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ANAIS

V.4 N.1 (2022)


ISSN: 25944533
VII SEMINÁRIO INTERNACIONAL
Lutas Sociais, Ofensiva Ultraneoliberal e Serviço Social:
resistências e articulações internacionais

REALIZAÇÃO APOIO
Comissão Organizadora do Seminário

Professora Doutora Ana Luiza Avelar de Oliveira – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Ana Maria Ferreira – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Carina Berta Moljo – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Cláudia Mônica dos Santos – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Marina Monteiro de Castro e Castro – Universidade Federal de Juiz
de Fora
Doutora Emília Nunes Grillo- TAE da Faculdade de Serviço Social/Universidade Federal
de Juiz de Fora

Comissão Organizadora dos Anais

Professora Doutora Ana Luiza Avelar de Oliveira – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Ana Maria Ferreira – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Carina Berta Moljo – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Cláudia Mônica dos Santos – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Marina Monteiro de Castro e Castro – Universidade Federal de Juiz de Fora

Comissão Científica

Professor Doutor Alexandre Aranha Arbia – Universidade Federal de Juiz de Fora


Professora Doutora Sabrina Pereira Paiva – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Edneia Alves de Oliveira – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professor Doutor Marco Jose de Oliveira Duarte – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Maria Carmelita Yazbek – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Professora Doutora Maria Helena Elpidio Abreu – Universidade Federal do Espírito Santo
Professora Doutora Alzira Maria Baptista Lewgoy – Universidade Federal do Rio Grande Do Sul
Professora Doutora Elaine Rossetti Behring – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Professora Doutora Alcina Maria de Castro Martins – Instituto Superior Miguel Torga
Professor Doutor Sergio Andes Quintero Londoño – Universidad De Caldas
Professora Doutora Sónia Mafalda Pereira Ribeiro – Universidade Lusófona do Porto
Professora Doutora Paula Molina Vidal – Universidad de Chile
Professor Doutor Miguel Ángel Oliver Perell – Universitat de Les Illes Balears
Professor Doutor Roberto Orlando Zampani – Universidad Nacional de Rosario

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Pareceristas

Professora Doutora Alessandra Ribeiro de Souza – Universidade Federal de Ouro Preto


Professora Doutora Alexandra Aparecida Leite Toffanetto Seabra Eiras – Universidade Federal de
Juiz de Fora
Professora Doutora Ana Luiza Avelar de Oliveira – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Ana Maria Ferreira – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professor Doutor Bruno Bruziguessi Bueno – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Carina Berta Moljo – Universidade Federal de Juiz de Fora
Assistente Social Mestre Daniela Leonel de Paula Mendes – Universidade Federal de Minas
Gerais/Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Edneia Alves de Oliveira – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Estela Saleh da Cunha – Universidade Federal de Juiz de Fora
Assistente Social Mestre Fellipe Perantoni - Instituto Federal da Paraíba - campus João
Pessoa/Universidade Federal do Rio de Janeiro
Professor Mestre Gustavo Gonçalves Fagundes – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Isaura Gomes de Carvalho Aquino – Universidade Federal de Juiz de Fora
Assistente Social Mestre Jessica Ribeiro Duboc - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Professora Doutora Joseane Barbosa de Lima – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Luciana Gonçalves Pereira de Paula – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professor Doutor Marco Jose de Oliveira Duarte – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Mariana Costa Carvalho – Universidade Federal de Viçosa
Professora Doutora Marina Monteiro de Castro e Castro – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Mônica Aparecida Grossi Rodrigues – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Paula Martins Sirelli – Universidade Federal Federal Fluminense - campus Rio
das Ostras
Professora Doutora Sabrina Pereira Paiva – Universidade Federal de Juiz de Fora
Professora Doutora Susana Maria Maia – Universidade Federal Fluminense - campus Rio das
Ostras
Professora Doutora Viviane Souza Pereira – Universidade Federal de Juiz de Fora

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Sumário

EIXO 1 - Ofensiva ultraneoliberal do capital e lutas sociais

Modo de produção capitalista e reprodução ampliada da barbárie. caminhos e


descaminhos para a classe trabalhadora ........................................................... 13
Maria Fernanda Escurra; Roberto Coelho do Carmo
Deslocamentos internos forçados sob a perspectiva marxista ........................... 22
João Vitor Bitencourt; Ariane Rego de Paiva
Neodesenvolvimentismo arraigado: provocações ao pensamento crítico
brasileiro da atualidade ....................................................................................... 32
Fabrício Augusto Araújo Ribeiro
Crise do capital e relações de trabalho no Brasil: indicações para análise ........ 42
Ana Luiza Avelar de Oliveira
O processo de precarização do trabalho no Brasil: as novas formas de
exploração da contemporaneidade ..................................................................... 51
Daiana Ferreira de Almeida; Renata Uchôa
A organização dos trabalhadores no século xxi: desafios no contexto
neoliberal ............................................................................................................. 59
Andréa Fão Carloto
Os obstáculos para o sindicalismo brasileiro após o golpe de 2016 .................. 68
Gustavo Giovanny Dos Reis Apóstolos
A uberização do trabalho e a criminalização da classe trabalhadora na
ofensiva neoliberal .............................................................................................. 77
Mariana Tavares Sousa, Geovanna Gonçalves dos Santos; Camilla Eduarda
Santos de Battisti
Capital fictício e a lógica destrutiva da acumulação capitalista: o caso da
barragem da Samarco ........................................................................................ 85
Jéssica Ribeiro Duboc
Mineração extrativista em Mariana (MG): o capitalismo moendo vidas e a
natureza .............................................................................................................. 94
João Caio Oliveira da Silva; Daniele da Silva Correia

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Eixo 2 - As expressões da exploração/opressão de classes no contexto da ofensiva
ultraneoliberal do capital

Racismo estrutural e exploração: da escravidão ao (des)privilégio da servidão


capitalista ............................................................................................................ 104
Patricia da Silva Coutinho
A paz está proibida: construtos da violência racial e repressão às “classes
perigosas” (1970) ................................................................................................ 113
Rafael Matheus de Jesus da Silva; Dagoberto José Fonseca
Força de trabalho supérflua, desocupação, inatividade e raça/cor: uma
interpretação dos dados estatísticos da PNAD/IBGE ......................................... 122
Elizete Maria Menegat; Dayane A. Cardoso da Silva
Racismo estrutural em tempos de neoconservadorismo: uma análise das
práticas racistas em empresas aéreas ............................................................... 132
Aline Macêdo Câmara Gracindo; Ellison Patrício Cassiano; Mayana Gerlany
Costa da Silva
Genocídio da juventude negra: análise sobre mortes violentas em uma região
do município de Juiz de Fora .............................................................................. 140
Pâmela Soares Oliveira
A segregação espacial como expressão da exploração e da opressão das
classes pobres no Brasil ..................................................................................... 149
Erika de Almeida Winter
Trabalho feminino na realidade nacional: relações de exploração, dominação
e opressão .......................................................................................................... 158
Marina Fernandes Toledo Lourenço
O debate em torno da religião e os consumidores de drogas ............................ 167
Dayana Barbosa Furtado

Eixo 3 - Lutas Sociais, resistências e internacionalização

Ofensiva ultraneoliberal: o ataque as lutas sociais urbanas como resposta à


crise do capital .................................................................................................... 177
Kathleen Pimentel dos Santos
Da inconsequência irracional à crise política: notas sobre classismo, lutas
sociais e antirracismo .......................................................................................... 186

5
Fillipe Perantoni
Memórias de lutas e resistência: o que Walter Benjamin tem a nos dizer? ........ 195
Juliana Viana Ford; Gustavo José de Toledo Pedroso
O debate sobre os novos movimentos sociais: perspectivas e críticas .............. 204
Euler Antônio Campos
Relações entre questão agrária, questão social e lutas sociais na formação
econômico-social brasileira ................................................................................. 213
Anderson Martins Silva
Agroecologia e soberania alimentar: contribuições às experiências de
formação política no Brasil e na Espanha ........................................................... 222
Mônica Aparecida Grossi; David Gallar Hernández
Considerações sobre a greve internacional de mulheres de 2017 ..................... 231
Lucimara dos Reis Pinheiro; Maria Lúcia Duriguetto
Questões de gênero, movimento feminista e serviço social ............................... 239
Livia Neves Masson; Giovanna Urbano; Elizabeth Regina Negri Barbosa
Lutas sociais e Serviço Social: a diversidade sexual na revisão da literatura
profissional brasileira .......................................................................................... 247
Marco José de Oliveira Duarte; Carolina Pereira Fernandes; Matheus Souza
Silva

Eixo 4 - Política Social, trabalho e questão social: retrocessos e resistências na


conjuntura atual

Política social, avanços, retrocessos e desafios: uma análise a partir da teoria


valor-trabalho ....................................................................................................... 257
Darana Carvalho de Azevedo
Neoliberalismo, fundo público e a seguridade social brasileira ........................... 266
Sarah Danielle Campos da Silva
A (des)proteção social e a superexploração da força de trabalho ...................... 273
Laís Duarte Corrêa; Shirlene Anabor
A cena de uso da tecnologia e a desigualdade social do Brasil ......................... 281
Maria Alice Silva Santos; Félix Roberto Coelho Do Carmo
Crise e retrocesso nas políticas e direitos sociais: opressões da classe
trabalhadora no governo Bolsonaro .................................................................... 289
Joyce Queiroga Resende

6
Fome, trabalho e questão social no Brasil: desafios e retrocessos em tempos
pandêmicos ......................................................................................................... 300
Daniel Luiz Pitz; Roberta Sperandio Traspadini
A política municipal para população em situação de rua em Belo Horizonte:
uma proposta de análise dos anos de 2017 a 2022 ........................................... 309
Olga Inah-Inarê Aquino Ribeiro
Mulheres em cárceres ......................................................................................... 318
Graziela de Carvalho Maia Campos; Dagoberto José da Fonseca
Transvestigêneres e precariedade da vida: interseccionalidade, prostituição e
trabalho em realidade interiorana ........................................................................ 326
Dandara Felícia Silva Oliveira; Marco José de Oliveira Duarte
Escalada conservadora e ultraneoliberalismo: indicações a partir da política de
assistência social ................................................................................................. 334
Mossicleia Mendes da Silva; Anna Paola Tuão de Oliveira Souza
Política de assistência social, benefícios eventuais e desafios atuais ................ 343
Aline Macêdo Câmara Gracindo; Bruna Cristina Silva Oliveira
Benefícios eventuais em tempos de pandemia da covid-19: uma análise das
demandas e desafios na oferta no município de Parintins/AM ........................... 352
Isabelle Ferreira Teixeira; Dayana Cury Rolim
Gestão da política de assistência social no contexto da pandemia do covid 19
na cidade de São Paulo ...................................................................................... 359
Robson de Jesus Ribeiro; Maria José de Oliveira Lima
Negacionismo e desvalorização da ciência: expressões do conservadorismo
na política de saúde brasileira atual .................................................................... 370
Isabella da Paixão Alves; Bruna Atalaya de Almeida Rocha; Débora Cristina
Lopes Santos; Isadora das Graças Freitas; Laura Marcelino Leal; Marina
Monteiro de Castro e Castro
Comunidades terapêuticas no norte fluminense do estado do RJ: análises
iniciais e preocupantes ........................................................................................ 378
Juliana Desiderio Lobo Prudencio; Laís Santos Theodoro; Késsia Ramos
Ferreira; Victoria Lavignia Oliveira Baqueiro
A atuação dos residentes na estratégia de saúde da família em tempos de
pandemia COVID–19 .......................................................................................... 387
Luciane da Silva Ferreira

7
A ausência de políticas sociais para pessoas trans e a judicialização do direito
à cidadania .......................................................................................................... 395
Júlio Mota de Oliveira

Eixo 5 - Ofensiva ultraconservadora e resistências: formação e trabalho


profissional

Tendências da produção do conhecimento na graduação em Serviço Social:


análise a partir das monografias ......................................................................... 406
Alessandra Ribeiro de Souza; Liliane Maria Domingues da Silva; Palloma
Efigenia Quirino
A indispensabilidade do estudo da (crítica da) economia política para a
formação em Serviço Social ................................................................................ 414
Juliano Zancanelo Rezende
O ensino da questão social na formação dos assistentes sociais ...................... 423
Camila Maewe da Silva Bandeira; Thaísa Teixeira Closs
As obras de Ricardo Antunes na formação profissional em Serviço Social:
apresentando pistas… ......................................................................................... 432
Hiago Trindade; Ana Lídia Alves; Mateus Matias da Silva; Rayane Abrantes
Liberdade, democracia e cidadania: tendências identificadas no debate dos
fundamentos ........................................................................................................ 440
Fátima da Silva Grave Ortiz; Josiley Carrijo Rafael; Paulo Roberto Felix dos
Santos
A ética enquanto objeto de pesquisa na contemporaneidade ............................ 449
Raquel Pereira da Silva
A pesquisa na formação dos/as assistentes sociais em meio à precarização
educacional no ensino superior ........................................................................... 457
Jamile Santos Brito
Notas sobre a pesquisa e o ensino do Serviço Social na história ....................... 468
Esther Luíza de Souza Lemos; Maurílio Castro de Matos
Questão racial e Serviço Social: os desafios para o enfrentamento do racismo
na formação profissional ..................................................................................... 477
Dagoberto José Fonseca; Tahina Tátila da Silva
“Ó, vida futura! nós te criaremos”: 50 anos do serviço social na UFMT .............. 483
Josiley Carrijo Rafael

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Eixo 6 - Ofensiva ultraconservadora e resistências: formação e trabalho
profissional e Internacionalização do Serviço Social: as articulações
contemporâneas na formação e trabalho profissional

Serviço Social e a pandemia da COVID-19: contribuições de pesquisa


internacional ........................................................................................................ 496
Marina Monteiro de Castro e Castro; Sónia Ribeiro
Irracionalismo, neoconservadorismo e incidências no serviço social: notas
para o debate ...................................................................................................... 504
Jhony Oliveira Zigato; Maria Angelina Baía de Carvalho de Almeida Camargo;
Mônica Paulino de Lanes
Os fundamentos do serviço social: análise das tendências teórico-
metodológicas presentes no debate do serviço social ....................................... 511
Carina Berta Moljo; Thaíse Seixas Peixoto de Carvalho; Shirley da Silva
Oliveira; Mariana Leite Péres
Serviço Social e projeto profissional: algumas reflexões .................................... 519
Luciana Gonçalves Pereira de Paula
As possibilidades do trabalho frente à atual crise capitalista: contribuições ao
Serviço Social ...................................................................................................... 531
Raphael Dutra Bazarello; Cláudio Ayrá Ribeiro Pinto; Larissa Pereira Silva
Pandemia por COVID-19 e Serviço Social: requisições institucionais e
atribuição privativa ............................................................................................... 540
Ingrid Adame Moreira
Trabajo Social en el contexto de COVID-19: retrocesos, resistencias y
desafios en la región ibero-americana ................................................................ 549
Virgínia Alves Carrara; Miguel Ángel Oliver; Rosana Matos-Silveira; Joana
Maria Mestre; Ariane Rodrigues de Paula; Ana Caroline Silva
A dimensão ética na formação de assistentes sociais na Espanha: dados
preliminares de pesquisa internacional ............................................................... 560
Tatiana Reidel; Laís Duarte Corrêa
Estágio e supervisão na formação em serviço social: o debate português ........ 567
Alzira Maria Baptista Lewgoy; Alcina Maria de Castro Martins; Claudia Mônica
dos Santos; Guilherme Gomes Ferreira; Dulce Serra Simões; Maria Emília
Freitas Ferreira

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Eixo 7 - Lutas Sociais e Serviço Social: a construção de resistências no interior da
profissão

A relação entre Serviço Social e teoria social de Marx: análise das revistas
Serviço Social e Sociedade nos últimos 10 anos ............................................... 577
Ednéia Alves de Oliveira; Victor Salomão Lacerda Brandão; Laura Maria
Cabral Silva
Serviço Social brasileiro entre o espináfre e a criptonita .................................... 586
Fabrício Augusto Araújo Ribeiro; Laura Beatriz Borges
Serviço Social e ação popular no Rio Grande do Sul ......................................... 595
Jessica Flores Mizoguchi; Thaisa Teixeira Closs
Serviço Social na história da ditadura no RJ: veredas da politização, repressão
e resistência ........................................................................................................ 605
Graziela Scheffer; Márcia Cassin Tainá Souza Caitete; Daniele Batista Brandt
Serviço Social e processos de resistência: análise preliminar acerca de
movimentos populares em Juiz de Fora no contexto da ditadura militar ............ 615
Susana Maria Maia; Caroline Rosa Oliveira; Larissa Pereira
Direitos humanos, justiça reprodutiva e contribuições para o Serviço Social ..... 625
Gabriella Alves Brasil

Eixo 8 - Política Social, trabalho e questão social: retrocessos, resistências e


desafios ao Serviço Social

Capitalismo dependente, Serviço Social e políticas sociais ............................... 634


Antônio de Albuquerque Gonçalves Júnior
Políticas sociais e intersetorialidade: reflexões sobre a experiência em
treinamento profissional ...................................................................................... 642
Ingrid Adame Moreira; Ana Cristina Peixoto Guimarães; Laura Pires Gualberto
Marçola; Lara Rodrigues Brito; Taíse Silva Antunes
Expropriações de direitos e política de saúde: implicações para o trabalho
profissional .......................................................................................................... 651
Fernanda Kilduff
Assistência estudantil após contexto de pandemia da COVID-19: a
importância da atuação interdisciplinar entre psicólogos e assistentes sociais
em universidades públicas .................................................................................. 660

10
Yukari Yamauchi Moraes; Eliana Bolorino Canteiro Martins
População em situação de rua: estratégias profissionais em tempo de
opressão de classes no contexto da ofensiva ultraneoliberal do capital ............ 669
Cristiano Costa de Carvalho; Luciana Reis da Silveira; Mariana Carvalho de
Almeida; Paula Luisa R. Dutra
Serviço Social e o debate do envelhecimento: relevância de uma maturidade
teórica acerca da temática .................................................................................. 679
Ingridilaine Carreiro de Oliveira Azevedo; Rita do Nascimento Silvestre Dantas
Juventudes, tempo e questão social: transição para a vida adulta na
sociedade do capital ........................................................................................... 687
Cristiano Costa de Carvalho; Leonardo David Rosa Reis
Racismo e sofrimento mental: o olhar do Serviço Social a partir de uma
revisão integrativa ............................................................................................... 696
Lara Rodrigues Caputo
Políticas do cuidado e sistema prisional: relatos de uma experiência junto a
dissidentes sexuais e de gênero em Minas Gerais ............................................. 704
Sidnelly Aparecida de Almeida; Márcia Lopes Ferreira
Dissidências sexuais e de gênero: implicações para o exercício profissional de
assistentes sociais .............................................................................................. 711
Guilherme Moraes da Costa

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VII SEMINÁRIO INTERNACIONAL
Lutas Sociais, Ofensiva Ultraneoliberal e Serviço Social:
resistências e articulações internacionais

EIXO TEMÁTICO 1
Ofensiva ultraneoliberal do
capital e lutas sociais
MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E REPRODUÇÃO AMPLIADA DA BARBÁRIE.
Caminhos e descaminhos para a classe trabalhadora1

María Fernanda Escurra2


Roberto Coelho do Carmo3

Resumo: Este trabalho apresenta uma breve reflexão


teórica, tendo como pano de fundo situações específicas
ocorridas no Brasil e o contexto da pandemia do
Coronavírus. Para isto, se parte de duas observações gerais
que confirmam como na atual configuração da ordem
burguesa vivencia-se um processo de reatualização da
barbárie, característica do período da emergência desta
forma de organização social. A partir de algumas
abstrações é apresentado um ensaio de interpretação no
plano político-econômico em relação aos caminhos e
descaminhos da política para a classe trabalhadora. Uma
provocação ao leitor e a apresentação de algumas questões
de um diálogo que precisa ser adensado.

Palavras-chave: Ordem burguesa. Barbárie. Política.


Classe trabalhadora.

Abstract: This paper presents a brief theoretical reflection,


having as a background specific situations that occurred in
Brazil and the context of the Coronavirus pandemic. For this,
it starts with two general observations that confirm how the
current configuration of the bourgeois order is experiencing a
process of re-updating barbarism, characteristic of the period
of emergence of this form of social organization. Based on
some abstractions, an interpretation essay on the political-
economic level is presented in relation to the paths and
misdirections of politics for the working class. A provocation
to the reader and the presentation of some questions of a
dialogue that needs to be deepened.

Keywords: Bourgeois order. Barbarism. Policy. Working


class.

1Eixo temático: Ofensiva ultraneoliberal do capital e lutas sociais.


2Assistente Social. Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Doutora
em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora Adjunta da Faculdade
de Serviço Social/UERJ. E-mail: maria.fernanda.escurra@uerj.br
3Assistente Social. Mestre e Doutor em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

(UERJ). Professor Adjunto do Departamento de Serviço Social da UFOP. Pós-doutorando em Serviço Social
pela UNIFESP. E-mail: roberto.carmo@ufop.edu.br

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1- INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é apresentar uma breve reflexão teórica, tendo como
pano de fundo situações específicas ocorridas no Brasil e o contexto da pandemia do
Coronavírus para, a partir de algumas abstrações, apresentar um ensaio de interpretação
no plano político-econômico em relação aos caminhos e descaminhos da política para a
classe trabalhadora. Para isto, se parte de duas observações gerais que confirmam como
na atual configuração da ordem burguesa vivencia-se um processo de reatualização da
barbárie, característica do período da emergência desta forma de organização social. A
primeira observação é que a lei geral da acumulação capitalista, exposta por Marx há
mais de 150 anos, apesar de significativas transformações experimentadas pelo
capitalismo contemporâneo, assim como das grandes diferenças que caracterizam as
diversas economias nacionais, ainda hoje se manifesta tendencialmente na permanente
produção e reprodução de uma população excedente às necessidades médias de
acumulação do capital; na necessidade de revenda contínua da força de trabalho por
parte do trabalhador despossuído dos meios de produção; na redução em termos
relativos da parcela de valor apropriada pelos trabalhadores, independente de possíveis
aumentos salariais e melhoria nas condições de vida o que expressa a pobreza relativa
da classe trabalhadora; e, na existência de uma camada de população excedente que
vegeta no pauperismo.
A segunda observação é que a análise desenvolvida por Marx em relação à
acumulação primitiva, no capítulo XXIV de O Capital, não deve ser compreendida como
um processo histórico concluído, dada a necessidade de reproduzir em escala sempre
ampliada processos de barbárie e expropriação. Portanto, o que na acumulação primitiva
aparece como transição do sistema feudal para o modo de produção capitalista, como um
processo histórico da gênese do capital, na acumulação ampliada constitui um processo
contínuo que só chegará a seu fim com a eliminação do próprio capitalismo
(ROSDOLSKY, 1989).
Nesta perspectiva, é possível afirmar que a marca original do desenvolvimento do
capital consiste no desenvolvimento sistemático de retrocesso social e impulsiona a
socialização da sua existência em escala sempre ampliada. Trata-se de processos de
expropriação contemporâneos que Fontes (2010) denomina de primários e secundários
como a contraface necessária da concentração exacerbada de capitais, forma mais
selvagem da expansão do capital. Conforme a autora, os processos primários dizem
respeito a uma sucessão de eventos em curso há mais de quatro séculos e que

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continuam extirpando os recursos sociais de produção das mãos de trabalhadores rurais.
As formas secundárias são variadas e abarcam tanto setores nos quais já vigoravam
plenamente relações capitalistas, como a privatização de empresas e instituições
públicas, quanto de bens naturais sobre os quais até então não incidia propriedade
exclusiva do tipo capitalista, como as águas doces e salgadas, a qualidade do ar, o
patrimônio histórico e cultural e o patenteamento de códigos genéticos.
Se no primeiro momento, nos períodos de acumulação primitiva no contexto da
criação da figura do “trabalhador assalariado”, poderia parecer que a barbárie era
resultado de uma pobreza generalizada, hoje, com o capitalismo amadurecido, a
extraordinária diversificação de mercadorias e um volume de riqueza sem precedentes, o
problema pode aparecer como um problema de distribuição. Sim, de fato, há um
problema de distribuição, mas este é, fundamentalmente, um problema da lógica do
modo de produção, aspecto que se buscará demonstrar de partida. Em seguida,
apresenta-se um breve diálogo com a classe trabalhadora sobre a dimensão política.

2- A LÓGICA DESTRUTIVA DO CAPITAL

A lógica imanente do modo de produção capitalista combina traços gerais que


dizem respeito às suas contradições fundamentais presentes em recessões econômicas
e fases de depressão. Por conseguinte, as crises não são resultado do acaso, nem o
produto de elementos exógenos ou acidentais, embora estes fatores desempenhem um
papel nas especificidades de cada ciclo (MANDEL, 1990). A crise estrutural de
reordenamento do capital das últimas décadas é agravada com a “pandemia
socionatural” do Coronavírus produto da vida social capitalista que assola o mundo desde
início de 2020 e revela mais do que uma mera crise sanitária (JAPPE, et al., 2022). De
fato, “o biológico, para a humanidade, só existe embutido na trama das relações sócio-
históricas. Isso porque o indivíduo não é exterior à sociedade; pelo contrário, constitui-se
nela e por ela” (JAPPE, et al., 2020, p.32).
A sistematização da genética da ordem burguesa realizada por Duayer (2011), a
partir da obra prima de Marx, permite que se perceba com clareza algumas
características do capital. Aqui destacam-se pelo menos dois dos nove elementos
orgânicos do capital apresentados pelo autor. Um deles é o dispositivo de crescimento
constante da riqueza no capitalismo. Como o objetivo final da produção é a produção de
mais valor, componente do lucro, no final de cada ciclo produtivo se tem mais riqueza que
no início, e, em cada reinício, o volume de riqueza de partida é maior. Ocorre que esta

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riqueza crescente e abundante é privadamente apropriada e convive com situações de
pobreza. Com isso, se destacam outras características, como o estranhamento, a
alienação tipicamente capitalista, que reproduz uma forma característica de dominação
abstrata e impessoal somada à dominação de classe que caracteriza esta sociedade.
Entretanto, cabe aqui registrar a contradição peculiar da lógica capitalista que, ao mesmo
tempo em que tem como fim a valorização do valor, com o desenvolvimento das forças
produtivas, diminui a substância do valor das mercadorias dado que passam a ser
produzidas em maior número com menos tempo de trabalho social médio, contendo,
assim, menos valor por unidade produzida. Em adição a isso, essa dinâmica de
apropriação do mais-valor pelo capital decorre do aumento da produtividade do trabalho
social expresso na grandeza da massa dos meios de produção em relação ao quantum
de trabalho vivo necessário para acionar esses meios de produção, processo que,
tendencialmente, torna a força de trabalho supérflua.
A compreensão dessas situações de pobreza, como produto das relações sociais
e na especificidade que assume sob o modo de produção capitalista, evidentemente, não
pode ser limitada a um problema de distribuição, apesar do caráter imprescindível de
medidas distributivas e do fato que muitas vezes tais medidas constituem conquistas de
direitos e são claramente necessárias para garantir uma vida mais ou menos digna de
amplas parcelas da classe trabalhadora. Entretanto, como observado por Marx (1994),
em certa medida, elas são de interesse dos capitalistas para garantir a reprodução da
força de trabalho e do exército de reserva que precisa estar disponível para os momentos
de expansão da acumulação e, inclusive, tais medidas não podem chegar ao ponto de
colocar em risco a permanência do próprio sistema. Neste particular, alguns autores
ressaltam que a existência de “lutas contra o capital” não significa que automaticamente
sejam lutas anticapitalistas, mas, ao contrário, muitas vezes são postas e moldadas pelo
próprio capital à sua lógica, consolidando a identidade e a criação de uma classe de
trabalhadores e a mediação pelo trabalho como características essenciais do
capitalismo.4 Desse modo, observa-se que a existência e a continuidade dessas medidas
distributivas é a evidência de que sob o capital não é possível superar o fenômeno da
pobreza e da fome, não podendo uma análise crítica estar baseada nem se limitar à
distribuição de riqueza como horizonte de análise e de ação.

4 Cf. Murthy (2009, p. 14-15) e Heinrich (2014, p. 36-37).

16
3- BARBÁRIE PRIMITIVA E CONTEMPORÂNEA

A inventividade dos representantes do capital em criar mecanismos de


intensificação da exploração não tem limites. Todo este processo exploratório e de
concentração de capital é agudizado pela financeirização da economia, que abocanha
uma fatia do salário do trabalhador pelo microcrédito, enquanto se alimenta do capital
produtivo e dos Estados, exploradores comumente conhecidos como investidores. Se a
pandemia significou crise, há de se perguntar: para quem? Isso porque os 1000
bilionários mais ricos do globo recuperaram, e até aumentaram suas fortunas durante a
pandemia (OXFAM, 2021), desse modo, pode-se dizer que a crise econômico-sanitária
tem nome e endereço, quer dizer, ela repercute enquanto crise na vida dos mais pobres.
OXFAM, no relatório sobre a gestão do momento pandêmico intitulado “O vírus da
desigualdade”, apresentou a enorme desigualdade do impacto da crise econômico e
sanitária entre os mais ricos e os mais pobres. Segundo os autores, a pandemia atinge
um mundo extremamente desigual e acentua ainda mais o abismo entre os mais ricos e
os mais pobres.
O capital possui um claro caráter discriminatório de classes. É sintomático que a
pandemia só se tornou um problema para o capital quando o trabalho precisou parar para
continuar a existir, ou quando lotados os leitos de hospitais como o CopaStar, descrito no
jornal Extra da seguinte forma:
um piano no hall e uma grande obra do artista plástico japonês Yutaka Toyota
numa das paredes. Perto dos sofás, livros de arte são oferecidos como distração,
num ambiente que conta com uma fragrância exclusiva, de notas amadeiradas e
cítricas. Passando pelo balcão da recepção, há um restaurante com cardápio
elaborado pelo chef francês Roland Villard, uma estrela no Guia Michelin, e com
cozinha tocada pelo suíço Steve Moreillon. (LIMA, 2016,s.p.)

No Brasil, em contexto da pandemia, assiste-se ao recrudescimento da pobreza


histórica e da desigualdade socioestrutural, de forma concomitante com a evidência da
precarização do sistema de saúde público e com políticas governamentais que
desconsideram a ciência, assim como os protocolos internacionais para o enfrentamento
da pandemia que, até final de maio de 2022, provocou a morte de mais de 666.000
pessoas e um número de casos conhecidos confirmados que alcançou quase
31.000.000.Desse modo, as mortes provocadas pelo coronavírus no país e uma política
econômica de potencialização dos ganhos no mercado financeiro conduz a uma enorme
crise que rememora a barbárie dos tempos de acumulação primitiva.
Neste contexto, o cenário de fome deixa transparecer o recrudescimento da
pobreza através de cenas dramáticas como é o caso de vídeo gravado em bairro nobre

17
de Fortaleza que, em outubro de 2021, viralizou nas redes sociais, mostrando um grupo
de pessoas, em sua maioria mulheres, revirando a caçamba de um caminhão e latas de
lixo em busca de restos de comida. Mais alguns exemplos ilustram essas cenas. Em
Cuiabá, capital de Mato Grosso, a notícia de que em dezembro de 2021, às vésperas do
Natal, uma fila enorme de pessoas foi formada para receber doação de sobras de ossos
de dono de açougue. Diversas reportagens fazem referência à comercialização de ossos
de carne em todo o Brasil, com preços diferenciados para os ossos de primeira e de
segunda cujo aumento na demanda, inclusive, acarretou a alta de preços. Neste
contexto, no chamado “mercado da miséria”, ossos, pelancas, carcaças e pés de
galinhas são estratégias adotadas por amplas camadas de trabalhadores pobres para
reforçar a alimentação.
Na minuciosa pesquisa realizada por Engels no século XIX, sobre a situação da
classe trabalhadora inglesa, o autor constata que como resultado da fome, diante a falta
de melhor alimento, “apanha-se tudo o que possa conter um átomo que seja produto
comestível”, sejam cascas das batatas, resíduos de legumes ou vegetais apodrecidos.
(1988, p. 87).5 Marx, nos Manuscritos de 1861-1863, de forma irônica cita o belo livro de
receitas de culinária do Conde Rumford, recomendada por Eden aos diretores das casas
de trabalhadores, para a preparação de mixórdias dos tipos mais baratos. Certamente a
pobreza assustadora daquela época não convivia com a abundância e diversificação de
produtos que existem hoje. De qualquer forma, absurdamente, dada a atual abundância,
a fome no mundo não foi superada e, assim como no caso do “filósofo” Rumford no
século XVIII, ainda hoje preocupa e mobiliza organizações, governos e amplos setores da
sociedade para garantir a alimentação dos pobres extremos, como primeira e mais
urgente medida a ser tomada para evitar no século XXI a morte por inanição de seres
humanos.

4-CAMINHOS E DESCAMINHOS

Como se pôde observar, o capitalismo é um potente motor produtor de riqueza


social. Ao passo que ainda hoje é manifesta a tendência de concentração dessa riqueza,
a pobreza se espraia. Mesmo com os recursos materiais e de inteligência acumuladas

5O caráter capitalista da economia de mercado e suas consequências são ilustrados por Mandel (1990, p.
117) quando faz referência ao“espetáculo aflitivo de metade da humanidade passar fome não porque o
mundo careça de produtos alimentares, mas porque a demanda solvível não pode seguir a física. Apesar da
abundância de valores de uso, os valores de troca são inacessíveis, e algumas vezes até destruídos
condenando milhões de seres humanos a uma existência infra-humana.” (MANDEL, 1990, p. 117).

18
por séculos, ainda se observam pessoas que vivem em condições subumanas.
Recupera-se aqui também que a questão problema do capitalismo não é a distribuição
dessa riqueza, mas sua lógica interna de dominação abstrata. Este modo de produção
diz respeito a uma “forma determinada da atividade desses indivíduos, de uma forma
determinada de exteriorizarem a sua vida, de um determinado modo de vida” (MARX,
2009, p.24). E aquilo que os indivíduos são “depende das condições materiais da sua
produção” (MARX, 2009, 25). Isso posto, supõe-se que estas condições subumanas
promoveriam um encurtamento do horizonte político da classe trabalhadora. Isto porque
as necessidades imediatas e primárias seriam mais urgentes que as necessidades de
transformação social, já que “os homens têm de estar em condições de viver para
poderem “fazer história”” (MARX, 2009, p.40). O paradoxo aqui é que se é essa
sociedade que produz tal condição subumana, como seria possível a organização
coletiva com potencial para romper esta lógica?
O capital, como relação social, depende da valorização realizada no processo de
trabalho capitalista. Assim, como já lembrado aqui, em alguns momentos, para garantir a
manutenção da força de trabalho e do exército de reserva, uma maior distribuição pode
ser realizada. Ao passo que, aliado a isso, um encurtamento do horizonte político da
classe trabalhadora posto pelas condições objetivas de miséria e fome, pode explicar
uma conciliação entre as classes por esta proposta distributiva. A questão não é nova e
já foi adequadamente tratada em trabalho anterior do filósofo José Chasin (2000). Em
sua problematização sobre os movimentos grevistas dos anos 1970, e que culminaram
na abertura político-democrática do Brasil, o autor resgata que o acirramento das
tendências capitalistas, acabaram por se manifestar no empobrecimento da classe
trabalhadora, na fome. Destaca ainda que se os movimentos trabalhadores puderam
lograr ganhos políticos à época, também há de se considerar que poderia não haver tal
movimento, caso não houvesse uma reivindicação de cunho econômico. Nas palavras do
autor: “Seria mentiroso da minha parte dizer que o movimento foi de cunho econômico.
Da mesma forma que seria enganoso da minha parte dizer que a classe trabalhadora vai
fazer uma greve eminentemente política, sem nenhuma reivindicação” (CHASIN, 2000, p.
51). “Na raiz da fome, - o arrocho, na raiz da greve, - a fome.” (CHASIN, 2000, p.52).
Algumas questões se colocariam para o debate contemporâneo, onde o combate
à fome esteve no centro de uma estratégia de desenvolvimento. O que é a “fome” hoje?
Quer dizer, a fome é sempre fome, e continuará a simbolizar na vida das pessoas o papel
da escassez e da impossibilidade de garantir sua existência enquanto gênero humano,
mas é apenas essa escassez extrema capaz de contribuir com tal ordem de mobilização?

19
Que elemento é este além da política, capaz de promover mobilização de tal monta? A
solidariedade? Ou sentimentos menos nobres como o egoísmo, típico do “homem
burguês”?6 Deste modo, as questões que encerram este trabalho, são provocações
necessárias para o arrefecimento da luta política, seja no plano de uma estratégia
redistributiva, urgente nesta quadra da história brasileira, de forma mais específica, ou no
plano do debate da revolução social.

5- CONSIDERAÇÕES

Para se analisar de forma mais propositiva os caminhos e descaminhos da política


para a classe trabalhadora seria necessário um espaço do qual este texto não dispõe.Um
aprofundamento rigoroso do encadeamento de fatos relevantes no plano político-
econômico e um tempo de trabalho muito maior dos pesquisadores. Apresentou-se aqui
um ensaio de interpretação do fenômeno a partir de algumas abstrações, uma
provocação ao leitor e a apresentação de algumas questões de um diálogo que precisa
ser adensado.
Se algumas das provocações presentes no texto são explícitas, outras não
aparecem com a mesma clareza. No plano do debate profissional do Serviço Social o
texto pode ser provocativo, seja porque esses debates profissionais fazem referência às
lutas da classe trabalhadora no plano ético-político revolucionário, seja porque a
preocupação profissional no plano do imediato seja mitigar os impactos da questão
social.
As provocações também estão presentes no debate político contemporâneo em
cenário de crise. Crise que para a classe trabalhadora é a fome, e para a ordem do
capital é crise de realização do valor no volume necessário para continuar crescendo.
Nestes tempos há de se refletir sobre o possível surgimento de estratégias conciliadoras
milagrosas, que, mais uma vez castram o horizonte da luta política para o limite de
alguma distribuição de riqueza (mesmo que temporária). É fundamental uma inteligência
política transcendente que seja capaz de perceber o momento de conciliação como
estratégia para avançar também no plano revolucionário.

6 Aqui se faz referência à construção de Konder (2000), na obra Os sofrimentos do “homem burguês”.

20
6- REFERÊNCIAS

CHASIN, J.A miséria brasileira 1964 - 1994: do golpe militar à crise social. São Paulo:
Estudos e Edições Ad Hominem, 2000.

DUAYER, M. Mercadoria e trabalho estranhado: Marx e a crítica do trabalho no


capitalismo. In: Margem Esquerda. Ensaios marxistas, No 17, novembro. São Paulo:
Boitempo, 2011a, p. 88-99.

ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. 2ª ed. São Paulo: Global


Editora, 1988.

FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: 2ª ed. Rio de Janeiro: Teoria e história,


2010.

HEINRICH, M. Crítica de la economía política. Una introducción a El Capital de Marx.


Madrid: Escolar y Mayo Editores, 2008.

JAPPE, A. et. Al. Capitalismoemquarentena: notassobre a crise global. São Paulo:


EditoraElefante, 2020.

KONDER, Leandro. Os sofrimentos do “homem burguês”. Editora SENAC, São Paulo,


2000

LIMA, Ludimilla de. Rio ganha hospital cinco estrelas com conceito luxuoso. EXTRA, Rio
de Janeiro, 09 de outubro de 2016. Rio. Disponível em
<https://extra.globo.com/noticias/rio/rio-ganha-hospital-cinco-estrelas-com-conceito-
luxuoso-20262131.html>Acessado em 25 de maio de 2022.

MARX, K.O Capital. Crítica da Economia Política. 12ª ed, livro 1, volume I e II, Rio de
Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1994.

_____.A ideologia alemã. 1ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

_____.Para a Crítica da Economia Política. Manuscrito de 1861-1863. Cadernos I a V.


Terceiro Capítulo – O Capital em geral. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

MANDEL, E. A crise do capital. Campinas: UNICAMP, 1990.

MURTHY, V. Reconfiguring Historical Time: Moishe Postone’s interpretation of Marx, in


History and Heteronomy: Critical essays. (UTCP Bookelt 12). Postone, M.; Murthy, V.;
Kobayashi, Y. (orgs.). Tokyo: UTCP, 2009, p. 9-30.

OXFAM GB. O vírus da desigualdade: Unindo um mundo dilacerado pelo coronavírus por
meio de uma economia justa, igualitária e sustentável. 2021. Disponível em:
https://materiais.oxfam.org.br/o-virus-da-desigualdade Acesso em: 20 mar. 2021.

ROSDOLSKY, R. Génese y Estructura de el Capital de Marx (Estudios sobre


losGrundrisse). 6a ed. México: Siglo XXI, 1989.

21
Deslocamentos internos forçados sob a perspectiva marxista

João Vitor Bitencourt7


Ariane Rego de Paiva8

Eixo temático: As expressões da exploração/opressão de


classes no contexto da ofensiva ultraneoliberal do capital

Resumo: Esse artigo debate as migrações e os


deslocamentos forçados sob a perspectiva marxista da
superpopulação relativa. Esses fenômenos são frutos do
desenvolvimento capitalista a partir da lógica de reprodução
ampliada do capital. Os deslocados internos sofrem com as
contradições entre o sistema de produção de valor e a
intensificação das formas de exploração da força de
trabalho, se particularizando enquanto reserva e mão-de-
obra para a produção capitalista. Constitui-se como
segmento "não qualificado” à dimensão da proteção, logo,
não se cria e não se regulamenta um aparato protetivo que
os caracteriza como “sujeito de direito”.

Palavras-chave: deslocamento interno; migração forçada;


marxismo; população relativa; exército industrial de reserva

Abstract: This article discusses migrations and forced


displacements from the Marxist perspective of relative over
population. These phenomena are the result of capitalist
development from the logic of expanded reproduction of
capital. The internally displaced suffer from the
contradictions between the value production system and the
intensification of the form so fexploitation of the work force,
being particularized as a reserve and work force for capitalist
production. It is particularized as an "unqualified" segment in
the dimension of protection, therefore, a protective app
aratusth at characterizes them as a "subject flaw" is not
created andregulated.

Keywords: internal displacement; forced migration;


Marxism; relative population; industrial reserve army

7 Doutorando em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRIO). E-mail:
joaovitorbitencourt2016@gmail.com
8 Doutora pelo Programa de Estudos de Pós-Graduação em Política Social pela Universidade Federal
Fluminense -UFF/Niterói. Professora Assistente do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio. E-mail:
arianepaiva@puc-rio.br

22
1- A QUESTÃO DOS MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS E DOS DESLOCAMENTOS
POPULACIONAIS SOB A PERSPECTIVA MARXISTA

Os movimentos migratórios, muitas vezes, se apresentam com um significado


usualmente atribuído enquanto ato ou efeito de migrar e/ou passar de um país ou de uma
região para outra (PRIBERAM, 2022), no entanto, trata-se de um fenômeno de maior
complexidade, pois é constituinte das dinâmicas históricas do processo de
desenvolvimento da acumulação do capital. Ao longo do tempo, a questão dos grupos
que se deslocam emerge meio a debates que envolvem uma confluência de abordagens.
Os deslocamentos populacionais ocorrem na história, em diferentes períodos e modos de
produção, não à toa, é comum presenciar a célebre ideia de que “a história mundial é
uma história de migrações”, usualmente estabelecida ao se analisar, em termos
históricos, as “ondas migratórias” que caracterizaram o desenvolvimento de povos e
comunidades, tal como o aumento das capacidades excedentes de produção.
Notadamente, lembra-se, nesse contexto, de razões naturais e ambientais, ocupações de
terras, explorações e povoamentos etc.

As relações capitalistas estabelecidas, contudo, a partir das revoluções burguesas


(as revoluções inglesas do século XVII e a Revolução Francesa de 1789) e da Revolução
Industrial do século XIX, marcam o desenvolvimento urbano-industrial, e com isso
concomitantemente a supremacia do mercado como organizador da vida social
(POLANYI, 2000) por meio da exploração do trabalho assalariado. Nesse contexto, o
tema em questão pode ser problematizado enquanto “produto” que assume uma “nova”
faceta em meio à modernidade, em um sistema que segue a lógica de acumulação e
desenvolve pressões migratórias, crescentes em torno do movimento dos agentes que
controlam o capital para os locais onde este se instala, e com isso, também, o
agravamento das desigualdades mundiais, o que explica a renovação e o aumento das
migrações (PEIXOTO, 2019).

Questões como a necessidade por melhores salários e sobrevivência, carências


alimentares, condições sanitárias e de habitação, o fluxo populacional rural-urbano, entre
outras, acompanham o desenvolvimento da sociedade capitalista e a iniciativa dos
agentes econômicos pertencentes da burguesia ou de classes conservadoras ligadas à
agroindústria e os diferentes interesses comerciais. Sendo assim, considera-se primordial
problematizar o fenômeno partindo do pressuposto que os deslocamentos populacionais

23
são frutos, em especial, de interesses e determinantes socioeconômicos, em meio a
circunstâncias como a pressão demográfica, as mudanças nos meios de produção ou
termos de propriedade da terra, fatores ambientais como a seca ou o esgotamento do
solo etc. (BARBOSA, 2017, p.145), assim como em contextos de deslocalização de
indústrias manufatureiras e de serviços para exploração da mão-de-obra barata nos
países dependentes (ibid., p.145).

2- O DESLOCAMENTO INTERNO FORÇADO SOB A ANÁLISE MARXIANA DA


SUPERPOPULAÇÃO RELATIVA

No sistema internacional de proteção humanitária atual entende-se por


deslocados internos as pessoas, ou grupos de pessoas, forçadas ou obrigadas a fugir ou
abandonar suas casas ou seus locais de residência habituais, particularmente em
consequência de, ou com vistas a evitar os efeitos dos conflitos armados, situações de
violência generalizada, violações de direitos humanos ou calamidades humanas ou
naturais, e que não tenham atravessado uma fronteira internacionalmente reconhecida de
um Estado (ONU, 1998).

Conforme o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR),


diferentemente dos refugiados, estes sujeitos não atravessaram uma fronteira
internacional para buscar proteção. Mesmo tendo sido forçados a deixar seus lares por
razões similares às dos refugiados (perseguições, conflitos armados, violência
generalizada, entre outros), permanecem legalmente sob “proteção” de seu próprio
Estado (ACNUR, 2016), não adquirindo o “status” de sujeito refugiado. Essas são as
concepções e/ou “categorizações” de como se perceber esses segmentos, porém, as
referências acima vinculam-se a uma narrativa institucionalizada. Ao dar enfoque à
questão dos deslocamentos populacionais sob a perspectiva marxista, considera-se esse
fenômeno a partir de pressupostos como a teoria do valor e abordagem marxiana sobre a
forma mercantil e jurídica9, onde leva-se em conta que as relações internacionais, que se
apresentam em sua aparência por meio de indivíduos jurídicos abstratos (aqueles
considerados destinatários das normas e protegidos como indivíduo humano e/ou como

9
Na medida em que as relações entre as pessoas se constroem como relação de sujeitos, temos todas as
condições para o desenvolvimento da superestrutura jurídica com suas leis formais, seus tribunais, seus
processos, seus advogados, e assim por diante (PACHUKANIS, 2017, p. 62).

24
membro de um determinado grupo), tem em sua essência relações sociais fundadas na
troca de mercadorias.

Há uma intrínseca relação entre as formas jurídicas e a forma-mercadoria no


capitalismo, mediatizadas pelo Estado. O sentido histórico da categoria do sujeito (logo,
dos segmentos evidenciados por meio de demandas/problemas que se institucionalizam)
é resultante da propriedade exclusiva sobre os meios de produção por parte da
burguesia. A única garantia real das relações entre Estados burgueses repousa sobre a
base da troca de equivalentes (PACHUKANIS, 2017). Kreutz (2017, p.17), possibilita
entender a questão dos deslocamentos forçados enquanto “espelho” das relações
mercantis edificadas no circuito da produção-circulação-consumo de mercadorias no
sistema capitalista, pois o que há de novo “é a intensidade e a complexidade dos
movimentos migratórios internacionais, que trazem consigo as necessárias interrogações
sobre seus determinantes estruturais”, em um modo capitalista de produzir os bens
necessários à vida humana, a partir da lógica de reprodução ampliada do capital que
repousa sobre as contradições internas entre a reprodução do sistema de produção de
valor (produção crescente de mercadorias com valor de uso subordinado ao valor de
troca) e a intensificação das formas de exploração da força de trabalho assalariado
(produção de mais-valor extraído do consumo do valor de uso da força de trabalho na
esfera da produção) (ibid, p.17).

Os movimentos migratórios internacionais se dão em meio a determinantes


estruturais pautados no “ato” de produção e reprodução do capital, onde prevalece o
valor de troca e a exploração da força de trabalho assalariado. A forma mercadoria
determina a forma jurídica - o campo do Direito e da Política - revelando o sentido
histórico concreto da categoria do “sujeito de direito” (que é, logo, aquele sujeito
estabelecido para e com os interesses do desenvolvimento do capital). Por exemplo, a
população solicitante de refúgio e os refugiados são parte da expressão desse modo de
produção. Sem desconsiderar os sistemas de proteção e normas através das políticas
públicas, determinações fundamentais que devem ser defendidas e ampliadas, viu-se
acima que a lógica capitalista de produção - obtenção de lucro, de consumo e trocas,
produz a própria problemática migratória e dos deslocamentos forçados. Como
necessidade, para a justificação da sua ampliação e reprodução, se desenvolvem
ideologias de mercado nos âmbitos jurídico estatal.

25
Posto isso, pode-se dizer que a própria proteção internacional para a população
refugiada, as atividades das organizações internacionais, a tarefa de proteção do Estado
por meio dos mecanismos governamentais, tal como às ações da sociedade civil e das
organizações intergovernamentais em sua aparência, apresenta-se como dinamismo
criador e regulamentador para a proteção a esses sujeitos de direitos. Ao mesmo tempo,
em sua essência, trata-se de uma dinâmica que reflete o atendimento das necessidades
da classe trabalhadora e, também, do capital. Isso, pois, o direito não é um sistema
“natural” de organização e evolução de pensamentos, mas “um sistema específico de
relações, no qual os homens ingressam não porque o tenham escolhido
conscientemente, mas porque a isso são coagidos pelas condições de produção”
(PACHUKANIS, 2017, p.56).

Atualmente, há um “sujeito de direito refugiado”, onde minimamente se


desenvolve um aparato protetivo. Trata-se da cooperação entre os Estados-nações
independentes e governos, organizações internacionais e distintas entidades - são
exemplos a ONU – Organização das Nações Unidas, o ACNUR – Alto Comissariado das
Nações Unidas para Refugiados, o CONARE – Comitê Nacional para Refugiados. Nesse
contexto que se evidencia o deslocamento interno em torno da materialização da
superpopulação relativa. No caso do “sujeito de direito” refugiado e/ou solicitante de
refúgio, se desenvolve um aparato protetivo tendo em vista a figura de “migrante
desejado” - normalmente entendido (ora, “selecionado” em meio às determinações
fronteiriças dos Estados capitalistas) como sujeito qualificado (ou não) à condição de
maior ou menor proteção.

A história das políticas de migração, no Brasil, desde o período imperial


demonstra o racismo em suas manifestações ao povo negro, tal como preconceitos à
asiáticos, entre outros, tal como demonstra os marcadores em torno de características do
perfil desejado (e/ou indesejado) - idade, gênero, nível social, dentre outros. “Os traços
ocidentais seguem como os desejados e valorizados enquanto os traços considerados
africanos encontram a disposição oposta” (OLIVEIRA, 2019, p.193), e os perfis
“desejáveis” consistem naqueles altamente qualificados ou então que possuem acessos
a vistos e possibilidades de cidadania por causa de sua condição econômica, para os
quais as fronteiras estão permanentemente abertas (CHELOTTI; CRUZ 2016, p.10).
Atualmente, sob a égide da crise do capital, a imigração torna-se uma “ameaça” e a
chamada “crise de refugiados” tem sido acompanhada da criminalização crescente”
(MANJABOSCO, 2018, p.5). O grupo que migra e se desloca forçadamente vivencia uma

26
experiência que tem como determinação primordial as relações sociais de produção. O
deslocamento forçado, que é fruto dessa dinâmica do capitalismo, compreende sujeitos
vulneráveis, que constituem, contudo, à força de trabalho que excede as necessidades
da produção e/ou valorização do capital.

Considera-se que, nas relações mercantis edificadas no circuito da produção-


circulação-consumo no capitalismo, o ato de produzir os bens necessários à vida humana
se dá a partir da lógica de reprodução ampliada do capital - por meio da produção
crescente de mercadorias com valor de uso subordinado ao valor de troca, orienta-se
para as ilimitadas práticas de consumo e a intensificação das formas de exploração da
força de trabalho assalariado (ibid., 2017, p.17). Marx trata da população trabalhadora
que, ao produzir a acumulação do capital, produz, relativamente, uma população
supérflua - que faz com que o capitalismo tenha sempre um Exército Industrial de
Reserva. Conforme Marx (2011, p.508) nesse “pôr do capital excedente” está subjacente
às condições onde o capitalismo requer uma população crescente para ser posto em
movimento, “uma parte da população desocupada (ao menos relativamente) e uma
superpopulação relativa, para ter uma população de reserva disponível para o
crescimento do capital excedente”, onde as forças produtivas, na busca pelo valor
excedente, “supõe não apenas um mínimo do nível de produção, mas sua expansão, ou
seja capital excedente e população excedente (ibid,p. 508).

Resumindo, há a existência de um serviço de reserva e de mão-de-obra para a


produção capitalista, que é elemento imprescindível para o seu desenvolvimento. Trata-
se de uma classe de trabalhadores que podem ser empregados com salários abaixo da
média durante períodos de expansão econômica e sumariamente demitidos sem graves,
historicamente são as mulheres, as crianças, os migrantes internos das áreas rurais, as
minorias étnicas e culturais nativas e as populações de imigrantes que constituíram a
maioria da força de trabalho de serviços de reserva e de produção (BARBOSA, 2017,
p.146). Trata-se de uma população excedente em relação ao nível de desenvolvimento
do capitalismo e a sua reprodução em determinado Estado-nação. Ao considerar que o
sujeito que se desloca forçadamente está em meio à experiência constituída pelas
relações mercantis, a migração não é uma “anomalia e/ou uma disfunção", pois a
acumulação capitalista produz,” na proporção de sua energia e de sua extensão, uma
população trabalhadora supérflua relativamente, isto é, que ultrapassa as necessidades
médias da expansão do capital, tornando-se, desse modo, excedente.” (MARX, 2008, p.
733).

27
Nesse sentido, pode-se debater o deslocamento forçado interno sob a análise
marxiana da superpopulação relativa. Na sociedade capitalista moderna, de cunho
mercantil - de estratégias voltadas à valorização do valor (por meio, contudo, das
políticas de emprego e questões de renda), o paradigma da migração gerenciada
combina o controle do fluxo de migrantes trabalhistas recrutados ativamente desde o Sul
global e minimiza os passivos econômicos e políticos da migração nos países receptores
(BARBOSA, 2017, p.147, grifos nossos), a fim de fornecer, em especial, trabalhadores de
reserva para assegurar a acumulação de capital nos países do Norte global através de
maneiras de promover a migração global de mão-de-obra gerenciada (ibid. p.147).

Ao mesmo tempo, esse debate deve apreender os segmentos que não se


caracterizam usualmente como migrantes econômicos – comumente estudados. A
situação do deslocamento interno é um exemplo. Como visto, se tem concepções e/ou
“categorizações” de narrativa institucionalizada, onde, através dos organismos e
instituições, se apresentam às relações internacionais por meio de uma aparência
jurídica-abstrata, porém tem base em relações sociais fundadas na troca de mercadorias
– onde se influencia o aumento das migrações principalmente em torno de conflitos
armados, situações de violência generalizada, violações de direitos humanos. O que
supostamente é um fenômeno usual ligado a determinantes socioeconômicos (crises
políticas, dificuldades econômicas de países “periféricos” etc.) tem, sobre seus
determinantes estruturais, o desenvolvimento do modo capitalista de produzir os bens
necessários à vida humana, e a intensificação das formas de exploração da força de
trabalho na esfera da produção.

Na América Latina, onde o capitalismo se desenvolve em um misto de servidão e


de trabalho assalariado através da economia exportadora, se configura de maneira
específica as relações de exploração em escala ampliada e dependente em que se
encontra frente à economia internacional (MARINI, 1973). Realidade agravada
principalmente a partir dos anos de 1970, quando se adensa a “guerra às drogas”, que
nasce em plena “ascensão belicista norte-americana e o forte investimento nos países
latinos, que sob a lógica das intervenções militares, deflagram em leis punitivistas por
toda a América Latina” (DUARTE, 2019, p.178). Atualmente, nas periferias urbanas, de
maneira geral, se aglomera grande parte da população trabalhadora, além da
superpopulação relativa que, para sobreviver, se dedica às mais diversas atividades do
setor informal, ao mesmo tempo é força de trabalho necessária para a acumulação do
capital (LEAL; ALMEIDA, 2012).

28
Há,em uma conjuntura de controle exercido por “organizações criminais”, muitas
vezes, situações de instabilidade social, onde parte de uma juventude pauperizada das
periferias vivência diferentes experiências por meio do mercado ilícito de drogas e de
práticas de caráter miliciano, entre outras. Leal e Almeida (2012, p.782) apontam a
condição de função desmobilizadora, onde “ao invés de lutarem contra o capital e seu
Estado, boa parte da população das periferias está lutando uns contra os outros”. Em
meio à disputa pelo controle econômico e territorial, por meio de conflitos armados entre
“facções”, milícias e organizações estatais armadas, há a produção do deslocamento
Interno, que acontece através de violações massivas dos direitos humanos, onde grupos
são forçados a abandonar suas casas, como demonstram, por exemplo, as seguintes
reportagens: Milícias expulsam moradores de casa no Rio, em Itaboraí e Magé e colocam
imóveis à venda (DIÁRIO DO RIO, 2020) e Moradores de comunidade na Zona Norte do
Rio são expulsos de suas casas por traficantes (G1, 2020).

3- À GUISA DE UMA BREVE REFLEXÃO FINAL

As migrações e os deslocamentos forçados, contudo os internos, são frutos, em


especial, de determinantes socioeconômicos intrínsecos ao desenvolvimento do modo
capitalista na lógica de reprodução ampliada do capital. As pessoas e/ou grupos de
pessoas, forçadas a fugir ou abandonar as suas casas ou seus locais de residência
habituais, com vistas a minimizar os efeitos dos conflitos armados, sofrem situações de
violência generalizada, violações de direitos humanos, e, contudo, colhem os impactos
das contradições internas entre o sistema de produção de valor e a intensificação das
formas de exploração da força de trabalho. As intervenções à população solicitante de
refúgio e aos refugiados, em sua aparência, apresentam-se em meio a um dinamismo
criador e regulamentador para a proteção a esses “sujeitos de direitos” – o que deve ser
levado em consideração. Ao mesmo tempo, em sua essência, a problemática é fruto de
um sistema específico de relações, onde os grupos são coagidos pelas condições de
produção.

No caso do deslocamento interno forçado, atualmente é frágil a sua condição


enquanto “sujeito de direito”, pois em poucos países se considera institucionalmente essa
condição e se cria e regulamenta a proteção a esses grupos. O que se explica tendo em
vista o desafio de se pensar um aparato protetivo a grupos deslocados "não qualificados”
à dimensão da proteção. Ou seja, trata-se de parcelas de uma população supérflua que

29
é, com maior destaque, um serviço de reserva e de mão-de-obra para a produção
capitalista. Isso explica, por exemplo, o debate em torno da conceituação teórica e da
categorização institucional do deslocado interno, que ao longo do século passado, não foi
brindada com tratados ou com instituições internacionais de proteção, como ocorreu com
os refugiados, pois tiveram de esperar até o final dos anos 1990 para que fossem
construídos os primeiros arranjos normativos e institucionais que reconheceram seus
direitos e que responsabilizam Estados e organismos internacionais por sua proteção
(NOGUEIRA, 2016).

4- REFERÊNCIAS

ACNUR. Quem são as pessoas refugiadas? Protegendo refugiados no Brasil e no


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Espaço Acadêmico. n.197. 2017.

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30
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NOGUEIRA, M. B. B. A origem da norma internacional de proteção aos deslocados


internos: entre direitos humanos e humanitarismo pragmático. 2016. 314 f., il. Tese
(Doutorado em Relações Internacionais) — Universidade de Brasília, Brasília, 2016.

OLIVEIRA, L. M.. Imigrantes, xenofobia e racismo: uma análise de conflitos em escolas


municipais de São Paulo. Tese de Doutorado. PUCSP. São Paulo. 2019.

PACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e marxismo e ensaios escolhidos 1921-


1929. São Paulo Sundermann/Ideias Baratas, 2017.

PEIXOTO, J. Da era das migrações ao declínio das migrações? A transição para a


mobilidade revisitada . REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, v. 27, n. 57, dez.
2019.

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PRIBERAM. Significado: migrações. Online. 2022. Link: https://dicionario.priberam.org

ONU. Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos. 1998.

31
NEODESENVOLVIMENTISMO ARRAIGADO: provocações ao pensamento crítico
brasileiro da atualidade.

Fabrício Augusto Araújo Ribeiro10

RESUMO: Este artigo pretende analisar o pensamento de


base crítica no Brasil atual, em tempos de ultraliberalismo,
criticando a influência da ideologia neodesenvolvimentista,
engendrada no período dos governos Lula\Dilma, com a
qual o pensamento crítico brasileiro desenvolve a sua
compreensão sobre a atual conjuntura nacional e possíveis
alternativas para a classe trabalhadora.

Palavras-chaves: Neodesenvolvimentismo, Pensamento


crítico, realidade e conjuntura brasileira.

INGRAINED NEODEVELOPMENTALISM: provocations to contemporary Brazilian critical


thinking.

ABSTRACT: This article aims to analyze the critical thinking


in Brazil today, in times of ultraliberalism, criticizing the
influence of neodevelopmentalist ideology, engendered in
the Lula\Dilma administration period, with which Brazilian
critical thinking develops its understanding of the current
national conjuncture. and possible alternatives for the
working class.

Keywords: Neo-developmentalism, Critical thinking,


Brazilian reality and conjuncture.

1- INTRODUÇÃO

As reflexões apresentadas no presente artigo surgiram a partir das discussões


realizadas na disciplina de “Pesquisa em Serviço Social I” no primeiro semestre do

10 Assistente social, mestrando em Serviço Social no PPGSS da UNESP. Orientador Dr. Gustavo
José de Toledo Pedroso. E-mail: faa.ribeiro@unesp.br. EIXO: Ofensiva ultraneoliberal do capital e
lutas sociais.

32
programa de pós-graduação em Serviço Social da Universidade Estadual Paulista -
Unesp/Franca, bem como de processos sistemáticos de discussão, pesquisa e estudo
entre os discentes e docentes da pós-graduação. No texto apresentamos os elementos
gerais do debate a cerca da produção de conhecimento em Serviço Social, tal recorte se
dá em razão dos limites de espaço exigidos ao presente trabalho.

Enquanto metodologia nos utilizamos da pesquisa bibliográfica para a apropriação


teórica das categorias aqui discutidas.

No cenário atual, parece que o pensamento crítico brasileiro é hegemonicamente


demarcado pela perspectiva do “neodesenvolvimentismo”, o que coloca em questão as
condições políticas, éticas e teóricas para o enfrentamento ao ultraliberalismo.

2- NEODESENVOLVIMENTISMO ARRAIGADO NO PENSAMENTO CRÍTICO


BRASILEIRO
não se refaz a unidade e nem se reconstrói o que nunca existiu, só passando a
história à limpo teremos verdade no nosso Brasil (MAYCOL MUNDOCA 11).

As últimas décadas do século XX e o início do século XXI marcaram, para o


pensamento sociopolítico brasileiro, um período histórico de aprofundamento aos
elementos constituintes, conceitos e resultados produzidos pela teoria social crítica de
Marx e Engels. Foi um período de abertura para a possibilidade de radicalização do
pensamento social brasileiro. Este processo, como bem analisado por Netto (2010) não
foi uniforme e não garantiu, exatamente, o alcance desta radicalidade a todos. Ele se
constituiu por variáveis de uma diversidade de pensamento no contexto geral da
perspectiva crítica; pensamentos mais ou menos radicalizados, mais ou menos críticos
que se apropriaram de forma mais ou menos aprofundada e particular do arcabouço
teórico marxista.

De forma geral, é possível se afirmar que este período foi um tempo que
possibilitou alguns avanços à classe trabalhadora brasileira, como a consolidação da sua
organização política em partidos, sindicatos e movimentos. A pesquisa social e a
produção de conhecimento na perspectiva crítica contribuíram largamente para este
processo. No Serviço Social, por exemplo, o conhecimento acumulado a partir da década

11 Música: “Não acabou”, de Maycol Mundoca, 2016.

33
de 1980 já se apresentava com uma postura crítica; a aproximação ao pensamento
marxista já se evidenciava, com Lukács e Gramsci (IAMAMOTO, 2006).

Este aprofundamento, na teoria crítica, levou à articulação, cada vez mais


orgânica, das instituições de organização da classe trabalhadora no contexto de luta
contra a implementação e o avanço do neoliberalismo no país (NETTO, 1996) expresso,
no campo político, por meio da ascensão de governos abertamente comprometidos com
o receituário novo do Capital.

Na década de 1990 o Estado brasileiro se reforma numa conjuntura de regressão


dos direitos e das políticas sociais conquistadas pelo movimento constitucional. Por meio
dos preceitos neoliberais, a relação entre o Estado e as classes sociais da sociedade civil
é alterada na direção dos indicativos do Consenso de Washington.

Neste Consenso compôs-se uma lista de medidas defendidas pelos organismos


financeiros internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional
(FMI), no propósito de introduzir reformas econômicas a serem empreendidas na América
Latina na direção das novas exigências da acumulação do capital. Essa foi uma realidade
mundial, na qual vários países se associaram na perspectiva do capitalismo financeiro
globalizado (BRESSER-PEREIRA, 1990).

O governo de Fernando Collor de Melo inicia a agenda neoliberal no Brasil por


meio do processo de abertura da economia ao mercado internacional, via redução das
barreiras alfandegárias.

O programa de privatização e de desmonte do Estado faz parte da agenda


Collor, como precondição para o combate da inflação. Além disso, é no seu
governo que é lançado o programa de reestruturação produtiva, segundo o qual
as empresas deveriam procurar um processo de gestão pela qualidade e
produtividade, único caminho capaz .de torná-las mais competitivas para
entrarem no chamado mundo desenvolvido, "com colaboradores mais felizes e
engajados, numa relação em que todos - patrões, empregados e a sociedade -
sejam vencedores. (TEIXEIRA, 1996: 237).

A falência política do governo Collor não levou ao abandono das premissas


básicas de seu governo. Os governos de Fernando Henrique Cardoso mantiveram a
mesma agenda para a economia e para a política. Para Teixeira (1996: 235) o governo
de FHC pregou “abertamente a necessidade de se passar de uma fase estatal do
desenvolvimento econômico e social para uma outra fase, na qual a sociedade possa

34
comandar, a partir de si mesma, ações para combater a miséria, a fome e a
marginalidade social”.

Conforme destaca Lúcia Lopes (2017: 4)

Na década de 1990, o governo Fernando Henrique, diante da dívida e do baixo


crescimento econômico cedeu às pressões do Fundo Monetário Internacional e
do Banco Mundial, comprometendo-se com o projeto neoliberal e a política de
austeridade fiscal. Reduziu direitos, privatizou estatais e iniciou o movimento de
contrarreforma da seguridade social.

Nos governos do Partido dos Trabalhadores, Lula e Dilma, apesar da esperança


que se tinha por um governo progressista, que incorporasse em sua agenda as pautas da
classe trabalhadora, pela consolidação do Estado de bem estar social no Brasil, “a
política macroeconômica dos governos anteriores foi mantida. As políticas sociais
continuaram fragmentadas e subordinadas à lógica econômica. Nessa setorização, a
concepção de seguridade social não foi valorizada” (BRAVO e MATOS, 2006: 211).

Lúcia Lopes ao analisar os impactos do governo Lula nas políticas de seguridade


social, especificamente na previdência social, afirma que o mesmo

[…] iniciou sob expectativa popular e em condições econômicas adversas.


Porém, já comprometido com o grande capital. A Carta ao Povo Brasileiro, de
2002, apontou para um mercado de consumo de massas e para a “reforma” da
previdência e do trabalho. Dito e feito. Melhorou o desempenho da economia, os
indicadores do trabalho, valorizou o salário mínimo e reduziu índices de pobreza,
mas, sua política macroeconômica não fugiu à perspectiva neoliberal. Prosseguiu
a contrarreforma da previdência, atingindo, sobretudo, os regimes dos servidores
públicos, pelas emendas constitucionais nºs 41 e 42 de 2003 e a nº 47 de 2005.
Em 2008, com o agravamento da crise, usou os benefícios previdenciários e do
bolsa família para estimular o consumo, deixando aposentados e pensionistas
endividados, sob controle do capital financeiro. (LOPES, 2017: 3)

Nessa mesma orientação política e macroeconômica

O governo Dilma seguiu a trilha. Criou a fundação de previdência complementar


dos servidores públicos federais, em 2012. No contexto de agravamento da crise
e expansão da dívida, cedeu a novas pressões e, em 2014 as medidas
provisórias 664 e 665 de 2014, convertidas em leis, em junho de 2015,
dificultaram o acesso à pensão por morte, ao auxílio-doença, à aposentadoria
por invalidez, ao seguro-desemprego e outros. Em 2015, as renúncias tributárias
atingiram R$ 276 bilhões, reduzindo o financiamento da seguridade social, como
diz a ANFIP, na Análise da seguridade em 2015. Nesse ano, criou o fórum de
política de emprego, trabalho, renda e previdência social, para propor mudanças.
Com o impeachment da Presidenta, o relatório do fórum serviu ao governo
Temer na PEC 287/2016 – a mais agressiva proposta de contrarreforma da
seguridade (LOPES, 2017: 4).

35
Observa-se que, apesar da manutenção da agenda econômica dos governos
anteriores, o lulopetismo reinterpreta a conciliação entre as classes sociais e estas com o
Estado brasileiro.

O processo de desenvolvimento da perspectiva crítica no Brasil é atravessado


pela mudança aparentemente radical na conjuntura política nacional. A ascensão do
representante da classe trabalhadora, Lula, pelo Partido dos Trabalhadores em 2002 e o
desenvolvimento dos seus governos introduzem na sociedade brasileira novos
elementos, uma nova conjuntura e uma nova interpretação das relações de conciliação
estabelecidas entre a classe trabalhadora e as estruturas de poder do Estado brasileiro.

Este tipo brasileiro de relações entre as classes sociais fundamentais,


denominada amplamente e fartamente como “conciliação de classes”, vai engendrar no
pensamento crítico brasileiro uma perspectiva particular, eminentemente político-
partidária e eleitoral, que irá determinar os sentidos de uma importante fração do
pensamento político, científico e social brasileiros na contemporaneidade.

Pochmann (2010: 121-122) denominou a reinterpretação “lulopetista” deste tipo de


relação como uma relação de “coalização interclasses sociais”, que afirmou ser “capaz de
compreender – no plano nacional – a reunião desde as famílias de maior renda [...] até os
segmentos extremamente miseráveis da população” e que “a emergência desse novo
tipo de aliança poderia fortalecer o conjunto dos extratos sociais de baixa renda e de
nível médio de organização”. A realidade é que a ideologia da conciliação de classes
substituiu a perspectiva da luta de classes.

Este novo período de “conciliação de classes” reproduz alguns mitos assumidos


por parte significativa do pensamento crítico brasileiro. O mito da conciliação de classes,
a ideologia que faz acreditar que é possível um governo, ou pior ainda, o Estado servir às
duas classes fundamentais ao mesmo tempo, que é possível atender aos interesses e às
necessidades da classe trabalhadora ao mesmo tempo em que se atende aos interesses
da burguesia. Não somente da burguesia nacional, como também e, sobretudo, do
imperialismo, das burguesias internacionais.

Este pensamento produzido pela hegemonia “lulopetista” é denominado no âmbito


da produção de conhecimento do pensamento crítico científico e político, como
neodesenvolvimentismo. Em síntese o neodesenvolvimentismo se fundamenta, no
âmbito material, nas possibilidades conjunturais de enriquecimento nacional calcadas no

36
boom das commodities, que constituiu a última fase de plena expansão aparentemente
harmônica do modo de produção capitalista em todo mundo, mas que na verdade
representa, ao modo de ver de pensadores como Plínio de Arruda Sampaio Junior e
Rodrigo Castelo, nada mais do que uma nova fase do processo de consolidação do
modelo neoliberal no Brasil, particularizado pelo fato de se dar no contexto da ascensão
política de uma fração expressiva da classe trabalhadora aos espaços do poder central.

O neodesenvolvimentismo se caracteriza, por um lado, por formas próprias e


contemporâneas de realização do receituário neoliberal, adotando políticas previstas no
Consenso de Washington e também previstas em demais formulações de organismos
internacionais como o Banco Mundial e o FMI.

As políticas neodesenvolvimentistas se caracterizam pela expansão da


capacidade da acumulação capitalista, por um lado, e pela distribuição mínima (muito
mínima) de um minúsculo naco da riqueza nacional à classe trabalhadora, por outro. Esta
distribuição se dá por meio de políticas compensatórias amplamente desprovidas de
qualidade e de dignidade e que defendem a retomada da ideologia dos mínimos sociais,
da distribuição de mínimos sociais para a sobrevivência da classe trabalhadora brasileira.

Potyara Pereira (2002) estabelece uma discussão no sentido de compreender o


que é o mínimo e o básico no que se refere às necessidades humanas. Para ela, o
“mínimo tem conotação de menor, de menos. Em sua acepção mais ínfima, identificada
com patamares de satisfação de necessidades que beiram a desproteção social. [Já, o
básico] (...) expressa algo fundamental, principal, primordial, que serve de base de
sustentação indispensável e fecunda ao que a ela se acrescenta. Assim, o básico vai
requerer investimentos sociais de qualidade, [...] é a mola mestra que impulsiona a
satisfação de necessidades em direção ao ótimo. (PEREIRA, 2002: 26-27).

Segundo Rodrigo Castelo, o novo desenvolvimentismo abriu

uma nova etapa da revolução passiva com acordos entre modernas e arcaicas
classes dominantes sob a égide da aristocracia operária que abandonou seus
projetos de socialismo antes mesmo de assumir o governo (Iasi, 2006), em um
processo maciço de transformismo (CASTELO, 2012: 631).

Este autor destaca como frutos do modelo desta dita coalizão i) a redução da luta
de classes ao controle estatal sobre o mercado e ii) o esvaziamento da grande política e
do seu poder transformador em que não se debate a questão da distribuição da riqueza

37
nacional e nem a sua apropriação pelo capital no contexto da luta de classes. Desta
forma, o neodesenvolvimentismo se constitui num rótulo que esconde sua essência
neoliberal, ignorando as críticas marxistas e todo o seu cabedal teórico em torno dos
problemas do desenvolvimento brasileiro, sobre a teoria do valor-trabalho, da
vulnerabilidade externa, do subdesenvolvimento, da dependência e da revolução
brasileira, “destruindo em 5 anos uma reputação clássica construída em 50 anos”
(CASTELO, 2012: 634), (parafraseando JK num paralelo com a tradição nacional
desenvolvimentista).

O neodesenvolvimentismo cria uma ideologia que justifica uma lógica política que
diz pretender agradar às duas classes sociais fundamentais. Ela agrada a classe
dominante de forma material, concreta, por meio da expansão dos seus ganhos
financeiros, por outro lado engendra uma ideologia capaz de (des)mobilizar tanto as
frações médias da classe trabalhadora, porque, inclusive, se fundamenta em princípios
cristãos e que, por outro lado e por isto mesmo, “agrada” às frações mais empobrecidas
por meio da distribuição de mínimos sociais, que anunciam o objetivo de combater a
extrema pobreza e a fome, substituindo o projeto de combate às desigualdades.

O neodesenvolvimentismo, num primeiro plano, garante a pacificação do terreno


político por meio do esvaziamento da consciência de classe, do enfraquecimento das
organizações dos trabalhadores, cooptando-as às estruturas do Estado distribuindo
pequenos privilégios às suas lideranças, enquanto garante de forma contínua a expansão
da acumulação do capital, apresentando como produtos, segundo Reinaldo Gonçalves
(2012), a desindustrialização, a dissubstituição das importações e a sua reprimarização
(fronteira produtiva direcionada aos setores primários), o aprofundamento da
dependência tecnológica, a desnacionalização, a perda de competitividade internacional,
maior concentração de Capital, financeirização acelerada, foco exclusivo em metas de
curto prazo (imediatismo), revelando as raízes em “diretrizes do liberalismo econômico”
(GONÇALVES, 2012: 661).

Plínio de Arruda Sampaio Junior, referindo-se ao projeto neodesenvolvimentista


afirma (2012), afirma que

O método de ocultação sistemática do negativo e de exaltação acrítica do


crescimento e da modernização dos padrões de consumo como fins em si
transforma o vício em virtude. A relação indissolúvel entre desenvolvimento e
barbárie característica de nosso tempo, que se manifesta com virulência
redobrada nas economias periféricas, converte-se, assim, por um passe de
mágica no seu contrário: o desenvolvimento capitalista virtuoso capaz de

38
conciliar crescimento com equidade. A supervalorização dos fatos positivos e a
pura e simples desconsideração dos aspectos negativos da realidade alimentam
a mitologia de crescimento com distribuição de renda e aumento da soberania
nacional.” (SAMPAIO JUNIOR, 2012: 680-681).

Mas estes elementos constituem apenas o primeiro plano, um plano mais visível
deste projeto, um plano que se apresenta pacífico e harmônico. Diz-se “num primeiro
plano” porque uma análise crítica mais cuidadosa sobre o período não tem nenhuma
dificuldade de descortinar uma realidade extremante violenta, em que o aparato do
Estado foi utilizado para seguir oprimindo diversas frações da classe trabalhadora
brasileira. Os processos de genocídio do povo indígena e encarceramento da juventude
negra não cessaram durante os governos do Partido dos Trabalhadores, pelo contrário,
sob o manto pacífico e amoroso da ideologia da conciliação de classes foi possível a
aliança com as burguesias latifundiárias urbana e rurais, que têm um caráter
essencialmente violento; classes que se formaram, se enriqueceram e constituíram o seu
poder político e econômico às expensas do genocídio dos indígenas, da escravização
dos africanos e seus descendentes e da exploração aviltante da força de trabalho do
povo brasileiro, constituindo aquilo que Darcy Ribeiro denominou como o “moinho de
gastar gente”.

Mesmo diante da perversidade que constitui o projeto de conciliação de classes,


importantes frações -(grandes frações) provavelmente até mesmo a maior fração - do
pensamento crítico brasileiro se mantêm como base de apoio e de sustentação deste
projeto nacional de traição de classe representado pelo Partido dos Trabalhadores. Mitos
como o mito da eliminação da extrema pobreza, o mito da conciliação de classes, entre
outros, são continuamente reproduzidos. Márcio Pochmann, um dos seus ideólogos,
escreveu em 2010 que com o novo modelo de desenvolvimento “as crises externas
deixaram de expor a sociedade brasileira às mesmas dificuldades observadas durante a
vigência do modelo neoliberal”, a queda deste mito se observou quando a marolinha se
revelou uma tsunami. Mitos ainda amplamente reproduzidos por uma escola ideopolítica
em que “a aparência crítica é apenas um disfarce para a apologia do status quo”
(SAMPAIO JUNNIOR, 2012: 681). De forma é preciso encerrar estas provocações com
uma pergunta muito necessária: porque o neodesenvolvimentismo e a ideologia da
conciliação de classes parecem formar, ainda, a perspectiva ética, política e teórica
hegemônica no pensamento crítico brasileiro, em negação da teoria marxista?

39
3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estas páginas pretenderam colocar em perspectiva parte das condições teóricas,


éticas e políticas que se expressam no pensamento critico brasileiro hegemonizado pela
ideologia neodesenvolvimentista, compondo o debate sobre a possibilidade de que a
perspectiva crítica tenha sofrido, no Brasil, um atravessamento pela lógica da conciliação
de classes aos moldes “lulopetistas” e a hegemonia que ela exerce sobre a classe
trabalhadora no Brasil contemporâneo.

A lógica e a perspectiva da conciliação de classes, adotadas pelas frações


hegemônicas da esquerda brasileira na contemporaneidade, pode se expressar por meio
da substituição da luta pela divisão justa da renda socialmente produzida pela assunção
da lógica da distribuição de “mínimos sociais”; a substituição da luta contra as
desigualdades, pela sua aceitação (administração) em forma da defesa de políticas
compensatórias; a defesa da focalização das políticas sociais, dos critérios de
seleção/exclusão; a reprodução de falsos discursos e ideologias, como o da falsa
possibilidade da conciliação dos interesses (inconciliáveis) das classes sociais
fundamentais, entre outras formas de redução do rigor da perspectiva crítica.

No contexto do neodesenvolvimentismo arraigado, de redução do rigor crítico, o


pensamento crítico brasileiro apresenta graves limitações na análise, compreensão e
intervenção na realidade posta pelos governos de ultradireita, que assaltaram ao poder
desde 2016 por dentro da estrutura do Estado conciliador, apontando, equivocadamente,
para a retomada da conciliação de classes como alternativa para a classe trabalhadora.
Tal projeto poderá impor perdas irreparáveis, inclusive à perspectiva classista e ao
pensamento revolucionário no Brasil, pavimentando o caminho para uma tormenta ainda
maior num futuro muito próximo.

4- REFERÊNCIAS

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40
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novas determinações do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez; 1996. p. 195-252.

41
CRISE DO CAPITAL E RELAÇÕES DE TRABALHO NO BRASIL: indicações para
análise
Ana Luiza Avelar de Oliveira12

Resumo: O objetivo do artigo é realizar uma análise acerca das


mudanças contemporâneas nas relações de trabalho no Brasil,
bem como da aprovação das mudanças na Consolidação das Leis
Trabalhistas. Realizou-se uma pesquisa bibliográfica buscando
identificar alguns elementos do debate sobre a teoria da
dependência, a fim de compreender as relações de trabalho no
país. Posteriormente buscou-se apresentar a particularidade do
mercado de trabalho no Brasil, bem como debater alguns
elementos da última reforma trabalhista. Constatou-se que essas
mudanças recentes contribuíram para crescente flexibilização das
relações de trabalho no país, que vem afetando as condições de
vida e trabalho da população.

Palavras-chave: Trabalho. Relações de trabalho. Teoria da


dependência.

Abstract: The article aims to analysis the contemporary changes


in labour relationship in Brazil, and the approval of changes in the
Consolidation of Labour Laws. We conducted a bibliographical,
seeking to identify some elements of the debate on the
dependency theory, in order to understand the labour relationships
in the country. We attempted to present the particularity of the
labour market in Brazil, and discuss some elements of the latest
labour reform. We verified that these recent changes contributed to
the growing flexibilization of labour relations in the country, which
has been affecting the living and working conditions of the
population.

Keywords: Labor.Labour relationship. Dependency theory.

1- INTRODUÇÃO

Na sociedade capitalista a busca por lucros pela burguesia se torna condição


necessária para a produção de mercadorias, visto que o capitalista prefere não produzir a

12
Assistente Social; Professora Adjunta da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de
Fora; Doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro; email: analuiza_avelar@yahoo.com.br; eixo temático “Política Social, trabalho e questão social:
retrocessos e resistências na conjuntura atual”.

42
produzir sem lucros. Como explicitado por Marx (2017), no entanto, devido à lei da queda
tendencial da taxa de lucros, o capitalismo passa por períodos de crise, nos quais é
preciso haver uma reorganização para se elevar os níveis de lucro dos períodos
anteriores.
Para entender a particularidade da formação do capitalismo no Brasil, será realizada
uma análise, em caráter preliminar, da teoria da dependência desenvolvida por Rui
Mauro Marini, para compreender o lugar dos países latino-americanos no sistema
capitalista mundial e sua situação de subalternidade e dependência em relação aos
países de economia central. Por fim, será feita uma análise de alguns elementos da
reforma trabalhista brasileira, realizada em 2017, bem como a análise de alguns de seus
impactos.

2- CAPITALISMO DEPENDENTE E SUPEREXPLORAÇÃO DO TRABALHO

De acordo com Mandel (1985, p. 58) “a acumulação de capital produz


desenvolvimento e subdesenvolvimento como momentos mutuamente determinantes do
movimento desigual e combinado do capital”. Constata-se dessa dinâmica do
desenvolvimento capitalista, a não homogeneidade na economia capitalista, de modo que
as mercadorias produzidas nos países centrais consigam ser vendidas obtendo um
superlucro nos países de economia periférica.
Assim, o lugar dos países da América Latina na economia mundial pode ser
compreendido como subordinados aos países de economia central. Segundo Marini
(apud AMARAL; CARCANHOLO, 2012, p. 87-88), “a dependência deve ser entendida
como uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo
âmbito as relações de produção nas nações subordinadas são modificadas ou recriadas
para assegurar a reprodução ampliada da dependência”. Conforme Amaral e Carcanholo
(2012) essa relação de dependência se faz necessária porque o desenvolvimento de
certas partes do sistema ocorre devido ao subdesenvolvimento de outras.
Paiva, Rocha e Carraro (2010, p. 151) afirmam que “embora subdesenvolvimento e
desenvolvimento possam parecer processos independentes, são processos constitutivos
de uma mesma lógica de acumulação capitalista em escala global, qualitativamente
diferenciados e ligados tanto pelo antagonismo como pela complementaridade”.Para
Marini (2012) “o que caracteriza a economia dependente é a forma aguda que essa

43
característica adquire e o fato de que ela responde à própria estrutura de seu processo
histórico de acumulação de capital”.
No que concerne ao ciclo da produção, na economia dependente, os capitalistas,
devido à diferença dos custos da produção em relação aos países centrais, tratam de
recompor sua taxa de lucro através da elevação da taxa de mais-valia.
Com a saída de recursos do país, vários problemas de estrangulamento interno e
restrições externas ao crescimento começam a ocorrer, cabendo aos países de economia
periférica, a fim de garantir sua dinâmica interna de acumulação de capital, aumentar a
produção de excedente por meio da superexploração da força de trabalho (AMARAL;
CARCANHOLO, 2012).
De acordo com Osório (2012a, p. 55) existem quatro formas para incrementar a taxa
de exploração. A primeira delas é a partir do prolongamento da jornada de trabalho, a
partir de um aumento do tempo de trabalho excedente, pelo incremento absoluto da
jornada de trabalho. Nas condições de capitalismo mundializado, essa forma se constitui
como um mecanismo regular nas regiões dependentes, que têm como característica a
presença de salários muito inferiores ao valor da força de trabalho.
A segunda forma é a partir da produtividade do trabalho, pela modificação da relação
entre trabalho necessário e excedente, dentro de uma jornada de trabalho constante, a
partir de uma diminuição do valor da força de trabalho e, nesse sentido, do tempo
necessário. Nesse sentido, aumenta-se o tempo de extração de mais-valor dentro de
uma mesma ornada de trabalho. Essa forma de exploração aumenta o tempo de trabalho
excedente, porém não viola o valor da força de trabalho (OSÓRIO, 2012a).
A elevação da produtividade possibilita a elevação da intensidade do trabalho, que
Osório (2012a) considera como terceira forma. Tanto a elevação da produtividade,
quanto a intensidade propiciam o incremento da produção, porém com diferenças
substanciais. O aumento da intensidade do trabalho é obtido pelos avanços tecnológicos
e da organização do trabalho, aumentando o desgaste dos trabalhadores, o que não
ocorre com a elevação da produtividade. Essa forma de incrementar a taxa de exploração
propicia um tipo de desgaste que acaba reduzindo a vida útil do trabalhador, devido a
doenças nervosas e psicológicas, ao contrário do prolongamento do desgaste, que reduz
por meio de desgastes físicos imediatos e acidentes de trabalho.
Como quarta e última forma, Osório (2012a) indica a organização do trabalho, que
tem variado ao longo do desenvolvimento do capitalismo. O predomínio de determinada
forma de organização do trabalho, não significa a extinção ou superação das formas
anteriores, mas sim ocorre frequentemente uma combinação entre elas. Haja vista que

44
há o predomínio de uma forma ou outra em cada tempo histórico, é possível que a
organização dos processos de trabalho seja periodizada, o que leva as noções de
taylorismo, toyotismo, dentre outros.
Luce (2013, p. 146) afirma que a superexploração do trabalho pode ser entendida
como “uma violação do valor da força de trabalho, seja porque a força de trabalho é paga
abaixo do seu valor, seja porque é consumida pelo capital além das condições normais,
levando ao esgotamento prematuro da força vital do trabalhador”, ou seja, nessa situação
em que a força de trabalho é superexplorada o capital se apropria do fundo de consumo
e/ou do fundo de vida do trabalhador.
De acordo com Marini (2012) a superexploração se reflete na escala salarial, a partir
da remuneração da força de trabalho abaixo do seu valor. A parcela de operários que
conseguem sua remuneração acima do valor médio da força de trabalho, o tempo todo vê
seu salário pressionado constantemente, devido ao papel regulador do salário médio.
Conforme indica Osório (2012a), a busca incessante da valorização caracteriza o
sentido da produção capitalista, nesse sentido não deve ser entendida apenas como um
processo de produção, mas sim como um processo de reprodução.
Os mecanismos que intensificam a exploração da força de trabalho nos países latino-
americanos são utilizados nos países centrais para reverter o problema da queda da taxa
de lucro. Isso faz com que a massiva composição da força de trabalho seja de
trabalhadores informais e desempregados.
Essas novas relações de trabalho, gerada pelas relações flexíveis, características do
estágio capitalista atual, estabelecem uma relação orgânica e reacionária entre a
expansão do capital e a espoliação do trabalho, que incorpora antigas e novas formas de
exploração, cuja conciliação culmina no fenômeno da superexploração. Afirma-se, nesse
sentido, que a superexploração é um pressuposto tanto da financeirização, quanto da
transnacionalização, que se materializa na transição para o modelo de acumulação
flexível.

3- A ECONOMIA DEPENDENTE NA AMÉRICA LATINA: UMA ANÁLISE DA


PARTICULARIDADE DO MERCADO DE TRABALHO E A REFORMA TRABALHISTA
NO BRASIL

De acordo com Osório (2012a) um dos mecanismos fundamentais utilizados pelo


capital para alcançar seus objetivos é a política econômica e embora possa ser
considerada por alguns autores como a manipulação dos meios para atingir

45
determinados fins econômicos, a política econômica é mais do que isso, relacionando-se
com elementos de ordem econômica, que são necessariamente políticos.
Em relação ao Estado capitalista, Mandel (1985) sinaliza que suas principais funções
são a de criar condições gerais de produção que não podem ser garantidas pelas
atividades privadas de setores da classe dominante; a de reprimir ameaças da classe
trabalhadora, ou de algumas frações ao modo de produção capitalista a partir da ação do
exército, polícia, do sistema judiciário e penitenciário e; a de integrar a classe
trabalhadora, garantindo que a ideologia da sociedade continue sendo a da classe
dominante e que a classe explorada aceite sua exploração. Segundo Osório (2012b), nas
últimas décadas, devido ao período de crise da década de 1970, a América Latina
passou por uma grande transformação econômica, que exigiu mudanças tecnológicas, a
implementação de uma nova divisão internacional do trabalho e a mundialização do
capital.
De acordo com Pochmann (2006 apud Santos, 2012) a formação do mercado de
trabalho no Brasil possui algumas características sem as quais não é possível entender o
padrão de sociedade salarial incompleto, com marcantes traços de subdesenvolvimento,
como, por exemplo, a distinção entre assalariamento formal e informal, a ampla presença
de baixos salários e a grande quantidade de trabalhadores autônomos (não
assalariados). O autor salienta ainda entre os determinantes dessas características o
intenso processo migratório campo-cidade, que é responsável por parte dos traços desse
padrão de exploração da força de trabalho, bem como pela formação do excedente de
mão de obra, que apesar de ficar de fora do usufruto dos resultados do crescimento
econômico, foi essencial para o seu processamento.
Dedecca e Baltazar (1992 apud SANTOS, 2012) enfatizam a importância dos
anos de 1930 a 1956, período em que se inicia a constituição da base de trabalho
assalariado necessária à estruturação do movimento sindical, além disso, é a partir desse
momento que o processo de industrialização ganha expressão e vai se formando um
mercado de trabalho urbano-industrial que possibilita a estruturação de um movimento
sindical em âmbito nacional. É nesse período que a industrialização, ao avançar, começa
a traçar um mercado nacional de bens, serviços e trabalhos, com uma dinâmica
determinada pela indústria de transformação e pela crescente concentração de atividades
no meio urbano.
Nesse sentido afirma- se que essa “industrialização restringida” é fundamental
para consolidar o sistema de relações de trabalho no país, que atraem parte dos
trabalhadores rurais para os centros urbanos em formação. É importante frisar também

46
que é nesse período que se consolida a legislação trabalhista no país, porém os
trabalhadores organizados e protegidos por essas leis e pelo salário mínimo eram
relativamente poucos, localizados em algumas capitais, e que a maioria dos
trabalhadores, que se encontravam naquela época no campo, e alguns marginalizados
das cidades não possuíam quaisquer direitos. De acordo com Santos (2012, p. 436) fica
“evidente que a restrita regulação do trabalho no Brasil sempre colaborou para manter
baixo o valor da força de trabalho “consolidando, assim, uma relação entre capital e
trabalho pautada na superexploração”.
No Brasil, ao longo do seu processo histórico percebe-se constantes processos de
revoluções passivas. É importante destacar também o papel central que a ação do
Estado teve na constituição do capitalismo brasileiro, que em sua atuação, cooptada
pelos setores dominantes, propunha ações que instituíram a superexploração do trabalho
e a passivização das lutas sociais no Brasil.
É por isso que, de acordo com Santos (2012) a análise genérica da crise
capitalista não pode ser realizada sem a contextualização do significado da
flexibilidade/desregulamentação tem no panorama brasileiro, diferente do que significa no
contexto de países capitalistas desenvolvidos. No Brasil essa implementação ocorreu
mais fortemente e com menos resistência aos retrocessos civilizatórios implicados na
ausência de proteção ao trabalho.
De acordo com Marx (2017) um dos mecanismos utilizados para conter as crises e
recuperar os índices anteriores é a redução dos salários abaixo do seu valor. Devido à
crise de 2008, uma das formas utilizadas por alguns países da América Latina, foi a
reformas de suas legislações trabalhistas, a fim de baratear o valor da força de trabalho.
Sob a argumentação de que é necessário, para recuperar os índices de crescimento
econômicos nacionais, reduzir a insegurança jurídica e diminuir o desemprego, em 2017
são aprovadas mudanças que alteram a legislação trabalhista brasileira.
Em março de 2017 foi aprovada a Lei n° 13.429, que permite a terceirização em
todas as atividades de uma empresa, sendo que anteriormente a aprovação dessa lei, as
atividades fins não poderiam ser terceirizadas. Poucos meses após a aprovação da lei da
terceirização, o Congresso aprovou a reforma trabalhista, alterando mais de cem artigos
da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
O mercado de trabalho formal brasileiro tem como vínculos de emprego
predominantes o contrato por tempo indeterminado e o estatuário efetivo. De acordo com
Krein et al. (2018) analisam que o mercado de trabalho brasileiro está muito flexível e

47
variando de acordo com o nível da atividade econômica, visto que houve uma queda
muito expressiva de empregos formais, no período entre 2014 e 2016.
Tal dado indica que o contrato de trabalho por prazo indeterminado já possui um
alto nível de flexibilização no país, uma vez que as empresas têm a liberdade de romper
o vínculo, o que explica a baixa expressão das formas atípicas de contratação, que
segundo Krein et al. (2018) são as modalidades de temporário, avulso, estatutário não
efetivo, contrato por tempo de terminado e contratos especiais no setor público.
A reforma trabalhista brasileira tem a finalidade de estimular os contratos atípicos,
visto que são vínculos mais frágeis se comparados com os contratos por tempo
determinado. De acordo com Krein et al. (2018, p.101) isto “pode contribuir para
precarizar o mercado de trabalho, gerando ocupações mais inseguras e deixando os
trabalhadores em uma condição de maior vulnerabilidade”.
A precariedade pode também ser observada a partir da taxa de informalidade e da
taxa de rotatividade entre os trabalhadores. A alta rotatividade é uma das características
estruturais do mercado de trabalho brasileiro, não podendo ser explicadas por situações
conjunturais, o que leva a compreensão de que a reforma trabalhista não tem como
resolver tal problema, mas sim agravá-lo, ao ampliar as formas de contratação atípica e
baratear os custos das rescisões, por meio de “acordos”.
Há também um crescimento da terceirização a partir da incorporação de processos de
transformações nas relações de emprego, como a pejotização, que flexibiliza as relações
de trabalho, uma vez que são eliminados direitos, proteções e garantias ao trabalhador, e
a uberização, que ao garantir autonomia ao trabalhador para definir seu horário de
trabalho, sua jornada e a intensidade do trabalho, aparece que este possui ter total
liberdade sobre seu trabalho, porém ficam obscurecidas as relações de dependência e
subordinação com as empresas.O crescimento dessas formas de terceirização ocorre,
visto que a população trabalhadora brasileira transita no mercado de trabalho de forma
instável, precisando, muitas vezes, a fim de obter uma melhor remuneração, combinar
diferentes ocupações.
Observa-se que apesar dos sinais de melhora apresentados pela economia brasileira
durante o governo Temer, não houve diminuição da taxa de desemprego, ampliando
assim a quantidade de trabalhadores que se encontram fora do mercado formal de
emprego, ou que já desistiram de procurar emprego. Considera-se que a reforma
efetuada pode ser considerada como bem-sucedida pelos representantes do capital,
tendo em vista que promoveu uma maior flexibilização nas relações de trabalho,

48
diminuindo assim o valor pago pela força de trabalho no país, o que é um atrativo para a
vinda de capital externo para o país.
Em síntese, é possível afirmar que a reforma trabalhista vem afetando drasticamente
as condições de vida e trabalho da população trabalhadora brasileira, mas que esta não é
uma questão que se refere somente a realidade brasileira, mas sim faz parte da dinâmica
do capitalismo que busca constantemente baratear o valor pago pela força de trabalho
até o mínimo possível.

4- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considera-se que a reforma trabalhista operada no governo Temer é uma das


estratégias utilizadas pelo grande capital para recuperação das taxas de lucro. Desde a
década de 1990, com a implementação do neoliberalismo no Brasil, sob a justificativa de
que a economia do país não poderia crescer, reduziu-se e precarizou-se o emprego, a
partir da reestruturação das relações de trabalho.
Observa-se nos últimos anos, nos governos Temer e Bolsonaro, uma ampliação do
desmonte de direitos e políticas sociais, o que, segundo Oliveira (2020), não representam
a volta do neoliberalismo no país, mas sim a exacerbação do capitalismo em sua faceta
mais aguda e incivilizada. As divergências com os governos anteriores consistem apenas
na forma e na velocidade com que as medidas são adotadas. Apoiado por um congresso
que renovou partidos e nomes, mas não a prática de representar interesses corporativos
e eleitoreiros, o país segue em direção ao passado, com Bolsonaro atuando como bobo
da corte, chocando o mundo com suas imbecilidades e obscenidades verbais, enquanto
sua equipe econômica segue arquitetando mudanças para atender ao capital.
Dessa forma, é possível considerar que a fim de garantir a intensificação da inserção
subordinada do Brasil no cenário internacional, é transferido para os trabalhadores a
responsabilidade pelo pagamento dessa inserção, seja a partir da precarização das
condições de trabalho, levando a uma superexploração da força de trabalho, seja a partir
do desmonte das políticas sociais, que vem precarizando as condições de acesso da
classe trabalhadora aos serviços públicos. Nesse sentido, a partir do exposto, considera-
se que a reforma trabalhista recentemente implementada vem na contramão dos direitos
historicamente conquistados pela classe trabalhadora, colocando em xeque direitos
historicamente conquistados.

49
5- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, e CARCANHOLO, M. Superexploração da força de trabalho e transferência de


valor: fundamentos da reprodução do capitalismo dependente. In. FERREIRA, C.,
OSORIO, J. e LUCE, M. (orgs.) Padrão de Reprodução do capital: contribuições da
teoria marxiana da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012.

Krein, J. D., et al. Flexibilização das relações de trabalho: insegurança para os


trabalhadores. In: KREIN, J.D.; GIMENEZ, D. M.; SANTOS, A. L. Dimensões críticas da
reforma trabalhista no Brasil. Campinas: Curt Nimuendajú, 2018.

LUCE, M. S. A superexploração da força de trabalho no Brasil: evidências da história


recente. In: FILHO, N. I. (org.) Desenvolvimento e Dependência: cátedra Ruy Mauro
Marini. Brasília: Ipea, 2013.

MANDEL, Ernest. O Capitalismo Tardio. Abril Cultural, São Paulo, 1985.

MARINI, Ruy Mauro. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla,
OSÓRIO, Jaime e LUCE, Mathias (orgs.). Padrão de reprodução do capital:
contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012.

MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política Livro III: O processo global da


produção capitalista. São Paulo: Boitempo, 2017.

OLIVEIRA, Ednéia, A. Serviço Social e redemocratização: os caminhos do Serviço


Social no Brasil pós-1985. Curitiba: Editora CRV, 2020.

OSORIO, Jaime. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA,
Carla, OSÓRIO, Jaime e LUCE, Mathias (orgs.). Padrão de reprodução do capital:
contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012a.

OSORIO, Jaime. América Latina: o novo padrão exportador de especialização produtiva –


estudo de cinco economias da região. In: FERREIRA, Carla, OSÓRIO, Jaime e LUCE,
Mathias. Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da
dependência. São Paulo: Boitempo, 2012b.

PAIVA, Beatriz; ROCHA, Mirella; CARRARO, Dilceane. Política social na América Latina:
ensaio de interpretação a partir da Teoria Marxista da Dependência. Revista Ser Social.
Brasília, v.12, nº 26, 2010, p.147-175.

SANTOS, J. S. Particularidades da questão social no Brasil: mediações para seu debate


na era Lula da Silva. Serviço Social & Sociedade. São Paulo: Cortez, v. 111, p. 430-
449, 2012.

50
O PROCESSO DE PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO NO BRASIL: AS NOVAS
FORMAS DE EXPLORAÇÃO DA CONTEMPORANEIDADE

Daiana Ferreira de Almeida13


Renata Pereira da Silva Uchôa14

RESUMO: Pesquisa bibliográfica de abordagem qualitativa,


com natureza teórica crítica da realidade, que visa discutir o
processo de precarização do trabalho na
contemporaneidade, a partir da flexibilização do capital, dos
mercados de trabalho e dos seus novos setores de
produção, inovação comercial, tecnológica e organizacional.
Tendo como cerne a análise da reforma trabalhista e do
trabalho informal, e o seu papel frente às constantes
transformações do sistema capitalista.

Palavras- Chaves: Capitalismo, Trabalho Contemporâneo,


Precarização.

ABSTRACT: Bibliographic research with a qualitative


approach, with a critical theoretical nature of reality, which
aims to challenge the work process in contemporary times,
from the flexibilization of capital, labor markets and their new
sectors of production, commercial organization. Having as its
core the analysis of labor reform and informal work, and its
role in the face of the transformations of the capitalist
system.

Keywords: Capitalism, Contemporary Work, Precarization.

1- INTRODUÇÃO

Amaral (2018) compreende o fenômeno da precarização do trabalho na


contemporaneidade, como parte da teia de articulações tecidas pelo capital em meio à
crise, na tentativa de restabelecer suas condições de reprodução na fase concebida
como acumulação flexível. Nesse sentido, tem se constituído uma nova cultura do

13Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),


daiana.ferreira.almeida@gmail.com. Trabalho vinculado ao eixo temático: as expressões da
exploração/opressão de classes no contexto da ofensiva ultraneoliberal do capital.
14 Pedagoga, Pós-Graduanda em Educação Inclusiva, Graduanda do Curso Serviço Social e Mestranda em

Direitos Humanos- UFPE, renatapsuchoa@hotmail.com. Trabalho vinculado ao eixo temático: as expressões


da exploração/opressão de classes no contexto da ofensiva ultraneoliberal do capital.

51
trabalho que ao mesmo tempo em que busca atender aos novos padrões de reprodução
do capital, se distancia do formato do trabalho estável, protegido e coletivo, para formas
mais heterogêneas, desprotegidas e desagrupadas, em suma, mais individualizadas
(AMARAL, 2018).
Dessa forma, a lógica financeira passa a atingir todos os âmbitos da vida social,
perpassa também pelo discurso de que só com o trabalho é que as pessoas irão
conquistar a sua política de proteção social. Rejeita-se qualquer tipo de política oriunda
dos mecanismos de proteção social pública, por considerá-las, assistencialistas,
atrasadas e que prolongam a pobreza, fazendo com que os indivíduos não se
desenvolvam e conquistem a sua sonhada “liberdade financeira”, que o discurso
neoliberal vem difundindo pelos países mais ricos e que chega em países
subdesenvolvidos e arrasam economias que estão rumando ao progresso e que
estimulam uma política de proteção social pública
Ainda lembramos que a história dos direitos trabalhistas no país esteve
intimamente ligada aos interesses da elite, que se inspirou nas reformas neoliberais como
a desconstrução do sistema de proteção social e a negociação direta entre
empregadores e trabalhadores. Mesmo com o processo de Redemocratização, período
de maior avanço em termos de construção de direitos com a nova constituinte de 1988,
ainda na década de 90 já foi marcada pelo avanço das ideias neoliberais no país.
Hodiernamente, vivenciamos aprofundamentos destes processos com o aumento do
desemprego e novas formas de empregabilidade marcadas pela precarização e
desregulamentação do trabalho.

2- O NEOLIBERALISMO E AS ESTRATÉGIAS DE DESMONTE DOS DIREITOS DOS


TRABALHADORES

2.1- REFORMA TRABALHISTA

Reforma Trabalhista, instituída pela Lei n 13.467/ 2017 justificada segundo seus
idealizadores, sob uma perspectiva de política econômica neoliberal, de que a sua
implementação se fazia necessária, pois, se tratava de uma questão de sobrevivência
para a classe trabalhadora, partindo do princípio que " o aumento do lucro oriundo do
corte de custos aumentaria a poupança da economia, elevando investimentos e, por
conseguinte, o número de empregos" (FILGUEIRAS, 2019, p. 21). Isso perante um olhar
voltado para a expansão e formalização do emprego, porém, há elementos que precisam

52
ser evidenciados dentro deste processo, a flexibilidade, que traz aos trabalhadores
impactos significativos, que encurralam a classe trabalhadora no dilema de ter um
emprego ou de lutar por melhores condições de trabalho e direitos (FILGUEIRAS, 2019).
É importante ressaltar que, as condições e a expansão do número de empregos
depende de decisões e de investimentos tomadas fora do mercado de trabalho, e isso
tem impactado significativamente nos níveis de desemprego desde a sua implementação,
e intensificado enquanto expressão da questão social na pandemia, isso nos reafirma
mais uma vez que o trabalhador continua a ser explorado e ter seus direitos
expropriados, a sua renda diminuída.
Esses dados comprovam que o trabalhador está mais do que nunca, mais
vulnerável aos interesses do capital, essa afirmativa parte do entendimento da efetividade
da reforma, dos impactos que ela traz ao universo do trabalho e as condições de vida e
sobrevivência dos trabalhadores, a partir dessas informações, podemos refletir sobre
alguns aspectos, segundo Filgueiras (2019), vejamos:

● Efetividade- Nessa questão, podemos trazer algumas reflexões, principalmente a


partir dos dados elevados de desemprego, da não ampliação das vagas de
emprego, mais sim de redução de vagas, de salários e de direitos, isso frente ao
cenário vivido na sociedade brasileira, principalmente em tempos de pandemia.
Para tanto, a reforma trabalhista não cumpre a promessa de expansão e
formalização do emprego, ela se constitui como um ataque direto às formas de
organização e mobilização da classe trabalhadora. E os defensores ferrenhos,
relatam a ausência de tempo suficiente para sua implantação, negacionistas da
desigualdade.

● Impactos- No tocante aos impactos, com os dados coletados nacionalmente


sobre o universo do trabalho, destacamos alguns dos impactos trazidos por ela e
acentuados principalmente no contexto da pandemia de Covid-19: Inviabilidade de
políticas públicas, Financeirização das políticas sociais em favor dos grandes
capitalistas, Acesso limitado à justiça pelos trabalhadores, Desligamento por
acordos mútuos, Redução de salários, Aumento da carga horária de trabalho,
Aumento dos trabalhadores autônomos estagnados, Subocupação, Terceirização,
Ampliação do trabalho autônomo formal, Legalidade do trabalho intermitente,
Aumento do trabalho informal principalmente pelo uso das tecnologias e
uberização do trabalho. Alguns destes serão neste trabalho detalhados.

53
● Níveis de desemprego- Não se tem uma mudança significativa frente aos
números do desemprego, pelo contrário, estes foram acentuados e somente
diminuídos em números insignificantes, refletidos no aumento do trabalho informal
e desprotegido, que impactam diretamente nas expressões da questão social,
pois, "o desemprego deixa de ser acidental ou expressão de uma crise
conjuntural, porque a forma contemporânea do capitalismo não prevê mais a
incorporação de toda a sociedade no mercado de trabalho e consumo” (Chauí,
1999.p. 29 apud Pereira, 2004), refletindo também no âmbito da habitação,
saúde, alimentação, lazer, cultura e segurança. Se consolidando, portanto,
cenário emergente de atuação dos Assistentes Sociais.

2.2- TRABALHO INTERMITENTE, AUTÔNOMO E INFORMAL

Ricardo Antunes (2015) afirma que a sociedade atravessa a constituição de uma


nova morfologia do trabalho e que há um aumento das suas desregulamentações e
modalidades. Assim, ele destaca uma época da informalização do trabalho, terceirização,
precarização, flexibilização, do aumento da exploração do trabalhador, que no Brasil,
especificamente, se intensifica após os anos 1990 com essa ofensiva neoliberal. A lógica
financeira passa a atingir todos os âmbitos da vida social, perpassado também pelo
discurso de que só com o trabalho é que as pessoas irão conquistar a sua política de
proteção social.
O uso das tecnologias de informação - comunicação passam a ser usados para
gerir o processo de produção. Com a pandemia da COVID-19 e a necessidade de
isolamento social, testemunhamos um aumento do home office e a popularização do
trabalho remoto inclusive por profissões que requerem um presencialidade, como a
psicologia, nutrição, pedagogia etc.
A partir dos dados coletados ainda em 2020 “56,1% das pessoas em trabalho
remoto são mulheres, 65,6% são brancas, 74,6% possui escolaridade de nível superior
completo, 31,8% estão na faixa etária de 30 a 39 anos e 63,9% estão empregados no
setor privado” (IPEA, 2021, p.2). Os dados são significativos, pois nos mostra que
durante este período houve uma gama de brasileiros que aderiram ao trabalho remoto,
tornando o ambiente dos seus lares em espaço público à medida em que não há divisões
espaciais do local do descanso e sossego para o mundo do trabalho.

54
Tais tendências para esta modalidade precarizante de trabalho já era legítima
com a regulamentação do teletrabalho e o trabalho intermitente, a partir da reforma
trabalhista (Lei 13.467/2017). É importante frisar que tanto o teletrabalho (trabalho
realizado fora do ambiente de trabalho da empresa) quanto o trabalho intermitente (“uma
modalidade de contratação que permite que a empresa admita um funcionário para
trabalhar eventualmente e o remunere apenas por esse período” (ARAUJO; LUA, 2020,
p.3)) expressa o avanço das formas flexíveis de trabalho e das premissas neoliberais
sobre o Estado brasileiro, já que “nessa regulamentação da modalidade, não há controle
de jornada laboral e não há direito ao adicional de horas extras, intervalo intrajornada e
interjornada – o controle da jornada é do(a) trabalhador(a)” (idem, ibidem). Percebemos
que as transformações tecnológicas incidiram sobre as condições do mercado de
trabalho e criaram novos espaços de trabalho, rebaixando salários e intensificando a
precarização estrutural (AMARAL, 2018).
O contexto de crise estrutural do capital e uma intensificação do desemprego
agravada pela pandemia vemos cada vez mais trabalhadores adentrando nos trabalhos
informais, sem qualquer vínculo empregatício, de proteção a qualquer adversidade que
os processo de trabalho possam lhe causar. Ao longo da história do nosso país o
trabalho informal sempre foi crescente, como é destacado por Silva (2020, p. 67), estes
estão na linha de frente em momentos de crise sem conta as mais variadas formas de
empregabilidade que esta modalidade abarca
São milhões de pessoas que trabalham como autônomos – como motoristas,
motociclistas e até ciclistas de aplicativos de transporte e entrega –,
trabalhadores do setor privado que trabalham sem carteira, empregadas
domésticas mensalistas e diaristas também sem carteira, pessoas– jovens e
mulheres, principalmente – que trabalham como auxiliar em pequenos
negócios familiares e ainda empreendedores sem CNPJ e que também
contratam auxiliares – como ambulantes, pedreiros, pintores, etc.

Outro fator é o aumento exponencial do trabalho autônomo subsidiado pelas


plataformas de aplicativos, também chamado de uberização do trabalho, que vem para
agudizar ainda mais essas relações de desproteção do trabalho. Assim, o uso de
tecnologias do trabalho direcionadas sob uma ótica neolibral, promove a falência do
Estado de direitos em detrimento da promoção da exploração de milhões de
trabalhadores. A instabilidade sobre essas novas expressões do trabalho no capitalismo
moderno impacta diretamente na organização dos trabalhadores, uma dissolução das
organizações coletivas, desmobiliza as frentes sindicais e o próprio sentimento de
pertença, enquanto classe trabalhadora.

55
2.3- AS ARMADILHAS DO EMPREENDEDORISMO

No tocante ao empreendedorismo, Oliveira (2013) analisa como “[...] uma


estratégia do capital em favor da desresponsabilização do Estado, tendo como um dos
elementos determinantes a precarização das relações de trabalho” (p.3). A valorização do
empreendedorismo como experiência virtuosa e louvável não se dá ao acaso já que é
com base nessa ideologia difundida pela mídia e pelo Estado que se compõe uma nova
forma de enxergar o desemprego estrutural e os desempregados, que aparecem como
armadilhas, totalmente disfarçadas, trazendo aos trabalhadores a ilusão de que são os
únicos responsáveis pela garantia de seu próprio emprego, por sua própria proteção
previdenciária e pelo sucesso ou insucesso da busca pelo sustento por meio de uma
forma de trabalho totalmente desprotegida à qual o Estado tem se feito alheio.
Está em curso, um processo que desloca para a esfera privada, individual,
sequelas estruturais inerentes à contradição entre capital e trabalho. A ideologia do
empreendedorismo e toda atmosfera de responsabilização dos indivíduos que esta
mobiliza, guarda sintonia com

[...] as teses clássicas do liberalismo, demarcadas no período entre os séculos


XVI a XIX, quando a questão social, com todas as suas refrações, não é
explicitada pela lei geral da acumulação, pelas contradições do modo de
produção capitalista, mas como responsabilidade da classe trabalhadora
(VALENTIM; PERUZZO, 2017, p.122).

É através desses mecanismos que gradativamente têm se desenvolvido amplos


processos de expropriação de direitos no campo do trabalho, em que a classe
trabalhadora tem sido impelida a buscar alternativas precarizadas de sobrevivência frente
às ofensivas do capital ao sistema de proteção social (OLIVEIRA, 2013).
Desse modo, diante de um cenário marcado pelo desemprego, redução de
salários e precarização das condições de trabalho, a classe trabalhadora vem abraçando,
cada vez mais, a ideologia do empreendedorismo. Isso porque o discurso neoliberal
apresenta como solução a ideia de que o trabalhador será transformado em patrão, dono
do seu próprio tempo, que sairá da condição de empregado e dentre outras falácias - de
modo que parte da classe trabalhadora passa a enxergar, agora, o empreendedorismo
como uma espécie de libertação.
A ideologia empreendedora na atual fase do desenvolvimento capitalista passa,
então, a cumprir a função de ocasionar o estranhamento da classe trabalhadora
enquanto classe para si, esgarçando suas relações de solidariedade e minando suas

56
possibilidades de luta e resistência. O incentivo ao auto emprego, ao transferir a
responsabilidade estatal para o trabalhador, além de propagar a ideia de uma terceira
classe em diferentes cadeias produtivas, impulsiona a exacerbação do individualismo, da
competitividade e concorrência desses trabalhadores-empreendedores entre si
(OLIVEIRA, 2013).
Outra funcionalidade do empreendedorismo ao modo de produção capitalista está
na capacidade de produzir a paz social entre as classes, isto é, um apaziguamento dos
conflitos entre capital e trabalho e das contradições do sistema capitalista de produção,
transformando, aparentemente, as relações de trabalho em relações horizontais. Assim, a
adesão do empreendedorismo por parte da classe trabalhadora aparece como solução
perfeita frente ao cenário de desmontes. Há, pois, a manutenção da hegemonia burguesa
e a intensificação do processo de exploração sem perturbações políticas, pois, através da
camuflagem das relações entre capital e trabalho, é criada uma relação de não mais
empregado e empregador, mas de empreendedores. Nesse processo, então, o capital se
utiliza da ideologia empreendedora como estratégia moderna utilizada para a
recomposição do capital em meio à crise capitalista, especialmente num cenário de
desemprego estrutural e de ampliação das desregulamentações trabalhistas, como
afirmam Valentim e Peruzzo (2017).

4- CONCLUSÃO

Em virtude da discussão aqui assinalada, torna-se possível desvendar certas


características por vezes mascaradas pela ideologia empreendedora, sob a ótica da atual
fase do desenvolvimento do sistema capitalista, mas especificamente sob o cenário
neoliberal. Evidenciou-se que o contexto de crise do capital enfatiza a defesa de novas
formas de empregabilidade como uma saída para as grandes expressões da questão
social, em especial, o desemprego, a pobreza e a desigualdade social.
Ressalta-se também que a concessão e o incentivos por meio do Estado se deve
à incapacidade da máquina estatal de atender as demandas da população como um
todo, inclusive a sua incapacidade de conceder emprego e qualquer tipo de renda para a
população que vive às margens da sociedade como exército de reserva, ou seja, se
configuram como mão de obra excedente aos interesses do capital. O fato é que esta
iniciativa a trabalhos informais mostra-se também a intenção de desresponsabilização do
Estado para com esta parcela da população, que por muitas vezes, faz uso como uma
alternativa para melhorar suas condições de vida.

57
5- REFERÊNCIAS

AMARAL, A. Precarização estrutural e exploração da força de trabalho: tendências


contemporâneas/Structural precariousness and exploitation of the workforce:
contemporary trends. Argumentum, 2018 v. 10, n. 3, p. 244-256.

ANTUNES, R. Adeus ao trabalho?: ensaio sobre a metamorfoses e a centralidade


do mundo do trabalho. 16 ed. – São Paulo, Cortez, 2015.

OLIVEIRA, F. A outra face do empreendedorismo no contexto capitalista. 2013. 21 f.


Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização) - Universidade Federal do Paraná,
Matinhos, 2013.

ARAÚJO, T. M. de; LUA, I. O trabalho mudou-se para casa: trabalho remoto no


contexto da pandemia de COVID-19. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, v. 46,
2021.

FILGUEIRAS, V. A. Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas:


Curt Nimuendajú, 2019, p. 14-5.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Mercado De Trabalho:


Desempenho recente do mercado de trabalho e perspectivas. Carta de Conjuntura
Número 54, Nota De Conjuntura 32 — 1 ° Trimestre De 2022. Disponível em:
https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/220328_cc_54_nota_32_
mercado_de_trabalho.pdf. Acesso em 30 abr. 2022.

PEREIRA, P. A. P. Questão social, serviço social e direitos de cidadania. In: Revista


Temporalis 03, Brasília: ABEPSS, Gráfica Odisséia, 2004, p. 51-62.

SILVA, P. H. I. O mundo do trabalho e a pandemia de covid-19: um olhar sobre o


setor informal. Caderno de Administração, 2020 v. 28, p. 66-70.
VALENTIM, E.; PERUZZO, J. A ideologia empreendedora: ocultamento da questão
de classe e sua funcionalidade ao capitalismo. Temporalis, 2017 v. 17, n. 34, p. 101-
126.

58
A ORGANIZAÇÃO DOS TRABALHADORES NO SÉCULO XXI: desafios no contexto
neoliberal

Andréa Fão Carloto15

RESUMO: Este artigo aborda a organização dos


trabalhadores no século XXI. Tendo como objetivo central
levantar os desafios enfrentados pela organização dos
trabalhadores nesse período histórico que carrega em si a
necessidade de criar estratégias para a defesa dos
trabalhadores, que se encontram submetidos ao fenômeno
da coisificação da vida humana, e da natureza, submetida a
ilimitação em busca de lucros. Questões cruciais para a
sociedade já que o planeta é finito e a humanidade pode ser
reduzida a barbárie ou até mesmo extinta.

PALAVRAS-CHAVE: Organização dos trabalhadores;


neoliberalismo; degradação.

ABSTRACT: This article discusses the organization of


workers in the 21st century. Having as its central objective to
raise the challenges faced by the organization of workers in
this historical period that carries within itself the need to
create strategies for the defense of workers, who are
submitted to the phenomenon of the coisification of human
life, and nature, subjected to imlimitation in search of profits.
Crucial issues for society since the planet is finite and
humanity can be reduced to barbarism or even extinct.

KEYWORDS: Organization of workers; neoliberalism;


degradation

1- INTRODUÇÃO

Até chegar ao atual estágio de desenvolvimento da sociedade o sistema


capitalista sofreu lentas e profundas transformações, desde o que foi denominado
capitalismo mercantil, posteriormente capitalismo industrial e mais recentemente
capitalismo financeiro. Pode-se dizer que em cada uma dessas etapas o sistema
capitalista adquire características específicas. No que se refere a organização dos
trabalhadores, tema desse artigo, também não é diferente, em cada momento histórico

15Assistente Social. Doutoranda em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUCRS). Bolsista CAPES. Integrante do Núcleo de Estudos em Políticas e Economia Social (NEPES).
E-mail: andreafcarloto@hotmail.com. Este trabalho vincula-se ao eixo temático: Ofensiva ultraneoliberal do
capital e lutas sociais.

59
ela assume formas e características específicas, desde as manifestações individuais até
as de caráter coletivo, tendo como conhecido exemplo a organização sindical.
A organização sindical derivou da luta operária que se estabeleceu durante o
período do capitalismo industrial. No século XXI, o contexto já é outro e a esfera dos
serviços se sobrepõe, ocorrem muitas transformações sociais e no mundo do trabalho e
com isso a organização dos trabalhadores também apresenta significativos traços de
encolhimento e fragilidade. Considera-se aqui que a organização dos trabalhadores é um
importante instrumento na luta pela dignidade humana diante de um modo de produção
fundado na concorrência e na exploração. Portanto, abordar essa temática permite
desocultar alguns elementos e desafios que precisam ser enfrentados para fortalecer e
ampliar a organização dos trabalhadores.
Considerando isso, aqui são levantadas algumas das particularidades do
sistema capitalista no contexto atual e os desafios postos para a organização dos
trabalhadores hoje. Posteriormente, são apresentadas as considerações finais que
apontam uma possibilidade de enfrentamento para essas dificuldades que a organização
dos trabalhadores encara no século XXI, a disputa da normatividade e do ideário, que no
momento se encontram vinculados a racionalidade neoliberal.

2- A ORGANIZAÇÃO DOS TRABALHADORES NO SÉCULO XXI

No período de gênese do capitalismo muitos pensadores, defensores do


liberalismo econômico defendiam o estabelecimento de um sistema de mercado auto
regulável, onde o estado não deveria intervir. Polanyi (2000) ao longo de sua obra
demonstra que esse mercado autorregulável na verdade não existiu, pois, a interferência
do estado aconteceu em favor do estabelecimento do próprio capitalismo o que se
estende até hoje. Já no século XXI, o capitalismo com sua face neoliberal aparentemente
preconiza a redução do papel do Estado e a mínima intervenção, no entanto com um
olhar mais apurado é possível identificar que da mesma forma que ocorreu no período
em que se preconizava o sistema de mercado autorregulável, no século XXI o estado não
é mínimo e sim, é um Estado forte em favor do capital.
Sobre a gênese da organização dos trabalhadores no sistema capitalista,
destaca-se que autores como Marx e Engels apontam a questão econômica – seja
materializada na degradação, na miséria, ou, seja nos pontos desfavoráveis para os
trabalhadores em relação a apropriação dos frutos do seu trabalho pelo capitalista –
como ponto crucial para o impulsionar a organização dos trabalhadores nesse período.

60
Não há como negar que o ponto de partida desses autores foi análise da sociedade
capitalista, mas apesar de alguns autores atribuírem a Marx e Engels uma leitura
economicista, eles não tinham uma visão meramente econômica de pobreza, pelo
contrário, consideravam que esse era um fenômeno essencialmente de natureza
estrutural, com dimensões sócio-históricas, econômicas, culturais e políticas, portanto
complexo e multidimensional (MAGRO; REIS, 2020). Marx aponta a ignorância a
brutalização e a degradação moral como produto do homem mercadoria, que está restrito
a grosseira necessidade (PRATES; CARRARO; ZACARIAS, 2020). Assim, a
desigualdade e a pobreza advindas exploração no modo de produção capitalista se
manifestam em todas as relações sociais e possuem duplo caráter, material e subjetivo.
Em contraponto, Polanyi (2000, p. 191) defende que:

A causa da degradação, não é, portanto, a exploração econômica, como se


presume muitas vezes, mas a desintegração do ambiente cultural da vítima. O
processo econômico pode naturalmente fornecer o veículo da destruição, e
quase invariavelmente a inferioridade econômica fará o mais fraco se render,
mas a causa imediata da sua ruína não é essa razão econômica – ela está no
ferimento letal infligindo às instituições nas quais a sua existência social está
inserida. O resultado é a perda do auto-respeito e dos padrões, seja a unidade
de um povo ou uma classe, quer o processo resulte do assim chamado “conflito
cultural” ou de uma mudança na posição de uma classe dentro dos limites de
uma sociedade.

O desenvolvimento da indústria foi uma grande mudança na sociedade e


possibilitou inclusive o surgimento de movimentos de revolta e resistência diante dessa
degradação, seja ela ocasionada pela desintegração do ambiente cultural, como aponta
Polanyi, ou pela exploração econômica, como expõem Marx e Engels. Apesar disso, os
autores mencionados concordam que o desenvolvimento do modo de produção
capitalista foi o fator que desencadeou essa degradação.
Com as transformações que o capitalismo sofreu ao longo desses séculos hoje
os trabalhadores de diversas partes do mundo, em especial do Brasil vivenciam uma
grande transformação, no âmbito do trabalho a ameaça é a substituição ou dominação do
trabalhador pela alta tecnologia, expressa na automação e na inteligência artificial.
Atualmente, os trabalhadores também enfrentam a desproteção social, com o
encolhimento da seguridade social, a desregulamentação das leis trabalhistas e a
precarização do trabalho amparadas pela hegemonia neoliberal.
Antes de aprofundar as particularidades do capitalismo no século XXI, cabe
apresentar um pouco do sindicalismo no Brasil. É importante mencionar que mesmo
reconhecendo a importância, não há espaço para abordar toda a trajetória desse
movimento aqui, então direcionar-se-á para o contexto em questão.

61
No Brasil, nas últimas décadas do século XX nasceram as centrais sindicais,
como exemplos, é possível citar a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Força
Sindical. Essas centrais sindicais apresentavam diferenças significativas, a CUT
propunha-se a aglutinar o novo sindicalismo enquanto a Força Sindical nasceu com o
intuito de sintonizar o movimento sindical com a modernidade sendo fortemente marcada
pelo neoliberalismo (GALVÃO, 2013).
No início do século XXI, quando o Partido dos Trabalhadores assumiu a
presidência da República, apesar de suas diferenças, essas centrais sindicais se
tornaram partícipes do governo. Destaca-se que com esse governo o novo sindicalismo
chegou ao aparelho governamental transformando-se também em um sindicalismo
negocial de Estado (ANTUNES, 2018). Com isso, o novo sindicalismo que apresentava
diferenciais positivos, ao se identificar com proposições progressistas que contribuíam
para a organização da classe trabalhadora, retomou práticas vinculadas ao aparelho
burocrático do Estado. Outro limite do novo sindicalismo foi a incorporação de novos
componentes, como o caráter de modernidade proposto pela Força Sindical, que resultou
no apoio a propostas neoliberais. Mesmo podendo ser considerado recente, o novo
sindicalismo já sofreu importantes mudanças: “A mudança de posição sentida ao longo
do tempo se deveu a fatores tanto externos (conjuntura econômica e política) quanto
internos (orientação política e luta pela hegemonia)” (ANTUNES, 2018, p. 190). Estes
também podem ser pontos importantes para as dificuldades que o movimento sindical
vem enfrentando para agregar os trabalhadores, a seguir isso será abordado. Antes de
prosseguir, cabe destacar que é possível observar que os limites descritos por Marx,
como exposto no item anterior, também se apresentam no sindicalismo do século XXI, ou
seja, a superação do modo de produção capitalista não está em pauta.
Para as dificuldades e desafios da organização dos trabalhadores no século XXI,
é necessário retornar às particularidades do capitalismo atual. No século XXI, o sistema
capitalista encontra-se amplamente consolidado. As suas próprias contradições levaram
a mudanças na estruturação da economia mundial, sendo que atualmente impera o
capitalismo financeiro, com suas características específicas.

A esfera estrita das finanças, por si mesma, nada cria. Nutre-se da riqueza criada
pelo investimento capitalista produtivo na mobilização da força de trabalho no
seu âmbito, ainda que apareça de forma fetichizada [...]. Nessa esfera, o capital
aparece como se fosse capaz de criar “ovos de ouro”, isto é, como se o capital-
dinheiro tivesse poder de gerar mais dinheiro no circuito fechado das finanças,
independente da retenção que faz dos lucros e dos salários criados na produção.
O fetichismo das finanças só é operante se existe produção de riquezas, ainda
que as finanças minem seus alicerces ao absorverem parte substancial do valor
produzido (IAMAMOTO, 2012, p.109).

62
Nesse contexto de capitalismo financeiro, ocorreu o crescimento do capitalismo
improdutivo e as forças de produção (inclusive a força de trabalho) perderam importância,
o que pode ser uma explicação para as dificuldades da organização revolucionária.
Apesar dessas transformações, o modo de produção capitalista mantém suas bases e o
trabalho continua tendo centralidade para a produção capitalista, pois é ele que agrega
mais valor as mercadorias. Dessa forma,

Como o capital não se valoriza sem realizar alguma forma de interação entre
trabalho vivo e trabalho morto, ele procura aumentar a produtividade do trabalho,
intensificando os mecanismos de extração do sobretrabalho, com a expansão do
trabalho morto corporificado no maquinário tecnológico-científico-informacional.
Nesse movimento, todos os espaços possíveis se tornam potencialmente
geradores de mais-valor. (ANTUNES, 2018, p. 33).

No contexto atual, também é possível encontrar um número maior de


trabalhadores realizando trabalho imaterial, ou mesmo trabalho material e imaterial, é
exemplo disso, o trabalhador polivalente. Ressalta-se que, não quer dizer que essa união
entre trabalho material e imaterial signifique, nesse momento, o rompimento com a lógica
do capital, mas sim, a expressão da precarização no mundo do trabalho. Precarização
essa, que além de exigir um trabalhador polivalente também é marcada por uma jornada
de trabalho e uma remuneração flexível, muitas vezes sem vínculos formais de trabalho
ou direitos trabalhistas. Todas essas questões vivenciadas pela sociedade do século XXI
também são apontadas como argumentos importantes para a fragilidade da organização
dos trabalhadores.
É possível observar que mesmo nos espaços onde a precarização não se
expressa ao extremo, como por exemplo, no que ainda resta do serviço público, a
organização dos trabalhadores também enfrenta os mesmos desafios e dificuldades.
Dessa forma, entende-se que ao abordar a fragilidade da organização dos trabalhadores
em geral e do sindicalismo em particular outro fator merece destaque, o neoliberalismo.
Não há como negar que o neoliberalismo possui um papel fundamental para
difundir e manter a precarização do trabalho. É importante ressaltar que o neoliberalismo
é muito mais que uma teoria, ou uma política econômica, ele pode ser entendido como
uma forma de ver e atuar sobre tudo e todos,

[...] o neoliberalismo é um sistema construído a partir da racionalidade com


pretensão a totalidade e que, por essa razão, busca estruturar e organizar a ação
dos governantes e dos governados, das empresas e dos indivíduos, das
instituições públicas e das corporações privadas. E isso se faz com a
generalização da concorrência como norma (mandamento de conduta) e da
empresa como modelo de subjetivação, através de um conjunto de discursos,
práticas e dispositivos que levam à introjeção das regras do jogo neoliberal
(CASARA, 2021, p. 170).

63
No século XXI, a racionalidade neoliberal se apresenta com força total e incide
sobre a sociedade como um todo. O “neoliberalismo pode ser definido como um conjunto
de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos
homens segundo o princípio universal da concorrência” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 17).
Ele preconiza a concepção de homem-empreendedor, ou seja, trata-se de fazer com que
cada indivíduo se torne o mais empreendedor possível, sendo empreendedor por si
mesmo e dele mesmo. Assim, o empreendedorismo constitui-se em uma forma de
autogoverno e em um princípio de conduta potencialmente universal essencial à
manutenção da ordem capitalista, que potencializa a competição e a rivalidade
(DARDOT; LAVAL, 2016).
A concepção neoliberal de homem-empreendedor é incompatível com sujeitos
coletivos e combativos que reiteram a luta de classes na sociedade, como a organização
sindical. Em decorrência disso, pode-se dizer que a racionalidade neoliberal tem grande
contribuição no desmantelamento da organização dos trabalhadores na atualidade.
Essa concepção de homem empreendedor eliminou a percepção de exploração
alheia da classe trabalhadora, substituindo-a pela exploração de si mesmo para a sua
própria empresa. Esse indivíduo também acredita que enriquecerá a partir de seus
cálculos de interesse. Com isso: “Desaparece a perspectiva de consciência de classe, o
que faz com que a luta passe a ser travada no interior de cada pessoa” (CASARA, 2021,
p. 130). Assim, os trabalhadores enfrentam a solitude enquanto exploradores-de-si. A
dimensão ideológica do neoliberalismo também faz com que os de baixo procurem se
parecer com os de cima, demonstrando que o que ocorre é o ocultamento das classes
sociais mesmo que de fato elas não tenham desaparecido.

A própria exploração do trabalho aparece travestida de empreendedorismo ou de


modernização das relações de trabalho. A solidariedade de classe dá lugar à
concorrência. O egoísmo transforma-se em virtude. Desaparece o espaço do
comum, do coletivo (CASARA, 2021, p. 167).

Esses aspectos difundidos pela racionalidade neoliberal podem ser a chave para
a descrença dos trabalhadores na organização. Além disso, os projetos coletivos ficam
comprometidos pelas características que o individualismo assume ganhando contornos
narcísicos gerando a perda de interesse pelo outro ou pelo coletivo. Nesse contexto, o
egoísmo deixa de ser um vício e torna-se uma virtude, as pessoas são programadas para
serem regidas por cálculos de interesse em busca de vantagens individuais (CASARA,
2021). Os projetos coletivos são deixados de lado diante da promessa de
autodeterminação individual capaz de assegurar a felicidade. “A urgência de satisfação

64
dos interesses pessoais vela os conflitos e domestica as pessoas” (CASARA, 2021,
p.14).
Dentre os aspectos do neoliberalismo que incidem sobre as dificuldades para a
organização dos trabalhadores também se destaca que esses interesses cada vez mais
específicos ocasionam inclusive a fragmentação dos movimentos que conseguem se
desenvolver impedindo a formação de consensos sociais e gerando a concorrência entre
eles, assim as pautas defendidas perdem força. Isso “[...] faz com que os movimentos
populares percam apoio de outros setores da sociedade, que encaram suas
reivindicações setoriais como manifestações concorrentes e distantes dos interesses da
coletividade (CASARA, 2021, p. 216).
O neoliberalismo tem o imaginário e a normatividade como suas dimensões. A
normatividade é responsável por estabelecer as regras do jogo, ela enuncia que todas as
instituições e pessoas devem agir em busca de lucros e tratando os demais como
concorrentes, ela pode materializar-se de duas formas disciplinando e coibindo condutas
ou de forma mais sutil através da manipulação de interesses e vontades. Já o imaginário
é o responsável por produzir e difundir imagens e ideias ligadas à concepção neoliberal,
ou seja, aquelas que colocam o mercado como modelo para as relações sociais e
associam uma postura racional a obtenção de lucro (CASARA, 2021).
Para finalizar esse breve debate sobre o neoliberalismo é importante ressaltar
que a realidade não algo estanque, hoje ele é a racionalidade hegemônica exercendo
influência sobre as pessoas, instituições e a sociedade como um todo, mas não é
impossível de ser superado, para que isso ocorra é necessário “[...] apostar em normas,
imagens e em novos modos de atuar no mundo que afastem o modelo das empresas e a
lógica da concorrência das relações sociais e impeçam que as pessoas continuem a ser
tratadas como objetos negociáveis e descartáveis” (CASARA, 2000, p. 364).
Pensar e colocar em prática ações que vão de encontro a racionalidade
neoliberal no contexto atual parece algo difícil de se conseguir, mas mostra-se necessário
e urgente, além disso, parece ser um caminho viável para ampliar a organização dos
trabalhadores. Sem esse enfrentamento, a normatividade e o imaginário da racionalidade
neoliberal encobrem questões concretas que poderiam aglutinar os trabalhadores e
fortalecer a luta de classes. A coisificação da vida humana e uso ilimitado dos recursos
naturais que são finitos podem ser a chave para criar um novo imaginário e uma nova
normatividade, rompendo com o neoliberalismo.
Ainda, cabe destacar que somente com a organização os trabalhadores e a
sociedade como um todo retomarão conquistas no âmbito da proteção social e do

65
trabalho que muitas vezes são apontadas como a causa do enfraquecimento da
organização dos trabalhadores, mas que aqui são entendidas como um reflexo dela.

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar destaca-se que a organização dos trabalhadores enfrenta desafios


e dificuldades diante de um contexto de grande transformação, mas isso também já
ocorreu anteriormente. Momentos de acenso e de descenso da organização e da luta dos
trabalhadores ocorreram em toda a história do capitalismo, por vezes culminando em
derrotas e outras em conquistas mesmo que pontuais. Mesmo assim, a organização
sindical caracteriza-se como um dos exemplos históricos de processos mobilizatórios,
originada inicialmente no território europeu e proveniente da Revolução Industrial e que
posteriormente consolidaram-se como espaços de construção coletiva da classe
trabalhadora em prol da legitimação de direitos.
Especificamente sobre a organização dos trabalhadores no século XXI é
possível observar que o neoliberalismo tem uma significativa contribuição para as suas
dificuldades e limites. Dessa forma, disputar a normatividade e o imaginário, atualmente
sob hegemonia neoliberal, é fundamental para o fortalecimento da organização dos
trabalhadores, ensejando posteriormente outras conquistas contra a exploração e
desproteção dos trabalhadores e da sociedade.

4- REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era


digital. 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2018.

CASARA, Rubens. Contra a Miséria Neoliberal: racionalidade, normatividade e


imaginário. São Paulo: Autonomia Libertária, 2021.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

ENGELS, Friedrich. Os Movimentos Operários. In: ANTUNES, Ricardo (org.). A Dialética


do Trabalho II: escritos de Marx e Engels. 2. Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

GALVÃO, Andréia. Sindicalismo e Neoliberalismo: um exame da trajetória da CUT e da


Força Sindical. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil
II. 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2013.

IAMAMOTO, Marilda Vilela. Serviço Social em Tempo de Capital Fetiche: capital


financeiro, trabalho e questão social. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2012.

66
MAGRO, Aline Fátima do Nascimento; REIS, Carlos Nelson dos. Pobreza e Proteção
Social na América Latina: as bases teóricas para a formulação de políticas públicas. In:
GUIMARÃES, Gleny Terezinha Duro; MACIEL, Ana Lúcia Suárez; GERSHENSON,
Beatriz (org). Neoliberalismo e desigualdade social: reflexões a partir do serviço social
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2020.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 1. Ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2008.

MARX, Karl. Salário, Preço e Lucro. In: ANTUNES, Ricardo (org.). A Dialética do
Trabalho I: escritos de Marx e Engels. 2. Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

POLANYI, Karl. A Grande Transformação: as origens da nossa época. 2.ed. Rio de


Janeiro: Campus, 2000.

PRATES, Jane; CARRARO, Gissele; ZACARIAS, Inez Rocha. A produção da pobreza e


das desigualdades no capitalismo: uma leitura a partir da obra marxiana. In:
GUIMARÃES, Gleny Terezinha Duro; MACIEL, Ana Lúcia Suárez; GERSHENSON,
Beatriz (org). Neoliberalismo e desigualdade social: reflexões a partir do serviço social
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2020.

67
OS OBSTÁCULOS PARA O SINDICALISMO BRASILEIRO APÓS O GOLPE DE 2016
Gustavo Giovanny Dos Reis Apóstolos16

RESUMO
Este artigo é resultado de uma revisão bibliográfica sobre o
tema da organização sindical no Brasil, recuperando os seus
traços mais fundamentais na conjuntura recente. A pesquisa
demonstra que dado o agravamento da ofensiva do capital,
que se manifesta também nas contrarreformas trabalhistas e
previdenciárias, e em especial tanto após as jornadas de
junho, como na conjuntura que depôs Dilma Rousseff e que
consagrou Jair Bolsonaro à presidência; o sindicalismo tem
protagonizado lutas mais defensivas, concluindo que os
tempos vindouros serão difíceis para a organização sindical
brasileira.
Palavras-chave: Sindicalismo. Golpe. Brasil.

ABSTRACT
This article is the result of a literature review on the subject
of trade union organization in Brazil, recovering its most
fundamental traits in the recent conjuncture. The research
shows that given the worsening of the capital offensive,
which is also manifested in the labor and social security
counter-reforms and especially after the June days as well
as in the conjuncture that deposed DilmaRousseff and
consecrated JairBolsonaro to the presidency; unionism has
been leading more defensive struggles, concluding that the
coming times will be difficult for the Brazilian union
organization.
Keywords: Unionism. Coup. Brazil.

1- INTRODUÇÃO

O artigo em tela objetiva apresentar uma síntese da conjuntura nacional em que


se observa demasiada crise no sindicalismo brasileiro, especialmente após o golpe
parlamentar de 2016. Nesta expectativa, o texto recorre a uma revisão bibliográfica sobre
o tema, iniciando pela compreensão de que as jornadas de junho de 2013 comprovam o
declínio da organização da classe trabalhadora, sobretudo pelo rechaço que os
sindicatos e partidos sofreram quando da ocorrência das manifestações. O fenômeno foi
o gatilho para que houvesse uma ascensão da extrema direita e uma agudização do

16 Assistente Social. Doutorando em Serviço Social pela UFJF. Mestre em Serviço Social pela UFJF.
Graduado em Serviço Social pela UFOP. E-mail: reisgustavo23@gmail.com Eixo temático: Ofensiva
ultraneoliberal do capital e lutas sociais.

68
conservadorismo, com a continuidade de governos subservientes ao capital financeiro e
com intensificação da retirada de direitos trabalhistas e previdenciários, recolocando os
desafios já antes antevistos para a organização da classe trabalhadora nos sindicatos.
Dada a incipiente recuperação econômica dos anos 2000 e um leve crescimento
no número de greves, novas centrais sindicais surgem, acirrando a disputa pela
hegemonia do movimento sindical que apresenta consensos, dissensos, alianças e
rompimentos. Conjunturalmente, observa-se que em virtude da necessidade de
realização do valor, a propaganda da flexibilização do trabalho com a promessa de
geração de emprego, faz com que a classe trabalhadora protagonize, majoritariamente,
pautas defensivas. Agrava-se ainda o quadro com a ofensiva conservadora que, no país,
manifesta-se com a vitória de Jair Bolsonaro e as contrarreformas da legislação
trabalhista e previdenciária. Por fim, considera-se que o declínio da organização dos/as
trabalhadores/as como uma condição presente, inibindo o ressurgimento de
reivindicações combativas à classe dominante.

2- CONJUNTURA PRÉ E PÓS GOLPE: A TENDÊNCIA DE DECLÍNIO DAS LUTAS


SINDICAIS NO BRASIL

O sindicalismo brasileiro, desde a sua constituição, passou - e ainda passa - por


momentos de ascensão e de declínio, tanto no que se refere ao número de filiados,
quanto no que se refere ao seu horizonte reivindicativo. Conjunturalmente, a nova fase da
crise estrutural que se manifestou em meados do ano de 2008 (ANTUNES, 2018),
reforçou a ferocidade ultraneoliberal17 do capitalismo hodierno na extração de mais-valia
relativa e absoluta, alavancou a fragmentação das lutas em sua agenda pós-moderna
(WOOD, 1999) e materializou a busca incessante no alcance das taxas de acumulação e
de centralização; resultando em rebatimentos imediatos na organização da classe
trabalhadora.
Se a literatura da área nos aponta que houve uma ascensão de greves e de
manifestações sindicais mais ofensivas na primeira década dos anos 2000 (BOITO E
MARCELINO, 2010) - ainda que existam polêmicas quanto ao termo -, o mesmo não
pode afirmar após o período mencionado. No âmbito econômico e reivindicativo, as

17O uso do termo “ultraneoliberal” ou “ultraneoliberalismo” tem sido difundido em grande escala entre as
produções acadêmicas. É mais usual encontrarmos o seu conceito na análise de Behring, Cislaghi e Souza
(2020), que explicitam que o termo pode ser entendido como uma “recente forma do neoliberalismo, que não
se resume ao Brasil, pois pode ser observada em vários países no mundo”, dada a inflexão do neoliberalismo
com a nova fase da crise estrutural de 2008 (p. 106). Outrossim, o termo também pode ser entendido como
um “novo neoliberalismo" (DARDOT E LAVAL, 2017), para conceituar a radicalização do neoliberalismo que,
resultado e “solução” da/para a crise, sobrevive e encontra meios alternativos para salvaguardar a
acumulação.

69
Jornadas de Junho de 2013, em plena crise de governança da ex-presidenta Dilma
Rousseff, enfatizaram o rechaço que as instituições de defesa dos/as trabalhadores/as
sofreram nos atos, especialmente os sindicatos e os partidos políticos (ANTUNES, 2018),
desencadeando diversas manifestações pelo país, cujo desdobramento resultou em um
protagonismo e uma ressurgimento de setores da direita18.
Dado o movimento de ascensão de protestos, passeatas e de manifestações,
convocados pelas redes sociais de alguns movimentos reacionários, que em maior
escala possuíram um caráter anticorrupção, antipartidário e anti sindical; o movimento
trabalhista classicamente organizado perpassa por uma crise de maior envergadura19 na
sua capacidade de organização. Crise esta que possui no terreno da história e da crise
estrutural do capital (MANDEL, 1985) o seu espaço de desvelamento, identificando no
novo padrão de produção e de acumulação/centralização de capital, em seu estágio de
financeirização e de mundialização (CHESNAIS, 1996) as causas mais evidentes.
As crescentes insatisfações de setores populares, empresariais e financeiros com
o governo do Partido dos Trabalhadores, pouco após a reeleição de Dilma, serviu como
alavanca para que o então presidente da câmara dos deputados, Eduardo Cunha,
aceitasse o pedido de impeachment de Dilma, aprovado em 31 de agosto de 2016,o que
Braz (2017) conceituou um “golpe nas ilusões democráticas” e levou à ascensão do
conservadorismo reacionário. Michel Temer assume a presidência da república, já
demonstrando que pautaria os “ajustes fiscais”, trabalhistas e previdenciários que
perpassam o mundo do trabalho. Na conjuntura de crise econômica, política e social, as
autoras Galvão e Marcelino (2018) afirmam que as seis centrais sindicais oficialmente
reconhecidas estiveram alinhadas ao governo Dilma até à sua deposição20.
À isto, Galvão e Marcelino (2018) afirmam que houve um alinhamento entre as
centrais sindicais brasileiras, no entanto, divergiram em algumas perspectivas; à exemplo
da CUT, CSP-Conlutas, Intersindical e CTB - não de forma veemente – que se
dispuseram a barrar as contrarreformas do governo Temer21; e já a Força Sindical, UGT,
CSB, NCST e CGTB, se dispuseram a negociar com o governo interino22. Uma

18Estudos de maior consistência podem ser encontrados em GALLEGO, E. S. (org.) O ódio como política: a
reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.
19 Recomendo a leitura de Netto (1995), para aproximação ao tema.
20Para as autoras ainda em discussão, as centrais sindicais demoraram aproximadamente oito meses para

discutir e pautar uma greve geral de trabalhadores, que ocorreu apenas no dia 28 de abril de 2017.
21Dentre elas, a contrarreforma da CLT, e a PL 4330.
22A conjuntura contemporânea desafia ainda mais os sindicatos e os movimentos combativos na busca de

seus objetivos imediatos e seus objetivos históricos. O PT e a CUT que, conjuntamente, conseguiram
aglutinar milhares de manifestantes no final dos anos de 1970 e início de 1980, por sua vez, não têm
convocado as massas, ou, se convocam, não têm recebido adesão por parte significativa dos trabalhadores.
No contexto do golpe orquestrado por setores reacionários, empresariais e pela grande mídia hegemônica,

70
observação importante para as análises na conjuntura do golpe, é que as centrais
sindicais conseguiram mobilizar timidamente sua base para a participação de alguns
protestos; no entanto, o protagonismo das mobilizações foi dos movimentos sociais, em
especial o MST, MTST e o movimento de mulheres. As autoras acreditam que os tempos
vindouros serão difíceis para o sindicalismo brasileiro, especialmente após 2013,
considerando que o ciclo de “ofensividade” das greves dos anos 2000 sofreu uma
reversão desta característica. A repercussão deste cenário foi concluída com a
promulgação da (contra)reforma trabalhista, instituída pela Lei nº 13.467/2017, no
governo interino de Michel Temer, precarizando ainda mais as relações de trabalho para
os/as trabalhadores/as que possuem carteira assinada, alterando mais de cem pontos da
Consolidação das Leis do Trabalho; ao passo que converge para uma redução da taxa
de sindicalização que ficou em torno de 15%, a menor taxa em cinco anos.23 Acrescenta-
se ainda a promulgação da Lei 13.429/2017, que dispõe sobre terceirização de
atividades-fim; e a Emenda Constitucional nº 95, que estabelece o congelamento dos
investimentos públicos por vinte anos.
Na esteira da ascensão do conservadorismo reacionário, a vitória24 de Jair
Messias Bolsonaro, no pleito de 2018, revelou o alinhamento do atual presidente com a
agenda ultraconservadora de contrarreformas das políticas de emprego e renda, da
privatização dos bens e dos serviços públicos, da agenda anti-ambiental, da repulsa
pelas manifestações de identidade (negro/a, LGBTQIA+, indígena, mulheres, etc), à favor
da escalada bélica e do armamento civil; além de um afinamento com pautas regressivas
na esfera legislativa25.

um dado significativo a se observar foi o do surgimento da campanha “Lula Livre”, em que muitos militantes e
sindicatos foram favoráveis; com exceção da CSP-Conlutas que, em um primeiro momento, não aderiu a esta
campanha. Outrossim, é importante mencionar que esta manifestação por parte da referida central sindical
não correspondeu ao posicionamento de todos os/as militantes que dela fazem parte, cf. Apóstolos (2018).
23Conforme dados do IBGE, disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-

agencia-de-noticias/noticias/22954-sindicalizacao-cai-para-14-4-em-2017-a-menor-taxa-em-cinco-anos>,
acesso em 18 jun. 2022.
24Sua campanha foi marcada pela sua recusa aos debates com demais presidenciáveis que foram

transmitidas por TV e Rádio, especialmente após a facada que sofreu no dia 06/09/2018, na cidade de Juiz
de Fora; bem como pela (des)orientação da opinião pública através das fakenews pelas redes sociais e
grupos de WhatsApp e Telegram
25Na mesma toada, as eleições de 2018 demonstraram o aguçado grau de alienação da classe trabalhadora

que, grosso modo, ficou explícito com a continuidade de parlamentares eleitos para assumirem cadeiras no
Congresso Nacional mais conservador desde a ditadura civil-militar, nos revelando que nos poderes
legislativo e executivo, as demandas econômicas e políticas dos trabalhadores, quando não são ignoradas,
enfrentam resistência para a sua consolidação.

71
O governo de Jair Bolsonaro já desagrada alguns setores e, mesmo que existam
divergências com parlamentares26, o processo de aprofundamento de penalização da
classe trabalhadora segue o curso. Os estudos desenvolvidos por Pinto et.al. (2019)
constataram que a crise de acumulação reverberou em algumas medidas, como a
reforma trabalhista e a PEC dos gastos, nos demonstrando a atualidade e complexidade
dos desafios à classe trabalhadora. Com relação às estatísticas de greve, os índices
continuam em queda: Se afirmamos acima que, em 2017, a taxa de sindicalização estava
na média 15%; no ano de 2019 a taxa de sindicalização verificada foi de 11,2% (IBGE,
2020)27. Em relação ao número de greves, em 2019, houve também um declínio maior do
que o ano anterior, em cerca de 20%, fazendo com que o número total de greves
chegasse a 1.118 durante o ano, sendo a maior parte delas de caráter puramente
defensivo28. De acordo com a 108ª Conferência Internacional do Trabalho, no ano de
2019, o Brasil teve papel de destaque entre os 10 piores países do mundo para se
trabalhar, considerando a precarização das relações de trabalho (BRASIL…, 2019), o que
em recoloca inúmeros e complexos desafios e caminhos para movimento sindical
organizado, na atualidade.
Findados três anos de posse, o (des) governo de Jair alcançou recorde de
rejeição nacional e internacional, diversas crises diplomáticas; e no entanto ainda
continua mantendo declarações racistas, misóginas, sexistas e homofóbicas e, diga-se,
representando uma parcela significativa da sociedade ultraconservadora brasileira. A
reação da população descontente com o governo tem sido protestar e resistir, ainda que
com organizações frágeis. No que concerne ao número de greves, em 2020, verificou-se
uma queda para apenas 649 durante o ano e, ao mesmo passo, evidenciou-se o
aumento do seu caráter defensivo, de acordo com o Dieese (2021); podendo um dos
motivos ser a pandemia de Covid-19, cuja medida principal sugerida pelas autoridades
em saúde para conter a transmissão do vírus é o distanciamento social. Referente ao ano
de 2021, o Dieese (2022) mapeou 721 greves, onde acentuou mais ainda o caráter
defensivo; agora ultrapassando 88% das manifestações grevistas.

26Referindo a uma divergência entre Bolsonaro e Rodrigo Maia que, apesar disto, colocou em votação a
reforma da previdência. Ver matéria em: https://oglobo.globo.com/economia/apesar-de-crises-do-governo-
maia-reafirma-compromisso-de-votar-reformas-no-congresso-23745362 Acesso em 20 jun. 22.
27Uma das hipóteses que corrobora como fator da queda na taxa de filiação sindical é a reforma trabalhista

de 2017, que retirou a obrigatoriedade do pagamento de contribuição sindical para o sindicato que representa
uma determinada categoria profissional
28“Em 2019, 82% das greves incluíam itens de caráter defensivo na pauta de reivindicações, sendo que mais

da metade (53%) referia-se a descumprimento de direitos e pouco menos da metade (46%), à manutenção
de condições vigentes.” (DIEESE, 2020, p. 5)

72
Na pandemia, o governo federal incentivou e adotou a estratégia de contágio
coletivo (CALIL, 2021) o que resultou em mais de 600 mil mortes em decorrência de
infecção por Covid-19; muito provavelmente para distribuir propina e faturar com as
negociações obscuras pelo superfaturamento das vacinas, conforme investigações da
CPI. No mesmo plano, uma massa de desempregados possuíam critérios para o
recebimento do Auxílio Emergencial, o que foi considerado insuficiente para o pagamento
dos itens de serviço e de consumo de primeira necessidade, mas por outro lado incentiva
o subconsumo e a manutenção precária da força de trabalho (RAMALHO, APÓSTOLOS,
REIS, 2021).
Em tempos de trabalho sob o fogo cruzado e do capital pandêmico (ANTUNES,
2020), constata-se a intensificação das Tecnologias de Informação e Comunicação
(TICs), acentuando vertiginosamente o trabalho remoto, quando possível, e também
acentuando o crescimento das plataformas de prestação de serviço pelo que se tem
denominado de uberização do trabalho; com traços ainda mais precarizados29 do que o
trabalho formal. Algumas centrais sindicais brasileiras, que seguiram inspiração de
centrais sindicais francesas, convocaram protestos online e reuniram cerca de 400
manifestantes virtuais na ‘porta’ do Ministério da Economia (CENTRAIS…, 2020) em uma
espécie de mapa virtual e, dado o número de mortes em crescimento e por razões do
aumento do custo de vida, da inflação e do descaso do governo federal com a população
trabalhadora, presenciou-se, em ao longo de 2021, o retorno de manifestantes pelo fim
do governo Bolsonaro, em diversas cidades, de forma presencial e por redes sociais,
ainda que este retorno tenha sido pontual.
Segue em curso o assolamento das medidas de penalização dos/as
trabalhadores/as, especialmente com a vigência por 90 dias das Medidas Provisórias
1108/22 e 1109/22 (MPs…, 2022)30, autorizando redução da jornada de trabalho e de
salário, ampliando os ganhos do capital com a possibilidade de extração de mais-valia
relativa por este mecanismo, bem como propondo regras para auxílio alimentação no
teletrabalho. Um cenário que se observa dada a conjuntura que se apresenta, é de
amortecimento ou um quase desaparecimento das lutas sindicais ofensivas, verificando o
caráter mais ou menos reformista da luta sindical; inclinando atualmente para a defesa do
que ainda existe no que se refere aos direitos trabalhistas. Nestas análises incipientes e

29Como, p. ex. a oscilação de ganhos mínimos, a manutenção dos próprios meios de produção, ausência de
direitos do trabalho; como férias e décimo terceiro salário, abono salarial, Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço; e benefícios previdenciários, caso não sejam contribuintes.
30Para maior aprofundamento sobre o que propõe as Medidas Provisórias, ver especialmente o conteúdo

publicado pelo ANDES/SN, disponível em: <https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/mPs-sobre-


suspensao-de-contratos-de-trabalho-e-hora-extra-entram-na-pauta-da-camara1> Acesso em 29 jun. 2022.

73
fazendo uma alusão ao enigma da esfinge “decifra-me, ou te devoro”, o conjunto da
classe trabalhadora organizada - ou não - é desafiado pela complexa trama do
capitalismo hodierno a reinventar não apenas uma nova forma de luta, mas também uma
nova forma de viver. A certeza é que não chegamos nem ao fim da história, como sugeriu
Fukuyama (1992) e, por isto mesmo, pode ser um equívoco atestar de forma veemente a
derrota da luta dos/as trabalhadores/as.

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das brevíssimas explanações, o presente artigo reitera que a crise na qual
o sindicalismo perpassa é, organicamente, a crise da própria realização do valor no
capitalismo contemporâneo; que no último quinquênio tem levado à tendência de uma
maior exploração do trabalho vivo e condicionando a classe trabalhadora à defesa dos
poucos direitos do trabalho que ainda restam, ou que ainda não foram retirados. Crise
esta que se intensifica e se complexifica, sobretudo ao considerarmos o Brasil como um
país de capitalismo periférico, mas, sobretudo, revelando a ascensão da extrema direita e
a face ultraneoliberal do capitalismo.
Na conjuntura em que se forja o golpe, em 2016, e após uma inércia nas lutas, o
sindicalismo intensifica suas ações no âmbito defensivo, especialmente com greves
defensivas que já se manifestavam com esse caráter no início da década passada.
Contemporaneamente, verifica-se a existência de uma intensa amortização da luta dos
trabalhadores/as organizados/as, sobretudo após as eleições de 2018, e com a posse de
um presidente mundialmente conhecido pela sua postura governamental anti diplomática,
cujos atos seguem alinhados com a negação da vida e da ciência; o que revela, em
primeira instância, uma conjuntura desfavorável para conquistas da classe trabalhadora.

4- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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76
A UBERIZAÇÃO DO TRABALHO E A CRIMINALIZAÇÃO DA CLASSE
TRABALHADORA NA OFENSIVA NEOLIBERAL

Mariana Tavares Sousa31


Geovanna Gonçalves dos Santos32
Camilla Eduarda Santos de Battisti33

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo apresentar


as modificações advindas do receituário neoliberal que
alteram a dinâmica do mundo do trabalho. Sendo enfatizado
o processo de precarização e da criminalização da classe
trabalhadora que se acirram com o avanço da ofensiva
ultraneoliberal.

Palavras-chave: Mundo do trabalho, Neoliberalismo,


Criminalização da classe trabalhadora.

ABSTRACT: This article aims to present the changes arising


from the neoliberal model that change the dynamics of the
work sphere. Emphasizing the process of precariousness
and criminalization of the working class that intensify with the
advance of the ultra-neoliberal offensive.

Keywords: Work sphere, Neoliberalism, Criminalization of


the working class.

1- INTRODUÇÃO

Com a consolidação do neoliberalismo, tem-se uma intensa precarização do


mundo do trabalho, marcada, entre outros aspectos, pela fragilidade dos vínculos de
contratação da força de trabalho. Destaca-se a uberização do trabalho, que se
caracteriza pela prestação de serviço sem vínculo empregatício. A lógica da uberização

31 Graduanda em Serviço Social. Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Email: mari34269@gmai.com
32Graduanda em Serviço Social. Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Email:
geovanna.gsantos31@gmail.com
33Graduanda em Serviço Social. Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Email:
debattisticamilla@gmail.com

77
vem se afirmando no mercado de trabalho e espraiando-se para diversas categorias
profissionais.
Ademais, a classe trabalhadora tem sofrido um processo de criminalização de
suas formas de resistência frente ao avanço do neoliberalismo. Para efetivar esta
criminalização, a classe dominante utiliza alguns recursos, entre eles recursos
ideológicos, repressivos e jurídicos.
Desse modo, o presente artigo busca apresentar as mudanças do mundo do
trabalho, a uberização do trabalho e a criminalização da classe trabalhadora no contexto
da ofensiva neoliberal.

2- DESENVOLVIMENTO

2.1- Os impactos advindos da consolidação do neoliberalismo

A década de 1970 foi marcada pela emergência de uma crise estrutural do capital.
Tal crise impôs a necessidade por um novo padrão de reprodução do capital, contrário
àquele que vinha sendo desenvolvido. Dessa forma, constata-se o esgotamento do modelo
taylorista/fordista de produção e o fim do modelo de proteção social keynesiano, vigente
nos países de capitalismo central.
Como pontuou Antunes (2009) em sua obra “Os Sentidos do Trabalho: ensaio
sobre a afirmação e a negação do trabalho”, como alternativa para superação dessa
crise, implementou-se uma reestruturação produtiva que tem como característica basilar
a acumulação flexível, a qual exige a flexibilização das regulações do trabalho, a
diversificação das formas de contratação e menor estabilidade do trabalhador no
emprego.
O neoliberalismo assume a responsabilidade de administrar ideo politicamente
esse processo, conduzindo a desregulamentação do mundo do trabalho. Além disso,

O neoliberalismo deve ser visto como uma estratégia de recomposição do poder


burguês e de enfrentamento aos movimentos contestatórios que se fortaleciam
como possibilidade de superação da crise do capital nos anos 1970. (BRETTAS,
2017, p. 60).

A primeira experiência neoliberal aconteceu no Chile na ditadura do governo


militar de Augusto Pinochet entre os anos 1973 e 1990. Paulatinamente, a experiência
neoliberal foi sendo (re)produzida em outros países. No Brasil, a chegada do
neoliberalismo só ocorreu nos anos 1990, já que a década anterior foi marcada pela

78
reabertura democrática, pelo protagonismo dos movimentos políticos e sociais e pela
formulação da Constituição Federal.

Assim, o neoliberalismo no Brasil se consolidou como estratégia de dominação


da classe burguesa e de seus aliados para responder à crise vivida na década de
1980, a qual propiciou um substantivo movimento pela democratização, a
retomada da luta sindical e o surgimento de movimentos sociais importantes no
campo e na cidade. (BRETTAS, 2017, p. 61).

O neoliberalismo vai apresentar-se com particularidades em cada território, mas


preservando alguns aspectos comuns, especialmente, em relação ao mundo do trabalho
e sua precarização.

2.2- As transformações do mundo do trabalho

Com a adoção do neoliberalismo ocorreram mudanças significativas no mundo do


trabalho em escala global. Tem-se nesse momento, uma exigência de
desregulamentação do trabalho, implicando na sua flexibilização e precarização. Desse
modo, há um ataque generalizado à segurança e à estabilidade do trabalho. Dessa
forma,
Com o receituário neoliberal, a flexploração do trabalho ganhou significado na
gestão da força de trabalho através da difusão do regime da insegurança do
emprego pela terceirização e pela precarização do trabalho multifuncional.
(POCHMANN, 2020, p. 39).

Quanto ao trabalho multifuncional, este é uma exigência do modelo toyotista -


implementado pela reestruturação produtiva - no qual os trabalhadores especializados
são substituídos pelos “polivalentes e multifuncionais”. (ANTUNES; ALVES, 2004).
O neoliberalismo impacta diretamente nas formas de trabalho, que passam a ser
as mais diversificadas possíveis, como o trabalho terceirizado, temporário, part-time,
informal. Estas condições implicam em uma maior exploração da força de trabalho e
intensa precarização do trabalho, além da consequente piora das condições de
reprodução do trabalhador e acirramento do desemprego estrutural.
Além disso, Antunes e Alves (2004) afirmam que é com o toyotismo que ocorre
uma racionalização do trabalho que captura a subjetividade operária pela lógica do
capital, superando a subsunção formal e transformando-a em subsunção real. De modo
que os sujeitos não possam compreender o processo do trabalho e assim passam a
estranhá-lo, preservando, assim, o processo de alienação. Os autores apontam ainda
que
A alienação/estranhamento é ainda mais intensa nos estratos precarizados da
força humana de trabalho, que vivenciam as condições mais desprovidas de
direitos e em condições de instabilidade cotidiana, dada pelo trabalho part-time,
temporário e precarizado. (ANTUNES e ALVES, 2004, p. 348).

79
Assim, Antunes e Alves (2004) compreendem que há uma revolta contra esses
estranhamentos daqueles que foram expulsos do mundo do trabalho. Logo, os autores
denominam de uma “desumanização segregadora” que, por sua vez, acarreta um
isolamento individual, à criminalidade, à formação de setores excluídos e que devem ser
entendidos a partir da contradição do sistema capitalista e não de maneira isolada.

2.3- Uberização do trabalho como processo de acirramento do neoliberalismo

O processo de uberização é uma das tendências que se apresentou a partir das


mudanças do mundo do trabalho decorrente do acirramento da ofensiva neoliberal,
denominada ultra neoliberalismo por Antunes (2018) em seu livro “O privilégio da
servidão: o novo proletariado de serviços na era digital”.
Para Abilio (2019), as plataformas digitais são de suma importância para viabilizar
essa nova forma de organização do trabalho, entretanto, a uberização do trabalho resulta
de processos globais que já estavam em curso. “A definição de uberização do trabalho se
refere a uma nova forma de gestão, organização e controle do trabalho que se afirma
como tendência global no mundo do trabalho.” (Abilio, 2017 e 2018 a, apud Abilio, 2019,
p. 2).
Como aponta a autora, no processo de uberização, o trabalhador não é
contratado por nenhuma empresa ao mesmo tempo que recorre às plataformas digitais
para realizar as atividades. Dessa forma, o trabalhador não possui nenhum tipo de
garantia, direito ou segurança referente ao trabalho, além de ser o responsável pelos
riscos e custos do desempenho do trabalho. Logo, o trabalhador se torna seu próprio
vigilante ao mesmo tempo que é controlado pelas plataformas digitais por meio dos seus
algoritmos.
As empresas de aplicativo utilizam-se de uma falsa ideia de que os trabalhadores
passam a ser livres e independentes para exercerem suas atividades e potencialidades.
Contudo, são as empresas que definem o valor do serviço ofertado pelos trabalhadores e
que detém o controle da distribuição do trabalho. Além disso, a uberização conta com
uma força de trabalho que se mantém disponível, mas que a utiliza apenas quando é
necessário. Ou seja, as empresas exigem que os trabalhadores estejam disponíveis para
realizar o trabalho, mas só os recorrem quando há alguma demanda. (ABÍLIO, 2019).
Sendo assim, o discurso da independência e do trabalhador como ‘empreendedor
de si mesmo' é uma falácia que não se efetiva na realidade, uma vez que o trabalhador
não possui autonomia sobre o desenvolvimento de seu trabalho. A uberização, no

80
entanto, caracteriza-se como uma forma perversa de precarização do trabalho. Assim
para Abilio,

Ao compreender-se a uberização como um novo meio de controle, gestão e


organização do trabalho, propõe-se a passagem da figura do ‘empreendedor de si’
para a do trabalhador ‘gerente de si subordinado’. Não se trata de uma disputa de
termos, mas de conectar mais fortemente os modos de subjetivação às formas de
subordinação e gerenciamento do trabalho. (2019, p.5).

2.4- A criminalização da classe trabalhadora

É fundamental analisar a criminalização da classe trabalhadora e da sua


organização diante do modo de produção capitalista e de regulação neoliberal. Embora
compreenda-se que tal criminalização seja inerente ao sistema capitalista, cabe discutir
os novos moldes que perpassam a criminalização da organização da classe trabalhadora
no contexto neoliberal.

De acordo com Maria Lúcia Duriguetto,

[...] criminalizar as lutas e movimentos sociais é associar pobreza à


criminalidade, é transformar a "questão social" em uma questão individual e
moral, é deslegitimar as organizações e lutas das classes subalternas, é
criminalizar a visibilidade pública e política das expressões da "questão social" e
dos sujeitos - individuais e coletivos que reivindicam e/ou defendem direitos, que
confrontam a ordem hegemônica capitalista. (2017, p.105).

A criminalização apesar de abarcar a classe trabalhadora de uma forma geral,


tem como principal objetivo a criminalização dos focos de luta, organização e resistência
dessa classe. Assim, a burguesia busca atacar diretamente toda iniciativa de contestação
à lógica neoliberal. Dessa forma, ataca diretamente as organizações que defendem os
interesses da classe trabalhadora, como os movimentos sociais. Estes sofrem com a
perseguição política dos grupos dominantes, que os colocam no campo da criminalidade
e associam a eles o estigma de perigosos para a sociedade.
Um exemplo claro de ataque à luta e a organização da classe trabalhadora pode
ser verificado no boicote à paralisação dos motoentregadores, em abril de 2021, que, por
sua vez, reivindicavam por um aumento do valor pago por entrega, e foram
desmobilizados por meio de estratégias implementadas por uma empresa de aplicativo
de entregas. Segundo a reportagem, Brasil de Fato (2022), foram utilizadas diversas
estratégias, como a inserção de outras pautas na manifestação dos trabalhadores, a fim
de confundir e esvaziar de sentido o movimento. Assim como, a propagação de posts

81
falsos e criação de páginas online que deslegitimavam a ação dos trabalhadores. Além
disso,
À noite, poucas horas depois do “Breque”, o iFood lançou uma carta e um site
para rebater críticas, divulgando em horário nobre da TV aberta um anúncio que
destacava que a empresa “oferece seguro contra acidentes pessoais e que a
maioria [dos entregadores] valoriza o fato de ter flexibilidade de horário e liberdade
para compor sua renda”. (BRASIL DE FATO, 2022).

Dessa forma, compreende-se como as empresas utilizam de recursos para


dispersar e até mesmo criminalizar os movimentos ligados à classe trabalhadora.
Um aspecto fundamental para a criminalização da classe trabalhadora é a
construção de uma "forma neoliberal de pensar". Para construir e consolidar essa
ideologia, a classe dominante faz uso dos aparelhos privados de hegemonia. Nesse
sentido, esses aparelhos - os quais contribuem para unificar e legitimar os interesses da
classe dominante - conduzem a percepção dos próprios trabalhadores, levando-os a
perceber os movimentos sociais sobre a ótica neoliberal. Nessa lógica neoliberal os
princípios classistas são substituídos por princípios individualistas e moralizantes, como
apontou Duriguetto (2017).
Ademais, segundo a autora, é a partir do contexto de crise do padrão de
acumulação do capital que “há a intensificação dos processos de controle penal do
Estado, em especial sobre a força de trabalho excedente” (p.107). Sendo assim, o caráter
punitivo e repressivo do Estado é acentuado, indo de embate à resistência das classes
subalternas.
Para além da dimensão da força repressiva do Estado burguês, Duriguetto (2017)
chama atenção para o cunho jurídico-político da criminalização dos movimentos sociais
no contexto neoliberal. Nesse sentido,

a judicialização dos conflitos e das lutas sociais é uma das formas que as frações
das classes dominantes vêm utilizando, de maneira intensa, para ocultar a lógica
conflitiva da luta de classes visibilizada, pública e politicamente, pelas classes
subalternas e seus processos político-organizativos de lutas. [...] O Poder
Judiciário exerce uma das suas principais funções, que é a de se constituir no
instrumento de legitimação do exercício do poder coercitivo do Estado,
utilizando-o para criminalizar e deslegitimar as lutas e os movimentos sociais.
(DURIGUETTO, 2017, p.110).

Sendo assim, nota-se os aparelhos do Estado sendo utilizados para criminalizar


as formas de resistência da classe trabalhadora frente à ofensiva neoliberal.

82
3- CONCLUSÃO

A regulação neoliberal se constituiu como alternativa do capital para superar a


crise que emergiu na década de 1970. Com o neoliberalismo, notou-se a flexibilização
das regulações do mundo do trabalho. Desse modo, isso acarretou na intensificação da
exploração da força de trabalho, no aumento da precarização do trabalho e na piora das
condições de reprodução do trabalhador.
A classe que precisa vender sua força de trabalho para se manter, precisa
também encarar um trabalho cada vez mais precarizado, com pouca regulamentação e
baixa remuneração. Dessa forma, o trabalhador é colocado em uma situação ainda maior
de vulnerabilidade, ao passo que a classe burguesa tem seu lucro aumentado.
Nesse cenário, as formas de ação e reivindicação da classe trabalhadora são
percebidas - diante da lógica neoliberal - como ilegais e, por isso, são criminalizadas. A
intensificação do projeto neoliberal explicita o objetivo de deslegitimar e desmobilizar as
formas de organização dos trabalhadores. Sendo assim, a criminalização da luta da
classe trabalhadora acentua a opressão da classe dominante frente a resistência da
classe dominada.

4- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABILIO, L. C. Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento


subordinado. Psicoperspectivas. Individuo y Sociedad, v.18, n 3, 2019. p. 1-11.
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trabalho. 2.ed., 10.reimpr. São Paulo, Boitempo, 2009

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https://repositorio.unesp.br/handle/11449/10827 Acesso em: 08 jul. 2022.

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profissionais do Serviço Social. Serv. Soc. São Paulo, n. 128, p. 104-122, jan./abr. 2017.

83
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movimento de entregadores. Brasil de Fato, 2022. Disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/2022/04/04/como-o-ifood-criou-maquina-oculta-de-
propaganda-para-desmobilizar-movimento-de-entregadores. Acesso em: 11 jul. 2022

POCHAMANN, M. Os trabalhadores na regressão neoliberal. In: ANDRADE, D. O.;

POCHAMANN, M. Devastação do trabalho: a classe do labor na crise da pandemia.


Brasília: Gráfica e Editora Positiva: Confederação Nacional dos Trabalhadores em
Educação e Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente, 2020.
p.31-54

84
CAPITAL FICTÍCIO E A LÓGICA DESTRUTIVA DA ACUMULAÇÃO CAPITALISTA: o
caso da barragem da Samarco

Jéssica Ribeiro Duboc34

Resumo:Neste trabalho procuramos demonstrara intrínseca


relação entre o rompimento da barragem da Samarco e a
lógica do capital fictício. No primeiro momento da exposição,
a partir das contribuições marxianas, apresentamos uma
breve análise do desenvolvimento do capital fictício.
Posteriormente, procuramos evidenciar as determinações
precedentes do maior crime sócio-ambiental da história do
país, no sentido de demonstrar como o rompimento da
barragem da Samarco é fruto de uma intensificação da
exploração do meio ambiente e da força de trabalho para
recompor as taxas de lucro e garantir a remuneração dos
acionistas.
Palavras-chaves: capital fictício; mineração; Caso Samarco

Abstract: In this work we seek to demonstrate the intrinsic


relationship between the Samarco dam failure and the logic
of fictitious capital. In the first moment of the exposition,
based on Marxian contributions, we present a brief analysis
of the development of fictitious capital. Subsequently, we
seek to highlight the preceding determinations of the
greatest socio-environmental crime in the history of the
country, in order to demonstrate how the Samarco dam
failure is the result of an intensification of the exploitation of
the environment and the workforce to restore profit rates.
and guarantee shareholder remuneration.
Keywords: fictitious capital; mining; Samarco case

34AssistenteSocial e mestre pela Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social pela Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Eixo Temático: Ofensiva ultraneoliberal do capital e lutas sociais.

85
1- INTRODUÇÃO

No dia 5 de novembro de 2015, rompe a barragem de Fundão do complexo


minerário da Samarco, joint-venture da Vale S.A e a empresa anglo-australiana BHP
Billiton, localizado na cidade de Mariana, Minas Gerais. Cerca de 40 milhões de m³ de
rejeito de minérios foram derramados na comunidade de Bento Rodrigues. A lama
percorreu mais de 600 km do Rio Gualaxo do Norte, passando pelo Rio do Carmo até
chegar a foz do Rio Doce. Pelo caminho a destruição das comunidades atingidas é visível
quase sete anos depois do rompimento. Os impactos materias e imateriais causados pelo
rompimento alterou profundamente os modos de vidas das pessoas atingidas, suas
relações de produção, culturais e sociais. Os danos individuais e coletivos foram
inúmeros, muito deles irreparáveis, como a destruição do rio, das relações comunitárias e
dos saberes tradicionais que marcaram a história e vida da população dos territórios
atingidos.
Neste trabalho procuramos demonstrar, a relação intríseca entre o rompimento da
barragem de Fundão e a lógica do capital fictício. No primeiro momento da exposição, a
partir das contribuições marxianas, apresentamos uma breve análise do desenvolvimento
do capital fictício, desdobramento lógico do capital portador de juros, enquanto a forma
mais fetichizada do valor. Posteriormente, procuramos evidenciar as determinações
precedentes do maior crime sócio-ambiental da história do país, no sentido de
demonstrar como o rompimento da barragem de Fundão é fruto de uma intensificação da
exploração do meio ambiente e da força de trabalho para recompor as taxas de lucro e
garantir a remuneração dos acionistas. Para isso, recorremos a produção bibliográfica
sobre o caso em tela, resultado do esforço teórico e metodológico de importantes
pesquisadores da temática.

2- DO FETICHISMO DA MERCADORIA AO CAPITAL FICTÍCIO: a inversão da


produção e apropriação do valor.

No primeiro capítulo do O capital, Marx (2017a) após a exposição do movimento


da mercadoria e suas metamorfoses ao longo do desenvolvimento das relações de troca,
questiona o caráter místico que os produtos do trabalho humano assumem assim que se
tornam mercadorias. Marx descobre que como valor de uso – como um objeto que
satisfaz as necessidades humanas – a mercadoria nada possui de misterioso. O
“segredo” está no valor de troca que dissimula as características sociais da mercadoria,

86
ou seja, oculta a sua configuração como dispêndio de trabalho humano e, assim,
esconde aquilo que lhe determina valor. Diante do produtor, a mercadoria se apresenta
como uma objetividade mística que contém em si a capacidade de se autovalorizar:
[...] a forma-mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em que
ela se representa não tem, ao contrário, absolutamente nada a ver com sua
natureza física e com as relações materiais [dinglichen] que dela resultam. É
apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui
assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas [...] A
isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles
são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de
mercadorias (MARX, 2017a, p. 147-148, grifos nossos)

Na perspectiva marxiana, o fetichismo da mercadoria expressa apenas uma forma


histórica e socialmente determinada da relação entre humanos e estes com a natureza;
dito de modo diverso, apenas uma forma histórica e, por isto, transitória. Como afirma
Marx (2017a, p.148, grifos nossos) “as relações sociais entre seus trabalhos privados
aparecem como aquilo que elas são, isto é, não como relações diretamente sociais entre
pessoas em seus próprios trabalhos, mas como relações reificadas entre pessoas e
relações sociais entre coisas”.
Essa necessidade objetiva de ocultamento das relações sociais durante o
processo de produção e reprodução do modo de produção capitalista, na totalidade do
modo de produção, expressam o porquê das análises de Marx sobre a fetichização irem
além das suas reflexões presentes no capítulo da mercadoria ou mesmo somente do
Livro I de O Capital, onde Marx inicia sua exposição a partir da forma-mercadoria, a
“forma mais geral e menos desenvolvida da produção burguesa” (MARX, 2017a, p. 157).
A inversão entre o sujeito e objeto que aparece no fetiche da mercadoria, em sua
forma mais abstrata e se aprofunda na medida em que prossegue e desenvolve o
processo de acumulação do capital: “[...] A circulação do dinheiro como capital é, ao
contrário, um fim em si mesmo, pois a valorização do valor existe apenas no interior
desse movimento sempre renovado. O movimento do capital é, por isso, desmedido”
(MARX, 2017a, p, 228).
Do movimento real do capital - unidade do processo de produção e circulação -
“brotam formas concretas” nas quais os capitais se confrontam. São as formas que “se
apresentam na superfície da sociedade, na ação recíproca dos diferentes capitais, na
concorrência e no senso comum dos próprios agentes da produção” (MARX, 2017b,
p.53).As formas como o lucro, o preço e o juros,dissimulam cada vez mais o seu
conteúdo – trabalho humano indiferenciado – e aparecem cada vez mais como um valor
que se autovaloriza. O ápice deste fetiche ganha expressão na relação capitalista na qual
a forma capital portador de juro “assume sua forma mais exterior e mais fetichizada.

87
Neste momento deparamos com D-D´, dinheiro que engendra mais dinheiro, valor que
valoriza a si mesmo, sem o processo mediador entre os dois extremos”. O processo de
produção e o princípio fundante do valor e do mais-valor, na aparência do capital portador
de juros, é apagado. O capital aparece “como fonte misteriosa e autocriadora de juros, de
seu próprio incremento” e não apresenta “nenhuma cicatriz de seu nascimento”. Em D-D`
“temos a forma mais sem conceito do capital, a inversão e a coisificação das relações de
produção elevadas à máxima potência [...] a mistificação capitalista em sua forma mais
descarada”. (MARX, 2017b, p.441,442).
Para Marx,
Ao desenvolverem-se o capital portador de juros o sistema de crédito, todo
capital parece duplicar e às vezes triplicar pelos diversos modos em que o
mesmo capital ou o mesmo título de dívida aparece sob diferentes formas em
diferentes mãos. Esse capital “monetário” é, em sua maior parte, puramente
fictício (MARX, 2017b, 527).

É fictício na medida em que:


Esse capital não existe duas vezes: a primeira como valor-capital dos títulos de
propriedade, das ações, e a segunda, como capital realmente investido ou que
tem de ser investido naquelas empresas. Ele só existe nesta última forma, e a
ação não é mais que um título de propriedade que dá direito a participar pro rata
no mais-valor que aquele capital vier a realizar (MARX, 2017b, p.524).

O capital fictício surge como uma consequência do desenvolvimento do capital


portador de juros (CARCANHOLO, SABADINI, 2015). Nessa forma social, o
distanciamento do capital na produção se concretiza, “apaga-se até o último rastro toda a
conexão com o processo real de valorização do capital e se reforça a concepção do
capital como um autômato que se valoriza por si mesmo”(MARX, 2017b, p. 524).
O capital ficítico enquanto uma forma desdobrada do capital portador de juros,
difenrencia-se dele, em virtude de não ingressar no processo produtivo para produzir
mais-valor, ele não atua diretamente na valorização do capital. Esse fenômeno, é “a
inversão da lógica produção-apropriação de valor”. Por essa razão, o capital fictício –
ações, títulos da dívida e etc – aparenta ter uma autonomia frente ao processo de
produção, na medida em que ele representa a duplicação de um capital anteriormente
investido e, portanto, não possui nenhuma correspondência material. O crescimento do
capital fictício “significa a expansão de títulos de apropriação sobre um valor que não é
necessariamente produzido na mesma proporção” (CARCANHOLO, 2011, p. 75).
A dimensão atingida pela lógica do capital fictício, particularmente a partir da
dinâmica do capitalismo mundial em curso desde o final dos anos 70/80, nos demonstra a
necessidade de compreender a crítica da economia política elaborada por Marx para

88
desvelar o conteúdo das formas cada vez mais complexas que o valor assume no
desenvolvimento do modo capitalistade produção.
A crise que demarca o período supracitado exige respostas que se concentram na
implementação das políticas neoliberais, a expansão do capital fictício e a transferência
do excedente produzido nos países periféricos para o centrodas economias mundiais
(CARCANHOLO, 2010, p. 3).
O que o processo de desregulamentação e inovações financeiras propiciou, a
partir dos anos 70 do século passado, e com mais força nos anos 90, foi o
crescimento substancial de novos instrumentos desse capital fictício, assim como
a expansão brutal da massa de valor desse tipo de capital (CARCANHOLO,
2010, p. 6).

As respostas que o modo de produção capitalista impôs para a crise


desencadeada a partir do final dos anos 70, alcançaram “a recuperação ainda que tímida
e efêmera, da lucratividade do capital nos países centrais, o que emerge daí é um
capitalismo cujo crescimento da produção depende cada vez mais de bolhas financeiras”
(GRANEMANN;MIRANDA, 2020, p. 24).
O descabido crescimento da distância entre as produção de mais-valor e a
apropriação do mais-valor coloca limites para a dinâmica do capital, uma vez que a
expansão do capital fictício se fundamenta na “crença no cumprimento de promessas
absolutamente irrealizáveis, isto é, de que o capital fictício sobreacumulado poderá,
quando se queira, ter seus ganhos convertidos em direitos sobre a produção social
(dinheiro)” (GRANEMANN;MIRANDA, 2020, p. 24). A aparente autonomia que o capital
fictício possui frente a produção de valor, pode ser questionada quando “uma parcela
cada vez maior do capital global procurará apropriar-se de um valor que está sendo
produzido cada vez menos” resultando na “redução da taxa de lucro e o aprofundamento
do comportamento cíclico da crise” (CARCANHOLO, 2010, p. 6).
Para superar os desdobramentos da disfuncionalidade do capital fictício
(CARCANHOLO, 2010), o capital procura formas de garantir a expansão da produção de
mais-valor, dentre elas, a apropriação do fundo público e a intensificação da exploração
da força de trabalho:
O feroz, e desesperado, impulso por resolver a colossal dissociação entre
produção e apropriação do mais-valor é a condição atual do capital. A destruição
do capital fictício é, obviamente, inaceitável de seu ponto de vista e, ademais,
geraria abalos de magnitudes impensáveis em um sistema econômico que se
constrói há décadas sobre a ilusão do dinheiro que, por si só, gera mais dinheiro.
Para seguir ‘comprando tempo’, se é que possível continuar a faze-lo no longo
prazo, o capital exige aumento na extração de riqueza de todas as formas
possíveis e, portanto, mais destruição. Mais destruição de vidas (aliás, supérfluas
do ponto de vista desumano da acumulação de capital), mais destruição
ambiental, mais destruição de direitos, mais conflitos...
(GRANEMANN;MIRANDA, 2020, p. 24).

89
A dimensão assumida pelo capital fictício em decorrência do desdobramento e
expansão do capital portador de juros e sua constante necessidade de valorização, como
sinalizado, significa um processo de intesificação da exploração dos fatores subjetivos e
objetivos da produção, a exploração da força de trabalho e dos recursos naturais
renovavéis e não-renováveis.
É nesse processo que está inserido os determinantes econômicos, históricos e
sociais do rompimento da barragem do Fundão em Mariana, Minas Gerais, no dia 5 de
novembro de 2015.

3- A LÓGICA DO CAPITAL FICTÍCIO E ROMPIMENTO DA BARRAGEM DO FUNDÃO

Na formação social brasileira e na características agroexportadora da inserção


econômica do país no mercado global, a partir importação de commodities – mercadorias
primárias – o caráter extrativista marca cerca de quinhentos anos de exploração: [...] o
extrativismo perpassa a longa memória do continente e suas lutas, define um modo de
apropriação da natureza, um padrão de acumulação colonial, associada ao nascimento
do capitalismo moderno (SVAMPA, 2019, p. 21).
As consequências do padrão de acumulação dependente que se desenvolveu nos
países latino-americanos e em particular no Brasil, por um lado geram lucros e juros que
possibilitam o desenvolvimento tecnológico, econômico e social dos países capitalistas
hegemônicos e por outro, a dizimação e exploração contínua dos povos originário,
trabalhadores e trabalhadoras, do meio ambiente e dos recursos naturais.
O rompimento da barragem da Samarco/Vale e BHP expressa o conjunto de
medidas utilizadas no capitalismo contemporâneo para intensificar a exploração da força
de trabalho e da natureza diante da necessidade imposta pela lógica especulativa do
capital de produzir e extrair em dimensões cada vez maiores o mais-valor.
A barragem de Fundão, uma das estruturas do complexo minerador da Samarco,
de acordo com Santos e Milanez (2018, p.117) tem de ser compreendida nos marcos da
expansão da exploração mineral durante os períodos do boom (2011-2011) e pós-boom
das commodities. A barragem iniciou suas atividades em 2008, período que demarca o
pico e início declínio dos preços de minério. Para Carcanholo (2010, p. 7).
[...] o ciclo no preço das commodities neste início de século XXI também se
explica pelo comportamento do capital fictício nesses mercados específicos. No
período 2002-2007 os fundos de investimento aplicam fortemente no mercado
futuro de commodities, apostando na alta do preço dessas mercadorias, isto é,
na expectativa de aumento do preço dos produtos primários, esses fundos
compram antecipadamente o direito de revenda futura desses produtos. Essa

90
pressão de demanda acaba, de fato, antecipando o movimento de alta nos
preços. O mesmo processo, com sinal invertido, explica a fase de baixa nos
preços das commodities, o que ocorreu a partir de meados de 2008. Esse ciclo
no preço das commodities também se insere no contexto da atual crise do
capitalismo contemporâneo.

As análises acerca das estratégias de investimento e financiamento da Samarco


nos anos que antecederam o rompimento, como resposta aos primeiros anos do pós-
bomm, demonstram a centralidade da dimensão financeira dos acionistas na organização
da produção, aliando a elevação do volume de minério produzido e a redução dos custos
operacionais estabelecendo patamares “suficientemente baixos, de modo a
contrabalançar o declínio das margens de lucro” e garantir a distribuição dos dividendos
aos acionistas WANDERLEY et al, 2016, p. 51):

O comportamento contábil da Samarco demonstra a prevalência dos retornos em


dividendos para os acionistas dos lucros auferidos, à custa do alto endividamento
e de um comportamento operacional mais agressivo em busca de maior
produtividade por parte da empresa [...] A confrontação entre o endividamento e
a receita operacional da companhia aponta para uma pressão crescente pela
elevação da produtividade como forma de manutenção dos níveis de
remuneração aos acionistas(WANDERLEY et al, 2016, p. 51).

