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Leon Kaminski

(Organizador)

CONTRACULTURA NO BRASIL, ANOS 70:


circulação, espaços e sociabilidades

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2019
APRESENTAÇÃO
OLHARES SOBRE A
CONTRACULTURA NO BRASIL
Leon Kaminski

O livro Contracultura no Brasil, anos 70: circulação, espaços e socia-


bilidades surgiu com o intuito de reunir parte da produção acadêmica recente
sobre as variadas manifestações da contracultura no Brasil, que permanece
dispersa. Há, nos últimos anos, um aumento quantitativo e qualitativo no nú-
mero de estudos que abordam temas ligados a aspectos culturais da juventude
brasileira durante o regime militar. Partindo de distintas abordagens teórico-
-metodológicas, algumas dessas pesquisas têm deslocado seus olhares para
compreender as diferentes manifestações sociais e culturais que emergiram
entre os jovens a partir do final da década de 1960. Trabalhos que procuram
fugir do lugar comum e se aprofundam em temáticas pouco ou nada investi-
gadas, no levantamento de fontes inéditas e na diversidade regional. Os textos
aqui coligidos buscam analisar experiências coletivas ligadas à contracultura
durante a década de 1970, focando suas manifestações em distintos locais do
país, seus espaços de sociabilidade e as formas de circulação de seu imaginário.
A palavra contracultura ganhou repercussão a partir do livro The Making
of a Counter-culture, de Theodor Roszak, de 1969 (publicado no Brasil em
1972), que buscava analisar as rebeliões juvenis do final dos anos 60. A partir da
divulgação e das discussões provocadas pelo livro nos anos seguintes, o termo
acabou se tornando um conceito histórico, a reunir diferentes manifestações,
díspares e mesmo contraditórias, que se contrapunham à cultura hegemônica
de sua época. A maioria dessas experiências relacionadas à contracultura es-
tava ligada à juventude, ela mesma múltipla e multifacetada, não podendo ser
compreendida como algo uno e indiferenciado. São algumas dessas múltiplas
faces, diferentes experiências e dinâmicas entre juventude e contracultura que
são abordadas neste livro, tendo como recorte o Brasil dos anos 1970.
No final dos anos 1960 e na década de 1970, quando as experimentações
estéticas e comportamentais do que veio a ser denominado como contracultura
começavam a ganhar proeminência no Brasil, surgiram críticas, resistências e
até mesmo repressão a tais manifestações. Em pleno regime ditatorial, endure-
cido pelo AI-5, as forças da ordem, permeadas pelo imaginário anticomunista,
acreditavam que determinadas práticas, como o uso e drogas e a liberdade
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sexual, eram armas subversivas promovidas pelo comunismo internacional


