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Tipologias Evolutivas.

O principal campo de estudo das Ciências Sociais são as diferentes sociedades


constituídas pelos seres humanos. Quando falamos em diferentes sociedades, apontamos
para o fato de que elas possuem estruturas sociais, organizações políticas e econômicas,
bem como questões culturais, muito distintas umas das outras. Reconhecer e respeitar
essas diversidades nem sempre foi algo fácil para o ser humano, uma vez que, como
fruto do contato entre essas sociedades, os seres humanos, ao se depararem com outras
culturas e formas sociais, acabaram por desenvolver uma espécie de estranhamento.
Como resultado desse estranhamento, se desenvolveu uma característica muito marcante
que é o etnocentrismo. Esse se caracteriza por ser uma forma de pensar outras
populações e povos a partir de valores e normas da própria cultura. Na medida, que
esses outros povos não se encaixam no conjunto de valores que estabelecemos para
julgá-los, acabam por serem considerados inferiores, bárbaros, selvagens, excêntricos.
Portanto, trata-se de uma forma de pensar baseada nos próprios valores e que cria um
parâmetro nos quais as outras culturas serão julgadas resultando na constituição de uma
hierarquia e escala entre as sociedades: no principio dessa hierarquia encontra-se aquela
pensada como mais atrasada e primitiva enquanto no cume encontram-se as mais
desenvolvidas (isso do ponto de vista do grupo ou sociedade que possui um olhar
etnocêntrico). Assim,

O fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura, tem como


consequência a propensão em considerar o seu modo de vida como o
mais correto e o mais natural. Tal tendência, denominada
etnocentrismo, é responsável em seus casos extremos pela ocorrência
de inúmeros conflitos sociais (Laraia, 1988, p.75).

Essa percepção de mundo, muito comum a todos os povos não surge por acaso,
foi necessário que povos muito diferentes, em algum momento da História, entrassem
em contato e estabelecessem entre si relações de poder muito desiguais, portanto
relações entre dominadores e dominados. Assim, não é fácil traçar o momento do
surgimento do etnocentrismo no mundo. Porém, naquilo que nos interessa, é possível
afirmar que se tratou de uma característica muito importante do avanço colonialista
europeu sobre as Américas, África, Ásia e Oceania no decorrer do século XVI. Como
fruto desse avanço, foram produzidos diferentes relatos e documentos históricos a
respeito das populações que os europeus travavam contato naquele momento.
Ora, se inicialmente, esse olhar etnocêntrico caracterizou as narrativas de
administradores coloniais, missionários religiosos e comerciantes, em um dado
momento da História, passou a caracterizar a percepção da própria ciência, em outras
palavras, tornou-se parte integrante do próprio discurso científico e filosófico. Durante o
século XIX, diversas teorias etnocêntricas tomaram a forma de “teorias sociais”, uma
vez que a Europa precisava justificar suas ações de domínio sobre esses povos. Assim,
se por um lado a ciência deu aval para as relações de domínio sobre povos nativos da
Ásia, África, Oceania e América, por outro, os cientistas que estudavam a essas
populações tinham como interesse compreender a História da humanidade. Para eles,
essas sociedades ditas primitivas eram uma espécie de laboratório: ao observá-las no seu
estado presente acreditavam desvendar o passado da humanidade. Portanto, tentaram
sistematizar o conhecimento adquirido dessas populações em narrativas compreendidas
como narrativas de evolução: imaginava-se uma escala onde as sociedades são
representadas da mais simples a mais complexa.

Assim, os intelectuais do período procuravam, a partir de seus próprios valores,


determinar quais sociedades eram simples e quais eram as mais complexas e distribuí-
las em uma escala evolutiva. O antropólogo norte americano Lewis Henri Morgan foi
um dos que dividiram a História da humanidade em três etapas: selvageria, barbárie e
civilização. Conforme o autor:

As mais recentes investigações a respeito das condições primitivas da


raça humana estão tendendo à conclusão de que a humanidade
começou sua carreira na base da escala e seguiu um caminho
ascendente, desde a selvageria até a civilização, através de lentas
acumulações de conhecimento experimental.

Como é inegável que partes da família humana tenham existido num


estado de selvageria, outras partes num estado de barbárie e outras
ainda num estado de civilização, parece também que essas três
distintas condições estão conectadas umas às outras numa sequência
de progresso que é tanto natural como necessária.

