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“Bolivianidade” na historiografia boliviana

Nos últimos anos, a comunicóloga boliviana Guadalupe Peres Cajías se debruçou em formas de
responder a uma pergunta que, ao menos na literatura do seu país, permanecia em aberto: o que
faz com que bolivianos se considerem como 'bolivianos"? Uma resposta inicial foi apresentada
em um artigo publicado no ano passado – o primeiro depois que ela passou a se dedicar ao
assunto. A construção de uma "bolivianidade" se deu em três contextos de guerra, começando
pelos conflitos independentistas, no início do século XIX, se estendendo pela Guerra do Pacífico,
contra o Chile (1879-1880) e chegando ao seu ápice nas narrativas sobre a Guerra do Chaco,
contra o Paraguai, entre 1932 e 1935.

Desses três períodos, Peres Cajías se concentrou no discurso que surgiu a partir da Guerra do
Pacífico, ocasião em que a Bolívia deixou de ter acesso direto ao Oceano Pacífico – o que, para
ela, foi um fato traumático para uma identidade nacional que havia sido forjada no início daquele
também amparada em sua saída ao mar. Sem ela, o Estado-nação boliviano precisou buscar uma
alternativa que lhe desse bases para outra narrativa nacional, encontrada numa festejada e
abstrata diversidade cultural (Peres Cajías, 2017).

O arcabouço conceitual da autora se insere nos textos de Benedict Anderson (2003), para quem a
nação é uma "comunidade politicamente imaginada [...]. É imaginada porque os membros da
menor nação possível jamais conhecerão a maioria dos seus compatriotas, nem verão ou ouvirão
sequer falar deles, mas na mente de cada um vive a imagem da sua comunidade" (Anderson,
1993, p. 23, tradução e grifos meus).

Na mesma época em que Anderson estava escrevendo, Stuart Hall (1992) abordou a questão da
identidade ao supor que o sujeito moderno, antes com uma vida unificada ou centrada em
determinados critérios, havia entrado em crise no período da pós-modernidade. Para ele, se a
modernidade entendeu a identidade do indivíduo a partir de fatores como classe, gênero,
sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que eram “sólidas localizações”, as transformações da
pós-modernidade abalaram-nas ao ponto de gerarem uma perda de “sentido de si”, segundo suas
palavras Ainda de acordo com Hall, a identidade nacional
"...não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no
interior da representação. [...] A nação não é apenas uma entidade política, mas algo que
produz sentidos – um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas
cidadãs legais de uma nação, elas participam de uma ideia da nação tal como
representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica e é isso
que explica seu poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade” (Hall, 2006, p.
49)

Hall ainda sugere as possíveis estratégias que dão alguma materialidade à ideia da comunidade
"imaginada" ou simbólica do Estado nacional: uma delas é a narrativa da nação, isto é, a seleção
de eventos, símbolos, ritos e a contação de histórias, mitos e lendas que simbolizam ou
representam as experiências conjuntas da nação, Outra é a invenção da tradição, em que, além da
contação de histórias que unem os membros da nação e da procura pelas tradições imutáveis, se
criam práticas, rituais ou simbólicas que buscam inculcar certos valores e comportamentos por
meio da repetição, o que implica continuar um passado que se considere adequado. Uma terceira
é o mito fundacional, uma estória em que se conte a origem da nação, isto é, do povo e do seu
caráter, e que se localize em um “tempo mítico”. Obviamente, por se tratar de um mito, ele não
aconteceu de fato, sendo também uma invenção; e, por fim, a busca por um povo simbolicamente
“puro” que, para Hall, dificilmente exerce o poder no Estado-nação (Hall, 2006, p. 53).

Sendo uma construção sobretudo afetiva e simbólica, muito mais do que racional ou funcional,
Péres Cajías entende ser pertinente encontrar a construção de uma "bolivianidade" em um
contexto semelhante ao que tinha dado origem, por exemplo, à discussão sobre uma
"britanicidade" na Grã-Bretanha: o da guerra.

A "bolivianidade" se forjou durante os séculos XIX e XX marginalizando os povos indígenas


social e politicamente, apesar dos povos autóctones seguirem influenciando culturalmente o país
à medida em que conseguiam promover hibridizações entre suas cosmologias e as culturas
europeias. Após a independência da Bolívia, em 1845, diz a autora, os censos realizados pelos
governos republicanos ainda se amparavam em categorias como "selvagens" e "bárbaros" para se
referirem aos indígenas, enquanto os brancos eram chamados de "civilizados". Peres Cajías diz
que, até antes da chegada do índio aimará Evo Morales à presidência do país, em 2006,
"...o aparato simbólico que havia construído o país estava principalmente configurado
com ideias de origens externas e sem um vínculo direto com os protagonistas locais"
(Péres Cajías, 2017, tradução minha)

Essa divisão gerou uma fragmentação entre os criollos, que haviam lutado pela independência, e
os indígenas, notadamente em maior quantidade numérica, mas contextualizados no território já
livre da coroa espanhola e não identificados com a comunidade imaginada da "nação" boliviana.
"É difícil pensar em ser parte de um projeto onde o sujeito não sente um processo real de
reconhecimento" (Peres Cajías, 2017, tradução minha). As dificuldades do Estado em
administrar os recursos econômicos do novo país e as precárias condições após a guerra
independentista também colaboraram para essa fragmentação, impossibilitando um projeto de
identidade coletiva forjada na funcionalidade e na racionalidade, isto é, em um modelo de Estado
de bem-estar social. Para Peres Cajías, a solução, então, foi elaborar uma identidade nacional,
isto é, uma “bolivianidade”, amparada em "sentimentos de memória histórica".