com o intuito de enfraquecer a juventude, a família e a nação, e assim tomar
o poder (LONGHI, 2015; KAMINSKI, 2016). Partindo desta ótica, o mo-
vimento hippie, como declarou certa vez um general, teria sido criado em
Moscou (SOARES, 1989, p.34). Interpretações que subsidiavam lógicas de
suspeição sobre os jovens e consequente repressão, com prisões e censura.
As interpretações que viam as práticas da contracultura como estratégias
para a dominação comunista não se fizeram presentes no debate acadêmico
e cultural posterior, mesmo porque tais afirmações não encontravam lastro
na realidade. Os próprios comunistas criticavam tais práticas, embora elas
tivessem também seu caráter subversivo, de contraposição ao sistema. Tais
leituras vieram a ressurgir recentemente, com a ascensão de uma nova onda
conservadora e anticomunista que atualizou esse tipo de discurso, rotulando
homossexuais, feministas, usuários de cannabis, entre outros grupos, como
comunistas ou petistas.
Por outro lado, parte da intelectualidade de esquerda, muitos deles ligados
à estética nacional-popular e ao Partido Comunista Brasileiro, entendia que
as expressões artísticas e comportamentais da contracultura eram alienadas
e despolitizadas, frutos do capitalismo e do imperialismo norte-americano.
Compreendiam-nas como simples cópia da cultura estadunidense. Devido à
relativa hegemonia das esquerdas nos campos cultural e acadêmico na década
de 1970, a linha interpretativa promovida pelos intelectuais comunistas acabou
por se tornar recorrente na historiografia sobre o período. Nessa perspectiva
de análise, o acirramento da censura e da repressão após o AI-5, em 1968,
que arrefeceu a resistência cultural ao regime, teria promovido um “vazio
cultural”, momento no qual a juventude teria consumido e reproduzido uma
cultura alienada e irracional oriunda dos Estados Unidos, chamada por aqui
de desbunde.
No campo acadêmico, delinearam-se duas linhas interpretativas opostas
acerca da contracultura no Brasil. A primeira, descrita acima, produzida pela
intelectualidade da esquerda tradicional, aponta para o “vazio cultural” e a
suposta despolitização da contracultura. Os escritos de Zuenir Ventura (2000)
e de Roberto Schwarz (2009), no início dos anos setenta, colaboraram para
a fixação do termo “vazio cultural” nas análises sobre o período, sendo re-
correntemente citados, seja para coadunar com essa visão ou para criticá-la.
Para Marcos Napolitano (2017, p.155), tal expressão “era sintoma de uma
das mais acirradas lutas culturais do período: a crítica da cultura de esquerda
mais ortodoxa (vale dizer, de tradição realista e filiada ao nacional-popular)
à contracultura e a um tipo de vanguarda formalista”.
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Uma outra visão sobre a produção cultural daqueles anos surgiu na aca-
demia, segundo Napolitano (2017), no final da década de 1970 e começo dos
anos 1980, com a publicação de pesquisas abordando as expressões estéticas
da contracultura no cinema, no teatro, na música e na literatura. Destacam-se
as obras de Heloisa Buarque de Hollanda (2004) e Celso Favaretto (1995).
Essa corrente faz crítica à ideia de “vazio cultural”, alegando que, embora
realmente tenha ocorrido um refluxo logo após o AI-5, houve uma produção
cultural significativa, mas de outro viés: marginal e alternativa. Devido ao
seu forte caráter experimental, por valorizar mais a forma do que conteúdo,
a arte surgida após 1968, na esteira do movimento tropicalista, seria mais
transgressora e revolucionária que a arte engajada de esquerda.
Desde então, esta linha interpretativa embasou um grande número de
investigações sobre os movimentos de contracultura no Brasil, especialmente
quando se trata de suas expressões artísticas, objeto de análise mais recorrente
sobre o tema. Em geral, estes estudos tendem a iniciar rechaçando a ideia de
“vazio cultural” e o suposto caráter despolitizado da arte ligada à contracultura.
De certa forma, as disputas político-culturais dos anos setenta permaneceram
no campo historiográfico, representando de maneira dicotômica, em muitos
casos, a produção cultural da época, opondo contracultura e esquerda, embora
as relações entre artistas e estéticas nacional-popular e experimental fossem
muito mais complexas e menos simplistas que a dualidade apontada pelas
duas correntes interpretativas.
Nos últimos anos, no entanto, este quadro tem mudado. Acompanhando
o próprio movimento de expansão do ensino universitário e dos cursos de
pós-graduação, o número de pesquisas sobre temas relacionados à contra-
cultura tem aumentado. Outros fatores, como o distanciamento temporal e o
enfraquecimento da historiografia marxista na esfera acadêmica, contribuem
para esse crescimento quantitativo. A emergência da História Cultural como
campo de investigação colabora decisivamente para essa ampliação. O âmbito
da cultura e suas manifestações deixou aos poucos de ser algo menos nobre
de ser pesquisado, se comparado ao social e ao econômico. Com isso, mudou
não somente em termos quantitativos, mas também qualitativos, com novas
abordagens e temas, incluindo aqueles ligados aos movimentos contraculturais.
Apesar do crescimento, os estudos sobre a contracultura não formam um
campo específico de investigação – e é provável que não venham a constituí-lo,
por conta das características da produção atual. Como pode ser observado no
Banco de Teses da Capes1, as pesquisas sobre o tema se apresentam espalhadas
geograficamente, em diversos estados, programas de pós-graduação e campos

