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Université de Rennes 1
René Guénon e as influências Tradicionalistas na estruturação do Olavismo
Bruno Ronchi1
Resumo. Tendo em vista o cenário de recuo democrático vivido no Brasil, é preciso compreender as diversas
formas de pensamento que intervêm no debate político como uma condição de produção desse fenômeno. Ex-
oficial militar, Jair Bolsonaro foi muito tempo visto como a encarnação de uma certa nostalgia da ditadura antes
mesmo de sua candidatura à presidência, alinhada com os segmentos mais conservadores da sociedade
brasileira. À medida que sua campanha ganha força em 2018, ele mobiliza uma ampla gama de setores da
direita, dando origem a um projeto deveras paradoxal, fundamentado na oposição ao establishment político e
intelectual brasileiro. Destaca-se dentro dessas alianças a figura do ensaísta Olavo de Carvalho (1947-2022),
principal ideólogo do que viria a se chamar “bolsonarismo”, que contribuiu para reabilitar o anticomunismo da
ditadura militar, dando-lhe nova consistência em uma guerra contra o “marxismo cultural”. Convencido de que
o establishment liberal teria assumido o controle das mais diversas instituições, levando à destruição da
civilização ocidental, o ensaísta defendia uma reação enérgica. Para além de uma forma de “gramscismo
reverso”, no entanto, as ideias de Carvalho parecem ter sido marcadas pelo pensamento Tradicionalista, com o
qual entrou em contato por intermédio do metafísico e mestre espiritual suíço Frithjof Schuon. Alimentando
uma forma de oposição à modernidade e aos valores do Iluminismo, o Tradicionalismo parece ter tido um peso
decisivo na formação intelectual de Carvalho, que publica seus primeiros escritos políticos após frequentar a
tariqa de Schuon nos anos 1980. Diante da atual dinâmica das forças de extrema-direita no Brasil e em outros
países, parece importante analisar a circulação, a tradução e a apropriação das ideias Tradicionalistas através
do trabalho de Carvalho. Para avaliar sua importância em sua obra e o uso das ideias herdadas do pensamento
Tradicionalista por Bolsonaro e seus aliados, esta pesquisa se concentra no conteúdo da produção do autor e no
discurso dos atores políticos diretamente ligados a ele. Este estudo visa demonstrar que, mesmo que algumas
delas tenham permanecido centrais, tais ideias são limitadas por considerações estratégicas e por variadas
influências ideológicas que se confundem no interior dos círculos bolsonaristas.
Visto como o “guru” da família Bolsonaro, sobretudo a partir das eleições de 2018,
Olavo de Carvalho esteve durante anos envolvido na formação da opinião pública
brasileira, difundindo suas ideias por meio da imprensa escrita e, posteriormente, da
Internet. Sua recepção, no entanto, é bastante ambivalente: para boa parte dos
conservadores brasileiros, “Olavo tem razão”; a maioria dos universitários, no entanto,
consideram que o “ex-astrólogo” – em referência a suas ligações com círculos ocultistas
nos anos 80 – não pode ser levado a sério. A despeito da coerência de suas ideias, é evidente
que elas produzem efeitos significativos, tanto em termos de difusão e popularidade,
sobretudo na última década, quanto de influência junto aos principais líderes do país. Por
isso, cabe analisar cuidadosamente o percurso intelectual de Carvalho, levando em conta
as raízes do seu pensamento, bem como a circulação e apropriação de suas ideias nos
círculos conservadores brasileiros em geral e no governo de Jair Bolsonaro em particular.
1
Doutorando em Ciência Política na Universidade de Rennes 1 e pesquisador visitante na Universidade
Federal de Juiz de Fora. E-mail para contato: bruno-luiz.ronchi@univ-rennes1.fr.
2
A formação do pensamento olavista: do Tradicionalismo ao “gramscismo de direita”
2
B. R. Teitelbaum, War for eternity: the return of traditionalism and the rise of the populist right. Londres,
Penguin Books, 2020, pp. 176-177
3
D. Bisson, René Guénon : Une politique de l’esprit. Paris, Pierre-Guillaume de Roux, 2013, pp. 309-310.
4
A. Faivre, « Histoire de la notion moderne de Tradition dans ses rapports avec les courants ésotériques » (XVe-XXe
siècles) », ARIES, n° 22, 1999, p. 7-48, apud D. Bisson, René Guénon : Une politique de l’esprit, op. cit, p. 311.
5
Bisson utiliza as noções de “tradicionalismo esotérico” e “tradicionismo”. No âmbito deste estudo, será
adotada a noção de “Tradicionalismo”, utilizada pelo etnógrafo Benjamin Teitelbaum – que conduziu uma
das mais profundas investigações até então sobre as relações de Carvalho com esta escola de pensamento.
3
A existência de uma tradição primordial, de origem não humana, ocultada pelas
vicissitudes da história (postulado metafísico)
- a profunda incompatibilidade entre a modernidade ocidental e a tradição primordial
(postulado político)
- a possibilidade de recuperar, pelo menos parcialmente, a Tradição através da busca
dos denominadores comuns de todas as tradições (postulado “científico”) (...)
- a apresentação da Tradição como um estado espiritual que o indivíduo pode e deve
recuperar através do caminho iniciático (postulado existencial).
6
O título de muqaddam designa o líder de uma irmandade sufista (tariqa).
7
A tariqa Maryamiyya (“Irmandade de Maria”) é assim denominada por Schuon devido ao seu “esoterismo
quintessencial”, personificado pela Virgem Maria. Segundo Fenton, “enquanto seu ensino se situava no
âmbito do Islão e do Sufismo, sua doutrina se encontrava na confluência das grandes tradições religiosas”.
P. B. Fenton, « Les judéo-soufis de Lausanne. Un point de rencontre dans la mouvance guénonienne », in P.
Gisel (éd.), Réceptions de la cabale. Paris, Éditions de l’Éclat, 2007, p. 286.
8
Ibid., p. 286.
