Você está na página 1de 7

A FIGURA FEMININA E OUTROS FEMINISMOS NAS NARRATIVAS DE JOÃO UBALDO RIBEIRO

Manoel Sena Costa1

Introdução

João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro foi grande escritor brasileiro que teve obras
adaptadas para o cinema e a televisão. Ganhou projeção nacional e internacional pelo
desdobramento que suas obras literárias tiveram em decantar o Brasil e o povo brasileiro
em suas singularidades. Dentre suas produções destacam-se os romances “A Casa dos
Budas Ditosos” e “Miséria e Grandeza do Amor de Benedita”, objetos de estudo neste
ensaio acadêmico. Logo, objetiva-se estudar a figura feminina e outros feminismos nas
narrativas de João Ubaldo Ribeiro a partir dos respectivos romances.
Nos dias atuais, o crescimento da imagem da mulher é um assunto bem ventilado
nas mídias, nos debates políticos e sociais, na militância que dura séculos pela conquista do
espaço com todos os direitos que também cabem ao homem. O movimento feminista
começou no século XIX e foi mais intensificado entre os anos 60 e 70 do século XX. Hoje
é um importante movimento social, reconhecido e legitimado. Obstante, seus registros
ficaram em produções cinematográficas, arte e literatura. Desta conjuntura cresce a
importância e justificativa da conversa que se trava nesta escrita.

O panorama de personagens femininas na literatura brasileira é imensamente


diverso. Na ubaldiana essa riqueza de abordagem da representação do feminino aparece
sob os dois ângulos que se contrapõem: o da subordinação às exigências tradicionais por
meio da personagem Benedita em “Miséria e Grandeza do Amor de Benedita” e o ângulo
que aborda a mulher audaz, sem nenhuma submissão ao machismo em “A casa dos budas
ditosos”. As duas personagens protagonistas nessas obras são mulheres com posturas e
vivências diferentes a partir de um modo de vida singular, levando o leitor a refletir sobre a
figura feminina e o que se pode denominar de feminismo em ambas construções literárias.
Isto porque a escrita de autoria masculina forjou parâmetros diferenciados das condições
de vida, perspectivas e quereres do ser feminino. Essa escrita pretende indicar formas de
entendimento dessa realidade que se ocupa do corpo, dos gestos e olhares da mulher e da
construção de sentidos e dos contextos que ela vive, sonha e projeta. Afinal, as mulheres
que compõem esses romances estão contracenando a todo momento e na atualidade, na

1
Aluno do 8 semestre do curso de Licenciatura em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia.
sociedade brasileira, replicando a tradição, valores, princípios e comportamentos
recebidos. Ou simplesmente recriando seu próprio espaço sem os dogmas e
tradicionalismos repassados.

Para este estudo a leitura dos dois romances, em epígrafe, de Ubaldo, é item
obrigatório. A partir das narrativas romanescas compartilha-se a visão de Rita Olivieri-
Godet citado por Silva (2019) que identifica nas obras de Ribeiro múltiplas representações
identitárias do povo brasileiro. Na análise criteriosa de “A Casa dos Budas Ditosos”
recorreu-se a Silva; Vilalva (2019). Eles apontam as características do romance moderno
na respectiva obra e, ao mesmo tempo, discutem uma das principais caraterísticas
ubaldiana, ou seja, o deboche. Dissecam a figura feminina representada pelas iniciais CLB
(conforme se identifica a personagem principal) nesse romance . E, para falar de
feminismo no Brasil um panorama completo com a professora de História, Juliana Bezerra.
Ademais, toda e qualquer lacuna porventura deixada será apenas um pretexto para novas
retomadas e discussões em torno do assunto. Sempre tão vasto, complexo e atual.

Fundamentação/Metodologia

A metodologia utilizada neste ensaio foi a literatura de revisão. Tendo como


referência o nome João Ubaldo Ribeiro, buscou-se na plataforma Scielo produções escritas
sendo encontrados sete resultados. Optou-se por SILVA; VILALVA (2019) pela análise que
fazem da obra “A Casa dos Budas Ditosos”. Ambos discutem a estrutura do deboche nessa
construção literária, fazendo um panorama desde a origem dessa palavra até as evidências
dessa característica da obra ubaldiana. Os autores, de forma sutil, delineiam o feminismo
nesse livro ao referir-se à personagem por iniciais CLB por sua conduta libertina, chegando
à conclusão de tratar-se do empoderamento feminino. SILVA; VILALVA (2019) defendem
a mulher empoderada do romance “A casa dos budas ditosos”, por esse ser humano possuir
ascensão social e poder financeiro.

Dar voz àquela senhora de quase setenta anos de idade para falar de sua vida de
luxúria na obra “A Casa dos Budas Ditosos” é uma das interrogativas que Olivieri-Godet
(apud SILVA, 2019, p. 5) faz: “Seriam as memórias desta senhora devassa e libertina um
relato verídico? Ou seria apenas uma brincadeira do autor? Nunca saberemos. O

2
importante é que ninguém conseguirá ficar indiferente à franqueza rara deste relato e seu
humor corrosivo”.

