Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
Artigo
Da transfobia ao racismo: experiências de transição de homens transexuais negros*
Letícia Carolina Boffia**
Manoel Antônio dos Santosb
a
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil
b
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil
Resumo: A visibilidade social e acadêmica de homens transexuais deu-se tardiamente em comparação com
mulheres trans. Ainda mais invisíveis são as experiências de transição dos homens trans negros, que agregam
a intersecção gênero-raça. Este estudo qualitativo teve por objetivo analisar como homens transexuais
negros vivenciam suas experiências de transição de gênero, à luz do conceito de interseccionalidade.
Participaram quatro homens que se autodeclararam transexuais e negros, de 22 a 33 anos. Foram realizadas
entrevistas semiestruturadas, seguidas de análise temática. Os resultados apontam que o reconhecimento
social das identidades transmasculinas advém do racismo, quando este se intersecciona com a transfobia.
À medida que o sujeito passa a ser lido como homem, recebe o atributo racista de“perigoso”. A baixa empregabilidade
é uma das consequências perversas dessa leitura que articula dois eixos de subordinação: transgeneridade e raça.
Há urgência de políticas públicas para que se interrompa esse ciclo de desempoderamento interseccional.
http://dx.doi.org/10.1590/0103-6564e200212
Letícia Carolina Boffi& Manoel Antônio dos Santos
2
estudiosos e se inserindo nas agendas de pesquisa (Alexandre, do trabalho escravo às torturas físicas e psicológicas, incluindo
Oliveira-Cardoso, & Santos, 2020; Dullius & Martins, 2020). a emasculação dos corpos negros (hooks3, 1992a).
Apesar de os homens trans serem comumente Virilidade, hipermasculinidade, truculência,
descritos como uma categoria única e homogênea, Almeida hiperssexualização e anti-intelectualismo são características
(2012) contesta essa visão simplificadora, lembrando que culturalmente atribuídas ao homem negro, delineando
alguns grupos de homens transexuais se aproximam ou se no imaginário coletivo um modelo de sujeito agressivo,
afastam em decorrência de demandas de alterações corporais tosco, viril, materialista e incapaz de aceder a um
e de busca por espaços de reflexão acerca de suas identidades pensamento sofisticado. Essa imagem é amplamente
e singularidades. Entretanto, algumas especificidades desses difundida na sociedade em geral (hooks, 2000).
sujeitos não são reclamadas e tampouco visibilizadas, como Tal concepção estereotipada da socialização do homem negro
a diversidade de experiências pós-transição vivenciadas pelos resultou na sua definição, no imaginário coletivo, como
homens trans brancos e negros. um sujeito abrutalhado, truculento e agressivo, dominado
As questões étnico-raciais têm uma longa tradição por seus instintos e dotado de uma energia corporal pura
que o capacitaria para as asperezas do trabalho rude,
de debate científico, em contextos que articulam relações incapacitando-o para o trabalho intelectual (hooks, 1992b).
raciais e desigualdade social no Brasil (Santos, 2009; Pinto & Nesse sentido, o estereótipo atribuído ao homem negro, no
Ferreira, 2014), porém pouco se conhece sobre o imbricamento seio de uma sociedade patriarcal de passado escravocrata,
da construção da identidade da pessoa negra com a temática reserva a ele um lugar de predestinado ao trabalho braçal,
da transgeneridade1. Para compreender a questão do racismo seja por sua resistência física ou pela suposta indigência
no Brasil é preciso recorrer ao conceito de raça (Guimarães, intelectual.Por essa razão, a sociedade lhe designa o exercício
1999).A noção de que a humanidade pode ser classificada em de funções de baixa qualificação profissional e menor
hierarquias étnico-raciais triunfou na história do pensamento remuneração.
