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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
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Discente: Luís Augusto Meinberg Garcia (ME/202202260)


Docente: Profª Drª Alexandra Eliza Vieira Alencar

Trabalho final - Teoria Antropológica I

No final do mês de março de 2022, na transição do verão para o outono, a


comunidade muçulmana da cidade de Barretos, no interior do estado de São Paulo, vivia os
preparativos para outra transição: a chegada do mês sagrado do ramadan, nono mês do
calendário islâmico em que os fiéis experienciam e praticam o jejum ritual em reverência ao
período em que Allah revelou as palavras do Alcorão para o profeta Muhammad e toda a
humanidade.
Dias antes de me mudar para Florianópolis/SC em função do curso de mestrado em
Antropologia Social, combinamos alguns encontros entre a comunidade e eu, para firmarmos
o compromisso de pesquisa. Em um deles, fui convidado para participar de uma oração
coletiva de sexta-feira - a Salat Al-Jumu'ah. Tendo conhecido inicialmente o sheikh, líder
espiritual do grupo, bem como o diretor da mesquita, líder político e administrativo, na
oração pude me apresentar para mais pessoas e conhecer melhor a dinâmica dos e das
muçulmanas em Barretos. Após o término da oração, avistei na mesquita um amigo e antigo
professor que veio em minha direção e me perguntou o que fazia ali; ao contar de minha
trajetória e da intenção de pesquisa, ele, ao se demonstrar animado, apenas sinalizou uma
questão: “mas você não vai falar mal da gente na sua dissertação, certo? Isso todo mundo ‘do
lado de cá do mundo’ já faz.”.
Por trás dessa pergunta, parece estar implícita a preocupação de como o Islã e a
comunidade, composta por mulheres e homens imigrantes árabes-muçulmanos, bem como
mulheres e homens brasileiros revertidos1, serão tratados. Aquilo reverberou em mim - e

1
“Reversão” é o termo nativo para caracterizar aqueles que fazem o movimento de adesão ao Islã em suas
vidas, pois, de acordo com o alcorão, considera-se que todos seres humanos já nascem muçulmanos (que em sua
significação se refere a “submisso a Deus”) e que as relações históricas e sociais podem alterar o caminho
religioso a seguir. Portanto, quem adere ao Islã, volta a ser muçulmano. Em algumas mesquitas no Brasil, como
continua reverberando - de tal maneira a me questionar qual Antropologia me coloco a fazer
conjuntamente com o grupo que participa da pesquisa e para que ela serve.

***

O ‘lado de cá do mundo’, visto por essas pessoas como Ocidente, foi em muito
influenciado pelas representações e interpretações advindas de países europeus e, também,
dos Estados Unidos da América (EUA) - por exemplo, os eventos do dia 11 de setembro de
2001, em Nova York, foram um marco para a atualização de como a religião muçulmana e
povos do Oriente Médio, de maneira exageradamente generalizada, seriam vistos pelo
ocidente. Edward Said, pensador e ativista palestino, considerado um “clássico” dentro dos
estudos pós-coloniais juntamente com Albert Memmi, Aimé Césaire e Frantz Fanon2, em sua
obra mais famosa “Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente” (2007), propõe uma
análise sobre o modo de pensar e produzir conhecimento orientalista como “[...] um modo de
abordar o Oriente que tem como fundamento o lugar especial do Oriente na experiência
ocidental europeia.” (p.27).
Desde o século XIX com a expansão colonial europeia, passando pelo período da
Segunda Guerra Mundial em que o imperialismo estadunidense ganhou força e conheceu
outros continentes, os países e povos considerados orientais têm uma imagem e um
conhecimento que é produzido sobre si por outros. Assim, de acordo com Said, o Oriente
“ajudou” a definir o ocidente como imagem, experiência, idéia e personalidade contrastante.
Mas não é como se esse Oriente fosse imaginado. O Oriente é parte integrante da cultura
material e da civilização europeia. Nas palavras do autor, “o orientalismo expressa e
representa essa parte em termos culturais e mesmo ideológicos, num modo de discurso
baseado em instituições, vocabulário, erudição, imagens, doutrinas, burocracias e estilos
coloniais” (p.28).
A produção de conhecimento orientalista, portanto, se trata de uma dentre outras
formas de conhecimento que compõem - ou, pelo menos, compuseram por longos anos - a
estrutura epistêmica do mundo moderno. Ramón Grosfoguel, sociólogo porto-riquenho, em
seu artigo “A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo
epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI” (2016), argumenta

