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NAS ENTRELINHAS DO ROMANCE REALISTA E NATURALISTA:

as influências ideológicas e filosóficas na produção literária


brasileira do fim do século XIX

Autora: Cleusa Schmitz1


Orientador: Fausto José Fonseca Zamboni2

Resumo: O presente artigo relata as ações de intervenção pedagógica realizadas no trabalho com
literatura, no ano de 2013, no Colégio Estadual Wilson Joffre, município de Cascavel, com alunos da
2ª série do Ensino Médio. A proposta teve a finalidade de fazer um apanhado das influências das
correntes filosóficas e cientificistas, do século XIX, na literatura brasileira, sobretudo nos estilos
Realista e Naturalista, visando a aprimorar o ensino da literatura. Para tanto, tendo em vista a prática
pedagógica, buscaram-se estratégias didático-metodológicas para o desenvolvimento do trabalho a
fim de que os alunos conhecessem melhor tais produções literárias, bem como as características
desses movimentos e os referenciais filosóficos e teóricos deixados nas obras Quincas Borba de
Machado de Assis e em O Cortiço de Aluísio de Azevedo.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Realismo. Naturalismo. Filosofia.

1. Introdução

O presente trabalho propôs atender a uma das necessidades do ensino da


literatura que também é enfocar assuntos sociais, históricos e culturais, de uma
determinada época, que tiveram relevância na vida dos escritores e que refletiram
nas suas produções literárias: ambientes descritos com detalhes, carregados de
significação; os personagens exprimindo a magia de uma época e as abordagens
político-filosóficas de caráter ideológico que caracterizaram ainda mais as produções
daquela época. Neste cenário de criações e criatividades, de política e senso
comum, aprofundamos o nosso estudo nas obras Realistas e Naturalistas, a fim de

1
Professora de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Educação. Participante do Programa de
Desenvolvimento Educacional. PDE-2012. Col. Est. Wilson Joffre – Cascavel, Paraná.

2
Professor Doutor, Universidade do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Área de Letras.
buscarmos marcas mais acentuadas de elementos ideológicos e filosóficos que
influenciaram e constituíram a literatura do fim do século XIX.
Este projeto, “Nas entrelinhas do romance Realista e Naturalista: as
influências ideológicas e filosóficas na produção literária brasileira do fim do século
XIX”, ajudou a ampliar os horizontes literários e a analisar desdobramentos da
produção brasileira. O estudo partiu da exploração de algumas correntes filosóficas,
cujas doutrinas interferiram na maneira de pensar dos intelectuais e literatos e
tiveram significativa influência na composição das obras literárias, bem como
averiguação de indícios cientificistas e positivistas no Realismo e Naturalismo,
sobretudo nas obras Quincas Borba, de Machado de Assis (1839 – 1908) e O
Cortiço, de Aluísio Azevedo (1857 - 1913).
O trabalho desenvolveu-se no Colégio Estadual Wilson Joffre, Cascavel –
Paraná, com estudantes da 2ª série do Ensino Médio. O intuito foi auxiliar os alunos
para que tivessem mais clareza e consiguissem descobrir os caminhos
contraditórios que os autores apresentam. Para que os objetivos do projeto fossem
alcançados e para que se obtivesse um bom desempenho, foram previstos os
seguintes encaminhamentos metodológicos: uma abordagem teórica das correntes
ideológicas da segunda metade do século XIX; estudo sobre o Realismo e o
Naturalismo e suas características, bem como estudo das obras Quincas Borba e O
Cortiço.

2. A exploração da Literatura Realista e Naturalista

O Realismo se tingirá de naturalismo, no romance


e no conto, sempre que fizer personagens e
enredos submeterem-se ao destino cego das “leis
naturais” que a ciência da época julgava ter
codificado (Alfredo Bosi).

