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Perspectiva afrocentrada: narrativas necessárias na

educação formal
Marcel Jardim Amaral1; Laís Braga Costa2; Vilmar Alves Pereira3.
Palavras-Chave: Racismo epistêmico, Afrocentrismo, Currículo.

Resumo: A composição do currículo, precisa trazer à tona as outras vozes, que por tantos anos foram
silenciadas, principalmente por não acessarem os espaços de poder frente à uma estrutura social
substancialmente racista, machista e classista. A discussão neste trabalho leva em consideração
especificamente o racismo epistêmico e a necessidade de descolonização do saber. O que se pretende
discutir neste trabalho, é a importância de que no currículo das instituições de ensino estejam
contempladas as narrativas de diferentes perspectivas epistemológicas. Nesse sentido, cabe a reflexão
se de fato os registros bibliográficos proporcionam acesso a diferentes tipos de conhecimento ou apenas
refletem uma narrativa que representa o pensamento hegemônico dominante. Se pode constatar por
meio da pesquisa bibliográfica que, o que possui o status de conhecimento científico, ou seja, que é
valorizado enquanto cultura, é uma versão contada majoritariamente por um único segmento da
sociedade: a branquitude. Desconsidera-se, portanto, a pluralidade da formação social brasileira, em
específico a formação étnica, para retratar diferentes perspectivas epistemológicas nos acervos que
compõem bibliotecas desde a educação básica ao ensino superior. Utiliza-se do método da pesquisa
social bibliográfica para a construção deste trabalho.

PRIMEIRAS PALAVRAS

As discussões relacionadas a opressão europeia sobre o continente africano são


extremamente plurais atrelados as elites transculturais, visto que em todo o tempo, a
África ingressou na perspectiva mundial majoritariamente através do pensamento
europeu. Para transcender a resolução de que o colonialismo tinha sua ênfase apenas
na acumulação primitiva, a suposta civilização dos povos passou a ser ponto
argumentativo, onde estruturou-se a concepção de que características
biopsicosocioambiespirituais4 determinariam de forma perspicaz a superioridade de
uma cultura sobre a outra, banalizando a subjetividade dos indivíduos.
Neste cenário, as abstrações e princípios excepcionais (evolucionismo,
positivismo, liberalismo, etc.); eram legitimadas no Ocidente, estabelecendo ordenação
teórica na Europa – com e para colonizadores, ou seja; mesmo quando esta facção
assedia outro continente, é a partir de convicções e visão de mundo tão somente
europeizada, dando gênese ao etnocentrismo.
A América Latina recebeu contribuições civilizatórias de inúmeros grupos étnico-
raciais, dentre eles, os cativos de ascendência africana, que julgados infectos eram

1 Doutorando em Educação Ambiental pelo PPGEA na Universidade Federal do Rio Grande / FURG e
mestre em Educação pelo PPGEDU na mesma instituição de ensino.
2 Mestre em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social pela Universidade de Cruz Alta /
UNICRUZ.
3 Bolsista de Produtividade em Pesquisa pelo CNPq – nível 2; Coordenador do Programa de Pós -
Graduação em Educação Ambiental / PPGEA, professor da Universidade Federal do Rio Grande /
FURG; mestre em educação pela UPF e doutor em educação pela UFRGS.
4 Terminologia recentemente relacionada pela Ecologia Cosmocena, em que as dimensões integradoras
do ser humano (biológicas, psicológicas, sociológicas, ambientais e espirituais) não são pensadas de
formas individuais, compondo assim um único sentido e relação.
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inerentes a maus tratos que impugnados da razão de existência fazem parte da hoje
adjetivada minoria social, que vem reconquistando no mal do século sua soberania,
através da conscientização mundial da dívida histórica ainda não vencida com as
políticas reformistas internacionais estratégicas. A África e o Brasil – por exemplo;
apesar de vivenciarem processos escravagistas diferenciados, possuem relação
análoga, não apenas por terem sido diuturnamente saqueados e feitas colônias da
Europa, mas pelos furtos sofridos para além da materialidade, haja visto o monopólio
da razão na branquitude e a contribuição civilizatória sempre negada pelo opressor.
De lá para cá, a necessidade de descolonização é contínua e emergente, haja
visto que, os elementos ontológicos perseveram sendo fragilizados e/ou destruídos
pelas relações intersubjetivas que se de essência e intencionalidade colonizadora, visa
paradigmas diaspóricamente impregnados no imaginário social. Visto que para a
construção deste artigo, realizou-se uma pesquisa bibliográfica sobre as possibilidades
de denúncia ao racismo epistêmico e de perspectivas afrocentradas concordamos com
Gil (2002) do carater exploratório, diante a metodologia utilizada, classificando este
estudo como bibliográfico, pois;

