas não é um tambor: a palavra. fundindo-a com essencialismo (SAID, 1995), já que a etnicidade não deve
Como um tambor é pouco sem outras coisas dentro. ser tratada como um absoluto, aqui pensando com Poutignat e Streiff-
Como o tmpor não é sem as roupas do sol. -Fénart (1998). Como insiste em lembrar Kuwame Anthony Appiah
O nome diquixi escrevo e diquixi parece. Sob a unha (1997), não é mais possível ignorar-se o entrecruzamento ou o encontro
a paz da palavra seje. de culturas, como venho tentando aqui mostrar, quando se pensa a questão
(idem, p. 32) da grande diáspora africana hoje.
Tais formas culturais entrecruzadas, como tenho insistido, não se
E o leitor do texto escrito com os traços e gestos da memória de esfacelaram. Elas continuam, altivas, a dizer de lá e de cá e a projetarem-
lá, iniciado noutros saberes, quase diz makezu, por reconhecer que a festa -se em várias manifestações discursivo-culturais brasileiras. É preciso
da palavra está-se encerrando e o diquixi sairá da cena palpável da con- observar a sua surpreendente performance camaleónica, responsável pelo
tação gozosa. Aqui, no Brasil, diríamos simplesmente, aceitando a pro- facto de o negro, ao tomar símbolos e códigos do outro, retrabalhá-los,
posta de permanência da "paz da palavra": amén. num infinito processo de novas identificações. Esta performance tinha,
Voltando à questão do silêncio, invocada pelos versos da epígrafe, inicialmente, a finalidade de enganar o outro, quando o sujeito despaisa-
podemos pensar que ele propicia a criação de um espaço de recepção no do fingia aceitar a doutrinação a ele imposta em nome da fé e do império.
qual se podem ouvir mais fortes as vozes dos tambores e dos cantos, Faz-se elucidativa, a este propósito, a exposição de motivos endereçada
levando à abertura do cofre da memória, a um só tempo reterritorializada por oficiais da Câmara de Santiago, em Cabo Verde, ao rei de Portugal, D.
e reterritorializante. Por isso, em cada negro arturo de hoje, muitos outros Pedro II, em 15 de Agosto de 1699, portanto, há trezentos anos. O rei,
negros se guardam, consolidando-se a cadeia que os liga, pelo comparti- anteriormente, dera instruções ao governador D. António Salgado para
lhamento do saber acumulado: que ele mandasse construir- nas palavras de António Carreira (1983)-
"em Santiago uma espécie de 'Recolhimento' onde se pudesse 'educar e
Há o que não sei e vivo, instruir' os escravos, antes da sua saída para o Brasil, Antilhas ou outros
imperceptível mutilação. portos da América" (1983, p. 286). Diz o documento resgatado pelo
Pereci na infância, pesquisador caboverdiano que - e cito,
268 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 269

[ ...] não duvidando em se dar cumprimento à ordem de V. M A poesia de Edimilson é ela própria tributária desse multicultu-
duvidamos todos muito que por meio da dita casa se pudesse con- ralismo que lhe dá a base de sustentação simbólica. Ela é produzida por
seguir o católico fim que V. M pretende[ ..] os negros que vêm um sujeito contemporâneo; brasileiro; mineiro; professor universitário, na
de Guiné são de diversas Nações e cada um fala a língua da sua origem, de Literatura Portuguesa; pesquisador da área de antropologia,
terra, diferentes umas das outras, e metidos todos na dita casa se etc,. No entanto, ela parece ter um eixo estruturador que se deixa sur-
apartarem andem [=hão-de} ficar falando sempre a sua língua preender no desejo consentido de se debruçar sobre a arca onde se
materna em que continuamente estão falando uns com os outros. guardam as memórias dos negros transplantados. Nela se arrumam mais
(Idem) que as "anáguas" da moça em cujo quarto, do século XVIII, o eu-lírico,
num dos poemas e como comandante da festa com suas palavras-alvís-
A multiplicidade linguística. torna-se a face mais visível da histórico- saras, nos convida a entrar e onde se encontram "Miudezas" que o passar
-cultural ou, se quiséssemos, da memória ancestral, sempre legado dos do tempo faz com que não sejam tão miúdas assim. Retomo o que diz
antepassados fundadores. Como sabemos, a memória não é um dado pronto sobre tais "Miudezas":
e acabado. Ela é sempre trabalho, como afmna, entre outros, Ecléa Bosi
Bem procede aquela
(1983), a partir da teoria de Halbwachs: "Na maior parte das vezes, lembrar
em que a arca
não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje,
se abre para a mãe
as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho". (1983, p. 17)
e o noivo.
Tal trabalho revela-se por traços e gestos no que podemos
chamar de memória afro-brasileira em geral e, de forma particularíssima, O senhor está feliz
na produção poética de Edimilson de Almeida Pereira. A sua elaboração com o céu e o gado.
estética traz no seu bojo, ou no Rebojo (1995 b) do seu rio de palavras, o Com a obediência
pacto explícito com o "refazer, reconstruir, repensar, com imagens e das anáguas.
ideias de hoje, as experiências do passado" dos povos negros que nos (1998, p. 19)
constituíram como povo, usando o termo no singular que nos engloba,
mas no qual não reconheço qualquer ideia de unidade absoluta, se é que A arca da memória aberta pelo poeta, se aceita a obediência dos
isso, em qualquer sentido, pode existir. Tudo foi múltiplo nas origens e versos, na sua estrutura comportada no jogo de letra e papel, promove ou-
seguirá sendo no jogo das heterogeneidades. Convoco, neste ponto, o tras e profundas desobediências, seja no plano formal ele próprio, seja
ensaísta, poeta e autor de ficção em prosa, o angolano Manuel Rui pelo que tais versos tematizam, obrigando o leitor a olhar para um outro
Monteiro, que assim procura "definir" a sua pátria - e aqui lembro que lugar, quase sempre desconhecido, se se toma a recepção literária no
esta é uma referência teórica a que sempre recorro - Brasil como um todo. Cito um dos seus exercícios poéticos de O livro de
falas ou kalunbungu: achados da emoção inicial (1987), sempre reco-
Somos muitas línguas. Muitas diferenças culturais. rrência no meu próprio imaginário de leitora:
[. ..}
A partir da nossa identidade plural, jamais aceitaremos a identi- Kauo Kabiecile! "Venham ver o Rei descer sobre a terra!", eis a
dade singular com base no acidente cor ou raça. saudação de Xangô, pois antes de mais nada ele é um grande Rei.
..
[ .] Na terra, foi outrora o quarto monarca da cidade de Oyo, e per-
Ser pátria assim, multilinguística e multicultural [. ..]. Numa pá- manece rei entre os deuses.
tria assim, sempre o real se decifra por ângulos cada vez mais FESTA
diferentes e a própria comunicação é a multicriatividade, pelo
que é essencial: o homem. Vem-me de velhas idades a oficina dos raios. O louvor
(1981, pp. 31-33) não perdoa a fúria das mulheres perdidas? A calma dos
270 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 271

machados deseja o inimigo. Sofh no amor dos anjos, mas feita palavra mais velha, que, por sua vez, oferece resistência ou constrói
coroei pedra e raio. Velhas palavras são rainhas e ho- uma barreira no caminho da rota dizimadora:
mens esquecidos, a decifi·ação das máscaras. Ó paz, a
pupila rasgada dos incêndios pe1juma a celebração dos Aquilo que eu sei
humilhados. alguém mo legou
(1987, p. 13) Pai Palavra
Mãe Palavra
A desobediência grafémica mostra-se nos versos pouco compor- Palavra anterior
tados a se fazerem o outro da prosa; na forma de ocupação da página antes Vem e transforma já o meu fitturo.
branca; nos vários tipos ou traços gráficos (letras diversas; espaçamentos; (1982, p. 45)
maiúsculas; aspas; itálicos, etc,.). A desobediência cultural revela-se pelo
trazer o rei de Oyo à cena; pelo grito da sua saudação; pela força da sua Cada um dos textos por Edimilson publicados nestas duas
descida à terra, só que já agora do poema, que não se quer marcar senão décadas funciona como uma espécie de "conversa evocativa" que põe em
pelos seus gestos compostos por metáforas e metonímias, a alargarem circulação uma "experiência profunda", voltando a tomar Ecléa Bosi
para sempre a herança recebida. Festa que se quer rito, mas se sabe (1983, p. 41). Refaz-se com eles, metaforicamente, a roda onde um mais
palavra, sempre um mais além, porque poesia, ou seja, uma busca do velho, ao contar, nas distantes aldeias do passado, reencenava, por
incapturável, daí, muitos anos depois, o poeta dizer palavras, os modos de vida autojustificativos que estabeleciam o perfil
clânico e davam sustentação simbólica ao grupo. Os versos evocam,
Não escrevo melhor que antes. recontam, analisam, .iniciam. Enfim, refazem a rota às avessas. Saem
Escrevo. daqui para lá, na tentativa de atarem as pontas do passado e do presente,
Coleciono vírgulas buscando, com isso, a construção de um futuro desalienado. É uma forma
manhãs emfitga. de fazer girar os segredos e mistérios daqui e de lá. Funcionam como "O
[ .. .] caroço de dendém", tal como reaparece recontado na voz de Mãe Beata
Quem respira ao lado de Yemonjá: "Quando o mundo foi criado, o caroço de dendezeiro teve
não sabe o eterno enigma. uma grande responsabilidade dada por Olorum, a de guardar dentro dele
O que sei está aqui todos os segredos do mundo. No mundo Iorubá, guardar segredos é o
incapturáwil. maior dom que Olorum pode dar a um ser humano" (1997, p. 97).
(1998, p. 108) Como o "caroço de dendezeiro", Edimilson de Almeida Pereira,
assim como Abdias do Nascimento, Ricardo Aleixo, Miriam Alves, Leda
Sempre coleccionando traços, o poeta inscreve nos versos os Martins, a própria Mãe Beata, Adão Ventura, Conceição Evaristo, Cuti,
gestos herdados pela inscrição do seu próprio corpo de sujeito histórico etc., avocaram para eles próprios a "responsabilidade dada por Olorum
negro no mundo dos homens. Por isso mesmo, as suas obras representam [ ... ] de guardar dentro dele[s]", senão todos os segredos do mundo, pelo
um modo de preservação da memória ressignificada em forma de reescri- menos os dos povos negros, ressignificados. E isso se dá, voltando a
ta de mitos, ritos, conhecimentos iniciáticos, segredos, preceitos, etc,. Cornejo Polar, "no interior de uma história densa [a que eu acrescento: e
Recriam, lembrando Walter Benjamin (1985), a conente formada pela tensa], em cuja espessura se acumulam e se desordenam vários tempos e
tradição, pela qual os acontecimentos vão passando de geração em ge- muitas memórias" (2000, p. 296). Por isso mesmo, Edimilson esclarece
ração, como se fossem fortes elos que não se deixam partir. Funcionam em "Curiangu" que o
como palavras mais velhas, no sentido africano da expressão, revitalizan-
do a fala mítica e histórico-cultural anterior pela qual o futuro se pode Silêncio veio
transformar. Vale citar, a este propósito, os belos versos do angolano Ruy no raio.
Duarte de Carvalho que recenarizam a força· dessa sabedoria ancestral Os ossos voltados
272 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 273

para o mundo. Nga Fenda Maria


[ ... } não conhece o estranho que o
Os meninos criaram mundo é.
memória (p. 188)
antes de criarem cabelos.
Recupera-se, pelo imaginário de Edimilson projectado no jogo de
(1997, p. 97)
voz e letra dos seus versos, a antiga roda ancestral, conforme já disse,
. . Resgatando a memória criada desde que o tempo é tempo, o poeta pondo-se o dito a circular como preito de afecto e, também, devoção.
mme1ro refaz, nos textos reunidos em Corpo vivido (1997), por exemplo, Reverenciam-se os mais velhos e os seus muitos nomes: "Bill, Joaquim
os passos e danças dos congadeiros; as artimanhas da Kianda; a fala dos Bonifácio; Tetane, Conceição Natalícia; Zé Arthur, José Acácia; Geraldo
orixás; os cantos das antigas comunidades, etc. Dificil escolher, no múlti- Arthur, Rei Congo" (1998, várias páginas), e por aí fora. Replanta-se a
plo do colorido tapete tecido por ele, o que apresentar. Fico, por agora, "Árvore dos Arturos" e acompanham-se os cortejos; as danças; as rezas;
com o resgate dos arturos em "Antepassados" e com a recriação poética as missas. É impossível não querer pmticipar da festa, ser um com ela,
de um dos contos populares de Angola, ou missossos, que ele encasta no pelo som dos
anel da sua poesia:
Tambores
São três os tambores, como
ANTEPASSADOS os fogos. Nos antigos os
meninos: são dois
Virão alguns com cílios e o terceiro tempo mordido.
outros com suas barbas.
Saídos dos cantos sagrados Zambi, ô Zambi! o santana, o santaninha e o
trarão o tempo à mesa. Olho do rosário! são três os tambores sagrados.
Os Arturos entram no meio
Toma sentido, se o
No terreiro bastões se cruzam
dia é de preceito.
os segredos chamam seus homens.
Os antigos bebem silêncio
As feridas falam à sombra
as caixas riscam no escuro.
os antigos trazem notícias.

Em torno da mesa os arturos. o santana, o santaninha e o


(p. 143) são três os tambores sagrados
e/ou:
No Candombe furam o medo
NGAFENDA o chão se veste de calos.
Auê, não perde o sentido não.
São três os mil tambores.
Nga Fenda Maria procura
um espelho: "De noite verei a lua,
o santana, o santaninha e o
pela manhã, meu marido. "
são três os tambores sagrados.
Nga Fenda Maria espera
(1991, p. 117)
uma kalunbungu:
"Imagino um pássaro pequeno Retornam, modificados, gestos e palavras mais velhas, cujo fun-
parecido com meu amado. " damento é a sabedoria. O peito necessariamente é morada de outra he-
274 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 275

rança, construída para além dos lusitanos feitos. Faz-se outro o sentido do
memorável. O quotidiano toma lugar pelos "bailos"; pelas "rodas"; pelos
"breviários e terços"; "pelos santos", sempre ancorados nos cantos rituais.
Edimilson não se cansa de encenar gestos pelos quais se reafirma a
pujança e o múltiplo da polifacetada cultura brasileira.
Fica dificil, por isso mesmo, trazer de volta tudo o que o poeta
procura ressignificar, sem qualquer vestígio de desejos totalizantes ou
fechamentos. As coisas vão-se mostrando poliédricas, ternamente, com os ENSAIOS, COMO POEMAS!
versos demonstrando que os ancestrais- dentro da cadeia onde ganham
visibilidade e fundamento- continuam a emitir os seus poderosos e cons-
tantes sinais. Por isso, é preciso cantar a árvore, significante maior, dos "O silêncio é fala".
Arturos (com maiúscula).
Manuel Rui Monteiro
Ao fechar as obras de Edimilson de Almeida Pereira, percebe o
leitor terem sido inúteis os chicotes; as mordaças; os pelourinhos. A lei da
ancestralidade perrmaneceu lá, indomável, na força da sua significação, "Identidades são [ .. .} identifica-
ções em curso".
sempre vital. E é essa força que retoma, encantada e encantatória, na poe-
sia de Edimilson, empenhado em encená-la e fazendo com ela contrace- Boaventura de Sousa Santos
nar outros saberes onde sempre se escondeu, matreiramente camuflada.
Levantam-se os véus, mostrando-se o que permaneceu nas dobras do
tempo e se revela, ressignificado, em traços e gestos de memória que vão Pensar o silêncio como fala e as identidades- no jogo
escrevendo - e reescrevendo- um texto que, no seu conjunto, "[ ... ] do plural germinante - como identificações em processo, eis o que vem
devora/a devoração por princípio." (1998, p. 142). proposto pelas epígrafes, tomadas como mote deste texto. Com tais epí-
grafes aparecem dois nomes, talvez os principais convidados da minha
própria fala que tentará trazer à cena a questão das literaturas africanas,
pondo em itálico um dos traços pelo qual se marca o que nelas é diferença:
a busca constante da representação das identidades de origem, que o fenó-
meno colonizatório procurou apagar. Os convidados: Manuel Rui,
Boaventura Santos e Homi Bhabha.
Com o primeiro, cuja voz clara aqui se fará ouvir com intensi-
dade, mergulho no texto africano, na sua versão angolana, já que a lite-
ratuni de Angola é o objecto do meu interesse de pesquisa mais imedia-
to. E escolho, para esse mergulho, alguns dos seus textos ensaísticos que
se encontram na fronteira entre os géneros ensaio e poesia, fazendo-se
uma surpresa para os olhos, quase ia dizendo ouvidos, de nós, seus
leitores ocidentais, apesar de já conhecermos os saltos acrobáticos dos
textos de Roland Barthes ou de Octavio Paz, para citarmos apenas dois
exemplos. Na obra dos seguintes, por sua vez, recolho alguns conceitos
operacionais que me ajudam a chegar, no mergulho, a outras profundi-