No ano de 2011, a empresa Samarco entrou com pedido para renovação e


expansão da produção, “com intuito de elevar ainda mais a escala de produção, em
2012, a Samarco apresentou um novo EIA [Estudo de Impacto Ambiental] visando
promover a otimização da barragem do Fundão” (SANTOS; MILANEZ, 2018, p.127). No
ano do rompimento da Barragem de Fundão, em 2015, um novo pedido de renovação da
licença de operação ainda não havia sido aprovado. De acordo com o laudo pericial do
primeiro inquérito da Polícia Civil de Minas Gerais, a causa do rompimento foi a
“liquefação [acúmulo de água] dos rejeitos arenosos que suportavam a barragem”, dentre
outros seis fatores que expressam a intensificação e sucateamento dos componentes da
produção, como falha no monitoramento contínuo do nível de água, equipamentos de
monitoramento com defeitos e etc. (WANDERLEY et al, 2016, p. 51).
A necessidade de intensificar a produção a fim de garantir taxa média de lucro e a
remuneração dos acionistas, ocorreu sob duas formas no caso do rompimento da
barragem de Fundão, por meio da intensificação da exploração da natureza, esgarçando
a capacidade de produção em prol da manutenção das condições técnicas e ambientais
como também da intensificação da exploração da força de trabalho:
Em decorrência da elevação constante da produtividade e da redução de custos
operacionais houve uma significativa intensificação do ritmo de trabalho. Além
disso, entre 2013 e 2014, a participação de componentes de segurança e saúde
foi reduzida de 3,8% para 2,8% do total de investimentos de capital (SAMARCO
MINERAÇÃO, 2014b, 2015b). Os resultados foram uma sobrecarga sobre os
trabalhadores e um aumento das taxas de acidentes, como se pode observar no

91
gráfico 3. Entre 2011e 2014, a taxa de acidentes por milhão de horas-homem
trabalhadas aumentou de 0,49para 1,27, um acréscimo de 160%. Dentre os
trabalhadores da mineração, os mais vulneráveis e expostos a condições de
perigo são os terceirizados. No rompimento da barragem do Fundão, dos
14trabalhadores mortos, 13 eram de empresas terceirizadas e apenas um
funcionário direto da Samarco (WANDERLEY et al, 2016, p. 56).

O caso Samarco, demonstra como as respostas do capital para garantir a


manutenção da taxa de lucro recaem sobre os ombros dos trabalhadores e
trabalhadoras, bem como expõe as contradições dos mecanismos contemporâneos de
organização da produção como respostas à crise global do modo de produção capitalista,
à exemplo da terceirização da força de trabalho e a precarização das condições de
trabalho.

4- CONCLUSÃO

O rompimento da barragem da Samarco/Vale e BHP é uma nefasta manifestação


da lógica do modo de produção capitalista nos moldes do desenvolvimento dos países
dependentes instaurou uma realidade inédita dada a magnitude e extensão da destruição
socioambiental ocasionada e dos inúmeros direitos violados. Para manter os níveis de
produtividade e remunerar as diversas frações da burguesia que se apropriam do mais-
valor, a dinâmica do capital produz a degradação constante da natureza, dos saberes
tradicionais, comunidades indígenas e quilombolas, nascentes, cachoeiras e sobretudo,
vidas humanas.. É esse o legado da mineração para os territórios explorados
cotidianamente pelo capital. Para romper com esse ciclo destrutivo,

Ele [o capital] teria de “renunciar ao valor de troca pelo valor de uso e passar da
forma
geral da riqueza para uma forma específica e tangível desta”, o que não se
concebe que possa fazer sem deixar de ser capital – ou seja: modo alienado e
reificado do processo de controle sociometabólico, capaz de seguir o rumo
inexorável de sua própria expansão (sem preocupação com as consequências)
justamente porque rompeu as restrições do valor de uso e da necessidade
humana (MESZÁROS, 2011, p. 253).

A lógica extrativista e capitalista de produção expõe suas contradições e


demonstram a impossibilidade de manutenção do lucro e ao mesmo do tempo do
equilíbrio ambiental e social, apontando a necessidade superação da forma típica de
produção do capital.

92
5- REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

CARCANHOLO, Marcelo. Conteúdo e Forma da Crise Atual do Capitalismo: lógica,


contradições e possibilidades. Crítica e Sociedade: revista de cultura política. v.1, n.3,
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Campinas. Boitempo/UNICAMP, 2011.

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LOSEKANN, C. (Orgs) - Rio de Janeiro: Folio Digital: Letra e Imagem, 2016.

93
MINERAÇÃO EXTRATIVISTA EM MARIANA (MG): o capitalismo moendo vidas e a
natureza
João Caio Oliveira da Silva35
Daniele Correia36
Eixo temático37

RESUMO
Este artigo trata brevemente sobre a mineração extrativista
na cidade de Mariana no estado de Minas Gerais. Na
primeira seção, discorremos sobre seus aspectos históricos
e os impactos sociais na região. Na segunda seção,
problematizamos a atuação do serviço de atenção
psicossocial Conviver, da Fundação Renova, que utiliza da
estrutura do município, ou seja, do fundo público municipal,
para atuar nas consequências de seu crime ambiental.
Buscamos evidenciar as contradições presentes nessa
dinâmica e os reflexos dessa lógica para a vida das pessoas
e para a natureza, ocasionando o agravamento das
expressões da questão social.

PALAVRAS-CHAVE: Mineração; Minas Gerais;


Capitalismo; Exploração; Serviço Social.

ABSTRACT
This article deals briefly with extractive mining in the city of
Mariana in the state of Minas Gerais. In the first section, we
discuss its historical aspects and the social impacts in the
region. In the second section, we problematize the
performance of the psychosocial care service Conviver, of
the Renova Foundation, which uses the structure of the
municipality, that is, the municipal public fund, to act on the
consequences of its environmental crime. We seek to
highlight the contradictions present in this dynamic and the
consequences of this logic for people's lives and for nature,
causing the worsening of the expressions of the social issue.

KEYWORDS: Mining; Minas Gerais; Capitalism; Exploration;


Social Work.

35 Graduando do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto/UFOP. (Matrícula


18.2.3056). E-mail: joao.caio@aluno.ufop.edu.br ORCID: 0000-0002-5664-9250
36Mestra em Serviço Social pela PUC-SP. Doutoranda em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública

da USP (FSP/USP). Docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto
(UFOP). E-mail: daniele.correia@ufop.edu.brORCID: 0000-0003-1154-4196.
37As expressões da exploração/opressão de classes no contexto da ofensiva ultraneoliberal do capital.

94
1- INTRODUÇÃO

A estruturação da lógica de acumulação do modo de produção capitalista é


marcada por uma série de acontecimentos sócio-históricos no decorrer dos séculos.
Nesse processo, situa-se a expropriação e a exploração de diversos povos, bem como o
domínio e o monopólio da propriedade privada através dos quais se obtém grandes
lucros. Nesse sentido, Marx (2013, p. 187), diz que “a expropriação da terra que antes
pertencia ao produtor rural e ao camponês, constitui a base de todo o processo”,
originada na assim chamada acumulação primitiva.
Diante dessa perspectiva, a história da mineração extrativista no Brasil tem um
longo percurso e pode ser situada desde o período colonial, através da exploração da
força de trabalho dos negros escravizados - “uma máquina de moer gente foi a marca da
exploração nas primeiras regiões mineradas no Brasil” (COELHO et al, 2020, p. 103-4).
Junto com a exploração e morte das pessoas, ocorre também a degradação do meio
ambiente por onde a mineração se instalava, permanecendo “inúmeros episódios de
genocídios, destruição ambiental, domínio dos territórios à força e dos habitantes que
neles residiam, junto a repressão da organização dos trabalhadores da mineração”
(Ibidem, p.104).
A mineração extrativista se instalou em Minas Gerais a partir de finais do século
XX, compondo o novo padrão de reprodução do capital com base no modelo exportador
sob domínio das economias imperialistas, assentando-se na superexploração da força de
trabalho e na destruição ambiental. Presenciamos consequências notórias dessa
conformação através dos históricos e os recentes rompimentos/crimes da barragem de
rejeitos, os quais ganharam notoriedade mundial – o da barragem de Fundão em Mariana
(MG) em 2015 e o da barragem de Córrego do Feijão em Brumadinho (MG) em 2019,
reafirmando a lógica dependente e subordinada do Brasil no modo de produção
capitalista mundializado (MARINI, 2005; CHESNAIS, 1996; BERTOLLO, 2021).
Portanto, o modelo de mineração extrativista presente e atuante na cidade de
Mariana (MG)– é historicamente desenvolvido de forma a se apropriar das riquezas
minerais da região, visando o atendimento das demandas de países centrais. Sendo
assim, torna-se relevante debruçarmos brevemente sobre este tema que afeta direta ou
indiretamente os sujeitos da região e suas formas de sociabilidade, bem como impacta a
natureza e as formas de produção e reprodução da vida através do trabalho. Para tanto,
trataremos de forma suscinta nas seções a seguir acerca da mineração extrativista em
Mariana, discorrendo sobre as consequências nas condições de vida e trabalho da

95
população, bem como apresentaremos o Serviço de acolhimento psicossocial
Conviver,que atua na intervenção às expressões da questão social da região.

2- A MINERAÇÃO EXTRATIVISTA EM MARIANA (MG): ASPECTOS HISTÓRICOS

Ao tratarmos da formação sócio-histórica de Mariana (MG), enquanto primeira


capital mineira, a exploração de minerais sempre teve uma forte presença e impacto na
constituição da região e na vida e sociabilidade de homens e mulheres do território.
Fonseca (1998) aponta que as atividades extrativistas em Mariana se iniciaram no século
XVII com a extração aurífera, e a partir daí foram ganhando força no território, dando
origem às primeiras habitações na cidade. A descoberta do ouro na região foi o grande
atrativo para o crescimento populacional, para a construção da cidade e sua estruturação
como um todo. Segundo Veloso (2013), a partir do século XVIII a cidade cresceu e foi
sofrendo outras transformações estruturais, em que destacamos nesse período a
construção de espaços públicos para os moradores, tais como praças.
Posteriormente, num salto para o século XX, segundo Gracino Júnior (2007. p
156), a chegada das mineradoras a partir de 1960acelerou a urbanização de forma que a
cidade, antes calma, se tornasse mais populosa. Chegada essa, motivada pelos grandes
incentivos fiscais do período da Ditadura Militar e também pelo fato do território
Marianense ser rico em minério de ferro e caracterizar-se como um atrativo comercial
para a exploração mineradora (GRACINO JÚNIOR, 2007).
Diante disso,
Nessas primeiras décadas, o crescimento demográfico foi o resultado de
grandes fluxos populacionais vindos de outros municípios: funcionários da
empresa e seus familiares e, sobretudo, grande número de pessoas em
busca de trabalho, além da mão-de-obra pouco especializada, que
trabalhou na instalação das empresas e que permaneceu na cidade após
o fim das obras (Fonseca, 1995). Neste período a população rural do
município de Mariana tem pouca participação na composição da
população da cidade, tendo uma variação modesta, saindo de 11.329 em
1950, para 9.901 em 1980. Mariana só conhecerá uma migração campo-
cidade significativa no final dos anos oitenta e início dos noventa
(JUNIOR, 2005. p.156-7).

Na década de 90, em especial nos países latino-americanos, presenciamos uma


situação de estagnação econômica e elevada inflação resultante da aplicação do
receituário das agências internacionais. Com base em um esforço exportador de
substituição das importações, promoveu-se superávits comerciais para o pagamento dos
encargos da dívida externa contraída desde a década de 1970. Além disso, as agências

96
multilaterais promoveram uma profunda mudança nas recomendações aos países
periféricos como o Brasil.
Sendo assim, os anos de 1990 caminharam rumo a um amplo consenso
neoliberal, favorável à implementação de ajuste e reformas institucionais do Fundo
Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, no que conhecemos como
contrarreforma do Estado, representando desregulamentação comercial e financeira,
desregulação do mercado de trabalho e minimização do Estado para os interesses da
classe trabalhadora e máximo para os do capital. Tal feito diminuiu aportes para a
Seguridade Social, privatizou empresas estatais e executou demissões em massa. Um
processo expresso pela mudança do padrão de acumulação capitalista, que desde os
anos 1980 passa a funcionar sob o imperativo da mundialização financeira (CHESNAIS,
1996).
Sob essa égide neoliberal e no curso da contrarreforma do Estado brasileiro,
presenciamos um dos maiores saques cometidos contra nosso país. Em 6 de maio de
1997, o governo Fernando Henrique Cardoso privatizava a principal empresa estratégica
brasileira no ramo da mineração e infraestrutura: a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD)
criada em 1942 com recursos do Tesouro Nacional. A venda fechou em 3,3 bilhões,
quando somente suas reservas minerais eram calculadas em mais de R$100 bilhões à
época. Desde então, o Brasil não tem mais soberania sobre os recursos minerais do
território, sendo tais recursos, atualmente, explorados pela Samarco Mineração S.A. de
propriedade da Vale e BHP Billiton.
Além do narrado passado histórico, determinadas formas de (re)produção
permanecem em curso em Mariana, a título das mineradoras que exercem um forte
impacto na vida das populações locais, tendo como agravante o crime de rompimento da
barragem de Fundão que ocorreu no dia 05 de novembro 2015, de responsabilidade da
empresa Samarco. Sendo este considerado um dos maiores crimes/desastres de
barragem em curso na história do país, visto que a lama passou por várias cidades
doestado de Minas Gerais e Espírito Santo - afetando diversas pessoas e suas condições
de vida e de trabalho, assim como o meio ambiente e os territórios.
De acordo com Gonçalves (2019), através do rompimento da barragem de rejeitos
de mineração da empresa Samarco em Mariana:
Evidencia-se a intensificação das múltiplas expressões da questão social,
que perpassa as vidas e o cotidiano das várias comunidades rurais e
urbanas, quilombolas, ribeirinhas, indígenas e assentamentos agrários
que foram impactados ao longo das mais de 40 cidades atingidas pela
lama. Além do início da luta pelo reconhecimento de direitos, e o lastro de
destruição e degradação das vidas e do meio ambiente percorrendo o Rio
Doce até o Estado do Espírito Santo – ES(GONÇALVES, 2019. p. 27).

97
Diante dessas evidências, torna-se explícito o caráter exploratório e prejudicial
causado pela mineração em Mariana, liquidando minerais, vidas e recursos naturais em
prol da manutenção do enriquecimento dos países centrais, conforme aponta Marini
(2005).Essa conjuntura em curso situada em Mariana se agrava com o avanço do
ultraneoliberalismo pelo país, e com o aumento da exploração da classe trabalhadora
pelo modo de produção capitalista, endossado pela burguesia nacional entreguista, no
qual os direitos da grande parcela de mulheres e homens são liquidados a cada dia e, por
outro lado,e de forma crescente a riqueza do que é socialmente produzida concentra-se
na mão de poucas pessoas.
Diante das contradições que avançam e são geradas pela dinâmica de
funcionamento do modo de produção capitalista, Mascaro (2018), nos coloca a pensar os
golpes e ofensivas neoliberais não apenas como um golpe de Estado ou um golpe
políticoper se, mas também como um golpe de classe, ou seja, da classe dominante,
contra qualquer possibilidade de emancipação da classe trabalhadora, mantendo-a cada
vez mais em opressão e exploração.

3- A INTENSIFICAÇÃO DAS EXPRESSÕES DA QUESTÃO SOCIAL: RELATO DE


INTERVENÇÃO DO SERVIÇO CONVIVER

Em decorrência do crime ambiental38 de rompimento da barragem de Fundão da


Mineradora Samarco e da destruição causada pela invasão da lama nos territórios e
residências de diversas pessoas em diferentes distritos de Mariana, a Samarco criou uma
Fundação denominada Fundação Renova, que se propõe, segundo as informações de
seu sítio eletrônico, a intervir nas consequências e reparação dos danos. Trata-se de
uma organização “sem fins lucrativos”, resultado de um compromisso jurídico chamado
Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC). Ele define o escopo da atuação
da Fundação Renova, que são os 42 programas que se desdobram nos muitos projetos
que estão sendo implementados nos 670 quilômetros de área impactada ao longo do rio
Doce e afluentes.

38Art.54 da Lei de Crimes Ambientais - Lei 9605/98: Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que
resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a
destruição significativa da flora: I - tornar uma área, urbana ou rural, imprópria para a ocupação humana; II -
causar poluição atmosférica que provoque a retirada, ainda que momentânea, dos habitantes das áreas
afetadas, ou que cause danos diretos à saúde da população; III - causar poluição hídrica que torne
necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade; IV - dificultar ou impedir o
uso público das praias; V - ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos,
óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos.

98
Dentro desse escopo de atuação, o Serviço Conviver inicia suas atividades em
2016, em que a equipe profissional era contratada de forma terceirizada para atuar na
intensificação das expressões da questão social decorrentes do crime ambiental e
genocídio populacional. Em 2019 é feito um processo seletivo subsidiado pela prefeitura
do município de Mariana para contratação de novos trabalhadores do Serviço. Destaca-
se: os trabalhadores passam a ser remunerados pelo fundo público do município,
demonstrando um contrassenso, uma vez que a responsabilidade de custeio e reparação
deveria recair não à sociedade, mas unicamente à empresa.
Pelo exposto em tela, percebemos a natureza do Estado capitalista, em que
coaduna com o modo de produção capitalista numa estrutura que acentua os
antagonismos de classe em prol da acumulação de capital, onde povos, classes e
interesses percam para que outros possam ganhar e contrabalancear suas quedas
econômicas (Mascaro, 2018).
Atualmente o Serviço Conviver é composto por uma equipe multiprofissional
composta por 4 psicólogos, 3 terapeutas ocupacionais, 1 assistente social, 1 médico
psiquiatra e 1 educador social, atua no acolhimento e acompanhamento individual e
coletivo/familiar, como um dispositivo da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) de
Mariana, com base na POLÍTICA NACIONAL DA SAÚDE MENTAL, pela LEI N. 10.216,
de 6 de ABRIL de 2001. A defesa passa pela oferta de serviços através das RAPS em
todo o país, prezando pelos serviços de qualidade e em prol da construção de um novo
modelo de atenção à saúde mental, que promova a viabilização do acesso aos direitos
dos usuários, a favor da luta antimanicomial e da emancipação humana.
A população usuária do Conviver é composta por mais de 600 famílias
cadastradas nos prontuários do serviço, um número elevado se contabilizarmos de
maneira individual. Essa população é composta majoritariamente por mulheres e homens
negras e negros, que tiveram substancial alteração de seus modos de vida e trabalho,
fragilizando os vínculos comunitários. A atuação do Serviço Conviver se dá pelo
acolhimento e escuta dos sofrimentos. Em encaminhamentos mais pragmáticos, tais
como necessidade de benefício assistencial, novamente recai sobre o fundo público do
município, uma vez que a Fundação Renova apenas oferece um cartão alimentação
(frisamos, de forma condicionalizada). Em casos de sofrimento psíquico intenso os
usuários são encaminhados para os Centros de Atenção Psicossocial do município,
recaindo novamente sobre o custeio da sociedade.
As atribuições do Assistente Social e do único estagiário da categoria (realizado
pelo autor) no Serviço estão sendo apreendidas e voltadas para a leitura crítica da

99
realidade e da busca pela viabilização do acesso aos direitos dos usuários, considerando
a realidade social local e as particularidades sócio-históricas da região. Considerando
também a importância do trabalho multiprofissional, o Conviver atua, quando necessário,
em articulação com outros serviços do município - CRAS, INSS, CREAS, Assessoria
Cáritas, Matriciamento nas UBS, Ministério do Trabalho e Fundação Renova/Samarco
(quando há a necessidade de alguns encaminhamentos que são de responsabilidade da
empresa). A articulação com os outros dispositivos ocorre quando determinadas
questões ou demandas são identificadas como objeto de intervenção dos outros serviços,
mantendo as especificidades de cada equipamento em sua atuação, considerando
também que o Conviver atua com o recorte do público e com a particularidade da saúde
mental.
E aqui reside um ponto de reflexão importante, pois os agravos à saúde mental
dessa população específica são notórios, e eles tendem a permanecer, mesmo que sob
outras circunstâncias e condicionantes, quando estes forem para o novo contexto de vida
nos reassentamentos, onde terão que se adaptar a uma nova realidade de onde eles
vivam antes do rompimento/crime.
(R)existe uma luta, a qual foi pauta da II Conferência Municipal de Saúde Mental
de Mariana (2022)na qual foi posta a necessidade de credenciamento do Conviver e de
expansão desse modelo de serviço para outras localidades, dada a recorrência de
crimes/desastres causados na região e que não agem de forma pari passu às
emergências.

4- CONCLUSÕES

Diante do exposto, fica explícito as manifestações da exploração e opressão


decorrentes do modelo de mineração extrativista e da lógica de capitalismo imperialista,
as quais recaem profundamente sobre a classe trabalhadora e sobre a natureza,
afetando os modos de vida e de sociabilidade de diversas pessoas e comunidades,numa
expressão da política ultra neoliberal e genocida em curso.
A atual busca por expansão das atividades mineradoras ao longo do Brasil
evidencia a despreocupação dos governantes com as populações de diversas regiões e
com a degradação do meio ambiente, em prol do lucro. Exemplo disso são as diversas
disputas em torno da atividade mineradora atualmente, com o esforço para dominar
regiões e territórios ricos em minério, como é o caso da Serra do Curral em Belo
Horizonte (MG),que ganhou notoriedade midiática nos últimos meses.

100
Sob esse cenário, não nos resta outra alternativa a não ser lutar por uma nova
forma de sociabilidade diferente da regida pelo modo de produção capitalista, em que o
trabalho explora, adoece e mata. Urge uma articulação coletiva da classe trabalhadora
em uma perspectiva anticapitalista, que também significa antirracista,feminista e
ecosocialista, para uma verdadeira emancipação humana. Ou, nós que somos maioria,
seremos aniquilados.

“(...) Tú no puedes comprar las nubes


Tú no puedes comprar los colores
Tú no puedes comprar mi alegría
Tú no puedes comprar mis dolores
(Vamos caminando) Aquí estamos de pie
¡Qué viva la América!

Latinoamérica, Calle 13

5- REFERÊNCIAS

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leve a carga”. Scielo. 2021.

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MÉSZAROS, Istvan. O desafio e o Fardo do Tempo Histórico.São Paulo: Boitempo, 2007.

102
VII SEMINÁRIO INTERNACIONAL
Lutas Sociais, Ofensiva Ultraneoliberal e Serviço Social:
resistências e articulações internacionais

EIXO TEMÁTICO 2
As expressões da exploração/opressão de
classes no contexto da ofensiva
ultraneoliberal do capital
RACISMO ESTRUTURAL E EXPLORAÇÃO: da escravidão ao (des)privilégio da
servidão capitalista

Patricia da Silva Coutinho39

RESUMO: Este estudo analisa o racismo estrutural frente a


crise capitalista, ao mercado de trabalho e a exploração da
força de trabalho negra, em que são traçados elementos
analíticos sobre a relação da desigualdade racial e do
mercado de trabalho frente ao exponente desemprego.A
exploração da “força de trabalho preta” é potencializada pelo
desemprego crônico e estrutural, bem como pelo
alargamento da superpopulação relativa, compreendendo o
racismo como potente instrumento de extração de mais-
valia.Nesta análise são traçados elementos iniciais a
respeito da realidade brasileira do mercado de trabalho
racista, em que serão ilustrados dados analíticos do tema.

Palavras-chave:Racismo; Desemprego; Força de trabalho;


Exploração.

ABSTRACT: This study analyzes structural racism in the


face of the capitalist crisis, the labor market and the
exploitation of the black workforce, in which analytical
elements are drawn on the relationship between racial
inequality and the labor market in the face of unemployment.
The exploitation of the “black workforce” is potentiated by
chronic and structural unemployment, as well as by the
expansion of relative overpopulation, understanding racism
as a powerful instrument for extracting surplus value. In this
analysis, initial elements regarding the Brazilian reality of the
racist labor market are traced, in which analytical data on the
subject will be illustrated.

Keywords: Racism; Unemployment; Workforce; Exploration.

1- INTRODUÇÃO

“A carne mais barata do mercado é a carne negra...


Que vai de graça pro presídio, e pára debaixo do plástico
E vai de graça pro sub-emprego e pros hospitais psiquiátricos”. (Elza Soares)

De acordo com Martins (2012) apesar das contradições capitalistas, da crise e das
transformações gestadas no mundo do trabalho atingirem a totalidade dos trabalhadores

39Assistentesocial na Secretaria Especial de Direitos Humanos da Prefeitura de Juiz de Fora. Doutoranda em


Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: patriciacoutinhoss@gmail.com - Eixo: As
expressões da exploração/opressão de classes no contexto da ofensiva ultraneoliberal do capital

104
e trabalhadoras, são observadas “novas estratégias de produção e subordinação do
trabalho ao capital” que não afetam igualmente brancos e negros. Deste modo, faz-se
necessário destacar a “condição de desigualdade do negro no contexto das novas
estratégias de produção e subordinação do trabalho ao capital”, e assim apresentar
indicadores que demonstram as desigualdades raciais, ou seja,a desigualdade
vivenciada pelo trabalhador negro no mercado de trabalho brasileiro.Neste cenário
contemporâneo é essencial compreender as bases teóricas que destacam a existência
de uma superpopulação relativa de trabalhadores, o que é crucial para refletir acerca do
desenvolvimento socioeconômico do capitalismo brasileiro e da desigualdade racial,
frente ao desemprego de longa duração, uma vez que se observa uma tendência de
ampliação anual do tempo médio de procura por trabalho, e a inserção dos trabalhadores
na informalidade, e em subempregos com condições precárias de trabalho40.

De acordo com Almeida (2014) a pobreza e a indigência no Brasil não agem


democraticamente, pois não atingem igualmente os distintos grupos raciais pertencentes
ao “contingente de 53 milhões de pobres e 22 milhões de indigentes”. Para a autora, em
1999 os negros representavam 45% da população brasileira, mas correspondiam a 64%
da população pobre e 69% da população indigente. Já os brancos, representavam 54%
da população total brasileira, mas somente 36% dos pobres e 31% dos indigentes. O
Ministério do Trabalho e Emprego em 2016afirmava que os negros ocupavam 45,2% dos
empregos que tinham como pré-requisito o ensino fundamental, 44,7% dos postos que
requeriam ensino médio, e apenas 27% dos cargos que pediam ensino superior. Em
algumas regiões brasileiras os negros recebiam 64% apenas dos vencimentos de
pessoas brancas em mesmos postos de trabalho. A pesquisa mostrou também algumas
das profissões e suas especificações quanto a raça/cor, sendo 92% dos engenheiros de
computação brancos, 90% dos engenheiros mecânico automotivo brancos, são brancos
também 89% dos professores de medicina pesquisados, 78% dos trabalhadores do

40A Organização Internacional do Trabalho (OIT) lançou um estudo recente intitulado "Perspectivas sociais e
do emprego no mundo: Tendências de 2017" (2016) estimando que 201,1 milhões de pessoas estariam
desempregadas no mundo em 2017, e que de cada três novos desempregados no mundo, um seria
brasileiro. Prevendo um total de 3,4 milhões de novos desempregados, a OIT afirmava que a taxa mundial de
desemprego em 2017 seria de 5,8%, contra 5,7% de 2016. No Brasil esta taxa alcançou 12,7%, sendo o
maior índice registrado desde 2003. A OIT relatou ainda em sua pesquisa a preocupação com a
informalidade no mercado de trabalho, e indicou que em 2017 as “formas vulneráveis de trabalho” (como
trabalhadores familiares não remunerados, baixos salários, direitos restritos e trabalhadores por conta
própria) representariam mais de 42% da ocupação total, ou seja, 1,4 bilhões de pessoas em todo o mundo
em 2017. Conforme foi explicitado, o avanço da precarização das condições de trabalho é intensamente
crescente nas últimas décadas, subjugando trabalhadores e trabalhadoras à margem do regime de
assalariamento, que com a crise do valor, passam a não servir para a exploração capitalista, não sendo nem
mesmo cabível enquadrá-las no conceito de “exército industrial de reserva” da superpopulação relativa do
capital.

105
campo (cacau) e 74% dos trabalhadores do campo (cana) são negros, e ainda 74% dos
sinaleiros (ponta-rolante) também são negros. A Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD) do quarto trimestre de 2017 apontou que o salário médio de um
brasileiro branco é de 2.697,00reais, de 1.606,00 reais de um pardo e de 1.570,00 reais
de uma pessoa negra.

Uma pesquisa do Instituto Ethos realizada em 2016 inferiu que apenas 6,3% das
vagas de gerência são ocupadas por negros, e que 4,7% do quadro executivo são
compostos também por homens negros, já para as mulheres negras a situação é ainda
pior, pois apenas 1,6% das posições de gerência são ocupadas por elas, e 0,4% do
executivo é composto por mulheres negras.O desemprego, através da perda de
centralidade no processo produtivo, faz com que essa força de trabalho viva procure
ocupações de naturezas diversas e de (sub)contratos, que em países de capitalismo
periférico atingem perfis específicos da diversidade categórica da força de trabalho: os
pretos e pretas, periféricos e favelados das cidades. Historicamente e marcadamente
este perfil da força de trabalho, expulso da valorização de valor, formam “as classes
perigosas” que sentem com violência os mecanismos punitivos através do
(super)encarceramento em massa da força de trabalho preta e pobre, da militarização
das cidades, bem como do generalizado controle territorial, levando ao extermínio em
massa desta força de trabalho excluída e sobrante.

2- A “QUESTÃO SOCIAL”, O DESEMPREGO E O RACISMO

O conjunto de desdobramentos do capitalismo atual constitui o novo paradigma no


qual a força de trabalho está inserida, seja através da pequena parcela de trabalhadores
componentes do regime do trabalho assalariado formal, da força de trabalho ocupada no
setor de serviços, da terceirização, da informalidade e, sobretudo, daquela que não se
encaixa em nenhuma destas esferas econômicas e sociais. Deste modo, além de ser
assolada pelo desemprego a massa de trabalhadores e trabalhadoras, em sua grande
maioria negros e excluídos da possibilidade de subsistência, passam a ser público de
políticas assistenciais, bem como do controle “disciplinador” do Estado, que através de
mecanismos punitivos são marginalizados, presos e mortos. No Brasil vivemos um
processo de genocídio da população preta nas cidades, camuflado pelo racismo

106
estrutural41.Almeida (2014) afirma a existência de um processo de “desumanização da
população negra”, em que este genocídio é situado como um “princípio tácito do
capitalismo”, expressão da violência racial institucionalizada no Brasil. Deste modo,
alguns indicadores sociorraciais salientam a “desigualdade racial na Diáspora Negra42”, e
são percebidos frente a experiência de vivência da população negra e dos “múltiplos e
contraditórios processos antinegros”. Apesar das ideologias e práticas discriminatórias do
Estado, observa-se “as possibilidades de múltiplas resistências e lutas pela
materialização e emancipação humana”.O Atlas da violência (IPEA, 2019) divulga
constantemente relatórios acerca dos dados da violência no Brasil e descreve o horror,
em que 75,5% das vítimas brasileiras de homicídio eram negras43.Os dados revelam
ainda que no Brasil, se considerarmos as “subpopulações” por raça/cor, a cada indivíduo
não negro assassinado, proporcionalmente, 2,7 negros são mortos, o que significa que
não apenas a posição econômica importa, mas a cor da pele é que se revela como um
forte fator de letalidade.

De acordo com Junior e Lima (2013) no “Boletim de Análise Político-Institucional”,


da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest)
do IPEA, que buscou analisar os aspectos estruturais de algumas das instituições
políticas brasileiras e de suas formas de atuação, a segurança pública e racismo
institucional apresentam relações intrínsecas, uma vez que “há grande desigualdade de
acesso à segurança entre brancos e negros”, e forte racismo presente na atuação
policial, ao se expressar por normas, práticas e comportamentos discriminatórios
motivados por preconceitos ou estereótipos racistas.

41Almeida (2018) sistematiza três concepções de racismo que perpassam o debate da “questão racial”: o
individualista, o institucional e o estrutural. O autor afirma que o racismo não é apenas uma violência direta,
ou ofensa direta, na forma de discriminação, entretanto, para entender o racismo como um fenômeno
conjuntural é de fato entendê-lo como uma forma de racionalidade, um modo de normalização e
compreensão das relações, ele constitui não apenas as relações conscientes, mas inconscientes. Ele é um
modo de estrutura social, um modo normal de vida cotidiana, para além de uma patologia, compreender o
racismo de modo estrutural para o autor, se refere a um ethos social, visto de modo econômico, político e
subjetivo. Apoiados nestes pontos o racismo estrutural é o constrangimento de indivíduos negros em seu
cotidiano.
42 De acordo com a autora, a diáspora é um processo amplo e político de genocídio e violência, provocado no

século XV, que conformou formações sociais especificas na América e Oceania, a partir do deslocamento de
africanos e indígenas nestes territórios.
43Para Cerqueira e Coelho (2017) há uma diferença de letalidade dos afrodescendentes que poderia ser

explicada para além da “questão social”, e assim por três mecanismos associados ao racismo, “sendo dois
indiretos – que passam pelas políticas e práticas educacionais e pela discriminação no mercado de trabalho,
e pelo desemprego – e outro direto, o que é denominado como ‘racismo que mata’”. Para mais em:
CERQUEIRA, D; COELHO, D. S. C. Democracia racial e homicídios de jovens negros a cidade partida. IPEA,
2017. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2267.pdf

107
O Brasil, que foi o último país latino-americano a abolir a escravidão(apenas em
1888) deixou a míngua um milhão e meio de pessoas. De fato, a abolição da escravatura
deve ser vista como estratégia político-econômica, como um “grande acordo” que inicia
um processo de mudança do modo de produção, e que por sua ver era uma exigência
econômica externa e interna. Os negros passam a ocupar o “exército dos desocupados”,
preenchendo o lugar relegado pelos não discriminados racialmente(MARTINS, 2012).O
racismo estrutural, manifestado por práticas objetivas e subjetivas, apresenta suas raízes
demarcadas no processo histórico de escravidão que promove o preconceito e a
segregação racial para além apenas do mercado de trabalho.

Para Almeida (2018) o racismo é estrutural e estruturante, racional e socialmente


naturalizado. A luta pela transformação social deve-se então passar pelo racismo, o
compreendo como uma forma de exploração econômica, política e social. Assim o
estudioso afirma que o conceito de racismo institucional foi de um enorme avanço (que
amplia a ação individual) no que se refere as relações raciais, pois frisa a dimensão do
poder como elemento constitutivo das relações raciais, não apenas de um indivíduo de
uma raça sobre outra, mas de um grupo (sob controle do aparato institucional) sobre
outro.

O racismo se realiza por vezes de modo velado, através de mecanismos e


estratégias institucionais, e é um modo particular de discriminação44,em que, pela cor de
sua pele (ouraça) o indivíduo é alvo de um “tratamento diferenciado” ou de segregação,
em que são afastadas “oportunidades” sociais e/ou econômicas, desvalorizando aspectos
até mesmo culturais. O racismo deve ser compreendido como um dos determinantes “da
não inserção dos(das) negros(as) no mercado de trabalho formal, como exemplificamos
na introdução deste estudo. Por sua vez, tal determinação deixa essa parcela de
trabalhadores(as) à margem da ‘cidadania regulada’, impedindo-a de ter acesso à
proteção social e aos processos organizativos a que se vincularam as respostas do
Estado às expressões da ‘questão social’” (MARTINS, 2014, p.115).A questão social por
sua vez deve ser apreendida como resultado da lei geral de acumulação capitalista e de
suas relações de produção, e está elementarmente determinada pelo traço próprio e

44 Eurico (2013) torna mais inteligível o conceito de discriminação racial ao citar que “as desigualdades são
entendidas como discriminação racial quando se encontram e se comprovam mecanismos causais que
operam na esfera individual e social e que possam ser retraçados ou reduzidos à ideia de raça. Assim,
grupos considerados superiores obtêm privilégios em relação aos outros grupos, considerados inferiores. A
discriminação racial materializa o preconceito racial que é a manifestação comportamental baseada no juízo
de valor, socialmente construído e destituído de base objetiva (EURICO, 2013, p.294). Disponível em:
EURICO, M. C. A percepção do assistente social acerca do racismo institucional. Revista Serv. Soc. Soc.,
São Paulo, n. 114, p. 290-310 abr./jun, 2013.

108
peculiar da relação entre capital/trabalho – a exploração, sendo exclusivamente ligada a
sociabilidade erguida sob o comando do capital.

De acordo com Martins (2014) “ao determinar o ‘lugar’ do(da) negro(a) na


informalidade, no desemprego e nas relações de trabalho precárias, o racismo
limitou/impediu os(as) trabalhadores(as) negros(as) de participarem da constituição
política da ‘questão social’” (MARTINS, 2014, p.113), uma vez que estas determinações
limitaram/impediram os(as) negros(as)de construir uma trajetória de organização e de
luta, diante das suas condições de trabalho. Para Almeida (2018) o racismo é
responsável por normalizar a “superexploração do trabalho, que consiste no pagamento
de remuneração abaixo do valor necessário para a reposição da força de trabalho e
maior exploração física do trabalhador” (ALMEIDA, 2018, p.135). O autor situa a
superexploração em países de capitalismo periféricos, que em geral foram instaurados
sob a égide do colonialismo, o que demarca a presença do racismo no processo de
expansão colonial e no violento processo de acumulação primitiva do capital. No entanto,
o estudioso guia nosso olhar à herança da escravidão para além do prisma do racismo
“decorrente das marcas deixadas pela escravidão e pelo colonialismo”, ou seja, como
“resquício da escravidão” (ALMEIDA, 2018, p.143), encarando as formas
contemporâneas do racismo como “produtos do capitalismo avançado e da racionalidade
moderna”, ou como uma “excelente tecnologia de controle social”, em que “para se
renovar o capitalismo precisa, muitas vezes, renovar o racismo”.“O racismo não é um
resto da escravidão (...). A escravidão e o racismo são elementos constitutivos tanto da
modernidade quanto do capitalismo, de tal modo que não há de se falar de um sem o
outro”(ALMEIDA, 2018, p.144).

Para Martins (2012) apesar da crise e das transformações operadas no mundo do


trabalho atingirem de modo geral a toda classe trabalhadora “as novas estratégias de
produção e subordinação do trabalho ao capital” afetam diferentemente brancos e
negros, devendo então reconhecermos “a condição de desigualdade do negro no
contexto das novas estratégias de produção e subordinação do trabalho ao capital”
através dos indicadores das desigualdades raciais, é notável a desigualdade do
trabalhador e trabalhadora negra no mercado de trabalho brasileiro. “Independe de
requisitos como qualificação e escolarização da força de trabalho, ainda assim
observa‑se que o desemprego, as ocupações precárias e informais têm afetado mais os
trabalhadores negros do que os brancos (MARTINS, 2012, p. 451).

109
A renomada estudiosa afirma ainda que a crise do capitalismo e as mudanças
ocorridas na sociedade do trabalho apresentam elementos históricos particulares na
formação social do Brasil, em que a discriminação racial deve ser compreendida “como
uma marca impressa na constituição do capitalismo brasileiro” (MARTINS, 2012, p.451),
devendo sempre estar ligada às determinações socioeconômicas da lógica do capital.
Resgatando os elementos da gênese do capitalismo brasileiro, pautado no prolongado
período de escravismo, é notável que frente a “libertação” da força de trabalho negra,
sem políticas e meios adequados de subsistência e de reparação, esta apresentou e
apresenta ainda hoje inserções nas ocupações precárias e informais.

Neste desenvolvimento conjuntural de constituição do capitalismo, o


assalariamento no Brasil retrata a exploração como condição fundamental da lógica
capitalista (assim como a servidão representou o feudalismo, o colonialismo e o início do
processo mercantil), espelhando “a discriminação racial como insígnia do modo de
produção baseado no trabalho livre” (MARTINS, 2012, p.457). Assim ao destituir a força
de trabalho negro e valorizar o trabalhador branco (conforme apontam os estudos de
Florestan Fernandes, ao se referir ao “imigrante europeu”) a discriminação racial é
impressa na lógica capitalista, que de acordo com a autoras e arrasta nos períodos de
industrialização e urbanização, trazendo à tona o processo de pauperização sofrido pelas
pessoas escravizadas e seus descendentes. “O preconceito racial no Brasil acabou
definindo “o lugar” do negro no mercado de trabalho, ou seja, o negro passa a ser visto
preponderantemente na desocupação, na informalidade e nas ocupações com precárias
relações de trabalho” (MARTINS, 2012, p.456).

De acordo com Martins (2014) no período de transição capitalista no Brasil este


ideal de inferioridade do(da) negro(a)e de sua incompatibilidade para assumir o trabalho
assalariado foi expressa quantitativamente, pois até 1920 em São Paulo 52% dos
trabalhadores da indústria continuavam sendo estrangeiros, e o restante pelos seus
familiares descendentes. A autora relata que na década de 1940, quando se consolidam
as relações de trabalho sob bases corporativistas, os negros e “mulatos” formavam 40%
dos inseridos no setor primário da economia, compondo 46% dos empregados, 41% dos
autônomos e 22% dos empregadores (MARTINS, 2014, p.120).

Em um recente estudo publicado pelo IPEA foram pontuadas as questões de


gênero e raciais que perpassam o mercado de trabalho, concluindo que são os jovens e
as mulheres negras as mais afetados pelo desemprego. A pesquisa explicitou que em

110
2018 a vulnerabilidade das mulheres negras ao desemprego foi 50% maior. O “Estudo do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que a cada 1 ponto percentual a
mais na taxa de desemprego, as mulheres negras sofrem, em média, aumento de 1,5
ponto percentual. Para as mulheres brancas, o reflexo é de 1,3 p.p”. (IPEA, 2018, s/p)

Frente a este complexo quadro aqui apresentado nos interrogamos sobre os


possíveis caminhos a trilhar, e nos voltamos ao debate acerca das medidas de reparação
histórica. Para além das importantes políticas de ações afirmativas, compreendemos que
é necessária a efetivação de outros princípios do Estatuto da Igualdade Racial,
promulgado em 2010, que prevê uma série de medidas que deveriam ser adotadas
nacionalmente. Destas medidas destacamos as ações para garantia do acesso a
pessoas negras ao mercado de trabalho, uma vez que este estudo buscou salientar as
diferenças entre o desemprego que afeta aos pretos e pretas e aos brancos e brancas.

3- CONCLUSÃO

Inicialmente expressamos a importância do debate aqui travado, pois não há


como pensar a luta política, sem sujeitos, historicamente determinados. Não existe luta
de classes com sujeito abstratos. Estes sujeitos são constituídos historicamente, e se
transfiguram-se por marcadores raciais, de gênero, da sexualidade, marcadores
interseccionais. De acordo com Almeida (2014, p. 152) “A luta de classes não pode
prescindir das lutas contra as opressões, que lhes dão vida”. Esta importante autora nos
alerta para a compreensão que uma análise da totalidade social requer buscar
reconhecer os indivíduos sociais, que estão imbricados na vida social. Assim, a
emancipação humana dos indivíduos sociais negros e trabalhadores, passa,
necessariamente pela negação dos direitos humanos se a realização é requerida
exclusivamente na esfera política. Para Marx, a emancipação humana ultrapassa a
emancipação política. (ALMEIDA, 2017, p.41)

Neste sentido, expressar as subjetividades e particularidades da classe


trabalhadora é possibilitar rasgar mitos dentro do marxismo e na sociedade capitalista,
como a falaciosa democracia racial, ainda defendida por alguns. Compreendemos que
enquanto o marxismo não olhar para a questão racial, não será possível uma análise
precisa da realidade das diversas formações sociohistóricas, o que de fato é
imprescindível para traçar estratégias revolucionárias de ação. O racismo não pode ser
encarado como um problema ético, ou como uma categoria jurídica, ou ainda como um

111
dado psicológico, pois o racismo se constitui como uma relação social central no
capitalismo contemporâneo, portanto, dotado de materialidade e historicidade (ALMEIDA,
2018). O marxismo, enquanto método analítico, ou seja, enquanto interpretação da
realidade social, econômica e política Brasileira, foi tomado pela branquitude, como um
privilégio branco (idem), e enquanto não se retomar este debate será difícil traçar
estratégias para além da ortodoxia, do colonialismo e do racismo científico.

4- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, M. S. Diversidade humana e racismo: notas para um debate radical no serviço


social. Revista Argumentum, Vitória, v. 9, n. 1, p. 32-45, jan./abr, 2017.

____. Desumanização da população negra: genocídio como princípio tácito do


capitalismo. Revista Em Pauta, nº 34, v. 12. Rio de Janeiro, 2014.

ALMEIDA, S. O que racismo estrutural. Ed. Letramento, Belo Horizonte, 2018.

IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da violência, 2019. Disponível em:
http://www.forumseguranca.org.br/wp-
content/uploads/2019/06/Atlas_2019_infografico_FINAL.pdf

____. Jovens e mulheres negras são mais afetados pelo desemprego, 2018. Disponível
em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34371

JUNIOR, A. O; LIMA, V. C. A. Segurança Pública e Racismo Institucional. Boletim de


Análise Político-Institucional. Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições
e da Democracia (Diest). IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da
violência, 2013. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/artigo/19/seguranca-
publica-e-racismo-institucional-pg.-21

MARTINS, T. C. S. Determinações do racismo no mercado de trabalho: implicações na


“questão social” brasileira. In: Temporalis. Brasília (DF), ano 14, n. 28, p. 113-132,
jul./dez. 2014. Disponível em:
http://periodicos.ufes.br/temporalis/article/download/7077/6148.

_____. O negro no contexto das novas estratégias do capital: desemprego, precarização


e informalidade, Revista Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 111, p. 450-467, jul./set. 2012.

112
A PAZ ESTÁ PROIBIDA: construtos da violência racial e repressão às “classes
perigosas”(1970).

Rafael Matheus de Jesus da Silva45


Dagoberto José Fonseca46 47

Resumo: As discussões centradas nesse texto objetivam


discutir brevemente o processo de mobilização da polícia
militar no contexto do regime militar (1970) sustentada pelo
ideário de progresso e desenvolvimento. O que se viu foi
uma política liberal excludente de demandas sociais, que de
modo geral produziu a ‘militarização da vida social’,
consequentemente a perda de direitos e garantias sociais
obliteradas por uma política repressiva de criminalização
das camadas sociais, violentadas por uma escalada de ódio
pelas forças de segurança pública do país, que de modo
hostil tem produzido a mortalidade maciça da população
negra nas periferias dos grandes centros urbanos.

Palavras chaves: Ódio Racial; Violência policial; Ditadura


Militar; Segurança-pública; Barbárie.

Abstract: The discussions centered on this text aim to


discuss the process of mobilization of the military police in
the context of the military regime (1970) supported by the
ideals of progress and development. What was seen was a
liberal policy that excluded social demands that generally
produced the 'militarization of social life', which is evident in
the loss of rights and social guarantees obliterated by a
repressive policy of criminalization of social strata, violated
by an escalation of hatred from public security organs, which
in a hostile way has produced the massive mortality of the
black population on the outskirts of large urban centers.

Keywords: Racial Hatred; Police Violence; Military


Dictatorship; Public security; Barbarism.

45 Rafael Matheus de Jesus da Silva; Graduado em História pela Universidade do Estado de Minas Gerais
(UEMG); Mestrando em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista “Mesquita Filho” (UNESP) -
campus Franca/SP-Brasil; Bolsista vinculado a CAPES-DS pelo mesmo programa e Integrante do grupo de
Pesquisa Núcleo Negro da UNESP (NUPE), E-mail: rafaelmjsilva@hotmail.com
46Dagoberto José Fonseca; Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

(PUC-SP, São Paulo, SP, Brasil), pós-doutor em Educação pela Universidade de Campinas (Unicamp,
Campinas, SP, Brasil), Professor (orientador) do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Serviço
Social da Universidade Estadual Paulista (UNESP, São Paulo, SP, Brasil), E-mail:
dagobertojose@gmail.com.
47Texto submetido para o eixo:Ofensiva ultraneoliberal do capital e lutas sociais - Memória de lutas e

resistências.

113
1- INTRODUÇÃO

As discussões gestadas na contemporaneidade a despeito do racismo estrutural


têm evidenciado modelos de organização social no país, adotados e construídos
historicamente sobre códigos e instrumentos raciais pautados na crença da superioridade
das raças.Com efeito, esse processo cristalizou percepções legitimadas no imaginário
social e reforçadas através de práticas e normas de conduta, que instituiu na sociedade
os ‘lugares sociais’ ocupados pela população negra,que tem minado na degradação física
e moral instituídas a esse grupo.Em linhas gerais, essa reflexão se relaciona com as
afirmações de Almeida (2018) ao considerar os efeitos do racismo no processo de divisão
espacial de raças, localizados em bairros, guetos e periferias, constituídos a partir de
uma lógica de reprodução racial que cria as condições sociais desiguais na organização
política, material e jurídica da sociedade.
Não por acaso, a experiência do regime militar não escapa a esse mecanismo de
controle, ao produzir projeções de poderes cujas feições garantiram o controle sistêmico
na organização social da população negra. A repressão policial recebeu suporte tanto
pela via política como de esferas jurídicas promovidas a fim de suprimir direitos civis, uma
vez, ancorados por mecanismos autoritários que de modo geral,dirimiram a censura;
vigilância; exílio; cassação; perseguição e desarticulação de associações negras, como
práticas recorrentes de dominação. Não o bastante, a falta de estímulos do Estado na
promoção do debate racial, maximizou teorias sociais que enfocavam a boa convivência
entre as raças.
Destarte, herdamos da ditadura militar o pensamento autoritário e a violência
policial desmedida, em específico aos coletivos e espaços que integram a população
negra. Além, de violações físicas, verbais e simbólicas que perpassam a ordem do dia e
mitigam na memória coletiva desses grupos, temos como consequência um panorama
histórico de desigualdade, impressões essas que ainda ressoam no constructo social
através de concepções que imperam ordem, controle e progresso.
Nesse contexto, ainda nos deparamos com uma lógica dialética do racismo na
sociedade brasileira, sobre a qual se muda as formas, porém, mantém-se os modelos de
poderes sobre esses grupos. Assim sendo, a operacionalização do regime militar
brasileiro na década de 70 não deixa de ser observada,guardada as proporções da
tendência do liberalismo econômico a partir da lógica do capital que se nutre da
acumulação ao criar demandas de orientação e incentivo a indústria do armamento, e
que como consequência tem produzido a violência letal e o encarceramento em massa,

114
reforçadas por um Estado punitivo, que também pode ser visto indispensavelmente como
um “Estado penal” (NETTO, 2009).
Desse modo,as discussões das relações raciais no Brasil no contexto da ditadura
exposto no presente trabalho, traz à baila uma das práticas cotidianas ao conceito que
Nascimento (2016) descreve como genocídio do negro brasileiro, entre as quais se
configura por mecanismos de controle sistematizados que inibem liberdades a partir de
estratégias de extermínios a um grupo racializado48.

2- Estado, segurança e violência: faces da dominação racial as “classes perigosas”

Os anos de 1970 inauguram um novo direcionamento ao capitalismo, que de


modo geral vinha sofrendo crises no modelo produtivo. Mergulhada em um período de
recessão econômica, social e política, o papel do Estado no que compete as demandas
sociais se tornam ineficientes, tanto pela falta de investimentos, quanto pelo alto índice
de desemprego em massa, era a crise do Estado do bem-Estar Social49na iminência de
um colapso mundial.Esse cenário contribuiu para o que Netto (2013), argumenta ser um
“capitalismo tardio”50, fazendo alusão ao estágio industrial do capitalismo que a essa
altura, necessitava de um novo modelo produtivo.
Visando a manutenção de sociedades do capital como influência do mercado
financeiro, a renovação incide a partir de mudanças tanto nas esferas do trabalho como
nas relações sociais, culturais - vista pelo consumo em massa – e econômicas. Essa
última, se torna o principal componente de pressão ao Estado que a rigor operava o
fundo público na contensão do desemprego a partir de uma política assistencial, porém,
ínfima na resolução da crise (GURGEL, 2003). Diante disso, a efetivação do papel do
Estado assumidamente burguês cria as novas condições sociais a serem
desregulamentadas. Esse período iniciado a partir do capitalismo central lança as novas
diretrizes em escala mundial e pulveriza a flexibilização da vida social.

48Termo que ganhou amplitude a partir dos estudos de Arthur de Gobineau em “Ensaio Sobre a Desigualdade
das Raças Humanas” (1853). Define a raça como conceito biológica para a condição social do indivíduo. O
que segundo o mesmo explica a desigualdade. Esse argumento carrega um significado pejorativo, que de
modo geral, atesta os indivíduos negros a um aspecto de inferioridade. Nesse sentido, utilizamos o termo
aqui como menção as associações entre negritude e marginalidade, bem como, de outros aspectos que
denotam estereótipos.
49 O Estado de bem-estar social ou denominado como Estado Assistencial defendido por alguns intelectuais,

vem da expressão em inglês Welfare State define-se pela intervenção do Estado na vida social e econômica
da sociedade, seja na distribuição de rendas ou na prestação de serviços como saúde e educação.
50 Cf. Ernst Mandel, O capitalismo tardio, ed. cit., cap. 4 e ainda A crise do capital. Os fatos e sua

interpretação marxista. S. Paulo/Campinas: Ensaio/UNICAMP, 1990.

115
Nesse sentido, as concepções sobre direitos e garantias sociais antes vista no
Estado do Bem-Estar e mistura com as demandas do mercado, que por sinal as torna
obsoleto ao ponto de reduzir, terceirizar e precarizar como uma forma de extrair um valor
acumulativo.Essa nova tendência diminui a ação do Estado em condições mínimas em
prol de um discurso desenvolvimentista macroeconômico e abre espaço para as
privatizações.O que por sua vez,fragilizou áreas como potenciais alvos de interesse
especulativo do mercado - quais sejam; saúde, educação e segurança.
Essa última, no caso do Brasil que atravessava um período ditatorial, recebe
investimento massivo na militarização policial,afim de garantir a segurança nacional a
quaisquer que sejam o risco a soberania do Estado. O modelo desenvolvimentista de
cunho liberal serviu como uma luva para a ditadura militar, que como se sabe
amplamente discutido através de uma extensa bibliografia51teve apoio da classe média e
da burguesia entre as quais se beneficiavam da supervalorização do mercado privado,
em paralelo com o policiamento ostensivo e altamente lucrativo. Era lançado o
casamento incestuoso entre Estado, segurança e capitalismo privado, como efeito,
produziu a “militarização da vida social” (NETTO, 2013). Ainda segundo o mesmo autor:
a substituição do “Estado de bem-estar social” pelo “Estado penal”, a repressão
estatal se generaliza sobre as “classes perigosas”, ao mesmo tempo em que
avulta a utilização das “empresas de segurança” e de “vigilância” privadas –
assim como a produção industrial, de alta tecnologia, vinculada a estes “novos
negócios” (e não se esqueça do processo de privatização dos estabelecimentos
penais). (NETTO, 2013. p. 27)

Logo, a segurança pública no modelo desenvolvimentista era o principal polo de


maior envergadura do regime. Nesse sentido, a crítica ao Estado assistencialista antes,
visto como um modelo saturado e estacionário cede lugar a um vertiginoso descrédito
das políticas públicas amplamente atacadas por práticas autoritárias e burguesas do
país. São os sinais do que Schmidt (2018) define, como um período de “recrudescimento
da barbárie”, logo, a violência aos grupos minoritários passa a ser institucionalizada.Em
síntese, esse processo acende no Brasil como uma cultura punitiva em vias
institucionais, tanto pelo aparato policial – que inicialmente cumpria apenas o papel de
“fiscalizar, coordenar, instruir e normatizar” (SCHLITTLER, 2016, p. 199)– como pela via
judicial ao intensificar a criminalização seja pela condição racial, como pela classe social.
Lima (2018) acrescenta que esse modelo de subjugação racial no contexto do
regime militar, está imbricado na definição que se tinha da sociedade marginalizada como
“classes perigosas”, circunstância que diametralmente perpassa a dimensão da pobreza

51Sobre a participação da burguesia no regime da ditadura militar, importante leitura de CAMPOS, Pedro H.
P. Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988. (2014).

116
e consequentemente a cor da pele. Para o autor, de acordo com as análises de Sidney
Chalhoub o conceito sobre “classes perigosas” percorreu as discussões de
parlamentares brasileiros no período inicial da república, preocupados com o processo de
pós-abolição e dos espaços a serem ocupados pela população negra, perfizeram a
compreensão social acerca da vadiagem, associado aos negros encarados como
arruaceiros, melindrosos e de má índole.

Nesse sentido, argumenta que:


A síntese da formulação dos políticos brasileiros é apresentada por Chalhoub da
seguinte maneira: “os pobres carregam vícios, os vícios produzem os malfeitores,
os malfeitores são perigosos à sociedade; juntando os extremos da cadeia,
temos a noção de que os pobres são, por definição, perigosos (LIMA, 2018 apud
CHALHOUB, 1996).

A repressão policial na década de 1970, encapa essas motivações afim de garantir a


ordem e o controle social, sobretudo, de grupos e movimentos sociais.
Consequentemente para um contexto ditatorial de subestabelecimento de normas e
condutas, qualquer desvio ou crítica ao regime representaria a figura do “opositor político”
(LIMA, 2018, p. 99).Contudo, não se tratava apenas de motivações políticas, a violência
policial nas periferias, em especial aos bailes soul na década de 70 no Rio de Janeiro,
era acompanhadas de sucessivas abordagens, revista, solicitação de documentos de
identidade e inspeção policial, de modo ostensivo e corriqueiramente aos jovens negros
frequentadores dessas festas.
Como se vê:
[...] à especificidade da violência ditatorial contra os bailes e contra o movimento
negro politicamente organizado, o que se pretende aqui é analisar a experiência
dos jovens negros no período a partir da percepção de que historicamente essa
parcela da sociedade se constitui como alvo prioritário da violência estatal.
(LIMA, 2018, p. 99)

As agressões físicas e verbais nas batidas policias na década de 1970


aconteciam mesmo com a apresentação de documento pessoal, motivações que se
enquadravam no controle social sobre as “classes perigosas” mencionadas a cima,
bastava o enunciado do policial que continha o aviso de que, a depender da vontade do
agente, aquela dura poderia acabar em uma prisão por vadiagem (PEDRETTI, 2018).
Segundo o autor, há um vácuo do Estado nas discussões sobre racismo no período
militar, que tensionou para o fortalecimento ideológico do período. Sobre isso, diz:
a existência, sim, de uma forma específica de violência da ditadura contra a
população negra. Como a ideia de “democracia racial” era um importante pilar
ideológico do regime, deve-se compreender que a figura do “opositor político”
da ditadura acomodava também os críticos da “democracia racial” e os que
acusavam e combatiam o racismo. No entanto, a identificação destes aspectos
não tem por objetivo chegar à conclusão de que jovens negros frequentadores

117
dos bailes teriam sido “perseguidos políticos” da ditadura (PEDRETTI, 2018, p.
97).

Esse processo de subjugação, controle e desvalorização da população negra fica


evidente através do encarceramento em massa, do afastamento das favelas em
detrimento dos grandes centros urbanos, além da repressão violenta da polícia nas
comunidades periféricas como aparato de controle, pode ser vista pela ação dos agentes
do “DOPS, CIE e CISA frequentaram e monitoraram os bailes, produzindo relatórios
sobre equipes e pessoas” (PEDRETTI, 2018, p. 98). Diante dessa questão, Teles (2020)
considera que a violência policial se amplia ao final de 1969, à medida que a polícia
militar assume novas posições de controle na administração das instituições, bem como,
de órgãos públicos. Isso explica a forma expansiva nas operações da polícia militar junto
as favelas.
O pretexto da segurança nacional do Estado no regime militar, serviu como cortina
de fumaça para encobrir a violência policial, contra dissidentes do regime aos grupos
“subversivos” cujas pautas contestatórias pudessem promover a “desordem”do Estado, e
consequentemente da segurança nacional. Os desdobramentos desse efeito expansivo
da polícia militar, só foram possíveis, em decorrência da Lei de Segurança Nacional
(LSN)52 a qual erigia a noção de “inimigo interno”, regulamento adotado pela polícia.
Assim, era fácil para polícia militar poder localizar os alvos potencialmente perigosos,
sejam eles “criminosos comuns” ou “criminosos políticos”. Nesse contexto, a criação de
instrumentos para as operações policiais requereu fortes investimentos do Estado,
conforme menciona Teles:

em maio de 1967, a Seção de Segurança Pública (OPS) da USAID13 avaliou


positivamente o auxílio às polícias brasileiras na formação de serviços especiais,
tais como “tropas de choque” de tipo militar, para o combate das ameaças à
segurança interna, alcançando bons resultados na repressão às manifestações
estudantis, assim como no controle das favelas do Rio de Janeiro (TELES, 2020,
p. 298).

Soma-se a isso, o ambiente de vigilância que ocorria nos subúrbios do Rio de Janeiro,
seguidas de sucessivas blitzen, além de prisões que ocorriam de modo arbitrário,
permitiram abusos de poderes, bem como, de uma política criminal da polícia militar
ancorada no racismo. Assim, conter a massa negra a partir da asfixia em nome da
segurança nacional, contra o “criminoso comum” em detrimento do “criminoso político”
era o modelo que o Estado agenciava a corporação militar a partir do filtro racial que
atestava o corpo negro como potencial criminoso. Pires (2018) expõe essa discussão:

52
Legislação que tipifica os crimes contra a segurança nacional a ordem política e social, utilizada no
contexto do regime militar para cassar políticos, inibir direitos civis (como parte do combate a subversão),
bem como, decretar prisões de modo arbitrário pela polícia e outros órgãos de segurança do Estado.

118
A questão agora não estava relacionada à contenção dos riscos que a massa
negra representava para a segurança pública, em razão de sua “criminalidade
potencial”, mas a necessidade de que fossem monitorados de perto pelos órgãos
de repressão, e eventualmente mais do que isso, por desafiarem as bases
estruturais da ordem social vigente. (PIRES. 2018. p, 1063)

2.1- Vigilância e exclusivismo das abordagens policiais: mobilização contra a


discriminação racial

A partir desse contexto, compreende-se que, no regime militar a ação da polícia passa a
ganhar novas feições, politizadas pela repressão efetiva de controle do Estado junto à
periferia sobre um aparato institucionalizado da corporação militar, como modo de instituir
a ordem e o controle das “classes perigosas”. Esse processo, conforme assinala
Munanga e Gomes (2006),inscreveu sobre um grupo social uma vigilância exclusiva que
não se restringe apenas a dispersão da população negra, mas da mobilização e
articulação entre coletivos que passaram a denunciar a repressão nos subúrbios e do
tratamento da abordagem policial denunciadas por entidades estaduais de agremiações
negras representadas por líderes militantes, que ressurgiam no cenário nacional com as
mobilizações da luta contra a discriminação racial. Nesse contexto, surge o Movimento
Negro Unificado (MNU),seu nascimento ocorre justamente com a principal manifestação
dos coletivos negros.
A cena que figura na memória dos coletivos negros conforme aponta Rios (2012),
é a manifestação nas escadarias do teatro municipal de São Paulo em 1978, na ocasião
o protesto ocorria mediante a morte sob tortura do trabalhador negro Róbson Silveira da
Luz e a discriminação sofrida por quatro atletas juvenis negros, retirados do Clube de
Regatas Tietê, em São Paulo. A projeção desse descontentamento das entidades negras
potencializou uma nova militância negra, na qual, vinha se firmando ao decorrer da
década de 70. Além do evento propiciar o nascimento do MNU, representaria um marco
para a luta negra de contestação da dignidade humana.
Nesse contexto, denunciavam a disposição da ditadura civil militar ao politizar o
ocultamento de corpos, a sistematização e silenciamento das testemunhas, bem como,
das perseguições ideológicas ao instituir novas formas e ferramentas de exclusão racial
que permitiram o que Achile Mbembe (2018) define como “necropolítica”, ao invisibilizara
morte de pessoas negras, coberta por uma estrutura racial que organiza os espaços na
ordem geral da sociedade. Da mesma maneira, determina os lugares a serem ocupados
pela sociedade na organização social,na qual o Estado de direito tenta abarcar.

119
3- CONCLUSÃO

A partir dessas constatações, pode-se assegurar que a exclusão racial no Brasil


tenta se firmar constantemente a partir das estruturas institucionais do Estado, evidente
pela corporação militar, cujos mecanismos de controle reproduzem mensagens, ações e
significados expressos na hostilização do corpo negro. Ademais, escancara o filtro racial
na abordagem policial como monopólio da violência, da mesma maneira, institui a
culpabilização desse grupo como pressuposto para o controle social.Este cenário tem
ressurgido na atualidade com cenas brutais de chacinas e/ou casos de violência nas
comunidades, conforme apontado pelos últimos censos, sobre o aumento da violência
racial53, cenas que revelam uma escalada de ódio e insufla na sociedade a naturalização
da violência aos negros. Diante desse quadro outros questionamentos surgem; como a
Justiça brasileira trata os casos de discriminação racial na mesma medida que
presenciamos um aumento estarrecedor da violência racial no país? A emergência dessa
resposta descortina a ascensão do ultraconservadorismo no país,como “uma fase
contemporânea da barbárie” (NETTO, 2013).

4- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
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consciência neoliberal. São Paulo: Cortez, 2003.

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Letras e Ciências Humanas. Pós-graduação em História Social. p.314, 2007. Disponível
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20.08.2021

LIMA, Lucas Pedretti. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na
década de 1970. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Departamento de História, 2018.

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mascarado, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1978

53 Disponível em:<https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/>. Acesso em: 20/05/2022.

120
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e Competências Profissionais. – Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009

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(Orgs.). O social em perspectiva políticas, trabalho, serviço social. Maceió: EDUFAL,
2013.

MUNANGA, Kabengele e GOMES, Nilma Lino (orgs). O negro no Brasil de hoje. – São
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PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Estruturas Intocadas: Racismo e Ditadura no Rio de


Janeiro. Revista Direito e Práxis. [online]. 2018, vol.9, n.2, pp.1054-1079.

RIOS, Flavia. O protesto negro no Brasil contemporâneo (1978-2010). Revista Lua


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SCHLITTLER, Maria Carolina de Camargo. "Matar muito, prender mal”: a produção da


desigualdade racial como efeito do policiamento ostensivo militarizado em SP. 2016.

SCHMIDT, Fabiana et al. Medidas socioeducativas e cultura punitiva: o


recrudescimento do controle das expressões da questão social no Brasil. 2018.

TELES, Janaína Teles. Eliminar “sem deixar vestígios”: a distensão política e o


desaparecimento forçado no Brasil. REVISTA M. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 265-
297,jul./dez. 2020. Disponível
em:<http://seer.unirio.br/revistam/article/view/10026/>acesso em: 26.08.2021.

121
FORÇA DE TRABALHO SUPÉRFLUA, DESOCUPAÇÃO, INATIVIDADE E RAÇA/COR:
uma interpretação dos dados estatísticos da PNADC/IBGE


Elizete M. Menegat

Dayane A. Cardoso da Silva

Resumo:
O objetivo geral desta pesquisa é refletir em torno da
categoria social e analítica dos supérfluos do mundo do
trabalho na atualidade, quando se observa o
amadurecimento das novas tecnologias altamente
poupadoras de força de trabalho desenvolvidas pela 4ª
revolução industrial. Como objetivo específico, buscamos
analisar o crescimento dos supérfluos, atualmente, no Brasil,
a partir de dados da série histórica da PNADC/IBGE.

Palavras-chave: supérfluos, inativos, desocupados, 4ª


revolução industrial

Abstract:
The general objective of this research is to reflect on the
social and analytical category of the "superfluous" in the
world of work today, when the maturation of new
technologies that are highly labor-saving developed by the
4th industrial revolution is observed. As a specific objective,
we seek to analyze the growth of superfluous in Brazil,
based on data from the PNADC/IBGE historical series.

Keywords: superfluous, inactive, unemployed, 4th industrial


revolution

1- INTRODUÇÃO: SOBRE A CONSTITUIÇÃO DE UMA MASSA DE SUPÉRFLUOS


DEFINITIVOS, NA ATUALIDADE

Como se sabe, a crítica da economia política considera que a constituição de uma


camada de seres humanos desnecessários ao sistema de produção de mercadorias é um
dos fundamentos da própria estrutura de estratificação social exigida pelo capitalismo. A
origem social dos supérfluos remonta, pois, ao próprio processo de criação, pelo capital,
das formas de divisão social e técnica do trabalho exigidas pela produção do mais-valor.
Na sociedade do trabalho mercantilizado, a existência de um exército permanente de
supérfluos constituiu-se, desde então,em um mecanismo fundamental para rebaixar o

Doutora em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). Professora Associada na FSS/UFJF.


* Graduanda em Serviço Social na FSS/UFJF. Bolsista BIC no projeto “Território e limites da reprodução da
vida nas periferias”.

122
salário a um valor mínimo necessário à reprodução da força de trabalho garantindo,
assim, uma condição fundamental para a apropriação do mais-valor pelo capital.
Nesse sentido, ambos, o contingente dos necessários e o contingente dos
desnecessários à produção – os supérfluos -, constituíram-se, lógica e dialeticamente,
essenciais ao processo de valorização do capital e da acumulação capitalista. Em outras
palavras, tanto os necessários quanto os desnecessários foram historicamente
constituídos como partes funcionais da mesma forma de organização social do trabalho
que foi imposta pelo moderno sistema mundial de produção de mercadorias. Portanto,
não só o exército permanente de trabalhadores ativos, mas, também, o exército
permanente dos inativos foi constituído pelo imperativo da valorização do capital. A
existência de ambos foi, desde o princípio, determinada pela lei do valor
(MARX,1984:195).
Entre os séculos XVI e XVIII, o movimento violento da acumulação originária do
capital gerou, no centro europeu e na periferia colonial, uma gigantesca massa de força
de trabalho explorável. O nascente sistema mundial de produção de mercadorias, depois
de roubar a propriedade das condições de reprodução dos camponeses e artesãos, na
Europa, e dos povos originários, na periferia colonial, separou funcionalmente a massa
mundial de exploráveis em socialmente necessários e socialmente desnecessários. Além
desta cisão econômica fundamental, produziu-se a cisão racial em brancos e não
brancos e, em homens e mulheres e masculinos e femininos
(QUIJANO:2005),(LUGONES, 2008). Com o objetivo de produzir mais-valor, o novo
padrão eurocêntrico de poder combinou todos os modos historicamente conhecidos de
controle sobre o trabalho, os recursos e os produtos. Os colonizados – negros e
indígenas – foram violentamente incorporados a este moderno sistema mundial de
produção de mercadorias como fração da força de trabalho a ser explorada pelos
regimes de escravidão e de servidão, com o objetivo único de produzir lucros para o
moderno sistema europeu. Durante cerca de quatro séculos, o trabalho assalariado foi
privilégio, quase exclusivo, dos homens brancos. QUIJANO: 2005).
Determinada pela lei do valor, a quantidade de supérfluos cresce na razão direta
do desenvolvimento das forças produtivas e do progresso da acumulação (MARX, 1984).
Portanto, a relação entre a quantidade dos que são considerados necessários à produção
e a quantidade dos que são considerados desnecessários, varia historicamente. Em
termos relativos, o número de supérfluos cresceu, no mundo, em todos os momentos em
que houve desenvolvimento tecnológico e, consequentemente, aumento da produtividade
do trabalho. E, a partir de meados dos anos 1970, quando as taxas de lucro alcançadas

123
pelo desenvolvimento das tecnologias da 3ª revolução industrial começam a declinar,
começa-se a observar, pela primeira vez, o crescimento não apenas relativo, mas,
também absoluto, do número de supérfluos em nível mundial54 ( KURZ:2019). É deste
período a criação do termo “desemprego estrutural” para denominar este fenômeno de
criação, no nível mundial, de uma massa humana de desempregados e inativos que já
não podia mais ser caracterizada como exército industrial de reserva, uma vez que a sua
existência começava exceder, em muito, as quantidades funcionais de supérfluos
exigidos pelo sistema. Desde então, a substituição do trabalho vivo por mecanismos cada
vez mais autômatos, vem evidenciando a trágica superfluidade do próprio trabalho.
Mas, como medir a variação histórica das quantidades de supérfluos e estimar o
seu futuro? As melhores janelas para a observação do crescimento das quantidades de
supérfluos,são os momentos históricos de elevação da produtividade proporcionada
pelas revoluções das matrizes tecnológicas, as denominadas revoluções industriais
(KURZ: 2018). Desde a acumulação originária e, posteriormente, nos anos críticos do
primeiro desemprego tecnológico criado pela emergência da 1ª Revolução Industrial e,
principalmente, um século depois,com a 2ª Revolução Industrial, as periferias
colonizadas foram utilizadas como depósitos de supérfluos gerados pelos países
europeus (BAUMAN, 2005). Ao longo da segunda metade do século XIX, na época em
que nascia a 2ª Revolução Industrial, a Europa descartou milhões de supérfluos que
vieram aportar nas Américas. Para recebê-los, as nações periféricas que se
beneficiavam do trabalho escravizado de não-brancos, foram pressionadas, antes por
razões econômicas do que humanitárias, a realizar a transição para o trabalho livre. À
imensa maioria dos não-brancos coube, desde então, o lugar e a função de supérfluos na
estrutura do trabalho produtor de mais valor (MENEZES, 2013).
Não só na América mas, em todo o planeta, os movimentos permanentes de
expansão do capitalismo criaram, em quantidades cada vez mais crescentes, “uma
massa racializada de supérfluos” (McINTYRE:2011) que, atualmente, pode ser analisada
como resultado do novo pico de aumento da produtividade do trabalho, impulsionado pela
4ª revolução industrial. Entre 2008-2012, entramos, globalmente, na era da 4ª revolução
industrial. A ultrapassagem definitiva da 3ª revolução industrial para a 4ª vem sendo
reconhecida pelo salto disruptivo no padrão das relações dos humanos com as máquinas

54 Considera-se, em geral, que o desenvolvimento das tecnologias da 3ª revolução industrial começa no


período da segunda guerra mundial. As armas nucleares, o computador, o transistor e as tecnologias de
comunicação e informação parecem ser o carro chefe desta terceira rodada de inovação da matriz
tecnológica. A este momento correspondem, consequentemente, o novo pico da produtividade do trabalho e
a nova rodada de substituição, em larga escala, da força de trabalho por máquinas e pelos primeiros
protótipos do robô.

124
e das máquinas entre si. A 4ª revolução industrial representa um novo movimento de
aceleração dos processos de automação industrial, desta vez possibilitados pela
integração de inovações tais como a inteligência artificial, a manufatura digital (3D), a
robótica, a internet das coisas e a computação em nuvem.
Conforme os autores do relatório The chalenge of slums, “as cidades tornaram-se
o depósito de lixo desta população excedente” (ONU, 2003, citado por DAVIS, 2006:91).
Também para autores como Bauman (2005) e Davis (2006), estes “refugados” do
sistema de produção de mercadorias vêm sendo depositados, como lixo, nos campos de
refugiados, nas favelas e nas periferias das metrópoles mundiais onde formam uma
verdadeira “orla dos párias”. Neste cenário de agudas desigualdades sociais, raciais e
territoriais, os moradores das favelas e periferias urbanas encontram-se no limite da
sobrevivência: definitivamente sem empregos, sem proteção do Estado e,
tendencialmente, sem meios de viver.
Nesta direção, o objetivo específico deste trabalho é dimensionar o problema
representado pelo crescimento dos supérfluos, no Brasil, a partir de dados da série
histórica da PNADC/IBGE.
Os dados desta pesquisa oficial vem confirmando o crescimento contínuo, nos
últimos anos, de um contingente de brasileiros em idade de trabalhar que já não
desenvolve qualquer atividade econômica, quer como ocupados no mercado formal ou no
informal. Considerando o contexto mundial da introdução das tecnologias da 4ª
revolução industrial em curso, o presente artigo limitou-se a estudar dados da PNADC
sobre as relações, atualmente existentes, entre a quantidade de trabalhadores ativos
(ocupados e desocupados) e a quantidade de trabalhadores inativos (não trabalham e
não procuram emprego).

2- CONTANDO OS SUPÉRFLUOS NO BRASIL: UMA INTERPRETAÇÃO DOS DADOS


ESTATÍSTICOS DA PNADC/IBGE

A partir de 2012, a PNADC passou, então, a classificar, como “ocupados”, a


totalidade dos trabalhadores formais somados à totalidade dos informais. Foram
considerados formais, os assalariados dos setores público e privado, que têm carteira
assinada. No mercado informal, passou-se a considerar os ocupados sem carteira de
trabalho, os ocupados por conta própria sem CNPJ, os empregadores sem CNPJ, os
diaristas e mensalistas sem vínculo formal e as pessoas que desenvolvem atividades
produtivas sem receber remuneração.

125
Portanto, as mudanças na PNADC, em 2012, foram impulsionadas pela
necessidade urgente dos governos produzirem instrumentos mais adequados para
controlar, de modo contínuo e mais rigoroso, as repercussões internas causadas pelo
movimento global e avassalador de destruição de um elevado número de postos de
trabalho desencadeado, principalmente, depois da crise mundial de 2008. Este novo
abalo da crise estrutural do capitalismo acelerou a introdução, em escala global, das
tecnologias típicas da 4ª Revolução Industrial, produzindo efeitos sociais ainda mais
catastróficos.
Do ponto de vista da utilidade econômica para o sistema de produção de
mercadorias, a PNADC classifica a população brasileira total em dois grupos: 1)
População em Idade Ativa (PIA), formada pelos que têm acima de 14 anos, e 2)
população abaixo da idade ativa.
Por sua vez, o universo da PIA - população em idade de trabalhar - é dividido,
pela PNADC, em dois grupos: os efetivamente ativos e os inativos. Os ativos são também
reconhecidos, pela PNADC, como contingente da PIA que “está na força de trabalho”e,
os inativos, o contingente da PIA que “está fora da força de trabalho”.
A População Economicamente Ativa (PEA), por sua vez, é formada pela reunião
dos “ocupados” - os que exercem alguma ocupação, seja no mercado formal ou informal
– e dos “desocupados” – os que não exercem qualquer ocupação, seja no mercado
formal ou informal, mas, estão procurando ocupação. Assim, o percentual “dos que não
trabalham, mas, estão procurando trabalho” é classificado, pela PNADC, como força de
trabalho ativa e, portanto, relativamente funcional ao sistema de produção. Para os fins
deste trabalho, consideramos que, os assim denominados, “desocupados” constituem
aquele corpo de indivíduos supérfluos à produção, mas que ainda são competitivos e,
portanto, capazes de disputar, entre si, as vagas rotativas e as eventuais novas vagas
que surgirem, seja no âmbito formal ou informal.
Este grupo de excedentes do mundo do trabalho encontra-se próximo daquilo que
poderíamos denominar, ainda hoje, de relativamente supérfluos55 ou exército de reserva..
São, neste sentido, a camada dos supérfluos que ainda guarda certa funcionalidade para
o sistema de produção, ao contrário do grupo que o IBGE classificou de “desalentados”,
que são aqueles que desistiram de procurar trabalho e integram o contingente dos
inativos.

55 No Capítulo XXIII, ao analisar a superpopulação relativa, Marx afirmou: “...a acumulação capitalista produz
constantemente – e isso em proporção à sua energia e às suas dimensões – uma população trabalhadora
adicional relativamente supérflua ou subsidiária, ao menos no concernente às necessidades de
aproveitamento por parte do capital (MARX, 1984: 199). Grifos nossos.

126
Os assim denominados, pela PNADC, de “inativos” ou “fora da força de trabalho”
– nem trabalham, nem procuram trabalho - podem ser considerados como o contingente
dos definitivamente supérfluos. Tudo indica que eles foram definitivamente desativados
do processo de produção de mercadorias. Estes, já não podem ser considerados úteis
sequer como reserva de força de trabalho. O contingente massivo de inativos não
desempenha mais qualquer função no mundo do trabalho.
Ao contrário da taxa de desocupação, o quantitativo dos inativos é, em geral,
subnotificado pelos canais tradicionais de divulgação dos dados da PNADC – inclusive
por vários canais de informação do próprio IBGE. O que, primeiro, aparece estampado
nas manchetes são as “taxas de desocupação”, as quais dizem respeito, apenas, aos
supérfluos funcionais - não trabalham, mas, procuram trabalho. A taxa de desocupação –
também denominada de taxa de desemprego - não revela a totalidade dos que não
trabalham, pois, não inclui o elevado percentual de supérfluos definitivos: os que nem
trabalham e nem procuram trabalho.
Por exemplo, a taxa de desocupação, no 2º trimestre de 2020, foi de 13,6%, que
correspondia a 12, 8 milhões de brasileiros. Esta taxa informa que 13,6% da população
em idade de trabalhar está procurando trabalho e, portanto, mobilizada aguardando a
eventual oportunidade de ocupação de alguma vaga. Contudo, poucas matérias
noticiavam que, além dos 12,8 milhões, havia uma legião de 77,8 milhões de supérfluos
na categoria dos que nem trabalhavam nem procuravam trabalho na data da pesquisa.
Estes são os que desistiram de procurar trabalho; são os denominados, pela PNADC, de
“fora da força de trabalho”. São os definitivamente supérfluos. Estes tendem a compor a
orla dos miseráveis, dos “seres humanos não rentáveis” que não encontram mais
condições “de viver do seu trabalho” e adquirir, no mercado, os meios de viver (KURZ,
2019). Trata-se da parcela que fica sem “fundos de subsistência” (MARX, 1984: 209).
E, qual é a quantidade de supérfluos que o Brasil apresenta na atualidade?
Considerando o total dos relativamente supérfluos e dos definitivamente supérfluos, o
Brasil alcançava, no 2º semestre de 2020, a cifra de 90,6 milhões. Este cálculo resulta
da soma de 12,8 milhões mais 77,8milhões, acima comentado. Em porcentagem, o
universo “dos que não trabalham” representava, naquela data, 52% da população em
idade de trabalhar, como podemos observar na Tabela 1:

TABELA 1 – Total da PIA - população em idade de trabalhar X Total da PIA que trabalha
(Taxa de ocupação) X Total da PIA que não trabalha (“não trabalha, mas, procura
trabalho” + “não trabalha e nem procura trabalho”)

127
Ano Total PIA Total da PIA Percentual da Total da PIA Percentual da
(milhões) que trabalha PIA que que não PIA que não
(milhões) trabalha trabalha trabalha
(Tx de (milhões)
ocupação)

2012/ 1º 156,38 88,00 56,3 % 68,3 43,7 %


trimestre

2016 /1º 165,33 91,10 55,1 % 74,2 44,9 %


trimestre

2020/ 2º 173,90 83,90 48 % 90,6 52 %


trimestre
Fonte: Elaboração das autoras com base em dados da PNADC/IBGE

Do ponto de vista da série histórica, a Tabela 1 indica que, entre o 1º trimestre de


2012 e o 2º trimestre de 2020, a população em idade de trabalhar (PIA) passou de
156,38 milhões para 173,90 milhões. Isto é, em 8 anos, o universo da PIA ganhou 17,52
milhões de novos indivíduos, homens e mulheres. No mesmo período, 2012-2020, o
contingente dos que não trabalham - que reúne os que não trabalham, mas, estão
procurando ocupação somados aos que não trabalham e não procuram ocupação -
passou de 68,3 milhões para 90,6 milhões. O contingente dos que não trabalham sofreu,
portanto, um acréscimo de 22,3 milhões. Em outras palavras, entre 2012 e 2020, o
percentual de brasileiros em idade ativa que não trabalha, passou de 43,7% para 52% do
total de indivíduos da PIA. Isto é, no 2º trimestre de 2020, como afirmou Adriana
Beringuy, analista de pesquisa do IBGE, o contingente que não trabalha ultrapassou, em
números, o contingente que trabalha:

Pela primeira vez na série histórica da pesquisa [2012-2020], o nível da


ocupação ficou abaixo de 50% (...). Isso significa que menos da metade da
população em idade de trabalhar está trabalhando. Isso nunca havia
ocorrido na PNAD Contínua (BERINGUY, 2020).

Entre 2012 e 2020, inverteu-se a relação entre os que estão ocupados - “os que
trabalham” - e os que não estão ocupados - “os que não trabalham”. Isso não pode
passar despercebido. As formas de reprodução do capital, na era da 4ª revolução
industrial, iniciada ao redor de 2010, parecem exigir, contraditoriamente ao imperativo de
valorização do valor, a inutilização de parcelas majoritárias da população em idade de
trabalhar.As novas tecnologias e o novo pico de produtividade que elas alcançaram é
responsável por esta nova rodada de eliminação do trabalho vivo e, portanto, pela
elevação do número de supérfluos a patamares assustadores.

128
Os dados indicam que, atualmente, não há lugar, nem mesmo na economia
informal, para mais da metade da população brasileira em idade de trabalhar, como foi
visto. Não surpreende que a maioria dos trabalhadores resgatados, pelos órgãos oficiais
de fiscalização, retorne ao trabalho análogo à escravidão por falta de alternativas de
sobrevivência (REPÓRTER BRASIL, 2011).
As séries históricas da PNADC informam, ainda, que, entre os ocupados, os
negros – pretos e pardos – consolidaram-se como grupo majoritário no trabalho informal.
Eles constituem maioria, principalmente, nas atividades informais mais mal remuneradas
tais como, serviços domésticos, construção civil e agropecuária. E, entre os ocupados no
setor formal, as séries revelam que os negros também são ampla maioria nas atividades
que oferecem as mais baixas remunerações tais como os denominados serviços gerais
vinculados à carga e descarga, limpeza, manutenção, segurança. E, os negros são,
também, tragicamente majoritários no interior do imenso contingente formado pelos
desocupados e pelos inativos: isto é, tanto entre os supérfluos relativos quanto entre os
supérfluos definitivos. Nesse sentido, os negros e, principalmente, as mulheres negras,
constituem a fração majoritária do universo de pobres e miseráveis do país. São,
portanto, maioria entre os sujeitos que não podem garantir sua sobrevivência através do
rendimento do seu trabalho uma vez que estão sendo definitivamente dispensados pelos
robôs e computadores da nova era de produtividade do trabalho.

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados da PNADC indicam um quadro de multiplicação descontrolada da camada de


supérfluos que, velozmente, tende a ultrapassar a camada de trabalhadores necessários
ao sistema de produção de mercadorias.O atual estágio de progresso da produtividade
do trabalho alcançado pela4ª revolução industrial é o principal responsável pela nova
rodada de eliminação do trabalho vivo. A diminuição das taxas de ocupação, e a
consequente elevação das taxas de desocupação e inatividade, vêm se manifestando
como o principal indutor do aumento da desigualdade social, territorial, racial e de gênero.
O contingente de supérfluos atualmente existentesconstitui uma espécie de refugo
humano tendencialmente depositado nas periferias urbanas (BAUMAN, 2005; DAVIS,
2006).

129
4- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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131
RACISMO ESTRUTURAL EM TEMPOS DE NEOCONSERVADORISMO: UMA
ANÁLISE DAS PRÁTICAS RACISTAS EM EMPRESAS AÉREAS

Aline Macêdo Câmara Gracindo56


Ellison Patrício Cassiano57
Mayana Gerlany Costa da Silva58

RESUMO

Com a hegemonia política da extrema direita no Brasil, em


2018 sob o comando de Jair Bolsonaro, tem-se a
potencialização do neoconservadorismo, enquanto
instrumento ideológico dominante, que aprofunda as
desigualdades raciais e sustenta posturas racistas-sexistas.
Buscamos, portanto, compreender as bases estruturais
desse fenômeno, mais particularmente de sua expressão
institucionalizadaem empresas áreas, as quais estabelecem
critérios para admissão de funcionários, com base em
estereótipos que privilegiam a branquitude e subjugam os
negros.

Palavras-chave: Racismo Estrutural. Neoconservadorismo.


Empresasaéreas.

ABSTRACT

With the political hegemony of the extreme right in Brazil, in


2018 under the command of Jair Bolsonaro, there is the
potentialization of neoconservatism, as a dominant
ideological instrument, which deepens racial inequalities and
supports racist-sexist postures. We seek, therefore, to
understand the bases that define its institutional expression,
mainly the companies that define its institutional expression,
which define the areas of criteria, with a privileged base in
ester and subjugate scope and subjugate.

Keywords: Structural Racism. Neoconservatism. Airline


companies.

56Assistente Social do Centro de Referência de Assistência Social do município de São Rafael/RN.


Mestra em Serviço Social e Direitos Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Direitos
Sociais da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). E-mail: gracindoaline@gmail.com
57Graduado em História e em Letras Língua Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte

(UERN). E-mail: elisoncassiano22@gmail.com


58Especializando-se em Docência para a Educação Profissional e Tecnológica pelo Instituto Federal do

Espírito Santo e graduada em Letras Língua Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte (UERN). E-mail: mayanasilva1995@gmail.com
Eixo temático: As expressões da exploração/opressão de classes no contexto da ofensiva ultraneoliberal do
capital.

132
1- INTRODUÇÃO

A ascensão política da extrema direita no Brasil reforça a condição colonialesca


de um país subjugado, periférico e dependente de forças estrangeiras via atrofiamento do
Estado Democrático de Direito. Discursos de ódio, xenofóbicos, sexistas, racistas,
eugenistas se espraiam mentes adentro, numa marcha rumo a uma nação de “fascismo
acima de tudo, preconceito em cima de todos”.
Antes de ser uma representação racializada do humano, o colonialismo se
configura como forma de organização social imperialista de territórios estrangeiros
política e militarmente ocupados, em benefício dos grandes capitais europeus
(FAUSTINO, 2015). O racismo, segundo Almeida (2019) divide-se em três concepções:
individualista, institucional e estrutural. Para nosso estudo, ater-nos-emos aos
desdobramentos do racismo estrutural nas empresas de companhias aéreas. Dado que,
o racismo estrutural está diretamente ligado às instituições sociais, as quais impõem
padrões de funcionamento que favorecem determinados grupos raciais, passando, assim,
o racismo a fazer parte da ordem social. O conflito gerado dentro dessas instituições
acarreta verdadeiros meios de transmissão de preconceito, o que geralmente acontece
em empresas, escolas e governos (ALMEIDA, 2019).
Para tal, recorremos a pesquisa bibliográfica e a análise de trechos retirados do
blog do Centro Educacional de Aviação do Brasil – CEAB –, instituição devidamente
autorizada pela Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC –, que expõe algumas regras
institucionais acerca da profissão de comissária de voo (aeromoça).

2- RACISMO ESTRUTURAL E NEOCONSERVADORISMO

O neoconservadorismo sempre foi a arma ideológica das sociedades fundadas


em bases de produção capitalista, porém com a ascensão dos governos de extrema
direita, principalmente nos Estados Unidos e no Brasil em 2018, esse instrumento se
recrudesce trazendo à tona o anticivismo de uma sociedade pronta para revelar sua pior
face: a negação do outro em sua humanidade.Mulheres, negros, índios, população
LGBTQIA+ e outros segmentos sociais passam a ser alvos de práticas fascistas,
irracionais e eugenistas. A defesa da tolerância e da igualdade cederam lugar ao ódio e a
discriminação, que sem nenhuma timidez mostram a cara nas redes sociais, nas políticas
criminológicas, sexistas e familistas, no racismo científico. A fala do atual chefe do
executivo federal brasileiro, Jair Messias Bolsonaro, durante palestra no Clube Hebraica,

133
no Rio de Janeiro, de quando esteve num Quilombo, expressa escancaradamente a visão
a-histórica e racista da classe dominante: “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais
leve lá pesava sete arrobas. Não servem para nada, nem para procriadores servem mais".
Nesta toada, o racismo passa a estar não mais velado, mas escancarado nas
estruturas sociais e institucionais, o que torna essa violência ainda mais perigosa, pois
que amplamente aceita pela sociedade, sendo interiorizada no cotidiano e legitimada
pelos meios midiáticos. Com isso, vivenciamos retrocessos nas conquistas dos direitos
da população negra e demais minorias sociais, alvejados por ataques moralistas, que
negam as diferenças e a diversidade e intensificam processos de subalternização e
desumanização, que “implicam violência contra o outro, e todas são mediadas
moralmente, em diferentes graus, na medida em que se objetiva a negação do outro:
quando o outro é discriminado lhe é negado o direito de existir como tal ou de existir com
as suas diferenças” (BARROCO, 2011, p.209).
Segundo o IPEA (2019), os negros representam 76% das vítimas de homicídios
no Brasil59, resultado da criminalização da pobreza, da militarização da vida cotidiana e
do agigantamento da figura do Estado Penal, autoritário e hierárquico em detrimento do
Estado Democrático de Direito. A violência policial tem um alvo certo: o negro, pobre e da
periferia. A morte de George Floyd, asfixiado por um policial branco em Minnesota (EUA),
dos brasileiros João Alberto de Silveira Freitas, espancado até a morte por dois
seguranças brancos no estacionamento de um supermercado e a morte de Genivaldo de
Jesus Santos, asfixiado numa câmara de gás improvisada numa viatura policial,
evidenciam os a crueldade animalesca do nazifascismo imbricado nas práticas
racializadas de culto à violência e ao militarismo.
A história do Brasil racista e classista tem sido escrita todos os dias,
exaltada e rememorada pela violência policial [...] a prática desses
segmentos policiais tem escrito e reescrito a história na pele, no corpo (e
no espírito) dos escravos, no dorso da sociedade (dorso pobre e negro).
(Soares, 2020, p. 56)

O processo histórico e político cria condições sociais para que o racismo


aconteça. Almeida (2019) discorre sobre as condições de ineficácia do combate ao
racismo, uma vez que, mesmo que os culpados sejam responsabilizados, isso não se
torna suficiente para que a sociedade pare de criar meios de produzir desigualdades
raciais. Entender que o racismo está presente nas estruturas sociais não absolve as
ações individuais, muito pelo contrário, como Almeida (2019, p.34) nos ensina, é preciso

59 Informação disponível em https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/9619-


pb8atlasviolenciaversaodivulgacao.pdf

134
entender que o racismo é estrutural, e não um ato isolado de um indivíduo ou de um
grupo, tornando-nos ainda mais responsáveis pelo combate ao racismo e aos racistas.
Consciente de que o racismo é parte da estrutura social e, por isso, não
necessita de intenção para se manifestar, por mais que calar-se diante do
racismo não faça do indivíduo moral e/ou juridicamente culpado ou responsável,
certamente o silêncio o torna ética e politicamente responsável pela manutenção
do racismo. A mudança da sociedade não se faz apenas com denúncias ou com
o repúdio moral do racismo: depende, antes de tudo, da tomada de posturas e da
adoção de práticas antirracistas. (ALMEIDA, 2019, p. 34)

Dessa forma, fica nítida a necessidade de uma união de todos os colonizados em


prol da superação do colonialismo, como podemos ver no pensamento de Faustino
(2015). Trata-se de uma disputa árdua e longa de desconstrução, pois não podemos mais
entender a raça apenas como uma forma de dividir, mas sim compreendermos que esses
povos sofreram e ainda sofrem na pele os efeitos do colonialismo, não bastando apenas
libertá-los de suas correntes apenas por uma questão econômica de expansão do
capitalismo moderno. Pois, devemos considerar esses efeitos do colonialismo como não
só um movimento social, mas também um movimento político porque, como processo
sistêmico de discriminação que influencia a organização da sociedade, depende de poder
político; caso contrário, seria inviável a discriminação sistemática de grupos sociais
inteiros (ALMEIDA, 2019).
Por outro lado, não podemos negligenciar o caráter histórico do racismo, pois não
é apenas algo que resulta dos vieses políticos e econômicos da sociedade, mas também
da forma na qual a sociedade se formulou ao longo do tempo, pois cada sociedade
possui uma história singular de formação, ocasionando assim interfaces deferentes.
O mesmo se passa com o racismo, porque as características biológicas ou
culturais só são significantes de raça ou gênero em determinadas circunstâncias
históricas, portanto, políticas e econômicas. Daí a importância de se
compreender o peso das classificações raciais, não apenas na moldura dos
comportamentos individuais ou de grupos, mas na definição de estratégias
políticas estatais e não estatais (ALMEIDA, 2019, p. 35).

Podemos perceber, assim, que à medida que as sociedades vão se formando ao


longo do tempo, há a necessidade de criar projetos políticos que determinem as suas
estruturas, esses projetos se utilizam da divisão de raças para apontar um sistema
hierárquico político e econômico. Essa divisão fica visível em diversas camadas da
sociedade e dentro das instituições, como já visto anteriormente. Desse modo, esse
racismo deve ser compreendido como estrutural, buscando compreender como uma
sociedade se desenvolve a partir de práticas racistas, abrindo as discussões e, a partir
disso, elaborando maneiras de desnaturalizar o racismo e reestruturar a sociedade, de
forma que ela não crie mecanismos de disseminação e naturalização de práticas racistas.

135
3- O RACISMO E SUAS INTERSECCIONALIDADES: a expressão do pensamento
antinegro nas companhias áreas

O Brasil foi constituído em solo de extrema desigualdade social, racial e de


gênero. O neoconservadorismo reflete uma sociedade contrária ao multiculturalismo e,
consequentemente, favorável aos discursos excludentes, racializados e meritocráticos.
Diante das premissas iniciais, analisamos alguns trechos retirados do blog do
Centro Educacional de Aviação do Brasil – CEAB –, instituição devidamente autorizada
pela Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC –, que expõe algumas regras
institucionais acerca da profissão comissária de voo (aeromoça). O primeiro trecho
destacado mostra de forma explícita as designações para a estética feminina nessa
profissão:
Comissárias usam Luzes? Sim! As luzes precisam ser da raiz as pontas, ou seja,
é um estilo que deixa o cabelo bem mais claro. Este estilo de cabelo é conhecido
também como mechas, são mais indicados para comissárias com pele mais
clara. Se o seu cabelo cresceu um pouco, será necessário que retoque a raiz
novamente. [...]As lãs, Dreads (Dreadlocks), e acessórios despojados não são
recomendados para as comissárias de voo. [...] As comissárias podem usar
tranças, conhecidas especialmente como tranças tradicionais, e algumas até
usam elas no coque. (Grifos nossos)

O excerto reflete na construção de um discurso voltado para a padronização e


aceitação de determinadas estruturas estéticas da mulher baseadas no processo de
branquitude da sociedade, alimentando a fantasiosa superioridade racial. A objetividade
em determinar tons de cabelo propícios para mulheres da pele clara e renegar os
referidos tons para mulheres da pele escura possibilita inferir o racismo institucionalizado
velado pelas autoridades nacionais. Esse pensamento é um instrumento de dominação
que opera na constituição de uma subjetividade homogênea. De acordo com Foucault
(1996), em toda sociedade existem tipos de técnicas que moldam os indivíduos em
relação aos seus corpos, pensamentos e condutas.
Segundo Gomes (2016, p. 42), “no caso dos negros o que difere é que a esse
segmento étnico-racial foi relegado estar no polo daquele que sofre o processo de
dominação política, econômica e cultural e ao branco estar no polo dominante.” Nessa
perspectiva, os estereótipos designados na sociedade assumem características
eurocêntricas e reflete o processo histórico na estética do alto contingente de mulheres
negras com cabelos alisados (MATTOS, 2015).
À vista disso, as determinações da Instituição em relação aos padrões de cabelos
crespos/cacheados prosseguem de acordo com as normas das três principais

136
companhias aéreas brasileiras: Azul Linhas Aéreas, Gol Linhas Aéreas e Latam. Acerca
do cabelo Black Power foram inferidas algumas recomendações:
Este tipo de corte deve-se ter atenção em relação ao volume do cabelo. Porém,
o estilo de corte Black Power é permitido, desde que seja discreto e neutro.
Portanto, ele não pode ser um Black Power muito grande, ou seja, volumoso. [...]
Segundo informações, a Azul Linhas Aéreas fala que o cabelo do profissional da
aviação (comissário de voo/aeromoça) não pode interferir no casquete (chapéu
da comissária). Avalia-se que o tamanho permitido é de3cm de comprimento,
contando da raiz para ter um cabelo Black Power. (Grifos nossos)

Considerando o cabelo como parte da constituição identitária de um sujeito, a


imposição do corte de cabelo crespo/cacheado e suas limitações para as formas de uso é
um desrespeito à cultura afro-brasileira. Segundo Lody (2004, p. 14) “o cabelo é um
identificador da pessoa e da cultura a que pertence.” Sua negação é uma afirmativa do
racismo nas diversas esferas sociais e compromete o avanço na luta contra as
desigualdades raciais.
A invisibilidade da mulher negra e a dominação sobre seus costumes, sua estética
e seus pensamentos inferiorizam a sua história e desconsideram seus árduos processos
de lutas por reconhecimento de direitos. Para Ribeiro (2017, p. 43), “seria urgente o
deslocamento do pensamento hegemônico e a ressignificação das identidades, sejam de
raça, gênero, classe.” Ainda, segundo a autora, esse processo possibilitaria dar voz e
visibilidade a esses sujeitos.
O último trecho analisado no blog da CEAB foi relacionado aos cuidados de
beleza que as comissárias de voo precisam ter em suas rotinas:
Saiba que os cortes de cabelo baixo cacheados são recomendados, porém, é
exigido que o comissário(a) tenha um corte social, discreto. Os cabelos curtos
com cortes de entrada (com risco) acabam não sendo recomendados. [...] Caso
você tenha um cabelo grande que passe do ombro, será necessário prender
(rabo de cavalo, coque, trança) para trabalhar como aeromoça. Então, o cabelo
cacheado não pode passar da altura do ombro. Portanto, você deve respeitar a
altura, o volume e a forma discreta.(Grifos nossos)

Novamente a exigência de padrões capilares reitera a discriminação sobre


cabelos crespos/cacheados. A exigência em relação à altura, ao volume e a discrição do
cabelo atestam a hostilidade pela herança afrodescendente. É observado que o caráter
institucional do racismo consolida a supremacia branca. As formulações das regras e
normatizações das Instituições estão fundadas em padrões sociais e estéticos que
privilegiam determinado grupo racial. Segundo Almeida (2019), no caso do racismo
antinegro, as pessoas brancas são beneficiárias das condições criadas por uma
sociedade que se organiza baseando-se em normas e padrões prejudiciais à população
negra.

137
Posto isso, observou-se que algumas Instituições aéreas reproduzem, em suas
normatizações, o racismo explícito. Na atual forma de sociabilidade embebida pelo
neoconservadorismo, o preconceito contra a pessoa negra se espraia na forma de
governo, nas organizações sociais e no próprio modelo econômico, sendo reforçado
pelos mecanismos institucionais de empresas como essas, que se omitem na luta pela
desconstrução da cultura racista-sexista e reforçam a normalização acentuada da
segregação racial e a supervalorização das identidades raciais brancas.

4- CONSIDERAÇÕES FINAIS

A defesa prática da diversidade humana e da igualdade racial se coloca como


urgente num país marcado historicamente pela cultura escravocrata - colonialesca e pela
desigualdade social entre as classes. É evidente que, apesar da nação ser constituída
pela pluralidade étnico-racial, a discriminação contra pessoas negras é facilmente
identificada na sociedade brasileira.
O racismo vem sendo naturalizado durante muito tempo e o debate sobre essa
problemática é visto como uma afronta aos padrões socialmente impostos, construídos
pela classe hegemônica. É inquietante perceber que o movimento neoconservador ganha
força mesmo após conquistas relevantes no combate às desigualdades, promovendo
retrocessos vorazes nos direitos conquistados.
A cultura africana sobreviveu historicamente em circunstâncias marginalizadas e é
vista como uma impetrante na cultura dominante. Cor da pele, textura do cabelo,
vestimentas e hábitos são depreciados, e as Instituições sejam elas públicas sejam
privadas assimilam tais posturas estereotipadas e acríticas, como visto nas análises dos
trechos retirados do blog do Centro Educacional de Aviação do Brasil, em conformidade
com os critérios exigidos por diversas linhas aéreas para admissão de funcionários.
O racismo estrutural, institucional ou viabilizado em suas diversas facetas é a
afirmação de uma sociedade influenciada por premissas eurocêntricas e que nega ao
outro o direito de existir como tal. Esse juízo dá margem a ideologia neoconservadora
que é uma ponte para o passado e para a estagnação dos avanços das classes e dos
grupos minoritários.
Destarte, ao propor um debate urgente e necessário sobre o racismo no Brasil,
devemos nos questionar sobre as nossas ações quanto a propagação de conceitos
raciais estruturados e aos nossos posicionamentos a respeito disso. Os diversos setores
sociais e políticos carecem de uma reestruturação em suas normas e seus conceitos pré-

138
estabelecidos. A luta contra o racismo deve estar vinculada a uma luta maior, por uma
forma de sociabilidade, na qual o outro seja possível em suas diferenças e alcance a
emancipação humana.

5- REFERÊNCIAS

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139
GENOCÍDIO DA JUVENTUDE NEGRA: análise sobre mortes violentas em uma região
do município de Juiz de Fora

Pâmela Soares Oliveira60

Resumo

O presente artigo pretende trazer os impactos e as


percepções das famílias sobre mortes violentas de jovens
em uma região do Município de Juiz de Fora. Através de
entrevista, baseada no método de história de vida,
apresento elementos que perpassam a história e os diversos
âmbitos da vida dos familiares de vítimas de mortes
violentas, buscando analisar e correlacionar as histórias
apresentadas com o contexto social, considerando o
racismo estrutural e as desigualdades sociais como fatores
motivadores para as diversas formas de extermínio de
corpos negros.

Palavras-chave

Racismo estrutural; genocídio da juventude negra; questão


racial

Abstract

Thisarticleaimstobringtheimpactsandperceptionsoffamiliesab
outviolent deaths of young people in a region of the
Municipality of Juiz de Fora. Through an interview, based on
the method of life history, I present elements that permeate
the history and the different areas of life of the familie
sofvictim sofviolent deaths, see king to analyze and correlate
the stories presented with the social context, considering
structural racism and the social inequalities as motivating
factors for the various form sofextermination of black bodies.

Keywords

Structural racism; extermination of black youth; racial issue

60Assistente Social especialista em saúde da família pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Trabalho de
conclusão de residência orientado pelo professor Dr. Bruno Bruziguessi Bueno.
E-mail.:pamelasoarez14@gmail.com. Eixo temático: Ofensiva ultraneoliberal do capital e lutas sociais.

140
1- INTRODUÇÃO

O trabalho que será apresentado visa compreender e apontar os principais


elementos que ocasionam o fenômeno do extermínio da Juventude Negra no município
de Juiz de Fora, as consequências para as famílias desses jovens e a percepção que
estas possuem sobre as mortes violentas do território em questão.

Em âmbito nacional a morte violenta de jovens é um fenômeno que assola o país,


como aponta o Atlas da Violência do ano de 2020: os homicídios foram a principal causa
dos óbitos de jovens do sexo masculino, totalizando 55,6% das mortes de jovens entre 15
e 19 anos; 52,3% daqueles entre 20 e 24 anos; e de 43,7% dos que estão entre 25 e 29
anos. Essa realidade faz-se presente no município de Juiz de Fora, contabilizando, em
2020, uma taxa de homicídios que chegou a 10,4 mortes, sendo 44% dos jovens de até
25 anos, de acordo com levantamentos realizados pelo Jornal Tribuna de Minas, em
janeiro de 2021.Notadamente, existe um perfil por trás desses dados, sendo este
preenchido por jovens do sexo masculino, de etnia negra e moradores de regiões
periféricas. Como aponta Gomes e Laborne (2018), as mortes desses jovens não são
motivadas apenas pelas condições socioeconômicas, mas tem como fator preponderante
a questão racial.

Nesse sentido, buscando compreender os principais elementos que perpassam a


morte violenta de jovens em uma região do município de Juiz de Fora, foi utilizado como
instrumento a entrevista com base no método de história de vida. O método em questão
foi escolhido com intuito de realizar o levantamento de memórias e vivências que
apresente o contexto social em que o indivíduo entrevistado e “biografado” está inserido,
evidenciando e correlacionando os elementos manifestos com a temática abordada. De
acordo com Silva et. al. (2007), o método história de vida pertence ao rol das abordagens
bibliográficas, dentro da metodologia de pesquisa qualitativa, e tem por premissa realizar
o resgate das memórias, respeitando a história dos sujeitos entrevistados. Constituindo-
se como método, a autora lista como características da entrevista baseada na história de
vida, o respeito pela forma como a história é contada, a produção de sentido dada a essa
história, a intersecção entre o individual e o social e principalmente o vínculo entre
entrevistado e entrevistador (SILVA et. al. 2007).

Logo, através do método de entrevista com base na história de vida, pretendo


evidenciar os constructos de relações sociais, de vida e trabalho dos entrevistados,

141
buscando compreender a perspectiva que essas famílias têm em relação às mortes
violentas desses jovens. Por conseguinte, procuro, através desta pesquisa, explicitar os
principais elementos que aprofundam esse fenômeno. Nesse sentido, vislumbro contribuir
para o entendimento de que as mortes violentas de jovens negros da periferia estão
atreladas ao racismo estrutural da sociedade brasileira.

2- RESULTADOS E DISCUSSÕES

Nesse tópico será apresentado a análise sobre as falas e percepções dos


familiares de vítimas de mortes violentas. Assim sendo, evidencio que após aprovação do
Comitê de Ética da UFJF, e com a concordância do termo de compromisso, foram
entrevistados três familiares desses jovens, todos de famílias distintas. Os participantes
foram nomeados e sinalizados da seguinte forma: entrevistado 1 (E1); entrevistado 2 (E2)
e entrevistado 3 (E3).Ressalto que por tratar-se de uma temática delicada e para manter
o sigilo e a segurança, não será exposta nenhuma característica que possa gerar
identificação dos entrevistados e suas famílias. Todavia, pelo contexto da pesquisa, é
importante sinalizar o recorte de raça dos participantes, dessa maneira, todos os
familiares entrevistados e os jovens mortos de forma violenta, compunham o perfil racial
de negros, de acordo com o IBGE (pretos e pardos).

Assim, perante as falas dos entrevistados, identificamos que a violência, em suas


diversas formas, torna-se um fenômeno presente na vida dessas pessoas, em vários
momentos da vida.

É que eu trabalhava e meu marido na época de vez de trazer o dinheiro pra casa
gastava tudo na rua com bebida. (...). Eu passei muita dificuldade. A gente
discutia muito, às vezes ele me batia. Até que chegou a um ponto que eu não
quis mais. (E1)

(...) No natal e ano novo a gente reunia a família, mas depois minha irmã morreu
matada, o marido dela matou ela, com 36 facadas. Com um negócio de droga,
ele via homem para todos os lados, aí ele sentiu ciúme e matou ela (...). (E2)

(...) Ele gostava é de bater, gostava de espancar os filhos, que ele bebia muita
cachaça. Até na minha mãe ele batia (...). (E3)

Podemos perceber que a violência constitui algo estrutural e faz parte de um


componente cotidiano dessas famílias, essa violência não é banalizada, mas é absorvida
e reproduzida por essa população e por essas famílias, sendo, de certa forma,
naturalizada. Desse modo, a violência, instrumento institucionalizado e utilizado para a
mediação entre escravos e senhores no período da escravidão, passa a ser reproduzido
sob novas bases nos dias atuais, sob as diferentes formas de genocídio da população

142
negra. Com efeito, a introjeção e naturalização da violência contra corpos negros são
produzidas pelo racismo, que, de acordo com Almeida (2021, p. 65), “constitui todo um
complexo imaginário social”.

Sob essa perspectiva, a violência e a banalização das vidas negras compõem,


nos dias atuais, um instrumento atualizado para a implementação da necropolítica, seja
de forma direta ou indiretamente. De acordo com Rosaneli et.al (2021) e com base em
dados do IPEA (2019), 11 a cada 100 mortes violentas intencionais foram provocadas por
policiais, onde 17 pessoas foram mortas por dia, gerando um total de 6.220 vítimas em
2018. Esses dados e a realidade dos entrevistados demonstram que a política sobre
drogas no Brasil se insere sob a lógica biopolítica, que tem a morte como instrumento
para controle e manutenção do poder (ROSANELI et.al, 2021).

A partir das falas ainda é possível identificar que as condições estruturais, de vida
e moradia, sempre foram precárias e/ou insuficientes, assim como as condições objetivas
de subsistência, na qual podemos identificar pelo histórico de situações de insegurança
alimentar. Podemos perceber que as desigualdades econômicas, que tem como marca
um recorte de raça, é um marcador para situações de violência, aumentando a incidência
de vitimizações (CERQUEIRA; MOURA, 2013). No Brasil, de acordo com dados do IBGE
(2021), em 2020, 10,4% da população (21,9 milhões de pessoas) viviam com até o valor
de 1/4 de salário mínimoper capita mensal (cerca de R$ 261,00) e 29,1%,
aproximadamente 61,4 milhões de pessoas, com até 1/2 salário mínimo per capita (cerca
de R$ 522,00), enquanto 3,4% (7,2 milhões de pessoas) tinham rendimento per capita
superior a cinco salários mínimos (R$ 5.225,00). Esses dados evidenciam a disparidade
econômica e social existente em nosso país. Vale lembrar que a pandemia de COVID-19,
maior crise sanitária dos últimos tempos, aprofundou a desigualdade social, aumentando
a destruição de postos de trabalho e, consequentemente, as condições de reprodução
social das famílias.

No que tange ao mercado de trabalho, os índices referentes ao nível de ocupação


em 2020 foram os menores da história. Os jovens, que são as pessoas de 14 a 29 anos
de idade, foram também os mais afetados, dados recentes do IBGE (2021) indicam que
apenas 42,8% dessa faixa etária ocupavam postos de trabalho em 2020. Esses dados
revelam um processo de segregação racial, visto que dentre o total de pessoas
ocupadas, a proporção da população branca era 45,6% e a da população preta ou parda,
53,5%. Contudo, a presença de pretos ou pardos é mais acentuada nas atividades que

143
possuem as menores remunerações como agropecuária (60,7%), construção (64,1%) e
nos serviços domésticos (65,3%). Por outro lado, a população branca ocupa as
atividades com maiores remunerações.

Da mesma forma, ao analisar as falas, podemos perceber como o desemprego e


o acesso limitado às políticas sociais, educacionais, de lazer e moradia, impactam na
ascensão social e no olhar sobre outras perspectivas para essa parcela da população.
Além disso, nos chama a atenção a falta de documentação básica por parte desses
jovens, que, também por conta disso, ficam impossibilitados de acessar vínculos de
trabalho e um conjunto de serviços e políticas sociais, assim essa parcela da população
acaba ficando invisibilizada.

Em suma, todos os processos citados anteriormente constituem uma forma de


expressão da ausência do Estado, no que tange a insuficiência na execução de políticas
públicas e sociais. Essa ausência é característica do Estado neoliberal. Sob esse
contexto, há o desmantelamento das políticas sociais e a transferência de parte do
orçamento público para o setor privado. Morais (2019) aponta que na insuficiência desse
Estado, muitos jovens passam a ser tratados pela lógica penal e a criminalização dos
corpos negros torna-se um subterfúgio para a manutenção do capitalismo sob a égide do
neoliberalismo. Na mesma direção, Almeida (2021, p. 207) destaca que como não serão
integrados ao mercado, seja como consumidores ou como trabalhadores, jovens negros,
pobres, moradores de periferia e minorias sexuais serão vitimados por fome, epidemias
ou pela eliminação física promovida direta ou indiretamente pelo Estado – um exemplo
disso é o corte nos direitos sociais.

Outro ponto de destaque na entrevista diz respeito à percepção dos entrevistados


sobre os extermínios desses jovens. Para eles, a causa restringe-se à disputa por
territórios no tráfico. Observando os índices de desigualdade apontados acima, fica
evidente que o tráfico de drogas para esses jovens é uma forma de ascensão social ou
até mesmo de subsistência. Isso porque a realidade demonstra que os jovens não
conseguem inserção no mercado de trabalho formal e legal, ou quando ocorre essa
inserção, na maioria das vezes, esses jovens são absorvidos em trabalhos informais,
precários e mal remunerados.

Logo, compreendendo o tráfico de drogas como uma atividade laborativa, apesar


da ilegalidade, entendemos a entrada e venda da força de trabalho desses jovens à

144
indústria do narcotráfico. Em seu estudo, Costa e Barros (2019) evidenciam que para os
adolescentes o tráfico constitui como uma atividade laborativa, constituído por categorias
análogas ao trabalho formal, com chefes, horários, cargos e funções. Assim, as autoras
evidenciam, parafraseando Lyra (2011), que há um deslocamento dessas categorias para
outra esfera existencial e não um repúdio puro e simples ao estudo ou trabalho, como é
disseminado pelo senso comum.

Por conseguinte, Costa e Barros (2019) indicam que a violência manifestada pela
disputa de territórios pelo tráfico é consequência da criminalização das drogas e da
ausência do Estado no sentido de regulamentação e mediação dos conflitos inerentes
desse mercado ilegal. Consequentemente, esse processo corresponderia a uma forma
de execução da necropolítica, mencionada por Mbembe (2020). Sob essa lógica, o
Estado não atua diretamente sobre as mortes desses corpos negros, mas sua ausência
abre brecha para uma terceirização dessas mortes. Nesse sentido, percebemos que há
uma mudança na compreensão sobre a violência e a criminalidade pelos entrevistados,
indicando um processo de complexificação e aprofundamento desses conflitos perante o
acirramento das desigualdades frente ao contexto neoliberal.

Antes o pessoal tinha respeito, porque tinha um traficante que eles mataram, que
ele colocava respeito, não tinha essas confusões não. Hoje em dia eles não tem
respeito mais não. Tudo agora deles é dá tiro. (E1)

Antigamente o bairro aqui era melhor do que hoje. Tinha malandragem?! Tinha.
(...) Mas eles respeitava as pessoas né. Até ajudava as famílias que precisavam.
Chegavam perto deles, pediam um gás, uma cesta básica, eles davam. Eles
morreram, mataram eles, né. Mas veio outros. Os traficantes antigamente não
mexiam com a gente, ao contrário, eles ajudavam as pessoas que precisavam.
(E2)

(...) Mas antigamente não tinha esse problema que tem agora, os outros
matando os outros, os outros dando arma para menor matar os outros. Chegou a
esse ponto pelo tráfico, tráfico de drogas. Antigamente não tinha droga. Agora
tem tudo, e tudo eles jogam na mão dos menor. Antigamente era melhor agora
piorou tudo. (E3)

As falas demarcam também a existência de uma complexidade nas relações entre


as pessoas envolvidas nas mortes de forma violenta, evidenciando uma relação de
convívio entre vítimas e vitimados e, de certa forma, a existência de relações de afeto e
proximidade, apesar dos conflitos. Consequentemente, as falas também demarcam um
processo de herança do extermínio, as mortes violentas, por vezes, são “acertos de
contas” por mortes que se antecederam, gerando um movimento de vingança. Da mesma
maneira, ocorre a sucessão no tráfico entre os núcleos familiares.

Criança que eu peguei no colo, tudo nessa vida aí (...). (E1)

145
(...) conheço quem matou. Eram pessoas que eu vi crescer. Ainda tenho contato
com as famílias, mãe, irmão… a gente conversa (...). (E2)

Eu nem vou muito lá pra baixo para passar perto deles, eles me conhecem. Eles
não mexem comigo não, porque eu não passo perto deles. O menino que matou
meu neto eu conheço. Meu neto nunca mexeu com ele. Os outros que pagam
para fazer, dão arma e eles vão e mata. Mas agora ele tem que pensar na vida
dele (...) mas ele também vai levar um tiro e vai morrer. Hoje e amanhã o dia
dele vai chegar. (...) Esse menino que matou meu neto morava do lado da minha
casa. Ele era criado ali, eu brincava com ele todo dia. Ninguém pensava que ele
ia matar meu neto [choro]. (E3)

Identificamos novamente, através dessas falas, uma naturalização das situações


de violência. Podemos perceber que há uma passividade e resignação frente às mortes
violentas, como se na impossibilidade de uma justiça institucional, deixassem a cargo da
justiça das organizações criminosas agir sobre a vida desses indivíduos. Desse modo,
percebemos a existência de uma certa banalização da violência e da vida negra,
processo disseminado e introjetado até mesmo pelos familiares de pessoas que
perderam suas vidas de forma violenta.

Finalmente, podemos analisar pela concretude do contexto expresso no decorrer


da entrevista, que as mortes violentas desses jovens resultam de um processo que tem,
por um lado, a ausência do Estado no que tange às políticas sociais e a ausência na
regulamentação das drogas e por outro, sua participação efetiva na implementação de
uma política de morte, que tem a raça como marcador. Portanto, entendendo que o
racismo ocupa diversas esferas e campos da dimensão social e política, podemos
concluir que o racismo constitui-se como instrumento de controle do Estado.

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer desse estudo, podemos perceber que o racismo é o motivador da


desigualdade racial existente e sinalizada através dos indicadores sociais como pobreza,
desemprego, encarceramento e violência. Através do levantamento da formação social
do Brasil, podemos perceber como o extermínio dos corpos negros foi substancial para a
manutenção da necropolítica e, consequentemente, funcional para esse sistema produtor
de desigualdades.

Além disso, foi evidenciado como a morte de jovens negros no Brasil demarca a
efetividade de uma política de morte, que executa por aparatos diretos ou terceiriza o
extermínio através da ausência do Estado. Podemos perceber que o extermínio de
corpos negros, no contexto neoliberal, não está restrito apenas nas mortes e nos
encarceramentos, ele encontra-se em todos os sentidos da vida desses sujeitos, seja na

146
exclusão dos espaços de poder, seja na assimilação ou aniquilação da cultura, na falta
de acesso às políticas e na invizibilização e destituição de sua condição de cidadão.

Os resultados demonstram que os familiares entrevistados não percebem um


vínculo imediato com relação ao racismo e as causas do extermínio dos jovens na região.
A morte de forma violenta, para os entrevistados, estava vinculada diretamente à disputa
por territórios pelo tráfico de drogas. Por outro lado, as falas dos entrevistados
demonstram a compreensão de que o tráfico está diretamente ligado à falta de
oportunidade, emprego e estudo. Em outras palavras, está diretamente ligado a uma
ausência do Estado no que tange às políticas econômicas e sociais.

Como visto em Almeida (2021), o racismo como “ideologia molda o inconsciente".


Dessa forma, percebemos que há um processo de naturalização dos processos impostos
pelo racismo, este expressa-se de forma velada na percepção do cotidiano dos familiares
de jovens mortos de forma violenta. Por outro lado, torna-se visível, pela contextualização
da história de vida dos entrevistados, como os processos das desigualdades produzidas
pelo racismo incidem diretamente sobre todas as esferas.

No que tange às consequências do extermínio sobre a vida dos entrevistados,


percebemos que mais do que a dor da perda de um ente querido, encontra-se o medo
dessa herança de mortes e violência. Ainda ficam evidentes as marcas da violência
deixadas na constituição e futuro dessa comunidade. Por fim, trazer a realidade e história
dessa parcela da população e evidenciar os constructos das relações permite a
compreensão dos elementos através de um olhar aprofundado dos fenômenos e não
somente na quantificação desses. Simboliza tirar do invisível o genocídio existente contra
essa população e escancarar e desnaturalizar o racismo.

4- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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147
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mas ainda atinge 14,4 milhões, aponta IBGE. G1 Economia. Disponível em:
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Estudos, nº 43, novembro de 1995.

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discursos que matam. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2019. p. 13-302.

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Mascarado . 3. ed. São Paulo: Perspectivas, 2016. p. 17-229.

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Mosaico: estudos em psicologia, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 25-35, 2007. Disponível
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ZANELLA, Sandra. Mortes violentas ficam estáveis em Juiz de Fora, após duas quedas.
Jornal Tribuna de Minas. Disponível em:
https://tribunademinas.com.br/noticias/cidade/03-01-2021/mortes-violentas-ficam-
estaveis-em-juiz-de-fora-apos-duas-quedas-2.html. Acesso em: 1 mar. 2021.

148
A SEGREGAÇÃO ESPACIAL COMO EXPRESSÃO DA EXPLORAÇÃO E DA
OPRESSÃO DAS CLASSES POBRES NO BRASIL

Erika de Almeida Winter61

Resumo: Este texto faz parte das pesquisas que embasam


a dissertação de mestrado da autora. O objetivo é refletir
sobre a segregação espacial, oriunda do processo
capitalista, e reforçada pelas políticas ultraneoliberais,
executadas por um Estado opressor e violento e que dão
ensejo às massas empobrecidas, exploradas e oprimidas. O
direito à moradia digna é ceifado da população de baixa
renda pois a terra é uma mercadoria reservada às classes
dominantes e ao Estado. A exclusão socioterritorial é o
retrato da crise urbana contemporânea, com cidades
segmentadas pela desigualdade.

Palavra-chave: segregação espacial; classes pobres, direito


à moradia; crise urbana; ultraneoliberalismo.

Abstract: This text is part of the research that supports the


author's master's thesis. The objective is to reflect on the
spatial segregation, arising from the capitalist process, and
reinforced by ultra-neoliberal policies, carried out by an
oppressive and violent state and that give opportunity to the
impoverished, exploited and oppressed masses. The right to
decent housing is taken from the low-income population, as
land is a commodity reserved for the ruling classes and the
State. Socio-territorial exclusion is the portrait of the
contemporary urban crisis, with cities segmented by
inequality.

Keywords: spatial segregation; poor classes, right to


housing; urban crisis; ultraneoliberalism.

1- INTRODUÇÃO

A urbanização no Brasil, impulsionada pelas crises capitalistas, é responsável


pelo desenho de cidades segregadoras, excludentes e injustas. A crise urbana
contemporânea expõe a face mais perversa da pobreza e da desigualdade. No século

61 Advogada e jornalista. Mestranda em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
Especialista em Direito Público e em Direito do Trabalho e Previdenciário. Professora orientadora: Dra.
Elizete M. Menegat. E-mail:erikawinter@gmail.com.Eixo temático:As expressões da exploração/opressão de
classes no contexto da ofensiva ultraneoliberal.

149
XXI, a segregação espacial atinge as classes pobres de forma contundente e o cenário,
tanto nos países subdesenvolvidos como nos países centrais, é devastador.
O agravamento da crise urbana nos países periféricos é resultado da ofensiva
ultraneoliberal, que se espalhou pelo mundo, após a crise estrutural do capital nos anos
1970, e no Brasil se ampliou a partir da década de 1990. A população pobre foi afetada
diretamente pelas inserções dos Estados subordinados às ações dos mercados e dos
organismos multilaterais do capital, como o Banco Mundial, Fundo Monetário
Internacional e Organização das Nações Unidas (ROLNIK, 2015).
A reprodução ampliada do capital, cerne das políticas, trouxe implicações em
todas as áreas, não só econômica, e exacerbou as contradições entre a relação de
domínio do capital sobre o trabalho. A ofensiva ultraneoliberal intensificou as
engrenagens do modo de sociabilidade capitalista, que se funda, principalmente, na
exploração e no antagonismo entre as classes. “No capitalismo, as formas de
sociabilidade se estruturam em relações de exploração, dominação, concorrência,
antagonismo de indivíduos, grupos, classes e Estado” (MASCARO, 2013, p. 170).
O direito à moradia digna tem sido roubado das classes pobres, com índices
alarmantes de população em situação de rua no Brasil(POLOS/UFMG, 2022). São famílias
que até pouco tempo atrás tinham acesso, mesmo que precário, à habitação e ao
trabalho e foram destruídas pela política econômica regressiva. Indivíduos que estão
sucumbindo ao chamado projeto histórico-social da burguesia, com intensificação do
terrorismo de Estado - através de variados meios de violência, dominação e coerção,
racismo,xenofobia, flexibilização e precarização do trabalho, criminalização das
organizações da classe trabalhadora, entre outros, que escancaram a pauperização e
desigualdade social (DARDOT, LAVAL, 2017).

2- OFENSIVA ULTRANEOLIBERAL E AS CLASSES POBRES

No Brasil, as classes pobres são integradas, primordialmente, pelos sujeitos


sociais ocupantes de áreas periféricas, favelas, aglomerados informais e áreas de
ocupação irregular, principalmente nas grandes cidades. São os trabalhadores criados
pelo modo de produção capitalista e que Marx (2017) resgata da história como o
trabalhador feudal que precisou se emancipar dos elementos da sociedade da época,
devido à expropriação de seus meios de produção. Esses indivíduos chegaram ao século
XXI arrasados pelas péssimas condições impostas pelo jogo capitalista, em um contexto
de miséria e desemprego.

150
Petrella e Prieto (2020) ressaltam que os pobres são parte indissociável do
processo de reprodução do capital, apesar de aparentarem ser descartáveis, pois além
da venda de sua forca de trabalho, “são consumidores precários de mercadorias e estão
cada vez mais inseridos no processo geral de exploração desmedida” (PETRELLA,
PRIETO, 2020, p. 585). Isso porque, segundos os autores, diante das políticas de
reprodução ampliada do capital, há cada vez menos a expansão exponencial de lucros e
mais-valia. Com isso, é necessário o aumento dos níveis de exploração e expropriação,
inclusive sobre a população pauperizada e desempregada, que cumpre o papel de
exército industrial de reserva.
Contraditoriamente, observa-se um processo de extermínio da população de
baixa renda pelas políticas ultraneoliberais adotadas pelo Estado brasileiro. Garantidor de
elementos basilares do sistema como propriedade privada, liberdade econômica e
contratual, como formas de manutenção da ordem para a reprodução ampliada do
capital, o Estado avança sobre essa classe desassistida que perde desde o trabalho até
a moradia e a dignidade. “Nota-se, contudo, que o Estado muda de forma e função à
medida que se acentua a competição capitalista mundial, e seu objetivo é menos
administrar a população para melhorar seu bem-estar do que lhe impor a dura lei da
globalização” (DARDOT, LAVAL, 2017, p. 15).
De acordo com Mascaro (2013), o Estado é uma criação do capitalismo e sua
constituinte existencial é a dinâmica de reprodução do capital. “O aparato estatal é a
garantia da mercadoria, da propriedade privada e dos vínculos jurídicos de exploração
que jungem o capital e o trabalho” (MASCARO, 2013, p. 20).Ou seja, esse Estado
autômato nada garante aos indivíduos, apenas lhes oferta a liberdade contratual de
vender sua força de trabalho de modo cada vez mais precário.
Para o autor, as mudanças do capitalismo contemporâneo a partir da década de
1970, fizeram “com que o capital se estabelecesse ainda mais como um superpoder para
além dos Estados nacionais” (MASCARO, 2013, p. 166). Estes assumiram um papel
fundante no processo, já que para a engrenagem funcionar foi preciso que esse
“superpoder” perpassasse por dentro dos Estados. Mascaro afirma que o neoliberalismo
“não é a abolição da forma política estatal, mas, antes, a sua exponenciação”
(MASCARO, 2013, p. 195), que toma corpo a partir da década de 1980.

Ora, o traço fundamental da governamentalidade neoliberal é realizar a


transformação de todas as relações sociais, portanto da relação dos homens
com as coisas. Ela tem como singularidade a tendência a submeter
sistematicamente a reprodução social em todos os seus componentes – salarial,

151
familiar, político, cultural, geracional, subjetivo - à reprodução ampliada do capital
(DARDOT, LAVAL, 2017, p. 143).

Segundo Harvey (2012), o neoliberalismo não divide os lucros entre as classes


sociais, ao contrário, privilegia a classe dominante e o capital corporativo, moldando as
cidades conforme os interesses destes grupos. A ofensiva burguesa acentuou esses
traços, e as classes desfavorecidas estão sendo empurradas, cada vez mais, para as
periferias, aglomerados informais e a rua. De acordo com Petrella e Prieto (2020), a
produção do espaço no contexto capitalista está submetida à lógica do processo de
valorização, já que a cidade é uma mercadoria, “colocando em confronto os interesses de
classes diferenciadas na sua produção, o que (re)produz conflitos” (PETRELLA, PRIETO,
2020, p. 576).
A ofensiva burguesa retira direitos, impõe regras tiranas e instala o caos, sendo
que o avanço nefasto do capitalismo sobre as sociedades aponta para duas frentes, a
ascensão do capital rentista e a escassez de terras e recursos naturais (ROLNIK,
2015).Segundo Menegat (2009), a partir da década de 1970,o mundo vivenciou
problemas comoa crise econômica de superacumulação, crise política do Estado de
Bem-Estar Social e entrada em cena do neoliberalismo. Para as classes pobres, esse
panorama descortinou o aumento acelerado do desemprego e o trabalho precarizado,
que resultaram num movimento de compressão acelerada da pobreza, principalmente,
em áreas de ocupação informal (MENEGAT, 2009).
Para a autora, esses fatores contribuem, diretamente, para o agravamento da
crise urbana atual, que tem como alvo a população de baixa renda. “Vamos denominar
de sem-propriedade esta legião crescente de excluídos do acesso às formas legais de
propriedade da terra urbana, bem como dos serviços e equipamentos públicos
indispensáveis à reprodução da vida nas cidades (MENEGAT, 2009, p. 99).

Reflexos da ofensiva: crise urbana e segregação socioespacial

A moradia é um direito fundamental para o ser humano, e deve ser garantida


através de condições mínimas de habitabilidade com segurança e dignidade. O direito à
moradia foi reconhecido como direito humano em 1948, através da Declaração Universal
dos Direitos Humanos. No Brasil, o direito à moradia surgiu, juntamente com os direitos
sociais, na Constituição de 1824, baseada no modelo da Declaração de Direitos da
Revolução Francesa de 1789.

152
A moradia alçou a condição de direito fundamental na Constituição Federal (CF)
de 1988, e de direito social com a Emenda Constitucional nº 26, de 2000.Com a CF de
1988, o Estado passou a ter uma função positiva em relação à moradia, ao exercer o
papel de promotor de políticas públicas para tutelar o direito. Na prática, sabe-se que o
Estado capitalista não foi criado para atender a esta função constitucional de promover e
garantir moradia digna a todos, ao contrário, seu papel é de ser um aparato à reprodução
capitalista, através da troca de mercadorias e da exploração da força de trabalho sob a
forma assalariada (MASCARO, 2013).

O Estado tecnocrático atua na mitigação, na pacificação e na postergação dos


problemas urbanos na tentativa de gerir e apartar os conflitos. Porém, o conflito
sempre aparece, pois não é possível sua resolução nas condições postas pelo
modo de produção capitalista (PETRELLA, PRIETO, 2020, p. 585).

O direito à moradia se distancia, definitivamente, da realidade de milhões de


pessoas, que são privados do acesso à terra, transformada em propriedade privada,
elemento central do capitalismo. A exclusão socioterritorial é retratada pelo mundo, mas
são as cidades do Sul do globo que apresentam os piores índices (ROLNIK, 2015).
Situação agravada pelas políticas ultraneoliberais que intensificaram a expansão
da mercadoria via propriedade privada capitalista, pois “o capital não pode existir sem a
propriedade de terras, visto que faltaria um elemento fundamental para a produção do
capital” (PETRELLA, PRIETO, 2020, p. 584).O solo, bem reservado aos capitalistas e ao
Estado, tornou-se inatingível para os indivíduos trabalhadores e pobres, principalmente a
partir do processo de expropriação e apropriação da terra, que teve sua gênese no
século XV na Europa, e se espalhou rapidamente pelo mundo (FEDERICI, 2010).

O dilema dos sem-propriedade tem raízes profundas não apenas na gênese e


estruturação do modelo hegemônico de produção da riqueza social mas,
indissociavelmente, na gênese e estruturação do modelo correlato de
apropriação que se tornou hegemônico no mundo ocidental (MENEGAT, 2005, p.
117).

O processo de reestruturação e a crise fiscal produziram uma crise urbana


inédita, com consequências planetárias imutáveis. Nos países subdesenvolvidos, os
reflexos se agigantam devido a um cenário já historicamente comprometido por extrema
pobreza. “A crise urbana impõe, para os pobres urbanos, a experiência terrível de viver
como moradores indesejáveis, concentrados em propriedades ilegalmente ocupadas e
permanentemente expostos à expropriação – ou à remoção, (...)” (MENEGAT, 2009, p.
98). Pode-se afirmar, sem sombra de dúvidas, que esse é um quadro irreversível, e a

153
tendência capitalista é aumentar o número de “sem-propriedade”, nas palavras de
Menegat (2005, p. 111).
Note-se que até os anos 1970, a maioria dos brasileiros vivia no campo. O
fenômeno de inchaço populacional nas cidades é relativamente novo,e aconteceu em um
curto espaço de tempo, impulsionado pela crise da década de 1970.As políticas
implantadas intensificaram o processo de expropriação de terras rurais, ocupadas por
milhares de famílias, expulsas de seus meios de produção. Na década de 1990, capitais
como Rio de Janeiro e São Paulo possuíam moradores de todas as regiões do país,
sendo que metade deles moravam em condições indignas e 70% em ocupações
informais (DUARTE, MELLO, 2001).
De acordo com um levantamento do Programa das Nações Unidas para os
Assentamentos Humanos (UN-Habitat, 2003), São Paulo está entre as cidades mundiais
com os maiores percentuais de concentração de indivíduos vivendo em áreas informais.
Entre as cidades estão Etiópia (99,4%), Tchade (99,4%), Afeganistão (98,5%) e Nepal
(92%). A capital global dos favelados é Mumbai (10 a 12 milhões). Em seguida vem
Cidade do México e Daca (9 a 10 milhões cada), e, depois, com uma média de 6 a 8
milhões de pessoas estão Lagos, Cairo, Karachi, Kinshasa-Brazzaville, São Paulo,
Xangai e Délhi (DAVIS, 2006).
Em 2019, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou que
mais de cinco milhões de domicílios brasileiros estavam localizados em aglomerados
informais. “Em vários países do hemisfério Sul, essas políticas interagiram fortemente
com o padrão “tradicional” de provisão habitacional para os pobres – os assentamentos
autoconstruídos -, aprofundando e transformando as condições de pobreza e exclusão”
(ROLNIK, 2015, p.158).
Rolnik (2015), em sua obra Guerra dos Lugares, relata casos mundiais de
expropriação da terra e de expulsão de milhões de pessoas de suas moradias, inclusive
no Brasil. Ela define como um processo de desconstrução da habitação como um bem
social e de transmutação em mercadoria e ativo financeiro. Na América Latina e,
especialmente, no Brasil, assiste-se a incrementação severa da violência pelo Estado,
que comanda os horrores ditados pelos governante sultraneoliberais. “Trata-se da
conversão da economia política da habitação em elemento estruturador de um processo
de transformação da própria natureza e forma de ação do capitalismo em sua versão
contemporânea (...) (ROLNIK, 2015, p. 26).
A extinção de milhões de postos de trabalho é um duro golpe da ofensiva
ultraneoliberal, amparada pela quarta revolução industrial, desde meados de 2010.

154
Ocupações que não serão realocadas para gerar novas vagas de emprego. Isso significa
que o aumento do desemprego é gradual e irreversível. A Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios Contínua (PNAD), do IBGE, mostrou que o número de pessoas
desocupadas no terceiro trimestre de 2021era de mais de 35 milhões, com idade entre 25
e 39 anos. Mais de 100 milhões de pessoas, no total, a partir de 14 anos, estavam
desempregadas no período. Num país de 213,3 milhões de habitantes, em
2021,praticamente metade da população estava fora do mercado de trabalho.
Sem perspectivas de trabalho, ou na incerteza dos empregos atuais, e sob a
insegurança constante de expropriação e remoção de sua moradia, os sujeitos sociais
agonizam jogados nas periferias, áreas insalubres e ruas das cidades brasileiras. A força
de trabalho, até então indispensável para a engrenagem capitalista funcionar, começa a
tomar novas formas, menos essenciais e mais descartáveis. A exclusão socioterritorial,
pauperização e desigualdade social extremas são as expressões mais dramáticas da
crise urbana contemporânea, que alcançou índices alarmantes e irreversíveis.

3- CONCLUSÃO

A segregação espacial é uma expressão da exploração e da opressão das


classes pobres, que há muito se desenhou pelas cidades brasileiras. A ofensiva
ultraneoliberal aprofunda e radicaliza as condições de desemprego e falta de moradia
digna no país, para milhões de pessoas. O direito à moradia digna, previsto
constitucionalmente, é brutalmente desrespeitado pelo Estado, que expropria e se
apropria com violência do que é de todos, a terra.
Estudos sobre população de situação de rua escancaram o abandono e a
produção de novos invisíveis para o Estado, trabalhadores e famílias despejados de suas
moradias e que jamais imaginariam perder seus lares. São pessoas que tinham uma
moradia, emprego e condições, mesmo que precárias, e hoje estão disputando espaços
nas ruas, lotadas de jovens, idosos, crianças e mulheres. (POLOS/UFMG, 2022).
Violentados pelas políticas impostas por organismos multilaterais, através de um conjunto
amplo de propostas político-econômicas liberais, os pobres não conseguem mais
sobreviver.
Privatizações, austeridade fiscal, flexibilização e precarização do trabalho,
desregulamentação, livre-comércio, retirada de direitos trabalhistas históricos, corte de
despesas governamentais com privilégios ao setor privado, produzem o exílio do pobre
da vida em sociedade. Transformam-se os “desalentados” do IBGE, nomenclatura

155
designada para as pessoas com capacidade para o trabalho, mas que deixaram de
procurar ocupação pelo fato de não encontrarem mais um lugar no mercado de trabalho.
É a massa empobrecida, que aumenta de modo progressivo com a ordem
mundial ultraneoliberal, transformando os pobres, mais cedo ou mais tarde, em não
rentáveis, na definição de Robert Kurz (2006). Os indivíduos se tornam inúteis e entraves
à propriedade privada da classe dominante e do Estado, a mercadoria mais cara do
processo capitalista.

4- REFERÊNCIAS

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outubro de 1988. Disponível em
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London: Earthscan, 2003.

157
TRABALHO FEMININO NA REALIDADE NACIONAL: RELAÇÕES DE EXPLORAÇÃO,
DOMINAÇÃO E OPRESSÃO

Marina Fernandes Toledo Lourenço62

Resumo: O presente trabalho busca ilustrar a realidade


objetiva do trabalho feminino nacionalmente. O contexto de
precarização, informalização e flexibilidade do trabalho tem
graves rebatimentos para a classe trabalhadora, porém as
maiores vítimas desses fenômenos são as mulheres, em
especial as mulheres negras. Dessa forma, reuniu-se
estudos diversos que discorrem sobre a inserção das
mulheres em diferentes campos de trabalho.

Palavras-chaves: Trabalho; gênero; exploração;


informalidade; precarização.

Abstract: This work aims to illustrate the objective reality of


feminine labor nationally. The context of precarization,
informalization and flexibility of labor has severe
consequences for the working class, but the biggest victims
of these phenomena are women, especially black women.
Thus, various studies were reunited to discuss women’s
insertion in different lines of work.

Keywords: Labor; gender; exploitation; informality;


precatization.

1- INTRODUÇÃO

Num contexto em que a feminização do mundo do trabalho é crescente, porém


acontecendo em maioria em espaços precários, de exploração intensificada, é
fundamental deter-se no que essas modificações representam, e de que maneira são

62Mestranda no PPG de Serviço Social na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), marinaftoledo@gmail.com.
Orientadora: Profª Drª Maria Lúcia Duriguetto.

158
articuladas. As relações desiguais e hierarquizadas entre os sexos se estabelecem na
intersecção entre as esferas reprodutiva e produtiva, e pensar o trabalho feminino não
pode deixar de levar em conta esses dois aspectos.

Lima, Hirata, Nogueira e Gomes (2007) apresentam dados que demonstram que
áreas como as das novas tecnologias reforçam a marginalidade das mulheres, em
especial as não qualificadas, e que o setor de serviços, um dos que mais absorve mão-
de-obra feminina, exemplificado aqui pelo trabalho em telemarketing, se caracteriza por
tarefas monótonas, repetitivas e estressantes, apresentando condições de trabalho
precárias e, frequentemente, resultando em questões de saúde física e mental. Nogueira
(2008), outra autora a trabalhar com a questão das teleoperadoras, corrobora os achados
das autoras citadas previamente, acrescentando que as mulheres podem estar
cumprindo um papel de cobaia desse processo de modificação do trabalho, cada vez
mais precarizado e flexível, uma vez que as trabalhadoras têm menos legislações
estabelecidas para protegê-las e uma menor participação nos sindicatos, podendo esse
modelo posteriormente estender-se para o trabalho masculino. Além disso, o salário
feminino, que ainda é concebido como complementar a renda familiar, tem se mostrado
cada vez mais imprescindível para esse orçamento nos tempos atuais. Assim, embora
reconheça-se que esse trabalho apenas introduz um tema complexo e extenso, busca-se
realizar um esforço na direção da desomogeneização da classe trabalhadora,
reconhecendo as especificidades referentes ao trabalho feminino e trazendo estudos que
sejam capazes de ilustrar essa realidade.

2- EXPRESSÕES DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO FEMININO NA REALIDADE

BRASILEIRA

A partir dos anos 1970, a onda expansiva da dinâmica capitalista própria do


período welfariano se esgotou, com a redução de taxas de lucro e crescimento do
movimento operário. O capital então respondeu com a ofensiva política do
neoliberalismo, extinguindo qualquer pretensão de preocupação com o bem estar social
(NETTO, 2001), e com essa crise começa a se estabelecer a acentuação da
mundialização do capital e financeirização da economia. O padrão taylorista-fordista cede
liderança à “especulação flexível”, apresentando uma necessidade de redução de custos,
caindo principalmente no gasto com a força de trabalho, processo que reverbera
claramente nos dias atuais (IAMAMOTO, 2001).

159
Segundo o Boletim especial 8 de Março lançado pela DIEESE (2022), o que se
constata no mercado de trabalho brasileiro mais recentemente, diante da conjuntura
explicitada, é aumento do desemprego, da informalidade, do trabalho precário, da
subutilização da mão de obra e redução dos rendimentos de trabalhadores e
trabalhadoras. Ele trabalha com dados obtidos através da PnadC (Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Continua), e demonstra que, de 2019 para 2021 tivemos uma
diminuição uma diminuição na força de trabalho feminina no Brasil, com um número
expressivo de mulheres saindo do mercado de trabalho durante a pandemia e ainda não
tendo retornado na ocasião da coleta dos dados, mais especificamente o fim de 2021.
Severo (2019) apresenta alguns fatores do governo Bolsonaro que agravaram a situação,
como o fim do Ministério do Trabalho, com a maioria das suas responsabilidades sendo
direcionadas para o Ministério da Justiça e a diminuição de suas competências, e a
proposta da carteira de trabalho verde e amarela, apresentada já na campanha de Jair
Bolsonaro, outro elemento preocupante, uma vez que suprimiria diversos direitos
trabalhistas.

Buscando ilustrar os impactos dessa realidade nas relações de trabalho,


principalmente aquelas envolvendo as trabalhadoras mulheres, apresenta-se uma
sistematização de alguns artigos e teses que discutem o tema.

Neves e Pedrosa (2007) debatem o trabalho domiciliar na indústria da confecção,


afirmando que a terceirização na costura reforça uma discriminação histórica no processo
de inserção da mulher no mercado de trabalho. Já em 1999 nesse setor 70,4% das
mulheres não possuíam carteira assinada, contra 29,6% dos homens, 69,2% das
mulheres trabalhavam por conta própria, contra 30,8% dos homens, e as mulheres
compunham 74,7% dos trabalhadores das pequenas empresas, enquanto apenas
45,75% das empresas de grande porte. Ademais, o trabalho a domicílio realizado pelas
costureiras está envolto no papel de mãe e dona-de-casa, resultando numa jornada
exaustiva de trabalho produtivo e reprodutivo e misturando os espaços do trabalho e da
família, além de possuir uma fraca identidade profissional devido à falta de divisão nítida
entre trabalho produtivo e reprodutivo. As autoras realizaram uma pesquisa numa
indústria de confecção em Divinópolis (MG), envolvendo um levantamento realizado com
65 empresas de confecção, além de entrevista com 10 costureiras faccionistas, sendo a
maioria delas casada e com filhos, com idades entre 30 e 50 anos. Este perfil representa
maior estabilidade no emprego, já que mulheres solteiras costumam estar em busca de
melhores oportunidades de emprego. Todas têm baixa escolaridade, não tendo concluído

160
o ensino fundamental, e tiveram dificuldades para responder sobre a renda, mas essa
varia entre um e dois salários mínimos, existindo períodos que ficam sem trabalho e
renda. Esse valor não leva em consideração gastos aumentados pelo trabalho domiciliar,
como energia elétrica, por exemplo, além delas assumirem o valor das peças danificadas.
As pesquisadoras verificaram que a formação de cadeias de desconcentração produtiva
não elimina as características tayloristas do trabalho, permanecendo uma rígida divisão
do trabalho, sendo esse repetitivo e especializado, além de exigir pouca qualificação.
Somado a isso, na América Latina é uma prática comum que o preço do trabalho seja
determinado pelo tomador de serviços, com essas cadeiras produtivas se organizando
em torno de decisões unilaterais e assimetria. A jornada de trabalho é de em média 12
horas por dia, intercalado com as tarefas domésticas, e em períodos de pico, trabalham
também no sábado e domingo, porém sem o adicional de hora extra que um trabalho
formal proporcionaria.

Segnini (1998) faz uma análise sobre as relações de trabalho em um banco


estatal de grande porte de matriz em São Paulo a partir de um estudo de caso. A
pesquisa foi centrada no trabalho em tempo integral ou parcial, mas não pôde trabalhar
com o trabalho terceirizado ou subcontratado, o que não quer dizer que não estejam
presentes. A autora constata que as mulheres são 46% do quadro efetivo do banco,
mesmo a inscrição só tendo sido permitida para as mulheres nos concursos em 1968, e
desde então sua participação vem crescendo. No último concurso na época da realização
da pesquisa, elas foram 60%. O processo de seleção é feito pela via do concurso público,
impedindo práticas discriminatórias por determinação legal. Ainda assim, a autora
constata a construção de “guetos” femininos no trabalho. Segundo a autora, temos no
Brasil um dos sistemas financeiros mais informatizados do mundo e com categoria
bancária de alto nível de escolaridade, principalmente se comparada ao trabalho
industrial. Mesmo nesse contexto, a flexibilização das relações de trabalho também está
presente, assim como o desemprego estrutural. Todavia, isso aparece de maneiras
distintas no trabalho feminino e masculino, em que verifica-se a ocupação das mulheres
em postos de trabalho de baixo nível de qualificação com funções facilmente substituíveis
(cozinha, limpeza, digitação, etc.), “enquanto a subcontratação masculina tende a
privilegiar postos de trabalho mais especializados ou qualificados (analistas de sistemas,
segurança bancária, etc.),” como constatou Segnini (1998, p. 153-154). A maior parte das
mulheres no sistema bancário se inseria no trabalho em tempo parcial (nesse banco, em
1993, 83% delas estavam nesse tipo de relação empregatícia). Elas ocupam os postos

161
de trabalho relacionados às operações simplificadas e repetitivas, mesmo as mulheres
bancárias sendo mais escolarizadas do que os homens nesse ramo. Esse diferencial
educacional não é remunerado pelo banco. A maioria das mulheres trabalha como
escrituária, um cargo que envolve formas de controle mais rígidas, trabalho fragmentado
e rotinizado e trabalho taylorizado. Como o processo de seleção e promoção acontece
através de concurso público, não impedindo a participação de mulheres, aquelas que se
mantém no cargo escrituário são culpabilizadas individualmente, ignorando que as
funções domésticas atribuídas a elas colocam impedimentos a outros regimes de
trabalho. Segundo Segnini (1998, p. 157), “desta forma, as mulheres inserem-se nas
tramas tecidas socialmente que possibilitam a criação de segmentações e desigualdades
estruturais nas relações de trabalho.”. Ademais, há relatos de sobrecarga de trabalho ao
conciliar o trabalho em tempo parcial no banco com o trabalho reprodutivo e o alto índice
de L.E.R. (Lesão por Esforços Repetitivos) detectada em 408 bancários em 1993, sendo
80% mulheres.

Neves (2006) realizou entrevistas com 10 costureiras escolhidas aleatoriamente e


encontrou alguns dados em comum, que são frequentemente confirmados pela literatura
sobre o tema. As trabalhadoras afirmam receber ajuda dos filhos e maridos em períodos
de produção mais intensa, ou chegam a realizar subcontratações nesses períodos,
caracterizando o que é chamado aqui de quarteirização. Verifica-se a utilização do
trabalho infantil e a sazonalidade do trabalho, gerando insegurança com relação à renda.

“Segundo as faccionistas entrevistadas, é comum uma empresa contratar várias


facções para executar o trabalho, e as tentativas de negociação do preço
fracassam diante do grande número de costureiras que aceitam trabalhar pelo
preço determinado pelo empresário. Nesse sentido, verifica-se que as
costureiras domiciliares atuam como um exército industrial de reserva, não
apenas em relação às trabalhadoras diretas das confecções, mas, também, em
relação às suas companheiras que se encontram na mesma condição.” (NEVES,
2006, p. 263)

Os depoimentos das costureiras evidenciam que o trabalho não é entendido como


uma possibilidade de profissionalização, mas como um complemento à renda familiar.
Isso, somado ao trabalho realizado de forma isolada, dificulta algum tipo de organização
que pudesse negociar esses valores. Esses fenômenos não são exclusivos desse
segmento, mas tendências gerais no processo de reestruturação produtiva (NEVES,
2006).

“O trabalho remunerado é intercalado com as tarefas domésticas e, nas épocas


de maior pico produtivo, trabalham também aos sábados e domingos. Esse

162
prolongamento da jornada de trabalho torna-se vantajoso para os empresários,
que não arcam com os tradicionais ônus das horas extras, cujo adicional legal no
Brasil é de no mínimo 50%, exigido nas relações assalariadas reconhecidas.
Dessa forma, o trabalho domiciliar, embora mascarado como autônomo, torna-se
uma expressão de precariedade, sem a regulamentação das jornadas de
trabalho e outros direitos sociais.” (p. 264)

De acordo com Neves (2006), a reestruturação do setor da indústria de confecção


envolveu a flexibilização das relações de trabalho, descentralização para diferentes
espaços territoriais, incorporando o trabalho das mulheres em domicílio sem proteção
trabalhista, carteira assinada e jornada de trabalho definida, além da frequente
incorporação das atividades domésticas e de cuidado com a família. A autora constata
uma separação entre o processo de concepção e a execução, ou seja, a manutenção de
características tayloristas de trabalho repetitivo, especializado e organizado numa rígida
divisão do trabalho, na qual as mulheres se encarregam principalmente da costura, que
representa 80% da força de trabalho utilizada em todo o processo produtivo.

A inserção das mulheres na construção civil apresentou um grande crescimento a


partir de 2007. Jorge (2019) apresenta dados que demonstram que enquanto as
mulheres eram 7,14% no setor no ano de 2007, passaram para 10,49% no ano de 2017.
Os dados demonstram que as mulheres no setor de edificação do Brasil se inserem
majoritariamente nas posições escolarizadas, indicando uma modificação na forma da
entrada das mulheres no mercado de trabalho, uma vez que em outros setores, na
maioria dos casos, essa entrada acontece via ocupações mais precarizadas e de trabalho
manual. Assim, a autora introduz a dupla segmentação do mercado de trabalho, podendo
ser horizontal (maioria das mulheres em poucas profissões e ocupações) e vertical
(poucas mulheres em cargos altos, mesmo em setores em que são predominantes). As
habilidades manuais aparecem como portão de entrada para as mulheres com baixa
escolaridade na construção civil, através de trabalhos que requerem destreza, atenção e
cuidado, qualidades tidas como tipicamente femininas na divisão sexual do trabalho.
Algumas mulheres, mesmo com o curso de pedreiras, são contratadas como serventes,
ou seja, abaixo de sua qualificação técnica e com menor remuneração. Elas são
inseridas automaticamente nas atividades que mais se assemelham ao trabalho
doméstico, além dos espaços nos quais há menor desenvolvimento tecnológico, ou seja,
onde não há a inserção de máquinas, com o trabalho sendo realizado principalmente de
forma manual (JORGE, 2019). Nas palavras da autora, suas conclusões a partir da
pesquisa são de que:

163
“Destarte, como resposta pode-se afirmar que a organização do trabalho
feminino e sua convergência entre gênero, classe e raça atuam para reduzir as
oportunidades das mulheres na construção civil, não apenas através de um único
modo, mas por meio de um complexo sistema de consubstancialidades e
separações que exercem um forte controle e pressão desfavoráveis ao trabalho
feminino.” (JORGE, 2019, p. 206)

Nogueira (2006) realizou uma pesquisa com a Atento-Brasil, que é liderança do


mercado de contact centers e oferece produtos especializados e serviços automatizados
com grande redução de custos através do processo de terceirização da força de trabalho,
com a consequente precarização do trabalho. A Atento-Brasil empresa 24800
funcionários, e mais de 70% destes são mulheres. As jornadas de trabalho são marcadas
por uma acentuada exploração da força de trabalho, e 85 a 90% da carga horária diária é
passada sentada com atenção total no computador, teclado e headset. As operadoras
relatam um alto volume de chamadas, impossibilitando descansos e movimentos durante
o período de trabalho. Existe uma constante cobrança de aumento de produtividade pelo
supervisor e controle do tempo médio de atendimento das teleoperadoras. Segundo a
autora, o controle do tempo aparece como um mecanismo de extração de sobretrabalho,
imprescindível para a acumulação do capital. Assim, utiliza-se a padronização de
diálogos e prescrição de normas através de scripts e fluxogramas de atendimento, com o
objetivo principal de garantir as metas de produtividade, além da exigência de controle
das emoções através do tom de voz usado para transmitir as informações, impactando na
forma que são recebidas pelos clientes. Isso implica um aspecto emocional do trabalho,
principalmente uma vez que esse envolve frequentemente situações de agressividade e
assédio. O controle é exercido também sobre os intervalos de descanso: são quinze
minutos de pausa para lanche que são compensados no fim da jornada e cinco minutos
de pausa particular, utilizado para uso do banheiro, configurando um forte traço de
desumanização. A realidade do trabalho e das cobranças faz com que algumas
teleoperadoras não consigam tirar nem esses horários limitados para intervalo, e o
controle sobre atrasos e faltas também é rigorosamente realizado através de campanhas
de incentivos, de monitoramento próximo e advertências.

A intensidade da precarização tem sérios impactos na saúde das trabalhadoras, e


nesse trabalho, encontramos relatos sobre trabalhadoras esconderem questões de saúde
da empresa por medo de demissão, ou apenas não procurarem tratamento, apesar de
serem comuns os casos que indicam alguma doença. As trabalhadoras também relatam
dificuldade de ter suas queixas reconhecidas pelos médicos, que também são

164
controlados pela empresa. Nogueira e Pereira (2019) também discutem a saúde das
trabalhadoras e sua inserção em trabalhos com condições precárias através de uma
pesquisa documental e bibliográfica sobre a inserção da força de trabalho feminina no
setor portuário no porto de Santos (SP), o maior da América Latina, com a aplicação de
questionários semiestruturados à 15 das 19 “amarradoras” do porto, de forma aleatória.
As autoras afirmam que em 2014, eram 194 mulheres entre 1513 funcionários
trabalhando no setor portuário, com poucas diferenças nos anos anteriores. O trabalho
realizado pelos amarradores é manual e extenuante, exigindo força física, destreza e
movimentos repetitivos. A Lei da Modernização dos Portos, que trouxe um maior
incentivo à privatização, levou a uma maior intensificação do trabalho, e, como
consequência, a um maior adoecimento dos trabalhadores e trabalhadoras. Verificou-se o
aumento de depressão e estresse, somado ao esforço físico o aumento da pressão e da
responsabilidade, e, de acordo com as entrevistadas, as doenças mais comuns estão
relacionadas às condições de trabalho precárias e à insalubridade, como pouca
iluminação, muitos ruídos, mau cheiro, entre outras queixas.

3- CONCLUSÃO

A partir dos estudos apresentados, buscou-se ilustrar a realidade do trabalho


feminino no Brasil. Uma das principais consequências da reestruturação produtiva da
década de 1970 e do neoliberalismo foi a precarização do trabalho, através de
mecanismos diversos e novas formas de trabalho, resultando numa piora considerável
das condições de vida da classe trabalhadora. Todavia, foi demonstrado que as
mulheres, e em especial as mulheres negras, são as principais vítimas desse processo.
Através dos estudos apresentados, constata-se que a inserção das mulheres se dá nos
cargos de menor qualificação, tecnologia e remuneração, envolvendo condições
precárias de trabalho, que se agravam quando se leva em consideração a necessidade
das mesmas de equilibrar essas jornadas de trabalho de intensa exploração com o
trabalho doméstico de reprodução social do qual é majoritariamente encarregada.

165
4- REFERÊNCIAS

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precarização. 2022. Disponível em:
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166
O DEBATE EM TORNO DA RELIGIÃO E OS CONSUMIDORES DE DROGAS

Dayana Barbosa Furtado63

RESUMO

O presente trabalho propõe tratar o estreito relacionamento


entre o puritanismo estadunidense e a moralização dos
usuários de drogas desde as embrionárias formas de
organização política em torno destes sujeitos. Para tanto,
será necessário percorrer a literatura que evidencia este
movimento de controle assumido pelo Estado para com os
indivíduos tidos como dissidentes. Esta breve exposição,
justifica-se pela necessidade de atualização do debate,
principalmente se levarmos em consideração o poder do
movimento religioso neopentecostal na política nacional.

Palavras–chave: usuários de drogas; puritanismo;


moralização.

ABSTRACT

The present work describes the relationship between


American puritanism and the moralization of drug users as in
early forms of organization around these subjects. For that, it
will be necessary the literature supported by this movement
of control as dissidents. This brief exposition is justified by
the need to update the debate, especially if we take into
account the power of the neo-Pentecostal religious
movement in national politics.

Keywords: drug users; Puritanism; moralization.

1- INTRODUÇÃO

Conforme Carneiro (2018) esclarece em sua obra – Drogas a história do


proibicionismo; o excesso como uma atividade humana pautada no que passa da medida
não é herdado pelas substâncias psicoativas, onde o sujeito consumindo tais produtos
sem moderação envenenou seu meio social (de modo que consideramos a
criminalização das drogas e a guerra a estas inerente a nossa realidade). Pelo contrário,
manifesta a inclinação ao excesso advindo do modo de produção capitalista (mais

63
Mestranda em Trabalho e Política Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), bolsista
CAPES; dayanabf1997@gmail.com. Ofensiva ultraneoliberal do capital e lutas sociais.

167
precisamente em sua fase tardia) onde a característica da contemporaneidade pode ser
definida pela exuberância irracional.
A herança da filosofia grega de Platão e Aristóteles já definiam este padrão de
comportamento humano pela palavra pleonexia – seria o “desejo desmesurado por
muitas coisas, muitas riquezas e muitos consumos” (Carneiro,2018).
Evidenciamos esta condição cuja qual a sociedade contemporânea se exibe; para
caminharmos na direção onde possamos corroborar que - há vícios em muitas coisas no
capital. Ao passo que o consumo de drogas em excesso pode se relacionar mais a uma
fuga e uma tentativa de remediar o mal-estar gerido nesta organização.
Assim como a religião tem sido para Marx: o ópio do povo64; a loteria: o ópio da
miséria; todos se associam como uma manifestação de sofrimentos reais. Do sofrimento
do espírito, do mesmo modo como Hawthorne (1850) em seu clássico - A letra
Escarlate,65 designa a manifestação do mal-estar da alma - em suas palavras: “uma
doença do corpo, para a qual olhamos como se contivesse em si o todo, talvez não seja
afinal senão um sintoma de alguma enfermidade do espírito”.
A relação cuja qual a sociedade e o Estado desenvolveu ao longo dos últimos
cem anos com as drogas e seus usuários se equívoca em muitos aspectos. E seu
tratamento materializa a punição e moralização dos sujeitos. Ao passo que vivenciamos
uma barbárie em torno e em prol da “guerra às drogas” que esgota os recursos em nome
de uma purificação dos indivíduos que consomem drogas.
Forjando um saber que limitou a relação dos usuários a seu combate. O
movimento puritano associado ao pensamento sanitário, “também contrário aos excessos
e as paixões referidas às massas urbanas, indicou uma continuidade da força religiosa no
processo de secularização das sociedades” (CAVALCANTE&GOMES,2020), havendo a
necessidade por parte das ciências sociais (e outras áreas associadas ao estudo da
sociedade) de compreender o poder religioso diante da sociabilidade, onde a mesma é

64A famosa frase de Marx a respeito da religião como o ‘ópio do povo’ serviu, numa interpretação rasteira,
para uma condenação ao mesmo tempo das drogas e do sentimento religioso. Deste fato, temos nas
palavras de Marx, sua colocação sobre a religião que se aplica às drogas: ‘é o soluço da criatura oprimida, o
coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito (grifos nossos,
CARNEIRO,2008,p. 434,437).
65A letra Escarlate de Nathaniel Hawthorne publicado em 1850, trata – se de um romance norte-americano
onde a personagem principal Hester Prynne é tomada por uma comunidade puritana no século XVII como
bode expiatório. Faremos uma analogia ao processo de moralização vivenciado pela protagonista da obra,
para melhor exemplificar a forma como o puritanismo estadunidense influenciou e ainda predomina a
concepção em torno da punição sobre o qual sua doutrina estabelece o que considera pecaminoso.

168
capaz de contemplar “o apoio social e a intolerância – nos espaços cotidianos da
reprodução da vida”.
O presente artigo propõe demonstrar o papel da cultura puritana estadunidense,
associada a moralidade que tem construído lapsos dentro da sociedade e do Estado. No
Brasil temos a intensificação deste movimento pela reafirmação conservadora e sua
liderança com traços fascistas com estreito relacionamento entre o governo Federal e a
ação religiosa neopentecostal.

2- DO PURITANISMO AO PROIBICIONISMO

Trilhar este caminho da moral junto a legalidade da ilegalidade das drogas se


fundamenta na crítica cuja qual o movimento da sociabilidade ocorre através (mas não
somente) pela correlação das forças presentes em dada conjuntura. Não se limita e não
pode ser observado apenas como a repressão do Estado frente aos consumidores de
drogas . Ao contrário, é fundamentado na contrariedade das relações sociais onde as
classes hegemonicamente influenciam o controle social.
A atitude do Estado frente aos consumidores de drogas “moderados e
imoderados”, parte das transformações vivenciadas pelas reações puritanas norte –
americana, onde um conjunto de posições morais se voltam a determinados grupos
sociais, contendo estes: classe social, religião ou raça. Cada segmento marginalizado da
sociedade, é vinculado a determinada substância psicoativa concomitantemente a
característica de possuírem uma “inferioridade tanto moral como econômica”
(ESCOHOTADO,2004).
Como os processos históricos já esclarecem que sempre há na construção da
sociabilidade a necessidade de exclusão por parte do ordenamento econômico do capital.
Não bastaria apenas este fundamento puritano para expressar esse movimento
contraditório que o Estado assume frente às drogas. Também a influência se dá pelas
mudanças que desconstroem os ideais liberais, simultaneamente intensificando a
burocratização das relações sociais e Estado, para reiteradamente justificar as
transformações da relação capital e trabalho. Aliado segundo Escohotado (2004), ao
esgotamento terapêutico que foi assumido pelos eclesiásticos em outros tempos e agora
(no final do século XIX) será entregue ao campo da medicina66.

66Sobre este processo Escohotado, nos esclarece a partir da fala de Benjamin Rush já em 1785: “No futuro
será assunto do médico salvar a humanidade do vício, tanto como até agora o foi do sacerdote. Concebamos

169
[…] esta aliança do puritanismo e terapeutismo cristaliza – se em leis
porque se coordena com a expansão norte-americana sobre o planeta,
somada à actividade incansável de três homens. O primeiro é o reverendo
W. S. Crafts, alto funcionário com Th. Roosevelt, que na Conferência
Missionária Mundial (1900) propõe celebrar o início do segundo milénio
cristão com uma cruzada civilizadora internacional contra bebidas e
drogas; o seu fim é uma política de proibição para as raças aborígenes,
no interesse tanto do comércio, como da consciência
(ESCOHOTADO,2004;p.94).

Em consonância com os preceitos puritanos, a venda e o consumo de substâncias


que antes se encontravam dispostas aos consumidores em prateleiras de farmácias,
passa a ser intolerado e regido por legislações que consonavam com o seguinte
pensamento: “quem mata o corpo de um homem é um anjo comparado com quem destrói
a alma de outro” (ESCOHOTADO,2004).
A legislação que funda a proibição à venda de álcool – Lei Seca, vigora na
América do Norte a partir de 1920 embricado na ideia da construção de uma nova nação
- “todos os homens voltarão a caminhar de cabeça erguida, sorrirão todas as mulheres e
rirão todas as crianças. Fecharam – se as portas do inferno”67 (ESCOHOTADO, 2004).
Todavia, a punição do comportamento “convinha a uma gente para qual a religião e a lei
eram quase a mesma coisa” (HAWTHORNE,1850).
Carneiro (2018) esclarece, que a história das drogas se funda juntamente com a
história de sua criminalização. Contemplando a partir do momento onde passam a ser
reguladas pelos mecanismos do Estado, instituindo representações culturais e políticas
de repressão, incitação ou tolerância. Ou seja, os limites que são colocados às paixões,
aos hábitos, aos vícios, está ligado a determinado contexto histórico – social que o
reproduz conforme sua necessidade de organização.
A verdade é que a ideologia proibicionista inaugurada pela cultura moralista
estadunidense, não deixou espaço para a moderação – o excesso da proibição foi
deixando marcas da necessidade da abstinência, acarretando em um modus oporandi
que apenas excluía segmentos e grupos sociais, privando – os de seus direitos e os
criminalizando como meio para objetivar um fim utópico. Um “mundo sem drogas”, que
desconsiderava a relação milenar dos sujeitos com as substâncias.

os seres humanos como pacientes num hospital; quanto mais se resistir aos nossos esforços para os servir,
mais serão necessários os nossos serviços” (ESCOHOTADO,2004;p.92).
67 Discurso do senador americano Volstead difundida pelo rádio sobre a promulgação da Lei Seca–Volstead
Act.

170
A sobriedade contínua da existência é equiparada à defesa do juízo moral.
Independentemente do efeito, o que realmente se trata é da condenação da
indulgência para consigo próprio. Essa severidade puritana foi o traço
característico da relação com o corpo ao longo da era cristã. A renúncia total, a
abstinência completa, o jejum eterno dos psicofármacos, a castidade completa
dos orgasmos químicos é a norma proibicionista que decorre da arcaica
condenação do fruto proibido, inscrito na cultura como emblema do limite da
interdição (CARNEIRO, 2018;p.291).

“O admirável mundo novo68” estabelecido pelo fordismo (não apenas no âmbito da


fábrica) se estende a vida privada dos indivíduos (os trabalhadores ideais - na concepção
de Henry Ford), ultrapassa os limites das escolhas individuais dos sujeitos de poderem
conduzirem seus hábitos fora das fábricas, vinculando o proibicionismo ao projeto
industrial fordista. “O sexo e a droga, no caso o álcool, eram os principais prazeres a
serem contidos pela coerção industrial, interessada no aproveitamento máximo da força
de trabalho” (Carneiro, 2002).
O presente processo foi também percebido por Gramsci em seus Cadernos69,
onde evidenciou a necessidade da política norte americana, pautada no modo de
produção industrial, de contenção da vida privada de seus operários; acrescendo “que o
controle do consumo de álcool era indissociável do controle da vida sexual, uma
característica indispensável do novo modelo de organização do trabalho”
(Carneiro,2002).
Quem ironizasse estas iniciativas (mesmo fracassadas) e visse nelas
apenas uma manifestação hipócrita de “puritanismo” estaria se negando
qualquer possibilidade de compreender a importância, o significado e o
alcance objetivo do fenômeno americano, que é também o maior esforço
coletivo até agora realizado para criar, com rapidez inaudita e com uma
consciência do objetivo jamais vista na história, um tipo novo de
trabalhador e de homem (GRAMSCI, 2017; p.258).

Escohotado (2004) já esclarecia que a forma como a norma se organiza no início


do século XX pauta – se principalmente pelo cerco jurídico – moral ao retirar do sujeito a
autonomia sobre as decisões a respeito das substâncias que alteram o “juízo, o
comportamento, percepção ou estado de ânimo”. Para essa finalidade, é necessário ao
campo do direito “aprisionar os corpos que tenham espíritos rebeldes ou

68 Referência ao clássico livro da literatura distópica. Onde o autor Aldous Huxley cria uma sociedade
autoritária baseada no mundo pós as inovações de Henry Ford. O admirável mundo novo nos apresenta uma
realidade pautada no trabalho e na necessidade dos personagens de utilizar uma droga fornecida pelo
Estado para se submeterem a um mundo fantasioso sem plena consciência de sua realidade concreta. A
analogia se funde ao processo hegemônico da ideologia dominante, bem como Ford o fez em seus tempos
de modo reverso.
69 Contido no Caderno 22 (1934) – Americanismo e Fordismo.

171
farmacologicamente dissidentes, ou seja, a fórmula se baseia em reprimir a dissidência
política e religiosa” (grifos nossos,CARNEIRO,2018).
As ideias hegemonicamente dominantes sobre as drogas são portanto,
construções que se baseiam em campanhas de grupos moralistas, associadas ao
eugenismo; ao racismo; a violação de corpos de sujeitos cujo quais há necessidade de
enquadramento aos ditames do capital e sua exploração de raça, classe, gênero, etnia.
A cruzada baseada na suposta ciência sobre as drogas desconsidera o vínculo
intrínseco das substâncias psicoativas na história da humanidade. Lançando ao campo
da medicina (mas especificamente da neurociência, genética e epidemiologia) como
único capaz de desvendar e tratar os sujeitos consumidores de drogas e sua
dependência. A medicina, sancionada pelo Estado, se arroga assim o direito de
determinar como ‘quem deve tomar as decisões sobre quando devem ser usadas, por
quem e por meio de quem’ (CARNEIRO, 2018).
Há pensadores que explicaram o vínculo estreito entre determinadas substâncias
e a forma como a sociedade lida com tais consumos por base na crença. Ao passo que a
cultura humana (que desde sempre tende a fazer este movimento de busca por respostas
com base na teologia) associou ao longo de sua ordem ao - “fruto proibido do Éden e na
punição ao seu consumo”. As drogas são vistas como “bodes expiatórios, na qual a
humanidade e a própria divindade recebem esta condição sacrificial na sua gênese
constitutiva” (CARNEIRO, 2018).
Como na obra de Escohotado (2004), “as religiões apresentam conhecimentos
ancestrais e ritualizados sobre o uso das drogas” o que parece dar – lhes o direito de
discutir o tratamento nos meios público e privado, muita das vezes negando a ciência
para estabelecer tratamentos baseados no “livramento do pecado”. Coincidindo com
“aquilo que caracterizava a moralidade capenga da época puritana” (Hawthorne, 1850).
Todavia, os tempos de prosperidade vivenciados pelo pacto fordista – keynesiano
pós segunda Guerra Mundial se esgotam nos fins dos anos sessenta adentrando em uma
crise que vai às raízes de acumulação do capital. Para tanto, a solução das nações,
desenvolvidas a partir de 1970, centralizam os ideais neoliberais nas políticas e práticas
do Estado, ocasionando transformações nas relações sociais e culturais em âmbito global
conforme a sua progressão e avanço.
No campo da política das drogas – temos um novo ordenamento reafirmando o
pacto proibicionista no combate às substâncias e seus usuários. Discursos marcantes
como o do presidente Nixon (1970-1973), onde sobre suas palavras declarou às drogas

172
como inimigas número um dos EUA, desencadearam uma nova onde de violência em
torno dos sujeitos que consomem tais substâncias, como também a reafirmação de que
os países latinoamericanos influenciavam o consumo e o mercado70.
Para nossa análise voltada à influência religiosa nas políticas estatais. O fato do
afastamento do catolicismo como religião predominante na América Latina a partir da
década de 1970, e a consequente ascensão do movimento evangélico, nos dá um novo
norte para contemplar o último decênio deste século. Destacando que as mudanças
ocasionadas pela esfera do capital e do trabalho (o desemprego; a imprevisibilidade do
futuro; a violência; a globalização) acarreta na aproximação a novas vertentes espirituais.
O exame da secularização no projeto de modernidade dos países da
América Latina combina distintos componentes no âmbito da cultura
popular, cujas tradições se reproduzem numa cotidianidade marcada
pelas incerteza de acesso aos meios para reprodução da vida e pelo
sistemático distanciamento das massas à educação formal atualizando
traços religiosos tradicionais com modernos numa racionalidade
hemiderna (CAVALCANTE&GOMES,2020;p.61).

Sobre circunstâncias econômico e sociais pautadas em um estreitamento das


relações sociais; a religião protestante e suas manifestações dentro da organização
política nos países latino americanos, e aqui damos destaque a realidade brasileira; faz –
se evidenciar, e se torna parte integrante da atuação do Estado em meio as
manifestações da crise do capital junto a um forte movimento do conservadorismo.
A conjuntura política desfavorável aos movimentos sociais (junto a uma perda do
espaço político da esquerda para a direita ultraneoliberal) no Brasil, tornam a influência
pentecostal como um meio de organizar as políticas nacionais como também as
instituições, não se preocupando com a ostensiva evidencia de que se trata de um
processo estritamente moral dos usuários dos serviços públicos. Nas palavras de Brown
(2019) “conjugam a retidão moral com uma conduta amoral e não civilizada quase
celebradora. Endossam a autoridade enquanto exibem desinibição social e agressão
pública sem precedentes”.
Portanto, a forma como o proibicionismo se organiza no século XXI se distingue
dos anteriores; pautando – se mais nas drogas ilícitas, acarretando consequentemente
na inflação do “aparato policial na tarefa da repressão moral” (Carneiro,2002).

70Este movimento segundo Cavalcante e Gomes estaria mascarando o a intenção de conter os movimentos
revolucionários na América Latina, asseverando a constatação dos Estados de tornar novamente as drogas
como bode expiatório.

173
3- CONCLUSÃO

Buscamos através desta breve exposição, contemplar uma análise que vincula
organicamente a questão das drogas à religião, principalmente na relação de moralização
contida na sociedade civil; executada pelo Estado e aclamada pelos movimentos
religiosos que tendem a uma purgação dos sujeitos que desassemelham ao
tradicionalismo moral. Neste passo a intenção seria de contribuir para o debate crítico em
torno das políticas para consumidores de drogas ilícitas.
Todavia, coube (mas cabendo ainda muito mais) estabelecer a necessidade de
compreensão em torno do peso da religião dentro da sociedade e Estado para
contemplarmos a forma como demasiada permanência influência às políticas em torno
dos consumidores de drogas mas com um aspecto estritamente moral a estes sujeitos se
estendendo ao campo privado.
A permanência da religião dentro da esfera estatal, representa um processo que
acarreta simultâneos retrocessos no campo das políticas públicas e consequentemente
desencadeia uma onda de perseguição sobre os usuários que não se limita ao campo
penal.
As instituições que trabalham pelo viés da cidadania, vem ao longo dos últimos
vinte anos, perdendo espaço para a repressão e uso da violência exercido por
instituições como as Comunidades Terapêuticas que trabalham vinculadas ao campo
religioso com base na moral como fundamento constituinte de sua organização e ação.
Desse modo, o debate em torno da correlação de forças dentro do Estado, que se
articula aos movimentos religiosos para reafirmar uma conduta moral burguesa, é mais
que necessário pelos movimentos antiproibicionistas para que seja possível reconquistar
os espaços políticos e públicos que estão sendo perdidos.

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Nelson Coutinho; Luiz Sergio Henriques; Marco Aurelio Nogueira. - 1. ed. - Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

HAWTHORNE, Nathaniel. A letra escarlate. Tradução de Christian Schuwartz – 1º


edição - São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

175
VII SEMINÁRIO INTERNACIONAL
Lutas Sociais, Ofensiva Ultraneoliberal e Serviço Social:
resistências e articulações internacionais

EIXO TEMÁTICO 3
Lutas Sociais, resistências
e internacionalização
OFENSIVA ULTRANEOLIBERAL: o ataque as lutas sociais urbanas como resposta à
crise do capital

Kathleen Pimentel dos Santos71

RESUMO

O artigo apresenta reflexões acerca do avanço


ultraneoliberal sob as lutas sociais urbanas, destacando as
respostas dadas pelo Estado às demandas dos movimentos
por moradia para favorecer o capital. Os resultados
preliminares apontam que o capital aprofunda a
mercantilização do espaço urbano como resposta à crise
capitalista estrutural, empenhando-se em combater as lutas
sociais através de novas formas de deslegitimação, além de
intensificar as estratégias de criminalização dos movimentos
sociais.

Palavras-chave: Lutas sociais; Ultraneoliberalismo;


Movimentos urbanos; Criminalização; Moradia.

ABSTRACT

The article presents reflections on the


ultraneoliberaladvanceunderurban social struggles, highlight
ing the responses given by the State to the demand soft he
housing movements to favor capital. Preliminary results
indicate that capital deepens the commodification of urban
space as a response to the structural capitalist crisis, striving
to combat social struggles through new forms of
delegitimization, in add ition to intensifying the strategies of
criminalization of social movements.

Keywords: Social struggles; Ultraneoliberalism;


Urbanmovements; Criminalization; Dwelling.

1- INTRODUÇÃO

As mudanças no mundo do trabalho, desencadeadas da crise de 1970, com a


reestruturação produtiva, a mundialização financeira e o neoliberalismo apresentavam
uma nova realidade para a classe trabalhadora. A redução dos postos de trabalho

71 Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail: pimentelk18@hotmail.com.


Eixo temático: Ofensiva ultraneoliberal do capital e lutas sociais.

177
decorrente do processo de desindustrialização e da reestruturação produtiva, e a redução
de gastos sociais e a privatização dos serviços públicos com o avanço das políticas
neoliberais pôs o trabalho e a moradia no centro da problemática urbana.
No sentido de promover uma retomada da acumulação do capital, o capitalismo
aprofunda o processo de apropriação do espaço urbano como mercadoria, promovendo a
segregação socioespacial. Com o avanço do ultraneoliberalismo, as respostas às
demandas por moradia e a partilha dos espaços citadinos foram voltando-se cada vez
mais para suprir a necessidade incessante de valorização do capital. Ao mesmo tempo,
as lutas sociais urbanas em torno de moradia sofrem o empenho ininterrupto do capital
em penaliza-las, operando ora por via do tratamento repressivo, com uso de violência e
dominação, ora pelo processo de deslegitimação, fechando os espaços de controle social
democrático conquistados pelos movimentos sociais, bem como pela criminalizando das
suas pautas.
Diante disso, o artigo objetiva refletir o avanço do capital sobre o espaço urbano e,
consequentemente, sobre as lutas sociais em torno do direito à cidade e a moradia.
Através da revisão bibliográfica, identificou-se que no processo de reconversão da crise,
o capitalismo tem empreendido forças para deslegitimar as lutas sociais. Assim, o
primeiro item concentra-se em compreender as repercussões da crise capitalista no
espaço urbano, e o segundo concentra-se nas consequências desse processo às lutas
sociais.

2- CRISE CAPITALISTA E SUAS REPERCUSSÕES NO ESPAÇO URBANO

O capitalismo, em qualquer um de seus estágios, particulariza-se pela busca


incessante de lucros, sendo próprio do capital a necessidade permanente de valorização.
No decorrer de sua história, esse modo de produção encontra intervalos de recessão,
com o comprometimento da reprodução ampliada do capital. Esses intervalos, pela sua
periodicidade, denominam-se crises cíclicas. Tais crises são inerentes à dinâmica
capitalista, em virtude das contradições próprias do seu modo de funcionamento e
ocorrem logo após uma fase de grande prosperidade econômica, interrompendo o
processo de acumulação do capital.
Conforme a análise de Mota (2009), as crises afetam diferentemente as duas
classes sociais antagônicas: para a burguesia, representam uma ameaça ao seu poder;
já para o proletariado, trata-se da intensificação da exploração da força de trabalho posto
que são afetados na sua materialidade e subjetividade pelas condições do mercado de

178
trabalho, com o desemprego estrutural, as reduções salariais, o crescimento do exército
industrial de reserva, o aumento da pobreza e miséria e o enfraquecimento da sua
organização política.
Após a crise estrutural do capital, que foi causada por uma crise de
superprodução, a recuperação dos lucros se daria pela via dos investimentos
especulativos, dado que foi disponibilizado um montante de capital em sua forma
monetária, do qual parte permaneceu na circulação da esfera financeira, estruturando um
novo regime mundial de acumulação capitalista em que o capital se valoriza na própria
esfera financeira e não mais na esfera de produção, o que Chesnais (1996) denomina de
mundialização do capital.
Nessa nova fase do desenvolvimento capitalista, o capital financeiro e
especulativo se valoriza em seu interior, por meio das instituições financeiras e dos
fundos mútuos e de pensão, e se sobrepõe ao capital produtivo, conforme reitera
Chesnais (1996, p. 14) ao afirmar que “o estilo da acumulação é dado pelas novas
formas de centralização de gigantescos capitais financeiros”. Sob esse novo padrão de
acumulação, foram articuladas medidas de liberalização, desregulamentação e
privatização como forma de sustentá-lo, rompendo com qualquer tipo de controle às
relações sociais.
A adoção do receituário neoliberal pelo Brasil em 1990 e o avanço das suas
políticas implicam decisivamente na configuração das cidades e no acirramento da
questão urbana/habitacional brasileira, tanto pela redução de gastos sociais do Estado e
a privatização dos serviços públicos quanto pela concepção de cidade – em sua
organização espacial – como fonte de investimento no setor produtivo, para potencializar
a reprodução e acumulação de capital financeiro com empreendimentos urbanos
(ALVES, 2019). Souza (2018) destaca que estes empreendimentos urbanos sob forças
neoliberais compromete a gestão das cidades ao passo que

[...] é observado um crescente movimento de privatização seletiva e de


exclusividade no acesso aos novos empreendimentos, aspectos que dão
conteúdo ao urbanismo neoliberal instalado no País a partir dos megaeventos
recentes, em detrimento da potencialização dos espaços públicos e do ambiente
urbano mais inclusivo (SOUZA, 2018, p. 247).

Em linhas gerais, esse processo representa a financeirização do capital no setor


imobiliário. É a utilização de instituições financeiras e de crédito para melhorias na
infraestrutura dos espaços urbanos, transformando o fenômeno da urbanização em

179
mecanismo de absorção da produção excedente que os capitalistas produzem sempre
que buscam por lucros, como defende Harvey (2013).
Os mecanismos de acumulação do capital se mostram na alarmante – e visível –
segregação urbana na realidade brasileira. De acordo com o jornal Estadão (2011), pelas
fontes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o quantitativo de
aglomerados subnormais72 teve seu número quase dobrado no período de 20 anos. Em
1991, cerca de 4,48 milhões de pessoas (3,1% da população) viviam em assentamentos
irregulares, passando para 6,53 milhões (3,9%) em 2000.No ano de 2010, essa realidade
alcançou 11,42 milhões de pessoas morando em favelas, palafitas ou outros
assentamentos irregulares.
Assim, o progresso das cidades brasileiras é limitado e/ou delimitado pelo
segmento populacional que possui meio de pagá-lo, uma vez que a moradia nas cidades
é altamente mercantilizada, ou seja, possui valor de troca e a exploração do espaço
urbano é fonte de acumulação do capital. A sequela é um enorme contingente de
pessoas expropriadas dos direitos básicos, sendo “resultado de um processo de
urbanização que segrega e exclui” (MARICATO, 2000, p. 155). Dessa forma, o aumento
exponencial de ocupações de terras de forma irregular é sintetizado por Santos (2009
apud MONTEIRO; VERAS, 2017), pela lógica excludente do mercado imobiliário e pela
ausência de políticas sociais – principalmente de uma política de habitação – que
atendam as reais demandas da classe trabalhadora, em especial, da parcela que
vivencia o trabalho informal e aquelas condições de trabalho e de vida da forma
estagnada da Superpopulação Relativa no Brasil.
Na realidade, o que se percebe é que a ação do Estado, por meio das políticas
habitacionais, e do capital, por meio do setor imobiliário, oferece as condições estruturais
para a produção da segregação socioespacial, determinando uma divisão da população
por classe social nos espaços urbanos (SANTOS, 2018). Os indicadores
socioeconômicos e a segregação e guetização encontradas nas cidades revelam as
agruras que seguimentos populacionais t em enfrentado para que as estratégias de
reconversão da crise econômica sejam realizadas.

72 Aglomerado Subnormal é uma forma de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia – públicos
ou privados – para fins de habitação em áreas urbanas e, em geral, caracterizados por um padrão urbanístico
irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas com restrição à ocupação. No
Brasil, esses assentamentos irregulares são conhecidos por diversos nomes como favelas, invasões, grotas,
baixadas, comunidades, vilas, ressacas, loteamentos irregulares, mocambos e palafitas, entre outros(IBGE,
2021).

180
A concentração de renda e riqueza pelas empresas capitalistas no campo, a
redução de gastos sociais seguindo o receituário neoliberal, e o avanço do capital
imobiliário sobre as cidades como resposta à crise do capital monopolista aprofunda as
desigualdades urbanas, e também, contrário a esse movimento, desencadeia um
processo de luta por moradia.

3- O AVANÇO NEOLIBERAL ÀS RESISTÊNCIAS SOCIAIS URBANAS

De acordo com a análise de Duriguetto (2017), o constrangimento e a


criminalização das lutas sociais das forças populares são inerentes à sociedade
capitalista e das relações de dominação e opressão da classe dominante sobre as
classes subalternas. No contexto da ofensiva neoliberal tem se percebido a intensificação
das ações de criminalização dos movimentos sociais e suas lutas, na tentativa de
deslegitimar as resistências organizadas da classe trabalhadora contra as desigualdades
sociais desse sistema.
O processo de criminalização dos movimentos sociais, que expressa o poder
coercitivo do Estado, se complementa com a deslegitimação das ações reprimidas e a
incriminação daqueles que as fazem, como forma de garantir que as ações de repressão
não gerem um efeito contrário na sociedade, pondo em xeque os interesses da classe
capitalista (VIANA, 2018).
A luta por moradia vem se constituindo como uma luta fundamentalmente de
trabalhadores negros, em que as respostas do Estado vêm se dando a partir dos
despejos e uso de violência. Soma-se a esse cenário a oferta institucionalizada de uma
política habitacional que acentua e sustenta o histórico processo de segregação
socioespacial, conduzindo para áreas desprivilegiadas esses/as trabalhadores/as pobre e
pretos/as, mesmo com a instituição de programas que se apresentam como destinados
ao atendimento dos segmentos da classe trabalhadora mais empobrecida.
Esses traços das respostas do Estado à luta por moradia podem ser verificados
nas ações mobilizadas, pelas gestões municipais e estaduais, envolvendo o Poder
Judiciário e a Força Policial em todo território nacional. São recorrentes os despejos e
reintegração de posse que atingem os movimentos sociais de luta por moradia, em um
contexto cujos programas de habitação não respondem ao déficit habitacional, tão pouco
desaceleram a apropriação da cidade pelo capital.
Como indica Chesnais (1996), ascentrais diretivas da mundialização da economia,
impõe restrições à soberania e à autonomia dos Estados nacionais e na periferia

181
capitalista, mesmo sob o comando de projetos políticos inclinados “à esquerda”, as ações
são movidas para

[...] implementação de programas e projetos para atendimento de demandas de


seguimentos sociais historicamente excluídos sem que sejam produzidas
modificações nas suas formas de inserção produtiva, nos processos de
apropriação de terra urbana, de periferização e mecanismos de acumulação e
apropriação do valor. (SANTOS et. al., 2014, p. 715).

Daí porque esse contexto tem impulsionado os movimentos urbanos de moradia a


reivindicarem o direito à moradia e à cidade, constitucionalmente instituídos, mas
comumente negligenciados, principalmente em um cenário com dois agravantes
conjunturais: o mandato presidencial da direita radical bolsonarista e a pandemia do
Covid-19.
Desde o início do governo, o presidente Bolsonaro não tem apresentado
demonstrativos de preocupação com as minorias e/ou direitos sociais. Os espaços de
atuação e diálogos dos movimentos populares urbanos, conquistados anteriormente, viu-
se cada vez mais atacados e deslegitimados. Uma série de ações nos últimos anos vem
cada vez mais intensificando a “criminalização da pobreza, na judicialização do protesto
social, na repressão política aberta e na militarização” (LONGO; KOROL, 2008, p.46)
contra os movimentos sociais e populares, sendo muito presente nos movimentos
urbanos.
Para Sauer (2008 apud DURIGUETTO, 2017, p. 112), esse tipo de ação é
caracterizado como “mecanismos mais sofisticados de repressão das demandas sociais”,
principalmente quando são fechados os canais dos espaços de diálogo com os
movimentos populares, a exemplo da extinção do Conselho Nacional das Cidades. A
esses mecanismos de repressão se soma a substituição do Programa Minha Casa,
Minha Vida pelo Casa Verde e Amarela. Nesta, percebe-se a reversão às conquistas e
retardamento do acesso à moradia do contingente mais empobrecido da classe
trabalhadora. O ataque aos investimentos da política habitacional mostra o quanto é
regressiva a destinação dos recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse
Social: em 2019 recebeu 63,2 milhões (0,39% de participação do Ministério do
Desenvolvimento Regional) e caindo para 24,1 milhões (0,19%), em 2021, conforme
dados do Siga Brasil (2022).
Além do ataque aos investimentos governamentais na área da habitação social do
atual governo, de não fomentar espaço de diálogo com os movimentos populares, de
retroceder da produção de moradias para famílias de baixa renda e das tentativas de
judicialização dos conflitos e lutas sociais, as ações sociopolíticas do Estado em resposta

182
às reivindicações dos movimentos sociais urbanos de luta por moradia, também se
mantiveram na esfera da violência e repressão.
São os pobres e considerados incapazes de contribuir para o desenvolvimento econômico
do país que devem ser expulsos e excluídos dos lugares privilegiados das cidades. Essa
estratégia ganha força na opinião pública por propagar – veículos midiáticos com financiamento do
capital – a ideia do outro como inimigo e perigoso. Por isso recorrem a estratégia de associação
da pobreza à criminalidade como parte das medidas punitivas e repressivas estatais, conjugando-
os suas reinvindicações como ilegais e seus sujeitos como criminosos (SAUER, 2008 apud
DURIGUETTO, 2017). Trata-se, portanto e ao mesmo tempo, de “ocultar a lógica conflituosa das
lutas de classe” e uma forma de “administração das desigualdades e, também, das resistências
organizadas pelos trabalhadores” (DURIGUETTO, 2017, p. 108).
As ações de remoção com justificativas questionáveis também é uma estratégia
que acompanha há muito tempo os movimentos urbanos que ocupam áreas estratégicas
de valorização do capital. Essa tendência compõe o bojo das intervenções abusivas e
arbitrárias dos agentes do Estado na retirada dos integrantes dos movimentos, que
utilizam

chegada repentina de equipes de demolição, sem qualquer aviso prévio para que
os moradores providenciassem outra moradia ou a remoção adequada dos seus
pertences; emprego de táticas violentas e intimidantes, como o acionamento da
polícia militar para lançar bombas com gás de pimenta contra moradores
resistentes; retirada de pessoas sem o recebimento de habitação alternativa e/ou
indenização justa; realização de remoções com base em justificativas
contestáveis, como as de definição de área de risco (MATTOS, 2013, p.180-
181).

