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Caminhos da crítica
especialidade humanística ou científica. A amplitude e as variações desse 2000); Bolle (1979); Sussekind
(1993); Pontes (1998); Waizbort
processo implicam que o conjunto de textos aqui reunidos representa apenas ([2007] 2009); Rivron, (2005).
uma aproximação em relação ao que poderia ser uma reconstrução amplia-
da das principais propostas, que vicejaram desde o início do século XX no
Brasil, das relações estabelecidas com a literatura e com outras disciplinas.
O ciclo das histórias da literatura brasileira, iniciado no século XIX e
prolongado no XX é discutido no artigo de André Botelho, que enfatiza a
Pequena história da literatura brasileira, de Ronald de Carvalho, perscru-
tando conexões com o Modernismo, de um lado, com as Histórias de Silvio
Romero e José Veríssimo, de outro.
A relação com o Modernismo é também um dos eixos do texto de
Guilherme Simões Gomes Júnior sobre Alceu Amoroso Lima, uma das
figuras centrais da chamada “crítica de rodapé”, veiculada nos jornais e
que se constituiu como arena principal do debate literário e da crítica no
Brasil entre as décadas de 1920 e 1960. As clivagens sociais, ideológicas,
estéticas e políticas incorporadas em seus escritos, analisadas no artigo, são
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Referências Bibliográficas
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PONTES, Heloisa. (1998), Destinos mistos. São Paulo, Companhia das Letras.
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SUSSEKIND, Flora. (1993), Papéis colados. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ.
WAIZBORT, Leopoldo Garcia Pinto. (2009), Passagem do três ao um. 1ª edição 2007.
São Paulo, Cosac Naify.
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Crítica literária e sociologia
no Brasil e na Argentina*
Luiz Jackson e Alejandro Blanco
De fato, entre as décadas de 1950 e 1960, os polos mais dinâmicos da 1. Certamente, houve também
crítica literária nos dois países renovaram-se mediante a incorporação de reivindicação de cientificidade
por meio da análise estética. No
instrumentos teóricos oriundos da sociologia, apesar da tensão existente caso argentino, pelos herdeiros
entre tais orientações e as que defendiam a análise estética do texto literário1. da “escola” de Amado Alonso;
no brasileiro, sobretudo, por
Além disso, as duas disciplinas enfrentaram temáticas convergentes nesse Afrânio Coutinho, que tinha
período, relativas, sobretudo, aos problemas da formação e da modernização como referência o New Criticism.
Neste texto, no entanto, a ênfase
da sociedade e da cultura nos dois países. Em tal direção, nos dois lados recai sobre os críticos que incor-
dessas fronteiras disciplinares programas de pesquisa e estilos de trabalho poraram (de maneira distinta) a
sociologia como instrumento
inovadores (e ambiciosos) foram desenvolvidos. Se, na sociologia, Florestan
analítico. Isso explica a seleção de
Fernandes e Gino Germani foram as figuras proeminentes desse processo, Adolfo Prieto e Antonio Candido
constituindo-se, cada um em seu país, como a principal liderança intelectual como parâmetros para examinar
a relação entre crítica literária e
e institucional dessas disciplinas, na crítica literária, um papel análogo foi sociologia nos dois casos.
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teve que enfrentar uma tradição acadêmica muito prestigiosa na Faculdade tica literária: “A década de 1950,
na literatura brasileira, pode ser
de Filosofia y Letras (FFyL) da Universidade de Buenos Aires (UBA) – onde considerada como da crítica li-
Prieto se formou, mas jamais lecionou –, tradição esta que fora estabelecida terária. É o momento em que se
adquire a consciência exata do
durante a permanência (1927-1946) do crítico espanhol Amado Alonso à papel relevante da crítica em meio
frente do Instituto de Filologia e Literaturas Hispânicas, autor que enfatizava à criação literária e aos gêneros
da literatura imaginativa, função
a análise interna dos textos literários. Isso talvez explique, aliás, o fato de ne- de disciplina do espírito literário.
nhum dos críticos de Contorno ter ensinado na UBA. A inserção profissional Sem ser um gênero literário, mas
uma atividade reflexiva de análise
deles nas décadas de 1950 e 1960 deu-se nas universidades menos presti-
e julgamento da literatura, a críti-
giosas do interior do país, o que certamente limitou o alcance dos projetos ca se aparenta com a filosofia e a
ciência, embora não seja qualquer
que tentaram desenvolver. Na USP, diferentemente, não se consolidou até
delas.” (Coutinho, 1986, p.634).
o início dos anos de 1960 nenhuma corrente de análise predominante. De
modo semelhante, nenhuma liderança acadêmica se impusera claramente
até aquele momento no curso de Letras. Tais circunstâncias favoreceram o
movimento de renovação encabeçado por Antonio Candido na Cadeira de
Teoria Literária e Literatura Comparada da USP.
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1946 até então. Nesse contexto, surgiram as revistas Centro (1951-1959) e de pronunciar-se sobre questões
literárias (cf. King, 1989).
Contorno (1953-1959). Embora a segunda tenha atraído maior atenção dos
intérpretes e ficado marcada no imaginário intelectual como o núcleo de uma
geração inovadora, a primeira foi igualmente importante naquele momento,
tendo reunido, como órgão oficial do Centro de Estudantes da Faculdade
de Filosofia e Letras da UBA, um contingente mais amplo de participantes
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o escritor que já nesse momento era a figura central e mais consagrada da no estilo ou na língua, o crítico
estava interessado em descobrir
literatura argentina. Essa atitude ousada e mesmo temerária inseriu Adolfo que tipo de homem havia escrito
Prieto na cena literária argentina abruptamente, tendo, provavelmente, mais aquelas páginas, que motivações
sócio-históricas e psicológicas o
o prejudicado do que o favorecido. De todo modo, o livro constituiu-se explicavam. Atrás de versos a
como uma das “marcas” de sua geração, ao romper a aura sagrada que revestia primeira vista circunstanciais,
de crônicas esquecidas, de relatos
fortemente o mundo literário naquele momento, reivindicando para a crítica cheios de recursos retóricos,
(e para si mesmo) uma posição mais autônoma e determinante em relação Prieto perseguia as ideias, os
sentimentos nacionais, o hori-
à que detinha até então. Isso se desprende da parte do livro, anteriormente zonte de valores que lhes davam
publicada na revista Centro (Prieto, 1953c), na qual o autor acusa Borges sentido” (1967, p.133).
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Foi durante esses anos rosarinos que o autor redigiu e publicou, em 1962
pela Universidade Nacional do Litoral, sua obra mais importante desse pe-
ríodo, La literatura autobiográfica, que, por seu caráter inaugural e alcance
interpretativo, seria considerada uma referência obrigatória para o estudo
do memorialismo na Argentina. O livro destaca a importância, até então
não reconhecida, do gênero autobiográfico no conjunto dessa literatura
nacional durante o século XIX e oferece ao leitor uma perspectiva inusita-
da para compreender as lógicas sociais que estruturaram a vida intelectual
no país após a independência (que se iniciou com a Revolução de Maio
em 1810). Nesse sentido, é, ao mesmo tempo, uma história de um gênero
aparentemente secundário da literatura argentina e uma genealogia de suas
elites políticas e intelectuais.
A recepção imediata desse trabalho, é importante destacar, foi muito
favorável. O crítico argentino Alfredo Roggiano, quando lecionava na
Universidade de Pittsburgh (Estados Unidos), escreveu uma resenha muito
elogiosa na Hispanic American Historical Review, qualificando o livro como
“o primeiro estudo orgânico da literatura autobiográfica argentina”, e a
concluiu com um elogio explícito ao trabalho, afirmando a abrangência
deste: “Livro de extraordinária lucidez, verdadeira radiografia do homem
argentino, das classes dirigentes do país e das camadas mais profundas da
história política, econômica, social e cultural da Argentina” (Roggiano,
1964, p. 662). Jaime Rest, então professor adjunto da Cadeira de Literatura
Inglesa e Norte-Americana na FFyL da UBA – cujo titular era Jorge Luis
Borges –, também resenhou o livro positivamente, num texto longo e de-
talhado, destacando a descoberta notável realizada por Prieto, ao perceber a
importância “dessa espécie narrativa no interior da literatura argentina”. O
resenhista afirmou ainda que, afastando o impressionismo que predominava
na crítica argentina daquele momento, o livro revelava uma atitude analítica
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o levou a optar por esse curso e a associar toda sua vida ulterior à militância vigentes em cada uma dessas ins-
tâncias, imprensa e universidade,
de esquerda, que condicionou mais sua produção intelectual voltada à im- condicionaram maior ou menor
prensa do que aquela derivada mais diretamente da atividade universitária14. aproximação à política em seus
escritos (cf. artigo de Ramassote
Do grupo Clima fazia parte Gilda de Moraes Rocha (posteriormente Gilda neste Dossiê). Deve-se notar que
Rocha de Mello e Souza), com quem se casou. Essa aliança matrimonial foi na “crítica de rodapé” era comum
o crítico expressar sua orientação
decisiva, servindo de lastro às carreiras de ambos, apesar de ter impulsionado política (cf. Bolle, 1979).
mais a ele. Em 1942, assumiu o cargo de primeiro assistente de Fernando de 15. Sussekind (1993) contex-
Azevedo, na Cadeira de Sociologia II, na qual permaneceu até 1958. Naquele tualiza o desenvolvimento da
crítica literária brasileira, desde
mesmo ano, projetado pela recepção favorável dos textos que publicou em
as primeiras décadas do século
Clima, passou a escrever semanalmente na Folha da Manhã, ingressando XX, por meio da oposição entre
no círculo prestigioso dos críticos que escreviam para os grandes jornais de a “crítica de rodapé” (predomi-
nante até a metade do século,
São Paulo e do Rio de Janeiro. aproximadamente) e a crítica
Desde meados do século XX, enfraquecido o ciclo das grandes his- universitária (progressivamente
legitimada). Antonio Candido
tórias da literatura brasileira – Silvio Romero, José Veríssimo e Ronald (também Afrânio Coutinho)
de Carvalho –, a esfera própria ao exercício da crítica literária eram os moveu-se de uma para outra,
encarnando essa transição e as
jornais, e assumir um coluna fixa em um deles era uma modalidade de disputas que as opunham. Outro
profissionalização do trabalho intelectual e um sinal de distinção inequí- trabalho importante e precursor
sobre a “crítica de rodapé”, cen-
voco15. Destacavam-se em torno dos anos de 1930, as figuras de Agripino trado na figura de Álvaro Lins, é
Grieco (O Jornal, RJ), Sergio Milliet (O Estado de São Paulo, SP), Álvaro Bolle (1979).
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Há, evidentemente, uma coisa básica no trabalho crítico, que não pertence à metafísi-
ca nem à moral do nosso ofício, pois, que é uma qualidade pessoal. Quero referir-me
à penetração. Sem ela, sem essa capacidade, elementar para o crítico, de mergulhar na
obra e intuir os seus valores próprios, não há explicação possível – isto é, não há críti-
ca. No princípio, portanto, coloca-se um dado psicológico, o que vem mostrar que a
crítica parte e se alimenta de condições personalíssimas, as quais será escusado querer
fugir. Não há, portanto, coisa alguma que se possa chamar de “crítica científica” – a
menos que não se entenda por tal coisa a critica dos trabalhos da ciência. Entendida
como transformação da crítica em ciência, não passa de um dos muitos pedantismos
criados pela pretensão dos homens de letras” (Candido, 2002, p. 24).
Hoje só podemos conceber como científica a crítica que se esforça por adotar
um método literário científico, um método específico, baseado nos seus recursos
internos. Estabelecimento de fontes, de textos, de influências; pesquisa de obras
auxiliares, análise interna e externa, estudo da repercussão; análise de constantes
formais, das analogias, do ritmo da criação: esta seria a crítica científica, a ciência
da literatura (Candido, 1988, p.110).
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gração institucional” relaciona-se com o fato de, a partir desse momento, An-
tonio Candido assumir explicitamente a liderança de um programa coletivo
de pesquisas, que lhe permitiu ampliar o impacto de sua obra. Ele iria – com
a ajuda de seus discípulos (entre os quais Roberto Schwarz, Walnice Nogueira
Galvão e Davi Arrigucci Jr.) e de maneira mais flexível do que Florestan Fer-
nandes fizera na sociologia – fixar um novo e mais exigente padrão de trabalho
intelectual na crítica literária brasileira. Nessa direção, a Formação constituiu-
se como o núcleo das formulações teóricas e interpretativas que iriam nortear
os trabalhos posteriores do autor e de seu grupo, tornando a crítica literária
21. Um esforço quase simultâ- uma especialidade acadêmica no interior das ciências humanas21.
neo e na mesma direção foi em-
preendido por Afrânio Coutinho
Peça central no conjunto da obra de Antonio Candido, a Formação
no Rio de Janeiro, mais explícito relaciona-se com a maioria de seus escritos anteriores e posteriores, que
no combate ao “impressionismo”,
devem ser mencionados para que tenhamos uma ideia mais completa de
orientado pela incorporação do
New Criticism e pela defesa do sua trajetória, dos temas que percorreu e dos desenvolvimentos teóricos que
rigor científico e da análise es- proporcionou, não restritos à literatura brasileira. Brigada ligeira de 1945 e O
tética nos estudos literários. Ele
dirigiu a obra coletiva A literatura observador literário de 1959 reúnem textos publicados pelo crítico em jornais
no Brasil, militou na imprensa e nas décadas de 1940 e 1950. Tese e antítese de 1964, Literatura e sociedade
publicou alguns livros programá-
ticos nos anos de 1950. A dispu-
de 1965, Vários escritos de 1970, A educação pela noite de 1987 e O discurso
ta com Antonio Candido pode e a cidade de 1993 percorrem um itinerário cada vez mais sofisticado, do
ser apreendida na polêmica que
moveu depois da publicação de
ponto de vista das soluções interpretativas sugeridas, orientadas pela ambi-
Formação, questionando a exclu- ção de realizar estudos “propriamente dialéticos” sobre os textos literários.
são do barroco nesse livro, ban-
deira que seria retomada décadas
Como vimos, portanto, duas vertentes analíticas interagem na construção
depois por Haroldo de Campos. do argumento da Formação : uma focada na estruturação do texto literário
Antonio Candido não reagiu aos
(pressupondo sua autonomia relativa), outra na configuração da literatura
ataques de Afranio Coutinho.
Uma ótima reconstrução desse como sistema (mobilizando diretamente a perspectiva sociológica). Essa
debate encontra-se em Rivron dupla orientação, estética e sociológica, constituiria, desde que articuladas
(2005). Sobre a posição de Ha-
roldo de Campos, ver o texto de as dimensões, uma análise propriamente dialética no entender do autor, por
Moura neste Dossiê. esclarecer no mesmo passo a realidade interna ao texto e a relação de interde-
pendência com o meio social circundante. Tal perspectiva constituiu também
o programa teórico de seu grupo, permitindo, por meio da ênfase em um
dos polos (os exemplos de Roberto Schwarz e Davi Arrigucci são típicos),
assimilar certa “heterodoxia” no conjunto de trabalhos realizado pela equipe.
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Resumo
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Abstract
In Argentina and Brazil the modernization of literary criticism in the 1950s and 60s
developed in the context of different intellectual traditions and academic organizations.
However in both countries, and almost at the same time, literary criticism was renewed
through its contact with sociology. To analyze the relationship between these two aca-
demic disciplines, this article examines two intellectual trajectories – those of Adolfo
Prieto and Antonio Candido – and two cultural magazines – Contorno (1953-1959)
Texto recebido e aprovado em
30/7/2011. and Clima (1941-1944). But although the renewal of literary criticism followed similar
Alejandro Blanco é membro do paths in both countries, only in Brazil was university-based criticism fully recognized
Programa de História Intelectual as the foremost intellectual authority over the literary production during the period.
da Universidade Nacional de
Quilmes e pesquisador do Con-
In other words, the consolidation of Antonio Candido on the Brazilian cultural scene
selho Nacional de Investigações had no real equivalent in Argentina where neither Adolfo Prieto or any other critic
Científicas e Técnicas (Conicet).
acquired a similar standing. Why? This article explores a possible answer to this ques-
É autor de Razón y modernidad:
Gino Germani y la sociología em tion, focusing on the correlation between the consolidation of literary criticism and
la Argentina (Buenos Aires, Siglo
the decline of the centrality of literature in the cultural world.
XXI, 2006). E-mail: <ablanco@
unq.edu.br>. Keywords: Field of Knowledge; Intellectual traditions; Academic organizations; Sociol-
Luiz Carlos Jackson é professor ogy; Literary criticism.
do Departamento de Sociologia
da USP. E-mail: <ljackson@
usp.br>.
Entre os anos de 1943 e 1947, Antonio Candido atuou como crítico literá- * Agradeço a Luiz Carlos Jackson
pelo convite e aos integrantes
rio militante na grande imprensa paulista, assinando os rodapés da coluna do Projeto Temático da Fapesp
“Notas de crítica” nos jornais Folha de S. Paulo (de janeiro de 1943 a janeiro “Formação do campo intelectual
e da indústria cultural no Brasil
de 1945) e Diário de S. Paulo (de setembro de 1945 a fevereiro de 1947).
contemporâneo” pela leitura
No total, foram publicados 162 escritos, dos quais oitenta foram recolhidos crítica, estímulos e sugestões a
uma primeira versão deste texto.
em livros (Brigada ligeira, de 1945, e Observador literário, de 1959), revistas
(Literatura e Sociedade, Remate de Males, Inimigo Rumor, entre outras), ou 1. Editada entre maio de 1941
e novembro de 1944, a revista
reunida em um volume organizado por Vinicios Dantas (cf. 2002b). Clima perdurou por dezesseis
Como se sabe, com o prestígio amealhado pela participação na seção edições. À frente da seção de crí-
tica literária, Candido assinou 28
de crítica literária da revista Clima1 – quando ainda era estudante no Cur- contribuições, distribuídas entre
so de Ciências Sociais (1939-1941) da Faculdade de Filosofia Ciências e artigos, resenhas e notas (algumas
delas com pseudônimos). Sobre
Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP) –, Candido viabilizou Clima, ver Pontes (1998).
seu ingresso na imprensa diária de São Paulo2. Indicado por Lourival 2. Cf. Pontes (1998, p. 112).
Gomes Machado, também formado em Ciências Sociais e colaborador da
3. Ex-militante do Partido Co-
seção de artes plásticas, e sob o aval de Hermínio Sacchetta3 (diretor de munista Brasileiro (PCB) – com
o qual rompe por divergências
redação), assumiu a condição de crítico titular no jornal Folha da Manhã,
ideológicas em 1939 – e então
com a obrigação de “fornecer semanalmente, sobre livros do momento, dirigente da organização trotskis-
um comentário que ocupava toda a parte inferior de uma das páginas ta Partido Socialista Revolucio-
nário (PSR), o jornalista paulista
internas, o ‘rodapé’ (antigamente, ‘folhetim’), subordinado a uma rubrica Hermínio Sachetta (1909-1982)
geral invariável, que dava nome à secção e vinha impressa acima do título iniciou sua carreira como revi-
sor no Correio Paulistano. Em
de cada artigo” (Candido, 1992a, p. 10). novembro de 1937, assumiu o
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cargo de diretor de redação na O exame das posturas e alianças políticas, ambições intelectuais, pressu-
Folha da Manhã.
postos doutrinários, preferências literárias, autores privilegiados e conceitos
analíticos incrustados nesse material depende da consideração de quatro
frentes correlatas de pesquisa. Em primeiro lugar, os contornos mais gerais
do contexto social e clima político-ideológico desses anos. Período de in-
tensa agitação política, os anos de 1943 a 1945 marcam, no plano interno,
o declínio do Estado Novo (e seus corolários: os primeiros movimentos
contestatórios, a reorganização da vida política, o abrandamento da censura
etc.) e, no externo, o desfecho da Segunda Guerra Mundial. Em segundo
lugar, a alternância vivida por Candido entre a atividade de crítica literá-
ria e a profissionalização acadêmica na área da sociologia. A inserção na
FFCL-USP – como professor-assistente da Cadeira de Sociologia II (sob
a direção de Fernando de Azevedo) e dando prosseguimento às etapas da
carreira acadêmica (ao ingressar no curso de Especialização) – repercutiu
profundamente na perspectiva analítica adotada por ele nos rodapés. Em
seguida, a militância política em pequenos grupos de esquerda. Aderindo à
luta contra a ditadura varguista, Candido assume posições políticas e inte-
lectuais combativas, participando de agrupamentos de oposição na esteira
do processo de retomada da democracia. Por fim, a apreensão, por parte do
jovem crítico, do movimento e vida literária do início da década. Assinalado
pelo convívio entre os remanescentes do modernismo e as novas tendências
e autores que despontavam.
4. Cf. Bolle (1979), Lafetá Conforme afirma a bibliografia sobre o assunto4, a década de 1940
(2000), Candido (1988, 2000a),
prolonga e acentua as transformações de ordem estrutural e ideológica do
Johnson (1995) e Pontes (2001).
decênio anterior: expansão do mercado editorial e do sistema de ensino,
ampliação da grande imprensa e aumento do número de periódicos, acir-
ramento da polarização de ideários políticos e religiosos, entre outras. Mas,
no plano literário, caracteriza uma época de transição, em que veteranos
consagrados das primeiras gerações modernistas e jovens estreantes dividem a
cena literária. Às publicações tardias de escritores associados ao modernismo
ou à geração de 1930 (Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Jorge Amado,
José Lins do Rego, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Érico
Veríssimo etc.) se juntam as primeiras obras de Clarice Lispector, João Cabral
de Mello Neto, Fernando Sabino, Geir Campos, Lêdo Ivo, entre outros.
Dos 92 rodapés redigidos durante o período em que atuou na Folha da
Manhã, Candido selecionou e refundiu dezoito para compor os ensaios do
seu livro de estreia, Brigada ligeira, publicado em fins do primeiro semestre
de 1945. Neste artigo pretendo rastrear as principais discussões que mar-
Os anos 1940 e 1950 estão marcados no Brasil pelo triunfo da “crítica de rodapé”.
O que significa dizer: por uma crítica ligada fundamentalmente à não especializa-
ção da maior parte dos que se dedicam a ela, na sua quase totalidade “bacharéis”;
ao meio em que é exercida, isto é, o jornal – o que lhe traz, quando nada, três
características formais bem nítidas: a oscilação entre crônica e noticiário puro e
simples, o cultivo da eloquência, já que se tratava de convencer rápido leitores e
antagonistas, e a adaptação às exigências (entretenimento, redundância e leitura
fácil) e ao ritmo industrial da imprensa; a uma publicidade, uma difusão bastante
grande (o que explica, de um lado, a quantidade de polêmicas e, de outro, o fato
de alguns críticos se julgarem verdadeiros “diretores de consciência” de seu público,
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como costumava dizer Álvaro Lins; e, por fim, a um diálogo estreito com o mercado,
com o movimento editorial seu contemporâneo (Süssekind, 2002, p. 17).
7. Em ensaio de homenagem a
ma, esclarece; crítica, por excelência, de períodos e movimentos literários, onde a
Fidelino de Figueiredo, Antonio visão panorâmica, na sua complexidade e diversidade, requer o senso histórico e
Soares Amora destaca a impor-
a profundidade da erudição, mas que nem sempre triunfa na análise de um autor,
tância desse ciclo de conferências
(cf. Amora, 1986, 1994). de uma obra. Falta às vezes para esta crítica, para tanto, aquela força penetrante e
como que poética de simpatia, a única, através da imaginação, que permite o contato
íntimo com a criação literária (Candido, 1943a, grifos no original).
Candido não deixa de registrar sua divergência em relação à postura pro- e a produzida por amadores,
sempre confrontadas do ângulo
fessada pelo crítico pernambucano – o mais influente do período (cf. Bolle, das diferenças geracionais (cf.
1979). Chamando a atenção para a dedicação integral de Lins ao ofício, Candido, 1941a, [1943] 2002i,
[1944] 2002j).
num meio no qual “quem não reconhece em si mesmo nenhuma vocação
específica se põe a fazer crítica de livros”, ele comenta o empenho do crítico
em averiguar “a determinação, na obra literária, daquilo que é eterno, que
transcende às contingências”, tornando-a “uma aventura da personalidade,
um esforço para inserir na mesma ordem de que participa a essência da obra
literária” (Candido, [1943] 1999, p. 17). Para Candido, porém, “por mais
completa que possa ser a participação de um crítico no núcleo essencial de
uma obra, é fora de dúvida que só há um meio para se chegar a eles: os seus
sinais exteriores; toda aquela parte que significa neles ligação com o tempo,
contingência, relatividade” (Idem, ibidem).
A mesma objeção é endereçada a Carlos Burlamarqui Kopke. Da leitura
de Faces descobertas – também publicado em 1943 –, segundo livro do crítico
titular do jornal paulista A Noite, Candido afirma:
Quer como crítico de ficção e poesia, quer como crítico de ideias, o sr. Carlos
Burlamaqui Kopke manifesta preocupações que poderiam ser chamadas de essen-
cialistas. Quero sugerir com este vocábulo impreciso a sua tendência de procurar o
sentido por assim dizer metafísico das obras. Parece-nos que ele se coloca sempre
ante de um livro como que diante de um absoluto. Da Beleza, da Poesia, do Sen-
tido. Quando fala da missão do intelectual, se refere a um certo padrão eterno de
conduta (Candido, 1944d).
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[...] o que há de mais fundamente cultural, isto é, o que nelas significa o caráter
comum de todas as obras de uma cultura. Assim, o crítico pode ser literário e ana-
lisar uma obra como Casa-Grande & Senzala ou Raízes do Brasil ou História Geral
das Bandeiras. Contando que considere nelas, como em Éramos seis ou no Moleque
Ricardo[,] o denominador que aparenta umas às outras as diferentes manifestações
de uma fase da cultura (Idem).
[...] creio que não pode haver ofício mais interessante e, como desculpa vossa, mais
útil do que levar para as coisas literárias certos princípios de ordem sociológica e
filosófica. Daí o interesse com que, partindo de uma formação filosófica ou socio-
lógica, é possível ao crítico embrenhar-se pela literatura, procurando interpretá-la
9. Apesar de não publicar ne-
funcionalmente, buscando nela a repercussão da época e a sublimação dos traços
nhum ensaio científico na área da
da cultura; selecionando, não raro, voluntariamente, os livros que mais se prestam sociologia – o que somente virá
a ocorrer em 1947 (quando ele
a esse tipo de estudo. Não garanto a superioridade do método, que procuro por em
se afasta da crítica literária regu-
prática. Mas confesso que o acho bom. E, sobretudo, útil (Idem). lar) –, nesse momento Candido
exercia a função de professor-as-
sistente na Cadeira de Sociologia
Não se pode encontrar uma definição mais precisa da moldura social II e estava às voltas com a eleição
em que a obra literária está engastada. Condicionamento histórico-social, de seu objeto de pesquisa de dou-
torado. Sob o estímulo de Roger
momento cultural e histórico, espírito de época, eis, num apanhado geral, Bastide, empreendia pequenas in-
os achados analíticos utilizados por Candido, quase sempre de maneira cursões a municípios do interior
do estado visando travar contato
cambiável, para designar a preocupação com os nexos entre a produção com práticas e manifestações da
literária e seu contexto social. É certo, contudo, que a concepção de funcio- cultura popular.
nalidade por ele adotada prende-se, simultaneamente, à atuação profissional9 10. E que leva a situações pa-
radoxais: no rodapé “Vinte anos
e às posições derivadas da militância política então exercida. Isso ao ponto
e...”, dedicado a Marcel Proust,
dessa concepção se tornar, em certa medida, critério de aferição da quali- um dos autores preferidos de
dade literária e princípio de seleção dos autores que merecem a atenção do Candido, o elogio ao escritor
francês, “na homenagem do vigé-
crítico. Uma atitude arriscada10, que tendia a transformar a obra literária simo aniversário de sua morte”,
em arma de combate. vem acompanhado da consta-
tação de que a data “para a sig-
No rodapé “Ficção (I)” datado de 4 de fevereiro de 1943 e dedicado à nificação funcional de sua obra,
leitura de Dois mundos, livro de contos de Aurélio Buarque de Holanda, [revela-se] quase um atestado de
óbito. No amor permanente que
Candido indica que dedicamos a Proust (veja bem o
plural; se há culpa, compartilho-
a com vós outros) há um pouco
Se me perguntarem qual o critério mais firme e mais imediato para se julgar uma
do amor que dedicamos às coisas
obra de arte ou de literatura, eu direi que é o critério da sua necessidade. Necessi- mortas. Proust envelheceu. Proust
passou; Proust não tem razão de
dade, neste sentido, quer dizer a presença de uma série de razões que fazem com
ser; Proust é uma sobrevivência de
que a obra pareça alguma coisa que não poderia deixar de existir [...]. Este caráter museu” (Candido, 1943d).
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é dado à obra por um conjunto de fatores, tanto internos quanto externos, que se
reúnem, afinal de contas, para a sua funcionalidade, isto é, a sua razão de ser em
função de certos problemas ou, simplesmente, certas características do homem ou
da sociedade de uma época. Uma obra autêntica, no sentido próprio, é sempre
uma resposta: uma resposta dada por um indivíduo, de mais sensibilidade ou mais
penetração do que a média, aos inúmeros problemas que ele vê ou pressente em si,
nos outros ou no grupo (Candido, 1943b).
