Você está na página 1de 7

FACULDADE DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO E SAÚDE - FACES

PSICOLOGIA
Áreas afins do conhecimento psicológico - QUESTÕES ANTROPOLÓGICAS

Carolina Costa da Silva Mendel


Flávia Lustosa
Larissa Lisboa Paiva
Letícia Lorranny Venâncio de Souza
Lucas Costa Pinto Barreiros
Lorena Nunes Perpétuo Chagas
Myrthes Freitas Lopes Dezan

- MORO ONDE NÃO MORA NINGUÉM -

REFLEXÕES ACERCA DE ESTEREÓTIPOS DE PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA

Artigo apresentado ao Curso de Psicologia


da universidade de Brasília - UniCEUB, para
aprovação na disciplina Áreas afins do
conhecimento psicológico - QUESTÕES
ANTROPOLÓGICAS, sob a orientação do
Professor Lucas Alves Amaral.

Brasília
2020
Apresentação

Foi proposto na disciplina de Questões Antropológicas a elaboração de um


texto dissertativo relacionado a coletivos sociais que representam uma alteridade
cultural. Dentre os coletivos sugeridos, o escolhido foi o de pessoas em situação de
rua, que será o tema abordado desta dissertação. O presente trabalho tem como
objetivo discutir a razão e as consequências desses estereótipos existentes na
sociedade no que se refere às pessoas em situação de rua, partindo do pressuposto
de que os preconceitos sofridos por este grupo acabam por levá-los a exclusão e
invisibilidade social, pretende-se pontuar alguns desses possíveis estereótipos a que
esse coletivo está submetido, e como esses rótulos acabam por constituir
etnocentricamente as identidades pessoais dos participantes desse grupo, gerando
invisibilidade não só perante aos cidadãos, como também perante o Estado. Serão
feitas também relações do tema com os textos discutidos da disciplina em sala de
aula (Da Matta, Laplantine, de Oliveira e Bezerril).

Tipificações convencionais de pessoas em situação de rua

Diariamente, principalmente nos centros urbanos, nos deparamos com grupos


de pessoas que optam ou são levados, por questões econômicas e/ou problemas de
relacionamento familiar e social a habitar na rua, constituindo-se em um fenômeno
social observável e passível de se tornar objeto de estudo nas ciências sociais, na
perspectiva da antropologia cultural no “plano instrumental”, resposta do homem ao
ambiente e, no “plano cultural e social”, que é a adaptação do homem na sociedade
(DA MATTA, p. 22-32). O agrupamento dessas pessoas, devido a sua
complexidade, faz surgir uma nova cultura, muitas vezes definida etnocentricamente
como uma subcultura, onde estão presentes valores e condutas próprias de relações
sociais, estranhas a “cultura dominante”.

Esse olhar etnocêntrico existente para com as pessoas em situação de rua se


assemelha fortemente a visão evolucionista do século XIX, onde toda história e
cultura de um coletivo, no caso em estudo, pessoas em situação de rua, não são
reconhecidas como fenômeno social complexo e semelhante, e sim olhadas como
inferiores pela sociedade. Como na dupla resposta ideológica de Laplantine (2007,
p. 25), as pessoas em situação de rua são definidas pela falta: falta de roupas, falta
de casa, falta de cultura, falta de emprego, etc. A adjetivação pela ausência
classifica essas pessoas como inferior e também como pessoas que tem “menor
valor humano”, os que estão de fora - “outsiders” (ELIAS, SCOTSON, 2000, p.19),
separados da espécie humana por puro preconceito e estigmatima e que, segundo
Elias e Scotson ((2000, p. 19), são assim vistas pelos “estabelecidos”, pessoas que
acreditam deter a condição de “virtude humana superior” (ELIAS, SCOTSON, 2000,
p.19).

Mattos e Ferreira (2004) discutem algumas tipificações comumente infligidas


a pessoas em situação de rua, além disso, pontuam como isso pode afetar a
constituição da identidade social desse grupo perante a sociedade. Para Mattos e
Ferreira (2004, p. 47) as tipificações mais comum são: pessoas em situação de rua
vistas como vagabundas, loucas, sujas, “coitadinhas” e perigosas, e discutem como
esses estereótipos diversas vezes podem ser utilizados como justificativa para
legitimar uma relação de total indiferença, que pode chegar ao nível de repulsa e até
violência física contra esse coletivo.

