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Resenha do livro Política e identidade cultural na América Latina

A coletânea de artigos Política e identidade cultural na América Latina¸


publicada em 2010, organizada pelos historiadores brasileiros Carlos Alberto Sampaio
Barbosa e José Luis Bendicho Beired, se insere, como pode ser visto na apresentação da
obra, nas discussões sobre a construção de identidades políticas e culturais na América
Latina durante o desenrolar do século XX.

A partir de uma maior necessidade de aproximação e formação de redes entre


pesquisadores brasileiros e estrangeiros em contexto latino-americano, inseridos em
instituições universitárias, através do compartilhamento de problemáticas de pesquisa
em comum, a coletânea reúne estudos promovidos pela Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” e a Universidade Nacional de General Sarmiento, na
Argentina. Estes pesquisadores dividem o interesse e estudam problemas vinculados à
política e à cultura no Brasil, Argentina, México e Chile. O conceito de identidade, o
qual recorta a obra como um todo, por sua vez, é pensado pelos estudiosos com base na
ótica da construção de imaginários sociais. As identidades coletivas têm o intento de
justificar as ações humanas, imiscuindo-se, portanto, com as relações de poder
(BARBOSA & BEIRED, 20120, p. 8).

Nesse sentido, compreendem as identidades enquanto projeções dos sujeitos


individuais e coletivos, isto é, da relação desses sujeitos singulares com o “mundo
exterior” (BARBOSA & BEIRED, 2010, p. 8), e das coletividades que representam
inseridas em contextos sociais mais amplos. Pontua-se, também, que na esfera do
sujeito a identidade une-se à dimensão das estruturas, ou seja, reconhece-se ambas as
esferas e seus vínculos mutuamente compartilhados, interconectados, e que aquele
projeta-se nestas partindo de identidades coletivas que corporificam a subjetividade de
outros sujeitos. Os nacionalismos no século XX, por seu turno, possuíram um
importante papel na construção dessas identidades, argumentando os autores que os seus
principais líderes políticos foram responsáveis pela ruptura com a lógica de apego a
regiões e localidades específicas, seus recortes espaciais pontuais, em oposição à ideia
mais ampla de nação.
Por outro lado, reiteram que no campo social estavam àquela época e
permanecem em conflito identidades coletivas distintas, em busca de hegemonia, o que
reforça a ideia de identidades cambiantes, isto é, de características imprecisas, em
constante mudança. Dessa maneira, “o problema da identidade cultural é abordado por
diversos ângulos, notadamente no exame das representações da nação e da América
Latina, da produção artística e dos meios de comunicação em massa.” (BARBOSA &
BEIRED, 2010, p. 9). Nesse ambiente conflituoso emergem não só as construções
identitárias políticas e culturais, que fazem parte de um único processo, simplificado
para a feitura das análises, em âmbito nacional de si, mas do “outro”. Além disso,
reconhecidamente a construção de identidades nacionais singulares muitas vezes
acontece mesmo em paralelo à construção do continente latino-americano, o que
consiste, por si só, numa problemática que é trabalhada, ainda que de forma suscinta,
pela coletânea em artigo específico (BOHOSLAVSKY). No que tange à política, com
base em René Remond, ela é orientada não como uma instância autônoma,
independente, das outras dinâmicas da vida social, mas como espaço em que as
dinâmicas nacionais e internacionais acontecem. Destarte, surge também o conceito de
cultura política, percebido como a reunião de representações axiológicas e normativas
próprias ao campo político, útil ao estudo de experiências históricas que se conectam,
como, por exemplo, o autoritarismo, o populismo, a democracia.

O livro estrutura-se em dez artigos e três eixos temáticos, a saber, (1)


“Intelectuais e identidade cultural”, (2) “Cultura visual e produção de imaginários”, (3)
“Processo político e relações internacionais”, distribuídos de modo diverso, com o
primeiro eixo com dois artigos, o segundo e o terceiro com quatro textos. Cada seção do
livro tenta responder a uma questão específica que, no entanto, se relaciona com as
discussões centrais envolvendo política e cultura em contexto latino-americano. Na
primeira parte, por exemplo, acham-se, respectivamente, os artigos de Kátia Gerab
Baggio, Iberismo, hispanismo e latino-americanismo no pensamento de Gilberto
Freyre: ensaios e impressões de viagens, e José Luis Bendicho Beired, Intelectuais,
hispanismo e a reformulação da identidade nacional argentina. Os artigos têm em
comum a preocupação de situar o pensamento de alguns intelectuais na tentativa de
erigir uma identidade cultural para nações latino-americanas.