9
R. Teitelbaum, War for eternity, op. cit., pp. 133-134.
4
“incluindo a espiritualidade nativa americana e o cristianismo ortodoxo, indicando que não
era preciso se limitar a um só caminho, mas que poderia abraçá-los todos ao mesmo tempo”.
A passagem do caminho único de Guénon para o sincretismo de Schuon é
fundamental para compreender a apropriação de Carvalho sobre suas teses. Com efeito, ele
se converte ao Islã antes mesmo de encontrar Schuon em Bloomington – provavelmente sob
a recomendação de Martin Lings, segundo Teitelbaum – e segue rigorosamente os preceitos
sufistas. Contudo, a ligação com Schuon e seu sincretismo parecem ter-lhe dado os
elementos necessários para se libertar de seu antigo mestre em prol de um novo e único:
Jesus Cristo. Nesse sentido, é interessante notar como Carvalho opera uma nova inflexão
dentro da escola Tradicionalista: do caminho único sufista ao caminho cristão-católico,
passando pelo caminho sincrético schuoniano. Esta inflexão, que se consolida nos anos 1990,
“não enviou apenas um sinal espiritual, mas também social e político”, de acordo com
Teitelbaum: “o catolicismo foi a chave para a intensificação do seu combate ao comunismo”,
que se tornou a causa principal de Carvalho. Em suma, “o Tradicionalismo deu a Olavo uma
linguagem através da qual ele poderia criticar o comunismo enquanto materialismo”.
De seus mestres, Carvalho retoma a ideia de unidade metafísica, bem como o
diagnóstico sobre a decadência da modernidade ocidental. Contudo, a solução que propõe
diverge de seus pares, grande parte dos quais defendiam a “islamização do Ocidente”:
Após substituir Schuon por Jesus como guru, Carvalho repensa seu Tradicionalismo,
preservando a compreensão fundamental de que a secularização do Ocidente levaria
fatalmente à barbárie, e se baseando na análise sobre a interação entre o poder temporal
e a autoridade espiritual, mas rejeitando a convicção de que a única alternativa à
barbárie seria a adoção das “doutrinas orientais”, que ele considerava representar na
prática o Islã (pelo menos para Guénon e Schuon). Guénon havia rejeitado o
catolicismo como sendo puramente exotérico, mas Carvalho chegara à conclusão de
que a distinção esotérico-exotérico era válida no caso do Islã, mas não universalmente.
Schuon, como salienta Carvalho, havia adotado uma abordagem diferente, concedendo
aos sacramentos católicos uma eficácia “virtual”, mas no fim seu modelo era tão
problemático quanto o de Guénon, pois embora concedesse um papel ao catolicismo,
esse papel estava sujeito à supervisão esotérica, ou seja – mais uma vez – à islamização.
10
M. Sedgwick, « Traditionalism in Brazil: Sufism, Ta’i Chi, and Olavo de Carvalho », Aries: Journal for
the Study of Western Esotericism, vol. 21, no. 2, 2021, pp. 159–184.
5
especialmente “sobre o fato de que a modernidade representava uma crise, mas
argumentava (ao contrário dos Tradicionalistas) que a filosofia poderia dar uma resposta
eficaz a esta crise, servindo de ponte entre as ciências técnicas e humanas modernas e a
verdade transcendente (católica)”. Além disso, segundo Wink11, foi Ladusãns que
apresentou Carvalho ao “quase esquecido filósofo brasileiro” Mario Ferreira dos Santos
(1907-1968), também um defensor da ideia da “unidade transcendente das filosofias”.
Apesar da distância que Carvalho tomou com relação aos Tradicionalistas – entre
os quais não mais se reconhecia após a ruptura – numerosas referências a seus mestres
demonstram a influência desta escola de pensamento na sua formação intelectual12. No
segundo volume de O Imbecil Coletivo, publicado em 1998 – encerrando a sua “trilogia de
combate”, com A Nova Era e a Revolução Cultural (1994) e O Jardim das Aflições (1995)
– Carvalho13 coloca Guénon entre os cinco “sábios” dos últimos séculos que “previram
que as coisas chegariam mais ou menos onde estão hoje”, ao lado de Aléxis de Tocqueville,
Jan Huizinga, José O. Gasset e Bertrand de Jouvenel. Segundo ele, “se há livros com mais
de cinquenta anos que ainda deveríamos ler para compreender o que está acontecendo
diante dos nossos olhos, estes são: Da democracia na América (1850), A rebelião das
massas (1930), Nas sombras do amanhã (1935), O poder: história natural do seu
crescimento (1945) e O reino da quantidade e os sinais dos tempos (também 1945)”.
Sobre o autor deste último, Carvalho14 o descreve como “um místico muçulmano
que, horrorizado com o progresso do materialismo, escolheu o exílio voluntário no Cairo,
onde morreu em pobreza digna, rezando e prevendo sempre o pior”. Apresentando o
metafísico francês como alguém “indiferente à política, imerso em cogitações esotéricas”
que procurava apenas “o acesso ao conhecimento absoluto”, Carvalho15 afirma:
Guénon, por onde passa, expõe as origens do pior. Com cinco décadas de antecedência
(na verdade mais, uma vez que este livro apenas condensa ideias que ele vinha expondo
11
G. Wink, Brazil, Land of the Past: The Ideological Roots of the New Right. Cuernavaca, Bibliotopía, 2021,
p. 170. Carvalho também editou e escreveu a introdução e as notas de um livro de Santos, publicado em
2001: M. F. Santos, A Sabedoria das Leis Eternas. São Paulo, É Realizações, 2001.
12
Um levantamento publicado em 2018 pela Folha de São Paulo, que mapeou todos os textos publicados no
site de Carvalho, mostra que Guénon é o terceiro autor mais citado pelo ensaísta brasileiro – atrás apenas de
Marx e Gramsci, respectivamente o primeiro e o segundo mais citados. Depois vêm Voegelin (com quem o
brasileiro compartilha o interesse nos aspectos religiosos e espirituais da existência), von Mises (sua principal
referência em matéria econômica), Marcuse (um dos principais representantes da Escola de Frankfurt, alvo
de inúmeras críticas de Carvalho) e Schuon (todos com pelo menos 20 citações). Folha de São Paulo. “Sobre
o que fala Olavo de Carvalho?” [https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/12/sobre-o-que-fala-
olavo-de-carvalho.shtml], consultado em 20 de março de 2022.