[...] quando, portanto, uma produção do homem vem responder a este esforço de
penetração, seja uma máquina que permite um domínio maior sobre a natureza,
seja um poema que torna mais claro um canto qualquer da alma – podemos dizer
que o seu aparecimento foi necessário, porque ela se integra funcionalmente no
conjunto das atividades de uma cultura. Quando se vê que numa obra nada responde
a nada; coisa alguma existe que permita sentir a sua eficiência artística – podemos
dizer sem medo que esta obra é desnecessária. E tal constatação, a meu ver, é fatal
para ela (Idem).
[...] boa vontade que deseja, ao mesmo tempo, um tipo cristão de existência, a
luta sem tréguas ao fascismo, uma democracia popular, uma ética individualista e
essencialista. Rejeita violentamente as implicações direitistas do seu credo religioso e
aceita plenamente certos aspectos populares, anti-hierárquicos da política moderna.
Quer um estado de coisas em que os homens participem intensamente da existência
um dos outros, todos unidos num regime de justiça social. E prega, para isso, a
autorealização espiritual pela autoconsciência (Candido, 1943i)
[...] preocupação central do autor: a luta por um novo humanismo que substitua o
anti-humanismo dos dias presentes e passados. Não me parece, contudo, que o Sr.
Otávio de Freitas Junior esteja bem orientado nesse sentido. Me parece, mesmo,
que não percebe o quanto a sua orientação pouco ou nada resolve. Solução de elite,
solução de classe, eis o que ela é. O seu grande trunfo, com efeito, é a crença na
reforma graças a uma tomada mais funda de consciência, a uma compreensão mais
aguda e mais essencial dos próprios problemas por parte do homem de inteligência.
O resto viria depois (Idem).
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E arremata o artigo:
[...] começou a nos comunicar essas coisas, a nos dar livros reveladores, como o de
Alexandre Barmine, alto funcionário que fugiu para o Ocidente e começou a revelar
as iniquidades do regime socialista. Lembro da impressão que tive vendo as atas
dos Processos de Moscou. Fiquei petrificado quando li as declarações dos grandes
revolucionários de 1917, como Bukarin, Zinoviev, Kamenev, Radek, Piatakov e
outros “confessando” que eram todos traidores a serviço das potências capitalistas!
Foi uma das farsas mais trágicas e mais ignominiosas da história (Idem, p. 8).
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O apelo de uma vida como a sua transcende as divisões ideológicas para se situar
no campo em que se encontram todos os homens interessados em ver justiça na
terra. Não é mais o trotskista Trotski quem fala. É um homem cuja vida é exemplo,
cuja ação dá confiança na ação, cujo pensamento esclarece o pensamento [...]. A
vida desse homem foi uma ilustração destas suas palavras. Que exemplo melhor
para reinfundir confiança no homem, do fundo do caos em que estamos? (Idem).
[...] assunto, nem da concepção de vida do autor. O assunto é o mais rico possível; a
concepção dos homens em sociedade, a mais justa e a mais propícia para encher os
pulmões de um verdadeiro escritor. No Sr. Tito Batini o defeito vem do romancista.
O romancista é que é o culpado pelo desperdício do assunto e pela inconsistência
que se esvai o problema social exposto. O que vem provar mais uma vez que a
honestidade e a boa vontade não bastam para fazer obra de arte. Esta não se nutre
apenas da riqueza humana do autor, ou do seu sentido mais ou menos justo das
coisas. Requer uma agudeza psicológica, um senso de participação e qualidades de
ao volume. Dedicado a Alfredo Mesquita – patrocinador da revista Clima e estipulado foi de 150 dias. De
acordo com Candido, a tese sobre
responsável por atribuir “a seção de crítica literária” ao autor – e a Lourival Sílvio Romero foi redigida entre
Gomes Machado – que “dois anos depois” empurrou-o “para a aventura 1º de fevereiro e 11 de março de
1945 (cf. Diário Oficial de São
mais ampla e comprometedora do rodapé de jornal” –, o livro de estreia de Paulo,1944; Dantas, 2002a).
Candido traduz com precisão a justaposição entre crítica literária, sociologia 16. De acordo com Hallewell
e política no centro de seu projeto intelectual, bem como a redefinição das (1982, p. 416), em 1943, foi
“iniciada a ‘Coleção Mosaico’, de
posições assumidas por ele até o momento. volumes finos e de pequeno for-
Organizada paralelamente à redação de O método crítico de Sílvio Ro- mato (17 cm de altura), de obras
contemporâneas brasileiras, em
mero (Candido, [1945] 1988) – tese com que se candidatou ao concurso
sua maioria de crítica literária”.
acima mencionado e a partir da qual ele começa a rever seus pressupostos
17. Com efeito, os rodapés
intelectuais17 –, a seleção dos rodapés de Brigada ligeira sinaliza, por sua redigidos a partir do final do
vez, para uma estratégia de depuração dos excessos do engajamento então primeiro semestre de 1944 dão
prova das mudanças em curso.
defendido por Candido. Deixando de fora artigos de circunstância, gêne- Em “Última nota”, publicado
ros não literários (biografias, estudos históricos, historiografias literárias, em 28 maio, Candido (1944a)
cita Modern poetry and tradition
traduções, palestras, coletâneas de ensaios, livros de crítica etc.), textos de de Cleanth Brooks; em “An-
cunho programático ou polêmicos e os rodapés dedicados à poesia, o autor tologias”, de 26 de março do
mesmo ano, menciona Reading
também excluía as contingências temporais mais evidentes – não se furtando poems, de Wright Thomas e
nem mesmo a retocar ou elidir trechos significativos dos artigos escolhidos18. Stuart Gerry Brown; na revista
Clima de setembro, resenha D.
E com isso retornamos à questão do sectarismo crítico, abordada ante-
H. Lawrence and Susan, his Cow,
riormente. Uma avaliação detida dos rodapés dedicados à análise de poesia19 de William York Tindall.
revela, talvez de maneira mais nítida do que nos escritos sobre prosa de 18. Exemplo disso é a polê-
ficção, a extensão e o limite dessa questão, permitindo uma discussão mais mica com Oswald a respeito
do julgamento da obra de Tito
qualificada do problema. Diversamente das leituras dedicadas aos romances, Batini, excluída da versão final de
nas quais a cobrança da participação dos intelectuais adquire uma posição “Estouro e libertação” (composta
da junção dos artigos “Romance
mais discreta e de fundo, nos estudos de poesia Candido assume com maior e expectativa”, “Antes de Marco
ênfase a orientação política, o que acarreta, não raro, certa distorção em Zero” e “Marco Zero”). Sobre a
polêmica com Oswald, ver Pontes
seus julgamentos críticos. (1998).
Se, de um lado, é verdade que o período caracteriza certa entressafra de 19. Boa parte deles reunida no
estreias poéticas promissoras – com exceção, como veremos a seguir, de Pedra volume organizado por Dantas
(2002b).
do Sono (publicado em 1942), de João Cabral de Melo Neto –, de outro,
20. Não por acaso, a maioria
Candido não aborda o lançamento de livros importantes de poetas consa-
desses poetas – exceto Drum-
grados do modernismo20. A rosa do povo (Carlos Drummond de Andrade), mond e Cassiano Ricardo– era
As metamorfoses e Mundo enigma (Murilo Mendes), Mar absoluto (Cecília ligada à chamada poesia espi-
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ritualista. Com a preocução Meireles), O sangue das horas (Cassiano Ricardo) e Cinco elegías (Vinícius de
de orientar o sentido geral do
movimento que então surgia, Moraes) – todos publicados entre 1943 e 1945 – são alguns exemplos disso.
a atenção de Candido recaiu Minha hipótese é de que a exclusão dos rodapés de poesia de Brigada
preferencialmente sobre os poetas
de sua geração, cuja produção
ligeira – que perfazem apenas nove dos noventa artigos publicados – se
despontava no cenário literário relaciona à excessiva ênfase na defesa da poesia participante por parte do
nacional. Procedimento que não
deixa de ser coerente com a di-
crítico, o que estava em conflito com a redefinição pela qual ele passava.
retriz assumida em “Ouverture”: Esses rodapés evidenciam que a cobrança do engajamento político dos au-
“Assim compreendida, pois que
a ela incumbe uma parte desse
tores estudados levou, de um lado, a uma valorização exagerada de poetas
trabalho, a crítica – literária, ar- hoje esquecidos e, de outro, a uma visão bastante reticente das tendências
tística, filosófica, científica – nos
poéticas intimistas e formalistas que culminariam logo mais na chamada
aparece como um instrumento
de conhecimento e um guia geração de 1945.
nos caminhos difíceis, e a sua Exemplar nesse sentido é o escrito “Sobre poesia”, publicado em 30 de
utilidade não pode ser negada”
(Candido, [1943] 2002c, p. 28). abril de 1944. Recuperando um artigo de Carlos Lacerda – “polêmico,
mas perfeitamente justo em suas apreciações de ordem estética” (Can-
dido, [1944] 2002e, p. 129) – a propósito do absenteísmo da poesia de
Manuel Bandeira (que autoqualificara sua obra como menor), Candido
discute as pertinência de se adotar como critério estético a oposição en-
tre poesia menor, ou seja, marcada pelo lirismo intimista e pela notação
emotiva, e poesia maior, preocupada com a meditação sobre o homem e
seus problemas. O rodapé começa assinalando que “a poesia moderna, a
partir do simbolismo, tende a ser menor”, já que “a aspiração de grande
parte das correntes posteriores foi se limitar aos momentos poéticos,
aos momentos raros em que uma emoção agudamente sentida fosse
transmitida com pureza ao leitor” (Idem, pp. 129-130). Numa palavra:
21. Já abordei essa questão em “a poesia passou, em boa parte, a querer ser pura” (Idem)21.
outro artigo (cf. Ramassote, Em decorrência dessa linha de raciocínio, não causa espanto a ava-
2009).
liação elogiosa de autores representativos da poesia participante que
22. No depoimento concedido
a Mário Neme, republicado em hoje estão completamente esquecidos. É ilustrativo, nesse sentido, o ro-
1945 no volume Plataforma da dapé “Longitude”, dedicado à leitura de A voz do grande rio – publicado
nova geração, Candido indaga:
“Quem é o grande poeta da
em 1944 – segundo livro de poesia de Rossine Camargo Guarnieri.
nossa idade aqui em São Paulo: Saudando-o como o “melhor e o mais forte dos poetas moços de São
o único verdadeiro poeta, se
não me engano, descontados
Paulo”22, Candido (1944b) lamenta que Guarnieri tenha se mantido
os inéditos? Rossine Camargo “esquivo ante o público, guardando um silêncio interrompido após a
Guarnieri. Qual é a característica
publicação de Porto seguro, há seis anos [1938]”. Por isso, “é com prazer
da sua poesia? Justamente esta
ausculta angustiada, de que lhe que dou a notícia do seu último livro, A voz do grande rio” (Idem).
falo, do tempo e do homem”
Esboçando uma tipologia de conotação política – ainda que reconheça
(Candido, [1943] 2002i, p.243).
o perigo de ser mal compreendido (ela poderia se prestar a “segundas inter-
pretações”) –, Candido sugere que
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[...] do fato de todo dia, de ontem e agora. Os países que sofreram primeiro de
todos os botes do fascismo são como que os heróis que aparecem a cada poema. A
Abssínia, a Espanha, a China enchem as páginas com a sua dor e a sua paixão. O
poeta sofre e canta com os seus irmãos da terra inteira, num movimento intenso
de fraternidade. Parece que é este sentimento de compromisso moral, obrigação
inelutável de bradar contra a iniquidade, que inflama o poeta e forma a base desse
livro [...] (Idem).
e superficial, lhe dá em troca, as mais das vezes, a eloquência que leva o tema
acima da banalidade” (Idem). Nesse sentido, raramente
[...] o Sr. Tavares de Miranda usa meio tom e nunca se faz o cantor da vida corriqueira
ou pequenina. Os seus temas são simbólicos ou gravemente altíssonos. Poesia para
ele é exaltação antes de compreensão ou ponto de vista. Aborda o tema pelo exterior,
acentuando as qualidades plásticas, as sensações que lhe pode dar, a cor, o som (Idem).
E sustenta:
De minha parte, confesso que o aprecio mais por esta circunstância. Estamos num
tempo em que se exagera bastante, a meu ver, as virtudes de despojamento e pureza
poética. A pureza está longe de ser um ideal artístico absoluto. E mesmo de ideal
humano. Nós todos sabemos o que vai de antivital, de antinatural na concepção
semítico-cristã de castidade – por exemplo, que não passa de um ideal, um corres-
pondente moral da pureza poética. Para ser fecunda, para se realizar, toda pureza deve
começar por renunciar a si mesma, sob pena de ser um significado extremamente
limitado e quase aberrante. E a poesia não escapa à regra. A poesia pura, despida
que se nutre das migalhas do silêncio e soluça por não poder atingi-lo, é a negação
mesma do esforço artístico, se quisermos ver nela a poesia.
Não é possível a arte, e, portanto, a poesia, [a] pureza que esteriliza de certo modo
algumas das expressões mais vivas do homem. Como toda gente, leio Mallarmé e
gosto muitíssimo dele. É dos meus poetas prediletos. Mas não quero, como mui-
ta gente, que todos os seus poemas sejam a poesia – como se pretendeu afirmar
durante certo tempo. Quero os elementos humanos que a tornam comunicativa e
inteligível. Quero palavras que tenham coragem de ser palavras, e não que queiram
23. Posteriormente, a concep-
virar som puro – porque neste caso vou ao concerto. Quero poetas como o Sr. José ção de Candido sobre a poesia
Tavares de Miranda, impuro, cheio de demasias, porque sinto nele um calor de finessecular francesa – e também
sua congênere nacional – irá se
vida nem sempre discernível nas chinoiseries e no vocábulo puro – [coisas], aliás,
modificar, tornando-se mais
mal explicadas (1944c)23. compreensiva (cf. Pires, 2010).
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do período em curso, Candido institui uma linha de continuidade entre 27. No rodapé “O romance
vendeu sua alma”, publicado no
as obras, na qual a prosa de ficção procurava seu lugar em meio à crescente sexto número da revista Clima,
especialização do trabalho intelectual27. Candido já chamava a atenção
para “o abandono constante e
Num primeiro bloco, composto pelos artigos “Estouro e libertação”28 progressivo, por parte dos artis-
e “Um romancista da decadência”29, Candido observa que os autores exa- tas, do aspecto artístico da sua
obra” diante da concorrência com
minados não conseguem se desgarrar dos influxos estilísticos e ideológicos os principais meios de comuni-
dos anos de 1920. Enquanto José Geraldo Vieira causa a impressão de não cação de massa e da tendência
a adentrar em “campo alheio
ter sido incomodado pela renovação promovida pelo romance de 1930, o e receber as mais disparatadas
primeiro volume do ciclo Marco Zero de Oswald de Andrade fracassa porque transfusões. Filosofia, sociologia,
política, estética – todas estas e
a técnica pontilhista utilizada não se coaduna à proposta de romance mural.
muitas coisas mais constituem o
Em que pese a distância que separa o cosmopolitismo do primeiro – “su- verdadeiro recheio da boa ficção
prema afirmação literária” das classes dominantes, alheada dos problemas contemporânea” (Candido,
1941b).
nacionais e sustentada por uma economia agrária voltada para o mercado
28. O artigo examina a pro-
internacional – do misto de intenção ideológica avançada e realização dução romanesca de Oswald
passadista do segundo, a técnica literária excessivamente intelectualista de de Andrade e foi suscitado
pela publicação de A Revolução
ambos expressa a cosmovisão de uma burguesia que se via mergulhada no melancólica em 1943.
cosmopolitismo litorâneo do Encilhamento e confrontada pelos primeiros 29. Leitura de A quadragésima
movimentos de contestação à sociedade capitalista em início de decadência30. porta, romance de José Geraldo
Vieira também publicado em
No centro do livro estão três artigos dedicados aos principais representan-
1943.
tes do romance de 1930. Ao abandonar a representação pitoresca e exótica
30. 1922 é ano de fundação do
das camadas populares – mero objeto de contemplação estética – em favor Partido Comunista, de realização
de um retrato sensível de sua realidade objetiva e complexidade humana, da Semana de Arte Moderna em
São Paulo e das primeiras revoltas
essa geração inaugura “o romance brasileiro”31. Nesse sentido, os principais tenentistas. Esses eventos foram
escritores dessa geração “vão viver menos obsessivamente voltados para a registrados no estouro da prosa
experimental e satírica do par
Europa; vão aceitar o povo, realizando e dando sentido humano ao pro- Memórias sentimentais de João
grama estético dos rapazes de Vinte-e-Dois” (Candido, 1992c, p. 47). Essa Miramar, de 1922, e Serafim
Ponte Grande, de 1933.
conscientização é concomitante à aceleração das transformações econômicas
31. É bastante significativa a
e sociais operadas no meio rural e operário, que tende a integrar as grandes quase completa ausência de inte-
massas da população à vida moderna: resse pelo romance introspectivo,
apesar da publicação de obras
importantes entre os anos de
[...] a força do romance moderno foi ter entrevisto na massa, não assunto, mas 1942 e 1944: Inácio (de Lúcio
Cardoso), O lodo das ruas e O
realidade criadora. Os escritores aprenderam, no sentido pleno, com os trabalha-
anjo de pedra (ambos de Octávio
dores de engenho, os estivadores, os plantadores de cacau, os operários de fábrica. de Farias) são alguns exemplos.
Através dos livros, toda essa massa anônima criou, de certo modo, transfundindo Em depoimento recente sobre
Mário de Andrade, Candido
o seu vigor e a sua poesia na literatura europeizada da burguesia (Idem, p. 48). comenta episódio – uma con-
versa com o escritor paulista e
Fernando Sabino (de passagem
Aferrados às narrativas de cunho marcadamente social, denunciando por São Paulo), em que ambos
as mazelas e as injustiças que acometiam as realidades locais e regionais, defendiam o mérito literário
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de Octávio de Faria –, no qual incorporando ao gênero categorias e tipos sociais até então relegados pelos
teria dito que os romances do
ciclo burguês eram “prolixos” “escritores burgueses”, a geração de romancistas de 1930 empreendeu a “va-
e não questionavam a “ordem lorização do povo”, incorporando-o ao nosso “patrimônio estético e ético”
burguesa”: “Eles não tiram o sono
de Roberto Simonsen” (Candido,
(Idem). Combinando de forma equilibrada a denúncia social – as condi-
2008, p. 50). ções aviltantes dos trabalhadores da zona cacaueira da Bahia, a decadência
dos engenhos da zona da mata do Nordeste e as vicissitudes das camadas
médias urbanas das grandes capitais, por exemplo – com o pleno domínio
dos meios de expressão literários, as obras maduras de Jorge Amado (Terras
do sem fim), José Lins do Rego (Fogo morto) e Érico Veríssimo (O resto é
32. Nessa disposição sequencial silêncio)32 representam, ao que tudo indica, o ideal de romance almejado por
é possível divisar a transição do
escritor de engajamento político
Candido. Deixando de lado, nos três casos, os esquematismos e a qualidade
mais declarado para o de convic- duvidosa de parte das obras anteriores, as realizações literárias analisadas
ções mais discretas e ambíguas.
revelam a síntese feliz operada por cada autor: em Jorge Amado, a dialética
entre documento e poesia; em José Lins do Rego, a tensão entre a nostalgia
e o inconformismo social referente ao universo decadente de sua região; em
Érico Veríssimo, oscilação entre a representação da psicologia diferencial
das classes sociais e o destino individual de seus membros.
No terceiro e último bloco – iniciado, significativamente, por “Estraté-
gia” – a atenção se volta para as experiências literárias surgidas no começo
de 1940. Realizando a passagem dos veteranos do romance de 1930 para
os jovens estreantes do decênio seguinte, a análise do romance de estreia de
Ciro dos Anjos, O amanuense Belmiro – originalmente lançado em 1937
(ano de instauração do Estado Novo) – representa um marco fronteiriço,
demarcando um antes e um depois na trajetória evolutiva da prosa de ficção
do período. Não constituindo um lançamento literário, Candido justifica a
decisão de abordá-lo com uma referência à distinção formulada por Almeida
Salles entre escritores táticos (que se valem do impulso criativo) e estrategistas
(que concebem o ato criativo como um “afloramento definitivo de um largo
trabalho anterior”), para anunciar que ao ler o artigo lembrou-se imediata-
mente de Ciro dos Anjos: “um dos maiores dentre os poucos estrategistas da
literatura brasileira contemporânea” (Candido, 1992d, p. 79). Não deixando
33. Sobre esse assunto, ver No-
bile (2005). Deve-se lembrar que de elogiar a beleza, a elegância e o equilíbrio da prosa do escritor mineiro, nem
a narrativa se passa em 1935, ano tampouco de abordar a influência machadiana e a relação entre autobiografia
da formação, crescimento e fe-
chamento da Aliança Nacional
e romance – aspectos destacados na recepção imediata da obra33 –, a atenção
Libertadora (ANL), e da Intento- de Candido retém-se no processo mais geral e nos responsáveis pela defecção
na Comunista (cf. Bueno, 2006,
p. 551).
por que passa a intelectualidade após a implantação do regime ditatorial de
34. A esse respeito, ver o terceiro
Vargas. Burocrata lírico, imerso na malhas do serviço público 34, Candido
capítulo de Miceli (1979). vislumbra na postura de Belmiro
[...] o destino do intelectual na sociedade, que até aqui tem movido uma conspi-
ração geral para belmirisá-lo, para confiná-lo nas esferas em que seu pensamento,
absorto nas donzelas Arabelas, nas Vilas Caraíbas do passado, na autocontempla-
ção, não apresenta virulência alguma que possa pôr diretamente em xeque a ela,
sociedade organizada. Criando-lhes condições de vida mais ou menos abafantes,
explorando metodicamente os seus complexos e cacoetes, os poderosos desse mundo
só o deixam em paz quando ele se expande nos campos geralmente inofensivos
da literatura personalista, ou quando entra reverente no seu séquito (Idem, p. 84)
É nesse contexto intelectual e político que a obra de autores estreantes que o arrefecimento do romance
social (ou proletário) em detri-
é lida. Singularizada pelo predomínio do romance introspectivo, desligada mento das tendências intimistas
do meio social envolvente e pairando no jogo desinteressado da inteligência, deveu-se tanto à incapacidade
de renovação do gênero como
a narrativa revelada nesse período reflete as agudas contradições sociais e a ao realinhamento ideológico
crise de consciência que marcariam o fim da civilização burguesa36. Com- provocado pela instauração do
Estado Novo. Sobre a relação
parada à imagem do peru hipnotizado e paralisado, a ficção autocentrada entre intelectuais e o mercado de
e ensimesmada dentro do “círculo magnético do próprio eu” de A marca, postos públicos e privados entre
1920 e 1945, ver Miceli (1979).
de Fernando Sabino, padece da paralisia vital que impede a transformação
36. No rodapé “Esclarecendo”,
do “conflito em solução dinâmica do progresso” (Candido, 1992e, p. 89).
datado de 9 de junho de 1944, tal
Nesse sentido, questão se torna explícita: “devi-
do ao desenvolvimento das suas
contradições internas, a burguesia
[...] num tempo como o nosso, a linha excessivamente personalista do romance entrou em crise e, com ela, as suas
aparece, não raro, como defesa das posições já gastas da inteligência e da sociedade. ideologias. Nada mais natural
que a crise se manifestasse no
Numa última palavra – e usando termos rebarbativos, pelos quais me desculpo –, romance, um dos instrumentos
se opõe ao desenvolvimento dialético da personalidade e da sociedade, procurando mais autênticos destas [...]. Anar-
quizado, escapando aos quadros
brecar o vir a ser por meio do prolongamento indefinido das oposições do ser e do que o contiveram cerca de dois
não-ser. Nisto não vai um julgamento de valor estético, mas antes histórico, em séculos, atirando-se à busca de
novos campos, numa aventura
relação à literatura personalista, setor que, justamente por ser reflexo dos conflitos
que é das mais grandiosas da
do nosso tempo, tem sido dos mais brilhantes da literatura deste fim de civilização história literária, o romance é
bem reflexo da crise estrutural
burguesa (Idem, p. 92).
e ideológica da burguesia [...]”
(Candido, 2000-2001, p. 189).
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Resumo
Este artigo examina os rodapés de crítica literária assinados por Antonio Candido na
coluna “Notas de crítica literária” do jornal Folha da Manhã, entre os anos de 1943 e
1945. Busca correlacionar a perspectiva analítica defendida pelo crítico com a militância
política em pequenos agrupamentos de esquerda e as atribuições de professor-assistente
da Cadeira de Sociologia II. Ao final, aborda o livro de estreia do autor, Brigada ligeira,
identificando os critérios que presidiram a seleção e a reunião de seu conteúdo. Tais
critérios guardam afinidade com as frentes de atuação e os princípios doutrinários
assumidos por Candido no período.
Palavras-chave: Antonio Candido; Crítica de rodapé; Militância política; Brigada ligeira.
Abstract
This article examines the footnotes of literary criticism authored by Antonio Candido
in the column ‘Notes of literary criticism’ in the newspaper Folha da Manhã between
1943 and 1945. It looks to correlate the analytic approach pursued by the critic with his
political activism in small left-wing groups and his responsibilities as assistant professor
of Sociology Chair II. Finally, the text examines the author’s first book, Brigada ligeira
(Light brigade), identifying the criteria involved in the selection and organization of the
included essays. These criteria are closely associated with the political and professional
activities and theoretical principles adopted by Candido during the period.
Keywords: Antonio Candido; Footnote critique; Political activism; Brigada ligeira.
A literatura não existe no ar, e sim no Tempo, no Tempo histórico, que obedece ao
seu próprio ritmo dialético. A literatura não deixará de refletir esse ritmo – refletir,
mas não acompanhar. Cumpre fazer essa distinção algo sutil para evitar aquele erro
de transformar a literatura em mero documento das situações e transições sociais.
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brasileiros por teorias do caráter nacional que nem sempre seriam vistas com
o devido matiz. “Ainda repetimos às vezes automaticamente as definições
prestigiosas que dele fizeram Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda,
acreditando que ambos tenham descoberto peculiaridades nossas, e apenas
nossas” (Idem, p. 8).
O passo seguinte do argumento é apresentar o impasse entre literatura
e sociedade nos moldes em que estava dado na segunda metade do século
XIX no Brasil. Bosi lembra que, nesse momento, predomina no país o
historicismo nacionalista. Derivada de uma noção romântica de literatura,
essa concepção adota o critério histórico de representatividade de autores
e obras como medida de valor, e, de acordo com o autor, já conteria, em
germe, o historicismo sociológico “que o século XX herdou do positivismo
e do evolucionismo” (Idem, p. 11). Representantes dessa linhagem seriam
Sílvio Romero, que preferia o nacionalista Alencar ao “pessimista” Ma-
chado; José Veríssimo, que condenava a falta de cor local no naturalismo
e no realismo; e Araripe Jr. Este último, embora não tenha escrito uma
história literária exaustiva, mas ensaios, estaria menos contaminado pelos
determinismos contidos nesse enfoque por trabalhar com a ideia de “estilos
individuais”, que seriam a resultante entre o temperamento do autor e as
forças modeladoras do meio. Sua obra, de acordo com Bosi, “representava
uma tentativa de contornar o impasse de determinismo (racial e social) e
expressão pessoal”. Importa frisar esse ponto porque, na visão do autor, já
estariam dados aí os pontos centrais que seriam o mote para o debate crítico
no século que viria. Como afirma Bosi,
[...] o impasse foi reproposto pela historiografia do século XX, herdeira das sínte-
ses de Romero e de Veríssimo. Enfrentaram-se posições radicalmente adversas ao
longo dos anos modernistas, os quais, por sua vez, conheceram os dogmatismos
extraestéticos da Direita e da Esquerda. E vieram mais tarde os conflitos recorrentes
entre historicistas e formalistas de cujas refregas somos ainda hoje testemunhas (Idem,
p. 20, grifos meus).
Nos decênios seguintes, apesar dos bons resultados obtidos pelo ensaísmo
de Augusto Meyer e Álvaro Lins, ambos críticos egressos do modernismo,
Bosi afirma que a “gangorra tendeu para o outro lado”, e, no campo da
historiografia literária, ganharam força os estudos formalistas. O principal
nome dessa tendência seria o de Afrânio Coutinho, que pregava, em meados
dos anos de 1950, a prática de uma nova crítica, empenhada em ver nas
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alardear o que outros alardeiam sem fazer” (Idem, p. 42). É também essa a
razão da manifesta preferência de Bosi por um livro como Tese e antítese, em
que Candido praticaria um historicismo cultural dilatado, aberto a leituras
biográficas e existenciais, a uma obra como Literatura e sociedade, em que
enxerga um aspecto esquemático decorrente do didatismo e dos problemas
metodológicos que o autor se dispõe a enfrentar.
É possível depreender uma série de inferências a partir da montagem
argumentativa do texto de Alfredo Bosi, todas mais ou menos derivadas de
sua rejeição aos determinismos que considera próprios do enfoque socioló-
gico. Apesar de se apresentar como um ensaio sobre a história das histórias
literárias feitas no Brasil, o texto pode ser visto como uma reflexão sobre
o historicismo, sobre como praticá-lo sem cair numa relação esquemática
entre literatura e sociedade. O conteúdo da epígrafe tomada a Carpeaux e o
próprio elogio a Lanson que abre o texto já indicam essa possibilidade. Da
mesma maneira, a posição de destaque que o ensaio ocupa no livro – além
de ser o maior texto, foi também o escolhido para abrir a coletânea – dá
indícios da importância que o autor atribui à sua tomada de posição sobre
o problema.
