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ANTROPOFAGIA E MITOS INTERPRETATIVOS: ENTRE LITERATURA E

CIÊNCIAS SOCIAIS

Alessia Di Eugenio (UNIBO)

RESUMO: A Antropofagia elaborada por Oswald de Andrade foi um importante emaranhado


simbólico, utilizado para dar sentido à particular auto imagem da cultura brasileira. Foi exatamente
a combinação entre literatura, artes e ciências sociais, que permitiu a consolidação de algumas
imagens interpretativas do Brasil que a Antropofagia contribuiu para elaborar. Contudo, estas
imagens foram simplificadas, reusadas e manipuladas ideológica e politicamente desde os anos 30,
tornando-se, posteriormente, estereótipos da cultura brasileira e conferindo à Antropofagia uma
caracterização fortemente culturalista que em si tinha apenas parcialmente.
A desconstrução destas duradoras imagens interpretativas, em parte atribuídas ao Modernismo e à
Antropofagia, começa desde os anos 70 e 80: os novos problemas abertos pelo processo de
democratização e os desafios de pensar em um processo de mudança levaram muitos pensadores e
críticos a uma reinterpretação histórico-política dos passados processos de transformação cultural.
Para estes autores o objetivo se torna “desinventar” o Brasil e suas imagens mitológicas. Como
acontece com a contribuição recente do livro de Jessé Souza, A tolice da inteligência brasileira:
como o país se deixa manipular pela elite, que mostra precisamente a permanência de ideias
culturalistas conservadoras construídas pela elite intelectual brasileira, em particular pelas obras de
Gilberto Freyre e Sérgio Buarque com as quais a Antropologia dialoga. Este trabalho busca
construir uma dialogo entre a análise do culturalismo conservador da obra recente do sociólogo
brasileiro e as heranças e influências contraditórias da teoria da Antropofagia na cultura brasileira.

Palavras-chave: Antropofagia. Ciências sociais. Cultura brasileira. Culturalismo.

A proposta de reflexão parte da ideia de que o modernismo brasileiro e, mais


especificamente, a Antropofagia, deram destaque cultural e consolidaram, por vezes a
despeito de si mesmos, imagens interpretativas que foram simplificadas e reutilizadas

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tornando-se “estereótipos” da cultura brasileira, a partir dos anos 30 1 : a controversa
elaboração da questão da miscigenação, a imagem eufórica do “Brasil, país do futuro”, a
representação da cordialidade brasileira, a utopia multiétnica dos trópicos, a coexistência de
elementos arcaicos e modernos na ideia de um grande Brasil e na procura, mais ou menos
explícita, da “brasilidade”, a incorporação idealizada da cultura indígena e o ideal da
cultura canibal. A Antropofagia elaborada por Oswald de Andrade foi um importante
emaranhado simbólico, capaz de dar sentido à particular auto imagem da cultura brasileira.
A elaboração cultural de si e de uma dada realidade é objeto de estudo porque é
compartilhada por um grupo ao qual fornece significatividade, se tornando coagulante e
performativa; também é uma forma de “conto”. Um texto recente de Yves Citton, filósofo e
teórico da literatura suíço, Mitocrazia. Storytelling e immaginario di sinistra argumenta que
a recente e geral crise da esquerda, por exemplo, reside precisamente na incapacidade de
contar histórias convincentes porque as identidades políticas, sociais e culturais são
construídas através de várias narrativas mitológicas, séries textuais e imagéticas que
consolidam as memórias culturais, determinando imaginário social, a rede simbólica em
que estão enraizados os atos individuais e coletivos. Neste sentido esta reflexão considera a
mitificação das ideias de interpretação da realidade e o imaginário social e cultural que se
consolidaram na cultura brasileira, detectáveis na Antropofagia e nas elaborações das
ciências sociais com as quais ela dialoga, para analisar o seu peso político. No entanto, se
por um lado se pode falar de “mitos” em relação às interpretações produzidas pela
literatura, poderíamos, tranquilamente, usar o mesmo termo no que diz respeito às
elaborações teóricas das ciências sociais? O texto de Jessé Souza que aqui vamos
considerar, A tolice de Inteligência brasileira. Ou como o país se deixa manipular pela
elite, é pensado a partir desta provocação, com o objetivo de mostrar que o processo de
consolidação de ideias apresentadas como óbvias, está na base de articuladas teorias
culturalistas brasileiras.
Escolhemos a Antropofagia como um filtro interpretativo da sedimentação dos
mitos citados porque influenciou e foi influenciada por elaborações teóricas de alguns dos
“grandes intérpretes” do Brasil e porque também influenciou - e continua a influenciar -, de

                                                                                                               
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Estas interpretações já estavam em parte presentes até mesmo antes dos anos 20, mas se configuraram de
maneira mais estrutural graças ao modernismo.  

