Você está na página 1de 6

ESPAÇO E S PA Ç O

Osmundo Pinho*
ABERTO

Qual é a identidade
do homem negro?
Neste artigo,1 estão registrados alguns pon- ferentes de masculinidades subalternizadas
tos sobre identidades de homens negros em função da raça/cor, classe ou orienta-
que têm sido colocados tanto no horizonte ção sexual.
das práticas políticas como na esfera da re- No projeto, são realizadas diversas
flexão teórica crítica. Além de serem apre- oficinas, sessões constantes de um grupo
sentados em inúmeros debates, encontros, de estudos sobre raça e gênero, além de
conversas, leituras, atividades e lutas, dos outras atividades. Há também o envolvimen-
quais pude participar – ou presenciá-los to em uma rede de debates e ações em torno
apenas –, tais pontos são reflexões media- da questão das masculinidades. Desse pon-
das pela minha própria experiência pessoal to de vista, é preciso ressaltar a importân-
como homem negro que tem atravessado cia de instituições como Noos – Instituto
algumas fronteiras sociais e simbólicas, de Pesquisas Sistêmicas e Desenvolvimen-
entre a vivência cotidiana em nossa socie- to de Redes Sociais, Promundo, Ecos – Co-
dade racista e sexista e a formação acadê- municação em Sexualidade e Instituto Pa-
mica em antropologia social, entre o Nor- pai, com seu pioneirismo na reflexão e
deste Patriarcal e o Sul Maravilha, entre a intervenção nesse campo.
intervenção politizada das ONGs e a inves- Por outro lado, meu conhecimento e
tigação etnográfica relativista. participação, ainda que acessórios, na lista
O corpo central da experiência, que de discussão de homens negros na Internet,
dá margem à costura dos pontos apresen- é um marcador fundamental. A partir dessa
tados a seguir, define-se basicamente pela trama de experiências, proponho a constru-
atividade desempenhada como bolsista do ção de uma plataforma emaranhada e sutil,
programa Gênero, Reprodução, Ação e Li- um ponto de partida ou de observação para
derança (Gral) da Fundação Carlos Chagas. interrogar a identidade dos homens negros
1 Parte das idéias desenvolvi-
das aqui tem sido discutida Graças à bolsa, pude desenvolver o projeto brasileiros. Quem somos? Podemos formar
na minicomunidade virtual
formada por Taciana Gouveia,
“Homem com H: articulando subalternida- – ou estamos formando – um sujeito políti-
Joana Plaza Pinto e Cláudio H. des masculinas”, uma iniciativa experimen- co novo e crítico? É desejável que tal for-
Pedrosa, aos quais devo muito
mais que agradecimentos. tal para colocar em diálogo experiências di- mação ocorra? Qual o nosso programa?

