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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

Lucilda Cavalcante Lourenço

“Quando não é a guerra, é uzomi”: facções e a cena dos reggaes de


praça na Costa Oeste de Fortaleza/CE.

ORIENTADORA:
PROF. DRA. Ceres Gomes Víctora

Fevereiro de 2022
Porto Alegre
1

Lucilda Cavalcante Lourenço

“Quando não é a guerra, é uzomi”: facções e a cena dos reggaes de


praça na Costa Oeste de Fortaleza/CE.

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
como parte dos requisitos para a obtenção do
título de mestra em Antropologia Social.
Orientadora: Dra. Ceres Gomes Víctora

Fevereiro de 2022
Porto Alegre
2

[Ficha Catalográfica]
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Lucilda Cavalcante Lourenço

“Quando não é a guerra, é uzomi”: facções e a cena dos reggaes de


praça na Costa Oeste de Fortaleza/CE.

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
como parte dos requisitos para a obtenção do
título de mestra em Antropologia Social.
Orientadora: Dra. Ceres Gomes Víctora

Aprovada em: ____/__________/______

Banca Examinadora:

_____________________________________________________________
Profa. Dra. Ceres Gomes Víctora (PPGAS/UFRGS)

_____________________________________________________________
Dr. Cauê Machado (IFCH/UFRGS)

_____________________________________________________________
Prof. Dr. José Carlos dos Anjos (IFCH/UFGRS)

_____________________________________________________________
Dr. Anderson de Jesus Costa (PPGCS/UFBA)
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às encruzilhadas
aos trilhos
às palhas
às matas
ao vento
ao pôr do sol
e à água do mar
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AGRADECIMENTOS

Laroye Exu, grande mentor e orí-entador deste trabalho. Patakorí Ogum, meu santo de casa
que faz milagre, por abrir os caminhos e vencer as demandas por mim. Atotô meu pai Omolu,
o andarilho, por me proteger de todo mal e cuidar das minhas feridas durante este percurso.
Oyá, minha orixá odu, grata pela força. Odoyá que me guarda em seus braços. Ao Ilê Àṣẹ
Ògún Oṣun, minha casa no aiyê. A benção meu pai, Vladimir Mathias de Ogum, quem me
abraçou quando eu sucumbi e me mostrou que sou digna de cuidado. Motumbá meus mais
velhos.

a minha bisavó (in memorian), Ciça, por ter sobrevivido à Casa Grande e dar início a esta
história.

à minha mãe que guardou um CD pirata de Alpha Blondy “Massada” e me apresentou a


música reggae, junto a ela, toda minha família que se orgulha do meu trabalho mesmo
achando que “é que nem cantiga de grilo, nunca acaba”.

às Marias:

Maria Lucilda (in memorian), minha avó materna, uma índia preta que me deu amor e nome,
que trabalhou uma vida como empregada doméstica para o padre-sociólogo, Charles Beylier,
vulgo, padre carlos, ex professor do departamento de Ciências Sociais da UFC, quem ajudou a
fundar o antigo programa de pós graduação em Sociologia do Desenvolvimento e carregou
minha mãe quando garota para as passeatas da Pastoral Operária. Mesmo sendo “quase da
família”, minha vó, minha mãe, minhas tias e tios nunca souberam o que é ciências sociais até
eu arrombar a porta. Dona Neguinha teria orgulho de mim.

Maria Lourenço, minha avó paterna pela sua graça, sabedoria, leveza, simplicidade e
grandeza, pela senhora como a senhora é. Para honrar sua história de luta e devoção é que sigo
em frente.

Maria Liduina, minha tia, por sempre ter uma história do passado que não me deixa esquecer o
propósito do futuro.

Maria Izabel Accioly por ser minha torre-Sandra e amarradão na torre dá pra ir pro mundo
inteiro. Elisabeth Maria, Elisa, ou melhor Lilica, pelo encontro ancestral do amor e pela
co-elaboração deste trabalho. Maria Aline, por ser uma que vai puxando a outra. Maria Cris
pela colaboração carinhosa e pela honra do desenho que ilustra esta dissertação. Ellen, que não
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é Maria mas deixou marca no meu peito.

àe zwanga nyack, minhe irmane, de sangue suor e santo, por ser areia de praia que segura
desde a ressaca do mar até a maré baixa, estando sempre aqui para receber com ternura essas
energias.

aos nortistas e nordestinos em diáspora, Bruno, Tati, Alef, Mariah, Elis e Cleiton, juntos
constituímos uma família na república. Em especial, Bruno pela irmandade, ao Alef pela
Fortaleza e Tati pela lamúria de tese que tanto me fez aprender sobre saúde, ciência e raça,
você me ensinou a amar a Bahia antes mesmo de conhecê-la.

ao professor Pablo Quintero que acolheu alguns desses retirantes no PPGAS e sempre foi por
nós nas lutas acadêmicas diárias. Obrigada pela reviravolta teórica que causou na disciplina de
teoria antropológica I e por ofertar o tópico antropologia e colonialidade.

à panelinha da turma de mestrado 2019, Camila, Júlia e Joanna, à vocês meu copo, meu
poema e meu porto alegre.

ao Coletivo Barramar Sound System, na pessoa de Kalil Gomes, e ao PiraRoots por


proporcionar o espaço de compartilhamento da energia e conexão do reggae de praça. Assim
como a todos os amigos que a costa oeste me deu: Dyovanna, Kaleo, Nair, Caio, Cainan,
Durango, Big Léo, Catatau, Cel, Avemarianam, Maria Btt, Lucas, Leandro, Karla e Karliany e
aos demais vetins e vetinhas que me acompanharam nesse processo. Em especial, Bill, Kmila,
Flora, BK, Blue e Ret.

à Carll Serena que foi parceira de vida e de tema de pesquisa durante um bom tempo

a Ulysses Lion (in memorian), quem primeiro me apresentou Bob Marley e Facção Central
mas virou saudades no ano de 2021.

à Raquel Avoante, uma passarinha que pousou no meu quintal, bebericou meu café, beliscou
minha bolacha e disse que eu estava à beira do abismo, mas como somos aves de rapina, seria
uma ótima oportunidade de pleno vôo. eu amo ser tela pra tua arte.

à minha orientadora Ceres Gomes Víctora, pelo acolhimento no programa e na cidade a ponto
de me confiar sua casa durante o terceiro semestre do mestrado, justo nos primeiros meses da
pandemia de covid-19. pela orientação atenta e cuidadosa, como gosta de dizer, do tipo de
orientadora que é “sopro no cangote”, obrigada por estar e ser presente, além do curso de
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sofrimento social e violência que tanto agregou a este trabalho.

às professoras Chica e Ana por oferecerem a disciplina de oficina de etnografia no PPGAS,


este trabalho não teria o mesmo corpo se não fossem as disciplinas que tivemos no primeiro
ano de mestrado.

à banca, composta por José Carlos dos Anjos, Anderson de Jesus Costa e Cauê Machado, que
além de exímios pesquisadores, são excelentes professores e pessoas cuja trajetória teórica e
política eu tenho profunda admiração. Além de me honrarem com a presença e primeira leitura
do texto pós parto, também foram extremamente compreensivos com as minhas condições
emergenciais de prazos e datas.

à CAPES, pelo subsídio desta pesquisa. Sem a bolsa este trabalho jamais poderia ser realizado.

ao Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS) e o ARES, Grupo de


Estudos em Antropologia, Raça, Etnicidade e Saúde, pelas partilhas, pelo debate e pelo
acolhimento. Um abraço especial em Cauê, Daniela, Ju e Matheus.

ao coletivo PAVI que promove oficinas sobre inventários fotográficos e preservação digital de
coleções antropológicas na Paraíba e no Rio Grande do Sul, na qual tive o privilégio de
participar.

ao Coletivo de Estudantes Negres do PPGAS, o Negra Coletividade, por ser quilombo e porto
para mim e tantos outros estudantes negres que adentram à pós-graduação.

à Comissão de Ações Afirmativas (CAF) do PPGAS/UFRGS, que trabalhei como


representante discente por longos períodos desta caminhada.

aos membros do GT sobre Racismo Institucional do PPGAS/UFRGS pelo trabalho coletivo de


discussão, debate, pesquisa e diagnóstico. Foi uma experiência honrosa ter sido integrante
deste espaço.

Ao Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio


Grande do Sul.

à Aline Moura que é uma mãezona, pelas escutas e pela sapiência digna de quem veio antes e
tem muito a ensinar para os mais novos, junto a ela, sou grata a seu companheiro, Alonso,
também cearense, que assim como eu e tantos outros, aportou no Rio Grande do Sul e fez
questão de ajudar os que vinham chegando. Aisha Costa, doce como Osun, me encantou com
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a beleza dos pretos do sul. Marina, minha crush da secretaria do programa.

Giovanna e Anderson, a família de vocês é prova viva de que amor preto cura e prospera.
Obrigada por terem me mostrado que a “frieza” e distância do povo do sul não se aplica às
famílias negras, somos calorosos em qualquer lugar deste país.

ao Luiz Fábio, meu (des)orientador da graduação, pelo carinho nesses longos anos de
caminhada e junto dele toda a tropa leviana (Igor, Ítalo, Suiany, Fernanda…) que, ao contrário
do que se diz, ainda existe e persiste. Prometo complicar menos a minha vida, tomando você
como exemplo.

à Brisa por não desistir de mim nem de si mesma e pela amizade de norte a sul desse país.

ao Adalton Marques, que gentilmente me doou a última impressão de seu livro “Crime e
Proceder: um Experimento Antropológico” quando nos encontramos na RAM 2019 em Porto
Alegre.

Amanda Lima, minha psicóloga que me acompanha, entre idas e vindas, desde 2017. Amanda,
muito além de uma profissional terapeuta, foi uma pessoa que me identifiquei bastante e
sempre acreditou no meu trabalho. Sou muito grata por nossos encontros.

ao Henrique, um amigo que me encontrou no finalzinho do processo de escrita dessa


dissertação e me confortou na medida do possível.

à todos os meus afetos por aí espalhados em diversos pontos do mapa, que aceitam a minha
condição de itinerante, que convivem com a saudade e a expectativa da volta, lhes dedico os
trechos de Don L:

a gente não enterra, a gente planta/ a gente não ganha, a gente vence/ a gente não pede, a
gente manda/ a gente não curte, a gente ama/ a gente não quer, a gente tem que/ a gente
merece, a gente banca

Então, se este texto chegou até você e você chegou até aqui é porque a favela venceu.
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A vida é um mistério, pois, ao fim e ao cabo, é feita de laços


Achille Mbembe - A crítica para a razão negra

“Meu Sound System é pros que não desistem”


Baianasystem e RAPadura - Olho de Boi

Bota os fone, baixa os vidro


que é só menino envolvido com a arte
um salve pra quem é cola na grade
Quem criou as grades não sabe a dor da saudade
pros que se encontra privado, paz justiça e liberdade
P.J.L. - Subconsciente em Pauta (s.e.p.085)
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RESUMO
LOURENÇO, Lucilda Cavalcante. “Quando não é a guerra, é uzomi”: facções e a cena dos
reggaes de praça na Costa Oeste de Fortaleza/CE. Dissertação de Mestrado em Antropologia
Social - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. 2022.

Esta etnografia trata de como a história dos bairros da Costa Oeste de Fortaleza e a
faccionalização destes territórios perpassam/atravessam a cena do reggae de praça. Estão
em evidência os trajetos construídos por jovens, moradores de bairros vizinhos mas
dominados por facções rivais, em busca de um espaço de lazer. Busquei entender como as
“leis” das facções são incorporadas por estes jovens e como eles se relacionam com uma
cidade em contexto de guerra. A partir desta pesquisa foi possível entender como essas
juventudes desafiam as leis e constroem espaços de lazer, arte e cultura. O reggae de praça
permitiu acesso ao campo de maneira mais concreta e completa, trazendo questões
próprias mas também uma perspectiva menos fatalista sobre o cotidiano das favelas.

Palavras-chave: guerra; facções; reggae de praça.


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Abstract
LOURENÇO, Lucilda Cavalcante. “When it’s not the war, it’s the men”: criminal groups
and the street reggae scene at Fortaleza’s West Coast. Rio Grande do Sul, 2022. Master’s
thesis in Social Anthropology – Postgraduate Program in Social Anthropology. Federal
University of Rio Grande do Sul. 2022.

This ethnography approaches on how the Fortaleza’s West Coast neighborhoods history
and the factionalization of these territories run through/crosses the street reggae scene.
This work puts in evidence the paths made by young people that live in border
neighborhoods dominated by rival factions, seeking for a leisure space. I’ve tried to
understand how the factions’ “laws” are incorporated by these young men and how they
relate to a city that is permanently in a contexto of war. From this research it was possible
to comprehend how these youths defy the laws and create spaces of leisure, art and
culture. The street reggae scene allowed in-field access in a more concrete and complete
way, bringing up its own questions but also a less fatalist perspective on the favela’s
quotidian.

Key-words: war; factions; street reggae.


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LISTA DE FIGURAS

Capa: “vila do mar.centro.casa” - Maria Cristiellen Rodrigues, 2021


Figura 1 - Mapa da Costa Oeste de Fortaleza………………………...………………………21
Figura 2 - QRCode para Playlist no Youtube………………………...……………………….22
Figura 3 - Reggae é Cultura…………………………………………………………………..27
Figura 4 - Reggae é Política…………………………………………………………………..32
Figura 5 - Mapa do Percurso 070 Cuca Barra/Parangaba…………………………………….36
Figura 6 - Mapa do Percurso de bicicleta Marco Zero/Praça do Ferroviário.………………...45
Figura 7: Mapa Percurso Centro - Vila do Mar.………………………………………………55
Figura 8: Pirambu.……………………………………………………………………………68
Figura 9: Barra do Ceará.…………..…………………………………………………………69
Figura 10: Bandeira da Jamaica………………………………………………………………95
Figura 11: Plaquinhas…………………………………………………………………………96
Figura 12: Dançando Fora da Pista…………………………………………………………...96
Figura 13: Chama pro PiraRoots……………………………………………………………...97
Figura 14: Maria Ruana………………………………………………………………………98
Figura 15: Fotógrafa do Reggae……………………………………………………………..101
Figura 16: “Eu acho é pouco” - Soraia Drummond…………………………………………102
Figura 17: “Bam Bam” - Chaka Demus & Pliers…………………………………………...105
Figura 18: “Cultura Sound System” - Soraia Drummond………………………………….106
Figura 19: "Ghettos of Babylon” - Dezarie…………………………………………………107
Figura 20: “Defend Right” - Dezarie……………………………………………………….108
Figura 21: “Ponme To Eso Pa Lante” - El Chuape…………………………………………108
Figura 22: “Love is a Key” - The Viceroys…………………………………………………109
Figura 23: “We Must Unite” - The Viceroys ………………………………………………110
Figura 24: Praia do Pirambu………………………………………………………………..116
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

BPRaio - Batalhão de Policiamento de Rondas e Ações Intensivas e Ostensivas da Polícia


Militar
CESeC - Centro de Estudos de Segurança e Cidadania
CUCA - Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte
CV - Comando Vermelho
DEM - Partido Democratas
GDE - Guardiões do Estado
LGBTQIAP+ - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Queer, Intersex,
Assexual, Pansexual +
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GLOSSÁRIO

a2: reggae dançado em dupla


bagui: cannabis
baseado: cigarro de maconha
batizar: integrar-se oficialmente à facção
beck: cigarro de maconha
botar queixo: reclamar
broca: refere-se a comida, devido o uso da cannabis abrir o apetite
cabreiragem: medo, desconfiança e estado de alerta
cabreiro: receoso, desconfiado
cabueta: delator
cantos: lugares
caras: rapazes, homens
chegar: se deslocar
cheiro do queijo: lugar afastado, desconhecido/ levar para o cheiro do queijo significa levar
para matar
cobrar o furo: cobrar uma dívida do ponto de vista moral
corre: desempenhar-se a uma função
cruzetagem: falar mal dos outros pelas costas
cumadi: moça
dá ideia: conscientizar; passar a visão
debochando no passinho: reproduzir os passos da dança com excelência admirável
elemento: homem, em geral, objeto de emoções tensas
embaçado: perigoso
espirrado: expulso
faixa de gaza: territórios em disputa entre facções
fechar: pactuar
fortalecer: apoiar
fumar um: fumar maconha
gerar: fluir, fazer acontecer; o ponto alto do baile
kunk: skunk; espécie de cannabis dotada de maior concentração de THC
liberado: autorizado, permitido
mermazária: lugares sob o domínio da mesma facção
miado: em pequena quantidade, miserável.
óleo: polícia
paia: ruim, de baixo valor, desagradável
pé de valsa: indivíduo ou dupla que tem melhor desenvoltura na dança do reggae roots
pedida: ameaçada ou jurada de morte
pedo: a expressão “foi pedo” ou “pedo de lara”, é usada numa situação em que a pessoa saiu
perdendo. Em oposição existe a expressão foi sal ou é sal, que corresponde a algo deu ou vai
dar certo.
pegar maldade: enxergar a atitude do outro com desconfiança, podendo gerar conflitos
pegar a visão: se conscientizar, aprender
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pilantra: morador de bairro cuja predominância é de uma facção rival


pirangagem: na favela, é “agir pelo errado”, envolve todas as subcategorias negativadas na
moralidade; fora da favela é portar traços e símbolos de juventudes faveladas
pista: rua ou avenida de maior circulação onde não há domínio de facção
pivete: termo que já fora uma forma depreciativa de se referir a crianças, mas que
naturalizou-se ganhando novas conotações
rasgar a camisa: desintegrar-se do grupo
rocheda: forma positivada de adjetivar pessoas e coisas, pode ser sinônimo de legal, bonito,
interessante e descolado
se inteirar/ sintera: tomar parte de um assunto; entender
se fazer de doido: fingir desconhecimento ou desentendimento
uzomi: polícia
vetin-vetinha: forma positivada que jovens racializados usam para se auto referir
vestir a camisa: integrar-se ao grupo
zária (dazária/nazária): lugar de pertencimento
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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO…………………………………………………………………………..17

Capítulo 1 - ETNOGRAFIA TRANSEUNTE……………………………………………..23


1.1 Pirangagem……………………………………………………………..…………….32
1.2 Cabreiragem………………………………………………………………………….34
1.3 QuartaRoots……………………………………………………………………….…39
1.4 Metodologia e questões de ética na pesquisa………………………………………...47
1.4.1 Antropologia da dor…………………………………………………………….….48
1.4.2 A figura do pilantra e a construção do outro………………………………………50
1.4.3 Lost City - Iseo & Dodosound: o corpo-campo, sujeito pesquisado(r)....................54

Capítulo 2 - A PAZ E HISTÓRIA DA COSTA OESTE……………………..……………61


2.1 Costa Oeste…………………………………………………………………………..61
2.2. A Paz………………………………………………………………………………...69
2.3 Boca de prata…………………………………………………………………………79
2.4 Eles descem pro beco pra resolver problemas de condomínio………………………82
2.5 Cria de Favela: identidade e pertencimento………………………………………….86

Capítulo 3 - REGGAE DE PRAÇA………………………………………………………...94


3.1 Welcome To Barramar……………………………………………………………...100
3.2 Baile Love: espalhe amor e promova a paz………………………………………...104
3.3. O óleo………………………………………………………………………………110
3.4 O corre………………………………………………………………………………112
3.5 A missão…………………………………………………………………………….114
3.5.1 PiraRoots: edição de aniversário …………………………………………………118
3.5.2 Merma zária……………………………………………………………………….118
3.6 A lei do Silêncio…………………………………………………………………….121
3.7 A última rua da praia………………………………………………………………..123

CONSIDERAÇÕES FINAIS………………………………………………………………125
REFERÊNCIAS……………………………………………………………………………127
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APRESENTAÇÃO

Inicio esta dissertação apresentando o reggae de praça, pois ele é o locus de um


movimento político-cultural de juventudes periféricas que lidam com violências em seu
cotidiano. Depois, aparecerem os problemas de pesquisa que fui encontrando ao longo da
minha trajetória acadêmica, pois acredito que a lida com tais dilemas é que levaram este
trabalho até o que ele é hoje. Antes de chegar no reggae, esta pesquisa e esta pesquisadora
tiveram que enfrentar os temas das dinâmicas criminais após a “queda da pacificação” em
Fortaleza, e como este fenômeno impactou nas mortes de meninas e mulheres no Estado.

Desde o seu princípio, esta foi uma pesquisa ousada. A flecha de Oxóssi, por mais
certeira, atirava em uma caça muito distante que não lhe era possível alcançar a tempo. Como
no Itan, foi necessário Oxóssi fazer as pazes com Ogum para que este lhe abrisse os caminhos
da mata com sua espada e juntos alcançassem o alvo. O reggae, neste trabalho, possui o papel
de Ogum no Itan: traçar caminhos e possibilidades mais firmes para a realização do seu
propósito.

Durante a pesquisa, estive em contato com diversos jovens que são artistas
independentes da periferia, que estão constantemente na luta para fazer seus trabalhos
acontecerem. São fotógrafos, cantores, rappers, profissionais do audiovisual, DJ’s, dançarinos,
dentre outras linguagens artísticas e formas de expressão. Portanto, devo salientar que houve
uma questão sobre apresentá-los devidamente como forma de fazer jus aos seus trabalhos.
Reconheço a vulnerabilidade destes jovens artistas dentro deste cenário de conflito, onde
muitas vezes são impedidos de trabalhar ou divulgar seus trabalhos em lugares dominados
pela facção rival, que tem seu cotidiano de produção artística interpelado pela violência, opto
pelo anonimato, substituindo os seus nomes pelos de artistas consagrados nacionalmente na
cena do rap brasileiro. Os artistas que não fizeram parte da pesquisa como colaboradores
tiveram seus nomes artísticos mantidos. Aqueles artistas que de alguma forma tiveram
interlocução com a pesquisa e entraram na dissertação, tiveram seus nomes alterados no
momento em que descrevo a situação, mas no caso de citar a obra em alguma epígrafe, por
exemplo, o artista é citado corretamente.

Para além disto, este trabalho só se tornou possível através do lugar da autora na
produção de conhecimento. Ser uma mulher negra, periférica na academia e na rua é o que me
faz ocupar um papel específico dentro do contexto etnográfico que aqui será trabalhado. E é, a
partir deste papel em específico, que as reflexões teóricas e metodológicas desta etnografia
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emergem. Foi um trabalho de assujeitamento e de si e do outro (Kilomba, 2019). Rompendo,


tensionando, invertendo, questionando e desestabilizando categorias que servem para o
controle de populações subalternizadas na periferia do capitalismo.

É neste ritmo, que gostaria de inseri-los nos capítulos que seguem. O primeiro
capítulo, intitulado “Etnografia Transeunte”, possui sete tópicos. No primeiro deles, delimito
uma forma substantiva que indica como irei me retratar aos sujeitos de pesquisa ao longo de
todo texto. Pretendo com esta categoria substituir a maneira como se referem aos sujeitos
negros e favelados a partir do lugar de branquitude dos pesquisadores da violência.

O segundo tópico deste capítulo é, talvez, o mais elementar da dissertação. Nele irei
destrinchar sobre uma categoria êmica que percorre todo o trabalho, pois ela percorre também
toda a experiência das juventudes faveladas na cidade mediante a guerra. O terceiro tópico, é
um breve relato sobre algumas experiências em um reggae de praça que não pôde fazer parte
da pesquisa como eu gostaria, por acontecer de forma intermitente, sem previsão. Contudo, o
pequeno relato de experiência contido neste tópico foi importante para amadurecer alguns
pontos da pesquisa, como a minha localização em campo e o contexto político que a cidade
viveu e vive.

No tópico quatro, trato sobre metodologia e questões de ética na pesquisa. Este é


uma pequena inserção emocional-teórica e afetivo-metodológica sobre o coração da pesquisa:
corpo, gênero e território. Nele o leitor verá um exemplo de texto emocionado, carregado de
questões internas e pessoais que envolvem a pesquisa. O primeiro subtópico neste tema versa
sobre antropologia da dor, onde veremos algumas formas possíveis de acessar sujeitos em
campo a partir de experiências de sofrimento. No subtópico seguinte, narro um episódio que
orbita em volta da figura do “pilantra” e das relações de alteridade que se estabelecem em
campo. O último subtópico, que também finaliza o primeiro capítulo, leva o título de uma
música reggae chamada Lost City, pois nele as reflexões se dão a partir da experiência de se
perder na cidade e os riscos a que isso compete, quando se trata de uma favela em contexto de
guerra.

No segundo capítulo, conto a história da Costa Oeste de Fortaleza trazendo


elementos que considero marcantes para a trajetória de lutas e construção de vida dos povos
racializados e subalternizados que ali pertencem. Logo de início, devo dizer que tais marcos
que selecionei para construir a narrativa sobre esta parte da cidade são parte de uma escolha
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política, que tenta sublinhar uma história que é constantemente apagada: dos povos negros e
indígenas que habitam o lado oeste da cidade.

O tópico sobre a “A Paz” tem por objetivo discorrer sobre como a pesquisa chegou
no contexto e no universo aqui presentes. Trata-se do processo de lapidação da pesquisa, onde
conto todo o trajeto percorrido para encontrar a melhor forma de tornar esta etnografia
possível. Conto um pouco da minha caminhada nas pesquisas sobre violência, partindo das
questões de gênero nos estudos sobre facções e como isso me levou até o reggae, fazendo uma
revisão sobre a “Paz” e seus significados teóricos e etnográficos. O tópico “Boca de Prata”
traz um tema que amarra diversas outras questões presentes neste capítulo, e que são
importantes em toda a dissertação, as relações de gênero e a gestão dos afetos a partir da “lei”
das facções.

Após explanar sobre o que está de fato no cerne desta dissertação, trago no tópico
seguinte, intitulado como “Eles descem pro beco pra resolver problema de condomínio", uma
reflexão, dialogando com o campo teórico, que pretende tensionar as relações de alteridade
construídas entre os autores desta área do conhecimento e os sujeitos de pesquisa.
Posteriormente, no tópico sobre “Cria de favela”, discuto as nuances sobre pertencer a um
território e se identificar com alguma “sigla”, ou seja, facção. Veremos como a
faccionalização foi incorporada no cotidiano da favela e constrói subjetividades, em
contrapartida, se torna mais uma forma de enquadramento das populações já subalternizadas.

O terceiro capítulo é um mergulho denso na Costa Oeste de Fortaleza, é onde conto


os percalços, os caminhos, as tensões e os refrescos do cotidiano na favela. Finalmente,
convido-os a um passeio pelos reggaes de praça. Este capítulo traz consigo o trabalho com as
imagens no campo, a música e a dança reggae. É um texto carregado de categorias êmicas,
cujos significados vão sendo elaborados no seu decorrer. Também é propositalmente escrito
em linguagem coloquial, pois foi a alternativa que encontrei de ser fiel aos momentos vividos
e aos sujeitos que compartilharam comigo tais experiências. As categorias são contextuais,
portanto, cada tópico leva o título de uma situação etnográfica, seja ela o reggae ou uma gíria
que confere significado ao que será contado.

O primeiro tópico deste capítulo, que leva o título de “Welcome To Barramar”, trata
sobre a forma como fui inserida em campo como fotógrafa do reggae. Apesar disto já ter sido
tratado anteriormente, é neste momento que o título me é conferido “oficialmente”. O tópico
seguinte também leva o nome de uma edição do reggae, “Baile Love”, onde pude experienciar
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e presenciar emoções e estratégias de construção da vida no cotidiano da favela que implica


no reggae. É neste sentido, que este tópico faz um gancho com o tópico seguinte, sobre a
categoria do “Óleo”.

Em seguida, o tópico sobre “o corre” discorre sobre táticas de ganhar a vida em


contextos de vulnerabilidade onde o trabalho formal é uma realidade distante. Persigo alguns
significados desta categoria fluida e contextual, no intento de mostrar, mais um vez, como as
fronteiras entre o dentro e o fora do “crime” são porosas, e de maneira geral, estes jovens são
enquadrados em figuras estigmatizantes.

A partir do tópico “A missão”, os percursos voltam a se sobressair no texto. Começo


a descrever os caminhos que foram percorridos até chegar ao PiraRoots, traçar estes trajetos
foram necessários para responder basicamente a pergunta principal da dissertação: o que se
encontra no caminho para o reggae? Dentro deste percurso, o subtópico “Merma zária”
descreve uma situação que passamos que levantou questões sobre os limites e camadas da
ideia de pertencimento na favela.

Em “A lei do silêncio”, algumas situações de campo evidenciam questões


metodológicas que ainda precisam ser levantadas, sobre como trabalhar com lacunas na
oralidade. Por fim, no tópico “A última rua da praia”, vemos o trabalho etnográfico mais uma
vez inverter as relações de alteridade construídas previamente. O lugar mais estratificado da
favela se apresenta como mais seguro que em outras áreas.

Durante alguns percursos no texto haverá a presença de mapas para auxiliar na


localização. A Costa Oeste, se tratando de um lugar subalternizado, localizado na periferia de
Fortaleza, onde fica um dos maiores complexos de favelas da América Latina, os mapas
oficiais, por vezes, não correspondem à realidade. Historicamente, a técnica de mapear foi
utilizada para atender aos interesses políticos e econômicos específicos. Áreas ocupadas há
anos, com uma rede de relações bem estabelecidas, são substituídas nos mapas por áreas
verdes indicando paisagens naturais “vazias”, apagando a existência de comunidades inteiras
com o intuito de removê-las. Neste sentido, alguns percursos feitos para fins desta dissertação
são retratados também em mapas, construindo uma representação destes lugares em mais de
uma linguagem. Para introduzir a leitura, segue o mapa que localiza a Costa Oeste dentro da
cidade de Fortaleza.

Figura 1 - Mapa da Costa Oeste de Fortaleza


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Fonte: Shape Fortaleza em Mapas, alterações da autora

Por fim, convido a acessarem, através do QR Code a seguir, a playlist de músicas que
foi construída ao longo da pesquisa. A playlist contém uma parte muito pequena das músicas
que tocavam nos reggaes que fizeram parte desta etnografia. Nem de longe, meu intuito foi
trazer todas as músicas que embalaram as noites de reggae na Costa Oeste. O que tentei fazer
ao construir esta playlist foi reunir as músicas pessoalmente mais marcantes e que, em
detrimento da pesquisa, eu fui gradativamente descobrindo o nome das canções. Além de
reggae, na playlist também podem ser encontradas as músicas que utilizo no texto, seja como
elemento narrativo ou em epígrafes.
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Figura 2 - QR Code para playlist no Youtube


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CAPÍTULO 1 - ETNOGRAFIA TRANSEUNTE

Minha palavra preferida na língua do português que nos foi imposta é “transeunte”.
Descobri ela no Livro do Desassossego de um poeta também português, Fernando Pessoa
(2006). A palavra me chamou atenção pela disposição ortográfica e por eu desconhecer
totalmente o seu significado. Na época, aficcionada por dilemas de filosofias existenciais, me
agarrei a esta palavra completamente vazia de sentido para mim e atribuí a ela toda liberdade
poética. Sem interesse nenhum em buscá-la no dicionário para averiguar se existia realmente,
preferi acreditar que se tratava de um neologismo do autor, mas que o signo foi elaborado
unicamente por mim. Passei a encará-la como uma soma etimológica de trânsito (trans) e
ausência/ausente. A leitura equivocada da raiz da palavra, untis, que vem do latim “que não
dura, que passa”, me fez acreditar que Fernando Pessoa fazia uma crítica sutil ao nosso
tempo, onde transitamos pelos mesmos lugares cotidianamente mas, de maneira
completamente vazia de sentido e pertença. Seria a cegueira moderna das grandes metrópoles.
O contexto onde tal palavra surge no livro também contribui para meu poético equívoco, o
autor narrava a circunstância que lhe fez sair do trabalho em um horário diferente e refazer o
mesmo caminho noutro espaço-tempo. O que lhe resultou em outra experiência sobre o
mesmo percurso, se deparando com outras formas de sociabilidade.

Nesta etnografia, muito distante das elaborações filosóficas e existenciais baseadas em


experiências a partir de uma cidade européia, como fora retratado acima, o ato de transitar não
se dá de modo errante, vacilante. Precisa-se estar atento e forte. Mas nem por isso a
experiência é menos dotada de potência poética. Na música “Balada Triste” de uma dupla de
rap, Subconsciente em Pauta (s.e.p. 085), somos transferidas para as ruas do Grande Pirambu
e seus dilemas. Os versos de “Balada Triste” constroem um personagem e nos põe a
acompanhar o seu trajeto, suas relações, suas tensões e anseios. Ele, o eu lírico, acabara de
ganhar o salário e estava pronto para ir ao encontro dos amigos e das paqueras que lhe
esperavam. Na música, o eu lírico faz o trajeto de bicicleta, vai até o comércio para comprar
um vinho, cumprimenta o tio, passa “pelos elemento mal encarado” na esquina. Assim, cada
parte do percurso é uma sobrevivência. No fim, ele é interrompido pela bala de um policial
novato, emocionado, que puxou o gatilho quando o “vetin”1 botou a mão no bolso para pegar

1
Variação linguística oriunda da palavra pivete que foi se colocando no diminutivo, pivetinho/pivetinha, até
perder a primeira sílaba. É necessário salientar que na fonética popular cearense, o diminutivo “nho/nha” não é
pronunciado por completo, tornando-se apenas “pivetin: vetin”, “pivetinha: vetinha”. Em outras situações
também aparece o “vet”, “ei, vet, sintera não?” como pronome de tratamento. Em nenhum desses exemplos, a
categoria substitui o “pivete” ao se referir a uma criança pequena, são usos distintos da palavra.
24

o celular que estava tocando. Ao telefone, eram seus amigos lhe esperando. A música acaba
com o áudio do amigo dizendo: “bé isso, Zé? já vai dar dez hora e nada de tu chegar, man.
Bora, chega aí, dá sinal pro nego,2 vá lá”.

***

Esta etnografia é resultado do trabalho de campo sistemático que fiz entre dezembro
de 2019 e fevereiro de 2020. Os reggaes que frequentei para fins deste trabalho aconteciam a
cada quinze dias, em dois extremos da Costa Oeste de Fortaleza, o início do Pirambu e o final
da Barra do Ceará3, sendo possível intercalar as idas à campo uma vez por semana em cada
bairro. O acesso à problemática que dá suporte à pesquisa foi experimentado ao percorrer as
rotas que as juventudes frequentadoras desses espaços fazem. Os caminhos estão em relevo ao
longo de todo o trabalho. É de extrema importância não apenas o que acontece dentro do
reggae, mas todo o percurso que fiz (e que outros personagens também me relatam) até chegar
lá, assim a experiência se dá através do ir [colar, brotar, chegar], estar e voltar [chegar, vazar,
sair fora]. A categoria êmica “chegar” refere-se ao ato do deslocamento, usada tanto no
sentido de ida como de vinda, perguntas como “tu vai chegar?”, pode corresponder à “ir” para
algum lugar, bem como a frase “ei, vou chegar, ó”, é enunciada em um ato de despedida.
Assim, esta pesquisa se faz no trânsito, daí a importância da estrada. Nas palavras de Mbembe
(2014):

O caminho nem sempre conduz ao lugar desejado. O que é importante não é, assim,
o destino, mas aquilo que se atravessa ao longo do percurso, a série de experiências
das quais se é actor e testemunha e, sobretudo, a parte de inesperado, o que acontece
quando ninguém estava à espera. Trata-se portanto de prestar atenção no próprio
caminho e aos itinerários mais do que ao destino. (p. 246)

A minha relação com algumas pessoas que colaboraram com este trabalho
extrapolaram a vida profissional, portanto, a Costa Oeste passou a ser meu lugar de convívio.
Com algumas das pessoas que me apresentaram ao Grande Pirambu, eu já mantinha relações
anteriores ao mestrado, as conheci durante a graduação em Ciências Sociais na Universidade
Federal do Ceará (UFC). Outras conheci através da pesquisa, que é o caso das pessoas que me
apresentaram a favela do Barramar, devido a minha frequência e convivência nos reggaes de
praça. Devo salientar que não me deparei com estas pessoas apenas a cada quinze dias quando
me deslocava para o reggae nas suas “zária”. O pessoal da produção e sobretudo os
frequentadores do reggae, circulam diariamente entre reggaes de lugares diferentes. A base de

2
O nego neste caso é pronome oblíquo na primeira pessoa do singular.
3
Sempre que menciono “início” ou “fim” de algum bairro estou me norteando geograficamente pelo sentido
leste a oeste.
25

sustentação do trabalho de campo etnográfico aqui é justamente os trânsitos entre eles. No


entanto, é necessário evidenciar que no Pirambu mantive relações mais próximas com os
frequentadores, e menos com a equipe de produção do reggae. Então, vai ser possível notar
em alguns momentos, que episódios que compõem a etnografia não tinham antes nenhuma
pretensão de entrar no diário de campo, visto que a meu ver eu estava ali entre amizades, em
momentos de descontração. No entanto, ao que se refere ao Barramar, e isso se estende a
Barra do Ceará como um todo, adentrei na condição de pesquisadora que, como veremos mais
adiante, foi transfigurada para a condição de “fotógrafa do reggae”.