Pode ser temerário sugerir discussões veladas em que a questão não está
formulada de modo explícito, mas breve exame da obra de Bosi sugere que
não faz parte de seu procedimento enunciar seus interlocutores. Em rese-
nha sobre a Dialética da colonização (cf. Schwarz, 1999a, p. 81), Roberto
Schwarz lembra que Bosi monta sua interpretação de Gregório de Mattos
indicando de passagem as diferenças com as demais, mas não cita nenhum
nome, deixando no ar um debate virtual que, segundo Schwarz, valeria a
pena ativar.
É o caso de notar as implicações da escolha de Candido e Carpeaux como
exemplos de críticos praticantes do historicismo largo e profundo que Bosi
reivindica para a crítica brasileira. A opção por Candido, em que pese a
força de sua inserção no campo e a capilaridade de sua obra, mostra-se ainda
um modo de Bosi estabelecer novo “debate virtual” e, ao que tudo indica,
o interlocutor seria o mesmo Roberto Schwarz. Ao explicar o método de
redução estrutural enunciado por Candido em Literatura e sociedade, Bosi
detém-se na análise de um trecho de Senhora. Procura inserir o livro no
contexto das ideias românticas de José de Alencar, que julgava moralmente
a situação de utilitarismo retratada no livro (o casamento por dinheiro) e
aspirava, idealisticamente, a converter seus personagens em almas nobres. O
objetivo é distingui-lo de Machado de Assis, que, antirromântico por exce-
Bosi reforça os laços entre Schwarz e Candido, mas sugere que o primeiro
é uma versão menos sutil do segundo. A redução estrutural que Candido
aplica com “discrição” em seu estudo “antológico” sobre o livro de Manuel
Antonio de Almeida aparece, nos estudos machadianos de Schwarz, de
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forma mecânica e causal. Bosi não usa esses termos, mas o sentido é este: a
transposição entre os conteúdos ideológicos do liberalismo à brasileira do
século XIX encontra correspondência direta nos movimentos do narrador
das Memórias póstumas, num processo em que se perdem de vista dimen-
sões decisivas da complexidade de Machado de Assis. “A redução estrutural
assumida, pela qual o andamento do texto romanesco imita o movimento
ideológico de uma determinada classe, revela-se insuficiente para dar conta
da variedade e ousadia da teia compositiva e estilística” (Idem, p. 45).
Até esse ponto a crítica de Bosi não fica distante dos argumentos em
geral disparados contra o viés “sociológico” de interpretação, com a dife-
rença de que procura preservar Candido, capaz em seu entender de praticar
uma redução estrutural mais sutil, sem o reducionismo que identifica em
Schwarz. Com isso, poupa Candido, cujo papel fundador e de liderança
ele reconhece, instaurando-se em alguma medida como seu herdeiro, incli-
nação que se nota no modo como se refere a Candido e Carpeaux no texto
sobre o historicismo literário. A ojeriza de Bosi ao sociologismo, assim, é
a mesma praticada pelos demais detratores, mas recai com exclusividade
sobre Schwarz.
A novidade maior da crítica de Bosi, contudo, não está apenas na marca-
ção de distância da sociologia, mas na insinuação, essa mais surpreendente, de
que é impreciso o arcabouço histórico de que Schwarz se vale. Bosi defende a
existência de formas diferentes de liberalismo ao longo do século XIX brasi-
leiro que invalidariam a possibilidade de traçar uma ideologia uniforme para
as camadas dominantes do Brasil no período. Havia noções conflitantes de
liberalismo – e esse é o traço que, segundo Bosi, teria escapado a Schwarz.
Eis o ponto mais forte de sua crítica: Bosi joga no campo do adversário,
sugerindo lacunas de conhecimento histórico no trabalho de um crítico
historicista por definição. Mas há uma tensão curiosa no modo de expor
a crítica. Como no texto sobre o historicismo, em que o debate aparece
de forma velada, nesse ensaio sobre Machado parece haver a disposição de
não conferir espaço exagerado a Schwarz e manter diálogo equilibrado com
diversos interlocutores. Mas não há como negar que a tese do colega sobre
as ideias fora do lugar é o ponto de origem de sua reação e seu alvo por
excelência. Bosi dedica uma imensa nota de rodapé, que ocuparia cerca de
um terço do tamanho do ensaio se fosse incluída no texto, para discutir a
questão da convivência das duas formas de liberalismo.
A tese das “ideias fora do lugar”, proposta por Schwarz em Ao vencedor, as batatas,
não parece compatível com a função histórica de cimento ideológico exercida tanto
pelo velho liberalismo excludente como pelo “novo liberalismo” democrático que
animou a campanha abolicionista. Cada uma dessas vertentes – formuladas inicial-
mente na Europa – desempenhou papel central da vida política do Brasil Império,
e cada uma ocupou, no seu tempo, o seu lugar. [...] Brás nasce em 1805, no Brasil
ainda colonial, chega à maturidade em plena vigência do Regressismo e começa a
fazer política na década de 1840: é o tempo saquarema, auge do tráfico negreiro
aceito e defendido praticamente por todas as classes nesse começo do Segundo
Reinado. A chamada norma burguesa, sobrestimada por Schwarz, afetava-os tanto
quanto os Princípios de Paz Universal da ONU influem nas decisões dos governos
belicistas neste século XXI, de resto plenamente respaldadas por centenas de milhões
de cidadãos liberais pós-modernos (Idem, p. 134, nota 24).
Condenado ao pós-moderno
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René Girard, Michel Foucault, Michel Serres, Julia Kristeva, alguns dos
professores com os quais conviveu durante sua estada nos Estados Unidos e
na Europa, exemplificam bem a perspectiva teórica que assumiria. A partir
dessas influências, e tendo a literatura comparada como campo de reflexão, o
crítico procurou analisar as relações entre culturas dominantes e dominadas.
É dessa época o ensaio “O entrelugar do discurso latino-americano”. Nele,
Silviano vale-se das ideias de Derrida para se insurgir contra as noções de
“atraso” e “originalidade” e defende como único valor crítico a diferença
estabelecida entre a cópia e o original. Dessa maneira, procura questionar
os estudos que chamam a atenção para a dependência da literatura e da
crítica dos povos colonizados, “que consideram a apropriação de um dis-
curso produzido nos grandes centros por parte da cultura periférica como
um deslocamento em que as ideias estariam sempre ‘fora do lugar’” (Lima,
1997, p. 175)1. 1. Note-se aí, na expressão “fora
do lugar”, a referência ao ensaio
O ensaio, definidor da obra de Silviano, é um marco justamente por di-
de Roberto Schwarz. Nesse mes-
vergir no ponto exato demarcado por Schwarz com suas ideias fora do lugar. mo livro em homenagem a San-
tiago (cf. Souza e Miranda, 1997),
Claro que Schwarz não inaugura o problema. A questão da dependência
Eneida Leal Cunha publicou um
está posta desde anos anteriores pela tradição do pensamento social paulista, ensaio em que procura explicar
de Caio Prado Jr., Fernando Novais e Fernando Henrique Cardoso. No de que modo a questão da de-
pendência cultural está posta nas
momento em que faz o ensaio, 1971, Silviano não está se opondo à figura obras de Santiago e Schwarz a
de Schwarz, que na mesma época está a formular sua teoria sobre as ideias partir de uma comparação entre
os ensaios “Apesar de dependen-
fora do lugar, mas à tradição uspiana e ao ambiente intelectual brasileiro te, universal” (1982) e “Nacio-
envolvido com o problema da singularidade latino-americana em relação nal por subtração” (1987). Mais
do que entrar nos pormenores
aos países dominantes num contexto de repressão e fechamento político. da discussão, cabe aqui destacar
O texto de Silviano saiu em francês em 1971, em inglês no mesmo ano como, mais uma vez, é Roberto
Schwarz o interlocutor eleito para
e em português só em 1978. O de Schwarz saiu em 1973 em português.
dar legitimidade ao crítico que se
Até hoje há discussão sobre quem teria atinado primeiro com a questão do opõe a ele. Trata-se de mais um
exemplo da inserção da obra críti-
“lugar” das ideias, mas isso não é um problema relevante. A questão é notar
ca de Schwarz, por certo uma das
como a oposição a um certo conjunto de valores cristalizado nas leituras de vozes mais audíveis no alarido de
Schwarz vai se mostrando, na trajetória de Silviano, a baliza em relação à perspectivas críticas em busca de
espaço no campo.
qual passa a construir sua singularidade.
Num ensaio de 1987, “Para além da história social” (cf. Santiago, 2002a),
o ponto fica mais claro. O texto, assim como o ensaio sobre historicismo
de Bosi, é uma tomada de posição sobre seu modo de interpretar a história
literária. Como indica o título, procura explicar os caminhos pelos quais é
preciso ultrapassar o reducionismo envolvido nas leituras que se constroem
em diálogo com a sociologia. Seu argumento frisa a necessidade de apreender
a literatura para além de suas relações com o real para flagrar o que nela é
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Talvez a melhor forma de abordar a obra de Roberto Schwarz seja rastreando-a nos
trabalhos mais significativos dos seus mestres na Universidade de São Paulo. Como
em outros colegas das ciências sociais, percebe-se nele a dívida para com a leitura
da formação do Brasil contemporâneo, feita por Caio Prado Jr.; como em outros
colegas das ciências literárias, percebe-se nele o interesse em inscrever o seu trabalho
onde Antonio Candido deixou em aberto a sua Formação da Literatura Brasileira.
Graças aos dois mestres, Roberto Schwarz arquitetou um campo de estudos próprio
e original, multifacetado, em que vai explorar dicas dadas e brechas deixadas tanto
por uma quanto pela outra “formação” (Idem, p. 253).
A brilhante leitura do ensaio de Candido que faz Schwarz teve como fim primordial
o resgate do texto crítico para o ideário marxista, ainda que nele se evidenciasse uma
abordagem culturalista. O importante, concluía o discípulo, é que “pela primeira
vez a dialética de forma literária e processo social deixava de ser uma palavra vã”. É
idêntica a lição que se depreende do estudo fundamental [Ao vencedor, as batatas] e
de outros estudos de Schwarz. Aqui concluímos o que precisava ser demonstrado:
que os mais instigantes leitores de prosa – Roberto Schwarz, entre outros, e mais
recentemente, John Gledson – absorvem o sentido da representação literária como
real, sendo aquela um objeto privilegiado para que se esclareçam as relações sociais
no Brasil (Idem, p. 256).
Se a leitura realista circunscreve questões de relevo para a leitura do texto nas suas
relações com a história e a sociedade, deixa no entanto de compreender o que nele
o torna transistórico e, por isso mesmo, crítico e prazeroso. Isto é, o que do texto é
capaz de substantivamente proporcionar saber e prazer aos leitores de outras partes
do mundo e de outras épocas da história. Produto de uma história e de uma socie-
dade, o texto artístico paradoxalmente escapa aos limites da história e da sociedade
que o originam, independente mesmo dos sucessivos leitores que o reorganizam
racionalmente, para afirmar-se universal (Idem, p. 261).
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Criação e crítica se lançam na minha obra com o mesmo ímpeto e coragem. Cria-
ção e crítica são intercambiáveis. A leitura do outro, como está claro nos romances
Em liberdade e Viagem ao México, além de ser uma forma de enclausuramento do
escritor na tradição literária nacional e cosmopolita de que extrai sentido, é também
o modo mais vivaz que encontra para escapar das armadilhas do sujeito singular e
imperioso, mera panqueca pós-moderna, que tem servido de engodo a paladares
aflitivos e irresponsáveis (Idem, p. 10).
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ocupa desde então, e pode ser vista como reação ao prestígio alcançado
por suas leituras machadianas.
As polêmicas são conhecidas. A primeira, de 1985, deu-se entre Schwarz
e Augusto de Campos, tendo como eixo o poema Pós-tudo, de Campos. A
segunda tem início em 1989, com a publicação do ensaio O sequestro do
barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Mattos, de
Haroldo de Campos (cf. H. Campos, 1989).
O poema de Augusto, Pós-tudo, foi publicado em 27 de janeiro de
1985 no Folhetim, então suplemento cultural da Folha de S. Paulo. Em 31
de março daquele ano, Schwarz publicou, no mesmo caderno, um ensaio
intitulado “Marco histórico”, em que considera o poema o trabalho mais
sugestivo do autor em mais de trinta anos, embora lhe faça reparos severos.
O crítico concentra a análise no que considera uma contradição fundamen-
tal: a concepção do poema em letras garrafais, para a projeção em praça
pública, numa forma “ostensivamente desprivatizada” (Schwarz, 1987), e o
comentário subjetivo, confessional, implicado no desejo de “mudar tudo”
descrito nos versos de Augusto de Campos.
Apesar de deixar clara a necessidade de se diferenciar a persona do poeta
e a pessoa empírica do autor, Schwarz afirma que nesse caso a confusão está
instalada, pois, além de vir acompanhado de assinatura, o poema descreve, em
primeira pessoa, uma ação afirmativa que implica a reivindicação de um lugar
na história, e, em consequência, contribui para “singularizar empiricamente o
sujeito, configurando pretensão pessoal efetiva” (Idem, p. 60). Pairaria sobre
o poema uma indeterminação geral, apoiada apenas na ideia de que há um
espírito radical, transformador, seja ele de que ordem for, a animar a voz lírica.
É o que o autor chama de “vanguardismo abstrato”, espírito que estaria na raiz
do concretismo e que responderia por sua dimensão regressiva.
O próprio grupo concretista oferece uma ampla literatura ensaística, erudita e mili-
tante, em que se explica o sentido revolucionário de seu trabalho, com precursores
nacionais e estrangeiros. São construções das mais discutíveis, apesar do enxame
de autoridades citadas. Vêm ao caso aqui pelo seu espírito, que é de definir a mo-
dernidade e, dentro dela, a própria posição de liderança, espírito adamantino de
que “Pós-tudo” participa e que realiza na quintessência, dispensando os acessórios
da demonstração (Idem, p. 63).
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o sistema literário tal como definido por Antonio Candido ao modelo estru-
tural desenhado por Jakobson para estudar as “funções da linguagem”. Com
isso, procura demonstrar que Candido, ao atribuir ao escritor o papel de
“exprimir as veleidades mais profundas do indivíduo”, funde sua concepção
de literatura à concepção romântica de literatura. Isso explicaria o equívoco
da “perspectiva histórica” de Candido, pois, segundo Campos, deixa claro
como a ilusão de objetividade contida nessa premissa está impregnada de
ideologia. Do mesmo modo, justifica o famigerado “sequestro”, uma vez que
o foco na “função emotiva”, corolário da concepção romântica de literatura,
deixaria de lado a “função poética” e a “metalinguística”, justamente as duas
que predominam no barroco.
A resposta mais direta às invectivas de Haroldo, ainda que não direcio-
nada a todos os pontos do ataque, foi apresentada por Roberto Schwarz
no ensaio “Os sete fôlegos de um livro”, transcrição de sua participação em
seminário na USP sobre Antonio Candido5 e mais tarde reunido em livro 5. “Antonio Candido, pensa-
mento e militância”, realizado
(cf. Schwarz, 1999b). Os dois pontos que o crítico refuta são o suposto na USP em agosto de 1998.
antigongorismo de Antonio Candido e a ideia de que a perspectiva histórica
que orienta a Formação estaria contaminada pelo referido ideal metafísico
de “entificação do nacional”, noção tomada à filosofia de Jacques Derrida.
Para Schwarz, a ausência de Gregório de Mattos se explica pela natureza
do tema tratado. Uma vez que o assunto em pauta é a formação da literatura
nacional, o âmbito do problema não é o mesmo da história do território
ou da língua. Ou, posto em outros termos: Gregório, assim como Padre
Vieira, é figura pertencente ao sistema colonial português e atuante num
momento em que o sistema literário estava longe de se consolidar. “Será
que ficam desconhecidos ou diminuídos por não terem participado de
um dinamismo que cinquenta anos depois de sua morte mal começava a
se esboçar?”, escreve Schwarz (Idem, p. 49). “Os ciclos históricos existem
ou não existem” (Idem, p. 51). O autor completa o argumento a partir da
afirmação de que Gôngora seria, de modo indireto, um dos pressupostos
da Formação, pois os excessos e o rebuscamento que caracterizam sua obra,
por contraste, ajudariam a definir o rigor e o comedimento próprios do
período neoclássico analisado no livro.
Já o “ideal metafísico de entificação do nacional” pressuporia, de início,
a ideia de que Candido seria nacionalista. Schwarz procura opor a isso o
argumento de que Candido pertence à geração universitária que criticou
o nacionalismo e seus mitos, “dando uma explicação materialista e sóbria
da formação nacional, alheia à patriotada” (Idem, ibidem). Com relação à
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Feitas as contas
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faz das “ideias fora do lugar” em seu ensaio “Pastiches críticos”, incluído
em Inútil poesia, que atesta a capilaridade assumida pelo enfoque, popular
a ponto de virar piada.
Schwarz trilhou um caminho que o situa, para além da crítica literária,
como intérprete da formação brasileira, com o que consolida um projeto cuja
origem remonta, mais uma vez, a Antonio Candido: o de fazer da literatura
modo privilegiado de discutir as peculiaridades da formação do Brasil.
Olhando em retrospecto, fica evidente também o modo como a disputa
se liga ao controle do discurso sobre autores que representam momentos
de virada na literatura brasileira. Tome-se o exemplo de Machado de Assis
e Carlos Drummond de Andrade. Os dois escritores exemplificam como o
domínio do discurso hegemônico sobre suas obras é indutor de prestígio.
Autores de livros que representam momentos de transição, eles são objeto
de vastíssima fortuna crítica, de cujo domínio depende o êxito do crítico
que sobre eles pretenda dizer algo de novo. Daí que demandem investi-
mento teórico de grande monta – e também maior risco, pois o sucesso ou
fracasso da empreitada será sempre proporcional à importância do escritor
e do pesquisador que sobre ele decida escrever. É isso que torna pertinente
especular sobre o que está por trás do projeto de Leda Tenório ao mirar em
Roberto Schwarz sua história da crítica no último meio século, ou pensar o
que significa para um crítico da envergadura de Alfredo Bosi a maior reper-
6. “Nem a crítica sintética,
cussão obtida pelos estudos de Roberto Schwarz sobre Machado de Assis.
esteticista ou formalista, nem É preciso ainda lembrar que o acerto na recepção da obra de escritores
mesmo a estruturalista e a fe-
nomenológica, posta em prática
importantes no momento mesmo em que elas se revelam constitui também
por Anatol Rosenfeld no campo um importante indutor de prestígio. É a esse motivo que Benedito Nunes
da realização teatral e por Maria
Luiza Ramos no campo da poesia
atribui a predominância da escola sócio-histórica (a expressão é dele) no
em seu Fenomenologia da obra panorama da crítica de literatura no Brasil6. As razões que ele aponta – o
literária (1969), tiveram o êxito
fato de Antonio Candido e seus seguidores terem escrito no calor da hora
da denominada crítica sócio-
histórica, êxito medido quer sobre os trabalhos de João Cabral, Guimarães Rosa e Clarice Lispector –
pela sua reação positiva à pedra são diversas das deste texto. Mas o diagnóstico é o mesmo e ajuda a pensar
de toque das novas linguagens
literárias em ascensão – as nove- que a partir dessa vertente, e mais especificamente das leituras de Machado
lísticas de Guimarães Rosa e de feitas por Schwarz, é possível percorrer um caminho e traçar um panorama.
Clarice Lispector, e a poética de
João Cabral de Melo Neto, sobre
A recepção dos trabalhos de Schwarz vai muito além do que ficou traçado
que versaram estudos de primeira nesse esquema. O ponto, é importante lembrar, não é fazer um levantamento
recepção de autoria de Antonio
Candido, Roberto Schwarz e
exaustivo da fortuna crítica que se avoluma sobre suas leituras machadia-
Luiz Costa Lima –, quer pela nas, mas indicar como elas definem um novo parâmetro a partir do qual é
sua extraordinária continuidade
até quase o início da década de
preciso medir para tomar posição no ambiente da crítica de literatura no
1990 [...]” (Nunes, 2000). Brasil. Alfredo Bosi, já crítico consagrado, dedica parte significativa de sua
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Um crítico no redemoinho, pp. 71-99
Referências Bibliográficas
Resumo
Um crítico no redemoinho
Este artigo acompanha a recepção dos trabalhos de Roberto Schwarz sobre a obra de
Machado de Assis. A partir das tomadas de posição de um conjunto de autores sobre
esses textos, procura traçar um panorama dos jogos de força em atuação no campo da
crítica literária no Brasil nos últimos anos.
Palavras-chave: Roberto Schwarz; Machado de Assis; Critica literária; Campo literário.
Abstract
This article studies the reception of Roberto Schwarz’s texts on the work of Machado
de Assis. Based on the positions taken by a group of authors concerning these texts,
it looks to delineate a panorama of the power games at work in the field of literary
criticism in Brazil over the last few years.
Keywords: Roberto Schwarz; Machado de Assis; Literary criticism; Literary field.
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Crítica, combate e deriva do campo literário em
Alceu Amoroso Lima*
Guilherme Simões Gomes Júnior
[...] naquele tempo não havia Faculdades de Filosofia, nem estudos superiores de letras. [...] * Agradeço ao Luiz Carlos Jack-
Representávamos, realmente, a última ou penúltima geração dos autodidatas; se acaso o autodida- son pelo convite, aos demais par-
tismo não representa uma condição intrínseca de toda formação intelectual, especialmente literária. ticipantes deste Dossiê, à Heloisa
Pontes e ao Sergio Miceli pelo
Assim como se nasce poeta, também se nasce crítico. [...] Como decididamente não nasci poeta [...]
debate franco, sugestões e críticas
é possível que tenha nascido crítico, ao menos como fazedor de crítica [...].
que ajudaram no rumo tomado
LIMA, [1965] 1966a1, p. 29. pelo artigo. Agradeço também
ao Marco Aurélio Veloso, antigo
aluno Universidade Gregoriana
Alceu Amoroso Lima (1893-1983) passou a infância em uma chácara no em Roma, pelas longas conversas
sobre Alceu Amoroso Lima e
bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro; o bairro do Cosme Velho fica ao por ter me indicado a leitura
lado, um pouco acima, na ondulação da topografia carioca. A calçada de sua de Les grandes amitiés de Raïssa
Maritain, livro que, apesar de não
rua era trajeto de Machado de Assis (Academia Brasileira de Letras/1897),
citado, ajudou em muito na fase
que mais de uma vez passou a mão nos cabelos do menino. Não era amigo de concepção do artigo.
da família, mas tinha com ela relações cordiais. Afonso Arinos (ABL/1901), 1. As fontes preponderantes aqui
ao contrário, privava da intimidade de sua casa e foi uma das referências de citadas são artigos de imprensa,
de Alceu Amoroso Lima ou de
sua iniciação literária. No ginásio, no qual ingressou aos 9 anos, foi aluno seus interlocutores, republicados
de Coelho Neto (ABL/1897); e na faculdade de direito, iniciada aos 15, em livros. As datas entre colchetes
referem-se à edição original dos
teve Sílvio Romero (ABL/1897) como o professor de melhores lembranças. artigos ou de outras peças como
Antes de completar 21 anos, havia visitado quatro vezes a Europa (1900, introduções ou conferências.
Elas são indicadas na primeira
1909, 1912, 1914). Em Paris, residiu por quase um ano no hotel Majestic, vez que a peça é citada. Nas
na avenue Kleber, frequentou o terraço do hotel Ritz, em encontros com demais, indica-se somente a
edição utilizada.
Graça Aranha (ABL/1897), acompanhou cursos na Sorbonne e conferências
de Bergson no Collège de France.
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Etapas
1914-1925/1928
A fase do crítico agnóstico, disciplinado e erudito, que teve como refe-
rências literárias fundamentais Anatole France, Eça de Queirós e Machado
de Assis; que participou com senso de medida da virada modernista de
1922, caudatário de Ronald de Carvalho e Graça Aranha, mas diante dos
quais não se comportou como epígono; muito ao contrário, sobre A estética
da vida foi demolidor, apontando no livro o verdadeiro horror à análise, o
diletantismo e a visão espetacular do universo, presentes na metafísica do
autor; o que não o impediu de estar entre aqueles que, em 1924, aplaudiram
e carregaram Graça Aranha nos braços, quando de seu famoso discurso em
prol do modernismo na ABL.
1928-1945
A fase do convertido, recrutado por Jackson Figueiredo, que assumiu
a posição de cruzado da igreja que, na orientação do papado de Pio IX,
recusava não apenas a modernidade, com seus males – opostos e comple-
mentares – do liberalismo burguês e do socialismo2, mas recusava também 2. Como mostra Miceli, “A
postura doutrinária da Santa Sé se
os próprios tempos modernos nascidos no Renascimento, que haviam
consolidou através das encíclicas
quebrado a unidade do cristianismo. Exemplo dessa postura é a resenha do Quanta Cura e Syllabus Errorum
livro Maquiavel e o Brasil de Octávio de Faria, em que considera limitado (1864), que condenaram de
modo drástico os chamados ‘erros
o quadro moral que orienta a crítica deste ao liberalismo burguês que, no modernos’, a saber, o racionalis-
Brasil, não teria feito mais do que deixar o caminho aberto para a revolu- mo, o socialismo, o comunismo,
a maçonaria, a separação entre a
ção comunista; para Alceu, a tentativa de conciliação de Maquiavel com o Igreja e o Estado, as liberdades de
catolicismo revela no livro a ausência de uma atitude filosófica e religiosa imprensa, de religião, em suma,
‘o progresso, o liberalismo e a
definida; o erro de Maquiavel não foi o maquiavelismo, mas o absolutismo: civilização moderna’”. (Miceli,
“A cisão entre a ordem natural e sobrenatural, que marca todos os desastres 2009, p. 18).
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1964-1983
A fase do católico aberto ao tempo, à mudança, que se tornou um
paradigma da tolerância, da defesa das liberdades e do pluralismo, que
combateu de forma corajosa a ditadura de 1964 e passou a ser visto como
um exemplo de brasileiro que soube mudar com o tempo.
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Amoroso Lima, como tantos jovens que seguiram as conferências de Berg- ção de títulos (cf. Charle, 1990).
Se essas foram características da
son no Collège de France, foi um recruta da robusta corrente católica que ação do “partido dos intelectuais”
gravitou em torno da Action Française. no caso Dreyfus, foram também
as de seus detratores.
Nesse aspecto, como mostra Gisèle Sapiro, há uma especificidade no
âmbito da literatura, que distingue o escritor do músico ou do artista, a saber,
sua politização acaba por se tornar um fator endógeno do campo, sobretudo
depois do affaire Dreyfus, quando cai em relativo descrédito a ideia de arte
pela arte e seu corolário, a torre de marfim, cujos representantes típicos eram
Gide e Valéry (mesmo Gide desce da torre ao aderir ao comunismo entre
1932 e 1937). A responsabilidade ética do escritor, tanto à direita como à
esquerda, passa a ser um elemento esperado pelo público e definidor de sua
autoimagem (cf. Sapiro, 1999, pp. 69-70). Esse aspecto, que, na França, se
acelera com a Primeira Guerra Mundial, no Brasil, começa a ganhar força
em meados da década de 1920 e envolve não apenas escritores, mas também
artistas e arquitetos, que vão aos poucos se distribuindo entre católicos,
integralistas, comunistas. Mesmo que não tenha sido exatamente assim, a
imagem que Alceu Amoroso Lima produz de si nos textos memorialísticos
quer mostrar sua primeira fase como sendo a de um crítico exclusivamente
preocupado com questões estéticas, na torre de marfim, da qual teria des-
cido para entrar no terreno dos combates ideológicos, atraído por Jackson
de Figueiredo.
“Estamos mais longe de 1907 do que de 1835”. Com essa frase cifrada,
Alceu começa a crônica “Aspectos brasileiros” (Lima, [1925] 1966x, p. 965).
Mas a cifra não é tão complicada. A ideia subjacente é que o momento
em que escreve apresenta no cenário social e político os mesmos riscos de
desagregação presentes no Brasil no início da Regência, em 1835. Não são
feitas alusões ao tenentismo, à Revolução de 1924 em São Paulo, à Coluna
Prestes, porque desnecessário para o leitor contemporâneo. O ano de 1925,
vivido então, é o oposto de 1907, data que simboliza no texto a estabilização
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João Luiz Lafetá faz um inventário dos escritos de Alceu Amoroso Lima,
entre 1929 e 1941, e mostra que, nesse período, o projeto ideológico tomou
o lugar do projeto estético : dos 79 artigos que Alceu escreveu sobre letras,
apenas trinta são de crítica literária. Na primeira fase, é certo que o exame
da literatura predominava, mas é notável a constância de escritos sobre pro-
blemas brasileiros e, mesmo na crítica literária, estes quase sempre acabavam
por aparecer. A preocupação social e política, as incursões pela história do
Brasil, são uma marca muito presente também do jovem Alceu. O retrato
da cultura do país que se desenha nos textos busca quase sempre penetrar a
alma brasileira, entidade muito invocada, e esta é estruturada por meio de
polarizações: Machado (sóbrio, frio, humorista) versus Euclides (opulento,
caloroso, eloquente), universal versus local, clássico versus romântico, in-
No correr de toda nossa história literária, foi o contato da literatura importada com
esse elemento local [...] que provocou a diferenciação nacional de nossa literatura
e especialmente de certas figuras literárias. Daí nasceram o “americanismo”, mais
tarde o “brasileirismo” e afinal o “regionalismo”, formas cada vez mais acentuadas
do espírito local (Lima, [1922] 1966j, p. 588).
garimpeiro –, ganha sua “verdadeira fibra” durante a Guerra do Paraguai e as sertanismo, sobretudo porque o
clima nacionalista da época acen-
experiências que esta suscitou. Nesse ponto, Alceu traça um paralelo entre tuou a busca de tipos genuina-
Argentina e Brasil. Neste, quando o romantismo cede ao realismo e se abre mente brasileiros. Começaram
a só “ter interesse vaqueiros ou
o veio da literatura regional, “no mesmo ano em que Taunay publicava aqui matutos, poemas em dialeto e
sua Inocência, primeira obra em que o sertão se revela como é, vinha à luz na peças de pseudoteatro em que
era feita a apologia do sertão. O
Argentina um poema, que ficou até hoje como arquétipo da literatura gau- Brasil era apenas o sertanejo e logo
chesca: o ‘Martin Fierro’ de José Hernandez [...]” (Idem, p. 589)7. surgiu uma espécie literária ainda
sobrevivente, a do sertanejo de
E Visconde de Taunay ocupa no pensamento de Alceu um lugar de salão[...]” (Lima, [1923] 1966r,
destaque. A polarização entre o universal e o local não é apenas uma chave p. 806).