Revela-se, assim, o duplo caráter de ataque do capital aos movimentos sociais


urbanos de luta por moradia, quando reduzem cada vez mais suas demandas por meio
de cortes de recursos para a política habitacional, e quando tem criminalizado suas ações
e penalizando seus sujeitos e seus conflitos. No atual cenário, com o avanço
ultraneoliberal, a realidade instaurada é de exacerbação dos retrocessos democráticos,
seja na retirada de direitos e no aprofundamento dos desmontes das políticas públicas,
seja nos ataques às lutas sociais e às forças sociais populares.

4- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do apresentado, torna-se evidente que o processo de mercantilização do


espaço urbano tem levado a cabo os determinantes da mundialização do capital,
onerando a classe empobrecida do acesso à moradia digna e ao direito à cidade. Com o

183
fortalecimento do ultraneoliberalismo, esse cenário se aprofunda e se soma a um projeto
reacionarista conservador que promove ataques às forças sociais populares, tal como
ocorre com os movimentos de luta por moradia.
Pressupõe-se que, em tempos turbulentos, em termos políticos e econômicos,
como os atuais, compreender os processos que cercam e estruturam a vida urbana
contribui para o conhecimento da realidade social do sujeito político denominado "sem-
teto" ao tempo que contribui para fortalecer as formas de resistência contra as
determinações do capital.

5- REFERÊNCIAS

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ENCONTRO INTERNACIONAL DE POLÍTICA SOCIAL E ENCONTRO NACIONAL DE
POLÍTICA SOCIAL. 7., 14., 2019, Vitória. Anais [...]. Vitória: UFES, 2019.

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DURIGUETTO, Maria Lúcia. Criminalização das classes subalternas no espaço urbano e


ações profissionais do Serviço Social. Serviço Social & Sociedade, n. 128, p. 104-122,
jan./abr. 2017.

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IBGE. Aglomerados Subnormais. 2021. Disponível em:


https://www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-do-territorio/tipologias-do-
territorio/15788-aglomerados-subnormais.html?=&t=o-que-e. Acesso em: 15 out. 2021.

LONGO, Roxana; KOROL, Claudia. Criminalização dos movimentos sociais na Argentina.


In: BUHL, Kathrin; KOROL, Claudia. Criminalização dos protestos e dos movimentos
sociais. São Paulo: Instituto Rosa Luxemburgo Stiftung, 2008. p. 10-13.

MARICATO, Ermínia. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias. In: ARANTES,
Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia (org.). A cidade do pensamento único:
desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000.

MATTOS, Romulo Costa. Remoção das favelas do Rio de Janeiro: uma história do tempo
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MONTEIRO, Adriana Roseno; VERAS, AntonioTolrino de Rezende. A questão


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NETTO, José Paulo. Transformações societárias e Serviço Social. Serviço Social &
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184
SANTOS, Maria Elisabete Pereira dos et al. O Programa Minha Casa Minha Vida
(PMCMV) e o Direito à Moradia - a experiência dos Sem Teto em Salvador.
Organizações & Sociedade, v. 21, n. 71, p. 713-734, 2014.

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SOUZA, Angela Maria Gordilho. Urbanismo neoliberal, gestão corporativa e o direito à


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VIANA, Nildo. A criminalização dos movimentos sociais. Revista Espaço Acadêmico, n.


202, mar. 2018.

185
DA INCONSEQUÊNCIA IRRACIONAL À CRISE POLÍTICA: Notas sobre classismo,
lutas sociais e antirracismo

Fillipe Perantoni73

Resumo: Convidamos o/a leitor/leitora a refletir sobre a


importância de fazer um debate fraterno para quem se
coloca no mesmo campo de luta anticapitalista e antirracista,
conscientes de que somente assim é possível o
fortalecimento da luta, absolutamente tranquilos/as em
aprender sobre o que não sabemos, mas também
preocupados em apresentar elementos questionadores
sobre o que tende a nos fragmentar e reforçar exatamente o
que combatemos: capitalismo e racismo.

Palavras-chave: 1. Antirracismo; 2. Lutas Sociais; 3.


Classismo.

Abstract: We invite the reader to reflect on the importance


of having a fraternal debate for those who place themselves
in the same field of anti-capitalist and anti-racist struggle,
aware that only in this way is it possible to strengthen the
struggle, absolutely calm in learning about the that we don't
know, but also concerned with presenting questioning
elements about what tends to fragment us and reinforce
exactly what we fight: capitalism and racism.

Keywords: 1. Anti-racism; 2. Social Struggles; 3. Classism.

1- INTRODUÇÃO

Para além de uma hipótese sobre determinado movimento da realidade, nossa


intenção neste artigo é abrir um debate fraterno com alguns dos movimentos sociais que
lutam pelo fim da opressão de raça, imprescindíveis nas lutas anticapitalistas, mas que,
devido à sua heterogeneidade, tem trilhado caminhos de pouco diálogo e isolamento.
Com o cuidado e a necessária atenção aos fundamentos históricos que a
discussão exige, gostaríamos de quebrar o tabu de realizar essa interlocução na
polêmica, amplamente abertos aos contrapontos, ecom o objetivo prioritário de buscar
um caminho comum que nos unifique contra o principal inimigo do tempo presente: o
desenfreado avanço capitalista no extermínio de populações e destruição deste mundo.

73
Assistente Social do IFPB, campus João Pessoa, e doutorando em Serviço Social pela Escola de Serviço
Social da UFRJ.
Eixo Temático: Ofensiva ultraneoliberal do capital e lutas sociais

186
Acreditamos que nenhuma opressão será superada nos marcos deste modo de
produção, embora, também é importante reconhecer que, diversas outras opressões, e
aqui destacamos a opressão de raça, não serão automaticamente extirpadas com o fim
da exploração de classe.
Assim como a ampla maioria dos movimentos antirracistas, nos parece ser uma
posição irracional desconsiderar a luta anticapitalista apartada da luta antirracista, da
mesma forma que não é possível combater o racismo sem um enfretamento sistemático
ao predatório modo de produção capitalista.

Clamar por uma “identidade branca” ou ostentar uma identidade nacional


contra não brancos e imigrantes é um clássico da direita, especialmente em
tempos de crise do capitalismo, que, de liberal universalista, rapidamente
pode virar a chave para o fascismo. Mas uma “identidade negra”
desconectada das estruturas sociais também pode ser conservadora ou
reacionária e servir aos propósitos de reprodução do capitalismo, que
historicamente tem se mostrado capaz de metabolizar o racismo e
transformá-lo em aspirações de consumo e de poder. Ao fim e ao cabo, a
política identitária, especialmente em tempos neoliberais, é um fator
importante para que a divisão social e a atomização que marcam o
capitalismo continuem a acontecer. (ALMEIDA, 2019, p.13-14)

Neste sentido, desde já nos colocamos no campo do pensamento que entende


que para superarmos o sistema capitalista é imprescindível que se tenha uma ampla
unidade entre trabalhadores e trabalhadoras, nas suas mais diversas expressões
(negros, negras, LGBTQIA+, povos originários, jovens, idosos, idosas, deficientes, etc.) e
opressões.
Da mesma forma, acreditamos que para derrotar o racismo, a luta antirracista
deve igualmente ser ampla, possuindo como elemento de unidade o ódio ao racismo e a
intencionalidade de sua erradicação desta sociedade, num movimento que deveria
unificar todos e todas que repudiam as múltiplas violências oriundas através da raça dos
sujeitos.
Todavia, nesse debate partimos do determinado princípio de que enquanto houver
capitalismo vai haver racismo e, somente sem capitalismo é que teremos condições mais
favoráveis para extirparmos o racismo.

2- “Antirracismos”: aspectos da crise política à brasileira

De antemão gostaríamos de elucidar que, de forma alguma, entendemos ser


específico do Brasil o contexto da crise política, em que os caminhos dos movimentos
sociais são permeados por contradições e conflitos. Nos chama a atenção a dificuldade

187
para se estabelecer um eixo comum entre movimentos que caminham de maneiras tão
diferentes. Considerando que ainda há nos movimentos sociais clássicos, tais como
partidos e sindicatos, um racismo velado, acreditamos haver também um
constrangimento geral em reconhecer isso publicamente. Nenhum partido ou sindicato do
campo anticapitalista se assume racista, muito embora tenham dificuldades em aplicar
políticas realmente antirracista na maioria das vezes. Sabemos que isso é grave, mas
felizmente tem se tornado cada vez mais comum o diálogo formativo/educativo com
movimentos antirracistas classistas, o que tem permitido aos poucos uma reaproximação
entre estas pautas. Não sem cicatrizes, não sem dificuldades, no entanto permeado com
o argumento mais forte para que a unidade aconteça, que é destruir o modo de produção
capitalista e o racismo.
Entretanto, gostaríamos de nos atentar para um outro movimento que vem
ganhando força, identificados por nós como um movimento antirracista sectário não
classista. No seu programa, a luta contra o racismo combinada a ataques sistemáticos a
partidos e sindicatos, mas não só. Ataques também aos movimentos que tenham
brancos/brancas em suas fileiras, sejam eles/elas filhos/filhas da classe trabalhadora ou
não.
Sabemos que esse é um fenômeno mundial, mas gostaríamos de contribuir no
debate sobre o caso brasileiro, sobretudo nesta conjuntura neoconservadora74.
Longe de fechar a discussão, nossa intenção é apenas iniciá-la, sobretudo
sabendo o tabu existente quando se toca nesse temário, uma vez que

[...] hoje em dia com frequência os pensadores e militantes de esquerda


radical ficam relutantes em criticar até mesmo a mais elitista das expressões
da ideologia racial, por receio de que pareça estar deslegitimando qualquer
movimento contra o racismo e o sexismo. (HAIDER, 2019, p.46)

Com o devido cuidado que a questão exige, acreditamos que um dos principais
aspectos da crise de representatividade política vivida no Brasil, expressa nas severas
dificuldades de partidos e sindicatos (movimentos classistas) em agregar
trabalhadores/as, advém do seguinte cenário:

O conflito social de classe não é o único conflito existente na sociedade


capitalista. Há outros conflitos que, embora não se articulem com as relações
de classe, não se originam delas e tampouco desapareceriam com ela: são
conflitos raciais, sexuais, religiosos, culturais e regionais que podem remontar
períodos anteriores ao capitalismo, mas que nele tomam uma forma
especificamente capitalista. Portanto, entender a dinâmica dos conflitos
raciais e sexuais é absolutamente essencial à compreensão do capitalismo,

74Para maiores definições sobre o neoconservadorismo, recomendamos o livro organizado por Gallego
(2019), “O ódio como política: reinvenções da direita no Brasil”.

188
visto que a dominação de classe se realiza nas mais variadas formas de
opressão racial e sexual. A relação entre Estado e sociedade não se resume
à troca e produção de mercadorias; as relações de opressão e de exploração
sexuais e raciais são importantes na definição do modo de intervenção do
Estado e na organização dos aspectos gerais da sociedade” (ALMEIDA,
2019, p. 97).

Acreditamos que a afirmação de Almeida (2019) é incisiva quando nos mostra a


necessidade de se ampliar o olhar sobre a classe trabalhadora na sua diversidade. Esses
são elementos importantes na reflexão da crise política atual, pois reforça as lacunas que
historicamente foram preteridas pelos partidos e sindicatos e que, nesse momento, são
cobradas quando se pensa em formas universais de organização da classe trabalhadora.
No correr da história, pouco se viu, nos movimentos classistas, sobre políticas sérias e
realmente inclusivas considerando gênero, raça, etnia e religiosidade, aspectos
importantes que conformam a heterogeneidade da classe trabalhadora. Via de regra,
estes espaços, sobretudo de direções de movimentos e núcleos de formulação de
políticas, sempre foram conformados pelo militante homem, branco, de meia idade,
heterossexual, com piadas homofóbicas e racistas, e machista nas relações afetivas.
Com o passar dos anos, e ocorrendo apenas na história recente, muitas destas
organizações, percebendo o absurdo do erro e a necessidade de se reaver com
segmentos importantes da classe trabalhadora, começaram a mudar sua política,
tentando, não só acolher, mas também inserir os até então “excluídos”, nas direções do
movimento.
Esta síntese nos mostra que a simples inserção de segmentos oprimidos/as nas
direções dos mediadores universalizantes não é suficiente. O necessário é que isso
contribua para uma política interna forte, que combata toda e qualquer ação com
características opressoras, alterando a estrutura orgânica da organização e, sempre que
possível, fazendo reparações históricas.
Pensar na importância da inserção de pautas específicas nos mediadores
universais, mais do que uma necessidade, é uma obrigação. São aspectos intrínsecos e
constitutivos de uma mesma simbiose para pensar um mundo anticapitalista. Almeida
(2019) demonstra isso na argumentação sobre o racismo:
A questão racial não é uma questão secundária se considerarmos o
desenvolvimento do capitalismo que historicamente esteve atrelado a práticas
coloniais. O racismo não é apenas um problema moral. O racismo é um
problema político, mais especificamente, de economia política, uma vez que
se materializa como uma tecnologia que reproduz desigualdade e justifica a
morte e a manutenção de privilégios” (ALMEIDA; SILVA, 2019, p. 132)

Entendemos que o caminho da reconciliação histórica entre partidos e sindicatos,


as maiores expressões do movimento classista, com os movimentos antirracistas

189
classistas, deve ser recíproco e sincero, pois somente com o fortalecimento dessa
unidade é que será possível enfrentar o capitalismo predatório contemporâneo.
O risco aqui, e é sobre isso que gostaríamos de dar uma atenção especial, pois
vem sendo uma tendência, e também é uma das nossas hipóteses, é de que está
ocorrendo uma disputa intraclasse, em que os movimentos clássicos, como partidos e
sindicatos, estão sendo atacados (e acabam também atacando), por movimentos
antirracistas sectários não classistas. Com o argumento principal de hierarquizar o
racismo como a maior de todas as opressões, não se dão conta de que ela não é a única
e nem necessariamente a que mais oprime. Na batuta deste argumento, nenhum
movimento social, que não negro, seria relevante nos embates políticos do tempo
presente.
De antemão já ponderamos que esta perspectiva, para além de um
estranhamento entre os movimentos de resistência, acaba também enfraquecendo
ambos os lados, deixando o capital seguir seu fluxo exploratório sem a unidade das
resistências organizadas.
Sobre isso, o exemplo da política estadunidense pode nos ajudar a apresentar a
hipótese. Aqui entendemos, partindo do argumento de Haider (2019), como as lutas
identitárias75 não podem se prender a traços específicos. A insistência nessa posição
pode levar a derrotas históricas, que podem ser até mais duras para os movimentos
identitários.
O que começou como uma promessa de superar algumas limitações do
socialismo, de modo a construir uma política socialista mais rica, mais diversa
e inclusiva, terminou sendo aproveitado por aqueles com uma política
diametralmente oposta àquelas do Combahee River. O exemplo mais recente
e mais marcante foi a campanha presidencial de Hillary Clinton, a qual adotou
a linguagem da “interseccionalidade” e do “privilégio” e usou a política
identitária para combater o surgimento de uma opção de esquerda no Partido
Democrata, em torno de Bernie Sanders. Os apoiadores de Sanders foram
condenados como “manos do Bernie”, apesar de haver amplo apoio entre as
mulheres. Eles foram acusados de negligenciar as preocupações dos negros,
apesar do efeito devastador para muitos negros americanos do
comprometimento da corrente dominante do Partido Democrata com as
políticas neoliberais. (HAIDER, 2019, p. 34)

E continua:
[...] essa era claramente a situação em que estávamos nos metendo nos
Estados Unidos, enquanto liberais otimistas celebravam a substituição de
movimentos de massa, distúrbios e células armadas por um plácido
multiculturalismo. Ao longe de várias décadas, o legado dos movimentos
antirracistas foi canalizado para o progresso de indivíduos como o Barack

75Entendemos que o termo identitário não é o mais apropriado, preferimos utilizar o termo de movimento
social antirracista, pensando especificamente neste movimento. Destacamos também as ressalvas feitas a
esta conceituação por Virgínia Fontes, em vídeo gravado para o Canal da editora Boitempo em outubro de
2021, assim como em entrevista de Alysson Mascaro gravada para o Canal da TV247 em 2020.

190
Obama e o Bill Cosby, que iriam liderar o ataque contra movimentos sociais e
comunidades marginalizadas. (HAIDER, 2019, p. 44)

As experimentações estadunidenses contribuem para reflexões importantes: nem


todo negro é antirracista, nem toda mulher é feminista, assim como nem toda pessoa
LGBTTI é contra a homofobia. As pautas emancipatórias devem ser tarefa de todos/as
que pensam em construir um novo mundo sem opressões, mas também podem ser uma
armadilha neoconservadora caso as arestas do “específico” não sejam aparadas.
A identidade, demonstra-nos Haider com os exemplos dos revolucionários
como as feministas negras do Combahee River, Malcom X e os Panteras
Negras, não é a armadilha em si. A armadilha antirrevolucionária apresenta-
se quando a política se reduz à afirmação de identidades específicas.
(ALMEIDA, 2019, p. 12)

Entendemos ser um grande problema para os movimentos sociais anticapitalistas


esse tipo de disputa intraclasse. Antirracismo e anticapitalismo devem ser lutas
conjuntas, cujo objetivo comum é a emancipação da classe trabalhadora em todas as
suas opressões, seja ela de classe, de raça, de gênero, orientação sexual, etc.
O antirracismo sectário não classista, como já apontamos
anteriormente,hierarquiza um segmento específico como o mais explorado (muitas vezes
entendido como o único explorado),e abre espaço para um neoconservadorismo de novo
tipo, em que movimentos classistas são combatidos por movimentos identitários
específicos (nos termos de Haider), - como se já não fosse suficiente a criminalização
aos movimentos sociais imposta pelas conjunturas dos aparatos geridos pela onda
conservadora -, numa guerra inútil em que o único ganhador é o sistema capitalista.

3– Conclusão

Como já ressaltamos, esse é um debate permeado por polêmicas e esta é apenas


uma contribuição inicial ao tema.
O caminho que apontamos aqui é o da absoluta necessidade de que movimentos
classistas e movimentos antirracistas caminhem juntos, numa pauta ampla contra o
capital nessa conjuntura neoconservadora.
Nesse caminhar coletivo, é fundamental perceber a força que o movimento
antirracista carrega no tempo presente, sendo um pilar fundamental na luta
anticapitalista.
Nessa altura da história americana, quando o movimento dos trabalhadores
está em declínio, o movimento negro está em ascensão. O fato é que, desde
1955, o desenvolvimento e o dinamismo da luta dos negros têm feito deles a
força revolucionária que domina a cena americana... O objetivo de uma

191
sociedade sem classes é exatamente o que esteve e que está hoje no
coração da luta dos negros. São os negros que representam a luta
revolucionária por uma sociedade sem classes. (HAIDER, 2019, p. 41)

Entretanto, reforçamos mais uma vez, o identitário preso ao específico não traz
avanços e, pelo contrário, faz o jogo do inimigo de classe.

A transformação mais significativa na vida dos negros nos últimos cinquenta


anos foi o surgimento de uma elite negra, fortalecida pela classe política
negra, que tem sido responsável por administrar cortes e impor orçamentos
escassos nas costas dos eleitores negros. (HAIDER, 2019, p. 44)

É importante aqui pontuar a crítica para que o amadurecimento seja coletivo.

Na academia e nos movimentos sociais, nenhuma contestação séria surgiu


contra a cooptação do legado antirracista. Intelectuais e ativistas permitiram
que a política fosse reduzida ao policiamento da nossa linguagem, à
questionável satisfação de provocar culpa nos brancos, enquanto as
estruturas institucionais de opressão racial e econômica permanecem.
(HAIDER, 2019, p.45-46)

Partindo desta premissa, nosso alerta vai no sentido de que alguns grupos,
identificados com este campo antirracista sectário não classista,assumidamente ou não,
acabam por fazer a “política do constrangimento”, desqualificando militantes e
organizações, não por suas posições teóricas ou entendimentos de realidade, mas pela
condição de gênero, raça e etnia.
Acreditamos que, na atual conjuntura de crise política e ascenso neoconservador,
nada mais funcional a este sistema do que reforçar o estranhamento entre militantes e
organizações que poderiam se unificar numa pauta universalizante.
Sem correr o risco de cometer generalizações, o debate no campo da teoria social
crítica deveria ser o de instrumentalizar os mediadores universalizantes e não o de
eliminar da trincheira das lutas sociais as organizações clássicas.
Longe de reduzir a importância da vivência acumulada de segmentos sociais
explorados para além da condição de classe trabalhadora, todavia, nos parece mais
tático, vislumbrando a luta anticapitalista, a unidade na refuncionalização do mediador
universal das lutas sociais, num caminhar coletivo, horizontal, heterogêneo, fraterno e,
principalmente, anticapitalista.
Na contramão de uma “política de constrangimento”, muito mais propositivo contra
este sistema seria incorporar, em partidos e sindicatos, cursos de formação, secretarias
específicas, direção compartilhada, trabalho de base em territórios específicos e,

192
fundamentalmente, um balanço político em que seja reconhecida a lacuna histórica no
não tratamento adequado destas pautas.
A própria classe trabalhadora precisa aprender sobre relações de opressão
intraclasse, não sem tensões, mas com a responsabilidade histórica de construir com os
irmãos de classe a ferramenta de luta responsável por destruir o “velho mundo” e pensar
num mundo sem opressões.
Se com o fim do capitalismo não é garantido o fim de todas as opressões, no
capitalismo, sobretudo durante as crises, as opressões tendem a se acentuar para
violências ainda mais brutais.
Para a resistência da classe trabalhadora é fundamental a organização de um
movimento contra-hegemônico e, para isso, a disposição para educar o conjunto da
vanguarda militante nesse momento é imprescindível. Ao capitalismo, nada interessa
mais do que uma guerra intraclasse, pulverizando lutas totalizantes e perdendo do
horizonte a macropolítica, enquanto as políticas de estado garantem a alta lucratividade
do grande capital às custas do sangue dos/as trabalhadores/as em toda sua
heterogeneidade.
Somos socialistas porque acreditamos que o trabalho deve ser organizado
para o bem coletivo daqueles que fazem o trabalho e criam os produtos, e
não para o lucro dos patrões. Os recursos materiais devem ser igualmente
distribuídos entre aqueles que criam esses recursos. Porém não estamos
convencidas de que uma revolução socialista que não seja também uma
revolução feminista e antirracista garantirá nossa libertação. (HAIDER, 2019,
p.32)

Assim, fica nesta contribuição o nosso apelo contra os sectarismos que só servem
aos nossos inimigos de classe. Sabemos que o momento é de profunda ressignificação
do mediador universal, algo impossível sem a intrínseca participação de todos os
movimentos sociais. Acreditamos que esta ferramenta organizativa ainda apresenta
enorme potencial para organizar o grande exército da classe trabalhadora. A velha
toupeira continua incessantemente o seu trabalho por debaixo da terra. Cabe a nós a
escolha em sermos a água que amolece o solo ou o concreto que inutiliza os caminhos
subterrâneos.

4- BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Silvio Luiz de; SANTOS, Júlio César Silva. Crise, racismo e neoliberalismo. In:
SOUZA, Edvânia Â. de; Silva, Maria Liduína de Oliveira e (Orgs.). Trabalho, Questão
Social e Serviço Social: a Autofagia do Capital. São Paulo: Cortez, 2019.

ALMEIDA, Silvo Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

193
_____________________. Estado, direito e análise materialista do racismo. In:
KASHIURA JUNIOR, Celso Naoto; AKAMINE JUNIOR, Oswaldo; DE MELO, Tarso
(Orgs.). Para a crítica do Direito: reflexões sobre teorias e práticas jurídicas. São
Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2015.

FONTES, Virgínia. O QUE É IDENTITARISMO BURGUÊS? 21 de outubro de 2021.


Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5YwBBRN_mL8>.

HAIDER, Asad. Armadilha da Identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo:
Veneta, 2019.

194
MEMÓRIAS DE LUTAS E RESISTÊNCIA: O que Walter Benjamin tem a nos dizer?
Juliana Viana Ford76

Gustavo José de Toledo Pedroso

Resumo:
Esse texto apresenta o ponto de vista de Walter Benjamin
sobre a memória e a resistência política na modernidade.
Para o autor, o declínio da primeira por meio do avanço das
técnicas de alienação sensorial repercute na fragilização da
segunda. O que pode ser analisado segundo o tratamento
dado à memória das vítimas da ditadura brasileira e o
consequente enfraquecimento da resistência política e
popular acerca do legado de violência deixado por ela.
Palavras-chave: Memória. Resistência. Choque. Alienação
sensível.

Abstract:
This text presents Walter Benjamin's point of view on
memory and political resistance in modernity. For the author,
the decline of the first through the advancement of sensory
alienation techniques has repercussions on the weakening of
the second. What can be analyzed according to the
treatment given to the memory of victims of the Brazilian
dictatorship and the consequent weakening of political and
popular resistance about the legacy of violence left by it.
Keywords: Memory. Resistance. Shock. Sensitive
alienation.

76Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Unesp-Franca/SP. Mestre em Serviço


Social. E-mail: juliana.ford@unesp.br. Professor doutor do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da
Unesp-Franca/SP. Doutor em Filosofia. Professor orientador. E-mail: gustavo.pedroso@unesp.br. Eixo
temático: Ofensiva ultraneoliberal do capital e lutas sociais; Memória de lutas e resistência.

195
1- INTRODUÇÃO

O tema desta comunicação soa bastante provocativo ao leitor de Walter Benjamin


tendo em vista que, para o autor, a memória e as formas de resistência a ela vinculadas
estão em profunda baixa. A produção da memória entrou em declínio devido à
reconfiguração da experiência na modernidade a partir do avanço das forças produtivas
num quadro social em que o capital exerce a dominação. Consequentemente, as
estratégias de resistência aos processos de dominação social no capitalismo tendem a
ser menos enraizadas nas memórias de lutas, precisamente porque estamos deixando de
produzi-las e de compartilhá-las. Nesse sentido, o vazio causado pela perda da memória
na modernidade está ligado ao enfraquecimento da resistência de modo geral, mas
principalmente nas regiões do planeta onde a experiência moderna está bem
desenvolvida.
Neste breve texto procuramos apresentar a discussão de Benjamin a respeito da
memória e de sua importância para a resistência. Entretanto, a negatividade do
pensamento benjaminiano vislumbra, no bojo dos processos de destruição da memória,
também a produção de condições que propiciam resistências mais ou menos
interessadas em recuperar as lutas do passado. As possibilidades de se enfrentar a
forma social do capitalismo são dadas nele mesmo. A geração do presente tem a
possibilidade de escolher se pretende seguir desconectada do passado rumo a um futuro
que, desde já, se desenha catastrófico, ou, se prefere deter-se nessa trajetória e retomar
o passado para refazer o próprio presente.
A perda da memória, segundo Walter Benjamin, é constatada com o fim da
experiência (Erfahrung) e da sua narração, quer dizer, da capacidade de transmiti-la por
gerações. A experiência a que Benjamin se refere significa um processo de
desenvolvimento e um aprendizado para a vida, algo de comum aos homens, que os
nutre de valores e princípios da vida comunitária, um saber que transcende a vivência
individual e, por isso, é compartilhada, principalmente pela oralidade. Tal experiência foi
forjada sob circunstâncias históricas anteriores à consolidação do capitalismo, não tendo
resistido ao avanço da produção mercantil e à submissão do trabalho ao capital. O
desaparecimento da experiência gerou, como consequência, o desaparecimento da
narração enquanto forma de comunicação ligada às condições da produção artesanal
que não sobrevive ao desenvolvimento da modernidade, sobretudo no que se refere ao
caráter destrutivo das forças produtivas em expansão. Benjamin aponta que as
mudanças neste sentido ocorridas no período da Primeira Guerra Mundial mostravam já

196
seus efeitos no fato de que os homens voltavam silenciosos dos campos de batalha, pois
aquilo que tinham vivenciado não era mais comunicável (BENJAMIN, 2012, p. 124).
A guerra produz um trauma coletivo, no corpo e na psique dos indivíduos.
Todavia, isso não acontece apenas nela. Na modernidade, com o aumento do poder da
técnica, o trauma passa a ser vivido pelas pessoas cotidianamente, ao passo em que a
modificação dos espaços afeta a capacidade de resposta aos estímulos em excesso
nesses ambientes. Essa reação instantânea, não mediatizada aos estímulos, está ligada
à redução da produção de memórias e de resistência aos processos de submissão ao
capital.

2- CHOQUE, ALIENAÇÃO E MEMÓRIA

No ensaio “Estética e anestética: uma reconsideração de A obra de arte de Walter


Benjamin”, Susan Buck-Morss adentra a questão dos efeitos do desenvolvimento da
técnica sobre a capacidade individual e coletiva de percepção do mundo que repercutem
no declínio da memória, a partir da aproximação de Benjamin com o conceito freudiano
de choque. Segundo a autora (1996), para Benjamin a experiência moderna é
neurológica, centrada no choque. Ou seja, ele admite que sob pressão extrema a
consciência impede a abertura do sistema sinestésico - de percepção sensorial e
interpretação dos estímulos externos - e isola a consciência presente e a memória
passada, evitando a produção de uma memória traumática.
O sistema estético da consciência sensorial chamado de sistema sinestésico
existe na confluência entre as percepções sensoriais externas e as imagens internas da
memória e da antecipação (BUCK-MORSS, 1996, p. 19). Este está aberto para o mundo
por meio dos órgãos sensoriais e da formação de redes de células nervosas. A
consciência sensorial protege o organismo de estímulos - energias em excesso - do
exterior impedindo, assim, que esses estímulos fiquem retidos como memória. O registro
dos choques pela consciência pode ter efeitos mais ou menos traumáticos. Quando em
situações muito estressantes, o ego aciona a consciência para que ela bloqueie o canal
de acesso ao sistema sinestésico, isolando assim a consciência do agora da memória
passada. Portanto, fica inibida a conexão entre os estímulos externos percebidos e a
memória interna pré-existente, de modo que “Sem a dimensão da memória, a experiência
se empobrece.” (BUCK-MORSS, 1996, p. 22).

197
Ocorre que na modernidade os choques são cotidianos e, por conseguinte,
responder aos estímulos sem pensar não se tornou apenas corriqueiro, mas necessário à
sobrevivência. Pois, o desenvolvimento tecnológico inunda nossos sentidos com
estímulos constantes, e a reação instantânea que o corpo produz em resposta aos
choques passa a dominar o modo de existir em coletividade. Os indivíduos se alienam de
si mesmos para se adequar à configuração do espaço modificado pelo progresso técnico,
e em última instância pelo capital.

Benjamin sustentava que esta experiência do campo de guerra "se tornou a


norma" na vida moderna. Percepções que antes suscitavam reflexos conscientes
são agora fonte de impulsos de choque dos quais a consciência se deve
esquivar. Na produção industrial bem como na guerra moderna, em meio a
multidão das ruas e em encontros eróticos, em parques de diversão e cassinos
de jogo, o choque é a essência mesma da experiência moderna. O ambiente
tecnologicamente alterado expõe o aparato sensorial humano a choques físicos
que têm o seu correspondente em choques psíquicos, como o testemunha a
poesia de Baudelaire. Registrar a "quebra" da experiência foi a "missão" da
poesia de Baudelaire: ele "situou a experiência do choque no centro mesmo da
sua obra artística". (BUCK-MORSS, 1996, p. 22 ).

Esse processo tem um efeito embrutecedor sobre o sistema estético, de modo


que as capacidades miméticas passam a defletir o mundo em lugar de realizar sua
incorporação como forma de empoderamento. Essa reação é mais evidente na fábrica,
por ser esse um sistema em que o trabalhador aprende a adequar os seus movimentos
ao funcionamento das máquinas. A exploração, aqui entendida como uma categoria
cognitiva, afeta os sentidos humanos e paralisa a imaginação criativa do trabalhador. A
realização do trabalho é apartada da experiência, a memória é substituída por respostas
condicionadas, a aprendizagem pelo adestramento, e a destreza pela repetição (BUCK-
MORSS, 1996, p. 23). A perda da experiência se converteu no estado geral do homem
moderno, e o sistema sinestésico organiza-se para evadir os estímulos tecnológicos de
modo a proteger o corpo de acidentes e a psique dos choques. Consequentemente, o
sistema inverte a sua função: passa a retardar os sentidos, reprimir a memória e
emudecer o organismo. Nesse processo, o sistema cognitivo do sistema sinestésico é
convertido, segundo Buck-Morss, em um sistema anestético.

A anestética torna-se uma técnica sofisticada na segunda metade do século


dezenove. Enquanto as defesas auto-anestesiantes do corpo são largamente
involuntárias, esses métodos envolviam a manipulação consciente e intencional
do sistema sinestésico. Às já existentes substâncias narcóticas da época
iluminista, café, tabaco, chá e álcoois, acrescentou-se um vasto arsenal de
drogas e práticas terapêuticas, do ópio, éter e cocaína à hipnose, hidroterapia e
cheque elétrico. (BUCK-MORSS, 1996, p. 24).

198
O uso consciente de técnicas anestéticas é uma característica da modernidade,
na qual a própria realidade é transformada em um narcótico. Tal configuração pode ser
entendida sob o prisma do desenvolvimento da fantasmagoria. O termo, afirma Buck-
Morss, “Descreve uma aparência de realidade que engana os sentidos através de
manipulação técnica. E conforme se multiplicavam no século dezenove as novas
tecnologias, assim também o potencial para efeitos fantasmagóricos.” (BUCK-MORSS,
1996, p. 27). Nos ambientes privados da burguesia produz a sensação ilusória de
controle total por meio de texturas, tons e prazeres sensuais, assim como nos espaços
públicos a formação das cidades continha o aspecto fantasmagórico das mercadorias em
exibição nas vitrines de lojas, forma esta que deu origem aos centros comerciais como
ambientes que provocam a falsa sensação de serem absolutamente controlados.
“Fantasmagorias são tecnoestéticas. As percepções que oferecem são ‘reais’ o quanto
baste - o seu impacto sobre os sentidos e nervos é ainda ‘natural’ de um ponto de vista
neurofísico.” (BUCK-MORSS, 1996, p. 27). Todavia, os efeitos da fantasmagoria são
compensatórios em relação aos choques: ela manipula o sistema sinestésico por meio do
controle dos estímulos externos, ocasionando a anestesia do corpo devido à inundação
dos sentidos. A consciência é alterada por distração sensorial, de modo que os efeitos
dessa alteração são experimentados coletivamente, como uma mesma percepção do
mundo e dos ambientes totais. Por isso, diferente da anestesia provocada pelas drogas,
a fantasmagoria assume a posição de um dado objetivo. Em resumo: “A adicção
sensorial a uma realidade compensatória. toma-se um meio de controle social” (BUCK-
MORSS, 1996, p. 28).

Nos interiores burgueses do século XIX, o mobiliário fornecia uma fantasmagoria


de texturas, tons e prazeres sensoriais que imergia o morador da casa num
ambiente total, num mundo privatizado, de fantasia, que funcionava como um
escudo protetor para os sentidos e sensibilidades dessa nova classe dominante.
Em Passagens, Benjamin documenta a disseminação das formas
fantasmagóricas no espaço público: as galerias parisienses de compra, onde as
fileiras de vitrines de lojas criavam uma fantasmagoria das mercadorias em
exposição; panoramas e dioramas que tragavam o espectador numa simulação
de ambiente total em miniatura; e as exposições mundiais, que expediam esse
princípio da fantasmagoria em áreas do tamanho de pequenas cidades. Essas
formas oitocentistas foram as precursoras dos atuais shoppings, parques
temáticos e fliperamas, assim como do ambiente totalmente controlado dos
aviões (em que o sujeito sentado fica ligado à imagem, ao som e ao serviço de
bordo), do fenômeno da “bolha turística” (no qual todas as “vivências” do viajante
são monitoradas e controladas de antemão), do ambiente audiossensorial
individualizado do walkman, da fantasmagoria visual da propaganda ou do
sensório tátil de uma academia repleta de equipamentos Nautilus (Ibid., p. 27).

O declínio da memória sob o avanço da alienação estética na modernidade se


tornou determinante para a recente configuração das lutas sociais e organização de

199
formas de resistência política. Pois, se a memória está ligada à produção de experiência
com sentido na convivência social, na edificação de valores coletivos relativos ao trabalho
como forma de desenvolvimento das capacidades humanas e não apenas de
sobrevivência no capitalismo, e essa experiência desaparece, levando embora consigo o
compartilhamento de conhecimentos orgânicos por meio da narração, rompe-se o
processo pelo qual o passado é revisitado no presente por meio da rememoração
(Eingedenken). O passado fica cada vez mais distante de nós, e sem as suas referências
o presente se realiza como a mera expansão de si mesmo, como um campo em que as
expectativas e as possibilidades não são projetadas para além dos limites do que é
conhecido.

3- RESISTÊNCIA EM TEMPOS MODERNOS

Com a consolidação da experiência moderna como aquela estruturada por valores


inerentes à forma social do capital, portanto, o individualismo, a competitividade, a
fragmentação, a superficialidade e outros, a memória se tornou obsoleta. Ela se
desvaloriza no âmbito da coletividade conforme é inibida pela consciência até parecer
inútil, que não serve para realizar as aspirações dos modernos. Nesse cenário, dispensa-
se a memória, de modo que se amplia o vazio entre as experiências do presente e
aquelas do passado. O que acarreta consequências para as lutas sociais que se
desdobram nessas condições. A concretização do potencial anticapitalista dessas lutas é
fragilizado diante da perda de referências do passado que antecederam o capitalismo. Ou
seja, que não sofriam os sofisticados processos de alienação do presente, e que
reconheciam o caráter social das relações produzidas em torno da atividade do trabalho.
É preciso salientar que, para Benjamin, a importância dessas referências não está na sua
origem feudal, artesanal e arcaica. Ou seja, de negação completa das realizações do
capitalismo. Ela está no contato com outros saberes, produzidos antes de nós, que nos
conectam com a nossa natureza, que estão em sintonia com a busca da emancipação
humana.
Pensar a resistência em tempos modernos significa admitir que algo de essencial
tem sido perdido na maneira como buscamos produzi-la. Em termos concretos, a relação
estabelecida no Brasil com os acontecimentos durante a ditadura e os seus responsáveis
é mais um esforço de esquecimento do que construção de memórias que sirvam para
estabelecer resistência contra novas ameaças de controle autocrático da ordem social.

200
Os acontecimentos mais recentes, sob o atual governo federal, apontam que o passado
não foi suficientemente elaborado a ponto que os horrores da ditadura não se repitam. Os
responsáveis por esses horrores nada sofreram, estão impunes. Muitos foram
homenageados, dando nome a ruas, praças e edifícios. Seus familiares foram
recompensados pelos serviços prestados ao Estado com o recebimento de pensões que
lhes garante uma vida confortável, sem dissabores. Enquanto isso, as memórias das
vítimas desse período continuam sendo desrespeitadas. Seus familiares seguem
inquietos, lutando para que não haja esquecimento.
Gagnebin (2014), afirma que há uma política de esquecimento das atrocidades
cometidas durante a ditadura. Ela se define, entre outros elementos, pela não criação de
um estatuto das vítimas, evitando-se até mesmo o uso dessa palavra em textos oficiais; a
promulgação da Lei de Anistia, de 1979, que incluía militares e policiais acusados de
tortura, assassinato e desaparecimento e excluía vários militantes de esquerda; o não
julgamento dos torturadores como prova de que a tortura é tolerada no país, apesar da
assinatura de tratados internacionais condenando-a; e a continuação do uso desse
expediente por agentes de órgãos do Estado.

Conclusão: a ditadura brasileira, tantas vezes celebrada como ditadura suave (tal
qual no infame jogo de palavras entre “ditadura” e “ditabranda”), porque não
assassinou um número tão grande de vítimas como as de seus ilustres vizinhos,
não é somente objeto de uma violenta coerção ao esquecimento, mas também é
um regime que se perpetua, que dura e contamina o presente. Trata-se não
apenas de um caso de recalque social e político violento, mas também da
“naturalização da violência como grave sintoma social no Brasil”, como afirma a
psicanalista Maria Rita Kehl. A luta pela revisão da lei da anistia, pela abertura
dos arquivos secretos e pela restituição dos restos mortais dos desaparecidos,
vai além de uma luta pelo esclarecimento do passado, pois visa também a
transformação do presente (GAGNEBIN, 2014, p. 255).

Os impeditivos para que se elabore uma memória das lutas do passado que sirva
para modificar o presente enfraquecem nossa posição perante as ameaças que
persistem desde lá. Isso não quer dizer que não há mais memória ou resistência que nela
esteja amparada. Afinal, embora o capitalismo tenha se expandido para todo o planeta,
não podemos dizer que o progresso técnico avançou sobre diferentes regiões com a
mesma velocidade e intensidade, eliminando as diferenças entre elas. A
superestimulação dos sentidos por meio das tecnoestéticas e o anestesiamento dos
corpos ocorre de formas distintas, conforme as condições existentes. No Brasil, a
penetração das fantasmagorias tecnoestéticas se somou a certas condições existentes,
próprias da nossa formação socioeconômica e cultural.

201
Nosso passado colonial deixou marcas profundas nas estruturas sociais que
constantemente são repostas por interesse do capital internacional. Por exemplo, o
paternalismo que atravessa as relações contemporâneas, e que indica a não superação
de desigualdades econômicas, políticas e culturais, determina quem são os cidadãos
brasileiros, aqueles que acessam direitos e são respeitados. Nem todos têm
reconhecidas as suas necessidades. Nem todos serão considerados dignos de existir.
Até mesmo a vida não lhes pertence, mas a alguém que decide quem vive e como vive.
O senso de impotência diante dessas estruturas torna as pessoas conformadas com um
“destino”, despojadas do que é fundamental para a resistência política.
Sobre a desarticulação das lutas do presente e da resistência com base no
sequestro da memória das vítimas da ditadura pelo Estado, temos que

[...] a questão do passado, em vez de se tornar uma herança dolorosa a ser


elaborada em conjunto por todo o corpo social, é reduzida, graças às leis de
“reparação”, a uma regulamentação de indenizações individuais. Essa violência e
essas mortes são tratadas como meros acontecimentos singulares, acidentes ou
incidentes de percurso, o que torna uma elaboração coletiva da violência
passada e presente impossível, pois assim se reduz a memória da ditadura a
histórias individuais, pessoais, “casos excepcionais” que devem ser resolvidos
rapidamente para mais bem poderem ser esquecidos. A possibilidade de
construir uma memória social e coletiva de tal violência é, portanto, suprimida
(GAGNEBIN, 2014, p. 256).

4- CONCLUSÃO

As considerações de Walter Benjamin sobre a perda da experiência no sentido


filosófico e a consolidação da experiência moderna sob o fundamento do choque soam
como um alerta para pensar a produção de memórias de luta e de resistência na
atualidade. Sem reconhecer a importância da memória para a elaboração de formas de
resistência verdadeiramente anticapitalistas, movidas por interesses políticos ligados à
ideia da plena emancipação humana, a resistência que se torna possível é aquela que
não avança no sentido de contestar as estruturas sociais que mantém todo um estado de
coisas existente. Obviamente, os elementos expostos não conseguem esgotar as
reflexões sobre o tema, mas tocam em pontos relevantes para compreender a realidade
e propor mudanças na forma como nos relacionamos com o passado.

202
5- REFERÊNCIAS

BENJAMIN, W. Experiência e pobreza. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e


política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8 ed. - São Paulo : Brasiliense,
2012. (Obras Escolhidas v. 1), p. 123-128.

BUCK-MORSS, S. Estética e anestética: O “Ensaio sobre a obra de arte” de Walter


Benjamin reconsiderado. In: Travessia : Florianópolis, n. 33, ago.-set., 1996. p. 11-41.
Disponível em:<https://periodicos.ufsc.br/index.php/travessia/article/view/16568/15124>.
Acesso em: 23 de janeiro de 2021.

GAGNEBIN, J. M. Esquecer o passado? In: GAGNEBIN, J. M. Limiar, aura e


rememoração: Ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo: Editora 34, 2014, p. 251-263.

203
O DEBATE SOBRE OS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS: perspectivas e críticas

Euler Antônio Campos77

Resumo:

As discussões elencadas nesse artigo, buscam debater


sobre a influência pós-moderna na conformação dos novos
movimentos sociais, bem como os impactos na construção
da luta de classes. Inicialmente, busca-se caracterizar a
pós-modernidade. Por seguinte, versamos sobre os novos
movimentos sociais, realizando algumas críticas. Por fim,
refletimos, aqui, sobre as perspectivas e potencialidades na
atualidade, bem como a relação dos movimentos sociais
com o serviço social brasileiro.

Palavras-chave: Novos movimentos sociais; pós-


modernidade; serviço social

Abstract:

The discussions listed in this article seek to discuss the


postmodern influence on the conformation of new social
movements, as well as the impacts on the construction of the
classs truggle. Initially, we seek to characterize post-
modernity. Next, we talk about the new social movements,
making some criticisms. Finally, were flect here on the
current perspectives and potential, as well as the relationship
between social movements and Brazilian social work.

Keywords: New social movements; post-modernity; social


work

1- INTRODUÇÃO

O presente texto busca reunir as discussões sobre novos movimentos sociais e


as tendências teóricas que sustentam. Para traçar esse debate, propõe-se aqui discorrer
brevemente sobre a pós-modernidade. Debater a pós-modernidade frente aos novos
movimentos sociais consiste em considerar as formulações teóricas que deram/dão
estrutura para a especificidade destes novos movimentos, que se confrontam com os

77 Assistente Social na Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte. Mestrando em Serviço Social pela
Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail. euler.campos@hotmail.com. Eixo temática: Ofensiva
ultraneoliberal do capital e lutas sociais.

204
nomeados “velhos movimentos sociais”. Nesse caminho, busca-se problematizar esta
novidade e seus pressupostos, que se vinculam à uma pseudocrise da perspectiva
marxista. Ainda, aponta-se as características que estes novos movimentos possuem para
debater, a partir da perspectiva marxista, as fragilidades e potencialidades que eles
apresentam. Por fim, busca-se entender quais possibilidades existem diante desta
realidade, na busca por uma leitura marxista que considere a diversidade da classe
trabalhadora, percebendo que as determinações da estrutura social é que produz as
particularidades que sujeitam setores da classe trabalhadora a diferentes opressões.

2- DESENVOLVIMENTO

2.1- Apontamentos sobre o pensamentopós-moderno

Os emergentes pensadores pós-modernos vão, nas suas formulações, tencionar


a máxima da modernidade - sustentada pela razão - e vão questioná-la, afirmando que o
projeto da razão “está morto; todas as antigas verdades e ideologias perderam sua
relevância; os velhos princípios de racionalidade não valem mais” (WOOD, 1996, p.120).
Os pós-modernos, nesse aspecto, vão negar a existência de qualquer conexão estrutural
que permita analisar a realidade, tudo vai ser substituído por “fragmentos e
contingências”. Eles negam a ideia “de processo e causalidade histórica inteligível e, com
isso, evidentemente, a toda idéia de ‘fazer história’” (WOOD, 1996, p.122), negando
assim a história. Rejeitam a possibilidade de uma relação causal entre processos sociais
que conformam um “sistema social' (por exemplo, o sistema capitalista)”, apostam e
acreditam nas existências de diferentes poderes, opressões, identidades e discursos
(WOOD, 1996). Na perspectiva de recusa da história eles reafirmam ou anunciam o fim
da história, resultando em lutas e identidades fragmentadas frente a processos de
opressão também fragmentados, que vão requerer mudanças fracionadas, superficiais e
segmentadas.

Conforme exposto por Wood (1996), os pós-modernos vão enfatizar a “linguagem, a


cultura e discurso”, sob a ótica de que a linguagem é o que permiti conhecer o mundo,
frente às determinações econômicas e às indagações feitas pela economia política,
debatidas pela esquerda tradicional. A autora segue afirmando que os pós modernos vão
rejeitar a construção de conhecimentos totalizantes, bem como de valores
universalizantes, “incluindo as concepções ocidentais de "racionalidade", as idéias gerais
de igualdade, liberais ou socialistas, e a concepção marxista da emancipação humana

205
geral” (WOOD, 1996, p.122), em detrimento de fazer emergir a diferença, apresentando
distintas identidades particulares, vinculadas às características de “gênero, raça,
etnicidade, sexualidade”, bem como a expressão destas particularidades nas opressões e
resistências individualizadas e diversificadas. Wood (1996) aponta que na perspectiva
pós-moderna, tende a se insistir na “natureza fluida e fragmentada do eu humano (o
"sujeito descentrado"), que toma nossas identidades de tal modo variáveis, incertas e
frágeis” (WOOD, 1996, p.123), o que dificulta na construção de um reconhecimento
coletivo capaz de construir solidariedade e uma ação coletiva que se sustente por uma
identidade, experiências e interesses comum – como a identidade de classe – havendo
uma ênfase nas diferentes experiências de opressão. Finalizando, a autora reforça que a
pós-modernidade se estrutura rejeitando as grandes narrativas, incluindo as teorias
marxistas da história. (WOOD, 1996)

2.2- Pós-modernidade e a “crise” da perspectiva marxista

Para os pós-modernos, a teoria social de Marx era determinista e limitada,


especialmente no aspecto revolucionário, tendo em vista a experiência do socialismo
real. Segundo Braz (2006), esse movimento de questionamento da perspectiva marxista
teve solo fértil de desenvolvimento especialmente a partir da conjuntura da década de
1960, conjugando a “desestalinização” - que o autor aponta ter acontecido a partir da

“falência das teses stalineanas que postulavam a crise sistêmica


capitalista como o motor da revolução proletária mundial; as insuficiências
teórico-políticas das premissas marxistas-leninistas frente às novas
necessidades do movimento socialista nos países capitalistas ocidentais;
a derrota soviética na questão iugoslava; o relativo reequilíbrio de forças
entre os PC’s com a vitória da revolução na China e, com isso, com o
advento do PC chinês como novo pólo do movimento comunista
internacional; a própria morte de Stalin sem a qual, possivelmente,
assistiríamos a uma postergação do Relatório Secreto de Kruschev.”
(BRAZ, 2006, p.252)

- e as novas configurações do processo produtivo, que provocaram importantes


mudanças no perfil da classe trabalhadora e nas formas organizativas que começaram a
se configurar. Essa conjuntura produziu no interior do movimento comunista uma grande
pulverização de “novas esquerdas”, que mantinham a estratégia revolucionário enquanto
objeto central do debate, mas com diferentes perspectivas “variantes insurrecionais e
reformistas, tons moderados e radicais”. (BRAZ, 2006, p.278)

206
É neste cenário que emergem, a partir de uma “nova esquerda”, os “novos
movimentos sociais”. Anunciavam o “esgotamento de ‘velhas’ formas de fazer política” e
das perspectivas de organização social da “velha esquerda” (NEVES, 2020, p.39). O
novo, nesse sentido, propõe uma atualização da organização de lutas, com tendência a
formas mais “democrática e horizontais” (NEVES, 2020, p.39).

Houtart (2007) sustenta que, com as mudanças na organização do trabalho,


especialmente com a inserção das novas tecnologias que permitiram ampliar a base
material da reprodução dos sujeitos sociais, o sujeito social acaba sendo também
amplificado e passam ganhar visibilidade alguns “novos sujeitos”. Assim, a “nova”
perspectiva vai de encontro às transformações na realidade concreta, partindo de uma
leitura que localiza no tempo – década de 1960/70 - sua novidade, rejeitando o que
nomeiam de velhas formas organizativas de fazer política, anunciando uma nova forma.
Uma formulação desse novo fazer, que reconheceria as novas configurações sociais,
emergindo novas identidades, criticando o passado que ocultava a diversidade de
opressões vividas pela população sob a máxima da classe. No entanto, como atenta
Fontes (2017), cria-se uma ideia e uma

“periodização fictícia, na qual se propõe uma espécie de ‘marco zero’ de


‘novas’ reivindicações na década de 1970, apagando-se as intensas lutas
feministas e antirracistas que atravessaram os séculos XIX e XX,
sombreando as lutas anticoloniais e o papel desempenhado pelos
partidos comunistas, trotskystas e, até mesmo, socialistas” (FONTES,
2017, p. 64).

2.3- Características dos novos movimentos sociais

Os pressupostos pós-modernos, fundados nos limites da leitura marxista,


subsidiam a emersão das novas organizações sociais.Com tendência a articulação de
base, darão as características dos novos movimentos sociais, em meados dos anos de
1960. Esses movimentos vão se conformar a partir da articulação de indivíduos com
identidades similares que se aproximam e organizam-se conforme projetos particulares
de emancipação humana, tendo como ponto de partida a experiência desse novo
cotidiano (NEVES, 2020). A identidade dos movimentos, suas falas, suas práticas
cotidianas conformam os objetivos centrais para a análise, e não mais as determinações
estruturais econômicas sobre as ações coletivas em andamento (GOHN, 1997). Cada
organização acaba por constituir uma identidade política específica, num processo de
abandono da categoria totalizante “classe trabalhadora”, “porque se trataria "[...] de uma

207
interpelação discursiva que não tem levado suficientemente em conta o passado cultural
e as contradições específicas de cada segmento em particular" (SCHERER-WARREN,
1996, p. 70 apud MARTINS, 2017). Cada qual, a partir das suas lutas individualizadas,
estariam organicamente contribuindo para o aprofundamento da experiência democrática.

Nestes aspectos, os novos movimentos sociais acabam retirando a centralidade


do trabalho na relação social, bem como esvaziando a ideia de classe trabalhadora
enquanto conjunto uniforme com potência revolucionária frente à burguesia, deslocando
o antagonismo entre capital e trabalho. A categoria “consciência de classe” passa a não
ter sentido (GOHN, 1997), bastando o reconhecimento no campo da experiência
individualizada, que identifique o sujeito em relação aos outros, para compor os
processos de lutas. O lugar da exploração econômica passa a estar no bojo das outras
formas de exploração – racial, feminina, sexual, dentre outras -, sendo mais uma das
formas de opressão experienciadas pelos sujeitos. Acabam por esvaziar as formas
organizativas mais conhecidas e consolidadas, centradas em sindicatos e partidos. A
superação do sistema social que produz as opressões – numa leitura marxista, o sistema
capitalista - não está na perspectiva destes novos movimentos, o sujeito revolucionário
inexiste assim. Em seu lugar estão diferentes sujeitos sociais que se organizam de
maneira heterogênea, na busca por contestar as opressões sofridas, sem reconhecer as
conexões que as causam. As novos formas organizativas vão abandonar a ideia de
classe trabalhadora, enquanto conceituação homogeneizadora, criticando-a com o
pressuposto de que já não mais cabe para perceber a realidade social da população.

Os novos movimentos sociais, embrenhados de concepções pós-modernas,


acabam por disputar o espaço político, defendendo por diversas vezes a proposta
neoliberal. Conforme Petras (1999), apresentado por Motta (1999), toda a construção
realizada foi importante para a consolidação do neoliberalismo, pois consolidaram uma
crítica rasa e superficial ao socialismo frente ao socialismo real; produziram a confusão
entre uma proposta de leitura totalizante e regimes totalitaristas; por enfatizarem as
experiências individualizantes, dissolvem a classe em identidades raciais, étnicas, de
gênero, de sexualidade; desacreditam a construção de um processo revolucionário e
buscam centralizar na democracia a possibilidade de superação das opressões vividas,
creditando aos processos eleitorais a possibilidade de mudança; ainda:

“antagonizam Estado e democracia; transferem incumbências políticas do


Estado para a “sociedade civil”; desqualificam a luta pelo poder estatal,
concentrando-se exclusivamente nos conflitos locais; promovem a
solidariedade como um imperativo humanitário em contraposição à luta

208
entre dominantes e dominados; reapresentam o projeto nacional
desenvolvimentista, a apologia da cooperação e da interdependência e,
com isto, ocultam o imperialismo.” (PETRAS, 1999, apud MOTTA, 1999,
p.181)

Nesse sentido, são pertinentes alguns apontamentos.Com a negação da


contradição entre capital e trabalho e, por consequência, negar a centralidade do trabalho
em nossa sociedade, as teorias que sustentam os novos movimentos sociais acabam por
desvincular as diversas opressões com o sistema que as produzem. Nesse complexo de
negação, desconsidera que a classe trabalhadora não se resume somente naquele que
possui contratualização legal da venda de força de trabalho. Netto (1981) alertava que,

“sob o salariado não se encontra mais apenas a classe operária, mas a


esmagadora maioria dos homens; a rígida e extrema divisão social do
trabalho subordina todas as atividades, “produtivas” e “improdutivas”; a
disciplina burocrática transcende o domínio do trabalho para regular a
vida inteira quase todos os Homens. (NETTO, 1981, p.82)

Nesse sentindo, desconsidera-se que a relação capital e trabalho estrutura, na


esfera da produção social, um modo de viver, produzindo e reproduzindo as relações
sociais.A relação capital e trabalho não findou. Contrariando alguns teóricos, a
sustentação do capital pelo trabalho não desapareceu mesmo com toda mudança no
processo produtivo. Assim, não há como desconsiderar a relação de classe, mesmo
percebendo as nuances e diferenças em seu interior.

Outra questão importante: ao analisar as identidades individualizadas e a-


históricas, os novos movimentos sociais perdem o ponto de partida que produz e
reproduz estas identidades, ou seja, a estrutura capitalista. Essas identidades sujeitas à
opressão são produtos da sociedade de classes. Marx e Engels (2007, p.47), sustentam
que, “as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a
classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força
espiritual dominante”. Assim, a burguesia exprime, enquanto processo de dominação,
uma identidade universal. Essa identidade perpassa também as características
individualizantes, seja no tocante ao gênero, sexualidade, raça e etnia. Essa construção,
inclusive, define o padrão civilizatório social, sendo utilizado na história como ferramenta
para exploração e dominação de outros povos e nações. Assim, confrontar essas
identidades e as opressões vivenciadas por elas sem considerá-las enquanto expressões
da estrutura social – ou seja, a estrutura capitalista –desconsidera aquilo que as produz e
as mantém.

209
Por último, ao anunciar enquanto “novo”, estes movimentos acabam por construir
narrativas que desconsideram as históricas resistências dos diferentes setores que
sofrem opressão.

É importante reforçar que o modo de produção capitalista produz e reproduz as


expressões que configuram a diversidade do conjunto da classe trabalhadora. Nesse
sentido, ele não considera somente o operário, mas todo o conjunto de sujeitos que não
estão vinculados à classe dominante. Assim, as opressões atingem toda a classe
trabalhadora. Incorre em erro a leitura em que desconsidere esta realidade objetiva,
reconhecer opressões que não considerem a relação de classe.

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscou-se aqui trazer, ainda que brevemente, alguns pontos que possibilitam
resgatar a relação entre pós-modernidade e os novos movimentos sociais, bem como
realizar a crítica, reconhecendo as fragilidades e importâncias. Nesse apanhado, é
importante reconhecer que os tensionamentos provocados pelos novos movimentos
sociais permitiram desvelar as diversas opressões vivenciadas no interior da classe
trabalhadora, oportunizando construções importantes. No entanto, incorre em erro e
limitações quando estes movimentos desvinculam sua relação enquanto classe
trabalhadora, demandando importante atenção. Carece articular os questionamentos
sobre gênero, sexualidade, raça, dentre outros, num viés classista, inclusive recuperando
importantes construções de autores e autoras que se esforçaram (e esforçam) em
demonstrar quão intrínseca é essa relação, como Rosa Luxemburgo, no debate sobre
gênero, Ângela Davis sobre gênero e raça, e John D’Emilio no debate sobre a
sexualidade. É necessário construir junto aos novos movimentos sociais um debate
crítico que considere a classe.

Outro fato importante é atentar a relação que o serviço social construiu com os
movimentos sociais. Iamamoto (2004), alertava sobre a necessidade da consolidação dos
vínculos da relação serviço social e movimentos sociais, levando em consideração a
agenda política e reivindicações, tendo em vista que estas “sinalizam a existência de
profundas formas de violação de direitos e de opressão que aparecem naturalizadas em
diferentes instituições e dimensões da vida social” (CISNE; SANTOS, 2014, pág.172).
Contudo, deve-se atentar para que esta vinculação não corrobore com a leitura pós-
moderna da realidade, em que se desconsidera a classe. O serviço social possui, em seu

210
processo histórico, importante acúmulo teórico que permite ampliar o debate juntos aos
novos movimentos sociais num viés classista. É fundamental construir estratégias que
permitam vincular as demandas levantadas pelos novos movimentos sociais às lutas
gerais da classe trabalhadora, na busca por superar o velho e o novo, evitando incorrer
em erros ou maior fragmentação nas lutas gerais. Abre-se, então, um novo caminho que
vem sendo traçado por diferentes setores da esquerda marxista, que busca combinar a
ação revolucionária a partir das lutas dos movimentos particulares, numa ação que cria,
em um processo dialético, a luta geral pela emancipação humana e superação da
sociabilidade imposta.

4- Referências bibliográficas:

BRAZ, M. Partido Proletário e Revolução: sua problemática no século XX. Tese


(Doutorado em Serviço Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,
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CISNE, Mirla; SANTOS, Silvana M.M dos. Movimentos feministas e pela liberdade de
orientação e expressão sexual: relações com a luta de classes no Brasil de hoje. In:
ABRAMIDES; DURIGUETTO (org). Movimentos sociais e serviço social: uma relação
necessária. São Paulo: Cortez, 2014.

FONTES, Virginia. Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho. Marx


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https://www.niepmarx.blog.br/revistadoniep/index.php/MM/article/view/220. Acesso em:
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GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais paradigmas clássicos e


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MOVIMENTOS-SOCIAIS-PARADIGMAS-CLASSICOS-E-CONTEMPORANEOS-1.pdf.
Acesso em: 25/01/2022.

IAMAMOTO, Marilda Villela. Renovação e Conservadorismo no Serviço Social. São


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MARTINS, Caio. Teorias dos novos movimentos sociais e a estratégia democrática e


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MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 1ª edição, São Paulo, Boitempo,
2007.

211
MOTTA, Célia Maria da. Neoliberalismo: América Latina, Estados Unidos e Europa de
James Petras. Lutas Sociais. São Paulo, n.9, p.180-183, 1999. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/issue/view/1209. Acesso em:

NETTO, J. Capitalismo e reificação. São Paulo: Ciências Humanas, 1981. Disponível em:
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NEVES, Victor. Movimentos sociais “clássicos”, “contemporâneos” e relevância


daestratégia socialista. Revista Marx e o Marxismo, Rio de Janeiro, v.8, n.14, p.36-56,
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WOOD, Ellen Meiksins. Em defesa da História: o marxismo e a agenda pós-


moderna.Crítica Marxista, São Paulo, Brasiliense, v.1, n.3, 1996, p.118-127.Disponível
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3&chunk=true. Acesso em: 20/01/2022.

212
RELAÇÕES ENTRE QUESTÃO AGRÁRIA, QUESTÃO SOCIAL E LUTAS SOCIAIS NA
FORMAÇÃO ECONÔMICO-SOCIAL BRASILEIRA

Anderson Martins Silva78

Resumo: O presente artigo é fruto das discussões travadas


ao longo do curso de Serviço Social na faculdade de Serviço
Social-UFJF. Nele, apresentamos uma primeira
aproximação acerca do debate da questão agrária no Brasil.
Nesse sentido, partimos da leitura e do diálogo com
Alentejano (2012), Almeida e Bezerra (2021) e Stedile
(2012a; 2012b) com o objetivo de apresentar a maneira
como compreendemos a relação estabelecida
historicamente entre questão agrária, lutas sociais e serviço
Social na formação econômico-social brasileira.

Palavras chave: Brasil; questão agrária; lutas sociais.

Abstract: This article is the result of discussions held during


the course of Social Work at the Faculty of Social Service-
UFJF. In it, we present a first approach to the debate on the
agrarian question in Brazil. In this sense, we start from the
reading and dialogue with Alentejano (2012), Almeida e
Bezerra (2021) and Stedile (2012a; 2012b) with the objective
of presenting the way we understand the historically
established relationship between agrarian question, social
struggles and Social Service. in the Brazilian economic and
social formation.

Keywords: Brazil; agrarian question; social struggles.

78Mestre em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de
Juiz de Fora. Atualmente doutorando e bolsista CAPES no programa citado sob orientação da Profª. Drª
Ednéia Alves de Oliveira. E-mail: anderson.martins.silva@hotmail.com.

213
1- INTRODUÇÃO

O presente artigo é fruto das discussões travadas ao longo do curso de Serviço


Social na faculdade de Serviço Social-UFJF, em particular no âmbito da disciplina
Classes e Movimentos Sociais III, a qual tratou dos desdobramentos históricos da
questão agrária no brasil. Nele, apresentamos uma primeira aproximação acerca do
debate da questão agrária no país. Nesse sentido, partimos da leitura e do diálogo com
Alentejano (2012), Almeida e Bezerra (2021) e Stedile (2012a; 2012b) com o objetivo de
apresentar a maneira como temos compreendido a relação estabelecida historicamente
entre questão agrária, questão social e lutas sociais na formação econômico-social
brasileira.

2- A QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL

Na acepção contemporânea o termo questão agrária delimita uma área do


conhecimento dedicada a “estudar, pesquisar e conhecer a natureza dos problemas das
sociedades em geral relacionados ao uso, à posse e à propriedade da terra” em um
determinado país ou região. Quando falamos dos usos da terra nos referimos a quais
produtos são cultivados para atender as necessidades sociais e qual o destino dado a
essa produção em uma determinada sociedade. Do ponto de vista da posse, trata-se da
consideração dos sujeitos sociais que ocupam e vivem em um determinado território. Por
fim, em relação à propriedade privada, trata-se de considerarmos que a terra somente se
torna mercadoria por meio das leis e instituições estabelecidas historicamente em um
determinado país ou região (STEDILE,2012a, p. 641).
No Brasil, desde o início da colonização, a invasão portuguesa serviu aos
interesses do mercado mundial. Financiados pela nascente burguesia comercial na
Europa e apoiados em sua superioridade militar, os lusitanos apoderaram-se do território
e impuseram as “leis e vontades políticas da Monarquia portuguesa”. Por meio da
cooptação e da violência contra os povos originários e, posteriormente, contra os negros
e negras sequestrados no continente africano, os portugueses dominaram todo território
e submeteram os “povos que aqui viviam ao seu modo de produção, às suas leis e à sua
cultura” (STEDILE, 2012b, p. 21). Deste modo, a partir daí, toda a produção e a
apropriação dos bens da natureza no Brasil passaram a responder a lógica das leis do
capitalismo mercantil já predominantes na Europa daquele período e, que impunham, a

214
transformação de todos os bens em mercadorias a serem vendidas no mercado de modo
a gerar lucros aos seus possuidores. Ademais, toda a produção passou a ser orientada
para o mercado externo (metrópole portuguesa) com vistas a realização do processo de
acumulação capitalista na Europa.
Nesse período, foi estabelecida aquela que nos parece a forma mais duradoura e
persistente de exploração capitalistas do povo brasileiro e de seu solo, qual seja, o
modelo agroexportador brasileiro pautado na produção em larga escala de gêneros como
a cana-de-açúcar, o algodão, o gado bovino, o café, dentre outros, para abastecer o
mercado externo. A enorme dimensão tomada pelo modelo assinalado na economia
brasileira pode ser apreciada quando observamos que em meados do século XIX a
“colônia Brasil exportava mais de 80% de tudo o que era produzido em nosso território”
(STEDILE, 2012b, p. 22).
No que diz respeito a organização da produção entre 1500 e 1850, observamos a
consolidação do sistema de plantation. Tal sistema era caracterizado pela produção
agrícola em grandes e continuas extensões de terra baseada na monocultura orientada
para a exportação e no trabalho escravo. Dada a sua orientação para o mercado externo,
a localização das empresas deveria se dar “próxima aos portos, para diminuir custos com
transporte”. Apesar de utilizarem mão de obra escrava, as unidades produtivas adotavam
o que existia de mais avançado no que diz respeito as técnicas e aos meios de produção
disponíveis à época.
Com relação a propriedade da terra, no período tratado até aqui, não havia a
propriedade capitalista da terra no Brasil de modo que as terras ainda não eram tratadas
como mercadoria. Não havia possibilidade de comprar ou vender terras. Toda a terra era
propriedade da Coroa que, concedia o direito hereditário de uso de grandes extensões
terra aos capitalistas-colonizadores e seus descendentes. Como destaca Stedile (2012b,
p. 24), o principal critério para a escolha dos donatários era a “disponibilidade de capital e
o compromisso de produzir na colônia mercadorias a serem exportadas para o mercado
europeu”.
Sob pressão do capitalismo inglês pelo fim da escravidão e da série de
movimentos contestatórios da escravidão que se desenvolvem no interior da sociedade
brasileira ao longo do século XIX, foi somente em 1850 com a Lei nº 601 (Lei de terras)
que a terra foi transformada em mercadoria por meio da normatização da propriedade
privada da terra. Estabelecia-se como princípio excludente que “todos” poderiam ter
acesso à terra, desde que a comprassem com dinheiro. De maneira geral, tratava-se de
um expediente com o objetivo de, frente a iminência da abolição da escravidão no Brasil

215
impedir que os negros e negras libertos pudessem se apossar das terras, perpetuando a
concentração de terras e pela via do direito criando o latifúndio moderno no país.
O modelo agroexportador e o sistema de plantation no Brasil ao longo da colônia
e do império basearam-se em um “verdadeiro genocídio para o povo brasileiro”. Como
indica Stedile (2012b), a população que em 1500 era de cerca de 5 milhões, a qual se
somaram os milhões de negros e negras sequestrados na África durante os 350 anos de
tráfico, ao fim do século XIX não era muito maior do que os mesmos 5 milhões
observados no início da invasão portuguesa, evidenciando-se a ocorrência ao longo de
todo o período de um massacre sistemático da população indígena e negra como um dos
fundamentos do desenvolvimento do modelo agroexportador brasileiro.
Como sinaliza Stedile (2012b, p. 26), após a Lei Aurea a inviabilização pelas elites
dominantes brasileiras da transformação dos trabalhadores negros em camponeses por
meio da Lei de terras de 1850 ocasionou a migração de um contingente de 2 milhões de
pessoas das fazendas para as cidades em busca de alguma forma de sobrevivência
“agora vendendo ‘livremente’ sua força de trabalho”. A mesma Lei também vedou o
acesso dos trabalhadores negros a terrenos nas cidades para a construção de suas
moradias, visto que os melhores terrenos já eram propriedade privada dos capitalistas.
Deste modo, restou aos negros e negras a ocupação dos piores terrenos, nas encostas
de morros e manguezais economicamente não atrativos para a acumulação de capital.
Assim, nesse período, começaram a se formar as primeiras favelas brasileiras.
Com a abolição do trabalho escravo, o sistema de plantation entrou em crise. A
solução encontrada por nossas elites para substituir o trabalho escravo foi a importação
de trabalhadores do exército industrial de reserva de países como Alemanha, Itália e
Japão. Esses trabalhadores foram direcionados, por um lado, para a região sul com a
venda de pequenos lotes de 25 a 50 hectares aos imigrantes e, por outro, para as
grandes plantações de Café do Rio de Janeiro e São Paulo, nas quais eram obrigados a
trabalhar sob o regime de colonato.
A crise vai se estender entre a abolição e os anos 1930 e é no seu bojo que vai
conformar-se o campesinato brasileiro que viria a protagonizar as importantes lutas pela
terra anos depois no pré-golpe de 1964. A primeira vertente de formação desse
campesinato consistiu nos dois milhões de imigrantes europeus já assinalados, ao passo
que, a segunda deve a sua origem as “populações mestiças que foram se formando ao
longo dos 400 anos de colonização”. Dada a limitação de seu acesso à terra pela Lei de
terras, migraram para o interior do país em busca de possibilidade de trabalhar em terras
ainda não ocupadas pelo setor agroexportador. Nesse longo percurso rumo ao sertão, o

216
interior do Brasil – notadamente Minas Gerais, Goiás e o interior da Bahia – foi ocupado
por milhares de trabalhadores que pouco a pouco o povoaram com base em atividades
de produção agrícola de subsistência. Apesar de não terem a propriedade privada da
terra a “ocupavam, de forma individual ou coletiva, provocando, assim, o surgimento do
camponês brasileiro e de suas comunidades” (STEDILE, 2012b, p. 28-29).
O ano de 1930 inaugurou uma “nova fase da história econômica brasileira. A crise
do modelo agroexportador levou a manifestação de uma crise política e institucional no
país, expressa na queda da monarquia e no estabelecimento da República, no
movimento tenentista e na coluna Prestes e, por fim, no golpe – “revolução política por
cima – dado pela burguesia industrial ascendente contra a oligarquia rural exportadora e
que colocou Getúlio Vargas na Presidência da República em 1930. A partir daí, passou a
se desenvolver o processo de industrialização dependente do Brasil, caracterizado por se
realizar sem “rompimento com os países centrais, desenvolvidos, e sem rompimento com
a oligarquia rural, origem das novas elites dominantes”. Trata-se de fato, de uma aliança
entre a burguesia nascente e a oligarquia agroexportadora de origem colonial,
fundamentada na necessidade das divisas geradas por essa última para o processo de
industrialização brasileiro (STEDILE, 2012b, p. 29).
No que diz respeito a questão agrária, o “período se caracteriza pela
subordinação econômica e política da agricultura à indústria”. Surge nesse momento, as
indústrias de insumos, máquinas e equipamentos, adubos químicos e venenos voltados
para o “desenvolvimento” da agricultura. Ademais, também passa a se desenvolver a
agroindústria com a criação de indústrias para o beneficiamento da produção agrícola
brasileira.
Em síntese, tratou-se de um “processo de modernização capitalista da grande
propriedade rural” que do ponto de vista dos camponeses, significou a ampliação da
submissão as regras do mercado de trabalho capitalista e a exploração industrial de sua
força de trabalho; a ampliação do seu papel enquanto exército industrial de reserva via
migração para as cidades, pressionando o salário médio para baixo; o fortalecimento de
seu papel enquanto fornecedor de alimentos a preços baixos para nascente classe
trabalhadora das cidades e por fim; os camponeses também foram convocados a
produzir “matérias primas agrícolas para o setor industrial” (STEDILE, 2012b, p. 31-32).
Do ponto de vista da propriedade da terra, apesar de haver a multiplicação de
pequenas propriedades por meio da compra e venda no mercado, a tendência
predominante continuou sendo de ampliação da concentração da propriedade das terras
no Brasil. Deste modo, no início dos anos 1960, o campo brasileiro apresentava como

217
característica a moderna agricultura capitalista combinada a um setor camponês
“completamente subordinado aos interesses do capital industrial” (STEDILE, 2012, p. 32-
33).
É nesse cenário que se desenvolvem no pré-1964 – em meio à crise cíclica do
modelo de industrialização dependente durante os governos de João Goulart – as
grandes lutas do movimento dos trabalhadores do campo pela reforma agrária – Ligas
Camponesas, MASTER etc – no bojo da luta pelas reformas de base na sociedade
brasileira e que serão violentamente reprimidas a partir do golpe civil-militar de 1964.
O golpe militar teve como objetivo fundamental destruir toda a mobilização
democrático-popular e projetos de esquerda que se desenvolviam no Brasil entre 1950 e
1964. Deste modo, no que diz respeito a questão agrária, em oposição a perspectiva da
Reforma Agrária gestada pelos movimentos sociais, a ditadura apresentou uma proposta
de modernização conservadora da agricultura brasileira sem Reforma Agrária.
Contraditoriamente, tratava-se da tentativa mais organizada de modernização no campo
brasileiro até aquele período, evidenciando-se o papel significativo do Estado ao longo de
todo o processo de modernização conservadora. O Estado foi responsável pela criação
das condições para o desenvolvimento da produção de equipamentos e insumos
agrícolas em solo nacional, de um sistema de pesquisa e extensão – como dão exemplo
a Embrapa e Embrater – para o desenvolvimento da agricultura e, por fim de condições
de financiamento para levar adiante todo o processo. No cerne dessa modernização
conservadora encontrava-se a aliança do grande capital-agroindustrial com a oligarquia
fundiária.
Também foi uma característica da modernização da agricultura brasileira a sua
relação com a Revolução Verde, tanto ideologicamente com a oposição a Reforma
Agrária, quanto por meio da ampliação da utilização de máquinas, sementes transgênicas
e agrotóxicos baseados em armas de guerra obsoletas para “ampliar” a produtividade das
lavouras. Como fruto desse processo o Brasil é atualmente o país que mais consome
agrotóxicos no mundo.
Como aponta Alentejano (2012, p. 480), a modernização conservadora da
agricultura inverteu de maneira radical o princípio da agricultura tradicional, segundo o
qual, deve-se respeitar não somente a diversidade ambiental, como também os distintos
regimes alimentares vigentes na humanidade. Na direção contrária dos princípios
observados, o que avançou foi, por um lado, uma “agricultura padronizada que se impõe
à diversidade ambiental, artificializando os ambientes e adequando-os ao padrão
mecânico-químico da agricultura moderna” e, por outro, a imposição ao conjunto da

218
humanidade de um “padrão alimentar que atende aos interesses das grandes
corporações agroindustriais”.
Deste modo, o processo de modernização da agricultura brasileira implicou a
ampliação do controle das transnacionais/agronegócio sobre a agricultura brasileira, seja
por meio da determinação e controle do padrão tecnológico da produção brasileira, seja
por meio do investimento na indústria de beneficiamento da produção agropecuária. A
título de exemplo, em 2010, as transnacionais tinham uma participação de 44% nos
investimentos do agronegócio, eram responsáveis por 51% das exportações de soja e
37% das de carne suína brasileira.
A compreensão da questão agrária a partir de uma perspectiva ontológica exige a
consideração dos distintos momentos de expropriação das terras/concentração aos
produtores diretos ao longo da história do capitalismo, sua transformação em simples
meio de exploração do trabalho alheio, nesse sentido, produção e reprodução do mais-
valor e, por fim, toda a luta de classes que envolve o movimento capitalista de
concentração e centralização da terra (WOOD apud ALMEIDA; BEZERRA, 2021).
Segundo Almeida e Bezerra (2021, p. 41-42), o agronegócio brasileiro nos fornece
um “interessante exemplo do modo como opera o capital na agricultura” por meio de
expropriações que alienam os recursos naturais do ser social e os apresentam como
meio de dominação das coisas sobre os produtores sociais, estabelecendo-se uma
relação de exploração da força de trabalho – produção do mais-valor – que se desdobra
na distribuição do mais-valor nas formas de renda da terra e lucro, apropriados
respectivamente, pelo proprietário fundiário e pelo capitalista industrial.
Para compreender o agronegócio enquanto expressão da questão agrária no
Brasil, faz-se necessária a consideração não apenas das condições de vida e de trabalho
do proletariado urbano-industrial, mas também, da situação de exploração na qual se
encontram o proletariado rural e o camponês mini fundiário que produz para o mercado e
retira dessa atividade uma remuneração similar em grandeza aquela obtida pelo
proletariado. No bojo dessa análise também se torna fundamental a consideração dos
aspectos relacionados as assimetrias de cor e ração e suas diferentes expressões
enquanto constituinte de nossa questão agrária desde o início da invasão portuguesa.
Ademais, cabe destacar o enorme número de camponeses expulsos do campo e que
engrossam as fileiras do proletariado sob a forma de superpopulação relativa pronta à ser
empregada pelo capital de acordo as necessidades de sua acumulação.
Sob pressão da crise estrutural do capital iniciada nos anos 1970 e de seus
desdobramentos em uma série de clises cíclicas nesse início de século XXI, a exploração

219
da força de trabalho do proletariado urbano-industrial, proletariado rural e do campesinato
brasileiro tem sido intensificada promovendo o retrocesso das relações de trabalho no
país, por meio da intensificação das jornadas, ampliação da extração de mais-valia
relativa por meio da utilização de maquinaria no agronegócio, destruição de direitos
trabalhistas, ampliação do trabalho informal e proliferação do emprego de trabalho
análogo a escravidão nos grandes latifúndios do país. O quadro é aprofundado pela
ausência da reforma agrária ao longo dos distintos governos do pós-ditadura.
Nas condições sinalizadas, ganham especial importância as lutas sociais contra o
agronegócio e suas expressões na arena política. Trata-se da luta contra a política
econômica brasileira atual de favorecimento dos setores agroexportadores e financeiros,
da luta por políticas públicas voltadas para a distribuição de terras, fornecimento de
crédito barato aos pequenos produtores, fiscalização do latifúndio improdutivo, em
síntese, políticas orientadas para a retomada da reforma agraria no país como um dos
elementos fundamentais para a resolução da questão agrária no Brasil e de suas
implicações para o desenvolvimento de nossa questão social.

3- À GUISA DE CONCLUSÃO

Como destacamos a modernização conservadora da agricultura brasileira


contribuiu para a ampliação e reiteração da concentração da propriedade da terra
constituída historicamente na formação econômico-social brasileira e para a
manifestação de uma distribuição regressiva da renda, elevando a desigualdade no
campo. Pari-passo a ampliação a concentração das terras avançaram também a
transformação das terras em objeto de especulação, a “proletarização e a pauperização”
do camponês e a destruição do meio ambiente, com o avanço da fronteira agrícola, o
massacre dos povos indígenas, o envenenamento do alimento pelo agronegócio, e os
recorrentes rompimentos de barragens da mineração que tem castigado o povo brasileiro
nos últimos anos.
Por fim, dado o caráter estrutural e estruturante da questão agrária no processo
brasileiro é fundamental que ela esteja presente na pauta de lutas dos assistentes sociais
na medida em que impacta concretamente o seu cotidiano de trabalho. Assim,
concluímos destacando que os assistentes sociais tem como possibilidade a partir de seu
trabalho no âmbito da questão agrária 1) dar visibilidade as diversas lutas sociais em
torno da questão da propriedade da terra, seja no campo ou na cidade; 2) contribuir para
a descriminalização dos movimentos de luta pela terra a partir do fortalecimento da

220
defesa dos direito à alimentação e a segurança alimentar e nutricional no país; 3) lutar
pela reforma agrária como política pública – para além dos limites da política de governo
– e redistributiva para além do minimalismo assistencialista visto ao longo do último
período; 4) contribuir para a discussão da questão ambiental e social junto aos
trabalhadores por meio da dimensão socioeducativa presente no Serviço Social e 5) por
fim, atuar permanentemente junto aos movimentos sociais da classe trabalhadora da qual
o assistente social também é parte.

4- BIBLIOGRAFIA

ALENTEJANO, P. Modernização da Agricultura. In CALDART, R; PEREIRA, I;


ALENTEJANO, P; FRIGOTTO, G. (orgs). Dicionário da Educação do Campo. Rio de
Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular,
2012.

ALMEIDA, J; BEZERRA, C. Questão agrária e questão social no capitalismo brasileiro:


uma falsa dicotomia. In: BRUZIGUESSI, B; BEZERRA, C; CAPUCHINHO, M; JESUS, N;
ALAGOANA, V. Questão Agrária e Políticas Públicas em Minas Gerais: conflitos sociais e
alternativas populares. Juiz de Fora: UFJF, 2021.

STEDILE, J. Questão Agrária. In CALDART, R; PEREIRA, I; ALENTEJANO, P;


FRIGOTTO, G. (orgs). Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo:
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012a.

_________. Introdução. In STEDILE, J. (org). A Questão Agrária no Brasil: O debate na


esquerda – 1960-1980. 2ªed. São Paulo: Expressão Popular, 2012b.

221
AGROECOLOGIA E SOBERANIA ALIMENTAR: contribuições ás experiências de
formação política no Brasil e na Espanha

Mônica Aparecida Grossi *

David Gallar Hernández**

Resumo: Este artigo tem como objetivo trazer reflexões


sobre a necessária afirmação da agroecologia e da
soberania alimentar, como alternativas ao sistema
agroalimentar capitalista das corporações transnacionais do
agronegócio, suas contribuições á formação política de
quadros, visibilizadas nas experiencias do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, no Brasil, e de
organizações agrárias na Espanha, através da Escola de
Ação Camponesa. Concluímos que estas experiências são
indispensáveis aos processos político-organizativos de
organizações agrárias, ao fortalecimento da reforma agrária
e à construção de outro sistema agroalimentar.

Palavras-chave: Agroecologia; Soberania Alimentar;


Formação de Quadros; Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra; Escola de Ação Camponesa.

Abstract: This article aims to bring reflections on the


necessary statement of agroecology and food sovereignty,
as alternatives to the capitalist agri-food system of
transnational agribusiness corporations, their contributions to
the political formation of cadres, which are made visible with
the experiences of the Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) in Brazil and agrarian organizations in
Spain, through the Escuela de Acción Campesina (EAC).
We conclude that these experiences are indispensable for
the political-organizational processes of agrarian
organizations, for the strengthening of agrarian reform, and
the construction of another agri-food system.

Keywords: Agroecology; Food Sovereignty; Formation of


cadres; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST); Escuela de Acción Campesina(EAC).

* Assistente Social, Professora da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pós-doutoranda pelo Instituto de
Sociologia e Estudos Camponeses da Universidade de Córdoba,
Espanha.Email:monicagrossiufjf@gmail.com

** Sociólogo y antropólogo. Profesor e investigador del Instituto de Sociología y Estudios Campesinos (ISEC)
de la Universidad de Córdoba. Director del máster “Agroecología: un enfoque para la sustentabilidad rural”.
Email: david.gallar@uco.es

222
1- INTRODUÇÃO

Neste momento de crise estrutural do capital e de seu atual processo de


acumulação, os bens da natureza, com destaque para as terras, águas e sementes, e
também os camponeses, vêm sofrendo grandes ofensivas, demonstrando que estamos
vivendo um processo mais amplo de crise civilizatória, que se expressa na
negação/retirada dos direitos à alimentação, ao trabalho, à terra e à vida. Na atual fase
do capitalismo financeiro internacional, sob a hegemonia do agronegócio, vêm sendo
desenvolvidos mecanismos de controle da agricultura e do comércio de alimentos,
agravando a concentração da propriedade das terras, dos meios de produção e de toda
cadeia agroalimentar, trazendo como consequências o aumento da fome e da
insegurança alimentar, e de ameaças à existência dos camponeses e povos da terra, das
águas e das florestas.
As organizações do campo, vêm buscando construir alternativas, através de ações
coletivas em torno da agroecologia e da soberania alimentar, onde a formação política de
quadros vinculadas à Via Campesina tem se configurado como forma de preparo para
enfrentamentos e disputas, em torno do atual modelo capitalista de agricultura e ao uso
dos bens ambientais. No Brasil, será abordada a experiència do MST, a partir da sua
Política de Formação de Quadros, da Educação do Campo e da Reforma Agrária
Popular. Na Espanha será destacada a Escola de Ação Camponesa –EAC, por ser uma
experiência pioneira que {...}“nos países do Norte Global são pouco comuns e há
escassa análise a este respeito” (GALLAR HERNANDEZ, 2021,p.1). Não pretendemos
realizar nenhum tipo de comparação entre experiências e sujeitos coletivos tão distintos,
mas demarcar algo muito caro ao Serviço Social: a importância de processos político-
organizativos e formativos da classe trabalhadora que, em tempos de ofensiva
“ultraneoliberal do capital”, tornam-se vitais.
Nosso objetivo é refletir sobre a necessária afirmação da agroecologia e da
soberania alimentar, como alternativas ao sistema agroalimentar capitalista, destacando
suas contribuições á formação política de quadros, através de experiências no Brasil e
Espanha.

2- AGROECOLOGIA E SOBERANIA ALIMENTAR: elementos centrais para a formação


de quadros de organizações camponesas da Via Campesina.

A formação de quadros é algo presente na Via Campesina desde sua criação em


1993. Os avanços da agroecologia nas décadas de 1980 e 1990, e a criação do conceito

223
político de soberania alimentar em 1996, são elementos que se potencializaram
mutuamente, fortalecendo também, a formação de quadros na afirmação uma agricultura
camponesa contraposta ao modelo de agricultura capitalista hegemônico.
A Via Campesina trabalha desenvolve processos de formação política e técnica
de suas organizações, de seus dirigentes e de sua base. Fortalece a formação em
agroecologia e soberania alimentar, como elementos que congregam força social e
político-organizativa, para que suas organizações possam fundamentar suas ações
direcionadas para mudanças sociais significativas na agricultura e na sociedade,
relacionadas com a construção da soberania dos povos e dos territórios.
Compreendemos a agroecologia numa perspectiva que ultrapassa o
desenvolvimento de uma agricultura ecológica, que produza alimentos saudáveis, uma
vez que esta perpectiva restrita, pode e vem sendo capturada pelo capitalismo como um
nicho de mercado. Numa perspectiva mais ampla, a construção da agroecologia
compreende três dimensões que são complementares: a dimensão técnico-
produtiva(manejo ecológico na produção agrária); a dimensão sócio-econômica
(elementos sociais e econômicos do processo de produção, circulação e consumo,
formas organizativas) e a dimensão política (relações de poder,níveis de autonomia
alcançados nos territórios, suas culturas,envolvendo produção, circulação e
consumo)Sevilla Guzmán e Cuéllar Padilla(2012).
Sevilla Guzmán (2005), vem defendendo que a dimensão política da agroecologia,
questiona a destruição das culturas camponesas operada pela revolução verde, e remete
à compreensão dos camponeses sobre os processos de exploração aos quais estão
submetidos, para que eles possam desenvolver, junto com técnicos, processos de
transição da agricultura convencional para a agroecologia. Estes processos envolvem,

{...}propostas coletivas que transformem as relações de dependência dos


agricultores em relação ao funcionamento atual da política e da economia.
Ela se propõe, para além do nível da produção, introduzir-se nos
processos de circulação, transformando os mecanismos de exploração
social. Requer a utilização de experiências produtivas em agricultura
ecológica na elaboração de propostas para ações sociais coletivas que
demonstrem a lógica predatória do modelo produtivo agroindustrial
hegemônico, permitindo sua substituição por outro que aponte para uma
agricultura socialmente mais justa, economicamente viável e
ecologicamente apropriada”. (Sevilla Guzmán, 2005,p.3).

O conceito de soberania alimentar criado pela Via Campesina, em 1996, e sua


evolução, pode ser definido como: o direito de cada nação de manter e desenvolver sua
própria capacidade de produzir alimentos saudáveis, com produção sustentável em nível
local, respeitando a diversidade cultural e produtiva, e como o direito de definir sua

224
política agrícola e de alimentos.Dentre seus pilares destacamos: a centralidade da
alimentação como um direito humano coletivo, e não como uma mercadoria, deve estar
no centro das políticas; a importância de quem produz e quem consome os alimentos; o
controle dos sistemas alimentares em nível local e nacional, priorizando a produção da
agricultura familiar em pequena escala, diversificada, reduzindo a distância entre quem
produz e quem consome; valorização e promoção dos conhecimentos camponeses e
indígenas, através de processos de investigação participativa e do diálogo entre os
saberes tradicionais e científicos; valorização, recuperação e potencialização da
natureza, e das energias renováveis, para as atuais e futuras gerações. (DECLARAÇÃO
DE NYÉLÉNI, 2007).
Gallar e Calle (2017) trazem questões importantes relacionadas á necessária
repolitização da agroecologia, no sentido de ressituar a agroecologia como ponto de
saída para a transição agroecológica em direção á soberania alimentar. Para estes
autores, a agroecologia política é compreendida como "el análisis e la actuación sobre las
condiciones sociales, las redes y los conflictos que resultan del apoyo hacia un cambio
social agroecológico{...}la democratización alimentaria"(p.2). Afirmam a indispensável
participação de sujeitos políticos coletivos, que ocupem a arena social e política em
disputa, com aborgagens contra hegemônicas, que tenham base social, cooperação
estável, espaços de reflexão próprios, intelectuais orgânicos, capacidade de articulação e
horizonte social e político, para fortalecer os necessários enfrentamentos e a construção
de alternativas.
Estas resistências se acentam em experiências de diversos sujeitos coletivos como
movimentos camponeses, sindicalismo agrário e movimentos urbanos de consumo
crítico, tendo a agroecologia e a soberania alimentar como base para as estratégias
produtivas e como elementos decisivos para a luta política.

Por un lado la agroecología, como enfoque científico e como filosofía de


acción, que tiene su razón de ser en el manejo participativo y sustentable
de los recursos naturales. Por outro lado, la Soberanía Alimentaria como
concepto de transformación social y de lucha política, que tiene como
razón de ser la redistribuición del poder en la toma de decisiones en torno
de la alimentación( SEVILLA GUZMÁN e CUÉLAR PADILLA 2012,p.16-
17).

Neste sentido, a formação de quadros ocupa lugar estratégico nos processos de


transição para a agroecologia, através do preparo e fortalecimento dos sujeitos coletivos,
que vão dar forma, conteúdo e sentido à construção da soberania alimentar.

225
3- FORMAÇÃO POLÍTICA NO MST COM ÊNFASE NA AGROECOLOGIA.

A construção de uma política de formação de quadros no MST ganha


materialidade com a Escola Nacional Florestan Fernandes, que em sua
inauguração(2005), realiza um seminário sobre esta temática(2007), discutindo sua
perpectiva junto a outras experiências internacionais.
A preocupação do MST com a efetivação da luta pela reforma agrária popular com
base na agroecologica, direciona-se ao necessário preparo técnico, para as experiências
produtivas, e também ao preparo político para enfrentamentos ao agronegócio, que se
inscrevem na direção da construção da soberania alimentar e de novas relações
sociedade/natureza.Esta perspectiva ampla, envolve diferentes processos, que
representam a reapropriação social da natureza, em contraposição a sua apropriação
privada.

Implica em um novo modelo de produção e desenvolvimento tecnológico


que se fundamente numa relação de co-produção ser humano e natureza,
na diversificação produtiva, capaz de revigorar e promover a
biodiversidade e em uma nova compreensão política do convívio e do
aproveitamento social da natureza. Os camponeses, trabalhadores/as do
campo e povos tradicionais (indígenas, extrativistas, quilombolas) têm
sido protagonistas de práticas de um modo de fazer agricultura que
representa um contraponto à agricultura capitalista e se constituem na
resistência e nas lutas de enfrentamento direto ao capital. (MST,
2013,p.46-47)

O dinamismo do MST e da Via Campesina, através de parcerias com as


universidades públicas brasileiras, vem ampliando a formação de quadros a partir da
perspectiva da agroecologia. Os espaços formativos em agroecologia estão relacionados
às estratégias e aos princípios comuns defendidos pelo MST e pela Via Campesina,
constituindo-se em articulações, baseadas em trocas de experiências, que resguardando
as particularidades, dinâmica e autonomia de cada experiência, constroem uma
perspectiva de formação mais unitária. Esta concepção abrange, o cuidado e a defesa da
vida, a produção de alimentos e a ampliação da consciência política e organizacional
considerada,

[...] inseparável da luta pela soberania alimentar e energética, defesa e


recuperação de territórios, reformas agrária e urbana, aliança entre os
povos do campo e da cidade e cooperação[...] consciente e livre, tomada
como o meio fundamental para a superação da divisão social do trabalho
e conseqüentemente da alienação dos sujeitos trabalhadores ( GHURUR
et al, 2012,p. 8).

226
A fundamentação teórico-metodológica dos centros/escolas de formação baseia-
se nos princípios filosóficos e pedagógicos da educação e da pedagogia construídos pelo
MST, a partir de três principais fontes: a Pedagogia Socialista, a Educação Popular e o
Materialismo Histórico Dialético. A partir de sua luta, estes processos pedagógicos são
orientados pelo projeto de Educação do Campo, que se manifesta na ação prática da
relação entre ciência, cultura e trabalho como principio educativo. Nesta perspectiva
ampliada de educação e de formação humana, o método pedagógico de formação em
agroecologia não se restringe à dimensão técnica, uma vez que o perfil do educando que
se pretende formar é concebido

[...]como militante-técnico-educador-em agroecologia, que envolve:


capacidade crítica de compreender e intervir ativamente na realidade
concreta das comunidades camponesas, utilizando tecnologias
adequadas aos seus interesses e necessidades; de contribuir para
fortalecer os processos de transformação da sociedade, orientando e
promovendo a reconstrução ecológica da agricultura e o desenvolvimento
de formas sociais de cooperação; comprometimento e qualificação para
estabelecer mudanças na relação com as famílias camponesas,
superando a “insistência técnica” em direção à convivência dialógica
(Ghurur, et all, 2012,p.6).

Concordando com as conclusões de Ghurur, et all (2012) reforçamos que a


capacitação em agroecologia oferecida/construída nestes espaços formativos,
efetivamente, se direcionam para a ruptura com o ensino fragmentado instituído pelo
capital, enfrentado coletivamente o desafio de unir o pensar e o fazer, ou tornar a
concepção/direção e execução, como unidades indivisíveis. A construção e a
sustentação da agroecologia como base para a soberania alimentar, envolve a produção
e a luta política, demandando o aperfeiçoamento dos conhecimentos científicos e
humanos, que ultrapassam a capacitação técnica, requerendo rigor na análise e na ação
sobre a natureza e a sociedade.

4- FORMAÇÃO POLÍTICA NA ESCOLA DE AÇÃO CAMPONESA– EAC (ESPANHA) E


SOBERANIA ALIMENTAR: re-campesinização e fortalecimento de organizações
agrárias.

A experiência da EAC constitui-se como uma ferramenta de formação política,


baseada nos princípios das pedagogias camponesas da Via Campesina, colocados em
prática dentro de uma organização agrária em aliança com o Movimento pela Soberania
Alimentar-FSM, da Espanha. Apresentada em artigo elaborado por Gallar-
Hernandez(2021), esta experiência baseia-se em 10 anos de dedicação deste autor à
investigação ativista e ao efetivo trabalho(como membro do consórcio organizador, como

227
coordenador pedagógico,como professor), abrangendo todo o processo de concepção(
2010-2013) e desenvolvimento de cinco cursos concluídos pela EAC (2014, 2015, 2016,
2017-2018, 2019-2020). Situa este estudo

nos processos materiais e ideológicos de re-campesinização das


organizações agrícolas, em nível internacional, a partir da proposta de
soberania alimentar construída pela Via Campesina como ferramenta
para promover um modelo produtivo e agroalimentar mais
sustentável.Uma das principais ferramentas nesses processo de
reavivamento é o desenvolvimento do programa de capacitação de jovens
agricultores para que possam liderar as novas agendas e estratégias
sindicais nos diferentes territórios (GALLAR-HERNANDEZ, 2021,P.1-2).

O surgimento da EAC foi fruto de um amplo processo de articulações, esforços de


coordenação e colaboração entre diferentes atores do FSM. Concretiza-se com a
formação de um consórcio constituído por diversas organizações que contribuem com
recursos: COAG - Coordenador de organizações de pequenos e médios agricultores
familiares, e suas juventudes agrárias, EHNE - Sindicato dos Agricultores Bascos,
Mundubart e VSA-Justiça Alimentaria (ONGs de desenvolvimento), Universidade Rural
Paulo Freire – URPF, Amigos de La Tierra (entidade ambientalista), CAS – Coletivos de
Ação Solidária (ONG de associações de desenvolvimento rural) e o Instituto de
Sociologia e Estudos Campesinos – ISEC da Universidade de Córdoba. Todas
compartilham do diagnóstico de que é preciso fortalecer as organizações
agrárias(fundamentalmente o COAG) para continuar apoiando o FSM.Mesmo
considerando a importância da transição agroecológica e da recampesinização na
agricultura, a EAC é concebida como um espaço de formação política, mas sem
pretensão de dar formação técnico-agronômica. Neste sentido, a EAC visa à re-
campesinização ideológica do COAG, que defende um modelo social e profissional da
agricultua familiar, baseada na pequena e média produção, e por ser um um orgão
coordenador, compõem-se por diferentes Unidades Territorias –UTs, que são autônomas,
sendo marcado pela heterogeneidade relacionada às diferentes características produtivas
e econômicas dos diferentes territórios da Espanha.

Gallar-Hernandez(2021) mostra que a partir da dinâmica pedagógica, estrutura e


conteúdos ideológicos desenvolvidos para a formação de novos quadros, destacam-se
três áreas principais deste processo formativo: o fortalecimento da união coletiva e
identidade camponesa(“construindo um “nós” Sindicalista e Camponês”p.17); a formação
na ideologia “camponesa proposta”(“a proposta ideológica da EAC é a soberania
alimentar e o princípio camponês”p.21); integração dos estudantes como novos quadros

228
nas estruturas das organizações( na perspectiva gramsciana, de formação de sujeitos
políticos coletivos e intelectuais orgânicos em luta pela hegemonia). O desenvolvimento
da organicidade da turma e da mística, também são elementos fortalecedores da
identidade coletiva.

A partir das pedagogias camponesa e populares, a pedagogia da alternância,


envolvendo os saberes trabalhados durante os “tempos de estudo”, verificados e
aplicados nas realidades específicas dos estudantes durante os “tempos comunitários”,
são compartilhados com a turma de estudantes e educadores, através de um contínuo
processo de ação-reflexão-ação. Importante destacar que a EAC não tem um local fixo e
não se limita ao estudo em sala de aula, reúne cerca de 20 estudantes em cada curso e
cerca de 10 UTs, com duração média de 10 meses, e concretiza-se através de encontros
itinerantes, onde se trabalha conteúdos e habilidades em diversas atividades,
contemplando visitas de campo para conhecimento de diferentes realidades agrárias, e
dos Planos de Ação Camponesa. Elaborados pelos estudantes, de acordo com as
necessidades das UTs para o seu fortalecimento, estes Planos são supervisionados por
professores e chefes das UTs, configurando a estratégia educativa através desta “tríade
pedagógica”.

O trabalho por meio dos Plano de Ação Camponesa é uma forma de


fortalecer a relação dos alunos com o sindicato local, {...} asumirem
responsabilidades diretas perante o sindicato local, e por meio do
relacionamento específico com o chefe político da UT, para atender às
demandas do sindicato local e ampliar o trabalho ou vínculo entre o aluno,
o sindicato e o território(GALLAR-HERNANDEZ, 2021,P.13).

As conclusões reforçam que através da EAC, houve a incorporação de muitos


destes jovens nas estruturas sindicais como novos quadros; a identidade camponesa e
sindical foi reforçada e houve assimilação da proposta “camponesa” da soberania
alimentar, podendo-se afirmar como “{...} um instrumento útil para a formação de quadros
camponeses no processo de reavaliação das organizações agrárias, reforçando o seu
caráter de sujeito político coletivo pró camponês(GALLAR-HERNANDEZ, 2021,P.28).

5- Conclusões

A agroecologia e a soberania alimentar apresentam-se como elementos


chave para a construção de resistências e alternativas na direção de uma nova
sociedade, que coloque a vida como centro. Visibilizar experiências é importante para

229
socializar os esforços, as dificuldades e as potencialidades da formação de quadros.
Concluimos que, possuindo suas especificidades, estas experiências correspondem aos
princípios de formação de quadros construídos pela Via Campesina, sendo relevantes e
indispensáveis, aos processos político-organizativos e ao fortalecimento de organizações
camponesas, para lutas sociais pela reforma agrária e para a construção de outro
sistema agroalimentar, que se contrapõem ao modelo hegemônico das corporações
transnacionais do agronegócio.

6- Referências Bibliográficas

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Selingue, Mali, 2007.

ESCOLA NACIONAL FLORESTAN FERNANDES. A política de formação de


quadros.2007.

GALLAR HERNÁNDEZ, David; CALLE COLLADO, Ángel. La construcción de sujetos


políticos y la agroecología: una lucha por la vida. Boletín ECOS-Fuhem, 39, 2017.

GALLAR HERNÁNDEZ, David. Forging Political Cadres for Re-Peasantization:


Escuela de Acción Campesina (Spain), Sustainability, 2021, 13, 4061,
doi.org/10.3390/su13074061

GUHUR, Dominique Michèle Perioto et all.As Práticas Educativas de Formação em


Agroecologia da Via Campesina no Paraná. In: Seminário Nacional de Educação em
Agroecologia, 1, 2013, Recife: ABA; NAC/UFRPE.

MST- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Programa Agrário do MST: VI
Congresso Nacional. São Paulo, 2013.

SEVILLA, GUZMÁN Eduardo. Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável.


Brasília: Via Campesina, 2005.

SEVILLA GUZMÁN, Eduardo; CUÉLAR PADILLA, Mamen. Aportando a la


construcción de la Soberanía Alimentaria desde la Agroecología. Revista Ecologia
Política, 2012.

230
CONSIDERAÇÕES SOBRE A GREVE INTERNACIONAL DE MULHERES DE 2017
Lucimara dos Reis Pinheiro79
Maria Lúcia Duriguetto80

Resumo: o presente artigo objetiva evidenciar elementos do


processo de construção da greve internacional de mulheres
de 2017, evidenciando as determinações sócio-históricas
que o ensejaram, bem como as construções teórico-políticas
que informaram seu desenvolvimento. A GIM se constituiu
em uma importante demonstração da vitalidade de um
feminismo materialista marxista que imputa às lutas
feministas uma perspectiva classista e anticapitalista.

Palavras-Chave: Feminismo; Greve Internacional de


mulheres; anticapitalismo

Abstract: This article aims to highlight elements of the


process of construction of the 2017 international women’s
strike, highlight ing the socio-historical determinations that
gave it as well as the theoretical-political constructions that
informed its development. The GIM was an important
demonstration of the vitality of a Marxist materialist feminism
that imputes to feminist struggles a classist and anti-
capitalist perspective.

Keywords: Feminism; International Women’s Strike; anti


capitalism

1- INTRODUÇÃO

Os mecanismos que normalizam a exploração do trabalho, a propriedade privada


dos meios de produção e as opressões que lubrificam essa máquina que transforma os
seres humanos em mercadorias lucrativas, enredam os seres sociais em uma teia cuja
libertação se encontra no desvendar desses mecanismos e no seu desmonte. Dentre as
muitas ações necessárias, ressaltamos, as que oferecerem recusa e combate às linhas
divisórias intraclasse. Compondo de forma significativa e significante esse espaço, estão
as relações mediadas pelo gênero e pela raça/etnia. Superar as exclusões impostas por
tais relações é tarefa de elevação de consciência do conjunto da classe trabalhadora e de
sua recorrente tematização pela teoria social crítica voltada para supressão da sociedade

79 Graduação em História na UFJF, Mestrado em Serviço Social no PPG/Serviço Social da UFJF. Mail:
lureisp@hotmail.com
80Professora da Faculdade de Serviço Social da UFJF. Mail: maluduriguetto@gmail.com

231
de classes. Neste trabalho, buscamos visibilizar a formação da classe trabalhadora numa
perspectiva que abarque as mulheres, não apenas contingencialmente, mas buscando
entender que as relações de dominação de gênero agem enquanto componentes
fundantes da conformação da classe e de seus processos de exploração. Nos parece
evidente, a partir da percepção de que a classe não é homogênea, que a composição
étnico/racial é outra determinação estruturante para o entendimento do que aqui nos
ocupamos. Constatada a diversidade que a formação da classe comporta, partimos da
compreensão das opressões vivenciadas pelas mulheres como componentes
necessários da dinâmica da luta de classes. Sua percepção de sujeito explorado em um
duplo processo de alienação que, ao mesmo tempo as aliena do trabalho realizado e da
sua própria condição de trabalhadoras pertencentes a esta mesma classe, e, portanto,
com direitos em luta em níveis diferenciados dentro do conjunto da classe, como elucida
Saffioti (2019). É este entendimento da dupla exploração e opressão que leva à
construção de formas organizativas exclusivas de mulheres com vistas a ganhos de
ascensão enquanto sujeito histórico e político pertencente à classe; elevação de
consciência de sua posição no sistema capitalista; ganhos qualitativos de direitos e, por
consequência, um entendimento ampliado do sistema de dominação a que são
submetidas. É necessário que essas movimentações sejam percebidas e investigadas
sob uma perspectiva teórica que compreenda a práxis numa dimensão de totalidade, que
ultrapasse os recortes que identificam as opressões como um dado em si mesmas, com
historicidade própria alheia aos processos históricos mais amplos, os quais têm na
exploração da força de trabalho suas determinações centrais. Partindo dessa
compreensão, buscamos apontar por meio do advento da GIM/2017, que parcela do
movimento feminista contemporâneo tem efetuado ações de auto-organização do
conjunto das mulheres da classe trabalhadora numa perspectiva de combate ao sistema
capitalista.

2- ELEMENTOS SÓCIO-HISTÓRICOS DA CONSTRUÇÃO DA GREVE


INTERNACIONAL DE MULHERES

O século XXI tem demonstrado uma força renovada na ação de parcela do


movimento feminista, em particular nas organizações, movimentos e coletivos cujas
militantes apreendem os processos sócio-históricos sob o crivo teórico-analítico crítico-
materialista. É neste campo de pensamento e de ação que analisaremos as “novas”
construções teórico-reflexivas e de lutas implementadas pelo feminismo, como a GIM

232
ocorrida em 2017. Demarca este construto teórico e de ação, a vinculação do movimento
feminista ao processo geral da luta emancipatória, em que um dos elementos centrais
está na articulação e na construção de alianças com as demais frações e segmentos da
classe trabalhadora. Assim, apreendemos a construção da greve como ponto de partida
do que consideramos ser mais um marco da ação organizada das mulheres sob o crivo
do pensamento feminista materialista no campo da movimentação da luta de classes em
âmbito mundial.
As mudanças no padrão de acumulação - passagem do modelo fordista para o da
acumulação flexível (e a acentuação crônica dorentismo financeiro) a partir dos anos de
1970, bases edificantes da formulação das políticas de ajustes neoliberais como um novo
ethos político-econômico adensaram os condicionantes estruturais da crise do
capitalismo, cujos efeitos mais agudos se avolumaram a partir de 2007 e implicaram no
aprofundamento da reorganização das formas e meios de exploração das frações das
classes dominantes sobre o conjunto da classe trabalhadora. O movimento dos ciclos de
intensidade e variedade das formas e meios de exploração desenvolvidos no interior
deste padrão de acumulação foram acompanhados, para além da instrumentalização
aberta dos Estados nacionais na garantia da reprodução da valorização do capital, pela
hipertrofia dos seus aparatos coercitivos contra as possibilidades emergentes de
resistência e de contestação à esta conformação Cf Harvey (1993); Antunes (1999);
Vaccant (2001). É neste contexto de desmonte, nos países centrais, do padrão de
regulação social welfariano e os deletérios impactos regressivos nas condições de vida e
de trabalho das classes subalternas que assistimos, no ano de 2016, a agitação do
movimento de mulheres em vários países, circunscrevendo suas reações e demandas
em questões relacionadas aos direitos reprodutivos, violências de gênero e aos
desdobramentos políticos e econômicos da crise sobre as mulheres trabalhadoras.
Na Polônia, país que possui uma das legislações menos avançadas sobre a
questão do aborto na Europa, milhares de mulheres foram às ruas contra um projeto de
lei que visava restringir ainda mais os direitos de decisão das mulheres sobre seus
corpos. O projeto previa a proibição do aborto, até então autorizada, em casos de má
formação fetal grave. Uma paralisação das atividades junto a uma grande mobilização de
mulheres marcou o recuo da apresentação do projeto de lei no parlamento polonês. Na
Argentina, também neste ano, sob o lema Ni Una Menos, centenas de mulheres ficaram
à frente da organização de grandes manifestações em várias cidades do país devido ao
alto índice de feminicídios. O crime brutal cometido contra Lúcia Perez, de 16 anos que
foi estuprada, drogada e empalada, levou um número ainda mais expressivo de mulheres

233
às ruas naquele ano, assim como à paralização das atividades laborais. Numa
demonstração da abrangência da movimentação feminista e de sua ação política, no
continente americano, diante da eleição do representante da direita conservadora,
Donald Trump à presidência em 2016, as mulheres declararam que não aceitariam as
posturas sexistas, xenófobas, racistas e conservadoras por ele defendidas. No dia
seguinte a sua posse, em janeiro de 2017, ocuparam as ruas de várias cidades, com o
apoio de setores da mídia, intelectuais e artistas, com o objetivo de demarcar posição
contrária à ascensão do conservadorismo e da política ultraliberal representada por
Trump. Dentre as oradoras da marcha em Washington, Angela Davis politiza, num
sentido mais amplo, aquela movimentação.
Em um momento histórico desafiador, vamos nos lembrar que nós somos
centenas de milhares, milhões de mulheres, transgêneros, homens e jovens que
estão aqui na Marcha das Mulheres. Nós representamos forças poderosas de
mudança que estão determinadas a impedir as culturas moribundas do racismo e
do hétero-patriarcado de levantar-se novamente. [...]Esta é uma Marcha das
Mulheres e ela representa a promessa de um feminismo contra o pernicioso
poder da violência do Estado. E um feminismo inclusivo e interseccional que
convoca todos nós a resistência contra o racismo, a islamofobia, ao anti-
semitismo, a misoginia e a exploração capitalista81.

A grande adesão das mulheres ao movimento tomou conta dos noticiários em torno da
posse de Trump:

[...] a Marcha das Mulheres em Washington, pareceu atrair uma multidão maior
do que a que compareceu um dia antes para testemunhar o juramento de Trump
nos degraus do Capitólio. [...] claramente superaram os 200 mil manifestantes
projetados pelos organizadores, preenchendo longas faixas do centro de
Washington ao redor da Casa Branca e do National Mall. Centenas de milhares
de mulheres se aglomeraram em Nova York, Los Angeles, Chicago, Denver e
Boston, somando a uma manifestação pública de dissidência em massa contra
Trump incomparável na política moderna dos EUA para o primeiro dia completo
de um novo presidente no cargo. Organizadoras da chamada Marcha das Irmãs
estimaram 750 mil manifestantes nas ruas de Los Angeles, uma das maiores [...].
A polícia afirmou que o comparecimento foi maior que a marcha pró-imigração
que levou às ruas 500 mil pessoas. Cerca de 400 mil pessoas marcharam em
Nova York [...] O evento de Chicago ficou tão grande que os organizadores
fizeram um comício, em vez de uma parada pela cidade. A polícia afirmou que
mais de 125 mil pessoas compareceram, [...], mesmo número reportado para
Boston e Denver. Protestos menores ocorreram também em cidades como
Seattle, Portland, Oregon, Madison, Wisconsin e Bismarck, na Dakota do Norte82.

Protestos organizados por mulheres também ocorreram em diversas partes do


globo como parte de uma grande onda de mobilizações contra a escalada da direita

81Davis, A. https://blogdaboitempo.com.br. Blog da Boitempo, 23 janeiro 2017. Disponível em:


<https://blogdaboitempo.com.br/2017/01/23/o-discurso-de-angela-davis-na-marcha-das-mulheres-contra-
trump/. Acesso em 20 julho 2019.
82Https://br.reuters.com, 22 Janeiro 2017.Disponivel em:
<https://br.reuters.com/article/topNews/idBRKBN1560RU>. Acesso em 20 julho 2019.

234
conservadora no mundo. Nos cabe observar que, em 2016, nos três países em que a
ação organizada das mulheres tomou relevância de forma a chamar a atenção do mundo,
os governos centrais estavam sob direção de políticos do campo da direita conservadora.
No que pese as questões de gênero serem o fator imperativo das mobilizações, podemos
entendê-las dentro de um vasto campo de movimentações políticas orquestradas numa
reação à acentuação das formas de exploração e opressão postas neste marco de crise
estrutural do capital.

3- ELEMENTOS TEÓRICO-POLÍTICOS DA CONSTRUÇÃO DA GREVE


INTERNACIONAL DE MULHERES DE 2017

É neste contexto que buscamos observar as movimentações de novo fôlego


organizativo que se apresentam na contemporaneidade para o enfrentamento das tarefas
de construção de projetos societários em contraposição aos hegemônicos de poder.
Dentre estas novas formas de enfrentamento, destacamos a ação das feministas, suas
organizações e capacidade de alianças com setores das classes subalternas a partir das
relações de raça e classe, entendendo a última em um amplo espectro que o próprio
processo de acumulação capitalista permite alargar pelas mudanças operadas no padrão
de acumulação e regulação social Cf Mattos (2019). Uma das questões centrais que
evidenciam elos da luta das feministas contemporâneas com as disputas por projetos
societários em meio à crise global foi a ressignificação do fenômeno da greve. Cinzia
Arruzza e Tithi Bhattacharya, intelectuais/ativistas que estavam dentre as organizadoras
internacionais da greve, nos textos de preparação da ação internacional apontam que:
As mulheres que trabalham no mercado formal e informal e na esfera social não
reprodutiva são todas trabalhadoras. Essa consideração deve ser central para
qualquer discussão sobre a reconstrução de um movimento operário não só nos
Estados Unidos, mas também globalmente83.

Assim, a luta por elas conclamada não está somente circunscrita às questões
mediadas pelo gênero que informam tipos e formas de discriminação. Mesmo sendo este
o mote da ação, extrapolam esse sentido a partir do entendimento de que é necessária
uma ação que transcenda a luta por direitos iguais entre homens e mulheres, para a
garantia real da construção de um novo projeto de sociedade. Se, por um lado, as
feministas resgatam essa forma de enfrentamento ao buscar interromper o processo de
produção, por outro a revigoram trazendo à cena o debate da divisão sexual do trabalho
e o da reprodução social. A greve proposta pelas mulheres inclui trabalhadoras formais,

83Arruzza,C.;Bhattacharya. https://vermelho.org.br. O Vermelho, São Paulo, 2017. Disponível em:


<https://vermelho.org.br/2017/03/04/o-significado-da-greve-das-mulheres-neste-8-de-marco/. Acesso em 20
de julho de 2020.

235
informais, desempregadas e, por via da paralisação das atividades, também na esfera
privada, levantam a questão do uso e exploração/expropriação por parte do sistema
capitalista de sua força de trabalho na esfera da reprodução da vida.
No capitalismo, o trabalho das mulheres no mercado formal é apenas uma parte
do trabalho que realizam. As mulheres são também as principais realizadoras do
trabalho reprodutivo – trabalho não remunerado que é igualmente importante
para a reprodução da sociedade e das relações sociais capitalistas. A greve das
mulheres destina-se a tornar este trabalho não remunerado visível e enfatizar
que a reprodução social é também um local de luta. Além disso, devido à divisão
sexual do trabalho no mercado formal, um grande número de mulheres ocupam
postos de trabalho precários, não têm direitos trabalhistas, estão desempregadas
ou são trabalhadoras sem documentos84.

Em um manifesto originalmente publicado na revista Viewpoint Magazine, em


janeiro de 2017, as ativistas e intelectuais Linda Martín Alcoff, Cinzia Arruzza, Tithi
Bhattacharya, Nancy Fraser, Keeanga-Yamahtta Taylor, Rasmea Yousef Odeh e Ângela
Davis, conclamam as mulheres norte-americanas e do mundo a fazerem parte de um
movimento amplo e unitário, motivado pelas marchas contra Trump, objetivando a
construção de processos de luta de horizontes anticapitalistas:
Como primeiro passo, propomos ajudar a construir uma greve internacional
contra a violência masculina e na defesa dos direitos reprodutivos no dia 8 de
março. Nisto, nós nos juntamos com grupos feministas de cerca de trinta países
que têm convocado tal greve. A ideia é mobilizar mulheres, incluindo mulheres
trans, e todos os que as apoiam num dia internacional de luta – um dia de
greves, marchas e bloqueios de estradas, pontes e praças; abstenção do
trabalho doméstico, de cuidados e sexual; boicote e denúncia de políticos e
empresas misóginas, greves em instituições educacionais. Essas ações visam
visibilizar as necessidades e aspirações que o feminismo do “faça acontecer”
ignora: as mulheres no mercado de trabalho formal, as que trabalham na esfera
da reprodução social e dos cuidados e as desempregadas e precárias.85

Percebe-se, que o entendimento da unidade das feministas passa também por


perceber suas vertentes e sua dinâmica dentro da luta de classes. Há uma evidente
demarcação com o campo dos identitarismos e com o feminismo liberal. Esse debate é
extremamente oportuno, visto que o processo de cooptação e esvaziamento de lutas pelo
viés da fragmentação ou por uma apreensão do feminismo enquanto “estilo de vida” se
espalha pelo mundo. Essa foi uma das questões que, ao mesmo tempo, abriram a greve
de 2017 para um amplo movimento de massas, assim como definiu, naquele ano, o tipo
de condução política daquela “nova” expressão do dia 8 de março. O blog da editora
Boitempo fez a publicação da tradução do Manifesto das ativistas do Feminismo para os

84https://vermelho.org.br/2017/03/04/o-significado-da-greve-das-mulheres-neste-8-de-marco/&gt;.Acesso em
julho de 2020.

85Alcoff, L. M. et al. Blog Junho. blogjunho.com.br, 5 fevereiro 2017. Disponivel em:


<http://blogjunho.com.br/alem-do-faca-acontecer-para-uma-feminismo-dos-99-e-uma-greve-internacional-
militante-em-8-de-marco. Acesso em 22 julho 2019.

236
99%. Na introdução do manifesto, Biroli (2017) tece uma aproximação do feminismo
proposto no manifesto com a luta política feminista no Brasil.
As reações aos direitos das mulheres se ampliaram ao mesmo tempo em que
outros direitos são colocados em xeque de maneira brutal. No Brasil e em outras
partes do mundo, direitos trabalhistas, à saúde e à segurança na velhice são
desmantelados, evidenciando a face atual do neoliberalismo. Sexismo,
xenofobia, racismo e transfobia estão articulados à redução das garantias de
trabalhadoras e trabalhadores e ao aumento das desigualdades e da violência.
Por isso intelectuais feministas chamam a todas nós para uma greve
internacional no 8 de março, em que mulheres de diferentes partes do mundo
estejam nas ruas contra todas essas violências. É uma chamada pelo que temos
buscado por aqui também, uma reconstrução das esquerdas na qual feminismos
capazes de conectar direitos reprodutivos e trabalho, sexualidade e xenofobia
em uma agenda ampla, marcada pelo diálogo com diferentes grupos de
mulheres, têm um papel central a cumprir86.

Para além do ativismo prático, da visibilidade das questões relacionadas ao


gênero, das manifestações propositivas a respeito das realidades locais, nacionais e
mundiais, o chamamento à greve significou, também, uma maior abertura ao debate
sobre o desenvolvimento das teorias críticas da realidade social, situadas no campo
progressista/esquerda, a respeito da necessidade da inclusão de perspectivas de gênero
e raça/etnia para o alcance da emancipação humana. No fragmento de Biroli vimos,
ainda, um chamado à uma ampla aliança que, sem desconhecer visões e perspectivas
diferenciadas de enfrentamento às opressões expressas na vida dos sujeitos sociais,
aposta na construção da unidade no campo da esquerda para o enfrentamento dos
retrocessos postos às mulheres e aos seus direitos na realidade nacional.

4- CONCLUSÃO

O movimento feminista, resgatado pela GIM, é o inserido na tradição das lutas de


caráter anticapitalista e que amplia seu projeto político internacionalista para uma
transformação radical da sociedade. O que pudemos observar da construção da GIM de
2017, foi que tal movimentação trouxe ganhos organizativos contínuos, com o
desenvolvimento em anos subsequentes da greve nos 8 de março, como também de
frentes, fóruns amplos de coletivos, organizações partidárias, sindicais entre outras87para

86 Disponivel em: <https://blogdaboitempo.com.br/2016/11/25/feminismo-esquerda-e-futuros-possiveis/>.


Acesso em agosto de 2020.
87 É importante salientar que não vigorou ou vigora posturas que desacreditam nas organizações tradicionais

da classe. Ao contrário, cada vez mais o chamamento da GIM e da construção dos seus fóruns e frentes
buscam tais organizações para engrossarem a efetividade e alcance de suas ações, bem como entende que
estes são espaços privilegiados de disputa contra hegemônica das manifestações ideológicas representadas
nas mediações desiguais e de dominação de gênero, raça/etnia e, assim, contribuir para corrigir distorções e
contradições que o movimento de esquerda carrega ao não incluir de forma qualitativa o debate sobre as
relações de dominação mediadas por gênero e raça/etnia às pautas das categorias ou às pautas gerais da
política.

237
o debate da luta antissistema comprometida com a luta do conjunto heterogêneo das
mulheres, o que indica um avanço do próprio movimento feminista.

5- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do


trabalho. São Paulo, Boitempo, 1999.
HARVEY, David. A condição pós-moderna. Uma pesquisa sobre as origens da mudança
cultural. São Paulo, Loyola, 1993.
MATTOS, Marcelo Badaró. A classe trabalhadora: De Marx ao nosso tempo. São Paulo.
Boitempo, 2019.
SAFFIOTI, H. “Violência de gênero: o lugar da práxis na construção da subjetividade”. In:
(ORG), H. B. D. H. Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de
Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio
de Janeiro, Freitas Bastos, 2001.

238
QUESTÕES DE GENERO, MOVIMENTO FEMINISTA E SERVIÇO SOCIAL

Livia Neves Masson¹

Giovanna Urbano²

Elizabeth Regina Negri Barbosa³

RESUMO:
Este trabalho aponta os desdobramentos históricos e
culturais da questão de gênero e seus impactos nas
relações sociais, reconhecendo-a como uma das
expressões da questão social, tendo em vista a relação
estabelecida com o sistema capitalistavigente. Ademais,
reflete o histórico do movimento feminista e o papel do
Serviço Social no enfrentamento das questões de gênero,
com base no compromisso ético político da profissão e
eliminação de todas as formas de preconceito, afirmando
um projeto profissional empenhado na construção de outra
ordem social sem dominação e exploração de classe,
gênero e raça/etnia.

Palavras-chave: Gênero; Movimento Feminista; Serviço


Social.

ABSTRACT:
This work points out the histori caland cultural development
soft he genderis sueand its impact son social relations,
recognizing it as one ofthe expression. softhe social issue, in
view ofthe relationship established withth ecurrent capitalist
system. Furthermore, it reflect sthe history of the feminist
movement and the role of Social Work in confront inggende
rissues, based on the ethical political commitment of the
profession and the elimination of all forms of prejudice,
affirming a professional Project committed to the
construction of another social order without domination and
exploitation of class, genderand race/ethnicity.

Keywords: Gender; Feminist Movement; Social servisse.

239
1- INTRODUÇÃO

São inúmeros os aspectos que permeiam as questões de gênero. Os valores e


ideais fundamentados nas desigualdades entre homens e mulheres presentes na
sociedade capitalista se estabeleceram historicamente, e explicitam uma construção
social. O cenário revela uma submissão feminina nos aspectos sociais, políticos e
econômicosque limitam e estabelecem papeis desempenhados por homens e mulheres e
explicitam as condições de exploração e dominação entre eles.
As desigualdades de gênero determinam e condicionam os comportamentos e
vivências dos indivíduos, desencadeando uma sociedade marcada pela opressão,
preconceito e violência contra as mulheres.

A existência de gêneros é a manifestação de uma desigual distribuição de


responsabilidade na produção social da existência. A sociedade estabelece uma
distribuição de responsabilidades que são alheias as vontades das pessoas,
sendo que os critérios desta distribuição são sexistas, classistas e racistas
(CARLOTO, 2001, p.5).

Este cenário revela os obstáculos socialmente impostos para a ascensão social das
mulheres e para a conquista de seus direitos, que só passou a ter uma outra perspectiva
através das iniciativas e da organização do movimento feminista que consolidou
conquistas como a participação política, o direito ao voto, e a inserção no mercado de
trabalho. No entanto,ainda hoje a luta por direitos, o combate às violências de gênero e
desconstrução dos papeis socialmente impostos às mulheres, necessitam tomar
proporções e ocupar espaços cada vez maiores na sociedade, tendo em vista os
inúmeros desdobramentos e impactos das desigualdades presentes no meio social.
Considerando as ideias de Iamamoto e Carvalho (2015), o serviço social participa
do processo de produção e reprodução das relações sociais no contexto capitalista e lida
com as diversas expressões da questão social. Nessa conjuntura, a profissão também se
depara com as demandas das questões de gênero.
Torna-se fundamental refletir e perceber as relações de dominação, exploração e
desigualdade e os seus efeitos na realidade social, econômica e política, para que no seu
exercício profissional, o assistente social reforce o compromisso com a liberdade, a
autonomia, a emancipação e a expansão plena dos indivíduos sociais, afirmando a
defesa dos direitos humanos e a recusa dos preconceitos de qualquer natureza, além da
defesa da equidade e da justiça social, visando a construção de uma nova ordem
societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero, ressaltando a
importância de sua intervenção no âmbito das expressões da questão social, tendo em

240
vista os princípios do Código de Ética do/a Assistente Social e o projeto ético político da
profissão.

2- DESENVOLVIMENTO

Compreender a maneira como se constituem e se expressam as relações de


gênero e todos os seus desdobramentos no meio social, significa também pensar os
significados e conceitos de gênero existentes na nossa sociedade, reconhecendo-os
como determinantes para as relações sociais.
Um dos vieses que perpassam às definições e conceitos de gênero, são pensados
de maneira associada e intimamente ligados ao fator biológico, caracterizando a
diferença sexual dos indivíduos, assumindo a partir disso, um caráter limitante, que define
a existência de características universais e essencialmente masculinas e femininas.
Segundo Carloto (2001), existe uma naturalização da ideia de construir o ser
mulher enquanto subordinado, tendo em vista que os espaços de aprendizado e os
processos de socialização reforçam os preconceitos e estereótipos de gênero, se
apoiando na determinação biológica e em sua suposta natureza (feminina/masculina),
diante disso, a diferença biológica se transforma em desigualdade social, se apropriando
da aparência de naturalidade.
Em contrapartida, para Araújo (2005), o gênero pode ser refletido a partir da
perspectiva culturalista, que reconhece que as relações se estabelecem através da
socialização e da cultura, considerando que as concepções, papeis determinados e
modelos de comportamentos são internalizados por homens e mulheres por meio do
convívio social.
Essa perspectiva de análise crítica, foi utilizada inicialmente pelas teóricas
feministas, que visavam compreender a desigualdade entre os sexos e de que maneira
esse cenário interferia na realidade e no conjunto das relações sociais.
A compreensão de que gênero é parte da construção social é recente e nem
sempre foi reconhecida por esta perspectiva. Torna-se fundamental destacar então que o
conceito de gênero foi estabelecido em nossa sociedade a partir dos preceitos do
conservadorismo. O conservadorismo pode ser atribuído a diversos significados, no
entanto, segundo Sepulvedae Sepulveda (2017), a partir da perspectiva política, o
conservadorismo pode ser visto como algo contrário ao enfrentamento de qualquer
mudança no ordenamento político, e que consequentemente possa modificar as relações
de poder na sociedade.

241
Nesse sentido, evita qualquer tipo de transformação na ordem social ou melhorias
para as classes trabalhadoras, ou para qualquer grupo minoritário, para que não ocorra
modificações nas relações sociais ou a ascensão de novas classes sociais ao poder.
Netto (2012), também contribuiu nas reflexões teóricas a respeito dos ideais
conservadores, associando-os sempre à questão social:

Entre os ideólogos conservadores laicos, as manifestações da “questão social”


(acentuada desigualdade econômico social, desemprego, fome, doenças,
penúria, desproteção na velhice, desamparo frente a conjunturas econômicas
adversas etc.) passam a ser vistas como o desdobramento, na sociedade
moderna (leia-se: burguesa), de características inelimináveis de toda e qualquer
ordem social, que podem, no máximo, ser objeto de uma intervenção política
limitada (NETTO, 2012, p.204).

Nesse sentido, relacionando as reflexões do autor com as questões de gênero, é


possível identificar uma naturalização das relações de poder, opressão, preconceito e
desigualdade contra as mulheres, que são vistas como algo inerente e normais na ordem
ultraneoliberal vigente.
Em resposta a essas inúmeras desigualdades, as mulheres começaram a se
organizar e avançar nas lutas políticas e por conquista de direitos. Nesse sentido, o
movimento feminista se estabeleceu como uma importante ferramenta para a
desconstrução das relações de poder impostas historicamente.
As ações do movimento feminista vão se sucedendo em diferentes marcos
históricos de acordo com os contextos e reivindicações de cada época, são as chamadas
ondas feministas.
O movimento feminista surgiu no final do século XVIII e tomou corpo no século
XIX, estando presente na maioria dos países europeus e nos EUA, junto com as
mobilizações da Revolução Francesa e Americana. Esse período representou a primeira
onda do feminismo, que assumiu um caráter reivindicatório, de conquista do poder
político e do direito ao sufrágio feminino. Os ideais da época foram aos poucos sendo
disseminados, alcançando também vários países da América Latina como o Chile,
Argentina, México, Peru, Costa Rica e Brasil.
No Brasil,as inquietações feministas acenderam na segunda metade do século
XIX, momento no qual muitas brasileiras exerceram participações em diversas revoltas
que permearam a construção do país. Além disso, elas também se envolveram na causa
abolicionista, lutando pelo fim da escravidão.
Por volta de 1890 surgiu no cenário nacional, os ideais de luta pelo direito ao voto,
no entanto, foi a partir da primeira década do século XX que a luta foi se consolidando e

242
ganhando espaços através das ações de organizações feministas, que se estenderam
até 1932, ano em que se deu a instituição do Código Eleitoral Brasileiro, durante o
governo de Getúlio Vargas.
A chamada segunda onda do feminismo, surgiu na década de 60 no EUA, e no
Brasil, um pouco mais tarde, na década de 1970, o foco das reivindicações, segundo
Boni (2015) estavam na busca pela igualdade e pelo fim das discriminações, atuando de
forma crítica contra os modelos de mulher, padrões sexuais e de família vigentes.
Torna-se importante destacar que neste período o Brasil enfrentava o Regime
Militar, que teve início em 1964, momento político marcado por muitas barreiras e
repressões aos movimentos de mulheres, tendo em vista o caráter opressor e violento da
ditadura.
Com o golpe militar de 1964, tanto os movimentos das mulheres, quanto os
demais movimentos populares e de esquerda foram silenciados, erradicados e
massacrados. No entanto, ocorriam ações de grupos de mulheres em resistência à
ditadura através de passeatas, manifestações e organizações clandestinas.
Pode-se dizer então, que nesse período, o movimento feminista brasileiro
compunha um movimento de articulação das lutas contra as formas de opressão das
mulheres juntamente com as lutas pela redemocratização. Entre as décadas de 70 e 80,
o movimento feminista adentrou na sua terceira onda, em que prosseguiu se expandindo
no cenário da redemocratização até a promulgação da Constituição Federal de 1988,
assumindo uma perspectiva mais propositiva, de intervenção nas políticas públicas,
buscando maior representatividade e legitimidade.
Nos anos que se seguiram, adentrando os anos 2000, as atividades dos
movimentos no Brasil estiveram voltadas para as ações políticas e organizativas e de
conquista de políticas públicas, visando o aprimoramento das legislações de proteção a
mulher e o monitoramento/ implantação dessas políticas, em constante articulação e
interlocução com o Estado.
Com esse cenário de lutas e resistênciaas mulheres foram transformando o seu
modo de vida em muitos aspectos, conquistando o mínimo de liberdade, ingressando no
mercado de trabalho, conhecendo sua sexualidade, sendo, afinal, reconhecidas como
sujeitos de direitos.
O fundamento do serviço social é a realidade social, que se demonstra complexa
e multifacetada, logo, o exercício profissional deve ser entendido a partir do movimento
histórico e das transformações da sociedade, tendo em vista a apreensão crítica das
relações sociais.

243
Enquanto categoria profissional que trabalha com a realidade social, é
fundamental encontrarmos ferramentas de açãoque possibilitem repensar e transformar
cada vez mais nossa sociedade com relação à desigualdade de gênero, por meio da
educação, da cultura e de políticas que sejam inclusivas e voltadas para a valorização da
mulher, visando a eliminação das desigualdades e violências existentes e o acesso aos
direitos.
As demandas provenientes das desigualdades de gênero se expressam para o
serviço social nos mais diversos espaços sócio ocupacionais, assim, o assistente social
se depara com inúmeras situações que envolvem os impactos das desigualdades de
gênero e as vulnerabilidades decorrentes, como a violência física, psicológica, moral,
sexual e patrimonial, situações de exclusão e preconceito, ausência de acesso a
condições básicas de vida dentre outras violações de direitos.
No que se refere ao enfrentamento das desigualdades de gênero, é fundamental
que a atuação do assistente social reforce sua postura ética e política e demostre preparo
teórico metodológico, compreendendo a questão de gênero em sua totalidade, com base
na realidade histórica, conjuntural e estrutural.
O projeto ético político do serviço social brasileiro e os princípios fundamentais
trazidos pelo Código de Ética da Profissão, tem como valores centrais a liberdade e o
comprometimento com a autonomia, a emancipação e a expansão plena dos indivíduos
sociais, afirmando a defesa dos direitos humanos e a recusa dos preconceitos de
qualquer natureza, além da defesa da equidade e da justiça social, visando a construção
de uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero.
Partindo disso, é imprescindível que o assistente social em suas intervenções nas
questões de gênero, busque fomentar a autonomia a emancipação das mulheres,
contribuindo para que se percebam enquanto sujeitos de direitos e para que se
reconheçam enquanto seres livres.Nesse sentido, reforçamos que é fundamental que o
profissional se posicione contrariamente às situações de preconceitos, violação de
direitos, autoritarismo e arbitrariedade, reforçando o seu compromisso com a defesa
intransigente dos direitos humanos.
É necessário atuar em contraposição ao pensamento conservador e de senso
comum, a partir do reconhecimento das realidades sociais de maneira crítica,
considerando os contextos e determinantes históricos, econômicos e culturais que
envolvem cada demanda que se expressa no cotidiano profissional, articulando
estratégias de enfrentamento das desigualdades de gênero, que assumam umas práxis

244
feminista que busque reverter as desigualdades vigentes e resistir à banalização das
violências, preconceitos e opressões.
É necessário que os profissionais estejam inseridos na elaboração, gestão e
operacionalização das políticas públicas com compromisso de promover a equidade de
gênero e atuar em diferentes contextos, a partir da pratica investigativa voltada à
construção do aporte teórico da área, que pode subsidiar as políticas públicas na
perspectiva de gênero.
Ademais, deve-se considerar a articulação da dimensão teórica e interventiva,
construída a partir do olhar crítico e generalista do assistente social, que percebe como
as relações sociais se estruturam perpassando as questões de classe e gênero, com o
compromisso de promover a equidade de gênero, a construção de uma nova ordem
societária sem exploração de classe, e pela defesa da liberdade, cidadania, democracia,
direitos humanos e justiça social.

3- CONCLUSÃO

As desigualdades e violências vivenciadas pelas mulheres ao longo da história da


humanidade estão ligadas à construção de gênero, se estabelecendo sob as condições
objetivas e subjetivas das relações sociais nos aspectos políticos, econômicos e culturais.

A estruturação da dinâmica das relações sociais, manifesta uma distribuição desigual


de responsabilidades na produção social da existência, determina estereótipos, maneiras
de se relacionar, agir e se comportar, pois as concepções de masculino e feminino
formam em cada cultura, um sistema símbolos e significados, que relacionam o sexo aos
conteúdos culturais de acordo com os valores e hierarquias sociais, estabelecidos em
nossa sociedade a partir dos preceitos do conservadorismo.

Sendo assim, é possível identificar uma naturalização das relações de poder,


opressão, preconceito e desigualdades contra as mulheres, que são vistas como algo
inerente e normais na ordem ultraneoliberal vigente.

A partir dessa análise, é fundamental pensar a questão de gênero como sendo uma
expressão da chamada questão social, considerando a influência e o impacto que o
modo de produção capitalista e a formação da sociedade de classes, acrescido ao
sistema patriarcal vigente, exercem sobre a vida das mulheres.

245
Nesse sentido, entende-se que para o enfrentamento das desigualdades de gênero, é
fundamental que a atuação do assistente social reforce sua postura ética e política, e
demostre preparo teórico metodológico, compreendendo a questão de gênero em sua
totalidade, com base na realidade histórica, conjuntural e estrutural. Além disso, é
necessário que os profissionais de Serviço Social estejam inseridos na elaboração,
gestão e operacionalização das políticas públicas com compromisso de promover a
equidade de gênero.

4- REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Maria De Fátima. Diferença e igualdade nas relações de gênero: revisitando o


debate. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro: Departamento de Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p. 41-52, 2005. Disponível em:
http://hdl.handle.net/11449/212755.

CARLOTO, Cassia. O conceito de gênero e sua importância para a análise das relações
sociais.Serviço Social em Revista, Londrina,v. 3, n. 2, jan./jun., 2001.

IAMAMOTO, Marilda Vilela; CARVALHO, Raul de. Relações sociais e serviço social no
Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 41. ed. São Paulo: Cortez,
2015.

NETTO, José Paulo. Capitalismo e barbárie contemporânea. Abepss, 2016. Disponível


em: http://www.abepss.org.br/arquivos/anexos/netto-jose-paulo-
201608060404028661510.pdf.

SEPULVEDA, Denize; SEPULVEDA, José Antônio. Práticas conservadoras: suas


influências nas tessituras identitárias de gêneros e sexualidades.Periferia, v. 9, n. 2,
jul./dez., 2017.

246
LUTAS SOCIAIS E SERVIÇO SOCIAL: a diversidade sexual na revisão da literatura
profissional brasileira

Marco José de Oliveira Duarte88


Carolina Pereira Fernandes89
Matheus Souza Silva90

RESUMO: Essa comunicação objetiva-se problematizar o


tema da diversidade sexual no âmbito do Serviço Social, a
partir da revisão da literatura profissional, tendo por base os
vinte e um periódicos da referida área de conhecimento.
Toma-se como foco as lutas sociais por direitos humanos e
políticas públicas travadas pelos sujeitos identificados como
LGBTI+ no contexto do Estado brasileiro. A análisefoca nas
considerações históricas do movimento LGBTI+ e nas
críticas no interior da áreasobre as dissidências sexuais,
revelando a pouca produção científica referente a temática,
apesar de qualificada e seu lugar ainda secundarizado no
conjunto da agenda acadêmica e profissional.

Palavras-chaves: Serviço social; Sexualidade; Direitos;


LGBTI+;Revisão.

ABSTRACT: This communication aimsto problematize


theissueof sexual diversitywithinthescopeof Social Work,
based on a review ofthe professional literature, based on
thetwenty-oneperiodicals in thatareaofknowledge. The
focusis on social struggles for humanrightsandpublic policies
wagedbysubjectsidentified as LGBTI+ in
thecontextoftheBrazilianState. The analysisfocuses on
thehistoricalconsiderationsofthe LGBTI+ movementand on
thecriticismswithintheareaabout sexual dissidence,
revealingthelittlescientificproduction on thesubject,
despitebeingqualifiedand its place still secondary in the set
oftheacademicand professional agenda.

Keywords: Social work; Sexuality; Rights; LGBTI+;


Revision.

88Assistente Social, Professor Adjunto da Faculdade de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em


Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora. Pós-Doutor em Políticas Sociais. E-mail:
marco.duarte@ufjf.br. Eixo temático: Resistências, Lutas e Internacionalização do Serviço Social.
89Graduanda em Serviço Social da Faculdade de Serviço Social da UFJF. Bolsista de Iniciação Científica

PIBIC/CNPq no GEDIS/CNPq/UFJF sob orientação do Prof. Dr. Marco José de Oliveira Duarte. E-mail:
carolina.fernandes@outlook.com. Eixo temático: Resistências, Lutas e Internacionalização do Serviço Social.
90 Graduando em Odontologia da Faculdade de Odontologia da UFJF. Bolsista de Iniciação Científica

PIBIC/CNPq no GEDIS/CNPq/UFJF sob orientação do Prof. Dr. Marco José de Oliveira Duarte. Email:
matheuacontato0i@gmail.com. Eixo temático: Resistências, Lutas e Internacionalização do Serviço Social.

247
1- INTRODUÇÃO

Esse trabalho se propõe a tratar de algumas considerações a respeito do tema da


sexualidade na área do Serviço Social, com foco nas lutas sociais contemporâneas
travadas pelos sujeitos identificados como lésbicas, gays, bissexuais, travestis,
transgêneros, transexuais, intersexos e mais (LGBTI+) no contexto do Estado neoliberal,
com o desmonte das políticas públicas e na regressão dos direitos humanos voltados
para este segmento da sociedade brasileira.
A pesquisa aqui apresentada e a produção analítica sobre os dados produzidos,
tem por objetivo analisar as produções científicas sobre diversidade sexual na área do
Serviço Social.Esse é um esforço intelectual e preliminar dos pesquisadores deste
trabalho para tratar sobre o campo dos estudos de sexualidade no Serviço Social,
principalmente, sobre as dissidências sexuais, tomando as produções científicas de seus
21 (vinte e um) periódicos da área de conhecimento.
Metodologicamente tomou-se o processo de mapeamento e levantamento
bibliográficos a partir do banco de dados destes periódicos da área, quais sejam: Serviço
Social & Sociedade; Katálysis; Revista de Políticas Públicas; Argumentum; Textos &
Contextos; Em Pauta; O Social em Questão; Ser Social; Temporalis; Serviço Social em
Revista; Gênero; Emancipação; Sociedade em Debate; Libertas; Direitos, Trabalho e
Política Social; Oikos; Serviço Social e Saúde; Revista Praia Vermelha; Revista Serviço
Social em Perspectiva; Moitará e Serviço Social em Debate.
Utilizou-se os seguintes descritores: “diversidade sexual”, “LGBT”,
“transexualidade”, “travestilidade”, “transgeneridade” e “homossexualidade” associado ao
descritor-chave “serviço social”. Ressalta que o coorte temporal foi entre 2010-2020,
como referência para essa periodização, tendo em vista, que o ano de início, 2010,
tivemos dois marcos, um é a emergência do grupo temático de pesquisa (GTP) da
Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABPESS) com foco nas
ênfases de gênero, sexualidade, raça/etnia e geração, marcados pelas relações de
exploração e opressão do sistema capitalista, institucionalizado no XII Encontro Nacional
de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS), no Rio de Janeiro. O outro é o debate
sobre os temas do racismo, homofobia e machismo em uma mesa no XIII Congresso
Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS), em julho, em Brasília.
Tomou-se a técnica de revisão da literatura de base integrativa (SOUZA et al.,
2010) que consiste em 5 etapas: i - a elaboração de pergunta norteadora, que no caso,
elegeu-se o que a literatura de Serviço Social tem publicado em seus periódicos sobre
diversidade sexual, tomando como foco as políticas públicas e direitos humanos de

248
LGBTQI+?; ii - a busca nas bases de dados, utilizando-se dos descritores e os periódicos
acima descritos; iii - a análise crítica dos conteúdos apresentados nos artigos
selecionados; iv - a discussão dos resultados; v - a apresentação da revisão integrativa.
Ressalta-se que a escolha pela revisão integrativaé que ela éa mais ampla abordagem
metodológica referente às revisões, permitindo a inclusão de estudos experimentais e
não-experimentais para uma compreensão completa do fenômeno analisado.

2- SERVIÇO SOCIAL E SEXUALIDADE: APONTAMENTOS CRÍTICOS

Tomando a produção de Vance (1995), colocamos a seguinte pergunta: Se para a


antropologiahouve uma certa relutância em reconhecer a sexualidade como objeto de
estudo, que de certa forma nos surpreende, na medida em que as pesquisas e teorias
antropológicas são reconhecidamente abertas e democráticas, sem a presença de
correntes dogmáticas e sectárias. O que pensar sobre o referido tema na e para área de
Serviço Social?
É nesta particularidade que recorremos a Vance (1995), quando ela expõe sobre
determinadas situações constrangedoras aos que se interessam em tomar a sexualidade
como seu objeto de estudo e pesquisa na antropologia, e no nosso caso, no Serviço
Social. Parece que se tomarmos essas duas disciplinas, em suas historicidades,
observaremos elementos comuns sobre tal fenômeno.
O primeiro diz respeito ao lugar secundário ou periférico (DUARTE, 2000 apud
ALMEIDA, 2008, p. 156) de importância ao referido debate em si. Contudo é bom
ressaltar que, de forma embrionária, os primeiros estudos e publicações sobre tal tema
circunscreveram-se em relação as homossexualidades e, em particular, aos gays.
Antes dos anos 2000, a discussão da homossexualidade já transitava nos
interstícios profissionais, de maneira frequentemente. A definição da homofobia
como “ódio, rejeição ou medo de alguém por causa de sua orientação sexual” só
apareceu pela primeira vez numa publicação do CRESS 7ª Região, em setembro
de 2000, numa matéria de capa do jornal Práxis (ALMEIDA, 2008, p. 151).

Almeida (2008) destaca ainda que na década de 1990, “a AIDS fornecia à


sexualidade a gravidade necessária para que fosse mais incorporada como objeto de
discussão formal nas ciências da saúde e sociais em geral” (ALMEIDA, 2008, p. 151).
Tomar, portanto, o tema da sexualidade, com foco nos direitos sexuais, em
contexto de democratização, na década de 1980, com a Assembleia Nacional
Constituinte, mas também com a advento da AIDS, era, de forma articulada as
feministas, questionar a ideia de separação nítida entre as esferas pública e privada,
e,corroborarcom a consigna, o pessoal é político. No sentido de romper com o triplo

249
estigma que pesava historicamente sobre as vidas de homossexuais -criminoso,
degenerado e louco-, e, consequentemente, asua cidadania precária (BENTO, 2014),
que representa uma dupla negação: nega a condição humana e de
cidadão/cidadã de sujeito que carregam no corpo determinadas marcas. Essa
dupla negação está historicamente assentada nos corpos das mulheres, dos/as
negros/as, das lésbicas, dos gays e das pessoas trans (travestis, transexuais e
transgêneros). Para adentrar a categoria de humano e de cidadão/cidadã, cada
um desses corpos teve que se construir como “corpo político” (BENTO, 2014, p.
167).

Eis, portanto, a reinvindicação dos corpos abjetos marcados pelo heterossexismo


compulsório:o reconhecimento político, econômico e social que ainda atualmenteé lento e
descontínuo. Contudo, hoje, observa-se que os setores conservadorese seus projetos
vem historicamente se colocando radicalmente de forma anti-LGBT, mesmo na produção
da Constituição Cidadã de 1988, ocupando centros políticos do poder em vários espaços
da gestão pública, consolidando um projeto de sociedade, numa ofensiva antigênero e
anti-LGBT no Brasil, na América Latina e no mundo (PRADO; CORREA, 2018).
Não reconhecer a liberação ou libertação sexual como direito, é desconsiderar os
antecedentes históricos que embasaram a luta por direitos sexuais e o entendimento
desses como direitos humanos. Seria, tomando como exemplo as lutas feministas, frente
as suas bandeiras, esvaziar o sentido da legalização do aborto. É necessário pontuar que
a questão das sexualidades de LGBTI+ não necessariamente está vinculada as
identidades, como se houvesse um único modelo para cada letrinha a ser seguido. São
dissidências sexuais e de gênero na sua diversidade, além de que nem são todos os
direitos, mesmo que judicializados, que são exercidos, ou mesmo acionados por estes
sujeitos.
Portanto, nestes mais de 40 anos de movimento LGBTI+, vemos reatualizar o
conflito das lutas gerais versus as lutas específicas, no campo da esquerda, quando na
época do enfrentamento a ditadura militar-civil-empresarial, com a questão que se coloca
hoje, da luta de classe versus as pautas identitárias. Neste sentido,
É importante ressaltar que o tema das representatividades e identidades
historicamente construídas que atravessam e socialmente determinam a
configuração da classe trabalhadora, pois, na maioria das vezes, é lugar-comum,
na esquerda sectária, dogmática e economicista, reduzir e rotular tudo de pós-
modernismo ou identitarismo, posto que, como afirma Curiel (2018), “na América
Latina e no Caribe, revela evidências de pré-modernidade”. Ao invés disso, seria
importante encarar, formular, problematizar e politizar o debate, de forma crítica
e fraterna, acerca das identidades e das lutas de reconhecimento, redistribuição
e representatividade que pulsam na realidade histórica (FERREIRA, 2020) e que
se organizam e vinculam aos projetos societários em disputa (DUARTE;
OLIVEIRA, 2021, p. 158)

O segundo elemento diz respeito ao desencorajamento ou mesmo as


tentativas de dissuadir a mudança sobre o tema. Essa é uma questão que não está

250
na publicização pública dos fatos, mas em conversas informais tanto com estudantes de
graduação e pós-graduação, em diversas unidades de formação acadêmica, como com
profissionais da área em diversos lugares sócio-ocupacionais em que se dá o trabalho
profissional.
Há uma suspeita e de certo modo, um medo, que está muito mais no campo
privado e moral dos protagonistas desta ação de dissuadir, tomando emprestado a
narrativa que faz defesa de um projeto de classe que é isento, vago e lacunar das
sexualidades e gêneros. Esse último, ainda é um tema mais palatável e plausível, tendo
em vista o acervo bibliográfico e o legado das lutas feministas para esses estudos e suas
organizações, o que diferencia substancialmente dos estudos de sexualidade, mesmo
que os tomem pelo sistema sexo/gênero (RUBIN, 1986).
É necessário romper com a colonialidade dos discursos e com a tutela da razão.
Assim, em vez de identificar e aniquilar as diferenças na vida social e no mundo
acadêmico, padronizando, patrulhando e criando cópias de si, é imperativo o exercício da
democracia, no debate político e na produção do conhecimento científico, em uma
perspectiva crítica e emancipatória, elementos tão caros ao nosso projeto ético-político
profissional e que nos alicerça para as (r)existências na disputa dos projetos societários
em curso.
O terceiro diz sobre a tensão entre dois paradigmas radicalmente distintos,
um sobre as estruturas discursivas determinista, essencialista e universal sobre a
sexualidade, o sexo e o gênero, típicas do modelo biologizante e medicalizante ou,
sumariamente dizendo, o modelo biomédico. Este ainda é muito presente na ordem dos
discursos profissionais, sobre uma verdade sobre o corpo e a diversidade humana. E o
outro, os paradigmas e abordagens construtivistas e/ou de produção social dos corpos,
sexualidades e subjetividades, que no campo da saúde coletiva tem-se como
determinação social da saúde.
É, portanto, sobre essa disputa de narrativas, essencialista versus construtivista,
na ordem dos discursos acadêmicos, em geral, mas do Serviço Social, em particular, que
está a gênese para outros debates sobre a sexualidade e as dissidências sexuais.
Assim, Vance (1995), tomando como referência a considerável contribuição da
também antropóloga Gayle Rubin (1986), que descreveu a sexualidade e gênero em
domínios distintos, retoma a questão afirmando que
a sexualidade e o gênero são sistemas distintos entrelaçados em muitos pontos.
Embora os membros de uma cultura vivenciem esse entrelaçamento como
natural, sem costuras e orgânico, os pontos de conexão variam historicamente e
nas diversas culturas. Para os pesquisadores da sexualidade, a tarefa não
consiste apenas em estudar as mudanças na expressão do comportamento e

251
atitudes sexuais, mas em examinar a relação dessas mudanças com alterações
de base mais profundas no modo como o gênero e a sexualidade se organizam e
inter-relacionam no âmbito de relações mais amplas (VANCE, 1995, p. 12).

Cabe destacar que ao tratar da sexualidade, de modo geral, influenciado por


análises essencialistas, inclusive no campo progressista, pensa-se logo na forma
reducionista do sexo ao órgão genital, no corpo biológico, como a base material da
sexualidade, mas não exclusivamente. Concordamos com Week (1999), ao afirmar que,
Embora o corpo biológico seja o local da sexualidade, estabelecendo os limites
daquilo que é sexualmente possível, a sexualidade é mais do que simplesmente
o corpo [...] o órgão mais importante nos humanos é aquele que está entre as
orelhas. A sexualidade tem a ver com nossas crenças, ideologias e imaginações
quanto com nosso corpo físico [...] os corpos não têm nenhum sentido intrínseco
e a melhor maneira de compreender a sexualidade é como um ‘construto
histórico’ (WEEK, 1999, p. 38).

Assim, pensar a questão da sexualidade é implicá-la historicamente no conjunto


das relações sociais, e, particularmente, nos limites mesmo de uma democracia sexual,
tratando das políticas e direitos sexuais, no cenário do capitalismo, para quem os corpos
e as sexualidades, principalmente, das dissidências ou se transformam em mercadorias
ou são fetichizadas, tendo como parâmetro a lógica do consumo no mercado sexual
presencial e virtual, mas sempre balizados pelos cisheterossexismo, o patriaviriarcalismo
e a homonormatividade.
Assim, em se tratando de relacionar a questão da sexualidade e
consequentemente da diversidade sexual, a luta contra a LGBTIfobia não pode acontecer
isoladamente, abstraindo-se do resto de injustiças e desigualdades sociais. Portanto, os
estudos de sexualidade e, particularmente, das dissidências sexuais, sobre a égide da
cidadania e da democracia sexuais, desenhado pelos limites da formação social e política
do Estado capitalista, devem tentar ser orgânicos aos projetos emancipatórios, libertários
e desprivatizados em que os sujeitos e suas relações de reconhecimento com a diferença
exerçam seus modos de existência singular e coletiva.
O quarto e último diz respeito a lentidão das pesquisas e produções científicas
sobre o tema. Isto ainda acontece pelo fato de que a sexualidade se faz presente de
maneira carente e lacunar nos discursos acadêmicos. Poucas são as unidades de
formação acadêmica da área que incluem tal temática no sentido formal, através da
grade curricular e suas disciplinas, mas também como linhas e projetos de pesquisa e
extensão no cenário da formação profissional graduada e pós-graduada.
De certo, o campo dos estudos de sexualidade tem um legado que vem sendo
apropriado de forma tímida pela área de Serviço Social, e, portanto, esta lacuna,
nos espaços da formação e do trabalho profissional, é enfrentada pelo diálogo
crítico, na perspectiva da totalidade da vida social. Tendo em vista que a ordem e
a moral sexual burguesa em tempos neoconservadores impõem normas e
disciplinas, expressos nas políticas sexuais à coletividade, pela lógica do capital,

252
que de forma hegemônica impõe o controle no exercício e na expressão das
sexualidades, tendo por base a hegemonia patriarcal, o sexismo, a
heterossexualidade compulsória, a cisgeneridade e os binarismos de gênero e
sexualidade (EURICO et al., 2021, p. 301-2).

É necessário registar a importância sobre os aparatos jurídico-normativos e legais


sobre e para o exercício profissional, alguns eventos e publicações produzidos pelo
conjunto do Conselho Federal e Conselhos Regionais de Serviço Social (CFESS/CRESS)
que tomam a questão da sexualidade muito mais que a entidade de pesquisa e formação
profissional, que restringe o debate ao seu único evento científico nacional, o ENPESS.

3- O BALANÇO DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA PROFISSIONAL

Ao tomarmos o levantamento bibliográfico a partir do banco de dados dos 21


(vinte e um) periódicos da área, para a revisão integrativa da literatura, como descrito na
introdução deste trabalho, encontramos 66 artigos que tematizam a sexualidade, e, com
base nos critérios de exclusão e inclusão, restaram 42 artigos que tratam
especificamente da diversidade sexual. A partir das considerações analíticas tratadas,
pode-se aferir que esse objeto na área permanece periférico e secundarizado, frente a
outros na agenda acadêmica-profissional. Todavia, observa-se uma certa visibilidade na
produção científica, principalmente, pelo debate amadurecido apresentado nos artigos,
para a formação e o trabalho profissional.
Cabe ressaltar que antes do período estudado, de 2010 a 2020, encontramos oito
artigos em um único periódico, O Social em Questão, publicado pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) em 2009, primeira revista a
apresentar um dossiê com a temática da diversidade sexual na área e com raros
profissionais da área. Este processo inaugural foi observado nos seguintes periódicos:
Em Pauta (2011), Serviço Social e Sociedade (2018)91 e Katálysis (2018)92. Em 2022, a
Argumentum foca na sexualidade e a Serviço Social e Sociedade na relação
sexo/gênero.
Por outro lado, para registro de nossos achados, o ano de 2011 foi observado um
elevado número de publicações, sendo nove, fora dos critérios de inclusão e exclusão, e
sete, dentro desses critérios, isto se deve aos marcos históricos sinalizados, no ENPESS
e no CBAS. Contudo, este fenômeno de aumento do número de artigos, se repetiu em
2018, particularmente, por conta das duas chamadas para publicação em dois periódicos
91Não se trata de um dossiê sobre diversidade sexual, dos 8 artigos que compõem a revista, somente um
tratou do tema, a totalidade teve como foco a questão de gênero, mais precisamente, mulheres e feminismo.
92 O dossiê reproduziu o título do GTP, Serviço Social, gênero, raça/etnia, gerações e sexualidade. Apesar de

não ser específico sobre sexualidade ou diversidade sexual, a revista apresentou significativos artigos sobre
o tema

253
citados acima. Dos 21 periódicos, os 42 artigos selecionados foram encontrados em 15, o
restante dos outros periódicos nada foi encontrado, em seus bancos de dados, sobre os
temas da sexualidade ou da diversidade sexual, são eles: Argumentum; Libertas;
Direitos, Trabalho e Política Social; Oikos, Serviço Social e Saúde; Moitará e Serviço
Social em Debate.

Tabela 1 – Publicações sobre diversidade sexual nos periódicos da área

SERVIÇO SOCIAL & SOCIEDADE – 1


KATÁLYSIS – 7
REVISTA DE POLÍTICAS PUBLICAS – 1
TEXTOS & CONTEXTOS – 1
EM PAUTA – 7
O SOCIAL EM QUESTÃO – 2
SER SOCIAL – 2
TEMPORALIS – 4
SERVIÇO SOCIAL EM REVISTA – 1
GÊNERO – 3
EMANCIPAÇÃO – 1
SOCIEDADE EM DEBATE - 1
REVISTA PRAIA VERMELHA – 5
REVISTA SERVIÇO SOCIAL EM PERSPECTIVA – 5
ARGUMENTUM - 1

Fonte: Sistematização dos autores

Nesse balanço da produção científica da área, além de identificamos os quatro


elementos caracterizados por Vance (1995), um merece destaque, a lacuna e lentidão
com que as pesquisas e produções científicasquanto ao tema da diversidade
sexual.Apesar do tímido acervo, este é consistente e qualificado, e apresenta duas
tendências: a) temáticas mais amplas sobre a diversidade sexual, aqui identificado de
LGBTQI+, com vinte artigos; e b) temáticas específicas desse universo, como do universo
da homossexualidade, com oito artigos, e da transexualidade, incluindo as poucas de
travestilidade, com quatorze artigos.
A partir destas duas tendências, as produções se articulam em dois subconjuntos,
a) aos temas gerais dos direitos humanos e das políticas públicas voltados para
LGBTQI+ e b) aos temas específicosque sãodiversificados, destacando-se, saúde,
educação, família e violência, os mais expressivos na análise de conteúdo. Com isso e
corroborando com Vance (1995, p. 15), o campo dos estudos da “sexualidade é uma área
simbólica e política ativamente disputada, em que grupos lutam para implementar
plataformas sexuais e alterar modelos e ideologias sexuais”.

254
4- CONCLUSÃO

Há de se registrar a importância do debate sobre a sexualidade para o Serviço


Social historicamente e na atual conjuntura, por certo, é uma questão política. Assim,
apesar de nos últimos colóquios do referido GTP no interior do ENPESS observar a
consolidação e expressivo salto de quantidade e de produções científicas da ênfase nos
estudos das relações de gênero, ainda assim, os estudos de sexualidades, vem tendo
expressivos trabalhos nos últimos eventos da categoria e nas produções científicas na
área, mas não acompanharam a de gênero. O que demonstra ainda uma falta de
investimento da categoria e da área profissional na formação acadêmica, em particular,
em disciplinas de graduação e pós-graduação, como em pesquisas e produções
científicas. Além da ausência de estudos interseccionais dessas três ênfases, articulando
gênero, feminismos, sexualidade e raça.

5- REFERÊNCIAS

ALMEIDA, G. S. Notas sobre a possibilidade de enfrentamento da homofobia pelos


assistentes sociais. O Social em Questão, Rio de Janeiro, n. 20, ano XI, p. 142-169,
2008.
BENTO, B. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal.
Contemporânea, São Carlos, v. 4, n. 1, p. 165-182, 2014.
DUARTE, M. J. O.; OLIVEIRA, D. F. S. LGBTQI+, vidas precárias e necropolítica em
tempos da Covid-19: a interseccionalidade e a teoria queer em cena. Em Pauta, Rio de
Janeiro, n. 48, v. 19, p. 153 – 168, jul./dez., 2021.
EURICO, M. C. et. al. Formação em Serviço Social: relações patriarcais de gênero,
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PRADO, M. A. M.; CORRÊA, S. Retratos transnacionais e nacionais das cruzadas
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WEEKS, J. O corpo e a sexualidade. In: LOURO, G. L. (org.). O corpo educado:
pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

255
VII SEMINÁRIO INTERNACIONAL
Lutas Sociais, Ofensiva Ultraneoliberal e Serviço Social:
resistências e articulações internacionais

EIXO TEMÁTICO 4
Política Social, trabalho e questão social:
retrocessos e resistências na conjuntura atual
POLÍTICA SOCIAL, AVANÇOS, RETROCESSOS E DESAFIOS: uma análise a partir
da teoria valor-trabalho

Darana Carvalho de A zevedo93,94

RESUMO: A ânsia por uma sociedade mais justa tem


contribuído para análises em torno de políticas sociais que
tenham como parâmetros a cidadania e/ou a concessão de
políticas redistributivas. No entanto, acreditamos que
ensaios nesse sentido são mistificadoras da realidade e
frustrantes à medida que descartam os aspectos fundantes
da teoria social em Marx, obtendo resultados que não são
condizentes com as fundamentações da política social e
com as condições concretas de luta dos trabalhadores.
Desta forma, apresentamos uma reflexão sobre as
confluências da teoria do valor-trabalho, reconhecendo a
política social como síntese de múltiplas determinações,
apontando seus retrocessos e desafios.

PALAVRAS-CHAVES: Política social; Valor-trabalho;


Capitalismo financeiro

ABSTRACT: The yearning for a fairer society has


contributed to analyzes around social policies that have
citizenship and/or the granting of redistributive policies as
parameters. However, we believe that essays in this sense
are mystifying reality and frustrating as they discard the
foundational aspects of social theory in Marx, obtaining
results that are not consistent with the foundations of social
policy and the concrete conditions of workers' struggle. In
this way, we present a reflection on the confluences of the
labor-value theory, recognizing social policy as a synthesis

93 Assistente Social, servidora pública da Prefeitura Municipal de Macaé-RJ, Doutoranda em Política Social
pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Artigo orientado pelo professor Dr. Carlos Antonio de Souza
Moraes.
94Artigo vinculado ao eixo temático: Política Social, trabalho e questão social: retrocessos e resistências na

conjuntura atual

257
of multiple determinations, pointing out its setbacks and
challenges.

KEYWORDS: Social policy; Labor value; financial capitalism

1- INTRODUÇÃO
Incontáveis são os artigos que expressam o grande avanço alcançado no âmbito
da Política Social no Brasil com a Constituição da República Federativa do Brasil de
1988. No que diz respeito à proteção social, destacam-se, não somente, a garantia do
direito do cidadão e o dever do Estado, como ainda, a configuração de uma nova
organização agora alicerçada sob os parâmetros da seguridade social, tendo destinação
orçamentária própria e princípios universais.

Importante explicitar que tratam de conquistas de movimentos sociais, em uma


determinada conjuntura política e econômica, tendo em vista que as Políticas Sociais
expressam o conjunto de resposta oriundas das relações complexas e contraditórias que
se estabelecem entre o Estado e a sociedade civil, diante o conflito e luta de classes, e a
necessidade de manutenção da ordem pelo Estado, sendo impactadas pelas alterações
no padrão de acumulação capitalista, repercutindo assim na capacidade de
enfrentamento das questões sociais.

Não é por outro motivo que ao longo da história observamos as transformações,


avanços ou retrocessos no âmbito da política social, assuntos estes que, também, não
têm passado despercebidos pelas pesquisas acadêmicas. Análises que trazem
apontamento sobre a investida neoliberal, as demandas sociais suscitadas pela atual
conjuntura, os paradoxos e os desafios enfrentados pela Política Social são recorrentes
no meio acadêmico.

Assim sendo, é notório que a ratificação/sustentação da concepção de proteção


social orientada pela garantia da cidadania e pelo acesso universal, fruto das conquistas
dos movimentos sociais da década 80 do século passado é alvo de preocupação para
aquelas pessoas que ainda sonham com uma sociedade mais justa.

Por outro lado, defendemos que, conforme aponta Behring (2009), as discussões
em torno da estruturação da política social tendo como parâmetros somente a cidadania
e a concessão de políticas redistributivas são mistificadoras da realidade e frustrantes à
medida que descartam os aspectos fundantes da teoria social em Marx, quais sejam:

258
teoria do valor-trabalho, o materialismo histórico e dialético e a perspectiva da revolução,
esperando dessa forma resultados que não são condizentes com as fundamentações da
políticas social e com as condições concretas de luta dos trabalhadores.

Partindo desse pressuposto, justificamos ser primordial trazer luz a um dos


elementos estruturantes do capitalismo, que por sua vez é pouquíssimo abordado na
literatura no tocante as políticas sociais. Estamos falando da teoria valor-trabalho acima
citado.

Por esse motivo, objetivamos apresentar uma reflexão sobre apolítica social
brasileira na era do capitalismo financeiro, partindo da análise das confluências da teoria
do valor-trabalho no modelo de produção capitalista em vigência. Reconhecendo, por
tanto, a política social como síntese de múltiplas determinações e conectando-a com a
realidade concreta objetiva, contribuindo, assim, para a superação de análises ingênuas
em relação à sua capacidade de resposta e até mesmo a sua estruturação.

Dessa forma, iniciamos esse artigo analisando as condições concretas da política


social no capitalismo financeiro partindo das confluências do processo de valorização do
capital e a repercussão nas relações sociais de produção e reprodução capitalista,
fazendo, portanto, antes disso, uma explanação sobre a teoria valor-trabalho e o modelo
de produção toyotista.

2- A TEORIA DO VALOR-TRABALHO E CONDIÇÕES CONCRETAS DA POLÍTICA


SOCIAL NO CAPITALISMO FINANCEIRO

De acordo com Marx, toda mercadoria possui valor de uso e de troca. O valor de
uso é a utilidade de uma coisa, e se realiza com sua utilização ou consumo. Na
sociedade capitalista os “valores de uso são, ao mesmo tempo, os veículos materiais do
valor de troca” (MARX: 2013, l. 830). O valor de troca, por sua vez, é definido pela
quantidade de um produto que é possível conseguir em troca de uma certa quantidade de
outro produto. Desta forma, o valor de troca depende da quantidade de trabalho
que é medida pelo tempo de sua duração, e o tempo de trabalho, por frações do
tempo.

Como valores de uso, as mercadorias são, antes de mais nada, de


qualidade diferente; como valores de troca, só podem diferir na
quantidade, não contendo, portanto, nenhum átomo de valor de uso.
(MARX: 2013, l. 842).

259
Assim, na relação de permuta das mercadorias, o valor de troca se revela
independente do seu valor de uso, instaurando a autovalorização.
Isto é, mediante a divisão social do trabalho e a propriedade privada, o trabalho na
sociedade capitalista aparece como trabalho assalariado, trabalho que pertence ao outro,
cujo produto é para satisfazer a necessidade do outro e não a sua, ocorre, dessa forma, a
subsunção do processo de trabalho ao capital, subjugando-o ao processo de valorização.

Através do trabalho, o homem eleva-se sobre a natureza exterior e sobre sua


própria natureza, e é nessa superação que consiste sua autoprodução. Sendo assim,
para Marx, o homem é sujeito de sua própria história, ser genérico, que assim se
confirma ao transformar a natureza.

Conforme Marx, o trabalho como objetivação da vida genérica do homem, em sua


forma universal, positiva, de forma sinóptica, confere a ele a capacidade de: 1) relacionar-
se com o gênero (com a usa própria essência); 2) relacionar-se consigo mesmo enquanto
ser genérico; 3) reconhecer-se em seu próprio objeto, como obra sua, como sua
efetividade; e 4) contemplar-se a si mesmo num mundo criado por ele.
No entanto, na particularidade da sociedade capitalista, o homem objetiva-se (se
autoproduz) caindo em dependência com os outros, matriz da alienação. A atividade
produtiva do homem só se manifesta enquanto trabalho assalariado, assim o objeto que o
trabalho produz e o seu produto tornam-se estranhos a ele. Como pode-se perceber, os
processos de alienação são o pano de fundo nesse movimento de reprodução, trazendo
consequências para a vida genérica.
Mészáros (2006) explica: 1) o homem está alienado da natureza, entendendo que
o homem é um “ser natural”, a natureza é seu corpo inorgânico, da qual ele depende para
sobreviver. No caso da sociedade capitalista, o produto de seu trabalho, em vez de saciar
as suas carências, pertence a outro, é um objeto estranho a ele, consequentemente
alienado da natureza; 2) alienado de si mesmo (de sua própria atividade produtiva), o
trabalho não é mais a efetivação de sua vida, mas apenas um meio para sobreviver, seu
trabalho satisfaz a necessidade do outro, parece, ele mesmo, pertencer a outro durante o
seu trabalho, como se ele, durante o trabalho, não pertencesse a si mesmo,
desencadeando uma desumanização e uma degeneração humano-social da ação e da
convivência humana; 3) alienado de seu “ser genérico” (de seu ser como membro da
espécie humana), sua atividade, por pertencer a outro, deixa de ser uma manifestação
da essência humana, vira um mero meio de vida, e suas funções se reduzem às funções

260
animais (comer, beber e procriar); 4) homem alienado do homem, se torna estranho aos
outros homens, autoestranhamento humano, consequentemente, às suas possibilidades
históricas:

[...] Através do trabalho estranhado o homem engendra, portanto, não apenas


sua relação com o objeto e o ato de produção enquanto homens que lhe são
estranhos e inimigos; ele engendra também a relação na qual outros homens
estão para a sua produção e o seu produto, e a relação na qual ele está para
com estes outros homens” (MARX, 2004, pág. 87)

Em obras posteriores, Marx vai desenvolver suas elaborações sobre o fetichismo,


repondo a problemática da alienação de forma mais concreta, centrada no
desenvolvimento histórico-econômico específico da sociedade capitalista.

A partir de então, o autor aponta que a forma de alienação específica da


sociedade capitalista é a reificação, que surge quando o fetichismo se universaliza e as
relações sociais não só aparecem como características do fetichismo, mas são também
mediadas por coisas (pelo produto do seu trabalho, pelas mercadorias), ou seja, são
reificadas.

A natureza reificada da sociedade capitalista origina-se quando ocorre a


subsunção do processo de trabalho ao capital, subjugando-o ao processo de valorização.
A subsunção corresponde a um movimento dialético no qual a força de trabalho é
incluída e transformada em capital. Mostra-se como um elemento vivo, em permanente
mediação de forças, gerando conflitos e oposições ao outro polo, que é a relação e o
processo social capitalista. Em seu estágio final, observa-se que não se trata de uma
relação de dominação pela força ou por coerção política, mas de uma relação de
subordinação e dependência que se dá por meio das coisas.

Acompanhando o processo de desenvolvimento do capitalismo, Marx distingue


dois tipos de subsunção, quais sejam, a formal e a real. Aponta que nas sociedades
capitalistas em que a forma de aumentar a mais valia ocorre por meio da mais valia-
absoluta, prevalece a subsunção formal:

“[...]só se pode produzir mais-valia recorrendo ao prolongamento do tempo de


trabalho, quer dizer, sob a forma de mais-valia absoluta. A esta modalidade,
como forma única de produzir mais-valia, corresponde, pois, a subsunção formal
do trabalho ao capital”. (MARX, 1985, p. 90).

261
Nessa forma de produção, o operário ainda tem consciência do processo de
trabalho, o qual permanece sob seu domínio. O único comando que o capital tem sobre o
operário é o da coerção, mas como diz Marx (1980) não deixa de já ser uma perversão,
as coisas são personificadas e as pessoas coisificadas.

Já a subsunção real corresponde a um sistema capitalista em que há o aumento


na escala de produção, mais especificamente estamos falando do modelo de produção
toyotista. Diferente do momento anterior, há uma divisão de tarefas, o trabalho é
executado por trabalhadores diferentes (trabalhador especializado). Assim, há uma
transformação na forma como o processo de trabalho se organiza, revolucionando o
elemento subjetivo desse processo:

[...]do processo produtivo o trabalhador nada conhece, e, muitas vezes, nem


participa do processo de transformação do objeto em produto, sendo mero
acessório (TRISTÃO, 2010 p. 19).

O trabalho vivo encontra-se subordinado ao trabalho materializado, que age de


modo autônomo. Nessa altura o operário é supérfluo [...] (MARX, 1978, p. 211
apud TRISTÃO, 2010 p. 17)

Assim, na modelo de produção toyotista sob a égide do capitalismo financeiro, a


mais-valia não depende apenas do prolongamento da jornada de trabalho, mas agora é
resultado de uma diminuição do tempo de trabalho que reproduz o valor da força de
trabalho (extração da mais-valia relativa). Torna o operário instrumento não só no
processo de valorização, como também no próprio processo de trabalho.

A inversão entre sujeito e objeto ganha dimensão palpável: não é o trabalhador


quem usa as condições de trabalho, mas, ao contrário, são as condições de trabalho que
usam o trabalhador, ampliando com isso a exploração em todos os sentidos,
repercutindo, não somente nos salários, mas na vida dos indivíduos, também.

Dessa forma, com o desenvolvimento do capitalismo, representado hoje pelo


capitalismo financeiro, estabelece-se um modo de vida que é sem sentido, à medida que
se trabalha para a geração de lucro e não para as suas necessidades. Para tanto, imputa
aos seres humanos uma forma de pensar e agir favorável à sustentação dessa ideologia.
Da mesma forma, determina um sistema de relações entre sociedade/ Estado/ Capital
que reforça o controle social no cotidiano da vida dos indivíduos.

262
E quais são as consequências dessa relação nas políticas sociais? A sociedade
capitalista é caracterizada pela divisão social do trabalho e a propriedade privada, a partir
da contradição existente entre a produção social de riqueza e a apropriação privada da
mesma, daí eclodem as desigualdades sociais e, consequentemente, as expressões da
questão social. Para manutenção dessa sociedade burguesa e do seu modo de produção
capitalista emerge o papel do Estado.

Desta forma, a valoração do capital, em cada fase do capital, juntamente com


outros determinantes, irá influir diretamente nas relações sociais de produção e
reprodução social da humanidade, estruturando, assim, o planejamento do Estado e as
medidas de proteção social por ele adotada.

Concernente a esta questão, na atual conjuntura, pode-se observar a


“minimização” do Estado no que diz respeito às políticas sociais, ao passo que,
contraditoriamente a política social está sendo cada vez mais necessária nesse atual
cenário de ampliação das desigualdades sociais e de extensa exploração, portanto
vemos a ampliação de políticas redistributivas de cunho focal com critérios cada vez mais
restritivos, em detrimento da oferta de serviços sociais universais. A conformação da
atual tendência é uma aceitação a tal ideologia, no entanto, isso não quer dizer que sua
negação é a conquista de maiores direitos.

Vejamos, não há como situar as estratégicas direcionadas à política social


apartando-a de todo o universo do planejamento estratégico, mais especificamente, em
relação ao Estado é necessário inferir sobre o papel do fundo público, levando em
consideração ao que ele é destinado, as isenções que são atribuídas, as medidas
tributárias que são adotadas e as políticas macroeconômicas que são seguidas.

Dessa forma, veremos que a “minimização” do Estado no que diz respeito às


políticas sociais não implica dizer necessariamente, à desmontagem do fundo público
como suporte à acumulação do capital, como relata Oliveira (1998), “essa relação
estrutural não pode ser desfeita, à condição de completa anulação da possibilidade de
reprodução ampliada do capital” (p. 27). Em vista disso, em análises realizadas por
Salvador (2012; 2020); Behring (2021) conclui-se que as estratégias adotadas pelo
Estado vêm reforçar a acumulação capitalista não só na ausência de políticas universais,
mas também, ao dotar regras de financiamento e isenções que favorecem a classe
dominante em detrimento da classe trabalhadora, recaindo sob esta última o ônus dessas
políticas.

263
Dito isso, observamos que a arena de disputa, nesse campo, não se resume a
questão de políticas sociais redistributivas ou não, até mesmo porque essas em momento
nenhum alteraram as bases da produção, e sim incidiram nas questões de distribuição, a
qual bem sabemos não são a origem da desigualdade social. As “perspectivas
redistributivas levaram, no máximo, a um conflito na ordem – ainda que taticamente
importante -, em especial nos países de capitalismo periférico” (BEHRING, 2009, p. 24).

Para tanto, é necessária uma análise ampliada em torno da estruturação da


política social que vai para além dos parâmetros de cidadania ou concessão de políticas
redistributivas é preciso conectá-las à aspectos fundantes da teoria social em Marx, como
aqui fizemos em relação aos determinantes desse processo de valorização do capital, a
fim de desmistificar as possibilidades e limites.

Através dessa análise, observamos, também, a forte tendência a segmentação


das demandas e a despolitização das mesmas, o que imprime a necessidade de uma
direção mais segura e politizada dos movimentos operários. Avançar nessa luta requer
reconhecer as múltiplas determinações que integram o processo de definição das
políticas sociais, o que vem na contramão das condições da força de trabalho presentes
no toyotismo, com a alteração do processo de valorização do capital, o que impõe
tendências neocorporativas e individualista, impondo dificuldade a construção de
alianças, sendo um obstáculo a constituição de uma consciência de classe para si.

Enfim, o sistema de valoração do capital acima do sujeito e a subsunção da


classe operária trazem transformações nas próprias dimensões das políticas sociais. O
desconhecimento dessa realidade é uma inserção inocente e despreparada, no campo
de batalha.

3- CONCLUSÃO

As Políticas Sociais são uma síntese de múltiplas determinações, então para além
dos elementos estruturantes do capital a luta de classes, delimitada pela força de
dominação da burguesia, pelas contradições e exigências das diferentes frações da
burguesia e pela força dos movimentos das classes subordinadas, irão, também, conferir
concessões e/ou construir alternativas concretas ao poder existente, estabelecendo
assim, nova tessitura à conflituosa engrenagem do capital.

264
Dessa forma o modo de produção capitalista, ordenado pela lógica de valoração
que lhe é própria, assim como, a luta inter e intraclasses irão estruturar as medidas
adotadas pelo Estado, tanto em relação ao mercado quando ao modo de produção e
reprodução da sociedade capitalista, imputando às políticas sociais uma verdadeira força
política e econômica a serviço do capital, porém, também uma oportunidade de
emancipação política dessa sociedade.
Desta forma, as políticas sociais na atualidade servem de material tanto para o
planejamento econômico quanto político, quanto como campo de luta e de resistência,
porém não pode ser apartada da realidade objetiva em que está, sobo risco das
ambiciosas pretensões se naufragarem em meio ao oceano de determinações em que se
encontram.

4- REFERÊNCIAS

BEHRING, E. R. Política Social no capitalismo tardio. Rio de Janeiro: Cortez, 2009.

BEHRING, Elaine. Fundo público, valor e política social. São Paulo: Cortez Editora,
2021

MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006.

MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do


capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013 – E-book

______. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004

______. Teorias da mais-valia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980

______. Capítulo VI inédito de O capital. São Paulo: Moraes, 1985

OLIVEIRA, Francisco de. Os direitos do Antivalor: a economia política da


hegemonia imperfeita. Petrópolis: Vozes, 1998.

SALVADOR, Evilasio. Fundo Público e Financiamento das Políticas Sociais no Brasil.


Serviço Social em Revista (Online), v. 14, p. 4-22, 2012.

___________. Fundo público e conflito distributivo em tempos de ajuste fiscal no Brasil.


In: POCHMANN, M. CASTRO, J. Brasil (Orgs.). Brasil: Estado social contra a barbárie.
São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2020, p. 367-388.

TRISTÃO, E. Alienação, reificação e formas de subsunção do trabalho ao capital. In:


Anais Seminário do Trabalho: Trabalho, Educação e Sociabilidade. Marília, SP:
UNESP, 2010

265
NEOLIBERALISMO, FUNDO PÚBLICO E A SEGURIDADE SOCIAL BRASILEIRA

Sarah Danielle Campos da Silva95

RESUMO: O presente estudo visa compreender a relação


entre o neoliberalismo a expropriação do fundo público
brasileiro e a instituição da seguridade social. Para tanto,
desenvolveu-se através da pesquisa qualitativa, por meio de
investigações bibliográficas a fim de entender o objeto
pesquisado e penetrar nas suas particularidade e
interconexões, utilizando-se do método dialético. Entende-se
que o neoliberalismo, portanto, reitera-se como uma
ofensiva contra os recursos do fundo público, que inibe a
sua capacidade de atender as necessidades sociais das
classes subalternas através da garantia de direito sociais,
como o acesso universalizado à seguridade social.

PALAVRAS-CHAVE: Fundo público. Neoliberalismo.


Seguridade Social.

ABSTRACT: The present study aim stounderst and the


relationship between neoliberalism, the expropriation of the
Brazilian public fundand the institution of social security.
Therefore, it was carried out through qualitative research,
bibliographic investigations in order tounderst and the
researched object and penetrate its particularities and
interconnections, using the dialectical method. It is
understood that neoliberalism reiterates It self as an
offensive against the resources of the public fund, which
inhibits its ability to meet the social need sof the subaltern
classes through the guarantee of social rights, such as
universal access to social security.

KEYWORDS: Public fund. Neoliberalism. Social security.

95Acadêmica do 6º período em Serviço Social na Universidade Estadual de Montes Claros- UNIMONTES,


voluntária de Iniciação Científica intitulada “Crise do capital e a espoliação do fundo público”, orientada pelo
professor Doutor Wesley Helker Felício.Trabalho filiado ao eixo temático Ofensiva ultraneoliberal do capital
e lutas sociais.

266
1- Introdução

O fundo público assume um papel essencial para a reprodução do capital e da


força de trabalho na fase madura do capitalismo. Este se estabeleceu no século XX nos
países centrais do capitalismo com a implementação, por parte do Estado, de políticas de
cunho fordista/keynesiano e se consolidou com a fundação do Welfare State como
modelo de proteção social. Após a instituição do Welfare State houve inúmeros
progressos no campo das políticas sociais que, posteriormente foram reprogramadas a
partir do sucesso do neoliberalismo. Nesse sentido, esse trabalho busca fazer uma
revisão histórica acerca do nascimento e consolidação do neoliberalismo como modelo
econômico e político, além de compreender de que forma o modelo neoliberal impacta no
fim do WelfareState, mudando o modo de organização e distribuição do fundo público e
também os seus impactos na seguridade social.

O presente trabalhou se deu através da pesquisa qualitativa, por meio de


investigações bibliográficas a fim de entender o objeto pesquisado e penetrar nas suas
particularidade e interconexões. Usou-se o método crítico dialético para fazer uma
análise do tema pesquisado, entendendo a sua relevância científica e histórica para
analisar o fenômeno tendo em vista sua totalidade.

2- Desenvolvimento

O neoliberalismo se origina após a II Guerra Mundial, nos países de capitalismo


avançado, principalmente na Europa e América do Norte. Essa corrente surge em
contraposição ao Estado de Bem-Estar, as ideias social-democratas, também contra o
intervencionismo, se opondo veementemente contra a regulação do mercado por parte
do Estado.

O nascimento do neoliberalismo, enquanto contraponto teórico e também político


ao Estado de Bem-Estar, é datado a partir da publicação do livro O caminho da Servidão
de Friederich Hayek, em 1944. Hayek fundou a Sociedade de Mont Pèlerin “uma espécie
de franco-maçonaria neoliberal, altamente dedicada e organizada, com reuniões
internacionais a cada dois anos” (ANDERSON, 2003, p.1). Esta sociedade contava com
participantes como Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwig Von Mises,
Walter Eupken, Walter Lipman, Michael Polanyi, Salvador de Madariaga e outros mais. O
propósito da sociedade consistia em combater o keynesianismo e o solidarismo presente
na sociedade, almejando um outro capitalismo, menos rígido e livre de regras, regido

267
naturalmente pelas leis do mercado, pela livre concorrência e pautado no individualismo.
Ademais, defendiam ferrenhamente a desigualdade, chamado de valor positivo,
necessário para a sobrevivência do capital.

Nesta mesma época há a consolidação do Estado de Bem-Estar (welfare-state)


nos países da Europa Ocidental. O sucesso do Estado de Bem-Estar colocou-se como
um empecilho para o espraiamento e, posteriormente, adesão dos ideias neoliberais. No
campo econômico há, entre os anos de 1950 a 1960, o mais rápido crescimento da
história, se tornado conhecido como os anos de ouro do capitalismo avançado.

Entretanto, o Estado de Bem-Estar decompôs-se a partir dos anos 1970. O


modelo econômico do pós-guerra, acabou em ruínas após a crise de 1973 que
encaminhou todo o capitalismo avançado para uma profunda recessão, que combinou
baixas taxas de crescimento econômico com altas taxas inflacionárias, metamorfoseando
a estrutura do capital (ANDERSON, 2003). O neoliberalismo encontrou terreno fértil e
espraiou-se no contexto de crise do modelo econômico do pós-guerra.

Sem demora, a sociedade de Hayek apontou os motivos para a crise do modelo


keynesiano. Segundo Hayek foram eles: o poder excessivo dos sindicatos; o movimento
de operários, que atrapalhou a acumulação capitalista com suas reivindicações sobre o
salário que fez com que o Estado se endividasse com gastos sociais.

Anderson (2003) narra o processo de elevação do neoliberalismo, que, a partir de


então, defendeu ferrenhamente o modelo societário e econômico que viria a assumir o
lugar do Estado de Bem-Estar. Segundo o autor, os preceitos propagados por Hayek e a
Sociedade Mont Pelerin, foram: Estado forte no sentido de repressão sindical e controle
dos recursos, no entanto, diminuto nos gastos sociais e nas intervenções no mercado. A
estabilidade orçamentaria deveria ser o objetivo de todos os governos. Sendo necessário
disciplina orçamentária, diminuição de gasto com bem-estar e a criação de um exército
industrial de reserva, feito a partir da manutenção de uma taxa de desemprego “natural”
que ajudaria na regulação dos salários e na diminuição do poder sindical, a partir do
medo de ser trocado por outro trabalhador que se sujeitaria aquelas condições de
trabalho. Para os neoliberais, a partir da implementação destas condições haveria
novamente crescimento e estabilidade, que o modelo keynesiano havia desviado da
ordem natural do mercado.

268
A implementação do neoliberalismo ao redor do mundo é considerada de
sucesso, um projeto que hoje é hegemônico, mas essa hegemonia não se construiu de
um dia para o outro. Com o sucesso do neoliberalismo em suceder o Estado de Bem-
Estar de modelo Keynesiano, principalmente na Europa Ocidental, e, posteriormente em
outras partes do mundo, começou então o declínio dos direitos sociais e das políticas
sociais implementadas anteriormente.

