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“Populações excluídas”: uma categoria de pesquisa viável?

Giuliana Franco Leal2

Palavras-chave: exclusão social; desigualdade social; segregação.

Resumo: Desde a década de 1990, a noção de exclusão social ganhou um espaço ampliado nos
estudos da área de ciências sociais. Com aquela noção, veio junto a categoria “excluídos”, seja
aplicada a populações, seja aplicada a indivíduos. Neste trabalho, investigaremos esta categoria.
Quem são os “excluídos”? Quais os critérios para esta categorização? Pode-se falar em
“populações excluídas”? Por meio de um balanço crítico de parte significativa da bibliografia
sociológica e demográfica brasileira a respeito da exclusão social, produzida nas últimas duas
décadas, procuraremos responder se é teoricamente adequado e metodologicamente viável falar
em “populações excluídas”. Defendemos a hipótese de que “exclusão social” pode ser um
conceito útil para analisar um processo social, mas por não servir bem à definição de uma
condição, é inviável pensar em termos de “populações excluídas”.

1
Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambu-MG,
Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008.
2
Doutoranda em Sociologia na Unicamp e professora da Faculdade de Administração da Aeronáutica.
Introdução

Desde a década de 1990, a noção de exclusão social ganhou um espaço ampliado nos
estudos da área de ciências sociais. Com aquela noção, veio junto a categoria “excluídos”, seja
aplicada a populações, seja aplicada a indivíduos. Neste trabalho, investigaremos esta categoria.
Quem são os “excluídos”? Quais os critérios para esta categorização? Pode-se falar em
“populações excluídas”? Por meio de um balanço crítico de parte significativa da bibliografia
internacional, mas com ênfase à brasileira, a respeito da exclusão social, produzida nas últimas
duas décadas, procuraremos responder se é teoricamente adequado e metodologicamente viável
falar em “populações excluídas”.
Iniciaremos com um mapeamento das principais definições de exclusão social elaboradas
por pesquisadores brasileiros, após breve referência ao quadro internacional de produção sobre o
tema. A partir de cada uma daquelas definições, derivaremos as distintas concepções de
“excluídos”, pensando tanto no que elas têm de diferente quanto naquilo que lhes é comum.
Analisaremos então sua capacidade de descrição e potencialidade de análise, a partir das
limitações e das possibilidades investigativas de cada concepção. Por comparação, refletiremos
ainda se outras categorias – tais como “pobres”, “marginais” e “vulneráveis” – não seriam mais
precisas para fazer referência às questões abordadas sob o termo “exclusão”.
Feita essa análise, poderemos responder sobre a viabilidade teórica e metodológica de
usar a categoria de pesquisa “populações excluídas”. Teremos, então, os argumentos para
defender a hipótese de que “exclusão social” pode ser um conceito útil para analisar um processo
social, mas por apresentar sérios problemas para a definição de uma condição, é inviável pensar
em termos de “populações excluídas”.

O que é exclusão social

Num balanço crítico da bibliografia internacional – em especial a européia – Silver


(1994) identificou três signficados recorrentemente atribuídos ao conceito de exclusão social,
cada qual correspondendo a um paradigma3.
O primeiro paradigma apresentado é o da solidariedade, associado à ideologia política do
republicanismo francês. A exclusão social corresponde a um déficit de integração. Ela acontece
pela quebra do vínculo entre indivíduo e sociedade (seja em termos práticos, pelo rompimento do
laço com o mercado de trabalho, com o mercado de consumo, com as instituições que mediam a
relação entre Estado e cidadão etc., seja pela ruptura da efetiva normatividade das orientações
culturais e morais coletivas).
Um segundo paradigma é o da especialização, apoiado na ideologia liberal. Nesse caso, a
exclusão social é vista como uma forma de discriminação. As condições para sua existência são
criadas por um contexto de diferenciação social, divisão econômica do trabalho e separação da
vida social em distintas esferas (econômica, cultural, política etc.) que idealmente deveriam ter

3
Adotando a definição de Thomas Kuhn (em edição brasileira: A estrutura das revoluções científicas. São Paulo:
Perspectiva, 1970, p.175), paradigma é “uma constelação de crenças, valores, técnicas e outros elementos
compartilhados pelos integrantes de uma determinada comunidade” (Silver, 1994, p. 613).