O século XIX foi marcante para o mundo das ideias, aflorando, nessa época,
muitas teorias e correntes filosóficas. Devido à abertura no plano ideológico, muitas
correntes de pensamento também repercutiram no Brasil, no séc. XIX. Os autores
desse período, por conseguinte, foram influenciados pelas tendências filosóficas e
cientificistas, cujo objetivo era analisar e observar a realidade para reproduzi-la.
É pertinente que se abra ao ensino literário a observação para o âmbito social
e político a fim de que haja o entendimento do contexto da obra. A literatura como,
segundo Antônio Cândido (1978, p. 96), “um produto humano, histórico, social,
evolutivo das nossas faculdades estéticas”, também esteve inserida nas agitações
sociais da segunda metade do século XIX, refletindo a tendência ideológica da
época, influenciada pelas correntes filosóficas e científicas e marcada,
principalmente, pela influência do Positivismo, uma filosofia fundada sobre a
experiência e os métodos da ciência. A preocupação com a verdade dos fatos; a
realidade concreta e objetiva; preocupação com a representação do mundo exterior;
o homem caracterizado de acordo com o meio em que vivia e com o momento, são
algumas características decorrentes desse período literário, influenciado pelo
momento histórico e político.
Para os realistas, o mundo é acessível, é descritível, é experienciado e passa
pela observação – princípios do Positivismo. O Naturalismo, por sua vez, vem
marcar, através das suas características, a influência do meio e do momento no
comportamento das pessoas, justificado pela presença de teorias científicas como o
darwinismo e, especialmente, o determinismo. Para melhor explicitar, destacamos o
seguinte comentário de Afrânio Coutinho:

Pode-se afirmar que duas direções marcaram a evolução do Realismo no


Brasil: a corrente social, atraída pelos problemas sociais, pelos temas
urbanos, contemporâneos, pelos materiais comuns da vida cotidiana, e
segundo a qual, descamba, às vezes para o Naturalismo, quando assume
posição filosófica e se submete à luz de uma “teoria” e o movimento
regionalista, que põe em relevo a cor local, o papel da Terra, que é a
verdadeira personagem dessa literatura (COUTINHO, 2004, p. 17-18).

É conveniente ressaltar que tais filosofias tiveram a sua importância e


deixaram marcas profundas que ainda hoje são perceptíveis. Os trabalhos literários,
nessa fase, bem como as produções escritas tiveram a sua influência ou do
Positivismo ou das correntes filosóficas cientificistas, principalmente na obra O
Cortiço.
O Realismo e o Naturalismo foram dois movimentos importantíssimos e que
enriqueceram muito a literatura brasileira, consagrando muitos escritores nacional e
internacionalmente, como é o caso de Machado de Assis que, da periferia do Rio de
Janeiro do Séc. XIX, se tornou o maior escritor brasileiro e um dos mais importantes
e consagrados romancistas do mundo. Conforme Carpeaux (1963, p. 2143),
Machado foi um caso enigmático, “um mulato de origens proletárias, autodidata,
torna-se o escritor mais requintado da sua literatura”. No romance realista Quincas
Borba, Machado traz à tona, de forma crítica, a questão filosófica e teorias
cientificistas da época, apresentando a ideologia com certo tom irônico – as muitas
metáforas usadas por ele enfocavam uma visão pessimista em relação ao homem;
ideia que vem de encontro ao que pensava Rousseau, que o homem nascia bom e
se transformava com o tempo. Por outro lado, temos o Naturalismo que deu forma
ao Darwinismo, determinismo, liberalismo, e muitos outros “-ismos”.
Machado de Assis e Aluísio de Azevedo, no Brasil, foram os escritores que
melhor representaram essa época tão significativa, cercada pelas correntes
filosóficas e cientificistas (Positivismo, Determinismo, Darwinismo) que dominaram
as ideias do fim do séc. XIX. Captar tons e nuances de Machado, sem o contexto
que envolve a obra, é difícil; assim sendo, há necessidade de um acompanhamento
mais lógico e racional. Sempre que o relemos, encontramos em suas obras
situações novas e fascinantes. Seu olhar volta-se à filosofia, à psique humana;
destacando os seus personagens protagonistas e evidenciando-os, tanto os
masculinos, quanto os femininos.
Em Quincas Borba, além da crítica às novas ideologias, Machado aponta
também para o problema da exploração, da ascensão financeira, marcando a
passagem de um personagem ingênuo, inexperiente, que acreditou nas pessoas e
se deu mal, frente à malandragem de algumas: a exploração versus a deturpação da
sociedade carioca. No romance O cortiço, publicado em meio às influências
cientificistas e, principalmente, dos escritores franceses, Aluísio quer mostrar na
obra o problema do colonizador que continua a explorar em busca do
enriquecimento: o brasileiro (o mestiço), ser inferior, explorado pelo português, o
branco de “raça superior”. A obra revela algumas marcas filosóficas e cientificistas
como: zoomorfismo (ser humano e animais numa mesma categoria), o determinismo
(o homem mostrando, através do seu comportamento, a influência do meio em que
vive).
Para evidenciar as duas estéticas literárias, servimo-nos, aqui, de Coutinho,
para notabilizarmos algumas diferenças, ou seja, algumas características, por
entendermos estarem mais adequadas com o que estudamos a respeito das obras
dos dois autores:
Realismo:
1. É um temperamento, uma tendência, um estado de espírito
2. Procura apresentar a verdade;
3. Encara a vida objetivamente;
4. Fornece uma interpretação da vida;
5. Preocupação com homens e mulheres, emoções e temperamentos,
sucessos e fracassos da vida do momento;
6. Encara o presente, nas minas, nos cortiços, nas cidades, nas fábricas,
na política, nos negócios, nas relações conjugais, etc. qualquer motivo de
conflito do homem com seu ambiente ou circunstantes é assunto para o
realista;
7. Precisão e fidelidade na observação;
8. A narrativa realista move-se lentamente;
9. Apoia-se sobretudo nas impressões sensíveis, escolhe a linguagem mais
próxima da realidade, da simplicidade, da naturalidade.
(COUTINHO, 2004. p. 10-13).