Em artigo recente, Natália Padovani (2019) descreve um pouco sobre a sua caminhada
e trajetória de pesquisa pelas prisões paulistas. As distintas formas de entrada que lhe deram
acesso a um campo disciplinar e regulatório, como é o cárcere, mostram como este faz e refaz
gênero e estado nos corpos que nele penetram e por ele são penetrados. Cada uma das
possibilidades de entradas em campo que a antropóloga encontrou construíram um pouco de
si a partir da prisão. Nesta etnografia, considero cada forma de acesso aos bairros marcada
pela forma como fui localizada em questão, nas palavras da autora: “Entrar por múltiplas
portarias em um campo implica em ser localizada a partir de seus próprios marcos de
inteligibilidade” (Padovani, 2019, p. 25). Quem não me conhecia, passou a me conhecer e me
reconhecer como a “fotógrafa do reggae”, mesmo depois de se deparar com as implicações
desta pesquisa. Quem já conhecia a mim e ao meu trabalho, estava em constante colaboração
teórica e metodológica com esta pesquisa.

Em meados de novembro e dezembro de 2020, depois da segunda onda da pandemia


de coronavírus, quando o governo do estado do Ceará abriu algumas cláusulas para eventos
em locais públicos e abertos, houve mais uma edição do Barramar Sound System na qual me
fiz presente pela primeira vez desde que o campo foi suspenso em fevereiro de 2020 com o
motim da polícia militar - e depois de meu retorno para Porto Alegre. Esta também foi a
última vez que compareci ao reggae enquanto pesquisadora. De lá para cá, a guerra e “uzomi”
- agora com a pandemia, a motivação principal das intervenções policiais passou a ser a
dispersão dos aglomerados tendo em vista as políticas sanitárias - impediram a continuação
dos eventos de maneira regular, como acontecia antes.

A partir de agora, gostaria de evidenciar algumas particularidades do contexto de


pesquisa. Fortaleza possui uma cena da música reggae forte comparável à de São Luís do
Maranhão, salvo as devidas proporções. No entanto, para a realização deste trabalho, foi
26

escolhido como porta de entrada apenas os reggaes de praça que aconteciam na Costa Oeste
(Barra do Ceará e Grande Pirambu). É a partir do reggae de praça que se passam as tramas
desta pesquisa.

O reggae, enquanto gênero musical, é um movimento cultural afrodiaspórico, nasce


particularmente em contexto de colonialidade e migração forçada das populações negro
africanas para outros continentes (Costa, 2019). Em Fortaleza, o ritmo foi muito bem acolhido
pelas populações locais na Costa Oeste e se espalhou por todas as periferias da cidade. Nesta
pesquisa, o reggae aparece não somente como um ritmo musical, mas como espaço onde as
pessoas se relacionam de maneira singular através das pulsões sonoras do ritmo, a música
reggae (Costa, 2019). Então, na maioria das vezes em que “o reggae” é mencionado ao longo
do texto, se refere ao espaço onde acontece a confluência entre ritmo, lazer, trânsito e o fazer
político.

O reggae, enquanto ritmo, faz parte de um movimento político cultural oriundo de


povos marginalizados para povos marginalizados. Seja qual for o destino que o ritmo atingiu
através da sua diáspora, ele é consumido e produzido por populações subalternizadas no
capitalismo colonial (Costa, 2019). Sabemos que, historicamente, estas populações são
constantemente questionadas enquanto produtoras de cultura. O rap, assim como diversas
outras manifestações culturais negras, sofreu e sofre com isso desde a sua formação,
fazendo-se necessário pesquisas como a de Souza Filho (2012), que parte dos estudos
culturais para reivindicar o lugar do rap e, em particular do rapper Mano Brown4, como
produtores de cultura e de conhecimento5.

Este tipo de narrativa, onde se pretende pleitear um lugar de reconhecimento a partir


das formas hegemônicas de fazer cultura, pode ser encontrada no discurso público mobilizado
em especial pela prefeitura de Fortaleza, no âmbito da Coordenadoria Especial de Política
Pública de Juventudes, com um teor de reivindicação do reggae como “cultura”, numa
tentativa de inseri-lo nos meios de produção cultural hegemônica. É o que podemos perceber
no cartaz a seguir (figura 3), uma utilização de símbolos próprios da cultura reggae para
compor a campanha do “Projeto Reggaeando Fortaleza”.

4
Ao longo da dissertação me utilizo do rap, enquanto linguagem artística que narra o cotidiano das favelas, para
desenhar o ordinário desta etnografia. Portanto, o nome das pessoas que colaboraram com o trabalho foram
substituídos por nomes de artistas do rap nacional, como Mano Brown. Contudo, nesta ocasião em específico,
me refiro realmente ao rapper líder do grupo dos Racionais MC 's e não ao personagem da etnografia, como irão
ver em outras ocasiões.
5
Indico a tese “A Periferia Pede Passagem: Trajetória social e Intelectual de Mano Brown”, do sociólogo
Rogério de Souza Filho, defendida na Unicamp. Ver Souza Filho, 2012.
27

Figura 3 - Reggae é Cultura

Fonte: Perfil Oficial do Reggaendo Fortaleza no Instagram

O projeto itinerante, Reggaeando Fortaleza, consiste numa iniciativa da Prefeitura


para realizar espaços de lazer com a música reggae em diferentes praças, espaços e
equipamentos públicos em vários pontos da cidade. A ideia é fortalecer projetos locais e
integrá-los às ações da Coordenadoria de Política Pública de Juventudes. Contudo, nesta
etnografia, se sobressai questões que vão muito além do reggae e as juventudes faveladas
serem ou não produtoras de cultura. Abdias do Nascimento (2016), ao falar da arte negra a
partir das religiões afro-brasileiras, nos lembra o lugar que a branquitude coloca as expressões
culturais de matrizes africanas, mesmo quando ela parece externar uma leitura de valorização
da nossa cultura, isto se trata de uma postura paternalista. No caso da ação da prefeitura, eles
provavelmente têm interesses distintos nas formas de arte produzidas na periferia.
28

Não importa que às vezes esse crítico procure valorizar algum artista afro-brasileiro
através do exame e julgamento da sua obra, pois seguramente a real motivação do
seu interesse é de outra natureza. O paternalismo costuma estar subjacente na crítica
de intenção promocional, e o artista negro deverá recusar este tipo de tutela e
domesticação, mesmo que lhe custe as evasivas chances de penetrar no pequeno
grupo dos artistas que têm mercado. Nem deve o artista negro endossar as
classificações hipoteticamente elogiosas (comumente para estimular os possíveis
compradores) que os rotula de folclóricos ou pitorescos; este crítico nos primitiviza,
aquele nos acha interessante pela curiosidade e exotismo do nosso trabalho. (grifos
do original, Nascimento, 2016, p. 143)

Como veremos ao longo dos capítulos, o reggae, enquanto movimento cultural, é


algo dado para as pessoas que colaboraram com este trabalho, postura que nos faz perceber a
recusa disto que Abdias Nascimento (2016) chamou de tutela e domesticação. O discurso
entre os produtores culturais de favela que mobilizam os espaços de lazer aqui estudados, é de
que através do reggae eles estão fazendo arte, lazer, cultura e a economia local circular na
favela. Diferente do discurso da política institucional, que ainda está tentando abrir espaço
para o reggae nos meios hegemônicos, os produtores culturais e os frequentadores do reggae
não precisam evidenciar que o espaço é cultural para obter legitimidade. No entanto, existe
outro fator que pode ser evidenciado a partir das reflexões deste trabalho: o teor político que
surge na produção cultural do reggae enquanto espaço de lazer e promoção de arte e cultura.

Outra particularidade interessante para a pesquisa é que os reggaes de praça, em


Fortaleza, quase não possuem ligação com o rastafarianismo, enquanto movimento de caráter
religioso judaico-cristão. Os estereótipos que comumente se atrelam às pessoas “regueiras”
praticamente não se aplicam aos frequentadores do reggae de Fortaleza. Existem rastafaris em
Fortaleza que frequentam reggaes de praça, sem dúvida, mas o que quero evidenciar aqui é
que o público em sua maioria tem outros símbolos, que não o rastafarianismo, como
constitutivos de sua identidade. Estes serão explorados ao longo desta etnografia.

Lembro-me bem de uma conversa com um amigo, branco, universitário e de classe


média, em que este, ao ver uma das fotos que compõem esta etnografia, quis dar a entender
que o ambiente do reggae que eu frequentava teria um cheiro característico: cheiro de
maconha. No entanto, a primeira política de gestão do espaço do reggae é justamente ser
“proibido fumar [maconha] no local”, devido aos frequentes problemas de enfrentamento com
a polícia. O uso de cannabis entre estes jovens não está atrelado, de maneira alguma, ao gosto
pelo ritmo ou ao espaço de lazer que estes frequentam. Poderão ver, ao longo do texto, que o
uso compartilhado de cannabis foi uma forma de sociabilidade crucial para a realização desta
etnografia, me proporcionando adentrar em espaços, estabelecer relações e ocupar um lugar
distinto para a interlocução, mas que pouco tem a dizer sobre o espaço do reggae, que não o
29

fato da substância ser amplamente disseminada e de fácil acesso, sendo o seu uso
criminalizado apenas quando se trata de pessoas racializadas e faveladas.

Pensando de acordo com Carlos Benedito (2007), o rastafarianismo foi uma


alternativa para os jovens jamaicanos, que tinham aspirações políticas libertárias, frente à
construção da nacionalidade, em meados dos anos 1950. Baseados em ideais panafricanistas,
de ascenção do povo negro e retorno ao Continente Africano, o rastafarianismo foi um
movimento político filosófico que, por meio do reggae, pregava a libertação do povo negro na
colônia. Deste ponto de vista, podemos aproximá-lo da realidade das juventudes
fortalezenses, dado que o reggae, enquanto espaço, é um vetor de propagação de ideais de
união e libertação das violências raciais.

Nunca foi o propósito desta pesquisa percorrer sobre como reggae chegou em
Fortaleza, sobretudo na Costa Oeste, nem versar sobre questões da indústria fonográfica, visto
que o reggae nunca foi um ritmo distribuído na cidade através dos meios de comunicação
hegemônicos, nem pelo mercado fonográfico. Contudo, as pesquisas de Benedito (2007) e
Costa (2019) apontam para o compartilhamento de contextos sociais e políticos parecidos
entre a Jamaica, berço do ritmo, e as favelas brasileiras nas quais o reggae se assentou.

O ritmo em Fortaleza tem aspectos em comum com o reggae no Maranhão (Silva,


2007). As canções de reggae consumidas em Fortaleza são predominantemente estrangeiras,
cantadas sobretudo em língua inglesa, o que acarreta no fato de os consumidores destas
músicas, pretos e favelados, não entenderem a letra de imediato, o que não impede a
identificação com o ritmo através de suas pulsões sonoras (Costa, 2019).

O reggae também é difundido através de DJs, sendo pouco comum artistas e bandas
locais de reggae fazerem sucesso - mas existem exceções como o cantor Shalon Israel oriundo
da Barra do Ceará, compositor do hit “Cabeça de gelo” que fez sucesso nacional no ano de
2016. No começo dos anos 2000, a maior forma de propagação do reggae era em forma de
“melô”, a música era remasterizada pelo DJ que subia a canção para as plataformas digitais
sem utilizar o nome original da música, colocando o título como “melô” e alguma palavra que
remetia a fonética cantada (Silva, 2007).

Ainda em paralelo com o Maranhão, o ritmo ganhou uma forma de dançar em


particular, o reggae dançado “a2”, devido a predominância de outros ritmos já presentes na
região norte e nordeste, como forró, que influenciou na forma de dançar (Silva, 2007).
30

Também existe o reggae dançado em grupos soltos, fazendo coreografias de marcações iguais,
chamado de “passinho do reggae”. O passinho é original da cidade de Fortaleza e lembra uma
mistura de dança ritual indígena com as coreografias comuns nos bailes black que aconteceu
concomitante à chegada do reggae no Brasil. Veremos mais sobre as danças no último
capítulo.

Retornando à questão do reggae ser ou não “cultura”, aqui me refiro exatamente à


"cultura com aspa” de Carneiro da Cunha (2009), que corresponde a uma forma de afirmação
de identidade, dignidade e poder diante do Estado. A etnografia me levou a afirmar que esta
não é uma preocupação presente entre nenhuma das partes que compõem o reggae de praça,
sobretudo porque não possui pretensão alguma de pautar espaço e reconhecimento perante o
Estado, o que remete às formas de ação política do reggae desde o seu berço, as lutas
anticoloniais na Jamaica, enquanto um ritmo libertário.

Entre o público de frequentadores, o reggae é um espaço de paz que proporciona


uma fuga da rotina - seja a rotina exaustiva do trabalho, como da rotina violenta na favela. As
pessoas que frequentam o tomam como lugar de liberdade, transcendência e um respiro no dia
a dia. Enquanto os produtores que mobilizam o espaço, o utilizam como meio de propagação
das lutas políticas da periferia, o reggae é um espaço de diálogo entre as favelas, nele os
produtores se comunicam de diversas formas6 e os frequentadores “pegam a visão” passada
pelos organizadores. É nesta perspectiva que podemos perceber a tentativa de propor uma
“ética das mermazária”, como bem sublinhou Rômulo Silva (2019) a partir dos saraus
periféricos de Fortaleza. A ética das mermazária constitui uma visão política, compartilhada
entre estas juventudes, que busca superar por meio da arte a divisão sócio espacial da guerra
que assola Fortaleza como um todo. Esta premissa parte do entendimento de que somos todos
pretos/as e favelados/as, compartilhamos uma realidade semelhante, independente de sigla7 ou
posição geográfica, tentando assim superar os conflitos existentes na cidade através de arte e
cultura.

Todo reggae de praça em Fortaleza, com exceção do reggae itinerante mobilizado


pela prefeitura, leva o nome da comunidade local, favela, conjunto ou bairro onde ele
acontece com algum sufixo que remete à cultura reggae, como “roots” ou “sound system”.

6
No capítulo 3 veremos este diálogo acontecer de diversas maneiras, uma delas são as placas que ornamentam o
espaço e servem de suporte para mensagens curtas.
7
Como veremos em outros momentos, as facções que predominam em Fortaleza, assim como no estado do
Ceará como um todo, se identificam por siglas, por exemplo, CV e GDE.
31

“Beira Roots”, por exemplo, é o reggae do bairro Beira-Rio, “Violeta Roots” acontece no
Jardim das Violetas, além de ser um reggae promovido apenas por mulheres. O “PiraRoots”,
no Pirambu, e o Coletivo Barramar Sound System é oriundo da favela do Barramar, na Barra
do Ceará. É possível notar que existe uma vontade política de “fortalecer” o reggae “dazária”.
Em conversas informais entre jovens, discute-se onde e quando será o próximo reggae, e é
comum o comentário “vai ter o projeto X [que foi incorporado a uma casa de show localizada
na área nobre da cidade], mas entre ir pro [nome da casa de show] e ir pra um reggae na
minha “zária”, prefiro ficar aqui “nazária” mesmo e “fortalecer” a galera”.

Vemos então, que o reggae de praça supera a discussão sobre cultura sem querer ser
validado pelas premissas, criadas por grupos dominantes, que compõem a categoria. No
entanto, para consolidar o reggae como um fazer político foi preciso notar algumas ações. A
primeira, sem dúvida, é a abertura que os coletivos e projetos tiveram para abraçar este
trabalho e colaborar com a sua realização. O Coletivo Barramar Sound System recebeu o
projeto de pesquisa que resultou neste trabalho, o leu e discutiu em grupo. Tomando como
necessária e urgente levar estas discussões para o espaço e propagá-las. Não quero dizer com
isso, que o fato de terem aderido à minha pesquisa em particular os constitui como atores
políticos. Gostaria de apontar, contudo, que o fato de o reggae ser per si um movimento
político e cultural é que tornou possível a realização deste trabalho.

A segunda é por meio das ações que vão para além do espaço em si, onde se realiza
rodas de conversa sobre a história política do ritmo, debatendo racismo, colonialismo e
movimentos político-culturais, oficinas de arte e educação para e com crianças, como a
oficina de preparação das “plaquinhas”, cine debate democratizando o acesso ao cinema para
pessoas da favela, arrecadação de alimentos não perecíveis para montagem de cestas básicas
para doação, e aulas de dança através das oficinas de “a2” e “reggae do passinho”. Durante o
reggae também existem manifestações políticas, pessoas pegam o microfone para “mandar
uma ideia” ao público, como orientações não proibicionistas sobre uso de drogas lícitas ou
ilícitas, ideias de conscientização e organização política, além de serem distribuídas
camisinhas gratuitamente no local.

Figura 4 - Reggae é política


32

Fonte: Arquivo Pessoal

A imagem acima, retratada na figura 4, diz respeito a uma intervenção que eu fiz
nas redes sociais durante a pesquisa como forma de reelaborar a campanha da prefeitura com
outra categoria, não mais a de cultura. Agora sim, a categoria política. A intervenção foi vista
e compartilhada entre os sujeitos desta pesquisa, apontando para formas que faziam mais
sentido neste contexto que a proposição da política institucional.

1.1 Pirangagem

Neste tópico trato sobre a forma como irei me referir aos sujeitos desta pesquisa ao
longo de toda a dissertação. Uma categoria nativa bastante elástica que aparece em campo é a
de “pirangueiro” ou “pirangueira” que, em suma, é aquele que faz “pirangagem”. Este
trabalho de sublinhar o conceito de “pirangagem” já foi realizado anteriormente algumas
33

vezes. Em uma oportunidade interessante, Pires (2018) coloca que a “pirangagem” é “em uma
única expressão nativa todas as subcategorias negativadas na moralidade das relações
criminais” (p. 193). Ela pode aparecer como traição, trairagem, “cruzetagem”, covardia,
delação, talaricagem, entre outros.

Pires também chama atenção para um de seus entrevistados, assaltante de ônibus e de


transeuntes, que foi o único a se autointitular de “pirangueiro”, por admitir “agir pelo errado”
e ao ser questionado pelo sociólogo se ele se reconhece por “pirangueiro” enquanto traidor,
“cruzeteiro”, ele indaga “mas aí já é outro tipo de pirangueiro” (ibid., p. 192). Esta outra ideia
de “pirangagem” a qual se refere Nico, o assaltante entrevistado por Pires em sua dissertação,
é uma demonstração do que apareceu de forma mais recorrente entre os colaboradores que
conheci em campo, pois retrata o descumprimento ou ruptura com a lei de forma a prejudicar
alguém “nazária”. Por exemplo, “não pode roubar na favela”, aquele que o faz está sendo
“pirangueiro” e passa a ser lido como escória: “aquele pirangueiro réi”. Então, para além da
trairagem a nível interpessoal, muito bem contornada por Pires, frequentemente atribuída ao
“pirangueiro”, parece que a categoria também abarca a traição à ordem em vigor, a lei que
predomina o território, as normas que comportam valor e moral na favela.

Nessa perspectiva, a “pirangagem” pode ser entendida como uma forma de


construção do “Outro” a um nível diferente da “pilantragem”. Enquanto a construção do
“pilantra” como o “Outro” está vinculada ao seu território de pertença, “pirangueiro” é
“Outro” “dazária”, por exemplo, o que rouba “cidadão” dentro da favela, diferente do
“pilantra” que é de “ota zárea” e “inventa de vir roubar aqui”. Contudo, isso não anula os
outros usos do termos já supracitados pelo autor, apenas pontuei um novo signo que surgiu da
categoria.

Concordo com Pires (2018) quando ele afirma que “pirangueiro” é o termo mais
alargado que surge nestas etnografias, contudo, esta categoria não é usada apenas na favela.
Assim como a categoria de “envolvido”, amplamente dissipada na sociedade e nos meios de
comunicação, a palavra “pirangueiro” é estendida para fora das fronteiras da favela também
de maneira pejorativa. Quem mais se concentrou em trabalhar a respeito disto foi o sociólogo
Marcus Giovani Ribeiro Moreira (2021), analisando as representações sociais e simbólicas de
juventudes faveladas não brancas, os ditos “pirangueiros”, e como estes se relacionam com as
áreas centrais e nobres da cidade de Fortaleza. Moreira examina o que a branquitude
34

fortalezense produz a respeito da ideia de “pirangueiro” como estigma racial, fazendo-a


emergir como uma categoria de suspeição que evidencia hierarquias raciais.

No trabalho de Moreira (2016), esta relação do “pirangueiro” com a cidade branca,


per si violenta e hierárquica, é mediada pela polícia. Nesta situação, a cidade produz o
“pirangueiro” e o coloca na mira do Estado, satisfazendo o sadismo da branquitude ao criar o
inimigo político, o outro da cidade, o sujeito perigoso e “descartável” (ibid. p.4).

Deste modo, considerando as diversas formas como o “pirangueiro” se manifesta


nesta e em outras etnografias, optei por trabalhar com uma categoria que, apesar de se reportar
ao “pirangueiro” de Moreira, enquanto juventudes fortalezenses racializadas e que possuem
características próprias de se apresentar e se portar na cidade, a categoria nativa que escolho
para tratar nesta pesquisa é a de “vetin” e “vetinha”, que aparece como uma forma positivada
e auto valorativa de se afirmar enquanto juventude negra e favelada, não mais aquela criada
pelo olhar da branquitude fortalezense sobre o seu “Outro” e nem mesmo aquela carregada de
signos negativados que remetem à conduta, consideração e “proceder” na favela. É então,
desta forma, subvertendo as “formas indesejáveis de se auto representar” (Santos, 2021, p. 29)
que proponho o uso da categoria de “vetin/vetinha” ao me reportar aos sujeitos que
contribuíram para esta pesquisa.

1.2 Cabreiragem

Diário de campo. Sexta-feira, 27 de dezembro de 2019, Barra do Ceará.

Na primeira vez que fui a um reggae na Barra do Ceará estava acompanhando


Tasha8. Ela havia sido convidada pelos organizadores para fazer a cobertura fotográfica do
evento. Era uma sexta-feira, dia 27 de dezembro de 2019, o reggae aconteceria na Praça do
Conjunto Hermes Pereira, próxima a favela do Barramar (ver mapa). O evento marcava o
aniversário de um ano do Projeto Barramar Sound System e a realocação do reggae para outro
espaço - anteriormente o projeto acontecia em um espaço aberto, dentro da comunidade e com
a regulamentação deferida pela prefeitura, passou a acontecer na praça.

8
Todos os nomes que aparecerão aqui nesta etnografia são fictícios a fim de preservar a imagem e a segurança
das pessoas. Substituí os nomes verdadeiros, nomes artísticos e apelidos por nomes de artistas da cena do hip
hop nacional, conforme alguma característica que considero semelhante com a vida pessoal ou profissional das
pessoas que colaboraram com esta pesquisa, por exemplo, a moça trans que conheci neste dia recebe o nome de
Linn em homenagem a Linn da Quebrada, uma rapper travesti brasileira conhecida mundialmente. Com Don L e
Nego Gallo não é diferente, assim como os artistas verdadeiros, os personagens a que me refiro aqui são dois
rappers que compõem um grupo junto sendo um branco e outro negro e ambos da Costa Oeste de Fortaleza.
35

Para a realização de qualquer empreendimento desse tipo em praça pública, é


necessário um alvará emitido pela Regional - departamento de administração da prefeitura.
Este foi o primeiro dado que me ocorreu sobre o Barramar Sound System: o fato de ter
autorização legal para acontecer, supostamente, colocava o reggae em outro patamar, menos
estigmatizado e, na visão de Tasha, “mais de boa” no que se refere a interferência da polícia -
problema que muitos projetos de reggae de praça nas periferias, tal como o PiraRoots,
enfrentavam por não ter alvará até então.

No grupo de whatsapp “amigos do Piraroots”, as pessoas já se mobilizavam para


“chegar” nesse reggae há alguns dias. Descobri esse grupo através de um link que havia sido
publicado nos stories do Instagram de um dos organizadores, dizendo que quem quisesse
“fortalecer” o espaço poderia entrar. Entrei. Uma moça que fazia parte do grupo, Pocah, era
daquelas “zárea”, e se ofereceu para esperar algumas pessoas na parada de ônibus e
acompanhar até a referida praça. Disse a ela que não precisava me buscar pois eu já ia
encontrar uma amiga, mas entraria em contato caso fosse necessário.

A amiga era a Tasha, e nós marcamos de nos encontrar na Trupe, uma pizzaria na
avenida Coronel de Carvalho, próxima ao final da linha do ônibus 070 Cuca Barra/Parangaba
(Praça do Ferroviário9), ônibus que leva do bairro Benfica, onde eu morei na época, até a
Barra do Ceará, onde acontece o reggae (ver trajeto no mapa a seguir). Da Trupe até a praça é
fácil de chegar, apenas descer a rua 2, onde marcamos, já é possível ver a praça.

Figura 5 - Mapa do Percurso 070 Cuca Barra/Parangaba

9
Time de futebol tradicional da Barra do Ceará com a terceira maior torcida da cidade. A praça do Ferroviário
tem este nome por ficar em frente ao Centro de Treinamento do time.
36

Fonte: Arquivo Pessoal

Tasha estava acompanhada de Linn, uma menina trans, branca, que aparentava ser
bastante nova e um tanto tímida. Nós chegamos por volta das 18h30 e o reggae já havia
começado, pois sempre começava às 18 horas, independente do público estar numeroso ou
não. No geral, os reggaes de praça têm duração de 4 horas, o Barramar Sound System, por
exemplo, tem início às 18h e termina às 22h. O público nunca chega no horário exato que se
inicia, mas dificilmente extrapolam o horário de término.

A Praça do Conjunto Hermes Pereira ocupa o espaço de metade de um quarteirão.


Nela há uma quadra de esportes que ocupa boa parte da praça. A quadra é envolta por um
alambrado de ferro pintado de verde. Os equipamentos para jogos, como traves de gol, tabela
e cesta de basquete estão desgastados mas continuam sendo bastante utilizados. Em uma das
laterais da quadra há uma arquibancada de três degraus grandes. Durante o evento, a
arquibancada é o único lugar que existe para sentar, não são colocadas cadeiras ou mesas no
reggae, além da mesa de som. Na arquibancada é onde ficam sentadas as pessoas que
frequentam o reggae quando chegam mais cedo ou simplesmente são mais tímidas e preferem
não ficar próximas à pista de dança. Em outra parte da praça, tem um parque de brinquedos de
madeira coloridos dentro de um espaço de areia, alguns poucos bancos de cimento e, bem ao
37

lado da arquibancada, ficam os equipamentos de ferro do projeto da prefeitura “academia ao


ar livre”, que servem para auxiliar e incentivar a população a fazer exercícios físicos.

Quando chegamos, o espaço estava montado e a música estava tocando dentro da


quadra, onde também jogavam bola algumas crianças no lado oposto à mesa de som. Como é
comum em praças de bairros de periferia em Fortaleza, havia comércio ambulante de comida
e brinquedos de diversão para crianças do lado de fora da quadra. Assim, na praça do Hermes
Pereira não era diferente, fora da quadra havia um pula-pula, um brinquedo inflável em forma
de parque e algumas bancas vendendo lanches. Assim, conheci Nay, uma mulher preta,
moradora daquelas “zárea” e que trabalha vendendo pastel com a ajuda da filha.

Ao chegarmos na quadra, Nego Gallo (a quem vou passar a me referir aqui apenas
como Gallo) gritou pela Tasha do outro lado, nas arquibancadas, fomos até lá e eles estavam
fechando um “baseado”. Gallo se apresentou para mim como se fosse a primeira vez que nos
conhecíamos. Perguntei se ele não lembrava de mim, pois quando fui bolsista do “Traficando
Saberes”10, organizei a cerimônia de encerramento na qual ele foi convidado, através do grupo
de rap que ele compõe, juntamente com outro integrante, Don L. Gallo é um jovem integrante
de alguns coletivos juvenis de periferia, morador do Pirambu e um dos organizadores do
Piraroots.

Junto com Nego Gallo estavam mais três outros rapazes, uns eram moradores da
Barra do Ceará, outros vieram do Pirambu junto com ele, acompanhando-o de bicicleta.
Depois de fechar o “baseado”, Gallo nos chamou para fumar. Como já pontuei anteriormente,
em todos os reggaes de praça espalhados pelas periferias de Fortaleza existe a premissa:
“proibido uso de drogas no local do evento”. A regra faz parte da campanha de
conscientização do público, por parte dos organizadores e integrantes dos coletivos, como
tentativa de amenizar os conflitos com a polícia e assim garantir a permanência e duração do
espaço. Em consideração a isto, os rapazes nos chamaram para fumar próximo a um canal que
fica em paralelo com a avenida Francisco Sá, descendo a rua. Em decorrência do convite e da
localidade, “o canal”, Tasha ficou “cabreira” logo de imediato.

Era um momento de várias tensões, primeiro porque nós chegamos no local achando
que, por a favela do Barramar estar situada dentro da Barra do Ceará, seria uma área
dominada pela facção Guardiões do Estado (GDE). Depois, nós éramos duas mulheres cis e

10
Projeto de Extensão da Universidade Federal do Ceará, no qual eu fui bolsista, que realiza, dentre outras
atividades, oficinas de direitos humanos com adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas.
38

uma trans, respectivamente, Tasha, eu e Linn, e são em situações como esta, chamar para
“fumar um” em um lugar afastado, conhecido como levar para o “cheiro do queijo”, que
mulheres são assassinadas na guerra entre facções em Fortaleza. O fato de termos acabado de
chegar e ter quatro “caras” nos convidando para fumar no canal não era uma ideia confortável
para a Tasha, mas eu não cogitei a ideia de perder essa “oportunidade” no meu primeiro dia de
trabalho de campo. Para a pesquisa, esta situação de “fumar um” com Gallo, pessoa que
estava iniciando na organização do reggae no Pirambu, junto com outras pessoas que são
moradoras do Barramar, foi uma oportunidade de socialização importante para entender os
percalços destes trânsitos entre um reggae e outro, apesar do aparente risco.

O canal era ali perto, a continuação da rua 3 ao lado da praça dava na avenida
Francisco Sá, onde ficava o dito canal. O riacho que passava estava quase seco, o local ao
redor era escuro e arborizado; sentamos em uns troncos de árvores cortadas que estavam ao
chão, Gallo acendeu o “baseado” e começou a contar como foi a vinda, chegar até ali de
bicicleta. Desabafou sobre a tensão de ter vindo pela Francisco Sá, que além de ser o caminho
mais longo era também “faixa de gaza”11. Outro rapaz que estava entre nós disse que era
melhor ter vindo “por dentro” dos bairros, mas Gallo disse não saber fazer esse caminho. Para
um jovem negro favelado em Fortaleza, se locomover entre as grandes avenidas, de maior
circulação, a iminência do risco é maior do que quando o mesmo circula “por dentro” dos
bairros dos becos e favelas, questão que iremos nos aprofundar no capítulo 3.

No meio de tanta “cabreiragem”, Gallo percebeu como Tasha estava tensa e fez sinal
de 2 com os dedos para ela e apontou para o chão, indicando que aquela zona ali era “tudo 2”,
ou seja, Comando Vermelho, a mesma facção que domina o Grande Pirambu, a “zária” de
Tasha, lugar onde mora desde que nasceu. Passando o “beck” da boca e comprimindo o ar nos
pulmões, Gallo falou: “eu também tava nessa cabreiragem, mas me disseram antes de vir e
quando eu cheguei aqui me falaram de novo, daí eu fiquei mais sossegado”. Tasha depois
comentou entre nós: “or! por quê esse baitola não falou logo que aqui era 2, ma? Tinha ficado
tranquila”.

Antes do “baseado” acabar, saímos andando no caminho de volta para a praça. Ao


subirmos a rua, notei que uma casa que vendia “pratinho” com uma mesa na calçada12 havia

11
Territórios em disputa entre as facções.
12
É muito comum no Ceará ter bancas, tendas, barracas ou apenas mesas colocadas nas calçadas em frente às
residências, como era o caso neste dia, para vender “pratinho”. É assim que se chama um prato descartável
recheado de comidas típicas composto geralmente por arroz, vatapá, creme de galinha, paçoca (farofa de carne
39

sido recolhida, apesar de estar cedo ainda. Fiquei pensando que as proprietárias da venda,
mulheres brancas idosas, poderiam ter retirado o pratinho mais cedo pois, quando passamos
por lá para ir até o canal, eu comentei “olha aí, já temos uma broca13”. Vendo quatro homens
negros na frente, logo atrás três meninas, em sua maioria negras também, podem ter ficado
com medo, expressando assim cenas comum de racismo cotidiano (Kilomba, 2019).

Chegando na praça, os meninos foram jogar bola com as crianças na quadra, depois
foram conversar com os DJs na mesa de som, enquanto nós ficamos sentadas nas
arquibancadas esperando o reggae “gerar” para começar a bater as fotos. Neste momento,
ainda eram umas 19h30, e como disse um dos rapazes que estava com a gente, “reggae de
praça só “gera” depois das 20h”. Em se tratando dos reggae de praça, “gerando” é quando o
reggae está no seu ápice: maior número de frequentadores no local, maior número de pessoas
dançando na pista, em suma, a parte mais movimentada da noite.

Este recorte do diário de campo nos permite entender algumas dinâmicas iniciais
sobre as juventudes que compõem o reggae de praça. Em primeiro lugar, a convivência com
as emoções - tensão, medo, desconfiança e “cabreiragem” - no ato de se deslocar, é a primeira
pista para o que se propõe esta dissertação: entender como estas juventudes se apropriam da
cidade e dos espaços em detrimento da faccionalização dos seus territórios. Depois, foi
possível conhecer lugares, horários e etiquetas sobre o espaço, como a regra de não poder
fumar no local, e como os frequentadores que, por ventura, são usuários lidam com isso sem
prejudicar o coletivo. Aos poucos iremos aprofundar ainda mais nestas questões. No próximo
tópico trago um relato curto sobre a experiência com outro projeto de reggae de praça, que
apesar da proximidade com o Barramar Sound System tem também suas particularidades.