1. Publicado em Fronteiras do literário. Organização de Lívia de Freitas Reis,


Niterói, EdUFF, 1997, pp. 147-154.
276 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 277

dades. Dentre eles destaco a questão das identidades, já aunciada, e, cano, mesmo sem pertencer ao reino e/ou à galáxia de Gutemberg, con-
sobretudo, a noção de fronteira ou de zona fronteiriça, zona marcada seguiu manter os seus mores2 simbólicos e culturais, resistindo, desse
pelo hibridismo, pelo múltiplo, pelo encontro surpreendente de babéli- modo, às tentativas de rasura e achatamento da sua herança histórica.
cas vozes culturais, sempre pela via da desconstmção. Aceito a propos- Vale a pena, já agora, recuperar a maneira como se abrem ambos os
ta da fronteira como metáfora facilitadora da aproximação com os ensaios, para que, com maior clareza, se possa perceber as armadilhas ali
objectos que, no fundo do mar das culturas africanas, nos convidam colocadas pelo poeta que se apresenta como alguém já pertencente ao mundo
para (re)conhecê-los e, neles, o que significa a diferença, termo que da escrita e que sabe como poucos capturar os seres esquivos que represen-
jamais será tomado como sinónimo de essencialismo - e a lição já tam as palavras, quando bafejadas pelo vento da poesia, voltando a pensar
agora é buscada em Edward Said (1990), e não pela primeira vez. Se as em Octavio Paz.
vozes críticas não se fazem presentes, no texto que ora se inicia, de
forma tão nítida como a de Manuel Rui, com certeza ela estará soterra- a) o de 1985:
da sob a minha própria voz.
Isto posto, penso já ser hora de sair do vestíbulo e começar as Quando chegaste mais velhos contavam estórias. Tudo
minhas reflexões. estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa har-
Em 1985, no Encontro Perfil da Literatura Negra, realizado em monia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala
São Paulo, Manuel Rui, poeta e prosador consagrado dentro e fora de mas porque havia árvores, parrelas sobre o crepitar de
Angola, fazia uma comunicação, hoje transformada em texto paradig- braços da floresta. E era texto porque havia gesto. Texto
mático para os estudiosos das literaturas africanas, em especial as expres- porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto fa-
sas em língua portuguesa. O título já por si mostra a direcção do olhar do lado ouvido visto.
seu produtor e apresenta as bases do alicerce da sua fala: "Eu e o outro - (Cópia mimeografada)
o invasor ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto". A que
eu aduziria: texto de resgate da memória ancestral; texto da busca e da b) o de 1979: 3
reinvenção da identidade (passe o singular, de carácter puramente pontu-
al); texto de identificações. Sou nómada. Atravesso o deserto em busca de água e
Tal comunicação de 85 retoma e amplia uma outra, apresentada onde encontrar páro com o gado. Boi, deserto, água e
em 1979, dessa vez na VI Conferência dos Escritores Afro-Asiáticos, rea- onde encontrar páro com· o gado. Boi, deserto, água, o
lizada em Luanda. De novo o título espicaçante prende o hoje leitor do triângulo que eu falo. Mas posso transmitir ao poeta
ensaio, qual insecto na sedução da teia de aranha: "Entre mim e a nóma- escrito o pensamento a partir do qual ele transformará
da: a flor". Já aqui, pode observar-se a presença do alquimista da lin- as palavras em texto. Eu sou o poeta escrito e faço a
guagem, a iluminar-nos com a surpresa do título, incomum em textos de comunicação. Da oratura à escrita. De uma língua a
tal natureza. Mostra o sujeito da enunc.iação, assim, que é um membro outra, já interferida para uma semântica nova: a da
daquele "reino onde nomear é ser", ou seja, o reino da poesia, usando minha identidade.
palavras de Octavio Paz (1982, p. 129).
(1981, p. 29)
Os dois textos como que inauguram uma forma particular de
ensaísmo literário, género, aliás, bastante silenciado até certo momento
histórico, principalmente em Angola. Nas suas dobras, encontramos algu- Encena-se, num e noutro texto, a resistência da fala e a certeza da
mas das reflexões mais instigantes sobre a questão das identidades transfonnação nascida depois da chegada da escrita que, por sua vez, recebe
africanas, escritas na contemporaneidade. Sobressai, no quadro assim
2. Bens. (N. E.)
constituído, um ponto fundamental, quando o assunto é a categoria da 3. Só uma observação: como epígrafe, Manuel Rui cita um dos textos desses
diferença. Trata-se da força da palavra africana, tomada em sua polissemia Onze Poemas Em Novembro- série que começa a publicar em 1976-, intitu-
simbólico-cultural. Foi pela palavra falada que o homem negro-afri- lado "A Flor". Resgato o início do ensaio propriamente dito.
278 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 279

do "texto total", ou seja, do "texto falado ouvido visto" a transfhsão de força Assim, o texto é percebido como algo que nasce ritualisticamente,
de que necessita para não deixar morrer o corpo da sua diferença. A frase final como que fazendo parte de um rito maior, de preservação, de luta contra
do segundo fragmento parece tudo resumir, ao dizer: "De uma língua a outra, o outro e de exaltação do próprio. Entretanto, isso não significa elidir o
já interferida para uma semântica nova: a da minha identidade." É essa outro, a partir mesmo da certeza de que tudo se diz na língua por ele lega-
"semântica nova" que marca a produção literária aft·icana pós-75, seja no que da. Pode-se pensar aqui nos rituais antropofágicos, onde, canibalizado, o
respeita à narrativa, seja no campo da poesia. Luandino Vieira, Mia Couto, que foi comido transforma-se no corpo e sangue daquele que o comeu.
Pepetela, António Jacinto, José Craveirinha, Noémia de Sousa ou o próprio Dá-se o mesmo com a língua portuguesa, herança legada pelo invasor. Ela
Manuel Rui aí estão, para atestar tal presença. passa a ser pertença de africanos, tornando-se o meio pelo qual se dão os
Penso, por tudo isso, e uma vez mais, num outro ensaísta, serre- gestos de nomeação do mundo. Já não se está, pois, no reino do um, onde
galês, Makhily Gassama (1978), que, de forma insistente, reitera o facto provavelmente se encontrariam os mais velhos contadores de estórias ou
de que, em África, falar nunca foi um gesto gratuito. Muito antes pelo o próprio nómada,.mas no universo do múltiplo, daí a absoluta impossili-
contrário. Ao falar, o ser cria um mundo onde se retroalimentam o vivo e dade de qualquer movimento de retorno às origens. Volto a Manuel Rui,
o morto, o orgânico e o inorgânico, o animado e o inanimado e onde tam- em 1979: "Somos muitas línguas. Muitas diferenças culturais. E há sig-
bém o cosmo supera o caos, tornando possível a iniciação, ou seja, a trans- nificantes na língua do nómada que servem melhor o poema que penso
missão do saber colectivo, como se fosse mistério a ser preservado. Os mesmo quando escrito na língua em que me expresso. Interferida.
velhos têm um papel fundamental na construção desse imaginário. Híbrida" (1981, p. 31).
Explica-se, por essa via, por que são imediatamente convocados, no Separam-se, pois, a língua do nómada e a do poeta, em distintas
primeiro texto de Manuel Rui, dizendo logo o poeta que eles "contavam ilhas. E, se o primeiro mantém o seu saber linguístico de origem, a sua he-
estórias". Esse gesto tinha um caráter de preservação da memória colec- rança, o segundo já transita entre os dois universos culturais, configuran-
tiva, impedindo, assim, o desfiguramento da face histórico-cultural dos do-se como um ser pertencente a uma terceira margem do rio, marcada
povos de origem. Nesse sentindo, também o nómada, ao cortar o deserto, pelo hibridismo. E Manuel Rui continua, mostrando, por fim, como a sua
para fazer a transumância do gado, atravessa até hoje quimbos e aldeias e, "contaminação" de certa forma não permite ao nómada ser tão singular
por sua vez, vai estabelecendo uma mesma cadeia de resistência. Por isso, também: "Assim, plurais, nem eu nem o nómada pensamos regressar ao
ele tem a precedência no segundo ensaio, ou seja, fala primeiro que o 'antes de'. Tudo para nós é depois, a partir de agora. E nem sequer é
poeta e o seu texto marca-se pela repetição dos gestos milenares, assim redescoberta mas sim afirmação transformadora" (idem, p. 32).
como se dá com os mais velhos, sempre senhores da sabedoria. Por tudo isso, faz-se mais que importante, no jogo simbólico onde
Volto ao belo jogo enunciativo de Manuel Rui, pelo qual, no se encena esse encontro de culturas, pelo qual se vai parir o novo homem
ensaio de 1985, em dado momento, anuncia: "E agora o meu texto se ele africano pós-colonial, saber que
trouxe a escrita? O meu texto tem que se manter assim oraturizado e ora-
turizante. Se eu perco a cosmicidade do rito perco a luta [ ... ] . Afinal isto Ser pátria assim multilinguística e multiculaural, é ser-se mais
é uma luta. E eu não posso retirar do me.u texto a arma principal. A iden- rico para a criatividade contra o nacionalismo tacanho, chau-
tidade." Retoma, uma vez mais, o que já dissera, no mesmo sentido, no vinista, baseado só na raça e língua. Numa pátria assim, sempre
texto de 79: o real se decifi·a por ângulos cada vez mais diferentes e a própria
comunicação é a multicriatividade, pelo que é essencial: o
No entanto, eu, letrado, introduzo no meu texto contextos do nó- homem.
mada. Há coisas que recebo da oratura do nómada que me ser- (Idem, p. 33)
vem a escrita, enriquecendo-a. Afinal o poema é maior quando
repito um verso numa cadência de gado transumante ou quando São esses ângulos mais e mais diferentes, principalmente depois
lhe introduzo o ritmo de galho partido ou quando faço da mira- das independências em 75, que marcam o extenso tapete textual das litera-
gem mais água de hei-de ter. turas africanas expressas em língua portuguesa. Sempre plurais, pois sem-
I (1981, p, 30) pre distintas entre si, embora haja a ligá-las, imperceptivelmente, certos
280 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 281

fios que, não lhes conferindo, embora, qualquer absoluta unidade, nos per- turais" (1995, p. 138), sempre ameaçadoras para o olhar colonial. Vale a
mitem a nós, seus leitores, o ir descobrindo ce1ias ilhas de parentesco, pena, uma outra vez, calar-me pàra que se ouça a voz de Manuel Rui, em
certa forma de estar numa mesma linguagem cartográfica que exalta e puro gozo poético:
anuncia a força da margem, vista como um outro lugar prenhe dos mais
surpreendentes sentidos. Desconstrói-se, desse modo, a tentativa de equa- E quando Caliban passa a ser possuidor da língua diferente da
lização que sempre marcou o discurso colonial, incapaz de ver o múlti- posse do outro, deixa de ser Caliban, libertou-se pelo texto novo
plo, as diferenças. Tornando tudo igual, tal discurso tentava capturar, que é isso mesmo, pela memória. Texto que tem híbrido, interfe-
numa forma redonda, o que era hexagonalmente irregular e se compunha rência e desescrita, fora do rio. Por vezes, quando se diz rio, seu
de pontas farpadas, mais que de lisas superficies. Como esclarece Homi som, sua voz e sua vida sofrida e espalhada, é com o sabor sabido
Bhabha, o discurso colonial nega qualquer forma de originalidade, daí a na brisa cálida da margem.
exigência ou a urgência de que se crie o reverso disso, ou seja, um dis- (1991, p. 543)
curso anticolonialista que, para ser construído- e cito Bhabha nominal-
mente - , "requer um elenco alternativo de perguntas, técnicas e estraté- Dessa margem, falamos, por acreditar que ainda é possível ali-
gias." (1992, p. 184) mentar a esperança, em tempos de tanta desesperança para os que se
Os ensaios-poemas de Manuel Rui inserem-se nesse esforço de excluem dos aparatos que dão o sentido do que hoje se chama mundia-
desconstrução como se dá com um terceiro, elaborado também em forma lização da cultura, o que talvez não passe de uma outra forma de redizer
de comunicação, apresentada no Brasil, no 2° Congresso da Abralic, rea- o neo-colonialismo tardio, mas nada ingénuo. Por isso, fecho com o fecho
lizado em 1990, em Belo Horizonte, e cujo título é "Pensando o texto da da comunicação de 1990 de Manuel Rui, alegremente, como ele próprio,
memória". Pode-se estabelecer uma triangulação entre esse texto, o de poeta-ensaísta, que, como poucos, sabe dizer da força da diferença do seu
Boaventura Santos e o de Homi Bhabha. Nele, se exalta a desconstrução povo e, por extensão, de todos os povos periféricos. Sempre em forma de
e reafirma-se a força das identidades e a ocupação dessa zona cultural letra, na magia da literatura.
fronteiriçamente híbrida, daí o sujeito da enunciação abrir o texto, ia
dizendo, resfolegantemente num parágrafo, que se apresenta em forma de Quem é do rio? Quem nasceu por causa da margem?
período único, e anunciando: "Num espaço onde a língua se inscreveu Quem é da margem?
também no arsenal da opressão do outro e se reabilitou para mim, por sua Quem faz voar o rio e nunca por renúncia ao ódio não o fez secar?
própria viagem transformatória, logo em seu processo de génese, sempre Os da margem.
a literatura tem algo a haver com margem" (1991, p. 542).
Margem que foi pensada como o abrigo de falsas minorias.
Margem antes confundida com vazio e silenciamento. Margem anterior-
mente percebida como sinónimo do que está fora do estabelecido, em
oposição total ao centro, este, sim, visto çomo o único lugar possível de
exaltação do sentido, singular e absoluto.
Mas Manuel Rui traz à cena o outro significado de margem, sem-
pre uma presença estruturante para os povos africanos, nómadas na sua
essência, e que nela buscavam a possibilidade de matar a sua sede, e a do
seu gado, e descansar. Nessa margem, ou dessa margem, exaltando-a, é
que o poeta vai conseguir criar o outro discurso, como diz Bhabha, um
discurso que "contesta genealogias de 'origem' que levam a reivindi-
cações de supremacia cultural e de prioridade histórica" (1995, fl. 22). Ou,
como quer Boaventura Santos, ele restabelece um "riquíssimo processo
histórico de contextualização e de recontextualização das identidades cul-
282 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 283

relações sociais igualitárias, caracterizada pela ligação que se


estabelece entre o homem e a natureza. É uma cultura de expres-
são colectiva e de senso comum.
(1980, pp. 11-12)