Essa memória histórica, para ela, se fez a partir das guerras que a Bolívia atravessou durante todo
o período que começou na independência e se estendeu até a metade do século XX. Além de
representarem declínios populacionais e econômicos, os conflitos com os países vizinhos neste
espaço de quase um século produziram "um sentimento coletivo de derrota e uma consequente
sensação de ameaça, que serão utilizados posteriormente na construção imaginada da nação.
Sentimento forjado, além disso, pela culpa histórica atribuída ao 'estrangeiro'" (Peres Cajías,
2017, tradução minha). Para a autora, a memória histórica que deu sentido à bolivianidade em
sua definição historiográfica e no discurso oficial, então, nada mais é do que a caracterização da
Bolívia como um país diverso culturalmente, rico em recursos econômicos, mas derrotado em
guerras impetradas pelos inimigos externos e com objetivos escusos. "Nessa situação, e dada a
fragmentação na categorização dos habitantes bolivianos, a guerra parece ser a única opção real
de construir um processo comum de nação e, o sentimento, o formato para fazê-lo" (idem, idem).

Uma década antes de Peres Cajías, a antropóloga Elizabeth Burgos (2005) propôs, em um ensaio,
que dois fatores contribuíram para estruturar o sentimento de pertencimento nacional boliviano:
em primeiro lugar, o conflito violento pela independência do jugo espanhol, na metade do século
XIX, e as posteriores lutas da república por reconhecimento, já que a Bolívia herdou a
demarcação territorial original feita pelo Peru. Em segundo lugar, as guerras contra os vizinhos,
que representaram perdas significativas de pedaços de terra, aliadas ainda às tensões separatistas
de certas regiões, como ainda hoje acontece com o departamento de Santa Cruz de la Sierra
(Burgos, 2005). Ela ainda conta como o Estado boliviano foi um "tampão" para "equilibrar o
poder da Argentina, por uma parte, e do Peru, por outra" (Burgos, 2005, tradução minha), o que
"expressou desde muito cedo sua vontade de existir como espaço soberano" (idem, idem).

De fato, na literatura boliviana, as correntes de pensamento sobre a identidade nacional são


forjadas a partir dos alinhamentos dos autores nos seus contextos de guerra: há, por exemplo, um
grupo de "defensores da bolivianidade" cuja ideia central diz que o país é um "corpo histórico
interrompido, invadido, saqueado e distorcido pelos estrangeiros" (Montenegro, 1943). Esse
grupo, do qual fazem parte autores considerados clássicos, como Carlos Montenegro (autor de
Nacionalismo y Coloniaje, de 1943) e René Zavaleta Mercado (que escreveu Bolivia: el
desarrollo de la conciencia nacional, em 1967), são remanescentes da última perda de território
da Bolívia, na Guerra do Chaco, em 1932. Suas obras, segundo Burgos, são reações a outro texto
clássico, escrito em 1909 por Alcides Arguedas (Pueblo Enfermo), autor que produziu análises
décadas após a Guerra do Pacífico – portanto, viveu em outro contexto – e cujo principal
argumento é que os “males” do país se devem tanto a sua complexidade geológica como a
herança de valores e princípios negativos de espanhóis e indígenas. Enfim, para Burgos,

"Qualquer que seja a perspectiva, histórica ou política, e de classe social, desde a qual se
tente explicar os traços da nação boliviana, são suas derrotas e perdas territoriais os
'lugares de memória' que compõem o zócalo histórico que dá coesão à comunidade
nacional" (Burgos, 2005, tradução minha).

Ainda que seja difícil, portanto, definir uma “bolivianidade”, como o é com qualquer identidade
nacional, os autores bolivianos notaram uma relação intrínseca entre o sentimento de
pertencimento, as estratégias de construção da comunidade “imaginada” e as guerras que
moldaram tanto o território do Estado-nação quanto o imaginário dos seus indivíduos. Porém, no
final do século XX, um antropólogo argentino seria responsável por torcer o conceito e, nesse
processo, encontrar um novo significado a ele a partir do fenômeno migratório.

Um novo conceito de “bolivianidade”


Em 1997, Alejandro Grimson mostrou como, em paralelo à historiografia boliviana e aos
discursos dos Estados nacionais envolvidos em sua pesquisa, a "comunidade" de migrantes da
Bolívia em Buenos Aires, na Argentina, havia construído uma "bolivianidade" própria a partir de
sua posição no contexto social da cidade.

Naquele final de século XX, segundo Alfonso Hinojosa (2009), apesar da crise econômica na
Argentina e da desvalorização da moeda local em relação ao peso, viviam na cidade 1 milhão de
migrantes bolivianos. A década de 1990 havia sido, mesmo levando em conta os registros
significativos de chegadas de bolivianos ao território argentino a partir dos anos 1920, o "auge
migratório" por causa da dolarização da economia argentina e da anistia que o governo havia
oferecido para cerca 110 mil bolivianos que viviam em Buenos Aires (Hinojosa, 2009, p. 28).

A análise de Grimson, pode-se dizer, fundou uma percepção sobre o conceito de "bolivianidade"
para além daquele elaborado pelo discurso nacional porque ele era construído a partir de “baixo"
(Grimson, 1997, p. 2) e estimulou diversos pesquisadores debruçados sobre o fenômeno de
migrantes da Bolívia em direção a países da América Latina, da Europa e aos Estados Unidos,
como Hinojosa e Leonardo de la Torre Ávila (2004). O conceito foi definido em suas pesquisas a
partir de algumas características estruturantes da situação dos bolivianos em Buenos Aires.

A primeira delas é que a "bolivianidade" como uma identidade paralela no contexto local era
uma espécie de reação dos bolivianos na cidade à ausência de propostas do Estado argentino em
integrar os migrantes nas narrativas políticas, econômicas e sociais, mesmo com o fato da
historiografia e do discurso oficial da nacionalidade argentina terem sido elaborados a partir de
uma ideia de "mistura de raças". A "argentinidade", segundo Grimson, se amparou na ideia de
uma interrelação entre criollos e europeus recém-chegados ao hemisfério sul em números cada
vez maiores a partir da metade do século XIX – uma percepção que encontra eco, por exemplo,
em "Facundo", de José Sarmiento, livro considerado central na definição da identidade argentina
(1845). Sendo assim, se os migrantes da Europa sempre fizeram parte de uma narrativa de
progresso nacional, o mesmo não acontecia no final do século XX com os bolivianos vivendo
nas grandes cidades da Argentina – notadamente na capital.