13
O. de Carvalho, O imbecil coletivo II: a longa marcha da vaca para o brejo e os filhos da PUC. Rio de
Janeiro, Topbooks, 1998, p. 128.
14
Ibid., pp. 129-134.
15
Ibid., pp. 135-136.
6
em obras menores desde os anos 20), prevê a intensificação dos conflitos raciais, o avanço
do Islã sobre a Europa, a supressão do papel-moeda e a sua substituição por meios
eletrônicos, a redução do catolicismo a uma ideologia progressista, o pansexualismo, a
perda dos parâmetros de veracidade científica, a formação de uma potência mundial
baseada na propaganda e na manipulação das consciências, o ressurgimento das
epidemias, a síntese do capitalismo e do socialismo, a degradação do judaísmo, o
aparecimento de novas doenças mentais causadas por experiências psíquicas
extravagantes, a profusão de novas seitas e falsas espiritualidades, o crescimento do crime
organizado e, em suma, quase tudo o que compõe hoje os noticiários. Para chegar a estas
conclusões, parte de princípios metafísicos oriundos de doutrinas hindus e, por simples
dedução, mostra como todo este rosário de infortúnios é o desdobramento natural e fatal
das premissas em que se baseia o ciclo histórico vivido atualmente pela humanidade.
16
Como afirma Bisson, a obra de Guénon representa, para alguns, “o reflexo de um postulado que nunca foi
demonstrado, a encarnação de um idealismo que envolve apenas a pessoa que nele acredita”. Umberto Eco
analisa o pensamento do autor, sugerindo que “o importante não é obviamente a demonstração, mas a
convicção de que o que já era conhecido só pode ser confirmado por uma espécie de ensurdecedora cacofonia
de pensamento, onde cada som faz uma música, e onde a harmonia é dada pela vontade do seguidor, ansioso
por dançar a todo o custo esta música”. U. Eco, Les limites de l'interprétation. Paris, Grasset, 1992, p. 122
apud D. Bisson, René Guénon: Une politique de l'esprit, op. cit., p. 96.
17
Segundo Carvalho, nas suas primeiras obras dos anos 20, Guénon “concluiu que apenas três caminhos se
abriam a esta civilização: a queda na barbárie, a restauração da Igreja Católica ou a islamização”. No entanto,
foi levado a abandonar a segunda opção e apostou na “islamização do Ocidente” como a única forma de
conter a barbárie. O. de Carvalho, “Influências discretas”, Jornal do Brasil, 8 de maio de 2008,
[https://olavodecarvalho.org/influencias-discretas/], consultado em 12 de maio de 2022.
18
O. de Carvalho, A dialética simbólica. Campinas, Vide Editorial, 2015.
19
O. de Carvalho, « As garras da Esfinge – René Guénon e a islamização do Ocidente », Verbum, Ano I, N° 1-2, 2016,
[https://olavodecarvalho.org/as-garras-da-esfinge-rene-guenon-e-a-islamizacao-do-ocidente/], consulté le 12 mai 2022.
7
todos os homens de qualquer época ou cultura. “A perfeita submissão da subjetividade
humana a essa estrutura está implícita em todas as tradições como condição sine qua non
da vida religiosa e, mais ainda, da realização espiritual. Sua negação, mutilação ou
alteração é a fonte de todos os erros e loucuras da humanidade.” Nessa perspectiva, o
avanço do materialismo é entendido como um aprofundamento dessa modernidade que
dilapida a Tradição em benefício do conhecimento científico herdado do Iluminismo: é
justamente por meio dessa entrada que Carvalho desenvolverá sua crítica ao comunismo.
De seu ponto de vista, o materialismo subjacente ao modelo comunista seria o ápice
da “ideologia científica”. O “reino da quantidade” – ideia apresentada por Guénon20 em
obra homônima publicada em 1945 – seria assim consagrado por uma ideologia que tende
à racionalização das relações sociais segundo métodos científicos modernos. Em um artigo
intitulado “Guerras Culturais”, originalmente publicado no Diário do Comércio em janeiro
de 2006 e republicado em O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota,
Carvalho21 discute precisamente as estratégias adotadas pelas elites contemporâneas para
executar este projeto modernizador e “cientificista”. O texto começa com uma citação
atribuída a Guénon: “o segredo está na própria natureza do poder”. Segundo Carvalho,
“aquele que hoje ignora esta regra está condenado a servir como um instrumento cego e
dócil para a realização de planos políticos de grande escala que permanecem totalmente
invisíveis e inacessíveis para ele”. Desse ponto de vista, Carvalho afirma que
A idéia de uma transformação cultural planejada por uma elite iluminada, para a
qual as universidades, os meios de comunicação e tais grupos oligárquicos contribuiriam,
serve assim de base para a crítica de Carvalho sobre o comunismo, que o autor desenvolve
sobretudo a partir dos anos 1990. Com base na crítica dos Tradicionalistas à modernidade,
Carvalho constrói um quadro analítico a partir do qual busca identificar os causadores do
colapso do Ocidente e as estratégias adotadas por esses agentes. É neste sentido que o autor
desenvolve suas reflexões sobre o “marxismo cultural” e o “globalismo”. Com relação à
20
R. Guénon, Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps. Paris, Gallimard, 1945.
21
O. de Carvalho, O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. Rio de Janeiro, Record, 2014, pp. 170-172.
8
primeira noção, Carvalho interpreta o conceito de “hegemonia cultural”, atribuído ao
teórico marxista italiano Antonio Gramsci (1891-1937), como prova de que o comunismo
teria sobrevivido à Guerra Fria e que, ao contrário do que se poderia pensar, estaria sendo
reforçado por uma ofensiva generalizada vinda do “establishment progressista”.