A esta primeira forma ele opõe o que chama de "uma nova cul-
tura", proliferada, a seu ver, no pós-50 e "veicular de uma nova concepção
LITERATURA ANGOLANA da sociedade humana de Angola, de uma nova prática de luta contra a
E DIÁLOGO opressão" (p. 14).
O que me pergunto é até que ponto a "nova cultura" deixa de lado a
INTER-ARTÍSTICO! outra, no fundo, um dos seus alicerces. Penso encontrar no próprio Abranches
uma tentativa de resposta quando ele reafirma a bipolaridade cultural exis-
tente e, quase em forma de manifesto, conclama - "somos um povo livre,
"A escrita é um acto de solidarieda-
livre de criar o novo, livre de recriar o 'velho' em 'nova' fonna, livre de se
de histórica"
exprimir sem considerações de clandestinidade ou repressão" (idem, p. 15).
Roland Barthes
Acumpliciando-se com tal recriação, os produtores textuais
angolanos do pós-50 como que pactuam com o sentido ancestral da arte
africana, isto é, com o facto de ser ela basicamente colectiva, funcional e
Atribui-se a Senghor o ter definido a arte africana como comprometida. Justifica-se, nessa perspectiva, por que vários escritores bus-
sendo uma arte ao mesmo tempo colectiva e funcional. Ampliando o nível cam o diálogo inter-artístico para, por um lado, estabelecerem uma forma de
de adjectivação, Bernard Mouralis (1984) acrescenta um terceiro termo: reforçar a sua própria alteridade e, por outro, realizarem uma espécie de
comprometida. Assim, as manifestações artísticas naquele continente se- intervenção na realidade histórica que, por este ou aquele motivo, desejam
riam sempre interactivas - todos juntos cantam, dançam, esculpem, ver transformada. Tal gesto de convocação de elementos pertencentes a ou-
fazem artesanato, etc.-; objectivariam atingir, por outro lado, um resul- tras manifestações artísticas, para que elas tomem assento na folha branca do
tado prático (a arte liga-se na origem aos ritos) e, por fim, significariam livro, talvez se origine no facto mesmo de que, na epistemologia africana-
uma forma de intervenção na realidade empírica, bem como uma busca de e cito Alassane Ndaw, em tradução livre- "Conhecer uma coisa é entrar em
solução para os problemas enfrentados pelo grupo. Senghor e Mouralis união com ela, estar no seu interior e abordá-la de dentro. Permanecendo-se
fazem parte de um conjunto de estudiosos das culturas africanas - cf. no exterior, não se pode conhecer uma coisa na sua essência. E, para co-
Alassane Ndaw, Mohamadou Kane, Manuel Rui e outros - que se nhecer as coisas, não é preciso dissecá-las; é preciso, muito antes, uni-las a
dedicam a dar visibilidade a tais culturas, sempre plurais, daí o seu inte- outra coisa" (1983, p. 84).
resse específico pelo sentido da arte. Para proporem o jogo significante da diferença, os escritores
No caso de Angola, parece-me válido lembrar Henrique Abran- angolanos modernos procuram fazer a interacção dos seus textos com ou-
ches, que no ensaio Reflexões sobre cultura nacional assim se expressa tras formas de representações estéticas, estabelecendo com elas um diálo-
acerca do que chama de "primeira forma de cultura", ou seja, "uma cul- go instigante. Por essa reunião de diversas falas semióticas, sedimenta-se,
tura popular": em última instância, a memória colectiva, fonte onde a alteridade sempre
matou sua sede. O processo não significa, no entanto, a dissecação dos
É uma cultura intimamente ligada, ancorada mesmo, às concep- elementos componentes do universo plástico de origem, mas a sua rein-
ções religiosas do povo clânico [ ... ]. É ainda uma cultura de venção, em certa medida, na teia discursiva verbal, sempre como metáfo-
ra daquela diferença significante.
1. O texto foi publicado em "Estudos Portugueses e Afr-icanos", no 23, Campinas, Tomo agora dois textos pelos quais se evidencia a quase garim-
UNICAMP/Instituto de Estudos da Linguagem, 1o sem. 1994, pp. 65-72. pagem iniciática da moderna fala literária angolana; neles, o objecto per-
Novos pactos, outras ficções 285
284 Laura Cavalcante Padilha
não-lugar atribuída
tencente ao universo plástico é convocado, como nos ritos, para estab- durante séculos ao
elecer a comunhão entre os participantes da cerimónia ritualística como homem aíhcano em
um todo. No caso presente da literatura, com os próprios leitores. O con- geral. Penso-o como
teúdo estético faz-se reforço do ideológico e vice-versa. Falo especifi- um oco ventre -
camente de Muana Puó, narrativa de Pepetela escrita em 1969, mas só mãe-terra despossuí-
publicada em 1978 e do poema "O Pensador" (1981), de Henrique da dos seus filhos -
Abranches, peça de resistência da colectânea Cântico barroco, de 1987. que está fora, mas
Começo pelo poema, invertendo um pouco a fixidez dos ritos. também dentro da
mulher que sofre e
pensa.
É hora, lembro-
1 - Repensando o Pensador
-me, de ir convocan-
do o poema que por
Cântico barroco representa uma espécie de balanço da posição palavras reinventa a
histórico-cultural do homem angolano, sujeito de uma nação enfim sobe- imagem arquetipica-
ranamente definida. Nota-se, na maior parte das composições, um certo mente ancestral da-
tom de desalento ou desencanto, desfazendo-se, assim, a aura de espe- quela que é chamada
rança característica da obra poética que reúne textos produzidos no calor de a "Mãe-Pensa-
da luta, isto é, Sobre a colina de Calomboloca, também de 1987. No uni-
dor"-
verso do Cântico, povoado "de fantasmas de gesta" (p. 22), onde o sujeito
lírico se apresenta como "palhaço teimoso" (p. 14), "aprendiz de profeta"
(p. 21), "homem aflito" (p. 37), etc., o poema "O Pensador" significa um Ela olha e vê
momento de retomada da força do mito que é a estatueta tchokwé - daí do seu toco de pau-tempo
a marcha saturnal de tanta gente
a dedicatória que o abre: "ao artista desconhecido, autor da mais conheci-
da escultura angolana" (p. 41 ). corrompendo a esperança
Observando o entalhe da estatueta, vemos tratar-se da figura [ .. .]
Os olhos apagados como estrelas diurnas
esquálida de um ser que parece simbolizar, com os seus longos braços
ela olha e vê pelos seus longos dedos,
apoiados nos joelhos e mãos cruzadas sobre a cabeça, uma não menos longa
história de abandono, solidão e sofrimento. A imagem, com cerca de 12 em ela olha e vê paulatinamente
de altura, masculinizada pela designação, "O Pensador", revela-se, ao olhar toda aquela gente
atento do fruidor, como um ente feminino, daí o ver-se nela comummente a morrer aos poucos.
(1987, p. 45)
uma representação matriarcal. Ao analisá-la, dizAbranches, no tantas vezes
aqui citado ensaio, "É um personagem sumariamente caracterizado, uma
Esta quase mini-epopeia composta de 153 (cento e cinquenta e três)
mulher, uma velha talvez, sentada com as mãos apoiadas na cabeça e os
versos representa uma espécie de solução estética neo-barroca, onde o
cotovelos nos joelhos, num arabesco tal que a linha de força geral realmente
espaço sombrio da constatação do fim do sonho e da esperança se deixa pe-
preponderante se apresenta como uma oval" (1980, p. 20). O Pensador é,
netrar por zonas luminosas, metáforas, no caso, da crença imutável na força
pois, uma pensadora, com o masculino do nome sendo de certa forma
da angolanidade. Mito, o Pensador faz-se a "instância pela qual se mantém a
desconstruído pelo feminino da coisa em si.
coerência social, a referência" (Ndaw, 1983, p. 97) do povo angolano, como
Não se pode ver a estatueta sem incorporar à sua leitura o vazio que
evidencia a dedicatória. Isso explica por que a necessidade que o novo
salta aos olhos, fazendo-se, a meu ver, o sinal do sinal. Este espaço não
sujeito histórico, o poeta, sente de reesculpi-lo, recolocando-o "hierático" na
preenchido remete para outro vazio histórico mais doloroso: à condição de
286 Novos pactos, outras ficções 287
Laura Cavalcante Padilha

soberania .simbólica do seu "toco de pau-preto" ou no "taco de pau-terra" (p. Segundo ele, ainda, representa uma "máscara de mulher de traços realis-
43), ou seJa, no trono de uma história feita de perdas e destronamentos. tas e de expressão meditativa, que é utilizada, paradoxalmente, por um
Transformando em ritmo e imagens a materialidade plástica do bailarino masculino em danças carregadas de humor" (idem).
objecto tangível, o enunciador não descreve, mas, didáctica e ludicamente Chegando a Pepetela, vejo na sua narrativa homónima Muana Puó
propõe, no seu presente factual, a transposição poética dos elementos intem- (1978) um texto de base alegórica, logo a partir da sua concepção, como
porais para com eles reavivar a memória do seu povo. Cumpre-se, com tal um entrecruzamento genérico: uma narrativa que tangencia o drama e, às
processo transpositivo, o papel fundamental das literaturas africanas ou seja vezes, a poesia. Nela, a máscara é a metáfora central, a condensação
s~gundo Mohamadou Kane, o de difundir o património cultural d~ grupo: imagística pela qual se vai contar o enfrentamento do silenciador (os cor-
vmculando os valores com os quais esse grupo se identifica (1982, p. 80). vos, no jogo representativo) pelo silenciado (os morcegos, no final, meta-
No diálogo entre o início do poema e o seu final, fica clara a busca morfoseados em homens). O feminino e o masculino, presentes no rito
da transcodificação pela qual se recupera a luminosidade atemporal do mascarado (máscara de mulher em corpo de homem), apresentam-se
objecto esculpido pelo artista anónimo nas palavras do poeta nomeado: pronominalizados em forma de ele e ela. Arquétipos; só.

- o início: Fitou a máscara. Foi atraído pela tristeza dos olhos.


Fixou-se na parte esquerda. Reconheceu-se nela.
Ela está sentada,
a Mãe-Pensador. Ela foi fatalmente subjugada pelo olho direito. Nele se
Está cuidadosamente sentada reconheceu.
entre a vida e a morte (1978, p. 13).
para lá de toda a gente. Talvez por serem três as máscaras no conjunto, Pepetela divida
(p. 41);
seu texto também em três partes. "I- O Passado"; "II- O Futuro" e "III-
- o final: -Epílogo", conduzidas
todas por um narrador
E a Mãe-Pensador, omniscientemente
como quem cisma, hetero-diegético. Tais
sorri então todo o seu espanto segmentos abrem-se
e goza de olhos postos em si mesma, por uma espécie de
a formidável linhagem do seu Povo. poema-mote, como se
(p. 46) dá nos ritos e mesmo
nas rodas da contação
oral, quando uma fór-
Linhagem que se reforça por outros sinais. Dentre eles destaco
mula invocativa colo-
agora a máscara igualmente tchokwe, Muana Puó, que dá título à narra-
tiva de Pepetela e aparece estilizada na capa-quadro da obra Cântico ca palavras e gestos
barroco, e não por mero acaso. em circulação emble-
mática. Como o jogo
memoralístico tem
por fundamento a
2- Um rito mascarado repetição, o poema-
-mote repete-se, com
A máscara, ou melhor, "um conjunto de três representações", nas excepção do último
palavras de Abranches (1980, p. 22), é um dos ícones da cultura angolana. do que aqui chamo
288 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 289

verso. São sempre três linhas. As duas primeiras, imutáveis, três vezes representava a tradução material de harmonizações de outra forma inex-
dizem assim "Era uma máscara tchokué. Máscara de Muana Puó, a rapari- primível entre o conhecido e o desconhecido. Constituía os laços parti-
ga". (pp. 11, 85 e 169). Completam-nas, sequencialmente: lhados com os antepassados e com os deuses que deram forma ao mundo
(1981, p. 172).
I- O Passado: Com ela se dança, na festa da circuncisão. Sendo a escrita "um acto de solidariedade histórica" (BARTHES,
11- O Futuro: Esconde as lágrimas, na festa da circuncisão. 1974, p. 124, citado na epígrafe), justifica-se por que os produtores textu-
111- Epílogo: Com ela se dança e esconde as lágrimas, na festa ais angolanos modernos tentem solidificar a cadeia simbólica, convocan-
da circuncisão. do outras artes para que, pelo diálogo entre os objectos semióticos distin-
(pp. 11, 85 e 169) tos, a alteridade se decifre, como se dá com a máscara Muana Puó e com
a estatueta O Pensador, ambas serenamente olhando e vendo,
Seguindo os passos rituais, no "Epílogo" dá-se o processo reco-
lhitivo, com a união dos elementos, forma de passar o neófito de um esta- Pelo tempo fora
do a outro. Neste caso, é como se Passado e Futuro, como anunciará o cortejo de filhos e de netos
Pepetela explicitamente em Lueji (1989), fundidos, fizessem nascer o dos filhos dos netos dos bisnetos,
Presente. Em Muana Puó, a instauração do novo se dá em festa feita de habitarem cada campo e cada canto
corte e cicatriz: a circuncisão. desta Pátria que foi mundo novo.
Tal festa se ancora no fundo do mar da utopia, já que o nanador
anuncia euforicamente a possibilidade de decifração do enigma da más- ("O Pensador", op. cit., p. 46)
cara, quando, então, se pode atingir o nível do "sonho ineal que todos
procuram. Procura que cria vida" (p. 171). Estas palavras, seguidas do
ponto final, encerram a obra, fazendo-a imergir no silêncio da sua ausên-
cia. Aliás, o silêncio é significantemente simbólico em Muana Puó,
devendo ser necessariamente incorporado à sua leitura, assim como se dá
com o vazio de "O Pensador". Ele representa-se pelos múltiplos espaços
em branco que antecedem e sucedem cada um dos trechos escritos.
Falo um pouco destes silêncios para ir chegando ao meu próprio.
Alassane Ndaw alerta para o facto de que "a valorização do silêncio
impregna toda a cultura africana" (op. cit., p. 114). A seguir dá exemplos
de provérbios que demonstram isso. Cito apenas um, a meu ver, muito sig-
nificativo: "Se a palavra constrói a cidade, o silêncio edifica o mundo"
(idem).
Avalio que os silêncios incorporados às falas na nanativa de
Pepetela se enquadram nessa perspectiva de construção de um mundo que
se poderia tomar como sinónimo de angolanidade e, por extensão, de
liberdade. Nas partes numeradas, depois de cada texto introdutório dos
três segmentos, reproduz-se miniaturalmente a máscara, sempre enciman-
do a página. Amplia-se, pela repetição dos brancos silêncios e da própria
imagem, a força expressivamente icónica de Muana Puó. Na realização
plástica do livro, como na capa-quadro de Cântico barroco que se repete
no interior da obra, há a incorporação cerimonial dos ritos e a ratificação
do sentido último da arte africana que, segundo Basil Davidson, sempre
290 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 291

posição na narrativa. Cada sequência seria constituída de cenas


- cada uma das partes dotadas de unidade espaço-temporal.
[. .. ] O plano corresponde a cada tomada de cena, ou seja, à
extensão de filme compreendida entre dois cortes, o que significa
dizer que o plano é um segmento contínuo da imagem.
(1984, p. 19)

PEPETELA E A SEDUÇÃO Sem querer fechar qualquer viés interpretativo, pode-se pensar
DA MONTAGEM que alguns dos romances de Pepetela actualizam essa reflexão crítica de
Xavier. Eles organizam-se por sequências, constituídas por cenas, razão
CINEMATOGRÁFICA: pela qual, ao invés de capítulos fonnalmente ordenados, se vão compor de
segmentos que poderiam significar uma tentativa de entrelaçamento do
BREVES RECORTES discurso literário e cinematográfico. Veja-se, por exemplo, a "formatação"
de Yaka, cujas sequências se sucedem, continuamente, da "Nota prévia"
ao "Epílogo".
"O cinema é a forma de arte correspon- As partes propriamente ditas da diegese de Yaka formam o corpo
dente aos perigos existenciais mais inten- da estátua, duplo do corpo da nação. As imagens apresentam-se em planos
sos com os quais se confi·onta o homem
de detalhes ou close-ups, dominando a tela/página do livro e sempre den-
contemporâneo. Ele corresponde a meta-
tro da lógica da composição: "'A boca (1890/1904)'; 'Os olhos (1917)';
mOJfoses profimdas do aparelho percep-
tivo, como as que experimenta o pas- 'O coração (1940/41)'; 'O sexo (1961)'; 'As pernas (1975)'". No final,
sante, numa escala individual[ .. .] e como em processo recolhitivo, ouve-se a voz da estátua e o seu corpo, embora
as experimenta, numa escala histórica, todo não descrito, indicia-se como finalmente completo, o que não significa ter
aquele que combate a ordem social vigente. vencido a possibilidade de futura fragmentação. Pressente-se uma tela a
escurecer, ao mesmo tempo que se estabelece uma certa desconfiança
Walter Benjamin sobre a "ordem social vigente", de acordo com o exposto por Benjamin,
citado na epígrafe que abre este texto. Recuperando o final do romance:
"Posso, então, me desequilibrar do soco e ficar em cacos pelo chão, a boca
A linguagem cinematográfica exerce fmie sedução sobre para um lado, os olhos pelo mar, o coração debaixo da terra, o sexo para
o imagmano criador de Pepetela. O leitor atento é levado a perceber, o Norte e as pernas para o Sul? Ou será melhor aguardar ainda?" (1984,
muitas vezes, que a montagem ~ específico filmico por excelência ~ p. 302).
parece dar o sentido da forma como as. sequências narrativas se desen- Outras vezes, como em O cão e os caluandas, a montagem se dá
volvem através das cenas ficcionadas. O olhar do receptor, convidado a por paralelismo. Neste caso, as acções do cão e as relactivas ao cresci-
interagir com o do narrador e, sob a sua capa, com o do próprio escritor, mento da buganvília sequenciam-se em espaços distintos, isto é, em
vai, pela abertura da janela das páginas, descobrindo uma série de Luanda e numa quinta próxima, sendo narradas de modo contíguo e por
fotografias postas em movimento pela acção da escrita. Há uma tentativa vozes diferentes, ainda usando expressões de Ismail Xavier (idem, p. 21).
clara do produtor de ir montando as suas sequências e cenas em planos, A forma "fisica" de representar essa sequenciação se dá pela ordenação
ou seja, como indica Ismail Xavier, em segmentos contínuos de imagens. intervalar ~"A buganvília 1", "A buganvília 2" ... "A buganvília 10". Tais
Citando o ensaísta brasileiro: fragmentos funcionam como pequenos fotogramas.
Os relatos sobre o cão e as suas peripécias luandenses são exten-
[. ..} um filme é constituído de sequências - unidades menores sos, enquanto a fala do diário é breve, sendo grafada em tipo diferente e
dentro dele, marcadas por sua função dramática e/ou pela sua expressando-se em tom lírico. Esta segunda voz narrante vai construindo
292 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 293