Essa postura de indiferença para com a pessoa em situação de rua chega a


desconsiderar pessoas desse grupo como iguais, para (Nascimento, 2000), citado
por (Mattos e Ferreira, 2004, p.51), “é como se fossem de outra espécie com poucas
similaridade, são pessoas portanto, negadas em sua humanidade: homens e
mulheres que não são mais vistos como tais por seus semelhantes. E talvez já não
se sintam também como tais”, esse tipo de atitude preconceituosa pode partir tanto
da sociedade em geral como também do próprio Estado, que gera diversas
consequências perversas, como invisibilidade, violência, pena, etc (partindo da
sociedade) e também como invisibilidade perante o Estado que muitas vezes priva
ou dificulta o direito de cidadão de pessoas desse coletivo social.

Consequências da invisibilidade das pessoas em situação de rua

PIMENTA (2018) realizou um estudo estatístico com pessoas em situação de


rua em Porto Alegre aplicando um questionário para uma amostra desse grupo, de
forma a conseguir entender melhor alguns fatores que cercam pessoas nessa
condição. Uma das perguntas do questionário diz respeito a classificar o que as
pessoas em situação de rua menos gostam na rua. Essa questão poderia ter tido n
respostas, como o fato de não possuir uma casa, dormir no frio e/ou chuva, fome,
roubos etc. Porém, a discriminação simplesmente pelo fato de estar na rua foi o
segundo principal ponto colocado (19,8% dos entrevistados) ficando atrás apenas da
violência entre as pessoas que estão na rua (20,1%).

A sensação de estar extremamente vulnerável a violência realmente chama


muito a atenção, onde na mesma pesquisa temos que o principal medo de pessoas
em situação de rua é de ser morto durante a noite (21,6%). Contudo, a violência
física não é a única violência a que esse coletivo está sujeito, a violência muitas
vezes se manifesta de forma simbólica, no processo de rotulação e estigmatização
pelas pessoas que têm moradia regular e/ou são proprietárias ou trabalhadoras em
lugares públicos, que em muitas ocasiões tomam atitudes hostis para com essas
pessoas em situação de rua, muitas vezes as expulsando dos lugares, ignorando o
direito de ir e vir do cidadão e demais direitos sociais, “sobretudo em relação aos
espaços públicos, como praças, parques e transportes coletivos” (PIMENTA, 2018,
p, 100),

As pessoas em situação de rua são invisíveis para os cidadãos, porém, não


somente para eles, o que pode não ser de conhecimento comum é que este grupo
em muitas ocasiões também é invisível para o Estado, o que prejudica de forma
intensa boa parte desse coletivo. Uma das razões dessa injustiça ocorrer é que o
Brasil não conta com dados oficiais sobre a população em situação de rua. Não
existe averiguação do número total da população não domiciliada que se justifica
pela “complexidade operacional de uma pesquisa de campo com pessoas sem
endereço fixo” (NATALINO, M. A. C, 2016, p. 7). Essa invisibilidade também pode
ser revelada, na falta de documentação necessária para acessar serviços e
benefícios sociais que o Estado garante (Hallais e Barros, 2015, p. 1499).

Além disso, o Estado, com justificativas como “mau cheiro” , “incômodo


visual” e ameaça de maculação dos pontos turísticos e destruição de patrimônio
histórico por exemplo, para legitimar seus atos, toma medidas já denominadas como
de “arquitetura anti-mendigo”, como o fechamento de banheiros públicos ou
interdição de vias e praças para passar noite (FRANGELLA, 2005, p. 201), que
novamente age removendo o direito de cidadão das pessoas em situação de rua,
um exemplo claro de uma atitude etnocentrista do estado que enxerga na população
um grupo dominante, pessoas com renda, trabalho moradia, etc. e, um grupo inferior
que não merece igualmente os direitos de cidadão, pessoas em situação de rua.