2
regras próprias a cada uma e, ao mesmo tempo, abertura para intercâmbio. Quando alguma
barreira opõe-se à livre circulação entre as esferas ou uma regra imprópria e externa a uma esfera
impõe-se a ela, cria-se a exclusão como restrição à liberdade de participar de certos intercêmbios
sociais (por exemplo, no mercado de trabalho ou em alguma modalidade de consumo).
Por fim, o terceiro paradigma identificado por Silver é o do monopólio, participante da
ideologia da social-democracia. Nele, a exclusão social é uma forma de dominação, que se
apresenta como não-realização de direitos de cidadania. Ela advém da formação de monopólios
de grupo sobre certos benefícios (relativos ao consumo, moradia, saúde etc.), uma vez que os
recursos econômicos e de acesso ao poder político são escassos e as classes e grupos sociais os
disputam, tentando detê-los em detrimento de grupos concorrentes.
No Brasil, desenvolveram-se e projetaram-se mais os estudos que definem a exclusão
social como não-realização de direitos de cidadania e como ruptura de vínculos entre indivíduo e
sociedade, além de uma reação a esta última conceituação, reafirmando a contraditoriedade da
relação entre inclusão e exclusão como parte de um modo contraditório de dominação de classe.
A primeira concepção de exclusão social citada toma o conceito de cidadania – tal como
retirado de T.H. Marshall – como ideal normativo ao qual se contrapõe a exclusão.
Para Marshall (1967), a cidadania corresponde a um status concedido a membros de uma
comunidade, significando a participação integral na mesma, com igualdade de direitos e
obrigações. Quando se é cidadão, pode-se gozar das prerrogativas que garantam a participação
dos membros da comunidade, por meio de direitos, naquilo que é criado socialmente, material ou
não.
Assim, a cidadania compõe-se de um conjunto de direitos que Marshall (1967) divide
analiticamente em três partes ou elementos: 1) civil, composto de direitos necessários à liberdade
individual (liberdade de ir e vir, de imprensa, pensamento e fé, direito à propriedade, à justiça
etc.); 2) político, compreendido como direito de participação no exercício do poder político, seja
pelo investimento de autoridade política, seja como eleitor; 3) social, referindo-se à participação
dos padrões de bem-estar de dada sociedade.
Dessa maneira, a exclusão social defiida como não-cidadania4 pode ser lida também
como alijamento de direitos5. A pesquisadora Aldaíza Sposati (2003) e sua equipe foram bastante
representativos dessa tendência ao elaborar um mapa da exclusão social para a cidade de São
Paulo.
Em artigo teórico, Sposati (1999) já define a exclusão social como não-cidadania:
(...) considero que o conceito de exclusão social hoje confronta-se
diretamente com a concepção de universalidade e, com ela, a dos
direitos sociais e da cidadania. A exclusão é a negação da cidadania”
(Sposati, 1999, p. 128).

Ambos os conceitos – cidadania e exclusão social – são reconhecidos como relativos, na


medida em que cada sociedade tem seus próprios patamares de padrão de vida.

