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Apresentação

Caminhos da crítica

Luiz Jackson, Alejandro Blanco e Fernando Pinheiro Filho

Apesar da inegável importância da crítica literária na tradição cultural bra-


sileira, são relativamente poucos os estudos sistemáticos sobre suas diversas
formas de expressão e de inscrição institucional e social1. O presente Dossiê 1. Entre os trabalhos mais im-
portantes, destacamos os seguin-
aborda alguns momentos decisivos da história dessa modalidade de produção
tes: Martins (1983); Candido
intelectual no século XX, ora reivindicada como gênero literário, ora como ([1945] 1988); Lafetá ([1974]

especialidade humanística ou científica. A amplitude e as variações desse 2000); Bolle (1979); Sussekind
(1993); Pontes (1998); Waizbort
processo implicam que o conjunto de textos aqui reunidos representa apenas ([2007] 2009); Rivron, (2005).
uma aproximação em relação ao que poderia ser uma reconstrução amplia-
da das principais propostas, que vicejaram desde o início do século XX no
Brasil, das relações estabelecidas com a literatura e com outras disciplinas.
O ciclo das histórias da literatura brasileira, iniciado no século XIX e
prolongado no XX é discutido no artigo de André Botelho, que enfatiza a
Pequena história da literatura brasileira, de Ronald de Carvalho, perscru-
tando conexões com o Modernismo, de um lado, com as Histórias de Silvio
Romero e José Veríssimo, de outro.
A relação com o Modernismo é também um dos eixos do texto de
Guilherme Simões Gomes Júnior sobre Alceu Amoroso Lima, uma das
figuras centrais da chamada “crítica de rodapé”, veiculada nos jornais e
que se constituiu como arena principal do debate literário e da crítica no
Brasil entre as décadas de 1920 e 1960. As clivagens sociais, ideológicas,
estéticas e políticas incorporadas em seus escritos, analisadas no artigo, são
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emblemáticas para se entender a imbricação de tais condicionantes na crí-


tica literária praticada mais ou menos ao mesmo tempo por autores como
Agripino Grieco, Sergio Milliet, Sérgio Buarque de Holanda, Mário de
Andrade, Álvaro Lins, Afrânio Coutinho e Antonio Candido, entre outros.
A criação das universidades na década de 1930 em São Paulo e no Rio
de Janeiro alterou significativamente o quadro da crítica literária brasileira.
Tanto a trajetória de Antonio Candido como a de Afrânio Coutinho – crítico
baiano radicado no Rio de Janeiro – moveram-se da imprensa à universidade,
da “crítica de rodapé” à “crítica acadêmica” (cf. Bolle, 1979; Sussekind, 1993).
As duas figuras encarnaram cada uma à sua maneira essa transição.
O texto de Rodrigo Ramassote avalia a atuação de Antonio Candido nos
jornais durante a década de 1940. Mais diretamente marcada pela perspectiva
sociológica, essa produção seria “militante”, orientada antes pelas convicções
políticas do autor do que por uma apreensão mais nuançada do fenômeno
literário, posteriormente alcançada.
O espelho da experiência intelectual argentina, especialmente no âm-
bito da crítica literária praticada nesse país durante as décadas de 1950 e
1960 é explorado no texto de Alejandro Blanco e Luiz Jackson. Centrado
nas trajetórias do crítico argentino Adolfo Prieto e de Antonio Candido, o
artigo compara os movimentos de aproximação da crítica à sociologia no
Brasil e na Argentina, que teriam se constituído nas orientações mais ino-
vadoras e persistentes da crítica literária nos dois casos até os dias atuais. A
continuidade de tais orientações pode ser dimensionada pela centralidade
alcançada pelas obras de Beatriz Sarlo na Argentina e Roberto Schwarz no
Brasil nas últimas décadas do século XX.
A recepção polêmica da obra de Roberto Schwarz é tomada no artigo de
Flávio Rosa de Moura como índice da consagração dessa nova orientação
da crítica, uma vez que até mesmo os autores refratários a ela teriam sido
forçados a tomá-lo como contraponto para afirmar-se no campo.
O Dossiê traz, por fim, uma entrevista com Davi Arrigucci que, a
exemplo de Roberto Schwarz, figura entre os principais continuadores da
perspectiva aberta por Antonio Candido. Sua carreira e produção intelectual
são recuperadas por meio de uma notável contextualização da experiência
pessoal e das circunstâncias sociais e políticas que marcaram sua geração.

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Referências Bibliográficas

BOLLE, Adélia Bezerra de Menezes. (1979), A obra crítica de Álvaro Lins e sua função
histórica. Petrópolis, Vozes.
CANDIDO, Antonio. (1988), O método crítico de Silvio Romero. 1ª edição 1945. São
Paulo, Edusp.
LAFETÁ, José Luiz. (2000). 1930: a crítica e o modernismo. 1ª edição 1974. São Paulo,
Duas Cidades/Editora 34.
MARTINS, Wilson. (1983), A crítica literária no Brasil. Rio de Janeiro, Francisco Alves.
PONTES, Heloisa. (1998), Destinos mistos. São Paulo, Companhia das Letras.
RIVRON, Vassili. (2005), Enracinement de la littérature et anoblissement de la musique
populaire: étude comparée de deux modalités de construction culturelle du Brésil
(1888-1964). Paris, 622 pp. Thèse de doctorat. École des Hautes Études en
sciences Sociales.
SUSSEKIND, Flora. (1993), Papéis colados. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ.
WAIZBORT, Leopoldo Garcia Pinto. (2009), Passagem do três ao um. 1ª edição 2007.
São Paulo, Cosac Naify.

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Crítica literária e sociologia
no Brasil e na Argentina*
Luiz Jackson e Alejandro Blanco

I * Este texto faz parte de uma


pesquisa em andamento, voltada
à comparação entre os processos
Embora os processos de modernização da crítica literária no Brasil e na de fundação da sociologia no Bra-
sil e na Argentina. Agradecemos
Argentina inscrevam-se em tradições intelectuais, mercados de bens cul- a Heloisa Pontes, Sergio Miceli
turais e organizações acadêmicas distintas, algumas circunstâncias comuns e Jorge Myers os comentários a
uma versão preliminar e o estí-
permitem aproximá-los. Entre estas, enfatizaremos neste texto o fato de que, mulo à sua publicação. Uma
nos dois casos e quase ao mesmo tempo, a crítica literária aproximou-se segunda versão foi discutida em
seminário com os colaboradores
da sociologia, esforçando-se por obter um estatuto mais científico do que
deste Dossiê, que nos ajudaram a
detinha até, aproximadamente, a primeira metade do século XX. afinar nosso argumento.

De fato, entre as décadas de 1950 e 1960, os polos mais dinâmicos da 1. Certamente, houve também
crítica literária nos dois países renovaram-se mediante a incorporação de reivindicação de cientificidade
por meio da análise estética. No
instrumentos teóricos oriundos da sociologia, apesar da tensão existente caso argentino, pelos herdeiros
entre tais orientações e as que defendiam a análise estética do texto literário1. da “escola” de Amado Alonso;
no brasileiro, sobretudo, por
Além disso, as duas disciplinas enfrentaram temáticas convergentes nesse Afrânio Coutinho, que tinha
período, relativas, sobretudo, aos problemas da formação e da modernização como referência o New Criticism.
Neste texto, no entanto, a ênfase
da sociedade e da cultura nos dois países. Em tal direção, nos dois lados recai sobre os críticos que incor-
dessas fronteiras disciplinares programas de pesquisa e estilos de trabalho poraram (de maneira distinta) a
sociologia como instrumento
inovadores (e ambiciosos) foram desenvolvidos. Se, na sociologia, Florestan
analítico. Isso explica a seleção de
Fernandes e Gino Germani foram as figuras proeminentes desse processo, Adolfo Prieto e Antonio Candido

constituindo-se, cada um em seu país, como a principal liderança intelectual como parâmetros para examinar
a relação entre crítica literária e
e institucional dessas disciplinas, na crítica literária, um papel análogo foi sociologia nos dois casos.
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desempenhado por Antonio Candido e Adolfo Prieto, respectivamente, no


Brasil e na Argentina.
Essa afirmação não despertará dúvida em relação ao papel desempe-
nhado por Antonio Candido no Brasil, mas sim, talvez, ao que logrou
concretizar Adolfo Prieto na Argentina. De fato, a obra e a atividade inte-
lectual de Antonio Candido foram crescentemente valorizadas nas últimas
décadas do século XX e ainda mais à medida que este se distanciou das
disputas e das polêmicas nas quais se envolveu e das críticas que recebeu
até o final da década de 1980. Tal itinerário é revelador do sucesso do em-
preendimento acadêmico que levou a cabo. Esse projeto teve como supor-
te a sua prolongada atuação na universidade, especialmente na Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP)
à frente da Cadeira de Teoria Literária e Literatura Comparada, depois de
1961, na qual reuniu um grupo destacado de professores e pesquisadores,
alguns muito reconhecidos posteriormente, como Roberto Schwarz, Davi
Arrigucci Jr. e Walnice Nogueira Galvão. No caso de Adolfo Prieto, apesar
do alto nível e da abrangência da sua produção acadêmica, a avaliação de
sua obra e da liderança intelectual que exerceu, embora tenha sido sempre
favorável, nunca resultou numa consagração equivalente.
Quem mais se aproximou disso foi David Viñas, considerado até hoje
pela maioria dos intérpretes o principal artífice do processo de renovação da
crítica literária argentina entre as décadas de 1960 e 1980. Contudo, uma
apreensão mais detida da carreira de Prieto (e das circunstâncias nas quais se
desenvolveu), comparada com a de David Viñas e outras figuras destacadas
da mesma geração – como Jaime Rest, Enrique Pezzoni e Noé Jitrik, entre
outros –, revela que foi quem mais se empenhou (e logrou concretizar)
numa reconstrução sistemática e ampliada da literatura argentina, não ape-
2. Publicada entre os anos de
nas por meio de sua obra individual, mas também pelos diversos projetos
1967 e 1968 e comercializada em
bancas de jornal, a publicação era coletivos que dirigiu, destacando-se sua participação decisiva (concepção,
assim apresentada na contracapa redação de alguns textos e supervisão de quase todos os artigos redigidos
de alguns de seus 59 números:
“Todas as semanas ocorre uma para a obra) no projeto que originou uma das mais bem-sucedidas histórias
nova entrega, que consta de da literatura argentina e que teria enorme impacto no desenvolvimento da
um fascículo e um livro. Cada
fascículo oferece um panorama
crítica posterior: Capítulo: la historia de la literatura argentina 2. Além disso,
completo de um autor ou de diferentemente de David Viñas, que se dedicou tanto à crítica literária, como
um período. Os fascículos em
seu conjunto constituirão a
à literatura propriamente dita e a outras formas de criação artística, Adolfo
‘História da literatura argentina’ Prieto construiu toda sua carreira no interior da universidade, dedicando-se
propriamente dita; os livros cons-
tituirão as ‘Biblioteca Argentina
integralmente à realização de um programa de pesquisa (extremamente re-
Fundamental’”. novador no contexto em que surgiu), solidamente apoiado em instrumentos

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Luiz Jackson e Alejandro Blanco

analíticos oriundos da sociologia e da psicanálise e menos interessado na


avaliação estética dos textos. Tais aspectos justificam a ênfase conferida a
esse autor no argumento desenvolvido neste artigo.
Um primeiro elemento para entender o insucesso relativo do programa
de pesquisas liderado por Adolfo Prieto relaciona-se com a centralidade mais
prolongada detida pela literatura no campo intelectual argentino durante
o século XX, em relação ao caso brasileiro. Nessa configuração, até pelos
menos o final dos anos de 1970, as posições dominantes do mundo literário
eram ocupadas pelos próprios escritores e apenas secundariamente pelos
críticos. Como contraponto, tipicamente, no Brasil, a crítica como atividade
desenvolvida profissionalmente no interior da universidade e fora dela, nos
principais jornais do país, impõe-se progressivamente, sobretudo, a partir
de 19503, como instância reconhecida de arbitragem da produção cultural e 3. O crítico e historiador da
literatura Afrânio Coutinho foi
literária, o que aconteceria na Argentina mais ou menos trinta anos depois.
muito feliz ao caracterizar os anos
Além disso, não apenas Adolfo Prieto, mas todo o grupo da revista Contorno de 1950 pela centralidade da crí-

teve que enfrentar uma tradição acadêmica muito prestigiosa na Faculdade tica literária: “A década de 1950,
na literatura brasileira, pode ser
de Filosofia y Letras (FFyL) da Universidade de Buenos Aires (UBA) – onde considerada como da crítica li-
Prieto se formou, mas jamais lecionou –, tradição esta que fora estabelecida terária. É o momento em que se
adquire a consciência exata do
durante a permanência (1927-1946) do crítico espanhol Amado Alonso à papel relevante da crítica em meio
frente do Instituto de Filologia e Literaturas Hispânicas, autor que enfatizava à criação literária e aos gêneros
da literatura imaginativa, função
a análise interna dos textos literários. Isso talvez explique, aliás, o fato de ne- de disciplina do espírito literário.
nhum dos críticos de Contorno ter ensinado na UBA. A inserção profissional Sem ser um gênero literário, mas
uma atividade reflexiva de análise
deles nas décadas de 1950 e 1960 deu-se nas universidades menos presti-
e julgamento da literatura, a críti-
giosas do interior do país, o que certamente limitou o alcance dos projetos ca se aparenta com a filosofia e a
ciência, embora não seja qualquer
que tentaram desenvolver. Na USP, diferentemente, não se consolidou até
delas.” (Coutinho, 1986, p.634).
o início dos anos de 1960 nenhuma corrente de análise predominante. De
modo semelhante, nenhuma liderança acadêmica se impusera claramente
até aquele momento no curso de Letras. Tais circunstâncias favoreceram o
movimento de renovação encabeçado por Antonio Candido na Cadeira de
Teoria Literária e Literatura Comparada da USP.

II

Trata-se de uma imagem mais ou menos generalizada na Argentina a de


que a crítica teria precedido a literatura nesse país (cf. Perosio e Rivarola,
1980), pois suas primeiras expressões, surgidas no último quarto do século
XIX, se deram num momento em que a literatura não havia ainda ama-
durecido como um sistema. De todo modo, algumas décadas antes do que

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no Brasil, o ensino de Letras foi institucionalizado academicamente com a


criação da FFyL em 1896. Dois outros fatos devem ser mencionados por
sua importância na constituição ulterior da crítica nesse país. O primeiro
refere-se à criação da revista Nosotros (1907-1934, 1936-1943), o segundo
liga-se à instituição da Cátedra de Literatura Argentina (1912) na FFyL,
que seria dirigida por Ricardo Rojas. Além da universidade, de Nosotros e
de outras revistas, a imprensa diária, principalmente no jornal La Nación,
foi decisiva, não tanto para a gestação de uma crítica mais alentada, mas,
sobretudo, para o desenvolvimento da crítica de circunstância, assim como
para a profissionalização da atividade.
Talvez seja possível caracterizar Nosotros como uma revista de “críticos
literários”, se a ela contrapusermos a publicação que a sucedeu como eixo
do campo intelectual argentino a partir da década de 1930, Sur, esta en-
4. Certamente, Sur recrutou, tendida, em contraponto, como uma revista de “escritores”4. Apesar de
como colaboradores, professores
um pouco caricatural, essa talvez seja uma boa pista para entender uma
e pesquisadores como Francisco
Romero, Amado Alonso, Rai- das linhas de força que estruturaram a vida literária nesse país durante o
mundo Lida, Angel Battistessa
século XX. Os fundadores de Nosotros e filhos da imigração maciça, Alfredo
e, mais tarde, Ana Maria Barre-
nechea, Enrique Pezzoni e Jaime Bianchi e Roberto Giusti, eram jovens egressos da FFyL, com 25 e 20 anos,
Rest, porém a revista atuou mais respectivamente. A revista tinha periodicidade mensal (foram publicados
como uma plataforma de promo-
ção dos escritores do que de difu- 390 números) e reunia colaboradores numerosos e provenientes de círculos
são de trabalhos especializados (cf. sociais e intelectuais distintos.
King, 1989, pp. 114-115).
Quase ao mesmo tempo, ou seja, ao longo das três primeiras décadas do
século XX, e no interior da FFyL da UBA, prevalecia o intento de historiar
a literatura argentina, por iniciativa direta de Ricardo Rojas, à frente da
Cadeira de Literatura Argentina (a partir de 1912). Desse programa, nasceu
a obra La literatura argentina:ensayo filosófico sobre la evolución de la cultura
en el Plata, cujos volumes foram publicados entre 1917 e 1922, em sintonia
com o clima do nacionalismo cultural que marcou o centenário. Essa direção
inaugurada por Rojas teria continuidade imediata no Instituto de Literatura
Argentina – que ele dirigiu –, e posterior, nas diversas reconstruções realiza-
das, especialmente as que dirigiram Rafael Arrieta, intitulada História de la
literatura argentina (seis volumes, publicados entre 1958 e 1960), e Adolfo
Prieto, Capítulo: historia de la literatura argentina. Igualmente é possível
inscrever nessa tradição (apesar de seu caráter ensaístico e polemista) o livro
Literatura nacional y realidad política (publicado em 1964), de David Viñas.
O efeito porventura mais agudo da organização acadêmica do ensino e da
pesquisa em Letras derivou também de uma ação direta do próprio Ricardo
Rojas, que concebeu e criou o Instituto de Filologia em 1923, momento em

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Luiz Jackson e Alejandro Blanco

que dirigia a FFyL. A partir de contatos estabelecidos com o espanhol Ramón


Menéndez Pidal, então diretor do Centro de Estudios Históricos de Madrid,
organizou uma missão estrangeira, cujo principal representante seria Amado
Alonso. Sua atuação prolongada à frente desse instituto implicou uma trans-
formação profunda dos estudos literários na Argentina, doravante apoiados
em métodos sofisticados de análise interna dos textos (cf. Barrenechea e Lois,
1989; Barrenechea, 1995/1996). Com a colaboração estreita do dominicano
Pedro Henriquez Ureña, formou um grupo de pesquisadores destacados,
como Angel Battistessa, Raimundo Lida, Enrique Anderson Imbert, Maria
Rosa Lida de Malkiel, Raúl Hector Castagnino e Emilio Carilla, entre outros.
Do que já foi dito, é possível vislumbrar o quadro que resume o universo
da crítica argentina na primeira metade do século XX. Apoiada na imprensa
diária, nas revistas culturais e na universidade, embora essas três instâncias
se relacionem intimamente, cada uma delas promove um tipo diferenciado
de trabalho intelectual, definidos pelos condicionamentos impostos pelo
sistema acadêmico, num caso, e pelos que regulam a vida cultural e lite-
rária propriamente dita, nos outros. No interior da universidade, como já
indicado, duas tradições claramente diferenciadas se estabeleceram: uma
voltada à história literária, outra estribada na filologia e na estilística. Fora
da universidade, além da crítica regular nos jornais, as revistas divulgavam
novidades e nucleavam o debate mais acalorado sobre a vida literária em
curso. Mencionamos Nosotros, desafiada na década de 1920 pelas revistas
de vanguarda e deslocada posteriormente por Sur. Nesta última, dominada
por uma aristocracia social e literária, capitaneada por Victória Ocampo e
Jorge Luis Borges, a crítica seria praticada, principalmente, pelos próprios
escritores (como fizera Lugones anteriormente) ou por críticos afinados
com a percepção daqueles que reivindicavam para si mesmos (e não para
os críticos propriamente ditos) o papel de árbitros do mundo cultural5. 5. Os conhecidos desafios e
burlas de Borges contra Ricardo
A hegemonia cultural exercida pela revista Sur por mais de vinte anos Rojas, Américo Castro e Amado
começou a declinar nos anos de 1950, entre outros fatores, em função do Alonso (a quem Borges conside-
rava um pedante) são expressivos
clima político que envolveu a queda do peronismo (1955), desfazendo a
dessa disputa entre escritores e
relativa unidade da comunidade intelectual e artística que prevalecera desde críticos em torno da autoridade

1946 até então. Nesse contexto, surgiram as revistas Centro (1951-1959) e de pronunciar-se sobre questões
literárias (cf. King, 1989).
Contorno (1953-1959). Embora a segunda tenha atraído maior atenção dos
intérpretes e ficado marcada no imaginário intelectual como o núcleo de uma
geração inovadora, a primeira foi igualmente importante naquele momento,
tendo reunido, como órgão oficial do Centro de Estudantes da Faculdade
de Filosofia e Letras da UBA, um contingente mais amplo de participantes

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e de orientações intelectuais. Nessa direção, incorporou estudantes que não


participaram de Contorno, mas que se projetariam mais tarde, como Jaime
Rest (que seria professor da UBA) e Rodolfo Borello (que seria professor na
Universidade Nacional de Cuyo, em Mendoza, entre 1956 e 1976). Ademais,
participaram como organizadores ou como colaboradores na revista jovens es-
tudantes que, na década seguinte, migrariam para a sociologia, então liderada
por Gino Germani. Esse foi o caso de Eliseo Verón, Miguel Murmis, Celia
Durruty, Darío Cantón e Regina Ribaja, entre outros. Vale a pena destacar o
fato de que Adolfo Prieto participou mais ativamente em Centro do que em
Contorno. Na primeira, integrou o conselho de redação desde 1953 e publi-
cou três artigos, além de uma peça de teatro (cf. Prieto, 1952, 1953a, 1953b,
1953d). Na segunda, apenas apareceu no comitê de direção nos anos de 1957
e 1958, quando foram editados os dois Cuadernos de Contorno, e no ano de
1959, no último número 9/10 da revista, no qual publicou uma resenha e um
artigo político (cf. Prieto, 1953c, 1956b).
Idealizada pelos irmãos Ismael e David Viñas, Contorno foi uma deri-
vação de Centro (quase todos seus integrantes participaram desta última).
6. Ramón Alcalde, León Ro- Integrada por um grupo mais restrito de colaboradores6, acentuou algumas
zitchner, Juan José Sebreli,
Adelaida Gigli, Adolfo Prieto,
tendências já presentes em Centro, interrogando o significado da literatura
Noé Jitrik, Regina Gibaja, Oscar no país, propondo-lhe um novo cânone e questionando os critérios mobi-
Masotta, Francisco J. Solero e
lizados pela crítica literária até então.
Rodolfo Kusch.
Durante a segunda metade da década de 1940, quase todo o grupo de
Contorno estudou na FFyL, então sob intervenção peronista, quando mui-
tos professores foram afastados (ou renunciaram) e substituídos. Tal fato
implicou um deslocamento da vida intelectual para fora da universidade,
para instituições privadas como o Colégio Livre de Estudos Superiores e,
em consequência, um declínio da qualidade do ensino universitário. No
curso de Letras, especificamente, tal momento marcou a marginalização da
estilística, perspectiva predominante desde o final dos anos 1920, quando
o espanhol Amado Alonso assumiu a direção do Instituto de Filologia na
UBA. Os membros de Contorno referem-se em entrevistas ao fato de que
o mais atrativo de sua experiência universitária não era a sala de aula, mas
a sociabilidade efervescente dos cafés e das livrarias situados no entorno da
faculdade, na calle Viamonte e arredores (cf. Sebreli, 1987)
Proveniente de San Juan, Adolfo Prieto mudou-se para Buenos Aires no
momento preciso dessa viragem, no ano de 1946. Ele tinha, então, 18 anos
de idade e quase nenhum capital cultural. Seu pai era imigrante espanhol,
aportado na Argentina em 1913, que, depois de trabalhar alguns anos na

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Luiz Jackson e Alejandro Blanco

colheita de trigo em Córdoba, conseguiu montar uma pequena indústria de


doces na cidade de San Juan, onde se casou com uma filha de imigrantes,
também espanhóis. A decisão de estudar Letras não foi bem-recebida pelo
pai, que, a contragosto e convencido pela esposa, sustentou financeiramente
sua formação universitária. Sua origem provincial explica, provavelmente,
a inserção marginal no grupo de Contorno e a opção posterior pela carreira
acadêmica, à qual dedicou toda sua vida.
A relativa unidade programática da revista tinha como referência, em pri-
meiro lugar, o fato de que todos os membros tinham mais ou menos a mesma
idade (nasceram no final dos anos de 1920). Em segundo, conheceram-se
e conviveram na faculdade, sobretudo, por meio da militância acadêmica e
política no Centro de Estudiantes de Filosofia e Letras (CEFyL), que então
assumia uma posição claramente antiperonista. A maioria deles começou a
escrever e ganhou alguma experiência editorial na revista Centro, periódico
oficial do CEFyL. Tais traços e experiências comuns, entretanto, revestiam
diferenças sociais importantes certamente relacionadas com as subdivisões
do grupo.
Tais subdivisões refletiam a expansão quantitativa do ingresso no ensino
universitário durante o peronismo (1946-1955) e uma mudança significativa
no recrutamento social dos estudantes da UBA e da FFyL, em particular.
Entre 1947 e 1955, o ingresso universitário quase triplicou, de 51.272 a
143.542 matriculados (Warley e Mangone, 1984, p. 28). Em relação ao
recrutamento social, Gino Germani registrou para o ano de 1956 uma
abertura significativa do ensino superior para os setores “médios inferiores”
e “populares”. Na FFyL, um terço dos estudantes provinha destes últimos
(cf. Germani, 1956).
Os irmãos Viñas eram os mais providos socialmente. Essa condição
inscreveu neles disposições mais ousadas, relacionadas com a militância
política e as aspirações intelectuais do pai deles, advogado oriundo de uma
família tradicional e estreitamente ligado ao governo de Hipólito Irigoyen
nos anos de 1920. A morte precoce da mãe e outras circunstâncias adversas
possivelmente os influenciariam a seguirem caminhos menos convencionais.
Esse quadro vale, sobretudo, para David, que se arriscou de maneira bem-
sucedida nos domínios do ensaio crítico, da ficção e do cinema, entre as
décadas de 1950 e 1960. Literatura argentina y realidad política foi, apesar
do êxito que alcançou no âmbito da crítica literária, apenas uma das direções
que seguiu como artista e intelectual. De fato, antes da edição desse livro,
ele já havia publicado nada menos do que seis romances: Cayó sobre su rostro

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Crítica literária e sociologia no Brasil e na Argentina, pp. 13-40

em 1955, Los años despiadados em 1956, Un dios cotidiano em 1957, Los


dueños de la tierra em 1958, Dar la cara em 1962 e Las malas costumbres
em 1963. Cabe, ainda, destacar que o autor foi igualmente bem-sucedido
como romancista, recebendo, em 1957, o Premio Gerchunoff por Un dios
7. Dar la cara seria adaptada cotidiano e, em 1962, o Premio Nacional de Literatura por Dar la cara 7. Não
para o cinema no mesmo ano
se deve estranhar, assim, o tom ensaístico de Literatura argentina y realidad
da publicação do livro (direção
de José Martinez Suárez), em política, nem a sensação que se tem à leitura de que o autor se esforça por
1962. David Viñas já havia
inscrever-se na tradição que examina.
escrito vários roteiros: em 1958,
El jefe ; em 1959, El candidato ; Esse contraponto indica uma característica do grupo de Contorno: sua
em 1960, Sábado a la noche, cine heterogeneidade social, a qual propiciou destinos muito distintos aos seus
(os três últimos com direção de
Fernando Ayala). criadores, após o final da empreitada coletiva. Juan José Sebreli e Oscar
Masotta, por exemplo, pertenciam a famílias de imigrantes de classe média
baixa, radicadas em Buenos Aires, que nunca lograram alcançar alguma
prosperidade econômica (cf. Sebreli, 1987; Correas, 2007). Ambos deixaram
inconcluso o curso de Letras e orientaram sua atividade intelectual posterior
como autodidatas e ensaístas, em direções alternativas, abandonando a crítica
literária, que haviam cultivado até então e que resultou, respectivamente,
nos livros Martinez Estrada: una rebelión inútil, de 1960, e Sexo y traición en
Roberto Arlt, de 1965. De algum modo, nesses dois casos, as privações eco-
nômicas e sociais enfrentadas na infância estiveram relacionadas não apenas
com as iniciativas intelectuais inovadoras que empreenderam na década de
1960, mas também com a atitude transgressora que assumiram como estilo
de vida. Sebreli e Carlos Correas, outro membro do grupo, formavam, jun-
tamente com Oscar Masotta, um subgrupo dentro de Contorno, conhecido
pela adesão ao existencialismo sartreano, pela aproximação política remota ao
8. A adesão dos três ao peronis- peronismo8 e pela boêmia.
mo implicou um conflito com os
Como dissemos, a opção pela carreira acadêmica propriamente dita foi
irmãos Viñas e seu afastamento
temporário da revista no final de abraçada no grupo, sobretudo, por Adolfo Prieto. Esse foi o caso, também,
1954, quando foi publicado o
de Noé Jitrik (1928) que assumiu a Cátedra de Literatura Argentina na Uni-
número 4 de Contorno, dedicado
a Martinez Estrada. versidade Nacional de Córdoba em 1960, onde permaneceu até 1966. Prieto
terminou a graduação em Letras no ano de 1951, iniciando imediatamente
sua tese de doutorado, sob a orientação de Raúl Cortina, num momento
em que realizar a pós-graduação era incomum. Obteve o título de doutor
em 1953 com o trabalho El sentimiento de la muerte a través de la literatura
española (siglos XIV y XV). Este seria o seu único trabalho de vulto dedicado
à literatura estrangeira e também o que mais se aproximou da tradição da
estilística, predominante na UBA desde a chegada de Amado Alonso. São
razões possíveis dessa escolha temática, além da origem espanhola de sua

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Luiz Jackson e Alejandro Blanco

família, a pouca importância acadêmica que se atribuía, então, à literatura


argentina e a familiaridade do autor com a literatura espanhola, devida
ao prestígio dessa literatura no interior da faculdade. Ainda que sua obra
posterior fosse dedicada inteiramente à literatura argentina, em sua tese,
Prieto assumiu diante dos textos literários espanhóis uma mesma atitude,
diríamos sociológica, que ele aprofundaria posteriormente9. 9. Essa continuidade foi notada
por Rodolfo Borello: “mais que
Em 1954, publicou seu primeiro livro, o polêmico Borges y la nueva
a pura compreensão estética e
generación, que trazia uma análise extremamente dura (e negativa) sobre literária, afincada nas formas,

o escritor que já nesse momento era a figura central e mais consagrada da no estilo ou na língua, o crítico
estava interessado em descobrir
literatura argentina. Essa atitude ousada e mesmo temerária inseriu Adolfo que tipo de homem havia escrito
Prieto na cena literária argentina abruptamente, tendo, provavelmente, mais aquelas páginas, que motivações
sócio-históricas e psicológicas o
o prejudicado do que o favorecido. De todo modo, o livro constituiu-se explicavam. Atrás de versos a
como uma das “marcas” de sua geração, ao romper a aura sagrada que revestia primeira vista circunstanciais,
de crônicas esquecidas, de relatos
fortemente o mundo literário naquele momento, reivindicando para a crítica cheios de recursos retóricos,
(e para si mesmo) uma posição mais autônoma e determinante em relação Prieto perseguia as ideias, os
sentimentos nacionais, o hori-
à que detinha até então. Isso se desprende da parte do livro, anteriormente zonte de valores que lhes davam
publicada na revista Centro (Prieto, 1953c), na qual o autor acusa Borges sentido” (1967, p.133).

de praticar uma “crítica impressionista”, “arbitrária” e “hedonista”; voltada


para aspectos laterais das obras e não para sua totalidade, como deveria fazer
uma “crítica objetiva”. O texto analisado seria para aquela apenas um pre-
texto, um meio, e não um fim, como para a última. Dessa maneira, Prieto
defendia o papel de árbitros do campo literário para os críticos e não para
os próprios literatos.
Seu próximo livro, Sociologia do público argentino (publicado em
1956), revela de maneira inequívoca a afinidade do crítico com a sociolo-
gia, disciplina que vinha ganhando legitimidade no campo acadêmico, so-
bretudo em função das iniciativas capitaneadas por Gino Germani. A obra
apresentou uma abordagem inédita sobre o público leitor, documentada
por uma pesquisa empírica (quase desconhecida) realizada pelo sociólogo
ítalo-argentino no Instituto de Sociologia em meados dos anos de 1940,
sobre o consumo cultural da classe média portenha. O livro definiu o
enquadramento básico de seu projeto intelectual, que encarou sempre o 10. Essas mesmas preocupações
sobre o público leitor reaparecem
fenômeno literário como um sistema relacional, excluindo qualquer ideia em Prieto (1988), formuladas
de transcendência do fato literário de seu esquema interpretativo10. com instrumentos analíticos mais
sofisticados e fundamentada em
Depois da publicação desses livros e de ensinar literatura por alguns anos pesquisa rigorosa, representando
no ensino secundário (o que conseguiu por intermédio de Raúl Castagnino, a concretização de um longo iti-
nerário que indica a persistência
que havia sido seu professor na UBA), foi convidado em 1956 a lecionar de certas linhas de pesquisa no
literatura espanhola na Universidade Nacional do Litoral, em Rosario. Der- conjunto de sua obra.

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rotado no concurso realizado no final desse mesmo ano, regressou a Buenos


Aires e, em 1957 – quando se casou –, atendendo a novo convite, assumiu
pela primeira vez uma Cátedra de Literatura Argentina, dessa vez na Univer-
sidade Nacional de Córdoba. Em 1958, transferiu-se para a Universidade
Nacional de Cuyo, em Mendoza, onde estava seu antigo colega de graduação
e amigo íntimo Rodolfo Borello. Seu périplo nas universidades do interior do
país culminou com seu estabelecimento prolongado, novamente em Rosario,
de 1959 a 1966. Já no primeiro ano de sua atuação na Faculdade de Filosofia
e Letras da Universidade Nacional do Litoral, nota-se a sua intenção de for-
mar um grupo de pesquisadores, a partir de um seminário organizado sobre
o impacto do rosismo na literatura argentina. Dessa experiência resultou
um livro coletivo, Proyección del rosismo en la literatura argentina (publicado
11. Oscar V. Grandov, Hebe em 1959), redigido por estudantes11 sob a orientação cuidadosa de Prieto,
Monges, Gladys Marcón, Noemí
que escreveu a introdução. Os autores perscrutaram no interior de diversos
Ulla, Laura V. Milano, Gladys L.
Ramat, Ada M. Cresta, Ana M. registros literários da época – romance, conto, poesia, jornalismo, teatro e
Deforel, Nélida M. Lanteri, Elena literatura autobiográfica – as formas de inscrição social dos conflitos derivados
C. Carrero, Lucrecia Castagnino,
Gladys S. Onega, Clotilde Gaña da experiência do governo de Rosas e de sua dissolução. De outro seminário
e Ada R. M. Donato. realizado em 1962, que visava traçar um quadro da crítica literária nacional
e do qual participaram alunos e ex-alunos da faculdade, originou-se o livro
Encuesta: la crítica literária en la Argentina (publicado em 1963). A obra reu-
niu depoimentos de dezenove críticos literários do país, que responderam a
um mesmo conjunto de questões, visando esclarecer as condições concretas
que orientavam essa atividade como profissão predominante ou secundária,
as relações estabelecidas com os escritores e o público, as linhagens teóricas
predominantes e os meios de difusão existentes.
As duas iniciativas podem ser avaliadas como etapas de um projeto aca-
dêmico de longa duração que Adolfo Prieto pretendia concretizar, inspirado
por uma visão sintonizada com o processo de modernização universitária
que também afetava outras disciplinas. O itinerário descrito é revelador,
também, de um aspecto (ecológico) curioso do processo de inovação das
disciplinas humanísticas (e sociais) no contexto da reforma universitária
do pós-peronismo. Enquanto o polo moderno da sociologia, liderado por
Germani, se assentou em Buenos Aires, centro do sistema acadêmico, na
crítica literária ocorreu o contrário, sua modernização teve lugar na peri-
feria do sistema. Como se sabe, entretanto, tais empreendimentos seriam
abortados pelo golpe militar de 1966. Adolfo Prieto avaliou essa experiência
nos seguintes termos:

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Luiz Jackson e Alejandro Blanco

Ao cabo de cinco anos já era possível vislumbrar um grupo de estudiosos verdadei-


ramente interessantes, uma dezena de jovens profissionais que podiam integrar-se à
universidade como docentes e pesquisadores com pleno direito. A maioria daqueles
jovens de então está hoje dispersa nos quatro pontos cardeais do país e do mundo. O
golpe militar e os sucessivos desencontros e calamidades sofridas pela universidade
argentina oferecem a moral desencarnada do relato. Nenhuma política cultural
ditada e implementada pela universidade desde seu próprio âmbito, ou ainda mais
longe, nenhuma universidade pode sobreviver às ansiedades e à insegurança radical
da sociedade à qual pertence (1982, p. 8).

Foi durante esses anos rosarinos que o autor redigiu e publicou, em 1962
pela Universidade Nacional do Litoral, sua obra mais importante desse pe-
ríodo, La literatura autobiográfica, que, por seu caráter inaugural e alcance
interpretativo, seria considerada uma referência obrigatória para o estudo
do memorialismo na Argentina. O livro destaca a importância, até então
não reconhecida, do gênero autobiográfico no conjunto dessa literatura
nacional durante o século XIX e oferece ao leitor uma perspectiva inusita-
da para compreender as lógicas sociais que estruturaram a vida intelectual
no país após a independência (que se iniciou com a Revolução de Maio
em 1810). Nesse sentido, é, ao mesmo tempo, uma história de um gênero
aparentemente secundário da literatura argentina e uma genealogia de suas
elites políticas e intelectuais.
A recepção imediata desse trabalho, é importante destacar, foi muito
favorável. O crítico argentino Alfredo Roggiano, quando lecionava na
Universidade de Pittsburgh (Estados Unidos), escreveu uma resenha muito
elogiosa na Hispanic American Historical Review, qualificando o livro como
“o primeiro estudo orgânico da literatura autobiográfica argentina”, e a
concluiu com um elogio explícito ao trabalho, afirmando a abrangência
deste: “Livro de extraordinária lucidez, verdadeira radiografia do homem
argentino, das classes dirigentes do país e das camadas mais profundas da
história política, econômica, social e cultural da Argentina” (Roggiano,
1964, p. 662). Jaime Rest, então professor adjunto da Cadeira de Literatura
Inglesa e Norte-Americana na FFyL da UBA – cujo titular era Jorge Luis
Borges –, também resenhou o livro positivamente, num texto longo e de-
talhado, destacando a descoberta notável realizada por Prieto, ao perceber a
importância “dessa espécie narrativa no interior da literatura argentina”. O
resenhista afirmou ainda que, afastando o impressionismo que predominava
na crítica argentina daquele momento, o livro revelava uma atitude analítica

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diferente: “o trabalho de Prieto merece a mais cálida aprovação como uma


das principais contribuições recentes à compreensão da literatura argentina.
Isso se explica pela análise séria que realiza e na qual se percebe um esforço
para superar nossas habituais improvisações de crítica impressionista, com o
objetivo de substituí-las por critérios mais objetivos e disciplinados” (Rest,
1963, p. 336).
Em ocasião da segunda edição do livro, lançada em 1966 pela editora Jor-
ge Alvarez, Rodolfo Borello escreveu um artigo extenso que revisava sistema-
ticamente toda a obra de Adolfo Prieto até aquele momento e o definia como
o principal crítico de sua geração: “Essa relação entre literatura e sociedade,
entre literatura e personalidade, entre literatura e história, caracterizará para
sempre suas obras e o constituirá no mais brilhante crítico de sua geração”
(Borello, 1967, p. 134). A respeito desse artigo, não se pode negligenciar
a amizade e o projeto comum que vinculavam os dois críticos desde que se
conheceram como estudantes na UBA, o que conferia ao mesmo certo tom
programático e deixava entrever a consciência que tinham a respeito do em-
preendimento que estavam realizando, sobretudo Prieto em Rosario , mas
também secundariamente Borello na Universidad de Cuyo, em Mendoza.
Como Pietro, Borello era de origem provinciana, nasceu em Catamarca em
1930, e ingressou no curso de Letras na FFyL na segunda metade da década
de 1940. Foram apresentados pela namorada de Borello, Alicia (não sabemos
seu sobrenome), de quem Prieto era colega de turma na UBA. Tornaram-se
amigos e depois parceiros em vários momentos, a começar pela participação
de ambos em Centro. Defendeu o doutorado na Universidad Complutense de
Madrid. Entre 1956 e 1976, foi professor de literatura espanhola e argentina
na Faculdade de Filosofia e Letras na Universidade Nacional de Cuyo. Borello
dirigiu a Revista Argentina e Iberoamericana, na qual publicou uma versão
reduzida da tese de doutorado de Adolfo Prieto. No final dos anos de 1950,
Prieto lecionou em Mendoza, convidado por Borello. Como “supervisor” de
Capítulo, Prieto encomendou a Borello a redação de três fascículos da coleção,
um deles dedicado ao ensaio e outro, à crítica moderna.
Por fim, o importante crítico uruguaio Carlos Real de Azúa elogiou
enfaticamente o livro de Prieto, em um artigo sobre o memorialismo uru-
guaio, publicado na versão uruguaia de Capítulo, lamentando que “faltava
no Uruguai um estudo similar ao esplendido de Adolfo Prieto sobre La
literatura autobiográfica argentina” (Azúa, 1968, pp. 3-4).
A origem de La literatura autobiográfica relaciona-se com a pesquisa ante-
rior sobre o impacto do rosismo na literatura, durante a qual, provavelmente

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Luiz Jackson e Alejandro Blanco

se dera conta da relevância desse material e do rendimento analítico que


propiciava, uma vez que seu interesse teórico residia, sobretudo, no estudo
da literatura como um fato social. Essa intenção é explicitada na epígrafe
do trabalho, uma passagem de Mannheim ([1951]* 1972), que enfatiza a * A data entre colchetes refere-se
à edição original da obra. Ela é
importância dos registros autobiográficos como meio de acesso às lógicas indicada na primeira vez que a
sociais estruturantes das personalidades e das funções desempenhadas por obra é citada. Nas demais, indica-
se somente a edição utilizada pelo
esse tipo de literatura nas conjunturas históricas abrangentes.
autor (N.E.).
A menção a Mannheim – como outras tantas citações a Erich Fromm,
Ralph Linton, Abraham Kardiner, Karen Horney, Mikel Dufreene, Wri-
ght Mills, Gilberto Freyre que figuram, sobretudo, na introdução teórica
do livro – revela a importância que teve no campo intelectual argentino o
movimento editorial impulsionado, desde meados da década de 1940, por
novas editoras especializadas em ciências sociais, como a mexicana Fondo
de Cultura Económica e a argentina Paidós. O espanhol José Medina
Echavarría, no México, e Gino Germani, na Argentina, estiveram à frente
dessas iniciativas, que tiveram enorme impacto no processo de institucio-
nalização da sociologia, especialmente no caso que estamos examinando.
De fato, a relativa marginalidade dessa disciplina no interior do sistema
acadêmico até a segunda metade dos anos de 1950, foi compensada por tais
empreendimentos, o que permite compreender a incorporação por Prieto
de um ponto de vista sociológico nesse trabalho específico, mas também
no restante de sua obra. Cabe dizer que essa tomada de posição pelo autor
cumpria uma função dupla: contra a crítica estilística conectava a literatura
com o mundo social e político, contra o ensaísmo e a crítica impressionista
reivindicava cientificidade.
La literatura autobiográfica argentina representou uma importante
inflexão no interior da tradição da crítica literária desse país, articulando
a análise textual ao exame dos condicionantes sociais e políticos da vida
literária. Especificamente, relacionou as diversas variantes da autobiografia
às transformações sociais e políticas que se seguiram à Revolução de Maio.
Por meio dessa forma argumentativa, o trabalho sintetiza um programa de
pesquisa em sociologia da literatura que recobre toda a sua produção inte-
lectual e que teria importante continuidade na principal vertente da crítica
literária argentina das últimas décadas, sobretudo nas obras de Beatriz Sarlo
e Carlos Altamirano.
O itinerário descrito demonstra o investimento realizado por Adolfo
Prieto entre os anos de 1950 e 1960, período no qual ele formou e liderou
um grupo destacado de pesquisadores, dirigiu, na Universidade Nacional

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Crítica literária e sociologia no Brasil e na Argentina, pp. 13-40

do Litoral, a Faculdade de Filosofia e Letras, o Instituto de Letras e o


Boletim de Literatura Hispânicas e publicou uma tese de doutorado e dez
outros livros (Borges y la nueva generación, Sociología del público argentino,
Proyección del rosismo en la literatura argentina, La literatura autobiográfica
argentina, Encuesta, Antología de Boedo y Florida, El periódico Martín Fierro,
Literatura y subdesarrollo, Diccionario básico de literatura argentina, Estudios
de literatura argentina). Nesse período, Pietro encontraria condições favorá-
veis no contexto da modernização universitária em curso desde o final do
peronismo e que teve como expressões mais visíveis nas ciências humanas os
projetos acadêmicos de Gino Germani na sociologia e de José Luis Romero
na história, intelectuais associados em alguns empreendimentos decisivos
para a renovação das duas disciplinas. Como já foi dito, entretanto, tal
processo foi abortado pelo golpe militar de 1966, que conduziu Ongania
ao poder. A sociologia e a história refugiaram-se em instituições privadas,
principalmente no Instituto Di Tella, que acolheu pesquisadores afastados
da universidade. No caso da crítica literária, foram também iniciativas
privadas que permitiram certo grau de continuidade aos distintos projetos
intelectuais gestados no interior das universidades do país. A principal
dessas iniciativas teve lugar no Centro Editor da América Latina – edi-
tora fundada por Boris Spivacov em seguida ao golpe –, que promoveu a
realização de Capítulo. Idealizada pelo editor, essa obra teria a condução
intelectual de Adolfo Prieto, oficialmente o “supervisor” dos números en-
comendados aos colaboradores convidados (alguns já experientes, outros
jovens egressos das universidades que depois se destacariam). Pensada para
um público amplo de leitores não especializados, essa terceira das princi-
pais histórias da literatura argentina acabou convertendo-se em ponto de
referência obrigatório e fonte de muitas hipóteses que orientaram a crítica
e a história da literatura subsequentes. O conjunto dessa história social
da literatura argentina, não obstante o fato de ter sido formada por textos
redigidos por um numeroso grupo de autores, revela uma unidade signi-
ficativa, que nos parece resultar de uma concepção muito bem-informada
e planejada da seleção criteriosa dos colaboradores, da orientação que lhes
era dada e da revisão dos textos.
Depois de Capítulo, sobretudo após o início da ditadura militar de 1976,
a trajetória de Adolfo Prieto sofreu uma forte inflexão relacionada com sua
emigração aos Estados Unidos, onde lecionou por cerca de quinze anos. A
publicação de El discurso criollista en la formación de la Argentina moderna
no ano de 1988 interromperia um período de isolamento intelectual, já que

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Luiz Jackson e Alejandro Blanco

o livro foi muito bem-recebido na Argentina. Não obstante, sua trajetória


anterior não foi ainda devidamente aquilatada.
A esse respeito e, embora as circunstâncias políticas dos anos de 1970
estejam diretamente relacionadas com seu afastamento da cena intelectual
e literária argentina até o final da década seguinte, esse desfecho desfavorá-
vel da primeira parte de seu itinerário intelectual explica-se, também, pela
dinâmica prevalecente nessa cena até meados dos anos de 1980. Como
indicado, desde o começo do século XX, sobretudo em função da presença
dos imigrantes, da criação das universidades modernas no final do século
XIX, da profissionalização das atividades intelectuais, o mundo cultural
argentino viu-se polarizado entre os literatos propriamente ditos, oriundos
das famílias tradicionais, e os intelectuais egressos das universidades, fre-
quentemente filhos da imigração. Essa polarização expressou-se nas disputas
entre os escritores e os críticos literários, desde o deslocamento de Nosotros
(críticos) por Sur (literatos) nos anos de 1930, mas também no desafio lan-
çado pelos jovens críticos de Contorno aos escritores estabelecidos em Sur e
no jornal La Nación nos anos de 1950. O intento de Prieto de estabelecer
uma nova forma de interrogação do fenômeno literário por meio de um
programa de pesquisa em sociologia da literatura não poderia legitimar-se
plenamente nesse contexto, no qual a literatura ainda era o fiel da balança.

III

Era muito diferente a disposição das peças do jogo cultural e acadê-


mico no Brasil quando Antonio Candido reivindicou indiretamente para
si o papel de crítico literário “científico”, em meados dos anos de 1940,
ou, mais precisamente, no ano de 1945, na tese que escreveu sobre Silvio
Romero para concorrer à Cátedra de Literatura Brasileira da USP (cf.
Candido, [1945] 1988). Justamente nesse ano, antes da realização do con-
curso, a morte de Mário de Andrade sinalizava o fim de uma era, na qual
a literatura havia ocupado o centro da vida intelectual e artística brasileira.
Depois dele, que desempenhou papéis variados (cf. Miceli, 2009), todos
derivados de sua atuação como escritor, a diferenciação progressiva desse
universo privaria os literatos da possibilidade de erigirem-se em árbitros da
produção simbólica erudita. Dito de outro modo, as funções do escritor
e do crítico tornavam-se cada vez mais inconciliáveis, apesar das figuras
que ainda transitariam nas duas esferas. Por isso mesmo, o significado que
teve em São Paulo a criação da revista Clima, por um grupo de estudantes

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Crítica literária e sociologia no Brasil e na Argentina, pp. 13-40

oriundos das primeiras turmas dos cursos de filosofia e de ciências sociais


da FFCL-USP foi muito diferente do que tiveram as revistas Centro e Con-
torno em Buenos Aires. Nestas, os jovens críticos desafiaram os escritores
de Sur, sem obter deles qualquer sinal de reconhecimento, nem mesmo
jocoso, como o que se percebe no apelido de “chato-boys” atribuído por
Oswald de Andrade ao grupo liderado por Antonio Candido na revista
Clima. Mas a legitimação desta não veio apenas de fora, estava inscrita na
própria revista. Cabe mencionar, em primeiro lugar, o estímulo ao em-
preendimento e o patrocínio direto por Alfredo Mesquita; em segundo,
o patronato intelectual de Mário de Andrade, que publicou no primeiro
12. Esta parte do trabalho apoia- número do periódico o texto “Elegia de abril” 12. Em oposição, a revista
se diretamente em Pontes (1998).
Ver também Pontes (2011).
Contorno se abre com um texto de um dos membros do grupo, Juan José
Sebreli, cujo título explicita o afastamento radical em relação à geração
anterior: “Los ‘martinfierristas’: su tiempo y el nuestro”.
Para explicar tais diferenças, devemos questionar inicialmente os padrões
de relacionamento entre críticos e escritores nas duas tradições intelectuais.
Apesar de complexas e variadas segundo os momentos e os casos, deve-se
notar que, na Argentina, desde o final do século XIX, boa parte dos que se
dedicaram à crítica literária provinha da FFyL da UBA, que proporcionava
desde seu surgimento um importante canal de ascensão social e de ingresso
às atividades intelectuais aos imigrantes e filhos de imigrantes. Relaciona-se a
esse fato a forte tensão que polarizava os escritores oriundos das camadas altas
e os críticos recrutados nos grupos emergentes. No Brasil, o enraizamento
acadêmico da crítica literária foi posterior e não havia diferenças sociais e
culturais significativas entre críticos e escritores, ambos recrutados, pratica-
mente, nos mesmos meios sociais e formados, a maioria, nas faculdades de
direito. Em tal direção, Clima era o berço da primeira geração de críticos
acadêmicos – ironicamente não oriundos do curso de Letras –, que, não
obstante, compartilhavam com seus antecessores literatos e críticos o mesmo
habitus social e cultural. Além disso, ingressavam como críticos (de literatura,
cinema, teatro e arte) num meio cultural que já valorizava em boa medida a
crítica como um gênero literário destacado. Por conta disso, a ruptura que
13. A respeito, a dedicatória “À realizaram ao propor uma dicção mais especializada e bem-informada aos
memória de Mário de Andrade”
estudos literários não implicava um afastamento tão profundo em relação
feita por Antonio Candido na
segunda edição (lançada em à geração anterior13, mas sim uma renovação dos instrumentos analíticos e
1963) de seu primeiro trabalho dos métodos que os aproximavam de uma atitude científica.
de especialização, Introdução ao
método crítico de Silvio Romero Passemos, agora, a uma comparação mais detalhada entre as experiências
(de 1945), é muito significativa. de Clima e Contorno, aproximadas por reunirem grupos de estudantes depois

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Luiz Jackson e Alejandro Blanco

destacados como críticos extremamente inovadores nas cenas culturais nas


quais estavam imersos, vinculados por laços de amizade constituídos no
meio universitário e pelo fato de se fazerem afirmar por meio de revistas
culturais. Cabe assinalar, também, o fato de Clima e Contorno terem sido
editadas no final de regimes autoritários e populistas, o que indica que nos
dois casos havia também em jogo condicionantes políticos.
O dois grupos formaram-se no interior da universidade, mas Clima
em uma recém-criada e em cursos novos, enquanto Contorno numa já
consolidada e num curso que detinha tradições disciplinares constituídas,
embora atravessasse um período de crise derivada das transformações
impostas pelo peronismo no ensino superior do país. A relação dos con-
tornistas com a universidade era conflituosa e ambivalente, a dos membros
de Clima muito mais satisfatória. Por isso mesmo, se é possível reconhecer
um programa de atuação nas declarações ou nas entrelinhas dos textos
redigidos nesta última, ele era derivado em grande parte do impacto di-
reto exercido pelos docentes estrangeiros que impuseram modalidades de
trabalho mais sistemáticas e exigentes. Tais experiências moldariam, tam-
bém, novas formas de identidade intelectual, reivindicadas em oposição
às anteriores, menos profissionalizadas e mais dispersas. Não propuseram,
entretanto, um questionamento radical dos parâmetros mais substantivos
que haviam guiado os críticos e os historiadores da literatura brasileira até
então. Nesse ponto, devemos marcar uma diferença entre as duas revistas:
Contorno propôs uma dessacralização da literatura argentina; questionou
o cânone estabelecido, deslocando o eixo de reconhecimento para escri-
tores até aquele momento desprestigiados, principalmente Roberto Arlt.
No interior da crítica mesma, voltaram-se contra as tradições teóricas que
haviam embasado a escola de Amado Alonso, questionando o pressuposto
da autonomia do fato literário ao assumirem uma perspectiva sociológica
e política na análise literária. Em tais frentes, os contornistas debateram-se
com as gerações anteriores, especialmente com a que havia emergido nos
anos de 1920 com as vanguardas e reunida na revista Sur posteriormente.
Esta seria a marca dos trabalhos mais importantes que os membros do
grupo de Contorno publicaram nos anos de 1960, nos quais a história da
literatura argentina é reconstruída a partir das dinâmicas próprias às esfe-
ras social e política. Tais operações foram condicionadas pela forte politi-
zação da vida intelectual argentina durante o peronismo e após este, bem
como pela polarização do mundo literário à qual nos referimos – criollos/
imigrantes, escritores/críticos.

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Essas diferenças devem ser pensadas, também, à luz da composição so-


cial dos grupos. O grupo Clima era mais homogêneo e quase todos os seus
integrantes tinham origem elevada. Certo declínio social e o reordenamento
político derivado da Revolução de 1930 condicionaram as escolhas não
usuais que fizeram, canalizadas para os cursos de filosofia ou ciências sociais.
A orientação esquerdizante da maioria dos membros também teria deter-
minado tais opções e a formação do grupo na universidade, vinculado por
relações afetivas e intelectuais de longa duração futura. Quanto às relações
de gênero, houve precedência dos homens, mas participação importante,
embora menos visível, das mulheres (nas tarefas de edição da revista, so-
bretudo). A revista orientaria direta ou indiretamente a carreira profissional
ulterior dos membros mais destacados do grupo tanto na universidade como
no cenário cultural mais amplo, dinamizado pelo crescimento da cidade de
São Paulo e pelos efeitos indiretos da Segunda Guerra Mundial (imigração
de intelectuais e artistas europeus). Como já foi sugerido, a afinidade social
e política com a geração de escritores egressos do modernismo paulista
teria favorecido uma relação de maior continuidade com esse movimento,
apesar do distanciamento propiciado pela formação científica recebida na
universidade. O grupo de Contorno era heterogêneo socialmente e alguns
de seus membros tinham origem desfavorável, refletindo a abertura da uni-
versidade argentina durante o peronismo. Isso explica, possivelmente, por
que as relações de amizade formadas na universidade e fortalecidas durante
o tempo de existência da revista não sobreviveriam por muito tempo. Além
disso, houve desde o início divisões internas, condicionadas pela origem
social. A assimetria de gênero era talvez mais pronunciada ainda do que
em Clima, levando-se em conta que a porcentagem de mulheres no corpo
discente da FFyL era de aproximadamente 75% (cf. Germani, 1956). Apenas
uma mulher, Adelaida Gigli, que se casaria com David Viñas, participou da
direção da revista. Dos aproximadamente trinta colaboradores de Contorno,
apenas três foram mulheres (além da acima citada, Regina Gibaja, Ana
Goutman) e sua participação se restringiu a poucos artigos e resenhas de
livros. A heterogeneidade do grupo e a origem imigrante de muitos deles
esteve na base da atitude contestatória que encamparam.
Espelhada na biografia de Adolfo Prieto, a de Antonio Candido revela-se
muito menos acidentada e tortuosa, principalmente em função das vantagens
derivadas de sua origem social elevada e das características gerais do campo
em que atuou. Não obstante, em função das circunstâncias nas quais se
desenvolveu sua carreira profissional, tensões de ordens diversas – literatura/

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Luiz Jackson e Alejandro Blanco

sociologia, crítica de rodapé (impressionista)/crítica acadêmica (científica),


militância/neutralidade política, crítica estética/crítica sociológica – impli-
caram mudanças de rota e ambiguidades perceptíveis no desenrolar de sua
obra, que devem ser levadas em conta para se obter uma visão nuançada de
sua trajetória. Sobretudo, sua carreira profissional esteve por muito tempo
indefinida entre a sociologia e a crítica literária, e essa tensão implicou dis-
tintas soluções de compromisso ao longo do tempo. Comparativamente, as
alternativas mais favoráveis e variáveis com as quais se deparou introduziram
dificuldades nada desprezíveis, superadas em definitivo apenas em seus
escritos de maturidade.
Nasceu em 1918. Seu pai, um médico, e sua mãe descenderam de fa-
mílias tradicionais do Rio de Janeiro e tiveram acesso privilegiado à cultura
própria dos círculos intelectualizados das elites cariocas. Em função de tais
circunstâncias, Antonio Candido obteve educação elevada desde criança. Sua
iniciação literária foi precoce, mas adquiriu formação intelectual sistemática,
principalmente no curso de ciências sociais da FFCL-USP (1939-1941), em
especial sob a batuta de professores da missão francesa, como o filósofo Jean
Maugüé e o sociólogo Roger Bastide. O clima de radicalização política pos-
terior a 1930 (segundo depoimentos concedidos em várias oportunidades) 14. De tal maneira, as condições

o levou a optar por esse curso e a associar toda sua vida ulterior à militância vigentes em cada uma dessas ins-
tâncias, imprensa e universidade,
de esquerda, que condicionou mais sua produção intelectual voltada à im- condicionaram maior ou menor
prensa do que aquela derivada mais diretamente da atividade universitária14. aproximação à política em seus
escritos (cf. artigo de Ramassote
Do grupo Clima fazia parte Gilda de Moraes Rocha (posteriormente Gilda neste Dossiê). Deve-se notar que
Rocha de Mello e Souza), com quem se casou. Essa aliança matrimonial foi na “crítica de rodapé” era comum
o crítico expressar sua orientação
decisiva, servindo de lastro às carreiras de ambos, apesar de ter impulsionado política (cf. Bolle, 1979).
mais a ele. Em 1942, assumiu o cargo de primeiro assistente de Fernando de 15. Sussekind (1993) contex-
Azevedo, na Cadeira de Sociologia II, na qual permaneceu até 1958. Naquele tualiza o desenvolvimento da
crítica literária brasileira, desde
mesmo ano, projetado pela recepção favorável dos textos que publicou em
as primeiras décadas do século
Clima, passou a escrever semanalmente na Folha da Manhã, ingressando XX, por meio da oposição entre

no círculo prestigioso dos críticos que escreviam para os grandes jornais de a “crítica de rodapé” (predomi-
nante até a metade do século,
São Paulo e do Rio de Janeiro. aproximadamente) e a crítica
Desde meados do século XX, enfraquecido o ciclo das grandes his- universitária (progressivamente
legitimada). Antonio Candido
tórias da literatura brasileira – Silvio Romero, José Veríssimo e Ronald (também Afrânio Coutinho)
de Carvalho –, a esfera própria ao exercício da crítica literária eram os moveu-se de uma para outra,
encarnando essa transição e as
jornais, e assumir um coluna fixa em um deles era uma modalidade de disputas que as opunham. Outro
profissionalização do trabalho intelectual e um sinal de distinção inequí- trabalho importante e precursor
sobre a “crítica de rodapé”, cen-
voco15. Destacavam-se em torno dos anos de 1930, as figuras de Agripino trado na figura de Álvaro Lins, é
Grieco (O Jornal, RJ), Sergio Milliet (O Estado de São Paulo, SP), Álvaro Bolle (1979).

novembro 2011 19
Crítica literária e sociologia no Brasil e na Argentina, pp. 13-40

Lins (Correio da Manhã, RJ), Mário de Andrade (Diário Nacional, SP;


Diário de Notícias, RJ), Octávio de Faria (O Jornal, RJ), Alceu Amoro-
so Lima (O Jornal, RJ), entre outras. Ao ingressar nessa arena, Antonio
Candido legitimou-se rapidamente por meio de uma dicção mais rigorosa
que lhe permitiu distanciar-se do “impressionismo” predominante, sem,
no entanto, assumir uma atitude explicitamente científica. No artigo de
abertura de seu rodapé “Notas de crítica literária”, na Folha da Manhã,
Antonio Candido defende uma atitude literária no exercício da crítica:

Há, evidentemente, uma coisa básica no trabalho crítico, que não pertence à metafísi-
ca nem à moral do nosso ofício, pois, que é uma qualidade pessoal. Quero referir-me
à penetração. Sem ela, sem essa capacidade, elementar para o crítico, de mergulhar na
obra e intuir os seus valores próprios, não há explicação possível – isto é, não há críti-
ca. No princípio, portanto, coloca-se um dado psicológico, o que vem mostrar que a
crítica parte e se alimenta de condições personalíssimas, as quais será escusado querer
fugir. Não há, portanto, coisa alguma que se possa chamar de “crítica científica” – a
menos que não se entenda por tal coisa a critica dos trabalhos da ciência. Entendida
como transformação da crítica em ciência, não passa de um dos muitos pedantismos
criados pela pretensão dos homens de letras” (Candido, 2002, p. 24).

Os anos em que escreveu semanalmente para os jornais Folha da Ma-


nhã (entre janeiro de 1943 e janeiro de 1945) e Diário de São Paulo (entre
setembro de 1945 e fevereiro de 1947) foram decisivos para afirmar sua
16. Prova disso é o convite de reputação como crítico16, ao mesmo tempo em que lecionava sociologia na
Alvaro Lins, o crítico mais con-
USP, caminhos paralelos e conflitantes que, diante da oportunidade aberta
sagrado do momento, feito a
Antonio Candido em 1947 para pelo concurso de 1945 para a Cadeira de Literatura Brasileira da USP para
que escrevesse a apresentação da o qual se apresentou, poderiam ter alterado o curso de sua trajetória, en-
quinta série do seu Jornal de Crí-
tica (cf. Pontes, 1998). curtando sua permanência na sociologia (no caso de vitória).
A derrota de Antonio Candido nesse concurso (vencido por quem era
então professor interino da Cadeira, Souza Lima) ocorreu apesar do seu
desempenho excelente, que pode ser dimensionado ainda hoje pela leitura
17. Cabe citar: “Com efeito, de Introdução ao método crítico de Silvio Romero. Essa tese (e o tema), aliás,
um dos maiores perigos para
os estudos literários é esquecer
lhe permitiria definir o contorno da perspectiva metodológica que iria
esta verdade fundamental: haja nortear seus estudos posteriores, mas também o de seu grupo, a partir da
o que houver e seja como for, em
literatura a importância maior
década de 1960. Nessa direção, adere à posição de T. S. Eliot e afirma a
deve caber à obra. A literatura autonomia relativa da obra literária17, para, em seguida, tomando como
é um conjunto de obras, não
de fatores, nem de autores.”
contraponto o “cientificismo” de Silvio Romero, aproximar-se de uma
(Candido, 1988, p.103) perspectiva “científica”:

20 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Luiz Jackson e Alejandro Blanco

Hoje só podemos conceber como científica a crítica que se esforça por adotar
um método literário científico, um método específico, baseado nos seus recursos
internos. Estabelecimento de fontes, de textos, de influências; pesquisa de obras
auxiliares, análise interna e externa, estudo da repercussão; análise de constantes
formais, das analogias, do ritmo da criação: esta seria a crítica científica, a ciência
da literatura (Candido, 1988, p.110).

Dois anos depois do concurso, Antonio Candido afastou-se dos jornais


e iniciou uma fase mais concentrada, dedicada ao ensino e à pesquisa so-
ciológica na universidade – isso se explica também pela mudança do regime
de trabalho dos “professores assistentes”, que passou de tempo parcial para
integral – e à preparação de seus dois principais trabalhos: a tese Os parceiros
do Rio Bonito, defendida em 1954 e publicada em 1964, e A formação da
literatura brasileira, publicado em 1959.
Em relação à Formação, não havia dúvida a respeito da intenção do autor
de inscrever-se na linhagem dos grandes ensaios de interpretação do Brasil,
mas o livro sobre o mundo caipira não foi compreendido nessa chave. Este
se afastaria dessa tradição por seu objeto aparentemente restrito e o fato de
ser um trabalho acadêmico. Algo destoava em Os parceiros, entretanto, em
relação à grande maioria das teses defendidas na USP na mesma época.
O texto menos carregado e a utilização discreta das ferramentas teóricas
tomadas da sociologia e da antropologia na construção de seu argumento
distanciavam-no do cientificismo vigente. A interpretação não era neutra,
mas sim diretamente interessada nas soluções políticas dos problemas sociais
diagnosticados. Além disso, a reconstrução histórica realizada na primeira
parte da tese, visando recuperar o processo de formação da sociedade caipira
paulista, também a aproximava do ensaísmo brasileiro. Antonio Candido
enfrentou pelo avesso o processo amplo de nossa formação histórica e social,
privilegiando o agricultor pobre e a pequena propriedade rural em sua análise.
Desse ponto de vista, recuperou o papel desempenhado por esse sujeito –
nomeado nas diversas regiões do país como matuto, tabaréu, caboclo, sertane-
jo –, menosprezado pela maioria dos autores que haviam estudado o processo
18. Os comentários sobre Os
de formação da sociedade brasileira. Certo pessimismo permeava sua conclu- parceiros estão baseados na sua
são: diante da modernização capitalista em curso, haveria uma crise dos meios edição como livro. Heloisa Pontes
(1998) discutiu as diferenças
de subsistência do caipira que poderia levar ao seu desaparecimento. O autor entre a tese e o livro. No segundo,
defendia a realização de uma reforma agrária que deveria levar em conta sua a dimensão política é reforçada,
sobretudo, pela proposta de
realidade social específica, radicalizando a posição encampada anteriormente
realização da reforma agrária na
por autores como Euclides da Cunha e Emílio Willems (cf. Jackson, 2002)18. conclusão do trabalho.

novembro 2011 21
Crítica literária e sociologia no Brasil e na Argentina, pp. 13-40

Como dois gêmeos distintos, o que está explícito na Formação, esconde-se


em Os parceiros e vice-versa. A intenção de dialogar com a tradição do ensaís-
mo brasileiro manifesta-se apenas implicitamente neste último. No primeiro,
é a relação mais direta com o contexto acadêmico no qual o autor estava in-
serido que está encoberta. O livro parece descolado das disputas acadêmicas
e dos dilemas profissionais enfrentados por seu autor, mas a disputa com a
direção dominante da sociologia paulista, que, nesse momento, privilegiava
objetos como o desenvolvimento econômico e desvalorizava a cultura como
matéria de reflexão, está presente nas entrelinhas. A obra resultou de uma
encomenda do editor José de Barros Martins em 1945, que imaginou a rea-
lização de uma história da literatura brasileira em dois volumes. Tratava-se,
entre outras coisas, de engrossar o coro dos que se indignaram com o resultado
do concurso já mencionado.
O pano de fundo histórico mais geral da empreitada seria o do pós-
guerra e da democratização brasileira (interrompida em 1964), cujo clima
geral pode ter influenciado a tese relativamente otimista defendida na obra.
Esta afirma a concretização de um movimento histórico iniciado no século
XVIII, durante o Arcadismo, e concluído no final do XIX, por meio do
Romantismo. Nesses dois séculos, a literatura brasileira teria progressiva-
mente se autonomizado da portuguesa, fato comprovado, segundo o autor,
pelo surgimento de um escritor tão sofisticado como Machado de Assis,
equiparável aos mestres do Romantismo e do Realismo europeus.
A noção de “sistema literário” é central na argumentação desenvolvida
na Formação e remete à dimensão social e histórica da literatura. Uma pista
que pode ser explorada diz respeito à definição de religião construída por
Durkheim ([1912] 2003). O sociólogo francês considerava as religiões
como fatos sociais e as definia como “sistemas”, ou seja, como totalidades
formadas por partes interdependentes, as crenças e os ritos, compartilhados
por grupos sociais determinados: igrejas. Ao estudar a literatura brasileira
como sistema, o crítico a enxergava como fato social, ao menos quando
vista à distância, objetivada no conjunto de obras produzidas num período
de tempo relativamente largo.
Mas a Antonio Candido interessava, também, a possibilidade do jul-
gamento estético e a defesa da “autonomia relativa” do texto literário. A
literatura é definida nesse momento como um “sistema de obras ligadas por
denominadores comuns”. A configuração progressiva do sistema dependeria
ainda da existência de uma tradição intelectual lentamente constituída e
continuamente alterada. Em seu esquema, as obras figuram em primeiro

22 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Luiz Jackson e Alejandro Blanco

plano, completando os vértices do triângulo, os “denominadores comuns”


autores e público. Não obstante, na Formação o enquadramento sociológi-
co e histórico define o ponto de vista geral por meio do qual as obras são
selecionadas e interpretadas.
A forma do livro permite uma leitura completa e, também, a concentra-
ção nos ensaios relativamente autônomos que o compõem. Trata-se de uma
solução que enquadra os escritores na perspectiva histórica e sociológica,
sem negligenciar a intenção propriamente crítica de julgar as obras e os au-
tores de maneira individualizada. Nesse caso, os instrumentos mobilizados
na interpretação variam em função da obra em foco, método – entendido
como uma atitude adequada à apreensão do objeto literário – designado
posteriormente por Antonio Candido como “crítica de vertentes”. Em cer-
tos casos, a pesquisa deveria apoiar-se no estudo dos condicionantes sociais
ou psíquicos envolvidos na “estruturação” do texto literário. Em outros, a
análise poderia prescindir dessas dimensões e mover-se apenas no interior
do texto, visando esclarecer as lógicas envolvidas em sua organização formal.
Essa seria a orientação geral das análises realizadas na Formação e, sobretu-
do, em escritos posteriores do autor. Mais do que isso, trata-se de um aspecto
central do programa de pesquisas que Antonio Candido iria liderar nas déca-
das seguintes. Pouco antes da publicação do livro, surgiria nova possibilidade
que lhe permitiria superar os dilemas ligados à sua identidade profissional,
concretizando um itinerário pessoal que tinha como horizonte a transferên-
cia para a área de Letras, por meio do convite para lecionar na Faculdade de
Filosofia de Assis, na qual permaneceu entre 1958 e 1961. O passo definitivo
nessa direção seria dado com sua indicação para assumir a Cadeira de Teoria
Literária e Literatura Comparada da FFCL-USP, em 196119. Contudo, antes 19. Sobre a passagem por Assis
e as negociações a respeito da
disso, a possibilidade de prosseguir na sociologia estava de alguma maneira criação da Cadeira de Teoria
prevista, e isso se pode deduzir não apenas da tese defendida, que comprovava Literária e Literatura Comparada
na USP, ver Ramassote (2006).
sua enorme competência como sociólogo, mas também da armação socioló-
gica de Formação. Neste livro, aliás, percebe-se a influência indireta de Roger
Bastide, que ministrou um curso sobre sociologia da arte no início da década
de 1940, que resultaria na publicação de Arte e sociedade em 1945.
Vencido o dilema profissional, uma solução analítica se impôs progressi-
vamente, reconhecível sobretudo em estudos como “Estrutura e função do
20. Esse texto tem duas versões
Caramuru” (1961), “De cortiço a cortiço” (2002)20 e “Dialética da malandra- anteriores (uma publicada em
gem” (1970) e nomeada pelo autor como redução estrutural, que consiste em 1974 e outra em 1975), cuja
matriz foi publicada em Candi-
revelar a maneira pela qual os elementos exteriores ao texto são reelaborados do (1993a). A esse respeito ver
como forma literária. Outro aspecto a ser considerado a respeito dessa “mi- Dantas (2002).

novembro 2011 23
Crítica literária e sociologia no Brasil e na Argentina, pp. 13-40

gração institucional” relaciona-se com o fato de, a partir desse momento, An-
tonio Candido assumir explicitamente a liderança de um programa coletivo
de pesquisas, que lhe permitiu ampliar o impacto de sua obra. Ele iria – com
a ajuda de seus discípulos (entre os quais Roberto Schwarz, Walnice Nogueira
Galvão e Davi Arrigucci Jr.) e de maneira mais flexível do que Florestan Fer-
nandes fizera na sociologia – fixar um novo e mais exigente padrão de trabalho
intelectual na crítica literária brasileira. Nessa direção, a Formação constituiu-
se como o núcleo das formulações teóricas e interpretativas que iriam nortear
os trabalhos posteriores do autor e de seu grupo, tornando a crítica literária
21. Um esforço quase simultâ- uma especialidade acadêmica no interior das ciências humanas21.
neo e na mesma direção foi em-
preendido por Afrânio Coutinho
Peça central no conjunto da obra de Antonio Candido, a Formação
no Rio de Janeiro, mais explícito relaciona-se com a maioria de seus escritos anteriores e posteriores, que
no combate ao “impressionismo”,
devem ser mencionados para que tenhamos uma ideia mais completa de
orientado pela incorporação do
New Criticism e pela defesa do sua trajetória, dos temas que percorreu e dos desenvolvimentos teóricos que
rigor científico e da análise es- proporcionou, não restritos à literatura brasileira. Brigada ligeira de 1945 e O
tética nos estudos literários. Ele
dirigiu a obra coletiva A literatura observador literário de 1959 reúnem textos publicados pelo crítico em jornais
no Brasil, militou na imprensa e nas décadas de 1940 e 1950. Tese e antítese de 1964, Literatura e sociedade
publicou alguns livros programá-
ticos nos anos de 1950. A dispu-
de 1965, Vários escritos de 1970, A educação pela noite de 1987 e O discurso
ta com Antonio Candido pode e a cidade de 1993 percorrem um itinerário cada vez mais sofisticado, do
ser apreendida na polêmica que
moveu depois da publicação de
ponto de vista das soluções interpretativas sugeridas, orientadas pela ambi-
Formação, questionando a exclu- ção de realizar estudos “propriamente dialéticos” sobre os textos literários.
são do barroco nesse livro, ban-
deira que seria retomada décadas
Como vimos, portanto, duas vertentes analíticas interagem na construção
depois por Haroldo de Campos. do argumento da Formação : uma focada na estruturação do texto literário
Antonio Candido não reagiu aos
(pressupondo sua autonomia relativa), outra na configuração da literatura
ataques de Afranio Coutinho.
Uma ótima reconstrução desse como sistema (mobilizando diretamente a perspectiva sociológica). Essa
debate encontra-se em Rivron dupla orientação, estética e sociológica, constituiria, desde que articuladas
(2005). Sobre a posição de Ha-
roldo de Campos, ver o texto de as dimensões, uma análise propriamente dialética no entender do autor, por
Moura neste Dossiê. esclarecer no mesmo passo a realidade interna ao texto e a relação de interde-
pendência com o meio social circundante. Tal perspectiva constituiu também
o programa teórico de seu grupo, permitindo, por meio da ênfase em um
dos polos (os exemplos de Roberto Schwarz e Davi Arrigucci são típicos),
assimilar certa “heterodoxia” no conjunto de trabalhos realizado pela equipe.

IV

A comparação das trajetórias de Adolfo Prieto e de Antonio Candido


revela aspectos curiosos. O crítico brasileiro começou sua carreira acadêmica
nas ciências sociais, lecionando sociologia na USP entre 1942 e 1958. A

24 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Luiz Jackson e Alejandro Blanco

incorporação dos instrumentos analíticos dessa disciplina em sua obra de


crítica deu-se, portanto, de maneira convencional, ao contrário de Adolfo
Prieto, que se formou e lecionou em Letras, adquirindo familiaridade com
a sociologia apenas como autodidata. De certa forma, percorreram cami-
nhos invertidos: Antonio Candido transitando da sociologia para a crítica,
Adolfo Prieto da crítica para a sociologia. Além disso, diferentemente do
brasileiro, em nenhum momento de sua carreira Prieto escreveu para os
jornais, afirmando-se exclusivamente como crítico acadêmico.
Essa última diferença é reveladora das modalidades da estruturação do
espaço da crítica literária em cada país. No caso argentino, desde o final do
século XIX, a universidade foi um ponto de referência decisivo, especialmente
o curso de Letras da FFyL da UBA, sobretudo depois da missão estrangeira
centralizada na figura de Amado Alonso nos anos de 1930. No caso brasileiro,
os jornais ocuparam, comparativamente, esse lugar até meados dos anos de
1950. Certamente, a imprensa diária tinha, também, importância na Argenti-
na, mas o caso do La Nación sugere sua especificidade. O suplemento cultural
desse jornal foi dirigido por longo tempo (entre 1931 e 1955) pelo escritor
Eduardo Mallea e vocalizava a perspectiva dos próprios literatos.
De todo modo, Antonio Candido transitou (e realizou a passagem) nos
dois principais suportes institucionais da crítica brasileira do século XX, o
jornal, até meados dos anos de 1960, e a universidade, a partir dessa última
data, construindo por meio deles uma identidade bifronte. Se a primeira
dessas fases foi condicionada pela herança social e cultural familiar, sobretudo
a segunda explica-se por sua experiência universitária, que inscreveu nele dis-
posições típicas do trabalho acadêmico. Deve-se notar que as incorporou nas
ciências sociais e não nas Letras. A montagem de seu grupo nos anos de 1960
espelhou-se nos projetos anteriores de Donal Pierson e Florestan Fernandes
na sociologia.
Diferentemente, Adolfo Prieto não dispunha de quase nenhum cacife her-
dado de sua família e isso condicionou suas escolhas. A opção decidida pela
carreira acadêmica, desde que concluiu a graduação, foi uma forma de superar
essa desvantagem. Contudo, o projeto acadêmico que pôde realizar até o final
dos anos de 1960 enfrentou dois fortes oponentes: os próprios literatos (seu
livro sobre Borges é emblemático dessa disputa) e a tradição já estabelecida
da crítica acadêmica. Ao contrário, Antonio Candido deparou -se com uma
situação diferente, porque, se não havia até os anos de 1960 uma tradição
acadêmica forte na crítica literária brasileira, ele teve que impor seu projeto
acadêmico em relação à crítica tradicional dos jornais.

novembro 2011 25
Crítica literária e sociologia no Brasil e na Argentina, pp. 13-40

Por fim, se a comparação desses itinerários revela a existência de um


grau desigual de reconhecimento intelectual obtido por cada um deles, tal
diferença deve ser entendida, também, em função da estrutura dos campos
intelectuais nos quais estavam inscritos (mais especificamente, da força
detida pela crítica literária em relação à literatura) e das posições que os
autores ocuparam no interior de cada sistema acadêmico: Adolfo Prieto na
periferia, Antonio Candido no centro.

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Crítica literária e sociologia no Brasil e na Argentina, pp. 13-40

Resumo
Crítica literária e sociologia no Brasil e na Argentina

Ainda que os processos de modernização da crítica literária no Brasil e na Argentina


se inscrevam em tradições intelectuais e organizações acadêmicas distintas, nos dois
casos, e quase ao mesmo tempo, a crítica literária renovou-se por meio da relação
estabelecida com a sociologia. Nesse sentido, duas trajetórias intelectuais, as de Adolfo
Prieto e Antonio Candido, e dois empreendimentos culturais, as revistas Contorno
(1953-1959) e Clima (1941-1944), são examinados. Entretanto, se nas duas expe-
riências a renovação da crítica seguiu um caminho análogo, somente no Brasil ela
se impôs como atividade desenvolvida no interior da universidade e como instância
reconhecida de arbitragem da produção literária nas décadas de 1950 e 1960. Em
outros termos, a consagração de Antonio Candido na cena cultural brasileira não
pode ser comparada com a que alcançou Adolfo Prieto (ou qualquer outro crítico
nesse período) na Argentina. Por quê? Nossa hipótese correlaciona a legitimação da
crítica à perda de centralidade da literatura no mundo cultural.
Palavras-chave: Campo intelectual; Tradições intelectuais; Organizações acadêmicas;
Sociologia; Crítica literária.

Abstract

Literary criticism and sociology in Brazil and Argentina

In Argentina and Brazil the modernization of literary criticism in the 1950s and 60s
developed in the context of different intellectual traditions and academic organizations.
However in both countries, and almost at the same time, literary criticism was renewed
through its contact with sociology. To analyze the relationship between these two aca-
demic disciplines, this article examines two intellectual trajectories – those of Adolfo
Prieto and Antonio Candido – and two cultural magazines – Contorno (1953-1959)
Texto recebido e aprovado em
30/7/2011. and Clima (1941-1944). But although the renewal of literary criticism followed similar
Alejandro Blanco é membro do paths in both countries, only in Brazil was university-based criticism fully recognized
Programa de História Intelectual as the foremost intellectual authority over the literary production during the period.
da Universidade Nacional de
Quilmes e pesquisador do Con-
In other words, the consolidation of Antonio Candido on the Brazilian cultural scene
selho Nacional de Investigações had no real equivalent in Argentina where neither Adolfo Prieto or any other critic
Científicas e Técnicas (Conicet).
acquired a similar standing. Why? This article explores a possible answer to this ques-
É autor de Razón y modernidad:
Gino Germani y la sociología em tion, focusing on the correlation between the consolidation of literary criticism and
la Argentina (Buenos Aires, Siglo
the decline of the centrality of literature in the cultural world.
XXI, 2006). E-mail: <ablanco@
unq.edu.br>. Keywords: Field of Knowledge; Intellectual traditions; Academic organizations; Sociol-
Luiz Carlos Jackson é professor ogy; Literary criticism.
do Departamento de Sociologia
da USP. E-mail: <ljackson@
usp.br>.

28 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Inquietudes da crítica literária militante de
Antonio Candido*
Rodrigo Martins Ramassote

Entre os anos de 1943 e 1947, Antonio Candido atuou como crítico literá- * Agradeço a Luiz Carlos Jackson
pelo convite e aos integrantes
rio militante na grande imprensa paulista, assinando os rodapés da coluna do Projeto Temático da Fapesp
“Notas de crítica” nos jornais Folha de S. Paulo (de janeiro de 1943 a janeiro “Formação do campo intelectual
e da indústria cultural no Brasil
de 1945) e Diário de S. Paulo (de setembro de 1945 a fevereiro de 1947).
contemporâneo” pela leitura
No total, foram publicados 162 escritos, dos quais oitenta foram recolhidos crítica, estímulos e sugestões a
uma primeira versão deste texto.
em livros (Brigada ligeira, de 1945, e Observador literário, de 1959), revistas
(Literatura e Sociedade, Remate de Males, Inimigo Rumor, entre outras), ou 1. Editada entre maio de 1941
e novembro de 1944, a revista
reunida em um volume organizado por Vinicios Dantas (cf. 2002b). Clima perdurou por dezesseis
Como se sabe, com o prestígio amealhado pela participação na seção edições. À frente da seção de crí-
tica literária, Candido assinou 28
de crítica literária da revista Clima1 – quando ainda era estudante no Cur- contribuições, distribuídas entre
so de Ciências Sociais (1939-1941) da Faculdade de Filosofia Ciências e artigos, resenhas e notas (algumas
delas com pseudônimos). Sobre
Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP) –, Candido viabilizou Clima, ver Pontes (1998).
seu ingresso na imprensa diária de São Paulo2. Indicado por Lourival 2. Cf. Pontes (1998, p. 112).
Gomes Machado, também formado em Ciências Sociais e colaborador da
3. Ex-militante do Partido Co-
seção de artes plásticas, e sob o aval de Hermínio Sacchetta3 (diretor de munista Brasileiro (PCB) – com
o qual rompe por divergências
redação), assumiu a condição de crítico titular no jornal Folha da Manhã,
ideológicas em 1939 – e então
com a obrigação de “fornecer semanalmente, sobre livros do momento, dirigente da organização trotskis-

um comentário que ocupava toda a parte inferior de uma das páginas ta Partido Socialista Revolucio-
nário (PSR), o jornalista paulista
internas, o ‘rodapé’ (antigamente, ‘folhetim’), subordinado a uma rubrica Hermínio Sachetta (1909-1982)
geral invariável, que dava nome à secção e vinha impressa acima do título iniciou sua carreira como revi-
sor no Correio Paulistano. Em
de cada artigo” (Candido, 1992a, p. 10). novembro de 1937, assumiu o
Inquietudes da crítica literária militante de Antonio Candido, pp. 41-70

cargo de diretor de redação na O exame das posturas e alianças políticas, ambições intelectuais, pressu-
Folha da Manhã.
postos doutrinários, preferências literárias, autores privilegiados e conceitos
analíticos incrustados nesse material depende da consideração de quatro
frentes correlatas de pesquisa. Em primeiro lugar, os contornos mais gerais
do contexto social e clima político-ideológico desses anos. Período de in-
tensa agitação política, os anos de 1943 a 1945 marcam, no plano interno,
o declínio do Estado Novo (e seus corolários: os primeiros movimentos
contestatórios, a reorganização da vida política, o abrandamento da censura
etc.) e, no externo, o desfecho da Segunda Guerra Mundial. Em segundo
lugar, a alternância vivida por Candido entre a atividade de crítica literá-
ria e a profissionalização acadêmica na área da sociologia. A inserção na
FFCL-USP – como professor-assistente da Cadeira de Sociologia II (sob
a direção de Fernando de Azevedo) e dando prosseguimento às etapas da
carreira acadêmica (ao ingressar no curso de Especialização) – repercutiu
profundamente na perspectiva analítica adotada por ele nos rodapés. Em
seguida, a militância política em pequenos grupos de esquerda. Aderindo à
luta contra a ditadura varguista, Candido assume posições políticas e inte-
lectuais combativas, participando de agrupamentos de oposição na esteira
do processo de retomada da democracia. Por fim, a apreensão, por parte do
jovem crítico, do movimento e vida literária do início da década. Assinalado
pelo convívio entre os remanescentes do modernismo e as novas tendências
e autores que despontavam.
4. Cf. Bolle (1979), Lafetá Conforme afirma a bibliografia sobre o assunto4, a década de 1940
(2000), Candido (1988, 2000a),
prolonga e acentua as transformações de ordem estrutural e ideológica do
Johnson (1995) e Pontes (2001).
decênio anterior: expansão do mercado editorial e do sistema de ensino,
ampliação da grande imprensa e aumento do número de periódicos, acir-
ramento da polarização de ideários políticos e religiosos, entre outras. Mas,
no plano literário, caracteriza uma época de transição, em que veteranos
consagrados das primeiras gerações modernistas e jovens estreantes dividem a
cena literária. Às publicações tardias de escritores associados ao modernismo
ou à geração de 1930 (Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Jorge Amado,
José Lins do Rego, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Érico
Veríssimo etc.) se juntam as primeiras obras de Clarice Lispector, João Cabral
de Mello Neto, Fernando Sabino, Geir Campos, Lêdo Ivo, entre outros.
Dos 92 rodapés redigidos durante o período em que atuou na Folha da
Manhã, Candido selecionou e refundiu dezoito para compor os ensaios do
seu livro de estreia, Brigada ligeira, publicado em fins do primeiro semestre
de 1945. Neste artigo pretendo rastrear as principais discussões que mar-

2 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Rodrigo Martins Ramassote

caram a produção intelectual de Candido nessa primeira fase, para então


finalizar com comentários sobre os critérios que presidiram a reunião e a
organização dos ensaios do livro.

O método crítico de Antonio Candido

Conforme prescrevia a tradição, em seu artigo de estreia na Folha da Ma-


nhã – intitulado “Ouverture” – Candido delineia o programa de trabalho a
ser seguido, destacando os fundamentos e a afinidade de seu método crítico
com o contexto histórico abrangente. Recusando o impressionismo como
finalidade última do julgamento crítico, admite, contudo, a sua validade
como “prolegômeno a toda atividade crítica” (Candido, [1943]* 2002c, p. * A data entre colchetes refer-se
à edição original da obra. Ela é
25). Por outro lado, a chamada “crítica científica”, pautada pelo ânimo de
indicada na primeira vez que a
superar as “condições personalíssimas” que constituem a base da avaliação obra é citada. Nas demais, indica-
se somente a edição utilizada
em nome de “fórmulas aplicáveis ‘objetivamente’”, consiste, no fundo, numa
pelo autor.
quimera: “pedantismos criados pela pretensão dos homens de letras” (Idem,
p. 24). Deflagrada pelas impressões pessoais, a qualidade e a penetração
da leitura ainda subordinada à “aventura do espírito” será superada, numa
segunda etapa, pelo esforço de “integrar a significação de uma obra no seu
momento cultural” (Idem, p. 25).
De acordo com os principais estudos sobre a crítica literária no Brasil,
a década de 1940 e a seguinte constituem o momento de apogeu do
rodapé, em cujas sessões atuavam representantes já veteranos da “crítica
modernista”5 (Tristão de Athayde, Mário de Andrade, Sergio Buarque de 5. A expressão foi cunhada por
Wilson Martins (1999).
Holanda, Sergio Milliet, Álvaro Lins, para citar os mais conhecidos), ao
lado de jovens recém-formados pelas faculdades de filosofia que surgiam
pelo país. Nas palavras de Süssekind,

Os anos 1940 e 1950 estão marcados no Brasil pelo triunfo da “crítica de rodapé”.
O que significa dizer: por uma crítica ligada fundamentalmente à não especializa-
ção da maior parte dos que se dedicam a ela, na sua quase totalidade “bacharéis”;
ao meio em que é exercida, isto é, o jornal – o que lhe traz, quando nada, três
características formais bem nítidas: a oscilação entre crônica e noticiário puro e
simples, o cultivo da eloquência, já que se tratava de convencer rápido leitores e
antagonistas, e a adaptação às exigências (entretenimento, redundância e leitura
fácil) e ao ritmo industrial da imprensa; a uma publicidade, uma difusão bastante
grande (o que explica, de um lado, a quantidade de polêmicas e, de outro, o fato
de alguns críticos se julgarem verdadeiros “diretores de consciência” de seu público,

novembro 2011 3
Inquietudes da crítica literária militante de Antonio Candido, pp. 41-70

como costumava dizer Álvaro Lins; e, por fim, a um diálogo estreito com o mercado,
com o movimento editorial seu contemporâneo (Süssekind, 2002, p. 17).

Dada a centralidade da literatura e da imprensa diária na vida intelec-


tual do período, o exercício regular de uma coluna ou rodapé de crítica
literária era bastante cobiçado, atraindo o interesse e atiçando as preten-
sões de seus possíveis postulantes. Emitindo juízos, aclamando ou conde-
nando estreias e lançamentos literários, estabelecendo critérios e formando
cânones, o estatuto adquirido e o papel exercido pelo crítico conferiam
influência e autoridade para arbitrar legitimamente sobre a dinâmica da
vida cultural.
Com a criação da FFCL-USP, em 1934, e do curso de Letras da Fa-
culdade Nacional de Filosofia da Universidade do Rio de Janeiro, em
1939, o panorama da vida intelectual começa a se modificar. Substituin-
do a figura do bacharel polígrafo, dominante à época, entra em cena o
especialista munido de sólida formação científica adquirida nas salas de
aulas. A chegada dessa nova geração redefine os princípios e os critérios de
legitimidade da atividade crítica, acentuando a distância entre diletantes
e profissionais.
Rejeitando “integralmente” o “conceito impressionista que faz da
crítica uma aventura da personalidade”, Candido defende, em várias
passagens, a adoção de uma orientação científica indispensável para o
exercício da pesquisa e ensino em literatura – sem deixar de reconhecer,
6. Os marcadores “crítica im- contudo, o papel desempenhado pelo gosto e apuro literários6. Comen-
pressionista” e “crítica científica”
servem a variados desígnios e são
tando em rodapé quatro conferências7 promovidas pelo Departamento
acionados por ele de modo distin- Municipal de Cultura e proferidas por Fidelino de Figueiredo – então
to em função de contextos espe-
responsável pela Cadeira de Literatura Portuguesa na FFCL-USP – para
cíficos. Basta lembrar a defesa das
impressões pessoais no método celebrar o centenário de nascimento do poeta português Antero de Quen-
crítico de Plínio Barreto, em pre- tal, Candido de saída avalia que a proposta analítica do conferencista,
fácio de Papéis avulsos (1958) ou
então o ensaio dedicado a Sergio de um modo geral,
Milliet, no qual Candido reivin-
dica a retomado do ato crítico (cf.
Candido, 2002d, 2000b).
[...] é mais uma crítica de erudito e historiador – crítica que situa, compara, infor-

7. Em ensaio de homenagem a
ma, esclarece; crítica, por excelência, de períodos e movimentos literários, onde a
Fidelino de Figueiredo, Antonio visão panorâmica, na sua complexidade e diversidade, requer o senso histórico e
Soares Amora destaca a impor-
a profundidade da erudição, mas que nem sempre triunfa na análise de um autor,
tância desse ciclo de conferências
(cf. Amora, 1986, 1994). de uma obra. Falta às vezes para esta crítica, para tanto, aquela força penetrante e
como que poética de simpatia, a única, através da imaginação, que permite o contato
íntimo com a criação literária (Candido, 1943a, grifos no original).

4 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Rodrigo Martins Ramassote

Não obstante, diante da predominância da postura impressionista


imperante – promovida em sua maior parte por “franco-atiradores” –, a
atitude defendida pelo historiador português é de grande importância, pois
“falta-nos o hábito e a formação necessários para nos dedicarmos ao trabalho
indispensável da localização da obra no seu tempo, e à busca inteligente das
circunstâncias com ela relacionadas” (Idem).
Não são exatamente a ausência de especialização e o amadorismo dos
colegas de profissão que preocupam Candido, mas sim a equivocada
perspectiva de análise por eles adotada8. É o que se lê, por exemplo, no 8. Isso não significa que Can-
dido não reconheça (e exorte)
rodapé dedicado à leitura da segunda série do Jornal de Crítica, publicada
as profundas diferenças que
em 1943, de Álvaro Lins. Embora o tom elogioso predomine no artigo, separam a crítica especializada

Candido não deixa de registrar sua divergência em relação à postura pro- e a produzida por amadores,
sempre confrontadas do ângulo
fessada pelo crítico pernambucano – o mais influente do período (cf. Bolle, das diferenças geracionais (cf.
1979). Chamando a atenção para a dedicação integral de Lins ao ofício, Candido, 1941a, [1943] 2002i,
[1944] 2002j).
num meio no qual “quem não reconhece em si mesmo nenhuma vocação
específica se põe a fazer crítica de livros”, ele comenta o empenho do crítico
em averiguar “a determinação, na obra literária, daquilo que é eterno, que
transcende às contingências”, tornando-a “uma aventura da personalidade,
um esforço para inserir na mesma ordem de que participa a essência da obra
literária” (Candido, [1943] 1999, p. 17). Para Candido, porém, “por mais
completa que possa ser a participação de um crítico no núcleo essencial de
uma obra, é fora de dúvida que só há um meio para se chegar a eles: os seus
sinais exteriores; toda aquela parte que significa neles ligação com o tempo,
contingência, relatividade” (Idem, ibidem).
A mesma objeção é endereçada a Carlos Burlamarqui Kopke. Da leitura
de Faces descobertas – também publicado em 1943 –, segundo livro do crítico
titular do jornal paulista A Noite, Candido afirma:

Quer como crítico de ficção e poesia, quer como crítico de ideias, o sr. Carlos
Burlamaqui Kopke manifesta preocupações que poderiam ser chamadas de essen-
cialistas. Quero sugerir com este vocábulo impreciso a sua tendência de procurar o
sentido por assim dizer metafísico das obras. Parece-nos que ele se coloca sempre
ante de um livro como que diante de um absoluto. Da Beleza, da Poesia, do Sen-
tido. Quando fala da missão do intelectual, se refere a um certo padrão eterno de
conduta (Candido, 1944d).

De acordo com Candido, o empenho analítico de Kopke é menos uma


explicação do que “um esforço de comunhão” da realidade misteriosa da

novembro 2011 5
Inquietudes da crítica literária militante de Antonio Candido, pp. 41-70

poesia com o “drama mental” do escritor (Idem). Ao proceder dessa maneira,


o autor encontrar-se-ia nas antípodas “do verdadeiro espírito crítico, ou seja:
objetivo. Com efeito, o resultado da crítica deve ser uma objetivação. Ela
deve poder extrair da obra analisada um julgamento tão desligado quanto
possível do eu crítico, que o nosso autor pretende nunca esquecer, a fim de
que este julgamento se torne um bem comum” (Idem). Por sentir-se “tanto
mais à vontade para comentá-lo e tanto mais livre para apreciá-lo quanto
me acho em posição bastante diversa da sua”, Candido assevera que

[...] para a compreensão e o aproveitamento humano de uma obra o critério cul-


tural (sentido largo) me parece melhor e mais sólido do que o critério metafísico,
porventura mais profundo e mais poético, porque é uma ilusão. O primeiro tende
a incorporar o trabalho no patrimônio da história da cultura; o segundo, como que
o limita aos prazeres de uma aventura pessoal (Idem).

Em contraposição a tal enfoque, Candido adota o conceito de fun-


cionalidade como a diretriz geral de sua orientação analítica. No rodapé
“Problema de jurisdição”, datado de 11 de julho de 1943, pode-se encontrar
uma definição precisa da posição do autor. Respondendo a certos leitores
que o haviam acusado, em “umas duas admoestações escritas e umas quatro
orais”, de “deslizar frequentemente para fora da crítica literária e invadir
canteiros do próximo”, conferindo “uma notória preferência a livros que não
são romances nem contos. De evitar a ficção, numa palavra [...]”, Candido
esclarece que a “especificação das funções do crítico varia na razão direta
da complexidade e consequente diferenciação do trabalho cultural de uma
sociedade” (Candido, 1943g). Num meio marcado pela incipiente diver-
sificação funcional, “em que não raro os indivíduos são ao mesmo tempo
poetas, romancistas, críticos, escritores políticos, sociologizantes, filosofantes,
é difícil dizer quais os limites precisos entre o crítico da literatura e o de
ciências morais ou filosofia”, o encarregado de tal seção se vê obrigado a
dar conta das solicitações que o ambiente lhe faz (Idem). Ressalvando que
na revista Clima, “minha escola de crítica”, “procurou-se fazer uma seleção
nítida entre certos gêneros de crítica”, afirma que “meus leitores nunca me
viram, e provavelmente nunca me verão falar de livros de teatro, de cinema,
de música, de pintura ou de economia. Quanto ao resto...” (Idem). Em vista
disso, ele anuncia que o método mais adequado, até mesmo imposto por
sua época, é aquele que consegue captar nas obras literárias

6 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Rodrigo Martins Ramassote

[...] o que há de mais fundamente cultural, isto é, o que nelas significa o caráter
comum de todas as obras de uma cultura. Assim, o crítico pode ser literário e ana-
lisar uma obra como Casa-Grande & Senzala ou Raízes do Brasil ou História Geral
das Bandeiras. Contando que considere nelas, como em Éramos seis ou no Moleque
Ricardo[,] o denominador que aparenta umas às outras as diferentes manifestações
de uma fase da cultura (Idem).

Para tanto, é necessário um ponto de vista, um princípio norteador:

[...] creio que não pode haver ofício mais interessante e, como desculpa vossa, mais
útil do que levar para as coisas literárias certos princípios de ordem sociológica e
filosófica. Daí o interesse com que, partindo de uma formação filosófica ou socio-
lógica, é possível ao crítico embrenhar-se pela literatura, procurando interpretá-la
9. Apesar de não publicar ne-
funcionalmente, buscando nela a repercussão da época e a sublimação dos traços
nhum ensaio científico na área da
da cultura; selecionando, não raro, voluntariamente, os livros que mais se prestam sociologia – o que somente virá
a ocorrer em 1947 (quando ele
a esse tipo de estudo. Não garanto a superioridade do método, que procuro por em
se afasta da crítica literária regu-
prática. Mas confesso que o acho bom. E, sobretudo, útil (Idem). lar) –, nesse momento Candido
exercia a função de professor-as-
sistente na Cadeira de Sociologia
Não se pode encontrar uma definição mais precisa da moldura social II e estava às voltas com a eleição
em que a obra literária está engastada. Condicionamento histórico-social, de seu objeto de pesquisa de dou-
torado. Sob o estímulo de Roger
momento cultural e histórico, espírito de época, eis, num apanhado geral, Bastide, empreendia pequenas in-
os achados analíticos utilizados por Candido, quase sempre de maneira cursões a municípios do interior
do estado visando travar contato
cambiável, para designar a preocupação com os nexos entre a produção com práticas e manifestações da
literária e seu contexto social. É certo, contudo, que a concepção de funcio- cultura popular.

nalidade por ele adotada prende-se, simultaneamente, à atuação profissional9 10. E que leva a situações pa-
radoxais: no rodapé “Vinte anos
e às posições derivadas da militância política então exercida. Isso ao ponto
e...”, dedicado a Marcel Proust,
dessa concepção se tornar, em certa medida, critério de aferição da quali- um dos autores preferidos de

dade literária e princípio de seleção dos autores que merecem a atenção do Candido, o elogio ao escritor
francês, “na homenagem do vigé-
crítico. Uma atitude arriscada10, que tendia a transformar a obra literária simo aniversário de sua morte”,
em arma de combate. vem acompanhado da consta-
tação de que a data “para a sig-
No rodapé “Ficção (I)” datado de 4 de fevereiro de 1943 e dedicado à nificação funcional de sua obra,
leitura de Dois mundos, livro de contos de Aurélio Buarque de Holanda, [revela-se] quase um atestado de
óbito. No amor permanente que
Candido indica que dedicamos a Proust (veja bem o
plural; se há culpa, compartilho-
a com vós outros) há um pouco
Se me perguntarem qual o critério mais firme e mais imediato para se julgar uma
do amor que dedicamos às coisas
obra de arte ou de literatura, eu direi que é o critério da sua necessidade. Necessi- mortas. Proust envelheceu. Proust
passou; Proust não tem razão de
dade, neste sentido, quer dizer a presença de uma série de razões que fazem com
ser; Proust é uma sobrevivência de
que a obra pareça alguma coisa que não poderia deixar de existir [...]. Este caráter museu” (Candido, 1943d).

novembro 2011 7
Inquietudes da crítica literária militante de Antonio Candido, pp. 41-70

é dado à obra por um conjunto de fatores, tanto internos quanto externos, que se
reúnem, afinal de contas, para a sua funcionalidade, isto é, a sua razão de ser em
função de certos problemas ou, simplesmente, certas características do homem ou
da sociedade de uma época. Uma obra autêntica, no sentido próprio, é sempre
uma resposta: uma resposta dada por um indivíduo, de mais sensibilidade ou mais
penetração do que a média, aos inúmeros problemas que ele vê ou pressente em si,
nos outros ou no grupo (Candido, 1943b).