64 DEMOCRACIA VIVA Nº 22
ABERTO
Quais as chances de articulação entre as
diferentes experiências de masculinidade
mulher foi obra de um ator político – com-
posto, híbrido, fraturado, problemático, vá
afrodescendente? lá, mas aproximado pelas lutas discursivas
ou não – a mulher como sujeito do feminis-
mo. Mas essa desconstrução crítica do lu-
Posicionando a masculinidade
gar naturalizado do masculino não foi pro-
Convém uma breve recapitulação conceitual duzida pela emergência de novos atores
antes de centrar fogo na produção dessa sociais, mas foi insinuada externamente pe-
interrogação, que é, ao fim e ao cabo, uma los interessados em amenizar o peso do ma-
desconstrução. Nunca é demais ressaltar o chismo. Não resta dúvida de que essa situ-
papel que o movimento feminista teve na ação guarda um impasse político e
reconceituação das identidades sociais em intelectual. Mas será que esse impasse in-
todo o mundo. Esse movimento, abalo sís- teressa aos homens?
mico nas identidades e nas políticas de re- De um jeito ou de outro, principal-
presentação – incluindo o espaço da mídia, mente no campo da psicologia e da antro-
a produção acadêmica, a literatura, as hu- pologia social, começou a se apresentar
manidades e artes etc. –, originou-se tanto uma relativização histórica da figura mas-
de uma reflexão baseada na universidade, culina, até então entronizada e vendida
que atacou os fundamentos masculinistas como monolítica, imutável, essencial, eter-
e sexistas da produção de conhecimento, na e, eventualmente, divina ou metafísica.
como das lutas políticas que tomaram as O homem foi reconduzido à sua diversida-
ruas e os bairros populares, as praças e a de e variação histórica. Aprendeu a perce-
esfera pública nas últimas décadas. ber que existem muitas formas diferentes de
Não é meu objetivo reconstituir essa masculinidades que se multiplicam pela his-
história, com todas as suas nuanças, con- tória e pelas culturas.
tradições e impasses. Quero apenas desta- Também aprendeu a perceber as di-
car que a crítica feminista – assim como a ferentes versões de masculinidades concor-
luta pelas liberdades sexuais e direitos hu- rentes, ou ao menos coabitantes, no ambi-
manos de gays e lésbicas – provocou, lu- ente sociocultural das sociedades
tando nas avenidas ou nos departamentos modernas. Algumas dessas versões são
universitários, uma desconstrução ou identificadas com as estruturas sociais do-
desnaturalização da mulher como entidade minantes, algumas apenas parcialmente e
imóvel, ou melhor, imobilizada pelo peso do outras francamente subordinadas às estru-
patriarcalismo, das convenções e das es- turas e representações dominantes sobre o
truturas sociais opressivas. No bojo des- masculino ou delas marginalizadas. Nesse
sas lutas, a categoria gênero emerge. Em caso, seria possível falar em masculinida-
primeiro lugar, para favorecer um olhar so- des hegemônicas ou hegemonizadas e em
bre a construção das diferenças sexuais que subalternas ou subalternizadas.
as reconheça como produzidas histórica e Sobre esse aspecto, é preciso desta-
culturalmente, ou seja, que as revela em sua car dois pontos. Em primeiro lugar, quando
arbitrariedade. Em segundo lugar, para se fala de hegemonia e subalternidade, fala-
explicitar como a engenharia onipresente do se de processos dinâmicos de construção e
poder estruturou essas diferenças sob a reconstrução de hegemonias ou de consen-
forma de desigualdades. 2 sos parciais sobre o sentido das relações
Ora, o passo seguinte – e a conse- sociais, seus significados e práticas
qüência lógica e política desse processo – instituintes. Ou seja, hegemônicos e subal-
seria revelar que não apenas a mulher, esse ternos não estão definidos essencialmen-
ser imaginário, foi desenhada na história te, mas sim como sujeitos políticos
pela pena do poder e da dominação mascu- engajados em jogos de poder e dominação
lina, mas o próprio homem descobriu-se que ocorrem em contextos sociais
surpreso quando percebeu que também era estruturados, porém abertos à inovação.
um artefato das estruturas de gênero. É im- Isso implica, em segundo lugar, a
possível não perceber uma curiosa inver- consideração de hegemonias regionais – 2 Ver Bruschini e Unbehaum,
2002; Scott, 1994; Nicholson,
são nesse caso. A (auto)desconstrução da por exemplo, ligadas à vida doméstica ou 1995; Butler, 2003.