Naturalismo:
1. É o Realismo fortalecido por uma teoria peculiar, de cunho científico,
uma visão materialista do homem, da vida e da sociedade;
2. A arte deve conformar-se com a natureza, utilizando-se dos métodos
científicos de observação e experimentação no tratamento dos fatos e das
personagens;
3. Visão materialista, científica, social, do homem em relação com o meio e
com a herança;
4. Visão mais determinista, mais mecanicista: o homem é um animal, presa
de forças fatais e superiores sem efeito e impulsionado pela fisiologia;
5. Inclinação reformadora: a sua preocupação com os aspectos da
inferioridade visam à melhoria das condições sociais que a geraram;
6. Espírito de objetividade e imparcialidade científicas. (COUTINHO, 2004.
p. 10-13).

Segundo Roland Barthes (1984, p. 70), “num romance realista, o conflito mais
freqüente é um conflito que opõe uma sociedade e um herói que recusa os limites
que essa sociedade pretenderia impor aos seus deveres e satisfações”. O Realismo,
por conseguinte, contrapôs-se ao Romantismo que trazia nos seus heróis, através
das ações, aquilo que se queria ver na sociedade e, além disso, veio apresentar e
refletir as transformações culturais, políticas, sociais e culturais da época,
especificamente da segunda metade do séc. XIX. Essas marcas sociais foram
bastante significativas na formação dos personagens e do enredo nos romances da
época e serviram de base para as obras Quincas Borba e O cortiço.
Levando-se em conta o que foi estudado e observado e, ainda mais, para que
se consiguisse atingir os objetivos em sala de aula, foi necessário detalhar mais os
movimentos Realista e Naturalista, buscando analisar as suas semelhanças e
contradições, relacionando-os com o contexto histórico da época. Para dar
condições de desenvolvimento ao trabalho e preparar os alunos para o estudo das
obras clássicas que seriam trabalhadas, discutiu-se, inicialmente, sobre a leitura na
vida estudantil e pessoal e a sua importância; a sua utilidade, hoje; para que estudar
literatura; o que deve ser valorizado numa produção literária; como é o contato do
aluno com essa leitura. Posteriormente, com o propósito de destacar influências das
correntes positivistas na produção literária, explicitando a ligação entre as ideias
filosóficas e a arte literária, foram analisadas e estudadas algumas teorias
cientificistas e filosóficas que estavam rondando o meio intelectual da época, cujas
ideologias estavam contextualizadas nas escolas literárias: realista e naturalista.
Tentar analisar as entrelinhas destes dois importantes romances da literatura
brasileira sob as nuances das ideologias da época foi um dos objetivos do projeto e
da produção didática.
Prendendo os alunos no espírito literário e instigando-os a um maior
envolvimento na análise de uma obra, conseguir-se-ão mais adeptos a esse tipo de
leitura e o trabalho deixará, talvez, de ser enfadonho tanto para os estudantes
quanto para os professores.