Ao caráter funcional da obra literária “vem ligar-se o seu valor próprio.


Este, porém, depende em grande parte daquele. Sendo a arte, de modo
geral, um fenômeno de antecipação nas esferas do conhecimento, o valor
de uma obra é inseparável deste aspecto de resposta a uma incógnita – de
que acima falei” (Idem). Por conseguinte,

[...] quando, portanto, uma produção do homem vem responder a este esforço de
penetração, seja uma máquina que permite um domínio maior sobre a natureza,
seja um poema que torna mais claro um canto qualquer da alma – podemos dizer
que o seu aparecimento foi necessário, porque ela se integra funcionalmente no
conjunto das atividades de uma cultura. Quando se vê que numa obra nada responde
a nada; coisa alguma existe que permita sentir a sua eficiência artística – podemos
dizer sem medo que esta obra é desnecessária. E tal constatação, a meu ver, é fatal
para ela (Idem).

Com efeito, os 92 rodapés redigidos na Folha da Manhã assumem um


registro predominantemente sociológico e político, seja em razão do quadro
conceitual assumido, seja pelos pressupostos doutrinários adotados, ou, por
fim, pelas preferências estéticas e autores privilegiados. Essa perspectiva for-
nece régua e compasso para a avaliação das obras analisadas e, nesse sentido,
não me parece exagerado afirmar que, ao contrário da imagem apregoada
por Candido – da sociologia como ponto de vista –, ela constitui então o
fundamento central de sua orientação crítica.
Em decorrência imediata dessa posição, que atravessa de ponta a ponta
o conjunto, pode-se identificar uma insistente preocupação com o papel
do intelectual diante das circunstâncias históricas de período marcado pela
agitação e confusão político-ideológica. Com as mudanças provocadas
pela situação externa, o posicionamento do intelectual no debate sobre a
vida nacional avança para primeiro plano e, com isso, a importância do
empenho participativo nos rumos de sua época.

8 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Rodrigo Martins Ramassote

Avaliando o lançamento de Ensaios do nosso tempo, reunião de escritos


do jovem crítico Otávio de Freitas Júnior, publicado em 1944 e prefaciado
por Mário de Andrade11, Candido identifica tendências conflitantes, quando 11. O prefácio foi republicado
em Aspectos da literatura brasileira
não incompatíveis, nas quais se misturam a
(cf. Andrade ([1945]1978).

[...] boa vontade que deseja, ao mesmo tempo, um tipo cristão de existência, a
luta sem tréguas ao fascismo, uma democracia popular, uma ética individualista e
essencialista. Rejeita violentamente as implicações direitistas do seu credo religioso e
aceita plenamente certos aspectos populares, anti-hierárquicos da política moderna.
Quer um estado de coisas em que os homens participem intensamente da existência
um dos outros, todos unidos num regime de justiça social. E prega, para isso, a
autorealização espiritual pela autoconsciência (Candido, 1943i)

Nesse amálgama de pontos de vista contraditórios, pode-se constatar a

[...] preocupação central do autor: a luta por um novo humanismo que substitua o
anti-humanismo dos dias presentes e passados. Não me parece, contudo, que o Sr.
Otávio de Freitas Junior esteja bem orientado nesse sentido. Me parece, mesmo,
que não percebe o quanto a sua orientação pouco ou nada resolve. Solução de elite,
solução de classe, eis o que ela é. O seu grande trunfo, com efeito, é a crença na
reforma graças a uma tomada mais funda de consciência, a uma compreensão mais
aguda e mais essencial dos próprios problemas por parte do homem de inteligência.
O resto viria depois (Idem).

Girando em torno do personalismo essencialista, “característico dos


diferentes espiritualismos, e que no seu caso, milagrosamente, bernanosia-
namente [referência ao escritor francês George Bernanos], não se acha, de
modo consciente, combinado com a Reação” (Idem), o pensamento adotado
pelo crítico pernambucano acaba por afastá-lo das questões essenciais e
prementes do tempo, a que Candido exclama:

Arrepio-me ao ver um moço, e dos melhores, aceitar a inteligência, não como um


instrumento de vida e de reforma; de reajustamento constante do homem com as
suas condições de vida, que geram as condições morais – mas como a criação isenta
de um enquadramento ideal, espécie de norma para uma pseudo elite intelectual,
que toca harpa enquanto Roma arde e salvaguarda a pureza de um Espírito que só
tem sentido humano quando se volta para o sangue e a dor dos homens. Clerica-
lismo! Era só o que faltava! (Idem).

novembro 2011 9
Inquietudes da crítica literária militante de Antonio Candido, pp. 41-70

E arremata o artigo:

[...] não basta ser anti-fascista. Através do gidismo autofágico, da perda em si


mesmo, nunca os problemas de convivência humana serão solucionados. Tomá-los
como ética privada, vá lá. Há lugar para tudo, e cada intelectual tem o direito de
seguir os caminhos que escolheu. Querer, porém, ver neles soluções coletivas de
progresso, num livro que pretende agir sobre os outros, é erro. Erro e manivelada
na roda-gigante da Reação, que gira, gira, gira, não sai do lugar, e convida os outros
para as delícias do Clericalismo! Não faltava mais nada! (Idem).

Na outra ponta, investindo contra os representantes da “Reação” – sempre


grafada em maiúscula–, isto é, o pensamento católico ou conservador assu-
mido por intelectuais consagrados da geração anterior, Candido não poupa
nem mesmo figuras de prestígio como Gilberto Freyre e Tristão de Athayde.
Ao abordar o ensaio Mitos do nosso tempo (publicado em 1943), do intelec-
tual católico carioca, no rodapé “Os mitos e a reação”, Candido (1943e)
aponta como a principal falha do livro encarar “o mito em si, buscando
uma explicação de caráter filosófico, que visa julgar o seu alcance ético de
acordo com um ponto de vista ontologista. Talvez fosse mais acertado fazer
um estudo, que o autor não fez, do caráter funcional do mito na sociedade”.
Longe “de virem de crises morais internas do homem ou da falta de sentido
religioso da vida” (Idem), tal como apregoava Athayde, os mitos emergem
quando ocorre a ruptura entre a estrutura social e as representações coletivas
correspondentes, servindo de ponto de apoio para coletividades desnortea-
das. E encerra seus comentários com a seguinte frase: “Nada propondo de
efetivo, [Athayde] remastiga vagos ideais. Ora, num momento em que há
ideias vivas, que são soluções novas, o apelo reacionário ao passado é um
perigo para o mundo futuro” (Idem).

Por uma militância de esquerda independente

Não é possível compreender as posições analíticas adotadas por Can-


dido nos rodapés sob exame sem levar em conta seu envolvimento com a
militância política. É nesse período que sua filiação doutrinária de esquerda
aparece com maior estridência. Ele próprio, em diferentes ocasiões, chamou
a atenção para essa questão, reconhecendo a predominância de certo “sec-
tarismo deformante” que o conduzia “para o aspecto ideológico o mais que
podia; tendia, às vezes, a fazer a avaliação crítica com base na importância

10 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Rodrigo Martins Ramassote

ideológica. Nunca cheguei a ser esquemático, nem fanático, mas um pouco


redutor” (Candido, apud Jackson, 2002, p. 128).
De acordo com depoimento concedido à revista Praga, Candido revelou
um interesse precoce pelas ideias de esquerda, ainda em Poços de Caldas
(MG), onde passou a adolescência (cf. Candido, 1996a). Com o ingresso
na FFCL-USP, esse interesse foi reforçado pelo contato com o professor
de filosofia Jean Maügué, “simpatizante comunista e [que] aconselhava
a leitura de livros de Marx, com um espírito muito aberto” e, sobretudo,
pelo exemplo de Paulo Emílio Salles Gomes, preconizador de um “tipo de
socialismo independente” (Idem, p. 8). Ex-membro da Juventude Comunis-
ta, encarcerado em dezembro de 1935 (na onda repressiva que se seguiu à
Intentona Comunista) no presídio Paraíso – de onde fugiu no Carnaval de
1937 para o exílio na Europa –, Paulo Emílio contatou na França “grupos
e pessoas de orientação marxista, mas não stanilistas nem trotskistas” (Idem,
p. 8), alterando a fundo sua visão política12. 12. Sobre o assunto, ver Can-
dido (1986).
Ao retornar ao país, em fins de 1939, ingressar na FFCL-USP e con-
viver com Candido e os demais integrantes do que viria a ser conhecido
por grupo Clima, Paulo Emilio

[...] começou a nos comunicar essas coisas, a nos dar livros reveladores, como o de
Alexandre Barmine, alto funcionário que fugiu para o Ocidente e começou a revelar
as iniquidades do regime socialista. Lembro da impressão que tive vendo as atas
dos Processos de Moscou. Fiquei petrificado quando li as declarações dos grandes
revolucionários de 1917, como Bukarin, Zinoviev, Kamenev, Radek, Piatakov e
outros “confessando” que eram todos traidores a serviço das potências capitalistas!
Foi uma das farsas mais trágicas e mais ignominiosas da história (Idem, p. 8).

Sob o estímulo e a orientação de Paulo Emílio, Candido integra-se no final


de 1942 a um pequeno grupo de intelectuais (composto por Paulo Zingg, Eric
Czaskes, Germinal da Costa Feijó e Antonio Costa Correia) que se reúne aos
finais de semana para discutir temas políticos, redigir documentos e praticar
alguns atos contra a ditadura. Adotando uma fórmula de ativismo marcada,
de um lado, pela independência tanto em relação às posições stalinistas como
trotskistas e, de outro, pela busca de um modelo de socialismo ajustado à rea-
lidade nacional – afastando-se, portanto, das diretrizes impostas pela União
Soviética – o grupo adquiriu certa expressividade, juntando-se a outros na
rede clandestina de luta pela redemocratização (nucleada em torno da Facul-
dade de Direito de São Paulo).

novembro 2011 11
Inquietudes da crítica literária militante de Antonio Candido, pp. 41-70

Dessas reuniões dominicais surge o Grupo Radical de Ação Popular


(GRAP), que se ligou, em 1943, a um grupo combativo de estudantes ou
jovens formados em Direito – composto em sua maioria por liberais– para
formar a Frente de Resistência. A principal iniciativa dessa frente foi a
publicação de quatro edições do jornal clandestino A Resistência, além do
lançamento de um manifesto (redigido por Paulo Emílio) em 1945. Com o
declínio da ditadura, as divergências internas afloraram e o grupo se desfaz:
os liberais ingressaram na União Democrática Nacional (UDN); os socia-
listas fundam a União Democrática Socialista (UDS). Seguindo de perto o
modelo instaurado pelo GRAP, as reuniões do grupo ocorriam na casa de
Paulo Emílio, e seu feito de maior destaque foi a redação do Manifesto da
União Democrática Socialista (UDS). Dada a “dificuldade de arregimentar
e coordenar as tarefas para a luta eleitoral que então se iniciava” o grupo,
antes de se dissolver, coligou-se à Esquerda Democrática (ED) – que então
se formara no Rio de Janeiro – e participou de seu estabelecimento em São
Paulo. Em meados de 1947, a ED mudou o nome para Partido Socialista
13. Não se enquadrando per- Brasileiro (cf. Candido, 1986) 13.
feitamente no perfil social de
adeptos indicado por Rodrigues
Distanciada dos embates políticos, centrada na elucubração e intervenção
(1986) em análise sobre o PCB, intelectual, a militância assumida por Candido reivindicava uma posição inde-
Candido não se ligou aos partidos
pendente e autônoma da disciplina e do conteúdo doutrinário exigidos pelos
de esquerda tradicionais. De igual
maneira, os rigores impostos pela tradicionais partidos políticos de esquerda. Nos rodapés, suas incursões políticas
dedicação extremada à causa privilegiam a bibliografia internacional sobre o marxismo e temas relacionados
não coadunavam com o perfil
profissional admitido dentro da com a Revolução Russa e seus principais protagonistas. Resenhando, em 25
FFCL-USP (distante das ques- de fevereiro, o livro Hitler cannot conquer Russia, de Maurice Hindus – vertido
tões políticas mais candentes).
Não é casual, também, que a
para o português, numa tradução “muito má e revisão abaixo da crítica”, por
modalidade de participação A Resistência Russa –, Candido adverte, de saída, o leitor: “nessa semana não
política assumida Florestan
Fernandes, no interior do Partido
farei crítica literária”, pois, há “certos livros que nos arrastam violentamente
Socialista Revolucionário (PSR), para fora da literatura, em pleno jogo das ideias vivas e dos acontecimentos”
tenha se restringido à tradução
e comentário de Contribuição à
(Candido, 1943c). Ele destaca a espantosa transformação econômica que
critica da economia política, de projetou o país da “extrema carência econômica, de uma agricultura primi-
Karl Marx. Sobre o assunto, ver
tiva, de uma indústria apenas esboçada e limitada ao aspecto manufatureiro
também Ridenti (2010), Camur-
ça (1998) e Rubim (1988). ao segundo lugar no mundo na produção pesada e a um desenvolvimento
agrícola que é o mais perfeito da terra” (Idem). A eficiência do modelo rus-
so – reconhecida “mesmo pelos que não partilham da doutrina oficial do
governo de Moscou” – parece-lhe “devida a dois fatores: compreensão clara
da forma de organização econômica compatível com as condições nacionais
e execução dos seus princípios dentro de um regime político que mergulhava
solidamente nas tradições do país” (Idem).

12 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Rodrigo Martins Ramassote

Revelando um domínio extenso da literatura sobre a história russa – sem


dúvida decorrente da participação nas reuniões da GRAP –, o artigo salienta
a correspondência entre a orientação adotada na condução dos processos que
culminaram na transformação indicada e características e tradições seculares
do povo russo: “Longe de ser uma ruptura total com o passado, assentou a
sua construção com a racionalização de alguns de seus mais sólidos princí-
pios”, não podendo “de modo algum, ser a imposição totalmente nova de
um tipo de vida a um povo não preparado para recebê-la” (Idem). Assim,

O regime soviético é um fenômeno especificamente russo, que foi de encontro a


condições favoráveis, propondo solução compatível com os problemas da “realidade
russa”. Foi, portanto, uma revolução que se apoiou nas mais profundas tradições
nacionais, e só por isso conseguiu realizar o que realizou (Idem).

A despeito da rejeição das tendências trotskistas – mas não da admiração


da figura e dos escritos de Trotski –, a autobiografia do revolucionário russo,
Minha vida (traduzida em 1943 por Lívio Xavier), é tratada no rodapé “Uma
vida exemplar”, de 4 de julho. Em tempos de domínio absoluto da doutrina
stalinista, e da consequente rejeição do legado de Trotski pela maioria dos
partidos políticos de esquerda, Candido, com indisfarçável satisfação, assi-
nala a importância desse revolucionário para a concretização da Revolução
Russa: se “Lenine foi o Patriarca e o Condutor, teve o seu realizador, o seu
deslanchador em Leon Trotski” (Candido, 1943f ). O rodapé destaca ainda
a trajetória revolucionária e participação decisiva de Trotski na tomada do
poder pelos bolcheviques em 1917.
A propósito do embate Trotski versus Stalin – oposição “entre a Pureza
e a Eficiência” –, Candido comenta que não se deve julgar as realizações do
segundo como desvios em relação ao ideário comunista, tampouco aceitá-
las de maneira fatalista: “[posição] que se colocam certos intelectuais de um
oportunismo sem imaginação que, se escudando num soi disant motivo dia-
lético, o que estão é, quando muito, se curvando ante não sei que desfibrado
evenemencialismo, que venera e cultua o sucesso do fato consumado como a
verdade suprema” (Idem). Num momento em que “sentimos no ar a ameaça,
diariamente anunciada por quem sabe ver de um neofacismo de após guerra,
apesar dos esforços de muitas das Nações-Unidas, torna-se mais dramático e
comovente o apelo que faz uma grande vida como a de Trotski, no sentido
da inteireza ideológica e da intransigência na defesa dos interesses populares”
(Idem). E se indaga:

novembro 2011 13
Inquietudes da crítica literária militante de Antonio Candido, pp. 41-70

O apelo de uma vida como a sua transcende as divisões ideológicas para se situar
no campo em que se encontram todos os homens interessados em ver justiça na
terra. Não é mais o trotskista Trotski quem fala. É um homem cuja vida é exemplo,
cuja ação dá confiança na ação, cujo pensamento esclarece o pensamento [...]. A
vida desse homem foi uma ilustração destas suas palavras. Que exemplo melhor
para reinfundir confiança no homem, do fundo do caos em que estamos? (Idem).

Não se pense, porém, que as convicções políticas redundem na descon-


sideração pelos desafios da linguagem literária. Na leitura de Entre o chão e
as estrelas (publicado em1944), do escritor comunista Tito Batini, Candido
lamenta discordar esteticamente do autor: “porque se percebe logo quanto
de humanidade e justiça há na sua orientação em face do homem; como é
angustiado o brado que levanta em relação à condição da massa proletária
e como se orienta decididamente para a sua justa solução” (1943h). Não
obstante, Batini “não tem a constituição romanesca necessária para dar aos
seus ideais um cunho verdadeiro de literatura, operando a passagem da vida
à arte” (Idem). Incapaz de delinear a psicologia de seus personagens – “não
se tem a impressão de gente viva, mas de fantoches do autor” –, de modo a
articular os acontecimentos por que passa o protagonista do romance com
a “sucessão correlata de estados psicológicos que vão se organizando no
sentido de uma evolução interior, isto é, da definição de uma existência”
(Idem), Batini confina a vida de seus personagens ao pitoresco e ao acúmulo
exterior de sentimento. Daí seu defeito ser não do

[...] assunto, nem da concepção de vida do autor. O assunto é o mais rico possível; a
concepção dos homens em sociedade, a mais justa e a mais propícia para encher os
pulmões de um verdadeiro escritor. No Sr. Tito Batini o defeito vem do romancista.
O romancista é que é o culpado pelo desperdício do assunto e pela inconsistência
que se esvai o problema social exposto. O que vem provar mais uma vez que a
honestidade e a boa vontade não bastam para fazer obra de arte. Esta não se nutre
apenas da riqueza humana do autor, ou do seu sentido mais ou menos justo das
coisas. Requer uma agudeza psicológica, um senso de participação e qualidades de

14. Em entrevista a mim


composição sem as quais o resto de nada vale (Idem).
concedida em janeiro de 2011,
Candido confirmou que a
sugestão da publicação veio da
Da militância combativa à brigada ligeira
parte de José Martins. Sobre
a Livraria e Editora Martins e
Por incentivo do amigo e futuro editor José Martins14, Candido decide
seu proprietário, ver Silva Brito
(1968) e Pontes (2001). reunir em livro parcela expressiva dos rodapés publicados na Folha da Manhã.

14 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Rodrigo Martins Ramassote

O objetivo imediato era robustecer o currículo profissional para concorrer


à vaga do concurso da Cadeira de Literatura Brasileira, que viria a ocorrer
entre 23 de julho e 4 de agosto de 194515. Publicado na coleção Mosaico16 15. O edital do concurso foi
publicado no Diário de S. Paulo
no final do primeiro semestre desse ano, Brigada ligeira privilegiou análises
na data de 19 de outubro de
de romances, o que, conforme expresso no prefácio, conferiu certa unidade 1944. O período de inscrição

ao volume. Dedicado a Alfredo Mesquita – patrocinador da revista Clima e estipulado foi de 150 dias. De
acordo com Candido, a tese sobre
responsável por atribuir “a seção de crítica literária” ao autor – e a Lourival Sílvio Romero foi redigida entre
Gomes Machado – que “dois anos depois” empurrou-o “para a aventura 1º de fevereiro e 11 de março de
1945 (cf. Diário Oficial de São
mais ampla e comprometedora do rodapé de jornal” –, o livro de estreia de Paulo,1944; Dantas, 2002a).
Candido traduz com precisão a justaposição entre crítica literária, sociologia 16. De acordo com Hallewell
e política no centro de seu projeto intelectual, bem como a redefinição das (1982, p. 416), em 1943, foi
“iniciada a ‘Coleção Mosaico’, de
posições assumidas por ele até o momento. volumes finos e de pequeno for-
Organizada paralelamente à redação de O método crítico de Sílvio Ro- mato (17 cm de altura), de obras
contemporâneas brasileiras, em
mero (Candido, [1945] 1988) – tese com que se candidatou ao concurso
sua maioria de crítica literária”.
acima mencionado e a partir da qual ele começa a rever seus pressupostos
17. Com efeito, os rodapés
intelectuais17 –, a seleção dos rodapés de Brigada ligeira sinaliza, por sua redigidos a partir do final do
vez, para uma estratégia de depuração dos excessos do engajamento então primeiro semestre de 1944 dão
prova das mudanças em curso.
defendido por Candido. Deixando de fora artigos de circunstância, gêne- Em “Última nota”, publicado
ros não literários (biografias, estudos históricos, historiografias literárias, em 28 maio, Candido (1944a)
cita Modern poetry and tradition
traduções, palestras, coletâneas de ensaios, livros de crítica etc.), textos de de Cleanth Brooks; em “An-
cunho programático ou polêmicos e os rodapés dedicados à poesia, o autor tologias”, de 26 de março do
mesmo ano, menciona Reading
também excluía as contingências temporais mais evidentes – não se furtando poems, de Wright Thomas e
nem mesmo a retocar ou elidir trechos significativos dos artigos escolhidos18. Stuart Gerry Brown; na revista
Clima de setembro, resenha D.
E com isso retornamos à questão do sectarismo crítico, abordada ante-
H. Lawrence and Susan, his Cow,
riormente. Uma avaliação detida dos rodapés dedicados à análise de poesia19 de William York Tindall.

revela, talvez de maneira mais nítida do que nos escritos sobre prosa de 18. Exemplo disso é a polê-

ficção, a extensão e o limite dessa questão, permitindo uma discussão mais mica com Oswald a respeito
do julgamento da obra de Tito
qualificada do problema. Diversamente das leituras dedicadas aos romances, Batini, excluída da versão final de
nas quais a cobrança da participação dos intelectuais adquire uma posição “Estouro e libertação” (composta
da junção dos artigos “Romance
mais discreta e de fundo, nos estudos de poesia Candido assume com maior e expectativa”, “Antes de Marco
ênfase a orientação política, o que acarreta, não raro, certa distorção em Zero” e “Marco Zero”). Sobre a
polêmica com Oswald, ver Pontes
seus julgamentos críticos. (1998).
Se, de um lado, é verdade que o período caracteriza certa entressafra de 19. Boa parte deles reunida no
estreias poéticas promissoras – com exceção, como veremos a seguir, de Pedra volume organizado por Dantas
(2002b).
do Sono (publicado em 1942), de João Cabral de Melo Neto –, de outro,
20. Não por acaso, a maioria
Candido não aborda o lançamento de livros importantes de poetas consa-
desses poetas – exceto Drum-
grados do modernismo20. A rosa do povo (Carlos Drummond de Andrade), mond e Cassiano Ricardo– era

As metamorfoses e Mundo enigma (Murilo Mendes), Mar absoluto (Cecília ligada à chamada poesia espi-

novembro 2011 15
Inquietudes da crítica literária militante de Antonio Candido, pp. 41-70

ritualista. Com a preocução Meireles), O sangue das horas (Cassiano Ricardo) e Cinco elegías (Vinícius de
de orientar o sentido geral do
movimento que então surgia, Moraes) – todos publicados entre 1943 e 1945 – são alguns exemplos disso.
a atenção de Candido recaiu Minha hipótese é de que a exclusão dos rodapés de poesia de Brigada
preferencialmente sobre os poetas
de sua geração, cuja produção
ligeira – que perfazem apenas nove dos noventa artigos publicados – se
despontava no cenário literário relaciona à excessiva ênfase na defesa da poesia participante por parte do
nacional. Procedimento que não
deixa de ser coerente com a di-
crítico, o que estava em conflito com a redefinição pela qual ele passava.
retriz assumida em “Ouverture”: Esses rodapés evidenciam que a cobrança do engajamento político dos au-
“Assim compreendida, pois que
a ela incumbe uma parte desse
tores estudados levou, de um lado, a uma valorização exagerada de poetas
trabalho, a crítica – literária, ar- hoje esquecidos e, de outro, a uma visão bastante reticente das tendências
tística, filosófica, científica – nos
poéticas intimistas e formalistas que culminariam logo mais na chamada
aparece como um instrumento
de conhecimento e um guia geração de 1945.
nos caminhos difíceis, e a sua Exemplar nesse sentido é o escrito “Sobre poesia”, publicado em 30 de
utilidade não pode ser negada”
(Candido, [1943] 2002c, p. 28). abril de 1944. Recuperando um artigo de Carlos Lacerda – “polêmico,
mas perfeitamente justo em suas apreciações de ordem estética” (Can-
dido, [1944] 2002e, p. 129) – a propósito do absenteísmo da poesia de
Manuel Bandeira (que autoqualificara sua obra como menor), Candido
discute as pertinência de se adotar como critério estético a oposição en-
tre poesia menor, ou seja, marcada pelo lirismo intimista e pela notação
emotiva, e poesia maior, preocupada com a meditação sobre o homem e
seus problemas. O rodapé começa assinalando que “a poesia moderna, a
partir do simbolismo, tende a ser menor”, já que “a aspiração de grande
parte das correntes posteriores foi se limitar aos momentos poéticos,
aos momentos raros em que uma emoção agudamente sentida fosse
transmitida com pureza ao leitor” (Idem, pp. 129-130). Numa palavra:
21. Já abordei essa questão em “a poesia passou, em boa parte, a querer ser pura” (Idem)21.
outro artigo (cf. Ramassote, Em decorrência dessa linha de raciocínio, não causa espanto a ava-
2009).
liação elogiosa de autores representativos da poesia participante que
22. No depoimento concedido
a Mário Neme, republicado em hoje estão completamente esquecidos. É ilustrativo, nesse sentido, o ro-
1945 no volume Plataforma da dapé “Longitude”, dedicado à leitura de A voz do grande rio – publicado
nova geração, Candido indaga:
“Quem é o grande poeta da
em 1944 – segundo livro de poesia de Rossine Camargo Guarnieri.
nossa idade aqui em São Paulo: Saudando-o como o “melhor e o mais forte dos poetas moços de São
o único verdadeiro poeta, se
não me engano, descontados
Paulo”22, Candido (1944b) lamenta que Guarnieri tenha se mantido
os inéditos? Rossine Camargo “esquivo ante o público, guardando um silêncio interrompido após a
Guarnieri. Qual é a característica
publicação de Porto seguro, há seis anos [1938]”. Por isso, “é com prazer
da sua poesia? Justamente esta
ausculta angustiada, de que lhe que dou a notícia do seu último livro, A voz do grande rio” (Idem).
falo, do tempo e do homem”
Esboçando uma tipologia de conotação política – ainda que reconheça
(Candido, [1943] 2002i, p.243).
o perigo de ser mal compreendido (ela poderia se prestar a “segundas inter-
pretações”) –, Candido sugere que

16 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Rodrigo Martins Ramassote

[...] os poetas se organizam segundo um meridiano ideal, havendo os que se colocam


à sua esquerda, e à sua direita. Haveria, assim, uma esquerda e uma direita poéticas,
usando os termos, não no sentido político corrente, mas relacionados a questões de
técnica e de concepção da poesia. A segunda atitude caracterizaria os poetas preo-
cupados sobretudo com a expressão do destino individual, construindo um sistema
poético em que sobreleva a necessidade de expansão do eu e da obtenção de uma
poesia mais ou menos pura, no sentido de bastante a si mesmo e inimiga do tema
poético. A primeira atitude compreende os poetas aos quais a sua própria personali-
dade aparece irremediavelmente misturada com a dos outros, levando-os a coletivizar
as suas emoções em oposição à primeira atividade, que procura individualizá-las ao
extremo. Os poetas de direita geralmente não se ultrapassam, criando beleza dentro
de condições extremamente individuais de sensibilidade. Nas coisas e nas cenas do
mundo, vêm de preferência correlativos objetivos – para usar uma expressão de
Eliot – das suas idiossincrasias. São, numa palavra, excessivamente teses. Os poetas
de esquerda tentam transpor este individualismo, maior ou menor, abrindo a sua
sensibilidade ao mundo e ao semelhante e procurando uma expressão mais total do
mundo. São poetas sintéticos, se me permitem a expressão, que, partindo do seu
eu (etapa em que permanecem os da primeira categoria), tomam consciência do
mundo e o opõem a si mesmos, resultando, como síntese, a poesia (Idem).

Aplicada ao exame da tradição poética brasileira recente, tal classificação


indica um predomínio maior de poetas à direita do meridiano adotado:
“Schmidt, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Murilo Mendes – uns
mais outros menos” (Idem). Por outro lado, na vertente oposta, “encontra-
mos apenas um grande poeta, Carlos Drummond de Andrade [...]. O sr.
Rossine Camargo Guarnieri também se coloca ao seu lado, embora muito
lhe falte para atingir a posição verdadeiramente poética conseguida por ele
e por mais alguns poucos na literatura moderna: Aragon, Spender, Day
Lewis, Neruda” (Idem).
Além disso, o rodapé recusa a convicção, muito em voga à época, de
que pelo fato de ser intemporal a poesia não deve “se dirigir aos problemas
presentes da coletividade, pois assim se torna demasiado circunstancial”
(Idem). Candido afirma que a questão reside em saber “até que ponto o
tema, qualquer que ele seja, foi incorporado à sensibilidade do poeta, a
ponto de se tornar poesia – isto é, estilização acentuadamente pessoal de
qualquer impressão, emoção ou ideia por meio de verso” (Idem). Alinhada
aos desafios de seu tempo, a poesia de A voz do grande rio se nutre

novembro 2011 17
Inquietudes da crítica literária militante de Antonio Candido, pp. 41-70

[...] do fato de todo dia, de ontem e agora. Os países que sofreram primeiro de
todos os botes do fascismo são como que os heróis que aparecem a cada poema. A
Abssínia, a Espanha, a China enchem as páginas com a sua dor e a sua paixão. O
poeta sofre e canta com os seus irmãos da terra inteira, num movimento intenso
de fraternidade. Parece que é este sentimento de compromisso moral, obrigação
inelutável de bradar contra a iniquidade, que inflama o poeta e forma a base desse
livro [...] (Idem).

A apreciação, no entanto, não deixa de assinalar ressalvas. Indicando certo


desequilíbrio no livro de Guarnieri – resultado da ausência de “amadureci-
mento suficiente dos temas para que eles encontrem a sua forma própria” –,
Candido chama a atenção para o uso recorrente de recursos como o “slogan,
o dístico quase de propaganda ideológica [que] mutila dolorosamente certos
poemas que, mais pensados e mais depurados, se teriam tornado obras-
primas” (Idem). Assim, “é deste equívoco que acuso o sr. Rossini Camargo
Guarnieri, com tanto mais veemência quanto não se trata de um qualquer,
mas de um poeta de primeira qualidade levado ao discursivismo pela sua
intenção – aliás muito nobre de transformar o seu verso em arma de com-
bate” (Idem). Seja como for, “é um livro que é necessário ler, não só porque
nele se encontram poemas de vigorosa beleza, mas porque representa das
poucas tentativas sérias feitas entre nós no sentido de uma poesia menos
personalista e mais humana” (Idem).
O rodapé “Um poeta impuro”, dedicado ao exame de Poemas – também
publicado em 1944 –, de José Tavares de Almeida, segue na mesma direção.
A crítica inicia com uma lembrança pessoal: a figura do poeta pernambu-
cano discursando – “dando às palavras uma veemência de tribuno antigo”
(Candido, 1944c) – no grêmio estudantil Centro XI de Agosto da Faculdade
de Direito do Largo São Francisco. Na ocasião, Candido teve “a impressão
exata de um último condoreiro, de um líder da Abolição cheio de imagens
e bêbado com o som da própria voz. Nunca mais vi o moço de sotaque
nortista. Não faz muito tempo que soube tratar-se do Sr. José Tavares de
Miranda. Agora, encontro-o num livro de versos, e a lembrança daquela
sessão agitada do XI de Agosto ajuda-me a compreendê-lo melhor” (Idem).
E é justamente o verbalismo do poeta (“um condor mais polido e manso”)
que chama a atenção de Candido. Essa característica relega “para segundo
plano o elemento consciente que em geral leva o poeta a construir o poema,
organizando-o e podando-lhe os brotos excessivos. O nosso poeta aceita a
sua fatalidade oratória e faz bem – porque se ela o torna não raro palavroso

18 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Rodrigo Martins Ramassote

e superficial, lhe dá em troca, as mais das vezes, a eloquência que leva o tema
acima da banalidade” (Idem). Nesse sentido, raramente

[...] o Sr. Tavares de Miranda usa meio tom e nunca se faz o cantor da vida corriqueira
ou pequenina. Os seus temas são simbólicos ou gravemente altíssonos. Poesia para
ele é exaltação antes de compreensão ou ponto de vista. Aborda o tema pelo exterior,
acentuando as qualidades plásticas, as sensações que lhe pode dar, a cor, o som (Idem).

E sustenta:

De minha parte, confesso que o aprecio mais por esta circunstância. Estamos num
tempo em que se exagera bastante, a meu ver, as virtudes de despojamento e pureza
poética. A pureza está longe de ser um ideal artístico absoluto. E mesmo de ideal
humano. Nós todos sabemos o que vai de antivital, de antinatural na concepção
semítico-cristã de castidade – por exemplo, que não passa de um ideal, um corres-
pondente moral da pureza poética. Para ser fecunda, para se realizar, toda pureza deve
começar por renunciar a si mesma, sob pena de ser um significado extremamente
limitado e quase aberrante. E a poesia não escapa à regra. A poesia pura, despida
que se nutre das migalhas do silêncio e soluça por não poder atingi-lo, é a negação
mesma do esforço artístico, se quisermos ver nela a poesia.

Com efeito, Mallarmé e, sobretudo, Verlaine são, nesse momento, as


bêtes noires de Candido. Ele reconhece a importância do Simbolismo francês
“não só pelos valores próprios que manifestou”, mas também porque tornou
possível a “desbragada experimentação do cubismo poético, do surrealismo,
do dadaísmo” (Candido, [1944] 2002h, p. 168). Mesmo assim, ao encerrar
o rodapé sobre José Tavares, o crítico exorta:

Não é possível a arte, e, portanto, a poesia, [a] pureza que esteriliza de certo modo
algumas das expressões mais vivas do homem. Como toda gente, leio Mallarmé e
gosto muitíssimo dele. É dos meus poetas prediletos. Mas não quero, como mui-
ta gente, que todos os seus poemas sejam a poesia – como se pretendeu afirmar
durante certo tempo. Quero os elementos humanos que a tornam comunicativa e
inteligível. Quero palavras que tenham coragem de ser palavras, e não que queiram
23. Posteriormente, a concep-
virar som puro – porque neste caso vou ao concerto. Quero poetas como o Sr. José ção de Candido sobre a poesia
Tavares de Miranda, impuro, cheio de demasias, porque sinto nele um calor de finessecular francesa – e também
sua congênere nacional – irá se
vida nem sempre discernível nas chinoiseries e no vocábulo puro – [coisas], aliás,
modificar, tornando-se mais
mal explicadas (1944c)23. compreensiva (cf. Pires, 2010).

novembro 2011 19
Inquietudes da crítica literária militante de Antonio Candido, pp. 41-70

Deve-se lembrar, no entanto, que Candido foi um dos primeiros a reco-


nhecer o valor literário do estreante João Cabral de Melo Neto. O rodapé
“Poesia ao norte” assinala a construção rigorosa dos poemas e a influência
do surrealismo, dois dos traços que terão longa vida na fortuna crítica do
autor pernambucano. Porém, o crítico não deixa de pontificar que a riqueza
verbal da obra tem como contrapartida “certo empobrecimento humano”:
“O erro de sua poesia é que, construindo o mundo fechado de que falei, ela
tende a se bastar a si mesma. Ganha uma beleza meio geométrica e se isola,
por isso mesmo, do sentido de comunicação que justifica neste momento
a obra de arte” (Candido, [1943] 2002f, p.140).
Como se vê, Candido não padece propriamente de insensibilidade
poética – conforme o acusam seus detratores e seus adeptos o defendem –,
24. Em outra ocasião, ele co- afinal, a grandeza do poeta pernambucano foi, de imediato, assinalada24.
menta: “[João Cabral de Melo
Trata-se, antes, de uma perpectiva que decorre de uma preocupação mais
Neto é] a mais promissora das
estrelas poéticas dos últimos geral com o afastamento dos intelectuais dos conflitos que assolavam o país
tempos [...]” (Candido, [1944]
e o mundo. Num momento de polarização e acirramento ideológico entre
2001-2002, p. 293).
ideários de direita e de esquerda, Candido repele, com veemência, qualquer
forma de absenteísmo ou alheamento dos problemas objetivos que afetavam
25. Em “Antes do Marco zero”, o destino dos homens25.
Oswald de Andrade detecta com
precisão esse aspecto: “Aliás, o Sr.
Se o esforço de neutralizar os aspectos mais salientes desse sectarismo
Antonio Candido é mestre nessas condicionou a organização do material reunido em Brigada ligeira, o perfil
descobertas: a poesia brasileira
começou com Rossini Camargo
da crítica politicamente orientada do autor não foi totalmente relegado.
Guarnieri...” (Andrade, [1943] Mas esse aspecto não esgota a questão. Isso porque a seleção e a reunião
2004, p. 68).
efetuadas por Candido são também um meio de reafirmar a trama entre
áreas de pesquisa e frentes de atuação profissional na qual estava envolvido.
Apreendidos na sequência em que foram dispostos, os artigos de Bri-
gada ligeira revelam um duplo encadeamento: de um lado, uma reflexão
sobre a prosa modernista brasileira; de outro, uma análise sociológica das
transformações sociais – a dinâmica de classes, os impasses dos intelectuais
e o realinhamento ideológico – pelas quais o país passou no decurso das
26. Intuição semelhante, sem décadas de 1920, 1930 e 194026. Subvertendo a ordem cronológica em que
contudo aprofundar o problema,
os rodapés foram publicados, a entrada das análises, em minha opinião, foi
encontra-se em Aguiar (2000).
concebida de modo a formar um panorama do romance modernista nesse
período – bastante apropriado, aliás, tendo em vista as pretensões do crítico
em relação ao concurso da Cadeira de Literatura Brasileira. Conjugando
exame das características internas dos livros avaliados (traços estilísticos,
construção dos personagens, composição e técnica narrativa) e comentários
analíticos sobre as modificações de ordem econômica social e ideológica

20 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Rodrigo Martins Ramassote

do período em curso, Candido institui uma linha de continuidade entre 27. No rodapé “O romance
vendeu sua alma”, publicado no
as obras, na qual a prosa de ficção procurava seu lugar em meio à crescente sexto número da revista Clima,
especialização do trabalho intelectual27. Candido já chamava a atenção
para “o abandono constante e
Num primeiro bloco, composto pelos artigos “Estouro e libertação”28 progressivo, por parte dos artis-
e “Um romancista da decadência”29, Candido observa que os autores exa- tas, do aspecto artístico da sua
obra” diante da concorrência com
minados não conseguem se desgarrar dos influxos estilísticos e ideológicos os principais meios de comuni-
dos anos de 1920. Enquanto José Geraldo Vieira causa a impressão de não cação de massa e da tendência
a adentrar em “campo alheio
ter sido incomodado pela renovação promovida pelo romance de 1930, o e receber as mais disparatadas
primeiro volume do ciclo Marco Zero de Oswald de Andrade fracassa porque transfusões. Filosofia, sociologia,
política, estética – todas estas e
a técnica pontilhista utilizada não se coaduna à proposta de romance mural.
muitas coisas mais constituem o
Em que pese a distância que separa o cosmopolitismo do primeiro – “su- verdadeiro recheio da boa ficção

prema afirmação literária” das classes dominantes, alheada dos problemas contemporânea” (Candido,
1941b).
nacionais e sustentada por uma economia agrária voltada para o mercado
28. O artigo examina a pro-
internacional – do misto de intenção ideológica avançada e realização dução romanesca de Oswald
passadista do segundo, a técnica literária excessivamente intelectualista de de Andrade e foi suscitado
pela publicação de A Revolução
ambos expressa a cosmovisão de uma burguesia que se via mergulhada no melancólica em 1943.
cosmopolitismo litorâneo do Encilhamento e confrontada pelos primeiros 29. Leitura de A quadragésima
movimentos de contestação à sociedade capitalista em início de decadência30. porta, romance de José Geraldo
Vieira também publicado em
No centro do livro estão três artigos dedicados aos principais representan-
1943.
tes do romance de 1930. Ao abandonar a representação pitoresca e exótica
30. 1922 é ano de fundação do
das camadas populares – mero objeto de contemplação estética – em favor Partido Comunista, de realização

de um retrato sensível de sua realidade objetiva e complexidade humana, da Semana de Arte Moderna em
São Paulo e das primeiras revoltas
essa geração inaugura “o romance brasileiro”31. Nesse sentido, os principais tenentistas. Esses eventos foram
escritores dessa geração “vão viver menos obsessivamente voltados para a registrados no estouro da prosa
experimental e satírica do par
Europa; vão aceitar o povo, realizando e dando sentido humano ao pro- Memórias sentimentais de João
grama estético dos rapazes de Vinte-e-Dois” (Candido, 1992c, p. 47). Essa Miramar, de 1922, e Serafim
Ponte Grande, de 1933.
conscientização é concomitante à aceleração das transformações econômicas
31. É bastante significativa a
e sociais operadas no meio rural e operário, que tende a integrar as grandes quase completa ausência de inte-
massas da população à vida moderna: resse pelo romance introspectivo,
apesar da publicação de obras
importantes entre os anos de
[...] a força do romance moderno foi ter entrevisto na massa, não assunto, mas 1942 e 1944: Inácio (de Lúcio
Cardoso), O lodo das ruas e O
realidade criadora. Os escritores aprenderam, no sentido pleno, com os trabalha-
anjo de pedra (ambos de Octávio
dores de engenho, os estivadores, os plantadores de cacau, os operários de fábrica. de Farias) são alguns exemplos.
Através dos livros, toda essa massa anônima criou, de certo modo, transfundindo Em depoimento recente sobre
Mário de Andrade, Candido
o seu vigor e a sua poesia na literatura europeizada da burguesia (Idem, p. 48). comenta episódio – uma con-
versa com o escritor paulista e
Fernando Sabino (de passagem
Aferrados às narrativas de cunho marcadamente social, denunciando por São Paulo), em que ambos
as mazelas e as injustiças que acometiam as realidades locais e regionais, defendiam o mérito literário

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de Octávio de Faria –, no qual incorporando ao gênero categorias e tipos sociais até então relegados pelos
teria dito que os romances do
ciclo burguês eram “prolixos” “escritores burgueses”, a geração de romancistas de 1930 empreendeu a “va-
e não questionavam a “ordem lorização do povo”, incorporando-o ao nosso “patrimônio estético e ético”
burguesa”: “Eles não tiram o sono
de Roberto Simonsen” (Candido,
(Idem). Combinando de forma equilibrada a denúncia social – as condi-
2008, p. 50). ções aviltantes dos trabalhadores da zona cacaueira da Bahia, a decadência
dos engenhos da zona da mata do Nordeste e as vicissitudes das camadas
médias urbanas das grandes capitais, por exemplo – com o pleno domínio
dos meios de expressão literários, as obras maduras de Jorge Amado (Terras
do sem fim), José Lins do Rego (Fogo morto) e Érico Veríssimo (O resto é
32. Nessa disposição sequencial silêncio)32 representam, ao que tudo indica, o ideal de romance almejado por
é possível divisar a transição do
escritor de engajamento político
Candido. Deixando de lado, nos três casos, os esquematismos e a qualidade
mais declarado para o de convic- duvidosa de parte das obras anteriores, as realizações literárias analisadas
ções mais discretas e ambíguas.
revelam a síntese feliz operada por cada autor: em Jorge Amado, a dialética
entre documento e poesia; em José Lins do Rego, a tensão entre a nostalgia
e o inconformismo social referente ao universo decadente de sua região; em
Érico Veríssimo, oscilação entre a representação da psicologia diferencial
das classes sociais e o destino individual de seus membros.
No terceiro e último bloco – iniciado, significativamente, por “Estraté-
gia” – a atenção se volta para as experiências literárias surgidas no começo
de 1940. Realizando a passagem dos veteranos do romance de 1930 para
os jovens estreantes do decênio seguinte, a análise do romance de estreia de
Ciro dos Anjos, O amanuense Belmiro – originalmente lançado em 1937
(ano de instauração do Estado Novo) – representa um marco fronteiriço,
demarcando um antes e um depois na trajetória evolutiva da prosa de ficção
do período. Não constituindo um lançamento literário, Candido justifica a
decisão de abordá-lo com uma referência à distinção formulada por Almeida
Salles entre escritores táticos (que se valem do impulso criativo) e estrategistas
(que concebem o ato criativo como um “afloramento definitivo de um largo
trabalho anterior”), para anunciar que ao ler o artigo lembrou-se imediata-
mente de Ciro dos Anjos: “um dos maiores dentre os poucos estrategistas da
literatura brasileira contemporânea” (Candido, 1992d, p. 79). Não deixando
33. Sobre esse assunto, ver No-
bile (2005). Deve-se lembrar que de elogiar a beleza, a elegância e o equilíbrio da prosa do escritor mineiro, nem
a narrativa se passa em 1935, ano tampouco de abordar a influência machadiana e a relação entre autobiografia
da formação, crescimento e fe-
chamento da Aliança Nacional
e romance – aspectos destacados na recepção imediata da obra33 –, a atenção
Libertadora (ANL), e da Intento- de Candido retém-se no processo mais geral e nos responsáveis pela defecção
na Comunista (cf. Bueno, 2006,
p. 551).
por que passa a intelectualidade após a implantação do regime ditatorial de
34. A esse respeito, ver o terceiro
Vargas. Burocrata lírico, imerso na malhas do serviço público 34, Candido
capítulo de Miceli (1979). vislumbra na postura de Belmiro

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[...] o destino do intelectual na sociedade, que até aqui tem movido uma conspi-
ração geral para belmirisá-lo, para confiná-lo nas esferas em que seu pensamento,
absorto nas donzelas Arabelas, nas Vilas Caraíbas do passado, na autocontempla-
ção, não apresenta virulência alguma que possa pôr diretamente em xeque a ela,
sociedade organizada. Criando-lhes condições de vida mais ou menos abafantes,
explorando metodicamente os seus complexos e cacoetes, os poderosos desse mundo
só o deixam em paz quando ele se expande nos campos geralmente inofensivos
da literatura personalista, ou quando entra reverente no seu séquito (Idem, p. 84)

Pelo que se pode depreender do argumento de Candido, as estruturas


opressivas de poder insulam os intelectuais em meros exercícios de autocon- 35. Embora não ressurja nos
demais artigos, a impressão que
templação e são responsáveis pela linha excessivamente personalista que se tem é que Candido associa o
passa a dominar o panorama literário do início dos anos de 194035. Por força avanço da literatura introspectiva
ao abafamento político causado
dessas estruturas ocorre uma radical separação entre preocupações estéticas
pelo Estado Novo, o que, em
e político-sociais, “rompendo a coexistência relativamente harmoniosa que certa medida, não deixa de cor-
responder aos fatos. No já citado
tinha assegurado o amplo movimento do decênio de 30” (Candido, 2000b,
estudo de Bueno, a compreensão
pp. 116-117). do assunto se amplia, mostrando

É nesse contexto intelectual e político que a obra de autores estreantes que o arrefecimento do romance
social (ou proletário) em detri-
é lida. Singularizada pelo predomínio do romance introspectivo, desligada mento das tendências intimistas
do meio social envolvente e pairando no jogo desinteressado da inteligência, deveu-se tanto à incapacidade
de renovação do gênero como
a narrativa revelada nesse período reflete as agudas contradições sociais e a ao realinhamento ideológico
crise de consciência que marcariam o fim da civilização burguesa36. Com- provocado pela instauração do
Estado Novo. Sobre a relação
parada à imagem do peru hipnotizado e paralisado, a ficção autocentrada entre intelectuais e o mercado de
e ensimesmada dentro do “círculo magnético do próprio eu” de A marca, postos públicos e privados entre
1920 e 1945, ver Miceli (1979).
de Fernando Sabino, padece da paralisia vital que impede a transformação
36. No rodapé “Esclarecendo”,
do “conflito em solução dinâmica do progresso” (Candido, 1992e, p. 89).
datado de 9 de junho de 1944, tal
Nesse sentido, questão se torna explícita: “devi-
do ao desenvolvimento das suas
contradições internas, a burguesia
[...] num tempo como o nosso, a linha excessivamente personalista do romance entrou em crise e, com ela, as suas
aparece, não raro, como defesa das posições já gastas da inteligência e da sociedade. ideologias. Nada mais natural
que a crise se manifestasse no
Numa última palavra – e usando termos rebarbativos, pelos quais me desculpo –, romance, um dos instrumentos
se opõe ao desenvolvimento dialético da personalidade e da sociedade, procurando mais autênticos destas [...]. Anar-
quizado, escapando aos quadros
brecar o vir a ser por meio do prolongamento indefinido das oposições do ser e do que o contiveram cerca de dois
não-ser. Nisto não vai um julgamento de valor estético, mas antes histórico, em séculos, atirando-se à busca de
novos campos, numa aventura
relação à literatura personalista, setor que, justamente por ser reflexo dos conflitos
que é das mais grandiosas da
do nosso tempo, tem sido dos mais brilhantes da literatura deste fim de civilização história literária, o romance é
bem reflexo da crise estrutural
burguesa (Idem, p. 92).
e ideológica da burguesia [...]”
(Candido, 2000-2001, p. 189).

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Do mesmo modo, O agressor, de Rosário Fusco, constitui um exemplo


indicativo da consciência burguesa em crise: “desvairada ante o divórcio cada
vez mais pronunciado entre as suas ideologias e a sua significação social”
(Candido, 1992f, p. 107). Tal como a avaliação da produção romanesca
de Érico Veríssimo, o romance de estreia do escritor de Cataguases suscita
comentários sobre a assimilação de correntes literárias estrangeiras. Embo-
ra Candido constate que os recursos técnicos utilizados por Veríssimo se
inspiram em autores estrangeiros (especialmente os ingleses), a linguagem,
os temas, os personagens e os sentimentos expressos em sua obra seriam
“essencialmente brasileiros”. Ao contrário do que sucede com a obra do escri-
tor gaúcho, Candido não reconhece no romance de Fusco uma assimilação
efetiva das correntes super-realistas surgidas na Europa. Daí o caráter de
exercício assumido pelo livro: “tentativa de transplantar a planta estrangeira
para a terra pátria”. (Idem, p. 106).
Com efeito, são poucas as análises de literatura estrangeira produzidas
por Candido. Talvez o romance Monsieur Ouine, de George Bernanos, seja
37. Não se deve esquecer que o principal representante desse filão37. Além, é claro, do desafio estético
os três últimos rodapés redigidos
que o romance impunha à recepção crítica38, é provável que a decisão de
por Candido enfocaram a obra
poética de T. S. Eliot, outro nome incluir “Paixão dos valores” em Brigada ligeira tenha ocorrido em função
de peso no cenário literário mun-
do renome do escritor francês, então refugiado no Brasil. Católico con-
dial. Ocorre que, de um lado, a
diretriz adotada pelo livro excluiu sagrado, monarquista e antitotalitário, Bernanos residiu entre os anos
as apreciações de poesia e, de de 1938 e 1945 em pequenas cidades do interior do Rio de Janeiro e de
outro, o conteúdo dos artigos era
“deliberadamente informativo” Minas Gerais. Nessa estadia, escreveu livros panfletários e artigos de jornal
(cf. Candido, 2000c). Devo essa condenando a ascensão dos regimes nazi-fascistas e a política colaboracio-
indicação a Vinicius Dantas, em
conversa pessoal.
nista adotada por Vichy na França, e pregando um catolicismo sensível às
38. Sobre a recepção crítica do
questões sociais.
livro no país, ver Almeida (2000). Lançado primeiramente no Brasil – onde sua redação foi concluída –,
Monsieur Ouine recebeu uma avaliação elogiosa de Candido. De acordo com
o crítico, numa conjuntura marcada pela “paixão dos valores”, o retrato da
pequena aldeia francesa traçado por Bernanos exprime a obsolescência dos
princípios valorativos que até então sustentavam os alicerces da civilização
do Ocidente. No comportamento doloroso dos personagens, perdidos em
uma situação de incerteza e desagregação, percebe-se o equilíbrio instável
das condutas: “o indivíduo como que solicitando perigosamente as mais
desencontradas possibilidades, numa verdadeira aposta, consigo próprio e
com a vida, para a eleição de novos valores – aposta que pode levar à sal-
vação ou à perdição irremissível” (Candido, 1992g, p. 113). Trata-se, pois,
de “um dos romances capitais de nosso tempo, como uma grande obra que

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é necessário ler, pelo que tem de permanente no seu sentido apocalíptico e


no seu admirável estilo” (Idem, p. 117).
Eis o modo como Candido encerra sua apreciação de Monsieur Ouine
e, também, Brigada ligeira. Juízo significativo para se refletir tanto acerca
de uma civilização em vias de reconstrução após um sangrento conflito ar-
mado mundial como sobre um país que começava a dar adeus a uma longa
ditadura rumo ao futuro ainda incerto.
Em fins de janeiro de 1945, Candido se demite do cargo de crítico literá-
rio titular do jornal Folha da Manhã em solidariedade aos companheiros de
redação39. Ao mesmo tempo, participa ativamente do I Congresso Brasileiro 39. Sacchetta comenta o caso:
“Certo dia o Octaviano Alves de
de Escritores, marco na contestação ao regime de Vargas, já em franco de-
Lima [fazendeiro ligado ao co-
clínio. Oito meses depois ele voltará às páginas da grande imprensa, dessa mércio de café e proprietário da
Folha da Manhã Ltda. de 1931
vez assumindo a coluna “Notas de crítica” no Correio de S. Paulo, veículo
a 1945] apareceu na redação para
no qual permanecerá pelos dois anos seguintes. me comunicar um fato impor-
Grande parte dos rodapés escritos por ele no período permaneceu inédita. tante: havia vendido o jornal.
Vendera para um grupo liderado
Elaborados numa etapa de indefinição profissional, em que se entrelaçam o por Costa Neto. O dr. Nabatino
ativismo político e as atribuições da Cadeira de Sociologia II, esses escritos Ramos, que faria parte do escritó-
rio de Costa Neto, iria assumir a
instauram uma série de princípios analíticos, adesões ideológicas, predile- direção da empresa. Respondi ao
ções estéticas e intersecções disciplinares. Constituem, assim, um quadro de Octaviano que as ‘Folhas’, tam-
bém naquele momento, acaba-
referências e reflexões que, em suas linhas gerais, se projeta pelo restante da vam de perder seu secretário-geral
produção intelectual do autor, mesmo que de modo atenuado, reformulado [...]. O fato é que eu sai e comigo
saíram mais de 50 companhei-
ou então subentendido.
ros. Fundamos um novo diário,
o ‘Jornal de S. Paulo’, financiado
pelo grupo da rádio Record [...]”
(Sachetta, 1981, p. 325).
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Resumo

Inquietudes da crítica literária militante de Antonio Candido

Este artigo examina os rodapés de crítica literária assinados por Antonio Candido na
coluna “Notas de crítica literária” do jornal Folha da Manhã, entre os anos de 1943 e
1945. Busca correlacionar a perspectiva analítica defendida pelo crítico com a militância
política em pequenos agrupamentos de esquerda e as atribuições de professor-assistente
da Cadeira de Sociologia II. Ao final, aborda o livro de estreia do autor, Brigada ligeira,
identificando os critérios que presidiram a seleção e a reunião de seu conteúdo. Tais
critérios guardam afinidade com as frentes de atuação e os princípios doutrinários
assumidos por Candido no período.
Palavras-chave: Antonio Candido; Crítica de rodapé; Militância política; Brigada ligeira.

Abstract

The disquiet of Antonio Candido’s activist literary criticism

This article examines the footnotes of literary criticism authored by Antonio Candido
in the column ‘Notes of literary criticism’ in the newspaper Folha da Manhã between
1943 and 1945. It looks to correlate the analytic approach pursued by the critic with his
political activism in small left-wing groups and his responsibilities as assistant professor
of Sociology Chair II. Finally, the text examines the author’s first book, Brigada ligeira
(Light brigade), identifying the criteria involved in the selection and organization of the
included essays. These criteria are closely associated with the political and professional
activities and theoretical principles adopted by Candido during the period.
Keywords: Antonio Candido; Footnote critique; Political activism; Brigada ligeira.

Texto recebido e aprovado em


30/7/2011.

Rodrigo Martins Ramassote é


doutorando pelo Departamento
de Antropologia Social do IFCH-
Unicamp e técnico do Instituto
do Patrimônio Histórico e Ar-
tístico Nacional (Iphan). E-mail:
<ramassote@hotmail.com>.

30 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Um crítico no redemoinho
Flávio Rosa de Moura

O estudo Ao vencedor, as batatas, que inaugura a opção do crítico Roberto


Schwarz de estudar a obra de Machado de Assis, foi publicado em 1977.
Em 1990, saiu seu segundo trabalho a respeito, Um mestre na periferia do
capitalismo, destinado à discussão das Memórias póstumas de Brás Cubas. No
intervalo entre essas duas publicações, e mais intensamente a partir dos anos
de 1990, as interpretações da obra de Machado feitas por Schwarz traçam
uma linha divisória no campo da crítica literária brasileira. Pela repercussão
que obtiveram, elas reorganizam o debate em torno da literatura no país
e são, por esse motivo, uma linha privilegiada para guiar o olhar sobre a
crítica do período.
Parte expressiva dos críticos literários, das extrações mais diversas,
tomou posição sobre o trabalho. Nas adesões mais entusiasmadas ou nas
invectivas mais ácidas, o que importa registrar é a impossibilidade de
não tomar conhecimento da novidade, num processo que, examinado
com vagar, ajuda a revelar um mapa de tendências expressivas do debate
literário nos anos de 1980 e 1990 no país, cujos ecos seguem audíveis. As
dissensões dizem respeito não apenas a uma disputa pela interpretação
legítima da obra de um autor central para o cânone como Machado, mas
também repõem conflitos e diferenças que remontam a gerações anteriores
de críticos e sedimentam a diferença entre caminhos interpretativos que
vão aos poucos assumindo a feição de correntes rivais. Como questão de
Um crítico no redemoinho, pp. 71-99

fundo e eixo das diferenças, seja quando Machado está explicitamente em


pauta, seja quando as polêmicas remetem a temas diversos, está a validade
da matriz sociológica como parâmetro de interpretação da literatura.
Ao vencedor, as batatas estuda as origens do romance brasileiro à luz da
relação entre a forma do romance moderno e uma sociedade pautada pelas
exigências do sistema colonial. O argumento tenta traçar os pontos de con-
tinuidade entre José de Alencar e os romances da primeira fase de Machado
de Assis, apontando a singularidade de Machado sem deixar de reconhecer
a dívida com Alencar. Mas é o ensaio de abertura do livro, “As ideias fora
do lugar”, que lhe garantiu posição de destaque. Síntese do trabalho de uma
geração de intelectuais que renovou a interpretação da história do Brasil, o
texto, de apenas treze páginas, procura iluminar não apenas a obra de Ma-
chado de Assis, mas as particularidades e o destino de uma nação periférica
na ordem internacional – o Brasil –, formada na convivência contraditória
entre capitalismo e escravidão. É interessante registrar como as referências
ao livro têm como foco sempre o ensaio de abertura – os nexos sugeridos
entre Alencar e a primeira fase de Machado raramente ocupam o proscênio
do debate.
Um mestre na periferia do capitalismo dá continuidade ao enfoque, desta
vez tendo como objeto a obra machadiana da maturidade. Para tanto, o
crítico retoma, em outro contexto, a hipótese da “redução estrutural” pro-
posta no estudo de Antonio Candido sobre as Memórias de um sargento de
milícias. Para Schwarz, o burguês ocioso brasileiro era um tipo instável. Os
conteúdos ideológicos do período de Machado, em seu entender, encontram
equivalente literário no “narrador volúvel” das Memórias póstumas, cuja
oscilação é a expressão maior de sua face autoritária. A forma livre, que
Machado reconheceu por seu modelo na feitura do romance, aparece como
variante literária da ideologia entre patriarcal e burguesa do Brasil Império.
Ambos os livros atualizam a obra de Antonio Candido e parecem avan-
çar em relação ao ponto onde Candido parou na Formação da literatura
brasileira. O projeto é deliberado por parte de Schwarz, que se assume
como epígono e é o principal depositário do legado de Candido, como
se sua obra cristalizasse e levasse adiante um conjunto de premissas que
se tornaram sinônimo de uma forma de olhar a literatura que se tornou
hegemônica, a julgar pela quantidade e variedade de reações que suscita e
pelos pontos estratégicos onde pôde se institucionalizar e se propagar, caso
dos departamentos de Teoria Literária da Universidade de São Paulo e da
Universidade de Campinas, ambos criados por Candido. Os trabalhos sobre

2 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Flávio Rosa de Moura

Machado realizados por Schwarz tornaram-se a expressão máxima de uma


vertente da crítica que passou a ocupar um espaço incontornável nas últimas
décadas e são a guia para entender uma disputa por legitimidade que, vista
com as devidas ressalvas, contribui para tornar mais nítidos os contornos
da produção crítica recente no Brasil.

O debate velado de Alfredo Bosi

No ensaio “Por um historicismo renovado: reflexo e reflexão em história


literária”, publicado em 2002, Alfredo Bosi procura traçar, do romantismo
até a contemporaneidade, as tentativas no Brasil de se criar um “historicismo
aberto, largo e profundo, que saiba fundar conceitualmente uma história da
literatura como história das obras literárias” (Bosi, 2002, p. 9). Para isso, faz
um apanhado sucinto dos principais dilemas que dividiram a historiografia
literária brasileira e tempera as dissensões com juízos sobre a maior ou menor
fecundidade crítica em cada caso.
Reposto de modos diferentes conforme o momento histórico, o dilema
aparece sempre como uma questão de buscar a síntese possível entre a obra
literária como produto do contexto e como individualidade irredutível. A
questão está posta na epígrafe, tomada à História da literatura ocidental, de
Otto Maria Carpeaux:

A literatura não existe no ar, e sim no Tempo, no Tempo histórico, que obedece ao
seu próprio ritmo dialético. A literatura não deixará de refletir esse ritmo – refletir,
mas não acompanhar. Cumpre fazer essa distinção algo sutil para evitar aquele erro
de transformar a literatura em mero documento das situações e transições sociais.

Já no primeiro parágrafo, o ponto reaparece. Bosi abre seu texto com


uma referência a Gustave Lanson (1857-1934), autor da Histoire de la lit-
térature française, de 1894. Ressalta sua surpresa com o prefácio desse livro,
em que o historiador francês insiste no caráter singular da obra de arte e
na necessidade de compreender os autores em sua individualidade num
momento em que, na França, predominavam os determinismos da leitura
positivista. O restante da obra, contudo, estaria mais de acordo com o es-
pírito da época, visto que Lanson adere, por exemplo, à prática de buscar
as origens da literatura francesa na descrição dos caracteres da raça, entre os
quais “a falta de paciência ou de tenacidade”, ou o “gosto da eloquência”.
Bosi aproveita para citá-los, pois julga-os próximos de traços atribuídos aos

novembro 2011 3
Um crítico no redemoinho, pp. 71-99

brasileiros por teorias do caráter nacional que nem sempre seriam vistas com
o devido matiz. “Ainda repetimos às vezes automaticamente as definições
prestigiosas que dele fizeram Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda,
acreditando que ambos tenham descoberto peculiaridades nossas, e apenas
nossas” (Idem, p. 8).
O passo seguinte do argumento é apresentar o impasse entre literatura
e sociedade nos moldes em que estava dado na segunda metade do século
XIX no Brasil. Bosi lembra que, nesse momento, predomina no país o
historicismo nacionalista. Derivada de uma noção romântica de literatura,
essa concepção adota o critério histórico de representatividade de autores
e obras como medida de valor, e, de acordo com o autor, já conteria, em
germe, o historicismo sociológico “que o século XX herdou do positivismo
e do evolucionismo” (Idem, p. 11). Representantes dessa linhagem seriam
Sílvio Romero, que preferia o nacionalista Alencar ao “pessimista” Ma-
chado; José Veríssimo, que condenava a falta de cor local no naturalismo
e no realismo; e Araripe Jr. Este último, embora não tenha escrito uma
história literária exaustiva, mas ensaios, estaria menos contaminado pelos
determinismos contidos nesse enfoque por trabalhar com a ideia de “estilos
individuais”, que seriam a resultante entre o temperamento do autor e as
forças modeladoras do meio. Sua obra, de acordo com Bosi, “representava
uma tentativa de contornar o impasse de determinismo (racial e social) e
expressão pessoal”. Importa frisar esse ponto porque, na visão do autor, já
estariam dados aí os pontos centrais que seriam o mote para o debate crítico
no século que viria. Como afirma Bosi,

[...] o impasse foi reproposto pela historiografia do século XX, herdeira das sínte-
ses de Romero e de Veríssimo. Enfrentaram-se posições radicalmente adversas ao
longo dos anos modernistas, os quais, por sua vez, conheceram os dogmatismos
extraestéticos da Direita e da Esquerda. E vieram mais tarde os conflitos recorrentes
entre historicistas e formalistas de cujas refregas somos ainda hoje testemunhas (Idem,
p. 20, grifos meus).

Nos decênios seguintes, apesar dos bons resultados obtidos pelo ensaísmo
de Augusto Meyer e Álvaro Lins, ambos críticos egressos do modernismo,
Bosi afirma que a “gangorra tendeu para o outro lado”, e, no campo da
historiografia literária, ganharam força os estudos formalistas. O principal
nome dessa tendência seria o de Afrânio Coutinho, que pregava, em meados
dos anos de 1950, a prática de uma nova crítica, empenhada em ver nas

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Flávio Rosa de Moura

obras mais sua qualidade estética do que fatores históricos ou biográficos,


tidos por externos à criação literária. Apesar do empenho do crítico, Bosi
afirma que os resultados foram “magros”. Como indicariam os seis volumes
cuja edição Coutinho coordenou – A literatura no Brasil –, ele teria ficado a
meio caminho entre o estético e o histórico, sem se aprofundar em nenhum
dos campos. Isso não impediu, continua Bosi, que, nos anos de 1960 e
1970, o formalismo tomasse conta dos estudos universitários. A questão
fica mais clara posta nos termos do autor: “Para o estruturalismo de estrita
observância, a ‘série literária’ corre paralela à ‘série histórico-social’. Esta seria
apenas ‘interessante’, mas, como dizia jocosamente um corifeu concretista,
‘não interessa’” , escreve Bosi. “A distinção de fatores externos e internos foi
absolutizada e rotinizada na pedagogia das Letras criando um campo, aliás
estéril, de áridas polêmicas entre os cultores da diacronia e os paladinos da
sincronia” (Idem, p. 29).
Ao fim de seu texto, o crítico elege dois livros que, pouco antes dessa
voga formalista, teriam conseguido apresentar sínteses proveitosas do impasse
entre estética e história, e, assim, praticar um historicismo “largo e profun-
do”, tal como apregoado no início: História da literatura ocidental, de Otto
Maria Carpeaux, e Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido.
Ambos os livros, no entender de Bosi, lançariam mão de várias mediações
que impedem que categorias de sociedade e de nação penetrem no tecido da
linguagem de modo mecânico ou esquemático. Em Carpeaux, Bosi elogia
a capacidade de identificar nos grandes textos literários não só a apresen-
tação da cultura hegemônica, mas também os elementos de dissonância, o
“gesto resistente da diferença e da contradição” (Idem, p. 36). A literatura
para ele, portanto, não seria apenas o reflexo das estruturas dominantes,
mas um campo de tensões em que o estilo individual se constrói a partir do
espelhamento ou da negatividade da relação entre o escritor e a sociedade.
Daí derivaria a proximidade entre os autores e a tradição estilística, ou sua
capacidade de operar inovações.
Em Candido, Bosi aponta uma dupla concepção de historicidade,
derivada da convivência, na mesma obra, da sociologia positiva e da visão
dialética. Ele considera a segunda visada mais “promissora e fecunda”, pois
impediria que a noção de sistema nivelasse os escritores por baixo, sufo-
cando assim a singularidade das obras artísticas. Por esse mesmo motivo,
considera pontos altos da Formação as análises de autores e obras, capazes
de plasmar os traços psicológicos dos escritores e as formas esteticamente
relevantes e articuladas. Nessas passagens, acredita Bosi, “o crítico faz sem

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Um crítico no redemoinho, pp. 71-99

alardear o que outros alardeiam sem fazer” (Idem, p. 42). É também essa a
razão da manifesta preferência de Bosi por um livro como Tese e antítese, em
que Candido praticaria um historicismo cultural dilatado, aberto a leituras
biográficas e existenciais, a uma obra como Literatura e sociedade, em que
enxerga um aspecto esquemático decorrente do didatismo e dos problemas
metodológicos que o autor se dispõe a enfrentar.
É possível depreender uma série de inferências a partir da montagem
argumentativa do texto de Alfredo Bosi, todas mais ou menos derivadas de
sua rejeição aos determinismos que considera próprios do enfoque socioló-
gico. Apesar de se apresentar como um ensaio sobre a história das histórias
literárias feitas no Brasil, o texto pode ser visto como uma reflexão sobre
o historicismo, sobre como praticá-lo sem cair numa relação esquemática
entre literatura e sociedade. O conteúdo da epígrafe tomada a Carpeaux e o
próprio elogio a Lanson que abre o texto já indicam essa possibilidade. Da
mesma maneira, a posição de destaque que o ensaio ocupa no livro – além
de ser o maior texto, foi também o escolhido para abrir a coletânea – dá
indícios da importância que o autor atribui à sua tomada de posição sobre
o problema.
Pode ser temerário sugerir discussões veladas em que a questão não está
formulada de modo explícito, mas breve exame da obra de Bosi sugere que
não faz parte de seu procedimento enunciar seus interlocutores. Em rese-
nha sobre a Dialética da colonização (cf. Schwarz, 1999a, p. 81), Roberto
Schwarz lembra que Bosi monta sua interpretação de Gregório de Mattos
indicando de passagem as diferenças com as demais, mas não cita nenhum
nome, deixando no ar um debate virtual que, segundo Schwarz, valeria a
pena ativar.
É o caso de notar as implicações da escolha de Candido e Carpeaux como
exemplos de críticos praticantes do historicismo largo e profundo que Bosi
reivindica para a crítica brasileira. A opção por Candido, em que pese a
força de sua inserção no campo e a capilaridade de sua obra, mostra-se ainda
um modo de Bosi estabelecer novo “debate virtual” e, ao que tudo indica,
o interlocutor seria o mesmo Roberto Schwarz. Ao explicar o método de
redução estrutural enunciado por Candido em Literatura e sociedade, Bosi
detém-se na análise de um trecho de Senhora. Procura inserir o livro no
contexto das ideias românticas de José de Alencar, que julgava moralmente
a situação de utilitarismo retratada no livro (o casamento por dinheiro) e
aspirava, idealisticamente, a converter seus personagens em almas nobres. O
objetivo é distingui-lo de Machado de Assis, que, antirromântico por exce-

6 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Flávio Rosa de Moura

lência, jamais aspiraria a operar tal redenção. “Pouco se ganha, no caso, ao


forçar a nota das continuidades de assunto rastreáveis de Alencar a Machado,
quando o núcleo vivo da ficção se constrói pela perspectiva e se realiza pela
estilização, e em ambas é a diferença que avulta, e não a semelhança”, escreve
Bosi. Cumpriria lembrar que é justamente essa continuidade que Schwarz
defende em Ao vencedor, as batatas. Mas, mais uma vez, Bosi não cita nomes.
Isso muda em 2006, com a publicação de Brás Cubas em três versões:
estudos machadianos. O livro reúne três ensaios do professor Bosi sobre
Machado, oriundos de cursos na pós-graduação que ministrara em anos
anteriores. E o primeiro deles, homônimo ao livro, constrói-se em boa parte
como resposta à leitura empreendida por Schwarz em Um mestre na periferia
do capitalismo. Quem teve a oportunidade de assistir aos cursos de Bosi sobre
Machado na pós-graduação em fins dos anos de 1990, começo dos anos
2000, lembra-se como as aulas se construíam em diálogo constante com as
interpretações sociológicas da obra de Machado, tidas como horizonte do
qual era preciso marcar distância para preservar a complexidade da obra. O
livro condensa e cristaliza esse ponto de vista.
Segundo Bosi, o trabalho de Schwarz está inteiramente norteado pela tese
de que a composição das Memórias imita a estrutura da sociedade brasileira
do século XIX, marcada pela coexistência de escravidão e liberalismo. Nos
termos dele:

Para tanto, o crítico retoma, em outro contexto, a hipótese da “redução estrutural”


proposta e discretamente adotada no estudo antológico de Antonio Candido sobre
as Memórias de um sargento de milícias. Para Schwarz, o burguês ocioso brasileiro
seria um tipo instável, pois, por hipótese, viveria em uma sociedade disparatada
senão absurda: logo, Brás saiu um tipo arbitrário e volúvel. Os conteúdos ideológicos
supostos acabam fixando e qualificando os movimentos psicológicos do narrador
e de suas personagens. Seguindo a mesma lógica do externo que vira interno, a
forma livre, que Machado reconheceu por seu modelo na feitura do romance,
explica-se como uma variante literária da ideologia entre patriarcal e burguesa do
Brasil Império encarnada na personagem Brás Cubas, que desempenharia assim
uma função típica na fronteira com a alegoria (Bosi, 2006, p. 43).

Bosi reforça os laços entre Schwarz e Candido, mas sugere que o primeiro
é uma versão menos sutil do segundo. A redução estrutural que Candido
aplica com “discrição” em seu estudo “antológico” sobre o livro de Manuel
Antonio de Almeida aparece, nos estudos machadianos de Schwarz, de

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Um crítico no redemoinho, pp. 71-99

forma mecânica e causal. Bosi não usa esses termos, mas o sentido é este: a
transposição entre os conteúdos ideológicos do liberalismo à brasileira do
século XIX encontra correspondência direta nos movimentos do narrador
das Memórias póstumas, num processo em que se perdem de vista dimen-
sões decisivas da complexidade de Machado de Assis. “A redução estrutural
assumida, pela qual o andamento do texto romanesco imita o movimento
ideológico de uma determinada classe, revela-se insuficiente para dar conta
da variedade e ousadia da teia compositiva e estilística” (Idem, p. 45).
Até esse ponto a crítica de Bosi não fica distante dos argumentos em
geral disparados contra o viés “sociológico” de interpretação, com a dife-
rença de que procura preservar Candido, capaz em seu entender de praticar
uma redução estrutural mais sutil, sem o reducionismo que identifica em
Schwarz. Com isso, poupa Candido, cujo papel fundador e de liderança
ele reconhece, instaurando-se em alguma medida como seu herdeiro, incli-
nação que se nota no modo como se refere a Candido e Carpeaux no texto
sobre o historicismo literário. A ojeriza de Bosi ao sociologismo, assim, é
a mesma praticada pelos demais detratores, mas recai com exclusividade
sobre Schwarz.
A novidade maior da crítica de Bosi, contudo, não está apenas na marca-
ção de distância da sociologia, mas na insinuação, essa mais surpreendente, de
que é impreciso o arcabouço histórico de que Schwarz se vale. Bosi defende a
existência de formas diferentes de liberalismo ao longo do século XIX brasi-
leiro que invalidariam a possibilidade de traçar uma ideologia uniforme para
as camadas dominantes do Brasil no período. Havia noções conflitantes de
liberalismo – e esse é o traço que, segundo Bosi, teria escapado a Schwarz.

Quanto ao nexo histórico entre liberalismo e conservação do trabalho escravo (de


resto vigente em todas as formações sociais baseadas na economia de plantagem),
convém levar em consideração a existência de dois liberalismos em conflito, sobre-
tudo a partir dos anos 1860 – o que retifica o teor supostamente homogêneo da
ideologia liberal (Idem, p. 46).

Eis o ponto mais forte de sua crítica: Bosi joga no campo do adversário,
sugerindo lacunas de conhecimento histórico no trabalho de um crítico
historicista por definição. Mas há uma tensão curiosa no modo de expor
a crítica. Como no texto sobre o historicismo, em que o debate aparece
de forma velada, nesse ensaio sobre Machado parece haver a disposição de
não conferir espaço exagerado a Schwarz e manter diálogo equilibrado com

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Flávio Rosa de Moura

diversos interlocutores. Mas não há como negar que a tese do colega sobre
as ideias fora do lugar é o ponto de origem de sua reação e seu alvo por
excelência. Bosi dedica uma imensa nota de rodapé, que ocuparia cerca de
um terço do tamanho do ensaio se fosse incluída no texto, para discutir a
questão da convivência das duas formas de liberalismo.

A tese das “ideias fora do lugar”, proposta por Schwarz em Ao vencedor, as batatas,
não parece compatível com a função histórica de cimento ideológico exercida tanto
pelo velho liberalismo excludente como pelo “novo liberalismo” democrático que
animou a campanha abolicionista. Cada uma dessas vertentes – formuladas inicial-
mente na Europa – desempenhou papel central da vida política do Brasil Império,
e cada uma ocupou, no seu tempo, o seu lugar. [...] Brás nasce em 1805, no Brasil
ainda colonial, chega à maturidade em plena vigência do Regressismo e começa a
fazer política na década de 1840: é o tempo saquarema, auge do tráfico negreiro
aceito e defendido praticamente por todas as classes nesse começo do Segundo
Reinado. A chamada norma burguesa, sobrestimada por Schwarz, afetava-os tanto
quanto os Princípios de Paz Universal da ONU influem nas decisões dos governos
belicistas neste século XXI, de resto plenamente respaldadas por centenas de milhões
de cidadãos liberais pós-modernos (Idem, p. 134, nota 24).

Essa passagem é um trecho diminuto da nota, dedicada à demonstra-


ção em pormenor das formas distintas de liberalismo do século XIX. A
descida rumo ao detalhe histórico é intensa – e interessa pelo modo como
explicita a relação estabelecida com o trabalho de Schwarz. Ao mesmo
tempo em que introduz variantes novas e instigantes à discussão, o faz de
forma disfarçada, em nota de rodapé, como se relutasse em reconhecer ao
oponente o espaço de destaque que, no fundo, acaba por conceder. No
mesmo texto em que procura enfatizar o perigo de esquematismo por trás
da ênfase historicista, desce ainda mais fundo no historicismo para apontar
uma possível fragilidade no enfoque de Schwarz, cujo efeito é sem dúvida
mais forte como reparo do que a cantilena antissociológica, mas que reforça
a imagem do próprio Bosi como crítico historicista, condição com a qual
não quer se confundir.

Condenado ao pós-moderno

O crítico e escritor mineiro Silviano Santiago exemplifica bem a vertente


dos “politeístas”, afinados com a fragmentação de perspectivas própria dos Es-

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tudos Culturais e do pós-modernismo. O próprio autor se autodefine a partir


dessas perspectivas: “No meu caso, a referência mais óbvia seria a condição
pós-moderna e, por outro lado, aquilo que a partir da Inglaterra se chamou
de crítica cultural”, afirmou o crítico em entrevista a um site (cf. Santiago,
2004). Em boa parte de seus textos, esse alinhamento encontra-se enunciado
de forma explícita. “Frustrada no seu desejo, impotente diante da imprevisi-
bilidade das bifurcações, a reflexão crítica sobre as artes pede socorro e auxílio
às disciplinas afins das ciências humanas”, escreve, por exemplo, em artigo
publicado na Folha de S. Paulo no fim do ano 2000 (cf. Santiago, 2000).“Com
as novas ferramentas, ela mapeia o circuito dos gêneros, das etnias e das mi-
norias. Mapeia o silêncio (ou o vozerio) das maiorias, aguçando os olhos para
as artes e indústrias do espetáculo.” O interessante a notar na trajetória de Sil-
viano é como, também nele, a referência aos trabalhos de Candido e Schwarz
serve como baliza para medir a própria singularidade, que é tanto mais visível
quanto mais se distancia do enfoque dito “sociológico”.
A PUC do Rio de Janeiro, onde se estabeleceu como professor da pós-
graduação em 1976, foi o principal polo irradiador do trabalho do crítico.
Como lembra Raquel Esteves Lima, em texto incluído num livro em ho-
menagem ao trabalho de Silviano (cf. Lima, 1997, pp. 170-186), o curso
de pós-graduação em Letras daquela universidade caracterizou-se por um
trabalho de assimilação das correntes teóricas em vigor na crítica literária
internacional. As primeiras teses produzidas na PUC-RJ, por exemplo, sob
a orientação de Affonso Romano de Sant’Anna, Luiz Costa Lima e Gilberto
Mendonça Teles, adotavam uma perspectiva formalista de análise literária,
com a adoção do método estruturalista, que absorvia as contribuições da
antropologia, da psicanálise e da linguística, e teve como laboratório a França,
onde Silviano Santiago cursou o doutorado.
Mas já no início da década de 1970, quando se tornou professor de Lite-
ratura Francesa nos Estados Unidos e Canadá, o crítico procurava orientar
seus trabalhos para uma abordagem interpretativa da obra literária, em
oposição à prática de análise textual, então vigente nos estudos estrutura-
listas. Esse processo intensificou-se quando tomou contato com o trabalho
de Foucault, Deleuze e Derrida, que procuravam repensar a questão das
relações culturais entre os países a partir do questionamento das ideias de
verdade e de origem. A interpretação passaria a ser entendida como uma
tarefa infinita, porque nunca se pode completar, “mas não se completa
porque não há nada para se interpretar, isto é, nada de primeiro. Tudo já é
interpretação” (Santiago apud Lima, 1997).

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René Girard, Michel Foucault, Michel Serres, Julia Kristeva, alguns dos
professores com os quais conviveu durante sua estada nos Estados Unidos e
na Europa, exemplificam bem a perspectiva teórica que assumiria. A partir
dessas influências, e tendo a literatura comparada como campo de reflexão, o
crítico procurou analisar as relações entre culturas dominantes e dominadas.
É dessa época o ensaio “O entrelugar do discurso latino-americano”. Nele,
Silviano vale-se das ideias de Derrida para se insurgir contra as noções de
“atraso” e “originalidade” e defende como único valor crítico a diferença
estabelecida entre a cópia e o original. Dessa maneira, procura questionar
os estudos que chamam a atenção para a dependência da literatura e da
crítica dos povos colonizados, “que consideram a apropriação de um dis-
curso produzido nos grandes centros por parte da cultura periférica como
um deslocamento em que as ideias estariam sempre ‘fora do lugar’” (Lima,
1997, p. 175)1. 1. Note-se aí, na expressão “fora
do lugar”, a referência ao ensaio
O ensaio, definidor da obra de Silviano, é um marco justamente por di-
de Roberto Schwarz. Nesse mes-
vergir no ponto exato demarcado por Schwarz com suas ideias fora do lugar. mo livro em homenagem a San-
tiago (cf. Souza e Miranda, 1997),
Claro que Schwarz não inaugura o problema. A questão da dependência
Eneida Leal Cunha publicou um
está posta desde anos anteriores pela tradição do pensamento social paulista, ensaio em que procura explicar
de Caio Prado Jr., Fernando Novais e Fernando Henrique Cardoso. No de que modo a questão da de-
pendência cultural está posta nas
momento em que faz o ensaio, 1971, Silviano não está se opondo à figura obras de Santiago e Schwarz a
de Schwarz, que na mesma época está a formular sua teoria sobre as ideias partir de uma comparação entre
os ensaios “Apesar de dependen-
fora do lugar, mas à tradição uspiana e ao ambiente intelectual brasileiro te, universal” (1982) e “Nacio-
envolvido com o problema da singularidade latino-americana em relação nal por subtração” (1987). Mais
do que entrar nos pormenores
aos países dominantes num contexto de repressão e fechamento político. da discussão, cabe aqui destacar
O texto de Silviano saiu em francês em 1971, em inglês no mesmo ano como, mais uma vez, é Roberto
Schwarz o interlocutor eleito para
e em português só em 1978. O de Schwarz saiu em 1973 em português.
dar legitimidade ao crítico que se
Até hoje há discussão sobre quem teria atinado primeiro com a questão do opõe a ele. Trata-se de mais um
exemplo da inserção da obra críti-
“lugar” das ideias, mas isso não é um problema relevante. A questão é notar
ca de Schwarz, por certo uma das
como a oposição a um certo conjunto de valores cristalizado nas leituras de vozes mais audíveis no alarido de
Schwarz vai se mostrando, na trajetória de Silviano, a baliza em relação à perspectivas críticas em busca de
espaço no campo.
qual passa a construir sua singularidade.
Num ensaio de 1987, “Para além da história social” (cf. Santiago, 2002a),
o ponto fica mais claro. O texto, assim como o ensaio sobre historicismo
de Bosi, é uma tomada de posição sobre seu modo de interpretar a história
literária. Como indica o título, procura explicar os caminhos pelos quais é
preciso ultrapassar o reducionismo envolvido nas leituras que se constroem
em diálogo com a sociologia. Seu argumento frisa a necessidade de apreender
a literatura para além de suas relações com o real para flagrar o que nela é

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capaz de transportar o leitor para outros tempos e preservar seu sentido de


encanto e atemporalidade.

Talvez a melhor forma de abordar a obra de Roberto Schwarz seja rastreando-a nos
trabalhos mais significativos dos seus mestres na Universidade de São Paulo. Como
em outros colegas das ciências sociais, percebe-se nele a dívida para com a leitura
da formação do Brasil contemporâneo, feita por Caio Prado Jr.; como em outros
colegas das ciências literárias, percebe-se nele o interesse em inscrever o seu trabalho
onde Antonio Candido deixou em aberto a sua Formação da Literatura Brasileira.
Graças aos dois mestres, Roberto Schwarz arquitetou um campo de estudos próprio
e original, multifacetado, em que vai explorar dicas dadas e brechas deixadas tanto
por uma quanto pela outra “formação” (Idem, p. 253).

Silviano faz uma genealogia precisa do trabalho de Schwarz. Assim


como Alfredo Bosi, faz dele o mais legítimo representante de linhagem de
interpretação social da literatura, num movimento que, assim como Bosi,
o insere como herdeiro de Candido, mas procura traçar as diferenças entre
ambos, preservando Candido dos ranços esquemáticos que há de atribuir
a seus epígonos.

A brilhante leitura do ensaio de Candido que faz Schwarz teve como fim primordial
o resgate do texto crítico para o ideário marxista, ainda que nele se evidenciasse uma
abordagem culturalista. O importante, concluía o discípulo, é que “pela primeira
vez a dialética de forma literária e processo social deixava de ser uma palavra vã”. É
idêntica a lição que se depreende do estudo fundamental [Ao vencedor, as batatas] e
de outros estudos de Schwarz. Aqui concluímos o que precisava ser demonstrado:
que os mais instigantes leitores de prosa – Roberto Schwarz, entre outros, e mais
recentemente, John Gledson – absorvem o sentido da representação literária como
real, sendo aquela um objeto privilegiado para que se esclareçam as relações sociais
no Brasil (Idem, p. 256).

Silviano refere-se ao texto de Schwarz sobre a dialética da malandragem,


em que delineia o próprio projeto crítico no mesmo compasso em que
avalia os feitos de Candido em sua análise do texto de Manuel Antonio
de Almeida. Nesse passo, o que salta à vista é a tentativa de situar o ensaio
de Candido no contexto de uma visada “culturalista”. Da mesma maneira
que Bosi enaltece a obra de Antonio Candido e procura diferenciá-la das
pegadas redutoras do sociologismo de Schwarz, também Silviano procura

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enfatizar a diferença, nesse caso aproximando-o do próprio território em que


pretende se situar, aquele dos críticos culturalistas. Nesse contexto, também
ele encontra um modo de se colocar como herdeiro de Candido, num lance
revelador da força sem igual atingida pelas leituras fundadoras do crítico da
USP e da capilaridade de sua influência sobre as gerações seguintes.
Seja como for, Silviano entende o ensaio de Schwarz sobre a dialética da
malandragem como a súmula do método empregado em sua leitura de Ma-
chado de Assis. E essas leituras sofrem, a seu ver, da limitação de absorver o
sentido da representação literária como real. Nessa toada, falham em explicar
como o texto literário, situados em uma época e lugares específicos, pode
falar a leitores de todas as épocas e lugares. Falham, em outros termos, em
especificar como na literatura pode se cristalizar o que nela há, para usar o
termo tão controverso, mas empregado pelo próprio Silviano, de “universal”.

Se a leitura realista circunscreve questões de relevo para a leitura do texto nas suas
relações com a história e a sociedade, deixa no entanto de compreender o que nele
o torna transistórico e, por isso mesmo, crítico e prazeroso. Isto é, o que do texto é
capaz de substantivamente proporcionar saber e prazer aos leitores de outras partes
do mundo e de outras épocas da história. Produto de uma história e de uma socie-
dade, o texto artístico paradoxalmente escapa aos limites da história e da sociedade
que o originam, independente mesmo dos sucessivos leitores que o reorganizam
racionalmente, para afirmar-se universal (Idem, p. 261).

A passagem cristaliza o ponto onde o autor pretende avançar em relação


às leituras que critica. Assim como Bosi, vê no enfoque sociológico um en-
trave ao rendimento das potencialidades do texto literário, mas não escapa
à necessidade de construir sua especificidade em relação a esse enfoque. É
notável a semelhança entre as críticas aos aspectos redutores das leituras
sociológicas, que frisam os mesmos pontos partindo de origens tão distintas
como as de Bosi e Silviano. Para ambos, mesmo que para defender aborda-
gens literárias muito diferentes, é ilustrativo que seja preciso fazê-lo a partir
do diálogo com a mesma tradição, que os informa, por um lado, mas a qual
é preciso rejeitar para reivindicar uma existência autônoma. É nesse sentido
que se podem buscar indícios de que a tradição instaurada por Candido
e consolidada nas leituras machadianas de Schwarz foi, nos últimos anos,
conquistando posição hegemônica e contribuindo para uma nova organi-
zação do debate, em que a necessidade de tomar posição em relação a ela
acelera a constituição de novas “escolas” ou “olhares” do fenômeno literário.

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Ao longo do mesmo período em que publicou esse ensaio, o fim dos


anos de 1980, Silviano afinaria a desconstrução de Derrida com o conflito
entre os gêneros, fazendo dela um elemento de liberação sexual, em espe-
cial da homossexualidade. Nesse compasso, deu corpo à visada culturalista
em seu trabalho, da qual dá testemunho a organização de uma obra como
As literaturas da América Latina: uma história comparada de formações cul-
turais, espécie de história literária que pretende incorporar gêneros antes
considerados não literários e fazer o cânone “oficial” dividir espaço com
a produção de grupos marginalizados como negros, índios e mulheres.
Matreiramente ou não, Roberto Schwarz foi dos primeiros a reconhecer a
novidade das leituras de Silviano: “Que eu saiba, [Silviano] foi o primeiro
crítico a fazer da liberação da homossexualidade um elemento importante
de periodização da história do Brasil, ao fazer que ela convergisse com o
tema da abertura política e da redemocratização, de que seria uma pedra
2. Revista Pesquisa Fapesp, 15 de de toque”, disse Schwarz em entrevista2. O comentário tem tom de elogio,
abril de 2004.
mas não é difícil ver por trás dele uma voz irônica, como se enfim Silviano
tivesse encontrado com isso uma voz e um lugar.
A partir dos anos de 1990, o aspecto “ético-político” de sua produção
ensaística se agudiza, ao mesmo tempo em que se tornam mais frequentes
suas incursões pela ficção, numa espécie de embaralhamento de discursos
próprio da fragmentação pós-moderna que defende. Marcar distância da
sociologia, desde que esta esteja devidamente tachada como simplificadora,
mostra-se maneira valiosa de garantir lucros simbólicos ao crítico que se
pretenda defensor da “densidade da linguagem artística”. Ao mesmo tempo,
bater-se contra a ideia de cânone e contra a “instituição literária ocidental” é
maneira de guardar igual distância do enfoque formalista, de modo a reforçar
a tentativa de situar-se num terceiro nicho. Afinada com as novas tendên-
cias da crítica universitária internacional, essa terceira vertente associa-se
facilmente à ideia de renovação, o que é um atributo igualmente valioso a
se reivindicar na luta interna ao campo. A própria defesa, feita pela maioria
3. A primeira edição é de 1988 de seus arautos, da ideia de pós-modernidade é reveladora da tentativa de se
(publicada pela Companhia das situar num momento à parte, um passo adiante dos esquemas totalizantes
Letras). Faz parte desse livro o
ensaio “Para além da história
aos quais os outros críticos ainda estariam presos. Parece caminhar nesse
social”, em que sistematiza os sentido o discurso de Silviano Santiago nos últimos tempos.
principais pontos de sua dis-
sensão com a crítica marxista.
Compare-se, a esse propósito, a nota à primeira e a nota à segunda edi-
Segundo ele, o problema, assim ção de sua coletânea de ensaios Nas malhas da letra (cf. Santiago, 2002b)3.
como em Bourdieu, estaria em
absorver o sentido da represen-
Na primeira, o autor apresenta o livro como uma coletânea de ensaios que
tação literária como “real”. dramatizam preocupações de sua trajetória como crítico, entre as quais

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os modernistas de 22 e a literatura comparada. As únicas referências que


aparecem são Umberto Eco e André Gide, e mesmo elas não vêm a pro-
pósito de filiações a escolas críticas. Seus objetivos, no que diz respeito aos
modernistas, são os de sugerir conclusões que escapem à visão mais afinada
com o ideário de 22 e, do ponto de vista teórico, questionar a metodologia
que se encontra em sua produção recente. Já na nota à segunda edição,
escrita quatorze anos depois, a terminologia e o propósito parecem outros.
O livro é apresentado no que teria em comum com Uma literatura nos
trópicos e Vale quanto pesa, suas duas obras ensaísticas anteriores. E as três
são postas ao lado de sua obra ficcional. “Não é sem modéstia que afirmo
que esses três livros de ensaios acabam sendo comentários aos livros de
criação (prosa e poesia) que fui escrevendo no decorrer das décadas finais
do século”, escreve (Idem, p. 10). Sua visão do modernismo, agora, não é
mais apresentada em oposição à interpretação hegemônica do movimento,
mas “pelo viés da pós-modernidade”. No mesmo compasso, considera o
ensaio “O narrador pós-moderno”, também incluído no volume, a melhor
chave para sua leitura. E afirma que Uma literatura nos trópicos escapou de
se transformar em livro datado porque o “novo milênio” trouxe questões
que ali teriam sido expostas e discutidas.
Em todas essas alterações, o que se vê é a tentativa de estabelecer uma
continuidade no interior de sua produção. Apesar de os três livros de ensaios
serem compostos de textos escritos para outros fins, eles são encarados como
parte de uma mesma proposta, a qual vai sendo delineada a posteriori, de
acordo com a interpretação que o crítico faz da própria trajetória, em tudo
condizente com a posição que passou a reivindicar. O esforço para reordenar
toda sua obra para o prisma da questão pós-moderna aparece como exemplo
contundente de uma tentativa de se impor como a principal referência teórica
brasileira nesse âmbito. A força com que a temática cresceu internacional-
mente nos últimos anos abriu um espaço para o problema no Brasil, para
cuja ocupação Silviano aparece como candidato natural. Os estudos que já
havia realizado na área, o fato de ter tido contato pessoal com alguns de seus
principais formuladores e sido um dos primeiros brasileiros a estudar suas
obras, a massa de ex-alunos empenhados em lhe dar legitimação teórica, a
assunção da homossexualidade e a atuação constante como escritor de prosa
e poesia ajudam a compor o habitus, o depósito de disposições marcado a
fundo pela história de que são procedentes, para que seu movimento no
campo intelectual se dê nessa direção. O parágrafo final da nota à segunda
edição atesta isso com clareza:

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Criação e crítica se lançam na minha obra com o mesmo ímpeto e coragem. Cria-
ção e crítica são intercambiáveis. A leitura do outro, como está claro nos romances
Em liberdade e Viagem ao México, além de ser uma forma de enclausuramento do
escritor na tradição literária nacional e cosmopolita de que extrai sentido, é também
o modo mais vivaz que encontra para escapar das armadilhas do sujeito singular e
imperioso, mera panqueca pós-moderna, que tem servido de engodo a paladares
aflitivos e irresponsáveis (Idem, p. 10).