Laurell (1995) analisa como as políticas sociais são instituídas. Conforme a autora
o desenvolvimento do capitalismo agudiza a “questão social” e acarreta o surgimento de
novas expressões. Alguns exemplos dessas expressões são a proletarização, que faz do
salário necessidade central para a sobrevivência humana e o definhamento das formas
tradicionais de proteção social que ocasiona a insegurança social e pobreza. Entretanto,
Laurell (1995) sinaliza uma interessante contradição que acontece, na medida em que o
capitalismo avança há o encorajamento, e a necessidade, de luta social para a garantia
da satisfação de suas necessidades sociais (saúde, educação, aposentadoria), que
transforma a “questão social” em fato político.

O resultado direto das lutas protagonizadas pelos sujeitos sociais está nas
políticas sociais, que são “um conjunto de medidas e instituições que tem por objetivo o
bem-estar e os serviços sociais” (LAURELL, 1995, p. 153). O Estado tem papel
fundamental na criação e consolidação dessas políticas. Para caráter de análise,
considera-se aqui as políticas sociais e o modelo de proteção social que se consolidam
no Estado de Bem-Estar que surgiu no pós-guerra.

Esping-Andersen (1991) salienta a existência de três tipos distintos de Estado de


Bem-Estar Social, são eles: O social democrata que tem como aspecto principal a
universalização e a redução do papel do mercado nos direitos sociais e bem-estar; o
conservador-corporativo baseado nos direitos sociais, entretanto de caráter redistributivo
mínimo; e, por fim, o liberal em que os direitos sociais são dominados pelo mercado e
pela lógica do merecimento, sendo quase totalmente garantido a partir de contribuição
por salário.

Para entender o desmonte das políticas sociais e a expropriação do fundo público


no contexto da hegemonia neoliberal, o termo “desmercadorização” empregado por
Esping-Andersen (1991) pode contribuir para essa análise, apesar dos limites na crítica
ao capitalismo. Para o autor, a desmercadorização ocorre quando a prestação de
serviços específicos é entendida como direito (saúde, educação, aposentadoria), ou seja,

269
significa atenuar as determinações do mercado, na medida em que o Estado toma para si
a responsabilidade de garanti-los enquanto direito para todas as pessoas, e não apenas
a quem merece ou realizou uma contribuição prévia.

A desmercadorização dos direitos é vista como ameaça ao neoliberalismo, visto


que significa a diminuição da dependência dos trabalhadores em relação ao mercado,
quanto melhores são os benefícios e as políticas sociais “ofertadas” pelo Estado, mais os
trabalhadores terão a liberdade de escolher por empregos menos degradantes. Nesse
sentido, de acordo com Esping-Andersen (1991, p.102) “a desmercadorização fortalece o
trabalhador e enfraquece a autoridade absoluta do empregador”. Nesse sentido que os
neoliberais se opõem às políticas sociais de caráter universal.

Em resumo, nos termos de Laurell (1995), para os neoliberais o intervencionismo


estatal é de caráter antieconômico e antiprodutivo, visto que provoca não somente a crise
fiscal do Estado – dado os gastos com bem-estar através das políticas sociais – e revolta
dos que contribuem através de imposto, como também desestimula o capital a investir e
os trabalhadores de trabalhar. O modelo também é ineficaz e ineficiente, porque
monopoliza nas mãos do Estado a tutela de interesse de grupos específicos
(trabalhadores e a população pauperizada), além de não ser capaz de acabar com a
pobreza, fazendo com que os pobres fiquem carentes e dependentes do paternalismo
estatal.

O fundo público consolidou-se como peça central para a reprodução do


capital e da força de trabalho, por isso fez-se imprescindível para a garantia dos direitos
sociais por meio do financiamento das políticas sociais e da seguridade social. Ele se
estabeleceu nos países centrais do capitalismo no século XX, no contexto de pós
Segunda Guerra Mundial, através de reivindicações dos trabalhadores por melhores
condições de vida e de trabalho.

Dessa forma, a seguridade social estrutura-se com o objetivo de organizar


socialmente o trabalho e acontece de forma diferente em cada país, esbarrando nas
especificidades estruturais, culturais e objetivas de cada lugar, como o grau de
desenvolvimento do capitalismo e a articulação da classe trabalhadora (BOSCHETTI,
2009). O trabalho sempre se colocou como requisito central para o acesso à proteção
social, principalmente para políticas no âmbito da previdência, que só tinha acesso quem
contribuía previamente.

270
Em conformidade com Fleury (2004), as primeiras medidas de proteção social
ocorreram em contexto de negação da necessidade de intervenção estatal na “questão
social”, com o argumento de que o mercado seria eficaz na erradicação dos problemas
que emergiam decorrentes do modo de produção capitalista. Entretanto, a teoria liberal
mostrou-se ineficiente no controle dos problemas que surgiam, evidenciando a
necessidade do Estado institucionalizar um modelo de proteção social que assegurasse
direitos mínimos aos trabalhadores.

No Brasil, apesar do crescimento econômico no século XX, seu caráter periférico


e dependente não permitiu que o país alcançasse um patamar de proteção social como a
dos países desenvolvidos, fazendo com que, até meados da década de 80, imperasse,
simultaneamente, dois diferentes modelos de proteção social: assistencialista e o seguro
social.

As primeiras medidas que surgiram a partir do momento em que o Estado


intervém na organização e reprodução do trabalho, principalmente no âmbito da
previdência e da saúde, culmina na combinação do modelo de seguro social com o
modelo assistencialista. O modelo de proteção social assistencialista se caracteriza por
ações emergências que aliam o poder público e o poder privado, juntando a intervenção
do Estado com a filantropia dos setores privados, agindo de forma pontual e específica,
de forma que não sana a questão apresentada, sendo orientado a camada mais carente
da população que não tem acesso ao seguro social, por não possuírem vínculo de
trabalho formal. Fleury (1997) denomina a relação que impera no modelo assistencialista
de “cidadania invertida” no qual, conforme a autora, o indivíduo que requer assistência
tem que provar que fracassou no mercado de trabalho para ter acesso a proteção social.

O modelo de seguro social direciona os benefícios, principalmente


previdenciários, ao trabalhador com vínculos formais de trabalho, mediante carteira
assinada. Sendo assim, o acesso ao seguro social, fica condicionado a contribuição
anterior, se caracterizando com uma relação contratual. Os benefícios eram
proporcionais as contribuições prévias, não levando em conta a necessidade de quem o
requeria. Fleury (1997) se apropria do termo cunhado por Wanderley G. Santos (1997) e
denomina a relação que acontece no seguro social como “cidadania regulada”, que, para
ambos os autores, se caracteriza pela regulação do acesso à proteção vinculada à
relação contratual trabalhista.

271
O aumento, ou diminuição, da proteção social entre os anos 1930 e 1960, se dá,
exclusivamente, por jogo de poder e para legitimação dos governantes. Cabe aqui
ressaltar as principais características das políticas no âmbito da proteção social nestas
décadas, Fleury (1997) elenca a centralização, o caráter autoritário, a baixa eficácia e
eficiência, a baixa cobertura, o caráter paternalista e clientelista como as características
centrais das políticas sociais empregadas até então.

Foi a partir da Constituição Federal de 1988 que, no Brasil, houve a


universalização da proteção a partir da estruturação das políticas de saúde, previdência e
assistência social que formam o tripé da Seguridade Social, que vigora nos dias de hoje.
Boschetti (2009) aponta que, apesar de ter um caráter inovador e ter a intenção de ser
um amplo sistema de proteção social, a seguridade social brasileira trouxe as marcas dos
modelos assistencial e do seguro social, juntando direitos derivados e dependentes do
trabalho. Em outras palavras, o acesso a previdência é para quem trabalha e contribui, o
acesso a assistência social fica a cargo da comprovação da necessidade. Já o direito à
saúde se consolidou de forma mais universal que o resto da seguridade social, ainda que
tendo os seus desafios.

Entender que a seguridade social brasileira não rompeu totalmente com os


modelos conservadores anteriores, não é negar que representou um grande avanço para
na concepção de direitos sociais. A constituição de 1988 representou um grande
progresso ao definir a seguridade social como “um conjunto integrado de ações de
iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos
relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (Título VIII, Capítulo II, Seção I,
art. 194). A constituição estabeleceu também os princípios da seguridade social, destaca-
se aqui os mais pertinentes ao estudo: A uniformidade da cobertura e no atendimento; a
uniformidade dos benefícios (previdência); seletividade e distributividade da proteção
social (assistência social); irredutibilidade dos valore pagos; por fim, a equidade no
custeio.

No capitalismo contemporâneo, o fundo público é um espaço de lutas crescentes


disputando os seus recursos. O capital demanda a maior parte dos recursos do fundo
para utilização em amortização de juros da dívida e em isenções fiscais para grandes
empresas, retirando a capacidade do fundo público de garantir direitos sociais, por causa
do desfinanciamento e desvio dos recursos destinados as políticas sociais. Conforme
Evilásio Salvador (2009), o orçamento público é quem garante a materialidade da

272
políticas sociais, pauta a direção das ações do Estado e dita quais políticas sociais serão
priorizadas. Para tanto, é fundamental que o fundo público tenha recursos suficientes
para garantir o financiamento da seguridade social e de outras políticas sociais que são
necessárias para a população.

3- Considerações finais

As (contra) reformas neoliberais impactam na vida dos trabalhadores de forma


geral. O neoliberalismo vem se consolidando cada vez mais, começou primeiro com a
destruição dos modelos de Estado de Bem-Estar e foi se aprofundando na derrocada da
proteção social e também na defesa de privatizações e sucateamento de serviços
públicos. Neste contexto, as políticas sociais são cada vez mais atacadas e solapadas,
pauperizando ainda mais a vida da classe subalterna.

Compreende-se que o fundo público é a peça central para a reprodução do capital


e da força de trabalho no capitalismo maduro, e por isso é essencial no financiamento e
atendimento às políticas sociais e demandas das classes subalternas. A seguridade
social apresenta-se como importante avanço no âmbito da proteção social brasileira que,
apesar de não romper plenamente com os modelos de proteção anteriores, a constituição
de 1988 aponta princípios para a seguridade social que norteiam a busca pela
universalização da proteção social.

O neoliberalismo, portanto, revela-se como uma ofensiva do capital contra os


recursos do fundo público, inibindo sua capacidade civilizatória de atender as
necessidade sociais das classes subalternas através dos direitos sociais e garantindo a
seguridade ssocial.

4- Referências Bibliográficas

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trabalho, os direitos e a política social. (orgs.). – São Paulo: Cortez, 2019.

274
A (DES)PROTEÇÃO SOCIAL E A SUPEREXPLORAÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO

Laís Duarte Corrêa 96

Shirlene Anabor 97

RESUMO: Este artigo busca refletir, de forma aproximativa, a


relação entre a superexploração da força de trabalho e o
desmonte da proteção social no capitalismo dependente,
particularmente no Brasil. Trata-se de uma revisão bibliográfica, de
natureza qualitativa e orientada pelo método materialista histórico-
dialético. São apresentados dados sobre o aumento da falta de
moradia, da fome, da informalidade e do desemprego.
Contraditoriamente, acompanham-se retrocessos que
deslegitimam as conquistas sociais e promovem a perda de
direitos, que são autorizados pelo Estado para a manutenção da
superexploração da força de trabalho, resultando em precárias
condições de vida e de trabalho para a população brasileira.

Palavras-chave: Desproteção Social; Contrarreforma trabalhista;


Capitalismo dependente.

ABSTRACT: This article proposes a reflection, in an approximate


way, of a relationship between the over exploitation of the work
force and the dismant lingof social protection in dependent
capitalism, particularly in Brazil. This article is a bibliographic
review, of a qualitative nature and guided by the historical-
dialectical materialist method. Data are presented on the increase
in homelessness, hunger, informality and unemployment.
Contradictorily, there are set backs that delegitimize social
achievement sand promote the loss of rights, that are authorized
by the State to maintain the super-exploitation of the workforce,
resulting in precarious living and working conditions for the
Brazilian population.

Keywords: Social Unprotection; Labor Counter-Reform;


Dependentcapitalism.

96Assistente Social. Integrante pesquisadora GEPETFESS/UFRGS; NEPES/PUCRS; Coletivo Veias


Abertas/UFSC; NEPES/PUCRS. E-mail: ldcorrea@ucs.br. Mestra em Política Social e Serviço Social pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutoranda em Serviço Social (PUC/CNPq). E-mail:
ldcorrea@ucs.br.
97Assistente Social. Integrante pesquisadora do Grupo de Estudo, Pesquisa e Extensão sobre Trabalho,
Formação e Ética Profissional em Serviço Social - GEPETFESS (UFRGS). Mestra em Política Social e
Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: shiranabor@gmail.com.

275
1- INTRODUÇÃO

As recentes transformações nas relações de trabalho comprovam diretrizes


governamentais para o desmantelamento da proteção social no Brasil. Cada vez mais, a
população brasileira está desprotegida dos seus direitos sociais e trabalhistas, o que
autoriza aos contratantes renovar e sustentar processos de trabalho intensificados na
exaustão, expropriação e extração de sobre trabalho, com direitos reduzidos e quando
não extintos, inexistentes.

O processo de desmonte dos direitos trabalhistas brasileiros teve seu início


oficializado com a aprovação do Projeto de Lei 4302/98, conhecido por lei da
terceirização, em 22 de março de 2017. Com isto, o Plenário da Câmara dos Deputados
autorizou três grandes regressos para os trabalhadores na relação hegemônica
empregador e empregado, tais como: o aumento do período de trabalho temporário de
três para seis meses, o uso da terceirização em as todas áreas (atividade fim e meio) e a
subcontratação de outras empresas pela empresa terceirizada — artifício nomeado de
quarteirização, conforme uma nota da Câmara dos Deputados.

Os interesses neoliberais avançam com medidas retalhadoras para a classe


trabalhadora numa rapidez jamais vista, anunciando inevitáveis impactos sobre as
relações de trabalho. Em 11 de julho de 2017, poucos meses depois de legalizada a
terceirização, foi aprovada também a reforma trabalhista. Expressa pelo Projeto de Lei da
Câmara (PLC) 38/2017, esta emenda traz uma série de retrocessos no que se refere à
proteção social dos trabalhadores e das trabalhadoras. Dentre as principais mudanças
autorizadas, conforme matéria do Senado Federal, algumas chamam mais a atenção
pela gravidade, entre elas destacam-se: o fracionamento das férias em até três vezes, o
aumento da jornada de trabalho para 12h horas diárias, a redução negociável do intervalo
para 30 minutos, a dispensa de pagamento do piso ou do salário mínimo para trabalhos
por produção e as modalidades de trabalho intermitente e de teletrabalho.

Alguns aspectos da reforma trabalhista merecem evidência, pois fragmentam a


ação sindical e, consequentemente, fragilizam os direitos trabalhistas, inclusive perante a
única esfera que ainda os assegurava, que é a Justiça do Trabalho. Neste sentido,
menciona-se a contribuição sindical facultativa, a terceirização e a possibilidade de
realizar rescisão contratual dentro da empresa. Além disso, se o trabalhador entrar com
ação trabalhista e perder a causa, ele pode ser condenado a indenizar as custas do
processo entre 5% a 15% da sentença. Para as mulheres trabalhadoras, a situação é

276
ainda mais grave, pois foi autorizado que gestantes trabalhem em postos laborais
insalubres. Logo, pela condição biológica e de gênero, com esta reforma trabalhista, é
provável que as mulheres estejam mais submetidas que os homens a sofrer com as
diversas formas de violência, decorrentes da intensificação da precarização do trabalho.

Diante do exposto, este artigo busca refletir, de forma aproximativa, a relação


entre a superexploração da força de trabalho e o desmonte da proteção social no
capitalismo dependente, particularmente no Brasil. Para tanto, consideram-se as crises
política e econômica brasileiras, que têm seu agravamento a partir de 2016, gerando
diversas perdas no que se refere a garantia de direitos para a classe trabalhadora.

Compreende-se a proteção social como as diferentes formas assumidas, sejam


por patrocínio público ou privado, para aliviar e prevenir a privação material de grandes
parcelas da sociedade, que diz respeito a um conjunto de direitos civilizatórios
materializados de uma sociedade. Nos marcos do capitalismo, teve sua institucionalidade
e conteúdo modificados no que se refere, entre outros motivos, “à insuficiência dos
mecanismos de proteção indiferenciada diante da insegurança social produzida pelas
novas formas de exploração do trabalho industrial” bem como das pressões advindas do
movimento operário ao Estado, demandando melhores condições de vida e de trabalho
na perspectiva dos direitos (PEREIRA, 2016).

É importante mencionar que as políticas públicas sociais se constituem como


uma modalidade de intervenção do Estado e como um produto da sociedade burguesa,
necessária para a reprodução do sistema capitalista: ao mesmo tempo que amortiza o
conflito que decorre da luta operária, se refuncionaliza “[...] para atender as demandas
decorrentes da reprodução social tipicamente capitalista, como mecanismo de
aproveitamento lucrativo do excedente econômico” (PAIVA; ROCHA; CARRARO, 2010,
p. 157).

No presente texto, serão apresentadas reflexões fundamentadas por revisão


bibliográfica, de natureza qualitativa e orientada pelo método materialista histórico-
dialético. O debate teórico será exposto a partir de duas seções: na primeira, A relação
entre capital e trabalho e o Estado no capitalismo dependente. Já a segunda, trata da
relação entre a superexploração da força de trabalho e a (des)proteção social brasileira.
Por último, apresenta-se a Conclusão, seguida das referências bibliográficas utilizadas
neste artigo.

277
2- A RELAÇÃO ENTRE CAPITAL E TRABALHO E O ESTADO NO CAPITALISMO
DEPENDENTE

Para compreender a relação entre capital e trabalho no capitalismo dependente


(MARINI, 1976) é fundamental apreender sobre a relação de dependência constituída
entre os países periféricos na ordem do capital com os países de economia central. Isto
porque, a partir da Teoria Marxista da Dependência (TMD), não se pode considerar a
“condição periférica de uma dada economia em virtude apenas de sua dinâmica interna”,
mas sim como “o produto de um modelo de integração imposto pelas economias
avançadas” (XAVIER, 2018, p. 388).

A relação dialética entre capital e trabalho, é uma chave explicativa para


apreender os meios de exploração perpetrados nos países de economia dependente,
considerando “as estratégias geopolíticas do capital de grandes empreendimentos
transnacionais, ligados, sobretudo, ao setor primário, e os efeitos deletérios sobre as
economias periféricas e suas sociedades” (XAVIER, 2018, p. 388), que se explicam sob a
égide do fenômeno do imperialismo e de novas98 roupagens mais complexas.

A essência do imperialismo e, consequentemente, da dependência, é a


superexploração da força de trabalho estruturada pelo aumento da intensidade do
trabalho, pelo prolongamento da jornada de trabalho e pela expropriação de parte do
trabalho necessário ao operário para refazer sua força de trabalho, os quais configuram
um modo de produção fundado exclusivamente na maior exploração do trabalhador, em
detrimento do desenvolvimento de sua capacidade produtiva (MARINI, 1976).

As raízes da superexploração da força de trabalho estão vincadas no


colonialismo, atravessado pelo escravismo colonial, que se perpetua na região
latinoamericana uma vez que o processo de reprodução do capital, e consequentemente
no Brasil, não viabilizou condições para a superação do colonialismo mesmo após as
independências formais. Abordar o período colonial é intencional, visto que é sob a sua
estrutura que se encontram os germes da dependência. Essas e outras determinações
constituem uma das engrenagens necessárias para a reprodução da acumulação

98O autor se refere a um novo imperialismo que “tem seus vetores de ação em movimento num contexto de
supremacia do capital fictício, um contexto de expansão dos mercados sem precedentes e de dispersão do
poder político e econômico para novos países do globo” (XAVIER, 2018, p. 388).

278
capitalista, que, ao mesmo tempo em que concentra riquezas nas economias centrais,
aprofunda a pauperização das economias periféricas.

Emanam desta estrutura de dominação colonial e imperialista relações sociais


racializadas e sexistas, que “[...] explicitam a imposição da superexploração da força de
trabalho e da desigualdade brutal e crescente” instituindo violências como o genocídio, o
etnocídio e o memoricídio (BÁEZ, 2010) “como dinâmica permanente de subjugação dos
povos originários e dos afrodescendentes na América Latina” (PAIVA; SOUZA;
MARIOTTO, 2021, p. 312) conformando as relações entre capital e trabalho nos nossos
países.

Pensar as consequências desse processo para a população latino-americana e


partir dela, a brasileira, supõe considerar que as novas formas assumidas pelo
desenvolvimento do capitalismo e complexificação do imperialismo, implicam, conforme
Xavier (2018, p. 388), na “ampliação da pobreza e da miséria, perda de alguns direitos
que foram duramente conquistados”, bem como da ampliação das formas de extração do
mais valor vividas na pele pela nossa gente. Felizmente, “[...] as velhas, requentadas e
atuais formas de colonialismo, historicamente estabelecidas, mas condições até aqui
descritas, não foram impostas sem a resistências dos povos latino-americanos
(originários ou aqui formados no processo de colonização)” (SILVA, 2021, p. 9), opondo-
se também as consequências deste processo sobre suas vidas.

Essas resistências, sob a forma de reivindicações por terra, por alimento, por
trabalho, entre outras, são absorvidas pelo Estado, que, assim como as classes sociais
aqui constituídas e suas lutas travadas, não se explicam pelo puro exercício da política,
“mas pela crítica à economia-política, ou seja, pela análise das condições reais que
determinam a produção e reprodução da vida de seres humanos em condições
históricas reais” (SILVA, 2021, p.8).

Ao se tratar do Estado latino-americano, é indispensável considerar as


formações sociais em que se constituiu, bem como, o significado da superexploração da
força de trabalho, que determina as relações entre classes, frações e setores no
capitalismo dependente. Em uma sociedade na qual a independência se deu apenas
formalmente e não efetivamente, o Estado possui uma dimensão subsoberana, que
implica na subordinação e/ou na associação do capital e das classes dominantes locais,
assim como, ao capital e às classes dominantes dos países desenvolvidos (OSÓRIO,
2019). Do mesmo modo, conforme Bambirra (1978), a partir de Fidel Castro: “[...] não há

279
independência se não há independência econômica, [...] a independência política é uma
mentira se não há independência econômica” (p. 65, tradução nossa). Assim, o Estado
no capitalismo dependente reproduz os interesses do capital em meio à debilidade
produtiva latino-americana, constituindo-se como fundamental para a reprodução e
manutenção da superexploração da força de trabalho.

3- A SUPEREXPLORAÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO E A (DES)PROTEÇÃO


SOCIAL BRASILEIRA

O atual cenário brasileiro evidencia o agravamento da desigualdade advinda da


relação capital e trabalho, comprovado por índices alarmantes de fome, desemprego,
trabalho informal e falta de moradia. De acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em
Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN, 2022), 33,1 milhões de
brasileiros passam fome hoje. Desde o final de 2020, houve um aumento de 14 milhões
de pessoas que não têm o que comer no país. Os números são ainda mais alarmantes
quando se trata de insegurança alimentar, pois mais da metade da população brasileira
(58,7%) vivencia essa situação em algum grau — leve, moderado e grave (fome) —,
totalizando 125,2 milhões de pessoas, um patamar equiparado ao da década de 1990.

Quanto aos dados sobre trabalho no Brasil, destacam-se as taxas de desemprego


e de trabalhadores que sobrevivem da informalidade. Segundo a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua, 2022), estima-se que das 172,6
milhões de pessoas em idade de trabalhar no Brasil, 11,9 milhões (11,1%) estavam
desocupadas durante o primeiro trimestre móvel de 2022. Já os índices sobre a
população ocupada, que era de 95,2 milhões de pessoas, identificou-se que 12,21
milhões de trabalhadores empregados no setor privado não possuíam carteira de
trabalho assinada e, consequentemente, estavam desprotegidos de direitos trabalhistas.
Além disso, o estudo intitulado Retrato do Trabalho Informal no Brasil: desafios e
caminhos de solução, identificou que há 32,5 milhões de pessoas (48,9% das ocupações
existentes no país) que provêm da renda de trabalho informal (VAHDAT, V. S.; et al.
2022, p. 72).

O último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística


(IBGE), no ano de 2020, é o dado oficial mais recente que se tem sobre o número de
pessoas em situação de rua no Brasil, são cerca de 221.869mil brasileiros. Já um estudo
(DIAS, 2021) realizado pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a

280
População em Situação de Rua, juntamente com a Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), estima que, no ano de 2021, 160.097 mil pessoas viviam em situação de rua no
Brasil. Conforme reportagem99, em 2022, são 142 mil famílias brasileiras que vivem em
ocupações por conta da falta de moradia, sendo que São Paulo ocupa a primeira
colocação entre os estados com maior número de família nessa situação (45.183),
seguido do Amazonas (29.291), Pernambuco (19.278), Paraíba (9.973) e Rio Grande do
Sul (8.121), em quinto lugar.

Os índices brevemente aqui expostos, evidenciam os mecanismos da


superexploração da força de trabalho, e também as suas consequências, visto que a
população brasileira não acessa o mínimo de condições para a sua reprodução, tais
como a alimentação e a moradia, pois mesmo trabalhando, seu acesso não é permitido
de forma plena. Contraditoriamente, “tanto mais as desigualdades existam,
persistam/ampliem, tanto mais privadas de direitos estarão as populações expropriadas
da sociedade, e mais se reitera e torna visível a questão social por meio de suas
expressões históricas [...]” (CHAVES; ARCOVERDE, 2021, p. 166-167), o que evidencia
fenômenos inter-relacionados decorrentes do aspecto estrutural do capitalismo, quais
sejam as desigualdades e a privação de direitos. Nesta perspectiva, Paiva, Rocha e
Carraro (2010, p. 172) revelam que, na América, as políticas sociais “jamais foram
pujantes e decisivas na garantia das necessidades sociais em escala de massas. No
continente, o desenho revela insuficiência, e é voltado especialmente a setores médios
de trabalhadores formais”.

Acrescenta-se a captura do fundo público reconvertendo a lógica de “direitos”


por políticas compensatórias, fragmentadas e refilantropizadas podendo ser sintetizadas
como um “[...] arranjo pulverizado de ações emergenciais, que nem de longe se propõem
à transformação, sequer imediata, das condições de vida da população” (PAIVA;
ROCHA; CARRARO, 2010, p.172).

Portanto, se no capitalismo dependente, o Estado reproduz os interesses do


capital em meio à debilidade produtiva latino-americana, consequentemente a população
submetida à superexploração da força de trabalho, tem suas necessidades ignoradas.
Como resposta do Estado aos processos de conflito social que daí emergem, este se

99 Reportagem veiculada pela Rede Globo de Televisão, no Jornal Hoje. Disponível em:
https://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2022/06/27/o-drama-da-falta-de-moradias-no-brasil-142-mil-familias-
vivem-em-ocupacoes.ghtml

281
utiliza de mecanismos coercitivos e autoritários, mesmo que sob a aparência democrática
para a manutenção da ordem social (OSÓRIO, 2019), “garantindo” com isso, as
condições de sobrevida da população, ao mesmo tempo em que a reprodução da
superexploração da força de trabalho e da estrutura que a sustenta.

4- CONCLUSÃO

A crescente hegemonia do capital financeiro tem imposto a submissão da classe


trabalhadora a quaisquer condições laborais para manter o emprego. Afinal, ter qualquer
emprego é melhor do que não ter nenhum. Entretanto, este estudo demonstra, a partir
dos dados apresentados, o aumento do contingente de desempregados, além do
aumento da população vivendo sob precárias condições de trabalho e de vida.

A intensificação dos processos de exploração dos trabalhadores é autorizada pelo


Estado por meio de medidas de contrarreformas trabalhistas e sociais, bem como com a
redução de investimentos em políticas públicas, ocorrendo gradativamente nos últimos
anos no Brasil. Dentre estas, cabe citar a proposta da reforma trabalhista e a aprovação
do Projeto de Lei 4302/98, que evidenciam os ideais neoliberais que rompem com a
estabilidade nas condições de trabalho. Revela-se, assim, o retrocesso pelo qual o país
atravessa, que deslegitima as conquistas sociais e promove a perda de direitos e o papel
predominante do Estado na manutenção da superexploração da força de trabalho e
privação de direitos à classe trabalhadora.

5- REFERÊNCIAS

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Marxista da Dependência. R. Katál., Florianópolis, v. 21, n. 2, p. 387-395, maio/ago.
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em:https://www.scielo.br/j/rk/a/xmKNmDJTcyk85sMLkkDjcvn/?format=pdf&lang=pt.
Acesso em Dezembro de 2021.

283
A CENA DE USO DA TECNOLOGIA E A DESIGUALDADE SOCIAL DO BRASIL

Maria Alice Silva Santos


Félix Roberto Coelho Do Carmo

RESUMO:
O trabalho por hora proposto é resultado dos primeiros
movimentos de projeto de Iniciação Científica intitulado
“Novas tecnologias nos processos de trabalho e a teoria do
valor trabalho de Marx”. Esta publicação retrata o momento
inicial da pesquisa e busca apresentar a cena que torna
pertinente a investigação. Traz dados e informações que
demonstram o crescimento de novas tecnologias de
comunicação e informação, mediando a produção e a
circulação de mercadorias e apresenta questões
preliminares.

Palavras-chave: Novas tecnologias. Produção e circulação.


Processos do trabalho. Políticas sociais. Classe
trabalhadora.

ABSTRACT:
The proposed hourly work is the result of the first
movements of a Scientific Initiation project entitled “New
technologies in work processes and Marx's labor theory of
value”. This publication portrays the initial moment of the
research and seeks to present the scene that makes the
investigation relevant. It brings data and information that
demonstrate the growth of new communication and
information technologies, mediating the production and
circulation of goods and presents preliminary questions.

Keywords: New technologies. Production and circulation.


Work processes. Social politics. Working class.

284
1- INTRODUÇÃO

O propósito deste trabalho é apresentar a cena que identifica a crescente da


tecnologia na mediação do trabalho, seja dos agentes da circulação de mercadoria, seja
na produção. A implicação direta que esta cena apresenta é a alteração na composição
orgânica do Capital, que, por sua vez, pode reverberar em agudização da atual crise
estrutural.
A integração de novas tecnologias nos setores de trabalho tem causado
recessões aos direitos trabalhistas e à saúde mental do trabalhador, visto o sentimento
de vigilância, ausência de relações humanas diretas e crescimento de formas pretéritas
de trabalho como o trabalho informal. Os serviços digitais são presentes no cotidiano da
parcela da população brasileira com acesso à internet, seja na prestação de serviços em
home office, seja o uso dos serviços dos trabalhadores por plataforma100. No sudeste
brasileiro, onde a infraestrutura tecnológica se destaca, o percentual de trabalhadores
que têm migrado para o trabalho em casa, para o consumo de casa, o relacionamento
por aplicativo, para a “vida na gaiola” é maior, se comparado ao resto do país (Ipea,
2022).
Também essas novas tecnologias, através das mídias digitais atuam como
superestrutura difusora de uma determinada subjetividade. Isso se aprimora
constantemente ao ponto de que mesmo offline 101
, é possível permanecer “conectado”,
como propagado pelos programas e aplicativos, como o Spotify, por exemplo, que
permite salvar nos aparelhos pessoais parte do conteúdo que será consumido no futuro.
Isto significa que estar always-on102 é possível, uma vez que não é necessário estar com
um smartphone ou com um notebook nas mãos para estar conectado ao mundo. Painéis
publicitários digitais espalhados pelas cidades propagam informações em tempo real,
avisos visuais emitidos por aparelhos atualizam a localização dos ônibus via GPS,
recomendações de vestimenta de acordo com a previsão climática. Outros usos da
tecnologia são os caixas-rápidos, tanto para compra de passagens, supermercados,
cosméticos e roupas, catalisando longas filas e pessoas que operam caixas eletrônicos,
quanto para instigar o consumo imediato, fomentando uma sociedade imediatista.
Todo o engajamento de dados e informações pessoais e profissionais coletados
sem ser tátil ao indivíduo, como um termo de esclarecimento e responsabilidade,

100 O trabalho por plataforma aqui referenciado diz respeito, dentre outros, ao trabalho de motofretistas e
motoristas que vendem sua força de trabalho mediada por aplicativos de celular.
101 Com os aparelhos digitais desconectados de qualquer rede de acesso à internet.
102 Sempre ligado à rede mundial.

285
aparecem como devolutivas ao entrar em sites com anúncios direcionados a buscas
recentes, incentivos de compras nas redes sociais, complementação de buscas nas
plataformas de pesquisas, e até os tipos de notícias que aparecem no feed103. As
mudanças propostas desde o navegador que o indivíduo utiliza ao aceitar cookies104 de
sites e assinar formulários que repassam matérias a terceiros até decisões
governamentais não questionadas pela sociedade estariam ligadas à pressa de
resultados.
Na indústria nacional, poderíamos rememorar a análise do filme Blade Runner,
realizada por Duayer (2010), no desejo capitalista de ter um “humano” que não esteja
sujeito às fragilidades do ser humano e possa ser explorado livremente. Espalham-se
pela internet vídeos de indústrias de ponta do capitalismo central apenas com autômatos
operando.
Por fim, é importante destacar que tais fenômenos ocorrem concomitantes às
mudanças nas regras do trabalho. Onde até mesmo a identidade do trabalhador estaria
em disputa, ser trabalhador ou ser empreendedor. Este é um pouco do cenário que
buscaremos evidenciar, vejamos.

2- TECNOLOGIA E MISÉRIA COMO EXTENSÃO DA CONTRADIÇÃO

É inegável que a pandemia de COVID-19 trouxe a reboque várias mudanças.


Mudanças que já caminhavam como tendências e que, com o isolamento, foram
aceleradas. Um exemplo disso é o crescimento do terceiro setor na América Latina que,
segundo dados obtidos pela Cable News Network (CNN) e produzidos pelo Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pelo LinkedIn. Ao que se constata houve um
aumento de 60% em comparação ao espaço ocupado pelas tecnologias no período pré-
pandêmico. A saber que esse aumento considerável se deve à necessidade do home-
office, de modo que as empresas pudessem continuar atuando durante o período de
isolamento, o aprimoramento exponencial do uso das Tecnologias de Informação e
Comunicação (TIC’s) se destacou.
Ao que se constata segundo o Ministério do Trabalho e Previdência (2020), no
período pandêmico (que ainda vivenciamos em menor escala de preocupação) houve
menor número de admissões. O fenômeno também conviveu com alto número de
demissões, desempregos e empregos informais no mesmo período.

103Página principal que apresenta um fluxo de conteúdos mais recentes (fotos, vídeos, links, etc).
104Fragmentos de código que permitem ao site guardar em uma memória de curto prazo as informações do
usuário, tais como login e preferências de navegação, de modo a direcionar um serviço mais personalizado.

286
No Brasil a imanente contradição se entrelaça na condição de que, o país está
entre as nações mais digitalizadas do mundo, por outro lado, é um dos países com maior
concentração de renda, com mais de 11 milhões de pessoas desempregadas pelo país e
altos níveis de miséria. Além do mais, a falta de investimento em infraestrutura coloca
nossa telefonia e conectividade dentre as mais caras, de acordo com o Banco Mundial
(BANCO MUNDIAL, 2016).
Se de um lado tivemos um grande número de salas de cinemas fechadas por todo
o globo, serviços como a Netflix cresceram acima das expectativas de Wall Street,
abrindo espaço a um público maior, entretanto sem invisibilizar o número de pessoas que
não tiveram onde morar, o que comer e se arriscar diariamente ao sair de casa para
trabalhar. Em matéria na revista Época Negócios, das dez empresas que mais cresceram
durante a pandemia, todas eram voltadas para negócios digitais, liderando a lista
Amazon, Microsoft e Apple, com Facebook em sexto lugar e PayPal em nono. No Brasil,
os serviços de Delivery de comida, que já vinham em franco crescimento antes da
pandemia, só nos três primeiros meses após o anúncio do primeiro caso no país, cresceu
mais de 60%.
Um panorama do uso de TI no Brasil, realizado pela Fundação Getúlio Vargas
(FGV), retrata que se tem 447 milhões de dispositivos digitais, isto inclui: computador,
notebook, tablet e smartphone, tanto em uso corporativo, quanto doméstico, em uso no
Brasil. Esse número revela haver mais de dois dispositivos digitais por habitante até
junho de 2022. A de se destacar que isso não significa que cada brasileiro terá dois
dispositivos, mas, haja vista a desigualdade econômica e o custo do acesso, o dado pode
traduzir uma disparidade enorme no acesso. Isso será um problema, à medida que direito
e cidadania estiverem condicionados à inclusão digital. Como foi o caso do ensino remoto
pelas escolas e universidades por todo o país. Ou ainda com a presença maciça dos
smartphones permanecendo como dominante na maioria dos usos, como nos bancos,
compras e mídias sociais.
Ainda de acordo com a FGV, em 2021, quando ainda se vivia o isolamento social
de maneira mais extensiva, houve um crescimento de 27% de vendas de dispositivos
digitais, com 14 milhões de unidades; em 2022, a estimativa foi de um crescimento
próximo a 10%. Numa prospecção, não havendo nenhuma turbulência atípica na
economia do país, é previsto para 2023 a ultrapassagem de 216 milhões de
computadores (desktop, notebook e tablet) em uso, resultando em um computador por
habitante, uma vez que se observa a permanência do home-office e/ou do trabalho
híbrido. Da mesma forma, isso não significa que todas as pessoas do país terão acesso

287
aos computadores, haja vista que o “Mercado de trabalho: conjuntura e análise”
publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) 2022, apresentou que,
em aspectos gerais na análise do mercado de trabalho, a taxa de desemprego foi de
11,1% no quarto trimestre de 2021, uma queda expressiva em relação ao mesmo
trimestre de 2020 (14,2%).
Outro ponto que contradiz os dados apresentados acima acerca da inclusão
digital à sociedade concerne o acesso e condições de compra da classe trabalhadora
brasileira aos meios digitais. Os modelos são por vezes limitados em termos de recursos,
causando problemas tais como um facilmente visto e vivido por muitos ao longo da
Pandemia: a incompatibilidade do aparelho em acessar um aplicativo do Governo. O
mercado de aparelhos eletrônicos permanecerá em ascensão pelos próximos anos,
atingindo a esfera doméstica, como os Smart Home Devices e também a corporativa,
desde a educação até o trabalho, com o uso de Machine Learning.
Cada vez mais as empresas investem em TI, e ao que se apresenta nos dados
mais recentes obtidos, os bancos lideram esse patamar, posto que a indústria bancária
possui um gasto superior a 120 mil reais para cada empregado. E os investimentos em
TI, equivalem a 8,7% de suas receitas.
O Estudo Mercado Brasileiro de Software: Panorama e Tendências 2022,
elaborado em parceria com a International Data Corporation (IDC), — apontada como
líder em inteligência de mercado, serviços de consultoria e eventos para os mercados de
tecnologia da informação, telecomunicações e tecnologia de consumo —, registrou que o
Brasil detém 1,65% dos investimentos em tecnologia ao nível global, e é o principal nos
investimentos na América Latina (40% de todo o investimento na região).
Como meio de trabalho nos processos produtivos, o estudo “investimento em
indústria 4.0” da Confederação Nacional da Indústria (CNI), aponta o crescimento do
investimento de 2016 a 2018 para processo de produção. 46% das empresas que
responderam à pesquisa utilizam tecnologias de automação com sensores de
identificação do produto e condições operacionais. No desenvolvimento de produtos 37%
das respondentes utilizam sistemas integrados de engenharia para desenvolvimento e
manufatura de produtos. Quanto aos modelos de negócios, 11% incorporam serviços
digitais nos produtos (Internet das Coisas) e 16% utilizam serviços de nuvem associados
ao produto. Dessas empresas que responderam ao estudo, 48% pretendem investir ou
continuar investindo em tecnologias digitais.
A concentração de uso da tecnologia está na região sudeste do Brasil, com 88,8%
na área urbana e 64,6% na área rural, considerando os dados de 2019 Pesquisa

288
Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD contínua), e com pessoas entre 20
e 24 anos, a média principal que corresponde a ocupação dos postos de trabalho. Nesta
mesma região é onde se concentra o maior número de empregos e faturamento do setor
TIC do país.
No que diz respeito ao Estado, além das reformas legislativas para se “abraçar”
novos modelos de negócios digitais como a uberização, há o reconhecimento da
necessidade das tecnologias. O Estado de São Paulo, por exemplo, possui política de
acesso gratuito, o Acesse São Paulo, cujo objetivo é promover o acesso gratuito à
internet em espaços públicos com desktops. No Rio de Janeiro de Janeiro há o programa
Baixada Digital, que se volta para o acesso em banda larga sem fio a 11 municípios da
Baixada Fluminense. No Espírito Santo há 15 cidades digitais mapeadas, com destaque
a capital, Vitória Online é um projeto que permite a qualquer cidadão acessar a internet
utilizando uma rede sem fio. Belo Horizonte, a capital mineira, além de ser considerada a
cidade brasileira mais digital no ranking divulgado em 2011 pelo CPqD, foi eleita neste
ano pelo Congresso Smart City Expo Latam, uma das três principais ‘cidades inteligentes’
do mundo.
Com isso, acredita-se ter apresentado as primeiras aproximações de pesquisa ao
cenário das novas tecnologias que medeiam o trabalho na produção e circulação de
mercadorias na contemporaneidade brasileira.

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscou-se apresentar o Brasil, como uma das nações mais adiantadas na


implementação de novas tecnologias e culturas digitais. Seu destaque na América Latina
é notório. Entretanto, haja vista o curto espaço e o movimento ainda inicial da pesquisa,
elencam-se temas e mediações não tratadas ou não aprofundadas aqui. Por exemplo,
em termos econômicos, qual o impacto que esta alteração na composição orgânica do
capital traz para a economia nacional? Qual o impacto da desigualdade socioeconômica
no acesso a estas novas tecnologias? Como pensar a relação entre o mercado de
trabalho atual (informal, terceirizado, uberizado e precarizado) e o acesso dessas novas
tecnologias pelos trabalhadores? Em termos políticos, precisamos avançar análises
sobre a relação entre cidadania e a presença digital em um país de tantas desigualdades.
Garantir acesso gratuito em áreas públicas pode ser prática paliativa em um país onde a
desigualdade econômica também pode reverberar como analfabetismo digital. Na cultura,
é preciso dimensionar a influência dessas novas tecnologias na mobilização e formação

289
de consciência da classe trabalhadora. É sabido, desde junho de 2013 que o potencial de
mobilização dos meios digitais é real, entretanto, em termos subjetivos, o referido
movimento expressava, dentre outras coisas, a decadência ideológica do pensamento
burguês, outrora revolucionário.
Ao fim deste trabalho, além de maior clareza da dimensão e do impacto que
essas novas tecnologias podem ter sobre a classe trabalhadora, fica mais latente o
potencial de desenvolvimento para futuras investigações.

4- REFERÊNCIAS

BANCO MUNDIAL. RETOMANDO O CAMINHO PARA A INCLUSÃO, O


CRESCIMENTO E A SUSTENTABILIDADE. Washington, D.C. : World Bank Group.
2016. Acesso em: 30 jun. 2022.

DUAYER, Mário. CAPITAL: More Human than Human (Blade Runner e a Barbárie do
Capital). Disponível em:
https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/article/view/6117/5082. Acesso em: 30 jun.
2022.

GAGLIARDI, Pedro; TAMAYO, Eugenia. Um estudo de caso da Development


Partnership Data: dados do LinkedIn sobre o impacto da COVID-19 no mercado de
trabalho. Disponível em: https://blogs.iadb.org/brasil/pt-br/um-estudo-de-caso-da-
development-partnership-data-dados-do-linkedin-sobre-o-impacto-da-covid-19-no-
mercado-de-trabalho/. Acesso em: 27 jun. 2022.

GÓES, Geraldo; MARTINS, Felipe; ALVES, Vinícius. O teletrabalho potencial para as


macrorregiões brasileiras: Número de ocupados em teletrabalho potencial: resultados
atualizados. O Teletrabalho Potencial no Brasil Revisitado: uma visão espacial. IPEA
— Carta de Conjuntura. N.º 55 — nota de conjuntura 20 — 2 ° trimestre de 2022. Acesso
em: 3 jul. 2022.

IBGE educa. USO DE INTERNET, TELEVISÃO E CELULAR NO BRASIL. Disponível


em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/materias-especiais/20787-uso-de-internet-televisao-
e-celular-no-brasil.html. Acesso em: 28 jun. 2022.

MATIAS, Vandeir.; MATOS, Ralfo. A GEOGRAFIA DAS TECNOLOGIAS DA


INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO. Caminhos de
Geografia, [S. l.], v. 14, n. 48, 2014. Disponível em:
https://seer.ufu.br/index.php/caminhosdegeografia/article/view/22599. Acesso em: 29 jun.
2022.

MEIRELLES, Fernando. Panorama do Uso de TI no Brasil - 2022. Ed. 2022. São Paulo.
Disponível em: https://portal.fgv.br/artigos/panorama-uso-ti-brasil-2022. Acesso em: 27
jun. 2022.

Mercado de trabalho: conjuntura e análise - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada;


Ministério do Trabalho. – v.1, n.0, (mar.1996). Brasília: Ipea: Ministério do Trabalho,
1996-

290
Irregular (de 1996-2008); Trimestral (de 2009-2012); Semestral (a partir de 2013). Título
da capa: Mercado de Trabalho: conjuntura e análise. ISSN 1676-0883. Acesso em: 3 jul.
2022.

Previsões da IDC Brasil para 2021 apontam que o mercado de TIC crescerá 7%.
Disponível em:
https://www.idc.com/getdoc.jsp?containerId=prLA47452221#:~:text=Sobre%20a%20IDC
%3A%20A%20International,telecomunica%C3%A7%C3%B5es%20e%20tecnologia%20d
e%20consumo. Acesso em: 27 jun. 2022.

291
CRISE E RETROCESSO NAS POLÍTICAS E DIREITOS SOCIAIS: opressões da
classe trabalhadora no governo Bolsonaro

Joyce Queiroga Resende105

RESUMO: O presente artigo objetiva refletir como a crise


estrutural do capitalismo influenciou nos retrocessos das
políticas sociais e direitos sociais da classe trabalhadora.
Tomamos como referência autores que analisam o governo
atual do presidente Jair Messias Bolsonaro que intensificou
as formas de opressão e precarização da vida da classe
trabalhadora no Brasil.

Palavras-chave: crise estrutural; políticas sociais; direitos


sociais; retrocessos; classe trabalhadora

ABSTRACT: This article aims to reflect how the structural


crisis of capitalism influenced the setbacks of social policies
and social rights of the working class. We take as reference
authors who analyze the current government of President
Jair Messias Bolsonaro that intensified the forms of
oppression and precariousness of working class life in Brazil.

Keywords:structural crisis; social policies; social rights;


setbacks; working class

1- INTRODUÇÃO

A crise estrutural capitalista trouxe consigo um aprofundamento das expressões da


questão social. A disputa entre capital e trabalho existe desde a gênese do sistema
capitalista de produção, porém, em momentos de crise este sistema para retomar suas
taxas de lucro encontra diversas estratégias para não fenecer. Uma dessas estratégias é
a redução dos investimentos em políticas sociais e retiradas de direitos da classe
trabalhadora, entendida como grande desperdício de gastos públicos pela ingerência do
Estado.
As transformações societárias dentro do capitalista sempre apontam para um
direcionamento de manutenção das desigualdades sociais e desse jeito manutenção da

105Assistente Social do Projeto Social Curso Preparatório Luísa Mahin (CPLM). Graduada e Mestranda em
Serviço Social no Programa de Pós-graduação da Faculdade de Serviço Social (FSS) daUniversidade
Federal de Juiz de Fora. E-mail: joyce.queiroga@hotmail.com –Eixo Temático: Ofensiva ultraneoliberal do
capital e lutas sociais – Política Social, trabalho e questão social: retrocessos e resistências na conjuntura
atual.

292
dominação, opressão e exploração da classe trabalhadora. Partindo dessa concepção o
presente artigo pretende fazer uma breve análise sobre o direcionamento dado a política
econômica do governo atual de Jair Bolsonaro, entendida por muitos autores como de
extrema direita, que tem intensificado as expressões da opressão da classe trabalhadora.
Para isso organizamos o artigo em três momentos. Primeiro realizamos uma breve
contextualização das configurações político-econômicas pré-governos Bolsonaro, no final
do Governo Dilma Rousseff e como o direcionamento das suas políticas levaram ao
processo de impeachment. O segundo momento faremos explanações sobre a
configuração das políticas sociais e econômicas de extrema direita já dentro do governo
de Jair Bolsonaro e como isso influenciou diretamente na maior opressão dos(as)
trabalhadores(as) do país. Finalizaremos como algumas notas conclusivas sobre o tema
sem a pretensão de uma conclusão definitiva sobre o assunto.

2- BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DAS CONFIGURAÇÕES POLÍTICO-ECONÔMICAS


PRÉ-GOVERNO JAIR BOLSONARO

A disputa entre capital e trabalho está no cerne do modo de produção capitalista,


desde o seu surgimento os capitalistas procuram explorar ao máximo os trabalhadores,
extraindo a maior quantidade de valor excedente possível do seu trabalho. A classe
trabalhadora, por sua vez, luta por melhores condições de trabalho e de vida e resiste as
ofensivas do capital. Séculos de lutas proporcionaram importantes ganhos à classe
trabalhadora, concretizados através de políticas e direitos sociais.
Tanto as reformulações feitas pelos governos Dilma quanto as realizadas pelo
governo Temer, foram influenciadas pela doutrina neoliberal. A política econômica
implementada pelo governo Dilma, não diferenciou muito da que vinha sendo adotada
pelo governo Lula em seus dois mandatos. As compatibilizações dessas duas linhas de
política econômica foram possibilitadas durante certo período pela grande expansão da
economia mundial, entre 2003 e 2007. O bom desempenho das exportações de
commodities e a entrada volumosa de capital estrangeiro abriram espaço para adoção de
políticas expansivas. A partir de 2007a crise estrutural atinge de forma mais intensa a
acumulação do capitalismo global, esse cenário começa a mudar gradativamente,
emergindo as contradições existentes entre as duas linhas de política econômica
(CORSI, 2016).
De acordo com Corsi (2016), uma série de medidas intensificaram o atrito do
governo com a classe dominante e ao desagradar os setores da classe dominante Dilma

293
afetou sua base de sustentação no Congresso e com a queda no crescimento da
economia ampliaram-se os descontentamentos. Os escândalos de corrupção e a forte
defesa da imprensa e dos economistas neoliberais a uma rígida política ortodoxa,
baseada na contenção do crédito, na elevação dos juros e no corte de gastos públicos,
minaram ainda mais o apoio da presidenta.
Dilma conseguiu reeleger-se, mas com o agravamento da crise política e
econômica seu governo perdeu rapidamente a iniciativa política.De acordo com Oreiro e
Paula (2019), com o impeachment veio a transição para uma agenda ortodoxa-liberal,
que apresentava propostas extremamente prejudiciais a classe trabalhadora

Esta agenda tem direcionado a economia para um novo modelo de


desenvolvimento, baseado em reformas liberalizantes (reforma trabalhista,
reforma previdenciária, etc.) e na reafirmação das políticas econômicas
conduzidas de forma ortodoxa: uma política monetária mais conservadora (sob
argumento de “ancorar expectativas inflacionárias” dos agentes), uma política
fiscal contracionista (implementação do teto de gastos com base no argumento
da “contração fiscal expansionista”), e uma política cambial mais flexível
(inclusive sinalizando para maior conversibilidade do real) (OREIRO e PAULA,
2019, p.2).

A agenda do governo Temer não apresentou novidades sendo a reforma trabalhista


e a reforma da previdência seus carros-chefes da política econômica. Conforme explica
Oreiro e Paula (2019), ao final de 2016, o governo Temer aprovou um conjunto de regras
fiscais que impediram o uso da política fiscal como mecanismo anticíclico.
Para Oreiro e Paula (2019), a política econômica ortodoxo-liberal do governo Temer
é marcada por dois aspectos principais. O primeiro, baseado na tese da “contração fiscal
expansionista”, corresponde a execução de uma intensa contração fiscal. O segundo diz
respeito a um conjunto de políticas liberais de incentivo a iniciativa privada via
desregulamentação do mercado, permitindo que a iniciativa privada assumisse o
direcionamento do processo econômico, inclusive no que tange aos investimentos.
Além das reformas realizadas, o governo Temer colocou em pauta a reforma
tributária; a privatização de diversas empresas estatais; inclusive a Petrobrás; a
necessidade abertura comercial com redução nas tarifas alfandegárias, para recuperar a
competitividade via economia de mercado; e o acordo de livre comércio com União
Europeia (OREIRO e PAULA, 2019).
Vemos que a política econômica estava orientada para facilitar e potencializar o
acúmulo de riqueza pela burguesia nacional e internacional. Os programas voltados para

294
a classe trabalhadora seguiam as orientações de organismos internacionais, que, em sua
maioria, apresentavam benefícios somente a curto prazo.
Mediante essa breve contextualização, faremos no item seguinte explanações
sobre o aprofundamento das opressões e retrocessos ainda maiores nas políticas
públicas e direitos sociais da classe trabalhadora.

3- POLÍTICA SOCIAL BRASILEIRA E O GOVERNO JAIR BOLSONARO

Iniciamos este item concordando com a afirmação de Félix (2019) de que o


Estado é a forma política do capital, assim mesmo que os direitos sociais estejam
firmados na carta constitucional e sua efetivação vai depender dos limites da
sociabilidade capitalista. Nesse caso a afirmação da cidadania mediante às políticas
sociais vai ser limitada e determinada de acordo com a necessidade do desenvolvimento
das forças produtivas.
No Brasil como outros países da periferia capitalista, apresenta condições
particulares de desenvolvimento econômico e grande desigualdade social, o sistema de
proteção social se torna insuficiente no sentido de proteger e garantir direitos aos
cidadãos. Os benefícios sociais aqui se caracterizam por serem administradas com
poucos recursos financeiros, benefícios mínimos e direcionados aqueles considerados os
"mais pobres" e para os que não conseguem acessar os benefícios ou não se enquadram
no perfil de miserabilidade podem adquirir via mercado os direitos que deveriam ser
garantidos pelo Estado. Segundo Vianna (1997) o Brasil tem um sistema de proteção
"americanizado", um sistema mercantilizado que “aprofunda as desigualdades e penaliza
contundentemente os de baixo; além do que, a assistência "caritativa" aos excluídos”
(VIANNA, 1997, p.171-172)
Trazendo um pouco do trabalho de Fiori (2007) entendemos que temos um
padrão de caráter residual, limitado e neoliberal sendo oferecido de forma temporária e
na maioria das vezes para os “comprovadamente” pobres, com regras para habilitação e
carregadas de estigmas sociais. “Um sistema não-redistributivo é montado sobre um
quadro de grandes desigualdades e de misérias absolutas”. (GEORGE KORNIS apud
FIORI, 2007, p.9)
Pois bem, vamos nos localizar agora no final do governo Dilma Rousseff, que
após as investidas políticas da oposição contra o seu governo a partir de 2015, o
distanciamento de movimentos sociais da classe trabalhadora e a opção por um
direcionamento político-econômico diferente do que foi prometido na campanha de

295
governo culminou no golpe em 2016 com seu impeachment, tivemos a intensificação de
dois projetos considerados opostos. O governo de seu então vice-presidente Michel
Temer seguiu um direcionamento aprofundando políticas de cunho mais conservador,
deu andamento as contrarreformas como a Reforma Previdenciária e Trabalhista, a EC –
95 que limita os gastos governamentais em políticas sociais por 20 anos e com a crise
estrutural econômica e política instáveis terminamos em 2018 com a eleição de um
candidato de extrema-direita representante das classes dominantes.
Desde sua campanha eleitoral, o atual presidente Jair Bolsonaro já vem
demonstrando o direcionamento que daria durante o seu governo em relação às
diferentes demandas sociais no país. Segundo Marques (2019) o candidato já
apresentava posições misóginas, machistas, homofóbicas e racistas, defendia a tortura, a
ditadura e outras barbaridades com um direcionamento conservador. O que se deseja
segundo autor é implementar "um projeto ideológico e econômico bem específico, no qual
não há margem para concessões aos movimentos sociais e para o convívio com a
diversidade entre outros aspectos" (MARQUES, 2019, p.13).
A partir de 2019, sob a nova gestão governamental, observamos um grande salto
na destruição da proteção social, das questões ambientais, da reforma agrária, dos
direitos da população indígenas, da população negra, dos LBTQIAP+. A autora Cohn,
traz como exemplos a revisão e redução de benefícios previdenciários e assistenciais;
redução de gastos com a educação e saúde o que afeta diretamente a produção
científica, de tecnologia e meio ambiente; redução de políticas direcionado a produção
cultural; o aumento da população em situação de rua; doenças já consideradas
erradicadas sífilis e sarampo voltam a aparecer com frequência; alto do índice de
desemprego fechando o ano de 2021 com 12 milhões de desempregados (IBGE, 2021),
o Brasil voltando para o Mapa da Fome configurando grande retrocesso nas políticas de
combate à fome.
O projeto político e social do atual governo além retirar recursos materiais usa a
dominação ideológica, alienando a classe trabalhadora em relação aos seus direitos
enquanto cidadãos, objetivando segundo Cohn (2020) retornar aos anos 1960, porém de
forma agravada, rompendo com a solidariedade social mesmo que sejam políticas
direcionada aos extremamente mais pobres.
Castilho e Lemos (2021) colocam que o “bolsonarismo tem implementado como
política oficial a necropolítica, que advém de um domínio autoritário de definir quem deve
morrer e quem merece viver, aprofundando ainda mais a barbárie social contra a classe
trabalhadora” (CASTILHO E LEMOS, 2021,p.269). A Necropolítica, termo trabalhado por

296
Achille Mbembe caracteriza a direção política que vai contra a sobrevivência da classe
trabalhadora, aponta para o extermínio de sujeitos considerados descartáveis ao sistema.
O direcionamento das políticas no atual governo leva ao desmatamento criminoso
da Amazônia, liberação de agrotóxicos contrarreforma da Previdência Social, políticas
repressivas de combate ao crime, redução do orçamento das políticas sociais, cortes de
recursos nas universidades, na ciência, na cultura, incentivo a política armamentista. Não
são elaboradas propostas que tenha como objetivo principal a proteção à vida e contra
miséria. As autoras afirmam que as ações do governo têm a direção de viabilizar a morte,
com enxugamento do Estado brasileiro e elaboração de políticas punitivas contra a
classe trabalhadora configurando o estado de contenção social e penal.
Destacamos as contrarreformas da previdência Social como um dos pontos
principais da “gestão” de Jair Bolsonaro, retirando das às políticas públicas levando um
desmonte da Seguridade Social. Nessa lógica, de uma seguridade social enfraquecida
somada a uma ideologia antiestado presente no governo de Bolsonaro fragiliza ainda
mais o que restou do sistema de proteção social. Em apenas vinte e seis meses de
governo a destruição implementada pelo Estado, que constitucionalmente tem o dever de
financiar e implementar políticas de proteção social, revela a agudeza do
ultraneoliberalismo e genocídio perpetrado pelo Estado: a necropolítica (CASTILHO E
LEMOS, 2021, p.274)
As autoras ainda trazem alguns exemplos de práticas do atual governo como o
Auxílio Emergencial, recurso financeiro emergencial destinados às famílias em situação
de maior vulnerabilidade social e econômica mediante a pandemia do novo Coronavírus
(COVID-19). É sabido que a pandemia afeta de forma mais cruel a classe trabalhadora
que se encontra em piores condições de vida, acesso precário ao sistema de saúde, alto
índice de desemprego, moradias precárias e alimentação insuficiente, além de outros
direitos sociais negados. Ao recorrer a esse benefício, que já é muito pouco diante do
custo de vida para se suprir as necessidades básicas, apresentou grande dificuldade
para o acesso, processos lentos de análises, recusa de avaliação, grande espera para o
recebimento, além de ficar mais evidente o não acesso à tecnologia de grande parte da
classe trabalhadora. Na saúde continua o processo de sucateamento dos serviços, e a
partir da aprovação da Emenda Constitucional 95 a situação foi agravada acelerando o
desfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS). Uma de suas primeiras ações foi o
cancelamento do Programa Mais Médicos que mesmo com seus problemas de
planejamento e execução, atendia em torno de 700 municípios em áreas isoladas.

297
As políticas de privatização do Estado, as terceirizações, contrarreformas
trabalhistas e previdenciárias, o desemprego em massa e o crescimento do trabalho
informal, sucateamento da saúde, da educação, a propagação de um senso comum da
ineficiência do serviço público e de seus servidores, mercantilização dos direitos sociais,
a questão social sendo naturalizada, a legitimação da violência estrutural e racial leva
direta e indiretamente ao extermínio da classe trabalhadora.

4- NOTAS CONCLUSIVAS

As políticas sociais implementadas por diferentes governos dentro de um Estado


capitalista apresentam desde a sua origem a intenção de dominação e alienação da
classe trabalhadora e não a efetivação da cidadania de fato. Porém, essa dominação e
exploração pode variar na sua intensidade de acordo, como o momento histórico, social,
político e cultural da sociedade. Assim o governante de uma nação pode dar um
direcionamento mais social para sua política ou não, sempre dentro dos limites da
produção capitalista.
Discorremos no presente artigo como o governo do atual presidente tem
intensificado desde o início da perda de direitos da classe trabalhadora e redução das
políticas sociais direcionadas a redução das desigualdades sociais e econômicas. A crise
capitalista já direciona para maior exploração, opressão e marginalização da classe
trabalhadora, porem com um governo de extrema direita essa opressão ganha outros
patamares, pois configura e exclusão não só como base na renda como também na
segregação racial, de gênero, posturas homofobias, misóginas e patriarcalistas.
É presente a desvalorização e precarização das ciências, educação, saúde,
políticas de habitação, dentre outras. Incentiva ao desmatamento da natureza e violência
direta e indireta contra as populações indígenas. Não possui respeito a diversidade e
incentiva políticas repressivas e punitivas da população, individualizando todos os
problemas sociais que na realidade tem sua origem no sistema excludente do
capitalismo.

5- REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

CASTILHO, Daniela Ribeiro; LEMOS, Esther Luíza de Souza. Necropolítica e governo


Jair Bolsonaro: repercussões na seguridade social brasileira. R. Katál., Florianópolis,
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uma avaliação preliminar. 2019. Recuperado em 09 de abril, 2020, de
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VIANNA, M.L.W. Parte III - O estado de bem-estar no contexto atual Política versus
economia: notas (menos pessimistas) sobre globalização e Estado de bem-estar.
Disponível em: http://books.scielo.org/id/8fmv5/pdf/gerschman-9788575413975-11.pdf
Acesso em 14 de dezembro de 2021

299
FOME, TRABALHO E QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL: Desafios e retrocessos em
tempos pandêmicos

Daniel Luiz Pitz106


Roberta SperandioTraspadini107

RESUMO: Sem saúde, sem trabalho e sem comida. Essa é


a realidade de muitos brasileiros na atual gestão fascista do
governo brasileiro que demonstra não se importar com as
mais de quinhentas mil mortes ocasionadas pela pandemia
da COVID-19. O objetivo geral deste trabalho é refletir sobre
a fome e a superexploração da força de trabalho como
particularidades da expressão da questão social no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Pandemia; Fome; Superexploração.

ABSTRACT: No health, no work and no food. This is the


reality of many Brazilians in the current fascist management
of the Brazilian government, which shows that it does not
care about the more than five hundred thousand deaths
caused by the COVID-19 pandemic. The general
objectiveofthisworkistoreflectonhungerandtheoverexploitation
oftheworkforce as particularities of the expression of the
social question in Brazil.

KEYWORDS: Pandemic; Hungry; overexploitation.

1- INTRODUÇÃO

A atual pandemia da COVID-19 tem gerado grandes desafios para o Brasil e para
toda a economia mundial. A crise econômica instaurada tem impactado principalmente o

106 Advogado. Doutorando em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC. E-mail:
danielpitzz@gmail.com
107Professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Professora colaboradora no

Programa de Pós-graduação em Serviço Social, UFSC. Doutora em Educação pela Universidade Federal de
Minas Gerais. E-mail: robertatraspadini@gmail.com

300
mundo do trabalho, intensificando as desigualdades históricas de nosso país por meio do
aumento da fome, do desemprego, expondo a situações de risco a classe trabalhadora e
limitando ainda mais os serviços essenciais.
O objetivo geral deste trabalho é refletir sobre a fome e a superexploração da força
de trabalho como particularidades da expressão da questão social no Brasil.
De fato, a fome e a superexploração da força de trabalho correspondem a
características estruturais da nossa sociedade, sendo produto da luta de classes, afinal,
ambas se relacionam à expropriação dos direitos da classe trabalhadora.
O mercado de trabalho brasileiro é heterogêneo e possui um alto índice de
informalidade que soma um total de mais de 38 milhões de pessoas, representando mais
da metade da força de trabalho em onze estados brasileiros (RUBINSTEIN, 2020). Na
América Latina, os trabalhadores informais tiveram uma perda média de 81% de
rendimento na pandemia, a impactar diretamente o aumento da fome, da pobreza e das
desigualdades. Logo, a garantia de uma renda básica a esses trabalhadores é
fundamental ao combate à pandemia, à miséria e para garantir, minimamente, a proteção
aos seus direitos humanos e fundamentais (SILVA, 2020).
A atuação do governo brasileiro na pandemia tem se baseado principalmente em
medidas para responder à crise direcionada ao interesse burguês, ou seja, ao benefício
de grandes empresários para a suspensão dos contratos de trabalho, redução salarial
etc. Pouco é oferecido para as políticas voltadas para a sobrevivência da classe
trabalhadora.
Portanto, parte-se do entendimento que a questão social e os seus
desdobramentos, como a fome e a superexploração da força de trabalho, ocorrem não
somente pela falta, mas pela sua forma de consumo, sendo essenciais para a reprodução
do capitalismo.
A metodologia aplicada a este trabalho foi a pesquisa bibliográfica e a técnica de
abordagem qualitativa. Portanto, utiliza-se a literatura relacionada com a temática com a
finalidade de fundamentar a sua análise.

2- DESENVOLVIMENTO

O Brasil é um dos países mais desiguais no mundo no que se refere a distribuição


de renda. Essa desproporção simboliza um mercado de trabalho heterogêneo e
fragmentado por gênero, raça, classe social, entre outros aspectos. Dessa forma, as
desigualdades afetam de maneira mais perversa a classe trabalhadora e esses grupos

301
que representam a maioria entre os pobres e os trabalhadores informais no país
(COSTA, 2010).
É imprescindível que façamos uma análise de conjuntura sobre essa situação,
entenda o processo de formação social brasileira, que em suas estruturas traz marcas
profundas de desigualdades ainda não enfrentadas e tampouco superadas.
Ademais, percebemos que a atual gestão catastrófica de Bolsonaro no combate a
pandemia da Covid-19 tem prejudicado diretamente diversos trabalhadores,
principalmente os informais que representam mais de 50% da população, tentando
suportar todas as incertezas desse período junto a recorrente repressão do próprio poder
público(SILVA, 2020).
Apesar do auxílio emergencial ter garantido, mesmo que de forma inédita e
temporária, um mínimo de dignidade e subsistência para essa população, a realidade
brasileira é que muitos passaram por dificuldades tecnológicas para se cadastrarem e
terem acesso ao benefício. Além disso, diversos trabalhadores de aplicativo e
ambulantes também tiveram seu benefício negado ou foram excluídos compulsoriamente,
propagando uma lógica higienista pelo governo (COSTA, 2020).
Nesse seguimento, o governo federal se abstém de debates sobre a pauta histórica
da renda básica universal, reanimado pelo contexto de pandemia, pelo pretexto de
aumento da crise econômica no período pós-pandêmico. No entanto, permanece urgente
a preservação da ótica dos direitos fundamentais, sendo a renda básica universal uma
possibilidade de ampliação da cidadania para além da formalidade, garantindo uma
estabilidade mínima aos trabalhadores cuja rotina diária é essencial para a sua
sobrevivência e de sua família (SILVA, 2020).
Portanto, é necessário políticas públicas efetivas e abrangentes que atendam
diretamente todos esses trabalhadores atingidos no Brasil, que identifique a realidade de
cada grupo social para organizar e implementar programas de combate a fome, a renda
básica, moradia social e promoção de trabalho e renda sustentáveis, sempre seguindo na
direção para que os trabalhos sejam emancipatórios (SILVEIRA, 2020).
É necessário entender que dentro da ótica capitalista, o trabalho se apresenta não
como um dignificador da vida, mas sim como forma de exploração da classe
trabalhadora, principalmente em países com fortes estruturas desiguais e com
determinantes históricos de profunda desigualdade social como o Brasil (ANTUNES,
2018).
Os Estados latino-americanos, como o Brasil, não buscam mecanismos para alterar
a desarmonia entre os valores de seus produtos exportados, buscando suprimir essa

302
perda apenas através da ampliação da exploração do/a trabalhador/a. Logo, a América
Latina auxiliou nitidamente o aumento de mais-valia e da taxa de lucro nos países
industriais, resultando em implicações totalmente distintas e rigorosamente opostas à
realidade desses países (MARINI, 2005).
Se observarmos as explicações de Williams (2012) e Cueva (1983) percebemos
que o Brasil, como outras colônias latino-americanas e caribenhas possuem uma
dependência econômica proveniente do monopólio comercial, bem como uma
dependência política e cultural.
Frisa-se que a dinâmica de nossa dependência é baseada na superexploração da
força de trabalho como forma de compensar a transferência de valor para os Estados
centrais. De fato, a nossa dependência hoje é mantida e perpetuada pelo capitalismo
global, se aprofundando por meio das contrarreformas e das expropriações realizadas
pelo Estado.
É importante mencionar sobre a superexploração do trabalho pois é uma
característica estruturante da economia capitalista dependente brasileira, contribuindo
para o entendimento sobre as particularidades da política social e sobre o processo
histórico da luta de classes em nosso país. Afinal, historicamente o método operado pelo
Estado dependente é inclinado a rejeição e exclusão da classe trabalhadora, preservando
essa lógica de superexploração, limitando totalmente o impacto das políticas sociais e
impossibilitando qualquer chance de rompimento com a imensa desigualdade e da
participação democrática em nosso país.
A propensão do Estado monopolista é justamente afastar a classe trabalhadora dos
espaços decisórios, a partir da concentração de poder pela burguesia e da simulação da
democracia na América Latina. Desse modo, a política social em nosso país, originada
pela luta da classe trabalhadora, refletirá suas limitações a partir dessa própria luta que é
consumida pela dominação econômica e política dos Estados monopolistas e pela
manutenção desse Estado ao se estabelecer essa dominação e desigualdade como
padrões normais de sociabilidade (FERNANDES, 2006).
Além disso, é importante destacar que se observamos a relação da questão social
com o sistema capitalista, vemos que há processos estruturais que sustentam as
desigualdades e as divergências que formam a questão social. É sob o contexto de fome,
desemprego, subempregos e pauperismo da classe trabalhadora que se manifestam
dimensões urgentes da questão social, afinal, “a prosperidade do capital e a força do
Estado estão enraizadas na exploração do trabalhadores do campo e da cidade” (IANNI,
1989, p. 147).

303
De fato, o desenvolvimento da sociedade do capital se favorece diretamente das
condições hostis sob ao qual a classe trabalhadora encontra-se forçada a produzir.
Justamente nessa sociedade que busca o crescimento econômico se desenvolve as
desigualdades que formam a questão social (IANNI, 1989).
No documentário “História da Fome no Brasil”, realizado pela Organização das
Nações Unidas (ONU) em 2019, percebe-se nitidamente como a fome é uma expressão
da questão social em nosso país e como o modo de produção capitalista contribui para a
sua sustentação. Afinal, as formas de produzir e reproduzir o capital contribuem para o
privilegiamento da burguesia, tendo ela prioridade no acesso direto a água, terra,
sementes e na distribuição de alimentos. Portanto, é essencial a compreensão da
discussão teórica acerca da fome, enquanto expressão da questão social, para termos
um pensamento crítico acerca das suas políticas públicas de enfrentamento e não
acharmos que os programas sociais irão solucionar problemas estruturais da sociedade
do capital (ONU, 2019).
A materialidade da fome, potencializada pela pandemia da COVID-19, pode ser
observada no estudo realizado pela Rede Penssan sobre a insegurança alimentar em
2020:
Do total de 211,7 milhões de brasileiros(as), 116,8 milhões conviviam com algum
grau de Insegurança Alimentar e, destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em
quantidade suficiente e 19 milhões de brasileiros(as) enfrentavam a fome (REDE
PENSSAN, 2021, p. 35).

Ao mesclarmos esses dados com o processo histórico da fome do nosso país, ao


qual tivemos um aumento de 9 milhões de pessoas em situação de fome, insegurança
alimentar grave, no período de 2018 até 2020, percebemos que esses números tão
significativos são a expressão brutal do capitalismo, não sendo apenas uma anomalia do
acaso ou pela pandemia, mas um processo estrutural. “Eram 10,3 milhões de pessoas
em IA grave em 2018, passando para 19,1 milhões, em 2020. Portanto, neste período,
foram cerca de nove milhões de brasileiros(as) a mais que passaram a ter, no seu
cotidiano, a experiência da fome.” (REDE PENSSAN, 2021, p. 53).
Podemos perceber a gravidade do momento atual em que nos encontramos pelos
dados de 2022 que demonstram que tivemos um aumento da fome para mais de 19
milhões de pessoas, totalizando 33,1 milhões de pessoas que não têm o que comer no
nosso país. Além disso, a fome tem um recorte de gênero onde 6 a cada 10 domicílios
liderados por mulheres estão em algum grau de insegurança alimentar, tendo a fome
dobrado nas famílias com crianças menores de 10 anos e apenas 4 entre 10 famílias têm
acesso pleno à alimentação (REDE PENSSAN, 2022).

304
É importante compreendermos que mesmo antes da pandemia a insegurança
alimentar já fazia parte da realidade de grande parte da classe trabalhadora brasileira,
seja ela leve, moderada ou grave. O privilégio da burguesia sempre preponderou em
nosso país e não foi alterado nestes anos de pandemia.
Frisa-se que a fome, a pobreza, a superexploração da força de trabalho etc. são
expressões da questão social que atravessam a vida da classe trabalhadora e com os
quais os/as assistentes sociais e outros profissionais esbarram habitualmente na sua
prática profissional. Logo, partimos da óptica que a questão social é um elemento central
na relação entre profissão e realidade. Ao inseri-la como referência para a ação
profissional vislumbra-se a divisão da sociedade em classes, cuja apropriação da riqueza
socialmente produzida é totalmente diferenciada (YAZBEK, 2001, p. 33).
A questão social se transforma e se reorganiza, porém se mantém
substancialmente a mesma por se referir a uma questão estrutural, que não se soluciona
numa formação econômico social por natureza excludente. Percebe-se que no cenário
atual, vemos novas expressões da questão social com impactos enormes sobre o
trabalho, gerando perdas no nosso sistema de proteção social (YAZBEK, 2001, p. 33).
É importante ressaltar também que a política neoliberal, sobretudo a partir dos anos
de 1990 no Brasil, impulsionou a ideia de refilantropização estabelecendo um “amparo
moral que visa a ajuda ao necessitado”, não se criando direitos e se despolitizando os
padrões de proteção social. Logo, o crescimento do terceiro setor traz respostas
privatistas à questão social, sendo autenticado pelo neoliberalismo (YAZBEK, 2001, p.
37).
Ao se instituir a política neoliberal é consolidado a dissociação entre mercado e
direitos, aprofundado a cisão entre o econômico e o social, separado a acumulação da
produção, instalado desregulamentações públicas, reiterado desigualdades” e
estabelecido uma conformação despolitizada de abordagem da questão social (YAZBEK,
2001, p. 38).
De fato, os limites e as possibilidades da ação estão postos na prática cotidiana.
São limites de várias ordens, mas, principalmente limites de ordem estrutural, postos pelo
próprio sistema capitalista. Estamos em um terreno de disputa em que o desafio é
reinventar mediações capazes de articular a vida social da classe trabalhadora com o
mundo público dos direitos e da cidadania.

305
3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do exposto, é importante compreendermos as limitações das políticas


públicas na ordem vigente, bem como a sua importância para que se possa minimizar a
fome e os impactos da Covid-19 na vida da classe trabalhadora, pois mesmo que não se
mostrem como formas de erradicação ou superação das desigualdades existentes, são
de extrema importância para a garantia de direitos mínimos ou formas de subsistência
para muitas famílias.
Além disso, diversas pesquisas apresentarão os impactos nefastos da pandemia da
COVID-19 na vida da classe trabalhadora, mas precisamos ressaltar que a gravidade do
problema não é somente a crise sanitária, mas como a sociedade capitalista se organiza
e promove a proteção da propriedade privada, proporcionando a fome a superexploração
da força de trabalho como expressões da questão social.
É preciso compreendermos que a ciência, apesar de nos emancipar, é também
prisioneira da sociedade do capital para se multiplicar e de garantir a realização de mais-
valor. Só assim perceberemos como ela alcança a classe trabalhadora. Afinal, vemos
dificuldade em: reverter o quadro pandêmico, na implementação de políticas rígidas de
isolamento social e na garantia de políticas de transferência de renda.
À luz do que apresentamos, o quadro pandêmico, sob a face fascista de Bolsonaro,
expressa os elementos estruturais e estruturantes do capitalismo dependente,
conduzindo a manutenção dos superprivilégios da classe burguesa por meio da
superexploração da classe trabalhadora e do aumento da fome, expropriando seus
direitos, seus salários, sua saúde e suas vidas.
Diante do atual cenário de aumento da fome e do desemprego, frente à
indispensabilidade do capital de que suas mercadorias sejam vendidas, é preciso
visionarmos a construção de um projeto popular radicalmente democrático que vise
sobretudo um país efetivamente igualitário, concebendo novas possibilidades de
sociabilidade. É necessário agir, tendo como perspectiva essa nova cultura e sociedade.

4- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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COSTA, Larissa. Trabalhadores têm auxílio emergencial negado mesmo atendendo


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306
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tem-auxilio-emergencial-negado. Acesso em 7 maio 2022.

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entendimento das desigualdades na sociedade brasileira. Caderno CRH. Salvador, v. 23,
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Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. ed. [S.I.: s.n],
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WILLIAMS, E. Capitalismo e escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

YAZBEK, Maria C. Pobreza e exclusão social: expressões da questão social no Brasil.


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201804131245276705850.pdf. Acesso em: 05 mai. 2022.

308
A POLÍTICA MUNICIPAL PARA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA EM BELO
HORIZONTE: uma proposta de análise dos anos de 2017 a 2022

Olga Inah- Inarê Aquino Ribeiro108

RESUMO: O presente artigo trata-se de uma intenção de


pesquisa que se propõe-se identificar quais são as políticas
públicas ofertadas para população em situação de rua no
município de Belo Horizonte e como estas se relacionam.
Através da análise da organização e execução da política
municipal, busca-se apreender qual a concepção que
norteia a atenção ao público em questão e o “projeto” e
estratégia de Estado que orientam o enfrentamento a essa
expressão da “questão social”.
Palavras-chave: População em situação de rua; Políticas
sociais; Seguridade Social.
ABSTRAT: This article is a research intention that aims to
identify which public policies are offered to the homeless
population in the city of Belo Horizonte and how they relate.
Through the analysis of the organization and execution of
municipal policy, we seek to understand the conception that
guides the attention to the public in question and the
“project” and State strategy that guide the confrontation to
this expression of the “social question”.
Keywords: Homeless population; Social politics; Social
Security

1- INTRODUÇÃO

O presente trabalho trata-se de uma intenção de pesquisa, que ainda está na fase
inicial de desenvolvimento através do Programa de Mestrado em Serviço Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ. O tema é a Política Municipal para
População de Rua em Belo Horizonte, em que se pretende analisar sua estrutura e
organização, a partir da publicação decreto municipal 16.730 de 28 de setembro de 2017,

108Assistente Social, Mestranda do Programa de Pós Graduação em Serviço Social da UERJ- Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, olgainah@gmail.com. Eixo temático: Ofensiva ultraneoliberal do capital e lutas
sociais: Política Social, trabalho e questão social: retrocessos e resistências na conjuntura atual

309
que institui a Política Municipal Intersetorial para Atendimento à População em Situação
Rua, em que a Prefeitura Municipal assume compromissos intersetoriais de atendimento
a este público, como: garantia de ações de saúde, assistência social, trabalho e renda,
educação, segurança alimentar e nutricional, dentre outros.
A pesquisa a ser realizada será de caráter exploratório, de natureza qualitativa.
Pretende-se realizar entrevistas semiestruturadas, com gestores e movimentos sociais
participantes da construção do decreto municipal e do Comitê de Monitoramento e
Avaliação da Política Municipal para População de Rua; análise documental de portarias,
decretos, notas técnicas referente ao atendimento à população em situação de rua no
município em questão e pesquisa bibliográfica.

2- DESENVOLVIMENTO

O fenômeno de população em situação de rua possui determinantes sociais


importantes e constitui-se como uma das mais complexas expressões da questão social,
além de desvelar radicalmente a falha do sistema de produção capitalista. Com o advento
das crises deste sistema; a diminuição do papel do Estado; o acirramento do
neoliberalismo; os altos níveis de desemprego e o aumento da informalidade, observa-se
no Brasil, um crescente número de pessoas em situação de rua..
Ao observar os dados do CadÚnico, em especial a série histórica de
famílias em situação de rua, pode-se observar um crescimento exponencial. Destarte
cumpre destacar que, segundo os dados públicos deste cadastro, em janeiro de 2017,
havia 5.686 famílias vivendo nas ruas de Belo Horizonte e em setembro de 2020, último
dado disponível, 8.871 famílias, evidenciando um crescimento de pessoas que fazem da
rua local de moradia.
No que se refere ao objeto deste trabalho, faz-se necessário a
caracterização de população em situação de rua. Segundo o Decreto Federal de 7043 de
23 de dezembro de 2009, a população de rua é:
grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os
vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia
convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas
degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou
permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou
como moradia provisória (BRASIL, 2009).

Segundo Silva (2011), é necessário compreender população em situação de rua


como um fenômeno que está relacionado às condições estruturais da sociedade
capitalista. Segundo a autora, as pessoas vão para as ruas por diferentes razões, porém

310
uma delas é estruturante: “a formação de uma superpopulação relativa sobrante, que não
é absorvida pelo mercado de trabalho” (SILVA, 2011, p. 204). Destaca também que este
fenômeno acontece com maior incidência nos grandes centros urbanos, espaço onde
circula mais facilmente, o capital.
A partir deste marco conceitual, Silva (2011) apresenta sua pesquisa, em que se
destaca alguns elementos, entre eles: a faixa etária da população, que varia de 25 a 55
anos, ou seja, as pessoas estão em idade produtiva. Outro ponto relevante apontado pela
autora, é que as pesquisas realizadas a partir de 2000, apresentam o fato de que grande
parte das pessoas em situação de rua são do próprio município em que permanecem nas
ruas, ou de cidades próximas, o que para a autora se relaciona com o desemprego e
reafirma a característica urbana do fenômeno.
Tiengo (2018) assim como Silva (2011) ressaltam o fenômeno de população em
situação de rua e sua relação direta com a sociedade capitalista, resgatando
conceituações marxianas. Desta forma, tendo como base a Lei Geral de Acumulação
Capitalista109, traz a vinculação do fenômeno da população em situação de rua ao
processo de acumulação do capital e consequentemente, da pauperização e miséria da
classe trabalhadora.
A Lei Geral de Acumulação Capitalista, é de acordo com Netto (2010) objeto
central para a “questão social”, que por sua vez está inscrita no cerne da relação entre
capital x trabalho, na exploração da classe trabalhadora e na luta de classes.
As respostas do Estado para o enfrentamento da “questão social” é fundamental
para o surgimento e desenvolvimento das políticas sociais.
Behring e Boschetti (2011) evidenciam que o surgimento e o desenvolver
das políticas sociais não podem ser analisados de maneira unilateral, pois seria
insuficiente para a compreensão da sua formação. Estas, por sua vez, precisam ser
consideradas sob vários fatores, entre eles políticos, econômicos e sociais. Para tanto,
apontam o campo contraditório da política social, que se constituiu uma resposta do
Estado para garantir a sua hegemonia, e possuem funcionalidade para reprodução e

109De acordo com Marx (2017) a Lei Geral da Acumulação Capitalista diz respeito ao processo de
acumulação do capital na mesma medida em que se aumenta o proletariado. Este processo por sua vez, se
dá por meio da valorização do capital, que diz respeito à parcela do valor do trabalho não pago/ não
repassado ao trabalhador e acumulada pela classe capitalista, que por sua vez se transforma em capital. A
acumulação, se dá, portanto, por meio da exploração do trabalho e extração da mais valia, absoluta ou
relativa, que é o seu elemento constitutivo. Esta extração cada vez maior de lucro (advindo da mais-valia)
permite o desenvolvimento das forças produtivas e por conseqüência permite que uma quantidade menor de
trabalhadores produza uma quantidade maior de produtos, conforme já abordado na conceituação da
superpopulação relativa. A partir deste fato, há uma alteração na composição técnica do capital,
principalmente do capital variável, ou seja, segundo Marx (2017) há um aumento da massa dos meios de
produção comparada à massa da força de trabalho.

311
acumulação no sistema capitalista, ao reduzir custo da força de trabalho, mantendo
índices de consumo, ao mesmo tempo em que respondem às pressões, demandas e
necessidades sociais da classe trabalhadora organizada, não deixando, porém, de ser
utilizada enquanto estratégia de cooptação desta classe social. (BEHRING; BOSCHETTI,
2011)
Corroborando com a mesma perspectiva, Iamamoto e Carvalho (2007) apontam
que ao incorporar as lutas sociais da classe trabalhadora por melhores condições de
trabalho e vida, o Estado através da sua classe dirigente, a burguesia, incorpora parte de
seus interesses como estratégia de legitimação do modo de produção capitalista e da
institucionalização das lutas sociais, esvaziando-as assim de um caráter de rompimento
com o sistema. Yazbek (2015) aponta ainda que, ao mesmo tempo em que as políticas
sociais possuem características funcionais a este modo de produção, correspondem, em
certa medida, a incorporação de demandas históricas das classes subalternizadas.
Neste sentido, Iamamoto e Carvalho (2007) em acréscimo aos pontos já
mencionados, enfatizam que estas se caracterizam enquanto estratégias do capital de
socialização dos custos de reprodução social do segmento da classe trabalhadora. O
capital ao não garantir um salário que corresponda ao suficiente para suprir as
necessidades sociais, lança mão das políticas sociais com forma de salário indireto ou
complementação deste, na “garantia” da reprodução da classe trabalhadora, dividindo
para o conjunto da sociedade os seus custos, através das ações realizadas pelo Estado.
Ou ainda, repassa ao Estado à responsabilidade de manutenção da superpopulação
relativa110 ou o chamado exército industrial de reserva.
Ainda sobre o referencial de Behring e Boschetti (2011), no que se refere ao
surgimento das políticas sociais tal qual são conhecidas atualmente, é importante a
localização das primeiras experiências, pós Segunda Guerra Mundial, que deram início a
um processo na história, em que se instala em alguns países do capitalismo central, o
chamado “Estado de Bem-estar Social”, ou como assim nomeia posteriormente, Boschetti
(2016), o Estado Social Capitalista. As primeiras experiências com políticas sociais
tiveram origem na Alemanha, a partir da ideia de Seguro Social obrigatório, que consistia

110De acordo com Marx (2017) a superpopulação relativa está diretamente vinculada ao processo da Lei
Geral da Acumulação do Capital, a partir do crescimento excessivo da massa trabalhadora ao mesmo tempo
em que não ocorre o mesmo crescimento nos meios de ocupação, há assim, a existência de grandes massas
que estão subitamente disponíveis para serem alocadas, ou seja, há transformação de parte da população
trabalhadora em mão de obra desempregada ou semi desempregada, que se constitui como superpopulação
relativa ou exército industrial de reserva. A partir do investimento nos meios de produção desenvolve- se
métodos que diminuem a quantidade de trabalhadores necessários para criação de determinados produtos,
ocorre então a exploração extensiva ou intensiva das forças de trabalho individuais. Cresce, portanto, a força
produtiva do trabalho e há o aumento de trabalhadores não empregados.

312
no pagamento de empregado e empregador de um determinado valor e que garantiam,
posteriormente, o acesso a auxílios relativos ao trabalho. Este período demarca a
passagem de um Estado mais liberal para um mais intervencionista.
Boschetti (2016) nos aponta que ao longo do desenvolvimento do capitalismo, a
questão dos capacitados x incapacitados para o trabalho sempre foi ponto central para a
formatação da política social. Garantir a manutenção de indivíduos incapacitados para o
trabalho e a reprodução da força de trabalho, assegurando a capacidade de trabalhar de
homens e mulheres, através de regulação de salários é segundo a autora, umas das
funções do Estado Social Capitalista. Este fato gera uma tensão constante entre trabalho
e assistência, inclusive esta última atua como uma forma de “mediar à reprodução da
superpopulação relativa” (Boschetti, 2016, p. 89), conceituação esta que abordaremos
adiante.
Netto (2011) ao discorrer sobre o método em Marx também nos faz apontamentos
sobre concepção histórica do objeto de pesquisa e reafirma que ao estudar teoria social
não estamos abordando “coisas acabadas”, mas de um conjunto de processos, para
tanto é necessário compreender as instituições sociais como produtos históricos.
Para a construção que aqui se pretende fazer, é necessário destacar o processo
de contrarreforma ocorrido no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), processo
este que possui rebatimentos diretos na política social no Brasil na atualidade. Neste
período, destaca-se as privatizações, o sucateamento da Seguridade Social e
flexibilização das relações de trabalho (BEHRING, 2008).
A partir das reflexões desta autora, no que se refere a redefinição do papel do
Estado, este foi marcado a privatização, pelo entreguismos de empresas públicas para o
capital estrangeiro, mas também teve fortes rebatimentos na Seguridade Social, atingindo
inclusive conquistas previstas na Constituição. Como consequência, ocorre a focalização
das políticas públicas, transformando as mesmas, em ações pontuais e compensatórias,
destinadas somente para aqueles que não poderiam acessar através da iniciativa
privada, reafirmando a concepção de uma política pobre para os pobres, em que se
evidencia o estímulo aos planos de saúde e convênios, comprometendo a lógica da
universalidade do SUS, além das reformas na previdência social. Calca-se assim,
conforme nos aponta Mota (2010), a ideia do cidadão-consumidor, aquele que pode
pagar para acessar determinados bens e serviços e o cidadão-pobre, que acessaria por
via da esfera pública, este último, público da assistência social.
Ainda no que concerne à assistência social, Mota (2010), elucida que diante da
focalização das políticas sociais nos pobres, ou ainda na extrema pobreza, inclusive

313
através da privatização da saúde e da previdência social, a assistência social assume
centralidade na política de Seguridade Social, por meio dos seus benefícios de
transferência de renda, o que responde inclusive às orientações dos mecanismos
internacionais, como FMI e Banco Mundial (NETTO, 2010; MOTA, 2010).
Mota (2010), a partir de estudos sobre a Seguridade Social nas décadas de 90 e
2000, alerta que é importante correlacionar esta centralidade ao processo ideológico das
classes dominantes, que ao subordinar o Estado aos seus interesses, constrói a narrativa
de um novo modo de enfrentamento à questão social e, portanto, ao pauperismo,
deslocando as bases de sua compreensão na exploração do trabalho e na acumulação
de riquezas, para perspectivas que dão ênfase à ideia de “excluídos’ socialmente,
desfiliados da proteção social do Estado.
Neste sentido, segundo a autora, enquanto aparato ideológico cabe à política de
assistência social, através da garantia de renda e de acesso ao consumo, a tarefa de
“incluí-los”. Destarte, a política de assistência social se transforma em um fetiche, no
principal instrumento de enfrentamento à desigualdade social e à pauperização relativa.
Transforma-se em um mito e contribui para o apassivamento da questão social. (MOTA,
2010)
Ao refletirmos sobre a esfera municipal, é importante ressaltar o pioneirismo de
Belo Horizonte na execução de uma política para população em situação de rua,
conforme nos aponta Reis Junior (2012), a capital mineira foi a primeira metrópole a criar
um programa municipal, em 1993, o “Programa da População em Situação de Rua”
através da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, além de fomentar a criação
do Fórum Municipal para População em Situação de Rua. O autor ainda destaca, que o
Centro de Saúde Carlos Chagas, localizado na região central da capital, foi o
equipamento em saúde em que se executou a primeira equipe de saúde da família no
Brasil com atendimento voltado exclusivamente para pessoas em situação de rua.
Atualmente, segundo o site institucional da Prefeitura de Belo Horizonte, a capital
oferta 17 serviços socioassistenciais destinados a este público111. Ademais, ao longo
destes anos houve esforços de reordenamento e parametrização destes serviços, como
se pode observar na Resolução CMASBH nº 030, de 13 de dezembro de 2017.
Dos marcos regulatórios importantes, identifica-se o Programa Estamos Juntos,
instituído pela lei municipal Nº 11.149, que prevê o desenvolvimento de ações de

1112 abrigos na modalidade de casa de passagem, 2 na modalidade de acolhimento institucional para


famílias, 05 acolhimentos; adultos (sendo 02 para mulheres e 05 para homens) e 04 para adolescentes em
trajetória de vida nas ruas. 03 Centros POPs (sendo um para adolescentes) e 01 unidade de pós alta
hospitalar. Além de 9 equipes do Serviço Especializado em Abordagem Social.

314
inclusão produtiva tanto pela Subsecretaria de Assistência Social, quanto pela Secretaria
Municipal de Desenvolvimento Econômico, ações como intermediação de mão de obra e
qualificação profissional. O programa “Estamos Juntos”, portanto, nos permite analisar a
compreensão do executivo municipal sobre a inserção da população de rua no mundo do
trabalho, além de possibilitar a análise da relação de tensão entre trabalho e assistência
social, conforme já explicitado no presente trabalho.
No concernente à política urbana, em 2017, foi instituída portaria conjunta com
diversas outras áreas, incluindo assistência social, em que se estabelece diretrizes para
atuação de agentes públicos com a população em situação de rua no que se refere à
ocupação do espaço público. A disputa pelo espaço urbano e consequentemente o direito
à cidade é constantemente negado a este público e medidas de caráter coercitivo foram
fundantes no início do desenvolvimento das políticas sociais, como por exemplo, a Lei
dos Pobres, o trabalho forçado e as workhouses (casas de trabalho), nas primeiras
legislações sociais que visavam o combate à mendicância, conforme nos relembra
Behring e Boschetti (2011).

3- CONCLUSÃO

Estes são somente alguns elementos que podem ser observados diante de uma
pesquisa preliminar as orientações e publicações da Prefeitura Municipal de Belo
Horizonte.
Isto posto, este trabalho por se tratar de uma pesquisa ainda em desenvolvimento,
parte-se de duas hipóteses a serem confirmadas ou refutadas pelo o estudo. A primeira
hipótese é de que a política de assistência social no município de Belo Horizonte assume
uma centralidade nas ofertas destinadas a pessoas em situação de rua, caracterizando-a
assim, como a principal estratégia do poder público municipal no enfrentamento a esta
expressão da “questão social”. Assume, portanto, a função de mediadora de acesso às
demais políticas setoriais, atuando como mecanismo integrador das demais políticas
públicas. Neste sentido, corrobora-se com os apontamentos realizados por Mota (2010)
ao discutir a Seguridade Social Brasileira.
Como segunda hipótese, supõe-se que a maioria dos serviços são executados por
meio de parcerias com o terceiro setor, organizações sociais, fator que influencia
significativamente na organização da política e no papel do poder público municipal.

315
4- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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desacordo com as normas legais e institui a Comissão Especial de Operação e
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BELO HORIZONTE. Resolução CMASBH nº 030, de 13 de dezembro de 2017. Aprova


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YAZBEK, Maria Carmelita. Classes subalternas e assistência social. 8ª ed. São Paulo,
Ed. Cortez, 2015.

317
MULHERES EM CÁRCERE

Graziela de Carvalho Maia Campos112


Dagoberto José Fonseca113

Resumo:
O presente artigo objetiva analisar a conjuntura do
aprisionamento de mulheres no Brasil, especialmente do
estado de São Paulo. Pretendo apontar as principais
características da população prisional feminina, visando os
determinantes sociais e históricos que marcam estas
mulheres. Abordamos a análise dos programas de
ressocialização ofertados pelo Estado, buscando
compreender em qual momento a instituição promove a
emancipação da mulher como forma de romper este
processo que (re)produz as expressões da Questão Social
antes de seu cárcere. Apresentarei dados da seletividade do
sistema punitivo, onde mulheres pretas eempobrecidas
estão no eixo central do sistema de controle do Estado.
PALAVRAS CHAVES: encarceramento de mulheres;
questão social; emancipação social.

Abstract:
This article aims to analyze the situation of the imprisonment
of women in Brazil, especially in the state of São Paulo. I
intend to point out the main characteristics of the female
prison population, aiming at the social and historical
determinants that mark these women. We approach the

112 Graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” - UNESP/Franca;
Especialista em Atendimento Psicossocial a Vítimas de Violência (Psicologia, UFSCAR); Mestranda em
Serviço Social no Programa de Pós Graduação da Unesp/ Franca sob a orientação do Professor Dagoberto
José Fonseca.
113ProfessorLivre Docente em Antropologia Brasileira pela Faculdade de Ciências e Letras-UNESP-Campus

de Araraquara, Professor do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade de Ciências


Humanas e Sociais (Campus Franca-UNESP).Linha de Pesquisa: Trabalho e Sociabilidade Capitalista - Área
de Pesquisa: Relações étnico-raciais, racismos, cidadania, educação, memória, corpo, identidade, imaginário,
cultura, políticas públicas, religião, mulher negra, organizações sociais, sociedades e culturas africanas.
email:dagobertojose@gmail.com

318
analysis of the resocialization programs offered by the State,
seeking to understand at what moment the institution
promotes the emancipation of women as a way of breaking
this process that (re)produces the expressions of the Social
Question before their imprisonment. I will present data on the
selectivity of the punitive system, where black and
impoverished women are at the center of the state control
system.
KEY WORDS: incarceration of women; social issues; social
emancipation.

1- Introdução
Hannah Arendt, em “A condição Humana”, desmistifica o espaço privado como
sendo o retrato da intimidade, colocando a privacidade em oposição ao espaço público, de
embates políticos, ao expor que privado, em seu entendimento original significa privação,
ou seja, de ser privado de sua própria existência.
Seguindo esta compreensão, permite-se identificar a evidente invisibilidade daquela
pessoa que fica confinada ao espaço privado, porque não é vista pelos outros e que por
mais que se esforce, é desprovida de interesse por estes outros. Investigando de que
maneira ocorreu o confinamento da mulher ao espaço privado, verifica-se que as
diferenças biológicas serviram como fundamento para a naturalização da divisão dos
papéis sociais desempenhados por homens e mulheres.
Transformações relevantes nas estruturas das formações sociais ocorreram da
compreensão dos mecanismos concebidos que alteraram fatores naturais em processos
culturais compostos pelos grupos sociais que levaram à metamorfose de machos e fêmeas
em homens e mulheres (MIYAMAMOTO, 2020).
Nesta perspectiva de entendimento da realidade social através da categoria de
gênero, partimos da percepção que os papéis e significados de masculino e feminino são,
de fato, engendrados pelas escolhas socioculturais e não pelo seu destino biológico.
O patriarcado configura-se em um tipo hierárquico de relação, que invade todos os
espaços da sociedade, tem uma base material, corporifica-se, por fim, representando uma
estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto na violência (SAFFIOTI, 2004).
Seguindo a mesma linha de raciocínio, ele maximiza as relações de dominação
e de poder exercido pelo homem em relação à mulher, assim indica os estereótipos em
relação às mesmas, de sua suposta inferioridade intelectual e cognitiva, de sua instituída

319
dependência emocional, social e econômica ao homem, de seu confinamento ao espaço
privado e ao seu destino biológico reprodutivo e de sua suposta aversão à política
(SAFFIOTI, 2004).
Por sua vez, o sistema político econômico desenvolve estratégias deliberadas de
manutenção da ordem pública e assim, ratifica a conservação das classes, revelando as
desigualdades sociais, deste modo, produzindo mecanismos invisíveis e eficientes de
controle social.
Segundo Borges, vivemos em uma sociedade marcada pela lógica hoje neoliberal e
desde sua fundação, racista e com desigualdade de gênero. São opressões estruturais da
constituição de uma sociedade que surge, para o mundo ocidental, pela exploração
colonialista e ainda marca, em todos seus processos, relações e instituições sociais, as
características da violência, a usurpação, a repressão e o extermínio daquele período
(BORGES, 2000).
A institucionalização das cadeias e prisões no Brasil ocorreu no final do
VXIII através da Carta Régia de 8 de julho de 1796 e as primeiras prisões públicas foram
construídos a partir de 1850 (Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema
Carcerário do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 2022) e eram consideradas como
estabelecimentos de grande importância dentro do sistema punitivista, funcionando como
local para manter as pessoas presas até o momento de serem julgadas ou para as que
aguardavam a execução de sentenças.
Dessa forma, formou-se o alicerce para a criação de locais disciplinadores, visando
produtividade e dominação, tais como os conventos, quartéis, escolas e hospícios,
entendidos como instituições totais, a prisão, segundo Goffman, também seria um
“...local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com
situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável
período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada.”
(GOFFMAN, 1999, p. 22).

A hipótese é de que a composição dos papéis sociais exercidos por homens e


mulheres que acentuam as relações de dominação do homem em relação à mulher e as
desigualdades sociais decorrentes desses papéis sociais é perpetuada dentro do sistema
prisional brasileiro, uma vez que, desde o legislador, passando pelo sistema de justiça,
governantes eleitos e gestores públicos, servidores de carreira do sistema prisional e,
inclusive os aprisionados, composição é majoritariamente masculina.
O encaminhamento teórico das questões postas pelo cruzamento no modo de
operação e das relações entre a determinação comum ao sexo e a determinação essencial
do sistema capitalista de produção – a divisão da sociedade em classes sociais – impunha

320
que se revissem, criticamente, os dois tipos correntes de abordagem dos problemas
femininos (SAFFIOTI, 2013, p.40).
Uma sociedade patriarcal aliada aos interesses da ideologia capitalista para refletir
sobre novas perspectivas de emancipação da mulher encarcerada no sistema prisional. As
políticas públicas de ressocialização da mulher encarcerada devem oportunizar o seu
ingresso ao mercado de trabalho em atividades e competências que possam de fato
promover a sua emancipação social.
Segundo Iamamoto, o regime capitalista de produção é tanto um processo de
produção das condições materiais da vida humana, quanto um processo que de
desenvolve sob relações sociais –histórico –econômicas – de produção específicas. Em
sua dinâmica, produz e reproduz seus expoentes: suas condições materiais de existência,
as relações contraditórias e formas sociais através das quais se expressam (IAMAMOTO,
in TEMPORALIS/Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social 2001).

2- Desenvolvimento

Dados sobre o encarceramento, obtidos pelo Infopen - Informações estatísticas do


sistema penitenciário brasileiro, mostra que até dezembro de 2021temos uma população
encarcerada de aproximadamente de 811 mil presos entre homens e mulheres no Brasil e
no estado de São Paulo atualmente temos, dados confirmados pelas informações no site
da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, um total de 234 mil
pessoas presas em 179 unidades prisionais.
Em relação às mulheres, são cerca de 9.470 mil presas no Estado de São Paulo
em 22 unidades prisionais, o que representa pouco mais de 4% do total de pessoas presas
no Estado114.
Diante do crescimento significativo e constante da população carcerária feminina,
torna-se importante promover a reflexão da condição da mulher encarcerada no sistema
prisional brasileiro, em especial no Estado de São Paulo, que prevê um orçamento de
quase 5 bilhões de reais (Lei nº 17.498, de 29 de dezembro de 2021 - Orça a Receita e
fixa a Despesa do Estado para o exercício de 2022) para a Secretaria de Administração
Penitenciária do Estado em 2022.

114As 22 unidades femininas estão divididas em 11 Penitenciárias (02 Centros de Progressão Penitenciária
(CPP), 01 Centro de Detenção Provisória (CDP), 05 Centros de Ressocialização (CR), 01 unidade de Regime
Disciplinar Diferenciado (RDD) e 02 Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátricos (masculino e feminino)
e 01 Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário também masculino e feminino. (www.sap.sp.gov.br).

321
As mulheres representam cerca de 6% do total de pessoas encarceradas no país e
no Estado de São Paulo 4,1% do total de presos, segundo os dados divulgados pelo
Infopen (Informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro).
O perfil das mulheres encarceradas revela as condições de vulnerabilidade sociais
e, em muitos casos, de miséria, resultado de processos de exclusão direitos sociais
anteriores ao aprisionamento.
“... isto significa que o desafio teórico acima, salienta, ainda, a pesquisa das
diferencialidades histórico –culturais (que entrelaçam elementos de
relações de classe, geracionais, de gênero e de etnia constituídos me
formações sociaisespecíficos) que se cruzam e tencionam na efetividade
social. Em poucas palavras: a caracterização da “questão social”, em suas
manifestações já conhecidas e em suas expressões novas, tem de
considerar as particularidades histórico culturais e nacionais”(NETO, in
TEMPORALIS/Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço
Social. 2001,p 49).

A maioria das mulheres encarceradas são jovens, são solteiras ou estavam em


união estável, possuem entre 18 e 45 anos, tem filhos, e eram as responsáveis pelo
sustento familiar quando em liberdade, sendo responsáveis não apenas pelos próprios
filhos, mas também por outros membros da família. De acordo com o Infopen Mulheres
2018, 74% das mulheres encarceradas possuem filhos.

3– Conclusão
A pesquisa assume, assim, um papel decisivo na conquista de um estatuto
acadêmico que possibilita aliar formação com capacitação, condições indispensáveis tanto
a uma intervenção profissional qualificada, quanto à ampliação do patrimônio intelectual e
bibliográfico da profissão, que vem sendo produzido especialmente, mas não
exclusivamente, no âmbito da pós-graduação stricto senso. Apesar da nossa recente
tradição em pesquisa e do viés empirista e epistemologia a que a caracteriza, nota-se uma
significativa expansão dela nos últimos anos e também um significativo avanço na sua
qualidade, a partir da adoção do referencial teóricometodológico extraído da tradição
marxista (GUERRA, 2009).
A metodologia aplicada para condução da presente pesquisa é a histórico-
dialética. Segundo (Gil, 2008)
“Para Marx e Engels, a estrutura econômica (ou infra-estrutura) é a base
sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política, à qual
correspondem determinadas formas de consciência social ou ideológica. O
modo de produção da vida material é, portanto, o que determina o processo
social, político e espiritual. Cabe ressaltar, entretanto, que essa relação
infra-estrutura/superestrutura deve ser entendida dialeticamente. Não é
uma relação mecânica nem imediata, mas se constitui como um todo

322
orgânico, cujo determinante é em última instância a estrutura
econômica”(GIL, 2008, p 22).

No Brasil, através das contradições entre o sistema patriarcal ainda dominante


nas relações sociais brasileiras que são de relações de dominação e de poder do homem
sobre a mulher e as políticas públicas de ressocialização da mulher encarcerada do
Estado de São Paulo é que permitirão verificar se as mesmas reforçam os papéis sociais
predominantes de submissão da mulher em relação ao homem e de confinamento da
mulher ao espaço privado ao invés de sua emancipação social.
Colocando o Serviço Social como um importante papel da história recente, a
contribuição aos estudos e pesquisas no campo das relações de gênero e na questão
social.
A primeira etapa desta investigação consiste na revisão bibliográficas na medida
todo o trabalho de pesquisa precisa estar sustentado em conhecimentos previamente
erigidos, inclusive por ser também a forma de delimitar o que nos propomos investigar.
Apresentará uma abordagem quantitativa tanto quanto qualitativa, promovendo
uma perspectiva mistacomotodo fenômeno humano implica em dimensão, magnitude e
intensidade, a pesquisa qualitativa vai exigir em permanente interação com a quantitativa,
interação esta que na verdade e intrínseca a ambos (MARTINELLI, 2005).
Apesquisa se dará no universo do Centro Ressocialização Feminino de
Araraquara, na unidade de regime fechado, com capacidade para64 presas, segundo
consta no site da Secretaria de Administração Penitenciaria do Governo de São Paulo
(SAP). Em Araraquara115 a SAP ainda possui uma Penitenciária masculina e um Centro
de Ressocialização Regime Semi Aberto para mulheres e no mesmo local, como anexo,
funciona o Centro de Detenção Provisória Feminino.
Estamos realizando uma ampla pesquisa documental tanto interna da SAP quanto
os dados disponíveis no Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (INFOPEN), do
Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), da Secretaria da Administração
Penitenciária do estado São Paulo (SAP). Os documentos internos da SAP que pretendo
analisar são os Instrumentais de Identificação as Presas, Ordens de Serviços, Portarias,
Regimentos e Regulamentos internos e outros documentos ou registros que possam
surgir no decorrer da pesquisa de campo.
Utilizar o recurso da entrevista proporciona aos sujeitosmaior liberdade de
expressar como orientam suas ações na perspectiva das regras internas do Centro de

115Araraquara é uma cidade do interior paulista.

323
Ressocialização, o que nos permitirá compreender se a instituição está condicionada à
lógica meramente punitivista ou se há a preocupação em garantir direitos.
Pretendemos, portanto, responder as indagações contidas nos objetivos gerais e
confirmar a hipótese de que a gestão do sistema penitenciário no Estado de São Paulo
produz e reproduz as expressões da Questão Social que atravessa a vida das mulheres
encarceradas. Em como elas viviam antes do encarceramento e como e posterior a sua
inserção no sistema prisional.

4 -Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo, prefáciode Celso


Lafer. 10ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. (Feminismos Plurais). São Paulo: Editora


Jandaíra, 2000.

BRASIL.Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


Brasília,DF:Senado Federal, 1988.

GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa em ciências sociais. 6ª ed. São
Paulo: Editora Atlas S. A., 2008.

GUERRA, Yolanda. A dimensão investigativa no exercício profissional. In:


CFESS/ABEPSS. Serviço Social: direitos e competências profissionais. Brasília, 2009. p.
702-715.

GOFFMAN Erving: Manicômios, Prisões e Conventos(1974), SãoPaulo, Ed. Perspectiva,


2012.

MACEDO, Márcia dos Santos. Mulheres chefes de família e a perspectiva de gênero:


trajetória de um tema e a crítica sobre a feminização da pobreza. Salvador: Caderno
CRH, v. 21, n. 53, p. 389-404, 2008.

MARTINELLI, Maria Lúcia. Pesquisa Qualitativa: Um Instigante Desafio 2. ed. São Paulo:
Editora Veras, 2012.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. A mulher na sociedade de classes. 3. ed. São Paulo: Expressão


Popular, 2013.

324
TEMPORALIS/ Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social. Ano, 2, 3
(jan/jul 2001). Brasília: ABEPSS, Grafline, 2001.

Sites Institucionais
www.carceraria.org.br/
www.dados.mj.gov.br
www.gmf.tjrj.jus.br/histórico
www.orcamento.planejamento.sp.gov.br/
www.sap.sp.gov.br/

325
TRANSVESTIGÊNERES E PRECARIEDADE DA VIDA: Interseccionalidade,
prostituição e trabalho em realidade interiorana.

Dandara Felícia Silva Oliveira116


Marco José de Oliveira Duarte117

Resumo:
Trata-se de estudo de caso, com pesquisa em andamento
que tem por objeto as transvestigêneres trabalhadoras de
sexo. Tal pesquisa pretende analisar o nível de
precariedade da vida, a interseccionalidade das opressões e
a organização da prostituição transvestigênere enquanto
trabalho.
Para isso, analisamos a origem do termo transvestigênere, o
conceito de precariedade da vidae o conceito de
interseccionalidade de gênero, raça, classe e território.
Entrevistamos 6 trabalhadoras sexuais transvestigêneres,
analisaremos o discurso sob a ótica focaultiana e traremos
os resultados dessa pesquisa coma escrevivênciade
Conceição Evaristo, que é o narrar as histórias das suas e
de si.
Palavras-chave: Interseccionalidade, trabalho sexual,
transvestigêneres

Abstract:

This is a case study, with on going research that has as its


object transvestigender sex workers. This research intends
to analyze the level of precarious ness of life, the
intersectionality of oppression and the organization no
transvestigender prostitution as a work.

116Socióloga. Mestranda do Programa de Pós GraduaçãoemServiço Social da Universidade Federal de Juiz


de Fora sob orientação do Prof. Dr. Marco José de Oliveira Duarte. E-mail: dandaradoxum@gmail.com. Eixo
temático: Resistências, Lutas e Internacionalização do Serviço Social.
117Assistente Social, Professor adjunto da Faculdade de Serviço Social e do Programa de Pós Graduaçãoem

Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora. Pós Doutor em Políticas Sociais. E-mail:
majodu@gmail.com. Eixo temático: Resistências, Lutas e Internacionalização do Serviço Social.

326
For this, we analyzed the origin of the term transvestigender,
the concept of precarious ness of life and the concept of
intersectionality of gender, race, class and territory.
We interviewed 6 transvestigender sex workers, we will
analyze the discourse from a focaultian perspective and
wewillbring the results of this research with the
“escrevivência” of Conceição Evaristo, whichistonarratethe
stories of theirs and of themselves.
Keywords: Intersectionality, sex work, transvestigenders

1- INTRODUÇÃO

O Brasil é o país que mais mata pessoas transvestigêneres no mundo. Esse dado
alarmante, ressoa nos ouvidos de quem, de alguma maneira se vê atravessado por essa
violência. O fato de viver nesse país nos levou a tentar entender os processos de
precarização da vida das pessoas tranvestigêneres, a interseccionalidade de gênero,
raça, classe e território e a organização do trabalho dessas pessoas em nossa cidade.
É assim que nasce a pesquisa em andamento que subsidia essa comunicação
oral analisando a precariedade da vida e o modo como as opressões se dão sobre os
corpos tranvestigêneres que tem como único modo de sobrevivência a prostituição.
Nas linhas abaixo, ainda que rapidamente procuramos trazer a metodologia
utilizada, nosso referencial teórico analisado e o princípio dos resultados de pesquisa que
subsidiarão a construção de políticas públicas para essa população.

2- DESENVOLVIMENTO

Coube a nós investigar melhor a origem do termo transvestigêneres pois durante


a pesquisa as informações desencontradas não nos apresentaram uma referência crível
sobre o conceito. Assim, entrevistamos Indianarae Siqueira, ativista do movimento trans e
citada como a genitora do conceito em questão.
Indianarae afirma que em determinado momento, começa a se definir como “uma
mulher transgênera, normal, de peito e pau”. (SIQUEIRA, 2021, n. p.) Com o tempo,
também foi contestando o que era ser normal, depois o que era ser mulher e passou a
usar o termo transgênero, mas sempre lembrando que este não era também da nossa
comunidade. “Então os três termos que nos definem né? Vamos dizer assim, travesti,

327
transexual e transgênero, que é o termo mais guarda-chuva que a comunidade discute e
não são da nossa comunidade. São da cisgeneridade para nos definir”. (SIQUEIRA,
2021, n. p.)
Assim, em 2015, como surgimento do Prepara Nem, curso pré-vestibular voltado
para a aprovação de pessoas transvestigêneres nos vestibulares, ocorreu o lançamento
do curso em vídeo, que é o primeiro marco onde é usado o termo transvestigêneres118.
Indianarae explica que:
“Se ser travesti no termo mais raiz da palavra quer dizer através da vestimenta,
nós somos além de vestimenta né? Além de vestimenta né... E ainda tem aquela
questão de orientação sexual e tudo isso, não é apenas uma questão de
identidade, não é apenas uma questão de orientação, é apenas uma questão de
não ser do outro, ou seja, dacisgeneridade né? E apenas isso né? E como você
se sente mais confortável. Ser transexual é também através da vestimenta, da
identificação com o gênero oposto e através da genitália. Nós também somos
além genitália, nós somos além gênero, nós somos além dessas questões todas
né? Porque nós, é rompemos com o sistema né? E se transgênero é um termo
guarda-chuva né, mas que também na sua terminologia em transicionar uma
viagem através do gênero, e que também traz a questão da identidade do gênero
oposto. Como eu disse nós somos além disso. Então se nós somos além disto
nós teríamos que criar uma terminologia e a gente poderia unir as três palavras
em uma só para criar uma nova, mas que fosse da nossa comunidade que nos
definesse, mas que ampliasse, que também fosse cômoda para todas as
pessoas né, inclusive não binários, pessoas intersexuais que quisessem usar um
termo. E aí, eu então lancei a palavra transvestigênere né, que é justamente isso
nós somos além, nós somos uma... nós somos uma viagem, nós estamos do
outro lado, nós estamos em transição, nós podemos ir transicionar, transformar,
romper, desconstruir e ver que nada disso mais hoje importa, e voltar tudo
novamente ao início e refazer tudo” (SIQUEIRA, 2021, n. p..).

A visita de Erika Hilton à cidade do Rio de Janeiro teve dois motivos, um, por
conta do surgimento da Casa Nem e o outro, da busca de explicação do significado do
conceito de transvestigênere, que acontece em um bar, na zona norte da cidade do Rio,
junto a Conceição Evaristo. A partir deste momento, elas e várias pessoas começaram a
usar o conceito, na militância e em trabalhos acadêmicos, afirmando que ele foi criado
por ela para o movimento, de nós por nós.
Indianarae pontua que é necessária a contestação, porque esta traz o espaço
para novas vivências, mas também para que possamos pensar sempre se ao defender a
ideia de mulheres e homens trans não estarmos criando uma binariedade de gênero do
lado de cá também. A fim de que possamos mostrar outras mulheridades e
masculinidades, para 35 além da cisgeneridade, pois esta, de alguma maneira, oprime
outres que não tenham a mesma vivência da nossa. Ao analisar o movimento, observa
que se tem uma reafirmação do corpo cisgênero, que é um corpo branco e com uma

118O vídeo pode ser assistido no Facebook no perfil da Casa Nem, disponível em:
<https://www.facebook.com/PreparaNem/videos/1716751091872064>. Acesso em 21 mar. 2022

328
forma definida e com isto questiona o quanto este está reproduzindo de opressões e
cisgeneridade (SIQUEIRA, 2021).
Usamos como referencial teórico para a pesquisa a interseccionalidade dos
conceitos de precariedade da vida da filósofa americana Judith Butler e de
interseccionalidade de raça, gênero, sexualidade e território na visão de Lélia Gonzalez e
Patricia Hill Collins. Nesse sentido procuramos explorar o conceito de precariedade da
vida.
Para Butler essa percepção de que nossos corpos são frágeis e que a qualquer
momento podemos ser mortas pelo capricho de outrem traz medo e traz luto (BUTLER,
2019). Esse luto, permanente na vida de nós, pessoas transvestigêneres, é causado pela
sobrevivência no país que mais mata pessoas transvestigêneres no mundo em números
absolutos. Segundo os dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais
(ANTRA), o Brasil teve 89 pessoas trans mortas no 1º semestre em 2021, sendo 80
assassinatos, 9 suicídios. Houve ainda 33 tentativas de assassinatos e 27 violações de
direitos humanos (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021).
A ideia da morte aqui é única e exclusivamente a morte por ousar ser um corpo
ininteligível, abjeto, execrável e matável. Corpo onde o enquadramento social do
ininteligível, atua, segundo Butler (2015), para diferenciar aquelas vidas que podem viver
e aquelas que podem morrer, ou em outras palavras, aquelas que podem ser produzidas
num continuum de vida. Esses enquadramentos sociais, que veremos mais algumas
vezes nessa parte do projeto, tem seus reflexos e expressões que necessariamente
constroem e geram ontologias específicas para cada sujeito (BUTLER, 2015). Esses
enquadramentos sociais que definem ontologias para o sujeito, diferentemente daquelas
definidas pelo sujeito, atuam e definem vidas enlutáveis ou não e colocam sobre esse
mesmo sujeito o peso do medo e do luto individual (BUTLER, 2015).
Funciona mais ou menos assim. A nossa identidade é construída sobre alguns
pilares, como as performances de gênero e as atuações na sociedade que conformariam
a égide da ontologia do sujeito, aquilo que definiria quem somos como sujeitos. Tais
pilares são exemplificativos, mas não únicos e diriam para nós e para nossas irmãs, que
somos pessoas transvestigêneres e como tal merecemos existir no mundo, sermos
enlutáveis e temos o direito de contarmos com uma rede de proteção para a diminuição
da precariedade da vida.
No entanto, para a sociedade cisheterossexista, aquilo que seria garantido para
eles de maneira natural, no nosso caso se transforma em antinatural. Ou seja, se uma
mulher cis, performa a feminilidade e isso diz que ela é uma mulher, para nós, enquanto

329
sujeitos, esse direito básico, que seria construtor de nossas identidades, é negado e,
assim, transformado em antinatural, transformando nossos corpos em corpos não
inteligíveis. Portanto, para a sociedade cisheterossexista, é ela quem pode dizer quais
são os corpos inteligíveis, quais as práticas permitidas, enquanto sujeito e identidade,
quais os corpos podem performar determinados gêneros, quais não e quem nessa
sociedade pode viver e quem não, tendo a sua existência ameaçada de violação a todo
momento.
As primeiras elaborações da autora sobre a interseccionalidade de gênero, raça e
classe está no artigo, intitulado, racismo e sexismo na sociedade brasileira, publicado em
1984. No artigo a autora introduz o conceito de lixo falante, contando sobre uma festa
organizada por pesquisadores brancos para falar sobre uma pesquisa sobre pessoas
pretas. De forma jocosa e bem-humorada, Lélia fala de uma festa em que ela estava.
Uma festa figurada sobre como ainda funciona a produção de conhecimento em uma
sociedade estruturalmente racista e machista, talvez. Ela nos conta que estavam todos
os brancos arrumados em torno da mesa e tão ocupados em ensinar o “crioléu”, que nem
repararam que com um pouco de esforço o espaço da mesa serviria a todos, brancos e
pretos (GONZALEZ, 2020).
A autora explica seu interesse pela interseccionalidade, sinalizando a falta de uma
análise mais profunda sobre os elementos constitutivos das opressões das mulheres
negras nas ciências sociais e se fundamentando em Jacques-Alain Miller, em sua Teoria
da Alíngua, para afirmar que “a análise encontra seus bens nas latas de lixo da lógica. Ou
ainda: a análise desencadeia o que a lógica doméstica (MILLER, 1976, p. 17 apud
GONZALEZ, 2020, p. 98).
No artigo a autora introduz o conceito de lixo falante, contando sobre uma festa
organizada por pesquisadores brancos para falar sobre uma pesquisa sobre pessoas
pretas. De forma jocosa e bem-humorada, Lélia fala de uma festa em que ela estava.
Uma festa figurada sobre como ainda funciona a produção de conhecimento em uma
sociedade estruturalmente racista e machista, talvez. Ela nos conta que estavam todos
os brancos arrumados em torno da mesa e tão ocupados em ensinar o “crioléu”, que nem
repararam que com um pouco de esforço o espaço da mesa serviria a todos, brancos e
pretos (GONZALEZ, 2020) Em determinado momento da festa a coisa toda se dá assim:

“Foi aí que a neguinha que tava sentada com a gente deu uma de
atrevida. Tinham chamado ela pra responder uma pergunta. Ela se
levantou, foi lá na mesa pra falar no microfone e começou a reclamar por
causa de certas coisas que tavam acontecendo na festa. Tava armada a
quizumba. A negrada parecia que tava esperando por isso pra bagunçar

330
tudo. E era um tal de falar alto, gritar, vaiar, que nem dava mais pra ouvir
discurso nenhum. Tá na cara que os brancos 45 ficaram brancos de raiva
e com razão. Tinham chamado a gente pra festa de um livro que falava da
gente e a gente se comportava daquele jeito, catimbando a discurseira
deles?” (GONZALEZ, 2020, p. 95).

Assim, a autora questiona, na medida em que negros estão na lata de lixo da


sociedade brasileira, posição determinada pela lógica da dominação, “porque o negro é
isso que a lógica da dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós sabemos)
domesticar?” (GONZALEZ, 2020, p. 98). Então explica que o risco que ela assume nesse
momento, de forma majestosa -retornando à citação que colocamos acima quando ela se
coloca como a negrinha que fez desaforo-, é o ato de falar com todas as implicações. E
esse ato advém do fato de que a gente vem sendo falado, infantilizado e que a partir
desse trabalho assumimos nossa própria fala. “Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa”
(GONZALEZ, 2020, p. 98).
Para analisar a situação do mercado de trabalho e a precariedade da vida que se
instala, quando não se está inserido nele, como as pessoas transvestigêneres, precisa-
se, primeiramente, considerar a diminuta produção e debate acerca do acesso ao
mercado de trabalho de pessoas transvestigêneres. Assim, segundo a pesquisa de
Almeida e Marinho (2019), mesmo com toda a visibilidade dada às identidades trans na
mídia, na política, na academia e mesmo com toda a importância da temática identidades
transvestigêneres e trabalho, a discussão ainda é bastante diminuta na produção
acadêmica brasileira e na sociologia do trabalho.
Tal fenômeno revela como a transfobia estrutural das relações sociais capitalista
faz com que tenhamos dificuldades, inclusive, em produzir números a respeito do tema
em questão. Particularmente, no caso de travestis, que depois receberam a
categorização de transexuais e em seguida de transgêneros, como vimos anteriormente,
sem, contudo, alterar a sua marca de abjeto como modo de controle e de enquadramento
social.
Com base nesses conceitos e acompanhando um grupo de Whatsapp que foi
convencionado no início da pandemia da COVID-19 pela auto-agência das pessoas
transvestigêneres que nos procuraram para auxílio devido ao fechamento do comércio e
consequentemente esvaziamento das ruas onde essas pessoas tiram seu ganha pão
avançamos na pesquisa de “campo” entendendo melhor alguns conceitos e
estranhamentos no caso das mulheres transvestigêneres prostitutas numa realidade
interiorana. A complementação da pesquisa se dará a partir das entrevistas que serão

331
feitas com 6 mulheres transvestigêneres e que aguarda a aprovação do comitê de ética
em pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Após a transcrição das 6 entrevistas coletadas, os dados serão compilados e
produzidos de acordo com a análise de discurso foucaultiano, que se pretenderá analisar
as narrativas pensando estas, na perspectiva da escrevivência, como construções
sociais, refletindo a visão de mundo das sujeitas entrevistadas na sociedade em que
vivem. Mas também de nossas implicações, uma vez que como travestis prostitutas que
somos deixaremos de ser somente pesquisadora para mergulharmos na escrita com
nossas vivências que farão da pesquisa da dissertação de mestrado um ato subversivo
de escrever de si e das suas. É a epistemologia travesti colocada às escuras na
academia.

3- CONCLUSÃO

Embora essa seja ainda uma pesquisa em andamento, com base em nossas
entrevistas que estão no momento sendo transcritas e com a análise da participação
dessas trabalhadoras em grupo de whatsapp organizado para o auxílio e assistência
dessas trabalhadoras, pudemos perceber que diferentemente do discurso moralista da
falta de mercado de trabalho para essas profissionais, a escolha da prostituição enquanto
trabalho, não se dá somente sob a ótica da compulsoriedade. Ainda que essa seja a
principal causa para a procura da prostituição enquanto modo de sustento na sociedade
capitalista, é preciso considerar a auto-agência das pessoas transvestigêneres na
escolha da prostituição enquanto meio de sustento. Esperamos elaborar melhor esses
entendimentos ao final da dissertação de mestrado que está construída e pretendemos
defender até o final desse ano.

4- REFERÊNCIAS

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considerações sobre a inferiorização social dos corpos trans como necessidade
estrutural do capitalismo. Revista Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 22, n. 1, p. 114-134,
jan./jun. 2019.

BENEVIDES, B. G. (org.). Dossiê assassinatos e violências contra travestis e


transexuais brasileiras em 2021. Brasília: Distrito Drag, ANTRA, 2022.

332
BENEVIDES, B. G.; NOGUEIRA, S. N. B. (org.). Dossiê dos assassinatos e da
violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. São Paulo: Expressão
Popular; ANTRA; IBTE, 2021. Disponível em: <
https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf>.
Acesso em 21 ago. 2021.

BUTLER, J. O capitalismo tem seus limites. Blog da Boitempo, 20 mar. 2020.


Disponível em: . Acesso em: 4 dez. 2020.

BUTLER, J. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Trad. Andreas Lieber.


Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

BUTLER, J. Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio


Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2015.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad.


Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003. COLLINS, P. H.;
BILGE, S. Interseccionalidade. Trad. Rane Souza. São Paulo: Boitempo, 2021.

GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e


diálogos. In: RIOS, F.; LIMA, M. (org.). Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

SIQUEIRA, I. Entrevista, 9. jun. 2021. Entrevistadora: Dandara Felícia Silva Oliveira. Juiz
de Fora, 2021. 1 arquivo MP4 (120m).

333
ESCALADA CONSERVADORA E ULTRANEOLIBERALISMO: indicações a partir da
política de assistência social

Mossicleia Mendes da Silva119


Anna Paola Tuão de Oliveira Souza120

RESUMO: O presente texto tem como objetivo discutir o


contexto recente de escalada do conservadorismo,articulado
ao ultraneoliberalismo no Brasil. Apresentam-se alguns
elementos relativos ao modus operandi do bolsonarismo.
Com base nestes fundamentos, refletimos sobre o processo
de desmonte da assistência social e as contradições no
atendimento às demandas imediatas da fração mais
empobrecida da classe trabalhadora. Trata-se de um estudo
de caráter qualitativo, tendo como metodologia a revisão
bibliográfica e análise empírica de fontes secundárias.
Palavras-chave: Ultraneoliberalismo; Conservadorismo;
Ajuste Fiscal; Assistência Social.

ABSTRACT: The present text aimsto discuss the recent


context of the escalation nof conservatism articulated to
ultraneoliberalism in Brazil. Some elements related to the
modus operandi of Bolsonarism are presented. Base dont
hese foundations, were flect on the process of dismantling
social assistance and the contradictions in meeting the
immediate demands of the most impoverished fraction of the
working class. This is a qualitative study, using a literature
review and empirical analysis of secondary sources as its
methodology.
Keywords: Ultraneoliberalism; conservatism; Tax
Adjustment; Socialassistance.

119 Assistente Social. Professora Adjunta na Escola de Serviço Social da UFRJ. Doutorado em Serviço Social
pelo Programa de Pós-graduação da UERJ. Professora orientadora. Vinculação a um eixo temático: Ofensiva
ultraneoliberal do capital e lutas sociais.
120Graduanda do 6º Período da Escola de Serviço Social da UFRJ. Bolsista de Iniciação Científica FAPERJ.

334
1- Bolsonarismo e ultraconservadorismo

Vivemos há quase quatro anos sob a tutela de um governo que, como Virgínia
121
Fontes elucida, apesar de não poder ser caracterizado, de fato, como um governo
fascista, é possível afirmar se tratar de um governo protofascista. Ademais, acumula
características do militarismo, conservadorismo e autoritarismo. A extrema direita, em sua
reconfiguração, busca tomar novos espaços de poder, somou elementos para que
pudesse se fortalecer e expandir. O governo Bolsonaro aglutinou, para além dos
principais elementos citados acima, uma espécie de cruzada contra grupos
historicamente discriminados e oprimidos, como mulheres e a população LGBTQi+, bem
como contra os povos indígenas, aos movimentos sociais e à esquerda de um modo
geral.
O atual governo condensa e amplifica o pior da nossa formação social brasileira,
legitimando e reproduzindo discursos e práticas compatíveis com ideias de supremacia
branca, do racismo estrutural, subalternização das mulheres e a intensificação do aparato
coercitivo do Estado como principal estratégia de enfrentamento à “questão social”.
Borges e Matos (2019) (afirmam que) tais “ideias não nasceram de Bolsonaro, já
germinavam pela sociedade, ele e seus aliados souberam capitalizá-las e transformar em
poder, unindo-se às forças reacionárias, de matriz fundamentalista.” (2019, p. 73).
Rompendo com a promessa eleitoral de um governo composto por profissionais técnicos
e capacitados, torna-se evidente a divisão de ministros(as) entre aqueles que defendem e
dão seguimento ao projeto ideológico bolsonarista, nas pastas de Educação, Direitos
Humanos e Relações Exteriores e o projeto de submissão econômica nas pastas de
Economia, Meio Ambiente e Saúde, por exemplo.
O ultraconservadorismo, portanto, tem sido fundamental para criar bases de
consenso e legitimação em torno do projeto político-econômico em curso, extremamente
desfavorável à classe trabalhadora. Ao desempenhar diversos ataques às Universidades
Públicas, ao Sistema Único de Saúde, Política de Atenção à Mulher, Previdência Social e
às políticas de transferência de renda, bem como à toda estrutura do Sistema Único de
Assistência Social (SUAS), direitos do trabalho, entre outros, o projeto econômico
caminha em consonância com as exigências do grande capital, ampliando cortes e
contingenciamento de recursos, acentuando, de forma cada vez mais aguda, o
subfinanciamento imposto à Seguridade Social e demais políticas sociais.
121Virgínia Fontes, pela TV Boitempo, dialogando sobre “O Protofascismo no Brasil sob Bolsonaro”.
Disponível em: <https://youtu.be/PbbyXHr7cB0>. Acesso em: 18 mar. 2022.

335
Conforme destacado por Borges e Matos (2019), além de cumprir seus deveres
com a classe rentista, o atual governo tem compromisso com pautas conservadoras e,
por meio delas, reproduzem a violência em sua forma excessiva. O verdadeiro sucesso
de vários dos objetivos principais do governo Bolsonaro que, somente não caiu, como
terminará seu mandato é dado pois “em síntese, o governo atual só está realizando uma
agenda programada e em consonância com os interesses do capital financeiro.”
(BORGES; MATOS, 2019, p. 74). O conservadorismo é companheiro inseparável do
ultraneoliberalismo, atualmente o êxito de um se deve ao sucesso na implementação de
outro.

2- Ultraneoliberalismo e ajuste fiscal permanente: de Temer à Bolsonaro

É possível observar uma intensificação da agenda do ajuste fiscal ainda no último


governo Dilma Rousseff, sob a intensa pressão a que estava submetido seu governo em
função do aprofundamento da crise econômica, aliadas a erosão dos pactos conciliatórios
que sustentavam a plataforma governista do PT, expressos entre outros elementos nos
escândalos de corrupção. A partir do governo Michel Temer, no ano de 2016,
desenvolve-se uma radicalização neoliberal com determinadas características
estruturadas, como o arrocho da política macroeconômica e a aprovação de algumas
contrarreformas já citadas. O período de devastação tem sua continuidade com o
governo Bolsonaro, onde cada vez mais é possível ver as expressões da “questão social”
no Brasil e o “direito à miséria” se massificando para milhões de brasileiros.
O projeto encabeçado pela classe rentista e impetrado por Temer e Bolsonaro
imputou uma profunda devastação democrática econômica, social, institucional e
ambiental brasileira da forma mais veloz que pôde. O ultraneoliberalismo, a partir de
2016, em consonância com um governo protofascista, foi a combinação perfeita para a
radicalização do processo de desmonte de uma já frágil estrutura de proteção social.
A rápida ascensão do ultraneoliberalismo assentada em um discurso e práticas
político-governamentais ultraconservadoras consolidaram políticas econômicas
austericidas, como definem Costa e Rosa (2021), conceberam um caminho para socializar
a barbárie. Através de ações efetivas empreendidas pelo Estado, organizadas com o
apoio de uma base parlamentar desde o ano de 2016 e consolidada com a onda
bolsonarista, podemos concordar que tal inflexão materializou “o agravamento da crise
social através da celeridade do ajuste fiscal e das medidas contrarreformistas” (FREIRE
E CORTES, 2021, p. 40).

336
Segundo Behring (2021), dispositivos jurídicos e institucionais são elaborados já a
partir da década de 1990, condensando uma espécie de “ajuste fiscal permanente”.
Desde então, tivemos o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRE)(1995), a
Desvinculação de Receitas da União (DRU/1994), a Lei de Responsabilidade Fiscal
(2001), a Emenda Constitucional do Teto de Gastos Públicos (2016) e o Orçamento de
Guerra (2020) e consolidaram a transferência de recursos em nome da estabilidade
econômica, já que o Estado pode flexibilizar a qualquer momento as regras
administrativas e até mesmo orçamentárias, principalmente, quando se trata de “gastos”
com as políticas sociais.
Por seu caráter mais extensivo e permanente a Desvinculação de Receitas da
União (DRU) e a Emenda Constitucional 95 despontam como expressão acirrada da
inflexão neoliberal a partir de 2016.
A DRU partiu de um mecanismo provisório e se tornou parte de uma estratégia
permanente em que, obrigatoriamente, a porcentagem inicial de 20% de todos os
impostos e contribuições devem ser desvinculados. Em 2016, durante o governo de
Temer, a Emenda Constitucional nº 93/2016 ampliou o alcance da DRU, que passou da
incidência de 20% para 30%, acompanhado pela expansão também temporal, passando
a valer até o ano de 2023, afiançando a garantia de sua renovação. O aumento da
desvinculação junto à EC nº 95 configuram medidas econômicas excepcionais de
expropriação econômica e, consequentemente, de direitos sociais na esfera mais
sensível de sua materialização, ocasionando impacto direto na sua continuidade e
manutenção.
Já a Emenda Constitucional nº 95compõe “a estratégia de formulação de um novo
regime fiscal para o Brasil, com o congelamento dos gastos públicos por 20 anos, é
medida inédita no mundo.” (COSTA; LIMA, 2021, p. 313). Enquanto a mídia reproduzia,
em 2016, que o Teto de Gastos, como foi denominada a EC, seria utilizada para tentar
melhorar contas públicas122 já que, segundo o ministro da Economia Henrique Meirelles,
a despesa pública teria crescido de forma insustentável no Brasil. Determinados
segmentos de parlamentares brasileiros, em defesa da PEC 55123 (EC/95) definem a
medida como um ato responsável do Estado e, durante o processo de tramitação,
manusearam dados de países centrais que aderiram a um modelo econômico similar de

122 Martello, Alexandro; Matoso, Felipe. “Governo propõe teto para gastos públicos com duração de 20 anos”.
Net, jun. 2016. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2016/06/teto-para-gastos-publicos-
tera-duracao-de-20-anos.html>. Acesso em: 14 de mai. de 2022.
123 Medeiros, Étore. “Nenhum país adotou teto de gastos como o da PEC 241”. out. 2016. Disponível em:

<https://apublica.org/checagem/2016/10/truco-nenhum-pais-adotou-teto-de-gastos-como-o-da-pec-241/>.
Acesso em: 14 de mai. de 2022.

337
contenção de gastos, divulgando a recuperação da economia e queda na taxa de
desemprego.
No entanto, à despeito da narrativa ideológica em curso, a EC 95 não permite a
expansão do orçamento, especialmente das despesas públicas não obrigatórias nas
políticas de saúde, educação, ciência, tecnologia e infraestrutura (TEIXEIRA;
BOSCHETTI, 2018), comportando apenas o ajuste da inflação anual e não impactou em
melhorias nos níveis de emprego ou indicadores econômicos do país. Ao tempo em que
vem promovendo o desfinanciamento das políticas sociais, as despesas com a dívida
pública permanecem intocadas. Um ajuste fiscal desse porte é indicativo de uma
profunda radicalização neoliberal que vem centrando as bases da destruição das já
frágeis estruturas do Estado social brasileiro. Trata-se, portanto, de uma das pilastras
centrais da ofensiva ultraneoliberal que ganha contornos cada vez mais destrutivos para
a política social brasileira.
Por fim, no sentido de definir sinteticamente o ultraneoliberalismo sua
particularidade precípua reside na sua face “ultra”, isto é, uma espécie de “plus” a mais
de neoliberalismo, caracterizado pela radicalidade e rapidez com que seus objetivos são
traçados e igualmente veloz em relação a expropriação de direitos trabalhistas e sociais
da classe trabalhadora. Intensifica o processo de socialização dos custos da crise do
capital com todo conjunto da sociedade, enquanto se utiliza da escalada do discurso
ultraconservador como mote mobilizador do ressentimento social em prol da agenda
reacionária. A jornada de ascensão ultraneoliberal, iniciada em 2016 no Brasil, permeia
medidas político-econômicas sem precedentes e sua continuidade dada em 2018 foi
essencial para aprofundar o projeto seminal iniciado pelo governo Temer.
Desse modo, aliado ao ultraconservadorismo, o ultraneoliberalismo demonstram
sua ampla capacidade de devastação, como classifica Behring (2021), ao afirmar que
trata-se da face de um “[...] capitalismo em estado puro, exaurindo a força de trabalho
como forma de recompor suas taxas de lucros, o que corrobora o debate anterior sobre a
função precípua do fascismo.” (2018, p. 211).
Conforme demonstrado por Cislaghi (2021), se o “neoliberalismo de cooptação”
comportava tímidas medidas de conciliação de interesses de classes antagônicas, com
ganhos (ainda que frágeis) para a classe trabalhadora e as chamadas “minorias sociais”,
o ultraneoliberalismo é muito mais brutal e praticamente impermeável às demandas da
classe trabalhadora.

338
3- À guisa de conclusão: Desmonte e assistencialismo: velhos artifícios em novos
formatos
Os mesmos órgãos internacionais que definiram a órbita da política social no país
e deram origem ao Índice de Desenvolvimento Humano, as “linhas da pobreza”, “mapa
da fome” e que reconheceram o potencial das políticas de alívio à pobreza dos governos
petistas no que tange aos impactos nos indicadores socioeconômicos, reconhecem a
volta do aumento da pobreza no mundo e no país. O Brasil, desde 2018, voltou ao mapa
da fome124 e, entre os anos de 2018 e 2020 segundo a FAO, OMS e ONU 7,5 milhões de
brasileiros voltaram a compor o mapa, aumentando em cerca de 3 milhões de brasileiros
no período de dois anos.
Em meados de 2022, em dois anos de pandemia e em quatro anos de uma
desgovernada gestão bolsonarista, o Brasil é assolado gravemente por seu maior
problema estrutural que atinge 4,1% da população total do país, de acordo com o Mapa
da Fome realizado pela Organização para Alimentação e Agricultura (FAO)125. A agenda
de cortes e falta de vontade política, a não ser a eleitoreira responsável por organizar
uma PEC recheada de auxílios incluindo o aumento em duzentos reais no Programa
Auxílio Brasil, impulsionaram o aumento quantitativo da população atiradas à de
insegurança alimentar grave, somando 61 milhões de pessoas, onde desses, 15 milhões
a enfrentam em sua forma moderada.
Em consonância com o desmonte da política de assistência social,o atual governo
vem inviabilizando de forma concreta o acesso de diversos segmentos à alimentação, no
momento em que fragiliza a concepção da legislação, do programa e dos conselhos
relativos à Política de Segurança Alimentar. Ao fragilizar mecanismos que viabilizam o
direito humano à alimentação adequada, toda a cadeia de programa e meios necessários
para executá-la se tornam igualmente frágeis. O elo entre o SUASe o Programa de
Aquisição de Alimentos, por exemplo, possui uma materialização limitada que
acompanha a inconsistência das medidas de atendimento das necessidades da classe
trabalhadora.
Desde 2017 a Função 08 (Assistência Social) vem perdendo recursos e com o
governo Bolsonaro há uma intensificação do desfinanciamento. Ademais do impacto da
EC95, que já é extremamente nociva e implica o congelamento de gastos, o governo

124 GUIMARÃES, José. “Com Bolsonaro, o Brasil voltou ao mapa da fome”. Net, jul. de 2021. Disponível
em:<https://www.cartacapital.com.br/opiniao/frente-ampla/com-bolsonaro-o-brasil-voltou-ao-mapa-da-fome/>.
Acesso em: 13 de mai. de 2021.
125 G1. "Brasil volta ao Mapa da Fome das Nações Unidas". Net. 06 jul. de 2022. Disponível em:

<https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/07/06/brasil-volta-ao-mapa-da-fome-das-nacoes-
unidas.ghtml>. Acesso em: 8 de jul. de 2022.

339
Federal tem impetrado outros mecanismos para amplificar o desfinanciamento, com
impactos sobre o núcleo central do pacto federativo e da lógica de financiamento do
SUAS que está assentada no cofinanciamento federal.
O alcance da Assistência Social permanece engessado e apenas em um
momento excepcional, como o de calamidade pública pela Pandemia da COVID -19,
observa-se crescimento nos recursos da União para este campo. No ano de 2020, os
gastos executados na Função 08 do orçamento Federal foram de, aproximadamente, R$
410 bilhões, de acordo com o Portal da Transparência. Um aumento exponencial, se
comparado ao executado em 2019 que foi de R$ 92,85 bilhões. Devemos elucidar que
este crescimento tão significativo se deu em função dos gastos com o pagamento do
Auxílio Emergencial, com mais de 60 milhões de beneficiários.
Após o período mais crítico da pandemia, Paulo Guedes, ministro da Economia,
insistia que o alto valor do Auxílio Emergencial iria quebrar a economia brasileira e então
inicia a jornada de redução do valor até a extinção do benefício, ignorando milhões de
brasileiros no desemprego, informalidade e em insegurança alimentar. Apenas na
assistência social a queda no volume de recursos para o ano de 2021 foi de mais de 63
% (BEHRING; SILVA, 2022).
Em um contexto de desfinanciamento da política de assistência social e desmonte
dos serviços socioassistenciais do SUAS e tendo, o Programa Bolsa Família, uma fila de
espera em torno de 1,4 milhão de famílias, o governo Federal, através da Medida
Provisória nº 1.061, institui O Programa Auxílio Brasil e extingue o Programa Bolsa
Família, em novembro de 2021. De acordo com o governo, “o Programa Auxílio Brasil
constitui uma etapa do processo gradual e progressivo de implementação da
universalização da renda básica de cidadania a que se referem o caput e o § 1º do art. 1º
da Lei nº 10.835, de 8 de janeiro de 2004.” (BRASIL, Lei nº 14.284 de 29 de dezembro de
2021). No entanto, o padrão e formato do Programa proposto distanciam-se
sobremaneira da ideia de renda básica universal.
As consecutivas extinções do Auxílio Emergencial e do Programa Bolsa Família, a
PEC dos Precatórios e o processo de pente-fino somado aos consecutivos cortes de
mais de 158 mil beneficiários126, bloqueios de 654 mil bolsas127 e contingenciamento de
recursos em nome do controle de gastos estruturaram os subsídios para o novo

126Notícias. Política genocida e os cortes no Bolsa Família.Net. ago. de 2020. Disponível em:
<https://adusb.org.br/web/page?slug=news&id=10630&pslug#.YoAt9WjMJdh>. Acesso em: 14 de mai. de
2022.
127Notícias. Pente-fino cancela 469 mil contratos do Bolsa Família e bloqueia outros 654 mil. Net. nov.

de 2016. Disponível em: <https://www.ugt.org.br/index.php/post/15168-Pente-fino-cancela-469-mil-contratos-


do-Bolsa-Familia-e-bloqueia-outros-654-mil>. Acesso em: 14 de mai. de 2022.

340
programa do governo Bolsonaro que surgia com prazo de validade (final de 2022),
expressando de maneira evidente o caráter eleitoreiro da proposta, conforme defendido
por Boschetti (2022). O que somente se alterou por que o Congresso garantiu que o
benefício extraordinário, que completa o valor de R$ 400 tenha um caráter mais
permanente, com previsão orçamentária pelo menos até 2026
É muito característico de diferentes governos a substituição de programas com
vistas à legitimação de seus projetos políticos. No governo Bolsonaro essa tendência
assume um alinhamento extremamente ideológico, como o que se deu com as
mudanças, por exemplo, do Ministério dos Direitos Humanos pelo Ministério da Mulher,
da Família e dos Direitos Humanos, do Bolsa Família para o Auxílio Brasil, o “Minha
Casa, Minha Vida” substituído pelo programa “Casa Verde e Amarela”, entre muitos
outros.
A proximidade com as eleições e o reconhecimento do potencial de capitalização
política de programas de transferência de renda possibilitada pela experiência do Auxílio
Emergencial fez com que o presidente mudasse sua postura pública em relação a esta
modalidade de programa social.
Seguindo o formato do autoritarismo característico deste governo, o Programa é
instituído por decisão unilateral, sem estudo de viabilidade, sem debate ou construção
coletiva nas instâncias de pactuação da política de assistência social, com quebra do
pacto federativo e desprezo pela institucionalidade recente no campo do SUAS. Pelo
formato e composição, o referido programa se afasta do conceito de benefício /direito
social que tem uma perspectiva de continuidade de permanência do direito de base
constitucional para a perspectiva do auxílio, que carrega o viés da transitoriedade e
instabilidade, já que sua base de financiamento está assentada, basicamente, em
endividamento público.
Além do mais, a configuração proposta consolida um programa de intensa
fragmentação de benefícios, com um assento muito forte dos auxílios complementares. O
próprio governo chegou a denominar o Auxílio Brasil como uma “cesta de benefícios”.
Nessa mesma direção, o conjunto de critérios para acesso a estes benefícios
complementares implica em um recrudescimento das exigências de acesso, como ter
grávida, nutriz, criança ou adolescente, pessoas do grupo familiar acessando emprego
formal. E, entre outros elementos que assentam uma lógica ainda mais focalista e
conservadora, tem mecanismos de ativação para o trabalho muito mais proeminentes do
que no PBF.

341
4- REFERÊNCIAS

BEHRING, E. Fundo público, valor e política social. São Paulo: Cortez Editora, 2021.

BEHRING, E; CISLAGHI, J. F.; SOUZA, G. Ultraneoliberalismo e bolsonarismo: impactos


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direitos e políticas sociais. In: Esquerda Online. Disponível em:
https://esquerdaonline.com.br/2022/04/27/ha-perigo-na-esquina-auxilio-brasil-e-
propostas-da-esquerda-para-direitos-e-politicas-sociais/. Acesso em: 26/05/2022.

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capital à crise. In: Esquerda Online. Disponível em:
<https://esquerdaonline.com.br/2020/06/08/do-neoliberalismo-de-cooptacao-ao-
ultraneoliberalismo-respostas-do-capital-a-crise/>. Acesso em: 13 abr. 2022.

MOTA, A. E. Cultura da crise e seguridade social: um estudo sobre as tendências da


previdência social brasileira nos anos 80 e 90. Cortez, 7ª edição, São Paulo, 2017.

SINDICONTAS/PR. Orçamento de Guerra: uma PEC para favorecer os bancos. 2020.


Disponível em: <https://sindicontaspr.org.br/?area=ver_noticia&id=2162>. Acesso em: 09
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TOBALDINI, R. T. C; SUGUIHIRO, V. T. A desvinculação de recursos da união – dru e o


(des)financiamento da seguridade social brasileira. Brasília, DF: Ipea, 2011. 14 p.
Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/code2011/chamada2011/pdf/area2/area2-
artigo10.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2022.

VIEL, R. “O bolsonarismo é o neofascismo adaptado ao Brasil do século 21”. Apública, 29


de jul. de 2019. Disponível em: <https://apublica.org/2019/07/o-bolsonarismo-e-o-
neofacismo-adaptado-ao-brasil-do-seculo-21/>. Acesso em: 17 de abr. de 2022.

342
POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, BENEFÍCIOS EVENTUAIS E DESAFIOS
ATUAIS

Aline Macêdo Câmara Gracindo128


Bruna Cristina Silva Oliveira129

RESUMO:
Partimos de nossas experiencias profissionais no campo da
Política de Assistência Social e de pesquisa bibliográfica,
para levantarmos algumas reflexões sobre os atuais
desafios enfrentados pela referida política na materialização
dos benefícios eventuais, no atual contexto
ultraneoliberal.Os resultados evidenciam que o
ultraneoliberalismo neofascista implica no avanço da
degradação das condições dignas de vida, com aumento e
naturalização da pobreza e do desemprego o que, por sua
vez, eleva significativamente a demanda por tais benefícios,
que deveriam ser eventuais e complementares, mas
acabam se tornando essenciais à sobrevivência da classe
explorada.
Palavras-chave: Política de Assistência Social. Benefícios
Eventuais. Ultraneoliberalismo.

ABSTRACT:
We start from our professional experiences in the field of
social assistance policy and bibliographic research, to bring
forth some reflections about modern challenges faced by
such policy in the materialization of eventual benefits, in the
current ultra neoliberalism context. Results show that the
ultra neoliberalism neo-fascist implies the advancement of
the degradation of decent life conditions, with increase and
naturalization of poverty and unemployment, which, in turn,
significantly elevates the demand for the aforementioned
benefits which should be occasional and complementary, but
in the end become vital to the exploited class’s survival.
Key words: Social Assistance Policy. Occasional Benefits.
Ultra neoliberalismo.

128Assistente Social no Centro de Referência de Assistência Social do município de São Rafael/RN.Mestra


em Serviço Social e Direitos Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Direitos Sociais
da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). E-mail:gracindoaline@gmail.com.
129Assistente Social no Centro de Referência Especializado de Assistência Social do município de Apodi/RN.

Especialista em Políticas Públicas e Intervenção Social. Mestranda em Serviço Social e Direitos Sociais pelo
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Direitos Sociais da Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte (UERN). E-mail: bcsobn@gmail.com.
Eixo temático: Política Social, trabalho e questão social: retrocessos e resistências na conjuntura atual.

343
1- INTRODUÇÃO

Os reflexos da reestruturação produtiva, o desmonte dos direitos sociais e a


hipotrofia do Estado Social Democrático de Direito, atingem potencialmente a Política de
Assistência Social na prestação de seus serviços e benefícios. Dentre as referências
organizadoras dos serviços socioassistenciais no Sistema Único do Assistência Social
(SUAS) está a proteção social, a qual prevê asegurança de sobrevivência ou de
rendimento e de autonomia, que se materializa através de benefícios continuados e
eventuais, os quais compõem a proteção social básica, voltados “a idosos e pessoas com
deficiência sem fonte de renda e sustento; pessoas e famílias vítimas de calamidades e
emergências; situações de forte fragilidade pessoal e familiar, em especial às mulheres
chefes de família e seus filhos” (PNAS, p.40, 2004). Diante do cenário atual de
precarização das condições de sobrevivência e desmantelamento das seguranças sociais
previstas na Constituição de 1988, a demanda por esses benefícios elevou-se
significativamente. As famílias beneficiárias acabam estabelecendo um vínculo de
dependência em relação ao que deveria suprir apenas eventualmente algumas de suas
necessidades básicas, o que é fruto do aumento do desemprego, do trabalho
desprotegido, da pobreza e da extrema pobreza.

2- POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIALE O ULTRANEOLIBERALISMO

O status de política pública e direito social conferido pela Constituição Federal de


1988, expressou um passo de suma importância na trajetória histórica da assistência
social, representouum marco na luta pelos direitos sociais, ofuscado, no entanto, pela
onda neoliberalista que redirecionou a ordem econômica mundial, pregando dentre outras
coisas, a redução do papel do Estado, a retração das políticas públicas e a negação dos
direitos sociais. “Seus pilares fundamentais centram-se nos ajustes econômicos,
materializados na privatização e na supremacia do mercado, na cultura anti-Estado, no
papel equivocado atribuído à sociedade civil, na desqualificação da política e da
democracia” (SIMIONATTO, 2009, p.11).

Orquestrada pela ofensiva neoliberal, a ação sociorreguladora do Estado se


retrai, pulverizando os meios de atendimento às necessidades sociais dos
trabalhadores entre organizações privadas mercantis e não-mercantis, limitando
sua responsabilidade social à segurança pública, à fiscalidade e ao atendimento,
através da assistência social, àqueles absolutamente impossibilitados de vender
sua força de trabalho. A classe trabalhadora é também atingida pelos processos
de privatização, inicialmente através da venda de empresas produtivas estatais,
seguindo-se uma ampla ofensiva mercantil na área dos serviços sociais e de

344
infra-estrutura, tais como os de saúde, previdência, educação, saneamento,
habitação etc., amparados pela liberalização da economia, sob a égide da
liberdade de mercado e retração da intervenção do Estado (MOTA, 2009, p. 09).

Como retratado por Mota (2009), os reajustes econômicos de ordem


ultraneoliberal diminuem a figura do Estado Social Democrático de Direito, priorizando a
via mercadológica e as Organizações Sem Fins lucrativos (ONGs) na prestação dos
atendimentos as necessidades sociais. Quem não pode acessar seus direitos por essas
vias, resta recorrer a Assistência Social, apresentada como a política que ampara “os
pobres dos pobres”, os desvalidos, isto é, aqueles que perderam sua valia para a
manutenção da ordem social vigente, os incapacitados de vender sua força de trabalho
(idosos, crianças, adolescentes, deficientes) e que, portanto, não podem pagar para ter
acesso a um plano de saúde, a uma educação de melhor qualidade, a uma segurança
privada.

A supracitada autora menciona o voraz processo de privatização que os serviços


públicos de atendimento à população vêm sofrendo, como consequência da lei do “tudo
pode”, desde que a favor do mercado. “Portanto, a privatização gera uma dualidade
discriminatória, entre os que podem e os que não podem pagar pelos serviços, no
mesmo passo em que, propicia um nicho lucrativo para o capital [...]” (BEHRING;
BOCHETTI, 2007, p. 159 grifos dos autores). Assim, para Yazbek (2001, p. 37) as
propostas ultraneoliberais “esvaziam e descaracterizam os mecanismos
institucionalizados de proteção social. São propostas fundadas numa visão de política
social apenas para se complementar o que não se conseguiu via mercado, família ou
comunidade”.

A crise do capitalismo de 2008 com a falência do banco Lehman Brothers,


seguida pela queda nas bolsas mundiais, demarca o início do recrudescimento do
denominado ultraneoliberalismo, praticado moderadamente pelos governos petistas,
fortalecido no governo Temer e consolidado na atual gestão bolsonarista. Desde então,
deu-se início ao “show de horrores”, com a Proposta de Emenda Constitucional 95/2016,
a denominada “PEC da morte”, que congelou por 20 anos os gastos públicos e alavancou
os processos de privatização da coisa pública, com o fito de beneficiar os capitalistas
rentistas e dar continuidade a mercantilização dos serviços públicos sociais,
evidenciando, assim o descompromisso com as demandas da sociedade. Além disso,
ainda no Governo Temer, tem-se a concretização dos vínculos políticos com a frente
parlamentar evangélica, o que despertou a perspectiva familista no entorno da Política de

345
Assistência Social, reforçando o viés de proteção conservador, voltado ao modelo
tradicional de família, desconsiderando as dinâmicas familiares, ao passo em que a
responsabiliza por demandas que deveriam ser supridas pelo Estado.

A recuperação de uma concepção única, nuclear e heteronormativa da família


enquanto base da nacionalidade brasileira constitui-se assim num poderoso mito
que condensa conservadorismo, nacionalismo militarizado, racismo e
religiosidade, constituindo o núcleo da branquitude brasileira e, portanto,
instituindo-se enquanto norma-padrão para as relações sociais e políticas
(FONSECA; ALENCAR, p.332, 2021).

Com a chegada de Bolsonaro ao poder em 2018, presenciamos o


recrudescimento do ultraneoliberalismo“caracterizada pela fusão de seu
característicofundamentalismo de mercado com a retomada de uma espécie de
‘nacionalismo ultra militarizado’, projeto constitutivo da branquitude republicana brasileira
fundado na lógica do genocídio” (FONSECA; ALENCAR, p.328-329, 2021). Algumas
investidas nefastas dessa mistura foram: o esvaziamento dos espaços públicos
decisórios, mediante a tomada de descabidas medidas decretistas, a exemplodo Decreto
n. 9.759/2019, que extinguiu e limitou o funcionamento de conselhos, comitês,
comissões, forúns, dentre outros. O resgate do modelo tradicional de família e a
conquente negação da diversidade, dos direitos de segmentos sociais marginalizados
(LGBTQIA+, negros, indígenas e mulheres). E o agravamento da pobreza e da extrema
pobreza, fruto do desemprego estrutural e dos retrocessos no âmbito dos direitos
trabalhistas, despindo o trbalhador de proteção legal e fortalecendo a aliança com o
empresariado, mediante condições de trabalho precárias, intensificação da flexibilidade,
da rotatividade, da instabilidade, de demissões abusivas e da informalidade (típicos do
processo de reestruturação produtiva).

Esse quadro marcado pelo desemprego estrutural e pela desregulamentação dos


direitos trabalhistas, se desenvolve acompanhado de uma pífia e retraída proteção social
aos sujeitos sociais que, no mínimo, são alvos de políticas descontínuas, fragmentadas e
compensatórias, as quais alimentam a refilantropização e a despolitização da “questão
social”. Assim, a Política de Assistência Social se caracteriza na contemporaneidade,
pelo trinômio da despolitização-desfinanciamento e familismo.

346
3- BENEFÍCIOS EVENTUAIS E OS DESAFIOS PARA SUA MATERIALIZAÇÃO
ENQUANTO DIREITO SOCIAL

Os serviços socioassistenciais no Sistema Único de Assistência Social são


organizados a partir de três pilares: vigilância social, proteção social e defesa social e
institucional. Entre as aquisições ofertadas no eixo da proteção social, destacamos a
segurança de sobrevivência ou de rendimento e de autonomia, com ênfase nos
benefícios eventuais que, segundo o que estabelece a Lei Orgânica de Assistência Social
em seu Art. 22º “ são provisões suplementares e provisórias que integram organicamente
as garantias do SUAS e são prestadas aos cidadãos e às famílias em virtude de
nascimento, morte, situações de vulnerabilidade temporária e de calamidade pública”
(Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011).
De acordo com o documento de orientações técnicas sobre benefícios eventuais
no SUAS, produzido pelo Ministério da Cidadania em 2018, os benefícios eventuais são
concedidos em forma de pecúnia, bens ou serviços e buscam garantir segurança de
sobrevivência aos indivíduos ou famílias que estão impossibilitados, temporariamente, de
enfrentar, por conta própria, vulnerabilidades em decorrência de perda, danos, riscos e
agravos. Logo, “visam restaurar a segurança social de indivíduos e famílias em situação
de insegurança social, que foram acometidas por um evento, uma contingência, que
ocasionou ou agravou uma situação de vulnerabilidade social” (BRASIL, 2018, p. 21).
O benefício eventual por situação de nascimento compreende provisões com
vistas a reduzir vulnerabilidade provocada por nascimento de membro da família, como o
“apoio à mãe no caso de morte do recém-nascido ou apoio à família no caso de morte da
mãe” (Art. 5º). Já o benefício eventual por situação de morte, também chamado de
benefício eventual funeral (ou auxílio-funeral), visa garantir o enfrentamento de
vulnerabilidades que surgem ou se intensificam depois da morte do membro da família
(Resolução CNAS n° 212, 2006).
No que se refere ao benefício eventual de vulnerabilidade temporária, esse está
relacionado a ocorrência de fatos ou situações inesperadas que comprometam a
segurança social de sujeitos ou famílias. São situações que caracterizam a
vulnerabilidade temporária, segundo o Art. 7º do Decreto 6.307/07:

I - A falta de: a) acesso a condições e meios para suprir a reprodução social


cotidiana do solicitante e de sua família, principalmente a de alimentação;
b) documentação; e c) domicílio; II - situação de abandono ou da impossibilidade
de garantir abrigo aos filhos; III - perda circunstancial decorrente da ruptura de
vínculos familiares, da presença de violência física ou psicológica na família ou

347
de situações de ameaça à vida; e V - outras situações sociais que comprometam
a sobrevivência.

Destacamos ainda o benefício eventual por calamidade pública, o qual visa


garantir mínimos sociais a pessoas e famílias que se encontram em situação de
insegurança social provocada por baixas ou altas temperaturas, tempestades, enchentes,
inversão térmica, desabamentos, incêndios e epidemias. “O objetivo é assegurar a
dignidade e a reconstrução da autonomia familiar e pessoal, respeitadas às
responsabilidades precípuas das políticas de Assistência Social, de Defesa Civil,
Habitação, entre outras” (BRASIL, 2018, p. 60).
A partir dessas definições, podemos compreender que os benefícios eventuais
são proteções sociais indispensáveis para a garantia da dignidade humana de pessoas
em situação de vulnerabilidade social. No entanto, apesar de termos avançado no que se
refere as suas definições, muitos ainda são os desafios para sua materialização.
O primeiro deles tem relação com seu caráter integrativo, isto é, por se configurar
como aquisições temporárias, os benefícios eventuais necessitam estar integrados a rede
de serviços socioassistenciais e intersetoriais, pois, somente a partir de uma perspectiva
de integralidade e totalidade é que as situações de risco social podem ser minimizadas.
No entanto, o que temos presenciado, no cotidiano profissional da Política de Assistência
Social, é que os benefícios eventuais têm perdido seu caráter temporário, tornando-se
um benefício permanente em decorrência do desmonte dos direitos sociais que, por vez,
inviabilizam padrões dignos de vida e a consequente superação da vulnerabilidade social
vivenciada. Desse modo, os sujeitos atendidos nos equipamentos sociais não
conseguem dispor de autonomia para enfrentar os desafios do cotidiano familiar e
comunitário, uma vez que, o acesso precário aos serviços de habitação, emprego, lazer,
saúde, educação, entre outros, impossibilitam sua função protetiva.
Esse cenário é resultado de cooptação do Estado pelo capital financeiro que, ao
conclamar a necessidade de redução do Estado social, penaliza duramente a classe
trabalhadora, pois
De um lado ampliam-se as necessidades não atendidas da maioria da
população, pressionando as instituições públicas por uma demanda crescente de
serviços sociais. E de outro lado, esse quadro chocasse com a restrição de
recursos para as políticas sociais governamentais, coerente com os postulados
neoliberais, que desmontam as políticas públicas de caráter universal, ampliando
a seletividade, fragmentação e mercantilização dos programas e serviços sociais
(IAMAMOTO, 2007, p. 148).

348
Outro desafio relacionado a materialização dos benefícios eventuais se refere a
seletividade, isto é, mediante o desfinanciamento da Política de Assistência Social, os
benefícios eventuais têm perdido seu caráter de direito social, uma vez que, apesar do
seu acesso ser garantido a todos que deles necessitem, sua concessão acaba sendo
marcada pela seleção do mais necessitado entre os necessitados. Assim, famílias e
sujeitos que são público-alvo dos benefícios eventuais acabam tendo seu direito negado,
mediante os parcos recursos destinados as afianças sociais. Isso ocorre porque

Ao haver uma subordinação dos direitos sociais a lógica orçamentária, observa-


se uma inversão: ao invés do direito constitucional orientar a distribuição das
verbas orçamentárias, o dever legal passa a ser submetido a disponibilidade dos
recursos, isto é, são as definições orçamentárias que se tornam parâmetros
inquestionáveis para a implementação dos direitos sociais, justificando as
prioridades governamentais (IAMAMOTO, 2007, p. 149).

Além disso, não podemos deixar de destacar o desafio posto pela cultura
assistencialista que incide sobre os benefícios eventuais. Ao manter tais benefícios como
política de governo ao invés de política de Estado, as gestões municipais,
prioritariamente, utilizam os benefícios eventuais como valor de troca, endossando
práticas paternalista e clientelista, a partir da indicação de quais sujeitos vão ser
contemplados com o benefício eventual. Essa realidade se agudiza mediante a falta de
regulamentação dos benefícios eventuais. Ou, quando regulamentados, sua
transformação em letra morta.

Não é casual que a prática da concessão dos benefícios eventuais venha


apresentando as seguintes tendências: cada governo municipal os concebem,
denominam, proveem e administram, de acordo com o seu entendimento,
valendo-se quase sempre, do senso comum para, dentro de suas possibilidades
financeiras gerenciais, atender contingências sociais prementes. Tem-se, assim,
num espaço não desprezível de participação da Assistência Social como política
pública e direito de cidadania a condenável prática do assistencialismo que, além
de desafiar os recentes avanços no campo assistencial, vem se afirmando como
um não-direito social (PEREIRA, 2010, p.20).

Portanto, garantir benefícios eventuais a partir da perspectiva do direito e da


universalidade do acesso requer lutar pela primazia da responsabilidade do Estado na
condução das políticas públicas e na ampliação dos direitos sociais, bem como contribuir
para a organização coletiva da classe trabalhadora, com vistas a superação da ordem
capitalista vigente.

349
4- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando as análises aqui desenvolvidas, resta evidente que no atual cenário


político-econômico brasileiro, de predomínio da extrema-direita de viés fundamentalista
cristão e militarista-autoritário, o padrão de reprodução social das classes empobrecidas
caiu drasticamente. Com isso, os benefícios eventuais como parte dos serviços
socioassistenciais, acabam sendo descaracterizados e assumindo um lugar central na
sustentação de famílias e indivíduos que tiveram suas condições de vida gravemente
afetadas pelo ultraneoliberalismo. Sem contar que, nos espaços de operacionalização da
Assistência Social há o reavivamento de práticas reiteradas de conservadorismo,
assistencialismo e do velho primeiro-damismo, bem como veem sendo potencializados os
processos de desfinaciamento e despolitização desta.

Nesse norte, se faz urgente a defesa do financiamento da Política de Assistência


Social e demais políticas públicas, dos espaços de controle social, e o combate a onda
neoconservadora que se recrudesce, alimentando visões unilateralistas, racistas e
sexistas.

5- REFERÊNCIAS

BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Política Social: fundamentos e história. 3 ed. São


Paulo: Cortez, 2007.

BRASIL. Conselho Nacional de Assistência Social. Resolução CNAS n. 212, de 19 de


outubro de 2006.

BRASIL. Decreto Presidencial n. 6.307, de 14 de dezembro de 2007.

BRASIL. (2004). Ministério de desenvolvimento social e combate à fome. Política


Nacional de Assistência Social (PNAS) - Brasília, secretaria Nacional de Assistência
Social.

BRASIL. Orientações técnicas sobre benefícios eventuais no SUAS. Ministério da


Cidadania, 2018.

FONSECA, R. S. R. da.; ALENCAR, T. R. de. Para uma análise inicial dos impactos do
ultraneoliberalismo brasileiro sobre a reprodução social. RTPS – Rev. Trabalho, Política
e Sociedade, Vol. 6, nº 10, p. 317-338, jan.-jun./2021.

IAMAMOTO, M.V. Serviço Social em tempo de Capital Fetiche. Capital Financeiro,


Trabalho e Questão Social. São Paulo: Cortez, 2007.

350
MOTA, A. E. Crise contemporânea e as transformações na produção capitalista. In:
Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS, 2009.

SIMIONATTO, I. As expressões ideoculturais da crise capitalista na atualidade e sua


influência teórico-política In: Serviço Social: direitos sociais e competências
profissionais. Brasília: CFESS, 2009.

YAZBEK, M. C. Pobreza e exclusão social: expressões da questão social no Brasil.


Revista Temporalis. Brasília: ABEPSS nº 3, 2001, p.33-40. Disponível em
http://www.abepss.org.br/arquivos/anexos/temporalis_n_3_questao_social201804131245
276705850.pdf. Acesso em 16 de jun. de 2021.

351
BENEFÍCIOS EVENTUAIS EM TEMPOS DE PANDEMIA DA COVID-19: uma análise
das demandas e desafios na oferta no município de Parintins/Am

Isabelle Ferreira Teixeira130

Dayana Cury Rolim131

Resumo: Este artigo buscou analisar as demandas e os


desafios na oferta dos benefícios eventuais de assistência
social em tempos de pandemia da Covid-19 no município de
Parintins/AM. Realizou-se entrevista semiestruturada com
as assistentes sociais que atuam no plantão social no setor
dos Benefícios Eventuais da Secretaria Municipal de
Assistência Social, Trabalho e Habitação (SEMASTH) e
análise com abordagem qualitativa. Verificou-se que diante
do período pandêmico houve um aumento das demandas
por serviços socioassistenciais na Proteção Social Básica.
Assim, acredita-se que a oferta de Benefícios Eventuais tem
contribuído para atender as necessidades de parte dos
cidadãos em situações de vulnerabilidade social.

Palavras-chave: Benefícios eventuais; assistência social;


pandemia.

Abstract: This articles ought toanalyze the demands and


challenges in offering eventual social assistance benefits in
times oftheCovid-19 pandemic in the municipality of
Parintins/AM. A semi-structured interview was carried out
with social workers who work on social duty in the Eventual
Benefits sector of the Municipal Department of Social
Assistance, Work and Housing (SEMASTH) and analysis
with a qualitative approach. It was found that in the face of
the pandemic period the rewas an increase in demands for
social assistance services in Basic Social Protection. Thus, it
is believed that the offer Eventual Benefits has contributed to
meet the need sof part of partcitizens in situations of social
vulnerability.

Keywords: Eventual benefits; social assistance; pandemic.

130Acadêmica do curso de Serviço Social do Instituto de Ciências Sociais, Educação e Zootecnia da


Universidade Federal do Amazonas,Campus Parintins.Integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa em
Políticas Sociais e Seguridade Social na Amazônia. E-mail- isabelleteixeira25101999@gmail.com
131Professora doutora adjunta do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Amazonas. Integrante

do Grupo de Estudo e Pesquisa em Políticas Sociais e Seguridade Social na Amazônia. E-mail-


dayana.rolim@gmail.com

352
1- INTRODUÇÃO

Este artigo traz a discussão sobre as demandas e os desafios na oferta dos


benefícios eventuais de assistência social em tempos de pandemia da Covid-19 no
município de Parintins/AM. A hipótese é que a pandemia da covid-19 juntamente à crise
econômica do país agravou as situações de vulnerabilidades sociais da população de
baixa renda, gerando novas demandas aos benefícios sociais da política de assistência
social.
A pandemia do novo coronavírus tem afetado milhões de trabalhadores, gerando
desemprego e causando danos às famílias vulnerabilizadas. Nesse contexto, o cenário
pandêmico adquiriu visibilidade pública, dada a sua magnitude, todavia, com o intuito de
suprir as necessidades básicas, muitas famílias recorreram aos benefícios eventuais
ofertados pelos serviços socioassistenciais da Política Pública de Assistência Social.
A assistência social reconhecida e amparada legalmente pela constituição federal
de 1988, como direito do cidadão e dever do Estado é uma política pública que realiza
ações socioassistenciais e assenta suas bases pela Lei Orgânica de Assistência Social-
Lei nº8.742, de 7 de dezembro de 1993. Nesta legislação, os Benefícios Eventuais
integram o artigo 22 e fazem parte do rol de serviços socioassistenciais que compõe a
Proteção Social Básica.
A proteção social básica busca prevenir situações de risco e vulnerabilidade social
por meio da potencialização de vínculos familiares, comunitário e afetivo (PNAS, 2004).
Segundo Rizzotti (2009), a vulnerabilidade social está associada à insuficiência de uma
rede de proteção que garanta às famílias o acesso aos direitos.
Em tempos de pandemia, os benefícios eventuais surgem como alternativa para
cobrir as necessidades básicas dos cidadãos desprotegidos e expostos aos riscos,
perdas e danos vivenciados em circunstâncias como: ausência de documentação,
alimentos, residência, violências, ruptura de vínculos familiares e situações de ameaça a
vida (BRASIL, 2018).
Destaca-se que a Política de Assistência Social sempre foi necessária aos seus
usuários, principalmente na garantia da sobrevivência de vários segmentos de
trabalhadores e grupos sociais deste país, como os desempregados, a população de rua,
os indígenas, os quilombolas, ribeirinhos, agricultores, dentre outros sujeitos que têm a
assistência social como uma via de acesso à serviços, programas, benefícios e demais
políticas setoriais.

353
Dessa forma, os Benefícios Eventuais inserido na Proteção Social Básica são
imprescindíveis para cobrir as necessidades básicas daqueles de que dela necessitam.
São provisões ofertadas em forma de pecúnia e bens de consumo que contribuem para
garantir a Proteção Social dos grupos majoritários da sociedade. Nessa perspectiva, é
dever do poder público implementar políticas públicas sociais concretas para viabilizar os
direitos dos cidadãos vulnerabilizados.

2- Benefícios eventuais: da Lei Orgânica da Assistência Social ao reordenamento à


luz da Política de Assistência Social

Os benefícios eventuais são provisões gratuitas de caráter suplementar e


provisório, e são concedidos aos cidadãos que se encontram em situações de
vulnerabilidade temporária, calamidade pública, ou ainda em razão dos acontecimentos
que incidem sobre os ciclos da vida, como nascimento e morte.
De acordo com Bovolenta (2011, p, 366), “a concessão de auxílios e benefícios é
uma prática inerente de atenção por parte da assistência social, a qual se construiu no
campo do direito”. Porém, tais benefícios só passaram a ser reconhecidos como direitos
socioassistenciais por esta política a partir de 1993 com a promulgação da Lei Orgânica
de Assistência Social (LOAS).
Esta legislação afirma no Art. 22, “entendem-se por benefícios eventuais aqueles
que visam ao pagamento de auxílio por natalidade ou morte às famílias cuja renda
mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”. Sendo assim, a
provisão dos benefícios eventuais é prevista pela Lei Orgânica de Assistência Social-
LOAS desde 1993 e foi incorporada mais adiante pela lei nº12. 435, de 2011, nesta há a
responsabilização dos Conselhos de Assistência Social em suas respectivas esferas-
municipais, estaduais e Distrito Federal.
Nessa direção, o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) no decreto n.
212/2006 estabeleceu critérios e prazos para a regulamentação dos benefícios eventuais.
O artigo 4º do documento menciona “a regulamentação dos benefícios eventuais e a sua
inclusão na Lei Orçamentária do Distrito Federal e dos municípios dar-se-ão no prazo de
até doze meses e sua implementação até vinte e quatro meses [...]”.
Portanto, somente em 2007 foi decretada a Lei nº 6. 307, de 14 de dezembro, que
regulamentou os benefícios eventuais dando enfoque as situações de calamidade pública
e vulnerabilidade temporária. O referido decreto estabelece princípios normativos que
orientam as ofertas dos Benefícios Eventuais e estão em consonância com a Lei

354
Orgânica de Assistência Social no Art. 4º da Lei 8. 742/1993.Assim, um desses princípios
é a, I-Integração à rede de serviços socioassistenciais, com vistas ao atendimento das
necessidades humanas básicas. Com base nessas legislações que o Sistema Único de
Assistência Social (SUAS) define e assenta fundamentos cruciais para a execução de
ações, visando estabelecer objetivos direcionados à Proteção Social.
Com o avanço da pandemia da Covid-19 desde março de 2020, os segmentos mais
vulneráveis da sociedade têm sido duramente impactados, necessitando de medidas de
proteção social em seus variados setores. Nesse momento de excepcionalidade, vários
campos de trabalho criaram estratégias para o acompanhamento dos usuários aos
serviços públicos e privados.
No âmbito da política de assistência social o Ministério da Cidadania disponibilizou
a Portaria Nº337, de 24 de março de 2020, que trata acerca de medidas para o
enfrentamento da emergência de saúde pública no âmbito do Sistema Único de
Assistência Social. Nesta resolução foi acordado que os atendimentos aos usuários
seriam realizados por meio de ligação telefônica ou via WhatsApp, sendo voltados
principalmente aos grupos de risco, tais como idosos, gestantes e lactantes, visando
assegurar sua proteção.
Para tanto, a mesma portaria orienta o Sistema Único de Assistência Social a
disseminar informação acerca dos cuidados necessários a prevenção do novo
coronavírus. Além disso,a socialização de informação acerca dos serviços da rede
socioassistencial e as estratégias adotadas em tempos de pandemia da covid19 foi
extremamente necessáriaaos cidadãos em situação de vulnerabilidade social,para que os
mesmos tivessem acesso às necessidades básicas.

3- Demandas dos benefícios eventuais de assistência social e possibilidades da


oferta no município de Parintins/Am

Em período pandêmico, os benefícios eventuais constituíram-se como uma


alternativa para diminuir os efeitos nefastos da crise sanitária, tendo como objetivo cobrir
as necessidades básicas de alimentação, higiene e moradia das famílias em situação de
vulnerabilidade. Diante disso, os Benefícios Eventuais são ofertados de acordo com as
normativas previstas pelo SUAS, sendo caracterizados como auxílio natalidade, auxílio
funeral, vulnerabilidade temporária e calamidade pública.
O auxílio natalidade conforme a Resolução Nº212/2006 constitui-se como uma
provisão temporária, não contributiva da assistência social, é concedido em forma de

355
bens de consumo e direcionado à família para atender as condições do nascimento. No
município de Parintins/Am, recentemente, o auxílio natalidade, segundo a assistente
social 01 da equipe do Plantão Social da SEMASTH, tem a demanda acentuada voltada
para a concessão de “kit bebê”.
No ano de 2020 foram ofertados cerca de 521 kits bebê e no ano de 2021, houve
um aumento expressivo de procura sendo concedido 1.045 Kits. Este benefício
geralmente contém os itens como enxoval, utensílios de higiene e alimentação, sendo
ofertado de acordo com a dignidade e cultura da família beneficiária.
A respeito do auxílio funeral, em conformidade com o Conselho Nacional de
Assistência Social, decreto Nº212/2006 que regulamenta os Benefícios eventuais, o
auxílio funeral constitui-se como uma prestação temporária que visa reduzir a
vulnerabilidade da família em situação de morte.
Durante a pandemia da covid-19a demanda por auxílio funeral no Município de
Parintins ocorreu, principalmente, pelas famílias que não têm condições de custear as
despesas dos serviços advindos da morte. Assim, constatou-se que a oferta para esse
auxílio se deu basicamente para cobrir as despesas através da concessão de urna
funerária, sendo concedido no ano de 2020 um total de303 urnas funerária, já no ano de
2021 houve um aumento expressivo, sendo concedidas 675 urnas pelo serviço funeral.
Na atual conjuntura, a oferta de benefícios eventuais voltada às pessoas
vulnerabilizadas tem se intensificado, sendo as cestas básicas a maior demanda no
município de Parintins. No entanto, foram concedidas no ano de 2020 um total de4.305
cestas básicas, já no ano de 2021 a demanda elevou-se para 10.508 concessão deste
benefício, sendo o limite da oferta, pois sabe-se que a demanda é bem maior.
A respeito disso, o assistente social 01 que atua no plantão social da Secretaria
Municipal de Assistência Social elucida que:
A demanda é muito grande, quando acontece algo como a pandemia, a
demanda acaba sendo maior, inesperada. Para amenizar a situação das famílias
é concedida a cesta básica, mas acaba chegando um quantitativo, por exemplo,
o governo pode mandar 3.000 Cestas Básicas a gente tem que ter a ‘tendência’
de 3.000 cestas, mas as vezes acaba passando. E isto não é o suficiente, então
a gente tem que ir atrás de recursos.

Com isso evidenciou-se que os parcos recursos destinados à política pública de


assistência, resulta na focalização e seletividade dos benefícios eventuais direcionados
às famílias em situação de extrema pobreza. Sabe-se que a pandemia agravou a
vulnerabilidade social dos cidadãos, gerando desemprego, violência, pobreza, entre
outras condicionalidades.

356
Em vista disso, a procura por cestas básicas tornou-se acentuada, um dos motivos
está atrelada ao aumento do desemprego. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (2021), apontam que a taxa de desemprego, no primeiro trimestre de 2021
atingiu 14,8%. Isto retrata a realidade de milhares de pessoas que não têm condições de
suprir as necessidades materiais de existência, mas também comprova a inoperância do
Estado na implementação de políticas públicas permanentes relacionadas à segurança
alimentar.
Diante do alto índice de desemprego e de situações de calamidade pública como a
enchente que atingiu o município no ano de 2020 e 2021, a Semasth concedeu o aluguel
social às famílias atingidas. Assim, pode-se dizer que a “calamidade” ou “desastre” faz
parte de uma historicidade sociocultural e política de acesso desigual às riquezas sociais,
o que acarretou ocupações precárias e em áreas de risco (CFESS, 2022).
Em situações de calamidade pública, a Política de Assistência Social não intervém
de forma isolada, mas opera junto à Defesa Civil.No mais, o Sistema Único de
Assistência Social (SUAS)articulado à Defesa Civil e em consonância com a Tipificação
Nacional dos Serviços Socioassistenciais são responsáveis pelo mapeamento territorial,
com intuito de estabelecer o Serviço de Proteção às famílias afetadas por desastres
naturais.
As ofertas dos benefícios sociais direcionadas às pessoas em situações de
vulnerabilidade e risco social são geralmente concedidas de acordo com as necessidades
detectadas pela equipe que atua no Plantão Social, sendo avaliada as vulnerabilidades
agravadas por ocorrências que geram perdas e afetam a integridade física e psíquica dos
indivíduos e membros da família.
Nesse contexto, percebe-se que a equipe do plantão social atende à demanda dos
usuários conforme a realidade específica das famílias. Constatou-se que mesmo
atendendo as demandas e ofertando todas as modalidades de benefícios. Existe um
protocolo a ser seguido pelos profissionais, ou seja, é feita uma seleção para que os
benefícios sejam concedidos às famílias em situação de vulnerabilidade.
De acordo com as falas das assistentes sociais do plantão social, verificou-se que a
seleção é feita mediante a renda per capita familiar:
A seleção é por conta da situação de vulnerabilidade e se a família se encaixa no
perfil. Tem muita gente que tem renda no final do mês, mas tem família que não
tem nenhuma renda. Só tem do auxílio Brasil que agora é 400 reais por mês,
mas fora isso, tem indivíduo que não tem renda nenhuma, não recebe nenhum
benefício. Então essas são as principiais famílias que passam a ser selecionadas
para receber o benefício eventual (Assistente social 02).

É traçado um perfil, é levado em consideração a questão da renda, é verificado


se a pessoa é um servidor público, se ela recebe algum benefício

357
socioassistencial. Temos o auxílio Brasil, o auxilio estatual, o BPC 87/88. Mas
tem suas exceções. Há famílias digamos que, tem um emprego, mas naquele
determinado mês, ficou desempregado, como ocorreu na pandemia, que houve o
aumento do desemprego, ou ainda devido a uma possível eventualidade e
precisou de algum benefício, mas enfim, a gente sabe que a gente está sujeito a
isso, aí é analisado, se a pessoa se enquadrar, é contemplada (Assistente social
03).

Verificou-se nas falas dos assistentes sociais que, o atendimento no plantão social,
faz-se necessário à população em situação de vulnerabilidade. Porém, percebeu-se que
ao seguir à rigor os critérios de seleção para a concessão dos benefícios eventuais, os
profissionais correm o risco de cair nas armadilhas do assistencialismo. Reproduzindo
assim, a prática conservadora e pragmática.
Em tempos de pandemia isto tornou-se evidente, principalmente no que concerne à
tentativa de atender as demandas imediatas. Contudo, foi necessário atuar com base nas
diretrizes e princípios que norteiam a ação profissional no âmbito da política de
assistência social em tempos de pandemia da covid19,visando a concessão de oferta de
benefícios eventuais aos cidadãos em situações de vulnerabilidade, atuando de forma
crítica em meio a um cenário caótico de destituição dos direitos de cidadania.
Infere-se, portanto, que a equipe do Plantão social que atua no setor dos benefícios
eventuais, responsáveis pela efetivação de políticas voltadas aos direitos de cidadania,
devem criar estratégias e mecanismos de intervenção diante do atendimento de
demandas e operacionalização de oferta por benefícios eventuais em tempos de
pandemia da covid19. De modo a possibilitar o acesso da população vulnerabilizada aos
benefícios socioassistenciais, visando cobrir as necessidades básicas dos cidadãos.

4- CONCLUSÃO

A partir do exposto foi possível compreender a importância e essencialidade dos


serviços ofertados pela política pública de assistência social, principalmente no que tange
à concessão de benefícios eventuais. Verificou-se que há um aumento significativo de
demandas por serviços socioassistenciais por parte de segmentos sociais
vulnerabilizados, que recorrem aos benefícios eventuais nas modalidades de auxílio
natalidade, vulnerabilidade temporária, entre outros, em meio a um contexto de cortes de
recursos orçamentários destinado à Política de Assistência Social.
Diante desta perspectiva, ressalta-se o trabalho do Assistente Social na Secretaria
Municipal de Assistência Social, Trabalho e Habitação (SEMASTH) frente aos desafios
impostos tanto pelas condições objetivas das instituições empregadoras, quanto pelo

358
cenário instaurado pela pandemia da Covid-19. Logo, os profissionais tiveram que
redefinir suas ações, fundamentando-se a partir do arcabouço teórico-metodológico,
técnico-operativo e ético-político, atuando de forma crítica na busca pela garantia e
efetivação dos direitos sociais.

5- REFERÊNCIAS

BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL. Secretaria Nacional da


Assistência Social: Departamento de Benefícios Assistenciais e Previdenciários:
Coordenação Geral de Regulação e Análise Normativa. Orientações Técnicas Sobre
Benefícios Eventuais no SUAS. Brasília, 2018.

BRASIL. Ministério da Cidadania. Portaria n° 337/2020. Dispõe acerca de medidas para o


enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente
do coronavírus, COVID-19, no âmbito do Sistema Único de Assistência Social. Diário
Oficial da União de 25/03/2020. Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-
/portaria-n-337-de-24-de-marco-de-2020-249619485

BOVOLENTA, G, A. Os benefícios eventuais previsto na LOAS: o que são e como estão.


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BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME


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2009.

360
GESTÃO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO CONTEXTO DA PANDEMIA
DO COVID 19 NA CIDADE DE SÃO PAULO

Robson de Jesus Ribeiro132


Maria José de Oliveira Lima133

RESUMO:

O novo Coronavírus exigiu das políticas públicas medidas


voltadas para a prevenção e mitigação aos agravos
causados pela crise sanitária. Nesse cenário, busca-se
compreender as estratégias de gestão da Política de
Assistência Social na cidade de São Paulo no enfrentamento
da calamidade pública frente á experiência já consolidada
com emergências e riscos socioambientais. Espera-se com
esse estudo aprimorar o debate sobre o enfrentamento de
riscos e emergências socioambientais na Assistência Social
minimizando possíveis impactos no cotidiano vivido pela
população.

Palavras-chave: Políticas Públicas. Assistência Social.


Calamidade Pública.

ABSTRACT:

The new Coronavírus required public policies to take


measures aimed at preventing and mitigating the harm
caused by the health crisis. In this scenario, we seek to
understand the management strategies of the Social
Assistance Policy in the city of São Paulo in the face of
public calamity in the face of the already consolidated
experience with emergencies and socio-environmental risks.
This study is expected to improve the discussion on coping
with socio-environmental risks and emergencies in Social
Assistance, minimizing possible impacts on the daily life of
the population.

Key Word: Public policy. Social Assistance. Public Calamity.

132 Mestre em Desenvolvimento Territorial e Doutorando do Programa de Pós-graduação em Serviço Social


da UNESP/FCHS
133 Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UNESP/FCHS e líder do Grupo

de Pesquisa Gestão Socioambiental e a Interface com a Questão Social – GESTA – EIXO: – Política Social,
trabalho e questão social: retrocessos e resistências na conjuntura atual

361
1- INTRODUÇÃO

O presente artigo busca compreender as estratégias de enfrentamento da


SARSCOV-2 (COVID-19) na megalópole de São Paulo no contexto da Política Municipal
de Assistência Social.

Nesse sentido é necessário contextualizar questões importantes no sentido de


enfrentamento da crise sanitária com rebatimentos sociais, econômicos, políticos e
ambientais no país.

Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Brasil,


atualmente ocupa o 7º lugar no ranking de país mais desigual no mundo, conforme o
relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD,2019). Em
2019 eram 206 pessoas acumulando uma riqueza correspondente á quase 20% do PIB
brasileiro (IBGE/PNAD, 2019).

Do lado oposto, milhares de pessoas vivem em situação de miséria, onde 104


milhões de pessoas têm renda média per capta inferior á R$413,00 mensais e 10,4
milhões de pessoas sobrevivem com menos de R$51,00 mensais (IBGE/PNAD, 2019).

É importante destacar que a desigualdade que assola o Brasil também se


manifesta nas relações de trabalho, onde em 2019 tínhamos um contingente de 12, 6
milhões de brasileiros nesta situação e, também 41,4% de seus trabalhadores em
situação de trabalho informal (IBGE/PNAD, 2019).

Lara e Hillesheim (2020) explicitam que a COVID-19 provocou diversas incertezas


no mundo do trabalho; dessas a única certeza é que as classes subalternas e vulneráveis
estão sendo e continuarão a ser as mais atingidas. Para os autores a pandemia
acentuou a crise econômica que coexistia com a crise ecológica (aquecimento global,
desmatamentos, poluição), gerando uma crise sanitária em proporções globais (LARA e
HILLESHEIM, 2020).

Nesse contexto, segundo Lara e Hillesheim (2020), a produção destrutiva


intensificou sua ação e colocou em xeque o direito à vida. Por isso, são necessárias
políticas de seguridade social que ofereçam saúde, emprego e assistência social para
milhões de pessoas que entrarão em pobreza absoluta.