1.3 Quarta Roots

Barra do Ceará, 2020. Fui para um reggae que houve no Pôr do Sol - como é conhecida
a praça onde fica localizado o Marco Zero de Fortaleza. Ali costumava acontecer o
“QuartaRoots”, antes de se tornar projeto fixo de uma casa de show situada na área nobre,
onde também está concentrado o circuito cultural da cidade. O “QuartaRoots” não foi um
reggae etnografado sistematicamente por mim, dada a inconstância do projeto. Contudo, as
duas vezes que fui ao reggae no Pôr do Sol me renderam reflexões importantes.

do sol) e salada de legumes. Essas vendas são colocadas no final da tarde e recolhidas no final da noite pois o
“pratinho” é mais comumente consumido como jantar.
13
Gíria referente a comida para a fome que dá depois de fumar.
40

A primeira foi numa sexta-feira. Era janeiro de 2020, eu estava em pleno trabalho de
campo junto ao Barramar e ao PiraRoots. Não pude ir à edição do Barramar da semana
anterior, episódio que narro e reflito melhor mais a frente neste capítulo, então estava focada
em ir ao campo, ainda que sozinha, para compensar a ausência. Tratava de uma oportunidade
ímpar, onde eu iria comunicar ao Mano Brown - DJ residente14 do Barramar Sound System,
aquele que organiza e toca o projeto - sobre meu projeto de pesquisa. Perguntei
insistentemente se ele ia “chegar” no QuartaRoots, pois imaginei que ele seria a única pessoa
conhecida a me acompanhar neste baile.

Dentro do ônibus, peço ao motorista para me avisar quando estivesse perto do Marco
Zero, porém este não conhecia o local, nunca havia ouvido falar em “marco zero da Barra”.
Foi quando percebi que esta denominação é pouco usual entre os moradores da região, pois
um outro passageiro, jovem como eu, informou ao motorista que “é ali, na rua do pôr do sol”.
O Marco Zero está situado no acostamento onde o Rio Ceará se encontra com o mar. À frente,
na outra margem do rio, é onde o sol se deita, fazendo com que esta região seja dona do pôr
do sol mais bonito da cidade de Fortaleza. Às costas desta paisagem, fica o morro do
Santiago, onde um dia foi construído o Forte de São Tiago, também denominado de São
Sebastião. A história do bairro, que perpassa a construção do forte, será contada no próximo
capítulo.

O ônibus seguiu pela avenida Vila do Mar (que percorre toda a extensão da orla da
Costa Oeste) até o Marco Zero, quando então ele dobra à esquerda para entrar na dita rua do
pôr do sol, eu desço. O local é um calçadão largo a ponto de parecer uma praça, as barracas e
as árvores ao redor escondem a vista direta para o mar, mas ao lado esquerdo vemos toda a
extensão do rio. A ribanceira é repleta de pedras e árvores nativas, principalmente pés de
castanholas, comuns no litoral. O Marco Zero é uma placa de mármore fincada no chão, com
um monumento pontiagudo em cima. No lado oposto à avenida Vila do Mar está o Morro do
Santiago, lugar onde um dia foi o Forte de São Sebastião, construído pelos colonizadores
portugueses. No topo do monumento do Marco Zero há uma cruz e ao redor dele está um
batente, elevando a estrutura.

14
O reggae de praça consiste num evento de local fixo cujas atrações são itinerantes. Cada edição são
convidados DJs de projetos (e localidades) diferentes. O DJ “de casa”, ou seja aquele que comanda o projeto, é
conhecido como residente por ser justamente a atração fixa do reggae, enquanto os demais que compõem a
lineup são variáveis .
41

Me organizei para chegar por volta de 19h30, horário em que o reggae já começa a
“gerar”, por saber que antes disso o local ainda estaria vazio de frequentadores, e como eu
havia ido sozinha, não queria ser uma das poucas pessoas no local esperando o reggae
“gerar”. Aos poucos fui reconhecendo algumas pessoas que já tinha visto pelo reggae do
Barramar, as quais fui me enturmando enquanto esperava o Mano Brown, que por sua vez, foi
aparecer quase nove horas da noite. Enquanto isso, fui me deixando levar pelo baile.
Diferentes pessoas me convidaram para dançar com frequência e eu aceitava. Quando
estávamos dançando “a2”, duas vezes me perguntaram “ei, tu é a fotógrafa do reggae, né?”, se
referindo às fotos que fiz para o Barramar Sound System, e eu respondia que sim. Esta foi
uma chave que virou no meu trabalho de campo, pois, no dia em que eu me proponho a ir ao
reggae para expor e falar da minha pesquisa para um dos organizadores do coletivo, fui
imediatamente reconhecida, ou “localizada” (Padovani, 2019), como “a fotógrafa do reggae”.

Quando Mano Brown finalmente apareceu, estava com uma aura um tanto apreensiva,
disse que estava com problemas em casa e que precisava arrumar um emprego, pois só o
“Bolsa Jovem” não estava sendo suficiente. O “Bolsa Jovem” é um programa da prefeitura de
Fortaleza que oferece bolsas para jovens de baixa renda, com o propósito de fomentação das
ações comunitárias impulsionadas por estes jovens. Assim, este é o único recurso financeiro
que Mano Brown dispõe para a realização do Barramar Sound System. É possível que a
conquista da papelada do alvará, fornecido pela prefeitura para regulamentação de qualquer
evento público na cidade, tenha sido facilitada por meio do programa Bolsa Jovem - contudo,
o alvará e a blusa do programa, distribuída para fins de campanha e identificação do mesmo,
não impedem retaliações da polícia, nem mesmo a “polícia” da prefeitura, no caso da Guarda
Municipal.

Quando eu contei sobre a pesquisa, já pensando em oferecer algum trabalho voluntário


junto ao projeto em forma de troca pela colaboração, eis que Mano Brown me responde “e o
que a gente precisa fazer pra isso daí?”. É quando eu percebo que além de compartilhamos da
mesma sensação - de ter que dar algo em troca quando nos oferecem uma boa proposta ou
estão abertos a nos ajudar - a pesquisa faz sentido entre os colaboradores e conversa com
aquela realidade. Nós trocamos contatos e eu enviei o projeto que havia submetido ao
PPGAS/UFRGS para ele. Como já mencionei anteriormente, meu projeto foi lido e discutido
entre os integrantes que compunham o Barramar Sound System. O projeto, que depois virou
coletivo, abraçou esta pesquisa desde então.
42

A segunda e última vez que estive no QuartaRoots foi meses depois de delimitar o fim
desta pesquisa. Porém, um médico não deixa de ser médico quando ele sai do consultório. Um
juiz não consegue se apartar de seu conhecimento sobre as leis quando sai do tribunal. Então,
mesmo em propósito de lazer pessoal, meus ouvidos estavam atentos demais àquelas relações.
Me propus a ir ao reggae para prestigiar os DJs do Barramar, que se tornaram meus amigos,
pois eles iam tocar no Pôr do Sol, além do fato de que ia começar cedo, assim poderia
aproveitar a praia e a vista. O reggae foi num domingo, estava previsto para começar por volta
das quatro horas da tarde. Quando cheguei, pontualmente, o DJ residente do QuartaRoots,
junto ao Mano Brown estavam em busca de uma barraca onde pudessem ter acesso a energia
elétrica para ligar os equipamentos, visto que na barraca que tem parceria com o reggae estava
faltando. Este infortúnio atrasou o evento por algum tempo, mas não impediu que pudéssemos
“curtir” um reggae mediante o pôr do sol mais bonito da cidade.

Enquanto esperava o evento começar, sentei-me a uma mesa junto de pessoas que eu
não conhecia, nem mesmo elas se conheciam entre si. Era um homem, um tanto mais velho, e
uma moça mais ou menos da minha idade. Fiquei entre eles por sugestão de Mano Brown
pois ele havia deixado sua bolsa naquela mesa. Passamos a conversar entre nós, descobri
depois que a moça morava próximo ao Barramar, o homem não pude saber - nesta época já
havia internalizado que não é de bom tom indagar as pessoas sobre de onde elas são/moram,
sobretudo quem você não conhece. Perguntar a quem não conhece e não tem intimidade onde
a pessoa mora, é algo que pode ser interpretado como estar “pegando maldade”, querendo
sondar se a pessoa é “pilantra”, o que passa a gerar no mínimo um constrangimento. Antes de
internalizar esta máxima, passei por períodos delicados desde terem mentido para mim até
desconfiarem que eu seja "envolvida''.

Como estava durante o dia, pude ver a comunidade que vive na outra margem do Rio
Ceará. O Rio Ceará separa a cidade de Fortaleza da cidade de Caucaia15, então as casas que eu
avistava eram de uma região que faz parte de Iparana, Caucaia. A paisagem vista de longe
retrata uma pequena vila de pescadores, com poucos barracos à margem do rio, aparentemente
sem asfaltamento, pois pude enxergar apenas uma grande faixa de areia. A vila é uma região
temida no imaginário do morador da Barra do Ceará, tal como a Colônia é para o pirambuense
(estas e outras relações de alteridade serão melhor exploradas no 2º e 3º capítulos). Ao
observar a comunidade que vive do outro lado do rio, perguntei aos que me faziam companhia
na mesa que lugar era aquele. O homem desconhecido respondeu que ali era perigoso, que
15
Cidade onde nasci e me criei.
43

sempre fora um lugar “embaçado”, morria e matavam muita gente por lá. Apesar de acreditar
que este discurso é empregado ao “Outro” da relação, não pude me certificar a tempo desta
etnografia o que estes “Outros” pensam do lado de “cá”, nem como se vêem a si mesmos. O
que posso apontar é que para o imaginário pirambuense, algumas partes que compreendem a
Barra do Ceará também estão envoltas nesta figura de “Outro”.

Ao final do evento, me juntei a outros jovens, moradores do Barramar, para irmos


juntos até a praça do Ferroviário, onde eu deveria pegar o ônibus para ir para casa. Além de
mim, eram cinco pessoas (dentre elas a moça que estava junto comigo à mesa) e três
bicicletas, o que permitiu perfeitamente que eu pegasse carona no quadro de uma das
bicicletas durante a volta.

O caminho de volta segue pela avenida Radialista José Lima Verde. Ao lado direito fica
o Morro do Santiago, ao lado esquerdo o Rio Ceará. Até aquele momento, o Morro do
Santiago era “tudo 3”, favela sob o domínio da GDE. Ao passo que vemos os barcos
atracados nas margens do rio à esquerda, sob as sombras das árvores autóctones formando
uma bela paisagem natural, ao fundo com a ponte sobre o rio que liga Fortaleza a Caucaia16,
temos ao lado direito da avenida um retrato de moradia precária com alguns pequenos pontos
comerciais, sobretudo, peixarias.

Seguindo em frente, pela mesma avenida, temos ao lado esquerdo o Cuca Barra,
próximo a ponte. A Rede Cuca é um equipamento público17 mantido pela prefeitura para
oferecer formação técnica, cultural e de lazer. Contudo, atrás do equipamento que mantém
atividades educativas e culturais para jovens da região, foi construída em 2018 mais uma das
Torres de Segurança da Guarda Municipal de Fortaleza. O nome oficial das torres é “Célula
de Proteção Cidadã”, projeto apresentado por Moroni Torgan (DEM), então vice-prefeito da
cidade. A torre foi construída para estar um nível acima das casas dos moradores, com a
perspectiva de prevenção na segurança pública através de vigilância tecnológica18. Entretanto,

16
A avenida Leste-Oeste, que vai aparecer em vários momentos ao longo do texto, acaba nesta ponte ligando
Fortaleza à cidade vizinha, Caucaia.
17
“É uma rede de proteção social e oportunidades, criada em 21 de fevereiro de 2014 e formada por quatro
Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (Cucas), mantidos pela Prefeitura de Fortaleza, por meio da
Coordenadoria Especial de Políticas Públicas de Juventude”. Disponível em:
<https://www.fortaleza.ce.gov.br/noticias/rede-cuca-celebra-sete-anos-com-o-registro-de-mais-de-700-mil-joven
s-atendidos#:~:text=%C3%89%20uma%20rede%20de%20prote%C3%A7%C3%A3o,de%20Pol%C3%ADticas
%20P%C3%BAblicas%20de%20Juventude.> Acesso em 19 de dezembro de 2021.
18
Para entender melhor sobre vigilância, automatização dos aparatos de segurança pública e racismo algorítmico,
recomendo o trabalho do O Panóptico, disponível nas plataformas digitais.
44

moradores dos entornos de várias daquelas torres de vigilância, não apenas da Barra do Ceará,
denunciam a presença de policiais fortemente armados no topo da edificação.

Ao passar por este trecho que fica por baixo da ponte, subimos a avenida Coronel de
Carvalho, onde finalmente havia uma ciclovia - até então, disputávamos com os carros.
Seguimos a Coronel de Carvalho por um pequeno pedaço, logo na primeira esquina à
esquerda entramos na avenida Francisco Sá. No momento em que dobramos à esquerda
saindo da Coronel de Carvalho para entrar na Francisco Sá, vinha um carro na direção
contrária a nossa, ao qual não dei atenção em primeiro momento, mas percebi o silêncio que
havia tomado conta de nós. Descemos das bicicletas e passamos a subir a Francisco Sá a pé
pois o trecho é mais íngreme. Quando o carro some de vista voltam-se as conversas, o
primeiro comentário foi: “eita baitola, quase morri agora, viu... tu viu aí o carro? chei de
elemento… tudo mal encarado”.

Esta tensão e medo sobre o ato de circular pela Costa Oeste, é uma constante no
cotidiano dos jovens. A fala “chei de elemento, tudo mal encarado”, em outro contexto
poderia ser questionado se há uma entonação de cunho racial sobre o perfil de pessoas que
estão sendo colocadas em suspeição. Contudo, a fala dita durante um trajeto entre zonas de
conflito, saindo de uma avenida de grande circulação (“pista”), onde poderia a qualquer
momento iniciar um daqueles episódios de perseguição com a polícia, ou rota de fuga de
alguma invasão de territórios rivais pelas facções, demonstra que parte desses jovens
moradores estão apreensivos tentando apenas chegar “nazária” vivos. Também há uma outra
perspectiva sobre a conotação racial nesta fala, visto que partem de pessoas fenotipicamente
parecidas com aquelas que são o objeto do medo. Isto posto, faz-se pensar que se trata,
portanto, do medo do desconhecido, visto que se fosse um “elemento dazária”, ou seja
conhecido, as emoções em jogo seriam totalmente diferentes.

A tensão e o medo são constantes durante os trânsitos. Até chegar “nazária”, “o nêgo
fica naquela” - “cabreiro”. Quando passou o clima de tensão, passamos a conversar, o assunto
era o reggae. Falava-se com entusiasmo sobre ter um reggae no pôr do sol, que aquela área ali
é “rocheda”19 demais, que poderia ter um projeto fixo. É quando eu pergunto: porque não
estava mais acontecendo [o “QuartaRoots”]? Certamente, esperava que a resposta seria algo
em torno da pandemia de covid-19 que impedia realizações de espaços como aquele, pois
atraía muita gente, por conseguinte, aglomeravam-se. Entretanto, a resposta que eu obtive de
19
Expressão usada para positivar algo, dizer que é rocheda corresponde a afirmar que é muito bom, bonito,
interessante, qualquer tipo de adjetivação positiva se aplica.
45

Hiran, jovem negro LGBTQIAP+, que constrói o coletivo Barramar Sound System junto a
Mano Brown e outros, foi uma frase que apreendi a ponto de torná-la título desta dissertação,
ele falou em tom cabisbaixo: “quando não é a guerra, é uzomi” que impedem a realização de
espaços como aqueles. Seguimos pela avenida Francisco Sá até o canal (que me referi em
tópico anterior), ali chegando estávamos próximo a favela do Barramar, alguns seguiram para
suas casas e outros me acompanharam até a parada de ônibus, na praça do Ferroviário, onde
segui viagem sozinha para a minha residência (ver percurso no mapa a seguir).

Figura 6 - Mapa do Percurso de bicicleta Marco Zero/Praça do Ferroviário

Fonte: Shape Fortaleza em Mapas, alterações da autora

Quando a “zária” tá “embaçada” não há reggae, ou seja, na iminência da guerra. As


pessoas que organizam os projetos, quando não são coibidas pela facção dominante,
interrompem os eventos pois têm consciência do risco que é promover um espaço daquela
magnitude dentro da favela em época de conflito. Numa área perpassada por conflitos entre
facções, a realização do reggae está subsumido à guerra. Isto não anula o impacto da
pandemia de covid-19 na favela. É certo que o fato de o isolamento social evitar
46

aglomerações e outras posturas preventivas por parte das autoridades sanitárias influenciaram
no cotidiano que culminaram na agenda do reggae. Contudo, a ênfase na ostensiva policial
reflete na forma como as políticas “preventivas” contra a covid-19 surgem na favela por meio
da repressão, como uma forma de “penalização” e “criminalização” daqueles sujeitos que não
puderam se manter em isolamento e cumprir as medidas sanitárias de maneira satisfatória
(Freitas & Santos, 2020, no prelo). Portanto, o reggae, assim como todas essas juventudes que
o dinamizam, é compelido pela violência.

O trabalho de campo etnográfico foi interrompido às vésperas do carnaval, em fevereiro


de 2020, momentos antes de sermos enclausurados pelo coronavírus no Brasil. A greve da
polícia militar no estado do Ceará, dava início a momentos de terror. Este foi um marco na
pesquisa, os reggaes foram sendo semanalmente adiados, na expectativa de que o motim
tivesse fim e a “zária” pudesse ter paz novamente. As pessoas que colaboraram com meu
trabalho passaram a me recomendar sair de casa sem o celular, ou apagar mensagens,
conversas e fotos que fizessem ligação entre mim, as pessoas e as favelas onde realizei a
pesquisa, pois no caso de eu sofrer uma abordagem policial e ter meu celular revistado
agravaria meu lugar de suspeição, posto que qualquer indicativo de ligação entre mim e a
pesquisa poderia ser utilizado pela polícia como prova de “envolvimento” com as facções20.

O exército estava nas ruas, canhões militares eram vistos passeando pelas avenidas em
direção às zonas periféricas. As favelas estavam em alerta constante sob a ameaça de invasão,
não apenas do exército, como também de facções rivais e de policiais que poderiam se
aproveitar do estado de exceção para realizar algum tipo de vingança. Foi um período de
“queima de arquivo”, acerto de contas e tomada de territórios. A cidade estava em guerra.

O Ceará entrou em estado de sítio. A Força Nacional foi acionada para conter o
agravamento da situação. O motim da polícia, como é de praxe no estado, não significava
apenas paralisação do trabalho de vigilância, mas ataques a prédios e equipamentos públicos,
carros da corporação incinerados, índice de homicídios elevado consideravelmente. Foram
indiciados mais de 130 servidores por envolvimento com o motim21. Em 13 dias de
paralisação, o número de mortes no estado disparou em 417% em comparação ao ano anterior.
Em se tratando do cotidiano das favelas de Fortaleza, a violência é iminente, seja pela guerra

20
Esta discussão sobre envolvimento será melhor abordada no próximo capítulo.
21
Até o momento da escrita desta dissertação a justiça não chegou a nenhuma solução para os casos.
47

entre as facções ou pelo racismo institucional operacionalizado pelo sistema de justiça


criminal. Portanto, “quando não é a guerra, é ‘uzomi’”.

1.4 Metodologia e questões de ética na pesquisa

da ponte pra cá é a órbita da favela/


tem que aprender a respeitar pra poder passar por ela
Bairros divididos
Subconsciente em Pauta (s.e.p 085)
Caio Plock e Dj KL Jay

Ao longo de todo este mês procurei pelas palavras que deveriam estar aqui. Por aqui,
me refiro a este texto. Não estavam por lugar algum, procurei nos cadernos, fichamentos, nas
bordas do texto xerocado rabiscado a lápis, quase ilegível. Mas ainda não eram essas palavras
que eu estava procurando. Nem no caderno que uso como diário de campo elas não estavam.
Lá, só havia paisagens, retratos narrados fielmente. Elas não estavam se encaixando aqui.

Quase perdida num vazio sem letras, achei algo grudado à minha pele, como um
“sticker” (Ahmed, 2004), mas não consegui decodificá-la logo de início. Era uma mancha
sem forma. Depois virou um signo, embora estivesse em estado de negação a respeito de seu
significado. Continuei labutando pela composição desse texto até que eu fiquei sabendo que
uma menina que conheci em campo também estava com essa mancha na pele, mas a dela
estava enorme, quase tomando conta do seu corpo, quase não se via mais ela, só a mancha. E
aos poucos fui vendo que esse negócio se manifestava de maneira diferente, mas as pessoas
ao meu redor, aquelas que colaboraram com esta pesquisa, tem um pouco dessa marca. Em
alguns é visível, em outros, como é o meu caso, dá para disfarçar na maior parte do tempo.
Ela fica ali, mas conseguimos até cobrir com a roupa comprida. O problema é que se não
souber do que se trata essa mancha e não tiver condições de entender como ela surgiu,
dificilmente irá desaparecer. Além do que, quanto mais a ignora, mais ela cresce.

Vou chamar essa mancha de dor, pois ela conecta seus portadores no mesmo nó na
garganta, uns mais apertados que outros, mas convivendo com o mesmo incômodo. E, como
diria Vilma Piedade (2017), “essa dor é preta”.

***

A primeira versão deste capítulo foi construída em janeiro de 2020 para fins de
trabalho final da disciplina “Sofrimento Social e Violência”, ofertada por Ceres Víctora,
minha orientadora. Na ocasião da escrita, eu estava em pleno trabalho de campo em Fortaleza
e, como deve ter sido possível perceber através dos parágrafos anteriores, a leitura dos dados
48

que estavam prestes a serem apresentados estava diretamente afetada pelas emoções
experienciadas em campo, assim como pelo meu grau de envolvimento com as pessoas e as
dinâmicas.

Aqui me atento a uma releitura dos dados, insuflando minha escrita a novas
perspectivas teóricas e metodológicas, pensando a partir do trabalho das emoções. De acordo
com Ahmed (2004), “prestar atenção às emoções pode nos mostrar como todas as ações são
reações, no sentido de que o que fazemos é moldado pelo contato que temos com os outros”
(tradução minha, p. 13). Neste sentido, as reflexões que se seguem mostram como a própria
ação de produzir este texto é moldada pelos contatos que estabeleci em campo e as emoções
provocadas pela experiência.

Algumas formas de contato cotidiano aparecem na minha escrita: histórias que


podem parecer pessoais e até mesmo sobre "meus sentimentos". Como uma 'escrita
de contato', ou uma escrita sobre contato. Não apenas entrelaço o pessoal e o
público, o individual e o social, mas mostro as maneiras como eles se configuram,
ou mesmo como se moldam. Portanto, não é que "meus sentimentos" estejam
escritos, embora minha escrita esteja repleta de histórias de como sou moldado por
meu contato com outras pessoas (tradução minha, ibid. p.14)

Tento aqui neste tópico, portanto, uma escrita ‘de’ e ‘sobre’ contato, partindo
também do que foi proposto por Ahmed, mas indo além, visto que por vezes, sim, “meus
sentimentos” podem aparecer, porém estranhados e/ou analisados até onde a antropologia nos
permitir fazê-lo.

1.4.1 Antropologia da dor

Veena Das (1995) reverbera a importância de discutir a dor dentro da Antropologia,


que por muito fora deixada de lado, assim como no campo de Ciências Sociais no geral. Em
outros de seus trabalhos, a autora analisa a atuação de profissionais que trabalharam junto ao
Estado na recuperação de mulheres raptadas durante a Partição entre Índia e Paquistão, como
é o caso da autoridade de assistentes sociais que eram usadas para contribuir com a exclusão e
o silenciamento de vítimas; aquelas que não queriam ser devolvidas ao país e familiares de
origem, em prol da honra da nação, eram lembradas de que sua nova família fora formada
pelo assassínio de seu pai ou marido e suas ações eram tomadas como se não soubessem o
que estavam dizendo ou fazendo (id., 2006).

A partir dessa realidade, Das considera que as estruturas conceituais de determinadas


disciplinas como a medicina, a jurisprudência, o serviço social e as ciências sociais,
conduzem a uma transformação na leitura do profissional acerca do sofrimento que rouba a
49

voz da vítima e os afasta do imediatismo da experiência (id., 1995; 2006). No que tange à
antropologia, ela dá o exemplo de como quando se dá uma definição exclusivamente cultural
do sofrimento. Este é o nosso dilema conceitual interpretativo sobre a dor (id., 1995).

Num primeiro momento, a dor que surge é, antes de mais nada, a minha dor. Ainda
não é sobre a dor do outro como objeto de análise, apesar de perceber que ambas passaram a
estar entrelaçadas constituindo uma rede de relações e me inserindo numa comunidade
emocional e moral (Das, 1995; Jimeno, 2008). Posteriormente, será relatado uma experiência
que foi moldada pela memória da dor. Desde a queda da pacificação em Fortaleza, fenômeno
que será melhor analisado no próximo capítulo, as violências infligidas entre os territórios
rivais marcou significativamente a forma das pessoas circularem nas ruas, de tal forma que o
simples ato de pegar um ônibus para se deslocar tem que ser pensado a partir da
territorialidade gerada por esses conflitos. Essa memória da dor, que volta recorrentemente
como medo, faz parte do próprio terror instaurado pela guerra, desde o fim do pacto pela paz.
O corpo que transita comportando essas emoções - tensão, medo, “cabreiragem” - é o
mediador entre o passado e o presente (Das, 1995).

Myriam Jimeno (2008) ao propor que a “linguagem da dor” é compartilhada,


acredita que “é possível aprender sobre as práticas de interpretação do sofrimento humano e
seu papel constitutivo nos processos sociais” (tradução minha, p. 267). A mesma autora diz,
um pouco mais adiante, que “compartilhar nos aproxima da possibilidade de se identificar
com as vítimas”, mas para além disto, continua Jimeno: “permite recompor sua filiação à
comunidade e reestabelecer ou criar laços para a ação cidadã” (tradução minha, Ibid., p. 267).
Portanto, entendo aqui a linguagem da dor também como forma de acessar o campo.

Isso posto, experimento uma metodologia diferente da que acreditei funcionar


inicialmente, na primeira versão deste texto, lá em 2020. “Compartilhar” e “se identificar”,
como coloca Jimeno (2008), é muito distante de “sentir o que os outros estão sentindo”, como
vai problematizar Ahmed (2004). Em primeira análise, me tomava como capaz de analisar
emoções experienciadas por acreditar que eram compartilhadas entre os colaboradores de
pesquisa, como Ahmed irá destrinchar a seguir em sua crítica à ideia de ‘contágio emocional’.

Ao sugerir que as emoções passam dessa forma, o modelo de 'contágio emocional'


corre o risco de transformar a emoção em uma propriedade, como algo que se
possui, e pode então passar adiante, como se o que passa fosse a mesma coisa.
Podemos notar que o risco não é apenas teórico. Já passei por inúmeras ocasiões
sociais em que presumi que outras pessoas estavam sentindo o que eu estava
sentindo, e que a sensação era, por assim dizer, "na sala", apenas para descobrir que
os outros sentiam de maneira bem diferente. Eu descreveria esses espaços como
50

'intensos'. Sentimentos compartilhados estão em jogo e parecem nos cercar, como


uma densidade no ar ou uma atmosfera. Mas esses sentimentos não só aumentam a
tensão, eles também estão em tensão. As emoções, em sua própria intensidade,
envolvem falta de comunicação, de modo que, mesmo quando sentimos que temos o
mesmo sentimento, não necessariamente temos a mesma relação com o sentimento.
Dado que sentimentos compartilhados não são sobre sentir o mesmo sentimento, ou
sentimento em comum, sugiro que são os objetos da emoção que circulam, e não a
emoção como tal. Meu argumento ainda explora como as emoções podem se mover
através do movimento ou circulação de objetos. Esses objetos se tornam pegajosos
ou saturados de afeto, como locais de tensão pessoal e social. (tradução minha. p.
19-20)

Portanto, veremos a seguir algumas formas como aprendi a comunicar, incorporar e


lidar com os objetos das emoções compartilhados em campo. Com reflexões a partir de
Durkheim, em “As Formas Elementares da Vida Religiosa”, Veena Das (1995) argumenta que
para a criação de uma comunidade moral através do compartilhamento da dor, esta deve ser
experimentada publicamente, algo que não é possível em muitos contextos devido a tentativa
de silenciamento das vítimas e apagamento dessas memórias - bem como também do roubo
dessas vozes pelas autoridades de certas disciplinas, como já mencionado anteriormente.
Contudo, se a dor acaba por incapacitar a comunicação, como fazê-la vir à tona na esfera
pública? Este capítulo tenta fazer isto.

1.4.2 A figura do pilantra e a construção do “Outro”


Das vezes que me vi chorar naquele início de ano, as lágrimas haviam sido puxadas
ao chão pelo campo. A primeira lágrima desceu quadrada, grossa, quase emperrada. Era um
misto de decepção com insegurança. Decepcionada comigo mesma, pois não havia reunido
forças suficientes para comparecer à edição primeira do reggae Barramar Sound System do
mês de janeiro - apenas fui para o último evento do mês de dezembro. A principal
colaboradora desta pesquisa me falou, de última hora, que não poderia ir comigo e, apesar de
ter sido convidada por várias outras pessoas que conheci neste espaço - ter prometido que ia -
não consegui sentir segurança nas relações estabelecidas a ponto de ir sozinha.

O fato de não ser “dazária”, foi uma questão que me afetou profundamente, pois isto
era suficiente para qualquer frequentador dos reggaes de praça não irem sós. Ainda não havia
estabelecido relações firmes entre os organizadores e frequentadores do Barramar. Afinal, fui
apenas o primeiro dia até então22, e isso me acarretou uma série de inseguranças que talvez
um pesquisador homem não enfrentasse. Contudo, hoje percebo que optei pelo certo em não
“meter as caras” e ir sozinha naquele momento. Quem frequenta reggae de praça nas favelas
de Fortaleza, como ficará mais evidente no capítulo 3, não vai sozinho, nem mesmo as figuras

22
A edição de aniversário de um ano do projeto Barramar Sound System que leva o título de “cabreiragem”.
51

ligadas ao masculino. As inseguranças a que me refiro, vão muito além de timidez ao ir para
um espaço sozinha e tentar uma socialização do zero. Corresponde a não saber onde se está
pisando. Não saber quem são as pessoas ao redor e elas não saberem quem é você. Não estar
familiarizada com os caminhos, com a ida e a volta. Em tópico anterior, contei sobre quando
fui a um reggae de praça sozinha, mesmo esta sendo uma experiência que mostrou existir
novas facetas para este trabalho a respeito da minha “localização” em campo (Padovani,
2019), demonstrou também que eu não era “desconhecida”, como eu estava imaginando,
facilitando assim alguns acessos. Daí a importância do papel de “fotógrafa do reggae” para a
realização desta pesquisa.

Na segunda, chorei de raiva. Dessa vez a raiva escorria pelos meus olhos como uma
cachoeira e, acredito eu, foi devido a esta enchente que não fui capaz de fazer nada que
pudesse arruinar meu trabalho e me prejudicar. Circulava pelo grupo de whatsapp do reggae
do Pirambu, “Amigos do PiraRoots”, as informações de que uma moça havia sido assaltada e
estuprada voltando da praia da Leste, no Pirambu. As vozes que ecoavam na minha cabeça a
partir da minha raiva faziam coro a incorporação do ethos da norma instituída pela facção:
“não era proibido roubar na quebrada?!” - dizia eu enfatizando o limite da própria norma,
provocando o que se está instituído nas margens habitando a mesma lógica de punição do
estado penal, e que se mostrou tão ineficiente quanto. O limite era o gênero. Uma mulher
voltando da praia sozinha, pelas ruas da sua favela, onde é proibido roubar.

Agamben quando busca seguir os rastros do testemunho para compreender o


incompreensível, o horror dos campos de concentração, encontra a produção e reprodução
cotidiana da norma que torna possível todo aquele horror inenarrável. É onde a regra cria, dia
após dia, a exceção (Agamben, 2008). A regra, aqui, é a vulnerabilidade do feminino andando
sozinho na rua, suscetível a violações; a exceção, dentro deste universo, é roubar na favela,
prática que supostamente havia sido extinta pela faccionalização dos territórios. Dialogo com
Agamben pois acredito que o caso aqui analisado extrapola e viola as normas internas das
facções, podendo ser melhor observado através de contexto político e histórico mais amplo
que interferem neste contexto.

Minha raiva continuou: “E o castigo para duzentão23, qual é?! Se pegar é pau no
gato!”. Reiterando as formas de punição como espetáculo (Comaroff e Comaroff, 2016, p.18)

23
O termo faz referência aos artigos do código penal (213, principalmente) que prevêem crimes sexuais, é usado
geralmente para se referir quem os comete contra menores de idade, mas não somente. Ver Germana Oliveira
(2018).
52

comuns neste contexto, a expressão “pau no gato” refere-se a um tipo de linchamento, mas
também remete a ideia de ser efetuada a penalização pelo desvio. Refletindo a partir de
Nietzsche sobre dor, corpo e memória, Veena Das (1995) coloca que uma das equivalências
entre lesão e dor é que “infligir dor a uma pessoa que causou dano por falhar em qualquer
uma de suas obrigações conosco é visto como justo” (tradução minha). Ahmed (2004)
também sugere que o “trabalho da emoção envolve a ‘fixação’ de signos aos corpos: por
exemplo, quando os outros se tornam ‘odiosos’, então as ações de ‘ódio’ são dirigidas contra
eles” (tradução minha, p. 13). As emoções exprimidas eram reflexo de uma incorporação da
norma e esta norma evidencia uma comunicação por meio da violência. Assim circulavam as
emoções neste jogo de relações entre mim e o campo - raiva.

As pessoas que compunham o grupo de whatsapp e também fora dele passaram a


trabalhar suas emoções a partir de um único objeto: o pilantra. Acompanhando os boatos
sobre o caso no grupo, os comentários que surgiam eram de que “só pode ser pilantra” ou
“isso é coisa de pilantra, andando aqui nazária”. A todo momento, o sentimento de culpa era
jogado para o outro (Das, 1995). Então, havia um clamor pela descoberta do autor. A história
já havia chegado até os tribunais da facção e buscavam identificar a pessoa.

A demanda por esclarecimentos era publicamente enunciada e foi tomada para si


pela facção. Tal como em Das (2020 [2006]), quando o Estado toma para si a
responsabilidade de recuperar o parentesco e restaurar a honra, trazendo de volta as mulheres
raptadas durante a Partição da Índia - a facção, através de clamor público de moradores,
sobretudo jovens, viam na expectativa de “pegar o pilantra” e ser “pau no gato” como uma
forma de reestabelecimento da ordem e da honra na favela.

A figura da pessoa vitimada, por uma ação que rompe com várias normas da facção
ao mesmo tempo, reitera o poder instituído das facções no controle dos territórios, mas
também é um retrato das suas limitações. Como nos diz Butler (2019), “cada instância
normativa é acompanhada do seu próprio fracasso, e com muita frequência esse fracasso
assume a forma de uma figura” (p. 22).

Cada vez que alguém tornava a falar que o autor do crime “deve ser pilantra”, a
minha raiva aumentava, pois sentia que a responsabilização pelo ato era arremessada para o
“Outro”, a fim de se isentar da possibilidade de alguém de dentro ter agido “pelo errado”. Este
arremesso de culpabilidade é uma emoção que produz fronteiras - entre o “Eu” e o “Outro”,
53

entre o pilantra e o “elemento dazária”. Contudo, a produção da diferença mais aproxima do


que aparta, pois ela pressupõe contato, como vai nos dizer Ahmed:

os sentimentos são cruciais para a formação de superfícies e fronteiras, é sugerir que


o que "faz" essas fronteiras também as desfaz. Em outras palavras, o que nos separa
dos outros também nos conecta aos outros. Este paradoxo fica claro se pensarmos na
própria superfície da pele, como aquilo que parece nos conter, mas como onde
outros se impressionam sobre nós. Esta função contraditória da pele começa a fazer
sentido se desaprendermos a suposição de que a pele simplesmente já está lá, e
começarmos a pensar na pele como uma superfície que é sentida apenas no caso de
ser "impressa" nos encontros que temos com outros (tradução minha, grifo do
original, AHMED, 2004, p.25)

As minhas emoções, por mais que, num primeiro momento, fizesse coro as formas
violentas de lidar com o conflito no âmbito das facções, denunciava também a fragilidade
interna do domínio do grupo sob o território. O fato de existir “lei” que proíbe roubar na
favela e que, apesar disso, houve roubo seguido de estupro, onde a vítima foi uma mulher
cisgênero, denota como a lei da facção é limitada no que tange a “proteção” do feminino em
seu território de domínio. Contudo, a existência da categoria “duzentão” consagra o cunho
sexual existente na “lei”.

