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RESENHAS 175

Relacionamentos lectual e de pesquisa. A autora debruça-se em


dados estatísticos, nas peças teatrais, na literatura
inter-raciais: entre a razão e em textos acadêmicos, procurando apreender e
e o desejo reconstituir a forma como a mestiçagem tem sido
sintetizada no Brasil. No decorrer do texto, o lei-
tor é constantemente surpreendido com diversas
desconstruções que informam o imaginário social
Laura MOUTINHO, Razão, “cor” e desejo: uma
acerca da mestiçagem.
análise comparativa sobre relacionamentos afeti-
O primeiro impacto advém dos dados estatís-
vos-sexuais “inter-raciais” no Brasil e na África
ticos, que mostram que o Brasil se organiza de
do Sul. São Paulo, Editora da Unesp, 2004. 452
forma homogâmica em relação a diversos aspectos,
páginas.
inclusive à cor (capítulo 1). Além de ter uma endo-
gamia racial significativa, o padrão mais comum das
Márcia Lima
uniões inter-raciais é de homens mais escuros com
mulheres mais claras. Portanto, a representação
O Brasil é um país de mestiços. Frase clássica
clássica de mestiçagem construída em torno da
para simplificar o Brasil nos quatro cantos do
mulher negra ou mulata não se baseia em dados. A
mundo. Entretanto, nossa mestiçagem está longe de
autora é cuidadosa na leitura dos trabalhos estatís-
ser simples. Pelo contrário, tem sido motivo de mui-
ticos de Nelson do Valle Silva, Elza Berquó e Celi
tos debates acerca de seu significado e suas conse-
Scalon, procurando a partir deles elaborar um série
qüências sociais e políticas para o entendimento da de questões que serão aprofundadas no decorrer
sociedade brasileira. do texto. A forma como esse primeiro problema é
Mas como surgem os mestiços? Qual a repre- construído, tendo por base uma pesquisa quantita-
sentação construída na sociedade brasileira acerca tiva, acena para o diálogo muito profícuo nas ciên-
do processo da mestiçagem? Como esse processo cias sociais que diz respeito à análise desses dife-
está articulado a diversos outros aspectos normativos rentes níveis de observação para o entendimento
e afetivos. Qual a especificidade do caso brasileiro? das relações raciais.
A tese de que o entendimento das relações Nos três capítulos seguintes Laura Moutinho
raciais no Brasil se dá a partir de contextos específi- nos conduz a uma viagem pelas mais diversas
cos tem se tornado cada vez mais difundida entre os representações acerca da mestiçagem. Mobilizando
estudiosos. Nesse sentido, o mercado afetivo é reco- fontes variadas, ela traz a questão discutida no pri-
nhecidamente um dos espaços mais preconceituosos meiro capítulo à luz de outros problemas, elabora-
das relações raciais brasileiras. Como um país que dos a partir de distintas fontes. O ponto fundamen-
canta em verso e prosa sua mestiçagem é rígido em tal que perpassa esses capítulos, mesmo que, em
relação às relações inter-raciais? Qual a representa- cada um deles, seja apresentado de forma diferen-
ção na historiografia, na literatura e na sociologia ciada, é o erotismo. Quando discute os clássicos da
clássica brasileiras acerca do processo de miscigena- historiografia brasileira (capítulo 2), o erotismo
ção e do casal miscigenador? Como se vêem e se encontra-se na natureza, na lubricidade do casal
pensam os casais inter-raciais nos dias de hoje? miscigenador. Neste caso, observa-se certa articula-
Como que uma sociedade que se constitui pela opo- ção importante entre raça e gênero, isto é, seja na
sição legal à miscigenação, como a África do Sul, nos mestiçagem positiva (a que viabiliza a nação), seja
ajuda a entender melhor o Brasil? Essas são algumas na negativa (a que corrompe o caráter nacional), o
das múltiplas indagações que construíram a tese de casal misicigenador é constituído pelo branco por-
doutorado de Laura Moutinho e que precisavam ser tuguês com a mulata, a negra ou a indígena. Não
aprofundadas no debate sobre o tema. existe possibilidade do homem negro ocupar esta
O problema proposto pela autora não é dos esfera – seu lugar é o mundo do trabalho. A mulher
menores, e para tanto foi fundamental seu traba- branca, desqualificada do ponto de visto erótico e
lho hercúleo. Logo na “Introdução” é possível ao estético, somente tem lugar no parentesco formal.
leitor perceber a magnitude de seu esforço inte- O erotismo ganha uma outra roupagem –
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desta vez extremamente dramática – nos romances homem branco no campo do erotismo. Para a auto-