social dominante nas sociedades ocidentais nos últimos séculos Uma vez naturalizada, essa concepção dominante
(Munanga, 2004). Ainda que não exista qualquer evidência constitui um dos elementos de força do racismo estrutural
científica que ofereça comprovação biológica ou respaldo (Almeida, 2018). Essa leitura se estende aos homens
cultural para a existência de “raça” enquanto categoria empírica, transexuais negros que apresentam certa passabilidade e
esse construto permanece impregnando o imaginário social. que herdam essas atribuições quando transicionam para o
Enquanto categoria social, raça é um componente essencial gênero masculino. Passabilidade pode ser definida como
da estrutura social, na medida em que ainda é utilizada para um processo social pelo qual o sujeito transexual passa a
diferenciar, hierarquizar e subjugar diferentes grupos marcados ser reconhecido visualmente pelo gênero que reivindica
fenotipicamente (Guimarães, 1999). Por conseguinte, raça é e com o qual se identifica; no caso deste estudo: o ser
um conceito essencialmente político e socialmente construído homem.
(Almeida, 2018). Originalmente, o entrecruzamento dos
Hoje se reconhece que recortes de classe e raça marcadores das diferenças sociais foi denominado de
redesenham a maneira pela qual homens e mulheres percebem interseccionalidade pela intelectual afro-estadunidense
e vivenciam o racismo e suas implicações (Conrado & Ribeiro, Kimberlé Crenshaw (2002). A autora compreende
2017). Para as mulheres negras cisgêneras, os desdobramentos interseccionalidade enquanto indissociabilidade estrutural
negativos incidem sobre todas as dimensões da vida, entre racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado.
repercutindo em danos à saúde física e mental, rebaixamento A interseccionalidade é uma conceituação do
da autoestima, expectativa de vida menor em cinco anos problema que busca capturar as consequências
em comparação à de mulheres brancas, menor índice de estruturais e dinâmicas da interação entre
casamentos e, sobretudo, desempenho laboral limitado às dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata
ocupações de menor prestígio e remuneração, principalmente especificamente da forma pela qual o racismo,
o emprego doméstico (Akotirene, 2019; Carneiro, 2011). o patriarcalismo, a opressão de classe e outros
No horizonte das experiências de homens negros sistemas discriminatórios criam desigualdades
cisgêneros2 (homens não transexuais), a condição racial é básicas que estruturam as posições relativas de
considerada um marcador importante na constituição da mulheres, raças, etnias, classes e outras. (Crenshaw,
masculinidade em decorrência da herança do longo processo 2002, p. 177)
de escravidão, que aliou a brutalidade da exploração mercantil
A autora vale-se da analogia de avenidas que
1 A transgeneridade é a condição possível de alguns indivíduos assumirem se entrecruzam para demonstrar que os marcadores
uma identidade de gênero diferente daquela designada por ocasião do seu sociais da diferença operam como eixos de poder. Esses
nascimento. Em outros termos, descreve uma pessoa cuja identidade de marcadores constituem avenidas que estruturam os terrenos
gênero não “coincide” com o sexo biológico.
2 Cisgênero refere-se à condição de identificação do sujeito com o gênero 3 A autora afirma que seu nome deve ser grafado em letras minúsculas, em
que lhe foi atribuído ao nascimento em decorrência de seu órgão genital, respeito ao seu desejo de dar destaque ao conteúdo de sua escrita, e não a
acatando, assim, a noção binária de feminino ou masculino. sua pessoa.
Artesão
(produção 1.000,00
Hugo 29 São Paulo EM completo C1 Namorando Umbanda
de
camisetas)
Rio
Christopher 33 Grande EM completo Bartender 1.200,00 C2 Solteiro Não tem
do Sul
Minas
Gabriel 23 EF completo Trancista 200,00 D-E Namorando Candomblé
Gerais
*Nomes fictícios escolhidos pelos próprios participantes.
**EM = Ensino médio; EF = Ensino fundamental.
***CCEB = Critério de Classificação Econômica Brasil (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa [Abep], 2020).