É possível perceber, então, o contraste elencado por Das (1995) sobre a experiência
da dor dentro do fluxo normal, quando calamidades “vêm do ambiente natural ou social e são
vivenciadas tão súbita e traumática com formas de dor impostas ao corpo no curso normal dos
eventos” (tradução minha, p. 178). Na narrativa aqui presente, o estupro não é posto como
uma “necessiade natural” de homens, como Das (2020, [2006]) encontra no discurso judicial
dos tribunais indianos. A premissa de que tal horror só poderia ter vindo de sujeitos de facção
rival, denota como a facção constrói territorialidade a partir da imaginação masculina, por
meio de corpos femininos. Este retrato figura como o corpo que, por excelência, é o lugar da
desordem, pressupõe guerra, pois aciona o poder regulador - no caso, a facção (Das, 2020
[2006]; Mbembe, 2014).

Entendo corpo como nas palavras de Butler (2019), “não é possível definir primeiro a
ontologia do corpo e depois as significações sociais que o corpo assume. Antes, ser um corpo
é estar exposto a uma modelagem e a uma forma social, e isso é o que faz da ontologia do
corpo uma ontologia social” (p. 13-14). Para Mbembe (2014), o corpo em si do sujeito, na
condição de escravo, “no drama da vida”, não significa nada, não é dotado de sentido próprio,
por isso, faz-se necessário o que ele chama de trabalho para a vida, para que possa evitar que
o corpo caia na completa objetificação.
54

O corpo-território aqui analisado, se aproxima também da leitura de Ahmed (2004)


sobre os atributos de gênero do corpo nacional quando ela analisa os discursos da
Grã-Bretanha, sobre o medo de ser “penetrada” por imigrantes ilegais: “o corpo nacional
suave é um corpo feminilizado, que é 'penetrado' ou 'invadido' por outros” (p.2). Para Das
(1995), o corpo das mulheres sempre fora o lócus da comunicação violenta entre homens - a
forma como o diálogo masculino era conduzido fora do âmbito matrimonial.

Como aponta Luna Sales (2018) na sua tese sobre as economias sexuais em alguns
bairros de Fortaleza, incluindo o Pirambu, “os copos feminilizados [...] estavam em relação
metonímica com os territórios. A punição para a transgressão sexual materializava a moral do
seu governo” (p.34). Seguindo o curso das pensadoras aqui referenciadas, considero que a “lei
do crime” é, sobretudo, uma lei sexual.

Acionados vários mecanismos de busca, o celular da vítima foi localizado. Através


da tecnologia do GPS, encontraram o celular na posse de um homem que reside no mesmo
bairro que compreende a extensão do Grande Pirambu, portanto, está sob domínio da mesma
facção, portanto, é “mermazáreas”. Desta forma, o autor do crime deixa de ser “pilantra”, pois
era do mesmo comando - passando a ser lido como “pirangueiro”, categoria pejorativa na
favela analisada neste capítulo. A partir deste caso pudemos ver emergir a figura do
“pilantra”. Nela, some a figura da vítima e emerge a do culpado, passível penalização e
extermínio. Assim, sob a ideia de “pilantra”, são depositadas algumas das principais formas
de transgressão e suspensão da ordem na favela.

1.4.3 Lost City - Iseo & Dodosound: o corpo-campo, sujeito pesquisado(r)


Diário de Campo, 28 de dezembro de 2019, Grande Pirambu.

Figura 7: Mapa Percurso Centro - Vila do Mar


55

Fonte: Shape Fortaleza em Mapas, alterações da autora

Desde que voltei de Porto Alegre para Fortaleza, ainda não havia ido à praia.
Combinei com Tasha de irmos à Praia da Leste na parte da tarde e, de lá, eu ficaria em sua
casa até a noite, para ir ao reggae. Este seria um dia de imersão no Pirambu, onde fica situada
a praia em questão, onde também acontece o PiraRoots um dos reggaes que passei a
frequentar para a pesquisa e onde mora a principal colaboradora desta pesquisa. Aproveitando
que tudo fica perto um do outro, planejamos ir à praia e depois se arrumar para o reggae à
noite.

Agora morando no bairro Benfica, próximo ao centro da cidade, não sabia


exatamente as coordenadas para chegar ao Pirambu, pois em visitas anteriores eu tinha como
ponto de partida a casa que eu morava na Caucaia, região metropolitana. Sabia que precisava
passar pelo Centro. Tasha me ensinou como chegar, era preciso pegar o ônibus da linha 070 -
Cuca Barra/Parangaba, descer ao lado da praça do Liceu24 e a partir deste ponto eu teria duas
opções: 1) descer a avenida Filomeno Gomes à pé até chegar na praia ou, 2) pegar um
segundo ônibus, 101 - Beira-Rio, que faz a mesma rota que eu faria a pé, levando até a orla.

24
Colégio mais antigo do Ceará.
56

Eram por volta de três horas da tarde, o sol em Fortaleza “castigava”, escolhi então a segunda
opção e pegar o ônibus, ao invés de ir a pé.

Ao descer do Cuca-Barra, logo passou um outro ônibus cujo nome da linha era Vila
do Mar II - Centro25. Pelo nome, intuí que esse ônibus passava pelo Pirambu, pois “vila do
mar” é o nome de um projeto de urbanização da prefeitura que teve início em 2006,
abrangendo os bairros Pirambu, Cristo Redentor e Barra do Ceará26. Assim, perguntei ao
motorista se a sua rota passava pela Praia da Leste e ele disse que não, mas que cruzava a
Leste (se referindo a avenida Leste-Oeste e não à praia) e se eu quisesse poderia descer lá e ir
andando. A Leste-Oeste se trata da avenida Castelo Branco que corta a cidade em seus dois
extremos, levando-nos da Costa Leste a Oeste. Apesar de levar o nome do ditador cearense, a
avenida é chamada de Leste-Oeste por todos os citadinos, sejam moradores do seu entorno ou
não. Como a avenida Leste-Oeste passa em determinada altura perto da orla, interpretei que
poderia descer perto da praia da Leste. Não percebendo a confusão entre praia da leste e
avenida Leste-Oeste que eu e o motorista causamos, além de já estar ansiosa para chegar logo
na praia, peguei o Vila do Mar II.

Após entrar no ônibus, pagar a passagem e sentar em alguma cadeira, pois o ônibus
tinha poucos passageiros, mandei uma mensagem para Tasha avisando que havia pegado o
“Vila do Mar II” e a sua resposta foi diferente da que eu esperava. Recebi um “não” eufórico,
com direito a vários ‘o’s intensificando a entonação: “nãooooooooo”. Então explicou: “esse
ônibus vai pra Barra [do Ceará]. Fala com Tracie pra tu descer perto da casa dele”. Tracie é
mais uma pessoa colaboradora deste trabalho, que também mora no Pirambu, mas em outra
localidade.

O Pirambu é repleto de subdivisões que eram mais evidentes no período de brigas


entre gangues. Atualmente, num período “pós pacificação”, tem-se a unificação de todo o
complexo de favelas fazendo-o pertencer à mesma facção. Não vou explanar sobre todas as
territorialidades internas que compõem o Pirambu, pois esta não apareceu como ponto
significante nesta etnografia, o que atribuo à unificação do bairro ocorrida desde a
pacificação. Contudo, as fronteiras continuam intituladas: tem-se o Caldeirão, Cacimba dos
Pombos, os Abel, a Areia Grossa, etc. O que não ocorre mais é uma rivalização entre elas,
como antes, que era proibido o trânsito de moradores entre estas localidades. O importante
aqui é salientar que Tracie mora do outro lado do Pirambu, no sentido leste-oeste, algumas
25
A ilustração que está presente na capa desta dissertação faz referência ao itinerário deste ônibus.
26
Cf. Monteiro, 2018
57

ruas antes da favela da Colônia, onde já domina outra facção. Lugares assim, próximo à
fronteira, são conhecidos por “faixa de gaza”, portanto, todas as vezes que o termo for usado
será neste sentido.

Como me recomendou Tasha, tive que ir mandando mensagem para Tracie a fim de
avisar que havia apanhado o ônibus errado, estava agora dentro do Vila do Mar II, e precisava
que me explicasse onde descer, que fosse me esperar no ponto de ônibus. Assim, expliquei
toda a situação para Tracie. Ao mencionar a linha do ônibus em que eu me encontrava, Tracie
também entrou em desespero pois supunha que eu teria saído da minha antiga casa na
Caucaia. Em seu entender, eu teria pego esse ônibus partindo do terminal do Antônio Bezerra
(zona oeste), fazendo o percurso contrário (bairro-centro), ou seja, estaria passando por dentro
da Barra do Ceará. No entanto, não se sabe se por sorte ou Exu, estava no sentido
centro-bairro e, como Tasha havia mencionado logo depois de se acalmar, “pelo menos tu
ainda tá no Pirambu, então não tem perigo”. O que Tracie ainda não havia entendido. O
desespero de ambos era devido a rota do ônibus ir do centro (onde eu o peguei), até a Barra do
Ceará (assim passando por dentro de todos os bairros adjacentes, como o Pirambu, mas
também Colônia, Cristo Redentor) que é “a zárea dos pilantra”.

Apesar do Vila do Mar II passar por dentro do bairro, por vezes sendo uma boa
opção para os moradores de alguns locais, ninguém do Pirambu pega esse ônibus. O medo de
Tasha era devido a um dos incontáveis casos de meninas do Pirambu que foram violentadas
em situações como essas, por terem passado por um local “proibido”, mesmo que apenas de
ônibus. O caso em específico é de duas meninas do Pirambu que pegaram o Vila do Mar
saindo do terminal do Antônio Bezerra e, quando elas estavam na Barra do Ceará, os
“pilantras” mandaram-nas descer e “pegaram elas”.

Ainda dentro do ônibus, Tracie resolveu me ligar diretamente para entender melhor a
situação e poder me auxiliar. Tentei explicar mais ou menos por onde estava passando. Pela
janela reconhecia o lugar, que estava na avenida Francisco Sá, fronteira entre os bairros
Pirambu e Carlito Pamplona. Já havia passado por aquelas ruas há alguns meses atrás, antes
de me mudar para Porto Alegre. A Francisco Sá é uma avenida de tráfego intenso, apesar de
estreita. Há agências bancárias, hospitais, repartições públicas e, enquanto ela corta o bairro
Jacarecanga, é possível encontrar poucas casas com arquitetura colonial-burguesa, lembrando
que ali outrora fora área nobre, parte da belle époque fortalezense compondo o bairro mais
antigo da cidade. Hoje a paisagem é típica de uma zona comercial de grandes urbes. Calçadas
58

irregulares, poluição visual em decorrência dos diversos pontos comerciais no entorno,


poluição sonora devida a soma do barulho dos carros com as caixas de som fazendo
propaganda das lojas.

Eu estava tranquila por saber me localizar. Em outro momento já havia passado por
ali a pé, na ocasião de visitar um amigo que mora no Carlito Pamplona e, quando
atravessamos distraídas a Francisco Sá, Tássia falou “sim, mas vamo ligeiro que aqui é pista”.
No capítulo 3 veremos mais sobre esta categoria, mas adianto que a avenida é uma zona
litigiosa, que pode ser “pista”, “faixa de gaza”, zona neutra e “rota de fuga”, a depender do
tempo e espaço a que se refere. Com medo de explicar em voz alta exatamente onde estava,
ou que estava passando perto da “casa de fulano”, bem como não queria demonstrar que
“conhecia demais” aquela região, por não saber quem eram aquelas pessoas que estavam
comigo dentro do ônibus.

Evitando alguns detalhes, tentava situar Tracie por pontos de referência mais
genéricos como hospitais ou agências bancárias pelos quais passava. Apesar disso, considero
que ainda cometi o “vacilo” de repetir, diversas vezes, ao telefone que estava na intenção de ir
à praia da Leste, mas que peguei o ônibus errado. O “vacilo” decorre do fato de a praia da
Leste ser conhecida por estar sob o comando da facção Comando Vermelho (CV), que domina
o Grande Pirambu. Em 2019, por vários meses, aconteceu um baile funk na praia da Leste,
onde muitos dos frequentadores eram do CV, mesmo que o local atraísse pessoas de muitos
lugares diferentes, a predominância era deste comando pois estavam “nazária” deles. Assim, a
praia da Leste é uma faixa litorânea conhecida por ter “comando”.

Em meio a essa confusão - de pé no ônibus, falando alto ao telefone e perguntando


informações ao motorista, ao mesmo tempo - passei a chamar muita atenção de outros
passageiros e, assim, passei a notá-los também. Foi então que percebi que, por sorte ou Exu, a
maioria dos que se encontravam no ônibus comigo eram mulheres de idade avançada voltando
do trabalho no Centro. Era um sábado, pouco mais de três da tarde, por conta disto, o
comércio no bairro do Centro fechava mais cedo, fazendo com que aquelas pessoas que
trabalham em horário comercial durante toda a semana, pudessem voltar para casa mais cedo
no sábado.

Em Porto Alegre, Daniela Guedes27 (2019) estudou as relações entre mulheres


negras, empregadas domésticas, que se davam a partir do itinerário do ônibus que as levava ao
27
Trabalho apresentado nos III Encontros Discentes do PPGAS/UFRGS em 2019.
59

trabalho partindo da periferia até a zona nobre da cidade. Em determinado horário, era notável
que as passageiras estavam indo ou voltando do trabalho, por pegarem sempre o mesmo
ônibus, no mesmo horário e terem o mesmo tipo de emprego, elas passavam a se relacionar
compartilhando experiências da vida pessoal e profissional, estabelecendo uma rede de
solidariedade. Quando do meu infortúnio, algumas passageiras tentaram me ajudar
perguntando para onde eu tinha intenção de ir e para onde eu teria que ir agora, já que errei o
ônibus.

Depois de muitos ruídos atrapalhando a comunicação, conseguiram me explicar onde


eu deveria descer: quando o ônibus saiu da Avenida Pasteur, entrando numa rua, na segunda
parada, em frente a uma escola. Desci. Ao descer avistei Tracie de longe com um sorriso
esbaforido e, ao se aproximar, disse “já tava chorando, achando que minha amiga ia ficar
careca”. No comentário de Tracie havia um tom de brincadeira, contudo, fazia referência a
uma realidade constante. A prática de raspar a cabeça de meninas em situações como essas é
comum.

Andando pelas ruas do Pirambu até chegarmos em sua casa, Tracie ia me


apresentando o lugar onde estávamos: “pra lá é a [avenida] Theberge, onde já é faixa de
gaza”. A avenida Theberge é conhecida desde o fim da “paz” como lugar onde as meninas
eram sequestradas e levadas para o “cheiro do queijo”28. À oeste da Theberge, onde não faz
mais parte do Pirambu, fica a favela dos Coqueirinhos, lugar conhecido por ser “o matadouro
das mulheres”, “era pra onde os pilantra levavam as meninas que queriam matar”. Na época,
os Coqueirinhos estavam sob o domínio da GDE, porém recentemente foram tomados pelo
CV, um dos colaboradores desta pesquisa fez parte da invasão.

***

É fato que, este capítulo, põe em questionamento a posição do antropólogo como


aquele que analisa uma realidade específica através dos aspectos estritamente intelectuais da
experiência humana. Em sua tese, Grillo (2013) interpreta a posição de ser “afetado”, onde
Favret-Saada (2005) adquiriu um espaço dentro do sistema de feitiçaria, na condição de
antropóloga que estuda o “mundo do crime”, ser afetada pressuporia o rompimento de
barreiras éticas. Contudo, meu foco aqui nunca foi atingir nenhuma inserção com o dito
“mundo do crime”. Mas, para meu corpo, há um lugar nas formas de territorialização da

28
Expressão local para indicar lugar longe, perigoso e de difícil acesso. Nos casos de assassinato pelas facções, é
muito comum usarem essa expressão para indicar que levaram alguém para ser morto.
60

favela, dada a minha condição de ser - mulher e negra. Habito, assim, um lugar nesta
comunidade moral: o de vítima em potencial.

Nesta perspectiva, retorno às contribuições de Das (1995). É possível trazer essa dor
para a esfera pública, sem o intermédio das profissões que regulam, tapam, adulteram as
vozes das vítimas? Coube aqui fazer uma “antropologia curativa”, parafraseando Das, onde a
partir das experiências de sofrimento compartilhadas, não serviram para consolidar uma
autoridade da etnografia, mas passou a ser uma ocasião para construir corpo, no caso, o meu.

Resgatando as palavras de Jimeno (2008) sobre comunidade emocional, como lugar


onde se cria um espaço de compartilhamento entre narrador e ouvinte, onde há uma troca de
“conteúdo simbólico e, acima de tudo, se estabelece um laço emocional que promove a
reconstituição da subjetividade que outrora fora ferida” (tradução minha, p. 276/7). Este
capítulo propôs um “conhecimento envenenado” como recurso teórico-metodológico,
discutido a partir da ideia de “ser afetado”, ocupando o lugar de mulher negra em trânsito na
Costa Oeste da cidade de Fortaleza. O conhecer mediante a dor, não só a minha, mas a de toda
uma comunidade emocional que partilha comigo a experiência de existir em contexto de
guerra. Não à toa escolhi os versos de Subconsciente em Pauta para ser uma das epígrafes
deste capítulo: foi preciso aprender, com respeito, a atravessar a favela.

Estas foram algumas considerações iniciais sobre os trajetos, percursos e percalços que
fazem parte da realidade das juventudes periféricas de Fortaleza, sobretudo da Costa Oeste.
No próximo capítulo, apresento o contexto e o universo de pesquisa. Será abordado um pouco
da história dos bairros que foram etnografados, relacionando onde for possível, e preciso, com
o contexto atual.
61

CAPÍTULO 2 - A PAZ E A HISTÓRIA DA COSTA OESTE

Amam Bob Marley, eu sou Peter Tosh


A paz é o diploma que se recebe na morte
Cachorraz Kamikaze - Tasha & Tracie (2019)

2.1 Costa Oeste

As periferias de Fortaleza, capital do Ceará, ao longo da história da cidade, foram sendo


habitadas por retirantes que migraram de cidades do interior do Estado para a capital, numa
tentativa de ascensão social através de melhores empregos e oportunidades (Sá, 2009). As
favelas à beira-mar, onde Leonardo Sá (2009) concentrou sua etnografia para a tese de
doutorado, foram gradativamente passando de vilas de pescadores, formadas por
trabalhadores e sujeitos racializados (miscigenação entre descendentes de indígenas e negros),
para um complexo de bairros periféricos.

Com o Pirambu não foi diferente. Numa época em que o saneamento básico em toda a
cidade era precário, o mar servia apenas como destino final para o escoamento dos dejetos da
população (Silva, 2006). Era um período em que não se tinha o fato de morar na orla como
sinônimo de luxo. Assim, numa parte mais afastada do Centro, um campo de concentração foi
construído para alojar os flagelados da seca - retirantes que vinham do interior do estado à
procura de melhores condições de vida, devido à precariedade que se tornou o sertão das
secas de 1915 e 1932. O campo de concentração era conhecido como Campo do Urubu, pelo
poder público, entre os populares era tido como Curral Humano, tamanha era a
desumanização a qual foram submetidos milhares de sertanejos (Cavalcante, 2016).

Antes da construção do Campo do Urubu, haviam poucos barracos, ocupados por


pescadores, na longa extensão da orla que hoje compreende o bairro. O “povoamento” do
Pirambu teve início com a migração massiva de pessoas empobrecidas pela seca e abandono
do poder público (mesmo que o Departamento de Obras Contra a Seca exista desde o ano de
1909, cuja sede é em Fortaleza), atrelada a construção dos campos de concentração que
visavam unicamente impedir que esta população flagelada se integrasse à Fortaleza da belle
époque.

Importante salientar que, na época, Fortaleza tentava se encaixar nos padrões europeus,
sobretudo franceses, de urbanização. O bairro Jacarecanga, que fica entre o Centro e o que
atualmente é o Pirambu, era então a zona nobre da cidade. Ainda hoje é possível encontrar
pelo bairro edificações que remetem à arquitetura colonial européia.
62

Em concomitância aos remanescentes da seca, que viviam em condições miseráveis, a


avenida Francisco Sá, que corta o bairro Jacarecanga até a Barra do Ceará, passa a ser um
pólo industrial da cidade, atraindo trabalhadores do operariado que preferiram se estabelecer
naquela região próxima às fábricas. A construção do campo do Urubu, impedindo que a
população que vinha do interior se alastrasse naquela zona, juntamente com os operários e
trabalhadores assalariados que passaram a preencher ainda mais a região, passou a incomodar
os moradores mais ricos da cidade que estavam logo ao lado.

O grande número de pessoas vivendo em condições massacrantes, seja pela miséria da


última seca, seja pelas condições de trabalho na indústria, fez do Pirambu um terreno fértil
para o recém nascido Partido Comunista Brasileiro, o Partidão. Por volta de 1940 a 1950, o
PCB foi um importante fator de impulsão de mobilizações no bairro, fazendo do Pirambu um
lugar até hoje conhecido como símbolo de resistência e luta dos movimentos sociais, por
direito à terra e moradia digna. Na década de 50, a presença e o trabalho do Partidão no
Pirambu fez com que o bairro passasse a ser encarado como um problema para o poder
político, que já aspirava o clima de véspera do golpe militar. Nesta época, o Pirambu e o PCB
passaram a ser alvos de repressão da política institucional.

Foi quando, em 1958, a Igreja Católica temendo as aspirações socialistas dos


moradores, envia para trabalhar no Pirambu o correligionário Dom Hélio Campos. O padre
originário da cidade de Quixeramobim - sertão central do Ceará, cidade onde também nascera
Antônio Conselheiro, líder de Canudos - fora designado pela congregação para a paupérrima
região da Costa Oeste, com o fim de “impedir o serviço dos comunistas” (Cavalcante, 2016).
Este padre se torna então um dos principais personagens da história do bairro, sendo o maior
vínculo entre a população e o poder público (Nogueira de Oliveira, 2013). Dom Hélio
Campos era conhecido por sua abnegação e trabalho com as populações empobrecidas. O
missionário encontrou o Pirambu em péssimas condições de analfabetismo e miséria.

Além de todo o trabalho religioso e missionário do padre, também estava o papel de


mediador de conflitos, visto que as intrigas eram frequentes seja de ordem pessoal ou questões
por um pedaço de terra e melhores condições de vida. O padre pregava certa união entre os
moradores, não permitindo tratamento desigual entre eles e os poucos direitos paulatinamente
alcançados, sendo a ele (e a Igreja) conferido um certo papel de gestor da urbanização do
bairro. Junto a ele, se somaram ao trabalho pessoas do Serviço Social, área emergente na
época com a recente criação da Escola de Serviço Social. Uma personagem importante na
63

educação e evangelização do bairro, junto ao padre, foi Aldaci Barbosa, uma jovem estagiária
das fábricas que, insatisfeita com seu trabalho que se configurava apenas em desarticular as
ações dos trabalhadores sindicalizados, é convidada por Dom Hélio Campos para trabalhar
com a Igreja.

As ações do Serviço Social eram significativas no bairro. Em conjunto com a Igreja, as


trabalhadoras passaram a adotar políticas assistencialistas de amparo à população, fator que
também influenciou no enfraquecimento do Partidão no Pirambu (Cavalcante, 2016). As
assistentes sociais eram uma presença tão constante no bairro junto a Igreja que passaram a
ser conhecidas no local como “as mulheres do padre” (Silva, 1999 apud Cavalcante, 2016).

A influência do Partido Comunista Brasileiro e dos ideais de reforma social-cristã, na


figura de Dom Hélio Campos, juntas se tornaram na vida política do morador uma nova forma
de atuação e mobilização, sendo berço para o surgimento das lideranças comunitárias
(Nogueira de Oliveira, 2013). Foi quando houve a Marcha do Pirambu, em 1962. Os
moradores saíram em marcha do bairro até o centro da cidade para reivindicar ao poder
público a desapropriação das terras do Pirambu, que estavam sendo declaradas como posse
dos herdeiros de Antonio Joaquim de Carvalho e Braga Torres29.

A imprensa e os políticos locais estavam entre o temor e a incredulidade, quando o


padre “advertiu” que a população iria em marcha reivindicar suas terras. Assim nos conta
Nogueira de Oliveira (2013), sobre a “Marcha do Pirambu Sobre a Cidade de Fortaleza”:

o movimento se concretizou no dia 1 de janeiro de 1962, quando a população do


bairro, após a celebração de uma missa no pátio à frente da Casa Paroquial às 16
horas, saiu marchando pelas ruas da Cidade, indo pela Avenida Francisco Sá,
prolongando-se pela Rua Guilherme Rocha, Sena Madureira e finalmente Conde
D’Eu, onde os manifestantes de forma pacífica passaram a ocupar os espaços da
Praça da Sé. [...] A multidão de aproximadamente 30 mil pessoas conduzindo faixas,
cartazes e gritando palavras de ordem por uma Reforma Social, assustaram os
comerciantes que fecharam seus estabelecimentos e até as portas da Igreja da Sé
foram fechadas, pois Arcebispo Metropolitano, Dom Antônio de Almeida Lustosa
nunca assistira uma aglomeração tão grande de pessoas em tal espaço. (p. 5-7)

Contudo, a mobilização histórica da população não foi suficiente para conseguir a


desapropriação das terras, sendo necessário o padre em primeira pessoa contatar ministros,
governadores e pessoas de alta patente do poder na época, apelando pelas famílias que seriam
desalojadas e expulsas do Pirambu. Foi quando o então governador do estado do Ceará,

29
Conferir no Portal de Legislação o decreto nº 1058/62 de desapropriação das terras. Disponível em:
https://www.diariodasleis.com.br/legislacao/federal/77560-declara-de-utilidade-publica-para-desapropriauuo-dua
s-ureas-de-terra-situadas-no-bairro-de-pirambu-em-fortaleza-capital-do-estado-do-cearu-necessurias-a-melhoram
ento-habitacional-de-grande-centro.html. Acesso em 18 de dezembro de 2021.
64

Virgílio Távora, assinou o decreto de desapropriação por ele denominado como a “carta de
alforria do Pirambu’’ (Távora, 1986 apud Cavalcante, 2016).

Durante a ditadura civil-militar, as forças políticas do bairro, centradas nos movimentos


sindicais e lideranças comunitárias, foram aos poucos sendo minadas. Com intuito de
desarticular a resistência do bairro, pessoas foram mortas, desaparecidas ou presas. A Igreja,
em conjunto com as forças de repressão, trataram de enviar o padre Hélio Campos, em 1969,
para o Maranhão e assim a paróquia do bairro foi dividida em duas, a antiga da Nossa
Senhora das Graças e a do Cristo Redentor (onde hoje fica localizada a favela da Colônia),
transformando assim o bairro em dois.

Resistindo às inúmeras tentativas de higienização e remoção, a população do Pirambu


permanece. Contudo, há alguns anos foi acometido pelas obras do projeto Vila do Mar, que
vislumbra uma revitalização de toda a orla da Costa Oeste. Para implementação das obras do
projeto da prefeitura, foi necessária a remoção de parte da população que vivia em condições
ainda mais pauperizadas, aqueles que moravam próximos à praia.

É neste processo de remoção e migração dos moradores do Pirambu para outras áreas
que nasce a favela do Barramar. Moradores remanescentes das obras do Vila do Mar no
Pirambu - sobretudo da região da Areia Grossa, primeira parte a sofrer com a remoção -
passaram a ocupar uma área próxima ao conjunto Hermes Pereira, na Barra do Ceará. O local
fica entre o córrego da avenida Francisco Sá e o Centro de Treinamento do Ferroviário, time
de futebol tradicional originário da Barra do Ceará.

Outra evidência convergente ao que discutimos anteriormente sobre a importância das


moralidades locais no processo de aderência aos grupos faccionados, é que o Barramar, pelo
menos no decorrer desta pesquisa, era uma das poucas favelas da Barra do Ceará a estar sob o
domínio do Comando Vermelho. Apesar das crescentes investidas do CV nos últimos
conflitos, a Barra teria certa predominância da GDE, mas não chega a ser como o Grande
Pirambu: “fechado de ponta a ponta”.

Contemos então, a partir de agora, a história da Barra do Ceará, que, diferente do


Pirambu, data de séculos antes, sendo o bairro mais antigo de Fortaleza. A historiografia
oficial costuma iniciar a narrativa partindo dos registros da chegada de algum branco
colonizador, deste ponto de vista, a Barra do Ceará data do ano de 1603. No entanto, povos
indígenas habitavam aquela região, que vai do Rio Ceará até o mar, desde muito antes.
65

Estudos indicam que os primeiros seres humanos a habitarem esse território podem
ter chegado por lá há cerca de 2.000 anos atrás. Até o ano 1.000, aproximadamente,
a região era habitada pelos índios tapuias. Nessa época, os mesmos foram expulsos
para o interior do continente pelos índios tupis procedentes da Amazônia. É um
desses povos tupis o povo indígena mais identificado com o território de Fortaleza: o
potiguara, povo de língua tupi retratado por José de Alencar em seu livro “Iracema”.
[...] O início da ocupação do território, onde hoje se encontra Fortaleza, data do ano
de 1597/98, quando um ramo da etnia potyguara que habitava a região ao redor do
Forte dos Reis Magos migrou e estabeleceu-se na região entre as margens do rio
Cocó e rio Ceará, tendo ao fundo as serras de Pacatuba e Maranguape. (Rede Unida,
2013)

Tomarei marcos importantes para contar a história do bairro, partindo do conflito entre
os donos das terras, os potyguaras, e os invasores europeus - portugueses e holandeses. O
contexto era de guerra entre Portugal e Holanda pelo domínio das capitanias do Nordeste. É
importante ressaltar que na época, a capital do Ceará era a cidade de Aquiraz, litoral leste do
estado. Então, os conflitos estavam, de certa forma, afastados do centro colonial. Isto também
é um fator importante para a mobilização política dos povos indígenas da Barra do Ceará,
visto que aquela região era uma capitania afastada, pobre e esquecida pelos portugueses e
holandes, em meados de 1630 (Martins, 2009).

A Fortaleza era berço de conflitos sangrentos entre os povos originários e os perversos


colonizadores portugueses. Os holandeses, no entanto, já haviam se estabelecido no Maranhão
e em Recife, em 1630. Entre uma zona portuária e outra, as tropas neerlandesas costumavam
parar na costa cearense para reabastecer antes de seguir seu curso.

A Companhia das Índias Ocidentais Holandesa (Westindische Compagnie, ou WIC),


através de sua política indigenista, tentava fazer com que os indígenas cearenses se juntassem
à eles na luta para derrotar os portugueses, por muitos anos sem sucesso. Foi quando, em
1637, um grupo de 40 indígenas cearenses chegou ao Recife pedindo colaboração à WIC para
expelir os portugueses da região. A embaixada indígena ofereceu aos holandeses, em troca de
seu apoio para atacar os portugueses do forte de São Sebastião, localizado onde hoje é a Barra
do Ceará: o castelo, às margens do rio Ceará, e as terras próprias para plantar algodão e para
extração de sal. O excelente artigo de Guilherme Saraiva Martins (2009) foi base para estas
informações:

Não há informações claras dos motivos pelos quais Diogo Algodão e os outros
Potiguara tomaram a decisão de atacar os soldados portugueses do Forte de São
Sebastião e, conseqüentemente, de chamar a WIC ao Ceará para ajudá-los na tarefa.
O mais provável é que o azedamento das relações entre os Potiguara e os
portugueses no Ceará tenha sido fruto de um período relativamente longo de
tentativas de forçar os índios ao trabalho compulsório, uso de suas roças para
alimentar os soldados do forte, violência sexual contra as mulheres indígenas e
outras desavenças de caráter pessoal entre os índios e os soldados. É possível que os
66

Potiguara também raciocinassem que os neerlandeses seriam melhores parceiros


comerciais do que os portugueses, podendo oferecer maior variedade e qualidade
das mercadorias de troca que tinham enorme importância nas relações entre
indígenas e europeus por todo o Brasil [...]. (p. 5)

No entanto, as relações entre os indígenas potyguar e WIC não permaneceram


apaziguadas por muito tempo. Martins (2009) traz como fontes as cartas entre os holandeses
relatando o principal ponto de divergência entre eles: as relações de trabalho. A população de
colonizadores na região era ainda muito baixa e, por muito tempo, sua política indigenista não
conseguia mobilizar a população para realização de grandes obras, inclusive a reforma do
forte São Sebastião. Apenas com a chegada de um holandes chamado Geodon Morris, que
havia sido preso no Maranhão e era fluente em tupi, é que houve uma certa alavancada na
colaboração entre os potyguar e os interesses da colônia. Muitos indígenas foram enviados
para o Maranhão a fim de lutar ao lado dos holandeses, tais combates levaram apenas à morte
destes povos, sendo derrotados em todos.

O acampamento da WIC do Maranhão é também um antro de maus-tratos e


desmandos contra os seus próprios aliados indígenas, situação repetidamente
informada pelo próprio Gedeon Morris de Jonge para o Conselho Supremo no
Recife, sem maiores conseqüências. Um oficial inglês a serviço da Companhia,
Johan Maxwell, chega a levar cerca de vinte índios do Ceará, aliados da Companhia,
num barco para o Caribe e os vende como escravos lá. Para piorar, uma praga de
“bexigas” atinge o Brasil em 1640-1641 e causa alta mortalidade entre os índios do
Ceará. (Martins, 2009, p.7)

Em virtude destes três anos da chegada de Morris, com inúmeras atividades que levou
ao aumento da mortalidade dos povos potyguar, o “commandeur” e seus soldados foram
assassinados em revolta dos povos indígenas. Como conta Martins (2009), não se sabe
exatamente como se deu o ataque, nem quem foram os autores do massacre, pois
simplesmente não houve sobreviventes no lado europeu para registrar a história. O que os
historiadores sabem é que, muito provavelmente, os mesmos potyguar que chamaram os
holandeses para suas terras em 1637, destruíram a guarnição dos fortes e atacaram as
embarcações neerlandesas que atracaram na Costa Oeste.

Foi numa daquelas transições entre o Recife e Maranhão, no final do ano de 1643 e
início de 1644, que as embarcações holandesas foram dizimadas pelas populações indígenas
locais. Isto aponta para o fracasso da política indigenista holandesa, que acreditava ser
possível “civilizar” os povos indígenas do Brasil de maneira pacífica desde que lhe garantisse
a liberdade e que, ipso facto, estes povos deveriam abraçá-los contra a opressão portuguesa.