1 Banco de Teses da Capes. Disponível em: <https://catalogodeteses.capes.gov.br>.


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de conhecimento (história, ciências sociais, comunicação, letras, artes); e,


com raras exceções, sem uma ligação e diálogos efetivos. Trata-se de uma
temática que pode ser abordada por distintos ângulos e diferentes ênfases.
O interesse pelas manifestações artísticas contraculturais, seja na mú-
sica, literatura, teatro ou demais formas de expressão, costuma ser o ponto de
partida para muitos dos pesquisadores que adentram a temática. Parte desses
estudos acaba por voltar suas atenções para os elementos estéticos e para a
produção artística de uma forma mais restrita. Outros, contudo, têm procu-
rado analisar diferentes aspectos das experiências contraculturais, sejam elas
artísticas ou não. Uma das características da historiografia recente tem sido a
de diversificar os objetos de estudo, inclusive regionalmente. As experiências
investigadas não têm se restringido ao eixo Rio-São Paulo, nem se reduzido
a obras e artistas consagrados da cultura alternativa. Esses deslocamentos
permitem uma melhor compreensão das experiências contraculturais vividas
pelos jovens brasileiros durante a ditadura militar.
Os textos aqui reunidos representam uma pequena parcela dessa produção,
congregando tanto pesquisadores experientes com carreiras consolidadas na
academia quanto jovens mestres e doutores, de diferentes regiões do país e
do exterior. Ao organizar esta obra, optamos por apresentar um quadro diver-
sificado de experiências contraculturais da década de 1970. Nesse sentido, os
trabalhos aqui publicados abordam experiências juvenis que não se restrin-
giram aos centros culturais do país nem a figuras ou grupos consagrados na
historiografia e na memória coletiva. Privilegiaram-se estudos que exploram
o caráter coletivo de tais experiências, a diversidade regional, as relações
com os espaços de sociabilidade, as diferentes formas de circulação e de
apropriação da contracultura.
O livro está organizado em três partes. A primeira, “Contracultura,
circulação e apropriações”, reúne dois trabalhos que possuem como foco a
circulação cultural da contracultura e suas diferentes formas de apropriação.
Em Mundo afora, Brasil adentro: a circulação cultural da contracultura e
suas apropriações, de Leon Kaminski, discute-se o caráter transnacional da
contracultura e as maneiras como seu imaginário e representações circularam
tanto ao redor do mundo quanto em direção ao interior do Brasil. O autor
demostra que, além da indústria cultural, movida pelo desenvolvimento dos
meios de comunicação e de seu caráter contraditório na divulgação da contra-
cultura, os jovens viajantes tiveram papel importante na disseminação de seu
imaginário. Orivaldo Leme Biagi, por sua vez, em A construção de discursos
conservadores pela publicidade brasileira em relação à contracultura, analisa
o processo de apropriação do imaginário contracultural pela publicidade e
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como ela operava uma “inversão de valores”, tornando o que era contestador
e subversivo em discursos conservadores ou conciliadores.
A segunda parte, “Contracultura, Música e Juventude”, inicia com Na
ponta da baioneta: o rock psicodélico, do circuito de bailes aos Woodstocks
brasileiros, de Igor Fernandes Pinheiro. Neste capítulo, é discutido o surgi-
mento da vertente psicodélica do rock no Brasil, assim como as mudanças que
envolveram o gênero, dando especial atenção aos seus espaços de exibição e de
sociabilidade. Observando o fenômeno a partir do Rio de Janeiro e ampliando
o olhar ao contexto nacional, o autor aponta que a mudança no estilo musical
(muitos grupos iniciaram tocando “iê-iê-iê”) esteve acompanhada de modificação
nos tipos de local onde eram realizadas as performances. Dos bailes dançantes
em clubes, as bandas passavam a privilegiar os concertos como um modo de
fruição contemplativo, mais alinhada com a forma de tocar da estética psico-
délica. Em Black Rio: a contracultura negra dos anos 70, Christopher Dunn
analisa a emergência da contracultura negra no Rio de Janeiro através dos bailes
de black music, frequentados principalmente pela juventude trabalhadora da
periferia. O autor apresenta as tensões e o debate político-cultural que envolveu
o movimento Black Rio na década de 1970 e o seu papel para o fortalecimento
da identidade afro em contraposição ao mito da “democracia racial”. Esses dois
capítulos apresentam duas diferentes facetas da contracultura entre os jovens
cariocas. A seção inclui ainda o texto Ecos da Contracultura: juventude, rock
e rebeldia no Recife (1972-1976), de João Carlos de Oliveira Luna, que lança
seu olhar sobre a cena contracultural de Pernambuco, desvelando seus espaços
de sociabilidade, performance, experimentação e trocas artísticas, assim como
esmiúça a discografia produzida pelos seus integrantes.
Na última parte, “Contracultura Fora do Eixo”, reunimos trabalhos que
analisam cenas e experiências surgidas, em sua maioria, distantes do eixo
Rio-São Paulo, demostrando como a contracultura circulou e se manifestou em
diferentes locais do país. No capítulo Entre fardas e superquadras: a poesia
contracultural em Brasília, Tiago Borges do Santos discorre sobre a literatura
escrita no Distrito Federal, cidade planejada há poucos anos inaugurada e
centro do poder ditatorial. As relações entre a produção poética, o cotidiano
e os espaços vividos pelos jovens escritores são exploradas pelo autor em
sua análise. Edwar Castelo Branco e Fábio Castelo Branco Brito, em No bar,
na rua, na grama: comportamentos juvenis, contracultura e sociabilidades
na Teresina dos anos 1970, examinam algumas expressões contraculturais
protagonizadas na capital do Piauí pela “geração Torquato Neto”, em refe-
rência ao papel do poeta tropicalista como mediador entre os jovens locais
e a cultura underground. Em Caldeirão de Santa Cruz, Avalon, Craterdam:
lugares cognitivos da contracultura no interior do Ceará, Roberto Marques
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aborda a cena alternativa que surgiu no Crato, município situado em pleno