4
Adulis & Fischer, 1998; Arzabe, 2001.
5
Souza, 2004; Sposati, 2003; Véras, 2001; Ximenes, 1994.

3
É ao mapear o fenômeno da exclusão social num espaço circunscrito (o município de São
Paulo) que a necessidade de construção de um índice faz com que a compreensão do conceito se
torne mais explícita.
Um padrão de inclusão é estabelecido pela equipe de pequisadores coordenada por
Sposati (2003) e é a partir dele, por afastamento positivo ou negativo, que o índice de exclusão
social se constrói. O padrão básico aceitável de inclusão para cada indicador corresponde a um
lugar de referência da passagem da exclusão para a inclusão social, declaradamente fundado num
determinado entendimento da sociedade em relação às codições básicas de cidadania a serem
universalizadas (obviamente subjetivo). Para construção do índice de exclusão/inclusão social
relativo a cada indicador, atribui-se nota zero ao padrão básico de inclusão e, em seguida mede-
se, em relação a ele, a distância do comportamento territorial em cada variável agregada por
quartis negativos e positivos, em valores que vão de –1 a +1. Por fim, o índice composto de
exclusão/inclusão social é formado pela agregação das distintas variáveis, com igual peso.
São estabelecidos aspectos necessários à inclusão – autonomia, qualidade de vida,
desenvolvimento humano e eqüidade – e para cada um, indicadores correspondentes, conforme o
quadro abaixo.

Quadro 1
Aspectos necessários à inclusão e indicadores
Aspectos Indicadores
necessários
à inclusão
Autonomia Emprego, renda média familiar, população de rua,
chefe de família na linha de pobreza ou abaixo
dela, ganhos do chefe de família, concentração de
indigência adulta, concentração de risco infantil.
Qualidade Densidade habitacional, presença de creches e
de vida escolas, equipamentos de saúde, domicílios
precariamente servidos por água, por esgoto, por
coleta de lixo, oferta de banheiros por domicílio,
densidade de banheiros por pessoas, oferta de
dormitórios por domicílio, densidade de
dormitórios por pessoa, concentração de moradias
precárias (favelas, cortiços e improvisados),
concentração de população moradora em
habitação precária, garantia de moradia, potencial
de atração de investimento público, potencial de
acesso à saúde básica, à creche e à escola.
Desenvolvimento Longevidade, grau de instrução dos chefes de
humano família, homicídio, alfabetização precoce ou
tardia, mortalidade na infância, mortalidade
juvenil, casos de furto, de roubo e de homicídios.
Eqüidade Concentração de mulheres chefes de família e de

4
mulheres chefes de família não alfabetizadas
(Retirado de Sposati, 2003)

Entre os indicadores, temos aqueles relativos ao cumprimento dos direitos sociais –


referentes a emprego, renda, condições de habitação e acesso a serviços sanitários básicos,
educação formal e cuidados com a saúde – e dos direitos civis –relativos à segurança da vida
humana e do patrimônio expressos nos indicadores relacionados à criminalidade, tais como
homicídio, roubo e furto. Apenas não se observam indicadores referentes a direitos políticos,
conquanto estes tenham um peso importante na definição da exclusão em oposição à
participação plena na sociedade.
Por sua vez, a concepção de exclusão social como crise de solidariedade toma como
pressuposto a importância dos laços sociais – dados pelo trabalho, pelas formas de sociabilidade
primária, pela participação em instituições, pelo consumo etc. – para a integração de cada
indivíduo na sociedade e desta em seu conjunto.
Entre as pesquisas brasileiras6, o estudo de Escorel (1999) ilustra bem essa concepção.
Para a autora, a exclusão social é “um processo que envolve trajetórias de vulnerabilidade,
fragilidade ou precariedade e até ruptura dos vínculos em cinco dimensões da existência humana
em sociedade”: a) econômico-ocupacional, b) sociofamiliar, c) da cidadania, d) das
representações sociais, e) da vida humana (p.75).
O enfraquecimento dos laços nessas dimensões dizem respeito, respectivamente: a) ao
trabalho precário e instável bem como ao desemprego, tornando as pessoas, no limite,
economicamente desnecessárias; b) à fragilização das relações familiares, de vizinhança e
comunitárias, resultando em isolamento e solidão; c) à impossibilidade de exercer o poder de
ação e representação políticas; d) à discriminação e à estigmatização, até o limite em que os
demais membros da sociedade não reconheçam a humanidade das pessoas que passam por esse
processo; e) à restrição à busca da sobrevivência, deixando de exercer as atividades humanas da
criação pela transformação da natureza e da interação política. Tais dimensões encontram-se
interligadas, de modo que a ruptura dos laços em uma delas aumenta a probabilidade de que o
mesmo ocorra em outras (Escorel, 1999).
Nesse sentido, a exclusão tanto é o processo pelo qual os vínculos sociais se fragilizam,
como também a condição a que se chega pela ruptura dos mesmos.
Observa-se nessa concepção uma semelhança com as concepções de desfiliação e de
desqualificação social, respectivamente dos pesquisadores franceses Robert Castel (1995) e
Serge Paugam (1994). Em ambas, está desenvolvida a idéia de quebra de laços sociais –
sobretudo na esfera do trabalho, em função da precarização do trabalho e da elevação do
desemprego de longa duração, e na esfera das relações de família, vizinhança e comunidade,
pelos processos de individualização, levando pessoas ao isolamento, à crise de sentido sobre a
própria vida e à ausência de um lugar social reconhecido coletivamente.