A "bolivianidade", nesse sentido, havia sido elaborada como uma resposta à falha do discurso
oficial nacional em considerar os migrantes bolivianos como parte da sociedade argentina. Sua
elaboração a partir de "cima" – que em outros momentos abrangia os "estrangeiros" e os
considerava parte do "progresso" nacional, permitira, como efeito inverso, o surgimento de uma
identidade paralela tecida de "baixo", a partir de relações intra e interculturais.

A segunda característica é justamente a construção de uma identidade nacional própria que, se


não é colhida como parte integrante da sociedade de destino e não é entendida como co-
responsável pelo processo histórico, tampouco se assemelha à narrativa do Estado-nação ao qual
supostamente pertenceriam. As propostas em torno dessa bolivianidade, assim, "não se
apresentam nas estruturas retóricas dos grandes relatos estadistas e nacionalistas dos chefes de
Estado e dos seus intelectuais orgânicos. Não se encontram escritas e editadas, como as 'grandes
obras' dos 'grandes homens'. Não gozam das possibilidades de um aparato estatal que busca
constituir sua legitimidade e tampouco se organizam, como muitas das 'obras nacionais', através
de um modelo argumentativo" (Grimson, 1999, p. 2, tradução minha).

Ao contrário, a "bolivianidade" dos migrantes bolivianos em Buenos Aires – e essa é sua terceira
característica –, era construída nos processos comunicativos, isto é, nas interações cotidianas, nos
meios de comunicação, nas relações intra e interculturais, nos contatos com a sociedade de
origem e na própria vivência dos atores com a cidade. Uma interpretação possível da pesquisa de
Grimson sugere, portanto, que a bolivianidade da qual ele se debruça é um processo complexo e
contínuo cuja estrutura é a teia de relações (Elias, 1994) que os sujeitos são obrigados a fazer
parte no contexto das sociedades modernas.

Nas investigações de Grimson sobre a "comunidade" boliviana em Buenos Aires no final do


século XX, ele encontrou, acima de tudo, narrativas amparadas em "referências comuns"
suficientes para determinar as distinções entre "nós" e "eles". Diz o autor que elas são
"...relatos que falam de uma permanência, uma história, uma comunidade e suas
fronteiras. Relatos de identidade porque formam parte da construção de um
entranhado de referências comuns que institui um sentido de 'nós' e de 'outros'"
(Grimson, 1997, p. 2, tradução minha)

Em La muerta con sangue entra (2013), Grimson dá novas pistas sobre as condições de
possibilidade de elaboração de uma "bolivianidade" em resposta à impossibilidade dos migrantes
bolivianos serem considerados parte da identidade nacional argentina. O artigo, escrito anos
depois de sua análise sobre a comunidade boliviana em Buenos Aires, avança também em seu
próprio ponto sobre a forma como a Argentina construiu seu discurso como Estado-nação.
Depois de demonstrar como o conceito abstrato de "sangue" é capaz, apesar desse caráter, de
definir características fundamentais da experiência social, como a "língua", a "moral", a
"filiação" e a "raça", ele afirma que o país construiu suas narrativas nacionais a partir de um
maquinário sanguíneo branco. Um país que se considerava aberto para a imigração, cujo papel
era "civilizá-lo" era, na verdade, um projeto específico de construção nacional. "Argentino
significaba porteño, porteño se consolidaba como blanco. El resto, si lo había, sólo podía ser
civilizado o aniquilado. Ningún proyecto de miscegenación. Nada de mezclar sangres. Nuestro
crisol de razas es de unas inventadas por nosotros: la raza polaca, española, italiana y tantas
otras" (Grimson, 2013, p. 67).

A "bolivianidade" dos migrantes de Buenos Aires era um tecido submerso em um contexto social
que, ao mesmo tempo que não integrava tais sujeitos em sua narrativa nacional, os desprezava
por sua presença, marcada por termos depreciativos (ao menos para os argentinos) como
"Bolívia", "boliviano" ou "bolita" e mesmo por uma questão racial.

Ana Mallimaci (2012) estabelece que um modo de explicar os processos de unificação em torno
de uma nacionalidade de grupos em contextos como o dos bolivianos em Buenos Aires é a ação
mútua de dois fatores: um contextual, em que os atores em questão são referidos pelos outros em
suas interações por meio de uma identidade "globalizante" (os "bolivianos"), e outro de
aceitação, em que essas referências e as hostilidades que elas constroem acabando sendo aceitas
pelos migrantes e servem para que a comunidade se constitua como tal (Mallimaci, 2012, p. 50).

Voltando a 1997, Grimson se propunha quatro formas de analisar a construção da


"bolivianidade" na capital argentina: as duas primeiras estavam nas relações diretas internas à
comunidade boliviana e nas interações entre seus membros com outros grupos sociais situados
no mesmo contexto, como migrantes de outros países. As duas últimas se amparavam nos tipos
de comunicação mediados pelas tecnologias disponíveis à época, que também podiam se dar
dentro da comunidade ou para além dela. Em ambos os casos, percebe-se, Grimson trabalha com
conceitos fechados, como "comunidade", "coletivo" e "membros", que surgem, segundo sua
investigação, justamente no processo de elaboração de uma identidade feita para reagir a outras.

Com o cruzamento entre essas formas, segundo o autor, se constituía quatro tipos ideais do
"processo identitário" boliviano em Buenos Aires: as comunicações direta intra e intercultural e
as comunicações tecnologicamente mediadas intra e intercultural.

