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Eu sou atlântica

sobre a trajetória de vida


de Beatriz Nascimento

Alex Ratts
Eu sou atlântica
sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento

Alex Ratts

São Paulo, 2006


civilizador24 enquanto componente psicossocial da vinculação de nossos ancestrais com nossa
de um grupo contestado e perseguido? Por que história de vida. Conseqüentemente, a extrema
Freud foi movido a investigar as raízes do sen- importância assumida pela comprovação da
timento que liga um povo a seu herói? existência terrena, histórica, daquele escolhido
Perguntamo-nos porque um povo carente, como herói civilizador da cultura negra brasilei-
discriminado e com parcos recursos educa- ra, dado que este herói poderia ser compartil-
cionais procurou, dentre as múltiplas formas hado dentre os aqui nascidos: negros, índios e
de crítica às relações do sistema, intermediar brancos também. O mito surge, então, do real
um mito histórico. A que simbolismo isto nos para o simbólico e o herói seria mormente um
remete? Seria incorreto opinarmos que o res- conciliador banido da própria história do Brasil,
gate da figura histórica baseia-se num complexo preencheria a lacuna daqueles que, vivos, em
de culpa, analogamente à análise freudiana de vinte anos (1964-1984) foram cassados em seus
Moisés? De qualquer maneira, é a resolução de direitos individuais e privados de seus símbo-
um “complexo” o que aparenta levar os interes- los coletivos. A culpa pelo parricídio poderia
sados a revigorar a imagem positiva do mito, ser atribuída a um setor específico, a saber – os
previamente associada a um bandido. Talvez, representantes das seqüelas da moral colonial
esta seja a forma de alcançarmos, também, uma que assassinou e baniu “Zumbi de Palmares”.
auto-imagem positiva. Se não houver culpa liga- Lembramos a citação de Bertold Brecht:
da a um passado de escravos, há um complexo “infeliz do povo que necessita de heróis”. En-
interpretativo onde a identificação total com o quanto necessitarmos criar e recriar heróis,
fraco, o vencido o inumano é insuficiente para, codificar e recodificar símbolos, somos, ainda,
ao nível da luta do dia-a-dia, contrapor-se às muito infelizes.
formas de discriminação. Este enfrentamento,
em última instância requer o reforço do ego.
O mito da terra prometida – o Quilombo A mulher negra e o amor •
de Palmares – a edificação do herói Zumbi, ci-
vilizador de uma cultura negra, atraem outras Beatriz Nascimento
codificações que não as já estereotipadas pela
tradição e pela história. À sombra deste mito Pode parecer estranho que tenhamos esco-
recriado circulam outras manifestações ocultas lhido a condição amorosa e não sexual para nos
até então, tais como as religiões afro-brasileiras,
conduzindo à compreensão, na linha do tempo,

• Publicado originalmente em: Jornal Maioria Falante, No.