A pesquisa bibliográfica é desenvolvida com base em material já elaborado,


constituído principalmente de livros e artigos científicos. Embora em quase todos
os estudos seja exigido algum tipo de trabalho dessa natureza, há pesquisas
desenvolvidas exclusivamente a partir de fontes bibliográficas. Boa parte dos
estudos exploratórios pode ser definida como pesquisas bibliográficas. (GIL,
2002, p. 44)

A composição de produções e acervos, precisa trazer a tona narrativas


necessárias a educação formal, fortalecendo o processo de reconhecimento e não
invisibilização epistemológica; contrariando a colonização ocidental e as formas de
exclusão e/ou opressão. Pretende-se discutir neste trabalho, a importância de que no
currículo e bibliotecas de instituições de ensino estejam contempladas as narrativas de
diferentes perspectivas epistemológicas.

POR UMA PERSPECTIVA AFROCENTRADA PARA O ROMPER COM A COLONIZAÇÃO CURRICULAR

Sabe-se que desde sempre no processo histórico a negritude foi suprimida de


toda e qualquer posição de civilidade, protagonizando apenas os espaços
considerados inferiorizados e subalternos – segundo a visão colonial, onde a razão foi
designada para apenas uma raça: a branca. Com isso o mito racial tornou-se cada vez
mais evidente, já que com a politização da raça humana, os fatores biológicos
fenotípicos foram estereotipados por raça superior (branquitude) e a raça inferior
(negritude). Nesta concepção, o continente Africano e seus descendentes não
poderiam possuir de valia racional, visto a filosofia ocidental ter em seu currículo a
gênese exclusivista da razão, proporcionando a toda à humanidade reformulações
sobre verdades pré-estabelecidas, intrínsecas e inerentes, configurando o racismo
epistêmico.