3. A Implementação Pedagógica

Refletir sobre o ensino da Língua Portuguesa e da


Literatura implica pensar também as contradições,
as diferenças e os paradoxos ... (PARANÁ, DCE).

Iniciando o trabalho da implementação pedagógica, discutiu-se com os alunos


a respeito da leitura, especificamente, dos romances Quincas Borba e O Cortiço
evidenciando-se a respeito da importância que essas obras tiveram e têm, até hoje,
para a literatura brasileira. Contudo, sabe-se que a leitura, nos dias de hoje, é uma
prática de poucos e o trabalho é desafiador para os professores, no entanto, há
necessidade de apresentar aos estudantes algumas obras ícones da literatura,
mesmo que se depare com aqueles que realmente não leem.
O intuito desse trabalho foi o de conduzir os alunos à compreensão das
minúcias das obras trabalhadas, verificar a influência do meio externo, das posições
dos personagens, de como foi pensada pelos autores a abordagem dos cenários
etc. As obras aqui destacadas querem retratar a realidade de uma época. Alfredo
Bosi destaca os problemas de uma sociedade em formação que sofre profundas
mudanças:

Desnudam-se as mazelas da vida pública e os contrastes da vida íntima; e


buscam-se para ambas causas naturais (raça, clima, temperamento) ou
culturais (meio, educação) que lhes reduzem de muito a área da liberdade.
O escritor tomará a sério as suas personagens e se sentirá no dever de
descobrir-lhes a verdade, dissecando o seu comportamento. (BOSI, 1999,
p. 169)

A nossa prática pedagógica pautou-se na preparação dos alunos para uma


abordagem das correntes cientificistas e teóricas do fim do século XIX. Os
estudantes conheceram os diversos pontos teóricos da época que permearam as
produções literárias: Positivismo, Determinismo, Cientificismo, Darwinismo (teoria da
evolução) e Materialismo, através de pesquisa e exposição oral do conteúdo. Essa
etapa de análise e exploração foi muito importante para uma melhor compreensão e
entendimento dos vieses dos movimentos realista e naturalista, numa época em
que:

Os anseios das classes médias urbanas compunham um quadro novo para


a nação, propício ao fermento de ideias liberais, abolicionistas e
republicanas. De 1870 a 1890 serão essas as teses esposadas pela
inteligência nacional, cada vez mais permeável ao pensamento europeu
que na época se constelava em torno da filosofia positiva e do
evolucionismo. (BOSI, 1999, p.163)

Através dos estilos literários, percebeu-se, portanto, que há formas


diversificadas para expressar a realidade de cada época. No fim do século XIX, o
mundo dinâmico, transformador, filosófico era o ponto de partida para as produções
e a literatura aproveitava-se da realidade para definir suas estratégias e enredos.
Dessa forma, no decorrer da implementação estudaram-se as obras Quincas Borba
e O Cortiço que, primeiramente, foram lidas pelos alunos e propostos roteiros de
encaminhamentos metodológicos para uma melhor análise, conforme dispostos na
“Produção Didático-Pedagógica”.
O romance Quincas Borba foi relevante para a compreensão dos diferentes
aspectos ideológicos abordados pelo autor através do personagem Rubião.

O romance se desenrola, pois, em meados de 1867 e o início de 1872.


Desde a chegada de Rubião à Corte, onde leva uma vida ociosa e
mundana, vida de rico, esbanjando prodigamente seus haveres, é cercado
por uma farândula de parasitas e exploradores. (MAGALHÃES JR, 1981, p.
189)