A comunicação direta intracultural, como percebido por Grimson, acontecia por meio de um
conjunto de práticas e de espaços comunicativos que permitiam a interação "interna" dos
membros da comunidade boliviana na cidade, como eram os casos das festas típicas, as feiras, as
organizações políticas, civis, esportivas e religiosas. Nestes espaços,

"...os participantes pressupõem que neles há uma nacionalidade comum, uma


cultura compartilhada, certos saberes e costumes esperados dos demais. A
construção deste código comum e dos seus espaços de atuação é a construção da
ideia de 'comunidade'" (Grimson, 1997, p. 4)

Em Buenos Aires, Grimson cita a Fiesta de la Virgen de Copacabana, realizada desde 1975 no
bairro de Charrúa, em Bajo Flores, e que recebia cerca de 20 mil pessoas anualmente por volta
de 1997. O encontro reunia imagens que ajudavam a construir a narrativa nacional boliviana –
mesmo a historiográfica e oficial – como as tradições indígenas aimará e quéchua e a imagem de
Pachamama, que são usualmente alçadas como elementos fundadores da bolivianidade e atestam
uma diversidade cultural.

A literatura sobre migrantes bolivianos em São Paulo apresenta similaridades com o fenômeno
apontado por Grimson em Charrúa: na Praça Kantuta, na zona norte da metrópole brasileira,
Alves (2012) diz, por exemplo, que os migrantes se encontram ainda hoje para

“...recordar, por meio de comidas típicas, músicas, futebol e barracas de


artesanatos com objetos de suas terras, as raízes que ficam a muitos quilômetros
de São Paulo. Especificamente nesse local, há o predomínio de bolivianos sobre
outras nacionalidades” (Alves, 2012, p. 233)

Em um primeiro momento, a praça paulistana era notada em seu contexto social como um espaço
de encontro dos "grupos hispânicos" na cidade. No começo dos anos 2000, com uma circulação
significativa de "migrantes da costura" (Côrtes, 2013) no local, uma série de negociações entre
associações de bairro, entidades que atuam com migrantes e agentes estatais resultaram na
renomeação do logradouro, quando ali já funcionava uma associação gastronômica e cultural e,
aos finais de semana, eram montadas barracas de artesanato, restaurantes improvisados e até
alguns serviços, como corte de cabelo e cabines telefônicas. Para Alves, a Kantuta “contribui
para reforçar a identidade dos bolivianos em São Paulo” (Alves, 2012, p. 237).

Já a comunicação direta intercultural tinha sua importância sociológica no fato de que, por meio
dela, se construíam as distâncias entre "nós" e "eles" nas relações sociais entre os membros da
"comunidade" boliviana e outros grupos, como argentinos, peruanos e sul-coreanos. Segundo
Grimson, nestes contatos se inseriam as disputas produzidas em diferentes experiências e
espaços urbanos, assim como nos marcadores de diferença, tais como a cor da pele. Em Buenos
Aires, o autor notou como os termos depreciativos usados para se referir aos migrantes
bolivianos em circulação pela cidade eram ressignificados pelos sujeitos atingidos justamente
como reação aos que os usavam em sentidos depreciados.
A comunicação direta intercultural podia estar presente também nas estratégias que os migrantes
desenvolviam para negociar suas identidades com outros grupos presentes no mesmo contexto
social, ou mesmo para entrar em conflito com eles. Para Grimson, essas estratégias serviam
mesmo para que os bolivianos buscassem algum lugar na sociedade de destino. Segundo ele,

"nessa dimensão se manifestam de maneira particularmente clara tanto as diferentes


estruturas de significação que os participantes da cena comunicativa possuem – tanto em
torno dos significados das palavras como dos gestos –, como a utilização dos códigos
apreendidos de outros grupos, que formam parte do capital cultural e possibilitam um
melhor desenvolvimento do âmbito vivido como alheio" (Grimson, 1997, 4, tradução
minha)

A pesquisa de Leonardo de la Torre Ávila (2004) na cidade estadunidense de Arlington, no


estado da Virgínia, também mostra como a significativa comunidade boliviana local realiza o
que chama de “negociações identitárias” com os demais sujeitos presentes no contexto social: é
partindo de traços selecionados de sua identidade nacional que os migrantes negociam símbolos
escolhidos na interação com os demais grupos na sociedade de origem. Como nenhuma prática
social é suficientemente capaz de significar a identidade nacional boliviana como um todo, o
autor fala em uma “bolivianidade em movimento”, percebendo como a identidade se move à
medida que o contexto em que seus atores estão inseridos também se movimenta.

As relações intra e interculturais se imbricavam no contexto da migração boliviana em Buenos à


medida em que, para Grimson, as interações no âmbito intracultural permitiam a construção de
um sentido de coletividade, processo este que se dava nos espaços comunicativos e onde as
práticas internas da comunidade eram realizadas. Assim, as festas, as feiras, as organizações
civis permitiam que contatos intraculturais se construíssem e, por meio deles, surgissem formas
de se relacionar interculturalmente. Todos esses espaços comunicativos e de práticas
"identificados com a bolivianidade" (Grimson, 1997, p. 5) representavam a experiência dessa
coletividade intracultural.

"Assim como os relatos interculturais são narrados dentro da coletividade como


anedotas engraçadas ou ilustrativas, esse conjunto de práticas constrói também
um relato com o qual os migrantes falam à sociedade de destino sobre suas
diferenças e sua igualdade. A instituição do sentido da diferença se vincula à
particularidade das práticas e à filiação nacional, e é constantemente atravessada
por relatos de igualdade" (Grimson, 1997, p. 5, tradução minha).