o enfrentamento entre o cãó Lucapa (provavelmente o mesmo cão vádio, constrói-se um fantástico primeiro plano da "amoreira gigante" que se
de comportamento picaresco e que percone as ruas de Luanda) e a bugan- individualiza no branco da página, metonímia da tela. Este é o momento.
vília de incontrolável crescimento. A disputa do bem e do mal é inevitá- simbólico em que a floresta do Mayombe ~plano geral do romance ~ e
vel neste caso, como nos filmes, onde o herói e o seu inimigo, depois de o homem, personagem do contado, se identificam. O movimento identifi-
múltiplas perseguições resgatadas pela montagem paralela, chegam ao catório dá-se pelo destaque do tronco, no jogo mimético da individualiza-
confronto final. Então, seguindo a regra, um dos dois~ e às vezes mesmo ção: "A amoreira gigante à sua frente. O tronco destaca-se do sincretismo
ambos ~ tem de morrer: da mata [ ... ] Só o tronco se destaca, se individualiza. Tal é o Mayombe,
os gigantes só o são em parte, ao nível do tronco, o resto confunde-se na
O cão pastor-alemão continuava o seu embate contra a planta. massa. Tal o homem" (1982, p. 266).
Tinha perdido a cor do pêlo, pois as feridas dos espinhos faziam A seguir, a exemplo daquela "ideia envolta em sangue", que é como
jorrar sangue por todos os lados. Vários ramos tinham caído termina a tomada da cena da luta do cão, a imagem vai perdendo a nitidez,
sobre ele e, para chegar ao tronco, ficava enredado nos tentácu- embora o tronco, surpreendido em "plano americano", com a câmara apro-
los aguçados da buganvília. E o sangue saía do corpo, da boca, ximando-se dele cada vez mais, continue na tela/página do livro, a indicar a
das patas, da garganta. Deixara de ser um cão: era uma ideia sua força e resistência. A incidência da luz, nessa tomada, é de fundamen-
envolta em sangue. tal importância:
(1988, p. 184)
As impressões visuais são menos nítidas e a mancha verde predo-
O embate cão x planta é cinematograficamente composto em minante faz esbater progressivamente a claridade do tronco da
plano médio, com a câmara representada pelo olhar do narrador a sur- amoreira gigante. As manchas verdes são cada vez mais sobre
preender o movimento da luta, pelo que vai além da simples "fotografia" postas, mas, num sobressalto, o tronco da amoreira ainda se afir-
da cena. Reforçam o quadro a rapidez com que as imagens se sucedem, o ma, debatendo-se. Tal é a vida.
realismo da descrição e o fechamento do zoam no corpo do cão. Este passa (idem)
a dominar a "tela", até chegar, por fim, à sua decomposição, com o bor-
rão expresso pela forma de descrevê-lo como uma "ideia envolta em A montagem torna-se, assim, o elemento específico pelo qual as
sangue". imagens se vão combinando e ritmando, como analisa Ismail Xavier
Há, neste e noutros procedimentos narrativos, a busca consciente, (idem p. 13). O objectivo e função fundamentais do processo, já agora
por parte do escritor, de obter o efeito de identificação do seu leitor e/ou tomando Sergei Eisenstein, é o de exercer "o papel que toda a obra de arte
do seu espectador com o que ouve e vê projectado frente aos seus olhos. se impõe, a necessidade da exposição coerente e orgânica do tema, do
Para obter tal efeito, ele leva o(s) seu(s) narrador(es) a especta- material, do enredo, da acção, do movimento interno da sequência cine-
cularizar(em) a cena, tentando trazer o receptor para dentro dela e con- matográfica e da sua acção dramática como um todo" (1990, p. 40).
seguir, com isso, sua participação afectiva. Diz Eduardo Geada sobre o Um outro romance em que tal coerência se materializa, com o diá-
processo:"[ ... ] O cinema é um espectáculo no qual o espectador não tem logo entre a linguagem literária e a cinematográfica ganhando força e con-
qualquer possibilidade de intervenção directa. Não obstante, é em função tornos inesperados, é, sem sombra de dúvida, Lueji. Para construir a estória
do olhar do espectador e da sua capacidade de participação afectiva que o em dois tempos~ "quatro séculos atrás" e "quatro séculos depois"~ e em
espectáculo se organiza" (1987, p. 9). torno de duas mulheres ~ Lueji, a mítica rainha da Lunda, e Lu, a moder-
Talvez esse procedimento de envolver catarticamente o leitor, na bailarina ~, o produtor vai-se valer do que Eisenstein chama de mon-
como se dá com o espectador do filme, seja um dos traços recorrentes da tagem polifónica, organizada em torno do tema pelo qual se ligam mulher e
ficção de Pepetela, que busca, via de regra, o me-lhor enquadramento e resistência, sempre na busca da criação de uma nação imaginada. Ta} nação
constrói os planos com eficácia e excelente manejo da câmara. A ence- não elide o outro, mas incorpora-o pelo afecto e pela compreensão. E assim
nação da morte de Sem Medo, em Mayombe, torna-se paradigmática quando a rainha escolhe Ilunga, um luba, para marido, trazendo a diferença
desse cuidado com a tomada da cena e montagem.da sequência. No caso, para dentro da Mussumba ~ cf. esta fala de Ilunga: "Só espero que ama-
294 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 295

nhã Lueji me autorize a ficar aqui na Lunda, terra de tantos rios e elefantes chega ao receptor da obra pela voz do narrador que nos mostra o trabalho
[ ... ] As tenas da Luba são lindas e boas as suas gentes. Mas todas as terras arqueológico da bailarina, de desenterrar "factos entenados no esqueci-
são como a Luba e as gentes também" (1989, p. 264). E é assim quando Lu mento do tempo",
escreve o roteiro do balé, misturando o próprio e o alheio, para, desse modo,
resgatar o mito da origem, jamais pensado como qualquer espécie de essên- mas que ela fazia renascer para que o mito tivesse cmpo e não
cia - cf. o momento em que ela "se pôs a escrever no cademo de aponta- apenas um esqueleto, deixando assim de ser mito para se tornar
mentos frases que esculpia e riscava", quando então mistura fouetés, glis- realidade presente que a amparasse [ .. .] e descrevia passos e
sades e espargattas em rítimos de kissanje, um órgão electrónico no escuro cenas de bailado à luz do Sol ou da Lua, em chanas e em flo-
antes do relâmpago que ilumina o lukano" (idem, p.199). restas, soletrava solos e danças de roda [ ... } enquanto Mabiala
A construção cinematográfica do romance encontra, em vários fazia nascer a música dançando entre os dois
momentos, a sua metáfora, quando se deixa clara a mistura das lingua- (idem, p. 212)
gens, não só nos cortes, nos vários tipos de planos, no movimento inten-
so do olhar-câmara do narrador, etc., mas na sua plena explicitação, como O texto dentro do texto, isto é, o guião no romance, vai-se des-
se dá nesta passagem da obra, quando o narrador conta, resgatando uma dobrando, reescrevendo-se frente aos olhos do leitor deslumbrado, até que
experiência do passado: "Era de noite, estava em casa.[ ... ]. À medida que Lu "emudece completamente" (ibidem). Nesse momento, o outro plano
surgiam as imagens, ia escrevendo. Era uma fabulosa sequência de ima- temporal emerge, na clave da ambiguidade, pois o nanador diz-nos ser
gens, mais para o cinema. [ ... ] Silêncio total. De repente, ao levantar o ainda a bailarina quem está contando "como via o Conselho dos Tubungo
ângulo da câmara, ou do meu olhar se preferirem, via-se o marido" (idem, convocado por Lueji de emergência para anunciar a decisão da mudança da
pp. 96-97). capital, onde primeiro aconteceu o espanto, a descrença, não pode ser, um
Explicita-se aqui o processo de entrelace entre as duas linguagens, espírito maligno tomou conta da soberana" (ibidem).
ou dos dois "instrumentos"- câmara/olhar- que põem a ficção em movi- O estilo indirecto livre traz as outras vozes que por sua vez soter-
mento, na página ou na tela. A chave do processo é dada pela expressão "fa- ram a da guionista, emudecida. A ideia da descrença e do espanto que
bulosa sequência de imagens" que identifica ambos os procedimentos miís- marcavam a postura de Lu, antes de começar a falar, une os planos, no
ticos e pela palavra cinema que se ilumina, saindo do latente para o mani- jogo da montagem polifónica. O narrador principal vai aos poucos reas-
festo do texto. sumindo o seu papel e trazendo de volta o discurso directo dos perso-
O romance Lueji, aliás, é um exercício de actualização desse diá- nagens, com o antes de Lueji vencendo o depois de Lu. Não por acaso,
logo semiótico que o narrador naquele ponto esclarece. Tudo nele é abso- este é o plano onde se constrói a nova aldeia, ou seja, onde a Lunda ganha
lutamente cinematográfico, com cortes incríveis pelos quais se dá a a nova vida que a caracterizará fora da estória e dentro da história que o
mudança de planos, sempre a partir de uma ideia que os costura cinetica- mito é capaz de corporizar:
mente. Passado e futuro não se colocam em blocos estanques ou distintos,
mas se imbricam, sucedendo-se nas páginas, sem qualquer "aviso prévio" Depois de escolherem o terreno onde se ia edificar a nova Mus-
ao leitor. Como o próprio texto diz, no romance, "os séculos atrás" e os sumba, que, pela tradição, devia ter a forma dum cágado com as
"depois" casam-se, "parindo o presente" (idem, p. 199). patas de fora, Lueji se aprestou a seguir o ritual para indicar os
Há uma cena paradigmática dessa montagem polifónica do principais pontos. Montou para as costas dum kimangata, no
romance. Por ser extensa demais, remete-se o leitor para as páginas 21 O a sítio escolhido para sua onganda, e se virou para o Nascente.
212. Em tal cena, Lu e Mabiala discutem a questão da criação e do imbri- (idem, p 217)
camento artístico entre música e poesia. Diz Lu: "[ ... ] Música e poema
são geniais, até porque não se podem separar. Não há colagem;há arte" Sabe-se que a metalinguagem exerce um poderoso fascínio sobre
(idem, pp. 210-211). A seguir, ela decide contar o que tem na cabeça sobre o cinema. Sobre isso diz Ana Lúcia Andrade, que ela, a metalinguagem,
o guião ou a história de Lueji, a partir da leitura de fontes históricas e/ou "coloca em cena o mistério profundo do cinema na sua essência ôntica"
antropológicas- Vansina, Henrique de Carvalho, Redinha, etc. Tudo isso (1999, p. 12). O mesmo se pode dizer da literatura, pois nela como naque-
296 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 297

le "muitas vezes o código é explicitado revelando a utilização da metalin- mas das suas produções vai buscar, ao arquivo da cinematografia, alguns
guagem como estratégia eficiente na elaboração da sua narrativa" (idem, motivos, referências e/ou cenas para que a sua linguagem artística as reac-
p. 37). Lueji segue muito de perto esse pressuposto, pois, a cada passo, há tualize. Cabe ao leitor decifrar o que se esconde no bloco mágico da sua
um desvelamento dos véus sob os quais se esconde o processo da própria criação, levantando pistas e/ou traços inscritos na "cera" do seu ima-
realização ficcional, para além da efabulação. Há uma desmontagem a que ginário.
se segue a reduplicação abissal do espelhamento textual e, mais que tudo, Percebe-se que algumas vezes o traço soterrado pertence já a um
o imbricamento dos diversos géneros artísticos. É como se se quisesse ir gesto pelo qual um texto literário na origem foi transformado em filmico,
fundo no desvestimento da fantasia, por assim dizer, como mostra a leitu- percorrendo o caminho inverso. Mas a forma de resgate da cena ou moti-
ra de duas páginas consecutivas de onde se extraem as passagens abaixo, vo, justamente pela montagem das imagens, estabelece ilações mais fortes
que se somam a outras já aqui resgatadas: com o filme, por assim dizer. Lembram-se dois exemplos de romances
onde o procedimento se revela: A geração da utopia e A gloriosa família.
Lu ouvia o que estava gravado e lhe apetecia mudar a estória EmA geração, no corte de "Achana (1972)", um quase texto den-
pois os contornos se precisavam, estranhas falas sussurradas tro do texto, o "homem" mostrado como "um ponto minúsculo na chana"
pelo tempo a indicar a verdade desconhecida que muitos procu- -Mundial-, parece uma reactualização da figura de Jordan, o Inglês,
ravam mas nunca encontravam, pois a perseguiam fora deles e criada por Emest Hemingway (1940) e imortalizada no filme de Sam
não como ela, dentro dela [ .. .] Watson (1943). Mesmo que, na sequência, se veja a não-verdade camu-
- Vamosfalar sério. O bailado não precede a música, nem flada por trás da acção de Mundial, o seu andar e a sua busca permitem-
esta o bailado. É dialéctico. Estória, música, bailado, nascem uns -nos pensar que ele actualize, embora apenas nesse momento, a pergunta
dos outros e, evoluindo, se modificam uns aos outros. Assim é que posta pelo romance: "Até onde vai a resistência de um homem?" (1992,
deve se~: p. 143). Obviamente, depois, há o mais absoluto distanciamento entre
(idem, pp. 258-259) Jordan e Mundial, mas a plasticização da cena aproxima-os, filmicamente,
sobretudo pela sua solidão como actantes e pela sua postura de sujeitos
Tudo se compõe diante dos olhos do leitor e às claras, no espaço que guerrilham por uma causa, não obstante, repito, toda a fraqueza e
artístico do romance: a escrita literária, como se viu; o roteiro do balé; a oportunismo de Mundial.
coreografia; a música, etc. A pulsão metalinguística domina o processo e Por outro lado, o polvo fantasmático de "enormes" proporções, na
a reduplicação faz-se a marca principal do texto, a partir mesmo da lembrança de Aníbal, tem um certo parentesco com o não menos enorme
primeira metáfora nele erigida, a do lago, cujo "espelho" persegue toda a peixe de O velho e o mar (1952), também de Hemingway e levado à tela
narrativa: "Lueji voltou ao lago da sua infância. Era elíptico, grande, só os por Fred Zinemann e John Sturges. A luta do velho Santiago é, porém, de
bons nadadores o podiam atravessar no sentido do comprimento [ ... ],era certo modo amenizada em relação a Aníbal, já que o polvo se revela, uma
rodeado de plantas com caniços compridos e de folhas grandes [ ... ], as vez vencido, "um polvinho, não o monstro marinho contra o qual com-
rosas de porcelana" (idem, p. 9). batera" (p. 249). E o personagem conclui a sua avaliação, dizendo para si
Por esse "espelho", assim proposto como metáfora do próprio mesmo: "Foi a morte que te fez mirrar, ou foram estes trinta ou quarenta
fazer-se do romance, a narrativa visita o seu código, revisitando outros anos que levei para te matar? Hoje não és um monstro, mas sim o cadáver
que o suplementam: o do balé; o da música; o da pintura e o do próprio dum polvinho, certamente o maior destas águas. Não deixas de ser um
cinema. Como explicita ainda Ana Lúcia Andrade, tais "estratégias [são] polvinho. Tantos anos, tantos anos ... " (idem). O sentido da luta e o seu
utilizadas de forma a atingir o espectador" - no caso reduplicado pelo fim, a vitória e a decepção unem o "velho" e o "sábio", no mesmo e
leitor - "envolvendo-o e estimulando-o a recorrer ao seu inventário poderoso desencanto ...
imagético" (1999, p. 178). Quanto à Gloriosa família, Matilde, a filha rebelde, livre e deci-
Não é só pela montagem, entretanto, ou mesmo pelo jogo meta- dida, de Baltazar Van Dum, estabelece uma rede de paralelismo com
linguístico, que Pepetela tenta accionar o "inventário imagético" ou a cul- Scarlett O'Hara, cuja figura carismática parece reactualizar. Como se
tura cinematográfica do seu leitor. O desenvolvimento temático de algu- sabe, Scarlett é uma criação de Margaret Mitchell (1936), levada à tela por
298 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 299