Abstract: The social and academic visibility of transsexual men happened later than that of transgender women. Even more invisible
are the transition experiences of Black trans men as they aggregate the gender-race intersection. This qualitative study aimed to analyze
how Black transgender men experience their gender transition in light of the concept of intersectionality. In total, four men, aged
22-33 years, who declared themselves Black and transsexual participated in this study. Semi-structured interviews were conducted,
followed by thematic analysis. Results indicate that the social recognition of transmasculine identities crosses racism when it intersects
with transphobia. To the extent that they are recognized as men, they receive the racist attribute of “dangerous.” Low employability is
one of the perverse consequences of this reading, which articulates two axes of subordination: transgender and race. Breaking this
cycle of intersectional disempowerment urgently requires public policies.
Keywords: transsexuality, racial and ethnic relations, racism, gender identity, intersectionality
Résumé: La visibilité sociale et académique des hommes transgenres est arrivée tardivement, par rapport aux femmes transgenres.
Plus invisibles encore sont les expériences de transition des hommes noirs transgenres, qui cumulent l’intersection entre le sexe et la
race. Cette étude qualitative visait à analyser la manière dont les hommes transsexuels noirs vivent leurs expériences de transition de
genre à la lumière du concept d’intersectionnalité. Quatre hommes qui se sont déclarés noirs et transsexuels, âgés de 22 à 33 ans, ont
participé à l’enquête. Des entretiens semi-structurés ont été menés, suivis d’une analyse thématique. Les résultats montrent que la
reconnaissance sociale des identités transmasculines passe par le racisme, lorsqu’il s’entrecroise avec la transphobie. Au fur et à mesure
que le sujet est lu comme un homme, il reçoit l’attribut raciste de « dangereux ». La faible employabilité est l’une des conséquences
perverses de cette lecture qui articule les deux axes de subordination: le transgenre et la race. Il est urgent que les politiques publiques
brisent ce cycle de désautonomisation intersectionnelle.
Resumen: La visibilidad social y académica de los hombres transexuales llegó tarde en comparación con la de las mujeres transexuales.
Aún más invisibles son las experiencias de transición de los hombres negros trans, que agregan la intersección género-raza.
Este estudio cualitativo tuvo por objetivo analizar las vivencias de los hombres negros transexuales respecto a la transición de
Palabras clave: transexualidad, relaciones étnicas y raciales, racismo, identidad de género, interseccionalidad
Referências
Akotirene, C. (2019). Interseccionalidade. São Paulo, SP: Pólen. en Psicología de la Salud y Psicología Social, 9(1), 52-67.
Alexandre, V., & Santos, M. A. (2019). Experiência doi: 10.22199/S07187475.2018.0001.00003
conjugal de casal cis-trans: contribuições ao estudo da Braun, V., & Clarke, V. (2006). Using thematic analysis in
transconjugalidade. Psicologia: Ciência e Profissão, psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2),
39(spe 3), 1-13. doi: 10.1590/1982-3703003228629 77-101. Recuperado de https://uwe-repository.worktribe.com/
Alexandre, V., Oliveira-Cardoso, E. A., & Santos, M. A. (2020). preview/1043068/thematic_analysis_revised_-_final.pdf
A banalidade transfóbica e o estado brasileiro conservador. Braun, V., & Clarke, V. (2013). Successful qualitative research:
In S. R. Pasian, A. P. S. Silva, C. M. Corradi-Webster, M. a practical guide for beginners. Los Angeles, CA: Sage.
G. Sticca, D. S. Zanini, & S. Grubits (Orgs.), Identidade Braun, V., & Clarke, V. (2019). Reflecting on reflexive thematic
e vulnerabilidade humana em diferentes contextos: analysis. Qualitative Research in Sport, Exercise and Health,
contribuições da psicologia (pp. 79-94). Curitiba, PR: CRV. 11(4), 589-597. doi: 10.1080/2159676X.2019.1628806
Almeida, G. (2012). “Homens trans”: novos matizes na aquarela Campos, L. F. (2001). Métodos de técnicas de pesquisa.
das masculinidades? Estudos Feministas, 20(2), 513-523. São Paulo, SP: Alínea.