Teorizando a derrubada do Estado burguês, “Gramsci argumentava que a hegemonia
cultural deveria ser conquistada previamente através de uma estratégia metapolítica que
permitisse uma transformação da consciência das massas trabalhadoras”. Segundo Châton22,
“essa idéia se difundiu rapidamente à esquerda do espectro político, mas foi também
retomada à direita a fim de lutar contra o que foi então percebido como uma hegemonia
cultural da esquerda”. Carvalho reproduz esta interpretação, denunciando a suposta
hegemonia cultural da esquerda brasileira, sem se mostrar otimista quanto à possibilidade de
que a direita se reorganize para contê-la. Esta estratégia seria a causa da destruição dos
princípios e valores “que mantêm as hierarquias sociais e contribuem para a reprodução da
sociedade”23, sendo a base da civilização ocidental. De acordo com o ensaísta brasileiro24,
Antes de lutar pelo poder político imediato, Gramsci ensinava, é necessário conquistar a
“hegemonia cultural”: o domínio do subconsciente popular, através de uma injeção
doutrinária gradual, homeopática e sem rótulo. Seria necessário, em suma, infiltrar os
militantes nos lugares mais discretos e profundos, muitas vezes desprezados pela velha
estratégia leninista, que só pensava em fábricas e quartéis: era necessário colocá-los nas
escolas primárias, nos consultórios psicológicos e matrimoniais, nas revistas femininas,
nas organizações beneficentes e de assistência social oficiais, nas novelas de rádio e
televisão, em tudo o que fosse, à primeira vista, o mais apolítico e inocente possível, mas
que tivesse influência sobre os sentimentos e a linguagem cotidiana das massas. Gramsci
(...) entendeu que, a longo prazo, esta doutrinação discreta traria mais benefícios do que
a doutrinação ostensiva, de modo que, impregnado com o imaginário de esquerda como
um gás onipresente, um povo acabaria se tornando socialista sem perceber.
22
G. Châton, « Entre revendication artiste et gramscisme de droite : le cinéma de Clint Eastwood comme
apologie du libertarianisme américain », Quaderni, 2015/1 (n° 86), p. 51.
23
F. Vandenberghe, « Sociologie de la conjoncture, de la structure et de la démocrature au Brésil », Problèmes
d'Amérique latine, 2019/4 (N° 115), p. 135.
24
O. de Carvalho, O imbecil coletivo II, op. cit., p. 180.
9
pais e assimilaram um progressismo darwinista ou um liberalismo amoral que não hesita
em promover causas esquerdistas – notadamente o aborto e o gayismo” (sic). Essas elites
seriam a própria encarnação do “projeto globalista” por trás da estratégia metapolítica.
Essa leitura aparece de forma mais desenvolvida em um debate entre Carvalho e
Dugin25, publicado em 2012. De acordo com o brasileiro, não há uma, mas várias elites
globalistas. Para ele, “as forças históricas que hoje competem pelo poder no mundo estão
articuladas em três projetos de dominação global”: o russo-chinês, o ocidental e o islâmico.
Cada projeto seria encarnado por seus respectivos agentes: as elites governantes russa e
chinesa; a elite financeira ocidental; bem como a Irmandade Muçulmana, líderes religiosos
e governos de alguns países islâmicos. Para Carvalho, “somente os primeiros podem ser
concebidos em termos estritamente geopolíticos, já que seus planos e ações correspondem
a interesses nacionais e regionais bem definidos”. O segundo seria o “mais avançado na
realização de seus planos de governo mundial”, colocando-se “explicitamente acima dos
interesses nacionais, incluindo dos países de onde procede e que servem de base para suas
operações”. O terceiro, por sua vez, seria governado pelo “objetivo maior do califado
universal”, vendo “sua autoridade simbólica baseada em mandamentos corânicos que
nenhum governo islâmico se atreveria a se opor frontalmente”. De acordo com Carvalho,
“As concepções de poder mundial que estes três agentes se esforçam a alcançar são muito
diferentes entre si porque resultam de influências ideológicas heterogêneas e por vezes
incompatíveis.
Portanto, não se tratam de forças semelhantes, espécies da mesma natureza. Elas não
lutam pelos mesmos objetivos e, quando ocasionalmente recorrem às mesmas armas (por
exemplo, a guerra econômica), o fazem em contextos estratégicos diferentes, onde o uso
dessas armas não serve necessariamente aos mesmos objetivos. (...)
As análises estratégicas de cada um refletem seus próprios vieses ideológicos. Embora
tentem considerar todos os fatores existentes, o esquema russo-chinês favorece o ponto
de vista geopolítico e militar, o esquema ocidental o ponto de vista econômico, o esquema
islâmico o ponto de vista das guerras religiosas. (...)
Assim, pela primeira vez na história do mundo, as três modalidades essenciais de poder
– político-militar, econômico e religioso – se encontram encarnadas em distintos blocos
supranacionais, cada um com seus próprios planos de dominação mundial e seus modos
de ação particulares. Isto não quer dizer que cada um deles não age em todas as frentes,
mas apenas que suas respectivas visões históricas e estratégicas são, em última instância,
delimitadas pela modalidade de poder que representam. Não é exagero dizer que o mundo
é hoje objeto de uma competição entre militares, banqueiros e pregadores.”
25
O. de Carvalho e A. Dugin, Os EUA e a Nova Ordem Mundial. Campinas, Vide Editorial, 2012.
10
suas críticas ao “globalismo”, visto que o ideólogo russo vê os Estados Unidos como a
encarnação do espírito destrutivo da Tradição, enquanto o brasileiro o vê como o último
bastião contra o avanço das elites globalistas. Como assinala o Teitelbaum26, “Olavo
sustentava que a América é uma fonte de Tradição no mundo moderno, que sua população
rural é a embaixadora global da espiritualidade. Essa interpretação era exatamente oposta
ao que os Tradicionalistas de direita geralmente pensam, que na maioria das vezes
idolatram o Oriente ou a Rússia, graças em parte aos anos de influência de Dugin”.