JUN 2004 / JUL 2004 65


ESPAÇO ABERTO

ao exercício da sexualidade – e um alcançado ou contestado, ironizado ou


descolamento entre sujeitos sociais de gê- adorado, sob as diversas situações socio-
nero e estruturas de gênero. Em outros ter- lógicas possíveis e já descritas pela litera-
mos, um indivíduo masculino pode apresen- tura. Contra o macho adulto branco, pode-
tar uma posição hegemônica em dada se observar a existência social de outras
situação e, em outra, estar colocado em si- posições de sujeito masculinas subal-
tuação subordinada. Isso é muito importante ternizadas, que seriam, em termos gerais,
para entender como se produzem e susten- aquelas identificadas com homens negros,
tam identidades masculinas subalternas pobres ou homossexuais.
como um lugar da contradição entre siste- Convém ressaltar com ênfase que
mas de poder diferentes – a estrutura das não se pressupõe, neste texto, uma carto-
classes, o sistema dimórfico dos gêneros, grafia das identidades sociais estáveis ou
as práticas e discursos idênticas a si mesmas nem mesmo nenhum
racializantes – que, ao tipo de taxonomia das identidades. É pre-
se combinarem inter- ferível falar de posições de sujeito como
Contra o macho seccionalmente, produ- lugares marcados no mapa sociocultural
zem novas diferenças, para a fixação de performances, práticas e
adulto branco, desigualdades e vulne- discursos que justamente produzem esses
rabilidades. Se essa in- sujeitos como lugares de articulação des-
pode-se observar terseção é também ca- sas performances, práticas e discursos.
paz de produzir sujeitos Esses lugares são ocupados e desocupa-
a existência social para emancipação é ou- dos – ou encenados – cotidianamente por
tra questão. indivíduos concretos que se relacionam
de outras Tradicionalmen-
te, e de um modo um
com padrões culturais e estruturas soci-
ais. Nesse relacionamento, atualizam e vi-
posições de tanto quanto esquemá-
tico, seria possível dizer
vem esses padrões e estruturas. Quando
eles os vivem, interpretam-nos; quando os
que o modelo de mascu- interpretam, transformam-nos. 3
sujeito masculinas linidade hegemônico
nas sociedades ociden-
subalternizadas, tais apresenta-se com
Desrepresentando o homem negro
um conteúdo determina- Agora, deve-se discutir um pouco mais so-
que seriam do: o homem, no pleno bre as posições de sujeito masculinas
gozo de suas prerroga- racializadas, brancos e negros, no contex-
aquelas tivas, seria adulto, bran- to brasileiro. As narrativas de fundação na-
co, de classe média e cional instituem parte do contexto
identificadas com heterossexual. Outros
modos específicos e
discursivo de longa duração para a produ-
ção de identidades raciais no Brasil e para
homens negros, concretos, localizados e
estruturados de mascu-
sua articulação com as estruturas sociais
e as formas hegemônicas de representação
linidade estariam su- sobre as raças, os gêneros, a sexualidade
pobres ou balternizados ou seriam e o poder em suas múltiplas e cambiantes
constituídos por formas composições. Entre elas, citam-se a “fábu-
homossexuais contextuais de subalter- la das três raças”, a miscigenação, os es-
nização. Essas formas tereótipos ligados à mulher negra, à mula-
são diferentes e se li- ta etc. O homem negro também tem sido
gam a diferentes sistemas de poder-saber, representado – na verdade, hiper-represen-
como os já citados, e se combinam e articu- tado – e produzido racialmente com o con-
lam de modo diferenciado. curso agressivo dessas representações
É óbvio também que, num país como que funcionam, entre outras coisas, como
3 Sobre masculinidades, ver,
por exemplo, Cornwall e
o Brasil, muitos poucos homens reais po- estruturas de sustentação para práticas
Lindsfarne, 1994; Kimmel, dem encontrar identidade com esse mode- concretas de exclusão, marginalização e vi-
1998; Nolasco, 2001; Arilha,
Unbehaum e Medrado, 2001. lo. Isso não quer dizer que muitos homens olência. Ora, é preciso desrepresentá-lo

ABERTO
4 Sobre gênero e raça na so- não tomem esse modelo, reposto continua- como um modo prático de desalienação e

ESPAÇO
ciedade brasileira, ver, por mente por diversas agências ou aparelhos de reconstrução de possibilidades políti-
exemplo, Carneiro, 1995, 2002;
Bairros, 1995; Gonzáles, 1983. ideológicos, como parâmetro ou ideal a ser cas e culturais. 4