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Brasil, mas que aqui ainda é rala e tênue. Atração pelo mundo. Mais tarde,
essa polarização acaba por ser invertida em outra formulação de Alceu:
[...] é nessa luta entre as tendências locais da razão e a atração alienígena do sentimento
que reside o caráter mais distintivo de nossas letras. Ao contrário do que dizia Na-
buco, em literatura somos europeus de sentimento e brasileiros de razão. A cultura
também é uma segunda natureza. Seduzidos por ela nos sentimos acanhados no
meio americano, ao passo que a razão nos mostra que só nele reside a esperança de
nossa possível originalidade (Idem, p. 825, grifos meus).
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como também à visão com a qual, mais tarde, Antonio Candido abre
Formação da literatura brasileira: “Nossa literatura é galho secundário da
portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das musas [...]”
(Candido, [1945] 1981, p. 9). No entanto, há em Alceu uma perspectiva
que embaralha esse processo de relativa linearidade. “Não começando pelo
começo, temos hoje, lado a lado, começo e fim. [...] não possuímos uma
velocidade uniforme de marcha. Possuímos várias velocidades. O Brasil tem
muitas idades” (Lima, 1929, p. 60). Com essa visão, Alceu afina seu ataque
à ideia de que somos primitivos, que julga estar presente na radicalização
modernista de Oswald de Andrade, no momento da poesia pau-brasil.
“Somos uma nacionalidade feita de cima para baixo. Tivemos o supérfluo
antes de ter o necessário. Coroa antes de povo. Academias antes de folk-
lore. Luxo antes de riqueza. Somos uma nacionalidade precipitada” (Idem,
ibidem). Digo aqui “afina”, porque o ataque já havia sido feito em 1925
e teve três alvos paulistas. Além de Oswald e Mário de Andrade, também
Sérgio Buarque de Holanda.
As críticas de Alceu de 1921, Afonso Arinos, que é trabalho de mais fôlego
publicado em 1922, e os rodapés deste mesmo ano, não indicam grande
envolvimento com o movimento modernista. Predomina a mesma visão
ampla que vai da história à sociologia, à literatura brasileira do século XIX,
à literatura estrangeira, à interlocução constante com os anatolianos – o
acompanhamento do que se publica na hora. Em janeiro, faz um elogio
a Menotti del Picchia sem, no entanto, qualificá-lo ou associá-lo a movi-
mentos ou correntes. Em texto de junho de 1922, quando fala de “Escola
Paulista”, está se referindo a “uma plêiade de escritores que nesse século, e
mesmo desde a última década do século passado, vem lentamente criando
o ambiente intelectual da Pauliceia, que circunstâncias mais remotas con-
correram também para tornar fecundo” (Lima, [1922] 1966n, p. 690).
Da “nova geração paulista” afirma que uma de suas características é que os
poetas são subjetivistas e os prosadores nacionalistas. Está certo que aqui a
9. A resenha crítica em questão
é do livro de João Pinto da Silva, voz não é exclusivamente de Alceu, mas dos livros que resenha, por meio
Fisionomia de novos, de 1922, que dos quais expõe e afina seu pensamento9. Na Escola Paulista estão Monteiro
Alceu considera deficiente no
que diz da Escola Paulista, mas
Lobato, Hilário Tácito, Godofredo Rangel, Leo Vaz, Guilherme de Almei-
os aditamentos e correções que da, Martins Fontes, Afonso Schimidt, Menotti del Picchia, Paulo Setúbal,
faz não colocam em questão a
divisão entre os modernistas e os
Cornélio Pires, Amadeu Amaral. Apesar de alguns modernistas estarem
que vieram antes e foram muitas citados, não há referência à Semana, ocorrida em fevereiro, e nem mesmo
vezes reativos ao movimento. A
imagem da Escola é a de um
Mário de Andrade ou Oswald de Andrade são referidos, figuras que naquele
continuum. momento já tinham algum destaque fora de São Paulo.
de exprimir quanto o de um estranho, não admira que escrever bem seja um se vale da psicanálise e supõe
ainda uma espécie de interpene-
lento trabalho de destilação ou de apuração, que observadores superficiais tração anímica entre o crítico e o
podem confundir com simples exercícios gramaticais [...]” (Lima, [1922] autor. No entanto, esse método
não deve ser superestimado; em
1966m, p. 683). Afonso Arinos, de fato, ele sus-
Com isso, vai se fixando a imagem de um crítico moderno, à procura da tenta a análise, porém, na crítica
rotineira, as premissas dele apenas
originalidade da literatura brasileira, mas em constante diálogo construtivo ecoam. Um curto, mas certeiro
com a tradição; um crítico favorável às experiências renovadoras, mas em comentário a respeito desse mé-
todo crítico pode ser lido em
nada iconoclasta. E, sobretudo, um crítico de clara orientação clássica, avesso Candido (1983).
à retórica, ao gramaticismo, mas adepto do trabalho estilístico, do polimento
da linguagem, não como recursos ornamentais, mas como elementos deci-
sivos da expressão da personalidade. Modernismo ático.
Apenas em janeiro de 1923 é que Mário e Oswald de Andrade aparecem
pela primeira vez nos escritos de Alceu Amoroso Lima. Artigos elogiosos, mas
com certa distância. Em face deste “malcrismado ‘futurismo’”, declara-se an-
tes de mais nada “eternista”. Pauliceia desvairada ; Os condenados. Diante des-
ses livros lhe fica a impressão de um Mário mais “fremente de impaciências,
sonoro de imprecações”, em face de um Oswald “mais sereno, porque apenas
construtivo” (Lima, [1923] 1966q, pp. 773-775). A recepção do crítico é
positiva, mas não deixa de apontar o “defeito orgânico desse modernismo”:
“a sua transplantação”, e sobre isso deixa claro que o élan que conduz Mário é
coisa de antes da guerra, enquanto a tendência corrente no momento “é uma
volta à disciplina sem sacrifício da renovação” (Idem, p. 768). Para Alceu, Má-
rio conseguiu corajosamente quebrar convenções e expressar como ninguém
as características de São Paulo: a trepidação, a variedade, a intensidade da vida.
“Mas é São Paulo, e o defeito desse impressionismo é chegar ao regionalismo
urbano, de modo que seu livro só pode ser compreendido em seus pormeno-
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Hoje, mais do que nunca, toda arte poética há de ser principalmente – por quase
nada eu diria apenas – uma declaração dos direitos do Sonho. Depois de tantos
séculos em que os homens mais honestos se compraziam em escamotear o melhor
da realidade, em nome da realidade temos de procurar o paraíso das regiões ainda
inexploradas [...]. Só à noite enxergamos claro (Holanda apud Lima, 1966z, p. 991)
Isso de impor à poesia um cultivo intenso dos sonhos é apenas arte poética para
poetas sem poesia. A inspiração é uma fonte incessante que os verdadeiros poetas
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precisam refrear. Só os poetas sem inspiração, sem poesia, sem ter o que dizer, só os
poetas de viagem ou de salão é que podem socorrer-se desses direitos inalienáveis do
sonho e hão de passar a vida suando sobre o inconsciente para que este lhes forneça,
a muito custo, algumas gotinhas de poesia. O suprarrealismo foi um recurso de
desesperados (Lima,1966z, p. 991).
Ser clássico é clarificar o espírito, é submeter a criação à crítica, é absorver o roman- 12. Trata-se de uma visão do
classicismo bastante original no
tismo ambiente, o romantismo profundo do nosso subconsciente, o romantismo contexto em que foi formulada.
das forças de dissolução, de anarquia, de hesitação, de paixão e de exuberância, que Entre as noções de barroco e clás-
sico, romântico e clássico, predo-
andam esparsas no mundo exterior, e no nosso mundo íntimo, para coordená-las, minava a polarização (normativa,
depurá-las e chegar à essência e à expressão (Idem, p. 925). antinormativa ou simplesmente
analítica como a de Wölfflin).
A discussão avança em muito
Um pouco como Goethe de quem se diz que foi clássico depois de quando Spitzer, em 1931, em
seu estudo sobre Fedra de Raci-
romântico. O clássico supera o romântico, mas sem suprimi-lo12. Não se ne, introduz a noção de klassische
trata, portanto, de um classicismo canônico, mas de uma disposição, de Dämpfung, que tem o sentido de
“atenuação clássica”, ou “efeito de
uma disciplina que tira a energia das forças vitais, pretendendo, contudo,
surdina”. Essa noção foi essencial
dominá-las. É isso que Alceu Amoroso Lima apresenta no horizonte de sua para o entendimento do século
geração quando dos combates generalizados da década de 1920. XVII francês, pois só por meio
dela a França deixou de ser vista
como uma fortaleza clássica cer-
Debandada modernista cada de forças barrocas por todos
os lados. Com essa chave, Spitzer
conseguiu demonstrar que Ra-
Não é possível aferir por completo o papel e a dimensão que as críticas de cine foi um poeta barroco que
conseguiu submeter o fluxo das
Tristão de Athayde tiveram na desarticulação que o movimento modernista forças vitais à medida clássica (cf.
viveu a partir de 1925. Isso porque houve tiroteio de todos os lados. Havia Spitzer, 1970). A ideia de classi-
cismo em Alceu segue a mesma
sem dúvida uma questão de disputa entre os dois polos do campo intelectual lógica, mas operando com os ter-
e artístico que se formava. O Rio de Janeiro era capital cultural, de longa data, mos romântico e clássico.
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Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso Lima, pp. 101-133
desagrada “sua atual atitude intelectualista”. Faz, com isso, convergirem no de etnólogo sobre a diferença entre
religiosidade e catolicismo. Para
centro Alceu e Mário. ele, no Brasil, o central é a religio-
Nas réplicas a Alceu, percebe-se que tanto Mário de Andrade ([1931] sidade e não o catolicismo. Ataca
então o Alceu já convertido em
1972a) como Sérgio Buarque de Holanda ([1928] 1988c) são muito mais ideólogo católico. Sobre literatura
moderados do que o crítico foi com eles. Não respondem no nível em que acentua sua discordância com
Alceu reivindicando a autono-
foram confrontados14 e não deixam de expressar a admiração pelo inter- mia do campo: “Está claro que
locutor. Mesmo a maneira como Mário acaba seu ensaio sobre Tristão de sob o ponto de vista literário
toda crítica dotada de doutrina
Atahyde é plena de ambiguidade, pois, ao mesmo tempo em que projeta religiosa ou política é falsa [...]”
uma caricatura, dá ao personagem uma dimensão extraordinária: (Andrade, 1972a, p. 7).
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Toda a conciliação que se propuser entre esses dois planos não será outra coisa que
um hibridismo insólito [...]. Não se pode mais hoje, como no tempo de Santo
Agostinho, ser ao mesmo tempo e simultaneamente um cidadão do céu e da terra.
E o pensamento que realmente quiser importar para a nossa época há de se afirmar
sem nenhum receio pelos seus reflexos sociais, por mais detestáveis que estes pare-
çam. Há de ser essencialmente um pensamento apolítico (Holanda, 1988b, p. 114).
As ideias não estão de todo amarradas, mas quando Sérgio postula a indife-
rença, não está sugerindo a inação, mas simplesmente negando a legitimidade
de um roteiro definido pelos homens sábios, a elite literária bem-posta; os
próprios agentes, com seus talentos e inclinações, em seus embates farão a
literatura de expressão nacional. Sobre a religião, a cisão entre o céu e a terra
está dada e é ilegítima a pretensão de, por meio das instituições dos homens,
por meio da política, combater a irreligiosidade e defender o reingresso da
cidade de Deus na terra. Salvo engano, Sérgio está dizendo que a literatura
seja deixada aos literatos e a religião àqueles que têm fé.
A resposta talvez esteja dada no próprio roteiro que Sérgio estabelece para
ele mesmo. Retirar-se do papel de pretenso condutor das novas gerações,
Geração de 1945
É evidente que essas ideias de 1921 viram letra morta depois da conver-
são, que se processa entre 1925 e 1928. Nessa época, Alceu pensava como
o Mário de 1931 ao combater o Alceu católico que, para ele, estava perdido
para a crítica:
Está claro que sob o ponto de vista literário, toda crítica dotada de doutrina re-
ligiosa ou política é falsa, ou pelo menos imperfeita. Pragmaticamente exata mas
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Vejo a crítica, pois, como um recanto particular de uma filosofia total da vida,
que inclui o Tempo e a Eternidade, o homem e Deus. A crítica que entendo fazer
se baseia, pois, numa Metafísica Cristã. E essa metafísica não repudia valor algum.
Procura, ao contrário, colocar cada qual em seu lugar. Daí o segundo fundamento
dessa crítica: a hierarquia de valores.
Essa hierarquia – Arte, Ciência, Filosofia, Religião – por sua vez se estende, não
numa subordinação absoluta de valores e sim numa disposição orgânica [...] (Idem,
ibidem, grifos do autor)
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fazer uma crítica altamente impura, fora dos primeiros a defender a ideia da
análise interna da obra. Um homem que havia desviado de rota, na defesa
da igreja católica contra a modernidade, mas que não abandonou o ofício
de crítico, ao contrário, tornou-o mais complexo – mas também menos
imanente – ao ser um dos fundadores dos cursos de letras e de literatura
no sistema universitário criado no Brasil entre as décadas de 1930 e 1940.
Um homem que estava a par da progressiva conquista de hegemonia das
abordagens internalistas no âmbito dos estudos literários, o que se confir-
mava com a aproximação dos jovens da geração de 1945 do New Criticism,
16. Afrânio Coutinho mais de jovens que acabaram por eleger Alceu como seu precursor no Brasil16, ao
uma vez faz essa aproximação.
Entre os precursores da nova
mesmo tempo em que, no plano externo, elegiam Eliot como a referência
crítica indica Alceu de Amoroso decisiva no plano da poesia e dos estudos literários. Para Alceu, a militância
Lima, Mário de Andrade e Eugê-
cristã e o sectarismo eram então um estorvo, nos marcos de uma crítica que
nio Gomes: “Tristão de Ataíde, o
grande crítico da época modernis- se queria autotélica, mas ele continuava sendo uma liderança católica e não
ta, lançou uma semente fecunda podia separar-se por completo do passado.
ao reivindicar, na obra Afonso Ari-
nos [...], um ‘expressionismo’ críti- Já em 1936 – antes, portanto, do aggiornamento – Alceu Amoroso Lima
co, como reação contra o anterior falava em pós-modernismo. Indicava a mudança de qualidade no clima inte-
impressionismo, e propondo uma
crítica em que predominasse o
lectual de então em face do momento de crise que marcou a época moder-
‘objeto’, isto é, a obra, em lugar nista (como se, em 1936, não houvesse crise no Brasil e no mundo). Segun-
do ‘sujeito’, o crítico, com suas
impressões” (Coutinho, 1987, p.
do ele, um humanismo brasileiro e cristão, local e universal já deixara sua
455). marca “nesta fase pós-modernista que estamos vivendo e que viu a falência
dos artificialismos e dos exotismos mentirosos para assistir a um promissor
rejuvenescimento [...]” (Lima, [1936] 1980a, p. 383). Parece claro que por
artificialismo e exotismos mentirosos deve-se entender modernismo, já que
nas suas críticas ao movimento o que mais fazia era denunciar as impor-
tações, os exotismos. De fato, o “neomodernismo” de 1945 não pode ser
entendido sem que se atente para o trabalho preparatório de Alceu, que nas
histórias literárias sempre aparece como um dos mais importantes críticos
17. É interessante notar que modernistas17. O que procurei mostrar nesse percurso foi o desconforto de
em Lima (1959) ele passa
pelo modernismo com muita
Alceu em face do modernismo, não apenas na face radical, que vinha de
exterioridade, por meio de um São Paulo. No Rio de Janeiro, também Graça Aranha – figura central no
panorama predominantemente
clã dentro do qual Alceu era o jovem promissor – parecia dotado de uma
descritivo de episódios, correntes,
autores e obras, para no último gesticulação excessiva e de um desejo de chamar a atenção para sua presu-
capítulo, dedicado ao neomo- mida liderança. Também os nacionalistas que se orientaram para posições
dernismo, escrever de forma
envolvente e problematizadora autoritárias, apesar disso, não podiam ter nele, do ponto de vista estético,
sobre as perspectivas dos novos uma referência, em razão da face cosmopolita de seu pensamento. Alceu
autores.
combateu de forma sistemática o eixo mais original do modernismo de
1922, mas o movimento venceu. No plano simbólico, conseguiu instituir
Sergio Milliet foi outro que viveu o modernismo e fez a passagem para
as novas tendências posteriores a 1945. Ele afirma que o modernismo havia
legado no plano da poesia uma série de truques fáceis, a piada, o trocadilho,
a associação de ideias, “toda uma farmacopeia irritante. Entretanto, a reação
de equilíbrio aí está, visível no despojamento consciente de alguns novos”
([1946] 1983).. Com isso, não apenas saudava a renovação poética dos neo-
modernistas, como também associava seu nome a eles ao fazer parte como
conselheiro e colaborador da Revista Brasileira de Poesia 18, um dos núcleos 18. Além de Alceu e de Milliet,
a Revista Brasileira de Poesia rei-
mais expressivo da geração de 1945, em São Paulo, no qual se destacaram vindica Mário de Andrade como
Péricles Eugênio da Silva Ramos, Carlos Burlamaqui Kopke e Domingos precursor, porque sua defesa do
artesanato e da consciência téc-
Carvalho da Silva. A esse núcleo, associou-se um grupo do Rio de Janeiro
nica redundou em uma “poesia
que teve Afrânio Coutinho como figura central, ao qual estiveram ligados descarnada, sóbria e digna, que
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períodos mais recentes ainda pouco estudados. Além dos seis nomes citados,
participaram também do projeto Armando Carvalho, Segismundo Spina,
José Aderaldo Castelo, Jamil Almansur Haddad, Antonio Candido, Décio
de Almeida Prado. Candido também colaborou com a Revista Brasileira
de Poesia, publicando dois artigos sobre poetas-chave da geração: Elliot e
Pound. Pode-se dizer que Clima e Revista Brasileira de Poesia são gêmeas do
ponto de vista geracional, com Mário de Andrade e Milliet na condição de
“precursores” de ambas. No entanto, claramente fazem bifurcação geracional,
tanto no plano político, como na visão de literatura e cultura.
No que diz respeito a Alceu Amoroso Lima, se o modernismo já era
então incontornável, no entanto, podia considerar que seu combate de
1925 havia surtido efeito. Seus apelos eternistas e seu classicismo encontra-
ram eco em uma geração de críticos e poetas mais jovens, não tão sensíveis
aos apelos religiosos, mas, no seu entender, mais maduros ao enfrentar os
dilemas do ofício.
Sérgio Buarque de Holanda, outra vez no polo oposto de Alceu, viu nos
poetas de 1945 a expressão do refluxo (cf. Holanda, 1996a, p. 331-345).
Para além das divergências poéticas, o que incomodava Sérgio Buarque era
o conservadorismo que se anunciava com o gosto mais clássico das novas
gerações. E, para ele, era sintomático que Eliot chegasse com elas ao Brasil,
não como “fenômeno pessoal extraordinário”, mas como “respeitável ins-
tituição” cheia de tradicionalismo: “O tradicionalismo político, religioso –
‘high church’ – e em certos pontos até literário de um Eliot e de um Pound,
tradicionalismo que o coronel Lawrence, em uma das suas cartas, compara
finamente ao afã do ‘homem novo’ em busca de antepassados ilustres (Eliot
e Pound são americanos do Middle West), concordam bem com esse gosto”
(Holanda, 1996b, p. 391). Mas se, para Sérgio, o gosto clássico representado
por esses poetas resultava de
***
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Resumo
O artigo trata dos anos de formação de Alceu Amoroso Lima, na época em que se emerge
como um dos principais críticos da década de 1920. Destaca o papel combativo que
fez dele um homem da continuidade e um adversário dos modernistas de São Paulo –
Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda – que, apesar de
fustigados, reconheceram sua potência crítica. Trata também das duas reorientações que
o levaram, primeiro, à condição de paladino do catolicismo ultramontano e, depois,
ao aggiornamento, na mudança de rota da igreja católica no ocaso do fascismo, o que
fez dele homem-chave na contensão das tendências radicais do modernismo e também
no advento da geração de 1945. O resgate da trajetória do crítico permite o exame das
relações entre os campos político, religioso e literário, na primeira metade do século XX.
Palavras-chave: Alceu Amoroso Lima; Crítica literária; Pensamento brasileiro; Moder-
nismo; Geração de 1945.
Abstract
Critique, combat and drift of the literary field in Alceu Amoroso Lima
The article focuses on the intellectual formation of Alceu Amoroso Lima, during a
period in which he emerged as one of the foremost critics of the 1920s. It highlights
the combative role that made him an advocate of tradition and an adversary of the
São Paulo modernists – Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Sérgio Buarque de
Holanda – who, though lambasted by him, recognized his critical potential. The text
also examines two shifts that led him first to become a champion of Ultramontane
Catholicism, and later to endorse the aggiornamento, the Catholic Church’s change in
direction following the collapse of fascism, which made him a key figure in containing
modernism’s radical tendencies and also in the advent of the 1945 generation. Docu-
Texto recebido e aprovado em
menting the critic’s trajectory allows us to examine the relations between the political, 30/7/2011.
religious and literary fields in the first half of the 20th century. Guilherme Simões Gomes Júnior
Keywords: Alceu Amoroso Lima; Literary criticism; Brazilian thought; Modernism; é professor do PEPG em Ciên-
cias Sociais e do Departamento
1945 generation. de Antropologia da PUC-SP; é
livre-docente em Sociologia da
Cultura (USP) e doutor em His-
tória Social (USP). É autor de
Palavra peregrina (Edusp/Fapesp,
1998) e de Borges:disfarce de autor
(Educ, 1991). E-mail: <gomesjr@
uol.com.br>.
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A Pequena história da literatura brasileira
Provocação ao modernismo
André Botelho
“um tão perfeito instrumento de expressão [Ronald] pôde dar mais relevo
às ideias e mais propriedades às apreciações” (Lima, 1948, pp. 38 e 139).
Mais do que uma idiossincrasia do autor – embora, num determinado
plano, correspondesse ao seu estilo – a narrativa fluente respondia antes aos
objetivos a que ele se propunha naquele contexto intelectual. Como afirmou
Ronald de Carvalho, seu trabalho estava “destinado a vulgarizar, nos seus
delineamentos, a fisionomia da nossa literatura” (Carvalho, [1919]* 1922, p. * A data entre colchetes refere-se
à edição original da obra. Ela é
254). De fato, o livro foi utilizado como manual para o ensino de literatura
indicada na primeira vez que a
brasileira nas escolas durante pelo menos quatro décadas (cf. Martins, 1983, obra é citada. Nas demais, indica-
p. 465), uso didático que o tornou um dos primeiros e grandes sucessos edi- se somente a edição utilizada pelo
autor (N.E.).
toriais da livraria F. Briguiet (cf. Hallewell, 2005, p. 268). Assim, bovarismo à
parte, a autorrepresentação de Ronald de Carvalho ganha sentido sociológico
quando consideramos que iniciativas desse tipo vinham então ganhando cada
vez mais espaço no contexto do incipiente mercado editorial brasileiro como
parte de uma série de mudanças em curso (cf. Lajolo e Zilberman, 2009). E
textos submetidos a usos didáticos – as tais “utilidades de ginásio e curso se-
cundário” de que reclamava Mário de Andrade – constituem meios de sociali-
zação por excelência, atuando na transmissão de representações sobre o Brasil,
por meio das quais nos formamos moral, intelectual, política e esteticamente
(cf. Botelho, 2002). Antonio Candido, por exemplo, observava no prefácio,
datado de 1957, da primeira edição da Formação da Literatura Brasileira : “Li
também muito a Pequena história, de Ronald de Carvalho, pelos tempos do
ginásio, reproduzindo-a abundantemente em provas e exames, de tal modo
1. Traços, aliás, muito bem
estava impregnado de suas páginas” (Candido, [1959] 1964, p. 3). Assim, não capturados por Vicente do Rego
parece descabido ponderar que o livro tenha desempenhado também papel Monteiro no retrato que pintou
de Ronald de Carvalho em 1921.
relevante na rotinização de ideias, valores e práticas sobre a literatura brasileira Como observou precisamente
e, mais ainda, sobre o modernismo e seu lugar estratégico na nossa história e Sergio Miceli, ao apresentar “o
então jovem escritor e diplomata
vida cultural.
de paletó verde-escuro, gravata
Disponibilidade para a missão de que se investiu parece não ter faltado vermelha com alfinete e colari-
a Ronald de Carvalho. Recursos intelectuais, sociais e institucionais tam- nho alto engomado, ocupando a
pirâmide central de uma compo-
bém não1. E, articulando essas diferentes dimensões, nenhum outro fator sição compacta cujo fundo são as
parece ter sido mais importante do que a sua carreira no Ministério das lombadas em cores pastel bem de-
finidas de duas fileiras de livros”,
Relações Exteriores – interrompida tragicamente por sua morte aos 42 o pintor “buscava surpreender
anos de idade –, como pude discutir noutra oportunidade (cf. Botelho, por meio do contraste entre a ju-
ventude e a prontidão intelectual
2005). Entreposto de ideias mobilizado segundo as diferentes estratégias transmitidas pelo semblante com
de política cultural do Estado, o Itamaraty favoreceu a importação e a a muralha de livros coloridos que
pareciam povoar-lhe a cabeça e
difusão da produção intelectual estrangeira no país e vice-versa (da produ- moldar-lhe a existência” (Miceli,
ção brasileira no exterior). Esse duplo papel foi particularmente marcante 1996, p. 51).
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que certo elenco de questões parecesse problemático e acabasse integrando motivações concretas e uma
possível originalidade quer em
centralmente o “contexto intelectual” do modernismo4. Tomo aqui, especial- relação à tradição particular da
mente, a ideia – não isenta de ambiguidades – de “simplicidade” como cri- qual o autor faz parte, quer em
relação aos seus contemporâneos.
tério de formação da literatura brasileira e discuto como ela (1) permite uma Isso ajuda a evitar os anacronis-
crítica ao legado cultural ibérico e, em contrapartida, uma defesa da aproxi- mos tão comuns em análises
históricas, que terminam por
mação da literatura à linguagem cotidiana; e (2) apresenta, a seu modo, uma conferir aos autores intenções ou
resposta aos constrangimentos trazidos pelas influências externas à dinâmica categorias carregadas de sentidos
bastante distantes daqueles dispo-
cultural brasileira – campo problemático central no modernismo brasileiro, níveis em sua época (cf. Skinner,
e muito depois dele. 1969, pp. 6-16).
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Sílvio condenava, muitas vezes, mais os homens que os princípios, via a obra através
do autor, julgava a cultura pela raça. Seus erros de observação não lhe devem correr
por conta do raciocínio, que era de uma precisão admirável, mas, geralmente, por
mal do seu coração, que era um tanto feminino, tal a instabilidade das suas prefe-
rências (Carvalho, 1922, p. 340).
Ao contrário de Sílvio, José Veríssimo via apenas a obra e nunca homem, exaltava
ou condenava o escritor sem se importar com a sua categoria social ou mesmo
literária. O autor, para ele, era uma figura secundária, sem interesse imediato, a
não ser quando havia na sua vida um ou outro pormenor que pudesse explicar com
mais segurança certas particularidades da obra (Idem, p. 344).
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[...] com os primeiros românticos, entre 1836 e 1846, a poesia brasileira, retomando
a trilha logo apagada da plêiade mineira, entra já a cantar com inspiração feita dum
consciente nacional. Atuando na expressão principiava essa inspiração a diferençá-
la da portuguesa. Desde então somente é possível descobrir traços diferenciais nas
letras brasileiras (Veríssimo, 1963, p. 6).
Neste ponto surge uma das convergências mais importantes entre José
Veríssimo e Sílvio Romero: a precedência da independência política sobre
a literária e intelectual. Para ambos, as condições de florescimento de uma
literatura nacional e a feição por ela assumida seriam produtos da própria
evolução histórica da sociedade. Mais do que para eles, no entanto – que
tomaram a “autonomia cultural” como consequência da “autonomia política”
do país –, o axioma da feição particular (“brasileira”) da língua portuguesa
assume para Ronald de Carvalho a condição basilar da formação de uma
literatura nacional no Brasil.