Em uma escala global, as políticas sociais têm sido contestadas por determinados
grupos que através da retórica de enfrentamento ao novo Coronavírus, tem se enfatizado

362
a necessidade de contrarreformas, agravando ainda mais a situação de crise profunda
que estamos vivendo, onde segundo Yazbek et.al., (2020) as desigualdades se tornam
mais visíveis, atingindo de forma distinta alguns grupos da população.

No Brasil, tal enfrentamento às políticas sociais, no sentido de enfraquecimento


das políticas públicas e da ciência é frequentemente veiculado em diversos espaços,
principalmente na mídia, essas ações têm se intensificado após o surgimento do novo
Coronavírus.

Para Yazbek et.al., (2020), a situação de calamidade pública na qual estamos


imersos, torna mais visível a aguda crise e expõe os pontos críticos das contrarreformas
neoliberais no Brasil, em favor do grande capital e em detrimento das necessidades e
direitos das classes trabalhadoras.

A expansão da(s) direita(s) no cenário nacional e internacional, o crescimento do


conservadorismo de traços fascistas e intensa precarização das condições de
trabalho e de vida são expressões concretas da atual fase de acumulação do
capitalismo internacional que não podem ser creditadas à pandemia causada
pelo novo Coronavírus (YAZBEK, et al., 2020 p. 207).

A Pandemia coloca na pauta do dia a reflexão de que se o vírus não faz distinções
para infecção, por outro lado, os privilégios de classe desvelam os abismos
socioeconômicos da sociedade brasileira, que segundo Toledo e Rosa (2020) a partir
dessa realidade escancarada, muitas ações poderiam ser tomadas no sentido de
enfrentamento à essas questões, mas, ao que parece, a lógica adotada para a condução
das políticas públicas tem focalizado a “indústria na UTI” e a “morte dos CNPJs”.

2- DESENVOLVIMENTO

De modo geral, a crise oriunda do novo Coronavírus apenas reafirma questões já


vivenciadas no âmbito das políticas públicas diariamente em todo o Brasil. Para Mascaro
(2020), a dinâmica evidenciada pela pandemia é o modelo de relação social baseado na
apreensão dos meios de produção pelas mãos de alguns e pela exclusão da maioria dos
seres humanos do sustento natural da sua subsistência.

Uma das expressões dessa divisão desigual dos meios de produção e distribuição
de riquezas se materializa na precarização das relações de trabalho, segundo Mascaro,
(2020) as classes desprovidas de capital são coagidas a obter através de estratégias de
venda a sua força de trabalho.

363
A imensa desigualdade existente apenas intensifica os custos humanos da
pandemia. Mascaro (2020) afirma que o flagelo do desemprego, as habitações precárias
(que inviabilizam suportar a quarentena), as contaminações em transporte público lotados
e a fragilidade do sistema de saúde são exatamente e necessariamente contradições
históricas do sistema capitalista.

São Paulo, enquanto maior cidade do país acumula cenários de agudização da


pandemia e explicita as inúmeras desigualdades socioterritoriais existentes,
demonstrando necessidade urgente de intervenção das políticas públicas.

Boaventura de Souza Santos (2020), afirma que as discussões sobre as medidas


de enfrentamento à pandemia e, também os debates culturais, políticos e ideológicos,
que frequentemente conduzem o rumo da ciência, têm uma opacidade estranha que
decorre do distanciamento em relação ao cotidiano vivido pela maioria da população.
Diante disso, alguns problemas existentes na vida das pessoas como a mortalidade
infantil, expectativa de vida e condições de moradia, por exemplo, ficam em segundo
plano.

É nesse processo de intensificação de vulnerabilidades sociais e ambientais que


se tornam cada vez mais possíveis quadros de riscos, emergências e calamidades e as
diversas barbáries que a humanidade produz. Mészáros (2011, p.29) aponta que o que
está necessariamente em curso atualmente não é apenas uma crise financeira maciça,
mas o potencial de autodestruição da humanidade no atual momento histórico.

Os abismos sociais presentes no lócus desse projeto de pesquisa servem para


contextualizar e justificar a escolha do recorte de estudo e a necessidade de intervenção
das políticas públicas e estão analisados pelas Figuras 1 e 2.

A Figura a seguir mostra que o distrito de Moema (81 anos) e Jardim Paulista (80
anos) tem a maior idade média ao morrer da capital e registraram número baixo de óbitos
por Covid-19. Ambos os distritos somaram 130 casos de falecimentos.

Do lado oposto, temos os distritos Grajaú (59 anos) e Cidade Tiradentes (57
anos), que além de apresentarem a menor idade média ao morrer, demonstram altos
números de óbitos por Covid-19, somam 469 mortes.

Isso representa que os distritos mais vulneráveis têm 3,5 vezes mais óbitos se
comparados a distritos localizados em regiões mais abastadas da cidade.

364
Figura 1. Covid-19 e idade média ao morrer na cidade de São Paulo

Fonte: Rede Nossa São Paulo, 2020.

A intensa desigualdade socioterritorial, ilustrada pela Figura 1, deixa


evidente que a pandemia vitimiza com maior frequência a população que reside
em regiões mais periféricas e que convive com acesso limitado às políticas
públicas. Evidencia ainda, a seletividade do atual modelo de sociabilidade vigente
e mostram que alguns indicadores sociais podem acelerar o impacto da pandemia.

Iamamoto (2018), ao escrever sobre a questão social brasileira na complexidade


dos tempos atuais, assume que essa é a materialização de:

Múltiplas desigualdades mediadas por disparidades nas relações de gênero,


características étnico-raciais, mobilidades espaciais, formações regionais e
disputas ambientais, colocando em causa amplos segmentos da sociedade civil
no acesso aos bens da civilização. Dispondo de uma dimensão estrutural-
enraizada na produção social contraposta à apropriação privada do trabalho -, a
questão social atinge visceralmente a vida dos sujeitos numa luta aberta e surda
pela cidadania, no embate pelo respeito aos direitos civis, sociais e políticos e
aos direitos humanos (IAMAMOTO. 2018 p.72).

A Figura 2 mostra que os três distritos que não reúnem domicílios em favelas, Alto
de Pinheiros, Jardim Paulista e Moema, de acordo com os dados oficiais, tem baixo
número de óbitos pelo Covid-19 se comparados com a média da cidade.

Os distritos de Brasilândia e Sacomã com 30% e 28% de seus domicílios


localizados em favelas concentram mais de 500 mortes.

365
Figura 2. Covid-19 e moradia na Cidade de São Paulo

Fonte: Rede Nossa São Paulo, 2020.

Diversos estudos têm evidenciado que a aceleração do impacto da pandemia de


Covid-19 relaciona-se diretamente com o aumento das vulnerabilidades socioterritoriais.
Loureiro Werneck e Sá Carvalho (2020) apontam que no Brasil, os desafios para o
enfrentamento do Coronavírus ainda são maiores, pois em contexto de grande
desigualdade social, com populações vivendo em condições precárias de habitação e
saneamento, sem acesso sistemático à água e em situação de aglomeração, há um
possível aumento da transmissão do vírus.

Nesse cenário de intensa desigualdade social existente e acelerado pela


pandemia do COVID 19 fica evidente a necessidade da atuação das políticas públicas,
principalmente em regiões com maior prevalência de vulnerabilidades onde às vezes a
única política pública existente é a assistência social.

Desta forma, Sposati (2004) reafirma que a assistência social, como campo de
efetivação de direitos é política estratégica, está voltada para a construção de mínimos
sociais e para a universalização de direitos.

Os desastres socioambientais têm variação no tamanho do impacto de acordo


com as condições de risco, vulnerabilidade social e capacidade de resposta do espaço
socioterritorial onde ocorrem. Santos (2012) destaca que esses desastres são frutos,
dentre outros fatores, da crise socioambiental vivenciada na atualidade e dos modelos de
desenvolvimento.

366
Discorrendo sobre a Assistência Social e a Pandemia, Bichir e Stuchi (2020),
defendem a ideia de que em face à pandemia de Covid 19, as provisões da Política de
Assistência Social mostram-se essenciais, principalmente a partir da estrutura
consistente que se consolidou nos últimos anos.

Os trabalhadores do Sistema Único de Assistência Social são responsáveis por


assegurar operações ágeis e procedimentos regulados para atenção excepcional
junto aos mais vulneráveis, em especial à população que não possui condições
básicas para sua sobrevivência cotidiana através do trabalho. Entretanto, é
necessário fortalecer a coordenação e a governança dessa rede
socioassistencial, evitando dispersão, fragmentação e sobreposição de ações,
além da falta de investimentos adequados (BICHIR E STUCHI, 2020, p. 07).

Dentre as políticas públicas, a Política de Assistência Social tem um papel


fundamental na gestão do risco em situações de emergências socioambientais como a
vivenciada atualmente, uma vez que dispõe de uma rede de serviços socioassistenciais,
um conjunto de programas, projetos, benefícios e serviços voltados para possibilitar a
proteção social e atendimento da população.

Para Santos (2012), analisando a realidade brasileira, pode-se constatar que a


política pública que vem, constantemente, sendo chamada a dar respostas aos desastres
é a Política de Assistência Social que se sobrecarrega especialmente nas fases de
emergência e pós-impacto.

Bichir e Stuchi (2020) defendem que o enfrentamento da crise sanitária que


estamos vivenciando é uma excelente oportunidade para consolidar e ampliar estruturas
de proteção social que vem instituída desde a Constituição de 1988. Para as autoras, o
grande desafio é a construção de uma ampla coalizão de apoio a essas estruturas, para
além de esforço conjuntural, consolidando a noção de direito à proteção social e
garantindo investimentos para a manutenção dessas estruturas.

3- CONCLUSÃO

Desde que o início da crise sanitária, uma série de medidas vem sendo tomadas,
tanto no sentido da prevenção, como no enfrentamento e mitigação dos impactos da
pandemia na sociedade, em especial na Política de Assistência Social.

As políticas públicas, outrora alvo de contrarreformas e ausência de investimentos


tão contestadas, demonstraram-se imprescindíveis no contexto da pandemia, o maior
desafio da humanidade desde a Segunda Grande Guerra.

367
Diante disso é necessário a compreensão de que a crise sanitária que estamos
imersos trouxe, para o Poder Público em geral e para o Sistema Único de Assistência
Social em particular, o desafio de aliar o objetivo de prevenção redução da disseminação
da COVID com as inúmeras vulnerabilidades presentes no cotidiano da população,
especialmente em uma megalópole com mais de 12 milhões de habitantes como é o caso
de São Paulo.

O desafio da dimensão epidemiológica do vírus se alarga a partir dos estudos


que vão desvelando novas mutações e variantes, quanto ao impacto social da crise
sanitária, ainda estão sendo conhecidos no âmbito global as diversas expressões da
crise sanitária no desenvolvimento socioterritorial e em grupos específicos.

No caso de São Paulo foi possível perceber que o enfrentamento do vírus só foi
possível a partir do trabalho intersetorial da assistência social com outras políticas
públicas, principalmente pelo fato de que as inúmeras vulnerabilidades presentes no
território exigiam ações de caráter intersetorial.

É necessário aprimorar o debate sobre o enfrentamento de riscos e emergências


socioambientais e as interfaces com a Política de Assistência Social e ainda para a
necessidade de gestão e planejamento, principalmente em tempos de contrarreforma e
perdas significativas de direitos para que seja possível minimizar possíveis impactos no
cotidiano vivido pela população e na violação de direitos.

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social, trabalho e crise em tempos de pandemia. Revista Serviço Social e
Sociedade. São Paulo, n. 138, p.207-213, maio/ago. 2020.

369
NEGACIONISMO E DESVALORIZAÇÃO DA CIÊNCIA: expressões do
conservadorismo na Política de Saúde brasileira atual

Isabella da Paixão Alves134


Bruna Atalaya de Almeida Rocha135
Débora Cristina Lopes Santos136
Isadora das Graças Freitas137
Laura Marcelino Leal138
Marina Monteiro de Castro e Castro139

Resumo: O presente artigo debate o negacionismo e a


desvalorização da ciência e seu impacto para a política de
saúde brasileira. Realiza uma crítica do Governo Bolsonaro
e o direcionamento dado à política de saúde ,na a pandemia
da covid-19
Palavras-chave: Negacionismo. Conservadorismo.
Covid19.

Abstract: This article discusses the denialis mand


devaluation of science and its impact on Brazilian heal th
policy. Performs a critique of the Bolsonaro government and
the direction given to health policy, in the covid-19 pandemic.
Keywords: Denialism. Conservatism. Covid-19.

134 Assistente Social. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade de Serviço
Social/Universidade Federal de Juiz de Fora. Email: isabellapaixaoalves@gmail.com
135 Graduanda em Serviço Social da Faculdade de Serviço Social/Universidade Federal de Juiz de Fora.

Bolsista de Iniciação Científica- BIC/UFJF.email:brunatalaya@gmail.com


136 Assistente Social. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade de Serviço

Social/Universidade Federal de Juiz de Fora. Emai: deboracristinalopessantos@gmail.com


137 Graduanda em Serviço Social da Faculdade de Serviço Social/Universidade Federal de Juiz de Fora.

Bolsista de Iniciação Científica- BIC/UFJF. Email:isa.freitas101@outlook.com


138 Assistente Social. Mestre em Serviço Social-Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da

Faculdade de Serviço Social/Universidade Federal de Juiz de Fora. Email:lauralealufjf@gmail.com


139 Assistente Social. Doutora em Serviço Social/UFRJ. Professora da Faculdade de Serviço Social da

Universidade Federal de Juiz de Fora. Orientadora do projeto de pesquisa: “Determinação social da saúde e
pandemia da COVID-19 no Brasil”. Eixo temático: Ofensiva ultraneoliberal do capital e lutas sociais- Política
Social, trabalho e questão social: retrocessos e resistências na conjuntura atual.
Email:marinamcastro@gmail.com

370
1- INTRODUÇÃO

Desde o início da pandemia, o Brasil viveu uma intensificação do discurso anti-


ciência e negacionista, e a adoção da defesa da seleção natural como resposta à
pandemia, aliado a um amplo ataque às medidas de isolamento. O impacto desse
processo foi à resposta tardia à pandemia.
Se a pandemia se impôs em escala global, podemos afirmar que seus impactos
no contexto brasileiro têm importante ligação com as particularidades das formas como o
conservadorismo se explicita em nossa realidade e do direcionamento dado às políticas
de saúde pelo governo federal brasileiro.
Neste sentido, este artigo tem por objetivo problematizar a relação entre
negacionismo e desvalorização da ciência e os impactos das expressões do
conservadorismo na Política de Saúde brasileira atual, enfatizando os processos
desencadeados na pandemia.

2- DESENVOLVIMENTO

2.1- Bases do Conservadorismo

O pensamento conservador tem origem como enfrentamento ao novo mundo que


surgia com a revolução burguesa e com os ideais do iluminismo, especialmente à
concepção anti-tradicionalista que se chocava com os interesses da nobreza. Contudo,
se em sua gênese o conservadorismo era anti burguês, passa logo a servir à luta de
classes ao espraiar seu pensamento contra a luta dos trabalhadores na primeira metade
do século XIX (SOUZA et al, 2020).
Coutinho (2010) afirma que uma das principais causas que a burguesia
apressava-se em abandonar era a categoria “Razão”. Esta passa a ser vista de forma
cética, como instrumento de conhecimento ou limitada às esferas menos significativas da
realidade. A decadência do pensamento está posta na medida em que há a negação ou
limitação do papel da razão no conhecimento e na práxis dos homens.
Netto (2011) destaca que a argumentação conservadora ao longo do século XIX,
pode ser sintetizada da seguinte forma: só são legítimas a autoridade e a liberdade
fundadas na tradição; a liberdade deve ser sempre uma liberdade restrita ; a democracia
é perigosa e destrutiva; a laicização é deletéria; a Razão é destrutiva e inepta para
organizar a vida social; a desigualdade é necessária e natural, ou seja, em toda

371
sociedade constituída por classes distintas, necessariamente algumas classes se
encontram em situação superior.
Podemos dizer que existe certo consenso em colocar Edmund Burke como o pai
do conservadorismo clássico, quando em 1790 pública “Reflexões sobre a Revolução na
França” - origem da sua matriz ideológica que possui forte irracionalismo e discurso
reacionário, os quais ainda são conceitos que estruturam as formas conservadoras atuais
(SOUZA, 2016).
Lukács (1959) em “El asalto a La Razón” aponta que o irracionalismo é a resposta
mais clara do pensamento reacionário e que se manifesta na luta constante contra o
materialismo e o método dialético, sendo uma expressão filosófica da luta de classes. O
que marca o irracionalismo é o conteúdo fundamental de repulsa ao marxismo e de
afirmação dos preceitos da burguesia reacionária.

Nos encontramos aquí com uma nota muy importante del irracionalismo: uno de
losservicios más señalados que esta filosofia presenta a la burguesia
reaccionaria consiste precisamente em oferecer al hombrecierto “confort” enlo
tocante alaconcepcióndel mundo, lailusión de uma libertad total, lailusión de la
independência personal y ladignidad moral e intelectual, em uma conducta que lo
vincula em todos y cada uno de sus actos a la burguesia reaccionaria y
loconvierte em servidor incondicional syo (LUKÁCS, 1959, p.19).

Todo este processo influencia a eliminação do pensamento crítico e da consciência,


conduz ao treinamento, à obediência e ao conformismo e criam pré-requisitos para a
aceitação semifascista de ordens desumanas (MANDEL, 1985).

2.2- O conservadorismo no Brasil e os impactos na política de saúde

O conservadorismo no Brasil da atualidade vem se expressando com a ascensão


de um governo de extrema direita, reacionário e de caráter autocrático. Dessa forma, o
golpe parlamentar, jurídico, midiático e empresarial contra a presidenta Dilma Roussef
em 2016, bem como as eleições de Jair Messias Bolsonaro em 2018, demonstram um
importante retrocesso em pautas que pareciam “superadas” e uma substancial escalada
do conservadorismo no Brasil.
Souza et al. (2020) compreendem esse contexto como uma “intensificação das
marcas da nossa formação social”. Ou seja, um país marcado por uma ausência de
projeto nacional da burguesia brasileira, perpetuando a subalternidade, e calcado no
trabalho escravizado e na colonização, que reproduziu sob essas bases, uma política de
saúde de base racista e eugênica.

372
Sobre a ascensão da extrema-direita no Brasil, embora diversos autores dêem
importante destaque às manifestações ocorridas em 2013140, Calil (2020) defende que as
bases do avanço da extrema direita já estavam se estruturando pelo menos desde o
início dos anos 2000.
O autor demonstra, através do estudo de Patschiki (2012), que o “Mídia sem
máscara” foi uma rede social importante na disseminação de idéias conservadoras e
reacionárias. Esta veiculava ideais Olavistas141, disseminando fakenews, através de um
forte discurso anticomunista e que tinha como principal objetivo demonstrar como toda a
grande mídia brasileira seria supostamente comandada pela esquerda.
Assim, as raízes do Bolsonarismo não são resultado apenas do processo vivido
na última década, mas pode-se dizer de um marco relacionado às efervescentes
manifestações de 2013, que demonstram importante esgarçamento do pacto social que
se vinha administrando.

Desde as manifestações de junho de 2013, começam a ser expostas as


profundas limitações deste pacto (pacto social petista com a burguesia)
verbalizados nos motes do alto custo de vida e do caos nos serviços públicos,
em particular nos transportes. Cria-se assim, a fissura política para que o capital
não reconhecesse mais no pacto petista a capacidade para realizar os ajustes
controlando os trabalhadores e movimentos sociais (SOUZA et al., 2020, p.43).

Para Vilela e Selles (2020) o negacionismo científico não é um fenômeno novo,


porém este seguia sem muita força na opinião pública brasileira nos últimos tempos. O
crescente discurso negacionista de temas e teorias que já pareciam consensuais na
atualidade, emergiram com bastante força em decorrência da ascensão do
conservadorismo que se dá mundialmente.
Na tese de Calil (2021), o negacionismo propagado pelo governo Bolsonaro é
uma estratégia de fascistização, ao considerar ser o irracionalismo um importante pilar do
fascismo. O autor entende o processo de fascistização como um projeto com traços

140 As jornadas de junho de 2013 foi um grande movimento de massa ocorrido no Brasil que, a partir da
disputa de diferentes pautas, contribuiu para o avanço de grupos conservadores no Brasil. A esse respeito
ver em: DEMIER, F. Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad x,
2017.
141 Olavo de Carvalho (1947-2022) foi um autodeclarado filósofo, com trajetória controversa e polêmica,

expressivo representante do conservadorismo brasileiro, destacou-se por sua visão reacionária que forneceu
importantes bases ideológicas ao bolsonarismo. (CALIL, 2021) Tendo sido diversas vezes referenciado pela
mídia brasileira como “guru do bolsonarismo”. Com relação à pandemia propriamente dita, não foram raras as
vezes que Olavo de Carvalho minimizou sua gravidade, chamando-a de “historinha de terror”, colocou em
dúvida a existência do coronavírus e dos benefícios da vacina. Ironicamente faleceu de complicações da
Covid-19, vírus que negava a existência, no início de 2021.Para entender sobre a relação entre Olavismo e
Bolsonarismo, consultar: CALIL, Gilberto. Olavo de Carvalho e a ascensão da extrema-direita.
ARGUMENTUM (VITÓRIA), v. 13, p. 64-82, 2021.

373
fascistas em um “regime político que ainda mantém um conjunto de salvaguardas
democráticas” (CALIL, 2021, p.71).

O negacionismo tem distintas dimensões, desde sua formulação original por


pretensos historiadores nazistas que negavam o holocausto, passando pelo
negacionismo ambiental e científico e culminando no negacionismo da
pandemia. A perspectiva negacionista remonta às publicações de Paul Rassiner
na década de 1960, negando a existência do holocausto, mas teve maior
projeção a partir das obras de Robert Faurisson, no final dos anos 1970. O
avanço destas perspectivas negacionistas foi denunciado em Os assassinos da
memória, obra fundamental do historiador Pierre Vidal Naquet. Entre 1986 e
2001, o Brasil esteve entre os países com maior volume de publicações
negacionistas, em virtude das atividades da Editora Revisão, constituída em
Porto Alegre por SiegfriedEllwangerCastan. Embora tenha recebido apoio de
neonazistas pelo menos desde 2011, Bolsonaro mantém discurso público
baseado em outra vertente do negacionismo: a proposição de que o nazismo é
de esquerda reiteradamente reproduzida nas redes sociais bolsonaristas (CALIL,
2021, p.71).

Muito se disse de uma possível falta de estratégia e habilidade do governo


brasileiro na condução da situação sanitária no país, contudo, o estudo de Calil (2021)
busca demonstrar como o governo de Bolsonaro atuou com uma estratégia bem definida
que foi decisiva aos rumos da pandemia no Brasil e que se consolidou entre os meses de
março e abril de 2020. Esta teve crescentes incentivos de comportamentos que
aceleravam os índices de contaminação, descredibilizavam a gravidade da pandemia,
propagaram falsas informações sobre tratamentos cientificamente comprovados como
ineficazes, sob o mote de alcançar a “imunidade de rebanho”.
A OMS (2020, p.2) desde o início da pandemia, sinalizava que os países teriam
que tomar decisões difíceis para atingir um equilíbrio entre as “demandas de resposta
direta à COVID-19 e a realização de planejamento estratégico e ação coordenada para
manter a prestação de serviços essenciais de saúde, reduzindo o risco de um colapso do
sistema”.
Essa sinalização esteve baseada na experiência científica do surto do Ebola e da
evidência de que, quando os sistemas de saúde ficam sobrecarregados, há um aumento
drástico na mortalidade direta causada por um surto e também na mortalidade indireta
por doenças imunopreveníveis e por aquelas doenças que possuem tratamento142.
Lara (2020) faz um retrospecto das doenças e pandemias que devastaram a
humanidade e indica que estas estão presentes desde a origem da sociedade. O autor

142 Análises do surto de ebola em 2014-2015 sugerem que o aumento no número de óbitos causados por
sarampo, malária, HIV/AIDS e tuberculose atribuíveis a falhas no sistema de saúde ultrapassou o número de
óbitos causados pelo ebola (OMS, 2020).

374
destaca algumas delas que no desenvolvimento da sociedade moderna transformaram-
se em epidemias e pandemias, em ordem temporal, a saber:

Peste de Atenas (430-427 a.C); Peste antonica em Roma (166); Epidemia de


varíola no Japão (735-737); Peste bubônica (1347-1353); Praga da China (1641);
Epidemia de febre amarela em Nova Orleans (1853); Pandemias de cólera (ao
longo do século 19; Gripe Espanhola (1918-1919); Pandemias de AIDS (1980);
Pandemia de SARS - 1 (2002-2004); Gripe Suína (2009); Epidemia de cólera no
Haiti (2010); Ebola (2013-2016); Zica Vírus (2015); Pandemia de Covid-19 (2020)
(LARA, 2020, p. 54).

Porém, o governo federal manteve a postura negacionista e anticientífica, vista


expressamente na larga rejeição de acordos internacionais para obtenção de vacinas
tendo impactado no reconhecimento da doença e nas baixas taxas de vacinação no início
da campanha. Esse fato, aliado as denúncias de falta de oxigênio no Amazonas e
desvios de verbas públicas, gerou a abertura de investigação através da Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid143.
Nascimento (2022) destaca ainda a utilização das redes sociais no processo de
negação à ciência no que diz respeito à covid-19. Parte da estratégia negacionista, as
redes sociais serviram para disseminar narrativas conspiracionistas e conservadoras,
gerando dúvidas e informações inverídicas. Assim, a autora se utiliza dos estudos do
filósofo Hansson para destrinchar algumas características do discurso negacionista, que
se valem de estratégias denominadas: Zumbi, que representa fazer reviver argumentos
comprovadamente refutados pela ciência (ex: terraplanismo); e cortina de fumaça, que
traz à tona debates que objetivam desviar atenção dos pontos centrais da discussão.
Outra falácia indicada foi a separação saúde/economia e a indicação de que ao
avanço das desigualdades no Brasil foi desencadeado estritamente pela pandemia.
Fontes (2020, p.01) indica que “longe da falaciosa versão de que "vínhamos crescendo e
o vírus poderia atrapalhar" (...), o Brasil já experimentava uma crise em curso. Portanto, a
crise não surge na pandemia, na verdade, neste cenário ela se agudiza.
Sistematizando as posturas do Governo federal na pandemia, Matos (2021)
apresenta de forma clara, as posições:

Sobre o distanciamento social, desde o início, Bolsonaro se posicionou


contrariamente, dizendo que não era para toda a população e sim para um
público, que as pesquisas internacionais indicavam - ao contrário da realidade no
Brasil - como mais vulnerável, que eram idosos/as e pessoas com comorbidades.

143A CPI da Covid foi criada em 13/04/2021 no Senado Federal, sendo presidida pelo Senador Omar Aziz, e
teve como finalidade investigar a falta de oxigênio para pacientes internados no Amazonas, bem como
possíveis desvios de verbas públicas e omissão dos entes federados na condução da situação de calamidade
pública gerada pela pandemia. O relatório final foi aprovado em 26/10/2021 e pode ser acessado em
https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2441. Acesso em 14 jun 2022.

375
Ao mesmo tempo em que relativizava o risco, disse que pessoas com perfil de
atletas, como ele, não seriam acometidas pela doença. Não por acaso, também
se posicionou nos meios de comunicação de que a economia não poderia parar
por causa de alguns, tidos na retórica governamental, mesmo que não
expressamente, como “débeis”, “fracos”, “incapazes”, enfim, gente que poderia
ser descartada pela economia do capital e por uma sociedade “ideal”, tal qual
nos antigos sonhos hitleristas (MATOS, 2021, p.32).

Dessa forma, no Brasil, é com o governo Bolsonaro, declaradamente


conservador, de extrema direita e reacionário, que o discurso anticiência ganha força e
traz danos incalculáveis no enfrentamento à pandemia.

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste artigo buscamos demonstrar um movimento do governo federal de


descrédito com relação às pesquisas e à ciência, através de ideais negacionistas e
conservadores que afetaram diretamente à política de combate à pandemia.
Vimos neste artigo, que desde a indicação de medidas de isolamento com o mote
do “fica em casa”, mantendo em trabalho presencial somente os serviços essenciais e
sem políticas de proteção social, asfakenews e o forte discurso anti-vacina,
representaram uma negação da ciência e da realidade de desigualdade nacional.
Ressaltamos que esse direcionamento estabelecido pelo governo brasileiro vai na
contramão do que a humanidade vem avançando em termos do conhecimento, como
também na dos princípios e diretrizes que balizaram a construção do Sistema Único de
Saúde brasileiro.

4- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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377
COMUNIDADES TERAPÊUTICAS NO NORTE FLUMINENSE DO ESTADO DO RJ:
análises iniciais e preocupantes.

Juliana Desiderio Lobo Prudencio 144


Laís Santos Theodoro145
Késsia Ramos Ferreira146
Victoria Lavignia Oliveira Baqueiro147

Resumo: O presente estudo pretende refletir acerca das


Comunidades Terapêuticas - CTs na região Norte
Fluminense localizado no Estado do Rio de Janeiro. Trata-
se de uma revisão de literatura e documental. Diante disso,
observa-se inicialmente uma concentração das CTs em
Campos dos Goytacazes e Macaé que reafirmam a lógica
da religiosidade, trabalho forçado e abstinência.

Palavras chaves: Drogas, comunidades terapêuticas,


antiproibicionismo, atenção psicossocial

Abstract: The present study intends to reflect on the


Therapeutic Communities - TCs in the North Fluminense
region located in the State of Rio de Janeiro. This is a
literature and document review. In view of this, it is initially
observed a concentration of TCs in Campos dos Goytacazes
and Macaé that reaffirm the logic of religiosity, forced labor
and abstinence.

Keywords: Drugs, therapeutic communities, anti-


prohibitionism, psychosocial care

1- INTRODUÇÃO

O presente trabalho é fruto do projeto de pesquisa intitulado “Política de Drogas e


Comunidades Terapêuticas - CTs na Região Norte Fluminense do Estado do Rio de
Janeiro”, com financiamento da FAPERJ, realizada por docente e alunas do Curso de
Serviço Social da UFF- Campos dos Goytacazes e que compõem um grupo de
pesquisadores da UFF Niterói, UFRJ e UERJ que pensam as Comunidades Terapêuticas

144 Assistente Social / Docente, UFF – Campos dos Goytacazes / Dra em Política Social, professora
orientadora, julianalobo@id.uff.br
145 Discente do curso de Serviço Social / UFF – Campos dos Goytacazes, laissantostheodoro7@gmail.com
146 Discente do curso de Serviço Social / UFF – Campos dos Goytacazes, kessia_ramos@hotmail.com
147 Discente do curso de Serviço Social / UFF – Campos dos Goytacazes, victoriabaqueiro@id.uff.br

Eixo temático- Ofensiva ultraneoliberal do capital e lutas sociais / Política Social, trabalho e questão
social: retrocessos e resistências na conjuntura atual

378
no Estado do Rio de Janeiro. O projeto visa mapear as CTs credenciadas e em
funcionamento na Região Norte Fluminense no Estado do RJ, através da identificação da
quantidade de CTs em funcionamento localizadas no Norte Fluminense, com o objetivo
de compreender como o cuidado em saúde mental vem sendo realizado pelas CTs e qual
a forma de financiamento das mesmas.

Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo e quantitativo, através de


pesquisa bibliográfica nos principais indexadores de literatura e levantamento documental
acerca do objeto de pesquisa. O levantamento das comunidades terapêuticas que
compõem a Rede de Atenção Psicossocial no Norte Fluminense do Estado do Rio de
Janeiro vem sendo realizado através de sites oficiais e não oficiais, redes sociais e visitas
institucionais (Secretaria Municipal de Saúde e Secretaria de Vigilância Sanitária). Com a
coleta de dados será realizada a análise de conteúdo, de forma não ordenada, com a
categorização, inferência, descrição e interpretação, pois se propõe a reflexões sobre o
processo de financiamento das CTs na região Norte Fluminense do RJ.

Nesse sentido, a pesquisa em andamento expressa a tentativa de mapear e


compreender as formas de financiamento das comunidades terapêuticas localizadas no
Norte Fluminense através do monitoramento dos editais de habilitação e financiamento
de vagas para internação no âmbito federal, estadual e municipal. Todavia destaca-se a
dificuldade de acesso as informações sobre o financiamento das CTs e o funcionamento
das mesmas.

Para tal, os integrantes do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Saúde Mental, Álcool


e outras Drogas – NEPSAD, no período de setembro de 2021 até o presente momento
não vem medindo esforços na compreensão acerca dos temas que auxiliam na
compreensão sobre a Política sobre Drogas, a Rede de Atenção Psicossocial – RAPS, o
financiamento para a política de saúde mental no campo do álcool e outras drogas e a
lógica para a existência e funcionamento das Comunidades Terapêuticas no Brasil.

Diante disso, cabe destacar o atual retrocesso que abate a Rede de Atenção
Psicossocial -RAPS desde o ano de 2015, retrocessos esses que reforçam o
chamamento e financiamento das Comunidades Terapêuticas em âmbito nacional.
Cabendo destaque aos estudos o olhar acerca das CTs as quais representam o trabalho
forçado, as práticas religiosas obrigatórias e abstinência como cura para os usos de
drogas.

379
Com isso, a aproximação com o Norte Fluminense no Estado do RJ no olhar
sobre as CTs revela, ainda parcialmente, a efervescência de instituições na região de
estudo, em especial no meio urbano e dificuldade do acesso à informação de forma
transparente e socializada sobre onde as CTs se localização, forma de funcionamento,
terapêutica ofertada e base de financiamento. Como expressão do desmonte da Política
de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas e inserção das Comunidades Terapêuticas
como caminho de cuidado que expressão o trato moralista e cristão ao tema.

2- OS RETROCESSOS NA POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL NA POLÍTICA DE SAÚDE


MENTAL, ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS

Com a implementação da Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral


a Usuários de Álcool e Outras Drogas, em 2003, que se inaugura a intervenção no âmbito
da saúde pública sobre o cuidado aos usuários de álcool e drogas e a estratégia de
redução de danos como estratégia de ação. Diante deste cenário, têm-se o avanço das
políticas públicas de saúde mental, álcool e outras drogas, efetivando assim a
importância de uma atenção integral, centrando no Centros de Atenção Psicossocial
Álcool e Outras Drogas (CAPS ad) a construção deste cuidado, pautado no
reconhecimento dos usuários enquanto cidadãos que necessitam de um cuidado pautado
na liberdade, autonomia e respeito, distanciando-se da negação dos direitos humanos e
estigma carregado por estes usuários.

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) fazem parte do avanço da Reforma


Psiquiátrica no Brasil, tornando-se um modelo de atenção psicossocial mais amplo e
potente, e uma rede assistencial substitutiva dos leitos psiquiátricos, incentivando o
processo de desinstitucionalização. Assim, a política de saúde mental, álcool e outras
drogas se intensificou ao longo dos anos e é consolidada com a criação da Rede de
Atenção Psicossocial (RAPS) instituída pela Portaria GM/MS no 3.088/2011. A RAPS
representa também a necessidade de ampliação dos serviços no SUS para usuários de
substâncias psicoativas e o foco em sua reinserção social, para além do CAPS.

A RAPS sofre retrocessos e se distancia dos ideários da Reforma Psiquiátrica a


partir da Portaria no 3588/2017, denominada “Nova Raps”, que implica no direcionamento
hospitalar, manicomial e na convocação às Comunidades Terapêuticas (CTs). Ademais,
a “Nova RAPS” ameaça a proteção e cuidado da pessoa em sofrimento psíquico e / ou
usuário de álcool e outras drogas. Neste sentido, há o estabelecimento de intenso

380
investimento de recursos financeiros para a manutenção das Comunidades Terapêuticas
e hospitais psiquiátricos.

Cabe ressaltar, que as críticas feitas as CTs versam sobre o trabalho forçado, as
práticas religiosas obrigatórias e a abstinência da droga, como cura para os usos de
drogas, seguindo o caminho da violação dos direitos humanos na contramão da redução
de danos. Isso reforça a lógica do não cuidado em redes de saúde cunhada no respeito,
liberdade e cuidado no território, colocando a internação como solução.

Em 2019 assistimos a avanços no desmonte da Política de Saúde Mental, álcool e


drogas através da Nota Técnica CG-MAD n. 11/2019 que ajusta o financiamento para os
hospitais que atendem a “psiquiatria” somada a “Nova RAPS”, as quais ampliam o
financiamento para aumento no número de leitos nas Comunidades Terapêuticas,
passando de 2.900 leitos em 2018, para 11 mil em 2019, chegando em 2020 com
financiamento para 20 mil leitos, representando R$300 milhões em financiamento público
federal (IPEA, 2021). Ainda em 2019, observa-se a mudança na Política sobre drogas
através da lei 13.840/2019, dando aval a práticas retrógradas e legitimando a
remanicomialização no cuidado.

Deve-se entender que os retrocessos se enquadram em ações que se


apresentam na contramão da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial e
Antiproibicionista estabelecendo o retorno a práticas de cunho opressivo, racista e
proibicionista que possibilitam a “guerra às drogas” e a guerra aos usuários de drogas,
instaurando uma lógica de internação e não de cuidado no território.

3- AS COMUNIDADES TERAPÊUTICAS NO BRASIL

As comunidades terapêuticas no Brasil se fortaleceram no final do século XX


através de influência das experiências estadunidense pautada na reforma moral,
individual e cristã. Logo, o tratamento está relacionado com a mudança do indivíduo,
baseado na premissa que alterando o meio onde ele vive, ou seja, mantendo-o longe do
álcool e outras drogas é possível “salvá-lo”. Nessas instituições são introduzidos valores
como espiritualidade, responsabilidade, solidariedade, amor e honestidade para manter
os usuários de álcool e outras drogas privados de substâncias químicas a maior tempo
possível.

381
Esse modelo de tratamento pode ser relacionado à psiquiatria tradicional, pois
nota-se traços importantes da violação de direitos humanos, estigmas e a exclusão dos
usuários de drogas. Com a justificativa de mantê-los em um ambiente livre de
substâncias psicoativas, segregando os sujeitos e os afastando de suas relações sociais.
As comunidades terapêuticas são regulamentadas por lei através da Resolução nº
01/2015, que as classifica como “entidades que realizam o acolhimento de pessoas com
problemas associados ao uso nocivo ou dependência de substância psicoativa” (BRASIL,
2015). Essas instituições são financiadas pelo Governo Federal, Estadual e Municipal
através da Secretaria Nacional de Política de Drogas desde 2011 e tiveram a ampliação
do seu fundo com o enfrentamento a epidemia falaciosa do crack, com o Plano Crack: É
Possível Vencer.

A pesquisa do Ipea (2017) indica que o modelo de cuidado proposto pelas


comunidades terapêuticas é ancorado em três pilares: trabalho, disciplina e
espiritualidade. O exercício do trabalho é entendido como laborterapia, envolvendo
atividades de manutenção da própria comunidade e atividades produtivas e geradoras de
renda. As práticas espirituais são um recurso indispensável, onde utiliza-se da fé dos
internos como mecanismo de cura e enquadramento moral tendo como referência a
moralidade cristã. Segundo a pesquisa do Ipea (2017) 82% das CTs são vinculadas a
igrejas e organizações religiosas, predominando, CTs pentecostais. A rotina nas CT’s
conta com horários bem demarcados e regras de convivência, as quais são informadas
aos internos no início do “tratamento”.

Ademais, de acordo com a referida pesquisa as Comunidades Terapêuticas estão


instaladas em todo país, porém, há maior concentração na região Sul e Sudeste. Sendo
420 em São Paulo; 275 em Minas Gerais; 234 no Rio Grande do Sul; 156 no Paraná; 120
em Santa Catarina; e 75 no Rio de Janeiro. Cabe destacar que 74,3% das comunidades
terapêuticas se encontram em áreas rurais, dificultando o contato dos internos com o
mundo exterior. Ainda, a pesquisa do Ipea (2017) revela que haveria cerca de 83.600
vagas para tratamento em 1.950 comunidades terapêuticas no ano de 2017, porém a
distribuição dessas vagas não é equitativa entre os sexos. Isso porque 80% das vagas
são destinadas ao sexo masculino; 15% ao sexo feminino e masculino; pouco mais que
4% ao sexo feminino e baixa tolerância a pessoas com orientações sexuais que divergem
da heterossexualidade. Ressaltasse que ainda não se tem a atualização desses dados
em 2022.

382
O funcionamento desses espaços restringe os direitos do usuário, excluindo-o
do convívio com a sociedade e família e violando justamente o que a Lei 10.216/2001
que inaugura a Reforma Psiquiátrica, destacando o cuidado em liberdade. A inclusão
das Comunidades Terapêuticas na Portaria 3088/2011, que instaura a RAPS, imprime
condução repressiva que se olha a questão das drogas. Por fim, o financiamento público
com autorização governamental tenta enfatizar as CTs como serviço de referência para a
“Nova Política de Saúde Mental” no campo da droga, ocasionando um risco a política de
saúde mental e fortalecendo o sucateamento dos CAPS ad e o desmonte da atenção
neste campo.

3.1- CTs no Norte Fluminense no Estado do Rio de Janeiro: olhares primeiros

A pesquisa debruça o seu olhar acerca das Comunidades Terapêuticas no Norte


Fluminense no Estado do Rio de Janeiro, principalmente no que diz respeito ao
mapeamento dessas instituições e o financiamento das mesmas. A região estudada em
questão é compreendida por nove municípios, sendo eles: Campos dos Goytacazes,
Carapebus, Cardoso Moreira, Conceição de Macabu, Macaé, Quissamã, São João da
Barra, São Francisco do Itabapoana e São Fidélis.

Os resultados parciais da pesquisa expressam o levantamento inicial 15 (quinze)


CTs nessa região, majoritariamente localizadas nas cidades de Campos dos Goytacazes
(6) e Macaé (7). Contraditoriamente, a concentração se dá no meio urbano indo contra ao
estudo do Ipea (2017) que apontava sus sedes em meio rural. Afinando assim uma
“nova” lógica territorial, como aponta Cavalcante (2019).

A partir disso, observa-se que há um número expressivo de CTs e com tendências


a crescimento em detrimento da quantidade de serviços álcool e outras drogas no âmbito
do SUS na região. É importante sinalizar que apenas em Campos dos Goytacazes e
Macaé, possuem serviços Ad inscritos no SUS, conta-se com 2 (dois) Centro de Atenção
Psicossocial álcool e outras drogas e 1 (uma) Unidade de Acolhimento Infanto Juvenil
(UAI).

Ainda assim, é percebido a dificuldade para obtenção de informações desses


espaços como financiamento, organização interna, capacidade máxima de usuários e a
forma terapêutica ofertada. A pesquisa vem buscando fazer o mapeamento através de
informações colhidas na internet em sites associados às CTs, sites não oficiais, redes

383
sociais, sites das prefeituras dos municípios do Norte Fluminense, visitas as Secretarias
Municipais de Saúde e Secretarias de Vigilância Sanitária. Porém, pode-se dizer que a
pesquisa demonstra uma clara dificuldade para acessar informações concretas e mais
elaboradas sobre esses espaços.

É evidente a falta de responsabilização do poder público quanto ao serviço


prestado pelas Comunidades Terapêuticas, principalmente para uma melhor fiscalização
no que tange a oferta de cuidado e para a não violação dos direitos humanos. Assim
sendo, faz-se urgente uma maior aproximação da sociedade civil com estes espaços,
sobretudo pelo crescente financiamento público nestes serviços nos últimos anos e o
funcionamento que se faz na violação dos direitos humanos. É necessário reafirmar
assim a importância de práticas que coadunam com os princípios da Reforma
Psiquiátrica, luta antimanicomial e antiproibicionista.

4- CONCLUSÃO

A presente pesquisa nos permite refletir sobre a Política de Saúde Mental, Álcool
e outras Drogas e o cuidado aos usuários de drogas através do cuidado em redes de
saúde perpetrado pela compreensão e exercício da RAPS. Nos últimos anos, observa-se
que os serviços que compõem a RAPS e que em diálogo com as políticas sociais na
lógica do cuidado intersetorial e em rede estão sofrendo com o desmonte da política
social brasileira.

O desmonte das políticas sociais rebatem diretamente no sucateamento dos


Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas, assim como na regulamentação
trabalhista dos trabalhadores da saúde mental reforçando uma lógica que não assegura
cuidado integral e de qualidade aos usuários de drogas. Com a instalação de uma “Nova
RAPS” e uma “Nova Política de Saúde Mental” tem-se a convocatória “descarada” às
Comunidades Terapêuticas como instituição/ serviço para a oferta da “cura ao vício” com
financiamento público.

As CTs ganham espaço no campo do álcool e outras drogas reforçando a lógica


higienista e abstemia que reforça a cena da repressão como caminho de cuidado neste
campo e descarta a redução de danos como estratégia de cuidado na saúde pública. As
denúncias feitas as CTs representam o traço moral e cristão que ainda se tem sobre os

384
usuários de drogas que simbolizam um não lugar para estes no cuidado no território
como cidadãos de direitos.

5- Referências

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BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria de nº 3088/GM, de 23 de dezembro de 2011.


Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno

385
mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no
âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Ministério da Saúde. Brasília, 2011

BRASIL. PORTARIA GM/MS Nº 3.588, DE 21 DE DEZEMBRO DE 2017. Altera as


Portarias de Consolidação no 3 e nº 6, de 28 de setembro de 2017, para dispor
sobre a Rede de Atenção Psicossocial. Brasília, DF; 2017.

BRASIL.NOTA TÉCNICA Nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS. Esclarecimentos sobre


as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política
Nacional sobre Drogas. Brasília, DF;2019.

BRASIL. LEI Nº 13.840, DE 5 DE JUNHO DE 2019. Esta Lei altera a Lei nº 11.343, de 23
de agosto de 2006, para tratar do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas,
definir as condições de atenção aos usuários ou dependentes de drogas e tratar do
financiamento das políticas sobre drogas e dá outras providências. Brasília, DF;2019.

386
A ATUAÇÃO DOS RESIDENTES NA ESTRATÉGIA DE SAÚDE DA FAMÍLIA EM
TEMPOS DE PANDEMIA COVID - 19

Luciane da Silva Ferreira148

Resumo: O presente artigo é resultado das experiências


vivenciadas em um programa de residência no período da
pandemia. Apresenta uma reflexão sobre os desafios da
atenção primária neste contexto, a partir da vivência em
uma Unidade Básica de Saúde do município de Juiz de
Fora, no ano de 2020. Assim, destaca os desafios e
possibilidades apresentados no contexto da pandemia novo
Coronavírus (COVID-19).
Palavras Chaves: COVID-19. Pandemia. Atenção Primária
à Saúde. Estratégia de Saúde da Família.

Abstract:This article is the result of the experiences lived in


a residency program during the pandemic period. It presents
a reflection on the challenges of primary care in this context,
based on the experience in a Basic Health Unit in the
municipality of Juiz de Fora, in theyear 2020. Thus, it
highlights the challenges and possibilities presented in the
context ofthe new Coronavirus (COVID) pandemic -19.
Keywords: COVID-19. Pandemic. Primary Health Care.
Family Health Strategy.

1- INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como intuito apresentar a atuação dos profissionais de um


programa de residência na Estratégia de Saúde da Família diante dos desafios e
possibilidades apresentados no contexto da pandemia novo Coronavírus (COVID-19).

148Assistente Social graduada pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Especialista em Saúde da
Família e em Saúde do Adulto pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Orientadora:prof.ª.Dra.
Marina Monteiro de Castro e Castro. Professora da Faculdade de Serviço Social/UFJF. E-mail:
luciane_silvaf@yahoo.com.br. Eixo temático: resistência, lutas e internacionalização do Serviço Social. Sub
eixo: Política Social, trabalho e questão social: retrocessos, resistências e desafios ao Serviço Social.

387
ApandemiadoCovid-19originou-se no continente asiático, espalhando-se
rapidamente pelo mundo como pontuado por (CIRINO et.al, 2021). Trata-se de um vírus
respiratório (SARS-CoV-2), sendo transmitido principalmente por 3 meios: contato,
gotículas ou aerossóis. Com isso, algumas medidas para a contenção da disseminação
do vírus devem ser seguidas, a exemplo do distanciamento social, da etiqueta
respiratória ao tossir e espirrar, higienização constante das mãos e superfícies, e do uso
de máscaras. (BRASIL,2021a,2021b).

Desta maneira, diante do avanço da doença no país, no início de 2020 as


autoridades sanitárias seguindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde
(OMS) divulgaram as primeiras orientações, que teve mudanças significativas na
dinâmica de vida da população. Assim, foram adotadas estratégias com o intuito de
diminuir a circulação desnecessária de pessoas sendo decretados: lockdown; o
fechamento de escolas e comércios, sendo permitido apenas o funcionamento das
atividades consideradas essenciais; o incentivo ao home office, além da reorganização
dos fluxos e rotinas de trabalho a exemplo dos serviços de saúde.

Tais mudanças também trouxeram impactos na vida dos usuários e para o


atendimento prestado como, por exemplo: suspensão dos grupos educativos e visitas
domiciliares, restrições nos atendimentos de rotina com foco nas situações mais graves,
medidas de prevenção de contaminação (distanciamento social, higienização das mãos e
uso de máscaras) entre outros.

Destacamos, nesse processo, a importância do lugar e do papel desempenhado


pela Atenção Primária a Saúde (APS). As Unidades Básicas de Saúde - UBS
(principalmente as que têm como direcionamento a Estratégia de Saúde da Família) por
estarem próxima do cotidiano da população, tiveram papel fundamental de orientar os
indivíduos por meio de ações educativas, incentivando o uso de máscaras, a lavagem
das mãos, o distanciamento social, esclarecendo os mitos e verdade sobre a transmissão
do vírus:

Apostar naquilo que é a alma da atenção primária, como o conhecimento do


território, o acesso, o vínculo entre o usuário e a equipe de saúde, a integralidade da
assistência, o monitoramento das famílias vulneráveis e o acompanhamento aos casos
suspeitos e leves, é uma estratégia fundamental tanto para a contenção da pandemia,
quanto para o não agravamento das pessoas com a COVID- 19. (SARTIet. al, 2020,p.2).

Nesse sentido, o artigo apresenta a realidade vivenciada nesse período a partir da


experiência em um programa de residência inscrito na atenção primária à saúde.

2- DESENVOLVIMENTO

O Ministério da Saúde em 3 de fevereiro de 2020, por meio da portarianº188


declarou “Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em
decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV)”. Na mesma
semana, em 6 de fevereiro de 2020 foi criada a lei nº 13.979 que dispôs sobre “as
medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância

388
internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”, visando a
proteção da coletividade. Posteriormente tais medidas tornaram-se compulsórias
mediante pena de “responsabilização civil, administrativa e penal dos agentes infratores”.
(BRASIL, 2020c, n.p). Entre as medidas previstas, estavam:

(...) I- Isolamento; II- quarentena; III- determinação de realizaçãocompulsória


de: a) exames médicos; b) testes laboratoriais; c) coleta de amostras clínicas;
d)vacinação e outras medidas profiláticas; ou (Vide ADPF nº 754) e)
tratamentosmédicosespecíficos;III-A–uso obrigatório de máscaras de proteção
individual; (Incluídopela Lei nº14.019, de 2020)IV – estudo ou investigação
epidemiológica (...). (BRASIL, 2020b,n.p).

Nesse contexto, o município de Juiz de Fora, precisou adequar-se as orientações


das autoridades sanitárias nacionais diante do avanço da transmissão do vírus, e do
reconhecimento da situação de ocorrência do estado de calamidade pública nacional.
(BRASIL, 2020d). Assim, para exemplificarmos o rápido crescimento do número de
pessoas infectadas na cidade fizemos uma análise trimestral dos casos confirmados,
tendo como base os boletins divulgados pela Secretária Saúde nos dias 31 de março e
31 de maio de 2020.Observamos então, o aumento assustador de 584 novos casos neste
período, sendo que no primeiro mês, tínhamos apenas 31 casos confirmados.

Desse modo, a Prefeitura de Juiz de Fora determinou algumas ações importantes


tem do em vista a importância do distanciamento social e das medidas de proteção
individual e coletiva, como: a criação do Comitê de Prevenção e Enfrentamento ao
Coronavírus e do Plano de Contingenciamento Municipal de Prevenção e Enfrentamento
do Coronavírus (COVID-19); o fechamento do comércio e escolas, sendo permitido
apenas o funcionamento dos serviços considerados essenciais para a população; o
afastamento dos trabalhadores que apresentarem sintomas gripais e ou atestado médico
indicando suspeita de COVID 19 e a realização de trabalho remoto para os servidores
municipais em situações especificas como, por exemplo, gestantes, idosos e pessoas
com agravos de saúde, entre outras medidas. (PJF,2020a,2020c).

De uma maneira geral, foi preciso que todos se adaptassem a nova realidade
imposta, mudando o seu ritmo de vida e de trabalho. Desse modo em relação aos
serviços de saúde do município:

(...) Art. 5ºFica determinado à secretaria de saúde que adote providências para: i -
capacitação de todos os profissionais para atendimento, diagnóstico e orientação
quanto a medidas protetivas; ii – estabelecimento de processo de triagem nas
unidades de saúde que possibilite a rápida identificação dos possíveis casos deCOVID-
19 e os direcione para área física específica na unidade de saúde – separada das
demais-para o atendimento destes pacientes; III – suspensão das cirurgias eletivas; IV -
as prescrições de receituários de medicamentos utilizados em doenças crônicas e de
medicamentos sujeitos a controle especial que contenham a indicação “uso contínuo” ou
o período de tratamento superior a 30 dias, no âmbito do Sistema Único de Saúde local,
serão aceitas pelo prazo devalidade de 06 meses da data de emissão; V – aquisição de
equipamentos de proteção individual – EPIs para profissionais de saúde; VI –

389
ampliação do número de leitos para os casos mais graves(...). Idem
(2020b,n.pgrifonosso).

Diante das novas recomendações, os profissionais de saúde precisaram criar


novas estratégias de organização do trabalho, readequando todas as atividades e fluxos
da UBS. Vale ressaltar que os trabalhadores que se enquadravam nas situações
específicas da legislação citada acima, foram afastados das atividades, passando a
realizar o trabalho de forma remota.

Assim, foram suspensas todas as atividades consideradas “não essenciais”, que


envolviam as atividades coletivas, visitas domiciliares, atendimentos odontológicos e as
consultasderotinaparahipertensos,diabéticos,saúdemental,puericulturaetc.Éimportanteres
saltarmos que os usuários em acompanhamento na UBS com doenças crônicas e em
uso de remédios de controle especial, não ficaram totalmente desassistidos, visto que
houve a prorrogação do prazo das receitas de uso contínuo, não sendo necessário
agendamento de consulta para esse fim. Portanto, apenas os casos considerados
urgentes, preferencialmente os de sintomas gripais, de suspeita de COVID-19 foram
priorizados. Além disso, os serviços da farmácia e das alas de vacinação continuaram em
funcionamento normal.

Acerca da reorganização do trabalho dos residentes, estes contribuíram com a


produção de cartazes informativos sobre a temática do COVID-19 para disponibilização
no território da Unidade de Saúde; e com o atendimento ao público na recepção/triagem
e por meio do atendimento telefônico.

A vacinação foi outra frente de trabalho importante. Ressaltamos a relevância da


campanha contra a Influenza, que foi antecipada, visando a diminuição da sobrecarga
sobre os serviços saúde. “Destaca-se que os sintomas desta doença são semelhantes
aos do coronavírus e essa antecipação visa reduzir a carga da circulação de influenza na
população”. (SBIM,2020b,p.3). É importante ressaltarmos que até aquele momento, ainda
não tínhamos vacinas aprovadas contra o COVID-19, chegando ao Brasil apenas no
início de 2021(FIOCRUZ, 2022,n.p).

Esse novo contexto, não trouxe impactos apenas para os profissionais da


chamada “linha de frente” e sim para a população como um todo. Com a suspensão das
atividades educativas e coletivas na rede socioassistencial e com o fechamento das
escolas, muitos usuários com forte vínculo com a rede ficaram desassistidos,
principalmente as crianças.

É importante problematizarmos que no território da UBS as casas não contam


como uma infraestrutura adequada para acolherem todos os residentes, sendo
inviabilizada a campanha do “Fique em casa”, e ainda, o isolamento dos indivíduos
comcasosconfirmadosoususpeitosparaCOVID-19, como recomendado pelas autoridades
sanitárias.

Além disso, nem todos os trabalhadores usuários da Unidade tiveram condições


de realizarem o homeoffice, já que muitos exercem trabalhos domésticos, ou sobrevivem
por meio do subemprego. “Ficar sob isolamento passou a significar o risco de não ter o

390
que comer, não ter como obter a sobrevivência cotidiana, não poder pagar o aluguel,
conta de luz, comprar botijão de gás, e ainda, ter filhos apinhados no espaço com
ausência de cuidados” (SPOSATI,2020,p.102).

Corroborando com esse pensamento, Nedel (2020) e Facchini (2020) chamam a


nossa atenção para o fato de que a experiência do isolamento social e as consequências
da pandemia ocorrem e maneiras diferentes quando comparamos sujeitos de classes
sociais distintas, afetando assim, de maneira mais significativa as famílias mais pobres:

Já as classes mais populares, os trabalhadores formais e informais, os


desempregados, desalentados e miseráveis terão muita dificuldade em, ou
impossibilidade de guardar tais recomendações e imposições. Em favelas e comunidades
pobres, dispersas em munícipios pequenos, médios e grandes de todo o território
brasileiro, falta mais do que produtos e regras de higiene pessoal, falta água, trabalho e
dinheiro para enfrentar cada dia. (FACCHINI, 2020p.5).

Soma-se a isso o discurso amplamente divulgado pelo Presidente da República


nos meios de comunicação incentivando a descrença na letalidade do vírus,
desmerecendo as evidências cientificas e indo contra as recomendações propostas pelas
autoridades sanitárias (SBIM, 2020a). Esse posicionamento equivocado e egoísta fez
com que grande parte da população negligencias se os cuidados básicos e colocasse em
risco o bem-estar da coletividade.

Ressaltamos a importância dos Agentes Comunitários de Saúde para o


fortalecimento da atenção primária à saúde neste contexto, principalmente mediante as
ações de monitoramento por telefone dos casos suspeitos e confirmados, e das
orientações de educação em saúde referente ao COVID- 19, garantindo assim a
continuidade do vínculo entre a UBS e a comunidade.

3- CONCLUSÕES

Ao realizarmos uma avaliação dos desafios e aprendizados presentes nesta


trajetória da pandemia, podemos dizer que por um lado, o contexto da pandemia trouxe
impactos negativos para a residência como um todo visto que não tivemos a
oportunidade de vivenciarmos por completo as atividades propostas inicialmente, ficando
o trabalho multiprofissional e as experiências coletivas prejudicadas.

Entretanto, a necessidade de reorganizarmos nossas atividades nos “obrigou” a


interagirmos e trabalharmos em conjunto com os demais profissionais da UBS, o que
consideramos como um importante aprendizado.

A necessidade de repensarmos nossas atividades visando o cumprimento das medidas


indicadas pelas autoridades sanitárias colocou em evidência a importância do papel dos
residentes para o fortalecimento da APS, mediante a colaboração com o trabalho em
equipe, participando da reorganização dos fluxos da UBS e do processo educativo da
população sobre a temática do COVID-19.

391
4- REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 188 de 3 de fevereiro de 2020. Declara


Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da
Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV). Gabinete do Ministro. Brasília
DF/2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Portaria/Portaria-188-20-
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BRASIL. Presidência da República. Lei nº 13.979 de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe


sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente do Coronavírus responsávelpelo surto de 2019. Secretaria -
Geral subchefia para assuntos jurídicos. Brasília DF/2020. Disponível
em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm>. Acesso em:
30 de março de 2022.

BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública/Gabinete do Ministro. Portaria


Interministerial nº 5, de 17 de março de 2020. Dispõe sobre a compulsoriedade das
medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública previstas na Lei nº 13.979,
de 06 de fevereiro de 2020. Diário Oficial da União.Brasília DF/2020. Edição: 52-C
Seção: 1 – Extra p. 1 https://abmes.org.br/legislacoes/detalhe/3071/portaria-
interministerial-n-5-2020. Acesso em: 17 de abril de 2022.

BRASIL. Atos do Congresso Nacional. Decreto Legislativo nº 6, de 2020. Reconhece,


para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência
do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República
encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020. Diário Oficial da
União. República Federativa do Brasil. Imprensa Nacional. Edição extra. Brasília/DF,
seção 1, p.1, Ano CLVIII Nº 55-C. 20 de Março de 2020. Disponível em:
https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=20/03/2020&jornal=602&
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BRASIL. Ministério da Saúde. Governo Federal. Como se proteger? Confira medidas


não farmacológicas de prevenção e controle da pandemia do novo coronavírus.
Publicado em 08/04/2021 18h03. Atualizado em 14/10/2021 17h02. Disponível em:
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2022.

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transmitido durante um aperto de mão (seguido do toque nos olhos, nariz ou boca), por
meio da tosse, espirro e gotículas respiratórias contendo o vírus. Publicado
em 08/04/2021 20h10 Atualizado em 12/05/2021 01h24. Disponível em:
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PREFEITURA DE JUIZ DE FORA.Decreto N.º 13.893 - de 16 de março de 2020 – Dispõe


sobre as medidas preventivas para enfrentamento da emergência de saúde pública de
importância internacional decorrente do novo Coronavírus (COVID-19), e dá outras
providências. Atos do governo do poder executivo. Diário oficial eletrônico do
município de Juiz de Fora. Publicado em: 17 de março de 2020. Disponível em:
https://www.pjf.mg.gov.br/e_atos/e_atos_vis.php?id=74964. Acesso em: 2 de junho de
2022.

PREFEITURA DE JUIZ DE FORA. Decreto n.º 13.894 - de 18 de março de 2020 –


Declara situação de emergência em saúde pública, em decorrência da infecção humana
pelo novo Coronavírus (COVID 19) e Altera o Decreto nº 13.893, de 16 de março de 2020
que “Dispõe sobre as medidas preventivas para enfrentamento da emergência de saúde
pública de importância internacional decorrente do novo Coronavírus (COVID-19), dá
outras providências”. Atos do governo do poder executivo. Diário oficial eletrônico do
município de Juiz de Fora. Publicado em: 18 de março de 2020. Disponível em:
https://www.pjf.mg. gov.br/e_ atos/e_atos_vis.php?id=75017.Acesso em 05 de abril de
2020 .

PREFEITURA DE JUIZ DE FORA. Decreto n.º 13.898 - de 20 de março de 2020 – Altera


o Decreto nº 13.893, de 16 de março de 2020, e dá outras providências para
enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente
do novo Coronavírus (COVID-19). Atos do governo do poder executivo. Diário oficial
eletrônico domunicípio de Juiz de Fora. Publicado em: 20 de março de 2020 às 18:01.
Disponível em: https://www. pjf.mg.gov.br/e_atos/e_atos_vis.php?id=75055. Acesso em
05 de abril de 2020.

PREFEITURA DE JUIZ DE FORA. Boletim Epidemiológico. Informe


EpidemiológicoCoronavírus. Cenário em Juiz de Fora. 31 de março de 2020.
Disponível em: https://covid19.pjf.mg.gov.br/boletim.php#gsc.tab=0.Acesso em: 4 de abril
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PREFEITURA DE JUIZ DE FORA. Boletim Epidemiológico. Informe


EpidemiológicoCoronavírus. Cenário em Juiz de Fora.31 de maio de 2020. Disponível
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SARTI, D.T. et.al.Qual o papel da Atenção Primária à Saúde diante da pandemia


provocada pela COVID-19? Periódicos Epidemiologia e Serviço de Saúde, Brasília, n
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presidente Jair Bolsonaro em 24/03/2020. Diretoria da Sociedade Brasileira de
Imunizações. São Paulo/SP. 25 de março de 2020, p.1. Disponível em:

393
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SOCIEDADE BRASILEIRA DE IMUNIZAÇÃO- SBIM. Informe Técnico 22ª Campanha


Nacional de Vacinação contra a Influenza. Brasília, 2020. p. 1-30. Disponível em:
https://sbim.org.br/images/files/notas-tecnicas/informe-tecnico-ms-campanha-influenza-
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SPOSATI, A.D.O. Covid 19 Revela a desigualdade de condições da vida dos brasileiros.


Fórum democracia, políticas públicas e COVID- 19. Revista NAU Social- v.11,
n.20,p.101- 103 Mai/ Out 2020. Disponível em:
https://periodicos.ufba.br/index.php/nausocial/article/ view/36533. Acesso em 5 de abril de
2022.

394
A AUSÊNCIA DE POLÍTICAS SOCIAIS PARA PESSOAS TRANS E A
JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À CIDADANIA

Júlio Mota de Oliveira149

RESUMO: No Brasil, a ausência de políticas públicas


destinadas a reduzir as desigualdades econômicas e sociais
de grupos historicamente marginalizados como as pessoas
trans mantém índices como a alta mortalidade, baixa renda
e escolaridade, e baixo acesso aos serviços públicos. Neste
artigo, aborda-se a omissão do Estado em legislar em favor
desse grupo, bem como a ausência de políticas públicas
que visem assegurar o acesso ao direito à cidadania, o que
promove o deslocamento do poder decisório acerca das
políticas públicas para o Poder Judiciário. Conclui-se que
apenas decisões judiciais isoladas não são capazes de
efetivar os direitos das pessoas trans.

Palavras-chave: Pessoas trans; Transgêneros; Direito à


Cidadania.

ABSTRACT: In Brazil, the absence of public policies a


imedat reducing the economic and social inequalities of
historically marginalized groups such as trans people
maintains indices such as high mortality, lowin come and
schooling, and low access to public services. This article
addresses the State's failure to legislate in favor of this
group, as well as the absence of public policies a imedaten
suring access to the right tocitizenship, which promotes the
shift of decision-making power on public policies to the
Judiciary. It’s concluded that only isolated judicial decisions
are not capable of effecting the right softranspeople.

Keywords: Transpeople; Transgender; Rightto Citizenship.

1- INTRODUÇÃO

A Constituição Federal brasileira dispõe no seu art. 1º que a cidadania é um direito


fundamental. Em outras palavras, a cidadania constitui um fundamento do Estado
Democrático de Direito. A valorização da cidadania ganha forma com a expansão do
capitalismo monopolista, trazendo consigo uma relação direta com o conceito de
igualdade que também é um direito previsto constitucionalmente.

149Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade de Serviço Social da


Universidade Federal de Juiz de Fora. Especialista em Relações de Gênero e Sexualidades: perspectivas
interdisciplinares pela Faculdade de Educação da UFJF. Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas
Vianna Júnior e advogado colaborador integrante da equipe técnica do Centro de Referência de Promoção da
Cidadania LGBTQI+ (CeR-LGBTQI+) da UFJF. Pesquisador do GEDIS/UFJF/CNPq. E-mail:
jmotadeoliveira@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6535-6257.

395
Na teoria, os direitos decorrentes da cidadania são acessíveis a todos de forma
igualitária. No entanto, na prática, a cidadania não vem sendo usufruída por todos os
cidadãos da mesma forma, uma vez que grupos sociais considerados minoritários são
excluídos e marginalizados e tem seus direitos fundamentais suprimidos.

Ante a ausência de políticas públicas destinadas a reduzir as desigualdades


econômicas e sociais, grupos como o de pessoas trans e travestis que apresentam
índices como a alta mortalidade, baixa renda, alta evasão escolar, baixa escolaridade,
baixo acesso à bens e serviços e pouco acesso a serviços públicos como a saúde.

2- AS POLÍTICAS SOCIAIS NO SISTEMA CAPITALISTA

As políticas sociais surgem em decorrência da ascensão do capitalismo a partir da


Revolução Industrial, das lutas de classes e do intervencionismo estatal. A origem dessas
políticas geralmente é associada aos movimentos de massa social-democratas e ao
surgimento dos Estados-nação na Europa no final do século XIX, mas sua difusão situa-
se entre a passagem do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista, em
especial após a Segunda Guerra Mundial (pós-1945) (BEHRING E BOSCHETTI, 2017).

A função precípua dessas políticas era responder às múltiplas expressões da


“questão social”, que pode ser compreendida a partir da relação contraditória entre o
capital e o trabalho que tem por consequência o surgimento de um conjunto de
expressões das desigualdades sociais. Segundo IAMAMOTO (1999), a questão social
pode ser definida como:

o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura,


que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho
torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos
mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade (IAMAMOTO,
1999, p. 27).

No Brasil, diferentemente de outros países, a questão social passa afigurar como


questão política apenas após a primeira década do século XX e, por consequência, se dá
o início do desenvolvimento das políticas sociais. Sem o objetivo de garantir o bem
comum e como consequência do agravamento das desigualdades sociais, o Estado
passou a assumir algumas responsabilidades sociais com o intuito de manter a ordem
social e punir a vagabundagem como forma de conservar o modo de produção capitalista
(BEHRING E BOSCHETTI, 2017).

396
No entanto, a dificuldade da gestão estatal estaria em conciliar uma política de
acumulação que não acentue as iniquidades sociais de modo a torná-las ameaçadoras, e
uma política de equidade que não só não comprometa, como também ajude a
acumulação do capital (SANTOS, 1979).

Uma explicação das políticas sociais considera que estas devem ser vistas como
respostas às “necessidades” do trabalho e às “necessidades” do capital,
compatibilizando-se entre si. Nesse sentido, participam “tanto [d]a elaboração
política de conflitos de classe quanto [d]a elaboração de crises do processo de
acumulação”. Propõe, além disso, que a sua importância decisiva consistiria em
regulamentar o processo de proletarização, tendo nele uma função constitutiva
(AUGUSTO, 1989, p. 110).

O termo política social teve seu uso generalizado no Brasil após 1970 em
decorrência do aumento do interesse oficial pelas questões sociais e passou a integrar,
mesmo com status secundário, os nos planos de governo elaborados a partir de então.
Embora inicialmente não tenha sido estabelecido claramente o papel do Estado na
gestão das políticas públicas, saúde, educação, habitação, transporte, alimentação e
saneamento aparecem como áreas de intervenção das políticas sociais (AUGUSTO,
1989).

No ano de 1988, foi promulgada a Constituição Federal brasileiraconsiderada “a


constituição mais liberal e democrática que o país já teve, merecendo por isso o nome de
Constituição Cidadã” (CARVALHO, 2017, p. 201). No entanto, seu texto não foi capaz de
reduzir as desigualdades sociais e garantir o acesso igualitário à cidadania.

A cidadania, quando analisada sem considerar seus fundamentos, é vista como


um meio em que se pode, em maior ou menor medida, construir, ampliar e consolidar
direitos a partir das lutas das classes sociais. No entanto, essa é uma compreensão
parcial de seus fundamentos, uma vez que há uma relação substantiva entre a forma
mercantil e a forma jurídica a ela correspondente, que prescinde a existência de sujeitos
livres, iguais e proprietários aptos a possibilitar o intercâmbio de mercadorias (FELIX,
2019).

Contudo, a cidadania é uma expressão da relação entre forma mercantil e forma


jurídica e política, estando diretamente relacionada ao modo de produção capitalista.
Neste sentido, a superação do sistema capitalista envolve a sucumbência do Estado,
enquanto forma política e jurídica e, por consequência, a própria cidadania. No entanto,
não podemos desconsiderar a relevância tático-estratégica da luta pelo direito à

397
cidadania (FELIX, 2019), principalmente quando consideramos grupos historicamente
marginalizadoscomo é o caso das pessoas trans e travestis.

3- PESSOAS TRANS E A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À CIDADANIA

Embora não exista uma paridade entre os termos, as desigualdades sociais


podem ser organizadas em, no mínimo três eixos: classe, raça e gênero. O gênero, assim
como a raça e a classe, foi historicamente utilizado para justificar e criar hierarquia entre
os sujeitos (SCOTT, 1995).
Hoje, como antes, a determinação dos lugares sociais ou das posições dos
sujeitos no interior de um grupo é referida a seus corpos. Ao longo dos tempos,
os sujeitos vêm sendo indiciados, classificados, ordenados, hierarquizados e
definidos pela aparência de seus corpos; a partir dos padrões e referências, das
normas, valores e ideais da cultura. Então, os corpos são o que são na cultura
(LOURO, 2020, p.69).

Os corpos, antes mesmo do nascimento, são marcados por significações, valores


e discursos sociais que tem por objetivo produzir e reproduzir diferenciações, violações,
hierarquizações, submissões e outras infinidades de práticas (LAURETIS, 1987).

As tecnologias discursivas apresentam, desde o nascimento, a únicapossibilidade


de construção de inteligibilidade identitária para os gêneros e as sexualidades. A infância
se constrói baseada numa pedagogia de gêneros hegemônicos - que se dá através de
um controle minucioso na produção da sexualidade por meio de proibições e afirmações -
com o objetivo de moldar os corpos para um modelo de sociabilidade referenciado pela
heterossexualidade que se constrói a partir da ideologia da complementariedade dos
sexos (BENTO, 2008).

A diversidade dos seres humanos é estudada a séculos, mas em muitos casos,


temas voltados para gênero, sexo e sexualidade foram restritos a estudos dentro
de um padrão binário que contemporaneamente conduzimos ao padrão da cis-
heteronormatividade, onde todo e qualquer ser humano “desviante” de tal
padronização é tido como uma aberração danatureza (SOUZA, 2018).

As transgressões e as subversões da concepção binária do sexo podemser


experimentadas por três categorias - quais sejam: sexo, gênero e sexualidade; que são
relegadas ao espaço do incompreensível ou do patológico (LOURO, 2020).

A orientação sexual é diferente do senso pessoal de pertencer a algum gênero


(JESUS, 2012), ela refere-se a qual ou quais gêneros cada sujeito direciona seu
interesse sexual, afetivo e/ou psicológico. Neste sentido, a orientação sexual é a
identidade que se atribui ao sujeito em decorrência da orientação de seu desejou ou de
suas condutas sexuais (PEDRA, 2020).Podemos compreender o sexo como a

398
“classificação biológica das pessoas como macho ou fêmeas [ou intersexuais], baseada
em características orgânicas como cromossomos, níveis hormonais, órgãos reprodutivos
e genitais” (JESUS, 2012, p. 13).

Concebida originalmente para questionar a formulação de que a biologia é o


destino, a distinção entre sexo e gênero atende a tese de que, por mais que sexo
pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído:
consequentemente, não é nem o resultado causal do sexo nem tampouco tão
aparentemente fixo quanto o sexo (BUTLER, 2019).

O gênero, portanto, é uma construção social que se expressa a partir de padrões


ditos femininos e masculinos. A identidade de gênero diz respeito ao modo como uma
pessoa se percebe no mundo em relação ao próprio gênero, independentemente de seu
sexo biológico (SCOTT, 1995).De acordo com a Recomendação n. 128/2022 do
Conselho Nacional de Justiça que dispõe sobre “Protocolo para Julgamento com
Perspectiva de Gênero”:

Pessoas que não se conformam com o gênero a elas atribuído ao nascer foram e
ainda são extremamente discriminadas no Brasil e no mundo, na medida em que
a conformidade entre sexo e gênero continua a ser a expectativa dominante da
sociedade.

No ano de 2021, foram registrados 140 assassinatos de pessoas trans e travestis


no Brasil. O país ocupa pelo 13º ano consecutivo o primeiro lugar no ranking dos países
que mais matam travestis e transexuais no mundo (VALENTE, 2021). Os números
assustadores revelam a ausência de políticas públicas que tenham por objetivo promover
os direitos fundamentais dessa população e, dentre eles, a cidadania.

O que se vê, ainda hoje, a partir a conjugação de preconceitos, descaso e


ignorância, é um quadro de negligencia estatal, atraso legislativo, desorientação
judicial e marginalização social ainda reinante, que obstaculiza o exercício da
cidadania, segrega e invisibiliza, quando deveria incluir (PEDRA, 2020).

De acordo com Marshall, “a cidadania é um status concedido àqueles que são


membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem status são iguais
com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status” (MARSHALL, 2002, p. 24).
Num sistema de medida de igualdade, aqueles que possuem o mesmo status social
também possuíram um mesmo conjunto de direitos e obrigações.

Seja por ação ou por omissão, muitos estados têm se furtado de reconhecer a
existência de uma violência específica, que inclui a orientação sexual e/ou a
identidade de gênero das pessoas como fator determinante dessa violência e
das violações de direitos humanos, sociais e políticos, e pautar política de
enfrentamento das mesmas, que garantam dignidade, respeito, proteção e a
garantia dos direitos as pessoas trans e Não-Binárias (BENEVIDES, 2021).

399
Na prática social, pessoas trans e travestis não possuem proteção doEstado e
não estão seguras para existir numa sociedade em que são reiteradamente
desumanizadas e onde o próprio Estado, governos e agentes públicos fazem parte do
problema sobre diversas óticas.
Ainda que se apresentem como espaço neutro, as intervenções do Estado são,
portanto, formas de reatualização ou de manifestação do padrão de domínio
existente na sociedade. Embora financiadas com recursos extraídos da
totalidade do público, o “interesse geral” que proclamam traduz-se como
intermediação estatal dos interesses particulares (AUGUSTO, 1989, p. 108).

Recentemente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística passou a


quantificar a população em função de sua orientação sexual, mas deixou de considerar
dados acerca das pessoas trans e travestis. Deste modo, é possível estimar o número de
gays, lésbicas e bissexuais no país, mas não é possível quantificar o número de travestis
e transexuais no Brasil (ALMEIDA, 2018).

O apagão de dados acerca da população trans e travestis é uma realidadee, não


por acaso, inviabiliza a criação de políticas públicas que visem alterar a realidade social.
Diante da ausência de garantia de dignidade e igualdade, esse grupo social é incapaz de
exercer a sua cidadania, ainda que nos moldes da sociedade capitalista.

As políticas públicas e, consequentemente, a política social, tem como uma de


suas principais funções a concretização de direitos de cidadania conquistados
pela sociedade e amparada pela lei (BEHRING E BOSCHETTI, 2008, p. 102).

No entanto, mesmo diante dos números não oficiais e da realidade social que
demonstram que as pessoas trans existem e estão em sua maior parte em situação de
vulnerabilidade social, o Poder Legislativo se nega a discutir a inclusão e a diversidade e
se posiciona contrário às medidas que garantam direitos básicos à essa população.

Ao buscar pelos termos “travesti”, “transexual” e “transgênero” no site da Câmara


dos Deputados, em Brasília, são encontrados pelo menos 40 projetos de lei e decretos
que citam diretamente a população trans e, em sua maioria, aguardam votação. No
entanto, apenas 19 deles podem ser considerados em favor das pessoas trans, enquanto
os demais propõem a retirada dos poucos direitos conquistados anteriormente.

A inércia do Poder Legislativo desestabiliza os Poderes Executivo e Judiciário.


Enquanto o Poder Executivo é colocado diretamente sob a pressão dos movimentos
sociais,

as omissões legislativas criam a necessidade de que a Justiça garanta e


reconheça direitos por meio de decisões judiciais, que precisam acontecer

400
mediante o cumprimento de procedimentos específicos que tem a morosidade
como característica (PEDRA, 2020, p. 20).

Neste sentido, o Poder Judiciário passou a ser acionado reiteradamente para


decidir acerca das mais diversas violações de direitos fundamentais das pessoas trans e
travestis, promovendo o deslocamento do poder decisório acerca da efetivação de
políticas públicas, típicos dos Poderes Executivo e Legislativo.

As políticas públicas e, consequentemente, a política social, tem como uma de


suas principais funções a concretização de direitos de cidadania conquistados
pela sociedade e amparada pela lei (BEHRING E BOSCHETTI, 2008, p. 102).

Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (Habeas Corpus 152.491) realocou na


esfera pública a discriminação que a população trans sofre dentro do sistema prisional e
determinou que duas travestis fossem transferidas para uma unidade prisional compatível
com sua identidade de gênero (MELLO, 2018).

No entanto, embora o STF tenha acertadamente decidido sobre a questão, é


sabido que dentro do sistema prisional pessoas trans e travestis são violentadas em seus
direitos, sendo vítimas de mutilações, espancamentos e estupros coletivos (MELLO,
2018).No mesmo ano, ao analisar a ADI 4.275 o Supremo Tribunal Federal definiu que
pessoas trans podem alterar o nome e/ou o gênero no registro civil sem que se
submetam a qualquer tipo de cirurgia e diretamente nos cartórios de registro civil,
independente de decisão judicial.

Em seguida, o CNJ publicou o Provimento 73/2018 que regulamenta a averbação


da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento das
pessoas trans no Registro Civil das Pessoas Naturais, mas condicionou o procedimento
de concessão do benefício à legislação específica a ser definida por cada Estado e pelo
Distrito Federal.

Todavia, até os dias de hoje, em diversos estados como é o caso de Minas


Gerais, por não haver previsão legal específica da isenção dos custos da retificação de
nome e gênero nos cartórios, ainda que seja requerida por pessoa manifestamente
hipossuficiente, não se concede a gratuidade no pagamento dos emolumentos. Na
prática, a assistência jurídica integral - dever do Estado de garantir aos indivíduos em
vulnerabilidade econômica o acesso à justiça – é indeferida pelos cartórios, impedindo o
acesso das pessoas trans em vulnerabilidade à retificação e, por consequência, à
efetivação do direito ao nome.

401
Recentemente, em abril de 2022, em decisão histórica e extremamente
significativa por se tratar do combate à violência de gênero, o Superior Tribunal de
Justiça estabeleceu que a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) se aplica aos casos de
violência doméstica ou familiar contra mulheres transexuais.Na prática, pessoas trans e
travestis dificilmente podem contar com a segurança pública, uma vez que a relação
entre a polícia e esse grupo social é sempre identificada como conflituosa.

Não se trata aqui de uma crítica à atuação do Poder Judiciário, uma vez que a
garantia de direitos deve ser uma prioridade do Estado. O que se pretende é provocar a
reflexão acerca das limitações das decisões judiciais que buscam garantir direitos
fundamentais das pessoas trans e travestis no contexto de uma sociedade em que a
transfobia é estrutural; bem como acerca da necessidade da proposição de políticas
públicas que tenham por objetivo o combate efetivo do preconceito, estigmatização e
exclusão desse grupo e o acesso à cidadania.

4- CONCLUSÃO

O neoliberalismo retomado pelo Governo Temer acabou por retirar os poucos


direitos conquistados pelas classes sociais mais pobres e acentuou as desigualdades
sociais e a concentração de renda. Embora as consequências da adoção das políticas
neoliberais atinjam as camadas mais pobres da população, existem grupos
historicamente marginalizados, como o caso das pessoas transe travestis, que sempre
estiveram em situação de vulnerabilidade social. Nesse momento, pessoas trans e
travestis buscam a efetivação de direitos básicos como o direito ao nome, à vida, ao uso
do banheiro, à prevenção de suicídio e tantos outros direitos que lhe são suprimidos
exclusivamente em decorrência de sua identidade de gênero.

Embora tenha crescido o número de candidaturas de pessoas trans e travestis a


cargos eletivos, a invisibilidade social reflete na exclusão política desse grupo
demonstrada pela ausência de representatividade nos espaços políticos e institucionais
responsáveis por formular políticas públicas que se desdobram em programas, planos,
projetos, pesquisa e base de dados.

Como consequência da omissão legislativa e da ausência de políticas públicas


que busquem assegurar o direito à cidadania das pessoas trans, ocorre a judicialização

402
que promove o deslocamento do poder decisório acerca da efetivação de políticas
públicas, função típica dos Poderes Legislativo e Executivo, para o Poder Judiciário.

No entanto, as decisões judiciais não têm sido capazes de enfrentar a transfobia


estrutural e institucional e efetivar os direitos das pessoas trans. Apesar de ter seus
direitos reconhecidos pelo Poder Judiciário, ainda hoje as pessoas trans e travestis
encontram barreiras na estrutura burocrática do Estado que não permitem que essa
população acesse o direito fundamental à cidadania.

5- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUGUSTO, Maria Helena Oliva. Políticas públicas, políticas sociais e política de saúde:
algumas questões para reflexão e debate. Tempo social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
1(2): 105-119, 2.sem. 1989.

BEHRING, Elaine Rosseti; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social: fundamentos e história.


São Paulo: Cortez, 2017 – (Biblioteca Básica do Serviço Social; v.2).

BENEVIDES, Bruna G. Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais


brasileiras em 2021 (Org). – Brasília: Distrito Drag, ANTRA, 2022. p 9-15.

BENTO, Berenice. O que é Transexualidade. Ed. Brasiliense, 2008.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução


de Renato Aguiar. 17ª ed. - Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 23. Ed. Rio de
JANEIRO: Civilização Brasileira, 2017.

FÉLIX, P.R. Cidadania e Capitalismo: uma análise a partir da crítica marxista do direito.
R. Praia Vermelha, Rio de Janeiro, v.29, n. 1 (especial), p. 13-38, 2019.

JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e


termos / Jaqueline Gomes de Jesus. Brasília, 2012.

LAURETIS, Teresa de. Technologies ofGender: EssaysonTheory, Film, andFiction,


Bloomington/. Indiana: Indiana University Press, 1987.

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho - ensaios sobre sexualidade e teoria queer.
Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

403
MELLO, Adriana. O Supremo Tribunal Federal e o Direito das Travestis à Unidade
Prisional Feminina - Comentários à Decisão Proferida no Habeas Corpus nº 152.491.
Direito em Movimento, Rio de Janeiro, v. 16 - n. 1, p. 193-211, 1º sem. 2018.

PEDRA, Caio Benevides. Cidadania trans: o acesso à cidadania por travestis e


transexuais no Brasil / Caio Benevides Pedra. – 1. ed. – Curitiba, Appris, 2020.

SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira.


Rio de Janeiro: Ed. Campos, 1979.

SCOTT, J.W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, n.
20 (2), 1995. p. 71-100.

SOUZA, C. Políticas públicas: questões temáticas e de pesquisa. Caderno CRH,


Salvador, nº39, vol. 16, 2003b, p.11-24

VALENTE, J. Brasil registrou 140 assassinatos de pessoas trans em 2021. Agência


Brasil, Brasília,2021. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-
humanos/noticia/2022-01/brasil-registrou-140-assassinatos-de-pessoas-trans-em-2021.
Acesso em: maio 2022

404
VII SEMINÁRIO INTERNACIONAL
Lutas Sociais, Ofensiva Ultraneoliberal e Serviço Social:
resistências e articulações internacionais

EIXO TEMÁTICO 5
Ofensiva ultraconservadora e resistências:
formação e trabalho profissional
TENDENCIAS DA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO NA GRADUAÇÃO EM SERVIÇO
SOCIAL: ANÁLISE A PARTIR DAS MONOGRAFIAS.

Alessandra Ribeiro de Souza150


Liliane Maria Domingues da Silva151
PallomaEfigenia Quirino152

RESUMO:

O Trabalho de Conclusão de Curso constitui requisito


obrigatório e indispensável à formação do Assistente Social.
O estudo objetivou analisar as principais tendências
temáticas e metodológicas das monografias elaboradas
pelos discentes do curso de no período compreendido entre
2015 e 2021. Os dados foram coletados nos trabalhos
depositados na biblioteca digital do Instituto de Ciências
Sociais Aplicadas (ICSA) e analisados pelas pesquisadoras.
A análise evidenciou forte relação entre os objetos de estudo
e os campos de estágio, os impactos da pandemia de
COVID-19 para o desenvolvimento das pesquisas bem
como indicou desafios a serem enfrentados para o
fortalecimento da pesquisa.

Palavras chave: Pesquisa; Serviço Social; Trabalho de


Conclusão de Curso

ABSTRACT

The Course Completion Work is a mandatory and


indispensable requirement for the formation of the Social
Worker. The study a imed to analyze the main the maticand
methodological trends of the monographs prepared by the
student softhe course in the period between 2015 and 2021.
Data were collected from works deposited in the digital
library of the Institute of Applied Social Sciences (ICSA) and
analyzed by the researchers. The analys is showed a strong
relationship between the objects of study and the intern
shipfields, the impacts of the COVID-19 pandemic on the
development of research, as well as indicating challenge
stobe faced in order to strengthen the research.

Keywords: Research; Social service;


Completionofcoursework

150Professora Adjunta do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto


151Graduanda do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto
152Graduanda do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto

406
1- INTRODUÇÂO

O Serviço Social está relacionado ao surgimento da questão social e à


necessidade de resposta e atuação do Estado para além da coerção, possibilitando a
preservação da dinâmica capitalista. (IAMAMOTO; CARVALHO, 1998). Na década de
1980 a profissão passou por um processo de reconceituação no qual o projeto
profissional passou a conceber a profissão enquanto especialização do trabalho coletivo,
inserido na divisão social e técnica do trabalho. Esta perspectiva de profissão
compreende sua inserção no quadro das relações sociais entre as classes sociais e
destas com o Estado o que implica compreender a profissão inserida na divisão sócio
técnica do trabalho atuando no âmbito da reprodução social (IAMAMOTO; CARVALHO,
1998). De acordo com Iamamoto (1998)

Dentre os eixos de preocupações fundamentais do movimento de reconceituação


podem ser salientados: o reconhecimento e a busca de compreensão dos rumos
peculiares do desenvolvimento latino-americano; a criação de um projeto
profissional abrangente, atento às características latino-americanas, em
contraposição ao tradicionalismo; a necessidade de atribuir um estatuto científico
ao Serviço Social; a explícita politização da ação profissional, solidária com a
libertação dos oprimidos e comprometida com a “transformação social”. Tais
preocupações canalizam-se para a reestruturação da formação profissional que
articule ensino, pesquisa e prática profissional, exigindo da universidade o
exercício da crítica e da produção criadora de conhecimento no estreitamento de
seus vínculos com a sociedade (Iamamoto, 1998, p. 209).

Os anos 90 no Brasil foram marcados por profundas transformações nos


processos de produção e reprodução da vida social, determinados pela reestruturação
produtiva, pela reforma do Estado e pelas novas formas de enfrentamento da questão
social alterando as demandas profissionais e consequentemente a formação profissional.
Foi nesse cenário conjuntural e embasado pelo Movimento de Reconceituação que o
arcabouço jurídico legal da profissão foi reformulado e expresso na Lei 8142/93 que
regulamenta a profissão, no Código de Ética Profissional e nas novas diretrizes
curriculares de 1996 da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social.
De acordo com as diretrizes curriculares da ABEPSS de 1996, o Serviço Social é uma
profissão interventiva no âmbito da questão social expressa pelas contradições do
desenvolvimento do capitalismo monopolista. A questão social é entendida como objeto
da intervenção profissional e seu agravamento face das particularidades do processo de
reestruturação produtiva no Brasil, nos marcos da ideologia neoliberal, determina uma
inflexão no campo profissional do Serviço Social. Esta inflexão é resultante de novas
requisições postas pelo reordenamento do capital e do trabalho, pela reforma do Estado

407
e pelo movimento de organização das classes trabalhadoras, com amplas repercussões
no mercado profissional de trabalho. (ABEPSS, 1996: 5)

Essa perspectiva de profissão requer um perfil profissional conforme o projeto


pedagógico do curso de Serviço Social da UFOP, crítico à ordem capitalista que atua nas
expressões da questão social formulando e implementando propostas para seu
enfrentamento, por meio de políticas sociais públicas, empresariais, junto as
organizações da sociedade civil, movimentos sociais e todo movimento dos
trabalhadores. Profissional dotado de formação intelectual e cultural generalista crítica
que potencialize a sua competência na área onde for trabalhar e o comprometa com os
valores e princípios norteadores do Código de Ética do Assistente Social. De acordo com
as diretrizes curriculares, a efetivação de um projeto de formação profissional remete
diretamente a um conjunto de conhecimentos indissociáveis, que se traduzem em três
Núcleos de Fundamentação: 1- Núcleo de fundamentos teóricometodológicos da vida
social l; 2-Núcleo de fundamentos da particularidade da formação sócio-histórica da
sociedade brasileira; 3- Núcleo de fundamentos do trabalho profissional (ABEPSS,
1996:8)

É importante salientar que o primeiro núcleo, responsável pelo tratamento do ser


social enquanto totalidade histórica, analisa os componentes fundamentais da vida social,
que serão particularizados nos dois outros núcleos de fundamentação da formação
sóciohistórica da sociedade brasileira e do trabalho profissional. Portanto, a formação
profissional constitui-se de uma totalidade de conhecimentos que estão expressos nestes
três núcleos, contextualizados historicamente e manifestos em suas particularidades.
(ABEPSS, 1996:8)

Cabe ressaltar que esses três núcleos congregam os conteúdos necessários para
a compreensão do processo de trabalho do assistente social, afirmam-se como eixos
articuladores da formação profissional pretendida e desdobram-se em áreas de
conhecimento que, por sua vez, se traduzem pedagogicamente através do conjunto dos
componentes curriculares, rompendo, assim, com a visão formalista do currículo, antes
reduzida a matérias e disciplinas. Esta articulação favorece uma nova forma de
realização das mediações entendida como a relação teoria-prática que deve permear
toda a formação profissional, articulando ensino-pesquisa-extensão (ABEPSS, 1996:9).
Assim, a lógica curricular proposta compreende a pesquisa como principio formativo
transversal à formação profissional.

408
O projeto político pedagógico do curso de Serviço Social da UFOP, em
consonância com as Diretrizes da ABEPSS, instituiu componentes curriculares
profundamente relacionados à pesquisa: a disciplina de Pesquisa em Serviço Social 1,
Pesquisa em Serviço Social 2, e o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) que também
se desenvolve em dois componentes curriculares. De acordo com as Diretrizes o TCC:

É uma exigência curricular para obtenção de diploma no curso de graduação em


serviço Social. Deve ser entendido como um momento de síntese e expressão da
totalidade da formação profissional. É o trabalho no qual o aluno sistematiza o
conhecimento resultante de um processo investigativo, originário de uma
indagação teórica, preferencialmente gerada a partir da prática do estágio no
decorrer do curso. Este processo de sistematização, quando resultar de
experiência de estágio, deve apresentar os elementos do trabalho profissional em
seus aspectos teórico-metodológico-operativos. Realiza- se dentro de padrões e
exigências metodológicas e acadêmico científicas. Portanto, o TCC se constitui
numa monografia científica elaborada sob a orientação de um professor e avaliada
por banca examinadora (ABEPS, 1996:19).

À partir dos elementos que reconhecem a importância da pesquisa para a


profissão e tendo em vista que o TCC é um importante componente curricular, que se
origina nossa pesquisa. Partimos do reconhecimento da importância da análise das
pesquisas que tem sido desenvolvidas pelo curso de Serviço Social da UFOP para
conhecermos as principais tendências temáticas e metodológicas bem como os desafios
indicados pelos discentes no processo de elaboração das monografias no período
compreendido entre 2016 e 2021.

2- ANÁLISE DAS MONOGRAFIAS; APROXIMAÇÕES REFLEXIVAS

O curso de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) foi


implementado em março de 2009 no Instituto de Ciências Sociais e Humanas (ICSA)
campus de Mariana. Os discentes são formados na perspectiva das Diretrizes
Curriculares vigentes capacitando-os para os processos de investigação científica e
intervenção profissional de forma criativa e propositiva dentro do conjunto das relações
sociais e do mercado de trabalho. Essa proficiência se dá por meio de atividades
pedagógicas com aproximações sucessivas à realidade social, seminários temáticos,
atividades de pesquisa, estágio supervisionado, extensão e laboratórios/oficinas.

O Trabalho de Conclusão de curso, componente curricular obrigatório é


compreendido pelo Projeto Pedagógico do curso como síntese da formação do discente
elaborado de forma monográfica sob a orientação de docentes do curso de ao longo das

409
disciplinas de Seminário de Trabalho de Conclusão de Curso I e II. Nossa pesquisa se
baseou na análise de trinta TCC’s elaborados no período compreendido entre 2016 e
2021que foram depositados na biblioteca digital do ICSA. É importante ressaltar que a
inserção de TCC’s na biblioteca digital teve início em 2016 demarcando o ano de início
do período analisado. Cabe ressaltar ainda que em 2021 ainda não foi atingida a
submissão da totalidade de TCC’s no formato digital ainda que o número de trabalhos
submetidos tenha crescido.

Para o desenvolvimento da pesquisa foi construído um instrumento para


organização do banco de dados. partir da leitura das monografias o banco de dados foi
alimentado com as informações que respondiam aos objetivos desta pesquisa.

Inicialmente buscamos identificar as principais dificuldades para elaboração dos


TCC’s. De acordo com os registros inseridos nas monografias as principais dificuldades
apontadas foram a escassez de referências bibliográficas em algumas temáticas e os
impactos da Pandemia de Covid-19. A produção escassa em diversas temáticas indica a
importância da sistematização, produção teórica e socialização referentes a temáticas
como, por exemplo, a dimensão pedagógica do Serviço Social, construção de bases de
dados sobre população de rua e estudos sobre questões relacionadas ao território no
qual a UFOP se insere como a questão da moradia em Ouro Preto. Em relação a
pandemia, as dificuldades indicadas nas monografias são diversas com destaque para a
alteração de metodologias tendo em vista a impossibilidade de realizar entrevistas com
usuários e profissionais; os prejuízos gerados pela adoção do ensino remoto; e o
desgaste na saúde dos discentes.

Buscamos analisar também as metodologias utilizadas nas pesquisas. É


importante destacar que partimos da compreensão de que a metodologia é muito mais
que um conjunto de técnicas. Ela inclui concepções teóricas da abordagem articulando a
teoria com a realidade. Concordamos com Minayo que o endeusamento de técnicas
produz um formalismo árido ou respostas estereotipadas. Seu desprezo, ao contrário,
leva ao empirismo sempre ilusório em suas conclusões, ou a especulações abstratas e
estéreis. (Minayo, 1994, p.15)

A análise dos TCC’s indicou uma predominância na realização de pesquisas de


revisão bibliográfica e análise documental. Conforme já indicamos, o período pandêmico
impôs a necessidade de alterações metodológicas, mas é importante compreender que
outros fatores podem estar relacionados ao predomínio na definição por essas

410
metodologias. Uma hipótese importante a ser investigada refere se à possível definição
por metodologias que não exijam a submissão e tramitação nos comitês de ética em
pesquisa que, principalmente em um período marcado pela redução na duração dos
períodos letivos, pode inviabilizar o cronograma de execução das pesquisas.

Outro aspecto importante para nossas reflexões sobre a ética em pesquisa está
relacionado à indicação do Código de Ética como referência no processo investigativo.
Ainda que o código de ética indique os princípios que devem nortear as pesquisas chama
a atenção que os autores não se refiram ao mesmo ao construir suas propostas
metodológicas e por vezes esse documento basilar para a profissão sequer é indicado
entre as referências bibliográficas. Essa ausência pode indicar uma lacuna a ser
trabalhada nas disciplinas de pesquisa em Serviço Social e nas orientações de TCC’s.

Em relação a construção dos objetos de pesquisa buscamos compreender sua


relação com a inserção em estágio, extensão, pesquisa etc. É importante ressaltar que
55,2% das monografias relaciona a construção do objeto com o estágio obrigatório;
17,2% relacionam com a participação em extensão; 13,8% com projetos de iniciação
científica; 3,4% com monitoria e 10,3% com alguma disciplina. Esses dados evidenciam a
importância do estágio no processo formativo bem como a importância na construção de
projetos de pesquisa e extensão para a qualificação da formação profissional. Esses
dados indicam o potencial dos campos de estágio para o desenvolvimento da dimensão
investigativa da profissão reafirmando a importância da qualificação desse componente
curricular. Os dados também reafirmam a importância do tripé que constitui a formação
superior composto por ensino, pesquisa e extensão e, principalmente em tempos de
aprofundamento das medidas de ajuste fiscal que corroem o orçamento das
universidades reafirma a importância da luta pela destinação do fundo público para a
educação.

3- CONSIDERAÇÔES FINAIS

‘Concordamos com PRATES (2017) ao afirmar que na graduação não formamos


pesquisadores mas sim profissionais com habilidade investigativa capazes de lançar mão
da pesquisa como parte fundamental do instrumental de trabalho em qualquer área ou
espaço sócio ocupacional. É a partir dessa compreensão que nos dedicamos a análise
dos Trabalhos de Conclusão de curso buscando nos aproximar do processo de
construção dos objetos de investigação, das principais dificuldades enfrentadas pelos

411
discentes nas pesquisas bem como buscamos identificar lacunas que devem ser objeto
de aprofundamento em disciplinas da graduação.

Nossas análises indicaram a forte relação da construção dos objetos de estudo


com o estágio em Serviço Social reafirmando a importância desse componente curricular
para a qualificação da formação profissional e também do trabalho dos/das Assistentes
Sociais. A pesquisa também indica a importância de aprofundar análises sobre o
processo de construção das metodologias adotadas bem como do Código de Ética como
base para a construção dos processos investigativos.

Por fim, é importante indicar que nossas analises, ainda que iniciais, indicam o
impacto do período pandêmico para as pesquisas. Tais impactos merecem ser
aprofundados para que seja possível construir estratégias de qualificação da formação
profissional.

4- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS

ABESS/CEDEPSS. Currículo Mínimo para o Curso de Serviço Social. Rio de Janeiro:


ABESS/CEDEPSS, 1996.

MARX, Karl. "Introdução" in Para a crítica da economia política, Salário, preço e lucro. O
rendimento e suas fontes. São Paulo: Abril Cultural, “Os economistas”, 1982.

CARVALHO, A. M. P. A pesquisa no debate contemporâneo e o Serviço Social. Caderno


ABESS nº 5. São Paulo: Cortez, 1992.

CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS). Código de ética Profissional


do Assistente Social. Brasília, 1993.

BARROS, Aidil. J. P e LEHFELD, Neide. A. S. Projeto de Pesquisa: propostas


metodológicas. Petrópolis, Rj: Vozes, 1999.

IAMAMOTO, Marilda. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação


profissional. São Paulo: Cortez, 1998.

MINAYO, Maria Cecília. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis, Vozes,
1994.

412
LAKATOS, Eva Maria & MARCONI, Marina. Metodologia cientifica. 3. ed. São Paulo:
Atlas, 2000.

PRATES, Jane Cruz. A pesquisa e a extensão no processo de ensino-aprendizagem da


Graduação e Pós-Graduaçãoem Serviço Social. Textos& Contextos, Porto Alegre, v.
16, n. 1, p. 1-8, jan./jul. 2017

RICHARDSON, Roberto. J. etall. Pesquisa social: métodos e técnicas. São Paulo: Atlas,
1989.

RUDIO, Franz V. Introdução ao projeto de pesquisa científica. Petrópolis, RJ: Vozes,


1999.

413
A INDISPENSABILIDADE DO ESTUDO DA (CRÍTICA DA) ECONOMIA POLÍTICA
PARA A FORMAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

Juliano Zancanelo Rezende153

RESUMO: O trabalho apresenta uma reflexão teórica acerca


da indispensabilidade da (crítica da) Economia Política
enquanto disciplina científica para a formação profissional
em Serviço Social, capaz de oportunizar a compreensão
teórico-crítica das relações sociais de produção e
reprodução da sociedade capitalista. A partir de revisão
bibliográfica, de forma sumária, são situadas algumas
mediações entre o estudo crítico da Economia Política e o
próprio significado social do Serviço Social.

Palavras-chave: Serviço Social; Formação Profissional;


Economia Política.

ABSTRACT: The work presents a theoretical reflection on


the indispensability of (criticism of) Political Economy as a
scientific discipline for professional training in Social Work,
capable of providing an opportunity for a theoretical-critical
understanding of the social relations of production and
reproduction of capitalist society. Based on a bibliographic
review, in a summary way, some mediations between the
critical study of Political Economy and the social meaning of
Social Work are located.

Keywords: Social Work; Professional Training;


PoliticalEconomy.

1- INTRODUÇÃO

Enquanto resultante do processo histórico de renovação crítica do Serviço Social


brasileiro, a incorporação da (crítica da) Economia Política como matéria básica para a
formação em Serviço Social — bem como outras disciplinas científicas — representa o
movimento de constituição da maioridade intelectual da profissão entendida como área
de produção de conhecimento. Movimento este que se expressa, por exemplo, na
formulação das diretrizes curriculares da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em

153Assistente Social; Doutorando em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora / UFJF (bolsista FAPEMIG);
e-mail julianozancanelo@gmai.com ; Eixo Temático: Resistências, Lutas e Internacionalização do Serviço Social / área
temática: ofensiva ultraconservadora e resistências: formação e trabalho profissional;

414
Serviço Social (ABEPSS), de 1996. As quais estabelece no Núcleo de Fundamentos
Teórico-Metodológicos da Vida Social a necessidade da abordagem científica sobre o ser
social e sua produção histórica e particular na sociedade capitalista, sob a compreensão
das leis econômicas que regem tendencialmente o processo produtivo e a dinâmica de
reprodução social no bojo da luta de classes. Algo que está necessariamente articulado
com os outros núcleos de fundamentação para a formação profissional — Fundamentos
da Formação Sócio-Histórica da Sociedade Brasileira e Fundamentos do Trabalho
Profissional (ABEPSS, 1996).

Todavia, a conjuntura contemporânea de avanço dos retrocessos sociais sob a


égide ultraneoliberal, impõe uma crescente mercantilização e precarização da Educação
Superior, junto da difusão ideológica da anticiência produzida pela ascensão da extrema
direita no país (FARAGE, 2021). O que aumenta significativamente os desafios de
manutenção e soerguimento de uma formação acadêmico-profissional crítica, de
qualidade e socialmente referenciada. Portanto, acreditamos ser prudente a realização do
presente trabalho como resistência teórico-política do pensamento crítico e do legado
hegemônico ainda permanente no Serviço Social brasileiro. Assim, nas páginas seguintes
buscamos reforçar a compreensão coletiva do campo crítico da profissão sobre a
indispensabilidade da (crítica da) Economia Política na formação profissional, de forma a
fortalecer os pressupostos teóricos do Núcleo de Fundamentos da Vida Social com que
conta as Diretrizes Curriculares da ABEPSS.

2. ECONOMIA POLÍTICA E OS FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL

Conforme Lange (1966), o termo Economia advém de Aristóteles, e é designado


como uma espécie de ciência das leis da economia doméstica — em grego, Oikos
significa “casa”/”ambiente doméstico”, e nomos, “lei”. Já a expressão Economia Política,
mesmo tendo origem também na noção grega de politeia, foi cunhada a partir da obra
“Tratado de Economia Política”, publicada no século XVII pelo francês Antoine
Montchrétien. Na Inglaterra, com notável influência francesa, a expressão Economia
Política começou a ser utilizada nos textos de James Steuart (1712-1780), como de
outros pensadores ingleses, embora ainda não tivesse adquirido corpo teórico suficiente
enquanto teoria social. Mas é prudente destacar que mesmo a Economia Política sendo
reconhecida como teoria social somente no começo do século XIX, as contribuições
reflexivas de pensadores antecedentes contribuíram para a constituição de um arcabouço

415
de conhecimentos sobre as leis econômicas, desenvolvido no chamado período clássico
da Economia Política. Segundo Marx (1982), a tradição intelectual franco-inglesa forjou
os pensadores que marcaram a Economia Política Clássica, desde William Petty
(Inglaterra) e Pierre de Boisguillebert (França) a David Ricardo (Inglaterra) e Jean de
Sismondi (França). Também, destacamos o intelectual britânico Adam Smith que, junto
com David Ricardo, representam os principais pensadores da fase clássica da Economia
Política.

Em acordo com os pensadores clássicos da Economia Política, essa disciplina


científica não se propõe em determinar um objeto particular da sociedade para ser
analisado de forma isolada e compartimentalizada; na verdade, seu objeto de
investigação é a própria sociedade moderna e suas múltiplas relações econômicas e
sociais de produção. Devido à crise do modo de produção feudal e o surgimento de
novas relações sociais de produção, a Economia Política buscou, enquanto teoria social,
explicar o funcionamento da vida social assentada na expansão das relações mercantis e
de trabalho. Assim, com a gestação e desenvolvimento da sociedade burguesa se fez
necessário compreender o conjunto das relações sociais dessa nova sociabilidade e,
para isso, o homem — no sentido humano genérico — apontou a possibilidade de
distinção entre o “natural” e o “social” no processo de construção do conhecimento. Isto
é, para conhecer e explicar a sociedade nascente, tornou-se possível a separação entre
o que é “social” do que é “natural” no caminho de conhecimento da realidade. Logo, a
teoria social somente pode surgir quando, para conhecer o conjunto da sociedade, o
“social” começa a emergir, sendo a primeira expressão da teoria social a Economia
Política154.

Por mais que a Economia Política Clássica é expressão da emersão do “social” na


compreensão da realidade, seus teóricos imbricados em concepções próprias do
jusnaturalismo moderno acabaram por entender categorias e instituições como algo
natural e não movente, pois “uma vez descobertas pela razão humana e instauradas na
vida social, permaneceriam eternas e invariáveis na sua estrutura fundamental” (NETTO
e BRAZ, 2012, p.30). Essa característica reflete o compromisso de classe que a
Economia Política Clássica acabou desempenhando, compromissada com a burguesia

154“Laeconomía política estudia, pues, los diversos aspectos delproceso económico que se manifiestan a
través de lasleyes económicas. Es una ciencia teórica, contrariamente alahistoria económica y a
laeconomíadescriptiva, que estudianeldesarrollo de procesos económicos concretos entiempos y lugares
determinados.” (LANGE, 1966, p.87);

416
revolucionária. Afinal, alicerçada em preceitos do liberalismo clássico em contraposição à
sociabilidade feudal e absolutista, a Economia Política Clássica representou a vontade
coletiva da burguesia revolucionária de superação do Antigo Regime e de irrupção da
nova ordem — a ordem burguesa.

Ainda na primeira metade do século XIX, a Economia Política Clássica caminhou


por um percurso de crise dado o contexto de modificação da relação da burguesia com o
próprio Programa da Modernidade. A Ilustração enquanto projeto de emancipação da
humanidade se sintetizava nos princípios de liberdade, de igualdade e de fraternidade.
No entanto, este projeto da cultura ilustrada somente foi possível ser concebido, nos
moldes do regime burguês, enquanto emancipação política em alguns países da Europa
Ocidental, e não como emancipação do gênero humano, haja vista que a igualdade, na
sociedade burguesa, se limita ao plano jurídico e não abarca o âmbito econômico-social.
E o próprio âmbito jurídico não pressupõe realmente a liberdade concreta se
considerarmos as suas disparidades conforme a origem e posição de classe dos sujeitos.

Com a conversão da burguesia de classe revolucionária para classe


conservadora, conformaram-se os elementos essenciais para a crise do período clássico
da Economia Política. Afinal, se os clássicos da Economia Política compreendiam que é a
partir do trabalho que se cria valor, essa compreensão não se fazia mais válida para a
burguesia enquanto classe dominante e conservadora, que se mantém pela lógica da
exploração do trabalho pelo capital (MARX, 2008). Isto é, se a criação de valor advém do
trabalho e a ordem burguesa está assentada na exploração do trabalho, gera-se uma
incompatibilidade entre o entendimento da Economia Política Clássica e os interesses de
classe da burguesia.

Somada às insurgências populares de trabalhadores na Europa, que marcou o


ano de 1848155, a burguesia conservadora rejeita a Teoria do Valor-Trabalho (T-V-T) e,
consequentemente, desqualifica a análise teórico-social desempenhada pela Economia
Política Clássica a partir da produção econômica e da vida social. Diante disso, a Teoria

155Mesmo ano da publicação do Manifesto do Partido Comunista, elaborado e escrito por Marx e Engels
devido à sua deliberação no II Congresso da Liga dos Comunistas, em 1847, enquanto um documento
programático da Liga. “Nos começos de fevereiro de 1848, o documento (de cujo original só se conservou
uma página, manuscrita por Marx) é enviado à sede da Liga, em Londres, e provavelmente a 23 ou 24 do
mesmo mês sai da pequena tipografia de J. E. Burghard a primeira edição, com três mil exemplares em
alemão, do Manifesto — naturalmente sem a identificação dos autores, uma vez que se tratava do programa
de um coletivo político. E quase ao mesmo tempo em que a Liga ingressava aberta e publicamente da arena
política, apresentando-se com o Manifesto, a revolução — que logo se estenderia pela Europa continental —
explodia em Paris” (NETTO, 1998, p.16).

417
do Valor-Trabalho e a análise das relações sociais a partir da produção foram
incorporadas por intelectuais que se vinculavam ao proletariado, observadas as críticas à
própria construção clássica da Economia Política (NETTO e BRAZ, 2012).

Vinculado aos interesses históricos da classe trabalhadora, o pensador que


inaugura a Crítica da Economia Política é Karl Marx (1818-1883) — um estudioso alemão
que incorpora a história e seu movimento enquanto categorias fundamentais para a
análise do conjunto das relações constituídas e constitutivas na sociedade burguesa
(MARX, 2008). Buscando superar os limites da Economia Política Clássica, Marx
apresenta para análise efetiva do movimento do real um método analítico — vulgarmente
conhecido como materialismo histórico-dialético — que visa compreender e explicar o
conjunto das relações sociais da dinâmica da sociedade moderna e, consequentemente,
para isso, do modo de produção capitalista (LUKÁCS, 2003).

Compreendemos que para o desenvolvimento da Teoria Social Crítica, a


recorrência crítica aos pressupostos da cultura ilustrada foi elementar, tendo em vista a
referência crítica de Marx a Hegel (1770-1831) e aos clássicos da Economia Política.
Somada a necessidade que Marx (2017) observava em relação ao conhecimento real do
real para o êxito da ação revolucionária do proletariado e, por Marx estar intelectualmente
vinculado aos interesses das massas trabalhadoras, o caminho apontado foi o de
assentar a ação revolucionária da classe trabalhadora em uma teoria social capaz de
reproduzir ideal e concretamente o movimento da sociedade do capital, para que,
conhecendo realmente a realidade, fosse possível obter efeitos concretos sobre o
movimento do real por parte da ação revolucionária do proletariado.

Assim como nos elucida o professor Netto (2011), a teoria é um conjunto de


explicitações teórico-metodológicas acerca de um objeto determinado, e se constitui
enquanto uma modalidade de conhecimento dentre as várias maneiras de se processar o
conhecer. Na perspectiva marxiana, há várias formas de conhecimento — não validando
todas essas modalidades de conhecer, mas as reconhecendo. Sendo o conhecimento
teórico uma modalidade de conhecer que se difere das outras formas de conhecimento,
pois a teoria é a “reprodução ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa:
pela teoria, o sujeito reproduz em seu pensamento a estrutura e a dinâmica do objeto que
pesquisa” (NETTO, 2011, p.21). Reprodução porque o conhecimento teórico não produz
nada por si só. Ou seja, é uma reprodução ideal, no “mundo” das ideias, do concreto na
cabeça dos sujeitos — especificamente o sujeito que busca conhecer, pesquisar, com

418
referência no conhecimento teórico. Portanto, esse movimento é algo que parte do
externo e é reproduzido no plano das ideias. Então, para a tradição marxista, teoria não é
o que retrata estaticamente a realidade, ela extrai da realidade um movimento efetivo
dela própria.

E no que se trata a (crítica da) Economia Política, elencando a dinâmica da


sociedade como objeto de análise, segundo Lange (1966), sua tarefa teórica é investigar
as leis sociais que regem o processo econômico — de produção e distribuição —
entendido na totalidade das relações sociais do capitalismo. Dessa maneira, a (crítica da)
Economia Política enquanto disciplina científica que aborda a atividade econômica sobre
a qual se organiza a sociedade burguesa, se apresenta como condição indispensável
para a compreensão dos fundamentos da vida social.

Neste ponto, podemos suscitar a indispensabilidade da (crítica da) Economia


Política, enquanto teoria social, para a compreensão das relações sociais de produção e
reprodução da sociedade e, portanto, das motivações societárias e de classes para a
requisição de profissionais, inscritos sob a divisão social e técnica do trabalho, para lidar
com um conjunto de problemáticas que circundam a realidade reprodutiva do capital.
Aqui nos referimos especificamente ao Serviço Social. Uma profissão historicamente
desenvolvida e especializada a laborar racionalmente no campo da reprodução social,
consideradas as necessidades sociais e impasses resultantes do desenvolvimento das
forças produtivas na sociabilidade capitalista (IAMAMOTO e CARVALHO, 2014).

Recorrendo ainda à indispensável produção de Iamamoto e Carvalho (2014), em


meio ao desenvolvimento industrial do capitalismo monopolista e sob a gestação de
novas determinações e expressões da Questão Social, no acirramento do antagonismo
entre as classes fundamentais desse modo de produção da vida social, reafirmamos a
inerente imersão do Serviço Social no bojo da reprodução das relações sociais
tipicamente capitalistas, especialmente no que se refere à reprodução material e
espiritual da força de trabalho e à reprodução da ideologia da classe dominante e seu
controle social, político e econômico sobre a ordem do capital. Partindo da compreensão
marxista sobre o processo de reprodução social das relações desta sociabilidade
enquanto reprodução de seu modo de vida, os referidos autores pontuam que tal
dinâmica social imbrica no desenvolvimento das lutas sociais entre as classes
fundamentais que participam do processo de produção social da sociedade capitalista,
tendo em vista o relacionamento contraditório entre tais classes sociais que vivem sob

419
constante disputa de interesses estruturalmente antagônicos. Dessa forma, percebemos
que o Serviço Social ao participar do processo de reprodução das relações sociais, atua
sobre a basilar contradição entre capital e trabalho que sustenta a atual ordem societária.
Assim, enquanto uma profissão que se insere na divisão social e técnica do trabalho
como uma especialização do trabalho coletivo e que se debruça sobre a reprodução das
relações sociais capitalistas, o Serviço Social é transpassado pelas contradições desta
sociedade de classes fundamentalmente divergentes. Como a reprodução das relações
sociais do atual modo de produção pressupõe a reprodução de suas características
fundantes no movimento histórico do real, mais uma vez reafirmamos que a reprodução
das relações sociais presume a reprodução da ineliminável contradição entre a classe
dominante e a classe despossuída e explorada. E como o Serviço Social atua na
reprodução das relações sociais, sua natureza profissional, essencialmente, é polarizada
pelo conflito estrutural entre as classes sociais historicamente opostas. Dessa forma, por
mais que o Serviço Social, enquanto uma profissão inscrita sob o estatuto do
assalariamento, tende a aderir ao hegemônico pensamento conservador das classes
proprietárias e que exploram o trabalho alheio, não se pode eliminar a conflitividade de
interesses de classes que é situado no significado social desta profissão. Afinal, conforme
Iamamoto e Carvalho (2014), o Serviço Social além de atender requisições do capital
para a reprodução das relações sociais, também, e neste mesmo processo social,
responde a certas necessidades do polo oposto na luta de classes. Sob essa perspectiva,
os autores afirmam que o Serviço Social

responde tanto a demandas do capital como do trabalho e só pode


fortalecer um ou outro polo pela mediação de seu oposto. Participa tanto
dos mecanismos de dominação e exploração como, ao mesmo tempo e
pela mesma atividade, da resposta às necessidades de sobrevivência da
classe trabalhadora e da reprodução do antagonismo nesses interesses
sociais, reforçando as contradições que constituem o móvel básico da
história. A partir dessa compreensão é que se pode estabelecer uma
estratégia profissional e política, para fortalecer as metas do capital ou
do trabalho, mas não se pode excluí-las do contexto da prática
profissional, visto que as classes só existem inter-relacionadas. É isto,
inclusive, que viabiliza a possibilidade de o profissional colocar-se no
horizonte dos interesses das classes trabalhadoras. (IAMAMOTO e
CARVALHO, 2014, p.82)

Mesmo que o fazer profissional do Serviço Social, ao atuar na reprodução das


relações sociais, consequentemente, reproduz as condições de conservação dessas
relações próprias da dinâmica capitalista, vimos que as respostas da profissão não se
configuram, exclusivamente, enquanto ações direcionadas a atender os interesses das
classes dominantes. Por ser envolvida pela insuprível contradição entre capital e

420
trabalho, a intervenção profissional responde a necessidades e interesses de ambas as
classes. E nesse processo, a depender da vinculação teórico-política de seus agentes
profissionais e da correlação de forças sociais e institucionais em que estão inseridos, a
profissão, no bojo de sua autonomia relativa, conta com a potencialidade de poder
fortalecer uma ou outra extremidade da luta de classes. Assim, mesmo com as condições
estruturais desfavoráveis, o agir profissional do Serviço Social, imerso na contradição
entre as classes, pode, por exemplo, potencializar certas necessidades das classes
trabalhadoras e subalternas, ao mesmo passo que responde a determinados interesses
das classes dominantes.

Dessa maneira, enquanto legado histórico do movimento crítico-profissional


referenciado teórico-metodologicamente na tradição marxista — desenvolvido e
consolidado há pelo menos quatro décadas no Brasil — a incorporação da (crítica da)
Economia Política na formação profissional em Serviço Social se apresenta como
elementar, tendo em vista que é imprescindível compreender a profissão como um
processo entendido na trama das relações sociais e de classes. Isto é, em nosso
julgamento, a crítica da Economia Política participa de forma fundamente no rol de
disciplinas científicas que desvelam teoricamente o modo de produção da sociedade
burguesa e, portanto, o movimento de sua reprodução social, em que o Serviço Social é
requisitado a atuar profissionalmente. Dessa maneira, a (crítica da) Economia Política
enquanto recurso teórico-científico se encontra indivorciável de uma formação
acadêmico-profissional qualificadamente capaz de propiciar a compreensão científica da
sociedade capitalista e das desigualdades sociais — estas, entendidas como expressões
da Questão Social — gestadas pela contradição histórica entre capital e trabalho.

3- CONCLUSÃO

Sob o prisma analítico sumariamente comentado, situamos a indispensabilidade


da (crítica da) Economia Política como matéria básica — mas não exclusiva — na
formação profissional em Serviço Social. Pois, além de possibilitar fundamentos teóricos
para a compreensão estrutural e totalizante das relações sociais de produção e
reprodução; do objeto de intervenção profissional, entendido como refrações da Questão
Social; e do próprio significado social da profissão; também, representa parte
fundamental do arcabouço teórico-crítico e conceitual em sintonia com o Projeto Ético-

421
Político hegemônico da profissão, expresso, por exemplo, nas Diretrizes Curriculares da
ABEPSS.

Sem desprezar a importância da recorrência bibliográfica a fontes primárias — o


que é, inegavelmente, fundamental — julgamos como imprescindível o recurso ao livro
didático “Economia Política: uma introdução crítica”, elaborado pelos professores José
Paulo Netto e Marcelo Braz. Um material introdutório, didático e crítico que possibilita ao
leitor, além do primeiro contato com a (crítica da) Economia Política, um recurso auxiliar
para estudos mais apurados a partir de fontes de primeira linha.

4- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABEPSS. Diretrizes Gerais para o curso de Serviço Social. ABEPSS: Rio de Janeiro,
1996.

FARAGE, Eblin. Educação Superior em tempos de retrocessos e os impactos na


formação profissional em Serviço Social. Serv. Soc. Soc: São Paulo, n. 140, p.48-65,
2021.

IAMAMOTO, Marilda Villela e CARVALHO, Raul de. Relações Sociais e Serviço Social no
Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 41.ed. São Paulo: Cortez,
2014.

LANGE, Oskar Richard. Economía Política: problemas generales. / trad. de Siverio Ruiz
Daimiel. — México: FCE, 1966.

LUKÁCS, György. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista.


Tradução: Rodnei Nascimento [edição brasileira]. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MARX, Karl.A Miséria da Filosofia. / tradução de José Paulo Netto. São Paulo: Boitempo,
2017.

______. Contribuição à crítica da Economia Política. Tradução e Introdução de Florestan


Fernandes: 2.ed. — São Paulo: Expressão Popular, 2008.

______. Para a crítica da Economia Política. Salário, Preço e Lucro. O rendimento e suas
fontes. São Paulo: Abril, 1982.

NETTO, José Paulo e BRAZ, Marcelo. Economia Política: uma introdução crítica. — 8.
ed. São Paulo: Cortez, 2012.

NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx. 1.ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2011.

______. Prólogo: Elementos para uma leitura crítica do Manifesto Comunista. In: MARX,
Karl e ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Cortez, 1998.

422
O ENSINO DA QUESTÃO SOCIAL NA FORMAÇÃO DOS ASSISTENTES SOCIAIS

Camila Maewe da Silva Bandeira156


Thaísa Teixeira Closs157

RESUMO: O estudo aborda o ensino da questão social e


suas expressões na formação em Serviço Social, à luz das
Diretrizes Curriculares da ABEPSS de 1996, a partir de
revisão bibliográfica e pesquisa documental. Evidencia-se
que a materialização das referidas diretrizes neste ensino
ainda enfrenta desafios impostos pelo projeto neoliberal na
política de educação, implicando à profissão construções
críticas e estratégicas de novas mediações que qualifiquem
o ensino da questão social, a formação e o trabalho
profissional e a concretização do seu Projeto Ético-Político.
Palavras-chave: Questão Social; Ensino; Trabalho; Serviço
Social.

ABSTRACT: The study approaches the teaching of the


social question and its expressions in the formation in Social
Work, in the light of the Curricular Guidelines of ABEPSS of
1996, from a bibliographic review and documental research.
It is evident that the materialization of the seguide lines in
this teaching still faces challenge simposed by the neoliberal
project in the in the education policy, implying in the
profession critical and strategic constructions of new
mediations that qualify the teaching of the social question,
the formation and the professional and the realization of its
Ethical-Political Project.
Keywords: Social Question; Teaching; Work; Social Work.

156 Assistente social. Especialista em Residência Integrada Multiprofissional em Saúde Mental (UNISINOS).
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Política Social e Serviço Social da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), professora orientadora: Dra. Thaísa Teixeira Closs. camilamsdb@homail.com.
157 Assistente social. Mestre e doutora em Serviço Social (PUCRS). Especialista em Residência Integrada em

Saúde/Atenção Básica (ESP/RS). Professora adjunta do Departamento de Serviço Social da Universidade


Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), atuando no curso de graduação em Serviço Social e no Programa
de Pós-graduação em Política Social e Serviço Social. thaisatcloss@gmail.com.

423
1- INTRODUÇÃO

O presente trabalho se constitui em um estudo exploratório que compõe a


pesquisa de mestrado acadêmico da autora e da sua professora orientadora, que tem por
objetivo compreender os desafios e possibilidades no ensino da questão social e das
suas expressões, a partir dos aportes e da direção trazidos pelas Diretrizes Curriculares
da ABEPSS de 1996 (ABEPSS, 1966) na formação graduada em Serviço Social no Rio
Grande do Sul (RS), identificando os elementos que têm fundamentado, favorecido e
dificultado este ensino a partir dos Núcleos de Fundamentação da Formação e das suas
expressões de resistências sociais, no sentido de analisar se a questão social vem sendo
trabalhada a partir da sua concepção crítica, enquanto categoria fundante sócio-histórica
da profissão e como seu objeto de trabalho, conforme pautado pelas Diretrizes
Curriculares da ABEPSS e pelo atual Projeto Ético-político do Serviço Social.
Diversos são os impactos na formação profissional dos desmontes e
mercantilização do projeto neoliberal na política de educação, que implicam na
necessidade de uma permanente avaliação da materialização das Diretrizes Curriculares
com relação ao ensino da questão social. As produções sobre a mesma em suas
mediações com a formação e o ensino na profissão são escassas, o que reforça a
relevância do presente estudo. Dessa forma, apresenta-se por meio de revisão
bibliográfica e pesquisa documental, uma análise preliminar da conjuntura da formação
profissional com ênfase no ensino da questão social, no sentido de conhecer a
organização prevista e a materializada na realidade dos cursos do estado do Rio Grande
do Sul, das disciplinas que abordam essa temática e da estruturação dos seus currículos.

2- A CENTRALIDADE DA QUESTÃO SOCIAL NO PROCESSO FORMATIVO DO


SERVIÇO SOCIAL SOB O MARCO DAS DIRETRIZES CURRICULARES DA ABEPSS
DE 1996

Ainda que haja problematizações no debate teórico-metodológico sobre a questão


social entre os autores do Serviço Social, com relação a sua apropriação pelo
pensamento conservador, sua ineficiência em desvelar as relações sociais e de produção
capitalista, sua origem nas particularidades das formações das sociedades, o momento
em que efetivamente se constitui enquanto questão social e se ela deve se constituir no
objeto de intervenção da profissão, o fato é que no marco do Movimento de
Reconceituação do Serviço Social na América-Latina e no processo de renovação da

424
profissão no Brasil entre a ditadura militar e a redemocratização da sociedade brasileira,
o Serviço Social, a partir da vertente de intenção de ruptura com o conservadorismo e da
aproximação com a tradição Marxista, se apropria, ressignifica e difunde na profissão a
concepção de questão social nos aportes analíticos da matriz do materialismo histórico
dialético, (IAMAMOTO; CARVALHO, 1982) marcando assim seu posicionamento e
compromisso com os direitos da classe trabalhadora e com a superação da ordem
burguesa.
A questão social, passa assim a ser compreendida como um conjunto de
expressões de desigualdades e lutas sociais que emergem de uma relação de
disparidade e contradição entre as classes sociais no sistema de produção e
sociabilidade capitalista, em aspectos econômicos, políticos e culturais, mediadas ainda
pelas relações de gênero, étnico-raciais, regionais e culturais (IAMAMOTO, 2001). A
incorporação da teoria social de Marx como matriz teórico-metodológica fornece as
mediações necessárias para desvendar os artifícios do pensamento conservador que
pairam sobre a questão social, segundo Netto (2001, p.45), ao desvendar a dinâmica da
lei geral de acumulação capitalista, a análise marxiana também "revela a anatomia da
questão social", portanto revela sua dimensão contraditória e indissociável do modo de
produção capitalista. A questão social passa a ser concebida como fundante sócio-
histórica do Serviço Social e, dessa forma, como eixo analítico dos fundamentos da
profissão (CLOSS, 2015), assumindo uma posição central na formação profissional, bem
comose constitui em objeto de intervenção profissional do assistente social, aspectos que
as Diretrizes Curriculares formuladas pela ABEPSS em 1996 têm por objetivo
materializar. (ABEPSS, 1996).
A construção das referidas diretrizes marca a história da formação em Serviço
Social no Brasil. Goin (2019) explicita que a nova lógica curricular, ao apostar na
indissociabilidade entre história, teoria e método, rompe com a endogenia que analisava
o Serviço Social nele e por ele mesmo e possibilita compreendê-lo nos processos sociais,
como produto e produtor desses processos, em suas múltiplas determinações. Closs
(2015) aponta que a concretude histórica que a questão social atribui à profissão, faz com
que ela tenha esse caráter de centralidade, junto à categoria trabalho, na estruturação
curricular, esta centralidade enriquece a proposta de formação, pois articula
componentes de análise da gênese profissional, da particularidade da profissão na
divisão sociotécnica do trabalho e na sociedade burguesa e as bases interpretativas
críticas do espaço sócio-ocupacional do Serviço Social, por isso as Diretrizes Curriculares

425
da ABEPSS apostam na transversalidade da questão social aos componentes
curriculares para garantir uma formação generalista.
Dessa forma, a apreensão das particularidades da questão social, e de todos os
conteúdos e matérias do currículo, é subsidiada pela articulação de três Núcleos de
Fundamentação da formação: Núcleo de Fundamentos Teórico-metodológicos da Vida
Social, que trata da compreensão dos fundamentos, categorias, conhecimentos e teorias
que explicam a realidade e a totalidade histórica do ser social; Núcleo de Fundamentos
da Particularidade da Formação Sócio-histórica da Sociedade Brasileira, que articula o
processo histórico de formação da sociedade brasileira, as particularidades do seu
desenvolvimento e dos desdobramentos do capitalismo em um país latino-americano
dependente e Núcleo de Fundamentos do Trabalho Profissional, que recupera a
profissionalização do Serviço Social, como trabalho especializado, considerando sua
matéria e objeto de trabalho, os instrumentos, técnicas e recursos que conformam a
intervenção profissional. (ABEPSS, 1996).
Mas as contra-reformas do ensino superior atropelaram esses processos, e
trouxeram diversos desafios na implementação efetiva das Diretrizes Curriculares da
ABEPSS. Em sua aprovação em 2001 sofreu várias descaracterizações, supressão de
princípios e conteúdos das matérias, deixando as unidades de ensino com escassa
referência, prejudicando a garantia da transversalidade e articulação dos conteúdos, o
que indica desafios de materialização da questão social como ordenadora do
currículoperpassando as matérias e disciplinas nos currículos dos cursos de Serviço
Social. Diante da conjuntura de precarização da formação e do ataque neoliberal às
universidades, se evidencia a importância de preservar as conquistas que atribuem
legitimidade intelectual, moral e cultural à profissão e impulsionar seu avanço. (KOIKE,
2009).

3- DESAFIOS E POSSIBILIDADES NO ENSINO DA QUESTÃO SOCIAL NA


PROFISSÃO

O projeto neoliberal traz diversas contrarreformas no interior do Estado e nas


políticas sociais que impactam profundamente o mundo do trabalho e as condições de
vida da população. Behring e Souza (2020) definem que o neoliberalismo, enquanto um
projeto de dominação de classe, tem por objetivo ampliar a extração de mais-valia, a
partir de reestruturações na produção, elevando para uma superexploração e ao mesmo
tempo impondo limites crescentes às possibilidades de resistência dos trabalhadores. Os

426
impactos das contrarreformas na política de educação na formação em Serviço Social
hoje são inúmeros e, segundo Iamamoto (2014), são decorrentes do contexto de
expansão acelerada da oferta de vagas, principalmente na modalidade à distância, de
prevalência de instituições de ensino privadas não universitárias que prejudicam o tripé
ensino, pesquisa e extensão como base da formação, de precarização das condições de
trabalho docente, de alteração no perfil socioeconômico e de identidade dos estudantes,
com relação à gênero, etnia e geração, de financeirização, mercantilização e privatização
da política educacional e da vida social e de proposta do ensino superior por competência
focado no sistema produtivo.
Guerra (2018) alerta que nesse contexto as categorias centrais para a formação
de assistentes sociais tendem a ser tratadas como conceitos positivados,
descontextualizados e/ ou desconexos da natureza da profissão. É necessário tratá-las
rigorosamente no âmbito teórico, histórico e metodológico, os docentes devem adotar um
recurso pedagógico que demonstre claramente os nexos internos e intrínsecos entre as
categorias, na perspectiva de superar tendências formais-abstratas e antiontológicas que
invadem a racionalidade da profissão: o teoricismo, o metodologismo e a adoção de uma
concepção de história cronológica e para isso, é necessário radicalizar as diretrizes e
seus princípios, defender a universidade como espaço de formação integral, crítica e de
produção de um conhecimento socialmente relevante.
O que ocorre é que com relação ao ensino da questão social, a profissão tem
analisado pouco se seu processo formativo está contemplando o ensino a partir das
Diretrizes Curriculares da ABEPSS. Closs (2015), em seu estudo sobre a produção dos
periódicos da área sobre a questão social em sua mediação com o ensino e a formação,
apontou que as produções são escassas. Em levantamento realizado em outubro de
2021 no catálogo de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES), com o objetivo de identificar as produções sobre o
ensino da questão social na formação profissional, a partir dos descritores "questão
social", "Serviço Social" e "ensino", somente uma tese foi encontrada tratando
especificamente sobre o tema, a de Ferreira (2015), que revela diversos desafios que
ainda se colocam no processo da apreensão da questão social pelos assistentes sociais,
como a heterogeneidades de concepções, a dificuldade de compreensão da sua gênese
e estrutura no conflito capital-trabalho e da sua dimensão contraditória e política de
desigualdades e resistências, afetando o desenvolvimento das mediações necessárias
para a intervenção profissional.

427
Realizou-se pesquisa documental em julho de 2022 nos currículos
disponibilizados nos sites de 10 instituições públicas e privadas que ofertam cursos de
Serviço Social presenciais ativos no Rio Grande do Sul, identificados a partir do sistema
E-MEC do Ministério da Educação. A pesquisa revelou a seguinte realidade e
configuração curricular com relação às disciplinas de questão social: 9 cursos (9 de 10)
possuem ao menos uma disciplina com o descritor "questão social" no currículo, que se
localizam entre o primeiro e o terceiro semestre. Um curso (1 de 10) não tem disciplina
intitulada dessa forma no currículo e é de uma instituição privada. Apenas dois cursos (2
de 10) ofertam duas disciplinas intituladas de questão social, de carga horária total de
60h cada e ambos são de instituições públicas, em um (1 de 2) as disciplinas são
ofertadas no primeiro e no terceiro semestre e em outro (1 de 2) uma é ofertada no
primeiro semestre e outra é optativa, podendo ser cursada em qualquer etapa, o restante
do total dos cursos (7 de 10), ofertam somente uma disciplina com esse título no
currículo. Das 11 disciplinas levantadas nessa pesquisa, nove (9 de 11) possuem carga
horária de 60h e duas (2 de 11) possuem 80h. Elas estão nomeadas principalmente
como: "questão social e Serviço Social" (5 de 11) e o restante articula dimensões como:
objeto de trabalho do Serviço Social (1 de 11), trabalho (1 de 11), capitalismo (1 de 11),
transformações societárias (1 de 11), formação social brasileira (1 de 11) e mídia (1 de
11).
Nestes mesmos cursos, realizou-se pesquisa documental nos seus sites
institucionais, nos itens que apresentam as informações do curso, do processo formativo
e da profissão, com objetivo de identificar se/como a questão social aparece nesta
descrição, se evidenciou o que segue: as apresentações nos sites seguem a tendência
comum de citar o que a instituição concebe como competências profissionais do
assistente social, seus espaços de atuação, os segmentos com que trabalha e seu objeto
de intervenção. Dos 10 cursos, somente um (1 de 10), de uma universidade pública, cita
a questão social na sua apresentação, quando se refere ao objetivo geral do curso. Os
demais objetos de estudo e de intervenção citados nas apresentações aparecem da
seguinte forma e frequência: necessidades, demandas e desigualdades sociais (4),
políticas públicas e sociais e programas sociais (3), processos sociais (2), realidade
social (1), conjunto das relações sociais (1) e exclusão social (1).
Apesar da maioria dos cursos no estado prever a disciplina de questão social no
seu currículo é preciso aprofundar a análise de como ela está sendo abordada nestas
disciplinas e na configuração total do processo formativo. É curioso que a questão social
e suas expressões sejam elementos invisibilizados nas apresentações dos cursos, o

428
objeto de intervenção da profissão não é algo publicizado para a sociedade e futuros
alunos no principal portal de divulgação, informações e ingresso dos cursos, que são as
mídias digitais das instituições. As competências profissionais tão amplamente citadas
nas apresentações traduzem as formas de enfrentamento ao objeto de trabalho, mas não
o objeto em si e essa demarcação é importante na atual conjuntura. Guerra (2018)
sinaliza que o projeto de formação deve ser orientado por um projeto de profissão
coerente e consistente, que deixe claro de que Serviço Social está se falando, quais os
seus objetivos, atribuições e competências sócio-profissionais e à qual perspectiva se
vinculam, de maneira a não ceder às tendências neutralizadoras, conservadoras e
neoliberais que disputam terreno na profissão.
É preocupante que no interior do Serviço Social ainda seja necessário travar
esforços para que a questão social seja afirmada como objeto de trabalho a partir dos
fundamentos teórico-metodológicos definidos nas Diretrizes Curriculares, enquanto as
expressões da questão social se agudizam, se complexificam e se fetichizam no cenário
sócio-político e sanitário brasileiro, no auge da revolução 4.0 de intensificação do uso das
tecnologias de informação e comunicação, da pandemia de covid-19, que aprofundou o
processo de regressão dos direitos sociais e que segundo Rafael (2020, p. 128)
descortina "o quão violento e anticivilizatório é o modo de produção capitalista, que
sacrifica vidas dia a dia", das novas morfologias que se colocam mundo do trabalho,
como o teletrabalho, a plataformização e uberização, que promovem desvinculação
empregatícia e desregulamentação social do trabalho, legitimadas por legislações como a
reforma trabalhista e da previdência, criando uma tendência de intensa precarização,
terceirização, instabilidade e desemprego total, que segundo Antunes (2018) coloca a
servidão como um privilégio de sobrevivência. É preocupante que não tenhamos
consolidado na profissão a questão social como objeto de trabalho, enquanto suas
expressões nos demandam profundamente uma intervenção cada vez mais complexa,
atenta, crítica, criativa e coletiva.
Para Koike (2009), manter sob permanente crítica e atualização o processo da
formação profissional é uma necessidade de todos os campos profissionais. Para os
assistentes sociais, pensar seu processo educativo/formativo, requer cautelosa avaliação
do atual estágio do capitalismo e seu Projeto Ético-político. Lewgoy e Maciel (2016)
destacam que desde a década de 1990, podemos resgatar da trajetória histórica do
Serviço Social, uma composição dialética de configurações, problematizações e
resistências que buscam garantir o Projeto Profissional por meio de estratégias que se
propõem a enraizar e florescer as Diretrizes Curriculares, de manter a organização

429
política da profissão e de sintonizar seu Projeto com a direção social da formação. Nesse
sentido, se faz necessário fortalecer e apostar nessa composição dialética diante de
contextos tão desafiadores que se colocam, germinar as sementes que a luta coletiva dos
assistentes sociais plantou no decorrer da história, passa por afirmarmos o compromisso
de traçar permanentemente caminhos de análise da qualidade da formação e do trabalho
profissional, consolidando o Projeto Ético-Político do Serviço Social.

4- CONCLUSÕES

Diante do exposto, se reforça a importância da constante avaliação do processo


de formação profissional do Serviço Social com relação ao ensino da questão social a
partir das Diretrizes Curriculares da ABEPSS de 1996, no sentido de fortalecer o Projeto
Ético-Político da profissão, diante dos rebatimentos do projeto neoliberal em curso e os
processos de reestruturação produtiva do capital que acentuam a exploração do trabalho
e reconfiguram e complexificam as expressões de desigualdades da questão social, na
medida em que desmobilizam as possibilidades de resistência da classe trabalhadora.
O estudo exploratório do ensino da questão social na formação profissional no
estado do Rio Grande do Sul revelou algumas tendências da organização do ensino e da
concepção dessa categoria nos cursos de Serviço Social, que indicam a importância de
aprofundar e ampliar as análises de como a questão social está sendo de fato concebida
pela profissão e abordada e absorvida no processo de ensino e aprendizagem. Estes
aspectos seguirão em estudo na pesquisa de mestrado acadêmico da autora e sua
professora orientadora, com o objetivo de desvendar as particularidades dessa realidade
no estado e contribuir com a qualificação da formação e do trabalho profissional.

5- REFERÊNCIAS

ABEPSS - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENSINO E PESQUISA EM SERVIÇO


SOCIAL. Diretrizes Gerais para o Curso de Serviço Social. 1996. Disponível em:
<http://www.abepss.org.br/arquivos/textos/documento_201603311138166377210.pdf>
Acesso em: 28/04/2022.

ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital.


São Paulo: Boitempo , 2018.

BEHRING, E. R.; SOUZA, G. Ultraneoliberalismo e fundo público: análise do orçamento


das políticas sociais e do ajuste fiscal em tempos de pandemia. In: SOUSA, A. A. S. de;
OLIVEIRA, A. C. O. de.; SILVA, L. B. Da; SOARES, M. (Orgs.). Trabalho e os limites do

430
capitalismo: novas facetas do neoliberalismo. Uberlândia: Navegando Publicações,
2020.

CLOSS, T. T. Questão Social e Serviço Social:uma análise das produções dos periódicos
da área. Textos & Contextos, Porto Alegre, v. 14, n. 2, p. 253 - 266, ago./dez. 2015.

FERREIRA, J. W. Questão Social: um estudo acerca dos fundamentos teóricos,


estratégias metodológicas e relação teórico-prática no ensino em Serviço Social. Tese
(Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2015

GUERRA, Y. Consolidar avanços, superar limites e enfrentar desafios: os fundamentos


de uma formação profissional crítica. In: GUERRA, Yolanda et al. Serviço Social e seus
fundamentos: conhecimento e crítica. Campinas: Papel Social, 2018, p. 25-46.

IAMAMOTO, M. V. A questão social no capitalismo. Temporalis, Brasília, n. 3, 2001.

IAMAMOTO, M. V. formação acadêmico-profissional no Serviço Social brasileiro. Serv.


Soc. Soc., São Paulo, n. 120, p. 609-639, out./dez. 2014.

KOIKE, M. M. Formação Profissional em Serviço Social: exigências atuais. In Serviço


Social: Direitos Sociais e Competências Profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS,
2009.

LEWGOY, A. M. B.; MACIEL, A. L. S. O projeto de formação em Serviço Social:


análise da sua trajetória histórica no período 1996 a 2016. Temporalis, Brasília (DF), ano
16, n. 32, jul/dez. 2016.Disponível em: <
https://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/14227> Acesso em: 08/05/2020.

NETTO, J. P. Cinco Notas a Propósito da Questão Social. Temporalis, n. 03, Ano 02,
ABEPSS, Grafiline, 2001.

RAFAEL, J. C.Trabalho, questão social e opressões: contribuições ao debate sobre


violência de classe, raça e gênero no brasil. GÊNERO, Niterói, v. 20, n. 2, p. 110-131, 1.
sem 2020.

431
AS OBRAS DE RICARDO DE ANTUNES NA FORMAÇÃO PROFISSIONAL EM
SERVIÇO SOCIAL: apresentando pistas…

Hiago Trindade158
Ana Lídia Alves159
Mateus Matias da Silva160
Rayane Abrantes161

Resumo: A partir de uma pesquisa documental, realizamos


levantamento no âmbito de 33 Projetos Políticos
Pedagógicos dos cursos de Serviço Social de Instituições de
Ensino superior Públicas no Brasil para averiguar que livros
do sociólogo do trabalho Ricardo Antunes são referenciados
nesses documentos, com a finalidade de pensar e
problematizar suas contribuições no âmbito da formação
profissional de assistentes sociais a partir das categorias,
temas e discussões envoltas ao chamado “mundo do
trabalho”. Concluímos atestando que tal influência se dá a
partir de duas de suas obras mais conhecidas (Adeus ao
trabalho? e Os sentidos do trabalho), mas sem se restringir
à elas.

Palavras-chave: Trabalho. Ricardo Antunes. Formação


Profissional.

Abstract: Based on a documental research, we carried out a


survey within the scope of 33 Political Pedagogical projects
of the Social Service courses of Public Higher Education
Institutions in Brazil to find out which books by the work
sociologist Ricardo Antunes are referenced in these
documents, with the purpose of thinking and to problematize
their contributions in the scope of professional training of
social workers from the categories, themes and discussions
involved in the so-called “world of work”. We conclude by
attesting that such influence comes from two of his best-

158 Doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor do curso de
Serviço Social da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), onde coordena o Grupo de Estudo,
Pesquisa e Extensão em Trabalho, Lutas Sociais e Serviço Social (GETRALSS). E-mail:
hiagolira@hotmail.com
159 Discente do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Membro do
Grupo de Estudo, Pesquisa e Extensão em Trabalho, Lutas Sociais e Serviço Social (GETRALSS). E-mail:
160 Discente do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Membro do
Grupo de Estudo, Pesquisa e Extensão em Trabalho, Lutas Sociais e Serviço Social (GETRALSS). E-mail:
161 Discente do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Membro do
Grupo de Estudo, Pesquisa e Extensão em Trabalho, Lutas Sociais e Serviço Social (GETRALSS). E-mail:

432
known works (Adeus ao Trabalho? and Os Sentidos do
Trabalho), but without being restricted to them.

Keywords: Work. Ricardo Antunes. Professional


qualification.

1– Introdução

Não constitui novidade, no âmbito do Serviço Social brasileiro, a relevância dos


estudos acerca do chamado “mundo do trabalho”. Tais estudos, têm se desenvolvido por
meio de disciplinas no âmbito dos cursos de graduação e pós-graduação, dos debates
promovidos pela área, dos grupos de estudo e pesquisa, dentre outros espaços de
formação acadêmica e política. De fato, na medida em que tal estudo avança por entre os
segmentos da categoria, temos produzido um conjunto de aportes teórico-metodológicos
que propiciam uma melhor compreensão da realidade, de modo geral, bem como das
demandas, desafios e perspectivas com as quais se defronta o Serviço Social
(TRINDADE, 2020). Por isso, quando da formulação das Diretrizes Curriculares da
Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS, 1996),
observamos diversos elementos que apontam a relevância desse debate na
transversalidade da formação profissional, como podemos observar, à título de exemplo,
nos aportes evidenciados nos três núcleos de fundamentação a enfeixarem as referidas
Diretrizes, os quais, articulados, ressaltam a relevância do entendimento sobre o
trabalho, suas transformações históricas, as características assumidas no modo de
produção capitalista e suas especificidades na particularidade brasileira e para o trabalho
profissional do assistente social, nos diversos espaços sócio-ocupacionais por ele
ocupado.

Assim, desvelar as transformações processadas ao longo dos tempos é


fundamental para conseguirmos “[…] compreender as mudanças atuais do mundo do
trabalho, a desregulamentação dos direitos, a questão social, a conformação da classe
trabalhadora na atualidade e a centralidade do trabalho e da questão social para o
serviço social” (SOUZA, SILVA, 2019, p. 25).

Partindo desse entendimento, o texto que ora apresentamos a público debruça-se


sobre dados parciais do projeto de pesquisa intitulado: “Serviço Social e trabalho: a
influência das obras de Ricardo Antunes”. Tal projeto é desenvolvido pelo Grupo de
Estudo, Pesquisa e Extensão em Trabalho, Lutas Sociais e Serviço Social (GETRALSS),

433
no âmbito da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). De modo geral, o
referido projeto tem por objetivo identificar a influência das obras produzidas por Ricardo
Antunes no âmbito dos cursos de graduação em Serviço Social ofertados por Instituições
de Ensino Superior públicas no Brasil e, para isso, está em curso a produção de dados
relacionada a diversos aspectos, tais como: número de referências obrigatórias e
complementares das obras de Ricardo Antunes, períodos e disciplinas em que estas
obras comparecem, dentre outros aspectos. No âmbito deste artigo, temos como foco a
análise de um dado específico, qual seja: aquele direcionado para apresentar os livros162
registrados no âmbito dos 33 Projetos Político-Pedagógicos (PPPs) a que consultamos,
mediante pesquisa documental.

Como mencionado anteriormente, apresentamos, neste momento, resultados


parciais. Nesse sentido, não constitui nossa pretensão esgotar os debates nesse campo
temático, tampouco apresentar análises rígidas e imutáveis. Estamos convencidos que a
conclusão da produção das informações oriundas da pesquisa, irá descortinar novos
elementos para robustecer ainda mais o nosso conhecimento sobre o tema e esperamos,
por isso, instigar outros pesquisadores ao debate.

2- Apresentando as pistas…

No gráfico a seguir, apresentamos o compilado das informações obtidas ao


averiguar os livros publicados por Ricardo Antunes, citados/presentes nos PPPs dos
cursos de Serviço Social de IES públicas no Brasil. Vale mencionar que o quantitativo
abaixo sistematizado, faz referência aos livros indicados tanto como referências
obrigatórias, quanto como referências complementares. Nesse sentido, identificamos oito
obras escritas e/ou organizadas pelo autor, presentes nos PPPs. Ao todo, essas oito
obras foram citadas 107 vezes nos Projetos, demonstrando, dessa forma, que a maioria
dos PPPs adota como referência mais de uma obra do autor, em distintas disciplinas.
Senão, observemos mais atentamente o gráfico abaixo:

162Émister lembrar que, durante o processo de produção dos dados mediante pesquisa documental, além
dos livros, também identificamos um número (reduzido) de artigos e capítulos de livro, os quais não
constituem objetos de tratamento de nossa análise nesse momento.

434
Gráfico 1 - obras presentes nos PPCs
40 38
33
30
20 13 11
10 4 4 3
1
0

ha
ho
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Ri

s e
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Cl

Cumpre frisar que, além destas obras, também registramos, em menor proporção,
a presença de artigos e capítulos de livros. Dentre os livros mais referenciados, há duas
particularidades que precisam ser apontadas: 1) O livro Riqueza e Miséria do trabalho no
Brasil, nos três volumes registrados (2006, 2010, 2013), não constitui um material de
autoria exclusiva de Ricardo Antunes, trata-se, em verdade, de uma coletânea que
aglutina diversos pesquisadores do chamado mundo do trabalho, apresentando os
resultados de pesquisas sobre diversas categorias e temas envoltas à temática. Não por
acaso, em grande medida, esta obra consta nas disciplinas que intencionam
problematizar as questões e dilemas do mundo do trabalho na contemporaneidade.

2) A obra A dialética do trabalho, também não é de autoria de Ricardo Antunes.


Tal livro constitui-se a partir da reunião de textos clássicos de Marx e Engels que
abordam categorias importantes, como trabalho, alienação, processo de trabalho,
processo de valorização dentre outros temas igualmente importantes. Nesse caso, é
preciso ressaltar algo: por meio dessa seleção, atestamos a aproximação das Instituições
de Ensino Superior das leituras propriamente marxianas para debater o mundo do
trabalho. Entendemos que a opção por esta obra expressa o acerto da escolha de textos
feita por Ricardo Antunes para introduzir o debate acerca da categoria trabalho a partir
dos autores clássicos no tema.

435
Assim, as obras de autoria específica de Ricardo Antunes mais reivindicadas
pelos PPPs foram Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do
mundo do trabalho e Os sentidos do trabalho – Ensaio sobre a afirmação e a negação do
trabalho163, publicadas, respectivamente, nos anos de 1995 e 1999. Como percebemos,
antes desse período, outras interessantes produções do autor já haviam sido
socializadas, à exemplo de Trabalho e Rebeldia (1992) e O que é sindicalismo? (1983).
Mas, de fato, foi com Os sentidos do trabalho e com Adeus ao trabalho? que Ricardo
Antunes galgou maior notoriedade no universo acadêmico intelectual.

No que se refere especificamente a esta segunda obra, fazemos coro com José
Paulo Netto, ao levantar a ideia segundo a qual

[…] este Ricardo Antunes que conhecemos no seu perfil atual emergiu com
Adeus ao trabalho? Penso que o livro publicado em 1995 assinala o estágio em
que o livro publicado pelo autor alcança o plano sobre o qual vai se desenvolver,
desde então e com seus traços pertinentes e peculiares, a sua elaboração
teórica mais decisiva. (NETTO, 2015, p. 273 – grifos originais).

Por que esses livros são tão expressivos? Podemos dizer avançar em uma chave
de interpretação segundo a qual, em meios aos debates sobre o fim do trabalho, de sua
centralidade e/ou sobre a extinção da classe trabalhadora a ganhar terreno no Brasil a
partir dos anos 1980, Ricardo Antunes foi construindo um conjunto de pesquisas e sendo
atravessado por outros tantos questionamentos fazendo com que, de um lado, suas
obras já publicadas fossem ganhando apêndices para auxiliar no aprofundamento dos
temas abordados e, de outro lado, novas obras fossem produzidas para dar respostas
complexas a uma realidade também complexa e em constante movimento.

Na sequência, aparecem outros importantes produtos: O caracol e sua concha


(2005), a desertificação neoliberal (2005), classe operária, sindicatos e partidos (1984), A
rebeldia do trabalho (1992 [1988]) e o continente do labor (2011). Na impossibilidade de
produzir, neste curto espaço, uma análise e descrição mais pormenorizada das obras
supramencionadas, gostaríamos apenas de destacar que, desde os anos 1980, Ricardo
Antunes vem – como o fazem os grandes intelectuais – perseguindo um objeto de
estudo, desvelando-o criticamente e, como corolário, oferecendo relevantes contribuições
acerca dele. Assim para o autor, o estudo da classe trabalhadora, sua composição,
morfologia, bem como suas formas de luta e resistência constituem uma agenda teórica e
política, que marca a sua própria existência.

163 Doravante, faremos referência a essas obras apenas por seus títulos principais.

436
Cada qual a seu tempo e a seu modo, os livros presentes no gráfico trouxeram
contribuições importantes para o universo acadêmico e para os setores da esquerda e
progressista no Brasil. Estas obras, expressam o amadurecimento intelectual e,
especialmente a partir de “A rebeldia do trabalho”, uma produção que se nutre e se
aproxima, das concepções de Lukács e seu debate sobre a ontologia do Ser Social,
como revela o próprio Antunes (2015) em entrevista concedida por alusão à
comemoração dos 15 anos de Adeus ao trabalho? no Brasil.

Nessa direção, podemos depreender da análise que o conjunto de aportes


teórico-metodológicos a dinamizarem a obra de Ricardo Antunes e que se expressam
nos diversos componentes curriculares dos cursos de serviço social no Brasil oferecem
subsídios fundamentais a formação profissional na área, considerando os três núcleos de
fundamentação expressos nas diretrizes curriculares da Associação Brasileira de Ensino
e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS).

3- Considerações Finais

Como apontam os dados, duas obras de Ricardo Antunes comparecem de


maneira expressiva no âmbito dos PPPs dos cursos de Serviço Social de Instituições de
Ensino públicas no Brasil, quais sejam: Adeus ao trabalho? e Os sentidos do trabalho. No
caso desses dois livros, em específico, podemos deduzir algo importante: eles aparecem
em praticamente todos os PPPs analisados e, em alguns casos, em mais de uma
disciplina na mesma instituição, caso evidente com a obra Os sentidos do trabalho,
referenciada 38 vezes num quantitativo total de 33 PPPs analisados.

Associado a estas obras, também há notoriedade de livros organizados por este


autor, bem como outros materiais, produzidos e publicizados entre os anos 1980 e 2000.

A larga trajetória de investigação deste autor no trato para com o mundo do


trabalho, explica a recorrência de suas obras nos PPPs, mas, ao mesmo tempo, diante
de uma realidade que vem experimentando alterações substantivas, faz-se importante
refletir o que motiva as instituições de ensino à escolha de obras voltadas para a análise
de conjunturas anteriores.

Nossa pesquisa ainda está em curso e, com a etapa subsequente – interessada


no estudo e análise das ementas das disciplinas que citam as obras deste autor, cremos

437
ser possível avançar na indicação de algumas pistas a esse respeito, contribuindo assim
para fomentar dos debates nesse campo temático.

4- Referências

ABEPSS. Lei de diretrizes curriculares de 1996. Rio de Janeiro, 1996.

ANTUNES, R. 2015a. Entrevista (2015). In: NOGUEIRA, C. M. OLIVEIRA E SILVA, M. L.


Adeus ao trabalho? Vinte anos depois... Entrevista com Ricardo Antunes. Disponível
em: https://www.scielo.br/j/sssoc/a/RZSyCv5F8dfQZrydPkDJc4w/?lang=pt&format=pdf.
Acesso em: 05 jun. 2021.

ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho – ensaio sobre a afirmação e a negação do


trabalho. São Paulo: Boitempo, [1999] 2012.

ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do


trabalho. São Paulo: Cortez, [1995] 2015.

ANTUNES, R. O Continente do Labor. São Paulo: Boitempo, 2011.

ANTUNES, R. Classe operária, sindicatos e partido no Brasil. São Paulo:


Cortez/Editora Ensaio, 1982.

ANTUNES, R. A rebeldia do trabalho(O confronto operário no ABC Paulista: as greves


de 1978/80). 2. ed. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 1992.

ANTUNES, R. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho.


São Paulo: Boitempo, 2005

ANTUNES, R. A desertificação neoliberal no Brasil (Collor, FHC e Lula). 2 ed.


Campinas: Autores Associados, 2005.

ANTUNES, R. (Org.). A dialética do trabalho: escritos de Marx e Engels. São Paulo:


Expressão Popular, 2004.

ANTUNES, R. (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil – Volume 1. São Paulo:


Boitempo, 2006.

ANTUNES, R. (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil – Volume 2. São Paulo:


Boitempo, 2010.

438
ANTUNES, R. (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil – Volume 3. São Paulo:
Boitempo, 2013.

NETTO, J. P. posfácio. In: ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as


metamorfoses e a centralidade do trabalho. São Paulo: Cortez, [1995] 2015.

SOUZA, E. SILVA, M. L.O. (Orgs). Trabalho, Questão Social e Serviço Social: a


Autofagia do Capital. São Paulo: Cortez, 2019.

TRINDADE, H. Serviço Social e Trabalho: percursos trilhados e desafios à investigação.


In: Temporalis, ano 20, n. 40, 2020.

439
LIBERDADE, DEMOCRACIA E CIDADANIA: tendências identificadas no debate dos
fundamentos

Fátima da Silva Grave Ortiz164


Josiley Carrijo Rafael165
Paulo Roberto Felix dos Santos166

Resumo: Este trabalho objetiva apresentar os primeiros resultados de


projeto de pesquisa integrado, obtidos por meio de revisão e análise
bibliográfica e documental, o qual pretende identificar e analisar as
tendências expressas nos fundamentos históricos, teóricos e políticos
acerca das categorias liberdade, cidadania e democracia no contexto
da sociabilidade burguesa nos países centrais e dependentes, com
ênfase na particularidade brasileira. A pesquisa vem demonstrando
que apesar da afirmação histórica e política da liberdade, cidadania e
democracia a partir de fundamentos críticos da realidade, também
dialogam com a categoria profissionaltendências teórico-analíticas, que
expressam vinculação a um projeto reformista da ordem do capital.
Palavras-chave: liberdade, cidadania, democracia, fundamentos

Abstract: This paper aims to present the first results of an integrated


research project, obtained through bibliographic and documental
analysis review, which aims to identify and analyze the trends
expressed in the historical, theoretical and political foundations about
the categories freedom, citizenship and democracy in the context of
bourgeois sociability in central and dependent countries, with emphasis
on the Brazilian particularity. The research has shown that despite the
historical and political affirmation of freedom, citizenship and
democracy from critical foundations of reality, theoretical-analytic trends

164
Assistente social, mestre e doutora em Serviço Social, docente do Departamento de Fundamentos do Serviço Social da
Escola de Serviço Social/UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. fgraveortiz@gmail.com
165
Assistente social, mestre em educação, doutor em Serviço Social, docente do Departamento de Serviço Social e do
Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal de Mato Grosso. josileyrafael@yahoo.com.br
166
Assistente social, mestre e doutor em Serviço Social, docente do Departamento de Serviço Social e do Programa de
Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Sergipe. fellix.ufs@gmail.com

440
also dialogue with the professional category, which express a link to a
reformist project of the order of capital.
Keywords: freedom, citizenship, democracy

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho é resultado do acúmulo proporcionado por pesquisas


desenvolvidas no âmbito de projeto de pesquisa integrado, do qual fazem parte
pesquisadores oriundos de três universidades federais e seus respectivos programas de
pós-graduação. Todas partem da mesma preocupação central, quer seja, a apreensão de
determinados fundamentos históricos, teórico-metodológicos e políticos que alicerçam o
projeto ético-político profissional do Serviço Social: a liberdade, a democracia e a
cidadania.
Entende-se que tais fundamentos patentemente vinculados a outros como a
emancipação, a justiça, a equidade e o pluralismo, possuem prioridade analítica para
apreendermos o conjunto de concepções e princípios ético-políticos que constitui o
projeto ético-político profissional e que, portanto, deve orientar a formação e o trabalho
profissional, e nestes especificamente a constituição de um perfil profissional condizente
com uma atuação balizada por uma crítica postura ética e política.
Assim, os fundamentos apontados – liberdade, democracia e cidadania – além de
ontologicamente autoimplicados, estão presentes nos princípios ético-políticos do Código
de Ética Profissional dos Assistentes Sociais em vigência, constituindo a tríade central
deste documento:
Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas políticas
a ela inerentes – autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos
sociais;
[...] Ampliação e consolidação da cidadania, considerada tarefa primordial de
toda sociedade, com vistas a garantia dos direitos civis, sociais e políticos da
classe trabalhadora;
Defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da
participação política e da riqueza socialmente produzida; [...]. (CFESS, 1993,
p.23).

Consistem, deste modo, em importante expressão histórica do amadurecimento


teórico e político de segmentos expressivos da categoria profissional brasileira e deixam
nítidaa opção política [e societária] feita por esta desde o final dos anos de 1970, cujos
esforços despontaram anos mais tarde na revogação do Código de Ética de 1975 e
posteriormente na revisão do Código de Ética de 1986, bem como na luta pela afirmação
de uma nova lei de regulamentação da profissão no Brasil (a lei 8662 de 1993) e na

441
aprovação das Diretrizes Curriculares para os cursos de graduação em Serviço Social
(1996).
Deste modo, entende-se que esta aliança acadêmica e político-institucional se
revela não somente importante, como estratégica, visto a necessidade premente de
interlocução das pesquisas afins e seus pesquisadores, tendo em vista que: i.) a análise
própria do objeto – fundamentos do projeto ético-político profissional – pressupõe a
exigência de que o mesmo se coloque a partir da perspectiva da totalidade; ii.)é
inconteste que a pesquisa quando coletiva e integrada tende a ampliar sua capacidade
reflexiva e propositiva; iii) tende a favorecer a mobilidade discente, a formação de
quadros de pesquisadores graduados e pós-graduados e a proposição de novas
investigações, dentre outros aspectos.
Neste sentido, o objetivo deste trabalho é apresentar os primeiros resultados do
referido projeto, obtidos por meio de revisão e análise bibliográfica e documental, cujo
objetivo central é: identificar e analisar as tendências expressas nos fundamentos
históricos, teóricos e políticos acerca das categorias liberdade, cidadania e democracia
no contexto da sociabilidade burguesa nos países centrais e dependentes, com ênfase
na particularidade brasileira.

2. SOBRE AS POSSÍVEIS TENDÊNCIAS IDENTIFICADAS A PARTIR DA TRÍADE


LIBERDADE, CIDADANIA E DEMOCRACIA

Desde a década de 1970 vivenciamos uma das mais profundas crises do capital,
que assume uma natureza “estrutural”, conforme sinaliza Mészáros (2009). Em meio às
consequências destrutivas desse processo, verificamos a derruição do que se
convencionou denominar de “Estado de Bem-Estar Social”, além de um contínuo
movimento de redução de direitos – humanos e de cidadania –, pelo estreitamento dos
canais democráticos, bem como o aprofundamento de diversas formas de restrições de
liberdade.
Tal fenômeno, resultante das contradições irreconciliáveis do próprio
desenvolvimento capitalista, apesar de assentar-se nas suas estruturas gerais, assume
rebatimentos particulares nos distintos países. No Brasil, cuja dinâmica sócio-histórica
conformou-se de modo periférico e dependente, tais consequências resultam em
contornos mais acentuados. Pois bem, como um país inscrito num processo de
desenvolvimento geral desigual e combinado, possuímos traços que incorporam
elementos demarcados por “ritmos irregulares e espasmódicos, desencontrados e

442
contraditórios” (IANNI, 1992, p.60), ademais de uma persistente coexistência entre o
moderno e o arcaico articulados num mesmo processo de desenvolvimento de
“modernização conservadora” (FERNANDES, 1987). Isso quer dizer que a precariedade
de seu sistema de proteção social, a não constituição de um Estado de Bem-Estar – tal
qual se estruturou em outros países de economia central –, a sua estrutura sócio-política
de caráter autoritário, com baixa participação democrática acabam por particularizar as
consequências da crise capitalista.
Mesmo com essas marcas estruturantes, destacamos o significado que
representou o processo de “redemocratização no país” a partir de uma abertura lenta e
gradual que possibilitou o reingresso na cena política de sujeitos coletivos (movimentos
sociais, partidos políticos, organizações da sociedade civil, etc.) que contribuíram para
estruturação de uma nova cultura sócio-política que incidiram, por sua vez, em diversas
organizações e profissões, como o Serviço Social. Nesse contexto, um novo perfil
profissional se amadureceu, ressignificando sua auto-imagem, a partir de uma direção
ético-política e pressupostos teórico-metodológicos, orientados a partir de determinados
princípios emancipatórios.
Ao longo dos de 1990, tais princípios foram incorporados nos marcos de um novo
projeto profissional, tendo na liberdade o seu valor ético central, apreendida enquanto
“possibilidade de escolher entre alternativas concretas” (NETTO, 1999). Nesse percurso,
afirma-se um compromisso com a “autonomia”, a emancipação e a plena expansão dos
indivíduos”. Como afirma Netto (1999, p.105, grifos no original) o núcleo político desse
projeto se reclama “radicalmente democrático – vista a democratização enquanto
socialização da participação política e socialização da riqueza socialmente produzida”
(NETTO, 1999, p.105). A defesa da democracia aqui – política e econômica – assume um
caráter tático fundamental, na contramão da estrutura autocrática brasileira.
Conquanto, alinhado no bojo das lutas gerais da classe trabalhadora, o projeto
que ganhou hegemonia no interior da categoria profissional reafirmou um posicionamento
a favor da equidade e da justiça social, bem como investido no âmbito da cidadania,
pauta-se pela sua ampliação e consolidação, com vistas a garantia dos direitos civis,
políticos e sociais das classes sociais.
Trata-se, de um conjunto de valores que devem ser apreendidos de modo
articulado, orientados na perspectiva de vinculação a um projeto que propõe a construção
de uma nova ordem, sem dominação e/ou exploração de classe, etnia e gênero. Essa
vinculação assumida nos marcos desse projeto profissional, como vimos, tem na luta por

443
direitos, humanos e de cidadania, da democracia e da liberdade sustentáculos ético-
políticos fundamentais.
Convém pontuarmos que, apesar da inscrição daqueles valores nos marcos de
um projeto profissional mais amplo de cariz crítico, disso não deriva um alinhamento
homogêneo, seja pela apropriação dos fundamentos daqueles valores em sua dimensão
categorial, seja pelos distintos compromissos ético-políticos que deles resultam, o que
nos demanda um esforço teórico-analítico na qualificação do debate e da
problematização de suas consequências.
No tocante ao debate, vale destacarmos algumas tendências teórico-
metodológicas que vem se processando e que, por sua vez, implicam na afirmação de
determinados projetos sócio-políticos. Verificamos a influência de postulados que
reafirmam a defesa da cidadania, nos limites das conquistas democrático-cidadãs
burguesas, seja incorporando os pressupostos do sociólogo inglês T. H. Marshall (1967
[1950]); seja na sua reatualização conservadora, com a incorporação de outros
fundamentos, alguns de matriz eclética, que, ao fim e ao cabo, enfatizam uma proposta
que atrela os compromissos profissionais em seus níveis de apreensão teórica e valores
ético-políticos na defesa de direitos de cidadania e da democratização do Estado aos
limites das conquistas do Estado de Bem-Estar Social (GOMES, 2013; SANTOS, 2018),
sustentando a reafirmação de um novo contratualismo de matriz socialdemocrata.
Nesse percurso, dialogam com a categoria profissionaltendências teórico-
analíticas, que expressam vinculação a um projeto reformista da ordem do capital,
exigindo para isso a adoção de medidas que possam tornar aquele sistema
sociometabólico mais “socialmente responsável”, “democrático”, a partir de “soluções
negociadas” entre o conjunto das personificações do capital, buscando o estabelecimento
da “verdadeira liberdade humana”, transfigurados na fluida condição de “cidadão/ã”. De
um modo, a “armadilha categorial” na qual se sustenta algumas dessas análises acaba
por requisitar alternativas de estruturação de uma “igualdade de status”. As alternativas,
portanto, centram-se na maior “participação”, no “controle social”, no “aperfeiçoamento
dos quadros institucionais”, na “inclusão dos excluídos” – como se existisse um “lado de
fora” do processo de acumulação capitalista –, ou seja, determinantes que, no limite,
buscam incidir no campo da distribuição, distando-se da defesa de uma “igualdade
substantiva”,conforme Mészáros (2009).
Noutro campo, identificamos tendências que, nos marcos da recente crise do
capital, assentam-se em pressupostos reatualizados com influência da vulgata pós-
moderna cujas alternativas buscam se localizar sob a perspectiva de uma nova

444
“emancipação social” (SOUSA SANTOS, 2002), reduzida ao processo de
“democratização da democracia” (burguesa). Na tentativa de atualizar a defesa da
cidadania, rejeita-se, a limitada formulação marshalliana centrada na esfera dos direitos
civis, políticos e sociais, exigindo a sua ampliação e incorporação de outras demandas, a
partir do “fortalecimento da esfera pública”, do significado dos chamados “Novos
Movimentos Sociais” (NMS) como um espaço importante da luta pela cidadania,
enquanto uma esfera para além do Estado e que a este interpela pela possibilidade de
maior democratização. Os conflitos – identificados no campo da luta de classes, ou não –
passam a se constituir como objeto regulador a partir do “discurso” do “simbólico”, do
aperfeiçoamento do “político”, o que acaba por recair, em larga medida, numa cisão com
a base material que sustenta aquelas dimensões, derivando-se num politicismo.
Nessa esteira, é possível apontarmos o estímulo à estratégia do
“empoderamento” (empowerment) como paradigma teórico-metodológico de intervenção.
A lógica que subjaz esse tipo de defesa, conforma-se na potencialização dos sujeitos
desprovidos, nessa leitura, de força e de poder (material e simbólico). De algum modo,
acoplam-se a uma perspectiva de reatualização conservadora as não ultrapassadas
“práticas” voltadas para a ajuda, o apoio, circunscritas nos processos de psicologização
das relações sociais, ou numa nova “pedagogia da ajuda” (ABREU, 2011), servindo em
algumas dessas discussões de um solo fértil para ao estímulo às chamas “práticas
terapêuticas” no interior da profissão.
De um modo ou de outro, identificamos nesses quadros referenciais (marshalliano
e eclético) um alinhamento ao projeto reformador capitalista, que acaba por desaguar em
mais um sustentáculo ideopolítico de hegemonia burguesa, não acidentalmente,
plasmando-se no aparente discurso consensual da defesa intransigente da cidadania
que, intentando velar os conflitos irreconciliáveis de classe, homogeiniza o conjunto da
sociedade burguesa numa forma ilusória de “comunidade cidadã”. Não nos parece
ocasional, por exemplo, que uma das retóricas que informa parte dessas abordagens no
atual estágio do desenvolvimento capitalista seja a defesa de uma “cidadania mundial”,
sintonizada nos marcos da “mundialização do capital” (CHESNAIS, 1996).
Tais abordagens, de caráter conservador, se vêem tensionadas nos debates
formulados no interior da categoria profissional, a partir da apropriação crítica histórico-
ontológica marxiana/marxista dos fundamentos da cidadania, da democracia e da
liberdade e do esforço teórico-analítico em buscar apreender as contradições que
permeiam o debate e por quais mediações seria possível conectar a luta pela cidadania,
democracia e liberdade no horizonte da construção de outra ordem societária, para além

445
do capitalismo. Posto não se configurar um bloco homogêneo, ainda que, em muitas
situações, reivindicando o legado da tradição marxista, entendemos que na apreensão
dessas distintas mediações também se localizam algumas das divergências, por
exemplo, no que concerne, ao papel que pode ser atribuído às lutas que se operam por
dentro do Estado, dos limites das políticas sociais, e da apreensão do que se constitui a
própria cidadania, a democracia e a liberdade e sua relação com o processo de
desenvolvimento capitalista.
Constatamos que a direção estratégica que preconiza o CE no compromisso com
a construção de uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe etnia
e gênero (CFESS, 1993), incorpora a defesa da liberdade, da democracia e da cidadania.
Tais fundamentos não se colocam somente no campo de legitimação profissional, mas se
inserem no arco de mediações (algumas explicitamente táticas como a democracia e
cidadania, aqui também se inserem as liberdades “democráticas”) fundamentais na
dinâmica da luta de classes, expressa em suas múltiplas formas na dinâmica
contemporânea, o que nos exige a capacidade de inserção no conjunto dessas lutas,
ainda que plasmadas no campo mais imediato (por terra, por moradia, por uma
seguridade social universal e pública, etc.), articulando com aquela meta estratégica.
Vale destacar que apesar dos desafios que podemos problematizar, também nos
foi possível identificar o esforço que vem sendo sustentado com vistas ao fortalecimento
daquela direção sócio-política construída ao longo dos anos de 1980, a qual vem sendo
qualificada nas mais diversas manifestações, tais como a produção acadêmica, o
protagonismo das entidades representativas e o compromisso de diversos profissionais
afinados/as com essa direção.
Certamente, para desvelamento dessas tendências que se processam no interior
do debate profissional faz-se necessário o investimento em estudos e pesquisas que
tornem mais nítidas essas polêmicas e divergências teórico-metodológicas que, por sua
vez, traduzem-se em diferentes propostas de projetos profissionais.

3- CONCLUSÕES

Por ser um projeto ainda em andamento, todos os seus resultados são


absolutamente parciais e carecem de maior desenvolvimento. Contudo, as pesquisas têm
mostrado que tais tendências incidem sobre os fundamentos que orientam a disputa
política entre projetos societários, e no caso do Serviço Social, projetos profissionais.

446
Assim, considerando a necessidade do desvelamento crítico de tais tendências,
uma vez que muitas vezes, as mesmas se mostram como isentas de contradição, o que
camufla suas diferenças estruturais, entendemos ser imprescindível a qualificação do
processo de apropriação dos fundamentos históricos e teórico-metodológicos do Serviço
Social. Esta [qualificação] tende a fortalecer o ensino para graduandos e pós-graduados
da área, bem como, e, por conseguinte, também o processo de afirmação das Diretrizes
Curriculares de ABEPSS.
A formação crítica de pesquisadores, professores e assistentes sociais (em
especial os supervisores de estágio), a partir da realização de diversos cursos e
atividades, também pode favorecer a análise crítica dos fundamentos, impedindo uma
análise rasa e acrítica das concepções de liberdade, democracia e cidadania na
sociedade burguesa e para o Serviço Social, fortalecendo teórica e politicamente a
categoria profissional e sua relação mais ampla com a classe trabalhadora e as lutas
sociais.

4- REFERÊNCIAS

ABREU, M. M. Serviço Social e a organização da cultura: perfis pedagógicos da prática


profissional. São Paulo: Cortez, 2011. 4ed.

CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.

CFESS. Código de Ética Profissional dos Assistentes Sociais. Resolução CEFESS n.


273, de 13 de março de 1993. Brasília, DF, 1993.
FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica.
3ªed., Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.

GOMES, C. Em busca do Consenso. Tendências contemporâneas no Serviço Social –


radicalidade democrática e afirmação de direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

IANNI, O. A ideia de Brasil moderno. São Paulo: Brasiliense, 1992.

MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

MÉSZÁROS. Para além do Capital. Rumo a uma teoria de transição. São Paulo,
Boitempo, 2009.

447
NETTO, J.P. A construção do projeto Ético-Político do Serviço Social frente à crise
contemporânea”. In.:Capacitação em Serviço Social e Política Social, Mod. 1 Brasília,
CEAD, 1999.

SANTOS, P. R. F. dos. Dos limites da cidadania crítica à crítica dos limites da cidadania –
perspectivas teóricas e projetos políticos em disputa no Serviço Social brasileiro. (Tese).
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

SOUSA SANTOS, B. Reinventar a democracia. Lisboa: Gradativa, 2002.

448
A ÉTICA ENQUANTO OBJETO DE PESQUISA NA CONTEMPORANEIDADE

Raquel Pereira da Silva167

Resumo: O presente artigo é fruto da pesquisa realizada no


Trabalho de Conclusão de Curso, do curso de Serviço
Social da Universidade Federal de Juiz de Fora, que teve
como objetivo compreender a relação entre Ética e Serviço
Social nas produções dos dois últimos Encontro Nacional de
Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) e dos dois
últimos Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS).
Apresenta-se parte da análise dos trinta e dois artigos lidos,
sendo treze do ENPESS e dezenove do CBAS.

Palavras-chaves: Ética; Serviço Social; CBAS; ENPESS.

Abstract: This article is the result of research carried out in


the Course Completion Work, of the Social Work course at
the Federal University of Juiz de Fora, which aimed to
understand the relationship between Ethics and Social Work
in the productions of the last two National Meeting of
Researchers in Social Service (ENPESS) and the last two
Brazilian Congress of Social Workers (CBAS). Part of the
analysis of the thirty-two articles read is presented, thirteen
from ENPESS and nineteen from CBAS.

Keywords: Ethic; Social Work; CBAS; ENPESS.

1- INTRODUÇÃO

O presente artigo é fruto da pesquisa desenvolvida no Trabalho de Conclusão de


Curso (TCC) na faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF), como critério para obter o diploma de bacharel em Serviço Social. Intitulado “O
DEBATE DA ÉTICA NO SERVIÇO SOCIAL BRASILEIRO: análise das produções do
Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) e do Congresso
Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS)”. O trabalho foi finalizado em fevereiro de 2022,
teve como objetivo compreender a relação entre Ética e Serviço Social nas produções
dos dois últimos encontros dos dois eventos citados.
Metodologicamente realizou-se uma pesquisa bibliográfica sobre o referido tema,
tendo como foco o debate da ética no âmbito da pesquisa no Serviço Social brasileiro.
Para tanto, efetuou-se uma busca nos anais do Encontro Nacional de Pesquisadores em

167 Assistente Social Residente do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família -


HU/UFJF. Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2022).E-mail:
raquel.silvaab2@gmail.com

449
Serviço Social (ENPESS), de 2016 e 2018, e do Congresso Brasileiro de Assistentes
Sociais (CBAS), de 2016 e 2019. O método de abordagem da pesquisa qualitativa, de
caráter exploratório, foi o de análise de conteúdo, articulou-se as categorias que
emergiram no processo de análise das narrativas e gramáticas científicas. Baseou-se em
analisar as compreensões teóricas e conceituais evidentes nos relatos, observando
tendências do debate, autores e referências teóricas, perspectivas ético-políticas.
Salientando a compreensão a respeito da ética e como está se relaciona com a profissão.
Para tanto, efetuou-se a leitura dos artigos encontrados e análise de seus conteúdos.
Consideramos que existe certa desproporção entre a importância que a
discussão ética passou a assumir, nos anos 1990, na sociedade brasileira e no
Serviço Social, e sua apropriação pela academia. São raros os núcleos de
pesquisa em ética e mesmo a existência de uma disciplina de ética profissional
nos cursos de pós-graduação, o que evidencia uma contradição, na medida em
que o exercício profissional é cotidianamente perpassado por conflitos e
questionamentos de caráter ético-moral (BRITTES, BARROCO, 2021, p. 29).

É imprescindível que o Serviço Social se aproprie de forma mais profunda acerca


do debate da ética, tendo em vista que o campo da pesquisa é tão prezado pela
categoria, portanto, a temática ainda pouco produzida é necessária de se ser fomentada,
torna-se relevante compreender como este debate está sendo trilhado.

2- A COMPREENSÃO ONTOLÓGICA DA ÉTICA

A reflexão constituída fundamentou-se em uma compreensão de homem


específica, tendo como norte a teoria marxista que à explica, uma vez que para o
entendimento do debate da ética torna-se imprescindível, como assinala (VÁZQUEZ,
2018, p.28)” [...] a ética não pode deixar de partir de uma determinada concepção
filosófica do homem”. Apenas através da apropriação do modo de constituição histórica
do ser social que uma ética assentada ontologicamente é capaz de ser entendida,
portanto, parte-se da constituição histórica do ser social.

Em virtude da apropriação do processo de constituição histórica do ser social, que


se pode entender a ética fundada ontologicamente, sendo a ética “uma parte, um
momento da práxis humana em seu conjunto” (LUKÁCS, apud BARROCO, 2009, p. 06).
O homem é um ser capaz de agir eticamente, possui capacidades que lhe
proporciona oportunidades de decidir racional e conscientemente entre possibilidades de
valor, de projetar de modo teleológico tais escolhas, de agir de forma a concretizá-las,
procurando intervir na realidade social, em termos valorativos, conforme os princípios,

450
valores e projetos éticos e políticos, em contextos sócio-históricos precisos (BARROCO,
2009).

[...] a reflexão ética é parte da práxis humana e desempenha importante função


mediadora no processo através do qual é possível o homem comum se elevar ao
humano genérico, ou, como quer Lukács, à condição de homem completo, e
interferir crítica e conscientemente no destino da humanidade, através da luta
contra o capitalismo e a sociedade burguesa (VINAGRE, 2013, p. 111).

A possibilidade de efetivação da reflexão ética, do sujeito ético-moral, está posta a


partir da constituição do processo histórico de desenvolvimento do ser social salientado,
as capacidades humano genéricas conquistadas, presentes em todos os homens. O
cotidiano representará um importante papel nesse processo, uma vez que sua
suspensão, por meio da reflexão crítica é um âmbito imprescindível da reflexão ética,
enquanto mediação da elevação do homem a sua dimensão humano genérica. Como
ressalva, (LUKÁCS, 2018, p.30) “O prosaico e terreno senso do cotidiano, alimentado
pela práxis diária, pode de quando em quando constituir um saudável contrapeso aos
modos de ver estranhos da realidade das esferas superiores”.

É por meio da reflexão ética, enquanto parte da práxis humana, ou seja,


fundamentado na concepção de marxista, a ética é “uma parte, um momento da práxis
humana em seu conjunto” (LUKÁCS, 2007, p.72). E como tal, norteia à transformação
dos homens consigo, dos seus valores, requisitando posicionamentos, escolhas,
motivações que envolvem e movem a consciência, os modos de sociabilidade, a aptidão
teleológica dos sujeitos, almejando a liberdade, a universalidade e emancipação do
gênero humano (BARROCO, 2009).

Logo, cria-se o terreno para a realização do sujeito ético-moral, conforme


(BARROCO, 2010), o papel ativo da consciência e da liberdade possibilitam a existência
do sujeito ético-moral, considerado como apto a responsabilizar-se por seus atos em
termos morais, tem responsabilidade sobre suas ações, possui senso, consciência e
moral. “Ontologicamente considerada, a consciência moral fundamenta-se na liberdade;
vincula-se à responsabilidade do sujeito ético que escolhe com compromisso em face das
alternativas e dos riscos envolvidos” (BARROCO, 2010, p. 79).

Já no que se refere a ética profissional,168 enquanto uma esfera particular de


objetivação ética, que dispõe de suas particularidades, formada pela dimensão filosófica;

168a) a dimensão filosófica - fornece as bases teóricas para uma reflexão ética voltada à compreensão dos
valores, princípios e modos de ser ético-morais e oferece os fundamentos para uma concepção ética; b) o

451
o modo de ser (ethos) da profissão; a normatização objetiva no código de ética
profissional. É concretizada “[...] como ação moral, através da prática profissional, como
normatização de deveres e valores, através do código de Ética Profissional, como
teorização ética, através das filosofias e teorias que fundamentam sua intervenção e
reflexão e como ação ético política” (BARROCO, 2009, p. 175).

3- BREVES ELEMENTOS DO CAMPO DA PESQUISA DA ÉTICA NA


CONTEMPORANEIDADE

A ética é de extrema importância para o trabalho e para a formação profissional,


sendo imprescindível a necessidade de pesquisas referentes a essa temática, todavia o
cenário mostra o seu gradual caminho trilhado, o que evidencia a necessidade do
aprofundamento e da continuidade de seus estudos. Esse questionamento foi um dos
motivos que levou a construção do trabalho de conclusão de curso, o despertar do
interesse de compreender os caminhos que o debate vem trilhando em torno das
produções da categoria profissional.

Portanto, compreendendo a importância da pesquisa para o Serviço Social, o


cenário desta pesquisa tem como norte os anais dois maiores eventos da categoria, o
Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) realizado nos anos de
2016 e 2018, o Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS) ocorridos em 2016 e
2019, analisando produções que dissertam no que tange o debate da ética e sua relação
a profissão. O objetivo de escolher esses dois âmbitos foi para compreender o modo
como o debate da ética está sendo fomentando no âmbito das pesquisas acadêmicas,
bem como entender os elementos elaborados pelos profissionais que trabalham
diretamente na ponta das políticas públicas, com os usuários e as instituições, a forma
que a ética atravessa o terreno do trabalho profissional.

Referente ao ENPESS de 2018, foram encontrados um total de (18) artigos dentro


do descritor “Ética”; (48) com o descritor “Ética e Direitos Humanos”; (49) “Projeto Ético-
Político”. No ano de 2016, que contou com (917) trabalhos aprovados no evento, colheu
com o descritor “Ética” (16); “projeto ético-político” (15); “Ética e Direitos Humanos” (0).

modo de ser (ethos) da profissão que diz respeito - 1) à moralidade profissional (consciência moral dos seus
agentes objetivada na teleologia profissional), o que reproduz uma imagem social e cria determinadas
expectativas; 2) ao produto objetivo das ações profissionais individuais e coletivas (consequências ético-
políticas);c) a normatização objetiva no Código de Ética Profissional, com suas normas, direitos, deveres e
sanções (BARROCO, 2010, p. 70).

452
Contudo, cabe salientar que os artigos aparecem de forma repetida, ou seja, os
encontrados com o descritor “ética e direitos humanos” também aparecia nos de “Ética” e
do “Projeto Ético-Político”. Nos anais do ENPESS de 2016, foram selecionados oito
artigos e no ano de 2018 foram coletados quatro artigos, relacionados à temática da ética
e dos direitos humanos.

Os treze artigos dos anais do ENPESS, selecionados para leitura e análise da


pesquisa, propiciaram um leque de ricos elementos para a construção desta reflexão.
Embora o número não seja tão grande de pesquisadores dentro da temática da ética,
nota-se a preocupação em resgatar os princípios defendidos pela profissão em seu
projeto ético-político crítico, os caminhos desse debate, a importância da continuação
desses estudos e pesquisas dentro do Serviço Social brasileiro. No evento de 2018 foi
encontrado cento e quinze artigos ao todo, sendo o descritor “ética” com apenas dezoito
produções, no de 2016 trinta e dois, somente quinze referente a ética.

Após a leitura minuciosa de todos os trabalhos, constatou-se que nove dos artigos
lidos fizeram menção a ética no seu sentido ontológico, resgatando brevemente a
ontologia do ser social, o trabalho no seu sentido ontológico, a moral, os valores,
demonstrando uma preocupação em fazer essa demarcação teórica na construção da
argumentação. Pois, como bem nos lembra (BARROCO, 2010), somente norteada pela
análise feita da apropriação do processo de instituição histórica do ser social, que a ética
instituída ontologicamente é capaz de ser entendida. É indispensável elucidar qual a
concepção de ética pautada em seus escritos, uma vez que existem distintas
compreensões sobre a mesma, sendo que o Serviço Social tem instituída uma
determinada apreensão acerca de seu conceito.

Quatro dos treze artigos não explicitam as particularidades da ética no seu sentido
ontológico, o que é de suma importância, pois conforme destaca (BARROCO, 2009, p.
167) “É pela apropriação do processo de constituição histórica do ser social que a ética
fundamentada ontologicamente pode ser compreendida”. Portanto, é relevante apontar
as bases ontológicas da ética, ainda que brevemente, seus pressupostos ontológicos
fundamentados no pensamento crítico marxista.

Ainda que parte dos escritos não tenham evidenciado os fundamentos ontológicos
da ética, de uma determinada compreensão de homem, de sociedade, de moral, de
valores, fizeram um resgate da importância de defesa do projeto ético-político crítico do
Serviço Social brasileiro, tanto no âmbito da formação como do trabalho profissional, se

453
restringindo apenas ao debate da ética profissional. Todavia, mesmo que essa
demarcação não tenha sido sinalizada, o projeto que estão defendendo é expresso nos
inscritos, o qual baseia-se na perspectiva marxista defendida nos fundamentos do projeto
ético-político crítico do Serviço Social, assim como nota-se a preocupação em apontar
esse projeto.

Acerca dos autores que fundamentam os debates, em sua maioria a Maria Lúcia
Barroco é a autora mais citada, aparecendo em seis dos treze trabalhos, sendo utilizada
tanto nas particularidades da ética profissional como no debate da ética na perspectiva
ontológica. O que reflete a importância histórica dessa grande pesquisadora para o
Serviço Social brasileira, haja vista sua contribuição significativa para o debate da ética. A
segunda autora mais utilizada é a Cristina Brites, que também tem contribuições precisas
para o debate da ética e dos direitos humanos. Tal quadro demonstra a preocupação em
fundamentar-se nos autores do campo profissional, respaldados na defesa da
perspectiva crítica, fortalecendo o pluralismo, embora alguns em campos com análises
que se diferem, estão dentro do campo democrático das ideias.

Ainda a respeito dos autores usados, que aparecem de forma considerável,


principalmente nos cinco trabalhos dos anais do ENPESS de 2018, em todos os mesmos
são mencionados. Lukács, filósofo que aponta a centralidade ontológica do trabalho na
vida dos homens. Marx, fundador de pensamento crítico dialético. Agnes Heller, filósofa,
responsável por apontamentos a respeito da relação entre ética e vida social, tendo
significativas contribuições ao debate da cotidianidade. O autor Vázquez é mencionado
apenas em um dos trabalhos, importante filósofo espanhol, que teceu necessárias
reflexões em sua obra “Ética”.

