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XIV Congresso Brasileiro de Sociologia

Grupo de Trabalho: Estratificação e Mobilidade Social

Impactos psicossociais da pobreza

Aline Accorssi – PUCRS


Pedrinho Arcides Guareschi – UFRGS

28 a 31 de julho de 2009
Rio de Janeiro (RJ)
Impactos psicossociais da pobreza1

Aline Accorssi2
Pedrinho Arcides Guareschi3

1. Introdução

Dados recentes sobre a realidade brasileira apontam para uma


diminuição significativa no número de pobres4 e indigentes na área metropolitana
nos últimos anos. Uma pesquisa, de agosto de 2008, realizada pela Assessoria
Técnica da Presidência e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicacada (IPEA,
2008), constatou a redução em 35% da população pobre de seis metrópoles
(São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Belo Horizonte e Porto Alegre) em
2003 para 24,1% em 2008, o que equivale a uma diminuição de quase um terço
em termos proporcionais. No mesmo período, a indigência também sofreu forte
redução. Em termos percentuais, pode-se considerar a redução de 48,3%, ou
seja, caiu pela metade o número de indigentes neste período.
Embora estes dados sejam de extrema importância, os consideramos
apenas como uma das facetas da problemática em torno da pobreza e da
desigualdade social. Isto porque, questões de ordem subjetiva, quase nunca
possíveis de serem quantificadas, trazem elementos fundamentais, tanto para o
melhor entendimento do que ocorre no cotidiano da população que é
considerada pobre, quanto para a elaboração de políticas sociais conectadas às
demandas e às particularidades dos usuários nos programas que atuam no
combate a pobreza.

1
Pesquisa em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS.
2
Psicóloga, Doutoranda em Psicologia. E-mail: alineaccorssi@gmail.com
3
Professor Orientador, Doutor em Psicologia Social - University Of Wisconsin At Madison
4
Para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2008), é considerado pobre as
pessoas com renda per capita igual ou inferior a meio salário mínimo; indigentes aquelas com
renda per capita igual ou inferior a um quarto do salário mínimo; e ricas aquelas pertencentes a
famílias cuja renda seja igual ou maior do que 40 salários mínimos.

2
Em outras palavras, podemos dizer que a pobreza é muito mais
complexa do que os determinantes econômicos conseguem avaliar e medir. É,
sobretudo, um plano constitutivo da identidade individual e social (Salama &
Destremau, 1999) que ainda necessita de um maior aprofundamento teórico-
prático para a sua compreensão (Camardelo, 2009). A presente pesquisa,
portanto, procura analisar aspectos do processo de constituição e transformação
do pensamento social contemporâneo a partir de um maior entendimento da
condição da pobreza no contexto brasileiro e das práticas a ela associadas. Para
isso, adotamos três planos de análise complementares.
O primeiro é o meio social de onde se produz a pobreza e se reproduz a
idéia de quem são estes pobres. Neste patamar de compreensão, procuramos
estudar teoricamente a relação da história do Brasil com o universo da pobreza
(trabalho ainda pouco desenvolvido, conforme aponta o historiador José Roberto
do Amaral Lapa, 2008). Além disso, pressupõe-se que, para haver o
entendimento do contexto, faz-se necessário um aprofundamento em outras
áreas de estudo concernentes, principalmente, ao funcionamento do sistema
capitalista e a ideologia neoliberal que o sustenta.
No segundo plano de análise abordamos os impactos que o contexto
social tem sobre os sujeitos que vivenciam a condição de pobreza. Neste
sentido, Paugam (2003), em seu estudo sobre a sociedade francesa, pôde
observar que os sujeitos iam aprendendo a ser e a agir conforme as “exigências”
oriundas do processo de contato com os serviços e trabalhadores sociais. Frente
a tais constatações, procuramos investigar as representações sociais que os
sujeitos expostos à condição de pobreza, possuem sobre eles mesmos, sobre o
meio que compartilham e sobre as medidas de atendimento a esta condição.
Adotamos, para isso, a perspectiva epistemológica e ontológica da Teoria das
Representações Sociais, pois ela fornece os elementos centrais para a
composição do eixo teórico-metodológico da pesquisa, bem como para a análise
informacional subseqüente.
O terceiro plano de análise da pesquisa, realiza-se no âmbito da
produção de significados. Sabemos que a problemática da pobreza tem sido o
alvo de intervenção em inúmeras práticas sociais e, paralelamente, foco de
pesquisas ao redor do mundo. Pesquisadores e agências multilaterais de
desenvolvimento investem na ampliação de conceitos e indicadores em torno