Victor Fleming, em 1939, numa realização tornada antologicamente que parece ser a síntese de tal processo, razão por que foi deliberadamente
inesquecível. Basta que se lembre, para o estabelecimento do quadro com- deixado para o final deste gesto de leitura. Trata-se de Muana Puó, para
parativo, além da composição de Matilde, a cena do baile de casamento, alguns dos seus exegetas um texto literário de difícil catalogação genéri..:
uma clara reescrita da festa em que Scm·lett é mostrada cercada por jovens ca: não é novela; não é romance; desliza entre prosa e poesia; beira o
oficiais sulistas entre os quais reina soberana, exercendo a sua forte e dramático, etc. Sobre uma coisa não resta dúvida: o seu peso alegórico e
poderosa sedução. No texto de Pepetela, Matilde, na referida cena, encon- o efeito de surpresa que causa no leitor, desde o próprio projecto gráfico
tra-se "no meio de uma roda de oficiais mafulos" que a "comiam com os do livro. Tal leitor, necessariamente, embora o aviso de que o "arranjo grá-
olhos" (1997, p. 103). A montagem das duas tomadas faz-se de forma fico" é "de Edições 70", não tem como ler a obra sem incorporar as ima-
absolutamente semelhante, mudados, é óbvio, os referentes espácio-tem- gens da máscara nela reproduzidas. Ela aparece de forma estilizada sobre
porais, assim como os simbólico-culturais, o que dá mais graça ao o amarelo da capa; na reprodução que abre o livro e no desenho do alto de
romance do autor: "Matilde recusou o vinho que lhe queriam servir mas cada página em que se registam os fragmentos narrativos, com excepção
aceitou um segundo refresco de múcua. Já um outro oficial lhe oferecia daquelas onde estão os segmentos numerados com algarismos romanos.
quitaba, que vinha cortada aos pedacinhos em cima de folha de bananeira Os referidos segmentos apresentam-se em caixa alta, em negrito,
[ ... ]E outro trouxe uma cadeira para ela sentar" (p. 105). sendo abertos por epígrafes e grafados em itálico "I- O PASSADO"; "11
Dos imponentes salões da mítica Tara, para o terreiro da casa de -O FUTURO" e "111- EPÍLOGO" (1978, pp. 11,85 e 169). As epígrafes
Baltazar; dos oficiais sulistas para os mafulos; da bela e altiva Scarlett repetem sempre as duas frases iniciais - "Era uma máscara
para a também bela e instigante Matilde, tudo ligado pela mesma sedução tchokuê./Máscara de Muana Puó, a rapariga" (idem, ibidem), mudando-se
tecida pela linguagem e pela representação. A memória do leitor é levada o primeiro segmento da última frase, em claro processo de ampliação
a girar os seus parafusos simbólicos e a paródia latente não consegue des- fotográfica: "Com ela se dança, na festa da circuncisão" (p. 11 ); "Esconde
fazer o antigo e o novo fascínio nela gravados ou grafados. as lágrimas, na festa da circuncisão" (p. 85) e "Com ela se dança e
Não por acaso, o romance fecha-se como o filme, com a câmara esconde as lágrimas, na festa da circuncisão" (p. 169).
a buscar obsessivamente a mulher que a fascinou. Ambas as protagonistas A proposta de descodificação é assim posta na roda da contação,
realizam um mesmo gesto de autoconfiança e de confiança no futuro, ao ao mesmo tempo que a descrição da máscara, nas tomadas iniciais dos
"apagar-se" da tela e da página, voltando estas duas ao seu branco origi- ditos segmentos, vai ganhando cada vez mais nítidos contornos e igual-
nal. Reiteram, na última cena, a sua força inquebrantável, manifesta não mente ampliando-se, com a câmara em volteios a surpreender-lhe os
só pelas suas acções, mas pelos seus juramentos e profecias. O amanhã é traços; os cortes ou cicatrizes; as linhas ovais; a expressão; o seu sentido,
delas cúmplice e não as assusta. Eis o fecho do romance: enfim. Depois dos "exercícios" I e II -Passado e Futuro - o "Epílogo"
fecha-se, com o mesmo gesto, isto é, o gosto pela ampliação, já agora
-E é verdade o que diz a sua irmã Gertrudes muito em incluindo-nos, como observadores que somos, e apelando para o nosso
segredo lá em Massangano? Que a Matildejura que os Van Dum próprio gesto de e/ou gosto pela decifração. A voz que se deixa ouvir ca-
serão uma família gloriosa? tegoriza tais observadores em três tipos - os dois primeiros, mais apres-
- Tem dúvidas, senhor Câmara? sados, que "estudam a máscara", começando "nos olhos" ou "pela boca" (p.
E Matilde atirou ao velho flamengo o seu sorriso 169) - ou os "verdadeiros" que
bonito e mais malandro. Se este não sentiu um fogo percorrer o
baixo ventre é porque as velhas brasas estavam definitivamente começam pelos olhos até à boca e daqui voltam aos olhos para
extintas. Não as minhas. em seguida descerem à boca, e não mais se libertarem.
(p. 406) Estes últimos compreenderão a ternura, o mutismo, a
severidade, o grito, da máscara de Muana Puó.
A metáfora das "brasas" pode estender-se para o processo de
sedução - sempre uma espécie de fogo - que o cinema exerce sobre o Por isso ela é enigmática.
imaginário de Pepetela, em especial o gosto pela montagem. Há um texto (pp. 169-170)
Novos pactos, outras ficções 301
300 Laura Cavalcante Padilha

Como o texto onde ela se inscreve/reescreve, ele próprio um juntar, na clave da mais pura alegoria, figuras de morcegos e de corvos
quase-filme resgatado em letra, daí o enigma do seu género literário e a - - como um exercício do que se convenciona chamar, nas vanguardas,
não-rigidez das suas fronteiras. Tudo isso pede "observadores ver- de "cinema poético". Tal forma de representação pula da tela para a pági-
dadeiros", identificados com o "grito" textual. Assim, ao insistir no pri- na contaminando a narrativa literária e fazendo com que ela igualmente
' .
mado do olhar; ao apelar para os foto gramas que se sequenciam no papel; pule do convencional para o experimentalismo. Pode-se estender, p01s,
ao optar pelo registo dos recortes, dos planos, das cenas, do jogo das ima- para Muana Puó, o que Ismail Xavier afirma, ao analisar o referido "cine-
gens, enfim, que criam o "espectáculo", o realizador Pepetela parece ma poético":
saber, voltando a uma citação já aqui recuperada, de Eduardo Geada, que
"é em função do olhar do espectador e da sua capacidade de participação O cinema é instrumento de um novo lirismo e sua linguagem é
afectiva que o espetáculo se organiza" (1987, p. 9) Não por acaso, e por poética justamente porque ele faz parte da natureza. O processo
isso mesmo, a primeira palavra instauradora da narrativa é fitar. Por ela se de obtenção da imagem corresponde a um processo natural - é
põe em movimento a acção de "ver", ao mesmo tempo que o significante o olho e o 'cérebro' da câmara que nos fornecem a nova e mais
olho faz a sua festa: peTfeita imagem da coisa. O nosso papel, como espectadores, é
elevar nossa sensibilidade de modo a superar a 'leitura conven-
Fitou a máscara. Foi atraído pela tristeza dos olhos. Fi- cional' da imagem e conseguir ve1~ para além do organismo na-
xou-se na parte esquerda. Reconheceu-se nela. tural e a expressão do 'estado de alma' que se afirmam na prodi-
giosa relação câmara-objecto.
Ela foi fatalmente subjugada pelo olho direito. Nele se (1984, p. 86)
reconheceu.
(p.13)
A extensa citação dá o mote para o fecho desta leitura, daí a
O processo de identificação/reconhecimento salta da diegese e impossibilidade de qualquer espécie de corte. Vê-se, no fascínio exercido
atinge o leitor que é convidado também a exercitar o seu próprio olhar, pelo cinema no imaginário de Pepetela, ou na sua sedução, o "instrumen-
patiicipando afectivamente do espetáculo a seus olhos desdobrado nos to", principalmente no caso de Muana Puó e/ou de Lueji, de "um novo
pequenos fragmentos ou fotogramas que a partir daí se sucederão. Tudo é lirismo" que se faz presença na natureza do próprio texto. Daí que sejam
movimento, com a "câmara" ou o "olho do narrador" comportando-se de "o olho e o 'cérebro'" do narrador os elementos "que nos fornecem a nova
forma intimista e optando o "engenheiro" de som por elidir os diálogos, e mais perfeita imagem da coisa". Por outro lado, tal procedimento leva o
bastante raros, como no cinema novo. Citando ao acaso um desses leitor da sua obra, aceitando aqui o jogo estimulante de Muana Puó, a
fotogramas (I, 18): deixar de lado a "leitura convencional" das imagens ficcionais montadas
pelo escritor. Assim, esse mesmo leitor passa a participar mais activa-
Ela e ele corriam pelos espaços livres do alto da montanha, onde mente da festa linguajeira, colocando no seu próprio rosto a máscara ritu-
o capim é raro. al desses novos tempos literários. Tal máscara obriga-o, por outro lado, a
participar da dança do rito ficcional, ele próprio, do ponto de vista da sua
Pararam.
organização interna, uma outra e simbólica "festa da circuncisão."
Olharam-se, desejando-se mudos.

E gotejaram suavemente, até tombarem sobre o capim. Como se


fosse a primeira vez.
(p. 49)

Talvez se pudesse "catalogar" Muana Puó - sobretudo quando


se sabe que aos amantes não nomeados, em seu sonho de Calpe, se vêm
302 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 303

-modernismo. Sabendo, embora, que os quatro elementos participantes do


jogo, ou as duas duplas, se quisermos, criam entre si redes de inter-relações,
mesmo assim, por muito tempo, quase diria até hoje, neste texto, o centro da
minha preocupação permaneceu sendo a questão colonial e o seu processo
de achatamento e de rasura. Os meus parceiros em tal travessia ou os
juízes: Frantz Fanon, Albert Memmi e, mais recentemente, Edward Said e
LITERATURAS AFRICANAS o próprio Homi Bhabha, para não falar de africanos como Alassane Ndaw,
Makhily Gassama e tantos outros.
E PÓS-MODERNISMO: Mas pensar o colonialismo é convocar também o seu contrário,
principalmente se se fala de África, ou seja, não dá para deixar de patie o
UMA INDAGAÇÃO! fenómeno da descolonização, sempre caracterizado como processo de
procura de uma reversão absoluta, marcado pela violência. As guerras de
libertação africanas atestam isso, bem como a produção literária que se
"O saber pós-modemo não é somente o elabora e circula nesse período de enfrentamento e tentativa de substitui-
instrumento dos poderes. Ele aguça a nossa ção do colonizador pelo colonizado, ao mesmo tempo que representa uma
sensibilidade para as d(ferenças e reforça a
proposta de narrativizar a nação, seja estética, seja político-ideologica-
nossa capacidade de suportar o incomensu-
rável." mente. Como bem enfatiza Homi Bhabha, sabe-se que: "O 'vir a ser' de
uma nação como sistema de significação cultural, como representação da
Jean-François Lyotard vida social, ao invés da disciplina da organização política social, enfatiza
[uma] instabilidade do conhecimento" (1995, p. 1).
"O local, o regional e o não-totalizante são Na violenta passagem de colónia para nação, que na África de lín-
reafirmados à medida que o centro se vai tor- gua oficial pmiuguesa só se deu em 1975, essa "instabilidade do conhe-
nando uma ficção- necessária, mas apesar cimento" atingiu pontos surpreendentes que foram representados nas mal-
disso uma ficção. "
has dos textos literários de forma igualmente surpreendente, inclusivé
Linda Hutcheon pelo embate entre a língua da colonização e as nacionais. Nesse sentido,
o centro cedeu lugar às margens e todas as contradições inerentes ao
processo de dominação cultural, representado pela colonização, foram
Mais que uma explicação: uma defesa escancaradas, enquanto o mundo assistia perplexo à tentativa de Portugal,
no nosso caso específico, de manter as suas colónias, a ferro e fogo. Tudo
Como viajante consentida pelos mares de um outro con- está muito próximo de nós, para que possamos esquecer e, também, para
ceito operacional e simbólico também marcado pela presença de um pre- que tenhamos necessidade de lembrar. Talvez valesse a pena repetir Fanon
fixo pós, isto é, o pós-colonialismo, sempre encarei a questão do pós- como fecho destas reflexões sobre a violência da descolonização que
-modernismo como algo de pouca- ou quase nenhuma- aplicabili- deixará profundas marcas na realidade pós-colonial. Ele diz:
dade ao meu objecto de pesquisa, qual seja, as literaturas africanas de lín-
gua portuguesa. A mim sempre me pareceu que o meu interesse se deveria A violência que presidiu ao arranjo do mundo colonial, que rit-
concentrar no jogo colonialismo x pós-colonialismo, tal como os estudiosos mou incansavelmente a destruição das formas sociais indígenas,
da outra corrente teórica, por sua vez, faziam com o par modernismo x pós- que arrasou completamente os sistemas de referência da econo-
mia, os modos da aparência e do vestuário, será reivindicada e
1. Publicado em "Actas do Quinto Congresso da Associação Intemacional de assumida pelo colonizado no momento em que, decidindo ser a
Lusitanistas", Organização e coordenação de T. F. Eat·le. Oxford- Coimbra, AIL,
história em actos, a massa colonizada se engolfar nas cidades
1998, pp. 1177-1186.
interditas. [ .. .]. Destruir o mundo colonial é, nem mais nem
304 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 305

menos, abolir uma zona, enterrá-la profundamente no solo ou desfazer do sonho de uma justiça social que alimentava tanto os antigos
expulsá-la do território. guerrilheiros do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), .
(1979, p. 30) quanto os do Partido para a Independência da Guiné e de Cabo Verde
(PAIGC), como os de Sierra Maestra ou do Araguaia? No momento
A longa citação justifica-se, seja pela riqueza do discurso de histórico da criação de uma rede pós-moderna, da sua sedimentação ou da
Fanon, seja pela exactidão da sua análise, seja, por fim, para que reflicta- sua compreensão teórica, a África de língua portuguesa tentava deixar de
mos sobre o facto de, dos anos 60 aos 70, Angola, Cabo Verde, ser este singular monolítico para se fazer Angola, Cabo Verde, Guiné-
Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau decidiram, pelas -Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, tendo os países de enfrentar,
armas, "ser a história em actos", lutando pela sua hegemonia e possibili- primeiro com a ajuda do bloco socialista, e, depois, sozinhos, os desafios
dade de auto-determinação. Convém lembrar, ainda, que as culturas de que a descolonização apresentou, para que se conseguissem auto-detenni-
tais povos marcavam-se pela consciência do atraso e do subdesenvolvi- nar como povos independentes.
mento, pensando com Antonio Candido. Finalmente, se, como quer
Boaventura de Sousa Santos, nem Portugal participou do boom da mo-
dernidade, sendo uma "sociedade de desenvolvimento intermédio" e
ficando, pois, numa intersecção entre as sociedades mais ou menos desen- A ruidosa ruína
volvidas, sobretudo pela ausência de um parque industrial (1995, pp. 57-
-58), o que dizer da África por ele colonizada e sempre percebida, no Esta longa introdução, antes de entrar na arena da literatura pro-
imaginário da colonização, como o grande quintal da construção solaren- priamente dita, justifica-se para que se percebam as razões da minha
ga do sonho ultramarino? opção teórico-metodológica, já anunciada no início deste texto, ou seja,
Assim, se encaramos o pós-modernismo como um fenómeno cul- porque optei pelo pós-colonialismo, conceito mais amplo e de aplicação
tural "europeu e (norte e sul) americano" e ainda acreditamos que "os mais imediata, quando o objecto de estudo são as culturas africanas. No
anos 60 modificaram a conformação e a estrutura da maneira como con- entanto, se penso não apenas no aspecto da produção do texto literário e,
sideramos a arte" e, por fim, que "a experiência política, social e intelec- se, mesmo nesse aspecto, me aproximo dos dias actuais e se tomo ainda a
tual" desses anos é que contribuiu para que o pós-modernismo se reve- questão do pós-modernismo como um saber, como quer Lyotard, con-
lasse como um questionamento dos limites, fazendo uma colagem de siderando a crítica literária como parte desse saber, talvez possa mini-
citações de Linda Hutcheon (1991, pp. 24-25), torna-se dificil a extensão mizar a exclusão do conceito no trato com as literaturas africanas. É o que
do conceito de forma pura e simplista à África. Vale recordar, quase como vou tentar propor a partir de agora, levantando dois aspectos e tomando
uma consequência desse olhar para os anos 60, que essa mesma África como forma de exemplificação, paradigmaticamente, o caso pontual de
não viveu, pela sua condição de dependência, a experiência moderna da Angola. Os dois aspectos dizem respeito, por um lado, à ficção dos anos
crença na supremacia tecnocrática, baseada no saber positivista que, 90 e, por outro, à crítica literária. Porquê Angola? Por não dar para tudo
segundo ainda Lyotard, "encontra facilmente sua aplicação às técnicas ver ou dizer. Assim, na primeira categoria, exemplifico com três textos de
relactivas aos homens e aos materiais" (1988, p. 24). Desse modo, ela, a Pepetela: Lueji (1989), A geração da utopia (1992) e O desejo de Kianda
África, não fez parte nem da euforia tecnocrática, nem da utópica crença (1995), e, na segunda, com os ensaios quase poemas de Manuel Rui
das vanguardas no seu destino. Excluída, periférica e dependente, não par- Monteiro: "Entre mim e o nómada: a flor" (1981), "Eu e o outro- o inva-
ticipou da "festa" da modernidade, social, política, histórica e cultural- sor ou em três poucas linhas uma maneira de pensar o texto" (1985) e
mente. Portanto, como falar em experiência pós-moderna, se, quando se "Pensando o texto da memória" (1991). Alerto que todas as obras aqui
gestava o processo, a África lutava, nos anos 60; se, depois de 75, ela ten- citadas já foram trabalhadas em ensaios anteriores. O texto de agora vale
tava escrever a nação; se, por fim, nos anos 80, ela vivia, a pleno vapor, a pelo seu carácter de recolha.
experiência marxista como forma de governo, quando sabemos, com Antes, porém, partindo da Poética do pós-modernismo, de Linda
Boaventura Santos, que tal década é a do pós-marxismo, com uma série Hutcheon, obra várias vezes aqui citada, e que contém em seu bojo, ou em
de factores a convergirem, se não para o colapso total, pelo menos para o suas teias, as vozes que teorizam o pós-modernismo ou a ele se con-
306 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 307