Mas além das comunicações intra e interculturais dos bolivianos, Grimson usou outros dois tipos
ideais como forma de analisar o processo de construção de uma "bolivianidade" paralela em
Buenos Aires: as comunicações mediadas por meios tecnológicos intra e interculturais. Em 1997,
diferente do contexto atual, esses dispositivos eram sobretudo ligados à produção de textos
midiáticos circulantes, como jornais e revistas, ou de outras plataformas tradicionais de
comunicação, como o rádio. Segundo nosso autor, um elemento fundamental da cultura
contemporânea era a condição que os indivíduos tinham de contar suas próprias histórias usando
tais meios, sem a necessidade de mediações externas. Por esse motivo, as análises de hoje com
objetos de pesquisa semelhantes poderiam encontrar novos traços desse fenômeno notado por
Grimson naquele ano – que se valia principalmente das ondas radiofônicas e de gravações em
vídeo.

Neste caso, as interações intra e interculturais se encontravam ainda mais imbricadas, porque, se
por um lado as produções visuais ou sonoras tendiam a ter em seu horizonte a comunidade
boliviana em Buenos Aires, a impossibilidade de controle sobre esses elementos em circulação
acabavam alcançando ecos para além do "coletivo".

O vídeo era usado pelos migrantes bolivianos para registrar as imagens das festas da
comunidade, eventos familiares, do cotidiano no trabalho ou mesmo para expor alguma forma de
circulação turística. Nosso autor notou que, logo que os meios de produção de vídeos se
tornaram acessíveis a uma maior parcela da população migrante, a figura de um membro
responsável por gravar as imagens se tornou institucionalizada nas organizações das festas. O
rádio, por sua vez, promovia uma interação intracultural, porque produzia "nostalgia e
melancolia". "A música da 'pátria' e as constantes alusões às 'tradições nacionais' imaginárias
conforma um enraizamento no desenraizamento, um espaço próprio em um território alheio"
(Grimson, 1997, p. 7, tradução minha). Grimson conta o caso de uma locutora radiofônica que,
antes de programar as músicas do seu dial, dizia aos ouvintes (bolivianos) para que "fechassem
os olhos e pensassem que estavam em 'nossa' terra'" (idem, idem).

Mas, se eram planejados como meios de comunicação internos à comunidade boliviana na


capital argentina, eles transbordavam também para as relações interculturais, porque, assim como
as feiras típicas, acabavam por colocar em circulação mercadorias que contavam algo sobre a
"bolivianidade" construída ali. Para Grimson, esse fenômeno tinha como consequência o
atravessamento de um debate antes restrito ao identitário pelo comercial. Diante de um público
intercultural, os produtores das mercadorias (a informação como a principal delas) assumiam
uma maior responsabilidade sobre a palavra em processo de mobilidade. Segue ele:

"Através desses textos que circulam pelos bairros da cidade se pode imaginar a
constituição da coletividade e, nesse sentido, todo vídeo e programa de rádio aparece
como a palavra da coletividade no espaço público. Por outro lado, essa percepção implica
que essa palavra pode ser escutada pelos diferentes setores da 'sociedade de destino' e de
outros grupos migrantes. [...] Em parte, é através dela que se institui a imagem da
coletividade na sociedade portenha" (Grimson, 1997, p, 7, grifos e tradução meus)

Diante de tudo isso, Grimson concluiu as narrações identitárias da "bolivianidade" em Buenos


Aires resultavam na formação de uma comunidade cultural e, mais do que isso, em uma
comunidade política, à medida que por meio dela havia uma possibilidade dos seus membros se
colocarem e demandarem direitos e reconhecimento do Estado argentino e dos grupos sociais
inseridos no mesmo contexto. Como era elaborada no seio de um discurso nacional que não os
considerava como parte integrante, mas também fora do Estado-nação que pertenciam, o autor
percebeu que a "bolivianidade" ma capital argentina era, principalmente, uma nova narrativa
nacional. Assim, para ele,

"A bolivianidade migrante, longe de constituir uma reprodução de práticas ancestrais e de


levar uma cultura essencial aos lugares de destino, é o modo de construção de uma nova
coletividade. Os novos usos das 'tradições nacionais', em acontecimentos especiais e na
vida cotidiana, instituem um novo sentido étnico da bolivianidade construindo propostas
de baixo para a interação e a integração" (Grimson, 1997, p. 10, tradução minha).
A “bolivianidade” como objeto de pesquisa
Entre os vários pontos de análise da etnografia do sociólogo Leonardo de la Torre Ávila (2004)
sobre os fluxos entre as cidades de Arlington, no estado da Virgínia, nos Estados Unidos, e
Arbieto, no departamento de Cochabamba, na Bolívia, há a importância dada ao
“reconhecimento” social que o migrante boliviano procura em seu país (Ávila, 2004, p. 105) ao
enviar doações e remessas para amigos e familiares.

Esse reconhecimento, segundo ele, está ligado ao fato da migração de bolivianos em direção à
cidade estadunidense não ser um projeto individual, mas acima de tudo um plano familiar em
que tanto os sujeitos que se movem como os que permanecem fixos se envolvem. Entre eles há o
atravessamento de uma memória. Em Arlington, nos EUA, Ávila notou como a imaginação –
entendendo-a a partir do conceito de Arjun Appadurai (2001) – é o fio que conecta os migrantes
bolivianos nos Estados Unidos e suas famílias na Bolívia. Assim, avançando da análise de
Grimson, ele fala em uma “bolivianidade em movimento”, porque a identidade nacional dos
sujeitos estava em constante negociação com os demais grupos no mesmo contexto – ou em
comunicações interculturais, nos termos do antropólogo argentino.

A "bolivianidade" em movimento em Arlington se expressa pelo fato dos migrantes bolivianos


selecionarem traços de suas identidades nacionais para negociá-los em suas interações com os
demais grupos na sociedade de destino, o que é também uma consequência da necessidade de
distinção dos demais que os migrantes da Bolívia passam a ter (Ávila, 2004, p. 50). Assim como
em Buenos Aires, esse esforço é notado em restaurantes cujos pratos são “inteligíveis” apenas
aos migrante ou por uma escola aberta aos finais de semana para contar aos filhos dos migrantes
nascidos nos Estados Unidos sobre a história nacional boliviana.