Formalismo em crise e duas polêmicas

A partir da leitura do livro Sobre a crítica literária brasileira no último meio


século, de Leda Tenório da Motta (cf. Motta, 2002), é possível supor que o
formalismo, entendido como corrente crítica associada ao movimento con-
cretista, passe por uma crise de legitimidade. Tendo como ponto de partida a
ideia de que a principal marca do debate crítico nos últimos cinquenta anos
no Brasil foi a disputa entre essa escola, cujo principal expoente seria Haroldo
de Campos, e a escola que a autora denomina “literatura e sociedade”, que
teria em Antonio Candido seu principal formulador, o livro permite que se
leve adiante essa hipótese ao se construir como uma defesa incondicional
de Haroldo de Campos, assim como ao revelar traços indicativos da insta-
bilidade da posição ocupada no campo literário brasileiro pelo movimento
concretista e, por consequência, da escola crítica a que deu origem.
Os trabalhos iniciais da professora, cuja formação é francesa e estrutu-
ralista, aproximam-se de uma corrente forte na Universidade de São Paulo.
Ela publicou artigos sobre Barthes e Gérard Genette, com quem estudou,
que não se encaixam no estereótipo das leituras informadas pela teoria da
poesia concreta. Mas este livro seu dá uma guinada e carrega nas tintas nessa
direção. Seu trabalho procura trazer argumentos capazes de problematizar o
enfoque sociológico na crítica de literatura. Isso fica claro desde as primeiras
páginas: “A finalidade do presente trabalho estará cumprida se ele conse-
guir semear alguns espinhos nas trilhas materialistas históricas abertas no
país, desde o laboratório intelectual paulistano, pela escola da ‘literatura e
sociedade’” (Idem, p. 18). Ainda na primeira parte da introdução, a autora
esclarece sua intenção de se opor ao que considera um “culto reverencial”
à Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, obra que, em seu
entender, é objeto constante de “abordagens encomiásticas” (Idem, ibidem).
O raciocínio se constrói a partir da reconstituição das trajetórias dos dois
grupos, da retomada dos principais pressupostos teóricos de cada lado, da

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análise dos confrontos diretos que já travaram e de uma leitura panorâmica


da obra de Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e Haroldo
de Campos, três autores por ela considerados estratégicos para o exame das
diferenças entre as duas escolas críticas.
Na primeira parte do livro, em que pretende situar o problema, a autora
procura apontar na escola “literatura e sociedade” traços de determinismo
sociológico e de transposição mecânica dos elementos sociais para o univer-
so da obra literária. Roger Bastide, Dolf Oehler, John Gledson e Roberto
Schwarz são os críticos contra os quais se posiciona nesse trecho inicial. Para
ela, todos seriam responsáveis por “intervenções pouco delicadas da vida
material no comentário de literatura” e próprias de um “realismo socialista”
(Idem, p. 9).
As respostas a Gledson e Schwarz são apresentadas nos capítulos dedi-
cados a Drummond e Machado. Em ambos os casos, trata-se de limpar o
que nesses escritores poderia haver de representativo da realidade brasileira
para situá-los num plano “universal”. Em Drummond, procura mostrar
como nele se conjugam ao mesmo tempo os traços clássicos e de vanguarda,
emprestando a sua obra um “olor Noigandres” que não teria sido nem de
longe notado por Gledson, o qual insistiria em ler a obra do poeta sob o
pano de fundo das particularidades de seu tempo. O crítico de que se vale
para endossar sua tese é Francisco Achcar, por ela considerado um autor
interessante porque “não tem fobia pela poesia concreta” (Idem, p. 155).
Ao abordar a obra de Machado, a autora opõe-se frontalmente a Schwarz
e procura desfazer os traços nacionais valendo-se da psicanálise lacaniana,
que para ela forneceria um descanso da “tese sociofrênica” encarnada por
livros como Ao vencedor, as batatas e Um mestre na periferia do capitalismo (cf.
Idem, p. 145). Procura, ainda, escorar-se em críticos que seriam igualmente
refratários à “cartilha sociológica”: Silviano Santiago, que destaca o caráter de
“reflexão moral” (cf. Santiago, 1978, pp. 42-48) do romance machadiano;
Alfredo Bosi, que enfatiza o peso da tradição filosófica europeia para a obra
machadiana (cf. Bosi, 1999, pp. 171-224); Alexandre Eulálio, segundo a
autora o primeiro a empregar o termo volubilidade (cf. Eulálio, 1992, p.
349) para se referir ao narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas; e o
português Abel Barros Baptista4, cioso do empobrecimento que a insistência 4. Leda Tenório considera-o
um crítico “praticante de visão
sociológica acarretaria sobre a obra de Machado de Assis. distanciada”, ao contrário de
Ao longo do livro, é possível notar que Roberto Schwarz é o autor mais Gledson, que estaria por demais
envolvido com a tradição macha-
visado. O fato é enunciado com clareza na introdução (“referimo-nos mais às
diana brasileira.
ideias fora de lugar que às hipóteses da Formação” [cf. Motta, 2002, p. 23]),

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e chega a esbarrar em minúcias controversas. A autora procura deslegitimar


Schwarz, por exemplo, argumentando que o termo “volúvel” para designar
o narrador das Memórias póstumas não seria criação dele, mas de Alexandre
Eulálio. O próprio Schwarz, contudo, afirma que o termo é de Augusto
Meyer (cf. Schwarz, 1990), o que, além de instituir a confusão sobre o
assunto, deixa claro que ele não reivindica para si o achado, esvaziando por
completo a invectiva. As filiações entre os críticos são reiteradas com igual
insistência. No modo como os apresenta isso fica bastante claro: Bastide,
“que tanta influência teve sobre nossos professores da USP e a influente
corrente crítica ali gerada nos meados do século passado” (Motta, 2002, p.
12), Gledson, “que muito frequenta os rodapés de Roberto Schwarz” (Idem,
p. 13), Roberto Schwarz, “que não esconde que se socorre dos préstimos
do mencionado Oehler, que também frequenta seus rodapés, e de quem
Gledson confessa, por seu turno, descender” (Idem, p. 14).
Esse é apenas um pequeno exemplo de uma dissonância maior, reveladora
de papéis diferentes desempenhados pelos críticos. Isso porque, ao elegê-lo
como principal alvo, a autora deixa claro que almeja uma interlocução capaz
de lhe granjear igual importância no campo, ainda que no polo oposto. A
energia com que se dedica à tentativa de esvaziar o sentido dos trabalhos
de Schwarz só se torna inteligível à luz da centralidade que o trabalho do
crítico assumiu em anos recentes. Em outros termos: um trabalho como
o de Leda é o sintoma mais claro da crescente ressonância alcançada pelos
trabalhos sobre Machado contra os quais ela se manifesta. O tom é reativo e
não é possível tomar a resposta como uma interlocução à altura. Apesar dos
esforços empreendidos nesse livro de se impor como estudiosa de autores
caros à tradição nacional, a crítica de Leda não se constrói a partir de uma
leitura dos autores escolhidos, mas essencialmente contra uma determinada
interpretação. E esse traço é o mais marcante do trabalho: trata-se sob todos
os aspectos de uma reação, de um empreendimento característico de uma
vertente ameaçada pela hegemonia conquistada por esses novos estudos
machadianos e que fala mais da própria crise de legitimidade do que dos
objetos de que trata.
A opção por abordar as obras de Drummond e Machado se mostra uma
tentativa de interferir no ponto nevrálgico do debate crítico. A autora não
ignora o prestígio que recai sobre o autor ou escola que detiver o discurso
hegemônico sobre a obra desses escritores. Ou, posto nos termos da própria
Leda: “[Drummond] corre o risco de estar para o nosso século XX literário
assim como Machado está para o XIX, o que significa que é outro bom objeto

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para as diferenças de nossas escolas críticas” (Idem, p. 38). Daí a posição de


destaque concedida aos dois autores: parece claro que controlar o discurso
a respeito deles é controlar os nervos do debate. A centralidade de Schwarz
nos dias que correm tem clara relação com isso: seus esforços teóricos mais
abrangentes, ao longo de mais de três décadas, são dedicados à exploração
minuciosa do autor que é talvez o mais importante da história da literatura
brasileira. O espaço que a obra do crítico ocupa é proporcional ao interesse
crescente em torno de Machado e aos lances ousados e minuciosos de sua
leitura, que extrai abstrações sociológicas do exame cerrado da fatura da obra.
Visto por essa ótica, esse trabalho de Leda é um dos mais sintomáticos
do fenômeno que procuramos flagrar, que é o da reorganização do debate a
partir dos trabalhos machadianos de Schwarz. Ele se constrói inteiramente
como resposta a eles e como segunda floração de uma contenda que re-
mete à geração anterior, de Candido e Haroldo de Campos. Ela mira em
Schwarz em nome de uma disputa antiga que o livro pretende atualizar,
e fazer isso é insistir na velha dicotomia entre os críticos criadores e os
críticos teóricos. Um traço repetido à exaustão pelos críticos concretistas
como indício de sua legitimidade é o fato de serem também poetas, uma
vez que a condição de artistas os situa em posição de vantagem sobre os
demais em razão da autoridade que derivam do fato de conhecerem por
dentro as agruras da criação. Na estrutura desse livro de Leda, os três
fios centrais são Machado, Drummond e Haroldo de Campos. Ela situa
Campos em pé de igualdade com os anteriores e empreende uma leitura
abrangente das Galáxias, de Campos, para demonstrar o ponto. Mas
dificilmente o esforço viria à tona não fosse a necessidade de responder a
um novo cenário, em que a escola “literatura e sociedade” encarnada pelos
livros de Schwarz parece assumir o proscênio do debate.
Ao longo dos anos de 1980, Schwarz esteve no centro de duas polêmi-
cas de grande repercussão nos debates literários. Elas não dizem respeito
especificamente à sua produção machadiana, nem o tomam como alvo
direto, mas são particularmente iluminadoras do espaço que ele passa a
ocupar nesse momento. Os ataques partem do mesmo lado – os críticos
associados ao concretismo. Ambas polêmicas são ilustrativas de um mo-
mento de transição no campo da crítica, em que os concretistas parecem
perder o espaço que ocuparam ao longo dos anos de 1960 e 1970, em que
a voga das leituras estruturalistas levava água ao moinho de seus postula-
dos. A elevação no tom e no volume das críticas disparadas a Schwarz e
à “escola” de que passou a ser sinônimo é indicativa do espaço maior que

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ocupa desde então, e pode ser vista como reação ao prestígio alcançado
por suas leituras machadianas.
As polêmicas são conhecidas. A primeira, de 1985, deu-se entre Schwarz
e Augusto de Campos, tendo como eixo o poema Pós-tudo, de Campos. A
segunda tem início em 1989, com a publicação do ensaio O sequestro do
barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Mattos, de
Haroldo de Campos (cf. H. Campos, 1989).
O poema de Augusto, Pós-tudo, foi publicado em 27 de janeiro de
1985 no Folhetim, então suplemento cultural da Folha de S. Paulo. Em 31
de março daquele ano, Schwarz publicou, no mesmo caderno, um ensaio
intitulado “Marco histórico”, em que considera o poema o trabalho mais
sugestivo do autor em mais de trinta anos, embora lhe faça reparos severos.
O crítico concentra a análise no que considera uma contradição fundamen-
tal: a concepção do poema em letras garrafais, para a projeção em praça
pública, numa forma “ostensivamente desprivatizada” (Schwarz, 1987), e o
comentário subjetivo, confessional, implicado no desejo de “mudar tudo”
descrito nos versos de Augusto de Campos.
Apesar de deixar clara a necessidade de se diferenciar a persona do poeta
e a pessoa empírica do autor, Schwarz afirma que nesse caso a confusão está
instalada, pois, além de vir acompanhado de assinatura, o poema descreve, em
primeira pessoa, uma ação afirmativa que implica a reivindicação de um lugar
na história, e, em consequência, contribui para “singularizar empiricamente o
sujeito, configurando pretensão pessoal efetiva” (Idem, p. 60). Pairaria sobre
o poema uma indeterminação geral, apoiada apenas na ideia de que há um
espírito radical, transformador, seja ele de que ordem for, a animar a voz lírica.
É o que o autor chama de “vanguardismo abstrato”, espírito que estaria na raiz
do concretismo e que responderia por sua dimensão regressiva.

O próprio grupo concretista oferece uma ampla literatura ensaística, erudita e mili-
tante, em que se explica o sentido revolucionário de seu trabalho, com precursores
nacionais e estrangeiros. São construções das mais discutíveis, apesar do enxame
de autoridades citadas. Vêm ao caso aqui pelo seu espírito, que é de definir a mo-
dernidade e, dentro dela, a própria posição de liderança, espírito adamantino de
que “Pós-tudo” participa e que realiza na quintessência, dispensando os acessórios
da demonstração (Idem, p. 63).

Com essa afirmação, Schwarz aproxima o espírito de liderança a todo


custo que julga existir por trás de “Pós-tudo” do papel conhecido dos con-

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Flávio Rosa de Moura

cretistas como legitimadores críticos da própria obra poética: não é o crítico


que busca se valer da reputação como poeta para sustentar suas observações,
mas um poeta que procura dar mais uma camada de sentido a seu poema
à luz de sua obra crítica. Ou, nos termos de Schwarz:

O poema funde em proveito próprio as autoridades do poeta e do crítico, dos dis-


cursos poético e teórico. Acredita-se ou não nas palavras e na obra de gigante que
elas proclamam; mas como duvidar da autoridade do crítico-historiador, a outra
face do poeta, que nos assegura, dentro do poema e nas suas mesmas palavras, que
o que vale é o que está dito? (Idem, p. 74).

A réplica de Augusto de Campos veio à queima-roupa. Saiu no mesmo


Folhetim, no dia 7 de abril de 1985, exatamente uma semana depois de
“Marco histórico”. Embora mais curta, a resposta eleva em alguns decibéis
o tom da dissensão. Irritado com as acusações, Augusto procura desautorizar
os argumentos de Schwarz pelo fato de ele ser crítico, e não um artista que,
como tal, seria capaz de entender por dentro as agruras e vicissitudes que
envolvem o ato criador. “A melhor crítica de qualquer obra, a meu ver a única
crítica de algum valor permanente ou mesmo moderadamente durável, vem
do escritor ou artista criativo que faz o próximo trabalho; e não, jamais, do
jovem cavalheiro que constrói generalidades a respeito do criador”, lembra
Augusto no texto, valendo-se de citação de Ezra Pound que é uma espécie
de súmula de seu argumento.
A provocação de Augusto começa pelo título: seu texto chama-se “Dia-
lética da maledicência”, uma referência explícita ao ensaio de Antonio
Candido sobre Memórias de um sargento de milícias que tira partido ainda
da semelhança semântica entre “maledicência” e “malandragem”. Candido
é citado ironicamente, e de modo mais explícito, também no corpo da res-
posta: “Admirável, na expressão do Mestre Candido, só mesmo Casimiro
de Abreu...”, afirma o poeta, numa atitude de desdém pelo romantismo
que prefigura a de seu irmão Haroldo no texto sobre o sequestro do barro-
co escrito poucos anos depois. As farpas dirigidas a Candido justificam-se
pelo tom geral da invectiva: trata-se não apenas de uma tentativa de atingir
pessoalmente o crítico que fez ressalvas a seu poema, mas de deslegitimar a
autoridade crítica de toda a corrente teórica que ele representa.
Logo no início do texto, afirma que as restrições feitas por Schwarz não
passam de irritação subjetiva ou de fantasias sociológicas “próprias de seu
contexto intelectual”. Isso seria, para Augusto, mais uma prova da incom-

novembro 2011 21
Um crítico no redemoinho, pp. 71-99

petência “cósmica” do que ele chama de sociologismo ou “sociologicismo


literário de ascendência chato-boy” para compreender a poesia. O ápice
do rechaço à sociologia aparece na sequência do argumento em que ele,
dirigindo-se a Schwarz, afirma: “você, mais sociólogo que crítico e mais
crítico que poeta [...]” (A. Campos, 1989, p. 176).
Publicado trinta anos após o livro de Antonio Candido, o ensaio de
Haroldo de Campos é uma tentativa de explicar por que o barroco não foi
abordado na Formação da literatura brasileira. Os motivos, segundo Haroldo
de Campos, seriam diversos. Em primeiro lugar, a identificação de Candido
com a grade de valores do romantismo, e portanto a associação entre o valor
da obra literária e seu caráter nacional. Em segundo lugar, a concepção de his-
tória adotada pelo crítico, que tenderia a privilegiar uma perspectiva linear e
cronológica. Em terceiro, o predomínio das funções emotiva e referencial em
sua “modelização triádica da literatura”, ou melhor, na formulação empregada
por Antonio Candido de sistema literário como articulação entre autor, obra
e público. E, por fim, uma suposta aversão a Gôngora e à tortuosidade de ex-
pressão que caracteriza a obra desse poeta e dos demais escritores identificados
com o período barroco.
Os quatro pontos, de acordo com a argumentação de Campos, seriam
derivados da mesma origem: a perspectiva histórica adotada por Antonio
Candido, que estaria contaminada por uma visão “substancialista” da
evolução literária e por um “ideal metafísico de entificação do nacional”.
O aspecto “substancialista” estaria claro na concepção de sistema literário
como um todo coeso, apaziguado, constante. Ao afirmar que pretende
determinar quando e como se definiu uma continuidade ininterrupta de
obras e autores cientes de integrarem um processo de formação literária,
Candido deixaria claro que em seu enfoque a história da literatura seria uma
floração gradativa, orgânica, encadeada numa sequência de eventos. Já o
“ideal metafísico de entificação” estaria visível na proposta de acompanhar o
processo de aclimatação do “espírito do Ocidente” no Brasil. Ao manifestar
tal intenção, Candido revelaria sua aposta num “Logos transmigratório”, que
seria a prova de sua crença numa razão absoluta. Por fim, uma vez afirmado
o propósito de se pôr no ângulo dos críticos do início do romantismo, o
que faz no introito de seu livro, estaria selado o compromisso com a ideia
de um classicismo nacional.
Se até aqui a base de sua exposição é a filosofia de Derrida e o método de
desconstrução celebrizado pelo francês, é a partir da teoria do linguista Ro-
man Jakobson que o raciocínio atinge seu ponto máximo. Campos submete

22 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Flávio Rosa de Moura

o sistema literário tal como definido por Antonio Candido ao modelo estru-
tural desenhado por Jakobson para estudar as “funções da linguagem”. Com
isso, procura demonstrar que Candido, ao atribuir ao escritor o papel de
“exprimir as veleidades mais profundas do indivíduo”, funde sua concepção
de literatura à concepção romântica de literatura. Isso explicaria o equívoco
da “perspectiva histórica” de Candido, pois, segundo Campos, deixa claro
como a ilusão de objetividade contida nessa premissa está impregnada de
ideologia. Do mesmo modo, justifica o famigerado “sequestro”, uma vez que
o foco na “função emotiva”, corolário da concepção romântica de literatura,
deixaria de lado a “função poética” e a “metalinguística”, justamente as duas
que predominam no barroco.
A resposta mais direta às invectivas de Haroldo, ainda que não direcio-
nada a todos os pontos do ataque, foi apresentada por Roberto Schwarz
no ensaio “Os sete fôlegos de um livro”, transcrição de sua participação em
seminário na USP sobre Antonio Candido5 e mais tarde reunido em livro 5. “Antonio Candido, pensa-
mento e militância”, realizado
(cf. Schwarz, 1999b). Os dois pontos que o crítico refuta são o suposto na USP em agosto de 1998.
antigongorismo de Antonio Candido e a ideia de que a perspectiva histórica
que orienta a Formação estaria contaminada pelo referido ideal metafísico
de “entificação do nacional”, noção tomada à filosofia de Jacques Derrida.
Para Schwarz, a ausência de Gregório de Mattos se explica pela natureza
do tema tratado. Uma vez que o assunto em pauta é a formação da literatura
nacional, o âmbito do problema não é o mesmo da história do território
ou da língua. Ou, posto em outros termos: Gregório, assim como Padre
Vieira, é figura pertencente ao sistema colonial português e atuante num
momento em que o sistema literário estava longe de se consolidar. “Será
que ficam desconhecidos ou diminuídos por não terem participado de
um dinamismo que cinquenta anos depois de sua morte mal começava a
se esboçar?”, escreve Schwarz (Idem, p. 49). “Os ciclos históricos existem
ou não existem” (Idem, p. 51). O autor completa o argumento a partir da
afirmação de que Gôngora seria, de modo indireto, um dos pressupostos
da Formação, pois os excessos e o rebuscamento que caracterizam sua obra,
por contraste, ajudariam a definir o rigor e o comedimento próprios do
período neoclássico analisado no livro.
Já o “ideal metafísico de entificação do nacional” pressuporia, de início,
a ideia de que Candido seria nacionalista. Schwarz procura opor a isso o
argumento de que Candido pertence à geração universitária que criticou
o nacionalismo e seus mitos, “dando uma explicação materialista e sóbria
da formação nacional, alheia à patriotada” (Idem, ibidem). Com relação à

novembro 2011 23
Um crítico no redemoinho, pp. 71-99

hipótese de que Candido pratique uma metafísica da nacionalidade, Schwarz


mostra-se mais enfático: “Só aplaudindo de pé o disparate”, escreve (Idem, p.
53). Segundo ele, Haroldo de Campos descontextualiza afirmações do livro
de Candido para embasar a ideia de que a Formação traçaria o caminho do
Logos e do Ser em sua tentativa de se constituir em terras brasileiras. Com
isso, Campos transforma Candido numa mistura de Hegel e Heidegger, o
que seria um “erro de pessoa dos mais extravagantes” (Idem, p. 52). E não
faria mais do que repetir generalidades formuladas por Derrida, segundo
ele estéreis do ponto de vista do conhecimento.
O último ponto de sua resposta diz respeito à acusação de que o esque-
ma da Formação é linear. Schwarz argumenta que a exposição de Candido
não segue uma linha evolutiva simples, mas articulada. Os trechos em que
aponta os pontos fracos da busca romântica da diferenciação nacional, em
muitos casos inócua e presa às expectativas europeias de pitoresco, seriam um
entre diversos exemplos da não linearidade da visão de Antonio Candido.
Reconstituídas de modo sumário, as polêmicas acrescentam sentido
à discussão pelo que revelam das transformações no campo da crítica no
momento em que se desenrolam. Elas deixam ver um espírito belicoso em
Schwarz, quando resolve ir aos jornais espicaçar o poema de Augusto de
Campos. Nesse gesto, Schwarz está a atualizar desentendimentos ainda
anteriores entre concretistas e a Universidade de São Paulo, num momento,
1985, em que as duas vertentes de interpretação disputavam a hegemonia,
numa briga por influência nos meios de comunicação e poder cultural de
que as faíscas dessa polêmica são o sintoma mais visível. Nos anos seguintes,
com a consolidação dos trabalhos machadianos de Schwarz e o recuo da
produção teórica dos concretistas, o cenário se altera.
O texto de Haroldo de Campos sobre o barroco, em 1989, parece a últi-
ma tentativa do campo concretista de medir forças com a tradição uspiana.
Mas Antonio Candido não responde à provocação. Quando Schwarz o faz,
em momento posterior, a polêmica não segue nas mesmas bases. Talvez pela
ênfase em encarar a produção crítica como desdobramento de suas ativida-
des como poetas, e portanto tomar a sério apenas aquela crítica oriunda de
quem fala como “criador”, como se nota na resposta irônica de Augusto ao
Schwarz “mais sociólogo do que crítico e mais crítico que poeta”, não houve
no campo concretista uma passagem de bastão como houve de Candido
para Schwarz. O último representante legítimo da visada concretista é o
próprio Augusto de Campos, um de seus formuladores. A polêmica não se
atualizou, bem como a crítica nesse campo parece ter ficado estagnada. A

24 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Flávio Rosa de Moura

tentativa de Leda Tenório da Motta de atualizar o problema no livro que


se discutiu acima é um sintoma disso. Os ataques erráticos, a hipérbole
dos elogios a Haroldo, a quantidade de alvos, tudo isso diz mais da reação
ao cenário novo, de incômodo em relação à centralidade alcançada pelas
leituras machadianas de Schwarz, do que propriamente de um andamento
novo da discussão.

Feitas as contas

A capilaridade assumida pelo trabalho de Schwarz ao longo desses anos


salta à vista. Em agosto de 2004, foi realizado em São Paulo um seminário em
comemoração aos trinta anos do ensaio “As ideias fora do lugar”. O encontro
foi transformado em livro e teve contribuições de autores de um espectro
ideológico vasto, numa composição que sinaliza um consenso raro em torno
de uma mesma figura. Estiveram presentes autores identificados com o PT,
com o PSDB ou com a extrema esquerda, sociólogos, historiadores, poetas,
prosadores, filósofos e literatos, jornalistas, jovens discípulos, além do velho
mestre Antonio Candido. É difícil pensar figura capaz de reunir em torno
de si espectro tão variado e atravessado por inimizades e rivalidades antigas.
O evento recebeu cobertura de página inteira no jornal Folha de S. Paulo, e
um dos textos apresentava o ensaio de Schwarz da seguinte forma:

Síntese envenenada do trabalho de uma geração de intelectuais que renovou a in-


terpretação da história do Brasil, o texto – dinamite concentrada em 13 páginas – é
uma espécie de lâmpada mágica, a partir da qual o autor iluminou não apenas a obra
de Machado de Assis, cuja grandeza e novidade iria especificar depois, mas as parti-
cularidades e o destino do próprio país – nação periférica na ordem internacional,
formada na convivência contraditória entre capitalismo e escravidão (Silva, 2003).

Se o trecho não é de especialista na obra de Schwarz e vale pouco pelo


valor de face, o fato de partir do jornal de maior circulação do país fala do
modo como o crítico encontrou aceitação em determinados ambientes de
grande repercussão e do poder cultural que daí deriva. No volume Nenhum
Brasil existe (cf. Rocha, 2003), que reúne textos sobre história cultural brasi-
leira de 88 autores distintos, as “ideias fora do lugar”, de Schwarz, aparecem
no índice onomástico como uma das formulações mais citadas nos textos,
ao lado de conceitos como “cordialidade” e “formação”. Na mesma direção,
vale lembrar a utilização bem-humorada que a crítica Leyla Perrone-Moisés

novembro 2011 25
Um crítico no redemoinho, pp. 71-99

faz das “ideias fora do lugar” em seu ensaio “Pastiches críticos”, incluído
em Inútil poesia, que atesta a capilaridade assumida pelo enfoque, popular
a ponto de virar piada.
Schwarz trilhou um caminho que o situa, para além da crítica literária,
como intérprete da formação brasileira, com o que consolida um projeto cuja
origem remonta, mais uma vez, a Antonio Candido: o de fazer da literatura
modo privilegiado de discutir as peculiaridades da formação do Brasil.
Olhando em retrospecto, fica evidente também o modo como a disputa
se liga ao controle do discurso sobre autores que representam momentos
de virada na literatura brasileira. Tome-se o exemplo de Machado de Assis
e Carlos Drummond de Andrade. Os dois escritores exemplificam como o
domínio do discurso hegemônico sobre suas obras é indutor de prestígio.
Autores de livros que representam momentos de transição, eles são objeto
de vastíssima fortuna crítica, de cujo domínio depende o êxito do crítico
que sobre eles pretenda dizer algo de novo. Daí que demandem investi-
mento teórico de grande monta – e também maior risco, pois o sucesso ou
fracasso da empreitada será sempre proporcional à importância do escritor
e do pesquisador que sobre ele decida escrever. É isso que torna pertinente
especular sobre o que está por trás do projeto de Leda Tenório ao mirar em
Roberto Schwarz sua história da crítica no último meio século, ou pensar o
que significa para um crítico da envergadura de Alfredo Bosi a maior reper-
6. “Nem a crítica sintética,
cussão obtida pelos estudos de Roberto Schwarz sobre Machado de Assis.
esteticista ou formalista, nem É preciso ainda lembrar que o acerto na recepção da obra de escritores
mesmo a estruturalista e a fe-
nomenológica, posta em prática
importantes no momento mesmo em que elas se revelam constitui também
por Anatol Rosenfeld no campo um importante indutor de prestígio. É a esse motivo que Benedito Nunes
da realização teatral e por Maria
Luiza Ramos no campo da poesia
atribui a predominância da escola sócio-histórica (a expressão é dele) no
em seu Fenomenologia da obra panorama da crítica de literatura no Brasil6. As razões que ele aponta – o
literária (1969), tiveram o êxito
fato de Antonio Candido e seus seguidores terem escrito no calor da hora
da denominada crítica sócio-
histórica, êxito medido quer sobre os trabalhos de João Cabral, Guimarães Rosa e Clarice Lispector –
pela sua reação positiva à pedra são diversas das deste texto. Mas o diagnóstico é o mesmo e ajuda a pensar
de toque das novas linguagens
literárias em ascensão – as nove- que a partir dessa vertente, e mais especificamente das leituras de Machado
lísticas de Guimarães Rosa e de feitas por Schwarz, é possível percorrer um caminho e traçar um panorama.
Clarice Lispector, e a poética de
João Cabral de Melo Neto, sobre
A recepção dos trabalhos de Schwarz vai muito além do que ficou traçado
que versaram estudos de primeira nesse esquema. O ponto, é importante lembrar, não é fazer um levantamento
recepção de autoria de Antonio
Candido, Roberto Schwarz e
exaustivo da fortuna crítica que se avoluma sobre suas leituras machadia-
Luiz Costa Lima –, quer pela nas, mas indicar como elas definem um novo parâmetro a partir do qual é
sua extraordinária continuidade
até quase o início da década de
preciso medir para tomar posição no ambiente da crítica de literatura no
1990 [...]” (Nunes, 2000). Brasil. Alfredo Bosi, já crítico consagrado, dedica parte significativa de sua

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Flávio Rosa de Moura

produção intelectual dos anos de 1980 em diante à tentativa de responder


ao colega. Nesse empenho, tenta explicitar o debate o mínimo possível, mas
deixa diversos traços, no mais das vezes velados, da importância que o diálogo
assumiu para seu trabalho recente. Em toada semelhante, Silviano Santiago
intensifica, a partir da década de 1980, seu pendor para os Estudos Cultu-
rais, num movimento que coincide com a ocasião em que passa a refletir
sobre seu lugar no debate sobre a história literária, de que dá testemunho
seu ensaio de 1987 analisado anteriormente. Leda Tenório, por sua vez, é
o sintoma mais evidente da centralidade das leituras de Schwarz, seja pela
estridência dos ataques desferidos, seja pelo eco reduzido que obtiveram,
numa tentativa de reeditar uma polêmica que nem polêmica virou dessa
vez, dada a inexistência e a não necessidade de revides.
Este artigo trabalha com a hipótese de que as correntes mais visíveis da
crítica no Brasil, formadas e depuradas nas últimas quatro ou cinco déca-
das, são agrupáveis em torno de pressupostos em que predomina o acento
sociológico, representado pelas leituras de Schwarz, o acento culturalista,
encarnado por Silviano, e o acento formalista, expresso na leitura de Leda.
Cada um encontra eco em instituições diferentes, que lhes dão guarida ou os
rejeitam, conforme a tradição da casa. O predomínio da primeira corrente,
que tentamos defender, é evidenciado a partir da forma como ela organiza
a discussão: estivesse no centro alguma das outras duas, não seria possível
identificar tomadas de posição tão claras e diversas. As críticas disparadas
contra as leituras machadianas de Schwarz, desse modo, não são tomadas
pelo valor de face. Não é o caso de discutir o conteúdo dos reparos, mas o
que eles representam. O ímpeto em responder a elas diz mais da disposição
dos autores e da composição do campo da crítica do que os instrumentos
empregados para desferir os ataques, que aparecem aqui como secundários
e cujo efeito é muitas vezes intensificar, por parte dos teóricos em disputa,
a busca por vozes próprias que dão aos poucos a fisionomia do debate.
O passo seguinte do problema é tornar menos estanques essas categorias.
É tentador buscar nessas leituras sociológicas o componente formalista exaus-
tivamente praticado nas análises cerradas de texto de Schwarz. Do mesmo
modo, é instigante notar o profundo componente sociológico do debate
que Leda Tenório tenta restringir ao campo “formal”, num ímpeto de traçar
amizades, filiações e escolas que não fica longe de um sociograma. Se o foco
fosse centrado nos anos de 1990 em diante, veríamos ainda uma geração de
críticos da Unicamp, formados na tradição de Candido e Schwarz, cons-
truindo uma linha de combate à tradição historicista e procurando fundar

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Um crítico no redemoinho, pp. 71-99

um nicho que não se enquadra em nenhuma das vertentes que traçamos


acima. Com foco mais recente, veríamos um ambiente literário transformado
por festivais de grande repercussão e por um fetichismo novo da imprensa
em torno da literatura. Mas isso é problema vasto que nos desvia do tema.
Se houver ocasião, fica para o próximo artigo.

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Resumo

Um crítico no redemoinho

Este artigo acompanha a recepção dos trabalhos de Roberto Schwarz sobre a obra de
Machado de Assis. A partir das tomadas de posição de um conjunto de autores sobre
esses textos, procura traçar um panorama dos jogos de força em atuação no campo da
crítica literária no Brasil nos últimos anos.
Palavras-chave: Roberto Schwarz; Machado de Assis; Critica literária; Campo literário.

Abstract

A critic in the whirlpool

This article studies the reception of Roberto Schwarz’s texts on the work of Machado
de Assis. Based on the positions taken by a group of authors concerning these texts,
it looks to delineate a panorama of the power games at work in the field of literary
criticism in Brazil over the last few years.
Keywords: Roberto Schwarz; Machado de Assis; Literary criticism; Literary field.

Texto recebido e aprovado em


6/9/2011.

Flávio Rosa de Moura é jornalista


e doutor em Sociologia pela USP.
Foi editor de Novos Estudos Ce-
brap (2004-2009), professor na
Facamp (2003-2009) e curador
da Festa Literária Internacional
de Paraty (2008-2010). É coor-
denador no Instituto Moreira
Salles. E-mail: <flavio.r.moura@
uol.com.br>.

novembro 2011 29
Crítica, combate e deriva do campo literário em
Alceu Amoroso Lima*
Guilherme Simões Gomes Júnior

[...] naquele tempo não havia Faculdades de Filosofia, nem estudos superiores de letras. [...] * Agradeço ao Luiz Carlos Jack-
Representávamos, realmente, a última ou penúltima geração dos autodidatas; se acaso o autodida- son pelo convite, aos demais par-
tismo não representa uma condição intrínseca de toda formação intelectual, especialmente literária. ticipantes deste Dossiê, à Heloisa
Pontes e ao Sergio Miceli pelo
Assim como se nasce poeta, também se nasce crítico. [...] Como decididamente não nasci poeta [...]
debate franco, sugestões e críticas
é possível que tenha nascido crítico, ao menos como fazedor de crítica [...].
que ajudaram no rumo tomado
LIMA, [1965] 1966a1, p. 29. pelo artigo. Agradeço também
ao Marco Aurélio Veloso, antigo
aluno Universidade Gregoriana
Alceu Amoroso Lima (1893-1983) passou a infância em uma chácara no em Roma, pelas longas conversas
sobre Alceu Amoroso Lima e
bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro; o bairro do Cosme Velho fica ao por ter me indicado a leitura
lado, um pouco acima, na ondulação da topografia carioca. A calçada de sua de Les grandes amitiés de Raïssa
Maritain, livro que, apesar de não
rua era trajeto de Machado de Assis (Academia Brasileira de Letras/1897),
citado, ajudou em muito na fase
que mais de uma vez passou a mão nos cabelos do menino. Não era amigo de concepção do artigo.

da família, mas tinha com ela relações cordiais. Afonso Arinos (ABL/1901), 1. As fontes preponderantes aqui

ao contrário, privava da intimidade de sua casa e foi uma das referências de citadas são artigos de imprensa,
de Alceu Amoroso Lima ou de
sua iniciação literária. No ginásio, no qual ingressou aos 9 anos, foi aluno seus interlocutores, republicados
de Coelho Neto (ABL/1897); e na faculdade de direito, iniciada aos 15, em livros. As datas entre colchetes
referem-se à edição original dos
teve Sílvio Romero (ABL/1897) como o professor de melhores lembranças. artigos ou de outras peças como
Antes de completar 21 anos, havia visitado quatro vezes a Europa (1900, introduções ou conferências.
Elas são indicadas na primeira
1909, 1912, 1914). Em Paris, residiu por quase um ano no hotel Majestic, vez que a peça é citada. Nas
na avenue Kleber, frequentou o terraço do hotel Ritz, em encontros com demais, indica-se somente a
edição utilizada.
Graça Aranha (ABL/1897), acompanhou cursos na Sorbonne e conferências
de Bergson no Collège de France.
Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso Lima, pp. 101-133

A linhagem paterna é portuguesa. O avô, natural de Pontes de Lima,


veio ao Brasil “fazer América” e subiu na vida como caixeiro, amparado por
parentes já estabelecidos no Rio de Janeiro (morreu em Paris em 1891). Avô
conservador, pai radical. Este passou pelo seminário e pela Escola Central
(Politécnica), mas por comodismo não desviou do horizonte provável,
continuando no comércio de tecidos e depois na indústria. Na juventude
abraçou ideias republicanas de corte jacobino, tanto que flertou com a
hipótese de atribuir, ao único filho homem, o nome Floriano, mas a mãe
interveio em favor de Alceu. Foi em razão desse ideário que o pai impôs
ao menino, aos 9 anos, o ingresso em escola pública para conviver também
com garotos do subúrbio. Até então, Alceu não tivera escola e crescera entre
meninas (quatro irmãs). Recebeu as primeiras letras da mãe e de professor
particular – João Kopke – cujo método renovador consistia em ensinar di-
vertindo. Mimado em casa pela mãe, o ginásio foi para ele uma “canga”, por
onde passou “sem nenhum prazer pessoal”. Mas, mesmo assim, em Memórias
improvisadas – das quais derivam os fatos aqui narrados –, agradece ao pai
pelo aprendizado da disciplina, que experimentou pela primeira vez nessa
vivência escolar. Apesar de, na memória, o ginásio aparecer como lugar de
encontro com gente simples, a instituição não era nada periférica: tratava-
se do Ginásio Nacional, antes conhecido como Colégio Pedro II. Depois
do término da faculdade de direito, em 1913, atuou como advogado no
escritório de Souza Bandeira (ABL/1905); foi funcionário do Ministério de
Relações Exteriores, junto com Ronald de Carvalho, e casou-se, em 1918,
com Maria Thereza de Faria, filha de Alberto de Faria (ABL/1928), irmã de
Octávio de Faria (ABL/1972) e cunhada de Afrânio Peixoto (ABL/1910). Não
lhe faltaram relações nem oportunidades.
Sobre os nomes, quase foi Floriano, mas ficou Alceu e, na infância, o
seu apelido na voz da mãe era “Vida”. Depois, publicou um soneto como
Vasco Athayde e, no princípio da atividade crítica, virou Tristão de Athayde;
mas também ensaiou outro pseudônimo – Fernando Telles – nos idos de
1921. Nas racionalizações sobre essas escolhas, dizia que os pseudônimos
tinham por função distinguir a atividade literária da atividade profissional
na indústria paterna, na qual trabalhou por um período. Mais tarde, quando
bandeou para o catolicismo, quis deixar de lado o Tristão, mas o pseudôni-
mo do crítico literário já estava colado na deslizante persona; com isso, nas
fichas das bibliotecas ou na memória dos contemporâneos – que na longa
vida foram tantos –, ficou assim: Tristão de Athayde, vide, Alceu Amoroso
Lima (ABL/1935). Incerteza nominal.

2 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Guilherme Simões Gomes Júnior

Etapas

Alceu Amoroso Lima viveu muito, 90 anos. Pôde assim acompanhar


as vastas mudanças no mundo e no Brasil, entre a belle époque e o fim da
ditadura militar de 1964. Ele próprio também mudou muito. Para o que
aqui nos interessa, pode-se dividir sua trajetória em quatro fases, a seguir.

1914-1925/1928
A fase do crítico agnóstico, disciplinado e erudito, que teve como refe-
rências literárias fundamentais Anatole France, Eça de Queirós e Machado
de Assis; que participou com senso de medida da virada modernista de
1922, caudatário de Ronald de Carvalho e Graça Aranha, mas diante dos
quais não se comportou como epígono; muito ao contrário, sobre A estética
da vida foi demolidor, apontando no livro o verdadeiro horror à análise, o
diletantismo e a visão espetacular do universo, presentes na metafísica do
autor; o que não o impediu de estar entre aqueles que, em 1924, aplaudiram
e carregaram Graça Aranha nos braços, quando de seu famoso discurso em
prol do modernismo na ABL.

1928-1945
A fase do convertido, recrutado por Jackson Figueiredo, que assumiu
a posição de cruzado da igreja que, na orientação do papado de Pio IX,
recusava não apenas a modernidade, com seus males – opostos e comple-
mentares – do liberalismo burguês e do socialismo2, mas recusava também 2. Como mostra Miceli, “A
postura doutrinária da Santa Sé se
os próprios tempos modernos nascidos no Renascimento, que haviam
consolidou através das encíclicas
quebrado a unidade do cristianismo. Exemplo dessa postura é a resenha do Quanta Cura e Syllabus Errorum

livro Maquiavel e o Brasil de Octávio de Faria, em que considera limitado (1864), que condenaram de
modo drástico os chamados ‘erros
o quadro moral que orienta a crítica deste ao liberalismo burguês que, no modernos’, a saber, o racionalis-
Brasil, não teria feito mais do que deixar o caminho aberto para a revolu- mo, o socialismo, o comunismo,
a maçonaria, a separação entre a
ção comunista; para Alceu, a tentativa de conciliação de Maquiavel com o Igreja e o Estado, as liberdades de
catolicismo revela no livro a ausência de uma atitude filosófica e religiosa imprensa, de religião, em suma,
‘o progresso, o liberalismo e a
definida; o erro de Maquiavel não foi o maquiavelismo, mas o absolutismo: civilização moderna’”. (Miceli,
“A cisão entre a ordem natural e sobrenatural, que marca todos os desastres 2009, p. 18).

do mundo moderno, encontrou o seu intérprete no plano da política. [...]


Se invocarmos hoje a lição de Maquiavel, em vez de apelarmos para a de
Cristo e da sua igreja, cairemos no mesmo erro em que vem incidindo o
Ocidente há quatro séculos” (Lima, 1933, p. 183). Posições que revelam
grande contraste com as ideias da primeira etapa, quando afirmava que a

novembro 2011 3
Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso Lima, pp. 101-133

volta do espírito religioso “[...] é uma dessas cândidas utopias irrealizáveis


que só os fanáticos podem julgar exequíveis. Querer fechar os olhos para o
espírito moderno, bom ou mau, pouco importa [...] é cruzar os braços com
egoísmo energúmeno” (Lima, [1922] 1966k, p. 635).
Esta também foi a fase em que Amoroso Lima, após a morte de Figueire-
do, dirigiu o Centro Dom Vidal; foi braço direito entre os leigos do cardeal
Sebastião Leme, fundador da Ação Católica e da Liga Eleitoral Católica;
junto com o padre Leonel Franca, seu confessor, foi figura central na reestru-
turação da educação superior católica e serviu também como contrapeso à
laicização mesmo dentro do sistema público de universidades, criado nos
tempos de Gustavo Capanema. Em 1938, ocupou por alguns meses a reitoria
da Universidade do Distrito Federal (UDF) e foi nomeado catedrático de
literatura brasileira na Faculdade Nacional de Filosofia. Quando esteve na
reitoria da UDF, nomeou como catedrático de filosofia um teólogo, o padre
3. Como mostra João Luiz La- Maurílio Teixeira Leite Penido3.
fetá, já nos primeiros momentos
que sucedem a Revolução de
1930, rapidamente Alceu lança- 1938/1945-1964
se no debate doutrinário sobre os
A fase do católico que passou por um aggiornamento, aproximando-se
destinos da educação no novo
regime, argumentando sempre das tendências que culminaram no Concílio Vaticano II, cujo modelo de
no plano dos princípios: em
referência para a mudança foi Jacques Maritain que, na década de 1930,
1931, contra Azevedo Amaral,
que queria excluir do currículo havia se afastado dos católicos ligados à Action Française e, em um cená-
universitário a disciplinas me- rio em que predominava a adesão direta ao fascismo, elaborou, no plano
tafísicas, a teologia portanto; e
depois, em 1936, contra Arman- teológico-político, as justificativas que conduziram uma parte dos católicos
do Salles de Oliveira porque seus para o rumo da democracia.
argumentos sobre a universidade
estavam limitados ao espírito
O início do aggiornamento, no entanto, é de difícil datação; em Me-
liberal, republicano, democrata mórias improvisadas, ele afirma que começou em 1938, com a leitura de
e burguês, contrapondo a estes o
espírito cristão (cf. Lafetá, 2000,
Humanismo integral de Maritain e com a influência de Bernanos, exilado no
pp. 83-85). Brasil, depois de sua ruptura com os colaboracionistas na França ocupada;
mas, nesse mesmo livro, Amoroso Lima afirma também que comemorou
a vitória de Franco na Guerra Civil Espanhola, em abril de 1939. De fato,
humanismo integral e júbilo com o franquismo não fazem um bom par.

1964-1983
A fase do católico aberto ao tempo, à mudança, que se tornou um
paradigma da tolerância, da defesa das liberdades e do pluralismo, que
combateu de forma corajosa a ditadura de 1964 e passou a ser visto como
um exemplo de brasileiro que soube mudar com o tempo.

4 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Guilherme Simões Gomes Júnior

Estrutura e imitação prestigiosa

Foi sempre um tema difícil para biógrafos, memorialistas e para o próprio


personagem conciliar o militante católico ultramontano, que emergiu após
a conversão de 1928, e o homem aberto ao tempo, à mudança, amigo da
diversidade e das liberdades públicas, que apareceu, sobretudo, quando se
colocou na oposição ao regime militar que se instalou no Brasil em 1964.
Mas, nesse passo, há sempre a possibilidade de se recorrer ao efeito do tempo
e às transformações pelas quais passaram o mundo e a igreja no segundo pós-
guerra e de se postular a ideia de que Alceu soube ser homem capaz de rever
posições. No entanto, é também notável a mudança na passagem da primeira
para a segunda fase, do agnosticismo e do ceticismo crítico para a posição de
campeão da fé no combate do catolicismo contra a modernidade.
Ao criticar a tese da “falência da ciência”, defendida por Graça Aranha em
A estética da vida, Amoroso Lima afirmava que “Só tem o direito de desdenhar
ou de passar adiante da ciência aquele que a penetrou profundamente e pode
conhecer-lhe os limites” e contrapunha ao diletantismo filosófico de Aranha
“O trabalho paciente e atento do observador, o longo e penoso esforço de
coligir dados e buscar provas para as conclusões [...]” (Lima, [1921] 1966g,
p. 432). Alceu, dessa forma, expressava o seu racionalismo contra os excessos
de imaginação e a superficialidade de Graça Aranha. Por outro lado, no ano
seguinte – em crítica a um livro de Tristão da Cunha –, propunha uma classi-
ficação política e cultural que articulava os pares barbárie/civilização e direita/
esquerda. Entre exemplos de bárbaros de direita, apontava De Maistre, Riva-
rol, Bonald e, no Brasil, entre os bárbaros dos dois extremos, indicava Jackson
de Figueiredo e José Oiticica. É nítido nesse texto o elogio do civilizado e de
suas qualidades mestras: a simpatia, a franqueza, a compreensão do todo, o
controle das paixões e certo relativismo que supõe o mal inseparável do bem,
mas que opta claramente pelo último. Entre as qualificações do bárbaro de
hoje, aparecia a ideia de que este é um homem de moral e de ação. Com isso,
Alceu marcava com clareza sua distância de Jackson de Figueiredo, homem de
temperamento oposto ao seu que, no entanto, foi capaz de recrutá-lo para as
hostes dos homens de moral e ação, os bárbaros de direita (cf. Lima, [1922]
1966o, pp. 714-716).
Com isso, percebe-se que as mudanças de posição foram bastante acen-
tuadas; mais brusca na conversão de 1928, mais lenta, mas também radical,
no aggiornamento do segundo pós-guerra. Apesar disso, a suavização da
persona na última etapa foi tão bem-sucedida que é raro encontrar alguma

novembro 2011 5
Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso Lima, pp. 101-133

acusação de incoerência, de oportunismo ou referência a algum tipo de


problema de identidade.
Procurar resposta no âmbito exclusivamente pessoal é insuficiente e tem
sido quase sempre operação de tendência hagiográfica. Para o entendimento
desses passos, há que se articular dois elementos que me parecem essenciais.
De um lado, a estrutura que se desenha no processo de transformação dos
campos religioso e político, com a separação entre a igreja católica e o Estado
e com a formação do campo intelectual e artístico no Brasil das primeiras
4. A ideia de “imitação prestigio- décadas do século XX; de outro, a “imitação prestigiosa”4, que tem como
sa” deriva do estudo de Marcel
referência outro universo em que questões da mesma natureza se colocaram
Mauss ([1934] 1974) sobre
as técnicas corporais, no qual com anterioridade.
esta é tratada como elemento Como mostra Sergio Miceli, no plano religioso, a separação imposta entre
formador do habitus e que
pode ser traduzida para o plano Estado e igreja católica, pela República, em 1891, não implicou “uma espécie
da reprodução de disposições, de idade das trevas, prensada entre a extinção das prerrogativas desfrutadas
atitudes e esquemas intelectuais,
aproximando com isso a noção
no império [sob o regime do padroado] e a retomada do gás junto aos setores
de Mauss daqueles esquemas de governamentais cujas políticas afetavam de perto os interesses corporativos”
pensamento interiorizados de
que trata Bourdieu (1974, pp.
(Miceli, 2009, p. 10). De fato, a igreja viveu um “despertar institucional”
203-205). no decorrer da República Velha, com expansão territorial, novas dioceses,
seminários, escolas, em uma ação coordenada com setores dirigentes da oli-
garquia dos estados (Idem, p.11). Nesse sentido, o fortalecimento do laicato,
na década de 1920, primeiro sob a liderança de Jackson de Figueiredo e,
depois, de Alceu Amoroso Lima, não se deu por puro voluntarismo, mas
teve como base um clero renovado e institucionalmente bastante articulado.
Além disso, pode-se dizer que no Brasil a questão republicana, desde os
combates travados pelos intelectuais da geração de 1870, foi fortemente mar-
cada pelo avanço de ideias positivistas, pela ação desenvolta da maçonaria e
por um acentuado anticlericalismo. Se o conteúdo oligárquico da República
triunfou com o ocaso dos jacobinos, após o governo de Floriano Peixoto, é
certo que as promessas de laicização, sobretudo do ensino, continuaram em
pauta, até serem retomadas com vigor no período Vargas. As campanhas pela
“escola nova”, a ação dos médicos higienistas, o avanço dos estudos sobre o
Brasil dos sertões, marcaram profundamente a inteligência brasileira na ju-
5. Dois autores de enorme
importância no cânone brasileiro
ventude de Alceu Amoroso Lima5. Todos esses temas repercutiram de forma
que Alceu foi constituindo em constante na “crítica literária” de Tristão de Athayde, entre 1919 e 1922, o
sua crítica são Visconde de
Taunay de Retirada da laguna e
filho de um republicano jacobino e aluno de Sílvio Romero. Se a atração
Euclides da Cunha de Os sertões pelo oposto pode ser vista pela ótica da negação do pai, ela não se dá por
(cf. Lima, [1920] 1966a, p. 243)
que diz ter lido com imenso
uma simples escolha individual, entre tantas possíveis, mas tem sua direção
entusiasmo aos 15 anos de idade. definida por um efeito da reestruturação dos campos: a religião ameaçada

6 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Guilherme Simões Gomes Júnior

pela laicização republicana, a qual desloca o nexo moral da sociedade dos


fundamentos religiosos para a construção de uma ordem que se pretende
racional e desencantada.
Porém essa tensão, que opera como um imã, capaz de induzir mudanças
de posição e realinhar os protagonistas do mundo intelectual e artístico,
produz seus efeitos não apenas por sua lógica local, mas também orienta-
da por exemplos prestigiosos nos países centrais. Não se trata apenas do
fenômeno considerado tão brasileiro de, como diziam os espíritos críticos
da geração de 1870, “macaquear tudo que é estrangeiro”, e não se trata
apenas da absorção de um conjunto de ideias e práticas que circulam pelas
revistas e livros estrangeiros, que se reatualizam na arena histórica e política
brasileira. Chama a atenção aqui o efeito de replicação não apenas de ideias
ou posturas, mas de estruturas mesmo, na medida em que estas exercem
papel estruturante em outros contextos. Não se trata apenas de apontar, por
exemplo, para a mimetização de Jacques Maritain ou de outros personagens
notáveis da renovação católica francesa em Alceu Amoroso Lima – quando
lembra as conferências de Bergson, que assistiu em 1914, ele agrega: na-
queles mesmos bancos em que se sentaram Péguy e Maritain, uma década
antes –, isso é o que acontece no plano subjetivo da “imitação prestigiosa”.
Mesmo que nosso positivismo não fosse tão enraizado e a sociologia não
tivesse passado do estado de filosofia social, mesmo que o anticlericalismo
fosse uma atitude de grupos restritos (é notável o conteúdo imediato da
questão religiosa que abala o Império entre 1872 e 1875, que se dá em tor-
no do impedimento eclesiástico de frequência ao culto católico por gente
da maçonaria!), mesmo que aqui não estivesse em questão uma reforma
da Sorbonne, pois as universidades só viriam mais tarde, a arena política e
cultural brasileira acaba por desenhar uma estrutura de posições em muito
semelhante àquela que marcou os destinos da Terceira República na França
depois do affaire Dreyfus.
Isso torna inteligível a passagem da primeira à segunda etapa, desde que
se entenda que nem sempre a personalidade do agente precisa estar em
perfeito acordo com a posição que ocupa na arena das lutas culturais e po-
líticas. Cláudio Medeiros Lima, que faz uma boa apresentação de Memórias
improvisadas, revela a dificuldade (que não era apenas dele) de entender como
Alceu passa a ocupar o lugar de Jackson, um sujeito que andava armado
com a justificativa de fazê-lo para defender a igreja:

novembro 2011 7
Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso Lima, pp. 101-133

Jackson Figueiredo, um provinciano, foi sempre um ativista, um participante,


primeiro como estudante rebelde de tendências anárquicas e, depois, no Rio, como
jornalista e escritor polêmico, amando a boêmia, frequentando os cafés, nunca indo
dormir antes do amanhecer. Já o mesmo não se pode dizer de Alceu Amoroso Lima,
de educação aristocratizante, elegante de modos e de tratos, frequentando o melhor
da sociedade de seu tempo [...] (Medeiros Lima, 2000, p. 52).

Se a fixação de uma imagem oposta ao pai ajuda a entender, é a estrutura


que se cria no embate dos campos que oferece a melhor pista para se desfazer
a sensação de estranheza.
No que diz respeito ao relativo abandono da esfera estética para a atuação
mais incisiva no plano doutrinário – Alceu afirma que, em 1928, ocorre uma
passagem “da primazia do literário ao ideológico” (Lima, 2000, p.154) –, há
em O método crítico de Sílvio Romero de Antonio Candido um apontamento
de grande interesse. Se essa era uma tendência particular de Romero, coerente
com sua ideia de que, sendo sociológica, a crítica “tendia a ser social e acabava
normalmente numa política” (Candido, [1945] 1988, p. 118), no entanto,
essa tendência foi quase que uma constante em críticos das mais variadas
formações entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX:

O velho Taine escreveu Les origines de la France contemporaine, com um intuito


de doutrinação conservadora; Renan acabou os dias escrevendo utopias políticas;
Teófilo Braga inseriu a sua atividade intelectual na própria vida social portuguesa,
vindo a ser o primeiro presidente de uma república pela qual se bateu: De Sanctis
chegou à doutrinação liberal como consequência lógica do seu idealismo crítico;
Brunetière, Faguet, Lemaître, terminaram a vida na ação e no combate. Moderna-
mente, um enrolamento da crítica sobre si mesma, a par de uma consciência mais
exigentemente literária, nem por isso fez rarear o fenômeno. Um Eliot escreveu
Idea of a Christian Society, e o último livro que nos chega de Middleton Murry é
Christocracy. Edmund Wilson publica To the Finland Station, após Axel’s Castle, e
Tristão de Athayde, a Política e O problema da burguesia, após a série dos Estudos
(Idem, ibidem).

O que parece faltar nessa constatação é o exame do contexto em que se


deu cada uma dessas passagens da crítica à política, inclusive a que se refere
a Alceu, tendo como orientação a hipótese de que ou foram momentos em
que o campo literário não estava plenamente configurado, com suas regras
próprias, ou acossado pelo avanço do campo do poder ou da religião na

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Guilherme Simões Gomes Júnior

esfera cultural. Falta examinar, sobretudo, a lógica da produção do intelec-


tual, não no sentido daquele que exerce uma função ligada ao intelecto,
mas daquele que – notável em alguma atividade literária, científica, jurídica,
artística – vem à esfera pública combater por uma causa diante da qual não
se pode calar6. 6. Para Charle, é indissociável da
figura do intelectual a articulação
Assim como a palavra “intelectual” foi forjada para designar aqueles que
de três direitos: o direito ao es-
combateram pela revisão do processo que condenou Dreyfus, os detrato- cândalo; o direito de se associar
para dar mais força a uma causa;
res dos intelectuais – isto é, aqueles que se reuniram em torno da Action
o direito de reivindicar um poder
Française – também se constituíram em intelectuais. A justo título, Alceu simbólico derivado da acumula-

Amoroso Lima, como tantos jovens que seguiram as conferências de Berg- ção de títulos (cf. Charle, 1990).
Se essas foram características da
son no Collège de France, foi um recruta da robusta corrente católica que ação do “partido dos intelectuais”
gravitou em torno da Action Française. no caso Dreyfus, foram também
as de seus detratores.
Nesse aspecto, como mostra Gisèle Sapiro, há uma especificidade no
âmbito da literatura, que distingue o escritor do músico ou do artista, a saber,
sua politização acaba por se tornar um fator endógeno do campo, sobretudo
depois do affaire Dreyfus, quando cai em relativo descrédito a ideia de arte
pela arte e seu corolário, a torre de marfim, cujos representantes típicos eram
Gide e Valéry (mesmo Gide desce da torre ao aderir ao comunismo entre
1932 e 1937). A responsabilidade ética do escritor, tanto à direita como à
esquerda, passa a ser um elemento esperado pelo público e definidor de sua
autoimagem (cf. Sapiro, 1999, pp. 69-70). Esse aspecto, que, na França, se
acelera com a Primeira Guerra Mundial, no Brasil, começa a ganhar força
em meados da década de 1920 e envolve não apenas escritores, mas também
artistas e arquitetos, que vão aos poucos se distribuindo entre católicos,
integralistas, comunistas. Mesmo que não tenha sido exatamente assim, a
imagem que Alceu Amoroso Lima produz de si nos textos memorialísticos
quer mostrar sua primeira fase como sendo a de um crítico exclusivamente
preocupado com questões estéticas, na torre de marfim, da qual teria des-
cido para entrar no terreno dos combates ideológicos, atraído por Jackson
de Figueiredo.
“Estamos mais longe de 1907 do que de 1835”. Com essa frase cifrada,
Alceu começa a crônica “Aspectos brasileiros” (Lima, [1925] 1966x, p. 965).
Mas a cifra não é tão complicada. A ideia subjacente é que o momento
em que escreve apresenta no cenário social e político os mesmos riscos de
desagregação presentes no Brasil no início da Regência, em 1835. Não são
feitas alusões ao tenentismo, à Revolução de 1924 em São Paulo, à Coluna
Prestes, porque desnecessário para o leitor contemporâneo. O ano de 1925,
vivido então, é o oposto de 1907, data que simboliza no texto a estabilização

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Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso Lima, pp. 101-133

da República, com a capital reformada e o crédito restabelecido, cercada por


“Tranquilidade. Trabalho” (Idem, ibidem). Os artigos anteriores haviam sido
dedicados a uma detalhada exposição sobre o comunismo, particularmente
sobre a Revolução Russa. A fonte, Werner Sombart. Vinte e cinco páginas
muito bem-informadas, seguindo a ideia de que “devemos considerar aten-
tamente a Rússia, para nos prepararmos para o formidável embate a que
provavelmente vai assistir este violento século XX. E para nos defendermos
da mecanização comunista” (Lima, [1925] 1966v, p. 941). O diagnóstico
central é simples: “A Rússia está assim. A cabeça macrocéfala é o Partido
Comunista, ou, como diz o próprio Zinovief: ‘O Partido Comunista dirige
os soviets. Ele é o cérebro do governo soviético... Os soviets são o tronco, o
Partido, a cabeça’” (Idem, p. 963). E a conclusão é clara:

O que desde já podemos dizer é que a humanidade só escapará da servidão comu-


nista, no terreno econômico, pela renúncia inteligente ao mito judaico e manches-
teriano da liberdade absoluta da ação. Como no terreno estético, ainda mais no
terreno social, o problema moderno, por excelência, é o da consciente limitação
da liberdade abstrata para a conquista das verdadeiras liberdades concretas (Idem,
ibidem).

Com isso, está a acabar a disponibilidade do “crítico literário” e entra em


cena o homem de ação e de moral pronto a combater a nova desordem. Esse
diagnóstico do Brasil e do mundo precede a conversão.

Antes do “adeus à disponibilidade”

João Luiz Lafetá faz um inventário dos escritos de Alceu Amoroso Lima,
entre 1929 e 1941, e mostra que, nesse período, o projeto ideológico tomou
o lugar do projeto estético : dos 79 artigos que Alceu escreveu sobre letras,
apenas trinta são de crítica literária. Na primeira fase, é certo que o exame
da literatura predominava, mas é notável a constância de escritos sobre pro-
blemas brasileiros e, mesmo na crítica literária, estes quase sempre acabavam
por aparecer. A preocupação social e política, as incursões pela história do
Brasil, são uma marca muito presente também do jovem Alceu. O retrato
da cultura do país que se desenha nos textos busca quase sempre penetrar a
alma brasileira, entidade muito invocada, e esta é estruturada por meio de
polarizações: Machado (sóbrio, frio, humorista) versus Euclides (opulento,
caloroso, eloquente), universal versus local, clássico versus romântico, in-

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Guilherme Simões Gomes Júnior

dividualismo versus gregarismo, litoral versus sertão: “não haverá em todos


nós um pouco do idealismo aventureiro dos jangadeiros e do realismo ma-
licioso do sertanejo?” (Lima, [1920] 1966c, p. 272). Do ponto de vista da
língua portuguesa, a que é falada no Brasil se distingue progressivamente
porque “A vida, a língua e a literatura regionais são as verdadeiras células
dessa revolução idiomática” (Lima, [1921] 1966d, p. 305). Esta não é
uma digressão ao acaso, pois se liga ao processo de formação da literatura
brasileira, tal como é pressuposto nos escritos de Alceu: “O sertanismo, em
nossa literatura, é certamente a sua face mais original. Outras haverá mais
ricas, mais compreensivas, mais formosas; dessa porém é que data afinal a
nossa emancipação literária [...]” (Lima, [1920] 1966e, p. 366). Nessa toa-
da, Alceu formula sua dialética do localismo e do cosmopolitismo : “[...] tem
a nossa literatura nacional o aspecto de luta contínua entre o espírito local
e as influências estranhas – caráter que deverá prevalecer ao traçarmos sua
evolução na história [...]” (Lima, [1921] 1966h, p. 462). No estudo sobre
Afonso Arinos, essa dialética é melhor explicitada:

No correr de toda nossa história literária, foi o contato da literatura importada com
esse elemento local [...] que provocou a diferenciação nacional de nossa literatura
e especialmente de certas figuras literárias. Daí nasceram o “americanismo”, mais
tarde o “brasileirismo” e afinal o “regionalismo”, formas cada vez mais acentuadas
do espírito local (Lima, [1922] 1966j, p. 588).

O “americanismo” remete aos tempos de Gregório de Matos e se acentua


com a Escola Mineira. Mas esta já começa a apresentar traços do “brasileiris-
mo”, sobretudo com Basílio da Gama, traços que iriam redundar no india-
nismo romântico. Há também um “brasileirismo urbano”, cuja figura central
7. Não muito depois de escre-
é Manuel Antonio de Almeida, e o “regionalismo”, o qual se abre ainda na
ver “Afonso Arinos”, Alceu já
pena dos românticos e que, com seus tipos locais – o sertanejo, o matuto, o indica um certo esgotamento do

garimpeiro –, ganha sua “verdadeira fibra” durante a Guerra do Paraguai e as sertanismo, sobretudo porque o
clima nacionalista da época acen-
experiências que esta suscitou. Nesse ponto, Alceu traça um paralelo entre tuou a busca de tipos genuina-
Argentina e Brasil. Neste, quando o romantismo cede ao realismo e se abre mente brasileiros. Começaram
a só “ter interesse vaqueiros ou
o veio da literatura regional, “no mesmo ano em que Taunay publicava aqui matutos, poemas em dialeto e
sua Inocência, primeira obra em que o sertão se revela como é, vinha à luz na peças de pseudoteatro em que
era feita a apologia do sertão. O
Argentina um poema, que ficou até hoje como arquétipo da literatura gau- Brasil era apenas o sertanejo e logo
chesca: o ‘Martin Fierro’ de José Hernandez [...]” (Idem, p. 589)7. surgiu uma espécie literária ainda
sobrevivente, a do sertanejo de
E Visconde de Taunay ocupa no pensamento de Alceu um lugar de salão[...]” (Lima, [1923] 1966r,
destaque. A polarização entre o universal e o local não é apenas uma chave p. 806).

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Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso Lima, pp. 101-133

classificatória que separa indivíduos, tendências e que oscila entre épocas.


Ela própria é uma tensão, altamente fecunda, da qual deriva a “tragédia
da consciência”. A descoberta do sertão que acontece na crise do Império,
durante e depois da Guerra do Paraguai, não se dá mais na chave do pito-
resco, do ornamental, ela abre uma espécie de consciência do Brasil que até
então as gerações anteriores não tinham vivido. Depois de Canudos, essa
consciência se torna mais aguda. Alceu indica a presença de três aspectos
essenciais: o problema da terra, da luta pela terra; o problema do despertar
dos humildes, que começam a ser alcançados pela instrução e pela higiene, e
o problema da consciência: “A luta pela terra será fisicamente mais dolorosa,
mas a tragédia da consciência, solicitada pela cultura à imitação de moldes es-
trangeiros e forçada pela observação, pelo raciocínio e pelo instinto, à criação
de categoria novas, tem por certo, ainda quando interior, uma intensidade
dramática moralmente superior” (Lima, [1920] 1966b, p. 247). Taunay é
figura emblemática, pois é como a resolução desse conflito, na medida em
que nele prevalecia o universalismo, de sua refinada formação francesa e de
seu domínio literário de acentuado aticismo; no entanto, foi aquele que, ao
se embrenhar pelo Brasil, sobretudo na experiência dramática da Guerra do
Paraguai, realizou as observações mais agudas sobre a realidade do sertão,
antes de Euclides da Cunha. Como arremata Alceu, em outro escrito, “nele
se fundiu o espírito europeu com o sentimento brasileiro, resultando uma
figura literária inata e peculiar, sem realismo nem artifício” (Lima, [1921]
1966i, p. 470). Para o crítico, Taunay ao mesmo tempo em que, na crônica
de viagem e no romance, deixava o sertão falar em sua própria linguagem,
“fez a guerra do Paraguai, escrevendo ao pai em francês” (Lima, 1966j, p.
559), desde os lugares mais remotos pelos quais passaram as tropas. Nele
8. Ao tratar do “mal de Nabuco”, está expressa a polarização, mas não a “tragédia da consciência”, que é mais
Alceu polariza sentimento e
clara em Nabuco, no qual “parece dominar o universalismo, e a despeito
razão, o primeiro leva à terra, o
segundo, à Europa. A polarização de toda a ação local ou antes nacional que exerceu, orienta a sua obra um
em Nabuco é entre sentimento espírito largo de cultura, uma preocupação de generalidade, um sopro de
e imaginação – “O sentimento
em nós é brasileiro, a ‘imaginação humanismo” (Idem, ibidem). Nabuco posiciona-se assim no polo oposto
europeia” –, mas esta só floresce a Afonso Arinos, que, apesar de ter vivido tanto o Brasil do interior como
com a elevação cultural que faz
perceber que “pertencemos à
longas temporadas na Europa, nada recebeu do universalismo. O “mal de
América pelo sedimento novo, Nabuco” é expressão que aparece na crítica de Alceu, de forma direta ou
flutuante, do nosso espírito, e à
Europa, por suas camadas estrati-
por perífrase. Chega a ser utilizada para indicar atitude provinciana, mas,
ficadas. Desde que temos a menor no geral, refere-se à questão brasileira por excelência. O sentimento liga o
cultura, começa o predomínio
destas sobre aquele” (Nabuco,
escritor à terra, de onde deriva sua energia; a razão8 o leva a reconhecer que
1999, p. 49) é parte de uma cultura maior, densa de inúmeras camadas, que aportou no

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Guilherme Simões Gomes Júnior

Brasil, mas que aqui ainda é rala e tênue. Atração pelo mundo. Mais tarde,
essa polarização acaba por ser invertida em outra formulação de Alceu:

[...] é nessa luta entre as tendências locais da razão e a atração alienígena do sentimento
que reside o caráter mais distintivo de nossas letras. Ao contrário do que dizia Na-
buco, em literatura somos europeus de sentimento e brasileiros de razão. A cultura
também é uma segunda natureza. Seduzidos por ela nos sentimos acanhados no
meio americano, ao passo que a razão nos mostra que só nele reside a esperança de
nossa possível originalidade (Idem, p. 825, grifos meus).

Descortina-se nesse passo o racionalismo construtivo de Alceu Amoroso


Lima, o seu caráter empenhado em fazer o Brasil com a literatura. Antes
dele, José Veríssimo tinha dado a esse dilema uma resposta mitigada ao
indagar se Nabuco estava por inteiro certo “julgando ‘estéril a tentativa de
criarmos uma literatura sobre as tradições de raças que não tiveram nenhu-
ma’, e pensando que ‘a literatura brasileira tinha principalmente que sair de
nosso fundo europeu’” (Veríssimo, 1977, p. 87). Para Veríssimo, as tradições
locais, mau grado sua pobreza, podem trazer elemento ou subsídio novo,
como é o caso da literatura regional, mas apenas quando esta “se libertar de
preconceitos bairristas [...] e for superiormente espontânea e sincera” (Idem,
ibidem). Em Alceu, não se trata apenas de subsídio novo para uma literatura
velha, mas de uma diferenciação que alcance o caráter de originalidade. Mas
isso não significa uma perspectiva nacionalista que implique em negar por
completo o outro polo da alma brasileira caracterizada pelo “britanismo
naval”, que corresponde à assimilação e à admiração incondicionais de
modelos estranhos (cf. Lima, 1966c, p. 272). Isso não se apaga com puro
voluntarismo, ao contrário, a superação da “tragédia da consciência” está
em manter a abertura para o que vem de fora, assim como não tratar o
sentimento como atavismo, mas transformá-lo, em perspectiva racional,
na busca por uma literatura que seja simultaneamente local e universal.
Como no bom exemplo de Taunay, que realizou “obra ungida de aticismo
e repassada de regionalismo” (Idem, p. 248).
Nessa perspectiva, Alceu Amoroso Lima traça uma sequência histórica
da formação da literatura brasileira que implica em um caminho de fora
para dentro – americanismo, brasileirismo, sertanismo – e supõe um olhar
que conduz do geral ao particular. A ideia subjacente é que a literatura
brasileira continua a tradição latina, filtrada por Portugal, o que remete
tanto a uma visão rotineira no pensamento literário da geração de 1870,

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Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso Lima, pp. 101-133

como também à visão com a qual, mais tarde, Antonio Candido abre
Formação da literatura brasileira: “Nossa literatura é galho secundário da
portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das musas [...]”
(Candido, [1945] 1981, p. 9). No entanto, há em Alceu uma perspectiva
que embaralha esse processo de relativa linearidade. “Não começando pelo
começo, temos hoje, lado a lado, começo e fim. [...] não possuímos uma
velocidade uniforme de marcha. Possuímos várias velocidades. O Brasil tem
muitas idades” (Lima, 1929, p. 60). Com essa visão, Alceu afina seu ataque
à ideia de que somos primitivos, que julga estar presente na radicalização
modernista de Oswald de Andrade, no momento da poesia pau-brasil.
“Somos uma nacionalidade feita de cima para baixo. Tivemos o supérfluo
antes de ter o necessário. Coroa antes de povo. Academias antes de folk-
lore. Luxo antes de riqueza. Somos uma nacionalidade precipitada” (Idem,
ibidem). Digo aqui “afina”, porque o ataque já havia sido feito em 1925
e teve três alvos paulistas. Além de Oswald e Mário de Andrade, também
Sérgio Buarque de Holanda.
As críticas de Alceu de 1921, Afonso Arinos, que é trabalho de mais fôlego
publicado em 1922, e os rodapés deste mesmo ano, não indicam grande
envolvimento com o movimento modernista. Predomina a mesma visão
ampla que vai da história à sociologia, à literatura brasileira do século XIX,
à literatura estrangeira, à interlocução constante com os anatolianos – o
acompanhamento do que se publica na hora. Em janeiro, faz um elogio
a Menotti del Picchia sem, no entanto, qualificá-lo ou associá-lo a movi-
mentos ou correntes. Em texto de junho de 1922, quando fala de “Escola
Paulista”, está se referindo a “uma plêiade de escritores que nesse século, e
mesmo desde a última década do século passado, vem lentamente criando
o ambiente intelectual da Pauliceia, que circunstâncias mais remotas con-
correram também para tornar fecundo” (Lima, [1922] 1966n, p. 690).
Da “nova geração paulista” afirma que uma de suas características é que os
poetas são subjetivistas e os prosadores nacionalistas. Está certo que aqui a
9. A resenha crítica em questão
é do livro de João Pinto da Silva, voz não é exclusivamente de Alceu, mas dos livros que resenha, por meio
Fisionomia de novos, de 1922, que dos quais expõe e afina seu pensamento9. Na Escola Paulista estão Monteiro
Alceu considera deficiente no
que diz da Escola Paulista, mas
Lobato, Hilário Tácito, Godofredo Rangel, Leo Vaz, Guilherme de Almei-
os aditamentos e correções que da, Martins Fontes, Afonso Schimidt, Menotti del Picchia, Paulo Setúbal,
faz não colocam em questão a
divisão entre os modernistas e os
Cornélio Pires, Amadeu Amaral. Apesar de alguns modernistas estarem
que vieram antes e foram muitas citados, não há referência à Semana, ocorrida em fevereiro, e nem mesmo
vezes reativos ao movimento. A
imagem da Escola é a de um
Mário de Andrade ou Oswald de Andrade são referidos, figuras que naquele
continuum. momento já tinham algum destaque fora de São Paulo.

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Guilherme Simões Gomes Júnior

Poucos dias antes da Semana, escreve sobre a história da literatura


brasileira tendo como centro a questão: “Estará o Brasil no caso de ‘ainda’
repelir o passado?” E a resposta é prudente: “Não sou pela repulsa, mas
pela precaução pelo passado. Muito maior tem sido, para as nossas letras,
o mal da imitação e do receio que o da audácia e da originalidade”; mas,
mais adiante, pondera: “não pode haver literatura sem tradição, pois, esta é
a sua própria alma” (Lima, [1922] 1966 l, p. 637). Ainda em maio de 1922,
explicita seu expressionismo crítico10 ao defender a tese da forte ligação entre 10. O conceito e o método da
crítica expressionista estão de-
literatura e vida interior, que se manifesta por meio de um estilo, mas não finidos na introdução a Afonso
despreza em nada o trabalho paciente e a disciplina da linguagem. Se escrever Arinos : não se vincula à corrente
estética alemã, dita também ex-
é o aflorar de um grande movimento interior, “polir o estilo é procurar a
pressionista; a referência principal
personalidade, e como o nosso eu verdadeiro é quase tão difícil de atingir e é Benedetto Croce, mas também

de exprimir quanto o de um estranho, não admira que escrever bem seja um se vale da psicanálise e supõe
ainda uma espécie de interpene-
lento trabalho de destilação ou de apuração, que observadores superficiais tração anímica entre o crítico e o
podem confundir com simples exercícios gramaticais [...]” (Lima, [1922] autor. No entanto, esse método
não deve ser superestimado; em
1966m, p. 683). Afonso Arinos, de fato, ele sus-
Com isso, vai se fixando a imagem de um crítico moderno, à procura da tenta a análise, porém, na crítica
rotineira, as premissas dele apenas
originalidade da literatura brasileira, mas em constante diálogo construtivo ecoam. Um curto, mas certeiro
com a tradição; um crítico favorável às experiências renovadoras, mas em comentário a respeito desse mé-
todo crítico pode ser lido em
nada iconoclasta. E, sobretudo, um crítico de clara orientação clássica, avesso Candido (1983).
à retórica, ao gramaticismo, mas adepto do trabalho estilístico, do polimento
da linguagem, não como recursos ornamentais, mas como elementos deci-
sivos da expressão da personalidade. Modernismo ático.
Apenas em janeiro de 1923 é que Mário e Oswald de Andrade aparecem
pela primeira vez nos escritos de Alceu Amoroso Lima. Artigos elogiosos, mas
com certa distância. Em face deste “malcrismado ‘futurismo’”, declara-se an-
tes de mais nada “eternista”. Pauliceia desvairada ; Os condenados. Diante des-
ses livros lhe fica a impressão de um Mário mais “fremente de impaciências,
sonoro de imprecações”, em face de um Oswald “mais sereno, porque apenas
construtivo” (Lima, [1923] 1966q, pp. 773-775). A recepção do crítico é
positiva, mas não deixa de apontar o “defeito orgânico desse modernismo”:
“a sua transplantação”, e sobre isso deixa claro que o élan que conduz Mário é
coisa de antes da guerra, enquanto a tendência corrente no momento “é uma
volta à disciplina sem sacrifício da renovação” (Idem, p. 768). Para Alceu, Má-
rio conseguiu corajosamente quebrar convenções e expressar como ninguém
as características de São Paulo: a trepidação, a variedade, a intensidade da vida.
“Mas é São Paulo, e o defeito desse impressionismo é chegar ao regionalismo
urbano, de modo que seu livro só pode ser compreendido em seus pormeno-

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Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso Lima, pp. 101-133

res, em suas alusões constantes às coisas locais, por um paulista ou habitante


de lá” (Idem, p. 771).
Depois disso, um longo silêncio. Alceu volta a tratar dos modernistas
de São Paulo apenas em 1925. Há uma série de artigos que começa em
março e termina em julho. Os títulos são sugestivos: “O suprarrealismo”,
“Literatura suicida”, “Um girondino do modernismo”. Depois desses arti-
gos, predominantemente literários, vem aquele, já referido acima, sobre o
comunismo. O efeito de contiguidade não é casual, mesmo porque na crítica
ao suprarrealismo a ligação literatura/sociedade é claramente postulada e já
se explicita a ideia de continuidade entre individualismo, homogeneização,
progresso do socialismo, comunismo. A porta aberta pela Revolução Francesa
conduz inevitavelmente à Revolução Russa.
A crítica ao suprarrealismo é complexa e meditada, mas também mordaz.
Contudo, não há espaço para explicitá-la, apenas dizer que chama a atenção
o fato de Alceu demonstrar um conhecimento decantado da psicanálise,
o que está por detrás de sua tentativa de deslegitimar o recurso, no plano
estético, dos automatismos e outras técnicas do aflorar do inconsciente como
11. Um dos motivos do elogio princípio gerativo da obra de arte11. Na beira do abismo, os suprarrealistas
de Antonio Candido a Alceu
“anseiam por escrever sem pensar [...] sem perder a hora dos cabarés ou
Amoroso Lima é o bom uso que
este faz da psicanálise em sua crí- faltar aos dancings. Ou pior ainda, [fazem] da arte serva servil dessa farân-
tica expressionista, já em 1922,
dola desmiolada e alvar de uma civilização que se suicida” (Lima, [1925]
no escrito sobre Afonso Arinos:
“Verdadeiro feito, de grande 1966S, p. 904).
rendimento interpretativo, foi o E o suicídio chega ao Brasil por aqueles que em São Paulo colocaram-se em
mencionado recurso à psicanáli-
se, através do conhecimento de posição submissa ao modernismo destruidor europeu. O alvo é a poesia pau-
Freud e de Jung” (Candido, 1996, brasil de Oswald de Andrade. Curiosamente, o jogo se inverte. Nessa rodada,
p. 76).
Oswald passa ser a ameaça e Mário não parece preocupar por demais a Alceu.
A avaliação muda bastante, mesmo que seja perceptível que, no artigo de
1923, certas características de Mário eram apenas toleradas pelo crítico. Agora
então ele explicita o que estava contido: sua poesia “[...] ainda está longe do
que virá a ser, dentro de alguns anos, quando se cansar de seu ‘desvario’, de sua
demagogia regionalista, do prosaísmo forçado, desse tormento pirandelliano
da multiplicidade que o persegue [...]. A poesia do Sr. Mário de Andrade é um
potrinho selvagem que ele ainda não soube domar” (Lima, [1925] 1966z, p.
989). Dessa forma, os problemas de Mário não são apresentados como coisas
de grande complicação, resolvem-se com a maturidade (lembre-se aqui que
tinham a mesma idade, ambos na casa dos 32 anos).
O que preocupa em Oswald é a progressiva repercussão que seu mani-
festo estava a ganhar, depois de uma relativa invisibilidade no momento

16 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Guilherme Simões Gomes Júnior

de sua divulgação (essa avaliação é do próprio Alceu). Aquilo que criticara


no suprarrealismo francês estava a abrir caminho no Brasil, com seu cará-
ter dissolvente. Alceu não explica de forma clara a razão do perigo, nesse
sentido acaba por superestimar Oswald. Diz que a poesia pau-brasil não
merece ser ridicularizada, pois isso seria jogar a favor dela, mas passa bom
tempo indiretamente demonstrando que os poemas de Oswald beiram à
“palhaçada”. De fato, percebe-se que Oswald, com seus blefes e trejeitos
de feiticeiro, suas declarações bombásticas de fadiga de cultura e fadiga de
sabença, com seu elogio da estupidez na figura de Serafim Ponte Grande
(que não passa uma forma hiperbólica de denúncia da estupidez) pareceu
ir longe demais para Alceu, que começa a se comportar cada vez mais como
uma espécie de árbitro da geração, com grande poder de fogo, pronto a de-
monstrar – com um minucioso conhecimento das correntes da vanguarda
europeia (alemã e francesa) – o quanto expressionismo (aqui não se trata da
crítica expressionista à qual Alceu se filia), dadaísmo, surrealismo e poesia
pau-brasil implicam em suicídio da civilização.
Também chama a atenção a crítica de Alceu a Sérgio Buarque de Ho-
landa. De novo em torno do suprarrealismo. No terceiro número da revista
Estética, Sérgio fez sua crítica à atmosfera irrespirável da civilização letrada
e bradou por uma nova perspectiva:

Hoje, mais do que nunca, toda arte poética há de ser principalmente – por quase
nada eu diria apenas – uma declaração dos direitos do Sonho. Depois de tantos
séculos em que os homens mais honestos se compraziam em escamotear o melhor
da realidade, em nome da realidade temos de procurar o paraíso das regiões ainda
inexploradas [...]. Só à noite enxergamos claro (Holanda apud Lima, 1966z, p. 991)

Para Alceu, isso não passa de um pensamento covarde ou desesperado,


o fruto de uma incapacidade de ser homem, seguro de suas capacidades
racionais. E mais uma vez acusa a corrente de interpretação falsa da psica-
nálise; a psicanálise significou um avanço da consciência, que se apodera do
subconsciente e mostra que não há arbitrariedade em nosso mundo mental.
Para Alceu, a psicanálise não é um convite para que as forças e as matérias
do subconsciente invadam a esfera da consciência como propunham as
estéticas vanguardistas.

Isso de impor à poesia um cultivo intenso dos sonhos é apenas arte poética para
poetas sem poesia. A inspiração é uma fonte incessante que os verdadeiros poetas

novembro 2011 17
Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso Lima, pp. 101-133

precisam refrear. Só os poetas sem inspiração, sem poesia, sem ter o que dizer, só os
poetas de viagem ou de salão é que podem socorrer-se desses direitos inalienáveis do
sonho e hão de passar a vida suando sobre o inconsciente para que este lhes forneça,
a muito custo, algumas gotinhas de poesia. O suprarrealismo foi um recurso de
desesperados (Lima,1966z, p. 991).

Contra a ideia de Sérgio Buarque de que no subconsciente está a lei da


vida, o crítico vê nele a lei da morte. Alceu traz à cena um trecho de carta
de 28 artistas suprarrealistas endereçada a Claudel, no qual aparece o grito
de uma geração que viveu a guerra e que clama para que as revoluções e as
guerras destruam a civilização ocidental, sendo esta a solução menos ina-
ceitável no contexto em que viviam. A última frase do trecho escolhido é
de completo ceticismo: “Le salut pour nous n’est nulle part ” (Idem, p. 992).
Alceu não se insurge contra o conteúdo dessa carta, para ele o grito é sincero
e revela o real desespero de uma geração que viveu a guerra e vê o mundo
sendo conduzido para outra. Nesse ponto, há uma espécie de aceitação do
suprarrealismo como resultado de um impasse civilizatório, a admissão de
que seus equívocos fazem sentido naquele contexto europeu. “Mas nós,
nós aqui... O que há de grotesco em nosso caso é isso. Por um século nos
habituamos a imitar [...]” (Idem, ibidem). O surrealismo que se ensaia no
Brasil é um surrealismo de imitação, não há drama histórico, não há solo
que o justifique.
E o problema da imitação reaparece também no primitivismo de
Oswald de Andrade, cujo programa Alceu encontra nos letrados e artis-
tas franceses de duas décadas antes. Depois de transcrever um escrito de
Maurice Denis, no qual o interesse e o culto ao primitivo são justificados
em 1904, na mesma época em que essa palavra de ordem era abraçada
por Apollinaire ou por pintores como Dérain, Matisse, Picasso, Vlamink,
Alceu denuncia em chave irônica: “Viajaram de bote” (Idem, p. 995).
Chegaram ao Brasil vinte anos depois.
Por conhecer em muito a literatura e a vida literária brasileira – não só
romance e poesia, mas também o ensaio e a crítica –, por dominar com sua
disciplina e seus dotes linguísticos (francês, inglês, alemão, italiano) uma
vasta literatura europeia em vários campos das letras e humanidades, Alceu
estava preparado para o exercício constante de colocar em relação o que se
produzia no Brasil. Relacionar e, portanto, relativizar o que se passava no
momento, em face do que veio antes; relacionar as tendências locais com
suas fontes estrangeiras, o que implicou, muitas vezes, em apontar blefes,

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Guilherme Simões Gomes Júnior

inconsistências, importações pouco refletidas. Nesse plano, foi um crítico


severo e mordaz da aura que o modernismo paulista vinha criando em torno
de si, centrada nas ideias de ruptura radical e de capacidade de instituir um
novo começo para a cultura brasileira.
Se em torno da questão do “mal de Nabuco” fica clara a tendência
racionalista de Alceu, isso se reforça nas críticas ao surrealismo, nas quais
ressalta sua inclinação clássica. Alceu Amoroso Lima soube perfeitamente
distinguir-se do classicismo dos gramáticos e dos retóricos, do culto par-
nasiano a gregos e latinos, da poesia bem-posta e escolar que vicejou na
belle époque brasileira. Voltar ao classicismo seria como que uma volta aos
cadáveres, às estátuas. Não é bem um simples jogo de palavra, mas o que ele
propõe é uma “ida ao clássico” e não uma volta ao clássico (Lima, [1925]
1966t, p. 924). O classicismo não é então uma regra ou um modelo que
devem ser restaurados, não é também a negação do romantismo. Entre os
dois a lógica é de sucessão e não de negação. No caso da discussão anterior,
relativa à dimensão do inconsciente, se o romantismo é a descida a ele, o
clássico é o retorno à consciência:

Ser clássico é clarificar o espírito, é submeter a criação à crítica, é absorver o roman- 12. Trata-se de uma visão do
classicismo bastante original no
tismo ambiente, o romantismo profundo do nosso subconsciente, o romantismo contexto em que foi formulada.
das forças de dissolução, de anarquia, de hesitação, de paixão e de exuberância, que Entre as noções de barroco e clás-
sico, romântico e clássico, predo-
andam esparsas no mundo exterior, e no nosso mundo íntimo, para coordená-las, minava a polarização (normativa,
depurá-las e chegar à essência e à expressão (Idem, p. 925). antinormativa ou simplesmente
analítica como a de Wölfflin).
A discussão avança em muito
Um pouco como Goethe de quem se diz que foi clássico depois de quando Spitzer, em 1931, em
seu estudo sobre Fedra de Raci-
romântico. O clássico supera o romântico, mas sem suprimi-lo12. Não se ne, introduz a noção de klassische
trata, portanto, de um classicismo canônico, mas de uma disposição, de Dämpfung, que tem o sentido de
“atenuação clássica”, ou “efeito de
uma disciplina que tira a energia das forças vitais, pretendendo, contudo,
surdina”. Essa noção foi essencial
dominá-las. É isso que Alceu Amoroso Lima apresenta no horizonte de sua para o entendimento do século

geração quando dos combates generalizados da década de 1920. XVII francês, pois só por meio
dela a França deixou de ser vista
como uma fortaleza clássica cer-
Debandada modernista cada de forças barrocas por todos
os lados. Com essa chave, Spitzer
conseguiu demonstrar que Ra-
Não é possível aferir por completo o papel e a dimensão que as críticas de cine foi um poeta barroco que
conseguiu submeter o fluxo das
Tristão de Athayde tiveram na desarticulação que o movimento modernista forças vitais à medida clássica (cf.
viveu a partir de 1925. Isso porque houve tiroteio de todos os lados. Havia Spitzer, 1970). A ideia de classi-
cismo em Alceu segue a mesma
sem dúvida uma questão de disputa entre os dois polos do campo intelectual lógica, mas operando com os ter-
e artístico que se formava. O Rio de Janeiro era capital cultural, de longa data, mos romântico e clássico.

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Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso Lima, pp. 101-133

costurada por instituições, grupos, rotinas e, sobretudo, por ser a cabeça do


corpo político, o maior contratador de letrados e demandante de operações
simbólicas. Havia sem dúvida uma esfera pública intelectual e artística no
Rio de Janeiro. A ABL, fundada em 1897, dera um fecho, ou uma cúpula,
ao sistema e garantira a ele, como instância de consagração legitimada, certa
estabilidade. Um de seus grandes feitos, sob a zelosa direção de Machado de
Assis, foi o recalque da boêmia (cf. Broca, 1975, pp. 7-19) e a estabilização da
figura do escritor como um indivíduo integrado. Como elite literária, a ABL
irradiou um padrão que passou a orientar carreiras. São Paulo ainda era uma
província, onde o barulho do modernismo de 1922 dava a falsa impressão de
que a cidade tinha lastro cultural, mas tudo nela era por demais improvisado.
A face mais estridente do modernismo veio de São Paulo, onde foram
dados os primeiros passos. Pode-se dizer que o caráter secundário da cidade
e sua fraca articulação interna foram solo fecundo para que a vertente mais
radical prosperasse. É interessante notar que, por motivos relativamente
aleatórios, os vínculos dos paulistas com os cariocas, que já existiam antes
da Semana – sobretudo a sintonia entre Mário e Bandeira –, estreitam-se
mais ainda com a transferência de Sérgio Buarque de Holanda (por razões
familiares) em 1921. Lá ele se junta com Prudente de Morais, neto, e Afonso
Arinos de Melo Franco. Os três envolvidos na edição de Estética, na qual co-
laboravam também os “acadêmicos modernizantes” (a expressão é de Sérgio
para designar o grupo composto por Graça Aranha, Ronald de Carvalho,
Renato Almeida, Guilherme de Almeida). Fica claro que o polo dinâmico
paulista abre uma cunha no coração do mais importante ambiente literário
carioca e mesmo nas imediações do clã ao qual pertencia Alceu e no qual
este se firmava, com uma excelente dicção, como o maior expoente crítico.
Manuel Bandeira era sobrinho de João Carneiro de Souza Bandeira, acadê-
mico e mentor de um salão literário (cf. Lima, 2000, p. 64; Broca, 1975 p.
28) frequentado por Alceu; Afonso Arinos de Melo Franco era sobrinho do
autor de Pelo sertão, o padrinho de Alceu no mundo literário; Prudente, de
família presidencial, mais orientado para a boêmia, era, no entanto, muito
bem-relacionado. Por meio deles, abria-se no Rio de Janeiro uma estrada
por onde passou, sobretudo, Oswald de Andrade, o homem do pau-brasil.
Além desse grupo, também Guilherme de Almeida transferiu residência para
a cidade, depois do casamento em 1922, onde permaneceu por cerca de dois
anos (cf. Barbosa, 1988, p. 35). Mas estava do lado oposto da radicalização
em curso, era o maior representante dos girondinos, na designação de Alceu,
que também previa um deslizamento de Mário de Andrade para esse centro,

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Guilherme Simões Gomes Júnior

afinal ele defendera “o predomínio positivo da inteligência sobre a intuição”,


o que já era um bom sinal (Lima, [1925] 1966u, p. 928)13. 13. Na crítica a Mário, Alceu-
levanta a tese do regionalismo
Em “O lado oposto e outros lados”, texto que foi uma espécie de esto-
paulista subjacente à poesia dos
pim da implosão do movimento modernista, Sérgio Buarque de Holanda modernistas de São Paulo. Isso
é importante, porque visa retirar
deixa clara a grande divisão que se formou (cf. Holanda [1926] 1988b).
a aura de universalidade dos
Um texto estabanado, que provocou reações de todo lado, inclusive dos paulistas, ou melhor, desacreditar
aliados, pois Mário de Andrade não se sentiu bem-representado no “nós” de sua capacidade de falar pelo
Brasil, contestando com isso a
invocado contra os outros, os acadêmicos modernizantes. Sérgio colocou pretensão de liderança nacional.
a tropa em combate sem avisar inclusive os mais graduados. Estabanado
também porque mostra o quanto o autor havia sido dissimulado ao elevar
Graça Aranha à condição de “um homem essencial” (cf. Holanda, [1924]
1988a). Foi do louvor ao vitupério sem muitas mediações.
Mas o texto tem um mérito histórico, pois apresenta boas balizas para a
reflexão. Tirando o combate miúdo e alguns insultos jocosos (o ceticismo
bocó, a poesia bibelô) há, na definição dos dois lados, gente bem-intencio-
nada, cujo objetivo é a formação de uma elite de homens inteligentes e sábios
que esteja à altura de impor uma hierarquia, embora sem grande contato
com a terra e o povo; e a gente de vanguarda que representa o estouvamento
de povo moço e sem juízo. Não há o que comentar da pretensão de repre-
sentar o povo, ancorada talvez no fato de ele e Prudente, adeptos dos hábitos
boêmios, frequentarem ambientes populares. Mas há na definição dos dois
lados – os adeptos da “ideologia do construtivismo” em contraposição aos
que “se agitam no caos” – uma avaliação certa do ponto de vista da hierar-
quia do campo. Os primeiros eram estabelecidos, os segundos, pretendentes.
Entre os estabelecidos era claro que os ataques de Graça Aranha contra a
ABL não visavam suprimi-la, mas sim ganhar fôlego nas suas divisões inter-
nas. Nas duas tropas, Sérgio faz destaques de grande interesse: alinha Tristão 14. Mário desloca o centro da
polêmica do universo literário
de Athayde aos construtivistas, mas ressalta que ele é “o mais considerável”
para a discussão do catolicismo
e, do outro lado, a despeito do elogio a Mário de Andrade, ressalta que lhe no Brasil em uma longa reflexão

desagrada “sua atual atitude intelectualista”. Faz, com isso, convergirem no de etnólogo sobre a diferença entre
religiosidade e catolicismo. Para
centro Alceu e Mário. ele, no Brasil, o central é a religio-
Nas réplicas a Alceu, percebe-se que tanto Mário de Andrade ([1931] sidade e não o catolicismo. Ataca
então o Alceu já convertido em
1972a) como Sérgio Buarque de Holanda ([1928] 1988c) são muito mais ideólogo católico. Sobre literatura
moderados do que o crítico foi com eles. Não respondem no nível em que acentua sua discordância com
Alceu reivindicando a autono-
foram confrontados14 e não deixam de expressar a admiração pelo inter- mia do campo: “Está claro que
locutor. Mesmo a maneira como Mário acaba seu ensaio sobre Tristão de sob o ponto de vista literário
toda crítica dotada de doutrina
Atahyde é plena de ambiguidade, pois, ao mesmo tempo em que projeta religiosa ou política é falsa [...]”
uma caricatura, dá ao personagem uma dimensão extraordinária: (Andrade, 1972a, p. 7).

novembro 2011 21
Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso Lima, pp. 101-133

Os Estudos de Tristão de Athayde são um drama enorme. Apaixonantes, irritantes,


sectários, cultíssimos, nobilíssimos, se não representam porventura o mais caracte-
rístico da personalidade do grande pensador católico, representam melhormente o
seu martírio. E se é certo que já agora ele é das mais fortes figuras de críticos que
o país produziu, desconfio que os futuros não-sei-o-quê vivendo nestas terras do
Brasil terão ao lê-lo o espetáculo dum homem querendo desviar uma enchente,
apagar o incêndio dum mato, ou parar um raio com a mão (Andrade, 1972a, p. 25).

Se, de um lado, há ironia, aqui também já começa o retrato hagiográfico;


Mário católico já intuía certa santidade em Alceu ou ao menos a gesticu-
lação da santidade.
Sobre as posições de Sérgio Buarque de Holanda é importante destacar
duas proposições. A primeira sobre literatura e cultura: “Penso naturalmente
que podemos ter em pouco tempo, com certeza, uma arte de expressão
nacional. Ela não surgirá, é mais que evidente, de nossa vontade, nascerá
muito mais provavelmente de nossa indiferença” (Holanda, 1988a, p. 86);
a segunda sobre a questão religiosa que implica, no pensamento de Alceu,
uma tentativa de conciliação entre “o plano das verticalidades” e “o plano
das horizontalidades”:

Toda a conciliação que se propuser entre esses dois planos não será outra coisa que
um hibridismo insólito [...]. Não se pode mais hoje, como no tempo de Santo
Agostinho, ser ao mesmo tempo e simultaneamente um cidadão do céu e da terra.
E o pensamento que realmente quiser importar para a nossa época há de se afirmar
sem nenhum receio pelos seus reflexos sociais, por mais detestáveis que estes pare-
çam. Há de ser essencialmente um pensamento apolítico (Holanda, 1988b, p. 114).

As ideias não estão de todo amarradas, mas quando Sérgio postula a indife-
rença, não está sugerindo a inação, mas simplesmente negando a legitimidade
de um roteiro definido pelos homens sábios, a elite literária bem-posta; os
próprios agentes, com seus talentos e inclinações, em seus embates farão a
literatura de expressão nacional. Sobre a religião, a cisão entre o céu e a terra
está dada e é ilegítima a pretensão de, por meio das instituições dos homens,
por meio da política, combater a irreligiosidade e defender o reingresso da
cidade de Deus na terra. Salvo engano, Sérgio está dizendo que a literatura
seja deixada aos literatos e a religião àqueles que têm fé.
A resposta talvez esteja dada no próprio roteiro que Sérgio estabelece para
ele mesmo. Retirar-se do papel de pretenso condutor das novas gerações,

22 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Guilherme Simões Gomes Júnior

colocar para si a tarefa de construir uma trajetória de estudos, de investiga-


ção, que sirva à sua e às novas gerações, que sirva ao Brasil, sem o recurso
do dogmatismo, sem a tentação do profetismo. Começa daí o caminho de
historiador que Sérgio irá trilhar. Caminho no qual a leitura das críticas e dos
ensaios brasileiros de Alceu Amoroso Lima deixou uma marca importante e
não apenas pelo fato de Sérgio ter abandonado suas reivindicações surrealis-
tas, suas “declarações dos direitos do sonho”. Mas isso é assunto para outro
artigo. Aqui é possível postular que a influência de Alceu não alcançou apenas
aquele grupo de poetas e artistas neocatólicos – Murilo Mendes, Jorge de
Lima, Ismael Nery –, ou mesmo aqueles que apesar de céticos foram sensíveis
à experiência religiosa, como Augusto Frederico Schmidt ou Augusto Meyer;
e tanta gente de letras que passou pelo Centro Dom Vidal e pela Ação Ca-
tólica. Alceu repercutiu também em Mário, também em Sérgio, certamente
não com o seu catolicismo, mas com o racionalismo e a complexa visão da
cultura no Brasil, forjada nos primeiros anos de crítica. E um bom indício da
marca que deixou na Escola Paulista é o elogioso artigo já citado de Antonio
Candido, “Mestre Alceu em estado nascente”, em que aponta a lucidez e as
virtudes de seu método crítico nos estudos do sertanismo, particularmente no
trabalho sobre Afonso Arinos (cf. Candido, 1996).

Geração de 1945

O ponto de vista moral, em literatura, é sempre detestável [...]. O truísmo da mora-


lidade da beleza se tem prestado às mais ignóbeis e sinistras explorações, mas ainda
não se desmentiu, já que o abuso da verdade não altera a verdade. A moralidade da
arte é a sua veracidade, eventualmente objetiva, mas indispensavelmente subjetiva.
[...] O que repugna na arte não é a amoralidade, que pode até ser ingênua, não
é a imoralidade que pode ser necessária à beleza, mas a perversão deliberada da
moralidade na ânsia de fácil vulgarização e do escândalo propício às boas tiragens
(Lima, [1921] 1966f, p. 375).

É evidente que essas ideias de 1921 viram letra morta depois da conver-
são, que se processa entre 1925 e 1928. Nessa época, Alceu pensava como
o Mário de 1931 ao combater o Alceu católico que, para ele, estava perdido
para a crítica:

Está claro que sob o ponto de vista literário, toda crítica dotada de doutrina re-
ligiosa ou política é falsa, ou pelo menos imperfeita. Pragmaticamente exata mas

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Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso Lima, pp. 101-133

tendenciosa. Há um contraste insolúvel entre os detalhes duma religião ou sistema


político e a criação artística. Os estetas católicos se esforçarão em falar que não há.
Há. Há desde início, por ser impossível estabelecer a medida justa em que a criação
passe a pecado (Andrade, 1972a, p. 7).

A fase do aggiornamento, quando o campeão da fé começou a depor as


armas mais afiadas, implicou em um ajuste. Já na recuperação de seus passos
e no passar a limpo de sua biografia, Alceu procurou mostrar que conseguiu
estar a um meio caminho entre Jackson de Figueiredo, que postulava a inter-
venção da fé sobre a cultura, e Mário de Andrade, que pretendia separá-las.
Um defendendo a subordinação da cultura ao campo religioso, outro bus-
cando a autonomia e a legalidade próprias da cultura. Nem um, nem outro.

Jackson e Mário de Andrade julgavam que a Igreja estava necessariamente ligada a


certas formas de arte e de política, isto é, à defesa da Autoridade e do Classicismo.
E por isso nem um nem outro podiam compreender a minha “contradição” de
procurar ser ao mesmo tempo, como desde então tenho tentado ser: católico em
religião, tomista em filosofia, democrata em política, e modernista em arte. Nem
antinomia porque católico como Jackson; nem anticatólico porque modernista como
Mário de Andrade. Ao contrário, católico e moderno em arte (Lima [1952] 1980c,
p. 403, grifos do autor).

Operação complexa. E não apenas porque o “democrata”, que diz ter


sido, comemorou a vitória de Franco na Espanha. Um ensaio sobre crítica
15. Esse texto é importante, cheio de filosofia preparou o caminho para essa afirmação tão segura15. Há
pois é pouca coisa posterior aos
uma longa reflexão sobre a crítica que é dividida em dois níveis: no inferior,
balanços de Mário de Andrade
dos vinte anos de modernismo “eclética”, “pessoal” (a pessoa aqui é o autor e não o crítico), “partidária”,
na conferência de 1942 “O
“gramatical”; no superior, “estética”, “sociológica”, “psicológica”, “mora-
movimento modernista” e em
“Elegia de Abril” de 1941. lista”. As inferiores, quando não refletem puro amadorismo, são vistas
como o desfalecimento das superiores. A crítica partidária, por exemplo,
funciona como uma corruptela da crítica sociológica. A grande questão
está na interface entre a crítica estética – aquela que parte da “supremacia
da Arte” e que “na hierarquia dos valores considera-se acima de todos os
demais (Lima [1944] 1980b, p. 391) – e a crítica moralista ou apologé-
tica, que parte da primazia do progresso moral ou do triunfo da verdade
religiosa. Para evitar exclusivismos e antinomias, Alceu passa a defender
uma crítica “autenticamente construtiva”, cujos conceitos básicos são os de
totalidade, hierarquia de valores, originalidade, simultaneidade, autonomia.

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Guilherme Simões Gomes Júnior

O grau de abstração é grande, mas nesses passos começa a se montar a


saída do drama de Alceu.
A preocupação com a totalidade não se resume a levar em conta os grandes
problemas do homem no mundo, a miséria, a liberdade, a justiça, mas deve
pressupor uma filosofia total, articulada à renovação da cristandade.