3
desta condição, porém, ainda assim, poucos estudos adotam a perspectiva
daquele que vive na condição de pobreza (Camardelo, 2009). Neste sentido,
este plano de análise procura, de modo coletivo e dialógico, romper com o
esvaziamento dos conceitos e possibilitar a emersão coletiva de significados
para a situação de pobreza. Para isso, círculos epistemológicos, melhor
explicados na parte metodológica, são realizados visando o surgimento de
espaços dialógicos. Busca-se também analisar se os conhecimentos socialmente
produzidos e compartilhados podem romper, ou não, com o ciclo de dominação e
subordinação subjetiva e social historicamente engendrado. Abaixo
apresentamos um gráfico que ilustra a pesquisa e os campos constituintes do
estudo.

- Compreensão do - Investigação das


contexto social onde Impactos representações
se produz a pobreza piscossociais da sociais do sujeito em
e se reproduz a pobreza na condição de pobreza
idéia de quem são formação do sobre si, sobre a
estes pobres; pensamento condição social que
- Investigação social vive e sobre as
teórica relacionando políticas de ajuda
a história do Brasil provenientes da
com o universo da sociedade civil e do
pobreza. Estado.
- Reflexão e diálogo coletivo como meio de
construção de significados;
- Identificação da potencialidade e dos limites
dos conhecimentos socialmente produzidos e
compartilhados, oriundos da prática cotidiana;
- Construção de uma prática de pesquisa
dialógica e emancipadora.

Em nosso ponto de vista, esta pesquisa traz elementos desafiadores e


inovadores em termos de produção de conhecimento para o campo acadêmico.
Ao acreditarmos que é “a partir das margens ou das periferias que as estruturas
de poder e de saber são mais visíveis” (Santos, 2008, p.28), nosso processo de
pesquisa necessariamente precisa romper com antigos modelos. Esta proposta
inspira-se nas contribuições do que atualmente tem sido chamado de Paradigma
do Oprimido (Gadotti, 2005) ou Civilização do Oprimido (Romão, 2004) e, até
mesmo, o que Boaventura de Sousa Santos (2008) tem sugerido em relação à
perspectiva pós-colonial.

4
Devido ao fato de que a presente pesquisa está em fase inicial, neste
artigo optamos por apresentar apenas a construção teórico-metodológica que a
sustenta. Esperamos que, na medida em que o estudo se consolidar, possa
contribuir tanto para o debate sobre o papel do(s) conhecimento(s), quanto para
o fornecimento de subsídios teórico-práticos à discussões no campo da
consolidação de políticas sociais emancipadoras.

2. Fundamentos teóricos

2.1 Conceito(s) de pobreza


Conforme sabemos, existem múltiplas definições do que é ou deixa de
ser a pobreza e, nem sempre, tais conceitos tratam do mesmo fenômeno. Ainda
que diferentes, eles têm disputado espaço na agenda social, embasado e
influenciado indicadores e políticas de assistência direcionadas aos então
classificados como pobres e miseráveis.
A partir do nosso contato com estudos em torno da pobreza, poderíamos
supor a existência de duas principais linhas-base para seu pensamento e sua
definição. De um lado, temos as abordagens de subsistência ou de pobreza
absoluta definidas a partir de critérios objetivos e precisos. Por outro, a pobreza
compreendida enquanto fenômeno multidimensional, em que se assume a
complexidade das experiências no centro da sua análise. Vejamos algumas
particularidades destas definições.
Na linha do que tem se considerado mínimo necessário para sobreviver
encontramos a abordagem chamada de subsistência, equivalente ao que hoje
em dia chama-se de pobreza absoluta. Esta condição está relacionada às
questões de sobrevivência física, ou seja, ao “não-atendimento das
necessidades vinculadas ao mínimo vital” (Rocha, 2008, p. 11) indispensável
para o exercício das atividades humanas nos variados papéis sociais que o
sujeito atua, como no trabalho, na família, etc. Esta perspectiva de análise
unidimensional tem sofrido ataques devido a dois fatores: primeiramente pelo
reducionismo biológico-alimentar que ela atribui às necessidades do sujeito e,
além disso, pelo fato de que não há como estabelecer um critério absoluto em
relação à quantidade de energias e de nutrientes, por exemplo, que os seres-
humanos necessitam para manterem-se vivos, pois tal aspecto depende de

