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A presença feminina no imaginário dos

ar tistas brasileiros
artistas
A imagem da mulher: um estudo desta na sociedade. Analisando e interpretando
reproduções de obras de diferentes artistas (cerca
de arte brasileira. de 1.300 obras de arte do acervo dos museus
de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais
COSTA, Cristina. foram pesquisadas), Cristina Costa fez um estudo
detalhado, mostrando como a arte pode ajudar
Rio de Janeiro: Ed. Senac, 2002. a compreender a sociedade e vice-versa.
Por meio de registro fotográfico e de
199 p.
catalogação e seleção de imagens femininas, a
autora analisou os papéis desempenhados por
mulheres na formação e na organização
produtiva da sociedade brasileira, passeando
Cristina Costa é doutora em Ciências Sociais pelos séculos XVII, XVIII, XIX e pelo início do XX, e
e livre-docente em Ciências da Comunicação dirigindo a atenção a cinco movimentos artísticos:
pela Escola de Comunicações e Artes da o barroco, o neoclassicismo, o romantismo, o
Universidade de São Paulo, USP. realismo e o modernismo. A pesquisadora fez mais
O livro A imagem da mulher: um estudo de do que descrever a concepção plástica e os
arte brasileira é resultado de uma longa pesquisa, estilos das obras estudadas. Aspecto central de
iniciada na década de 1980, concebida e seu estudo foi a tentativa de desvendar, em um
efetuada no intuito de descortinar na arte procedimento que evoca o “paradigma indiciário
brasileira a ênfase dada à mulher e à posição de Carlo Ginzburg”, 1 os diferentes contextos

