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UMBANDA: AQUÉM
E ALÉM DE ORTIZ*
Resumo: Renato Ortiz é sem dúvida um proeminente cientista social brasileiro, que não se
limitou, no entanto, a alçar voos apenas dentro dos limites da ciência de sua for-
mação universitária. Em sua tese de doutorado, intitulada “A morte Branca do fei-
ticeiro Negro” traz uma análise peculiar da Umbanda no Brasil e inaugura a pos-
sibilidade de pensarmos esse movimento religioso, como uma religião tipicamente
brasileira. Eu advogo, nesse artigo, que a abordagem de Ortiz e as análises da
participação do negro na cultura brasileira, apresentadas nessa obra, trazem ele-
mentos para pensarmos a Umbanda a partir da perspectiva dos Estudos Culturais
e subsidiam as discussões posteriores dentro do escopo dos estudos pós-coloniais.
E
m 2019, Renato Ortiz completa 72 anos. Sua trajetória de pesquisa e suas
publicações foram fundamentais para o estabelecimento do campo das
ciências sociais no Brasil. Suas obras, descrevem, um quadro evolutivo
das questões culturais, com foco nos caminhos da construção nacional e
suas relações com uma cultura mundializada, disseminada pelos meios de
comunicação em massa. Aborda, em sua trajetória, distintas temáticas desde
o luxo, à identidade japonesa, ao carnaval, às religiões afro-brasileiras e a
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* Recebido em: 12.09.2019. Aprovado em: 15.11.2019.
** Pós-Doutora em Ciências Sociais (UNISINOS). Doutora em Sociologia (UnB). Pro-
fessora no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião (PUC Goiás). Coor-
denadora do Programa de Pós-Graduação em História da PUC Goiás. Pesquisadora do
Grupo de Pesquisa Cultura, Memória e Desenvolvimento-CMD (CNPQ/UnB). Líder
do Grupo de Pesquisa Memória Social e Subjetividade (CNPQ/PUC Goiás). E-mail:
thais_marinho@hotmail.com
A análise de Ortiz (1991, p. 15) externaliza como “valores como a moral católica (noção
de bem e mal), a racionalização, a escrita, se integram a um outro tipo de mo-
ral e racionalidade, características estas dos cultos afro-brasileiros”. Como ele
indica, o exercício de transmutação da Umbanda promove o reconhecimento
social dessa nova religião pelo mercado religioso e se firma como um sistema
religioso “novo”, tipicamente brasileiro. Por outro lado, ao realizar um estudo
comparativo com o Candomblé, reconhece sua posição de rejeição ao mercado
religioso ocidental, e sua busca em se firmar enquanto lembrete da “memória
coletiva africana no solo brasileiro” (ORTIZ, 1991, p. 16). Tal tarefa é por ele
realizada, sem, no entanto, evocar o essencialismo moderno de pureza africana,
admitindo o ponto de vista estruturalista da bricolagem, por um lado, e por ou-
tro, a operação de reconfiguração do campo discursivo que altera a importância
das relações hierárquicas impostas pelos sistemas religiosos ocidentais.
Embora Ortiz (1991) use categorias estruturalistas como a bricolagem e a ideia mesma
de sincretismo, ele ousa ao lançar a ideia de que a Umbanda, foge ao escopo
desses conceitos, falando que trata-se de uma síntese. Síntese essa que, no
seio das transformações socioeconômicas do século XX, possibilitam a exis-
tência de traços e comportamentos culturais denominados tradicionais, e que
esse desenvolvimento, pretensamente moderno, não se dá de forma cumula-
tiva, em que novas variáveis vão sendo adicionadas à estrutura anterior. Um
movimento dialético, onde relações extremamente complexas se dão entre o
moderno e o tradicional, que passam pela ruptura, pelo esquecimento e pela
reinterpretação dos valores tradicionais. A transformação analisada por Ortiz
(1991), da herança africana (tradicional) em elementos culturais afro-brasi-
leiros, possibilita, então, pensarmos o negro não como sinônimo de atraso,
do tradicional, da falta, mas como parte constitutiva essencial daquilo que foi
construído discursivamente como moderno.