O sociólogo Alfonso Hinojosa (2009), por sua vez, alicerçou uma de suas pesquisas sobre fluxos
migratórios de bolivianos no mundo em torno de uma possível “bolivianidade” nos mesmos
moldes de Grimson nas cidades de destino da Espanha. Nos bairros de Usera, em Madri, e
Hospitalet, em Barcelona, os lugares onde as práticas e as interações que confirmam a presença
dos migrantes bolivianos são chamados pelo autor de “espaços transnacionais de
‘bolivianidade’” (Hinojosa, 2009, p. 54) ou “espaços desterritorializados” (Hinojosa, 2009, 59)
onde “se come, se dança e se toma como na Bolívia" (idem, idem).

Segundo ele, os atores em questão, assim como em Buenos Aires ou em Arlington, constroem
um "tecido organizacional" em que estão inclusos desde associações esportivas, religiosas ou de
moradores ou recém-chegados ainda nos primeiros momentos de inclusão na comunidade
boliviana na sociedade de destino. Para Hinojosa, todos eles se reúnem "em torno da
'bolivianidade'" (Hinojosa, 2009, p. 61) que é consequente à esse tipo de fenômeno.

Hinojosa descreve os espaços transnacionais em Madri e Barcelona também como territórios em


que os migrantes desempenham "práticas de vida" em três níveis: o econômico, expresso
principalmente pelas remessas de dinheiro para a Bolívia; o cultural, "de uma maneira quase
natural" (Hinojosa, 2009, p. 55, tradução minha) e o político, que se dá por meio de um referente
nacional que ampara a comunidade e suas interações com outros grupos sociais. O autor, porém,
diz que o nível econômico é o mais importante, porque é nele em que se estruturam os laços e as
relações sociais.

Ainda assim, o nível cultural funciona como um eixo que articula as práticas que constroem a
“comunidade” nacional local enquanto tal. Ainda que esse âmbito dependa de elementos
considerados centrais nos fenômenos migratórios de bolivianos (como a "ferida familiar"), ele
também se liga à identidade nacional em seu sentido abstrato. Hinojosa avança em relação a
Grimson, porém, ao afirmar, partindo da análise do antropólogo argentino em Buenos Aires no
final dos anos 1990, que a "bolivianidade" que encontrou em cidades espanholas é a continuação
de identidades nacionais construídas nos mesmos moldes em destinos anteriores – notadamente a
própria capital argentina. O que ele percebeu, assim, é que as comunidades bolivianas na
Espanha estabelecem interações intra e interculturais que já haviam sido forjadas em outros
destinos anteriormente. Assim,

"...trajetórias desenvolvidas na Argentina são recontextualizadas nestas cidades, gerando


um extenso tecido organizacional que inclui agrupações, associações, instituições e/ou
grupos de afins que se reúne em torno ao que Grimson chama de 'bolivianidade'. Esses
múltiplos espaços de bolivianidade giram em torno da comida e da bebida, da música e
da dança, das festas familiares e sociais, das ligas e campeonatos de futebol; mas também
cada vez mais, em assuntos de ordem social e político" (Hinojosa, 2009, p. 59)

Um ano depois de Hinojosa, a socióloga Ana Inés Mallimaci concluiu sua investigação sobre a
construção da identidade nacional dos migrantes bolivianos na cidade de Ushuaia, na região
patagônica da Argentina. A autora se interessa, sobretudo, em demonstrar como o país construiu
seu discurso nacional em torno da figura dos migrantes como "civilizadores" e do fenômeno
migratório como uma das fundações da "pátria". O desejo argentino quando desse processo de
formação era que todas as diversidades de origem, de nação e de raça se fundissem "em uma
cultura nova, uniforme, homogênea e nacional" (Mallimaci, 2012, p. 36, tradução minha) ou, em
outras palavras, uma "formação nacional da diversidade" (idem, idem).

Como já criticara Grimson, porém, o discurso migrante nacional levara em conta apenas os
europeus brancos que chegavam em grande número ao hemisfério Sul desde o século XIX.
Migrantes dos países vizinhos nunca foram colocados no desejo de "mistura de raças", mas, ao
contrário, eram considerados como "bárbaros", especialmente os indígenas do Paraguai, da
Bolívia e do Chile ou os negros do Brasil (Mallimaci, 2012, p. 36, tradução minha).

Assim, o problema de fundo da migração boliviana na Argentina se expressa já nesta localização


do discurso nacional desejado do país: latino-americanos ou migrantes de territórios fronteiriços,
jamais assimilados ou integrados na nacionalidade argentina, foram excluídos dessa narrativa
desde que, como fenômeno, os fluxos migratórios se tornaram significativos. Segundo
Mallimaci, porém, essa "argentinidade" construída a partir de certos referentes adquiriu
conteúdos particulares em Ushuaia – uma região distante dos centros urbanos e historicamente
despovoada que, do ponto de vista do Estado, passou a ser considerada um problema político em
determinado momento: o da ausência de civilização.

A resposta estatal na cidade foi fomentar a ida de migrantes para a região, tanto para objetivos
econômicos (industrializar um território grande e vazio) como políticos (Ushuaia fica próxima da
fronteira com o Chile). A autora relata que "alguns atores sociais [lamentam] por suas supostas
consequências de 'falta de identidade' da cidade, a ausência de laços coletivos dos quais seja
possível se construir como comunidade" (Mallimaci, 2012, p. 40, tradução e grifos meus). Há,
porém, uma memória coletiva paralela a essa que, em tensão com ela, estabelece que o ser
"fueguino" tem uma relação intrínseca com os primeiros povoadores argentinos que ali
chegaram. Quando se tornou parte do Estado argentino, conta a autora, Ushuaia se dividiu entre
os que se consideravam "nacionais" (os que nasceram ali ou fizeram parte do projeto civilizador)
e os "estrangeiros" (desde os migrantes europeus desejados até os latino-americanos
estigmatizados").