Embora desde Romero essa possibilidade estivesse, em tese, assegurada,
quando Ronald publicou sua Pequena história a autonomia linguística cons-
tituía ainda objeto de acirradas polêmicas entre literatos, filólogos e histo-
riadores literários. Publicados respectivamente em 1921 e 1922, os livros A
língua nacional, de João Ribeiro – que defendia a diferenciação, a autonomia
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II
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tador ideal: o Quixote que “luta sem saber com quem, contra um moinho
ou contra um exército, mas luta porque tem necessidade de aventuras para
viver” (Carvalho, 1922, p. 25). Contraposta à ideia de “estabilidade”, que,
segundo o autor, “é por onde se revelam os povos já velhos e constituídos”
(Idem, p. 128), a ideia de “aventura” é sistematicamente formulada ao longo
da Pequena história como definidora do “caráter brasileiro”:
Já se disse, no correr deste livro, que não possuímos a noção da estabilidade; ora,
sem essa qualidade primacial, que não se improvisa, e somente se adquire com o
trato e a experiência dos homens e do mundo, não haverá equilíbrio nos conceitos,
nem justeza nos comentários; não haverá filosofia na história, nem penetração na
crítica. Acresce, também, que os povos da península ibérica de quem descendemos
diretamente, para não mencionar o índio e o africano, cuja capacidade de obser-
vação é secundária, nunca se revelaram superiores por esse lado. Ali predomina,
igualmente, a paixão, o lirismo histórico obscurece a visão dos fatos, o culto da
imaginação perturba o conhecimento lógico das coisas. A irreverência de Cervantes
e a exaltação de Camões definem a raça hispano-lusa (Idem, p. 276).
O que, porém, define melhor as suas íntimas ligações com a alma brasileira e a
influência considerável que ele exerceu, e ainda exerce, em nossas letras, é a sua
concepção essencialmente epicurista e voluptuosa da vida. Os povos em formação
que, à semelhança do nosso, estão em conflito permanente de tendências e direções,
marcham por entre uma exaltação de egoísmos que só lhes deixa entrever, como fins
realizáveis e imediatos, o prazer e o gozo, na fortuna vária. As grandes abstrações
não os comovem, os sistemas transcendentes da inteligência pura não chegam a
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É contra esse eterno soneto que reagimos presentemente. De fato, quem estudasse
a nossa literatura poética, durante a última metade do século XIX e o primeiro
quartel do século XX, ficaria embaraçado se quisesse atenuar a venenosa ironia
do mencionado conceito [...]. De tal modo se inveterou em nossos costumes,
que ficamos, insensivelmente, à margem de toda a evolução literária do universo
(Idem, ibidem).
Sua ingenuidade é postiça, não nos comove; seus pastores são, geralmente, vazios, sem
alma, são talvez, como aquela cigarra da ode anacreôntica, iguais aos deuses intangí-
veis do Olimpo, pois o que lhes falta justamente é sangue vermelho, sangue humano.
Cláudio tinha, sem favor, um admirável gosto para vestir e compor os seus bonecos,
à francesa ou à italiana, conforme as exigências da hora. Sabia também, e com apre-
ciável talento, corrigir a natureza, aparar-lhe as arestas, arredondar-lhe os contornos
ásperos, mas fazia-o tão cuidadosamente que, afinal, não era mais a natureza que
se apresentava nas suas éclogas ou nos seus sonetos, mas um painel decorativo,
digno de Fragonard e dos pintores galantes do século XVIII, em França. Quer em
Alvarenga Peixoto, quer em Silva Alvarenga havia muito mais larga compreensão
da terra, muito mais verdade nativista, se assim podemos dizer (Idem, p. 173).
Se é verdade que o Sr. Alberto de Oliveira sofreu a influência dos parnasianos fran-
ceses, não é menos certo que, há muito, dela se libertou, ganhando maior amplitude
os seus temas e mais simplicidade a sua poesia, sempre elegante, aliás, e sempre
correta. Demais, um grande poeta impassível é um jogo de palavras sem sentido,
uma refinada monstruosidade que só a logomaquia habitual se compraz em repisar.
O autor das “Meridionais” continua a ser, nas suas múltiplas tendências clássicas,
românticas ou parnasianas, sobretudo um lirista sensível, colorido e imaginoso.
Sua imaginação é mesmo, como expressão literária, uma das mais consideráveis de
quantas tem aparecido no Brasil (Idem, ibidem).
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esses homens de letras. Pois, como ele mesmo afirma: “Ficamos, apenas, com
alguns nomes e datas na memória, mas sem poder ligá-los” (Idem, p. 282).
Radicalizando o axioma da literatura como expressão da nacionalidade,
Ronald toma a possibilidade de uma feição brasileira da língua portuguesa
não apenas como base de uma literatura brasileira nacional, mas também
como critério de avaliação das obras que justificariam tal formação. A “lin-
guagem brasileira” é perseguida na temática, bem como na dicção, sintaxe
e vocabulário das obras. A característica fundamental dessa “linguagem
brasileira” seria, como vimos, a “simplicidade” em detrimento dos artifícios
formais identificados à tradição cultural lusitana. Artifícios cultivados e
atualizados pelo ideário estético e ideológico parnasiano, mas não necessa-
riamente por todos os seus poetas. Vemos assim, portanto, como estava em
jogo um debate não apenas sobre a literatura, mas também sobre a própria
formação de um “léxico” para o Brasil moderno.
E a ideia de “simplicidade” está diretamente associada à definição do
papel atribuído à literatura de desvelar a “realidade”. Segundo Ronald, na
busca pela perfeição da forma, o modo parnasiano de versificação cristalizado
em regras acadêmicas acabou por levar inevitavelmente ao alheamento da
literatura da “realidade” tangível. Este, então, o “sentido” apontado na Pe-
quena história para a renovação estética e intelectual brasileira: aproximar a
literatura produzida no país da sua “realidade” própria – tema que integrou
de modo controverso o debate intelectual mais amplo nos anos de 1920 e
1930, sendo fundamental também no ensaísmo de interpretação do país
contemporâneo (cf. Botelho, 2010). É nesse quadro que a valorização dos
elementos tidos como “locais” e “populares” adquire sentido: “A verdadei-
ra poesia”, afirma Ronald, “nasce da boca do povo como a planta do solo
agreste e virgem. É ele o grande criador, sincero e espontâneo, das epopeias
nacionais, aquele que inspira os artistas, anima os guerreiros e dirige os
destinos da pátria” (Idem, p. 51).
A valorização da língua portuguesa falada no Brasil e sua transposição
para a escrita, ou, noutras palavras, a aproximação da língua escrita à falada,
constitui tema central do modernismo. Ele está presente de modos e com
sentidos diversos em ensaístas, literatos e poetas do período. Sua adoção
programática é central em Mário de Andrade, por exemplo. Em carta datada
de 18 de fevereiro de 1925 a Carlos Drummond de Andrade, Mário refere-se
a essa questão como a aproximação do “como falamos” ao “como somos”,
uma verdadeira “aventura que me meti de estilizar o brasileiro vulgar”. Uma
aventura, porém, “muito pensada e repensada”, já que se trataria de uma
O povo não é estúpido quando diz “vou na escola”, “me deixe”, “carneirada”,
“mapear”, “besta ruana”, “farra”, “vagão”, “futebol”. É antes inteligentíssimo nessa
aparente ignorância porque sofrendo as influências da terra, do clima, das ligações
e contatos com outras raças, das necessidades do momento e da adaptação, e da
pronúncia, do caráter, da psicologia racial modifica aos poucos uma língua que
já não lhe serve de expressão porque não expressa ou sofre essas influências e a
transforma afinal numa outra língua que se adapta a essas influências (Andrade e
Andrade, 2002, p. 100).
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III
renovação proposta no livro. Ela não era, porém, desafio único ou isolado. Se-
gundo Ronald, várias causas concorreriam para a formação de uma literatura,
sendo algumas peculiares ao próprio povo e outras exteriores, que seguiriam
“como que um processo de lenta infiltração, de caldeamento intelectual
e moral” (Idem, p. 42). E embora as “causas internas” se lhe afigurassem
como as fundamentais, ele adverte que as “causas exteriores” não devem
ser desprezadas “como qualquer elemento perigoso de desnacionalização”:
“Não! As literaturas são como os seixos ao fundo quieto dos rios: precisam
de muitas e diferentes águas para se tornarem polidas. E se, por um lado,
podem ficar menores, perdem, por outro, certas arestas duras e agressivas,
infinitamente mais nocivas à sua perfeição” (Idem, p. 43; grifo no original).
As “causas externas” são entendidas na Pequena história, sobretudo,
como as influências europeias constitutivas da estrutura e da dinâmica da
nossa vida cultural como um todo. A principal decorrência prática dessa
posição – que também se mostra original em relação aos precedentes no
gênero – foi a tentativa de associar os movimentos e escolas literárias bra-
sileiras às correntes estéticas europeias, de modo a oferecer uma visão de
conjunto mais integrada dessas interdependências. Proposta como condição
da formação da literatura brasileira em termos nacionais, o declínio da in-
fluência lusitana não implicava, portanto, a negação de outras influências
exógenas, mas lhe seria contemporânea8. 8. A questão aparece na própria
periodização da literatura brasilei-
Como Sílvio Romero e José Veríssimo, Ronald de Carvalho também
ra proposta por Ronald de Car-
concebeu os processos de formação da literatura e da sociedade brasileiras valho: podemos perceber que o
sentido da formação do “período
como inteiramente congruentes, de modo que os dilemas formativos da
autonômico” é dado não apenas
literatura corresponderiam aos próprios dilemas formativos mais amplos pela decisiva decadência da in-
da sociedade brasileira. Para eles, o processo de formação da literatura fluência lusitana, como também
pela emergência da influência de
apresentava-se problemático no plano intelectual, sobretudo em função da novas correntes europeias como
questão da importação das ideias como mecanismo próprio de uma sociedade o romantismo e o naturalismo.
Como observou a propósito Lú-
formada a partir da experiência colonial. Presos mais aos efeitos do que às cia Miguel-Pereira, o período an-
causas desse mecanismo social, no entanto, esses autores compartilham do terior ao “autonômico” – chama-
do de “transformação” em função
“sentimento acabrunhador da posição em falso de tudo o que concerne à das tentativas nativistas de “neu-
cultura brasileira”, que “a bem dizer tem a idade de nossa vida mental e com tralização” da influência lusitana
(entre 1750 e 1830) – “parece ter
ela se confunde – bem como as metamorfoses do desejo sempre renovado de
sido o mais independente, por-
corrigi-la mediante alguma sublimação descalibrada” (Arantes, 1997, p. 14). que, depois dessa curta tentativa
de reação, logo surge, não mais a
Romero abordou o tema de modo bastante explícito: “Bem como na
exclusiva influência lusitana, mas
ordem social tivemos a escravidão, na esfera da literatura temos sido um a europeia, muito mais forte”
povo de servos. Os nossos mais ousados talentos, se nos aconselham o (Miguel-Pereira, 1936, p. 55).
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[...] representa, sem dúvida, uma força nova da humanidade, e é lógico que possua,
como de fato possui, uma civilização mais ou menos definida, onde predominam,
é certo, as influências europeias, mas onde já se vislumbram vários indícios de uma
próxima autonomia intelectual, de que a sua literatura, já considerável e brilhante,
constitui a melhor e a mais decisiva prova (Carvalho, 1922, p. 37).
uma “nação” fundada num conjunto de valores culturais próprios que lhe
conferisse identidade e coesão social.
Curiosas essas histórias da literatura que parecem sempre incompletas,
mas, mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, insistentemente atraem novos
decifradores. É que, como muitos outros autores anteriores e posteriores,
Ronald não estava preocupado com a literatura apenas em termos das suas
características estéticas. Interessava-se também pelas respostas que estas po-
deriam dar às suas perguntas sobre a construção nacional do Brasil. Como
“meio onde nos encontramos e nos conhecemos a nós mesmos”, a literatura
resolveria, para o autor, “o antigo adágio grego, porquanto ‘reúne todas as
coisas que estão separadas, e vive separadamente em cada uma das coisas’”
(Idem, p. 322).
Embora não tenha desaparecido de todo após a Pequena história, a crença
historicista na congruência entre os processos formativos da literatura e da
sociedade ficaria, no entanto, deslocada a partir da década de 1950. Nesse
momento, as convicções da unidade nacional e da dependência cultural
que tanto animaram o modernismo dos anos de 1920 – em suas mais di-
ferentes vertentes – passaram a conviver e disputar definições do moderno
com perspectivas mais universalistas (cf. Botelho, 2009). Perspectivas que
se voltavam às formas de integração do país no capitalismo mundial, à re-
flexão sobre os impasses da sociedade de classes, bem como à realização de
uma ordem social democrática, secularizada e competitiva entre nós. Era
sobretudo a sociedade tal como se constituía – em seus movimentos, grupos
sociais, velhos e novos atores engajados no enfrentamento dos problemas
econômicos, sociais, políticos e culturais – que estava em questão na década
de 1950. Era, então, a parte igual da sociedade moderna que importava
instituir: homens, mulheres, negros, brancos, patrões, empregados, alfa-
betizados e analfabetos que sentem, pensam, agem, interagem, entram em
conflito, constroem o Brasil moderno.
Talvez por isso, quando se voltou novamente ao gênero em 1957,
Antonio Candido já tenha definido o seu estudo Formação da literatura
brasileira como – parafraseando um título de Julien Benda – uma “história
dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura” (Candido, 1964, p. 27).
Redefinição que provocou um deslocamento sutil, mas profundo, na abor-
dagem tradicional da literatura como expressão “da realidade local e, ao mes-
mo tempo, elemento positivo na construção nacional” (Idem, ibidem). Tal
deslocamento teria permitido ao autor compreender não apenas o percurso
da literatura brasileira, mas também como esse processo formativo poderia
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A Pequena história da literatura brasileira: provocação ao modernismo, pp. 135-161
se completar até mesmo de modo notável: sem que por isso o conjunto da
sociedade estivesse em vias de se integrar (cf. Schwarz, 1999). Problema e
perspectiva que, a despeito das mudanças em processo na sociedade brasi-
leira das últimas décadas, permanecem nos interpelando sociologicamente
e mobilizando parte da nossa mais instigante crítica da cultura.
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A Pequena história da literatura brasileira: provocação ao modernismo, pp. 135-161
Resumo
Abstract
The text analyzes the Small history of Brazilian literature, by Ronald de Carvalho,
looking to explicate its intellectual context: on one hand, the tradition of literary his-
toriography from which the book inherits its main references and conventions; on the
other, the contemporary critical reflection on the direction in which Brazilian culture
and society were heading and on which the modernist sensibility and imagination
fed. This methodological strategy enables a discussion in how, based on the defence
of the “simplicity” of literary language – whose particular meaning is also described
in this article – the book contributed to making an agenda of aesthetic and cultural
renewal routine. Texto recebido e aprovado em
30/7/2011.
Keywords: Modernism; Literary historiography; Aesthetic renewal; National construc-
André Botelho é professor do
tion; Culture and society in Brazil. Departamento de Sociologia e
do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Antropologia
do IFCS/UFRJ, e pesquisador
do CNPq e da Faperj. É autor,
entre outros, de O Brasil e os dias
(Edusc, 2005) e co-organizador
de Um enigma chamado Brasil
(Companhia das Letras, 2009).
E-mail: andrebotelho@digirotas.
com.br>.
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Entrevista com Davi Arrigucci Jr.
Eu nasci em 1943 em São João da Boa Vista, interior de São Paulo, onde
estudei até o científico. Com 13 ou 14 anos, decidi que iria estudar Letras,
o que causou um certo mal-estar no meu pai. Ele era médico, estudou no
Rio de Janeiro, e sempre clinicou naquela cidade, até os 90 anos. Descendia
de imigrantes italianos vindos de Arezzo, na Toscana, que se firmaram no
Brasil através do trabalho. Sua vontade era que eu seguisse medicina.
Eu lia bastante desde criança, na minha casa havia muitos livros – meus
pais e minha irmã eram grandes leitores, sobretudo minha mãe, que só
não lê mais hoje em dia, aos 96 anos, quando não consegue acompanhar o
tamanho das letras impressas nos jornais e nos livros. Havia na cidade uma
biblioteca ótima e o Ginásio de São João tinha excelentes professores. Muita
gente das redondezas estudou lá, inclusive Antonio Candido. Eu tive um
grande professor de português, Francisco Paschoal; e um de latim, Américo
Casellato, que foram marcantes para mim. Outra figura importante foi o
Dr. Joaquim José de Oliveira Neto, professor de história natural no colégio.
Antonio Candido diz que foi um dos três maiores professores que ele viu na
vida. De fato, era um homem encantador, pela graça da conversação, e tinha
Entrevista com Davi Arrigucci Jr., pp. 163-188
Meu professor de latim, Américo Casellato, era muito duro e tinha uma
dificuldade enorme de comunicação, embora no fundo fosse excelente pes-
soa e apreciasse o convívio com os amigos. Ele havia sido seminarista em
Roma, mas descobriu que não tinha vocação religiosa. Nessa experiência,
aprendeu latim, obteve uma formação sólida. Depois saiu do seminário,
preferiu casar, teve uma penca de filhos e foi dar aula de latim, numa rela-
ção íntima e natural com a língua como nunca vi outro, a não ser talvez,
o professor Armando Tonioli, na USP. Naquele tempo, estudávamos latim
nos quatro anos do ginásio e, depois, no curso clássico, quando havia. O
professor Américo Casellato era um homem curiosíssimo, ouvia sistema-
ticamente música clássica, lia boa literatura, inclusive autores italianos,
gostava de romances policiais e adorava jogar e estudar xadrez. Tinha um
sítio, onde adotava métodos inovadores, surpreendentes ainda naqueles
anos no interior: criava porcos como mandavam os métodos sofisticados
de confinamento, inventou uma cerca elétrica para os piquetes de engorda
de garrotes. Era cliente do meu pai, com seus filhos. Quando terminei a
quarta série do ginásio, me deu uma leitoa de presente, o que me encantou,
pela rara homenagem de um homem tão simples e tão defendido. Comecei
então a frequentar a casa dele e a ficar seu amigo. Como não havia curso
clássico, pedi a ele que me desse aulas particulares de latim; lembro-me que
ele tinha gramáticas latinas raríssimas, como a notável de Salomon Reinach,
que aprendi a admirar desde essa época, como grande divulgador do mundo
clássico e das artes plásticas. Eu preparava um trecho de Lucrécio, Virgílio,
Ovídio, Cicero e ele me recebia para a aula, às vezes estava cozinhando – ele
era um grande cozinheiro –, e resolvia todos os problemas. Era um homem
de uma capacidade impressionante. As leituras de Vírgilio, Catulo e Ovídio
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Entrevista com Davi Arrigucci Jr., pp. 163-188
Teoria Literária, cujas janelas davam para a Maria Antônia, que nos co-
nhecemos. Lembro-me que estavam saindo os artigos de Wilson Chagas
sobre o Formação da literatura brasileira. Antonio Candido disse a mim e
ao Oliveira Neto: “fulano está me botando no torniquete”. Ele usou essa
expressão e riu. Depois disso, eu fiz os seus cursos no terceiro e quarto
anos. Nessa altura, além dos frankfurtianos, minha base eram os críticos
da filologia e da estilística, Erich Auerbach, Leo Spitzer e Dámaso Alonso.
Como eu tinha entrado por essa porta, eu lia muito a poesia espanhola de
Dámaso Alonso, os Estudios y ensayos gongorinos e também os livros Seis
calas en la expresión literaria española e a Teoría de la expresión poética, de
Carlos Bousoño. Li muito Auerbach e Spitzer, cujo ensaio Interpretação
linguística das obras literárias foi fundamental para mim. Quando entrei na
Faculdade, os professores pediam trabalhos sobre textos literários mas não
nos ensinavam a fazê-los. Então o meu primeiro movimento foi aprender
a fazer uma análise de texto. Havia manuais como os de Lázaro Carreter,
traduzido do espanhol, Massaud Moisés e Raúl Castagnino, que rodavam
por lá, mas eram muito fracos. O melhor era o de Wolfgang Kayser que,
mesmo assim, deixava a desejar. Então tive de me armar com textos que me
ajudassem de fato, como os Études de style, de Spitzer, na tradução francesa
da Gallimard. Do Spitzer, eu gosto muito de sua análise da Balada das damas
dos tempos de outrora, de François Villon. Esse foi um ensaio marcante na
minha formação. Eu já havia estudado o século XV, principalmente Jorge
Manrique – Las coplas por la muerte de su padre – e François Villon eram os
dois grandes poetas daquele século. A análise de Spitzer sobre Villon é sutilís-
sima, indica a posição ocupada por ele como herdeiro do mundo medieval,
mas prenunciando o Renascimento. Seria um poeta na dobradiça das eras.
Isso ele percebe, com agudeza, na análise do verso “Mais où sont les neiges
d’antan?”, que é o verso decisivo do poema, impondo a fuga irreparável do
tempo na natureza contra nossa frágil condição humana.
Outra referência fundamental para mim foi Mimesis, de Auerbach – que
eu li na conhecida tradução da Fondo de Cultura Económica. Esse livro foi
decisivo para eu entender como é que se fazia uma análise de texto. Também
em Antonio Candido, no curso sobre Bandeira, havia um método sistema-
tizado de leitura. E na “Introdução” do Formação da literatura brasileira,
estavam expostos com clareza meridiana os conceitos que o fundamentavam.
Depois eu encontrei outros ensaios importantes, como Materia y forma en
poesia, de Amado Alonso; os trabalhos de Emil Staiger; os de Pedro Sali-
nas; Augusto Meyer e diversos outros. São vários estudos em que aparece a
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Entrevista com Davi Arrigucci Jr., pp. 163-188
análise de texto propriamente dita, praticada com finura e savoir faire. Fiz
uma seleção de textos que me permitiram ler o texto literário criticamente,
organizei um corpo teórico para fundamentar minhas análises. Como eu
tinha alguma formação linguística e filológica, era esse o melhor caminho
para mim. Por meio dessa perspectiva, apareceram as articulações com a
sociedade, porque a estilística é uma análise da linguagem literária que se
articula com uma visão do social e também da subjetividade, via psicanálise.
Persegui, dessa maneira, o meu “ideal do crítico”, para citar nosso Macha-
do de Assis que, como grande crítico que também era, viu a importância
imprescindível da crítica para fecundar o terreno da literatura e estimular
o aparecimento das grandes obras.
A convivência com Antonio Candido foi para mim decisiva. Depois desse
curso, comecei a dar aulas de literatura espanhola e literatura hispano-ame-
ricana, passei três anos lecionando essas disciplinas. No meio do caminho,
mudei o tema de minha tese, de Borges para Cortázar, em parte em função
da politização da Maria Antonia e do Brasil naquele momento, em parte
pelos problemas da crise da narrativa em que eu me enfronhara. Cortázar
reunia, em termos de problemas da poética da narrativa, tudo aquilo que
eu tinha estudado nos últimos anos. Nesse momento, me deparei com o
Bestiario numa livraria e o comprei, depois de tê-lo lido emprestado de um
colega. Na mesma ocasião, Ricardo Navas Ruiz havia se desentendido com
o catedrático, Julio García Morejón, e transmigrado para os Estados Unidos.
Ele me indicou para assumir o seu lugar no “Suplemento” do Estado de São
Paulo. Eu era um menino, tinha 21, 22 anos, quando fui apresentado a
Décio de Almeida Prado, que teve a coragem de me encomendar um artigo.
Entreguei um texto sobre ficção e realidade nos hispano-americanos e, logo
em seguida, outro sobre Casa tomada, de Cortázar; era o primeiro conto
de Cortázar (1947) e por acaso, também, o primeiro dele que estudei. Sem
saber, dava início ao longo trabalho que realizaria sobre ele. Nessa época
mergulhei na literatura argentina. Tive acesso às revistas Nosotros e Sur.
Havia, também, um boletim bibliográfico que recebíamos; comecei a ler
tudo isso e a me informar sobre o contexto da literatura argentina. Para
mim, faltava a ideia de sistema, que eu havia apreendido na Formação da
literatura brasileira e também em outros autores que falavam da tradição,
como alguns dos norte-americanos. Durante o curso de Antonio Candido,
estudei os New Critics. Li muito Cleanth Brooks, Richard Blackmur, que me
interessaram vivamente. Também li Robert Penn Warren, de quem sempre
gostei muito, um romancista muito fino e um excelente crítico literário. Seu
grande romance é All the kings’ men, adaptado para o cinema e por Robert
Rossen no final dos anos de 1940. Todos os homens do presidente é um filme
político admirável sobre um governador populista da Luisiana, um filme
que tem muito interesse para se pensar a política brasileira. Penn Warren e
Cleanth Brooks escreveram dois manuais importantes, Understanding poetry
e Understanding fiction, que se tornaram bíblias na universidade norte-
americana. Brooks é um grande analista de poemas e Blackmur um dos
mais notáveis leitores que se pode imaginar. Li muito esses autores, porque
proporcionavam uma técnica de análise e uma teoria da interpretação, uma
hermenêutica literária. Enfim, nos anos em que eu estava na cadeira de
Espanhol, me dediquei de corpo e alma à leitura dos hispano-americanos,
estudei muito e fui imaginando um argumento para explicar como é que
Cortázar tinha surgido ali. Borges e Cortázar não podiam ter caído do céu,
necessitavam de algum lastro na experiência histórica e intelectual argentina.
Estávamos acostumados com a crítica brasileira e com a ideia de sistema,
que vem desde Machado de Assis. Machado – eu e Roberto [Schwarz]
sempre repetimos isso – é o maior crítico brasileiro do século XIX, mas há
outros três grandes críticos: Silvio Romero, Araripe Júnior e José Veríssimo.
São homens de “sistema”, todos eles possuem um saber sistemático sobre a
literatura, associado a um conhecimento sobre a sociedade e, às vezes, sobre
educação também. Há uma inclinação mais estética em José Veríssimo,
uma finura absolutamente extraordinária em Araripe – que é o mais agudo
analista de textos e de autores – e a força sistemática de Silvio Romero, das
relações entre literatura e sociedade, cujo método foi estudado por Antonio
Candido. Mas já no Machado, se a gente ler Instinto de nacionalidade, Nova
geração e Ideal do crítico, percebemos como a crítica se insere, sua impor-
tância no conjunto da literatura e na engrenagem das obras, dos autores e
do público. Isso está presente nesses ensaios de Machado de Assis, embora
sem a formulação explícita que ganharia com Antonio Candido.
Antonio Candido desenvolve uma teoria sólida e sofisticada a partir dessa
tradição, que leu a fundo. Formação da literatura brasileira (1959) é um livro
de crítica, orientado por uma perspectiva histórica. Embora seja possível ler
esse livro como um conjunto de ensaios de crítica – há momentos notáveis,
Antonio Candido é um grande intérprete, um leitor excepcional –, os ensaios
não dão toda a medida do analista de textos já presente em Brigada ligeira
(1945) e em O observador literário (1959). A partir de Tese e antítese (1964),
aparecem suas análises mais detidas de textos. Nesse livro, há “Da vingança”,
um ensaio notável sobre o Conde de Monte Cristo, sobre o espaço, os sig-
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Entrevista com Davi Arrigucci Jr., pp. 163-188
Eu estava já nesse tempo com uma tese adiantada, orientada pelo More-
jón apenas formalmente. Já era sobre Cortázar. Acabei voltando para Borges
depois, que estudo até hoje – é a minha sina – mas naquele momento optei
por Cortázar. Como a situação na Cadeira de Espanhol estava tensa, procurei
os professores nos quais eu podia confiar. Eu tinha sido aluno de italiano do
Alfredo Bosi, que até hoje é um grande amigo meu. O professor catedráti-
co dessa disciplina era Ítalo Betarello, que me convidou também para ser
assistente dele. José Aderaldo Castello, da cadeira da Literatura Brasileira,
também havia me convidado, mas com os italianos tive um espaço de amiza-
de diferente e simpático. Resolvi procurar Bosi. Eu estava encantado com a
literatura hispano-americana e não ia mudar a minha vida, sobretudo porque
eu já achava, como acho até hoje, que o vínculo da literatura brasileira com
as literaturas hispânicas é fundamental. Bosi me aconselhou a procurar o
Antonio Candido. Conversei antes com o Roberto Schwarz, que me recebeu
muito bem e me disse: “Escreva para Antonio Candido, ele já me falou várias
vezes que gostaria que você trabalhasse com a gente”. Antonio Candido estava
nesse tempo dando um curso na Universidade de Yale. Escrevi-lhe uma carta,
dizendo que iria sair da Faculdade porque não suportava mais. Perguntei
se gostaria que eu trabalhasse com ele. Ele me respondeu com uma carta
notável, que tenho até hoje, dizendo que sim. Ficamos de conversar “de viva
voz”, ele usou essa expressão, no dia de seu retorno ao Brasil. Nesse dia me
telefonou; fui até a sua casa; encontrei-o completamente rouco, de modo que
foi uma conversa de viva voz por um fio de voz. Ele me disse que ia consultar
os colegas, ver como eles reagiriam à minha presença, como sempre fazia para
evitar problemas como os que eu tivera no grupo de espanhol, e que depois
me daria uma resposta. Com a anuência dos demais, logo me pediu para dar
aulas. Eram aquelas classes de trezentos, quatrocentos alunos, na sala 10 na
Maria Antonia. Comecei, então, a ensinar teoria literária, aplicando tudo o
que tinha aprendido a duras penas, um pouco sozinho, um pouco com meus
professores. Discutíamos análise de texto, enfocando a relação entre literatura
e sociedade. Roberto tinha feito uma pequena antologia de textos sobre isso.
Fiz imediatamente um balanço na biblioteca para ver o que nós tínhamos de
teoria literária. Tínhamos muitos livros porque Sérgio Buarque de Holanda
havia feito uma doação a Antonio Candido, que por sua vez repassou à Facul-
dade, além de outros que ele mesmo doara.