66 DEMOCRACIA VIVA Nº 22
QUAL É A IDENTIDADE DO HOMEM NEGRO?

Antes de tudo, o homem negro é re- E o homem negro? É claro que muitas
presentado como um corpo negro, o seu pró- formas vernáculas de políticas corporais têm
prio corpo. Paradoxalmente, esse corpo é sido levadas a efeito por homens negros,
configurado de forma alienada, como se fos- principalmente jovens das grandes cidades.
se separado da autoconsciência do negro. Mas em que medida esses investimentos sim-
O corpo negro é outro corpo, lógica e his- bólicos-políticos incidem sobre os modelos
toricamente deslocado de seu centro. Como estereotipados de masculinidade? Em que
suporte ativo para a identidade, é o lugar medida se afastam das fantasias sexistas e
de uma batalha pela reapropriação de si do naturalizantes ligadas ao corpo, à sexualida-
negro como uma reinvenção do self negro e de e às prerrogativas de poder de homens
de seu lugar na história. Uma reapropriação negros? Em que medida têm contribuído para
do corpo como plataforma ou base política novas alianças entre homens negros e mu-
revolucionária. Ora, essa base é contradi- lheres negras? Para o caso das políticas cor-
tória porque tem sido definida pelas porais, surge a questão: o projeto político –
discursividades racializantes ou puramente e de reconstrução de si – dos homens ne-
racistas que justamente aprisionam o negro gros é um projeto para homens e mulheres
na “geografia da pele e da cor”. 5 Ser negro afrodescendentes? Ou será um projeto ne-
é ser o corpo negro, que emergiu simbolica- gro masculino (e heterossexual)?
mente na história como o corpo para o ou- Um outro tema dominante para os de-
tro, o branco dominante. Assim, o corpo bates sobre masculinidade – e que tem, oca-
negro masculino é fundamentalmente cor- sionalmente, ocupado espaço nos debates
po-para-o-trabalho e corpo sexuado. Está, públicos da mídia – se refere a uma suposta
desse modo, decomposto ou fragmentado crise do masculino, usualmente considera-
em partes: a pele; as marcas corporais da da como uma inadequação dos modelos
raça (cabelo, feições, odores); os músculos masculinos às mudanças causadas pela
ou força física; o sexo, genitalizado emancipação das mulheres. Ou seja, essa
dimorficamente como o pênis, símbolo suposta crise, que não existia antes, quan-
falocrático do plus de sensualidade que o do permanecia inquestionável a coincidên-
negro representaria e que, ironicamente, sig- cia entre estruturas de dominação de gêne-
nifica sua recondução ao reino dos fetiches ro e identidades masculinas hegemônicas,
animados pelo olhar branco. deve-se à necessidade de o homem, presu-
Mas o corpo negro também é um midamente heterossexual, adequar-se às
campo de batalha que tem sido recompos- mudanças, um tanto desagradáveis, mas
to e reunificado no âmbito das lutas raci- inevitáveis, derivadas das conquistas femi-
ais e das políticas de identidade. Os con- ninas. Agora, o homem precisaria também
cursos de beleza negra e todas as formas compartilhar o cuidado das crianças, lavar
inventivas de manipulação corporal afro- a louça e aceitar o trabalho feminino fora de
descendente dão testemunho desses con- casa. Por outro lado, essa crise se refere
flitos pulverizados em torno das pessoas também ao surgimento de um novo homem,
negras e de sua representação corpórea, ainda colado à norma heterossexual, mas
que é também uma forma de produção e de sensibilizado pelos valores femininos: sen-
luta. Nesse caso, vê-se, mais uma vez, como sibilidade, vaidade e intuição.
as mulheres negras têm acumulado uma Sem alargar os questionamentos so-
experiência rica e carregada de alto grau bre essa suposta crise e todos os compo-
de reflexividade. Uma vez que as mulheres nentes normativos, heterossexistas e de clas-
de um modo em geral, e as mulheres ne- se que parecem constituir, deve-se ter em
gras de um modo muito específico, tiveram mente que, se existe uma crise do masculino,
que lidar com o entulho ideológico que se com essa configuração classe média, um tan-
depositou, constituindo os espaços para to psicologizante e, de modo claro, reativa
sua identidade corporal, elas têm desen- às conquistas das mulheres, é necessária
volvido, com maior grau de consciência uma abordagem que, em suma, desconecte o
crítica, uma relação com o próprio corpo, masculino de suas amarras na estrutura das
para resguardá-lo, reinventá-lo, dignificá- classes, do sistema de dominação de gêne-
lo, apropriar-se dele, negar significados ro, do racismo, da normatividade heterosse-
estereotipados, questionar os modelos de xual. Se essa crise existe e é real para ho-
apresentação de si ocidentais etc. mens – que hoje se questionam como fazer 5 Cardoso, 1986, p. 66.