6
Vários pesquisadores brasileiros adotam o enfraquecimento e quebra de laços sociais como ponto essencial na
caracterização da exclusão social. Podemos citar, entre eles, Bracho, 2001; Escorel, 1999; Nascimento, 1994;
Oliveira, 1997; Wanderley, 2001.

5
Mas para além disso, existe também um ponto novo: a questão do não-reconhecimento da
humanidade daquele que passa pelo processo de exclusão. A concepção que o sociólogo Elimar
Nascimento (1994) identifica como a mais restrita e nova da exclusão social a toma, justamente,
como ruptura da coesão social, à maneira durkheimiana, mas chega à idéia de que os
“excluídos”, por não serem reconhecidos pelos demais como seres humaos semelhantes, tornam-
se ameaçados de eliminação.
Para Nascimento (1994), tudo começa com o desemprego duradouro produzido pela
desnecessidade cada vez maior de trabalho vivo para a produção, nas sociedades
contemporâneas. Com isso, cria-se uma nova legião de pessoas inúteis para a economia
capitalista, rompendo com a interdependência de todos os membros da sociedade, necessária à
reprodução dos laços de solidariedade orgânica. No atual contexto de violência urbana, aqueles
que são considerados socialmente inúteis facilmente são representados também como perigosos
para os demais. Por isso, tornam-se passíveis de eliminação por grupos de extermínio e
segmentos da polícia, com o consentimento mudo ou declarado de parcelas da população
(Nascimento, 1994).
Assim, compõem a condição de exclusão definida por Nascimento (1994) a
impossibilidade de acesso a bens materiais e simbólicos; a falta de condições de participar da
vida política da sociedade; a estigmatização; por fim, como novidade e aspecto central, a
negação do direito a ter direitos, derivada do não reconhecimento da semelhança com os outros
seres humanos.
Mas ainda aqui, a exclusão social continua a ser também processo, por meio do qual se
chega à ruptura daqueles laços de trabalho, consumo etc., mas também daquele vínculo de
sentimentos e valores comuns que unem um indivíduo ao restantante da humanidade.
Contudo, a perspectiva dos laços sociais encontrou severas críticas7. Algumas delas
mostram uma certa inviabilidade da noção de exclusão social, mas trabalham-na de modo a
atribuir-lhe novos significados.
Iremos nos concentrar sobre as críticas elaboradas por Pedro Demo (1998; 2003), pela
representatividade do pesquisador nessa tendência. Ele combate a idéia de novidade subjacente à
noção de exclusão social, ao enfatizar que esta tem origem na constante dinâmica excludente do
capitalismo, tal como explicada pela teoria marxista desde o século XIX. O capitalismo apenas
se encontra em nova fase, mas com os mesmos fundamentos essenciais de concentração das
riquezas. Empiricamente, isso sempre se expressou nos países periféricos pela pobreza e pela
ausência de trabalho estável para parte da população.
Outra crítica dirige-se à possibilidade, etimologicamente aceita na palavra exclusão, de
estar fora da sociedade. O simples fato de alguém ser considerado uma ameaça para a sociedade
já prova que ele faz parte dela. Assim, segundo Demo (1998), não existe condição de exclusão
absoluta, mas formas degradadas de inclusão. Uma vez que a exclusão é produto da sociedade,
ela representa uma integração contraditória de certa população à sociedade.