É nesse sentido que Ortiz (1991) aborda a questão da secularização no seio da Umban-
da, e como esse processo se configura de forma intensa nas normas de conduta
e na própria personalidade dos agentes sociais protagonistas nas reinterpreta-
ções e rupturas dessa religião. Tal movimento, no seio da Umbanda se proces-
sa dentro da própria lógica de racionalização do que ele denomina de mercado
religioso, mas associando valores não seculares com novos valores modernos.
Sobre esse ponto, Ortiz (1991, p. 231) demonstra como a Magia, na Umbanda
se “disfarça sob a forma de um novo discurso, cultivado e pseudocientífico”,
pela associação com o Kardecismo, e que embora haja um esforço de distin-
guir a magia branca da magia negra, conserva-se o Exu-Batizado2, diante da
recusa ao Exu-Pagão. Assim,
Ortiz (1991) demonstra, assim, que as crenças são interpretadas segundo o código for-
necido pela sociedade global. Mas, deixa implícito que a interpretação desse
código global, e como ele se articula com as antigas crenças folks, depende
dos arbítrios valorativos dos próprios sujeitos envolvidos com essa releitura.
Assim, apesar de algumas leituras contemporâneas mais pós-coloniais, que preferem obser-
var a Umbanda em termos de cripto-religiões, em detrimento de sincrética, Ortiz
(1991) busca identificar os valores que estruturam as relações entre catolicismo,
kardecismo e sua matriz africana. Logo, o autor recorre às análises de estudiosos
Kardecistas e de religiões de matriz africana, para compreender o movimento va-
lorativo de mudança da nomenclatura organizacional da religião de cultos para
linhas e depois para Lei. Enquanto, os cultos referiam-se à uma lógica geográfica
das nações africanas, relacionada às divisões étnicas, o termo linha indica a ori-
gem dos espíritos que descem, e posteriormente, passa a designar as sete linhas
hierárquicas espirituais que compõe a Umbanda, que passa agora a ser designada
como Lei da Umbanda. Ao mesmo tempo, Ortiz (1991) percebe que a hierarquia
entre profano e sagrado, que delimita a superioridade ou inferioridade dos Orixás,
segundo sua localização nas sete linhas, e a possibilidade de encarnação desses
A CRÍTICA PÓS-COLONIAL
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise de Ortiz (1991) possibilita que pensemos sobre o papel dos negros no pró-
prio processo de construção das categorias e instituições modernas, como a
secularização. No caso do Brasil, a Umbanda, como identificada por Ortiz,
se desenvolve e se consolida num contexto urbano-industrial, contrariando
as previsões e expectativas eurocentradas de que a secularização, própria às
sociedades complexas (urbanas e industrializadas), decretariam o enfraqueci-
mento, quiçá, extinção das crenças e práticas religiosas. O próprio autor con-
clui que não há um unidirecionamento para esse processo, que é dependente
das condições históricas (e culturais) das sociedades onde se processa.
Para tal empreitada, Ortiz (1991) se lança, portanto, num diálogo transdisciplinar onde
as fronteiras são ponto de partida para uma análise entre os saberes até, en-
tão, seccionados. Na análise de Ortiz (1991) sobre a Umbanda fica claro que
não há hierarquia de importância entre temas como Estado, modernização,
industrialização, religião e cultura popular. Uma vez que sua análise parte
justamente da religião como manifestação popular da cultura para pensarmos
as dinâmicas da industrialização e modernização brasileiras. Assim, o uni-
verso da cultura é percebido como uma “encruzilhada de intenções diversas”
que se constitui como um espaço que alude para a combinação de práticas,
Abstract: Renato Ortiz is undoubtedly a prominent Brazilian social scientist, who has not
limited himself, however, to raising flights only within the limits of the science of his
university education. In his doctoral thesis entitled “The White Death of the Black
Sorcerer” brings a peculiar analysis of Umbanda in Brazil and inaugurates the
possibility of thinking of this religious movement, as a typically Brazilian religion. I
argue in this article that Ortiz’s approach and the analyzes of black participation in
Brazilian culture presented in this work bring elements to think of Umbanda from
the perspective of Cultural Studies and subsidize further discussions within the sco-
pe of post-colonial studies.
Referências