Em primeira análise, o Quincas do romance Quincas Borba é o mesmo de


Memórias Póstumas de Brás Cubas, “aquele mesmo náufrago da existência, que ali
aparece, mendigo, herdeiro inopitado, e inventor de uma filosofia.” (ASSIS, 1978, p.
17). Quincas, mesmo acamado, enfermo, esperando a morte, continuava
filosofando, tentando ensinar a Rubião a sua doutrina, ou seja, a sua filosofia – o
Humanitismo, apresentado e explicado no romance Memórias Póstumas de Brás
Cubas como algo que “retifica o espírito humano, suprime a dor, assegura a
felicidade, e enche de imensa glória o nosso país. Chamo-lhe Humanitismo, de
Humanitas, princípio das coisas.” (ASSIS, 1984, p. 80). E, mais adiante, no mesmo
livro, ele diz que Humanitismo é “sistema de filosofia destinado a arruinar todos os
demais sistemas.” (ASSIS, 1984, p. 94). Podemos dizer que aqui, Machado quer se
referir aos “manejos” políticos, aos princípios ideológicos que invadiam a nossa
cultura e que não tinha como se livrar; como uma guerra, uma epidemia, que, no fim,
tinham lá os seus benefícios.
Numa das conversas com Rubião, Quincas diz-lhe que ele irá entender a
filosofia quando estiver pronto e inteiramente penetrado. (ASSIS, 1978). Em outra
ocasião dirigiu-se a Rubião falando sobre a morte da avó, explicando-lhe o que é a
morte e a vida para que entendesse a essência de Humanitas, mas sem sucesso.
Ainda no mesmo capítulo, para reforçar a ideia de que Humanitas é “um princípio
único, universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível” (ASSIS, 1978, p. 21),
Quincas fala a seu fiel amigo sobre o benefício de uma guerra, que mesmo na morte
há vida e exemplifica referindo-se, no capítulo VI, às duas tribos que brigam por um
campo de batatas, celebrizando a expressão: ao vencedor as batatas. Machado de
Assis aborda, nesse capítulo, o que poderia ser considerado a Teoria Darwinista ao
se referir à seleção natural, quando o mais forte vence:

– Não há morte. O encontro de ditas expansões, ou a expansão de duas


formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente,
não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da
sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e
comum. Daí o carácter conservador e benéfico da guerra. (ASSIS, 1978,
p.21)
Depois segue falando das bolhas, que surgem e morrem dentro da mesma
água fervente, reforçando a ideia de que os indivíduos podem ser comparados às
bolhas, porque somos seres transitórios que nascemos e morremos ao passo que a
humanidade permanece: “nunca viste ferver a água? Hás de lembrar-te que as
bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os
indivíduos são essas bolhas transitórias” (ASSIS, 1978, p.22).
Rubião (Pedro Rubião de Alvarenga), homem de 41 anos, ex-professor
primário, fechou a escola para se tornar enfermeiro de Quincas e ficou sendo seu
único amigo. Sem noção exata do funcionamento do mundo, agia por impulsos,
deixando-se levar pelas circunstâncias. Com a morte de Quincas, um homem de
muitas posses, Rubião foi “nomeado herdeiro universal do testador.” (ASSIS, 1978,
p. 28), com a incumbência de também cuidar do cão Quincas Borba. Este novo
“capitalista” ingênuo, generoso e sem condições para enfrentar o salto que sua vida
tomara, fora destruído pelo mundo ao qual passara a fazer parte.
Após a leitura e objetivando uma melhor compreensão do conteúdo da obra
foi feita uma análise mais detalhada, destacando os temas abaixo citados que foram
apresentados e discutidos com a turma:
1. Quincas Borba (os dois personagens: homem e cão); Qual a filosofia proposta por
Quincas Borba?;
2. Rubião, após a morte de Quincas e vendo-se um novo capitalista, tem aspirações.
Quais são? Rubião (em Barbacena, no Rio de Janeiro – Corte)
3. Exploração da loucura: Quincas Borba é um louco ou um filósofo?
4. Humanitismo: como se apresenta, dentro da obra, a filosofia de Quincas Borba?;
5. Casal Palha: atitudes, comportamentos; Sociedade de aparências;
6. Crítica às pessoas oportunistas, que estavam em ascensão no Rio de Janeiro:
que fazem para se apoderarem do outro.
7. Lei da seleção natural das espécies
8. “Ao vencedor as batatas”
A turma foi divida em grupos e cada qual recebeu um dos temas para a
análise, compreensão e apropriação de elementos que fossem importantes para a
explanação à classe. No entanto, os alunos apresentaram dificuldades em
aprofundar o assunto, sobretudo, quando se referia à parte filosófica, principalmente
nos itens 1, 4, 7, 8. Eles não conseguiram abranger com mais detalhes os temas e
tirar conclusões razoáveis; houve uma limitação teórica.
*
No trabalho com o romance O Cortiço, que surge em meio à onda cientificista
e determinista, com personagens marcados pelas condições étnicas, sociais e
ambientais, percebem-se fortemente as características de uma nova fase na
literatura brasileira: o Naturalismo. O seu enredo retrata a vida de moradores
simples, pobres, mestiços, brasileiros e portugueses, num cortiço situado no bairro
de Botafogo, Rio de Janeiro.
Aluísio de Azevedo escreve O cortiço como forma de denunciar um problema
social, pelas precárias condições de vida e exploração a uma nova classe de
trabalhadores que estava surgindo no Brasil, retratando o aumento da população
com a vinda de imigrantes e a desestruturação habitacional da cidade, haja vista a
aglomeração dos trabalhadores em cortiços.