A despeito da verossimilhança de seus argumentos, esse debate ilustra as
divergências que podem existir entre os chamados “Tradicionalistas de direita”. Além
disso, ele nos permite vislumbrar pontos cegos na crítica de Carvalho, que paradoxalmente
são indispensáveis para entender sua visão de mundo. Em particular, a natureza das elites
“globalistas” visadas pelo autor permanece bastante nebulosa, “primeiro afirmando que
haveria três forças distintas cobiçando o poder mundial, e em seguida declarando sem
hesitar que as três estavam unidas em seu esforço para destruir a verdadeira América”27.
Para entender essa contradição, é necessário enfatizar a centralidade do “comunismo” – e
o significado a ele atribuído – na crítica de Carvalho. Como explica Teitelbaum28,
26
B. R. Teitelbaum, op. cit., p. 174.
27
Ibid., p. 181.
28
Ibid, p. 181-182.
29
O. de Carvalho et A. Dugin, Os EUA e a Nova Ordem Mundial, op. cit.
11
teoria autocontraditória acaba gerando contradições reais insolúveis”. Consequentemente,
o socialismo assim concebido teria se tornado “uma simples aliança entre o grande governo
e o grande capital, em um processo de centralização do poder econômico que favorece
ambos os parceiros sem jamais chegar à nacionalização completa dos meios de produção”.
Os grandes beneficiários desse sistema seriam, por um lado, “as elites intelectuais e
políticas da esquerda” e, por outro, “os capitalistas que se tornaram tão ricos no regime de
liberdade econômica que não podem mais se submeter às flutuações do mercado”.
Mesmo que a conclusão de Carvalho seja questionável, o autor procura justificar a
disposição das elites financeiras para executar tal projeto. É menos evidente, no entanto, a
razão pela qual as chamadas “elites políticas e intelectuais de esquerda” estariam dispostas
a unir forças com as primeiras – e ainda menos a razão pela qual elas estariam interessadas
em se juntar às outras duas “elites globalistas” às quais o autor se refere. No entanto, o
autor estabelece uma ligação entre o “globalismo”, o “comunismo” e o “marxismo
cultural” como expressões contemporâneas do projeto modernizador de transformação
social. Nessa perspectiva, o “globalismo” encarna o projeto de transformação em sua forma
atual, enquanto o “comunismo” aparece como sua expressão política e determina o modo
de organização do Estado, e o “marxismo cultural” aparece como sua expressão
estratégica, sendo adotado pelas elites em questão a fim de levar seu projeto a cabo.
Nesse sentido, entende-se que o aggiornamento do anticomunismo de Carvalho
passa por uma crítica da modernidade – radicalizada pelo materialismo – que encontra suas
raízes intelectuais no Tradicionalismo. Cabe sublinhar que essas teses, embora baseadas em
uma tradição antiga, encontram uma forte ressonância nos meios conspiracionistas atuais e,
sobretudo, que servem de base para a construção de redes transnacionais de circulação de
ideias. Como mostra seu debate com Dugin, a posição de Carvalho nem sempre é dominante
entre os “Tradicionalistas de direita”, mas suas ideias parecem circular com facilidade nesses
circuitos, encontrando apoio mesmo entre os representantes da alt-right americana, como
Steve Bannon. Como argumenta Teitelbaum30, “a ideia de que uma reserva oculta da força
espiritual anti-moderna da humanidade” se encontraria entre os cristãos rurais nos Estados
Unidos “era uma noção que reapareceria no pensamento de Steve Bannon, um
Tradicionalista cujo poder político excederia o de Dugin, pelo menos em um sentido formal”.
30
B. R. Teitelbaum, op. cit., p. 185.
12
A difusão do pensamento olavista: do anti-globalismo ao bolsonarismo
Olavo era excêntrico de uma forma que o futuro presidente e sua família (...) não o eram,
mas os dois se uniam em seu desprezo pela mídia e pelas universidades. Foram, contudo,
as duras críticas de Olavo sobre a política brasileira contemporânea e seu apelo por uma
31
B. R. Teitelbaum, op. cit., p. 175.
32
Mais de 20.000 estudantes teriam se formado em sua “fábrica de gênios” desde sua criação, como afirma
Wink em Brazil, Land of the Past, op. cit., p. 193.
33
B. R. Teitelbaum, op. cit., p. 128.
13
nova ética cristã que conquistaram a admiração de Bolsonaro. Olavo, por sua vez,
apreciava a natureza pouco refinada de Bolsonaro, sua propensão a falar em termos
grosseiros e a usar referências a Deus e a Cristo em seu discurso.
Figura 1 – Tweet de Eduardo Bolsonaro celebrando seu encontro com Bannon, em 2018
14
Discípulo notável de Carvalho, Martins desempenha um papel fundamental na
construção dessas alianças. De acordo com Manso34, foi graças a ele que, em 2017,
Eduardo Bolsonaro “se aproximou de certos grupos de influenciadores de direita”.
Formado em relações internacionais pela Universidade de Brasília, ele “tinha trabalhado
na embaixada dos EUA na capital federal, onde entrou em contato com o site Breitbart
News e Steve Bannon”. Martins também escrevia regularmente “para sites brasileiros de
extrema direita, como Terça Livre, Mídia Sem Máscara e Senso Incomum”. Segundo o
autor, junto a Eduardo e Carlos Bolsonaro, “Martins desempenhou um papel importante
na campanha presidencial de Jair Bolsonaro, ajudando a mobilizar a rede de sites, blogs e
veículos de notícias que haviam se consolidado desde os protestos contra Dilma Rousseff”.
Como prova de sua importância na construção de alianças políticas no período que
antecedeu as eleições de 2018, o discípulo de Carvalho foi nomeado conselheiro do PSL
durante a campanha, e depois conselheiro especial de Jair Bolsonaro na presidência.