5
inúmeros fatores, tais como o lugar, as condições climáticas, as atividades
realizadas, etc.
Já na concepção ligada às necessidades básicas, começa a haver uma
mudança no entendimento do que é o mínimo e passa-se a lidar com a pobreza
enquanto um fenômeno multifacetado. Este conceito inclui no campo das
necessidades de sobrevivência dois conjuntos de fatores: é necessário um certo
mínimo de condições para o consumo privado, como comida, roupas,
equipamentos, medicamentos, etc.; e um outro grupo de necessidades
relacionado aos serviços essenciais providos para a sociedade, como água
potável, saúde, educação, transporte público, etc. (Rocha, 2008).
O conceito de privação (ou pobreza) relativa, por sua vez, reconhece a
existência de interdependência entre as estruturas social e institucional vigentes
no cotidiano, ou seja, considera que a relação entre privação e renda é mutável
ao longo do tempo e entre as comunidades que ocupam diferentes territórios
(Codes, 2008). Sendo assim, a pobreza passa a ser definida em função do
contexto social em que se vive, a partir da consideração do padrão de vida e da
maneira como as necessidades são suprimidas em certa realidade
socioeconômica. Ser pobre significa, portanto, não poder obter determinados
produtos ou condições e isto mantém o sujeito distante da possibilidade de
ocupar determinados papéis sociais que seria esperado dele enquanto membro
da sociedade (Rocha, 2008).
Um passo além, encontramos outras definições ainda mais relativas e
multifacetadas. Sen (2000), por exemplo, propõe o entendimento da pobreza
como privação de capacidades básicas que são intrinsecamente importantes
para o ser humano. Em contraposição, o autor chama a atenção para o fato de
que conceitos que tomam a renda como critério exclusivo de análise, adotam
uma visão tipicamente instrumental. Na verdade, diz ele, a renda não é o único
instrumento de geração de capacidades, muito embora a baixa renda seja uma
das maiores causas da pobreza e da privação das capacidades de uma pessoa.
O perigo das definições, em que a relatividade do fenômeno é
considerada ponto chave, é o fato de que podemos cair em uma armadilha
ideológica ao não conseguir mais nomear ou quantificar quem é pobre. Conforme
Telles (2001, p. 51), ao radicalizar o discurso da cidadania, pobre e pobreza
deixam de existir. “O que existe, isso sim, são indivíduos e grupos sociais em

6
situações particulares de denegação de direitos” (…) “A indiferenciação do pobre
remete a uma esfera homogênea das necessidades no qual o indivíduo
desaparece como identidade, vontade e ação, pois é plenamente dominado
pelas circunstâncias que o determinam na sua impotência” (pp. 51-52). Por outro
lado, as concepções que consideram a multidimensionalidade da pobreza,
puderam chamar a atenção para fatores antes negados e que alimentam o
círculo vicioso em que a pobreza se insere. De qualquer modo, acreditamos que
o fenômeno da pobreza e da desigualdade, assim como os conceitos sobre elas,
são construções e produções sociais, desenvolvidas e consolidadas por meio de
estruturas, agentes e processos históricos (Cimadamore & Cattani, 2007;
Paugam, 1999; 2003).
Ao adotarmos a categoria pobreza enquanto uma construção social,
percebemos que, historicamente, as pessoas inseridas nesta camada
socioeconômica nem sempre foram vistas e tratadas da forma como a são hoje.
Castel (2001) em seu estudo sobre a sociedade salarial mostra, por exemplo, o
surgimento da figura do vagabundo que em nossa atual sociedade passa a
ocupar o papel e, de algum modo, a ser o inempregável. O autor percorre a
história e mostra como a concepção de exclusão enquanto ausência de relações
gera uma visão estática da sociedade, o que não corresponde certamente ao
tensionamento presente nela mesma. Na verdade, a exclusão nada mais é do
que um conjunto de relações sociais da sociedade tomada como um todo. Não
há ninguém que esteja fora da sociedade, o que há é um conjunto de posições
cujas relações com seu centro estão mais ou menos enfraquecidas.
Outro estudo seminal para a compreensão do que se tem chamado de
questão social foi realizado por Sèrge Paugam (2003). Este nos alerta para o fato
de que a pobreza não é um fenômeno natural e imutável, ao contrário, a pobreza
e as pessoas que vivem nesta condição têm ocupado lugares diversos,
conforme, basicamente, o conjunto de interesses e forças existentes no
momento histórico que a constitui. Portanto, a pobreza corresponde muito mais a
um processo do que um estado perpétuo e imutável. “Toda definição estática da
pobreza contribui para agrupar, num mesmo conjunto, populações cuja situação
é heterogênea, ocultando a origem e os efeitos a longo prazo das dificuldades
dos indivíduos e de suas famílias” (Paugam, 1999, p.68). Assim, o autor elaborou
um conceito chamado de desqualificação social para caracterizar o movimento