E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e


lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma
coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo,
daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco. (AZEVEDO,
1983, p. 11)

O Naturalismo tem como base os princípios do Determinismo: o homem é


fruto do meio, da raça e do momento, o que se pode verificar nos trechos: “E assim,
pouco a pouco se foram reformando todos os seus hábitos singelos de aldeão
português: e Jerônimo abrasileirou-se.” (AZEVEDO, 1983, p. 47); “O português
abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das extravagâncias e dos
abusos, luxurioso e ciumento; fora de vez o espírito da economia e da ordem;
perdeu a esperança de enriquecer ...” (AZEVEDO, 1983, p. 103). Percebe-se, na
obra, certo paradoxo: de um lado, o egocentrismo, o individualismo, a cobiça,
ganância, inveja retratados no personagem João Romão, português (homem branco,
raça superior, explorador): “Teria ânimo de dividir o que era seu, tomando esposa,
fazendo família e cercando-se de amigos?... Teria ânimo de encher de finas iguarias
e vinhos preciosos a barriga dos outros...?” (AZEVEDO, 1983, p. 59). De outro,
temos o coletivo, a união, a cumplicidade – o conjunto: as raças, o meio, o momento,
representados pelo cortiço.
Nesta obra foram analisadas algumas características do Naturalismo,
principalmente a de que o homem é fruto do meio em que vive; correntes filosóficas
que influenciaram a obra e a constituição do cortiço. Dentre as características
apontadas, é importante ressaltar a personificação: “E durante dois anos o cortiço
prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se de gente.” (AZEVEDO,
1983, p. 12); “As casinhas fumegavam um cheiro bom de refogados de carne
fresca ...” (AZEVEDO, 1983, p. 29); e o zoomorfismo: “... satisfação de animal no
cio.” (AZEVEDO, 1983, p. 8); “Facilita muito, meu boi manso...” (AZEVEDO, 1983, p.
35), que foram significativas para a construção do enredo do romance.
Após a leitura do romance, os alunos apresentaram os seguintes
apontamentos que foram disponibilizados em grupo:
1. Marcas do Naturalismo e de correntes filosóficas presentes na obra;
2. Determinismo;
3. O cortiço (estrutura física, a natureza, personificação: cresce, desenvolve-se,
transforma-se – relação com João Romão); Quais as transformações físicas
ocorridas no cortiço com o passar do tempo; A destruição do cortiço pelo fogo, a
reconstrução, a modernidade;
4. O cortiço (estrutura humana, o comportamento dentro do cortiço, o
relacionamento, os conflitos); Quais as transformações humanas ocorridas no
cortiço com o passar do tempo; A ascensão e a decadência; A música do/no cortiço,
o que se dançava;
5. Zoomorfismo;
6. O comportamento dos personagens, visando os “tipos” étnicos;
7. João Romão e Bertoleza (o branco e o negro, escravo); O papel de Bertoleza;
8. Miranda (a elite, a aristocracia);
9. O casamento por interesse entre: Miranda e Estela; João Romão e Zulmira;
10. Jerônimo (o português branco que se abrasileirou);
11. A influência que o meio teve sobre os personagens;
12. Preconceito racial (branco português x branco brasileiro, o mulato);
13. A promiscuidade, sensualidade, sexualidade, ingenuidade, submissão,
independência X trabalho; as profissões (dos homens e das mulheres).
A exploração e o entendimento dos temas desta obra deram-se de forma
mais detalhada, por parte dos alunos, que a do outro romance. Eles se inteiraram
mais, compreenderam melhor o que o autor quis passar por, talvez, ter mais
detalhes dos ambientes e dos personagens. Embora tenha uma vasta gama de
personagens com diferentes tipos étnicos e profissionais, a obra O Cortiço
conseguiu prender a atenção dos leitores, tendo em vista a sequência linear dos
acontecimentos que favoreceu o acompanhamento do enredo.
Considerações finais

“Uma coisa é escrever como poeta, outra como


historiador: o poeta pode contar ou cantar as
coisas, não como foram, mas como deveriam ter
sido, enquanto o historiador deve relatá-las não
como deveriam ter sido, mas como foram, sem
acrescentar ou subtrair da verdade o que quer que
seja.” (Miguel de Cervantes).