Para Morgan, conseguimos identificar os estágios de evolução que a humanidade


passou, ao observarmos o desenvolvimento intelectual e das instituições domésticas
criadas em cada um. Sendo que o período considerado por ele como infância da raça
humana, a humanidade vivia em habitats restritos e subsistia consumindo frutos e
castanhas. Posteriormente, o desenvolvimento da fala, o domínio do fogo, a invenção de
ferramentas de caça como o arco e flecha, o desenvolvimento da arte da cerâmica, o uso
de tijolos e pedras na arquitetura, a domesticação de animais e a invenção da escrita são
fatores que o autor usou para evidenciar a saída desse primeiro estágio em caminhada
rumo à civilização. É importante ressaltar que, quando Morgan produziu seus estudos,
ele utilizou como exemplos as sociedades não europeias ainda existentes em seu
período. Cada uma delas correspondia a um estágio por ele descrito e evidenciado,
vejamos:

Conseqüentemente, as nações arianas encontrarão o tipo


correspondente à condição de seus ancestrais remotos, quando na
selvageria, nas condições dos australianos e polinésios; quando no
status inferior de barbárie, nos índios semi-aldeados da América; e,
quando no status intermediário, nas condições dos índios pueblos,
com as quais se conecta diretamente sua própria experiência no status
superior.

Assim, bastaria observar para o presente dessas populações para enxergarmos o


passado da civilização europeia em seus estágios de selvageria e barbárie. Essa mesma
conclusão chegou James G. Frazer em seus estudos:

[...] um selvagem está para um homem civilizado assim como uma


criança está para um adulto; e, exatamente como o crescimento
gradual da inteligência de uma criança corresponde ao crescimento
gradual da inteligência da espécie [...] assim também um estudo da
sociedade selvagem em vários estágios da evolução permite-nos
seguir, aproximadamente – embora, é claro, não exatamente –, o
caminho que os ancestrais das raças mais elevadas devem ter trilhado
em seu progresso ascendente, através da barbárie até a civilização. Em
suma a selvageria, é condição primitiva da humanidade, e, se
quisermos entender o que era o homem primitivo, temos de saber o
que é o homem selvagem de hoje.

A mesma percepção a respeito da realidade possuía outro importante intelectual, o


antropólogo Edward B. Taylor, segundo o mesmo, “os europeus podem encontrar entre
os habitantes da Groelândia ou entre os maoris muitos elementos para reconstruir o
quadro de seus ancestrais primitivos”. Assim, os chamados povos selvagens - existentes
no período que viveram os teóricos evolucionistas - serviriam como uma espécie de
museu que retrataria o passado e o caminho que os europeus percorreram até a
civilização. Caminho esse, que todos os povos percorreriam. Percebe-se, portanto, que
os adeptos das teorias evolucionistas, acreditavam que o percurso até o progresso só
poderia ocorrer em um único sentido: os europeus eram os civilizados, ao passo que os
demais povos eram considerados atrasados. Ora, essa suposta teoria social, estava
alicerçada na noção de progresso, tão importante para a Europa do século XIX.

Assim, embora não houvesse um consenso entre esses intelectuais sobre a


posição de cada sociedade na escala de evolução da humanidade, todos acreditavam que
as diferentes civilizações tinham o seu início em um estágio mais primitivo e avançaram
em direção a um estágio mais desenvolvido. No entanto, cabe questão: se realmente a
evolução das sociedades ocorre dessa forma, quais são os critérios para definir uma sociedade
como mais atrasada ou como avançada?

O pensamento evolucionista se desenvolve em um momento no qual o mundo


ocidental havia dado início aos movimentos que colocaram fim as instituições políticas
do Antigo Regime e, concomitante a esse processo, o poder de ideias religiosas passam
a ser combatidas. Por sua vez, a ciência começa a se estabelecer institucionalmente ao
mesmo tempo em que, como resultado do desenvolvimento científico o continente
europeu e Estados Unidos da América assistem a um grande avanço tecnológico. Esses
são um dos critérios estabelecidos pelos intelectuais ocidentais para acreditarem serem
mais desenvolvidos, mas o estabelecimento de critérios não se encerra nessas duas
características. Além dessas, outro critério para fundamentar a hierarquia entre as
sociedades foi a existência ou não de sociedade privada.

A principio quem apresentou esse critério foi Morgan para o qual a passagem da
barbárie para a civilização ocorre pela adoção da propriedade privada como forma de
organização da sociedade. Esse critério norteou grande parte dos intelectuais
evolucionistas em suas classificações das ditas chamadas primitivas. Esses, ao
observarem as sociedades sobre o julgo colonial compreenderam que elas não possuíam
uma organização burocrática que fosse capaz de centralizar decisões, ou seja, não
possuíam algo similar ao Estado. Conforme os diferentes estudos produzidos a época,
estas sociedades encontravam-se organizadas por sistemas de parentescos. Nesse
sentido, não contavam com sistemas jurídicos separados sendo que as regras que
regulavam a vida social estavam concernidas ao sistema de parentesco. Esse era um
sistema de deveres e direitos baseados em relações de parentesco que estruturava toda a
sociedade. Além disso, não possuíam propriedade privada da terra, essa seria de uso
coletivo cuja regulação baseava-se no sistema de parentesco.
Assim, as teorias sociais do século XIX delimitaram a linha de evolução e a
noção de progresso a partir da constatação da ausência ou presença de elementos bem
característicos das assim chamadas sociedades primitivas:

 Presença de um sistema mágico-religioso rudimentar (cuja presença nas


sociedades mais avançadas era vista como resquícios ou sobrevivências).
 Desenvolvimento científico e tecnológico precário.
 Inexistência de propriedade privada.
 Inexistência do estado como órgão regulador da vida social.