Vejo a crítica, pois, como um recanto particular de uma filosofia total da vida,
que inclui o Tempo e a Eternidade, o homem e Deus. A crítica que entendo fazer
se baseia, pois, numa Metafísica Cristã. E essa metafísica não repudia valor algum.
Procura, ao contrário, colocar cada qual em seu lugar. Daí o segundo fundamento
dessa crítica: a hierarquia de valores.
Essa hierarquia – Arte, Ciência, Filosofia, Religião – por sua vez se estende, não
numa subordinação absoluta de valores e sim numa disposição orgânica [...] (Idem,
ibidem, grifos do autor)

Organicidade pressupõe simultaneidade, o que implica em pensar que


“Arte”, “Ciência”, “Filosofia”, “Religião” são pontos de vista relativos e não
podem ser isolados. Por fim, “[...] o que essa distribuição de valores nos
ensina é a autonomia relativa de cada um deles. Nenhum anula o outro.
[...] Os valores estéticos, que são os que aqui diretamente nos interessam,
possuem, portanto, completa autonomia” (Idem, p. 395).
O torneio filosófico é complexo, mas possui uma articulação que pro-
gressivamente anula os seus próprios pressupostos. Se os valores estéticos
possuem completa autonomia (percebe-se que primeiro ele diz autonomia
relativa para depois fechar com a ideia de completa autonomia), toda a
hierarquia de valores perde o sentido, e mesmo o princípio de totalidade
(grandioso, pois pressupõe o céu e a terra, o tempo e a eternidade) não re-
siste à autonomia completa da dimensão estética. O argumento geral não
se salva também pelo recurso das ideias de organicidade e simultaneidade,
que querem deixar as esferas amarradas umas às outras. O máximo que
se ganha com isso é que o crítico pode diante da obra elaborar operações
hermenêuticas estéticas, científicas, filosóficas ou religiosas, mas, como
cada uma tem sua completa autonomia, serão operações estranhas umas às
outras. Autonomia pressupõe autocefalia, legalidade própria, o que significa
que os valores intrínsecos de uma esfera não se subordinam aos de outras.
De qualquer forma, Alceu Amoroso Lima precisava disso. Preparar no
plano filosófico uma porta de saída para o impasse de um homem que apareceu
nos seus primeiros anos de maturidade como crítico literário que, apesar de

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Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso Lima, pp. 101-133

fazer uma crítica altamente impura, fora dos primeiros a defender a ideia da
análise interna da obra. Um homem que havia desviado de rota, na defesa
da igreja católica contra a modernidade, mas que não abandonou o ofício
de crítico, ao contrário, tornou-o mais complexo – mas também menos
imanente – ao ser um dos fundadores dos cursos de letras e de literatura
no sistema universitário criado no Brasil entre as décadas de 1930 e 1940.
Um homem que estava a par da progressiva conquista de hegemonia das
abordagens internalistas no âmbito dos estudos literários, o que se confir-
mava com a aproximação dos jovens da geração de 1945 do New Criticism,
16. Afrânio Coutinho mais de jovens que acabaram por eleger Alceu como seu precursor no Brasil16, ao
uma vez faz essa aproximação.
Entre os precursores da nova
mesmo tempo em que, no plano externo, elegiam Eliot como a referência
crítica indica Alceu de Amoroso decisiva no plano da poesia e dos estudos literários. Para Alceu, a militância
Lima, Mário de Andrade e Eugê-
cristã e o sectarismo eram então um estorvo, nos marcos de uma crítica que
nio Gomes: “Tristão de Ataíde, o
grande crítico da época modernis- se queria autotélica, mas ele continuava sendo uma liderança católica e não
ta, lançou uma semente fecunda podia separar-se por completo do passado.
ao reivindicar, na obra Afonso Ari-
nos [...], um ‘expressionismo’ críti- Já em 1936 – antes, portanto, do aggiornamento – Alceu Amoroso Lima
co, como reação contra o anterior falava em pós-modernismo. Indicava a mudança de qualidade no clima inte-
impressionismo, e propondo uma
crítica em que predominasse o
lectual de então em face do momento de crise que marcou a época moder-
‘objeto’, isto é, a obra, em lugar nista (como se, em 1936, não houvesse crise no Brasil e no mundo). Segun-
do ‘sujeito’, o crítico, com suas
impressões” (Coutinho, 1987, p.
do ele, um humanismo brasileiro e cristão, local e universal já deixara sua
455). marca “nesta fase pós-modernista que estamos vivendo e que viu a falência
dos artificialismos e dos exotismos mentirosos para assistir a um promissor
rejuvenescimento [...]” (Lima, [1936] 1980a, p. 383). Parece claro que por
artificialismo e exotismos mentirosos deve-se entender modernismo, já que
nas suas críticas ao movimento o que mais fazia era denunciar as impor-
tações, os exotismos. De fato, o “neomodernismo” de 1945 não pode ser
entendido sem que se atente para o trabalho preparatório de Alceu, que nas
histórias literárias sempre aparece como um dos mais importantes críticos
17. É interessante notar que modernistas17. O que procurei mostrar nesse percurso foi o desconforto de
em Lima (1959) ele passa
pelo modernismo com muita
Alceu em face do modernismo, não apenas na face radical, que vinha de
exterioridade, por meio de um São Paulo. No Rio de Janeiro, também Graça Aranha – figura central no
panorama predominantemente
clã dentro do qual Alceu era o jovem promissor – parecia dotado de uma
descritivo de episódios, correntes,
autores e obras, para no último gesticulação excessiva e de um desejo de chamar a atenção para sua presu-
capítulo, dedicado ao neomo- mida liderança. Também os nacionalistas que se orientaram para posições
dernismo, escrever de forma
envolvente e problematizadora autoritárias, apesar disso, não podiam ter nele, do ponto de vista estético,
sobre as perspectivas dos novos uma referência, em razão da face cosmopolita de seu pensamento. Alceu
autores.
combateu de forma sistemática o eixo mais original do modernismo de
1922, mas o movimento venceu. No plano simbólico, conseguiu instituir

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Guilherme Simões Gomes Júnior

a ideia de que foi a grande e necessária transformação cultural da primeira


metade do século XX no Brasil.
Para Alceu Amoroso Lima, o neomodernismo aparece como uma tran-
sição indefinida e não como uma ruptura, como a do início da década de
1920. Os novos de agora não se lançam contra os antigos, ao contrário, não
veem problema em retomar Coelho Neto, Bilac, Camilo Castelo Branco
(cf. Lima, 1959, p. 110). Isso se passa em uma verdadeira redescoberta dos
estudos clássicos.

A fundação das Faculdades de Filosofia, posteriores ao modernismo, não é de modo


algum indiferente a esse fato e, pelo contrário, é uma razão de ser dessa capital
modificação de estado de espírito, em relação ao passado. O neomodernismo é
de certo modo um antimodernismo, se tomarmos o termo modernismo em seu
sentido estrito, como sendo uma apologia do moderno. O neomodernismo, longe
de ser uma apologia do moderno, é uma libertação em face dele.
Os neomodernistas são em geral mais profundos do que os modernos de 1920.
Vão ao âmago das coisas. Não apreciam, de modo algum, a mocidade como tal.
São velhos por natureza, mesmo quando têm menos de 20 anos [...] (Idem, p. 111).

Sergio Milliet foi outro que viveu o modernismo e fez a passagem para
as novas tendências posteriores a 1945. Ele afirma que o modernismo havia
legado no plano da poesia uma série de truques fáceis, a piada, o trocadilho,
a associação de ideias, “toda uma farmacopeia irritante. Entretanto, a reação
de equilíbrio aí está, visível no despojamento consciente de alguns novos”
([1946] 1983).. Com isso, não apenas saudava a renovação poética dos neo-
modernistas, como também associava seu nome a eles ao fazer parte como
conselheiro e colaborador da Revista Brasileira de Poesia 18, um dos núcleos 18. Além de Alceu e de Milliet,
a Revista Brasileira de Poesia rei-
mais expressivo da geração de 1945, em São Paulo, no qual se destacaram vindica Mário de Andrade como
Péricles Eugênio da Silva Ramos, Carlos Burlamaqui Kopke e Domingos precursor, porque sua defesa do
artesanato e da consciência téc-
Carvalho da Silva. A esse núcleo, associou-se um grupo do Rio de Janeiro
nica redundou em uma “poesia
que teve Afrânio Coutinho como figura central, ao qual estiveram ligados descarnada, sóbria e digna, que

Eugênio Gomes e Barreto Filho. constitui, sob muitos aspectos,


um protótipo do neomoder-
Sob a direção de Coutinho, com a assessoria dos dois últimos, a geração nismo” (Ramos, 1947, p. 3).
teve como um de seus empreendimentos principais a obra coletiva A litera- Retomo nessas últimas páginas
alguns dados já explorados em
tura no Brasil. Publicada em quatro grandes volumes, entre 1955 e 1959, no Gomes Júnior (2002), no qual
dizer de seu organizador, tinha como objetivo suprir a falta de uma história tratei do legado de Mário de
Andrade e da reivindicação dele
literária brasileira que revisasse com novos métodos, primordialmente esti- pelos neomodernistas.
lísticos, o barroco, a arcádia e o romantismo, e que desse conta também dos

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Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso Lima, pp. 101-133

períodos mais recentes ainda pouco estudados. Além dos seis nomes citados,
participaram também do projeto Armando Carvalho, Segismundo Spina,
José Aderaldo Castelo, Jamil Almansur Haddad, Antonio Candido, Décio
de Almeida Prado. Candido também colaborou com a Revista Brasileira
de Poesia, publicando dois artigos sobre poetas-chave da geração: Elliot e
Pound. Pode-se dizer que Clima e Revista Brasileira de Poesia são gêmeas do
ponto de vista geracional, com Mário de Andrade e Milliet na condição de
“precursores” de ambas. No entanto, claramente fazem bifurcação geracional,
tanto no plano político, como na visão de literatura e cultura.
No que diz respeito a Alceu Amoroso Lima, se o modernismo já era
então incontornável, no entanto, podia considerar que seu combate de
1925 havia surtido efeito. Seus apelos eternistas e seu classicismo encontra-
ram eco em uma geração de críticos e poetas mais jovens, não tão sensíveis
aos apelos religiosos, mas, no seu entender, mais maduros ao enfrentar os
dilemas do ofício.
Sérgio Buarque de Holanda, outra vez no polo oposto de Alceu, viu nos
poetas de 1945 a expressão do refluxo (cf. Holanda, 1996a, p. 331-345).
Para além das divergências poéticas, o que incomodava Sérgio Buarque era
o conservadorismo que se anunciava com o gosto mais clássico das novas
gerações. E, para ele, era sintomático que Eliot chegasse com elas ao Brasil,
não como “fenômeno pessoal extraordinário”, mas como “respeitável ins-
tituição” cheia de tradicionalismo: “O tradicionalismo político, religioso –
‘high church’ – e em certos pontos até literário de um Eliot e de um Pound,
tradicionalismo que o coronel Lawrence, em uma das suas cartas, compara
finamente ao afã do ‘homem novo’ em busca de antepassados ilustres (Eliot
e Pound são americanos do Middle West), concordam bem com esse gosto”
(Holanda, 1996b, p. 391). Mas se, para Sérgio, o gosto clássico representado
por esses poetas resultava de

[...] um equilíbrio de contrários, uma harmonia entre o espiritual e o material, entre


o grandioso e o grotesco, entre a paixão e a ironia, entre o poético e o prosaico. Nos
nossos autores novos, semelhante equilíbrio é inexistente e, em realidade, desne-
cessário, uma vez que eles buscam, com raras exceções, expurgar de suas criações o
grotesco, o irônico e o prosaico (Idem, ibidem).

Como numa volta do tempo, Alceu Amoroso Lima e Sérgio Buarque de


Holanda estavam novamente em lados opostos. Na estética e na política.

***

28 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Guilherme Simões Gomes Júnior

A derrota do fascismo e a definição do destino da Europa Ocidental no


campo da democracia fez refluir a investida do campo político sobre o âmbito
das letras e das artes. A própria igreja católica se abre então para as questões
do tempo, na busca reconciliar-se com a modernidade, com seus âmbitos
diversificados, em movimento que culminou no Concílio Vaticano II. No
Brasil, também democratizado em 1945, a formação das universidades e dos
cursos de filosofia, letras e ciências sociais induz a formação de um novo perfil
do praticante da crítica literária. Entre os historiadores e críticos da geração de
1945 chama atenção a presença de professores universitários. Exemplo disso
é a predominância destes na empreitada de Afrânio Coutinho que redundou
em A literatura no Brasil. Segismundo Spina, Jamil Almansur Hadad, José
Aderaldo Caselo, Armando Carvalho, Antonio Candido, Décio de Almeida
Prado e o próprio Coutinho, apesar das formações diversas, eram especialistas
universitários. Nos rodapés literários, era corrente a reivindicação de uma
crítica científica e o rechaço dos polígrafos amadores, praticantes da crítica
impressionista. Mesmo que os resultados da Nova Crítica no Brasil tenham
sido pífios, sua aclimatação foi bem-sucedida em um aspecto: a produção da
crença na superioridade dos métodos de investigação internos da obra literá-
ria. Mesmo a bifurcação geracional protagonizada pelos jovens formados em
sociologia e politicamente inclinados à esquerda – com Antonio Candido à
frente – não conseguiu esconder seu desconforto com o estigma da análise
externa, que é própria da sociologia, e só aquietou quando elaborou de forma
elegante e persuasiva o conceito de “redução estrutural [...] processo por cujo
intermédio a realidade do mundo e do ser se torna, na narrativa ficcional,
componente de uma estrutura literária, permitindo que esta seja estudada em
si mesma, como algo autônomo” (Candido, 1993, p. 9) – o que completou
a busca por aquele “determinismo literário” que Candido já reivindicava em
O método crítico de Sílvio Romero, que deixaria para trás os determinismos
históricos, sociológicos ou naturais (cf. Candido, 1988, p. 107).
O torneio filosófico de Alceu Amoroso Lima, em 1944, ao tentar conciliar
metafísica cristã e análise estética autônoma, pode ser visto como resultado
do élan autonomista que começava a moldar o campo literário, depois do
recuo da religião e da política. Mas esse acordo não tinha mais lugar. Apesar
de encontrar a saída, Alceu já estava por demais comprometido com o passa-
do, e não retomou a crítica literária como atividade central em seu percurso.
O “adeus à disponibilidade” foi irreversível. Para os novos, então, a crítica
de Sérgio Buarque de Holanda ao eliotismo neomodernista, que não con-
seguia esconder sua face tradicionalista, podia ser tratada como argumento

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Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso Lima, pp. 101-133

extraliterário. Argumento que no ascendente processo de diferenciação do


campo podia muito bem ser considerado espúrio.

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novembro 2011 31
Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso Lima, pp. 101-133

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Resumo

Crítica, combate e deriva do campo literário em Alceu Amoroso Lima

O artigo trata dos anos de formação de Alceu Amoroso Lima, na época em que se emerge
como um dos principais críticos da década de 1920. Destaca o papel combativo que
fez dele um homem da continuidade e um adversário dos modernistas de São Paulo –
Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda – que, apesar de
fustigados, reconheceram sua potência crítica. Trata também das duas reorientações que
o levaram, primeiro, à condição de paladino do catolicismo ultramontano e, depois,
ao aggiornamento, na mudança de rota da igreja católica no ocaso do fascismo, o que
fez dele homem-chave na contensão das tendências radicais do modernismo e também
no advento da geração de 1945. O resgate da trajetória do crítico permite o exame das
relações entre os campos político, religioso e literário, na primeira metade do século XX.
Palavras-chave: Alceu Amoroso Lima; Crítica literária; Pensamento brasileiro; Moder-
nismo; Geração de 1945.

Abstract

Critique, combat and drift of the literary field in Alceu Amoroso Lima

The article focuses on the intellectual formation of Alceu Amoroso Lima, during a
period in which he emerged as one of the foremost critics of the 1920s. It highlights
the combative role that made him an advocate of tradition and an adversary of the
São Paulo modernists – Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Sérgio Buarque de
Holanda – who, though lambasted by him, recognized his critical potential. The text
also examines two shifts that led him first to become a champion of Ultramontane
Catholicism, and later to endorse the aggiornamento, the Catholic Church’s change in
direction following the collapse of fascism, which made him a key figure in containing
modernism’s radical tendencies and also in the advent of the 1945 generation. Docu-
Texto recebido e aprovado em
menting the critic’s trajectory allows us to examine the relations between the political, 30/7/2011.
religious and literary fields in the first half of the 20th century. Guilherme Simões Gomes Júnior
Keywords: Alceu Amoroso Lima; Literary criticism; Brazilian thought; Modernism; é professor do PEPG em Ciên-
cias Sociais e do Departamento
1945 generation. de Antropologia da PUC-SP; é
livre-docente em Sociologia da
Cultura (USP) e doutor em His-
tória Social (USP). É autor de
Palavra peregrina (Edusp/Fapesp,
1998) e de Borges:disfarce de autor
(Educ, 1991). E-mail: <gomesjr@
uol.com.br>.

novembro 2011 33
A Pequena história da literatura brasileira
Provocação ao modernismo

André Botelho

Pela sua importância na vida cultural brasileira, o modernismo dos anos de


1920 vem sendo estudado sob diferentes ângulos e em diferentes aspectos há
décadas. Ao lado da produção artística a ele identificada, tem se privilegiado
também os textos programáticos, especialmente os manifestos (cf. Schwartz,
1995) e as críticas literárias praticadas por seus artífices e concorrentes (cf.
Lafetá, 2000). Esses gêneros são, em grande medida, responsáveis pela
inteligibilidade sociológica do modernismo como movimento cultural de
vanguarda. Neste estudo, retomo a Pequena história da literatura brasileira do
poeta, ensaísta e diplomata carioca Ronald de Carvalho (1893-1935); livro
de feição aparentemente pouco modernista, mas que, justamente por isso,
pode mostrar-se instigante para pensar o modernismo em suas complexas
relações com a tradição intelectual brasileira. Investigando a identidade
cognitiva desse livro em relação ao modernismo, pretendo dar continuidade
à discussão sociológica sobre movimentos culturais e interpretações do Brasil
(cf. Botelho, 2005; 2009).
Publicado em 1919 por F. Briguiet e premiado no mesmo ano pela Aca-
demia Brasileira de Letras, Pequena história da literatura brasileira tem sido
pouco consultado pelos analistas do modernismo (cf. Botelho, 2005; Abreu,
2007). Ao lado da forte identificação da crítica à perspectiva vencedora
na construção social da identidade do modernismo brasileiro – definida a
partir dos valores do movimento paulista (com o qual Ronald de Carvalho
A Pequena história da literatura brasileira: provocação ao modernismo, pp. 135-161

e outros modernistas estabelecidos na então capital federal concorriam nos


anos de 1920 e 1930) (cf. Gomes, 1999; Botelho, 2005) –, outras dificul-
dades específicas ajudam a explicar esse fato. A principal delas talvez esteja
na própria particularidade do gênero no qual o livro se inscreve. Afinal, a
“tradição” é a matéria que cabe a uma história da literatura ordenar. Escre-
ver história da literatura implica uma maneira de perceber e de ordenar o
tempo que está marcada pela busca e recuperação do passado, de modo a
reordená-lo simbolicamente em face do presente não apenas segundo um
sentido de ruptura, mas, sobretudo, de continuidade. É isso que permite
ao historiador estabelecer, de modo mais ou menos arbitrário (conforme
as convenções da época), uma cadeia evolutiva relativamente coesa para
realizações literárias diversas. Assim, obras produzidas em contextos muito
diferentes e sem relações internas necessárias entre si são qualificadas como
“nacionais”, enquanto várias outras são excluídas desse cânone (cf. Mallard,
1994; Moreira, 2003; Sussekind e Dias, 2004).
Aos olhos de alguns dos seus contemporâneos, Ronald de Carvalho apa-
rece, sobretudo, como um “rotinizador” de ideias. Para Sérgio Buarque de
Holanda e Prudente de Moraes Neto, por exemplo, ele seria o “filho família
da nossa crítica tradicional”, não havendo em suas “opiniões” sobre “nossa
nacionalidade, sobre nossas letras, sobre nossas artes”, “quase nada que já
não se tenha dito” (Holanda e Moraes Neto, 1974, p. 216). Mário de An-
drade, por sua vez, embora o tivesse como a “inteligência mais harmoniosa
que conheço”, considerava necessário Ronald fazer “qualquer coisa de mais
duradouro que vulgarizações literárias”, pois, assim, não cumpria o “destino
que Deus lhe deu espalhando-se e enfraquecendo-se com essas utilidades
de ginásio e curso secundário” (Andrade e Bandeira, 2000, pp. 135-136).
Se tais impressões procedem, é preciso lembrar, porém, um aspecto ge-
ralmente negligenciado pela crítica: os chamados “lugares comuns” – como
índice de conformidade às possibilidades receptivas do leitor – constituem
frequentemente recursos retóricos fundamentais para os intelectuais que,
acomodando seus argumentos às opiniões e aos valores médios, buscam do-
tar suas ideias de um caráter intrinsecamente persuasivo (cf. Skinner, 1999,
pp. 159-175). E contraposta às histórias da literatura que a precederam (a
de Sílvio Romero e a de José Veríssimo), a Pequena história da literatura
brasileira pareceu a outros contemporâneos muito bem pensada e escrita.
Sugerindo que a “língua portuguesa, em suas mãos [de Ronald de Carvalho],
é como argila em dedos de escultor”, Alceu Amoroso Lima soube divisar
muito bem o que estava em jogo naquela fluência da narrativa: munido de

2 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


André Botelho

“um tão perfeito instrumento de expressão [Ronald] pôde dar mais relevo
às ideias e mais propriedades às apreciações” (Lima, 1948, pp. 38 e 139).
Mais do que uma idiossincrasia do autor – embora, num determinado
plano, correspondesse ao seu estilo – a narrativa fluente respondia antes aos
objetivos a que ele se propunha naquele contexto intelectual. Como afirmou
Ronald de Carvalho, seu trabalho estava “destinado a vulgarizar, nos seus
delineamentos, a fisionomia da nossa literatura” (Carvalho, [1919]* 1922, p. * A data entre colchetes refere-se
à edição original da obra. Ela é
254). De fato, o livro foi utilizado como manual para o ensino de literatura
indicada na primeira vez que a
brasileira nas escolas durante pelo menos quatro décadas (cf. Martins, 1983, obra é citada. Nas demais, indica-

p. 465), uso didático que o tornou um dos primeiros e grandes sucessos edi- se somente a edição utilizada pelo
autor (N.E.).
toriais da livraria F. Briguiet (cf. Hallewell, 2005, p. 268). Assim, bovarismo à
parte, a autorrepresentação de Ronald de Carvalho ganha sentido sociológico
quando consideramos que iniciativas desse tipo vinham então ganhando cada
vez mais espaço no contexto do incipiente mercado editorial brasileiro como
parte de uma série de mudanças em curso (cf. Lajolo e Zilberman, 2009). E
textos submetidos a usos didáticos – as tais “utilidades de ginásio e curso se-
cundário” de que reclamava Mário de Andrade – constituem meios de sociali-
zação por excelência, atuando na transmissão de representações sobre o Brasil,
por meio das quais nos formamos moral, intelectual, política e esteticamente
(cf. Botelho, 2002). Antonio Candido, por exemplo, observava no prefácio,
datado de 1957, da primeira edição da Formação da Literatura Brasileira : “Li
também muito a Pequena história, de Ronald de Carvalho, pelos tempos do
ginásio, reproduzindo-a abundantemente em provas e exames, de tal modo
1. Traços, aliás, muito bem
estava impregnado de suas páginas” (Candido, [1959] 1964, p. 3). Assim, não capturados por Vicente do Rego
parece descabido ponderar que o livro tenha desempenhado também papel Monteiro no retrato que pintou
de Ronald de Carvalho em 1921.
relevante na rotinização de ideias, valores e práticas sobre a literatura brasileira Como observou precisamente
e, mais ainda, sobre o modernismo e seu lugar estratégico na nossa história e Sergio Miceli, ao apresentar “o
então jovem escritor e diplomata
vida cultural.
de paletó verde-escuro, gravata
Disponibilidade para a missão de que se investiu parece não ter faltado vermelha com alfinete e colari-

a Ronald de Carvalho. Recursos intelectuais, sociais e institucionais tam- nho alto engomado, ocupando a
pirâmide central de uma compo-
bém não1. E, articulando essas diferentes dimensões, nenhum outro fator sição compacta cujo fundo são as
parece ter sido mais importante do que a sua carreira no Ministério das lombadas em cores pastel bem de-
finidas de duas fileiras de livros”,
Relações Exteriores – interrompida tragicamente por sua morte aos 42 o pintor “buscava surpreender
anos de idade –, como pude discutir noutra oportunidade (cf. Botelho, por meio do contraste entre a ju-
ventude e a prontidão intelectual
2005). Entreposto de ideias mobilizado segundo as diferentes estratégias transmitidas pelo semblante com
de política cultural do Estado, o Itamaraty favoreceu a importação e a a muralha de livros coloridos que
pareciam povoar-lhe a cabeça e
difusão da produção intelectual estrangeira no país e vice-versa (da produ- moldar-lhe a existência” (Miceli,
ção brasileira no exterior). Esse duplo papel foi particularmente marcante 1996, p. 51).

novembro 2011 3
A Pequena história da literatura brasileira: provocação ao modernismo, pp. 135-161

na vida cultural do Rio de Janeiro – a então capital federal –, em cujos


círculos intelectuais Ronald teve atuação central nos anos de 1920. Cir-
cunstância que ajuda a entender por que a Pequena história chegou a ser
traduzida para o francês, o italiano e o castelhano ainda durante a vida de
seu autor, figurando, então, entre os livros do gênero mais conhecidos no
exterior e funcionando, ao mesmo tempo, como uma apresentação geral
do Brasil, de sua literatura e de seus intelectuais.
Embora seu reconhecimento intelectual para além dos círculos mo-
dernistas se deva em grande medida à Pequena história, a historiografia
literária não constituiu a única modalidade de crítica praticada por Ronald
de Carvalho. Sua obra compreende ainda: ensaios de crítica cultural, como
os reunidos nas três séries dos Estudos brasileiros publicadas entre 1924 e
1931; conferências proferidas nos muitos eventos mundanos e intelectuais
de que tomou parte; e, sobretudo, artigos publicados tanto em revistas
literárias (Movimento Brasileiro, América Latina, Klaxon, Terra de Sol, Ilus-
tração Brasileira, Revue de L’Amerique Latine, entre muitas outras) como nos
principais jornais da época (Diário de Notícias, A Pátria, O Jornal e Jornal
do Brasil ). Nesses artigos – que se contam às centenas –, Ronald privilegiou
a resenha dos livros recém-publicados por seus contemporâneos. Buscava
apreendê-los, especialmente, por meio de recursos que lembram a então
conhecida técnica do “retrato” (o portrait de Sainte-Beuve), que, partindo
de certos estereótipos da representação social dos autores, delineia uma visão
simultânea da obra e do homem que a realizou. Técnica recursiva na crítica
do período e que, ademais, se casava perfeitamente com o jornalismo: em
ambos “trata-se de apresentar ao público uma figura, de entrevistar um autor
narrando passagens de sua vida, dialogando com seus livros como se estes
fossem pessoas em amável entretenimento com o entrevistador” (Lafetá,
2000, p. 54). Mesmo não tendo mobilizado o portrait tão diretamente na
Pequena história, a técnica constituiu um recurso crucial também neste livro,
pois permitiu ao autor uma aproximação mais matizada à galeria canônica
que ia repondo e constituindo. Combinava, assim, ao seu modo, exposição
histórica e juízo estético. Como observou um crítico literário posterior,
Ronald “trazia no julgamento da coisa literária (porque o seu livro é, apesar
das aparências, mais crítico do que expositivo) uma sensibilidade apurada
e esperta, até então desconhecida pelos brasileiros nesse gênero ingrato”
(Martins, 1983, p. 465).
Voltando à questão central deste estudo, não estou supondo que o per-
tencimento histórico do livro – publicado no limiar dos anos de 1920 – lhe

4 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


André Botelho

garanta de antemão algo como uma identidade cognitiva modernista estável,


o que, aliás, inexiste em qualquer caso. No que se refere à Pequena história,
isso seria particularmente problemático. Afinal, não apenas o gênero “his-
tória literária” tem sido associado a um perfil mais tradicional no quadro
da crítica em geral – cujas complexas relações são objeto de recorrentes
controvérsias entre especialistas, até porque envolvem nada menos do que
as relações entre história e teoria na crítica literária2 –, como também o 2. Sobre esse aspecto, ver, por
exemplo, Perkins (1992), Jauss
próprio Ronald de Carvalho em face do modernismo paulista (cf. Prado,
(1994) e Moretti (2007).
1983), vertente que acabou por definir, no senso comum, o sentido do
modernismo brasileiro como um todo3. Mas não faz sentido descartar uma 3. Cf. Santiago (1989), Hard-
man (2000) e Botelho (2005).
possível identidade cognitiva modernista do livro em função do seu gêne-
ro intelectual ou do perfil crítico mais conservador do seu autor, mesmo
porque toda identidade é relacional e inevitavelmente instável. Importa
antes qualificar como se articulam naquele contexto intelectual a agenda
modernista de renovação estética em gestação e o até então inseparável
desafio da historiografia de definir a literatura produzida no Brasil como
“brasileira” – índice do próprio processo de nacionalização de sua sociedade.
Para tanto, realizo dois movimentos. De um lado, situo o livro na tradição
da historiografia literária que lhe lega as principais referências e convenções,
seja no que se refere aos axiomas, seja ao vocabulário; sobretudo em relação
à História da literatura brasileira: contribuições e estudos gerais para o exato co-
nhecimento da literatura brasileira (publicado em 1888), de Sílvio Romero, e 4. Emprego a categoria “contex-
à História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis to intelectual” de Quentin Skin-
ner (1999b) fundamentalmente
(1908) (publicado em 1916), de José Veríssimo. De outro, procuro explicitar como categoria metodológica de
os vínculos entre a Pequena história e a conjuntura crítica de reflexão sobre mediação entre o contexto mais
amplo e o pensamento de um
o sentido que a cultura e a sociedade brasileira estavam tomando, na qual se autor. Ao enfatizar o vocabulário
nutriram a sensibilidade e a imaginação modernistas. Minha hipótese é de normativo, os problemas comuns
e as convenções compartilhadas
que, ao atualizar a ideia – central para a historiografia – da literatura como
de uma época, essa categoria
perspectiva de conhecimento da formação nacional, o livro contribuiu para permite, inclusive, identificar

que certo elenco de questões parecesse problemático e acabasse integrando motivações concretas e uma
possível originalidade quer em
centralmente o “contexto intelectual” do modernismo4. Tomo aqui, especial- relação à tradição particular da
mente, a ideia – não isenta de ambiguidades – de “simplicidade” como cri- qual o autor faz parte, quer em
relação aos seus contemporâneos.
tério de formação da literatura brasileira e discuto como ela (1) permite uma Isso ajuda a evitar os anacronis-
crítica ao legado cultural ibérico e, em contrapartida, uma defesa da aproxi- mos tão comuns em análises
históricas, que terminam por
mação da literatura à linguagem cotidiana; e (2) apresenta, a seu modo, uma conferir aos autores intenções ou
resposta aos constrangimentos trazidos pelas influências externas à dinâmica categorias carregadas de sentidos
bastante distantes daqueles dispo-
cultural brasileira – campo problemático central no modernismo brasileiro, níveis em sua época (cf. Skinner,
e muito depois dele. 1969, pp. 6-16).

novembro 2011 5
A Pequena história da literatura brasileira: provocação ao modernismo, pp. 135-161

Sociologicamente considerada, a literatura tem constituído recurso


fundamental na criação e recriação de formas de solidariedade social e de
comunidades de “sentimento” (cf. Weber, 1982) ou “imaginadas” (cf. An-
derson, 1991; Bhabha, 1990) – as mais relevantes para ligar Estado e nação
(cf. Botelho, 2005). Não surpreende, portanto, que em meio à sistematização
científica do conhecimento em geral também a literatura tenha encontrado
um gênero para discipliná-la e formalizá-la. O otimismo cientificista da época
levou, inclusive, a que se imaginasse a substituição progressiva da própria
leitura das obras pela história da literatura (cf. Lepenies, 1996, p 55).
A historiografia literária surgiu na Europa a partir do romantismo e proli-
ferou ao longo do século XIX como expressão do fortalecimento das línguas
nacionais, uma das bases dos modernos Estados-nação. Nesse sentido, ela
foi, sobretudo, um produto intelectual do historicismo, compreendido como
a ênfase na variabilidade histórica e na possibilidade, nela implicada, de se
construir grandes esquemas de desenvolvimentos sintéticos, totalizantes,
progressistas e tidos como particulares a cada cultura (cf. Coutinho, 2001).
O gênero parece estar assentado em duas premissas básicas. A primeira
refere-se ao objeto: a própria literatura. Concebida como produto cultural,
a literatura não constituiria uma mera criação do homem, mas um objeto
5. Tendo manifestado interesse
pelo tema já em 1880, quando cuja especificidade residiria na capacidade de encarnar as próprias projeções
publica Literatura brasileira e humanas, isto é, a literatura seria portadora das significações tanto indivi-
crítica moderna (que inclui alguns
artigos de 1873), Romero soube
duais como coletivas. A segunda refere-se à existência algo homogênea dessas
tirar consequências de esboços projeções humanas em tempos e espaços determinados, o que permitiria
formulados por antecessores. Par-
naso brasileiro, publicado 1829,
lastrear a história da literatura num repertório de obras e autores encadeados
do cônego Januário da Cunha cronológica, linear e cumulativamente.
Barbosa – um dos fundadores e
primeiro secretário perpétuo do
No Brasil, coube a Sílvio Romero – a exemplo do que haviam feito
Instituto Histórico e Geográfico Gervinus e Scherer, na Alemanha, De Sanctis, na Itália, e Lanson, na Fran-
Brasileiro –, bem como Scènes
ça – mostrar de modo mais sistemático a individualidade do país como
de la nature sous le tropiques e
Résumé de l’histoire littéraire du nação por meio do encadeamento de fenômenos literários e intelectuais.
Brésil, publicados respectivamen- Em sua História da literatura brasileira, de 1888, ele relaciona um conjunto
te em 1824 e 1826, do francês
Ferndinand Denis, foram alguns de tentativas e realizações artísticas, intelectuais e folclóricas que, dispostas
dos precedentes no gênero. Sobre numa cadeia evolutiva e obedecendo a determinados critérios naturalistas,
a História da literatura brasileira
de Silvio Romero, ver Abdala
poderiam, segundo entendia, ser identificadas como nacionais 5. Romero
Junior (2001). Para uma visão propõe uma definição ampla de literatura, quase como sinônimo de cultura:
integrada da crítica de Romero,
ver Candido (2006) e Dimas
“para mim a expressão literatura tem a amplitude que lhe dão os críticos e
(2009). historiadores alemães. Compreende todas as manifestações da inteligência

6 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


André Botelho

de um povo: – política, economia, arte, criações populares, ciências [...]”


(Romero, [1888] 1960, p. 58).
Contudo, com a publicação em 1916 da História da literatura brasileira de
José Veríssimo, a disputa pela definição do objeto da historiografia literária
se acirra6. Contestando o conceito genérico de Romero, Veríssimo propõe 6. Sobre este livro, ver Barbosa
(2001).
outro mais específico: “Literatura é arte literária. Somente o escrito com
propósito ou a intuição dessa arte, isto é, com os artifícios de invenção e
de composição que a constituem é, a meu ver, literatura. Esta é neste livro
sinônimo de boas ou belas letras, conforme a vernácula noção clássica”
(Veríssimo, [1916] 1963, p. 12). Se a definição de Romero corresponde ao
predomínio das teses deterministas do cientificismo naturalista, a redefinição
de Veríssimo traduz o crescente interesse pelos fenômenos estéticos naqueles
anos. Interesse ligado a uma relativa profissionalização dos escritores e ao seu
esforço de definir a literatura como um problema mais delimitado e espe-
cializado, o que não estava no horizonte social do programa de Romero. A
redefinição de Veríssimo mantém, todavia, a autoridade – e legitimidade – da
literatura para estabelecer a especificidade da “nação”: “[a] literatura, que é
a melhor expressão de nós mesmos, claramente mostra que somos assim”
(Idem, ibidem).
Ao contrário de Romero, para Ronald de Carvalho não caberia julgar a
obra literária exclusivamente a partir de fatores externos, mas também em
função das componentes que – como Veríssimo – ele considerava intrínse-
cas. Entre uma concepção estrita e outra que acabava por reduzir literatura
a simples reflexo da sociedade, Ronald procurou constituir sua concepção
na própria figuração das sinuosas relações entre formas estéticas e contextos
sociais. Sobre os métodos dos seus predecessores, pensava:

Sílvio condenava, muitas vezes, mais os homens que os princípios, via a obra através
do autor, julgava a cultura pela raça. Seus erros de observação não lhe devem correr
por conta do raciocínio, que era de uma precisão admirável, mas, geralmente, por
mal do seu coração, que era um tanto feminino, tal a instabilidade das suas prefe-
rências (Carvalho, 1922, p. 340).

Ao contrário de Sílvio, José Veríssimo via apenas a obra e nunca homem, exaltava
ou condenava o escritor sem se importar com a sua categoria social ou mesmo
literária. O autor, para ele, era uma figura secundária, sem interesse imediato, a
não ser quando havia na sua vida um ou outro pormenor que pudesse explicar com
mais segurança certas particularidades da obra (Idem, p. 344).

novembro 2011 7
A Pequena história da literatura brasileira: provocação ao modernismo, pp. 135-161

Embora manifeste seu desejo de pôr “de lado a controvérsia” – “o que


apresenta maior relevância, para a história das nossas letras, é a própria fa-
tura” das obras (Idem, p. 189) –, os juízos de Ronald de Carvalho parecem
ter por base um pragmatismo que leva em consideração a relativa escassez
de obras literárias no acervo brasileiro com condições de suportar uma
apreciação exclusivamente estética. Ao lado das idiossincrasias pessoais dos
literatos, Ronald buscava avaliar o “defeito” na fatura do texto em função
dos limites impostos pelo tempo e meio social. Tomo um exemplo aleatório:
“Se outros fossem os caminhos por ele trilhados, não seria de admirar que
Alvarenga Peixoto nos deixasse algum poema de maior fôlego. Só lhe faltou,
para isso, um ambiente menos estreito e servil, que engenho ele o tinha de
sobra” (Idem, p. 182).
Assentado o axioma da capacidade da literatura expressar o “caráter
nacional” – justificativa para os estudos historiográficos como perspectiva
de conhecimento da própria formação da sociedade como nação –, os his-
toriadores da literatura brasileira viram-se constrangidos por um problema
fundamental: como demonstrar a formação de uma literatura em termos
nacionais se ela não se baseava numa língua própria, mas herdada dos co-
lonizadores portugueses? Entendida como instrumento e portadora de um
conjunto compartilhado de práticas e valores, a língua foi um dos principais
critérios de definição da identidade nacional para uma coletividade social.
Em alguns casos, a conexão linguística chegou a ser pensada como a pró-
pria condição de expressão e cultivo do sentimento nacional, isto é, como
elemento de articulação dos valores simbólicos que permitiriam àquela
coletividade se identificar e se expressar como “nação”.
Sílvio Romero procurou resolver esse problema segundo o seu esquema
naturalista geral. Assimilada à questão da raça, a língua foi por ele concebida
como um “organismo” que “evolui” – em extensão e profundidade – em
função do ambiente mais amplo. No caso do Brasil, a miscigenação ou
caldeamento das raças seria o fator principal. Por isso, ele entendia que
a língua portuguesa falada no país poderia vir a assumir feições próprias,
propostas como “nacionais” e diferenciadas em relação a outras coletividades
falantes do mesmo idioma (cf. Romero, 1960, pp. 135-136). Assim, quando
precisou enfrentar o mesmo problema dezoito anos depois, José Veríssimo
já contava com a possibilidade de diferenciação da língua portuguesa do
Brasil, o que ajuda a entender sua ironia – numa discreta nota de rodapé,
é verdade – diante da tentativa de valorização da língua tupi ensaiada por
alguns escritores romântico-indianistas (cf. Veríssimo, 1963, p. 8, nota 2).

8 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


André Botelho

Para esses historiadores literários, a partir de que momento seria legí-


timo falar em diferenciação da língua portuguesa como fundamento da
formação da literatura brasileira? A pergunta remete, na verdade, ao pro-
blema central da historiografia literária brasileira: identificar e demarcar um
momento fundador, já que esta, necessariamente, “nasceu e desenvolveu-se
[...] como rebento da portuguesa e seu reflexo” (Idem, p. 1). Ou como diria
décadas depois Antonio Candido (1964, p. 9): “A nossa literatura é galho
secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim
das Musas”.
Tal como os próprios românticos, Sílvio Romero e José Veríssimo conside-
raram o romantismo o “momento decisivo”, por assim dizer, da formação da
literatura brasileira. Para o primeiro, a “nativização, a nacionalização da poesia
e da literatura em geral foi, talvez, o maior feito do romantismo”; ou ainda:
“O romantismo brasileiro, em seu acanhado círculo, asilou os mesmos deba-
tes que o seu congênere europeu. Seu maior título, a meu ver, foi arrancar-nos
em parte da imitação portuguesa, aproximar-nos de nós mesmos e do grande
mundo” (Romero, 1960, pp. 781 e 787). O mesmo vale para Veríssimo:

[...] com os primeiros românticos, entre 1836 e 1846, a poesia brasileira, retomando
a trilha logo apagada da plêiade mineira, entra já a cantar com inspiração feita dum
consciente nacional. Atuando na expressão principiava essa inspiração a diferençá-
la da portuguesa. Desde então somente é possível descobrir traços diferenciais nas
letras brasileiras (Veríssimo, 1963, p. 6).

Neste ponto surge uma das convergências mais importantes entre José
Veríssimo e Sílvio Romero: a precedência da independência política sobre
a literária e intelectual. Para ambos, as condições de florescimento de uma
literatura nacional e a feição por ela assumida seriam produtos da própria
evolução histórica da sociedade. Mais do que para eles, no entanto – que
tomaram a “autonomia cultural” como consequência da “autonomia política”
do país –, o axioma da feição particular (“brasileira”) da língua portuguesa
assume para Ronald de Carvalho a condição basilar da formação de uma
literatura nacional no Brasil.
Embora desde Romero essa possibilidade estivesse, em tese, assegurada,
quando Ronald publicou sua Pequena história a autonomia linguística cons-
tituía ainda objeto de acirradas polêmicas entre literatos, filólogos e histo-
riadores literários. Publicados respectivamente em 1921 e 1922, os livros A
língua nacional, de João Ribeiro – que defendia a diferenciação, a autonomia

novembro 2011 9
A Pequena história da literatura brasileira: provocação ao modernismo, pp. 135-161

e a legitimidade do português falado no Brasil –, e A perpétua metrópole, de


Almáquio Diniz (que postulava o contrário), testemunham a relevância as-
sumida por esse debate. E foi justamente em face dele que Ronald precisou
se posicionar:

Apesar de não possuirmos uma língua própria, acreditamos, ao revés de alguns


pessimistas de pequena envergadura, que nos não falecem as condições necessárias
ao advento de grandes obras literárias, perfeitamente brasileiras, caracteristicamente
nacionais. A influência portuguesa, predominante até os fins do século XVIII,
entrou, no século XIX, em franco declínio e, hoje, não existe mais senão como
apagado vestígio, repontando, de raro em raro, nalguns escritores quase sem relevo.
O idioma falado por nós já apresenta singularidades notáveis; nossa prosódia tem
acentos mais delicados que a lusitana, e há na sintaxe popular muitas particularidades
interessantes. Temos, também, um extenso vocabulário essencialmente brasileiro,
cuja importância não se faz mister encarecer (Carvalho, 1922, pp. 43-44).

Tirando, também neste ponto, consequências mais de Sílvio Romero


que de José Veríssimo, Ronald enfatizou que a feição brasileira da língua
portuguesa seria produto, sobretudo, da sintaxe popular em detrimento de
obras literárias consagradas:

[...] a voz do povo já se fazia escutar com acentos e timbres diferentes, e, se no


ponto de vista puramente intelectual, ainda predominava a lição da Universidade
de Coimbra, a feição de nossa gente apresentava profundas modificações. Os dou-
tos e os eruditos estavam ainda presos a Portugal, mas a plebe, o “vulgo profano”,
de cuja “grossaria” se queixava o árcade Cláudio Manoel da Costa, tinha os olhos
voltados para a terra natal (Idem, pp. 155-156, grifo no original).

Desse modo, a feição brasileira da língua portuguesa caracterizar-se-ia


pela ideia de “simplicidade” da linguagem, em oposição ao léxico opulento
e ao emprego ostensivo de artifícios expressivos – reunidos pelo autor no
termo “gongorismo” –, identificados à sintaxe lusitana (objeto de ataques
no âmbito do modernismo). Artifícios expressivos que, em síntese, “revelam
apenas o brilho de um espírito curioso, forrado de um ecletismo superficial
e fácil, onde os recursos de eloquência resolvem, a cada passo, os problemas
que o raciocínio deixou por insolúveis” (Idem, p. 223).
A ideia de “simplicidade” está, assim, diretamente relacionada com o
caráter instrumental atribuído pelo autor à linguagem literária e poética

10 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


André Botelho

como se fossem capazes de propiciar o desvelamento da “realidade brasilei-


ra”. Sua crítica volta-se, então, para a opacidade acarretada pelo emprego
ostensivo de artifícios expressivos que acabava por ocultar a realidade na-
cional. E essa ideia de “simplicidade” da linguagem foi fundamental para
o questionamento da definição a priori dos temas considerados poéticos
e para a aproximação da poesia a um mundo mais prosaico e cotidiano.
Aspectos que, não por acaso, constituíram elementos centrais do programa
cultural assumido pelos modernistas em geral.
A partir desse critério, Ronald de Carvalho enfrenta temas polêmicos
que formavam a tradição intelectual da historiografia literária brasileira.
Por exemplo, a periodização da evolução da literatura e a definição de uma
galeria canônica em termos de textos e autores. Embora tenha considerado
a periodização proposta por Romero “mais atenta” do que a de Veríssimo,
Ronald entendia, porém, que faltava a ela “segurança e concisão”: “Aquele
seu ‘período de desenvolvimento autonômico’ é menos verdadeiro, pois
ainda sofríamos no século XVIII imediata influência portuguesa” (Idem,
p. 47). Assim, propõe uma divisão da formação da literatura brasileira em
três períodos distintos:

1º) – Período de formação, quando era absoluto o predomínio do pensamento


português (1500-1750);
2º) – Período de transformação, quando os poetas da escola mineira começaram
neutralizar, ainda que palidamente, os efeitos da influência lusitana (1750-1830);
3º) – Período autonômico, quando os românticos e os naturalistas trouxeram para
a nossa literatura novas correntes europeias (1830 em diante) (Idem, pp. 47-48).

Quanto à galeria canônica da literatura brasileira, Ronald seleciona


determinados literatos, em geral, e poetas, em particular. Parte dos estudos
realizados por seus predecessores, sem deixar de atualizá-los incluindo no
cânone autores e textos de sua preferência. A esse respeito, eu começaria su-
gerindo – para usar uma fórmula consagrada pelos historiadores da literatura
brasileira – um subtítulo que explicitasse o arco histórico da Pequena história
em termos de autores: “De Gregório de Matos a Mário Pederneiras”. De fato,
é entre o poeta barroco baiano e o poeta simbolista carioca que, segundo
Ronald, a literatura brasileira se esboçaria como expressão da nacionalidade.
Ou seja, ele considerava que as expressões legítimas da literatura nacional
já seriam perceptíveis antes mesmo do Romantismo, quando ocorre a sua
consolidação de fato.

novembro 2011 11
A Pequena história da literatura brasileira: provocação ao modernismo, pp. 135-161

Assim, as primeiras manifestações nativistas, tipo de prelúdio do senti-


mento nacionalista, remontariam ao Barroco e não aos árcades mineiros –
uma polêmica que, aliás, chega aos dias atuais, opondo Haroldo de Campos
a Antonio Candido justamente em torno do caso Gregório de Matos (cf.
Campos, 2011). Para Ronald de Carvalho, “o sentimento brasileiro só com
Gregório de Mattos é que, realmente, começa a aparecer” (Carvalho, 1922,
p. 100). E completando mais adiante: “Ele foi, para resumir, o primeiro
espírito varonil da raça brasileira” (Idem, p. 122). Mário Pederneiras, por
sua vez, é considerado o introdutor do verso livre, principal instrumento
estético modernista de reação à hegemonia poética parnasiana no Brasil:

Sua poesia é de uma simplicidade a que não estamos habituados. Usando o


metro livre com perícia, conhecendo-lhe os segredos e as dificuldades, o autor
do Ao léu do sonho e à mercê da vida, exerceu segura influência sobre grande
parte dos nossos melhores poetas modernos. [...] Pederneiras estimava as coisas
no seu ambiente natural, deslindadas de artifício, singelas e humildes, como se
apresentam aos nossos olhos. Não lhe interessavam os aspectos extraordinários do
mundo [...] ficava indiferente diante de toda essa quinquilharia de que abusaram
os parnasianos” (Idem, p. 375).

Embora presente como enunciado tanto no manuscrito da Pequena histó-


ria como em sua primeira edição de 1919, cumpre observar que o argumento
sobre o papel de Mário Pederneiras na introdução do verso livre no Brasil foi
desenvolvido com maior ênfase e documentação a partir da segunda edição,
de 1922. Sobre esse poeta, com quem conviveu na redação da revista Fon-
Fon!, anotou Ronald em 8 de fevereiro de 1915 no seu caderno de endereços
7. O manuscrito de Pequena (utilizado também como um tipo de diário): “Morreu sozinho e triste às 3 ho-
história da literatura brasileira e o
original do caderno de anotações
ras da manhã Mário Pederneiras. Dei para o seu sono muitas rosas suaves”7. A
constam do acervo do autor. valorização de Pederneiras não respondia apenas, ou principalmente, ao gosto
pessoal do autor. Está inserida num movimento mais amplo de valorização do
simbolismo como ponto de partida e perspectiva de renovação estética. E a
defesa de uma continuidade interna do modernismo em relação ao simbolis-
mo foi peça crucial, seja nos embates dos intelectuais cariocas com os paulistas
nos anos de 1920, seja para a afirmação dos primeiros como pioneiros no
combate à estética parnasiana.
Voltando à Pequena história, o ápice da formação da literatura brasileira,
no que diz respeito à prosa – sempre perseguindo a ideia de autonomia e
simplicidade da linguagem –, ter-se-ia dado com Machado de Assis: “sem

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André Botelho

contestação, sob variados aspectos, o mais significativo dos escritores de


língua portuguesa” (Carvalho, 1922, p. 333). Assim, num tipo de redenção
do nosso mal de origem – uma literatura nacional sem base num idioma
próprio –, nosso processo de diferenciação e autonomização linguística
acabaria por dar à língua portuguesa um dos seus mais notáveis expoentes
literários. De quem, aliás, Ronald de Carvalho traduziu Dom Casmurro
para o francês.
A galeria canônica proposta por Ronald inclui ainda, com destaque, obras
como Jornal de Timon, de João Francisco Lisboa – “Inteligência universal,
queremos dizer versátil e polimorfa, Lisboa, no meio dos seus companheiros
enfáticos e atrasados, brilhou pela liberdade do caráter e pela profundeza da
capacidade de observador sagaz e astuto” (Idem, p. 283) –, e Memórias de um
sargento de milícias, de Manoel Antonio de Almeida; e autores como, por
exemplo, Joaquim Manoel de Macedo – “o verdadeiro fixador dos nossos cos-
tumes, naquela época ainda colonial na maioria dos seus aspectos [...] com-
preendeu admiravelmente as tendências da nossa alma popular, sentimental
e piegas, e fez, com pequenas intrigas ingênuas [...] a sua história íntima e
simplória” (Idem, p. 261) – e Castro Alves – “[o] sucesso do seu lirismo decla-
matório, empolado e brilhante, onde refulgem, de trecho a trecho, imagens
de uma formosura quente e nervosa, tem as raízes no caráter grandiloquente
e enfático da raça brasileira. Ele foi, e é ainda amado aqui por várias razões
de ordem moral, porquanto é, de certo, um genuíno representante do nosso
pendor para o grandioso, até para o extravagante” (Idem, p. 250); por mo-
tivos opostos, Cruz e Sousa, em cuja poesia não se verificariam “os processos
artificiosos com que os nossos versejadores hábeis, na sua maioria, procuram
iludir a sensibilidade do leitor. O brilho da rima esquiva, o recamo do vocá-
bulo cintilante, o colorido da imagem esquisita, tudo isso foi posto à margem”
(Idem, p. 358). Com Cruz e Souza, sugere Ronald, rompia-se nada menos do
que com a noção preestabelecida de eu-lírico, de modo que a partir dele “o
artista, em suma, desapareceu” (Idem, ibidem).

II

A estética parnasiana foi alvo de um intenso combate movido pelos


modernistas. A concepção de poesia como produto nobre do espírito e de
uma ideia elevada de inspiração dominou quase completamente a atividade
poética brasileira na passagem do século XIX para o XX. O vocabulário raro
e previamente escolhido favorecia o efeito pretendido pelos parnasianos

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A Pequena história da literatura brasileira: provocação ao modernismo, pp. 135-161

de desprendimento idealista em relação a qualquer referência à realidade


prosaica (cf. Arrigucci Jr., 1990, p. 102).
O combate modernista tanto ao alegado artificialismo da poética par-
nasiana – disciplinada por uma concepção rigorosa de forma dissociada de
conteúdo (tomada como uma espécie de adorno postiço) – como à visão me-
canicista da natureza e do homem associada ao ideário naturalista comporta
uma dimensão social mais ampla frequentemente negligenciada pela crítica
especializada, mas que se mostra fundamental do ponto de vista sociológico.
Se perguntarmos sobre o seu lugar social, podemos perceber que esta polê-
mica se inscreve num quadro mais amplo de ideias, no qual as linguagens em
transformação são índices do complexo diálogo que a sociedade brasileira
dos anos de 1920 travava consigo própria sobre o papel desempenhado pelo
legado cultural ibérico na sua ordenação.
Não por acaso esse é um dos temas centrais da Pequena história. Associan-
do o ideário parnasiano ao legado cultural ibérico, Ronald de Carvalho sugere
que este teria moldado não apenas a literatura, mas a sociedade brasileira
como um todo desde a colonização, e sua influência se faria sentir decisiva-
mente mesmo após a independência política de 1822. Essa percepção rela-
tivamente aguda da questão estética só foi possível porque o autor tinha em
vista um quadro de referências mais amplo, próprio ao gênero historiográfico.
A denúncia do ideário parnasiano pelo grupo paulista de 1922 esteve
inicialmente circunscrita ao domínio estético (cf. Paes, 1990, p. 68). No
âmbito dessa vertente do modernismo, o legado cultural ibérico – encarnado
na figura do bacharel – foi objeto de crítica apenas no final dos anos de 1920
e, sobretudo, ao longo da década seguinte. Sérgio Buarque de Holanda, por
exemplo, referiu-se à “praga do bacharelismo” na nossa formação cultural,
que condicionaria o móvel do conhecimento como fonte de distinção e
destaque dos seus cultores: “De onde, por vezes, certo tipo de erudição so-
bretudo formal e exterior, onde os apelidos raros, os epítetos supostamente
científicos, as citações em língua estranha se destinam a deslumbrar o leitor
como se fossem uma coleção de pedras brilhantes e preciosas” (Holanda,
1995, p. 165). Também Paulo Prado observava, em 1928, no Retrato do
Brasil : “Ciência, literatura, arte – palavras cuja significação exata escapa
a quase todos. Em tudo domina o gosto do palavreado, das belas frases
cantantes, dos discursos derramados: ainda há poetas de profissão” (Prado,
1997, pp. 203-204).
Em 1919, Ronald de Carvalho já observava que o legado ibérico havia
formado uma cultura “essencialmente idealista e aventurosa”; daí o seu por-

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André Botelho

tador ideal: o Quixote que “luta sem saber com quem, contra um moinho
ou contra um exército, mas luta porque tem necessidade de aventuras para
viver” (Carvalho, 1922, p. 25). Contraposta à ideia de “estabilidade”, que,
segundo o autor, “é por onde se revelam os povos já velhos e constituídos”
(Idem, p. 128), a ideia de “aventura” é sistematicamente formulada ao longo
da Pequena história como definidora do “caráter brasileiro”:

Já se disse, no correr deste livro, que não possuímos a noção da estabilidade; ora,
sem essa qualidade primacial, que não se improvisa, e somente se adquire com o
trato e a experiência dos homens e do mundo, não haverá equilíbrio nos conceitos,
nem justeza nos comentários; não haverá filosofia na história, nem penetração na
crítica. Acresce, também, que os povos da península ibérica de quem descendemos
diretamente, para não mencionar o índio e o africano, cuja capacidade de obser-
vação é secundária, nunca se revelaram superiores por esse lado. Ali predomina,
igualmente, a paixão, o lirismo histórico obscurece a visão dos fatos, o culto da
imaginação perturba o conhecimento lógico das coisas. A irreverência de Cervantes
e a exaltação de Camões definem a raça hispano-lusa (Idem, p. 276).

A ação do legado ibérico seria de tal modo contundente que desprender-


se das formas fixas, da proporção e das medidas estipuladas nos manuais
parnasianos não se afigurava desafio modesto para o autor. Segundo Ronald
de Carvalho, existiriam afinidades de tal modo efetivas entre ideário estético
parnasiano e o que chama “sensibilidade” ou “caráter” nacional brasileiro –
moldados pelo legado ibérico – que a própria historiografia literária se encon-
trava prejudicada: “Os brasileiros somos, geralmente, historiadores de curto
vôo e críticos de pouca profundidade. Na história, confundimos a eloquência
com a verdade, na crítica, o elogio ou a verrina com o senso da exatidão. O
mal não é tão nosso como das condições étnicas, morais e sociais do país”
(Idem, p. 275). A poesia, no entanto, constituía o seu grande “paradigma” e o
caso de Olavo Bilac era exemplar:

O que, porém, define melhor as suas íntimas ligações com a alma brasileira e a
influência considerável que ele exerceu, e ainda exerce, em nossas letras, é a sua
concepção essencialmente epicurista e voluptuosa da vida. Os povos em formação
que, à semelhança do nosso, estão em conflito permanente de tendências e direções,
marcham por entre uma exaltação de egoísmos que só lhes deixa entrever, como fins
realizáveis e imediatos, o prazer e o gozo, na fortuna vária. As grandes abstrações
não os comovem, os sistemas transcendentes da inteligência pura não chegam a

novembro 2011 15
A Pequena história da literatura brasileira: provocação ao modernismo, pp. 135-161

prender-lhes a atenção, pois eles preferem a representação exterior das coisas, o


pitoresco das formas e o brilho dos coloridos (Idem, p. 322).

Assim, na passagem do século XIX ao XX, a prática do soneto parnasiano


permanecia como uma espécie de pendor cultural ou tributo obrigatório não
apenas para os homens de letras, mas para os brasileiros em geral. No melhor
espírito irreverente que caracterizou a época – mas não a sua narrativa em
particular –, Ronald ironiza: “O soneto era o veículo fatal de todas as coisas,
a medida da inspiração amorosa e da inspiração industrial. Dependurava-se
dos bondes, esgueirava-se da carteira dos amanuenses e pulava das balas de
estalo. Passaporte para o casamento, para o suicídio ou para a celebridade
suburbana, era sempre a chave mágica da fama” (Idem, p. 107).
Para o autor, combater o ideário parnasiano implicava, portanto, uma
avaliação crítica mais ampla do papel do legado ibérico na formação da so-
ciedade brasileira, bem como uma mobilização constante dos intelectuais. Tal
combate apresenta-se na Pequena história como a base de um programa de
renovação cultural mais amplo voltado para a reforma moral da sociedade.
Programa que, tendo sido iniciado pelos simbolistas, caberia à geração do
próprio Ronald completar:

É contra esse eterno soneto que reagimos presentemente. De fato, quem estudasse
a nossa literatura poética, durante a última metade do século XIX e o primeiro
quartel do século XX, ficaria embaraçado se quisesse atenuar a venenosa ironia
do mencionado conceito [...]. De tal modo se inveterou em nossos costumes,
que ficamos, insensivelmente, à margem de toda a evolução literária do universo
(Idem, ibidem).

Embora na Pequena história a condição de formação da literatura bra-


sileira em termos nacionais seja dada pela ruptura com o pensamento, o
sentimento e as formas de expressão lusitanas – consagrados na estética
parnasiana –, esse processo não seria linear. Comportaria determinados
avanços e recuos característicos de uma concepção cíclica do tempo, uma
vez que tudo “quanto fizera a delícia dos tempos passados” sempre voltaria
“à superfície” (Idem, p. 171). Tudo se passa como se, para Ronald, a sucessão
temporal das escolas literárias – que, nas suas palavras, “são, quase sempre,
invenções das épocas de decadência, ou, melhor, dos períodos de transição”
(Idem, ibidem) – não exprimisse o aperfeiçoamento progressivo e linear do
sentimento nacional de modo unívoco.

16 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


André Botelho

Vejamos dois exemplos da releitura que essa concepção de tempo cíclico


permite. O primeiro, do árcade Cláudio Manoel da Costa, como um caso
“negativo”. Isto é, de um poeta que, preocupado apenas com os artifícios
de linguagem na montagem de um jogo estético complexo, não pôde ex-
primir a “realidade brasileira” e, desse modo, pouco teria contribuído para
a formação da literatura em termos nacionais:

Sua ingenuidade é postiça, não nos comove; seus pastores são, geralmente, vazios, sem
alma, são talvez, como aquela cigarra da ode anacreôntica, iguais aos deuses intangí-
veis do Olimpo, pois o que lhes falta justamente é sangue vermelho, sangue humano.
Cláudio tinha, sem favor, um admirável gosto para vestir e compor os seus bonecos,
à francesa ou à italiana, conforme as exigências da hora. Sabia também, e com apre-
ciável talento, corrigir a natureza, aparar-lhe as arestas, arredondar-lhe os contornos
ásperos, mas fazia-o tão cuidadosamente que, afinal, não era mais a natureza que
se apresentava nas suas éclogas ou nos seus sonetos, mas um painel decorativo,
digno de Fragonard e dos pintores galantes do século XVIII, em França. Quer em
Alvarenga Peixoto, quer em Silva Alvarenga havia muito mais larga compreensão
da terra, muito mais verdade nativista, se assim podemos dizer (Idem, p. 173).

O segundo caso, por oposição, “positivo”, seria o poeta parnasiano Al-


berto de Oliveira, que expressaria de modo quase inigualável a “fisionomia
da nossa terra natal” (Idem, p. 319). Ele mostra bem como a questão das
escolas literárias aparece relativizada na Pequena história:

Se é verdade que o Sr. Alberto de Oliveira sofreu a influência dos parnasianos fran-
ceses, não é menos certo que, há muito, dela se libertou, ganhando maior amplitude
os seus temas e mais simplicidade a sua poesia, sempre elegante, aliás, e sempre
correta. Demais, um grande poeta impassível é um jogo de palavras sem sentido,
uma refinada monstruosidade que só a logomaquia habitual se compraz em repisar.
O autor das “Meridionais” continua a ser, nas suas múltiplas tendências clássicas,
românticas ou parnasianas, sobretudo um lirista sensível, colorido e imaginoso.
Sua imaginação é mesmo, como expressão literária, uma das mais consideráveis de
quantas tem aparecido no Brasil (Idem, ibidem).

Haveria, em suma, no barroco, bem como entre os românticos e mesmo


parnasianos, determinados literatos e poetas que permitiriam a Ronald de
Carvalho entrever, em diferentes graus, a constituição de uma literatura na-
cional. Para o autor, todo o problema estaria na falta de elos de coesão entre

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esses homens de letras. Pois, como ele mesmo afirma: “Ficamos, apenas, com
alguns nomes e datas na memória, mas sem poder ligá-los” (Idem, p. 282).
Radicalizando o axioma da literatura como expressão da nacionalidade,
Ronald toma a possibilidade de uma feição brasileira da língua portuguesa
não apenas como base de uma literatura brasileira nacional, mas também
como critério de avaliação das obras que justificariam tal formação. A “lin-
guagem brasileira” é perseguida na temática, bem como na dicção, sintaxe
e vocabulário das obras. A característica fundamental dessa “linguagem
brasileira” seria, como vimos, a “simplicidade” em detrimento dos artifícios
formais identificados à tradição cultural lusitana. Artifícios cultivados e
atualizados pelo ideário estético e ideológico parnasiano, mas não necessa-
riamente por todos os seus poetas. Vemos assim, portanto, como estava em
jogo um debate não apenas sobre a literatura, mas também sobre a própria
formação de um “léxico” para o Brasil moderno.
E a ideia de “simplicidade” está diretamente associada à definição do
papel atribuído à literatura de desvelar a “realidade”. Segundo Ronald, na
busca pela perfeição da forma, o modo parnasiano de versificação cristalizado
em regras acadêmicas acabou por levar inevitavelmente ao alheamento da
literatura da “realidade” tangível. Este, então, o “sentido” apontado na Pe-
quena história para a renovação estética e intelectual brasileira: aproximar a
literatura produzida no país da sua “realidade” própria – tema que integrou
de modo controverso o debate intelectual mais amplo nos anos de 1920 e
1930, sendo fundamental também no ensaísmo de interpretação do país
contemporâneo (cf. Botelho, 2010). É nesse quadro que a valorização dos
elementos tidos como “locais” e “populares” adquire sentido: “A verdadei-
ra poesia”, afirma Ronald, “nasce da boca do povo como a planta do solo
agreste e virgem. É ele o grande criador, sincero e espontâneo, das epopeias
nacionais, aquele que inspira os artistas, anima os guerreiros e dirige os
destinos da pátria” (Idem, p. 51).
A valorização da língua portuguesa falada no Brasil e sua transposição
para a escrita, ou, noutras palavras, a aproximação da língua escrita à falada,
constitui tema central do modernismo. Ele está presente de modos e com
sentidos diversos em ensaístas, literatos e poetas do período. Sua adoção
programática é central em Mário de Andrade, por exemplo. Em carta datada
de 18 de fevereiro de 1925 a Carlos Drummond de Andrade, Mário refere-se
a essa questão como a aproximação do “como falamos” ao “como somos”,
uma verdadeira “aventura que me meti de estilizar o brasileiro vulgar”. Uma
aventura, porém, “muito pensada e repensada”, já que se trataria de uma

18 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


André Botelho

“estilização culta da linguagem popular da roça como da cidade, do passado


e do presente. É uma trabalheira danada diante de mim”. E assevera adiante
sobre os usos populares brasileiros da língua portuguesa:

O povo não é estúpido quando diz “vou na escola”, “me deixe”, “carneirada”,
“mapear”, “besta ruana”, “farra”, “vagão”, “futebol”. É antes inteligentíssimo nessa
aparente ignorância porque sofrendo as influências da terra, do clima, das ligações
e contatos com outras raças, das necessidades do momento e da adaptação, e da
pronúncia, do caráter, da psicologia racial modifica aos poucos uma língua que
já não lhe serve de expressão porque não expressa ou sofre essas influências e a
transforma afinal numa outra língua que se adapta a essas influências (Andrade e
Andrade, 2002, p. 100).

Nessa aproximação, Mário de Andrade contrapunha-se e, na verdade,


esvaziava a distinção clássica entre norma culta – a língua portuguesa escrita
de acordo com as regras gramaticais estabelecidas a partir de Portugal – e
a língua portuguesa falada, adaptada e recriada no cotidiano brasileiro. Foi
com a concorrência de Mário de Andrade que essa, certamente, se tornou
uma das maiores conquistas do modernismo. Ao seu lado se alinhava mais
uma vez o amigo Manuel Bandeira, que em 1925 tomou posição firme em
relação à “língua-mãe”. Como Mário, Bandeira escolhe a língua “errada”
do povo brasileiro ao português castiço de Portugal, mas manteve restri-
ções ao uso excessivo da fala popular em poesia – verdadeira obsessão do
amigo paulista –, questão que seria, inclusive, objeto de controvérsia entre
romancistas e críticos da década de 1930 (cf. Bueno, 2006). Lembrando
a sua experiência com a língua portuguesa no belo poema “Evocação do
Recife”, de 1925, Bandeira escreve:

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros


Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
BANDEIRA (1974, p. 213).

novembro 2011 19
A Pequena história da literatura brasileira: provocação ao modernismo, pp. 135-161

Essa conquista modernista não é apenas estética, mas também social


e política. O reconhecimento da língua cotidiana e popular implicou re-
novação radical do código literário, bem como uma aproximação ao povo
que procurava dar voz própria ao homem brasileiro. Nem sempre ingênua,
essa valorização do “popular” tem sentidos diversos e dificilmente pode
ser generalizada. No que diz respeito a Mário de Andrade, por exemplo,
a aproximação do “como falamos” ao “como somos” remete a um aspecto
central do seu pensamento e da sua atuação, presente também na sua valo-
rização do folclore e das práticas culturais populares como meio estratégico
de abrasileiramento da cultura erudita produzida no Brasil (especialmente
a música). Assim, é crucial observar que, embora tenha especificidades lin-
guísticas próprias, a diluição da oposição língua escrita (culta) e língua falada
(popular) – e sua ressignificação mútua – implica a diluição mais ampla
entre cultura erudita e cultura popular, tal como realizado magistralmente
em seu Macunaíma, de 1928.
Em Mário de Andrade, o sentido dessa diluição implica reconhecimento
social e aproximação em relação ao povo, dando-lhes voz própria (cf. Lopez,
1972). No caso da Pequena história, por sua vez, a valorização do “popular”
se faz acompanhar por certa desqualificação dos próprios portadores sociais
da ideia. O “povo”, visto como ainda “virgem”, é proposto antes como um
“manancial” de “novas forças” para o homem de letras que, embora cultiva-
do, se mostraria incapaz de renovar-se por si mesmo. Como afirma Ronald
de Carvalho, se quem “fez a Revolução Francesa não foi Voltaire, com as
suas sátiras, nem Rousseau, com os seus romances: foi a fome, com as suas
dores e misérias” (Idem, pp. 156-157), aos escritores caberia, no entanto,
“representar com mais justeza essas invisíveis afinidades que existem entre
as lutas da alma e as do ambiente circunstante” (Idem, p. 316).

III

Com Pequena história da literatura brasileira, Ronald de Carvalho atuali-


zou o axioma da literatura como expressão da nacionalidade que herdou de
seus predecessores no gênero, notadamente Silvio Romero e José Veríssimo.
Mas ao lançar mão desse legado historicista ele tinha em vista as questões
próprias do seu tempo. É nesse sentido que a questão da renovação estética
se constitui em motivo central, como aquilo que põe o argumento do livro
em movimento. Como assinalamos, a definição programática de uma feição
brasileira da nossa língua, especialmente na poesia, informa o sentido da

20 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


André Botelho

renovação proposta no livro. Ela não era, porém, desafio único ou isolado. Se-
gundo Ronald, várias causas concorreriam para a formação de uma literatura,
sendo algumas peculiares ao próprio povo e outras exteriores, que seguiriam
“como que um processo de lenta infiltração, de caldeamento intelectual
e moral” (Idem, p. 42). E embora as “causas internas” se lhe afigurassem
como as fundamentais, ele adverte que as “causas exteriores” não devem
ser desprezadas “como qualquer elemento perigoso de desnacionalização”:
“Não! As literaturas são como os seixos ao fundo quieto dos rios: precisam
de muitas e diferentes águas para se tornarem polidas. E se, por um lado,
podem ficar menores, perdem, por outro, certas arestas duras e agressivas,
infinitamente mais nocivas à sua perfeição” (Idem, p. 43; grifo no original).
As “causas externas” são entendidas na Pequena história, sobretudo,
como as influências europeias constitutivas da estrutura e da dinâmica da
nossa vida cultural como um todo. A principal decorrência prática dessa
posição – que também se mostra original em relação aos precedentes no
gênero – foi a tentativa de associar os movimentos e escolas literárias bra-
sileiras às correntes estéticas europeias, de modo a oferecer uma visão de
conjunto mais integrada dessas interdependências. Proposta como condição
da formação da literatura brasileira em termos nacionais, o declínio da in-
fluência lusitana não implicava, portanto, a negação de outras influências
exógenas, mas lhe seria contemporânea8. 8. A questão aparece na própria
periodização da literatura brasilei-
Como Sílvio Romero e José Veríssimo, Ronald de Carvalho também
ra proposta por Ronald de Car-
concebeu os processos de formação da literatura e da sociedade brasileiras valho: podemos perceber que o
sentido da formação do “período
como inteiramente congruentes, de modo que os dilemas formativos da
autonômico” é dado não apenas
literatura corresponderiam aos próprios dilemas formativos mais amplos pela decisiva decadência da in-

da sociedade brasileira. Para eles, o processo de formação da literatura fluência lusitana, como também
pela emergência da influência de
apresentava-se problemático no plano intelectual, sobretudo em função da novas correntes europeias como
questão da importação das ideias como mecanismo próprio de uma sociedade o romantismo e o naturalismo.
Como observou a propósito Lú-
formada a partir da experiência colonial. Presos mais aos efeitos do que às cia Miguel-Pereira, o período an-
causas desse mecanismo social, no entanto, esses autores compartilham do terior ao “autonômico” – chama-
do de “transformação” em função
“sentimento acabrunhador da posição em falso de tudo o que concerne à das tentativas nativistas de “neu-
cultura brasileira”, que “a bem dizer tem a idade de nossa vida mental e com tralização” da influência lusitana
(entre 1750 e 1830) – “parece ter
ela se confunde – bem como as metamorfoses do desejo sempre renovado de
sido o mais independente, por-
corrigi-la mediante alguma sublimação descalibrada” (Arantes, 1997, p. 14). que, depois dessa curta tentativa
de reação, logo surge, não mais a
Romero abordou o tema de modo bastante explícito: “Bem como na
exclusiva influência lusitana, mas
ordem social tivemos a escravidão, na esfera da literatura temos sido um a europeia, muito mais forte”

povo de servos. Os nossos mais ousados talentos, se nos aconselham o (Miguel-Pereira, 1936, p. 55).

abandono da imitação dos portugueses, instigam-nos, por outro lado, à

novembro 2011 21
A Pequena história da literatura brasileira: provocação ao modernismo, pp. 135-161

macaqueação francesa; se nos bradam contra franceses, é para nos atirarem


a ingleses ou alemães!” (Romero, 1960, p. 755). A esse respeito, também
Veríssimo, curiosamente, não mediu palavras:

[...] por inópia da tradição intelectual o nosso pensamento, de si mofino e incerto,


obedece servil e canhestramente a todos os ventos que nele vêm soprar, e não assu-
me jamais modalidade formal e distinta. Sob o aspecto filosófico o que é possível
notar no pensamento brasileiro, quanto é lícito deste falar, é, mais talvez que a sua
pobreza, a sua informidade. Esta é também a mais saliente feição da nossa literatura
(Veríssimo, 1963, p. 11).

No limiar da década de 1920, no entanto, os dilemas formativos da


literatura e da sociedade brasileiras pareciam assumir, para Ronald de Car-
valho, e para o modernismo em geral, feições mais dramáticas do que o
naturalismo de Romero ou o esteticismo de Veríssimo haviam permitido.
Embora concordasse que, do ponto de vista dos fatores raciais e estéticos, a
possibilidade de constituição de uma “civilização” estaria assegurada, restava
para o modernista carioca a questão da existência de uma “cultura brasilei-
ra” – da qual a literatura seria a expressão mais definida – que permitisse à
sociedade (bem como às suas letras) identificar-se em termos propriamente
“nacionais”. O Brasil, afirma Ronald,

[...] representa, sem dúvida, uma força nova da humanidade, e é lógico que possua,
como de fato possui, uma civilização mais ou menos definida, onde predominam,
é certo, as influências europeias, mas onde já se vislumbram vários indícios de uma
próxima autonomia intelectual, de que a sua literatura, já considerável e brilhante,
constitui a melhor e a mais decisiva prova (Carvalho, 1922, p. 37).

Após esse enunciado e muitas páginas de grande empenho – sobretudo


para um jovem de 26 anos de idade – para demonstrar a “fisionomia da nossa
literatura”, Ronald constata algo acanhado: ela “é produto do esforço isolado
de alguns escritores de real merecimento” (Idem, p. 386). Completando a
citação, explicita-se que à literatura brasileira ainda “falta espírito coletivo
justamente porque carecemos de um ambiente de verdadeira cultura”, ou
seja, “uma organização social que se recomendasse pela cultura” (Idem, ibi-
dem). A apontada ausência de organicidade – nos termos de uma tradição
contínua de autores, obras, estilos e temas – da literatura brasileira devia-
se, em suma, ao fato de a própria sociedade brasileira não constituir ainda

22 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


André Botelho

uma “nação” fundada num conjunto de valores culturais próprios que lhe
conferisse identidade e coesão social.
Curiosas essas histórias da literatura que parecem sempre incompletas,
mas, mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, insistentemente atraem novos
decifradores. É que, como muitos outros autores anteriores e posteriores,
Ronald não estava preocupado com a literatura apenas em termos das suas
características estéticas. Interessava-se também pelas respostas que estas po-
deriam dar às suas perguntas sobre a construção nacional do Brasil. Como
“meio onde nos encontramos e nos conhecemos a nós mesmos”, a literatura
resolveria, para o autor, “o antigo adágio grego, porquanto ‘reúne todas as
coisas que estão separadas, e vive separadamente em cada uma das coisas’”
(Idem, p. 322).
Embora não tenha desaparecido de todo após a Pequena história, a crença
historicista na congruência entre os processos formativos da literatura e da
sociedade ficaria, no entanto, deslocada a partir da década de 1950. Nesse
momento, as convicções da unidade nacional e da dependência cultural
que tanto animaram o modernismo dos anos de 1920 – em suas mais di-
ferentes vertentes – passaram a conviver e disputar definições do moderno
com perspectivas mais universalistas (cf. Botelho, 2009). Perspectivas que
se voltavam às formas de integração do país no capitalismo mundial, à re-
flexão sobre os impasses da sociedade de classes, bem como à realização de
uma ordem social democrática, secularizada e competitiva entre nós. Era
sobretudo a sociedade tal como se constituía – em seus movimentos, grupos
sociais, velhos e novos atores engajados no enfrentamento dos problemas
econômicos, sociais, políticos e culturais – que estava em questão na década
de 1950. Era, então, a parte igual da sociedade moderna que importava
instituir: homens, mulheres, negros, brancos, patrões, empregados, alfa-
betizados e analfabetos que sentem, pensam, agem, interagem, entram em
conflito, constroem o Brasil moderno.
Talvez por isso, quando se voltou novamente ao gênero em 1957,
Antonio Candido já tenha definido o seu estudo Formação da literatura
brasileira como – parafraseando um título de Julien Benda – uma “história
dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura” (Candido, 1964, p. 27).
Redefinição que provocou um deslocamento sutil, mas profundo, na abor-
dagem tradicional da literatura como expressão “da realidade local e, ao mes-
mo tempo, elemento positivo na construção nacional” (Idem, ibidem). Tal
deslocamento teria permitido ao autor compreender não apenas o percurso
da literatura brasileira, mas também como esse processo formativo poderia

novembro 2011 23
A Pequena história da literatura brasileira: provocação ao modernismo, pp. 135-161

se completar até mesmo de modo notável: sem que por isso o conjunto da
sociedade estivesse em vias de se integrar (cf. Schwarz, 1999). Problema e
perspectiva que, a despeito das mudanças em processo na sociedade brasi-
leira das últimas décadas, permanecem nos interpelando sociologicamente
e mobilizando parte da nossa mais instigante crítica da cultura.

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Resumo

A Pequena história da literatura brasileira: provocação ao modernismo

O texto analisa a Pequena história da literatura brasileira, de Ronald de Carvalho, pro-


curando explicitar seu contexto intelectual: de um lado, a tradição da historiografia
literária que lhe lega as principais referências e convenções; de outro, a conjuntura crítica
de reflexão sobre o sentido que a cultura e a sociedade brasileira estavam tomando, na
qual se nutriram a sensibilidade e a imaginação modernistas. Esse recurso metodológico
permite discutir como, a partir da defesa da “simplicidade” da linguagem literária –
cujo sentido particular também é qualificado neste artigo –, o livro contribuiu para a
rotinização de uma agenda de renovação estética e cultural.
Palavras-chave: Modernismo; Historiografia literária; Renovação estética; Construção
nacional; Cultura e sociedade no Brasil.

Abstract

The Small history of Brazilian literature: provoking modernism

The text analyzes the Small history of Brazilian literature, by Ronald de Carvalho,
looking to explicate its intellectual context: on one hand, the tradition of literary his-
toriography from which the book inherits its main references and conventions; on the
other, the contemporary critical reflection on the direction in which Brazilian culture
and society were heading and on which the modernist sensibility and imagination
fed. This methodological strategy enables a discussion in how, based on the defence
of the “simplicity” of literary language – whose particular meaning is also described
in this article – the book contributed to making an agenda of aesthetic and cultural
renewal routine. Texto recebido e aprovado em
30/7/2011.
Keywords: Modernism; Literary historiography; Aesthetic renewal; National construc-
André Botelho é professor do
tion; Culture and society in Brazil. Departamento de Sociologia e
do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Antropologia
do IFCS/UFRJ, e pesquisador
do CNPq e da Faperj. É autor,
entre outros, de O Brasil e os dias
(Edusc, 2005) e co-organizador
de Um enigma chamado Brasil
(Companhia das Letras, 2009).
E-mail: andrebotelho@digirotas.
com.br>.

novembro 2011 27
Entrevista com Davi Arrigucci Jr.

Por Luiz Jackson, Fernando Pinheiro Filho e Gustavo Sorá

Que aspectos biográficos (origem social, formação escolar, influências intelectuais,


militância política etc.) você considera relevantes para se compreender a sua tra-
jetória intelectual? Em outros termos: como e por que se tornou crítico literário?

Eu nasci em 1943 em São João da Boa Vista, interior de São Paulo, onde
estudei até o científico. Com 13 ou 14 anos, decidi que iria estudar Letras,
o que causou um certo mal-estar no meu pai. Ele era médico, estudou no
Rio de Janeiro, e sempre clinicou naquela cidade, até os 90 anos. Descendia
de imigrantes italianos vindos de Arezzo, na Toscana, que se firmaram no
Brasil através do trabalho. Sua vontade era que eu seguisse medicina.
Eu lia bastante desde criança, na minha casa havia muitos livros – meus
pais e minha irmã eram grandes leitores, sobretudo minha mãe, que só
não lê mais hoje em dia, aos 96 anos, quando não consegue acompanhar o
tamanho das letras impressas nos jornais e nos livros. Havia na cidade uma
biblioteca ótima e o Ginásio de São João tinha excelentes professores. Muita
gente das redondezas estudou lá, inclusive Antonio Candido. Eu tive um
grande professor de português, Francisco Paschoal; e um de latim, Américo
Casellato, que foram marcantes para mim. Outra figura importante foi o
Dr. Joaquim José de Oliveira Neto, professor de história natural no colégio.
Antonio Candido diz que foi um dos três maiores professores que ele viu na
vida. De fato, era um homem encantador, pela graça da conversação, e tinha
Entrevista com Davi Arrigucci Jr., pp. 163-188

uma biblioteca de livros franceses extraordinária para o lugar e o tempo.


Ele viajou bastante na mocidade e comprou muitos livros pelo mundo. Sua
casa era frequentada por intelectuais; tinha sido amigo de Monteiro Lobato
e mantinha correspondência com alguns críticos literários, inclusive com
Álvaro Lins; conhecia pessoalmente Drummond e Manuel Bandeira, que
encontrou diversas vezes no apartamento de Rodrigo Melo Franco de An-
drade, no Rio. Para mim, a relação com ele foi uma janela para o mundo,
tenho muitas lembranças dessa biblioteca, tenho muitos livros dele, que me
foram dados por sua filha Yolanda, querida amiga minha.

Você poderia falar um pouco mais sobre sua formação filológica?

Meu professor de latim, Américo Casellato, era muito duro e tinha uma
dificuldade enorme de comunicação, embora no fundo fosse excelente pes-
soa e apreciasse o convívio com os amigos. Ele havia sido seminarista em
Roma, mas descobriu que não tinha vocação religiosa. Nessa experiência,
aprendeu latim, obteve uma formação sólida. Depois saiu do seminário,
preferiu casar, teve uma penca de filhos e foi dar aula de latim, numa rela-
ção íntima e natural com a língua como nunca vi outro, a não ser talvez,
o professor Armando Tonioli, na USP. Naquele tempo, estudávamos latim
nos quatro anos do ginásio e, depois, no curso clássico, quando havia. O
professor Américo Casellato era um homem curiosíssimo, ouvia sistema-
ticamente música clássica, lia boa literatura, inclusive autores italianos,
gostava de romances policiais e adorava jogar e estudar xadrez. Tinha um
sítio, onde adotava métodos inovadores, surpreendentes ainda naqueles
anos no interior: criava porcos como mandavam os métodos sofisticados
de confinamento, inventou uma cerca elétrica para os piquetes de engorda
de garrotes. Era cliente do meu pai, com seus filhos. Quando terminei a
quarta série do ginásio, me deu uma leitoa de presente, o que me encantou,
pela rara homenagem de um homem tão simples e tão defendido. Comecei
então a frequentar a casa dele e a ficar seu amigo. Como não havia curso
clássico, pedi a ele que me desse aulas particulares de latim; lembro-me que
ele tinha gramáticas latinas raríssimas, como a notável de Salomon Reinach,
que aprendi a admirar desde essa época, como grande divulgador do mundo
clássico e das artes plásticas. Eu preparava um trecho de Lucrécio, Virgílio,
Ovídio, Cicero e ele me recebia para a aula, às vezes estava cozinhando – ele
era um grande cozinheiro –, e resolvia todos os problemas. Era um homem
de uma capacidade impressionante. As leituras de Vírgilio, Catulo e Ovídio

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Por Luiz Jackson, Fernando Pinheiro Filho e Gustavo Sorá

me encantaram. Ele resolvia os problemas da língua e nós ficávamos discu-


tindo, às vezes uma manhã inteira. Eu ia lá três, quatro vezes por semana.
Conversávamos muito sobre literatura, foi um interlocutor decisivo para
mim, embora lamentasse minha opção de estudar Letras.
Uma roda de amigos mais velhos também foi importante. Naquele tempo
não havia televisão, conversávamos bastante nos bancos de jardim, noite
adentro. A conversa e a roda de amigos sempre foram muito importantes
na minha vida. Eu aprendi muito por meio do contato com esses compa-
nheiros de noitadas. Também através de Francisco Paschoal, o professor de
português, que conhecia bem os clássicos portugueses e toda a literatura
brasileira. Nessa época, eu já me interessava pelos textos de Antonio Can-
dido e comecei a ler crítica literária e filosofia. Eu encarava os livros difíceis,
como a Ética de Spinoza, Santo Agostinho ou os livros de Nietzsche, por
vezes sem entender direito, apoiando-me em comentadores, com muito
esforço, assim como os livros de Jacques Maritain, inclusive os trabalhos
sobre poética e estética, que renovaram minha formação católica. Minha
formação em filosofia foi a de um autodidata, mas me valeu sempre muito,
e jamais deixei de ler os filósofos.
Quando vim para São Paulo, minha intenção era ampliar essa base. Entrei
na faculdade e passei a estudar espanhol – eu havia aprendido pouca coisa
de castelhano no terceiro científico. Na Maria Antonia, o curso de espanhol
era muito bom e estava se renovando, ainda sob o regime de cátedras. O
catedrático de Espanhol, homem ativíssimo e empreendedor, formado em
Salamanca, chamava-se Julio Garcia Morejón e vinha de alguns anos de
experiência brasileira no campus isolado de Assis. Eu me dediquei muito para
aprender espanhol, italiano, além de francês, latim, português e filologia.
Nesta disciplina tinha um professor muito bom, Isaac Nicolau Salum, que
era um homem cultíssimo, vindo do sul de Minas Gerais, perto de minha
cidade, que sabia muito latim vulgar e erudito. Havia também Theodoro
Henrique Maurer Júnior, outro linguista importante da filologia românica.
Tratava-se de uma matéria central do curso de Letras. No final do primeiro
ano, Julio Garcia Morejón me convidou para trabalhar como seu assistente.
Minha vocação principal era a literatura brasileira, mas, ao redor de 1962,
comecei a me aproximar mais seriamente dos hispano-americanos, que re-
presentavam um mundo totalmente novo para mim. Havia outro professor
de espanhol, que fora assistente de Lázaro Carreter em Salamanca, chamado
Ricardo Navas Ruiz. Tinha vindo para a América com a ideia de estudar os
hispano-americanos. Havia escrito uma tese sobre os verbos “ser” e “estar”

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Entrevista com Davi Arrigucci Jr., pp. 163-188

em espanhol, conhecia o estruturalismo de Hjelmslev, estava por dentro de


todas as novas teorias linguísticas e procurava carrear esse saber para seus
estudos literários, como se vê por seu livro sobre os romances da ditadura
Literatura y compromiso, no qual estuda El señor presidente, de Miguel Ángel
Asturias; o Tirano Banderas, de Valle-Inclán e o Amalia, de José Mármol.
Começou a escrever para o “Suplemento Literário” do Estado de São Paulo,
na seção de letras hispânicas. Morejón apresentou-o ao Décio de Almeida
Prado, que era então o diretor do “Suplemento”. Ele me passava os artigos
para eu traduzir ao português. O primeiro livro que traduzi foi Pressupostos
críticos, sobre crítica textual, de sua autoria.
No terceiro ano da Faculdade, comecei a dar aulas. Um dos primeiros
temas que ensinei foi o barroco espanhol. Estudei muito, entrei pelo “Si-
glo de Oro”, alternando com algumas coisas de hispano-americana, como
a poesia de Lugones. Certo dia, fui com Navas até uma livraria. Ele havia
encomendado a coleção inteira de Borges, publicada pela Emecé. Eu li esses
livros emprestados e fiquei fascinado. No começo, tive certa dificuldade
para entrar no mundo de Borges, mas logo depois me encantei e comecei
a escrever uma tese sobre esse autor, que se chamava “Por los senderos del
laberinto”. Quando entrei na Faculdade, a agitação política era total e eu
tive contato com um mundo diferente, que conhecia um pouco dos livros.
Nesse momento, me interessei pela relação entre literatura e sociedade, atra-
vés da Escola de Frankfurt e de Lukács, que estava sendo traduzido naquele
tempo por Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. Eles traduziram os
Ensaios sobre literatura, uma coletânea em que apareciam os ensaios sobre
os escritos estéticos de Marx e Engels e textos sobre Thomas Mann. Logo
me apaixonei por Benjamin, comecei a lê-lo em francês, na tradução de
Maurice de Gandillac. Também li bastante Adorno, sobretudo os livros
Prismas, Notas de literatura e Teoria estética, em espanhol, francês e italiano.
Em crítica literária, eu lia Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux e Antonio
Candido. Um dia, quando eu estava aqui em São Paulo, Oliveira Neto me
levou para conhecer pessoalmente Antonio Candido na Maria Antonia.
Ele tinha voltado recentemente de Assis para assumir a disciplina criada
para ele na USP. Desde o concurso de 1945, no qual ele fora preterido
injustamente – ele venceu o concurso, mas quem levou foi Mario Pereira
de Souza Lima –, havia um certo mal-estar, resolvido apenas em 1961 com
a criação da cadeira de Teoria Geral da Literatura, cujo nome ele mudou
para a Teoria Literária e Literatura Comparada. Ele estava começando a
se instalar, eu já estava no segundo ano da Faculdade e foi na salinha de

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Por Luiz Jackson, Fernando Pinheiro Filho e Gustavo Sorá

Teoria Literária, cujas janelas davam para a Maria Antônia, que nos co-
nhecemos. Lembro-me que estavam saindo os artigos de Wilson Chagas
sobre o Formação da literatura brasileira. Antonio Candido disse a mim e
ao Oliveira Neto: “fulano está me botando no torniquete”. Ele usou essa
expressão e riu. Depois disso, eu fiz os seus cursos no terceiro e quarto
anos. Nessa altura, além dos frankfurtianos, minha base eram os críticos
da filologia e da estilística, Erich Auerbach, Leo Spitzer e Dámaso Alonso.
Como eu tinha entrado por essa porta, eu lia muito a poesia espanhola de
Dámaso Alonso, os Estudios y ensayos gongorinos e também os livros Seis
calas en la expresión literaria española e a Teoría de la expresión poética, de
Carlos Bousoño. Li muito Auerbach e Spitzer, cujo ensaio Interpretação
linguística das obras literárias foi fundamental para mim. Quando entrei na
Faculdade, os professores pediam trabalhos sobre textos literários mas não
nos ensinavam a fazê-los. Então o meu primeiro movimento foi aprender
a fazer uma análise de texto. Havia manuais como os de Lázaro Carreter,
traduzido do espanhol, Massaud Moisés e Raúl Castagnino, que rodavam
por lá, mas eram muito fracos. O melhor era o de Wolfgang Kayser que,
mesmo assim, deixava a desejar. Então tive de me armar com textos que me
ajudassem de fato, como os Études de style, de Spitzer, na tradução francesa
da Gallimard. Do Spitzer, eu gosto muito de sua análise da Balada das damas
dos tempos de outrora, de François Villon. Esse foi um ensaio marcante na
minha formação. Eu já havia estudado o século XV, principalmente Jorge
Manrique – Las coplas por la muerte de su padre – e François Villon eram os
dois grandes poetas daquele século. A análise de Spitzer sobre Villon é sutilís-
sima, indica a posição ocupada por ele como herdeiro do mundo medieval,
mas prenunciando o Renascimento. Seria um poeta na dobradiça das eras.
Isso ele percebe, com agudeza, na análise do verso “Mais où sont les neiges
d’antan?”, que é o verso decisivo do poema, impondo a fuga irreparável do
tempo na natureza contra nossa frágil condição humana.
Outra referência fundamental para mim foi Mimesis, de Auerbach – que
eu li na conhecida tradução da Fondo de Cultura Económica. Esse livro foi
decisivo para eu entender como é que se fazia uma análise de texto. Também
em Antonio Candido, no curso sobre Bandeira, havia um método sistema-
tizado de leitura. E na “Introdução” do Formação da literatura brasileira,
estavam expostos com clareza meridiana os conceitos que o fundamentavam.
Depois eu encontrei outros ensaios importantes, como Materia y forma en
poesia, de Amado Alonso; os trabalhos de Emil Staiger; os de Pedro Sali-
nas; Augusto Meyer e diversos outros. São vários estudos em que aparece a

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Entrevista com Davi Arrigucci Jr., pp. 163-188

análise de texto propriamente dita, praticada com finura e savoir faire. Fiz
uma seleção de textos que me permitiram ler o texto literário criticamente,
organizei um corpo teórico para fundamentar minhas análises. Como eu
tinha alguma formação linguística e filológica, era esse o melhor caminho
para mim. Por meio dessa perspectiva, apareceram as articulações com a
sociedade, porque a estilística é uma análise da linguagem literária que se
articula com uma visão do social e também da subjetividade, via psicanálise.
Persegui, dessa maneira, o meu “ideal do crítico”, para citar nosso Macha-
do de Assis que, como grande crítico que também era, viu a importância
imprescindível da crítica para fecundar o terreno da literatura e estimular
o aparecimento das grandes obras.
A convivência com Antonio Candido foi para mim decisiva. Depois desse
curso, comecei a dar aulas de literatura espanhola e literatura hispano-ame-
ricana, passei três anos lecionando essas disciplinas. No meio do caminho,
mudei o tema de minha tese, de Borges para Cortázar, em parte em função
da politização da Maria Antonia e do Brasil naquele momento, em parte
pelos problemas da crise da narrativa em que eu me enfronhara. Cortázar
reunia, em termos de problemas da poética da narrativa, tudo aquilo que
eu tinha estudado nos últimos anos. Nesse momento, me deparei com o
Bestiario numa livraria e o comprei, depois de tê-lo lido emprestado de um
colega. Na mesma ocasião, Ricardo Navas Ruiz havia se desentendido com
o catedrático, Julio García Morejón, e transmigrado para os Estados Unidos.
Ele me indicou para assumir o seu lugar no “Suplemento” do Estado de São
Paulo. Eu era um menino, tinha 21, 22 anos, quando fui apresentado a
Décio de Almeida Prado, que teve a coragem de me encomendar um artigo.
Entreguei um texto sobre ficção e realidade nos hispano-americanos e, logo
em seguida, outro sobre Casa tomada, de Cortázar; era o primeiro conto
de Cortázar (1947) e por acaso, também, o primeiro dele que estudei. Sem
saber, dava início ao longo trabalho que realizaria sobre ele. Nessa época
mergulhei na literatura argentina. Tive acesso às revistas Nosotros e Sur.
Havia, também, um boletim bibliográfico que recebíamos; comecei a ler
tudo isso e a me informar sobre o contexto da literatura argentina. Para
mim, faltava a ideia de sistema, que eu havia apreendido na Formação da
literatura brasileira e também em outros autores que falavam da tradição,
como alguns dos norte-americanos. Durante o curso de Antonio Candido,
estudei os New Critics. Li muito Cleanth Brooks, Richard Blackmur, que me
interessaram vivamente. Também li Robert Penn Warren, de quem sempre
gostei muito, um romancista muito fino e um excelente crítico literário. Seu

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Por Luiz Jackson, Fernando Pinheiro Filho e Gustavo Sorá

grande romance é All the kings’ men, adaptado para o cinema e por Robert
Rossen no final dos anos de 1940. Todos os homens do presidente é um filme
político admirável sobre um governador populista da Luisiana, um filme
que tem muito interesse para se pensar a política brasileira. Penn Warren e
Cleanth Brooks escreveram dois manuais importantes, Understanding poetry
e Understanding fiction, que se tornaram bíblias na universidade norte-
americana. Brooks é um grande analista de poemas e Blackmur um dos
mais notáveis leitores que se pode imaginar. Li muito esses autores, porque
proporcionavam uma técnica de análise e uma teoria da interpretação, uma
hermenêutica literária. Enfim, nos anos em que eu estava na cadeira de
Espanhol, me dediquei de corpo e alma à leitura dos hispano-americanos,
estudei muito e fui imaginando um argumento para explicar como é que
Cortázar tinha surgido ali. Borges e Cortázar não podiam ter caído do céu,
necessitavam de algum lastro na experiência histórica e intelectual argentina.
Estávamos acostumados com a crítica brasileira e com a ideia de sistema,
que vem desde Machado de Assis. Machado – eu e Roberto [Schwarz]
sempre repetimos isso – é o maior crítico brasileiro do século XIX, mas há
outros três grandes críticos: Silvio Romero, Araripe Júnior e José Veríssimo.
São homens de “sistema”, todos eles possuem um saber sistemático sobre a
literatura, associado a um conhecimento sobre a sociedade e, às vezes, sobre
educação também. Há uma inclinação mais estética em José Veríssimo,
uma finura absolutamente extraordinária em Araripe – que é o mais agudo
analista de textos e de autores – e a força sistemática de Silvio Romero, das
relações entre literatura e sociedade, cujo método foi estudado por Antonio
Candido. Mas já no Machado, se a gente ler Instinto de nacionalidade, Nova
geração e Ideal do crítico, percebemos como a crítica se insere, sua impor-
tância no conjunto da literatura e na engrenagem das obras, dos autores e
do público. Isso está presente nesses ensaios de Machado de Assis, embora
sem a formulação explícita que ganharia com Antonio Candido.
Antonio Candido desenvolve uma teoria sólida e sofisticada a partir dessa
tradição, que leu a fundo. Formação da literatura brasileira (1959) é um livro
de crítica, orientado por uma perspectiva histórica. Embora seja possível ler
esse livro como um conjunto de ensaios de crítica – há momentos notáveis,
Antonio Candido é um grande intérprete, um leitor excepcional –, os ensaios
não dão toda a medida do analista de textos já presente em Brigada ligeira
(1945) e em O observador literário (1959). A partir de Tese e antítese (1964),
aparecem suas análises mais detidas de textos. Nesse livro, há “Da vingança”,
um ensaio notável sobre o Conde de Monte Cristo, sobre o espaço, os sig-

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nificados da caverna e da montanha, a personalidade dividida no universo


romântico. Trata-se de uma análise magnífica. Eu me lembro de algumas
análises feitas em classe por ele que me chamaram muito a atenção, como
as de um poema de José Bonifácio (“Uma tarde”), cujos detalhes concretos
da paisagem são já pré-românticos, e um poema da “Juvenília” de Fagun-
des Varela (“Lembras-te, Iná...”), de grande poder encantatório, que ele
esmiuçou com mão leve e fina sensibilidade para os detalhes expressivos.
Com isso formei um repertório de conceitos e técnicas, que fui pondo em
prática quando comecei a dar aula de literatura hispano-americana. Depois
de um tempo, uns três anos, acabei me desentendendo com o pessoal da
cadeira de Espanhol. Pedi demissão em 1967, estava com tempo integral,
dedicação exclusiva, mas eu não aguentava mais aquela situação opressiva
e decidi abandonar a Faculdade.

Como foi o seu doutoramento?