No que diz respeito ao chefe da alt-right americana, sua influência na política
brasileira apresentaria um interesse triplo, segundo Venner35: “Ele pode fazer com que
qualquer um seja eleito. Ele é imprescindível para os climatocéticos. Sua capacidade de
provocar danos no interior da Igreja Católica permanece intacta, e mesmo aqueles que se
distanciaram dele o respeitam”. De fato, enquanto demonstração de força, a eleição de
Bolsonaro parece ter ajudado a consolidar a rede de alianças que Bannon procura criar –
sobretudo após a eleição de Trump – reunindo representantes da extrema-direita dos dois
lados do Atlântico. Além disso, as posições climatocéticas sustentadas pelo presidente
brasileiro contribuem para pôr em xeque o que, aos olhos dos “Tradicionalistas de direita”
– como Bannon também se identifica – seria uma farsa das “elites globalistas”. Quanto à
sua influência dentro da Igreja Católica, esta parece ser uma questão fundamental, que
torna explícitos os laços que unem o estrategista americano ao ideólogo bolsonarista.
Como destacado anteriormente, Carvalho se converteu ao catolicismo enquanto
ainda frequentava a tariqa de Schuon no final dos anos 1980. Essa primeira aproximação
se dá, portanto, no âmbito de uma busca pela Tradição à qual convidava o sincretismo
schuoniano. O catolicismo possuía assim um valor instrumental, na medida em que lhe
permitiria se aproximar do conhecimento supremo, ao mesmo tempo em que o protegeria
das extravagâncias da modernidade. Além de seu combate individual, tais questões
34
B. P. Manso, A República das Milícias. São Paulo, Todavia, 2020.
35
F. Venner, Steve Bannon. L’homme qui voulait le chaos. Paris, Bernard Grasset, 2020, pp. 198-199.
15
também passariam pela própria Igreja, uma vez que ela seria confrontada a forças que a
desviariam de seu papel enquanto guia espiritual do Ocidente. Segundo Carvalho, o
espectro do comunismo, que se manifestaria por exemplo na teologia da libertação,
representa uma ameaça real de “redução do catolicismo a uma ideologia progressista”.
Como ele, Banon considera que é necessário intervir no nível das elites eclesiásticas para
promover uma via conservadora e combater o avanço progressista dentro da Igreja.
O combate metapolítico que une Carvalho e seus discípulos, por um lado, e os
círculos de alt-right agrupados em torno de Bannon, por outro, também se reflete no campo
da ação política. Após recusar o convite para se tornar Ministro da Educação do novo
governo, Carvalho apresenta os nomes de dois discípulos, ambos católicos fervorosos, para
posições-chave no âmbito da “guerra cultural”. O nome do teólogo Ricardo V. Rodríguez,
crítico ferrenho da teologia da libertação, foi assim apresentado ao cargo de Ministro da
Educação – logo sendo substituído por outro discípulo de Carvalho, Abraham Weintraub,
após uma série de escândalos. Ao mesmo tempo, o diplomata Ernesto F. Araújo é indicado
para o comando das Relações Exteriores, cargo que ocupará de 2019 a 2021. Sua nomeação
é em grande parte motivada pela publicação do artigo “Trump e o Ocidente”36, no qual ele
exalta o nacionalismo do presidente americano como um elemento intrínseco da
civilização ocidental, tendo suas raízes na aspiração ao “Deus que age na história”.
É interessante analisar esse documento do ponto de vista da circulação de ideias
entre os “Tradicionalistas de direita”, mas também de sua apropriação em termos de ação
política. Nesse artigo, Araújo37 faz referência a alguns mestres Tradicionalistas, incluindo
Guénon, apresentando uma visão orgânica do Ocidente, cuja sobrevivência estaria sendo
ameaçada pelo “globalismo”. Segundo o autor, a civilização ocidental é “uma entidade
orgânica e viva, outrora vigorosa, mas que hoje apresenta sérios sinais de fraqueza e até de
insanidade, dando a impressão de que, deixada ao seu curso natural, poderia desaparecer
definitivamente em poucos anos”. Seguindo as teses Tradicionalistas, Araújo percebe o
Ocidente como um corpo doente, cujo espírito estaria sendo corroído pelo niilismo e pelo
materialismo que caracterizam a modernidade. Referindo-se a um discurso proferido por
Trump em 2017, o autor argumenta que as ameaças que pesam sobre o Ocidente, “sejam
elas externas ou internas”, atacariam em especial o seu modelo “pan-nacionalista”:
36
E. F. Araújo, « Trump e o Ocidente », Cadernos de Política Exterior, ano III, n° 6, 2017/2, p. 323.
37
Ibid., p. 325.
16
Todo Estado tem o dever, e não apenas o direito, de trabalhar para seu povo. O Estado
só é legítimo se for nacional, enraizado em uma comunidade, e cada pessoa se
desenvolve como membro de uma comunidade nacional, não como um “cidadão do
mundo”. O Estado não é um mal necessário, mas um bem precioso – na medida em que
não é uma estrutura administrativa tecnocrática, mas o defensor e promotor de sua
comunidade histórica, um Estado-nação no sentido do Estado inseparável da nação.38
O autor39 reitera adiante que “a nação não é uma escolha, mas um fato indelével e
fundador na vida do indivíduo como seu próprio nascimento”. Para ele, “não é coincidência
que o marxismo cultural globalista de hoje promova tanto a diluição do gênero quanto do
sentimento nacional: eles querem um mundo de ‘pessoas cosmopolitas e sem lar, negando
o fato biológico do nascimento de cada pessoa em um determinado gênero e em uma
determinada comunidade histórica’”. De fato, Araújo40 retoma, sem citá-lo, as críticas de
Carvalho em relação aos “projetos globalistas” e apresenta os americanos como “o último
povo tradicionalista do Ocidente” – em clara concordância com a posição defendida pelo
ideólogo brasileiro em seu debate com Dugin. Na raiz desses projetos estaria a “tradição
liberal e revolucionária”41 que, desde o Iluminismo, teria se traduzido em uma “rejeição
do passado” em suas diversas facetas: heróis, religião, família. Trump desafiaria, portanto,
esta ordem falando de Deus, segundo ele, “e nada é mais ultrajante para o homem pós-
moderno, que matou Deus há muito tempo e não gosta de ser lembrado desse crime”.