7
Vide José de Souza Martins (Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997; A sociedade vista
do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. Petrópolis: Vozes, 2002) e Alejandra Pastorini
(A categoria “questão social” em debate. São Paulo: Cortez, 2004).

6
Por isso, Demo (2003) é contrário à tese de superfluidade dos “excluídos”. Argumentos
em prol de seu ponto de vista são a potencialidade de ação política dos excluídos e o fato de
privilégios existirem exatamente porque há a desigualdade que permeia aquilo que se chama de
exclusão social.
A partir da crítica, surge um novo entendimento para a exclusão social, segundo o qual
a exclusão é uma forma de inclusão, ou seja, uma maneira de exercer
uma função dialética no sistema (...). O que mais a exclusão social
escancara é a luta desigual, a concentração de privilégios, a repartição
injusta dos espólios de uma sociedade falida (Demo, 2003, p.105).

Assim, a exclusão é parte de uma dinâmica, na qual tem papel funcional para a
reprodução da desigualdade. A noção se forma pela combinação de pobreza política (como
aspecto central) e carência material (como característica derivada).
Entendemos por pobreza política a dinâmica central do fenômeno
chamado pobreza e que privilegia a dimensão da desigualdade. Assim,
ser pobre não é tanto ‘ter’ menos (carente), mas ‘ser’ menos (desigual).
Leva a visualizar, desde logo, que pobreza expressa uma situação de
confronto histórico entre os que são menos e mais desiguais, aparecendo
sob múltiplas formas concretas. Entre estas, costumamos destacar as
carências materiais, como insuficiência de renda, fome, desemprego etc.,
todas muito relevantes, mas ainda não as mais cruciais. A condição mais
aguda da pobreza é a exclusão de caráter político, historicamente
produzida, mantida, cultivada (Demo, 1998, p.97).

Enfim, exclusão, pobreza e desigualdade são temas interpenetrados. O âmago da pobreza


diz respeito à exclusão de caráter político, que impede a autonomia emancipatória de parte dos
sujeitos sociais e, por esse meio, perpetua a desigualdade.
Nas três concepções apresentadas acima, em que pesem as divergências, existem alguns
pontos comuns: impossibilidade de desfrute dos bens criados pela sociedade em patamares
mínimos socialmente aceitos (segundo critérios médios subjetivos próprios a cada sociedade);
instabilidade no trabalho ou ausência dele; fraca possibilidade de ser senhor do próprio destino;
baixo ou nenhum reconhecimento de um estatuto socialmente valorizado.
Os traços comuns a que se chega da exclusão social são bastante genéricos, aplicando-se
a diferentes situações em lugares e momentos diversos. Dessa forma, conduz a uma figura
bastante genérica do “excluído”, como veremos abaixo.

Quem são os “excluídos”

Em linhas gerais, os “excluídos” seriam aqueles que se encontram, ao mesmo tempo,


pobres, desempregados ou em condição instável e precária de trabalho, pouco valorizados
socialmente e com parco ou nenhum poder político. As duas últimas características derivam das
duas primeiras.