Considerações finais

Estar em situação de rua atualmente significa estar sempre vulnerável à


violência, condições climáticas, falta de acesso a serviços e tecnologia, dentre
outras coisas. Contudo, o preconceito, a discriminação, a rejeição velada não são
fatos causados diretamente pela situação de rua, e sim pelo olhar etnocêntrico de
cada cidadão e também do estado. A sociedade brasileira ainda está muito presa
aos estereótipos existentes relativos a pessoas em situação de rua, que é uma visão
de caráter etnocentrista e evolucionista.

O presente texto é um convite ao leitor não somente a reflexão, mas também


para desenvolver um olhar antropológico e começar a agir de maneira relativizadora,
na tentativa de aprimorar nosso "olhar, o ouvir e o escrever" (OLIVEIRA, 1996, 15),
aguçando os sentidos para uma percepção de natureza epistêmica, possibilitando
novos questionamentos, a partir da observação (OLIVEIRA, 1996, 21-31).

Torna-se imprescindível então, não só entender, mas se aproximar dessas


pessoas em situações de alteridade e fazer um exercício de deslocamento de
nossas posições sociais e culturais para entender melhor o outro, reconhecer a
pluralidade de vozes que existe nesse coletivo ao invés de calá-las, para isso, é
necessário não só disciplinar o olhar e o ouvir, mas também se esforçar para olhar e
ouvir, citando Laplantine (2007, p. 46):

[...] “para alcançar o homem em todas as suas dimensões, é preciso dedicar-


se à observação de fatos sociais aparentemente minúsculos e insignificantes,
cuja significação só pode ser encontrada nas suas posições respectivas no
interior de uma totalidade mais ampla”.

Dessa forma, acredita-se que será possível fugir dessa visão etnocentrista e
evolucionista e buscar agir com empatia, compreender o outro e respeitá-lo dentro
do seu espaço social “como constituição bem-sucedida de um terreno intersubjetivo
que permitiria a compreensão, a descrição do outro e a comunicação com ele”
(BIZERRIL, p.155), estabelecendo uma rede de relacionamento confiável e – para
usar um conceito operacional de Bizerril (2008, p. 158) - “vínculo etnográfico”, que é
a “relação de cooperação e confiança” que deve estar presente em toda relação
social.

Referências Bibliográficas

BIZERRIL, José. O vínculo etnográfico: intersubjetividade e coautoria na pesquisa


qualitativa. Universitas Ciências da Saúde - vol.02 n.02 - pp. 152-163. 2008.

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders. Sociologia


das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar,
2000.

FRANGELLA, Simone Miziara. Moradores de rua na cidade de São Paulo:


vulnerabilidade e resistência corporal ante as intervenções urbanas. Cadernos
Metrópole, n. 13, p. 199-228, 2005 <10.1590/8804>.

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 13 ed.


1999.

HALLAIS, J.; BARROS, N. Consultório de rua: visibilidades, invisibilidade e


hipervisibilidade. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 31, n. 7, jul. 2015.

MATTA, Roberto da. Relativizando: uma introdução à antropologia social.


Petrópolis: Vozes, 1981.

MATTOS, R. M; FERREIRA, R. F. Quem vocês pensam que (elas) são?


Representações sobre as pessoas em situação de rua. Psicologia e Sociedade. São
Paulo, 2004.

NASCIMENTO, E. P. Juventude: novo alvo da exclusão social. In: BURSZTYN, M.


(Org.). No meio da rua: nômades excluídos e viradores. Rio de Janeiro:Garamond,
2000. p. 121-138.

NATALINO, Marco Antonio Carvalho. Estimativa da população em situação de rua


no Brasil. IPEA. Texto para discussão / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Brasília: Rio de Janeiro, 1990. Disponível em:
http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7289/1/td_2246.pdf. Acessado em:
16/04/2020.

PIMENTA, M. M. Pessoas em situação de rua em Porto Alegre. Processos de


estigmatização e invisibilidade social. Civitas.Porto Alegre, 2018.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir,


Escrever. Revista de Antropologia, Vol. 39, No. 1 (1996), pp. 13-37.
ANEXO

Você também pode gostar