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sociais, políticos e econômicos em que ocorreu circunstâncias históricas, sociais e políticas nas
a produção da pintura artística no Brasil. quais foram concebidas.
Pode-se afirmar que, pela interpretação das A segunda, a terceira e a quarta partes do
imagens, Cristina Costa faz um interessante livro tratam, respectivamente, do barroco
contraponto às análises generalizadoras que brasileiro, do século XIX – que enfatiza o estilo
ignoram as diferenças e particularidades dos neoclássico e o romantismo – e dos modernismos
agentes sociais. Fica evidente ao leitor que esse do início do século XX. Cabe ressaltar, sobre essas
livro é, na verdade, fruto do envolvimento da partes, que a autora percebeu uma grande falta
autora, a um só tempo, com as ciências sociais e de sintonia entre as imagens analisadas e os
com a arte, uma interação que a permitiu documentos históricos e estudos sociológicos do
observar, por exemplo, na década de 1960, “[o] período entre o século XVII e a primeira metade
silêncio da ciência em torno [das particularidades do século XX. São exemplos os retratos de mulheres
e diferenças de sexo e de gênero] nas formações do século XIX. No estudo iconográfico das obras
sociais” (p. 20), e, na década de 1970, a mulher desse período, Cristina Costa observou que os
como tema central de diferentes linguagens retratos femininos foram realizados em um estilo
artísticas. sóbrio e severo e que o padrão estético era
Estimulada por essas percepções, e crítica idêntico ao dos retratos masculinos. Como “o
das abordagens predominantes acerca da retrato é um tipo de pintura que envolve não
produção sobre a problemática feminina nas somente a técnica mas também as expectativas
ciências sociais, percebeu ser necessário rever do retratado e de seu grupo de referência, [a
idéias e conceitos, para o que foi buscar nas autora concluiu] que a vida da mulher e sua
obras de arte a fonte para a sua narrativa sobre inserção na sociedade da época aproximavam-
o papel social da mulher na sociedade brasileira. se mais da condição masculina do que os estudos
Escutemos a autora: “A minha formação em artes históricos pressupunham” (p. 102).
plásticas e a familiaridade que com ela A pesquisadora logrou vislumbrar aquele
desenvolvera em relação à produção artística perfil da mulher com o auxílio de informações
apresentavam um contraponto ideal a esse obtidas em estudos científicos e obras de ficção.
‘silêncio’ a respeito da mulher na produção De fato, autores como “Machado de Assis;
sociológica, pois, enquanto os textos e as Cornélio Pires Jorge de Andrade, escritor e
pesquisas passavam ao largo das diferenças de folclorista; Jorge Caldeira, escritor e dramaturgo;
gênero, através de análises generalizantes que Gilda de Mello e Souza, socióloga; Laura de Mello
tinham como base a condição masculina, as e Souza, historiadora; e Alcântara Machado,
artes desenvolviam um discurso que ressaltava escritor e historiador, entre outros, relatam a vida
diferenças e discrepâncias e que se detinha de das mulheres da elite cafeeira”(p. 103). No final
forma acentuada na figura feminina, fazendo da investigação, Cristina Costa chegou a
dela um dos seus mais constantes temas” (p. 20). conclusão de que a mulher desempenhou um
Portanto, o livro apresenta-se edificado papel importantíssimo no Brasil agrário. Ela era
sobre dois pilares. “O primeiro refere-se à chefe do grupo familiar e também partilhava
constatação de que o discurso sociológico, com o homem o poder de liderança em
apesar de sua objetividade e cientificismo, tendia diferentes aspectos da vida cotidiana. “A falsa
a descrever situações sociais, ignorando as idéia de que as mulheres não tinham importância
diferenças e particularidades dos agentes sociais social e que, submissas a seus maridos, eram
[...]. O segundo pilar refere-se à hipótese de que peças insignificantes no tabuleiro da História é
a arte poderia corrigir essa visão generalista, devido ao fato de sua vida resumir-se ao universo
revelando particularismos a respeito de temas doméstico e familiar” (p. 105).
sobre os quais se debruça a ciência e sobre os Outro momento interessante desse
quais haviam se calado os cientistas sociais” (p. segmento do livro, que cabe ser ressaltado,
23). refere-se ao modernismo, correspondente ao
O texto é constituído de 23 capítulos início do século XX. Associado pela autora a um
distribuídos em cinco partes temáticas. Na importante estágio na trajetória social, esse
primeira, referente à discussão sobre Sociologia período apresenta mudanças e rupturas culturais
e Arte, Cristina Costa trabalha conceitos e e estéticas. Para ela, de fato, “[s]ão os
modelos de análise em Sociologia da Arte. Para Modernismos que pretendem, cada um à sua
isso, busca na hermenêutica a base para a maneira, dar conta de um mundo em
interpretação das manifestações simbólicas e transformação” (p. 135). Nesse mundo, as
para a análise das relações destas com as mulheres deixam de ser simplesmente modelos