Cabe retomar que essa sistematização teórica serviu como base para as práticas
colonialistas levadas a cabo por Estados Unidos e Europa, uma vez que se basearam na
suposta superioridade que possuíam sobre outros povos e civilizações. Assim, as
potências capitalistas do período (Estados Unidos, França, Alemanha, Reino Unido,
Bélgica) avançaram pela África e Ásia e impuseram o seu domínio imperialista. O
discurso dessas nações tinha como premissa a ideia de uma missão civilizadora no qual
se acreditava possível elevar os “selvagens” a condição de civilizados e, quando tal
missão não fosse possível de efetivar, desenvolveu-se a ideia de que a dominação
deveria ser sempre necessária a fim de impedir que esses povos regredissem a um
estágio inferior.

Tais ideias evolucionistas ainda encontram terrenos férteis nas mentes e nas
práticas de muitos nos dias de hoje, em muitos casos transformou-se em teorias raciais
cuja adesão pela população branca resultou em sérias dificuldades para a aceitação da
diversidade étnica e cultural, uma vez que o não branco passou a ser visto como
ameaça. No entanto, foi no interior da própria ciência que desenvolveu-se a crítica dessa
perspectiva teórica. Conforme Castro:

Os pressupostos evolucionistas foram muito criticados, nas duas


primeiras décadas do século XX, por antropólogos que preferiam
explicar a questão da diversidade cultural humana através da idéia de
difusão, e não da de evolução. Para a chamada escola difusionista, a
ocorrência de elementos culturais semelhantes em duas regiões
geograficamente afastadasdas não seria prova da existência de um
único e mesmo caminho evolutivo, como pensavam os evolucionistas;
o pressuposto difusionista, diante do mesmo fato, era que deveria ter
ocorrido a difusão de elementos culturais entre esses mesmos lugares
(por comércio, guerra, viagens ou quaisquer outros meios).
Acompanhando a crítica ao evolucionismo cultural, um importante intelectual
destacou-se em seus estudos; o antropólogo alemão Franz Boas refutou a premissa de
superioridade do homem europeu sobre os não europeus, como também partiu da ideia
de que cada sociedade apresenta desenvolvimento históricos particulares, tais
desenvolvimentos não vão em uma direção só, mas podem seguir linhas diferentes.
Nesse sentido, não existiria a possibilidade de falar de sociedades mais ou menos
desenvolvidas. Para entender a especificidade de cada povo, seria necessário conhecer
sua História cultural. Assim o “objetivo da Antropologia nessa perspectiva, passa a ser
não a reconstituição do grande caminho da evolução cultural humana, mas sim a
compreensão de culturas particulares, em suas especificidades”, naquilo que cada uma
possui em particular. É nesse sentido que a teoria evolucionista passa a ser criticada
como etnocêntrica, ou seja, “como fruto de uma perspectiva prisioneira dos
pressupostos e valores da cultura do observador”.

Para evitar cair nas armadilhas do evolucionismo cultural tanto Boaz quanto
outros de sua época e que vieram depois, não só criticaram a metodologia comparativa e
reducionista dos teóricos do evolucionismo como também desenvolveram um método
de observação direta das culturas e dos povos nos quais pretendiam estudar. Ir a campo
passou a ser uma experiência fundamental do fazer científico e teórico.

Ir a campo passava a ser visto como uma experiência existencial


fundamental para o conhecimento etnográfico, o meio através do
qual o antropólogo se torna apto a observar uma cultura "de
dentro", para poder compreender o "ponto de vista do nativo" e
sua "visão de mundo". [...] Nesse sentido, o procedimento
fundamental do método comparativo, tal como preconizado por
Tylor [...]passava a ser visto como um método equivocado, e o
antropólogo evolucionista aproximava-se do modelo de um
colecionador de borboletas que classificava seus espécimes em
formatos e cores, sem entender-lhes a morfologia e a fisiologia.

Assim, o método etnográfico inaugura o pesquisador como homem de campo


que pesquisa, analisa e procura entender a especificidade de cada povo por ele estudado.

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