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uma forma verdadeiramente singular, a cultura popular, a música, o cinema e as artes. Há
uma espécie de eterno retorno da metáfora da Antropofagia em diferentes áreas da cultura
brasileira e isso permite uma reflexão sobre o processo de construção do imaginário
cultural e sobre a influência das ideias e das elaborações dos intelectuais no Brasil. Neste
sentido, é interessante o diálogo entre a influencia da Antropofagia e as posições da obra
citada de Jessé Souza sobre os temas das “desleituras”, dos usos e das repercussões da
cristalização simplificada de ideias ligadas às interpretações do Brasil. O texto de Souza
permite este diálogo por um lado porque uma das questões-chave do texto diz respeito à
influência das ideias elaboradas por intelectuais na sociedade e na cultura popular, e por
outro porque ele tem como alvo as principais obras culturalistas do início do século XX
com as quais a Antropofagia dialoga. Não é por acaso que, de um ponto de vista teórico, a
revisão crítica do modernismo e da Antropofagia literária começou por causa de seu poder
de consolidação de imagens do Brasil, tão eficazes, duradouras quanto estereotipadas,
parciais e exotizadas. 2 As críticas elaboradas desde os anos 70 e 80 começaram a
redimensionar a “revolução modernista” porque mostraram que o modernismo, visto do
interior de um longo e complexo processo social, criou códigos hegemônicos que
pretendiam se tornar uma metáfora de todo o Brasil e também foi um exemplo de uma
parcela específica de consciência que escolheu mitos adequados a uma determinada área da
vida e da cultura, aquela da São Paulo industrializada e da sua burguesia intelectual, como
escreve Alfredo Bosi (1988). Só na década de 70 as produções literárias chegaram a ser
semilibertas das amarras modernistas, como escreve Silviano Santiago (2002). Estas
críticas surgem precisamente nos anos 80: os novos problemas abertos pelo processo de
democratização e os desafios de pensar em um processo de mudança levaram muitos
pensadores e críticos a uma reinterpretação histórico-política dos processos de
transformação cultural passados. Há uma intenção política direta em enfrentar o legado
conservador das ideias difundidas pelo modernismo que incluem, mas não esgotam, aquelas
elaboradas pela Antropofagia. Na verdade, é importante esclarecer que quando falamos de
Antropofagia não estamos considerando exclusivamente o Manifesto Antropófago nem a
sua relação com o período do Modernismo dos anos 20. A Antropofagia vai muito além do
                                                                                                               
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Muitos estudiosos e pesquisadores trabalham no sentido de uma revisão crítica e de um redimensionamento
do modernismo na cultura brasileira. Entre eles Mário Pedrosa, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Carlos
Eduardo Barriel, Roberto Akira Goto, Daniel Faria, Jessé Souza.

