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Epistemicídio e o apagamento
estrutural do conhecimento africano -
Grégorie Garighan

12-17 minutos

Filosofia | Pesquisadores defendem que o processo de morte


simbólica dos corpos de pensamento originados na África é
resultado de uma sociedade que supervaloriza os ideais
ocidentais

Foto de capa: Leonardo Savaris/Arquivo pessoal 03 dez. 2015

Epistemicídio é um termo criado pelo sociólogo e estudioso das


epistemologias do Sul Global, Boaventura de Sousa Santos, para
explicar o processo de invisibilização e ocultação das
contribuições culturais e sociais não assimiladas pelo ‘saber’
ocidental. Esse processo é fruto de uma estrutura social fundada
no colonialismo europeu e no contexto de dominação imperialista
da Europa sobre esses povos. Para Alan Alves Brito, professor no
Instituto de Física e pesquisador do Núcleo de Estudos Afro-
brasileiros, Indígenas e Africanos, as estruturas opressoras
formadas pela colonização do pensamento exterminam os corpos
de pensamento africanos.

Raquel da Silva Silveira, coordenadora-geral do Núcleo de

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Extensão e Pesquisas Antirracistas da Psicologia (Neparpsi),


pontua que as relações raciais também produzem a inferiorização
do conhecimento africano, constituindo-se, a partir daí, uma
violência intelectual. “No genocídio, efetivamente, na morte física,
mas também na morte simbólica”, completa. Sendo assim, deve-
se enxergar o racismo não somente no campo individual, mas
como uma estrutura organizacional da sociedade. A estudante de
Fonoaudiologia e voluntária do Neparpsi, Letícia Ludovico,
observa: “Todos esses campos estruturais, que fazem que a gente
exista enquanto sociedade, estão intrinsecamente ligados ao
racismo”.

Mais do que utilizarmos produtos do conhecimento ocidental,


somos, portanto, continuamente condicionados a ele a partir de
potentes órgãos institucionais, como a escola e a igreja, que
formam uma montagem estrutural difícil de ser desfeita. José
Rivair Macedo, docente do Departamento de História do Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, diz que a resolução para a
questão é o estudo das formas de pensar sob uma ótica diferente,
reconhecendo a falsa universalidade do conhecimento ocidental.

“São diferentes formas de humanidade, só que uma forma de


pensar a humanidade pretende a universalidade e, ao pretender
essa universalidade, ela acaba impondo parâmetros a partir de
seus referenciais, como se seus referenciais pudessem ser
válidos para outros. Esse é o problema”

José Rivair Macedo

Para que se possa avançar no sentido de decolonizar nosso


pensamento, Alan propõe que repensemos a história sob novos
referenciais ontológicos e epistemológicos e levemos em conta as

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humanidades que o projeto de modernidade desumanizou. Raquel


concorda ao citar o filósofo africano Kabenguele Munanga, que
falava em favor do reconhecimento de diferentes pensamentos:
“Para que a vida prospere, ela precisa ser múltipla, precisa ter
muita diversidade. Se vier um vírus, mata tudo se for todo mundo
igual, então tu precisa de árvores diferentes, flores diferentes,
pessoas diferentes”.

Novas perspectivas na História e Filosofia

Com a construção da sociedade sendo fundada em conceitos


ocidentais, até as mais específicas áreas do conhecimento se
tornam unilaterais e obedecem à ordem da ideia europeia
hegemônica. Mateus Victória da Silva, estudante de Psicologia e
bolsista do Neparpsi, destaca a escritora nigeriana Chimamanda
Ngozi Adichie, que fala sobre a perspectiva da História única.
Mateus completa: “Quando a gente só tem uma perspectiva, um
lado da História, a gente acaba conhecendo o mundo de maneira
estereotipada, muito preconceituosa e, no nosso caso, que
vivemos em uma sociedade de supremacia branca, isso quer
dizer conhecer o mundo a partir da Europa”.