7
Nessa definição genérica, não há nada de propriamente novo em relação à situação de
milhões de pessoas ao longo de toda a história do Brasil e dos países periféricos em geral.
Vejamos nas definições específicas se existem traços mais precisos e significativos que definam
os excluídos.
De acordo com a primeira definição de exclusão social apresentada no item acima, o
“excluído” seria aquele que está impossibilitado de realizar seus direitos de cidadão. Todavia,
não existe um limite claro e preciso do que seria a cidadania plena, embora existam várias
referências a “tipos” distintos de cidadãos, segundo o grau de participação nos direitos8.
De qualquer maneira, fica difícil determinar a partir de que ponto alguém passa a ser
excluído, embora se possa pensar, com fins analíticos, num contínuo que vai da exclusão à
cidadania plena e vice-versa.
Como vimos, a análise da exclusão por referência oposta à cidadania centra-se nos
direitos. Isso significa, primeiramente, que o foco de qualquer pesquisa que parta dessa
perspectiva está no indivíduo, que é o sujeito de direitos sob a perspectiva liberal da cidadania.
Assim, caso se insista em usar a categoria “excluídos”, sob essa perspectiva, ela se refere mais
propriamente a indivíduos que a populações, embora se possa (como de fato tem sido feito)
pensar em áreas mais propensas à exclusão de seus habitantes.
Assim, a idéia de exclusão como não-cidadania presta-se a pensar em áreas – e, por
conseqüência, em populações – vulneráveis à não-realização de direitos, mas não é muito precisa
para designar populações ou mesmo indivíduos excluídos. Afinal, estar completamente excluído,
nessa perspectiva, seria não ter nenhum direito, nem de fato nem formalmente. Talvez a idéia de
um “excluído” total possa servir como tipo ideal, mas dificilmente para designar rigorosamente
uma realidade.
Se a exclusão total é uma possibilidade pouco provável, o que existe são modos diversos
de exclusão dos direitos de cidadania. Desse modo, a noção de exclusão abriga uma imensa
heterogeneidade, o que a torna um tanto frouxa. Entre supostas “populações excluídas”, então,
encontrar-se-iam pessoas com características e deficiências diversificadas (ausência de proteção
previdenciária, de trabalho formal, de assistência médica, de habitação minimamente confortável
e segura etc.), combináveis entre si de maneiras múltiplas.
Outra implicação do centramento da análise nos direitos de cidadania é o privilégio ao
âmbito nacional como esfera de origem do fenômeno e de luta contra ele, uma vez que os
direitos se fazem realizar por meio do Estado, nas sociedades modernas. É verdade que o Estado
também se faz presente por meio de instâncias mais regionalizadas (estaduais, municipais,
locais). Contudo, em última instância é em dimensão nacional que os direitos são criados e
legitimados, ainda que muitas vezes a luta por eles e sua concretização se dê em nível local.
Aliás, um elemento importante na luta por direitos tem sido a pressão sobre o Estado.
Enfatizamos que tal pressão não é individual, mas coletiva, tendo sido realizada, repetidamente

8
Carvalho (2002), ao acompanhar a trajetória da cidadania no Brasil, considera que os cidadãos poderiam ser
classificados em cidadãos plenos, incompletos ou não-cidadãos, e ainda faz referência à cidadania de primeira,
segunda e terceira classes.