Comecei praticamente uma carreira nova. Antonio Candido assumiu a
orientação de minha tese sobre Cortázar. Ele me perguntou o que eu estava
fazendo. Respondi: “estou escrevendo uma tese sobre um escritor argenti-
no chamado Julio Cortázar”. Primeiro disse: “não conheço”. Em seguida,
lembrou-se de que seu amigo Lourival Gomes Machado, que estava na
França trabalhando na Unesco, havia lhe falado de um “Cortazár”, como
se dizia, com acento na última sílaba, à maneira francesa. “Ele me disse
que há um argentino ‘compridão’ que escreve uns contos fantásticos muito
interessantes”. “É esse mesmo”, eu disse. Eu tinha mandado buscar na Ar-
gentina a obra completa do Cortázar e arrumei uma outra coleção que dei
toda para ele, que logo leu tudo. Ele comentava comigo o de que gostava, o
de que não gostava. Fiquei com esse trabalho engasgado durante anos, levei
uns seis ou sete anos para escrever. Ele me cobrava nas dedicatórias dos seus
livros, que sempre terminavam com um “E o Cortázar?”. Então escrevi umas
sessenta páginas e dei para ele, que me telefonou em seguida, fazendo um
grande elogio: “olha, Davi, isso aqui é do mais alto nível crítico”. Escrevi
mais um pedaço, mas logo secou o leite de novo. Fiquei naquela angústia,
até que saiu o resto; consegui escrever durante um ano e pouco. No livro,
estava tudo o que eu havia estudado e pensado naqueles dez anos.
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Você poderia falar um pouco mais sobre a sua tese sobre Cortázar? O livro não
foi publicado na Argentina?
Foi traduzido no México, mas não na Argentina. Saiu lá, com o título
de El alacrán atrapado, traduzido por Romeo Tello Garrido, que pertence a
uma equipe de tradutores ligados à professora Valquiria Wey, uma brasileira
que vive há anos no México e leciona na Unam [Universidad Nacional
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Entrevista com Davi Arrigucci Jr., pp. 163-188
Autónoma de México], a quem se deve muito do que tem sido feito pela
nossa literatura naquele país. O livro foi editado pela Fondo, pela Unam e
pela Universidad de Guadalajara, onde os estudos sobre Cortázar ganharam
nova vida. Nesse livro, enfrentei algumas das minhas preocupações teóricas
daquele momento, principalmente o problema do impasse da narrativa e
dos limites a que certa linhagem da literatura moderna, na qual se radica-
liza a autoconsciência da linguagem e de seus meios expressivos, conduziu
a literatura. Procuro delinear o projeto do Cortázar por fora e por dentro.
Na parte inicial, discuto o seu projeto de criação, suas relações com as
vanguardas e a tradição da ruptura, a poética explícita que ele propõe, as
relações dele com a literatura hispano-americana, em especial com a literatura
fantástica e certa vertente da prosa de ficção do Rio da Prata, de Horacio
Quiroga, Felisberto Hernández, María Luisa Bombal, Juan Carlos Onetti;
bem como, mais detida e especificamente as relações de Cortázar com a
obra de Borges, com o surrealismo, assim como as implicações gerais de seu
projeto com relação ao jazz, à fotografia, ao cinema, à montagem etc. Na
segunda, examino no interior da obra realmente realizada – os contos “El
perseguidor”, “Las babas del diablo”, e o romance Rayuela, momentos de
radicalização do projeto – o problema central do impasse de sua narrativa,
seu ímpeto para destruir a literatura como condição para poder escrever
literatura, tal como se configura na construção mesma do enredo ficcional.
Assim, na primeira parte, tento reconstituir uma linhagem de destruição
da narrativa e as linhas de força que direta ou indiretamente desemboca-
vam na obra dele. Na segunda parte, a questão da destruição é testada na
própria estrutura da narrativa. Na análise de “El perseguidor”, capítulo do
livro que designei como “A destruição anunciada”, a figura e a biografia de
Johnny Carter, baseadas na vida de Charlie Parker, fornecem elementos para
a discussão das relações da arte com o mercado e o processo de destruição
do próprio artista imerso em sua lógica demoníaca. Caracterizei como “A
destruição visada” o capítulo dedicado à análise de “Las babas del diablo”,
conto em que Michelangelo Antonioni se baseou para construir seu Blow
up. Nele se leva a questão da destruição da narrativa ao extremo impasse
através de uma prospecção ontológica da natureza da realidade que põe em
xeque a própria capacidade de expressão da linguagem com que se perfaz a
busca. Finalmente, em “A destruição arriscada”, analiso Rayuela e sua poé-
tica implícita em que se joga o destino do relato, levando-se o jogo com a
linguagem ao limite da destruição e do silêncio. Trata-se, pois, de um exame
da construção de um projeto radical de ruptura e depois da prática disso
Como era a rotina dos cursos na cadeira de Teoria Literária e Literatura Com-
parada?
Nos cursos de Introdução aos Estudos Literários, havia uma parte teórica
sobre a natureza e a função da literatura e outra mais prática, de análise
textual. Usávamos ensaios de Lukács, Benjamin, Adorno, dos críticos da
estilística, dos New Critics, dos estudos entre literatura e psicanálise etc.
Eu dava aulas expositivas, exemplificava praticamente as análises e fazia
seminários. Roberto Schwarz foi embora em 1968. Ele estava metido no
projeto da revista Teoria e Prática, na qual escreveu uma série de textos.
Colocou o endereço da redação da revista num apartamento que tinha e a
polícia apareceu lá. Ele viu que era hora de cair fora e saiu pelo Uruguai,
rumo a Paris, onde passou cerca de nove anos.
Em 1975, passei um ano em Paris e encontrei muitas vezes Cortázar, com
quem caminhava, tomava um copo de Beaujolais nos cafés, ia ao teatro ou
comer em alguns dos inúmeros restaurantes próximos à rue de La Harpe.
Nesse tempo, Cortázar vivia na rue de l’Eperon, bem próxima de meu hotel.
Eu morava num quarto do Hôtel du Levant, naquela rua tão agitada que
era a rue de La Harpe. Era a época do Quartier Latin efervescente, com
muita gente de fora, com as notícias desencontradas das ditaduras latino-
americanas, com muitos exilados e um clima de agitação política e intelec-
tual que parecia compensar de algum modo o que se havia deixado atrás.
Paris era uma espécie de câmara de ecos de nosso destino latino-americano.
Fui para participar do seminário de Roland Barthes, na École Pratique des
Hautes Études. Leyla Perrone-Moisés, que era professora da Faculdade e
amiga minha, tinha amizade com Barthes e me conseguiu um convite formal
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questão, mas é nas análises de textos que refina sua posição. Nos estudos
sobre Émile Zola, Aluízio Azevedo, Manuel Antonio de Almeida e Giovanni
Verga, há um refinamento das ideias expostas em Literatura e sociedade.
Os três ensaios sobre o naturalismo, mais o “Dialética da malandragem”,
sobre o romance romântico, formam um conjunto extraordinário, porque
mostram como o social se transforma em um elemento pertinente para a
análise estética, o que é a grande contribuição do Antonio Candido. Ele
foi acentuando cada vez mais, desde os anos de 1960, a ideia de que o que
é realmente social na obra de arte é a forma.
Essa perspectiva está presente na obra de Roberto Schwarz, na análise da
obra de Machado de Assis, na caracterização da volubilidade do narrador
como um traço formal que apanha um comportamento de classe, discrepante
e específico ao mesmo tempo. Esses refinamentos derivam de uma reflexão
muito demorada e detida sobre o que poderíamos chamar da sedimentação
formal da experiência histórica. Isso ficou cada vez mais patente nas analises
que Antonio Candido foi desenvolvendo. Alguns de seus ensaios, às vezes
laterais, são extremamente reveladores. É o caso de “Quatro esperas”, um
ensaio muito bonito e que refina muito esse tipo de relação. Eu adoro,
também, um ensaio chamado “Realidade e realismo (via Marcel Proust)”,
publicado no livro Recortes. Para mim, aí estão algumas das melhores páginas
que ele escreveu sobre essa delicada questão.
Em Antonio Candido, convivem o prosador artista, o teórico, o his-
toriador e o crítico de literatura. Ele conjuga, como ocorria em Augusto
Meyer, a sensibilidade artística com a percepção do que importa realmente
na composição de uma obra literária. O livro de Auerbach, Mimesis, trata
das formas variadas de apresentação da realidade, desde a Bíblia e Homero
até os modernos, até a literatura do século XX, conforme o real se apresenta
na perspectiva do interior do texto, ou seja, tal como se configura nos traços
estilísticos da construção linguística das obras literárias. No caso da análise de
Antonio Candido sobre Proust, que tem quatro páginas, aparece o problema
de todo narrador, que é o problema do uso do detalhe significativo. Nós
sabemos que grande parte do efeito de real da obra depende do uso adequado
do detalhe – Borges aprendeu isso nas décadas de 1920 e 1930. A história
universal da infâmia e alguns dos ensaios de Discusión tratam dessa questão
específica: como apresentar a realidade na literatura; uma de suas desco-
bertas da época consiste exatamente na invenção de pormenores lacônicos
de longa projeção. Antonio Cândido dá sua resposta nessas quatro páginas
a esse problema que vinha tratando desde O observador literário e Brigada
ligeira, vale dizer, desde os primeiros artigos que escreveu sobre crítica para
o jornal. Ele é um grande conhecedor de Proust, embora não tenha escrito
nenhum livro dedicado a esse escritor, como fez Álvaro Lins em A técnica do
romance de Marcel Proust. As teorias estéticas que impregnam o grande livro
de Proust foram sempre decisivas para ele. Na obra do romancista francês,
há uma teoria de superação do realismo que é discutida nesse ensaio.
A perspectiva de Antonio Candido é extremamente viva, mas não é uma
fórmula, justamente porque se orienta pelas particularidades das obras,
estudadas passo a passo. Isso caracteriza uma abordagem dialética: a acumu-
lação dos problemas e sua superação em cada caso particular. Eu escrevi um
longo ensaio, “Os movimentos de um leitor: ensaio e imaginação crítica em
Antonio Candido”, no qual afirmo que ele é um leitor excepcional, capaz
de perceber o peso exato que os elementos externos têm na tessitura do
texto. Ele desvenda, também, os significados históricos dos textos, pois na
perspectiva dele o texto é o resultado complexo da integração de múltiplos
fatores, o que se exprime na coerência da forma que lhes dá unidade.
Nós nunca cedemos ao estruturalismo porque não nos desviamos da
busca do sentido histórico. A relação com a história sempre foi decisiva para
nós. Essa preocupação retornou com os estudos culturais, mas a verdade
é que no mais importante, que é a discussão da qualidade estética, pouca
gente mexe. Trata-se de estudar um texto como resultante de aspectos
heterogêneos. Por exemplo, a grande arte do Borges é combinar contextos
diversos, oriundos da vida literária, da filosofia, da linguagem, da história.
No conto “Pierre Menard”, há uma combinatória complexa de contextos.
Nele convergem a formação do intelectual de sua época, o pós-simbolismo,
os salões, a herança simbolista que se exprime na figura simbólica de Paul
Valéry. Ele faz brincadeiras com o mundo dos salões e com a literatura da
poesia pura, que era uma das obsessões do tempo. Há também a literatice
e o pedantismo do personagem Carlos Argentino Daneri, de “O Aleph”,
um literato medíocre com uma pretensão gigantesca, a de realizar a obra
absoluta. O projeto do próprio Cortázar tem a ver com essa vontade de
absoluto, que se formou nas raízes da literatura moderna que foi a herança
simbolista. O mesmo se manifesta na ambição de Pierre Menard de escrever
de novo o Dom Quixote, um projeto paródico e irônico, que combina o
contexto dos literatos com certa visão da tradução, da linguagem, com as
questões do infinito nele implicadas. Essa combinatória de contextos é que
dá o resultado “Pierre Menard”. Numa análise de texto, é preciso ligar os
fiapos de realidade inscritos na forma, muitas vezes até estapafúrdios, nas-
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Para vocês, alguma revista literária foi tão importante como foi Punto de Vista
na Argentina das últimas décadas?
Na minha geração, isso não foi tão importante. Para Antonio Candido,
sim. Eles fizeram a revista Clima. Roberto [Schwarz] trabalhou em Teoria
e prática, mas era uma revista de combate ideológico. A revista Argumento,
que foi uma resposta à ditadura militar, durou pouquíssimo e não che-
gou a nos empenhar totalmente. Todos nós escrevemos lá, mas foi muito
rápido. Nunca tivemos uma revista tão central como tem sido a Punto de
Vista na Argentina, ou a Sur, no tempo de Borges. Muita coisa do Borges
ficcional saiu na Sur, a partir do “Pierre Menard”, em 1939. Também a
revista Multicolor de los Sábados deve ser mencionada, sem falar na Proa,
na Martín Fierro, mas essas já são revistas da vanguarda do início do século
XX, como tivemos aqui a Klaxon, a Estética ou a Revista de Antropofagia.
Em São Paulo, o “Suplemento” do Estado de São Paulo desempenhou, sem
dúvida, um papel muito relevante. Comecei a escrever lá, mas é certo que
não representou propriamente a visão articulada de um grupo como na
redação de uma revista.
O “Folhetim” e depois o “Jornal de Resenhas” foram importantes,
também. Este, ultimamente, porque respondeu ao movimento editorial
brasileiro, durante uns bons anos, dando resposta à produção crescente que
cairia no esquecimento precoce que ronda as publicações sem resposta. Hoje
quase não temos nada. O Jornal do Brasil praticamente desapareceu, já não
funciona; as revistas que pululam são revistas de grupos, de poetas, mas
pouco atuantes também. Existe a Inimigo Rumor, que tem sua importância,
existe a Cacto, a Jandira, mas nada central. Enfim, as revistas não têm aqui
a força que têm na Argentina.
No Brasil, quase já não há debate intelectual. Os suplementos não têm
funcionado muito bem ultimamente. O “Mais” também não cumpre essa
função, pois parece ter abdicado de encontrar vida inteligente entre os intelec-
tuais brasileiros. Prevalece um pouco por toda parte certo gosto “jornalístico”
nas escolhas literárias, o que representa uma baixada de bola terrível, sobre-
tudo na avaliação realmente crítica das obras. Há falta de rigor e de exigência
de uma verdadeira complexidade, e muita concessão a favor da literatura
comercial, do best-seller, do livro de autoajuda, do mero escândalo. As rese-
nhas se resumem a notícias de livros que saíram, à indicação do movimento
das editoras, mas não há crítica no sentido de análise e avaliação das obras.
Nunca tínhamos chegado a esse ponto, a tal rarefação. Parece que não há vida
intelectual, é uma coisa muito estranha. E a universidade também anda muito
fechada em si mesma, as coisas de fora não repercutem intramuros, e poucos
se arriscam a sair para a luta. A consequência é que os livros morrem como
uma facilidade extraordinária – lança-se um livro e, mesmo que tenha quali-
dade, saem duas, três resenhas e acabou. Sergio Miceli observa que a literatura
não tem mais a mesma importância dos velhos tempos. Não estamos no
século XIX, nem no começo do século XX, a literatura de fato não tem mais
a importância que costumava ter, mas ainda há uma grande produção nesse
campo, pedindo resposta. É verdade que muito do que estava contido na
ficção passou para outros gêneros ou outros campos. O romance incorporava
um conhecimento da vida social que era fundamental para a sua existência.
A gente chega até a pensar se ainda tem sentido escrever romance, porque o
romance perdeu muito do que lhe dava consistência e interesse, seu poder de
conhecimento, virando presa fácil da banalidade e do apelo comercial, quan-
do não de interesses escusos das editorias das revistas, cuja deterioração moral
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já tem sido apontada por jornalistas sérios. Em geral, os romancistas não têm
mais formação histórica. E o grande romance depende muito da percuciência
analítica, da sondagem moral e da visão histórica, que só a sólida formação é
capaz de dar.
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[...] foi um eixo e um catalisador: um eixo em torno do qual girou de certo modo a
cultura brasileira, catalisando elementos dispersos para dispô-los numa configuração
nova. Neste sentido, foi um marco histórico, daqueles que fazem sentir vivamente
que houve um “antes” diferente de um “depois”. Em grande parte porque gerou um
movimento de unificação cultural, projetando na escala da Nação fatos que antes
ocorriam no âmbito das regiões. A este aspecto integrador é preciso juntar outro,
igualmente importante: o surgimento de condições para realizar, difundir e “nor-
malizar” uma série de aspirações, inovações, pressentimentos gerados no decênio de
1920, que tinha sido uma sementeira de grandes mudanças (2000, pp. 181-182).
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Fiz e faço “arte de ação”, como bem desde mais de dez anos venho repetindo aos ami-
gos, em cartas, e até já em artigo. Mas pros amigos da minha geração, essas palavras
serão mais fáceis de compreender do que para vocês, gente do após-guerra. Minha
“ação” se confinou ao terreno da arte porque, conformado numa geração e num fim
de século diletantes, sou um sujeito visceralmente apolítico, incapaz de atitudes polí-
ticas, covarde diante de qualquer ação política (Andrade, apud Bueno, 2006, p. 59).
As duas fases não sofrem solução de continuidade; apenas, como dissemos atrás,
se o projeto estético, a “revolução na literatura”, é a predominante da fase heroica,
“a literatura na revolução” (para utilizar o eficiente jogo de palavras de Cortázar),
o projeto ideológico, é empurrado, por certas condições políticas especiais, para o
primeiro plano nos anos 30 (Idem, p. 19).
[...] que esse aparentemente pequeno deslocamento de sentido pode ser entendido
de outra forma: como demonstração de um afastamento dos projetos de cada ge-
ração, e não de sua aproximação. Pensar que o modernismo é uma arte utópica e
o romance de 1930 é uma arte pós-utópica pode ajudar a esclarecer como isso se
dá (Bueno, 2006, p. 66).
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O emprego do Estado concede com que viver, de ordinário sem folga, e essa é
condição para bom número de espíritos: certa mediania que elimina os cuidados
imediatos, porém não abre perspectivas de ócio absoluto [...]. A Organização
burocrática situa-o, protege-o, melancoliza-o e inspira-o. Observe que quase toda
literatura brasileira, no passado como no presente, é uma literatura de funcionários
públicos (Drummond de Andrade, 1973, pp. 841-843).
para baixo do tapete uma herança histórica rala ou mal conhecida e trabalhada, se
comparada com a do Rio para cima (Dimas, 2003, pp. 334-335).
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Até por isso, a linguagem literária de São Paulo teria que mirar outros
horizontes.
Dessa forma, a renovação literária do decênio de 1930 não está isenta
de ser entendida como cristalização modernista, até mesmo como natura-
lismo, porque com ela a experimentação da linguagem arrefeceu. Todavia,
a despeito da “velha briga entre os modernistas e o movimento regionalista
de Recife”, para um autor como José Lins do Rego, “muito provavelmente
não seria possível a ele obter tamanha popularidade sem a existência de
Macunaíma e do modernismo como um todo” (Bueno, 2006, p. 62). Os
quatro romancistas selecionados são significativos das imbricações esta-
belecidas entre sua geração e as vanguardas modernistas precedentes; são
ilustrativos das vias convergentes entre a literatura e o contexto histórico
mais amplo; são, enfim, paradigmáticos dos rumos da cultura moderna
no Brasil, tendo em vista que codificaram os procedimentos formais de
conversão da linguagem modernista na feitura de retratos da realidade
social-histórica do país.
Apesar de os escritores destacados apresentarem marcantes diferenças,
como já se assinalou, existe um traço comum a uni-los revelado nas perso-
nagens que criaram, a condição de seres impotentes e tragados pela força
das circunstâncias adversas.
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cou toda a sua energia de criação, o fracassado. Não é à toa que o primeiro a
apontar a recorrência dessa figura, para reprová-la, seja um modernista, Mário
de Andrade (Idem, p. 74).
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[...] mora sossegado na sua província, e não foi para capital buscar emprego nem
consagração. O seu encanto vem muito deste aspecto provinciano, a que raramente
se resignam os intelectuais e que contribui certamente para a sua simplicidade, para
a naturalidade quase familiar das suas relações com os leitores. De certo foi este
afastamento dos grandes centros literários que lhe permitiu a atitude desassom-
brada de escritor para o povo, escritor acessível que exprime por princípio uma
certa ordem de ideias e sentimentos de que o povo, o seu povo, possa participar
(Candido, s/d, p. 75).
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Resumo
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periféricas ao impulso inovador do país, mas que eram detentoras de culturas conso-
lidadas: Nordeste, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, e que produziram, nos anos
subsequentes, a nossa literatura mais vigorosa. Dessa forma, no prisma da literatura,
as novidades atingiram radicalidade nos contextos mais resistentes ao estilo moderno
de vida. A reflexão, além de indagar sobre esse movimento em direção aos estados an-
cilares à cultura moderna, propõe-se a analisar a diversidade dessa literatura, vis-à-vis
aos impasses dessas regiões no trânsito da modernização. Partindo desse problema de
fundo, busca-se relacionar o romance social nordestino, a literatura subjetivista mi-
neira e o romance histórico gaúcho com a particularidade e a diversidade das tensões
sociais e políticas vividas por essas elites regionais, em franco processo de declínio. O
tratamento privilegiado da literatura do mineiro Lúcio Cardoso permite iluminar os
conflitos que permeiam o conjunto, pois, embora fossem particulares, atingiram, na
obra cardosiana, sua expressão mais paroxística.
Palavras-chave: Modernismo; Regionalismo; Romance social e histórico; Literatura
subjetivista; Lúcio Cardoso.
Abstract
as complexas relações por meio das quais esses grupos e os agentes políticos
e institucionais negociam os limites do exercício do poder.
Nesse sentido, o RDD (Regime Disciplinar Diferenciado)2, criado pelo 2. O RDD é um regime de
cumprimento da pena de prisão
governo paulista imediatamente após a crise no sistema prisional gerada
muito mais rígido, no qual o
pela megarrebelião de 2001 – primeira ação de grande impacto público sentenciado permanece determi-
nado período de tempo. Entre as
protagonizada pelo PCC –, emerge como elemento central no campo das
restrições mais importantes, está
micropenalidades extrajurídicas constitutivas do sistema prisional, funcio- o banho de sol de apenas uma
nando como técnica disciplinar e, sobretudo, como dispositivo útil para hora diária e o confinamento
em cela individual da qual o
que a administração prisional possa empreender acordos e negociações, preso só sai com as mãos e os
num processo de circulação do poder, com estratégias de resistência de pés algemados.
ambos os lados.
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utilizados como punição, de forma que “[...] levando ao extremo que tudo
possa servir para punir a mínima coisa; que cada indivíduo se encontre
preso numa universalidade punível-punidora” (Foucault, 2000a, p. 149).
Ainda que as análises de Ramalho e de Coelho permaneçam válidas
para explicar características estruturais das unidades prisionais, elas são
insuficientes para dar conta das muitas transformações que ocorreram nas
últimas décadas e que alteraram substancialmente as redes de poder infor-
mais existentes na prisão. Muito embora tais transformações, decorrentes
do surgimento, expansão e consolidação de organizações criminosas no in-
terior do sistema carcerário, tenham sido abordadas no trabalho de Coelho,
uma vez que esse fenômeno, que só apareceu em São Paulo na década de
1990, já estava presente no Rio de Janeiro desde o fim da década de 19703. 3. Para mais informações sobre
o surgimento das organizações
Analisaremos, a seguir, alguns aspectos da micropenalidade constituída no criminosas no Rio de Janeiro,
interior do espaço prisional, a partir de múltiplas relações que envolvem além de Coelho (2006), ver
também Amorim (2005) e Lima
grupos organizados de presos, massa carcerária e administração prisional,
(2001).
as quais ampliam e reforçam os aspectos extralegais e arbitrários inerentes
à pena de prisão.
julgar e de executar a punição, apresenta-se como o núcleo do processo de pesquisadores, como Marques
(2010) e Biondi (2010), estima-se
reconfiguração das relações sociais entre os presos, do qual emergiram outras que 90% das unidades prisionais
tantas alterações. paulistas estejam sob influência
ou controle do PCC.
No Brasil, a população carcerária sempre foi deixada à mercê de qualquer
regulamentação legal na imposição das normas de conduta, prevalecendo
o arbitrário como regra. Mesmo quando a administração prisional se fazia
presente, essa presença se dava a partir de intervenções onde a lei e mesmo
os regulamentos administrativos eram deliberadamente ignorados, preva-
lecendo cumplicidades e lealdades escusas e que de forma obscura pautam
as relações sociais nesse sistema. Dessa forma, castigos e privilégios eram
elementos negociáveis e dependentes das relações informais estabelecidas
entre guardas e presos.
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Concomitante a esse discurso de cunho político, desde o início o PCC Sobre o papel da polícia no
fornecimento de mercadorias
passou a se engajar em atividades econômicas ilícitas. Inicialmente, a par- políticas para os atores envolvidos
ticipação de seus membros concentrava-se em sequestros e nos assaltos a nas redes de comércio ilegal, ver
Misse (1997, 2007).
bancos e carros-fortes. Gradualmente, a organização passou a concentrar-se
8. “Partido”, “Comando” e
no tráfico de drogas, controlando esse comércio, primeiro dentro do sistema “Família” são outras formas de
prisional e, em seguida, alcançando posição proeminente na distribuição para se referir ao PCC.
o varejo, não apenas no Estado de São Paulo, mas em várias outras unidades
da federação. Atualmente, sabe-se que o tráfico de entorpecentes continua
sendo o carro-chefe da organização, que ainda mantém participação direta ou
indireta em roubos de grande porte (bancos, cargas, carros-forte, joalherias).
Embora ainda não haja pesquisa que dê conta desse processo de expan- 9. A análise mais detida desse
são, a análise dos eventos de rupturas da ordem – rebeliões e motins – que processo foi realizada na tese de
doutorado que está na origem
tiveram um aumento exponencial no período 1994-2001 sugere que esta foi desta pesquisa. Para mais infor-
a forma preponderante pela qual os primeiros membros do PCC lograram mações, ver Dias (2011).
disseminar suas ideias, obtendo adesões ao Partido. As rebeliões tinham, 10. O Estatuto do PCC foi
elaborado por um de seus
nesse período, duas funções: a de ser um impulso para a transferência das fundadores, Mizael, e contém
lideranças para outras unidades prisionais – que era uma das reivindicações 16 itens com regras e punições
aos seus infratores. Atualmente,
que estava sempre na pauta – e a de conquistar territórios, eliminando os embora o Estatuto ainda seja
presos ou grupos menores que se opunham ao domínio cada vez maior que válido, muitas regras foram
alteradas ou acrescidas e, assim,
o PCC conquistava9. O fato é que, em 2001, o PCC já tinha uma estrutura
foi elaborada uma “Cartilha”
suficiente para ser o protagonista de uma grave crise no sistema prisional na qual constam as orientações
políticas condizentes com a atual
paulista.
fase do grupo. Sobre a Cartilha,
O ingresso na facção, desde o início, se dá através do batismo, um pe- ver Biondi (2010).
queno ritual onde o ingressante faz a leitura do “Estatuto do PCC”10 e jura 11. Já ouvi relatos variados
fidelidade ao Partido11. Após ser batizado, o novo ingressante é chamado de acerca das formas assumidas
pelo ritual de batismo (execução
“irmão”, denominação que reforça os ideais de solidariedade e pertencimento de uma missão, picada no dedo,
e, ao mesmo tempo, diferencia aqueles que integram e os que não integram o ingestão de sangue de animais
mortos), que sofreu mudanças ao
referido grupo, marcando as posições dos indivíduos nesse sistema de poder. longo do tempo e variações que
Todo ingressante deve, necessariamente, ser apresentado por um membro dependiam de quem executava
o rito. A leitura do Estatuto do
mais antigo, que será o seu “padrinho”. O padrinho é corresponsável pelo PCC, contudo, foi um ponto em
comportamento do afilhado, o que conduz a uma seleção estrita dos novos comum em todos os relatos.
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Taubaté, o antigo Anexo da Casa de Custódia é hoje destinado ao RDD 29. Nas consultas regulares que
para as mulheres cumprindo pena de prisão29. Contudo, o conhecimento faço no site da SAP o número de
mulheres presas em cumprimen-
da dinâmica prisional no estado expõe algumas nuances na distribuição de to do RDD é sempre zero. Não
castigos e punições que as retiram do suposto controle externo previsto na tratarei aqui desse caso, detenho-
me na aplicação do RDD para
legislação e as recolocam no âmbito das práticas informais, ilegais e arbitrá- os presos do sexo masculino.
rias, predominantes e estruturantes desse universo social. Na impossibilidade 30. Expressão utilizada em
de exercer a “soberania administrativa”30 na inclusão dos presos no RDD, Teixeira (2006, p. 155), extraída
de um texto referido à prisão
a SAP optou por trocar a lei pela norma, transmutando processos jurídicos de Auburn, conforme nota da
em medidas de caráter administrativo. autora.
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Para tanto, foi criada uma unidade prisional de segurança máxima dife-
renciada, com um “regime disciplinar híbrido”, a Penitenciária de Presidente
Venceslau II. Utilizamos essa denominação porque essa unidade possui um
sistema de controle diferenciado das demais penitenciárias do estado, com a
imposição de uma disciplina mais rígida, maior aparato de segurança e com
a redução significativa de regalias e/ou de direitos dos presos – por exemplo,
três horas de banho de sol diário (nas demais unidades esse tempo é de 6
horas) e a ausência de atividades religiosas, educacionais e laborterápicas.
Por outro lado, o regime disciplinar nela vigente é mais brando do que o
previsto no RDD, no qual as celas são individuais (no regime híbrido, elas
são coletivas), o banho de sol diário é de apenas uma hora, não é permitido
aparelhos televisores ou rádios nas celas nem visitas íntimas (proibições
inexistentes no regime híbrido) e o contato com advogado é mais restrito.