Eu estava já nesse tempo com uma tese adiantada, orientada pelo More-
jón apenas formalmente. Já era sobre Cortázar. Acabei voltando para Borges
depois, que estudo até hoje – é a minha sina – mas naquele momento optei
por Cortázar. Como a situação na Cadeira de Espanhol estava tensa, procurei
os professores nos quais eu podia confiar. Eu tinha sido aluno de italiano do
Alfredo Bosi, que até hoje é um grande amigo meu. O professor catedráti-
co dessa disciplina era Ítalo Betarello, que me convidou também para ser
assistente dele. José Aderaldo Castello, da cadeira da Literatura Brasileira,
também havia me convidado, mas com os italianos tive um espaço de amiza-
de diferente e simpático. Resolvi procurar Bosi. Eu estava encantado com a
literatura hispano-americana e não ia mudar a minha vida, sobretudo porque
eu já achava, como acho até hoje, que o vínculo da literatura brasileira com
as literaturas hispânicas é fundamental. Bosi me aconselhou a procurar o
Antonio Candido. Conversei antes com o Roberto Schwarz, que me recebeu
muito bem e me disse: “Escreva para Antonio Candido, ele já me falou várias
vezes que gostaria que você trabalhasse com a gente”. Antonio Candido estava
nesse tempo dando um curso na Universidade de Yale. Escrevi-lhe uma carta,
dizendo que iria sair da Faculdade porque não suportava mais. Perguntei
se gostaria que eu trabalhasse com ele. Ele me respondeu com uma carta
notável, que tenho até hoje, dizendo que sim. Ficamos de conversar “de viva
voz”, ele usou essa expressão, no dia de seu retorno ao Brasil. Nesse dia me
telefonou; fui até a sua casa; encontrei-o completamente rouco, de modo que

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Por Luiz Jackson, Fernando Pinheiro Filho e Gustavo Sorá

foi uma conversa de viva voz por um fio de voz. Ele me disse que ia consultar
os colegas, ver como eles reagiriam à minha presença, como sempre fazia para
evitar problemas como os que eu tivera no grupo de espanhol, e que depois
me daria uma resposta. Com a anuência dos demais, logo me pediu para dar
aulas. Eram aquelas classes de trezentos, quatrocentos alunos, na sala 10 na
Maria Antonia. Comecei, então, a ensinar teoria literária, aplicando tudo o
que tinha aprendido a duras penas, um pouco sozinho, um pouco com meus
professores. Discutíamos análise de texto, enfocando a relação entre literatura
e sociedade. Roberto tinha feito uma pequena antologia de textos sobre isso.
Fiz imediatamente um balanço na biblioteca para ver o que nós tínhamos de
teoria literária. Tínhamos muitos livros porque Sérgio Buarque de Holanda
havia feito uma doação a Antonio Candido, que por sua vez repassou à Facul-
dade, além de outros que ele mesmo doara.
Comecei praticamente uma carreira nova. Antonio Candido assumiu a
orientação de minha tese sobre Cortázar. Ele me perguntou o que eu estava
fazendo. Respondi: “estou escrevendo uma tese sobre um escritor argenti-
no chamado Julio Cortázar”. Primeiro disse: “não conheço”. Em seguida,
lembrou-se de que seu amigo Lourival Gomes Machado, que estava na
França trabalhando na Unesco, havia lhe falado de um “Cortazár”, como
se dizia, com acento na última sílaba, à maneira francesa. “Ele me disse
que há um argentino ‘compridão’ que escreve uns contos fantásticos muito
interessantes”. “É esse mesmo”, eu disse. Eu tinha mandado buscar na Ar-
gentina a obra completa do Cortázar e arrumei uma outra coleção que dei
toda para ele, que logo leu tudo. Ele comentava comigo o de que gostava, o
de que não gostava. Fiquei com esse trabalho engasgado durante anos, levei
uns seis ou sete anos para escrever. Ele me cobrava nas dedicatórias dos seus
livros, que sempre terminavam com um “E o Cortázar?”. Então escrevi umas
sessenta páginas e dei para ele, que me telefonou em seguida, fazendo um
grande elogio: “olha, Davi, isso aqui é do mais alto nível crítico”. Escrevi
mais um pedaço, mas logo secou o leite de novo. Fiquei naquela angústia,
até que saiu o resto; consegui escrever durante um ano e pouco. No livro,
estava tudo o que eu havia estudado e pensado naqueles dez anos.

Como circulava a literatura hispano-americana no Brasil, havia mediação


francesa como no caso de Cortázar?

No primeiro grande ensaio de Antonio Candido sobre a questão latino-


americana, que é “Literatura e subdesenvolvimento”, ele recoloca essa ques-

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Entrevista com Davi Arrigucci Jr., pp. 163-188

tão. Um dos primeiros momentos é mostrar a passagem, através da França


e dos Estados Unidos, da informação hispano-americana. Eu mesmo me
referi a isso muitas vezes como um “diálogo entre fantasmas”, porque não
havia intercâmbio algum. Meu livro sobre Cortázar nunca foi traduzido
na Argentina. O próprio Cortázar queria, mas não conseguiu encontrar
editor naquela época de crise política. Ele me visitou em 1973 e depois
disso também tentou apoiar a publicação nos Estados Unidos para reverter
o percurso. Mas tampouco obteve êxito. A uma certa altura, também Ángel
Rama se empenhou na publicação e, quando as coisas pareciam acertadas
com a Universidad Central de Venezuela, deram errado.

Como foi que vocês se conheceram?

Defendi minha tese em outubro de 1972. Estavam na banca, além de


Antonio Candido, que era meu orientador, Décio de Almeida Prado – que se
tornou um grande amigo meu, até a morte –, Boris Schnaiderman, Alfredo
Bosi e Haroldo de Campos.
No dia da defesa, tivemos um debate muito estimulante. Haroldo me
disse: “em alguns dias, estarei com Julio Cortázar, vou levar o seu livro”.
Ele escreveu em 1967 um ótimo artigo sobre Rayuela, que saiu no Jornal do
Brasil. Depois disso, creio, começaram uma correspondência que está hoje
em seu arquivo na Casa das Rosas. Haroldo cumpriu o que havia prometido
e me mandou um cartão, uma foto de uma rosácea da Catedral de Notre
Dame, dizendo: “entreguei o livro: ele abriu e ficou espantadíssimo, já com o
título e subtítulos. Falou que iria ler e depois te escreveria”. Depois de alguns
dias, recebi uma carta, em que ele dizia que vinha me visitar. Naquele tempo,
ele não podia entrar na Argentina, que estava numa situação terrível. Ele e a
mulher, Ugné Karvelis, passaram pela Bahia, pelo Rio de Janeiro e ficaram
uma semana aqui, conversamos durante uma semana inteira. Lembro que
ele olhou muito meus discos, porque eu tinha bastante coisa de jazz, MPB
e clássicos e me perguntou se eu era também melônamo. Embora menos
melômano do que ele, durante anos ouvi muito jazz, sobretudo no período
em que estava escrevendo O escorpião encalacrado.

Ele era apaixonado por jazz, não é verdade?

Totalmente. Era fascinado por Lester Young, Louis Armstrong, Clifford


Brown e tantos outros. Li muito sobre jazz em função da tese, como o livro

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Por Luiz Jackson, Fernando Pinheiro Filho e Gustavo Sorá

de Leonard Feather, Inside Bebop, o de André Hodeir, Hommes et problèmes


du jazz, os estudos reunidos por Nat Hentoff e Albert J. McCarthy, e vá-
rios outros. Percebi que a fonte de “O perseguidor” era Leonard Feather e
Cortázar confirmou isso, mas contou que a inspiração para o conto tinha
saído não de um livro de Feather, mas de um artigo seu publicado no Le
Monde, sobre a vida de Charlie Parker e a música radical que ele inventou.
Nós ficamos amigos, ele me pediu para traduzir a sua Prosa del observatorio
e gostou do resultado. O filho de Lourival Gomes Machado, Lucio Gomes
Machado, cuidou do projeto gráfico do livro e da reprodução das fotos, o
resultado ficou muito bonito, foi editado pela Perspectiva. Eles editaram
também uma coletânea de artigos e ensaios de Cortázar, que não existe em
espanhol, chamada Valise de cronópio, organizada por Haroldo e por mim.
Na verdade, Haroldo tinha organizado uma seleção e me mostrou. Sugeri
algumas alterações, tirei alguma coisa e acrescentei outras. Estávamos muito
próximos naqueles anos. Depois, com as divergências literárias, nos afasta-
mos, mas mantivemos a amizade, até a morte dele. Quando Cortázar esteve
aqui, fomos à casa dele, nas Perdizes. Tenho várias fotos desses encontros,
dos quais participaram Cortázar, Haroldo e sua mulher Carmem (que tirou
as fotos e me deu algumas), Boris e Regina Schnaiderman e eu.

Quando você escreveu sobre Cortázar, quais eram as referências bibliográficas


mais relevantes?

Havia poucos livros, entre os quais um de Néstor García Canclini, que


conheci muitos anos depois, no México onde ele mora. Tinha escrito Cor-
tázar, una antropología poética, que cito em meu trabalho. A análise dele
é interessante e bem informada. Havia também um livro de Alfred Mac
Adam, uma coletânea de estudos organizada por Noé Jitrik, um livrinho de
Graciela de Sola e muitos artigos em revistas e jornais, alguns publicados
na França, onde Cortázar vivia desde 1952.

Você poderia falar um pouco mais sobre a sua tese sobre Cortázar? O livro não
foi publicado na Argentina?

Foi traduzido no México, mas não na Argentina. Saiu lá, com o título
de El alacrán atrapado, traduzido por Romeo Tello Garrido, que pertence a
uma equipe de tradutores ligados à professora Valquiria Wey, uma brasileira
que vive há anos no México e leciona na Unam [Universidad Nacional

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Entrevista com Davi Arrigucci Jr., pp. 163-188

Autónoma de México], a quem se deve muito do que tem sido feito pela
nossa literatura naquele país. O livro foi editado pela Fondo, pela Unam e
pela Universidad de Guadalajara, onde os estudos sobre Cortázar ganharam
nova vida. Nesse livro, enfrentei algumas das minhas preocupações teóricas
daquele momento, principalmente o problema do impasse da narrativa e
dos limites a que certa linhagem da literatura moderna, na qual se radica-
liza a autoconsciência da linguagem e de seus meios expressivos, conduziu
a literatura. Procuro delinear o projeto do Cortázar por fora e por dentro.
Na parte inicial, discuto o seu projeto de criação, suas relações com as
vanguardas e a tradição da ruptura, a poética explícita que ele propõe, as
relações dele com a literatura hispano-americana, em especial com a literatura
fantástica e certa vertente da prosa de ficção do Rio da Prata, de Horacio
Quiroga, Felisberto Hernández, María Luisa Bombal, Juan Carlos Onetti;
bem como, mais detida e especificamente as relações de Cortázar com a
obra de Borges, com o surrealismo, assim como as implicações gerais de seu
projeto com relação ao jazz, à fotografia, ao cinema, à montagem etc. Na
segunda, examino no interior da obra realmente realizada – os contos “El
perseguidor”, “Las babas del diablo”, e o romance Rayuela, momentos de
radicalização do projeto – o problema central do impasse de sua narrativa,
seu ímpeto para destruir a literatura como condição para poder escrever
literatura, tal como se configura na construção mesma do enredo ficcional.
Assim, na primeira parte, tento reconstituir uma linhagem de destruição
da narrativa e as linhas de força que direta ou indiretamente desemboca-
vam na obra dele. Na segunda parte, a questão da destruição é testada na
própria estrutura da narrativa. Na análise de “El perseguidor”, capítulo do
livro que designei como “A destruição anunciada”, a figura e a biografia de
Johnny Carter, baseadas na vida de Charlie Parker, fornecem elementos para
a discussão das relações da arte com o mercado e o processo de destruição
do próprio artista imerso em sua lógica demoníaca. Caracterizei como “A
destruição visada” o capítulo dedicado à análise de “Las babas del diablo”,
conto em que Michelangelo Antonioni se baseou para construir seu Blow
up. Nele se leva a questão da destruição da narrativa ao extremo impasse
através de uma prospecção ontológica da natureza da realidade que põe em
xeque a própria capacidade de expressão da linguagem com que se perfaz a
busca. Finalmente, em “A destruição arriscada”, analiso Rayuela e sua poé-
tica implícita em que se joga o destino do relato, levando-se o jogo com a
linguagem ao limite da destruição e do silêncio. Trata-se, pois, de um exame
da construção de um projeto radical de ruptura e depois da prática disso

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Por Luiz Jackson, Fernando Pinheiro Filho e Gustavo Sorá

no enredo construído. Na verdade, penso que também é um livro sobre o


limite até onde pode ir a crítica, em sua busca do sentido. É uma reflexão
sobre a hermenêutica, uma espécie de metáfora do meu percurso e da minha
relação com a crítica, implicando, até certo ponto também, uma reflexão
sobre o impasse político da época. Nesse momento de sondagem extrema,
de jogo à beira do abismo, procurei mostrar como o escritor permanecia na
corda bamba, como a linguagem é linguagem e a vida social, outra coisa,
por mais que se introjete na literatura. Ou seja, que uma revolução se faria
por outros meios, não necessariamente através dos textos, impotentes em
seus impasses verbais, sujeitos tão somente aos riscos da autoaniquilação
ou do silêncio.

Como era a rotina dos cursos na cadeira de Teoria Literária e Literatura Com-
parada?

Nos cursos de Introdução aos Estudos Literários, havia uma parte teórica
sobre a natureza e a função da literatura e outra mais prática, de análise
textual. Usávamos ensaios de Lukács, Benjamin, Adorno, dos críticos da
estilística, dos New Critics, dos estudos entre literatura e psicanálise etc.
Eu dava aulas expositivas, exemplificava praticamente as análises e fazia
seminários. Roberto Schwarz foi embora em 1968. Ele estava metido no
projeto da revista Teoria e Prática, na qual escreveu uma série de textos.
Colocou o endereço da redação da revista num apartamento que tinha e a
polícia apareceu lá. Ele viu que era hora de cair fora e saiu pelo Uruguai,
rumo a Paris, onde passou cerca de nove anos.
Em 1975, passei um ano em Paris e encontrei muitas vezes Cortázar, com
quem caminhava, tomava um copo de Beaujolais nos cafés, ia ao teatro ou
comer em alguns dos inúmeros restaurantes próximos à rue de La Harpe.
Nesse tempo, Cortázar vivia na rue de l’Eperon, bem próxima de meu hotel.
Eu morava num quarto do Hôtel du Levant, naquela rua tão agitada que
era a rue de La Harpe. Era a época do Quartier Latin efervescente, com
muita gente de fora, com as notícias desencontradas das ditaduras latino-
americanas, com muitos exilados e um clima de agitação política e intelec-
tual que parecia compensar de algum modo o que se havia deixado atrás.
Paris era uma espécie de câmara de ecos de nosso destino latino-americano.
Fui para participar do seminário de Roland Barthes, na École Pratique des
Hautes Études. Leyla Perrone-Moisés, que era professora da Faculdade e
amiga minha, tinha amizade com Barthes e me conseguiu um convite formal

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Entrevista com Davi Arrigucci Jr., pp. 163-188

para o seminário dele. Eu também havia entrado em contato com Jacques


Leenhard, que era amigo de Roberto Schwarz, e dele também recebi convite
para acompanhar os cursos de sociologia da literatura. Durante aquele ano
que morei em Paris, dediquei-me à leitura da obra completa de Manuel
Bandeira, além das visitas aos museus e das idas cotidianas ao cinema. Acabei
retomando o fio da literatura brasileira que eu tinha deixado. Foi o tema de
minha tese de livre-docência de muitos anos mais tarde: Humildade, paixão
e morte: a poesia do Manuel Bandeira, que levei dezessete anos para escrever
e foi publicada em 1990. Depois, publiquei outro livro sobre Bandeira e
Murilo Mendes, que é o O cacto e as ruínas, cuja primeira edição foi feita
pela Livraria Editora Duas Cidades, do saudoso professor Santa Cruz, mas
com a supervisão detida e cuidadosa de meu amigo Augusto Massi. O ensaio
saiu em 1997 e depois foi reeditado pela Editora 34.
O problema da relação entre Literatura e sociedade, título do livro de
Antonio Candido, era central para nós, na Teoria Literária da USP, nos
cursos de Introdução. Os textos desse livro – “A literatura e o público”,
“Literatura e vida social”, “Os estímulos da criação literária” – eram mui-
to discutidos em classe. Analisei também longamente com os alunos “O
Narrador”, de Walter Benjamin, A teoria do romance, de Lukács, Mimesis,
de Auerbach e muitos outros ensaios fundamentais para a formação dos
alunos. Havia também uma parte prática de análise de texto. Eu escolhia às
vezes um ou mais autores e analisava seus poemas. Fiz assim com Manuel
Bandeira, com Drummond, com Murilo Mendes, com João Cabral, com
Wallace Stevens, com Marianne Moore, com Lugones, com Borges, com
Vallejo. Líamos escritores fundamentais para a compreensão da literatura
moderna: Edgar Allan Poe, Anton Tchekov, Henry James, Flaubert, James
Joyce. E a prata da casa: Machado de Assis, Mário de Andrade, Graciliano
Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, isso durante anos. A discipli-
na funcionou com essa combinação entre teoria e prática. Depois foi se
modificando. Houve, não podemos esquecer, a entrada do estruturalismo.
Havia também que estudar os estruturalistas da moda, era preciso discutir
Barthes, Todorov, Jakobson. As relações entre som e sentido na poesia, a
função poética da linguagem e as funções da linguagem, essas coisas todas
foram discutidas longamente, até exageradamente durante esses anos.
Eu me lembro de Lévi-Strauss, de algumas das análises dele que tinham
proximidade com a análise literária. Nas disciplinas mais avançadas, havia
propriamente Literatura Comparada e Teoria Literária. Na Teoria Literária,
eu dava as correntes críticas, dei durante anos os formalistas russos, o New

14 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Por Luiz Jackson, Fernando Pinheiro Filho e Gustavo Sorá

Criticism, a estilística, o marxismo, literatura e psicanálise. Eu discutia essas


tendências da crítica contemporânea.
Na Literatura Comparada, discutíamos sempre problemas concretos de
comparação. Por exemplo, a relação de Bandeira com os simbolistas belgas,
com a literatura parnasiano-simbolista brasileira, a questão do verso livre
nas várias literaturas modernas etc. Antonio Candido também deu muitos
cursos nessa linha de comparação. Depois começaram os cursos de pós-
graduação, a partir de 1974. Nesse momento, dei o primeiro curso sobre os
conceitos de forma e estrutura na crítica do século XX. Quando eu voltei de
Paris, em 1976, comecei a dar cursos sobre Bandeira e Drummond. Depois,
analisei Grande sertão: veredas durante muitos anos, discutindo a teoria do
romance e a peculiaridade da mescla formal entre o romance de formação e
a épica oral do sertão. Dei um curso geral sobre hermenêutica, que era uma
espécie de resumo de toda a minha trajetória. Era um curso de comentário,
análise e interpretação da obra literária. Esse curso eu dei na pós de 1990 até
1998. Mesmo depois de minha aposentadoria em 1996, cheguei a dar aula
com microfone nos auditórios do edifício de História e Geografia porque
vinham alunos da história, das ciências sociais, da filosofia, além dos de
letras. Cheguei a falar para mais de duzentos alunos na pós.
Com o avanço da teoria literária, ganhou-se em precisão, mas se perdeu
grande parte da visão filológica da literatura. Isso ocorreu porque houve
uma especialização muito grande e com os anos do formalismo, a situação
piorou. Nós nunca cedemos ao estruturalismo, pela perspectiva histórica
que nunca abandonamos. Isso foi e continua sendo básico para nós e acho
que é a grande herança de Antonio Candido, o ponto decisivo. Nós sempre
estivemos atentos à relação entre a obra literária e a experiência histórica.
Cada vez ficou mais importante, para mim, analisar essa relação, que não
permite uma abordagem esquemática sempre igual, mas ao contrário envolve
a colocação de problemas particulares a cada passo e o enfretamento dialé-
tico da complexidade. Sempre achei que era fundamental saber o máximo
possível, por dentro e por fora dos textos. A dialética, a relação entre texto e
contexto, é o fundamental do trabalho, mas exige um trabalho cumulativo,
lento, paciente e complexo. É necessário acumular informação para que você
possa captar a dimensão histórica, porque ela quase sempre aparece de forma
oblíqua, como uma sedimentação morosa em traços formais. Por outro lado,
não podemos esquecer nunca a relativa autonomia da estrutura estética.
Antonio Candido foi sempre muito claro nesse ponto. No artigo fun-
damental de Literatura e sociedade, “Sociologia e crítica”, ele analisa essa

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Entrevista com Davi Arrigucci Jr., pp. 163-188

questão, mas é nas análises de textos que refina sua posição. Nos estudos
sobre Émile Zola, Aluízio Azevedo, Manuel Antonio de Almeida e Giovanni
Verga, há um refinamento das ideias expostas em Literatura e sociedade.
Os três ensaios sobre o naturalismo, mais o “Dialética da malandragem”,
sobre o romance romântico, formam um conjunto extraordinário, porque
mostram como o social se transforma em um elemento pertinente para a
análise estética, o que é a grande contribuição do Antonio Candido. Ele
foi acentuando cada vez mais, desde os anos de 1960, a ideia de que o que
é realmente social na obra de arte é a forma.
Essa perspectiva está presente na obra de Roberto Schwarz, na análise da
obra de Machado de Assis, na caracterização da volubilidade do narrador
como um traço formal que apanha um comportamento de classe, discrepante
e específico ao mesmo tempo. Esses refinamentos derivam de uma reflexão
muito demorada e detida sobre o que poderíamos chamar da sedimentação
formal da experiência histórica. Isso ficou cada vez mais patente nas analises
que Antonio Candido foi desenvolvendo. Alguns de seus ensaios, às vezes
laterais, são extremamente reveladores. É o caso de “Quatro esperas”, um
ensaio muito bonito e que refina muito esse tipo de relação. Eu adoro,
também, um ensaio chamado “Realidade e realismo (via Marcel Proust)”,
publicado no livro Recortes. Para mim, aí estão algumas das melhores páginas
que ele escreveu sobre essa delicada questão.
Em Antonio Candido, convivem o prosador artista, o teórico, o his-
toriador e o crítico de literatura. Ele conjuga, como ocorria em Augusto
Meyer, a sensibilidade artística com a percepção do que importa realmente
na composição de uma obra literária. O livro de Auerbach, Mimesis, trata
das formas variadas de apresentação da realidade, desde a Bíblia e Homero
até os modernos, até a literatura do século XX, conforme o real se apresenta
na perspectiva do interior do texto, ou seja, tal como se configura nos traços
estilísticos da construção linguística das obras literárias. No caso da análise de
Antonio Candido sobre Proust, que tem quatro páginas, aparece o problema
de todo narrador, que é o problema do uso do detalhe significativo. Nós
sabemos que grande parte do efeito de real da obra depende do uso adequado
do detalhe – Borges aprendeu isso nas décadas de 1920 e 1930. A história
universal da infâmia e alguns dos ensaios de Discusión tratam dessa questão
específica: como apresentar a realidade na literatura; uma de suas desco-
bertas da época consiste exatamente na invenção de pormenores lacônicos
de longa projeção. Antonio Cândido dá sua resposta nessas quatro páginas
a esse problema que vinha tratando desde O observador literário e Brigada

16 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Por Luiz Jackson, Fernando Pinheiro Filho e Gustavo Sorá

ligeira, vale dizer, desde os primeiros artigos que escreveu sobre crítica para
o jornal. Ele é um grande conhecedor de Proust, embora não tenha escrito
nenhum livro dedicado a esse escritor, como fez Álvaro Lins em A técnica do
romance de Marcel Proust. As teorias estéticas que impregnam o grande livro
de Proust foram sempre decisivas para ele. Na obra do romancista francês,
há uma teoria de superação do realismo que é discutida nesse ensaio.
A perspectiva de Antonio Candido é extremamente viva, mas não é uma
fórmula, justamente porque se orienta pelas particularidades das obras,
estudadas passo a passo. Isso caracteriza uma abordagem dialética: a acumu-
lação dos problemas e sua superação em cada caso particular. Eu escrevi um
longo ensaio, “Os movimentos de um leitor: ensaio e imaginação crítica em
Antonio Candido”, no qual afirmo que ele é um leitor excepcional, capaz
de perceber o peso exato que os elementos externos têm na tessitura do
texto. Ele desvenda, também, os significados históricos dos textos, pois na
perspectiva dele o texto é o resultado complexo da integração de múltiplos
fatores, o que se exprime na coerência da forma que lhes dá unidade.
Nós nunca cedemos ao estruturalismo porque não nos desviamos da
busca do sentido histórico. A relação com a história sempre foi decisiva para
nós. Essa preocupação retornou com os estudos culturais, mas a verdade
é que no mais importante, que é a discussão da qualidade estética, pouca
gente mexe. Trata-se de estudar um texto como resultante de aspectos
heterogêneos. Por exemplo, a grande arte do Borges é combinar contextos
diversos, oriundos da vida literária, da filosofia, da linguagem, da história.
No conto “Pierre Menard”, há uma combinatória complexa de contextos.
Nele convergem a formação do intelectual de sua época, o pós-simbolismo,
os salões, a herança simbolista que se exprime na figura simbólica de Paul
Valéry. Ele faz brincadeiras com o mundo dos salões e com a literatura da
poesia pura, que era uma das obsessões do tempo. Há também a literatice
e o pedantismo do personagem Carlos Argentino Daneri, de “O Aleph”,
um literato medíocre com uma pretensão gigantesca, a de realizar a obra
absoluta. O projeto do próprio Cortázar tem a ver com essa vontade de
absoluto, que se formou nas raízes da literatura moderna que foi a herança
simbolista. O mesmo se manifesta na ambição de Pierre Menard de escrever
de novo o Dom Quixote, um projeto paródico e irônico, que combina o
contexto dos literatos com certa visão da tradução, da linguagem, com as
questões do infinito nele implicadas. Essa combinatória de contextos é que
dá o resultado “Pierre Menard”. Numa análise de texto, é preciso ligar os
fiapos de realidade inscritos na forma, muitas vezes até estapafúrdios, nas-

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Entrevista com Davi Arrigucci Jr., pp. 163-188

cidos de coisas inesperadas. Em cada caso é necessário reconstituir como é


que isso se transformou num todo orgânico. Essas questões são dificílimas,
exigem anos de pesquisa, de mergulho na interioridade do texto e na socie-
dade que o produziu. Todas as disciplinas que favorecem esse esforço, como
a Sociologia, a História, os Estudos Linguísticos, devem ser mobilizadas.
Um estudante de Letras precisa passar por um longo percurso até entender
como todas essas coisas, que são os fatores construtivos, dão como resultado
o texto literário.
Enfatizo o que chamo de comentário, um desenvolvimento que incomoda
um pouco a Antonio Candido e revela diferenças que nos separam na estraté-
gia de abordagem dos textos. Entendo que um comentário bem feito – nisto
decerto pesa muito minha formação filológica – já é uma orientação para a
interpretação e que a puxada dos fios diversos da realidade deve ser feita da
forma mais totalizante possível. No meu livro sobre Bandeira, tentei fazer isso,
como também no trabalho sobre Cortázar. Neste caso sublinhei, por exem-
plo, as questões do jogo, da montagem, da relação com o jazz, como meios
de penetração no mais íntimo da obra em foco. Essas coisas aparentemente
são estudadas com autonomia, mas de repente voltam e explicam como é que
funciona Rayuela, como é que funciona “As babas do diabo” ou “O persegui-
dor”. Eu precisei montar um longo comentário anterior para poder articular
aquilo que eu queria dizer sobre as estruturas. São diferenças de ênfase e de
meios na busca de fins semelhantes.

Para vocês, alguma revista literária foi tão importante como foi Punto de Vista
na Argentina das últimas décadas?

Na minha geração, isso não foi tão importante. Para Antonio Candido,
sim. Eles fizeram a revista Clima. Roberto [Schwarz] trabalhou em Teoria
e prática, mas era uma revista de combate ideológico. A revista Argumento,
que foi uma resposta à ditadura militar, durou pouquíssimo e não che-
gou a nos empenhar totalmente. Todos nós escrevemos lá, mas foi muito
rápido. Nunca tivemos uma revista tão central como tem sido a Punto de
Vista na Argentina, ou a Sur, no tempo de Borges. Muita coisa do Borges
ficcional saiu na Sur, a partir do “Pierre Menard”, em 1939. Também a
revista Multicolor de los Sábados deve ser mencionada, sem falar na Proa,
na Martín Fierro, mas essas já são revistas da vanguarda do início do século
XX, como tivemos aqui a Klaxon, a Estética ou a Revista de Antropofagia.
Em São Paulo, o “Suplemento” do Estado de São Paulo desempenhou, sem

18 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Por Luiz Jackson, Fernando Pinheiro Filho e Gustavo Sorá

dúvida, um papel muito relevante. Comecei a escrever lá, mas é certo que
não representou propriamente a visão articulada de um grupo como na
redação de uma revista.
O “Folhetim” e depois o “Jornal de Resenhas” foram importantes,
também. Este, ultimamente, porque respondeu ao movimento editorial
brasileiro, durante uns bons anos, dando resposta à produção crescente que
cairia no esquecimento precoce que ronda as publicações sem resposta. Hoje
quase não temos nada. O Jornal do Brasil praticamente desapareceu, já não
funciona; as revistas que pululam são revistas de grupos, de poetas, mas
pouco atuantes também. Existe a Inimigo Rumor, que tem sua importância,
existe a Cacto, a Jandira, mas nada central. Enfim, as revistas não têm aqui
a força que têm na Argentina.
No Brasil, quase já não há debate intelectual. Os suplementos não têm
funcionado muito bem ultimamente. O “Mais” também não cumpre essa
função, pois parece ter abdicado de encontrar vida inteligente entre os intelec-
tuais brasileiros. Prevalece um pouco por toda parte certo gosto “jornalístico”
nas escolhas literárias, o que representa uma baixada de bola terrível, sobre-
tudo na avaliação realmente crítica das obras. Há falta de rigor e de exigência
de uma verdadeira complexidade, e muita concessão a favor da literatura
comercial, do best-seller, do livro de autoajuda, do mero escândalo. As rese-
nhas se resumem a notícias de livros que saíram, à indicação do movimento
das editoras, mas não há crítica no sentido de análise e avaliação das obras.
Nunca tínhamos chegado a esse ponto, a tal rarefação. Parece que não há vida
intelectual, é uma coisa muito estranha. E a universidade também anda muito
fechada em si mesma, as coisas de fora não repercutem intramuros, e poucos
se arriscam a sair para a luta. A consequência é que os livros morrem como
uma facilidade extraordinária – lança-se um livro e, mesmo que tenha quali-
dade, saem duas, três resenhas e acabou. Sergio Miceli observa que a literatura
não tem mais a mesma importância dos velhos tempos. Não estamos no
século XIX, nem no começo do século XX, a literatura de fato não tem mais
a importância que costumava ter, mas ainda há uma grande produção nesse
campo, pedindo resposta. É verdade que muito do que estava contido na
ficção passou para outros gêneros ou outros campos. O romance incorporava
um conhecimento da vida social que era fundamental para a sua existência.
A gente chega até a pensar se ainda tem sentido escrever romance, porque o
romance perdeu muito do que lhe dava consistência e interesse, seu poder de
conhecimento, virando presa fácil da banalidade e do apelo comercial, quan-
do não de interesses escusos das editorias das revistas, cuja deterioração moral

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Entrevista com Davi Arrigucci Jr., pp. 163-188

já tem sido apontada por jornalistas sérios. Em geral, os romancistas não têm
mais formação histórica. E o grande romance depende muito da percuciência
analítica, da sondagem moral e da visão histórica, que só a sólida formação é
capaz de dar.

Como foi a relação de vocês com a ditadura militar?

Em 1968, com o AI-5 [Ato Institucional n. 5], havia um clima de de-


sânimo muito grande. Eu me lembro de trocar cartas com Roberto, que já
estava fora, mas nós conseguimos manter o fundamental para funcionar.
Houve o conflito com o Mackenzie, que praticamente destruiu o prédio da
Maria Antonia, afetando inclusive os nossos livros. Depois do choque dos
estudantes, a polícia entrou. Eu já estava lecionando teoria literária, tinha
dado aula aquele dia e assisti à cena toda, o menino que mataram quando
subia no portão, o discurso do Zé Dirceu, que naquele tempo estava atuando
no movimento estudantil.
Eu me formei em 1964, o discurso de minha formatura foi feito pelo
Florestan Fernandes sobre a burguesia brasileira, e foi aplaudido de pé.
Como os militares não temiam as Letras, a ameaça foi menor em nosso
setor. Eles nunca mexeram com Antonio Candido. Eu me lembro que, em
1974, quando pedi o passaporte para sair, eles criaram caso, mas foi uma
coisa esporádica. Quando Cortázar veio ao Brasil, pela segunda vez, a polícia
esteve em seu hotel e ele teve de sair às pressas. Ele veio ao país em 1975
para encontrar com a mãe, quando eu estava na França. Eles estiveram uma
semana em Campos do Jordão e depois se hospedaram aqui no centro de
São Paulo. Quando retornou, nos falamos por telefone e, em seguida, nos
encontramos; ele me contou o episódio com a polícia e como havia sido sua
estada na cidade; disse que havia assistido a um show da Maria Bethânia e
tinha até visto novelas da Globo com a mãe.
Eu me lembro do papel exercido por Gilda de Mello e Souza na Filoso-
fia. Esse departamento havia sido destroçado com a saída da maioria dos
professores. Ela teve muita firmeza e coragem para mantê-lo funcionando.
Chegou a contratar novas pessoas, trazer gente da França, foi uma luta. E
o departamento conseguiu sobreviver graças em grande parte ao esforço
dela. Foi uma tarefa de resistência, como a de muitos outros em diferentes
setores. Prevaleciam, como disse Roberto Schwarz, as ideias de esquerda na
vida cultural, embora dominasse a ditadura. Um lado positivo dessa época
teve a ver com a grande liberdade sexual que irrompeu com os movimen-

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Por Luiz Jackson, Fernando Pinheiro Filho e Gustavo Sorá

tos de 1968; foi o único momento de liberdade sexual que realmente se


conheceu, da metade dos anos de 1960 até 1980, com o aparecimento da
Aids. Esses anos foram decisivos para a vida estudantil brasileira, porque
apareceu um novo tipo de relação. Houve evolução dos costumes, apesar
da ditadura. De vez em quando, sumiam companheiros. Sabemos que na
Universidade de Brasília a destruição foi muito maior, que praticamente foi
desmontada. Darcy Ribeiro vivia indignado com isso. Eu me lembro que no
começo da abertura nós fizemos uma mesa na SBPC [Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência] sobre as fronteiras da ficção. Estávamos na
mesa eu como coordenador, Darcy Ribeiro, Silviano Santiago e Antonio
Callado, que foi grande amigo meu. Darcy fez um discurso inflamado lá no
auditório da História e puxou uma multidão de mais de duas mil pessoas
através do campus até o auditório da FAU, onde aconteceu o encontro,
depois de momentos de tensão em que foi acionada a segurança da USP
para conter a multidão, que parecia à espera de algo mais do que poderia
ter num debate intelectual.
Isso foi em 1979, por aí. Eu tinha analisado Reflexos do baile, de Callado,
um livro sobre sequestros, que a censura vetou. Foi um fato curioso, que
mostra como eram aqueles anos, a arbitrariedade da censura. Alberto Dines,
grande jornalista brasileiro, manifestou sua indignação pelo silêncio que se
seguiu ao lançamento desse livro. Resolvi escrever um ensaio, em resposta
ao desafio que ele de fato representava. Fernando Gasparian, que era editor
do Opinião, um jornal da imprensa nanica de resistência, importantíssimo
na época – nele Cortázar dera uma entrevista, falando sobre meu livro – me
pediu, por coincidência, um texto a respeito do romance. Eu disse: “acabei
de escrever um ensaio sobre esse livro”, e passei para ele. O romance relatava
o sequestro de um embaixador norte-americano no Rio de Janeiro e era, sob
muitos aspectos, notável. O artigo foi censurado. Depois de um mês, Gas-
parian colocou de novo o mesmo artigo e saiu. Deve ter mudado o censor.
Eu acabei ficando amigo do Callado até sua morte, em 1997.

Como você analisa, comparativamente, as críticas literárias argentina e brasi-


leira? Você poderia falar um pouco também de seu trabalho sobre Borges?

Embora conte com excelentes críticos pontuais, a crítica argentina não


proporcionou uma visão sistemática do processo literário de seu país, dife-
rentemente da brasileira. Quando fui estudar a obra de Cortázar senti muita
falta dessa visão articulada do processo, que permitiria inserir aquele autor

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Entrevista com Davi Arrigucci Jr., pp. 163-188

numa determinada tradição e, ao mesmo tempo, avaliar o grau de ruptura


que pudesse representar com relação a ela. Muito mais tarde, em 1984, no
mesmo ano em que Borges esteve no Brasil, escrevi sobre ele um ensaio, “Da
fama e da infâmia: Borges no contexto literário latino-americano”, e voltei
a sentir a mesma lacuna. Tratei então da necessidade de situar a obra de
Borges no contexto literário argentino, de contextualizá-la adequadamente;
parecia um absurdo que isso ainda não tivesse sido feito. Fiz, então, uma
análise cerrada da “Biografia de Tadeo Isidoro Cruz”, de O Aleph, que é um
dos contos mais belos que ele escreveu. Procurei desencavar os aspectos da
história argentina incorporados no texto, assim como as reminiscências das
leituras de Sarmiento e de outros escritores que estão lá embutidas e enre-
dadas com enorme habilidade construtiva, de modo que a forma acabada
aparece como resultado da integração das contradições de uma complexa
experiência histórica e literária. Tentei reconstituir a tradição no interior de
um único relato, para mostrar como ele trabalha com ela. Um dos momen-
tos mais notáveis do conto é aquele de uma “lúcida noite fundamental”,
quando Cruz descobre que seu destino é de lobo e não de cão gregário,
passando para o lado do desertor Martín Fierro para lutar contra o exército
ao qual estava servindo. Estudo esse caráter provisório dos antagonismos,
de que há exemplo semelhante em nosso Guimarães Rosa (cujos jagunços,
como os gauchos, podem lutar a favor ou contra os mesmos exércitos), e
sobretudo a dialetização que Borges imprime à oposição entre civilização
e barbárie, ao integrar diferentes versões da realidade do gaucho e das lutas
da independência argentina à tessitura da narrativa, cuja complexidade só
ganha com isso.
O artigo teve grande repercussão. Foi traduzido para o espanhol nos
Cuadernos de Recienvenido, de Jorge Schwartz, uma publicação interna da
Universidade, junto com uma entrevista de Ricardo Piglia e um artigo da
Patricia Artundo sobre artes plásticas. Daniel Balderston, um dos estudio-
sos de Borges, aproveitou o caminho aberto em seu livro Out of context,
observando a importância de meu ponto de vista pioneiro. Depois, vieram
Júlio Pimentel, Beatriz Sarlo e Silvia Molloy, que também procuraram
historicizar a visão de Borges, que antes mais parecia um bólido caído do
céu. Indiquei a semelhança com Machado de Assis, em sua época. Lembrei
Antonio Candido, que mostrou que Machado de Assis só era grande escritor
porque tinha lido e incorporado a tradição do romance romântico de Joa-
quim Manuel de Macedo, Manuel Antônio de Almeida e José de Alencar.
Borges também leu, assimilou e foi além da tradição, conforme aponto em

22 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Por Luiz Jackson, Fernando Pinheiro Filho e Gustavo Sorá

detalhe. Procuro demonstrar como Borges leu seus antecessores e deu um


salto além. O primeiro trabalho sobre o Borges que escrevi foi em 1979,
hoje incluído em Outros achados e perdidos, e discutia as relações dele com
Quevedo. A recepção crítica de Borges no Brasil começou por um pequeno
círculo de leitores, de grandes leitores, como Alexandre Eulálio, Otto Maria
Carpeaux, Fausto Cunha e Augusto Meyer. Fausto Cunha, autor de Leitura
aberta e de O beijo antes do sono, entre outros livros de grande interesse, foi
um dos primeiros borgianos do Brasil. Escrevi um artigo sobre Alexandre
Eulálio, reconstituindo esse círculo restrito dos borgianos brasileiros, que
também se acha no livro mencionado. Quando comecei a estudá-lo, no início
dos anos de 1960, por aqui quase ninguém sabia quem era, mas Borges já
era um escritor famosíssimo na Argentina e estava começando a ser reco-
nhecido na França, no restante da Europa e nos Estados Unidos, com se vê
pelas traduções em várias línguas, pelo prêmio Formentor de 1961 e pelos
Cahiers de L’Herne a ele dedicados em 1964. Entretanto, muito antes, entre
os nossos modernistas, pelo menos Mário de Andrade e Manuel Bandeira
já haviam se dado conta da importância dele, sendo que Bandeira traduziu
um de seus poemas.
Estive com Borges aqui em 1984, depois de um breve contato com ele
na primeira vez que veio receber um prêmio em 1970. Houve então um
diálogo com o público no estacionamento da Folha, e estive entre seus en-
trevistadores. O lugar era impróprio e ninguém escutava nada. Perguntei
para ele, citando o prólogo da primeira edição de 1935 de Historia universal
de la infamia, no qual ele afirma que “os bons leitores são cisnes até mais
tenebrosos e singulares que os bons autores”, se ele não se julgava, sobretudo,
um desses cisnes. Ele adorou a pergunta e respondeu longamente. A resposta
está publicada no Boletim Bibliográfico da Biblioteca Mário de Andrade, que
dá conta de sua estada entre nós. Em 1995, escrevi outro ensaio, “Borges ou
do conto filosófico”, em que volto à questão das relações do escritor com a
história. Agora, estou preparando um livro que vai se chamar Sertão Oeste
Pampa, sobre Borges, Guimarães Rosa e John Ford. Nele analiso a narrativa
das regiões ditas atrasadas, ou das regiões de fronteira, reino aparente do
mito, mas na verdade permeadas de história. São três homens conservadores,
que alcançaram uma visão histórica profunda sobre o deserto argentino, o
sertão brasileiro e o oeste norte-americano e sua integração no processo de
modernização.

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Você poderia falar um pouco sobre a noção de sistema e os autores brasileiros


que você estudou?

Guimarães Rosa é um homem que incorporou a fundo a tradição re-


gionalista – uma tradição que remonta aos românticos, com Alencar, e a
autores posteriores, pré-modernistas, como Simões Lopes Neto, Hugo de
Carvalho Ramos, Godofredo Rangel, Afonso Arinos, sem falar em Euclides
da Cunha ou na mescla mais próxima de Macunaíma – à sua experiência
de escritor, e também foi além deles. Esse vínculo com a tradição é decisivo
para compreendê-lo adequadamente. No ensaio “O mundo misturado”,
analiso a peculiaridade da forma mesclada que ele construiu ao fundir a
épica oral, própria de uma região brasileira – o centro-norte de Minas – à
estrutura do romance de formação, produto da tradição burguesa e moder-
na, mas aí transformado em profundidade. Minha tese é complexa, mas a
ideia fundamental é que Grande sertão: veredas é formado por uma mescla
de formas épicas, correspondentes a temporalidades diversas e a facetas
distintas da realidade brasileira, integradas no entanto num todo coerente
e unitário, mas muito “entrançado”, como se diz no texto. O livro começa
como se fosse constituído por historietas, por contos orais, semeados de
provérbios ou frases assimiladas a essas “ruínas de antigas narrativas”, como
diria Benjamin. Mas essas formas da oralidade acabam por desembocar
numa longa história romanesca de amor e morte, dominada pela paixão de
Riobaldo por um companheiro de armas, Diadorim. É também a história
de uma guerra entre grupos de jagunços no sertão para vingar a morte de
Joca Ramiro, grande chefe e pai de Diadorim, e se torna uma condição
inarredável para o herói, obrigado a fazer um pacto com o demônio para
conseguir vencer a luta e realizar o amor impossível a que parece fadado
desde o primeiro encontro com o companheiro ainda menino à beira do rio
São Francisco. Reconstruída pela memória do narrador que a relata a um
interlocutor da cidade, essa história de aventuras se converte numa narra-
tiva em busca do significado da travessia individual de Riobaldo: a história
de uma espécie de educação sentimental de um jagunço dividido entre as
armas e as letras, marcado pelo encontro fatal com o Menino; ou seja, num
romance de formação, voltado para a indagação do sentido da experiência
individual que sempre caracterizou o gênero. Meu ponto é mostrar de que
modo o livro é moderno, nascendo em meio a formas que não o são, já
que chega a remontar ao enigma de uma balada – à misteriosa canção de
um jagunço poeta chamado Siruiz – na qual aparece cifrado o destino do

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Por Luiz Jackson, Fernando Pinheiro Filho e Gustavo Sorá

herói problemático que é Riobaldo. Assistimos, na verdade, ao renascer do


romance moderno de dentro das formas épicas do sertão, lugar mágico, real
e fantástico onde tudo se mistura. O romance incorpora aqui a tradição
da oralidade, ao contrário do que se passou com o romance europeu, de
acordo com a perspectiva de Benjamin, que frisou a ruptura desse gênero
com relação à tradição da narrativa oral, a que deu as costas, já que se volta
para o livro e a leitura solitária do leitor encadeado pelas vicissitudes do
destino individual de seu herói.
Esse é o paradoxo. Em Grande sertão, as temporalidades estão mescla-
das (assim como a realidade com os estratos distintos do desenvolvimento
histórico desigual) e também as formas em que se exprime esse mundo
misturado, onde o símbolo máximo da divisão e da mistura se encarna no
demo. Esse é o mistério do livro que encobre, na verdade, a complexidade
maior do destino humano, que nos enleia em arriscada e terrível travessia.
Para alcançar a difícil solução formal de seu grande livro, Guimarães Rosa
leu detidamente, entre outras coisas, o longo percurso da narrativa literária
brasileira, absorvendo-a nas camadas fundas da memória e transformando-a
pela força da imaginação, nele tão poderosa quanto a admirável intuição
artística da forma significativa. Sagarana exemplifica muito bem esse árduo
percurso preparatório, em que praticou a aprendizagem dos gêneros e co-
meçou a moldagem da linguagem inovadora. “A hora e a vez de Augusto
Matraga”, obra-prima desse livro, demonstra como já estava preparado para
o grande salto ao fim do percurso iniciatório.
No caso de Drummond, minha análise causou impacto, porque procurei
demonstrar que havia em sua poesia, desde o começo, uma liga de senti-
mento com reflexão – de sentimento refletido – que se vinculava à tradição
romântica da poesia meditativa e do chiste dos românticos alemães, e que
o elo desse vínculo em sua obra dependeu do contato íntimo com a poesia
e as ideias de Mário de Andrade, figura intelectual decisiva nos seus anos de
formação poética. Antonio Candido mostrou, num ensaio muito fecundo,
“O poeta itinerante”, como Mário, em poemas como a “Louvação da tarde”
e a “Meditação sobre o Tietê” se ligou à poesia meditativa dos românticos.
No caso de Drummond, o curioso é que sendo, por outro lado, um poeta
profundamente antirromântico, avesso a toda sorte de sentimentalismo
lacrimoso ou mesmo aos perigos de toda sentimentalidade com resquício
romântico, apresenta uma concepção problemática do poético, na qual a
meditação, com suas espirais reflexivas do Eu sobre o Eu, cumpre o papel
de mediação para se chegar à poesia, objeto de uma procura e de um es-

novembro 2011 25
Entrevista com Davi Arrigucci Jr., pp. 163-188

forço trabalhoso, quando toda naturalidade ou espontaneidade se tornou


impossível. Há nele, portanto, uma tensão entre antirromantismo e tradição
romântica, que não será a única num poeta como ele, marcado por um
lirismo que nunca é puro, mas mesclado de drama e pensamento.
Bandeira talvez seja, de todos os nossos grandes poetas, o que mais em
profundidade leu a tradição da lírica ocidental, e não estranha que nele se
encontrem ecos do “cossante” medieval ou do quinhentismo português, do
romantismo alemão, do simbolismo francês e belga, dos poetas do Esprit
Nouveau etc. Um dos focos centrais de meu trabalho sobre ele é a tentativa de
compreensão de seu estilo natural e simples, capaz de exprimir coisas com-
plexas com as palavras de todo dia. Diferentemente de Drummond, há nele
uma espontaneidade fundamental de poeta inspirado que sabe, no entanto,
que a poesia se dá quando ela quer, mas depende de “pequeninos nadas” da
linguagem a que está sujeita a sorte de todo verso. A capacidade que demons-
tra de acercamento ao sublime pelos meios mais simples faz dele um poeta de
comunicação imediata, mas algo secreto na dificuldade que oculta. Procurei
descrever precisamente essa sua capacidade de dar um sentido solene e alto às
palavras cotidianas, através de uma espécie de sermo humilis moderno, no qual
mesmo o que está mais perto do chão (de onde procede o termo humilis, preso
a humus) e da matéria mais pedestre pode adquirir uma sorte de transcendên-
cia. Bandeira é um poeta materialista, mas absorve uma forma do discurso
cristão do sermo humilis, no qual o sublime pode vir oculto sob as palavras
mais chãs, assim como as verdades mais complexas da fé se deixam exprimir
pela forma mais corriqueira. Tento mostrar como nele se estabelece uma
espécie de dialética entre o simples e o complexo, de modo que os instantes
de alumbramento, de súbita manifestação espiritual da poesia se dão perto do
chão do cotidiano e vêm impregnados de um erotismo fundamental que se
comunica de algum modo com um sentimento da finitude e da destruição,
avizinhando-se da sensação de iminência da morte. Ao estudar essa aliança
secreta entre erotismo e sensação de morte no coração de seu conceito de
momento poético, percebi que talvez, para esse poeta que teve de se habituar
a uma longa vida provisória de tísico profissional, a poesia tenha representado
um meio natural e familiar de aprender a morrer.

26 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Modernismo e regionalismo no Brasil
Entre inovação e tradição

Maria Arminda do Nascimento Arruda

O enraizamento das propostas modernistas no Brasil é, como se sabe, fe-


nômeno característico dos anos de 1930, momento no qual se legitimou a
nova gramática das obras e dos estilos, forjada, especialmente, no interior da
geração vanguardista de São Paulo no decênio de 1920 (cf. Candido, 2000,
pp. 181-198). Os desdobramentos ocorridos ultrapassam os significados
usuais que transformações desse vulto provocam no universo da cultura,
uma vez que, muito embora o modernismo tenha sido na origem um fenô-
meno tipicamente de São Paulo, e mesmo do Rio de Janeiro, a fixação dos
princípios vanguardistas só se realizou integralmente com a incorporação
de outras regiões. As metrópoles são sempre os locais tradicionalmente de
respiração das mudanças, no entanto, no âmbito da literatura, gênero mais
enobrecido da cultura brasileira até então, as inovações do período fizeram-se
sob o compasso de princípios diversos, embora também originais.
À semelhança do ocorrido na Europa, quando as novidades atingiram
a sua radicalidade nos contextos mais resistentes ao estilo moderno de
vida, “no Brasil aconteceu coisa parecida e, descontada a Semana de Arte
Moderna e suas consequências, foi de fora da metrópole Rio-São Paulo
que chegou o novo. Do Nordeste, de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul,
mesmo que em muitos casos a novidade viesse disfarçada de regionalismo”
(L. F. Veríssimo, 2000, p. 21). Malgrado a presença de certo exagero no
trecho acima reproduzido, pois o modernismo como um movimento amplo
Modernismo e regionalismo no Brasil: entre inovação e tradição, pp. 191-212

aconteceu, primeiramente, nas duas capitais, o autor – que está focalizando


apenas a produção literária – quer enfatizar a importância dos escritores e
intelectuais da década de 1930 na fixação dos rumos da cultura no país.
Com essa afirmação, acaba por construir um problema para a reflexão, qual
seja, o de considerar tanto os motivos responsáveis por essa expansão como
a velocidade de sua dispersão. Outra questão, ainda de maior profundida-
de, emerge como desenvolvimento necessário das anteriores; refiro-me ao
deslocamento do centro da produção literária, que migra das capitais para
outras regiões do país.
Naturalmente, o dimensionamento do período na ótica da cultura
exige o tratamento das alterações aparecidas no conjunto das linguagens e
não apenas na literatura: na poesia, no romance, na arquitetura, nas artes
plásticas, na produção intelectual, na música popular e erudita, à exceção,
apenas, da dramaturgia, cuja renovação aconteceu na década seguinte. Em
uma dezena de anos, transpirou-se nova atmosfera, igualmente tributária
da criação de instituições centrais ao desenvolvimento da cultura, como o
são a universidade, as editoras, as reformas do ensino, as iniciativas culturais
do Governo Getúlio Vargas, instalado em outubro de 1930, cuja política
dominante será marcada por um reformismo modernizador, ainda que
autoritário. Nas palavras de Antonio Candido, aquele tempo

[...] foi um eixo e um catalisador: um eixo em torno do qual girou de certo modo a
cultura brasileira, catalisando elementos dispersos para dispô-los numa configuração
nova. Neste sentido, foi um marco histórico, daqueles que fazem sentir vivamente
que houve um “antes” diferente de um “depois”. Em grande parte porque gerou um
movimento de unificação cultural, projetando na escala da Nação fatos que antes
ocorriam no âmbito das regiões. A este aspecto integrador é preciso juntar outro,
igualmente importante: o surgimento de condições para realizar, difundir e “nor-
malizar” uma série de aspirações, inovações, pressentimentos gerados no decênio de
1920, que tinha sido uma sementeira de grandes mudanças (2000, pp. 181-182).

Tomando-se esta passagem como referência, é imperioso considerar que a


difusão das inovações, se foi, sem dúvida, retumbante, não se fez sempre no
prisma dos desígnios anteriores, especialmente na seara da literatura, tema
do presente artigo. O sentimento que ocupou Oswald de Andrade (1890-
1954) e Mário de Andrade (1893-1945), os dois próceres do modernismo
paulista, era de franca reserva principalmente em relação aos romancistas do
Nordeste, os chamados escritores regionalistas. Denominados por Oswald de

4 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Maria Arminda do Nascimento Arruda

Andrade de “búfalos do Nordeste”, o escritor reteve nessa expressão jocosa,


para nomear a geração dos escritores que estrearam na vida literária brasileira
ao longo dos anos de 1930, genericamente identificados como pertencentes
ao chamado segundo grupo modernista, todo o seu humor demolidor. Em
entrevista concedida em 1950, ao modernista e historiador do movimento,
Mário da Silva Brito, Oswald afirmou: “Eu fiquei marxista [...]. Abri alas
para os búfalos do Nordeste passarem com bandeirinhas vermelhas nos
chifres. Porém, com isso, as pesquisas da Semana foram paralisadas e só
vieram encontrar continuadores em Clarisse Lispector e Guimarães Rosa”
(Andrade, 1990).
Singularizados pela dedicação dominante ao gênero romance e, em espe-
cial, por uma narrativa de cunho marcadamente social, essa geração foi reco-
nhecida pelo caráter empenhado de sua escrita, pela condição de retratistas
privilegiados das injustas realidades locais e regionais, pela incorporação na
narrativa dos pobres, dos trabalhadores comuns, dos marginalizados sociais,
das mulheres, das crianças. Por essa razão, o modernista refere-se à presença
dos enfeites de coloração vermelha nos animais. A despeito da ácida ironia,
Oswald não consegue, todavia, esconder a essência de seu incômodo em re-
lação aos novos membros do cenário literário brasileiro, como se percebe na
alcunha por ele criada e encerrada na expressão: o primeiro termo sugere um
animal carente de leveza, porém potente, reconhecendo a importância incon-
testável dos novos; o segundo qualifica, pois situa a origem nordestina dos
animais, berço dos chamados escritores regionalistas, cujas obras obtinham
grande êxito editorial, como José Américo de Almeida (1887-1980), Gracilia-
no Ramos (1892-1953), José Lins do Rego (1901-1957), Raquel de Queiroz
(1910-2003), Jorge Amado (1912-2001), entre outros. Além de originários
da mesma região, de pertencerem à mesma geração literária, de nutrirem
visões políticas assemelhadas, eram herdeiros de experiências sociais comuns,
por serem descendentes de famílias da elite agrária em franco processo de de-
clínio. Oswald ainda revelava a percepção de que o momento não apenas se
diferenciava do anterior como, sobretudo, se afastava das propostas construí-
das pelo grupo dos modernistas de São Paulo, responsáveis pela organização
da Semana de 1922, e, em especial, por ele próprio e por Mário de Andrade.
Não por casualidade, Mário de Andrade expressou, anos antes, a cons-
ciência trágica nutrida no sentimento de superação de suas concepções a
respeito da renovação cultural da qual se considerava pioneiro. Em “Elegia
de abril”, de 1941, o escritor de São Paulo revelava plena consciência de
que suas propostas vanguardistas, entendidas do ângulo da experimentação

novembro 2011 5
Modernismo e regionalismo no Brasil: entre inovação e tradição, pp. 191-212

da linguagem, haviam sido deslocadas pelo compromisso assumido pela


nova geração com a realidade brasileira: “Nem mesmo o nacionalismo que
praticávamos com um pouco maior largueza que os regionalistas, nossos
antecessores, conseguira definir em nós qualquer consciência da condição
intelectual, seus deveres para com a arte e a humanidade, suas relações com
a sociedade e o Estado”. E mais adiante:

Uma geração de degeneração aristocrática, amoral, gozada, e, apesar da revolução


modernista, não muito distante das gerações de que ela era o “sorriso” final. E teve
sempre o mérito de proclamar a chegada de um mundo novo, fazendo o moder-
nismo e em grande parte 1930. Ao passo que as gerações seguintes, já de outro e
mais bem municiado realismo, nada têm de gozadas, são alevantadas mesmo, e já
buscam o seu prazer no estudo e na discussão dos problemas humanos e não [...]
no prazer (Andrade, 1941, p. 16).

Anteriormente, em 1936, em carta dirigida a Murilo Miranda, diretor da


Revista Acadêmica, praticamente justifica-se pelo não engajamento político
da sua obra:

Fiz e faço “arte de ação”, como bem desde mais de dez anos venho repetindo aos ami-
gos, em cartas, e até já em artigo. Mas pros amigos da minha geração, essas palavras
serão mais fáceis de compreender do que para vocês, gente do após-guerra. Minha
“ação” se confinou ao terreno da arte porque, conformado numa geração e num fim
de século diletantes, sou um sujeito visceralmente apolítico, incapaz de atitudes polí-
ticas, covarde diante de qualquer ação política (Andrade, apud Bueno, 2006, p. 59).

Na verdade, os dois mais autênticos representantes das vanguardas


modernas no Brasil comungavam do sentimento comum de que os roman-
cistas da década de 1930 não só haviam promovido um retorno à ordem,
distanciando-se das propostas que os primeiros haviam encarnado, como
representavam a nova geração dos consagrados. Não lhes escapa, por fim,
a nostalgia da percepção de que faziam parte de um passado. Inclusive por
isso, Mário de Andrade adere a certo descompromisso de sua arte, acentu-
ando a crença na superioridade dessa condição do artista; finalmente, dilui
um problema real: a viabilidade de profissionalização dos novos, em função
do processo de constituição do mercado cultural (cf. Miceli, 1979, cap. 2).
A despeito do modo como foi reconhecida pelos seus antecessores, é
certo que a geração modernista de 1930 se distinguiu por construir “uma

6 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Maria Arminda do Nascimento Arruda

visão crítica das relações sociais”, manifestando-se no “romance empenhado


desses anos fecundados para a prosa narrativa” (Bosi, 1977, pp. 436-437).
Nesse novo contexto da literatura moderna no Brasil, ocorreu uma mudança
de inclinação no modernismo, capaz de delimitar duas fases: “enquanto na
primeira a ênfase das discussões cai predominantemente no projeto estético
(isto é, o que se discute principalmente é a linguagem), na segunda a ênfase
é sobre o projeto ideológico (isto é, discute-se a função da literatura, o papel
do escritor, as ligações da ideologia com a arte)” (Lafetá, 1974, p. 17). A
“vanguarda em diluição”, para continuar no universo de reflexão de João
Lafetá, se não significou ruptura com os princípios modernistas, introduziu,
segundo o autor, uma tensão no âmbito do projeto estético, ou, de acordo
com seus termos:

As duas fases não sofrem solução de continuidade; apenas, como dissemos atrás,
se o projeto estético, a “revolução na literatura”, é a predominante da fase heroica,
“a literatura na revolução” (para utilizar o eficiente jogo de palavras de Cortázar),
o projeto ideológico, é empurrado, por certas condições políticas especiais, para o
primeiro plano nos anos 30 (Idem, p. 19).

A visão de João Lafetá filia-se à mesma vertente de interpretação dos anos


de 1930, desenvolvida por seu mestre Antonio Candido, configurada nas
noções de rotinização e de difusão do modernismo. Segundo um registro
informado por outras concepções, a literatura dos anos de 1930 reproduz,
com tonalidades diversas, a estética naturalista que vigorou no ambiente
oitocentista finissecular, tornando escritores como Oswald de Andrade ma-
nifestação pontual de uma literatura caracteristicamente identificada com o
naturalismo (cf. Süssekind, 1984, p. 42). Deixando de lado o distanciamento
das posições, não há como negar

[...] que esse aparentemente pequeno deslocamento de sentido pode ser entendido
de outra forma: como demonstração de um afastamento dos projetos de cada ge-
ração, e não de sua aproximação. Pensar que o modernismo é uma arte utópica e
o romance de 1930 é uma arte pós-utópica pode ajudar a esclarecer como isso se
dá (Bueno, 2006, p. 66).

Há uma questão central, no entanto, que se refere ao tratamento dessa


literatura, revisitada, como é o caso, em perspectiva sociológica. A conside-
ração da diversidade interna ao modernismo, nessa perspectiva, guia-se pela

novembro 2011 7
Modernismo e regionalismo no Brasil: entre inovação e tradição, pp. 191-212

construção de problema de outra natureza, acentuando o ângulo da visão


que busca explorar como a vida social pulsa, conforma e prefigura a produ-
ção literária no período. Nesse sentido, essa cultura modernista identificada
com bandeiras sociais, o seu “projeto ideológico”, espelha um modo como os
intelectuais brasileiros situaram-se diante das fundas transformações do país,
como construíram por força de suas ações e de suas escritas novas modalida-
des de exercício da atividade, como se legitimaram, como criaram um campo
próprio de práticas que pressupôs a articulação da obra com a política. Em
termos explícitos, o fenômeno da “vanguarda em diluição” é por certo central
ao crítico da literatura; para o sociólogo sua importância advém do caráter de
revelar as formas pelas quais a cultura expõe situações sociais.
Independentemente da maneira como se compreendem aqueles anos, se
“há um novo modernismo a partir de 1930 – o modernismo que conclui
a metamorfose para o moderno e assume as suas opções sociais [...] em
lugar da gratuidade estética de que até então tinha vivido” (Martins, 1978,
p. 497), há um cenário renovado nas letras brasileiras. Na modelagem da
cena, os chamados escritores regionalistas são as personagens principais
do procênio. A nova geração de romancistas, do Nordeste em particular,
mas também de outras regiões, será os fautores da inovação, revelando um
deslocamento do eixo da nova produção literária modernista no Brasil. Essa
é a questão central da minha reflexão: entender o deslocamento do centro
criativo do movimento modernista do núcleo originário – São Paulo – e da
capital intelectual – Rio de Janeiro – para as margens do campo cultural,
Pernambuco, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, regiões que passaram a dar a
modulação da literatura brasileira, tema a que me dediquei a partir do trata-
mento da experiência modernista mineira (cf. Arruda, 1990); compreender
os caminhos trilhados pelo modernismo no Brasil, tendo em vista analisar os
rumos da cultura moderna entre nós, apreendidos no prisma da capacidade
desses autores em modelar futuras direções; perseguir as relações entre as
narrativas e as experiências sociais nas quais esses escritores estavam imersos;
revelar como construíram imagens duradouras do Brasil no trânsito da crise
das relações tradicionais e consequente emergência dos valores modernos;
buscar as conexões estabelecidas entre o tecido cultural e o processo de
modernização do país. Com isso, não se pretende desconsiderar “o trabalho
de leitura interna ou da correspondente interpretação”, substituído por
uma visada restrita às “suas condições pragmáticas” (Altamirano, 2007, p.
14), mas pensar a produção dos textos como um ato de construção situado
socialmente, contornando a disjuntiva texto-contexto que diz respeito, em

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Maria Arminda do Nascimento Arruda

suma, a um falso problema. Ambos os gestos (de criação e de interpretação)


são sempre interessados, pois derivam de matrizes construídas pela vivência
dos sujeitos.
A própria afirmação da permanência dos traços modernistas originais na
geração seguinte encontra-se embebida do projeto de uma intelectualidade
ilustrada e, ao mesmo tempo, moderna, que deitou suas raízes na cultura
da inovação, entrelaçando-se ao legado das propostas avançadas das quais se
considera legítima herdeira. A continuidade pretendida a faz, assim, parti-
cipante de uma tradição sólida, mundialmente dominante e vigorosamente
resistente aos impulsos passadistas que alguns teimam reviver, apesar de seu
caráter relativamente recente na história do Ocidente. No caso específico
de realidades como a brasileira, cujo trânsito para o moderno reatualiza as
relações tradicionais, esse é um dos motivos a explicar como o modernismo
tornou-se o cânone da cultura no Brasil, produzindo um efeito de avanço
ao menos no interior da produção intelectual e artística. Personalidades
ilustradas e marcantes como Gilberto Freyre e Antonio Candido foram
formuladores centrais na cristalização dessa imagem, nublando as contri-
buições do passado.
Todavia, não é necessário obscurecer a herança modernista originária
de 1920, que de fato foi marcante, para apontar a diversidade ocorrida no
período posterior:

[...] o romance de 30 se define mesmo a partir do modernismo e certamente não


poderia ter tido a abrangência que teve sem as condições que o modernismo con-
quistou para o ambiente literário e intelectual do país. No entanto, ao afastar-se da
utopia modernista, terminou por ganhar contornos próprios que, de certa forma,
só seriam retomados pela ficção brasileira do pós-64, também dominada pelo
desencanto (Bueno, 2006, p. 80).

A autonomia adquirida por esse romance produziu, nesses termos, um mo-


vimento cheio de consequências, uma vez que, segundo o autor, se espraiou
para os diversos ramos, num movimento que se expressou no cinema, na
canção popular, mesmo nas telenovelas da Globo, erigindo, assim, uma
espécie de tradição (cf. Idem, p. 27).
Desse modo, o dimensionamento da vida intelectual e artística no Brasil
do século XX pressupõe tratar desse momento, pois aí se gestaram os rumos
da moderna cultura brasileira, expressos na combinação de um espírito
modernista com a construção de retratos do país; de um pensamento e uma

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Modernismo e regionalismo no Brasil: entre inovação e tradição, pp. 191-212

arte presos às amarras da formação da nação moderna. Nesse andamento,


a linguagem das vanguardas vicejou entre nós afirmando nossas particu-
laridades; em sincronia com os projetos de modernização destacou nossas
singularidades, tecendo os ligamentos entre a cultura e a modernização.
Daí a identificação da linguagem modernista com a expressão nativa. A
chamada “construção nacional” deu ao modernismo brasileiro “condição
particular”, expressa numa modalidade arrevesada de ser “modernista sem
o ser” (Baptista, 2005, pp. 60-66), evidente nas obras ensaísticas da década
de 1930, dos chamados “intérpretes do Brasil”: Gilberto Freyre (1900-
1987) com a publicação de Casa-grande e senzala, em 1933; Caio Prado
Júnior (1907-1990) com a obra Evolução política do Brasil, em 1934; Sérgio
Buarque de Holanda (1902-1982) com o livro Raízes do Brasil, em 1936.
Há nítido entrecruzamento entre o romance empenhado dos anos de 1930
e os ensaios de interpretação, revelando o substrato comum que permeia
todas essas expressões; uma espécie de condensação daquela história nas
linguagens da cultura.
Para o tratamento desse problema de fundo, o romance regional da
década de 1930 é fonte privilegiada. Nesse sentido, a análise de trajetórias
exemplares permite que se caracterize adequadamente a questão: José Lins
do Rego, paraibano/pernambucano; Érico Veríssimo, gaúcho; Lúcio Car-
doso e Cyro dos Anjos, mineiros. Apesar da presença de certa liberdade
inerente a todo critério de escolha, a seleção não é arbitrária, uma vez que
esses autores não apenas se situam entre os mais representativos do período,
como são provenientes dos estados brasileiros possuidores de construções
culturais integradas e densas, correspondendo aos três regionalismos mais
elaborados no Brasil e que são formulações culturais distintas: a pernambu-
cana caracteriza-se pela introversão; a gaúcha pelo isolacionismo; a mineira
pela integração à nação (cf. Arruda, 1990, cap. 2). A razão de serem dois
mineiros ficará explícita a seguir.
Trata-se, nesses termos, de indagar acerca das modalidades de relações
entre esses sistemas culturais regionais e a literatura em questão. A rigor, a
existência de certo descentramento geográfico da cultura no Brasil resultou
da própria formação do país, uma vez que a dispersão geográfica da atividade
econômica produziu a tendência ao caráter autárquico das regiões; à perda de
dinamismo corresponde “um lento processo de atrofiamento” que se constitui
a dinâmica mesma “de formação do que no século XIX viria a ser o sistema
econômico do Nordeste brasileiro [...]. A estagnação da produção açucareira
não criou a necessidade – como ocorreria nas Antilhas – de emigração do

10 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Maria Arminda do Nascimento Arruda

excedente da população livre formado pelo crescimento vegetativo desta”


(Furtado, 1963, pp. 79-80). O mesmo aconteceu com a crise da minera-
ção em Minas Gerais, quando ao declínio da produção do ouro seguiu-se
“uma rápida e geral decadência [...]. Todo o sistema se ia assim atrofiando,
perdendo vitalidade, para facilmente desagregar-se numa economia de sub-
sistência” (Idem, p. 104). No Brasil não se deu o movimento da substituição
da atividade dominante, ou do aprofundamento da regionalização de forma
a estabelecer as bases futuras de outros países, como foi o caso da América
espanhola. “Essas distintas regiões viviam independentemente e tenderiam
provavelmente a desenvolver-se, num regime de subsistência, sem vínculos
de solidariedade econômica que as articulassem. A economia mineira abriu
um novo ciclo de desenvolvimento para todas elas” (Idem, p. 96). Durante o
século XVIII, a sociedade mineira foi responsável pelo aparecimento de um
ciclo dinâmico interno, criando condições para a preservação das formas de
sociabilidade gestadas nas outras regiões. Como não se superavam as antigas
relações, elas tendiam à cristalização; reside justamente aí a substância social
do desenvolvimento dessa literatura.
Analisar o modernismo na perspectiva de seu enraizamento e difusão
exige, pois, tratar da linguagem ficcional concebida nesses contextos tradi-
cionais, que foram os polos de irradiação de uma literatura nova que marcará
as letras brasileiras ao longo do século. Dito de outra maneira, a linguagem
literária é a expressão intelectual dominante dessas regiões, o gênero por
excelência da consagração ilustrada, mas, ao mesmo tempo, manifestação da
permanência dos estilos pretéritos. Sintoma de pouco dinamismo cultural,
concomitantemente signo de cristalização. Se se considera que a decantação
da linguagem é princípio da literatura, dado o caráter de gênero letrado e
dependente, em princípio, de acesso diferenciado à educação formal, os
condicionamentos sociais da profissão de escritor estão dados. Os escritores
modernistas nasceram, em sua grande maioria, em famílias de elite, inde-
pendentemente do declínio do núcleo familiar ou de serem filhos dos ramos
empobrecidos das camadas dominantes. Essa condição tipificou ambas as
gerações, mas com intensidades diversas.
Em São Paulo, Oswald de Andrade, por exemplo, era herdeiro de grande
fortuna. “Embora quase todos os escritores modernistas sejam originários
de antigas famílias dirigentes elas se distinguem entre si não tanto pelo
volume do capital econômico ou escolar, mas pela proximidade relativa de
suas famílias em relação à fração intelectual e política da classe dominante
e, por conseguinte, pelo grau de conservação ou dilapidação de seu capital

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Modernismo e regionalismo no Brasil: entre inovação e tradição, pp. 191-212

de relações sociais.” Eram, na sua maioria, uma geração que se pensava


composta por “homens sem profissão” (Miceli, 1979, pp. 24 e 35). O
grupo seguinte já provinha de famílias ambientadas na longa experiência
de declínio, com a modorra secular de suas regiões, e cuja sobrevivência
encontrava-se francamente questionada pelo ritmo intenso da modernização
do país, desestabilizando o antigo equilíbrio. Nessa geração, contornou-se
a perda de posição social por meio da inserção generalizada nos quadros da
burocracia pública, em franco reaparelhamento, o que os levou a cultivar
relações de intimidade com os círculos imediatos do poder (cf. Idem, cap. 3).
O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade assim expressou a
condição do intelectual burocrata:

O emprego do Estado concede com que viver, de ordinário sem folga, e essa é
condição para bom número de espíritos: certa mediania que elimina os cuidados
imediatos, porém não abre perspectivas de ócio absoluto [...]. A Organização
burocrática situa-o, protege-o, melancoliza-o e inspira-o. Observe que quase toda
literatura brasileira, no passado como no presente, é uma literatura de funcionários
públicos (Drummond de Andrade, 1973, pp. 841-843).

Esses “cronistas da casa assassinada”, para retomar a feliz expressão de Sergio


Miceli, aludindo à obra mais marcante do mineiro Lúcio Cardoso, puderam
dedicar-se à literatura, até porque se liberaram das constrições da sobrevivência
e se libertaram de uma rotina intensa e estafante característica do trabalho
integral. As diferenças entre as gerações acabavam por espelhar vivências
sociais distintas, nascidas no âmbito de experiências de classe que alteravam
os projetos de cada uma. Independentemente do fato de ter havido vários
modernistas paulistas originados de ramos declinantes das elites, diga-se
de passagem, de uma cafeicultura de nítido corte empresarial, a realidade
de São Paulo era inequivocamente ascendente e apontava para o futuro;
a existência das outras regiões era ocupada pela modorra da “vista besta”,
para lembrar o verso drummondiano, nublando a efetividade dos projetos.

No sul, tentava-se o emparelhamento com a arte europeia, insistindo-se na fun-


damentação basicamente estética e reprimindo-se, com isso, qualquer surto de
veleidade regionalista, em princípio. Buscava-se uma arte urbana, talvez porque
São Paulo quisesse se firmar como criação deste século 20 e de outros futuros, não
de anteriores. Autoimagem pretensiosa e obnubilada, sem dúvida, mas que apro-
veitava a vaidade dos cafeicultores transoceânicos, ao mesmo tempo em que jogava

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Maria Arminda do Nascimento Arruda

para baixo do tapete uma herança histórica rala ou mal conhecida e trabalhada, se
comparada com a do Rio para cima (Dimas, 2003, pp. 334-335).

É bem verdade que o modernismo de São Paulo não estava isento de


contradições, como bem o mostra a mescla de atraso e princípios futuristas,
embora apenas as dimensões avançadas tivessem sido destacadas, aquelas
adequadas à visão do progresso da burguesia industrial nascente (cf. Fabris
1994, p. 31).
Tal contexto não acontecia, no entanto, em outras regiões, que modula-
vam uma literatura diversa, respondendo por uma ficção regional de outro
matiz: ora permeada de uma cultura dos sentimentos, da memória, como em
José Lins do Rego, e intimista, como em Lúcio Cardoso e Cyro dos Anjos;
ora entranhada de uma linguagem com fortes traços sociais, como em José
Américo de Almeida, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz e Jorge Amado;
ora ainda insinuada em obra que reconstitui a saga da região, como em Érico
Veríssimo. No conjunto, a cultura letrada brasileira daquele momento vice-
java no solo das tradições fatigadas, construindo um espaço comum entre os
ensaios e a ficção da década de 1930. Com a chegada da linguagem moder-
nista ao ensaio, sincronizou-se o problema da reflexão – a crise da sociedade e
a viabilidade de inserção do país no cenário da modernidade, cuja formação
histórica escapava ao padrão – com a forma da expressão, ao se romper com
a norma culta portuguesa. Os chamados intérpretes beberam nas fontes do
modernismo ao ajustarem a visão orientada para as nossas particularidades,
focalizada na aceitação da nossa diversidade, afastando-se do pensamento
anterior que nos espelhava na modernidade hegemônica. Há forte homologia
entre a ficção do período e a produção intelectual, particularmente entre a
obra de Gilberto Freyre e os romancistas do Nordeste. O novo momento do
país fez germinar uma cultura menos da experimentação e mais consentânea
com as agudas realidades locais, revelando as relações entre a literatura e a
história intelectual.
Na sequência dos argumentos aqui explicitados, esses romancistas permi-
tem analisar o curso da cultura moderna no Brasil, uma vez que combinaram
aos traços da linguagem criada no decênio de 1920, afinada com a oralidade
do idioma português no Brasil, expressões nutridas no trânsito da crise da
sociedade tradicional submetida ao impacto da modernização. Em termos
mais explícitos, as relações entre o modernismo e a modernização no Brasil,
que já na origem das vanguardas europeias apresentavam convivência tensa,
embora brotassem do mesmo chão histórico, alargaram os deslocamentos,

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Modernismo e regionalismo no Brasil: entre inovação e tradição, pp. 191-212

estabelecendo uma combinação entre domínio social da tradição e renova-


ção cultural. Naturalmente, a história do período entranhou diversamente
as obras. Certamente há distinções ponderáveis entre escritores como José
Lins do Rego, Lúcio Cardoso, Cyro dos Anjos e Érico Veríssimo. Apesar
dos afastamentos, as aproximações são igualmente marcantes.

A prosa de ficção encaminhada para o “realismo bruto” de Jorge Amado, de José


Lins do Rego, de Érico Veríssimo e, em parte, de Graciliano Ramos, beneficiou-
se amplamente da “descida” à linguagem oral, aos brasileirismos e regionalismos
léxicos e sintáticos, que a prosa modernista tinha preparado. E até mesmo em
direções que parecem espiritualmente mais afastadas de 22 (o romance intimista de
Otávio de Faria, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena), sente-se o desrecalque psicológico
“freudiano-surrealista” ou “freudiano-expressionista” que também chegou até nós
com as águas do modernismo (Bosi, 1977, pp. 431-432).

Ou seja, no plano das aproximações, o modernismo criou o lastro comum a


todos eles, tornando as diferenças o repositório de uma cultura comumente
sedimentada.
No conjunto, pode-se afirmar a existência de um universo compartilhado
por um tecido histórico de grande semelhança, manifesto nos temas retrata-
dos por esses romances: a crise do Brasil tradicional no curso de constitui-
ção da modernização da sociedade é apreendida no prisma da decadência
social das famílias patriarcais. A tensão resultante é agravada nos contextos
de estruturas sociais enrijecidas pela falta de dinamismo da realidade local,
incapaz de produzir saídas para os impasses que permanecem em constante
suspensão. Até por isso, a forma privilegiada da linguagem só poderia ser
o romance, gênero mais adequado para expressar os dilemas da formação
dos valores modernos em sociedades como a brasileira, que convivem com
padrões normativos muito heterogêneos e que não se excluem. Por essa razão,
essa literatura é fonte privilegiada de acesso às transformações transcorridas
naqueles anos decisivos de gestação do Brasil moderno.
O chamado romance regionalista, diga-se de passagem uma denominação
bastante imprecisa, resultou da combinação entre o modernismo, que se
forjou na assimilação da nossa oralidade e se legitimou no compromisso com
a realidade brasileira. Nesse diapasão, as regiões dos escritores da geração
de 1930 manifestaram com força o drama em curso. Do encontro entre
essa realidade repleta de material disponível a ser ficcionalizado e uma elite
letrada impregnada das novas propostas, emergiu a literatura indelével desses

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Maria Arminda do Nascimento Arruda

escritores embebidos na trama de seu tempo. A partir daí, o lugar da inovação


literária migra do berço do modernismo que foi São Paulo para alojar-se
em outras paragens. A linguagem moderna em São Paulo desloca-se para
distintos campos expressivos, como o das artes plásticas, da dramaturgia,
da crítica moderna, da ciência, fragmentando-se e especializando-se, como
analisei no livro sobre a cultura paulista do pós-guerra (cf. Arruda, 2001).

Colocado em xeque o passado próximo, urgia construir de vez a arte brasileira


à luz de uma consciência política, que punha em primeiro lugar o Brasil “real”
e não mais a projeção utópica do início dos anos 20, na qual o futurismo havia
desempenhado um papel fundamental como exemplo de ação e como explicitação
de uma modernidade positiva, enfeixada na imagem emblemática de São Paulo
(Fabris,1994, p. 285).

Até por isso, a linguagem literária de São Paulo teria que mirar outros
horizontes.
Dessa forma, a renovação literária do decênio de 1930 não está isenta
de ser entendida como cristalização modernista, até mesmo como natura-
lismo, porque com ela a experimentação da linguagem arrefeceu. Todavia,
a despeito da “velha briga entre os modernistas e o movimento regionalista
de Recife”, para um autor como José Lins do Rego, “muito provavelmente
não seria possível a ele obter tamanha popularidade sem a existência de
Macunaíma e do modernismo como um todo” (Bueno, 2006, p. 62). Os
quatro romancistas selecionados são significativos das imbricações esta-
belecidas entre sua geração e as vanguardas modernistas precedentes; são
ilustrativos das vias convergentes entre a literatura e o contexto histórico
mais amplo; são, enfim, paradigmáticos dos rumos da cultura moderna
no Brasil, tendo em vista que codificaram os procedimentos formais de
conversão da linguagem modernista na feitura de retratos da realidade
social-histórica do país.
Apesar de os escritores destacados apresentarem marcantes diferenças,
como já se assinalou, existe um traço comum a uni-los revelado nas perso-
nagens que criaram, a condição de seres impotentes e tragados pela força
das circunstâncias adversas.

À distância, apesar da proximidade, entre os modernistas e os romancistas de


30; apesar da distância, entre “sociais” e “intimistas”; ambas as coisas podem
ser mais bem sentidas se projetadas numa figura a que o romance de 30 dedi-

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cou toda a sua energia de criação, o fracassado. Não é à toa que o primeiro a
apontar a recorrência dessa figura, para reprová-la, seja um modernista, Mário
de Andrade (Idem, p. 74).

Como o autor alude, a condenação do mestre do modernismo brotava de


apostas diversas a respeito do país; as personagens concebidas pela segunda
geração são batidas pela derrota. No entanto, ajustaram melhor as lentes
para apanhar os conflitos e hesitações provenientes, quer da resistência de
modos de vida do passado, quer do impacto da mudança sobre essa reali-
dade carente de recursos para assimilá-la. Daí o eixo dessa literatura girar
em torno da ficcionalização do mundo agrário, centrando-se na decadência
das famílias patriarcais, nos deserdados daquele universo em desintegração.
O privilegiamento das relações agrárias na construção da cultura no Brasil
caminha, como se sabe, ao longo dos decênios seguintes, mesmo quando
a sociedade brasileira já era inequivocamente urbana e industrializada. O
aparente descompasso remete à particularidade da cultura enquanto lin-
guagem social, isto é, as conexões não se traduzem de modo simples. Ao
tratar da crise do Brasil tradicional, essa literatura produziu a melhor ficção
do período, porque construiu figuras e situações que ultrapassam o registro
imediato. As obras de José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Lúcio Cardoso
e Cyro dos Anjos são exemplares nesse sentido assinalado.
O nordestino José Lins do Rego, descendente de família agrária em mo-
vimento de descenso social, com os romances Menino de engenho de 1932,
Doidinho de 1933, Banguê de 1934, Usina de 1936, Fogo morto de 1943,
completa o chamado ciclo da cana-de-açúcar, que trata, por meio da memória
de Carlos de Melo, personagem principal que percorre o conjunto desde a in-
fância até a idade adulta, da crise dos engenhos com a emergência da moder-
nização introduzida pelas usinas. Narrado na primeira pessoa, o primeiro livro
é, sobretudo, uma espécie de autobiografia de cenas da infância. Pertencente
ao gênero dos romances de formação, a narrativa memorialística do ciclo
coroa-se com Fogo morto, quando ocorre a convergência dos componentes
essenciais de toda a obra do autor, na qual as personagens vivem o drama
da impossibilidade de romper com a força de uma realidade injusta, que se
impõe a todos como se estivessem presos num círculo de ferro. Os romances
de José Lins do Rego reproduzem a oralidade da cultura do Nordeste, numa
obra de forte carga afetiva, permeada por uma expressividade de raiz emoti-
va, nutrida no solo da memória. Por essa razão, combinam as características
do romance social aos traços de uma literatura dos sentimentos, gerados na

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opressão do mundo, em sincronia com um contexto de crise e uma experiên-


cia de decadência social.
A literatura de José Lins do Rego é tributária da geração reunida no
Movimento Regionalista e Tradicionalista, organizado por Gilberto Freyre
quando retornou do exterior, e que promoveu o Congresso Regionalista,
em fevereiro de 1926, do qual resultou o decantado Manifesto Regionalista,
cuja primeira publicação ocorreu apenas em 1952. Independentemente de
a edição corresponder ao que foi de fato discutido, pois sabe-se que Freyre
costumava reescrever seus textos em função das circunstâncias, o mais
significativo é apontar o quanto essa iniciativa permeou a obra dos partici-
pantes, como a do próprio José Lins do Rego. Chama atenção a afirmação
de fé, presente no Manifesto, de que não há “região no Brasil que exceda
o Nordeste em riqueza de tradições ilustres e em nitidez de caráter. Vários
dos seus valores regionais tornaram-se nacionais depois de impostos aos
outros brasileiros menos pela superioridade econômica que o açúcar deu
ao Nordeste por mais de um século do que pela sedução moral e pela fasci-
nação estética dos mesmos valores” (Freyre, 1976, p. 57). Apesar de o texto
ter sido editado depois do êxito dos romancistas do Nordeste, é evidente
a estetização da região, bem como a operação de superar a desvantagem
econômica por intermédio da riqueza cultural.
As relações entre Gilberto Freyre e José Lins do Rego eram de franca in-
timidade e de mútua cooperação. Além de o romancista ser participante do
Movimento Regionalista, era um jornalista conhecido em Recife e estava liga-
do a várias iniciativas de renovação literária quando Freyre retornou ao Brasil.
A relação entre ambos foi central ao jovem sociólogo que aportava na cidade,
depois de anos no exterior, sem laços com a jovem intelectualidade local. O
escritor não apenas organizou, juntamente com José Américo de Almeida, a
primeira viagem ao sertão nordestino do intelectual cosmopolita, como es-
creveu o prefácio de Ingleses, livro de Freyre (cf. Burke, 2005, pp. 239 e 416).
Posteriormente, José Lins do Rego tinha no amigo uma fonte de exaltação
de sua obra, como se percebe anos depois na opinião do sociólogo de que o
considera uma “espécie de William Falkner brasileiro” (Freyre, 1947, p. 293).
Essas relações, aliás, desdobraram-se para o campo das edições. Foi José
Lins do Rego que apresentou Gilberto Freyre ao editor José Olympio, que
publicou Casa-grande e senzala em edição esmerada. O romancista apresen-
tou Graciliano Ramos e Raquel de Queirós ao editor, após estabelecer laços
de amizade com os dois escritores quando conviveu com eles em Maceió,
no início dos anos de 1930 (cf. Chaguri, 2007, cap. 2). A editora, fundada

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em 1934, será a avalista da nova geração dos modernistas que comporão


seu catálogo de lançamentos, como Jorge Amado, Manuel Bandeira, Carlos
Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e tantos outros (cf. Hallewell,
2005, pp. 415-482). José Lins do Rego foi figura central de atração dos
novos, tendo, após a transferência na condição de funcionário público para
o Rio de Janeiro, o papel de congregar o grupo, pois mantinha uma mesa
cativa na livraria para a qual afluíam os escritores e intelectuais da capital,
para a conversa de fim do dia. Dessa forma, o chamado romance regionalista
ganhou expressão pública com a aposta de José Olympio na nova geração,
acrescida da promoção de José Lins do Rego, o primeiro a virar autor da
instituição, por eles denominada de “casa”.
A presença das novas editoras foi decisiva na transformação do ambiente
cultural do Brasil na época. Foi com a fundação efetiva da Editora Globo,
que em 1928 passou a publicar regularmente, que o Sul e particularmente
Porto Alegre ganharam espaço e importância na esfera da produção de
livros e de promoção de novos autores. Érico Veríssimo será figura central
quando se tornou, em 1932, diretor da Revista Globo, a convite do filho do
proprietário, transformando-se em editor profissional. O jovem escritor,
filho de uma família decadente do interior gaúcho, reorientará a política
editorial da casa, que passará a traduzir os clássicos da literatura ocidental,
tornando-se uma instituição nacionalmente conhecida. Em texto escrito
no fim da vida, Veríssimo relembra as dificuldades de um empreendimento
desse porte na província e as opções de publicação: “os melhores escritores
nacionais preferiam ser lançados por editoras cariocas e seria impossível –
fútil! – querer ‘destronar’ o nosso amigo José Olympio, o editor que então
lançava escritores brasileiros novos, muitos dos quais já se haviam tornado
famosos em todo o Brasil” (E. Veríssimo, 2000, p. 307). Mas a editora
pôde contar com excelentes tradutores, em função do grande número de
imigrantes que afluíram para o Rio Grande do Sul e de intelectuais foragidos
do nazismo, como Herbert Caro (cf. Dimas, 2005-2006, pp. 282-289).
Com a Revolução de 1930, o Rio Grande do Sul ganha espaço político
e, consequentemente, os intelectuais gaúchos puderam galgar posições
na burocracia ilustrada do Estado (cf. Idem, pp. 389-414). O ambiente
cultural de Porto Alegre projetou-se com a presença dos conterrâneos na
capital, a exemplo do escritor modernista e crítico literário Augusto Meyer
(1902-1970), que foi indicado por Getúlio Vargas, em 1937, para organizar
o Instituto Nacional do Livro. Apesar da origem alemã, Meyer era já co-
nhecido como poeta e escritor regionalista, um membro das rodas letradas

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da Livraria Globo e amigo dos poetas modernistas Mário Quintana e Raul


Bopp; com a nomeação passa a frequentar as rodas letradas da capital,
sendo uma figura de proa a apoiar os conterrâneos no centro da cultura. A
partir da profissionalização da atividade editorial, introduzida pela Globo,
beneficiaram-se os escritores locais, herdeiros da tradição da literatura gau-
chesca, que teve sua expressão mais acabada com Contos gauchescos e lendas
do Sul, de Simões Lopes Neto, publicados em um único volume, em 1926
(cf. Martins, 1978, p. 380). Essa literatura distingue-se por recuperar a
linguagem dos pampas, de difícil acesso ao leitor pouco familiarizado com
os termos locais. A tradição gauchesca distingue-se da literatura correlata,
proveniente dos escritores nordestinos e mineiros, na qual a personagem é a
do sertanejo e a do jagunço, figuras moldadas em realidades muito diversas.
A tradição literária do Sul encontrou na obra de Érico Veríssimo sua mais
significativa expressão.
Até a publicação da trilogia O tempo e o vento, Érico Veríssimo é consi-
derado um “escritor popular no Brasil”, salienta em 1945 o jovem crítico
Antonio Candido, quando estreava na crítica literária. Discordando do
juízo corrente, o jovem crítico o considera “um verdadeiro romancista, um
homem que nasceu para isto”. Mas, logo em seguida, pondera:

[...] mora sossegado na sua província, e não foi para capital buscar emprego nem
consagração. O seu encanto vem muito deste aspecto provinciano, a que raramente
se resignam os intelectuais e que contribui certamente para a sua simplicidade, para
a naturalidade quase familiar das suas relações com os leitores. De certo foi este
afastamento dos grandes centros literários que lhe permitiu a atitude desassom-
brada de escritor para o povo, escritor acessível que exprime por princípio uma
certa ordem de ideias e sentimentos de que o povo, o seu povo, possa participar
(Candido, s/d, p. 75).

Interessante esse trecho na sequência de uma opinião positiva; o provin-


cianismo joga no sentido do elogio e da concomitante restrição. O crítico,
todavia, aponta para traços do escritor que serão fundamentais à narrativa
da saga do Rio Grande do Sul, do século XVIII, quando da conquista da
terra, até 1945, com a queda de Getúlio Vargas e o fim do Estado Novo.
A trilogia – composta por O continente, que se estende de fins do século
XVIII à revolução de 1893, publicado em 1949; O retrato de 1909 a 1915,
publicado em 1951; O arquipélago, até 1945, publicado em 1961 – recom-
põe a história da família que sela sua decadência no fim do livro. Escrito

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na primeira pessoa, os narradores são escritores irrealizados. Dessa forma,


a recuperação da memória tece a trama numa espécie de narrativa que
“assemelha-se à que Marcel Proust emprega no seu romance Em busca do
tempo perdido” (Zilberman, 2005-2006, p. 297).
O tempo e o vento é obra ímpar na literatura brasileira, pela reconstituição
da história regional ao longo de dois séculos, desenrolada exatamente na
única fronteira viva do Brasil, em uma zona que foi de indefinição entre
Portugal e Espanha, que viveu a experiência exclusivamente separatista do
Brasil, e cuja integração ao território brasileiro contou com a participação
ativa de seus habitantes. Publicada pela Editora Globo, a trilogia obteve
êxito correlato ao das obras mais consagradas da nossa literatura, nascida da
lavra de um escritor de província, mas que, além de profundo conhecedor
da literatura, era personalidade cosmopolita, como o atestam os anos que
morou nos Estados Unidos a convite do Departamento de Estado e como
professor da Universidade da Califórnia, e a representação do Brasil na OEA,
tendo residido em Washington por três anos e realizado inúmeras viagens.
Os escritores mineiros Lúcio Cardoso e Cyro dos Anjos são romancistas
considerados autores intimistas, embora tenham produzido obras de funda
identificação com sua região. Crônica da casa assassinada, a obra mais im-
portante de Lúcio Cardoso, publicada em 1959 pela Editora José Olympio,
narra a decadência da família Meneses, retratada no lento declínio da casa
ancestral. Seus habitantes recusam-se a refazer a vida em outras paragens
ou em outras circunstâncias, porque gesto dessa ordem negaria a origem
e a identidade da família. Irmanados até a desaparição final, esses seres
ainda vivos tornar-se-iam mortos-vivos, caso abandonassem a casa, pois a
pura permanência era como um esboço saliente e espectral na paisagem,
evocadoras das lembranças de outrora ressuscitando, na sua fantasmagoria,
a imaginação do esplendor e do poder primitivo da família. Crônica da casa
assassinada é uma obra já de ultrapassagem da chamada narrativa regional,
que havia marcado a estreia de Lúcio Cardoso com a publicação, em 1934,
de Maleita.
Lúcio Cardoso, escritor, dramaturgo, jornalista e poeta, transferiu-se
com a família para o Rio de Janeiro no início da juventude. Era o filho
temporão de um casal de fazendeiros em idade avançada, tendo sido, por
isso, criado pelo irmão, o jurista e político mineiro Adauto Lúcio Cardoso,
e pelas irmãs, todos bem mais velhos que ele. Sempre teve dificuldades de
adaptação à escola e recusava-se a exercer funções que o obrigassem à rotina
de trabalho. Dessa forma, mesmo a função de funcionário público, arran-

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jada pelo eminente irmão, lhe era enfadonha, criando constrangimentos à


família, acrescidos por suas escolhas pouco canônicas no âmbito dos afetos
(cf. Carelli, 1988). Pertencente à segunda geração dos modernistas mineiros,
juntamente com João Guimarães Rosa, com esse romance o escritor dissolve
a própria origem, que é também uma forma de dela se apropriar. Por essa
razão, sua obra mais forte já ultrapassa o tom dominante de sua geração.
Com a publicação de O amanuense Belmiro, livro de estreia do mineiro e
funcionário público Cyro dos Anjos, publicado em 1937 em Belo Horizonte
e sucessivamente republicado pela Editora José Olympio, atinge-se, com a
narrativa em primeira pessoa da vida de um intelectual bissexto e funcionário
público na capital mineira dos anos de 1930, a expressão mais acabada da
interiorização e da subjetividade da personagem que busca um sentido para
sua existência. Belmiro Braga tornado amanuense, depois da perda da fazenda
ancestral, vive uma procura sempre falhada para o significado do mundo.

O amanuense Belmiro é o livro de um burocrata lírico. Um homem sentimental e


tolhido, fortemente tolhido pelo excesso de vida interior, escreve seu diário e conta
as suas histórias. Para ele, escrever é, de fato, evadir-se da vida; é a única maneira de
suportar a volta às suas decepções, pois escrevendo-as, pensando-as, analisando-as,
o amanuense estabelece uma espécie de báscula entre a realidade e o sonho. “Quem
quiser fale mal da literatura. Quanto a mim, direi que devo a ela a minha salvação.
Venho da rua deprimido, escrevo dez linhas torno-me olímpico... Em verdade vos
digo: quem escreve neste caderno não é o homem fraco que há pouco entrou no
escritório. É um homem poderoso, que espia para dentro, sorri e diz: ‘Ora bolas’”
(Candido, s/d, p. 84).

Belmiro é esse homem que empreende “a busca solitária de um sentido


para a vida” (Lafetá, 2004, p. 25); é principalmente a representação alegórica
do intelectual e do escritor funcionário público. É a figura, nas palavras
de Antonio Candido, que “nos leva a pensar no destino do intelectual na
sociedade” (s/d, p. 89). O amanuense encarna, por fim, a condição do in-
telectual que encontra na cultura a possibilidade de redenção, de contornar
a impotência diante de um mundo adverso. A novela é, assim, a metáfora
da condição daquela geração que foi desterrada de sua origem por mudan-
ças sociais que ultrapassavam suas forças, engolfados pelo movimento da
realidade emergente. A cultura transformou-se em refúgio.
Os modernistas mineiros da geração de 1930 foram escritores de obras
que construíram retratos de sua região submetidos ao domínio das impres-

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sões subjetivas do narrador, ritmadas pelo tempo psicológico. Suas obras


revelavam a condição de herdeiros de uma construção cultural regional
extrovertida, que se concebia na expressão do conjunto. Os nordestinos
eram, diversamente, originários de outra elaboração cultural, firmada na
ideia do isolamento, uma gradação abaixo da autonomia presente na cultura
da região riograndense. Talvez por isso tenha saído da pena do mineiro João
Guimarães Rosa a construção do jagunço Riobaldo, um sertanejo cinzelado
por um sertão diluído na universalidade de sua existência.

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Resumo

Modernismo e regionalismo no Brasil: entre inovação e tradição

As interpretações do modernismo, no Brasil, têm privilegiado sobretudo as vanguardas


que emergiram nos dois primeiros decênios do século XX, surgidas nas duas cidades
mais importantes do Brasil: Rio de Janeiro e São Paulo. O presente artigo trata da
difusão do modernismo literário, ocorrida a partir da década de 1930, em três regiões

novembro 2011 23
Modernismo e regionalismo no Brasil: entre inovação e tradição, pp. 191-212

periféricas ao impulso inovador do país, mas que eram detentoras de culturas conso-
lidadas: Nordeste, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, e que produziram, nos anos
subsequentes, a nossa literatura mais vigorosa. Dessa forma, no prisma da literatura,
as novidades atingiram radicalidade nos contextos mais resistentes ao estilo moderno
de vida. A reflexão, além de indagar sobre esse movimento em direção aos estados an-
cilares à cultura moderna, propõe-se a analisar a diversidade dessa literatura, vis-à-vis
aos impasses dessas regiões no trânsito da modernização. Partindo desse problema de
fundo, busca-se relacionar o romance social nordestino, a literatura subjetivista mi-
neira e o romance histórico gaúcho com a particularidade e a diversidade das tensões
sociais e políticas vividas por essas elites regionais, em franco processo de declínio. O
tratamento privilegiado da literatura do mineiro Lúcio Cardoso permite iluminar os
conflitos que permeiam o conjunto, pois, embora fossem particulares, atingiram, na
obra cardosiana, sua expressão mais paroxística.
Palavras-chave: Modernismo; Regionalismo; Romance social e histórico; Literatura
subjetivista; Lúcio Cardoso.

Abstract

Modernism and regionalism in Brazil: between innovation and tradition

The interpretations of modernism in Brazil have tended to concentrate on the avant-


gardes that emerged in the first two decades of the 20th century in Brazil’s two most
important cities: Rio de Janeiro and São Paulo. This article examines the spread of
literary modernism from the 1930s onwards into three regions on the periphery of
the country’s innovative impulse, but which nonetheless possessed well-established
cultures – the Northeast, Minas Gerais and Rio Grande do Sul – and which produced
over the following years Brazil’s most flourishing literature. From a literary viewpoint,
therefore, the new ideas became radicalized precisely in the contexts most resistant to
modern lifestyles. As well as investigating this movement towards states on the side-lines
of modern culture, the text proposes to analyze the diversity of this literature vis-à-vis
the impasses faced by these regions during the modernization process. Setting out from
this underlying problem, it explores the connections between the Northeastern social
novels, the Minas Gerais subjectivist literature and the gaúcho (southern Brazilian)
historical novel with the particularity and diversity of the social and political tensions
Texto recebido em 9/2/2011 e experienced by these regional elites in clear decline. A special focus on the literature
aprovado em 15/8/2011.
of mineiro author Lúcio Cardoso helps shed light on the conflicts that permeated the
Maria Arminda do Nascimento
field as a whole, since, though always particular, in Cardoso’s work these tensions attain
Arruda é professora titular do
Departamento de Sociologia da their most virulent expression.
USP e pró-reitora de Cultura
Keywords: Modernism; Regionalism; Social and historical fiction; Subjectivist literature;
e Extensão Universitária/USP.
E-mail: <arr@usp.br>. Lúcio Cardoso.