Nesse contexto, Mallimaci também encontrou uma "bolivianidade" amparada nos referentes da
identidade nacional boliviana. Segundo ela, se constituiu ali uma "comunidade" em que os
"participantes pressupõem nela uma nacionalidade comum, uma cultura compartilhada, certos
saberes e costumes esperados dos outros" (Mallimaci, 2012, p. 48, tradução minha) e que se
formou como resposta à sua exclusão da narrativa nacional local. A autora, no entanto, avança do
ponto de vista teórico à investigação de Grimson em Buenos Aires em 1997: para ela, havia uma
escolha coletiva de organização em torno da identidade nacional boliviana, visto que ela era só
uma entre outras possíveis dentro daquele contexto:

"Há diferentes modos de se agrupar e de se assentar, em torno de diferentes identidade ou


pertencimentos. Não creio que os laços comunitários vêm 'dados' pelo fato de
compartilharem uma mesma nacionalidade. A 'comunidade', nesse sentido, não é um
ponto de partida, mas um produto de características e interações influenciadas pelas
características locais (que as estrutura oferecendo diferentes recursos para constituir-se e,
por sua vez, limitando suas possibilidades de ser. [...] A nacionalidade é uma opção que
os atores e atrizes encontram disponíveis que se encontra reforçada pelo atravessamento
de fronteiras nacionais e a classificação, por parte do Estado argentino, como
'estrangeiro', 'residente' e 'nacionalizado', categorias que têm consequências práticas e
materiais na vida cotidiana" (Mallimaci, 2012, p. 59, tradução minha)

Assim, Mallimaci conclui que a bolivianidade que se constituiu no Ushuaia, tal como em Buenos
Aires, respondeu à condição de "estrangeiros" dos migrantes bolivianos, caracterizada pelos
traços físicos, como a cor da pele, que é capaz de homogeneizar todos os atores migrantes
indígenas no contexto social da cidade como "bolivianos" – ou "bolitas". Ainda assim, ela alerta
que "a condição de ser boliviano e de ser migrante na Argentina não garante a existência de um
único relato, uma única memória migrante, mas memórias plurais que se encontram e dialogam
no novo contexto migratório" (Mallimaci, 2012, p. 51, tradução minha).

Como já visto, a pesquisa de Grimson teve grande influência sobre os pesquisadores argentinos
que, a partir do conceito de "bolivianidade", encontraram fenômenos semelhantes em diversas
cidades do país: para além do antropólogo em Buenos Aires e de Mallimaci em Ushuaia, há
ainda o trabalho de Cynthia Pizarro (2013) em Córdoba, segunda cidade mais populosa da
Argentina1. Diferente deles, a autora investigou como a "bolivianidade" pode ser também uma
característica de disputa tanto entre os bolivianos com os demais grupos sociais e com os
discursos hegemônicos argentinos – como uma comunidade única referenciada pelo Estado-
nação boliviano – como entre os próprios membros da comunidade boliviana, que se
compreendem, antes de tudo, como uma "coletividade" cujas hierarquias antecedem as demais.

Pizarro notou que uma dessas disputas se dá quando algumas manifestações culturais bolivianas
se tornam patrimônios das cidades argentinas por iniciativa do Estado. Entre danças, músicas e
encontros nacionais, muitas delas foram incorporadas ao "panteão argentino" (Pizarro, 2013, p.
10, tradução minha) para diversos fins, como o turismo.

Nesse sentido, seu argumento remete ao texto de Jan Rath e Michael Hall (2007), que notam
como uma indústria de turismo étnico começou a operar nas grandes cidades do mundo tentando
explorar, sobretudo, o potencial de uma diversidade étnica. Os atores desse processo – os
mesmos migrantes – cavam seus nichos dentro dessa indústria empregando, por exemplo,
algumas de suas características nacionais em suas atividades econômicas agora ligadas ao
turismo. Segundo eles, é difícil imaginar um turismo urbano que não tenha a presença de
migrantes hoje, porque eles "geralmente provêm o trabalho barato ou a direção empresarial para
a indústria do turismo urbana" (Rath, Hall, 2007, p. 5). Diz Pizarro que:

1 Pizarro afirma que seu objetivo era estudar o fenômeno boliviano em duas metrópoles argentinas, Buenos Aires e
Córdoba, baseada em uma investigação etnográfica iniciada em 2006 e que permanecia sendo desenvolvida até 2012
(Pizarro, 2011, p. 2)
"As festas nacionais em honra à distintas imagens religiosas, que são marcadas como
tipicamente bolivianas tanto pelos argentinos como pelos migrantes, também são
momentos em que se resolve a legitimidade da presença de bolivianos em certos espaços
hegemônicos das cidades, que são monumentalizados pelo seu espaço histórico" (Pizarro,
2013, p. 11, tradução minha).

Assim, Pizarro afirma que a narrativa oficial argentina constrói uma bolivianidade que lhe serve
como mercadoria e espetáculo e que, além do mais, lhe permite afirmar-se internacionalmente
como uma "nação generosa e tolerante" (Pizarro, 2013, p. 12, tradução minha), ainda que as
minorias estrangeiras permaneçam hierarquizadas por marcadores sociais como raça e etnia. A
"cultura" boliviana é exibida em museus e eventos em um processo de folclorização dos
migrantes que cria um imaginário popular da Argentina como um destino “generoso”.

Mas a disputa pela bolivianidade não se dá apenas no nível intercultural: ao contrário, se o


referente da nacionalidade permite que se estabeleça uma homogeneidade dos diferentes atores
envolvidos no fenômeno, ao menos do ponto de vista dos "argentinos", e se ele ainda é capaz,
para a autora, de facilitar a legitimação de sua presença no contexto social da sociedade de
destino (e não à toa os símbolos nacionais são utilizados pelos migrantes para demarcar suas
associações, festas e até locais de moradia), por outro lado esse referente também é disputado
intraculturalmente. Pizarro notou como, tanto em Córdoba como em Buenos Aires, a existência
de várias associações bolivianas em uma mesma cidade comprova a dificuldade de construção de
uma identidade nacional única que dê conta de todas as interações da comunidade migrante.