O gosto pela leitura não é algo intrínseco ao ser humano, mas cultiva-se com
o tempo – uns gostam mais, outros menos e alguns se pudessem se livrar dela
assim o fariam. Através da arte literária é possível perceber as ânsias de um povo
colocadas de forma metafórica por alguns literatos e às claras por outros.
O ensino de Literatura vem-se modificando em vários aspectos no decorrer
dos tempos: aprimoramento profissional por meio de formação continuada; melhor
estruturação didática; hábito de pesquisa; vontade de estudar métodos que facilitem
o aprendizado dos conteúdos da disciplina; dentre outros. Apesar das “mazelas”
educacionais, ainda precisamos acreditar que o processo ensino-aprendizagem dos
alunos se dê com excelência na escola e com crescimento intelectual.
Por conseguinte, a escolha dessas obras deu-se objetivando maior
aprofundamento nos movimentos literários Realismo e Naturalismo, bem como
perceber quais influências filosóficas e também políticas estavam implícitas nas
obras da época. Para tanto, foi disponibilizado para os alunos, inicialmente, o estudo
de algumas correntes filosóficas, tendo em vista que o período literário, final do séc.
XIX, incorporou algumas delas em suas características e/ou em seus romances.
Esperava-se melhor compreensão e assimilação dos temas nas obras, contudo,
percebeu-se que houve dificuldades em aprofundar o assunto, acarretando prejuízos
ao processo de análise do contexto: desde as correntes filóficas à análise das obras,
principalmente de Quincas Borba que exigia do aluno maior aprofundamento
filosófico e por ser um romance que tem certo tom meditativo sobre as atitudes
humanas.
Aprofundar o estudo de obras literárias consagradas seria o ideal; os alunos
conheceriam outras categorias (culturais, filosóficas, sociais etc.) abordadas num
romance que os levariam para compreensão de pormenores, relacionando a
literatura com o contexto político e as ideias filosóficas daquele momento. Tudo isso
é de suma importância, todavia é complexo trabalhar a literatura no formato que
existe hoje na rede de ensino; considerando algumas dificuldades, tem-se: poucas
aulas semanais; falta de tempo suficiente para se dedicar a um estudo mais
abrangente de algumas obras.
Diante da diversidade do público leitor nas escolas atualmente, constatou-se,
porém, que o desestímulo à leitura e a desatenção causou dificuldades para o leitor
acompanhar o enredo das obras. A falta de embasamento filosófico foi outro
obstáculo enfrentado, uma vez que as produções trabalhadas necessitavam de
noções básicas das correntes filosóficas que circulavam no fim do séc. XIX no meio
intelectual.
Ademais, é importante ressaltar que sempre se encontrarão maneiras
adequadas para uma boa aula de literatura em que os alunos possam absorver
melhor as informações. O trabalho, de uma forma geral, contribuiu para o nosso
estudo e aprimoramento literário, fazendo-nos enxergar outros horizontes na
literatura: seja como professora pesquisadora do assunto, ou seja na aplicação
prática – no ensino – dessa atividade. Apesar das dificuldades encontradas, o
trabalho foi satisfatório e rendeu uma boa análise dos romances estudados.

Referências

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ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Editora


Moderna, 1984.

AZEVEDO. Aluísio. O cortiço. São Paulo: Editora Moderna, 1993.

BARTHES, R. et al. Literatura e Realidade (o que é realismo?). Lisboa:


Publicações D. Quixote, 1984.

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 36ª ed. rev. e aumentada.
São Paulo: Cultrix, 1999.

CÂNDIDO, Antônio. Sílvio Romero: teoria, crítica e história literária. Rio de


Janeiro: Ed. da Universidade de São Paulo, 1978.

CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Rio de Janeiro: O


Cruzeiro, 1963.
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