Na História, para acessar novas perspectivas, temos de


reconhecer a construção das narrativas e de onde elas provêm.
Por isso, José Rivair frisa que a questão colocada pela educação
das relações étnico-raciais em ensino de História Africana e Afro-
Brasileira é uma questão epistemológica, na medida em que se
está procurando incentivar outras formas de acesso ao mundo
africano presente entre nós. “Os africanos não ficaram isentos da
dominação ideológica do período colonial. Então, muitas vezes,

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inclusive no Brasil, a nossa preocupação é uma aproximação com


sociedades africanas tradicionais anteriores ao período colonial na
África. E essas perspectivas tradicionais podem ser o referencial
que estamos pensando aqui. E se assim o é. O problema não diz
respeito a conteúdo, mas ao modo de estudar, e o que considerar
como saber, valor civilizatório e conhecimento”, complementa.

O docente ainda observa que, no processo histórico, os africanos


foram tomados como objetos de estudo e interpretação, e que,
agora, passaram a lutar por sua autodeterminação, reivindicando
o domínio sobre a expressão de sua subjetividade.

Na Filosofia, entretanto, ainda não há um consenso. O historiador


frisa que a própria palavra ‘filosofia’ e seu significado já estão
ligados a uma perspectiva europeia. Sendo assim, há grupos de
pesquisa que preconizam um afroperspectivismo – assim
chamado pelo filósofo brasileiro Renato Nogueira – e buscam o
estudo de pensadores africanos anteriores à Grécia Antiga.
“Sábios egípcios, embora não recebam o nome de filósofos, no
sentido de que a palavra filosofia é posterior, desempenhavam
esse papel e influenciaram, inclusive, o pensamento grego.”

Porém, para José Rivair, temos diferentes formas de pensar em


uma ‘Filosofia Africana’ a partir do momento em que textos são
produzidos no continente, mas alguns utilizando o estudo da
Filosofia Ocidental como base. O filósofo costa-marfinense Paulin
J. Hountondji propõe que a Filosofia Africana é um conjunto de
textos e, por extensão, os autores desses textos, ou seja, que os
estudiosos não precisam estar lidando com temáticas do
continente para serem filósofos. Aí nasce o debate sobre a própria
natureza da Filosofia.

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“Os autores africanos percebem que o conceito de ‘filosofia’ ou de


‘pensamento ocidental’, baseado na razão instrumental e no
individualismo, não é suficiente para dar conta de questões que
são estruturalmente diferentes no continente africano. Então
quando eles contestam é porque a própria palavra ‘filosofia’ e a
própria ideia de filosofia é limitada para expressar questões que
estão colocadas em uma forma de pensamento que não dá conta
de indivíduos, mas de coletivos”

José Rivair Macedo

A partir daí, muitos negam a existência da Filosofia Africana,


inclusive autores e filósofos africanos, dizendo que, no máximo,
poderia se caracterizar como uma etno-filosofia. Alan discorda
disso ao sinalizar a assimilação da narrativa de dominação
ocidental e de como isso leva até mesmo os pensadores africanos
a negarem a potência do continente. “O projeto ocidental de
modernidade, o tempo inteiro, tenta colocar o continente africano,
as pessoas africanas e negras, como inferiores intelectualmente,
como incapazes de autorreflexão, de autocrítica, de criar um
sistema robusto de pensamento, como é uma filosofia.”

“A gente precisa viver a vida com pensamento; então, você vive a


vida com pensamento a partir de uma única perspectiva, que é
essa perspectiva eurocentrada do ’penso, logo existo’. Quando
englobo a cultura africana, eu rompo com isso, porque toda essa
filosofia, esse pensamento, o modo de vida do continente africano
nas várias etnias, línguas, nessa diversidade que tá ali, vai muito
além do pensar para existir. É um outro projeto civilizatório, é um
outro marco, ubuntu, eu sou porque nós somos.”

Alan Alves Brito

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Foto: Leonardo Savaris/Arquivo pessoal

A libertação da Psicologia e os impactos na subjetividade do negro

Martinbaró é um pensador e precursor da Psicologia de


Libertação, que diz que temos urgência de libertar a Psicologia de
suas amarras imperiais e, assim, abrir caminho para que outras
psicologias sejam produzidas, como as culturas locais originárias
milenares, abrir para o diálogo entre diferentes visões de mundo.
Simone Gibran Nogueira, doutora no Programa de Estudos Pós-
graduados em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisadora sobre Psicologia
Africana, ressalta a importância de uma descolonização da
Psicologia, deixando de vê-la como uma ciência euro-americana.