trapõem e/ou discutem- cf., neste caso, Jameson e Eagleton, por exem- mia de Sousa e seu poema "Deixa passar o meu povo", 1953- e o dis-
plo-, retomarei alguns pontos que me ajudam a levantar certos traços curso do feminismo (c f. também, no primeiro número do Boletim
do "saber pós-moderno" referido por Lyotard, saber que, de acordo com Mensagem, da Casa dos Estudantes do Império, 1948, os vestígios desse
este crítico, "aguça a nossa sensibilidade para as diferenças", no sentido discurso, principalmente no artigo "O movimento feminista na Índia con-
do que já foi recuperado na primeira epígrafe (1988, XVII). Aliás, esta temporânea", de Ricardo Fernandes) vão ter um papel bastante conside-
assertiva é fundamental para o que agora me proponho fazer, já que a rável para a desconstrução da noção de centro e para a exaltação das mar-
própria possibilidade de se pesquisarem as literaturas africanas no Brasil gens, no que respeita a tais literaturas. Recupero, nesse sentido, os
faz parte desse saber e da nossa busca das diferenças. Outro conceito basi- primeiros versos do poema citado de Noémia de Sousa, de Moçambique,
lar, desta vez de Linda Hutcheon, e também já anunciado na dupla voz para tornar mais evidente a importância de uma outra prática discursiva
epigráfica, é do centro como ficção pela qual se permite cenarizar "o que se alça nas dobras da conscientização das identidades africanas,
local, o regional e o não totalizante", ou seja, cenarizar esse outro lugar no levando à ruína ruidosa já referida, e onde uma voz de mulher moçambi-
qual, aliás, a diferença da africanidade ou, noutros termos, as identidades cana exalta outras vozes negras americanas, ex-cêntricas todas:
africanas sempre se esconderam sob o véu mascarador da dominação
colonialista.
Noite morna de Moçambique
Por outro lado, ainda a mesma Hutcheon levanta uma segunda
e sons longínquos de marimba chegam até mim
questão operacional muito eficaz para o pensar, em termos críticos, as lite-
- certos e constantes -
raturas africanas. Refiro-me à saída da teoria "da torre de marfim" e a sua
vindos nem eu sei donde.
entrada, como afirma a pesquisadora, "no mundo maior da práxis social",
Em minha casa de madeira e zinco,
momento do seu texto em que lembra Said (1991, p. 35). Afirmando a
abro o rádio e deixo-me embalar ...
importância dessa saída, ela insiste que - e eis outro ponto que preciso
Mas as vozes da América remexem-me a alma e os nervos.
aqui evidenciar -
E Robeson e Marian cantam para mim
spirituals negros de Harlem.
Juntamente com o caso evidente, e muito divulgado, da arquitec-
"Let my people go"
tura pós-moderna [ .. .}, foram a teoria e prática do movimento
- oh deixa passar o meu povo,
negro (americano) e das feministas (em geral) que tiveram espe-
deixa passar o meu povo -,
cial importância, tanto em termos formais (em grande parte por
dizem.
meio da intertextualidade paródica) como temáticos, nesse reen-
(Sangue negro, 19__ fl. 41)
foque pós-modernista em relação à historicidade.
(1981, p. 34)
Por tudo isso: deixando um pouco de lado a importância da
Tal postura analítico-crítica é muito importante quando nos questão histórica que possibilita, articula e constrói o edificio de uma
debruçamos sobre algumas produções literárias africanas onde o passado "poética do pós-modernismo"; recortando alguns elementos pontuais que
reaparece, não com travos de nostalgia, mas como uma forma de conhecer se re(a)presentam no universo textual das culturas africanas e, por fim,
o presente, o que só se pode dar com o que Lyotard chama de "decom- interseccionando este conceito com o de pós-colonialismo, penso que há
posição dos grandes Relatos", já que cada vez se tornam mais dificeis as alguns pontos que, se não nos permitem buscar uma pós-modernidade em
"identificações" com os grandes nomes, com os heróis e os seus grandes África, possibilitam-nos deparar, nas manifestações culturais que lá
feitos (Lyotard, 1988, p. 28). Decreta-se a morte da "narrativa-mestra" encontramos, com ce1ios vestígios de um saber pós-moderno. Tal saber
e, em consequência, dos mitos que a alimentavam. No espaço diaspórico mais e mais nos leva a pensar nas fissuras, nas rasuras, nas contradições
da África de língua portuguesa, o sentido dessa ruína ruidosa tem uma de um tipo de saber anterior que não tem mais como sustentar-se depois
força muito grande, como adiante veremos. que se chegou a tantos limites e que se reconhece a força das fronteiras,
É claro, ainda, que o discurso dos negros americanos- cf. Noé- dos contactos e das margens ...
308 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 309

tou boa parte da ficção imediatamente anterior. No mundo da cena sim-


bólica, reaparece, transformada, a lendária figura do pensador, um dos
ícones angolanos:

A amostragem ou O tahi se revelava também um pensadm: Em longas con-


uma experiência dos limites versas revelava aos poucos as suas ideias. E era muito diferente
de Kandala, que sempre fora apenas o guardião das tradições.
Começo o processo de amostragem, garimpando os dois aspec- Majinga inovava. Relacionando os costumes de vários povos e
tos já apontados. Com os textos de Pepetela, quero-me debruçar sobre aprojimdando as ideias em discussões com Ilunga e Lueji, o tahi
uma das formas do género romance, chamado por Linda Hutcheon, de acabou por formular o que seria a chave do poderio tunda nos
"metaficção historiográfica". E completa a autora: "com esse termo, séculos seguintes. O poder obtido pela força perde-se também
refiro-me àqueles romances famosos e populares que, ao mesmo tempo, pela força. O verdadeiro poder é aquele que se ensina pela per-
são intensamente auto-reflexivos e mesmo assim, de maneira paradoxal, suasão e pelo beneficio que se pode adivinhar nele.
também se apropriam de acontecimentos e personagens históricos" (1989, p. 462)
(1991, p. 20).
Desde Mayombe (1980), Pepetela aproxima-se do género bapti- O outro núcleo temporal é o presente, mas um presente que já é
zado por Hutcheon de "metaficção historio gráfica". Se os personagens futuro, em relação ao momento da enunciação, uma vez que as acções se
que pelo romance desfilam não têm a sua identidade histórica comprova- passam "a poucos meses para a mudança do século" (p. 26). Enquanto o
da nos documentos angolanos, não há como duvidar da possibilidade primeiro grande movimento narrativo se abre, no capítulo 1, com a rubri-
histórica dos acontecimentos, se se conhecem os meandros da guenilha e ca quase teatral "Quatro séculos atrás (pelo menos) ... " (p. 9) e onde a
a forma de organização do Movimento Popular de Libertação de Angola. rainha Lueji ocupa o primado actancial, o segundo, no mesmo capítulo,
No entanto, será com o romance Lueji (O nascimento dum Império), 1989, apresenta-se como "Quatro séculos depois (amanhã) ... " (p. 26). Neste, a
que o género ganha uma força surpreendente no universo ficcional bailarina Lu faz-se a principal figura narrativa, em jogo onomástico
angolano. Nessa obra encontram-se muitos traços do que podemos enten- especular explícito com o nome da personagem anterior. Também as
der por pós-modemismo: a busca da diferença; a recuperação do passado vozes dos narradores fazem uma dança de contrastes. Enquanto a estória
sem traços nostálgicos; a interpenetração da história pela ficção e vice- da rainha tem a contá-la uma voz na terceira pessoa, atemporal e demiúr-
versa, enfim, a "escrita-como-experiência-dos-limites", citando Julia gica, a de Lu é contada por uma primeira pessoa que não esconde o seu
Kristeva, a partir de Linda Hutcheon (1991, p. 25). fascínio pela coisa nanada - "Ao ver Lu sair naquela manhã do Centro
O romance Lueji abriga dois núcleos temporais, em claro jogo de Documentação Histórica, onde eu ia entrar, não podia imaginar a força
desconstrutor. Por um lado, aparece um passado muito remoto, o da cria- daquele encontro [ ... ] havia algo estranho no olhar ausente dela, passan-
ção da Lunda, pelo casamento de Lueji e Ilunga, respectivamente do por mim sem me ver. Aí começou tudo", (idem, p. 26). Tal relato opõe-
herdeiros dos tronos lunda e luba. Esse relato poderia ser confundido -se àquele onde Lueji, a rainha, fora introduzida na narrativa por uma dis-
com uma narrativa-mestra, de exaltação de um dos mitos angolanos de tante terceira pessoa: "Lueji voltou ao lago da sua infância. Era elíptico,
origem. Contudo, o afastamento do padrão valorativo sobre o qual o mito grande, só os bons nadadores o podiam atravessar no sentido do compri-
se estrutura, certo tom de contestação crítica, os furos provocados pela mento. As margens estavam cobe1ias de fetos compridos e também dos
paródia e pela ironia impedem-nos de aceitar a narrativa como perten- mais pequenos, de folhas em palma todas recortadas, os fetos da Lunda",
cente à categoria dos grandes relatos, principalmente quando se vê que a (idem, p. 9).
tradição é contestada, ao mesmo tempo que se exalta a transformação e Os dois começos. As duas mulheres - Lu/Lueji. Os dois tempos.
se questiona a ânsia de poder. Eis, a seguir, uma breve passagem do As duas estórias. Os dois níveis discursivos: ficção e história. Os dois
romance em que se subverte o sistema de pensamento angolano, abriga- géneros: a dança e o romance propriamente dito, já que a bailarina Lu
do nos contrafortes dos relatos míticos do passado, sistema que alimen- escreve um roteiro e monta um balé que tem como personagem principal
310 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 311

a rainha Lueji. Ametaficção a escancarar as suas comportas, deixando ver romance caminha por aquilo que aqui vou chamando de conservadorismo
o seu ventre quase sempre camuflado. A história recuperando-se, como narrativo, enquanto, no nível temático, passa-se a limpo a nova realidade
texto, ou seja, como invenção também. A metáfora clara do "Centro de angolana, cenarizando-se a ruína benjaminiana da história.
Documentação Histórica" onde a própria ficção entra e de onde sai. Lueji A ironia é a forma escolhida para o relato que surpreende a morte
rainha e o nanador ficcional ou, se quiséssemos, passado e presente a se do sonho e da esperança utópica de toda uma geração espatifada contra
retroalimentarem, pela narração. Daí o nanador reflectir sobre o balé de as paredes da igreja de Dominus. Tal igreja é criada por um dos perso-
Lueji, escrito e dançado por Lu, com a mistura de géneros e modalidades nagens, Elias, justamente aquele que, no passado, se caracterizara por ser
e que serviria como alegoria do romance e da ficção angolanas como um o radical leitor de Fanon, justificando sempre a violência, que via como
todo. Ainda a registar, o travo da ironia e da paródia, para Hutcheon, dois a base de todos os poderes. No final, travestido no pregador de Dominus,
dos principais traços pós-modemos. Resgato o momento em que o nar- no criador da igreja novíssima, "da Esperança e Alegria do Dominus",
rador faz aquela sua reflexão: "bungulando", gritando e dançando, conduz a massa, "solto e ilumina-
do", repetindo "Dominus falou", pelas ruas de Luanda, "a caminho dos
E aí foi nascendo um género próprio, nacional, indo buscar mercados e das casas, das praias e dos musseques, em cortejos se multi-
temas e passos à tradição dos camponeses, misturando por vezes, plicando como no carnaval, do Luminar partindo felizes para ganhar o
as culturas de origem, e estilizando com recurso ao que de mais Mundo e a Esperança" (1993, pp. 315-316). Se cotejarmos esta cena final
avançado se fazia no Mundo. E o grupo de bailado "Kukina" com as de obras de Luandino Vieira ou outras do próprio Pepetela, onde
[ .. .] cativava as atenções pela originalidade das criações, mistu- a crença no futuro e na grandeza do herói era quase inabalável, a paródia
rando kimbos com computadores e danças de roda com sapati- mostra-se em toda a sua extensão e a corrosão da ironia torna-se um
lhas de ponta. modo de poder representar as ruínas que impedem o voo do Anjo da
(1989, p. 170) história, de acordo com a leitura benjaminiana do quadro Angelus novus,
de Paul Klee, que não me canso de citar.
A ironia, pela qual se misturam "kimbos com computadores e Já na novela O desejo de Kianda, cujas acções se passam no
danças de roda com sapatilhas de ponta" retoma com uma força irruptora antigamente quase mítico largo do Kinaxixi, a queda sucessiva dos pré-
nas obras de Pepetela, que são A geração da utopia (1992) e O desejo de dios; o apagamento da topografia do largo; a libertação da zangada
Kianda (1995) que, no entanto, não apresentam o escancaramento da Kianda, personagem iguahnente mítico da tradição angolana; a desrazão
efabulação, como se dá com Lueji e onde, em determinado sentido, se re- do relato das quedas, com os habitantes das construções se mantendo
vela até um certo "conservadorismo" das técnicas narrativas. Assim, se vivos depois do esfarelar dos prédios; o escancaramento da paródia, etc.,
formalmente os dois textos se afastam dos paradigmas pós-modemos, remetem-nos para a dissolução absoluta de qualquer tipo de narrativa-
tematicamente aproximam-se deles, justamente pela força da paródia e -mestra, tal como se concebia no passado recente. É muito mais um exer-
pela corrosão da ironia. cício de contar do que o conto, propriamente. Há uma "atomização" do
Em ambos os textos o que era sólido, no projecto de construção da social em flexíveis redes de jogos de linguagem, atomização que se "afas-
nação imaginada- Benedict Anderson, 1989 - , desmancha-se no ar das ta da realidade modema que se representa antes bloqueada pela artrose
armadilhas da efabulação romanesca, parodiando Marx. Em A geração, burocrática", ampliando a colocação de Lyotard sobre a necessidade de se
há também a volta a um passado, só que recente, instaurando-se a narra- compreenderem as relações sociais numa perspectiva pós-moderna (1988,
tiva com a Casa dos Estudantes do Império, simplesmente chamada "A pp. 30-31).
casa", no primeiro segmento da obra, a que se apõe uma data (1961). A O pequeno texto narrativo de Pepetela é, pois, uma espécie de exer-
primeira frase, iniciada com "portanto", inaugura um novo dizer, repre- cício de apresentar a margem como margem, sem querer transformá-la em
sentando a vingança do "autor" que, censurado pelo professor, quando centro, como se dava, por exemplo, com A vida verdadeira de Domingos
estudante em Lisboa, pelo facto de começar uma frase angolanamente Xavier, expressiva peça de resistência da heroicidade angolana. Neste
com portanto, "jurou um dia havia de escrever um livro iniciando por essa romance, não falta nem mesmo o coro grego para reforçar a saga do operário
palavra" (1993, p. 11). Depois desse breve lampejo de metaficção, o mmio, quando todos os presos acompanham o canto pelo qual se exalta o
312 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 313