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de expulsão gradativa, para fora do mercado de trabalho, de camadas cada vez
mais numerosas da população e as experiências vividas na relação de
assistência, ocorridas nas diferentes fases desse processo. Para isso, ele
buscou diversificar em três tipos de populações, segundo a relação que os
sujeitos mantinham com os serviços sociais, a saber: os fragilizados, os
assistidos e os marginalizados. Em linhas gerais, Paugam (2003) pôde perceber
que as identidades e as relações sociais que tais pessoas estabeleciam iam se
deteriorando, ou melhor, iam aprendendo a ser e a agir conforme as “exigências”
oriundas do processo de contato com os serviços e trabalhadores sociais.
Porém, para compreendermos como ocorrem esses processos de constituição e
transformação da identidade, é necessário delimitarmos a abordagem
psicossocial que embasa nossa reflexão. Vejamos.

2.2 Abordagem psicossocial


Buscamos na Teoria das Representações Sociais (RS) os elementos
conceituais para a construção da problemática de pesquisa. Esta teoria procura
compreender o ser humano através do estudo das crenças, do conhecimento
oriundo do senso comum e, sobretudo, através do poder da racionalidade
dialógica. Conforme Marková (2006), as RS não estão fundamentadas no
raciocínio absoluto e não há uma racionalidade individual pura. Ao contrário, elas
estão enraizadas no passado, na cultura, nas tradições e na linguagem,
resultados do viver coletivo.
A representação é uma estrutura de mediação entre o sujeito-outro,
sujeito-objeto que se constitui através da contínua atividade de ação
comunicativa do ser humano, ou seja, através dos processos comunicacionais
que envolvem tanto a linguagem, quanto às ações de tipo não-discursivo
presentes no fazer cotidiano. É nesta atividade comunicativa da representação
que produzimos símbolos, que damos sentidos ao que nos rodeia. Podemos
dizer que a representação está imersa na ação comunicativa, isto porque é a
própria ação comunicativa que forma as representações e, ao mesmo tempo,
são estas representações que possibilitam a ação comunicativa entre os sujeitos
(Jovchelovitch, 2004). Duveen (2003) no prefácio do livro Representações
Sociais de Moscovici, afirma que “as representações podem ser o produto da