24 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Estado e PCC em meio às tramas do
poder arbitrário nas prisões
Camila Caldeira Nunes Dias

Foucault (2000a, p. 13) aponta que o processo de autonomização da


execução da pena em relação ao aparelho judiciário está ligado à tentativa
de desoneração deste último da prerrogativa de infringir castigos. O juiz,
ao proferir a sentença condenatória à pena de prisão, delega o exercício
de punição a um setor autônomo em relação à justiça e, ao transferir a
execução da pena aos operadores do sistema penitenciário, faz com que as
ações punitivas se constituam como atos administrativos internos à insti-
tuição prisional. O segredo da execução da pena – invisível e inacessível ao
público – e a autonomia da instituição prisional no exercício do poder de
punir tornam possível a aplicação de castigos secretos e não codificados pela
legislação. A prisão possibilitou homogeneizar os castigos legais, de um lado,
e os mecanismos disciplinares, de outro; apaga o que há de exorbitante no
exercício da punição, aproximando o registro legal, da justiça, e o extralegal,
da disciplina, os quais estão interrelacionados.
A análise de Foucault apresenta os processos históricos por meio dos
quais a prisão se tornou instituição punitiva autônoma em relação à jus-
tiça, e a privação da liberdade constituiu-se em condição de sujeição dos
indivíduos às normas decorrentes dos regulamentos internos à instituição
prisional em cujo interior se acrescenta punições à pena de prisão. Dentro
desse quadro teórico e histórico mais amplo, é possível situar a análise das
instituições prisionais brasileiras, acrescentando, porém, outras questões e
Estado e PCC em meio às tramas do poder arbitrário nas prisões, pp. 213-233

problemas inerentes à nossa própria conformação social e política que, longe


de invalidar as proposições foucaultianas, as reforça, produzindo um nível
de deformação nas prisões que chega a ser dramático.
Num excelente estudo realizado nos anos de 1980, Fischer (1989)
aponta algumas características políticas e organizacionais que impedem
as instituições prisionais de verem seus objetivos oficiais minimamente
correspondidos nas suas práticas e nos resultados que apresentam. Um dos
problemas centrais diz respeito à autonomia das prisões, não apenas em
relação ao Judiciário – conforme apontado já por Foucault – mas também
em relação à própria administração prisional, órgão do Poder Executivo
encarregado de implantar as políticas penitenciárias. Inicialmente, a partir
da Coordenadoria dos Estabelecimentos Penitenciários do Estado (Coes-
pe), e após a extinção desta, com a criação da Secretaria de Administração
Penitenciária (SAP), o governo do estado de São Paulo buscou definir
políticas que, ainda que de forma esporádica, buscavam padronizar as
ações efetivadas nas unidades prisionais. No entanto, essas entidades não
lograram sucesso em tal intento e as prisões permaneceram sendo adminis-
tradas como “feudos”, isto é, “geridas como sistemas patrimonialistas, que
assentam suas bases em redes informais de relacionamento interpessoal ou
grupal” (Idem, p. 47). Conforme a autora, embora haja normas cujo obje-
tivo é padronizar as ações e as relações, as unidades prisionais mantêm-se
sempre numa estruturação transitória, na qual as relações informais preva-
lecem sobre as formais, nas quais o relacionamento interno se orienta mais
por formas de lealdade e compromisso do que por descrições objetivas de
funções e responsabilidades (Idem, p.153).
As instituições do sistema de justiça criminal permaneceram, em grande
medida, impenetráveis ao processo de redemocratização em curso no Brasil
1. Ver Teixeira (2006, p. 73) na década de 19801. As práticas arbitrárias – que vão desde os maus-tratos
sobre a importância da promul-
e tortura até a corrupção endêmica e sistemática no interior das unidades
gação da Lei de Execução Penal
(LEP) em 1984 e a inoperância prisionais – minam a credibilidade dessas instituições públicas e fortalecem
desta desde então.
grupos organizados criminosos que impõem um código de comportamento
cuja observância é rigidamente controlada e cuja transgressão é punida
severamente. Esses grupos organizados no interior das prisões – entre os
quais o Primeiro Comando da Capital (PCC) ocupa posição hegemônica
no sistema carcerário paulista – fortaleceram-se ao longo de décadas de
descaso, abandono e ausência de preocupação política com as condições
físicas e morais dos cárceres. Hoje, não podemos compreender adequada-
mente as micropenalidades existentes no interior da prisão sem considerar

2 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Camila Caldeira Nunes Dias

as complexas relações por meio das quais esses grupos e os agentes políticos
e institucionais negociam os limites do exercício do poder.
Nesse sentido, o RDD (Regime Disciplinar Diferenciado)2, criado pelo 2. O RDD é um regime de
cumprimento da pena de prisão
governo paulista imediatamente após a crise no sistema prisional gerada
muito mais rígido, no qual o
pela megarrebelião de 2001 – primeira ação de grande impacto público sentenciado permanece determi-
nado período de tempo. Entre as
protagonizada pelo PCC –, emerge como elemento central no campo das
restrições mais importantes, está
micropenalidades extrajurídicas constitutivas do sistema prisional, funcio- o banho de sol de apenas uma
nando como técnica disciplinar e, sobretudo, como dispositivo útil para hora diária e o confinamento
em cela individual da qual o
que a administração prisional possa empreender acordos e negociações, preso só sai com as mãos e os
num processo de circulação do poder, com estratégias de resistência de pés algemados.

ambos os lados.

Cooperação e negociação: definindo espaços de exercício do poder

Dois estudos clássicos da metade do século passado, de Sykes (1974) e


de Goffman (2001), mostram com muita clareza como a pena de prisão é
automaticamente acompanhada de uma série de outras privações, fazendo
com que essa condenação tenha um significado muito mais complexo do
que se deduz dos códigos jurídicos. Além disso, o condenado terá que lidar
com as contradições e as ambiguidades que estão na base da existência e do
funcionamento dessas instituições – no próprio objetivo destas de recuperar
e de punir –, cuja consequência imediata é a deformação de suas práticas.
Uma das características centrais da instituição prisional é o permanente
equilíbrio de poder resultado dos sempre precários acordos entre presos e
administração, necessários para o seu funcionamento. Como apontado por
Sykes (Idem), dada a impossibilidade de os guardas contarem com a colabora-
ção espontânea dos presos para seguirem o regulamento da prisão e pela difi-
culdade de impor a submissão destes pela simples violência, a ordem prisional
é mantida com base num sistema de ameaças e promessas. A necessidade de
delegação de tarefas para os sentenciados, a proximidade e a convivência diária
com os presos, a necessidade de obtenção de cooperação mínima para que seu
trabalho seja realizado, a desproporção numérica – todos esses fatores contri-
buem para que as relações informais estabelecidas entre funcionários e presos
sejam a pedra de toque da manutenção da ordem nas instituições prisionais.
Esses aspectos definem o cotidiano prisional e abrem as portas para uma série
de práticas que beiram a promiscuidade e a corrupção.
Os processos gerais apontados acima, no Brasil, culminaram com a
completa perda da capacidade de controle da massa carcerária pelo Estado,

novembro 2011 3
Estado e PCC em meio às tramas do poder arbitrário nas prisões, pp. 213-233

e abriu espaço para o desenvolvimento de um sistema de punições extrao-


ficial, constituído a partir das experiências e da convivência no espaço
físico da prisão, elaborado e colocado em prática por lideranças da massa
carcerária. Com a finalidade de ordenar e normatizar a vida cotidiana de
milhares de pessoas encerradas numa instituição fechada, minuciosas regras
foram superpostas às regulamentações institucionais, complementado-as
ou substituindo-as, impondo um rigor muito maior à disciplina carcerária.
No Brasil, dois estudos foram pioneiros na análise sociológica das rela-
ções informais que moldam o cotidiano prisional. O primeiro foi realizado
em São Paulo, na extinta Casa de Detenção, no final da década de 1970,
* A data entre colchetes refere-se por Ramalho ([1979]* 2002) e o segundo, que teve como objeto empírico
à edição original da obra. Ela é
o sistema prisional do Rio de Janeiro, foi realizado em meados da década
indicada na primeira vez que a
obra é citada. Nas demais, indica- de 1980 por Coelho ([1987] 2006). Essas duas análises têm em comum a
se somente a edição utilizada pelo
qualidade de apontar as contradições presentes na administração prisional
autor (N. E.).
que determinam o estabelecimento de relações informais com a população
carcerária, bem como as consequências de um poder público omisso, que
empurra aqueles que lá vivem para a ilegalidade.
Conforme aponta Coelho (Idem, p. 36) seguindo de perto a análise de
Sykes (1974), para manter a segurança, a disciplina e a tranquilidade das
prisões é imperativo que a massa carcerária colabore e submeta-se à custódia.
Essa colaboração só pode ser obtida a partir de negociações com lideranças
da população carcerária e, portanto, com a repartição do poder entre ad-
ministradores e presos e de um reconhecimento informal de estruturas de
poder arbitrárias que emergem no seio da população encarcerada, a partir
de múltiplas disputas de poder, em geral regadas a sangue. A distribuição do
poder de gerir a população prisional entre administração e presos se realiza
pela incompetência e incapacidade do poder público em se constituir como
instância gestora e mediadora na prisão, o que mina sua legitimidade e sua
autoridade tornando impossível qualquer política de transformação – no
sentido da adequação do seu comportamento às leis e sociais – da população
que está sob sua custódia.
Lideranças, pactuadas com a direção das unidades prisionais, elaboram
um código de conduta que regula a vida dentro do cárcere nos seus mais
ínfimos detalhes, e exercem um controle minucioso sobre o comportamento
da população prisional. No espaço deixado vazio pelas leis, a disciplina esta-
belece uma infrapenalidade, qualificando comportamentos que, por ínfimos
que sejam, escapam ao sistema punitivo mais abrangente. Simultaneamente,
uma série de processos que vão desde humilhações sutis até a morte são

4 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Camila Caldeira Nunes Dias

utilizados como punição, de forma que “[...] levando ao extremo que tudo
possa servir para punir a mínima coisa; que cada indivíduo se encontre
preso numa universalidade punível-punidora” (Foucault, 2000a, p. 149).
Ainda que as análises de Ramalho e de Coelho permaneçam válidas
para explicar características estruturais das unidades prisionais, elas são
insuficientes para dar conta das muitas transformações que ocorreram nas
últimas décadas e que alteraram substancialmente as redes de poder infor-
mais existentes na prisão. Muito embora tais transformações, decorrentes
do surgimento, expansão e consolidação de organizações criminosas no in-
terior do sistema carcerário, tenham sido abordadas no trabalho de Coelho,
uma vez que esse fenômeno, que só apareceu em São Paulo na década de
1990, já estava presente no Rio de Janeiro desde o fim da década de 19703. 3. Para mais informações sobre
o surgimento das organizações
Analisaremos, a seguir, alguns aspectos da micropenalidade constituída no criminosas no Rio de Janeiro,
interior do espaço prisional, a partir de múltiplas relações que envolvem além de Coelho (2006), ver
também Amorim (2005) e Lima
grupos organizados de presos, massa carcerária e administração prisional,
(2001).
as quais ampliam e reforçam os aspectos extralegais e arbitrários inerentes
à pena de prisão.

A emergência do PCC como instância gestora da dinâmica prisional

Nas últimas duas décadas, importantes transformações ocorreram no


sistema carcerário de São Paulo, decorrentes, sobretudo, da expansão e da
consolidação de organizações de presos, com grande destaque para o PCC,
que controla a ampla maioria dos estabelecimentos prisionais paulistas4. En- 4. De acordo com informações
obtidas durante a pesquisa de
tre as mudanças desencadeadas a partir da expansão do PCC, a constituição
campo que embasa este texto,
de uma instância centralizada de elaboração das normas, da prerrogativa de assim como apontado por outros

julgar e de executar a punição, apresenta-se como o núcleo do processo de pesquisadores, como Marques
(2010) e Biondi (2010), estima-se
reconfiguração das relações sociais entre os presos, do qual emergiram outras que 90% das unidades prisionais
tantas alterações. paulistas estejam sob influência
ou controle do PCC.
No Brasil, a população carcerária sempre foi deixada à mercê de qualquer
regulamentação legal na imposição das normas de conduta, prevalecendo
o arbitrário como regra. Mesmo quando a administração prisional se fazia
presente, essa presença se dava a partir de intervenções onde a lei e mesmo
os regulamentos administrativos eram deliberadamente ignorados, preva-
lecendo cumplicidades e lealdades escusas e que de forma obscura pautam
as relações sociais nesse sistema. Dessa forma, castigos e privilégios eram
elementos negociáveis e dependentes das relações informais estabelecidas
entre guardas e presos.

novembro 2011 5
Estado e PCC em meio às tramas do poder arbitrário nas prisões, pp. 213-233

Nesse contexto, os presidiários que dispunham de maior prestígio, oriun-


do na maioria das vezes da demonstração de força e capacidade de exercício
da violência, dominavam os demais, subjugando física e moralmente os
presos mais fracos. Por se tratar de um domínio de cunho individual e se
basear na força física, essa relação era instável e precária, com constantes
alterações de poder. O resultado de um sistema social assentado nessas bases
é evidente: violência, mortes frequentes, falta de previsibilidade acerca da
própria vida e instabilidade. O outro lado dessa moeda era o arbítrio da
ação dos agentes do Estado que distribuíam castigos sem qualquer critério
ou regulamentação oficial.
Esses elementos, somados ao aumento vertiginoso da população carcerá-
ria paulista na década de 1990, a transformações administrativas e políticas,
econômicas e sociais, nacionais e internacionais, e à corrupção no sistema
penitenciário, formaram o caldo que deu origem ao PCC, que nasce e cresce
nas brechas deixadas pela omissão do poder público.
Em 2001, o PCC adquiriu visibilidade pública ao promover uma me-
garrebelião que atingiu 29 unidades prisionais paulistas, maior rebelião do
sistema prisional brasileiro até aquele momento. O grupo superou seus
próprios recordes em 2006 ao protagonizar uma crise sem precedentes, no
episódio que ficou conhecido como “ataques de maio de 2006”, no qual o
PCC promoveu uma enorme demonstração de força dentro e fora do siste-
ma carcerário, liderando rebeliões e motins em nada menos do que setenta
5. Não reconstituirei aqui a
unidades prisionais paulistas e promovendo centenas de ataques aos órgãos
história do nascimento do PCC. de segurança pública e da sociedade civil.
Abordarei apenas os aspectos que
julgar pertinentes para as ques-
Contudo, a despeito da tardia perda do anonimato – em termos de
tões discutidas no texto. Para mais visibilidade pública –, o PCC foi criado em 1993, por um grupo de oito
informações sobre a história da
presos, no Anexo da Casa de Custódia de Taubaté 5, presídio que era co-
facção, seu desenvolvimento e ati-
vidades, ver Jozino (2005), Souza nhecido por sua rigorosa disciplina e pelos abusos de poder, maus-tratos e
(2006), Caros Amigos (2006) e
toda sorte de violações de direitos que eram impostas aos presos que para
Souza (2007). Sobre o Anexo da
Casa de Custódia de Taubaté, ver lá eram transferidos6. A desativação dessa unidade prisional acabou por se
Teixeira (2006). constituir numa das principais bandeiras políticas da organização, reivin-
6. É sintomático que o ano de dicação que marcou os muitos motins e rebeliões que eclodiram a partir de
criação do PCC seja 1993: um
ano após o Massacre do Caran-
1994 – muitos dos quais com recordes em termos de duração e com alto
diru, que, longe de se constituir nível de violência – e que culminaram na já citada megarrebelião de 2001.
como um episódio isolado, repre-
senta o ponto mais alto de uma
A luta contra a opressão do Estado, o abuso e as violações de direitos
política de segurança não afinada impostas aos presos foram temas presentes no discurso político do PCC
com o respeito aos direitos huma-
nos, que estava em curso desde
desde sua criação, assim como a necessidade de união e solidariedade entre
1987. a população carcerária para enfrentar esse inimigo comum, representado

6 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Camila Caldeira Nunes Dias

na figura dos agentes prisionais e, principalmente, da polícia – neste último


caso, essa posição ficou clara apenas alguns anos depois, com a expansão do
PCC para fora do sistema prisional7. Nesse sentido, os primeiros integrantes 7. Com essa afirmação, não
podemos perder de vista as
do PCC se (auto)atribuíram a prerrogativa de aglutinação da massa carce- negociações rotineiras que os
rária em torno do “Partido”8 como única forma de fazer frente ao poder do integrantes do PCC fazem com
agentes do Estado, sobretudo,
Estado e, ancorado nesse discurso, rapidamente se propagou para outras
policiais, com a finalidade de
unidades prisionais. viabilizar sua atividade delitiva.

Concomitante a esse discurso de cunho político, desde o início o PCC Sobre o papel da polícia no
fornecimento de mercadorias
passou a se engajar em atividades econômicas ilícitas. Inicialmente, a par- políticas para os atores envolvidos
ticipação de seus membros concentrava-se em sequestros e nos assaltos a nas redes de comércio ilegal, ver
Misse (1997, 2007).
bancos e carros-fortes. Gradualmente, a organização passou a concentrar-se
8. “Partido”, “Comando” e
no tráfico de drogas, controlando esse comércio, primeiro dentro do sistema “Família” são outras formas de
prisional e, em seguida, alcançando posição proeminente na distribuição para se referir ao PCC.

o varejo, não apenas no Estado de São Paulo, mas em várias outras unidades
da federação. Atualmente, sabe-se que o tráfico de entorpecentes continua
sendo o carro-chefe da organização, que ainda mantém participação direta ou
indireta em roubos de grande porte (bancos, cargas, carros-forte, joalherias).
Embora ainda não haja pesquisa que dê conta desse processo de expan- 9. A análise mais detida desse

são, a análise dos eventos de rupturas da ordem – rebeliões e motins – que processo foi realizada na tese de
doutorado que está na origem
tiveram um aumento exponencial no período 1994-2001 sugere que esta foi desta pesquisa. Para mais infor-
a forma preponderante pela qual os primeiros membros do PCC lograram mações, ver Dias (2011).

disseminar suas ideias, obtendo adesões ao Partido. As rebeliões tinham, 10. O Estatuto do PCC foi
elaborado por um de seus
nesse período, duas funções: a de ser um impulso para a transferência das fundadores, Mizael, e contém
lideranças para outras unidades prisionais – que era uma das reivindicações 16 itens com regras e punições
aos seus infratores. Atualmente,
que estava sempre na pauta – e a de conquistar territórios, eliminando os embora o Estatuto ainda seja
presos ou grupos menores que se opunham ao domínio cada vez maior que válido, muitas regras foram
alteradas ou acrescidas e, assim,
o PCC conquistava9. O fato é que, em 2001, o PCC já tinha uma estrutura
foi elaborada uma “Cartilha”
suficiente para ser o protagonista de uma grave crise no sistema prisional na qual constam as orientações
políticas condizentes com a atual
paulista.
fase do grupo. Sobre a Cartilha,
O ingresso na facção, desde o início, se dá através do batismo, um pe- ver Biondi (2010).

queno ritual onde o ingressante faz a leitura do “Estatuto do PCC”10 e jura 11. Já ouvi relatos variados
fidelidade ao Partido11. Após ser batizado, o novo ingressante é chamado de acerca das formas assumidas
pelo ritual de batismo (execução
“irmão”, denominação que reforça os ideais de solidariedade e pertencimento de uma missão, picada no dedo,
e, ao mesmo tempo, diferencia aqueles que integram e os que não integram o ingestão de sangue de animais
mortos), que sofreu mudanças ao
referido grupo, marcando as posições dos indivíduos nesse sistema de poder. longo do tempo e variações que
Todo ingressante deve, necessariamente, ser apresentado por um membro dependiam de quem executava
o rito. A leitura do Estatuto do
mais antigo, que será o seu “padrinho”. O padrinho é corresponsável pelo PCC, contudo, foi um ponto em
comportamento do afilhado, o que conduz a uma seleção estrita dos novos comum em todos os relatos.

novembro 2011 7
Estado e PCC em meio às tramas do poder arbitrário nas prisões, pp. 213-233

integrantes, que devem ser portadores de um perfil determinado, em cor-


respondência com o conjunto de normas de comportamento e de valores
12. Sobre a disciplina do Co- denominado genericamente de “disciplina do Comando”12. Das caracte-
mando, ver Marques (2010).
rísticas pessoais requeridas dos “irmãos”, a capacidade de planejamento e
de persuasão está entre as mais importantes atualmente – o que é essencial
para compreender a forma de atuação do PCC.
Inicialmente, o PCC adotou uma estrutura hierárquica de tipo piramidal,
tendo dois de seus fundadores – Cesinha e Geleião – no topo da pirâmide,
seguidos de uma estrutura de poder em que os níveis mais baixos respon-
diam diretamente ao nível superior. Uma nova configuração organizacio-
13. “Piloto” designava a lide- nal parece ter ocorrido após a ascensão de Marcola, no ano de 2003. No
rança em nível local, o respon- lugar do modelo piramidal, construiu-se uma organização de tipo celular,
sável por uma unidade prisional.
na qual, apesar de haver hierarquia, com uma cúpula ao centro, há vários
14. Todo esse discurso, cujos
aspectos gerais apresentamos
níveis intermediários, que dividem o poder de acordo com a região em que
aqui, pode ser também percebi- se encontram e prestam contas apenas à cúpula. Além disso, as antigas de-
do no depoimento de Marcola
para a CPI do Tráfico de Armas,
nominações, como “piloto”13, são evitadas, em consonância com um novo
realizado em 2006, em Presidente discurso de democratização que nega a existência de lideranças, ressaltando
Bernardes.
o caráter coletivo das decisões tomadas14.
15. Os disciplinas, ocupando a
Essa reconfiguração do poder deu origem a novas e mais variadas funções
função de “faxina” ou “boieiro”
ou atuando diretamente com no interior da organização, o que está ligado também ao crescimento do
estes, formam a “equipe” que PCC dentro e fora das unidades prisionais e à diversificação de suas áreas de
regula e administra cada unida-
de prisional. Formalmente, os atuação. Dentro das unidades prisionais – para tratarmos apenas de um dos
faxinas são os responsáveis pela lócus de atuação do PCC –, surge a posição do “disciplina”15, responsável
limpeza no interior da cadeia
e os boieiros pela entrega da
pela manutenção da ordem e do controle em determinados setores da prisão
boia (alimentação) aos presos. (pavilhão, oficina, cozinha, práticas esportivas), mediante a resolução de
Além dessas funções formais,
esses presos desempenham
conflitos e a aplicação de punições para os infratores das normas de conduta.
importantes papéis na rede de As medidas punitivas passam a ser definidas nos “debates”, que envolvem
poder estabelecida na prisão, na
membros do PCC presos na unidade e, a depender da gravidade do caso,
medida em que ocupam uma
posição privilegiada que lhes contam também com a participação de presos de outras localidades. Em nível
permite maior liberdade de cir-
local – no caso de questões mais simples –, esse debate envolve os disciplinas
culação e mais tempo livre, fora
das celas. Por se tratar de postos e os faxinas e, nas questões mais complexas, envolvendo desvio de dinheiro,
estratégicos, o PCC designa os por exemplo, o debate engloba os níveis superiores da organização16. Em
nomes para ocupá-los.
termos das punições, há um gradiente que vai desde uma simples advertência
16. Vários textos discutem a
realização de debates do PCC em
verbal ao infrator até a sua execução, passando pela exclusão (no caso de
litígios ocorridos fora da cadeia. integrantes da organização) ou agressão física.
Ver, por exemplo, Feltran (2009).
Tais mudanças correspondem a uma nova forma de atuação na qual o grau
17. Sobre as etapas do processo
de expansão do PCC, ver Dias
de visibilidade da violência exercida pelo PCC é muito menor do que fora
(2009c) e (2009d). na sua primeira década17. Durante a segunda metade da década de 1990 e os

8 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Camila Caldeira Nunes Dias

primeiros anos da década de 2000, pudemos assistir a um verdadeiro banho


de sangue nas prisões paulistas durante as rebeliões, com cenas grotescas de
cadáveres esfaqueados, mutilados, decapitados, cujas cabeças eram espetadas
em bambus ou eram chutadas nos pátios das cadeias como bolas de futebol.
De um lado, essa violência explícita era fruto do próprio contexto de demar-
cação de território e domínios do PCC, próprios a uma situação de luta pela
imposição de sua hegemonia no sistema prisional. Esse período de afirmação
da hegemonia do PCC, de transição de um modelo de exercício de poder
baseado em qualidades individuais para um modelo onde a organização de-
fine as regras e as punições, era marcado também pela incerteza e indefinição
acerca de quem era quem; não havia ainda inimigos claramente definidos e
visíveis; tratava-se, portanto, de um período de luta em que a violência expli-
citada refletia os diferenciais de poder em conflito.
De outro lado, essas cenas traduziam claramente o poder de impor o
terror que a facção fazia questão de explicitar. Era o período de expansão do
PCC no sistema prisional paulista, e para que esse domínio pudesse adquirir
a dimensão que se verifica hoje, era imperativa a demonstração cabal da sua
força e de seu poder, além da disposição de suas lideranças para atingir seus
objetivos. A expressão simbólica do poder de punir era também um recado
para os recalcitrantes em aceitar tal domínio. Expressão de poder e punição
exemplar para os traidores: tal era a mensagem contida nos espetáculos de
horror patrocinados pelo PCC.
A análise da forma de atuação do PCC que se verifica hoje, no entanto,
indica que a organização está numa nova fase. A perda da dimensão sim-
bólica da morte do inimigo é um dos aspectos da mudança que se verifica.
Observa-se que o PCC consolidou de fato seu domínio no interior do sis-
tema carcerário, sendo que as demonstrações públicas de poder se tornam
desnecessárias. A expressão mais acabada desse fenômeno é a proibição – pelo
PCC – do porte e do uso de objetos cortantes nas cadeias sob seu controle.
Os assassinatos, quando ocorrem, se dão por meio de enforcamento, ou,
principalmente, pela ingestão forçada de um coquetel de drogas (cocaína) e
remédios (Viagra) que causa uma parada cardíaca na vítima. Essa mudança
denota uma racionalização da punição, uma vez que, simulando suicídio ou
morte por overdose, elimina-se o problema histórico, no sistema prisional,
18. “Laranja” ou “lagarto” é
da autoria do crime que, via de regra, era assumido por “laranjas”18. o nome que se dá ao preso que
A hegemonia alcançada pelo PCC permitiu ir além da racionalização assume crimes ou faltas disci-
plinares cometidas por outros
da execução da punição: os casos em que esta resulta na morte do infrator presos, geralmente como forma
são raros e só ocorrem em situações específicas. Em vez disso, o Comando de pagamento de dívidas.

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Estado e PCC em meio às tramas do poder arbitrário nas prisões, pp. 213-233

utiliza primordialmente outras formas, como a suspensão ou a exclusão da


organização (em caso de irmãos) ou a desmoralização do infrator, através de
19. ”Cobrança” é uma forma procedimentos de “cobrança”19. A consequência imediata dessas práticas foi
de punição com grande impacto
psicológico para o transgressor,
a drástica redução do número de assassinatos dentro – e fora20 – do sistema
ainda que ele permaneça fisi- prisional, desde 200321 e, especialmente, após os ataques de 2006.
camente intacto. Esse procedi-
Ao poder não interessa expulsar os homens da vida social e “sim gerir
mento é também chamado de
“dar um psicológico”. Sobre esse a [sua] vida [...], controlá-los em suas ações para que seja possível e viável
assunto, ver Marques (2007).
utilizá-los ao máximo” (Foucault apud Machado, 2000b, p. xvi). Dessa
20. Para uma discussão acerca da forma, ao ter seu domínio consolidado, o PCC pode gerenciar e controlar
relação entre a atuação do PCC
e a redução dos homicídios no a vida da população carcerária com uma violência física muito menor. Não
estado de São Paulo, ver Feltran há mais inimigos externos ou internos a combater. Em termos da relação
(2010).
com os agentes estatais, também há uma acomodação – na qual o RDD
21. No ano de 2005, houve uma
ruptura da estabilidade da ordem
figura como elemento preponderante – que permite a manutenção dessa
social sob o signo do PCC, em ordem social pacificada.
que a violência explícita pode ser
novamente observada. Essa ins-
A redução da violência física nos territórios dominados pelo PCC – dentro
tabilidade permaneceu durante e fora das prisões – é um fenômeno social cujas condições sociais, as causas e
todo o ano, culminando com os
os efeitos ainda estão para ser avaliados. Independentemente dessa avaliação,
ataques de maio de 2006.
é inconteste que ele fornece as bases para um discurso de legitimação da or-
ganização que acaba por fortalecer ainda mais seu poderio junto àqueles que
são os alvos desse poder – presos e moradores da periferia de várias cidades – e
a consolidar o seu papel como instância mediadora e reguladora de conflitos
22. Sobre o papel que o PCC para aqueles que pouco ou nada confiam na justiça oficial22.
exerce em substituição à justiça A capacidade de ordenação social da qual é dotado o PCC também o
oficial, ver Dias (2009a).
coloca em posição privilegiada na interlocução com o Estado. Por intermédio
de suas lideranças, o PCC constitui-se em porta-voz da população carcerária,
centralizando suas demandas e promovendo acordos e negociações com a
administração prisional que ampliam ou limitam a extensão do seu poder de
gerir a vida na prisão. Nesse sentido, ele é também funcional para o Estado,
uma vez que mantém sob controle as insatisfações dos presos e impõe uma
rígida disciplina sobre o seu comportamento que acaba por facilitar o tra-
balho da administração prisional. Apenas nesse sentido, pois, para os agentes
estatais, a colaboração do PCC na manutenção da ordem social na prisão da
forma que ela ocorre hoje – com um controle estrito da violência física – está
diretamente vinculada a um contexto social e político peculiar, que fornece
as condições em que se dá esta pacificação e é dependente da manutenção da
sua hegemonia política (dentro e fora da prisão) e econômica – especialmente
na distribuição de maconha, cocaína e crack, não apenas, mas, sobretudo, no
estado de São Paulo.

10 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Camila Caldeira Nunes Dias

A gestão prisional compartilhada – entre administração estatal e o PCC – é


o ponto de chegada de um sistema em que a presença do Estado sempre se
deu de forma equivocada, deturpadora dos princípios que deveriam reger a
sua ação no que concerne aos objetivos da instituição prisional. Muito mais
do que a ausência, é a forma em que se dá a presença do Estado no interior
da prisão que nos permite compreender o papel do PCC na conformação de
uma ordem social – relativamente precária – baseada no controle estrito da
população carcerária.
A transformação da forma de atuação do PCC com a redução do uso
da força física nas relações entre os presos não significou o fim da domina-
ção e da violência como elementos estruturantes da vida social na prisão.
A invisibilidade da violência, decorrente da sua transmutação em pressão
psicológica, deixa implícita a possibilidade sempre aberta do desfecho fatal e,
assim, se constitui em elemento central no controle da população carcerária
que permanece presa, no sentido literal e simbólico, às múltiplas redes de
poder que se cruzam no espaço prisional. Muito menos do que indicar o fim
da opressão da população carcerária, libertada por uma organização de tipo
sindical, a situação atual expressa o poder hegemônico alcançado por uma
organização criminosa, a partir de uma precária acomodação com o poder
público e da construção de um discurso que, em conjunto com uma forma
peculiar de atuação, mascara o seu caráter não democrático e arbitrário.

A (não) aplicação no RDD no jogo de poder entre Estado e PCC

Após a megarrebelião de 2001, na qual o PCC expôs as fraquezas do


governo estadual na área da administração penitenciária, o Estado percebeu
a necessidade de implementar medidas de grande impacto para dar uma
resposta à desmoralização pública imposta pelo PCC. Até aquele momento,
muito embora a expansão da facção no sistema prisional já estivesse a pleno
vapor e o número de presos mortos em disputas internas fosse extremamente
alto, não houve qualquer preocupação do governo estadual em combater
o PCC; o governo sequer admitia a sua existência, insistindo em negar as
denúncias que constantemente eram feitas por setores da imprensa23. Foi 23. Ver, principalmente, Souza
(2007).
somente após a humilhação pública sofrida que o governo reagiu. O RDD
24. Uma discussão sobre os
foi o elemento central – na verdade, o único – dessa reação24. efeitos práticos e simbólicos do
Como afirmam Carvalho e Freire (2005, p. 13), o Poder Executivo, através RDD foi feita em Dias (2009b).

de portarias, ressignifica a ideia de disciplina contida na Lei de Execução Penal


ao instituir modelos anômalos de cumprimento da pena, como é o caso do

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Estado e PCC em meio às tramas do poder arbitrário nas prisões, pp. 213-233

RDD. Assim, foi através de uma medida administrativa – portanto, extraju-


rídica – que o RDD foi criado em São Paulo (Resolução SAP 26/2001). So-
mente em 2003, é que ele se insere na legislação nacional, pela Lei 10.792/03
25. Entre a Resolução SAP que altera a Lei de Execução Penal25. Ainda que incorporado tardiamente na
26/01 e a Lei 10.792/03 há
legislação brasileira, o RDD tem sofrido inúmeras críticas por parte de juristas
diferenças que não são relevantes
para as discussões travadas neste e de entidades de defesa dos direitos humanos em decorrência dos elementos
texto. Como a lei de 2003 re- claramente inconstitucionais que estão presentes não apenas na sua execução,
gulamentou o RDD, os pontos
a serem discutidos se limitarão mas, também, na ausência de precisão na designação das condutas e dos sujei-
a essa última versão da implan- tos passíveis de penalização, abrindo espaço para o arbítrio e a inserção desse
tação do regime.
dispositivo nos jogos de poder que estruturam o sistema prisional26.
26. Sobre a inconstituciona-
lidade do RDD, ver Busato
Como técnica disciplinar, o RDD trabalha o espaço segundo o princípio
(2004), Carvalho e Freire (2005) da localização imediata, dispondo cada indivíduo no seu lugar e em cada
e Gomes (2005).
lugar um indivíduo, de forma a evitar as pluralidades confusas, sua circu-
lação difusa e a estabelecer presenças e ausências, organizando um espaço
analítico por meio da disciplina (Foucault, 2000a, pp. 122-123). Dessa
forma, a disciplina hierarquiza e diferencia os indivíduos com base na sua
natureza e virtualidades. Contudo, contrariamente aos dispositivos discipli-
nares discutidos por Foucault, no RDD os processos de individualização e
exclusão não visam normalizar ou corrigir os indivíduos, mas, simplesmente,
segregá-los e incapacitá-los.
Além da função incapacitadora, os mecanismos disciplinares/punitivos
como o RDD devem ser entendidos a partir das novas concepções sobre o
papel do Estado disseminadas nas últimas décadas. Conforme afirma David
Garland (1999), ao mesmo tempo em que reconhece sua fragilidade e sua
fraqueza revendo os objetivos de suas instituições, tornando-os mais factí-
veis – no caso da prisão, não mais reabilitar, mas simplesmente manter o
criminoso imóvel – o Estado tenta esconder seu fracasso como garantidor
da segurança pública, empregando uma força punitiva excessiva. A resposta
punitiva tem o atrativo de transmitir a ilusão de que está se fazendo algo,
independentemente disso funcionar ou não.
A instituição do RDD, no Brasil, deve ser compreendida a partir desse
contexto social mais amplo, de mudança dos paradigmas que definem o
papel das instituições penais, mas também a partir de um ponto de vista
mais específico, como resposta às crises ocorridas no sistema carcerário
paulista que impuseram ao poder público enormes desafios em termos da
sua capacidade de comando e de controle das ações dos grupos atuantes no
interior das prisões. Nesse sentido, o RDD, criado com o objetivo de isolar
os líderes de facções criminosas e impedir sua comunicação, a fim de desar-

12 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Camila Caldeira Nunes Dias

ticular e enfraquecer esses grupos, nunca foi capaz de atingir minimamente


esse objetivo – o que ficou evidente em maio de 2006 e fica patente para
quem adentrar uma instituição prisional em São Paulo27. 27. O mecanismo que denomi-
namos aqui de “gestão comparti-
Em que pesem os elementos inconstitucionais que remetem a uma re-
lhada” das unidades prisionais é
configuração da gestão da ordem no mundo contemporâneo, marcada pela reconhecido pela administração
prisional. Além disso, as ações
derrogação de direitos, o Estado ao legalizar o RDD promoveu a institucio-
do PCC dentro da cadeia saltam
nalização de práticas punitivas arbitrárias, corriqueiras no sistema prisional aos olhos dos visitantes. Entre os
brasileiro. Assim, o uso de celas-fortes e solitárias deixaria as sombras da muitos exemplos que poderíamos
citar, estão as reuniões realizadas
ilegalidade e seria exposto ao escrutínio e controle do judiciário – uma vez pelos seus integrantes, à vista de
que a aplicação do RDD, bem como o tempo de permanência nele, de- todos – no pátio da unidade – e
sem a presença física dos funcio-
pende de decisão judicial –, retirando dos agentes prisionais a autonomia nários que não podem adentrar
absoluta na aplicação de punições que se superpõem à pena judicialmente esse local durante o banho de sol
dos presos. Eu mesma presenciei
decretada para o sujeito. Contudo, é na sua (não) aplicação prática que fica esse fato inúmeras vezes.
explícita sua absorção na dinâmica das relações informais estabelecidas entre
presos, facções e administração prisional, que retiram o seu o véu jurídico,
fazendo dele um poderoso elemento no jogo de poder que envolve os atores
desse universo social. Para melhor compreender essa questão, é importante
delinear rapidamente aspectos da cartografia prisional paulista, ressaltando
o lugar ocupado pelas unidades prisionais nas quais regimes diferenciados
são aplicados.
O estado de São Paulo possui um total de 148 unidades prisionais, entre
Centros de Detenção Provisória (destinados aos presos ainda não julgados),
de Ressocialização (destinados aos presos primários e condenados por crimes
não violentos), de Progressão Penitenciária (regime semiaberto), Institutos
Penais Agrícolas (regime semiaberto), Penitenciárias (regime fechado),
hospitais e, por fim, uma unidade de segurança máxima, o Centro de Rea-
daptação Penitenciária (CRP) de Presidente Bernardes28. 28. Todas estas informações se
encontram no site da Secretaria
De acordo com as informações oficiais, apenas nesta última vigora um
de Administração Penitenciária
regime disciplinar diferenciado para detentos do sexo masculino e, em <www.sap.sp.gov.br>.

Taubaté, o antigo Anexo da Casa de Custódia é hoje destinado ao RDD 29. Nas consultas regulares que

para as mulheres cumprindo pena de prisão29. Contudo, o conhecimento faço no site da SAP o número de
mulheres presas em cumprimen-
da dinâmica prisional no estado expõe algumas nuances na distribuição de to do RDD é sempre zero. Não
castigos e punições que as retiram do suposto controle externo previsto na tratarei aqui desse caso, detenho-
me na aplicação do RDD para
legislação e as recolocam no âmbito das práticas informais, ilegais e arbitrá- os presos do sexo masculino.
rias, predominantes e estruturantes desse universo social. Na impossibilidade 30. Expressão utilizada em
de exercer a “soberania administrativa”30 na inclusão dos presos no RDD, Teixeira (2006, p. 155), extraída
de um texto referido à prisão
a SAP optou por trocar a lei pela norma, transmutando processos jurídicos de Auburn, conforme nota da
em medidas de caráter administrativo. autora.

novembro 2011 13
Estado e PCC em meio às tramas do poder arbitrário nas prisões, pp. 213-233

Para tanto, foi criada uma unidade prisional de segurança máxima dife-
renciada, com um “regime disciplinar híbrido”, a Penitenciária de Presidente
Venceslau II. Utilizamos essa denominação porque essa unidade possui um
sistema de controle diferenciado das demais penitenciárias do estado, com a
imposição de uma disciplina mais rígida, maior aparato de segurança e com
a redução significativa de regalias e/ou de direitos dos presos – por exemplo,
três horas de banho de sol diário (nas demais unidades esse tempo é de 6
horas) e a ausência de atividades religiosas, educacionais e laborterápicas.
Por outro lado, o regime disciplinar nela vigente é mais brando do que o
previsto no RDD, no qual as celas são individuais (no regime híbrido, elas
são coletivas), o banho de sol diário é de apenas uma hora, não é permitido
aparelhos televisores ou rádios nas celas nem visitas íntimas (proibições
inexistentes no regime híbrido) e o contato com advogado é mais restrito.
A finalidade de desjuridicionalizar o sistema carcerário, ou seja, retirar
da esfera jurídica a decisão de punir, com a inclusão do preso num regime
mais rígido, fez com que a SAP abrandasse as próprias regras desse regime,
a fim de transmutar decisões judiciais em administrativas, retomando, dessa
forma, a soberania nas decisões. Tal como afirmam King e McDermott
(1990) em relação às transferências para unidades prisionais especiais no
sistema carcerário britânico, esses atos punitivos – uma vez que implicam
em redução de direitos/privilégios e inclusão em regimes disciplinares mais
rigorosos – são considerados administrativos e, por isso mesmo, sem a ne-
cessidade de escrutínio externo e de prestação de contas.
A unidade de Venceslau II tem como público-alvo os integrantes do
PCC considerados – pelos administradores prisionais – mais perigosos.
Tal periculosidade é avaliada a partir do exercício de funções importantes
no grupo – tesoureiro, por exemplo – ou à posição hierárquica ocupada
dentro da organização. Mas, ao mesmo tempo, a transferência para essa
unidade está ligada à percepção das autoridades locais do exercício de uma
liderança perniciosa dentro da unidade prisional. No entanto, assim como
afirma Liebling (2000), a discricionariedade e as relações entre presos e
funcionários são muito mais definidoras das punições e dos privilégios
aplicados à massa carcerária do que as regras propriamente ditas. Assim, a
classificação de periculosidade ou a identificação de uma “perniciosidade”
no exercício da liderança local está atrelada a uma complexa rede de poder
que envolve os diversos atores, o que aumenta a ineficácia do ato de trans-
ferência como dispositivo de dissuasão das atividades da facção criminosa
e reforça o poder discricionário do administrador local.

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Camila Caldeira Nunes Dias

Embora o objetivo e o público-alvo da unidade estejam subentendidos


para quem está inserido nas relações internas a esse sistema, não há quaisquer
regras, normas, regulamentos ou prescrições para definir as circunstâncias em
que essa transferência pode ser realizada. No sítio da SAP na Internet, onde
as unidades prisionais são listadas a partir da classificação em termos de seu
regime, não há qualquer menção ou identificação do hibridismo presente
na referida unidade, estando ela na listagem genérica das penitenciárias de
regime fechado.
Durante a pesquisa nos documentos de sindicância de uma penitenciária
paulista, onde realizei trabalho de campo, localizei uma carta, que teria sido
entregue em várias unidades prisionais simultaneamente, com o seguinte
texto, reproduzido aqui literalmente:

Vocês melhor do que ninguém sabem que o regime de Venceslau I e II e Avaré


é arbitrário e inconstitucional, que os presos e o sistema não aguentam mais
isso; não estão ameaçando mas sim querem saber que regime é este que não está
em lei nenhuma; não podem mais calar-se diante dessas arbitrariedades, então
pedem: 1. Transferência de todos que lá se encontram há mais de um ano, pois
o RDD que é legal só pode ficar um ano e que Venceslau II não tem definição
legal; 2. A lei dá banho de sol embora em Venceslau II só tenha 3 horas e em
Venceslau I não tenha nem isso, fica-se trancado o tempo todo; 3. Têm direito
e necessidade de escola, principio básico de reabilitação e de cumprimento da
pena; 4. Inadmissível que os presos sejam transferidos para Venceslau I para
cumprir castigo, sendo que as unidades comuns têm celas disciplinares e quando
chegam na referida unidade são espancados, humilhados, ficam mais de 30 dias
e têm envenenamento; 5. Em Avaré até os guichês são trancados; isso não pode
31. As citadas unidades de
continuar até as válvulas de descarga ficam do lado de fora da cela; isso é desu- Avaré I e Venceslau I são outras
excrescências que não serão tra-
mano. 6. Avaré e Venceslau II são unidades de regime comum, como o secretário
tadas neste texto. As duas peni-
costuma dizer, então porque a visita é restrita a 4 horas? Queremos horário de tenciárias, oficialmente de regime

visita mais dignos nessas unidades. 7. Pedimos implantação de trabalho e cursos comum, possuem algumas alas
destinadas ao cumprimento de
profissionalizantes o quanto antes. 8. Esclarecimento do regime dessas unidades, punição por falta grave, com ce-
quais os critérios para internação e qual o tempo para permanência máximo. las individuais para isolamento
durante 30 dias, nos quais o preso
Como pode ver não queremos garantias, só nossos direitos e necessidades bási- perde direitos como banho de sol
cas. Pedimos um retorno com solução verdadeira e prática até a data máxima de e visitas. Os quatro presos respon-
sabilizados pela carta reproduzida
15/02/2008. Sem mais no momento, população carcerária . 31
foram acusados de pertencimento
ao PCC, enquadrados na prática
de “subversão à ordem e à discipli-
A ausência de políticas públicas na área de segurança para o trato das na” e punidos por falta grave, com
facções criminosas reflete-se na inflação de medidas administrativas da SAP o isolamento de 30 dias.

novembro 2011 15
Estado e PCC em meio às tramas do poder arbitrário nas prisões, pp. 213-233

visando à limitação de sua atuação. Tal “política administrativa” de gestão e


disposição das pessoas, segundo critérios imprecisos de demarcação e separa-
ção, é utilizada para garantir a ordem social nas unidades prisionais – o que
significa, em última instância, a ausência de rebeliões, motins e fugas – e tem
pouco ou nenhum impacto na desarticulação desses grupos. Ao contrário,
a percepção do desrespeito à lei a partir do uso desses expedientes admi-
nistrativos como os que foram citados no texto e, assim, da destituição dos
presos da categoria de sujeito de direitos – como pode ser deduzido na carta
reproduzida – reforça o apoio da massa carcerária às facções criminosas, cujo
pilar de sustentação é justamente a luta contra o Estado pela garantia dos
direitos dos encarcerados.
Nesse sentido, a compreensão do apoio dado ao PCC pela população
carcerária deve passar pela consideração das ações da administração prisional
que transitam entre o arbitrário, o informal e o ilegal e que acabam por
minar a credibilidade do Estado no exercício de seu papel na custódia desta
população, como garantidor de seus direitos.

Apontamentos finais

O fortalecimento do poder do PCC de um lado, e, de outro, a resposta


do Estado com o recrudescimento da ação punitiva de cunho administrativo
têm gerado um círculo vicioso que amplia o escopo da prisão como lócus
onde a norma toma o lugar da lei e onde o controle informal substitui o
direito. No Brasil, a lei nunca conseguiu adentrar de fato, os muros dos esta-
belecimentos prisionais. Como Teixeira (2006) afirma, a LEP de 1984 foi a
primeira tentativa de fazer com que a lei prevalecesse dentro dos cárceres, via
a regulamentação de práticas cotidianas desses estabelecimentos e a partir da
efetivação de um controle externo – do Judiciário – da execução da pena de
prisão. No entanto, a administração prisional demonstrou claramente que
não estava disposta a permitir tal “intromissão” da esfera jurídica num campo
que sempre foi gerido a partir de normas. Nesse sentido, por meio de medidas
de exceção – como a criação do Anexo da Casa de Custódia, do RDD e, por
fim, das unidades prisionais híbridas – perverteu-se explicitamente a LEP,
tornando-a não mais do que um dispositivo legal inoperante.
O controle da população carcerária exercido pelo PCC, de um lado,
e o manuseio político-administrativo do RDD pelo Estado, de outro,
configuram-se como dois pontos fulcrais na rede de poder tecida no inte-
rior da prisão a partir da ausência da lei como reguladora e mediadora das

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Camila Caldeira Nunes Dias

relações sociais. Tal como afirma Foucault (2000a, p. 153), os dispositivos


disciplinares não conduzem os mecanismos da justiça criminal até as tra-
mas da existência cotidiana. Se, aparentemente, as disciplinas se parecem
com um infradireito, prolongando até o nível infinitesimal das existências
singulares as formas gerais definidas pelo direito, elas se constituem, de
fato, como um contradireito, na medida em que têm o papel preciso de
introduzir assimetrias insuperáveis entre os indivíduos, classificando-os e
repartindo-os em torno de uma escala, hierarquizando-os uns em relação
aos outros e, dessa forma, desqualificando e invalidando o sujeito de direito
tal como este é qualificado pelo sistema jurídico.
Para além da dimensão social, cultural e política mais ampla, as práticas
aqui discutidas são portadoras de uma racionalidade que lhe dá sentido e
fundamenta a sua forma de ação e suas estratégias. O PCC ocupa, hoje, uma
posição privilegiada na rede de poder que atravessa o sistema prisional, que
lhe permite o “governo dos homens pelos homens” (Foucault, 2003, p. 385).
Como vimos anteriormente, um dos traços dessa racionalidade intrínseca à
dominação exercida pelo PCC é a redução dos aspectos simbólicos e mais
visíveis da violência imposta pela facção àqueles que a ela são submetidos
e a conformação de um discurso que procura descaracterizar a natureza
despótica desse poder e construir uma imagem de organização pautada por
formas democráticas e voluntárias de participação.
Contudo, ainda de acordo com Foucault (Idem, p. 319) “a violência
encontra sua ancoragem mais profunda e extrai sua permanência da forma
de racionalidade que utilizamos”. Assim, se ao PCC é dada a prerrogativa de
se abster de demonstrar sua força e seu poder dentro das prisões, é porque
o seu domínio está tão consolidado e tão consistente que se torna desne-
cessário e até contraproducente fazer da eliminação dos seus inimigos ou
adversários uma demonstração pública da sua força. A violência não precisa
mais ser publicizada conquanto ela esteja implícita no gerenciamento da
massa carcerária efetivado pelo PCC e é posta em prática mediante os múl-
tiplos e silenciosos processos de controle efetivados no cotidiano da prisão,
e não mais através de explosões de força bruta e desenfreada que tinham o
propósito de afirmação do poder.
A criação do RDD e sua posterior desjurisdicionalização com a criação
dos regimes híbridos constituem-se em instrumento estatal para garantir
que o domínio do PCC não extrapole certos limites e coloque em risco
a imagem de eficiência do governo. Nas lutas travadas entre o PCC e o
Estado em torno do poder, esses regimes aparecem como elementos-chave

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para negociar e estabelecer os sempre obscuros acordos informais com as


lideranças, nas quais a manutenção destes em presídios híbridos é condi-
cionada à sua colaboração para evitar que distúrbios mais contundentes
venham à tona. Com esses acordos, pactua-se no sistema carcerário uma
pax armada, construída a partir de frágeis fundamentos, cujas bases não
parecem ser o interesse coletivo, mas a prerrogativa, dada ao PCC, de manter
o gerenciamento e o controle da massa carcerária impondo sua disciplina
e, ao Estado, de manter sua soberania na aplicação da punição aos presos,
desvencilhando-se de eventuais controles externos sobre suas atividades.
A massa carcerária encontra-se envolta numa rede de poder, esmagada
entre a disputa do PCC com o Estado. De acordo com Foucault (2000b,
2003), não há poder sem resistência, mas a resistência da população carce-
rária só pode ser percebida se atentarmos para os sutis procedimentos de
remoção de presos com a criação de um número cada vez maior de unidades
prisionais destinadas a categorias específicas de condenados que são impe-
didos de viver nas penitenciárias sob o domínio do PCC: os criminosos
sexuais, os homossexuais, os viciados em drogas que não têm como pagar
suas dívidas, os que não querem participar da facção criminosa, os seus
ex-integrantes. Duplamente segregados e excluídos, esses presos tornam-se
verdadeiros párias, sem direitos perante o Estado e diante de uma justiça que
os condenou, mas é incapaz de lhes garantir existência jurídica e tampouco
sobrevivência física.

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20 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Camila Caldeira Nunes Dias

Resumo
Estado e PCC em meio às tramas do poder arbitrário nas prisões

O objetivo do texto é discutir a normatização do cotidiano prisional, em que práticas


punitivas ilegais conformam uma minuciosa penalidade extralegal que fundamenta as
relações sociais nas prisões. Nas últimas décadas, em São Paulo, esses estabelecimentos
assistem à expansão de uma organização de presos (o PCC) que se constitui como
instância reguladora de conflitos, cujo domínio está baseado num discurso de união
dos presos diante de um inimigo comum, o Estado. Em resposta, este último utiliza
mecanismos punitivos administrativos e extralegais que ferem princípios constitucionais
e reforçam o sentimento de injustiça, base sobre a qual o poder do PCC se assenta. As
práticas arbitrárias do Estado e do PCC são constitutivas de uma rede de poder que
enreda a todos aqueles que são submetidos à pena de prisão.
Palavras-chave: Prisão; PCC; Arbitrariedade; Poder.

Abstract

The State and the “PCC” weaving the web of arbitrary power in prisons

The purpose of this text is to discuss the regulation of daily life in prison, where illegal
punishments form a micro-level extralegal system of penalizations that founds social
relations in prisons. In the last few decades, these establishments in São Paulo state
have witnessed the expansion of an inmates organization (the ‘PCC’) which acts as an
instance of conflict management and whose control is based on a discourse of prisoners
uniting against a common enemy, the State. In response, the State uses administrative
and extralegal punitive mechanisms, which contravene constitutional principles and
reinforce the feeling of injustice that provides the base on which the PCC’s power
rests. The arbitrary practices of the State and the PCC constitute a power network that
ensnares everyone sentenced to imprisonment.
Keywords: Prisons; PCC; Arbitrariness; Power.

Texto recebido em 15/4/2009, e


aprovado em 15/8/2011.

Camila Caldeira Nunes Dias é


mestre e doutoranda em Socio-
logia pela USP. E-mail: <camila-
nun@usp.br>.

novembro 2011 21
Conflitos e parcerias em torno de projetos
socioambientais*
João Márcio Mendes Pereira

Crescendo e fazendo mais desde 1946, o Banco Mundial1 tornou-se uma * Artigo vinculado a projeto de
pesquisa financiado pelo CNPq
organização muito distinta daquela imaginada e acordada em Bretton e Faperj.
Woods dois anos antes. Quando começou tinha quatrocentos funcionários 1. O Banco Mundial integra o
e 42 Estados-membros; no ano de 2010, tinha por volta de 10 mil fun- chamado Grupo Banco Mun-
dial (GBM), constituído por
cionários e mais de 190 Estados-membros. Tendo efetuado 745,5 bilhões
sete organizações com diferentes
de dólares em empréstimos entre 1947 e 2010, a amplitude de suas áreas mandatos, gravitação política,
estruturas administrativas e ins-
de atuação também se diversificou junto com o aumento de sua carteira,
tâncias de decisão: Banco Inter-
passando a abarcar gradativamente, além das áreas originais de infraes- nacional para a Reconstrução e o
trutura e energia, política econômica, educação, saúde, habitação, meio Desenvolvimento (Bird), criado
junto com o Fundo Monetário
ambiente, administração pública e reconstrução nacional pós-conflito (cf. Internacional (FMI) na confe-
Banco Mundial, 2010). rência de Bretton Woods em
1944; Associação Internacional
A subida do banco à condição de organização multilateral relevante de Desenvolvimento (AID),
no pós-guerra foi escorada, do ponto de vista político e financeiro, pelos criada em 1960; Corporação Fi-
nanceira Internacional (CFI), de
Estados Unidos, que sempre foram o maior acionista, o membro mais in- 1956; Centro Internacional para
fluente e o único com poder de veto na instituição, forjando-a como parte Conciliação de Divergências em
Investimentos (CICDI), de 1966;
da sua rede de poder infraestrutural externo2. De fato, diferentemente do
Agência Multilateral de Garan-
Fundo Monetário Internacional, produto de uma disputa acirrada entre tias de Investimentos (AMGI),
de 1988; Instituto de Desenvol-
Grã-Bretanha e Estados Unidos, o Banco Mundial é, em larga medida, uma
vimento Econômico (IDE), de
criação estadunidense, e as relações com os Estados Unidos foram decisivas 1955, renomeado de Instituto
para defini-lo e para modelar sua direção, estrutura operacional, pautas de do Banco Mundial (IBM) em
2000; e Painel de Inspeção, cria-
empréstimo e práticas institucionais (cf. Gwin, 1997). do em 1993. O Banco Mundial
Conflitos e parcerias em torno de projetos socioambientais, pp. 235-263

é formado apenas pelo Bird e Por sua vez, desde 1944-1946, a definição da política norte-americana
pela AID, mas mantém estreita
articulação com o conjunto do para o banco foi objeto de disputa e barganha entre interesses empresariais,
GBM, à exceção, em parte, do financeiros, políticos, ideológicos e de segurança, diversos e às vezes opostos
Painel de Inspeção. O Bird conce-
de empréstimos a países de renda
quanto ao papel da cooperação multilateral e da assistência externa ao de-
média e de baixa renda solventes, senvolvimento capitalista (cf. Idem; Babb, 2009). Com o passar do tempo, a
captando recursos em mercados
de capital e emprestando a seus
disputa envolveu um número cada vez maior de atores políticos e econômi-
clientes em condições próximas cos. A partir do final dos anos de 1960, o ativismo crescente do Congresso
às do mercado financeiro inter-
nacional (hard loans). O lastro das
sobre a política externa dos Estados Unidos pouco a pouco alcançou o
operações denomina-se capital Banco Mundial, abrindo pontos de entrada durante a década seguinte para
geral e é aportado pelos Estados-
que interesses variados influenciassem as provisões norte-americanas para a
membros, em proporções desi-
guais, e só pode ser aumentado instituição. Até então, a política de Washington para o banco era definida
após negociações entre eles. Já a basicamente pelo jogo de poder entre o Tesouro e o Departamento de Estado.
AID efetua empréstimo de longo
prazo e com baixas taxas de juros Durante os anos de 1970, o ativismo do Congresso criou oportunidades
(soft loans) a países pobres com para que grupos políticos e organizações não governamentais (ONGs)
pouca ou nenhuma capacidade
de tomar emprestado nas con-
norte-americanas passassem a agir dentro do parlamento, com o objetivo
dições de mercado. A AID tem de pautar as ações do banco, sobretudo em matéria de direitos humanos.
três fontes de financiamento: con-
tribuições do Bird, pagamento
Nos anos de 1980 e 1990, o tema dos direitos humanos cedeu lugar ao do
com juros dos empréstimos que meio ambiente e impactos socioambientais provocados por projetos finan-
realiza e, a mais importante, con-
tribuições voluntárias negociadas
ciados pela entidade. Desde então, o Congresso tornou-se alvo de lobbies
entre países doadores a cada três e campanhas públicas voltadas a influenciar a política dos Estados Unidos
anos. Enquanto o Bird dá lucro
para o banco, transformando aquele parlamento no único cujos trâmites
e se baseia financeiramente no
mercado de capitais, a AID de- de fato têm peso sobre suas pautas e formas de atuação.
pende das contribuições volun- Historicamente, essa estranha espécie de banco explorou a sinergia entre
tárias de alguns Estados doadores
para sobreviver – a começar pelos dinheiro, ideias e prescrições políticas para ampliar a influência e institucio-
Estados Unidos. A fatia de cada nalizar as pautas em âmbito internacional. Isso porque o Banco Mundial
doador é negociada em rodadas
a cada três anos, chamadas de
age, ainda que de diferentes formas, como um ator político, intelectual e
reposições. O poder de voto no financeiro, e o faz devido à condição singular de emprestador, formulador
Banco Mundial – assim como no
FMI – é desigual e proporcional
e articulador de políticas, ator da sociedade civil e veiculador de ideias –
ao capital aportado por cada produzidas pelo mainstream anglo-saxônico e disseminadas ou produzidas
Estado-membro, quantia que é
negociada politicamente entre os
por ele, em sintonia com o mainstream –, sobre o que, como e para quem
Estados. Por um acordo informal fazer em matéria de desenvolvimento capitalista (cf. Pereira, 2010). É preci-
vigente desde 1944, o presidente
samente por meio dessa combinação singular de papéis que o banco opera.
do Banco Mundial é sempre um
cidadão norte-americano indica- O propósito deste artigo é analisar os embates em torno de projetos
do pelos Estados Unidos. socioambientais financiados pelo Banco Mundial ocorridos entre o início
2. O conceito de “poder infra- dos anos de 1980 e meados da década de 2000. Para isso, detém-se sobre
estrutural” do Estado designa o
poder que desenha os contextos as relações entre o banco, o Congresso e o Executivo norte-americanos e as
em que os agentes atuam e ONGs atuantes nos Estados Unidos. Argumenta-se que o banco respondeu
tomam decisões, bem como a
às pressões ambientalistas crescendo e ampliando suas atividades, mediante

2 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


João Márcio Mendes Pereira

um processo conflitivo e contínuo de estiramento institucional e mudança gama de possibilidades abertas


a eles. A discussão remete à obra
incremental que acomodou tais pressões no paradigma de desenvolvimento de Michel Mann (1984) e, num
propugnado pela instituição. Assim, o que nos anos de 1980 era conces- sentido próximo, à de Susan
Strange (1987, 1996). Referindo-
são arrancada do banco em matéria socioambiental, na década seguinte se à relação específica dos Estados
se transformou em componente da agenda produtivista e mercantil da Unidos com o Banco Mundial, o
termo aqui empregado é tomado
instituição com respeito aos recursos naturais. Por outro lado, o padrão de de Robert Wade (1996).
confrontamento que marcou as relações entre o banco e as ONGs nesses
anos cedeu lugar, nas décadas seguintes, a parcerias institucionais em torno
de projetos e programas, na esteira da liberalização econômica dos Estados
clientes nacionais.

Pressões cruzadas e embates socioambientais em meados dos anos de 1980

No imediato pós-guerra, desenvolvimento econômico era convencional-


mente tomado como sinônimo de aumento do Produto Interno Bruto e de
sinais visíveis de progresso, como grandes barragens, estradas e, sobretudo,
indústrias. Porém, no final dos anos de 1960, tanto na Europa como nos
Estados Unidos, os meios e os fins do desenvolvimento passaram a ser ques-
tionados em diferentes graus e formas por dentro e por fora do mainstream
econômico. Parte desse questionamento convergiu para a realização de uma
conferência internacional em 1972, que levou à criação do Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente. Especialistas do Banco Mundial
tiveram papel de destaque na organização dessa conferência, durante a qual
Robert McNamara, então presidente do banco, afirmou publicamente a
necessidade de se conciliar crescimento econômico e respeito ao meio am-
biente. Todavia, logo depois, e ao longo de toda a década de 1970, a gestão
McNamara deixou de lado o assunto. Por quê? Segundo Wade (1997, pp.
623-626), a resposta deve considerar fatores de ordem interna – como o
ceticismo do staff em relação à ideia de limites ao crescimento econômico e
o imperativo burocrático de busca de novos projetos financiáveis no menor
tempo possível – e fatores de ordem externa, como o pouco interesse no
tema por parte dos governos dos países do Terceiro Mundo, os problemas
imediatos da economia internacional decorrentes do choque do petróleo
em 1973 e a baixa pressão dos acionistas mais poderosos, a começar pelos
Estados Unidos, para internalizar as questões ambientais na sua relação
com o banco.
Foi somente na década seguinte que os Estados Unidos empurraram a
temática ambiental para o topo da agenda relativa ao banco. Essa mudança

novembro 2011 3
Conflitos e parcerias em torno de projetos socioambientais, pp. 235-263

pode ser largamente atribuída à pressão social e política canalizada por


meio de ONGs (cf. Babb, 2009, p. 187). No início dos anos de 1980, a
inobservância prática de qualquer critério ambiental nas operações do Banco
Mundial começou a ser fortemente criticada por ONGs ambientalistas esta-
belecidas em Washington e internacionais. Em meados da década, a questão
ambiental já era considerada dentro do banco o problema mais grave de
“relações públicas” da instituição (cf. Wade, 1997, p. 672).
Um evento galvanizador foi o Polonoroeste. O projeto previa a pavimen-
tação de 1500 quilômetros de rodovia, ligando o sul ao norte do Brasil, a
construção de estradas na fronteira amazônica da rodovia, a reabilitação de
assentamentos agrícolas existentes e a criação de novos assentamentos, pela
via da colonização, fornecimento de saúde básica à população e criação de
reservas ecológicas e indígenas. A área afetada era equivalente à da Califór-
nia. O banco era a única fonte não brasileira de financiamento (cf. Idem,
p. 637). Mais de 10 mil indígenas viviam na área, organizados em mais de
quarenta grupos ou nações (cf. Rich, 1994, p. 27). Na visão do banco, o
projeto serviria como modelo de planejamento regional a ser reproduzido
pelo mundo afora e propiciaria à instituição “conquistar” a Amazônia,
descrita pelos economistas do banco como a “última fronteira agrária do
mundo”. Anunciado como a “maior reforma agrária” da história do Brasil, o
projeto prometia modernizar a economia da região Norte, reduzir a pobreza
no campo e preservar o meio ambiente e os modos de vida das populações
indígenas (cf. Barros, 2005, p. 98). Entre 1981-1983, o banco aprovou cinco
empréstimos para o projeto, no total de 457 milhões de dólares.
A construção da BR-364 foi rápida, enquanto todos os demais compo-
nentes ficaram para trás, atraindo um fluxo de migrantes – mais de 500
3. Segundo Wade (1997, pp. mil pessoas – sem a infraestrutura necessária para absorvê-los. A população
657-658), três ONGs ambien-
atingida subiu dos estimados 620 mil em 1982 para 1,6 milhão em 1988.
talistas conduziram a campanha:
o Natural Resources Defense Os assentamentos de colonização padeciam da falta ou precariedade de
Council, o Environmental Policy infraestrutura básica, crédito agrícola e apoio técnico. Milhares de pessoas
Institute e a National Wildlife Fe-
deration. As duas primeiras eram contraíram malária e muitas morreram, por conta da ausência de serviços
pequenas organizações criadas de saúde previstos no projeto. Ao mesmo tempo, a construção da rodovia
em resposta à primeira onda de
preocupação pública com o meio
e das demais estradas favoreceu a expansão de madeireiros, garimpeiros e
ambiente no final dos anos de pecuaristas na região. O desmatamento florestal avançou e os índices de
1960 e início da década seguinte.
A terceira, em contraste, tinha 4
violência subiram (cf. Rich, 1994, pp. 26-29; Wade, 1997, pp. 646-653).
milhões de membros distribuídos Entre 1983-1987, a campanha das ONGs denunciou o Polonoroeste
pelos Estados Unidos, diversas
publicações e vasta máquina de
como o caso mais extremo de devastação social e ambiental patrocinado pelo
comunicação. Banco Mundial3. A gerência da entidade ignorou a campanha por dois anos

4 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


João Márcio Mendes Pereira

(1984-1985), tratando-a como uma “irritação passageira”, mas ela cresceu4. 4. De todo modo, o banco não
tinha um fórum de consulta
Inúmeros artigos foram publicados em revistas de prestígio internacional com ONGs. À parte as relações
e em grandes jornais norte-americanos. Documentários de televisão foram de longa data com as fundações
Ford e Rockefeller, o banco
transmitidos nos Estados Unidos e em outros países, com a participação de mantinha um Comitê de ONGs
ambientalistas brasileiros e norte-americanos. Ocorreram naquele período desde 1982, que incluía, em sua
maior parte, ONGs do Norte
mais de vinte audiências sobre os impactos sociais e ambientais dos projetos envolvidas com o “combate à
financiados pelos bancos multilaterais de desenvolvimento em seis subco- pobreza”, como Care, Red Cross
e World Council of Churches,
missões do Congresso estadunidense, com grande destaque para o histórico e ONGs não ambientalistas.
do Banco Mundial. Ao concentrarem o ataque em alguns poucos projetos Segundo Wade (1997, p. 657),
era um “comitê de fachada” (win-
de grande impacto, as ONGs também pressionavam os Estados-membros
dow dressing), sem importância
com maior poder de voto, a começar pelos Estados Unidos, a fim de forçar o prática, até o final dos anos de

banco a reformar seus procedimentos e a estabelecer políticas de salvaguarda 1980.

ambiental (cf. Idem, p. 653; Gwin, 1997, p. 239).


A campanha das ONGs crescia devido aos acertos táticos dos seus orga-
nizadores, mas não apenas por essa razão. Com efeito, o “meio ambiente”
despontava como objeto de preocupação crescente nos âmbitos científico
e político. Como parte daquela onda mais geral, em meados dos anos de
1980 a Organização das Nações Unidas (ONU) constituiu a Comissão
Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento, encarregada de investi-
gar os efeitos do desenvolvimento econômico sobre o meio ambiente. A
Comissão Bruntland – como ficou conhecida – promoveu uma série de
audiências pelo mundo em 1986-1987, que atraíram grande atenção e
contribuíram para legitimar a ideia de que valores ambientais deviam ser
internalizados nas políticas de desenvolvimento. Aos poucos, o paradigma
da “proteção ambiental” dava lugar ao da “administração ambiental”. As-
sim, em vez de se internalizar a posteriori o critério ambiental na atividade
econômica, com o propósito de reduzir danos tidos como inevitáveis,
dever-se-ia internalizá-lo a priori, com o objetivo de eliminar ou reduzir a
própria necessidade de promover danos. O relatório final, publicado em
1987, elevou o status da questão e introduziu o termo “desenvolvimento
sustentável” no vocabulário internacional, ajudando a popularizá-lo (cf.
Wade, 1997, pp. 654-656; Stern e Ferreira, 1997, p. 565).
Além disso, em 1985 as ONGs apelaram ao senador republicano Robert
Kasten, crítico da ajuda externa ao desenvolvimento e então presidente
da Subcomissão de Operações Externas do Senado. Usando o caso para
se opor às contribuições norte-americanas à AID, o senador pressionou o
presidente do banco e o secretário do Tesouro por mudanças na instituição,
ameaçando não autorizar as dotações do país. O resultado foi imediato. Em

novembro 2011 5
Conflitos e parcerias em torno de projetos socioambientais, pp. 235-263

maio do mesmo ano, pela primeira vez um presidente do banco reuniu-se


com ambientalistas num encontro patrocinado por Kasten (cf. Rich, 1994,
pp. 123-125).
As ONGs estavam aprendendo como influenciar a política norte-
americana para o Banco Mundial e outros bancos multilaterais de desen-
volvimento (BMDs). Nesse percurso, descobriram que os republicanos não
necessariamente eram inimigos. Descobriram também que as subcomissões
de operações externas eram um ponto-chave de pressão, pois podiam cortar
o financiamento dos Estados Unidos à AID se as demandas não fossem
atendidas. Em 1986, tais subcomissões receberam o testemunho do Sierra
Club junto com uma coalizão de organizações nacionais: Natural Resources
Defense Council, Environmental Defense Fund, Friends of the Earth e Izaak
Walton League (cf. Babb, 2009, p. 188).
Além da campanha das ONGs, a partir de 1986 o próprio Tesouro norte-
americano começou a pressionar o banco por mudanças ambientais. A fim
de levar adiante a estratégia de gestão da crise da dívida externa dos países
latino-americanos definida pelo Plano Baker e, assim, manter o pagamento
aos bancos privados norte-americanos, era preciso ampliar os empréstimos
para ajustamento estrutural do Banco Mundial. Àquela altura, estava claro
que o Bird necessitava de um aumento geral do seu capital para dar conta da
missão atribuída pelo Tesouro. Tal aumento, porém, dependia da aprovação
do Congresso, cujas subcomissões – sobretudo no Senado, controlado pelos
republicanos – vinham recomendando cortes na provisão de recursos para
o Banco Mundial e outros bancos multilaterais de desenvolvimento. Essa
situação obrigou o Tesouro a endossar as propostas ambientalistas, para que
o Congresso não tivesse argumentos para reter um aumento geral do capital
do Bird (cf. Wade, 1997, pp. 667-668; Babb, 2009, p. 189).
Durante o biênio 1986-1987, a campanha ampliou-se e intensificou-se
com o envolvimento de mais ONGs (algumas delas politicamente mais
radicalizadas) e a articulação de redes transnacionais entre ONGs do Nor-
te e do Sul. Em 1987, o Congresso estava programado para aprovar um
aumento da contribuição dos Estados Unidos para o capital do Bird e para
a 8ª Reposição da AID. Para neutralizar a campanha das ONGs, a presi-
dência do banco emitiu sinais de mudança promovendo um conjunto de
medidas administrativas em 1987 (cf. Wade, 1997, p. 673). Também como
medida tática, o staff do banco começou a aceitar as ONGs ambientalistas
como interlocutoras legítimas. Até então, elas tendiam a ser vistas como
um celeiro de amadores e ativistas (cf. Kapur et al., 1997, p. 375). Como

6 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


João Márcio Mendes Pereira

parte da difícil negociação do aumento do capital geral do Bird, o Banco


Mundial concordou em priorizar a “proteção ambiental” em todos os seus
níveis de atuação, integrá-la nas estratégias de assistência aos países e apoiar
programas de administração de recursos naturais (cf. Babb, 2009, p. 190).
O governo empenhou-se de todas as formas para ganhar o apoio do
Congresso, a começar pelas suas próprias bases. Na apresentação do pedido
de autorização ao Congresso para a duplicação do capital geral em 1988,
o governo enfatizou que o banco, ao participar da gestão da crise da dívida
externa definida pelo Plano Baker, havia aumentado seus desembolsos em
mais de 40% desde 1985 e precisava de capital adicional, e que o banco
estava agindo como um importante catalisador de reformas econômicas nos
países da periferia que eram do interesse estratégico dos Estados Unidos. A
aprovação do Congresso acabou se dando de maneira sólida e resultou, em
grande parte, do respaldo do Executivo à atuação do Banco Mundial (cf.
Gwin, 1997, pp. 238-239).
No mesmo ano, do outro lado do Atlântico, ocorreu a primeira mani-
festação em larga escala contra as organizações de Bretton Woods: mais de
50 mil pessoas foram às ruas de Berlim Ocidental para protestar durante a
reunião anual do Banco Mundial e do FMI (cf. Toussaint, 2006, p. 214).
Àquela altura, para algumas ONGs, o assassinato de Chico Mendes – um dos
líderes da campanha contra o Polonoroeste – no final de 1988 foi um sinal
de que a luta ambiental tinha de ser radicalizada (cf. Barros, 2005, p. 114).

Deterioração da imagem pública e “esverdeamento”

Na virada da década de 1980 para a seguinte, embalado pelo fim da


Guerra Fria, o banco concentrava sua atuação política, intelectual e financeira
no avanço da liberalização econômica internacional no Sul e no Leste. Em
poucos anos, desregular e privatizar passaram a integrar a gramática básica
de governo em um número crescente de países.
Enquanto isso, uma nova onda de ataques ao histórico ambiental do
Banco Mundial ganhou visibilidade internacional. Dessa vez, o epicentro era
o projeto Sardar Sarovar, o maior do gênero até então em curso no planeta.
Localizado no noroeste da Índia, no rio Narmada – um dos últimos recursos
“não explorados” para energia elétrica e irrigação, na visão do banco e do
governo indiano (cf. Wade, 1997, p. 687) –, o projeto previa a construção
de trinta represas grandes (incluindo a megarrepresa principal Sardar Sarovar,
com duzentos quilômetros de largura e 140 metros de altura), 135 médias

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e 3 mil pequenas, além de um canal de 460 quilômetros de extensão mais


75 mil quilômetros de canais auxiliares de irrigação. A obra provocaria a
inundação de mais de 350 mil hectares de bosques e 200 mil hectares de
terras de trabalho, submergindo em torno de 250 vilas. Desalojaria direta-
mente cerca de 240 mil pessoas e, indiretamente, afetaria pelo menos outro
1 milhão em quatro estados do país (cf. Rich, 1994, p. 250; Caufield, 1996,
pp. 8-13). O banco preparou o primeiro estágio do projeto em 1979-1983
e os empréstimos, no total de 450 milhões de dólares, foram aprovados
em março de 1985. Como assinalou Wade (1997, p. 707), o projeto tinha
erros técnicos sérios, como planejamento para reassentamento e avaliações
ambientais malfeitos, agravados pelo fato de que toda a preparação havia
sido efetuada sem qualquer consulta à população atingida.
A oposição local ao projeto começou a crescer em 1986 e, durante o
triênio 1989-1991, eclodiram protestos na Índia protagonizados pelo mo-
vimento Narmada Bachao Andolan (NBA). Uma campanha internacional
decolou em 1987. Em outubro de 1989, realizou-se uma audiência pública
no Congresso norte-americano sobre o projeto. Seu apelo foi tão significativo
que mais de uma dúzia de parlamentares escreveram ao banco instando-o a
reconsiderar o apoio ao projeto. Parlamentares japoneses, finlandeses e suecos
fizeram o mesmo (cf. Rich, 1994, p. 250). Pouco depois, uma campanha
de ONGs japonesas em parceria com o NBA pressionou o governo japo-
nês – num momento em que o Japão se tornara o segundo maior acionista
do banco – a retirar o compromisso de outorgar empréstimos bilaterais ao
projeto Sardar Sarovar (cf. Clark, 2005, p. 44).
No início dos anos de 1990, tornou-se politicamente insustentável para
a gerência do banco desconsiderar os impactos socioambientais decorrentes
de muitos dos projetos financiados pela entidade. O banco começou então
a pregar a “administração ambiental”, sinalizando que a matéria seria in-
corporada na elaboração de todas as suas políticas e em todas as fases dos
projetos. O discurso foi acompanhado por mudanças no staff e na organi-
zação administrativa. Ativistas de ONGs ambientalistas começaram a ser
contratados (cf. Kapur et al., 1997, p. 375). Por sua vez, a criação do Fundo
Global para o Meio Ambiente (Global Environmental Facility) ajudou a
consolidar a ideia de que o “esverdeamento” do banco lhe possibilitaria
administrar recursos consideráveis para projetos ambientais internacionais,
transformando a gestão ambiental num instrumento adicional para a ex-
pansão de sua influência. De 1989 até o final de 1990, o banco envolveu-se
na negociação de uma fase-piloto, aprovada para um período de três anos,

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João Márcio Mendes Pereira

com fundos de 1,3 bilhão de dólares prometidos pelos países participantes


(cf. Wade, 1997, pp. 709-710; Rich, 1994, pp. 175-181).
A proximidade da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente
e o Desenvolvimento (a ECO-92), marcada para junho de 1992, também
reforçou a necessidade do banco de reverter o desgaste de sua imagem e,
ao mesmo tempo, constituir-se como liderança intelectual em matéria de
meio ambiente.
O Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial daquele ano (cf. Ban-
co Mundial, 1992a) serviu a esse duplo propósito5. Publicado dias antes 5. O RDM é a publicação anual
mais importante do Banco Mun-
da ECO-92, tinha como objetivo central compatibilizar a consigna do
dial. É um documento político,
“desenvolvimento sustentável” com o programa político neoliberal. O no sentido de que sua mensagem
deve refletir as preferências po-
relatório afirmava que havia reciprocidade entre crescimento econômico
líticas e ideológicas sobre temas
e preservação ambiental, na medida em que somente com o crescimento e questões-chave, mas sob a

seria possível não apenas arcar com os custos da proteção ambiental, mas aparência da melhor pesquisa
técnica. Sua confecção consome
também diminuir a pressão social sobre a natureza, uma vez que a renda de 3,5 a 5 milhões de dólares.
dos mais pobres – obrigados, por sua condição, a exaurir ou depredar os Cada edição tem pelo menos
50 mil exemplares em inglês
recursos naturais – aumentaria. Argumentava também que a escassez de (alguns tiveram mais de 100 mil)
recursos naturais criaria uma demanda por pesquisas direcionadas a superar e mais 50 mil são traduzidos para
sete idiomas (chinês, alemão,
os obstáculos ao progresso econômico, levando as sociedades a substituir, francês, espanhol, japonês,
de maneira mais racional, recursos abundantes por escassos. A idealização russo e vietnamita). Trata-se da
publicação mais cara do gênero.
do poder da tecnologia que dava suporte a essa visão projetava um cenário
Para detalhes, ver Wade (2001a,
irreal em que todos ganhariam com o crescimento econômico e a redução 2002).

da pobreza, desde que os governos adotassem políticas liberalizantes, uma


vez que somente o livre mercado poderia fazer a atividade econômica crescer
com eficiência máxima no uso dos recursos. A exaltação de estratégias em
que todos supostamente ganham e a negação de trade-offs entre crescimento
e preservação do meio ambiente foram utilizadas para escamotear a profunda
injustiça ambiental que marca as sociedades contemporâneas, em particu-
lar na periferia, caracterizada pela concentração de poder na apropriação
dos recursos socioambientais e pela imposição da maior carga dos danos
ambientais a populações de baixa renda e grupos étnicos subalternizados6. 6. Para uma discussão sobre a
noção de “justiça ambiental”,
No entanto, a movimentação do banco até a ECO-92 enfrentou ver Acselrad et al. (2008).
sobressaltos inesperados. O primeiro deles foi a divulgação do célebre
“memorando tóxico” de Lawrence Summers (cf. Rich, 1994, pp. 246-249;
George e Sabelli, 1996, pp. 129-132). Então economista-chefe do banco,
Summers fez um comentário sobre uma das versões preliminares do RDM
1992, sob sua supervisão. Segundo ele, do ponto de vista “econômico”, era
“lógico” estimular a exportação de indústrias contaminadoras dos países

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mais industrializados para os mais pobres e com baixos salários, especial-


mente na África, uma vez que os mesmos estariam “subcontaminados”. O
memorando vazou e foi publicado na íntegra pela revista The Economist
no final de dezembro de 1991. Dois meses depois, o jornal Financial Ti-
mes voltou ao assunto, com uma matéria cujo título era “Salvem o planeta
Terra dos economistas”.
O segundo sobressalto foi a conclusão de uma avaliação independente – a
primeira da história do banco – sobre o projeto Sardar Sarovar, conhecida
7. No âmbito das ONGs, os como Relatório Morse7. O trabalho foi encomendado a duas personalidades
trabalhos de Rich (1994, pp.
com credenciais impecáveis: Bradford Morse, ex-senador norte-americano,
249-254), George e Sabelli
(1996, pp. 228-234), Caufield ex-secretário geral adjunto da ONU e diretor do PNUD, e Thomas Berger,
(1996, pp. 24-29) analisam os
eminente jurista canadense e ex-magistrado do Supremo Tribunal da Colum-
embates em torno do Relatório
Morse. Para uma leitura externa bia Britânica. A pesquisa consumiu nove meses de trabalho na Índia e em
ao campo das ONGs, ver Wade Washington e seus resultados ajudaram a desnudar parte da atuação do banco
(1997, pp. 689-707).
naquele país. De acordo com o relatório, a realidade do projeto era muito
pior do que diziam seus críticos mais severos. Foram detectados problemas
desde o planejamento até a execução. O comportamento dos funcionários
do banco foi qualificado como “negligente” e “intelectualmente corrupto”.
Afirmou-se que as diretrizes de impacto ambiental e reassentamento do
próprio banco tinham sido violadas de maneira “consciente e sistemática”;
que era impossível reassentar todo aquele contingente nos estados afetados
e que o projeto era inviável financeira e tecnicamente. E mais, o governo
indiano e o Banco Mundial eram culpados de “delinquência flagrante” no
que concernia à implementação do projeto, particularmente com relação ao
reassentamento forçado de mais de 200 mil agricultores pobres. Segundo
os avaliadores, os problemas encontrados indicavam um padrão recorrente
nos demais projetos de reassentamento financiados pelo banco na Índia.
Sete anos depois da aprovação dos empréstimos e onze depois de inicia-
das as obras, ainda não havia sequer avaliações de impacto ambiental. O
relatório concluiu que o banco estava mais preocupado em acomodar as
pressões emanadas dos principais clientes do que garantir a implementação
das próprias regras e políticas de salvaguarda. Os avaliadores recomendaram
que o banco se retirasse do projeto.
O relatório acabou saindo poucos dias depois da ECO-92 e fez um
estrago na imagem da instituição. No mesmo dia de sua divulgação, um
conjunto de ONGs emitiu comunicado à imprensa exigindo a criação de
uma comissão de apelação independente de caráter permanente (cf. Rich,
1994, p. 249). Era o ponto de partida de uma campanha pela “responsa-

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bilização” (accountability) do banco que exigia a criação de um mecanismo


regular de prestação de contas (cf. Clark, 2005, p. 46).
Em resposta, o banco insistiu em financiar o projeto, declarando que
o governo indiano promoveria ajustes operacionais dentro de seis meses.
Os protestos na Índia intensificaram-se e o repúdio público internacional
cresceu. Em setembro de 1992, o Financial Times publicou uma carta aberta
ao presidente do banco, Lewis Preston, assinada por mais de 250 organiza-
ções, exigindo a retirada da instituição; do contrário, uma campanha seria
orquestrada para cortar o financiamento à AID. No mês seguinte, alguns
diretores-executivos (notavelmente, os dos Estados Unidos, Canadá, Japão,
Alemanha, Austrália e países escandinavos) pediram a suspensão dos de-
sembolsos. Mesmo assim, os demais diretores-executivos e a administração
do banco continuaram a apoiar o projeto. Somente em março de 1993 os
desembolsos para o projeto Sardar Sarovar foram cancelados (cf. Caufield,
1996, pp. 27-28). Pela primeira vez, a instituição tomou essa decisão por
razões ambientais ou sociais. De imediato, esse fato constituiu uma ilustra-
ção emblemática da capacidade das ONGs de dar forma às demandas, mas
também serviu para desarmar alguns dos críticos mais severos do banco. Con-
tudo, na mesma ocasião, a entidade anunciou oito novos empréstimos para
a Índia, no total de 2,3 bilhões de dólares, parte dos quais para a construção
de usinas termoelétricas. O governo indiano, por sua vez, deu continuidade
ao projeto Sardar Sarovar, evidenciando dois pontos importantes: primeiro,
o comprometimento com os interesses de empreiteiras e empresas nacionais
e internacionais envolvidas num negócio daquela magnitude; segundo, o
fato de que o modelo energético apregoado pelo banco já havia sido plena-
mente assimilado pela classe dirigente do país e a ela convinha (cf. George
e Sabelli, 1996, pp. 233-236). Diante de tais evidências, o discurso de parte
dos críticos de que as políticas impulsionadas pelo banco eram “imposições
externas” revelou todo o seu equívoco.
Por outro lado, o episódio mostrou que o banco havia se tornado mais
vulnerável às críticas ambientalistas, sobretudo àquelas que demonstravam
como a elaboração e a execução dos projetos financiados desrespeitavam as
regras mínimas de salvaguarda definidas pelo próprio banco. Em resposta,
a gestão Preston expandiu o staff especializado e institucionalizou proce-
dimentos de avaliação ambiental. Tratava-se de “esverdear” o banco para
que a instituição tivesse condições de atuar eficazmente como paladino
do “desenvolvimento sustentável” e, ao mesmo tempo, prosseguir como
financiador de projetos de alto impacto socioambiental.

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Apesar dos sobressaltos, no geral o banco conseguiu se sair bem dos


embates daquele período. Com a presença de 118 chefes de Estado, a
ECO-92 confiou a ele – justamente a organização multilateral com as piores
credenciais em matéria ambiental – a gestão do Fundo Global para o Meio
Ambiente (Global Environment Facility), a principal fonte multilateral de
financiamento para a implementação da Agenda 21 nos anos seguintes (cf.
Sanahuja, 2001, p. 187; Toussaint, 2006, p. 216).
Por outro lado, com a publicação do RDM 1992 e algumas mudanças
administrativas realizadas por Preston, o banco gradativamente se apropriou
da linguagem ambientalista, acomodando-a no arcabouço conceitual da “ad-
ministração ambiental”, ancorado nos pressupostos da economia neoclássica
e subordinado ao programa neoliberal. Não demorou até que essa redefi-
nição semântica contribuísse para diluir a polarização político-ideológica.
O aumento extraordinário do portfólio de projetos ambientais do banco,
voltados para melhorar, reabilitar ou gerir o uso dos recursos naturais, foi
decisivo para isso. De acordo com Wade (1997, pp. 612-613), no ano de
1985 o banco desembolsou 15 milhões de dólares para tal finalidade. Em
1990, as cifras pularam para 180 milhões de dólares. Cinco anos depois,
alcançaram o incrível patamar de 990 milhões de dólares, enquanto os
projetos em andamento totalizavam 9,9 bilhões de dólares em emprésti-
mos. Com apenas cinco especialistas em meio ambiente em 1985, o banco
empregava trezentos profissionais dez anos depois, subordinados a uma
vice-presidência de Desenvolvimento Ambientalmente Sustentável bem
equipada e financiada. Em 1985, o banco produziu 57 relatórios dedicados
parcial ou integralmente ao meio ambiente, num total de 1.238. No ano de
1995, os relatórios com alguma fatia verde chegaram a 408, num universo de
1.760. Em pouco tempo, o banco tornou-se uma autoridade para produzir
“dados” considerados indispensáveis por gestores públicos e pesquisadores
no mundo todo em matéria de “desenvolvimento sustentável”.
Em outras palavras, no início da década de 1990 o banco respondeu às
críticas ambientalistas esverdeando-se, e o fez mediante a pressão dos acio-
nistas mais poderosos, sobretudo dos Estados Unidos. Esse esverdeamento,
contudo, não pôs em xeque o programa político neoliberal; ao contrário,
constituiu-se numa nova frente de atuação centrada na promoção de um
regime internacional de regras e práticas institucionais que viabilizasse a
privatização e a mercantilização de recursos naturais. Afirmando que o
“desenvolvimento sustentável” poderia não ocorrer sem o uso econômico
eficiente do meio ambiente, o banco impulsionou a transformação das regras

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João Márcio Mendes Pereira

e das instituições ambientais organizadas segundo princípios não mercantis


numa direção condizente com as políticas liberalizadoras. Logo o banco se
tornou um semeador de planos nacionais de privatização e gestão ambientais
(cf. Idem, p. 711). Assim, para se qualificarem aos empréstimos, os Estados
clientes passaram a ser impelidos a reestruturar agências públicas, reescrever
legislações nacionais de água, terra e florestas, e adotar novos protocolos
científicos coerentes com o livre comércio de “ativos” ambientais (cf. Gold-
man, 2005, pp. 121-131).

As campanhas por responsabilização e prestação de contas

A luta pelo aumento da transparência e da responsabilização (accountabili-


ty) ganhou força na virada dos anos de 1980 para os de 1990 e se tornou uma
questão central para os grupos ambientalistas, na medida em que ativistas,
ONGs e parlamentares perceberam que seus esforços esbarravam na falta
de informação. Por exemplo, em 1991 o senador Kasten queixou-se de que
nem o diretor-executivo norte-americano no Banco Mundial tinha acesso a
documentos confidenciais da instituição (cf. Babb, 2009, p. 191). Isso explica
o empenho de setores do Congresso na aprovação de medidas que obrigavam
o Tesouro a melhorar o registro ambiental do Banco Mundial e dos demais
bancos multilaterais de desenvolvimento. Para se ter uma ideia, nos anos
de 1990 houve mais de 35 provisões legislativas inclinando o Tesouro nessa
direção. A mais conhecida e efetiva dessas medidas foi a Emenda Pelosi (Inter-
national Banking Environmental Protection Act), em 1989, que obrigava o
Tesouro a partilhar informações confidenciais dos BMDs com o Congresso e
proibia o diretor-executivo norte-americano de aprovar empréstimos sem que
avaliações de impactos ambientais tivessem sido preparadas 120 dias antes da
votação e devidamente publicizadas (cf. Idem, p. 189).
A contraofensiva do banco em matéria ambiental não o poupou de críticas
e conflitos que logo voltaram a acossar sua imagem pública. Ainda em 1992
ocorreu o vazamento e posterior publicação de uma avaliação interna sobre
a qualidade dos projetos, conhecida como Relatório Wapenhans. Encomen-
dada por Preston a um dos vice-presidentes do banco, William Wapenhans,
a avaliação analisou 1.300 projetos em curso em 113 países. O relatório (cf.
Banco Mundial, 1992b) detectou a deterioração gradual e contínua da “qua-
lidade” dos projetos – segundo parâmetros da entidade – em todos os setores
entre 1981 e 1991. Em particular, algumas cifras chamavam atenção: 37,5%
dos projetos não apresentavam resultados “satisfatórios” (contra 15% em

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Conflitos e parcerias em torno de projetos socioambientais, pp. 235-263

1981), e os projetos em agricultura, abastecimento de água e saúde eram os


setores de pior desempenho, com fracasso acima de 40%. Ademais, somente
22% dos compromissos financeiros estavam de acordo com as normas do
próprio banco. O relatório alertava para parcela de responsabilidade dos pres-
tatários, uma vez que em 78% dos contratos as regras não haviam sido cum-
pridas, em muitos casos com a conivência de funcionários do banco. Todavia,
a avaliação responsabilizou, em primeiro lugar, o que chamou de “cultura de
aprovação”, resultante de um sistema organizacional estruturado segundo o
imperativo de emprestar, independentemente da importância e dos impactos
dos projetos nos países receptores. Desde a avaliação inicial dos projetos, por
exemplo, estabeleciam-se taxas de retorno econômico excessivamente eleva-
das, com o objetivo de garantir a aprovação. Quanto mais projetos aprovados,
mais o dinheiro circulava, mais pontos o funcionário acumulava e mais me-
teórica e bem-sucedida era sua carreira dentro da instituição. Também fazia
parte da “cultura da aprovação” a pressão para que o staff cumprisse as metas
de concessão de empréstimos dentro de cada ano fiscal. Com frequência, isso
levava à aprovação de projetos sem avaliações ambientais benfeitas e com
baixa aderência às normas de salvaguarda da instituição.
Igualmente, como lembrou Clark (2005, p. 48), o Relatório Wapenhans
chamou atenção para a relação assimétrica entre o banco e a grande maioria
dos clientes no que tange à capacidade técnica e ao poder de negociação. O
anexo do relatório incluiu um resumo de entrevistas confidenciais realizadas
com funcionários dos governos prestatários. Os entrevistados reclamavam,
por exemplo, da impossibilidade de acompanhar e entender toda a docu-
mentação produzida pelo banco, bem como da postura de superioridade
técnica dos especialistas da instituição durante as negociações.
Municiadas com os Relatórios Morse e Wapenhans, algumas das ONGs
que haviam integrado a oposição ao projeto Sardar Sarovar iniciaram uma
campanha internacional para que o Banco Mundial promovesse duas re-
formas: uma para instituir uma nova política de transparência, com base
na qual o banco publicizaria informações solicitadas sobre seus projetos;
outra para a criação de um painel de apelação independente, que daria às
populações diretamente afetadas acesso a um mecanismo com poder para
investigar reclamações sobre a violação pelo banco das próprias regras e
políticas de salvaguarda. Algumas ONGs anunciaram que, se as reformas
não fossem promovidas, elas bloqueariam no Congresso a contribuição dos
Estados Unidos e de outros doadores à 10ª Reposição da AID (1993-1996),
cujas negociações estavam, então, entrando na fase final. Em testemunho

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João Márcio Mendes Pereira

perante o Congresso norte-americano na primavera de 1993, elas propu-


seram que o dinheiro para a AID fosse redirecionado a organizações mais
“responsabilizáveis” e “democráticas” do que o Banco Mundial (cf. Wade,
1997, p. 726). Por outro lado, outras ONGs internacionais se opuseram a
essa tática, argumentando que qualquer redução no financiamento à AID
prejudicaria os países mais pobres (cf. Clark, 2005, p. 49).
A campanha avançou e obteve o apoio do deputado Barney Frank,
presidente da subcomissão do Congresso a cargo da autorização de fundos
para a AID. Frank informou Ernest Stern, eminência parda do banco, que
não autorizaria a liberação dos fundos caso a instituição não adotasse uma
política de informação aceitável e um painel de apelação independente.
Segundo Wade (1997, p. 727), a administração do banco enviou secreta-
mente a Frank versões preliminares da proposta para análise. Várias ONGs
norte-americanas que compunham o comitê de ação contra o projeto Sardar
Sarovar também comentaram diversas versões da proposta, indicando o que
lhes parecia inaceitável, o que ilustrava mais uma vez o grau de porosidade
crescente entre o banco e o universo das ONGs, em particular daquelas
estabelecidas em Washington. Organizações europeias e japonesas também
enviaram comentários para seus respectivos diretores-executivos. Por outro
lado, como assinalou Clark (2005, p. 51), em fevereiro de 1993 alguns
diretores-executivos (representantes da Alemanha, da Holanda, da Malásia
e do Chile) endossaram, com apoio do diretor suíço, a proposta de criação
de um novo mecanismo de prestação de contas sob a forma de uma instân-
cia independente de avaliação, alegando que a medida ajudaria a reverter a
deterioração da imagem do banco.
Aprovada em agosto de 1993, a nova política de informação ficou muito
aquém do que as ONGs e Frank propuseram (cf. Wade, 1997, pp. 727-728).
Em represália, o Congresso dos Estados Unidos autorizou os pagamentos
à AID por apenas dois anos, em vez dos três anos normais, e cortou 200
milhões dos 3,7 bilhões de dólares comprometidos pelo Tesouro com a
décima reposição. Durante o ano de 1994, o Congresso continuou a reter
a autorização do terceiro desembolso e condicionou a liberação a uma nova
política de informações, implementada finalmente em 1995. A campanha
sobre o assunto, então, esfriou.
Logo depois, em setembro de 1993, o banco também aprovou a criação
do Painel de Inspeção, em tese independente. Segundo Bissel (2005, p. 86),
que foi o primeiro presidente do painel, a maioria dos diretores-executivos
apoiou a proposta com o objetivo de aplacar a pressão ambientalista, e não

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propriamente pela convicção de que era necessário assegurar o cumprimento


das regras de salvaguarda ambiental da entidade. O fato é que, mais uma vez,
o fundamental do que as ONGs e seus aliados no Congresso reivindicavam
não foi contemplado. Em vez de investigar com independência um projeto
mediante a solicitação direta dos afetados, o painel limitar-se-ia a recomendar
a investigação à diretoria, com base numa avaliação preliminar, sobre a qual
a diretoria decidiria. Ou seja, os princípios básicos de operação do painel, tal
como aprovados, deram-lhe muito menos independência do que a avaliação
conduzida por Morse e Berger (cf. Wade, 1997, p. 728). A proposta das
ONGs não previa que caberia à diretoria decidir sobre a realização ou não
da investigação. O banco, porém, não estava disposto a aceitar a existência
de um mecanismo fora de seu controle (cf. Clark, 2005, p. 57). Em retros-
pecto, parece claro que a criação do painel consistiu num caso exemplar
do que na sociologia das organizações denomina-se “acoplamento fraco”
(loose coupling), estratégia segundo a qual se criam subunidades e programas
para aplacar críticas externas, ao mesmo tempo em que se reduzem regras,
condições operacionais e instrumentos necessários à sua eficácia e respon-
sabilização. Isso permite à gerência da instituição adotar uma estratégia de
conformidade cerimonial às injunções externas, na qual a distância entre
retórica e realidade pode ser enorme (cf. Babb, 2009, p. 196).

Consultas e diálogos multilaterais durante a gestão Wolfensohn (1995-2005)

No calor da crise financeira mexicana, o governo Clinton indicou James


Wolfensohn à presidência do Banco Mundial. Para o Tesouro, era preciso
que o novo presidente conduzisse o banco por dois mandatos a fim de dar
conta das prioridades norte-americanas, como a liberalização econômica no
Leste Europeu e na Rússia e a “reconstrução” de países e territórios marcados
por conflitos armados e guerras, como a Bósnia (cf. Mallaby, 2004a, p. 73).
Iniciada em junho de 1995, a gestão Wolfensohn prometeu mudanças
profundas na instituição. Deslanchando uma operação de propaganda e
construção de alianças, o novo presidente tinha a missão de reconfigurar a
imagem do banco e, ao mesmo tempo, ampliar o marco de relações com
governos, agências públicas e atores privados em torno do programa neo-
liberal. Em outubro de 1995, Wolfensohn anunciou as grandes linhas de
sua gestão. Uma delas era a mudança da cultura da instituição: mais do que
apenas emprestar, independentemente da conformidade das operações às
regras de destinação e uso dos recursos financeiros definidas pela própria

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João Márcio Mendes Pereira

instituição, o novo banco priorizaria a consecução de resultados tangíveis e


coerentes com os fins estabelecidos. Ou seja, a “cultura da aprovação” daria
lugar à “cultura de resultados” (cf. Wolfensohn, 1995).
De imediato, Wolfensohn abriu ou ampliou os canais de diálogo e coo-
peração com ONGs norte-americanas e internacionais. Afinal, segundo ele,
todos faziam parte do mesmo “negócio do desenvolvimento” e precisavam
somar forças (cf. Idem, p. 20). O Departamento de Relações Públicas do
banco aumentou o grau de interferência no trabalho de investigação a car-
go do Departamento de Pesquisa. Segundo uma avaliação encomendada
pela própria entidade, a ordem era que a pesquisa não ofendesse as ONGs
nem fornecesse a elas material que pudesse ser usado contra o banco (cf.
Deaton et al., 2006, p. 127). O convite para que participassem das políticas
tinha o propósito de atrair, dividir e neutralizar parte dos críticos, então
articulados em duas grandes iniciativas: a campanha “50 anos bastam” (50
Years is Enough Campaign), mais politizada e ideológica, que debatia se o
banco poderia ser reformado ou deveria ser fechado (cf. Danaher, 1994), e
a campanha por responsabilização, mais pragmática, centrada na demanda
por mais transparência e no uso do recém-criado Painel de Inspeção como
alavanca para mudanças institucionais.
Nos primeiros meses de gestão, Wolfensohn viu-se diante de um estrago
potencial de relações públicas: o projeto Arun III no Nepal (cf. Rich, 2002,
pp. 29-30). Objeto da primeira denúncia apresentada ao Painel de Inspeção,
Arun III tornou-se alvo dos críticos e referência para um movimento inter-
nacional mais amplo contra a construção de grandes projetos hidroelétricos.
Àquela altura, o descrédito do projeto Sardar Sarovar e a decisão da Índia de
seguir com ele sem o financiamento do banco alimentaram o interesse públi-
co pelos impactos econômicos, sociais e ambientais das grandes barragens.
Por ser a primeira investigação feita pelo painel, o processo foi cercado de
atenção pública e expectativas. A gerência do banco se imiscuiu na área de
competência do painel, tentando alterar as regras do jogo e desequilibrando
o processo em favor do banco contra os denunciantes (cf. Bissell, 2005, pp.
74-85). Mesmo assim, o informe do painel, finalizado em junho de 1995,
foi amplamente crítico ao projeto. Mais uma vez, extratos do informe
vazaram e os questionamentos subiram de tom rapidamente, acusando-o,
entre outras coisas, de “crimes contra a humanidade”. Dentro do próprio
banco havia divisão sobre a questão. No início de agosto, Wolfensohn reti-
rou a participação no projeto, contra a posição da equipe gerencial sênior.
Para os denunciantes nepaleses, o desfecho foi considerado uma “vitória

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histórica”. Por seu turno, segundo o presidente do painel na época, muitas


ONGs norte-americanas e internacionais “expressaram sua gratidão a Wol-
fensohn, assim como a esperança de que, pela primeira vez, fosse possível
desenvolver uma relação de trabalho firme com o banco” (Idem, p. 84). A
concessão aos ambientalistas fez com que alguns membros da campanha
“50 anos bastam” vissem na possibilidade de diálogo uma razão adicional
para moderar a postura de confrontação.
A movimentação inicial de Wolfensohn foi bem-sucedida (cf. Bond,
2003, pp. 199-207; Mallaby, 2004a, pp. 114-115). Evidência disso é que,
enquanto em 1994 a reunião anual das instituições de Bretton Woods
enfrentou protestos maciços, a do ano seguinte foi marcada por uma
conferência pública na qual algumas ONGs internacionais anunciaram a
disposição de dialogar com Wolfensohn, dando-lhe a “oportunidade” de
“reformar” a instituição (cf. Mihevic, 2004, p. 1). O banco, por sua vez,
passou a classificar as ONGs como “razoáveis” e “não razoáveis” conforme
o grau de cooperação (cf. Bello e Guttal, 2006, p. 69; Bond, 2007, p. 479).
O fato é que a eficácia da movimentação do novo presidente não teria
sido possível se as relações entre o Banco Mundial e o universo vasto e diver-
sificado das ONGs já não estivessem inseridas e estruturadas num campo de
cooperação e conflito muito mais amplo – em constituição desde a década
anterior – que envolvia Estados, academia, fundações privadas, agências bila-
terais de ajuda internacional e instituições multilaterais (cf. Dezalay e Garth,
2005; Goldman, 2005; Sogge, 1998, 2002; Nelson, 1995). Com efeito, o
volume de recursos carreados pelo circuito das ONGs ilustra sua importância:
em 1970, menos de 0,2% da Ajuda Oficial ao Desenvolvimento foi canali-
zada por ONGs; em 1995, apenas o governo dos Estados Unidos canalizou
30% dos seus fundos por meio dessas entidades (cf. Goldman, 2005, p. 37).
O banco, àquela altura, já havia aprendido a trabalhar com tais organizações
e a cultivá-las, em particular nas áreas social e ambiental, em sintonia com
a neoliberalização dos Estados ao Sul e ao Leste (cf. Woods, 2007, pp. 200-
201). A Tabela 1 ilustra esse processo de colaboração crescente.
Para neutralizar as críticas e pavimentar o caminho para projetos na
área de energia, a gestão Wolfensohn levou adiante uma série de iniciativas
importantes que envolveram o diálogo entre múltiplos atores. Duas delas
giravam em torno de problemáticas com amplas implicações socioambien-
tais: a construção de barragens e a exploração de petróleo e carvão. Ambas
foram alvo de disputas intensas e acabaram gerando certo desgaste político
para o banco.