sertão do Cariri, distante do centro cultural e político do estado, e como nela
emergiram artistas que, mesmo rompendo com a tradição, realizavam o diá-
logo entre cultura popular e contracultura.
A terceira seção conta ainda com outros dois capítulos. Leon Adan Car-
valho, em Hippies ou happies? interseções entre o movimento Hare Krishna e
a contracultura no Brasil, discute as relações entre a religiosidade promovida
pelos hare krishnas e a contracultura; discorrendo sobre como alguns jovens
que vivenciavam culturas alternativas acabaram por se aproximar de suas
práticas e filosofias. Encerrando o livro, Alexandra Alvim, em Deu pra ti,
anos 70: um tardio sonho hippie porto-alegrense, parte das imagens e sons
do cinema para adentrar nas vivências de uma parte da juventude que viveu
a contracultura na capital gaúcha e percorria as praias catarinenses durante a
ditadura. Aborda seus anseios e medos, assim como os sentimentos presen-
tes na virada para a década de 1980, momento permeado de esperanças de
redemocratização do país devido ao contexto de abertura política, da Anistia
e do fim do AI-5.
Para concluir essa introdução, quero agradecer a todos os autores por
aceitarem o convite para fazer parte desse projeto e por suas importantes con-
tribuições, que nos ajudam a compreender melhor não somente os movimentos
de contracultura, mas diferentes dinâmicas culturais, distintas experiências
juvenis durante o período ditatorial. Agradeço à Samantha Quadrat, que desde
o início apoiou o projeto deste livro, obra que foi organizada conjuntamente
à pesquisa que desenvolvi durante o curso de Doutorado em História (PP-
GH-UFF), da qual foi orientadora. Estudo que contou com financiamento da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), à
qual também agradeço.
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REFERÊNCIAS

FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. Cotia: Ateliê Editorial, 1995.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda


e desbunde (1960/70). São Paulo: Brasiliense, 1981.

KAMINSKI, Leon. O movimento hippie nasceu em Moscou: imaginário


anticomunista, contracultura e repressão no Brasil dos anos 1970. Antíteses,
v. 9, n. 18, p. 467-493, jul./dez. 2016.

LONGHI, Carla Reis. Cultura e costumes: um campo em disputa. Antíteses,


v. 8, n.15, jan./jun. 2015.

NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: a vida cultural brasileira sob o regime


militar (1964-1985). São Paulo: Intermeios, 2017.

ROSZAK, Theodore. A Contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática


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______. The making of a counter culture: reflections on the technocratic


society and its youthful opposition. New York: Anchor Books, 1969.

SCHWARZ, Roberto. “Cultura e Política, 1964-1969”. In: Cultura e Polí-


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SOARES, Gláucio Ary Dillon. Censura durante o regime autoritário. Revista


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VENTURA, Zuenir. O vazio cultural. In: GASPARI, Elio; HOLLANDA,


Heloisa Buarque de; VENTURA, Zuenir. Cultura em trânsito: da repressão
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