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Na Europa Ocidental, a construção da ontologia se dá na racionalidade – o
sujeito precisa pensar para existir, voltando-se apenas para a realidade do
homem/mulher ocidental. Sendo assim, a subjetividade e a humanidade de todos os
que possuem de outra cosmovisão foi e é violada, já que a construção ontológica do
colonizado não o potencializa, mas o inferioriza, na medida em que sem realidade
estritamente racional, este precisa ser civilizado. “Dito de outro modo, os povos
africanos, para o colonizador europeu, eram mais do que inferiores, eram não
humanos” tanto é que a palavra “negro” dado pelo opressor aos africanos “está
carregada de valores e ideologia de modo que significa ausência de luz, sem alma. Ou
seja, não ter alma implica ‘não ser humano’, significa ser objeto, ser animal”; (ALVES;
JESUS; SCHOLZ, 2015, p. 874), onde a “estrutura racista da sociedade ganha
consistência a medida em que se inculcam nos africanos sentimentos de inferioridade,
uma péssima ideia de si mesmos e de suas etnias, além de estigmas associados a cor
negra” (GENNARI, 2011, p. 27), atrelando a ideia de raça que “não se trata de um dado
biológico, mas de construtos sociais, formas de identidades baseadas numa ideia
biológica errônea, mas eficaz socialmente, para construir, manter e reproduzir
diferenças e privilégios” (GUIMARÃES, 1999, p.153).
Neste raciocínio “a qualidade de ser humano não era conferida de imediato a
todos, mas ainda que fosse, isso não aboliria as diferenças. De certo modo, a
diferenciação entre o solo da Europa e os solo colonial era a consequência lógica da
outra distinção, entre povos europeus e selvagens” (MBEMBE, 2018, p. 115), o que
nos faz pensar não ser “tarefa fácil, para negros e negras, o exercício de vivenciar,
identificar e articular pressupostos filosóficos, éticos e existenciais que sinalizem
continuidades e descontinuidades do paradigma civilizatório negro-africano na relação
com o paradigma ocidental (ALVES; JESUS; SCHOLZ, 2015, p. 876). Na contramão
cartesiana em que “cogito ergo sum – penso, logo sou”, a Filosofia Ancestral Africana –
popularizada por Filosofia Ubuntu traz em sua cosmovisão a concepção de que os
sujeitos só existem por que ao pensar se voltam aos seus antepassados, aos que
habitam a mãe terra, e ainda aos que estão por vir; ou seja: “mesmo diante da
afrodiáspora, as sociedades falantes de idiomas do tronco linguístico bantu
compartilham a noção de que a comunidade possui três dimensões: os ancestrais, os
que estão vivos e os que ainda não nasceram. A ética deve levar em consideração as
três dimensões” (NOGUERA, 2012, p. 148).
A cosmovisão africana, traz em seu bojo, tendências ecopolíticas, visto a
valorização da existência fraterna e do fortalecimento de vínculos culturais e
planetários; onde “em termos gerais, ubuntu significa, por um lado, a humanidade que
é vivenciada e realizada com os outros, e, por outro, a humanidade como valor [...] É a
pedra angular da ética africana, que é biocêntrica, ou seja, centrada na vida”
(KASHINDI, 2017, p. 4). Durante muito tempo, os europeus ocidentais e também os
chineses “reservaram para si a palavra civilização, desqualificando os demais povos e
culturas como selvagens, primitivos, incapazes de se civilizarem” (SANTOS, 2013, p.
29) onde ainda neste século, o “exercício de nossas atividades se dá no Ocidente e,
pelo óbvio estamos mergulhados na cultura ocidental, com todas as suas raízes
históricas e desenvolvimentos posteriores” (CORTELLA, 2008, p. 50). De acordo com
Santiago et al (2017, p. 93-94):
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A perspectiva particular do homem branco se ergue como a norma universal de
produção de conhecimentos, por meio da qual se medem e avaliam todas as
outras formas de produzir conhecimento. O homem branco pensa desde uma
geopolítica e corpo-política do conhecimento particular, como homem, branco e
privilegiado; porém, em nome de um suposto universalismo, encobre sua
localização, recorrendo ao mito que lhe permite pensar fora do corpo e fora do
tempo e do espaço.