A finalidade de desjuridicionalizar o sistema carcerário, ou seja, retirar
da esfera jurídica a decisão de punir, com a inclusão do preso num regime
mais rígido, fez com que a SAP abrandasse as próprias regras desse regime,
a fim de transmutar decisões judiciais em administrativas, retomando, dessa
forma, a soberania nas decisões. Tal como afirmam King e McDermott
(1990) em relação às transferências para unidades prisionais especiais no
sistema carcerário britânico, esses atos punitivos – uma vez que implicam
em redução de direitos/privilégios e inclusão em regimes disciplinares mais
rigorosos – são considerados administrativos e, por isso mesmo, sem a ne-
cessidade de escrutínio externo e de prestação de contas.
A unidade de Venceslau II tem como público-alvo os integrantes do
PCC considerados – pelos administradores prisionais – mais perigosos.
Tal periculosidade é avaliada a partir do exercício de funções importantes
no grupo – tesoureiro, por exemplo – ou à posição hierárquica ocupada
dentro da organização. Mas, ao mesmo tempo, a transferência para essa
unidade está ligada à percepção das autoridades locais do exercício de uma
liderança perniciosa dentro da unidade prisional. No entanto, assim como
afirma Liebling (2000), a discricionariedade e as relações entre presos e
funcionários são muito mais definidoras das punições e dos privilégios
aplicados à massa carcerária do que as regras propriamente ditas. Assim, a
classificação de periculosidade ou a identificação de uma “perniciosidade”
no exercício da liderança local está atrelada a uma complexa rede de poder
que envolve os diversos atores, o que aumenta a ineficácia do ato de trans-
ferência como dispositivo de dissuasão das atividades da facção criminosa
e reforça o poder discricionário do administrador local.
visita mais dignos nessas unidades. 7. Pedimos implantação de trabalho e cursos comum, possuem algumas alas
destinadas ao cumprimento de
profissionalizantes o quanto antes. 8. Esclarecimento do regime dessas unidades, punição por falta grave, com ce-
quais os critérios para internação e qual o tempo para permanência máximo. las individuais para isolamento
durante 30 dias, nos quais o preso
Como pode ver não queremos garantias, só nossos direitos e necessidades bási- perde direitos como banho de sol
cas. Pedimos um retorno com solução verdadeira e prática até a data máxima de e visitas. Os quatro presos respon-
sabilizados pela carta reproduzida
15/02/2008. Sem mais no momento, população carcerária . 31
foram acusados de pertencimento
ao PCC, enquadrados na prática
de “subversão à ordem e à discipli-
A ausência de políticas públicas na área de segurança para o trato das na” e punidos por falta grave, com
facções criminosas reflete-se na inflação de medidas administrativas da SAP o isolamento de 30 dias.
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Apontamentos finais
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Resumo
Estado e PCC em meio às tramas do poder arbitrário nas prisões
Abstract
The State and the “PCC” weaving the web of arbitrary power in prisons
The purpose of this text is to discuss the regulation of daily life in prison, where illegal
punishments form a micro-level extralegal system of penalizations that founds social
relations in prisons. In the last few decades, these establishments in São Paulo state
have witnessed the expansion of an inmates organization (the ‘PCC’) which acts as an
instance of conflict management and whose control is based on a discourse of prisoners
uniting against a common enemy, the State. In response, the State uses administrative
and extralegal punitive mechanisms, which contravene constitutional principles and
reinforce the feeling of injustice that provides the base on which the PCC’s power
rests. The arbitrary practices of the State and the PCC constitute a power network that
ensnares everyone sentenced to imprisonment.
Keywords: Prisons; PCC; Arbitrariness; Power.
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Conflitos e parcerias em torno de projetos
socioambientais*
João Márcio Mendes Pereira
Crescendo e fazendo mais desde 1946, o Banco Mundial1 tornou-se uma * Artigo vinculado a projeto de
pesquisa financiado pelo CNPq
organização muito distinta daquela imaginada e acordada em Bretton e Faperj.
Woods dois anos antes. Quando começou tinha quatrocentos funcionários 1. O Banco Mundial integra o
e 42 Estados-membros; no ano de 2010, tinha por volta de 10 mil fun- chamado Grupo Banco Mun-
dial (GBM), constituído por
cionários e mais de 190 Estados-membros. Tendo efetuado 745,5 bilhões
sete organizações com diferentes
de dólares em empréstimos entre 1947 e 2010, a amplitude de suas áreas mandatos, gravitação política,
estruturas administrativas e ins-
de atuação também se diversificou junto com o aumento de sua carteira,
tâncias de decisão: Banco Inter-
passando a abarcar gradativamente, além das áreas originais de infraes- nacional para a Reconstrução e o
trutura e energia, política econômica, educação, saúde, habitação, meio Desenvolvimento (Bird), criado
junto com o Fundo Monetário
ambiente, administração pública e reconstrução nacional pós-conflito (cf. Internacional (FMI) na confe-
Banco Mundial, 2010). rência de Bretton Woods em
1944; Associação Internacional
A subida do banco à condição de organização multilateral relevante de Desenvolvimento (AID),
no pós-guerra foi escorada, do ponto de vista político e financeiro, pelos criada em 1960; Corporação Fi-
nanceira Internacional (CFI), de
Estados Unidos, que sempre foram o maior acionista, o membro mais in- 1956; Centro Internacional para
fluente e o único com poder de veto na instituição, forjando-a como parte Conciliação de Divergências em
Investimentos (CICDI), de 1966;
da sua rede de poder infraestrutural externo2. De fato, diferentemente do
Agência Multilateral de Garan-
Fundo Monetário Internacional, produto de uma disputa acirrada entre tias de Investimentos (AMGI),
de 1988; Instituto de Desenvol-
Grã-Bretanha e Estados Unidos, o Banco Mundial é, em larga medida, uma
vimento Econômico (IDE), de
criação estadunidense, e as relações com os Estados Unidos foram decisivas 1955, renomeado de Instituto
para defini-lo e para modelar sua direção, estrutura operacional, pautas de do Banco Mundial (IBM) em
2000; e Painel de Inspeção, cria-
empréstimo e práticas institucionais (cf. Gwin, 1997). do em 1993. O Banco Mundial
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é formado apenas pelo Bird e Por sua vez, desde 1944-1946, a definição da política norte-americana
pela AID, mas mantém estreita
articulação com o conjunto do para o banco foi objeto de disputa e barganha entre interesses empresariais,
GBM, à exceção, em parte, do financeiros, políticos, ideológicos e de segurança, diversos e às vezes opostos
Painel de Inspeção. O Bird conce-
de empréstimos a países de renda
quanto ao papel da cooperação multilateral e da assistência externa ao de-
média e de baixa renda solventes, senvolvimento capitalista (cf. Idem; Babb, 2009). Com o passar do tempo, a
captando recursos em mercados
de capital e emprestando a seus
disputa envolveu um número cada vez maior de atores políticos e econômi-
clientes em condições próximas cos. A partir do final dos anos de 1960, o ativismo crescente do Congresso
às do mercado financeiro inter-
nacional (hard loans). O lastro das
sobre a política externa dos Estados Unidos pouco a pouco alcançou o
operações denomina-se capital Banco Mundial, abrindo pontos de entrada durante a década seguinte para
geral e é aportado pelos Estados-
que interesses variados influenciassem as provisões norte-americanas para a
membros, em proporções desi-
guais, e só pode ser aumentado instituição. Até então, a política de Washington para o banco era definida
após negociações entre eles. Já a basicamente pelo jogo de poder entre o Tesouro e o Departamento de Estado.
AID efetua empréstimo de longo
prazo e com baixas taxas de juros Durante os anos de 1970, o ativismo do Congresso criou oportunidades
(soft loans) a países pobres com para que grupos políticos e organizações não governamentais (ONGs)
pouca ou nenhuma capacidade
de tomar emprestado nas con-
norte-americanas passassem a agir dentro do parlamento, com o objetivo
dições de mercado. A AID tem de pautar as ações do banco, sobretudo em matéria de direitos humanos.
três fontes de financiamento: con-
tribuições do Bird, pagamento
Nos anos de 1980 e 1990, o tema dos direitos humanos cedeu lugar ao do
com juros dos empréstimos que meio ambiente e impactos socioambientais provocados por projetos finan-
realiza e, a mais importante, con-
tribuições voluntárias negociadas
ciados pela entidade. Desde então, o Congresso tornou-se alvo de lobbies
entre países doadores a cada três e campanhas públicas voltadas a influenciar a política dos Estados Unidos
anos. Enquanto o Bird dá lucro
para o banco, transformando aquele parlamento no único cujos trâmites
e se baseia financeiramente no
mercado de capitais, a AID de- de fato têm peso sobre suas pautas e formas de atuação.
pende das contribuições volun- Historicamente, essa estranha espécie de banco explorou a sinergia entre
tárias de alguns Estados doadores
para sobreviver – a começar pelos dinheiro, ideias e prescrições políticas para ampliar a influência e institucio-
Estados Unidos. A fatia de cada nalizar as pautas em âmbito internacional. Isso porque o Banco Mundial
doador é negociada em rodadas
a cada três anos, chamadas de
age, ainda que de diferentes formas, como um ator político, intelectual e
reposições. O poder de voto no financeiro, e o faz devido à condição singular de emprestador, formulador
Banco Mundial – assim como no
FMI – é desigual e proporcional
e articulador de políticas, ator da sociedade civil e veiculador de ideias –
ao capital aportado por cada produzidas pelo mainstream anglo-saxônico e disseminadas ou produzidas
Estado-membro, quantia que é
negociada politicamente entre os
por ele, em sintonia com o mainstream –, sobre o que, como e para quem
Estados. Por um acordo informal fazer em matéria de desenvolvimento capitalista (cf. Pereira, 2010). É preci-
vigente desde 1944, o presidente
samente por meio dessa combinação singular de papéis que o banco opera.
do Banco Mundial é sempre um
cidadão norte-americano indica- O propósito deste artigo é analisar os embates em torno de projetos
do pelos Estados Unidos. socioambientais financiados pelo Banco Mundial ocorridos entre o início
2. O conceito de “poder infra- dos anos de 1980 e meados da década de 2000. Para isso, detém-se sobre
estrutural” do Estado designa o
poder que desenha os contextos as relações entre o banco, o Congresso e o Executivo norte-americanos e as
em que os agentes atuam e ONGs atuantes nos Estados Unidos. Argumenta-se que o banco respondeu
tomam decisões, bem como a
às pressões ambientalistas crescendo e ampliando suas atividades, mediante
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(1984-1985), tratando-a como uma “irritação passageira”, mas ela cresceu4. 4. De todo modo, o banco não
tinha um fórum de consulta
Inúmeros artigos foram publicados em revistas de prestígio internacional com ONGs. À parte as relações
e em grandes jornais norte-americanos. Documentários de televisão foram de longa data com as fundações
Ford e Rockefeller, o banco
transmitidos nos Estados Unidos e em outros países, com a participação de mantinha um Comitê de ONGs
ambientalistas brasileiros e norte-americanos. Ocorreram naquele período desde 1982, que incluía, em sua
maior parte, ONGs do Norte
mais de vinte audiências sobre os impactos sociais e ambientais dos projetos envolvidas com o “combate à
financiados pelos bancos multilaterais de desenvolvimento em seis subco- pobreza”, como Care, Red Cross
e World Council of Churches,
missões do Congresso estadunidense, com grande destaque para o histórico e ONGs não ambientalistas.
do Banco Mundial. Ao concentrarem o ataque em alguns poucos projetos Segundo Wade (1997, p. 657),
era um “comitê de fachada” (win-
de grande impacto, as ONGs também pressionavam os Estados-membros
dow dressing), sem importância
com maior poder de voto, a começar pelos Estados Unidos, a fim de forçar o prática, até o final dos anos de
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seria possível não apenas arcar com os custos da proteção ambiental, mas aparência da melhor pesquisa
técnica. Sua confecção consome
também diminuir a pressão social sobre a natureza, uma vez que a renda de 3,5 a 5 milhões de dólares.
dos mais pobres – obrigados, por sua condição, a exaurir ou depredar os Cada edição tem pelo menos
50 mil exemplares em inglês
recursos naturais – aumentaria. Argumentava também que a escassez de (alguns tiveram mais de 100 mil)
recursos naturais criaria uma demanda por pesquisas direcionadas a superar e mais 50 mil são traduzidos para
sete idiomas (chinês, alemão,
os obstáculos ao progresso econômico, levando as sociedades a substituir, francês, espanhol, japonês,
de maneira mais racional, recursos abundantes por escassos. A idealização russo e vietnamita). Trata-se da
publicação mais cara do gênero.
do poder da tecnologia que dava suporte a essa visão projetava um cenário
Para detalhes, ver Wade (2001a,
irreal em que todos ganhariam com o crescimento econômico e a redução 2002).
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TABELA 1
Projetos do Banco Mundial em Colaboração com ONGs, por Regiões e Setores – 1987-1999
1987-1995 1996 1997 1998 1999
Nº % Nº % Nº % Nº % Nº %
REGIÕES
África 680 34 53 55 49 61 59 54 62 61
América Latina e Caribe 443 24 54 48 52 60 68 51 56 59
Ásia meridional 239 33 21 76 19 84 25 73 23 76
Ásia oriental e Pacífico 378 20 46 44 37 32 45 51 54 43
Europa e Ásia central 225 16 61 38 67 24 69 37 79 34
Oriente Médio e norte da África 180 12 21 38 17 41 20 52 25 64
TOTAL 2.145 25 256 48 241 47 286 50 299 52
SETORES
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mesmo mês, Wolfensohn recebeu uma carta assinada por cinco ganhadores
do prêmio Nobel que o instava a adotar as propostas da RIE (cf. Bello e
Guttal, 2006, p. 78). Em junho, o Financial Times publicou um artigo de
Emil Salim, no qual afirmava que o banco deveria “modificar radicalmente”
a política de apoio às indústrias extrativas e, “em alguns casos, suspendê-la
por completo”, uma vez que “não somente as indústrias petroleiras, de gás ou
mineradoras não ajudaram os mais pobres nos países em desenvolvimento,
mas também porque, com frequência, agravaram suas condições de vida”
(apud Toussaint, 2006, p. 223).
Em setembro, o Banco Mundial (2004) deu a resposta oficial. No fun-
damental, havia congruência com a posição do empresariado organizado
no ICMM, embora o tom fosse mais comedido. Algumas recomendações
foram incorporadas por mera formalidade, como o “respeito aos direitos
humanos”, sem maiores definições sobre como seriam implementadas.
Outras recomendações politicamente problemáticas foram descartadas
sem mais, como o fim do financiamento à indústria petroleira. Inúmeras
outras foram relegadas a tratamento posterior por grupos de trabalho. De
modo geral, em vez de focalizar a mudança de suas próprias políticas de
salvaguarda, o banco deslocou a responsabilidade para os clientes, atrelando
a autorização e implementação dos projetos a normas e procedimentos dos
países prestatários.
Tanto a CMB como a RIE expuseram as contradições entre a prática
do banco e o discurso em prol da boa governança, da transparência e do
desenvolvimento sustentável. A incapacidade da instituição de cumprir com-
promissos acordados publicamente fez com que a promessa de reforma se
desgastasse em termos políticos antes do término da gestão de Wolfensohn.
Por outro lado, após uma década de sucessivos diálogos multilaterais e
consultas participativas, o universo das ONGs havia crescido e se fragmen-
tado ainda mais, e o banco havia conseguido estabelecer uma divisão de
trabalho especializada nesse universo, na esteira do processo de “onguização”
tanto da assistência internacional ao desenvolvimento como das políticas
públicas nacionais. Se é verdade que a série de consultas e diálogos pro-
movida por Wolfensohn deu visibilidade aos limites da reforma do banco
em matéria socioambiental, é verdade também que o campo dos críticos
se diluiu ao longo do decênio 1995-2005. Nesse percurso, algumas das
maiores organizações ambientalistas modificaram a postura de confronta-
ção para se tornarem cogestoras de projetos financiados pela entidade (cf.
Goldman, 2005).
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Conclusão
do Executivo e nada disso foi implementado (cf. Babb, 2009, p. 195). Por
sua vez, no Congresso, o apoio a essa demanda foi muito menor.
A capacidade de ONGs ambientalistas de influenciar aspectos distintos
da política norte-americana para o Banco Mundial tem suscitado questiona-
mentos diversos. Um deles é se as ONGs representam ou têm legitimidade
para representar os interesses das populações afetadas por projetos finan-
ciados pelo banco; outro é se se pode considerar legítimo que campanhas
orquestradas por elas levem ao cancelamento de projetos de interesse de
governos democraticamente eleitos (cf. Mallaby, 2004a, 2004b). Esse tipo
de questionamento remete ao fato de que, apesar das parcerias entre ONGs
do Norte e populações afetadas do Sul, é à pressão concentrada na sociedade
civil de países doadores – sobretudo nos Estados Unidos – que o Banco
Mundial responde (cf. Wade, 1997, 2001b; Babb, 2009, p. 204). Com efeito,
as ONGs estabelecidas em Washington têm acesso regular ao Tesouro e ao
banco e, por isso, são mais bem conectadas e informadas do que ONGs
de outros países, o que paradoxalmente acaba reforçando a gravitação dos
Estados Unidos na instituição (cf. Nelson, 1995, pp. 63-66; Wade, 2002).
Em algumas ocasiões, essa situação tem suscitado críticas de representantes
dos países clientes no banco, que a consideram um exemplo de imposição
da visão política do Norte sobre o Sul. Nesse sentido, os inúmeros casos de
“vazamento” de documentos internos importantes do banco relatados neste
artigo não devem ser considerados eventos exógenos, mas sim elementos
constitutivos da dinâmica que atravessa a instituição e que é própria do
campo de relações no qual ela se insere11. 11. O autor agradece ao parece-
rista anônimo por enfatizar essa
Nas últimas décadas, o Banco Mundial lidou com as injunções políticas
dimensão.
em matéria socioambiental crescendo e fazendo mais, mediante um processo
contínuo de estiramento institucional e mudança incremental. Essa expan-
são absorveu uma quantidade cada vez maior de demandas diferenciadas,
alargando o mandato do banco muito além das áreas originais. Contudo,
do ponto de vista político, a absorção se deu pela via da internalização e da
acomodação das demandas no paradigma dominante de desenvolvimento
impulsionado pela instituição. No bojo desse movimento, as respostas da
entidade a pressões e demandas gradativamente deixaram de ser meras
concessões pontuais aos detratores para se converterem em componentes
ativos da agenda impulsionada pelo banco, dilatando o raio de influência.
Esse processo foi e continua sendo conflitivo em diferentes graus, tanto mais
porque, embora o banco tenha se tornado o paladino da ideia de “desenvol-
vimento sustentável”, ativistas e ONGs continuam a reclamar da consulta
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Resumo
Abstract
This article analyzes the clashes over socio-environmental projects financed by the
World Bank since the beginning of the 1980s. It focuses in particular on the relation- Texto recebido em 13/8/2010 e
aprovado em 15/8/2011.
ship between the Bank, the American Congress and Federal Government, and NGOs
João Marcio Mendes Pereira é
working in the USA. It argues that the Bank responded to external pressures in relation doutor em História pela Uni-
to socio-environmental issues by increasing in size and activities, through a conflictive versidade Federal Fluminense
(UFF), professor adjunto da Uni-
and continuous process of institutional stretching and incremental change that ac- versidade Federal Rural do Rio
commodated these pressures within the dominant paradigm. On the other hand, the de Janeiro (UFRRJ), professor
do Programa de Pós-Graduação
confrontation that marked the relations between the Bank and the NGOs through the
em História da UFRRJ e coor-
eighties later gave way to institutional partnerships for the implementations of projects denador do Grupo de Estudos
sobre o Agro Contemporâneo.
and programs in the wake of the neoliberalization of Nation States.
E-mail: <joao_marcio1917@
Keywords: World Bank; Environment; Non-Government organizations; United States. yahoo.com.br>.
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A categoria trabalho no capitalismo
contemporâneo
Luís Antônio Cardoso
Introdução
Ao longo dos últimos quarenta anos, o debate sociológico tem sido im-
pactado por um conjunto de autores e teses que vem propondo o fim da
categoria trabalho como uma categoria central no pensamento social. De
fato, as últimas transformações presenciadas na economia, nos processos
produtivos e no trabalho contribuíram significativamente para o alavan-
camento desse movimento, levando diversos autores isolados e Escolas a
refletirem e teorizarem sobre as mudanças em curso em nossa sociedade.
Este artigo tem como objetivo, pois, explorar e fazer um mapeamento
crítico das principais correntes e autores que contribuíram para o desenvolvi-
mento desse debate, identificando suas principais teses e argumentos críticos.
Para isso, o artigo estrutura-se em duas seções ou partes distintas. Na
primeira, denominada “A centralidade da categoria trabalho no pensamento
social”, realizamos uma abordagem introdutória sobre a questão da centra-
lidade da categoria trabalho na construção do pensamento ou teoria social.
Discorre-se aqui sobre como a categoria trabalho é importante desde a fase
anterior à fundação da sociologia até a consolidação desta em sua fase clássica.
São evocadas as principais ideias sobre o trabalho e sua constituição como
importante mecanismo de análise do social. Na segunda e última parte, inti-
tulada “A perda da centralidade do trabalho e suas visões”, discorremos sobre
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explicação sociológica da sociedade ocidental1. Ao construir as análises e os 1. Embora a obra de Marx não
torne explícita em seu conjunto
conceitos da exploração capitalista, das classes sociais, do Estado moderno, da a existência de uma sociologia e
luta de classes, da ideologia, da alienação, da formação do valor, do capital, de um instrumento da explicação
sociológica, concordamos com as
entre outros não menos importantes, Marx evidenciou como o trabalho, teses de Lefebvre e Durand, nas
além de pano de fundo de todas essas questões, constitui-se como uma eterna quais se identificam as premissas
de uma sociologia no legado
necessidade natural da vida social, isto é, o meio pelo qual permitiu ao ser de Marx (cf. Lefebvre, 1966;
social se impor sobre a natureza que o cerca, exercer seu reconhecimento Durand, 1995).
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por completo, mesmo considerando que o tempo livre exercerá certa pre-
dominância em relação ao tempo de trabalho.
Essa dualidade entre as esferas da autonomia (liberdade) e da heteronomia
(necessidade) remonta sobre a clássica dualidade existente entre a raciona-
lidade de tipo instrumental, da esfera da necessidade, e aquela do espaço
auto-organizado e intersubjetivo dos indivíduos, isto é, a esfera da liberdade.
Gorz pressupõe o tempo livre e a abolição do trabalho, e o processo de
adeus ao proletariado, ao qual faz referência, está relacionado com o avanço
da técnica e da revolução autônoma das forças produtivas, que ele denomina
“revolução microeletrônica”. Esta última permitiria subverter o tempo de
trabalho como medida de valor, já que inaugura o decréscimo da massa total
do capital fixo posto em ação para produzir um volume crescente de merca-
dorias, e também, em razão disso, provocaria um acirramento da contradição
inerente ao próprio capitalismo (cf. Idem, pp. 68-70).
Assim, o ocaso do trabalho e a agonia do capital, vislumbrados por Gorz,
serão potencializados pelo próprio processo de automatização das atividades
produtivas e de serviços. A técnica, todavia, gozará de uma neutralidade
que, de forma geral, inaugura a era da abolição do trabalho, uma vez que
este tende a tornar-se uma força produtiva secundária diante da potência
do automatismo e da complexidade dos equipamentos (cf. Idem, p. 277).
Gorz esvazia, então, não só a esfera do trabalho, mas também a da po-
lítica, pois, para ele, a revolução microeletrônica corresponde à aspiração
de uma proporção importante dos homens e das mulheres por (re)tomar o
poder da e sobre a vida (cf. Idem, p. 171).
Por fim, é a partir da tese da neutralidade da técnica que Gorz erige sua
utopia de uma sociedade de tempo livre. Nessa sociedade, o trabalho hete-
rônomo é subordinado à esfera da autonomia, uma vez que a possibilidade
de redução do tempo de trabalho permite a transformação do trabalho em
atividade, e não na atividade. Para o autor, a redução do tempo de trabalho
deve ser considerada um fim para reduzir as desigualdades sociais. Assim,
ela não pode ser seletiva nem muito menos pode estar condicionada aos
ganhos de produtividade, e seu objetivo maior é que a redistribuição do
trabalho socialmente necessário seja benéfica para todos.
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Por fim, Kurz propõe uma conclusão bastante controversa para sua teo-
ria. Ao mesmo tempo em que incita a luta para o rompimento da forma
de mercadoria das relações sociais de alienação, o embate deixa de ter um
sujeito, pois parte-se do pressuposto de que a classe trabalhadora perdeu
sua dimensão transformadora e revolucionária. A ruptura e a superação da
crise, bem como a instauração de uma nova sociedade, no entender de Kurz,
não seriam dadas pela construção de esquemas administrativos estatistas de
natureza burocrática, mas, ao contrário, seriam decorrência de um movi-
mento social consciente, capaz de derrubar, com o emprego da violência,
os aparatos construídos. Não obstante, o autor atribui às ciências sociais
um papel relevante nesse esforço, com vistas a elevar a consciência crítica
da sociedade, e, diante do caráter destrutivo e excludente da sociedade da
mercadoria, ele postula a emergência de uma nova racionalidade fundada na
razão sensível, capaz de emancipar o sujeito social nesse processo de ruptura.
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Resumo
A categoria trabalho no capitalismo contemporâneo
Abstract
This paper aims to discuss the contemporary sociological debate on the decline in
the centrality of work as a category over the final decades of the 20th century. It also
analyzes the importance of the work category in sociological thought, showing how it
in fact appeared before the emergence of sociology. Finally the paper examines the ap-
proaches of Habermas, Gorz, Offe, Schaff and Kurz, considered as the most important
precursors to this debate.
Keywords: Sociology of work; Social theory; Centrality of work.
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Riscos ocupacionais da imagiologia
Estudo de caso num hospital português
João Areosa
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deles em particular irá ocorrer. Assim, o conceito de risco remete-nos a 4. Apesar de a abordagem ao
risco estar essencialmente di-
probabilidades ou possibilidades sobre a ocorrência de eventos futuros4, recionada a possíveis situações
decorrente das diversas dinâmicas do mundo social. A essência do risco futuras (cf. Giddens, 2000),
isso não significa que deixemos
não é aquilo que está acontecendo, mas aquilo que pode vir a acontecer de incorporar nossa experiên-
(cf. Adam e Van Loon, 2000). O conceito de risco remete-nos sempre a cia na avaliação de eventuais
acontecimentos vindouros, o
algo condicional, ou seja, uma dose de incerteza está sempre presente. Se que nos permite obter alguns
o futuro fosse predeterminado e independente das ocorrências do presente parâmetros comparativos para
“saber” como lidar com situa-
(atividades humanas ou forças da natureza), o termo risco não faria sen- ções de risco semelhantes. Para
tido (cf. Renn, 1992). Apesar da pluralidade conceitual do risco, parece tentar combater alguns fatores
de incerteza relativos ao futuro,
existir um elemento transversal a todas as definições: a distinção entre
utilizamos quase sempre nosso
possibilidade e realidade (cf. Idem), ou seja, o que é passível de acontecer capital de conhecimentos como
através de múltiplas formas de transmissão da informação na sociedade, Giddens designa casulo protetor.
bem como por diferentes fontes de poderes e de saberes em interação no 5. A concepção do risco foi
dominada durante um lon-
mundo social (cf. Areosa, 2009a). go período pela perspectiva
As pesquisas que se dedicam aos riscos no trabalho são apenas uma das probabilística. Contudo, para
determinadas situações, no-
muitas variantes do estudo do risco. Esse tipo específico nem sempre suscitou meadamente em algumas áreas
as mesmas leituras, foi sofrendo evoluções e reconfigurações nas diversas do comportamento humano ou
dos sistemas tecnológicos, a visão
sociedades, dependendo das práticas utilizadas e das novas formas de conhe- probabilística do risco parece
cimento acerca dos efeitos nocivos do trabalho sobre os seres humanos. Os não ser a mais indicada (cf.
Martins, 1998; Granjo, 2006)
riscos organizacionais tendem a ser vistos como potenciais fatores negativos
e pode levantar problemas de
para a saúde e a segurança dos membros pertencentes a uma organização. aceitação e legitimidade sociais
São suscetíveis de causar lesões físicas aos trabalhadores, doenças, danos (cf. Areosa, 2008). As pessoas,
em geral, e os cientistas sociais,
materiais e/ou ambientais; ou seja, podemos encontrar uma interligação em particular, demonstram ter
entre os riscos laborais e os potenciais efeitos adversos que o trabalho pro- um entendimento mais alar-
gado do risco, contrariando a
voca nas pessoas e em seu bem-estar, bem como nas eventuais perdas para abordagem unidimensional do
a organização. Em resumo, podemos afirmar que os riscos ocupacionais são modelo probabilístico. Existem
outros aspectos importantes na
uma espécie de “antecâmara” para os acidentes (cf. Areosa, 2009b, 2009c).