Demonstrou-se o movimento de em ir às fontes originais do debate sobre ética,


moral, cotidiano, trabalho, dentre outros, expressando a preocupação em fundamentar a
análise a partir de autores como Marx, Lukács, Agnes Heller e Vázquez, embora o último
usado com menor frequência. Esses pensadores possuem significativas contribuições
para se pensar o debate da ética, portanto, recorrer a seus aportes teóricos é de suma
relevância. Ressignificando a tendência de ficarmos restritos aos autores somente do
campo profissional, o que têm suas contribuições significativas, porém o movimento de

454
perscrutar as fontes originais do debate é de extrema importância para não nos
afastarmos da compreensão da ética direcionada pela práxis169.

É pertinente fazer um destaque de um movimento observado, nos anais de 2016,


no qual tinha um número maior de artigo selecionados (08) oito, a maioria das discussões
foram concentradas no âmbito da profissão, do trabalho profissional, da formação
profissional, dos princípios do código de ética de 1993, dos direitos humanos. Já no
ENPESS de 2018 verificou-se nos (5) cinco artigos um movimento de recorrer às fontes
originais dos autores, como mencionado acima, além disso, as temáticas foram
concentradas nos fundamentos do trabalho profissional crítico, no cotidiano do trabalho
do assistente social, nas reflexões e contribuições de autores como Lukács, Heller e
Marx, resgatando e salientando a importância do debate marxista dentro do Serviço
Social brasileiro.

Já no CBAS de 2016, que teve (1.427) artigos aprovados em todo o evento,


encontrou-se (24) artigos com o descritor “Projeto Ético-Político”; (11) “Ética”; (23) “Ética
e Direitos Humanos”. Nos anais do evento de 2019, foram (71) com o descritor “Projeto
Ético-Político”; (32) “Ética”; (2) “Ética e Direitos Humanos”. Foram selecionados
dezenove artigos para análise, nove do ano de 2016 e dez do de 2019. Assim como no
do ENPESS, alguns trabalhos aparecem de forma repetida.

Quanto às compreensões acerca da ética, dos dezenove trabalhos analisados,


dos dois anais do CBAS, dez apresentam de maneira fundamentada os conceitos sobre a
temática e os outros nove com foco maior no debate da ética profissional e do projeto
profissional. Fundamentam-se na perspectiva da ontologia do ser social, ainda sinalizam
a respeito da importância dessa demarcação, resultado significativo, que reflete a
qualidade das produções. Observa-se em paralelo como as produções do ENPESS, onde
o salto temporal de um evento para o outro expressa um aprofundamento da enfatização
dos pesquisadores acerca da necessidade de defesa do Projeto Ético Político crítico e da
importância do debate da ética no campo marxista.

A partir das diversificadas experiências de trabalho, os profissionais produzem


conteúdos e têm material para férteis reflexões, sendo o âmbito do CBAS um pertinente
evento para partilhá-las, além de reforçar a perspectiva crítica defendida pelo Projeto

169“Parte significativa das produções éticas contemporâneas se afasta, progressivamente, da crítica, da


objetividade, da universalidade, isto é, dos referenciais éticos da modernidade e de autores clássicos como
Aristóteles, Kant e Hegel. Ao favorecer a ideologia dominante e o irracionalismo, contribuem para obscurecer
os nexos da realidade; ao naturalizar o presente, negam a possibilidade de intervenção do homem na
história: fundamento de uma ética orientada pela práxis (BARROCO, 2009, p. 166)”.

455
Ético Político. Os artigos analisados expressam essa potencialidade, fornecendo ricos
subsídios para a construção da reflexão da pesquisa realizada, os estudos apontam
observações sobre a trajetória ético-política percorrida pela profissão, o impacto da
maturação intelectual do Serviço Social brasileiro no debate da ética, especialmente no
que concerne à elaboração dos seus códigos de ética.

4- CONCLUSÃO

Quando falamos do debate da ética como objeto de pesquisa, temos ainda


poucas produções, na pesquisa realizada no TCC somente com o descritor “ética” foram
encontrados um total de (18) dezoito artigos no ENPESS de 2018, (16) dezesseis no de
2016, (14) quatorze no CBAS de 2018 e (11) onze no de 2016, número expressivamente
pequeno de produções tendo em vista a quantidade significativa de trabalhos enviados -
917 no ENPESS de 2018 e 1427 no CBAS de 2016. Possuímos ricas contribuições de
pesquisadores como Maria Lúcia Barroco, Cristina Brites, Fátima Grave, Valeria Forti,
Marlise Vinagre, Priscila Cardoso, dentre outros, que são citados com frequência nos
artigos aqui analisados, mesmo assim ainda é um grupo significativamente pequeno de
pesquisadores.

Assim, a pesquisa sobre o ensino dos fundamentos da ética e da ética


profissional, em particular, possui estimada relevância, visto que o
reconhecimento da liberdade como valor ético central, bem como a defesa de
outros princípios como a cidadania, a democracia e o pluralismo, dentre outros,
exigem do assistente social e do futuro profissional (no caso do estudante) a
apreensão concreta dos fundamentos que os cercam com o objetivo de fomentar
nestes sujeitos uma consciência crítica e de classe para que assim possam
intervir de forma qualitativa junto às demandas socialmente colocadas pelos
usuários e movimentos sociais em geral, dando corpo e voz aos princípios do
projeto profissional hegemônico e por nós tão defendidos nos últimos anos
(ORTIZ; SOARES; SOARES; CUPELLO, 2016 p. 04).

Pensar a formação profissional é imensamente oportuno e um desafio posto à


categoria, haja vista que é fruto desse processo que o profissional posteriormente irá
desenvolver seu trabalho. Especialmente em um cenário de forte ataque às
universidades públicas e ao campo da pesquisa científica, indo em contra aos princípios
que defendemos em nosso projeto de formação acadêmico-profisisonal. “[...]Tais desafios
projetam a profissão para o futuro, exigindo no presente, a análise das determinações do
passado que permitiram a construção da direção social do Projeto Ético-Político
Profissional” (BRAVO; ELPIDIO; LEMOS; RAIZER, 2019, p. 77).

456
5- Referências Bibliográficas

BARROCO, Maria Lúcia Silva. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. - 8.


ed. - São Paulo, Cortez, 2010.

BARROCO, Maria Lúcia Silva. Fundamentos éticos do Serviço Social. In.Serviço


Social: Direitos Sociais e Competências Profissionais. - Brasília : CFESS/ABEPSS, 2009.

BRAVO, Maria Inês Souza. RAIZER, Eugenia Célia. LEMOS, Esther Luíza de Souza.
ELPIDIO, Maria Helena. O protagonismo da ABESS/ABEPSS na virada da formação
profissional em Serviço Social. In. Congresso da Virada e o Serviço Social hoje:
reações conservadoras, novas tensões e resistências. SILVA, Maria Liduína de Oliveira
e. (org). - São Paulo : Cortez, 2019.

BRITES, Cristina M. BARROCO, Maria Lúcia Silva. Núcleo de Estudos e Pesquisa em


Ética e Direitos Humanos: história e perspectivas. In. Ética, direitos humanos e
neoconservadorismo. BARROCO, Maria Lúcia Silva.- São Paulo : EDUC, 2021.

CUPELLO, Barbieri. ORTIZ, Fátima da S. Grave. SOARES, Gabriel G. SOARES, Thais


Lisboa. Indagações sobre o ensino da ética profissional. In: XV Congresso Brasileiro
de Assistentes Sociais. n. 15. (2016 ) Olinda, PE. Anais Eletrônicos. Olinda, PE, CBAS,
2016.

GYÖRGY, Lukács. Para uma ontologia do ser social I. - 2. ed. - São Paulo: Boitempo
Editorial, 2018.

VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. - 38ª. ed. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2018.

VINAGRE, Marlise. Ética, Direitos Humanos e Projeto Profissional Emancipatório. In.


Ética e Direitos: ensaios críticos. FORTI, Valéria; GUERRA, Yolanda. (org). - 4. ed. - Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

457
A PESQUISA NA FORMAÇÃO DOS/AS ASSISTENTES SOCIAIS EM MEIO A
PRECARIZAÇÃO EDUCACIONAL NO ENSINO SUPERIOR

Jamile Santos Brito170

Resumo: O exercício da dimensão investigativa em Serviço


Social por meio da pesquisa, fornece subsídios importantes
para a intervenção profissional do assistente social.
Contudo, a expansão do ensino superior, sobretudo, no
âmbito privado traz consigo nuances de um cenário de
superexploração dos docentes o que afeta o ensino, a
pesquisa e extensão.

Palavras-chave: Pesquisa. Dimensão investigativa.


Precarização. Ensino Superior.

Abstract: The exercise of the investigative dimension in


Social Work through research, provides important subsidies
for the professional intervention of the social worker.
However, the expansion of higher education, especially in
the private sphere, brings with it nuances of a scenario of
overexploitation of teachers, which affects teaching,
research and extension.

Keywords: Research. Investigative dimension.


Precariousness. University education.

1- INTRODUÇÃO

Este trabalho é fruto de analises e reflexões realizadas para elaboração da


dissertação, em andamento, no Programa de Pós-graduação em Serviço Social. Assim o
texto, tem por objetivo compreender o lugar da pesquisa em Serviço Social no processo
do trabalho profissional dos assistentes sociais, uma vez que a pesquisa em Serviço
Social traz subsídios para a intervenção profissional.
A metodologia utilizada baseia-se em pesquisa bibliográfica, buscando
compreender o debate da formação e do trabalho profissional nas suas particularidades
nas pesquisas cientificas e produções de conhecimento no âmbito acadêmico.
Compreendemos que as transformações operadas no “processo de globalização e
mundialização do capital, as mudanças no mundo do trabalho e suas consequências para
a classe trabalhadora” (SIMIONATTO, 2014, p. 17) trouxe um avanço na produção de

170 Assistente social, mestranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da UFBA; E-mail:
jamilesantos2011@gmail.com; Eixo temático: Ofensiva ultraconservadora e resistências: formação e trabalho
profissional.

458
conhecimento pelo Serviço Social. Assim para alcançar nosso objetivo, utilizaremos
autores tais como Iamamoto (2015), Antunes (2018), Bossi (2007), Druck (2013), Moraes
(2016) dentre outros.
Entende-se que o ensino superior privado encontra-se demarcado por uma
intensa expansão, mediantes as propostas neoliberais, reflexo da reestruturação
produtiva do Estado brasileiro. Este cenário tem impactado na formação profissional a
partir do momento que a qualidade do ensino tem sido afetada com a instauração de
cursos EAD, e a precarização do trabalho docente. Logo, faz-se necessário analisar este
cenário de forma a compreender criticamente a realidade, constituindo-se assim como
um espaço de luta para o enfrentamento das expressões da questão social.

2- A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE E SEUS REFLEXOS NA


FORMAÇÃO PROFISSIONAL

A escolha por dialogar sobre o lugar da pesquisa em Serviço Social no processo


de trabalho profissional dos assistentes sociais, parte da afirmação relatada por
Iamamoto (2015), que nos relembra a “importância de tematizar a relação entre profissão
e realidade, sob a ótica da produção e reprodução das relações sociais, no cenário das
transformações decorrentes da ofensiva do grande capital na produção, na fragilização
da organização dos trabalhadores e de seu patrimônio sociopolítico” (p.182). Esta
afirmação nos faz refletir as condições de trabalho dos assistentes sociais, sejam eles
profissionais que estão no campo de atuação ou inseridos nas universidades.
A análise inicial busca apontar a necessidade de realizar-se uma leitura da
realidade, na sociedade capitalista, a partir de um olhar crítico, uma vez que Iamamoto e
Carvalho (2014) destacam a necessidade de compreensão entre a ligação do Serviço
Social e a reprodução das relações sociais, na perspectiva do capital e do trabalho, tendo
em vista que a profissão se insere em um processo de mercantilização no qual a
formação técnica especializada irá traduzir na transformação da força de trabalho que
poderá ser comprada.
Compreender o real a partir de uma macro estrutura engendrada pelo modo
capitalista de produção, revela as limitações no trabalho profissional e no fazer
profissional do assistente social, dada a sua condição de trabalhador assalariado, que
vende sua força de trabalho para sua sobrevivência estando sujeitos as imposições do
capital ancoradas a alta produtividade, submissão a instituição e redução da relativa
autonomia profissional.

459
Tais nuances são marcadas por um contexto de precarização do trabalho
instaurado desde a década de 1990 (DRUCK, 2013). Para Antunes (2018, p. 59) “a
precarização não é algo estático, mas um modo de ser intrínseco ao capitalismo, um
processo que pode tanto se ampliar como se reduzir, dependendo diretamente da
capacidade de resistência, organização e confrontação da classe trabalhadora”. Ou seja,
nasce com a criação do próprio trabalho assalariado no sistema capitalista.
É nesta lógica que estão inseridos os assistentes sociais, em um cenário de
precarização, de insegurança no trabalho, salários baixos, intensificação na rotina
trabalhista, sujeitos ao cumprimento de metas, a superexploração e violação dos direitos
trabalhistas.
É nesse contexto que também inserem-se docentes/ pesquisadores, em um
processo de precarização evidente,
na organização e nas condições de trabalho, como ritmo e intensidade do
trabalho, autonomia controlada, metas inalcançáveis, pressão de tempo,
extensão da jornada de trabalho, polivalência, rotatividade, multiexposição a
agentes físicos, químicos, ergonômicos e organizacionais. Esses aspectos
conduzem a intensificação do trabalho, ritmos acelerados (potencializados pelo
patamar tecnológico da microeletrônica) e autoaceleração. (DRUCK, 2013, p. 62)

O trabalho realizado pelos docentes são minimizados aos tramites institucionais,


uma vez que os recursos são escassos requerendo dos docentes a criação de
estratégias para efetivação da produção acadêmica. Este quadro revela critérios de
produtivismo, individualismo e competitividade uma vez que os docentes são
reconhecidos por uma lógica voltada a quantidade de produções realizadas, publicações
em revistas nacionais e internacionais, ou até mesmo avaliados pelo retorno financeiro
que gera a instituição (MORAES, 2016).
Assim, é preciso analisar a realidade de forma a compreender as implicações do
neoliberalismo nas produções de conhecimento, que por meio da mercantilização da
educação “que estabeleceu a expansão da educação superior pela via privada e
introduziu, nas IES públicas, uma tendência – cada vez mais predominante – de
mercantilização do trabalho docente materializada, por exemplo, no crescimento dos
cursos de pós-graduação lato sensu pagos.” (BOSSI, 2007, p. 1507). Desta forma, a
mercantilização da educação modificou o processo de trabalho dos professores a iniciar
pela crescente força de trabalho determinada pela flexibilização e precarização de
contratos trabalhistas.
Em dados levantados por Bossi (2007), as Instituições de Ensino Superior
privadas aumentaram significativamente as matriculas nos cursos presenciais, em 1990 a
relação de matriculas nas IES privadas foi de 70% enquanto nas instituições públicas

460
30%, esses índices apontam um legitimo meio de mercantilização da educação superior
que impactam a rotina de trabalho de professores. Outras informações trazidas pelo
mesmo autor aponta que entre 1980 a 2004, houve um crescimento de docentes em
exercício nas IES, tanto publica quanto privada, conforme os registros, o percentual de
docentes inseridos nas instituições públicas foi de 53%, enquanto nas instituições
privadas atingiu um percentual de 270%, que se tornou possível devido a flexibilização da
legislação instituída no segundo mandato de FHC (BOSSI, 2007). De certo modo, Bossi
(2007) indica que
tal crescimento da força de trabalho docente foi (e continua sendo) marcado pela
flexibilização dos contratos trabalhistas. São essas possibilidades de contratação
precária, abertas por práticas constituídas à margem da lei ou mesmo por
modificações na legislação trabalhista, que têm feito com que o número de
docentes aumente. Nesse sentido, é certo também que, tornado numericamente
predominante, o trabalho considerado precário e informal tende a converter-se
em medida para todo tipo de trabalho restante. Este é o principal fundamento
histórico do processo que atravessamos. É nesse “Espelho de Próspero” às
avessas que, por exemplo, os docentes considerados trabalhadores “formais”
começam a se verem refletidos, sem necessariamente conseguirem entender as
formas atuais do seu próprio trabalho como expressão da dominação capitalista.
(BOSSI, 2007, p. 1510).

As características apresentadas caminham para uma desregulamentação do


trabalho docente uma vez que a flexibilização do contrato de trabalho e as mudanças na
rotina de trabalho acentuam que alguns docentes não possuem dedicação exclusiva às
instituições e/ou dedicam-se a duas ou mais instituições cumprindo o regime de “horista”
(BOSSI, 2007).
A ofensiva neoliberal tem criado estratégias para desenvolver novas formas de
dominação, sobretudo por meio da precarização e flexibilização do trabalho (DRUCK,
2013) o que tem acarretado mudanças no cotidiano das atividades de ensino, pesquisa e
extensão. Assim, a lógica tem sido voltada para uma perspectiva quantitativa de
produtivismo acadêmico, Bossi (2007) destaca que os editais de pesquisa estão sendo
cotidianamente cooptados pelas áreas consideradas “rentáveis”, áreas que beneficiam o
sistema capitalista. Dessa maneira podemos inferir sobre os órgãos de fomento no qual,
Cada vez mais, o CNPq e as fundações estaduais de apoio à pesquisa têm
convertido seus recursos para pesquisas e estudos que aparelhem e potencializem a
capacidade de reprodução do capital, desenvolvendo uma razão instrumental que pode
ser facilmente verificada no caráter dos editais divulgados. O perfil de pesquisa que
escorre caudalosamente desses editais termina por ditar o padrão para a produção
acadêmica em geral. Uma das consequências desse processo é que a qualidade da
produção acadêmica passa então a ser mensurada pela quantidade da própria produção

461
e por valores monetários que o docente consegue agregar ao seu salário e à própria
instituição.
Em vista disso, muitas universidades, públicas e especialmente as instituições
privadas não desenvolvem pesquisas, vinculando o ensino a dimensões operativas do
trabalho, simplificando a qualidade de ensino, uma vez que a relação ensino, pesquisa e
extensão deixa de existir (MORAES, 2016). Moraes (2016) destaca que as universidades
públicas que se empenham em realizar pesquisa, encontram barreiras no que concerne a
infraestrutura básica para realização das atividades, outro ponto a ser destacado é o
confronto institucional (seja por parte dos docentes ou coordenadores da instituição) a
determinadas pesquisas.
Nesse sentido, os ataques à universidade e a precarização do trabalho docente
representam uma ameaça à formação do assistente social, sobretudo, no que se refere a
dimensão investigativa e a intensificação do debate sobre pesquisa no Serviço Social. É
por meio da pesquisa e dimensão investigativa que é possível construir um caminho para
um leitura crítica da realidade social, capaz de atribuir maior visibilidade que envolvem a
produção e reprodução da questão social.

3- PESQUISA E FORMAÇÃO PROFISSIONAL

A pesquisa em serviço social surge como matéria básica a partir do currículo


mínimo de 1982 no qual o ensino concentra-se nas “ementas voltadas para História do
Serviço Social, Teoria do Serviço Social e Metodologia do Serviço Social além do estágio
supervisionado” (IAMAMOTO, 2014, p. 615).É por meio do currículo mínimo 1982 que é
estabelecido à pesquisa um status educativo no percurso de ensino aprendizagem na
formação profissional do assistente social. Diante disso, a promulgação da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional- LDB possibilitou a aprovação das diretrizes
curriculares 1996, oriunda da elaboração de um documento intitulado “Proposta Básica
para o Projeto de Formação Profissional: novos subsídios para o debate”, que
posteriormente culminou na “Proposta de Diretrizes Gerais para o Curso de Serviço
Social” nas quais foram sistematizadas as proposições do conjunto das unidades de
ensino, resultando em seis documentos regionais a partir dos quais a diretoria da ABESS,
a representação da ENESSO e do CFESS, o grupo de consultores de Serviço Social e a
consultoria pedagógica. (ABEPSS,1996)
A proposta das Diretrizes curriculares homologada em 2001 pelo Ministério da
Educação e do Desporto “sofre forte descaracterização no que se refere à direção social

462
da formação profissional, aos conhecimentos e habilidades considerados essenciais ao
desempenho do assistente social” (IAMAMOTO, 2014). Sendo assim, a pesquisa se
encontrará no núcleo dos fundamentos do trabalho profissional do Serviço Social, estes
compreendem todos os elementos constitutivos do Serviço Social como uma
especialização do trabalho: sua trajetória histórica, teórica, metodológica e técnica, os
componentes éticos que envolvem o exercício profissional, a pesquisa, o planejamento e
administração em Serviço Social e o estágio supervisionado (DIRETRIZES
CURRICULARES, 2001).
Portanto, infere-se que a dimensão investigativa é vital para a própria atualização
e reprodução do Serviço Social, assim será requerido ao assistente social

competência e agilidade na pesquisa e desvendamento da realidade, isto é, na


apreensão da dinâmica, dos processos sociais. Esta observação adquire
especial relevo ao se considerar o caráter prático-interventivo da profissão.
Assim, além do estímulo as preocupações investigativas e às atividades de
iniciação à pesquisa na graduação, laços devem ser estreitados, especialmente
no âmbito das políticas de pesquisa, entre a graduação e a pós-graduação, em
quantos níveis particulares do processo de qualificação acadêmico-profissional
na área de Serviço Social (ABESS, 1997, p.19).

É por meio da dimensão investigativa que a análise crítica da realidade, e o


enfrentamento das estratégias neoliberais são possíveis. Vale destacar, que desde o
surgimento do Serviço Social até os dias atuais, há um projeto de amadurecimento
profissional em curso, que confrontam as dimensões teórico-metodológica, ético-política
e técnico-operativas, de modo a compreender os fenômenos formulando respostas
criativas para o enfrentamento da questão social. Deste modo, a dimensão investigativa
atua como um elemento essencial que contribui para desvelar a realidade sócio
profissional.
Com o amadurecimento profissional, a literatura profissional, conferiu a pesquisa
um destaque como o surgimento dos programas de pós-graduação impulsionando um
novo projeto de formação profissional. Um marco no entendimento da importância que a
pesquisa tem no cenário da profissão, e como área produtora de conhecimento é a
publicação do livro Relações sociais e Serviço Social no Brasil (1978), de Iamamotto e
Carvalho, que contribuiu para propagação da história do Serviço Social latino-americano
a nível nacional.
Tais avanços estão presentes nas diretrizes curriculares, no que se refere os
conteúdos propostos para a Pesquisa em Serviço Social:

Natureza, método e processo de construção de conhecimento: o debate teórico-


metodológico. A elaboração e análise de indicadores sócio-econômicos. A

463
investigação como dimensão constitutiva do trabalho do assistente social e como
subsídio para a produção do conhecimento sobre processos sociais e
reconstrução do objeto da ação profissional. (ABEPSS, 1996, p.18)

Assim, Comerlatto (2008) pontua que ao associar a dimensão investigativa à


produção de conhecimento é possível criar estratégia político-pedagógica de forma a
construir conhecimento a respeito das temáticas sociais. Para Moraes (2016), a
dimensão investigativa deve compor o trabalho do assistente social por meio da postura/
atitude investigativa e ação investigativa. Logo o autor explica que,

A postura/ atitude investigativa é constituída no contato direto com a realidade


social/meio externo, que vai exigir análise de conjuntura, calcada em
conhecimentos relativos à sociedade brasileira em tempos de mundialização do
capital e de “reconfiguração” de Estados Nacionais, na tentativa do
desenvolvimento econômico e de elevação dos indicadores sociais. (MORAES,
2016, p.105)

Portanto, a postura/ atitude investigativa requer do profissional uma leitura crítica


constante da realidade, indagação dos fenômenos sociais, respeitando a autonomia dos
sujeitos. E para o exercício da postura/ atitude investigativa é necessário uma atualização
constante, participação em congressos, conferências e encontros da área de atuação
profissional reforçando seu arcabouço teórico-metodológico.
Logo a ação investigativa é reflexo da postura/atitude investigativa que é
indissociável do cotidiano profissional concretizados por meio dos instrumentos de
trabalho, que para Moraes (2016)

a ação investigativa supõe imediatamente a postura/ atitude investigativa, mas a


postura/ atitude investigativa não necessariamente gera uma ação investigativa
no plano do imediato, mas é fundamental para a construção das ações
investigativas e intervenções profissionais. Porém, tanto a ação investigativa
quanto à postura/ atitude investigativa devem estar pautadas nas dimensões
teórico-metodológica e ético-política profissional do projeto do Serviço Social
contemporâneo (MORAES, 2016, p.111).

Desse modo, compreende-se que a ação investigativa é um meio onde novas


investigações podem surgir no cotidiano profissional. Esses elementos podem ser
condensados e utilizados para a produção de novos conhecimentos que poderão ser
investigadas por meio de pesquisas e estudos.
Nesse sentido, as pesquisas tem um papel fundamental na formação profissional,
pois estas contribuem para desvelar a realidade, sendo um palco para formação do
pensamento crítico, propositivo e interventivo na realidade social.
Conforme Moraes (2016)
a pesquisa acadêmico-cientifica tem sido capaz de gerar teorias na área de
Serviço Social que - embora estas estejam sempre sujeitas a problematizações e

464
reformulações – tem tentado, a partir de princípios e definições gerais, explicar
uma gama ampla de fenômenos através de um esquema conceitual abrangente
e, ao mesmo tempo, sintético. Historicamente construídas, enquanto analise e
expressão do interesse de classes, tentaram avançar na construção de reflexões
vinculadas ao conhecido e desconhecido, por meio de aproximações e
distanciamentos que intentam desvendar dimensões não pensadas a respeito da
realidade, que só se revelam a partir de interrogações elaboradas por meio do
processo de construção teórica. (MORAES, 2016, p. 128)

Por fim, percebe-se que a pesquisa acadêmico-cientifica se coloca na tentativa de


explicar os fenômenos sociais fundamentadas em critérios científicos, expressados pela
produção de consciência humana, questionando os significados da realidade na
sociedade capitalista.

4- CONCLUSÃO

Compreender o lugar da pesquisa em Serviço Social no processo de trabalho


profissional dos assistentes sociais tem requerido de profissionais e intelectuais do
Serviço Social um esforço, ora para expressar a realidade profissional nas pesquisas
acadêmicas, ora para sistematizar a realidade no dia a dia profissional.
A institucionalização da pós-graduação no Brasil possibilitou caminhos para a
produção de conhecimento assim como o desenvolvimento da pesquisa aumentando a
qualificação docente e a produtividade de pesquisadores nas diversas áreas, contudo a
flexibilização no ensino superior submete os cursos de graduação e pós-graduação a
uma lógica produtivista e subordinada a lógica capitalista.
É inegável as contribuições desta análise, uma vez que a comercialização do
educação superior atinge profundamente o projeto de formação do assistente social. A
preocupação gira em torno de um ensino fragmentado vinculado diretamente ao
mercado, uma formação que encoberta pelos moldes da contrarreforma do Estado.
Assim, defende-se que a dimensão investigativa deve ser indissociável na
formação profissional. Tal dimensão não deve ser apenas abordada em uma única
disciplina, mas tem de ser transversal por todo processo formativo. Outro ponto a
destacar é a articulação com os programas de pós-graduação e as entidades do Serviço
Social a fim de debater nesses espaços a “contrarreforma” do Estado e seus reflexos
para a sociedade.

465
5- REFERENCIAS

ABESS/CEDEPSS. Diretrizes Gerais para o Curso de Serviço Social (Com base no


currículo mínimo aprovado em Assembleia Geral Extraordinária de 8 de novembro de
1996). In: Cadernos ABESS. Formação profissional: trajetórias e desafios. Edição
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Ed. Boitempo, 2018. Cap. 1 Fotografias do Trabalho Precário Global (p. 19-32); Cap. 2 –
A explosão do novo proletariado de serviços, itens: Rumo à precarização estrutural do
trabalho (p. 25-32); o trabalho em serviços e seus novos significados (p. 33-39); Entre a
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INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR DO BRASIL NESSES ÚLTIMOS 25 ANOS.
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E.; Borges, A.; Mercuri, C.; Vitale, D.; Senes, S. (org.) (2013) Dicionário Temático
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Brasil: Esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 41. ed. São Paulo: Cortez,
2014.

MORAES, Carlos Antônio de Souza. O Serviço Social Brasileiro na entrada do século

466
XXI: formação, trabalho, pesquisa, dimensão investigativa e particularidade da saúde.
2016. 318 f. Tese (Doutorado) - Curso de Fundamentos e Pratica Profissional, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.

SIMIONATTO, Ivete. Intelectualidade, política e produção do conhecimento: desafios ao


Serviço Social. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 117, p. 7-21, jan./mar. 2014.

467
NOTAS SOBRE A PESQUISA E O ENSINO DO SERVIÇO SOCIAL NA HISTÓRIA

Esther Luíza de Souza Lemos


Maurílio Castro de Matos

RESUMO: A presente comunicação problematiza o porquê


do Serviço Social brasileiro na atualidade se debruçar tão
pouco sobre a pesquisa e o ensino sobre a trajetória
histórica da profissão no país e no mundo. Analisando a
literatura profissional no Brasil, passada e recente, concebe
a história em seu movimento e suas contradições tendo
como base a perspectiva crítico-dialética. Apresenta
hipóteses de trabalho na necessária continuidade da
pesquisa sobre o tema com objetivo de fortalecer a profissão
e a área de conhecimento na articulação do trabalho e
formação profissional.

PALAVRAS-CHAVE: Serviço Social, História, Ensino,


Pesquisa

ABSTRACT: The present communication problematizes why


the Brazilian Social Work currently focuses so little on
research and teaching on the historical trajectory of the
profession in the country and in the world. Analyzing the
professional literature in Brazil, past and recent, it conceives
history in its movement and its contradictions based on the
critical-dialectical perspective. It presents working
hypotheses in the necessary continuity of research on the
subject with the objective of strengthening the profession
and the area of knowledge in the articulation of work and
professional training.

KEYWORDS: Social Work, History, Teaching, Research

1- Introdução
A presente comunicação é resultado de reflexões preliminares, portanto ainda em
curso, inconclusas, sobre o porquê do Serviço Social brasileiro na atualidade se debruçar
tão pouco sobre a pesquisa e o ensino na pós-graduação sobre a trajetória histórica da
profissão no país e no mundo.
Tais reflexões foram fomentadas em duas atividades que estamos participando. A
primeira se dá com a nossa inserção no projeto de pesquisa coordenado pelas
professoras Marilda Iamamoto e Cláudia Mônica dos Santos, intitulado "O Movimento de
Reconceituação do Serviço Social na América Latina (Argentina, Brasil, Chile e

468
Colômbia): determinantes históricos, interlocuções internacionais e memória". A pesquisa
foi concluída em 2020, entretanto a rede de pesquisa encontra-se no momento
construindo um novo projeto de investigação. A segunda atividade são as aulas
ministradas nas disciplinas "Trabalho e Serviço Social na América Latina", na pós-
graduação em Serviço Social da UERJ e “Fundamentos do Serviço Social:
desenvolvimento socio-histórico e concepções contemporâneas” na pós-graduação em
Serviço Social na UNIOESTE – Campus de Toledo. Nesses dois espaços foram latentes
a constatação de poucos esforços na atualidade para o desvelamento da história na
profissão.
Neste sentido, o VII Seminário Internacional da Faculdade de Serviço Social da
Universidade Federal de Juiz de Fora oportuniza a problematização do tema no
respectivo eixo temático, sua socialização e interação com demais pesquisadores(as) da
área.

2- Estudar a história do Serviço Social ou o Serviço Social na história?

No balanço das comemorações dos 80 anos da profissão, em 2016, dois


intelectuais do Serviço Social brasileiro se posicionaram sobre a importância de estudar a
história da profissão. Ambos são autores das duas maiores obras que buscaram
desvendar a particularidade da profissão na divisão social e técnica do trabalho e
também realizaram a pesquisa da trajetória histórica da profissão.
Marilda Iamamoto coordenou uma grande equipe de pesquisa, entre 2016 e 2020,
sobre a reconceituação latino-americana e sua interlocução, ou não, com o chamado
Serviço Social Crítico na Europa e nos Estados Unidos. A autora responsável pela
primeira inflexão sobre a leitura da profissão, seu trato com as diferentes expressões da
“questão social” e com o fato de ser uma profissão que responde a determinada
necessidade na divisão social e técnica do trabalho. Há tempos essa autora vem
chamando a atenção de que o Serviço Social brasileiro fez uma recusa do
conservadorismo, mas não procedeu a sua crítica (Iamamoto, 2007).
Para algumas pessoas desatentas, poderia parecer um preciosismo. Mas a cada
dia, a pontuação de Iamamoto ganha contornos da premência dessa crítica, vide a
reiteração de novidades no cardápio dos programas governamentais e em determinadas
bibliografias do Serviço Social, que demonstram o retorno, com verniz modernizado,
daquilo que foi superado, mas não devidamente criticado.

469
José Paulo Netto, em seu artigo “Para uma história nova do Serviço Social"
(2016), critica que desde a década de 1990 o Serviço Social vem realizando mais
pesquisas históricas de estudos localizados e particulares e poucas abordagens
abrangentes da história, tratando-se assim, nos termos do autor de uma atrofia. Destaca,
a falta de estudos sobre a história na profissão no último quartel do século passado. Esse
período é praticamente o mesmo da constituição doque atualmente denominamos,
projeto ético-político do Serviço Social brasileiro (ainda que como atente o próprio autor,
em outro texto, de 1996, um não é sinônimo do outro, mas certamente sem a intenção de
ruptura o atual projeto não existiria). Considera o autor problemática tal lacuna, pois
identifica que “consiste em proclamá-lo e em invocá-lo como se fora um projeto cujo
pluralismo não tem fronteiras e que, portanto, comporta ilimitadas possibilidades de
concretização teórica e prática.” (Netto, 2016, p. 65,Grifos originais).
Ao mesmo tempo, o acompanhamento da implantação das Diretrizes Curriculares
para os Cursos de Serviço Social aprovadas pela ABESS (1996), desde a pesquisa
avaliativa realizada em 2006 pela então ABEPSS, entre diferentes aspectos, evidenciou
que a temática “aponta um elemento fundamental que é a particularidade histórica do
Serviço Social apreendida na história da realidade social em que se insere” (Cardoso,
2007, p. 38).
No que se refere à implementação da matéria “Fundamentos históricos e teórico-
metodológicos do Serviço Social” no âmbito dos cursos de graduação, a pesquisa
identificou quatro tendências distintas tanto quanto à forma de organização quanto de sua
concepção. Entre elas destaca a que considera a “centralidade no Serviço Social como
profissão na história, numa perspectiva de totalidade” (Cardoso, 2007, p. 41), ao mesmo
tempo permanecendo o desafio da “compreensão histórica da profissão respaldada em
uma concepção crítico-dialética”(Cardoso, 2007, p. 52).
Na literatura profissional no campo da perspectiva histórico-crítica disponível ao
leitor, existem duas expressivas obras, que não por acaso são dos autores citados. A
obra de Iamamoto e Carvalho (1982) que aborda da emergência da profissão até 1950. E
o livro de Netto (1991) que cobre da década de 1960 a 1980.
Problematizando este tema em 1982, Iamamoto inaugurou a interpretação
situando
o Serviço Social na história, na contrapartida de uma história do Serviço
Social aprisionada em seus muros internos, uma vez que se entende
serem as condições que peculiarizam o exercício profissional de
assistentes sociais uma concretização da dinâmica das relações sociais
vigentes na sociedade em determinadas conjunturas históricas.
(Iamamoto; Carvalho, 1991, p. 81)

470
Yazbek (2018) ao analisar os Fundamentos do Serviço Social, baseando-se em
Iamamoto, afirma que “a profissão só pode ser entendida no movimento histórico da
sociedade, no complexo processo de reprodução de relações sociais” (2018, p. 48).
Iamamoto em seu atual projeto, ao pesquisar o processo de reconceituação do Serviço
Social latinoamericano, tem dado ênfase a contribuição do Centro Latino-Americano de
Trabalho Social – CELATS para a renovação crítica na região, sendo o clássico livro de
Manrique Castro (2011) uma referência que permanece no estudo sobre América Latina.
Se tratou de convencionar o marco inaugurador da reconceituação o Seminário
Regional Latino-Americanode Serviço Social realizado em Porto Alegre em 1965, indo até
1975 quando se encerrou a possibilidade de algum debate crítico no Cone Sul, em
virtude das ditaduras militares (Lopes, 2016). Em 1974 foi criado o CELATS, órgão que
vai dinamizar as ideias reconceituadoras e superá-las, no período entre 1975-1985,
desenvolvendo ações na região como capacitações à distância, financiamento de
pesquisas, promoção de eventos latinoamericanos, financiamento de eventos regionais e
nos países, etc. Estas foram fundamentais para a renovação crítica do Serviço Social.
O balanço crítico realizado no posfácio da obra “Serviço Social na História:
América Latina, África e Europa”, Iamamoto & Yazbek consideram que “a concepção de
fundamentos históricos, teóricos e metodológicos do Serviço Social privilegia a história
em seu movimento e nas suas contradições” (2019, p 511). Ao analisar os 80 anos do
Serviço Social no Brasil Mota considera que nas três últimas décadas e meia, a profissão
“ampliou sua função intelectual, como profissão e área de produção de conhecimento”
(2017, p. 46).
Assim, a análise do passado recente, como nas produções de Silva (2019),Goin
(2019), Iamamoto & Yazbek (2019), Iamamoto & Santos (2021), Mota, Vieira e Amaral
(2022) fortalece a“virada” da profissão, explicitando a sua diferença com o Serviço Social
Tradicional. O investimento destas pesquisas ilumina o presente e desmascara discursos
que se apresentam como pluralistas (conforme Netto, 2016, atenta), que na realidade
reapresentam o que já foi negado, mas não suficientemente criticado (de acordo com
Iamamoto). Reafirmar o conteúdo e acertos do projeto de ruptura, também reafirmará sua
imprescindibilidade, demonstrando que não há romantismo que rompa com os desvalores
da sociabilidade capitalista.

471
3- Ponto de partida para se estudar a história da profissão: a negação da endogenia

Consideramos que a preocupação com a história da profissão é parte constitutiva


do Serviço Social. Entretanto, até 1982 a totalidade da bibliografia tinha dois pontos em
comum: pensava o Serviço Social como mera evolução das formas de caridade e
filantropia e a constituição da profissão como ação/resultado apenas da ação de seus
agentes, as pioneiras.
A impostação que fez a mudança de rota dessa perspectiva foi a obra de
Iamamoto e Carvalho (1991). Entretanto, não quer dizer que com essa obra estava posto
o fim das análises endógenas.
Montaño (2007) organiza a produção bibliográfica produzida por autores
latinoamericanos como endógena ou estrutural funcionalismo. Na perspectiva endógena,
identifica os seguintes autores: Herman Kruse, Ezequiel Ander-Egg, Natálio Kisnerman,
Boris Alexis Lima, Ana Augusta Almeida, Balbina Ottoni Vieira, José Lucena Dantas.
Ressalta que o leque de filiação é amplo, dando destaque para Boris Alexis Lima,
um dos autores mais críticos da reconceituação, que identifica quatro etapas históricas:
pré-técnica, técnica, pré-científica e científica. E vai mais longe, identifica a origem do
Serviço Social na Idade Média!
Partilhamos da análise, segundo Montaño (2007), de que essa perspectiva é
endógena porque:
a) não considera que a realidade (a história da sociedade) como fundamento e
causalidade da gênese e desenvolvimento da profissão, apenas situa as etapas
do Serviço Social nos contextos historiográficos;
b) o surgimento da profissão é visto como opção pessoal de filantropos em organizar
as formas de caridade;
c) não considera o papel do Serviço Social na ordem social;
d) não explica, já que sendo uma evolução, porque a caridade e a filantropia não
desapareceram;
e) não explica as diferenças temporais de criação do serviço social nas diferentes
regiões do mundo.
A endogenia pode persistir de maneira menos consciente, por isso, não é por
acaso que José Paulo Netto, no recente texto chama a atenção para a diferença entre
história e memória afirmando que

Estamos confrontados com os 80 anos de história do Serviço Social - que,


como toda história, não pode ser reduzida, confundida e/ou identificada à

472
memória (melhor: às memórias) que se tem dela.Essa memória,
realmente não é o fundamento sobre o qual deve se assentar o
procedimento qualificado para desvendar e trazer à luz o processo
histórico efetivo: a memória (individual e coletiva, aquela dos sujeitos
singulares e aquela de categorias profissionais, grupos e classes sociais)
é parte constitutiva da história profissional e incide sobre ela; mas a
memória não se elabora a partir de parâmetros lógicos e racionais: é uma
construção ideal que recupera vivências - no sentido do "vivido"
conceptualizado por H. Lefebvre - não necessariamente filtradas
intelectiva e analiticamente. Há memórias distintas, e até colidentes, dos
mesmos eventos e processos históricos. Ora, a reconstrução analítica -
suposto da reprodução teórica - do processo histórico efetivo, na pesquisa
da sua gênese e do seu desenvolvimento para alcançar o seu
conhecimento verdadeiro, demanda operações e procedimentos
específicos e rigorosos, próprios da ciência histórica" (Netto, 2016, p. 52).

Naturalmente a coleta da memória faz parte do fazer história, como aponta Netto
(2016). Porém, há que se considerar dois aspectos.
O primeiro refere-se ao uso exagerado do recurso a entrevistas na pesquisa em
Serviço Social e donde as respostas dos sujeitos são, muitas das vezes, pouco
problematizadas e tratadas como a verdade. O que se trata ser uma expressão,
certamente, do real, mas não de toda a realidade. Daí a importância de cotejar com
outras fontes, pensemos aqui especialmente na pesquisa documental.
O segundo é que se acompanhamos o desafio que Netto (2016) identifica da
história nova, há que se reconhecer que muitos dos sujeitos estão na ativa e corre-se o
risco, inconsciente, desses sujeitos ao realizarem a pesquisa histórica darem mais peso
para suas memórias (de articulações, embates, etc) em detrimento do contexto mais
geral da época (pensemos aqui na totalidade) e do impacto real dessas ações (no curso
dos fatos historicamente).
Sendo assim, o objetivo é “impregnar de história o Serviço Social na sociedade
contemporânea. O pressuposto é que história na sua processualidade – no seu vir a ser –
é o ‘terreno’ da análise do Serviço Social, o que conclama uma perspectiva de totalidade
na leitura dos processos histórico-sociais.” (Iamamoto; Yazbek, 2019, 15/16).
Assim, se está correto de que há uma invasão pós-moderna, de raiz
neoconservadora no projeto ético-político, se reivindicando como componente desse
projeto faz-se urgente: totalizar a história, ou histórias, do Serviço Social; realizar a crítica
ao conservadorismo; pesquisar na história a importância da ruptura com ruptura do
conservadorismo, estudando a tendência responsável por isso e que constitui o projeto
ético-político do Serviço Social brasileiro.

473
4- Considerações finais

A aproximação ao tema no estudo e pesquisa, trouxe algumas hipóteses de


trabalho que partilhamos nesta comunicação. Por que se pesquisa tão pouco sobre a
história na profissão?
Algumas considerações nesta reflexão. Primeiramente porque ensinar Serviço
Social não necessariamente é colocá-lo como objeto de estudo. Se pesquisa pouco sobre
o Serviço Social e se ensina/debate pouco a profissão nos programas de pós-graduação.
Lembrando que “os desafios e possibilidades da pós-graduação em Serviço Social só
podem ser apreendidos no movimento histórico de avanços e retrocessos da política
educacional brasileira.” (Guerra, 2011, p. 127).
Um segundo aspecto destacado é porque a tendência tem sido considerar,
especialmente, a obra de Iamamoto e Carvalho (1982), mas também a de Netto (1991)
como acabadas, como se dessem conta da historicidade da profissão. De fato, são textos
clássicos, mas não dão conta das diferenças regionais do país, conforme já atentou
Iamamoto, e conforme abordamos, nos estudos que vão até 1985.
Terceiro porque com a crítica ao currículo mínimo de 1979/82, que era pautado no
tripé teoria-história-método,a partir das Diretrizes Curriculares da Abepss, com a
discussão dos Núcleos de Fundamentação, houve a crítica a tratar a história
isoladamente da teoria e do método.
Como desdobramento do que foi apontado no item anterior, no contexto pós
Diretrizes Curriculares da Abepss de 1996, o debate sobre a profissão se centrou no
chamado "Fundamentos do Serviço Social", como hipótese, parece que houve uma
supressão da "história" pelos "fundamentos", que são coisas distintas. Por trás disso está
a crítica de pesquisadoras da área, de que não haveria uma "história" da profissão e sim
"uma história", a metanarrativa. Se está nítido o que fundamenta a profissão, para que
então pesquisar a trajetória histórica da profissão?
Uma quinta hipótese que foi apontada como desafio no resultado da pesquisa
avaliativa da ABEPSS (2006) é o necessário fortalecimento da concepção de história a
partir da concepção crítico-dialética.
Desde as provocações originais que instigaram esse texto, o contexto de
divulgação de pesquisas na área teve contribuições significativas. Certamente correndo o
risco de algum esquecimento, podemos ressaltar a divulgação de coletâneas que
contribuem para o aquecimento qualificado, logo crítico, sobre os textos acerca da
história da profissão. Na sua maioria resultado da pesquisa aqui citada na introdução.

474
Assim, se antes havia uma aridez, hoje existem iniciativas importantes. Netto que
em 2016 fez a crítica sobre a importância de uma história nova, em 2021, ao apresentar o
livro “A história pelo avesso” (Iamamoto; Santos. 2021), afirma que “a construção desta
nova história já está em curso”.
A pesquisa que coloca o Serviço Social como objeto de estudo é central no
fortalecimento da profissão também como área de produção de conhecimento no campo
das Ciências Humanas e Sociais.
Com essas breves notas queremos contribuir para que se alimentem novas
iniciativas de estudos sobre a história, bem como a sua abordagem no ensino pós-
graduado, espaço por excelência de novos docentes e pesquisadores. Para alimentar
esse ânimo, precisamos discutir francamente os possíveis problemas que podem estar
propiciando esse pouco interesse por parte das gerações mais recentes na profissão,
vide o pouco número de teses e dissertações que abordam o "Serviço Social na História".

5- REFERÊNCIAS

ABESS/CEDEPSS. Diretrizes gerais para o Curso de Serviço Social (com base no


currículo mínimo aprovado em Assembleia Geral Extraordinária de 08 de novembro de
1996). Disponível em:
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IAMAMOTO, Marilda Vilela. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital
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IAMAMOTO, Marilda Villela; CARVALHO, Raul de. Relações sociais e Serviço Social
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MANRIQUE CASTRO, Manuel.História do Serviço Social na América Latina, 12 ed.
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tendências contemporâneas no Serviço Social. In: GUERRA, Yolanda; LEWGOY, Alzira
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fundamentos: conhecimento e crítica. Campinas: Papel Social, p. 47 – 84, 2018.

476
QUESTÃO RACIAL E SERVIÇO SOCIAL: Os desafios para o enfrentamento do
racismo na formação profissional

Dagoberto José Fonseca171


TahinaTátila da Silva 172

RESUMO:

Questão racial e Serviço Social: Os desafios para o


enfrentamento do racismo na formação profissional tem
como referência o momento contemporâneo da formação
profissional dos (as/es) futuros Assistentes Sociais, a nova
categoria de profissionais. Tem como propósito
exporrelevantes entraves para a coalisão de uma luta social
no interior da profissão no que tange a questão étnico-racial.
Inserido na divisão técnica e teórico metodológica o Serviço
Social é convidado a dialogar com a questão racial no cerne
de sua questão, no entendimento da questão social e suas
expressões, bem como no amadurecimento teórico crítico
no processo de formação profissional.

Palavras-Chave: Serviço Social; Formação Profissional;


Questão Racial.

Abstract: Racial issue and Social Work: The challenges for


facing racism in professional training has as a reference the
contemporary moment of professional training of future
Social Workers, the new category of professionals. Its
purpose is to expose relevant obstacles to the coalition of a
social struggle within the profession regarding the ethnic-
racial issue. Inserted in the technical and theoretical
methodological division, Social Work is invited to dialogue
with the racial issue at the heart of its issue, in the

171LivreDocente em Antropologia Brasileira pela Faculdade de Ciências e Letras-UNESP-Campus de


Araraquara, Orientador. Email: dagobertojose@gmail.com
172Doutorando em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade

Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, UNESP/Franca-SP. 2022. Email: tahina.tatila@unesp.br


Eixo temático: Lutas Sociais e Serviço Social: a construção de resistências no interior da profissão.

477
understanding of the social issue and its expressions, as well
as in the critical theoretical maturation in the process of
professional training.

Keywords: Social Work; Professional Qualification; Racial


Issue.

1- INTRODUÇÃO

A formação profissional de Assistentes sociais é sem dúvidas umas das temáticas


de maior relevância nos espaços de organização da categoria. As últimas décadas tem
sido cruciais no que tange o esforço feito pela profissão em debater a questão racial
como expressão de luta social produto das expressões da questão social.

A formação profissional tem como pressuposto a capacitação ético-política e


teórico-metodológica como requisitos básicos para a atuação técnico-operativa do (a)
Assistente Social que abranja uma perspectiva crítica e analítica da totalidade. Para tal é
necessário que se faça uma análise aprofundada sobre o contexto histórico e social
particular da sociedade brasileira. O exercício profissional requer do (a/e) Assistente
Social uma postura crítica capaz de dialogar com a instituição a qual estar inserido (a),
para a defesa de seu campo de atuação, suas atribuições e competências. A
aproximação com seus sujeitos e a leitura social da Questão Social deve permitir a este
(a) tendências para a materialização do seu projeto profissional e a garantia de direitos
para aqueles (as) que são assistidos (as/es) da Política de Assistência Social.

A luta cotidiana para que se entenda o Serviço Social como uma profissão
inserida na divisão técnica do trabalho começa no início da formação e deve conter a
gênese da profissão e suas principais rupturas, como norteadores da formação seguidas
dos processos metodológicos e teóricos que fundamentam a profissão. O Serviço Social
brasileiro surge e tem sua institucionalização entre as décadas de 1930 a 1940. E pode
ser entendido em dois processos de extrema importância no que tange sua gênese, o
primeiro deles é o redimensionamento do Estado produto da fase monopolista do
capitalismo, a qual as suas funções se correlacionavam entre políticas e econômicas.
Segundo Forti (2003) tem-se:

[...] a evidência da(s) política(s) como elemento funcional, estratégico da ordem


monopolista, por constituir(em) a resposta necessária aos interesses da burguesia e à
consequente necessidade de legitimação do Estado burguês face as “novas” configurações

478
dos conflitos de classe, suscitados por essa ordem do capital e pela consequente
conformação política dos movimentos operários – mecanismo tomado como eficiente para
aplacar os conflitos que ameaçam pôr em xeque a ordem societária estabelecida, ou seja,
os antagonismos da relação capital/trabalho, objetivados nas múltiplas e tipificadas
expressões da “questão social[...] (FORTI, 2013, p. 51)

O segundo aspecto foi à busca pela hegemonia católica atravessada por um


processo de recuperação da igreja Católica que passava por uma série de mudanças
estruturais e sofria com o avanço do protestantismo culminando na perca de poder e
força no âmbito político. Portanto a Ação Católica Brasileira na tentativa de reforma
social buscava recuperar o prestígio da Igreja Católica, o Serviço Social era uma
estratégia para tal. Iamamoto (2013) compartilha que:

[...] Como profissão inscrita na divisão do trabalho, o Serviço Social surge como parte de
um movimento social mais amplo, de bases confessionais, articulado à necessidade de
formação doutrinária e social do laicato, para uma presença mais ativa da Igreja Católica no
“mundo temporal”, nos inícios da década de 30. Na tentativa de recuperar áreas de
influências e privilégios perdidos, em face da crescente secularização da sociedade e das
tensões presentes nas relações entre Igreja e Estado, a Igreja procura superar a postura
contemplativa[...] (IAMAMOTO, 2013, p. 18).

Mediante o adensamento das dessemelhanças oriundas do sistema econômico


capitalista, houve um avanço nas demandas profissionais do (a/e) Assistente Social, que
deixou de ser mero executor de Políticas Sociais para também atuar na efetivação e
criação das mesmas, a Lei 8662/93 que regulariza o Serviço Social como profissão
preconiza em seu artigo 5º, inciso I:Art. 5º Constituem atribuições privativas do Assistente Social: I -
coordenar, elaborar, executar, supervisionar e avaliar estudos, pesquisas, planos, programas e projetos na
área de Serviço Social. No cenário atual de mobilizações sociais por meio de diversos
movimentos têm-se buscado melhores condições de vida. No entanto para além de criar
mecanismos de combate às desigualdades sociais para a população em situação de
extrema vulnerabilidade, o Brasil devido a sua formação sócio histórica tem
especificidades que devem ser reparadas em caráter de urgência, a Lei de Cotas
Raciais173é uma política ainda insuficiente, mas eficiente no quesito reparo.

A lei de cotas comparada a outras de combate à desigualdade é muito recente e


carrega muitos estigmas e inverdades devido sua tenra idade. Entender a política de
cotas raciais como uma forma de reparar danos causados pelo período escravocrata do
Brasil não é de simples aceitação. Apesar de a população negra ser a maior que a de

173Referência a Lei nº.12.711, de 29 de agosto de 2012 que dispõe sobre a inserção em Universidades
Federais, Instituições Estaduais e ensino técnico de nível médio.

479
não negros segundo o censo do IBGE 2018, ocupando 56% do território nacional é
também o contingente que mais é aviltado de seus direitos. O Brasil pelo seu histórico de
mais de trezentos anos de escravidão caminha em passos lentos no que diz respeito às
tratativas do racismo no que diz respeito à população afro-brasileira. A temática de raça e
etnia embora existente no país desde os primórdios de sua constituição de fato não é
consideravelmente assimilada ou questionada pela minoria branca, que em grande parte
dos casos enxerga a política de cotas como um privilegio ou injustiça aos demais
brasileiros.

Aproximar-se da questão racial é uma emergência ao Serviço Social, tendo em


vista que a maioria das (os/es) usuárias (os/es) da Política de Assistência é parte do
grupo de pretos (as/es) ou pardos (as/es). Que significa que o caráter diagnóstico a qual
a população negra se estabelece no Brasil. Apesar de mais de cem anos de abolição da
escravatura os (as/es) negros ainda ocupam a posição de inferioridade herdada da
escravidão.

2- Relações Sociais e raciais no Brasil: herança inglória

Desde a captura na África até a chegada dos navios no Brasil, os negros (as)
sofreram a mais perversa desumanidade que a escravidão podia gerar. O Brasil não se
edificaria sem os negros (as/es), não se entende o país se este dado não for levado em
conta. É preciso ir além da realidade aparente, guiar-se pelos aspectos econômicos,
teóricos e práticos. São estes elementos que determinam as relações organicamente e
heterônomas da sociedade (Silva ,p.14. 2017).

Em sociedades como o Brasil com vagaroso histórico de escravidão o racismo e


raça estão intrinsicamente adstritos, justificando para a sociedade que o fenótipo desses
indivíduos determina características morais, comportamentais e intelectuais. Ao serem
extirpados da África negros e negras (es) viajavam por cento e vinte dias, nas primeiras
embarcações em situações horríveis, desumanas (pois realmente acreditavam que não
os eram), de cócoras ou deitados sob dejetos, vômitos e urina. Muitos morreram de
doenças que se alastravam feito epidemias, desvanecidos eram lançados vivos no mar
para que não houvesse contaminação com o resto da “carga”.

A maioria dos negros capturados eram prisioneiros de conflitos tribais e eram


vendidos para portugueses, espanhóis, franceses e ingleses. A idade média dos negros

480
expropriados do continente africano variava de doze a quinze anos, ao se recuperarem
da viagem eram expostos como mercadorias nas lojas dos comerciantes de escravistas,
amarrados uns aos outros como animais selvagens que acabara de serem capturados.
Apáticos desde a África foram desnaturalizados destribalizados separados dos parentes.
Aportando no Brasil como animais pacíficos, martirizados que só reagiam em resposta ao
açoite que constantemente eram apresentados. Não tinham tempo de criar bases de
revolta, após chegarem viviam em média sete anos, devido às péssimas condições de
trabalho e existência que lhes eram concebidas.

[...] tudo foi sangue e chibata, sempre. Jogado nas senzalas imundas. Dormindo no chão ou
arranjando-se em cima de folhas, trabalhando de 14 a 18 horas por dia, indo ao tronco
pelas menores faltas, a vida dos escravos é uma crônica de crueldades, a que não faltam
as manifestações sádicas dos seus senhores e sinhazinhas.[...] (O negro no Brasil, Júlio
José Chiavenato, p.107).

As condições de trabalho sempre foram ruins e piorava quando a comercialização


do café, açúcar ou algodão estavam em alta, eram bastante exigidos e pouco ou nada
garantidos. A desestruturação foi um meio de controlar e anular o negro que perderam o
contato com suas tribos, seus costumes, famílias além de serem privados da
comunicação por estarem com negros de outras nações e por não compreenderem o
português. Seus valores foram naufragados, sem condições de sobrevivência em um
meio tão bulhento, impossibilitando de organizar-se e com prazo de vida útil, limitado ao
racismo escravista o negro africano não passava de um rude, bronco.O regime
escravocrata no Brasil cunhou marcas profundas na população descendente, e o sistema
capitalista aliado à crise contemporânea do capital tem cada vez mais afuniladoas
relações de poder entre negros e não negros.

Torna-se indispensável dar seguimento a construção de pensamentos críticos


dentro do Serviço Social sabido que tal situação é possível de ser vivenciada pelo
Assistente Social e que este deverá buscar minimamente fazer o alinho ao movimento
dialético da realidade. São múltiplas as expressões da Questão Social e o racismo a
discriminação racial são partes dela. Segundo Guerra existem diversas formas de
manifestação e expressões da desigualdade em que o (a) Assistente Social:

[...] lida com múltiplas expressões das relações sociais da vida cotidiana, o que permite
dispôs de um acervo privilegiado de dados e informações sobre várias formas de
manifestação das desigualdades e da exclusão social em sua vivência pelos sujeitos, de
modo que ele é facultado conhecer a realidade de maneira direta: a partir da intervenção na
realidade, das investigações que realiza, visando responder esta realidade[...] (GUERRA,
2009, p.712).

481
A discriminação racial pode ser evidenciada por todos (as) os (as) profissionais
envolvidas no processo assim como pode ser cometida por ele (a) nesse sentido é
necessário que o debate das questões étnicas em sua totalidade seja pauta recorrente da
categoria para a plena solidificação do Projeto Ético Político Profissional e a garantia de
direitos desse contingente social. Neste contexto, destaca-se a importância desse estudo
para o Serviço Social enquanto categoria profissional para o conhecimento não apenas
da questão racial intrínseca de nossa sociedade. Enfim “um dos maiores desafios que o
Assistente Social vive no presente é desenvolver sua capacidade a realidade e construir
propostas de trabalho criativas e capazes de preservar e efetivar direitos a partir das
demandas emergentes no cotidiano” (Iamamoto, 1999.p.57).

[...] A sociedade capitalista transforma o significado de raça como dimensão adscritiva


dentro de um sistema de estratificação e mobilidade social em que a competição e atributos
adquiridos são enfatizados. A sociedade capitalista de classe confere uma nova função ao
preconceito e discriminação raciais: as práticas racistas, sejam ou não legalmente
sancionadas, tendem a desqualificar os não brancos da competição pelas posições mais
almejadas que resultam do desenvolvimento capitalista e da diferenciação da estrutura de
classes[...] (HASENBALG, 2006, apud HASENBALG, 1979, p. 77).

Somados os 80 anos do Serviço Social no Brasil acentua a significância do (a/e)


Assistente Social na mediação de conflitos gerados pelas expressões da Questão Social
repensar sobre o seu fazer profissional no sentido de amenizar o sofrimento de seus (as)
usuários (as), por meio da formação continuada, principalmente no que tange a
população negra que cotidianamente tem seus direitos violados. Fica tácito que o
compromisso em se discutir os desdobramentos da questão racial por parte da categoria
deve ser iniciada ainda nos primeiros anos de graduação. A formação profissional do (a)
Assistente Social deve assumir um compromisso ético para com a temática. É obrigação
das instituições de ensino apregoar o debate racial em seus planos didáticos
pedagógicos bem como orienta as Diretrizes Curriculares do Serviço Social. Fazendo
deste não uma obrigação curricular, mas assumindo um compromisso ético e político
estabelecendo a relação de equidade.

3- Serviço Social e Formação Profissional: aliança ou conciliação? Algumas


considerações

As vulnerabilidades sociais enfrentadas pela população negra brasileira são


históricas bem como seu passado de negligências e omissões. Para os (as/es) negros
libertos fora negado tudo do alimento a dignidade. A escassez de Políticas Sociais desde

482
a abolição formal e documentada permitiu e permite que os (as/es) negros do Brasil
continuem as margens da sociedade que ajudaram a construir. Permeia no Serviço
Social brasileiro certo descaso com a questão étnico racial. Ainda que o Código de Ética
do (a) Assistente Social apregoe não compactuar com nenhuma forma de preconceito;
respeito à diversidade e ao exercício profissional sem discriminar ou ser discriminado
inclusive no que tange a temática étnica racial.

[...] XI. Exercício do Serviço Social sem ser discriminado/a, nem discriminar, por questões
de inserção de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, orientação sexual,
identidade de gênero, idade e condição física. (Código de Ética do (a) Assistente Social
*Aprovado em 13 de Março de 1993 Com as alterações Introduzidas pelas Resoluções
CFESS nº290/94, 293/94, 333/96 e 594/11). [...]

O Serviço Social lê questões étnicas raciais como ações isoladas de militância


política-ideológica executada por um determinado contingente de profissionais, o que
dificulta a compreensão e a leitura franca na perspectiva profissional em se inclinar em
responder as demandas sociais dos (as/es) negros sob uma ótica societária. A ABEPSS
(Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social) entende a temática racial
como um dado de extrema relevância a profissão no sentido de contextualizar a prática
profissional as demandas de sua população usuária. Apesar da morosidade do processo
em se entender a questão racial como também fundante as bases do Serviço Social
esforços têm sido feitos dentre eles foi o de implementar nas Diretrizes Curriculares do
curso (2002) que descreve o perfil dos bacharéis em Serviço Social da seguinte maneira:

[...] Profissional que atua nas expressões da questão social, formulandoe implementando
propostas de intervenção para seu enfrentamento, com capacidade de promover o
exercício pleno da cidadania e a inserção criativa e propositiva dos usuários do Serviço
Social no conjunto das relações sociais e no mercado de trabalho. [...] (Diretrizes
Curriculares para o Curso de Serviço Social, 2002).

Nesse contexto são criados mecanismos de combate a várias formas de opressão


Grupos de Trabalhos e estudos passou a pautar a temática racial. O ENPESS (Encontro
Nacional de Pesquisadoras e Pesquisadores em Serviço Social) de 2014 indicou ao
menos a inclusão de um eixo curricular obrigatório na formação dos (as) futuros
Assistentes Sociais ainda no processo de graduação. O amadurecimento da questão tão
cara ao Serviço Social parte da premissa que a questão social é permeada por outros
condicionais que não apenas a classe como já exposto em linhas supracitadas a
população negra no Brasil tem uma especificidade social diretamente ligada à sua cor o
que interfere diretamente em sua ascensão social. Ao Serviço Social fica evidente que:

483
[...] A inclusão, nos conteúdos curriculares obrigatórios, do debate sobre as relações sociais
de classe, sexo/gênero, etnia/raça, sexualidade e geração de forma correlacional e
transversal. A realização de, no mínimo, uma disciplina que tematize o Serviço Social e as
relações de exploração/opressão de sexo/ gênero, raça/etnia, geração e sexualidades,
preferencialmente, antes da inserção da(o) estudante no campo de estágio. Aqui,
ressaltamos, ainda, as Leis nos 10. 639/03 e 11.645/2008, assim como a Resolução nº 01
do Conselho Nacional de Educação(CNE/MEC), no que diz respeito à incorporação
obrigatória do tema sobre relações étnico raciais nos currículos. (ABEPSS).[...]Disponível
em<http://www.abepss.org.br/noticias/apresentacao-graduacao-15>.Acesso em:
03/06/2022).

O Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) organizou em 2016 cartilhas


tematizadas “Assistentes Sociais no Combate ao Preconceito” que abarcou uma series
de discriminações tais como: o racismo, a xenofobia, a transfobia entre outros, contudo
este movimento precisa virar rotina no seio da profissão e não apenas campanhas. O
Serviço Social nunca assistiu passivamente os movimentos complexos da realidade e
precisa se fazer resistência também para a diversidade.

Em tempos de barbárie impostas pelo capital manter-se na luta é imperativo, ser


resistência em tempos de retrocesso é fardo pesado demais para aqueles que carregam
na pelea cor e a marca. A conjuntura atual exige luta, coletiva e radical a categoria
profissional deve ser letrada na base, a formação profissional tem compromisso ético,
político e profissional no enfrentamento ao racismo e suas expressões para que
possamos galgar uma nova ordem societária que anseie emancipação e plenos direitos.
Os desafios a serem enfrentados são muitos, no âmbito da formação profissional,
graduação e da pós graduação e exercício profissional.

As articulações entre as lutas sociais devem ser travadas entre os sujeitos sociais
coletivos, docentes, discentes, pesquisadores, trabalhadores do SUAS, servidores
públicos, população assistida, classe trabalhadora, supervisoras (es) de campo,
movimentos sociais, sindicais e populares. Sendo assim a luta e a defesa dos direitos
sociais é o horizonte ainda que distante, só se supera as opressões quando se vislumbra
projetos de emancipação humana.

4- REFERÊNCIAS

ABEPSS. Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social. Proposta


de Diretrizes Gerais para o Curso de Serviço Social. Rio de
Janeiro:Abepss,1996.BRASIL, Lei nº 10.639 de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei no
9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
"História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências.

484
BRASIL.Lei nº.12.711, de 29 de agosto de 2012.Dispõe sobre a inserção em
Universidades Federais, Instituições Estaduais e ensino técnico de nível médio.

CFESS.Conselho Federal de Serviço Social. Resolução n° 273/93, de 13 de


março de 1993. Institui o Código de Ética Profissional dos Assistentes
Sociais e dá outras providências.

CFESS (Org.)Assistentes sociais no Brasil: elementos para o estudo do perfil


profissional. Brasília:CFESS,2005.Disponível em:
<http://www.cfess.org.br/pdf/perfilas_edicaovirtual2006. pdf>. Acesso em: 03/06/2020.

CHIVIANATO,JoséJúlio.O negro no Brasil -1.ed- São Paulo: Cortez editora, 2012.

FORTI, Valéria. Ética, crime e loucura: reflexões sobre a dimensão ética no trabalho
profissional. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

GUERRA, Yolanda. A dimensão investigativa no exercício profissional. In CFESS/


ABEPSS: Serviço Social, direitos, competências profissionais. Brasília, 2009.

HASENBALG, Carlos,SILVA DO VALE, Nelson, Lima, Márcia.Cor e estratificação


social. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998.

IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na contemporaneidade; trabalho e


formação profissional. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1999.

IAMAMOTO,Marilda Villela.Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital


financeiro, trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2011.

RESOLUÇÃO n° 15,Estabelece as Diretrizes Curriculares para os cursos de Serviço


Socialde 13 de março de 2002.

SILVA, TahinaTátila. Discriminação Racial no processo de adoção de crianças


negras. Trabalho de Conclusão de Curso- UNESP-Franca-SP. (2017).

SILVA, TahinaTátila da. Adoção de Crianças negras: Paradigmas e Identidades.


Dissertação de mestrado. UNESP-Franca.2020.

SÉRIE:Assistente Social no combate ao preconceito. Brasília: CFESS, 2016.

485
“Ó, VIDA FUTURA! NÓS TE CRIAREMOS”: 50 anos do Serviço Social na UFMT174

JosileyCarrijo Rafael175

Resumo: O presente artigo apresenta dados da pesquisa


intitulada: “Formação Profissional em Serviço Social na
UFMT: História e Direção Político-Pedagógica”, que buscou
inventariar os avanços e desafios presentes nos 50 anos do
curso de Serviço Social. O conteúdo aqui apresentado,
versa sobre os projetos pedagógicos que marcaram esse
percurso, com ênfase nos fundamentos e características da
formação.

Palavras-chave: Serviço Social; Formação Profissional;


UFMT.

Abstract: This article presents data from the research


entitled: “Professional Training in Social Work at UFMT:
History and Political-Pedagogical Direction”, which sought to
inventory the advances and challenges present in the 50
year sof the Social Work course. The content presented here
deals with the pedagogical projects that marked this path,
with emphasis on the foundation sand characteristics of
training.

Keywords: Social Work; Professional Qualification; UFMT.

1- INTRODUÇÃO

A comemoração dos 50 anos do curso de Serviço Social da Universidade Federal


de Mato Grosso (UFMT), no ano de 2020, foi atravessada por um contexto
completamente adverso, rebatendo duramente na profissão, nas políticas sociais e na
educação pública como um todo. O mundo estava afundado nas consequências visíveis
e inimagináveis da pandemia de Covid-19, cujo desastroso saldo ainda não é possível de
mensurar.
A pandemia não é fato isolado, no Brasil os escândalos e medidas do Governo
Bolsonaro já escancarava nossa decadência política numa crise econômica, social e

174 A frase entre aspas foi extraída do poema Mundo Grande, de Carlos Drummond de Andrade.
175 Assistente Social; Mestre em Educação pela UFMT; Doutor em Serviço Social pela UFRJ; Docente no
Departamento de Serviço Social e no Programa de Pós-Graduação em Política Social da UFMT. Eixo
Temático: Ofensiva ultraconservadora e resistências: Formação e Trabalho profissional. E-mail:
josileyrafael@yahoo.com.br

486
institucional sem precedentes. Tais acontecimentos não podem ser escamoteados dos
registros e memórias do cinquentenário da UFMT e do curso de Serviço Social, afinal, o
curso e toda a Universidade são gestados no contexto da Ditadura Militar,
especificamente no contexto social, econômico e político dos anos 1970, sob as marcas
do Ato Institucional (AI) número 5. Vejamos, se o nascimento está marcado pelo sangue
dos anos de chumbo, o cinquentenário ironicamente também recebe as digitais do
autoritarismo e truculência dos tempos do chamado bolsonarismo.
A pesquisa realizada buscou suprir a carência de sistematização dos dados
históricos que marcam essa trajetória, com a complexa tarefa de transcender a uma mera
análise endógena do referido curso e sua localidade geográfica, para somar ao que Netto
(2016) defende ao provocar sobre a necessidade de “uma história nova do Serviço Social
no Brasil”, sem capitulações, e que, extrapole os “estudos históricos
localizados/particulares”.A pesquisa documental e bibliográfica aqui apresentada, expõe
os dados relacionados as características e especificidades dos projetos pedagógicos que
orientaram a formação em Serviço Social no primeiro e único curso público e gratuito do
Estado de Mato Grosso.

2- SERVIÇO SOCIAL NA UFMT E OS PROJETOS DE FORMAÇÃO: precedentes


históricos e transições curriculares

A UFMT foi criada em 1970, quando a capital do estado, a cidade de Cuiabá, já


datava 250 anos do seu surgimento. A junção da Faculdade de Direito com o Instituto de
Ciências e Letras de Cuiabá se constitui como acontecimento determinante para o
surgimento da primeira Universidade de Mato Grosso. Criado no compasso dessa junção,
através da Resolução nº 18 de 09/03/1970, o curso de Serviço Social apresentou, em sua
primeira estrutura curricular, um leque de disciplinas que comprovaram seu alinhamento
com o movimento que o Serviço Social expressava nacionalmente, ou seja, uma
estrutura afinada com o que Netto (2005) denomina como “perspectiva modernizadora”.
Em linhas gerais, o curso surgiu a partir das necessidades sociais de Mato Grosso,
reflexo de um processo acelerado de urbanização da capital, a partir da segunda metade
do século XX. Dado a própria estrutura curricular, entendemos que as respostas
buscadas e apresentadas para as necessidades demandadas giravam em torno da
coerção estatal, sob a égide do coronelismo, típico da formação política do estado.
Cabe localizar que o curso de Serviço Social da UFMT surge não só no lapso
histórico de vigência da autocracia burguesa, mas também no período dos

487
desdobramentos do “Movimento de Reconceituação”, que teve seu ponto de partida no I
Seminário Regional Latino-Americano de Serviço Social, realizado na capital gaúcha, em
maio de 1965. A questão central da reconceituação estava atrelada “a funcionalidade
profissional na superação do subdesenvolvimento”, colocando em xeque o Serviço Social
“tradicional”. No Brasil, o caldo das problematizações culminou na complexa “renovação
do Serviço Social”, definida por Netto (2005, p. 131) como o rearranjo das tradições da
profissão por meio de investimento nas tendências do pensamento social
contemporâneo, “como instituição de natureza profissional dotada de legitimação prática,
através de respostas a demandas sociais e da sua sistematização, e de validação
teórica, mediante a remissão às teorias e disciplinas sociais”.
A pesquisa de Medeiros (1984) sobre a criação do curso de Serviço Social na
UFMT, apresenta o processo de urbanização e desenvolvimento de Cuiabá articulado
com as relações sociais dominantes que marcam a transição dos anos 1960 para 1970
em Mato Grosso. Para compreensão do processo histórico de criação e desenvolvimento
do curso de Serviço Social na UFMT, soma-se a esse estudo, a pesquisa realizada por
Santos (1994), que analisou o processo de revisão curricular que se desencadeou
durante os anos 1980 no curso de Serviço Social da UFMT. Revisão que foi impulsionada
pelo debate nacional capitaneado pela então Associação Brasileira de Ensino de Serviço
Social (ABESS), em torno da elaboração do novo currículo para formação em Serviço
Social, que culminou no emblemático Currículo Mínimo de 1982. Recentemente, a
pesquisa realizada por Rafael (2020), contribuiu com a sistematização histórica dos 50
anos de curso de Serviço Social, concomitantemente comemorado com o cinquentenário
da UFMT.
Ao socializar os dados da pesquisa, Rafael (2020) apresenta um quadro
documental dos 50 anos do Departamento de Serviço Social da UFMT, sustentado pelos
projetos que orientaram o processo de formação, ou seja, os projetos pedagógicos que
marcaram a direção social e política no cinquentenário do curso. Nesse percurso
identificamos:

Quadro A – Projetos Pedagógicos

DOCUMENTO VIGÊNCIA CARGA


HORÁRIA
Estrutura Curricular do Serviço Social 1970 a 1985 2980
Projeto de Formação Profissional do Assistente Social 1985 a 1997 3300
na UFMT (PFP-1985)
Projeto Político Pedagógico (PPP-1997) 1997 a 2007 3090

488
Projeto Político Pedagógico do Curso de Serviço Social 2007 a 2010 3705
(PPP-2007)
Projeto Pedagógico do Curso de Serviço Social (PPC- 2011 – vigente 3204
2010)
Fonte: Rafael (2020).

Identificamos que o curso não foi criado e implementado através das orientações
de um Projeto de Formação, mas sim de uma Estrutura Curricular, que foi revista
pontualmente em alguns momentos de sua execução. Essa Estrutura, sustentava-se na
tríade metodológica do Serviço Social de Caso, Grupo e Comunidade, distribuídas em 9
(nove) disciplinas, sendo 3 (três) unidades/semestres para cada. Esse currículo teve
como referência as Estruturas Curriculares das Escolas do Rio de Janeiro na época,
especificamente os cursos sediados hoje na Universidade Federal Fluminense (UFF-
Niterói), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). As
professoras que atuaram na criação do curso em Cuiabá entraram em contato com a
então Associação Brasileira de Ensino em Serviço Social (ABESS) e foram convidadas
pela presidente, Maria Amália Arrozo, a participarem de um encontro sobre o currículo
mínimo do Serviço Social, promovido pela entidade na Faculdade Fluminense de Serviço
Social (MEDEIROS, 1984, p.57).
Apesar da condição periférica de Cuiabá, a criação e desenvolvimento do curso
de Serviço Social na UFMT se deu de maneira afinada com as discussões que se
processavam nas entidades da profissão.
As inquietações do corpo docente na época culminaram na revisão da grade
curricular em 1972, tomando como maior referência o “Currículo Pleno da PUC-RJ, por
se considerar o mais completo” (MEDEIROS, 1984, p.73). Nessa reformulação não foi
alterado o núcleo duro da proposta de 1970, “a reformulação curricular se fez,
primordialmente, para atender às exigências do sistema de crédito”. A forte marca
psicologizante continuava imperando na nova grade. Em 1974 o currículo de 1970 passa
por outra readequação, com objetivo de atender a política nacional de regionalização das
Universidades, o Departamento de Serviço Social da UFMT define a necessidade de
formação de um “assistente social amazônico”, na direção do perfil definido pela UFMT
enquanto Universidade da Selva (UNISELVA).
A virada dos anos 1970 para 1980 foi marcada pela abertura política, nesse
processo temos a possibilidade de revisão do currículo de formação profissional,
realizado pela ABESS, com destaque para as Convenções Nacionais. O Currículo
Mínimo foi aprovado em 1982 e sancionado pelo então Conselho Federal de Educação.

489
Em Mato Grosso, as inquietações do corpo docente da UFMT com o seu currículo
se espraiavam para os cursos de formação de supervisão de estágio, nas ações de
extensão e nas consultorias que eram buscadas junto aos profissionais e intelectuais dos
grandes centros. Nesse período, docentes afastados/as para cursar o Mestrado retornam
para o Departamento de Serviço Social e trazem consigo a experiência acumulada, já
dispondo de material bibliográfico em contraposição ao Serviço Social “tradicional”. A
soma desses elementos culminou na elaboração e aprovação do “Projeto de Formação
Profissional do Assistente Social na UFMT”, de 1985 (PFP-1985). O percurso de
elaboração e implantação desse Projeto, foram analisados por Santos (1994, p. 68), que
avalia existir “um certo descompasso entre as questões que permeavam as discussões
da categoria, a nível nacional, e as questões que moviam os docentes do curso de
Serviço Social da UFMT”.
Santos (1994, p.77) apresenta que o processo de revisão curricular na UFMT se
processou alinhada com as orientações da ABESS. Criou-se uma “comissão de currículo”
composta por professores/as e alunos/as que posteriormente se desdobrou em outras
duas subcomissões, uma que elaborou o “Ante-Projeto de Formação Profissional do
Curso de Serviço Social da UFMT”, a outra que produziu o documento “Estruturação da
Prática Curricular – Proposta para o Ante-Projeto do Novo Currículo Pleno do Curso de
Serviço Social da UFMT”. A elaboração do Projeto de Formação foi marcada por
inúmeras reuniões, debates e contribuições de inúmeras assessoras, nomes como
NobucoKameyama, Alba Maria Pinho de Carvalho, Marilda Iamamoto, Carmelita Yazbek,
Rosângela Batistoni, dentre tantas outras.
O PFP-1985 eliminou da estrutura curricular a tríade caso, grupo e comunidade,
após 15 anos de vigência na UFMT. Assim, o diferencial do PFP-1985 se expressava na
centralidade das disciplinas: História do Serviço Social; Teoria do Serviço Social I, II, III e
IV; Metodologia do Serviço Social I, II, III e IV. Com enfoque no neotomismo, positivismo,
fenomenologia e centralidade no marxismo.
O PFP-1985 adentrou a década de 1990 levando consigo velhas e renovadas
inquietações e contradições em relação ao processo de formação na UFMT. A
participação de quadros do corpo docente nas entidades representativas da categoria,
período de transição da nomenclatura ABESS para ABEPSS - Associação Brasileira de
Ensino e Pesquisa em Serviço Social, a renovação e qualificação do corpo docente, o
estreitamento da profissão com os clássicos da tradição marxista, potencializaram o
reconhecimento da necessidade de reformulação do PFP-1985. Esse exercício é
cumprido parcialmente, pois não identificamos no PPP-1997 um esboço fidedigno aos

490
apontamentos da ABEPSS, ou seja, aos princípios e objetivos previstos nas Diretrizes
Curriculares (DC) de 1996.
As Diretrizes Curriculares de 1996, se constituem na unidade entre os núcleos de
fundamentação da formação, distribuídos assim: Núcleo de Fundamentos Teórico-
Metodológico da Vida Social; Núcleo dos Fundamentos da Formação Sócio-histórica da
Sociedade brasileira; Núcleo dos Fundamentos do Trabalho Profissional. Temos então,
no Código de Ética de 1993 e nas DC da ABEPSS, juntamente com a Lei nº 8.662/93, de
Regulamentação da profissão, os grandes alicerces do que denominamos como Projeto
Ético-Político Profissional (PEPP).
A virada para o século XXI foi marcada pelo adensamento do debate nacional e
local em torno da implementação das DC, que em 2002 foi aprovada pelo Conselho
Nacional de Educação, com substancial esvaziamento do conteúdo proposto pela
ABEPSS em 1996. Na UFMT, algumas propostas foram esboçadas propondo a
reformulação do PPP-1997, porém, nenhuma tentativa culminou na revisão geral, o que
se processou foram alterações pontuais e adaptações que tentavam contemplar alguma
especificidade das DC.
Somente em 2007, após muitas reuniões, debates, assembleias, inúmeras
revisões, tramitações e apreciações em várias instâncias, é aprovado o PPP-2007,
atendendo integralmente as DC da ABEPSS.

[...] esse novo projeto tem como desafio abrir trincheiras numa guerra do capital
contra o trabalho, do Estado contra a sociedade, fortalecendo dessa maneira a
direção social que vimos construindo desde os anos 80 e está impressa no nosso
projeto ético-político: formar profissionais em consonância com a realidade
social, sem perder de vistas que somente em condições objetivas pode-se mudar
o rumo da história, mas que são sujeitos da história todos os homens e mulheres
que desejam uma nova ordem social mais humana, mais justa e mais igualitária.
Por conseguinte, com garantias de democracia, cidadania e direitos sociais
(UFMT, 2007, p.7).

A implementação do PPP-2007 ocorreu num Departamento renovado e


qualificado, com professores/as egressos/as de doutorados em Serviço Social e outras
áreas, nos programas de pós-graduação mais conceituados do Brasil. É no cenário
político da conciliação de classes gerida pelo governo do PT, que pela primeira vez as
dissociações entre história, teoria e metodologia estavam eliminadas na concepção e na
estrutura curricular do curso de Serviço Social da UFMT, promovido pela adesão ao
formato das disciplinas supostamente agregadoras: Fundamentos Históricos e Teórico-
Metodológico (FHTM) do Serviço Social I, II e III. A implementação dos núcleos de
fundamentação possibilitou uma melhor compreensão sobre o significado e

491
complementariedade das disciplinas que se distribuem entre eles. A centralidade do
trabalho e da questão social se manifestou não somente na forma de disciplinas e
ementas, mas na transversalidade que esses conceitos/categorias passaram a ocupar no
PPP-2007.
A reformulação também promoveu a implantação de uma Política de Pesquisa e
Extensão, assim como o Regulamento de Estágio, que dentre outros elementos definia
as atribuições do/a estagiário/a, da supervisão acadêmica e supervisão de campo. O
Departamento optou pela dissolução dos núcleos temáticos de pesquisas que haviam
sido criados na década de 1990, e definiu duas linhas de pesquisas, em consonância
com o projeto de criação do Programa de Pós-Graduação em Política Social (PPGPS).
Em 2010 o PPP-2007 foi revisado e aprovado (implementado em 2011), com
objetivo de reparar as lacunas em relação à carga horária, que extrapolava os 100 dias
letivos estabelecidos pelo MEC, dado a carga horária de 75 horas das disciplinas. Com
isso, foi elaborado o PPC-2010 que propõe a supressão e acréscimos de algumas
disciplinas, reformulação de ementas e atualização das bibliografias. Essa reformulação
suprimiu um total de 501 horas, na comparação entre o PPC-2010 e o PPP-2007, parte
da carga horária eliminada era das disciplinas de Seminário de Práticas do Estágio
Supervisionado, espaço que era destinado para a realização da supervisão acadêmica.
Temos nesse ponto, um retrocesso político-pedagógico que vai na contramão das DC e
da Política Nacional de Estágio (PNE) elaborada e aprovada em 2009 pela ABEPSS.
O PPC-2010 esteve sob vigência até o ingresso dos/as estudantes do ano de
2022, seu processo de implementação articulado ao seu constante monitoramento
possibilitou ao corpo docente, Colegiado de Curso e ao Núcleo Docente Estruturante
(NDE), acumularem durante toda a década o conjunto de elementos que exigem revisão
e/ou substituição, no sentido de garantir uma formação radicalmente crítica, de qualidade
e antenada com o movimento da história e particularmente da profissão. Assim, o
Departamento de Serviço Social da UFMT reitera seu compromisso com o Projeto Ético-
Político Profissional hegemônico, tendo como suporte a ontologia do ser social.

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao nos reportarmos e analisarmos o denso arcabouço histórico, documental e


humano do Departamento de Serviço Social abrimos uma vasta possibilidade de estudos,
pesquisas e demandas para implementação de projetos de extensão, que venham somar
com as lacunas que reconhecemos existir em nossos esforços de pesquisa. O

492
Departamento de Serviço Social da UFMT possui um vasto acervo documental, pouco
explorado no âmbito de pesquisas que objetivam apresentar dados sobre o processo
histórico, que carecem de digitalização e manipulação cuidadosa, no sentido de
construirmos um banco de dados que sirva para os/as pesquisadores/as do quadro
docente e para todos/as aqueles virão.
Mesmo reconhecendo as lacunas e necessidades de maiores investimentos, não
nos esquivamos em reconhecer a riqueza que identificamos e analisamos nesse recorte
de pesquisa, ainda que a particularidade requisite mediações para atingirmos o que nos
propusemos a construir, rumo a uma “história nova do Serviço Social”. O acesso e
análise à/da documentação apresentada no presente artigo, nos possibilitou
identificarmos como a profissão se movimentou na especificidade do espaço formativo
mato-grossense, os fundamentos que subsidiaram os diferentes momentos, mostram
como o Departamento de Serviço Social também expressam as diferentes perspectivas
que atravessaram a reconceituação do Serviço Social brasileiro, quais seja, perspectiva
modernizadora, perspectiva de reatualização conservadora e perspectiva de intenção de
ruptura.
Em junho de 2022, o Departamento de Serviço Social aprovou o Projeto
Pedagógico de Curso, com intuito de implementá-lo a partir do primeiro período letivo de
2023. O mesmo, deverá ser apreciado e aprovado pelas instâncias superiores, dentre
elas a equipe revisora e técnica da Pró-Reitoria de Graduação (PROEG), que aponta
sugestões e as correções a serem incorporadas. Nesse movimento, caberá ao
Departamento de Serviço Social, criar estratégias para o processo de implementação da
curricularização da extensão, tarefa imposta pelo MEC para todos os cursos de
graduação. A implementação da extensão não pode ser tratada como mero
fortalecimento da extensão, mas como ameaça para as questões de gerenciamento de
encargos, no sentido de desabonar necessidade de contratação de corpo docente e
consequentemente reduzir as vagas nos Departamentos e Faculdades.
Inúmeros são os desafios, assim como é potente nossa resistência ao tentarmos
não ceder espaço para o retrocesso e para o conservadorismo, que parece avançar na
velocidade da luz. A riqueza dessa história, analisada aqui pelas brechas possíveis e
impostas pelas delimitações normativas, é compreendida como a soma de esforços de
várias gerações, de diferentes posições, raças, orientações sexuais e setores da classe
trabalhadora, que teceram arduamente essa trajetória. Ainda que, as discordâncias no
âmbito dos fundamentos teóricos e posições políticas existam e precisam ser apontadas,
entendemos que somente conhecendo de forma aprofundada o que rechaçamos no atual

493
estágio da profissão e da sociabilidade burguesa, é que poderemos criar anticorpos
contra os ventos do Serviço Social “tradicional” e conservador que ronda nossas vidas e
atravessa igualmente as diferentes gerações, sujeitos individuais e coletivos que
construíram os 50 anos de curso de Serviço Social na Universidade Federal de Mato
Grosso.

4- REFERÊNCIAS

ABEPSS, Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social. DIRETRIZES


GERAIS PARA O CURSO DE SERVIÇO SOCIAL (Com base no Currículo Mínimo
aprovado em Assembleia Geral Extraordinária de 8 de novembro de 1996.). Rio de
Janeiro: ABEPSS, 1996.

ABESS/CEDEPSS. Caderno ABESS. N. 07. Caderno Especial: Formação


Profissional: trajetórias e desafios. Cortez: São Paulo, 1997.

MEDEIROS, Maria Socorro Lopes. A História De Ensino Do Serviço Social Em


Cuiabá: De 1970 à 1982. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Departamento de
Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1984.

NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2005.

NETTO, José Paulo. Para uma história nova do Serviço Social no Brasil. In: SILVA, Maria
Liduína de Oliveira. Serviço Social no Brasil: História de resistências e de ruptura
com o conservadorismo. São Paulo: Cortez, 2016.

RAFAEL, JosileyCarrijo. Frestas de um relicário: 50 anos do Serviço Social da UFMT e


seu encontro com as Diretrizes Curriculares da ABEPSS. In: Revista Temporalis.
Número 40. Volume 20. Brasília: ABEPSS, 2020. Disponível em:
https://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/30944

SANTOS, Tânia Maria Santana. O processo de revisão curricular do curso de


Serviço Social da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) – Década de 1980.
Dissertação de Mestrado. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em História e
Filosofia da Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1994.

UFMT, Universidade Federal de Mato Grosso. Projeto de Formação Profissional do


Assistente Social na UFMT. Departamento de Serviço Social. Cuiabá: UFMT, 1985.

UFMT, Universidade Federal de Mato Grosso. Projeto Político-Pedagógico do Curso


de Serviço Social. Departamento de Serviço Social. Cuiabá: UFMT, 2007.

UFMT, Universidade Federal de Mato Grosso. Projeto Pedagógico de Curso de


Serviço Social. Departamento de Serviço Social. Cuiabá: UFMT, 2010.

494
VII SEMINÁRIO INTERNACIONAL
Lutas Sociais, Ofensiva Ultraneoliberal e Serviço Social:
resistências e articulações internacionais

EIXO TEMÁTICO 6
Internacionalização do Serviço Social:
as articulações contemporâneas
na formação e trabalho profissional
SERVIÇO SOCIAL E PANDEMIA DA COVID-19: contribuições de pesquisa internacional

Marina Monteiro de Castro e Castro176


Sónia Mafalda Pereira Ribeiro177

Resumo: O presente artigo trata de relato de articulação de


pesquisa internacional referente ao trabalho dos
supervisores de campo de estágio durante a pandemia da
Covid-19 no Brasil e em Portugal. Apresenta a interlocução
entre duas Instituições de ensino que ofertam o Curso de
Serviço Social para o desenvolvimento da pesquisa e os
seus resultados preliminares que apontam que, apesar das
diferenças entre as formações sócio-históricas dos países, a
pandemia interferiu diretamente no trabalho profissional.

Palavras-Chave: Pandemia, estágio, pesquisa,


internacionalização

Abstract: This article deals with an international research


articulation report regarding the work of internship field
supervisors during the Covid-19 pandemic in Brazil and
Portugal. It presents the dialogue between two educational
institutions that offer the Social Work Course for the
development of research and its preliminary results that point
out that, despite the differences between the socio-historical
formations of the countries, the pandemic directly interfered
with professional work.

Keywords: Pandemic, internship, research,


internationalization

1- INTRODUÇÃO

A pandemia da Covid-19, iniciada em 2020, atingiu severamente diversos países


trazendo impactos à organização das políticas sociais e ao mundo do trabalho. Nesse
processo, o Serviço Social enquanto profissão inserida na divisão sócio-técnica do
trabalho, também sofreu conseqüências no que tange a reorganização da sua atuação,

176 Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora da Faculdade de
Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (graduação e pós-graduação). Email.
marinamcastro@gmail.com. Eixo: Internacionalização do Serviço Social: as articulações contemporâneas na
formação e trabalho profissional
177 Doutora em Serviço Social pela Universidade Católica Portuguesa e mestre em Família e Sistemas

Sociais, pelo Instituto Superior Miguel Torga. Pós-Graduada em Proteção de Menores e em Economia Social
pela Universidade de Coimbra. Licenciada em Serviço Social, pelo Instituto Superior Miguel Torga.
Professora convidada na Licenciatura de Serviço Social da Universidade Lusófona do Porto. Coordenadora
Geral na Santa Casa da Misericórdia de Vagos. Email: p4118@mso365.ulp.pt

496
demandas profissionais e impactos nos sujeitos profissionais enquanto trabalhadores,
muitas vezes, na linha de frente do combate à pandemia. Dentre esses profissionais,
encontram-se os/as assistentes sociais supervisores/orientadores de campo de estágio.
Nesse sentido, avançando nas interlocuções de pesquisa internacional da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) com a Universidade Lusófona do Porto
(ULP), apreendemos como fundamental analisar os impactos da pandemia nos
assistentes sociais supervisores de estágio das duas Instituições, realizando um estudo
comparativo178, na medida em que há particularidades das formações sócio-históricas
dos dois países que interferem diretamente na conformação do trabalho profissional. Os
Cursos de Serviço Social das duas Instituições vem nos últimos anos desenvolvendo
articulações e colaborações e a proposição desta pesquisa é fruto desse processo que
vem sendo construído.
Ressaltamos que essa interlocução parte de uma perspectiva de que

A internacionalização não pode ser um fim em si mesmo, e a recuperação das


relações estabelecidas entre o Serviço Social brasileiro e português revela uma
rica e profícua relação internacional no campo da formação e da qualificação. O
que não significou e nem significa homogeneidade de pensamentos e
perspectivas teóricas, mas a construção de projetos comuns que, por sua vez,
expressam a particularidade da profissão em cada realidade, a possibilidade de
diálogos (MARTINS, CARRARA, 2014, p.223).

Neste artigo, sinalizamos o estágio como componente essencial na formação de


assistentes sociais e, por isso, entender a atuação no contexto da pandemia e as
consequências desse processo se tornam essencial para qualificar a formação
profissional nos dois países.
Assim, apresentamos a experiência de construção desse projeto de pesquisa no
âmbito das estratégias de internacionalização da profissão e indicamos os resultados
preliminares do estudo.

2- DESENVOLVIMENTO

A pandemia da Covid-19 assolou o mundo em 2020, momento em que a


Organização Mundial da Saúde (OMS), declarou a emergência de saúde pública
internacional (OMS, 2020).
O alto grau de transmissão do vírus e a mundialização capitalista, interferiram
diretamente na velocidade em que os diversos países foram acometidos e tiveram que se

178 A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de ética da UFJF sob o número 48388821.4.0000.5147.

497
reorganizar para contenção do vírus. Como nos afirma Davis (2020, p.12), a pandemia
também nos demonstrou que “a globalização capitalista parece agora biologicamente
insustentável na ausência de uma verdadeira infra-estrutura de saúde pública
internacional”.
Harvey (2020) logo no início da pandemia, já nos sinalizava que os efeitos
econômicos da pandemia seriam visíveis, acirrando os processos internos de cada país.

O efeito a longo prazo pode ser o de encurtar ou diversificar as cadeias de


abastecimento, ao mesmo tempo em que se avança para formas de produção
menos intensivas em mão-de-obra (com enormes implicações para o emprego) e
uma maior dependência de sistemas de produção artificial-inteligentes. A ruptura
das cadeias produtivas implica demissões ou corte de trabalhadores, o que
diminui a procura final, enquanto a procura de matérias-primas diminui o
consumo produtivo. Estes impactos sobre a procura teriam, por si só, produzido
pelo menos uma ligeira recessão (HARVEY, 2020, p.19).

Os países que tratamos nesse artigo, Brasil e Portugal, possuem formações


sócio-históricas diferenciadas, sendo o primeiro um país periférico, de capitalismo
dependente, situado na América Latina; o segundo é um país situado na Europa com
desenvolvimento sócio-econômico considerável.
Vimos, assim, em âmbito mundial, processos diferenciados do desenvolvimento e
controle da pandemia. No segundo semestre de 2020:

enquanto a pandemia mostrava sinais de controle nos países do Norte, a


situação se mostra cada vez mais preocupante na América Latina e África. (...)
Associadas, as carências dos sistemas de saúde e as enormes desigualdades
socioeconômicas e ambientais deixam transparecer um quadro de incertezas e
prognósticos sombrios para tais regiões, que têm contado ainda com apoios e
intervenções locais, somando orientações globais da OMS e regionais da OPAS
e da WHO-AFRO (BUSS et al, p.55-56, 2020).

O Brasil possui uma população de mais de 214 milhões de habitantes (IBGE,


2022b) e uma extensão territorial de 8.510.345,540 km² (IBGE, 2022a); e Portugal, por
sua vez, é um país com 10 milhões de habitantes e com extensão territorial de 92.212
km² (PORDATA, 2021).
As diferenças de conformação dos países como também das políticas de resposta
à pandemia definidas por cada país, interferiram também nos dados referentes à
pandemia. No Brasil, temos em julho de 2022, a contabilização de quase 33 milhões de
contaminados e 700 mil mortes pela covid-19. Em Portugal os dados atingem 5 milhões
de contaminações e 24.000 mortes.
Os dois países tiveram neste contexto da pandemia alteração na realidade social
da população. No entanto, o Brasil teve o seu quadro extremamente agravado, tendo em
2022 11,9 milhões de desempregados e com quase 28 milhões de pessoas abaixo da

498
linha da pobreza (IBGE, 20022 c) e em Portugal, no primeiro trimestre de 2022, o país
conta com 308 mil pessoas desempregadas (INE, 2022).
O trabalho do assistente social nos dois países possui particularidades postas a
partir da trajetória da profissão, da sua institucionalização e de articulação de entidades
organizativas (MARTINS; CARRRARA, 2014; CARVALHO; PINTO, 2015; SANTOS;
MARTINS, 2016). Porém, a organização da supervisão de estágio se aproxima na
medida em que o estágio é componente estratégico nos currículos formativos do Serviço
Social, sendo os/as estudantes acompanhados por um supervisor/orientador assistente
social vinculado à espaços sócio-ocupacionais e pelo supervisor/orientador acadêmico179.
Conhecer a realidade do trabalho profissional é fundamental, na medida em que
um dos desafios nos componentes do estágio

é a dimensão teórico-metodológica e pedagógica que orienta o diálogo entre os


sujeitos envolvidos diretamente no processo de supervisão de estágio (os
acadêmicos, os supervisores assistentes sociais dos campos de estágio e os
supervisores professores) para avançarem em direção a propostas substantivas
relacionadas ao projeto de qualificação teórica e técnico-política profissional
(LEWGOY, 2013, p.77).

Dessa forma, no contexto da pandemia e avançando na articulação entre as


Instituições de ensino, entendemos como uma contribuição importante o desenvolvimento
de uma pesquisa comparativa identificando os principais pontos de aproximação e
afastamento dos impactos da pandemia da COVID-19 na realidade de trabalho dos
assistentes sociais supervisores de estágio em serviço social da UFJF e ULP.
Assim, construímos uma proposta de pesquisa qualitativa, uma vez que este tipo
de abordagem partilha da premissa epistêmica de que o conhecimento é produzido numa
interação dinâmica entre o sujeito e objeto, ocorrendo um vínculo inseparável entre o
mundo objetivo e (inter) subjetivo dos sujeitos, e envolve a observação de situações reais
e cotidianas, o trabalho na construção não estruturada dos dados, e a busca pelo
significado de fatos, relações, práticas e fenômenos sociais de acordo com a percepção
dos sujeitos pesquisados (DESLANDES & ASSIS, 2002).
Como instrumento de coleta de dados, realizamos entrevistas com assistentes
sociais supervisores de estágio vinculados aos Cursos de Serviço Social da Universidade
Federal de Juiz de Fora e da Universidade Lusófona do Porto, no período de novembro
de 2021 a fevereiro de 2022.
As entrevistas foram desenvolvidas, através de um roteiro semi-estruturado,
contendo questões que abarquem a organização do trabalho, demandas e requisições e

179 Para maior conhecimento sobre a formação profissional nos países, ver em: SANTOS E MARTINS, 2016.

499
limites e possibilidades do trabalho profissional no contexto da pandemia; e seus
impactos na formação profissional em Serviço Social.
O número de profissionais entrevistados foi de trinta e sete, garantindo a
proporcionalidade entre as duas Instituições e os campos de estágio em vigência no
momento da coleta de dados, uma vez que a realidade da pandemia impactou no
retomada das atividades de estágio. Nas duas Instituições, o estágio sofreu com a
paralisação das atividades, reorganização das atividades de trabalho do assistente social
e incorporação de atividades na modalidade remota.
O roteiro de entrevista abarcou questões como a modalidade de trabalho
desenvolvida durante a pandemia: remota, híbrida ou presencial; as consequências que a
pandemia trouxe ao seu trabalho e as principais dificuldades na intervenção profissional
durante a pandemia, além de questões que envolvem as consequências deste processo
para a população dos dois países. Também demos ênfase às alterações vivenciadas
pelas profissões na relação vida pessoal/profissional.
Partimos do indicativo de que, apesar dos processos históricos diferenciados
vivenciados por Brasil e Portugal, a pandemia tem impactos similares nas condições de
saúde e trabalho das assistentes sociais supervisoras de estágio; além dos/das
trabalhadores conviverem permanentemente como medo de contágio do vírus.
Vimos ainda que as profissionais, prioritariamente mulheres, conviveram nesse
período com alta carga de stress e de dificuldades de conciliação da vida pessoal com a
vida profissional, especialmente àquelas que exercem atividades de cuidado junto às
famílias.
Destacamos que a pesquisa ainda está em desenvolvimento e com a análise mais
apurada dos dados, teremos um panorama importante dos impactos da pandemia nos
espaços sócio-ocupacionais em que os supervisores de estágio das duas Instituições de
ensino encontram-se inseridos. No entanto, a coleta de dados já nos afirma que

Tanto a propagação do vírus responsável por esta pandemia como as medidas


desigualmente eficazes tomadas pelos Estados para proteger as suas
populações provam, se necessário, que a saúde é, antes de mais nada, um bem
público: que o estado saudável ou mórbido do corpo de cada pessoa depende
em primeiro lugar do estado saudável ou mórbido do corpo social, do qual o
primeiro é dependente ou um simples apêndice, e da capacidade ou não do
referido corpo social se defender, por si ou através das suas instituições
políticas, contra fatores patogênicos, em particular desenvolvendo um sistema de
assistência social eficiente e uma política de saúde pública que proporcione ao
segundo os meios necessários e suficientes (humanos, materiais, financeiros)
(BIRH, 2020, p.27).

500
Ressaltamos que, especialmente, o cenário do Brasil de retrocessos do âmbito
das políticas sociais e de acirramento das expressões da questão social, atingiu
fortemente o trabalho dos assistentes sociais, gerando a preocupação nos profissionais
em construírem estratégias de enfrentamento a esse contexto, especialmente no que
tange ao reforço na articulação da rede de serviços sócio-assistenciais e defesa dos
direitos da população.

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pandemia da covid-19 anunciada em março de 2020 atingiu os diferentes


países a partir da realidade estrutural de cada localidade e do direcionamento dos
Estados em torno do combate à pandemia. Passados mais de dois anos, temos um
cenário de mais de 6 milhões de mortes no mundo e também alterações importantes do
mundo do trabalho, na incorporação tecnológica e nas condições de vida da população
em diversos países, acirradas pelas crises do capital.
A pesquisa apresentada contribuirá para o debate em torno das particularidades
do trabalho do assistente social neste contexto, além de contribuir para o planejamento
das atividades formativas que envolvem o estágio nessa nova conjuntura.
Neste sentido, compreendemos que este trabalho colabora com a produção de
conhecimento no âmbito do Serviço Social internacional, ao possibilitar reflexão sobre a
realidade do exercício profissional, a partir de reflexões acerca do cotidiano de trabalho
no período da pandemia.

4- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIRH, A. França: pela socialização do aparato de saúde. Terra sem Amos: Brasil, 2020,
p.25-30. Disponível em:
https://terrasemamos.files.wordpress.com/2020/03/coronavc3adrus-e-a-luta-de-classes-
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BUSS, P. et al. Pandemia pela Covid-19 e multilateralismo: reflexões a meio do caminho.


Estudos Avançados, 34 (99), p. 45-64, 2020.

CARVALHO, M. I; PINTO, C. Desafios do Serviço Social na atualidade em Portugal.


Serviço Social e Sociedade, n. 121, p. 66-94, jan./mar. 2015 .

501
DAVIS, M. A crise do coronavírus é um monstro alimentado pelo capitalismo. DAVIS,
Mike, et al: Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos: Brasil, 2020, p.5-12.
Disponível em: https://terrasemamos.files.wordpress.com/2020/03/coronavc3adrus-e-a-
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DESLANDES, S. F; ASSIS, S. G. Abordagens quantitativa e qualitativa em saúde: o


diálogo das diferenças. In: MINAYO, M. C (org). Caminhos do pensamento: epistemologia
e método. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002, p. 105-222.

HARVEY, David. Política anticapitalista em tempos de COVID-19. DAVIS, Mike, et al:


Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos: Brasil, 2020, p.13-32. Disponível em:
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_____. Desemprego. IBGE, 2022b. Disponível em:


https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php. acesso em 02 jul 2022.

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https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpgid=ine_main&xpid=INE&xlang=pt, acesso em 04 jul
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articulação entre formação e exercício profissional. Revista Temporalis, n. 25, p. 63-90,
jan./jun. 2013.

MARTINS, A; CARRARA, V. Serviço Social português e brasileiro em diálogo:


internacionalização da formação profissional. EM PAUTA, n. 33, v. 12, p. 205- 227, 2014.

OMS. OMS afirma que COVID-19 é agora caracterizada como pandemia. OMS, 2020.
Disponível em: https://www.paho.org/pt/news/11-3-2020-who-characterizes-covid-19-
pandemic. Acesso em 02 jul 2022.

502
PORDATA. Estatísticas sobre Portugal e Europa. Disponível em:
https://www.pordata.pt/Portugal. acesso em 02 jul 2022.

SANTOS, C. M; MARTINS, A. A formação do assistente social em Portugal: tendências


críticas em questão. Revista Katálysis., Florianópolis, v. 19, n. 3, p. 324-332, out./dez.
2016.

503
IRRACIONALISMO, NEOCONSERVADORISMO E INCIDÊNCIAS NO SERVIÇO
SOCIAL: notas para o debate

Jhony de Oliveira Zigato180


Maria Angelina B. de Carvalho de A. Camargo181
Mônica Paulino de Lanes182

RESUMO:

Este artigo reflete sobre o avanço do irracionalismo e do


neoconservadorismo no Brasil e de suas incidências no
Serviço Social. Trata-se de um estudo bibliográfico que
explora o irracionalismo e o neoconservadorismo a partir do
processo da decadência ideológica. Demonstra que o
enfrentamento dessas tendências no seio profissional
precisa ser colocado no campo político, pois exige
organização das nossas entidades e ampla articulação com
todas as forças progressistas.

Palavras-chave: Irracionalismo. Neoconservadorismo.


Serviço Social. Resistências Profissionais.

ABSTRACT:

This article aims to reflect on the advance of irrationalism


and neoconservatism in Brazil and their impact on Social
Service. It is a bibliographic study that explores irrationalism
and neoconservatism from the process of ideological decay.
It demonstrates that the confrontation of these tendencies in
the professional field needs to be placed in the political field,
as it requires organization of our entities and wide
articulation with all progressive forces.
Keywords: Irrationalism. Neoconservatism. Social Service.
Professional Resistances.

180 Professor no Departamento de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Doutorando em Serviço Social pela UFJF-MG, Mestre em Serviço Social
pela UFJF. E-mail: jhony.zigato@ufvjm.edu.br
181 Professora no Departamento de Serviço Social, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Doutora em Serviço Social pela PUC-SP. E-mail: mariaangelinacarvalho@uol.com.br


182 Professora no Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Doutora em Serviço Social pela UFRJ. E-mail: monicapaulinodelanes@gmail.com

504
1. INTRODUÇÃO

Partimos do pressuposto que existe uma ofensiva ultraconservadora na dinâmica


da vida social com incidências no Serviço Social. Essas incidências não são novidades,
considerando as determinações próprias da sociedade capitalista e a relação histórica da
profissão com o conservadorismo (Cf. Iamamoto, 2013; Netto, 2005; Escorsim Netto,
2011). Para a reprodução das relações sociais burguesas é vital a produção de
comportamentos coisificados. É nesse campo que se revela a função ideológica de um
conjunto de ideias e valores incorporados na cotidianidade, enquanto modo de pensar e
valorar a realidade na dinâmica da luta de classes, cuja finalidade é a crescente
psicologização das relações sociais (Netto, 2005) para naturalizar a relação capital-
trabalho.

Isto significa que projetar na dinâmica da vida social uma moral conservadora que
prolifere normas e valores de negação da genericidade humana e o “espírito
revolucionário” (Marcuse, 1978) são estratégias fundamentais para assegurar o modo
capitalista de se comportar (Barroco, 2008), que expressa a lógica mercantil que organiza
a sociabilidade baseada na valorização da posse privada de bens materiais e na
transformação do indivíduo em objeto, em que a competitividade e o individualismo são
valores cultuados para subordinar o homem ao reino das reificações e garantir a
manutenção da propriedade privada. É nesse ambiente que a ideologia, diz Lukács
(2018), deve ser compreendia como expressão de uma elaboração intelectual da
realidade e necessária à administração dos conflitos do ser social, desempenhando uma
função social central nas sociedades de classes. Disseminada na cotidianidade via um
sistema de representações, normas e valores limita a liberdade como autonomia, o
conhecimento crítico, nega e viola os direitos humanos, impõe o conformismo, o
irracionalismo, o moralismo, aprofunda a alienação e a banalização da vida. É nesse
universo que o Serviço Social brasileiro é desafiado, considerando os avanços obtidos
pela profissão nas últimas décadas e objetivado sob a designação de projeto ético-
político. A sua gênese e consolidação no seio profissional estão assentadas nas bases
sociopolíticos que derrotou a ditadura militar no país, tendo suas bases legitimadoras
ampliadas nos processos de mobilização, luta e resistência aos processos sociais que
marcam a sociedade brasileira a partir dos anos 80. Assinala, também, a consolidação de
uma nova cultura profissional inscrita na razão dialética, com exigências teóricas, práticas
e institucionais ao trabalho e a formação profissional. Processo que se abre com o
aprofundamento da crise capitalista e com a ideologia neoliberal. Na história mais recente

505
esse processo se agudiza, a partir 2016, com o golpe que leva a deportação da
Presidenta Dilma Rousseff e, na sequência, a eleição de Bolsonaro, cujos contornos e
tendências é de ameaça às liberdades democráticas, ataques aos direitos humanos, com
forte apelo a práticas discriminatórias, preconceituosas, pragmáticas.

É nesse âmbito que procuramos refletir sobre as tendências neoconservadoras na


profissão a partir da pesquisa bibliográfica e, assim contribuir com as reflexões nesse
campo de estudo, debate e resistências. O artigo está estruturado em três eixos, a saber:
1) neoconservadorismo e irracionalismo no Brasil; 2) O Serviço Social como profissão da
sociedade capitalista; 3) A resistência como desafio permanente. O texto se encerra com
uma breve conclusão, considerando os elementos abordados.

2- NEOCONSERVADORISMO E IRRACIONALISMO NO BRASIL

Para entendermos o avanço do irracionalismo e conservadorismo no Brasil é


preciso primeiramente situá-los como parte do processo da decadência ideológica,
categoria apresentada por Marx e Engels e interpretada por Lukács (2010), que pode ser
descrita como o período em que os ideólogos burgueses produzem conhecimentos
esvaziados de sua base material, numa explicita evasão da realidade social, com o
objetivo de conservação da ordem do capital. Lukács (2010) demonstra a relação entre
as distorções da ideologia183 e a evolução teórica ideológica da sociedade capitalista,
como processo de amenização nas análises sociais que criticam a ordem burguesa.

A concepção científica da decadência ideológica é uma apreensão imediatista e a-


histórica, e a objetividade social é ignorada. A práxis social, em todas as suas
determinações são apartadas do domínio da racionalidade. Neste sentido, o

183 Partimos do entendimento de que ideologia não é uma interpretação do real, mas é parte do processo em
que a classe dominante, em uma sociedade de classes, utiliza de mecanismos para ocultar, naturalizar,
inverter, justificar o real a seu favor (lembrando que nas formas ideológicas também podem existir uma
dimensão do real) e apresentar como interesse universal os seus interesses particulares. Por isso Marx
afirma que as ideias dominantes são as ideias da classe dominante. Importante ressaltar ainda que
concordamos com Iasi (2007, p. 20-21), quando ele afirma que a “ideologia não pode ser compreendida
apenas como um conjunto de ideias que, pelos mais diferentes meios (meios de comunicação de massas,
escolas, igrejas, etc.), são introduzidas na cabeça dos indivíduos. Isso levaria ao equívoco de conceber uma
ação anti-ideológica como a simples troca de velhas por ‘novas’ ideias. Quando, numa sociedade de classes,
uma delas detém os meios de produção, tende a deter também os meios para universalizar sua visão de
mundo e suas justificativas ideológicas a respeito das relações sociais de produção que garantem sua
dominação econômica [...]”.

506
fragmentário, o microscópio, o transitório, o fatual não são percebidos como objetivação
da reificação da sociedade capitalista “[...] O mediato é suprimido de qualquer
inteligibilidade e instala-se a irrazão. Essas são pistas fundamentais para se chegar ao
desvendamento das origens do irracionalismo contemporâneo” (Evangelista, 2007, pg.
71).

A crise do capital de 2007/2008 recoloca no cenário da sociabilidade burguesa os


elementos da decadência ideológica quando o irracionalismo assume novos contornos
em todo o mundo. Assistimos após esse período uma escalada do conservadorismo e do
ultraconservadorismo184. No Brasil após o Golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016 à
ascensão de um conservadorismo dos anos 1980 que ocultava a sua raiz e seus
conteúdos conservadores. O atual faz questão de ostentar orgulhosamente seu
conservantismo e reacionarismo185, e o seu flerte fascista, expressando todo o seu ódio
por mulheres, negros, membros das comunidades LGBTQIA+, comunidades quilombolas
e indígenas e demais segmentos sociais identificados como minorias.

Importante ressaltar que toda a explicitação (simbólica e física) de ódio acontece


em meio ao processo de destruição dos parcos direitos sociais e trabalhistas que foram
construídos nas últimas décadas. Como ressalta Mota e Rodrigues (2020) as práticas do
núcleo central deste conservadorismo reacionário revelam a ofensividade ideopolítica das
classes dominantes, se colocando como a principal estratégia de enfrentamento da crise
do capital no país, estratégia esta que se expressa através de um programa autoritário e
antipopular que coaduna com os interesses do capital internacional, recuperando os
traços históricos de nossa formação sócio-histórica, em particular da cultura autocrática
(Fernandes, 2006).

3- O SERVIÇO SOCIAL COMO PROFISSÃO DA SOCIEDADE CAPITALISTA

Iamamoto e Carvalho (2014); Netto (2005) partem da compreensão histórica que


o Serviço Social tem a sua gênese fundante na era monopólica clássica do capitalismo,

184 A eleição de Donald Trump em 2016 nos EUA e Boris Johnson na Inglaterra em 2019 são exemplos da
escalada do conservadorismo no mundo. E a eleição de Bolsonaro coroa no Brasil o avanço
ultraconservador.

185Importante lembrar que uma das características do neoconservadorismo no Brasil é sua ligação com os
elementos do fundamentalismo religioso e anticomunismo.

507
assim articula, a profissão, à reprodução das relações sociais, relações em sociedade
que tem substrato material nas relações sociais de produção na sociabilidade capitalista.

Confirma-se como uma profissão inserida na divisão internacional do trabalho com


recortes estruturais incidentes nas questões de gênero, étnico-raciais, geracionais, dentre
outras. O agente profissional torna-se um trabalhador assalariado na inserção do
mercado de trabalho, tendo por espaço mediador de excelência as políticas sociais dos
estados capitalistas e do empresariado. É contratado pelo Estado e/ou empresariado
para atuar junto a classe trabalhadora como “estratégia” de enfrentamento das
expressões da “questão social” pelas frações de classe dominante na busca da coerção e
do consenso (IAMAMOTO, 2013). Partindo dessas assertivas, o exercício profissional é
atravessado pela estrutura de classes, tendendo historicamente a atender as demandas
do capital face ao proletariado, embora não excluindo um dos polos de classes pela
mediação do seu oposto. De acordo com Netto (2005), a emergência do Serviço
Social, a constituição histórica de um mercado de trabalho na era monopólica não exclui
traços de continuidade de uma leitura enviesada, linear, dos intentos das ações
filantrópicas à racionalização da assistência pelo Estado e/ou empresariado. Para o
autor, é o traço de ruptura que garante o “tônus” a uma interpretação correlata da
profissão entre a sociabilidade vigente e o Serviço Social, pois tal sociabilidade,
capitalista, em condições impostas pelo monopolismo estrutura o mercado de trabalho
profissional. Contudo, a tecnificação/profissionalização do Serviço Social não elimina
traços altruístas como a vocação, a devoção, o primado do ser em relação ao saber
devido a forte influência de uma instituição a saber: A Igreja Católica. Embebida, a
profissão, de elementos da doutrina social da Igreja (dignidade da pessoa humana, a
crítica aos excessos do liberalismo e a negação do socialismo, optando pela terceira via,
pelo capitalismo de cunho humanista-cristão), os traços de um passado recente não
foram eliminados com a dimensão profissionalizante que no passar das décadas foram
se espraiando pela profissão.

Um dos elementos basilares a essa compreensão está na sustentação, do Serviço


Social, no março das ciências sociais no esteio do pensamento conservador moderno
que não rompe, não problematiza a questão estrutural contraditória desta sociabilidade a
saber: a apropriação privada da riqueza produzida na contraface do trabalho cada vez
mais social. No discurso da “modernização”, são entrelaçados o discurso do progresso,
do avanço, mantendo traços neotomistas, levando Iamamoto e Carvalho (2014) a

508
afirmarem a realidade vivida e representada pelo agente profissional como uma unidade
contraditória que não se anulam, mesmo se negando em todo o tempo.

O intento de ruptura com o serviço social tradicional, segundo Netto (2005) não
significou a eliminação do lastro conservador da profissão. O que houve, a partir de fins
da década de 1970 em diante é a aproximação e maturação da profissão com a teoria
social de Marx e que ganhou proeminência, hegemonia no seio profissional, convivendo
com elementos da conservação. Soma-se a isto um “descompasso” da vanguarda
profissional, com predominância de ocupação nos espaços de formação, e o grande
contingente profissional nas esferas terminal e de planejamento das políticas sociais que
enfrentam o dilema de que na prática a teoria é outra.

A vertente neoliberal, a crise estrutural do capital, a ideologia do imediato, da


negação da razão, contribui para o fortalecimento da sociabilidade vigente e manutenção
do seu status quo. Nestas duas décadas do novo século, dando ênfase a partir dos anos
2010, assistimos ao acirramento global da crise estrutural capitalista e a as ações de
barbárie que colocam em risco a dimensão “civilizatória” da era contemporânea,
influenciando o Serviço Social e as demais profissões, pois inseridas na dinâmica de
reprodução societal são atingidas e potencializam/refuncionalizam práticas
ultraconservadoras e ideológicas como a defesa da pena de morte, da criminalização dos
movimentos sociais, na esteira contraditória da não legalidade do aborto com viesses
neopentecostais em favor da vida e da dignidade humana, espraiando na formação e no
exercício profissional de assistentes sociais do país.

4- A RESISTÊNCIA COMO DESAFIO PERMANENTE

Desde os anos de 1970 o Serviço Social brasileiro vem construindo a resistência


ao conservadorismo burguês que penetra historicamente na profissão pela forma como
são organizadas as modalidades de intervenção na questão social, ou até mesmo, como
demonstrou Netto (2005) em seus estudos, pela natureza difusa e polimórfica desse eixo
original que se confronta o profissional no cotidiano do trabalho (mas não só); se faz
necessário considerar, como parte desse processo, o estatuto assalariado e a
subordinação da ação profissional ao dilema do trabalho abstrato e a tendência de
reprodução de uma consciência alienada, inerente ao processo de compra e venda da
força de trabalho, conforme revela Iamamoto (2008). São determinações centrais à

509
dinamização da cultura conservadora no seio profissional, mas também é solo histórico
de constituição de mediações ético-políticas de vinculação do Serviço Social com a
classe trabalhadora e suas pautas de lutas e resistências.

O Serviço Social brasileiro tem afirmado o seu posicionamento em defesa dos


direitos humanos, das liberdades democráticas e de valorização da categoria profissional.
Uma profissão constituída na sua maioria por mulheres e trabalhadoras. De acordo, com
o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) o Brasil possui atualmente mais de 200
mil profissionais, desses 90% são mulheres negras, indígenas, brancas, quilombolas,
periféricas, com deficiências, lésbicas, bissexuais, cis e trans, das cidades e do campo.

São trabalhadoras da linha de frente, atuando, por meio de uma complexa


estrutura estatal de execução de políticas sociais setoriais como: saúde, educação,
assistência social, habitação, previdência social e, também, de serviços na área
sociojurídico. Assim, como resistem e lutam contra a precarização das políticas sociais, o
rebaixamento salarial, o desemprego, a violência e tantas outras que rebatem na
profissão. Como trabalhador/a assalariado/a o/a assistente social vive duplamente a
barbarização da vida, o que exige transitar do campo singular a totalidade social para
estabelecer as conexões entre projeto societário e profissional. Nesse bojo, sem dúvida
está posta a compreensão do trabalho na sociedade capitalista e, também o
reconhecimento do Serviço Social enquanto parte desse trabalho.

Nas últimas décadas o Serviço Social brasileiro ao assumir o lado da classe


trabalhadora também se fortaleceu como profissão, construindo pautas para além do
universo profissional com legitimidade social junto aos trabalhadores/as.

A categoria profissional por meio do conjunto CFESS/CRESS tem explicitado


posicionamentos políticos importantes como: descriminalização e legalização do aborto; o
trabalho de assistentes sociais em situações de calamidades e a importância da
responsabilidade ética, da leitura crítica, da prevenção, do planejamento, da elaboração
de respostas concretas às demandas imediatas em articulação com os movimentos
sociais; contra a reforma administrativa; contra a tortura e a violência estatal; o
Assistentes Sociais no combate ao racismo; os impactos da ‘Reforma’ da Previdência na
classe trabalhadora; os impactos do coronavírus no trabalho do/a assistente social;
Machistas não passarão: em defesa dos direitos das mulheres; Nós Mulheres assistentes
sociais na Luta; dentre tantas outras manifestações que conecta a profissão a defesa da
vida, dos/as trabalhadores/as e da construção de uma sociedade humana e socialmente

510
justa e, sobretudo, expressam formas de resistências a barbárie que todos/as estamos
submetidos/as .

É a profissão falando para a sociedade e para a categoria profissional e, portanto,


reafirmando os princípios e os valores radicalmente humanos preconizados no Código de
Ética Profissional, que recusa enfaticamente o preconceito e a discriminação. De acordo
com Barroco (2016), as raízes do preconceito são a ignorância, a educação doméstica, a
intolerância, o egoísmo e o medo. A sua origem é social e é favorecida pela dinâmica da
vida social e pela cristalização do senso comum como modo de pensar e sentir a
realidade. Por isso, considera a autora, que os preconceitos são gerados no senso
comum e desempenham uma função social de orientação moral e política, constituindo
um sistema de preconceito alicerçado socialmente na cultura conservadora, machista,
classista, autoritária e discriminatória. Portanto, recusa o conhecimento crítico e histórico
da realidade operam as suas visões de mundo por analogias e estereótipos que não
podem ser questionados, gestados nos juízos provisórios e na sua rigidez, negam
qualquer zona de mediação que não seja o resultado imediato e pragmático, se
manifestando na moral, na política, na cultura, nas profissões, enfim no conjunto da vida
social.

5- CONCLUSÃO

Nesse bojo, é importante considerar as bases sociais do projeto ético-político do


Serviço Social brasileiro que reside fundamentalmente no protagonismo da classe
trabalhadora e nas suas lutas e formas de resistências. O enfrentamento do
neoconservadorismo e do irracionalismo no seio profissional precisa ser colocado no
campo político, pois exige organização política das nossas entidades e articulação das
nossas pautas de lutas com todas as forças progressistas, o que envolve o conjunto da
classe trabalhadora. Isso é importante, porque precisamos ter clareza dos limites que
envolvem a profissão e, assim atribuir visibilidade ao projeto ético-político na sua relação
com o projeto societário. Também, é importante considerarmos que o avanço das
tendências conservadoras e irracionalistas sobre a profissão é amplamente favorecida
precarização das condições de trabalho e da formação profissional, que engendram uma
consciência alienada e produzem comportamentos pragmáticos. O que demonstra que a
profissão não está imune à essas tendências e investidas do capitalismo contemporâneo,

511
aliás nunca esteve, mas elas se espraiam de diversas formas no seio profissional. E é
nesse campo que faz central a razão dialética para combater visões abstratas e
aligeiradas da vida social. Aqui destaca-se o papel da universidade pública (mas só) na
formação em Serviço Social, pois esta não se esgota na graduação, mas, sem dúvida, é
o ponto de partida.

6- REFERÊNCIAS

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____. O que é o preconceito. Caderno 1. Conselho Federal de Serviço Social. Brasília:


2016.

EVANGELISTA, João Emanuel. Teoria social e pós-modernismo: a resposta do marxismo


aos enigmas teóricos contemporâneos. Cronos, Natal-RN, v. 7, n. 2, p. 271-281, jul./dez.
2006.

ESCORSIM NETTO, Leila. O conservadorismo clássico. São Paulo: Cortez, 2011.

FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 5 ed.,


2006.

IASI, Mauro L. Ensaios sobre consciência e emancipação. São Paulo: Expressão


Popular, 2007.

IAMAMOTO, Marilda. Serviço Social em tempos de capital fetiche. São Paulo: Cortez,
2008.

____. Renovação e conservadorismo. São Paulo: Cortez, 2013.

IAMAMOTO, Marilda; CARVALHO, Raul. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil.


São Paulo: Cortez, 2014.

LUKÁCS, Georg. Para a ontologia do ser social. Vol. 14. Maceió: Coletivo Veredas, 2018.

____. Marx e o problema da decadência ideológica. In: Marxismo e teoria da literatura.


São Paulo: Expressão Popular, 2010.

MARCUSE, Herbert. Razão e revolução. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

MOTA, Ana Elizabete; RODRIGUES, Mavi. Legado do Congresso da Virada em tempos


de conservadorismo reacionário. Revista Katálylsis, Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 199-212,
maio/ago, 2020.

NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2005.

512
Os Fundamentos do Serviço Social: análise das tendências teórico-metodológicas
presentes no debate do Serviço Social

Carina Berta Moljo186


Thaíse Seixas Peixoto de Carvalho187
Shirley da Silva Oliveira188
Mariana Leite Péres189

RESUMO:
O estudo apresentado se trata de parte dos resultados da
pesquisa intitulada “Fundamentos do Serviço Social: uma
análise das tendências teórico-metodológicas presentes no
debate do Serviço Social”, que tem como objetivo analisar
as principais tendências teórico-metodológicas atuais
presentes na produção de conhecimento do Serviço Social
brasileiro, entre os anos 2007 a 2017. Empiricamente
trabalhamos com seis revistas nacionais consideradas
referências na área. Os resultados alcançados permitiram
afirmar que o direcionamento crítico assentando na
perspectiva marxista e marxiana é o que prevalece nas
publicações da área.

Palavras-chave: Fundamentos do Serviço Social;


tendências teórica metodológicas, produção de
conhecimento

ABSTRACT:
The study presented is part of the results of the research
entitled "Fundamentals of Social Work: an analysis of
theoretical-methodological trends present in the Social Work
debate", which aims to analyze the main current theoretical-

186AssistenteSocial formada pela UNR, Argentina, Dr.ª em Serviço Social pela PUC-SP, Pós-doutorado em
Serviço Social pela PUC-SP e pela UFRJ, Professora titular da UFJF, Faculdade de Serviço Social,
(graduação e Pós-graduação) Pesquisadora do CNPq, Membro do grupo de Pesquisa Serviço Social,
Movimentos Sociais e Políticas Públicas. Pesquisa: “Fundamentos do Serviço Social: uma análise das
tendências teórico-metodológicas presentes no debate do Serviço Social”. CNPq.
187Assistente Social formada pelo CES-CL, Doutoranda em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz
de Fora - UFJF, Professora do curso de Serviço Social do CES-CL, integrante da Pesquisa: “Fundamentos
do Serviço Social: uma análise das tendências teórico-metodológicas presentes no debate do Serviço Social”.
CNPq.
188 Graduada em História pela UFJF e Graduanda na Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal
de Juiz de Fora. Bolsista PIBIC/CNPq de Iniciação Científica na Pesquisa “Fundamentos do Serviço Social:
uma análise das tendências teórico-metodológicas presentes no debate do Serviço Social”. E-mail:
shirleyseso@gmail.com.
189 Graduanda na Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora. Voluntária de
Iniciação Científica na Pesquisa “Fundamentos do Serviço Social: uma análise das tendências teórico-
metodológicas presentes no debate do Serviço Social”. E-mail: marianalperes@hotmail.com.

513
methodological trends present in the production of
knowledge. of the Brazilian Social Service, between the
years 2007 to 2017. We empirically work with six national
journals considered references in the area. The results
achieved allowed us to affirm that the critical direction based
on the Marxist and Marxian perspective is what prevails in
publications in the area.

Keywords: Fundamentals of Social Work; theoretical and


methodological trends, knowledge production

1- INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo a apresentação sintética de parte dos


resultados obtidos em decorrência da pesquisa intitulada “Fundamentos do Serviço
Social: uma análise das tendências teórico-metodológicas presentes no debate do
Serviço Social”190.A pesquisa buscou capturar as diferentes perspectivas teórico-
metodológicas presentes na produção de conhecimento do Serviço Social brasileiro das
últimas décadas.

Trata-se de um estudo teórico que teve como principal estratégia metodológica a


revisão. Analisamos os artigos publicados entre os anos de 2007 e 2017 em seis revistas
de circulação nacional sendo estas: Revistas Serviço Social e Sociedade (Cortez, SP)
QualisA1, Revista Katálysis (UFSC, SC) QualisA1, Revista Temporalis (ABEPSS) Qualis
B1, Revista Textos e Contextos (PUC, RS) Qualis A2, Revista Argumentum (UFES, ES)
Qualis A2, Revista de Políticas Públicas (UFMA, MA) Qualis A1, Revista Libertas (UFJF,
MG) Qualis B4. A Revista Libertas, apesar da qualificação Qualis B4 foi escolhida pois,
estáentre as 14 revistas na qual os pesquisadores do Serviço Social mais publicam.

Vale destacar que todos os artigos foram fichados pelas pesquisadoras


contendo as principais informações deles, como autores e principal temática trabalhada.
Mas foram analisados apenas os artigos que no seu desenvolvimento construíam uma
mediação direta com a profissão do Serviço Social. Esta delimitação está diretamente
relacionada ao nosso objeto de estudo. O material pesquisadofoi bastante vasto e fértil, já
que foram fichados 1896 artigos. Destes, foram identificados um total de 500 artigos que
construíram uma mediação direta com a profissão, dos quais, 57 artigos correspondiam

190Pesquisa financiada pelo CNPq, através de Bolsa de Produtividade em Pesquisa e Bolsas de Iniciação
Científica PIBIC/CNPq e pela UFJF/BIC: Fundamentos do Serviço Social: uma análise das tendências
teórico-metodológicas presentes no debate do Serviço Social.

514
ao Serviço Social internacional, motivo pelo qual ficaram fora da nossa análise.Portanto,
trabalhamos sobre os 443 artigos restantes, a saber 23,4%, dos artigos.

2- DESENVOLVIMENTO

A análise dos dados pesquisados evidenciou que parte significativa das


publicações tratam de temáticas amplas e diversas, mas não constroem mediações com
a profissão. Dos 1896 artigos analisados, 1396 não realizaram uma mediação direta com
o Serviço Social, o que corresponde a um total de 73,6%. Estes artigos, como
apresentados no quadro abaixo, discutem temas fundamentais para o Serviço Social,
considerando que não é possível conhecer a profissão sem conhecer o contexto no qual
se desenvolve, as expressões contemporâneas da Questão Social, as matrizes teóricas
pela qual a profissão é analisada, mas entendemos que seja fundamental construir as
mediações entre as temáticas mais amplas e a própria profissão, buscando a unidade
entre os diferentes conhecimentos.191

As principais temáticas abordadas tem como foco a análise das mais distintas
manifestações da dinâmica da sociabilidade burguesa sob os ditames do capital.

No que se refere aos trabalhos que fazem mediação direta com a profissão, a
temática dos Fundamentos ainda é a menos discutida pela categoria num total de 18,7%,
conforme veremos no quadro pouco mais abaixo, sendo o tema trabalho profissional o
mais abordado com 43,8% dos artigos, seguido pela questão da formação profissional
com 37,5% das publicações.

2.1- Temáticas dos artigos sem mediação com Serviço Social

Como mencionado acima, do total dos 1896 artigos publicados, entre 2007 a
2017, nas seis revistas investigadas (73,6%) não se vinculam ou fazem algum tipo de
mediação com a profissão, se tratando de temas diversos.

O que verificamos no quadro acima é a tendência dos profissionais e


pesquisadores do Serviço Social optarem por discussões mais amplas que ultrapassam o

191Alguns autores já sinalizavam serem poucas as produções, que têm o Serviço Social como objeto de
pesquisa, como sinalizou Iamamoto no ENPESS de 2004. Na mesma direção, Closs, Prates e Carraro (2015)
analisando os Programas de Pós-graduação em Serviço Social, apontaram, inclusive, ser a Política Social a
maior concentração da área.

515
universo profissional. O quadro abaixo apresenta os temas recorrentes destes estudos,
que não são mediados com a profissão, além do quantitativo destes e suas devidas
porcentagens.

Temáticas dentre os artigos que não fazem mediação Quantitativo Percentual

Políticas Sociais 472 33,8%

Sistema capitalista 241 17,3%

Estado e sociedade civil 210 15%

Questão Social 178 12,8%

Mundo do trabalho 102 7,3%

Direitos sociais e humanos 64 4,6%

Movimentos Sociais 58 4,1%

Teorias sociais 35 2,5%

Resenhas de livros 36 2,6%

Tabela 1 – Principais temáticas dos artigos que não fazem mediação com o Serviço Social. Elaborada pelo
Grupo de Pesquisa Tendências Teórico Metodológicas do Serviço Social na Contemporaneidade, da UFJF,
coordenado pela professora Carina B. Moljo, em maio de 2022.

Como é possível verificar nos dados expostos na tabela acima, o número de


estudos sobre as Políticas Sociais, em suas variadas discussões, é significativamente
maior do que os demais temas, o que corrobora com as análises de Iamamoto (2004) e
Closs, Prates e Carrara (2015). Yazbek (2020) irá apontar que a análise das relações
mais amplas que constituem a sociedade capitalista é fundamental para a compreensão
da própria profissão.

516
2.2- Temáticas dos artigos com mediação com o Serviço Social

Ao considerarmos os 443 artigos que fazem mediação com a profissão,


publicados nas seis revistas, podemos notar que a temática sobre Trabalho Profissional
(TP) é a mais encontrada nas revistas pesquisadas, sendo 194 (43,8%) artigos no
total.Os debates sobre a Formação Profissional (FP) vêm logo a seguir, no que se refere
à abordagem da temática pelos pesquisadores nas seis revistas, alvo da presente
pesquisa, com 166 (37,5%) estudos. Em terceiro lugar, destaca-se a temática dos
Fundamentos do Serviço Social (FSS), com 83 (18,7%) estudos. Como destacado na
tabela abaixo:

Temáticas dos 443 artigos c/ mediação Quantitativos Percentual


com a profissão

Trabalho Profissional 194 43,8%

Formação Profissional 166 37,5%

Fundamentos do Serviço Social 83 18,7%

Tabela 1 – Principais temáticas dos artigos que não fazem mediação com o Serviço Social. Elaborada pelo
Grupo de Pesquisa Tendências Teórico Metodológicas do Serviço Social na Contemporaneidade, da UFJF,
coordenado pela professora Carina B. Moljo, em maio de 2022.

2.3- Sobre a análise dos autores mais referenciados nos estudos publicados com
mediação com o Serviço Social brasileiro

Uma das estratégias conhecer as matrizes de pensamento presente nos artigos


foi a de analisar quais os principais autores eram referência nos artigos.

Após ampla leitura e discussão, chegamos aos resultados de que dentre as 06


revistas analisadas, os autores mais citados nos 443 artigos analisados que fazem
mediação com o Serviço Social brasileiro, Marilda Villela Iamamoto se destaca sendo
citada em 247 artigos, por 806 vezes. Em seguida, José Paulo Netto sendo citado em
186 artigos, por 649 vezes, Karl Marx em 114, Maria Carmelita Yazbek em 66, Ricardo
Antunes em 64, Ana Elizabete Mota em 61, Maria Lúcia Barroco em 55, Elaine Behring
em 50, Yolanda Guerra em 49, e, David Harvey em 48. No que tange aos autores mais

517
citados temos: Marilda Iamamoto por 806 vezes, José Paulo Netto por 649, Karl Marx por
385, Ricardo Antunes por 159, Maria Carmelita Yazbek por 155, Yolanda Guerra por 140,
Ana Elizabete Mota por 139, Antonio Gramsci por 136, Maria Lúcia Barroco por 123, e,
GyorgyLukács por 102. A seguir apresentamos os 30 autores mais citados por artigos
assim como quantidade de vezes citados.

Autoria Número de Artigos Autoria Quantidade de Citações


Citados

Marilda Villela Iamamoto 247 Marilda Villela Iamamoto 806

José Paulo Netto 186 José Paulo Netto 649

Karl Marx 114 Karl Marx 385

Maria Carmelita Yazbek 66 Ricardo Antunes 159

Ricardo Antunes 64 Maria Carmelita Yazbek 155

Ana Elizabete Mota 61 Yolanda Guerra 140

Maria Lúcia Barroco 55 Ana Elizabete Mota 139

Elaine Behring 50 Antonio Gramsci 136

Yolanda Guerra 49 Maria Lúcia Barroco 123

David Harvey 48 GyorgyLukács 102

Antonio Gramsci 43 Elaine Behring 93

Ivanete Boschetti 38 Vicente Faleiros 91

Maria Lúcia Martinelli 35 IstvánMészáros 91

GyorgyLukács 24 David Harvey 83

Carlos Nelson Coutinho 23 Ivanete Boschetti 68

Vicente Faleiros 39 Maria Lúcia Martinelli 66

518
Marilena Chauí 38 Maria Inês Souza Bravo 65

IstvánMészáros 25 Raquel Raichelis 64

Raquel Raichelis 23 Paulo Freire 62

Ivete Simionatto 32 Marilena Chauí 61

Marcelo Braz 17 Ivete Simionatto 60

Sérgio Lessa 4 Carlos Montaño 53

Paulo Freire 13 Carlos Nelson Coutinho 51

Maria Inês Souza Bravo 26 Marcelo Braz 39

Ana Maria de Vasconcelos 3 Aldaíza Sposati 35

Carlos Montaño 25 Raul de Carvalho 27

Marina Maciel Abreu 9 Sérgio Lessa 25

Josefa Batista Lopes 4 Ana Maria de 25


Vasconcelos

Ernest Mandel 13 Marina Maciel Abreu 24

Robert Castel 10 Boaventura de Sousa 22


Santos

Tabela 5 – Em ordem decrescente, à esquerda, relação de principais autores e quantidade de artigos citados.
À direita, relação de principais autores e quantidade de citações. Elaborada pelo Grupo de Pesquisa
Tendências Teórico Metodológicas do Serviço Social na Contemporaneidade, da UFJF, coordenado pela
professora Carina B. Moljo, em maio de 2022.

Se consideramos que a análise dos autores mais citados e referenciados pela


produção de conhecimento da categoria profissional - que faz mediação com a mesma -
nos apresenta as tendências teórico-metodológicas predominantes na profissão, então,
visualizar os dados da tabela acima significa reconhecer a presença hegemônica da
perspectiva crítica nas reflexões do Serviço Social brasileiro. Afinal, os autores elencados
como destaque de referências para os autores dos trabalhos analisados se caracterizam
ora por serem referências críticas da profissão no Brasil, ora por serem parte do quadro

519
intelectual do pensamento crítico em nível nacional e internacional e, em ambos os
casos, a maioria dos autores se referenciam na teoria social de Marx.

3- CONCLUSÃO

Durante toda a aproximação com os artigos analisados diversas questões foram


levantadas e muitas outras surgiram, inclusive, as que extrapolam os objetivos da
pesquisa, rendendo intensos debates e reflexões do grupo que a desenvolve. Contudo,
no que diz respeito às considerações cabíveis de serem realizadas no presente trabalho,
destacamos a importância da compreensão das tendências teórico-metodológicas
presentes no debate dos fundamentos do Serviço Social no interior da categoria
profissional no sentido de estarmos cientes do que vem sendo produzido enquanto
conhecimento pelo conjunto da categoria profissional, a fim de, resgatar, reconhecer e
fortalecer a cultura profissional, a defesa de um projeto profissional em defesa da classe
à qual pertencemos e o reconhecimento da intelectual e crítico da profissão.

Nesse sentido, consideramos que os resultados obtidos podem servir de base


para novos estudos que possibilitem o alargamento de pesquisas sobre a profissão e
seus fundamentos, desvelando, por exemplo, os modos de ser do Serviço Social,
pensando este como uma profissão inserida nas relações sociais, a partir de uma
apresentação do que vem sendo produzido na cena contemporânea.

O presente trabalho nos trouxe apontamentos acerca dos trabalhos da categoria


profissional que realizam a mediação com o Serviço Social brasileiro que se, de um lado,
a maior parte dos trabalhos não realizam essa mediação, e, quando o fazem destacam-
se os debates primeiro, acerca do trabalho profissional, e, em seguida, da formação
profissional. Por outro, é evidente o compromisso teórico-metodológico de tomar como
referência a teoria social crítica de Marx quando se trata de Serviço Social brasileiro. Que
pelo contínuo movimento de reconhecimento e reflexão sobre quem somos e o que
queremos possamos caminhar em direção ao fortalecimento da profissão diante dos
tantos desafios cotidianos.

520
4- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABEPSS. Diretrizes gerais para o curso de Serviço Social. Rio de Janeiro: ABEPSS,
1996.

CLOSS, T. T.; PRATES, J. C.; CARRARO, G. Programas de Pós-graduação em


Serviço Social no Brasil: tendências das áreas de concentração, linhas de pesquisa
e disciplinas.In: I Congresso Internacional de Políticas Sociais e Serviço Social: desafios
contemporâneos. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2015.

IAMAMOTO, M. V. Os caminhos da pesquisa em Serviço Social. In: Conferência do XI


ENPESS. Porto Alegre: ABEPSS, 2004.

____________.; CARVALHO, R. de. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil.


Esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Editora Cortez,
1982.

____________. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro,


trabalho e questão social. São Paulo: Editora Cortez, 2008.

YAZBEK, M. C. Fundamentos históricos e teórico-metodológicos e as tendências


contemporâneas no Serviço Social. In: GUERRA, Y.; LEWGOY, A. M. B.; MOLJO, C.
B.; SERPA, M.; SILVA, J. F. S. da (ORG.). Serviço Social e seus fundamentos:
conhecimento e crítica. Campinas: Papel Social, 218.

____________. Os fundamentos do Serviço Social e o enfrentamento ao


conservadorismo. Libertas, v. 20, n. 2, p. 293-306, 2020.

521
SERVIÇO SOCIAL E PROJETO PROFISSIONAL: ALGUMAS REFLEXÕES
Luciana Gonçalves Pereira de Paula192

RESUMO: O presente trabalho propõe realizar um debate


sobre o Projeto Ético-Político Profissional crítico do Serviço
Social. Objetiva refletir sobre a compreensão de assistentes
sociais sobre este projeto profissional e sua adesão ou não
a ele. Para isso, traz algumas considerações acerca do
Projeto Ético-Político do Serviço Social; apresenta a
exposição da análise dos resultados parciais da pesquisa
intitulada “Estratégias e Táticas no campo do Serviço Social:
reflexões sobre a formação acadêmica e o trabalho
profissional do/a assistente social”; e, nas considerações
finais, demonstra a pertinência e necessidade da defesa
desse Projeto Ético-Político no campo do Serviço Social.

PALAVRAS-CHAVE: Serviço Social; projeto profissional;


assistente social; projeto ético-político.

ABSTRACT: The present work proposes to carry out a


debate on the Critical Professional Ethical-Political Project of
Social Work. It aims to reflect on the understanding of social
workers about this professional project and their adherence
or not to it. For this, it brings some considerations about the
Ethical-Political Project of Social Work; presents the
exposition of the analysis of the partial results of the
research entitled “Strategies and Tactics in the field of Social
Work: reflections on the academic training and professional
work of the social worker”; and, in the final considerations, it
demonstrates the pertinence and necessity of defending this
Ethical-Political Project in the field of Social Work.

KEYWORDS: Social Work; professional project; social


worker; ethical-political project.

1- INTRODUÇÃO

O presente trabalho propõe realizar um debate sobre o Projeto Ético-Político


Profissional crítico do Serviço Social. Objetiva, ainda, refletir sobre a compreensão de
assistentes sociais sobre estes projetos profissionais e sua adesão ou não ao Projeto
Ético-Político ancorado no campo do pensamento marxista.

192Assistente Social; Professora Associada da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz
de Fora; Doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro; email: lugppaula@gmail.com; eixo temático “ofensiva ultraconservadora e resistências: formação e
trabalho profissional”.

522
Para isso, apresenta resultados parciais de uma pesquisa científica realizada pelo
Grupo de Estudos, Pesquisas e Extensão sobre os Fundamentos do Serviço Social
(GEPEFSS), da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora
(FSS/UFJF). Essa pesquisa empírica, de caráter qualitativo, foi desenvolvida no período
de 2016 a 2019, foi submetida e aprovada junto ao Comitê de Ética para pesquisa com
seres humanos da Universidade Federal de Juiz de Fora. Os procedimentos
metodológicos envolveram entrevistas estruturadas, realizadas com assistentes sociais,
alunas193 no Curso de Especialização “Serviço Social, Políticas Sociais e Processo de
Supervisão de Estágio”, oferecido pela FSS/UFJF.

Para essa comunicação oral nosso recorte trabalhou com as entrevistas


realizadas junto a doze assistentes sociais – em um universo de trinta alunas –, no
período de setembro a novembro do ano de 2017.Portanto, para esse trabalho, em
especial, abordaremos a questão que indagou as assistentes sociais sobre o projeto
profissional que pauta o desenvolvimento do seu trabalho.

Para a apresentação dessas reflexões, nosso artigo se desdobra em três partes:


na primeira, apresentamos considerações sobre o Projeto Ético-Político do Serviço
Social; na segunda, fazemos a exposição da análise dos resultados das entrevistas
realizadas com assistentes sociais; e, na última, esboçamos nossas considerações finais,
demonstrando pertinência e necessidade da defesa desse Projeto Ético-Político no
campo do Serviço Social.

2- REFLEXÕES ACERCA DO PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL

O Serviço Social enfrenta tempos difíceis de ofensiva destrutiva do capital e


precarização do trabalho. São tempos de ataques aos direitos sociais e desmonte
completo das políticas sociais. Esses processos incidem diretamente no cotidiano de
trabalho dos assistentes sociais e em seus espaços sócio-ocupacionais, “[...] afetando
desde as possibilidades de contratação e os níveis salariais até a qualidade dos serviços
prestados àqueles a quem sua ação profissional é voltada” (FORTI; COELHO, 2014, p.
16).

193Com relação às assistentes sociais entrevistadas em nossa pesquisa iremos nos referir a elas no
feminino, uma vez que apenas mulheres se disponibilizaram a participar desse processo.

523
Essas dificuldades, postas pela realidade onde se insere o trabalho profissional do
assistente social no campo das políticas sociais, em um contexto de capitalismo ultra
neoliberal, muitas vezes são tomadas por esses profissionais como se fossem questões
internas, inerentes à profissão e ao seu Projeto Ético-Político (PEP). Muitos profissionais
do Serviço Social sentem-se frustrados por não conseguirem “materializar” o Projeto
Ético-Político no seu cotidiano profissional e creditam isso ao próprio direcionamento
crítico deste projeto e não às condições sócio-históricas prevalecentes na sociedade
capitalista na atualidade. Essa frustração, por sua vez, gera percepções equivocadas
acerca da realidade profissional e alimenta a falsa dicotomia entre teoria e prática.

Quando isso acontece, o cerne da questão permanece intocado e a estrutura


social que provoca processos de desumanização, alienação e desigualdade social segue
invisibilizado.

Não podemos deixar de destacar, aliás, que muitas vezes esquecemos


que, não obstante negarmos tal sociedade – ou melhor, o modo de vida
social de determinada formação social –, se nela fomos formados,
podemos estar impregnados dos seus valores, da sua ideologia e,
portanto, negando-a, podemos “inconscientemente” reproduzi-la (FORTI;
COELHO, 2014, p. 20).

Por isso, o Projeto Ético-Político do Serviço Social se apresenta como uma


projeção profissional coletiva pautada em valores e concepções que, justamente, se
propõem à defesa da ruptura com a ordem vigente, desvelando a sua lógica perversa e
escancarando as suas contradições. E, nesse sentido, as escolhas cotidianas dos
assistentes sociais podem fortalecer ou não este projeto profissional crítico. Afinal,

Os valores são sociais e, ao mesmo tempo, produtos da subjetividade dos


indivíduos e da objetividade da relação humano-genérica. Qualquer
escolha realizada pelos indivíduos compreende uma posição valorativa
acerca dos meios e dos fins. As escolhas e decisões apenas
imediatamente são singulares, pois elas são constitutivas da sociabilidade
humana (FORTI; COELHO, 2014, p. 34).

Portanto, as escolhas singulares dos assistentes sociais, em seus espaços de


trabalho, vão construindo, também, a imagem e a direção social desta profissão. Assim,
se faz imprescindível perceber a importância dos impactos de nossas ações profissionais,
sejam eles objetivos ou subjetivos. E, especialmente, perceber que valores e concepções
estas ações estão fortalecendo; se elas estão reforçando ou refutando os valores da
democracia, da liberdade, da cidadania, do respeito. Valores estes que se apresentam
como pilares do nosso Projeto Ético-Político profissional.

524
Desse modo, faz-se necessário que os assistentes sociais se debrucem sobre a
natureza, o alcance a as possibilidades desse projeto. O Projeto Ético-Político do Serviço
Social não é a receita de solução para os problemas cotidianos dos assistentes sociais,
ele não pode ser tomado como um guia a ser seguido para se construir uma ação
profissional qualificada, ele é muito maior do que isso. E a sua compreensão requer a
recuperação da

[...] trajetória histórica na qual o PEP se constituiu, tentando captar os


elementos que o potencializaram e, ao mesmo tempo, buscar a sua
possibilidade histórica no contexto atual, o que significa encharcar o PEP
de historicidade (GUERRA, 2014, p. 41).

Há que se combater uma visão idealista do Projeto Ético-Político do Serviço


Social, baseada no senso comum, romantizada, voluntarista e messiânica. Pois nesta
perspectiva, o Projeto Ético-Político se torna um “[...] conjunto de princípios ideais, a-
históricos, produto do pensamento, desejo, vontade dos sujeitos e dos seus sentimentos,
mero resultado da sua boa vontade e compromisso individuais” (GUERRA, 2014, p. 46).
Essa percepção do Projeto Ético-Político calcado no idealismo é que provoca o
sentimento de frustração nos assistentes sociais quando os mesmos não conseguem
“materializar” o PEP no seu cotidiano de trabalho, apesar de todos os seus esforços
individuais.

Ao contrário disso, o Projeto Ético-Político do Serviço Social possui os seus pés


fincados no materialismo histórico-dialético. O que requer a capacidade de análises
institucionais, conjunturais e estruturais capazes de oferecer aos assistentes sociais
lucidez sobre as suas reais possibilidades de intervenção e sobre o alcance das suas
ações profissionais. Porque “sem uma análise crítica dos fundamentos conservadores da
profissão, acabamos nos tornando reféns deles” (GUERRA, 2014, p. 49).

Em Simas e Ruiz (2014) encontramos a seguinte afirmação: dificilmente nos


deparamos com assistentes sociais que se disponham a afirmar que não atuam em
consonância e/ou defesa do Projeto Ético-Político do Serviço Social brasileiro. No
entanto, sendo a nossa categoria profissional extremamente heterogenia, são também
distintos os direcionamentos ético-políticos dos assistentes sociais e, consequentemente,
os valores defendidos e reforçados em suas ações profissionais.

Esses foram os elementos que nos motivaram à questão de pesquisa que será
apresentada o item que se segue.

525
3- ASSISTENTES SOCIAIS E PROJETOS PROFISSIONAIS – ANÁLISE DA
PESQUISA

Partindo das reflexões apresentadas no item anterior, pretendemos, agora, trazer


as “falas” das assistentes sociais entrevistadas em nossa pesquisa, buscando captar a
percepção e apreensão das mesmas sobre o debate acerca do Projeto Ético-Político do
Serviço Social.

Nesse sentido, a pergunta realizada às profissionais indagava: “você pauta a sua


atuação em algum projeto profissional?” Frente a essa questão, 3 entrevistadas (25%)
responderam que não pautam a sua atuação em nenhum projeto profissional ou não
souberam responder.

No momento não (Entrevistada 04).

(...) nenhum projeto profissional específico. Eu não sei ao certo o que


seria esse projeto profissional, mas assim, acho que não, em nenhum
específico (Entrevistada 11).

É... assim, é difícil identificar qual projeto, nominar o projeto, qual o


projeto profissional? (Entrevistada 10)

Essas respostas nos levam à falta de clareza, a respeito do direcionamento ético-


político da atuação profissional destas assistentes sociais. Essa é uma realidade entre os
profissionais do Serviço Social, e ela pode gerar maior subsunção ao processo de
alienação, fazendo com que o assistente social seja, mais facilmente, capturado pela
lógica institucional. O assistente social que não possui clareza e firmeza na defesa do
seu projeto profissional, pode sucumbir, mais facilmente, à sedução de perspectivas
conservadoras. Entretanto, ressaltamos que o fato da assistente social não saber
informar, com precisão, a qual projeto profissional se vincula, não significa,
necessariamente, que sua suas ações tendam ao conservadorismo.

Nesse sentido, outras 2 entrevistadas (17%) não citaram, diretamente, o Projeto


Ético-Político do Serviço Social, quando foram perguntadas se algum projeto pautava a
sua atuação, mas sinalizaram princípios coerentes com esse projeto, a exemplo das
respostas abaixo:

Embasando no código de ética da profissão, eu acho que é em cima disso


que eu me pauto, no respeito ao usuário, pensando no código de ética
como, também, norteador dessa atuação. E pensando, principalmente,

526
nessa dimensão política, acho que isso é muito importante (Entrevistada
06).

Eu procuro... eu tenho uma questão ética, da ética profissional, o


compromisso com a minha profissão, com os usuários que eu atendo,
com a população que é para quem eu trabalho. Compromisso mesmo, eu
sei que eu estou aqui, eu não trabalho para a política, eu trabalho para os
usuários e é esse o meu compromisso (Entrevistada 09).

No entanto, encontramos nessas falas, uma confusão muito comum em meio a


nossa categoria profissional: a confusão entre o Código de Ética e o Projeto Ético-
Político. Essa confusão também foi expressa pela entrevistada 08, que respondeu: “No
código de ética”. Assim, ressaltamos que o projeto profissional é mais amplo que o
Código de Ética, embora o abarque. O Código de Ética, assim como a Lei de
Regulamentação da Profissão, são expressões do Projeto Ético-Político e lhe oferecem
sustentação. Esses documentos oferecem concretude à direção social apontada pelo
Projeto Ético-Político, mas não se confundem com ele.

Nesse sentido, Matos (2013) destaca a importância de se buscar ir além da


simples adesão formal aos princípios postos pelo Projeto Ético-Político, e ao próprio
Código de Ética, sendo necessária uma verdadeira internalização desses. A busca por
uma profunda compreensão acerca desse projeto é o único caminho frutífero para o
nosso fortalecimento, enquanto categoria profissional, frente as adversidades da
conjuntura atual.

A defesa automatizada ou irrefletida do Projeto Ético-Político, pode levar os


assistentes sociais para a direção contrária. Assim, não basta a realização de uma
aparente defesa, é preciso aproximação orgânica com esse projeto, com seus
fundamentos, com seu referencial teórico-metodológico marxista e com os seus
princípios ético-políticos emancipatórios.

Destacamos, ainda, que 3 entrevistadas (25%), ao serem indagadas em nossa


pesquisa, confundiram projeto profissional com projeto de intervenção.

Você fala se eu faço projetos lá? Ou projeto ético na profissão?


(Entrevistada 03).

Não. Mas eu já fiz um projeto lá, sobre o acompanhamento da assistente


social com a gestante de alto risco. Eu elaborei um pré-projeto para
acompanhar e identificar porque as faltas, porque os abandonos, eu fiz
um projeto individual (Entrevistada 05).

Projeto profissional? Nós temos projetos que a gente monta em equipe


dentro do serviço, em determinado serviço (Entrevistada 07).

527
Dessa forma, destacamos que os projetos profissionais, como exposto
anteriormente, envolvem uma série de elementos distintos:

[...] uma imagem da profissão, os valores que a legitimam, sua função


social e seus objetivos, conhecimentos teóricos, saberes interventivos,
normas, práticas etc. São várias, portanto, as dimensões de um projeto
profissional, que deve articulá-las coerentemente (NETTO, 1999, p. 98).

Já o projeto de intervenção, refere-se a uma estratégia de planejamento das


ações profissionais, devendo conter: justificativa, objetivos, metodologia, público-alvo,
etc. Constitui-se, portanto, como uma forma de planejar a ação profissional, com base em
uma análise conjuntural e institucional prévia. Desse modo, o projeto de intervenção não
deve ser confundido com o Projeto Ético-Político, sendo o primeiro uma importante
estratégia que não só qualifica a prática profissional, mas organiza as ações de acordo
com os valores e princípios defendidos em nosso Projeto Ético-Político (PAULA e SILVA,
2016). Percebemos, assim, como esses elementos devem se articular, mas não podem
se confundir.

Por fim, 3 entrevistadas (25%) conseguiram responder à questão com mais


clareza, afirmando pautar as suas ações no Projeto Ético-Político hegemônico no Serviço
Social.

A gente fala toda hora: projeto ético-político (Entrevistada 01).

Com certeza o projeto ético-político do Serviço Social, com certeza. O


nosso projeto ético-político é um projeto inacabado, porém em construção
e a gente, por mais que a gente, no momento se sinta derrubado,
desesperançado como nós estamos, mas continuamos ainda firmes e
resistentes (Entrevistada 02).

Projeto Ético-Político do Serviço Social, né? Que é um projeto de, é...


construção de uma nova sociedade e de... justiça, de liberdade. Então, é
o projeto profissional que todo assistente social tem que pautar sua
prática profissional (Entrevistada 12).

Diante das reflexões postas até o momento, gostaríamos de destacar a


importância da construção de ações profissionais, efetivamente, pautadas no Projeto
Ético-Político crítico e referenciado no pensamento marxista. Essa se configura,
certamente, como uma das mais importantes contribuições dos assistentes sociais, na
atualidade. Pois se desejamos uma nova sociedade, para além do capital, faz-se
necessária a defesa e a solidificação de novos valores que produzam novas relações

528
sociais. E é, justamente nesse campo da divulgação dos valores ético-políticos presentes
em nosso projeto profissional crítico, que o assistente social pode oferecer uma
significativa contribuição aos processos sociais em construção.

4- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, destacamos a importância de os assistentes sociais buscarem


clareza na defesa de seus projetos profissionais. Em se tratando, especialmente do
projeto ético-político, é fundamental uma adesão consciente, visto que, como já exposto,
a não compreensão do mesmo pode acarretar um descompasso entre o que se
intenciona e o que se realiza, no exercício profissional.

Portanto, a defesa real e concreta do Projeto Ético-Político, exige o esforço da


construção de ações profissionais que expressem os valores que constituem esse
projeto. Principalmente, na atual conjuntura, de um capitalismo predatório, que tem
reavivado tendências conservadoras e reacionárias, o posicionamento ético-político dos
assistentes sociais, se faz primordial. Nesse sentido, corroborando com Guerra (2014),
reafirmamos a atualidade e a viabilidade do Projeto Ético-Político do Serviço Social.
Compreendemos, assim, que no “mar agitado” da conjuntura atual, o Projeto Ético-
Político pode ser a bússola do assistente social, para que ele não se perca em meio às
“tempestades”.

5- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FORTI, V.; COELHO, M. Contribuição à crítica do projeto ético-político do Serviço


Social: considerações sobre fundamentos e cotidiano institucional. In: FORTI, V.;
GUERRA, Y. Projeto Ético-Político do Serviço Social: contribuições à sua crítica. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2014.

GUERRA, Y. Sobre a possibilidade histórica do projeto ético-político profissional: a


apreciação crítica que se faz necessária. In: FORTI, V.; GUERRA, Y. Projeto Ético-
Político do Serviço Social: contribuições à sua crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

MATOS, M. C. de. Serviço Social Ética e Saúde - Reflexões para o exercício


profissional. São Paulo: Cortez, 2013.

529
NETTO, J. P. A construção do projeto ético‑político contemporâneo. In:
Capacitação em Serviço Social e Política Social. Módulo 1. Brasília:
CEAD/ABEPSS/CFESS, 1999.

PAULA, L.G.P. de. SILVA, N.C.O. Planejamento e Serviço Social - O Plano de trabalho
como estratégia profissional do(a) assistente social. Anais do 15º Congresso Brasileiro de
Assistentes Sociais. Recife, 2016.

SIMAS, F. N.; RUIZ, J. L. S. Exercício profissional: uma mediação central entre direitos
humanos e o projeto ético-político do serviço social brasileiro. In: FORTI, V.; GUERRA, Y.
Projeto Ético-Político do Serviço Social: contribuições à sua crítica. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2014.

530
AS POSSIBILIDADES DO TRABALHO FRENTE À ATUAL CRISE CAPITALISTA:
contribuições ao Serviço Social

Raphael Dutra Bazarello194


Cláudio Ayrá Ribeiro Pinto195
Larissa Pereira Silva196

RESUMO:
Este artigo tem por objetivo apresentar de forma sucinta um
debate sobre o processo de acumulação capitalista e a crise
posta pelo capital, bem como a esfera do trabalho em sua
conformação, articulando ambas as temáticas. A partir
disso, reflete-se sobre uma perspectiva de trabalho e
sociabilidade que não seja conforme ao capital. Busca-se
também compreender como a crise e a estrutura
precarizada de trabalho atual afetam o Serviço Social, tanto
no caráter assalariado do assistente social, como nas
expressões da Questão Social com as quais os profissionais
lidam em sua prática.

Palavras-chave: Crise, Acumulação, Trabalho, Serviço


Social.

ABSTRACT:
In this paper we briefly discuss the debate about the
capitalist accumulation of capital and its crisis as well as the
role of labour in this realm. Based on this, we reflect on a
perspective of labour and a sociability that does not conform
itself with capital. It also seek to understand how the current
crisis and the degraded conditions of labour affects the
Social Work, both as worker and of social crisis that this
professional deals with in his daily practice.

Keywords: Crisis, Accumulation,Labour, Social Work.

1- Introdução

O presente artigo tem por objetivo, tão brevemente, apresentar uma reflexão
acerca do atual momento do processo de acumulação do capital, mais especificamente
sua fase de crise, bem como os rebatimentos no mundo do trabalho. Compreender a
dialética capital-trabalho dentro deste processo se faz fundamental na medida em que o

194Doutorandoem Serviço Social pela UFJF, mestre e graduado em Serviço Social pela UFJF,
rafdbaz@hotmail.com
195Graduado em História pela UFJF, claudioayra@gmail.com
196Graduanda em Serviço Social pela UFJF, larissa.pereira.ufjf@gmail.com

531
Serviço Social como profissão se insere, na divisão sócio-técnica do trabalho, na
mediação do conflito entre estes pólos da sociabilidade capitalista. Isto posto, busca-se
uma também breve reflexão sobre os reflexos desse momento atual do conflito próprio
desta sociabilidade na profissão, tendo em vista o lugar de assalariamento do assistente
social, seu lugar enquanto classe trabalhadora, bem como a necessidade de pensar as
expressões da questão social, agudizadas nas crises, como elemento que compõe o
trabalho profissional. Desta forma, primeiro busca-se apresentar o processo de
acumulação em seu esgotamento atual que resulta na crise, articulado logo em seguida
com a situação de precarização da classe trabalhadora, apontando-se a necessidade de
superação dessa forma produtiva e da forma trabalho correspondente a esta. Por fim,
realizam-se apontamentos que permitem indicar caminhos de entendimento desse
processo dentro do Serviço Social, tanto na dimensão do assistente social como
trabalhador assalariado, como na sua relação de mediação das expressões da Questão
Social.

2- O MOVIMENTO DE CRISE DO CAPITAL

Vivemos sob um sistema econômico que encontra, periodicamente, pedras em


seu caminho. No século XIX, Marx (2017)percebeu que o capitalismo, pela sua própria
dinâmica, precisava constantemente revolucionar as forças produtivas e ao fazer isso,
dispensava trabalho humano produtivo, aumentando a proporção do capital fixo –
fábricas, tecnologias e maquinário - e achatava a própria lucratividade. A isso ele chamou
Lei da Queda Tendencial da Taxa de Lucros (LQTTL). Em períodos de queda abrupta da
taxa média de lucratividade, o sistema precisa se reajustar. Empresas menos lucrativas
vão à falência ou são adquiridas por suas concorrentes, massas de trabalhadores
perdem seus postos de trabalho e o capital fixo é destruído. Ao resolver uma crise
econômica, a exacerbação das contradições internas do capitalismo lança a semente da
próxima crise. O gráfico a seguir, retirado de Basu (2022, p.30) mostra a evolução da
taxa de lucros mundial do meio do século XX em diante e confirma a hipótese de do autor
alemão(Marx,2017).

532
(Gráfico 1 – Taxa de lucro mundial, 1960-2019)

Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a reconstrução dos países centrais e


as regulações econômicas de matriz keynesiana haviam garantido um longo período de
crescimento quase ininterrupto. O chamado Estado de Bem Estar Social parecia realizar
a solidificação de um sistema econômico em cuja debacle havia jogado as grandes
potências em um vórtice de destruição, com consequências de amplo alcance
(Hobsbawn, 2012). No início da década de 70 do século XX, esse sistema debateu-se
com uma grave crise de acumulação (Harvey, 2008). Se por todo o período anterior,
aqueles que chegavam à idade adulta puderam cultivar a certeza de que as suas
condições materiais seriam melhores que as da geração precedente, esta marcha
ascendente havia se encerrado e o Welfare State dava mostras de esgotamento. Harvey
resume:
Perto do final dos anos 1960, o liberalismo embutido começou a ruir,
internacionalmente e no nível das economias domésticas. Os sinais de uma
grave crise de acumulação eram em toda parte aparentes. O desemprego e a
inflação se ampliavam em toda parte, desencadeando uma fase global de
“estagflação” que duraria por boa parte dos anos 1970. Surgiram crises fiscais de
vários estados (a Grã-Bretanha, por exemplo, teve de ser salva com recursos do
FMI em 1975-76), enquanto as receitas de impostos caiam acentuadamente e os
gastos sociais disparavam. As políticas keynesianas já não funcionavam. (...) A
superação da crise requeria alguma alternativa. (Harvey, 2008, p. 22)

O capital precisou então se reciclar. Governos como o de Margareth Thatcher, na


Inglaterra, Reagan nos EUA e Pinochet no Chile iniciaram o processo de neoliberalização
da economia. Era, pois, pretendido diminuir os gastos públicos, restaurar a taxa “natural”
de desemprego, diminuir os impostos sobre os rendimentos mais altos, criando assim

533
uma “nova e saudável desigualdade” que dinamizaria as economias avançadas
(Anderson, 1995).
E, no entanto, como mostra o gráfico, a lucratividade do capital nunca retornou
aos patamares do pós-guerra. Segundo Brenner (1999), os sinais mais visíveis da
desregulamentação econômica, da financeirização e da intensificação da circulação do
capital de curto prazo, vistos por muitos economistas como a causa das crises do
capitalismo neoliberal, são a consequência de um problema estrutural de excesso de
capacidade produtiva instalada, comprimindo os lucros da atividade manufatureira. São,
portanto, um sintoma do que Marx chamou de aumento da composição orgânica do
capital, que está na base da LQTTL. Massas de capital em busca de valorização migram
então para a esfera financeira e, a partir daí, projetam seus interesses para a sociedade.
Chesnaisexplica:
O papel “regulador” das finanças é exercido de múltiplas maneiras: pela fixação do
nível das taxas de juros; pela determinação da parte dos lucros que é deixada aos
grupos para investir sem medo de sofrer a sanção dos acionistas ou de dar aos
rivais os meios para fazerem oferta pública de ações; pela força dos mecanismos
que ela faz pesar sobre os governos para lhes impedir de sustentar as taxas de
investimentos e para empurrá-los à privatização e à desregulamentação.
(Chesnais, 2001, p.10-11)

Neste processo, o sistema capitalista estabilizou-se em seu modelo mais instável.


As mudanças na economia surtiram efeito e as relações da sociedade (em especial as de
trabalho) começaram uma lenta e profunda modificação.

3- OS REBATIMENTOS DA CRISE NO TRABALHO: pensando para além

Tendo em vista a atual situação da crise capitalista no mundo e no Brasil, e sua


análise em perspectiva pela tradição marxista, faz-se necessário pensar, e apontar o
elemento necessário da crítica ao trabalho assalariado como caminho possível de
superação de sua forma sócio-histórica. Nesse sentido, resgata-se Antunes, sociólogo
brasileiro, em sua contribuição à análise concreta da sociabilidade capitalista no Brasil e
as condições de trabalho postas por ela, bem como o resgate das contribuições de
Postone e Duayer, em sua crítica ontológica da sociedade capitalista, à luz de Marx.
Antunes (2013, 2015. Antunes; Braga, 2009) argumenta que após os anos
1970/80, mudanças de fundo ocorreram na estrutura produtiva (reestruturação produtiva)
e na constituição do Estado (neoliberalismo), que levaram à flexibilização das relações de
trabalho, uma vez que a nova forma de organização do capitalismo exigia um tipo
diferente de trabalhadores, polivalentes, que trabalhassem cada vez mais em
intensidade, tendo mais sobre trabalho extraído pelo capital, ao mesmo tempo em que os
postos de trabalho diminuem, em um processo claro de ampliação do desemprego
estrutural, sendo que essa aparente dicotomia será nomeada por ele como “movimento
pendular” da classe trabalhadora na atualidade. Caracteriza uma “nova polissemia”,
“nova morfologia” do trabalho, “[...]sua forma de ser, cujo elemento mais visível é seu
desenho multifacetado, resultado das fortes mutações que abalaram o mundo produtivo
do capital nas últimas décadas” (Antunes, 2008, p.124). Essa nova morfologia na era da
informatização levou a um processo de informalização das relações de trabalho, tornando

534
cada vez mais comum os trabalhadores terceirizados, precarizados, subcontratados,
flexibilizados, em tempo parcial e o chamado ciberproletariado, que se relaciona a um
processo de substituição, não extinção, cada vez maior do trabalho vivo pelo trabalho
morto no processo produtivo. Para o autor a “nova morfologia do trabalho” faz necessário
se pensar uma “noção ampliada e moderna da classe trabalhadora” (Antunes, 2008,
p.139), que abarcaria todos aqueles que vendem sua força de trabalho em troca de
salário (classe-que-vive-do-trabalho), no caso os trabalhadores produtivos e
improdutivos, o proletariado rural, proletariado precarizado, o subproletariado moderno,
part-time, os terceirizados e precarizados, os assalariados da economia informal e
também os desempregados.
É importante ressaltar que Antunes apresenta o sentido do trabalho como central
e fundante, elemento este que implica significados e interpretações por demais
importantes. O sentido de fundante dá ao trabalho a primazia de ser a categoria que
permite ao ser social o “salto ontológico” (Antunes, 2013, 2015; Lukács, 2013) e o coloca
como gênese da humanidade. O sentido de centralidade do trabalho, por sua vez,
apresenta a ideia distinta de que a esfera do trabalho permanece, para Antunes,
enquanto elemento principal do ordenamento societal, da qual as demais esferas são
derivadas ou que sofrem grande influência. Também apresenta um sentido político, na
medida em que aponta a permanência da classe trabalhadora enquanto protagonista das
lutas sociais e como vanguarda de um processo de luta revolucionária. Retornando a
Marx, deve-se entender como este analisa o trabalho de forma geral e particular.
Para o autor alemão (2011, 2013), a produção de valores de uso, produtos para
satisfação de necessidades humanas, aparece enquanto elemento “comum a todas as
formas sociais”. Entendemos,pois, que o trabalho, em sua determinação geral apresenta
pelo menos os seguintes elementos: momento que medeia a relação entre o homem e a
natureza a fim de possibilitar a reprodução da vida humana (modificando o sujeito
enquanto ser social); dessa forma se constituindo como uma relação social entre os
homens, que produzem socialmente; e o elemento da teleologia, a capacidade humana
de planejar e de criar idealmente o que deseja efetivar antes de realizar propriamente o
que deseja ou necessita. O resultado desse processo de trabalho, o produto do trabalho,
é, então, um valor de uso produzido, algo útil, necessário à vida do sujeito. Porém, se os
elementos comuns podem estar presentes em épocas distintas, o que caracteriza seu
desenvolvimento são suas diferenças, aqueles elementos que não se repetem. Desta
forma, cabe sempre entender as categorias com relações recíprocas com o momento
histórico em que são observadas. O trabalho assalariado, por exemplo, que gera valor e
cria capital, como características particulares desta sociabilidade, ou seja, o trabalho
subsumido ao capital se apresenta na distribuição enquanto salário que compra
mercadorias para a satisfação do trabalhador. Assim, essa forma de trabalho,
assalariado, se coloca enquanto particularidade desta sociabilidade e não como forma
universal.
Apresentada a concepção marxiana do trabalho será exposto um fragmento do
debate de Postone, a fim de pontuar sua crítica no bojo do debate da centralidade do
trabalho. Para o canadense,

Daí se torna claro que a crítica marxiana é uma crítica do trabalho no capitalismo,
não apenas uma crítica da exploração do trabalho e do modo de distribuição, e

535
que a contradição fundamental da totalidade capitalista deve ser vista como
intrínseca ao reino da produção em si, e não apenas uma contradição entre as
esferas de produção e distribuição. (Postone, 2014, p.148)

Essa proposição de Postone mostra ser de grande relevância por deslocar o ponto da
crítica da exploração por uma crítica intrínseca do trabalho. O problema não se encontra
na distribuição, e na apropriação do trabalho alheio, somente, mas se encontra em
grande medida já na produção e na forma como o trabalho se subordina ao valor. Na
mesma linha, Duayer defende que:

Se essa interpretação de Marx é plausível, pode-se defender que a sua crítica


ontológica ao capitalismo, é crítica da centralidade do trabalho.[...] Na sua
dimensão mais relevante e universalizável, é crítica dessa escravização de todos
nós à dinâmica de nosso trabalho passado, dinâmica fundada na centralidade do
trabalho, em nossa sociabilidade como trabalhadores, mas que, ao mesmo
tempo, prescinde cada vez mais de trabalho e, portanto, de nós todos como
trabalhadores. (Duayer, 2016, p.40-41)

E acrescenta que, “A contradição social intrínseca (e crescente) do capitalismo,


portanto, consiste justamente nisso, na continuada centralidade do trabalho, do trabalho
como categoria mediadora social estruturante” (Duayer, 2016, p.41). Nesse sentido,
pensar a superação da sociabilidade capitalista passa pela superação da forma
historicamente posta do trabalho, o trabalho assalariado. Esta reflexão é necessária para
se refletir inclusive sobre o trabalho do assistente social e sua prática com os sujeitos de
direito com quem atua.

4- O SERVIÇO SOCIAL COMO MEDIADOR DO CONFLITO E PARTE DELE

Dessa forma, ao compreender a centralidade do trabalho assalariado enquanto


elemento fundante na sociabilidade do capital, e suas modificações históricas a partir da
reestruturação da produção, coloca-se em debate as mudanças para a profissão do
Serviço Social.
Essa profissão, segundo Iamamoto (2007, p.415) “é uma das especializações do
trabalho, parte da divisão social e técnica do trabalho social” e seu exercício profissional
é realizado “pela mediação do trabalho assalariado, que tem na esfera do Estado e nos
organismos privados – empresariais ou não – os pilares de maior sustentação dos
espaços ocupacionais desse profissional, perfilando o seu mercado de trabalho”
(Iamamoto, 2009, p.8). Assim, através da percepção da profissão enquanto trabalho, e
sua atuação intrínseca às relações sociais, os novos determinantes históricos das
configurações do trabalho expostas nesse artigo, certamente, atingem a categoria
profissional de forma particular e específica.
Então, ao perpassar por essas modificações, decerto, se faz necessário atentar-
se às novas expressões da Questão Social. Visto que, há alterações na forma de
acumulação do capital, e proporcionalmente um crescimento de demandas e novas
expressões da Questão Social. Entretanto, como afirma Iamamoto,

As respostas à questão social passam a ser canalizadas para os mecanismos


reguladores do mercado e para organizações privadas, as quais partilham com o

536
Estado a implementação de programas focalizados e descentralizados de
“combate à pobreza e à exclusão social”. (Iamamoto, 2007, p.162)

Ou seja, contraditoriamente, a reconfiguração do Estado - neoliberal -, desenvolve


e passa a implementar políticas que não atendem às novas expressões, e
indubitavelmente, reafirmam essas mudanças traçadas, acentuando-as, o que
demonstra, também, a ligação inerente entre público e privado. Estas transformações no
mundo do trabalho, e as novas expressões da questão social não atendidas
suficientemente pelas políticas sociais, também rebatem no exercício profissional dos
Assistentes Sociais. Assim, explicita Raichelis (2018):

Podem ser observadas nas políticas de habitação, saúde, assistência social,


entre outras, atestando que assistentes sociais subcontratadas/os e
terceirizadas/os experimentam, assim como os demais trabalhadores
assalariados, a precarização do trabalho não protegido, a insegurança laboral, a
baixa e incerta remuneração, a desproteção social e trabalhista, o assédio moral,
o sofrimento e o adoecimento decorrentes do trabalho, ou seja, a precarização
do trabalho e da vida. (Raichelis, 2018, p.52)

Desse modo, assim como outras categorias profissionais, os Assistentes Sociais


perpassam pela precarização e flexibilização de seu exercício, com a baixa estabilidade,
principalmente, pelo crescimento de contratos temporários. Segundo Raichelis (2018),
essas trabalhadoras/es, dessa categoria profissional, constantemente são afetadas pelo
sentimento de desproteção caso haja uma perda de seus postos. Principalmente, ao
considerar o aumento do desemprego, a precariedade dos serviços, cortes nos direitos e
nos salários, que se faz tão presente na conjuntura atual.

5- CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fundamental do debate que se buscou apresentar neste trabalho é a explicitação


dos nexos entre a crise do capital, em seu caráter longo que permanece de uma crise
não superada que data dos anos 1970, com um processo de reestruturação produtiva,
expresso para a classe trabalhadora como precarização e perda de direitos, bem como o
desmonte das políticas sócias. Nesse sentido, o Serviço Social, que se configura
enquanto uma profissão que atua na mediação entre os interesses do capital e a
reprodução da classe trabalhadora, em seu chamamento profissional, se coloca em uma
encruzilhada (parte de sua longa trajetória enquanto profissão): qual pólo desse conflito
atender? Se por um lado precisa atender à demanda do empregador dado o estatuto
assalariado da profissão – o que o coloca também como afetado pela reestruturação
produtiva e os cortes das políticas sociais – por outro lado, na efetivação do projeto
profissional hegemonizado a partir de 1979, busca fortalecer o pólo da classe
trabalhadora em um projeto emancipador. A questão que colocamos é: para que seja
possível fortalecer uma perspectiva humano-societária que supere o atual estado de
barbárie capitalista, é fundamental se pensar a superação da forma trabalho atual –
entendendo o assistente social também como classe trabalhadora – ou seja, pensar uma
perspectiva que supere o trabalho assalariado.

537
6- REFERÊNCIAS

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RAICHELIS, Raquel. Serviço Social, transformações do trabalho e políticas sociais no


capitalismo contemporâneo. In: RAICHELIS, Raquel; VICENTE, Damares;
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Paulo: Cortez Editora, 2018.

539
PANDEMIA POR COVID-19 E SERVIÇO SOCIAL
Requisições Institucionais e Atribuição Privativa

Ingrid Adame Moreira197

RESUMO:
O presente trabalho versa sobre as requisições institucionais
e as atribuições privativas dos assistentes sociais em
tempos de pandemia na Política de Saúde. Tais requisições
impõem desafios ao trabalho profissional e requer dos
assistentes sociais um posicionamento crítico e propositivo
em conformidade com suas atribuições.

Palavras-Chave: Pandemia, Serviço Social, requisições


institucionais

ABSTRACT:
The present work deals with the institutional requirements
and the private attributions of social workers in times of
pandemic in the Health Policy. Such requests impose
challenges to professional work and require social workers to
take a critical and proactive stance in accordance with their
attributions.

KEYWORDS: Pandemic, Social Work, institutional


requirements

197Doutoranda em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), assistente social do
Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e-mail: ingridadameuff@gmail.com,
Eixo Temático: Ofensiva ultraconservadora e resistências: formação e trabalho profissional.

540
1- INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo problematizar a temática das requisições


institucionais que recuperam elementos do passado profissional na Política de Saúde e
impõem desafios ao trabalho dos assistentes sociais.
Com vistas a iniciarmos elucidamos que concordamos com Iamamoto (2021) que
a emergência sanitária que estamos vivenciando encontra um terreno já minado pela
crise do capital. Consideramos, então, que a pandemia aprofunda uma Crise de Capital
que já havia sido iniciada, e também concordamos com a sinalização da autora
supracitada de que existe uma naturalização, por parte do neoliberalismo, desta crise.
Pensar o trabalho do Serviço Social na Saúde em contexto da Pandemia gerado
pelo vírus: Covid-19 requer que recapitulemos que o Serviço Social conforma-se na
divisão social e técnica do trabalho. Essa profissão enquanto especialização do trabalho
coletivo dentro da divisão sócio técnica do trabalho, participa do processo de produção e
reprodução das relações sociais198 assumindo particularidades da sua forma de produção
de valores de uso.
O mesmo processo de institucionalização do Serviço Social na divisão sócio
técnica do trabalho é o que cria, em conformidade com Raichelis (2018), as condições
concretas para que o trabalho do assistente social ingresse no processo de
mercantilização.
O Serviço Social brasileiro, apesar de ser regulamentado como uma profissão
liberal, não o exerce desta forma, principalmente devido ao fato de a população atendida
por ele não ter condições de pagar pelos serviços prestados (IAMAMOTO, 2007).
O assistente social enquanto profissional assalariado vende a sua força de
trabalho para uma determinada instituição, seja ela estatal ou privada, que demandou os
seus serviços. Concordamos com Iamamoto (2007) que essa instituição é que possui os
meios de trabalho material, financeiro e humano para que o trabalho profissional do
assistente social se realize, se objetive. Os assistentes sociais, enquanto pertencentes à
classe trabalhadora, precisam se submeter às instituições, como condição de se
reproduzirem socialmente, em conformidade com Raichelis (2018). Esses profissionais
são contratados pelas instituições que já possuem um projeto institucional e o profissional

198 Entendemos que a reprodução das relações sociais “ não se reduz, pois à reprodução da força viva de
trabalho e dos meios materiais de produção. Não se trata, apenas, da reprodução material no sentido amplo:
produção, consumo, distribuição e troca de mercadorias. Refere-se à reprodução das forças produtivas e das
relações de produção na sua globalidade, envolvendo também, a reprodução espiritual: isto é, das formas de
consciência social, jurídicas, filosóficas, artísticas, religiosas e de antagonismos de classes [...]” (IAMAMOTO,
2007, p. 99).

541
é demandando para viabilizá-lo, mas este projeto institucional, na maioria das vezes,
distoa do projeto de profissão que a categoria defende.
Em conformidade com Iamamoto (2021) ratificamos que a intencionalidade ético-
política e transformadora do nosso projeto ético-político é tensionada pelas requisições
institucionais, que hoje tendem a restringir acessos e direitos à população usuária.
Também concordamos com Raichellis (2018) que o Serviço Social mantém em sua
história elementos vocacionais como a valorização de qualidades pessoais e morais,
discursos altruístas e apelo à empatia. Mas acreditamos que é pela via da autonomia
relativa que os profissionais podem elaborar estratégias individuais ou coletivas que
possam romper com o confessionalismo, com ações pragmáticas. Mas para romper com
tais ações, os profissionais precisam ter clareza do seu fazer, do objetivo de sua ação,
caso contrário, podem acabar por reforçar as requisições institucionais.

2- REQUISIÇÕES INSTITUCIONAIS X ATRIBUIÇÕES PROFISSIONAIS

Importa elucidar que partimos da ideia de que as requisições institucionais são


impostas aos assistentes sociais. E essas imposições se colocam ao exercício
profissional historicamente e são incontroláveis, mas elas estão relacionadas também
com a própria existência do Serviço Social, pois ao mesmo tempo que os assistentes
sociais devem atender aos interesses da classe trabalhadora, da qual também faz parte,
devem atender aos interesses da instituição, a qual contratou seu trabalho profissional.
Essas requisições se revelam através das demandas que chegam ao Serviço Social
através da gestão/instituição, da coordenação do setor e demais profissionais e também
chegam através dos usuários dos serviços.
Muitas dessas requisições institucionais não são compatíveis com as atribuições e
competências profissionais do assistente social, definidas legalmente na Lei de
Regulamentação da profissão de 1993. Nesta regulamentação, em seu artigo 4º, estão
definidas as competências profissionais do assistente social, as quais nos cabe ressaltar
as principais. Já em seu artigo 5º, a Lei de Regulamentação prescreve as atribuições
privativas do assistente social.Entretanto, independentemente de sua área de atuação, as
requisições institucionais, diga-se aqui: impositivas, são distintas do rol de atividades
especificadas nos artigos 4º e 5º, acima relatadas, da Lei de regulamentação da
profissão.Apoiamos Iamamoto (2021) quando a autora coloca que os tensionamentos
que existem entre os objetivos da atuação do assistente social e os objetivos de quem o
emprega é o que expressa a decisão coletiva dos profissionais em exercer sua relativa

542
autonomia, pois acreditamos que é através dessa autonomia profissional, que os
assistentes sociais podem conseguir imprimir ao seu trabalho um caráter crítico,
propositivo, técnico, político.
Conforme exposto por Vasconcelos (2015) as requisições institucionais, em sua
grande maioria, são de cunho burocrático e administrativo, atividades estas que não
requisitam formação ou preparação para além do bom senso e o mínimo de
conhecimento em programas do pacote Office para realizar cadastros, planilhar dados,
também requisitam a necessidade de ser alfabetizado para colocar em ordem as fichas,
requisitam também que os profissionais mediem conflitos familiares, que saibam utilizar o
telefone, que saibam realizar o preenchimento de formulários, que saibam empacotar e
guardar pertences, entre outras atividades. Ou seja, não é necessária nenhuma formação
profissional para que essas atividades sejam executadas.
Entendemos que as questões relacionadas ao assalariamento e à necessidade
dos assistentes sociais subsistirem são triunfantes na decisão de se colocar de maneira
contrária às requisições institucionais, visto que os assistentes sociais pertencem à
classe trabalhadora e necessitam vender sua força de trabalho para sua reprodução.
Entretanto, como classe trabalhadora, os assistentes sociais, enquanto categoria,
precisam se unir para reverter o movimento institucional a seu favor e não é realizando
atividades que não estão no rol de suas atribuições e competências que isto irá
acontecer. No movimento contrário do que se espera, ao se “vender” aos ditames
institucionais, o que acontece é a ratificação de um lugar que apesar de não ser do
Serviço Social, acaba por ser compreendido enquanto o modo de ser e estar da profissão
na instituição, quando, na verdade, é a “prática qualificada que vai impondo [...] um novo
modo de ser e estar dos assistentes sociais, o que vai trazer como conseqüência o
reconhecimento por parte da instituição e dos usuários” (VASCONCELOS, p.533, 2015)
do que o Serviço Social faz!
Não é à toa que é na Saúde que mais se lista ações e mais se reage ao que não é
de competência ou atribuição do Serviço Social. Matos (2013) explicita que “a inserção
do Serviço Social nos serviços de saúde se deu por meio de uma busca de construção do
exercício profissional a partir do modelo médico clínico” (MATOS,2013,p.57). O Serviço
Social era apreendido como uma complementação ao trabalho do médico, sendo
identificado como paramédico, assim como as outras profissões da área da saúde.
Importa destacar que no início da década de 1960 alguns profissionais
começaram a questionar o conservadorismo da profissão, que culminou em um amplo
processo de revisão da profissão, que ficou conhecido como Movimento de

543
Reconceituação no Brasil, conforme fora trabalhado na sessão temática sobre o processo
de emergência do projeto profissional crítico. Esse Movimento foi um marco para o
Serviço Social no que diz respeito, principalmente, ao comprometimento com os
interesses da classe trabalhadora ao buscar romper com um exercício profissional
comprometido com os objetivos institucionais e com o conservadorismo enraizado na
profissão. No texto da Elpídio (2021) há uma afirmação de que o conservadorismo fora
rompido. Entretanto, discordamos da autora, pois partimos da ideia de que nem no
período histórico da Reconceituação podemos afirmar que houve uma superação do
conservadorismo. Partimos do pressuposto de que naquele período houve um intento ao
rompimento do conservadorismo, que ainda se encontra presente até os dias atuais na
profissão e também na atuação dos assistentes sociais.
O Serviço Social não é uma ilha. A profissão é atravessada pelas mudanças
operadas na sociedade capitalista. Concordamos com Iamamoto e Yasbek (2019) que as
mudanças operadas na sociedade capitalista, vem alterando as requisições colocadas ao
Serviço Social, sua inserção no trabalho coletivo, os recursos disponíveis, dentre outras,
Na atualidade, o capitalismo vem expressando sua face pós-moderna, onde há o esforço
de substituir a universalidade por análises micro-focais. As causalidades não são
consideradas, os fenômenos são tomados não em sua essência, mas de forma
fragmentada, singular, individualista. Assim, o pensamento pós-moderno se configura
como uma estratégia capitalista de difusão da ideologia dominante e manutenção da
ordem social hegemônica (PAULA, 2014). E o Serviço Social permanece sendo
requisitado enquanto uma profissão para propiciar o controle social.
Em tempos da pandemia pelo vírus Covid-19, assistimos, no Serviço Social na
saúde, à retomada do conservadorismo, mas sob uma nova roupagem, que tem se
expressado, por exemplo, na requisição de que os assistentes sociais ofereçam apoio
terapêutico aos usuários dos serviços, que ofereçam conforto emocional na comunicação
do óbito. Essas requisições se articulam com a prática do Serviço Social Clínico, que
defende que a intervenção profissional deve fortalecer de maneira psicossocial os
usuários a partir de um tratamento social (PAULA, 2014). É evidente que o sofrimento
psíquico dos usuários podem ser agravados em virtude das múltiplas expressões da
questão social que os sujeitos vivenciam. Entretanto, a subjetividade é o objeto de
trabalho da psicologia e não do serviço social199. Cabe ressaltar que existem muitos
assistentes sociais que defendem as práticas clínicas enquanto uma área de atuação do

199Importa destacar que o conjunto CFESS/CRESS tem publicações e normativas que vedam a prática do
Serviço Social Clínico. Para aprofundamento quanto à temática, verificar o site do CFESS.