Observa-se, portanto, que em virtude do processo de colonização a qual se


submete a nossa cultura, a branquitude é o grupo com maior status social, o que
acarreta na representatividade praticamente exclusiva do branco em variados aspectos
como a produção intelectual, o padrão estético, os cargos de tomada de decisão. Neste
sentido para Gomes, há uma tendenciosa projeção para o apagamento da identidade
negra na cultura brasileira visto que “o processo de negação da identidade cultural
africana e o apagamento da mesma, ocorre no pós-abolição, através do poder
simbólico exercido pela religião, educação, meios de comunicação e política” (GOMES,
2018, p. 18).
O apagamento dos aspectos positivos proporcionados pelo negro na sociedade
é um mecanismo que reforça a exclusão social,e talvez seja este o motivo pelo qual o
desenvolvimento social é atribuído aos brancos. Tal fato, gera uma baixa autoestima
intelectual para os negros, que não tem socialmente a atribuição histórica de gerar
desenvolvimento a não ser quando relacionado ao trabalho braçal e/ou bruto. Sobre a
falta de associação entre negritude e contribuição intelectual, naturalizada socialmente,
Santiago et al (2017, p. 97), discute que "durante a nossa formação, não temos tido a
oportunidade de ler e conhecer a contribuição de intelectuais negros. Além disso, a
forma caricatural negativa como o negro é retratado nos dias atuais, nas
representações culturais disseminadas na mídia, corroboram para que se construa uma
visão única do negro brasileiro, pois a valorização do imigrante branco provoca a
disseminação de rejeição pelas etnias não brancas, principalmente pelo fato da
recorrente associação do corpo da mulher negra a ideia de erotização e da vinculação
da imagem do negro a criminalidade em telenovelas e filmes nacionais. Em se tratando
da contribuição negra para o desenvolvimento do Brasil, cabe destacar o protagonismo
desse grupo nas áreas de agronomia, medicina, farmacologia, engenharia, ferraria,
linguagem, música, etc. Dessa forma, o legado dos imigrantes africanos trazidos para
serem escravizados no Brasil na área cultural, científica e tecnológica se mistura com a
história do progresso brasileiro.
Neste sentido, sabe-se que ainda que existam publicações que referenciem a
contribuição negra para diferentes áreas do conhecimento, elas são minoria, por esse
motivo é importante a perspectiva da descolonização dos currículos com uma
perspectiva afrocentrista para a formação curricular. Também a compreensão de que
“existe todo um fundo ideológico de uma inexistente superioridade ocidental e branca
sobre o resto do mundo. Esse etnocentrismo europeu que está metido em tudo não dá,
desse jeito não pode” (FREIRE, 2016, p. 81), onde “todo o arcabouço pseudocientífico
engendrado pela especulação cerebral ocidental repercute com todas suas
contradições no pensamento racial da elite intelectual brasileira” (MUNANGA,1999, p.
50).
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“Não é por acaso que o branco colonizador na África tenha tentado convencer
o africano de que o africano não tinha História, antes que o branco tivesse chegado”,
ou seja; pré e pós diáspora, Paulo Freire, denuncia exatamente, “essa presença, essa
garra de um governo imperialista, colonialista, de dominação no sentido de esmigalhar
a identidade cultural do povo, do grupo, da classe dominada, para que assim facilmente
faça a expropriação material dos dominados” (FREIRE, 2016, p. 29). Com isso,
percebe-se que a projeção do “fascismo epistemológico existe sob a forma de
epistemicídio, cuja versão mais violenta foi a conversão forçada e a supressão dos
conhecimentos não ocidentais levadas a cabo pelo colonialismo europeu” (SANTOS,
2010, p. 544) que “conseguiu não somente criar um espaço para si como também
tomar o do habitante” (MEMMI, 2007, p. 42), haja visto que “o critério também tem sido
simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço” (GONZALES; HASENBALG,
1982, p. 15), ou seja; o lugar natural do branco dominante é o oposto do lugar natural
do negro coisificado.
A lei de nº 10.639/2003 por exemplo; vem contribuindo de forma significativa
para o romper deste processo no curriculo e nas bibliotecas, visto que inclui nas
diretrizes e bases da educação no Brasil a obrigatoriedade da história e cultura afro-
brasileira; já que no acesso à informação que é amplamente divulgado em bibliotecas
desconsidera-se o legado histórico dos negros. Há um prejuízo histórico desse
apagamento da contribuição negra para o desenvolvimento social, o qual reflete na
identidade do negro brasileiro hoje. As autoras Silva e Lima (2018, p. 92) se referem ao
racismo estrutural que fundamenta as relações de poder no Brasil e afirmam que “essa
ideologia está em todos os espaços e instituições e não é diferente nos espaços
escolar e universitário. Portanto, a escola e a universidade também reproduzem
práticas racistas que interferem na identidade da/o sujeita/o negra/o.” A construção de
coleções bibliográficas nos espaços formais de educação, com narrativas que
mencionem a verdade sobre a contribuição negra como sendo muito além do trabalho
braçal no periodo escravagista é fundamental a conscientização de que,