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comunicação, mas também é verdade que, sem a representação, não haveria
comunicação” (p. 22).
O trabalho da representação é multifacetado e se move incessantemente
do individual ao social e do social ao individual, constituindo-se, desse modo, em
foco privilegiado para a compreensão dos fenômenos psicossociais. O estatuto
da representação, nas palavras de Jovchelovitch (2004), é polivalente, ou seja, é,
ao mesmo tempo, uma construção ontológica, epistemológica, psicológica,
social, cultural e histórica. Portanto, compreender um destes atributos requer o
entendimento do mesmo em relação a todos os outros, já que eles são
dimensões simultâneas do sistema representacional.
Quando as pessoas se comunicam, por exemplo, elas estão
estabelecendo relações inseridas em um ambiente social, cultural e histórico
específico. Elas (re)produzem ativamente os meios simbólicos que constroem
uma representação particular de um objeto e, por sua vez, esta representação
entra na rede de outras, em um quadro social, cultural e histórico.
Este processo, conseqüentemente, tem um caráter ontológico na medida
em que desempenha um papel “constitutivo na emergência do sujeito humano
como um ser que representa a si mesmo e, portanto, possui uma identidade”
(Jovchelovitch, 2004, p.23). É epistemológico, pois permite o (re)conhecimento
do saber sobre o objeto, ou melhor dito, o saber sobre o Eu e sobre o mundo. É
um processo psicológico, pois se estrutura e se manifesta como uma atividade
psíquica suscetível às armadilhas da paixão, da ilusão e do desejo. É social na
medida em que o “intersubjetivo é sua condição de possibilidade da história e da
cultura” (Jovchelovitch, 2004, p.23).
Podemos dizer que as RS são realidades sociais e culturais e não
somente produções simbólicas individuais. “Elas são um ambiente, como diria
Moscovici.. As RS existem tanto na cultura, como na mente das pessoas” (…)
“Expressam e estruturam identidades, bem como as condições sociais dos
atores que as reproduzem e as transformam” (Guareschi, 2000, p. 76). Perante o
desafio de compreender os sujeitos em determinado contexto e as
Representações Sociais que eles produzem em torno da condição de pobreza,
elaboramos um caminho metodológico que possibilita o olhar e a compreensão
do espaço do “entre”. Ou seja, nem sujeito, nem meio: mas sim o universo
representacional que ali se constitui. Tendo exposto estes elementos teóricos,

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gostaríamos de retomar nosso campo de pesquisa e os objetivos investigativos
decorrentes.

3. Objetivos
O objetivo geral desta pesquisa é analisar, a partir da compreensão da
pobreza e das práticas a ela associadas, aspectos do processo de constituição e
transformação do pensamento social. Por pensamento social, compreende-se o
conjunto de crenças, representações, saberes que são compartilhados pelos
grupos sociais na vida cotidiana e nas relações nela estabelecidas, que
garantem um certo status de coesão social (Guareschi 2007; Moscovici, 2003).
Para isso, procura alcançar os seguintes objetivos específicos:
- compreender o contexto sócio-histórico brasileiro onde se produz a
pobreza e se reproduz a idéia de quem são os pobres;
- mapear as representações sociais da pobreza, do meio social que a
produz e das políticas sociais de combate a esta condição, a partir daqueles que
são considerados pobres;
- possibilitar, através da dialogicidade, a emersão de significados sobre a
condição de pobreza.

4. Caminho investigativo
Partimos do pressuposto de que o conhecimento humano não é fruto de
uma racionalidade pura, nem mesmo o resultado de uma apreensão de
informações que reproduz a realidade externa tal qual ela é/ou parece ser. Ao
contrário, nossas idéias, conhecimentos, são representações, ou seja, formas
dialógicas produzidas pelas inter-relações eu/outro/objeto-mundo (Jovchlovitch,
2008) e, nesse sentido, a construção metodológica da pesquisa ganha vital
importância.
Sabemos que para compreender as experiências vividas e os impactos
das mesmas na constituição e transformação do pensamento social, faz-se
necessário à elaboração de uma pesquisa plural (Bauer, Gaskell & Allum, 2003).
Neste trabalho, portanto, se sistematiza a construção de dois corpora de
pesquisa, nomeados de Exploratório e de Hermenêutico, que, embora sejam
complementares, se diferenciam tanto na forma como são produzidas as
informações, quanto na sistematização e interpretação das mesmas.