Enquanto Baggio centra o seu olhar sobre o conservadorismo de Gilberto Freyre


e sua crítica aos projetos modernizadores hegemônicos postos em prática pelo Estado
brasileiro a partir do final do século XIX, com base em alguns de seus textos
formuladores de uma identidade nacional brasileira ibérica, e como foram duramente
criticados durante a década de 1950, Beired estuda as motivações que fizeram com que
alguns intelectuais argentinos, com enfoque especial nas figuras de Manuel Gálvez,
Joaquim V. González, Estanislao Zeballos e Ricardo Rojas, se aproximarem, no início
do século XX, da Espanha, e compreendê-la enquanto o berço da tradição cultural
argentina. Enquanto projetos identitários delineados por intelectuais, os autores
conseguem elucidar os pontos segundo os quais estes sujeitos constroem projetos de
nação, a exemplo de Freire e sua resposta tradicionalista ultraconservadora às
modificações estruturais da sociedade brasileira, ou como afirma Beired quando situa as
distintas maneiras como os pensadores argentinos que estuda se afastam na defesa de
suas ideologias, e como, ao mesmo tempo, se assemelham, por serem advindos de um
mesmo local social, o “patriciado criollo” (BEIRED, p. 60).

Quanto à segunda seção, “Cultura visual e produção de imaginários”, composta


pelos artigos de Carlos Alberto Sampaio Barbosa, Imaginários políticos no Brasil e no
México, Maria Valéria Galván, O Movimento Nacionalista Tacuara e suas
ramificações, Álvaro Vázquez Mantecón, Imaginários contraculturais na segunda
metade do século XX no México: o surgimento do movimento do cinema Super 8 e
Àureo Busetto, Sintonia com o contemporâneo: a TV como objeto e fonte da História, é
possível perceber a perspectiva da construção de identidades nacionais na América
Latina partindo de uma cultura visual. (BARBOSA & BEIRED, 2010, p. 10). Este
elemento perpassa integralmente os textos, e suas fontes escolhidas se situam nesse
campo estético imagético, quer com gravuras, cartazes e imprensas, como faz Barbosa
estudando por aproximação o período entreguerras no Brasil e no México. O autor visita
algumas revistas ilustradas e salienta a relevância delas para a redação de uma história
política das imagens, em contribuição, assim, com a história social e a história cultural
(BARBOSA, p. 73). Ou, de outro lado, como faz Maria Valéria Galván estudando a
construção de identidades visuais – com base no conceito de discursos sociais ou
configurações espaço temporais de sentido delineado por Eliseo Verón, em paralelo
com o complexo método iconológico de Warburg e Panofsky (VALÈRIA GALVÁN, p.
92) – dentro do reacionário movimento nacionalista Tacuara na Argentina, nas décadas
de 1960 e 1970, a partir das revistas produzidas na esteira dos diversos grupos que o
compunham, formados por jovens cristãos de direita do ensino secundário e
universitário.

Vale mencionar, também, a perspectiva de Vásquez Mantecón e Busetto. O


primeiro com a discussão sobre o movimento do cinema em formato Super 8 no
México, na década de 1970, através do conceito de contracultura. O movimento
“superochero” é compreendido através desse conceito a partir das discussões de
Marwik, e pode ser entendido através do prisma das “atitudes e formas de expressão
elaboradas na marginalidade de uma cultura dominante” (VÁZQUEZ MANTECÓN, p.
113). Ainda que o conceito de expressão aí seja pouco trabalhado, ligado mesmo a certo
senso comum, ele se relaciona, ao que parece, com a ideia do extravasamento da
subjetividade do artista sobre a sua produção, e serve como uma chave de análise
interessante para se compreender a jovialidade crítica e o engajamento político daquele
cinema no México dos anos 1970.

Já o último com um estudo interessante sobre a história da TV e, por sua vez,


como essa se situa na historiografia brasileira, e como a produção televisiva pode servir
de problemática e fonte de pesquisa para os historiadores (BUSETTO, p. 154). Para
tanto, Busetto dialoga com uma produção intelectual francesa, a sociologia da prática
elaborada pelo sociólogo Pierre Bourdier e a história cultural definida por Roger
Chartier, buscando integrar os diversos campos de estudos possíveis da história da TV
brasileira, a saber, enquanto instituição social, quer dizer, sua dimensão estrutural, com
seus aspectos tecnológicos, organizacionais e regulatórios, ou mesmo “as práticas e
representações dos agentes integrados ao campo televisivo” (BUSETTO, p. 165).

No que se refere à terceira parte da obra, tem-se os trabalhos voltados para a


política e as relações internacionais no Cone Sul. É possível ter-se uma visão de
conjunto a partir dos artigos, ainda que muito ligados a algumas experiências políticas já
retratadas nos trabalhos anteriores, e por isso também agora retomadas nestes, em
especial o Brasil e a Argentina, o que será comentado mais à frente. Estão agrupados,
assim, em “Processo político e relações internacionais” os textos de Francisco Luis
Corsi, Brasil e Argentina: uma análise comparativa das políticas econômicas no
contexto da Grande Depressão dos anos 1930, Daniel Lvovich, A questão do consenso
durante a ditadura militar argentina: problemas metodológicos e contextos
historiográficos (1976-1983), Ernesto Bohoslavsky, A posição de direita ao populismo
no Cone Sul: proposta para uma história latino-americana e comparativa e Iuri
Cavlak, Argentina e Brasil em marcha para a integração (1950-1962).