A antiga “liberdade” que tinha sido prometida e garantida aos índios era, agora, vista
como fonte de problemas. Era fácil defender a liberdade indígena em panfletos
quando se esperava que os índios, por sua própria vontade, seriam fiéis súditos das
67

Províncias Unidas, sendo muito mais difícil defender essa liberdade quando ela batia
de frente com os interesses da metrópole. A revolta dos índios do Ceará, em 1644,
pode ser encarada como o primeiro sinal claro desses problemas que vinham em
gestação. (Martins, 2009, p. 8)

Podemos ver então, que a região que compete a foz do Rio Ceará e o mar, dando
início ao que conhecemos hoje por pela Barra do Ceará, foi palco de lutas que marcaram a
história da construção do estado. Poderia ter optado por contar a história do bairro em duas
vias: a primeira, pela paisagem paradisíaca, como se fosse um espaço vazio, de belezas
naturais exóticas, ou a partir da história de algum português que embarcou por ali, instaurou o
forte São Sebastião, pois era o santo do dia (20 de janeiro), rezou uma missa e fim. Contudo,
como aponta Martins (2009), os povos potyguar da Barra do Ceará foram imprescindíveis nas
tomadas de decisões da política regional:

Não só a existência de uma ativa política indígena frente aos europeus está
abundantemente demonstrada, pode-se inclusive argumentar que a situação de
prolongada guerra entre a Coroa portuguesa e a Companhia das Índias Ocidentais
Holandesa permitiu que determinados setores da população indígena, por algum
tempo, virassem ao avesso a tradicional estratégia das potências européias de
explorar as divisões entre os povos indígenas. (p. 4)

Como já falei, a história oficial parte de outros personagens para construir sua narrativa.
Talvez por isso, a narrativa oficial é de que a cidade de Fortaleza tem 295 anos, tendo sido
fundada em 13 de abril de 1726. Sua fundação se deu em decorrência de outra expedição
holandesa, às margens do rio Pajeú e desta vez o povoado foi elevado à condição de vila
(Rede Unida, 2013). No entanto, a história da Barra do Ceará indica a existência de forças
políticas em embate que mudaram os rumos do processo de colonização.

Com base no conceito de drama social de Victor Turner, Ferreira (2013) analisa a
dinâmica política básica dos Terena frente às políticas indigenistas do Estado brasileiro entre
os anos de 1960 a 2006. Na obra, o autor demonstra que não houve um desaparecimento das
antigas formas de organização política dos povos indígenas com a situação de reserva, pelo
contrário, o evento reflete um processo dialético entre o estado e a lógica segmentar dos
Terena, o que culminou numa descentralização faccional.

Diante do exposto, pensamos junto com Ferreira (2013) de que é imprescindível nos
atentarmos a estas situações de conflitos, pois elas servem de pano de fundo para formar o que
ele chama de processos (desarmônicos). Uma série de acontecimentos e situações sociais, que
dizem respeito às lutas locais em interação com as forças hegemônicas do poder político, não
podendo ser esquecidas, anuladas, mesmo quando se atenta aos dias atuais, pois as formas de
68

organização política partem destes processos, e não são aniquiladas em detrimento de outra
ordem.

Diante do exposto, o universo desta pesquisa se deu nos trânsitos entre o Grande
Pirambu - um complexo de favelas, que “fecham de ponta a ponta” com o CV - e a Barra do
Ceará (que tem predominância da facção cearense Guardiões do Estado, a “GDE”), a partir do
reggae de praça, em especial o que se localiza no Barramar (CV). Segue mapas da região.

Figura 8: Pirambu.

Fonte: Shape Fortaleza em Mapas, alterações da autora

Figura 9: Barra do Ceará.


69

Fonte: Shape Fortaleza em Mapas, alterações da autora

2.2 A Paz

Foram muitos os percalços que me atravessaram até chegar na delimitação do objeto


de pesquisa que aqui será trabalhado. Neste segundo capítulo, faço uma revisão da minha
trajetória acadêmica no âmbito da sociologia e passagem para a antropologia da violência,
refazendo alguns passos para narrar o amadurecimento da pesquisa e a lapidação do campo.
Foram necessários muitos anos de dedicação ao tema e muitas orientações para transformar o
problema "sociológico" da pesquisa em uma questão antropológica, para se chegar ao clichê
necessário a aspirante à antropóloga: “a tese da tese”. Foi, portanto, no fazer etnográfico que
tomei corpo de antropóloga, depois de uma trajetória inteira na sociologia.

Então lhes apresento a pesquisa desde seu cerne até onde ela me levou, mas isso
notadamente parte de uma perspectiva mais ampla, complexa e abstrata para posteriormente
chegarmos na concretude dos fatos. Ou seja, aqui neste capítulo trago as questões que me
despertaram para pesquisar gênero nas dinâmicas criminais, partindo do discurso midiático,
monitoramento das estatísticas de Segurança Pública do Ceará, algumas entrevistas e diário de
campo, explicando o que foi o fenômeno da “pacificação”, porque partimos da sua “queda” e
70

o que foi a faccionalização dos grupos que agenciam práticas incrimináveis em Fortaleza. Até
chegar, esmiuçadamente, em como os espaços de lazer dentro de territórios faccionados está
envolto dessas questões, permitindo ter acesso ao campo de maneira mais concreta e
completa, trazendo questões próprias mas também uma perspectiva menos fatalista sobre o
cotidiano das favelas. Ao final do capítulo, abro um parêntese para recontar a história de
fundação dos dois bairros da Costa Oeste que foram etnografados.

No ano de 2015, eu iniciara a graduação em Ciências Sociais pela Universidade


Federal do Ceará (UFC) e fui alocada por uma bolsa de permanência para cotistas e
estudantes de baixa renda para trabalhar no apoio técnico do Laboratório de Estudos da
Violência (LEV). Nesse início de curso e de bolsa, o maior intuito era me familiarizar com a
dinâmica de laboratório e da vida acadêmica. Foi quando o LEV recebeu a demanda da
pesquisa “Pensando a segurança” do Ministério da Justiça.

Cada professor reuniu uma equipe de bolsistas e fomos nos dividindo para
acompanhar as entrevistas. A pesquisa não chegou a ser completada, mas foi minha primeira
inserção como pesquisadora em um bairro da Costa Oeste, o Pirambu. Na ocasião, ao lado do
professor Luiz Fábio S. Paiva30 (PPGS-UFC), fomos para uma escola de ensino fundamental
situada no bairro, que recebia projetos da Secretaria Municipal de Segurança Cidadã (Sesec),
e conversamos com algumas mulheres moradoras da região. Foi a primeira vez que ouvi falar
sobre a “Paz”. Ali, entre as entrevistadas, havia discordância e diferentes narrativas: umas
diziam que o pacto era temporário, que não podia-se confiar, pois, “como é que vai confiar
numa paz decretada por bandidos?”; enquanto outras narrativas desenhavam um plano de
acordo entre lideranças locais e comemoravam a unificação do Pirambu, algo inédito na
história recente do bairro. (diário de campo, 2015)

O Pirambu é a sétima maior favela do país. Hoje em dia, jovens moradores bradam
pertencer ao “Grande Pirambu, um complexo de favelas” e é assim que vou reverenciá-lo ao
longo deste texto: um complexo de favelas. Dentro do Pirambu existem várias subdivisões,
que anteriores a “Paz”, eram fragmentos de bairro rivalizados por gangues. Para citar algumas
das partes que compõem o Pirambu, temos a Areia Grossa, Cacimba dos Pombos, Caldeirão,
os Abel, dentre outras denominações que não passam de um aglomerado de ruas ou becos.
Quando a “Paz” foi decretada, em festa e passeata na “pracinha do Abel”, todas estas
delimitações passaram (ou voltaram) a ser uma só.
30
Professor Associado alocado no Departamento de Ciências Sociais da UFC. Doutor em Sociologia pela
Universidade Federal do Amazonas e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV).
71

O “Grande Pirambu”, no entanto, engloba bairros adjacentes como o Carlito


Pamplona, as narrativas são controversas, mas pode-se dizer que esta aderência identitária de
pertencimento ao Pirambu se deu também através da aliança faccional, visto que o “Grande
Pirambu” vai apenas até onde o grupo que lhe comanda domina - ou seja, é Pirambu até onde
é “tudo 2”. Estes detalhes ficarão mais evidentes no decorrer do texto.

Como já falei em outras ocasiões (Lourenço & Santos, 2019)31, a semente que deu
origem a este trabalho veio da participação nos projetos de pesquisa e intervenção junto ao
LEV, por volta do ano de 2017/18, todos sob orientação de Luiz Fábio. No projeto de pesquisa
“A guerra por outros meios: transformações sociais do crime em Fortaleza”, o foco estava nas
mudanças nos modos de fazer o crime em coletivo a partir da “pacificação”32, entendendo o
fenômeno a partir da ideia de “maneiras de fazer” de Certeau (1994, apud. Paiva, 2019, p.3).

O recorte temporal desta dissertação parte do período logo após a “queda da


pacificação”, em 2017, e vai até o motim da polícia militar do Estado do Ceará, em fevereiro
de 2020. Contudo, quero tecer algumas considerações ainda sobre este processo que foi a
“Paz”. A “pacificação” é uma alcunha forjada pelas agências midiáticas, que logo se tornou
jargão entre pesquisadores da área, no momento em que o assunto facção passou a fazer parte
do debate público (Pires, 2018). É interessante notar que, nas favelas, o assunto era a “paz”,
contudo, como apontou Pires, os meios de comunicação hegemônicos perpetuaram essa
palavra “pacificação”, que foi muito bem atendida pela academia.

João Pacheco de Oliveira (2018) vai elencar alguns dos usos deste termo, pois a
“pacificação” atravessa a história de construção do nosso país enquanto nação. É uma palavra
que serviu, e serve até hoje, para intitular políticas que visam “amansar” populações inteiras
que, supostamente, não correspondem aos códigos morais impostos pela dominação ocidental.
O autor traz o termo até o recente uso do aparato ostensivo estatal, que tem por objetivo
solucionar questões de segurança pública - sobretudo no Rio de Janeiro, que é o contexto
etnográfico ao qual se refere. Aparentemente, as formas de governamentalidade tem se
apropriado deste léxico colonial para atualizar o “Outro” nacional.

Trata-se de uma categoria central, que atravessou cinco séculos, da história colonial
ao Brasil republicano, sendo unicamente utilizada para a população autóctone, que,
por suposto, seria regida por valores e padrões de comportamento absolutamente
diversos dos ocidentais. [...]As expressões utilizadas pelos governos para dar conta

31
Ver trabalho publicado nos anais do ENAP 2019. Lourenço & Santos, 2019, p. 40-49.
32
Muitos são os trabalhos sobre o assunto no Ceará, para aprofundamento sugiro ver SÁ; ACCIOLY; REIS, 2016
e BARROS et al., 2018.
72

de segmentos marginalizados nunca destacaram de forma tão radical e acentuada


uma alteridade – desta feita aplicada a grupos sociais que existem no interior de uma
mesma nação. (p. 319-320)

No contexto cearense, a categoria corresponde ao momento em que vários coletivos


criminais de diferentes estados passaram a atuar nas ruas de Fortaleza conjuntamente, através
de um “pacto” estabelecido entre eles, cujo lema ficou conhecido como “paz, justiça e
liberdade”. Contudo, saliento a forma como o discurso oficial midiático, amplamente
difundido e apropriado, aparenta certo fetiche sobre o fato de que coletivos criminais de
“fora”, sobretudo do sudeste do país, vieram para “pacificar” o “crime cearense”. Luiz Fábio
Paiva (2019), possui um importante artigo sobre tema e, em diálogo com outro artigo já
mencionado aqui de Barros (2018), coloca:

A “pacificação” foi um fenômeno ambíguo, pois operou, por um lado, a diminuição


sistêmica e significativa do número de crimes de homicídio e, de outra parte, a
continuidade não apenas de assassinatos como o desaparecimento da tortura como
meio de controle social dos que fazem o crime na periferia. [...] As proibições de
assalto foram a primeira marca significativa do trabalho das facções nas periferias.
Produziram como efeito a ideia de que as comunidades estavam seguras, livres de
assalto. Proliferaram pichações com a sentença “se roubar na favela vai morrer” e se
criou a ideia de que as facções protegiam a comunidade, evitando os roubos de
moradores. Ao mesmo tempo, os limites territoriais herdados dos tempos das
gangues foram desfeitos. As facções tornaram possível que moradores de uma
comunidade que era inimiga pudessem circular e conviver uns com os outros. (p.
18-19)

Os inúmeros trabalhos que se dedicaram a falar sobre este fenômeno apontaram para o
que me parece óbvio: a paz não foi pacífica. Pires (2018) traz diversos depoimentos de
moradores e agentes envolvidos ativamente em práticas ilícitas no bairro Grande Tancredo
Neves (GTN), onde se narra a imposição à aderência aos coletivos. Aqueles que não
“vestissem a camisa” de um outro grupo, ou seja, se integrasse a ele, eram mortos ou
"espirrados" da favela. Os depoimentos narram a chegada de homens fortemente armados,
com porte físico “diferente” daqueles que os sujeitos estavam acostumados a ver agenciando
os mercados ilegais na periferia.

A paz foi apenas o primeiro derramamento de sangue, executando aqueles que


agenciavam as práticas ilícitas locais e que por ventura viessem se recusar a “vestir a camisa”
de uma facção. Fato que nos faz voltar mais uma vez à contribuição de Pacheco de Oliveira
(2018), visto que o derramamento de sangue que instaurou o processo de faccionalização do
“crime” no Ceará, foi chamado de “pacificação”, reiterando a ideia de assimilação e unidade
que constitui o imaginário da nossa nação desde sua fundação.
73

É muito geral e difundida a representação sobre o Brasil como produto de um grande


“melting pot”, um caldeirão que cozinha, assimila e unifica uma enorme diversidade
étnica, racial e regional, dissolvendo contrastes inquietantes e transformando sua
história em uma sucessão de conciliações e compromissos, sem rebeliões e
revoluções sangrentas, sem rupturas violentas. (p. 320)

No que tange a territorialização de Fortaleza, acredita-se que esta foi substancialmente


imposta pelas novas gerências faccionais, advindas de “fora”. E, que a forma anterior de se
“fazer o crime” tenha sido extinta, dando lugar às novas. No entanto, esta pesquisa
demonstrou, como algumas outras também apontam (ver Pires, 2018), que houve agência
nesse processo por parte dos integrantes locais, não foi algo tão suprimido, sobreposto.

Outro dado que enfatiza isto é a relação conflituosa entre o que se tornou o “Grande
Pirambu” e a Colônia - favela que faz fronteira com os últimos segmentos do Pirambu e o
início da Barra do Ceará. A Colônia fica no limiar entre a Barra do Ceará e o Pirambu, mas
existem dúvidas no imaginário dos moradores deste último se ela é pertencente ao complexo
de favelas que faz parte do Grande Pirambu ou não. Tanto é que as representações do
pirambuense sobre a Colônia parecem querer dizer que “lá” predomina outra ordem, distinta
das que eles estão acostumados. A narrativa é sempre de que “lá” é “embaçado”, ou seja,
perigoso. Mesmo antes de se tornarem rivais por facções, o Pirambu e a Colônia já não
tinham uma relação amigável, tendo, portanto, aderido a facções rivais durante este processo.

MV Bill, um personagem que vai aparecer constantemente nesta etnografia, narra como
foi a "escolha" pelo “lado” ao qual iria se adaptar durante o período de “pacificação”, dizendo
que, o "certo" era ter aderido ao coletivo regional “Guardiões do Estado”, GDE, pois este
pregava em seu discurso uma reivindicação pelo “crime local”, não se submetendo às ordens
de grupos de “fora”. Contudo, Bill diz: “mas eles foram pelo errado”, permitiam “assaltar
cidadão, expulsar o povo daqui”. Estas afirmações, por mais que possam parecer parte de um
discurso típico da assimilação para ambos os grupos, nos permitem olhar para as
representações do que é considerado um “crime certo” e outro “errado”. Por este caminho,
considero que os códigos morais preexistentes à faccionalização dos territórios, assim como o
imaginário de pertencimento local, foram cruciais para “escolha” pelo “lado”.

As pessoas que agenciam as práticas ilícitas no Pirambu romperam com a GDE e


“fecharam” com o Comando Vermelho, CV, facção carioca33. Isto denota que há uma

33
Aquela já citada que se identifica como “T2” ou “tudo 2”. Enquanto que sua principal rival, a GDE, usa o
termo “tudo 3”.
74

moralidade local relevante para se pensar a aderência às facções e que esse processo não foi
uma sobreposição de normas, mas uma interação, bastante violenta, entre elas.

Outro fator que constata isto é o que Paiva (2019) diz ser uma característica do CV, de
se gerir a partir das próprias “maneiras de fazer” locais. Portanto, tal ideia, que parece estar
difundida entre diversos setores da esfera pública, de que uma forma de se praticar o “crime”
acabou - fora dizimada, dando lugar a outra - se aproxima novamente da ideia de pacificação
das populações autóctones por meio de políticas integrativas de projeção nacional, assim
como da pacificação das favelas do Rio de Janeiro, como aponta Pacheco de Oliveira:

A “comunidade pacificada”, na visão dos planejadores e nas representações da


mídia, não é só aquela em que se desenrolou uma ação militar para desalojar o
controle do crime organizado, mas aquela em que os moradores e as condições de
vida teriam passado por uma modificação completa, fruto de uma ação supostamente
de natureza civilizatória. (p.337)

É neste contexto que a cidade passa por um processo de reterritorialização. Impossível


tocar neste ponto e não lembrar das palavras de Mbembe (2016) quando trata da relação do
necropoder com a ocupação colonial na modernidade tardia:

a “ocupação colonial” em si era uma questão de apreensão, demarcação e afirmação


de controle físico e geográfico - inscrever sobre o terreno um novo conjunto de
relações sociais e espaciais. Essa inscrição de novas relações espaciais
(“territorialização”) foi, enfim, equivalente à produção de fronteiras e hierarquias,
zonas e enclaves. (p. 38-39)

As disputas entre gangues não foram simplesmente extintas, passaram a ser


fomentadas, alimentadas por grande poderio bélico, e produzindo outras “maneiras de fazer”,
agora num território arregimentado pelas facções. O pacto de paz nas favelas de Fortaleza foi
fundamental para restituir laços entre moradores - pessoas que não se viam há anos, apesar de
morarem há poucas ruas de distância, puderam voltar a se encontrar. No entanto, como os
relatos de moradoras em 2015 já anunciavam, a paz foi temporária e as disputas de território
se perpetuam até hoje. É neste contexto que anuncio que este trabalho inicia sua caminhada
após a ruptura com a paz. Segue algumas considerações de Paiva (2019) sobre ela:

Embora não seja preciso definir a extensão e a potencialidade de cada fato que levou
ao fim da “pacificação”, creio que o ponto crucial de demarcação do seu final foi o
assassinato de Welder Breno Silva Ferreira, de 28 anos, no dia 19 de outubro de
2016. A morte aconteceu no bairro da Sapiranga, no cruzamento das ruas Olegário
Memória e José Félix, e representou um marco no início dos confrontos armados
entre as facções que atuavam no Ceará. Militantes de movimentos de Direitos
Humanos que atuam na Sapiranga declararam, em conversações sobre o evento, que
a morte naquele local era um “sinal”, porque ali era onde o bairro era dividido pelos
grupos que faziam o crime antes das facções. (p. 175-176)
75

O episódio da morte de Welder Breno Silva Ferreira foi entendido como um ato
simbólico para demarcar a quebra de acordo entre as facções PCC e CV a nível nacional, data
logo após ao assassinato de um dos líderes do PCC no Paraguai. O fim da paz culminou no
ano mais letal da história recente do estado, 2017, e desde então a cidade vive em contexto de
guerra. O ano de 2017 é sempre rememorado pelos colaboradores desta pesquisa. Quando do
advento de novos conflitos, quando a “zária tá embaçada” novamente, é comum vir à tona a
fala “tá tipo 2017”. No ano seguinte também. Em 2018, alguns eventos catastróficos foram
pontos críticos para o preâmbulo deste trabalho. O primeiro foi a chacina de Cajazeiras, zona
sul de Fortaleza, onde 14 pessoas foram assassinadas dentro de uma casa de forró, na qual a
maioria das vítimas eram mulheres. Enquanto se falava de uma suposta crueldade
generalizada no ato, por terem vitimado tantas mulheres, os moradores locais diziam que as
mortes eram “esperadas” e elas foram realmente o alvo. Nas primeiras publicações em face
desta pesquisa, trouxemos outros dados:

No dia 28 de janeiro de 2018, vários jornais locais noticiavam o seguinte ocorrido:


“duas adolescentes foram encontradas mortas, amordaçadas e com as mãos
amarradas, no bairro Granja Lisboa, durante a madrugada” (Diário do Nordeste,
2018). No dia 31 de janeiro, uma adolescente de 13 anos foi assassinada no lugar da
mãe que havia sido ameaçada de morte depois de uma desavença pessoal com
vizinhos no bairro Antônio Bezerra, a manchete do jornal O Povo sintetiza o
ocorrido: “criminosos não encontram mãe e executam filha de 13 anos” (O Povo,
2018). No dia 7 de março, a execução de três mulheres, em um mangue de Caucaia,
Região Metropolitana de Fortaleza, foi filmada e antes de serem executadas foram
forçadas a declarar: “Eu tô rasgando a camisa do CV porque não é pelo certo”. A
polícia identificou 3 homens e 1 adolescente como os autores do crime. O mesmo
jornal conta ainda que “as mulheres teriam sido entregues por homens da
comunidade do Morro de Santiago ao adolescente, que as levou para o local do
crime” (O Povo, 2018). (Lourenço & Santos, 2019, p. 43)

Me preocupava, à época, o porquê das meninas e mulheres que estavam sendo mortas
dentro destes conflitos não aparecerem nas estatísticas de Crimes Violentos Letais
Intencionais (CVLIs)34 como feminicídio, dado ao caráter generificado da guerra. Uma
familiar minha, que é agente de Segurança Pública e colaborou com este trabalho, afirma que
as meninas [comprometidas] que foram assassinadas por se envolverem sexual e afetivamente
com alguém de facção rival cometeram uma “dupla traição”. Elas estariam “traindo não só o
cara, mas também o grupo a qual ela pertence”35.

34
Índice criado e alimentado pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Ceará. “Entende-se por CVLI a
soma de crimes de Homicídio Doloso/Feminicídio, Lesão corporal seguida de morte e Roubo seguido de morte
(Latrocínio). Também entram neste índice os crimes por intervenção de agentes do Estado e os ocorridos em
unidades prisionais.” (Lourenço, 2019, p.3).
35
Trechos de entrevista gravada em dezembro de 2019.
76

É certo que a maior contribuição que pude dar naquele projeto, lá em 2018, foi com a
temática de gênero. Na época, minha preocupação estava voltada para diluir o que parecia ser
uma polaridade entre “facções” e “feminicídios”, pois, a partir de literatura mais clássica no
tema das facções, coletivos e práticas criminais na antropologia e sociologia da violência feita
no sudeste (mas não somente) parecia partir particularmente de agenciamento e protagonismo
masculinos36.

Evidentemente há também um campo bem consolidado dentro dos estudos de


violência que se dedica às práticas incrimináveis agenciadas por mulheres37. Estudo seminal
para esta discussão é de Rosemary Almeida, “Mulheres que Matam” (2000). No entanto,
quando o assunto é “violência de gênero” - assassinatos de mulheres e/ou feminicídio -, ou
seja, quando as mulheres são vitimadas e não perpetradoras, parte considerável da literatura
trata de violações no âmbito privado, dentro de relações conjugais e/ou parentais. De maneira
alguma se quer invalidar a contribuição teórica dos movimentos feministas às áreas do direito
e das ciências sociais, como a politização do privado, contudo, a realidade do crime e da
morte de mulheres no Ceará, após a queda da pacificação, pedia um cruzamento dessas
perspectivas e a produção de um novo olhar.

Diante disso, passei a considerar o trabalho não exclusivamente com as mulheres


vítimas de violência, mas também com potenciais perpetradores, independente do gênero,
entendendo assim a relação entre ambos e o contexto no qual está inserido o problema da
violência de gênero em contextos de guerra. Desde então, foi preciso fazer uma delimitação
teórica pouco tradicional sobre feminicídios atrelando-os às questões raciais. Vou trazer
alguns pontos desta discussão.

hooks (2019) traz uma reflexão sobre a dimensão da intimidade nos relacionamentos
que gostaria de ressaltar aqui: trata-se da não identificação com as ideias pré estabelecidas de
vítima e agressor por parte do casal em questão, mas que reflete concepções imbricadas no
imaginário social. Nele, a autora relata um caso pessoal de violência dentro do relacionamento
íntimo, no qual afirma ter tido dificuldade de se entender como vítima, assim como seu
companheiro não se entendia como agressor. Por essa razão, ambos se distanciam do perfil
imaginado e circunscrito pela legislação, dificultando a possibilidade de buscar apoio jurídico
para o caso. bell hooks salienta que essa dificuldade de se encaixarem nos lugares de agressor

36
Ver SÁ, 2011. sobre o ‘bichão da favela’.
37
Cf. Pamplona, 2020.
77

e vítima se dá também pelo fato de que, dentro de um relacionamento íntimo, ambos são
muito mais que vítimas e agressores, e que tais categorias são relacionais e contextuais.

Trabalho sob a ótica de que as vítimas aqui possuem corpos, além de generificados,
também racializados o que obriga a nos atentarmos ao fato de que os meios de comunicação
hegemônicos e o estado, atrelam os feminicídios de mulheres não brancas à guerra entre
facções. Isso ocorre em decorrência de dois fatores: primeiro, o racismo constantemente atrela
o sujeito negro à coletividade, sendo destituído de individualidade, assim, a necropolítica
entra neste jogo para tornar esse coletivo inimigo do estado, como pretexto para o extermínio
- seja físico, moral, ou até mesmo a destituição do acesso aos direitos (Foucault, 1999;
Mbembe, 2016); segundo que em uma sociedade racista e racializada, as mulheres negras não
são concebidas, a priori, como mulheres, senão como negras (Kilomba, 2019; Ribeiro, 2019),
sendo assim desprovidas de gozar dos direitos voltados para as mulheres.

Desta forma, existem duas perspectivas possíveis para se refletir sobre o acesso à justiça
no que tange aos assassinatos de mulheres. A primeira parte das mortes das mulheres não
“envolvidas” mas que, segundo minhas hipóteses, por serem negras e periféricas são
associadas ao “mundo do crime” e, a subnotificação ou até mesmo a não qualificação do
crime de acordo com a lei 13.104/15, ratifica o que seria o “perfil adequado” das vítimas de
crimes de feminicídio, ou seja, como aqueles não atrelados ao espaço público, que seguem
uma linha sucessiva de violências dentro de uma relação afetiva-sexual. E a segunda direção
diz respeito à morte das “envolvidas”, na qual faz o curso contrário, onde o fato de elas terem
participação ativa, serem “batizadas”, que a execução não tenha enunciado e elucidado um
reporte ao gênero.

Indo de encontro a estes pontos citados, Butler (2019), analisa as guerras


contemporâneas com enfoques “nos modos culturais de regular as disposições afetivas e
éticas por meio de um enquadramento seletivo e diferenciado da violência” (p. 13),
ressaltando que não há morte, perdas, lesões e danos, que acometa uma vida que antes não
fora considerada viva. Quer seja as dinâmicas dos conflitos em questão, a vida de mulheres
negras já estava sob condições de precariedade, não sendo figuradas pela norma como sujeito
de direitos.

Sendo “vítima” uma categoria política (Jimeno, 2010), em contexto de sociedades


racistas e racializadas, onde mulheres negras não são vidas passíveis de luto (Butler, 2019),
ainda existe uma longa caminhada a se percorrer antes de disputar a categoria feminicídio. No
78

Brasil, o racismo ainda impede a criação de uma identificação emocional com a vítima
(Jimeno, 2010), portanto, no Ceará as mulheres vítimas de extermínio por parte destas facções
ainda não puderam ser enlutadas.

Preocupada sobre a representação e o (não) reconhecimento jurídico de mulheres


vítimas de violência pelas facções em Fortaleza, escrevi em outra ocasião sobre a questão do
envolvimento de pessoas com as facções no Ceará ir muito além de práticas de ilegalismos;
tal categoria de pertencimento versa sobre identidades e territorialidades em disputa
(Lourenço & Santos, 2019). A despeito da forma como as facções delimitam os seus espaços,
os limites e as fronteiras, uma das principais delas é a “espetacularização da pertença”
(Segato, 2014). É a crueldade expressiva que denota a soberania das forças estatais e
paraestatais e isso é particularmente eficaz no corpo das mulheres.

A etnografia tratou de considerar apenas as questões que partem da rivalidade entre CV


e GDE, visto que são os grupos que predominam nos bairros onde foi feita a pesquisa -
Grande Pirambu e Barra do Ceará. E, considero as facções como um contexto sob o qual se
fez a pesquisa, não me interessa aqui falar sobre “relações criminais” por exemplo, apenas
como a norma foi incorporada pelas juventudes ali presentes, sejam elas praticantes
diretamente ligadas aos mercados ilegais ou não. Existem também outros grupos pela cidade,
assim como também se observou o aparecimento de milícias na capital e região
metropolitana, mas estas questões não serão abordadas aqui.

O fim da paz e agora uma guerra faccionalizada, é o evento fundamental deste


trabalho. Quando da gestação e delimitação do objeto38, não estava dado que as práticas de
extermínio das facções também eram formas de fazer gênero e raça nos territórios, a ponto de
podermos fazer, logo em seguida, um diálogo com as práticas estatais de produzir gênero e
raça (Vianna e Lowenkron, 2018). Diante disto, o suposto envolvimento afetivo-sexual destas
mulheres com pessoas ligadas às facções, o próprio agenciamento e protagonismo delas nestas
ações, ou o simples fato de pertencer ao território e ser conhecida por isso, impediam que a
categoria de vítima pudesse ser acionada frente às negociações institucionais, como a luta da
família por justiça (Jimeno, 2010). Assim, esta pesquisa teve que voltar atrás e rastrear, a
partir do cotidiano das favelas, como as violações das facções se davam no corpo das
mulheres para tomar impulso e retornar ao ponto inicial futuramente.

38
Entendo como objeto as delimitações espaciais e temporais desta pesquisa, como e onde ela se inicia, em nada
se refere aos sujeitos que contribuíram com a realização da mesma. A estes me refiro como colaboradores.
79

2.3 Boca de prata

Esta história começa muito antes da era cristã, quando Moisés escreveu os dez
mandamentos de Deus e um deles dizia: “Não deverás cobiçar a mulher do próximo”. Na
infância, educada como católica, por muito tempo interpretei esta ideia de “próximo” como
sinônimo de seguinte, posterior. Contudo, com a maturidade, veio a descoberta de que este
próximo é na verdade aquele que está perto, junto. Não cobiçais a mulher do teu “chegado”.

Em contexto mais recente que o de Moisés, Adriana Negreiros (2018) na sua obra
sobre gênero e violência entre cangaceiros e suas companheiras que seguiram Lampião
durante a vida39, esboça acerca dos “códigos do cangaço”. Em suas palavras:

No bando, quer tratassem suas mulheres com mesuras, quer as agredissem


fisicamente, os cangaceiros as consideravam suas propriedades. O código do
cangaço previa que as mulheres deviam fidelidade e submissão a seus
companheiros, sendo permitido a eles, quando se sentissem contrariados,
penalizá-las da forma que melhor lhes aprouvesse. Com a morte, inclusive. (p.
75-76)

Negreiros conta que “apesar de o regulamento do bando não permitir puladas de


cerca, nem tudo ocorria conforme as regras” (2018, p.74), antes de narrar o envolvimento de
dois cangaceiros, Balão e Pancada, em um triângulo amoroso, com Maria Jovina - ou como
passou a ser conhecida, Maria de Pancada. Na obra, com base em diferentes relatos e fontes
históricas, Negreiros afirma que, segundo Balão, a relação com Jovina se deu por iniciativa
dela, mas não narra ter havido algum tipo de penalidade entre Pancada, quem sofreu a traição,
e os demais envolvidos no caso (ibid.).

Em voga, a favela tem seu código de conduta sobre relacionamentos sexuais e


afetivos e, é em detrimento disto que este tópico versa sobre a “prateada”. O “Boca de prata”,
aquele que comete uma “prateada”, trata-se do próximo, o conhecido, o “dazária”, ou até um
parente, que se envolve em algum tipo de triângulo amoroso. Em outros lugares, além de
Fortaleza, este pode ser conhecido como “talarico”.

A problemática dos rompimentos contratuais da monogamia está enraizada a ponto


de se fazer presente na música popular40 das mais diversas maneiras. Trago aqui a discussão
de maneira mais ampla pois, diferente dos regulamentos do cangaço, ou dos dez

39
Explicito que o livro Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço é sobre seguidores de Lampião que
o acompanharam em vida visto que, após seu assassinato em 1938, o cangaço em si não acabou.
40
Ver música “Amiga Boca de Prata” da Banda Cristal Quebrado, o gênero musical é o forró de favela.
Disponível em: <https://www.letras.mus.br/banda-cristal-quebrado/boca-de-prata/>. Acesso em 09 de dezembro
de 2021.
80

mandamentos escritos por Moisés, a “prateada”, na prática, não é necessariamente uma regra
entre homens que tomam mulheres como suas propriedades - isto pode ser percebido na letra
da música indicada em nota, onde é ilustrado um caso de traição entre duas amigas dentro de
relações heteronormativas, como por exemplo os versos: “que amiga ingrata/ também boca de
prata/ roubou meu homem de dentro da minha casa”. Portanto, de maneira difusa, são pessoas
que tomam relacionamentos amorosos como contratos de posse e, a partir disso,
estabeleceu-se uma sentença para quem rompe este contrato, que é elucidado nos versos: “eu
já dei a sentença do que fazer com ela/ eu vou surrar a pirangueira na favela”.

Escolhi os nomes fictícios de uma casal que conheci em campo de MV Bill e Kmila
CDD em decorrência da música dos rappers, que são na verdade irmãos, mas construíram
personagens de um casal dentro de um relacionamento conturbado e, a batalha entre os dois
nos versos, ilustra uma briga entre o casal, sendo apresentados os pontos de vista dos dois
lados sempre em tensão. A música nos coloca nas entranhas da relação, tornando difícil tomar
para si a defesa de um lado ou discernir quem está certo ou errado na discussão41. Assim,
foram muitos os dilemas que acompanhei entre o casal de colaboradores desta pesquisa, que
passarão a ser mencionados daqui em diante com os nomes dos rappers, ou simplesmente, Bill
e Kmila.

Certo dia, MV Bill estava em uma barraca na praia da Leste, sentado à mesa entre
amigos homens, quando chega Kmila CDD e o faz companhia entre os demais por um tempo,
depois vai embora. Quando Kmila se retira da mesa, começam os murmurinhos entre eles. Os
rumores eram de que não sabiam que o casal ainda estava junto, visto que ela havia ficado
com outro parceiro, conhecido, próximo de Bill, que morava na mesma rua e possui até certo
grau de parentesco, um primo distante. Em consequência disto, Bill, com o aval do grupo,
buscou o parceiro para tirar satisfações, atitude conhecida como “cobrar o furo”. Este alegou
desconhecimento sobre eles estarem juntos ainda e que Kmila havia garantido que estava
solteira.

Transferindo a responsabilidade para Kmila, o “boca de prata” teve sua penalidade


diminuída mas não desvanecida: obteve as duas mãos quebradas pelo grupo, pois, apesar de
ter sido supostamente enganado quanto ao status de relacionamento atual de Kmila, ele sabia
que ela outrora já fora companheira de Bill e, independente de qualquer coisa, ele deveria
manter um certo distanciamento. No que tange a penalidade de Kmila, esta levou uma surra
41
MV Bill feat. Kmila CDD, Estilo Cachorro 1, 2 e 3. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=_dSKwmMbYq4> Acesso em 09 de dezembro de 2021.
81

na rua como forma de tornar explícito que Bill não deixou passar a traição, apesar de este caso
não ter sido o suficiente para levar ao fim a relação por nenhuma das partes.

Quando Bill contou essa história em sua casa, visivelmente indignado, quis indagá-lo
sobre a questão que guiava meu projeto de pesquisa até então: e se ele fosse “pilantra”? Teria
alguma diferença na forma de lidar com a traição? Contudo, neste primeiro momento, não
quis colocar minhas dúvidas por receio de soar como mais uma afronta à honra de Bill, que no
momento andava abalada.