24 Idem. 17,Fev – março, 1990, p. 3.

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referir ao estado de ser mulher e preta no meu com extremas separações políticas, sociais e
país. A escolha do tema funda-se em histórias individuais à sociedade do europeu, através da
de vida e na observação de aspectos da afe- máquina colonialista.
tividade de mulher frente à complexidade das Esta contradição histórica no terreno das
ligações heterossexuais. idéias e do real impunha o poder da razão, no
A temática da sexualidade nas relações seu interior. Para exemplificar a mecânica dessa
homem e mulher atualmente, é cada vez mais ideologia na prática do pensamento ocidental
encarada do ponto de vista político ou sociológi- onde à afirmação corresponde à negação, re-
co. Ou seja, perpassa na discussão a questão flitamos sobre esta frase de Martinho Lutero no
do poder: o status dominante do elemento século XVIII: “a razão é uma mulher astuta”.
masculino em detrimento do outro elemento, Contraporíamos: logo, é preciso que seja apri-
o feminino. Recorre-se a explicações econômi- sionada pelo homem e expressada pelo atribu-
cas, sociais e políticas, enfatizando [o] papel to masculino, só assim pode ser dominante.
do trabalho, visto como fator de resolução da Por esse pensamento formulado, a mulher
desigualdade, ou propulsor de um igualitaris- seria um homem, embora não sendo total. Se-
mo entre os dois sexos. ria ciclicamente homem, conforme seu próprio
Em princípio, a retórica política do mundo ciclo natural (puberdade e maternidade). Fora
moderno está calcada no liberalismo do Ilustra- desses estados sua capacidade de trabalho es-
cionismo europeu no século XVIII. Persegue-se taria a reboque da necessidade do desenvolvi-
o ideal de igualdade entre os agentes sociais mento econômico (mão de obra anexada ou
das sociedades humanas. Fruto da reflexão na excludente de acordo com as variações da eco-
Economia, que invadiu a Filosofia e privilegiou nomia). Fora destes espaços, ou mesmo aí ela
o indivíduo mais que o grupo, o Ilustracionis- não o é. Será a razão fora de lugar, ou exercerá
mo adiciona a todo Universo da Humanidade sua razão fora do campo produtivo.
a noção masculina e sobre determinada do Vai recobrir a mulher a moral totalizadora,
produtor, que tem como recompensa do seu seja enquanto agente ou enquanto submetida.
esforço o privilégio de ser o chefe. Foi forjada Revestir-se-á de fantasias, de sonhos, de utopia,
no Ocidente uma sociedade de homens, iden- de eroticidade não satisfeita e estagnada pela
tificando não só o gênero masculino, mas a condição específica da usa arquitetura física e
espécie no seu todo. Essa perspectiva possuía psicossocial.
um devir utópico, previa-se um mundo sem Dentro desse arcabouço qualquer ex-
diferenças. Entretanto, ao contrário do pensa- pressão do feminino é revestida pela institui-
mento Iluminista naquele momento proces- ção moral. Representa em si a desigualdade
sava-se a anexação de sociedades e culturas caracterizada pelos conflitos entre submissão

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x dominação; atividade x passividades, infan- Quanto ao homem negro, geralmente
tilização x maturação. A contrapartida a esse despreparado profissionalmente por força de
estado de coisas coloca a mulher num papel contingências históricas e raciais tem na mu-
desviante do processo social, onde a violência lher negra economicamente ativa um meio de
é a negação de sua auto-estima. sobrevivência, já que à mulher se impõe, como
A mulher negra na sua luta diária durante sabemos, dupla jornada.
e após a escravidão no Brasil, foi contemplada Entretanto, nem todas as mulheres negras
como mão-de-obra, na maioria das vezes não estão nesta condição. Quando ela escapa para
qualificada. Num país em que só nas últimas outras formas de alocação de mão-de-obra,
décadas desse século, o trabalho passou a ter dirigem-se, ou para profissões que requerem
o significado dignificante o que não acontecia educação formal ou para a arte (a dança). Nes-
antes, devido ao estigma da escravatura, repro- tes papéis elas se tornam verdadeiras exceções
duz-se na mulher negra “um destino histórico”. sociais. Mesmo aqui, continua com o papel de
É ela quem desempenha, em sua maioria, os mantenedora, na medida em que, numa famí-
serviços domésticos, os serviços em empresas lia preta são poucos os indivíduos a cruzarem
públicas e privadas recompensadas por baixís- a barreira da ascensão social. Quando cruzam,
simas remunerações. São de fato empregos variadas gamas de discriminação racial dificul-
onde as relações de trabalho evocam as mes- tam os encontros da mulher preta, seja com ho-
mas da Escravocracia. mens pretos, sejam os de outras etnias.
A profunda desvantagem em que se encon- Por exemplo, uma mulher preta que atinge
tra a maioria da população feminina repercute determinado padrão social, no mundo atual,
nas suas relações com o outro sexo. Não há a requer cada vez mais relações de parceria, o
noção de paridade sexual entre ela e os elemen- que pode recrudescer as discriminações a essa
tos do sexo masculino. Essas relações são mar- mulher específica. Pois uma sociedade organi-
cadas mais por um desejo amoroso de repartir camente calcada no individualismo tende a
afeto, assim como o material. Via de regra, nas massificar e serializar as pessoas, distanciando
camadas mais baixas da população cabe à mu- o discriminado das fontes de desejo e prazer.
lher negra o verdadeiro eixo econômico onde A parceria, elemento de complementação
gira a família negra. Essa família, grosso modo, em todas as relações, inclusive as materiais, é
não obedece aos padrões patriarcais, muito obstruída e restringida na relação amorosa da
menos os padrões modernos de constituição mulher.
nuclear. São da família todos aqueles (filhos, Quanto mais a mulher negra se especializa
maridos, parentes) que vivem em dificuldades profissionalmente numa sociedade desse tipo,
de extrema pobreza. mais ela é levada a individualizar-se. Sua rede de

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