herói da liberdade. Diz o nanador, depois de recuperar em quimbundo o Os textos ensaísticos do angolano ·Manuel Rui, também poeta e
canto-exaltação: "E o coro que se seguiu saltou nas paredes da cadeia e, prosador, são uma forma de exposição das contradições e uma afhmação
veloz como o vento fresco da madrugada, encheu toda a noite branca do da identidade por meio da diferença. Desde os seus títulos, muitas vezes
musseque. E nem todos os chicotes de todos os cipaios metidos na prisão mais que originais, até o debruçar-se sobre a importância da memória ou
conseguiram de calar os presos antes do nascer do dia" (19__, p. 78). sobre o desejo de reinventar a identidade, reconstruindo, pela linguagem,
O sentido de libertação da Kianda, que ganha "o alto mar, final- os alicerces do seu pluralismo cultural, tais textos podem caracterizar-se
mente livre" (1995, p. 119), é completamente contrário a isso. É como se como a festa da palavra marginal, embora sem ilusões ou ingenuidades.
o mito antigo soltasse as suas amarras frente à impotência e à desrazão da Por eles se restabelece o pacto do homem africano com a palavra, sempre
queda dos antigos sonhos. Na retina do leitor fica a imagem do não menos um mais além de si mesma, naquele continente. Também neles se mostra
impotente João Evangelista, sempre preso aos seus vazios jogos de guerra o embate do oral e do escrito, no encontro fecundante das culturas. Em
no computador. Por isso, quando desaba com o seu edificio, diz o nmTador dado momento, no ensaio de 85, "Eu e o outro - invasor" anuncia-se, de
que ele "viu a praça do Kinaxixi cheia de gente nua que batia palmas e novo parecendo que o sujeito quer remarcar fronteiras: "E agora o meu
aplaudia a última façanha de Kianda. O computador lhe caiu em cima, texto se ele trouxe a escrita? O meu texto tem que se manter assim ora-
depois montes de entulho e pó de cimento. Ficou abraçado ao computador, turizado e oraturizante. Se eu perco a cosmicidade do rito perco a luta
sem vontade de sair dali" (idem). [ ... ] . Afinal isto é uma luta. E eu não posso retirar do meu texto a arma
Eis aí a diferença dentro da semelhança. A descontrução paródi- principal. A identidade" (texto poli copiado).
ca. As ruínas. O desmantelamento. O rejeitar do que é incontrolável e Entretanto, convém reiterar que pensar a identidade não significa
ilusório. Vem daí a pergunta: trata-se de uma ficção pós-moderna, no salto elidir o outro, mas tão somente tornar visíveis as contradições. Daí por-
cultural que não precisa de princípio para chegar a um mesmo fim? Só o que, no texto de 81, "Entre mim e o nómada: a flor", o poeta esclareça tal
distanciamento crítico nos possibilitará responder. Até lá, permanece a facto, lembrando os laços que o ligam ao nómada tribal, já que este, tanto
indagação. como ele, só que no universo da oralidade, tem na palavra os contrafortes
Quanto aos ensaios críticos de Manuel Rui, penso, como já de sua construção simbólico-cultural. E conclui o sujeito da enunciação,
afirmei em "Ensaios, como poemas", que eles actualizam uma outra dizendo serem ele e o nómada "muitas línguas" e que, por isso, pensar o
questão que se poderia chamar pós-moderna, ou seja, neles se dá a ultra- passado não significa um nostálgico gesto de voltar às origens, mas um
passagem entre o género ensaio e o propriamente literário, deixando-nos convite ao devir: "Assim, plurais, nem eu nem o nómada pensamos em
frente a frente com a discussão sobre "as margens e as fronteiras das con- regressar ao 'antes de'. Tudo para nós é depois, a partir de agora. E nem
venções sociais e artísticas", que são, segundo ainda Linda Hutcheon, "o sequer é redescobetta mas sim afirmação transfonnadora" (1981, p. 32).
resultado de uma transgressão tipicamente pós-moderna em relação aos Nesse sentido, é no jogo simbólico onde se encena o encontro de culturas
limites aceites de antemão: os limites de determinadas artes, dos géneros e onde as fronteiras se esgarçam, que de certa forma é parido o homem
ou da arte em si" (1991, p. 26). Também pelo que neles se (d)escreve, os pós-colonial, na força de sua multiplicidade.
ensaios de Manuel Rui tematizam a margem, o ex-cêntrico, pondo a nu as Volto a uma citação de que gosto muito:
contradições e as convenções criadas pelo achatamento do processo colo-
nizador. Volto a Linda Hutcheon, e lá encontro: Ser pátria assim, multilinguística e multicultural, é ser-se
mais rico para a criatividade contra o nacionalismo tacanho,
Quando o centro começa a dar lugar às margens, quando a uni- chauvinista, baseado só na raça e língua. Numa pátria assim,
versalização totalizante começa a desconstruir-se a si mesma, a sempre o real se deciji-a por ângulos cada vez mais diferentes e a
complexidade das contradições que existem dentro das conven- própria comunicação é a multicriatividade, pelo que é essencial:
ções [. ..] começam a ficar visíveis [. ..] essa afirmação da identi- o homem.
(1981, p. 33)
dade por meio da diferença e da especificidade é uma constante
do pensamento pós-moderno. Assim, ao mesmo tempo, exalta-se o múltiplo e reafirma-se que
(Idem, p. 86) pensar a diferença, tentando construí-la de cet1o modo pelo contrário disso,
314 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 315

a desconstmção, é decifrar o real pelo caminho que leva aos vários enclaves
da identidade plural. Chega-se, por tal via, à diferença. Esses talvez sejam
alguns dos motivos pelos quais Manuel Rui anuncie, na comunicação apre-
sentada em 1990 no 2° Congresso da Abralic, cujo tema era Literatura e
Memória Cultural que "num espaço onde língua se inscreveu também no
arsenal da opressão do outro e se reabilitou para mim, por sua viagem trans-
formatória, logo em seu processo de génese, sempre a literatura tem algo a
haver com margem" (1991, p. 542). ENTRE OBEDIÊNCIA
Dessa margem, não sei se pós-moderna ou pós-colonialmente,
falamos. Ela não permite mais que se exalte a heroic(a)idade, já que não
E REBELIÃO!
há lugar para os grandes relatos onde os mitos se edificaram. Somos le-
vados aqui a pensar a margem como espaço onde se abriga o precário e
onde, ao mesmo tempo, se pode matar, como faziam e ainda fazem os
nómadas do deserto africano, a sede da própria alteridade, ao realizarem A necessidade de se criarem instrumentos críticos para
a transumância do gado, o que metaforicamente pode representar a neces- com eles se recortar o universo literário africano, levando-se em conta,
sidade de preservação da cultura. Talvez por aceitar a urgência do por um lado, a especificidade das culturas locais e, por outro, todo um
precário, eu própria não tenha, até agora, resposta para a indagação pro- repertório já estabelecido e legitimado pelo ocidente branco-europeu, é
posta no título, isto é, se há ou não pós-modernismo nas literaturas uma das obsessões fantasmáticas dos estudiosos brasileiros dessas litera-
africanas ou se dele se pode falar. Só sei pensar que, se há margem é turas. Tal necessidade, que se acompanha da certeza que tem o crítico de
porque há rio. Sendo assim, vejo-me na contingência de finalizar a minha ocupar um lugar entre duas formas culturais distintas de percepção do
travessia, embora suspensivamente, pensando que a escolha da categoria mundo que se reflecte na, e em certo sentido embasa a, produção artísti-
pós-colonialismo nos traz respostas e a do pós-modernismo obriga-nos a co-verbal, levou-me a buscar, como mote deste ensaio-quase-esboço, uma
indagações. Sem querer ou poder escolher, com mais dúvidas do que instigante reflexão de Silviano Santiago, a propósito da literatura da
certezas, pergunto com Manuel Rui: América Latina. Resgato-a na íntegra, sobretudo porque nela busquei a
proposta do meu próprio título:
Quem é do rio? Quem nasceu por causa da margem?
Quem é da margem? Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre
Quem faz voar o rio e nunca por renúncia ao ódio não o fez secar? a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebe-
Os da margem. lião, entre a assimilação e a expressão - ali, nesse lugar apa-
rentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali,
Assim mesmo, em aberto, e sem qualquer resposta conclusiva. se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana.
(1977, p. 28)

A que um dia já acrescentei: e o das literaturas africanas também


(1995, p. 13). Hoje a isso aduzo um terceiro termo: e o da crítica brasileira
sobre tais literaturas também.

1. Este texto foi originalmente publicado em "Navegar é preciso, viver (escritos


para Silviano Santiago)". Organização de MIRANDA, Wander W. e SOUZA,
Eneida Maria, Belo Horizonte/Salvador/Niterói, EDUFMG, EDUFBA e EdUFF,
1997, pp. 263-274.
316 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 317

Sabemos que, no seu afã desterritorializante, as produções do discurso latino-americano", de onde foi tirada a citação anterior de
literárias africanas vão criando meios de alçarem voo rumo à diferença. Silviano, ou "Literatura e subdesenvolvimento" e/ou "Literatura de dois
Busca-se, muitas vezes, o velho de milénios para, com ele, se tentar inter- gumes", ambos de Candido (1987), dentre outros, desenvolviam um
romper a cadeia de transmissão dos padrões estéticos branco-europeus. O aparato teórico facilmente extensível ao universo literário africano, apesar
ancestral faz-se, assim, um outro começo, aqui usando algumas das insti- de os críticos se debruçarem sobre o Brasil e/ou a América Latina.
gantes postulações defendidas por Octavio Paz em Os filhos do barro Questões como o imperialismo cultural, o desmantelamento da(s) cul-
(1984) e já por mim trabalhadas em vários ensaios. Para acompanhar esse tura(s) pelo colonizador, a superação da dependência ou a recíproca
afã desterritorializante, a crítica deve também ela submeter-se a um ritual assimilação das culturas constituíam pontos de alavancagem para se per-
onde o velho, aqui tomado como sinónimo de estabelecido, e o novo seguir a formação das literaturas africanas e o enfrentamento das forças
terçam suas armas, o que, convenhamos, não é muito fácil, sobretudo que nelas se dava.
quando se pensa que o canónico ainda tem uma força surpreendente no Outra voz àquelas somadas, a de Frantz Fanon, principalmente
espaço académico brasileiro e que, a exemplo do preconizado por Bloom, em Os condenados da terra (1961), fazia aumentar o nível da rebeldia
os que ousam discuti-lo são taxados de ressentidos (1995, várias páginas). crítica, ao mesmo tempo que a necessidade de transformação se ia impon-
Um breve olhar para um passado não tão distante assim - fins do como um facto inadiável que se originava na escrita literária e, no fim
dos anos 60 e anos 70- ajuda-nos a lembrar as reacções que os primeiros da linha de produção e montagem, atingia o cerne da própria recepção. A
pesquisadores dessas literaturas encontraram no seu caminho. A mais força irruptora do desejo de desfazer as amarras da assimilação e do
comum era a acusação de panfletarismo levantada contra os textos mesmo, que se manifestava sem qualquer mascaramento nas dobras dos
africanos de cuja literariedade abertamente se desconfiava. Tal dava-se a textos africanos, contaminava também o leitor brasileiro que encontrava
partir do próprio facto de que se faziam por demais evidentes os con- em Fanon algumas respostas demandadas pela sua própria urgência. A
trafortes contra-ideológicos em que tais produções se sustentavam. Os descolonização ou o desejo dela era a palavra de ordem que parecia ani-
especialistas emergentes, por sua vez, eram acusados de usarem os textos mar os textos críticos então produzidos, se por descolonização enten-
como pretextos para a discussão do próprio projecto político-ide- demos "o encontro de duas forças congenitamente antagónicas", isto é, se
ológico brasileiro, que oficialmente se alimentava nos soturnos porões da a encaramos como um processo que, ainda segundo Fanon,
ditadura militar. A intervenção crítica era vista como um gesto que privi-
legiava o ideológico em detrimento do estético. Encarada como modismo [ .. .] modifica jimdamentalmente o se1; transforma espectadores
transitório, tal intervenção significava, para os estamentos de poder, cujos sobrecarregados de inessencialidade em actores privilegiados,
tentáculos se estendiam ao universo académico, uma espécie de nuvem colhidos de modo quase grandioso pela roda-viva da história.
também passageira que logo logo se desfaria no céu azul da ordem Introduz no ser um ritmo próprio, transmitido por homens novos,
canónica. Assim, estudar ou ler criticamente as literaturas africanas era uma nova linguagem, uma nova humanidade.
em certa medida, participar do jogo dos excluídos da história (PERROT,' (1979, p. 26)
1988). A rebelião, desse modo, começava a dar os seus primeiros e inci-
pientes passos e tensamente enfrentava a obediência que até então reina- Principalmente, a busca dessa nova linguagem transfonna-se na
va absoluta, desestabilizando-a, sem anulá-la de todo. marca da nossa caminhada nos anos 80. Cada vez mais se intensificava a
No cenário crítico brasileiro, nos anos 80 principalmente, dois ideia de que o lugar de fala crítica por nós ocupado era mais um entrelugar
autores e as suas obras fizeram-se parcerias indispensáveis para que a onde diferentes correlações de força começavam a articular-se. Para isso,
caminhada ao encontro da desobediência chegasse, pelo menos nesse era imprescindível ouvir uma outra voz crítica, a africana, e o seu clamor
momento, a melhor termo. Trata-se do próprio Silviano Santiago e de pela identidade que ultrapassava a ideia de uma impossível volta às origens.
Antonio Candido. Alguns dos seus ensaios, ao discutirem questões como Era necessário poder pensar a força da palavra na cosmogonia africana e,
o subdesenvolvimento, a dependência e a própria ideia de tradição, fize- nessa espécie de círculo mágico, a questão dela subsidiária, ou seja, a
ram-se leituras indispensáveis para a construção do arcabouço teórico importância que nessas culturas se atribuía à oralidade, vista como um
sobre as literaturas africanas no nosso país. Textos como "O entre-lugar "texto total". Tal texto- no dizer de Manuel Rui, um dos arautos de uma
318 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 319

outra ordem fundada na subversão estética dos padrões branco-europeus - turais dos negros brasileiros. Sentíamo-nos como se atássemos velhos
era "texto porque havia gesto. Texto porque havia dança. Texto porque fios, assim como faziam as nossas avós com os colares de missangas ou
havia ritual. Texto falado ouvido visto" (1985). Esta soldagem dos elemen- mesmo de lágrimas-de-nossa-senhora. Percebíamos, por outro lado, que
tos frasais, no caso formalmente representada pelos três últimos adjectivos a nossa obediência a certos padrões críticos do ocidente hegemónico se
não separados por vírgulas, passou a metaforizar aquilo que não só os pro- abalava e que era chegada a hora de procurar outros caminhos, ouvir
dutores textuais africanos, mas nós, os seus distantes leitores, queríamos outras vozes, enfim, desconstruir o nosso próprio repertório. Era como
encontrar: o sentido da diferença entre o texto tal como era representado se a rebelião se pusesse em marcha, o que não nos assustava, mas, pelo
nos padrões estéticos da ocidentalidade e o africano. contrário, nos tornava corajosos e felizes.
Descolonizar a palavra africana fazia-se, em cetio sentido, a Por outro lado, também intuíamos que, não sendo africanos, tí-
questão de ordem de ensaios como os que Manuel Rui ou Makhily nhamos de procurar relactivizar bastante. A obediência anterior era então
Gassama (1978), respectivamente angolano e senegalês, doavam para nós, reconvocada. Possujamos a inabalável convicção de que só nos era dado
absolu~a~ente entregues ao desejo de (re)conhecer o "ritmo próprio, ver esse outro panorama das nossas próprias janelas culturais e, portanto,
transmlttdo por homens novos", repetindo Fanon. Entendíamos que os de fora, pouco importando a cor da nossa pele. Fazíamos o jogo da
produtores africanos almejavam ser esses homens novos naquele momen- inclusão vs. exclusão que, de resto, parece marcar a actividade crítica do
to histórico, quando as ex-colônias pmiuguesas, principal centro do meu estudioso das literaturas africanas que fala a partir do Brasil. A isso
interesse, por exemplo, depois de lutas cruentas, conseguiram, por fim, voltarei adiante. Por ora, quero reiterar a impmiância que foi poder trançar
entoar a melodia das independências. Descascar a palavra, qual fruto, era uma nova rede de conhecimentos com os fios que representavam as vozes
o convite feito pelos textos que aqui nos chegavam pelas vozes daqueles críticas de Candido, Silviano, Fanon, Rui ou Gassama, por exemplo.
"actores privilegiados", que demonstravam estar empenhados, como Assim o fazendo, a memória, feita linguagem, talvez consiga
sujeitos que eram, em construir não apenas as suas novas literaturas, mas recuperar o que para mim, de forma particular, que aposto na eficácia
as suas próprias nações. A dimensão dessa palavra africana surgia inteira simbólica da margem, se fazia um deslumbramento, quase ousaria dizer,
em obras, por exemplo, como Kuma, de Makhily Gassama, já referido, ou uma espécie de cerimônia da iniciação. Fiquei "mais velha", ao deparar-
como Roman africain et traditions (1982), de Mohamadou Kane, para nos me com a possibilidade concreta de contribuir para que se desvestissem
atennos apenas a dois ensaios críticos, sem cair no gozo da enumeração. os véus que por tanto tempo encobriram o corpo das manifestações cul-
Por tais obras, ouvíamos, entre surpresos e maravilhados, como se signi- turais negro-africanas, principalmente a partir do facto de ser a oralidade
ficassem sons de búzios, que a dominante dessas culturas. Reconhecendo o entrelugar onde letra e voz
se encontravam, pude ver como se produzia, nessas literaturas, um insti-
La paro/e, on en convient, est ainsi l'objet d'un véritable culte; le gante efeito de passa-palavra, aqui parodiando Manuel Rui. Tal efeito,
Négro-ajdcain fui confere un pouvoir mystique souvent méconnu fazia-se uma solução artística surpreendente, no moderno quadro das lite-
de la critique occidentale. Il est hasardeux de vouloir comprendre raturas africanas de língua portuguesa. Com justeza, o mesmo Manuel Rui
et critiquer sainement la poésie nêgre - qu 'elle soit tradition- expõe como se dá a reapropriação fecundante, pela escrita, dessa fala
-nelle ou qu 'elle soit de langue fi·ançaise - si l 'on ignore que ancestral que, embora sem se eternizar pelo registo gráfico, se encastelou
parle1; pour le Négro-africain, c 'est, à tort ou à raison, "accou- na memóda africana e aí persistiu por séculos, até ressurgir transfigurada
cher" du verbe, c'est !e mettre au monde à la maniêre d 'un être nas malhas do texto:
vivant auquel on prodigue les soins les plus attentifS.
(GASSAMA, 1978, p. 54) Há coisas que recebo da oratura do nómada que me servem a
escrita, enriquecendo-a. Afinal o poema é maior quando repito
A longa citação justifica-se pelo próprio facto de querermos um verso numa cadência de gado transumante ou quando lhe
trazer, para a cena deste texto, a alegre sensação de redescoberta que o introduzo o ritmo de galho partido de uma planta mínima ou
modo de conceber a palavra africana causava, sobretudo a alguns de quando faço da miragem mais água que hei de tet:
nós, que tinham sido criados no seio do universo das manifestações cul- (1981, p. 30)
320 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 321