18 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


João Márcio Mendes Pereira

TABELA 1
Projetos do Banco Mundial em Colaboração com ONGs, por Regiões e Setores – 1987-1999
1987-1995 1996 1997 1998 1999
Nº % Nº % Nº % Nº % Nº %
REGIÕES

África 680 34 53 55 49 61 59 54 62 61
América Latina e Caribe 443 24 54 48 52 60 68 51 56 59
Ásia meridional 239 33 21 76 19 84 25 73 23 76
Ásia oriental e Pacífico 378 20 46 44 37 32 45 51 54 43
Europa e Ásia central 225 16 61 38 67 24 69 37 79 34
Oriente Médio e norte da África 180 12 21 38 17 41 20 52 25 64
TOTAL 2.145 25 256 48 241 47 286 50 299 52
SETORES

Abastecimento de água e saneamento 101 16 9 67 13 69 13 62 11 55


Agricultura 443 41 33 88 45 82 47 74 39 72
Desenvolvimento urbano 113 37 10 70 13 46 19 55 21 66
Multissetorial 190 4 19 37 21 10 19 30 34 26
Educação 190 29 29 52 18 56 36 63 26 77
Eletricidade e outras formas de energia 165 5 19 21 17 18 15 40 6 50
Finanças 109 2 17 12 13 23 17 6 18 39
Gestão do setor público 141 7 27 15 20 5 28 24 36 19
Indústria 86 27 4 25 5 40 2 33 7 14
Meio ambiente 74 42 13 69 9 100 18 78 11 82
Mineração 16 12 8 63 2 50 4 100 2 50
Petróleo e gás 53 26 3 33 5 20 2 - 1 0
Saúde, população e nutrição 134 66 23 57 15 60 24 79 22 82
Setor social 60 92 17 82 17 65 12 80 36 74
Telecomunicações 37 – 1 – – – 3 – 1 100
Transporte 233 7 24 21 28 29 27 71 28 46
TOTAL 2.145 25 256 48 241 47 286 50 299 52
Fonte: Banco Mundial (1998, p. 83; 1999, p. 139).

A primeira iniciativa foi a Comissão Mundial sobre Barragens (CMB).


Em abril de 1997, um encontro convocado pelo banco e a União Interna-
cional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais, a fim de
discutir questões controversas a respeito da construção de grandes barragens,
reuniu representantes de governos, setor privado, instituições financeiras
multilaterais, organizações sociais e populações afetadas. Ao final, aprovou-
se a criação conjunta de uma comissão mundial que, pela primeira vez, de

novembro 2011 19
Conflitos e parcerias em torno de projetos socioambientais, pp. 235-263

forma exaustiva e independente, investigasse a eficácia das grandes barragens


em matéria de desenvolvimento e a viabilidade de formas alternativas de uso
dos recursos hídricos e energéticos, bem como elaborasse normas aceitáveis
internacionalmente para o planejamento, a avaliação, a construção, a ope-
ração, o monitoramento e o financiamento de projetos de grandes represas.
A CMB iniciou seu trabalho em maio de 1998, sob a presidência de
Kader Asmal, ministro de Assuntos Hídricos e Florestais da África do Sul,
e a participação de doze comissários ligados a construtoras, movimentos de
atingidos por barragens, ONGs internacionais, fundações, setor público e
universidades. Um fórum composto por 68 membros, também represen-
tativo de todas as partes interessadas, monitorou o trabalho da CMB, que
contou com fundos de 53 organizações públicas e privadas.
Durante dois anos e meio, a comissão encomendou inúmeras pesquisas
sobre aspectos relativos à construção e ao desempenho de grandes barragens
localizadas em dezenas de países e recebeu quase mil informes de todas as
partes do mundo. O informe final foi apresentado por Nelson Mandela em
8. O relatório final está disponí- Londres em novembro de 20008.
vel em <http://www.dams.org>.
Embora a CMB trabalhasse de forma independente, segundo alguns críti-
cos, o Banco Mundial foi consultado em todas as fases do trabalho e, durante
a elaboração do informe, acabou exercendo um papel assimétrico em relação
às demais instituições envolvidas (cf. Bello e Guttal, 2006, p. 75). Seja como
for, o fato é que o relatório final, embora não fosse um reflexo da opinião
dos críticos mais severos, era no conjunto uma acusação profunda contra as
práticas e os impactos da indústria internacional das barragens (cf. McCully,
2004, p. xxii). Na maioria dos casos estudados, o relatório diagnosticou cus-
tos econômicos, sociais e ambientais demasiadamente elevados, bem como
o fracasso sistemático na avaliação de impactos negativos potenciais e na
implementação de programas adequados de reassentamento das populações
atingidas. Além disso, o relatório apontou, como regra, a profunda desigual-
dade na distribuição de custos e benefícios gerados pelas grandes barragens:
enquanto as populações rurais, indígenas e em condições de pobreza supor-
tavam a maior parte dos custos, os benefícios eram apropriados por grandes
empresas e setores abastados e médios da sociedade. Diante de tais conclusões,
o banco esquivou-se de responsabilidade sobre o legado de sua atuação na área
e não endossou os resultados da pesquisa nem suas recomendações. Em 2002,
a instituição adotou uma nova estratégia setorial de recursos hídricos voltada
para a construção de grandes represas e a privatização dos serviços de água
potável e saneamento (cf. Mihevic, 2004, p. 3).

20 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


João Márcio Mendes Pereira

Outra experiência de diálogo multissetorial realizada pela gestão Wol-


fensohn foi a Revisão das Indústrias Extrativas (RIE). Durante a reunião
anual do banco e do FMI em Praga em junho de 2000, Wolfensohn foi
questionado por ONGs internacionais acerca do envolvimento do banco
no financiamento a indústrias de petróleo, mineração e gás. Em resposta,
propôs a realização de uma investigação independente, com o objetivo de
analisar em que medida tais projetos eram compatíveis com as metas de
desenvolvimento sustentável e redução da pobreza propostas pelo próprio
banco. A coordenação do trabalho ficou a cargo de Emil Salim, ex-ministro
de Meio Ambiente da Indonésia. A secretaria da RIE realizou fóruns e ofi-
cinas regionais em cinco países (Brasil, Hungria, Moçambique, Indonésia
e Marrocos), comissionou seis investigações, visitou quatro projetos e fez
consultas informais com atores sociais diversos em inúmeros países.
Comparada à investigação feita pela CMB, a RIE foi muito menos
exaustiva, independente e participativa (cf. Bello e Guttal, 2006, pp. 77-78).
O banco, por sua vez, desempenhou um papel bem mais vigilante sobre
as consultas e o conjunto da atividade de pesquisa, apesar dos protestos de
ONGs e movimentos populares.
Depois de mais de dois anos de trabalho, o relatório da RIE foi publi-
cado em dezembro de 20039. A conclusão principal: para que os projetos 9. O relatório final está dispo-
nível em <http://go.worldbank.
financiados pelo banco no setor industrial extrativista fossem compatíveis
org/T1VB5JCV61>.
com o meio ambiente e a redução da pobreza, três condições precisariam
existir: “governança pública e corporativa em prol dos pobres”, “políticas
sociais e ambientais muito mais eficazes” e “respeito aos direitos humanos”.
Caberia ao banco fomentar tais condições, para o que seria indispensável a
realização de mudanças organizacionais específicas e uma política extrativista
com nova orientação (cf. RIE, 2003).
Embora ficasse aquém dos reclames dos movimentos populares e das
ONGs internacionais que acompanharam a RIE, o texto final chegou a um
diagnóstico que corroborava, em larga medida, muitas das denúncias contra
as indústrias extrativistas. Mais do que isso, fez inúmeras recomendações po-
liticamente difíceis para o banco. Uma delas, por exemplo, era a introdução
da obrigatoriedade do respeito aos “direitos humanos” como critério para as
políticas de salvaguarda e a autorização de empréstimos e garantias do banco.
Outra era a eliminação imediata do financiamento a projetos baseados em
carvão e o fim gradual do financiamento a indústrias petroleiras até 2008.
Segundo a RIE, a carteira do banco para a área energética deveria ser inte-
gralmente reorientada para projetos baseados em fontes renováveis (cf. Idem).

novembro 2011 21
Conflitos e parcerias em torno de projetos socioambientais, pp. 235-263

O relatório desagradou ao empresariado organizado no Conselho In-


ternacional de Mineração e Metais (International Council on Mining &
Metals, ICMM), que reúne algumas das maiores corporações do setor, como
Alcoa, Anglo American, Vale, Mitsubishi Materials e Eurometaux. Para o
ICMM (2004), o diagnóstico da RIE era “desequilibrado” e as prescrições
eram “custosas, contraproducentes e pouco realistas”. Na visão das grandes
corporações, a participação do banco era indispensável para a manutenção
da rentabilidade econômica do setor, da “responsabilidade ambiental” e do
“aliviamento da pobreza”.
Além da repulsa do oligopólio que comanda o setor, o relatório da RIE
também foi criticado por grupos financeiros privados ligados às indústrias
extrativas, como Citibank, ABN Amro, WestLB e Barclays (cf. Bello e Gut-
tal, 2006, p. 78). Em uníssono, tais grupos defenderam o envolvimento do
Banco Mundial nas indústrias de petróleo, mineração e gás como essencial
para a manutenção dos negócios.
Esse tipo de tomada de posição, embora não tenha sido a primeira nem
a última do gênero, evidenciou mais uma vez os sólidos vínculos entre o
capital privado e o Banco Mundial. Em geral, o lobby de corporações priva-
das com o banco é silencioso, bem organizado e fortemente apoiado pelos
governos do G7. Em Washington, por exemplo, tanto no Executivo como
no Legislativo há grupos bem estabelecidos que atuam para assegurar que
companhias norte-americanas sejam beneficiadas por contratos (cf. Woo-
ds, 2006, pp. 203-204). Isso porque o banco sempre foi um dois maiores
10. Trata-se do segundo maior contratantes internacionais10. No final dos anos de 1990, a instituição
contratante de Washington,
perdendo apenas para o governo
fechava mais de 40 mil contratos anuais de obras e fornecimento de bens
federal. Todavia, o Grupo Banco e serviços que ultrapassavam 40 bilhões de dólares, distribuídos em cada
Mundial gasta por ano na capital
Estado cliente entre firmas nacionais e estrangeiras. Ademais, as políticas
norte-americana em torno de 1
bilhão de dólares do orçamento de ajustamento estrutural impulsionadas pelo banco pavimentavam o ca-
administrativo, muito mais do
minho para a liberalização financeira e comercial e para as privatizações, o
que a União dá ao governo do
distrito federal (cf. Kapur, 2002, que interessava diretamente a grupos econômicos nacionais e estrangeiros
p. 64). de maior gravitação.
Uma versão preliminar da resposta do banco ao relatório da RIE vazou
em fevereiro de 2004. Entre outras coisas, o documento rejeitava a reco-
mendação de encerramento dos empréstimos à indústria petroleira, sob a
alegação de que a continuidade poderia favorecer a redução da pobreza e
fomentar, no interior dos governos, “boas práticas” sociais e ambientais.
A divulgação do rascunho suscitou o repúdio de movimentos populares e
ONGs e a incerteza quanto ao cumprimento das recomendações da RIE. No

22 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


João Márcio Mendes Pereira

mesmo mês, Wolfensohn recebeu uma carta assinada por cinco ganhadores
do prêmio Nobel que o instava a adotar as propostas da RIE (cf. Bello e
Guttal, 2006, p. 78). Em junho, o Financial Times publicou um artigo de
Emil Salim, no qual afirmava que o banco deveria “modificar radicalmente”
a política de apoio às indústrias extrativas e, “em alguns casos, suspendê-la
por completo”, uma vez que “não somente as indústrias petroleiras, de gás ou
mineradoras não ajudaram os mais pobres nos países em desenvolvimento,
mas também porque, com frequência, agravaram suas condições de vida”
(apud Toussaint, 2006, p. 223).
Em setembro, o Banco Mundial (2004) deu a resposta oficial. No fun-
damental, havia congruência com a posição do empresariado organizado
no ICMM, embora o tom fosse mais comedido. Algumas recomendações
foram incorporadas por mera formalidade, como o “respeito aos direitos
humanos”, sem maiores definições sobre como seriam implementadas.
Outras recomendações politicamente problemáticas foram descartadas
sem mais, como o fim do financiamento à indústria petroleira. Inúmeras
outras foram relegadas a tratamento posterior por grupos de trabalho. De
modo geral, em vez de focalizar a mudança de suas próprias políticas de
salvaguarda, o banco deslocou a responsabilidade para os clientes, atrelando
a autorização e implementação dos projetos a normas e procedimentos dos
países prestatários.
Tanto a CMB como a RIE expuseram as contradições entre a prática
do banco e o discurso em prol da boa governança, da transparência e do
desenvolvimento sustentável. A incapacidade da instituição de cumprir com-
promissos acordados publicamente fez com que a promessa de reforma se
desgastasse em termos políticos antes do término da gestão de Wolfensohn.
Por outro lado, após uma década de sucessivos diálogos multilaterais e
consultas participativas, o universo das ONGs havia crescido e se fragmen-
tado ainda mais, e o banco havia conseguido estabelecer uma divisão de
trabalho especializada nesse universo, na esteira do processo de “onguização”
tanto da assistência internacional ao desenvolvimento como das políticas
públicas nacionais. Se é verdade que a série de consultas e diálogos pro-
movida por Wolfensohn deu visibilidade aos limites da reforma do banco
em matéria socioambiental, é verdade também que o campo dos críticos
se diluiu ao longo do decênio 1995-2005. Nesse percurso, algumas das
maiores organizações ambientalistas modificaram a postura de confronta-
ção para se tornarem cogestoras de projetos financiados pela entidade (cf.
Goldman, 2005).

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Conclusão

O “esverdeamento” do Banco Mundial a partir do final dos anos de 1980


esteve associado a alguns fatores decisivos (cf. Gwin, 1997, p. 274; Babb,
2009, p. 181). Em primeiro lugar, ao interesse crescente do Congresso na
política norte-americana para o Banco Mundial a partir dos anos de 1970
e à sua relutância, também crescente, em atender aos pedidos de fundos do
Executivo – como o aumento do capital geral do Bird e as reposições periódi-
cas da AID. Essa relutância obrigou o Executivo a modificar as políticas para
o Banco Mundial. Quanto mais o Congresso se envolveu, mais informação
foi publicizada sobre o funcionamento do banco e sobre a política norte-
americana para a entidade, alargando o espaço para o ativismo e o escrutínio
públicos. Em segundo lugar, à ação de ONGs ambientalistas, que gradati-
vamente aprenderam a utilizar a configuração singular do sistema político
norte-americano para intervir no Banco Mundial por meio de parlamentares
aliados, obtendo sucesso variável ao longo do período. Em terceiro lugar, ao
aumento da importância das ONGs na política externa norte-americana, por
meio das quais campanhas ambientalistas seriam veiculadas e influenciariam
as provisões dos Estados Unidos para o Banco Mundial.
A atuação do Congresso e do Executivo norte-americanos favoreceu a pro-
moção de algumas agendas verdes em detrimento de outras. Assim, enquanto
as campanhas ambientalistas deslanchadas nos anos de 1980 pressionavam
para que o Banco Mundial reformasse as práticas em termos de projetos,
não havia contradição com a estratégia norte-americana de impulsionar os
empréstimos para ajustamento estrutural do Banco Mundial, com o fim de
acelerar a liberalização econômica nos países da periferia. Demandas relativas
a projetos – voltadas, por exemplo, para maior participação das ONGs e das
populações afetadas na elaboração de regras de salvaguarda ambiental, me-
canismos eficazes de cobrança, publicização de informações etc. – passavam
ao largo da reforma macroeconômica e institucional apregoada pelo Tesouro.
Porém, quando alguns ambientalistas argumentaram que os empréstimos
para ajustamento estrutural também prejudicavam o meio ambiente, pois
fomentavam as exportações de bens primários e, com isso, intensificavam a
exploração de recursos naturais, a recepção do Executivo e do Congresso foi
outra. No início dos anos de 1990, alguns ativistas procuraram incluir “con-
dicionalidades ambientais” como precondição para que os países devedores
acessassem o Plano Brady e, assim, obtivessem descontos no pagamento da
dívida externa. Porém, essa proposta era incongruente com as prioridades

24 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


João Márcio Mendes Pereira

do Executivo e nada disso foi implementado (cf. Babb, 2009, p. 195). Por
sua vez, no Congresso, o apoio a essa demanda foi muito menor.
A capacidade de ONGs ambientalistas de influenciar aspectos distintos
da política norte-americana para o Banco Mundial tem suscitado questiona-
mentos diversos. Um deles é se as ONGs representam ou têm legitimidade
para representar os interesses das populações afetadas por projetos finan-
ciados pelo banco; outro é se se pode considerar legítimo que campanhas
orquestradas por elas levem ao cancelamento de projetos de interesse de
governos democraticamente eleitos (cf. Mallaby, 2004a, 2004b). Esse tipo
de questionamento remete ao fato de que, apesar das parcerias entre ONGs
do Norte e populações afetadas do Sul, é à pressão concentrada na sociedade
civil de países doadores – sobretudo nos Estados Unidos – que o Banco
Mundial responde (cf. Wade, 1997, 2001b; Babb, 2009, p. 204). Com efeito,
as ONGs estabelecidas em Washington têm acesso regular ao Tesouro e ao
banco e, por isso, são mais bem conectadas e informadas do que ONGs
de outros países, o que paradoxalmente acaba reforçando a gravitação dos
Estados Unidos na instituição (cf. Nelson, 1995, pp. 63-66; Wade, 2002).
Em algumas ocasiões, essa situação tem suscitado críticas de representantes
dos países clientes no banco, que a consideram um exemplo de imposição
da visão política do Norte sobre o Sul. Nesse sentido, os inúmeros casos de
“vazamento” de documentos internos importantes do banco relatados neste
artigo não devem ser considerados eventos exógenos, mas sim elementos
constitutivos da dinâmica que atravessa a instituição e que é própria do
campo de relações no qual ela se insere11. 11. O autor agradece ao parece-
rista anônimo por enfatizar essa
Nas últimas décadas, o Banco Mundial lidou com as injunções políticas
dimensão.
em matéria socioambiental crescendo e fazendo mais, mediante um processo
contínuo de estiramento institucional e mudança incremental. Essa expan-
são absorveu uma quantidade cada vez maior de demandas diferenciadas,
alargando o mandato do banco muito além das áreas originais. Contudo,
do ponto de vista político, a absorção se deu pela via da internalização e da
acomodação das demandas no paradigma dominante de desenvolvimento
impulsionado pela instituição. No bojo desse movimento, as respostas da
entidade a pressões e demandas gradativamente deixaram de ser meras
concessões pontuais aos detratores para se converterem em componentes
ativos da agenda impulsionada pelo banco, dilatando o raio de influência.
Esse processo foi e continua sendo conflitivo em diferentes graus, tanto mais
porque, embora o banco tenha se tornado o paladino da ideia de “desenvol-
vimento sustentável”, ativistas e ONGs continuam a reclamar da consulta

novembro 2011 25
Conflitos e parcerias em torno de projetos socioambientais, pp. 235-263

inadequada às populações afetadas, da falta de acesso a informações e da


continuidade de empréstimos para projetos de alto impacto socioambiental.
Contudo, o balanço de quase três décadas de embates e negociações em
matéria socioambiental está longe de ser desfavorável ao banco. Como ator
político, intelectual e financeiro, o banco se situa de maneira singular no
topo da rede internacional de instituições públicas e privadas de assistência
ao desenvolvimento. Nesse sentido, possivelmente sua maior conquista
tenha sido a de se constituir como arauto de uma visão sobre desenvolvi-
mento e meio ambiente reconhecida como legítima, sustentada na produção
autorizada de informações – não raro em condições de monopólio – que
instrumentalizam políticas públicas pelo mundo afora.

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Resumo

Conflitos e parcerias em torno de projetos socioambientais

Este artigo analisa os embates em torno de projetos socioambientais financiados pelo


Banco Mundial desde o início dos anos de 1980. Para isso, volta-se para as relações
entre o Banco, o Congresso e o governo norte-americanos e ONGs atuantes nos Es-
tados Unidos. Argumenta-se que o Banco respondeu às pressões externas em matéria
socioambiental crescendo e fazendo mais, mediante um processo conflitivo e contínuo
de estiramento institucional e mudança incremental que acomodou tais pressões no
paradigma dominante. Por outro lado, a confrontação que marcou as relações entre
o Banco e as ONGs nos anos de 1980 cedeu lugar, nos anos seguintes, a parcerias
institucionais em torno de projetos e programas, na esteira da neoliberalização dos
Estados nacionais.
Palavras-chave: Banco Mundial; Meio ambiente; Organizações não governamentais;
Estados Unidos.

Abstract

Conflicts and partnerships in the area of socio-environmental projects

This article analyzes the clashes over socio-environmental projects financed by the
World Bank since the beginning of the 1980s. It focuses in particular on the relation- Texto recebido em 13/8/2010 e
aprovado em 15/8/2011.
ship between the Bank, the American Congress and Federal Government, and NGOs
João Marcio Mendes Pereira é
working in the USA. It argues that the Bank responded to external pressures in relation doutor em História pela Uni-
to socio-environmental issues by increasing in size and activities, through a conflictive versidade Federal Fluminense
(UFF), professor adjunto da Uni-
and continuous process of institutional stretching and incremental change that ac- versidade Federal Rural do Rio
commodated these pressures within the dominant paradigm. On the other hand, the de Janeiro (UFRRJ), professor
do Programa de Pós-Graduação
confrontation that marked the relations between the Bank and the NGOs through the
em História da UFRRJ e coor-
eighties later gave way to institutional partnerships for the implementations of projects denador do Grupo de Estudos
sobre o Agro Contemporâneo.
and programs in the wake of the neoliberalization of Nation States.
E-mail: <joao_marcio1917@
Keywords: World Bank; Environment; Non-Government organizations; United States. yahoo.com.br>.

novembro 2011 29
A categoria trabalho no capitalismo
contemporâneo
Luís Antônio Cardoso

Introdução

Ao longo dos últimos quarenta anos, o debate sociológico tem sido im-
pactado por um conjunto de autores e teses que vem propondo o fim da
categoria trabalho como uma categoria central no pensamento social. De
fato, as últimas transformações presenciadas na economia, nos processos
produtivos e no trabalho contribuíram significativamente para o alavan-
camento desse movimento, levando diversos autores isolados e Escolas a
refletirem e teorizarem sobre as mudanças em curso em nossa sociedade.
Este artigo tem como objetivo, pois, explorar e fazer um mapeamento
crítico das principais correntes e autores que contribuíram para o desenvolvi-
mento desse debate, identificando suas principais teses e argumentos críticos.
Para isso, o artigo estrutura-se em duas seções ou partes distintas. Na
primeira, denominada “A centralidade da categoria trabalho no pensamento
social”, realizamos uma abordagem introdutória sobre a questão da centra-
lidade da categoria trabalho na construção do pensamento ou teoria social.
Discorre-se aqui sobre como a categoria trabalho é importante desde a fase
anterior à fundação da sociologia até a consolidação desta em sua fase clássica.
São evocadas as principais ideias sobre o trabalho e sua constituição como
importante mecanismo de análise do social. Na segunda e última parte, inti-
tulada “A perda da centralidade do trabalho e suas visões”, discorremos sobre
A categoria trabalho no capitalismo contemporâneo, pp. 265-295

o movimento de tentativa de descentralização da categoria trabalho no pen-


samento social que se desenvolve no final do século XX, contextualizando-o
no conjunto desse debate. Em seguida, expomos as cinco grandes teses que
consideramos as mais importantes no contexto desse movimento teórico. Por
fim, fechamos o artigo com uma breve conclusão, na qual são expostas nossas
considerações e questões mais imediatas.

A centralidade da categoria trabalho no pensamento social

A categoria trabalho sempre ocupou um lugar preponderante e central


desde a formação e o desenvolvimento do pensamento sociológico, isto
é, desde o surgimento da sociologia.
Na construção do método da análise sociológica, a redução da realidade
social ao constructo categoria permitiu à sociologia operar e classificar as
complexas manifestações do social. Portanto, na medida em que a socieda-
de ocidental, transformada pela revolução industrial e pelo capitalismo, se
desenvolveu e fez do trabalho sua principal mercadoria e o mecanismo de
geração de valor e de alavanca para o processo de acumulação capitalista,
o trabalho se impôs como categoria central e fundamental para o entendi-
mento dessa sociedade.
Não obstante a importância da categoria trabalho desde os primórdios do
pensamento social, um conjunto significativo de pensadores, anteriores ao
nascimento da sociologia, já destacava o trabalho como um elemento central
e de grande importância para o entendimento do indivíduo na vida social.
Dentre esses pensadores, Hegel destacou-se como um dos mais impor-
tantes. Em seu sistema filosófico, elaborou uma verdadeira gramática na qual
via o trabalho como um importante elemento para a análise do homem em
relação à natureza e à formação da consciência. Em sua abordagem, além
de perceber o trabalho como fonte de toda a riqueza e de toda a civilização,
também o considerava um processo de exteriorização dialética do sujeito.
Desde os escritos de Iena, nos primeiros anos do século XIX, Hegel
sustentou a tese segundo a qual, na relação do homem com a natureza, o
trabalho funciona como elemento mediador, fornecendo o suporte para
a formação de uma consciência no homem. Em outras palavras, é através
do trabalho que o homem é capaz de decodificar a natureza de modo a
aproveitá-la instrumentalmente. O trabalho, portanto, funciona como uma
ação intencional, consciente e reflexiva, capaz de libertar o homem da tirania
da natureza (cf. Hegel, 1982).

2 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Luís Antônio Cardoso

Não obstante, essa ideia fundamentou o sistema de necessidades pelo qual


Hegel deu sentido à sua tese da sociedade civil. Nesta, o trabalho é pensado
como elemento de mediação entre as necessidades subjetivas e as necessida-
des do outro. Mais precisamente, os produtos do trabalho funcionam como
mediadores entre esses dois polos, uma vez que as necessidades do outro
também assumem um status de necessidade pessoal. A satisfação de uma
necessidade subjetiva somente se faz possível na medida em que o trabalho
adquire envergadura social, isto é, geral. Desse sistema de necessidades, se-
gundo Hegel, nasce o princípio da divisão do trabalho e, assim, a noção de
sociedade civil. Logo, desse ponto de vista da abordagem hegeliana, o social
consiste em uma manifestação na qual o homem se liberta das necessidades
naturais. E, assim, pelo trabalho, “o homem se faz a si mesmo no interior
de uma necessidade feita por ele mesmo” (Naville, 1970, p. 32). Ainda se
poderia dizer que, em se fazendo coisa (sich zum Dinge machen) pelo trabalho,
fazendo ato de vontade refletida, o homem participa das transformações do
mundo e se envolve ao mesmo tempo em um universo de seres humanos e
não humanos que formam o hábito de sua vida.
Sem deixar de considerar a complexidade e as controvérsias do sistema
filosófico elaborado por Hegel, foi enorme sua importância para o entendi-
mento do trabalho na formação do pensamento social, na medida em que
sua abordagem permitiu analisar o trabalho em relação a dois polos distintos:
tanto de exteriorização do sujeito quanto de interiorização do social.
Como processo de exteriorização do sujeito, o trabalho caracteriza-se,
concomitantemente, como separação e fusão, negação e negação da negação.
De um lado, o homem afirma-se ontologicamente por sua capacidade de
recusa (separação, negação). De outro, ele atinge a plena e inteira satisfação
na sua condição de trabalhador, uma vez que, pelo resultado de seu labor
e pelas interações que este último promove, constrói um universo comum
que unifica as coisas e os homens (fusão, negação da negação).
Em relação ao outro polo, isto é, o trabalho como interiorização do social,
a abordagem hegeliana também atua sob o enfoque da dialética negativa.
Enquanto ser no mundo, o sujeito nele se institui por um movimento de
ruptura (negação), que o conduz da mônada física, isto é, da substância
simples, ao estado do indivíduo social. Desconhecedor do tempo e das
contradições, a psique instrui o sujeito originário e, assim, a identidade
mostra-se preliminarmente como sensação, percepção, representação. A
instituição do indivíduo social toma forma, em seguida, pela imposição
contínua dos princípios e das imagens exteriores e heterogêneas à psique.

novembro 2011 3
A categoria trabalho no capitalismo contemporâneo, pp. 265-295

A instituição do indivíduo ocorre concomitantemente à instituição da


sociedade, e, nesse sentido, as mediações cognitivas acabam por exercer um
papel fundamental no processo de socialização. Assim, duas componentes
da instituição se mostram importantes: a primeira, a Weltanschauung, isto
é, a percepção de mundo, comum às significações imaginárias que fundam
a sociedade; a segunda, por outro lado, reporta-se às regras, uma vez que,
como mediações cognitivas, se mostram constitutivas dos fatos sociais, bem
como servem de instrumento para a garantia do espírito de disciplina e o
equilíbrio da sociedade (cf. Castoriadis, 1975, p. 184).
Por outro lado, ao mesmo tempo em que o trabalho se comporta como
experiência portadora de esquemas cognitivos do valor instituidor (negação),
este assume um caráter dialético ao se comportar como elemento de interação
(negação da negação). A instituição do indivíduo social refere-se não somente
a uma apropriação do mundo sob forma de imagens e de regras, mas tam-
bém pelo fato de que pressupõe um envolvimento ativo do sujeito, o qual
constrói sua identidade opondo-se aos significados do outro. A identidade
constitui-se como condição do processo de socialização, processo sequencial
por meio do qual o ego apreende o mundo das comunidades existentes, bem
como seleciona o conjunto de papéis nos quais ele se investe. Essa dialética
hegeliana do reconhecimento pelas interações mostra que a vida social não
é governada tanto pela preocupação de se defender do outro, mas, muito
pelo contrário, de se fazer reconhecer por ele. Nesse sentido, tal como Hegel
deixou representado na dialética do senhor e do escravo, o trabalho permite
ao indivíduo operar esse reconhecimento, permite ao homem tomar cons-
ciência de sua própria existência, de afirmar seu domínio sobre a natureza
e sobre as coisas e, in fine, de operar em favor de uma transformação das
relações sociais (cf. Hegel, 1991, p. 156).
Anos mais tarde, a partir de meados do século XIX, com a fundação
da sociologia e a estruturação da moderna teoria social, o trabalho veio a
despontar como uma de suas principais preocupações, ocupando o lugar de
categoria central. Seja na sociologia burguesa, seja na marxista, a centrali-
dade do trabalho sempre marcou a análise da vida social e aí fez seu lugar
comum na sociologia. Os autores clássicos da sociologia, ao desenvolverem
suas argumentações, problemáticas e teses, não obstante a particularidade
de cada objeto investigado, reafirmaram e fizeram prevalecer na teoria social
o caráter do trabalho como uma categoria central.
No constructo teórico desenvolvido por Marx, o autor, ao herdar a tradi-
ção hegeliana, considerou o trabalho sua categoria central e principal para a

4 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Luís Antônio Cardoso

explicação sociológica da sociedade ocidental1. Ao construir as análises e os 1. Embora a obra de Marx não
torne explícita em seu conjunto
conceitos da exploração capitalista, das classes sociais, do Estado moderno, da a existência de uma sociologia e
luta de classes, da ideologia, da alienação, da formação do valor, do capital, de um instrumento da explicação
sociológica, concordamos com as
entre outros não menos importantes, Marx evidenciou como o trabalho, teses de Lefebvre e Durand, nas
além de pano de fundo de todas essas questões, constitui-se como uma eterna quais se identificam as premissas
de uma sociologia no legado
necessidade natural da vida social, isto é, o meio pelo qual permitiu ao ser de Marx (cf. Lefebvre, 1966;
social se impor sobre a natureza que o cerca, exercer seu reconhecimento Durand, 1995).

sobre ela e transformá-la, transformando-se a si próprio.


Na sociologia desenvolvida por Weber, a categoria trabalho também
ocupou lugar central. Nessa tradição sociológica, o autor mostrou como a
Weltanschauung exerceu um papel determinante na gênese do capitalismo
moderno e na construção da noção moderna de trabalho. Assim, a ascese
protestante, bem como todas as visões do universo intra e extramundano
fizeram do trabalho uma vocação (Beruf ). Ela transformou o burguês em
um homem de negócios racional e colocou à sua disposição os trabalhado-
res sóbrios, conscienciosos, de uma capacidade de trabalho pouco comum
e apegados ao trabalho tal como o destino que Deus quis para suas vidas
(cf. Weber, 2003, p. 244). Além disso, Weber também tornou central em
sua análise e procurou evidenciar o papel do trabalho na composição da
racionalidade capitalista, mostrando como a racionalidade estratégica do
cálculo capitalista tornou-se a força motriz dominante da racionalização,
desvinculando o trabalho de todos os critérios de referência doméstica e de
satisfação pessoal do indivíduo.
Em outro polo, na tradição sociológica positivista francesa, Durkheim
também confirmou a importância do trabalho como categoria central. Ao
tomar o trabalho como ponto de partida de seu constructo analítico, o autor
procurou associá-lo como elemento do processo de interação (negação da
negação) do indivíduo na sociedade. Em duas de suas obras, O suicídio, de
1897 (cf. Durkheim, 1983), e, posteriormente, A divisão do trabalho social,
de 1902 (cf. Idem, 1978), o autor tomou como argumento a ideia segundo
a qual as corporações de ofício seriam uma forma de se remediar a crise que
ele ora diagnosticava. Essas instituições do trabalho, segundo ele, seriam
capazes de produzir critérios de justiça e de tornar os trabalhadores mais
integrados à vida social. Por conta disso, ele achava que essas instâncias de
regulamentação poderiam e deveriam se impor no lugar dos organismos
sociais (Estado, comunidades, família etc.), bem como produzir regras
comuns e participar na construção e no reconhecimento dos indivíduos
enquanto seres sociais. Mais precisamente, nessa sua última obra, Durkheim

novembro 2011 5
A categoria trabalho no capitalismo contemporâneo, pp. 265-295

analisou a diferença entre os diferentes tipos de solidariedade existentes nas


sociedades (tradicional e industrial) e buscou demonstrar o surgimento de
uma solidariedade orgânica em um ordenamento corporativo da sociedade
burguesa, evidenciando, pois, a divisão do trabalho como uma nova fonte
de solidariedade e de integração social.
Destarte, tal como se pode perceber, a sociologia clássica, bem como todo
o pensamento social que a ela se seguiu, consagrou o propósito da categoria
trabalho como um dado social central. A partir dessa ideia, a construção
teórica social, a formulação dos princípios gerais que delineiam a estrutura,
a dinâmica, a integração, os conflitos e suas tensões, o desenvolvimento e
a construção da autoimagem do presente e do futuro da sociedade ficaram
fortemente centrados no pressuposto de uma sociedade do trabalho.

A perda da centralidade do trabalho e suas visões

Entretanto, a partir do final da década de 1960, um conjunto de autores


despontaria no cenário da sociologia, abrindo fortes questionamentos quanto
à centralidade ocupada pela categoria trabalho no pensamento social.
De fato, a crise estrutural do capitalismo ora desencadeada e seguida pelas
crises do Estado, da regulação da economia, do tradicional sistema taylorista/
fordista de produção industrial, seu consequente declínio e o surgimento de
um novo setor produtivo calcado nas novas tecnologias da informação e da
comunicação, na automação de base microeletrônica e da economia de servi-
ços levou inúmeros autores a desenvolver o credo de que esse momento da his-
tória do mundo se fez acompanhar de uma crise da racionalidade capitalista,
bem como do pressuposto sociológico que até então sustentara a concepção
de uma sociedade do trabalho.
Essa crise estrutural da sociedade, segundo o debate produzido, estaria
lançando o gérmen de um novo sistema dotado de uma nova e diferente
racionalidade. O argumento principal desses autores residiu no fato de que
esse capitalismo seria um sistema novo e diferente, no qual prevaleceria a
superposição da racionalidade formal/instrumental tradicional por uma nova
racionalidade, não tanto instrumental, calculista e voltada para a obsessiva
valorização do capital, mas, muito pelo contrário, voltada para a redesco-
berta e maior valorização do elemento humano e de sua subjetividade no
conjunto do processo produtivo.
Nesse sentido, diante das inúmeras transformações na economia e na
sociedade, e a partir das novas formas de produção e de trabalho delas ad-

6 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Luís Antônio Cardoso

vindas, lançou-se a hipótese de que o esquema tradicional de uma sociologia


fortemente centrada na categoria trabalho, isto é, no trabalho referente a
um capitalismo estável, não seria mais capaz de dar conta das inúmeras
formas sociais com que o novo capitalismo fazia desabrochar, e com as quais
a sociologia se deparava.
Assim, esse novo movimento teórico questiona fortemente a ideia da
centralidade trabalho comdo categoria sociológica fundamental, propondo,
inclusive, sua descentralização no conjunto do pensamento social.
Os primeiros escritos desse movimento despontam no final da década de
1960 e entre os pioneiros se encontra Jürgen Habermas, com a publicação,
em 1968, de Técnica e ciência como ideologia (cf. Habermas, 1968, 1978),
que lançou as bases para a ampliação desse controverso debate. Nas décadas
seguintes, outros textos são produzidos, ampliando consideravelmente a
contribuição para a discussão. Entre os mais relevantes, está a obra de Ha-
bermas, Para a reconstrução do materialismo histórico (cf. Habermas, 1976,
1983), bem como a obra de André Gorz, Adeus ao proletariado (cf. Gorz,
1980, 1982), já no final dos anos de 1970. Na década seguinte, a produção
intensificou-se e novos textos, bem mais polêmicos, apareceram. Logo no
início da década, Jürgen Habermas mais uma vez voltou a polemizar o debate
com outros textos e com a obra intitulada A teoria da ação comunicativa (cf.
Habermas, 1981, 1984, 1987b). Em seguida, Claus Offe, ao lançar o livro
Trabalho & Sociedade (cf. Offe, 1984, 1989), amplia consideravelmente
esse movimento teórico crítico. Não obstante, outros autores não menos
importantes ampliam o debate. É o caso de Adam Schaff, com Sociedade
informática (cf. Schaff e Friedrichs, 1982, 1990), e Robert Kurz, com O
colapso da modernização (cf. Kurz, 1991, 1992).
Doravante, discutiremos cada uma dessas teses em seus quadros gerais
e pormenores.

Jürgen Habermas: a obsolescência do valor trabalho

Um autor que contribui bastante para a difusão dessa nova onda de


pensamento alternativa à afirmação unívoca da racionalidade instrumental
capitalista é o herdeiro frankfurteano Jürgen Habermas. Embora oriundo
da tradição de pensamento do marxismo weberiano, Habermas desde há
muito procura desestabilizar o lugar ocupado pela racionalidade instru-
mental capitalista na teoria social, em posição nitidamente contrária aos
fundamentos teóricos de sua origem, a Escola de Frankfurt.

novembro 2011 7
A categoria trabalho no capitalismo contemporâneo, pp. 265-295

Em um de seus trabalhos, o célebre Técnica e ciência como ideologia, rea-


lizado no final da década de 1960, o autor esboça uma tentativa de rejeição
quanto à viabilidade de entender e explicar a possibilidade da emancipação
no capitalismo tardio pela centralidade da categoria trabalho. Não obstante,
Habermas propõe a desqualificação e o enquadramento, em segundo plano,
da teoria do valor marxista. Ao considerar a ciência como a principal força
produtiva em substituição ao valor trabalho, Habermas considera que este
último teria se tornado obsoleto, inoperante.
Essa polêmica mostra-se evidente no debate travado com Marcuse ao
longo do texto, em que Habermas acredita haver uma alteração fundamental
na relação entre técnica e ciência enquanto elemento de legitimação da domi-
nação. Para ele, Marcuse acredita que a racionalidade técnico-científica, em
última instância, pode ser entendida como um instrumento de dominação,
tanto sobre a natureza quanto sobre os homens. Assim, a racionalidade é pen-
sada tal como uma ideologia para a manutenção do sistema, bem como para
converter as massas em suporte de legitimação do próprio sistema. Marcuse
sustenta que o conceito de razão técnica é revestido de um forte componente
ideológico que facilita a dominação sobre a natureza, bem como sobre os
homens. A racionalidade implica a institucionalização da dominação, na
qual o antagonismo entre forças produtivas e relações de produção não mais
funcionaria tal como pensado por Marx, em favor de um esclarecimento
político, mas sim como um fator preponderante para o obscurecimento e a
legitimação da dominação. Segundo Habermas, Marcuse realiza uma fusão
de técnica e dominação, que oculta, através de uma aparente neutralidade,
um projeto de mundo totalmente voltado para os interesses das classes domi-
nantes. Logo, com vistas a contrapor-se a esse modelo de desenvolvimento
técnico-científico como instrumento de dominação da sociedade industrial,
Marcuse acredita no desenvolvimento de uma nova ciência. Para a constru-
ção de uma vida emancipada, faz-se necessário revolucionar a ciência, tanto
em sua metodologia quanto em seu constructo teórico. Todavia, Habermas
recusa essa possibilidade. Para ele, a consideração de Marcuse faz-se impossí-
vel, pois, além de privilegiar uma conexão de técnica e ciência com um agir
instrumental, esta reduz a possibilidade de conduzir a ciência a um projeto
emancipador da humanidade, uma vez que a ciência é vista tão somente
como historicamente superável. Ao recusar a proposta de Marcuse, Habermas
acredita que o capitalismo atual não mais comporta o esquema analítico pro-
posto, uma vez que a técnica e a ciência não cumprem mais, como outrora, a
função de legitimação da dominação. Assim, é nesse sentido que Habermas

8 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Luís Antônio Cardoso

irá propor uma nova distinção entre trabalho e interação, desacreditando o


peso da racionalidade instrumental sobre o trabalho, proposta tanto por We-
ber quanto por Marcuse. Pois, tal como o próprio Habermas sublinhou, “[...]
a tese fundamental de Marcuse, de que a técnica e a ciência cumprem hoje a
função de legitimação da dominação, proporciona-nos a chave para a análise
da constelação que foi alterada” (1987a, p. 68).
Segundo Habermas, há outro componente social, ora obscurecido pela
racionalidade instrumental weberiana, e que precisa ser descortinado com
o despontar do avanço tecnológico surgido desde fins da década de 1960,
avançando a todo vapor pelos anos seguintes. Dando continuidade a suas
ideias, Habermas, em outro trabalho de 1976, denominado Para a reconstru-
ção do materialismo histórico (cf. Habermas, 1976, 1990), tentará mostrar esse
componente obscurecido. Tomando como ponto de partida os pressupostos
fundados na Ideologia alemã, de Marx e Engels, os quais preconizam que os
movimentos humanos são fundamentados na construção de um modo de
vida material, Habermas tentará, com base na história do processo evolutivo
e antropogenético, construir um mapeamento das distintas características
dos hominídeos, dos primatas e dos Homo sapiens. Assim, ao comparar esses
diferentes estágios do desenvolvimento humano, o autor preconizará que,
diferentemente dos hominídeos, regidos por um agir estratégico com base na
razão instrumental, os Homo sapiens caracterizar-se-ão como seres de evolução
social, dotados de uma complexidade singular, que os tornam diferentes dos
outros. Não obstante, essa complexidade decorrente do processo natural de
evolução dotará os Homo sapiens de um sistema de normas sociais, no qual a
linguagem se tornará um elemento presente e indispensável para a existência
no sistema (cf. Habermas, 1990, p. 116). Na realidade, o que Habermas
quer dizer é que a linguagem nos Homo sapiens atinge um nível bastante
desenvolvido, gerando uma nova forma de razão comunicativa, inexistente
nos outros estágios da vida humana. Isto posto, e definindo os Homo sapiens
como seres de linguagem e, consequentemente, de razão comunicativa, além
de razão instrumental, Habermas sustentará a tese segundo a qual o trabalho
e a linguagem, por sua vez, antecedem o homem e a sociedade. Destarte, ele
torna a teoria marxista materialista contida na Ideologia alemã algo obsoleto,
incapaz e insuficiente para capturar a forma de vida humana. É com base
nesse pressuposto que ele irá elaborar seu constructo teórico, já previamente
organizado nos textos anteriores da década de 1960, qual seja, o da linguagem
como fundamento das interações humanas capaz de permitir a construção
de vínculos valorativos e normativos entre os indivíduos. Visto sob outro

novembro 2011 9
A categoria trabalho no capitalismo contemporâneo, pp. 265-295

prisma, Habermas opera, em um primeiro plano, a articulação entre traba-


lho e linguagem com o intuito de demonstrar que nessa articulação reside a
exclusividade social. Posteriormente, em outro plano, distingue interação e
trabalho, ou, no dizer habermasiano, agir comunicativo e agir instrumental.
Para ele, é justamente esse agir comunicativo que se destacará como a cate-
goria fundamental para a compreensão das relações sociais. A perspectiva
materialista sobre o trabalho, tal qual elaborada por Marx, é então rejeitada,
justamente por não considerar essas dimensões da linguagem e da interação,
ora evidenciadas por Habermas.
Em outro trabalho de 1981 – Teoria da ação comunicativa –, conside-
rado uma das mais importantes e polêmicas de suas obras, Habermas irá
definitivamente repensar a racionalidade do sistema capitalista, ampliando
a tese do agir comunicativo. Ao realizar uma profunda releitura da teoria
weberiana da racionalização, critica a inexistência, no pensamento de We-
ber, de uma consideração sobre os fenômenos subjetivos da linguagem e
de sua interação entre os homens na sociedade. Ao tomar essa ideia como
fio condutor de seu pensamento, Habermas tenta recompor a teoria da
racionalização de Weber por considerar que ela tem um peso excessivo na
reflexão sobre a esfera do agir instrumental. Para o autor, Weber comete
um equívoco ao utilizar o conceito de racionalização de forma reducionista,
motivado pela hegemonia da razão instrumental sobre a razão valorativa.
Destarte, Habermas estabelece sua crítica fundamentando que o excesso
de racionalidade contido na obra weberiana será o motivo direto de seu
desencantamento e de sua resignação acerca da possibilidade da emancipa-
ção do homem na sociedade capitalista. O excesso de negatividade contido
na proposta de Weber, segundo Habermas, obscurece uma perspectiva de
emancipação do homem.
A partir disso, seguindo sua linha de argumentação, já inaugurada an-
teriormente em outros trabalhos, ele identifica a existência de uma nova
racionalidade, a qual denomina “racionalidade comunicativa”, ou agir
comunicativo. É esse agir que no constructo teórico de Habermas dará
estrutura ao sistema social humano, isto é, à vida concreta, oferecendo
possibilidade para a integração social, a qual, por consequência, efetiva a
prática do trabalho social. É assim, pois, que a linguagem assume seu lugar
e desloca o trabalho do papel predominante e hegemônico.
Isto posto, Habermas defende que na existência humana existem basi-
camente dois subsistemas: o sistema e o mundo da vida. No sistema, preva-
leceria a existência da racionalidade instrumental, que ele denomina “agir

10 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Luís Antônio Cardoso

teleológico e estratégico”, ao passo que no mundo da vida prevaleceria a


racionalidade linguística, o agir comunicativo, essencialmente voltado para
a intersubjetividade e a interação. Habermas efetivará uma distinção entre
o trabalho (esfera da necessidade, da razão instrumental e do sistema) e a
interação (esfera do agir comunicativo, da liberdade e do mundo da vida).
Tomando esse constructo teórico como eixo de sua análise sobre o
desenvolvimento do capitalismo, Habermas afirma que, com o advento
da modernidade, o sistema e o mundo da vida sofreriam uma espécie de
desacoplamento e, com o aumento da complexidade das relações capitalistas
de produção, o sistema tenderia a instrumentalizar o mundo da vida. Tal
como numa sociedade tribal, o sistema estaria colonizando o mundo da
vida, isto é, transferindo a racionalidade instrumental para o universo da
racionalidade comunicativa através da instrumentalização da vida, que se
daria pela generalização do poder, do dinheiro, da monetarização e da buro-
cratização. Todavia, o autor acredita que o capitalismo não seria totalmente
destrutivo para a humanidade como previra Weber, mas, ao contrário, o
sistema não seria capaz de colonizar totalmente o mundo da vida, restando
um espaço para o desenvolvimento da intersubjetividade, de um potencial
comunicativo entre os homens (que futuramente os libertaria do sistema),
para a afirmação da utopia (que se encontra no mundo da vida) e para a
pacificação do conflito de classes na sociedade capitalista. Habermas tenta
desmontar Weber, afirmando que existiria no capitalismo um espaço para
essa nova racionalidade, totalmente diferente da racionalidade instrumental,
que tornaria os homens livres da instrumentalização da prática comunicativa
e, portanto, livres das imposições do sistema instrumental. Por outro lado,
uma vez mais, Habermas, com essa nova teoria, tenta desmontar a teoria
do valor marxista, afirmando que Marx causa uma travagem dialética entre
sistema e mundo da vida, além de não fornecer uma análise satisfatória
para a análise do capitalismo tardio. Em suma, com todo esse constructo
Habermas quer mostrar que se opera um deslocamento de centralidade das
categorias sociais. O trabalho não mais se mostra como uma esfera central por
excelência da sociedade pós-industrial; esse lugar é agora ocupado pela ação
comunicativa. A esfera do trabalho é substituída pela esfera comunicacional
ou da intersubjetividade, na qual encontramos o novo núcleo da utopia.
Embora bastante polêmica e propagada no meio intelectual e acadêmico do
estudo do trabalho através de vagas de modismos habermasianos, essa teoria
conquistou um espaço considerável, influenciando diversos outros autores.

novembro 2011 11
A categoria trabalho no capitalismo contemporâneo, pp. 265-295

André Gorz: o fim do proletariado

Em um trabalho altamente inusitado e polêmico, denominado Adeus ao


proletariado, lançado na França no ano de 1980 e no Brasil em 1982, um dos
pioneiros desse movimento, o ensaísta francês André Gorz, dispara sua tese.
Nesse trabalho, o autor, ao analisar a crise do sistema europeu de produção e
a relativa redução do operariado industrial nos países capitalistas avançados,
conclui pelo argumento de que a classe operária, ou o proletariado, estaria em
vias de desaparecimento. Tal tese, diante da confirmação que obtinha com a
crescente crise que assolava o universo do trabalho europeu, obtém uma enor-
me repercussão nos meios acadêmicos e não acadêmicos de todo o mundo,
confirmando seu sucesso, além de abalar as estruturas do movimento operário
e influenciar todo um grupo de autores e pensadores.
De um modo geral, a tese desenvolvida por Gorz parte do pressuposto
de que a crise do capitalismo nos países centrais teria ocasionado uma
substituição crescente e contínua da tradicional classe operária por uma
nova classe, que ele denomina de não-classe-de-não-trabalhadores. Segundo
o autor, esta seria composta pelas pessoas excluídas do mercado formal de
trabalho assalariado, desempregados, trabalhadores em tempo parcial e tem-
porários, em razão da introdução, difusão e desenvolvimento do processo
da automação, da microeletrônica e das novas tecnologias da informação.
Destarte, a não-classe-de-não-trabalhadores, diferentemente da classe operária
tradicional, não mais teria o emprego como uma garantia, como outrora,
mas como uma atividade provisória, acidental e contingente (cf. Gorz, 1982,
p. 89). Portanto, para Gorz, a não-classe-de-não-trabalhadores está sujeita à
vulnerabilidade do presente, não gozando, pois, de nenhuma concepção de
sociedade futura. Assim, essa nova camada social carece de definição, não
podendo assumir aquelas da sociologia tradicional. Uma vez que o trabalho
atual, em razão direta da revolução microeletrônica – que destrói os postos
de trabalho, diminuindo a quantidade de trabalho social e aumentando o
desemprego tecnológico –, não pode mais ser visto como uma atividade
principal da sociedade, a nova não-classe-de-não-trabalhadores desvincula-
se do processo produtivo e não tem um lugar definido nessa nova ordem.
É assim, portanto, que Gorz justifica a máxima de Adeus ao proletariado.
A consequência mais direta dessa revolução microeletrônica que se abate
sobre o mundo capitalista faz Gorz vislumbrar um processo de dualização
do mercado de trabalho, que passa a conviver com um centro privilegiado
composto de trabalhadores empregados em tempo integral e uma periferia

12 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Luís Antônio Cardoso

constituída, crescentemente, por trabalhadores parciais, domésticos, e até


mesmo por subempregados e desempregados. Essa dualização não poderia
perdurar por muito tempo, uma vez que o centro apresenta uma tendên-
cia a diminuir quantitativamente, e o crescente número de trabalhadores
centrais dispensados encontraria dificuldade de ser absorvido pelo setor
terciário, que se encontra em transformação intensiva provocada por sua
crescente automatização. Em consequência, o trabalho perderia sua força
de integração social e passaria a constituir-se prioritariamente como fator
de desintegração social (cf. Idem, p. 53).
São esses fatos, pois, que levam Gorz a propugnar o fim da utopia do traba-
lho, já que, para o autor, não existe mais a necessidade do trabalho das pessoas
na economia e, assim, este não se justifica como fundamento do processo de
integração social (cf. Idem, p. 223).
A única forma de superar esse processo seria a distribuição da quantidade
do trabalho socialmente necessário entre a população. Na perspectiva do au-
tor, se a sociedade não for capaz de repartir o trabalho liberado pela revolução
microeletrônica, os empregos serão transformados em atividades privadas
e de lazer. Por isso, a redução do tempo de trabalho e sua distribuição têm
por objetivo repensar a relação entre trabalho e vida, sem que o primeiro
domine a segunda por meio da monetarização de atividades antes exercidas
de forma gratuita. Em virtude da crescente racionalidade, do avanço técnico
e da divisão do trabalho, Gorz sustenta que os trabalhadores são impedi-
dos de encontrar no trabalho uma atividade plena de significado. Assim, a
redução do tempo de trabalho faz-se fundamental para que os indivíduos
encontrem na totalidade da vida o desenvolvimento de suas habilidades
culturais e cognitivas, não mais obtidas no mundo do trabalho.
Em resumo, Gorz alude à redistribuição do trabalho socialmente neces-
sário como forma de romper com a dualidade por ele vislumbrada entre um
mercado de trabalho central e outro periférico. Assim, o autor edifica uma
sociedade dual, baseada em duas racionalidades distintas: uma econômica
e outra não econômica. A primeira refere-se à ideia do tempo de trabalho
vinculado à racionalidade econômica; a segunda é representada pelo tempo
livre, na qual o indivíduo realiza sua autonomia e emancipação.
Segundo Gorz, a única solução possível para a crise que vivemos é a de
tipo dualista, pela organização de um espaço social descontínuo que com-
porta duas esferas distintas e uma vida organizada pela passagem de uma
racionalidade à outra. Destarte, o autor sustenta a tese segundo a qual a
esfera da racionalidade econômica ou da heteronomia não irá desaparecer

novembro 2011 13
A categoria trabalho no capitalismo contemporâneo, pp. 265-295

por completo, mesmo considerando que o tempo livre exercerá certa pre-
dominância em relação ao tempo de trabalho.
Essa dualidade entre as esferas da autonomia (liberdade) e da heteronomia
(necessidade) remonta sobre a clássica dualidade existente entre a raciona-
lidade de tipo instrumental, da esfera da necessidade, e aquela do espaço
auto-organizado e intersubjetivo dos indivíduos, isto é, a esfera da liberdade.
Gorz pressupõe o tempo livre e a abolição do trabalho, e o processo de
adeus ao proletariado, ao qual faz referência, está relacionado com o avanço
da técnica e da revolução autônoma das forças produtivas, que ele denomina
“revolução microeletrônica”. Esta última permitiria subverter o tempo de
trabalho como medida de valor, já que inaugura o decréscimo da massa total
do capital fixo posto em ação para produzir um volume crescente de merca-
dorias, e também, em razão disso, provocaria um acirramento da contradição
inerente ao próprio capitalismo (cf. Idem, pp. 68-70).
Assim, o ocaso do trabalho e a agonia do capital, vislumbrados por Gorz,
serão potencializados pelo próprio processo de automatização das atividades
produtivas e de serviços. A técnica, todavia, gozará de uma neutralidade
que, de forma geral, inaugura a era da abolição do trabalho, uma vez que
este tende a tornar-se uma força produtiva secundária diante da potência
do automatismo e da complexidade dos equipamentos (cf. Idem, p. 277).
Gorz esvazia, então, não só a esfera do trabalho, mas também a da po-
lítica, pois, para ele, a revolução microeletrônica corresponde à aspiração
de uma proporção importante dos homens e das mulheres por (re)tomar o
poder da e sobre a vida (cf. Idem, p. 171).
Por fim, é a partir da tese da neutralidade da técnica que Gorz erige sua
utopia de uma sociedade de tempo livre. Nessa sociedade, o trabalho hete-
rônomo é subordinado à esfera da autonomia, uma vez que a possibilidade
de redução do tempo de trabalho permite a transformação do trabalho em
atividade, e não na atividade. Para o autor, a redução do tempo de trabalho
deve ser considerada um fim para reduzir as desigualdades sociais. Assim,
ela não pode ser seletiva nem muito menos pode estar condicionada aos
ganhos de produtividade, e seu objetivo maior é que a redistribuição do
trabalho socialmente necessário seja benéfica para todos.

Clauss Offe: a perda da centralidade do trabalho

Outro autor, também de origem neofrankfurteana, que procura de forma


análoga reverter o lugar da racionalidade instrumental no capitalismo é Claus

14 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Luís Antônio Cardoso

Offe. Influenciado diretamente por Habermas, o autor alemão, diante de


evidências empíricas observadas no mundo do trabalho, irá propor a tese da
perda da centralidade do trabalho como categoria sociológica fundamental
para a compreensão da vida social.
A análise de Offe sobre a crise da sociedade do trabalho toma como ponto
de partida três argumentos distintos: o primeiro se baseia em uma afirmação
do ministro do Trabalho e da Ordem Social da Alemanha, no texto O traba-
lho continua, segundo a qual a fase vivida pela sociedade do trabalho deve ser
interpretada como um sintoma de crise dessa mesma sociedade. O segundo
argumento, fundamentado em dados e pesquisas empíricas de diversos auto-
res, conduz Offe a afirmar que muito embora se observe a tendência ao cres-
cimento da produção econômica de bens e serviços, mesmo que em índices
reduzidos, os dados empíricos evidenciam uma capacidade decrescente do
mercado de absorver a força de trabalho, isto é, os trabalhadores. Offe acre-
dita ainda que, mesmo diante da ausência dessa oscilação de mercado, a crise
da sociedade do trabalho teria como fundamento uma perda da qualidade
subjetiva de centro organizador das atividades humanas, da autoestima e das
referências sociais, bem como das orientações morais. E, por fim, o terceiro ar-
gumento fundamenta-se na constatação, também empírica, de uma profunda
diferenciação interna ao mercado de trabalho entre os indivíduos regulados
por trabalho remunerado contratual. Isso posto, tais argumentos levam Offe
a acreditar que a sociedade do trabalho do século XX está em crise.
Crise, capacidade decrescente de absorção de mão de obra e diferenciação
interna dos trabalhadores assalariados sob a forma contratual são, segundo
Offe, aspectos reveladores de que o trabalho em nossa sociedade se encon-
tra sob um rígido processo de transformação de sua divisão, organização,
fragmentação e racionalidade, desqualificando-o como categoria central de
análise. Ou seja, dessa crise da sociedade do trabalho, Offe deriva a perda
do caráter explicativo fundamental do trabalho como categoria sociológica.
No argumento desenvolvido, ao analisar a sociologia clássica e a constru-
ção de seu objeto, Offe percebe que ela toma como pano de fundo o trabalho
inserido no modelo de uma sociedade burguesa consumista, movida por
uma racionalidade e abalada por conflitos de natureza trabalhista. Todavia,
com o incremento da atividade industrial, desde o século XIX, a organiza-
ção do trabalho e o desenvolvimento do cálculo racional e da racionalidade
técnica acabam por evidenciar o trabalho no pensamento social como uma
categoria central e reveladora dos princípios de organização da sociedade,
tornando-se o eixo em torno do qual se reproduziu a vida social.

novembro 2011 15
A categoria trabalho no capitalismo contemporâneo, pp. 265-295

Em outras palavras, o trabalho deixa de assumir uma posição estratégica


na sociedade, tal como ocorria entre o fim do século XVIII e o término da
Primeira Guerra Mundial, já no século XX, época dos autores clássicos da so-
ciologia. De fato, o conjunto de transformações ocorridas a partir do último
quartel do século XX, como o declínio das ocupações do setor secundário,
o desemprego estrutural, o avanço da racionalidade técnica e a diminuição
do emprego assalariado, evidencia, segundo Offe, a crise da sociedade do
trabalho, bem como a perda do trabalho assalariado como fator de integração
social. Essa crise é percebida como uma mudança do quadro institucional
da sociedade, na qual o trabalho remunerado formal perde sua qualidade
subjetiva de centro organizador das atividades humanas de autoestima e de
referências sociais, assim como de orientações morais. Assim, Offe constata
a diminuição das tentativas de compreender a realidade social por meio das
categorias do trabalho assalariado, ou seja, observa-se uma ampliação do
espectro das pesquisas sociais que não colocam mais em evidência o trabalho
como categoria fundamental para a análise da vida cotidiana.
Offe descreve o processo de diferenciação, fragmentação e heteroge-
neização do mundo do trabalho, tomando como referência o crescimento
vertiginoso do setor terciário da economia, isto é, o setor de serviços. O
crescimento desse setor não pode ser interpretado por um modelo em que
a totalização da racionalidade do trabalho é baseada na produção técnica
organizacional economicamente eficiente. Trata-se de um setor no qual
prevalece uma racionalidade específica e diferente daquela dominante no
setor industrial. Essa distinção, no entender do autor, implicará maior dife-
renciação interna da coletividade dos trabalhadores assalariados. Assim, com
o surgimento da sociedade pós-industrial de serviços, a referência unitária
do trabalho dilui-se e as atividades laborais do setor industrial deslocam-
se para o setor de serviços, onde a heterogeneidade da atividade é muito
grande e não permite a ocorrência de critérios similares de produtividade
e de racionalidade técnica.
Logo, questões como crescimento do setor de serviços, declínio da par-
ticipação dos trabalhadores do setor industrial, desemprego, expansão do
emprego parcial, crise do Estado de Bem-Estar Social e fragmentação da
sociedade salarial são para Offe indícios do declínio da ética do trabalho, uma
vez que este ocupará cada vez menos espaço na trajetória dos trabalhadores.
Não obstante essa perda, Offe aponta, também, a ampliação do tempo
livre como uma tendência geral em vias de se afirmar. Ao considerar o
grau de desenvolvimento tecnológico, o autor constata uma diminuição

16 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Luís Antônio Cardoso

da proporção do tempo de trabalho dedicado na sociedade. Diante disso,


ele descentraliza a importância do trabalho no pensamento social e vati-
cina que, para além dessa categoria, questões consideradas secundárias na
sociologia, como étnica, gênero, ecologia, entre outras, ganharão relevân-
cia na área.
Em suma, a ideia central de Offe é de que, por conta da fragmentação,
da diferenciação do trabalho e da produção de uma cultura do não trabalho,
oriunda do aumento da população de excluídos do emprego industrial for-
mal, a consciência social não pode mais ser reconstruída como consciência
de classe e, portanto, a sociologia deve buscar outras categorias para construir
seu objeto, explorando aquelas que estejam além da esfera do trabalho. Tais
categorias surgem para refundar o pensamento social e não se reduzem mais
à perspectiva das contradições e dos conflitos tradicionais na sociologia,
mas, ao contrário, tendem a se erigir sobre o espaço da economia de servi-
ços. Assentada sobre uma base mais comunicacional do que instrumental,
essa nova racionalidade do sistema fará, segundo o autor, despontar para a
sociologia novas categorias que tenderão a se apoiar sobre o espaço vital, o
modo de vida e o cotidiano dos que compõem a nova sociedade.

Adam Schaff: as tecnologias da informação e o fim do trabalho abstrato

Em outro polo, o debate da crise da sociedade do trabalho se amplia com


o filósofo polonês Adam Schaff, que propõe o anúncio do fim do trabalho, na
sua forma abstrata, com o advento da sociedade informática. Ao identificar
a revolução das tecnologias da informação no final de século XX, o autor
analisa o impacto daquilo que denomina Segunda Revolução Industrial nos
âmbitos econômico, político-social e cultural quanto ao indivíduo humano,
ao sentido e estilo de vida e ao sistema de valores.
Para Schaff, essa nova revolução industrial será vista como o resultado
de uma tríade – composta pela revolução microeletrônica e técnico-indus-
trial, a revolução da microbiologia e da engenharia genética, e a revolução
energética –, a qual irá mudar qualitativamente a base técnica do processo
produtivo e afetar significativamente as relações sociais em seu conjunto
(cf. Schaff, 1990, p. 23).
Enquanto na primeira fase, por um período aproximado de duzentos
anos, a sociedade produziu inúmeros inventos que permitiram ao homem
ampliar e substituir de forma fantástica a força física humana, a segunda
fase se produz de forma diversa, ampliando as capacidades intelectuais,

novembro 2011 17
A categoria trabalho no capitalismo contemporâneo, pp. 265-295

substituindo o trabalho humano por autômatos, eliminando-o na produção


e nos serviços (cf. Idem, p. 22).
Embora demonstre a superioridade da Segunda Revolução Industrial em
relação à primeira, Schaff observa que ambas produziram saltos qualitativos,
embora antagônicos. Enquanto a primeira produziu um enorme incremento
na produtividade do trabalho humano, a segunda, por sua vez, concentrou
e dirigiu sua atenção na eliminação deste.
Assim, a transformação revolucionária da ciência e da técnica implica
modificações na produção e nos serviços que, em consequência, produzem
mudanças nas relações sociais.
No plano econômico, observa o autor, o impacto mais profundo dar-
se-ia com a redução de trabalho humano e o consequente acirramento do
desemprego estrutural. A saída para esse problema seria a substituição do
trabalho tradicional, ou remunerado, por atividades que dessem sentido à
vida, mesmo que para assegurar o bem-estar psíquico dos homens despro-
vidos de trabalho. A sociedade futura ideal não seria nem um sistema de
tipo capitalista nem socialista, mas uma espécie de economia coletivista. Ao
observar o impacto da revolução tecnológica, o autor conclui pelo fim do
trabalho tradicional, na sua forma abstrata, e defende que os homens passa-
riam a exercer, uma vez que a classe trabalhadora também deixaria de existir,
as mais diversas formas de ocupação. Schaff crê ainda que as classes sociais
fundamentais tenderiam a um fim, na medida em que as mudanças na base
técnica levariam à extinção da propriedade privada dos meios de produção
e dos serviços em larga escala e, consequentemente, da classe capitalista.
No plano político, ele também vislumbra profundas mudanças dire-
tamente ligadas à democracia. Acredita que esta sofrerá uma espécie de
diluição, dado o fortalecimento de uma nova política de tipo centralista
combinada com governos locais. Por fim, no plano cultural e do indivíduo,
Schaff percebe que as mudanças tecnológicas caminham no sentido da pro-
dução do cidadão do mundo, do homem universal. Esse Homo universalis
também buscará novos estilos e modos de vida, deslocando-se do Homo
laborans para o Homo ludens, o que implicará nova ética, novos valores e,
portanto, nova racionalidade.

Robert Kurz: a crise do trabalho abstrato

Robert Kurz, embora não ligado ao meio acadêmico, muito contribuiu


para a crítica ao lançar a tese do colapso da modernização e da crise do

18 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Luís Antônio Cardoso

trabalho abstrato. Intelectual autodidata, motorista de táxi e membro de


um grupo alternativo, esse autor, em um trabalho ousado – O colapso da
modernização –, arrisca a tese de que a modernização constituída pela forma
de mercadoria das relações sociais entra em um processo de crise qualitati-
vamente diferente das crises cíclicas e está no horizonte do colapso.
A peculiaridade da tese de Kurz é que a forma de mercadoria da produção
e da relação social inclui a sociedade capitalista regida pela liberdade das regras
de mercado e o socialismo – que ele denomina “socialismo de caserna” –, o qual
se mostrou incapaz de romper com o trabalho abstrato, regulando-o apenas
pelo estatismo. Por outro lado, a débâcle do Leste europeu, revelando o fim do
socialismo, expôs os limites sombrios da modernidade e do sistema produtor
de mercadorias, uma vez que os fenômenos da exploração intensiva do traba-
lho sempre se mostraram presentes na proposta socialista. Longe de implicar a
vitória do capitalismo, a derrocada do socialismo revelou que a modernização
dos países socialistas nunca deixou de lado os fundamentos constitutivos de
uma sociedade de mercado. O socialismo real, apesar de ideologicamente
diferente, apresentava muito mais semelhanças do que diferenças em relação
às sociedades capitalistas. Em outras palavras, o socialismo nesse sentido
diferenciava-se pouco das sociedades capitalistas, uma vez que ali também
predominava o mecanismo de valorização do capital, isto é, o trabalho abstra-
to, elemento fundamental na geração do valor (cf. Kurz, 1992, p. 25).
Sob esse argumento, Kurz sustenta que a crise do sistema mundial de
produção tem de ser pensada para além da sociedade industrial, do mercado
e do Estado – para além, portanto, da sociedade do trabalho.
No tocante à questão do trabalho, das classes sociais e da perspectiva da
ruptura do capitalismo, a análise do autor aposta de forma determinística
na agonia e no fim do trabalho abstrato, da mercadoria da força de trabalho
e, como consequência lógica, no fim das classes sociais.
É justamente o trabalho abstrato, elemento fundamental da produção
de valor na sociedade, que Kurz toma como elemento central de sua aná-
lise. Ao compreender a crise do trabalho como uma forma historicamente
vinculada à sociedade produtora de mercadorias, ele resgata Marx em seu
viés de economista. Embora Kurz seja caracterizado como exclusivamente
antimarxista, ele concorda com a tese central de Marx da contradição entre
o avanço das forças produtivas e o caráter nebuloso das relações sociais de
produção (cf. Idem, pp. 80-81). Assim, o movimento letal dessa contradi-
ção efetivar-se-ia pela mediação da concorrência capitalista, que, mediante
o desenvolvimento ininterrupto das forças produtivas, alcançaria o ponto

novembro 2011 19
A categoria trabalho no capitalismo contemporâneo, pp. 265-295

de abolir o trabalho, isto é, o trabalho de produção abstrato, repetitivo,


somente destinado a criar valores.
Sua tese encontra fundamento no avanço tecnológico vivenciado pelo
capitalismo a partir da crise do fordismo na década de 1970, bem como no
avanço das novas tecnologias de informação e comunicação, da microele-
trônica e da automatização. O surgimento e a difusão de tecnologias que
prescindem de mão de obra, alavancando o aumento intensivo de capital,
com o incremento do trabalho morto em detrimento do trabalho vivo,
constituem o cenário no qual Kurz vislumbra a crise do trabalho abstrato.
Segundo ele, com o aumento intensivo e intermitente da racionalidade
técnica, o sistema do capital perde sua capacidade de explorar o trabalho
e, em consequência, constrói, de forma paradoxal, a própria destruição,
uma vez que, ao inviabilizar a absorção de trabalho vivo nos processos
produtivos, faz surgir toda uma massa de excluídos que não conseguem se
ajustar ao novo sistema.
Ainda, para Kurz, a lógica destrutiva da ciência, isto é, a capacidade des-
trutiva dessa força produtiva, inaugura a “era das trevas”, na qual o horror
não mais se constitui pela possibilidade de superexploração do trabalho,
mas pela ausência dessa exploração para milhares de indivíduos. E é nesse
cenário de horror e decadência social, moral e econômica que Kurz enxerga,
no surgimento do terceiro setor, uma possibilidade de superação da racio-
nalidade econômica vigente, que faz nascer, assim, uma nova racionalidade
de reprodução social. Esta, por sua vez, tem como fundamento uma nova
orientação, baseada em solidariedade para além do Estado e do mercado,
isto é, para além de uma racionalidade instrumental e da mediação do
dinheiro e do poder.
Quanto ao papel do Estado e do mercado, Kurz também os relaciona
com a crise do trabalho abstrato. Na medida em que a racionalidade técnica
tende a eliminar o trabalho produtivo, isto é, substituir o trabalho vivo das
fábricas pelo trabalho morto, ora simbolizado pelas máquinas e pelas novas
tecnologias, não há mais sentido em recorrer ao Estado contra o mercado,
ou vice-versa. As falhas do mercado e do Estado, em seu entender, tornam-se
idênticas, quando a forma de reprodução social da modernidade perde por
completo a capacidade de funcionamento e integração. É nesse sentido que
a crise do trabalho abstrato coloca em questão a capacidade do Estado e do
mercado de restaurar a integridade funcional da sociedade, já que ambos
sempre construíram suas formas de integração com base na exploração do
trabalho produtivo abstrato.

20 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Luís Antônio Cardoso

Por fim, Kurz propõe uma conclusão bastante controversa para sua teo-
ria. Ao mesmo tempo em que incita a luta para o rompimento da forma
de mercadoria das relações sociais de alienação, o embate deixa de ter um
sujeito, pois parte-se do pressuposto de que a classe trabalhadora perdeu
sua dimensão transformadora e revolucionária. A ruptura e a superação da
crise, bem como a instauração de uma nova sociedade, no entender de Kurz,
não seriam dadas pela construção de esquemas administrativos estatistas de
natureza burocrática, mas, ao contrário, seriam decorrência de um movi-
mento social consciente, capaz de derrubar, com o emprego da violência,
os aparatos construídos. Não obstante, o autor atribui às ciências sociais
um papel relevante nesse esforço, com vistas a elevar a consciência crítica
da sociedade, e, diante do caráter destrutivo e excludente da sociedade da
mercadoria, ele postula a emergência de uma nova racionalidade fundada na
razão sensível, capaz de emancipar o sujeito social nesse processo de ruptura.

Conclusão: uma crítica sobre as teses...

Embora este artigo não tenha a pretensão de esgotar a discussão sobre o


tema, cabe-nos apresentar questões que consideramos importantes para o
aprofundamento desse debate.
De fato, a categoria trabalho tem se mostrado ao longo da existência do
pensamento social bastante sólida e seguramente construída para a análise do
social. Concebida antes mesmo do nascimento da sociologia, e desenvolvida
pelos autores clássicos da sociologia, ela sempre se mostrou uma categoria
par execellence do pensamento social, resistindo ao longo do tempo e das
transformações sociais.
Todavia, as transformações do final do século XX por que passou o modo
de produção capitalista levaram alguns autores à crença de que as alterações
estruturais da economia e do trabalho trariam mudanças significativas e irre-
versíveis para a organização social, bem como para sua complexa análise. Não
obstante, despontam autores que, diante dos efeitos dessa crise estrutural,
se debruçam na análise e na descrição de suas formas e consequências. Tal
é o caso dos ensaístas e das teses aqui apresentadas.
Embora bem construídas, bem estruturadas, complexas e dotadas de um
refinamento intelectual que as torna peculiares, as teses giram em torno de
um eixo comum, evocando o papel do trabalho humano como elemento
central na análise do social, diante de uma crise estrutural do modo de pro-
dução capitalista, na qual a atividade produtora de valor – o trabalho – foi

novembro 2011 21
A categoria trabalho no capitalismo contemporâneo, pp. 265-295

profundamente atacada e modificada. As teses apresentadas oferecem uma


grande contribuição para a sociologia e, em especial, para a interpretação e
a análise da sociedade neste começo de século. Todavia, o debate formulado
por esses autores carece de críticas.
Um primeiro marco crítico diz respeito à tentativa de desconstrução da
centralidade da categoria trabalho no pensamento social. Tal como pude-
mos mostrar neste texto, essa categoria tem uma existência muito anterior
à própria sociologia e, portanto, autores clássicos, como Marx, Weber
e Durkheim, pertencendo ou não à tradição filosófica alemã de Hegel,
valeram-se com fidelidade do constructo hegeliano em torno da questão do
trabalho. Pode-se dizer, de certo modo, que a tradição hegeliana fundamenta
a categoria trabalho e lhe dá vida própria. Ora, assim, parece-nos bastante
razoável que qualquer proposta que se incline a desconstruir tal categoria
deva passar obrigatoriamente pela árdua tarefa de desmontar o conjunto
teórico que lhe deu origem, neste caso, o constructo da tradição hegeliana.
Notadamente, pelo que se pode observar nas teses apresentadas, nenhum
dos autores se propôs essa tarefa. Muito pelo contrário, o que as teses tomam
como base de sua crítica é a proposta de dois autores clássicos da sociologia,
Marx e Weber, e suas asserções sobre o trabalho como categoria: Marx, pela
abordagem do valor trabalho, e Weber, pela teoria da racionalização.
A obra de Habermas pretende desmontar a teoria do valor trabalho de
Marx e a teoria da racionalização em Weber. O autor não leva em conside-
ração o constructo durkheimiano da categoria trabalho e, quanto a Hegel,
este sequer é notado. Gorz e os outros autores concentram-se exclusivamente
em tentar desconstruir a categoria trabalho tomando por base a crítica à
teoria de Marx, esquivando-se de passar os olhos por Hegel. Evidente, pois,
que disso resulte a perda de robustez dessas teorias. A nosso ver, a proposta
desses autores é incompleta, pois seria preciso aprofundar a análise sobre
o processo de construção dessa categoria e verificar como ela se firmou no
pensamento social clássico.
O segundo marco crítico diz respeito à fundamentação empírica das teses
aqui discutidas. Em nosso entender, quando ela se faz presente, os dados
empíricos são esparsos, fluidos e pouco consistentes; consequentemente, as
conclusões daí derivadas são precipitadas e afoitas, deixando de considerar
com maior profundidade os pormenores da sociedade do trabalho no final
do século XX.
A tese de Habermas enquadra-se no primeiro caso. De caráter filosófico
especulativo, o trabalho perde força ao deixar de tomar como base dados

22 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Luís Antônio Cardoso

empíricos sobre a sociedade do trabalho. É louvável a capacidade intelectual


do autor de promover um grande debate sobre a natureza da racionalidade,
mas o resultado, quando pensado em relação ao objeto trabalho, deixa a
desejar. É muito difícil acreditar, como propôs Habermas, que nesse mundo
pós-fordista a ciência tenha se sobreposto como a principal força produtiva
em relação ao trabalho. Mais difícil ainda é constatar o uso da ciência de
forma livre, escapando das amarras da velha racionalidade instrumental.
O que se observa empiricamente no mundo pós-industrial é que cada vez
mais todo o aparato técnico-científico da sociedade é instrumentalizado em
prol da acumulação do capital. De forma crescente e gradativa, a ciência é
utilizada tanto para o desenvolvimento de novas máquinas, microeletrôni-
cas ou não, como para o desenvolvimento de novas tecnologias mecânicas
e organizacionais em favor do capital. O aparato técnico-científico avança
sobre o domínio das recentes biotecnologias, sobre o genoma, o mapea-
mento do DNA etc., justamente como forma de expansão da acumulação
capitalista, sequer deixando espaço para a emancipação da ciência em prol
da liberdade humana.
Não é possível admitir que no mundo contemporâneo uma raciona-
lidade de tipo comunicativo possa sobrepor-se a uma racionalidade de
tipo instrumental. Podemos afirmar que a pós-modernidade nos legou a
afirmação do homem e de seu potencial comunicativo, embora também se
tenha de admitir que sua emancipação neste mundo tenha ficado restrita
aos limites impostos pela instrumentalidade do capital. A nosso ver, faltam
dados empíricos na teoria de Habermas que mostrem como na dualidade
sistema/mundo da vida, este último consegue escapar e se emancipar diante
do sistema. Inexistem fatos concretos sobre como se desenvolve a integração
social, com o agir comunicativo, sobre a prática do trabalho social, tornando
hegemônica a linguagem da instrumentalidade. Em contrapartida, o que
se pode observar atualmente é um avanço incontrolável do sistema sobre o
mundo da vida, o que se faz notar pelo aumento progressivo da generaliza-
ção do poder, do dinheiro, da monetarização e da burocratização. A prova
mais cabal dessa tendência é demonstrada pelo avanço da globalização ou
mundialização do capital, da globalização financeira ou financeirização, fatos
que demonstram uma expansão exponencial, jamais vista, da racionalidade
instrumental sobre a sociedade.
Resta-nos saber como diante desse novo paradigma o autor pode acreditar
que ainda exista espaço para o desenvolvimento da intersubjetividade, do
potencial comunicativo entre os homens (que futuramente os libertará do

novembro 2011 23
A categoria trabalho no capitalismo contemporâneo, pp. 265-295

sistema), para a afirmação da utopia e a pacificação do conflito de classes na


sociedade capitalista. Não precisamos de muito esforço para mostrar empiri-
camente que essa tendência não se concretiza na era pós-fordista, como ima-
ginou Habermas. Muito pelo contrário, o que se pode provar com as novas
configurações do sistema do capital e do mundo produtivo é que nunca como
outrora presenciamos uma maciça fragmentação e decomposição do sistema
de classes em nossa sociedade. O mundo pós-fordista acentuou intensivamen-
te a divisão técnica e social do trabalho, opondo e deixando cada vez mais evi-
dente a separação entre produtores e consumidores, opressores e oprimidos,
dominados e dominadores. Dessa forma, é impossível falar em pacificação do
conflito de classes na sociedade capitalista. O que se evidencia, naturalmen-
te, e de modo diferente do que pensou Habermas, é que no pós-fordismo a
cada dia o conflito de classes se intensifica. As novas tecnologias mecânicas,
informáticas e organizacionais que ora são postas em prática segregam os tra-
balhadores em vez de uni-los e também os dissociam intensivamente do con-
trole autônomo de sua força de trabalho. Ora, se esse novo paradigma assim
se produz e se faz presente, como podemos dizer que o mundo do trabalho
pacificou seus conflitos no pós-fordismo? A história do modo de produção
capitalista ao longo de suas fases sempre nos deixou evidente que a luta pelo
controle da força de trabalho pelo capitalismo foi a tônica, e essa, por sua vez,
se produziu historicamente pelo acirramento do conflito de classes. Não é
neste mundo contemporâneo do capital que essa tendência deixa de se afir-
mar. Uma breve análise da distribuição dos novos centros produtivos na zona
oriental do planeta, que deixa evidente a depredação da força de trabalho, a
ampliação das jornadas, do uso intensivo do trabalho feminino e infantil, bem
como da prática de baixos salários e do aumento considerável dos exércitos
industriais de reserva, revela a contradição da realidade empírica com a teoria
de Habermas. Se refletirmos sobre o caso brasileiro, nunca é demais lembrar
que no mundo pós-fordista, perfilado por esse novo paradigma neoliberal,
tem-se constatado um aumento considerável do número de trabalhadores que
recorrem ao Judiciário como forma de buscar uma solução para a atenuação
dos conflitos surgidos na relação contemporânea entre capital e trabalho. Ora,
como justificar então a existência de uma pacificação de conflito de classes
nessa nova era? Com certeza, não é na teoria de Habermas que encontraremos
uma resposta a essa difícil questão.
Com relação à teoria de Gorz, podemos dizer que sua tese, apesar de
inusitada e polêmica, apresenta fraquezas da mesma ordem, ou seja, também
faltam elementos empíricos que possam dar sustentação e coerência ao que o

24 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Luís Antônio Cardoso

autor propõe. É correto afirmar que a revolução pós-fordista do modo de pro-


dução capitalista modificou sua configuração com a revolução informática e
microeletrônica. Todavia, esse não foi seu fim único. A grande fraqueza da tese
de Gorz, e com certeza seu grande erro, foi considerar esse momento como
o único grande impulsionador e transformador da sociedade salarial do pós-
guerra e coadjuvante do Estado de Bem-Estar europeu. De fato, a revolução
informática abalou de forma significativa a estrutura da sociedade salarial,
mas não a extinguiu, muito menos aos modos de trabalho a ela subjacentes.
Por outro lado, o próprio desenvolvimento das mudanças do modo de pro-
dução capitalista mostrou que a revolução informática e microeletrônica foi
apenas uma parte da transformação pós-fordista. Um fato importante a con-
siderar, com relação a esse aspecto, e cujo teor não foi alcançado pela predição
de Gorz, é que esse conjunto de transformações não foi capaz de atingir todas
as atividades do sistema produtivo capitalista. Em outras palavras, apenas
alguns processos produtivos conseguiram absorver as modificações impostas
pela racionalização informática e microeletrônica. De modo geral, apenas
os setores de produção metal-mecânica, centrais no fordismo, conseguiram
absorver com maior vigor esse conjunto de inovações tecnológicas. Outros
setores produtivos, com características distintas desse setor central, pouco
ou nada absorveram das transformações. Em contrapartida, o trabalho vivo
eliminado desses setores produtivos, diferentemente da análise de Gorz,
não foi perdido ou extinto, mas deslocado para outros setores paralelos ou
subalternos da produção, muitas vezes com requisitos de qualificação exigi-
dos bem mais inferiores. Em suma, de modo distinto do propugnado por
Gorz, não houve extinção de nenhuma classe operária, mas observou-se a
velha polarização das qualificações, por meio da qual um núcleo pequeno de
trabalhadores passa a conviver com as inovações informáticas e microeletrô-
nicas e outro, mais numeroso e menos qualificado, é deslocado para áreas de
apoio aos setores produtivos informatizados. Por outro lado, ampliando essa
discussão, e desqualificando mais ainda a tese de Gorz, a crença na revolução
informacional e microeletrônica ao longo da década de 1980 como um mo-
vimento definitivo no sistema de produção capitalista foi na verdade errônea.
O próprio desenvolvimento do sistema capitalista de produção mostrou que
a utopia das unmaned factories propiciada pela revolução informacional e mi-
croeletrônica, isto é, as fábricas sem trabalhadores, altamente informatizadas
e robotizadas, com um contingente mínimo de trabalhadores, foi uma expe-
riência e um movimento passageiro. O que se viu nos anos que se seguiram à
euforia informacional foi um verdadeiro recuo nessa tendência, fazendo com

novembro 2011 25
A categoria trabalho no capitalismo contemporâneo, pp. 265-295

que os sistemas produtivos abandonassem as experiências em prol de uma


valorização do trabalho vivo e de sua intensificação intelectual como forma de
realização do valor nos sistemas produtivos. Ou seja, a classe trabalhadora foi
tomada como elemento central do sistema capitalista de produção. Isso posto,
havemos de concluir que a tese propugnada por Gorz é afoita, carecendo de
elementos empíricos mais concretos, de modo a sustentar o desaparecimento
da classe trabalhadora das fábricas. É certo que o pós-fordismo reduziu con-
sideravelmente o contingente de trabalhadores do interior das fábricas com
seu princípio produtivo da lean factory e da lean production, mas este, por sua
vez, sequer foi capaz de eliminar o trabalho vivo de modo a nos dar subsídios
para dizer “adeus à classe trabalhadora”. É muito difícil, pois, dar crédito a
Gorz quanto ao fim da utopia do trabalho e da não necessidade das pessoas
na economia, desacreditando o trabalho como um fundamento do processo
de integração social.
Quanto à tese de Offe, algumas considerações que a desqualificam tam-
bém merecem ser apresentadas. Embora sua tese apresente o cuidado de
fornecer elementos empíricos, seu constructo é passível de fortes críticas. O
ponto fraco é sem dúvida acreditar nas oscilações do mercado de trabalho,
do sistema de produção capitalista e da crise da sociedade do trabalho como
uma revolução última e acabada. Muito embora os dados utilizados para
corroborar sua tese sejam bastante pertinentes, o autor cai na tentação de
generalizar o deslocamento de uma categoria central na sociologia, como
o trabalho, justamente a partir de movimentos ainda não acabados na eco-
nomia. A crise tomada por Offe como referência a seus argumentos não se
constitui como uma crise final, mas como um movimento em constante
mudança, cujos contornos se alteraram bastante ao longo dos últimos anos,
como um caleidoscópio, configurando um quadro heterogêneo passível de
diversas interpretações. O argumento de Offe segundo o qual a crise da so-
ciedade do trabalho teria como fundamento a perda da qualidade subjetiva
de centro organizador das atividades humanas, da autoestima, das referências
sociais e das orientações morais, embasado na análise da crise das oscilações
do mercado, a nosso ver, é bastante prematuro. Os motivos alegados pelo
autor para tentar descaracterizar o trabalho como uma categoria central da
sociologia não são suficientes para sustentar sua proposta. Em momento
algum Offe nos mostra como os fundamentos da categoria trabalho elabo-
rados pelos autores clássicos da sociologia são passíveis de desconstrução
quando confrontados com seus argumentos. O que se observa no trabalho
de Offe são meras especulações motivadas por um movimento cíclico da

26 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Luís Antônio Cardoso

economia, e jamais uma crítica capaz de desmontar o edifício teórico da


sociologia. Uma vez que o autor não demonstra a pretensão de fundamentar
essa crítica, o que então se poderá dizer sobre uma crítica de descentramento
aos constructos do trabalho erigidos por Hegel? Tal iniciativa é inexistente
em seu trabalho. Mas o pecado maior da tese de Offe não recai sobre essa
polêmica. A nosso ver, a grande falha se dá quando o autor tenta associar
o processo de diferenciação, fragmentação e heterogeneização do mundo
do trabalho ao crescimento do setor terciário da economia e à prevalência,
nesse setor, de uma racionalidade específica e diversa daquela prevalecente no
setor industrial. Ao demonstrar que a economia de serviços apresenta uma
heterogeneidade de trabalho muito grande, a qual não permite a ocorrência
de critérios de produtividade e de racionalidade técnica diferentes daqueles
observados no setor industrial, e motivados por uma nova racionalidade
de tipo comunicativo nos moldes habermasianos, Offe comete um grande
equívoco. Mesmo que não mencione o fato de que o setor de serviços in-
tegra o mundo dos negócios e da economia – em que dinheiro, trabalho,
administração, finanças e burocratização são conceitos dominantes –, ele
não pode esquivar-se de admitir de que se trata da velha racionalidade ins-
trumental a conduzir as ações dos atores sociais nesse setor ora emergente.
É possível aceitar que o pós-fordismo em suas novas configurações sociais
tenha aberto espaço para a emergência de novas racionalidades, mas aceitar
que nesse sistema elas se sobreponham e mantenham a primazia sobre a
instrumentalidade é outra coisa. Uma vez que Offe se omite em admitir
a prevalência da instrumentalidade no setor de serviços, fica muito difícil
dar crédito à sua tese de que a categoria trabalho deixa de ser central para
explicar a vida social.
Com relação a Schaff, embora o autor esteja correto quanto ao argumento
de que a transformação revolucionária da ciência e da técnica provoca modifi-
cações na produção e nos serviços e, consequentemente, produz mudanças nas
relações sociais, sua tese não escapa ilesa às críticas, e algumas questões devem
ser colocadas. A primeira diz respeito à forma como o autor trata a questão da
revolução informacional. De modo análogo aos outros autores já discutidos, a
nosso ver Schaff incorre no mesmo erro de considerar a revolução da informá-
tica como algo já acabado no contexto da reestruturação do capitalismo. As-
sim, o autor está sujeito ao mesmo conjunto de críticas já levantadas contra a
tese de Gorz e, de certo modo, contra a de Offe. O segundo ponto, ainda mais
polêmico, diz respeito ao pressuposto sustentado por Schaff de que a socieda-
de informática é capaz de dar fim à forma abstrata do trabalho na sociedade

novembro 2011 27
A categoria trabalho no capitalismo contemporâneo, pp. 265-295

capitalista. O fenômeno do desemprego estrutural ocasionado pela expansão


da informática e a transformação do modo de trabalhar, com a substituição
do trabalho vivo pelo trabalho morto, e a consequente liberação do tempo
livre de trabalho, levaram Schaff a acreditar na diminuição da quantidade
de trabalho abstrato envolvido na produção de valor. Nesse sentido o autor
parece desconhecer a forma como se procedeu e se desenvolveu a revolução
da informação no contexto do pós-fordismo. Schaff é ingênuo ao considerar
a revolução informacional como algo desconectado do processo de produção
de valor; é muito superficial ao não perceber que o rearranjo proposto pela
revolução informacional na verdade não elimina o trabalho abstrato, mas o
redistribui tanto nas atividades informatizadas como nas atividades relegadas
a terceiros ou a outros planos não atingidos pela informática.
Segundo Schaff, a revolução informacional é capaz de se expandir a todos
os setores produtivos e formas de vida social, eliminando a classe trabalha-
dora, a propriedade privada dos meios de produção, os serviços em larga
escala e a classe capitalista. Na realidade, nos anos que se sucederam aos
escritos de Schaff, não foi isso que o mundo do pós-fordismo produziu. A
revolução informacional não conseguiu atingir todos os setores e sistemas
de produção, menos ainda da vida social. As unmaned factories de fato exis-
tiram, mas foram poucas e se mostraram totalmente inviáveis na produção
de valor, com concentração de grandes investimentos em capital fixo e uma
composição orgânica do capital muito alta e com consequente redução da
taxa de lucro. A classe trabalhadora nunca foi totalmente, nem parcialmente,
eliminada. Muito menos se assistiu, até hoje, ao fim da propriedade privada
dos meios de produção e dos serviços, ou da classe capitalista. São essas
constatações, entre outras, que refutam a tese de Schaff e a tornam incapaz
de dar sustentação ao fim do trabalho abstrato. É impossível para nós ad-
mitir o pós-fordismo como uma era na qual tudo que gira ao nosso redor é
provido única e exclusivamente de utilidade, trabalho útil, trabalho concreto.
Por fim, em relação às ideias de Kurz, muito embora o autor concorde
com a tese central da teoria marxista acerca da contradição entre as forças
produtivas e do caráter nebuloso das relações de produção, outros pontos
dessa mesma teoria são negados. De fato, é louvável sua constatação sobre a
impossibilidade de ruptura do socialismo com a forma de valor da sociedade
capitalista, tecendo, assim, uma crítica profícua acerca dessas questões fora
do âmbito da sociedade capitalista. Todavia, sua tese perde brilho quando ele
prognostica de maneira determinística a agonia e o fim do trabalho abstrato,
da força de trabalho e das classes sociais. Tal como Gorz, Offe e Schaff, Kurz

28 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Luís Antônio Cardoso

equivoca-se quando toma o avanço tecnológico informacional como uma


revolução acabada. De fato, como já apontado nos outros autores, o mo-
mento da reestruturação capitalista é apenas um capítulo na longa história
de afirmação de um novo compromisso produtivo. A ilusão da substituição
do trabalho vivo pelo trabalho morto nos sistemas produtivos, por si só,
não é suficiente para que se sustente a tese do fim do trabalho abstrato. Por
outro lado, ao apresentar uma aproximação com a teoria marxista, Kurz
poderia ter ampliado a análise sobre o caráter contraditório da composição
orgânica do capital e da taxa de lucro, o que, evidentemente, não fez. Seus
argumentos perdem força. Ademais, é controversa a proposta de uma ação
militante propugnando o rompimento da forma de mercadoria de relações
sociais, quando o autor identifica justamente tal rompimento com a perda
da capacidade transformadora e revolucionária da classe trabalhadora. Diante
disso somos levados a duvidar do prognóstico da nova racionalidade que
Kurz imagina vingar.
Uma vez apresentados e discutidos os principais pontos do debate sobre
centralidade da categoria trabalho, é evidente que, pela riqueza das propostas
e dos elementos discutidos, o movimento surgido e o debate gerado foram de
grande valia, ainda que a tentativa de desconstruir ou superar a centralidade
da categoria trabalho no pensamento social tenha se mostrado inconsistente.
Resta-nos, portanto, aguardar o término da crise cíclica do capitalismo para
averigurar o que o destino propõe à sociologia, ou, ao contrário, acreditar
na solidez e longevidade do trabaho como categoria central da análise social.

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30 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Luís Antônio Cardoso

Resumo
A categoria trabalho no capitalismo contemporâneo

O presente trabalho tem como objetivo analisar o debate sociológico contemporâneo


acerca da perda da centralidade da categoria trabalho surgido nas últimas décadas do
século XX. O artigo analisa a pertinência da categoria trabalho no pensamento social,
evidenciando sua afirmação antes do surgimento da sociologia. Também são analisadas
as propostas de Habermas, Gorz, Offe, Schaff e Kurz, considerados os precursores mais
importantes desse debate.
Palavras-chave: Sociologia do trabalho; Teoria social; Centralidade do trabalho.

Abstract

The work category in contemporary capitalism

This paper aims to discuss the contemporary sociological debate on the decline in
the centrality of work as a category over the final decades of the 20th century. It also
analyzes the importance of the work category in sociological thought, showing how it
in fact appeared before the emergence of sociology. Finally the paper examines the ap-
proaches of Habermas, Gorz, Offe, Schaff and Kurz, considered as the most important
precursors to this debate.
Keywords: Sociology of work; Social theory; Centrality of work.

Texto recebido em18/8/2009 e


aprovado em 15/8/2011.