Discuti sobre isso com Tasha algumas vezes, antes de perguntá-lo. Ela argumentava
que parecia pior, quando se é traído por conhecidos, próximos, pessoas que cresceram juntos:
“nam, não gosto nem de pensar”, foi o que Tasha falou. Coloquei questões sobre que leitura
deveria ser feita desta situação visto que, no “frigir dos ovos'', ele a agrediu fisicamente. Foi
onde Tasha me devolve como resposta: “man, ela não é nenhuma santa. Ela conhece a lei e
sabe que é assim… o proceder”. Foi assim que abandonei minhas próprias convicções
políticas acerca da postura de Bill e me abri à trama.

Conhecer a lei na favela é ter capacidade de agência, nos termos de Mahmood


(2006). Uma agência a partir da norma, que deve ser desvinculada do princípio de reiterar ou
romper com a mesma. Kmila, assim como entende Mahmood, age sobre e com a lei, não
resiste a ela. E, desta forma, também sua ação é interpretada por outros neste contexto, como
é o caso do posicionamento de Tasha sobre o ocorrido. Diante disto, Bill não é um tipo
comum de perpetrador encontrado no discurso oficial sobre violência de gênero, onde o
homem que violenta é incriminável e o faz a partir de características individuais que remetem
ao caráter. Tão pouco, Kmila pode ser lida a partir do modelo binário de
dominação/subordinação que colocavam alguns estudos feministas, sobretudo até a década de
1980. Ocorre que por ter incorporado a norma, Kmila agiu sobre ela desafiando a honra do
parceiro, não com qualquer pessoa, mas com alguém do convívio de ambos. Enquanto que
Bill, reitera a norma com comportamentos performativos ao aplicar as penalidades previstas
pela lei da facção, por efetuar sentenças particulares em cada uma das partes, sendo assim,
sentenças generificadas - visto que Kmila foi penalizada de maneira diferente do “boca de
prata”.

Algumas questões podem ser colocadas no âmbito da autonomia e do consentimento,


neste caso. Pensando com Fernandes (et al 2020) e Mahmood (2006), encaro três formas de
agenciar a norma na mesma situação, a ação de Kmila, a reação de Bill e a reiteração de
82

Tasha. Em nenhuma das três agências em questão, os sujeitos foram autônomos, no sentido de
sujeito liberal, visto que agiram sob égide de uma dinâmica moral bem estabelecida. “Ela
conhece a lei” denota que Kmila possui uma espécie de consentimento sob a norma. Em
contrapartida, a mesma lei não dá a Bill a possibilidade de não aplicá-la, pois ao vir a público,
o caso deixa de ser uma questão própria do relacionamento íntimo entre eles, e passa a ser
uma questão do território que segue um sistema de leis.

Por fim e, sobretudo, gostaria de pontuar que, o fato destas ações serem desprovidas
de autonomia entre os sujeitos perante a lei e, denotarem o seu consentimento sobre ela, não
quer dizer que não houve violência. Pelo contrário, é um exemplo nítido de relações
territoriais generificadas através de uma lei violenta. Além disso, a complexidade dos fatos
ocorridos apontam para uma impossibilidade de se reportar aos meios jurídicos legais, mesmo
que estes tenham previsto situações de violência de gênero. A figura do “boca de prata”
aponta para uma “contradição entre o estado legalmente definido e a legalidade baseada na
comunidade” (Das, 2006, p. 60), além da forma como as rupturas com contrato monogâmico
passam da ordem da intimidade de um casal para a ordem do território.

Como era costumeiro os assuntos retornarem nas visitas que fiz à Bill, o caso veio à
tona e ele parecia menos contrariado, então perguntei, “e se ele fosse pilantra?”. Para minha
surpresa, resultando quase em um desvio de direção desta pesquisa, a resposta dada por Bill
foi: “tava nem aí não, a vida é dela”. É nítido que a resposta dele não desfaz o fato de
inúmeras meninas terem sido assassinadas por conta de traição aos companheiros e ao grupo
que domina os territórios onde vivem, contudo, sua resposta evidencia uma hierarquia nos
códigos e um grau de relevância nas relações estabelecidas entre os seus iguais, entre quem é
“dazária”. Espera-se respeito e consideração dos que pertencem ao mesmo grupo que ele. De
“pilantra”, só espera-se a guerra.

***

Até então, refleti sobre alguns dos problemas que perpassam a questão que norteia esta
pesquisa. O fim do pacto pela paz ocasionou um diferente contexto de guerra racial (Anjos,
2017) e de gênero que foi preciso contextualizar antes de dar prosseguimento às reflexões. A
partir de agora, portanto, trago algumas questões sobre as abordagens teóricas neste campo de
estudo e tensiono as relações de alteridade existentes entre autores e sujeitos de pesquisa.

2.4 Eles descem pro beco pra resolver problemas de condomínio


83

Pires (2018), nos alinhavados iniciais de sua dissertação de mestrado, parte da ideia
de “pobreza da experiência” na sociabilidade moderna, de Walter Benjamin (1987 [1933]),
para refletir sobre as consequências do individualismo liberal ocidental à nível de relação,
experienciada especialmente pelos segmentos das classes médias e altas. O caminho traçado
pelo autor se alinha à uma tradição na sociologia da violência, que vê problemas de segurança
pública - como a sensação de insegurança, uso ostensivo do aparato policial militaresco,
tecnologias e torres de vigilância (Caldeira, 2000), que visam separar e “proteger” alguns
indivíduos de outros - como consequência, à nível de relação, do neoliberalismo.

Para isso, Pires (2018) vai se basear nas teorias do contágio dialogando com
Goffman (2011 [1967]), Natalie Zemon Davis (1990 [1975]), Elias e Scotson (2000 [1965]) e
Douglas (1976 [1966]), que partem de situações etnográficas localizadas em cidades
européias e mostram como os eixos dominantes que constituem estas cidades temem a
“mistura” deles com a cidade pobre, marginalizada. O termo “mistura” se encontra entre aspas
desde o texto de Pires (2018) pois se refere a uma categoria trabalhada por Sá (2009) acerca
“do medo, da guerra, do estranho e do desamor”, que camadas médias e altas de Fortaleza
sentem em relação às juventudes faveladas.

Ao retornar em Walter Benjamin com as “técnicas de evitação”, Pires (2018) coloca


que há um “empobrecimento da experiência humana da oralidade em círculo” (p.22), e passa
a tratar o assunto como reflexo da “miséria humana” na contemporaneidade. Em consonância
com esta discussão, o sociólogo sugere, contudo, que esta miséria das relações em nosso
tempo não se aplica ao cotidiano no complexo de favela por ele analisado. Ao contrário, que
neste contexto supostamente “ainda resiste [...] uma relação tempo-espaço distinta da
vivenciada hegemonicamente nos grandes centros urbanos” (p. 24). Apesar disto, Pires admite
que hajam “componentes individualistas e narcísicos” nas práticas incrimináveis que
estiveram presentes na sua etnografia, porém conclui que “há uma dimensão coletiva e
gregária que destoa do individualismo pós-moderno” (p.27).

A partir disso, gostaria de fazer uma leitura das colocações de Pires (2018),
lembrando que sua visão corrobora com uma tradição bem consolidada na sociologia e
antropologia da violência, para testar como estas questões se comportam partindo de outro
lugar analítico e outra situação etnográfica.

Ao que se refere às teorias do contágio, estas muito bem fundamentadas por Pires
(op. cit) em sua obra, podem ter outra face se testadas a partir da história da construção de
84

Fortaleza enquanto metrópole. Na obra “História dos Negros no Ceará”, Ribard e Funes
(2020) evidenciam que, na verdade, nunca houve uma relação apartada entre as classes sociais
racializadas da cidade de Fortaleza desde sua formação, como é possível encontrar no trecho a
seguir:

Na capital da província, em 1884, ano da abolição, o número de escravos não


chegava a 2 mil, configurando muitas vezes plantéis de um a três escravos. Em sua
maioria eram mulheres, em contextos onde não havia uma ampla divisão do
trabalho, permitindo, às vezes, um convívio mais próximo com a família do senhor.
Se isso, por um lado, significava a possibilidade de um tratamento “mais humano”,
por outro, em particular para o escravo, deveria ser percebido como uma forma
maior de vigilância. Uma convivência em que o jogo do paternalismo nunca deixou
de estar presente. (p. 21)

A(s) cidade(s) se mistura(m) desde sua gênese, contudo, o que ocorre é uma não
aceitação que as pessoas (negras e indígenas) que compõem e constroem a cidade a partir da
margem, possam ocupar lugares fora do que determina as hierarquias sociorraciais, como por
exemplo, espaços de lazer dentro do circuito cultural centro-litoral da cidade de Fortaleza.

No que tange à sensação de insegurança compartilhada pelas classes dominantes,


baseadas numa ideia de “violência difusa”, que corrobora com o “discurso dominante do
estatismo”, como bem pontua Pires (2018) e justificariam o medo do “contágio”; não pode ser
apartada de maneira instantânea da realidade experienciada na favela desde o fim da paz.
Como bem vimos até o momento, nesta dissertação, sobretudo acerca da “cabreiragem”, as
pessoas que colaboraram para realização deste trabalho demonstraram conviver com o medo
como emoção constante no modo de experienciar a cidade, seja medo “duzomi” ou da guerra.

A “cabreiragem” é um medo advindo da memória do trauma, da memória da dor,


deixada por cada esquina, por ruas, becos e vielas. Não é um medo do contágio, medo de ser
integrado ao “Outro”, não é o medo do exercício antropofágico, de se perder no outro, como é
visto na antropologia (Favret Saada, 2012); como também não é um medo que apela por uma
política de segurança militarizada, nos termos de Ahmed (2004), enquanto algo
“continuamente evocado no discurso público, como aquilo que exige uma resposta tanto
coletiva quanto individual”, esta dor que ganha holofotes e espaço no discurso oficial é a dor
da “Fortaleza Apavorada”42 e não das juventudes racializadas que vivem em contexto de
guerra. Este trabalho conheceu outra forma, digamos mais “envenada”, parafraseando Veena
Das (2011), de experienciar a cidade e suas desigualdades violentas.
42
Fortaleza Apavorada é um movimento, com aspirações direitistas, que surgiu das camadas médias e altas da
cidade para reivindicar e pautar políticas de segurança e combate à “criminalidade”. O grupo, de cunho racista e
classista, pede por ações ainda mais militarizadas e punitivistas do governo do estado por se compreenderem
vítimas da violência urbana.
85

Acerca da dimensão coletiva na agência de praticantes de ações incrimináveis, sob a


ótica da lei hegemônica, encontrada por Pires (2018) que, segundo ele, destoa do
individualismo pós-moderno. A experiência etnográfica que guia este trabalho pode apontar
outros caminhos, como vimos no tópico “boca de prata”, onde reflito sobre a dimensão da
posse - relações e pessoas tomadas como propriedade dentro do contrato afetivo sexual - e as
leis da facção como um contrato sexual. Todas estas questões são reflexo do nosso tempo, são
consequências do neoliberalismo na dimensão das relações sociais e a favela, mesmo que se
relacione de forma particular, não está apartada dessa realidade.

Diante disso, se partirmos da contribuição de Strathern (2014 [1992]) sobre


“refigurar as conceitualizações” da antropologia ocidental, veremos que não se atentar para a
particularidade dos processos que constituem a formação da cidade de Fortaleza, situando-a
como cidade que uma vez foi colônia, que se construiu como cidade escravocrata, que as
marcas do racismo colonial se perpetuam até hoje; não se atentar para o fato de que, assim
como as favelas, as relações sociais, raciais e econômicas de nosso tempo presente são
versadas sob um sistema econômico específico, apontam para uma incapacidade de enxergar e
de diagnosticar os problemas de segurança pública que se revelam nas favelas, além de que
constroem uma idéia generalizante sobre as relações neste contexto.

Considero que esta forma particular de fazer sociologia e antropologia da violência,


estabelecendo conceitualizações a partir de categorias próprias dos grupos hegemônicos de
metrópoles urbanas, dentro do capitalismo colonialista, são, como diria Strathern, uma forma
de usar a etnografia para salvar os próprios antropólogos, não para se debruçar sobre os
problemas que realmente aparecem em campo.

Segundo José Carlos dos Anjos (2006), há um treinamento antropológico que


encaminha o pesquisador para um viés de produção da diferença de maneira que atenda a
certo tipo de poder, interessado em capturar imagens específicas sobre os contextos e sujeitos
de pesquisa: “A precariedade, a violência e o perigo tendem a se transformar em signos de
alteridade, produtos consumíveis por uma classe média que normalmente se encarcera sob as
grades de apartamentos vigiados exatamente contra os tipo de exterioridade.” (p. 28).
Torna-se, então, indiscutível que o trabalho etnográfico precisa romper com o estranhamento
e esta distância que favorece as hegemonias de poder, para que, de fato, se sobressaiam as
dinâmicas internas do contexto etnográfico, nasçam outros vieses epistemológicos e assim
possamos construir outras imagens sobre o mesmo.
86

2.5 Cria de Favela: identidade e pertencimento

Diário de Campo, 23 de fevereiro de 2019.

Era sábado de manhã, acordamos depois de mais uma festa de despedida, desta vez na casa do
Fábio. Tasha e eu dormimos lá. Ao acordar pensamos em ir à praia da Leste. Ligamos pro
Smoke para perguntar se ele gostaria de nos acompanhar, mas ele “botou mó queixo” e
acabou nos convencendo a ir para sua casa e ficar “fumando um” por lá com ele e a Tássia,
sua namorada. Smoke mora no Carlito Pamplona, um dos bairros adjacentes do Pirambu.

Tasha e eu saímos da casa do Fábio por volta de meio-dia. O tempo estava nublado e
até serenou um pouco, Fortaleza estava na estação de chuvas. Pegamos o ônibus da linha
Borges de Melo II, descemos na praça do Carlito43 e de lá fomos caminhando até a casa de
Smoke. Apesar de não conhecer o lugar, senti-me segura pois estava com a Tasha “nazária”
que é “tudo 2”. Assim como a Tasha, Smoke e a Tássia também são "crias", ou seja, jovens
moradores que nasceram nos bairros que hoje estão sob domínio de determinada facção, no
caso, CV. Não são “batizados”, mas têm certo grau de aproximação e até afinidades. Isso se
deve ao fato de conviverem com amigos e familiares que protagonizam algumas práticas
ilegais, “vestem a camisa” e são “batizados” nas facções.

Chegamos na casa do Smoke. No final da sua rua ficavam os trilhos onde passa o
trem. Em Fortaleza, quanto mais perto do trilho, mais estigmatizado como "perigoso" é o
local. Ao entrarmos na sua casa, Smoke e Tássia estavam nos esperando. Faltavam poucas
semanas para o carnaval, a maconha estava escassa em quase todos os bairros de favela da
cidade, então, tínhamos que pensar bem como íamos “fumar aquele” para não faltar e
ninguém “ficar de cara”. Depois de tudo planejado, fomos para o quintal de uma casa que fica
no mesmo terreno que a casa de Smoke, onde geralmente costumam estar para fazer o uso.
Tássia ligou a caixa de som, pôs um reggae para tocar e Smoke “bolava” o “beck” enquanto
botava o papo em dias com Tasha.

Tasha: [...] Man, e o TH que eu nunca mais vi, tem notícia dele?
Smoke: TH agora tá namorando... - em tom de jocosidade.

Tasha perguntou quem era a moça que TH estava namorando e se a conhecia, Smoke tenta
lembrá-la dos rolês onde já tinham se visto e continuaram a conversa:

43
Nos mapas que irão aparecer neste capítulo, a praça fica no ponto onde parece uma “teia de aranha”. Digo isto
pois Smoke quando vê os mapas no Grande Pirambu diz, “eu moro perto dessa teia de aranha aí”.
87

Tasha: E ela é de onde?


Smoke: Adivinha!!!
Tasha: ONDE?
Smoke: Da Colônia… - responde como quem dá uma má notícia.
Tasha e Tássia reagiram: VISHHHHH…
Tasha: Embaçado isso aí, baitola!!! - disse quase que indignada.

O clima pesou de repente. Tasha fez uma cara de espanto e logo sorriso saiu de seu rosto, ao
dizer:
Tasha: Esse bicho é doido, é?
Smoke: Ora, ele não tá nem vendo, não! Taca dois riscos na sobrancelha, anda todo
“paloso” e se mete lá dentro [na Colônia] atrás dela. Altas vezes ele entrou lá e os
caras foram seguindo ele, só deixaram quieto quando ela apareceu e viram que eles
estavam juntos.
Tasha: Caralho, negão
Smoke: Tô te dizendo…

Nesse momento, olhei para a Tasha assustada e disse:

Eu: Esse é um dos problemas que aparece na minha pesquisa.

Para nós a situação era nítida, eles moravam em territórios de facções rivais. O
Pirambu passou a se encarar como um complexo de favelas, o “Grande Pirambu”, por “fechar
de ponta a ponta com o CV”. Ou, pelo menos a sua maior parte. Então retorna a discussão que
já pontuei aqui neste capítulo, que na favela da Colônia, favela que fica “dentro” do complexo
do Grande Pirambu, o comando pertence à facção cearense, GDE. Por este motivo, existe um
conflito entre narrativas sobre a Colônia, por ser GDE, fazer parte ou não do Pirambu, que em
sua maioria é CV. Uns dizem que fez parte um dia, hoje não é mais, outros dizem que “ainda”
é Pirambu. Este “ainda” denota distância e não temporalidade.

A questão relacionada ao TH, para além de seu namoro arriscado, quando Smoke o
chama de ‘paloso’, é pela ousadia de portar as marcas que, apesar de sempre terem sido
usadas pelos “vetins” na favela, hoje passou por um processo de ressignificação ou até
apropriação disso, como símbolo de determinada facção, no caso o CV. Tais como os dois
riscos na sobrancelha, o cabelo pintado de vermelho, fazer sinal de ‘2’ com os dedos ao posar
para fotos, entre outros. Símbolos como estes são usados pelos grupos para indicar e até
reforçar uma ideia de pertencimento. Entretanto, também pode ser usado como meio de
comunicação para identificar quem pertence ou não à uma facção rival. Já existem
formulações sobre isso, trago uma que considero interessante para se pensar:

Não é preciso ser da boca, ou seja, trabalhar para a firma e subsequentemente, a


facção, para aderir, ainda que superficialmente, a ela. O discurso da existência do
88

comando inscreve-se na experiência cotidiana de todos os que vivem em seu


perímetro de atuação, sendo por eles internalizados em maior ou menor grau. [...] O
simples fato de morar numa comunidade em que há tráfico pode produzir,
principalmente nos mais jovens, vínculos afetivos com o repertório simbólico
associado à facção, a despeito das críticas que eles formulam em relação à atuação
dos criminosos (GRILLO, 2013, p. 56)

Logo em seguida, Carolina Grillo (2013) faz uma interessante analogia sobre a ideia
de pertencimento e identidade que esses grupos são capazes de produzir quando afirma que
“dizer que se é ‘CV’ ou ‘ADA’ pode ter a mesma conotação que “ser” Flamengo ou Vasco”
(ibid. p. 57). Contudo, em contexto de guerra, por mais inocente que seja o ato de carregar tais
símbolos de pertencimento e identidade, as pessoas acabam se tornando alvo facilmente.

Também compartilha desta analogia das torcidas de futebol, o recente artigo sobre a
“polissemia do envolvimento” de Dennis Novaes (2021), onde o autor parte da trajetória
biográfica e da produção cultural de MCs famosos no subgênero do funk proibidão para
demarcar as fronteiras simbólicas e afetivas entre estas juventudes, que colocam em suspeita
as dicotomias entre autorizado/proibido, cunhados pelo discurso hegemônico. Segundo ele,
“essa analogia [entre facções e torcidas de futebol] tenta dar conta de uma malha complexa de
sentidos que conectam simbolicamente os grupos armados responsáveis pelo varejo de drogas
ilícitas, coletividades juvenis e seu principal espaço de interação: os lugares onde moram.” (p.
332-333).

Utilizar estes termos nos contextos errados pode acarretar represálias dos bandidos,
pois são expressões que denotam o local de origem daquele que fala e,
simbolicamente, indicam proximidade com uma facção rival. Elas não têm nenhuma
associação direta com o crime em seus usos cotidianos, pelo contrário, estão
incorporadas no léxico da maioria dos jovens favelados. Apesar disso, fazem parte
do espectro de sentidos que os varejistas de drogas ilícitas ajudam a moldar,
limitando fronteiras e pertencimentos por meio de relações de força. (p. 336)

Em uma conversa informal via aplicativo de mensagens, quando eu ainda estava em


Porto Alegre, mas em contato frequente com Tasha, ela conta que ao sair de um festejo de São
João na Areninha do Pirambu, no dia 21 de junho de 2019, a festa acabou em tiros e embate
com a polícia. A caminho de casa, eu a mantive na conversa para me certificar que ela
chegaria bem. Foi quando mencionou a história de uma garota, também moradora do
Pirambu, que está marcada para morrer pela GDE. Sem mencionar nomes, por questão de
ética e segurança, trago um trecho da conversa:

Tasha: tem a [nome], cumadi conhecida. É pedida que só pelos pilantra.


Eu: pedida?
Tasha: sim, tipo, os cara quer ela, entendeu? Quer matar ela. Porque ela é muito
conhecida, mas nem é batizada. Carrega a identidade do bairro, sintera? “A fulana
do Pirambu”.
89

Eu: To ligada, mas ela sai nos canto de boa? Ela aparece?
Tasha: Man, não sei se ‘de boa’, mas sei que ela tá nos cantos, ela vai pro baile.

O caso corrobora com os argumentos dos autores citados, onde colocamos sob
suspeita a aparente dicotomia entre quem tá dentro e quem tá fora do “crime”, entre o “legal”
e o “ilegal”, visto que tal relação é muito mais complexa no cotidiano. Esta dicotomia serve
de base para incriminação de sujeitos a partir da categoria de envolvimento, ela é um
mecanismo acionado a partir de raça e território, não mais sobre ligação com facção. Tais
como as categorias de “envolvimento” se assemelham a outras como a de “bandido” e
“proibidão”, todas analisadas por Novaes (2021) que, segundo ele, estes “são termos forjados
a partir de uma lógica estatal de ordenamento que se atualiza no uso corriqueiro da
linguagem” (p.311).

A forma como a norma e o léxico das facções foram incorporadas ao cotidiano, torna
ainda mais frágil essa distinção entre o legal e o ilegal, suspende a possibilidade desta relação
ser vista como dual. Diversas vezes conflitos ligados ao tráfico de substâncias ilícitas
acionaram uma rede de pessoas “não envolvidas” em agenciamentos ilegais; um exemplo
nítido é de familiares que se juntam para pagar dívida de pessoas juradas para morrer.

Nesta pesquisa, surge outra relação de alteridade, não construída em princípio por
interlocução com o Estado. O princípio básico de distinção entre o “eu” e o “outro” apareceu
a partir da rivalidade entre os grupos (lê-se territórios), CV ou GDE. Internamente, o princípio
é de pertencimento e identificação, mesmo que não haja ação direta no mercado de drogas
ilícitas, e este pertencimento faz frente e dialoga com a figura do “pilantra”, ou seja, sujeitos
que agenciam práticas ilegais (ou simplesmente moram) no território rival.

Outro exemplo é quando acontece de pessoas que possuem cargos nos grupos
faccionados se oferecerem para “fortalecer” o reggae comprando algum equipamento que lhes
falta ou instituindo normas “olha, só não pode é ter pilantra por aqui”. O contrário também é
possível, por exemplo, presenciei o momento quando um jovem levou algumas gramas de
maconha embrulhadas em plástico para oferecer durante o reggae e este foi constrangido por
um DJ residente do Barramar que indagou: “diabo é isso daí, ma? Dentro do reggae? Sai fora
com isso aí”.

Este argumento não quer dizer, no entanto, que todas as pessoas na favela adotem
posturas incrimináveis atreladas às facções em seu cotidiano. Pelo contrário, a intenção aqui é
salientar justamente a parcela de jovens que não agencia diretamente os mercados ilícitos e
90

mesmo assim é acometida por toda sorte de extermínio. É o caso de artistas, surfistas e jovens
em geral, como a moça que foi “pedida” pelos “pilantra”, que foram ameaçados ou chegaram
a ser assassinados pelo simples fato de pertencer a determinado território.

***

Neste momento da pesquisa, minhas atenções passaram a se voltar para a questão dos
relacionamentos afetivo-sexuais entre moradores de territórios rivais e onde poderiam estar
estes pontos de convergência que unem estes jovens. Desde a pesquisa durante a graduação, já
surgiam relatos de pessoas que se conheceram em espaços de lazer, “ficaram” e isto culminou
em mortes. Numa dessas entrevistas, me deparei com o depoimento de um adolescente,
morador do Grande Bom Jardim, que nos relatou a existência de algumas redes que se
estabelecem anteriormente aos assassinatos (sobretudo de meninas) pelas facções, são elas, o
ato de frequentar reggaes e bailes em territórios de facções rivais, sendo muitas vezes a única
opção de lazer que abarca jovens de diferentes bairros.

Carll Souza (2019), em artigo sobre territorialidade, direito à cidade e ancestralidade


em Fortaleza, identificou que 85,5% dos jovens negros entrevistados se dispõem ao
deslocamento para lugares distantes de seus bairros para se divertirem. Dentre eles, os espaços
mais frequentados são justamente os reggaes, saraus, bailes de favela e praia. No Pirambu, aos
domingos à tarde, na Praia da Leste, costumava acontecer um dos maiores bailes de favela da
capital, reunindo jovens de diferentes territórios, inclusive moradores da Barra do Ceará. É o
que está na permanência do deslocamento, que esta etnografia persegue para conhecer o lugar
em que esses jovens ocupam na cidade.

Diante disso, esta etnografia buscou compreender como se dão essas relações que ora
se aglutinam, por meio dos espaços de lazer na periferia, ora se despedaçam devido a disputas
que podem acabar em extermínio. A partir disso, vemos que as redes que se estabelecem de
acordo a dinâmica dos afetos (ou desafetos, em alguns casos) e vínculos interpessoais
colocam sob suspeita o “proceder” das facções, como instância normativa (Feltran, 2010),
visto que algumas relações desafiam a norma mesmo sob pena da letalidade. A relação desses
jovens, aqui sujeitos de pesquisa, com tais normas é constantemente tensionada ao longo da
etnografia.

A realização do trabalho de campo se deu conforme as palavras de José Carlos dos


Anjos, ao considerar que “a penetração neste espaço requer ao “de fora” que atravesse
91

transversalmente uma série de redes de sociabilidade dispostas em camadas cada vez mais
densas à medida que se interioriza” (2006, p. 40) nos territórios. Por isto, o reggae foi um
fator tão importante para passear entre as ditas “camadas” das relações sociais nas favelas.

Essa densidade que menciona Dos Anjos, por vezes, é fetichizada dentro da
academia por aqueles que não estão acostumados a trabalhar com os ditos “temas perigosos”,
ou até mesmo pelos que estão. Segundo ele, “a precariedade, a violência e o perigo tendem a
se transformar em signos da alteridade, produtos consumíveis por uma classe média que
normalmente se encarcera sob as grades de apartamentos vigiados exatamente contra esse tipo
de exterioridade” (Ibid., p 28).

Antes de dar seguimento, quero abrir um parêntese para nos situarmos na produção
acadêmica sobre esta discussão. Considero necessário ruminar uma vasta literatura sobre os
temas que são transversais nesta dissertação. Irei apenas pincelar entre as principais obras e
contribuições, mas na medida que o trabalho for ganhando textura irei me aprofundar na
discussão utilizando estes autores quando e se for necessário.

Primeiro os estudos sobre “facções criminosas”/coletivos criminais no Brasil e,


especificamente, no Ceará, que por si só resulta de uma longa caminhada de produção de
conhecimento. Depois, trazendo os estudos de violência e gênero, também tradicional na
antropologia, contudo, interligando concomitantemente com a questão racial que, embora seja
um campo amplo - também tradicional na antropologia e, nos estudos de violência é quase
impossível de ser ignorado - ainda é bastante secundarizado do ponto de vista teórico no que
diz respeito aos trabalhos sobre violência urbana. Adicionado a todas estas vertentes,
considero que a grande contribuição metodológica que deu forma e vida nova a este trabalho
veio dos estudos sobre emoções e sofrimento social. Vou ressaltar a seguir os trabalhos que
me ajudaram chegar até aqui.

Os estudos sobre sociologia da violência no Brasil tiveram como berço o meio rural.
Foram os conflitos no campo que incitaram pesquisadores como César Barreira e José Vicente
Tavares dos Santos, dois dos principais autores do tema na América Latina. Em “Crimes por
Encomenda” (1998), obra sobre crimes de pistolagem no sertão do Ceará, Barreira já trata, de
maneira precursora, sobre as adversidades em ter de trabalhar com “temas perigosos”, questão
que até hoje não é deixada de lado por pesquisadores, como podemos ver em artigo
relativamente recente de Biondi, “Pesquisar (n)o crime: A transformação das dificuldades
pragmáticas em prazer analítico” (2017).
92

A passagem dos conflitos do rural para o urbano começa a partir da


redemocratização, quando o país começa a sair dos governos da ditadura civil-militar de 1964,
com o crescimento das grandes cidades, bem como a inflação das periferias. Sobre as
transformações ocorridas nas grandes cidades, no que se refere à violência e segurança, é
imprescindível o trabalho de Caldeira (2000). Também é no pós-ditadura que, de acordo com
alguns pesquisadores, aumenta o fluxo proveniente do tráfico de cocaína no país (Zaluar &
Alvito, 1998). Neste contexto, surgem as organizações criminosas que reivindicavam
melhorias nas condições dos apenados do sistema prisional brasileiro, denominadas de
comando, irmandade, família, mas conhecidas como facções.

Sobre as facções originárias do Rio de Janeiro (Comando Vermelho, ‘CV’, Terceiro


Comando e Amigos dos Amigos, ‘ADA’), existe uma série de trabalhos memoráveis como os
de Antônio Rafael Barbosa (1998) e Carolina Grillo (2011). Em São Paulo, a predominância é
do grupo que se autodenomina Primeiro Comando da Capital (PCC), que foi profundamente
analisado por pesquisadores como Camila Nunes Dias (2011), Gabriel Feltran (2010), Karina
Biondi (2018) e Adalton Marques (2014). E da Família do Norte (FDN), oriunda do Estado
do Amazonas, com Fábio Candotti, Cunha e Ítalo Siqueira (2017). A presença ostensiva
dessas forças que se institui às margens no estado do Ceará foi desenhando o cenário atual na
segurança pública do estado.

Mesmo que a presença desses grupos já venha sendo notada nos presídios e nas
práticas de outros crimes desde os anos 1990 no Ceará, como assaltos a bancos ligados a
integrantes do PCC (Aquino, 2009), o que culminou na faccionalização do “crime” em todo o
estado foi a chegada dos mesmos às ruas. No estado, os trabalhos mais influentes sobre essa
questão começam pelo de Sá, Accioly e Reis (2016), apresentado na 30ª Reunião Brasileira de
Antropologia, podemos dizer que foi o primeiro trabalho sobre o fenômeno da “pacificação”
em Fortaleza. Barros et al (2018) também versou sobre a “pacificação” e seus efeitos sobre os
índices de homicídio no estado. Paiva (2019) através de uma apanhado das pesquisas sobre
crime e as periferias de Fortaleza desde meados dos anos 1990, conceitualiza as
“transformações sociais do crime”, defendendo que a faccionalização provocou uma mudança
nas “maneiras de fazer o crime” na cidade.

Algumas dissertações e teses sobre diferentes mercados ilícitos em Fortaleza, mas que
foram impactados pela “queda da pacificação” são grandes contribuições para esta pesquisa,
entre elas recomendo: “‘Eu nunca tinha escutado falar sobre favela no Benfica’: conflitos
93

sociais e mercados ilícitos em um bairro universitário”, dissertação de mestrado de Suiany


Silva de Morais, defendida em 2018 pelo PPGS/UFC, sob orientação de César Barreira. “A
vida no crime é louca: as relações criminais em um complexo de favelas”, dissertação de
mestrado de Artur de Freitas Pires, defendida em 2018 também pelo PPGS/UFC, sob
orientação de Luiz Fábio Paiva; e a tese de doutorado de Ana Paula Luna Sales, “Da violência
ao amor: economias sexuais entre “crimes” e “resgates” em Fortaleza”, defendida em 2018
pelo PPGCS/Unicamp, sob orientação de Adriana Gracia Piscitelli.

Juliana Borges, no livro “Encarceramento em Massa” (2019), vai pensar o sistema de


justiça criminal brasileiro através da interseccionalidade de raça e gênero. Alguns dos dados
que a autora traz na obra em questão denunciam a emergência de pensar as dinâmicas
criminais e os impactos que estão causando na vida das mulheres, sobretudo negras: “o tráfico
lidera as tipificações para o encarceramento. Da população prisional masculina, 26% está
presa por tráfico, enquanto que, dentre as mulheres, 62% delas estão encarceradas por essa
tipificação” (p. 24).

Até aqui, ressaltei que venho de uma tradição socioantropológica forte no LEV, que
trata as temáticas de violência urbana e segurança pública pela via da sociabilidade. Diferente
dos estudos mais conhecidos acerca das dinâmicas das facções, que tratam sobre os impactos
desses grupos como problema social e/ou político, ou como instituições normativas dotadas
de regras e moralidades próprias, o meu trabalho segue outro caminho para pensar as redes,
relações e práticas nesse contexto, bem como os corpos (que atuam sob emoções e
moralidades específicas) que as produzem. Assim como a contribuição do Núcleo de Pesquisa
em Antropologia do Corpo e da Saúde, que me inseriu no debate acerca do sofrimento social,
política das emoções e embodiment para pensar corpo feminizado em contextos de guerra. Por
fim, ao delinear o universo da pesquisa, busco alguns caminhos alternativos para não cair
numa tendência ahistórica e despolitizada desses conflitos - veremos um pouco disso já neste
capítulo.
94

CAPÍTULO 3 - REGGAE DE PRAÇA

Neste capítulo, meu intuito é levar a/o/u leitor/a/u à uma imersão nos reggaes de
praça da Costa Oeste. Aqui, mostro alguns dos percursos realizados em contexto dos eventos
de reggae que acompanhei e que foram etnografados para fins desta dissertação. A linguagem
utilizada para narrar os espaços e os percursos é propositalmente informal e carregada de
categorias êmicas, cujos os significados vem sendo construídos ao longo desta dissertação. As
histórias aqui narradas são tão pessoais quanto coletivas, evidenciam também o meu grau de
imersão em campo e trazem alguns símbolos compartilhados por mim e pelos sujeitos de
pesquisa.

Aqui aparecem algumas das fotos produzidas por mim em face da pesquisa. Como já
mencionei, o lugar de fotógrafa não foi uma escolha, ele me foi empregado e abracei esta
tarefa com certa empolgação. Através das fotografias que trago neste capítulo, é possível
notar um olhar particular (o meu) sobre o reggae. Talvez pudesse ser mais rico, para fins de
análise, trabalhar sobre as fotografias que me foram demandadas - pois sim, a fotógrafa do
reggae é solicitada de forma recorrente ao longo do evento para fazer registros pessoais. Estes
registros mostram rostos, pessoas, poses, laços, figurinos, dentre outras categorias, que têm
muito a dizer sobre o reggae e seus frequentadores. No entanto, seria deveras delicado
expô-los a tal ponto e inviável, em termos de regulamento, buscar autorização individual de
cada personagem ali retratado. Portanto, dei prioridade aos registros que evidenciam os
espaços e algumas emoções características do reggae - como a dança e alguns dos ritos que a
envolvem, como o abraço do “a2”.

Diário de Campo, 27 de dezembro de 2019, Barra do Ceará.