8
na história, por meio de movimentos sociais9. Assim, dizer que a perspectiva da exclusão como
não-cidadania centra-se sobre indivíduos não significa negar a necessidade da luta coletiva. Mas,
na medida em que os “excluídos” são, por definição, pessoas com pouca voz política, a
superação de sua situação compõe-se de uma ação de empoderamento, que pode se dar ao
mesmo tempo em que a luta por direitos se faz: assim, a construção coletiva e popular da
cidadania faz parte da reivindicação por ela.
É útil perceber que a perspectiva da cidadania para tratar a exclusão social não denota de
modo especial as particularidades do momento atual. Como sabemos, a cidadania no Brasil vem
sendo construída lentamente e com percalços, isto é, com idas e vindas (Carvalho, 2002).
Já a perspectiva dos laços sociais concede mais ênfase à crise que se esboça desde as
últimas três décadas do século XX, a saber, a crise do trabalho assalariado como garantia de um
lugar social para o conjunto da população e a crise, a ela associada, do Estado como garantidor
da proteção social. Afinas, o laço do trabalho e o da participação comum no Estado são dois dos
vínculos essenciais que atam os indivíduos à sociedade.
Sob tal perspectiva, o excluído, aquele que perdeu ou vem perdendo seus vínculos, seria
em primeiro lugar a pessoa que precisa do trabalho como meio e norma de vida mas que se
encontra sem trabalho estável. Além disso, ele é a pessoa isolada, privada de relações sociais
próximas. Mas é pela ausência do trabalho, principalmente, que ele se torna politicamente frágil,
discriminado e estigmatizado.
Assim, o “excluído” seria mais do que pobre, pois é possível ter pouca renda e ainda
assim estar integrado pelo trabalho e por relações fortes de sociabilidade, com proteção, utilidade
social etc.
O “excluído” é ainda o oposto do trabalhador marginal, tal como definido pela análise de
tipo histórico-estrutural. Em que pesem as difereças de abordagem, repete-se nesta perspectiva a
noção do marginal como aquele trabalhador que se insere de um modo periférico nas relações de
produção (Kowarick, 1975; Murmis, 1969; Pereira, 1978). O trabalhador marginal é explorado,
embora de modo diferente do trabalhador assalariado estável. Ao contrário destes, o “excluído”
é um inútil para o capital e, em decorrência, considerado um inútil para a sociedade – o que
freqüentemente se reflete em sentimentos de vergonha e vazio neles mesmos.
Como a análise construída em torno dos laços sociais centra-se na integração social, o
“excluído” seria, no limite, um desintegrado ou pelo menos alguém com fraca integração social.
A primeira implicação dessa forma de ver o problema é que o “exlcuído”, sendo aquele
que se encontra atomizado, isolado, só pode ser o indivíduo. Pensar em uma população de
“excluídos” seria pensar num grupo de pessoas desconectadas entre si, que só têm em comum a
ausência de vínculos.
O mais importante para essa discussão é pensar o que seria estar desintegrado. Ou seja,
como um ser humano pode viver sem participar de uma sociedade?
De fato, não se conhece caso de alguém que absolutamente não participe da sociedade.
Ainda que as relações sociais sejam efêmeras, elas existem. Se não houver outros laços

9
Só para ficarmos na história mais recente do Brasil, temos tido como lutas importantes aquelas de movimentos por
serviços públicos, terra e moradia, desde a década de 1970, por democratização e direitos humanos, especialmente a
partir dos anos 80 e, nas décadas seguintes, os movimentos de identidade (feministas, GLS, de negros) e ecológicos.

9
econômicos, há ainda o consumo – ele próprio, um vínculo – como uma necessidade para a
sobrevivência do homem contemporâneo. Mesmo que a identificação com valores coletivos seja
fraca, existe um modo de conduta aprendido socialmente que rege minimamente os
comportamentos daqueles que vivem em sociedade.
Temos ainda as constatações de que, em muitas situações, a ausência de laços de
solidariedade orgânica são compensados pela criação de novos laços de solidariedade mecânica
(Nascimento, 1994) e que relações efêmeras, tais como as descritas no livro de Maffesoli (1991)
sobre as novas tribos urbanas, são também formas de solidariedade.
Vemos, por todos esses argumentos, que não existe uma condição verificável de
“excluído”. Existe, porém, o processo de exclusão como fragilização de vínculos sociais e de
ruptura de alguns deles, que podem desencadear outros cortes. Assim, parece mais adequado
falar em indivíduos com déficits de integração e/ou vulneráveis a problemas diversos como
perda do trabalho, de proteção social, de criminalidade etc.
No entanto, embora possa-se pensar em handicaps individuais que tornam mais provável
o processo de exclusão, convém lembrar que este tem origem social e em dimensão macro (a
reestruturação produtiva, a financeirização da economia , a crise do Estado-providência etc). Se
não tivermos clara essa observação, corremos o risco de atribuir ao indivíduo a culpa por aquilo
que tem origem em processos sociais.
Por fim, temos o “excluído” segundo a pesrspectiva que se opõe àquela dos laços sociais.
Nesse caso, não se trata de indivíduos isolados, mas de pessoas com uma forma de inserção
específica, subordinada e marginal. O “excluído” existe, sob essa abordagem, como alguém que
á carente materialmente e dominado politicamente, mas não como supérfluo. Sua participação na
sociedade é real e constante, ainda quando se faz no sentido de perpetuar a desigualdade.
O olhar sobre os “excluidos” não se dá, então, sobre pessoas isoladas, mas sobre grupos
de pessoas com as mesmas condições. Os “excluídos” são membros da classe trabalhadora, ainda
que desempregados.
A forma como são vistos por Demo os aproxima dos trabalhadores marginais, tais como
vistos pela análise histórico-estrutural da América Latina da década de 1970.

