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desta vez extremamente dramática – nos romances homem branco no campo do erotismo. Para a auto-
literários e na peças teatrais, analisados no capítulo ra isto mostra, em parte, a força de seu lugar de
3. Interessante como as representações sociais poder e dominação na esfera cotidiana e normativa,
ausentes da historiografia aparecem de forma con- que, entretanto, se modifica quando o eixo é deslo-
tundente na literatura clássica – o casal, homem cado para a esfera do erotismo. Destaca-se, entre-
negro e mulher branca, aparece pela primeira vez tanto, que essas duas esferas não são distintas e sem
erotizado. Contudo, de um lado, o homem é acu- correlação. É justamente a partir da presença do ero-
sado de querer ascender socialmente e, de outro, a tismo no homem negro aliada às mudanças nos
mulher nesta situação deveria estar certamente des- padrões de sexo e casamento das últimas décadas
qualificada no mercado matrimonial. A marca de (que possibilitaram às mulheres um papel ativo
tragédia perpassa a maior parte das relações inter-
nesse campo) que essas esferas aparecem nas aná-
raciais analisadas (com mortes, assassinatos e suicí-
lises estatísticas. Ou seja, o destaque na esfera do
dios), assim como o fato de a mestiçagem, o casa-
erotismo tem correlação com o processo de misci-
mento e o sexo inter-racial serem tematizados sem
genação brasileiro, observado não somente pela
que haja menção à procriação. Na literatura, para os
casais inter-raciais que estabelecem relações relação do homem branco com a mulata, mas,
sexuais, formais ou não, a possibilidade de ter como mostram os dados estatísticos, pelo homem
filhos não se realiza: os filhos não são menciona- negro com a mulher branca.
dos, são abortados (de modo natural ou induzido), No último capítulo, a experiência sul-africana
revelam uma relação platônica, ou então, quando coroa o trabalho ao propiciar ao leitor o contato
existem, são assassinados pela mãe. com uma realidade pouco estudada no Brasil e ao
No capítulo 4, o erotismo contrapõe-se à demonstrar como processos a princípio “opostos”
razão, sintetizados nas noções de classe, status, possuem aproximações possíveis, mais difíceis de
prestígio e ascensão – objetos tradicionais da aná- ocorrer, de fato, na trajetória da relação inter-racial
lise sociológica. Analisando alguns autores clássi- nos Estados Unidos. A comparação ilumina o pro-
cos, como Donald Pierson, Florestan Fernandes, cesso em ambos os países. Brasil e África do Sul,
Carl Degler, Roger Bastide, a autora discute como não obstante as diferenças mais evidentes, têm em
as noções de raça e gênero são representações comum o reconhecimento da existência do mestiço
organizadas com base em certas estruturas de e o fato de operarem com a idéia de aparência, ori-
prestígio e status, que dão sentido às idéias de gem e convívio de modo (às vezes surpreendente-
mestiçagem, racismo e nação veiculada por esses mente) similar. É interessante como o erotismo tam-
autores, ainda que apareçam de forma diferencia- bém aparece em lugar de destaque na África do
da em cada uma delas. Sul. Também neste caso o desejo sexual “inter-
No capítulo 5, Moutinho vai a campo e forne- racial” funda a nação, mas diferentemente do Brasil,
ce ao leitor o relato de pessoas que vivem relacio-
que o faz de modo afirmativo (na relação homem
namentos afetivos-sexuais inter-raciais. Este capítulo
branco e mulher negra, mestiça ou indígena), ao
contribui para a compreensão de questões bastante
contrário da África do Sul, onde esse desejo apare-
desafiadoras nos estudos das relações raciais no
ce pela sua negação.
Brasil. Entre outras, gostaria de destacar a comple-
xidade da classificação racial entre os casais estuda- A abrangência da análise empreendida em
dos e as “zonas de sombra e silêncio” que os estu- Razão, “cor” e desejo e a discussão aqui resumida
diosos do tema no Brasil precisam enfrentar. Ao fazem jus ao prêmio recebido pela obra na edição
cruzar cor, afeto e prazer, a articulação entre raça e de 2003 do Concurso Edusc-Anpocs. De toda
status torna-se mais complexa, combinando distin- maneira, creio que foi o leitor quem mais ganhou
ções sutis e diversas. A autora mostra narrativas em com esta publicação.
que sobressai o tema do retraimento, do constrangi-
mento e até mesmo da auto-exclusão, talvez uma MÁRCIA LIMA é professora do
das formas mais perversas de atuação do racismo. Departamento de Sociologia da
Das falas das entrevistadas infere-se a opacidade do Universidade de São Paulo.