em São Paulo, este é o termo utilizado (Ferreira, 2009), e em outras, como no Rio de Janeiro (Barros, 2013) o
termo é “conversão”. Em Barretos consideram a reversão;
2
Ver em Ballestrin (2013).
que o Ocidente possui um privilégio epistêmico construído a base de genocídios e
epistemicídios dos sujeitos coloniais. O autor destaca quatro situações coloniais que
influenciaram a estrutura de conhecimento propagada e tida como hegemônica no Ocidente:
os genocídios/epistemicídios contra judeus e muçulmanos na região de Al-Andalus, contra
povos nativos das Américas, contra povos nativos na África e a escravização dos mesmos nas
Américas e, contra mulheres europeias consideradas ‘bruxas’.
Uma grande provocação que Grosfoguel desenvolve é sobre o porquê de, na
universidade ocidentalizada, - e, assim, podemos falar das universidades brasileiras e a
produção de conhecimento dentro das Ciências Sociais - a base de questões e problemas
sociais que julgamos ser cânone para nossas análises seja fundamentada no conhecimento
produzido por homens brancos de países da Europa Ocidental (Itália, França, Alemanha e
Inglaterra) e dos Estados Unidos da América. E acrescenta:

“[...] se a teoria emerge de uma conceituação baseada nas experiências e


sensibilidades sócio-históricas concretas, assim como a concepção de
mundo desses espaços e corpos sociais particulares, então as teorias
científicas sociais ou qualquer outra teoria limitada à experiência e visão de
mundo de somente cinco países no mundo são, para dizer o mínimo,
provincianas.” (GROSFOGUEL, 2016, p.27)

Desta maneira, enquanto antropólogo latino-americano, me coloco em um constante


esforço em realizar uma tarefa de lutar contra o ideal de “episteme superior” ocidental e
naturalização de suas estruturas na produção e disseminação de conhecimento. Tal
superioridade é fruto de colonialismos e violências, de etnocentrismos e de etnocídios que
contam a história a partir de um único olhar que produz conhecimento sobre o outro de forma
a apagar a própria epistemologia do grupo3. Assim, conhecer histórias, pessoas, grupos, e
diferentes culturas é uma maneira de questionar uma narrativa única, que apaga grupos da
história em um constante processo de colonização.
Portanto, se a comunidade muçulmana de Barretos têm um ideal de trabalho conjunto
“antiorientalista”, no sentido que busca quebrar estigmas e produzir seu próprio discurso
sobre si, a teoria antropológica que proponho produzir conjuntamente com os mesmos