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Riscos ocupacionais da imagiologia: estudo de caso num hospital português, pp. 297-318
abordagem ao risco, tais como: Existem diversas definições da noção de riscos no trabalho. Contudo,
a voluntariedade, a capacidade
pessoal de influenciar o risco, defendemos que ela deve ser o mais abrangente possível. Sua conceituali-
a familiaridade com os riscos, zação deve considerar tanto os riscos laborais mais simples (desconforto
a equidade na sua distribuição
social, a controlabilidade e as
ou incomodidade ligeira), como os riscos mais graves, que dão origem a
formas de resposta pública pe- incapacidades permanentes ou à própria morte. “Entendemos então, por
rante um potencial catastrófico
(cf. Kasperson et al., 2000).
riscos no trabalho, qualquer ameaça para a integridade física ou psíquica
Assim, a inclusão dos valores do trabalhador resultante de um desvio, ainda que mínimo, daquilo que
sociais deve ser vista como um
importante contributo para a
se considere como trabalho normal” (Meleiro, 1985, p. 13). Os riscos do
definição do risco. Segundo foro laboral podem ser compreendidos através de três dimensões distintas:
Tierney (1999), o risco pode ser
1) os riscos em si mesmos, como potenciais causas geradoras de eventuais
entendido como algo passível de
conter características dinâmicas, lesões ou danos; 2) os riscos sobre os sujeitos, isto é, sobre quem eles podem
influenciadas pelo mundo social. incidir; e, por fim, 3) os efeitos dos riscos sobre os sujeitos afetados (neste
É preciso considerar que os
riscos estão continuamente em caso estamos falando sobre as consequências pessoais da efetivação dos riscos
evolução por serem, em parte, ocupacionais). Na verdade, o mesmo tipo de risco pode ter efeitos e conse-
produto da forma como os atores
sociais se comportam (cf. Idem,
quências muito diferenciados para os sujeitos expostos. Em diversas situações
p. 228). observa-se que os efeitos da exposição ao mesmo tipo de risco podem afetar
de forma distinta os trabalhadores, devido à sua própria suscetibilidade
ou vulnerabilidade individual (cf. Mela et al., 2001). É ainda pertinente
lembrar que a presença de diversos tipos de riscos simultaneamente numa
dada situação pode provocar cenários de risco com grau muito superior, em
comparação com aqueles que provocaria caso sua “ação” fosse produzida
isoladamente. A interação de vários riscos pode ampliar os supostos efeitos
individualizados e constituir-se como um fator de agravamento da própria
situação de trabalho (cf. Areosa, 2008).
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Embora nem sempre com níveis de percepção muito elevados, essa cate-
goria profissional referiu também outros tipos de riscos aos quais se encontra
vulnerável (sem estar diretamente relacionados com os riscos de assistên-
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aos colegas, organizam trabalhos e não dizem nada aos colegas, portanto, só
aparecem com as coisas feitas (Técnico de radiologia nº 5).
Neste momento nós temos aqui os dosímetros, eu penso que é satisfatória, sim, não
é excelente, nem muito bom, mas penso que numa escala de zero a vinte era capaz de
ter treze valores ou catorze. Poder-se-ia fazer melhor, mas lá está, seria necessário um
equipamento mais sofisticado que na prática não estou a ver que seja possível, pelo
menos a curto prazo. Penso que o serviço deveria ter um físico que fosse realmente
responsável pela radiação de cada aparelho, enfim, saber as condições em que os
doentes estão a ser irradiados, as condições de assepsia, já não falando da radiação,
mas de outros riscos e de outros agentes que possam ser nocivos para os doentes e
para os médicos, isso deveria haver um controle, talvez, mais apertado. Satisfatório
sim, mas muito mais do que isso, não (Médico de radiologia convencional nº 1).
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Ainda há algumas coisas que teriam de ser melhoradas e valorizadas, porque não são
valorizadas muitas vezes. Estar exposto às radiações ionizantes é uma profissão de ris-
co, além de todos os riscos inerentes a toda a profissão médica, de todo o ato médico.
Porque nós também podemos ser infectados. Mas, portanto, acho que isso é um risco
acrescido e isso não é valorizado, penso que não (Médico de neurorradiologia nº 14).
de urgência e que devem chegar e ser atendidos. Quando eu lhes digo que: olhe,
tem ali aqueles doentes também a aguardar para fazer RX, eles ficam desesperados,
porque não podem esperar. Depois temos de contar com as más educações, com as
pessoas irresponsáveis, com as pessoas menos bem-educadas e temos de ter paciência,
falar com as pessoas e levá-las a perceber a situação que está. As urgências estão
normalmente um caos, as segundas-feiras então, aliás, chegou a apreciar como é
que são as segundas-feiras. Isto leva a que os técnicos, aliás, todos os profissionais
de saúde das urgências, penso que é sempre assim, há um stress muito grande.
Mas parece que o stress já faz parte da nossa profissão, é o dia a dia. Os problemas
vão-se resolvendo, as situações vão sendo ultrapassadas, com calma, com método
e com respeito pelo doente, porque é por isso que nós estamos cá, é por causa do
doente. [...]. As pessoas [colegas de trabalho] também têm os seus problemas, são
seres humanos, têm os seus problemas psicológicos, físicos e os seus problemas fa-
miliares, e que muitas vezes também têm de ser resolvidos na equipe. É assim, um
desdobramento pessoal e uma compreensão de todos. O trabalho por turnos, fazer
as noites também complica. Mas eu aqui até acrescentaria que deixar de trabalhar
por turnos não sei se era bom, eu já não sei trabalhar sem ser por turnos (Técnico
de radiologia nº 12).
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incluir a forma como estes são percebidos, bem como a propensão individual
na forma de lidar com certos tipos de riscos. Uma prevenção eficaz deve ter
em conta a visão dos trabalhadores sobre os riscos ocupacionais, e isso não
se verificou no serviço estudado.
Enfim, os riscos existem, não são negligenciáveis, quer os riscos psicológicos, quer
da sobrecarga física, também os riscos das radiações e de contágio, de lidar com
situações graves, de alguma forma é depressivo, é angustiante, não é. Depende
também muito da pessoa; no nível da instituição não há grande atenção a essas
questões, não há formação nenhuma nessa área (Médico de neurorradiologia nº 15).
riscos mais temidos por esse grupo de trabalhadores estão relacionados com
riscos físicos (exposição a radiações ionizantes) e riscos biológicos (derivado
do eventual contágio com as patologias dos doentes), embora também se-
jam apontados outros tipos de risco ocupacional. Porém, é pertinente não
esquecer que qualquer percepção de riscos laborais é sempre um processo
interpretativo de uma dada “realidade” organizacional suscetível de aprecia-
ções diversificadas. As percepções de riscos no serviço de imagiologia são,
tendencialmente, construídas a partir da formação acadêmica e das expe-
riências vividas nos locais de trabalho. São essas experiências que estruturam
o modelo de representações dos agentes sociais, com base no desenrolar das
práticas quotidianas do mundo laboral, sendo mais ou menos influenciadas
pelos discursos e pelas práticas produzidas no ambiente de trabalho. Essa
dinâmica de interação social no mundo do trabalho produz e reproduz
os limites das percepções de riscos laborais, bem como os conteúdos mais
importantes, e desse modo podem originar propensões diversificadas para
lidar com os riscos, o que pode influenciar a maior ou menor ocorrência de
acidentes de trabalho (cf. Areosa, 2003, 2005). É verdade que encontramos
um número considerável de riscos organizacionais no serviço estudado, no
entanto a grande maioria dos entrevistados apenas conseguiu identificar
parcialmente os riscos laborais.
Na perspectiva de Giddens (1994), a percepção sobre a forma como os
riscos são controlados depende da confiança depositada nos sistemas abstra-
tos. Os trabalhadores do serviço de imagiologia nem sempre demonstraram
confiar na forma como a organização controla os riscos ocupacionais. É
pertinente lembrar que o limiar da aceitabilidade do risco nos locais de
trabalho é mais baixo quando os trabalhadores se consideram eles próprios
explorados (cf. Douglas, 1985) ou violentados pelo trabalho. Pudemos ve-
rificar que os trabalhadores mais descontentes com a situação profissional
tendiam a afirmar que os riscos ocupacionais não eram devidamente con-
trolados pela organização hospitalar. No entanto, não se observou que esse
fato desse origem a qualquer tipo de reivindicação ou conflitualidade, talvez
por esses riscos serem familiares ou conhecidos, assumidos voluntariamente
pelos trabalhadores e distribuídos de forma mais ou menos equitativa no
serviço observado.
Os trabalhadores do serviço de imagiologia identificaram também ou-
tros tipos de risco de seu universo laboral, além dos dois principais tipos
já referidos anteriormente, embora apenas uma parte dos entrevistados os
mencionasse no seu discurso. Com base nesse parâmetro – identificação
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Riscos ocupacionais da imagiologia: estudo de caso num hospital português, pp. 297-318
Resumo
Riscos ocupacionais da imagiologia: estudo de caso num hospital português
Abstract
This paper presents the findings of research undertaken in an imaging service based at
a public hospital. Here we examine the main occupational risks of this activity, as well
as employee perceptions of this risk. The professional groups observed were: radiology
doctors, neuroradiology doctors and radiology technicians. The methodology used in
the case study was field research with participant observation. In implementing this
method we used interviews as a primary technique for obtaining information. One
of the main conclusions of the investigation was that risk perceptions in the imaging
service vary considerably. However the risks most feared by workers are associated with
exposure to ionizing radiation and various other biological hazards encountered in the
hospital environment in general.
Keywords: Risk; Occupational risk; Risk perception; Medical imaging.
Texto recebido em 1/9/2009 e
aprovado em 15/8/2011.
valores da democracia. Um dos frutos que colhi é que, hoje, pertenço ao grupo
dos que sustentam que os maiores perigos para a democracia podem vir da direita
e não da esquerda (Dahrendorf, 1981a, p. 1).
E ainda:
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Ralf Darendorf (1929-2009): réquiem para um sociólogo liberal, pp. 321-334
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origem germânica, mas asseverava que os ares britânicos, por assim dizer,
preenchiam-lhe a vida com seus costumes e sua tradição política eminen-
temente liberal. Para Dahrendorf, há na história da Inglaterra uma tradição
constitucional profundamente arraigada e protegida por costumes e insti-
tuições que confere a certeza de que ali qualquer um jamais será posto sob
o jugo de governos arbitrários.
Isso teria a ver, na Grã-Bretanha,
[...] com a ausência da agourenta nuvem negra da dúvida, ou até mesmo do medo,
que obscurece tanto da vida de outros países, por lembrar às pessoas as violentas
tormentas do passado [...] é a folha corrida do país, principalmente a certeza [de]
que, quaisquer que forem os sentimentos antiliberais que venham a se infiltrar nos
debates e no comportamento, ao final, as pessoas não permitirão que a destruição
da ordem liberal aconteça” (Dahrendorf, 1997, p. 112).
Alguns dizem que o autor foi seduzido pela formalidade britânica e seus
charmes, bem como pela pompa e garbo característicos àquele que é feito
Lord. Quando questionado, preferia definir-se apenas como um londrino.
Aqueles que sabem uma ou outra coisa sobre mim podem estar pensando: mas por
que teria essa ave rara vindo hoje a Weimar? Um lorde britânico, mas com um nome
obviamente alemão que há vinte anos vem dirigindo universidades em Londres e
Oxford, um viajante que circula entre países e atividades diferentes. [...] Devido
a todas estas mudanças, alguns me descrevem como o “epítome do europeu”, o
que não é totalmente incorreto. [...] Ao mesmo tempo, descrever minha vida par-
ticularmente europeia demonstra uma certa falta de imaginação. Afinal, não me
mudei para a Inglaterra para passar alguns anos em outro país, na condição de um
europeu alemão, mas sim porque me sentia em casa na cultura da vida britânica,
como me sinto até hoje. Nunca neguei minha germanidade. [...] Venho, pois, aos
senhores, como alguém que traz dentro de si duas culturas e, o que é mais, duas
culturas inteiramente diferentes (Idem, pp. 215-218).
Considerações finais
Embora nunca tenha sido um teórico incurável (tal qual a imagem que
Parsons tinha de si mesmo), Dahrendorf, que começou seus estudos nas
letras clássicas e na filosofia, adentrou o discurso propriamente sociológico
mesclando rara habilidade em trabalhar conceitos e aportes teóricos com
Referências Bibliográficas
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Resumo
Abstract
The obituary looks to present and discuss the biography and bibliography of the liberal
English sociologist of German origin, Ralf Dahrendorf, who died in 2009. His principal
Texto recebido em 5/7/2010 e
aprovado em 15/8/2011.
works and the most remarkable passages of his rich personal and intellectual life are
“grande deserto dos homens”, embora não possa “infantil”, há uma execução que lhe é concernente,
também, segundo Baudelaire, ser considerado sim- pois a mão marca rapidamente com o lápis e o pincel
plesmente um flâneur. Recorrendo a La Bruyère, o as linhas principais da representação ou cena, “os pon-
autor o categoriza como “puro moralista pitoresco”, tos culminantes ou luminosos de um objeto” como
pois o Sr. G. em sua aversão incontornável ao “reino impressões que serão completadas mnemonicamente
impalpável do metafísico” também não admitiria ser pelos espectadores. Depois de convertidos para gra-
tratado como um filósofo. vuras que ilustram notícias em jornal, os desenhos ou
Dotado de uma sensibilidade ativa, não indiferen- esboços do artista vão se acumulando às centenas, aos
te ao mundo que o cerca e no qual se move, sua pro- milhares, sendo vendidos a preço irrisório, por vezes,
fissão consistiria mais “em esposar a multidão” sendo em lotes, para poucos interessados ou para revenda
a multidão o seu domínio “como o ar é o do pássaro, por marchands. Não provindo, como a fotografia, de
a água, o do peixe”, expressando o seu olho desejoso, uma visão instantânea que pode ou não ser recom-
pelo deslocamento do olhar e de seu corpo, a condição posta, esses desenhos são forçosamente trabalhados e
inelutável de amante que ama amar a multidão. A luz retrabalhados de acordo com a visão moral consentida
traz as delícias como de um espetáculo que se apre- para o gênero crônica pela redação londrina que os
senta diariamente nas ruas aos olhos de qualquer um: edita, portanto, oferecendo-se em disposição para uma
“lindas equipagens, os cavalos imponentes, o asseio elocução que os seleciona inscrevendo-os segundo a
impressionante dos cavalariços, a destreza dos pajens, justa medida quanto ao tipo de leitura demandada
o meneio do andar das mulheres, as belas crianças, pelos leitores do jornal inglês, o contratante do Sr. G.
felizes para a vida e pelas boas roupas; em uma palavra, A abundância de desenhos do Sr. G. deixados para trás
com a vida universal [...]”. Essa nova memória, ou referida por Baudelaire, portanto, não deve ser lida,
melhor, memória mais conveniente, é denominada como uma primeira opinião poderia sugerir, como
por Baudelaire de “modernidade”: “A modernidade algo que o desabone como artista, mas, ao contrário,
é o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da como condição que encarece a eleição da visão mais
arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável”, diz o sintética segundo os critérios estabelecidos e comparti-
autor, sempre propondo que para cada pintor antigo lhados pela audiência, e que minimiza a ação do “eu”,
houve “uma modernidade”. O autor faz o Sr. G. ser pois indissociável dessa mesma audiência, não veria
guiado pela natureza como observador da vida antes o artista sentido em se apresentar de outro modo que
que este inventasse os meios para expressá-la, o que não fosse pela posição de um quase incógnito, ou por
resultou, depois, em “barbárie” como efeito de uma Sr. G., como Baudelaire o apresenta.
arte genuína avessa aos academicismos, imediatamente
verossímil em relação à impressão das exterioridades
que visou representar, “lisonja à verdade’, como diz
Baudelaire em lisonja a essa arte. A “barbárie” opera
como conceito duplo, pois implica, de um lado, a
acepção de um artista não disciplinado, não moldado
ou educado previamente, o seu olhar não tendo sido
domesticado, é selvagem ou ingênuo, não importa,
mas não foi arrefecido ou terminado segundo mo-
delos. De outro lado, mas numa relação de subordi-
nação em relação a esse olhar “bárbaro”, “sintético”,
Otis Dudley Duncan. Notes on social measurement: Algumas das mais relevantes invenções humanas
historical and critical. Nova York, Russell Sage Foun- em termos de medição social estão expostas no curso
dation, 1984, 256 pp. do terceiro capítulo. Nota-se o fascínio exercido pelos
números desde sempre: na descrição que faz o autor
Dawisson Belém Lopes* do surgimento da preocupação com a métrica entre
Professor Adjunto do Departamento de Ciência os poetas da Grécia antiga; nas estratégias militares
Política da UFMG baseadas em numerosos exércitos do rei persa, Xerxes;
e até mesmo na Bíblia, com suas recorrentes men-
Os estudos voltados para a apreensão da história ções a populações, gerações e contingentes militares,
de pesos e medidas são chamados de “metrologia apresentados em números. Outra advertência do
histórica”. Na obra clássica de Otis Dudley Duncan, autor que permanece importante nos dias de hoje: a
essa metrologia é temperada por sociologia, área de ausência de números não implica a inexistência de
formação do autor. A primeira dificuldade apontada técnicas de mensuração. Ver, por exemplo, as formas
concerne à questão da comensurabilidade. Isso porque como o comércio se desenvolveu ao longo dos séculos.
quando duas coisas – objetos, pessoas, fenômenos – Se a estratificação social existe desde há muito,
são comparadas, presume-se que se possa medi-las em a forma como se estrutura cambiou. Não cabe mais
igualdade de condição (suposição, muitas das vezes, classificar, como Platão o fez na República, os tipos
errônea). O autor explora as dificuldades operacionais de “alma” dos cidadãos da pólis. Tampouco se admi-
da metrologia histórica (estabelecimento de propor- tiria com naturalidade, hoje, a afirmação de que há
ções, escalas, unidades de medida), reconhecendo que os que nascem para serem escravos – como sugeriu
as convenções relativas a pesos e medidas constituem Aristóteles, na Política. Mas persistem as honrarias
usualmente uma tarefa política legada, no decorrer do e os sistemas de titulação. Nos esportes, a missão
tempo, aos órgãos do poder constituído. de determinar vencedores e perdedores esbarra em
É interessante que o autor parta da hipótese de considerações de justiça, de adequação. Nos exames
haver atualmente um crescente descolamento entre universitários, subsiste a dificuldade de converter
a unidade de medida e o seu referente físico. Tal conceitos e avaliações inerentemente subjetivas em
hipótese está alicerçada na constatação de termos números. Na sociologia criminal, questiona-se a
migrado, na modernidade, do sistema ordinal (que fórmula capaz de dosar a pena para um caso qualquer.
depende do “outro”) para o cardinal. Duncan tam- Em suma, são grandes e plurais os constrangimentos
bém admite, ao fim do segundo capítulo, que toda que se impõem à mensuração social.
medição é, em essência, medição social (p. 35). Não No que parece adentrar a sua zona de maior con-
há como mensurar qualquer fenômeno estando fora forto na narrativa, Duncan ressalta a importância da
da história ou da sociedade. Adotar essa premissa invenção do cálculo de probabilidade (que, original-
acarreta adaptações em nosso modo de pensar a rea- mente, queria indicar uma “opinião plausível”, e não
lidade social: não se poderá, doravante, considerar a a “verdade demonstrada”). Trata-se da transição da
quantificação/medição como fator externo à socieda- arte para a ciência da medição social. No cerne desse
de; antes, a quantificação está embutida em qualquer processo de crescente formalização das técnicas de
apreciação sociológica que se fizer – mesmo na mais aferição dos fatos sociais encontra-se O suicídio, obra
“qualitativa” delas. monumental de Émile Durkheim, que mobilizou
instrumental pouco comum para aferir o estado das
* Agradeço a leitura e os comentários feitos ao texto pelo professor Luiz
Antonio Machado da Silva. artes de sua época. A conclusão a que chega o soció-
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logo francês repercurte na abordagem de Duncan: Na posição firme de Duncan, não há que se emular
suicídios – bem como as medições – são produzidos o “padrão científico” da física ou de outras ciências
por forças sociais. naturais; deve-se buscar desenvolver os instrumentos
Por fim, o autor contempla os métodos mais recen- de aferição da ciência social.
tes de amostragem representativa. Consideradas as po- As “Anotações” de Duncan jogam luz sobre um
pulações urbanas da atualidade – em muito superiores problema ainda hoje bastante crítico para as ciências
àquelas idealizadas por Rousseau no século XVIII –, sociais: a conturbada relação entre metodologia e
torna-se necessário desenvolver métodos de aferição epistemologia. A esse respeito, postulamos que, se
que não requeiram abordagem individualizada, de os pesquisadores são os agentes dos quais se espe-
tal modo que a estatística venha configurar-se como ram as soluções para os problemas sociais que nos
uma técnica de grande utilidade para governantes. acometem cotidianamente, então a opção da “omis-
A partir do quarto capítulo, Duncan dedica-se são meditabunda” não deverá constar em nossos
mais frontalmente aos problemas específicos da me- repertórios. Há riscos de cunho metodológico em
dição social. Ao referir-se às escalas ordinais, percebe todo empreendimento de pesquisa empírica que
que, embora ordenados, nomes “não deixam de ser esteja quantitativamente amparado. Talvez seja mais
nomes” – e que, portanto, haveria uma zona de in- sábio, contudo, correr esses riscos e proceder com as
definição entre o nominal e o ordinal. Ele também investigações a evitá-los a todo custo, paralisando-se
nota que a classificação dos elementos em uma tabela na chamada “crítica epistêmica”. Afinal, como Otis
periódica não é um ato de medição – já que a medição Dudley Duncan e sua metrologia histórica bem
tem por característica adjetivar os elementos, e não demonstram, tanto os problemas como as soluções
os “ontologizar”. Ao fim do capítulo, Duncan parece (inventadas) são, e sempre serão, contingentes.
convencido de que o exercício de medir guarda uma
relação necessária com “a atribuição de números se-
gundo um regramento específico” (p. 154).
Passa-se então a discutir a diferença entre medição
física e medição social. A expressão “dimensão”, muito
comum nos escritos contemporâneos das ciências
sociais, parece encerrar toda essa confusão. Rigorosa-
mente, dimensão é um termo proveniente das ciências
exatas, relativo ao tamanho (altura, profundidade,
comprimento) de um espaço ou objeto. Porém, ao
ser transportado para as ciências sociais, perde seu
conteúdo semântico original, passando a significar
“fator”, “característica”, “setor”. Isso exemplifica
a alegação de que, por não existirem equivalentes
funcionais de “massa”, “peso”, “comprimento” ou
“tempo” nas ciências sociais, ocorre uma apropriação
deturpadora das unidades de medida das ciências
naturais. Os equívocos daí decorrentes poderiam ser
evitados ou amainados se houvesse a compreensão
de que, no final das contas, sociologia não é física.
Virginia Leone Bicudo. Atitudes raciais de pretos e ginalidade do negro como um fenômeno psicológico
mulatos em São Paulo. Edição organizada por Marcos ou um “traço da personalidade” (pp. 14-15). Não
Chor Maio. São Paulo, Editora Sociologia e Política, obstante os obstáculos que uma perspectiva dessa
2010, 192 pp. natureza impõe à compreensão das dimensões es-
truturais da desigualdade de condições entre negros
Lília Gonçalves Magalhães Tavolaro e brancos, na medida em que busca “nas atitudes de
Professora do Centro de Pesquisa e Pós-Graduação pretos e mulatos o reflexo da atitude dos brancos”
sobre as Américas (CEPPAC) da UnB (p. 157), ela salienta o caráter relacional do processo
de construção identitária. Desse modo, a ancoragem
social da identidade racial ganha, em detrimento
A recente publicação da dissertação de mestrado de sua caracterização biológica, contornos novos e
de Virginia Leone Bicudo vem a calhar no momento profícuos, que seriam devidamente explorados na
em que as ciências sociais se voltam de forma particu- academia nos anos subsequentes.
larmente intensa para a questão racial no Brasil. Para Dentre os vários aspectos apontados pela pesquisa
além do valor inestimável da pesquisa desenvolvida, a de Virginia Bicudo, merece destaque a contundência
edição – organizada por Marcos Chor Maio e acom- com que sustenta a presença marcante da discrimi-
panhada de prefácio de Elide Rugai Bastos – convida- nação racial no Brasil. Essa posição contrariava a
nos a refletir sobre os impactos sociais e políticos da interpretação que atribuía às desigualdades raciais
produção sociológica acerca do racismo no Brasil. causas relacionadas com as diferenças de classe. Se-
Privilegiando o estudo da atitude racial como ex- gundo a autora, as estratégias que seus entrevistados
pressão “do aspecto subjetivo da cultura”, a autora utilizavam para evitar o confronto direto com o
defende a tese de que no Brasil, e mais especificamen- branco impediam o desenvolvimento da consciência
te em São Paulo, o critério da aparência calcado no da discriminação. Consequentemente, o conflito
branqueamento constitui o principal determinante como forma de reivindicação por direitos e justiça
das oportunidades de ascensão social do negro. Sob a social também era obstruído, o que ajudava a manter
influência da Escola de Chicago e a supervisão direta o status quo sob a insígnia da harmonia. Assim, dife-
de Donald Pierson – ex-aluno de Robert Park –, Vir- rentemente da África do Sul e dos Estados Unidos,
ginia Bicudo ecoa uma perspectiva culturalista que, os casos estudados “demonstram que não temos [no
ao tomar a raça como categoria propriamente social, Brasil] o preconceito racial no sentido de uma atitude
abandona as formulações de cunho biológico. Como de antagonismo de toda a população, atingindo a
lembra Lee, tal abordagem teve desdobramentos im- todos os indivíduos descendentes da raça dominada”
portantes no que tange às análises científicas da raça: (p. 122). Daí a maior aceitação social do mulato na
“livrou o estudo da raça da compreensão explicita- mesma proporção em que ele se “‘branqueia’ na cor e
mente hierárquica e Darwinista Social a respeito das na personalidade” (Idem). Trata-se de um claro sinal
relações entre grupos raciais” e “desviou o foco das de que existiria entre nós “um preconceito de cor
investigações das características físicas para as rela- distinto do preconceito de raça e de classe” (Idem).
ções sociais entre grupos racialmente definidos” (Lee, Conforme aponta Maio (p. 39), o trabalho de
2004, p. 236). Bicudo reforça, nesse sentido, a hipótese de seu
É bem verdade que, conforme pondera Bastos colega Oracy Nogueira, para quem a discriminação
no “Prefácio”, privilegiando o estudo das atitudes racial não só estava presente nas relações sociais no
individuais, essa abordagem tende a encarar a mar- Brasil, como adquiria, aqui, um caráter específico:
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Resenhas, pp. 335-340
configuraria um preconceito que diferia em suas e justiça social que se pauta na afirmação das diferen-
consequências sociais e políticas daquele baseado na ças ou nos direitos coletivos estaria fadada ao insuces-
origem ou classe social. Como se pode depreender so (cf. Guimarães, 1999; Munanga, 1999; D’Adesky,
da análise de Bicudo acerca da Frente Negra Brasi- 2001). Vista sob essa perspectiva, a afirmação da
leira, tal característica constitui um dos fatores que “raça” nos parece indispensável à conquista de direitos
dificultam a mobilização política entre os negros. e, portanto, à consolidação da democracia brasileira.
A solução da questão racial pelo conflito ficaria, Em tais circunstâncias, aos que ainda sonham com
assim, impossibilitada. Numa busca muitas vezes vã a superação do racismo, resta o compromisso com o
pela ascensão e integração social, aos negros restaria rigor teórico e crítico. O mesmo compromisso que
somente a tentativa de acomodação aos valores e às permitiu à Virginia Bicudo enxergar a persistência
visões de mundo do grupo dominante. do racismo entre nós.
Além disso, a autora sugere que o convívio har-
monioso aparente entre negros e brancos no Brasil Referências Bibliográficas
não conformava propriamente uma relação demo-
crática ou de igualdade. A novidade desse tipo de GUIMARÃES, Antônio Sergio Alfredo. (1999), Racismo e
abordagem está na percepção de que a distância social anti-racismo no Brasil. São Paulo, Editora 34.
entre negros e brancos não é de natureza puramente MUNANGA, Kabengele. (1999), Rediscutindo a mestiçagem
econômica, mas se ancora também no preconceito de no Brasil: identidade nacional vs. identidade negra.
cor. Esse tipo de preconceito é, ademais, entendido Petrópolis, Vozes.
como um impedimento para a superação do racismo D’ADESKY, Jacques. (2001), Pluralismo étnico e multicul-
por meio do conflito e da mobilização política dos turalismo: racismos e anti-racismos no Brasil. Rio de
negros. Conforme lembra Bastos no “Prefácio”, a Janeiro, Pallas.
partir daí estavam dadas as condições para que a LEE, Orville. (2004), “Race after the cultural turn”. In:
democracia racial passasse a ser vista como algo que JACOBS, Mark & HANRAHAN, Nancy (eds.). The Bla-
“funda uma consciência falsa da realidade e opera ckwell Companion to the sociology of culture. Londres,
como impeditivo à coesão do grupo discriminado. Blackwell, pp. 234-250.
Ou, ainda, funciona como obstáculo a movimentos TAVOLARO, Lília Gonçalves Magalhães. (2006), Race and
sociais que denunciem a precariedade da condição do quotas, “race” in quotes: the struggle over racial meanings
negro na sociedade brasileira” (pp. 20-21). in two Brazilian universities. New York, dissertation,
De fato, a interpretação segundo a qual a so- The New School for Social Research.
ciedade brasileira é caracterizada por um racismo
peculiar, velado, e que, ademais, prescinde da raça
transformou-se em uma espécie de “ideia-força”. Esta
influencia até hoje as análises sociológicas acerca das
relações sociais entre nós, com importantes conse-
quências sociais e políticas. Estudos mais recentes
sobre o assunto reiteram a interpretação do mito da
democracia racial não só como principal responsável
pela manutenção do racismo no Brasil, mas também
como característica de uma sociedade avessa à diversi-
dade. Nesse contexto, a luta pela igualdade de direitos