Simone explica que há três vertentes de uma Psicologia Negra,


com a primeira tratando do indivíduo negro a partir de
perspectivas euro-americanas. A segunda passa a olhar para o

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grupo social das pessoas negras e para a opressão social e racial


histórica que sofrem, o impacto do racismo na subjetividade desse
grupo social, mas ainda usando as mesmas referências. Na
terceira, encontramos novamente a ideia de grupo social, contudo,
dessa vez, com bases teóricas e epistemológicas fundadas em
culturas tradicionais milenares africanas. Simone, entretanto,
admite, em comparação às outras bases teóricas, que o estudo
sobre Psicologia Africana ainda é muito parco, sobretudo no
Brasil.

Nesse processo, o estudo da psique também se torna unilateral,


não atendendo às especificidades étnico-raciais impostas na
sociedade. Mateus revela que nunca havia considerado o estudo
da Psicologia a partir de vertentes africanas, enquanto Raquel
conta que ainda não há muitas pesquisas em relação a isso na
UFRGS, mas que, com a implantação da Lei de Cotas,
aconteceram mudanças: “A entrada dos estudantes negros vai
tensionar isso completamente dentro da sala de aula, porque eles
vão dizer: ‘Opa, o que vocês estão falando aí? Que psiquismo é
esse? Cadê o sofrimento do racismo?'”.

Pensando em questões como essa, o Neparpsi foi criado,


promovendo mais debates com essa questão. Um dos principais
projetos é o Afroconto e outros contos, em que há a contação de
histórias com personagens negros e narrativas da África, além da
temática do capacitismo que também é abordado. Para Letícia,
projetos como esse trabalham diretamente na construção social
da criança: “A gente pode lembrar de Chimamanda, que ela, lá na
Nigéria, na sua cidade, onde nunca viu neve, o sonho era ver
neve, o sonho era ser uma princesa branca, ter o cabelo liso. Olha
o impacto na subjetividade dessa criança.”

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Simone frisa que, nesse processo e na hierarquia racial de


desumanização, há o desenvolvimento de um complexo de
inferioridade, quadro em que o negro cresce rejeitando a si
mesmo.

“No ímpeto de tentar se tornar humano, é imposto esse ideal de


branquitude. Então, a pessoa acaba não se aceitando como
negra e tem o ímpeto de buscar o desejo da branquitude. Com
certeza, se a gente retomar as bases humanas da Psicologia pelo
reconhecimento da perspectiva africana e de todos os outros
povos milenares, a gente pode contribuir para a correção desses
erros, que estão regendo a nossa vida cotidiana hoje, nossas
relações étnico-raciais”

Simone Gibran Nogueira

Ao compartilhar seu processo pessoal, Alan conta que, na


primeira vez em que entrou em contato com a cultura Iorubá, se
viu representado. “Eu me vejo ali, eu vejo a maneira como fui
criado, a relação com ‘mainha’, com os vizinhos, as coisas que a
gente dizia, que os mais velhos me falavam”, relata, ao assumir
que se sente roubado de sua própria cultura e ao pensar o quanto
ter acesso a ela poderia mudar a realidade de diversos jovens
pretos e pretas brasileiros.

Os efeitos de uma sociedade baseada em símbolos ocidentais e


com uma estrutura racista vão muito além do que se possa
imaginar, com marcas deixadas na individualidade de cada
pessoa, mas também dentro de um coletivo. Por isso, não
podemos continuar com o processo de supervalorização do que
vem da Europa e dos Estados Unidos como único conhecimento
válido. Simone reafirma a importância de compreender que a

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África produz História, cultura e conhecimento. “Reconhecer isso


e lidar com essa diversidade, em diálogo, no encontro e no
conflito também.”

Especial África

As imagens desta edição foram feitas por Leonardo Savaris entre


2015 e 2019, mostrando aspectos da experiência e da vida de
senegaleses em Porto Alegre. São manifestações culturais, festas
religiosas e celebrações registradas pelo fotógrafo, documentando
parte da cultura trazida por esses novos imigrantes do século XXI.

Leonardo Savaris é formado em Fotografia pela Unisinos.


Trabalha principalmente com questões sociais e documentação da
vida cotidiana. Seus trabalhos podem ser vistos em
leonardosavaris.com.br.

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