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sucesso crítico ligado ao Manifesto e podemos dizer que se consolida nos textos menos
conhecidos dos anos 50 3 . Oswald fez também uma autocrítica profunda do período
modernista vanguardista, já na década de 304. Sobretudo as obras dos anos 50 mostram
claramente a intenção universalista, e não nacionalista, daquela que queria se apresentar
como uma teoria do homem e não propriamente como uma teoria do Brasil, ainda que a
partir de um posicionamento específico ligado à realidade brasileira. A manipulação
ideológica no sentido fortemente culturalista já começou com o sucesso das obras
culturalistas dos anos 30, das quais encontramos referências nos textos oswaldianos, e com
a retórica nacionalista dos anos da ditadura Vargas. Pode-se dizer que até mesmo o sucesso
nas artes, com o Tropicalismo dos anos 60 e 70, favoreceu alguma exotização das imagens
otimistas e alegóricas da Antropofagia, como mostrado por Roberto Schwarz (1978). Além
disso, do ponto de vista da crítica, as leituras nacionalistas da obra de Oswald de Andrade
certamente contribuíram para a consolidação de visões estereotipadas. Analisando a ampla
bibliografia dedicada ao autor, constatamos que existe um sucesso de crítica relacionado à
sua redescoberta acadêmica nos anos 70 que contribuiu para a proliferação de muitos
estudos sobre a obra de Oswald nas áreas de sociologia, antropologia e critica literária.
Podemos afirmar que essas contribuições e trabalhos seguem duas grandes direções
principais assinaladas e estudadas na ultima grande coletânea de ensaios organizada por
João Cezar de Castro Rocha e Jorge Ruffinelli (2011): por um lado, a Antropofagia é
considerada como uma afirmação da identidade nacional, não deixando de se expor à
exotização da imagem do Brasil, por o outro é repensada no sentido oposto, desligada do
contexto nacional - ainda que fundamental para o seu desenvolvimento - e reconfigurada
em um sentido universal, como um modo particular de relação com a alteridade. A primeira
linha de interpretação resultou predominante no pensamento brasileiro: “qualquer estudo
que hoje se dedique a abordar as ideias oswaldianas está determinado por uma tradição
crítica participante de uma agenda política em que a antropofagia assume um papel
fundamental enquanto discurso de identidade cultural” (ALMEIDA, 2003, p. 31). Por todas

                                                                                                               
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Nos referimos aos textos “A Crise da Filosofia Messiânica” (1950), “A Marcha das Utopias”(1953), bem
como a vários textos jornalísticos e entrevistas realizados no período mencionado.  
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Em 1933 ele escreveu o prefácio do texto Serafim Ponte Grande exatamente a partir de uma auto-crítica
profunda do papel de “palhaço da burguesia”, que havia desempenhado dentro do modernismo, distante das
preocupações reais da vida social e do ativismo. Os anos 30 coincidem com a sua adesão ao Partido
Comunista e sua produção jornalística e política junto à sua companheira Patrícia Galvão.  

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essas razões, afirmamos que houve uma manipulação ideológica que valorizou ou
deformou em um sentido mais identitário as imagens que a Antropofagia produziu.
Tentámos olhar para a Antropofagia também a partir da capacidade de criação de
“contos”, de imaginário, narração e interpretação da realidade social e isso significa
investigar as implicações políticas, e não apenas as estéticas. Neste sentido, a questão que
se coloca diz respeito à relação entre a Antropofagia e as principais teorias intelectuais
sobre o Brasil que influenciaram a visão exterior e interior do país, criando um imaginário
cultural.
Sobre o peso político das teorias produzidas por intelectuais o texto recente de Jessé
Souza, como já foi dito, permite uma reflexão. Souza, para resolver problemas sócio-
políticos atuais, tem como alvo o culturalismo dos principais “intérpretes” intelectuais do
Brasil do início do século XX, mostrando que há uma forte permanência dessas visões e
que elas ainda afetam a compreensão da realidade brasileira. Souza utiliza precisamente o
termo “mito” ao se referir a essas visões compartilhadas. Através daquela que chama de
“sociologia espontânea de senso comum” (SOUZA, 2013, p. 40) se teria produzido um
mito em torno da cultura brasileira, acerca do país da cordialidade, hospitalidade,
assimilação etc. Souza escreve que há uma “verdade prática” codificada pelo mito político
nacional, ou seja, uma “verificabilidade” do que afirma na percepção da vida cotidiana e
das interações sociais, sem que haja a necessidade de uma correspondência científica. Um
dos seus principais alvos, que aqui enfrentamos, é a visão conservadora, estereotipada e
estritamente cultural dos dilemas da sociedade brasileira. Ele imputa o nascimento do
culturalismo à obra de Gilberto Freyre Casa Grande & Senzala e sua consolidação à de
Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasil. Souza acredita que Freyre construiu, sobre o
vínculo emocional, uma imagem positiva do Brasil em que cada um podia se identificar.
Ele permite, portanto, o nascimento de um orgulho brasileiro, baseado na ideia da
singularidade da cultura brasileira, enquanto Sérgio Buarque, ao retomar a sua análise,
simplesmente a muda de direção, dando-lhe uma conotação negativa, apresentando alguns
aspectos da cultura brasileira como problemas políticos e sociais. Souza considera os
trabalhos de ambos os autores responsáveis pela criação de um “mito nacional”, cujo
objetivo é produzir solidariedade social.