544
Serviço Social e, este fato, demonstra que o neoconservadorismo vem ganhando adeptos
na categoria profissional. São eles, assistentes sociais, que tomam o “psicossocial”
enquanto objeto de trabalho, e não como uma área de atuação e acabam por psicologizar
as expressões da questão social, oferecendo “tratamento social” as mesmas. Esses
profissionais operacionalizam como estratégias de atendimento, aos usuários e suas
famílias, as terapias comunitárias, as terapias de família, visando ao fortalecimento dos
vínculos familiares e comunitários, visando ao empoderamento.
Ainda no rol das práticas clínicas, temos outra requisição institucional que nos tem
chamado atenção em tempos de pandemia: a mediação de conflitos. Esta que sempre
acontece de forma a dar recomendações as partes envolvidas e apoiá-las, como se os
assistentes sociais tivessem um aporte técnico-operativo ou teórico-metodológico próprio
para solucionar essas questões. Ainda nesse “âmbito familiar”, os assistentes socias tem
sido requisitados também para comunicar altas, óbitos, transferências, a entrar em
contato com os familiares para requisitar documento, exames anteriores, entre outros. O
Serviço Social é entendido enquanto a profissão que cuida da família e não por acaso
essas atividades são demandadas aos assistentes sociais, que ainda são encarados
como moças boazinhas, recatadas, educadas, que sabem falar e tratar as famílias. Os
contatos com as famílias devem ser realizados por aqueles que desejam que tal contato
seja realizado, afinal, são eles que conhecem o motivo de tal solicitação. A comunicação
de óbito deve ser realizada por quem tem competência técnica para explicar a causa-
morte, ou seja, o médico. O assistente social tem importante e delimitado papel nas
situações de óbito, que tem a ver com as orientações sobre o acesso aos benefícios
assistenciais, previdenciários, conforme resolução 03/2020 publicada pelo CFESS.
Outra requisição institucional aos assistentes sociais, durante a Pandemia, é o
preenchimento dos formulários de notificação epidemiológica, que são preechidos na
incidência de doenças específicas, como a Covid-19. Esses formuários colhem
informações estritamente clínicas, ou seja, também nessa situação, os assistentes não
possuem competência técnica para preenchê-los, mas estão sendo requisitados para
preencherem. Fato parecido ocorre com as fichas de notificação das violações de direito.
Entretanto, nessa ficha em específico qualquer profisisonal tem competência para
preenchê-la, porém, é comum verificarmos assistentes sociais as preenchendo, inclusive
em situações que sequer prestaram atendimento. Fica claro que em ambas as
requisições postas aos assistentes sociais o que se coloca é a secretarização aos
médicos, o que também já acontecia na atuação do Serviço Social na Saúde, onde os
assistentes sociais apoiavam a atuação dos médicos.

545
Tendo em vista o exposto, podemos inferir que as requisições institucionais
expressas nesse trabalho em nada se relacionam com as competências e atribuições
expressas na Lei de Regulamentação da nossa profissão. Entretanto, apenas refeletimos
aqui as requisiçoes que apesar de não serem de competência ou atribuição do Serviço
Social, são incorporadas ao trabalho profissional dos assistentes sociais na Saúde. Ao
incorporar tais requisições, os profissionais além de contribuir para a subalternização da
profissão, contribuem para a imagem que a profissão tem na sociedade, de maneira a
conservar o que está posto e não de transformar as relações sociais, econômicas e
políticas vigentes.

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho do Serviço Social, em contexto de Pandemia provocada pelo Covid-19,


é de extrema importância junto aos usuários e familiares, na medida em que a profissão
tem muito a contribuir na construção de um trabalho qualificado em suas competências e
atribuições profissionais. Concordamos com Iamamoto (2021) que no trabalho cotidiano,
os profissionais tem acesso a um rol de informações sócio-econômicas, sobre modos de
viver, condições de vida, atendem a uma população majoritariamente pobre, violentada,
que compõe a população excedente, invisível ao capital. Em conformidade com a autora
também acreditamos que é urgente que essas informações sejam, à luz dos parâmetros
éticos, sistematizadas e publicizadas (IAMAMOTO,2021).
O que se coloca enquanto imperativo aos assistentes sociais é que os mesmos
consigam superar as requisições institucionais e acreditamos que a chave para essa
superação está nas próprias requisições da instituição, ao passo que os assistentes
sociais podem aproveitar o espaço, o momento propiciado por elas para realizar um
trabalho qualificado na direção dos interesses dos usuários dos serviços
(VASCONCELOS, 2015). Sendo necessário, portanto, que os profissionais se
“suspendam” do cotidiano200 com o objetivo de refletir criticamente sobre o seu fazer, pois
só assim é possível efetivar um trabalho crítico que objetive atender aos objetivos
profissionais e não aos institucionais.
As velhas requisições institucionais impostas ao Serviço Social em tempos de
Covid-19 desafiam o Serviço Social a reforçar no cotidiano de trabalho suas atribuições e
competências profissionais. O trabalho do Serviço Social na Saúde, e em contexto de
Pandemia, pode e deve ser parametrado no rol das competências e atribuições da nossa
200Com a suspensão do cotidianoé possível, a partir das mediações, ressignificar as demandas institucionais,
pois ao negá-las, os profissionais podem realizar uma reflexão crítica sobre elas.

546
profissão, pois se os assistentes sociais responderem, exclusivamente, às demandas
institucionais, o sentido do Serviço Social é alterado em sua essência. Acreditamos,
então, a categoria profissional deve refletir sobre as seguintes questões: A quais
objetivos a intervenção tem respondido? Em que medida o trabalho profissional, mesmo
que de forma inconsciente, tem reforçado as velhas práticas do Serviço Social? E para
finalizar, que imagem de profissão está sendo construída na instituição? Acreditamos que
por meio dessas indagações o serviço social pode conseguir alcançar os avanços que a
profissão teve nas dimensões ético-política e teórico-metodológica, mas que ainda
precisa ser construído na dimensão técnico-operativa. Para tal avanço não há receitas de
bolos, ou prescrições.
Supomos que para que a aproximação entre campo, ponta e academia, de fato
ocorra, a dimensão técnico-operativa precisa se constituir em objetos de pesquisa e para
tanto a categoria profissional também precisa estar aberta a ter o seu fazer profissional
tomado enquanto objeto de pesquisa. E o pesquisador precisa refletir sobre a forma
como a sua metodologia, a sua pesquisa será estruturada, visto que muitas pesquisas
que tomam a prática como objeto constroem uma análise de modo a criticar o que o
Serviço Social faz, mas pouco se dispõe a refletir e somar em estratégias para quem está
exercendo a profissão na ponta. Finalizamos aqui com alguns questionamento que foram
realizados durante algumas das aulas ministradas ao longo da disciplina: Qual a relação
entre a categoria profissional com o referencial marxista? Existe uma relação? Quais as
determinações contribuem para que a formação crítica que o Serviço Social tem
construído ainda encontre obstáculos para serem introjetadas no exercício profissional,
nos espaços sócio-ocupacionais? Questionamentos ainda sem respostas, mas que
podem suscitar discussões futuras.

4- REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

CFESS. Conselho Federal de Serviço Social. Orientação normativa 03/2020.

ELPÍDIO, M.H. Preparando a “virada”: a contribuição do CELATS no redimensionamento


da organização e formação profissional do Serviço Social brasileiro.In: IAMAMOTO, M. V.
e SANTOS C. M. (Orgs). A História pelo avesso. A Reconceituação do Serviço Social na
América Latina e interlocuções internacionais. São Paulo: Cortez, 2021, pgs.271-293.

IAMAMOTO, Marilda. Serviço social em tempo de capital fetiche. Capital financeiro,


trabalho e questão social. 2ªed. São Paulo: Cortez, 2007.

_______________ Os desafios da profissão de Serviço Social no atual contexto de


retrocessos das conquistas da classe trabalhadora”. CFESS, 2021.

547
IAMAMOTO, Marilda, e YAZBEK, Maria Carmelita. Posfácio - Maria Carmelita
Yazbek/Marilda Villela Iamamoto in YAZBEK, Ma. C e IAMAMOTO, M. V. Serviço Social
na História – América Latina, África e Europa. SP: Cortez, 2019.

MATOS, Maurílio. Serviço Social, ética e saúde. Reflexões para o exercício profissional.
1ª Edição. São Paulo: Cortez Editora, 2013.

PAULA, Luciana. Estratégias e Táticas. 1ª Edição. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2016.

RAICHELIS, R. D. “Serviço Social, trabalho e profissão no capitalismo contemporâneo”.


In: RAICHELIS, R. D; VICENTE, D. P. (Org.); ALBUQUERQUE, V. O. (Org). A nova
morfologia do trabalho no Serviço Social. São Paulo: Cortez Editora, 2018; pgs.25-65.

VASCONCELOS, Ana Maria. A/o Assistente Social na luta de classes. Projeto


Profissional e Mediações Teórico-Práticas. 1ª Edição. São Paulo: Cortez, 2015.

548
TRABAJO SOCIAL EN EL CONTEXTO DEL COVID-19: retrocesos, resistencias y
desafíos en la Región Iberoamericana

Virgínia Alves Carrara201


Miguel Ángel Oliver202
Rosana Matos-Silveira203
Joana Maria Mestre204
Ariane Rodrigues De Paula205
Ana Caroline Silva206

Resumen: Esta comunicación es parte de una investigación


internacional que analiza los desafíos que atraviesa el
Trabajo Social en diferentes países iberoamericanos como
consecuencia de la pandemia del COVID-19. Para ello se ha
desarrollado una metodología cualitativa bibliográfico-
documental desde cuatro ejes temáticos: formación, trabajo,
organización profesional y estudiantil. Los resultados
parciales señalan diferentes desafíos para la categoría
profesional: fomento del trabajo en red, amenaza del trabajo
remoto en sustitución del presencial; escasa autonomía
profesional; necesidad de reivindicar derechos debilitados;
así como rescatar la dimensión política profesional y

201Trabajadora Social, docente del Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto,
doutora em Trabajo Social por la Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Coordinadora de
lainvestigación. E-mail: vcarrara@ufop.edu.brComunicación vinculada eneleje temático: Resistências, Lutas
e Internacionalização do Serviço Social; Política Social, trabalho e questão social: retrocessos,
resistências e desafios ao Serviço Social.
202 Trabajador Social, docente del Departamento de Filosofía y Trabajo social de la Universitat de les Illes

Balears (UIB), España. Doutoramiento en Trabajo Social, Servicios Sociales y Política social. Vice-
coordinador de la investigación. E-mail: mangel.oliver@uib.es
203 Trabajadora Social, docente del Departamento de Trabajo Social y Servicios Sociales de la Facultad de

Trabajo Social de la Universidad de Granada, doutora en Antropología Social y Cultural por la Universidad de
Granada, España.E-mail: rosanadm@ugr.es
204 Trabajadora Social, docente del Departamento de Filosofía y Trabajo social de la Universitat de les Illes

Balears (UIB), España E-mail:joanamaria.mestre@uib.es


205Estudiante de Trabajo Social del Grado de Trabajo Social del Departamento de Serviço Social da

Universidade Federal de Ouro Preto, becária de Iniciación Cientifica, del Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica Ações Afirmativas –PIBIC/AF – CNPq. E-mail: ariane.paula@aluno.ufop.edu.br
206Estudiante de Trabajo Social del Grado de Trabajo Social del Departamento de Serviço Social da

Universidade Federal de Ouro Preto, voluntaria en esta investigación y becaria de Iniciación Cientifica endel
Programa de Bolsas de iniciação científica e tecnológica da FAPEMIG enlainvestigación A Formação em
Serviço Social na Espanha pós Bolonha e a “era da educação digital”: fundamentos e perfil profissional. E-
mail: ana.cs1@aluno.ufop.edu.br

549
profundizar en la regulación de la profesión en sus
atribuciones privativas y competenciales.

Palabras-Clave: COVID-19; Trabajo Social; Región


Iberoamericana; Desafíos Profesionales; Retrocesos y
Resistencias.

Abstract: This paper is part of an international research that


analyzes the challenges that Social Work is facing in
different Ibero-American countries as a consequence of the
COVID-19 pandemic. A qualitative bibliographic-
documentary methodology was developed from four
thematic axes: formation, work, professional and student
organization. The partial results point to challenges for the
professional category: the promotion of networking, the
threat of remote work replacing face-to-face work; fragile
professional autonomy; the need to claim weakened rights;
as well as to rescue the professional political dimension and
deepen the regulation of the profession in its private
competencies and attributions.

Keywords: COVID-19; Social Work; Ibero-American Region;


Professional Challenges; Retrogressions; Resistance.

1- Introducción

La comunicación que presentamos, forma parte de una investigación más


amplia, actualmente en curso, y que tiene por objeto analizar los desafíos que la
pandemia ha representado para la profesión de Trabajo Social en diferentes países
iberoamericanos. Algunos de los cambios que se han venido produciendo en relación al
trabajo profesional en diferentes países en el contexto de pandemia, acentúan el
protagonismo de una intervención asistencialista centrada en el enfoque individual. Esta
tendencia, que ya se venía dando en los diferentes contextos en el marco del escenario
neoliberal en que se desarrollan las políticas sociales, se caracteriza también por el
predominio de respuestas profesionales que vienen actuando, especialmente en
escenarios de crisis, en clave de emergencia (Navarro, 2000). Una realidad que evidencia

550
los déficits que históricamente se vienen dando en relación al desarrollo de actuaciones
de carácter preventivo.

De hecho, la pandemia del COVID-19 ha incidido profundamente en los sistemas


públicos de protección social mostrando a nivel global la debilidad de los mismos para
hacer frente a retos de esta envergadura. Al mismo tiempo, esta fragilidad ha evidenciado
las consecuencias de las políticas económicas basadas únicamente en el libre mercado y
la reducción del Estado desde el modelo neoliberal (OLIVER, 2021). Si bien es cierto que
el virus ha adoptado un carácter global, este ha afectado de manera distinta a los
entornos más desfavorecidos, contribuyendo a la generación de una nueva estratificación
social (IZQUIERDO, 2020).

El elevado impacto económico en las familias, consecuencia de la pandemia, ha


contribuido a un aumento de la presión asistencial en los servicios sociales y en las
trabajadoras sociales. Consecuentemente, la necesaria priorización de actuaciones para
dar cobertura a las necesidades básicas de las personas, ha comportado una mayor
dedicación de las trabajadoras sociales a labores administrativas y de gestión, en
detrimento de otras competencias profesionales. Esta realidad, recuerda la simplificación
de las funciones de las trabajadoras sociales, a las que ya hacía por otra parte referencia
Healy (2001) dos décadas atrás, y que se enmarca en la inadecuada delimitación de
funciones de los servicios sociales, y a lo que corresponde o no hacer a sus profesionales
(AGUILAR, 2014; FANTOVA, 2008). Todo ello, no puede entenderse, en cualquier caso,
al margen de los cambios que en los sistemas de protección se vienen dando en el marco
del sistema capitalista, desde la visión individual de los problemas del modelo neoliberal,
que delega en la ciudadanía o en las organizaciones parte de la responsabilidad en la
resolución de los mismos (FONT, 2014; MONTAÑO, 2007).

En esta comunicación se presentan los resultados preliminares de la


investigación internacional en la que se analizan, en diferentes países de Iberoamérica y
Caribe (hasta el momento doce países), los desafíos para la formación, el trabajo y la
organización política de las y los trabajadores sociales, y de los estudiantes en el
contexto de la pandemia del coronavirus.

551
2- Proceso metodológico

La hipótesis de la investigaciónes que la pandemia desenmascaró la lógica de los


recortes en las políticas sociales, al mismo tiempo que empeoró las condiciones de vida y
de trabajo de la clase obrera y de las trabajadoras sociales, por ser parte de la misma
clase trabajadora, acelerando los procesos de cambio en el mundo del trabajo, que ya se
venían desarrollando especialmente en lo que se refiere al uso de las TIC. Recordando a
Antunes (2020), nos unimos a los cuestionamientos por el formulados: ¿qué tiene que
ofrecer el sistema de metabolismo antisocial del capital a la humanidad que depende de
su trabajo para sobrevivir? ¿Cómo afrontan las trabajadoras sociales en su trabajo
cotidiano los desafíos del ejercicio profesional en este complejo contexto capitalista que
no tiene límites para su expansión, y que su resultante es la sistemática destrucción de la
vida? Si con el avance del neoliberalismo la barbarie hacía sombra sobre los cuatro
rincones del planeta, la pandemia de la COVID-19 desnudó la cara perversa del carácter
discriminatorio en relación a las clases sociales, pues su expansión mostró su cara más
brutal e intensa para las personas que dependen de su propio trabajo para vivir. Las
trabajadoras sociales fueron también víctimas de esa destrucción que fue más aguda en
coyunturas políticas en las que algunos gobiernos de ultraderecha actuaron desde
posturas negacionistas frente a la pandemia.

Tratamos con este estudio de responder a las siguientes cuestiones: ¿Cómo


están actualmente las organizaciones de la categoría promoviendo la defensa de la
protección de las profesionales? ¿Cuáles son las demandas profesionales en este
momento de pandemia? ¿Qué iniciativas rescatan y/o refuerzan la dimensión política del
Trabajo Social, especialmente en este contexto? ¿Cómo se ha dado la adaptación del
trabajo o la atención, del nivel presencial al virtual como resultado de la situación
generada por la COVID-19? ¿Cuáles son los impactos en la intervención profesional
desde los servicios sociales? ¿Ha habido interferencias en la formación profesional y
académica del Trabajo Social Iberoamericano en función del presente escenario de crisis
sanitaria y en contexto de crisis del capital? Para ello se realizó un análisis cualitativo de
material disponible públicamente en páginas webs, blogs, plataformas como facebook,
twitter, youtube, etc. Estos materiales han sido editados por los colegios profesionales de
Trabajo Social, instituciones académicas o organizaciones de colectivos profesionales en
general, en los países seleccionados para el estudio que en el momento estén
debatiendo sobre la temática de la pandemia del COVID-19 desde su articulación con el
Trabajo Social. Hemos accedido a materiales de dominio público de doce países,

552
concretamente de: Argentina, Bolivia, Brasil, Chile, Colombia, Costa Rica, Cuba,
Ecuador, España, Perú, Portugal y Puerto Rico. El total del material analizado comprende
26 audiovisuales (en directo, conferencias web, mesas redondas, en blogs, facebook,
twitter, Youtube), y 20 artículos, provenientes de los Colegios profesionales de Trabajo
Social, instituciones académicas u otro tipo de organizaciones o colectivos profesionales
en general, en los países seleccionados para el estudio. Los ejes de investigación y
análisis se centraron en cuatro dimensiones: trabajo/ejercicio profesional, formación,
organización profesional y estudiantes.

3- Resultados y Discusión

Los resultados señalan, por una parte, desafíos a los que ha tenido que hacer
frente la profesión como: la amenaza de la sustitución del trabajo presencial por el trabajo
remoto; la falta de autonomía de las trabajadoras sociales para el desempeño de su
profesión; la necesidad de reivindicar derechos que vienen siendo progresivamente
enfrentados; la necesidad de rescatar la dimensión política del Trabajo Social; la
exigencia de profundizar en la regulación de la profesión que permita definir la atribución
de las competencias y funciones de las profesionales. Por otro lado, los resultados de la
investigación reflejan también aspectos como: las situaciones de estrés e incertidumbre
en las trabajadoras sociales que genera una situación de pandemia mundial que, en
determinados contextos, ha supuesto el fallecimiento de profesionales; la falta de
estructura básica de los servicios; la escasez de recursos materiales y profesionales; la
delegación de responsabilidades del Estado a la sociedad civil, y la existencia de
desigualdades estructurales que la pandemia ha puesto aún más de
manifiesto.Presentamos aquí los resultados parciales para los países de Brasil,
Colombia, Costa Rica, España, Perú y Puerto Rico, en el período pandémico, desde
marzo de 2020 a julio de 2021. Las expresiones de la cuestión social objeto de la
intervención e investigación profesional se vieron agravadas por el aumento del
desempleo, especialmente en el sector servicios y turismo. Al mismo tiempo, aumentó
exponencialmente el volumen de demandas de ayuda a los servicios sociales y
aparecieron nuevos usuarios que nunca habían demandado asistencia con anterioridad a
los mismos:

“Estamos atendiendo a familias que ya estaban económicamente mal previo a la crisis y


que a raíz de la crisis su situación económica es bastante peor. Nos están apareciendo
nuevas familias que no eran conocidas en servicios sociales que han quedado en una

553
situacióneconómica muy precaria” (LOPEZ, La Manchuela, Albacete/España, 2020.
Colegio Oficial de Trabajo Social de CLM).

Las trabajadoras sociales han asumido la función de realizar determinados


trámites de prestación de servicios que no son propios del Trabajo Social como
consecuencia de la falta de leyes reguladoras de la profesión, que generan dudas sobre
las responsabilidades de las profesionales de Trabajo Social y en relación al
reconocimiento de la profesión. El ejercicio profesional de las trabajadoras sociales fue
alterado, las intervenciones tenían lugar en la mayor parte de los casos, de forma remota,
a través del correo electrónico, de llamada telefónica o de WhatsApp. Los usuarios y los
profesionales demostraron dificultades en adaptarse a estas situaciones. También, la
falta de recursos humanos y materiales para el ejercicio profesional, afectó en aspectos
como el del secreto profesional, ya que las trabajadoras sociales tuvieron que utilizar el
móvil para atender a las personas. También se produjo una desresponsabilización del
Estado en lo que concierne a sus deberes, con una delegación de responsabilidades a
las entidades del tercer sector.

Antes de la pandemia, en España, ya era visible en el cotidiano profesional de las


trabajadoras sociales, el desarrollo de una atención centrada en la gestión de recursos,
especialmente en el ámbito de los servicios sociales. Girela (2017) afirma que los
profesionales del Trabajo Social hoy tienen sus tareas reducidas en “la gestión de
recursos y servicios en detrimento de las acciones profesionales vinculadas a la
promoción, y sensibilización, generando una relación con la población usuaria en
términos de dependencia institucional” (p.101)). En ese sentido, esta tendencia puede
consolidarse ante el actual escenario.

“(…) hoy los profesionales en Trabajo Social estamos presentes en diferentes ámbitos
de actuación, entre otros: salud, educación, servicios sociales, sector carcelario,
rehabilitación. Espacios donde se encuentra el mayor porcentaje de la población en
situación de vulnerabilidad (...) En este sentido, y ante la presencia del Covid-19 y la
cuarentena, se agudizan las situaciones que son objeto de la intervención del Trabajo
Social en la cotidianidad” (Carta Pública del Consejo Nacional de Trabajo Social,
Colombia, 2020)

La situación de las demandas y respuestas de la profesión a través de sus


organizaciones profesionales, y desde los espacios de trabajo que requieren cuidados
presenciales para el desarrollo de la intervención, comportó la puesta en marcha de
diferentes tipos de acciones para adaptarse a la nueva realidad:

“Consulta social telefónica; redes de apoyo con videollamada; haciendo registros


documentando las condiciones a través de video, etc.; ofertar teletrabajo para las
funcionarias que estaban en situación de riesgo de exposición” (Hospital San Juan de

554
Dios. Costa Rica. Expresiones de la intervención profesional en el contexto de
pandemia. Actividad organizada por ALAEITS)

En el estudio de Molina (2017) queda claro que antes de la pandemia las


condiciones de trabajo ya presentaban las características de las transformaciones
político-económicas del ideario neoliberal. La autora señala que Costa Rica - como el
resto de países de América Latina - experimenta una serie de desafíos a nivel social,
económico, político y ambiental. Desafíos estos que dan cuenta de las transformaciones
resultantes de su participación periférica y dependiente dentro del sistema capitalista.
Para las trabajadoras sociales costarricenses, las diferentes formas de empleo
permanente intensificaron la inestabilidad y ausencia de derechos laborales. Al mismo
tiempo que las políticas sociales sufren recortes en la dirección del cumplimiento de los
preceptos neoliberales.

En Puerto Rico, el Trabajo Social enfrenta nuevos y grandes desafíos debido a


la actual crisis de capital, con un aumento en los recortes y una disminución en la
protección social. Eso ha llevado a los profesionales, de acuerdo con Cortez, Vega y Ortiz
(2017), a participar activamente en movilizaciones sociales para evitar un retroceso en el
ámbito social y profesional.

“Hemos defendido la inclusión de nuestros profesionales en la protección de la


seguridad en espacios laborales, en acceso a incentivos económicos”(ORTIZ, Colegio
de Trabajadoras Sociales de Puerto Rico, 2020).

En Colombia, Costa Rica, Perú y Puerto Rico, identificamos la falta de medidas


de protección en los espacios de trabajo presencial, dándose algunas movilizaciones de
la categoría en estos países. Sin embargo, hubo diferentes respuestas en cada uno de
ellos, si bien fueron en general, respuestas negativas que no garantizan la seguridad y
los derechos de las trabajadoras sociales en la coyuntura del COVID-19. También la
formación fue impactada por la pandemia incidiendo en las condiciones de precarización,
con la imposición de la enseñanza remota y la desresponsabilización del Estado en
relación a las condiciones mínimas que deberían tener todos los estudiantes,
profundizando en la desigualdad y la exclusión entre estos.

En este contexto, el profesorado y toda la comunidad universitaria también se


enfrentan a retos para posibilitar y continuar con su labor docente que ponen de
manifiesto las dificultades existentes desde sistemas que no estaban preparados para
acometer determinados cambios:

555
“Hacemos una docencia virtual (...) pero en Perú sucede que el 25% de la población es
rural. Se estima que uno en cada cuatro peruanos no tiene Internet. Como se puede ir a
estudiar (...) en nuestro nuevo sistema remoto.” (ESCOBAR, Universidad Nacional
Mayor de San Marcos - Lima, Perú, 2021)

“É nesse contexto que se constroem as projeções do futuro profissional de todos


estudantes de Serviço social. Sabemos que essa desigualdade de acesso a recursos e
concentração de renda, é própria de um projeto societário que subjuga e explora e
assassina a classe trabalhadora em nome dos interesses do capital e do mercado”.
(Centro Acadêmico do Serviço Social Ricardo Ferreira Gama, UNIFESP, Brasil, 2020)

En Brasil, en la coyuntura pandémica, hubo movilización de la categoría para


reivindicar sus derechos en relación a la intervención. La reafirmación de los organismos
oficiales (ABEPSS, CFESS,) sobre la importancia de la protección y atención
especializada en defensa de la clase obrera fue, y sigue siendo, una labor constante de
esos colectivos. Los desafíos del trabajo remoto como la dificultad en el uso y en las
condiciones de acceso de las tecnologías para la atención a los usuarios, es otra cuestión
que las profesionales tuvieron que afrontar. El aumento de los límites ya existentes y el
surgimiento de nuevas demandas en los diversos espacios socio-ocupacionales de las
trabajadoras sociales, es un reto que se profundizó con la pandemia, en un país con un
gobierno de ultraderecha que minimizó la importancia de esta desde el inicio. Ante el
aislamiento social impuesto por la pandemia del COVID-19, que requirió el acceso a las
plataformas virtuales para la formación educativa, la desigualdad también desafía esta
condición, dada la posición social de precaria accesibilidad que el capitalismo impone a
una determinada clase, la clase trabajadora, la población empobrecida.Siendo América
Latina un continente marcado por la colonización, cuando se terminó la política de
servidumbre en las entonces colonias, y estas se volvieron independientes, lo que se
colocó a continuación fue una coyuntura de dependencia de las naciones
latinoamericanas a las potencias capitalistas. En palabras de Marini (2005), esta realidad
configura una relación de subordinación entre países formalmente independientes, que
manipula las relaciones de producción de las naciones dependientes para garantizar la
reproducción ampliada de este vínculo de sumisión. A lo largo de los años, el continente
latinoamericano, mantiene importantes vínculos de lucha, como en el caso de Brasil con
el Movimiento de los Trabajadores Rurales sin Tierra (MST) que, desde su fundación,
actuó directamente para que más de 450.000 familias obtuvieron acceso a este derecho,
a través de la resistencia y organización por parte de los trabajadores rurales. Junto a
este ejemplo, el resultado de las elecciones presidenciales de 2022 en Colombia también
representa otra expresión de resistencia para el territorio continental, ya que por primera
vez fue derrotado un gobierno liberal y conservador. En el mismo sentido, también cabe

556
mencionar el actual paro nacional en Ecuador, impulsado por la Confederación de
Nacionalidades Indígenas del Ecuador (CONAIE), con numerosas exigencias frente a las
situaciones de precariedad económica y social que presenta el país. También es símbolo
de esa pujanza de las movilizaciones populares latinoamericanas, las diferentes protestas
que desembocaron en la marcha más grande ocurrida en Chile, que tuvo lugar en 2019,
donde miles de personas salieron a las calles para responder al olvido estatal ante la
desigualdad social presente en el conjunto del país.

4- Consideraciones Finales

Dado que la profesión de Trabajo Social está articulada con la realidad histórico-
social, su sustrato material es la realidad social, y la vida cotidiana de ciertos segmentos
de la población (GUERRA, 1998). Por lo tanto, es una parte necesaria de esta profesión,
estudiar los segmentos que se colocan y se actualizan en la sociedad capitalista.
Investigar e indagar en los medios implicados en esta vida cotidiana, implica dilucidar
contextos y caminos necesarios para una mejor comprensión y desarrollo del
conocimiento teórico y metodológico de la realidad en la que se inserta esta profesión.

Podemos afirmar que los resultados preliminares indican que la pandemia, en los
países hasta el momento investigados, impactó en toda la categoría profesional, sea en
el ámbito académico, con repercusión en los estudiantes, en el ejercicio profesional, así
como en las organizaciones colectivas de trabajadoras sociales. Estas han venido
afrontando nuevas demandas que exigen respuestas rápidas y cualificadas, en cuanto a
la atención a los usuarios, y en relación a los propios profesionales en su quehacer diario.
Con la pandemia, la falta de estructura básica de servicios es aún más explícita en los
países en desarrollo, en América Latina.

El neoliberalismo es una de las respuestas conservadoras que se alinea con las


necesidades objetivas y subjetivas de este período histórico. Desde el punto de vista
ideológico, el neoliberalismo es la ideología del capital en crisis que apuesta por la
desmoralización del Estado Social, por la desregulación y supresión de los derechos
conquistados de la clase trabajadora y de todo lo que es público. En esta lógica, es
necesario traspasar a las personas y familias las responsabilidades que le corresponden
al Estado. Y con ello, los recortes en el gasto público, la supresión de los espacios
democráticos de toma de decisiones, la ejecución de políticas de exterminio y

557
criminalización de los pobres, y el debilitamiento y fragmentación de los sujetos colectivos
y sus luchas.

En tiempos de crisis de capital, con cambios en los espacios laborales, en


políticas sociales, son muchos los desafíos que, desde el ejercicio profesional, vienen
afrontando las trabajadoras sociales de los países investigados. Con la particularidad de
los espacios y contextos, podemos constatar como en todos ellos se ha producido un
retroceso de derechos como consecuencia del incremento de políticas sociales
neoliberales. Todo este escenario de negligencias estatales en cada territorio investigado,
señala que hay otro reto además de los recortes a los derechos laborales de las
trabajadoras sociales, como es el de estar en primera línea del frente en esta pandemia,
sin olvidar que muchos compañeros/as trabajadores sociales, perdieron la vida en esta
batalla.

5- Referencias Bibliográficas

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559
A DIMENSÃO ÉTICA NA FORMAÇÃO DE ASSISTENTES SOCIAIS NA ESPANHA:
dados preliminares de pesquisa internacional

Tatiana Reidel 207


Laís Duarte Corrêa 208

RESUMO:
Objetiva-se contextualizar o processo de pesquisa sobre a
dimensão da ética profissional no Serviço Social espanhol e
alguns achados preliminares, para contribuir com o debate e
o avanço de estudos sobre o Serviço Social internacional.
Foram analisados 38 Cursos de Serviço Social com 1565
planos de ensino. Destes, 137 (8,75%) abordavam
“ética/deontologia” e 8 cursos não contêm uma disciplina
sobre a temática, mas seu conteúdo é abordado em outras
disciplinas. Evidencia-se o desafio de superação da ética à
sua esfera normativa não articulado com suas outras
dimensões, dificultando a apreensão de uma ética aplicada
na formação e trabalho profissional.

Palavras-chave: Serviço Social internacional; Espanha;


ética; formação

ABSTRACT: The article aims to contextualize the process of


research about professional ethical dimension in Spanish
Social Service, with a view to contributing to the debate and
to the advancement of studies on international Social Work.
Were analyzed 38 Spanish Higher Education with 1565
Teaching Plans. 137 (8.75%) dealt with "ethics" or
"deontology". It was found that 8 courses do not include
subjects entitled "ethics/deontology", but the content is
covered in at least one course. Is evident the challenge of
overcoming ethics in its normative sphere which is not
articulated with its other dimensions, making it difficult to
apprehend ethics applied to training and professional work.

Keywords: international Social Work; Spain; ethics; training

207 Assistente Social, Mestra e Doutora em Serviço Social (UFRGS) Pós-Doutora pelo Departamento de
Serviço Social (UCM/Espanha), Professora do Departamento de Serviço Social e Pós-Graduação em Política
Social e Serviço Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Líder do Grupo de Estudo,
Pesquisa e Extensão sobre Trabalho, Formação e Ética em Serviço Social (GEPETFESS/UFRGS). Bolsista
Produtividade CNPq.
208 Assistente Social, Mestra em Política Social e Serviço Social pela UFRGS, Doutoranda em Serviço Social

na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), bolsista do CNPq. Integrante do
GEPETFESS/UFRGS; do Grupo de Estudos e Pesquisa Trabalho e Política Social na América Latina
CNPq/UFSC, Núcleo de Pesquisa em Políticas e Economia Social –NEPES/PUCRS, e do Núcleo de Estudos
e Pesquisas em Políticas Públicas e Sociais -NEPPPS/UCS.

560
1- INTRODUÇÃO

Este trabalho é oriundo da sistematização de pesquisa internacional intitulada “As


Particularidades da Dimensão Ética na Formação e no Trabalho dos Assistentes Sociais
na Espanha”. Trata-se de um pós-doutoramento vinculado ao Departamento de Serviço
Social da Universidade Complutense de Madri/Espanha. O mesmo visa contextualizar o
processo de pesquisa sobre a dimensão da ética profissional no Serviço Social espanhol
e alguns achados preliminares, para contribuir com o debate e o avanço de estudos
sobre o Serviço Social internacional.
Compreende-se como imprescindível a realização de estudos e pesquisas que
envolvam o quadro sócio-histórico mundial, no qual o Serviço Social se inscreve,
constituindo-se em um ponto de convergência para refletir sobre as determinações da
profissão em âmbito internacional. Destaca-se a relevância de refletir sobre o Serviço
Social em âmbito internacional, considerando a “lacuna na produção acadêmica brasileira
quanto ao conhecimento do Serviço Social no circuito mundial nas últimas décadas”
(IAMAMOTO; YAZBEK, 2019, p.11).
Trata-se de um estudo misto, iniciado no ano de 2020 que se estende aos dias
atuais, realizado na Espanhaem tempos de Covid-19209. A pesquisa foi realizada in loco
pela pesquisadora e pelo grupo de pesquisa que permaneceu no Brasil, e se constituiu
em um respiro em tempos de asfixiamento oriundo das consequências do vírus, mas
também de uma série de retrocessos dos direitos da classe trabalhadora.
O estudo filia-se ao método materialista-histórico-dialético, utilizando-se de dados
bibliográficos e documentais das 38 Instituições de Ensino Superior espanholas (50
públicase 33 particulares) que ofertam Serviço Social (MINISTERIO DE
UNIVERSIDADES, 2020), tendo-se identificado em seus respectivos sites 1565 planos de
ensino de disciplinas relacionados à temática da Ética.
Nesta produção, se dará ênfase ao percurso desenvolvido neste estudo e alguns
de seus resultados preliminares, especificamente no que tange ao estudo documental
sobre a ética na formação profissional de assistentes sociais espanhóis, possibilitando

209 Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto da doença
(Covid-19), causada pelo novo coronavírus, constitui-se emergência de saúde pública de importância
internacional, o mais alto nível de alerta da OMS, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional.
No mesmo ano, em 11 de março de 2020, a OMS caracterizou a Covid-19 como uma pandemia. Neste
sentido, é importante destacar que dois dias após essa caracterização, no dia 13 de março, decretou-se
“estado de alarme” na Espanha, um dos países considerados epicentros da pandemia.

561
ampliar estudos teórico-metodológicos sobre essa dimensão na formação profissional em
Serviço Social na Espanha.
Trata-se de uma possibilidade concreta de contribuição no processo de
internacionalização do ensino superior, que, “nos últimos anos, tem sido sinônimo de
qualificação e excelência no ensino superior, criando escala, valor e servindo de
estratégia na definição dos rankings entre as universidades” (MARTINS; CARRARA,
2014: 222), além de fortalecer os laços de cooperação internacional, inferindo sobre a
produção de conhecimento na área do Serviço Social.

2- O PROCESSO DE PESQUISA EM TEMPOS DE PANDEMIA: ALGUNS


RESULTADOS PRELIMINARES

Conforme já exposto, a pesquisa teve início no ano de 2020. Dez dias após a
chegada da pesquisadora na Espanha, decretou-se “estado de alarme” da população
espanhola, limitando a circulação de pessoas e a racionalização do uso de serviços ou
consumo de artigos de primeira necessidade, entre outros.
Diante deste contexto, exigiu-se adequações ao processo de pesquisa,
otimizando o processo de coleta dos dados para a modalidade online. No Brasil,
concomitantemente, acompanhou-se a negação e reducionismo do vírus, bem como o
processo lento de tomada de medidas de distanciamento, de cuidado e de proteção à
população em geral.
Mesmo em diferentes contextos, o grupo de pesquisa, composto por uma
doutoranda, dois mestrandos e três bolsistas de iniciação científica, e a pesquisadora,
encontraram-se, na modalidade online, semanalmente, para estudos, organização e
socialização dos processos de coleta e análise dos dados.
Nesta perspectiva, destaca-se que, além de contribuir com a pesquisa
internacional, a experiência aqui apresentada também possibilitou um importante
envolvimento entre discentes de graduação e de pós-graduação. Ressalta-se ainda que
essa articulação permitiu a construção de mediações com a formação profissional no
Brasil, bem como do fortalecimento dos fundamentos do Serviço Social brasileiro,
exigindo-se estudos e apropriação para as análises realizadas.
Ainda, e mesmo considerando as limitações do confinamento e parcas condições
concretas de aproximações físicas e articulações, a pesquisadora participou junto aos
distintos coletivos de Assistentes Sociais, como espaços formativos da e com a categoria
profissional, eventos e mesas redondas. Participou da realização de reunião com a

562
direção do Colégio Oficial de Madri em julho e da participação de grupos de discussão de
Assistentes Sociais da Espanha, possibilitando avançar no reconhecimento do trabalho e
da organização dos(as) assistentes sociais do país.
A partir desta aproximação e vivência, evidencia-se um reconhecimento destas
entidades representativas, no que se refere ao trabalho dos(as) Assistentes Sociais na
pandemia. Identificou-se uma retomada da categoria sobre os alertas e denúncias
realizadas sobre as implicações dos drásticos cortes ao financiamento necessário para
garantia do sistema de proteção social que já estava afetado. Assim, acredita-se que,
apesar das dificuldades da realidade e particularidades do Serviço Social espanhol, a
categoria se manteve na busca por justiça social, direitos humanos e busca pela
igualdade de oportunidades (REIDEL, 2020).
Neste processo identificou-se também que a Espanha possui em torno 40.000
profissionais vinculados aos Colégios Oficiais de Serviço Socialque totalizam 36 no país
(Colegios Oficiales de Trabajo Social) cujo organismo representativo superior é “Consejo
General del Trabajo Social”. Além deste, existe a “Asociación Universitaria Española de
Trabajo Social”.
Quanto à caracterização das Instituições de ensino, 94,7% se configuram como
Universidade, caracterizando-se pela premissa indissociável entre ensino, pesquisa e
extensão. 76,3% são natureza pública, o que não representa ensino gratuito, pois,
segundo informações do Ministerio de Educación, Cultura y Deporte (MECD), o custo
médio anual da graduação na Espanha, em universidades públicas, varia de 821€ a
1.302€ e em algumas não há distinção entre valores para europeus e estrangeiros
(MECD, 2022).
No estudo dos planos de ensino, identificou-se que das 1565 disciplinas, 137
abordam o tema da ética/deontologia, ou seja, em 8,7% há evidência da temática. Dos
cursos de Serviço Social, 8 não exibem disciplinas intituladas “ética/deontologia”, porém,
o conteúdo é abordado em outras disciplinas, pois em todos os cursos há, no mínimo,
uma que contém ética no plano de ensino.
As 137 que abordam a temática da ética/deontologia foram divididas em 11 blocos
temáticos: Ética; Fundamentos; Trabalho em áreas específicas; Práticas, estágio e
supervisão; Trabalho com famílias, indivíduos, grupos e comunidades; Investigação,
diagnóstico e avaliação; Habilidades profissionais; Serviços Sociais; Introdução ao
Serviço Social; Mediação; Antropologia, direitos e desigualdade. Apenas 32 (23,35%)
compuseram o bloco intitulado “Ética”, a partir da exibição no título “ética/deontologia”
(REIDEL; CORRÊA; MENDO, 2022). Nas Universidades pesquisadas, dois cursos

563
apresentam a incidência de 02 disciplinas específicas sobre ética, ou seja, somente 2
graduações contêm mais de uma disciplina de ética.
Na Espanha, evidenciou-se também que, assim como no Brasil, a centralidade da
ética é compreendida como um dos pilares de sustentação da direção que orienta o
trabalho profissional, reconhecimento amplamente compartilhado “tanto por profissionais
como acadêmicos que reconhecem que a ética é consubstancial ao próprio Serviço
Social e os(as) profissionais devem atuar sempre com uma direção ética. Este
reconhecimento é um dos motivos fundamentais que explicam o surgimento de tantas
reflexões e publicações em torno deste tema.” (PEMÁN; MEGALES, 2017, p.17, tradução
nossa).
Entretanto, na Espanha, o Serviço Social não possui a concepção do homem
como sujeito transformador, núcleo categorial da teoria social crítica. Por fim, identificou-
se também que o Serviço Social espanhol teve o seu primeiro Código de Ética aprovado
pela Asamblea General de Colegios Oficiales de Diplomados en Trabajo Social y
Asistentes Sociales somente em 1999, justificando-se “[...] en la necesidad de ahondar
en los principios éticos y deontológicos profesionales atendiendo a las nuevas realidades
sociales y a las normas que influyen directamente en la actividad profesional.” (Consejo
General del Trabajo Social, 2015). Ou seja, seis anos após a edição do quinto e último
código de ética da categoria no Brasil.

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento desta pesquisa possibilitou imersão científica, estudo e


compreensão da ética na formação e profissão espanhola, envolvendo professoras,
graduandas e pós-graduandas do Brasil e Espanha.
Além disso, considera-se que preliminarmente, no que se refere ao Código e à
perspectiva de formação, há uma sinalização aos valores que orientam a formação e o
trabalho dos(as) assistentes sociais, pois “a formação atual em Serviço Social tende a
incrementar a capacitação dos futuros assistentes sociais, proporcionando aos
estudantes oportunidades de aprendizagem para conseguir conhecimentos, habilidades e
valores próprios do Serviço Social ” (ANECA, 2004, p.35, tradução nossa).
Entretanto, foram identificados alguns desafios no que tange à ética na formação
de assistentes sociais na Espanha, dentre eles, a superação de uma compreensão que,
por vezes, pode limitar a ética à sua esfera normativa por meio do Código, ou apenas a

564
uma fundamentação teórica restrita ao aspecto deontológico, o que represa/isola a
compreensão da ética de suas outras dimensões e da articulação entre elas, dificultando
a apreensão de uma ética aplicada na formação e, consequentemente, no trabalho
profissional.
Desta forma, ressalta-se que a dimensão ética não se limita ao código; esta é, ou
deveria ser, transversal, presente em toda extensão profissional. Compreendemos que o
processo de formação deve possibilitar o exercício do pluralismo onde se tornam
possíveis reflexões e debates sobre diferentes perspectivas teóricas que se confrontam
durante o processo de formação.

4- REFERÊNCIAS

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Publicación. 2019-2020. Disponível em:

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https://www.educacionyfp.gob.es/dam/jcr:b9e82c7a-1174-45ab-8191-
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Família, III SENPINF - Seminário Nacional de Políticas Públicas, Intersetorialidade e
Família: inflexões da pandemia covid 19 na vida, nas políticas públicas e no trabalho
[recurso eletrônico] / organizadores Maria Isabel Barros Bellini ... [et al.]. – Dados
eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2020.

REIDEL, Tatiana; CORRÊA, Laís Duarte; MENDO, Maria Luiza. Serviço Social na
Espanha: aproximações com a ética profissional. Revista Libertas, Juiz de Fora,v.22,
n.1, p. 36-59,jan. / jun. 2022.

566
ESTÁGIO E SUPERVISÃO NA FORMAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL: O debate
português

Alzira Maria Baptista Lewgoy210


Alcina Maria de Castro Martins211
Claudia Mônica dos Santos212
Guilherme Gomes Ferreira213
Dulce Serra Simões214
Maria Emília Freitas Ferreira215

RESUMO:

Essa comunicação trata-se do resultado da interlocução


Brasil e Portugal, através da participação em seminário
internacional sobre estágio e supervisão. O referido
seminário foi um dos produtos da investigação intitulada
“Fundamentos e mediações da Supervisão de Estágio em
Serviço Social na formação e no exercício profissional:
estudo da particularidade Ibero-americana”.

Palavras-Chave: Fundamentos do Serviço Social;


Formação Profissional; Trabalho Profissional; Supervisão de
Estágio; Pesquisa Ibero-americana.

ABSTRACT
This communication is the result of the dialogue between
Brazil and Portugal, through participation in an international

210Assistente Social. Professora da Graduação e Pós-Graduação do Departamento de Serviço Social da


Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Brasil. Pós-Doutora em Serviço Social. E-mail
alzira.lewgoy@ufrgs.br Eixo Temático: Internacionalização do Serviço Social: as articulações
contemporâneas na formação e trabalho profissional.
211 Assistente Social. Professora da Licenciatura e do Mestrado em Serviço Social do Instituto Superior Miguel

Torga - ISMT-Coimbra - Portugal. Doutora em Serviço Social. E-mail:alcina55martins@gmail.com Eixo


Temático: Internacionalização do Serviço Social: as articulações contemporâneas na formação e trabalho
profissional.
212 Assistente Social. Professora aposentada da Faculdade de Serviço Social e docente convidada do

Programa de Pos Graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora- UFJF- Brasil. Pós-Doutora em
Serviço Social. E-mail: cmonicasantos@gmail.com Eixo Temático: Internacionalização do Serviço Social: as
articulações contemporâneas na formação e trabalho profissional.
213 Assistente Social. Professor da Graduação do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal

do Rio Grande do Sul- UFRGS- Brasil. Doutor em Serviço Social. E-mail: guilhermeferreira@ufrgs.br Eixo
Temático: Internacionalização do Serviço Social: as articulações contemporâneas na formação e trabalho
profissional.
214 Assistente Social. Professora da Licenciatura e do Mestrado em Serviço Social do Instituto Superior Miguel

Torga- ISMT-Coimbra - Portugal. Doutora em Psicologia. E-mail: Dulce_simoes@ismt.pt Eixo Temático:


Internacionalização do Serviço Social: as articulações contemporâneas na formação e trabalho profissional.
215 Assistente Social. Professora e diretora da Licenciatura em Serviço Social da Universidade Lusófona do

Porto - ULP- Porto- Portugal. Doutora em Serviço Social. E-mail: p3349@ulusofona.pt Eixo Temático:
Internacionalização do Serviço Social: as articulações contemporâneas na formação e trabalho profissional.

567
seminar on internship and supervision. This seminar was
one of the products of the investigation entitled
“Fundamentals and mediations of Internship Supervision in
Social Work in training and professional practice: study of
the Ibero-American particularity”.
Keywords: Fundamentals of Social Work; Professional
qualification; Professional Work; Internship Supervision;
Iberoamerican research

1- INTRODUÇÃO

O presente relato de experiência aborda o debate ocorrido no seminário


internacional sobre estágio e supervisão na formação em Serviço Social, cujo tema foi às
configurações contemporâneas da Supervisão de Estágio em Serviço Social em Portugal
no contexto da educação superior. Este evento foi um dos produtos da pesquisa,
“Fundamentos e mediações da Supervisão de Estágio em Serviço Social na formação e
no exercício profissional: estudo da particularidade Ibero-americana”. O mesmo ocorreu a
9 e 10 de novembro de 2021, na modalidade remota síncrona, através da plataforma
Google Meet e do canal YOTUBE da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em
Serviço Social (ABEPSS/Brasil), possibilitando o diálogo entre os participantes de ambos
os países. Essa modalidade foi a alternativa possível ao cenário de quarentena devido à
situação mundial de pandemia do CORONAVÌRUS (COVID-19). Naquele momento, cinco
milhões de óbitos no mundo, sendo no Brasil, 609 mil.
Destacamos alguns objetivos do I Seminário Internacional sobre a Supervisão de
Estágio em Serviço Social, dentre eles: i) publicizar os resultados da pesquisa intitulada
“Fundamentos e mediações da supervisão de estágio em Serviço Social na formação e
no exercício profissional: estudo da particularidade ibero-americana” ii) fomentar o debate
sobre a supervisão de estágio em Serviço Social na conjuntura atual em Portugal e os
seus impactos na formação e no exercício profissional; iii) aproximar pesquisadores,
docentes, alunos e assistentes sociais que se debruçam sobre o tema da supervisão e do
estágio na formação em Serviço Social, com vistas à troca de conhecimentos e formação
de redes de pesquisadores; iv) sistematizar o conhecimento produzido no âmbito dos
debates, polêmicas, conclusões e encaminhamentos dos participantes no evento, no que
se refere ao objeto de estudo.
Consideramos que esta foi uma experiência exitosa pela interlocução entre Brasil
e Portugal pela possibilidade de reunir um conjunto de profissionais de extrema
relevância para o Serviço Social português e brasileiro para discutir temas que envolvem

568
a formação e o trabalho profissional junto aos representantes coordenadores dos órgãos
representativos da profissão.

2- ANTECEDENTES E INTERLOCUÇÕES ENTRE PORTUGAL E BRASIL

É no bastidor, na antessala do seminário que se inicia a riqueza das interlocuções


entre Brasil e Portugal, demarcado pela troca de conhecimentos e experiências no
Encontro Internacional sobre Supervisão e Estágio em Serviço Social, ocorrido em 2016,
organizado por pesquisadoras vinculadas as Instituições de Ensino Superior Portuguesa,
Instituto Superior Miguel Torga (ISMT) e brasileiras, Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Contou com a
participação de treze das dezessete licenciaturas em Serviço Social de Portugal. Essa
interlocução se ampliou em 2017 com o objetivo de desenvolver o projeto de pesquisa
“Fundamentos e mediações da supervisão de estágio em Serviço Social na formação e
no exercício profissional: estudo da particularidade ibero-americana”, efetivada em 2018.
Em seminário para a devolução dos resultados preliminares para os sujeitos
envolvidos na referida pesquisa, ocorrido no ISMT / Coimbra-Portugal em 2019, foi
constituída uma comissão para auxiliar no planejamento, na execução e divulgação de
outro seminário internacional projetado para o ano de 2020. Esse seminário abrangeria
os 93 participantes do estudo: assistentes sociais supervisores de campo e acadêmicos
estudantes e coordenações dos cursos. A comissão foi constituída pelas seguintes IES:
Instituto Politécnico de Beja (Beja); Instituto Superior Miguel Torga (Coimbra); Instituto
Politécnico de Leiria (Leiria); Instituto Universitário de Lisboa (Lisboa); Instituto Superior
de Serviço Social do Porto e a Universidade Lusófona do Porto (Porto); Universidade de
Trás-os-Montes e Alto Douro (Vila Real) e no Brasil a Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (Porto Alegre) e a Universidade de Juiz de Fora (Juiz de Fora).
Destacamos nesse período a atualização das informações da pesquisa em
Portugal, devido à pandemia do COVID 19. Também foi realizado um conjunto de
reuniões sistemáticas da comissão para pensar e programar o seminário internacional.
O seminário foi realizado nos dias 9 e 10 de novembro de 2021. O público-alvo
atingido, no primeiro dia foi de 152 participantes e por 182 visualizações (via YouTube),
totalizando nesse dia 224 acessos ao evento. No segundo dia foram 125 participantes na
sala virtual e 57 visualizações no YouTube, totalizando 182 acessos. Destacamos a

569
participação dos sujeitos envolvidos no estudo das respectivas IES parceiras da
pesquisa, e de diversas e distintas instituições das regiões brasileiras e portuguesas.

3- PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO, RELATO DE EXPERIÊNCIAS E


ARTICULAÇÕES POLÍTICAS

A mesa de abertura do seminário foi composta pelos representantes da


Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS/Brasil), da
Associação de Profissionais de Serviço Social (APSS/Portugal), e da comissão
organizadora do seminário e da pesquisa.
As mesas foram compostas pelos palestrantes de referência sobre os temas, um
coordenador, dois relatores e mediadores do chat.
Um conjunto de temas subsidiou as apresentações e debates. O primeiro tema foi
sobre a “importância do estágio acadêmico supervisionado no processo de aprendizagem
profissional no Brasil e em Portugal”. O segundo tema foi a apresentação dos resultados
da pesquisa realizada em Portugal sobre os “fundamentos e mediações da supervisão de
estágio em Serviço Social: estudo da particularidade de Portugal”. O terceiro tema
intitulado “a política de estágio em Serviço Social nas IES e os impactos da pandemia”
teve o protagonismo de coordenadores de licenciaturas em Serviço Social portuguesas.
O quarto tema foi “relatos de experiências e de investigação sobre estágio e
supervisão na formação em Serviço Social”, apresentado por três assistentes sociais
supervisores/orientadores de campo em Portugal cujas experiências envolviam os
processos de supervisão de campo em seus espaços sócio-ocupacionais. As
experiências investigativas foram apresentadas por docentes cujos estudos tiveram
procedência pelo Instituto Superior Miguel Torga e pelo Instituto Universitário de Lisboa.
O quinto tema que subsidiou o debate foi sobre o “estágio e a supervisão em Serviço
Social segundo as organizações da categoria profissional portuguesa”, apresentada pelas
representações da Associação dos Profissionais de Serviço Social - APSS (PT), da
Ordem dos Assistentes Sociais - Comissão Instaladora (PT), da Agência de Avaliação e
Acreditação do Ensino Superior - A3ES (PT) e da Associação Sociedade Científica de
Investigação em Serviço Social - ASCIS (PT).

3.1- Contributos para a reflexão dos temas que subsidiaram as mesas e os debates

570
Os interlocutores do evento levantam algumas questões para se pensar a
formação e o que nos desafia: qual o estado da arte da pedagogia na formação? quais os
desenvolvimentos na supervisão pedagógica? qual o impacto dos estágios pedagógicos
nas instituições e na academia? como se distingue Portugal do Brasil relativamente aos
estágios e supervisão pedagógica em Serviço Social? E para refletir ao nível da
profissão: quais os requisitos de qualificação para a supervisão? qual a relação entre a
regulação profissional e a supervisão em Portugal? qual a relação entre supervisão e
intervenção? qual a relação entre a ausência de supervisão e os vínculos associativos? e
quais as relações entre o movimento associativo da profissão e a região autônoma da
Madeira? Conclui-se que a aprendizagem sobre a supervisão pedagógica traz
importantes contribuições à supervisão profissional e é importante lançar bases para uma
supervisão profissional. Se a supervisão profissional não for lançada nos primeiros anos
do exercício profissional, não é fácil ser aceita porque facilmente desenvolvemos o
exercício profissional num empobrecimento e isolamento difícil de ultrapassar.
Considera-se ainda necessária a reafirmação das relações históricas entre o
Serviço Social português e brasileiro. É exposto o que a ABEPSS vem desenvolvendo
em relação ao estágio no Brasil, e destaca-se dentre eles o projeto ABEPSS Itinerante
iniciado em 2011, e em 2009 o lançamento de uma Política Nacional de Estágios (PNE)
para pensar elementos para orientar as escolas.
Contudo, o contexto da pandemia trouxe o dilema de como os estágios
curriculares iriam decorrer num contexto de ensino remoto emergencial. Nesse sentido, a
ABEPSS realizou uma pesquisa com mais de 90 escolas (através de um questionário)
para saber como estavam decorrendo os estágios em contexto de pandemia. A tendência
de transposição “mecânica” do presencial para o remoto é preocupante, pois o ensino
remoto emergencial não abarca todas as dimensões de um estágio e supervisão
presencial. Por esta razão as orientações da ABEPSS reafirmam a incompatibilidade da
formação profissional em Serviço Social com o ensino remoto.
Em relação à pesquisa realizada, foram levantados alguns pontos relevantes e
que merecem aprofundamento e debate pela categoria em Portugal: i) as diferentes
tendências quanto à concepção de estágio, supervisão e orientação, incluindo, as
diferentes nomenclaturas destinadas à orientação: a) tendência que enfatiza o estágio e a
supervisão/orientação como um momento de experimentação ou de aprendizagem
prática, exclusivamente; b) tendência que ressalta o estágio, a supervisão/orientação
como espaço de aprendizagem teórico-prática; c) tutoria e supervisão pedagógica; d)
supervisores no local de estágio e supervisores na escola; e) supervisor institucional e

571
supervisor acadêmico; f) orientação no local e orientação acadêmica; ii) Quanto ao início
do estágio: um grupo acredita que a realização de estágios no primeiro semestre do
curso e até mesmo no primeiro ano do curso não é pertinente, se sustentando na
afirmativa de que os estudantes não reúnem as condições de maturidade, as condições
relacionais e, principalmente, as condições de elaboração teórica no primeiro ano; iii)
quanto à mudança de campo de estágio, quando a IES oferece dois ou mais
semestres desta atividade: há um grupo que considera que a licenciatura deve ser,
sobretudo, uma oportunidade para os estudantes contatarem com os diferentes campos
de intervenção do Serviço Social e, portanto, o ideal é que eles experimentem várias
instituições. Por outro lado, outro grupo acredita que deva haver uma continuidade no
campo de estágio pelo estudante, possibilitando um aprofundamento de conhecimentos;
iv) aprofundamento dos impactos diretos das políticas de austeridade fiscal, no
processo de precarização das instituições e de privatizações e do processo de Bolonha
para formação e exercício profissional, bem como, o rebatimento do trabalho remoto para
a saúde do trabalhador, quer seja da docência quanto do terreno (campo) e do estagiário.
Particularmente, Bolonha foi também destacada em outra exposição no relato de
experiência pelos supervisores do terreno (campo); v) a questão da atividade de
orientação/supervisão do terreno (campo) não ser considerada pelo empregador como
atribuição do profissional e, portanto, essa atividade não entra no planejamento do
trabalho e nem em sua carga horária.
No que confere ao contexto da pandemia da covid-19 no estágio acadêmico e
no processo de supervisão, ofereceu-se adensamento aos resultados da pesquisa
apresentados as seguintes questões:

Questões Pontuais importantes216 Questões Comuns Importantes217

1. Como a atividade de estágio aparece 1. Destaque a importância da relação entre a


no plano de estudo: carga horária de IES e o mercado de trabalho: criando uma
estágio, carga horária e modalidade de boa relação entre docentes, assistentes
supervisão, seminário ou disciplina, sociais e estagiários (ideia da tríade na
localização do estágio no plano de estudo;

216
Questões pontuais referem-se a pontos que não são gerais, ou seja, verbalizados por alguns participantes
e palestrantes.
217 Questões Comuns referem-se a pontos transversais e comuns as intervenções dos diferentes

participantes e palestrantes.

572
construção do estágio);

2. Importância das orientações da Comissão


Instaladora da Ordem de Assistentes
2. As IES estão atentas à excelência da
Sociais;
formação e do estágio mesmo em situação
de pandemia;

3. Estágio e supervisão como síntese das


dimensões da intervenção teórico-
3. O lugar de centralidade na formação dado
metodológica, ético-política e técnico-
ao estágio em todas as IES pesquisadas;
operativa;

4. Avaliação de que a modalidade remota


4. Capacitar para a supervisão de estágio
tanto em relação ao docente quanto ao possibilitou uma comunicação entre

profissional do terreno (campo); universidade e o campo de prática;

5. Importância de o estagiário ter um mínimo 5. A pandemia possibilitou um aprendizado


de conhecimento que lhe propicie a ida para em situações de riscos, não só como
o terreno (instituições/ campo de estágio). profissional, mas também no domínio digital;

6. Período de adaptação dos recursos e


requisitos exigidos pelas Instituições de
acolhimento de estágio e das IES para
realização com segurança dos estágios.

Quadro nº1 - Questões importantes sobre estágio e supervisão em Serviço Social


no contexto da pandemia
Durante o debate deste tema os participantes trouxeram problematizações que
abrangeram considerações em relação ao cenário brasileiro no que se refere a formação
profissional em Serviço Social na modalidade de ensino remoto emergencial.
Vivenciamos um processo de esgotamento dessa modalidade de ensino, há um
reconhecimento por parte dos professores dos limites que existem em relação ao
processo de ensino-aprendizagem. Há muitas dificuldades dos alunos para o acesso às
aulas: falta de acesso a tecnologias, sem internet, dificuldades de participação das aulas

573
síncronas, não poderem aparecer em virtude de sua imagem e ainda não se sentirem
bem em relação a mostrar sua casa, sua vida privada. No Brasil, os alunos referem estar
cansados. Houve um processo de vacinação tardio em comparação a outros países. Há
limites institucionais da universidade pública na oferta de álcool gel, máscaras de
proteção e de infraestrutura (salas de aula ventiladas, etc.).
Em relação ao processo de estágio/supervisão há diferentes modalidades
vivenciadas pelos profissionais de campo: trabalho remoto; trabalho remoto/presencial;
trabalho presencial. Há um retorno dos/das assistentes sociais nas políticas públicas de
forma mais efetiva: assistência social, saúde e educação. As que possuem comorbidades
estão em casa. Os alunos que possuem comorbidades também não vão ao campo. A
supervisão à distância mesmo com as dificuldades possibilitou uma aproximação dos
supervisores acadêmicos, supervisores de campo e alunos, ocorrendo tríades
sistemáticas para o planejamento do estágio.
O processo de Bolonha aparece como um grande desafio. A duração do curso
entre três anos (seis semestres) e três anos e meio (sete semestres) vai interferir e fazer
a diferença no processo de estágio bem como a idade e maturidade do aluno. É
reforçada a importância da aproximação entre academia e os assistentes sociais em
exercício na função de supervisão de campo e a necessidade de continuidade da luta
para afirmação da profissão em face de outras profissões. Mais uma vez é
problematizado o fato da/do orientador/a não ser assistente social, foi colocado como
uma questão a ser pensada pelas organizações da categoria profissional em Portugal.

4- PROPOSIÇÕES

Foram sugeridas e apresentadas as seguintes proposições: i) desenvolvimento e


fortalecimento de pesquisas coletivas sobre as mudanças no mundo do trabalho e sua
incidência no trabalho do assistente social, tanto na formação profissional quanto no
exercício profissional, bem como os impactos do ensino remoto emergencial para a
saúde do trabalhador assistente social; ii) criação de uma instância de articulação entre
docentes, assistentes sociais e estagiários, envolvendo as organizações da categoria
para que haja um debate alargado sobre a formação, estágio e exercício profissional; iii)
criação de redes de escolas para debater a formação em Portugal sob a coordenação da
primeira expositora; iv) organização de um livro fruto deste seminário internacional,
configurando as intervenções realizadas em capítulos de livros; v) criação de uma

574
comissão para se pensar estas propostas acima referidas bem como as conclusões finais
deste evento. Foi constituída no seminário nove participantes docentes de distintas IES
de Portugal.

5- REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE SERVIÇO SOCIAL - APSS - Estatuto aprovados


em sede de Reunião de Assembléia Geral Extraordinária da APSS, no dia 7 de abril
2018. Portugal.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENSINO E PESQUISA EM SERVIÇO SOCIAL –


ABEPSS. Política Nacional de Estágio da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em
Serviço Social – Abepss. Temporalis, Brasília, ano 1, n. 17, jan./jul. 2009.

IAMAMOTO, M.V. O Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro,


trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2008.

MARTINS, Alcina.,TOMÉ; Maria. R. Neoliberalismo e Serviço Social Português: impactos


de Bolonha e das políticas de austeridade na formação e no trabalho. Em YAZBECK, M.
C. & IAMAMOTO, M. V. (Org.). Serviço Social na História. América Latina, África e
Europa. pp. 384-409. São Paulo, Cortez Editora. 2019.

RELATÓRIO DO SEMINARIO INTERNACIONAL DE ESTÁGIO E SUPERVISÃO


NA FORMAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL. Universidade Federal do Rio Grande do Sul
((UFRGS/ RS/ BRASIL), Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social
(ABEPSS/ BRASIL) Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/ BRASIL); Instituto
Superior Miguel Torga ( ISMT/ Portugal). Porto Alegre, 09 e 10 de novembro de 2021.

SANTOS, Claudia Mônica; LEWGOY, Alzira Maria Baptista; ABREU, Maria Helena
Elpidio. A supervisão de Estágio em Serviço Social: Aprendizados, Processos e Desafios.
Coletânea Nova de serviço Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

575
VII SEMINÁRIO INTERNACIONAL
Lutas Sociais, Ofensiva Ultraneoliberal e Serviço Social:
resistências e articulações internacionais

EIXO TEMÁTICO 7
Lutas Sociais e Serviço Social:
a construção de resistências
no interior da profissão
A RELAÇÃO ENTRE SERVIÇO SOCIAL E TEORIA SOCIAL DE MARX: análise das
revistas Serviço Social e Sociedade nos últimos 10 anos218

Ednéia Alves de Oliveira219


Victor Salomão Lacerda Brandão220
Laura Maria Cabral Silva221

Resumo: Este artigo, fruto de um projeto de iniciação


científica, objetiva discutir a relação entre Serviço Social e
teoria social de Marx. A metodologia utilizada foi análise de
conteúdo, com a leitura de artigos publicados por
assistentes sociais na revista Serviço Social e Sociedade
nos anos de 2010 a 2020. Foi possível constatar que o
Serviço Social, ao contrário do preconizado por alguns
autores, de que tem buscado uma apreensão das categorias
diretamente da teoria social de Marx, continua utilizando de
leituras secundárias de autores da tradição marxista, o que
possibilita compreensões ainda rasas e residuais da
realidade social.

Palavras-chave: Serviço Social; teoria social de Marx;


Serviço Social e Sociedade.

Abstract: This article, the result of a scientific initiation


project, aim stodis cuss the relationship between Social
Work and Marx's social theory. The methodology use dwas
content analysis, with there a ding of articles published by
social workers in the Social Service and Society magazine in
the years 2010 to 2020. An apprehension of the categories
directly from Marx's social theory, continues using secondary
reading sofauth or softhe Marxist tradition, which allows for
still shallow and residual understanding sof social reality.

218Eixo temático: Resistências, Lutas e Internacionalização do Serviço Social: Lutas Sociais e Serviço Social:
a construção de resistências no interior da profissão.
219Professora do curso de Serviço Social da UFJF. Drª em Serviço Social pela UERJ. E-mail:

oliveiraedneia21@yahoo.com.br.
220Mestrando em Serviço Social/UFJF. E-mail: maxsalomao@gmail.com.
221Graduanda em Serviço Social/UFJF. E-mail:lauracabraljf@gmail.com.

577
Keywords: Social Work; Marx's social theory; Social Service
and Society.

1- INTRODUÇÃO

Este artigo é resultado de uma pesquisa de iniciação científica realizada entre


2020 e 2021 com o objetivo de compreender a apreensão da teoria social de Marx nas
produções teóricas do Serviço Social. A metodologia utilizada foi a análise de conteúdo
por meio de artigos publicados por assistentes sociais na Revista Serviço Social e
Sociedade nos anos de 2010 a 2020. A escolha da revista se justifica pelo pioneirismo na
produção do conhecimento na área, somando um volume consistente de publicações de
profissionais e intelectuais.

Nosso intuito foi identificar como vem se dando a compreensão e interpretação


das relações sociais de produção capitalista, em particular na realidade brasileira.
Partimos do pressuposto que, com o movimento de renovação do Serviço Social nos
anos de 1960 e, retomado com maior fôlego após o término da ditadura civil-militar no
Brasil nos anos de 1980, houve uma maior aproximação do Serviço Social ao método
marxiano e, consequentemente, uma apropriação direta sobre seu pensamento para
análise das mediações necessárias para a construção do saber alicerçado sobre o
pensamento crítico com vistas a superação da ordem vigente.

Salientamos que a vertente de intenção de ruptura com o conservadorismo


colocou em disputa a necessidade de não mais utilizar Marx pelas vias de autores
secundários, o que empobrecia e tornava a leitura do autor numa espécie de cartilha ou
manual a ser seguido pelos profissionais limitando a compreensão do que a teoria trazia
em sua gênese. Este movimento possibilitou avanços na compreensão do modo de
produção capitalista e suas reverberações no âmbito da profissão, mas também foi
acometido de uma profunda crise que, originada no seio do debate sobre algumas
categorias, contribuiu para um entendimento que tende ao ecletismo, reformismo ou
ainda no espontaneísmo da vontade mesclando a teoria social de Marx com autores que
pouco ou nada se vinculam a ele.

Destarte é importante ressaltar que o Serviço Social, pela sua própria dinâmica
dentro do modo de produção capitalista, vive em um conflito constante, pois ao mesmo
tempo que no Brasil, assume a perspectiva de lutar pela construção do comunismo, se vê
obrigado a responder às necessidades imediatas da classe trabalhadora e também da

578
sua subsistência, executando políticas públicas no seio do Estado burguês em tempos de
ofensiva do capital. Ao não compreender as categorias fundamentais da teoria de Marx
acaba por invocar soluções que são contrárias ao pensamento crítico e acreditamos que
isso se dá, devido ao fato de que as leituras de Marx continuam se efetivando por vias
secundárias em que o referido autor é apresentado muitas vezes com graves distorções,
ou ainda com citações ou frases que não traduzem seu pensamento. Nesse sentido, não
ocorreu uma leitura direta das suas fontes, mas de autores que interpretam Marx, o que
compromete as análises do Serviço Social e também da realidade em que se insere este
profissional.

Outro aspecto a ser destacado é o movimento do capital que impõe uma luta pela
sobrevivência de forma a afetar toda a classe trabalhadora e que impede que as
respostas se deem por vias do Estado tendo em vista o recorrente apelo ao corte de
gastos públicos, sobretudo nas políticas e serviços sociais e na crescente flexibilidade
das leis e contratos trabalhistas, para atender imposições das agências internacionais,
impactando no trabalho do assistente social e dos sujeitos com os quais trabalha
cotidianamente.

2- DESENVOLVIMENTO

2.1- Serviço Social e aproximação com o marxismo

O processo de renovação do Serviço Social Brasileiro, durante a ditadura militar


no país, marca a ambiência da pluralidade na profissão, pluralidade que extrapolaria
formas e métodos de atuação e passaria a permear o âmbito de produção do
conhecimento e orientação teórica profissional. Como particularidade de um processo
latino-americano maior, conhecido como reconceituação, o Serviço Social brasileiro em
sua renovação, depara-se como uma série de surgentes demandas, decorrentes mesmo
das alterações do padrão capitalista brasileiro, voltado à modernização, cujo mote liga-se
ao crescente processo migratório campo-cidade, à incursão do Estado como
empreendedor de risco, e a tentativa de industrialização, que rebatem obviamente na
alteração do padrão social urbano, acelerando exponencialmente as contradições entre
classes, tendo em vista o crescimento considerável do proletariado e de suas franjas no
cenário social, enquanto classe minimamente organizada, mesmo que de forma forçada e
desinteressada pelo próprio espaço produtivo. Desta forma, a ‘’questão social’’ torna-se
elemento constituinte fundamental da cena autocrática, condensando naquele período

579
não só um padrão de Estado específico, mas classes dominantes coorporativizadas em
torno de um projeto de desenvolvimento, que apesar de manter o padrão histórico de
dependência, carrega traços claros de modernização, tal qual ainda, o fortalecimento do
proletariado na cena social.

Diante de tal modernização, Netto (2011), apontará mudanças consideráveis que


afetam o Serviço Social de até então, mudanças que giram desde a ampliação do
mercado de trabalho para assistentes sociais, tanto estatal como empresarial, visando o
controle da força de trabalho in loco ao ambiente produtivo e ex situ a este ambiente,
voltando as incursões na reprodução cotidiana dos sujeitos. Tais incursões alteram em
alguma escala seu padrão, transcendendo da mera lógica caritativa genética e
assumindo perspectiva técnica-burocrática, visando suprimir os abalos possivelmente
causados pela multiplicação da ‘’questão social’’, o que marcará a refuncionalização
profissional, exigindo assim novos padrões de conhecimento que sustentem tal alteração.
Deste modo, combinar-se-ão estratégias de apaziguamento, que caberão a este Serviço
Social modernizado, somadas as violações de força sistemática empreendidas pelo
Estado da autocracia burguesa.

É neste caldo, de alterações macro societárias e particulares à profissão, que o


processo de renovação se dá, visando, estabelecer formas de ação e de conhecimento
embasatório, capazes de atender as demandas em voga. Obviamente, tal processo
acompanha um marco, também fundamental da profissão, a sua inserção nos ambientes
de formação universitária e o contato com as diversas formações destes espaços e suas
respectivas matrizes teóricas, em que se abrem as portas expostas por Netto (2011),
para a cientificização e laicização da profissão. É neste quadro, de mudança considerável
do processo de formação profissional, agora ligado à organização acadêmica do
conhecimento, que a profissão passará por mudanças consideráveis em sua lógica
própria de conhecimento, diversificando-a de forma praticamente inédita até então, em
sua história.

Ante esta diversificação do conhecimento, produzida por todo este movimento


sociopolítico modernizador, que o processo de renovação se colocará em marcha a partir
de três principais correntes identificadas por Netto (2011) como a perspectiva
modernizadora, cuja matriz teórica fundamenta-se no positivismo e estruturalismo, com
perspectiva pseudocientífica de neutralidade. A reatualização do conservadorismo, com a
premissa de recusa do positivismo e das incursões marxistas, recuperando por sua vez

580
tendências conservadores da profissão, inspirando-se em uma certa fenomenologia,
rodeado pela recuperação religiosa velada, com ênfase caritativa psicossocial.

A terceira vertente, essencial deste processo, é conhecida como intenção de


ruptura, vertente diretiva hegemonizante da profissão, ainda mais se levado em conta
especificamente os processos organizativos e formativos do Serviço Social. Desta forma,
faz-se mais que necessário, ressaltar algumas contradições neste decurso. Uma primeira
contradição emblemática, que é marcada obviamente pelas limitações conjunturais,
históricas e políticas, está ligada à apropriação do marxismo por parte desta vertente. Tal
apropriação mostra-se débil já na surgente experiência, questão que não é ignorada, e
certeiramente reconhecida, pelas próprias idealizadoras da incursão de Belo Horizonte e
por seus analistas posteriores. Netto (2011) perceberá traços de voluntarismo e
ecletismo, marcando a apropriação como débil justamente por beber em fontes
secundárias a Marx.

De todo modo, o que a hora dos acontecimentos era recheado de sentido, perde-
se em contradição mesmo com a matriz teórica assumida pelo corpo dito hegemônico
quando colocado em confronto com a teoria social de Marx e dos clássicos ortodoxos que
o seguiram, de forma que, tanto Lessa (2016) como Oliveira (2020) concluem que o
Serviço Social ao se aproximar do marxismo, afasta-se ao mesmo tempo de grande parte
do marxismo de Marx, assim, o significado social da profissão e seu papel distanciam-se,
e muito, da pretensão teórica proclamada pelo corpo autoafirmado hegemônico,
estabelecendo uma contradição gritante entre o lugar e significado da profissão no modo
de produção capitalista e suas pretensas tarefas transformadoras, descolando a análise
da realidade social da análise do papel social da profissão, atribuindo orientações e
tarefas profissionais não cabíveis aos limites profissionais, e por isso mesmo,
completamente distantes da prática profissional cotidiana. De modo que, o marxismo
torna-se um adereço retórico justificador de assunção de um projeto societário, que na
verdade não compete a uma categoria profissional, mas a uma classe com potenciais
revolucionários. Em suma, a profissão, principalmente por meio de sua raiz
hegemonizante, encontra dificuldades em assumir que a desejada extinção do modo de
produção capitalista (seja lá porque meios), é a extinção, justamente pela função social
conformadora, do próprio Serviço Social.

Assim, o processo de renovação do Serviço Social, com o saldo pluralístico


acumulado, e com uma não tão consolidada vitória hegemônica da intenção de ruptura, é

581
hoje ainda, ambiente de consideráveis contradições internas, acompanhadas por um
emaranhado de orientações teóricas, que mesmo segmentadas e pouco organizadas,
fazem-se aparecer a cada dia, como apontado especificamente no capítulo dois de
Oliveira (2020), ou ainda nas aparições das vertentes clínica, liberal, cristã,
neopentecostal, além é claro das atualizações ecléticas da modernização, presentes em
muito da pós-modernidade, ou mesmo das derivações híbridas que afirmam ainda beber
do marxismo, mas que estão permeadas de sincretismo. Mas, ainda mais importante e
reflexo das sérias contradições profissionais, incitadas pela dinamicidade do real, está a
problematização mesmo da presença do marxismo no seio da profissão, uma vez que,
apesar de autoafirmada hegemonia, a corrente marxista tem se mostrado reduzida ao
âmbito acadêmico, distanciada da prática profissional e cada vez mais esvaziada em
conteúdo, tal como apontam pesquisas como a de Oliveira (2020), Lessa (2020) e o
compilado de dados coletados por nossa pesquisa até o momento.

Merece destaque ainda o contexto de apropriação do marxismo no Brasil marcado


por um contexto internacional de crise dos partidos de esquerda, em face da crise do
socialismo, de avanço da ofensiva do capital e as mudanças na organização do trabalho
e reconfiguração do Estado com vistas à recuperação das taxas de lucro, de ascenso de
movimentos sociais de caráter subjetivista e identitário nos países europeus e EUA e a
recusa do marxismo como forma de compreensão da realidade, por entender que tal
realidade é agora permeada por discursos fragmentados e residuais. Nesse sentido, o
econômico se separa do político, colocando em xeque a concepção de totalidade, numa
clara recusa a teoria social de Marx, ou marxismo ortodoxo (LUKÁCS, 2003).

2.2- Revista Social e Sociedade: pesquisa e dados coletados

Nossa pesquisa primou por uma busca de textos publicados e disponibilizados on-
line na Revista Serviço Social e Sociedade. Desse modo, consultamos o acervo online da
revista com 329 artigos disponibilizados, publicados em revistas de 2010 a 2020. Nestes
realizamos o primeiro corte, considerando apenas artigos escritos por assistentes sociais
brasileiros, totalizando 220 artigos. Logo após, procuramos analisar apenas estes
escritos de assistentes sociais, buscando os textos de assistentes sociais que continham
algum escrito de Marx em seu referencial, consequentemente encontramos uma baixa
para 37 artigos ao longo dos 10 anos disponibilizados pela revista online.
Vale enfatizar que, a análise dos dados quantitativos nos oferece o seguinte
cenário: dos 329 artigos publicados pela revista entre 2010 a 2020, 66,86% eram de

582
assistentes sociais brasileiros, ou seja, 220 artigos. Do total de artigos publicados por
assistentes sociais brasileiros na revista, os 220, apenas 16,81% contém algum texto de
Marx em sua bibliografia, isto é, apenas 37 artigos. Se considerarmos o total de artigos
publicados, 329, o número de publicações de assistentes sociais brasileiros que se
referenciam em Marx, isto é, o usam em sua bibliografia, torna-se proporcionalmente
menor, isto é, aqueles 37 artigos selecionados representaram apenas 11,24% do total.
Em outros termos, levando em conta os 329 artigos totais publicados entre 2010 e 2020
na principal revista da profissão que alega ser majoritariamente marxista, apenas
11,24%, ou 37 artigos, são de profissionais da categoria que se utilizam de Marx em seu
referencial bibliográfico.

3- CONCLUSÃO

Diante deste dados, podemos inferir algumas questões importantes, 1) nos


últimos 10 anos de publicações da Revista Serviço Sociale Sociedade, aproximadamente
1/3 das publicações são de autores cuja atuação ou formação não está diretamente
vinculada ao Serviço Social. Assim, podemos perceber que, por um lado, é possível
apreender um ainda considerável intercâmbio entre a profissão e as diversas áreas do
conhecimento, demonstrando certa expansão em relação a aquele contato inicial com as
ciências sociais no período da renovação.
Analisando pela outra ponta, podemos considerar que; 2) a produção do
conhecimento pelo Serviço Social mostra-se em considerável volume, isto é, 2/3 dos
artigos publicados no período analisado são da categoria profissional para a categoria
profissional, mostrando uma considerável diferença no perfil da profissão em termos
formativos, uma vez que, durante a formação da profissão e até o processo renovação a
produção de conhecimento fazia-se extremamente escassa, não havendo nenhum
consenso ou preocupação quanto ao estabelecimento de orientação teórica definida, o
que tornava o Serviço Social refém de construções de outras áreas (às vezes não ligadas
ao conhecimento científico, como o campo teológico-religioso), carente assim de um
escopo de conhecimento próprio, derivado tanto de matrizes teóricas orientadoras,
quanto de processos formativos próprios, ou ainda da prática profissional refletida e da
análise da realidade social, das particularidades conjunturais e locais. Assim, estes 2/3 do
total de publicações demonstram a tomada clara de independência profissional, mas não
de isolamento, em termos de produção de conhecimento própria.

583
Porém, há uma questão séria que não pode deixar de ser notada e analisada, 3)
do total das publicações - 329 artigos, 220 são de assistentes sociais brasileiros, e destes
220 apenas 37 carregam em seu referencial bibliográfico algum escrito de Marx. Deve-se
levar em conta obviamente que, não é possível compreender definitivamente se um artigo
tem por orientação teórica o marxismo apenas tomando se há ou não presença de Marx
em seu referencial bibliográfico, consideramos as diversas ramificações do marxismo ao
longo da história, e a importância de muitos dos continuadores e intérpretes que se
colocam nesta tradição, porém, não há como ignorar, se tratarmos especificamente da
teoria social de Marx, ou do marxismo ortodoxo, que é vital a influência do próprio
fundador da tradição e sua presença nas produções que assim se orientam. Há ainda de
considerar que, por mais diversa e ampla que seja a tradição marxista, para ser
considerada como tal, deve girar em torno das formulações do próprio Marx – mesmo
que de seus imperativos do ‘método222’ –, assim, se não há presença deste, a
apropriação se dá por via secundárias, por fontes não originais e por vezes
consideravelmente distantes das formulações do fundador da tradição. Neste ponto então
não há como negar, de acordo com a nossa coleta de dados, a produção de assistentes
sociais brasileiros que têm Marx em seu escopo bibliográfico, presentes na Revista
Serviço Social e Sociedade nos últimos 10 anos, é bastante residual, chegando a apenas
1/6 do total das publicações, o que coloca em cheque a afirmação da hegemonia de uma
corrente profissional orientada pela teoria social de Marx, tendo em vista, que a presença
do fundador da corrente teórica é ínfima.
Tal presença residual nos leva a principal constatação, tendo em vista os dados
coletados e analisados até então, a orientação teórica marxista ou não é hegemônica,
levando em conta as publicações analisadas, ou o marxismo utilizado pela profissão é
fonte de adaptações e secundarizações223 tais que não apresenta em sua grande maioria
dos casos a presença do fundador da tradição marxista no escopo bibliográfico. Desta
forma, a presença do marxismo de Marx, é consideravelmente pequena e mesmo assim
contestável se fizermos a análise do conteúdo dos artigos que contém Marx (etapa
posterior da pesquisa). Assim, há uma clara semelhança entre o padrão de apropriação

222Lembrando a argumentação de Marx acerca de seu ‘método’: ‘’Meu método dialético, por seu fundamento,
difere do método hegeliano, senda a ele inteiramente oposto. Para Hegel, o processo de pensamento – que
ele transforma em sujeito autônomo sob o nome de ideia – é o criado do real, e o real é apenas sua
manifestação externa. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais que o material transposto para a cabeça do
ser humano e por ela interpretado’’ (MARX, 2017, p.28). E ainda que, ‘’Os filósofos apenas interpretaram o
mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo’’ (Marx, 2009, p.122).
223 Vale apontar que grande parte das bibliografias citadas e que se encaixam neste perfil de marxismo

secundário, não por sua qualidade mas justamente porque não são a bibliografia genética do Marx ou a
clássica que o acompanhou, compõe-se por autores como: Netto, Iamamoto, Antunes, Coutinho, Bhering,
etc. Isto é, marxistas brasileiros com forte vínculo com a categoria.

584
da teoria social de Marx por parte da atualidade profissional com a apropriação praticada
pela intenção de ruptura durante o processo de renovação, isto é, uma apropriação de
produções secundárias, por vezes descoladas completamente das formulações de Marx
e contaminadas por diversas outras correntes teóricas.
Há ainda a manutenção do padrão pluralístico, tendo em vista mesmo a não
hegemonia numérica das formulações orientadas por Marx, a presença de 1/3 de artigos
provenientes de outras áreas do conhecimento e o reduzido número de artigos com
genuína presença de Marx, abrem espaço para a presença de outras vertentes teóricas
orientadoras, de proposições a outras práticas profissionais, de adaptações diversas
entre teorias, de proposições multidimensionadas, que mesmo não explícitas diretamente
se manifestam nas relações bibliográficas, tais quais: o liberalismo, o reformismo, a pós-
modernidade, o conservadorismo e etc.

4- REFERENCIAL BIBLOGRÁFICO

LESSA, S. A crise da esquerda e do projeto ético-político do Serviço Social. Maceió:


Coletivo Veredas, 2020.

LESSA, S. Serviço Social e trabalho: porque o serviço social não é trabalho. 3ª Ed.
Maceió: Coletivo Veredas, 2016.

LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São


Paulo: Martins Fontes, 2003.

MARX, K. O capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


2017.

MARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

NETTO, J. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64.
16ªed. São Paulo: Cortez, 2011.

OLIVEIRA, E. Redemocratização e serviço social: os caminhos do Serviço Social no


Brasil pós-1985. Curitiba: CRV, 2020.

585
Serviço Social brasileiro entre o espináfre e a criptonita

Fabrício Augusto Araújo Ribeiro224


Laura Beatriz Borges225.

RESUMO: O trabalho que segue analisar aspectos da


dimensão política da Questão Social no Brasil, por meio do
diálogo com algumas abordagens desenvolvidas no debate
acerca da viabilidade histórica do Projeto Ético-Político do
Serviço Social brasileiro, criticando o subdimensionamento
do recuo da classe trabalhadora frente ao avanço do capital
nos debates realizados no interior do pensamento crítico
brasileiro, incluída ai a categoria do Serviço Social.

Palavras-chave: Serviço Social. Projeto Ético-Político. Luta


de classes no Brasil.

ABSTRACT: The work that follows intends to analyze


aspects of the political dimension of the Social Question in
Brazil, through dialogue with some approaches developed
within the discussion about the historical feasibility of the
Ethical-Political Project of the Brazilian Social Service,
criticizing the underestimation of the retreat of the working
class facing the advance of capital in the debates held within
Brazilian critical thinking, including the category of Social
Work.

Key words: Social Work. Ethical-Political Project. Class


struggle in Brazil.

1- Introdução

O período histórico presente, demarcado pela eclosão da crise estrutural do


Capital em 2008, que vem se aprofundando ano a ano e se tornando multifacetada,
agravada pela pandemia do Covid-19, abriu a possibilidade histórica de ascensão do
reacionarismo enquanto um movimento internacional de, por exemplo, negação dos
direitos dos migrantes, no retorno público das ceitas supremacistas, na radicalização do
racismo; aprofundando o patriarcalismo estrutural do sistema capitalista; que agudiza a
intolerância contra a diversidade de gênero, entre outras formas de opressão.

Para Sant’Ana e Silva (2020), estas formas de crise demandam a formação de


governos mais reacionários em cada país e citam como exemplo os diversos golpes civis,

224 Assistente social, Mestrando em Serviço Social no PPGSS Unesp (Franca), orientador: Dr. Gustavo José
de Toledo Pedroso. faa.ribeiro@unesp.br.
225 Bacharel em Serviço Social, membro do grupo de Pesquisa e Extensão Temas Raciais, da UFTM.

586
militares, parlamentares e/ou jurídicos cometidos pelas burguesias em deversas regiões
nas primeiras décadas deste milênio. Mas o movimento de ataque do capital sobre o
trabalho pode não explicar tudo, pois o capital se relaciona necessariamente com o
trabalho, dependendo não somente das suas forças para avançar sobre as riquezas
socialmente produzidas, se assim não fosse nós viveríamos sempre sob o total domínio
do capital, mas também da capacidade de reação, resistência e de (contra)ataque dos
que vivem do trabalho, além, é claro, dos limites impostos pelo mundo natural.

No Brasil, o subdimensionamento do desarmamento da classe trabalhadora,


promovido pelos governos e pela política do Partido dos Trabalhadores em aliança com
as burguesias dominantes, como elemento preponderante da conjuntura, tem razões
políticas, ideológicas e está impresso em grande parte dos conhecimentos produzidos
pelo campo crítico do pensamento social brasileiro, assim como no Serviço Social,
inclusive nos tempos mais atuais.

Yazbek (2019: 88), por exemplo, ao elencar os desafios conjunturais ao Serviço


Social na atualidade, destaca i) as transformações no interior do modo de produção
capitalista, ou seja, o movimento estrutural do capital; ii) a desqualificação da política, isto
é, a hegemonia das ideias aparentemente antipolíticas (o movimento ideológico da
burguesia); e iii) a sociabilidade capitalista sob a hegemonia reacionária, ou seja, o
movimento político do capital. Este conjunto de elementos expressam uma análise
importante acerca das dimensões estruturais e superestruturais do movimento do capital,
mas não considera os movimentos da classe trabalhadora, o seu comportamento político,
seu nível de consciência de classe, o direcionamento dado por sua hegemonia frente a
conjuntura. Um olhar parcial sobre a Questão Social e a luta de classes invisibiliza os
movimentos “do trabalho” subvalorizando o poder da sua intervenção enquanto sujeito
coletivo histórico e seu poder de preponderância sobre a conjuntura e a correlação de
forças.

Não destacar a forma como a classe trabalhadora se movimenta diante dos


movimentos do capital pode trazer prejuízos ao entendimento sobre a conjuntura e levar
a proposições repetidas, como reprodução automática de proposições passadas, se não
se consideram as particularidades do tempo presente. Yazbek (2019: 98), propõe:

Nos diversos espaços profissionais, sob a condição de trabalhadora assalariado,


os assistentes sociais brasileiros administram as profundas transformações que
ocorrem nas Políticas Sociais, até mesmo medidas que apontam para a sua
extinção. Desvendar o processamento desse trabalho no contexto da sua forma
ultraneoliberal e sob o domínio do capital financeiro é enfrentar o desafio de

587
operar a construção do direito em tempos adversos, apoiando e fortalecendo as
lutas da “classe que vive do trabalho”, da qual os assistentes sociais fazem parte.

A proposta acima apresentada parece bem conhecida desde outros tempos e em


parte se justifica, uma vez que as aparentes mudanças na política nacional redundaram
na plena conservação da estrutura da realidade social brasileira. Mas a questão é que
neste período a organização e os movimentos de luta da classe trabalhadora eram bem
mais consequentes, estavam em posição de contra-ataque embalado por um nível de
consciência de classe mais elevado que o atual, o que contribuiu em muito para o
aprofundamento do Serviço Social na perspectiva crítica. No entanto, reproduzir as
mesmas propostas no tempo presente pode ser incongruente com as condições atuais da
classe trabalhadora, revelando um possível politicismo no interior da categoria. Não se
pode deixar de observar que o processo de cooptação da classe trabalhadora, operado
durante aos governos do Partido dos Trabalhadores, arraigou-se profundamente na
forma como ela se compreende, se organiza e pensa o futuro.

A análise de conjuntura e da realidade social nos tempos presentes exige não


apenas observar os movimentos da classe trabalhadora na luta de classes, mas também
as bases que conformam hoje a sua organização, o seu pensamento e a sua direção,
compreendendo como estes elementos atravessam as suas perspectivas futuras, para
que o Serviço Social possa se colocar de forma crítica e assertiva ao lado das frações
populares não cooptadas (ainda), cobatendo as ideologias conservadoras antigas e
novas.

Na mesma medida em que o Serviço Social crítico recusa a ideologia da atuação


e formação neutras diante da realidade social, é igualmente preciso recusar a ideologia
da administração dos conflitos sociais que formou base própria, inclusive no interior da
profissão, disputando parte importante da sua fração crítica. Esta ideologia de conciliação
se caracteriza como ultraconservadora e opera combatendo a consciência de classe
entre os trabalhadores, abrindo condições históricas que contribuíram e contribuem para
o avanço do capital em sua forma mais reacionária.

O Serviço Social brasileiro deve estar sempre na defesa da classe trabalhadora


contra as investidas do capital, sobretudo em sua forma reacionária, inclusive porque se
compõe majoritariamente por membros desta classe. Mas esta posição exige uma
análise crítica à hegemonia degenerada, cooptada e cooptadora que dirige a classe que
vive do trabalho no Brasil e que opera novamente defendendo o retorno à lógica da

588
cooptação degenerada, inclusive advogando o “fim natural” do governo reacionário
instalado, se negando a urgência extrema de sua derrubada. O Serviço Social deve
cuidar de não atuar como um agente de reprodução desta hegemonia anticlassista que
pretende reorganizar a classe trabalhadora brasileira para uma nova etapa histórica de
sua autodesorganização, o que poderá desaguar em uma tormenta ainda mais grave
num futuro próximo.

A estratégia do Serviço Social hoje não pode ser “se articular com a classe
trabalhadora” genericamente, mas sim se articular com as frações não cooptadas da
classe trabalhadora latinoamericana e intervir de forma crítica junto às frações cooptadas,
visando contribuir com as tentativas (talvez até messiânicas, dado o nível de cooptação)
de reversão do quadro em que se encontram, buscando assim a cocriação das condições
históricas para um novo momento de avanço do “trabalho” contra o capital num futuro
próximo.

2- Serviço Social brasileiro entre o espinafre e a criptonita

A possibilidade histórica do Projeto Ético-Político profissional do Serviço Social


brasileiro nos tempos atuais depende do quanto o Capital consegue avançar sobre o
Trabalho, impondo-o um nível maior ou menor de controle e dominação, o que por sua
vez depende também do poder de influência da ideologia da conciliação de classes sobre
a capacidade crítica e organizativa da classe trabalhadora brasileira, incluída aí a
categoria profissional do Serviço Social. Isto porque depende também do quanto o
processo de eliminação da consciência de classe e do desarme da classe trabalhadora
irá atravessar a formação, o trabalho e a organização política do Serviço Social, tanto
quanto da sua própria classe social no Brasil e na América Latina.

Observa-se um processo histórico em que, para o Serviço Social, a estratégia que


antes era como o espinafre para Popeye, pôde e ainda pode agir agora como a criptonita
para o Superman, ou seja, aquilo que tem uma aparência bonita e reluzente, mas que
possui a característica inerente de lhe enfraquecer. Se se aliar ao movimento da classe
trabalhadora no passado levou o Serviço Social a aprofundar sua capacidade de análise
critica e a reivindicar (até mesmo de forma messiânica) uma capacidade interventiva
transformadora da realidade, esta mesma tática pode ter levado e/ou estar levando à
conversão da profundidade de sua capacidade crítica em caráter acrítico ou subcrítico
(numa crise crítica) nas últimas duas décadas, ao passo que a própria capacidade critica

589
da classe trabalhadora brasileira se converteu hegemonicamente numa perspectiva
neoconservadora de mera administração dos conflitos sociais.

O que se observa é que o projeto conciliador da primeira década dos anos 2000
se enraizou rapidamente e profundamente no conjunto da classe trabalhadora brasileira,
cooptando não apenas lideranças populares, mas movimentos e organizações inteiras
(partidos, sindicatos e movimentos), e vem se renovando, formando base e influenciando
novas gerações. Um movimento histórico que criou e/ou recriou ideologias e narrativas
neoconservadoras e que tem a potencialidade de suplantar as perspectivas críticas mais
radicais desenvolvidas e acumuladas pelo movimento da classe trabalhadora brasileira,
inclusive pelo Serviço Social, na segunda metade do século XX.

O projeto neoconservador, o de “conciliação de classes”, opera no presente com


propósito de voltar ao passado. Este processo responde, por exemplo, à reflexão que
Sant’Ana e Silva (2020) fazem acerca do fato de que mesmo diante um nível brutal de
exploração e expropriação capitalista no Brasil a classe trabalhadora e os setores
progressistas não apresentam capacidade de reação contundente.

No âmbito da profissão, em importantes frações (que se reivindicam críticas,


inclusive) pode-se observar, por exemplo, a substituição da defesa da universalização
dos direitos sociais pela defesa da sua focalização, a substituição da defesa da dignidade
humana pela defesa dos “mínimos sociais”, tanto quanto o fato de que a percepção das
expressões da Questão Social passou a ser tomada pela lógica do “familismo” e do
“territorialismo”, culpabilizando os pobres pela própria pobreza (YAZBEK, 2019: 91). Fala-
se de um processo de “assistencialização” do Serviço Social, em que a fórmula: “ajudar
aos pobres”, desenvolvida pelos governos de origem popular toma conta da profissão
para além dos espaços da política de assistência social, num processo em que a tomada
das identidades numa perspectiva liberal reivindica a sua contraposição à perspectiva de
classe, retomando, inclusive, o debate acerca do objeto do trabalho do Serviço Social, se
se trata da questão social em suas expressões ou se se trata das políticas sociais,
consolidando o acompanhamento do Serviço Social ao movimento da classe
trabalhadora, que se deslocou hegemonicamente do campo do conflito Capital-Trabalho
e da luta de classes para o campo do individualismo idealista dos conflitos entre sujeitos
atômicos, impulsionado pelo politicismo. Potencialmente, transformando a “velha”
intenção de ruptura em “intenção de disruptura”, promovendo o retorno da categoria ao
mundo das ideias, descolando-a da realidade, pois somente lá no mundo das ideias é
que é possível atender igualmente e ao mesmo tempo as necessidades fundamentais

590
das classes sociais antagônicas, somente neste campo se pode agradar a Deus e ao
Diabo.

Nas palavras de Yazbek (2019: 91-92), “de modo geral a política social brasileira,
a luta contra a pobreza tomou o lugar da luta de classes [...[ atribuindo a responsabilidade
da pobreza aos próprios pobres”. A pesquisadora do Serviço Social destaca que nesta
lógica o sistema capitalista apara as suas iniquidades jogando as suas vítimas para o
lugar de “pobres”, tirando-os do lugar de trabalhadores explorados, num processo que
despolitiza a classe trabalhadora e a própria política social. Aqui a política da hegemonia
da classe trabalhadora brasileira opera despolitizando a realidade social e as relações
sociais, indo ao encontro da seguinte sentença yazbekiana: “se a política opera de forma
descontínua, incompleta, seletiva e não democrática, passa a ter outro significado:
controle e enquadramento dos pobres” (YAZBEC, 2019: 99).

O Serviço Social parece reproduzir, hegemonicamente, a ideologia da conciliação


de classes ao elogiar a distribuição focalizada de mínimos sociais que se deu em troca da
retirada de direitos trabalhistas, de retrocessos à seguridade social, do assalto burguês
aos fundos públicos e da eliminação da consciência de classe entre os que vivem do
trabalho.

As concessões do capital no período denominado de “conciliação de classes”, no


Brasil, não foram políticas formuladas para beneficiar a classe trabalhadora, mas sim
políticas necessárias para o desenvolvimento do capitalismo “agropop” exportador, ao
qual o Brasil corresponde passivamente na divisão internacional do trabalho, foram
implementadas. As políticas compensatórias não servem às necessidades dos que vivem
do trabalho em nada verdadeiramente, são sim formas de puro assalariamento indireto
num país dominado por uma classe que remunera o trabalho abaixo da média salarial
necessária para a sua mera reprodução (SILVA, 2021). As políticas compensatórias são
alternativas burguesas destinadas a desenvolver algumas condições objetivas e
subjetivas (no caso de educação e da cultura) necessárias a melhor exploração da força
de trabalho da classe trabalhadora brasileira, inclusive por meio da formação de um
exército de reserva mais qualificado (por nível de formação) e mais amplo. Tais políticas
estão previstas textualmente nos manuais oficiais de desenvolvimento do modo de
produção capitalista na periferia do globo, não nas cartilhas revolucionárias do
movimento comunista internacional.

Não é mais possível que frações do Serviço Social brasileiro sigam reproduzindo
tais falácias ideológicas, abdicando do trabalho de formulação do pensamento radical e

591
classista alternativo para a própria categoria profissional, tanto quanto para a classe
trabalhadora brasileira.

Para tanto é preciso reconhecer que a realidade da classe trabalhadora brasileira


nos últimos 20 anos não é mais a mesma da segunda metade do século passado, o
espinafre parece ter se transformado em criptonita. Alterou-se radicalmente a sua
posição frente ao capital, passando do contra-ataque para uma defensiva extremamente
domesticada e profundamente desarmada, por um processo endógeno de redução
drástica do seu nível de reconhecimento de classe que a colocou num cenário de divisão
entre a ideologia neoconservadora da (falsa) conciliação de classes e a assunção da
perspectiva reacionária, distanciando-se totalmente da perspectiva revolucionária.

Neste contexto não se pode defender uma articulação genérica do Serviço Social
aos movimentos da classe trabalhadora se se quer defender a sobrevivência da
perspectiva crítica no interior da categoria e a capacidade do Serviço Social de contribuir
para a retomada do pensamento crítico no conjunto da classe trabalhadora brasileira.

3- Provocações finais

Pensar a possibilidade histórica para a efetivação do Projeto Ético-Político


profissional do Serviço Social brasileiro exige analisar criticamente o movimento do
Capital e a sua relação com o movimento do Trabalho (da classe trabalhadora, em sua
hegemonia), de forma indissociável e por meio das mediações necessárias, que devem,
inclusive considerar, sem nenhum romantismo, a atuação das frações mais ou menos
rebeldes em ambos os polos da Questão Social, analisando como estas frações
contribuem para o aprofundamento ou não da conjuntura e dos conflitos inerentes à luta
de classes.

A viabilidade histórica de um projeto, seja ele profissional e/ou societário, está na


relação entre seus valores e seu conteúdo programático e as condições objetivas e
subjetivas, presentes e futuras, que recaem sobre o sujeito histórico responsável por lhe
dar efetivo cumprimento na realidade. Isto significa dizer que a viabilidade histórica do
PEP depende das condições concretas, objetivas e subjetivas com as quais a categoria
profissional opera na realidade, tanto quanto das condições de contra-ataque
consequente da própria classe trabalhadora frente aos projetos do Capital, mas também
da manutenção da radicalidade crítica de seus propósitos e princípios, numa relação
indissociável interdeterminante.

592
Não basta que o presente seja de luta para que o futuro nos pertença, é preciso
um importante grau de consciência e organização de classe consequente, o que não se
verifica no momento brasileiro presente e não se vislumbra à curto prazo. O que coloca
como tarefa histórica, aos defensores do PEP e do projeto societário ao qual ele se
articula, o desenvolvimento de um amplo trabalho coletivo, sólido e radical de construção
de condições futuras para a sua viabilização nas próximas gerações, escapando ao
politicismo romântico que topa a construção de projetos junto à qualquer fração
aparentemente progressista.

Os tempos presentes exigem firmeza de princípios, sabedoria estratégica e


perspectiva revolucionária na constituição de alianças. Tal tarefa deve extrapolar os
limites da profissão, ou seja, esta perspectiva deve contribuir para a formação de uma
consciência de si e para si radicalizada no bojo da classe trabalhadora brasileira e
latinoamericana. Para tanto importa retomar os três elementos presentes neste debate:

i) A ascensão das frações mais extremistas à direita em países em que a classe


trabalhadora se encontra desarmada e desorganizada, geralmente após um período de
cooptação e traição de classe, como é o caso brasileiro, inegavelmente. No entanto, é
preciso destacar que em outras frações do globo há nações que optaram por saídas mais
à esquerda, como os casos da Grécia, Portugal, México e Chile, entre outros. Por isto é
preciso observar que o que muda a conjuntura não são os movimentos do Capital, o que
diversifica entre os países e as regiões são as condições de luta da classe trabalhadora,
a sua direção, a posição que ocupa na luta de classes, o seu nível de consciência. No
caso brasileiro não há remédio em casa, ele se encontra na vizinhança, é preciso
estabelecer um processo denso e intenso de intercambio latinoamericano junto aos
movimentos mais radicalizados na região, com destaque para Venezuela, Bolívia e Chile.

ii) O reacionarismo ganha espaço com o recuo da perspectiva crítica da classe


trabalhadora. O desarme e a desorganização da classe trabalhadora, tanto mais a
“eliminação” de sua consciência de classe são elementos necessários ao avanço do
conservadorismo. Quanto mais este processo é grave, mais reacionário é o ataque
burguês;

iii) As entidades representativas do Serviço Social precisam construir espaços


coletivos mais acessíveis, solidários, democráticos e de diálogo permanente junto à base
profissional. O conjunto CFESS-CRESS precisa cuidar melhor da defesa do exercício e
das prerrogativas profissionais, se pode responsabilizar as e os profissionais
individualmente pelo enfrentamento das expressões da questão social nos locais de

593
trabalho, lutas que precisam ser acolhidas e incorporadas coletivamente pela categoria
também. Assim como as e os assistentes sociais devem buscar estratégias para a
coletivização das demandas apresentadas pela população.

4- Referências

GUERRA, Y; Sobre a possibilidade histórica do projeto Ético-Político profissional: a


apreciação crítica que se faz necessária. In: Forti, V; Guerra, Y(orgs). Projeto Ético-
Político do Serviço Social: contribuições a sua crítica. Rio de Janeiro: Lúmem Júris, 2014.

SANT’ANA, R; SILVA, J, F, S da; Recrudescimento conservador no Brasil: bases


ontológico-concretas e expressões no Serviço Social. In: Libertas, Juiz de Fora, v.20, n.2,
p 351 – 372, jul/dez, 2020.

SILVA, J, F, S da; América Latina: capital e devastação social. In: Katálises,


Florianópolis, v.24, n.1, p. 7-19, jan/abr, 2021.

YAZBEK, M, C; Serviço Social e seu projeto Ético-Político em tempos de


devastação: resistências, lutas e perspectivas. In: Yazbek, M, C; Iamamoto, M, V (orgs);
Serviço Social na História: América Latina, África e Europa. São Paulo, Cortez: 2019.

594
SERVIÇO SOCIAL E AÇÃO POPULAR NO RIO GRANDE DO SUL

Jessica Flores Mizoguchi226


Thaisa Teixeira Closs227

RESUMO: Trata-se de investigação sobre a influência da


militância de assistentes sociais e estudantes de Serviço
Social na profissão no Rio Grande do Sul. Através de
pesquisa qualitativa e triangulação de fontes (documental,
bibliográfica e entrevistas), apresenta os resultados
preliminares do estudo, em que o engajamento destacou-se
na realização de experiências de cultura popular em Porto
Alegre, de 1962 a 1964; e de estágios e alteração curricular
em Pelotas, de 1969 a 1972. Demonstra-se como a
militância na organização contribuiu para a criticização da
profissão no estado.

Palavras-chave: Serviço Social; Ação Popular; Rio Grande


do Sul.

ABSTRACT: This is an investigation into the influence of the


militancy of social workers and Social Work students on the
profession in Rio Grande do Sul. Through qualitative
research and triangulation of sources (documentary,
bibliographic and interviews), it presents the preliminary
results of the study, in which the engagement stood out in
the realization of experiences of popular culture in Porto
Alegre, from 1962 to 1964; and internships and curriculum
changes in Pelotas, from 1969 to 1972. It is shown how
militancy in the organization contributed to the criticism of
the profession in the state.

Keywords: Social Work; Ação Popular; Rio Grande do Sul.

1- INTRODUÇÃO

Em trabalho de conclusão de curso “Serviço Social e Ação Popular no Brasil”


(MIZOGUCHI, 2021), em pesquisa sobre a memória histórica do Serviço Social no Rio
Grande do Sul e em investigação em andamento no âmbito do mestrado acadêmico,
identificaram-se dois momentos de participação de assistentes sociais na Ação Popular
no estado. Em um primeiro momento, desde o início da década de 1960 até o golpe civil-

226Assistente social e mestranda do Programa de Pós-Graduação Política Social e Serviço Social da


Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: jemizoguchi@gmail.com
227 Assistente social. Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica. Docente do
Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação Política Social e Serviço Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: thaisatcloss@gmail.com

595
militar, em 1964, em atividades de movimento estudantil e de cultura popular.
Posteriormente, de 1968 até 1972, com a prisão massiva de militantes da organização no
Rio Grande do Sul, a partir da experiência em Pelotas, protagonizada pelo docente e
diretor da Escola de Serviço Social de Pelotas, com destaque para a articulação do
“Esquema de Fronteira”. O estudo fundamentou-se no método dialético-crítico, a partir de
pesquisa qualitativa (MARTINELLI, 1999) através da triangulação das fontes (TRIVIÑOS,
1987): revisão bibliográfica, pesquisa documental e entrevistas com base na metodologia
de História Oral (MARTINELLI, 2009). De modo que o presente artigo apresenta
discussão preliminar sobre a contribuição da militância política de assistentes sociais na
Ação Popular para a profissão.

2- AÇÃO POPULAR NO RIO GRANDE DO SUL

A Ação Popular foi fundada em 1962 no Rio Grande do Sul, na casa dos pais de
Maria Josefina Becker, então estudante de Serviço Social da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, com a participação de Betinho, Herbert de Souza,
membro da direção nacional da organização. Assim como nacionalmente, a AP gaúcha
nasceu majoritariamente de uma parcela da militância da Juventude Universitária
Católica (JUC), ou seja, de estudantes universitários, conforme relata Maria J. Becker:

Então nós fizemos um super esforço para mandar os alunos para as vilas, para as
comunidades... para as comunidades não, os bairros! Articulado. O quê? Com as
associações de bairro da área, ou com os sindicatos ou com a igreja. A gente ia
nas Comunidades Eclesiais de Base. Normalmente a área das Comunidades
Eclesiais de Base eram as aglutinadoras do processo. E fazíamos... Esse trabalho
foi muito contestado na minha prisão. Dizendo que inclusive eu estava aliciando a
população para serem adeptos da teoria marxista-leninista da Ação Popular.
(BECKER, 2021, p. 5).

Desde sua fundação em 1962 e o golpe civil-militar em 1964, a atuação da AP


caracterizou-se pelo apoio crítico às reformas de base e pela forte incidência no
movimento estudantil gaúcho (DIAS, 2011). Fundamentou-se no socialismo humanista e
recebeu a influência intelectual de Ernani Fiori, filósofo e professor da UFRGS. No
movimento estudantil, a organização atuou através de entidades representativas, como a
União Estadual dos Estudantes do Rio Grande do Sul (UEE-RS), a Federação de
Estudantes da UFRGS, os Centros Acadêmicos e os Grêmios Estudantis, com destaque
para o Colégio Júlio de Castilhos (Julinho).

596
A particularidade da AP no estado está em sua atuação pela via institucional.
Apesar do caráter conservador da administração de Ildo Meneghetti no governo do
Estado, em 1963, militantes apistas atuavam em seu governo: Valter Omon e Luis
Antônio Tim Grassi, que trabalhavam na Secretaria Estadual do Trabalho como
assessores sindicais, na articulação de movimentos de trabalhadores e de segmentos da
Juventude Operária Católica; e Maria Josefina Becker, já assistente social, com atuação
na Secretaria de Educação, sendo uma das responsáveis pelo desenvolvimento do
trabalho de educação de adultos a partir do método Paulo Freire (PIRES, 2015).

Na secretaria de educação do governador Ildo Meneghetti, que era considerado


conservador, mas cuja secretária Zilah Totta, concedeu um espaço para os
militantes da AP, os quais formaram um núcleo na secretaria. Além disso, na
secretaria de trabalho, comandada por Armando Pietro, ex-militante da JUC, que,
embora não fosse de esquerda, também permitiu que um dos líderes da AP
levasse vários membros da organização para trabalhar nela” (DIAS, 2011, p. 101).

Para Oliveira (2016) essa já foi uma iniciativa de integração junto à classe
trabalhadora, com a alfabetização e conscientização de adultos na Secretaria de
Educação e com a organização de sindicatos na Secretaria do Trabalho, antes mesmo da
AP adotar essa diretriz. A partir do golpe civil-militar de 1964, que impôs novas restrições
à articulação da organização, parcela de seus militantes iniciou um processo de
“hibernação”, conforme relatado por seu ex-militante e ex-parlamentar gaúcho Raul
Carrion (Oliveira, 2016). Neste momento, uma das principais características da AP, que
era a sua abertura e estreita relação com as massas populares, foi revista em
decorrência do terrorismo de Estado perpetrado pela ditadura.

Deste modo, houve uma progressiva aproximação de militantes da JOC à AP,


assim como a inserção de militantes do movimento estudantil entre os trabalhadores, em
especial junto aos metalúrgicos da grande Porto Alegre e aos calçadistas do Vale dos
Sinos. Ainda assim, o movimento estudantil apista permaneceu em atividade na capital
gaúcha, convocando passeatas, fazendo pichações em locais estratégicos e distribuindo
materiais de denúncia à ditadura.

Esse período também foi caracterizado pelo seu encaminhamento rumo ao


marxismo, marcado por uma divisão entre aqueles que defendiam o foquismo e estavam
alinhados à Revolução Cubana de 1959; e os que se articulavam em torno da vertente
maoísta do marxismo-leninismo, defendendo a revolução em duas etapas e a integração

597
dos militantes de origem pequeno-burguesa junto aos trabalhadores urbanos e
campesinos, ao exemplo da Revolução Cultural Chinesa.

Ambas correntes visitaram tanto a Cuba quanto a China e trouxeram a sua


influência e seus ensinamentos para a AP. Em 1968, após atentado no aeroporto de
Recife mal sucedido, houve uma maior crítica à perspectiva foquista. No Encontro
Nacional se agravou a disputa entre as correntes, o que culminou com a expulsão dos
foquistas e com a vitória dos maoístas na organização. No Rio Grande do Sul já havia um
movimento de integração na produção, que ainda não era obrigatório. Inclusive, por
divergências sobre a integração, militantes que estavam próximos aos metalúrgicos e aos
calçadistas saem da AP e integram o PCdoB nessa época.

De um relativo esvaziamento da organização decorreu o deslocamento de dois


militantes de São Paulo para o Rio Grande do Sul a fim de reorganizar a AP em 1969. A
partir de 1969 houve uma intensificação da integração na produção, que passou a ser
obrigatória. Esta iniciativa, além de objetivar aproximar a organização do movimento
operário e camponês, também funcionou enquanto uma medida de segurança, já que
frequentemente os militantes mudavam de estado e de identidade ao realizar a
integração - o que contribuía para despistar a polícia terrorista que perseguia os
militantes postos em clandestinidade.

Ainda, quanto à particularidade da AP no RS, houve a articulação do esquema de


fronteira. Foi realizado um acordo entre o ex-governador Leonel Brizola e a Ação Popular,
com os brizolistas se responsabilizando por quem chegava ao Uruguai e a AP pela
passagem pela fronteira. O esquema permitiu a passagem de militantes de esquerda de
diversas organizações, não apenas os apistas (DIAS, 2011, p. 86).

Crises e cisões marcaram a história da Ação Popular e a divergência sobre a


existência ou não do partido de vanguarda da classe trabalhadora no Brasil, que para
alguns seria o PCdoB e para outros deveria ser constituído, culmina na mudança de
nome da organização em 1971 para Ação Popular Marxista Leninista do Brasil. No
entanto, em 1972 ocorreu a desarticulação da Ação Popular no Rio Grande do Sul com a
prisão, exílio e encerramento da atuação de grande parte de seus militantes. Ressalta-se
a atuação do CENIMAR em suas prisões, com o destacamento de um militar
especializado na Ação Popular e deslocado para o estado exclusivamente para esse fim.
Nacionalmente, em 1973 a maior parte de seus militantes aderiram ao PCdoB, ainda que

598
alguns tenham permanecido na AP e buscado articular a sua reorganização até o início
da década de 1980.

3- SERVIÇO SOCIAL E AÇÃO POPULAR NO RIO GRANDE DO SUL

No início da década de 1960, os militantes da Ação Popular e estudantes de


Serviço Social participavam de movimentos de cultura popular inspirados no método
Paulo Freire. Essas experiências ocorreram no âmbito da Divisão de Cultura da
Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul. Esta Divisão se
constituiu em pólo irradiador de experiências do Serviço Social no campo da cultura
popular, dirigido pela assistente social e docente da Escola de Serviço Social de Porto
Alegre, Lúcia Castillo.

É neste departamento que atua a estudante de Serviço Social Maria Josefina


Becker, militante da Ação Popular. É a partir dessa inserção que se desenvolvem as
atividades da tendência progressista de DC do Serviço Social gaúcho, a pedagógica-
cultural, que foi “liderada pelas professoras Lucia Castillo, Zillah Totta e Notburga
Reckziegel, marcada pela incidência do pensamento católico francês de Emannuel
Mounier, articulando abordagens grupais e o DC com ênfase educativa, a partir das
ideias de Paulo Freire e de Ernani Maria Fiori. (SCHEFFER, CLOSS, ZACARIAS, 2019).

Além disso, Lucia Castillo e seus estagiários de Serviço Social compuseram a


equipe interdisciplinar de fundação e execução das atividades do Instituto de Cultura
Popular, que foi constituído em dezembro de 1963. Ali foram desenvolvidas atividades de
extensão e estágio no campo da alfabetização de adultos, cultura e educação popular. A
incidência desses trabalhos comunitários materializou-se em trabalhos de conclusão de
curso (TCC) do Serviço Social abordando essas temáticas. Em abril de 1964, logo após o
golpe civil–militar, as atividades do ICP são encerradas.

Além da experiência institucional a partir da Divisão de Cultura da SEC, destaca-


se a atuação conjunta da AP e do PCB na constituição de movimentos de cultura popular
nas vilas de Porto Alegre, que contavam com o apoio de Ernani Maria Fiori e de Leônidas
Xausa, ambos docentes de filosofia da UFRGS e apistas (DIAS, 2011). A participação
dos militantes da Ação Popular nos movimentos de Cultura Popular de então se
articularam através de sua inserção institucional no governo do Estado e no movimento

599
estudantil, através da UEE-RS e da UGES. As atividades de cultura popular ocorreram
desde o fim de 1962 promovidas por estudantes (BECKER, 1963).

Maria Josefina Becker foi membro da JUC antes da constituição da Ação Popular.
Atuou no movimento estudantil, participou do Comitê Central da Greve do 1/3 e articulou
experiências de alfabetização de adultos em Porto Alegre. Justamente quando os cursos
de alfabetização estavam sendo levados para o interior do Estado chegou o golpe de
1964, quando toda essa atuação é desarticulada. Eva Teresinha Silveira era sua colega,
amiga e companheira de AP - no futuro conhecida como Eva Faleiros. Foi uma liderança
estudantil, vice-presidente da Executiva de Estudantes do Serviço Social e atuou na
Divisão de Cultura da SEC na equipe de Lúcia Castillos. Os seus trabalhos de conclusão
de curso tematizaram experiências de Cultura Popular no campo da alfabetização de
adultos em Porto Alegre a partir desta inserção.

O TCC de Eva trata-se de “o relato e análise de uma experiência de Cultura


Popular, e mais do que isso, de uma experiência de Serviço Social em Cultura.”
(SILVEIRA, 1964).Para Eva cabe ao Serviço Social a tarefa de desalienação cultural
(SILVEIRA, 1964, p. 10). O Serviço Social e a cultura popular buscam a análise das
causas dos problemas e a conscientização dos mesmos, já que “é da natureza de ambos
o tornar consciente.” (SILVEIRA, 1964, p. 11). Fazendo uma reflexão dos valores, objetos
e funções do Serviço Social, a estudante argumenta que uma das tarefas profissionais é
a desalienação cultural.

A compreensão das estudantes de Serviço Social era de que não seria possível
trabalhar com Cultura Popular sem que houvesse o engajamento do povo, o que se
relaciona com a sua compreensão de revolução: “uma revolução imposta não é
revolução. Não negamos a importância das vanguardas, das lideranças, no processo de
superação da alienação. Mas liderança não significa imposição, não significa dirigismo.
Significa conscientizar e indicar os instrumentos. A resposta final caberá ao povo.”
(BECKER, 1963, p. 14). De acordo com Maria, em depoimento recente,

A questão da cultura e da consciência histórica são básicas para as formulações


iniciais da AP. A consciência histórica é a consciência que o sujeito tem de si
mesmo dentro de um determinado momento da história que não é só daquele
lugar, mas que é de toda cultura humana e toda a situação do mundo. [...] Então
esse conceito de cultura como a capacidade que o sujeito tem de transformar o
mundo material, seja materialmente, as obras culturais vai e vem a questão da
arte, a questão da cerâmica e aí no nordeste isso é riquíssimo, como a questão da
expressão do pensamento, de um pensamento que não é a repetição de outro
pensamento que é tradução de uma reflexão própria, que aí tem a questão da

600
consciência histórica, então a questão da cultura e da consciência histórica
sempre foram básicas. (BECKER, 2021, p. 14)

Para tanto, defendem um Serviço Social que promova a integração dos homens
em suas comunidades e as comunidades na sociedade mais ampla, e esta na sua
vocação histórica. Por isso, “é necessário que o Serviço Social seja um instrumento de
libertação, conscientizando o povo brasileiro, para que ele assuma seu papel de criador
de cultura e operário da construção da HISTÓRIA.” (BECKER, 1963, p. 45).

Ressalta-se que as experiências relatadas por Eva Faleiros e Maria Becker


estavam majoritariamente articuladas à participação do movimento estudantil, inclusive
com as atividades que estes realizavam em sua Caravana da UEE-RS. Assim, a
interlocução com a Ação Popular - além da própria participação de militantes da
organização - está costurada em especial através do movimento estudantil - principal veia
da AP. Em depoimento Maria Backer comenta sobre a sua compreensão de engajamento
profissional e político: “Quer dizer, o meu trabalho como estagiária de Serviço Social, eu
via também como um trabalho militante.” (BECKER, 2021, p. 8)

É a partir de 1968 que se iniciou a militância de Alceu Salamoni em Pelotas. Alceu


graduou-se assistente social na Escola de Serviço Social de Porto Alegre, onde cursou
Serviço Social através de bolsa de estudos garantida pelo SESC em troca de seus
serviços quando profissional formado. Por esse motivo, atuou como assistente social do
SESC em Ijuí e em Pelotas. Logo foi convidado a atuar como professor de Serviço Social
e diretor da Escola de Serviço Social de Pelotas, época na qual já militava na Ação
Popular. Segundo Cristiane Dias (2011) e o depoimento do dirigente estadual da AP
Antonio Ramos Gomes, Alceu Salamoni teria comandado a base de Pelotas da AP e era
conhecido como “Frei”:

Os núcleos mais significativos da AP no interior estavam localizados em Pelotas e


Santa Maria, que eram formados por cerca de 30 pessoas. Então, os militantes
dos dois núcleos faziam reuniões em conjunto, pois, naquela época, o Alceu
Salamoni era o principal coordenador do interior, junto com um militante que era
pastor presbiteriano e por isso era chamado de frei ou de pastor! Ele não era
católico, mas estava ligado a uma igreja presbiteriana. (GOMES, 2011 apud DIAS,
2011, p. 141).

O docente Alceu Salamoni, enquanto coordenador do curso, iniciou um processo


de alteração curricular no curso da ESS-Pelotas. Uma iniciativa articulada junto à Ação
Popular e da qual a nova disciplina introduzida foi lecionada pelo advogado e

601
coordenador da célula da AP. Em entrevista, Salamoni reflete sobre as contribuições da
sua militância na AP na Escola de Serviço Social:

Claro que a influência é muito mais do que eu lá na Escola aqui. Entende? Até
porque o grupo da AP foi o que eu convidei. Aliás, nós fizemos uma mudança de
currículo na Escola, entre outras disciplinas nós introduzimos “Realidade latino-
americana”. E claro, quem foi dar a disciplina foi o cara que coordenava o grupo
de AP aqui em Pelotas. [...] Um ponto dessa reforma: nós entendíamos que o
aluno tinha que conhecer um pouco mais de história. Mas história, História! Não
era colocar uma disciplina para qualquer um vim lá dar as aulas. Foi aí que esse
cara, que era um cara que tinha se formado em Direito já, que tinha sido professor
de história em um curso de segundo grau. Mas era o coordenador da AP aqui,
entende? E isso entrou em 72. Mas em maio houve a minha prisão. Houve a
prisão dele também, desse cara, e aí se foi a disciplina. (SALAMONI, 2021, p. 5)

Os estágios realizados durante este período também foram marcados por uma
nova concepção, com a abertura de novos campos: “Porque nós abrimos aqui a Escola
para os estágios nas vilas. Não tem estágio em instituição! Tem estágio em vila!”
(SALAMONI, 2021, p. 7). A experiência era nova e estava em desenvolvimento quando
ocorreu o seu corte, devido à repressão ditatorial. De modo que não houve tempo
suficiente para uma maior elaboração sobre o que era aquela experimentação: “um
trabalho de... Não é o antigo Serviço Social de Caso, nem é o antigo Serviço Social de
Grupo. É trabalhar com todo mundo! Vamos chamar isso de Comunidade,
Desenvolvimento de Comunidade? Não sei!” (SALAMONI, 2021, p. 11). No entanto, a
atividade foi marcado pela articulação e inclusão da população das “vilas” pelotenses, o
que foi contestado pelos torturadores do DOPS:

Então nós fizemos um super esforço para mandar os alunos para as vilas, para as
comunidades... para as comunidades não, os bairros! Articulado. O quê? Com as
associações de bairro da área, ou com os sindicatos ou com a igreja. A gente ia
nas Comunidades Eclesiais de Base. Normalmente a área das Comunidades
Eclesiais de Base eram as aglutinadoras do processo. E fazíamos... Esse trabalho
foi muito contestado na minha prisão. Dizendo que inclusive eu estava aliciando a
população para serem adeptos da teoria marxista-leninista da Ação Popular.
(SALAMONI, 2021, p. 11).

Por fim, destaca-se também a sua atuação na articulação do Esquema de


Fronteira, quando junto a outros companheiros organizaram a saída de militantes
clandestinos para o Uruguai. No entanto, com a desarticulação de Ação Popular no
estado, Alceu Salamoni foi preso e levado ao DOPS em Porto Alegre em 1972,
permanecendo ali por cerca de três meses. Ao retornar à Pelotas foi afastado da
docência, ainda que mantido na Universidade Católica, o que causou a interrupção nas
mudanças iniciadas na formação em Serviço Social em Pelotas.

602
4- CONCLUSÕES

Identificaram-se dois períodos de participação de assistentes sociais na Ação


Popular que demonstraram a influência de seu engajamento político na profissão. Do
início da década de 1960 até o golpe-civil militar em 1964, a atuação no movimento
estudantil universitário, em estágios e em experiências de educação e cultura popular, a
partir de inserção na SEC e no ICP-RS, contribuíram para a abertura da erosão do
Serviço Social tradicional no Rio Grande do Sul.

Já a atuação de militantes da AP na Escola de Pelotas, com destaque para o


docente e coordenador do curso, que ocorreu de 1968 a 1972, e que iniciou a alteração
curricular do curso de Serviço Social, assim como as experiências de estágio realizadas
em vilas e articuladas com a Igreja Católica, sindicatos e MEB - experiência de renovação
crítica profissional encerrada prematuramente com a sua prisão e com a desarticulação
da Ação Popular no Rio Grande do Sul.

Finalmente, cabe mencionar que essas são conclusões preliminares, fruto de


estudo que está em processo de aprofundamento e amadurecimento em pesquisa de
mestrado acadêmico atualmente em desenvolvimento.

5- REFERÊNCIAS

BECKER, Maria Josefina. Serviço Social e Cultura Popular. 1963. Trabalho de


conclusão de curso. (Graduação em Serviço Social) – Faculdade de Serviço Social,
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1963.

BECKER, Maria Josefina. Entrevista concedida a Thaisa Teixeira Closs, Graziela


Scheffer e Jessica Flores Mizoguchi. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre: 2021.

DIAS, Cristiane. A ação popular (AP) no Rio Grande do Sul: 1962-1972. 2011.
Dissertação (Mestrado em História) - Fundação Universidade de Passo Fundo, Passo
Fundo, 2011.

MARTINELLI, Maria Lúcia. História oral: exercício democrático da palavra. In:


MARTINELLI, Maria Lúcia; LIMA, Neusa Cavalcante; MONTEIRO, Amor António;
DIZNIZ, Rodrigo (Organizadores). A história oral na pesquisa em Serviço
Social: da palavra ao texto. São Paulo: Cortez Editora, 2019.
MARTINELLI, Maria Lúcia. Pesquisa Qualitativa: um instigante desafio. São
Paulo: Veras, 1999.

603
MIZOGUCHI, Jessica Flores. Serviço Social e Ação Popular no Brasil.
Orientadora: Thaisa Teixeira Closs. 2021. 83 f. TCC (Graduação) - Bacharelado
em Serviço Social, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 2021.
OLIVEIRA, Cleverton Luis Freitas de. A Ação Popular e suas estratégias de
integração na classe trabalhadora do Rio Grande do Sul (1962-1972). 2016.
Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2016.

PIRES, Thiago Vieira. FAZENDO REVOLUÇÃO A VIDA INTEIRA: Memória e


Resistência entre os militantes da Ação Popular do Rio Grande do Sul. 2015. Dissertação
(Mestrado em História) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2015.

SALAMONI, Alceu. Entrevista concedida a Thaisa Teixeira Closs e Jessica Flores


Mizoguchi. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2021.

SCHEFFER, Graziela; CLOSS, Thaisa Teixeira; ZACARIAS, Inez. A Reconceituação


Latino-americana na Ditadura Brasileira: a renovação do Serviço Social gaúcho. In:
Revista Serviço Social e Sociedade, n. 135. São Paulo: 2019.

SILVEIRA, Eva Teresinha. Uma experiência de cultura popular. 1964. Trabalho de


conclusão de curso. (Graduação em Serviço Social) – Faculdade de Serviço Social,
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1964.

TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a


pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

604
SERVIÇO SOCIAL NA HISTÓRIA DA DITADURA NO RJ: veredas da
politização, repressão e resistência

Graziela Scheffer228
Márcia Cassin229
Tainá Souza Caitete230
Daniele Batista Brandt231

Resumo: O artigo é fruto de pesquisa exploratória sobre acerca do


Serviço Social na ditadura no Rio de Janeiro no período de 1960-
1980. O objetivo geral é analisar o Serviço Social na história da
ditadura no Rio de Janeiro articulado as lutas e movimentos sociais,
visando identificar processos de erosão dos fundamentos
tradicionais-conservadores da profissão.

Palavras-chave: Serviço Social, ditadura, lutas e movimentos


sociais.

Abstract: The article is the result of exploratory research on Social


Work in the dictatorship in Rio de Janeiro in the period 1960-1980.
The general objective is to analyze Social Work in the history of the
dictatorship in Rio de Janeiro, articulating social struggles and
movements, in order to identify processes of erosion of the
traditional-conservative foundations of the profession.

Keywords: Social Work, dictatorship, struggles and social


movements.

228 Assistente Social. Doutora em Serviço Social (UFRJ). Especialista em Saúde Mental Coletiva, Professora
Adjuntado Departamento de Fundamentos Teórico-Práticos do Serviço Social na FSS/UERJ, pesquisadora
Centro de Estudos Octávio Ianni (CEOI). E-mail: graziela.uerj@gmail.com.
229 Assistente social. Mestre e doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço

Social da UFRJ. Professora do Departamento de Política Social da Faculdade de Serviço Social da UERJ.
Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e Seguridade Social (GOPSS/UERJ)
e do Centro de Estudos Octávio Ianni (CEOI/UERJ). E-mail:marcia.cassin@hotmail.com.
230Assistente Social. Professora Adjunta do Departamento de Política Social na Faculdade de Serviço Social

da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora e Mestre em Serviço Social pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento
Público e Seguridade Social-GOPSS.Faz parte do Centro de Estudos Octávio Ianni-CEOI e do coletivo
Questão Social em Foto.E-mail: taina.con@gmail.com.
231 Assistente Social. Doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Especialista em Política e Planejamento Urbano pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e


Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Gênero e Sexualidade pelo
Instituto de Medicina Social (IMS) da UERJ. Professora Adjunta do Departamento de Fundamentos Teórico-
Práticos do Serviço Social na FSS/UERJ. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Marxistas-
Lefebvrianos sobre Espaço Urbano, Vida Cotidiana e Serviço Social (UrbanoSS) da FSS/UERJ. E-mail:
daniele.brandt@uerj.br

605
1- Introdução

O artigo é oriundo da pesquisa “Serviço Social, movimentos e lutas sociais no Rio


de Janeiro (1960-1980): da erosão dos fundamentos tradicionais-conservadores ao
projeto ético -político”. O objetivo geral é analisar o Serviço Social na história da ditadura
no Rio de Janeiro em seu enlace com as lutas e movimentos sociais, visando identificar
processos de erosão dos fundamentos tradicionais-conservadores da profissão.
Segundo Netto (2016, p. 65), existem poucas pesquisas históricas que tratam do
Serviço Social, o que leva a categoria profissional a uma atrofia do labor histórico
analítico e, consequentemente, afeta os pilares do projeto ético-político do Serviço Social.
Em suas palavras: “tal atrofia, entre outras implicações, afeta significativamente a
incidência da pesquisa histórica no direcionamento social da profissão e pode sinalizar,
como premonitoriamente uma inflexão na direção social que se considera hegemônica”.
Iamamoto (2008, p. 244), no que concerne à pesquisa em Serviço Social, aponta
para a necessidade da viagem de volta à historicidade da profissão como condição para
ruptura da endogenia do debate profissional para “Apreender as múltiplas determinações
societárias incidentes no trabalho profissional é de fundamental relevo, mas também se
faz necessária a viagem de volta que permita uma rica releitura desse trabalho saturado
de determinações”.
O estudo se estrutura em três conjunturas históricas que abarcam as décadas de
1960, 1970, 1980 nas quais se desenvolveram importantes processos de resistências e
rupturas com os fundamentos conservadores do Serviço Social latino-americano. Para
Alves (2022), foi neste contexto histórico que mulheres estudantes, profissionais e/ou
docentes de Serviço Social, inseridas na luta política, sofreram violações de direitos e
violências, de modo que o processo de politização crítica vivenciou um refluxo crítico dos
rumos possíveis da profissão em termos teóricos e metodológicos, no início da década de
1960. Segundo a autora, a perspectiva crítica só é retomada com maior vigor nos últimos
anos da década 1970, quando a ditadura entrou em refluxo na sociedade a partir de
novas condições de organização política. O estudo apresentado aborda uma primeira
aproximação analítica acerca do Serviço Social no Rio de Janeiro, no período da
ditadura, na Escola de Serviço Social de Niterói (ESSN-UFF), na Faculdade de Serviço
Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (FSS-UERJ), Escola de Serviço Social
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS-UFRJ).

606
2- Serviço Social no contrapelo da história da ditadura: panorama dos cursos de
Serviço Social no Rio de Janeiro

Para a análise do Serviço Social na ditadura civil-militar no estado do RJ,


realizamos um estudo exploratório232 pautado na revisão bibliográfica e documental,
obras e documentos da história dos cursos no período de 1960-1980. Tratar do Serviço
Social na história nessas três décadas representa recuperar a angulação analítica do
contrapelo da história, vinculados as lutas de resistências e dos movimentos sociais na
ditadura do grande capital, aprofundando as bases da questão social que se expressa e
explica as transformações dos fundamentos da profissão na sociedade capitalista.
Portanto, investigar a inserção dos profissionais e estudantes nos processos de
resistência da ditadura nos possibilita capturar os processos de rupturas com os
fundamentos do Serviço Social tradicionais-conservadores e, simultaneamente,
vislumbrar as tendências de novas direções teórico-metodológica, ético-política e técnico-
operativa vinculadas aos interesses da classe trabalhadora e às lutas sociais da época.
Para Yazbek (2020), os fundamentos são matrizes histórico-ontológicas,
explicativas da realidade e da profissão, alicerçados em múltiplos aspectos e que
perpassam a relação entre Serviço Social e realidade. Para Iamamoto (2008, p. 220),
estudar os fundamentos da profissão, implica em abordar a “história a partir das classes
sociais e de suas lutas, entendendo as diversas manifestações da “questão social” e as
suas estratégias de enfrentamento. Segundo Almeida (2016, p.81), a “questão social” é
expressão politizada da luta de classes e do próprio processo de consciência e
organização da classe, levando-se em consideração que esta é determinada
historicamente. A análise marxiana ao desvelar as condições de produção da riqueza
social e da sua apropriação privada, cuja reprodução dessa forma de produção capitalista
“requer o controle dos modos de reprodução da miséria em escala ampliada e, muito
menos, da luta de classes em torno da manutenção/superação dessa ordem”. Portanto,
desvelar a questão social implica em demonstrar suas formas de resistência material e
simbólica acionadas pelos indivíduos sociais (IAMAMOTO, 2004).
A partir de fio condutor analítico do Serviço Social na história da ditadura
articulada a questão social e lutas sociais é buscamos analisar dinâmica da politização,

232 Realizamos um levantamento dos materiais relativo ao Centro Acadêmico de Serviço Social da UERJ
visando identificar documentos do movimento estudantil de 1960-1980. No trabalho campo na FSS-UERJ
verificamos são escassas documentação do período das décadas de 60-70. Fomos informadas que grande
parte do material histórico foi destacado pelo ex-diretor Wilson Cardoso na década 1980.

607
repressão e resistências vivenciadas nos cursos de Serviço Social no Rio de Janeiro, a
partir do resgate da trajetória da ESS-UFRJ, FSS-UERJ, da ESSN-UFF.
A ESSN-UFFa partir dos anos 1950 até 1964, teve importantes vinculações com o
pensamento de esquerda, em especial com os movimentos progressistas da Igreja
Católica, por meio do segmento da Juventude Universitária Católica (JUC) e Ação
Popular (AP), que influenciou estudantes de Serviço Social do período, os quais “exigiam
uma mudança na análise da realidade e das questões sociais brasileiras, bem como no
atendimento social a pobreza fluminense (GOMES, 1997, p.181).
Neste período, havia uma polarização das forças políticasno quadro amplo da
Guerra Fria na América Latina após a vitória do socialismo cubano no continente,
gerando uma crise na dominação burguesa nacional. Com a Revolução Cubana de 1959
“o socialismo passou a ser um elemento real das relações interamericanas, como algo
efetivamente ocorrido e que poderia ocorrer de novo”. (IANNI,1974, p.50). O período
inicial de 1960 foi marcado pelas lutas sociais das reformas de bases, acompanhado por
processos de conscientização e politização de operários, camponeses, estudantes e
intelectuais (AMMANN, 2003). O golpe civil-militar no Brasil em 1964 buscava frear as
lutas em torno das reformas bases e o processo de politização das organizações dos
trabalhadores e estudantes. As classes dominantes nacionais, sustentadas em interesses
do capital monopolista internacional, e apoiadas nos órgãos governamentais norte-
americanos, defenderam a Ditadura civil-militar consolidada a partir de 1964.
Sobre os estudantes ESSN-UFF do período, destacamos Suely Gomes Costa,
estudante de 1959-1962, representante do Diretório Acadêmico Maria Kiehl (DANK) e
integrante da AP que, após formada torna-se docente do curso de Niterói. Para Costa
(1993 apud Gomes, 1997, p.97-98) o Partido Comunista Brasileiro (PCB) da época era
“extremamente manietado pelo centralismo democrático e, eram pessoas com pouca
liberdade de pensar”. Já AP, considerava um movimento marxista de esquerda que era
“libertável, era movimento crítico”.
Apesar das divergências e disputas entre os segmentos católicos e comunistas no
interior do movimento estudantil – buscava-se uma estratégia de unificação dos
estudantes em torno de bandeiras comuns, especialmente sobre democratização da
sociedade e do ensino superior, a reforma agrária e a difusão do projeto de alfabetização
de Paulo Freire (CLOSS, et.al, 2021).. Para Costa (1995 p.71), a ESSN-UFF teve
influência das experiencias do MEB, do método de alfabetização de Paulo Freire e da
Ação Popular (AP) qual grande parte do Diretório Acadêmico eram membros dessa

608
organização. Em 1963, Herbert de Souza, liderança da AP, foi conferencista na ESSN-
UFF. Em termos nacional na organização do movimento estudantil do Serviço Social,

Nos congressos estudantis da década de 60, alunos- agora homens e mulheres-


exigiam mudanças curriculares radicais, voltadas para conhecimento da
realidade. (CARVALHO,1992). Propagava com veemência, conceitos bastantes
coincidentes do com aquelas emanadas do ISEB e da Comissão Econômica
para América Latina e Caribe (CEPAL), associadas às novas tendências sobre
cristianismo (...) (1995, p.71).

Gomes (1997) enfatiza que na disciplina Economia Política e Social do currículo


de 1956 vigente até início dos anos 1960 já fazia referência ao marxismo. Acerca da
produção de conhecimento sobre a pobreza no período, era oriunda principalmente
CEPALa partir das elaborações sobre subdesenvolvimento, desenvolvimentismo e
marginalidade social; do Banco do Desenvolvimento Nacional (BNDE)de inspiração
keynesiana; e da “ala da esquerda” do Instituto Superior de Estudos Brasileiros ISEB. A
doutrina do desenvolvimento foi construída nessa confluência dessas correntes que
impulsionaram uma ação política voltada para o estímulo da industrialização e da
modernização do campo.
Sobre o período do pós-1964 do golpe civil-militar na FSS-UERJ, o livro
organizado pelas assistentes sociais que foram estudantes do período de 1965-1968 da
Universidade Estadual da Guanabara (hoje denominada como Universidade Estadual do
Rio de Janeiro), nos possibilita identificar processos de repressão- resistência no período
inicial da ditadura. Nas palavras das autoras “Nossa formação em Serviço Social deu-se
1965 a 1968, período em que mundo lidava com guerra fria, intervenção militar dos EUA
no Vietnam e os movimentos antiestablishment especialmente impulsionado pela busca
de direitos” (GUERREIRO, et al 2019, p.9).Sobre o impacto da ditadura na FSS-UERJ,
observa-se já impacto da Operação Limpeza e a repressão na direção do curso do
“interventor” indicado por militares. Conforme relato das autoras citadas:

(...) havia também receio ou, mesmo, medo. Estávamos em plena ditadura, ano
de 1966. O golpe havia sido em 64; a turma começa em 65. A direção da
faculdade cabia alguém indicado pelo governo militar. Independente da formação
que tivesse– academicamente conceituado, mas no caso, presidindo um clube
de futebol- não tinha nenhuma familiaridade alguma com as questões da área do
Serviço Social.

Sobre o corpo docente da FSS-UERJ, aponta três posições: os omissos por


posicionamento; os contrários ao regime militar que “haviam escapado à degola geral,
mas se manifestavam por parábolas ou metáforas”; e os que eram pró-ditadura, que “se
sentiam donos da vida na faculdade” (GUERREIRO, et al 2019, p.87). Em relação à

609
escolha profissional destaca-se Maria Freitas e Lucia Perez, ambas as professoras
primárias eram vinculadas a Juventude Estudantil Católica (JEC) e desenvolveram ações
educativas no meio rural pautadas no método de Paulo Freire. et al
O perfil dos estudantes do curso noturno da FSS-UERJ era formado por jovens
mulheres trabalhadoras. As autoras também destacam que havia na época um curso
matutino, cujo perfil também era jovens mulheres, contudo se diferenciava por ser em sua
maioria oriundas de classe média altas que não precisavam trabalhar. Frisa-se que a
FSS-UERJ era o único curso noturno da época. Esse perfil de estudantes trabalhadoras
impulsionou as lutas por melhorias na formação pelo “Grupo do Paredão” que
reivindicavam a abertura da biblioteca no horário noturno, denunciam falta de sigilo no
estágio do Juizado do Menor e reivindicavam melhores campo de estágios para
estudantes trabalhadores (GUERREIROet al, 2019, p.9). Em 1967, organizam um jornal
clandestino chamado o Grito, o qual inspirou a turma seguinte de 1968 a criar um jornal
intitulado Berro, ambos jornais buscavam denunciar e reivindicar as questões da
formação do Serviço Social na ditadura. O Grupo Paredão recebeu apoio e se articulou
aos segmentos universitários que eram contrários à ditadura como exemplo integrantes
Diretório Central dos Estudantes (DCE), da Faculdade da Engenharia e do Sindicato de
Médicos (GUERREIROet al, 2019, p.9).
O grupo ganhou o Diretório Acadêmico (DA) da FSS-UERJ com a chapa
“Trabalho e Integração” em 1967. Durante a campanha, os segmentos pró-ditadura
acusaram a chapa de ser financiada com dinheiro de Moscou, formada por pessoas
perigosas que ocasionaria problemas na faculdade com a polícia (GUERREIRO et al,
2019). A Ditadura civil-militar buscava propagar a ideia de “inimigo interno” como
justificativa para as ações repressivas do Estado. A primeira ação da chapa no DAfoi a
realização de um curso pré-vestibular popular financiado com arrecadações das taxas
recolhidas das matrículas. A partir de 1967, o DA envolve-se diferentes manifestações
contra a ditadura, colocando cartazes sobre a morte de Che Guevara, na organização
dos estudantes FSS-UERJ para passeata da morte do estudante secundarista Edson
Luís, que posteriormente foi homenageando com seu nome na cantina. Em relação à
incidência do Movimento da Reconceituação latino-americana, já se identifica esta
influência no período. A turma noturna (1965-1968) indicou Dom Helder Câmara como
patrono e Seno Cornely para paraninfo, houve tentativas de proibição de ambos. As
estudantes da época colocam

Conhecemos o professor Seno, gaúcho, num seminário fora; conversei com ele
sobre possibilidade de palestra na faculdade, e ele se prontificou. A diretoria

610
montou o curso. (...) Esse curso causou certa resistência do corpo docente e no
diretor, que taxou nosso grupo mais uma vez, de “comunista”. (GUERREIROet
al, 2019, p.89).

Cornely foi impulsionador do Movimento de Reconceituação, que constitui a partir


da Escola de Porto Alegre uma nova tendência profissional progressista denominada
Reformismo Reconceituador, articulada ao debate da unidade do Serviço Social latino-
americano, sendo anterior ao Seminário de Araxá em 1967. A gênese Reformista
articulava os debates cepalinos e da AP. Sua proposta visava sintonizar a profissão com
as demandas do “desenvolvimento-subdesenvolvimento” da América Latina, dialogando
com as reivindicações das classes populares vinculadas às reformas democráticas
(SCHEFFER, et.al, 2021). No documentário “Faculdade de Serviço Social-70 anos”233
temos depoimentos de ex-estudantes que relatam sua formação na década de 1970-
1980. Mary Jane de Oliveira Teixeira, atualmente professora da FSS-UERJ, formada em
1973, relata que sua turma tinha militantes de resistência à ditadura e que faziam
oposição a reitoria comandada por militares e, inclusive, relata desparecimento de
colegas. Sobre a formação, indica presença de questionamentos sobre o Serviço Social
norte-americano via propostas latino-americana. Neste caminho, identificamos, em nosso
levantamento inicial um boletim de 1978 denominado BISS (Boletim Informativo de
Serviço Social) criado pelo Grupo de Estudos de Serviço Social (GESS), construído por
ex-estudantes em 1974, cujo objetivo era reunir os estudantes e profissionais para
debater as propostas latino-americana do trabalho profissional. A partir do estudo
preliminares do período de 1965-1978 verifica que movimento estudantil da FSS-UERJ
se constitui num vetor de resistências na Ditadura civil-militar, que simultaneamente, se
expressou na recusa aos fundamentos do Serviço Social tradicional-conservador e na
busca por diálogos com os interlocutores do Movimento de Reconceituação. Tais
aspectos ganharam amplitude e legitimidade na conjuntura da redemocratização do país,
alicerçados no “Congresso da Virada”, de 1979, no livro de Marilda Iamamoto e Raul de
Carvalho, “Serviço Social e Relações Sociais no Brasil”, de 1982 e, em especial, a partir
da Greve de Estudantil da UERJ, de 1982.De acordo com BRANDT (2005) e CISLAGHI
& BRANDT (2014), este episódio consistiu em uma resposta dos estudantes da FSS-
UERJ à demissão das professoras Alany Pinto Caldeira, Ana Maria de Vasconcelos,
Maria Alice Correia e Maria Helena Rauta Ramos e à não renovação do contrato da
professora Rose Mary Souza Serra no ano de 1982, tomada pelo diretor da unidade na
época, o filósofo Aquiles Cortes Guimarães. O movimento, que iniciou com a readmissão

233Faculdade de Serviço Social - UERJ - 70 anos - YouTube

611
das professoras vinculadas ao processo de renovação da profissão no país, rapidamente
se ampliou, resultou em greve dos estudantes do curso, mobilizações dentro e fora da
universidade e, finalmente, com a deflagração da greve estudantil da UERJ, no dia 29 de
abril de 1982.
A ESS-UFRJ, segundo Maria Amélia Arrouzo (2007), diretora do curso no período
de 1937- 1975, não houve interferências das forças repressivas do estado na instituição,
contrariando afirmação da pioneira, em 1966 ocorreu Massacre da Praia Vermelha (1966)
na UFRJ. Ruth Gusmão, assistente social (formada na PUC-RJ) e estudante de Ciências
Sociais:
(...) durante a invasão, pela Polícia Militar, da Faculdade Nacional de Medicina
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), quando fui espancada; vítima
da truculência da Polícia Militar sobre um grupo de estudantes que participava de
manifestação no pátio do Ministério da Educação e Cultura, o que trouxe
sequelas físicas e exige permanente tratamento. O “massacre da Praia
Vermelha”, conhecido episódio do cerco e invasão da Faculdade de Medicina
pela polícia, do qual participaram cerca de 600 estudantes, no qual estive
presente, ocorreu em setembro de 1966 e significou uma resistência à ditadura
pelo movimento estudantil e sua luta pela democracia e autonomia universitária a
da UFRJ. (CFSS,2017, p.115).

Para Maria Inês Bravo (2007), não houve repercussão das publicações críticas da
reconceituação na ESS-UFRJ no período de 1960-1970. No curso prevaleceu a
perspectiva modernizadora, qual grande parte dos docentes foram colabores do Centro
Brasileiro de Cooperação e Intercâmbio de Serviços Sociais (CBISS) nos
documentos de Araxá, Teresópolis e Sumaré. Participaram “Maria Gloria Nin, Ferreira-de
todos., Tecla Machado Soeiro, do Teresópolis e Sumaré Leila Bugalho, Ana Estella
Furtado, Maria Cristina Salomão de Almeida e Maria Augusta de Aguiar Ferraz Tempori,
do de Sumaré. (BRAVO, 2007, p.59). Bravo (2007) destaca dois aspectos que
alavancaram a renovação crítica no final da década 1970 na ESS-UFRJ: o primeiro foi a
entrada de novos professores via concurso público que eram mais críticos como Maria
Helena Rauta, Maria Durvalina Fernandes e Maria Almeida Lima. O segundo aspecto foi
o protagonismo do movimento estudantil nas décadas de 1980-1990. Maria Helena Rauta
afirma que ao assumir o cargo de professora na ESS-UFRJ, enfrentou dificuldades, pois
era considerada comunista, pois lia Paulo Freire e autores latino-americanos. Vejamos,

Um dia, uma professora me aconselharam a não deixar meus livros em cima da


mesa ou não carregá-los no assento traseiro do carro. Eu estava sendo
classificada de “subversiva” (...) havia ainda “olheiros”, e tínhamos sempre de
que estávamos sendo vigiados. E eram livros de autoria de Paulo Freire, alguns
livros e revistas editadas pela ECRO. (RAUTA, 2007, p.41).

612
Ao longo da década 1980, com entrada de um quadro jovens professores e de
fortalecimento dos movimentos sociais na redemocratização do Brasil, a modernização
conservadora e a reatualização conservadora foram combatidas na ESS-UFRJ,
desabrochando um novo horizonte na escola, articulado aos debates do CELATS, da
tradição marxistas e as forças democráticas do país.

3- Considerações finais

Nessa primeira etapa da pesquisa podemos identificar processos de erosão do


Serviço Social tradicional-conservador de 1960-1964 no Rio de Janeiro, conforme
ilustrado na história ESSN-UFF. A ditadura brasileira visou frear a politização dos
estudantes, intelectuais e trabalhadores pela via do terror do Estado. Contudo, pudemos
observar que essas forças das resistências continuaram pulsantes na sociedade e na
universidade, como expressou as memórias das estudantes da FSS-UERJ no período de
1967-1968, que se colocavam simultaneamente contra ditadura e o tradicionalismo-
conservadorismo da profissional. Na ESS-UFRJ, prevaleceu a modernização
conservadorismo e a reatualização conservadora, as mudanças aparecem no final dos
anos 1970 e ao longo da década 1980 na ebulição movimentos sociais no processo
redemocratização articulada na renovação crítica no curso via um quadro de jovens de
professores e na rearticulação do movimento estudantil.

4- Referências

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614
SERVIÇO SOCIAL E PROCESSOS DE RESISTÊNCIA: análise preliminar acerca de
movimentos populares em Juiz de Fora no contexto da ditadura militar

Susana Maria Maia234


Caroline Rosa Oliveira235
Larissa Pereira236

Resumo:

Este ensaio apresenta um mapeamento preliminar de produções


acadêmicas vinculadas ao repositório da Universidade Federal de
Juiz de Fora relacionadas à temática de movimentos socias em
Juiz de Fora no período de 1960-1980. A metodologia empregada
consiste em pesquisa bibliográfica em fontes digitais com
descritores análogos à temática, leitura e sistematização de
produções selecionadas.O objetivo principal desta fase
exploratória da pesquisa é compreender o cenário sócio-histórico
e contexto da lutas de classes na cidade,na busca pela
identificação de elementos da conjuntura que subsidiem a leitura
da aproximação do Serviço Social às lutas e processos de
resistência no período.
Palavras-chave: Lutas Sociais, Juiz de Fora, Ditadura Militar,
Serviço Social

Abstract:

This essay presents a preliminary mapping of academic


productions linked to the repository of the Federal University of
Juiz de Fora related to the theme of social movements in Juiz de
Fora in the period 1960-1980. The methodology used consists of
bibliographic research in digital sources with descriptors similar to
the theme, reading and systematization of selected productions.

234 Professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), Campus de Rio das
Ostras. Doutora em Serviço Social. Integrante do Projeto de Pesquisa “A relação do Serviço Social com as
lutas sociais no Brasil nas décadas de 1960-1980: reflexões sobre a questão da natureza da dimensão ideo-
política profissional”. smmaia@id.uff.br
235 Estudante do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Integrante do

Projeto de Pesquisa “A relação do Serviço Social com as lutas sociais no Brasil nas décadas de 1960-1980:
reflexões sobre a questão da natureza da dimensão ideo-política profissional”.
carolinerosaoliveira@gmail.com
236 Estudante do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Integrante do
Projeto de Pesquisa “A relação do Serviço Social com as lutas sociais no Brasil nas décadas de 1960-1980:
reflexões sobre a questão da natureza da dimensão ideo-política
profissional”.larissa.pereira.ufjf@gmail.com

615
The main objective of this exploratory phase of the research is to
understand the socio-historical scenario and context of class
struggles in the city, in the search for the identification of elements
of the conjuncture that subsidize the reading of the approach of
Social Work to the struggles and processes of resistance in the
period.
Keywords: Social Struggles, Juiz de Fora, Military Dictatorship,
Social Work.

1- INTRODUÇÃO

A análise de processos sócio-históricos, com ênfase nos conflitos de classe e


processos de luta e organização das classes subalternas, e do vínculo político e
profissional de segmentos profissionais, docentes e discentes a esse movimento histórico
se constitui como o objetivo central de uma Pesquisa em andamento que busca
compreender a relação do Serviço Social com as lutas sociais no Brasil nas décadas de
1960-1980, nos estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro.

A relação do Serviço Social com os antagonismos e conflitos de classe compõe a


gênese da profissão, compreendida por Iamamoto e Carvalho (1986) como uma
especialização do trabalho coletivo dentro da divisão social do trabalho peculiar ao modo
de produção capitalista, que participa da reprodução das relações sociais e atua
diretamente na contradição dos interesses de classe. Destaca-se que a profissão surge,
como uma atividade auxiliar e subsidiária no exercício do controle social e na difusão da
ideologia da classe dominante junto à classe trabalhadora, a partir do apaziguamento
desses sujeitos e dos conflitos de classe (IAMAMOTO e CARVALHO, 1986; NETTO,
1991).
Essa relação começa a ser objeto de críticas sistemáticas no seio da profissão a
partir da década de 1960 com o chamado Movimento de Reconceituação latino-
americano, que demarcou a erosão das bases do “Serviço Social tradicional”, entendido
como “prática empirista, reiterativa, paliativa e burocratizada, orientada por uma ética
liberal-burguesa” (NETTO, 2005, p.6). Na realidade brasileira, a experiência que aglutina
um conjunto de elementos que correspondem a este projeto de reconceituação
profissional é o Método BH, desenvolvido nos anos de 1970-1973 na Escola de Serviço
Social da Universidade Católica de Minas Gerais (BATISTONI, 2017). Todavia, pode-se
afirmar que as bases ideo-políticas e sócio-profissionais desta experiência já são postas
nos anos iniciais da década de 1960, em especial, pós golpe civil militar de 1964, se

616
espraiando ao longo das décadas de 1960-1980, por meio do vínculo político e
profissional de estudantes, assistentes sociais e docentes ao movimento das classes.
Nesse ensaio, socializamos uma primeira aproximação ao contexto sócio-histórico
da cidade de Juiz de Fora (uma das áreas de abrangência da Pesquisa), com o objetivo
de traçar aspectos da conjuntura local que possibilitem identificar possíveis interações e
articulações com a profissão. Nosso interesse é apreender a dinâmica de
desenvolvimento das organizações e lutas desse período e as vinculações que com elas
estudantes e segmentos profissionais estabeleceram.

2- SERVIÇO SOCIAL E LUTAS SOCIAIS: traçando um caminho metodológico

Compreende-se a pesquisa enquanto um processo contínuo de investigação, um


exercício permanente de reflexão a fim de buscar se apropriar do real em seus elementos
mais complexos. Para nos aproximar da compreensão de um fenômeno, é preciso detê-lo
em sua dimensão histórica e em seu processo de desenvolvimento, através de método
investigativo que o trate como totalidade, um todo dialético e estruturado. Destaca-se a
escolha pelo método do materialismo histórico-dialético, que afirma a historicidade do
fenômeno em suas reações em nível mais amplo, situando o objeto a partir de mediações
em um contexto complexo e, ao mesmo tempo, estabelecendo contradições existentes
dentro do próprio objeto, num movimento constante de aproximação à totalidade concreta
(KOSIK, 1985).Decifar as relações onde os sujeitos estão inseridos e atuam, em uma
perspectiva de totalidade, passa por reafirmar e compreender, como nos indica Marx
(2003, p.5) que “os homens entram em relações determinadas, necessárias,
independentes de sua vontade”, relações essas que correspondem à estrutura material
da sociedade e sob as quais “se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem formas sociais determinadas de consciência” (idem). Formas de
consciência estas que só podem se tornar-se “conscientes”, a partir da comprensão dos
antagonismos e das contradições de interesses de classe (LUKÁKS, 2003).

Nesta direção, pode-se afirmar que a luta e o processo organizativo da categoria


profissional compõem o contexto sócio-histórico da luta de classes; é a luta das classes
subalternas em determinado contexto sócio-histórico. Portanto, os períodos históricos de
avanço da organização da classe e os períodos de refluxo, irão impactar diretamente na
formação, intervenção e organização da categoria profissional. É a partir do pressuposto
de que a profissão existe em condições e relações sociais historicamente determinadas

617
que a Pesquisa pretende compreender a dinâmica de movimentação das classes
subalternas no contexto de radicalização da luta de classes no Brasil no referido de 1960-
1980, identificando os principais sujeitos sociais e qualificando o tipo de relação política e
profissional do Serviço Social com as lutas sociais.

A partir do percurso metodológico que orienta essa Pesquisa, utilizamos o método


de pesquisa qualitativa que permite, nas análises de Baptista (1999, p.35) estabelecer
uma relação dinâmica entre o “mundo objetivo e a subjetividade do sujeito”, permitindo
verificar os sentidos, representações e vínculos dos sujeitos pesquisados com o universo
temático proposto. Nesta fase inicial da Pesquisa construímos os percursos de
aproximação e delimitação do objeto. Adotamos o procedimento metodológico de
pesquisa bibliográfica, de forma desenvolver um estudo qualitativo historiográfico a partir
de fontes bibliográficas que tratem de determinações que compõem a conjuntura na qual
emergem as organizações, movimentos e lutas sociais desenvolvidas no período de
1960-1980, em especial, nos primeiros anos da ditadura civil-militar em Juiz de Fora
(MG), procurando identificar relações e vínculos com o Serviço Social. Dada condições
sanitárias para o desenvolvimento de pesquisa presencial, a realização da pesquisa e
análise documental aqui apresentadas se deram na modalidade remota.

Realizamos uma primeira pesquisa exploratória de produções acadêmicas,


disponibilizadas no repositório da biblioteca central da Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF). O levantamento de produções se deu a partir da busca de palavras-chave
vinculadas à temática central: movimentos sociais, movimentos populares, ditadura,
serviço social e lutas sociais; todas com as indicações de Juiz de Fora e década 1960-
1980. Identificando o mesmo resultado de indicações de produções, debruçamos sobre
os resultados vinculados à palavra-chave “movimentos sociais, [Juiz de Fora, década
1960-1980], contendo 409 páginas e 10 publicações por página. A partir disso,
consultamos as 200 páginas iniciais [aproximadamente 2.000 publicações], das quais 17
publicações foram selecionadas para uma pré-análise237.Foi realizada uma primeira
sistematização tendo por base os seguintes indicadores: tipo de publicação, ano, curso,
período de análise, fontes de pesquisa, contextos sócio-históricos, indicação de
produções, lideranças, movimentos sociais e populares, indicações bibliográficas.

237Este se apresentou como um dos desafios nesta fase exploratória. O sistema do repositório institucional
não permite estabelecer correlações no sistema de busca, o que fez com que fossem exibidos um conjunto
de produções que, em sua intensa maioria, não possuía nenhum vínculo com o estudo proposto. Mesmo
diante dessa identificação, optamos por seguir com esta fase da pesquisa como forma de identificar o volume
de produções, possíveis áreas de conhecimento que se detém à temática, entre outros.

618
Além dessas fontes, acessamos dois depoimentos de assistentes sociais à
Comissão da Verdade de Juiz de Fora, um artigo sobre o trabalho da Comissão Municipal
da Verdade de Juiz de Fora e o relatório final das Comissões da Verdade em Minas
Gerais e em Juiz de Fora. Todavia, o material aqui apresentado se debruça sobre as
produções vinculadas à UFJF.

3- O CHÃO DA HISTÓRIA EM JUIZ DE FORA – primeiros achados

Neste item apresentamos apontamentos a partir da leitura inicial das produções a


partir dos indicadores estabelecidos.

Das 17 produções, 14 são dissertações de mestrado, 01 tese, 01 artigo publicado


em evento e 01 entrevista. Em relação ao ano de publicação, o ano de 2010 contém 03
publicações; seguido de 2009 e 2015 a 2017 que tiveram 02 publicações cada; e os anos
de 2006 a 2008 e 2018 a 2020, que tiveram 01 publicação238. No que corresponde à área
de conhecimento, encontramos História (08) Ciência da Religião (03), Serviço Social (02),
Comunicação (02), Ciências Sociais (01) e Direito (01).

Analisando as fontes para pesquisa indicadas pelas produções, encontramos as


mais diversas como: fontes orais e escritas; acesso a periódicos locais; publicações do
período vinculados a sindicatos e movimentos; processos jurídicos (militares,
trabalhistas); arquivos DOPS-MG e DEOPS-SP; relatórios de Comissão da Verdade,
entre outras. Nesse momento inicial da pesquisa, sistematizamos um primeiro chão da
história em Juiz de Fora, a partir do diálogo com algumas dessas pesquisas.

Algumas produções trazem uma contextualização do período anterior ao golpe,


onde podemos encontrar pistas para o desdobramento dos fatos históricos na cidade.
Destacamos o movimento dos trabalhadores com ênfase na atuação dos sindicatos
indicados por Pereira (2015). A autora resgata a efervescência política no Brasil pós
1945, apontando o período entre 1950-1960 como de maior concentração de mobilização
dos trabalhadores. Em Juiz de Fora, “o setor metalúrgico já surgia como um importante
novo investimento da cidade, em um contexto de diversificação do parque industrial”
(PEREIRA, 2015, p.17). Logo em 1950 iniciou-se um crescimento significativo de

238 Vale o destaque de que a pesquisa foi realizada no segundo semestre letivo de 2021, onde, devido ao
contexto da pandemia, ainda as atividades acadêmicas ainda se encontravam exclusivamente na modalidade
remota, e as bibliotecas fechadas para acesso ao público. Consideramos que essa condição acabou por
limitar o acesso a produções das décadas anteriores.

619
paralizações e mobilizações, vinculados aos movimentos paredistas239. Nos registros do
Arquivo do Sindicato dos Metalúrgicos de Juiz de Fora, há um conjunto de informações
sobre o período supracitado, ao qual destacamos o movimento de 1954, que culminou na
deflagração de greve em todos o estado de Minas Gerais, sendo que em Juiz de Fora,
com 05 dias de greve, cerca de 80% dos trabalhadores paralisaram suas atividades.
Pereira (2015) relata a realização de um comício na Praça da Estação que reuniu cerca
de 30 mil pessoas. Destaca-se ainda, a liderança de Clodesmith Riani, importante
sindicalista que terá um papel crucial nos anos de chumbo que viriam a seguir240.

Outra categoria profissional que teve um papel fundamental na construção da


resistência à ditadura militar em Juiz de Fora foram os ferroviários. Baltazar (2017)
recupera essa trajetória através de narrativas contidas em depoimentos para a Comissão
da Verdade na cidade, com destaque para o depoimento de Edson Nogueira da Silva, ex-
ferroviário e sindicalista241.Braga (2006) trata sobre o movimento de professores em Juiz
de Fora a partir da pesquisa em livros de Atas do Sindicato dos Professores (SINPRO),
jornais da cidade e entrevista com professores e ex-sindalistas. Ao contrário das
categorias dos metalúrgicos e ferroviários, a autora relata um movimento de retração por
parte da categoria logo nos primeiros acontecimentos desencadeados pelo golpe civil-
militar de 1964, muito em decorrência dos conflitos de interesse no interior da categoria
como forma de desarticular um processo em curso nos anos 1950 do desenvolvimento de
um comportamento classista diante do patronado assumido por uma parcela significativa
do movimento docente, culminando, inclusive, na “greve de março de 1959”.

Outro segmento importante na configuração do cenário dos processos de


resistência frente ao golpe civil militar foi o de setores vinculados à chamada “esquerda
católica”, encontrado nas produções de Carvalhal (2007), Abreu (2010), LABHOI (2019).

239 Segundo o Guia do Movimento Paredista, do Sindjustiça, o movimento paredista é reconhecido pela
Constituição Federal como “direitos fundamentais de caráter coletivo, resultantes da autonomia privada
coletiva inerente às sociedades democráticas” (p.11). São instrumentos de pressão coletiva que aglutinam
movimentos paragrevistas (que antecedem uma greve organizada) e grevistas. Dentre os movimentos
paredistas encontram-se piquetes, movimento-tartaruga, greve de regulamento, greve de rodízio. O guia está
disponível em https://sindjustica.com/site/wp-content/uploads/2016/03/guia-do-movimento-paredista.pdf
240ClodesmidtRiani iniciou sua relação com o movimento sindical em Juiz de Fora, após ser integrante da

antiga Companhia Mineira de Eletricidade. Esteve em lideranças de Estado e nacionais – chegando a


assumir a presidência e a vice-presidência da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI);
também foi, durante muitos anos, dirigente no Comando Geral dos Trabalhadores. O sindicalista esteve
ligado à carreira política e a militância; foi deputado estadual em Minas Gerais e filiado ao PTB e ao PMDB.
Durante a ditadura militar, foi condenado e preso injustamente, sofrendo a perda do seu mandato como
deputado. (https://www2.ufjf.br/noticias/2020/10/15/trajetoria-de-lider-sindical-clodesmidt-riani-e-tema-de-
video/)
241 Edson Nogueira da Silva foi sindicalista e funcionário da estrada de Ferro Leopoldina. “Edson recebeu a

ordem para atravessar o trem na frente das tropas de Mourão no dia 21 de março de 1964. O maquinista
José de Souza cumpriu o combinado, mas a tentativa de atrasar o golpe culminou em sua morte. José de
Souza foi atirado do 8° andar do Dops e teve a morte retratada como suicídio” (BALTAZAR, 2017, p.36)

620
Vinculadosà teologia da libertação242, diversas pastorais, lideranças, padres e pastores
tiveram uma atuação significativa junto a periferias, movimentos sociais e sindicatos,
fundamentados, como nos indica Abreu (2010), em uma reflexão teológica ecumênica
latino-americana e brasileira que impulsiona à “afirmação de um projeto-religioso
alternativo, voltado para a tarefa libertária de humanização da vida” (ABREU, 2010, p.6).
São tratadas experiências desenvolvidas ao longo do período de 1960/1980 da atuação
de padres redentoristas na formação religiosa e política em bairros da cidade (LABHOI,
2019), Centro Ecumênico de Documentação e Informação – CEDI (ABREU, 2010),
Movimento Nacional de Defesa dos Direitos Humanos (CARVALHAL, 2007).

A pesquisa de Barbosa (2020) busca, por meio de fontes clandestinas, identificar


histórias de luta, personagens e espaços urbanos que articularam processos de
resistência na cidade, além da importância na denúncia de situações de violação e
crimes cometidos pelos militares. Foram criadas pequenas redes colaborativas de
informação, constituídas por manuscritos, cartas, panfletos e jornais clandestinos, dos
quais o autor indica O Porrete e Luta, que circularam em Juiz de Fora no fim da década
de 1960; e o jornal manuscrito Até Sempre, apreendido com os presos políticos do grupo
Colina243, na Penitenciária de Linhares, em abril de 1970.

Sabemos da importância da militância estudantil no processo de construção de


resistência à ditadura civil militar, porém, em nosso levantamento inicial, só identificamos
uma produção que trata da atuação do movimento estudantil juizforano durante a
transição democrática, que, desde 1974 inicia ações contundentes contra o regime,
vinculado a outros setores, mas que ganha destaque como ator protagonista, no período
de 1977 a 1979 (LACERDA, 2010). Ainda vinculado ao período da redemocratização,
Silva (2010) nos apresenta uma pesquisa sobre os movimentos comunitários na cidade
no período de 1974 a 1988, com destaque ao papel no Unibairros:

(…) o movimento comunitário da cidade de Juiz de Fora, aqui compreendido


como as associações de bairro ou Sociedades Pró-Melhoramentos de Bairros e
outros movimentos sociais, manteve-se em grande atividade nas décadas de
1970 e 1980 e valeu-se das influências do contexto para moldar seu perfil de
atuação. [...] Estas reuniram-se a nascentes movimentos associativos surgidos
no contexto da década de 1980, como o movimento Unibairros, que representava
uma alternativa aos tradicionais movimentos associativos, possuindo autonomia
e certa independência ideológica, o que garantia uma atuação diferenciada.
(SILVA, 2020, p.20)

242 Abreu (2010) salienta a importância da Teologia da Libertação como pioneira na elaboração de uma
“teologia original e contextualizada” (p.57) construída a partir da realidade latino-americana, “não depende,
portanto, da dominação teológica euro-americana” (idem).
243O Colina (Comando de Libertação Nacional) foi uma organização de guerrilha urbana, no Brasil, que surgiu

da divisão da organização Política Operária (Polop) e era composta basicamente por universitários mineiros.

621
E a aproximação do Serviço Social a estas experiências? Esta é a história a ser
pesquisada, registrada e contada pela Pesquisa em curso.

4- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreendendo a relevância de cada etapa de um processo de pesquisa como


aproximação sucessiva ao objeto, optamos por apresentar esses dados iniciais de um
caminho em construção, como forma de sistematizar o caminho metodológico construído
pelas pesquisadoras, bem como dar visibilidade a um conjunto de elementos
identificados nesta abordagem preliminar. A intenção é de que, a partir do
desdobramento das pesquisas bibliográficas, de entrevistas com ex-militantes e
assistentes sociais vinculadas aos processos de resistência no município – seja por meio
da atuação estudantil, profissional e/ou na formação – se estabeleça de forma mais direta
as conexões da categoria com os movimentos sociais, populares e sindicais do período,
apontando a contribuição do Serviço Social para o desenvolvimento destas forças
políticas e organizativas, bem como na identificação de elementos que rebatem no
Serviço Social, no âmbito da formação, exercício e organização profissional.

Como indicado, neste levantamento preliminar, encontramos 02 produções na área


de conhecimento do Serviço Social, que tratam, dos processos históricos do Serviço
Social com ênfase na construção do Conselho Regional de Serviço Social/Seccional Juiz
de Fora e do trabalho de assistentes sociais em empresas no período de 1961 a 2016.
Destaca-se que a Escola de Serviço Social de Juiz de Fora teve sua gênese em 1958,
sendo diplomada a primeira turma de assistentes sociais no ano de 1961. Acreditamos,
portanto, que um estudo mais detido à trajetória profissional, seja por meio das
entrevistas e por meio do acesso a publicações no referido período, poderá nos fornecer
as conexões que buscamos.

Neste momento da pesquisa, a partir do retorno às atividades acadêmicas


presenciais, estamos no processo de coleta de dados por meio de pesquisa bibliográfica
na biblioteca da Faculdade de Serviço Social, consultando trabalhos de conclusão de
curso que se relacionam com a temática da pesquisa, em especial, trabalhos publicados
no perído de 1960-1980. Esse ainda é um caminho a ser trilhado, sistematizado e
compartilhado.

622
Acreditamos que o desenvolvimento destaPesquisa possa contribuir para o
fortalecimento do projeto ético-político profissional por meio da análise e vibilidade da
relação da profissão com os processos de mobilização e de organização popular.

5- REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BAPTISTA, D. M. T. O debate sobre o uso de técnicas qualitativas e quantitativas de


pesquisa. In: MARTINELLI, Mª Lúcia. Pesquisa qualitativa: um instigante desafio. São
Paulo: Veras Editora, 1999.
BATISTONI, M. R. O Movimento de Reconceituação no Brasil: o Projeto Profissional da
Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Minas Gerais (1964-1980). Em
Pauta, Rio de Janeiro, n. 40,2017.
IAMAMOTO, M. V. e CARVALHO, R. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil. São
Paulo: Cortez, 1986.
KOSIK, K. Dialética do Concreto. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
LUKÁCS, G. História e consciência de classe. Estudos sobre a dialética marxista. Trad.:
Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MARX, K. Prefácio. Contribuição à crítica da economia política. Trad. Maria Helena
Barreiro Alves. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, p.3-8, [1859] 2003.
NETTO, J. P. Ditadura e Serviço Social: Uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64.
São Paulo: Cortez, 1991.
______. O movimento de reconceituação 40 anos depois. Serviço Social e Sociedade, nº
84. São Paulo: Cortez, 2005.

Produções pesquisadas incorporadas ao ensaio


ABREU, F;H. Do Ecumenismo Libertador à Libertação Ecumênica: uma análise do Centro
Ecumênico de Documentação e Informação (1974-1994)(Dissertação). Programa Pós
Graduação em História. UFJF, 2010.
BALTAZAR, G.M.O. Um trem no caminho da ditadura militar: Narrativas ressignificadas a
partir dos depoimentos para a Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora.
(Dissertação). Programa Pós Graduação em Comunicação. UFJF, 2017.
BARBOSA, R.A. As rugas que irrompem na superfície lisa da história: as formas
clandestinas de informação nas décadas de 60/70 em Juiz de Fora (Dissertação).
Programa Pós Graduação em Comunicação. UFJF, 2020.
BRAGA, V.L.F. Entre a Honra e o Mercado: Análise do processo de formação do
movimento sindical docente em Juiz de Fora (1934-1964) (Dissertação). Programa Pós
Graduação em História. UFJF, 2006.

623
CARVALHAL, J.P. A serviço da vida: a influência da igreja católica na formação do
MovimentoNacional de Defesa dos Direitos Humanos (1982-1986)(Dissertação).
Programa Pós Graduação em História. UFJF,2007.
LABHOI. Entrevista com Adenilde Petrina Bispo (Entrevista). Laboratório de História Oral
e Imagem, UFJF, 2019.
LACERDA, G.E. As esquerdas entre os estudantes: memórias dos militantes estudantis
juizforanos durante a transição democrática brasileira (1974- 1984)(Dissertação).
Programa Pós Graduação em História. UFJF, 2010.
PEREIRA, L.M.C. Trabalhadores metalúrgicos de Juiz de Fora/MG: uma análise do
movimento operário e sindical e do recurso à justiça do trabalho (1950-
1960)(Dissertação). Programa Pós Graduação em História. UFJF, 2015.
SILVA, L.V. Associações: experiência de participação na redemocratização. Movimentos
Comunitários em Juiz de Fora – MG – 1974-1988 (Dissertação). Programa Pós
Graduação em História. UFJF,2010.

624
DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA REPRODUTIVA E CONTRIBUIÇÕES PARA O
SERVIÇO SOCIAL

Gabriella Alves Brasil243

RESUMO:

Tendo como ponto inicial para a reflexão os direitos


humanos e o processo de reconhecimento dos direitos
sexuais e reprodutivos, este trabalho tem como objetivo
apresentar o conceito de Justiça Reprodutiva e convocar a
categoria profissional de Serviço Social para se apropriar do
tema e incorporar essa perspectiva nos processos de
intervenção profissional. Já que é possível estabelecer
correlações entre os princípios ético-políticos assumidos
pela profissão e a abordagem em Justiça Reprodutiva.

Palavras-chaves: Direitos Humanos; Justiça Reprodutiva;


Serviço Social.

ABSTRACT:

Having as a starting point for reflection on human rights and


the process of recognizing sexual and reproductive rights,
this work aims to present the concept of Reproductive
Justice and to summon the professional category of Social
Work to appropriate the theme and incorporate this
perspective into the professional intervention processes.
Since it is possible to establish correlations between the
ethical-political principles assumed by the profession and the
approach in Reproductive Justice.

Keywords: Human Rights; Reproductive Justice; Social


Service.

1- INTRODUÇÃO

Como um dos adventos do século XX, os direitos humanos foram oficializados por
meio da Carta de fundação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945, da carta
de fundação do Tribunal de Nuremberg, por volta de 1946 e pela Declaração Universal
dos Direitos Humanos em 1948, são marcos históricos que inauguraram o debate
internacional que constituíram os direitos humanos. Sendo estes reconhecidos como um

243Assistente Social, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Saúde pela


Fiocruz-Brasília. e-mail: gabriella_alvesbrasil@hotmail.com. Eixo Temático: Política Social, trabalho e questão
social: retrocessos, resistências e desafios ao Serviço Social.

625
conjunto de direitos básicos e inalienáveis a todos os indivíduos, em favor da dignidade
humana como valor intrínseco, que deriva de comandos éticos e jurídicos (REIS, 2006).
Sendo assim, todos os direitos humanos que foram pactuados em consensos, vão
ensejar ações de respeito, proteção e realização por parte dos Estados nacionais,
consistindo em violação de direitos humanos qualquer situação que ameace, viole ou
negligencie direitos reconhecidos no âmbito dos tratados internacionais.
Dentre esses direitos reconhecidos como direitos humanos, as questões
relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos, também fazem parte desses direitos
mais amplos, relacionados à dignidade humana.
Fruto de intensos processos históricos, de mobilizações políticas e provocações
de movimentos feministas, tem como um dos marcos a Conferência Internacional sobre
População e Desenvolvimento das Nações Unidas (CIPD), em 1994, no Cairo, como um
dos momentos em que questões pertinentes à sexualidade e reprodução, foram pautadas
e incorporadas em documentos internacionais relacionadas às premissas dos direitos
humanos (CORRÊA, et al, 2006).
A partir deste momento, outras conferências e documentos internacionais que
sucederam a CIPD, passaram a incorporar a discussão sobre igualdade de gênero,
evidenciando a saúde e os direitos reprodutivos e sexuais.
As definições sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos, são campos de
disputas intensas, que acarretam responsabilidades e compromissos diferenciados, pois
podem resultar em apagamentos de subjetividades e desconsideração dos próprios
processos de exploração e opressão de populações ao longo da história, como é o caso
das mulheres negras, das indígenas e da diversidade sexual.
Os direitos sexuais e reprodutivos estão vinculados aos direitos civis e políticos,
como também, aos direitos econômicos, sociais e culturais, constituindo-se como
importantes conquistas do século XX (CORRÊA et al., 2006).
A Conferência do Cairo (1994), traz como definição para os direitos reprodutivos
em seus documentos:
Os direitos reprodutivos abarcam certos direitos humanos que estão
reconhecidos em leis nacionais, em documentos pertinentes às Nações Unidas
aprovados por consenso. Esses direitos se baseiam no reconhecimento do
direito básico de que todos os casais e indivíduos podem decidir livre e
responsavelmente o número de filhos, o espaçamento entre os nascimentos e
dispor de toda informação e meios para isto e o direito de alcançar o nível mais
elevado de saúde sexual e reprodutiva. (NAÇÕES UNIDAS, 1994, p.65)

626
Sendo assim, reconhece que o fundamento dos direitos reprodutivos é a
autonomia de decidir sobre a procriação, implicando que não pode haver restrições,
imposições, ou proibições de qualquer tipo de caráter natalista, que possa vir a impedir o
acesso aos métodos contraceptivos, sendo a pessoa capaz de decidir sobre o número e
o espaçamento de seus filhos.
Com relação aos direitos sexuais, sua conceituação veio depois do consenso
sobre os direitos reprodutivos, devido às pressões de países e setores conservadores
que estiveram presentes nas CIPD no Cairo em 1994, sendo portanto, os direitos sexuais
conceituados na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Beijing no ano de
1995. Sendo estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), as definições
mais específicas sobre sexualidade, identidade de gênero e sobre os direitos sexuais,
após consulta com diversos técnicos e profissionais da saúde (SABÔ, 2020).
Segundo a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em seu capítulo Mulher e
Saúde da declaração, no parágrafo 96, reconhece os direitos sexuais como:
Os direitos humanos das mulheres incluem os seus direitos a ter controle sobre
as questões relativas à sua sexualidade, inclusive sua saúde sexual e
reprodutiva, e a decidir livremente a respeito dessas questões, livres de coerção,
discriminação e violência. A igualdade entre mulheres e homens no tocante às
relações sexuais e à reprodução, inclusive o pleno respeito à integridade da
pessoa humana, exige o respeito mútuo, o consentimento e a responsabilidade
comum pelo comportamento sexual e suas consequências. (NAÇÕES UNIDAS,
1995)

Estando os direitos sexuais fundamentados nos princípios da liberdade, da


dignidade e da igualdade, sendo assim, reconhece que eles dizem respeito ao direito de
execer a sexualidade e a reprodução livremente, sem discriminação, coerção ou violencia
(MATTAR, 2008).
Dessa maneira compreende a necessidade de se refletir sobre esses direitos,
buscando ampliar os olhares e as perspectivas que os cercam, de forma a estarem mais
atualizados e coerentes com as necessidades dos indivíduos.
Os movimentos de mulheres negras têm agregado conceitualmente e
politicamente acerca dos direitos sexuais e reprodutivos, apontando limitações e
possibilidade sobre o tema. Dentre esses apontamentos, a abordagem conceitual sobre
Justiça Reprodutiva, acaba por aprofundar e relacionar questões estruturais sobre a
pauta, contribuindo assim para a qualificação do debate.
Neste trabalho tem como proposta apresentar brevemente esse conceito,
relacionando com os direitos humanos e convocando a categoria profissional do Serviço

627
Social, para se apropriar do tema e incorporar essa perspetiva nos processos de
intervenção profissional.

2- METODOLOGIA

Apoiado por reflexões acerca dos direitos humanos e sobre o conceito de Justiça
Reprodutiva, este texto tem como objetivo estreitar as compreensões sobre esses dois
universos e propiciar um debate sobre a pertinência do tema, para que o Serviço Social
se aproxime dessa temática.
Para construção deste trabalho foi realizado pesquisa bibliográfica em bancos de
dados e bibliotecas virtuais, e de pesquisa documental por material disponibilizado pelos
portais oficiais da Organização das Nações Unidas (ONU), Fundo de População das
Nações Unidas (UNFPA) e pelo conjunto de entidades da categoria Conselho Federal de
Serviço Social (CEFSS) e Conselho Regional de Serviço Social (CRESS).

3- DESENVOLVIMENTO

Os marcos internacionais, como a CIPD no Cairo e a Conferência de Beijing,


foram importantes para o reconhecimento dos direitos humanos, e de evolução dos
direitos das mulheres no mundo, pautando as dimensões sobre reprodução e
sexualidade, estabelecendo esses direitos como fundamentais para o crescimento
sustentável, inclusivo e equitativo entre os indivíduos (SABÔ, 2020).
Demarcar essas dimensões dentro do campo dos direitos humanos é importante
para que metas e estratégias sejam criadas, responsabilizando os Estados no
compromisso de que o exercício da vida reprodutiva e sexual, seja livre de discriminação
e de qualquer tipo de violência.
Entretanto, tais reconhecimentos não se mostraram suficientes para assegurar a
garantia desses direitos e dimensionar todos os compromissos que devem ser assumidos
por parte dos países no processo de formulação de políticas públicas para efetivar os
direitos.
Identificando as falhas no reconhecimento das desigualdades entre as mulheres,
o movimento de mulheres negras, especialmente dos Estados Unidos, se reuniram após
a Conferência do Cairo, no National Pro-choice Conference for the Black Women’s
Caucus, ainda em 1994, e cunharam o termo Justiça Reprodutiva, buscando integrar

628
saúde reprodutiva à justiça social, ampliando o reconhecimento das desigualdades e
vulnerabilidades que atingem as mulheres, pontuando as questões sobre raça e classe,
nos rebatimentos sob as suas sexualidade e reprodução. Todavia, é um conceito que
vem se popularizando recentemente, tendo sido resgatado pelo grupo americano Sister
Song Women of Color Reproductive Justice Collective, após 2003 (NORONHA, 2016).
A própria ONU, por meio do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA)
tem iniciado a utilização do termo em suas ações, aponta que deve-se olhar de forma
ampliada para os direitos reprodutivos, considerando os direitos humanos e a justiça
social, para um pleno exercício da saúde reprodutiva das mulheres (UNFPA, 2021),
reconhecendo que:
A abordagem conceitual sobre justiça reprodutiva, que emerge da experiência
das mulheres negras sobre o exercício da saúde reprodutiva, a partir das
construções realizadas no âmbito da Conferência Internacional sobre População
e Desenvolvimento das Nações Unidas – a Conferência de Cairo. O conceito
surge na perspectiva de ampliar as construções sobre direitos reprodutivos e
incorporar ali as especificidades de mulheres negras. (UNFPA, 2021)

O termo Justiça Reprodutiva vem de maneira a ampliar o movimento por direitos


reprodutivos estando coerente com uma perspectiva interseccional, considerando as
diferentes realidades entre as mulheres no exercício da cidadania, correlacionando
justiça social, direitos sexuais e reprodutivos no âmbito dos direitos humanos.
Diversos desafios se impõem no processo de reconhecimento e realização desses
direitos, recaindo sobre os profissionais em Serviço Social a responsabilidade de análise
e postura ética sobre os processos da realidade, e construção de intervenções que
estejam alinhadas ao compromisso de defesa desses direitos e de não violação.

3.1- Contribuições para o Serviço Social sobre a temática

O conceito de Justiça Reprodutiva no Brasil ainda é incipiente, necessitando de


maiores engajamentos para sua apropriação, já que esta abordagem, não se propõe a
substituir os acúmulos sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos. Pelo contrário, o
termo Justiça Reprodutiva, acaba por ampliar as perspectivas, e construir pontes com
outras políticas e serviços que possam contribuir para a efetivação desses direitos, e de
defesa da própria justiça social e dos direitos humanos:
o movimento por justiça reprodutiva parte da compreensão de que a luta por
direitos reprodutivos não pode ser desatrelada dos aspectos sociais, econômicos
e políticos que determinam as vidas das mulheres e as escolhas reprodutivas a
que elas têm acesso. Isso envolve a garantia de vagas em creches e escolas
públicas, atenção integral e humanizada à saúde, políticas de distribuição de
renda, direitos trabalhistas e previdenciários, moradia digna e acesso a

629
saneamento básico, segurança alimentar. Significa, portanto, pensar e instituir em
todas as políticas sociais a justiça reprodutiva. (ZANGHELINI, 2020, p. 28)

Dessa maneira instiga ao Serviço Social refletir sobre os desafios e demandas


profissionais em seus espaços de atuação, que muitas vezes acabam podem refletir
como obstáculos para a realização da Justiça Reprodutiva e de direitos reconhecidos, e
não na sua plena realização, já que o Serviço Social se coloca dentro da esfera
interventiva das políticas públicas.
Permite compreender que os fatores que se interpõe a realização da Justiça
Reprodutiva, são as reverberações das próprias expressões da questão social, que
afetam as relações sociais e consequentemente, as dimensões da sexualidade e da
reprodução, não não são garantidas as condições dignas de escolha, liberdade e
sobrevivência.
Existem alinhamentos éticos-políticos entre a categoria profissional de Assistente
Sociais e o que se propõe na abordagem de Justiça Reprodutiva, já que a profissão se
propõe a atuar para uma reflexão ética sobre o sentido da liberdade, sendo este o valor
ético central da profissão, e de respeito aos indivíduos de decidirem sobre sua
sexualidade e afetividade (CFESS, 2006).
Apoiado nesse reconhecimento, cabe aos profissionais atuarem de maneira a
impedir o cerceamento de liberdades, o autoritarismo e a discriminação. Fazendo-se
pertinente o afastamento de ações e concepções conservadoras e focalizadoras, no
âmbito profissional, buscando apoiar-se em perspectivas ampliadas de saúde e de
direitos, para atuar nos serviços e políticas, sem desconsiderar as dimensões subjetivas
e estruturais que interpõe sob seus usuários.
É compromisso ético do Serviço Social a defesa intransigente dos direitos
humanos e da recusa do arbítrio e do autoritarismo (CEFSS, 2012). Sendo assim, a
defesa da Justiça Reprodutiva se configura como afirmação dos posicionamentos ético-
políticos da categoria.

4- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tem se reconhecido a crescente notoriedade que o debate sobre direitos


humanos no Serviço Social tem ganhado, principalmente em espaços proporcionados
pelo Conselho Federal da categoria. No entanto, é importante que o debate seja ampliado
trazendo o reconhecimento de outras dimensões dentro dos direitos humanos, como é o
caso dos direitos sexuais e reprodutivos, que com a ampliação de perspectivas

630
conceituais e reconhecimento das estruturas opressoras que atuam de maneira desigual
sob as pessoas, acabam por confluir no termo Justiça Reprodutiva.
O conceito de Justiça Reprodutiva pode representar um ponto-chave para
concretização de reais transformações por reconhecer as estruturas patriarcais, racistas
e capitalistas que se interpõem na vida em sociedade, em especial na determinação da
vida das mulheres, para exercer controle e objetificação.
Adotar a abordagem em Justiça Reprodutiva nos processos de análise da
realidade e das condições de efetivação das políticas públicas, é construir um movimento
de instrumentalização das intervenções do assistente social, para articular com outras
políticas necessárias para a garantia de direitos e serviços, já que a concepções de
Justiça Reprodutiva, não se resume ao âmbito da saúde. É portanto, uma maneira de
atuar, que leva em consideração as estruturas sociais que se interpõe na vida das
pessoas, em especial das mulheres com seus marcadores de raça, classe e diversidade
sexual, que estão em maior risco de vulnerabilidade.

5- REFERÊNCIAS

CORRÊA, Sonia; JANNUZZI, Paulo de Martino; ALVES, José Eustáquio Diniz. Direitos e
saúde sexual e reprodutiva: marco teórico-conceitual e sistema de indicadores.
Disponível em: http://
http://www.abep.org.br/publicacoes/index.php/livros/article/view/142/140 .