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O objetivo da construção de um corpus Exploratório é o de mapear as
representações que circulam no meio social e que influenciam a constituição da
identidade do sujeito. Para isto, elegemos a técnica de entrevistas narrativas
(Jovchelovitch e Bauer, 2003; Flick, 2004), uma vez que este tipo de entrevista
acessa com profundidade o relato da experiência investigada através da fala
livre.
Estas entrevistas estão sendo feitas com pessoas pertencentes a três
grupos diferentes, a saber: aqueles que são assistidos por políticas públicas
estatais direcionadas ao combate da pobreza; aqueles assistidos por projetos ou
programas provenientes da sociedade civil; e aqueles que, embora se encontrem
na condição de pobreza socioeconômica, nunca foram assistidos pelo Estado ou
por programas da sociedade civil. O número de entrevistas narrativas deste
estudo não está pré-determinado, pois é a partir do critério de saturação de
dados que passaremos para a próxima etapa. As informações textuais,
resultantes da transcrição das entrevistas, são trabalhadas na perspectiva da
Análise Temática, a partir da abordagem descrita por Jovchelovitch & Bauer
(2003).
Já com o corpus Hermenêutico temos a intenção de possibilitar, através
da dialogicidade, a emersão de significados sobre a condição de pobreza. Neste
corpus, procuramos defender, o uso ainda pouco difundido dos Círculos
Epistemológicos, enquanto um tipo de metodologia que abriga em si um
potencial emancipador e transformador da práxis na produção de conhecimento
(Romão et al, 2006). Enquanto técnica de pesquisa, caracterizam-se por serem
espaços democráticos de diálogo que buscam refletir sobre certo fenômeno ou
fato, com o objetivo de produzir novos significados para o mesmo. Funcionam de
modo semelhante aos círculos de cultura, no que se refere ao levantamento do
universo (palavras, temas ou contextos) gerador. Os temas, que daí surgem,
tornam-se, nos círculos epistemológicos, as hipóteses geradoras que conduzem
o debate.
Optamos por esta técnica de pesquisa para a construção do presente
trabalho, pois, além de ser um método crítico e coerente com os nossos
pressupostos teóricos, ela produz situações e problemas semelhantes ao que
encontramos no cotidiano das comunidades. Um exemplo disso é o modo como
produzimos novos conhecimentos e a mudança que dele pode surgir. Vejamos.

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Compreendemos que o conhecimento, socialmente produzido e
compartilhado, é fruto de um processo, de um luta de interesses entre atores e
instituições sociais, que se sustenta na vida cotidiana por períodos mais ou
menos longos. Esse processo, conforme Moscovici (2003), é a própria “ação de
sujeitos que agem através de suas representações da realidade e que
constantemente reformulam suas próprias representações. Estamos sempre em
uma situação de analisar representações de representações!” (p. 218) ou seja,
em um movimento contínuo de interpretar e re-interpretar a realidade que nos
cerca. A inconclusidade nos coloca frente-a-frente com as fragilidades do mundo
e do ser humano, mas são elas também que nos elevam ao campo de
possibilidade de sempre ser mais, e, por isso, factível de ser transformado.
Nas palavras de Freire, sair desta realidade domesticadora, libertar-se de
sua força, demanda ação e reflexão. A “realidade opressora, ao constituir-se
como um quase-mecanismo de absorção dos que nela se encontram, funciona
como uma força de imersão das consciências” (Freire, 1987, p. 38). Os círculos
epistemológicos podem ser um espaço legítimo de rompimentos, de produção de
conhecimento, desde que o diálogo seja o elemento central do processo. Isto
implica, como sabemos, na demarcação de espaços democráticos e não de
subordinação de conhecimentos de uns em relação a outros (Romão et al, 2006).
Mas aqui, um problema prático se apresenta. Como lidar com as relações
assimétricas entre o pesquisador e pesquisando? Relações opressivas,
historicamente construídas, fazem parte do mundo representacional do chamado
campo de pesquisa que afasta e, de certo modo, impossibilita o diálogo entre o
“cientista” e o “sujeito”.
Imaginamos que o estabelecimento de vínculos significativos seja
fundamental para possibilitar a construção de um espaço dialógico, passível de
romper com relações estereotipadas. Cientes de tal dificuldade, a nossa
pesquisa constituirá apenas um grupo ao longo da pesquisa, mas com a
realização de vários encontros entre os mesmos participantes. Não definiremos
de antemão quantos participantes, nem mesmo o número de encontros. Todas
estas definições são parte do processo de construção do próprio grupo. Isto
porque acreditamos que o conteúdo e a forma não possam ser dicotomizados. O
único critério de homogeneidade que será adotado é ter vivido ou estar vivendo

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em condição de pobreza socioeconômica. Abaixo apresentamos uma tabela
com a síntese do que está sendo realizado neste estudo.