Nessa simbiose de representações encontra-se o livro “Miséria e Grandeza do Amor


de Benedita”, contando a história de uma senhora que passou a vida inteira dedicada ao
esposo infiel e às atividades domésticas. A leitura desse romance é predicativa para a
compreensão da figura feminina no sentido mais tradicional de seu papel social. Em uma
das passagens desse romance, encontra-se o conceito de mulher expresso Ribeiro (2019, p.
19-20) nas seguintes palavras:

A verdadeira mulher da ilha, para citar um aspecto que todos os


forasteiros admiram e invejam, é incapaz, e considera tal comportamento
uma vergonha, de tirar pergunta ao marido, se é informada de que ele está
plantando uns aipins fora de casa. Nunca que vai dar a ele esse desgosto e
preocupação, se arriscando a prejudicar o sossego necessitado pelo
trabalhador e elevar sua pressão arterial. O que ela faz é o certíssimo, é o
papel da mulher que se dá valor: procura a deslavada e, tendo condição,
desce a porrada nela, para que aprenda a não se enxerir com o homem das
outras. Ele não, ele estava no papel do homem quando passou a sem
vergonha pelas armas, pois, desde que o mundo é mundo, homem que
enjeita mulher sem muito boa razão — e bem poucas delas há — não
merece fé de homem.

No universo das pesquisas não foram encontrados acervos que discorressem sobre
“Miséria e Grandeza do Amor de Benedita”, com exceção de parcos resumos. Procedeu-se
a leitura das narrativas-chave para este estudo e buscou-se a ajuda da professora de
História, Juliana Bezerra, para o entendimento do conceito de feminino cuja temática
destaca-se.

Análise e Discussão

“A Casa dos Budas Ditosos” e “Miséria e Grandeza do Amor de Benedita” são dois
romances escritos pela mesma mão masculina e com abordagens diferentes na
representação do feminino. No primeiro livro, Ubaldo Ribeiro transcreveu as falas de uma
senhora idosa, emprestando a ela a voz narrativa de episódios reais da vida de luxúria e
promiscuidade dessa pessoa. No segundo romance o narrador em terceira pessoa do
singular demonstra ser observador. Conta com riqueza de detalhes a vida de Deoquinha,

3
um importante morador da ilha de Itaparica, suas proezas, aventuras amorosas, o
tratamento machista dado à esposa Benedita.

O movimento feminista é um dos temas mais discutidos na atualidade. Suas origens


remontam ao século XIX, “com a luta pela educação feminina, direito de voto e abolição
dos escravos”, segundo Bezerra (2019). Ganhou novas sedimentações, de forma que se
encontram organizações específicas de feministas negras, indígenas, homossexuais, dentre
outros. Esse tema está intrínseco nas obras de João Ubaldo Ribeiro, “A Casa dos Budas
Ditosos” e “Miséria e Grandeza do Amor de Benedita”, ao trazer as personagens
principais, figuras femininas com representações do feminismo. No primeiro romance,
uma senhora de quase setenta anos de idade (página 168), cujas iniciais do nome é CLB
(página 173), nascida na Bahia e residente no Rio de Janeiro, expõe sua vida de luxúria. A
personagem envia ao narrador um pacote contendo os originais de “A Casa dos Budas
Ditosos”. Ela descreve de forma pormenorizada as tantas cenas de aventuras amorosas e
libidinosas praticadas, retratando o perfil da figura feminina emancipada, livre das amarras
que a sociedade impõe. Essa mulher retratada representa a conjuntura do século XXI
galgada pela luta do movimento feminista cuja pauta foi “a preocupação com o corpo da
mulher e o uso que a sociedade, os homens e ela mesma fazem deste corpo”, de acordo
com Bezerra (2019).

Na construção da identidade do povo brasileiro, Olivieri-Godet (apud SILVA, 2019,


p. 1) denomina de “quadro plural e conflituoso”.

SILVA; VILALVA (2019) usam a palavra deboche para se referir a essa obra de
João Ubaldo Ribeiro. Para isto, retoma a origem do vocábulo “deboche” e observa que
“deriva do termo em língua francesa debauche, que significa “devassidão”, “uma pessoa
entregue aos vícios, principalmente da carne””(p. 456). Seu sentido etimológico está na
concepção de tripúdio, licenciosidade e depravação. E até nossos dias o termo está
relacionado a ideia de cinismo, desfaçatez ou desplante.