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e passam a se auto-retratar, além de serem mais tratamento. Por conta disso, assim como se
atuantes na esfera pública, revelando uma observa no estudo intitulado Imagens
participação mais efetiva na sociedade. negociadas, de Sérgio Miceli,4 a abordagem de
Na quinta e última parte do livro a autora Cristina Costa tem, pode-se dizer, um caráter
aborda, de forma concisa, algumas questões inovador. Com efeito, nela a imagem não é
referentes à arte clássica ou erudita e cultura de considerada apenas como uma coadjuvante,
massa, assim como aos gêneros artísticos e tipos uma mera ilustração, uma referência histórica ou
femininos. A intenção da autora é, certamente, uma curiosidade. Ao contrário, para a autora, é
mostrar que, entre todas as representações de a partir das imagens que se elabora, reconstitui
mulheres analisadas, existe um fio condutor que e ressignifica o quadro das relações sociais e o
perpassa todos os períodos pesquisados: a busca papel da mulher nessas relações.
do entendimento de como é a mulher brasileira. É importante destacar que o referido caráter
O que singulariza a pesquisa de Cristina inovador tem a ver, igualmente, com a escolha
Costa, considerando os diferentes aspectos que da metodologia utilizada na pesquisa, cuja
integram a sua análise, é o uso de imagens como inspiração foi buscada em estudos nas áreas da
fonte histórica. Segundo a pesquisadora, a fenomenologia da percepção e da sociologia
interpretação de imagens em documentos do imaginário, além de ter se apoiado em
iconográficos passou a ser, na década de 1980, valiosas fontes iconográficas. Escutemos mais
um elemento importante para a História, a uma vez a autora:
Antropologia e a Sociologia. “O historiador Michel “Nessa tendência de pesquisa em
Vovelle, um dos criadores da história das sociologia da arte, história das mentalidades e
mentalidades, assegura que o uso de fontes estudos da percepção, o homem é tomado em
iconográficas é de fundamental importância sua totalidade, como agente social, como ser
para o trabalho de pesquisa, por serem elas muito cognitivo e simbólico, como organismo físico,
mais do que um comentário ilustrado dos textos sensível e significante. E, assim como não existe
escritos; elas falam mais que estes, com o seu ruptura entre sua objetividade e sua
discurso autônomo e próprio, diz ele, ‘falam onde subjetividade, também não há oposição entre
o texto se cala’” (p. 23). realidade e suas formas de representação. Trata-
Sobre esse assunto, o historiador Eduardo se, portanto, de uma postura totalizante e
França Paiva escreve: “A iconografia é, unificadora que não privilegia os aspectos
certamente, uma fonte histórica das mais ricas, objetivos em relação aos subjetivos daquilo que
que traz embutida as escolhas do produtor e todo entendemos por realidade e, igualmente, não
o contexto no qual foi concebida, idealizada, atribui mais validade aos enunciados científicos
forjada ou inventada. Nesse aspecto, ela é uma do que às formulações poéticas” (p. 40).
fonte como qualquer outra e, assim como as Para finalizar, cabe também aludir a uma
demais, tem que ser explorada com muito decepção com a obra, relativa à própria
cuidado”.2 natureza da pesquisa. Embora se trate de uma
Paiva ainda assinala que “[a] imagem não investigação que utiliza como fonte essencial a
é um retrato de uma verdade, nem a imagem, a documentação visual apresentada é
representação fiel de eventos ou de objetos escassa. De outra parte, a autora não elabora
históricos, assim como teriam acontecido ou assim nenhum tipo de diálogo entre as imagens, o que
como teriam sido. Isso é irreal e pretensioso. A faz com que o objetivo principal de sua obra, a
História e os diversos registros históricos são sempre saber, a interpretação de imagens, perca espaço
resultados de escolhas, seleções e olhares de seus em benefício de longas descrições
produtores e dos demais agentes que metodológicas e de estudos de períodos
influenciaram essa produção. [...] [I]sso significa históricos ou estilos artísticos. Na verdade, o
que as fontes nunca são completas, nem as material iconográfico apresentado é explorado
versões historiográficas são definitivas. [...] Fontes só superficialmente, deixando no leitor uma
e versões carregam em si temporalidades sensação de ‘quero mais’. No entanto, tendo em
distintas, porque são construídas e reconstruídas vista que os estudos dessa natureza são pouco
a cada época”.3 numerosos e pouco considerados, cabe registrar
É certo que a imagem como objeto de que o trabalho de Cristina Costa é altamente
pesquisa ainda apresenta problemas, haja vista instigante para um debate sobre o uso de
que ainda não logrou obter na História, nas imagens de obras de arte como fontes nos
Ciências Sociais e em outras disciplinas os estudos de História.
instrumentais teóricos suficientes ao seu

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1
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia cultural entre os anos 1920 e 1940, a partir dos retratos
e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. das pessoas da sociedade brasileira pintados por
2
PAIVA, Eduardo França. História & Imagens. Belo Horizonte: Cândido Portinari. Na mesma linha de Cristina Costa,
Autêntica, 2002. (Coleção História & Reflexões, 1). p. 17. Miceli constrói o seu argumento a partir da imagem.
3
Ibid., p. 19-20.
4
MICELI, Sérgio. Imagens negociadas: retratos da elite
brasileira (1920-40). São Paulo: Companhia das Letras, Jacqueline Wildi Lins
1996. Nesse livro, Sérgio Miceli reconstitui o quadro de Universidade para o Desenvolvimento do
relações interpessoais, que configuravam o mundo Estado de Santa Catarina

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