Luís Antônio Cardoso é so-


ciólogo, mestre e doutor em
Engenharia de Produção pela
UFRJ e doutor em Sociologia
pela Université d’Évry, Paris. É
professor no Programa de Pós-
Graduação em Sociologia do
Instituto de Ciências Humanas
e Filosofia da UFF, Rio de Janei-
ro, e autor de Aprés-fordisme et
participation (Lille, Septentrion,
2002) e de O pós-fordismo: visões e
teorias da reestruturação produtiva
contemporânea (Brasília, Verbena/
Francis, no prelo). E-mail: <lue-
mar@domain.com.br>.

novembro 2011 31
Riscos ocupacionais da imagiologia
Estudo de caso num hospital português

João Areosa

Breve introdução à temática do risco

O risco e a forma como ele é percebido no mundo social e ocupacional


não é um tema que reúna consensos. Existe certa tendência da ciência de
tentar monopolizar o conhecimento sobre os diversos aspectos associados
ao risco. Além disso, sabemos que a forma como esse tipo de conhecimento
é transmitido para o público pode reproduzir nas percepções sociais um
misto de confiança e certeza, embora em certos casos também possa ocorrer
o inverso. Essa influência social resulta da “sacralização” da ciência sobre
sua suposta capacidade de prever e controlar muitos dos aspectos incertos
da vida quotidiana. Apesar de a confiança pública na forma como a ciência
resolve algumas questões relacionadas com o risco já ter sofrido alguns “aba-
los” (cf. Gonçalves, 2001), não deixa de ser verdade, segundo Santos (1987,
p. 57), que o conhecimento produzido pela ciência pós-moderna tende a
democratizar-se e converter-se em senso comum. Mas, neste contexto, nos
parece pertinente destacar que os resultados das pesquisas científicas não
deixam de incorporar influências e pressões sociais, políticas e ideológicas,
tal como demonstrou Kabat (2008).
Ulrich Beck (1992) preconiza que alguns riscos das sociedades atuais
estão excessivamente politizados, o que no entanto não significa que estejam
devidamente controlados. Pelo contrário, alguns dos riscos da modernidade
Riscos ocupacionais da imagiologia: estudo de caso num hospital português, pp. 297-318

fogem ao nosso controle, nomeadamente os ambientais e os tecnológicos de


organizações complexas; esse é um dos motivos pelos quais o autor afirma
que vivemos atualmente em sociedades do risco. A própria ciência é produ-
tora de novas formas de risco, fato que originou a quebra do monopólio da
racionalidade científica na definição do risco (cf. Idem, p. 19).
Para Beck et al. (2000, p. 30), a civilização moderna pode estar cultural-
mente cega, pois onde se percebe normalidade é possível que se espreitem
ameaças dissimuladas. É verdade que podemos estar cada vez mais depen-
1. Por exemplo, Adams e dentes da investigação científica para identificar alguns riscos1, embora isso
Thompson (2002) conceberam
uma tipologia baseada em três
nem sempre seja visto como aspecto positivo, particularmente quando não
formas de perceber os riscos que existe consenso entre pesquisadores. A realidade quotidiana passa, em parte,
nos ajudam a compreender sua
pela sucessão de acontecimentos aleatórios que dificilmente podem tornar-se
complexidade: riscos percebidos
diretamente, riscos percebidos previsíveis. Em certas circunstâncias, o grau de “certeza” para a ocorrência
através da ciência e riscos vir- de acontecimentos futuros é diminuto, mesmo nas situações planejadas com
tuais.
antecipação. A contemporaneidade é caracterizada como um período em
que reina a incerteza, a ambiguidade e o inesperado. Essas novas formas de
risco, por vezes inobserváveis até produzirem efeitos, apresentam-se como
dificuldades acrescidas ao nosso entendimento, quer pelo nosso desconhe-
cimento delas, quer pela falta de experiência em lidar com essas situações.
Determinados tipos de risco constituem-se em territórios inexplorados ou
pouco conhecidos para a humanidade (cf. Beck, 1992).
Apesar de existirem diversas perspectivas sobre o risco, destacaremos duas
visões distintas de como ele pode ser interpretado. De um lado, a abordagem
dos que consideram que a definição dos riscos deve ser efetuada exclusiva-
mente por peritos, especialistas ou cientistas, designando suas apreciações
como riscos “objetivos”. Nessa perspectiva, a visão dos não especialistas
(senso comum) é considerada mera expressão irracional e sem fundamento
técnico. De outro lado, uma corrente oposta defende a integração do saber
leigo (não especializado) como contributo importante para a análise de certos
riscos. Partilhamos desta última perspectiva, uma vez que a identificação de
riscos e as análises a esse respeito devem ser elaboradas a partir da abordagem
articulada entre especialistas e não especialistas, já que estes últimos podem
oferecer novas dimensões sobre os riscos (eventualmente não detectadas por
peritos ou cientistas). Granjo (2006, p. 1178) também já tinha identificado
a necessidade de maior complementaridade entre as duas visões.
No âmbito dos riscos sociais ou “públicos”, Geoffrey Kabat (2008) critica
a forma como alguns deles são difundidos perante as populações, situação
na qual se verifica, por exemplo, que certos tipos de risco relativamente re-

2 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


João Areosa

siduais ou sem confirmação científica são valorizados, enquanto outros, de


maior gravidade, são minimizados ou ignorados. Apesar de não estar isento
de polêmica, o autor afirma que alguns dos riscos mais temidos socialmente,
devido, em parte, à sua divulgação na mídia, não têm confirmação epide-
miológica enquanto fatores de risco para a saúde pública, pois os estudos
que alegadamente sustentam essas posições são, segundo ele, inconclusivos,
uma vez que os resultados obtidos se revelam fracos e inconsistentes. Kabat
foi fortemente criticado por suas afirmações e por fugir às premissas da cor-
rente dominante da epidemiologia, que costuma defender que esses fatores
prejudicam a saúde das pessoas.
Na verdade, Kabat afirma que os estudos epidemiológicos não conse-
guem provar que as linhas elétricas de alta tensão provocam leucemia, que a
exposição passiva ao fumo do tabaco aumenta os índices de casos de câncer
entre a população não fumante, que a utilização de celulares acarreta tumo-
res cerebrais ou que os implantes de silicone provocam distúrbios diversos
no organismo. O autor deixa em aberto essas possibilidades, sempre com a
ressalva de que os estudos atuais não conseguem estabelecer uma relação de
causa e efeito. Além disso, Enstrom e Kabat (2003, 2006) demonstram que a
relação entre a taxa de mortalidade e a exposição passiva ao fumo do tabaco
é um tema fortemente politizado. Essa situação tem gerado em alguns países
um excessivo controle sanitário e médico-policial, bem como a emergência
de grupos ativistas antifumantes, os quais pretendem ver alterados os estilos
de vida e os ritos de convivência social em relação ao tabaco, estigmatizando
os fumantes. De certo modo, parece que os indivíduos fumantes se tornaram
perigosos e impuros, segundo a terminologia de Mary Douglas (1966).
Uma das críticas a Kabat é o fato de esse autor não considerar o “princípio
de precaução”2, que leva em conta que, em caso de dúvida sobre a existência 2. O “princípio de precaução”
preconiza que, se uma deter-
de eventuais situações de risco, essas devem ser evitadas. O autor parece não
minada situação pode, even-
subscrever esse princípio, embora não afirme isso de forma clara. Porém, tualmente, gerar danos graves e
irreversíveis ao meio ambiente,
o debate em torno do “princípio de precaução” é controverso e tem sido
ela deve ser evitada. Nessa no-
pautado pela polarização entre partidários e opositores. Como exemplo, ção acaba por estar implícita a
Latour (2000) critica o elevado impacto social e a aplicação abusiva dessa ausência ou a insuficiência do
conhecimento científico nesse
noção, uma vez que ela tem sido alargada para diversas áreas da vida social, contexto, bem como a incerteza
já distantes de seu sentido original, referente a possíveis danos ambientais ante os danos que esse cenário
originaria no futuro.
graves. Num tom provocatório, o autor refere que o “princípio de precau-
ção” pode ser responsabilizado por gerar medo no seio das sociedades, o que
suscita, em certos casos, a tendência para a inação, bem como o sentimento
de evitar a assunção de riscos. Latour afirma que a precaução deve aprender

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Riscos ocupacionais da imagiologia: estudo de caso num hospital português, pp. 297-318

a conviver com certos tipos de riscos e postula que as sociedades devem


promover, coletivamente, novas regras para o método experimental. Afinal,
em determinadas situações a racionalidade de nossas ações já não pode
estar baseada no conhecimento objetivo, simplesmente porque, às vezes,
esse conhecimento não existe. Em suma, a ciência experimental coletiva
de Latour (cf. Idem) pretende alcançar um novo princípio: o princípio do
bom governo das sociedades.
Na perspectiva de Kabat (2008), parece ser mais fácil para a maioria das
pessoas centrar a atenção nos riscos e nas ameaças externas do que tentar
modificar os próprios comportamentos, os quais podem ter um impacto
negativo na saúde, nomeadamente a falta de exercícios físicos, a obesidade
ou o ato de fumar. Regra geral, os atores sociais têm a sensação de que o pe-
rigo, a poluição, o contagioso e o impuro vêm do exterior. Segundo Douglas
(1966, p. 33), a noção de pureza está associada à ordem e a de impureza,
à desordem. Para a autora, a ideia ocidental de impureza está fortemente
relacionada com as concepções de higiene, que, por sua vez, tendem a evitar
o contato com agentes patogênicos (transmissores de doenças). Essa ideia
não é universal, pois varia de sociedade para sociedade; aquilo que é impuro
dentro de uma cultura pode não ser em outra. Atualmente, as noções de
perigo e impureza surgem também associadas a grupos de risco, tais como
aidéticos, fumantes ou criminosos, embora com as devidas diferenças.
É nesse âmbito que a complexificação de diversos fenômenos associados
à modernidade permitiu destacar a importância do debate público do ris-
co, do perigo e da incerteza. A aceitabilidade do risco e a comunicação do
risco passaram a ser aspectos não negligenciáveis por parte de governantes e
instituições. Nesse contexto, Palmlund (1992) identificou seis categorias de
3. As seis categorias de atores atores sociais3 que intervêm no debate público do risco, particularmente nas
sociais são: portadores do risco;
situações conflituais entre quem tem de suportar os riscos e quem está na
defensores dos portadores do
risco; geradores do risco; inves- origem deles. Naturalmente, as relações de poder entre esses atores sociais
tigadores do risco; árbitros do
são assimétricas.
risco; informadores do risco.
Existem diversas definições do conceito de risco. Compartilhamos a
posição de alguns autores que preconizam que o risco pode aplicar-se
no prognóstico tanto de aspectos positivos como negativos (cf. Short,
1984; Carapinheiro, 2001), embora a noção seja, em geral, utilizada na
definição de um potencial para a ocorrência de consequências negativas e
inesperadas de determinados eventos (cf. Rowe, 1977, p. 24). Covello e
Merkhofer (1993) caracterizam o risco como uma situação em que dois
ou mais resultados são possíveis, desconhecendo-se, no entanto, qual

4 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


João Areosa

deles em particular irá ocorrer. Assim, o conceito de risco remete-nos a 4. Apesar de a abordagem ao
risco estar essencialmente di-
probabilidades ou possibilidades sobre a ocorrência de eventos futuros4, recionada a possíveis situações
decorrente das diversas dinâmicas do mundo social. A essência do risco futuras (cf. Giddens, 2000),
isso não significa que deixemos
não é aquilo que está acontecendo, mas aquilo que pode vir a acontecer de incorporar nossa experiên-
(cf. Adam e Van Loon, 2000). O conceito de risco remete-nos sempre a cia na avaliação de eventuais
acontecimentos vindouros, o
algo condicional, ou seja, uma dose de incerteza está sempre presente. Se que nos permite obter alguns
o futuro fosse predeterminado e independente das ocorrências do presente parâmetros comparativos para
“saber” como lidar com situa-
(atividades humanas ou forças da natureza), o termo risco não faria sen- ções de risco semelhantes. Para
tido (cf. Renn, 1992). Apesar da pluralidade conceitual do risco, parece tentar combater alguns fatores
de incerteza relativos ao futuro,
existir um elemento transversal a todas as definições: a distinção entre
utilizamos quase sempre nosso
possibilidade e realidade (cf. Idem), ou seja, o que é passível de acontecer capital de conhecimentos como

pode ou não se transformar em realidade. guia para as ações no presente.


Segundo Giddens (1994, p.
Segundo Tierney (1999), a discussão e o discurso acerca do risco sofreram 114), correríamos maior número
uma ruptura significativa após a emergência da perspectiva social, em que de riscos no quotidiano se nossa
socialização não contemplasse
é notória uma visão crítica por parte das ciências sociais perante a anterior diversos mecanismos protetores e
conceitualização do risco5. Nessa nova abordagem, o risco deixou de ser de vigilância para lidarmos com
eles; isto é definido pelo autor
compreendido apenas como uma realidade científica objetiva, exclusiva- como normalidade conquistada.
mente identificada e definida por peritos, para passar a incorporar outras Assim, a aprendizagem geral
inclui também a aprendizagem
dimensões subjetivas de natureza ideológica, cultural, valorativa, simbólica das situações de risco. As diversas
etc., dimensões às quais, aliás, os peritos também não estão imunes, fato no capacidades que ganhamos e
construímos ao longo da vida,
entanto raramente reconhecido por eles. Ou seja, o risco transformou-se num
para lidar com as múltiplas
fenômeno socialmente construído e representado, passível de ser moldado formas de risco, formam o que

através de múltiplas formas de transmissão da informação na sociedade, Giddens designa casulo protetor.

bem como por diferentes fontes de poderes e de saberes em interação no 5. A concepção do risco foi
dominada durante um lon-
mundo social (cf. Areosa, 2009a). go período pela perspectiva
As pesquisas que se dedicam aos riscos no trabalho são apenas uma das probabilística. Contudo, para
determinadas situações, no-
muitas variantes do estudo do risco. Esse tipo específico nem sempre suscitou meadamente em algumas áreas
as mesmas leituras, foi sofrendo evoluções e reconfigurações nas diversas do comportamento humano ou
dos sistemas tecnológicos, a visão
sociedades, dependendo das práticas utilizadas e das novas formas de conhe- probabilística do risco parece
cimento acerca dos efeitos nocivos do trabalho sobre os seres humanos. Os não ser a mais indicada (cf.
Martins, 1998; Granjo, 2006)
riscos organizacionais tendem a ser vistos como potenciais fatores negativos
e pode levantar problemas de
para a saúde e a segurança dos membros pertencentes a uma organização. aceitação e legitimidade sociais

São suscetíveis de causar lesões físicas aos trabalhadores, doenças, danos (cf. Areosa, 2008). As pessoas,
em geral, e os cientistas sociais,
materiais e/ou ambientais; ou seja, podemos encontrar uma interligação em particular, demonstram ter
entre os riscos laborais e os potenciais efeitos adversos que o trabalho pro- um entendimento mais alar-
gado do risco, contrariando a
voca nas pessoas e em seu bem-estar, bem como nas eventuais perdas para abordagem unidimensional do
a organização. Em resumo, podemos afirmar que os riscos ocupacionais são modelo probabilístico. Existem
outros aspectos importantes na
uma espécie de “antecâmara” para os acidentes (cf. Areosa, 2009b, 2009c).

novembro 2011 5
Riscos ocupacionais da imagiologia: estudo de caso num hospital português, pp. 297-318

abordagem ao risco, tais como: Existem diversas definições da noção de riscos no trabalho. Contudo,
a voluntariedade, a capacidade
pessoal de influenciar o risco, defendemos que ela deve ser o mais abrangente possível. Sua conceituali-
a familiaridade com os riscos, zação deve considerar tanto os riscos laborais mais simples (desconforto
a equidade na sua distribuição
social, a controlabilidade e as
ou incomodidade ligeira), como os riscos mais graves, que dão origem a
formas de resposta pública pe- incapacidades permanentes ou à própria morte. “Entendemos então, por
rante um potencial catastrófico
(cf. Kasperson et al., 2000).
riscos no trabalho, qualquer ameaça para a integridade física ou psíquica
Assim, a inclusão dos valores do trabalhador resultante de um desvio, ainda que mínimo, daquilo que
sociais deve ser vista como um
importante contributo para a
se considere como trabalho normal” (Meleiro, 1985, p. 13). Os riscos do
definição do risco. Segundo foro laboral podem ser compreendidos através de três dimensões distintas:
Tierney (1999), o risco pode ser
1) os riscos em si mesmos, como potenciais causas geradoras de eventuais
entendido como algo passível de
conter características dinâmicas, lesões ou danos; 2) os riscos sobre os sujeitos, isto é, sobre quem eles podem
influenciadas pelo mundo social. incidir; e, por fim, 3) os efeitos dos riscos sobre os sujeitos afetados (neste
É preciso considerar que os
riscos estão continuamente em caso estamos falando sobre as consequências pessoais da efetivação dos riscos
evolução por serem, em parte, ocupacionais). Na verdade, o mesmo tipo de risco pode ter efeitos e conse-
produto da forma como os atores
sociais se comportam (cf. Idem,
quências muito diferenciados para os sujeitos expostos. Em diversas situações
p. 228). observa-se que os efeitos da exposição ao mesmo tipo de risco podem afetar
de forma distinta os trabalhadores, devido à sua própria suscetibilidade
ou vulnerabilidade individual (cf. Mela et al., 2001). É ainda pertinente
lembrar que a presença de diversos tipos de riscos simultaneamente numa
dada situação pode provocar cenários de risco com grau muito superior, em
comparação com aqueles que provocaria caso sua “ação” fosse produzida
isoladamente. A interação de vários riscos pode ampliar os supostos efeitos
individualizados e constituir-se como um fator de agravamento da própria
situação de trabalho (cf. Areosa, 2008).

Riscos ocupacionais: que percepções suscitam nos trabalhadores?

Na nossa pesquisa, a discussão dos riscos ocupacionais está centrada na


6. Embora as diversas ativi- área da saúde6, bem como nas percepções de riscos dos trabalhadores hospita-
dades profissionais ligadas à
lares. A concepção sobre as percepções de riscos dos trabalhadores aproxima-
saúde também possam constituir
múltiplos riscos para os doentes. se mais da abordagem culturalista de Douglas e Wildavsky (1982), e não
A terminologia utilizada para
tanto da perspectiva psicométrica, que visa à quantificação das percepções.
definir os efeitos nocivos da
atividade clínica e terapêutica No mundo do trabalho não existem organizações ou empresas imunes
sobre os doentes é designado por aos riscos laborais. Em muitas situações os riscos organizacionais são quase
Illich (1977) como “iatrogênese
clínica”. inevitáveis. A modernidade trouxe aquilo que alguns autores já anunciaram
como a “epidemia dos riscos” (cf. Skolbekken, 1995). Se considerarmos,
quer a quantidade de riscos que determinados locais de trabalho incorporam,
quer a gravidade que manifestam, podemos considerar, metaforicamente,

6 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


João Areosa

algumas organizações como autênticas fábricas de riscos. Aceitando essa me-


táfora, é possível enquadrar os hospitais nesse tipo de organização. Como
espaços de trabalho, os hospitais são locais repletos de múltiplas formas de
risco, por incorporarem riscos biológicos (contato com os doentes, tarefas
com materiais cortantes ou perfurantes eventualmente contaminados,
contato com fluidos orgânicos), riscos físicos (radiações ionizantes, ruído,
eletricidade), riscos químicos (manuseamento de produtos químicos pe-
rigosos, nomeadamente medicamentos, diversos tipos de gases – tóxicos,
combustíveis etc.), riscos ergonômicos (movimentação de pesos elevados,
incluindo o transporte de doentes sem mobilidade, longos períodos de tra-
balho em posição quase estática, manuseamento de equipamentos “pouco”
ergonômicos), riscos com máquinas ou equipamentos (aparelhos de RX,
equipamentos de laboratório etc.), riscos do próprio local ou ambiente de
trabalho (iluminação deficiente, má qualidade do ar interno, pavimentos
escorregadios etc.), riscos da organização do trabalho (trabalho noturno ou
por turnos, alteração de horários, acumulação de funções, manuseamento
e/ou armazenagem inadequada de produtos, responsabilização dos traba-
lhadores por falhas da própria organização), riscos psicossociais (conflitos
entre trabalhadores, agressões físicas ou verbais provenientes de doentes ou
acompanhantes, mobbing, contato com situações difíceis, nomeadamente
doenças graves ou a própria morte dos doentes), e ainda a suscetibilidade
individual perante as situações de risco (diferentes níveis pessoais de aversão
ou de tolerância aos múltiplos fatores de risco). Essa categorização de riscos
profissionais foi inspirada nos trabalhos de Areosa (2003, 2005).
Conforme se pode verificar, o hospital, como espaço de trabalho, é um
local onde proliferam variados tipos de risco. Porém, sua identificação por
parte dos trabalhadores pode não ser tão sistematizada como aquela que aca-
bamos de apresentar. Esse aspecto foi designado como certa iliteracia pública
para a percepção ou avaliação de determinados tipos de risco (cf. Areosa, 2007a),
particularmente aqueles que necessitam recorrer à utilização de técnicas ou
tecnologias sofisticadas para sua identificação. Contudo, é fundamental
avaliar as percepções dos trabalhadores nesse sentido, porque, para além de
ser possível a identificação de novos riscos, não detectados pelos peritos, essa
avaliação oferece ainda a visão dos trabalhadores sobre os riscos que eles correm
no local de trabalho. Esse diagnóstico é decisivo para elaborar estratégias de
prevenção dentro das organizações. Parece óbvio que se um trabalhador não
conseguir identificar os riscos do local de trabalho poderá não praticar compor-
tamentos seguros durante a execução das tarefas laborais, e isso pode potenciar

novembro 2011 7
Riscos ocupacionais da imagiologia: estudo de caso num hospital português, pp. 297-318

a ocorrência de acidentes de trabalho, de lesões pessoais e/ou danos organiza-


cionais. Porém, o “problema” do risco estará centrado mais nas organizações,
porventura incapazes de o controlar em níveis adequados, do que no próprio
trabalhador da linha de frente (cf. Reason, 1990; Vaughan, 1999).
Segundo Gonçalves et al. (2005, p. 122), a exposição continuada e pro-
longada a situações de risco laboral pode originar uma normalização das
ameaças por parte do sujeito exposto e, por consequência, tornar diminuto
seu empenho em comportamentos ou práticas de vigilância, de proteção
e de segurança laboral. Já foi referido que as estratégias de prevenção dos
riscos laborais devem incorporar tanto os conhecimentos dos peritos, como
os dos trabalhadores. Os primeiros dominam os riscos técnicos, normalmen-
te pouco perceptíveis para a generalidade dos trabalhadores, enquanto os
segundos, por lidarem diariamente com as situações de risco de seus locais
de trabalho, estarão mais aptos a identificar as formas de risco mais comuns.
Vejamos alguns dos principais aspectos teóricos sobre as percepções de
risco em contexto hospitalar. Após a realização de uma pesquisa em diversos
hospitais a respeito das radiações ionizantes, Rayner (1986) conclui que as
diferentes categorias profissionais expostas a esse tipo de risco apresentam
comportamentos distintos perante a utilização desse agente físico. Esse tra-
balho sugere ainda que as percepções de riscos são fortemente influenciadas
por fatores organizacionais, particularmente quando as empresas revelam
elevados graus de complexidade e de interação social.
Em outro estudo em contexto hospitalar, realizado por Caixeta e Barbosa-
Branco (2005), foram observadas as seguintes categorias profissionais: mé-
dicos, técnicos de laboratório, farmacêuticos e enfermeiros. Verificou-se que
apesar da formação e do conhecimento que esses grupos profissionais deti-
nham sobre as regras de biossegurança, nomeadamente sobre a contaminação
com patologias graves (HIV, hepatite etc.), a utilização de equipamentos de
proteção era reduzida (exceto quando o diagnóstico do doente estava confir-
mado). Esse aspecto pode apontar para a existência de uma percepção do risco
7. Diversas pesquisas verifica- fraca ou “distorcida” por parte desses trabalhadores7.
ram que as percepções de riscos
mais “apuradas” nem sempre são
um fator preditor de práticas e A relação entre o conhecimento e a adesão dos profissionais de saúde ao uso de
comportamentos seguros no local barreiras de proteção não foi significativa. Demonstrou-se que eles têm o conheci-
de trabalho (cf. Rundmo, 1996,
2000). mento, mas não aderem às medidas e possuem uma percepção fraca de risco, pois
fazem uso de barreiras apenas mediante o diagnóstico de soropositividade para
HIV. Este é um dos aspectos mais preocupantes, uma vez que esta falsa segurança
aumenta significativamente o risco da transmissão do HIV (Idem, 2005, p. 744).

8 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


João Areosa

Ainda nesse estudo verificou-se que as taxas de acidentes de trabalho fo-


ram superiores nos trabalhadores que afirmaram conhecer melhor as normas
e regras de segurança no trabalho. Essa afirmação sugere que a falsa sensação
de conhecimento pode reduzir a percepção de riscos dos trabalhadores.
Numa perspectiva similar ao estudo anterior (também sobre profissionais
de saúde), Kermode et al. (2005) revelaram que mais de 90% dos participan-
tes na pesquisa tinham afirmado que suas categorias profissionais estariam
expostas a níveis elevados de risco de contrair doenças infectocontagiosas
enquanto cuidam dos pacientes e 78% afirmaram que deveriam ser toma-
das medidas extras de prevenção nos cuidados aos doentes com HIV, e que
esses doentes deveriam ser tratados separadamente dos outros. Segundo os
autores, essa tendência viola os princípios gerais da prevenção, visto que
esta deve ser universal e não seletiva (cf. Idem, p. 261). Porém, apenas cerca
de 60% dos participantes revelaram estar preocupados com a possibilidade
de eles próprios contraírem esse tipo de doença nos locais de trabalho. Esse
estudo está em consonância com as teorias do otimismo irrealista, em que
se considera que os outros tendem a ser menos aptos a lidar com o risco do
que nós próprios (cf. Weinstein, 1980).
Nishide e Benatti (2004) realizaram uma investigação sobre riscos ocupa-
cionais dos enfermeiros. Para esses trabalhadores, em particular aqueles que
têm contato direto com o público, o ambiente de trabalho é potencialmente
perigoso devido ao eventual contágio das enfermidades dos pacientes (riscos
biológicos), isto é, os riscos laborais estão correlacionados diretamente com
os riscos associados à assistência aos doentes.

Constatou-se que os riscos ocupacionais identificados pelos trabalhadores de en-


fermagem aparecem em maior número quando relacionados ao cuidado direto aos
pacientes e às próprias características de pacientes críticos, tais como: presença de
sangue, secreções, fluidos corpóreos por incisões, sondagens, cateteres, expondo
os trabalhadores a esse contato; elevado número de procedimentos e intervenções
terapêuticas que necessitam de utilizar materiais perfurocortantes e equipamentos;
dependência dos pacientes, que exigem esforço físico dos trabalhadores; investigação
diagnóstica devida a patologias diversas, expondo os trabalhadores a infecções e
doenças não confirmadas (Idem, p. 409).

Embora nem sempre com níveis de percepção muito elevados, essa cate-
goria profissional referiu também outros tipos de riscos aos quais se encontra
vulnerável (sem estar diretamente relacionados com os riscos de assistên-

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Riscos ocupacionais da imagiologia: estudo de caso num hospital português, pp. 297-318

cia aos doentes), nomeadamente a exposição a contaminantes químicos,


radiações ionizantes e quedas por circularem em pisos molhados ou lisos.
Uma pequena porcentagem desses enfermeiros refere também os riscos de
desconforto térmico, iluminação inadequada e ruído. O estudo de Nishide e
Benatti (cf. Idem) acaba por concluir que essa categoria profissional apresenta
uma razoável percepção de riscos de seu trabalho, embora isso não signifique
obrigatoriamente que sejam praticados comportamentos seguros por parte
dos trabalhadores.
As culturas ou subculturas profissionais e o estatuto social da profis-
são dentro das organizações podem também ser um fator importante na
construção das percepções de riscos dos trabalhadores, bem como de seus
comportamentos, práticas e atitudes. Assim, segundo uma investigação
levada a cabo por Dickson et al. (2004), verificaram-se diferenças signi-
ficativas entre as percepções de riscos de duas categorias profissionais, a
saber, os enfermeiros e os gestores. Nessa pesquisa, os gestores tendem a
apresentar níveis de percepções de riscos menores, em comparação com os
trabalhadores de enfermagem, relativamente aos riscos de stress e violência
na atividade laboral dos enfermeiros. Mas os gestores revelaram níveis mais
elevados para a saúde dos pacientes.
O que nos parece sociologicamente relevante é a distribuição desigual
dos riscos do trabalho pelas múltiplas atividades profissionais. Existem ca-
tegorias profissionais bastante mais expostas aos riscos ocupacionais do que
outras. Porém, os riscos laborais são uma entidade sempre presente, logo
não existem trabalhadores expostos a risco zero ou nulo. De certo modo,
os riscos no trabalho podem ser vistos como uma fatalidade suportada por
todos os trabalhadores, embora o grau de risco possa ser muito variável de
trabalhador para trabalhador.

Metodologia: limites e potencialidades para a observação

Este trabalho apresenta os resultados de uma investigação sociológica


decorrida em Lisboa (Portugal), no âmbito de uma pesquisa sobre as pro-
fissões em contexto hospitalar. O estudo teve como base metodológica a
pesquisa de campo, efetuada num serviço de imagiologia de um hospital
geral, não universitário, tendo como objeto privilegiado as relações sociais de
trabalho que lá se desenvolvem, incluindo as percepções dos trabalhadores.
A metodologia utilizada na investigação foi a pesquisa de campo com
observação direta e participante. Nessa metodologia, o principal instrumento

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João Areosa

de pesquisa é o próprio investigador (cf. Costa, 1986, p. 136), embora, no


entender de Pierre Bourdieu (1989, p. 51), a observação participante não
seja mais do que uma “falsa” participação num grupo estranho. A presença
do investigador no campo gera, normalmente, novas interações sociais, quer
as estabelecidas com os observados, quer as que estes podem reconstruir
entre si, devido à sua presença.
A complexa teia de relacionamentos socioprofissionais, onde se in-
terligam as regras formais e informais do hospital, é uma das barreiras à
pesquisa de campo, além da resistência dos próprios agentes sociais da
organização à presença dos investigadores. O papel do pesquisador social
no campo acaba por se constituir como mais um fator de interferência
dentro da organização, nunca o investigador conseguindo alcançar a neu-
tralidade absoluta em sua análise. Esse agente “infiltrado” depende sempre
dos contextos sociais que observa e da forma como conquista sua própria
integração dentro da organização, estando também refém das perspectivas
ideológicas de índole pessoal e de seus próprios capitais sociais, culturais e
simbólicos; ou seja, os investigadores tendem a analisar a realidade social
com base nos parâmetros e valores individuais (cf. Mannheim, 1995),
embora a discussão sobre a neutralidade da ciência não seja um assunto
epistemologicamente encerrado.
Segundo Jasanoff (1998), a predisposição cultural dos peritos e investi-
gadores do risco influencia as próprias percepções de riscos, bem como as
avaliações de riscos, que, por vezes, são conduzidas por valores institucionais
e, simultaneamente, reajustadas pelas fronteiras dos domínios científicos.
Portanto, a neutralidade absoluta em qualquer processo de pesquisa não
passa de uma intenção ou de um objetivo inacessível. Os fatores que con-
dicionam a objetividade da pesquisa hospitalar, contudo, vão muito além
do próprio investigador e da diversidade profissional. Esses obstáculos são
ainda mais ampliados pelas especificidades internas que caracterizam a
instituição hospitalar, incluindo a multiplicidade de técnicas e tecnologias
utilizadas (cf. Areosa e Carapinheiro, 2008), bem como os diferentes saberes
e poderes (cf. Carapinheiro, 1993).
Na parte final da pesquisa recorremos a entrevistas de tipo diretivo com
roteiros distintos para cada categoria profissional. Essa técnica é muito
próxima do questionário aberto, que permite controlar, verificar e validar a
informação recolhida durante a observação participante. Como um estudo
de caso, este trabalho não pretende obter um conhecimento generalizado
sobre as percepções de riscos nas profissões imagiológicas. Esta pesquisa

novembro 2011 11
Riscos ocupacionais da imagiologia: estudo de caso num hospital português, pp. 297-318

limita-se a recolher e apresentar dados referentes a uma situação particular,


e é nesse contexto que ela deve ser entendida.

As percepções de riscos num serviço de imagiologia

Os riscos de um serviço de imagiologia são bastante amplos, já que incor-


poram riscos relativamente comuns do mundo laboral hospitalar, bem como
alguns riscos específicos dessa atividade. Os mais comuns passam por aqueles
associados ao ambiente de trabalho e aos ergonômicos, como trabalho na
posição em pé durante longos períodos de tempo, levantamento de peso,
sobretudo na ajuda aos doentes com mobilidade reduzida, horário de tra-
balho rotativo, noturno e por turnos, qualidade do ar, iluminação artificial,
trabalho com máquinas e equipamentos e pressão sobre a produtividade
dos trabalhadores, particularmente em urgências nos dias de maior fluxo de
doentes. Nas salas de angiografia e de TAC (Tomografia Axial Computado-
rizada) alguns trabalhadores manuseiam materiais cortantes e perfurantes
(lâminas e agulhas) quando têm de injetar produto de contraste nos doentes
e, diversas vezes, passam longos períodos em frente a equipamentos dota-
dos de visor (écrans de visualização). Foi também detectada a existência de
diversos conflitos entre pares na organização. Essa situação pode tornar-se
problemática, quer para a organização, quer para trabalhadores e doentes,
devido aos riscos psicossociais que introduz na atividade diária.

Enfim, os técnicos de radiologia são um bocadinho “mauzinhos” uns para os


outros. Porque o que eu noto é que há muitas “quintinhas”, percebe. Formam-se
muitos grupos, eu não estou a falar da urgência, porque aí eles contactam uns
com os outros e estão mais próximos, pela experiência que tive na urgência acho
que estão mais próximos uns dos outros do que propriamente aqui no central.
Aqui no central acho que há um bocadinho o sentido de empurrar o trabalho
para o colega. Porque é assim, pode haver uma escala, mas entre nós se não nos
der jeito hoje pedimos ao colega se ele não se importa, porque estamos doentes,
não temos disposição ou não apetece, e pedimos para trocar o posto, mas apesar
de alguma cumplicidade há muito quem não faça à espera que o colega que está
ao lado o faça. Isto é um aspecto, outro aspecto é a subida na carreira. Cada
vez mais se nota que há muita dificuldade em subir na carreira, pelo menos na
radiologia, os técnicos são muitos e as vagas são poucas, e a disponibilidade
de descongelamento de vagas é quase nula, e aí as pessoas “atropelam-se” um
bocadinho umas às outras, o que quer dizer que vão a congressos e não dizem

12 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


João Areosa

aos colegas, organizam trabalhos e não dizem nada aos colegas, portanto, só
aparecem com as coisas feitas (Técnico de radiologia nº 5).

Em relação aos principais riscos específicos da atividade imagiológica


encontramos o manuseamento de RX (riscos físicos), a exposição a diversos
agentes químicos (riscos químicos), a possibilidade de contágio de doenças
transmissíveis (riscos biológicos) e os riscos de terem de lidar com situações
difíceis, como quando têm de contatar com doentes politraumatizados e/
ou em risco de vida (riscos psicossociais), embora esses casos se apresentem
como transversais a quase todas as atividades hospitalares. Verificamos que
o hospital é um espaço de elevada concentração de riscos ocupacionais.
Contudo, apesar dessa enorme panóplia de riscos, as percepções dos
trabalhadores do serviço de imagiologia sobre a forma como os riscos ocupa-
cionais são controlados revela-se heterogênea, embora tenhamos observado
certa tendência dos trabalhadores com maiores níveis de responsabilidade
hierárquica de revelarem maior satisfação com a forma como os riscos or-
ganizacionais eram controlados.

Neste momento nós temos aqui os dosímetros, eu penso que é satisfatória, sim, não
é excelente, nem muito bom, mas penso que numa escala de zero a vinte era capaz de
ter treze valores ou catorze. Poder-se-ia fazer melhor, mas lá está, seria necessário um
equipamento mais sofisticado que na prática não estou a ver que seja possível, pelo
menos a curto prazo. Penso que o serviço deveria ter um físico que fosse realmente
responsável pela radiação de cada aparelho, enfim, saber as condições em que os
doentes estão a ser irradiados, as condições de assepsia, já não falando da radiação,
mas de outros riscos e de outros agentes que possam ser nocivos para os doentes e
para os médicos, isso deveria haver um controle, talvez, mais apertado. Satisfatório
sim, mas muito mais do que isso, não (Médico de radiologia convencional nº 1).

Ao longo de nossa investigação observamos formas desiguais de prote-


ção aos trabalhadores nos vários setores do serviço. Constatou-se ainda a
inadequação de alguns equipamentos de proteção, quer individual, quer
coletiva. O que parece reunir consenso entre os trabalhadores do serviço
de imagiologia traduz-se na concordância de que sua atividade profissional
é de risco elevado. Foi também com frequência afirmado pelos trabalha-
dores que a tipologia de riscos aos quais se encontram expostos não era
devidamente valorizada pela organização/gestão do local onde exercem
sua atividade laboral. Essa perspectiva coincide com a posição de Steudler

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Riscos ocupacionais da imagiologia: estudo de caso num hospital português, pp. 297-318

(1974), que afirma que o hospital contemporâneo apresenta dois sistemas


lógicos distintos. De um lado, existe a lógica científica e técnica do corpo
de profissionais hospitalares, particularmente os médicos; de outro, existe
a lógica economicista e racionalizadora da administração hospitalar. Com
essas perspectivas diferenciadas e, por vezes, antagônicas, a relação entre
profissionais de saúde e administração hospitalar é normalmente pautada por
situações de alguma tensão. Os riscos existentes dentro do hospital não são
vistos sob o mesmo prisma, o que acaba por expressar duas visões distintas
sobre o problema da exposição aos riscos organizacionais.

Ainda há algumas coisas que teriam de ser melhoradas e valorizadas, porque não são
valorizadas muitas vezes. Estar exposto às radiações ionizantes é uma profissão de ris-
co, além de todos os riscos inerentes a toda a profissão médica, de todo o ato médico.
Porque nós também podemos ser infectados. Mas, portanto, acho que isso é um risco
acrescido e isso não é valorizado, penso que não (Médico de neurorradiologia nº 14).

As atitudes e os comportamentos dos trabalhadores perante os riscos


laborais podem ser variáveis (cf. Areosa, 2007b) de indivíduo para indi-
víduo. O mesmo trabalhador pode apresentar comportamentos distintos
perante o mesmo risco, em momentos diferentes de sua carreira. Como
em nossa pesquisa, a literatura também aponta que as percepções de riscos
podem influenciar os comportamentos e as atitudes (cf. Rundmo, 2000).
Assim, quanto “maior” for o conhecimento e as percepções de riscos dos
trabalhadores, “melhor” poderá ser o desempenho na prevenção de riscos,
e por consequência na prevenção de acidentes de trabalho ou de doenças
profissionais. Porém, não apenas os riscos que, hipoteticamente, dão ori-
gem a lesões corporais devem ser considerados como riscos ocupacionais.
Os riscos do foro psicossocial devem ser alvo de uma profunda reflexão e
prevenção por parte das organizações, por contribuírem fortemente para a
qualidade de vida laboral e social dos trabalhadores, bem como para o em-
penho, a motivação e o absenteísmo. Neste estudo observamos que alguns
trabalhadores do serviço de imagiologia revelaram particular sensibilidade
para esse tipo de risco, já que se encontram profundamente incorporados
à sua atividade quotidiana.

A parte da urgência é violenta e é um stress muito grande. Nós entramos ao serviço


e entramos logo em stress porque é a ansiedade das pessoas, é a pressa das pessoas.
A situação pode ser de urgência ou não, mas elas sentem que estão num serviço

14 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


João Areosa

de urgência e que devem chegar e ser atendidos. Quando eu lhes digo que: olhe,
tem ali aqueles doentes também a aguardar para fazer RX, eles ficam desesperados,
porque não podem esperar. Depois temos de contar com as más educações, com as
pessoas irresponsáveis, com as pessoas menos bem-educadas e temos de ter paciência,
falar com as pessoas e levá-las a perceber a situação que está. As urgências estão
normalmente um caos, as segundas-feiras então, aliás, chegou a apreciar como é
que são as segundas-feiras. Isto leva a que os técnicos, aliás, todos os profissionais
de saúde das urgências, penso que é sempre assim, há um stress muito grande.
Mas parece que o stress já faz parte da nossa profissão, é o dia a dia. Os problemas
vão-se resolvendo, as situações vão sendo ultrapassadas, com calma, com método
e com respeito pelo doente, porque é por isso que nós estamos cá, é por causa do
doente. [...]. As pessoas [colegas de trabalho] também têm os seus problemas, são
seres humanos, têm os seus problemas psicológicos, físicos e os seus problemas fa-
miliares, e que muitas vezes também têm de ser resolvidos na equipe. É assim, um
desdobramento pessoal e uma compreensão de todos. O trabalho por turnos, fazer
as noites também complica. Mas eu aqui até acrescentaria que deixar de trabalhar
por turnos não sei se era bom, eu já não sei trabalhar sem ser por turnos (Técnico
de radiologia nº 12).

Menéndez (2003) afirma que o conhecimento pericial forjou uma


imagem restritiva dos riscos laborais e, consequentemente, dos problemas
de saúde dos trabalhadores, valorizando a confiança em torno do controle
tecnológico dos riscos. Essa visão parcial dos peritos originou certa tendên-
cia para a “desproblematização” dos riscos para a saúde dos trabalhadores,
só pontualmente abalada por algumas situações mais mediáticas, mas sem
afetar de forma profunda a estrutura dominante no mundo social. Os
efeitos indesejáveis da atividade produtiva sobre a saúde dos trabalhadores,
resultante dos riscos associados ao trabalho, foram sempre sistematicamente
minimizados no passado e até vistos como inevitabilidade das sociedades
ocidentais rumo ao progresso e ao desenvolvimento econômico e social.
A visão dos especialistas tornou-se hegemônica e foi sempre dirigida no
sentido de individualizar o risco (como fator humano inerente ao próprio
trabalhador), relegando a um plano secundário o risco como fator social
ou organizacional. Porém, como sugere Granjo (2006, p. 1173), em deter-
minadas situações a visão dos trabalhadores sobre os riscos laborais pode
ser considerada “mais científica” do que a visão dos peritos. No serviço de
imagiologia os riscos técnicos e tecnológicos são consideráveis, incidindo
sobre o conjunto de profissionais, embora na sua avaliação se deva sempre

novembro 2011 15
Riscos ocupacionais da imagiologia: estudo de caso num hospital português, pp. 297-318

incluir a forma como estes são percebidos, bem como a propensão individual
na forma de lidar com certos tipos de riscos. Uma prevenção eficaz deve ter
em conta a visão dos trabalhadores sobre os riscos ocupacionais, e isso não
se verificou no serviço estudado.

Enfim, os riscos existem, não são negligenciáveis, quer os riscos psicológicos, quer
da sobrecarga física, também os riscos das radiações e de contágio, de lidar com
situações graves, de alguma forma é depressivo, é angustiante, não é. Depende
também muito da pessoa; no nível da instituição não há grande atenção a essas
questões, não há formação nenhuma nessa área (Médico de neurorradiologia nº 15).

Apesar de existirem no serviço de imagiologia equipamentos de proteção


individual e coletiva, pudemos verificar que estes nem sempre eram utili-
zados da forma mais correta pelos trabalhadores. Chegamos a presenciar
a não utilização de proteção individual em situações que seria exigível sua
utilização. A generalidade dos trabalhadores desse serviço revela uma razoável
percepção dos riscos existentes no seu local de trabalho. Todavia, isso não
significa que as atitudes, as práticas e os comportamentos correspondam
exatamente a uma cultura de prevenção e de segurança laboral. Verificamos
a inexistência de formação específica sobre riscos ocupacionais, bem como
uma fraca intervenção dos serviços de saúde ocupacional.

Principais conclusões da pesquisa

O risco é uma entidade onipresente em qualquer posto de trabalho. No


entanto, a forma como são percebidos e valorizados difere consoante os
contextos a que eles estão incorporados. Os riscos laborais, por exemplo,
tendem a ser menos valorizados pelos trabalhadores quando as recompensas
obtidas são maiores (cf. Dwyer, 2006). Todavia, em certas situações, os riscos
laborais podem também constituir o mote para diversos tipos de reivindi-
cação, por exemplo no nível sindical. Nem sempre as percepções de riscos
dos trabalhadores são um espelho absolutamente fidedigno da realidade
organizacional, uma vez que podem ser “distorcidas”, isto é, podem ser um
meio de apreender o mundo exterior de forma pouco objetiva. Contudo,
é importante referir que nem mesmo as designadas avaliações objetivas de
riscos (efetuadas por especialistas) estão isentas de risco (cf. Perrow, 1999).
No serviço de imagiologia também confirmamos essa premissa, conside-
rando a heterogeneidade das percepções de riscos desses trabalhadores. Os

16 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


João Areosa

riscos mais temidos por esse grupo de trabalhadores estão relacionados com
riscos físicos (exposição a radiações ionizantes) e riscos biológicos (derivado
do eventual contágio com as patologias dos doentes), embora também se-
jam apontados outros tipos de risco ocupacional. Porém, é pertinente não
esquecer que qualquer percepção de riscos laborais é sempre um processo
interpretativo de uma dada “realidade” organizacional suscetível de aprecia-
ções diversificadas. As percepções de riscos no serviço de imagiologia são,
tendencialmente, construídas a partir da formação acadêmica e das expe-
riências vividas nos locais de trabalho. São essas experiências que estruturam
o modelo de representações dos agentes sociais, com base no desenrolar das
práticas quotidianas do mundo laboral, sendo mais ou menos influenciadas
pelos discursos e pelas práticas produzidas no ambiente de trabalho. Essa
dinâmica de interação social no mundo do trabalho produz e reproduz
os limites das percepções de riscos laborais, bem como os conteúdos mais
importantes, e desse modo podem originar propensões diversificadas para
lidar com os riscos, o que pode influenciar a maior ou menor ocorrência de
acidentes de trabalho (cf. Areosa, 2003, 2005). É verdade que encontramos
um número considerável de riscos organizacionais no serviço estudado, no
entanto a grande maioria dos entrevistados apenas conseguiu identificar
parcialmente os riscos laborais.
Na perspectiva de Giddens (1994), a percepção sobre a forma como os
riscos são controlados depende da confiança depositada nos sistemas abstra-
tos. Os trabalhadores do serviço de imagiologia nem sempre demonstraram
confiar na forma como a organização controla os riscos ocupacionais. É
pertinente lembrar que o limiar da aceitabilidade do risco nos locais de
trabalho é mais baixo quando os trabalhadores se consideram eles próprios
explorados (cf. Douglas, 1985) ou violentados pelo trabalho. Pudemos ve-
rificar que os trabalhadores mais descontentes com a situação profissional
tendiam a afirmar que os riscos ocupacionais não eram devidamente con-
trolados pela organização hospitalar. No entanto, não se observou que esse
fato desse origem a qualquer tipo de reivindicação ou conflitualidade, talvez
por esses riscos serem familiares ou conhecidos, assumidos voluntariamente
pelos trabalhadores e distribuídos de forma mais ou menos equitativa no
serviço observado.
Os trabalhadores do serviço de imagiologia identificaram também ou-
tros tipos de risco de seu universo laboral, além dos dois principais tipos
já referidos anteriormente, embora apenas uma parte dos entrevistados os
mencionasse no seu discurso. Com base nesse parâmetro – identificação

novembro 2011 17
Riscos ocupacionais da imagiologia: estudo de caso num hospital português, pp. 297-318

de riscos –, podemos afirmar que alguns trabalhadores revelam um nível


razoável de percepção de risco laboral. Esse fato pode ser explicado pela
elevada instrução formal do universo dos nossos entrevistados. Embora
não os possamos considerar especialistas em riscos laborais, também não
são completamente leigos na matéria, uma vez que sua formação acadêmica
contempla essa temática. Podemos considerar que estarão numa posição in-
termédia entre o mundo dos especialistas de riscos ocupacionais e o mundo
dos leigos. Contudo, nas conversas informais mantidas ao longo de nossa
pesquisa de campo, raramente foram referenciados os riscos laborais como
uma das principais preocupações.

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novembro 2011 21
Riscos ocupacionais da imagiologia: estudo de caso num hospital português, pp. 297-318

Resumo
Riscos ocupacionais da imagiologia: estudo de caso num hospital português

Este artigo apresenta os resultados de uma investigação realizada num serviço de


imagiologia de um hospital público. Apresentamos os principais riscos ocupacionais
dessa atividade, bem como a visão dos trabalhadores diante de seus riscos ocupacio-
nais. As categorias profissionais observadas foram as seguintes: médicos de radiologia
convencional, médicos de neurorradiologia e técnicos de radiologia. A metodologia
utilizada neste estudo de caso foi a pesquisa de campo com observação participante. Na
operacionalização desse método utilizamos a entrevista como técnica privilegiada para
a recolha de informação. Uma das principais conclusões desta investigação revela que
as percepções de riscos no serviço de imagiologia são heterogêneas. Todavia, os riscos
mais temidos por parte dos trabalhadores estão associados à exposição às radiações
ionizantes e aos diversos riscos biológicos transversais ao meio hospitalar.
Palavras-chave: Risco; Riscos ocupacionais; Percepções de riscos; Imagiologia hospitalar.

Abstract

Occupational risks of medical imaging: a case study in a Portuguese hospital

This paper presents the findings of research undertaken in an imaging service based at
a public hospital. Here we examine the main occupational risks of this activity, as well
as employee perceptions of this risk. The professional groups observed were: radiology
doctors, neuroradiology doctors and radiology technicians. The methodology used in
the case study was field research with participant observation. In implementing this
method we used interviews as a primary technique for obtaining information. One
of the main conclusions of the investigation was that risk perceptions in the imaging
service vary considerably. However the risks most feared by workers are associated with
exposure to ionizing radiation and various other biological hazards encountered in the
hospital environment in general.
Keywords: Risk; Occupational risk; Risk perception; Medical imaging.
Texto recebido em 1/9/2009 e
aprovado em 15/8/2011.

João Areosa é pesquisador no


Centro de Investigação em Ci-
ências Sociais (CICS), membro
fundador da Rede de Investigação
sobre Condições de Trabalho
(RICOT), membro do conselho
editorial da revista Segurança
Comportamental e doutor em
Sociologia pelo Instituto Uni-
versitário de Lisboa (ISCTE-
IUL). E-mail: <joao.s.areosa@
gmail.com>.

22 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Ralf Darendorf (1929-2009):
Réquiem para um sociólogo liberal*

Antonio Carlos Dias Junior

Introdução * Este texto baseia-se, com


alterações, em fragmentos dos
capítulos 1 e 2 da dissertação de
Faleceu na Alemanha em junho de 2009, pouco depois de ter completa- mestrado O liberalismo de Ralf
Dahrendorf (2007), Programa de
do 80 anos, o intelectual inglês, cuja origem germânica era prontamente Pós-Graduação em Sociologia da
denunciada pelo sobrenome, Sir Ralf Dahrendorf. Filósofo de formação e Unicamp. Encontra-se no prelo,
pela Editora da Universidade
sociólogo por ofício, o autor teve sua profícua trajetória teórica enriquecida Federal de Santa Catarina, o livro
pelas experiências na vida pública cotidiana, primeiramente na Alemanha O liberalismo de Ralf Dahrendorf:
classes, conflito social e liberdade.
da década de 1970 e depois na Alta Câmara do Parlamento Britânico.
Talvez o título deste necrológio (que não é exatamente um elogio fúne-
bre, mas uma homenagem) não faça jus ao autor, visto que Dahrendorf não
gostava de rótulos. Não obstante, o liberalismo social, ou socialismo liberal
(sem paradoxo entre os termos), era a forma como ele definia, ainda que
contrariado, seu tipo particular de liberalismo. Desta vertente liberal que
floresceu no século XX, em que as liberdades individuais foram pensadas em
conjunto com a agenda de reformas sociais, Dahrendorf derivou com rara
profundidade e coerência suas convicções teóricas, políticas e existenciais.
Do epíteto liberal nunca discordou, sobretudo como filiação antípoda
aos regimes políticos contrários às liberdades individuais, mas desde que
do liberal fosse exigida a tarefa igualmente essencial de cumprir a agenda
dos direitos sociais. Se me fosse cobrada uma definição sucinta de seu
pensamento, diria que Dahrendorf foi um intelectual que duvidou das
Ralf Darendorf (1929-2009): réquiem para um sociólogo liberal, pp. 321-334

certezas patentes e divisou a boa sociedade como aquela em que a liberdade


é o bem supremo a ser alcançado e preservado, sob qualquer circunstância
ou regime político.
Os temas com os quais trabalhou representam uma espécie de aprimora-
mento contínuo, não no sentido evolutivo do termo, e sim cumulativo. O
próprio autor admitiu em diversas passagens que sua teoria foi constituída
como reflexo, em grande parte, do percurso biográfico e intelectual, e por
isso ela não pode ser (e o liberalismo que postulava também não o era)
estacionária, imune aos acontecimentos históricos e à realidade concreta
das sociedades.
Filho de seu tempo e de seu século, Dahrendorf desenvolveu, assim como
a geração de intelectuais que experimentou o terror do nazismo, verdadeira
repulsa a qualquer espécie de totalitarismo de Estado. Neste particular,
sua pena não distinguiu colorações políticas ou ideológicas. Dahrendorf
criticava com a mesma verve o regime hitlerista e o totalitarismo soviético,
bem como a opressão exercida atualmente, de maneira tão pungente, pelo
mercado e seus tentáculos.
As passagens abaixo, embora longas, mostram como esse anelo claustro-
fóbico se constituíra.

A minha experiência antifascista foi a de um militante muito jovem. Pertenço a


uma família social-democrata. Meu pai foi deputado social-democrata durante a
República de Weimar e exerceu atividades políticas durante toda sua vida. Pertenceu
à resistência ao nazismo, foi preso pela primeira vez em 1933, depois em 1938 e,
novamente, em 20 de junho de 1944. Nessa época, iniciei, com alguns amigos, uma
espécie de associação estudantil. Tinha apenas 15 anos e talvez a minha atuação
tivesse apenas a metade da gravidade que meus olhos de adolescente captavam. O
que fizemos foi distribuir panfletos sobre os campos de concentração, e que atacavam
o Estado da SS e faziam propaganda pelo fim da guerra e do regime nazista. Tudo
caiu aos olhos da Gestapo e, assim, em novembro de 1944, eu e um amigo fomos
presos e depois enviados a um campo de concentração, de onde fomos soltos por
decisão da própria SS, no dia em que os russos chegaram.
Essa experiência foi muito importante para mim. Jovem como era, senti a experiência
do protesto e oposição contra o totalitarismo e, subitamente, compreendi o que
significa estar preso, principalmente durante o período de solitária e que, como
é óbvio, não foi particularmente agradável. Estou certo de que essa experiência
influiu muito sobre minha formação liberal, apesar de poder dizer que a suportei
bastante bem, pois, como disse, vinha de uma família empenhada na defesa dos

4 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Antonio Carlos Dias Junior

valores da democracia. Um dos frutos que colhi é que, hoje, pertenço ao grupo
dos que sustentam que os maiores perigos para a democracia podem vir da direita
e não da esquerda (Dahrendorf, 1981a, p. 1).

E ainda:

[...] o campo de concentração era de fato uma experiência muito diferente: na


penumbra da manhã, filas sob o congelante vento do leste, à espera de um prato de
sopa aguada; o brutal enforcamento de um prisioneiro russo, por ter roubado meia
libra de margarina; fatias de pão passadas sub-repticiamente a um doente ou um
velho, talvez uma lição de solidariedade e, acima de tudo, a sacralidade das vidas
humanas. Mas foi durante estes dez dias de confinamento solitário que se gerou um
anelo quase claustrofóbico pela liberdade, um desejo visceral de não ser cercado,
nem pelo poder pessoal dos homens, nem pelo poder anônimo das organizações
(Dahrendorf, 1979, p. 13).

As passagens também sugerem a precoce predileção liberal de Dahren-


dorf – e daí a crítica que elaborou ao nazismo, e que elaboraria mais tarde ao
comunismo soviético e aos regimes autoritários da América do Sul. No nível
teórico, o autor erigiria crítica sistemática àquelas teorias que considerava
estruturantes e unívocas, resistentes ao conflito e, segundo sua argumentação,
por natureza homogeneizantes da realidade social (no campo sociológico, o
funcionalismo e o marxismo).
Daí também sua acolhida ao individualismo metodológico weberiano, à
metafísica kantiana, à lógica popperiana, e a predileção por nortes teóricos
que não consideram a realidade social apreensível e inteligível como um
todo. No campo da teoria sociológica específica, Dahrendorf percorreu
diversos caminhos. Muitos o conheceram nos meios intelectuais como o
teórico do conflito, e outros não hesitaram em imputar-lhe a distinção de
teórico da sociedade industrial.
Estudiosos (que, diga-se, são poucos) de sua produção mais recente
afirmam ter sido ele o teórico neoliberal das reivindicações igualitárias, do
liberalismo social/institucional. Todos têm razão, acrescentaria. Seu per-
curso intelectual, acadêmico e também como político de ofício é exemplo
da versatilidade que marcou sua trajetória para além da carreira teórica, de
acordo com o que buscarei mostrar nas linhas que se seguem.

novembro 2011 5
Ralf Darendorf (1929-2009): réquiem para um sociólogo liberal, pp. 321-334

Formação e primeira produção intelectual

Ralf Gustav Dahrendorf nasceu em 1929, na cidade de Hamburgo. Aos


18 anos de idade ingressou no Partido Social-Democrata alemão (SPD),
e escolheu para isso a data simbólica de 1º de maio de 1947 (dia de seu
aniversário). Na mesma época ingressava na Universidade de Hamburgo,
onde estudaria letras clássicas, latim e grego, além de filosofia como maté-
ria optativa. No último ano da graduação, mudou definitivamente para a
1. Trata-se de um estudo vertical filosofia e defendeu a tese de doutorado sobre Karl Marx1. Nos anos entre
sobre a ideia de justiça e de
1952 e 1954, Dahrendorf estagiou na London School of Economics (LSE),
verdade em Marx, intitulado, no
original, Der Begriff des Gerechten onde obteve outro doutoramento com uma tese sobre o trabalho não espe-
im Denken von Karl Marx (O
cializado na indústria britânica.
conceito do justo no pensamento
de Karl Marx), depois convertido Nessa época já era autor de ensaios de fôlego sobre teoria social. Deixou a
no livro Marx in persppektive (Die London School para ingressar no Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt,
Idee des Gerechten im Denken von
Karl Marx), sem tradução para o então dirigido por Teodor Adorno e Max Horkheimer, no qual permaneceu
português. por pouco tempo: “fiquei lá exatamente oito semanas; depois de quatro,
compreendi que reinava uma atmosfera opressiva e autoritária, que não
me agradava. Na realidade, como liberal, não aceito as verdades patentes”
(Dahrendorf, 1981a, p. 10).
De Frankfurt, Dahrendorf mudou-se para a Universität des Saarlandes,
em Saarbrücken. Lá ficou por alguns anos e terminou de escrever a versão
2. A edição original em alemão, que seria publicada de As classes e seus conflitos na sociedade industrial (1982)2,
Soziale Klassen und Klassen-
obra que marcou sua produção, dando-lhe grande notoriedade e destaque
Konflikt in der Industriellen
Gesellschaft, é de 1957. O próprio nas ciências sociais. A publicação do livro marca o início da primeira fase
Dahrendorf fez a tradução/ de sua produção teórica.
revisão/ampliação para a edição
em inglês (de 1959), da qual a Alguns autores, como Alberto Izzo (1991) e Sérgio Adorno (1996),
tradução brasileira é fruto. Cabe com os quais concordamos, entendem que há certa divisão (ou mesmo um
ressaltar que Dahrendorf escreveu
a obra em 1954-1955, como
corte de ordem epistemológica) em duas etapas na obra teórica do autor:
licenciamento na Universität um primeiro momento em que estão agrupados os primeiros escritos, rea-
des Saarlandes, em Saarbrücken,
aos 26 anos, dois anos antes,
lizados entre meados da década de 1950 e a primeira metade da década de
portanto, de sua primeira edição, 1970; e um segundo, que compreende a produção a partir de meados da
ampliada.
década de 1970.
O primeiro Dahrendorf compreende o período em que o autor contestou
3. A edição original da obra em
alemão Gesellschaft und Freiheit: de uma só vez e de maneira sistemática os fundamentos da teoria do consenso
Zur sociologischen Analyse der social de Talcott Parsons, bem como produziu uma espécie de atualização
Gegenwart é de 1961.
da teoria do conflito e da teoria de classes de Karl Marx. Esse conjunto
4. A edição original em inglês
Essays in the Theory of Society é
de trabalhos compreende duas coletâneas de ensaios publicadas no Brasil:
de 1968. Sociedade e liberdade (1981b)3 e Ensaios de teoria da sociedade (1974)4, além

6 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Antonio Carlos Dias Junior

de As classes e de outras obras menores derivadas de palestras e conferências.


Datam dessa época também sua própria teoria do conflito e os primeiros
escritos que versam especificamente sobre a temática da liberdade.
No texto mais importante do período, As classes e seus conflitos na sociedade
industrial, Dahrendorf partiu da premissa de que muitas das previsões de
Marx foram refutadas pelo desenvolvimento das sociedades industriais no
século XX, e de que a teoria do conflito em Marx não foi capaz de cobrir a
complexidade das sociedades contemporâneas nem seus conflitos, que estão
deslocados da esfera da produção.
Dessa forma, o desenvolvimento das forças sociais justificaria que a teoria
de classes em Marx fosse colocada em xeque quando confrontada a obser-
vações empíricas, bem como a própria teorização marxiana do proletariado
como agente histórico-social portador da possibilidade de emancipação.
Dahrendorf apontava ainda para outra lacuna: a necessidade da elaboração
de uma teoria do conflito que fosse aplicável não apenas à sociedade capi-
talista, mas às sociedades industriais em geral.
Paralelamente à crítica a Marx, Dahrendorf propôs censura sistemática
à teoria do consenso social de Parsons. Seu principal argumento residia no
fato de a teoria parsoniana supostamente rejeitar a função dos conflitos nas
sociedades, constituindo sistemas interpretativos fechados e utópicos. Para
Dahrendorf, o modelo estrutural-funcionalista de sociedade não admite
qualquer tipo de mudança, uma vez que se baseia na ideia de que cada
indivíduo desempenha um papel definido e funcional ao equilíbrio social,
não havendo, pois, espaço para o conflito, suposto aspecto estruturador e
norte da teoria dahrendorfiana.
Partindo da crítica dessa não possibilidade (em relação ao conflito social),
Dahrendorf propôs sua própria tese. O conflito seria funcional – no sentido
não funcionalista do termo – à sociedade, na medida em que é o próprio
motor transformador da história. Para o autor, uma sociedade baseada no
modelo estrutural-funcional, no qual tudo segue uma marcha para a per-
feição, evoca um quadro terrível, já que tal pretensa estabilidade estende-se
invariavelmente à realidade sociopolítica concreta, tornando-a totalitária.
“[...] quem quiser conseguir uma sociedade sem conflitos, tem que fazê-lo
pelo terror e pela força policial; pois só a representação de uma sociedade
sem conflitos é um ato de violência cometido contra a natureza humana”
(Dahrendorf, 1981b, p. 84).
Segundo sua argumentação, no conflito repousaria, portanto, o próprio
caráter histórico-antropológico das sociedades humanas, pois as respostas

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Ralf Darendorf (1929-2009): réquiem para um sociólogo liberal, pp. 321-334

divergentes garantem que o homem, através de suas inquietações e incer-


tezas, busque sempre soluções divergentes às situações e aos desafios que se
apresentam cotidianamente. Para Dahrendorf, no conflito, na mudança e na
multiformidade da realidade social repousa o caráter de incerteza intrínseco
ao ser humano.
Sobretudo, conflito social representa, no registro liberal de Dahrendorf, a
caução a todos os modelos amorfos de sociedade; significa a não possibilidade
de haver respostas possíveis para tudo, vale dizer, que a instabilidade é a marca
distintiva da realidade social e do próprio homem como ser histórico. Para
o autor, “[...] os conflitos são indispensáveis, como um fator do processo
universal da mudança social [...] exatamente porque apontam para além
das situações existentes, são os conflitos um elemento vital das sociedades,
como possivelmente seja o conflito geral de toda vida” (Idem, p. 82).
Em 1957-1958, Dahrendorf esteve no Centro de Estudos Avançados em
Ciências Comportamentais de Palo Alto, nos Estados Unidos, permanecen-
do por um ano apenas, porém muito profícuo, pois lá se encontrava Parsons,
com quem polemizava agudamente. Nos Estados Unidos, tomou contato
mais íntimo com o liberalismo inglês e norte-americano, sobretudo de John
Stuart Mill, o que acabaria moldando sua própria visão política e teórica.
Esse foi realmente um período de intensa atividade intelectual. O ano
de 1957 marca também a produção de um dos textos mais clássicos de
5. Outra tradução deste texto Dahrendorf: Homo sociologicus (1969)5, no qual o autor discute o conceito
está coligida em Ensaios de teoria
de papel social. No conjunto de sua obra, Durkheim tratou de estabelecer
da sociedade (1974).
os papéis como fatos sociais elementares. Ingressamos nas relações sociais
não como indivíduos crus, mas sim envolvidos por roupagens que nossa
posição na sociedade nos confere.
Nossa herança como seres sociais e sociáveis nos lega um conjunto de
posições (políticas, participação social, preferências pessoais etc.) que nos
são ensinadas, passadas e apreendidas. Se as transgredimos, há sanções que
nos fazem lembrar os nossos deveres. O Homo sociologicus, argumentava
Dahrendorf, é o portador de tais papéis; mais que isso, a sociedade é vexa-
tória, isto é, aliena de si o Homo sociologicus.
Utilizando-se de linguagem kantiana, argumenta que há um indivíduo
moral que pode e deve ser visto em separado dos papéis sociais, possuindo,
portanto, um caráter empírico e outro inteligível (ou moral), cabendo a ele
ser estimulado a lutar contra as imposições da sombra sociológica do homem.
Deliberadamente dialogando com Max Weber (1989) e a busca pela neu-
tralidade axiológica (e também a distinção entre a ética da responsabilidade

8 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Antonio Carlos Dias Junior

e a das convicções), Dahrendorf propunha que o sociólogo como tal não


deve ser um político, no sentido de utilizar sua posição para tal fim, nem
tampouco deve abster-se por completo da realidade política que o cerca.
Seu Homo sociologicus, com efeito, vive em permanente conflito entre
a sociedade, que jamais é intrinsecamente moral, e o social. Em sua visão,
esse conflito não pode ser solucionado no plano da teoria, mas deve sê-lo
na prática. Disso decorre que aqueles que se dedicam ao estudo da socie-
dade, bem como aqueles que exercem funções políticas, não devem jamais
negligenciar sua função crítica como intelectuais.
Após essa rápida passagem pelos Estados Unidos, Dahrendorf regressa à
Alemanha, a Saarbrücken, onde permaneceria por alguns anos. Em pouco
tempo estaria de volta à vida política ativa, conciliando-a com a acadêmica.
Em 1960, então precoce professor, foi convidado a proferir oficialmente uma
palestra no congresso do SPD na cidade de Bad Godesberg sobre o governo
representativo e as mudanças sociais. Na ocasião Dahrendorf salientou que
o desenvolvimento da Alemanha no pós-guerra deveria ser pautado cada
vez mais na insistência dos direitos individuais e do bem-estar do indivíduo,
bem como na liberdade e consequente diminuição do papel do Estado como
elemento essencial do desenvolvimento social.
Ao final de sua fala, defendeu de forma explícita que o êxito do SPD
(historicamente o partido radical de esquerda na Alemanha) seria garantido
somente se houvesse pronta transformação aos moldes liberais. Além de vaias,
essa afirmação gerou um posicionamento oficial do partido de não compar-
tilhamento das palavras e ideias do emergente palestrante. Dahrendorf, por
sua vez, ainda no púlpito, respondeu que portanto, provavelmente, jamais
tinha pertencido àquele partido. Data desse dia seu desligamento formal
do SPD e dos socialistas.
O afastamento da vida política perdura, no entanto, apenas até o ano
de 1967, quando ingressa no Partido Liberal Alemão (FDP). Segundo
Dahrendorf, a adesão foi motivada primeiramente por decisão estratégica,
uma vez que o Partido Liberal, embora com posições excessivas à direita,
opunha-se à Grande Coalizão de Kiesinger e Brandt6. Em sua apreciação, 6. Trata-se da Grande Coalizão
de governo na Alemanha, em
tal coalizão, que aglutinava cerca de 90% do eleitorado e dos parlamenta-
dezembro de 1966, entre o
res, configuraria um retrocesso à ideia tradicional alemã – segundo a qual bloco democrata-cristão (Chris-
tlich-Demokratische Union, de
o conflito é um mal, de modo que é preciso estar de acordo sobre todos os
Kiesinger, e Christlich-Soziale
assuntos e construir um amplo consenso, que representaria, portanto, um Union, de Strauss) e o Partido

“retorno perigosíssimo a uma perspectiva política profundamente antiliberal, Social-Democrata de Brandt.

no sentido de contrária à liberdade” (Dahrendorf, 1981a, p. 3).

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Ralf Darendorf (1929-2009): réquiem para um sociólogo liberal, pp. 321-334

Dahrendorf oferecia uma vez mais sinais claros de pouca tolerância à


homogeneização. Àquela altura, dizia, o FDP representava o único partido
de oposição, com cerca de quarenta dos 520 deputados alemães, e sua adesão
ter-se-ia dado por dois motivos: primeiro, a tentativa de romper o círculo de
consenso e fomentar a dialética própria entre governo e oposição e, também,
findar com os vinte anos ininterruptos de regime democrata-cristão, a fim
de verificar a capacidade da democracia alemã de mudar sem o recurso da
violência. A tentativa obteve êxito. Nas eleições de 1969, o FDP conseguiu
superar, ainda que minimamente, os 5% exigidos como condição de sobre-
vivência aos partidos na Alemanha (obteve 5,8% dos votos).
Em 1968, Dahrendorf seria eleito deputado no Parlamento de Baden
Wurttemberg. Nesse mesmo ano a coalizão chega ao fim, e os social-
democratas unem-se aos liberais, saindo vitoriosos nas eleições de 1969.
Dahrendorf ocupou o cargo de subsecretário do Exterior da República Fe-
derativa Alemã e tornou-se membro da Comissão Executiva da Comunidade
Econômica Europeia entre 1970 e 1974, ano em que ingressou como reitor
na London School of Economics, onde ficaria até 1984, afastando-se, com
isso, do dia a dia da vida política alemã, sem no entanto dela desligar-se
por completo.
Essa fase na London School of Economics coincide diretamente com
sua mudança de paradigmas teóricos. O período em que viveu o dia a dia
da política e das relações institucionais, e também refletiu sobre as possi-
bilidades reais de aplicar os preceitos e ideais teóricos à realidade concreta,
serviu-lhe de base aos escritos que se sucederam. Essas experiências, somadas
à mudança de paradigmas teóricos, conferiram as características da segunda
fase de sua produção intelectual.

Liberalismo e obras da maturidade

Por segundo Dahrendorf, ou Dahrendorf mais recente, entende-se um


momento de redirecionamento das preocupações, deslocadas doravante para
a percepção e a crítica da natureza dos conflitos contemporâneos, bem como
7. A obra foi apresentada ini- das novas oportunidades advindas do alargamento daquilo que denominou
cialmente em inglês, sob o título
Law and order em 1985.
chances de vida. A essa fase pertencem, substancialmente, suas obras A lei e a
8. Tradução para o português do
ordem (1987)7, O conflito social moderno: um ensaio sobre a política da liberda-
original em inglês The modern de (1992)8, Reflexões sobre a revolução na Europa (1991) e Após 1989: moral,
social conflict: an essay on the
politics of liberty, publicado em
revolução e sociedade civil (1997). As duas primeiras são as mais importantes
1988. e representativas desse período, ao passo que a terceira se constitui em um

10 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Antonio Carlos Dias Junior

ensaio crítico sobre o desfecho do modelo soviético em 1989, com a queda do


Muro de Berlim. Já Após 1989 (cujo prefácio da edição brasileira foi escrito
por Fernando Henrique Cardoso) reúne um conjunto de conferências, todas
da década de 1990, em que Dahrendorf expõe caracteristicamente as preocu-
pações – e convicções – da fase madura de sua reflexão.
Dos textos de teoria sociológica e política, em que, nos moldes acadê-
micos, analisava teorias das quais discorda, o autor passa paulatinamente a
escrever sobre a conjuntura concreta das sociedades em que vive, produzindo
textos propositivos e de intervenção política. Não é sem propósito que, desde
a década de 1970, quase a totalidade de seus escritos tenha sido elaborada
na forma de conferências, pronunciamentos e artigos em periódicos, em
especial jornais de grande circulação.
Não estamos afirmando que Dahrendorf escrevia, em sua primeira fase,
sobre um mundo irreal, ou que sua produção tenha se metamorfoseado
da água para o vinho. O fato, no entanto, é que, se suas preocupações não
mudaram na essência – a defesa da sociedade aberta, o papel do liberalismo
e o caráter central dos conflitos –, o discurso eminentemente sociológico deu
lugar em definitivo ao político do dia a dia e à preocupação com o futuro
imediato das sociedades ocidentais. Com isso, buscava deliberadamente se
afirmar como intelectual na acepção mais fina que o termo poderia ter para
ele: aquele que pensa a sociedade a fim de torná-la um lugar melhor e mais
próspero para tantas pessoas quanto possível.
Essa passagem marca também uma mudança de foco: as conjunturas
econômicas, com seus conceitos, definições e especificidades, assumem papel
central, vale dizer, o signo da economia em expansão (e sua posterior crise)
são fatores considerados por Dahrendorf como centrais e que permitem
vislumbrar o futuro das sociedades abertas. Seguramente os textos da década
de 1970 são os mais otimistas; os posteriores apresentam-se carregados de
cores sombrias.
Em 1985, três anos antes da publicação de O conflito social moderno,
lançava-se A lei e a ordem, fruto de quatro conferências. Embora seja um
estudo que muito se aproxima a um ensaio, portanto de cunho mais descri-
tivo, nele Dahrendorf oferece um texto erudito e fortemente argumentado
sobre o futuro da ordem social e da liberdade (cf. Adorno, 1996).
O maior obstáculo para efetivar a política da liberdade seria, em sua
argumentação, a erosão da lei e da ordem, cujo principal sintoma diria
respeito à incapacidade do Estado de cuidar das pessoas e dos bens e de
punir de maneira sistemática e eficaz as infrações às normas. As principais

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Ralf Darendorf (1929-2009): réquiem para um sociólogo liberal, pp. 321-334

consequências desse cenário seriam a escalada do crime e a generalização


do sentimento de insegurança na contemporaneidade.
Podemos dizer que A lei e a ordem é peça seminal para a compreensão do
diagnóstico sobre a sociedade contemporânea empreendido por Dahrendorf,
pois revela os limites da ordem social em sua argumentação, ao passo que
a publicação de O conflito social moderno, a nosso ver sua magnum opus,
representou o coroamento de sua carreira intelectual.
Nessa obra Dahrendorf ofereceu ao leitor acuradas análises sobre a conjun-
tura do pós-guerra e seus desdobramentos. A evolução das economias centrais
e seus dados macroeconômicos, o avanço do emprego, as novas faixas de
estratificação social e seus componentes, além de uma enormidade de outros
fatores são amiúde discutidos e problematizados, mostrando claramente que,
para ele, sem dados empíricos comprobatórios aliados às tendências estrutu-
rais a teoria se perde no vazio da especulação.
Da crítica sistêmica dos modelos que considerava utópicos (o marxismo
e o parsonianismo), caminha-se para uma mudança na orientação teórica,
agora moldada pelas questões da legalidade, da sociedade civil e cidadania,
da lei e da ordem e do conflito (não mais o puramente de origem classista
em termos antagônicos, mas, antes, o conflito resultante da luta pelo poder
configurado em termos de autoridade).
Contudo, a temática da sociedade aberta (ou do liberalismo institucio-
nal) representa o fio condutor que confere unidade à obra, vale dizer, uma
espécie de escopo que a permeia. No final das contas, o arsenal crítico de
Dahrendorf apontou constantemente para alvos precisos: toda espécie de
historicismo ou de teleologia histórica.
Em 1987, e pelos próximos dez anos, Dahrendorf seria decano/reitor
do St. Anthony’s College, na Universidade de Oxford. Em 1988, adotou a
nacionalidade britânica, e foi feito Lord pela rainha Elizabeth II, adentrando
a Alta Câmara do Parlamento Britânico em 1993 com o título de Barão
Dahrendorf de Clare Market.
Data de 1990 o já citado ensaio Reflexões sobre a revolução na Europa,
texto no qual, à maneira de Edmund Burke e seu Revoluções sobre a revolu-
ção na França (1982), Dahrendorf – escrevendo uma missiva fictícia a um
amigo também fictício polonês – expõe apaixonadamente suas opiniões
teóricas e filosóficas sobre o colapso do comunismo. O annus mirabilis
de 1989 anunciava para Dahrendorf o “fim do vale de lágrimas” rumo à
sociedade aberta. Trata-se, talvez, de seu texto mais popperiano. O argu-
mento central no texto é o de que os acontecimentos que culminaram em

12 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Antonio Carlos Dias Junior

1989 representaram mais que um marco ideológico e histórico do triunfo


das sociedades democrático-liberais. Apontaram, antes, para a derrota
de todos os sistemas contrários à sociedade aberta, de todos os sistemas
contrários à liberdade.
O caráter intrinsecamente caótico e incerto da realidade social constitui
o legado maior do pensamento de Popper ao liberalismo de Dahrendorf.
Embora devamos fugir das afirmações categóricas, e tendo em vista o
conjunto de sua produção, ao que tudo indica foi realmente o liberalismo
popperiano e sua sociedade aberta (cf. Popper, 1957, 1974) a influência mais
aguda na obra do autor. A cultura extremamente individualista presente em
Popper serviu-lhe, contudo, de visão de mundo, de filosofia da história,
mas não de panaceia.
Em Dahrendorf, o alargamento das chances de vida, e com ele o futuro
das sociedades democráticas, depende visceralmente tanto da exuberância
econômica e da pluralidade política como do espraiamento do acesso aos
bens por parte das populações fragilizadas, inclusive por medidas estatais,
desde que estas não busquem o nivelamento das formas de vida. Com
efeito, o tipo de liberalismo presente em Dahrendorf pouco tem a ver com
Hayek, Mises ou Friedman. Ele se alinha, antes, com o pensamento liberal
de autores como Laski, Bobbio ou Aron, à medida que busca as mesmas
condições de partida com vistas a diferentes pontos de chegada. Nisso difere
substancialmente, inclusive, de Popper.
Dahrendorf teve a honra, segundo suas próprias palavras, de escrever a
história oficial da London School of Economics, numa edição comemorativa
(1995). Vivia na Inglaterra e desenvolvia profícua colaboração intelectual em
universidades espalhadas pelo mundo na condição de palestrante, além de
colaborar regularmente com o diário espanhol La Vanguardia. Nos últimos
anos foi também presidente do grupo Newspaper Publishing, que publica
os jornais The Independent e The Independent on Sunday.
Recebeu em julho de 2007 o Prêmio Príncipe de Astúrias de Ciências
Sociais, ao qual concorreu, por indicação, ao lado de nomes como o do
filósofo alemão Rüdiger Safranski e o do linguista búlgaro Tzvetan Todorov.
Era membro da Sociedade Anglo-Alemã, da Academia Britânica, da Real
Sociedade das Artes Britânicas e da Sociedade Americana de Filosofia, en-
tre outras instituições. Possuía diversos títulos honoríficos concedidos por
universidades e instituições dos mais diversos países.
Em muitos de seus ensaios e conferências, Dahrendorf exaltava com
orgulho a opção que fizera pela Grã-Bretanha. Não que renegasse sua

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Ralf Darendorf (1929-2009): réquiem para um sociólogo liberal, pp. 321-334

origem germânica, mas asseverava que os ares britânicos, por assim dizer,
preenchiam-lhe a vida com seus costumes e sua tradição política eminen-
temente liberal. Para Dahrendorf, há na história da Inglaterra uma tradição
constitucional profundamente arraigada e protegida por costumes e insti-
tuições que confere a certeza de que ali qualquer um jamais será posto sob
o jugo de governos arbitrários.
Isso teria a ver, na Grã-Bretanha,

[...] com a ausência da agourenta nuvem negra da dúvida, ou até mesmo do medo,
que obscurece tanto da vida de outros países, por lembrar às pessoas as violentas
tormentas do passado [...] é a folha corrida do país, principalmente a certeza [de]
que, quaisquer que forem os sentimentos antiliberais que venham a se infiltrar nos
debates e no comportamento, ao final, as pessoas não permitirão que a destruição
da ordem liberal aconteça” (Dahrendorf, 1997, p. 112).

Alguns dizem que o autor foi seduzido pela formalidade britânica e seus
charmes, bem como pela pompa e garbo característicos àquele que é feito
Lord. Quando questionado, preferia definir-se apenas como um londrino.

Aqueles que sabem uma ou outra coisa sobre mim podem estar pensando: mas por
que teria essa ave rara vindo hoje a Weimar? Um lorde britânico, mas com um nome
obviamente alemão que há vinte anos vem dirigindo universidades em Londres e
Oxford, um viajante que circula entre países e atividades diferentes. [...] Devido
a todas estas mudanças, alguns me descrevem como o “epítome do europeu”, o
que não é totalmente incorreto. [...] Ao mesmo tempo, descrever minha vida par-
ticularmente europeia demonstra uma certa falta de imaginação. Afinal, não me
mudei para a Inglaterra para passar alguns anos em outro país, na condição de um
europeu alemão, mas sim porque me sentia em casa na cultura da vida britânica,
como me sinto até hoje. Nunca neguei minha germanidade. [...] Venho, pois, aos
senhores, como alguém que traz dentro de si duas culturas e, o que é mais, duas
culturas inteiramente diferentes (Idem, pp. 215-218).

Considerações finais

Embora nunca tenha sido um teórico incurável (tal qual a imagem que
Parsons tinha de si mesmo), Dahrendorf, que começou seus estudos nas
letras clássicas e na filosofia, adentrou o discurso propriamente sociológico
mesclando rara habilidade em trabalhar conceitos e aportes teóricos com

14 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2


Antonio Carlos Dias Junior

dados empíricos. Afeito às análises estruturais, com aptidão ímpar em re-


lacionar os processos históricos e políticos às suas posições teóricas, erigiu
obra de grande envergadura.
Seu percurso intelectual, bem como o biográfico representam um teste-
munho de convicção política aliada à mais pura responsabilidade intelectual,
constituindo, com efeito, obra orgânica permeada por temas que, embora
aparentemente distantes, possuem um fio condutor, com especial ênfase
para os textos da maturidade: a permanente construção de uma ordem
social liberal em consonância com os desafios da sociedade contemporânea.
Dahrendorf foi um liberal reformista, e talvez a verdadeira emancipação
do homem não fosse assunto de sua teoria e de suas preocupações, pois
ele assumiu a perspectiva social e filosófica em que não há soluções finais
em se tratando de sociedades humanas; o máximo a ser feito, sob o risco
de cair na utopia ou no totalitarismo, são arranjos provisórios de maneira
a domesticar, na linguagem kantiana que costumava evocar, a “insociável
sociabilidade do homem” (Kant, 1986).
Muitas críticas foram elaboradas à teoria e ao liberalismo de Ralf Dahren-
dorf, inclusive de minha parte. Contudo, gostaria de deixar registrado aqui
a admiração e o mais profundo respeito intelectual e humano, e ressaltar a
grandeza de sua obra, cujas características mais notáveis são a coerência e o
agudo senso humanístico.
Jactava-me de ter feito a primeira tese no Brasil, que em breve virá a
lume em livro, sobre o conjunto da obra de um filósofo e sociólogo liberal
inglês de origem germânica que, ainda por cima, estava vivo. Não está mais...

Referências Bibliográficas

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docência. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
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Edusp.
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Resumo

Ralf Dahrendorf (1929-2009): réquiem para um sociólogo liberal

O necrológio visa apresentar e discutir a biografia e a bibliografia do sociólogo liberal


inglês de origem germânica Ralf Dahrendorf, falecido em 2009. As principais obras e
passagens mais marcantes de sua rica trajetória pessoal e intelectual são examinadas de
modo a fornecer elementos à compreensão do conjunto de seu pensamento.
Palavras-chave: Ralf Dahrendorf (1929-2009); Sociologia política; Pensamento liberal;
Sociologia contemporânea.

Abstract

Ralf Dahrendorf (1929-2009): requiem for a liberal sociologist

The obituary looks to present and discuss the biography and bibliography of the liberal
English sociologist of German origin, Ralf Dahrendorf, who died in 2009. His principal
Texto recebido em 5/7/2010 e
aprovado em 15/8/2011.
works and the most remarkable passages of his rich personal and intellectual life are

Antonio Carlos Dias Junior


explored as a means to understanding his thought as a whole.
é doutorando em Sociologia Keywords: Ralf Dahrendorf (1929-2009); Political sociology; Liberal thought; Con-
pela Universidade Estadual de
temporary sociology.
Campinas. Atualmente realiza
estágio doutoral na École des
Hautes Études en Sciences So-
ciales – Paris. E-mail: <acdiasjr@
gmail.com>.

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Paul Gavarni, Guys declarava seu interesse, sobretudo,
Resenhas pela crônica da vida quotidiana, em detrimento da arte,
porquanto esta, da vida verdadeira, na verdade, estava
sempre muito distante. Interessaram-lhe, sobretudo, os
acontecimentos políticos e mundanos, os bastidores do
poder, da jurisprudência, a guerra, a sorte das mulheres
fáceis, “manteúdas” – que se propôs a interpretar com
a pena e o pincel de modo compendiário –, a linha
apenas dispondo rapidamente o assunto que, depois,
era inundado por uma aguada pardacenta da qual se
sobressaíam alguns toques de cor matizada, vibráteis,
amarelos, azuis, lilases.
Baudelaire sabe não se tratar de um artista educado
rigorosamente dentro dos moldes da academia francesa,
l’Institute, ou o que dele restou e ainda vigia à época,
se arrastando pelos salons. É exatamente por isso que
se interessa por esse artista sem pretensões, incógnito
nomeado pelo cognato g, pela sua figura e posição,
ou seja, um artista cuja vida se assemelha à daqueles a
Charles Baudelaire. O pintor da vida moderna. Belo
quem se propõe a retratar. O que lhe falta em estudo
Horizonte, Autêntica, 2010, 152 pp.
e disciplina sobra-lhe em “curiosidade”, o ponto de
partida do gênio, para Baudelaire, feliz ponto, do Sr. G.
Luiz Armando Bagolin
O seu pensamento volta-se, insaciável, para a
Docente e pesquisador do Instituto de Estudos
busca do sensível, do carnal, do frêmito e da matéria
Brasileiros da USP
provisória da qual todos nós somos feitos. A curiosi-
dade, propiciada muitas vezes pela “convalescência”,
“O Sr. G. não gosta de ser chamado de artista. vê nascer naturalmente o desejo pela comunhão com
Não tem ele um pouco de razão? Ele se interessa pelo o mundo, com a vida exterior, por detrás da vidraça,
mundo inteiro; quer saber, compreender, apreciar para longe do leito, com a multidão, com o rosto de um
tudo o que se passa na superfície de nosso esferoide. O desconhecido, com o afã de retratá-lo, e a tudo. A con-
artista vive muito pouco, ou mesmo nada, no mundo valescência aguça a curiosidade que, para Baudelaire, é
moral e político”. O Sr. G. a quem Baudelaire se re- estado permanente de espírito no Sr. G. Assim como na
fere no trecho acima citado e a quem elogia ao longo infância, pois a criança interessa-se vivamente por tudo
de seu livro O pintor da vida moderna, recentemente ao seu redor, na convalescência olha-se a tudo como se
publicado em língua portuguesa numa bela edição fosse esta ocasião a primeira vez, ou a última. Por isso,
ilustrada, é Ernest-Adolphe-Hyacinthe-Constantin o gênio, segundo o autor, difere da criança apenas no
Guys (1802-1892), artista francês especializado em que concerne à solidez, à resistência do sistema nervoso
ilustrações jornalísticas, assim como redator e diretor de ambos, forte no primeiro, fraca no segundo, pois,
do Illustrated London News, em meados do século XIX. como diz, “O gênio não é senão a infância controla-
Tratando-se a si mesmo como “artista, ainda que de damente recuperada”. O Sr. G. é um eterno peregrino,
contrabando” em carta enviada ao amigo e colaborador um viajante que faz quotidianamente a travessia pelo
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“grande deserto dos homens”, embora não possa “infantil”, há uma execução que lhe é concernente,
também, segundo Baudelaire, ser considerado sim- pois a mão marca rapidamente com o lápis e o pincel
plesmente um flâneur. Recorrendo a La Bruyère, o as linhas principais da representação ou cena, “os pon-
autor o categoriza como “puro moralista pitoresco”, tos culminantes ou luminosos de um objeto” como
pois o Sr. G. em sua aversão incontornável ao “reino impressões que serão completadas mnemonicamente
impalpável do metafísico” também não admitiria ser pelos espectadores. Depois de convertidos para gra-
tratado como um filósofo. vuras que ilustram notícias em jornal, os desenhos ou
Dotado de uma sensibilidade ativa, não indiferen- esboços do artista vão se acumulando às centenas, aos
te ao mundo que o cerca e no qual se move, sua pro- milhares, sendo vendidos a preço irrisório, por vezes,
fissão consistiria mais “em esposar a multidão” sendo em lotes, para poucos interessados ou para revenda
a multidão o seu domínio “como o ar é o do pássaro, por marchands. Não provindo, como a fotografia, de
a água, o do peixe”, expressando o seu olho desejoso, uma visão instantânea que pode ou não ser recom-
pelo deslocamento do olhar e de seu corpo, a condição posta, esses desenhos são forçosamente trabalhados e
inelutável de amante que ama amar a multidão. A luz retrabalhados de acordo com a visão moral consentida
traz as delícias como de um espetáculo que se apre- para o gênero crônica pela redação londrina que os
senta diariamente nas ruas aos olhos de qualquer um: edita, portanto, oferecendo-se em disposição para uma
“lindas equipagens, os cavalos imponentes, o asseio elocução que os seleciona inscrevendo-os segundo a
impressionante dos cavalariços, a destreza dos pajens, justa medida quanto ao tipo de leitura demandada
o meneio do andar das mulheres, as belas crianças, pelos leitores do jornal inglês, o contratante do Sr. G.
felizes para a vida e pelas boas roupas; em uma palavra, A abundância de desenhos do Sr. G. deixados para trás
com a vida universal [...]”. Essa nova memória, ou referida por Baudelaire, portanto, não deve ser lida,
melhor, memória mais conveniente, é denominada como uma primeira opinião poderia sugerir, como
por Baudelaire de “modernidade”: “A modernidade algo que o desabone como artista, mas, ao contrário,
é o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da como condição que encarece a eleição da visão mais
arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável”, diz o sintética segundo os critérios estabelecidos e comparti-
autor, sempre propondo que para cada pintor antigo lhados pela audiência, e que minimiza a ação do “eu”,
houve “uma modernidade”. O autor faz o Sr. G. ser pois indissociável dessa mesma audiência, não veria
guiado pela natureza como observador da vida antes o artista sentido em se apresentar de outro modo que
que este inventasse os meios para expressá-la, o que não fosse pela posição de um quase incógnito, ou por
resultou, depois, em “barbárie” como efeito de uma Sr. G., como Baudelaire o apresenta.
arte genuína avessa aos academicismos, imediatamente
verossímil em relação à impressão das exterioridades
que visou representar, “lisonja à verdade’, como diz
Baudelaire em lisonja a essa arte. A “barbárie” opera
como conceito duplo, pois implica, de um lado, a
acepção de um artista não disciplinado, não moldado
ou educado previamente, o seu olhar não tendo sido
domesticado, é selvagem ou ingênuo, não importa,
mas não foi arrefecido ou terminado segundo mo-
delos. De outro lado, mas numa relação de subordi-
nação em relação a esse olhar “bárbaro”, “sintético”,

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Resenhas

Otis Dudley Duncan. Notes on social measurement: Algumas das mais relevantes invenções humanas
historical and critical. Nova York, Russell Sage Foun- em termos de medição social estão expostas no curso
dation, 1984, 256 pp. do terceiro capítulo. Nota-se o fascínio exercido pelos
números desde sempre: na descrição que faz o autor
Dawisson Belém Lopes* do surgimento da preocupação com a métrica entre
Professor Adjunto do Departamento de Ciência os poetas da Grécia antiga; nas estratégias militares
Política da UFMG baseadas em numerosos exércitos do rei persa, Xerxes;
e até mesmo na Bíblia, com suas recorrentes men-
Os estudos voltados para a apreensão da história ções a populações, gerações e contingentes militares,
de pesos e medidas são chamados de “metrologia apresentados em números. Outra advertência do
histórica”. Na obra clássica de Otis Dudley Duncan, autor que permanece importante nos dias de hoje: a
essa metrologia é temperada por sociologia, área de ausência de números não implica a inexistência de
formação do autor. A primeira dificuldade apontada técnicas de mensuração. Ver, por exemplo, as formas
concerne à questão da comensurabilidade. Isso porque como o comércio se desenvolveu ao longo dos séculos.
quando duas coisas – objetos, pessoas, fenômenos – Se a estratificação social existe desde há muito,
são comparadas, presume-se que se possa medi-las em a forma como se estrutura cambiou. Não cabe mais
igualdade de condição (suposição, muitas das vezes, classificar, como Platão o fez na República, os tipos
errônea). O autor explora as dificuldades operacionais de “alma” dos cidadãos da pólis. Tampouco se admi-
da metrologia histórica (estabelecimento de propor- tiria com naturalidade, hoje, a afirmação de que há
ções, escalas, unidades de medida), reconhecendo que os que nascem para serem escravos – como sugeriu
as convenções relativas a pesos e medidas constituem Aristóteles, na Política. Mas persistem as honrarias
usualmente uma tarefa política legada, no decorrer do e os sistemas de titulação. Nos esportes, a missão
tempo, aos órgãos do poder constituído. de determinar vencedores e perdedores esbarra em
É interessante que o autor parta da hipótese de considerações de justiça, de adequação. Nos exames
haver atualmente um crescente descolamento entre universitários, subsiste a dificuldade de converter
a unidade de medida e o seu referente físico. Tal conceitos e avaliações inerentemente subjetivas em
hipótese está alicerçada na constatação de termos números. Na sociologia criminal, questiona-se a
migrado, na modernidade, do sistema ordinal (que fórmula capaz de dosar a pena para um caso qualquer.
depende do “outro”) para o cardinal. Duncan tam- Em suma, são grandes e plurais os constrangimentos
bém admite, ao fim do segundo capítulo, que toda que se impõem à mensuração social.
medição é, em essência, medição social (p. 35). Não No que parece adentrar a sua zona de maior con-
há como mensurar qualquer fenômeno estando fora forto na narrativa, Duncan ressalta a importância da
da história ou da sociedade. Adotar essa premissa invenção do cálculo de probabilidade (que, original-
acarreta adaptações em nosso modo de pensar a rea- mente, queria indicar uma “opinião plausível”, e não
lidade social: não se poderá, doravante, considerar a a “verdade demonstrada”). Trata-se da transição da
quantificação/medição como fator externo à socieda- arte para a ciência da medição social. No cerne desse
de; antes, a quantificação está embutida em qualquer processo de crescente formalização das técnicas de
apreciação sociológica que se fizer – mesmo na mais aferição dos fatos sociais encontra-se O suicídio, obra
“qualitativa” delas. monumental de Émile Durkheim, que mobilizou
instrumental pouco comum para aferir o estado das
* Agradeço a leitura e os comentários feitos ao texto pelo professor Luiz
Antonio Machado da Silva. artes de sua época. A conclusão a que chega o soció-

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logo francês repercurte na abordagem de Duncan: Na posição firme de Duncan, não há que se emular
suicídios – bem como as medições – são produzidos o “padrão científico” da física ou de outras ciências
por forças sociais. naturais; deve-se buscar desenvolver os instrumentos
Por fim, o autor contempla os métodos mais recen- de aferição da ciência social.
tes de amostragem representativa. Consideradas as po- As “Anotações” de Duncan jogam luz sobre um
pulações urbanas da atualidade – em muito superiores problema ainda hoje bastante crítico para as ciências
àquelas idealizadas por Rousseau no século XVIII –, sociais: a conturbada relação entre metodologia e
torna-se necessário desenvolver métodos de aferição epistemologia. A esse respeito, postulamos que, se
que não requeiram abordagem individualizada, de os pesquisadores são os agentes dos quais se espe-
tal modo que a estatística venha configurar-se como ram as soluções para os problemas sociais que nos
uma técnica de grande utilidade para governantes. acometem cotidianamente, então a opção da “omis-
A partir do quarto capítulo, Duncan dedica-se são meditabunda” não deverá constar em nossos
mais frontalmente aos problemas específicos da me- repertórios. Há riscos de cunho metodológico em
dição social. Ao referir-se às escalas ordinais, percebe todo empreendimento de pesquisa empírica que
que, embora ordenados, nomes “não deixam de ser esteja quantitativamente amparado. Talvez seja mais
nomes” – e que, portanto, haveria uma zona de in- sábio, contudo, correr esses riscos e proceder com as
definição entre o nominal e o ordinal. Ele também investigações a evitá-los a todo custo, paralisando-se
nota que a classificação dos elementos em uma tabela na chamada “crítica epistêmica”. Afinal, como Otis
periódica não é um ato de medição – já que a medição Dudley Duncan e sua metrologia histórica bem
tem por característica adjetivar os elementos, e não demonstram, tanto os problemas como as soluções
os “ontologizar”. Ao fim do capítulo, Duncan parece (inventadas) são, e sempre serão, contingentes.
convencido de que o exercício de medir guarda uma
relação necessária com “a atribuição de números se-
gundo um regramento específico” (p. 154).
Passa-se então a discutir a diferença entre medição
física e medição social. A expressão “dimensão”, muito
comum nos escritos contemporâneos das ciências
sociais, parece encerrar toda essa confusão. Rigorosa-
mente, dimensão é um termo proveniente das ciências
exatas, relativo ao tamanho (altura, profundidade,
comprimento) de um espaço ou objeto. Porém, ao
ser transportado para as ciências sociais, perde seu
conteúdo semântico original, passando a significar
“fator”, “característica”, “setor”. Isso exemplifica
a alegação de que, por não existirem equivalentes
funcionais de “massa”, “peso”, “comprimento” ou
“tempo” nas ciências sociais, ocorre uma apropriação
deturpadora das unidades de medida das ciências
naturais. Os equívocos daí decorrentes poderiam ser
evitados ou amainados se houvesse a compreensão
de que, no final das contas, sociologia não é física.

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Resenhas

Virginia Leone Bicudo. Atitudes raciais de pretos e ginalidade do negro como um fenômeno psicológico
mulatos em São Paulo. Edição organizada por Marcos ou um “traço da personalidade” (pp. 14-15). Não
Chor Maio. São Paulo, Editora Sociologia e Política, obstante os obstáculos que uma perspectiva dessa
2010, 192 pp. natureza impõe à compreensão das dimensões es-
truturais da desigualdade de condições entre negros
Lília Gonçalves Magalhães Tavolaro e brancos, na medida em que busca “nas atitudes de
Professora do Centro de Pesquisa e Pós-Graduação pretos e mulatos o reflexo da atitude dos brancos”
sobre as Américas (CEPPAC) da UnB (p. 157), ela salienta o caráter relacional do processo
de construção identitária. Desse modo, a ancoragem
social da identidade racial ganha, em detrimento
A recente publicação da dissertação de mestrado de sua caracterização biológica, contornos novos e
de Virginia Leone Bicudo vem a calhar no momento profícuos, que seriam devidamente explorados na
em que as ciências sociais se voltam de forma particu- academia nos anos subsequentes.
larmente intensa para a questão racial no Brasil. Para Dentre os vários aspectos apontados pela pesquisa
além do valor inestimável da pesquisa desenvolvida, a de Virginia Bicudo, merece destaque a contundência
edição – organizada por Marcos Chor Maio e acom- com que sustenta a presença marcante da discrimi-
panhada de prefácio de Elide Rugai Bastos – convida- nação racial no Brasil. Essa posição contrariava a
nos a refletir sobre os impactos sociais e políticos da interpretação que atribuía às desigualdades raciais
produção sociológica acerca do racismo no Brasil. causas relacionadas com as diferenças de classe. Se-
Privilegiando o estudo da atitude racial como ex- gundo a autora, as estratégias que seus entrevistados
pressão “do aspecto subjetivo da cultura”, a autora utilizavam para evitar o confronto direto com o
defende a tese de que no Brasil, e mais especificamen- branco impediam o desenvolvimento da consciência
te em São Paulo, o critério da aparência calcado no da discriminação. Consequentemente, o conflito
branqueamento constitui o principal determinante como forma de reivindicação por direitos e justiça
das oportunidades de ascensão social do negro. Sob a social também era obstruído, o que ajudava a manter
influência da Escola de Chicago e a supervisão direta o status quo sob a insígnia da harmonia. Assim, dife-
de Donald Pierson – ex-aluno de Robert Park –, Vir- rentemente da África do Sul e dos Estados Unidos,
ginia Bicudo ecoa uma perspectiva culturalista que, os casos estudados “demonstram que não temos [no
ao tomar a raça como categoria propriamente social, Brasil] o preconceito racial no sentido de uma atitude
abandona as formulações de cunho biológico. Como de antagonismo de toda a população, atingindo a
lembra Lee, tal abordagem teve desdobramentos im- todos os indivíduos descendentes da raça dominada”
portantes no que tange às análises científicas da raça: (p. 122). Daí a maior aceitação social do mulato na
“livrou o estudo da raça da compreensão explicita- mesma proporção em que ele se “‘branqueia’ na cor e
mente hierárquica e Darwinista Social a respeito das na personalidade” (Idem). Trata-se de um claro sinal
relações entre grupos raciais” e “desviou o foco das de que existiria entre nós “um preconceito de cor
investigações das características físicas para as rela- distinto do preconceito de raça e de classe” (Idem).
ções sociais entre grupos racialmente definidos” (Lee, Conforme aponta Maio (p. 39), o trabalho de
2004, p. 236). Bicudo reforça, nesse sentido, a hipótese de seu
É bem verdade que, conforme pondera Bastos colega Oracy Nogueira, para quem a discriminação
no “Prefácio”, privilegiando o estudo das atitudes racial não só estava presente nas relações sociais no
individuais, essa abordagem tende a encarar a mar- Brasil, como adquiria, aqui, um caráter específico:

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configuraria um preconceito que diferia em suas e justiça social que se pauta na afirmação das diferen-
consequências sociais e políticas daquele baseado na ças ou nos direitos coletivos estaria fadada ao insuces-
origem ou classe social. Como se pode depreender so (cf. Guimarães, 1999; Munanga, 1999; D’Adesky,
da análise de Bicudo acerca da Frente Negra Brasi- 2001). Vista sob essa perspectiva, a afirmação da
leira, tal característica constitui um dos fatores que “raça” nos parece indispensável à conquista de direitos
dificultam a mobilização política entre os negros. e, portanto, à consolidação da democracia brasileira.
A solução da questão racial pelo conflito ficaria, Em tais circunstâncias, aos que ainda sonham com
assim, impossibilitada. Numa busca muitas vezes vã a superação do racismo, resta o compromisso com o
pela ascensão e integração social, aos negros restaria rigor teórico e crítico. O mesmo compromisso que
somente a tentativa de acomodação aos valores e às permitiu à Virginia Bicudo enxergar a persistência
visões de mundo do grupo dominante. do racismo entre nós.
Além disso, a autora sugere que o convívio har-
monioso aparente entre negros e brancos no Brasil Referências Bibliográficas
não conformava propriamente uma relação demo-
crática ou de igualdade. A novidade desse tipo de GUIMARÃES, Antônio Sergio Alfredo. (1999), Racismo e
abordagem está na percepção de que a distância social anti-racismo no Brasil. São Paulo, Editora 34.
entre negros e brancos não é de natureza puramente MUNANGA, Kabengele. (1999), Rediscutindo a mestiçagem
econômica, mas se ancora também no preconceito de no Brasil: identidade nacional vs. identidade negra.
cor. Esse tipo de preconceito é, ademais, entendido Petrópolis, Vozes.
como um impedimento para a superação do racismo D’ADESKY, Jacques. (2001), Pluralismo étnico e multicul-
por meio do conflito e da mobilização política dos turalismo: racismos e anti-racismos no Brasil. Rio de
negros. Conforme lembra Bastos no “Prefácio”, a Janeiro, Pallas.
partir daí estavam dadas as condições para que a LEE, Orville. (2004), “Race after the cultural turn”. In:
democracia racial passasse a ser vista como algo que JACOBS, Mark & HANRAHAN, Nancy (eds.). The Bla-
“funda uma consciência falsa da realidade e opera ckwell Companion to the sociology of culture. Londres,
como impeditivo à coesão do grupo discriminado. Blackwell, pp. 234-250.
Ou, ainda, funciona como obstáculo a movimentos TAVOLARO, Lília Gonçalves Magalhães. (2006), Race and
sociais que denunciem a precariedade da condição do quotas, “race” in quotes: the struggle over racial meanings
negro na sociedade brasileira” (pp. 20-21). in two Brazilian universities. New York, dissertation,
De fato, a interpretação segundo a qual a so- The New School for Social Research.
ciedade brasileira é caracterizada por um racismo
peculiar, velado, e que, ademais, prescinde da raça
transformou-se em uma espécie de “ideia-força”. Esta
influencia até hoje as análises sociológicas acerca das
relações sociais entre nós, com importantes conse-
quências sociais e políticas. Estudos mais recentes
sobre o assunto reiteram a interpretação do mito da
democracia racial não só como principal responsável
pela manutenção do racismo no Brasil, mas também
como característica de uma sociedade avessa à diversi-
dade. Nesse contexto, a luta pela igualdade de direitos

6 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2

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