No universo literário, a característica do deboche é usada para a literatura francesa,


de forma específica aos escritores libertinos do século XVIII, quando o conceito de
libertino estava associado à aristocracia e, por isto, não tinha o tom pejorativo. Em “O
caderno rosa de Lori Lamby” (1990), da pornógrafa Hilda Hilst, e o romance

4
“Pornopopeia” (2009), escrito por Reinaldo Moraes o deboche ganha a conotação de
denúncia social e liberdade e ato político, respectivamente, nessas obras. Em “A casa dos
budas ditosos” Ubaldo utiliza esse recurso linguístico para “rir da maneira como as
mulheres são subjugadas sexual e moralmente” (Silva; Vilalva (2019, p. 457). De forma
análoga, “Miséria e Grandeza do Amor de Benedita” é um romance que conta a história de
um homem namorador, um Don Juan, em versão nordestina, casado com Benedita, esposa
exemplar que perdoa as escapadas do marido. Ela é apresentada como ingênua, bondosa,
sem nenhuma palavra de defesa da equiparação do direito das mulheres ao dos homens. O
tipo de figura feminina que aparece em séculos anteriores ao XX quando a sociedade
brasileira era baseada na escravidão e cujas atividades eram restritas ao lar. A verdadeira
“Amélia” cantada por Ataulfo Alves. O marido é a representação do machismo, a
confirmar pela seguinte passagem em Ribeiro (2019, p. 19): “A obrigação do homem é
sustentar, dar bom serviço de marido e ser respeitado pela coletividade. Cumprindo ele
essa dificultosa obrigação, ninguém pode lhe negar o direito de mandar na mulher”.

Considerações e Conclusões
“A Casa dos Budas Ditosos” e “Miséria e Grandeza do Amor de Benedita” são dois
romances interessantes e intrigantes de João Ubaldo Ribeiro, escritor consagrado pela
crítica nacional e internacional ao abordar “diversos aspectos da formação social do povo
brasileiro em busca da sua construção identitária, desde registros históricos dos meandros
das raízes e da memória cultural da nação brasileira, vivida pela comunidade de uma
época”, na elucidação de Olivieri-Godet (apud SILVA, 2019, p. 1).

Em ambos romances se observa o contraste de enredos, desde a vida recatada de


uma personagem à vida desregrada da outra. O que há em comum é o humor do narrador.
Ambas são narrativas pouco comuns, que revelam a natureza humana, a figura feminina às
vezes chocante e às vezes, irônica. A inovação e a criatividade estão sempre presentes na
obra ubaldiana até quando é para falar de temas sérios, como o feminismo e o machismo.
Em “A Casa dos Budas Ditosos” ele diz que se trata de uma ficção, no entanto, nunca se
saberá realmente até que ponto faz parte do riso, seu tom provocador e debochado. Trata-se
de um depoimento sócio-histórico-litero-pornô? Também não se sabe classificá-lo. Em se
tratando de João Ubaldo Ribeiro ocorre muita desmistificação em torno da representação

5
identitária. Nas palavras de Olivieri-Godet (apud SILVA, 2019, p. 1) : “A obra é polifônica
é possibilita constatar o “rumor social” incorporado dentro de diferentes discursos sociais
num processo de desconstrução numa prática discursiva transgressora, irônica...”

A temática que ora se nomeou neste ensaio é bem profícuo em nossos dias. O que
se chama de feminismo, SILVA; VILALVA (2019) nomeiam como empoderamento, tendo
em vista que este passa pela ascensão social e o poder financeiro nas representações da
mulher no século XIX e início do XX. Isto explica o feminismo marcado pelo
empoderamento de CLB no romance “A Casa dos Budas Ditosos” ou a marca do
machismo na vida de Benedita em “Miséria e Grandeza do Amor de Benedita”.

REFERÊNCIAS

BEZERRA, Juliana. Feminismo no Brasil . 27 de jan. 2019. Disponível em


https://www.todamateria.com.br/feminismo-no-brasil/ Acesso em 19 de nov, 2019

RIBEIRO, João Ubaldo. A casa dos budas ditosos. Disponível em


file:///C:/Users/Work/Desktop/NETO/João%20Ubaldo%20Ribeiro%20-%20A%20Casa
%20dos%20Budas%20Ditosos.pdf Acesso em 19 de nov, 2019

_____________ João Ubaldo. Miséria e Grandeza do Amor de Benedita. Disponível em


file:///C:/Users/Work/Desktop/NETO/João%20Ubaldo%20Ribeiro%20-%20Miséria%20e
%20Grandeza%20do%20Amor%20de%20Benedita%20(LAVRo).pdf Acesso em 20 de
nov, 2019

SILVA, João Bosco da. Construções identitárias de JoãoUbaldo Ribeiro, na visão de Rita
Olivieri Godet. Feira de Santana: UEFS Editora, 2009.Disponível em
https://rl.art.br/arquivos/4901862.pdf Acesso em 20 de nov, 2019

6
SILVA, Samuel Lima da. VILALVA, Walnice Aparecida Matos. Do caos do corpo ao
íntimo desnudado: a estrutura do deboche no romance: A casa dos budas ditosos, de João
Ubaldo Ribeiro. Estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 54, p. 455-471,
maio/ago. 2018. Disponível em file:///C:/Users/Work/Desktop/NETO/joão%20ubaldo
%20ribeiro.pdf Acesso em 19 de nov, 2019

Você também pode gostar