Corpus Instrumento Pesquisandos Caracterização Finalidade


Explora- Entrevistas Sujeitos em Assistidos por Mapear as representações sociais que os
tório narrativas condição de políticas sujeitos têm sobre si mesmos;
pobreza públicas estatais Mapear as representações sociais que os
socioeconômica direcionadas ao sujeitos têm sobre a pobreza;
combate da Mapear as representações sociais que os
pobreza sujeitos têm sobre os programas e/ou
Assistidos por benefícios usufruídos.
projetos ou
programas
provenientes da
sociedade civil
Nunca
assistidos
- Análise Elaboração de categorias analíticas ou eixos temáticos em torno das informações;
temática: Preparação de materiais gráficos para a visualização dos mapas representacionais;
sistematização e Interpretação das informações.
interpretação
das informações
provenientes
das entrevistas
- Preparação dos Escolha de tópicos para o debate em grupo, considerando as informações
círculos provenientes das entrevistas e as sistematizações realizadas até o momento.
epistemológicos
Corpus Instrumento / Pesquisandos Caracterização Finalidade
Método
Herme- Círculos Grupo fixo de Independe Debater as origens da pobreza na sociedade
nêutico epistemológicos sujeitos que brasileira;
vivem ou Examinar o significado simbólico da condição
viveram em de pobreza;
condição de Analisar os fatores que contribuem para
pobreza manter e/ou romper com a dominação
socioeconômica subjetiva e social que os grupos em condição
de pobreza socioeconômica vivenciam;
Compreender os impactos que a condição de
pobreza causa na construção da identidade
social;
Realizar a interpretação e re-interpretação
coletiva;

- Organização e Elaboração e/ou ampliação das categorias analíticas em torno das informações;
sistematização Elaboração e/ou ampliação dos materiais gráficos para a visualização dos mapas
das informações representacionais;
provenientes Re-interpretação das informações.
dos círculos
epistemológicos

Do nosso ponto de vista, produzir conhecimento ou (cons)ciência


significa, antes de mais nada, reconhecer as próprias perspectivas, os lugares
que ocupamos no cotidiano e de onde nos posicionamos para nos expressar.
Significa reconhecer que todo conhecimento está inserido em um campo de
possibilidades e, neste sentido, dialogar e produzir coletivamente amplia nossa
capacidade de análise e compreensão. Nesta pesquisa, especialmente com o
uso dos círculos epistemológicos, todos os que participam, “pesquisadores e

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pesquisados, são sujeitos da pesquisa que, enquanto pesquisam, são
pesquisados e, enquanto são investigados, investigam” (Romão et al, 2006, p.
177). Devido a esta compreensão, os sujeitos pesquisados aqui adquirem o
status de sujeitos pesquisandos, uma vez que os mesmos não são meros
objetos de pesquisa, nem mesmo alvo de análises e de enunciações alheias,
mas sim sujeitos protagonistas, que ocupam “lugares de análise e enunciação”
(p. 178).
Tal afirmativa ganha sustentação nas reflexões e questionamentos de
Paulo Freire, quando este diz: “só o poder que nasça da debilidade dos
oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos”, pois “quem, melhor
que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de
uma sociedade opressora?” (Freire, 1987, p. 31). Neste sentido, os oprimidos
têm uma vantagem gnosiológica, não por uma suposta superioridade
epistemológica ou ontológica, mas por sua posição no processo sócio-histórico.
“Somente aos oprimidos e às oprimidas interessa a reflexão sobre as relações de
opressão, bem como somente a eles e a elas interessa a transformação dessas
relações” (Romão, 2008, p. 84).
No entanto, todos nós, oprimidos ou não, somos inacabados,
inconclusos e incompletos5. Devido a tais características, tanto o pesquisador,
quanto os pesquisandos, produzem verdades parciais e, ao se encontrarem na
perspectiva do diálogo, produzem (cons)ciência. Ao assumirmos a nossa
incompletude, assumimos também que é somente através da relação com o
outro que podemos ser mais.

5. Referências bibliográficas
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conhecimento: evitando confusões. Em: M. Bauer e G. Gaskell (Org.),
Pesquisa Qualitativa com Texto, Imagem e Som: um manual prático (pp. 17-
36). Petrópolis, RJ: Vozes.

5
Estas são categorias freirianas que, conforme Romão et al (2006), compõem uma espécie de
ontologia universal. “São incompletos, porque necessitam dos outros; são inconclusos, porque
estão em evolução; e são inacabados, porque são imperfeitos” (p. 178).

14
Camardelo, A. M. P. (2009). A significação da pobreza a partir dos sujeitos que a
vivenciam. Tese de doutorado. Programa de Pós Graduação em Serviço
Social, 217p. PUCRS.
Castel, R. (2001). As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário (3ª
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29 though 31
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