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Há um duplo movimento nos processos que Jessé Souza descreve, movimento que a
partir do senso comum a respeito da vida prática vai para as ideias produzidas pelas
ciências sociais e vice-versa. Souza acredita que as ideias dominantes que circulam na
imprensa, nas salas de aula, nos debates parlamentares e nos bares são formas mais
simplificadas de ideias produzidas por intelectuais, ideias baseadas no senso comum que
depois são institucionalizadas e adquirem força prática, porque estão ligadas a interesses
econômicos e políticos. Neste sentido, o extraordinário sucesso do culturalismo inaugurado
por Freyre e da leitura culturalista da formação social de Sérgio Buarque, e não somente
destes dois 5 , é apresentado como a expressão da ideologia liberal conservadora e
predominante no Brasil, capaz de dissolver os conflitos de classe no magma unificador da
explicação cultural. Se é possível afirmar com certeza que os interesses econômicos e
políticos estão por trás da disseminação e institucionalização das ideias - e da sua
exploração ideológica - não é tão óbvio afirmar que os mesmos interesses também
funcionaram como um guia para a elaboração original, que foi feita por seus autores. Souza
parece compartilhar deste pensamento, mas argumentando que o processo de
institucionalização marca o caminho das ideias: “Depois de institucionalização, essas ideias
ganham vida própria e ‘esquecem’ sua gênese” (SOUZA, 2013, p. 31). Uma questão que se
poderia colocar é se apenas a institucionalização das “ideias-forças”, como diz Souza,
produzidas por grandes pensadores, permite a sua difusão na sociedade ou, ao contrario, é o
diálogo mútuo entre ciências sociais, artes, cultura em geral e experiência cotidiana, mesmo
para além dos espaços institucionais, que permite a cristalização daquelas ideias que se
tornarão parte do “senso comum”. O ponto de vista de Souza, apesar de fornecer a
perspectiva sobre o duplo movimento de influência de que falamos, entre as ideias
produzidas por intelectuais e senso comum, parece dar muita importância à mediação das
instituições nesse processo. Ponto de vista que poderia ser questionado. Aqui queremos
sublinhar também que Souza faz referências principalmente a ensaios sociológicos e
antropológicos, como principais responsáveis da criação de mitos interpretativos, e nunca
ao papel que desempenharam a literatura e as outras produções culturais no fortalecimento
das ideias também desenvolvidas nas ciências sociais.  

                                                                                                               
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Os alvos polêmicos também incluem obras mais recentes, como a do antropólogo Roberto DaMatta.  

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A partir desta analise provocadora voltamos novamente ao papel da Antropofagia
nesta disseminação de estereótipos e imagens mitológicas. Como foi dito, acreditamos que
a Antropofagia assumiu uma caracterização culturalista e identitária que tinha apenas
parcialmente, contribuindo assim para a consolidação daqueles mitos de que falamos. A
ideia de assimilação antropofágica foi associada à da miscigenação, da cordialidade e do
personalismo. É interessante, por isso, analisar os textos e as palestras de Oswald de
Andrade dos anos 50 onde há referências explícitas, bem como implícitas, a Gilberto Freyre
e Sérgio Buarque de Holanda que evidenciam sua influência. No texto Um Aspecto da
cultura antropofágica brasileira - O homem cordial Oswald de Andrade recupera as
caracterizações do homem cordial brasileiro, elaboradas por Sérgio Buarque, ligando-as a
outros estudos de sociologia, etnologia e história primitiva, para buscar nestes aspectos da
cultura brasileira, os “restos” da cultura antropofágica ancestral que podem ser
recuperados. No entanto, é claro que o objetivo não é fazer da “abertura ao outro”, que
pertence ao homem cordial, uma marca definidora da “brasilidade”. Nos textos de Oswald
de Andrade existe sempre um duplo movimento, uma tensão, que por um lado quer
reabilitar um “modo de vida” desaparecido com a colonização, e por outro quer identificar
os “restos” que podem ser transformados e já estão presente na sociedade brasileira que é
herdeira dessa: “Com toda a coação e a libidinagem da gente branca, não foi no entanto
destruído o que melhor restava no natural das Américas. A sua cultura resistiu no fundo das
florestas, como na recusa a toda força escravizante” (ANDRADE, 1992c, p. 284). O
homem cordial é pensado como o que “resta” da cultura antropofágica mas o objetivo é,
claramente, propor uma forma de viver universal e alternativa ao individualismo ocidental,
e não estabelecer uma identidade nacional. No entanto, acreditamos que é este duplo
movimento que, utilizando análises culturais com relação a esses “restos” presentes na
cultura brasileira, é causa de uma visão simplificada e nacionalista do seus textos.
Em outras conferências como Informe sobre o Modernismo e O sentido do Interior,
encontramos referências explícitas e elogiosas à obra de Gilberto Freyre6. No entanto em
outros textos como a conferencia Atualidades d’Os Sertões, ao invés disso, estão presentes
                                                                                                               