Segundo Pizarro, isso acontece porque as classificações baseadas em diferenças de classe, de


região, de etnia, de geração e de gênero, assim como experiências de opressão vividas ainda na
Bolívia, seguem em operação mesmo na sociedade de destino. Diz ela que, em Córdoba, "co-
existem diversas agrupações: algumas congregam profissionais, outras convocam quem está
alinhado com o partido político boliviano Movimiento al Socialismo (MAS), outras propiciam a
difusão de danças folclóricas, mas se diferenciam entre si porque suas performances representam
distintos grupos étnicos e diversas regiões e, finalmente, outras estão interessadas em aglutinar
bolivianos de um mesmo departamento. Todas elas disputaram em maior ou menor medida o
reconhecimento por parte do consulado boliviano em Córdoba" (Pizarro, 2013, p. 13, tradução
minha).

Na cidade de Escobar, na região metropolitana de Buenos Aires, Pizarro mostra como as disputas
em torno da bolivianidade chegaram ao ponto de facções serem instauradas para formalizar a
competição entre bolivianos de diferentes departamentos. Quando os líderes dos diferentes
grupos se alinharam com partidos políticos distintos na Argentina, a "rivalidade" se acirrou ainda
mais, atravessada ainda pela manifestação de mulheres reivindicando mais participação na
administração da Asociación Colectividad Boliviana de Escobar, que se colocou no centro dos
arbítrios das relações entre tais facções.

Há várias outras pesquisas em torno da “bolivianidade” na literatura sobre a migração boliviana


em diferentes destinos do mundo – sobretudo na Argentina. Rodrigo (2015), por exemplo,
mostra como, em Altos de San Lorenzo, na periferia da cidade argentina de La Plata, a
"bolivianidade" é alçada para preencher a experiência compartilhada entre os bolivianos, isto é,
para dar conta das relações intraculturais da comunidade de migrantes situada naquele contexto.
Segundo ele, a rede de relações que se forma entre as mulheres daquela região é tecida não pela
reivindicação de alteridade ou de reconhecimento dos argentinos, mas por uma identidade
nacional própria, uma "bolivianidade" que significa uma mesma experiência dos indivíduos
situados no fenômeno – a da migração e dos processos de adaptação.

Já Beccaría (2012), ainda nas matrizes iniciadas por Grimson, investigou como a "bolivianidade"
em Buenos Aires foi construída em parte por um jornal circulante apenas entre os bolivianos na
cidade, chamado "Renacer", que, segundo o autor, serve como ferramenta para que as disputas,
os sentimentos e as críticas do grupo migrante sejam expressas e, mais do que isso, legitimadas
socialmente (Beccaría, 2012, p. 185).

Na literatura brasileira, por fim, é necessário situar o trabalho de Santos (2016) sobre como a
"bolivianidade" foi um conceito importante nas suas investigações sobre um folclore boliviano
que se reinventou no contexto migratório de São Paulo a partir de certa "fraternidade" (Santos,
2016, p. 21). Neto (2017), ao analisar a disputa de duas narrativas históricas em torno de um
patrimônio do país, o Fuerte, no departamento de Santa Cruz de la Sierra, também usa o conceito
tanto em seu sentido historiográfico como na definição de Grimson.

Conclusão
Longe de pretender encerrar a discussão e os significados possíveis para a ideia de
"bolivianidade" como identidade nacional presente na historiografia e nos discursos oficiais, a
reconceitualização de Grimson em 1997, da mesma forma, não esgotou suas possibilidades de
análise. Ao contrário, forneceu as bases para pesquisas similares na Argentina, na Espanha e nos
Estados Unidos.

Na literatura brasileira, o fenômeno pode ser mais bem explorado, já que a presença de migrantes
bolivianos em algumas cidades do país é significativa. De acordo com o Censo de 2010 do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), considerando apenas os cidadãos legais da
Bolívia em São Paulo, por exemplo, naquele ano eram 18,8 mil pessoas. O Consulado da Bolívia
na capital paulista, porém, acredita que esse dado seja inócuo diante da quantidade de "ilegais":
350 mil pessoas. Compreender como se dão as várias dimensões das interações intra e
interculturais desses atores no contexto urbano brasileiro é um dos desafios lançados também
para os pesquisadores locais.

O conceito de Grimson, considerando a literatura posterior, mostra como mesmo a identidade


nacional pode ser objeto de rearranjos diversos quando colocados em outras perspectivas e, em
alguns casos, cumprem espécies de funções sociológicas. Se a maioria das análises que toma a
"bolivianidade" de migrantes como objeto de pesquisa percebe que se trata de uma reação à
ausência desses atores nas narrativas nacionais locais, essa tende a ser a única semelhança
comum: Grimson, por exemplo, se atentou para a homogeneidade de uma "comunidade"
boliviana em Buenos Aires que, anos depois, foi vista do ponto de vista das disputas por Pizarro.

A discussão da "bolivianidade", no entanto, deve ser sempre mediada pela relativização do


conceito de Estado-nação, tanto do ponto de vista de sua comunidade "imaginada", como escrito
por Anderson (1993) como das consequências metodológicas da ausência de sua
problematização: deixar de entender o Estado-nação como uma categoria dada, colocando-a em
suspenso para refletir sobre seus sentidos e materialidades (Glick-Schiller, Wimmer, 2002).
Talvez o conceito de "bolivianidade" elaborado por Grimson em Buenos Aires possa ser,
justamente, um bom ponto de partida metodológico para não apenas estudar o fenômeno
migratório, mas também o da "parafernália" da identidade nacional.

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