JUN 2004 / JUL 2004 67


ESPAÇO ABERTO

bronzeamento artificial sem perder a virilida- Parece ser essa a verdadeira – e si-
de –, é também verdade que existe outra cri- nistra – face de uma crise do masculino que
se do masculino, que tem uma duração mais deveria nos mobilizar intensamente. Essa
longa e que está fundamente definida pela crise não diz respeito às reações ao avanço
relação das posições de gênero com a estru- feminino nem pretende expressar o descon-
tura das classes, o racismo, a violência e as- forto de homens brancos de classe média
pectos brutalizantes e alienadores do mer- d i a n t e d a s o f i s t i c a ç ã o d o s t y l e e da
cado. Essa crise do masculino atinge, desde mercadificação crescente da vida cotidia-
muito tempo, homens negros, jovens e po- na. Refere-se também à necessidade urgen-
bres e está claramente definida pelo viés de te de se comprometerem os homens, como
gênero presente nos números da violência homens, na reinvenção das identidades
urbana e suas cifras apocalípticas. masculinas, por um lado, e, por outro, na
Os índices de violência e de abusos batalha política por políticas públicas de
físicos no Brasil são alarmantes e deveri- inclusão para homens jovens, negros e po-
am assombrar a consciência liberal das eli- bres. A crise implica, assim, um desafio às
tes e das classes médias – o que parece nossas consciências individuais como ho-
não ocorrer de fato. Recentes relatórios in- mens comprometidos ou interessados na
ternacionais têm apontado a presença qua- emancipação e também implica a consciên-
se institucional da tortura como método in- cia de que essa transformação subjetiva ne-
vestigativo pelas polícias brasileiras. cessita vir acompanhada de mudanças na
Segundo a Anistia Internacional e a Human estrutura social, porque é dessa confluên-
Rigths Watch, execuções sumárias e o uso cia entre disposições culturais masculinas
da tortura como método investigativo e incorporadas subjetivamente e estruturas
punitivo são corriqueiros e aceitáveis nas sociais de reprodução social desigual que
delegacias e nos presídios brasileiros, essa crise descende.
sendo o pau-de-arara instrumento usual
de suplício, além de choques elétricos,
Politizando masculinidades
afogamentos e mesmo exploração/abuso
afrodescendentes
sexual. Do mesmo modo, as polícias bra-
sileiras têm sustentado recordes mundi- Diante do exposto, é preciso encaminhar al-
ais de assassinato de civis, até mesmo gumas questões que possam ajudar a con-
menores, embora a maioria das vítimas não cluir o quadro de interrogações sobre as
apresentasse antecedentes criminais. A identidades masculinas afrodescendentes –
violência, entretanto, não se restringe efetivamente quais seriam as chances de
apenas à ação inadequada das polícias, e politização das identidades masculinas.
os números de mortes por armas de fogo Como os homens negros podem se tornar
são impressionantes. Em 13 estados bra- sujeitos de direitos como homens, ou
sileiros, segundo pesquisa do Movimen- reconduzidos às suas particularidades, re-
to Nacional de Direitos Humanos nunciando a pretensões universalistas e
(MNDH), foram registrados 22.105 crimes generalizantes. Os homens negros não re-
de homicídio entre 1998 e 1997. Desse to- presentam todos os afrodescendentes bra-
tal, 89,22% das vítimas eram do sexo mas- sileiros – essa é uma afirmação fácil de en-
culino; 95,84% dos acusados são homens; tender. Mas representam ao menos a si
56,08% das vítimas tinham entre 18 e 35 mesmos? Ou intentam representar uma fan-
anos. Na Bahia, a situação é particular- tasia que, ao fim e ao cabo, é masculinista,
mente perigosa para negros. Entre 1996 e sexista, heteronormativa e que, no fundo,
1999, policiais mataram 881 pessoas. Se- constitui uma armadilha para os homens
gundo o MNDH, a maioria das vítimas é negros? Qual o grau e o sentido da
jovem, do sexo masculino, moradora de politização dos homens negros brasileiros,
bairros periféricos e, supõe-se facilmen- como homens e como negros?
te, negra. O aparato policial do estado, É possível dizer que a politização das
6 Números e análises sobre a segundo ainda o MNDH, mata três vezes identidades masculinas pode ser pensada
violência podem ser encontra-
dos em Amnesty International, mais negros que brancos. Enquanto as como a desagregação da identidade mascu-
2001; Barbosa, 1998; Human
Rigths Watch, 2001 a, 2001 b; mortes por armas de fogo representavam lina monolítica. Reconhecer a diversidade
2,8% dos óbitos entre brancos em 1995, das experiências e dos lugares do masculino