Depois de comer, fomos para perto da mesa de som e passamos a noite alternando
entre tirar fotos e dançar um “a2” quando a “pedra” - a música reggae - nos instigava. Quando
o baile começou a “gerar”, era possível notar a divisão espacial na quadra. Na lateral
esquerda, onde fica a trave, é colocada a mesa de som, ali os DJs ficam por trás tocando
durante todo o evento. Atrás dela, sempre pendura-se um pano de fundo com as cores do
reggae (vermelho, verde, amarelo e preto, cores da bandeira da Etiópia) como é possível
encontrar na figura 11.

No alambrado ao redor da quadra, são colocados os ornamentos da festa: a bandeira


da Jamaica (figura 10), bandeiras de outros projetos de reggae que “fortalecem” o evento e as
95

placas lúdicas próprias do evento, que chamamos de “plaquinhas” (figura 11, 12 e 13). Estas
“plaquinhas” são pedaços de madeira ou papelão pintadas a mão, confeccionadas em oficinas
promovidas por integrantes do coletivo, para ornamentar o espaço com frases escritas que
remetem aos sentidos do reggae, como convites para dançar, gírias locais sobre paquera,
mensagens de conscientização, fortalecimento de outros projetos de reggae (figura 13), entre
outros.

Nas laterais dentro da quadra, aqueles que chegam de bicicleta vão encostando-as no
alambrado e se colocam em pé de frente para a pista de dança, o centro da quadra, onde
eventualmente irão tirar alguém para dançar. Existem também aqueles que dificilmente
dançam, ou realmente não sabem dançar e apenas observam os outros dançarem, mas
independente disto gostam de frequentar o reggae, estes geralmente ficam sentados na
arquibancada fora da quadra. A dança “a2” do reggae roots é algo que atrai olhares do
público, é preciso ter segurança no próprio gingado para ir ao centro da quadra e dançar a
vista de todos. Aqueles que estão iniciando na arte da dança “a2” e ainda sentem-se
envergonhados de dançar ao centro da pista tiram uma pessoa próxima para dançar do lado de
fora da quadra, afastados da pista de dança (figura 12). Voltarei a me debruçar sobre as danças
do reggae de maneira mais profunda em tópico posterior.

Figura 10: Bandeira da Jamaica


96

Fonte: Acervo Barramar Sound System

Figura 11: Plaquinhas

Fonte: Acervo Barramar Sound System


97

Figura 12: Dançando Fora da Pista

Fonte: Acervo Barramar Sound System

Figura 13: Chama pro PiraRoots

Fonte: Acervo Barramar Sound System


98

Durante a cobertura fotográfica do evento, é preciso registrar a mesa de som e dos


pares que dançam em frente e ao redor dela. Tasha me ensinou isso, é uma forma de
apresentar o evento, pois as fotos vão ser divulgadas posteriormente nas redes sociais,
portanto, é necessário evidenciar a parte que foi produzida pela organização, como os
ornamentos do baile, e também as duplas dançantes para evidenciar que o reggae “gerou”.
Assim, vai se construindo identidade visual do projeto e do espaço.

Em dado momento, havia uma criança de 3 anos parada em pé, chupando bico, entre
a mesa de som e o alambrado da quadra, lugar reservado para os DJs tocarem. Esta criança
olhou diretamente pra mim que estava com a câmera na mão e não resisti em tirar a foto,
quando mostrei a sua mãe que estava próxima, ela ficou encantada com o registro e me disse
que o nome dela era Maria Ruana. O reggae tem forte presença de crianças, seja aquelas que
brincam na praça ou na quadra esportiva ao redor do evento, ou até mesmo frequentadores
que possuem filhos pequenos e os levam para o evento. A interação das crianças com o
espaço é diversa, elas brincam, se divertem e fazem a diversão das pessoas, até mesmo
dançam no colo de adultos, como veremos em imagem mais adiante (figura 22).

Figura 14: Maria Ruana

Fonte: Acervo Barramar Sound System


99

Tasha sempre pedia permissão para tirar fotos das pessoas que estavam paradas,
enquanto não dançavam na pista. Certo momento quando eu estava batendo foto do Mano
Brown durante a apresentação da sua sequência como DJ, tocando à mesa, passou um homem
na bicicleta com uma criança no quadro em meio ao baile, ainda feliz com o resultado da foto
anterior, fiz o registro novamente, porém, quando este homem percebeu que havia sido
fotografado ficou “cabreiro” e irritado44, perguntou “diabo é isso aí?!”. Confesso que, no
momento, fiquei gelada de medo, mas “me fiz de doida” e aparentei reagir de maneira natural,
automaticamente decidi mostrar-lhe como havia ficado o resultado da foto deles, expressei até
uma empolgação, a fim de expressar algo como “olha como ficou legal!”. Para minha sorte,
ao ver, o homem “cabreiro” adorou a foto, de tal forma que seu humor mudou
instantaneamente. Perguntou se dava pra imprimir e ficou falando com Brown: “ela se garante
batendo foto, né?”. Infelizmente, a imagem não vai estar presente neste trabalho pois, afinal
de contas, quem acabou ficando “cabreira” fui eu.

Quando por volta de 21h30, uma viatura da Polícia Militar do Estado do Ceará45
chegou na praça, desceram três policiais e foram até a mesa de som falar com Mano Brown. O
procedimento de vistoria da PM acontecia sempre do mesmo jeito. Eles entram na praça. O
DJ baixa o som. O silêncio paira. As duplas que dançavam “a2” se soltam. Os olhares ao
redor se voltam para a PM. Brown segura a pasta onde ficam guardadas os papéis do alvará e
espera cada uma das perguntas.

Os policiais disseram que vizinhos ligaram reclamando do som e que haviam pessoas
usando drogas ao redor. Brown responde que possui autorização da prefeitura para o reggae
acontecer até as 22h e o policial pediu para ver os papéis do alvará, perguntou de onde era o
documento e Brown responde que era da Regional46, o policial então assentiu e permitiu que o
reggae prosseguisse até o horário permitido, com a condição de que ele avisasse ao público
para parar de fumar no local. Ao verem a polícia indo embora e a música voltando a tocar,
todos que estavam presentes na praça, além do público, aplaudiu e comemorou a saída da PM.
Até a Nay, do pastel, gritou “é isso aí, Brown” e abraçou uma criança que estava ao seu lado.

O reggae continuou, mas quando ainda faltavam dez minutos para as 22h a polícia
voltou a circular. Nesse horário, Nego Gallo e os outros rapazes que o acompanhavam no

44
Como mencionado anteriormente, este é um exemplo de situações em que “pegaram maldade” em mim.
45
Vai voltar a aparecer no texto apenas como PM, no caso de esquadrões da polícia especializados, como o
RAIO, tornarei a especificar em nota.
46
Fortaleza é dividida administrativamente por regionais; a Regional I corresponde a Barra do Ceará e o Grande
Pirambu.
100

percurso de bicicleta, já haviam ido embora há um tempo para não ter que passar pela avenida
Francisco Sá muito tarde. Para quem trabalha como artista em eventos musicais, DJs e
músicos no geral, sabe-se que não é de bom tom se retirar do espaço sem prestigiar a
apresentação dos colegas, entretanto, no reggae de praça a atitude de ir embora antes do
evento acabar não é visto como um problema, dado que o pessoal da produção levam em
consideração o “destaque” [deslocamento] do DJ e sabem que ir embora tarde é “embaçado”,
principalmente porque o trajeto geralmente é feito de ônibus ou bicicleta. Como foi o caso de
Gallo, que apresentou sua sequência representando o PiraRoots em mais uma edição do
Barramar Sound System.

Nos últimos momentos do reggae, ficou um clima de tensão, Brown estava


notadamente nervoso. Haviam rumores de que o RAIO47 estava rodando e algumas pessoas
conhecidas tinham levado “baculejo” na rua 3, em direção ao canal. Apesar disso, o reggae
seguiu até as 22h, depois ajudamos Brown a desmontar a mesa de som, guardar os itens que
servem de ornamento, e só então nos dirigimos até a parada de ônibus. Muitos foram embora
a pé ou de bicicleta. Na parada de ônibus havia pouca gente quando nós chegamos, inclusive
porque nós demoramos ajudando a guardar a decoração e equipamentos.

A maioria dos frequentadores tenta chegar no momento em que o baile já está cheio,
ou seja, “gerando” e vai embora antes de esvaziar, para não passar pelo que passamos: estar
na parada de ônibus vazia, um tanto quanto tarde da noite, pouca movimentação na avenida e
uma viatura da Guarda Municipal rodando por perto. Este é um tipo de exposição que os
frequentadores do baile se esforçam para evitar, por isso as idas e vindas são sempre em
grupo.

3.1 Welcome To Barramar48


O reggae do Barramar Sound System, enquanto projeto, acontecia a cada quinze
dias. Digo isso, pois há outras atividades além do reggae promovidas pelo Coletivo Barramar
Sound System, como a confecção das “plaquinhas”, oficina de dança “a2”e passinho do
reggae, rodas de conversa, entre outras mobilizações e com diferentes públicos, por exemplo,
as “plaquinhas” eram feitas em oficinas com crianças, para estimular a pintura; as oficinas de

47
Como é conhecido o BPRaio, Batalhão de Policiamento de Rondas e Ações Intensivas e Ostensivas da Polícia
Militar. As ações desse batalhão são feitas geralmente em motocicletas, para facilitar a entrada dos agentes em
lugares de acesso mais restrito para uma viatura, como becos e vielas, este batalhão tem fama de ser mais
ostensivo que os demais. Ver Moreira (2013).
48
O tópico leva o nome da edição do evento, ambos fazem referência à música “Welcome to Jamrock” de
Damian Marley que pode ser encontrada na playlist disponível via QRcode no início da dissertação.
101

dança, tinham como público adolescentes e jovens, uns que já dançavam e outros que queriam
aprender.

Até a edição Welcome to Barramar, no dia 31 de janeiro de 2020, havia em mim,


uma pretensão inocente de jovem pesquisadora de me colocar apenas na condição de “mais
uma” frequentadora do reggae. Só mais uma pessoa a “fortalecer” a cena e me inserir em
campo como “rata de reggae”49. Muitas eram as minhas preocupações com chamar atenção
em campo naquele momento, visto que eu não era “dazária” e ninguém, além da Tasha, me
conhecia. Entretanto, no envolvimento, com o espaço e com as pessoas, comecei a fazer
alguns registros com a câmera juntamente com Tasha, como narrei anteriormente.

O manejo com a câmera foi me revolvendo a um passado em que fiz dois semestres
do curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, tendo acesso a duas
disciplinas de fotografia, geral e fotojornalismo. O meu olhar “fotoetnográfico” sofre
influência direta dessa formação no que diz respeito ao uso das técnicas, como
enquadramento e a tentativa de usar a luz natural do ambiente. Assim, apesar de muitos avisos
de Tasha para usar o flash da câmera, pois assim era possível melhorar a qualidade da
imagem, as minhas fotos são mais escuras proporcionando uma visão mais próxima da
realidade, visto que o ambiente é também escuro. O enquadramento também é mais amplo,
focando nos espaços, fazendo os elementos e pessoas ali presentes comporem várias camadas
diferentes na imagem.

Voltei a utilizar minhas técnicas na câmera fotográfica, mas sem nenhuma habilidade
em fotografar eventos, festas e pessoas em movimento. Contudo, nada que o exercício, a
prática, não ajude. Desde então passei a ser convidada pelo Brown, DJ residente do Barramar,
para fotografar o reggae, me abrindo portas. Assim, logo o desafio apareceu. Com o advento
das redes sociais, uma prática comum adotada por produtores culturais atualmente, é a
confecção de flyers50 para divulgação do evento na internet. Então, o flyer do baile “Welcome
To Barramar” contou com uma foto minha e divulgação do meu perfil nas redes sociais ao
lado de Tasha, suas informações e a frase ao centro: “as gatas que quebram no click”. Como
Tasha e seu perfil do instagram também aparecem no flyer, não vou replicá-lo aqui, mas trago

49
Expressão usada para denotar pessoas que estão frequentemente no mesmo lugar, ou no mesmo tipo de espaço,
no litoral é comum haver os “ratos de praia”, pessoas, geralmente surfistas, que estão na praia todo dia e isso é
notável de imediato pelo bronze. No caso do rato de reggae, é ter seu rosto conhecido nos espaços mas não
necessariamente, as pessoas te conhecerem intimamente, apenas perderem o medo por saber que você é familiar.
50
Cartazes digitais, trago essa informação para salientar que além de todo o empreendimento envolvido para
fazer um evento acontecer, os produtores culturais de favela ainda se aventuram em design gráfico.
102

uma foto minha em formato original (feita por Tasha) que foi usada para compor a
divulgação.

Figura 15: Fotógrafa do Reggae

Fonte: Acervo Barramar Sound System

É certo que minha preocupação em ter rosto e perfil das redes sociais divulgados,
tinha base em decorrência de alguns fatores: 1) o campo ainda estava se estruturando, as
primeiras relações sendo estabelecidas; 2) naquele momento, eu pretendia frequentar os
reggaes de praça de “ota zárias”, como o projeto “Favela Vive” que acontecia na quadra do
Vila do Mar, em território da GDE; 3) é sabido que as redes sociais são um meio de circulação
de fofoca que levam pessoas, em especial mulheres, serem juradas de morte pelas facções.
Então, me dei conta que entrei em campo pela porta da frente, mas como fotógrafa. As
implicações disso irão aparecer ao longo deste capítulo, mas a principal delas é o fato de ter
recuado na ideia de etnografar o “Favela Vive”.

Assim, no dia 31 de janeiro, como combinado, estava eu na praça do Conjunto


Hermes Pereira com a câmera na mão. Era época de chuva em Fortaleza, então a produção fez
uma tenda para cobrir a mesa de som e proteger os equipamentos caso chovesse durante o
evento (figura 16). Nesta estação, a temperatura fica mais amena, então, algumas pessoas
resgatam do vestuário peças de roupa mais compridas para se proteger do frio. Portanto, é
possível encontrar “vetin” trajado de blusão.

Figura 16: “Eu acho é pouco” - Soraia Drummond


103

Fonte: Acervo Barramar Sound System

Talvez por conta da possibilidade de chuva, esta foi uma das edições do Barramar
com menor público. Havia pouca gente no local, como dá para perceber na foto onde em
terceiro plano estão três rapazes em pé, em segundo plano seis rapazes, entre eles DJs e
pessoas da produção cultural, em primeiro plano a tenda com a mesa de som dentro todos os
ornamentos temáticos do baile. A festa seguiu normalmente até o final, próximo do horário de
encerramento, às 22h. No momento em que estava tocando a última música do baile, a PM
adentrou a quadra pelo lado direito de quem está à frente da tenda e iniciou o procedimento de
revista, conhecido como o “baca”.

De acordo com o “Relatório Elemento Suspeito”, em publicação recente do Centro


de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), sobre abordagem policial na cidade do Rio de
Janeiro e sua relação com o racismo, a revista pessoal é apenas um dos procedimentos da
abordagem policial, por vezes não obrigatório. Destaco isto com o intuito de desnaturalizar a
ideia de que, sofrer uma abordagem, necessariamente passa por um procedimento de revista
pessoal, sendo esta a técnica mais intrusiva e violenta das abordagens. Ainda segundo o
relatório, a revista pessoal, ou seja, o “baca” ou “baculejo”,
104

é um procedimento agressivo e invasivo em que o abordado é obrigado a colocar as


mãos na parede ou sobre outras superfícies, como o capô de um carro ou a lataria de
um ônibus, e tem seu corpo apalpado por um agente. Nesse procedimento, o abordado
deve manter as mãos imobilizadas e os pés afastados. O abordado fica de costas para
o policial e não vê nem o rosto nem se o policial está com a arma apontada para a
cabeça, se há outros agentes apontando armas, se estão fazendo gestos que podem se
tornar agressões, nem o que se passa entre os policiais e com outros abordados. A
apalpação é supostamente um procedimento de busca de armas, drogas e outros
objetos que possam ser ilegais, mas pode ser, com frequência, um momento de
violência física, medo e humilhação. (RAMOS et al, 2022, p. 16)

Não sei se por sorte ou Exu, durante o procedimento de revista, os policiais deixaram
“escapar” somente os DJ’s51, meu parceiro de “a2” e eu. Estávamos dançando perto da caixa
de som, próxima à trave que está em segundo plano na foto. Como o baile já estava acabando,
todos estavam parados, se preparando para ir embora, apenas nós dois ainda estávamos
dançando. Todo o resto já foi levantando a mão na cabeça, enfileirados e encostando nas
grades que separam a quadra da arquibancada. Da fila de pessoas encostadas no alambrado
com as mãos atrás da cabeça e as pernas abertas, um a um era puxado para a frente e revistado
pela polícia.

Dentre os jovens que sofreram a abordagem, a maioria eram mulheres negras. A


primeira mulher preta a ser revistada levou um murro (pancada forte desferida com a mão
fechada) no nariz de um policial, mesmo estando na presença de uma PFem52. A última pessoa
que levou o “baculejo”, também uma mulher negra, usava tranças rastafari no cabelo e sofreu
duras humilhações por parte da PFem, uma mulher branca. A jovem negra foi arrastada para
trás pelas tranças, separada da fila, revistada, sofrendo violências verbais e a PFem puxava
inúmeras vezes seu cabelo no intuito de “encontrar” maconha “escondida” por entre as
tranças, o que não achou.

O caso assolou a equipe de produção do evento por muito tempo, o medo, a raiva da
humilhação sofrida e o sentimento de impotência se misturavam, mas esse acontecimento foi
um ponto crucial para a realização da próxima edição, o “Baile Love: espalhe amor e
promova a paz”. O reggae acontecia a cada quinze dias e, de certo, dessa vez não seria
diferente. O ponto decisivo entre uma edição e outra foi a temática e a mobilização em torno
do baile. Na legenda da foto publicada para divulgação do evento contém o seguinte trecho:
“A seleção do tema é um apelo de cultivo ao amor, um sentimento nobre e necessário pra
todos como sociedade. E nosso propósito é transmitir por meio de músicas, plaquinhas

51
Nesse caso em específico, os organizadores eram as mesmas pessoas que estavam discotecando no momento, é
o que chamamos de DJ residente, os DJs convidados já tinham ido embora.
52
Em tese, de acordo com o regimento da corporação, uma mulher só poderia ser tocada por uma Policial
Feminina.
105

decoradas essa mensagem e a trabalhar para que tenhamos resultados”. O Baile Love foi uma
resposta à violência sofrida na última edição. Uma forma de reafirmar o espaço e mostrar que
aquilo não ia paralisá-los. Uma forma de dizer que o Barramar ia continuar. E continuou mais
forte. Das vezes em que estive presente como pesquisadora, o “Baile Love” foi a edição com
maior público.

3.2 “Baile Love: espalhe amor e promova a paz”

No início da noite do dia 14 de fevereiro de 2020, Tasha ainda não sabia se iria para
o reggae do Barramar. Como eu não possuo câmera fotográfica, a que usávamos Tasha havia
pego emprestado com terceiros53. Por conta disso, precisei ir até a casa de Tracie, no Pirambu,
pegar a sua câmera emprestado. De fato, era um equipamento melhor do que o que usávamos
de costume. As fotos até então eram feitas com uma câmera semi profissional, Canon
Powershot Sx420 Is. Neste dia, utilizei uma Nikon com lente 50mm. Já no primeiro momento
fiquei empolgada com a diferença na qualidade dos registros. Como cheguei um pouco mais
tarde que de costume, por ainda ter ido buscar a câmera, o reggae já estava “gerando”. Logo
que cheguei na praça, entrei na tenda reservada aos DJs para deixar minha bolsa e lá de dentro
fiz o primeiro registro, um grupo “debochando no passinho”54 (figura 17).

53
Até o momento da escrita desta dissertação, não conheci a real dona do equipamento, mas sem isso esta
pesquisa poderia não ter acontecido da mesma forma.
54
falaremos melhor sobre ele mais na frente
106

Figura 17: “Bam Bam” - Chaka Demus & Pliers

Fonte: Acervo Barramar Sound System

O clima era de tensão, somado à empolgação com a proporção que tomou o evento.
A praça estava cheia. Quando cheguei, Brown estava nervoso, a polícia tinha aparecido e
avisou que se houvesse qualquer problema ou fossem acionados novamente, o equipamento
seria apreendido e Brown seria autuado. Apesar da apreensão, Brown tentava não desanimar e
reagir dizendo “mas não tamo nem veno não. Botar pra gerar essa porra”. Em seguida, um
registro da mesa de som, tirado por dentro da tenda, enquanto Brown apresentava sua
sequência (figura 18).
107

Figura 18: “Cultura Sound System” - Soraia Drummond

Fonte: Acervo Barramar Sound System

Além dos DJs residentes do Barramar e do PiraRoots, estava previsto para tocar na
edição do “Baile Love” duas DJs, a ZoidoGreen e a Avimaria, porém ambas não puderam
comparecer. No baile haveria arrecadação de 1kg de alimento para colaborar com o projeto do
Barramar de montar cestas básicas, além de sorteio de trança nagô para o casal mais “pé de
valsa”. Também havia a recomendação para ir de vermelho, na tentativa de agregar o público
à temática do baile - porém, só eu estava com uma peça de roupa vermelha, que consegui no
improviso, já que também havia esquecido da recomendação.

Neste momento, pretendo passear por alguns ritos que compõem a dança no reggae.
Como diz Caetano Veloso, “é um jeito de corpo”. Entendo a dança reggae como o momento
de proliferação da “energia” do baile, como disse Beatriz Nascimento no documentário Orí,
“a dança para o negro é um momento de libertação”55. No “a2”, duas pessoas se convidam
pelo olhar e pequenos gestos de hang loose, às vezes acompanhado de um sorriso singelo. Se
for aceito o convite, vão de encontro um ao outro, entrelaçam-se mãos e braços e, assim,
inicia-se o transe guiado pelas pulsões sonoras.

55
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=XYHwAFwWFww> Acesso em 24 de março de 2021
108

É comum dançar de olhos fechados e pés descalços, desta forma os outros sentidos,
audição e tato, se apuram e isso facilita a sintonia entre o par. Se a conexão bater de primeira,
poderão dançar várias músicas em sequência. Por fim, o “a2” termina com um abraço, um
gesto espontâneo, pois a disposição dos corpos em dança já estavam abraçados a dançar e
depois de findar a música, o abraço ocorre em consonância com a energia do momento. Um
gesto em agradecimento ao momento compartilhado, que geralmente acontece no fim. No
entanto, já presenciei o contrário, ao invés do “a2” terminar em abraço, vi um abraço terminar
em “a2”. Foi o que aconteceu quando Tasha finalmente chegou no baile e abraçou Mano
Brown a fim de trazer um conforto para a situação tensa (figura 19).

Figura 19: "Ghettos of Babylon” - Dezarie

Fonte: Acervo Barramar Sound System

Figura 20: “Defend Right” - Dezarie


109

Fonte: Acervo Barramar Sound System

O reggae dançado “a2” emana expressão e movimento. As pulsões sonoras do reggae


é quem guiam os corpos. Além dessa modalidade de dança, em Fortaleza, no início dos anos
2000 foi criado o passinho do reggae. O passinho já passou por várias "gerações'', cada uma
delas comporta um curso de coreografias e marcações. No reggae há o “pé de valsa”, aquele
cuja performance é melhor no “a2”, e há quem “deboche no passinho”, que saiba mandar o
passinho muito bem. Há quem seja bom nas duas modalidades, mas também existe o passinho
“adoisado”, o passinho dançado em par, não em grupos enfileirados como é mais comum
(figura 21).

Figura 21: “Ponme To Eso Pa Lante” - El Chuape

Fonte: Acervo Barramar Sound System


110

Seguindo o baile, Tasha e eu estávamos dançando “a2” quando passamos a ouvir um


grito e outro vindo de pontos diferentes da praça. A pista estava cheia de pares dançando,
limitando o campo de visão para fora da quadra, até que Tasha fala “vixe, tão usando o ‘óleo’
até no reggae”. Acontece que uma viatura da Guarda Municipal estava rondando e as pessoas
começaram a gritar “ó oléo” para avisar à produção, assim poderiam baixar o som antes de
sermos abordados novamente.

“Ó óleo” [olha o óleo] é uma expressão antiga usada na favela por moradores, pais
de família e pessoas no geral, para avisar que a polícia está se aproximando. Não se sabe a
origem da expressão, apesar de ter encontrado uma notícia de jornal informando que
moradores de uma favela no Rio de Janeiro derramaram óleo na pista para fazer a viatura
deslizar e impedir que a polícia subisse o morro56. De toda forma, a expressão parece ser
muito anterior à notícia que tem data recente. Neste sentido, Pires (2018) caracteriza um
conjunto de práticas cotidianas agenciadas na favela como “uma capacidade atávica de
resiliência astuta [...] um “jogo de cintura” estético-social [...] ela funciona como “linha de
fuga” em relação às violências físicas e simbólicas do estatismo e das contingências locais”
(p. 90-91). O que ele vai chamar de “socialidade favelada”.

Figura 22: “Love is a Key” - The Viceroys

Fonte: Acervo Barramar Sound System

56
Disponível em:
<https://www.metropoles.com/brasil/rj-traficantes-derramam-oleo-na-pista-e-impedem-subida-do-caveirao-da-p
m> Acesso em 21 de setembro de 2020.
111

Figura 23: “We Must Unite” - The Viceroys

Fonte: Acervo Barramar Sound System

O baile seguiu em paz, com o volume da caixa de som sendo reduzido vez por outra,
quando gritavam pelo “óleo”. Esta edição entrou para a história do Coletivo Barramar,
enquanto que a expressão do óleo apareceu em outras ocasiões com datas muito próximas a
esta do baile. Saindo do extremo oeste de Fortaleza ao final, eu parto em direção à Praia da
Leste, pois na manhã seguinte tinha um compromisso de aniversário de Tracie.

3.3 “O óleo”

Nos reunimos na praia como de costume, marcado para às 8h da manhã, devo ter
chegado com horas de atraso devido o sábado ter a frota de ônibus reduzida na cidade em
direção àquele lado e, mesmo assim, fui a primeira a chegar. O ponto de encontro seria nas
"castanholas", parte da faixa de areia anterior às barracas onde há uma coluna de pedras para
ficar recostado e bastante sombra devido às árvores. Por volta do meio-dia, Tasha & Tracie
chegaram, juntamente com outros amigos do Grande Pirambu, mas também amigos das
ciências sociais que são de “ota zária”. Tracie havia comentado que um amigo do audiovisual
iria gravar um clipe de um artista local na praia, mas sem mencionar nomes. Ao chegarem,
descobri que conhecia tanto o artista, que já acompanhava seu trabalho desde projetos
112

anteriores ao “FZNRCK” (projeto atual), quanto o cinegrafista, um amigo conhecido desde


2016. Aprecio o resultado final do clipe, que juntamente com a música do projeto “Fazeno
Rock”, parte de outras linguagens mas se aproxima do que tento desenhar nesta dissertação:
um retrato do “rolê” de “vetins” na cidade57.

Depois desta tarde na praia participando das gravações do clipe, fomos descendo em
direção à casa de Tasha. A oeste, o calçadão da Praia da Leste em curva se transforma na Vila
do Mar, dando entrada ao Pirambu. Na inflexão da curvatura que forma o calçadão, fica a
Areninha do Pirambu, onde dentre muitas outras coisas, também acontece o PiraRoots.
Seguimos pela Vila do Mar, parando na Praia dos Pocinhos, faixa pedregosa que quando está
em período de maré baixa formam-se piscinas na beira do mar, por isso muito frequentado
pelos moradores. Diferente da Praia da Leste que fica numa das avenidas mais extensas da
cidade, da Praia dos Pocinhos em diante, as praias são como uma parte interna do bairro,
frequentadas via de regra apenas por moradores ou na companhia deles, comumente
chamadas como “quintal de casa”. Esta faixa (que acaba no Marco Zero da Barra do Ceará) é
a que compreende a Vila do Mar, com todas as suas subdivisões: a Praia dos Pocinhos, a Praia
dos Abel, a Praia do Pirambu (foto 12), por aí vai.

Seguindo adiante, agora o intuito era encontrar Bill para “f1”58. Apesar de trabalhar
no varejo de substâncias ilícitas, “batizado” no CV, nunca fizemos um “corre”59 com Bill. No
dia a dia, ele se portava como usuário, a gente fazia o “corre” ou as “intera” e quando
acontecia de fumarmos da erva que ele tinha é porque ele “botou o dele”, ou seja
“representou”, o que significa que ele não vendeu e sim partilhou entre nós, postura comum e
benquista entre usuários especificamente de maconha.

Ele não estava em casa, não estava no beco vizinho a sua casa, onde costumam ficar
os meninos do “movimento” e os olheiros na esquina. Seguimos subindo ladeira, entre becos
e vielas, dobra-se as esquinas, pergunta para algum conhecido na calçada: alguém diz que ele
pode estar na casa de Ice Blue, no beco do Batman. Chegando lá, realmente estavam os dois
lá reunidos, fizemos as “interas”, Bill fez o “corre” e passamos a noite conversando e ouvindo
sons, tocou reggae, rap, trap e forró de favela. Na volta, fizemos o mesmo percurso. Se
aproximava da meia noite, saímos do beco do Batman, nos despedimos de Tracie que iria

57
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=jZMX5NFWo9E>. Acesso em 05 de dezembro de 2021.
58
Forma abreviada da expressão “fumar um”, este e outros termos locais sobre o consumo de drogas lícitas e
ilícitas foram explicados por Morais (2018, p. 82)
59
No sentido de comprar as substâncias dele.
113

seguir para oeste em direção sua casa, enquanto fomos a leste retornando de onde partimos.
Passamos novamente pelo beco vizinho a casa de Bill, no momento havia apenas um homem
sentado na esquina. Ao chegar na casa de Tasha, peço um carro por aplicativo para ir embora.
Em geral, naquele horário os carros de aplicativo não descem mais até a rua debaixo, muitas
vezes sendo necessário colocar a localização para o hospital que há na rua paralela acima,
para que o motorista pudesse aceitar. Desta vez não foi preciso O que fez fazendo com que
pensássemos de imediato que o motorista era “dazária”. No caminho até em casa, o motorista
conversava e em determinado momento se referiu a rua onde me buscou como sendo o lugar
que eu morava, queria ele que eu reforçasse que ali era calmo, o confirmei, mas disse que ele
ainda estava me levando até em casa, que eu não morava ali.

Nesta mesma noite, soube que a polícia “foi bater lá”, no beco por onde passei duas
vezes. Estavam presentes no momento três rapazes, que ao ouvirem gritos de “ó óleo” vindos
de um morador da casa de cima na esquina, correram alternados por entre as paredes do beco.
No dia seguinte, voltaram ao local e se depararam com cartuchos de bala 9mm. Bill conta que
uma ponto 9 não é arma de policial, portanto, eles estariam usando outro tipo de arma para
deixar evidências de que foi briga entre facção e que, no entanto, a escolha da 9mm foi de
caso pensado, foi é um calibre mais perfurante e num beco, caso os meninos tivessem corrido
enfileirados a bala seria capaz de transpassar mais de um.

3.4 O “corre”

Work All day - Barry Biggs

O “corre” é uma categoria êmica bastante complexa, seu sentido pode mudar de
acordo com o gênero a quem se refere, até o nível a que se está inserido em práticas ilegais.
Por exemplo, de maneira geral, o “corre” quer dizer trabalho, correria. Mas também denota
que este trabalho é intermitente, tendo que estar sempre correndo para conseguir os objetivos
almejados. Essa é uma categoria central na pesquisa pois a juventude em questão se encontra
sempre em situação de fazer seus “corres”, “se adiantar”60. Retrata a persistência desses
jovens em viver, ter seu trabalho reconhecido, poder “curtir”, criar e adentrar em espaços de
lazer. A vida do jovem favelado é um “corre” constante.

“Fazer um corre” também pode ser comprar droga, realizar um assalto, mas o fato de
que o “corre” também remete a busca ou batalha por melhoria de vida, circunstâncias mais

60
Enquanto o corre é a busca, o adianto, em contraposição, corresponde à uma colher de chá, uma facilitação do
processo.
114

favoráveis, retrata como a linguagem do crime e do cotidiano está entrelaçada uma à outra. E,
em última instância, o “corre”, quer dizer "vou me virar" para fazer a vida acontecer. Sem
isso, não “gera”, seja por práticas lícitas ou ilícitas, a correria é algo recorrente no cotidiano
de um “vetin” ou “vetinha”. Quando se pergunta como vai alguém, pode-se ter como resposta
“tamo aí, nos “corre”.

Em contextos de enunciação das práticas ilegais, vemos uma divisão por gênero do
que pode vir a ser um “corre”. O “corre” das meninas, por exemplo, diferente do “corre”
geralmente enunciado por homens, se trata de comércio sexual. Afirmar que uma mulher “foi
lá e fez um corre”, quer dizer que ela se prostituiu, quanto aos homens, a mesma categoria
pode significar assalto.

A prostituição aparece nesta pesquisa esporadicamente. Como não é o tema central


do meu trabalho, nunca abordei com profundidade essa questão, mas sempre foi comum
aparecer murmurinhos sobre uma mulher que “foi lá e fez um corre”. O “corre” também não é
algo central na vida das mulheres que participaram desta pesquisa, a maioria delas tem outras
fontes de renda, desempenham outras tarefas no dia a dia, porém, o “corre” é tido como um
recurso emergencial, quando se precisa de uma quantidade maior de dinheiro em um curto
período de tempo.

Presenciei uma situação onde um homem, traficante batizado, se queixava de ciúmes


por ter descoberto um “corre” que sua namorada fez. A moça trabalhava de faxineira para
cobrir as folgas da tia dele numa pousada na Aldeota61 e, às vezes, fazia um “corre” com o
dono da pousada, um homem bem mais velho e com poder aquisitivo maior.

Eu tive mais acesso aos sentimentos e lamúrias masculinos sobre as meninas que
faziam um “corre” do que com as próprias que o faziam. Um outro homem, também
envolvido, contou como foi que a sua primeira namorada, que viria a ser mãe dos seus filhos,
supostamente perdeu a virgindade. Ele conta que sua irmã mais velha a levou para uma casa
de praia e lá um “coroa”, homem mais velho, pediu para ter relações sexuais com ela e se
ofereceu para pagar. Segundo ele, a sua irmã já tinha a levado no intuito de inserí-la nesse
meio, já que todos sabiam que ela agencia meninas para homens dispostos a pagar pelo sexo.
No âmago de sua mágoa, ele conta que “o certo” seria sua namorada não ter aceitado ir para a
casa de praia, pois na sua concepção, apesar de ela ter na época apenas 13 anos, a jovem já
sabia (ou deveria saber) que isso poderia acontecer. Ele também relata que ela nega ter
61
Bairro nobre, um dos principais cartão-postal de Fortaleza visitado por turistas.
115

aceitado fazer “o “corre”, ou seja, ela nega ter vendido a virgindade na casa de praia, mas sua
palavra parece não ter sido levada em conta na narrativa do homem. Sintoma disso é que essa
história se passou no início da adolescência de ambos e ainda é recuperada hoje em dia com
muito rancor, visto que pelo menos ele passa dos 30 anos de idade. De fato, essa situação
parece ter ferido o ego do rapaz profundamente, ele conta ainda com a mesma dor, mas usa o
fato dela não ter perdido a virgindade com ele para justificar traições e violências da sua parte.