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Oswald escreveu um pequeno artigo sobre Gilberto Freyre na Coluna “Telefonema” do Correio de Manhã
(24/11/1946). Ele lembrava da velha critica “comunista” que fez ao texto de Gilberto Freyre, mas escrevia
para apoiar o movimento pela candidatura de Freyre ao premio Nobel de literatura: “E a obra prima de
Gilberto transcende da sociologia e da critica para explender nisso que se pode moderna e realmente chamar
de literatura” (ANDRADE, 1976, p. 140).

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críticas e afastamentos do paradigma conciliador da miscigenação freyriana e do seu
modelo de nacionalidade. Acreditamos que há, sem dúvida, afinidades entre os dois
autores, mas também diferenças importantes que nos permitem dizer, como mostrado
inteligentemente no texto de Ana Paula Morel (2013) , que a Antropofagia não é uma teoria
da mistura harmônica, de acordo com o mito nacional. O que queremos sublinhar, em
última análise, não é a insistência na diferença entre a abordagem mais universalista e
conflitual da Antropofagia e a abordagem mais culturalista e conciliadora de Freyre ou
aquela mais crítica e negativa, mas fortemente culturalista de Sérgio Buarque. Estamos
interessados em detectar os efeitos da forte ressonância entre a literatura, a arte e as ciências
sociais do inicio do século XX, na consolidação das imagens mitológicas. Na verdade, a
comparação entre a Antropofagia e o texto provocativo de Jessé Souza se torna um convite
para assinalar e investigar criticamente também o impacto e a contribuição da forte
interligação entre literatura e arte, neste caso a Antropofagia cultural, e ciências sociais de
abordagem culturalista no sucesso dos usos e reusos políticos das “grandes narrações” da
cultura brasileira.
O texto de Souza tem forças consideráveis, mas parece, no entanto, que cai numa
acusação absolutista da   investigação cultural, como se essa fosse necessariamente movida
por interesses políticos identitários e nacionalistas. E também não trata do poder da
literatura, do cinema, das arte na criação destes “contos interpretativos” que os intelectuais
fazem da realidade. A tarefa da atual pesquisa cultural talvez seja a de contar,
desconstruindo e “desinventando”, estas imagens mitológicas abrangentes, sem sacrificar a
análise crítica da especificidade cultural e sem extrapolar estas especificidades do contexto
social e político em que elas aparecem. Neste sentido um texto recente e singular, Brasil:
Uma biografia de Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling, pode ser apontado
como um interessante exemplo da intenção de “desinventar o Brasil”. As duas autoras
começam com uma frase - “aqui não se pretende contar uma história do Brasil, mas fazer
do Brasil uma história” (SCHWARCZ e STARLING, 2015) - como se elas quisessem dar
uma caracterização de conto e narração literária à história cultural, como se elas quisessem
sublinhar a importância de “contar histórias” para impactar o imaginário cultural,
testemunhando o poder da narração na desconstrução de mitos culturais, não só na sua
“invenção”.

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Referências

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