3
Lila Abu-Lughod (2012) acrescenta à teoria "antiorientalista", podemos assim chamar, nos incentivando a
repensar o papel da Antropologia enquanto uma ciência frente às ocupações e intervenções colonialistas e
imperialistas. Sua análise sobre como as lideranças mundiais interpretam se as mulheres muçulmanas precisam
realmente de salvação, ao repensar a justificativa de intervenção e ocupação ocidental no Afeganistão após os
eventos de 11 de setembro. Assim, questiona a comunidade acadêmica antropológica e nota que a mesma
ofereça apoio crítico para desenvolver uma avaliação das diferenças entre as mulheres no mundo, pois são
produtos de diferentes histórias, culturas e de manifestações de desejos e compreensão de mundo estruturados
de maneiras distintas.
também deve seguir o mesmo caminho. Como exemplo, a comunidade é responsável por um
trabalho de disseminação da religião na região, com intuito de aproximá-la com o contexto
em que está inserida. Assim iniciaram a atividade de divulgação por meio de palestras na
língua portuguesa, publicação de artigos em jornais, vídeos publicados nas mídias e redes
sociais, atraindo a atenção de brasileiros não-muçulmanos que se mobilizaram para conhecer
o Islã. Na mesquita, os rituais realizados em árabe são acompanhados de um sermão
traduzido em português.
Neste movimento, podemos nos remeter novamente à discussão de Said (2007). O
Islã, a partir dos olhos ocidentais, é visto como uma religião do Oriente, do distante e que
comumente se associa a organizações influenciadas pelo “terrorismo”. Quando movimentos
atuam de tal maneira no Brasil, objetivam aproximar o Islã do contexto em que está inserido,
longe de territórios árabes-orientais, trata-se de um movimento que propõe uma
contraposição ao orientalismo, justamente por disseminar os preceitos islâmicos de maneira a
torná-los familiares. Portanto, se a maioria dos cidadãos da cidade de Barretos e do Brasil são
cristãos, ou pelo menos educados em uma moral ocidental, moderna, secular e
majoritariamente cristã, se observa um conjunto de ações que objetivam distanciar o
etnocentrismo do olhar em relação àqueles que seguem a religião muçulmana.

***

Compreendendo a etnografia como um ‘percurso’ acompanhado das ações de andar,


ver, ouvir e escrever (e quaisquer outras que surgirem), procuro realizar um trabalho de
diálogo e interação, produzindo uma teoria antropológica a partir da produção de alteridade e
do campo relacional vivido entre o etnógrafo e os sujeitos que participam da pesquisa; um
exercício que coloca minha visão de mundo, meu corpo e a “domesticação do meu olhar”4 em
perspectiva e à prova:

“É este contraste, estas surpresas sempre à espreita dos pesquisadores, este


destemor em explorar o mundo em que vivemos, o colocar-se em
perspectiva, a negação de demarcação de fronteiras intelectuais, a disposição
a nos expor ao imponderável e a vulnerar nossa própria cosmologia”
(PEIRANO, 2014, p.382)

De acordo com Silva (2009), o trabalho etnográfico trata de situar-se, localizar-se no


espaço social em que se pretende pesquisar. A posição do etnógrafo será a de pensar sua
4
Ver em Oliveira (1996).
localização em relação “com os atores sociais que observa e em seus deslocamentos nos
territórios onde tais atores se localizam e transitam” (p.172). Partindo disso, um campo
relacional é produzido entre pesquisador e pesquisado e, cabe ao primeiro, atentar-se em
observar a alteração produzida por sua própria participação no contexto em que ele mesmo
observa.

O autor sinaliza que a vivência do etnógrafo engloba as ações de andar, ver e escrever.
Assim,

O percurso no campo, sua observação e a descrição do contexto percorrido e


observado são três fluxos que se misturam pela reciprocidade,
interdependência e (inter) influências enquanto se tensionam pelas
contradições e heterogeneidade das disposições e habilidades em jogo. Tudo
isso compõe uma complexa ambiência, um contexto do qual deriva o
estatuto do observador e as propriedades do universo observado. Cena de
componentes tão inextricáveis impõe que a etnografia se torne o relato de
um percurso. Dados e informações sobre a sociedade observada devem estar
organizados no texto ao longo de uma espinha dorsal, o percurso do
etnógrafo. Somente essa linha aglutinadora do material colhido poderá
torná-lo legível. Trata-se de pensar a etnografia como o relato de uma
experiência conflituosa de um observador, condição para o entendimento do
que foi observado. (idem, p.186-187)

Aprofundando na experiência de troca entre antropólogo e sujeitos que participam da


pesquisa e a produção de conhecimento que resulta da mesma, Silvana Nascimento em seu
artigo “O corpo da antropóloga e os desafios da experiência próxima” (2019), se propõe a
pensar sobre como o lugar da “fronteira”, existente entre a antropóloga e o outro, que
possibilita a construção de um estado de corpo etnográfico, um estado que se configura no
corpo da antropóloga desde a primeira experiência de campo até a elaboração da escrita: “Na
pesquisa etnográfica, estar em campo e escrever a partir dele, é deparar-se com a evidência do
seu próprio corpo e lidar com sua visibilidade material e simbólica, colocando-o em questão.”
(2019, p.2).