ESPAÇO
Machado, Noronha e Cardoso,
1997; Oliveira, 1998; Waiselfisz,
2002; Silva, 1999. entre negros esse percentual era de 7,5%. 6 parece fundamental, e esse reconhecimento

68 DEMOCRACIA VIVA Nº 22
QUAL É A IDENTIDADE DO HOMEM NEGRO?

passa longe dos multiculturalismos liberais, teriormente, sem levar em conta a articula- * Osmundo Pinho
que incorporam a diferença para normalizá- ção dos modelos de masculinidade com a Antropólogo, doutor em
la. O que se propõe é uma incorporação da estrutura das classes, o mercado, a divisão Ciências Sociais pela
diferença que abale as fronteiras estáveis social do trabalho e a reprodução social Unicamp, diretor do
do mesmo, que dissolva os limites claros desigual da sociedade. Em terceiro lugar, é Centro de Estudos Afro-

das identidades masculinas (negras) mais que urgente a promoção do homem Brasileiros da
Universidade Candido
hegemônicas e que exploda em seu poten- como sujeito de direitos, principalmente di-
Mendes
cial crítico e desconstrutivo na mesma me- reitos sexuais e reprodutivos, associados à
opinho@candidomendes.edu.br
dida de sua marginalização social. Em se- paternidade, ao exercício da sexualidade, à
gundo lugar, é impossível considerar a crise prevenção de doenças sexualmente trans-
do masculino, tal como foi qualificado an- missíveis e Aids, entre outras.