Considerações finais

Vimos que uma definição mais geral da exclusão social, que abrigue os elementos
considerados como constitutivos dela pelas várias perspectivas analisadas, é demasiadamente
genérica. Por conseqüência, o mesmo acontece com a categoria “excluídos”, que compreende
pessoas com caracetrísticas excessivamente diversas para que se confira rigor ao conceito,
aplicável a locais e espaços muito distintos.
Assim, o melhor é analisar separadamente cada uma das definições específicas de
exclusão social e, derivadamente, de “excluídos”.
A definição da exclusão correspondente à ausência de cidadania presta-se a identificar
áreas de maior vulnerabilidade à não-realização de direitos e a mapear os direitos cuja realização
tem mais entraves, e talvez as suas razões.
Mas se considerarmos que os “excluídos”, sob essa perspectiva, são aqueles indivíduos
que não alcançaram patamares de direitos que caracterizam um status de cidadãos, essa categoria

10
contém uma imprecisão teórico-metodológica. Um não-cidadão total – alguém que não tenha
direito nenhum, nem mesmo formalmente – é uma figura empiricamente não-verificável. O que
existem são direitos diversos que podem não se realizar, e motivos distintos para que isso ocorra.
Assim, embora se possa usar a idéia de exclusão social como uma espécie de “conceito-guarda-
chuva” para pensar os vários impedimentos à cidadania plena, a categoria “populações
excluídas”, em si, parece inviável.
Já quando se pensa a exclusão social como fragilização e ruptura de vínculos sociais,
temos a caracterização de um processo, mas não se constata na realidade uma condição na qual
todos os laços do indivíduo com a sociedade estejam cortados. Não se pode conceber a existência
de alguém sem nenhuma espécie de laço com a sociedade, flutuando num vazio social.
Desse modo, a exclusão como condição – materializada na pessoa do “excluído” – é no
máximo uma hipótese, que não se verifica na prática, embora seja útil para pensar um processo
de perdas e fragilizações. Apenas hipoteticamente, num exercício de análise teórica, pode-se
pensar o “excluido” como alguém que chegou ao fim desse processo. Se for para fazer referência
àquele que sofre o processo, contudo, parece mais adequado falar em pessoas (ou populações,
mas como um agregado de indivíduos atomizados) com baixo nível de integração social e/ou
vulneráveis à exclusão social.
Finalmente, no caso da exclusão como forma de inserção subordinada, não existem
grandes novidades em relação às teorizações de tipo histórico-estrutural sobre a marginalidade.
Dessa forma, seria mais útil utilizar a categoria “trabalhadores marginais” do que inventar uma
nova terminologia, que mais confundiria que ajudaria no avanço dos conhecimentos ao tratar por
outro nome grupos que já estavam definidos anteriormente e cuja essência não foi modificada.
Enfim, em nenhum dos casos, o “excluído” consiste numa categoria precisa
correspondente a uma realidade concreta, ainda que seja usado como referência à figura que
encarna a exclusão social. No máximo, pode ser utilizado para fins analíticos como tipo ideal,
num exagero de suas características principais. Todavia, por todos os argumentos elencados ao
longo do texto, parece mais realista falar em populações vulneráveis à exclusão social.

Bibliografia

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