literários e na peças teatrais, analisados no capítulo ra isto mostra, em parte, a força de seu lugar de
3. Interessante como as representações sociais poder e dominação na esfera cotidiana e normativa,
ausentes da historiografia aparecem de forma con- que, entretanto, se modifica quando o eixo é deslo-
tundente na literatura clássica – o casal, homem cado para a esfera do erotismo. Destaca-se, entre-
negro e mulher branca, aparece pela primeira vez tanto, que essas duas esferas não são distintas e sem
erotizado. Contudo, de um lado, o homem é acu- correlação. É justamente a partir da presença do ero-
sado de querer ascender socialmente e, de outro, a tismo no homem negro aliada às mudanças nos
mulher nesta situação deveria estar certamente des- padrões de sexo e casamento das últimas décadas
qualificada no mercado matrimonial. A marca de (que possibilitaram às mulheres um papel ativo
tragédia perpassa a maior parte das relações inter-
nesse campo) que essas esferas aparecem nas aná-
raciais analisadas (com mortes, assassinatos e suicí-
lises estatísticas. Ou seja, o destaque na esfera do
dios), assim como o fato de a mestiçagem, o casa-
erotismo tem correlação com o processo de misci-
mento e o sexo inter-racial serem tematizados sem
genação brasileiro, observado não somente pela
que haja menção à procriação. Na literatura, para os
casais inter-raciais que estabelecem relações relação do homem branco com a mulata, mas,
sexuais, formais ou não, a possibilidade de ter como mostram os dados estatísticos, pelo homem
filhos não se realiza: os filhos não são menciona- negro com a mulher branca.
dos, são abortados (de modo natural ou induzido), No último capítulo, a experiência sul-africana
revelam uma relação platônica, ou então, quando coroa o trabalho ao propiciar ao leitor o contato
existem, são assassinados pela mãe. com uma realidade pouco estudada no Brasil e ao
No capítulo 4, o erotismo contrapõe-se à demonstrar como processos a princípio “opostos”
razão, sintetizados nas noções de classe, status, possuem aproximações possíveis, mais difíceis de
prestígio e ascensão – objetos tradicionais da aná- ocorrer, de fato, na trajetória da relação inter-racial
lise sociológica. Analisando alguns autores clássi- nos Estados Unidos. A comparação ilumina o pro-
cos, como Donald Pierson, Florestan Fernandes, cesso em ambos os países. Brasil e África do Sul,
Carl Degler, Roger Bastide, a autora discute como não obstante as diferenças mais evidentes, têm em
as noções de raça e gênero são representações comum o reconhecimento da existência do mestiço
organizadas com base em certas estruturas de e o fato de operarem com a idéia de aparência, ori-
prestígio e status, que dão sentido às idéias de gem e convívio de modo (às vezes surpreendente-
mestiçagem, racismo e nação veiculada por esses mente) similar. É interessante como o erotismo tam-
autores, ainda que apareçam de forma diferencia- bém aparece em lugar de destaque na África do
da em cada uma delas. Sul. Também neste caso o desejo sexual “inter-
No capítulo 5, Moutinho vai a campo e forne- racial” funda a nação, mas diferentemente do Brasil,
ce ao leitor o relato de pessoas que vivem relacio-
que o faz de modo afirmativo (na relação homem
namentos afetivos-sexuais inter-raciais. Este capítulo
branco e mulher negra, mestiça ou indígena), ao
contribui para a compreensão de questões bastante
contrário da África do Sul, onde esse desejo apare-
desafiadoras nos estudos das relações raciais no
ce pela sua negação.
Brasil. Entre outras, gostaria de destacar a comple-
xidade da classificação racial entre os casais estuda- A abrangência da análise empreendida em
dos e as “zonas de sombra e silêncio” que os estu- Razão, “cor” e desejo e a discussão aqui resumida
diosos do tema no Brasil precisam enfrentar. Ao fazem jus ao prêmio recebido pela obra na edição
cruzar cor, afeto e prazer, a articulação entre raça e de 2003 do Concurso Edusc-Anpocs. De toda
status torna-se mais complexa, combinando distin- maneira, creio que foi o leitor quem mais ganhou
ções sutis e diversas. A autora mostra narrativas em com esta publicação.
que sobressai o tema do retraimento, do constrangi-
mento e até mesmo da auto-exclusão, talvez uma MÁRCIA LIMA é professora do
das formas mais perversas de atuação do racismo. Departamento de Sociologia da
Das falas das entrevistadas infere-se a opacidade do Universidade de São Paulo.

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