Essa leitura sobre a decadência ocidental repercute diretamente a influência
Tradicionalista presente na obra de Carvalho. Segundo o ex-ministro das Relações
Exteriores42, “para entender Trump em Varsóvia”, seria preciso ler “o mestre tradicionalista
René Guénon (uma influência importante para Steve Bannon, ex-chefe estrategista da Casa
Branca e ainda central para o movimento que trouxe Trump à presidência)”:
Guénon, escrevendo nos anos 1920, acredita que o Ocidente moderno havia-se
distanciado completamente da “tradição” (o núcleo espiritual de todas as civilizações e
que se manifesta diferentemente, mas de forma coerente em cada uma delas), tornando-
se um poço de materialismo e ignorância, cujo único princípio é a negação de qualquer
espiritualidade. Francês convertido ao islamismo e vivendo no Egito, Guénon acreditava,
entretanto, que somente o cristianismo, e especificamente o catolicismo, poderia talvez
recuperar um mínimo de espiritualidade no Ocidente e salvá-lo da completa aniquilação
numa profunda idade das trevas, pois somente a Igreja Católica, segundo ele, preservava
– embora latentes e incompreendidos por ela própria – os elementos da grande tradição.
38
E. F. Araújo, « Trump e o Ocidente », art. cit., p. 334. A advertência sobre tal “estrutura administrativa tecnocrática”
faz eco à ideia de “desconstrução o estado administrativo”, promovida por Bannon, segundo a qual seria preciso
desfazer as amarras criadas pelas burocracias progressistas para permitir uma verdadeira revolução conservadora.
39
Ibid, p. 339.
40
Ibid, p. 346.
41
Ibid, p. 329.
42
Ibid., p. 347.
17
Embora a referência a Guénon possa parecer imprecisa – dado que ele abandona
prontamente a ideia de que o catolicismo poderia salvar a civilização ocidental para se
concentrar na tese de “islamização do Ocidente” – é certo que o francês tem uma forte
influência sobre Araújo. Seu diagnóstico é assim permeado pela leitura guénoniana sobre
a decadência ocidental e condiciona sua visão sobre o papel que o presidente americano
desempenharia na defesa da Tradição. Esse dado é vinculado à influência de Carvalho, de
quem Araújo era próximo, como um dos principais representantes do Tradicionalismo no
Brasil. É, portanto, fundamental compreender as implicações dessa leitura para a posição
que Araújo sustenta dentro do governo Bolsonaro – especialmente quando ele questiona o
lugar do Brasil nesse Ocidente ameaçado. Nesse sentido, ele argumenta que “o Brasil –
mesmo que não queira – faz parte do Ocidente, e este Ocidente – mesmo que não o veja –
está em um conflito de proporções gigantescas para sua própria sobrevivência”43.
Por isso, segundo Araújo44, além de uma política externa, o Brasil precisaria de
uma verdadeira “metapolítica externa”. Compreende-se nesse sentido “as ideias, a cultura,
a filosofia e os símbolos que atuam nos planos racional e emocional da consciência”, a
partir dos quais o país poderia se situar e atuar “no plano cultural-espiritual em que, muito
mais do que no plano econômico ou da estratégia diplomático-militar, é moldado o destino
do mundo”. Essa análise reflete a ideia Tradicionalista de que a realidade seria o mero
espelho de uma verdade que escapa ao olhar do observador. Araújo tenta então decifrar os
projetos que definiriam o “destino do mundo” e determinar o lugar que o Brasil deveria
ocupar nele. O autor justifica a assimilação do país ao Ocidente pelo seu vínculo histórico
com Portugal: referindo-se ao historiador Vítor Adrião, ele considera que as grandes
descobertas foram uma espécie de “ritual de iniciação” e que “o Brasil, fruto supremo desse
‘mistério’, tem uma origem profunda e sagrada, ligada aos arcanos mais profundos da alma
ocidental tal qual manifestada na nação portuguesa”. Além disso, alguns Tradicionalistas,
incluindo Bannon45, acreditam na existência de “dons metafísicos ocultos” no Brasil:
43
E. F. Araújo, « Trump e o Ocidente », art. cit., p. 354.
44
Ibid., p. 343.
45
Matias Spektor atribui essa leitura sobre a decadência ocidental, compartilhada pelos seguidores de Carvalho
e Bannon, à “tradição neoconservadora de intelectuais como Irvin Kristol e de tomadores de decisão como John
Bolton e Paul Wolfowitz, cuja influência no mais alto escalão do governo dos EUA foi notória durante a
presidência de George W. Bush (2000-8)” e que teria influenciado diretamente o estrategista de campanha de
Trump. Segundo Spektor, “uma das teses centrais desse grupo é que as instituições internacionais, em vez de
serem uma alavanca, são um obstáculo aos interesses nacionais”. Na verdade, a crítica ao “globalismo” está
diretamente associada a uma crítica das burocracias internacionais, que também teriam sido contaminadas pelo
“marxismo cultural”. No entanto, é difícil medir a influência desses autores relativamente aos Tradicionalistas,
18
Não apenas o Ocidente judaico-cristão existe na América do Sul através do Brasil, mas
o Brasil iniciou o processo de modernização mais tarde do que a Europa Ocidental e os
Estados Unidos. Isso significa que sua cultura ocidental é mais profunda e menos
corrompida, podendo servir como um depósito da cultura que as nações degradadas
pela modernidade abraçariam à medida em que se esforçassem para se revitalizar.46
Sob essa perspectiva, a filiação do Brasil à civilização ocidental e o fato de que sua
cultura seria menos corrompida pela modernidade fazem do país uma peça central na luta
contra o globalismo. No entanto, essa é uma conclusão que requer cuidado, uma vez que
contrasta com a análise de Carvalho sobre a manifestação da decadência ocidental no país.