Transformação social
A verdadeira reforma do masculino não pode ser levada a efeito por ninguém senão pelos
homens e não passa apenas por uma solidariedade para com as mulheres. Implica uma solidari-
edade de novo tipo – não mais baseada na glorificação das prerrogativas masculinistas – entre os
homens. A violência masculina contra a mulher é brutal e covarde. Mas a violência entre os
homens tem as proporções de um cataclismo mítico de sexo, gênero e raça. A homofobia, a
sexualidade predatória, o gosto pela violência e pelo risco não precisam marcar para sempre os
mundos masculinos. A reforma do masculino, que deveria se transformar num programa político
de transformação social, residiria, então, na exploração consciente das ligações entre estruturas
de opressão internalizadas e incorporadas e as disposições para sua reprodução intersubjetiva
como um modo de reprodução desigual das estruturas de gênero. Somente a atividade consci-
ente e reflexiva dos homens engajados na transformação das relações de gênero – e que, muitas
vezes, enxergam esse engajamento apenas como uma adesão bem-intencionada ao feminismo –
poderá interromper essa cadeia infernal. Para isso, é preciso desapego, radicalidade, discernimento
e experimentação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMNESTY INTERNATIONAL. Report 2001. Brazil. 2001. Disponível em: <www.hrw.org/wr2k1/americas/brazil.html>.
Disponível em: <http://web.amnesty.org/web/ar2001.nst/ Acesso em: 16 jun. 2004 .
webamrcountries/BRAZIL/OpenDocument>. ______. O Brasil atrás das grades. 2001 b. Disponível em:
ARILHA, Margareth; UNBEHAUM, Sandra G.; MEDRADO, <www.hrw.org/portuguese/reports/presos>. Acesso em: 16 jun. 2004.
Benedito. Homens e masculinidades: outras palavras. São Paulo: KIMMEL, Michael. A produção simultânea de masculinidades
Editora 34, 2001. hegemônicas e subalternas. Horizontes Antropológicos – Corpo,
BAIRROS, Luiza. Nossos feminismos revisitados. Estudos Doença e Saúde, UFRGS, n. 9, p. 103-118, 1998.
Feministas, n. 2, p. 458-463, 1995. MACHADO, Paes Eduardo; NORONHA, Ceci V.; CARDOSO,
BARBOSA, Maria Inês S. Todos a bordo. In: OLIVEIRA, Dijaci D. Fátima. No olho do furacão: brutalidade policial, preconceito
de et al. (Orgs.). A cor do medo: homicídios e relações raciais no racial e controle da violência em Salvador. Afro-Ásia, n. 19/20, p.
Brasil. Brasília: UnB, 1998, p. 91-98. (Série Violência em Manchete). 201-228, 1997.
BRUSCHINI, C.; UNBEHAUM, S. G. (Orgs.). Gênero, democracia NICHOLSON, Linda. Interpreting gender. In: NICHOLSON, Linda;
e sociedade brasileira. São Paulo: Editora 34, 2002. SEIDMAN, Steven (Eds.). Social postmodernism: beyond identity
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 39-67.
de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. NOLASCO, Sócrates. O apagão da masculinidade?. Boletim
CARDOSO, Hamilton. O resgate de Zumbi. Lua Nova – Cultura Rio de Janeiro: Trabalho e Sociedade, Iets, ano 1, n. 2, p. 9-16, dez.
e Política, v. 2, n. 4, p. 63-67, jan./mar. 1986. 2001. Disponível em: <http://www.iets.inf.br/acervo/
CARNEIRO, Suely. Gênero e raça. In: BRUSCHINI, C.; BoletmRJTRabalho&Sociedade.htm>. Acesso em: 16 jun. 2004.
UNBEHAUM, S. G. (Orgs.). Gênero, democracia e sociedade OLIVEIRA, Dijaci D. de et al. A cor do medo: o medo da cor. In:
brasileira. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 167-194. ____ (Orgs.). A cor do medo: homicídios e relações raciais no Brasil.
______. Gênero, raça e ascensão social no Brasil. Estudos Brasília: UnB, 1998, p. 37-60. (Série Violência em Manchete).
Feministas, n. 2, p. 544-552, 1995. SCOTT, Joan. Prefácio a Gender and politics of history.

ABERTO
CORNWALL, Andrea; LINDSFARNE, Nancy. Dislocating Cadernos Pagu, n. 3, p. 11-27, 1994.
masculinity: gender, power and anthropology. In: CORNWALL, SILVA, José Fernando da. Homicídios no Brasil: alguns aspectos
Andrea; LINDSFARNE, Nancy (Eds.). Dislocating masculinity: da visibilidade. MNDH – Boletim do Banco de Dados, ano 1, n. 1, jul.
comparative ethnographies. Londres: Routledge, 1994, p. 11-47. 1999. Disponível em: <http://www.mndh.org/html/boletim/
GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. artigo1.htm>
Ciências Sociais Hoje, 2, p. 223-245, 1983. WAISELFISZ, Jacobo. Mapa da Violência III: os jovens do Brasil.
HUMAN RIGTHS WATCH. Brazil – Humans Rights S.l.: Unesco, 2002.
Development. Human Rights Watch World Report 2001 a.

JUN 2004 / JUL 2004 69

Você também pode gostar