Municiados- já agora de volta ao plural que esta reflexão requer do Senegal, Moçambique, Nigéria, Angola, Camarões, Congo, etc., ou
- por esses dizeres que desconstruíam o edificio do logocentrismo literá- mesmo das antigas metrópoles, mas escritos por africanos. Essa perspec-
rio, chegámos aos fins dos anos 80 e à metade da década ora vivida. Tal tiva, aberta nos dez últimos anos, permite ao crítico brasileiro encontrar
edificio foi-se cada vez mais desconstruindo, para se reconstruir sobre ou- algumas respostas que lhe escapavam até então. Vale aqui abrir um parên-
tros alicerces menos rígidos e fechados. Textos como os de Tzvetan tesis para notar que somos leitores estrangeiros dessa produção. Assim, é
Todorov (1989 e 1993), Linda Hutcheon (1991) e principalmente os de preciso reiterar que há um fosso aberto entre um discurso que daqui se
Edward Said (1990 e 1995) e Homi Bhabha (1992 e 1995) tomaram pos- elabora sobre a África e outro que se constrói a partir da África, ou seja,
sível o mergulho em direcção ao mar profundo da diferença. De forma espe- se alicerça nos pilares da própria experiência cultural do sujeito da enun-
cial, Bhabha, ao reler Fanon, com a força das redescobe1ias, unia os fios do ciação. É certo que a busca da diferença constitui o ponto onde as duas
nosso início, nos anos 70, aos do novelo que se desemolava, para com tais rectas se interseccionam, o que ainda não basta, pois a percepção do
fios tecermos o nosso novo tapete de significações. Ele dava-nos a certeza mundo e a dos seus valores afastam-se, em certa medida.
de que havíamos começado a orquestrar o nosso novo discurso crítico na De um modo ou de outro, a fala crítica africana vem repondo algu-
clave ce1ia e dentro dos acordes hannónicos exigidos. O seu texto pôde mas categorias nos seus lugares, o que é um facto muito promissor. A par-
responder, pois, a algumas críticas que no passado nos haviam sido feitas e tir dessa constatação, é possível traçar as linhas do desenho de um discur-
tinham como mote a radicalidade do discurso de Fanon. so literário em-diferença onde o exótico, o a-menos, ou mesmo o chamado
É bom que se constate, porém, que mesmo as vozes em certo sen- pensamento mágico, etc., vão cedendo espaço para a discussão sobre o
tido legitimadoras de Said, Todorov ou Bhabha não contribuíram para a proprium de uma cultura que se afasta bastante das mediações simbólicas
plena inclusão dos estudiosos brasileiros das literaturas africanas no espaço do branco ocidente hegemónico. Ganha um relevo especial, no universo
hegemónico ocupado por ce1ia crítica nacional. Como atletas de um jogo de crítico africano onde a memória exerce um papel preponderante, a questão
silenciamento, alguns continuavam a excluir as manifestações literárias da tradição e o sentido de ruptura que marca uma boa parte dessa produção
africanas, lembrando o "atraso" desses novos países do ponto de vista tec- expressa em língua europeia, na esmagadora maioria das vezes. Um outro
nológico e cultural. Esqueciam e esquecem que o "caminho da reflexão ponto levantado diz respeito a uma segunda questão, ou seja, a da existên-
sobre o desenvolvimento conduz, no terreno da cultura, ao da integração cia, ou não, de uma unidade das manifestações literárias negro-afi·icanas
transnacional" (CANDIDO, 1987, p. 155), para mim sempre via de sentido que nos permitisse singularizadamente referirmo-nos a uma "literatura
duplo. Desde há muito nos acostumámos a ver que as literaturas africanas africana". A pergunta proposta por Geoges Ngal, em Création et rupture en
dão saltos originalíssimos. Luandino Vieira, Pepetela e Mia Couto são disso littérature aji-icaine (1994), parece servir como uma forma de sustenção
óptimos exemplos, para só ficarmos na contemporaneidade. dos pressupostos, tal como os descrevem, por exemplo, Tidjani Serpos,
Vale ainda ressaltar que, mesmo ensaios-âncora como os de Said Eno Belinga, Ngandu Nkashama, dentre tantos outros:
ou Bhabha - ensaios pelos quais se tematizam o imperialismo, o apaga-
mento, a busca da nação como está escrita, as suas margens, etc., tão s 'agit-il d 'inviter la littérature africaine à son auto-réjlexion au
importantes para reforçar o olhar desconstrutor sobre os objectos do co- moyen d 'une entreprise de description theórique - l 'acte critique
nhecimento literário - não se debruçm~ sobre a África, que comparece rencontrant l'acte créateur de l 'écrivain -: interrogations theó-
como atalho, estrada secundária. Diz-se nas fissuras, nas bermas, no riques, théories, modeles interprétatifs, problématiques d 'évalua-
extensível. Inscreve-se como latência, mas pouco em potência. Nos textos tion, présupositions théoriques et méthodologiques, outillages
~esses autores, como em vários outros que pensam a descontrução, a conceptuels développés au sein des systemes ou du systeme cul-
Africa, repito, fica restrita a pequenos becos do saber, às suas ruas trans- turel africains?
versais, quase sempre em pleno coração da geografia do silêncio. (p. 103)
Essa incómoda situação vem sendo revertida aos poucos pela
construção de um edificio crítico orientado pelo projecto arquitectónico Noutros termos, poder-se-ia contrapor uma tendência "universa-
do próprio imaginário africano, principalmente pelos textos produzidos lizante" da crítica literária, estruturada a partir de discursos elaborados por
em língua fi·ancesa e/ou pmiuguesa e/ou inglesa, oriundos, por exemplo, pesquisadores de fora da África e não só, a uma outra que encontra em
322 Laura Cavalcante Padilha Novos pactos, outras ficções 323

Makhouta-Mboukou um dos seus mms ferrenhos defensores. Em Talvez seja a busca dessa heterodoxia que marque o lugar da críti-
Introduction à l 'étude du romannégro-aji~icain de langue fi~ançaise, assim ca não africana (e não apenas o da brasileira), cujo objecto são as litera-
ele se expressa: "Je ne fera i pas appel aux grands courants de la critique turas da África como um todo. Apraz-nos a "subversão intelectual" de que
occidentale. Y recourir serait contraíre à la coutume négro-afi·icaine ( ...). falam os dois autores supra-citados, já que acreditamos, e muito, nos va-
La littérature négro-afi·icaine est une maison fermée. On ne peut invento- lores do outro, ou seja, em sua diferença. Tais valores, na estrada de dois
rier ses richesses que de l 'intérieur" (1980, pp. 172-173). sentidos de todo e qualquer conhecimento, nos ajudam a pensar a nós
De novo o crítico brasileiro se encontra envolvido pelas regras do mesmos e ao mundo globalizado onde vivemos. Isso não nos impede, pelo
jogo inclusão vs. exclusão. Ou seja, sente-se, uma vez mais, excluído, a contrário, nos possibilita que, pela linguagem figurativa, possamos estar
partir da consciência que os estudiosos africanos demonstram ter da abso- noutra parte e assim encararmos a grandeza que nos cerca, aceitando,
luta especificidade das suas culturas. Discordando, embora, desse pois, o convite de Bloom. Não vejo em tal gesto ressentimento, mas um
fechamento total preconizado por Makouta-Mboukou, devo reconhecer a modo de ampliação do nosso próprio saber sobre os homens, as coisas,
força da diferença daquelas mesmas culturas e a necessidade de suplemen- seus valores, enfim, sobre a diferença que não nos exclui, mas, ao invés,
tação do conhecimento teórico-crítico desenvolvido por todo e qualquer nos inclui no todo da humanidade. Talvez a nossa utopia esteja em que-
estudioso delas. Isso não implica, porém, que não veja na posição do rermos a "nova humanidade" de que fala Fanon.
ensaísta congolês a mesma intransigência e/ou preconceito que marca o Por tudo isso, volto ao início do texto, reiterando o entrelugar dos
radicalismo canónico, ao rasurar tudo que não se apoia, como diz Bloom, estudos literários africanos no Brasil, lugar de clandestinidade, onde se dá
nas "qualidades" básicas que tomam, por exemplo, "vinte e seis escritores o ritual antropófago de que fala Silviano Santiago. Só a partir da cons-
[ ... ]obrigatórios em nossa cultura" (1995, p. 11). A questão, a meu juízo, ciência desse lugar é que nos podemos sentir mais livres e soltos para par-
é estender essa "obrigatoriedade", pluralizando as culturas, o que não sig- ticipar, pelo imaginário, da festa literária africana, sabendo, com Edward
nifica mergulhar em perigosos essencialismos que hoje parecem marcar Said, que precisamos estar atentíssimos para não confundir a busca da
uma boa patie da crítica africana. Encontrar o justo lugar onde o pêndulo diferença com essencialismo. Nessa nossa incómoda posição de incluí-
não se incline para um dos lados tem sido, como disse no princípio deste dos/excluídos em vários sentidos, seja pela ordem canónica ocidental, seja
texto, uma das obsessões fantasmáticas do estudioso brasileiro das litera- pela tentativa de oclusão de certa crítica africana, devemos repetir com o
turas africanas, no meu caso específico, de língua portuguesa. mesmo Said, agora e sempre que "O problema com as teorias essencialis-
Claro está que a nossa opção nos faria membros participantes da tas e exclusivistas, ou com as barreiras e os lados, é que elas dão origem
"Escola do Ressentimento", assim cunhada pelo mesmo Bloom. Não con- a polarizações que mais absolvem e perdoam a ignorância e a demagogia
cordo que a vontade de lermos os escritores africanos, incluindo-os no do que facilitam o conhecimento" (1995, p. 65).
nosso espaço académico e cultural, signifique admitir "que as opções Talvez assim possamos continuar a nossa caminhada por estradas
estéticas são máscaras para superdeterminismos sociais e políticos", ainda deliciosamente marginais do conhecimento crítico. Desse modo, buscando
Bloom, p. 499. Muito pelo contrário. Por isso talvez me seduza mais a transformar em voz o silêncio de séculos de ocultação do corpo cultural
postulação de Jara e Talens, ao afinnarem que negro, vamos tentando contribuir para que a África possa ser ouvida/lida
no espaço cultural brasileiro. Se o conseguirmos, acharemos que foi bom.
Profesores y críticos, guardianes oficiales deZ orden establecido, Apesar de tudo.
nos hemos visto por primera vez enfi~entados a la tarea de una
subversión intelectual que no es, por cierto, la de negar los tex-
tos y los nombres presentes en el corpus, sino la de reconstruir
ese corpus, desde otra concepción de la realidad, con otros valo-
res. [ ..]. Se impone ya, poco a poco, con la opacidad misma deZ
cuerpo, una heterodoxía, un registro de valores fundados en el
respeto deZ otro, en la diferencia.
(1987, p. 12)
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TOUMSON, Roger. Trais Calibans. Habana, Casa de las Américas, [19- -].
TRONI, Alfredo. Nga Muturi. Lisboa, Edições 70, 1973. Textos Breves.
VELOSO, Caetano. Sampa.
VENTURA, Reis. Cajilso. Porto, Tipografia do Carvalhido, 1957. ÍNDICE
VIEIRA, José Luandino. João Vêncio. Os seus amores. Lisboa, Edições 70, 1987.
Luuanda. Estórias. São Paulo, Ática, 1982. Autores Africanos, I O.
No antigamente, na vida. 3" ed. Lisboa, Edições 70, 1977.
Nós, os do Makulusu. 4a ed. Lisboa, Edições 70, 1985.
A vida verdadeira de Domingos Xavie1: São Paulo, Ática, Autores Africanos, 1.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico. 2a ed. revisada. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
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YEMONJÁ, Mãe Beata. Caroço de dendê. A sabedoria dos terreiros. Rio de Janeiro,
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Apresentação .. .. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. .. .. . . . . . . . . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . .. . 7
Prefácio .......................................................................................................................... 9

DOBRAS NARRATIVAS

Faca amolada: tradição e ruptura em Boaventura Cardoso ............................................... 17


Ficção angolana pós-75- processos e caminhos .............................................................. 24
A semântica da diferença ................................................................................................. 32
Jogo de cabra cega: ficção angolana e desterritorialização ............................................... 41
Sinos e lembranças- ecos de dois romances angolanos finisseculares .......................... 55
O sapalalo ou uma casa entre dois mundos em Benguela ................................................. 65
Nas dobras dos panos- feminino e textualidade
em duas narrativas fundacipnais angolanas ...................................................................... 76
Olhares do exílio (a expatriação de negros e brancos
na cena colonial africana) ................................................................................................. 86
Partes de África: a sedução de um cademo de mapas ..................................................... 95
Por terras de África com Hei der Macedo e Mia Couto ................................................... 104
A ilustre casa e as lanças metidas em África ................................................................... 120
As casas queirosianas e seu bordado de espantos ........................................................... 132
Travessias do olhar ......................................................................................................... 141
FIANDEIRAS DE PALAVRAS

A diferença interroga o cânone .. ... .. .. .. ... ...... .. .. ... .. ... .. .. ... .. .. .. .. ... .. ........ .... .. .. .. ... ... . . . . . .. .. 151
Silêncios rompidos ....................................................................................................... 157 NOVO IMBONDEIRO
A encenação do corpo por três poetas africanas ............................................................ 173 Editores
Paula Tavares e a semeadura da palavra .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . . .. .. .. .. 192
Travessa dos Inglesinhos, 52
Corpo e terra: um entrecruzamento simbólico
1200-223 Lisboa
em falas poéticas de mulheres africanas ........................................ ,............................... 206
E mail: imbondeiro.editores@sapo.pt
Florbela Espanca e Alda Lara- dois modos de estar no feminino ................................. 260

DIÁLOGOS, RECONVERSÕES, CONTAMINAÇÕES


O arco tenso de uma literatura ..................................................................................... 229
Reconversões ................................................................... 237
Velhas palavras e idades .............................................................................................. 247
PRÓXIMAS EDIÇÕES
De narcisos e espelhos ................................................................................................. 254
Por traços e gestos ....................................................................................................... 264
Ensaios, como poemas ................................................................................................. 275
Literatura angolana e diálogo inter-artístico ................................................................... 282 CAMINHOS E FIGURAS DA FILOSOFIA DO DIREITO
Pepetela e a sedução da montagem cinematográfica: breves recortes ............................. 290 LUSO-BRASILEIRA
de António Braz Teixeira
Literaturas africanas e pós-modernismo: uma indagação ............................................... 302 Co!. Estudos e Documentos
Entre obediência e rebelião .......................................................................................... 315
Referências ..................................................................................................................... 325

ILHAS RIQlJ.EZA,
ILHAS MISERIA
de Laura Areias
Co!. Estudos e Documentos

Sk:óÃ?~
O CAFÉ CENTAURO
CRÓNICA PROVINCIANA
de Norberto Ávila
Co!. Textos de Teatro

Sk:óÃ?~
A FILHA DO CAPITÃO
de Alexander Serguéievitch Púchkine
Trad. do russo de Manuel de Seabra
Co!. Biblioteca Essencial

Sk:óÃ?~
MONÇÃO
de Vimala Devi
Co!. Biblioteca Essencial

A MARCA NA AREIA
de Lidio Mosca Bustamante
Co!. Autores Estrangeiros

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