Para ele47, mesmo o “Brasil profundo” – em uma clara analogia com a noção de “América
real”, sacralizada pela alt-right americana – estaria sujeito ao abandono da Tradição – visto
que ambos não se equivaleriam em termos de “adesão aos valores espirituais”. Segundo
Carvalho, ao contrário dos EUA, “no Brasil, a sociedade teria se construído em torno da
infraestrutura militar”. Isso faz com que “mesmo nas zonas rurais pobres – até mesmo no
Brasil profundo – continue a se confiar no Exército acima de tudo”. Sua crítica aparece
assim como uma denúncia do materialismo encarnado nos vícios da sociedade brasileira:
no caso dos pensadores brasileiros estudados. Pouca ou nenhuma referência a esses últimos é encontrada, por
exemplo, no artigo de Araujo ou nas obras de Carvalho analisadas acima. M. Spektor, “Diplomacia e ruptura”
em S. Abranches et.al, Democracia em risco: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo, Cia. das Letras, 2019.
46
B. R. Teitelbaum, op. cit., pp. 167-168.
47
Ibid., p. 254.
48
Ibid, pp. 258-259.
19
Apesar da contradição latente entre a visão de Carvalho sobre o resgate da Tradição
no Brasil e a ação política por ele inspirada, a ideia de que o país pertence a uma civilização
ocidental à beira da extinção se reflete em posições muitas vezes consideradas radicais.
Isso se reflete no climatoceticismo de Bolsonaro e Trump, mas também na negação da
pandemia de Covid-19, que ambos inicialmente consideram como uma conspiração
chinesa para acelerar o colapso do Ocidente. A China também seria vista com extrema
desconfiança pelos círculos próximos a Carvalho, e em particular por Araújo, que promove
uma política externa fortemente alinhada com os EUA de Trump. Essa posição criará fortes
tensões dentro do governo Bolsonaro, sobretudo no contexto da pandemia, já que a China
figura entre os potenciais fornecedores de vacinas para o Brasil. Além disso, o sentimento
anti-chinês que os seguidores de Carvalho sustentam dentro do governo constitui uma fonte
de tensão constante com os militares, que veem positivamente a aproximação com o país
asiático. Araújo será afastado do governo em março de 2021, em meio à crise pandêmica.
Considerando a transposição das guerras culturais no nível da ação política,
Teitelbaum49 destaca alguns paralelos que podem ser traçados entre o Tradicionalismo,
defensor dos “guardiões do espírito”, e o discurso em favor de um “povo puro”, mobilizado
pelos populistas apoiados por Carvalho e Bannon. Segundo ele, “o populismo de direita
fala de uma oposição entre um establishment cosmopolita e um povo enraizado”, enquanto
“o Tradicionalismo vê a mesma divisão, mas a poderia definir como uma oposição entre
mercantilistas tecnocráticos e simples religiosos que transcendem o tempo”. Além disso,
eles compartilham a ideia de que “as divisões clássicas da política contemporânea são uma
ilusão: os populistas com o argumento de que todos os políticos são corruptos; os
Tradicionalistas com o argumento de que a esquerda e a direita do Ocidente moderno são
tanto progressistas quanto materialistas”. Assim, o Tradicionalismo reforça uma leitura
paradoxalmente simplificadora da realidade, uma vez que atribui significado a elementos
que ressignificam o conflito político em termos alheios à coexistência democrática.
É possível, portanto, constatar uma certa convergência entre as ideias promovidas
por Bannon e o discurso de Bolsonaro. Nesse sentido, Farias50 aponta a relação entre “o
processo de democratização sociocultural no Brasil e a concepção de ‘povo’ presente na
guerra cultural de Bolsonaro” a partir da “intersecção de imaginários que ligam
49
B. R. Teitelbaum, op. cit., pp. 258-259.
50
E. Farias, « O “povo” e a guerra cultural no campo bolsonarista » in G. T. Monteiro e C. S. Teixeira,
Bolsonarismo – teoria e prática. Rio de Janeiro, Gramma, 2020, pp. 93-94.
20
ingredientes propriamente brasileiros àqueles mais notórios na circulação mundial de
ideias”. Segundo ele, esses atores têm em comum a luta contra as “elites globalistas”,
compartilhando a ideia de que o “comunismo internacional” teria se consolidado no
período pós-guerra, “sujeitando as ‘nacionalidades’ à condição opressiva da eliminação
daquilo que lhes era essencial”. Aclimatadas à realidade brasileira sob a pena de Carvalho,
essas ideias são consubstanciais a uma forma de anticomunismo reabilitado que, apesar de
suas raízes longínquas, consegue se adaptar ao contexto do pós-democratização.
O aggiornamento do anticomunismo que Carvalho opera nesse contexto é assim
identificado a uma crítica do materialismo como fonte da decadência ocidental. Essa leitura
encontra suas raízes nos escritos de Guénon e nas leituras relativamente heterodoxas de
seus discípulos. Portanto, não é possível ignorar os estágios iniciais do percurso intelectual
de Carvalho, nem subestimar suas repercussões sobre a experiência política que ele ajuda
a criar: o bolsonarismo. Bolsonaro instrumentaliza a visão de guerra cultural enquanto um
recurso discursivo poderoso, servindo como base para reunir diversos segmentos políticos
em torno de si. O exercício do poder, no entanto, põe à prova a execução dessas ideias,
como demonstram as dificuldades com que Araújo foi capaz de implementar uma política
externa totalmente alinhada com o “Ocidente judaico-cristão”. As relações de poder dentro
do governo, bem como os obstáculos institucionais e burocráticos às mudanças políticas,
são elementos a serem levados em consideração. Resta saber até onde e quais implicações
a execução dessas ideias pode representar para a continuidade da democracia brasileira.
21
Referências
S. Abranches et.al., Democracia em risco: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo, Cia.
das Letras, 2019.
E. F. Araújo, « Trump e o Ocidente », Cadernos de Política Exterior, ano III, n° 6, 2017/2.
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2013.
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______, O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. Rio de Janeiro, Record, 2014.
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______, “As garras da Esfinge – R. Guénon e a islamização do Ocidente”, Verbum, ano I, n° 1-2,
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G. Wink, Brazil, Land of the Past: The Ideological Roots of the New Right. Cuernavaca,
Bibliotopía, 2021.
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