Recuperado de https://www.scielo.br/pdf/ref/v20n2/v20n2a12 Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil.
Almeida, S. L. (2018). O que é racismo estrutural? Belo São Paulo, SP: Selo Negro.
Horizonte, MG: Letramento. Collins, P. (2009). Black feminist thought: knowledge,
Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa. (2020). Critério consciousness and the politics of empowerment. New York,
de Classificação Econômica Brasil. São Paulo, SP: Abep. NY: Routledge.
Recuperado de http://www.abep.org/criterio-brasil Conrado, M., & Ribeiro, A. A. M. (2017). Homem
Ávila, S. N. (2014). FTM, transhomem, homem trans, trans, negro, negro homem: masculinidades e feminismo
homem: a emergência de transmasculinidades no Brasil negro em debate. Estudos Feministas, 25(1), 73-97.
contemporâneo (Tese de doutorado). Centro de Filosofia e doi: 10.1590/1806-9584.2017v25n1p73
Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas
Florianópolis, SC. Recuperado de https://repositorio. em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero.
ufsc.br/bitstream/handle/123456789/129050/329117. Estudos Feministas, 10(1), 171-188. doi: 10.1590/S0104-
pdf?sequence=1 026X2002000100011
Boffi, L.C.(2022).Tornando-sehomem:processosdeagenciamento Dullius, W. R., & Martins, L. B. (2020). Training needs
de corporalidades de homens trans - contribuições para o measure for health care of the LGBT+ public. Paidéia
campo emergente das transmasculinidades (Dissertação (Ribeirão Preto), 30, e3034. doi: 10.1590/1982-4327e3034
de Mestrado). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ferreira, R. F. (2002). O brasileiro, o racismo silencioso e a
Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto. emancipação do afro-descendente. Psicologia & Sociedade,
Boffi, L. C., & Santos, M. A. (2020). Pose: reflexões acerca da 14(1), 69-86. doi: 10.1590/S0102-71822002000100005
construção do corpo travesti. In L. R. S. Carvalho, & A. C. Figueiredo, C. R. L. V. (2017). Essa pele que habito – reflexões
Bortolozzi (Orgs.), Leituras sobre a sexualidade em filmes: sobre transexualidade, discriminação e abuso às garantias
identidades dissidentes e opressões (Vol. 7, pp. 11-44). constitucionais no contexto do direito do trabalho.
São Carlos, SP: Pedro & João. JURIS – Revista da Faculdade de Direito, 27(1), 67-80.
Boffi, L. C., & Santos, M. A. (2021). Corpos travestis: (re) doi: 10.14295/juris.v27i1.6680
existências em territórios confinados e regulação do trabalho Freitas, D. F., Coimbra, S., & Fontaine, A. M. (2017). Resilience in
sexual na composição Mulher, de Linn da Quebrada. In L. LGB youths: a systematic review of protection mechanisms.
R. S. Carvalho, & A. C. Bortolozzi (Orgs.), Leituras sobre Paidéia (Ribeirão Preto), 27(66), 69-79. doi: 10.1590/1982-
a sexualidade em filmes: animações e músicas (Vol. 11, 43272766201709
pp. 103-122). São Carlos, SP: Pedro & João. Gaspodini, I. B., & Falcke, D. (2018). Sexual and gender diversity
Braga, I. F., Santos, M. A., Farias, M. S., Ferriani, M. G. C., & in clinical practice in Psychology. Paidéia (Ribeirão Preto),
Silva, M. A. I. (2018). As múltiplas faces e máscaras da 28, e2827. doi: 10.1590/1982-4327e2827
heteronormatividade: violências contra adolescentes e jovens Gaspodini, I. B., & Falcke, D. (2019). Estudos psicológicos
homossexuais brasileiros. Salud & Sociedad: Investigaciones brasileiros sobre preconceito contra diversidade sexual e
Recebido: 01/02/2022
Aprovado: 15/03/2022