[...] transformar as representações sociais significa transformar os processos


de formação de conduta em relação ao outro representado, bem como as
relações com esse outro, porque na medida em que essas representações não
apresentarem objetos de recalque e inferiorização desse outro, a percepção
inicial e o conceito resultante dessa percepção, em nossa consciência, terá
grande aproximação com o real (SILVA, 2011, p.31)

Com base no exposto, se observa que é construída socialmente a imagem do


negro como sendo um grupo social que não está relacionado a contribuições
intelectuais ou intervenções positivas significativas de qualquer natureza. Se pode
constatar que por conta disso, o que possui o status de conhecimento científico, ou
seja, que é valorizado enquanto cultura, é uma versão contada por um único segmento
da sociedade: homens e mulheres não negras. Desconsidera-se, portanto, a
pluralidade da formação social brasileira, em específico a formação étnica, para retratar
diferentes perspectivas epistemológicas nos acervos que compõem bibliotecas
escolares e acadêmicas.

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Para que ocorra a contribuição das bibliotecas nessa mudança de perspectiva
epistemológica, ou seja, para que se fortaleça uma perspectiva afrocentrada, Fontes e
Martins Filho (2018, p. 312) destacam que a atuação política do bibliotecário no
desenvolvimento do acervo da biblioteca escolar é crucial para "que não sejam
perpetuadas ideologias que ainda caracterizam a educação brasileira, enaltecendo
apenas um tipo de cultura e considerando as demais inferiores e, muitas vezes,
invisibilizadas." O principal impacto que a perspectiva atual da composição dos
acervos bibliográficos que compõem as bibliotecas inseridas no contexto educacional é
a disseminação de uma narrativa única, que versa sobre uma perspectiva limitada da
vida social. A produção acadêmica é basicamente branca, masculina e
heteronormativa. Sobre esse aspecto Santiago et al (2017, p. 93-94) denuncia que;

A produção do conhecimento nas universidades brasileiras, como em todas as


universidades ocidentais, privilegia a epistemologia eurocêntrica da egopolítica
do conhecimento. Essa epistemologia contribui para encobrir as hierarquias de
poder raciais hegemônicas nos espaços universitários. A epistemologia branca
da egopolítica do conhecimento, ao ser normalizada como a epistemologia do
senso comum nos espaços universitários, está inscrita como neutra,
universalista e objetiva.

Dessa forma, o discurso produzido no meio acadêmico não contempla os


diversos grupos que formam a sociedade, o lugar de fala dos autores brancos, homens
e héteros não confere uma representação legítima para tratar de temas como racismo,
machismo e homofobia, por exemplo. Em parte, isso se dá pelo próprio público que
historicamente teve acesso à universidade e educação formal de forma geral, apenas
uma pequena parcela da população, com privilégios sociais bem definidos em termos
de classe, gênero e raça. Diferentes narrativas e perspectivas epistemológicas no
espaço escolar e acadêmico, de acordo com Gomes (2012, p.105), tem uma
implicação positiva, uma vez que “o ato de falar sobre algum assunto ou tema na
escola não é uma via de mão única. Ele implica respostas do ‘outro’, interpretações
diferentes e confrontos de idéias”.
Contribui para o debate sobre a descolonização do pensamento Gomes (2012,
p. 107) ao mencionar que descolonizar o pensar é um ponto de partida para outros
processos de “descolonização maiores e mais profundos [...] do poder e do saber. [...] a
superação da perspectiva eurocêntrica de conhecimento e do mundo torna-se um
desafio para a escola, os educadores e as educadoras, o currículo e a formação
docente.” Quanto ao desafio para os educadores no que diz respeito ao enfrentamento
ao racismo e a descolonização do pensamento dialoga com que afirma Gomes (2012)
a concepção de Cardoso e Pinto (2018, p. 59) que enfatiza o racismo como uma
estrutura que oprime e gera desigualdades, estando a sua interferência muito além do
campo pessoal, conforme se observa:

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[...] o racismo está nas estruturas sociais, na política, economia e na cultura.
Ele é um sistema de opressão. Esse conceito é importante, pois as explicações
correntes sobre a desigualdade social e racial tendem a tratar o racismo
somente como ação individual. Esta é uma concepção limitada do racismo já
que o mesmo é alimentado e alimenta as estruturas do Estado [...] (CARDOSO;
PINTO, 2018, p. 59).

Havendo portanto a atuação de uma estrutura de opressão racial em todos os


aspectos da vida em sociedade é evidente que os discursos acadêmicos e a produção
bibliográfica amplamente difundida trará a reprodução de narrativas que reforçam as
estruturas de poder já vigentes, ou seja, trata-se do racismo institucionalizado. Sobre
esse aspecto Santiago et al (2017, p. 96) discorre que há uma resistência por parte dos
acadêmicos e intelectuais brasileiros de reconhecer “reconhecer o racismo institucional
existente no espaço universitário, como associado às práticas cotidianas que
desqualificam ou desestimulam a trajetória de acadêmicos negros.” Portanto, partindo
da perspectiva de que a coleção bibliográfica das bibliotecas e consequentemente dos
currículos contribuiem para dar visibilidade ou não aos grupos não hegemônicos que
compõem a sociedade, recorre-se a Silva (2011, p. 17) que reforça a necessidade de
“incluir nos currículos uma história que a história oficial não conta em toda a sua
plenitude”. Logo, a premissa de que a falta de representatividade da narrativa negra
nas instituições de ensino é um mecanismo que contribui para a perpetuação do
racismo, e que fomenta o discurso eurocentrado; onde pensar em perspectivas
afrocentradas enquanto narrativas necessárias para a educação formal poderá
possibilitar “exorcizar as falsidades, distorções e negações que há tanto tempo se vêm
tecendo com o intuito de velar ou apagar a memória do saber, do conhecimento
científico e filosófico, e das realizações dos povos de origem negroafricana”
(NASCIMENTO, 2002, p. 328).

CONSIDERAÇÕES

Refletir e debruçar-se sobre um horizonte epistemológico antirracista no


enfrentamento do currículo eurocêntrico ocidental, projetando a inserção de uma
ontoepistemologia que rompa com o racismo epistêmico através de práticas
libertadoras e decolonialistas requer da percepção de que o currículo não é universal,
mas sim pluriversal. Também é de extrema valia a compreensão de que o racismo
epistêmico é alimentado com o currículo da filosofia ocidental que não permite o estudo
ontológico do ser, e sim impõe qual é o ser ontológico que precisa ser pensado e nesta
perspectiva tem-se a compreensão de que, a elite intelectual brasileira sofre de
especulação ocidental revigorada de contradições do pensamento hegemônico.

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A valorização do diferente e o respeito intransigente as múltiplas vozes estão
diretamente interconectadas com a importância de repensarmos o currículo e as
bibliotecas que temos, contrapondo com as que queremos e consequentemente as que
estão sendo construídas. Aplicar dispositivos legais que possibilitem alternativas
teóricas não eurocêntricas – apenas; e projetar com que os docentes e intelectuais da
contemporaneidade compreendam que a fundamentação e a prática não podem
limitar-se de forma ocidentalizada, requer de implicações nos sistemas de ensino a
partir de novos horizontes que contrariem e/ou desobedeçam a epistemologias
historicamente consideradas e estereotipadas universais.

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