Logo, trata-se de o interlocutor “estranhar quem o estranhou” e pensar como isso


interfere na produção de conhecimento antropológico. Quer dizer que ao pensar nessas
questões, o que está sendo proposto não deixa de referenciar o conhecimento produzido no
lugar, no ponto de vista do “outro”. Pois, se classificam e reagem ao meu corpo a partir de
seu próprio contexto e conhecimento e isso produz uma situação etnográfica específica que
interfere na escrita, tal escrita produzirá um conhecimento antropológico que dá centralidade
à epistemologia outra.
A autora remete à noção de corporeidade em Thomas Csordas (2013), que afirma ser
corporal a primeira existência do sujeito; corpo como sujeito da cultura, não objeto dela. O
corpo só existe na relação com o mundo e se torna “corpo-no-mundo”. O autor propõe uma
proposta metodológica para a Antropologia na qual a corporeidade possui lugar central,
rompendo com noções de dualidade e separação entre corpo-mente. Neste sentido, me remeto
a Saba Mahmood em “Researhed spontaneity and convencionality of ritual: disciplines of
Salat” (2001), em que a partir de sua etnografia com um grupo de mulheres muçulmanas no
Egito, elabora conjuntamente com elas uma teoria de que o corpo age enquanto um “meio
plástico”, capaz de fazer com que a pessoa se torne sujeito a partir de práticas corporais que
exigem um processo pedagógico cultural. Assim, entendo que o corpo do antropólogo
também atua como um meio plástico, servindo como ferramenta para nos relacionarmos e
participar de um processo pedagógico a partir da epistemologia e cosmologia do outro.

Nascimento faz menção à Glória Anzaldúa (2012) para explicitar sobre a maneira
mestiza de se fazer Antropologia. Segundo Anzaldúa, uma perspectiva mestiza se desvencilha
de formações habituais de pesquisas antropológicas que partem da racionalidade e buscam
uma universalidade e convergência de formas de pensar; isso caracteriza o modo ocidental de
produção de conhecimento. A mestiza propõe a coexistência e a mistura de pensamentos
divergentes, visando uma perspectiva mais completa, uma que inclui as epistemologias
marginalizadas, em vez de excluí-las.

Portanto, essa “fronteira”, esse espaço-entre é o lugar de encontro entre práticas,


conhecimentos, objetos, pessoas, encontro das divergências, das ambiguidades, das
contradições e da mistura entre elas. Desta maneira, é desse lugar de viver na fronteira
durante a pesquisa de campo, refletindo sobre e usando meu próprio corpo enquanto
ferramenta para tal vivência, com objetivo de desaprender práticas que o objetificam e
aprender novas possibilidades de ser, saber e poder, que pretendo fazer teoria antropológica.
A Antropologia pode produzir sua escrita etnográfica para construir uma perspectiva de
multiplicidade, sendo necessário que se desvencilhe da colonialidade que pressupõe uma
dualidade entre o ‘eu’ e o ‘outro’, o ‘Ocidente’ e o “Oriente’, a fim de descobrir uma
convergência. É sobre produzir um conhecimento a partir do diálogo, da multiplicidade, do
contexto político local e global no qual nos inserimos, e do olhar crítico do grupo que
participa da pesquisa sobre a própria pesquisa etnográfica em si.
Bibliografia

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Reflexões antropológicas sobre o relativismo cultural e seus outros. Ponto de Vista/Rev.
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