***

De qualquer maneira, os usos dessa categoria demonstra como “vetin” e “vetinhas”


têm que estar sempre correndo atrás de alguma coisa. Um dado importante, é que um “vetin”
nunca está apenas no mesmo “corre”, sempre há correrias concomitantes. Por exemplo, quem
é “batizado”, “envolvido”, e seu “corre” está mais recorrente entre as práticas ilegais, também
faz seu “corre honesto”. Dentre os “elemento” que conheci, haviam montador de móveis,
motoboy, servente de pedreiro e entregador que também fazia bicos de informática (inclusive
para os integrantes do movimento). Entre as “cumadi”, as mais jovens, o comum era substituir
as mais velhas dentro e fora de casa, se em casa as meninas desempregadas e que foram
largando a escola se ocupam do trabalho doméstico e cuidado com os mais novos em
substituição da mãe que trabalha fora, quando elas conseguem fazer um corre fora de casa é
também cobrindo folga ou férias de alguma outra mulher mais velha da família, também com
trabalho doméstico e faxina. De qualquer forma, entre um “corre” e outro, é notável perceber
que ambos remetem ao trabalho informal, o que denota o difícil acesso dessas pessoas a
empregos estáveis.

O “corre” está integrado à outra categoria parecida, a “missão”. Esta seria


basicamente a execução do “corre” evidenciando a sua dificuldade ou distância geográfica,
“fui fazer um corre antes de ir pro reggae e foi uma missão porque ainda tive que ir lá não sei
aonde, pegar o bagui”. A frase pode parecer vaga num primeiro momento, mas ela resume
fielmente o tópico a seguir.

3.5 A missão
116

Quando falei que Tasha. tinha pedido para a gente fazer o “corre”, Tracie62 falou
“putz, acho que meu primo acabou de passar, ele deve ter ido fumar um kunk. Não se iluda,
ele só é bonito, mas o bicho é ruim, já tem homicídio nas costas, é frieza.” Ela se arrumou e
fomos fazer a “missão” do “beck”.

Descendo em direção a praia do Pirambu, como era conhecida aquela faixa da Vila
do Mar (foto 24), Tracie falou que naquele mesmo dia, pela manhã, houve uma batida policial
na sua rua e por isso os traficantes estavam se escondendo. Do lado de sua casa também há
uma boca, mas ela não gosta de comprar maconha lá pois é muito perto de sua casa, portanto,
da família. Chegamos na praia, no calçadão havia uma areninha63 e aparentemente lá era o
lugar onde uma travesti “passava droga”, mas ela não estava por naquele momento, muito
provavelmente em decorrência da batida policial de mais cedo.

Na ocasião, estávamos de frente para o mar, onde fiz o registro apresentado adiante
abaixo e Tracie me apontou: à esquerda na faixa de areia seria uma praia de “zona neutra”,
pois “não tinha dono” e, por isso mesmo, ninguém tomava banho lá. Foi com esse intuito que
resolvi fazer a foto, capturar uma faixa da orla que “tem dono”. Nela aparece a beleza da
praia, as jangadas dos trabalhadores do mar, a vegetação nativa, o espigão e a escada para o
calçadão da Vila do Mar mostrando a presença das obras da prefeitura interferindo na
paisagem e um singelo pixo “c.v”, tal como uma assinatura do dono.

62
Tracie se identifica como um homem gay cisgênero afeminado, uso do pronome feminino para se referir a ela
no texto por inconformidade da língua. A não conformidade da língua, neste caso, se aplica a uma pessoa que se
identifica com um gênero específico, mas pode e prefere ser referida por pronomes de outros gêneros que não o
seu. Esta discussão emergiu no texto, na medida em que eu precisei contar o sobre quando Tracie se propôs (caso
não conseguíssemos fazer o “corre” juntas) a ir sozinha, pois “afinal”, entendia que, naquele espaço, ela era lida
como homem.
63
Areninha é uma quadra poliesportiva.
117

Figura 24: Praia do Pirambu

Fonte: Arquivo Pessoal

Seguimos. Fomos andando, subindo os morros na tentativa de encontrarmos alguma


“boca” pelo caminho. Passamos pelos Abel e pela entrada de um beco estreito e
movimentado, o qual Tracie me apontou dizendo “Aí é o beco do Urubu. Sempre quis saber
porquê tem esse nome, sei que tem algum quilombo chamado Urubu mas não sei se tem
alguma coisa a ver”. Em capítulo anterior, falamos sobre os campos de concentração no Ceará
e descobrimos que o Campo do Urubu situava-se na área onde hoje é o Pirambu, apesar disso
também não tem evidências de correlação entre as duas histórias64. Mais a frente, numa das
ruas que passamos, Tracie viu de longe uma mulher negra, de cabelo trançado, que usava
tornozeleira eletrônica. Ela era batizada no C.V. e havia sido “pedida”, ou seja, jurada de
morte pelos “pilantra”.

Chegamos finalmente na casa de Tasha e lá ficamos conversando até praticamente a


hora que estava marcada para o reggae começar, às 18h, isso me deixou apreensiva pois não

64
Disponível em:
<https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/ha-87-anos-campo-de-concentracao-em-fortaleza-foi-atraca
o-para-visitantes-de-outros-estados-1.2125607> Acesso em 20 de julho de 2019.
118

queria perder nenhum momento do evento. Pretendia pegar o reggae desde o começo, ver as
pessoas da organização arrumando o evento, o público chegando de galera etc., mas ainda não
tínhamos feito o “corre”, nem nos alimentado, ou seja: a gente ainda ia comprar a balinha,
comprar a broca, fumar, comer e só depois ir para o reggae (eis o rito). Lembrando que não é
recomendado fumar no local por causa dos “embaço” com “uzomi”. Foi assim que eu entendi
porque reggae de praça só gera depois das oito.

Depois de muita insistência minha, saímos para fazer o “corre” do “kunk” (que foi
botado por mim, “representei”) com um cara recomendado pelo primo de Tasha, o Sabota65.
No entanto, Tasha não lembrava onde Sabotagem morava, só sabia que era mais para baixo,
na última rua da praia. Chegando por aquelas bandas cruzamos com o Preto Zezé, um homem
com bem mais idade que nós, preto retinto, e que sabia a localização de todas as bocas do
Pirambu, nós perguntamos a ele onde era a casa de Sabota e ele nos levou até lá. De fato, nós
tínhamos passado direto da casa, tivemos que voltar um pouco de onde estávamos. Nessa
volta, Pretozé foi acompanhando nosso bonde e pelo caminho foi cantando pontos de
umbanda que saudavam o povo da rua66. A “mise en scèene” deste momento ficou gravada na
memória: a rua estreita, chão de areia de praia, a vizinhança de parede com parede nas casas,
as portas de entrada direto para a rua, as pessoas e a brisa do mar passando, ao fundo o ponto
de Tranca Rua e Pomba Gira que Preto Zezé cantava como trilha sonora do momento.

Chegando em frente à casa de Sabota sentamos na calçada do outro lado da rua para
não dar “pála”, enquanto que Preto Zezé entrou num beco totalmente escuro, entre duas
paredes, que passava quase despercebido, pois além de estreito, havia um poste na entrada.
Pretozé entra, com um “pedaço” (tempo) volta, nos avisa que ele está lá e que podemos entrar.
Assim fomos, o beco era tão estreito uma largura que não passava uma moto e não tinha luz, o
beco dobrava uma vez para a direita e mais uma vez para a esquerda, só então se encontram as
portas de madeira, daquelas que se dividem ao meio e abrem para o lado de dentro que dava
para a sala de casa das pessoas que moravam ali. No final havia um portão de ferro que dava
para o mar, a última porta de madeira antes desse portão era a casa de Sabota…

65
Sabotagem, na verdade, carrega o “vulgo” de outro rapper, que é estadunidense, no entanto, assim como
Sabota (rapper brasileiro que entrou para a história do gênero musical) fora assassinado no auge de sua carreira.
Precisei fazer a substituição do nome por segurança, mas optei por um que não retirasse a simbologia dessa
homenagem.
66
Para adeptos de religiões de matriz africana, “povo da rua” é um dos termos pelo qual é conhecido também o
exu. Segundo José Carlos dos Anjos (2006), na cosmologia afro-brasileira, “o exu situa-se no começo de todo
processo de agenciamento da subjetividade” (p. 17).
119

Pegamos a balinha com ele e saímos, entretanto, Tasha ficou e reclamou por uma
balinha maior, pois aquela estava “miada”. Sabota atendeu a seu pedido e trocou por outra que
foi buscar fora do portão de ferro. Enquanto isso, nós ficamos esperando no beco mais atrás,
onde estava completamente escuro pois era antes de chegar nas portinhas de madeira das
casas. Nisso, um senhor de idade que morava ali entrou, passou por nós, viu que tínhamos
comprado maconha e deu um saudoso boa noite.

Primeira missão cumprida. Agora é agilizar a “broca”.

3.5.1 “PiraRoots: edição de aniversário”

Tasha sugeriu que comprássemos o sanduíche da mãe do Gallo, o aniversariante do


reggae. Lá chegando, a primeira coisa que Dona Maria falou ao nos ver foi: “cês vão pro
reggae do Gallo?”. Enquanto a “tia” preparava a broca, ficamos sentados na calçada
conversando. Dentre vários assuntos, Tasha contou do dia em que os meninos do “Traficando
Saberes” foram para o Pirambu participar da gravação do clipe do Costa a Costa, grupo de rap
formado por Nego Gallo e Don L. Ela conta que neste dia, os meninos ficaram cabreiros, pois
o motorista da van que os levou até o Pirambu pegou o caminho por dentro da Barra do Ceará,
sendo que todos os meninos são “dazária” do CV. Ao chegarem no Pirambu, os meninos do
movimento foram perguntar ao motorista, parado por perto a espera da gravação acabar, de
onde ele era e o que eles estavam fazendo ali. Para Tasha, a “sorte” é que o motorista era da
“merma zária”, caso contrário, tinha sido “pedo” para ele, como os próprios meninos
participantes do projeto o alertaram.

A broca ficou pronta e só então partimos para a terceira missão, fumar.

3.5.2 Merma zária

Fomos até a casa de MV Bill para fumar “esse” antes de ir para o PiraRoots pois,
desta vez, ele também ia para o reggae com a gente. Sua casa é um compartimento situado no
final de um corredor escuro dentro de uma casa maior porém inacabada, no corredor tinha
uma pia, uma escada de madeira e alguns entulhos que não dava para enxergar pela escuridão,
mesmo durante o dia, pois não havia entrada de luz. Assim como das outras vezes, entramos
enfileirados pelo corredor até a porta do quarto, porém lá de fora já se ouvia a voz de uma
mulher exaltada. Era a mãe de Bill, ela estava contando que sua irmã, Flora, tinha feito uma
grande dívida de “pó”67 no bairro Vila Velha e agora duas mulheres vieram cobrá-la, a irmã de
67
Cocaína.
120

Bill estava na casa ao lado (onde moram outros parentes da família), aos prantos de choro
com medo de morrer, pois não sabia como ia pagar e sua mãe aos gritos dizia que também não
ia pagar pois não ia “se matar de trabalhar pra tá sustentando vício dos outro”.

No meio dos sermões, a mãe de Bill se virou para mim ainda no corredor dizendo:
“ta aí, tô devendo quatro mil de advogado pra soltar esse daí [se referindo a Bill] da cadeia.
Pra quê? Ta aí vendendo droga de novo”. Depois disso, ela saiu do corredor e nós entramos no
quarto. Adentramos no quarto e nele há sempre um colchão de casal descoberto, em cima dele
uma gaveta retirada de alguma cômoda com vários utensílios pessoais, dinheiro e roupas
espalhadas. Algumas vezes, vi as drogas por ele empacotadas e comercializadas, outras vezes
não. No quarto, sem janela nem saída de ar além da porta, era necessário sempre um
ventilador ligado.

Lá dentro, Bill, como era de costume, não estava só. Sempre que visitei sua casa,
nunca fui sozinha, estava no mínimo acompanhada de Tasha e, ele também nunca estava só no
recinto, vivia sempre rodeado de pessoas, meninos do “movimento” (alguns menores de
idade), algumas de suas companheiras, amigas dele, de sua irmã (as meninas do “corre”) e de
sua então namorada. No geral, era casa cheia, mas nesse dia estavam só Bill e Kmila CDD,
sua namorada na época. A Kmila era uma mulher preta, deslumbrante, de cabelo liso e longo,
estatura mediana. O assunto era o “vacilo” da irmã de Bill. Flora, a única branca da família,
tem por volta de seus 30 anos de idade e três filhos. A conversa já se iniciava com os
questionamentos “o que que ela tava fazendo lá?” (visto que o Vila Velha, bairro onde ela fez
a dívida, faz fronteira com a Barra do Ceará do lado oposto da cidade), “por que ela foi
comprar deles?”, “com quem ela tava?” e comentários sobre ter sido sorte ela ainda ser
avisada antes da real cobrança de uma dívida: a morte.

Em dado momento, em tom de indignação, Tasha “mandou a real” e disse que Flora
faz esse tipo de coisa porque ela é branca e “sabe” que “tal hora” alguém dá um jeito de sanar
a dívida dela. Como realmente aconteceu, tempos depois outros familiares se juntaram e
emprestaram o dinheiro. Contudo, Bill falou repetidas vezes, em tom de aviso, que “lá não é o
Pirambu… mesmo sendo “a merma zária”, não é a nossas “zária”… Aqui todo mundo
conhece ela, conhece a gente e tal, lá não.”. Este é um dado importante, quando diz-se que
determinado território pertence ou é das “merma zária” [mesmas áreas] quer dizer que é
comandada pela mesma “facção”. Esta premissa faz parte da tentativa de unificação dos
territórios faccionados da cidade desde a pacificação. Quando se sabe que o local é “merma
121

zária, os vetin ficam mais de boa”, é onde se pode transitar sem medo. Entretanto, o caso da
dívida da Flora evidenciou os limites simbólicos desse ideal de pertencimento criado pelas
facções, o fato de andar por lugares que é “merma zária” lhes dá segurança, mas não lhes dá a
mesma liberdade que teria se fosse “nazária”, sua própria localidade.

Assim como quando Ice Blue chegou no quarto, pois também ia para o reggae, e
ficou me fazendo as perguntas de praxe quando se vai conhecer alguém pela primeira vez na
favela: do meu nome a “tu é da onde?”. Nestas circunstâncias ainda era estranho para mim
responder que morava no Benfica, em primeiro momento falei que era da Caucaia, até em
virtude do formato da pergunta que indaga de onde se é e não onde se está. Bill entrou na
conversa me perguntando que parte da Caucaia, falei que era o Tabapuá e ele disse: “to ligado,
ali perto da lagoa, né? tô interado”. Em se tratando de comando, era “merma zária”,
Tabapuá-Benfica-Pirambu, mas eu não me reconhecia como cria do Benfica, como sou do
bairro que nasci, Tabapuá.

Ainda rodou uns dois “becks”, os sanduíches e água antes de sairmos, um por um
pelo corredor até lá fora na calçada. Daí, Tracie se despediu da gente e foi para casa enquanto
nós nos encaminhamos para a Areninha, onde estava acontecendo o reggae. No caminho, Bill
foi “tirando onda” com Ice Blue porque ele estava recém separado e, aparentemente, se
cuidando melhor, querendo ficar bonito e andando mais arrumado, já que estava solteiro. Esta
informação de que Blue havia terminado com Karol, há pouco tempo veio à tona na edição
seguinte do PiraRoots, em que ele me chamou para dançar e eu aceitei. Neste intervalo de
uma música que dançamos, Karol chega no Pira e vai embora. Passei meses com receio dela
ter “pegado maldade” ao me ver dançando com seu ex.

Na Areninha, Gallo nos viu e já foi perguntando se a gente tinha levado a câmera
para ajudá-lo a fazer os registros, mas ela foi deixada carregando. Agregado a isso, tinha o
fato de termos andado muito antes de chegar no reggae e é “paia” ficar transportando assim
um equipamento que não é nosso. Como já chegamos tarde, o reggae estava “gerando”, a
quadra e arquibancadas lotadas, com Gallo muito empolgado registrando tudo. Nesta edição,
haviam duas convidadas especiais vindas do Rio de Janeiro, eram poetas e MCs integrantes
do Slam Laje (RJ) que, em parceria com o Coletivo Natora68, fazem essa conexão entre
diferentes periferias do país. As duas fizeram uma apresentação durante o reggae. Durante a
apresentação de uma delas, Tasha me chamou atenção para o fato dela ter feito sinal de dois
68
O Coletivo Natora é um coletivo formado por jovens da favela que tem como objetivo ocupar os espaços
"natoralmente" com arte, cultura e lazer.
122

com os dedos em referência a Penha e o Pirambu, ambos “tudo 2”, que para nós é “merma
zária”.

3.6 A lei do Silêncio

Certo dia fui convidada para um aniversário surpresa no Pirambu. A casa onde
aconteceu a festa fica no final do bairro, na fronteira com a Colônia, mais perto da Barra do
Ceará. Sai da minha casa na avenida da Universidade por volta das quatro da tarde, um pouco
antes do horário de pico se iniciar, peguei a topic 75469 que vai até as Goiabeiras, também na
Barra. Todas essas localidades são territórios vizinhos e rivais, mas a gente desceu antes do
transporte alternativo adentrar neles. Fui acompanhada por uma pessoa não binária, também
convidada para a festa, mas natural e residente de Maracanaú, cidade da região metropolitana
de Fortaleza, conhecida por ter predominância da GDE. A topic 754 faz um trajeto por “fora”
do Pirambu, passa pelo Centro, praça do Liceu do Ceará e entra na avenida Francisco Sá indo
até a avenida Pasteur, para só então adentrar no bairro sentido praia, dar uma volta e pegar a
Leste-Oeste exatamente onde nós precisávamos descer.

O aniversariante, amigo e colaborador desta pesquisa, estava na casa em que mora


com outras pessoas da família e seria levado pelo irmão até a casa de sua mãe onde nós
estávamos reunidos, arrumando a sua festa. Apesar do aniversariante ser jovem adulto, mais
ou menos da minha idade, o tema da festa era galinha pintadinha. Fizemos uma arrecadação
entre nós para comprarmos os enfeites temáticos, o bolo e salgadinhos. O dia do seu
aniversário caiu numa segunda-feira, sua mãe estava no trabalho, então nós tínhamos a casa
desocupada para preparar tudo e esperar ele chegar. Era final de tarde, esperávamos que seu
irmão conseguisse o levar na faixa de 17h, mas as horas foram se passando e o aniversariante
não aparecia. As pessoas começaram a ligar, bolar uma estratégia sobre o que dizer para
apressá-los sem dar a entender que estaríamos todos lá à espera para realizar essa surpresa. A
ansiedade foi batendo, as horas se passando, o aglomerado dentro de uma casa pequena foi
deixando o clima muito quente, aquele calor insuportável comum de Fortaleza somado a
agonia da espera foi estressando os convidados, gritarias eram constantemente silenciadas por
acharmos que eles estariam finalmente chegando, depois a frustração de ser outras pessoas,
outros convidados, a casa abafada, lotada de gente e uma espera interminável. Cochichos e
risos formavam o som ambiente. Depois de muito perrengue, senta-levanta, calor, gritos e
muitas interjeições para impor silêncio, a única criança que havia entre os convidados falou:
69
Transporte alternativo: <https://www.mobceara.com/2016/08/linha-do-dia-754-planalto-das.html> Acesso em
27 de novembro de 2021.
123

“agora é a lei do silêncio”. Ironizando o fato de estarem pedindo silêncio para não denunciar a
festa surpresa com a lei da facção que se impõe contra a fofoca na favela.

Mesmo sabendo do que se tratava, eu perguntei: “lei do silêncio?”. E a criança


respondeu: “é, a lei do silêncio… Não pode falar dos bandido, não pode fazer fofoca. Se
souberem que tão fazendo fofoca na favela leva umas ‘caibada’, quebra as mãozinha”. O
diminutivo usado em “mãozinha” parecia se tratar mais de uma ironia que de fato uma forma
infantil no falar. E foi descrevendo as penalidades para quem por ventura quebrasse a lei do
silêncio. A idade da criança me chamou atenção, para que eu pudesse perguntar o óbvio, mas
é comum crianças estarem familiarizadas com o que acontece na favela e, como elas, às
vezes, tem essa característica de repetir fielmente o que se vê ou escuta, tive este dado de
pesquisa particularmente esmiuçado, algo que não foi tão comum durante minha permanência
em campo, como direi mais na frente deste tópico.

Em outras circunstâncias, o pai desta criança, MV Bill, personagem que já apresentei


anteriormente, contou uma situação em que ele poderia ter aplicado “a lei do silêncio” e não o
fez por “consideração”. O caso foi que seu cunhado, irmão de Kmilla, viu a sua ex mulher
saindo da sua casa logo pela manhã, indicando que ela havia dormido lá com ele e foi
“cabuetar”70 para ela. Bill me explicou a situação, sua ex-companheira passava por
dificuldades naquele momento, havia ido em sua casa para deixar os filhos com avó, mãe
dele, e precisou ficar para dormir. Bill afirma terem dormido no mesmo quarto, ela com as
crianças na sua cama e ele na rede ao lado. Logo no dia seguinte, Kmila, então namorada na
época, foi “tirar satisfação” e ele diz que poderia ter dado ao “cabueta” as “pauladas” que
determina a lei, mas não o fez, dando uma segunda chance, pois seu cunhado era deficiente
intelectual e preferiu dar um aviso antes. De qualquer forma, ele reiterou que chamou atenção
pois “ele é homem”.

A lei está posta, a “pichação-decreto” (SILVA, 2019, p.175) no muro da entrada do


beco que dá para a última rua da praia anuncia e todos têm conhecimento dela. Perguntar
demais é algo mal visto na favela, das vezes que eu falei ou demonstrei que sabia demais, as
pessoas “pegaram maldade” em mim. Em consequência disso, nunca utilizei gravador em
campo. Em contrapartida, incorporei o ethos do não dito71, porém sabido, algo bem
estabelecido na favela: todo mundo sabe, todo mundo sabe que sabem, mas algumas coisas
não podem ser enunciadas. Os atos de fala eram comumente interrompidos/encerrados com a
70
Delatar. Ver Pires (2018).
71
WHITE, 1993.
124

expressão: “é… embaçado…”. E coloco as reticências para evidenciar realmente o espaço do


silêncio na expressão. “Embaçado” é um termo recorrente no linguajar do “vetin”
fortalezense, que encaro como interessante por denotar certo tipo de complicação que se
apresenta como obscurecida, algo “complicado”, “difícil” de lidar ou “perigoso”, podendo ser
aplicada ao caso de um lugar ou uma situação.

Em campo, pressupunha-se que eu já entendia esta máxima, das vezes que eu fiz
alguma pergunta pedindo explicações fui vista como inocente ou burra, mas, no geral, a
resposta vinha em gesto de “tu sabe, né?”. Isso não quer dizer que não se faz fofoca, sempre
me contavam/narravam novos causos, mas não se explicava o porquê. Não se explicam as
regras previamente estabelecidas, eu já deveria saber o porquê daquilo acontecer da forma
como aconteceu. Então ao invés de perguntar eu ia seguindo os passos, encaixando as
narrativas e obedecendo às normas, ouvindo as dicas: "porque tu sabe, né?”.

Grace Cho (2008) vai trabalhar com autoetnografia para reconstituição de memórias
e elaborações sobre trauma transgeracional. Seu ponto de entrada é a figura da yanggongju,
que um dia foi sua mãe, e o lugar do silêncio impregnado na convivência familiar dando
ênfase no trauma que queriam apagar. Desta forma, a autora versa sobre alternativas
metodológicas para se tratar de narrativas não oralizadas em campo.

Como, por exemplo, é transmitido através do tempo e do espaço por meio de outros
veículos que não seja o falante, como o entrevistado ou registro histórico? Faça
métodos alternativos de investigação sociológica experimental, como autoetnografia,
psicanálise, ficção e a performance nos aproxima de uma compreensão afetiva da
yanggongju que não pode ser transmitida por meio de narrativas tradicionais? (CHO,
2008)

3.7 A última rua da praia


A Costa Oeste de Fortaleza passa, atualmente, por uma tentativa de gentrificação
com a implementação das obras do Vila do Mar. Em toda a extensão da sua orla, casas e
moradores foram removidos para a construção do calçadão que promete levar infraestrutura e
lazer para as comunidades. As favelas da Costa Oeste, em especial as do Grande Pirambu,
tem uma característica singular de divisão sócio espacial; como já narrei em outros momentos
da etnografia, os bairros se iniciam na avenida Francisco Sá e tem como fim a praia.

Ao contrário da configuração de bairros centrais da cidade, onde morar próximo a


praia é sinônimo de luxo, no Grande Pirambu, quanto mais próximo da praia, maior o nível de
precarização do espaço público e da moradia. É em algumas partes da orla que ficam os
barracos de madeira, cobertos com lona, as casas de taipa, construções não terminadas, alguns
125

sem água encanada e esgoto, a lama desce pela areia em direção ao mar. Na última rua da
praia é também onde está majoritariamente a população negra do bairro. Quanto maior a
estratificação da localidade, maior a concentração de moradores que se autodeclaram pretos e
pardos.

Apesar de haver a defesa de uma identidade do Grande Pirambu como um complexo


de favelas, dentro das fronteiras construídas pelo imaginário social local, existe também a
compreensão da multiplicidade interna desse complexo de favelas. Há sempre um lugar que é
mais favela que outro e, no Pirambu, isto cresce em direção ao mar. MV Bill, da última vez
em que “puxou cadeia” foi pego estando dentro de casa e, apesar disso, levanta a diferença da
abordagem policial entre os moradores da sua rua e da rua da praia, “lá embaixo o RAIO entra
destrói tudo e num tá nem veno não, às vezes nem leva ninguém, é só pela maldade mermo”.

Em decorrência deste fator, aquele que não compreende as significâncias dessa


territorialidade, pode tomar como área “perigosa” a cada passo que se aproxima da última rua
da praia, pela forma que se dispõe a convivência entre a pobreza e a predominância da
violência. No entanto, para os “vetins” que se aventuram circulando em Fortaleza, existe uma
realidade que determina a forma de se relacionar com os espaços. Trata-se da “pista”, grandes
avenidas ou ruas comerciais de maior circulação de pessoas e carros, que geralmente são
“faixa de gaza”, territórios em disputa, ou “rota de fuga” para casos de perseguição entre
facções ou a polícia. A pista é território sem lei, trecho sem domínio, por conta disso é
“liberado” para assaltos. Os “vetin” tem que andar “ligeiro” na “pista”, enquanto que por
dentro da favela é mais sossegado. Enquanto a última rua da praia sofre com a eventuais
chegadas da ação da polícia, a “pista” é local de imanência da guerra.
126

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo da história da antropologia, vimos serem estabelecidas relações de


alteridade, construção social da diferença e conceitos dualistas para descrever povos que
foram colocados como objetos em suas pesquisas (nyack, 2021). Neste trabalho, a situação
etnográfica e a prática antropológica faz emergir tensionamentos interessantes acerca de
temas caros à antropologia, pois desestabiliza sua base: a distinção fundamental entre o “eu” e
o “outro”. Vou discorrer sobre alguns dos que considero mais evidentes na etnografia,
seguindo a ordem em que foram trabalhados ao longo dos capítulos.

O primeiro deles é o uso do conceito de cultura. Sem me alongar sobre, as reflexões


que trouxe no primeiro capítulo, permitem refletir sobre a convenção e os efeitos políticos em
torno do conceito de cultura, fazendo-se reconsiderar o seu valor naquele contexto.
Inevitavelmente, o conceito de cultura acarreta num sentido de hierarquia que reforça
distinções, seja no discurso antropológico, ou na arena pública (Abu-Lughod, 2016). A partir
desta pesquisa, foi possível perceber que o reggae - e, neste caso, me refiro tanto ao espaço de
lazer quanto ao ritmo musical - não busca se apresentar nas disputas de narrativa entre os
meios hegemônicos de poder, portanto, não pretende reivindicar a categoria de cultura para si.
Algo que encaro como fruto da herança de uma história de luta anticolonial que visa implodir
o sistema vigente, não disputá-lo internamente e através dos seus termos.

Em decorrência disso, tomo como falha a tentativa da Coordenadoria de Políticas


Públicas de Juventude da Prefeitura de Fortaleza, por meio do projeto itinerante Reggaendo
Fortaleza, de se apropriar dos espaços, dos símbolos e das narrativas que se cercam do reggae.
Neste sentido, Abdias Nascimento (2016) é feliz em sua postulação sobre como o negro deve
se posturar diante de aproximações aparentemente elogiosas da branquitude sobre a produção
artística afrobrasileira. Entre os sujeitos de pesquisa, as investidas de representantes do
Reggaendo Fortaleza nos reggaes de praça nas periferias, aparecem como tentativas de
cooptação e aparelhamento dos projetos que já acontecem de maneira autônoma, fruto do
“corre” de muitos jovens negros e favelados.

Seguindo com o próximo tema que inverte as hierarquias de poder no contexto


etnográfico, a proposta de uma redefinição dos termos a serem usados para se referir aos
sujeitos de pesquisa, se dá com o propósito de romper com as formas da branquitude nomear
e segregar juventudes racializadas. Assim, o uso da categoria "vetin/vetinha'', dando luz à
127

maneira positivada de se auto representar, parte de um outro lugar de construção do


conhecimento, que só foi possível a partir da posição do sujeito antropológico na pesquisa.

A categoria de "pirangueiro/a'', dentro e fora da favela, reflete uma relação de


alteridade. Pelo olhar da branquitude, que determina quem é o “eu” e o “outro” da urbe, é que
se decide quem a cidade protege, quem ela violenta, fazendo eclodir a guerra racial (Anjos,
2015) a que estamos submetidos. Já a partir da “lei”, a “pirangagem” é uma contravenção
ética e moral, de procedência contextual. Sendo uma categoria relacional, não poderia ser
utilizada para delinear sujeitos em forma de tipos ideais.

Contudo, para um “vetin” em Fortaleza, as ruas da cidade parecem ter o efeito


inverso, sendo mais seguro andar “por dentro” do bairro, do beco ou da favela, posto que as
ruas pavimentadas, áreas comerciais e de grande circulação durante o dia, são na verdade
desterritorializadas pela guerra, trata-se de trechos não dominados e, portanto, desconhecidos,
sendo assim, mais arriscados. Desse modo, retorno às discussões clássicas da antropologia
urbana, onde a territorialidade e o mergulho na cidade partem de um lugar específico de
privilégio que evidencia as diferenças e as tomam como um problema de segurança, de
habitação ou de infraestrutura. A formulação de José Carlos dos Anjos (2006) sobre
desterritorialização nos ajuda a pensar este fenômeno:

Por desterritorialização entendo aqui o fenômeno no qual dois territórios se


sobrepõem no tempo. Um se torna a imagem virtual do outro [...]. A imagem-passado
e a imagem-futuro coexistem num presente que as torna indiscerníveis: o presente
pertence à imagem-passado ou à imagem-futuro? Para o pesquisador, assim como
para o morador em pânico, um além do “estranhamento” - a desterritorialização, o
exílio, a fuga do presente sob nossos pés, o fim da esperança atropelada pela avenida.
(p. 33)

No tópico “Eles descem pro beco pra resolver problemas de condomínio”, parti da
crítica às teorias do contágio para evidenciar como o campo da antropologia da violência
constrói seu “Outro” de maneira perigosa e, na tentativa de apagar conflitos raciais históricos,
sobretudo nas metrópoles, acaba por reforçar tais desigualdades. O título refere-se de maneira
propositalmente provocativa à algo comum na crítica pós moderna, sobre a implicação de
categorias ocidentais em contextos etnográficos distintos, onde as mesmas não têm sentido
particular, tendo como fim discutir problemas e questões que são caras ao pesquisador e não
ao grupo pesquisado.

Neste sentido, a “cabreiragem” revela que vetins e vetinhas convivem com tensões
de naturezas múltiplas, rompendo com uma ideia que paira sobre algumas pesquisas em
128

favelas, de que na periferia se resguarda modos de viver, práticas de socialização e redes de


solidariedade que, na visão do antropólogo de “fora”, são hábitos perdidos nas classes mais
abastadas, devido a sensação de insegurança e recrudescimento da violência urbana.

A figura do “pilantra”, em comparação ao de “pirangueiro”, também estabelece


relações de alteridade em campo. No tópico “Boca de Prata”, assim como em outros
momentos do texto, vemos surgir uma hierarquia na forma como a “lei” encara quem é de
“dentro” e quem é de “fora”, ou seja, quem é “pilantra” e quem é “dazária”. O discurso sobre
a construção do “Outro” favelado nem sempre dialoga diretamente com o lado branco da
cidade, existem as categorias internas que devem ser consideradas. Neste sentido, enquanto o
“pirangueiro”, aquele que sucumbiu moralmente na favela, tornando-se o “Outro” da
“dazária”, a figura do “pilantra”, apesar de parecer distante, por está imbricada na concepção
de território e não poder se desvincular dela, permanece no lugar de “Outro” do “Outro”. É a
esta formulação que os conflitos de gênero, aqui trabalhados na dissertação, parecem
obedecer, concluindo que a “lei” é um ponto de convergência entre raça, território e gênero.

Outra relação de alteridade comumente estabelecida em trabalhos antropológicos é


a que se constrói entre autor e sujeitos objetificados pela pesquisa. Pensando com
Favret-Saada (2012), o medo de contagiar-se com o sujeito objetificado faz com que o
antropólogo se prenda ao seu lugar analítico, como forma de se proteger, na racionalidade, do
outro que representa o seu inverso, o irracional, o bárbaro. No capítulo 1, diversas foram as
situações em que me perco entre a pesquisa, os colaboradores e as emoções em voga. O
trabalho das emoções foi base para alinhar o meu envolvimento com a pesquisa e
transformá-lo em análise, sem adentrar em concepções equivocadas achando ser necessário
“dar voz”, ou falar por.

De certo, não houve um marco na pesquisa que me fizesse ter um estalo


metodológico de acesso ao campo através do “ser afetado”. O que marca meu lugar de
pertencimento a esta rede de relações, me fazendo experimentar uma série de tensões
cotidianas próprias deste contexto, é o corpo racializado e generificado que me é próprio
desde o nascimento. Ser mulher negra e periférica numa cidade em guerra.

Se encaminhando para o final das considerações, gostaria agora de fazer um


comentário sobre o processo de escrita geral do texto. Este foi um período para entender qual
postura se deve tomar diante do discurso antropológico. É possível perceber que ao longo de
todos os capítulos, o campo teve voz ativa nas reflexões, sobressaindo-se muitas vezes à
129

minha enquanto autora. Isto não quer dizer, é fato, que eu me distanciei na narrativa para
alcançar alguma tentativa de neutralidade ou objetividade, pois sabe-se que isto é algo dado a
falhar desde o princípio. Mas o relevo que o campo ganha no texto diz muito a respeito da
imagem que quero construir sobre ele para o/a/u leitor/a/u, a partir do trabalho etnográfico.

A tentativa de tradução etnográfica foi superada pelo recurso literário, mas sempre
se atentando para um leitor fora daquele universo (Clifford, 2016). A premissa de que se
escreve para um público genérico (adotando, assim, uma linguagem também genérica), não
apenas para os que o entendem, é um tanto quanto questionável se nos perguntarmos quem
faz parte do mundo de leitores/as/us da antropologia. Esta me parece ser mais uma tentativa
de estabelecer o lugar do antropólogo diferente e distante do contexto etnográfico. Este
referido mundo de leitores/as/us que consomem textos antropológicos, ainda em sua parcela
significativa, é branco, burguês, citadino e proveniente da metrópole do capitalismo - por
mais que estejamos vivendo micro revoluções diárias neste espaço desde a democratização
dos espaços universitários desde a implementação das ações afirmativas.

Entretanto, o espelho da antropologia, aqui neste trabalho, não os reflete, quem se


verá através destas páginas serão outros antropólogos, aqueles que emergem das margens da
própria disciplina (nyack, 2021). Meus esforços de estranhamento, distância e tradução
refletem o que os próprios sujeitos veem sobre si mesmos, que não está dito e não se encontra
em muitas etnografias sobre favelas existentes no mundo branco da antropologia.
130

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