Dessa maneira, Corsi, a partir de uma perspectiva comparativa, busca


compreender as estratégias desenvolvidas pelos presidentes Vargas e Perón,
respectivamente, no Brasil e na Argentina durante a Depressão de 1929, e como foram
promovidos projetos com vistas ao desenvolvimento industrial de ambos os países como
resposta ao período de crise, em momentos distintos e por questões ideológicas
divergentes. Em suma, Corsi avalia que havia uma diferença importante entre a política
econômica promovida pelo Brasil e a Argentina à época, que se situava na questão
central da disposição da intervenção do Estado na economia, o que influenciou
diretamente na resposta positiva alcançada pelo Brasil de enfrentamento ao declínio da
economia. Já Livovich faz uma ampla revisão e sistematiza como a historiografia lidou
com o conceito de consenso, investigando a experiência da ditadura militar argentina
em 1976. O autor chega à conclusão, inspirado nas proposições de Guaitini e Sepelli,
que o consenso enquanto um fenômeno social é induzido a partir do poder, de
lideranças, “através de um conjunto de processos, instituições e aparatos que realizam as
operações destinadas à organização do consenso, isto é, a produzir e estender
comportamentos de adesão na relação com o poder”. (LIVOVICH, p. 203). À essa
dinâmica estrutural, soma-se a participação dos sujeitos, que são agentes diretos, as
denominadas “pessoas comuns”, isto é, aqueles sujeitos que em meio à ditadura não
possuíam um papel de liderança, mas que tinham a atribuição de kapos, quer dizer,
atuavam como vigilantes dos opositores do regime ditatorial, de forma voluntária,
“muitas vezes indo além do que o regime exigia deles” (O’DONNEL apud LIVOVICH,
p. 213).

Bohoslavsky, por seu turno, tece alguns apontamentos na tentativa de elaborar


uma perspectiva teórica e metodológica que comparativamente situe determinadas
experiências populistas, a partir do Brasil, Argentina e Chile, que pode, por sua
dimensão ampla, ser utilizada em outras experiências sociais no nosso continente
(BOHOSLAVASKY, p. 221). Saliente-se que o seu trabalho é colocado como um
contraponto a uma perspectiva nacional, vinculada a certa história política tradicional
que por costume coloca as experiências nacionais como modelos estanques,
tencionando a elaboração de uma história política latino-americana comparativa, pois
ela defende um “horizonte de referências latino-americanas”, com base na comparação
de casos nacionais entre si, possibilitando “compreender por que tal experiência foi
diferente da outra, por que não houve isso ou aquilo.” (BOHOSLAVASKY, p. 225-
226). Ou seja, a perspectiva comparativa por ele proposta, em diálogo com certos
trabalhos produzidos por intelectuais estadunidenses, a seu ver com sucesso, é o
fermento da escrita dessa história política renovada.

Ainda assim, por tratar-se de um esboço de programa de estudos, carece seu


trabalho de maiores exemplos para que seja possível visualizar uma produção não só
com o perfil metodológico apontado, mas que, de alguma forma, não acabe por reforçar
a dinâmica de poder do locus intelectual que parte os referenciais por ele utilizado. Por
fim, Cavlak estuda a aproximação política e econômica entre Brasil e Argentina no
contexto das décadas de 1950 e 1960 a partir do estudo das relações diplomáticas entre
estes países, num momento de acirramento da disputa por influência no continente
latino-americano. Os exemplos trazidos pelo autor, com cartas diplomáticas trocadas
entre esses países, demonstrando os objetivos políticos e econômicos norteadores da
aproximação entre as nações estudadas, elucidam o teor das aspirações nacionalistas e
desenvolvimentistas que se imiscuíam nas declarações de ambos os países.

Notório é, não obstante, após a leitura dos trabalhos, o peso dado a experiências
históricas latino-americanas bem conhecidas pelo público acadêmico brasileiro, como o
México, Brasil, Argentina, e, em menor dimensão, o Chile, em detrimento de dinâmicas
ocorridas em outros países no continente, sequer mencionadas, as quais poderiam
enriquecer e ampliar a visão sobre a construção de identidades, assim como a relação
destas com a política e a cultura na América Latina no século XX. Creio que os artigos
têm abordagens relevantes sobre discussões envolvendo a construção de identidades, e,
para isso, se vale de objetos interessantes, indo além das produções textuais, como o
cinema e a televisão, problematizando a maneira como os historiadores podem enxergar
esses objetos complexos e as fontes que a partir deles podem ser utilizadas para a
elaboração de trabalhos. Não se deixa fugir, por outro lado, a percepção de que a
cultura, conceito que se apresenta com um amplo espectro semântico nos espaços
sociais, está muito próxima dos embates políticos promovidos por sujeitos e
coletividades neles inseridos.

A coletânea, portanto, faz uma importante contribuição para o público


acadêmico que pretende ter uma visão panorâmica com relação a teorias, métodos e
conteúdos a serem utilizados para se produzir trabalhos sobre história cultural e política
na América Latina.

Referências

BARBOSA, Carlos Alberto Sampaio. BEIRED, José Luis Bendicho. Política e


identidade cultural na América Latina. São Paulo, Cultura Acadêmica, 2010.

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