CFESS. Resolução n° 489, de 3 de junho de 2006. Estabelece normas vedando condutas


discriminatórias ou preconceituosas, por orientação e expressão sexual por pessoas do
mesmo sexo, no exercício regulamentado princípio inscrito no Código de Ética
Profissional. Brasília, 2006.

CEFESS. Código de ética do/a assistente social. Lei 8.662/93 de regulamentação da


profissão. 10ª. ed. rev. e atual. - [Brasília]: Conselho Federal de Serviço Social, [2012].
MATTAR, Laura Davis. Reconhecimento jurídico dos direitos sexuais: uma análise
comparativa com os direitos reprodutivos. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos
[online]. 2008, v. 5, n. 8 [Acessado 22 Junho 2022] , pp. 60-83. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/S1806-64452008000100004>.

NAÇÕES UNIDAS. Relatório da Conferência Internacional sobre População e


Desenvolvimento - Plataforma de Cairo. 1994. Disponível
em:<https://brazil.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/relatorio-cairo.pdf>.

NAÇÕES UNIDAS. Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a


Mulher. Pequim, 1995. Disponível em: <https://www.onumulheres.org.br/wp-
content/uploads/2013/03/declaracao_beijing.pdf>.

NORONHA, Rayane. Por que a Justiça Reprodutiva é relevante para a luta pelo fim da
violência contra as mulheres?. Portal Cravinas. Brasília, outubro de 2016. Disponível em:

631
<https://catarinas.info/justica-reprodutiva-e-relevante-para-a-luta-pelo-fim-da-violencia-
contra-as-mulheres/#_ftn5>.

REIS, Rossana Rocha. Os direitos humanos e a política internacional. Rev. Sociol. Polit.,
Curitiba, 27, p.33-42, nov. 2006. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-
44782006000200004.

SABÔ, Beatriz Caroline de Alcantra. Menina a vir a ser mulher: Dos direitos sexuais e
reprodutivos a justiça reprodutiva pela olhar da bioética. Dissertação de mestrado.
Programa de Pós-Graduação em Bioética, Universidade de Brasília. Brasília, 2020.

UNFPA. Sala de Situação debate justiça reprodutiva. UNFPA Brasil, 2021. Disponível em:
<https://brazil.unfpa.org/pt-br/news/sala-de-situacao-debate-justica-reprodutiva>. Acesso
em: 16, junho, 2022.

ZANGHELINI, Débora. Direito ao aborto no Brasil e (in)justiça reprodutiva: apontamentos


para o Serviço Social. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação). Universidade
Federal de Santa Catarina. Centro Sócio Econômico, Graduação em Serviço Social.
Florianópolis, 2020.

632
VII SEMINÁRIO INTERNACIONAL
Lutas Sociais, Ofensiva Ultraneoliberal e Serviço Social:
resistências e articulações internacionais

EIXO TEMÁTICO 8
Política Social, trabalho e questão social:
retrocessos, resistências e
desafios ao Serviço Social
CAPITALISMO DEPENDENTE, SERVIÇO SOCIAL E POLÍTICAS SOCIAIS

Antônio de Albuquerque Gonçalves Júnior244

RESUMO:
O presente texto tem como finalidade analisar aspectos do
desenvolvimento do capitalismo dependente do Brasil, a
partir da teoria marxista da dependência, traçando
elementos para compreensão da dinâmica de acumulação
do capital, em especial na atualidade diante de seu projeto
ultraneoliberal, que põem em xeque o projeto de produção
de políticas sociais públicas, dever do Estado e direito de
todos. O que por sua atinge o Serviço Social, vide que a
política social tem sido, grosso modo, seu espaço
hegemônico de atuação profissional.

PALAVRAS-CHAVE: Capitalismo Dependente. Serviço


Social. PolíticasSociais.

ABSTRACT:
The present text aims to analyze aspects of the development
of capitalism dependent on Brazil, from the Marxist theory of
dependence, tracing elements to understand the dynamics
of capital accumulation, especially nowadays in the face of
its ultraneoliberal project, which call into question the project
of production of public social policies, duty of the State and
the right of all. What, by its reach social work, see that social
policy has been, roughly, its hegemonic space of
professional activity.

KEYWORDS: Dependent Capitalism. Social Work. Social


Policy.

244 Assistente Social na Prefeitura do Recife. Mestrando- UFRJ. Antoniojnr968@hotmail.com

634
1- INTRODUÇÃO

Na última década no Brasil houve uma intensificação no debate acerca da Teoria


Marxista da Dependência (TMD), sobretudo a partir de 2015, e o mercado editorial
brasileiro vem com isso reintroduzindo e dando espaço para produções que debatem o
caráter da formação social dependente do Brasil baseadas na Teoria Marxista da
Dependência. Além disso, podemos observar a presença de debates públicos,
congressos e eventos, inclusive dentro do Serviço Social, a fim de discutir a temática.

Autores clássicos da referida vertente teórica como Theotonio dos Santos, Vania
Bambira, Ruy Mauro Marini e Jaime Osorio, tal qual da atualidade como Matias Luce e
Claudio Katz têm seus livros lançados no Brasil245 ou relançados e com isso contribuem
para o debate acerca do conhecimento das contradições de nossa formação social e da
atualidade das relações sociais de produção e reprodução da vida em nuestraÁmerica.

Desde seu período de renovação, o Serviço Social brasileiro vem se apropriando


e traçando um direcionamento hegemônico em suas pesquisas e em sua maneira de
compreender as relações sociais com base na teoria social crítica246. Essa aproximação
com o marxismo não se dá sem contradições, mas influencia a construção do atual
Projeto Ético-Político, os documentos que norteiam o exercício profissional e, sobretudo,
com o avanço dos programas de pós-graduação no nível Stricto Sensu que vão ser os
principais responsáveis pela consolidação de trabalhos e pesquisas fincados na teoria de
Marx.
Nessa perspectiva conhecer as disposições particulares de nosso
desenvolvimento a partir de como a realidade é produzida e reproduzida, com o auxílio
de categorias analíticas da TMD, sobretudo o elemento da superexploração do trabalho –
que se constitui num mecanismo de compensação da dinâmica desigual na transferência
de mais-valia posta na relação centro-periferia, exigindo um aumento do tempo de
trabalho excedente sem alterar o tempo de trabalho necessário (MARINI, 2000) (MARINI,
2012) – , pode contribuir para o aprofundamento do projeto ético-político, do
reconhecimento das formas de exploração da força de trabalho, especialmente em
tempos de aprofundamento do ultraneoliberalismo e do entendimento da dinâmica
particular da proteção social no Brasil.

245 Como podemos ver no prefácio de Bambirra (2013) da segunda edição de O capitalismo dependente
latino-americano onde a autora diz: “É com muita alegria que escrevo este prefácio. Depois de mais de
quarenta anos a Teoria da Dependência finalmente chega ao Brasil.”
246 Com o marco inicial dessa interpretação em 1982 com o livro Serviço Social e relações sociais no Brasil:

esboço de uma interpretação histórico-metodológica, da Marilda V. Iamamoto e Raul de Carvalho.

635
2- CARACTERÍSTICAS DA FORMAÇÃO SOCIAL DEPENDENTE, SERVIÇO SOCIAL E
POLÍTICAS SOCIAIS EM TEMPOS DE ULTRANEOLIBERALISMO

A compreensão geral da formação e constituição do modo de produção


capitalista, entendendo sua formulação global, sua lei geral de acumulação e seus
mecanismos de reprodução, se mostram de fundamental importância para a apreensão
do conceito de questão social. Contudo, as mediações das particularidades nacionais
indicam-nos os ditames próprios das expressões da questão social em cada território,
sendo imprescindível para intervir na realidade ter esse conhecimento.

A Teoria Marxista da Dependência, nesse sentido, pode contribuir/subsidiar a


interpretação da particularidade da questão social no Brasil e seus desdobramentos no
trabalho da/o Assistente Social, uma vez que essa nos auxilia a compreender “a dinâmica
de acumulação que diferencia e indaga as modalidades de funcionamento específico do
capitalismo dependente” (KATZ, 2020, p.141).

No bojo dessa análise o Brasil vai se estabelecer na divisão internacional do


trabalho inicialmente, então, enquanto nação de base fundamentalmente agrária
exportadora, nutrindo as necessidades básicas dos países centrais, num intercâmbio
desigual, calcado numa exploração sem limites da sua força de trabalho escravizada, ao
passo que estes países impulsionam seu processo de industrialização, uma vez que não
necessitam de um grande incremento agrícola especializado em seu território, “foi isso
que permitiu aprofundar a divisão do trabalho e especializar os países industriais como
produtores mundiais de manufaturas” (MARINI, 2000, p.111).

Essas características se acentuam ainda mais quando da passagem do século


XIX ao XX, com a consolidação do modo de produção e reprodução tipicamente
capitalista industrial no Brasil, porém, sob novas formas de exploração da força de
trabalho, como nos lembra Marini (2000), retomando a necessidade de analisar o
movimento real da formação do capitalismo dependente.

Dessa forma, as relações que se colocaram nesta fase de capitalismo no Brasil


trazem consigo os elementos de sua debilidade histórica, visto que são “incorporadas as
estruturas coloniais na ordem social competitiva, visualizou-se aqui uma emancipação
política dissociada da autonomia econômica” (MARQUES, 2018, p. 138).

636
Dentro desse ciclo dependente de inserção brasileira ao capitalismo mundial há
características que necessitam ser explicitadas acerca da utilização da força de trabalho.
Essa não se opera da mesma forma que nos países centrais, existe entre nós uma forma
ampliada de exploração da força de trabalho, o caráter da superexploração. Como forma
de compensar a transferência de valor para o centro num intercâmbio desigual, essa
exploração está calcada em 3 fatores, haja vista: “a intensificação do trabalho, a
prolongação da jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho – configuram
um modo de produção fundado exclusivamente na maior exploração do trabalhador e não
no desenvolvimento de sua capacidade produtiva” (MARINI, 2000, p.125).

Esse processo coloca os trabalhadores brasileiros, e latino-americanos, sob um


mecanismo específico de exploração do trabalho, que visa compensar uma perda de
mais-valia nesse intercâmbio desigual, onde Ruy Mauro Marini mostra a especificidade
da superexploração.

Deve-se assinalar, finalmente, um terceiro procedimento, que consiste em


reduzir o consumo do operário mais além do seu limite normal, pelo qual 'o fundo
necessário de consumo do operário se converte de fato, dentro de certos limites,
em um fundo de acumulação de capital', implicando assim em um modo
específico de aumentar o tempo de trabalho excedente”. (MARINI, 2011, p.147-
148)

O aumento da produtividade no Brasil, como nos traz o autor, nesse sentido, não
significa um aumento da qualidade de vida, de valorização da sua força de trabalho e das
condições de vida. Pelo contrário, repõem as determinações da estrutura do capitalismo
dependente de forma acentuada, uma vez que conduz o país dependente a buscar uma
compensação da “perda de renda gerada pelo comércio internacional, através do recurso
a uma maior exploração do trabalhador” (MARINI, 2000, p.122), e essa superexploração
terá um caráter especial nas populações nativas e negras.

A força de trabalho sob essas circunstâncias é vilipendiada de suas condições de


reprodução social via o dispêndio no tempo de trabalho excedente – acima dos níveis das
populações centrais – e em sua remuneração abaixo de seu valor que não lhe concede o
suficiente para que reponha as condições de sua manutenção. Nesse sentido podemos
constatar que

na perseguição das condições estruturais de desenvolvimento do capitalismo


brasileiro, são vislumbrados três processos fundamentais: a incapacidade de
romper com a associação dependente com o exterior (heteronomia); a
incapacidade de desagregar completamente os setores arcaicos; e a
incapacidade de superar o subdesenvolvimento gerado pela concentração da
riqueza (BEHRING, 2003, p. 102)

637
As reconfigurações no processo produtivo que o país passou ao longo do século
XX, em especial após a segunda metade da década de sessenta, com as inversões
produtivas não alteraram a disposição dependente de nosso capitalismo (DOS SANTOS,
2021).

No século XXI, mais especial no período que se compreende do período de 2003


até 2016, o país passa por um processo de uma reconfiguração no plano da disputa do
poder estatal, com as vitórias eleitorais do Partido dos Trabalhadores (PT), que apesar de
não ter rompido com o neoliberalismo em sua concretude, alterou um pouco a dinâmica
de distribuição, nomeadamente a partir da dinâmica das políticas sociais, sob o mote de
neodesenvolvimentismo, contudo, não alteraram sobremaneira a configuração geral do
processo de acumulação capitalista no Brasil, pois, “[...] esse quadro não altera em nada
a essência das modalidades de exploração do trabalho no Brasil porque não altera suas
particularidades [...]” (SANTOS, 2012, p.439).

A dinâmica de aprofundamento da dependência do capitalismo brasileiro


acentuou-se no século XXI, sobretudo com a reconfiguração da luta de classes a partir do
rompimento da modalidade de conciliação, iniciando um processo de radicalidade e
contraofensiva do capital, tendo como marco o ano de 2016 e arrastando-se à atualidade.
Há uma investida nas bases que sustentam os direitos trabalhistas e nas políticas sociais,
buscando formas de apropriar-se dos bens e serviços públicos e de aumentar as taxas de
lucro, escancarando as portas do país ao imperialismo. Como nos lembra Antunes (2020,
p.288) “as principais resultantes desse processo foram desde logo evidenciadas: deu-se
uma ampliação descomunal de novas (e velhas) modalidades de (super)exploração do
trabalho, desigualmente impostas e globalmente combinadas pela nova divisão
internacional do trabalho na era dos impérios”

Há um processo de transformar as relações de trabalho, tornando-as ainda mais


intensificadas pelo modelo flexível, a ampliação do desemprego e por uma ampliação da
financeirização (ANTUNES, 1999), sobretudo em sua “apropriação do fundo público, a
qual mantém relação com a criação de mecanismo para transferir valores arrecadados
pelo Estado para as mãos do grande capital nacional e estrangeiro” (BRETTAS, 2017,
p.62), uma vez que há a necessidade decorrente de nossa dependência de transferência
de valor, “em outras palavras, o fenômeno da financeirização pressiona uma
reorganização da base produtiva, lócus da geração da riqueza” (idem).

638
A burguesia nacional, em suas diversas frações têm radicalizado suas ações em
busca de meios cada vez mais radicais para garantia da valorização do valor e essas
iniciativas estão evidenciadas na ampliação de seu apoio irrestrito aos projetos liberais-
fascistas que se expressam na campanha eleitoral de 2018 e em toda a agenda política
posta nos últimos 4 anos (2018-2022) no governo de Jair Bolsonaro. Demonstra-se um
avanço na destruição da coisa pública, via privatizações e tentativas de privatizações,
retirada de direitos, restrição da democracia burguesa (que como nos lembra o grande
Florestan, já é uma democracia restrita) e tantas outras ameaças às vidas das
populações pretas, lgbts, mulheres, indígenas, traços que são constitutivos da
sociabilidade construída no Brasil.

Estes elementos que brevemente traçamos até aqui – sobre a configuração da


nossa formação social dependente – nos ilumina para entender os desdobramentos na
luta de classes e nas resoluções que são apresentadas para dar respostas às
expressões da questão social, uma vez que a maneira de produzir a vida material supõe
uma determinada forma de reprodução dessa vida.

A disposição dependente nos deixa legados que serão traços constitutivos da


nossa questão social: o alto índice de desemprego, aliado a condição de informalidade do
trabalho, a baixa escolaridade de uma parcela considerável da população, a fome, a
concentração demasiada de terras e da riqueza socialmente produzida, a
superexploração da força de trabalho e as parcas Políticas Sociais, esses são alguns dos
traços que particularizam as expressões sociais advindas dessa relação dependente.
Portanto, é no bojo dessas expressões da questão social que em busca de mediações
temos o lócus onde origina-se o Serviço Social e seu espaço de intervenção, que dentro
da divisão social e técnica do trabalho está inserido no processo da reprodução das
relações sociais.

Segundo Iamamoto e Carvalho (2014) nos mostram, o trabalho da/o Assistente


Social é permeado por características contraditórias que representam interesses das
classes sociais fundamentais no capitalismo. Dessa forma, o/a agente profissional é
tensionado/a a dar respostas no âmbito dessas relações sociais, onde o/a “Assistente
Social atua na implementação de medidas de política social concretizadas através dos
serviços sociais, procura-se marcar o significado desses serviços na sociedade burguesa,
na óptica do capital e do trabalho” (IAMAMOTO; CARVALHO, 2014, p.28)

639
Dentro dessa ótica e na articulação com o debate sobre o capitalismo dependente
podemos empreender como a produção baseada na superexploração do trabalho, com
baixa remuneração e com seu traço heteronômico e subalterno “[...] gera agudas fraturas
sociais: ilhas de riqueza no meio de um mar de pobreza, trabalhadores esgotados
prematuramente, miséria e desemprego” (OSORIO, 2019, p.209). E diante dessas
expressões da questão social, dos processos das lutas de classe surgem necessidades e
espaços de intervenção no qual o Estado e as frações da classe dominante tendem, a
partir das lutas e pressões sociais, intervir na relação capital/trabalho, abrem-se, portanto,
espaços para o trabalho do/a Assistente Social, seja nas empresas ou nos espaços do
Estado.
O Serviço Social tendo passado pelo seu processo de renovação crítica, em
diálogo com a teoria marxista e construindo um projeto ético-político – que visa a
superação com o projeto liberal-burguês – compreende a sua inserção no processo de
reprodução das relações sociais.
E compreendendo essa dinâmica, apreende que as situações decorrentes das
mudanças conjunturais do capital e a capacidade de resposta do Estado frente as
expressões da questão social por meio das políticas sociais, lócus hegemônico de
atuação, passam por uma refuncionalização, com um processo de individualização,
mercantilização, precarização e fragmentação e que vão demandar respostas de tal
monta da(o) profissional do Serviço Social, que tendo como horizonte o projeto ético-
político, o código de ética tem chaves para tentar romper com essa lógica, dentro de sua
autonomia relativa (sem cair em nenhuma tendência messiânica).

3- CONCLUSÃO

Situamos a dinâmica do capitalismo dependente e suas características basilares


que influenciam sobremaneira o desenvolvimento das relações de produção em nossas
terras. O meio pelo qual a nossa força de trabalho é (super)explorada, as formas pelas
quais o processo de extração de mais-valor tem se intensificado por meio da deterioração
dos bens públicos, das políticas sociais e ampliação cada vez maior da financeirização da
economia.
Portanto, a partir disso, é necessário reafirmar a importância da pesquisa, da
produção de conhecimento, para uma aproximação da realidade, que possibilite uma
prática mediada pela integração das dimensões técnico-operativa, ético-política e teórico-
metodológica (IAMAMOTO,2000), bem como reiterar a relevância de uma prática

640
interventiva e propositiva dos profissionais e das organizações políticas da categoria
como forma de enfrentar esse projeto dependente e de barbarização da vida social, pois
como nos diz Iamamoto e Carvalho (2014, p.103) é importante ter “[...] uma clara
compreensão teórica das implicações de sua prática profissional, possibilitando-lhe maior
controle e direção da mesma, dentro de limites socialmente estabelecidos”.

4- REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na


era digital. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2020.

BAMBIRRA, Vania. O capitalismo dependente latino-americano. 2 ed. Florianópolis:


Insular, 2013.

BEHRING, E. Brasil em Contra-Reforma: desestruturação do Estado e perda de


direitos. São Paulo: Cortez, 2003.

BRETTAS, Tatiane. Capitalismo Dependente, Neoliberalismo e financeirização das


políticas sociais no Brasil. Temporalis, Brasília, ano 17, n.34, p.53-76, jul./dez. 2017.

DOS SANTOS, Theotonio. Evolução histórica do Brasil: da colônia à crise da nova


república. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2021.

IAMAMOTO, Marilda Vilela; CARVALHO, Raul de. Relações sociais e Serviço Social
no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 41 ed. São Paulo:
Cortez, 2014.

KATZ, Claudio. A teoria da dependência 50 anos depois. Tradução de Maria Almeida.


1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2020.

MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. In: SADER, Emir (org.). Dialética da
dependência: uma ontologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis: Vozes; Buenos
Aires: CLACSO, 2000.

___________________. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R; STEDILE, J. P.


Ruy MauroMarini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2011. p. 131-172.

____________________. Subdesenvolvimento e revolução (1969). Editora Insular,


1ed. Brasil, 2012.

MARQUES, Morena Gomes. Capitalismo dependente e cultura autocrática: contribuições


para entender o Brasil contemporâneo. R. Katál, Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 137-146,
jan./abr. 2018.

SANTOS, Josiane Soares. “Questão Social”: particularidades no Brasil. 1ed. São Paulo:
Cortez editora, 2012.

641
POLÍTICAS SOCIAIS E INTERSETORIALIDADE - Reflexões sobre a experiência em
Treinamento Profissional

Ingrid Adame Moreira247


Ana Cristina Peixoto Guimarães248
Laura Pires Gualberto Marçola249
Lara Rodrigues Brito250
Taíse Silva Antunes 251

RESUMO:
O presente trabalho relata a experiência em um
Treinamento Profissional. Neste artigo problematizamos os
principais desafios que encontramos na elaboração de um
catálogo com o mapeamento de toda a rede
socioassistencial de Juiz de Fora e apontamos que tal
instrumento pode viabilizar a articulação intersetorial das
políticas sociais de modo a atender os usuários em tais
políticas.

Palavra-chave: política social, intersetorialidade, rede


socioassistencial.

ABSTRACT:
The present work reports the experience in a Professional
Training. In this article we problematize the mainchallenges
that we find in the elaboration of a catalog with the mapping
of the entire social assistance network of Juiz de Fora and
we point out that suchan instrument can enable the
intersectoral articulation of social policies in order to serve
users in such policies.

KEYWORDS: social policy, intersectoriality, social


assistance network.

247Doutoranda em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), assistente social do
Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e-mail: ingridadameuff@gmail.com,
Eixo Temático: Política Social, trabalho e questão social: retrocessos, resistências e desafios ao Serviço
Social.
248Mestranda do Programa em Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), assistente

social na Prefeitura de Congonhas, e-mail: anguimas@gmail.com, Eixo Temático: Política Social, trabalho e
questão social: retrocessos, resistências e desafios ao Serviço Social.
249Residente em Serviço Social do Programa Multiprofissional em Atenção Hospitalar da Universidade

Federal de Juiz de Fora (UFJF), e-mail: lauragmarcola@gmail.com, Eixo Temático: Política Social, trabalho e
questão social: retrocessos, resistências e desafios ao Serviço Social.
250Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e-mail:

lararodrito@gmail.com, Eixo Temático: Política Social, trabalho e questão social: retrocessos, resistências e
desafios ao Serviço Social.
251Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),e-mail:
taise.antunes@outlokk.com , Eixo Temático: Política Social, trabalho e questão social: retrocessos,
resistências e desafios ao Serviço Social.

642
1- Introdução

O presente artigo é referente à construção, pesquisa e estudo realizados no


programa de Treinamento Profissional da Universidade Federal de Juiz de Fora,
denominado: “A imprescindibilidade da Intersetorialidade: promovendo a articulação da
rede socioassistencial em Juiz de Fora”. O Treinamento Profissional contou com a
coordenação de uma assistente social profissional do Hospital Universitário da UFJF,
com a participação de duas residentes, assistentes sociais do Programa Multiprofissional
em Atenção Hospitalar e duas estudantes de Serviço Social da FSS-UFJF. Assim, o
acúmulo obtido nessa ação extensionista da Universidade Federal de Juiz de Fora com a
troca entre os diferentes níveis de formação profissional, culmina no artigo aqui proposto.
Esse estudo afirma que o Treinamento Profissional tem potencialidade ao construir
competências e habilidades de futuras profissionais e também contribuir para a formação
permanente das profissionais envolvidas.
Os objetivos e pressupostos a partir dos quais o Treinamento Profissional foi
realizado e construído ao longo dos meses, tem como centralidade a discussão sobre a
importância da rede de atendimento socioassistencial para a população usuária das
políticas sociais. Reitera-se que mesmo que o campo de atuação e/ou estudo de um
profissional seja a política de saúde é necessário ter uma base sólida sobre as políticas
sociais e a intersetorialidade, já que o assistente social tem como objeto de intervenção
as expressões da questão social, que através da luta de classes infere diretamente no
movimento da realidade e na construção das políticas sociais.
O Serviço Social deve ater-se ao atendimento integral e à continuidade do
acompanhamento aos usuários e suas famílias, portanto, um instrumento que socializa
informações, como o que foi realizado pelo Treinamento Profissional, com a construção
do catálogo do mapeamento de toda a rede socioassistencial de Juiz de Fora é de suma
importância.
Para demarcar o debate obtido com experiência do Treinamento Profissional,
serão discutidos dois tópicos centrais. No primeiro tópico será pontuado o caráter do
Estado burguês, sua relação com a luta de classes e expressões da questão social e a
contraditoriedade da política social, bem como seus limites para que a ordem do capital
seja conservada. Em seguida, a discussão vai trazer a relação entre o instrumento do
catálogo de mapeamento da rede, como pode fomentar a intersetorialidade, articulando a
rede socioassistencial, os desafios/problematizações dos processos do Treinamento
Profissional e as dificuldades encontradas nessa construção, como a burocratização e a

643
escassez de informação para a população que ocasiona a dificuldade de acessar os
serviços.

2- Estado, Questão Social e Política Social

Partimos da compreensão de que, na atualidade, o Brasil que participa


marginalmente das relações de produção no mundo, lida com avanços neoliberais e
conservadores que operam na base de uma contrarreforma do Estado que retira os
direitos conquistados pela classe trabalhadora. O Estado sob o capitalismo “opera para
propiciar o conjunto de condições necessárias à acumulação e à valorização do capital”
(NETTO, 2007, p.26 ).
Para Pereira (2011) esse Estado ao buscar legitimidade política, ao longo da
história, torna-se permeável às demandas da classe trabalhadora e passa a exercer
regulações sociais por meio de políticas sociais. É através dessas políticas que o Estado
burguês “administra as expressões da “questão social” de forma a atender às demandas
da ordem capitalista conformando, pela adesão que recebe de categorias e setores cujas
demandas incorpora sistemas de consenso variáveis, mas operantes” (NETTO, 2007,
p.30).
Evidencia-se que o Estado, apesar de estar a serviço das classes dominantes e
ser dotado de poder coercitivo deve também, para poder legitimar-se e garantir a
hegemonia do bloco que está no poder, realizar ações em favor da classe subalterna
(PEREIRA, 2011). Essas ações, materializadas em políticas sociais, são implementadas
desde que o Estado seja pressionado pela capacidade de organização e mobilização da
classe trabalhadora ou por necessidades de regulação das relações sociais com vistas à
reprodução das condições de acumulação capitalista.
Consideramos que a maior expressão das estratégias de legitimação da ordem
burguesa estão expressas nas políticas sociais. Essas políticas, sob o capitalismo,
representam uma estratégia de legitimação da hegemonia burguesa ao incorporar as
demandas da classe trabalhadora bem como para interceptar demandas que possam
surgir.Entretanto, essas estratégias não ameaçam a propriedade privada dos meios de
produção, apenas agem de forma paliativa no interior do próprio sistema capitalista.
É somente a partir da concretização das possibilidades econômicas, políticas e
sociais que as múltiplas expressões da “questão social” tornam-se objeto, alvo das
políticas sociais (NETTO, 2007). As políticas sociais são desta forma, “respostas e
formas de enfrentamento – em geral setorializadas e fragmentadas – às expressões

644
multifacetadas da “questão social” no capitalismo” (BEHRING e BOSCHETTI, 2008, p.
51). São respostas às demandas da classe trabalhadora, mas também expressam para
muitos segmentos dessa classe a única possibilidade de sobrevivência no capitalismo.
Concordamos com Duboc (2017) que
as características das políticas sociais no Estado burguês se expressam de
forma fragmentada e pontual - sejam elas na previdência social ou no sistema de
seguridade social - intervindo sobre a sequelas da “questão social” de forma
isolada da sua essência, que é sua emergência a partir da contradição entre
capital x trabalho na sociabilidade burguesa (DUBOC, 2017, p. 5).

A década de 1990 no Brasil foi marcada pela chegada do neoliberalismo no


território nacional e como consequência deste conforma-se a contrarreforma do Estado.
Começou a haver um incentivo às privatizações, desresponsabilizando-o na garantia do
acesso da população aos seus direitos e havendo um corte do Estado nos direitos
sociais. As políticas sociais passaram a ser focalizadas e ganharam o caráter de um
“novo assistencialismo”, tendo como objetivo não mais erradicar a pobreza, mas enfrentar
apenas o pauperismo (DURIGUETTO, 2014 apud NETTO, 2012).
O Brasil sofreu transformações no capital proporcionadas segundo às demandas
neoliberais, “reformando-se o Estado, com ênfase especial nas privatizações, acima de
tudo, desprezando as conquistas de 1988 no terreno da seguridade social” (BEHRING;
BOSCHETTI,2011, p. 148). A característica do projeto de política neoliberal para as
políticas sociais é a contenção de gastos na parte pública, a ampliação e o incentivo ao
setor privado, o que sucede em uma falta de financiamento.
Em tempos de pandemia, declarada em março de 2019, devido à disseminação
do vírus SARS-COV-2- Covid-19, temos vivenciado a exponenciação das múltiplas
expressões da questão social, além do adensamento de uma crise de capital que já
estava instaurada e de diversos capitalistas. Nesse contexto pandêmico as políticas
sociais se tornaram ainda mais segmentadas e focalizadas na pobreza.
Apontamos, então, para a necessidade de, em tempos pandêmicos, as políticas
sociais se organizarem de forma intersetorial – onde se dá a interface entre as políticas
públicas. Isto porque as políticas setoriais por si só não resolvem todas as demandas da
classe trabalhadora, portanto, precisam estar articuladas para atender, mesmo que
parcamente, às necessidades da população e os direitos que têm a prover.
Concordamos com Bellini (2014) que
sendo entendida e empreendida desta forma, a intersetorialidade entre as
políticas sociais rompe com modelos fragmentados de gestão e traz à cena uma
maior participação de todos os atores envolvidos nas políticas sociais, inclusive
os destinatários de tais políticas. Trata-se de um modelo de gestão que leva em
consideração vários setores que devem interagir mutuamente, compartilhando

645
diferentes saberes e visando o enfrentamento das expressões da questão social.
Ressalta-se, além disso, que a prática se efetiva em um processo político,
permeado de contradições, resistências, divergências, escassez de recursos,
entre outros (BELLINI et al, 2014, p.5).

A política social “no marco das formações sociais de classe (não importam a
natureza e a idade que tenham) vai sempre lidar com interesses opostos, já que ela
resulta da pressão simultânea entre sujeitos distintos: o capital e o trabalho” (PEREIRA,
2011, p. 28, grifos nossos). Dito de outra forma, as políticas sociais sob o capitalismo são
elaboradas para satisfazer necessidades sociais sem deixar de atender aos interesses da
classe dominante que está no poder, são formas paliativas de atender às demandas da
classe trabalhadora que não põe em xeque o sistema capitalista e que contribui também,
mesmo que, talvez, indiretamente ou diretamente, para sua perpetuação. Apostamos no
caráter intersetorial destas políticas para atender de maneira integral às demandas
postas pela classe trabalhadora, mas elucidamos que não podemos ser inocentes.
Mesmo que tais políticas se organizem intersetorialmente, há a necessidade precípua de
superação do sistema capitalista que é o gerador das múltiplas expressões da questão
social.

3- A intersetorialidade e a relação com o programa de Treinamento Profissional

Precedente à discussão sobre o Treinamento Profissional, seus resultados e


desafios, cabe uma breve contextualização sobre o objetivo do projeto: a
intersetorialidade entre as políticas sociais. Mesmo sendo um princípio norteador dos
programas sociais, a intersetorialidade não é uma área de estudo muito recorrente na
Política de Assistência Social, destacando-se mais como objeto de pesquisa no âmbito
da Política de Saúde (MONNERAT; DE SOUZA, 2009). Tal fato já aponta para uma
particularidade do projeto, que foi pensado no contexto do Serviço Social de um Hospital
Universitário, apesar de não ser desenvolvido exclusivamente para esse espaço.
O Projeto de Treinamento Profissional (TP) basilar deste artigo tem por nome “A
imprescindibilidade da Intersetorialidade: promovendo a articulação da rede
socioassistencial em Juiz de Fora” e está inscrito sob o número JFE03, junto à Pró-
Reitoria de Graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). O projeto se
configura como uma ação de extensão dessa universidade e possui como objetivo geral a
identificação de ações voltadas à intersetorialidade das políticas públicas, cujo

646
mapeamento da rede socioassistencial de Juiz de Fora se configurou como a meta
central para o reconhecimento das ações de articulação intersetorial nessa cidade.
Para o conhecimento dessa rede, foi necessário o recolhimento de dados das
instituições (nome, endereço, meios de contato atualizados e descrição das atividades)
que se deu principalmente por contatos telefônicos e por e-mail com diversas instituições
que a compõem, com as secretarias e conselhos municipais que regem as políticas
sociais. Entretanto, cabe destacar que a obtenção dessas informações não foi simples,
culminando em vários obstáculos que serão mencionados a seguir.
A primeira dificuldade encontrada no início do TP (2021), foi o esvaziamento de
informações no site da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) e dos Conselhos Municipais. Não
haviam dados sistematizados e/ou atualizados sobre a rede da política de assistência
social e de saúde, as primeiras almejadas durante o levantamento.
Diante da dificuldade de acesso a dados básicos que deveriam estar publicizados
— com destaque para o site da PJF, visto que esse vem a ser um dos principais meios
de comunicação e de acesso à informação entre a PJF e o cidadão — recorreu-se às
secretarias (de assistência social- SAS e de saúde- SS) e houve mais uma vez
dificuldade em acessar tais dados, nessas o empecilho foi burocrático. Era preciso um
órgão superior autorizar a disponibilização desses dados ou simplesmente os setores da
secretaria recorrida não os possuía. Ressalta-se que a solicitação realizada pelo TP
consistia na simples relação dos equipamentos/instituições que compunham a rede da
política de assistência social e/ou da saúde.
Assim, novamente reaparece o questionamento da publicização dos dados, esses
que configuram uma requisição simples de nome/ telefone (para iniciar a verificação das
informações junto aos equipamentos), e que deveriam estar disponíveis de forma
transparente a qualquer cidadão. Nota-se um obscurantismo em torno da disponibilização
desses dados e que traz à tona a seguinte questão: se para o projeto de treinamento
profissional, ligado a uma universidade pública, o acesso aos dados tem se desenhado
como um impasse, como fica então para os profissionais que estão nas políticas
setoriais? E para o cidadão? No mais, se pode presumir que a articulação intersetorial
efetiva não se realiza, visto que dentro de uma mesma secretaria ou de um mesmo
conselho não há o essencial: dados sistematizados sobre as instituições que fazem parte
daquela política social.
Com isso, é notório a importância desse projeto, que gera como produto do
mapeamento realizado um catálogo com todas as instituições e equipamentos
contatados, que preconiza colaborar com o cotidiano profissional a partir de dados

647
organizados sobre os equipamentos das políticas de saúde, assistência social e
educação. Além disso, o catálogo conta também com informações sobre Instituições de
Longa Permanência para Idosos (ILPI), de atendimento psicossocial e alguns
equipamentos do sócio-jurídico.
Importa ressaltar também que, para além do esvaziamento de informações, do
obscurantismo em torno da disponibilização de dados essenciais para o andamento do
projeto, percebeu-se inclusive uma morosidade na obtenção das respostas às
solicitações realizadas aos equipamentos, via e-mail, e quando chegavam eram muitas
vezes respostas parciais, faltando alguma informação.
Posto isso, a questão que fica evidente é: por que a demora em dar resposta a
algo trivial, como dados básicos das instituições? Souza Filho e Gurgel (2016) aclaram
essa indagação ao revelar que “(...) consolida-se o tratamento paradoxal da burocracia.
Por um lado, um movimento de centralização burocrática, via núcleos estratégicos e, por
outro, o esfacelamento do quadro burocrático, via medidas de flexibilização e
precarização, voltadas para redução do gasto público.” (p.185)
Ainda em relação à burocracia encontrada como obstáculo durante o projeto, há o
ponto oposto, a informalidade percebida à medida que o projeto avançava. O WhatsApp
logo se constituiu como um mecanismo de acesso às informações buscadas, já que não
foi possível obtê-las pelasvias formais. Assim, foi acionada a “rede pessoas” por trás da
rede socioassistencial de Juiz de Fora, “alguém que conhece alguém”, que forneceria tais
informações. Pessoas/profissionais que trabalham nos conselhos, nas secretarias, nos
equipamentos e instituições em que era preciso realizar tal contato.
O produto final do Treinamento Profissional se materializa em um catálogo, como
já supracitado. O objetivo do mesmo é facilitar a promoção da intersetorialidade entre as
instituições e o conhecimento da rede de maneira uniforme. Para tanto, é necessário
pensar o que é intersetorialidade e como ela se realiza para além de encaminhamentos
entre os equipamentos.
Buscando romper com a lógica setorial, encarada como uma barreira e visando
além de encaminhamentos, o catálogo pretende abrir os horizontes para
desenvolvimento de ações conjuntas, projetos que aumentem o relacionamento das
instituições e dê visibilidade para atividades desenvolvidas que ainda não eram
conhecidas. “A intersetorialidade deve se concretizar como síntese de conhecimentos
diversos (interdisciplinaridade) para atuar sobre problemas concretos” (MONNERAT; DE
SOUZA, 2009, p. 204), para tanto o catálogo pode contribuir para maior articulação e
planejamento conjunto entre instituições, serviços ou políticas sociais.

648
É preciso deixar claro que perceber os limites da política, instituição ou profissão
não é um fator impossibilitante de uma ação intersetorial, pelo contrário. A compreensão
do fazer profissional e dos objetivos do serviço em que se está inserido são fundamentais
para compreender que por vezes é necessário que a resolução das demandas continuem
em outro lugar.
Para finalizar, cabe revelar que o projeto durante sua execução foi parabenizado
diversas vezes pela iniciativa, como também observou-se uma empolgação durante os
contatos telefônicos pela produção do catálogo, esse que foi visto por muitas instituições
como uma “vitrine” para que fosse conhecida por outros equipamentos da rede ― é por
essas situações que fica ilustrado como as ações intersetoriais na rede socioassistencial
de Juiz de Fora são incipientes ― desse modo, demarca-se a importância da
universidade pública, que por meio das suas ações de extensão, articuladas com o
ensino e a pesquisa, proporcionam contribuições imediatas à comunidade.

4- Considerações Finais

O projeto de Treinamento Profissional citado abre espaço para questionar o


funcionamento da rede de serviços, a intersetorialidade e o cotidiano profissional, por
consequência, proporciona reflexão que pode fazer avançar e gerar outros estudos, na
defesa da expansão dos direitos sociais, com a clareza dos processos, dinâmicas e
limitações que os envolvem.
Sabe-se que as políticas sociais por si só não são resolutivas aos problemas
enfrentados pela classe trabalhadora, mas apresentam um caminho às demandas mais
urgentes da população. Discutir as políticas sociais com um viés crítico, entendendo seu
caráter contraditório, como o aqui proposto, é fundamental. E mais, delimitar pontos
estratégicos a serem trabalhados - como a lacuna identificada em relação às informações
da rede socioassistencial que possibilitou a construção do catálogo de mapeamento da
rede - oxigena proposições de desenvolvimento das políticas sociais que sejam
condizentes com a realidade da população.
Esse artigo, que parte do Treinamento Profissional, demarca que a Universidade
resiste, que é importante articular ao resultado final as discussões geradas das reuniões -
baseadas na realidade vivenciada, nos desafios e limites encontrados - aos estudos
realizados, à dimensão de Estado, política social, questão social e ao próprio Serviço
Social, através de reflexões críticas que questionem a aparência dos fenômenos.

649
Poderíamos, de forma simplista, acreditar que é um acaso as informações não
estarem disponíveis com facilidade para profissionais e população, que as políticas
sociais estão sucateadas devido a somente a crise sanitária, mas buscamos analisar
profundamente e compreender as bases estruturais dos processos percebidos no dia-a-
dia desse sistema que explora a vida, que concede políticas sociais no limite que não
afete sua perpetuação e garanta seus lucros. Não é um simples catálogo, mas um
instrumento que proporcionou discussões e estudos aqui colocadas e também a
possibilidade de construção de uma intersetorialidade das políticas em Juiz de Fora ao
agrupar e casar informações importantes. Deixamos o anseio de que esse estudo
colabore para a discussão em torno da temática e abra mais experiências como essa.

5- Referencial Bibliográfico

BEHRING, Elaine; e BOSCHETTI, Ivanete. Política Social: fundamentos e história. 5ª


Edição. São Paulo: Cortez Editora, 2008

DUBOC, Jéssica Ribeiro. Políticas sociais e Lutas de classes: desafios e possibilidades


no capitalismo contemporâneo. Londrina PR. de 04 a 07 de julho de 2017.

DURIGUETTO, M. L. Movimentos sociais e Serviço Social no Brasil pós anos 1990:


desafios e perspectivas. In: ABRAMIDES, M B.; DURIGUETTO, M. L. (orgs.).
Movimentos Sociais e Serviço Social: uma relação necessária. São Paulo: Cortez, 2014.

MONNERAT, G. L.; DE SOUZA, R. G. Da Seguridade Social à intersetorialidade:


reflexões sobre a integração das políticas sociais no Brasil. Rev. Katál, Florianópolis, v.
14, n. 1, p. 41-49, jan./jun. 2011.
__________________. Política social e intersetorialidade: consensos teóricos e
desafios práticos. Rev. SER Social, Brasília, v. 12, n. 26, p. 200-220, jan./jun. 2009

NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e Serviço Social. 6ª Edição. São Paulo:
Cortez Editora, 2007.

PEREIRA, Potyara. Temas e Questões. São Paulo: Cortez Editora, 2011.


SOUZA FILHO; GURGEL. Gestão Democrática e Serviço Social: princípios e
propostas para a intervenção crítica. São Paulo: Cortez, 2016.

650
EXPROPRIAÇÕES DE DIREITOS E POLÍTICA DE SAÚDE: implicações para o
trabalho profissional

Fernanda Kilduff252

RESUMO: o presente trabalho se propõe refletir sobre o


papel do Estado na crise contemporânea do capital
analisando o processo de subfinanciamento e
desfinanciamento da política pública de saúde no Brasil e as
implicações para o trabalho profissional da/o assistente
social, em contexto de expropriações de direitos e
contrarreformas, considerando o momento atual da
Pandemia de Covid-19.

Palavras-chave: Estado; Crise, Desfinanciamento; Política


de Saúde, Trabalho profissional.

Abstract:
ThisproposalisintendedtoreflectonthepaperontheStateafterth
ecrisis in capital analyzingthe processo f sub-
fiancingandrefinancingofteh saudi publicpolicy in Brasil and
as implications for the professional workof social wokers, in
the contexto ofexpropriationsand conter reforms,
takingintoaccountthecurrent momento ofthe Covid-19
Pandemic.

Key-words: State; Crisis;Unfinancing; Health policy;


Professionalwork.

1- INTRODUÇÃO

O presente trabalho se propõe refletir sobre o processo de subfinanciamento e


desfinanciamento da política pública de saúde no Brasil e as implicações para o trabalho
profissional da/o assistente social, em contexto de contrarreformas e Pandemia de Covid-
19. O artigo está organizado em quatro momentos: Estado capitalista e expropriações de
direitos; Contrarreformas e desfinanciamento da política de saúde no Brasil; Pandemia
no Brasil; e Implicações e desafios para o trabalho profissional da/o assistente social.

252Assistente Social; professora Adjunta da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (ESS-UFRJ); Mestre e Doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social (PPGSS-ESS-UFRJ). E-mail: profa.nandakil@gmail.com
Eixo temático: Política Social, trabalho e questão social: retrocessos e resistências na conjuntura atual.

651
2- DESENVOLVIMENTO

Segundo Behring (2018), a tradição marxista interpreta o Estado como processo social
e histórico e como componente central da dinâmica de acumulação capitalista.A tradição
do materialismo histórico e dialético aborda o Estado, não a partir de uma definição
genérica, mas buscando seu modo de ser no processo histórico.Mandel (1985), destaca
que o capital é incapaz de produzir por si mesmo a natureza social de sua existência,
sendo o Estado quem garante e preserva a propriedade privada, possibilitando a
reprodução do capitalismo na sua totalidade. Entre suas funções, sobretudo na fase dos
monopólios, sua intervenção torna-se mais sistemática e complexa, buscando estimular a
expansão econômica e limitar e/ou retardar os efeitos das crises estruturais e cíclicas que
afetam periodicamente o capitalismo. Ademais, entre suas funções de primeira ordem,
está o controle contínuo da força de trabalho ocupada e excedente para prevenir eclosão
de conflitos de classe e para garantir ao capital a oferta permanente da mercadoria “força
de trabalho”.
De acordo com Fontes (2010), frequentemente o tema das expropriações é
relegado à condição de “acumulação primitiva”. Para a historiadora marxista, as
expropriações constituem um processo permanente, condição da constituição e
expansão da base capitalista. Na hipótese da autora, a expropriação primária, original,
constituída na origem do capitalismo que atinge a grandes massas campesinas ou
agrárias permanece e se aprofunda, ao lado de expropriações secundárias,
impulsionadas pelo capital-imperialismo contemporâneo, queincidem sobre trabalhadores
de longa data urbanizados; expropriações vinculadas à eliminação de postos de trabalho
e ao desmantelamento de direitos sociais e trabalhistas (expropriação contratual): trata-
se, dessa forma, de capturar recursos crescentes de origem salarial, e de convertê-los
em capital.Assim, as expropriações contemporâneas - entre outros processos- estão
relacionadas com a privatização de empresas e políticaspúblicas destinadas a prover
saúde, educação, previdência social, transporte, entre outros direitos sociais253.
Considerando o debate sobre a expropriação de recursos públicos na fase
contemporânea do capitalismo, Sousa (et. al, 2012) analisa que no Brasil, em tempos de
primazia do capital financeiro e de crise do capital, a disputa pelo fundo público (recursos

253No dia 9 de junho de 2022, o Ministro de Economia, o ultra neoliberal Paulo Guedes, enviou ao Congrego
um projeto de lei (PL) para vender a empresas privadas a parcela do Pré-Sal que pertence à União. A
proposta também inclui a desobrigação pública de utilizar esses recursos em investimentos nas áreas de
saúde e educação. Mais uma vez, verifica-se o programa desestatizador, privatizante e expropriador de
recursos e empresas públicas que caracteriza o (des) governo Bolsonaro.

652
através dos quais o Estado realiza suas atividades) entre o capital e o trabalho tornou-se
mais acirrada. O capital vem sendo cada vez mais privilegiado pelo Estado em detrimento
do trabalho, em razão especialmente da financeirização da dívida pública e da
diversidade de estratégias adotadas na privatização de políticas sociais, nichos cada vez
mais rentáveis.O Estado, administrado por governos de corte neoliberal, é convocado a
disponibilizar cada vez mais parte do fundo público para a reprodução do capital, ou seja,
para a produção e realização do valor.
Conforme destacado por Cavalcante (2014), a política de saúde é um espaço de
projetos/interesses contraditórios em confronto: por um lado o projeto do Movimento da
Reforma Sanitária que defende a saúde pública, universal e de qualidade e participou da
construção do Sistema Único de Saúde (SUS) e pelo outro, o projeto privatista que
entende a saúde como mercadoria, como serviço que se compra e vende no mercado.
No Brasil, as estratégias de contrarreformas na saúde assumem principalmente duas
formas: de um lado o subfinanciamento crônico, ou seja, desde que o SUS foi criado
nunca contou com os recursos necessários para funcionar com qualidade; e do outro, a
sua precarização, condição necessária para o crescimento de serviços de saúde
privados.
Assim, o período de existência do SUS tem sido acompanhado por uma trajetória
depersistência de reduzidos montantes de recursos, evidenciando o subfinanciamento
estrutural deste sistema254, explicado a partir de mecanismos legais que o Estado
implementa para transferir riqueza do trabalho para o capital. Por um lado, a Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF) que limita a realização de concursose contratações de
pessoal no serviço público; e por outro, a chamada Desvinculação de Receitas da União
(DRU), que permite a retirada ou desvio de recursos inicialmente destinados a políticas
sociais.
Aspolíticas macroeconômicas ortodoxas denominadas de “austeridade fiscal”,
caracterizaram os mandatosde Fernando Henrique Cardoso (FHC); orientações mantidas
posteriormentenos governos de conciliação de classe. Neste sentido, cabe observar que,
no governo de Dilma Rousseff (2011-2016),a expropriação de fundo público adotou um
ritmo mais acelerado e a DRU aumentou de 20% para 30%, sendo prorrogada até 2023.
Dessa forma, esses mecanismoscontinuam vigentes até o momento atual e permitem
desvincular/expropriar parte do orçamento das políticas sociais para pagamento de juros

254“Para uma ideia geral desse subfinanciamento, se o art. 55 das Disposições Constitucionais Transitórias da
Constituição Federal fosse aplicado, 30% dos recursos da Seguridade Social deveriam ser destinados à
saúde, mas isso nunca foi feito.” (FUNCIA; SANTOS, 2019 apudMENDES e CARNUT, 2020, p.15).

653
e amortização de dívida externaremunerando assim, o capital financeiro. Assim, cada vez
mais, o Capital e o Estado se des responsabilizamdas necessidades de reproduçãoda
classe trabalhadora.
Na hipótese de Mendes e Carnut (2020), com o golpe jurídico-parlamentar-
midiático de 2016, o subfinanciamento do SUS passou a ser transformado em
desfinanciamento, configurando um quadro de aniquilamento das tentativas de
construção de nosso sistema universal em saúde. A Emenda Constitucional 95/2016 foi
promulgada pelo governo Temer e teve por objetivo limitar a expansão dos gastos
públicos pelos próximos 20 anos, mas não o fez para as despesas financeiras,
mantendo-se alto o patamar de pagamento de juros da dívida por parte do governo
brasileiro255.
Essa medida, somada à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e a Desvinculação
de Receitas da União (DRU), provocam redução e/ou eliminação da oferta de serviços
públicos, esvaziamento e sobrecarga de equipes profissionais, precarizando ainda mais
as relações de trabalho.
Além do mais,cabe destacar um outro aspecto que contribui para prejudicar o
financiamento do SUS, ao longo da sua existência: as renúncias fiscais, no setor
saúde.“O total de renúncias fiscais concedidas à saúde privada cresceu de forma
considerável, passando de R$ 8,6 bilhões, em 2003; para R$ 32,3 bilhões, em 2015”.
(MENDES e CARNUT, 2020, p.17).
Percebe-se com esses dados, que a apropriação do fundo público na saúde pelo
capital manteve-se intensa, expropriando da classe trabalhadora o direito de acesso
universal à saúde.Assim, o SUS, passa a enfrentar, ao lado do subfinanciamento de mais
de 30 anos, um processo crescente e contínuo de desfinanciamento evidenciando-se a
relação orgânica entre Capital e Estado, sobretudo no papel decisivo que ocupa na
administração da crise contemporânea.
Como analisado, o ritmo da expropriação de recursos da saúde pública se
acelerou a partir de 2017, acumulando-se perdas de R$ 9,7 bilhões em 2018 e 2019256. É
com o SUS asfixiado que a população brasileira atravessou e continua enfrentando a
pandemia de Covid-19. Dessa forma, o neoliberalismo257 torna a política de saúde

255“Para uma ideia geral desse subfinanciamento, se o art. 55 das Disposições Constitucionais Transitórias da
Constituição Federal fosse aplicado, 30% dos recursos da Seguridade Social deveriam ser destinados à
saúde, mas isso nunca foi feito.” (FUNCIA; SANTOS, 2019 apud MENDES e CARNUT, 2020, p.16).
256“Os brasileiros e as brasileiras foram comunicados sobre a perda de R$9,7 bilhões no financiamento do

SUS, acumulados nos anos de 2018 e 2019”. (op.cit,p.3).


257 Entende-se neoliberalismo com uma reestruturação do capitalismo em termos globais iniciada na década

de 1970 que envolve aspectos econômicos, políticos, ideológicos e culturais; alterações profundas que

654
espaço de grande tensionamento e alvo de sucessivos ajustes fiscais, interferindo na
qualidade dos serviços e nas práticas profissionais.Além do subfinanciamento crônico e
desfinanciamento, a contrarreforma na política de saúde se efetiva com a incorporação
dos chamados “novos modelos de gestão”que buscam legitimar a lógica neoliberal da
eficiência do setor privado na gestão pública.Já na década de 2000, o Banco Mundial
(BM) apontava “problemas burocráticos no SUS” e “sugeria” (vale dizer,impôscomo
condição para o acesso dos governos a novosempréstimos), o repasse da política de
saúde para o setor privado denominado: “público, mas não estatal”:Fundações Estatais
de Direito Público e Privado, Empresas de Serviços Hospitalares, Organizações Sociais,
etc. administram crescentemente recursos públicos destinadosà política de saúde.
Aeste quadro de contrarreformas em andamento, a pandemia de Covid-19
acrescenta e exige novos desafios desituá-la no movimento da totalidade social.Precisa-
se demonstrar o seu caráter histórico e social questionando-se as condições concretas
de vida e existência da classe trabalhadora em cada formação social e de cada momento
histórico.
Raichelis e Arregui (2020, p.138), observam que:“a eclosão do novo coronavírus,
em meio à profunda crise estrutural do capital, acentuará exponencialmente seus traços
sistêmicos em curso, articulando em uma totalidade contraditória suas dimensões
econômica, política, social e sanitária”.
Nessa direção, analisa-se que a pandemia de Covid-19, não é um fenômeno
natural: o contato humano com o novo coronavírus esteve diretamente relacionado com o
desmatamento e desequilíbrios ambientais provocado pela organização capitalista da
agricultura e da pecuária.
Na particularidade do Brasil, a rápida proliferação deste vírus vincula-se com a
desigualdade estrutural provocada pela apropriação privada da riqueza socialmente
produzida e as péssimas condições de vida impostas à maioria da classe trabalhadora.
Neste país, o 5% mais rico detém a mesma fatia de renda que o restante 95% da
população e o 45% das propriedades agrícolas estão concentradas em menos de 1% de
proprietários ruralistas (OXFAM, 2017- 2019).
Observa-se que no país, as recomendações de isolamento social e prevenção
coexistiram perversa e contraditoriamente com altos índices de desemprego,
subemprego, precarização, ausência de moradia, inexistente ou precário abastecimento

buscam responder à crise estrutural do capital caracterizada pela queda das taxas de lucro, uma crise de
superacumulação de capitais e superprodução de mercadorias.

655
de água e saneamento básico, exigindo a compreensão da determinação social da
doença e partindo de uma concepção ampliada de saúde.
A inserção em trabalho remunerado com direitos e o acesso a benefícios
assistenciais não é a realidade de grande parte da classe trabalhadora que vive com
menos de um salário mínimo. OInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE,
2022),aponta atualmente no Brasil,a existência de quase 12 milhões de
desempregados258 e mais de 38 milhões de trabalhadores informais.
Os processos de contrarreformas (considerando o sub e desfinanciamento) e a
pandemia de Covid-19,reconfigurarama política de saúde e o trabalho de diferentes
categorias profissionais, entre elas a de assistentes sociais, que participam da divisão
social e técnica do trabalho em atividades de gestão, planejamento, implementação e
avaliação de políticas públicas.
Na fase neoliberal do capitalismo, presencia-se o avanço da lógicaempresarial na
saúde259que se expressa, por exemplo,no fato daliberação de recursos ser apenas com
metas de produtividade; na falta de transparênciana administração de verbas públicas260
com fraudes e desviosde recursosoperados pelo chamado “setor público não estatal”;na
falta de concursos públicos (sendo as contrataçõescom vínculos precarizados,
temporários e com a eliminação de direitos trabalhistas); nos atrasos e baixos salários;na
instabilidade contratual e nas demissões frequentes; na ausência de plano de carreira
para as/os trabalhadoras/es do SUS; naalta rotatividade das equipes pelos processos de
trabalho desgastantes e orientados por metas de produtividade e pelaausência de
políticas de incentivos para qualificação profissional. Todos esses processos
impactamdesfavoravelmente nos atendimentos e nos serviços oferecidos às/os
usuárias/os261.

258Segundo a Agencia de Notícias do IBGE (abril, 2022), o primeiro trimestre do ano o desemprego no Brasil
chegou a 11,9%. Informações disponíveis em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/ Acesso: 15 jun.2022
259O principal argumento neoliberal que justifica o repasse de financiamento para a gestão de organizações

privadas se fundamenta na “falta de eficiência” do setor público estatal, porém a precarização e “a crise” das
políticas públicas são principalmente provocadas pelo subfinaciamento estrutural e o desfinanciamento
crônico, tese defendida neste artigo.
260Para retratar esta falta de transparência no manejo da verba pública, lembramos que durante 2020, houve

irregularidades na contratação para a construção de hospitais de campanhas. A Organização Iabas, recebeu


do Município do Rio de Janeiro o valor de quase 20 milhões de reais em um contrato de seis meses e essas
unidades de saúde simplesmente nunca foram inauguradas. Informações disponíveis em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-05/inauguracao-dos-hospitais-de-campanha-do-rio-de-
janeiro-e-adiada Acesso: 12 jun.2022.
261 A reflexões aqui realizadas resultam de atividades de pesquisa e das próprias experiências profissionais

como assistente social e da participação como docente em espaços de supervisão integrada comassistentes
sociais a partir das atividades de ensino na disciplina de Orientação e Treinamento profissional e de tutorias
acadêmicas realizadas com a equipe de serviço social da Residência Multiprofissional de um hospital
universitário.

656
Em contexto de pandemia de Covid-19, o desmonte histórico da saúde pública
cobra um preço alto. O acesso desigual e não universal ao sistema de saúde;
ainsuficiência de instalações hospitalares e de recursos humanos; profissionais da linha
de frente no combate à doença cansados, adoecidos, mal pagos e sem condições de
trabalho adequadas (infraestrutura precária, falta de insumos e medicamentos, sem
Equipamentos de Proteção Individual, etc.); testagem insuficiente, falta de leitos e vagas
em Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs), caracterizou a péssima administração do
des (governo) Bolsonaro.
Por sua vez, comorbidades e demandas de saúde reprimidas, ou seja, sem o
devido atendimento previamente ao contato humanocom ovírus SARS-CoV-2, aumentou
o número de mortes262.Cabe observar também que no decorrer da pandemia,
houveomissão de repasse de recursos financeiros do governo federal aos Estados: o
critério foi discricionário e não epidemiológico263.
Ao realizar debate sobre os impactos no trabalho das/os assistentes sociais,
Raichelis e Arregui (2020), demonstram que, o acompanhamento atento do debate
profissional em diversos espaços ocupacionais, públicos e privados, evidenciam, de um
lado, o medo, as pressões, as angústias reais de assistentes sociais, especial, mas não
exclusivamente, daqueles(as) que estiveram na linha de frente do trabalho presencial nos
períodos mais duros da pandemia, quando inda não havia disponibilidade de vacinas.
Do mesmo modo, a radicalização das expressões da questão social em contexto de
crise social, econômica e sanitária, tem provocado angústia e processos de adoecimento
das equipes de profissionais de saúde. Apesar das/os assistentes sociaisrealizarem
frequentemente ações coletivas trazendo a perspectiva do trabalho interdisciplinar e
intersetorial, enfrentam no cotidiano profissional situaçõesdifíceis, tais como o aumento
do desemprego e precarização das relações de trabalho da população atendida,

262Várias pesquisas demonstram a desigualdade racial no acesso ao sistema de saúde público. O número de
óbitos decorrentes da Covid-19 entre a população negra e parda é mais elevado que entre a população
branca. Pesquisa da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), realizada em junho de 2020,
apresenta índices acerca de adoecimentos e óbitos causados por Covid-19 no Brasil e nos Estados Unidos.
Os dados explicitam como o racismo estrutural é preponderante para o agravamento de casos e de óbitos. As
diferenças de mortalidade entre a população negra e branca, mostra que a pesar do vírus não fazer escolha à
hora de infectar, as ações de prevenção, saneamento e o atendimento dos serviços de saúde são fatores que
colocam em risco à população negra, que, no Brasil, é também o 75% da população mais pobre. Informações
disponíveis em:
https://www.abrasco.org.br/site/noticias/desigualdade-racial-por-que-negros-morrem-mais-que-brancos-na-
pandemia/49455/ Acesso: 13 jun.2022.
263Segundo Relatório do Tribunal de Contas (TCU): O Ministério da Saúde liberou apenas 29% do total de

recursos destinados ao combate da pandemia: “Chama a atenção o fato de Pará e Rio de Janeiro terem
respectivamente a segunda e terceira maior taxa de mortalidade por Covid-19, porém, são duas unidades da
federação que menos receberam recursos (...)” (Relatório do TCU, julho de 2020). Disponível em:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/22/ministerio-da-saude-gastou-menos-de-um-terco-do-dinheiro-
disponivel-para-combate-a-pandemia-diz-tcu.ghtml Acesso: 14 de jun.2022.

657
intensificando-se situaçõesde violência e fome264, entre outras expressões da
desigualdade social agravadas no tempo presente265.
Por sua vez, na área principalmente de saúde, foi preciso reafirmar competências e
atribuições conforme nossa Lei de Regulamentação Profissional n.8662/1993, toda vez
que as equipes de assistente sociais foram tensionadas por demandas indevidas a nossa
profissão, não sendo pouco frequente em unidades de saúde verificar solicitações de
comunicação de óbitos por coronavírus a familiares.

3- CONCLUSÃO

De acordo com Raichelis e Arregui: “o cotidiano profissional é marcado por tensões e


desafios, mas é nesse mesmo cotidiano que se apresentam as possibilidades de
superação (...), dispondo de autonomia relativa para propor e negociar suas propostas
profissionais.” (2020, p.149).
Partindo deste pressuposto, como categoria de trabalhadoras/es assistentes sociais,
precisamos caminhar no sentido do fortalecimento das alianças com entidades sindicais e
de representação acadêmica e profissional. Neste diapasão, torna-se fundamental
defender o efetivo financiamento do sistema público de proteção social e no caso de a
Política de Saúde defender o SUS 100% estatal e gerido de forma direta pelo setor
público-estatal; reivindicar condições salariais e de trabalho condignas visando a
qualidade do exercício profissional; participar de ações coletivas de resistência contra a
privatização da saúde (e de todas as políticas sociais); integrar/apoiar movimentos
sociais que fazem essa defesa (Frente contra a privatização da saúde, Nenhum Serviço
de Saúde a Menos, participação ativa em conselhos, sindicatos, fóruns e frentes de
resistência).
Para finalizar, e de acordo com Mészáros (2009), o sistema do capital não tem
limites para sua expansão quando tudo passa a ser controlado pela lógica de valorização
do capital, sem que se levem em consideração os imperativos humanos e societários
vitais.Dado o espectro de destruição global é imperativo caminhar na construção de um
novo modo de vida frontalmente contrário à lógica destrutiva do capital, que coloque a
vida e não os lucros em primeiro lugar. Conforme o Código de Ética do/a Assistente

264 Recentemente foi publicada pesquisa que monstra que existe no Brasil mais de 33 milhões de pessoas
com fome no Brasil; e seis de cada dez domicílios liderado por mulheres vivem alguma situação de
insegurança alimentar. Disponível em: https://www.brasilsemfome.org.br/ Acesso: 15 jun.2022.
265 Considerações feitas a partir de trabalho de tutoria acadêmica realizado com a equipe de Serviço Social

de um hospital universitário.

658
Social, nosso trabalho profissional deve direcionar-se na perspectiva de um horizonte
emancipatório: porque vivernão pode ser um privilégio de poucos e sim um direito de
todos (as).

4- REFERÊNCIAS

BEHRING, E.Estado no capitalismo: notas para uma leitura crítica do Brasil recente. In:
Marxismo, Política Social e Direitos.São Paulo: Cortez, 2018.

CAVALCANTE, R.A racionalidade da Contrarreforma na política de saúde e serviço


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une/#:~:text=Os%205%25%20mais%20ricos%20det%C3%AAm,o%20cen%C3%A1rio%2
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https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/25260/25136

659
ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL APÓS CONTEXTO DE PANDEMIA DA COVID-19: A
importância da atuação interdisciplinar entre psicólogos e assistentes sociais em
universidades públicas

Yukari Yamauchi Moraes266


Eliana Bolorino Canteiro Martins267

RESUMO
O presente artigo tem como objetivoevidenciar a importância
da atuação interdisciplinar entre psicólogos e assistentes
sociais como estratégia e possibilidade para a consolidação
da assistência estudantil nas universidades públicas
brasileira, principalmente no complexo contexto
apóspandemia da Covid-19. Os procedimentos
metodológicos eleitos foram o desenvolvimento da pesquisa
bibliográfica e documental na apreensão de teorias
eestatísticas sobre o adoecimento da saúde mental e a
evasão no ensino superior. A reflexão teórica indica algumas
contribuições sobre o tema referenciado e possíveis
orientaçõespara o enfrentamento das desigualdades
socioeducacionais presentes especificamente na educação
superior pública no Brasil.
Palavras-chaves: Ensino Superior. Assistência Estudantil.
Covid-19.

ABSTRACT
This article aims to highlight the importance of
interdisciplinary action between psychologists and social
workers as a strategy and possibility for the consolidation of
student assistance in Brazilian public universities, especially

266Bacharel em Serviço Social e discente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da


Universidade Estadual Paulista – UNESP Campus de Franca/SP, sob a orientação da Prof.ª. Dr.ª Eliana
Bolorino Canteiro Martins. E-mail: yukai.yamauchi@unesp.br. Linha de Pesquisa: Estado, Políticas Sociais e
Serviço Social.
267 Assistente Social. Doutora em Serviço Social pela PUC/SP.Pós-doutorado pela Universidade Estadual do

Rio de Janeiro (UERJ). Docente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social - Universidade Estadual
Paulista – UNESP Campus de Franca/SP. Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq – nível 2. E-mail:
elianacanteiro@terra.com.br. Linha de Pesquisa: Estado, Políticas Sociais e Serviço Social.

660
in the complex context after the Covid-19 pandemic. The
methodological procedures chosen were the development of
bibliographic and documental research in the apprehension
of the oriesand statistics on mental health illnessand drop
out in higher education. The theoretical reflection indicates
some contributions on the referenced topicand possible
guidelines for facing the socio-educational inequalities
present specifically in publichig her education in Brazil.
Keywords: Universityeducation. Student Assistance. Covid-
19.

1- INTRODUÇÃO

O presente artigo resulta de estudos, discussões, reflexões e pesquisas efetuadas


principalmente por uma das autoras no âmbito da política de assistência estudantil
durante o percurso da graduação, pós-graduação (mestrado) ecom a efetiva participação
em um grupo de estudos e pesquisas sobre o Serviço Social na Educação. O artigo
apresenta uma reflexão teórica sobrea importância da assistência estudantil e a parceria
de atuação entre psicólogos e assistentes sociais como estratégia e possibilidade para a
consolidação desta política nas universidades públicas brasileira, principalmente após
contexto pandemia da Covid-19.
A partir da revisão bibliográfica, por meio de leituras e análises de referenciais
teóricos referentesao adoecimentoda saúde mental dos/as docentes e discentes,
analisando também àpolítica de assistência/permanência estudantil em universidades
públicasdurante e apóso contexto de pandemia foi possível problematizar esta temática.
Ademais, a pesquisa documental possibilitou compilar alguns dadosestatísticos e
pesquisas empíricas para validar a relevância e os efeitos macroestruturais do tema
supracitado. Elencamosalgumas contribuições debatidas na apresentação virtual
efetuada pela Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas – FGV
EESP, disponibilizando via internet, asdiscussões realizadas por profissionais e
pesquisadores de temas multidisciplinares sobre os impactos e possíveis resoluções para
a crise desencadeada pela Covid-19 na conjuntura brasileira.
É necessário enfatizar, que devido aos limites deste artigo ea formação das
autorasem Serviço Social, não foi incluído aspectos específicos relacionados à atuação
dos psicólogos,porém, considerando a concepção ampliada de assistência estudantil, a

661
perspectiva totalizante das questões que atingem docentes e discentes (biopsicossociais)
são essenciais.Deste modo, este artigo busca analisar e discutir especificamente, sobre a
evasão no ensino superior público brasileiro, revelado nos dados estatísticos também, o
adoecimento em relação à saúde mental dos/as docentes e discentes, e a importância da
parceria de atuação entre psicólogos e assistentes sociais como estratégia para a
consolidação da assistência/permanência estudantil nas universidades públicas,
principalmente após pandemia da Covid-19.
A pandemia impactou a vida social de toda população, mas foi intensificada
principalmente na população que vivenciam vulnerabilidades socioeconômicascom o
acirramento das expressões da questão social. Portanto, a crise sanitária, principalmente
em países de economia periférica e dependente como o Brasil, intensificou a crise
socioeconômica e expôs a fragilidade das políticas sociais, dentre elas a política de
assistência estudantil. Este contexto, influencia sobremaneira nos aspectos psicológicos,
pedagógicos, sociais, ou seja, materiais e imateriais que impactam no acesso,
permanência e conclusão dos/as estudantes nas universidades públicas brasileira,
exigindo nestas universidades o seu enfrentamento.
A relevância do estudo se justifica devido aos desdobramentos financeiros,
físicos, políticos, sociais e emocionaisna vida dos/as estudantes, e que foram
potencializados pelo isolamento e distanciamento social imposto pela pandemia.Assim, é
possível afirmar que esta realidade trouxe durante e apóspandemia, inúmeros desafios
para os diretores, coordenadores e docentesem readequar a didática e os instrumentais
para prosseguir com as atribuições acadêmicas, período que exigiu sobretudo, a
necessidade de revisar e implementar novas técnicas pedagógicas para conduzir o
ensino aos estudantes de forma remota e, posteriormente, readequar o retorno do ensino
presencial nestas unidades de ensino. Ao considerar os percalços ocasionados pela
implementação do ensino remoto, tornou-se imprescindível repensar a inclusão de uma
política de assistência estudantil nas universidades públicasque contemplem os aspectos
biopsicossociais que incidem sobre o processo de ensino-aprendizagem e, portanto,
refletem no sucesso escolar dos/as estudantes, principalmente aqueles advindos da
classe trabalhadora empobrecida e/ou que sofrem algum tipo de opressão, preconceito e
vulnerabilidades.
Partindo dos fatos mencionados, uma das indagações apontada pelas autoras e
que orientou as reflexões do presente estudo foram: Quais foram os principais impactos
do adoecimento da saúde mental dos/as docentes e discentesnas universidades públicas
brasileiradurante e após o contexto de pandemia da Covid-19? De que forma os

662
psicólogos e assistentes sociais podem contribuir, efetivamente, para o acesso,
permanência e conclusão do ensino nesta conjuntura?

2- EVASÃO NO ENSINO SUPERIOR E AS REPERSCUSSÕES DO ADOECIMENTO


DA SAÚDE MENTAL

Para investigar sobre os desdobramentos da Covid-19, conforme propostoneste


artigo, requer considerar inicialmente, as bases que assentam a estrutura do ensino
superior público brasileiro e a importância da construção de uma política de
assistência/permanência estudantil que atenda às demandasinstitucionais e estudantis
para a efetivação do acesso, permanência e conclusão do ensino superior público
brasileiro à toda população.
Segundo Fernandes (1975) fatores como a colonização, escravidão, restrição do
direito à terra, desemprego estrutural, intervenção do Estado a favor da manutenção e
ampliação do capital em detrimento dos direitos sociais, são alguns dos legados
assentados na realidade de capitalismo periférico e dependente brasileiroe, que incidem
diretamente, nas desigualdades sociais e educacionais explicitadas no contexto atual
para a população excluídas do acesso e conclusão do ensino superior. De acordo com o
levantamento da EducationatGlance, publicado em 2021 pela Organização de
Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE, “apenas 21% dos jovens brasileiros
entre 25 e 34 anos, concluíram o Ensino Superior”. (OCDE, 2021).
Ao elencar alguns dos desafios presentes historicamente no ensino superior
público brasileiro somados aos contratempos ocasionados pelo advento do vírus SARS-
CoV-2, a “epidemia começou na cidade de Wuhan, na China, em dezembro de 2019”
(INSTITUTO BITANTAN, 2021) e posteriormente converteu-se em uma pandemia
mundial. Conforme as demais áreas, a educação experienciou inúmeras transformações
após a instauração do cenário pandêmico.Toda a população independente de sua
localização e classe social sofreram a necessidade em adequar alguns hábitos diários
para inibir a propagação do vírus. O distanciamento social obrigatório para inibir ou
controlar a propagação do vírus, impôs a sociedade a necessidade em limitar o convívio
físico e social. Devido a esta norma de restrição, houve a implementação do ensino
remoto nas universidades brasileiras, conforme dispõe a Portaria nº343 de 17 de março
de 2020 “a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar
a situação de pandemia do Novo Coronavírus (Covid-19)”. (MINISTÉRIO DA
EDUCAÇÃO, 2020).

663
De acordo com as discussões apresentadas pela Escola de Economia de São
Paulo da Fundação Getúlio Vargas – FGV EESP,esta substituição das aulas presenciais
pelo ensino remoto durante o período de pandemia, modificoua rotina e impôs a
necessidade em adaptar o ambiente de estudos integralmente nas residências e, que por
muitas vezes, docentese discentes não possuíam condições estruturais e emocionais
adequadas para o desenvolvimento do ensino e aprendizagem. Neste contexto, fatores
como ansiedade, o convívio intensificado entre os membros do núcleo familiar, a
ausência de informação, propagação de “fake News”268, medo de contágio do vírus,
insegurança alimentar,aumento da violência doméstica, do desemprego e óbitos de
familiares e demais entes queridos, foi o cenário que certamente comprometeu a saúde
física e emocional de professorese estudantes durante o desenvolvimento (ou tentativa)
do ensino e aprendizagem, de forma específica da educação superior.Além do mais, ao
analisar as medidas preventivas orientadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS),
as quais foram materializadas a partir da realização do distanciamento social, é cabível
afirmar que as mesmas trouxeram consequências distintas para determinadas classes.
Este fato é plausível devido à luta de classes (MARX, 2014), as quais o acesso à riqueza,
poder e propriedade são acessadas de maneira desigual. Ao tratar de uma sociedade
capitalista, a pandemia da Covid-19 trouxe inúmeros rebatimentos na vida cotidiana de
toda população, além de evidenciar de forma ostensiva as desigualdades sociais e
acesso limitados aos direitos fundamentais.
Elencar tais reflexões na dinâmica da educação superior pública, pressupõe
considerar que a dinâmica complexa das desigualdades sociais e educacionais no
acesso e na permanência estudantil, enraizadas nas estruturas da sociedade, atinge de
forma desigual as mulheres, negros/as, aos povos indígenas, pessoas com deficiência, a
comunidade LGBTQIAP+269 e dentre outros segmentos sociais, o que permite refletir
também sobre o processo de construção e reafirmação das identidades dos/as discentes
no ensino superior público.
Diante do cenário evidenciado, é possível constatar a necessidade de incluir
apóspandemiao debate sobre a importância e protagonismo da assistência/permanência
estudantil, as repercussões do adoecimento da saúde mental, ebem como, a importância

268 “Notícias falsas ou informações mentirosas que são compartilhadas como se fossem reais e verdadeiras,
divulgadas em contextos virtuais, especialmente em redes sociais ou em aplicativos para compartilhamento
de mensagens”. (AURÉLIO, 2022).
269“LGBTQIAP+ é o movimento político e social que defende a diversidade e que busca mais

representatividade e direitos para essa população”.(FUNDO BRASIL, 2022). A sigla significa Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Transgênero, Queer, Intersexo, Assexual, e outras identidades, gêneros e orientações sexuais
que não se encaixam no padrão cis-héteronormativo (LGBTQIAP+).

664
de ampliar a parceria de atuação entre psicólogos e assistentes sociais como estratégia e
possibilidade para a consolidação da assistência/permanência estudantil, foco do
presente estudo.Tais requisições são expressivas quando analisados alguns dados
estatísticos publicizados sobre as dificuldades relacionadas à saúde mental de docentes
e discentes em ensino superior público no contexto da pandemia da Covid-19.
De acordo com a pesquisa efetuada em maio de 2021 pela Secretaria de
Modalidades Especializadas de Educação (SEMESP) 94,2% dos estudantes de
instituições públicas relataram ter tido dificuldades relacionadas à saúde mental e
concentração das aulas remotas. No tocante aos docentes, 93% relataram fadiga, stress,
cansaço físico e mental pela jornada de trabalho estendida após a implementação do
ensino remoto. Para compreender estes índices do adoecimento da saúde mental,da
evasão escolar e os demais fenômenos sociais que perpassam o universo educacional
durante e após contexto de pandemia, e que são determinados para além da motivação
econômica, é preciso considerar o aspecto estrutural da educação superior brasileira e os
principais impactos das desigualdades socioeducacionais, pois, os dados revelam que a
condição socioeconômica não é o único motivo responsável por abortar a trajetória
escolar do estudante. Questões como o racismo estrutural, as dificuldades pedagógicas,
a repetência escolar, defasagem no ensino básico, a violência, pandemia, e as demandas
do adoecimento da saúde mental, afetam expressivamente as populações supracitadas e
colocam em xeque as possibilidades do acesso, permanênciae conclusão do ensino
superior.

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo das reflexões apresentadas, constatamos a ampliaçãodos desafios para


a consecução dos objetivos previstos nas Portarias normativas que orientam a política de
assistência/permanência estudantil nas universidades públicas.Identificadas noPlano
Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) e no Programa Nacional de Assistência
Estudantil para as instituições de ensino superior público Estaduais (PNAEST),o decreto
nº7.234/2010 possui como finalidade “ampliar as condições de acesso, permanência e
sucesso dos jovens na educação superior pública”. (MEC, 2010). No entanto, é
importante refletir sobre o reconhecimento da assistência estudantil como “um campo de
disputas a ser consolidado enquanto uma política pública” (IMPERATORI, 2017),
sinalizando estacomoparte estratégica no acesso e permanência dos
estudantes,evidenciando de certa forma suas possibilidades e limites, por se tratar de

665
uma política pública ainda não consolidada.Além do mais, faznecessário salientar a
importância da ampliação de respaldos legislativos para a efetivação dos princípios
estabelecidos pela mencionada Portaria.A oferta do atendimento psicossocial aos
estudantes que dela necessitar, torna-se primordial para viabilizar ascondições concretas
para o acesso, permanência e conclusão no percurso escolar, especialmente quando
considerado as demandas estudantis somada aos efeitos do adoecimento da saúde
mental.
Além dos esforços da comunidade científica e demais profissionais que
investigam os efeitos deletérios da pandemia da Covid-19 e seus impactos na educação,
éimportante incluir os protagonismos de psicólogos e assistentes sociais que buscaram
historicamente por meio de intensas lutas e reivindicações, inserir na agenda política da
educação a ofertado atendimento psicossocial.
Em nível Estadual, o PANEST não é sedimentado quanto ao PNAES, que
configura um programa de assistência estudantil em nível Federal. Este fato ocorre
devido a fragmentação na gestão das instâncias Estaduais de ensino superior público e,
consequentemente, nos repasses de financiamento das políticas de assistência
estudantil.Já na rede Federal de ensino,segundo o Tribunal de Contas da União (TCU)
“em 2013, a Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica contava, em todo
Brasil, com 320 psicólogos e 396 assistentes sociais”. (TCU, 2013, p. 18). Portanto, o
PNAES propiciou uma expansão da contratação de assistentes sociais e psicólogos nas
universidades públicas federais e institutos federais de educação tecnologia.Contudo, no
contexto vigente (2022), ainda não existe uma regulamentação legalque dispõe sobre a
obrigatoriedade da presença de psicólogos e assistentes sociais nas universidades
públicas brasileira, exigindo uma mobilização da comunidade educacional para incluir o
atendimento psicossocial nestas unidades de ensino e reiterar, constantemente,
arelevância deste atendimento para efetivação do direito à educação.
Devido aos limites deste artigo, não foi possível apresentar, todos os dados e
estatísticas referentes àevasão escolar no ensino superior público brasileiro que foram
identificados e tampouco, ampliar o debate sobre os aspectos biopsicossociais e,
especificamente as repercussões do adoecimento mental no processo de ensino-
aprendizagem. Contudo, o debate propiciou contribuir que a comunidade
educacionalreconheça a importância da atuação de psicólogos e assistentes sociais no
âmbito da educação pública superior.Apresença de Psicólogos e Assistentes Sociais
possibilita promover nas universidades a prevenção de situações de riscos e
vulnerabilidades e, bem como, a proteção social, a participação familiar e comunitária no

666
apoio ao processo de ensino-aprendizagem. Ademais, a intervençãonos cuidados
adicionais para a manutenção da saúde mental dos/as docentes, discentes e demais
profissionais no âmbito escolar e/ou a articulação com a rede de proteçãosocialexistente
em um determinado território, são atribuições e competênciasprevistas na formação da
Psicologia e Serviço Social.Referindo especificamente das contribuições do Serviço
Social na Educação, de acordo com o documento: “Subsídios para a atuação de
assistentes sociais na política de educação”(CFESS, 2013), o assistente social é o
profissional mediador das contradições pertinentes as expressões da questão social, e
auxilia na construção de acesso aos direitos sociais a partir de suas competências e
atribuições buscando viabilizar o acesso, a permanência e a conclusão da trajetória
acadêmica.Ademais, no ambiente escolar é manifestado diversas expressões da questão
social que exige dos/as assistentes sociais, o arcabouço teórico-metodológico, o
posicionamento ético-político e qualificação técnico-operativo para a efetivar a
intervenção e democratização do direito à educação. Coerente com o projeto ético-
político profissional, o/a assistente social deve exercer a dimensão socioeducativo e de
caráter transformador para avançar em ações interdisciplinares e fortalecimento das
organizações, movimentos coletivos e demais sujeitos nos espaços educacionais.
O desafio de construir uma política educacional orientada na perspectiva de
universalidade, qualidade, e pleno atendimento das demandas estudantis, é um
enfrentamento permanente na história da educação brasileira, e que na conjuntura atual,
após pandemia, a luta coletivae o tensionamento da classe trabalhadora pela efetivação
do direito à educação é impreterível.

4- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Decreto nº 7.234, de 19 de julho de 2010. Dispõe sobre Programa Nacional de


Assistência Estudantil – PNAES. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7234.htm. Acesso em: 24
jun. 2020.

CFESS (Brasil) (org.). Subsídios para a atuação de assistentes sociais na política de


educação. [S. l.], 22 ago. 2013. Disponível em:
http://www.cfess.org.br/arquivos/BROCHURACFESS_SUBSIDIOS-AS-EDUCACAO.pdf.
Acesso em: 14 jun. 2022.

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FERNANDES, Florestan. Universidade brasileira: reforma ou revolução? São Paulo: Alfa-


Ômega, 1975.

667
FGV EESP (Brasil). Impactos da pandemia na saúde mental dos alunos e dos
professores. [S. l.], 6 jun. 2022. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Rma46Q5ja2Y&ab_channel=FGV. Acesso em: 9 jun.
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FUNDO BRASIL. Significado da sigla LGBTQIA+. [S. l.], 22 jun. 2022. Disponível em:
https://www.fundobrasil.org.br. Acesso em: 22 jun. 2022.
IMPERATORI, Thaís Kristosch. Serviço Social e Sociedade. A Trajetória da Assistência
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Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sssoc/n129/0101-6628-sssoc-129-0285.pdf. Acesso
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INSTITUTO BUTANTAN. Como surgiu o novo coronavírus? Conheça as teorias mais


aceitas sobre sua origem, São Paulo, BRASIL, p. 1-2, 14 jun. 2021. Disponível em:
https://butantan.gov.br/covid/butantan-tira-duvida/tira-duvida-noticias/como-surgiu-o-novo-
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MARX, Karl. O CAPITAL. 2. ed. [S. l.]: Boitempo, 2014. 894 p. ISBN 9788575595480.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. LEI Nº 343, de 17 de março de 2020. [S. l.], 17 mar. 2020.
Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Portaria/PRT/Portaria%20n%C2%BA%20343-20-
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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Programa Nacional de Assistência Estudantil para as


Instituições de Ensino Superior Públicas Estaduais (Pnaest), [s. l.], 16 abr. 2020.
Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/acesso-a-
informacao/institucional/secretarias/secretaria-de-educacao-superior/pnaest. Acesso em: 7
jan. 2022.

OCDE (Brasil). EducationatGlance. [S. l.], 11 ago. 2021. Disponível em:


https://www.oecd.org/brazil/. Acesso em: 8 jun. 2022.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Folha informativa sobre COVID-19, [s. l.], 29 fev.
2020. Disponível em: https://www.paho.org/pt/covid19. Acesso em: 7 jan. 2022.

SEMESP (Brasil). Educação superior e saúde mental. [S. l.], 21 maio 2021. Disponível em:
https://www.semesp.org.br/. Acesso em: 7 jun. 2022.

TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). Acórdão nº 506. 2013. Auditoria operacional.


Fiscalização de orientação centralizada. Rede federal de educação profissional. Disponível
em: <http://portal2.tcu.gov.br>. Acesso em: 15 ago. 2013.

668
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: estratégias profissionais em tempo de
opressão de classes no contexto da ofensiva ultraneoliberal do capital

Cristiano Costa de Carvalho270

Luciana Reis da Silveira271

Mariana Carvalho de Almeida272

Paula Luisa R. Dutra273

RESUMO: Relato deexperiência de gestão de


políticas públicas efetivandoestratégias de caráter
intersetorial, promovendo o cuidado da saúdeda
população em situação de rua. As atividades foram
realizadas pelo Grupo técnico de trabalho com foco
neste segmento populacional. O resultado:
ampliação e qualificação do trabalho social
resguardando os direitos humanos e sociais, no
contexto da pandemia Covid-19.

Palavras-chave: Políticas públicas; População em


situação de Rua; intrassetorialidade;
intersetorialidade; direitos humanos.

ABSTRACT: Report of public policy management


experience, implementing strategies of an
intersectoral nature,promoting the health care of the
population living in street situation. The activities
were carried out by technical working group focused
on this segment populational. The result: expansion
and qualification of the social work protecting human
rights in Covid-19 pandemic context.

Keywords: Publicpolicy; Homelesspopulation;


intrasectoriality; intersectoriality; humanrights.

270 Assistente social, mestre em gestão social, educação e desenvolvimento local, doutorando em Serviço
Social (PPGSS/UNESP Franca), trabalhador no SUS-BH, professor no IEC/PUC Minas.
271 Médica, mestre em Infectologia e Medicina Tropical, trabalhadora no SUS-BH, professora na Faculdade

de Ciências Médicas de Minas Gerais (FCMMG).


272 Psicóloga, Especialista em Saúde da Criança na modalidade Residência Multiprofissional (HOB), e em

Gestão de Políticas Públicas com ênfase em Gênero e relações Étnico-Raciais pela UFOP, Trabalhadora no
SUS-BH.
273 Assistente social, Referência Técnica na Gerência de Atenção Primária à Saúde – GEAPS/SMSA.

669
1- INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo apresentar a experiência do município de


Belo Horizonte, especialmente da regional centro-sul, sobre a organização do cuidado da
saúde da população em situação de rua por meio da criação do grupo técnico de trabalho
intersetorial para população em situação e trajetória de vida nas ruas (GT POP RUA).

Partimos da análise, conforme pontuado pelo “Manual de saúde da população em


situação de rua: um direito humano” (Brasil, 2014), que a existência de um número tão
grande de pessoas em situação de rua no Brasil é fruto do agravamento da questão
social. Diversos fatores colaboraram para esse agravamento e, consequentemente, para
o crescimento da quantidade de indivíduos nessa situação, entre eles: a rápida
urbanização ocorrida no século XX, a migração para grandes cidades, a formação de
grandes centros urbanos, a desigualdade social, a pobreza, o desemprego, o preconceito
da sociedade com relação a esse grupo populacional e, muitas vezes, a ausência de
políticas públicas.

Atualmente, a terminologia mais utilizada denomina essas pessoas como


População em Situação de Rua (PSR), levando a considerar sua condição não como
uma situação pessoal e passageira, mas como “consequência de uma situação a que
muitos trabalhadores são conduzidos, em decorrência das desigualdades sociais e da
elevação dos níveis de pobreza produzidos pelo sistema capitalista” (SILVA, 2009, p.
137). Revisitar conceitos, articular ações, garantir políticas públicas, foram demandas
assumidas, que trouxeram um novo olhar e, sobretudo, uma nova organização, fazendo
surgir movimentos sociais e técnicos/profissionais engajados na causa de viabilizar o
acesso aos direitos da PSR.

Diante o desafio do crescente número de pessoas em situação de rua,


apresentamos como a gestão, especialmente a Gerência de Assistência, Epidemiologia e
Regulação Centro-Sul (GAERE) por meio do Núcleo de Atenção Psicossocial, Promoção,
Prevenção e Intersetorialidade, tem pensado estratégias para assegurar a atuação e
gestão na garantia dos direitos humanos e princípios do SUS de forma a atender as
particularidades da PSR.

Esse movimento abrange todauma redesocioassistencial que envolve a formação


de vínculo e cuidados por meio das políticas públicas, especialmente na saúde
compostas por: CAPS/CERSAMS (Centros de Atenção Psicossocial), Centros de

670
Convivência, Unidades de Acolhimento, que funcionam de porta aberta e podem acolher
diretamente os usuários ou por encaminhamentos diversos, seja das equipes de
Consultório na Rua (CnaR), das equipes de estratégia de saúde da família (Esf), das
UPAS, SAMU, CRAS, CREAS, abrigos, albergues, etc.

Para alcançar este objetivo, a GAERE, criou espaços denominadosgrupo técnico


de trabalho intersetorial para população em situação e trajetória de vida nas ruas (GT
POP RUA) que possui objetivo principal em realizar articulações intersetoriais com outras
políticas públicas, em especial da assistência social. Por outro lado, o GT POP RUA
cumpre um importante papel, ou seja, como mencionado acima, de intersetorialidade,
mas também de intrassetorialidade274, por meio da articulação com as equipes das
unidades básicas de saúde (UBS), dos serviços de saúde mental, outros dispositivos da
saúde referentes ao território de abordagem para encaminhamento e acompanhamento
das demandas de saúde das pessoas em situação de rua.

O GT POP RUA tem configurado uma tecnologia que manifesta a necessidade de


medidas diferenciadas para atender a especificidade deste grupo populacional, sobre
esta experiência que será apresentado o relato.

2- DESENVOLVIMENTO

O município de Belo Horizonte possui o desafio de conhecer o perfil das pessoas


que vivem em situação de rua, ou seja, realizar um censo sobre esta população. Em
2013, o Centro de Referência em Drogas da Faculdade de Medicina daUniversidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), em conjunto com a Prefeitura deBelo Horizonte (PBH),
identificou 1.827 pessoas vivendo em situação de rua na capital mineira (BELO
HORIZONTE, 2013). Dados do censo municipal de 2015, feito com base cadastro do
Sistema Único de Assistência Social (SUAS) dão conta de que em Belo Horizonte existe
4,6 mil pessoas nessa condição. Porém,atualmente, estudo mais recente promovido pelo
Projeto Pólos de Cidadania da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas
Gerais (FD/UFMG), apresentado em maio de 2021, aponta que em Minas Gerais havia

274 Gonçalves (2001), afirma que o conceito de intrassetorialidade surge de forma consistente com a
promulgação da Política Nacional de Participação Social (PNPS), como resultado de um processo de revisão,
ocorrido de forma ampla, democrática e participativa, que possibilitou o surgimento de sua nova versão, que
aponta para a necessidade de articulação intrassetorial e intersetorial com outras políticas públicas, e
participação social, devido à impossibilidade do setor saúde responder sozinho ao enfrentamento dos
determinantes e condicionantes da saúde (p.34). Dessa forma, concepções e práticas tem sido defendido no
âmbito da gestão pública por sujeitos vinculados ao campo democrático e participativo.

671
18 mil pessoas em situação de rua, sendo que mais de 9 mil delas, ou seja, mais de 50%,
estão na capital mineira (DIAS, 2021).

Os pesquisadores do Projeto Pólos de Cidadania identificaram que o processo de


pandemia do COVID-19 intensificou ainda mais o fenômeno da população em situação
de rua no município, provocando muitas pessoas a viver na rua devido aos conflitos
familiares, alcoolismo, consumo abusivo de substâncias psicoativas, desemprego e perda
de moradia.

O perfil epidemiológico da população em situação de rua em BH mostra que é


formada, predominantemente, homens (86,8%) e a idade média da amostra foi de 39,6 ±
11 anos. Mais da metade dessa população (67%) situava-se na faixa etária
compreendida entre 31 e 50 anos, indicando um envelhecimento da população em
situação de rua, quando comparada aos censos anteriores. Nas extremidades da
distribuição etária, as proporções encontradas foram relativamente menores (11,3% na
faixa de 18 a 25 anos; e 9,9% na faixa de mais de 55 anos).No que tange à distribuição
da população em situação de rua, por raça/cor, destaca-se que 79,5% das pessoas na
coleta de dados se declaram pardos (45,7%) ou negros (33,8%) e apenas 18,1%
brancos. Esses dados, quando contrastados com os apresentados pelo Censo
Demográfico de 2010 (IBGE, 2010), indicam que, entre as pessoas em situação de rua, a
proporção de negros (pardos somados a pretos) é substancialmente maior do que a
proporção encontrada na população geral (52%) de Belo Horizonte (pardos 41,9% e
negros 10,1%).

Dentre os motivos que teriam levado as pessoas a viver e a morar na rua, os


principais mencionados foram: problemas familiares (52,2%); o abuso de álcool e/ou
drogas (43,9%); a falta de moradia (36,5%); e o desemprego (36%). Em torno de 76%
pelo menos, um desses quatro motivos, muitas vezes, de maneira correlacionada ou
sugerindo uma relação causal entre eles.Ou seja, devido a pandemia conseguimos
identificar agravos na vida da população em que muitos são forçados a viver na rua, o
que representou um saltou quantitativo registrado no período de 4,6 mil pessoas em 2015
para 9 mil em 2021. Além disso, importante destacar os marcadores sociais da diferença,
por serem interseccionais, algumas características da população em situação de rua são
indissociáveis, como é o caso de gênero, etnia e classe.

Notória é a necessidade de garantia institucional de espaços protegidos para


viabilizar a articulação intersetorial, dos diversos atores das políticas públicas, embora a

672
articulação intra e intersetorial seja muito fomentada e tida como estratégia de
intervenção, na prática existem muitos desafios.

O GT foi constituído anteriormente ao período da Pandemia, e se mostrou


essencial e fundamental no período pandêmico para construção de estratégias de
cuidado, compartilhamento da situação sanitária, divulgação e atualização de
informações, solicitação de apoio no cuidado e otimização do acesso às políticas
públicas.O cuidado em rede de atenção busca fomentar a autonomia e independência do
sujeito, construindo, “re”construindo e fortalecendo os vínculos, garantindo acesso e troca
de experiências e estratégias.

Como afirmado anteriormente, o GT POP RUA tem se configurado como espaço


coletivo e criado estratégias, recomendações e subsídios para os gestores e profissionais
da saúde e assistência social sobre os direitos e acessos aos direitos e cidadania das
PSR à saúde e assistência social. Dessa forma, apresentamos como resultados as
estratégias construídas, pactuadas e consolidadas no período de 2020, 2021 e 2022:

RECEPÇÃO: é o momento no qual o usuário recebe a primeira atenção ao


adentrar nos serviços de saúde e da rede socioassistencial do município, seja nas
instituições ou mesmo no espaço de rua;

ACOLHIDA: é, na maioria das vezes, o processo de contato inicial de um


indivíduo ou família com os serviços - não raras vezes é o primeiro contato “qualificado”
do usuário com o SUS/SUAS. Consiste no processo inicial de escuta das necessidades e
demandas, bem como de oferta de informações sobre as ações do Serviço, da rede
socioassistencial, saúde e demais políticas setoriais.

Como importante dimensão inerente aos serviços de saúde, a acolhida deve ser
observada pelos profissionais sob duas perspectivas: a acolhida inicial dos usuários no
serviço e a postura receptiva e acolhedora necessária durante todo o desenvolvimento do
trabalho.Considerando-se a primeira perspectiva, deve-se dar especial atenção ao
momento da acolhida inicial, pautada em postura acolhedora, ética e de respeito à
diversidade e dignidade das pessoas em situação de rua atendidas, bem como na não
discriminação de qualquer natureza.

A acolhida constitui importante momento para o atendimento inicial e a escuta


qualificada das necessidades e demandas trazidas pelos usuários. Sua realização
constitui responsabilidade dos profissionais da equipe técnica de nível superior,

673
enfermeiro, médico, dentista, assistente social, psicólogo, etc e dos profissionais de nível
médio como recepção, segurança, técnico de enfermagem, etc.O momento inicial de
contato com o Serviço deve também propiciar aos usuários o conhecimento dos
profissionais que compõem a equipe, das características e objetivos do serviço,
atividades realizadas e regras de convívio naquele espaço.

O ATENDIMENTO SINGULARrefere-se ao atendimento prestado pela equipe


técnica de modo individualizado, após a acolhida, com intuito de proporcionar escuta
qualificada, além de informar, esclarecer e orientar os usuários. Utilizado como
importante estratégia metodológica para o acompanhamento especializado, onde será
elaborado, acompanhado e avaliado oProjeto Terapêutico Singular (PTS)275.O espaço
para a realização do atendimento individualizado deve ser acolhedor e apropriado para a
garantia do sigilo das informações repassadas no decorrer do atendimento.

ATIVIDADES COLETIVASfuncionam como mais uma estratégia dos serviços no


sentido de promover vivências e experiências que possibilitem a emergência de uma
nova identidade social e cultural distinta da firmada pela própria situação de rua e
exclusão. Conforme preconiza a Política Nacional de Assistência Social (PNAS):

[...] é na relação que o ser cria sua identidade e reconhece a sua


subjetividade. A dimensão societária da vida desenvolve potencialidades,
subjetividades coletivas, construções culturais, políticas e, sobretudo, os
processos civilizatórios. As barreiras relacionais criadas por questões
individuais, grupais, sociais por discriminação ou multicultural,
intergeracional, interterritoriais, intersubjetivas, entre outras devem ser
ressaltadas na perspectiva do direito ao convívio (MDS, 2004).

Tal ideia corrobora com as orientações previstas no Caderno de Orientações


Técnicas do CREAS Pop Rua (BRASIL, 2011) que aponta que o atendimento em grupo
constitui também importante instrumento para a potencialização dos recursos dos
usuários e para o seu engajamento nas demais ações de caráter coletivo oferecidas pelo
serviço. Dessa formaos atendimentos contribuirão para o fortalecimento da relação entre
equipe técnica e usuários que consequentemente facilitará o desenvolvimento do PTS.

275O PTS incorpora a noção interdisciplinar que recolhe a contribuição de várias especialidades e de distintas
profissões. Assim, depois de uma avaliação compartilhada sobre as condições do usuário, são acordados
procedimentos a cargo de diversos membros da equipe multiprofissional, denominada equipe de referência.
Assim, as equipes de referência empreendem a construção de responsabilidade singular e de vínculo estável
entre equipe de saúde e usuário/família. Cada profissional de referência terá o encargo de acompanhar as
pessoas ao longo de todo o tratamento naquela organização, providenciando a intervenção de outros
profissionais ou serviços de apoio consoante necessário e, finalmente, assegurando a alta e continuidade de
acompanhamento em outra instância do sistema (PINTO et al., 2011).

674
É importante considerar que o atendimento coletivo também apresenta a
dimensão educativa no âmbito socioassistencial e também na saúde, no sentido de
contribuir para a educação política do usuário, fomentando a participação social, a
compreensão do contexto social em que vivem e o exercício da cidadania.

Além dos atendimentos individualizados, o atendimento coletivo configura-se


como importante estratégia para favorecer o processo de reflexão, a potencialização dos
recursos dos usuários, o fortalecimento do protagonismo e a construção de novas
trajetórias de vida, a partir da ampliação da consciência sobre si mesmo, do outro, da
família e do contexto em que vivem.

O atendimento exige uma avaliação técnica criteriosa. A definição sobre a


inserção de cada usuário deve ser realizada em conjunto com o mesmo, pois, além de
uma indicação técnica, é preciso que os participantes se sintam à vontade para participar
dos atendimentos coletivos.

O ESTUDO DE CASOtem sido pautadocomo uma atividade de natureza técnica


utilizada para aprofundar o conhecimento sobre a realidade e sobre as demandas dos
usuários, para melhor direcionar as ações e intervenções a serem desenvolvidas pela
equipe de saúde e rede socioassistencial, subsidia, portanto, a avaliação técnica e o
planejamento do acompanhamento, sendo fundamental para aprimorar as ações
desenvolvidas pelo serviço.

O estudo de caso trata–se de um investimento técnico, abrangente e cuidadoso,


que possibilitará o conhecimento da história da PSR e de sua família, focando nas
condições necessárias para que o convívio seja restabelecido ou para que seja
identificado um outro encaminhamento para o usuário.O Estudo de Caso deverá avaliar
intervenções a serem realizadas pela própria unidade em articulação com a rede, mas
identificará também, intervenções que serão recomendadas (encaminhamento).

O Projeto Terapêutico Singular (PTS) nesse processo é compreendido como um


instrumento, uma ferramenta composta de informações, reunidas em um prontuário, que
levam a um conhecimento sistematizado da situação de cada usuário deve permitir queos
usuários participem como sujeitos ativos, sendo ouvidos, para que o planejamento
responda às suas peculiaridades de pessoas em desenvolvimento, considerando sempre
suas possibilidades, habilidades e interesses. Respeitar o direito de participação e de
informação sobre as decisões que lhes digam respeito (PINTO et al., 2011).

675
O levantamento de todas as informações possíveis deve considerar a história de
vida, as referências sociais e familiares, as necessidades, os valores, os desejos e
sonhos, o potencial, aptidões e suas mudanças. O PTS propõe um conjunto de ações
que serão desenvolvidas durante a rotina coletiva e as abordagens individuais, visando
atender aos objetivos específicos, segundo a demanda de cada um, para superar a
vulnerabilidade e risco.

O destaque de que é sempre necessário o usuário tenha o papel ativo nesse


processo e possa, junto aos técnicos e demais integrantes da rede, pensar nos caminhos
possíveis para a superação das situações de risco e de violação de direitos, participando
da definição dos encaminhamentos, intervenções e procedimentos que possam contribuir
para o atendimento de suas demandas.Também devem ser ouvidos outros profissionais
que porventura estejam atendendo ou tenham atendido, como nos casos de
acompanhamento por equipes de saúde mental, de outros serviços da rede
socioassistencial, de modo articulado com os demais órgãos e serviços que estejam
acompanhando (Unidade Básica de Saúde, Estratégia de Saúde da Família, CAPS,
CREAS, CRAS, programas de geração de trabalho e renda, etc.), a fim de que o trabalho
conduza, no menor tempo necessário, a uma resposta propositiva.

Os encaminhamentossão os processos de orientação e direcionamento dos


usuários para serviços e/ou benefícios socioassistenciais ou de outros setores. Os
encaminhamentos têm por objetivo a promoção do acesso aos direitos e a conquista da
cidadania e pressupõem contatos prévios e posteriores da equipe técnica do serviço de
saúde com os serviços de forma a possibilitar a efetivação do encaminhamento.

Os encaminhamentos constituem importantes instrumentos de acesso a direitos


na medida em que alimentam a formação de uma rede de proteção social com
potencialidade de articular os diversos saberes e práticas que apresentem respostas
inovadoras à complexidade das situações de vulnerabilidade social.

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Temos clareza sobre a necessidade do olhar crítico sobre os determinantes em


torno do fenômeno crescente da população em situação de rua (PSR) está relacionado
diretamente às contradições entre o capital e trabalho e encontra pessoas com parte (ou
integralmente) de seus direitos humanos básicos violados, no que refere àfalta

676
deeducação, à inexistência da moradia e/ou inserção ao mercado de trabalho. Além
disso, essaspessoas se deparam com o medo, o estereótipo, preconceito, processos de
adoecimento e as múltiplas formas de violência por estarem nas ruas.A experiência do
GT POP RUA promovido e organizado pelo Núcleo de Atenção Psicossocial, Promoção,
Prevenção e Intersetorialidade da Gerência de Assistência, Epidemiologia e Regulação
Centro-Sul (GAERE) tem se consolidado como um espaço de construção de ações e
ofertas intersetorialidade, mas também intrassetorial, o que tem proporcionado novas
práticas e cuidados em torno da saúde e cidadania da população em situação de rua,
assim, extrapolando o modelo biomédico, mas de gestão integral do cuidado e de
educação em saúde pautado nos Direitos Humanos.

Nesse sentido, merece destaque a compreensão de que o fenômeno das pessoas


em situação de rua não é de atribuição exclusiva dos serviços de assistência social ou
saúde, pois como fenômeno social complexo deve ser contemplado por políticas
intersetoriais fomentado por governos, sociedade civil e movimentos sociais.

Nessa agenda de responsabilidades, é imprescindível que o poder público se


empenhe em executar, construir, planejar, criar e efetivar políticas públicas capazes de
concretizar os direitos das pessoas em situação de rua, pois somente assim será
possível alcançar o objetivo principal de tratar de forma adequada o fenômeno das
pessoas que vivem nas ruas.

Desse modo, GT POP RUA tem sido fundamental para que todos agentes
públicos sejam capazes de lidar com a realidade das pessoas em situação de rua de
forma humanizada e que sua atuação seja baseada na defesa e promoção dos direitos
humanos e na equidade.

4- REFERÊNCIAS

BELO HORIZONTE. Terceiro Censo da População em Situação de Rua de Belo


Horizonte, Belo Horizonte, 2013 (brochura).

BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde da população em situação de rua: um direito


humano. Brasília: Ministério da Saúde, 2014.

BRASIL. Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializada para a População


emSituação de Rua – SUAS e População em Situação de Rua. Brasília: Editora Brasil
LTDA,V.3, 2011.

677
DIAS, André Luiz Freitas[et al.].População em Situação de Rua: Violações de Direitos e
(de)Dados Relacionados à Aplicação do CadÚnico em Belo Horizonte,Minas Gerais,
Programa Polos de Cidadania, Faculdade de Direitoda Universidade Federal de Minas
Gerais, 2021.

GONÇALVES, Rodrigo Noll. Avaliação de políticas públicas em promoção da saúde:


estratégias intrassetoriais e intersetoriais integradas às políticas sociais. Tese (doutorado)
- Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Sociais Aplicadas, Programa de
Pós-Graduação em Políticas Públicas, 2021.

IBGE. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 2010. Censo Demográfico


2010: Notas Metodológicas. Rio de Janeiro, 2010.

MDS. Política Nacional de Assistência Social. Brasília: Secretaria deAssistência


Social, 2004.

PINTO, Diego Muniz Pinto[et al.].Projeto terapêutico singular na produção do


cuidadointegral: uma construção coletiva.Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2011
Jul-Set; 20(3): 493-302.https://doi.org/10.1590/S0104-07072011000300010

SILVA, Maria Lúcia Lopes.Trabalho e população em situação de rua no Brasil. São


Paulo: Cortez, 2009.

678
SERVIÇO SOCIAL E O DEBATE DO ENVELHECIMENTO: relevância de uma
maturidade teórica acerca da temática

276
Ingridilaine Carreiro de Oliveira Azevedo.
277
Rita do Nascimento Silvestre Dantas .

RESUMO

O intuito do presente trabalho é refletir sobre a relevância da


materialidade da produção teórica na busca por uma
construção sobre a temática envelhecimento na percepção
do assistente social, em particular do processo de
envelhecimento da classe trabalhadora, já que esta vivencia
cotidianamente os rebatimentos e agudização das
expressões da “questão social” num cenário ultraneoliberal,
assim como as formas de gerenciamento das desigualdades
sociais geradas pelo sistema de produção e reprodução
capitalista, nesse sentido, buscasse fomentar o
questionamento e produção de conhecimentos das(os)
assistentes sociais acerca do processo envelhecer enquanto
classe trabalhadora na sociedade de capitalismo periférico.

Palavras-chave: Serviço Social; classetrabalhadora;


envelhecimento; “questão social”.

ABSTRACT

The
purposeofthepresentworkistoreflectontherelevanceofthemate
rialityoftheoreticalproduction in thesearch for a
constructiononthethemeofaging in theperceptionofthe social
worker, in particular theprocessofagingoftheworkingclass,
since it
experiencesdailytherepercussionsandexacerbationoftheexpr
essionsofthe “social question” in anultra-neoliberalscenario,
as well as theformsof management of social
inequalitiesgeneratedbythecapitalistproductionandreproducti
on system, in thissense, it
soughttoencouragethequestioningandproductionofknowledge

276 Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - Estagiária do
NEPEESS- Núcleo de Pesquisa em Educação, Envelhecimento e Serviço Social (UFRRJ). E-mail:
ingridilaine@ufrrj.br.

Eixo temático:Ofensiva ultraneoliberal do capital e lutas sociais.


277Graduanda em serviço social pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - Bolsista do NEPEESS-
Núcleo de Pesquisa em Educação, Envelhecimento e Serviço Social (UFRRJ). E-mail:
Ritasilvestre34@gmail.com.br.

679
of social workersabouttheagingprocesswhileworkingclass in
peripheralcapitalistsociety.

Keywords: Social Work; working class; Aging; "social


question".

1- INTRODUÇÃO

O Serviço Social desde sua ressignificação teórico-metodológica, ético-político e


técnico-operativo advindos do amadurecimento do Movimento de Reconceituação da
profissão278 que buscou na perspectiva marxista o posicionamento ético, crítico, histórico
materialista coadunados com a realidade da sociabilidade capitalista em que são
subjugados os sujeitos, se propôs a construir um caminho de duras reflexões a este
sistema desigual e bárbaro no que tange o direcionamento à classe trabalhadora.
Também procurouanalisar criticamente as políticas sociais compensatórias
voltadas a dar respostas mínimas as desigualdades brutais vivenciadas pelo segmento
da classe subalternizada as demandas de produção e reprodução do capital, que por
conseguinte,estas políticas se configuram em seu caráter funcionalista e focalizado de
assujeitamento dos usuários na garantia dos direitos da população.
Dessa maneira, o Serviço Social da mesma forma que busca através de lutas e
diversas mobilizações pela defesa dos direitos já garantidos por Lei, como na promoção
de novos direitos frente a realidade contemporânea de avanços neoliberais de
pauperização, intensas desigualdades e de precarização da vida, é diante deste
panorama que o assistente social paulatinamente dá voz e significado a necessidade da
sua atuação.
Sendo assim, emerge múltiplas questões, na qual algumas delas pretendemos
abordar e convidamos a categoria profissional a refletir: como o Serviço Social tem
construído suas análises para o enfrentamento das questões relacionadas ao
crescimento da população idosa e as altas demandas requeridas do profissional a
construir estratégias a este segmento? Como o Serviço Social tem se instrumentalizado
no enfrentamento dessas múltiplas refrações da “questão social” da classe trabalhadora
envelhecida?
Em vista disto, o caminho a percorrer parece longo e segue em passos lentos,
dessa forma, não procuramos aqui responder todo o questionamento de forma a realizar

278 Ler-se-á: Netto (2017) “Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64.”

680
uma inquirição, mas, o que se identificou foi a necessidade de dar mais visibilidade
mesmo que de forma mais tímida neste trabalho a ampliar este debate dentro e fora das
academias, pretendendo chegar aos profissionais assistentes sociais que atuam na ponta
em distintos espaços que recebem, orientam e acolhem mulheres e homens
envelhecidos(as), para que assim possam realizar o processo da práxis acerca da
temática envelhecer.
Nesse sentido, justificamos este trabalho pela importância em construir uma
maturidade teórica em relação ao fenômeno do envelhecimento da classe trabalhadora
dentro do Serviço Social e a importância dessas análises para a formação profissional.

2- DESENVOLVIMENTO

Como é de consentimento, o Serviço Social emerge intrínseco às demandas por


políticas sociais para dar respostas às necessidades básicas que se desenhavam a
pauperização da classe trabalhadora a partir da década de 1930 - sendo de interesse do
Estado, da Igreja Católica e Empresariado279 - em vista das expressões da “questão
social” que emergiram com o processo de industrialização do capitalismo no Brasil.

Assim à medida que avança o desenvolvimento das forças produtivas, na divisão


do trabalho e a sua consequente potencialização, modificam-se,concomitante, o
posicionamento das diversas frações da classe dominante e suas formas de agir
perante a "questão social” no que entra em cena os interesses econômicos e
específicos desses grupos e a luta pelo poder existente em seu interior.As
respostas a "questão social” sofrem alterações mais significativas nas
conjunturas de crise econômica e de crise de hegemonia no bloco de poder.
(IAMAMOTO; CARVALHO, 2014, p. 85).

De acordo com Iamamoto e Carvalho (2006) o Estado passa a interferir


diretamente nas relações entre classe burguesa e proletária, gerindo a organização e
prestação dos serviços sociais como um tipo de enfrentamento a “questão social”, dessa
forma a vida dos trabalhadores não podiam ser mais desconsideradas inteiramente na
formulação de políticas públicas, pois estas políticas fazem parte da garantia de
sustentação da classe dominante280.
Sendo assim, desde o seu surgimento no Brasil, o Serviço Social passou a
compreender e auxiliar as respostas a “questão social” de formas distintas, numa prezava
mais pelos valores religiosos alicerçados na filosofia tomista; em outros mais focados do

Melhor explanado por IAMAMOTO; CARVALHO. “Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de
279

uma interpretação histórico-metodológica.” (2006).


280Em vista disso, "a categoria despesas sociais tem como função a manutenção da harmonia social,
servindo de legitimação do Estado, como a assistência social". (FALEIROS, p. 68, 1980).

681
desenvolvimento do país, na modernização da profissão de um ponto de vista técnico e
racional e por fim, ao momento primordial de Intenção de Ruptura - que fomentou a
posteriori o III CBAS- nas décadas de 1970-80 como afirma Netto (2017). Período ímpar
que possibilitou a profissão uma autorreflexão crítica dos seus arcabouços e
posicionamentos, assim também como permitiu que as/os assistentes sociais
possuíssem contato com outras áreas e temáticas, podendo enfim se debruçar sobre
debates antes não estudados pelos/as profissionais.
Os anos de 1990, de acordo com Abramides (2019) e Iamamoto (2015) foi um
momento axial para consolidação e amadurecimento do pensamento crítico marxista no
Serviço Social, todavia, mesmo diante de conquistas e avanços profissional e societário
como a Constituição Federal de 1988; num cenário capitalista, as mazelas sociais que
são intrínsecas ao sistema possuem respostas ínfimas a necessidade real da população,
pois o atendimento da "questão social" destacado por Iamamoto e Carvalho (2014)
fornecidos a determinada parcela da população (especialmente ao proletariado), são
fornecidos, pois esta determinada classe necessita estar engajada no processo de
produção. O que se reproduz em toda vida do proletariado, não só pela reprodução
material, mas também a reprodução ideológica, para que o mesmo não se rebele.
No que se refere a construção de uma maturidade teórica e metodológica o
Serviço Social tem mostrado estas nas questões como trabalho; “questão social”;
Políticas Sociais, Formação Profissional, Direitos Humanos entre outras categorias
estudadas. Mas na categoria envelhecimento não há um avanço significativo como nos
estudos explicitados281.
Neste contexto é que refletimos sobre a delimitação de referenciais teóricos
dentro do Serviço Social e das Ciências Sociais acerca do processo do envelhecimento
dos trabalhadores(a) que abordem de forma crítica, histórica e heterogênea o envelhecer
na sociedade do capital, entendendo e explicitando o fenômeno natural na especificidade
de classe.
Dessa forma, os/as profissionais analisam os fenômenos que tem em sua
centralidade a "questão social”, é neste aspecto que ratificamos o pensamento de
Teixeira que compreende o envelhecimento da classe trabalhadora como uma

281 Apesar de estudos realizados pela UFJF (2020) apontarem que a população idosa só está crescendo “O
número de brasileiros idosos de 65 anos e mais era de somente 1,6 milhão em 1950, passou para 9,2
milhões em 2020 e deve alcançar 61,5 milhões em 2100. O crescimento absoluto está estimado em 38,3
vezes. Em termos relativos, a população idosa de 65 anos e mais representava 3% do total dehabitantes de
1950, passou para 9,6% em 2020 e deve atingir mais de umterço (34,6%) em2100 (um aumento de 11,5
vezes no percentual de 1950 para 2100).”. Disponível em:
https://www.ufjf.br/ladem/2020/06/21/envelhecimento-populacional-continua-e-nao-ha-perigo-de-um-
geronticidio-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves. Acesso em: 07.jul.2022.

682
problemática social “É a classe trabalhadora a protagonista da tragédia no
envelhecimento, considerando assim a impossibilidade de reprodução social e de vida, já
que na ordem do capital estes perdem o “valor de uso” (TEIXEIRA, p. 64, 2009.)

Essa perspectiva de análise implica desvendamento, tanto das condições


materiais (estruturais e de classe), sob a lógica do capital, que engendram
desigualdades sociais, pobreza, desemprego, populações excedentes,
desvalorização social e outras manifestações da questão social, ou seja, a
ditadura do trabalho morto sob a forma de capital (comercial, industrial,
financeiro) e a regência do trabalho assalariado, aviltante e alienado, tanto como
fonte de valor e de degradação social quanto na reconstituição das lutas sociais
qual um dos elementos constituintes da questão social, da capacidade de
resistência dos trabalhadores, de lutas que problematizam necessidades sociais,
ou a não satisfação delas, por atingirem um coletivo e serem efeitos de
estruturas geradoras de desigualdades sociais e de acesso restrito a bens e
serviços produzidos socialmente.(TEIXEIRA, 2009, p.65)

Percebe-se, a partir desta perspectiva crítica do envelhecer na sociedade


capitalista periférica a necessidade de um debate crítico sobre a "homogeneidade,"que
vigora nas pesquisas,sem conceber as particularidades e os condicionantes sociais que
incidem ao longo da vida destes trabalhadores envelhecidos que compõe a
superpopulação relativa latente282 no modo de produção capitalista.Esta lógica de que
todos envelhecemos iguais tão arraigada e disseminada dentro da sociedade capitalista
que conduz e perpetua as dinâmicas de dominação culpabilizando ou naturalizando o
indivíduo por seu estado de vulnerabilidade social.

Nessa direção é fundamental a compreensão da velhice enquanto uma


construção social e histórica revestida do caráter da heterogeneidade. Nesse
sentido, sobressai o entendimento de que envelhecemos de diferentes maneiras
e em diferentes condições. Considerando os critérios de gênero, raça e etnia,
verificaremos que a velhice é uma experiência que se processa de forma
diferente para homens e mulheres, para brancos, negros e indígenas, tanto nos
aspectos sociais, econômicos, quanto nas condições de vida. Esses critérios são
determinantes inclusive do lugar que os idosos e as idosas ocupam na vida
social na relação direta com sua origem étnico-racial e sua condição de gênero
(BERZINS, 2003, apud. SILVA, 2016, p.225)

Neste sentido falar da classe trabalhadora envelhecida é falar da luta de classes,


em certos momentos históricos, a classe trabalhadora avança em suas lutas
reivindicando melhores condições de trabalho e de vida e outros momentos há uma
regressão destes direitos e até mesmo criminalização dos que buscam reivindica-los
como no cenáriodo avanço avassaladorultraneoliberalhodierno. Iamamoto (2015) nos traz
a mundialização e a financeirização do capital, que afeta de forma profunda o papel do

282Referente a superpopulação relativa latente que compõe o EIR: Essa fonte da superpopulação relativa flui,
portanto, continuamente, mas seu fluxo constante para as cidades pressupõe a existência, no próprio campo,
deuma contínua superpopulação latente, cujo volume só se torna visível a partir do momento em que os
canais de escoamento se abrem, excepcionalmente, em toda sua amplitude. O trabalhador rural é, por isso,
reduzido ao salário mínimo e está sempre com um pé no lodaçal do pauperismo. (MARX, p, 470, 1980).

683
Estado, que por sua vez repercute nas políticas públicas com suas diretrizes de
focalização, descentralização, desfinanciamento público e regredindo os direitos do
trabalhador assalariado, assim, por consequência além de perpetuar relações de
expropriação e pauperização dos operários, limitam a ação dos assistentes sociais.
Esta reorganização do capital advindos desde a reestruturação produtiva da
década de 1970 como forma de organizar e gerenciar melhor sua expansão tem afetado
de forma abissal os trabalhadores envelhecidos que sofrem com este modelo societário
de controle do trabalho social,dispensando o trabalho concebido como improdutivo nas
fábricas e intensificando e ampliando a forma de expropriaçãodo trabalho excedente,
desta forma como bem citado por Alves (2021), empurrando os trabalhadores para
margem da informalidade e sem proteção social ou trabalhista, tornando um capitalismo
predatório283 e deixando sequelas na natureza e na sociedade “fratura metabólica” com
um sistema desigual e sem direitos.

3- CONCLUSÃO

Diante do exposto, compreendemos que neste trabalho não conseguiríamos


dar conta de trazer a perspectiva crítica do envelhecimento da classe trabalhadora em
sua totalidade,mas a intencionalidade é refletir sobre a delimitação de referenciais
teóricos que tivemos dificuldades em identificarmos na graduação para basilar de forma
crítica o pensamento no âmagodo fenômeno da longevidade no Brasil e como a classe
trabalhadora envelhecida necessita diante do cenário de constantes crises que os
mecanismos de proteção social deem conta ao menos minimamente da parcela
populacional idosa nesta ordem societária vigente.
Por conseguinte, como bem explicitado por Iamamoto (2006) é diante desta
tensão “entre produção de desigualdade e produção de rebeldia e da resistência” que
atuam as(os) assistentes sociais “situados nesse terreno movido por interesses sociais
distintos, aos quais não é possível abstrair ou deles fugir porque tecem a vida em
sociedade.” (IAMAMOTO, 2009, p.16). Sendo assim, é diante de situações contrárias, de
conflitos e interesses de classes que precisamos buscar em nossos referenciais teóricos
estratégias e mecanismos para elaborar intervenções que de fato tenham significado na
vida e realidade dos sujeitos que paulatinamente atendemos pelos serviços, sejam eles
públicos ou privados.

283Ou como bem explicitado por Virgínia Fontes (2010) o capitalismo puro e selvagem que se configura como
capital-imperialista.

684
Pensar na população trabalhadora envelhecida que vivência a brutalidade do
envelhecer na sociedade do capital que estão defronte da maior longevidade da história e
taxas que preveem o aumento ao longo dos próximos anos, se faz extremamente
pertinente para uma atuação profissional em consonância com o Código de Ética (1993)
e Projeto Ético-Político, pois este envelhecimento está embricado as distintas expressões
da “questão social” como habitação, saúde, segurança, lazer e educação, ou seja,
reiteramos que é necessário compreender as especificidades ao redor.
Portanto, enquanto sociedade e classe, é de suma relevância pensarmos
coletivamente acerca do envelhecimento da classe trabalhadora, visto que é um processo
natural da vida e atinge ao coletivo; como categoria profissional do Serviço Social, pois
temos como objeto de análise e intervenção as expressões da “questão social”
intrínsecas ao modo de vida dos trabalhadores no capitalismo e que vem sendo
exacerbadas pela ofensiva ultraneoliberal contemporânea de redução de Direitos e
individualização dos sujeitos.

4- REFERÊNCIA

ABRAMIDES, Maria Beatriz Costa et al. O projeto ético-político profissional do


serviço social brasileiro: ruptura com o conservadorismo. Cortez: São Paulo. 2019.

ALVES, Giovanni. COLAPSO AMBIENTAL, SAÚDE E ENVELHECIMENTO:


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p.118-151. Disponível em: http://abet-trabalho.org.br/wpcontent/ uploads /2021/07/
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ed. Cortez: São Paulo. 2015.

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686
JUVENTUDES, TEMPO E QUESTÃO SOCIAL: transição para a vida adulta na
sociedade do capital

Cristiano Costa de Carvalho284


Leonardo David Rosa Reis285

RESUMO: O presente trabalho problematiza aspetos


relevantes que devem fazer parte do processo de
escolha teórico-metodológico e ético-político para o
desenvolvimento do trabalho com juventudes de
forma associar aspectos como tempo, questão social
e demais singularidades que fazem parte do universo
juvenil.

Palavras-chave: Juventudes, Condição


Juvenil,Questão Social.

ABSTRATC: The present work problematizes


relevant aspects that must be part of the theoretical-
methodological and ethical-political choice process
for the development of work with youths in order to
associate aspects such as time, social issues and
other singularities that are part of the youth universe.

Keyword: Youths, Youth Condition, Social Issues

1- INTRODUÇÃO

Os estudos sobre juventudes contribuem para olhar para os(as) jovens como
sujeitos, bem como, problematizar os estereótipos que costumam ser associados a essa
fase da vida. Portanto, permitem compreender os diversos modos de ser jovem na
atualidade. A articulação desses estudos permite, também, analisar os modos desiguais
de viver a juventude, relacionados aos modos desiguais de viver experiências humanas,
que marcam a vida e a leitura de mundo de jovens da classe trabalhadora.
Parece haver certo consenso entre os pesquisadores, movimentos sociais,
governos e sociedade, que não podemos lançar um olhar sobre esse público

284 Assistente social, professor universitário, mestre em Gestão Social (Una), Educação e Desenvolvimento
Local, acadêmico do Curso de doutorado do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade
Estadual Paulista (UNESP) campus de Franca.
285Assistente social, professor universitário, mestre em Educação (UEMG), acadêmico do Curso de doutorado

do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUCSP).

687
considerando-o como “homogêneo” (BADARÓ, 2013; CARRANO, 2013 CORROCHANO,
2008; ABRAMO, 1997, LEÃO, 2004,). Por isso, pesquisadores/as da área têm utilizado o
termo no plural - estudos sobre juventudes - para ressaltar a heterogeneidade dos modos
de viver esta fase da vida, as interpretações e estudos das mais variadas dimensões que
envolvem o tema, com destaque para os aspectos científicos, políticos, econômicos,
culturais, antropológicos, sociológicos, biológicos e, até mesmo, cronológicos. Dessa
maneira, devemos falar em juventudes.
O debate sobre os(as) jovens e as juventudes assumiu distintas configurações e
orientam diferentes noções. A definição de juventudes pelo corte de idade é uma maneira
de se definir o universo de sujeitos que habitariam o tempo da juventude. Desse modo,
enxergar os jovens, tão somente pela lente cronológica pode nos induzir a um processo
de simplificação e desconsiderar um conjunto de outros fatores que contribuem para
pensar as juventudes, sejam econômicos, culturais e sociais (CARRANO; 2009a, p.3).
A forma como concebemos as juventudes hoje, por ser uma “uma produção da
modernidade” (LEÃO; 2004, p.20), fruto das sociedades europeias dos séculos XVI e
XVII, nos ajuda a pensar sobre a separação das fases da vida por etapas “distintas –
infância, adolescência, idade adulta, velhice” (LEÃO; 2004, p.21), onde as exigências
colocadas para cada fase são reguladas pelos interesses econômicos e pelo estado. Os
tempos da vida passam, assim, a serem condicionados às alterações operadas pelas
mudanças nas estruturas e conjunturas específicas do modo de produção e socialização
dos bens socialmente produzidos pelas sociedades, possibilitando diferentes acessos ao
longo das etapas de suas vidas.
O debate sobre a dimensão cultural juvenil apresenta uma abordagem
destacando-a como “relativamente autônoma, vista positivamente como símbolo de
mudança social e progresso e, ao mesmo tempo, como fonte de patologias e conflitos
sociais” (LEÃO; 2004, p.17). Desse modo, concordamos que “essas elaborações
(culturais) assim como as formas de expressá-las (numa linguagem), são sempre
híbridas, sincréticas, de fronteira” (CARRANO apud PEREGRINO; 2003; p.193).
As identidades juvenis também são temas que são pensados em diferentes
perspectivas, seja “na possibilidade de construção de identidades grupais e individuais”
(CARRANO apud PEREGRINO; 2003; p.193), em uma perspectiva de “que os jovens
possam realizar escolhas conscientes sobre suas experiências pessoais e constituir os
seus próprios acervos de valores e conhecimentos que já não mais são impostos como
heranças familiares ou institucionais” (CARRANO; 2012, p. 85), seja como um conceito
de identidade que não supõe, de forma alguma, qualquer conotação de homogeneidade;

688
pelo contrário, reforça a heterogeneidade, a diversidade cultural e a existência de
múltiplas juventudes particulares.
Não nos resta dúvidas das múltiplas expressões da condição juvenil e de
concebermos as juventudes, seja de modo singular, particular, universal e de forma
coletiva, considerando que os jovens de hoje vivem imersos em condições estimulantes e
positivas, mas, também, negativas.
Contudo, outras características podem ser encontradas entre as juventudes, de
modo que no seu cotidiano, socializam e articulam-se coletivamente, questionando as
relações sociais institucionalmente constituídas, buscando imprimir uma marca de
independência em relação às organizações formais da sociedade.

2- DESENVOLVIMENTO

Juventudes e transição para a vida adulta

Nesta direção, percorramos um pouco a noção em curso entre os pesquisadores


da temática das juventudes; a ideia de “transição para a vida adulta” (LEÃO; 2004,
CARRANO; 2009; CORROCHANO, 2004), onde infância, adolescência e juventude são
entendidas como passagem para uma outra fase, a vida adulta. As diferentes
interpretações são importantes para compreendermos e identificarmos noções
permeadas pelo senso comum, estereótipos e concepções que orientam as pesquisas no
campo das juventudes.
Desse modo, a importância de refletirmos sobre transição para a vida adulta nos
remete a pensar que essa noção tem sido cada vez mais questionada diante das
transformações sociais mais recentes, que apontam para uma desconexão entre as
idades e os papéis tradicionalmente desempenhados nas diferentes etapas da vida.
(LEÃO; 2004, p.18). No entanto, considerando a perspectiva sócia histórica da ideia de
juventude, analisemos a reflexão de Carrano (2009) quando afirma que

as passagens entre os tempos da infância, da adolescência, da juventude e vida


adulta podem ser entendidas como «acordos societários». De certa forma, as
sociedades estabelecem acordos intersubjetivos que definem o modo como o
juvenil é conceituado ou representado (condição juvenil). Em algumas
sociedades os rituais de passagem para a vida adulta são bem delimitados e se
configuram em ritos sociais. (CARRANO; 2009, p.170).

Os principais argumentos contidos na noção de que existe uma transição da


infância, da adolescência e da juventude para a vida adulta são destacados, por vezes,

689
pela ideia de indeterminação, um momento transitório e passageiro, geralmente marcado
por uma crise de identidade e de valores. (LEÃO; 2004, p.18), pela ideia das etapas de
“partida da família de origem, entrada na vida profissional e formação de um casal”
(LEÃO; 2004, p.19), pelo prolongamento do tempo de solteiros vivendo sós ou com
amigos. (LEÃO; 2004, p.18-19); “terminar os estudos, conseguir trabalho, sair da casa
dos pais, constituir moradia e família, casar e ter filhos” (CARRANO; 2009, p.170-171).
Embora o desenvolvimento dessas noções sejam importantes para se pensar o
processo sócio histórico, cultural e o conjunto de valores que envolvem a concepção de
transição para a vida adulta, Carrano (2008) argumenta que sobre uma certa
descronologização, onde “as etapas da vida obedecem cada vez menos às
normatizações e às regulações das instituições tradicionais como a família, a escola e o
trabalho sem constituírem fases muito bem definidas” (p.67) e colabora com o
entendimento de que nem todos os(as) jovens vivem a sua juventude como uma situação
de trânsito e preparação para as responsabilidades da vida adulta, de modo que
os jovens fazem seus trânsitos para a vida adulta no contexto de sociedades
produtoras de riscos – muitos deles experimentados de forma inédita, tal como o
da ameaça ambiental e do tráfico de drogas, mas também experimentam
processos societários com maiores campos de possibilidades para a realização
de apostas frente ao futuro (CARRANO; 2009a, p.2).

Contudo, consideramos que, embora a relação dos jovens com essas instituições
tenha mudado se comparada com gerações anteriores, o trabalho e a escola
permanecem como centrais nos modos de organizar a vida em sociedade e a
sobrevivência das classes populares. O conjunto das necessidades humanas, colocam
um conjunto de desafios e tarefas na busca por sobrevivência dos filhos da classe
trabalhadora, desse modo o conjunto das desigualdades produzidas pelas condições
objetivas de vida refletem imediatamente na forma como jovens se relacionam com o
trabalho e com a escola.
Para Carrano (2009a), isso quer dizer, que para jovens filhos/as da classe
trabalhadora as exigências da “vida adulta”, chegam enquanto estes estão
experimentando o seu período juvenil, sendo assim, sua defesa de que “a combinação de
distintas maneiras de enxergar a questão juvenil colabora para se tentar responder à
pergunta sobre quando alguém deixa de ser jovem e atinge a vida adulta (CARRANO;
2009a, p.3), corrobora com a visão de Leão (2004) que
essas questões impõem a necessidade do aprofundamento em pesquisas que
investiguem os diferentes modos de transição para a vida adulta vividos pelos
jovens brasileiros, atentando para a sua complexidade face à diversidade de
situações (LEÃO; 2004, p.28).

690
Percorrer as noções sobre a perspectiva de transição para a vida adulta
apresentada pelos pesquisadores nos parece um exercício importante para pensar a
complexidade da temática, no entanto, nas palavras de Corrochano (2008), percebemos
que mesmo diante de diferentes noções, existem alguns consensos, e o principal é que
“as diferentes abordagens teóricas e metodológicas é de que as transições juvenis
tornaram-se mais complexas’’ (CORROCHANO, 2008, p.19) e Leão (2004), também
entende ‘’que as etapas da vida têm sofrido um processo de reconfiguração em função
de um conjunto de mudanças sociais, econômicas e culturais no mundo
contemporâneo’’(p.27), logo, podemos avançar um pouco mais no debate.

Juventudes e questão social

Na sociedade capitalista prevalece, nas últimas décadas, a flexibilização do


trabalho e exigência de maior iniciativa de trabalhadores e trabalhadoras. Os riscos de
desemprego aumentam, gerando ampla massa de desocupados, onde as desigualdades
ganham relevo, aprofundando “os processos crescentes de exclusão social e a súbita
valorização do trabalhador, sua qualificação, sua participação e o sentido da qualidade
total, da participação, da qualificação flexível, abstrata e polivalente” (FRIGOTTO, 1998,
p.98).
Ainda é recente a democratização do país e, sabemos que em uma sociedade
marcada pela exploração do trabalho e pela razão instrumental, tem sido difícil para o
trabalhador exercer a sua capacidade e potencialidade inventiva. As sucessivas crises do
sistema capitalista reiteradamente colocam um desafio para as relações de trabalho, que
reverberam no plano das relações sociais, onde vivenciamos situações de subordinação
das pessoas, tornando-as funcionais ao sistema pela venda de sua força de trabalho,
onde depreendemos que a questão social se apresenta como “expressão das
contradições inerentes ao capitalismo que, ao constituir o trabalho vivo como única fonte
de valor, e, ao mesmo tempo, reduzi-lo progressivamente em decorrência da elevação da
composição orgânica do capital” (BEHRING; SANTOS, 2009, p. 5)
As desigualdades que jovens das periferias brasileiras enfrentam possuem muitas
faces, múltiplas expressões e múltiplos significados, de modo que as vulnerabilidades e
riscos a que estão sujeitos nos ajudam a pensar que “é impossível dissociar a
experiência da elaboração das identidades sem levar em conta os efeitos dramáticos que
a globalização e os riscos sociais imprimem tanto ao indivíduo quanto à sociedade”

691
(CARRANO; 2009, p.176). As experiências juvenis e percursos de jovens pobres286 nos
permite perceber os contornos do acesso e da ausência de condições objetivas para se
viver a condição juvenil de forma digna diante das “inseguranças no presente e
incertezas frente ao futuro” (CARRANO; 2009, p.176).
Pesquisadores da Fundação João Pinheiro (FJP) atem se dedicado em analisar a
trajetória dos jovens no mercado de trabalho mineiro com foco na precarização tem
destacado as diferenças da probabilidade dos jovens (homens e mulheres) terem um
trabalho precário ao longo dos últimos 30 anos.
A referida pesquisa conduzida por Souza, Marques e Campos (2021) com base
no PNADs e da PNAD contínua do IBGE dos anos de 1990, 1999, 2009 e 2019 com foco
e recorte nos jovens de faixa etária entre 17-24 e 25-29 anos tem buscado compreender
como que em cada um desses períodos afeta a probabilidade de ter um trabalho precário
e como o trabalho precário na juventude impacta a vida profissional futura.
A hipótese dos pesquisadores da FJP é que, “desempenhar uma atividade laboral
precária na juventude tenha efeitos prejudiciais no futuro, ou seja, menor rendimento,
maior desemprego ou trabalho informal” (SOUZA, et all, 2001).
Seguindo os esforços em compreender as dinâmicas das juventudes, Baptista
(2008) ao analisar a complexa relação entre família, juventude no contexto e avanço do
neoliberalismo identifica o crescimento compulsório do trabalho informal, em função do
desemprego, do trabalho desqualificado e mal remunerado.
Essas condições segundo a pesquisadora têm gerado o crescimento do
adoecimento dos jovens junto a o uso de substâncias psicoativas e os seus agravos, o
aumento da violência de gênero e até mesmo a entrada de jovens no tráfico de drogas e
de armas, continua a pesquisadora em afirmar “a contrapartida do Estado, no entanto
não acompanha a gravidade destas determinações, recaindo sobre a lógica da

286A utilização do termo “jovens pobres” está presente nos estudos sobre juventudes de CARRANO (2007,
2008, 2009a), CORROCHANO (2004), LEÃO (2004). As reflexões se aproximam considerando esses sujeitos
como segmentos excluídos ou em condição de exclusão, filhos de trabalhadores, sejam urbanos ou rurais,
que vivenciam situações precárias e desprotegidas. Estes autores refletem sobre a situação que vivenciam
de fragilidade de acesso às condições mínimas de cidadania. São Jovens oriundos de setores populares que,
por vezes, na sociedade capitalista, não são tratados como sujeitos de direitos. Sendo assim, considerando
que existem diferentes concepções e interpretações sobre juventudes, utilizaremos a mesma terminologia
caminhando na direção de pensar as juventudes, orientados pela noção de que são filhos da classe
trabalhadora e que estão cotidianamente sujeitos a diversas manifestações da questão social, evidenciadas
pela tensão entre o capital e o trabalho. São jovens que vivem, na maior parte das vezes, em condições
objetivas marcadas por desigualdades sociais e econômicas e, por consequência mais distante de acesso a
direitos sociais, riquezas e bens socialmente produzidos pela sociedade.

692
privatização e da responsabilização dos sujeitos pelos problemas sociais” (BAPTISTA,
2008, p. 103).

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essas aproximações ao debate sobre juventudes, considerando os diferentes


olhares sobre a condição juvenil onde “essa fase da vida”, a “transição para a vida adulta”
(LEÃO; 2004, CARRANO; 2009; CORROCHANO, 2004) e as reverberações das
expressões da questão social sobre suas vidas pode nos permitir os modos desiguais de
viver a juventude, relacionados aos modos desiguais de viver experiências humanas, que
marcam a vida e a leitura de mundo de jovens da classe trabalhadora.
Mesmo não havendo consenso entre os pesquisadores, movimentos sociais,
governos e sociedade, que não podemos lançar um olhar sobre esse público
considerando-o como “homogêneo” (BADARÓ, 2013; CARRANO, 2013 CORROCHANO,
2008; ABRAMO, 1997, LEÃO, 2004), nos interessa em estudos futuros aprofundar um
pouco mais as reflexões sobre a defesa de que “para jovens filhos/as da classe
trabalhadora as exigências da “vida adulta”, chegam enquanto estes estão
experimentando o seu período juvenil” (CARRANO; 2009a, p.3), mesmo considerando
que fazer parte de uma classe ou de uma geração não é questão de escolha, e no interior
de uma mesma classe social, “há uma multiplicidade de corpos jovens (homens,
mulheres, brancos e pretos.) que experimentam experiências biográficas únicas”. (idem;
2009c grifo nosso) e há diferentes maneiras de vivenciar a condição juvenil.
O debate sobre as desigualdades que jovens das periferias brasileiras enfrentam
possuem muitas faces, múltiplas expressões e múltiplos significados, de modo que as
vulnerabilidades e riscos a que estão sujeitos nos ajudam a pensar que “inseguranças no
presente e incertezas frente ao futuro” (CARRANO; 2009, p.176).
Seguindo esta lógica, identificamos mais um desafiocolocado à profissão do
Serviço Social, uma vez que tendo a questão social como sua matéria de trabalho está
implicada de ressignificações no tratamento para com esta. Assim, a discussão ora
apresentada revela o adensamento do debate entrequestão social e Serviço Social e os
desafios contemporâneos do trabalho profissional.

693
4- REFERÊNCIAS

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695
RACISMO E SOFRIMENTO MENTAL: o olhar do Serviço Social a partir de uma
revisão integrativa

Lara Rodrigues Caputo287

Resumo: O presente trabalho é parte de uma grade pesquisa


acadêmica que tem como objeto de análise a relação entre o
racismo e os sofrimentos mentais da população negra no Brasil, a
partir de uma revisão integrativa na area de Serviço Social.
Traçamos, de forma breve, uma análise de parte das publicações
encontradas. Para tanto, utilizamos a revisão integrativa para
analisar como está a produção teórica-científica no âmbito do
Serviço Social brasileiro em relação a interface entre o racismo e
o sofrimentos mentais da população negra.

Palavras-chave: Racismo; Sofrimento Mental; Serviço Social.

Abstract: The present work is part of an academic research that


has as its object of analysis the relationship between racism and
the mental sufferings of the black population in Brazil, based on an
integrative review in the area of Social Work. We briefly outline an
analysis of part of the publications found. For that, we used the
integrative review to analyze how the theoretical-scientific
production in the Brazilian Social Service is in relation to the
interface between racism and the mental suffering of the black
population.

key words: Racism; Mental Suffering; Social service.

1- INTRODUÇÃO

A pesquisa foi realizada a partir da chamada revisão integrativa, esta consiste em um


dos tipos de metodologia que tem como foco a síntese do conhecimento e a incorporação
da aplicabilidade de resultados de estudos significativos na prática. Tal revisão teve como
pergunta norteadora inicial: como o Serviço Social vem tratando, teoricamente, a
relação entre raça/racismo e sofrimentos mentais? Em seguida, foram selecionados
os 20 periódicos da área de Serviço Social, com o intuito de responder a esse
questionamento inicial. A delimitação temporal partiu de um marco legal do campo da
saúde mental, a Lei 10.216 (BRASIL, 2001), desta maneira, demarcou-se nos campos
destinados para tal, artigos publicados entre 2001 e 2020. Para a busca dos artigos

287Assistente social, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal


de Juiz de Fora. E-mail: lararrcaputo@gmail.com

696
foram utilizados os seguintes descritores: “racismo” e “adoecimento mental”; “racismo” e
“sofrimento mental”; “raça” e “sofrimento mental”; “raça” e “adoecimento mental”; “raça” e
“saúde mental”.

Contabilizamos ao final de todas as leituras e análises, 16 materiais, sendo


publicados entre 2013 e 2020. Após a busca e inclusão dos materiais, foram
selecionadas chaves analíticas a partir das leituras e análises das produções, utilizando
do método de análise de conteúdo, tendo como ponto de partida a comunicação, ou
seja, a partir das mensagens que os artigos e produções passam, busca-se produzir
inferências. Desses 16 materiais, para o presente trabalho optamos por apresentar a
analise de 7 produções288, diante do número limitado de páginas.
A seguir, as análises qualitativas das produções encontradas e, de antemão,
observamos um número reduzido de produções na área de Serviço Social que tratam da
interlocução entre as temáticas do racismo e do sofrimento mental.

2- RACISMO E SOFRIMENTO MENTAL DA POPULAÇÃO NEGRA SOB O OLHAR DO


SERVIÇO SOCIAL

Dos 16 materiais encontrados, 7 apresentavam elementos específicos do


campo da saúde mental e da atenção psicossocial. Destes, evidenciamos uma
expressividade de publicações de autoria de Raquel Gouveia Passos e/ou em parceria
com outro autor, sendo esta uma referência no campo da saúde mental interseccionada
à questão racial.
Iniciaremos com o artigo “8” de Menegat, Duarte e Ferreira (2020), que traz uma
crítica ímpar ao modelo econômico vigente no mundo, principalmente, no que se refere à
configuração urbana moderna. Utilizando autores como Engels (1985), os autores
sinalizam que a sociedade assentada numa conduta individualista, conduz a uma vida de
relações sociais doentias, uma “guerra de todos contra todos” (MENEGAT, DUARTE e
FERREIRA, 2020, p. 101). Esse cenário urbano coloca os sujeitos a constantes disputas
entre si, entendendo esse processo como um sofrimento mental. A sobrevivência exige
destes sujeitos uma subjetividade individualista e competitiva, mediada pelo processo de
trabalho. No entanto, a construção dessas subjetividades é um processo doloroso, pois
esses indivíduos renunciam à capacidade de reconhecer o outro como seu semelhante.
Uma expressão utilizada pelos autores é a “loucura em massa”, fundamental para

288 Consultar Tabela 1 em “anexos”.

697
pensarmos no adoecimento da população negra atualmente. Os autores apontam ainda
que a moderna divisão territorial entre “centro e periferia”, especificamente, entre os
séculos XVII e XVIII - o Brasil, obviamente localizado na zona periférica - ocasionada no
momento em que o capitalismo se consolidava, provocou, não por acaso, processos de
enlouquecimento massivo, analisados por Foucault (1978). A constituição forçada dos
grandes centros urbanos capitalistas, fez com que as massas fossem separadas dos
meios de subsistência, tornando-se trabalhadores “livres”, possuindo apenas a sua força
de trabalho a ser vendida para o capital. No entanto, o capital não deu e não dá conta de
garantir o acesso a todas e todos no mercado de trabalho, o que vemos no alto índice de
desemprego -o desemprego estrutural, transformando os sujeitos e os grupos “em hordas
de miseráveis e loucos” (MENEGAT, DUARTE e FERREIRA, 2020, p. 103).
Baseando-se em Foucault (1978), Menegat, Duarte e Ferreira (2020) apontam
que a loucura é construída socialmente, ou seja, não pode ser encontrada num estado
selvagem. Por mais que se tenham relatos de distúrbios mentais na antiguidade, a forma
como os sofrimentos se apresentou e se apresenta na sociedade de classes é particular,
“se estrutura como epidemia entre as massas empobrecidas” (MENEGAT, DUARTE e
FERREIRA, 2020, p. 103). Desta maneira, compreender as formas de confinamento dos
adoecidos mentalmente e as formas de eliminação desses indivíduos, como, por
exemplo, o genocídio da população negra, são apresentadas pelos autores como linha de
análise para identificar os processos atuais. Nesta direção, miséria e loucura são
processos indissociáveis na conjuntura do capitalismo.
Mendes e Werlang (2013), artigo “16”, contribuem com a análise de Menegat,
Duarte e Ferreira (2020), afirmam que o sofrimento mental também está ligado a estados
de privação material como o não acesso à educação, a saúde, a moradia, a alimentação
e etc, assim, o sofrimento é uma resposta psicológica diante da dor, e “não teria um local
específico de manifestação no corpo, [...] mas se estenderia a todo ser” (MENDES e
WERLANG, 2013, p. 132). Nesta direção, pensar que sofrimento mental tem estreita
relação com a pobreza e, boa parte dos (as) pobres no Brasil compõe a população negra,
o campo de estudo da Saúde Mental não pode se eximir de fazer essa relação. Passos e
Moreira (2018), artigo “11”, apontam que há uma enorme escassez no campo da saúde
mental e da atenção psicossocial no que se refere à interlocução com a questão racial.
Assim, existe uma necessidade imediata do campo em tratar das novas expressões dos
manicômios na atualidade por esse viés, na medida em que tal lacuna pode contribuir
para os retrocessos vivenciados na atualidade.

698
O material de Passos e Moreira (2017), artigo “9”, também faz uma análise
macrossocial do processo de sofrimento mental, abordam acerca da conjuntura atual
internacional, com clara onda conservadora observada em vários países. Entre eles,
demonstram a realidade dos EUA, especialmente, a partir de uma marcha com caráter
fascista que ocorreu em agosto de 2017. Alguns grupos nacionalistas brancos se
reuniram com a intenção de protestar contra a retirada de uma estátua do general Robert
E. Lee, um dos sujeitos que lutou contra a abolição na escravatura no país. O grupo
conhecido como Ku Klux Klan, responsável pela marcha, demonstra como tem avançado
o ataque da extrema direita nos EUA. Quando trazemos essa realidade para o contexto
brasileiro, também presenciamos o avanço da onda conservadora, liderada por grupos de
extrema direita, o que acarreta a apologia à violência e opressões dos grupos mais
vulnerabilizados, como, por exemplo, a população LGBTQIA+, a população negra e as
mulheres, através dos números significativos de mortes desses segmentos.
A partir dessas leituras macrossocietárias acerca dos sofrimentos mentais,
apresentam-se análises mais afuniladas do que vem sendo discutido no campo da saúde
mental. Nesse sentido, Rosa e Guimarães (2020), artigo “13”, tratam sobre o tema das
drogas. Estes defendem que o uso das Substâncias Psicoativas (SPA) sempre esteve
presentes nas sociedades, seja para uso medicinal, recreativo ou mesmo nos rituais
religiosos. Com a intensificação da industrialização, do avanço do Estado por meio
jurídico e policial, vimos uma constituição de controle da produção, comercialização e
consumo dessas substâncias. Os autores afirmam que, no Brasil, as primeiras políticas
do Estado -em 1920- contra o uso de drogas estiveram diretamente entrelaçadas às
ações higienistas, eugenistas e racistas, uma vez que era um meio de encarcerar e
excluir a população negra. Na mesma linha de abordagem, Ferrugem (2020), artigo “14”,
aponta que a chamada “guerra as drogas” na atualidade se materializa com o genocídio
da população negra, pautado pelo racismo institucional contra esse segmento
populacional, uma vez que a guerra não é contra as drogas, mas sim contra pessoas e
corpos negros. Fundamentando-se no conceito de racismo estrutural, a autora coloca que
o racismo não é abstrato, ele sustenta e estrutura a organização social, econômica e
política da sociedade e, com a guerra às drogas não é diferente, esta tem uma
funcionalidade e uma finalidade para o benefício do grande capital.
Outro tema identificado na revisão integrativa é em relação às mulheres negras,
percebemos que esse grupo populacional aparece em muitos materiais encontrados
como vítimas de uma constante violência. Passos (2017), artigo “10”, faz uma abordagem
essencial acerca do trabalho das cuidadoras em saúde mental, especialmente dentro das

699
Residências Terapêuticas (RT), casas localizadas nas comunidades destinadas a acolher
usuários e usuárias em sofrimento mental que estiveram internados por longos períodos
nos hospícios e perderam o contato com suas famílias ou estas não apresentavam
condições para manter o cuidado desses sujeitos. Essas trabalhadoras, segundo a
autora, são na sua esmagadora maioria, mulheres negras, sem formação e pobres, ou
seja, os trabalhos mais precarizados ainda são destinados à população negra.
Outra análise riquíssima identificada na revisão, diz respeito à violência
institucional do Estado relacionada aos sofrimentos mentais da população negra.
Menegat, Duarte e Ferreira (2020) apontam o racismo como um determinante social do
processo saúde/doença, mais precisamente, do sofrimento mental. Utilizando-se de um
caso para materializar a linha de análise trabalhada, os autores esboçam o relato da
morte de Joselita Souza, decorrente de uma depressão desenvolvida após perder seu
filho assassinado na cidade do Rio de Janeiro. “Eles estavam dentro do carro, um Palio
branco, que foi metralhado com 111 tiros disparados por quatro policiais do 41º Batalhão
da Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro (PMERJ), de Irajá” (MENEGAT, DUARTE e
FERREIRA, 2020, p. 105). Os autores apontam que a depressão quando envolta em
situações de violência, como um fator de estresse expressivo e com as marcas sociais, o
quadro é ainda mais grave, “o que em muito determina socialmente os transtornos
mentais causados, indelevelmente, pelo sofrimento social” (Idem, ibidem). Compreender
a relação entre racismo e os sofrimentos mentais, segundo os autores, trata-se de
abarcar o papel do Estado, de sua desresponsabilização no que se refere à efetivação da
cidadania e dos direitos humanos fundamentais da população negra.
Na mesma direção de análise, Jesus e Costa (2017), artigo “15”, apontam que o
racismo além de produzir condições desiguais objetivas para a população negra, também
produz especificidades na constituição subjetiva desses sujeitos. A subjetividade é
apresentada como uma “singularidade humana (...) que possibilita aos indivíduos
tornarem-se humanos, se expressarem e se relacionarem com o mundo interno e
externo, por meio de sentimento, raciocínio, saberes, afetos e consciência (JESUS;
COSTA, 2017, p. 322). A subjetividade é possibilitada a partir da mediação com o
trabalho, meio transformador da natureza a fim de responder às necessidades humanas
vitais. Este exerce um papel de transformação da natureza, mas também uma
transformação subjetiva dos sujeitos sociais. Apesar dos sujeitos vivenciarem as mesmas
formas históricas, social e cultural semelhantes, a subjetividade se difere e se distingue
de sujeito para sujeito. Utilizando-se de Sève, as autoras colocam que pensar a
personalidade é partir das suas relações sociais e dos limites e possibilidades

700
apresentados ao seu desenvolvimento, sendo uma das suas principais funções o
desenvolvimento das capacidades, “que retrata como o desenvolvimento e o progresso
psicológico estão relacionados a uma dinâmica externa ao indivíduo em si (...) ou seja, às
relações sociais e suas contradições” (JESUS; COSTA, 2017, p. 324). Nesta lógica,
segundo as autoras, pode-se pensar no racismo, pois as contradições sociais podem
rebater no desenvolvimento da personalidade e podem produzir uma tendência à
estagnação da personalidade ao longo do tempo. As autoras fazem a defesa de que a
análise desses processos subjetivos deve ser feita a partir do entendimento da
exploração do capital que aliena os sujeitos e transforma as relações de trabalho em dor
e sofrimento, tanto físico quanto psíquico.
Jesus e Costa (2017) realizaram ainda um estudo em uma comunidade virtual da
plataforma Facebook, -“Senti na Pele”- e identificaram que o racismo provoca dor,
sofrimento e, ao mesmo tempo, instiga a resistência desses grupo populacional. A partir
dos 22 relatos analisados, entre as formas de resistência,as autoras destacam que
identificaram 3, sendo elas: silenciar o sofrimento; negar o corpo e sua descendência
africana e negra e desejar embranquecer-se e, por fim, a resistência também, através da
militância em movimentos sociais, movimentos virtuais, como no caso da comunidade
“senti na pele”. No que tange à primeira categorização “silenciar o sofrimento”, as autoras
colocam que o silenciamento dos sujeitos diante de violências racistas muitas vezes é
entendido como uma forma passiva ou incontestável da população negra. No entanto,
fazem a defesa de que o silencio também expressa uma forma de resistência mais
ampla, pois o próprio ato de resistir com os corpos presentes nos espaços que, muitas
vezes foram negados à esta população, é também uma forma de luta diante do racismo.
A segunda caracterização referente à negação do corpo e o desejo de
embranquecimento, considerados um dos impactos mais profundos que o racismo
ocasiona na subjetividade de negros e negras, expressos em um processo de
internalização de valores e ideologias dominantes, fazem com que o próprio negro se
inferiorize e tente afastar de si “tudo aquilo que remete ao negro” (JESUS; COSTA, 2017,
p. 330), como, por exemplo, alisar os cabelos, se envergonhar da cultura africana, entre
outros. Observa-se que tais comportamentos individuais não são atos isolados, mas
expressam uma sociedade racista que produz personalidade e subjetividades permeadas
pela violência imposta do racismo. Assim, segundo Jesus e Costa (2017), é um duplo
processo na medida em que ao mesmo tempo em que respondem atos violentos diante
do racismo, são resultados também deste, o relato, a seguir, exemplifica isso.

701
Eu me odiava, eu odiava meu cabelo e minha pele, pois achava que eu tinha
algo errado, nunca ninguém tinha me dito que era uma pele bonita, ou que eu
deveria me orgulhar sendo eu mesmo. Minha irmã tem a pele clara, mas nossa
mãe é negra. Uma das vezes em que as chacotas e zoações eram frequentes eu
disse pra minha mãe: Eu queria ser branco igual a minha irmã, os garotos me
odeiam (...). Eu tinha delírios em querer ser branco, mas tudo isso era para
escapar disso, escapar da exclusão racial (RELATO 5 – H) (JESUS; COSTA,
2017, p. 330).

Por último, Jesus e Costa (2017) apontam a terceira forma de resistência: o


engajamento em movimentos sociais e organizações coletivas e/ações diretas contra um
ato racismo vivenciado. Os relatos demonstram que o sofrimento e a dor gerada pelo
racismo são inerentes de uma sociedade racista, a sociedade de classes, que aprisiona,
mata, humilha e adoece física e mentalmente os grupos e as populações. Um Estado que
mata, que violenta, que encarcera, que humilha, e que produz adoecimentos psíquicos e
físicos, os autores questionam: quais vidas importam?

3- CONCLUSÃO

Os achados da revisão integrativa indicam que o Serviço Social, no passar dos


anos, vem se apropriando do debate racial relacionado aos sofrimentos mentais,
principalmente ano de 2020. Percebemos que há uma leitura crítica das categorias
racismo e sofrimento mental, esta se embasa com dados e indicadores oficiais, relatos de
experiência e uma leitura bem fundamentada e coerente, utilizando de autores relevantes
dos campos da saúde mental e das relações étnico-raciais. Passos (2020), artigo 12, diz
que as formas manicomiais na sociedade de classes, como vimos nos artigos, não se
revelam apenas através dos manicômios, mas também no encarceramento em massa da
população negra, no genocídio, no âmbito do trabalho, da educação e da saúde.
Buscamos assim, com a presente revisão integrativa, promover uma análise inicial de
como a profissão vem tratando, teoricamente, o debate racial relacionado à saúde mental
dos sujeitos. Temos certo que a presente produção demonstra apontamentos iniciais que
merecem ser aprofundados em pesquisas futuras.

4- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA, M. R.; JESUS, G. L. Impactos do racismo na subjetividade de indivíduos negros.


Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea, Rio de Janeiro, v. 19, n. 41, p. 314-
335, 2ª semestre, 2017.

FERRUGEM, D. Guerra as drogas?.Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea,


Rio de Janeiro v. 18, n. 45, p. 44-54 , 1º semestre, 2020.

702
MENEGAT, M. E.; DUARTE, M. J. O.; FERREIRA, V. F. Os novos manicômios a céu
aberto: cidade, racismo e loucura. Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea,
Rio de Janeiro, v. 18, n. 45, p. 100-115, 1º semestre, 2020.

MENDES, S. M. R.; WELAG, R. Sofrimento Social e Saúde do Trabalhador. Em Pauta:


teoria social e realidade contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, n. 32, p. 131-150, 2º
semestre, 2013.
PASSOS, R. G. Mulheres Negras, sofrimento e cuidado colonial. Em Pauta: teoria social
e realidade contemporânea, Rio de Janeiro, v 18, n. 45, p. 116-129, 1ºsemestre, 2020.

PASSOS, R. G. “De escravas a cuidadoras”: invisibilidade e subalternidade das


mulheres negras na política de saúde mental brasileira. O Social em Questão, Rio de
Janeiro, n. 38, p. 77-94, mai./ago., 2017.

PASSOS, R. G.; MOREIRA, T. W. F. Reforma psiquiátrica brasileira e questão racial:


contribuições marxianas para a luta antimanicomial. Ser Social, Brasília, v. 19, n. 41, p.
265- 354, 2º semestre, 2017.

MOREIRA, T. W. F; PASSOS, R. G. Luta antimanicomial e racismo em tempos


ultraconservadores. Temporalis, Brasília, n. 36, p. 178-192, jul./dez., 2018.

ROSA, L. C.; GUIMARÃES, T. A. A. O racismo na/da política proibicionista brasileira:


redução de danos como antídoto antirracista. Em Pauta: teoria social e realidade
contemporânea, Rio de Janeiro, v.18, n.45, p. 27-43, 1º semestre, 2020.

5- ANEXOS
TABELA 1- Artigos utilizados

Nº REVISTA ANO AUTOR(A) TÍTULO

Elizete Maria Menegat,


Os novos manicômios a céu aberto:
8 Em Pauta 2020 Marco José de Oliveira Duarte e
cidade, racismo e loucura
Vanessa de Fátima Ferreira
Reforma psiquiátrica brasileira e
Rachel Gouveia Passos e
9 Ser Social 2017 questão racial: contribuições marxianas
Tales Willyan Fornazier Moreira
para a luta antimanicomial
De escravas a cuidadoras”:
O Social
Rachel Gouveia Passos invisibilidade e subalternidade das
10 em 2017
mulheres negras na política de saúde
Questão
mental brasileira
Tales Willyan Fornazier Moreira e Luta antimanicomial e racismo em
11 Temporalis 2018
Rachel Gouveia Passos tempos ultraconservadores
Mulheres Negras, sofrimento e cuidado
12 Em Pauta 2020 Rachel Gouveia Passos
colonial
Lucia Cristina dos Santos Rosa e O racismo na/da política proibicionista
13 Em Pauta 2020 Thaís de Andrade Alves brasileira: redução de danos como
Guimarães antídoto antirracista
14 Em Pauta 2020 Daniela Ferrugem Guerra as drogas?
Laís Gonçalves de Jesus; Mônica Impactos do racismo na subjetividade
15 Ser Social 2017
Rodrigues costa de indivíduos negros
Jussara Maria Rosa Mendes e Sofrimento Social e Saúde do
16 Em Pauta 2013
Rosangela Werlang Trabalhador

703
Políticas do cuidado e Sistema Prisional: Relatos de uma experiência junto a
dissidentes sexuais e de gênero em Minas Gerais

Sidnelly Aparecida de Almeida289

Márcia Lopes Ferreira290

RESUMO: O Brasil vem vivenciando um processo de


encarceramento massivo, com ascensão de um estado penal,
marcado pelo racismo, LGBTfobia, machismo, entre outros
aspectos intensificadores da exclusão social (CARVALHO, 2012).
O presente trabalho é frutos das inquietações vivenciadas na
atuação junto ao Núcleo de Atenção a Mulheres e Grupos
Específicos - NuGE+, no Departamento Penitenciário de Minas
Gerais, no ano 2021, a proposta de atuação se embasa nas
políticas do cuidado (SPADE, 2022) e nas perspectivas de
resistência a um modelo de biopoder penal instaurado nas
instituições prisionais brasileiras, onde a vida e os valores
democráticos são relegados mediante a crescente policialização
das políticas públicas.

Palavras-chave: Dissidências sexuais; gênero; biopoder; políticas


penais.

ABSTRACT: Brazil has been experiencing a process of massive


incarceration, with the rise of a penal state, marked by racism,
LGBTphobia, machismo, among other aspects that intensify social
exclusion (CARVALHO, 2012). The present work is the result of
the concerns experienced in the work with the Center for Attention

289
Analista Executivo de Defesa Social - Psicóloga, na Secretaria de Justiça e Segurança Pública de
Minas Gerais. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Juiz
de Fora - UFJF. e-mail: sidnelly.almeida@estudante.ufjf.br

290
Analista Executivo de Defesa Social - Assistente Social, na Secretaria de Justiça e Segurança Pública
de Minas Gerais. Pós-graduada em Cidadania e Direitos Humanos no contexto das Políticas Públicas pela
Pontifícia Universidade Católica - PUC/MG. e-mail: marciaas168@gmail.com

704
to Women and Specific Groups - NuGE+, in the Penitentiary
Department of Minas Gerais, in the year 2021, the action proposal
is based on care policies (SPADE, 2022) and in the perspectives
of resistance to a model of penal biopower established in Brazilian
prison institutions, where life and democratic values are relegated
through the increasing policing of public policies.

Keywords: sexual dissent; genre; biopower; penal policies.

1- INTRODUÇÃO

O Brasil possui atualmente a quarta maior população prisional do mundo,


vivenciando um processo de encarceramento massivo, impulsionado pela política de
guerra às drogas cunhada durante a ditadura militar e reforçada em 2006 pela nova
política de combate ao tráfico de drogas adotada. Diversas são as críticas ao modelo e
configurações que as políticas penais adotam, na gestão das contradições sociais,
entre as quais podemos destacar a ausência de parâmetros e critérios bem definidos na
elegibilidade do que vem a ser considerado “tráfico”, dando lugar a interpretações
subjetivas no contexto jurídico e policial (RAUTER, 2016).

É importante destacar, o contexto social no qual se desenvolvem as políticas


penais brasileiras, marcado por capitalismo dependente, onde podemos identificar a
ascensão de um Estado penal, responsável pela gestão da miséria crescente no atual
momento da acumulação capitalista Wacquant (2009). As marcas do sistema
escravagista que imperou no Brasil, imprimem sobre as políticas públicas brasileiras
contornos raciais que estruturam as instituições e reproduzem a violência em suas
diversas formas (ALMEIDA, 2019). Assim, a violência individual é atualmente o alvo
principal das políticas penais, com recorte racial, de gênero, sexual cada vez mais
latente, mascarando a violência com que as instituições insidem sobre os corpos
pobres, negros, dissidêntes sexuais e de gênero, bem como, dificultando a percepção
da violência simbólica emaranhada em nossa cultura de exclusão e culpabilização dos
marginalizados (BOURDIEU, 1997).

Em sua análise sobre a política penal norte americana, Davis (2020) nos trás
uma importante reflexão para pensarmos a realidade brasileira, o racismo estrutura a
formação cultural e as instituições no ocidente capitalista, de forma que, as instituições

705
penais se tornaram extensão e continuidade da política escravista estabelecida nas
américas. Os debates sobre interseccionalidade (AKOTIRENE, 2019) nos conduzem a
pensar a combinação de fatores sociais que corroboram para ampliar a exclusão social,
tornando assim, alguns grupos e indivíduos, vítimas de um processo de marginalização
intenso.

Carvalho (2012) apontam a marginalização dos corpos das pessoas


LGBTQIA+, corpos abjetos, alvos das mais diversas formas de violência, cooptados por
um poder biopolítico, que através da patologização do cotidiano, marca os corpos,
sexualidades e afetividades dissidentes como fora do escopo da normalidade
(FOUCAULT, 2020). A naturalização da violência contra os corpos LGBTQIA+ e
especialmente no tocante as pessoas capturadas pelo sistema penal brasileiro, tem
sido amplamente debatida, como sinaliza Ferreira (2019), Lamunier e Sander (2019)
mesmo as instituições criadas para garantir certa proteção, no seu próprio modo de
funcionamento, reproduzem a violência simbólica, institucional e individual sobre os
dissidentes sexuais e de gênero.

Minas Gerais está entre os estados pioneiros nas políticas voltadas à


LGBTQIA +, estabelecendo em 2009 a primeira ala LGBT+, regulamentando em 2013
uma política voltada à custódia de pessoas LGBT+. No entanto, a execução de uma
política penal, em instituições totalitárias (GOFFMAN, 2010) perpassadas pelo racismo,
homofobia, sexismo tão presentes na cultura deste país, apenas vem colaborando com
a violência física, psíquica e moral impressa sobre corpos dissidentes. Assim, no ano
de 2021, a pandemia escancara o cenário violento das alas LGBT+ em Minas Gerais,
onde a morte de dez pessoas LGBTQIA+ demonstra a fragilidade de uma política
segregacional, que dentro de uma dinâmica biopolítica, invisibiliza e culpabiliza os
excluídos por sua própria exclusão (SAWAIA, 2001).

O projeto no qual popularmente é denominado “apadrinhamento” surgiu no


Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto - PIEP, durante a gestão da Sra.
Márcia Lopes Ferreira, como resposta de uma necessidade iminente vivenciada por
mulheres privadas de liberdade, apartadas de seus vínculos afetivos e sociais, em
grande sofrimento psíquico. O objetivo visava promover maior dignidade às custodiadas
que se encontravam com vínculos familiares fragilizados ou rompidos, tendo inclusive a
precariedade socioeconômica agravada em decorrência de sua prisão.

706
Os limites das instituições penais brasileiras e ausência de garantia dos
mínimos necessários à dignidade humana, colocam a família como um pilar no custeio
de questões essenciais, tais como, higiene pessoal e medicamentos. Dentro deste
contexto, a ausência de vínculos familiar e social impacta a saúde mental das pessoas
privadas de liberdade e também, suas condições de subsistência dentro das instituições
prisionais. Partindo da experiência junto ao projeto na PIEP, iniciaram-se articulações
para implementação do mesmo projeto nas dependências da Penitenciária São
Joaquim de Bicas I, popularmente conhecida como Professor Jason Soares Albergaria
e que a partir de junho de 2021 passa a ser unidade exclusivamente destinada a
custódia de pessoas LGBTQIA+ no Estado de Minas Gerais.

2- DESENVOLVIMENTO

Spade (2022) nos traz a reflexão sobre a necessidade da emergência de uma


nova lógica nas relações humanas, uma lógica do cuidado, baseada nas necessidades
e no fortalecimento da afetividade humana. Ao propor uma criminologia queer, onde as
fronteiras, prisões e padrões sejam rompidos possibilitando a emergência de formas de
vivenciar o território e as relações sociais mais justas e igualitárias, Spade (2022), nos
conduz a importante reflexão sobre qual sociedade desejamos construir para
efetivamente romper com a ferocidade do capitalismo.

Dentro deste contexto, o presente projeto nasceu das demandas básicas das
pessoas LGBTQIA+ privadas de liberdade. A pandemia inviabilizou os cuidados
presenciais, dificultou os afetos e os contatos com o mundo exterior por parte das
pessoas privadas de liberdade. Tal fato, impactou de forma mais intensa e significativa,
mulheres e pessoas LGBTQIA+. Outra forma significativa para manutenção das
necessidades básicas no contexto prisional, vem das instituições religiosas, que
frequentemente assumem o papel de garantir formas de subsistência aos
encarcerados. É nessa intersecção que verificamos a fragilidade ainda maior que incide
sobre pessoas LGBTQIA+, que recorrentemente sofrem o abandono familiar e os
julgamentos religiosos (FERREIRA, 2019).

A eclosão da pandemia por COVID 19, junto ao sistema prisional intensificou as


fragilidades sociais e econômicas das pessoas privadas de liberdade, corroborando
para aumento do sofrimento psíquico entre pessoas encarceradas, o que culminou no

707
aumento significativo dos casos de automutilação e nas práticas de autoextermínio,
fatos que tornaram o Estado de Minas Gerais, alvo de uma Ação Civil Pública (Autos nº
5001703-76.2021.8.13.0301), pois segundo a Defensoria Pública de Minas Gerais, de
janeiro a setembro de 2021, somaram-se seis suicídios e vinte e uma tentativas.

Desta forma, o apadrinhamento se constituiu em importante opção para


restauração e manutenção de vínculos afetivos e sociais, numa perspectiva de
fortalecer o sentimento de pertencimento social, agregando novos olhares e
perspectivas às pessoas privadas de liberdade. O projeto parte da identificação de
pessoas da comunidade, interessadas em atuar como padrinhos/madrinhas, de
indivíduos LGBTQIA+ em privação de liberdade na Penitenciária de São Joaquim de
Bicas I. Os candidatos que manifestarem interesse deverão ser cadastrados numa
modalidade específica, on-line, tendo o cadastro aprovado, se comprometem a custear
itens básicos de higiene pessoal e na realização de visitas na modalidade virtual com
regularidade mensal, são também estimulados o envio de cartas semanais e a
realização de telefonemas de acordo com a disponibilidade da instituição prisional.

Após o cadastramento, ocorre a análise do cadastro por parte do serviço social,


do serviço de inteligência e da direção da Unidade Prisional, havendo aprovação,
deverá o nome ser encaminhado para o setor psicossocial, onde haverá escolha da
pessoa a ser apadrinhada, que segue uma listagem onde são identificados indivíduos
sem vínculos afetivos ou com vínculos fragilizados e que manifestem interesse em
participar do projeto. Havendo a escolha do padrinho e do apadrinhado, ambos deverão
ser informados e todos os passos deverão ser documentados com a frequência da
comunicação e do recebimento de itens, as regras para continuidade no projeto.

Outra frente de atuação engloba o Projeto Tio Flávio Cultural, onde diversos
parceiros realizam atividades culturais, de formação profissional e atenção psicossocial,
voltados ao fortalecimento das habilidades dos sujeitos e buscando alcançar todos os
indivíduos LGBTQIA+ privados de liberdade. Neste contexto, foram promovidos dia do
orgulho LGBTQIA+, saraus, atividades artísticas, palestras e atividades de convivência.
Um passo significativo é alcançar a participação popular, através da presença da
sociedade civil nas instituições prisionais, na busca por romper com o totalitarismo
dominante nestas modalidades de instituição (GOFFMAN, 2010).

708
3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Corroborando com Rauter (2016), nossas perspectivas englobam abrir caminhos


para construção do cuidado, tendo como pilar a liberdade. A atuação em instituições
prisionais é marcada por diversas formas de violência, por processos de subjetivação
baseados na insensibilidade e invisibilidade dos corpos, especialmente no tocante a
corpos socialmente excluídos, tomados como abjetos e fora dos padrões de normalidade
(FOUCAULT, 2020). Neste contexto, a atuação das ciências pautadas pelo modelo
clínico biomédico reproduzem a exclusão e marginalização das diferenças, atuando no
sentido de negar a pluralidade humana. Desta forma, atuar no fomento de políticas do
cuidado, que se constituam em linhas de fuga ao endurecimento destas instituições e
possibilitem formas autênticas de ser e estar no mundo é um desafio à psicologia e ao
serviço social.

Atuar junto aos seres humanos é também lidar com nossas fragilidades,
sensibilidades e necessidades. Implementar o projeto de Apadrinhamento e Participação
Social, torna-se uma estratégia potente a fim de ampliar a rede sócio-afetiva de pessoas
em privação de liberdade, como também, o fortalecimento de movimentos sociais que
possam romper com a lógica objetificante consumista instaurada pelo capital. O vínculo
afetivo e as possibilidades construtivas que perpassam pelo apadrinhamento e pelo
projeto tio Flávio cultural trazem a ideia de que as pessoas em cumprimento de pena
possam ser vistas, amparadas e afetadas por relações sinceras de troca afetiva, de modo
mais aclarado consigam evidenciar outras potencialidades e possibilidades sobre si e
sua própria reconstrução de vida e emancipação autônoma.

Pensar estratégias que ampliem o debate antiprisional junto a sociedade

brasileira, perpassa necessariamente pela necessidade em debater um outro projeto

societário. Neste contexto Wood (1999) nos provoca para atentar a essencialidade do

materialismo dialético e das reflexões Marxistas para construção de outras possibilidades

de ser, estar e se relacionar com o mundo e o outro, o necessário exercício democrático

de pensar a vida, o cuidado e as relações pela ótica inalienável da liberdade e do respeito

à dignidade humana.

709
4- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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710
Dissidências sexuais e de gênero: implicações para o exercício profissional de
assistentes sociais
Guilherme Moraes da Costa291

RESUMO:
Esta reflexão teórica busca debater a interface entre o trabalho
profissional de assistentes sociais frente aos desafios trazidos pela
população LGBTI+. Por meio de uma abordagem qualitativa, no bojo
deste debate serão elaboradas algumas considerações sobre as
demandas requisitadas pelo segmento LGBTI+ aos/as assistentes
socais. A partir dessas considerações, nos propomos a realizar uma
análise acerca dos limites e das potencialidades do exercício
profissional de assistentes sociais frente a grupos minoritários e como –
e se – o compromisso ético-político destes profissionais tem se refletido
como uma prática socialmente referenciada no acesso e garantia a
direitos deste segmento. Como estratégia metodológica, será utilizada a
pesquisa bibliográfica para atingir os objetivos propostos.

Palavras-chave: Serviço Social; LGBTI+; Direitos Humanos;

ABSTRACT
This theoretical reflection seeks to discuss the interface between the
professional work of social worker sand the challenges brought by the
LGBTI+ population. Through a qualitative approach, in them idstof this
debate, some considerations will be made about the demands
demanded by the LGBTI+ segment of social workers. Based on the
seconsiderations, we propose to reflecton the limit sand potential of the
professional practice of social workers in the face of minority groups and
how – and if – the ethical –political commitment of these professionals
has been reflected as a socially referenced practice in acces sand
guarantee the rights of this segment. As a methodological strategy,
bibliographic research will be used to achieve the proposed objectives.

Keywords: Social Work; LGBTI+; HumanRights;

1- INTRODUÇÃO
O coletivo de pessoas que compreendem as lésbicas, gays, bissexuais, travestis,
transexuais, intersexos e outros sujeitos/as que se encontram nas demais expressões
das dissidências sexuais e de gênero (LGBTI+), por força de uma convenção social e
conveniência política estão inseridas numa mesma sigla. Contudo, nesse mosaico que
aglutina esse conjunto de caracteres, cada letra possui sua especificidade que é

291Assistente Social e Jornalista. Doutorando em Serviço Social no Programa de Pós-graduação em Serviço


social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Serviço Social e Políticas Sociais
pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. Assistente Social na empresa SANASA Campinas. E-
mail: guilhermemoraesdacosta@gmail.com

711
atravessada por marcadores sociais como sexo, gênero, orientação sexual, identidade de
gênero, expressão de gênero, entre outros, como raça/etnia e classe social.
Quando o/a assistente social se depara no seu exercício profissional com alguém
deste segmento, é esperado deste/a profissional que este/a esteja instrumentalizado/a
para compreender as subjetividades desta população e assim evitar a propagação de
situações que envolvam preconceito e discriminação em razão de orientação sexual,
identidade de gênero e/ou expressão de gênero dissonante da norma cis-heterossexual.
Para Rich (1980) a heterossexualidade obrigatória funciona como uma
instituição. Wittig (2005) vai além e considera como um regime político baseado
na submissão e apropriação das mulheres. Para Preciado (2003) o aparato
social que constrói o feminino e o masculino a partir da divisão e segmentação
do corpo, para depois considerar esses fragmentos como eixos naturais e
antagônicos da diferença sexual é o sistema heterossexual.
Pode-se acrescentar que a heteronormatividade sexista e etnocêntrica concebida
como a opressão e a discriminação contra todas as pessoas ou identidades que
se situam fora, na situação de exclusão e desigualdades sociais em razão de
sexo, classe, idade, etnia, etc. (GARCIA, 2017, p. 70-71).

Nesta sociabilidade, os/as assistentes sociais têm como objeto de trabalho as


manifestações da chamada questão social. A raiz deste conceito se explica na
desigualdade produzida pela produção coletiva em contraponto à apropriação privada
dos bens de produção, uma relação de intrínseca contradição para a manutenção do
capitalismo enquanto ordem vigente.
O desenvolvimento capitalista produz, compulsoriamente, a “questão social”;
esta não é uma sequela adjetiva ou transitória do regime do capital: sua
existência e suas manifestações são indissociáveis da dinâmica específica do
capital, tornado potência social dominante. A “questão social” é constitutiva do
desenvolvimento do capitalismo (NETTO, p.45, 2001).

De acordo com Iamamoto (2019), o serviço social é uma profissão cuja


característica é ser uma especialização do trabalho em sociedade. Bem como, está
inscrita na divisão sociotécnica do trabalho e atua realizando mediações no processo de
produção e reprodução das relações sociais no âmbito do sistema capitalista. Assistentes
sociais desenvolvem seu trabalho profissional em espaços sócio-ocupacionais no âmbito
do Estado, do terceiro setor ou mesmo na iniciativa privada, onde as manifestações da
questão social se fazem presentes e exigem respostas qualificadas destes/as
profissionais frente às necessidades da população que demanda sua intervenção.
Não reconhecer essa realidade significa desconsiderar um fato concreto: a
existência de uma sociedade marcada pela luta de classes e, portanto, por
posições sociais antagônicas que interagem concretamente e formulam
alternativas que também se expressam no âmbito da das profissões. Produzem e
reproduzem, ao mesmo tempo, orientações (teórico-políticas) com um perfil mais
ou menos contestador e/ou subserviente ao capital, com variações nada
desprezíveis, que se aproximam ou se distanciam, não homogeneamente, de um
ou a outro polo, reproduzindo variações complexas compostas por múltiplas
posições e alternativas (SILVA, p. 155, 2016).

712
Silva (2016) está fazendo referência ao legado do movimento de reconceituação,
todavia, consideramos que quando ampliamos esta discussão no interior da profissão,
incorporando estes marcadores sociais impostos a população LGBTI+, há a necessidade
de uma intervenção qualificada por parte de assistentes sociais. Assim, o propósito desta
reflexão é debater os desafios trazidos pela população LGBTI+ para o exercício
profissional desta categoria, assim como, traremos indicativos de como melhor conduzir
essas situações.
Há uma discussão sobre as demandas deste segmento nas entidades da
categoria292, todavia, esta reflexão não avançará para estas questões, tendo em vista que
nossa proposta é explicitar quais os marcadores sociais que assistentes sociais devem
se atentar no atendimento às demandas da população LGBTI+.A partir disso,
discutiremos brevemente o serviço social e em sequência os meandros das dissidências
sexuais e de gênero, talqual as implicações de suas especificidades para o trabalho
profissional socialmente referenciado desta categoria profissional.
Ressaltamos que como objetivo último, não temos a menor pretensão de esgotar
este debate, mas sim fornecer elementos que permitam ampliar a discussão e fomentar
reflexões que enriqueçam o trabalho profissional com esse segmento populacional.

2- DESENVOLVIMENTO

A atual quadra histórica é desafiadora. Desde o golpe jurídico, midiático e


parlamentar de 2016, a orientação na condução neoliberal do Estado brasileiro se fez
presente de forma mais latente, repercutindo diretamente sobre a classe trabalhadora,
que tem experenciado uma recorrente perda de direitos, fato concretizado pelas
Reformas Trabalhista e da Previdência. Associado a isso, em 2019 a extrema direita
chegou ao poder pelo voto popular. O presidente Jair Bolsonaro encarna o que há de pior
em termos de condução política e representa o atraso nos mais diversos aspectos,
político, econômico, humano, ambiental, etc.
No tempo presente, outro fator a ser destacado é a pandemia, causada pelo vírus
da covid-19, que desde sua chegada ao país em fevereiro de 2020, dizimou quase 700
mil brasileiros e agudizou ainda mais diversas manifestações da questão social. No início

292O Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), tem realizado uma ação pedagógica junto à categoria por
meio da promulgação de resoluções que tratam direta ou indiretamente desta temática, como o Código de
Ética Profissional e Resoluções 489/2006, 594/2011, 615/2011, 785/2016 e 845/2018. Em 2010, a
Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) criou o Grupo Temático de
Pesquisa (GTP) Serviço Social, Relações de Exploração/Opressão de Gênero, Feminismos, Raça/Etnia e
Sexualidades.

713
da pandemia, onde até então não existiam medidas farmacológicas eficientes, a solução
encontrada para evitar a crescente de contágios e mortes foi o distanciamento social,
medida que impactou especialmente aqueles que exerciam atividades laborativas
informais, sem a garantia de proteção social do Estado. Até houve um auxílio
emergencial por parte do Governo Federal, que durou pouco e quando foi repaginado, o
valor pago diminuiu e menos pessoas foram beneficiados. Empurrados para morte pela
fome ou pelo medo de contágio do vírus, a classe trabalhadora foi a mais afetada,
Antunes (2020).
Ainda em fevereiro do presente ano, a Rússia invadiu a Ucrânia, o que além de
causar a destruição do país europeu, gerou um significativo aumento no número de
refugiados e trouxe como uma das principais consequências a perda de vidas inocentes.
Uma consequência direta disso é o fenômeno da oscilação no preço das commodities,
em especial o petróleo. Considerando a política de preços da Petrobrás, que atrela o
valor do barril do petróleo ao cobrado no mercado internacional, fixado na moeda
estadunidense, a empresa tem imposto aos brasileiros sucessivos aumentos de preços
nos combustíveis e no gás de cozinha, o que têm feito a inflação disparar, atingindo
especialmente a parcela mais pauperizada da classe que vive do trabalho, Almeida
(2022).
É nessa quadra histórica que que assistentes sociais desenvolvem seu trabalho
profissional. Seu exercício profissional está condicionado a um empregador e
costumeiramente há o excesso de demandas, nas quais, a depender de sua gravidade e
da urgência das situações apresentadas, pode empurrar os/as profissionais para uma
atuação meramente “tarefeira”.
O fazer profissional de assistentes sociais é técnico e operativo, analítico e
interventivo, ou seja, está em constante movimento. Embora a atuação profissional
destes/as se dê sobre as manifestações da questão social, não são elas que demandam
a sua atenção. A atuação não é com a fome, a miséria, o desemprego ou a violência.
Mas sim com as pessoas que são vitimadas por estes fenômenos. Pelo reconhecimento
social que a profissão conquistou em seus quase 90 anos de história no país, quem
procura por esse tipo de atendimento se sente à vontade para contar sua história, abrir
sua vida, seus segredos, seus sonhos, sua intimidade. As relações sociais que geram
sua intervenção são condicionadas pela ordem vigente do capital, de maneira que este
fator não pode ser ignorado.
Neste contexto, o cotidiano pode ser uma armadilha e favorecer a ação “tarefeira”.
Ao deixar se enredar pela rotina, o/a assistente social pode automatizar o seu fazer

714
profissional e deixar de realizar importantes mediações de acordo com quem lhe
demanda atendimento. Cada pessoa é única, cada história é singular, por mais que as
condicionalidades da vida concreta lhe imprimam características semelhantes àde tantos
outros. É nesse sentido que alertamos para a necessidade de que assistentes sociais se
apropriem e compreendam as particularidades da população LGBTI+ e atuem como
sujeitos/as luta contra a LGBTfobia.
Sobre a trama do cotidiano, Heller (2014) trata do preconceito explicando que
esse fenômeno possui uma função na sociedade. No dia-a-dia não é factível parar para
pensar em todo e qualquer movimento/ação que executamos, por isso, nos servimos da
ultra generalização, o que implica em juízos provisórios sobre praticamente tudo, uma
vez que o cotidiano é o espaço privilegiado do imediatismo. Na base do preconceito há
também um caráter emocional, o que eventualmente implica em dificuldades na sua
superação. Todavia, no horizonte da direção social que o serviço social se propõe, não
há espaço para esse tipo de apego, sendo exigido destes profissionais, conforme o 5º
princípio do Código de Ética do/a Assistente Social: “Empenho na eliminação de todas as
formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos
socialmente discriminados e à discussão das diferenças”.
Para compreender o que estamos chamando de dissidências sexuais e de
gênero, abordaremos conceitos chave como sexo, gênero, orientação sexual, binarismo
de gênero, cisgerenidade, transexualidade, expressão de gênero e LGBTfobia.
Quando a pessoa nasce, de acordo com a genitália que se apresenta, lhe é
designado um sexo: fêmea ou macho. Junto a essas determinações estão inseridas uma
série de expectativas de como essas pessoas devem se comportar, vestir, falar, quais
brincadeiras lhe são permitidas, quais profissões que devem desempenhar baseado nos
signos associados ao feminino e ao masculino.Reforçando a lógica do sistema
sexo/gênero, ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, disse
logo no início do governo Bolsonaro: “Menino veste azul e menina veste rosa”. Assim,
estes estereótipos determinados a partir de genitálias definem os lugares sociais e as
posições que essas pessoas vão se localizar ao longo da vida.
No senso comum sexo e gênero são conceitos que podem se confundir,
entretanto não são a mesma coisa. Enquanto sexo faz referência o campo biológico e é
determinado ao nascer, gênero é uma construção social, pois, para a melhor
compreensão deste conceito é preciso ter em mente também suas dimensões histórica,
cultural e política. A manutenção do binômio sexo/gênero serve como alicerce para a
divisão sexual do trabalho que não tem outra serventia a não ser a subalternização das

715
mulheres frente aos homens visando a reprodução social que levaao lucro e a
perpetuação do capitalismo via patriarcado, sexismo e dominação masculina.
Se os imperativos biológicos e hormonais fossem tão assoberbantes quanto quer
a mitologia popular, a interdependência econômica não seria necessária para
garantir uniões heterossexuais. Ademais, o tabu do incesto pressupõe a
existência de um tabu anterior, menos explícito, sobre a homossexualidade. A
proibição de determinadas uniões não heterossexuais. O gênero não é apenas
uma identificação com um sexo; ele também implica que o desejo sexual se dirija
ao outro sexo. A divisão sexual do trabalho entra em jogo com respeito ambos os
aspectos de gênero – ela cria homens e mulheres, e os cria como
heterossexuais. A supressão do componente homossexual da sexualidade
humana e seu corolário, a opressão dos homossexuais, são, portanto, produto
do mesmo sistema cujas regras oprimem as mulheres (RUBIN, 2017, p. 32).

Os marcadores sociais sobre sexo e gênero não atingem unicamente às pessoas


LGBTI+, mas sim a todo conjunto da sociedade. Mas a divisão do mundo em dois únicos
gêneros reforça a lógica biologiscista, heteronormativa e cisgênera.
No campo da orientação sexual, a heterossexualidade é a norma. A
heterossexualidade é um elemento constitutivo e estrutural da sociedade brasileira, por
isso, nos referimos a ela como heterossexualidade compulsória. É o padrão desejado e
pelo qual todos/as são presumidos/as ao nascer, bem como são socializados desta forma
ao longo de suas vidas. Seguindo esta lógica, as demais orientações sexuais são
hierarquizadas, apequenadas, tidas como desviantes, colocadas à margem e passíveis
de readequação ao padrão heteronormativo.
No entanto, há outras formas de vivenciar a sexualidade que não somente o
desejo e o afeto pelo sexo oposto. Os homossexuais – lésbicas e gays – manifestam seu
interesse sexual e seu afeto por pessoas do mesmo sexo. Bissexuais são pessoas que
sentem atração afetiva e sexual por ambos os sexos. Assexuais são pessoas que não
necessariamente possuem o interesse sexual por outra pessoa, mas permanece o
interesse romântico. Portanto, é necessário ter em patamar de igualdade todas as
orientações sexuais, o que implica, por exemplo, na compreensão de novos arranjos
familiares para além do tradicional comercial de margarina, assim como que os papéis
definidos nas relações heterossexuais não se aplicam à essa realidade.
Quando falamos de identidade de gênero, este é um conceito que precisa ser
apreendido como universal. Todas as pessoas têm uma identidade de gênero. Refere-se
ao sentimento de pertença, da autoimagem, de como a pessoa se vê e como quer ser
reconhecida no mundo.
As identidades de gênero também são produzidas histórica e socialmente, por
isso não é algo somente sobre “como as pessoas se sentem”, mas também
sobre “como elas são interpretadas socialmente”. As sociedades e culturas
constroem as suas ordens de gênero de maneiras distintas, o que significa que
haverá identidades transgênero (ou identidades trans, como forma de abreviar o
termo) específicas de cada sociedade. No Brasil condicionou-se especificar as

716
identidades trans através de categorias “travesti” e “transexual”, que possuem
diferenças discursivas, geográficas, históricas e sociais (FERREIRA, 2018, p.
32).

Pessoas trans se rebatizam e escolhem o nome que melhor lhes representa. É


dever ético do/a assistente social respeitar o nome social no atendimento, no prontuário,
ao telefone ou em qualquer forma de comunicação que seja.
Essa sociabilidade está alicerçada num CIS-tema heteronormativo. O CIS-tema
pressupõe o mundo dividido entre macho e fêmea a partir do sexo anatômico. Mas há
pessoas que não se identificam com essas características e recusam ser associadas ao
que se espera do comportamento associado ao feminino e ao masculino, que são
indivíduos não-binários.
A expressão de gênero está associada à performance. Como descrito acima, há o
esperado por ser homem e ser mulher, expresso em códigos, vestimentas, cortes de
cabelos, a voz, comportamentos. Pessoas não binárias não se enxergam diretamente
associadas a um gênero ou mesmo performam os dois em diversos momentos de suas
existências.
Rompendo com o binarismo de gênero, há novas expressões que estão
ganhando o cotidiano, como pessoas que menstruam, pessoas que gestam, pois há
homens transexuais que passam por essas experiências, descolando essas vivências da
associação automática ao feminino.
O CIS-tema heteronormativo estrutura a nossa sociedade. Assim, quem não se
encaixa nestes parâmetros é passível de ser reordenado. Há muitos preconceitos que
estruturam essa sociabilidade, como o patriarcado, o racismo e a LGBTfobia, que
encarna o preconceito e a discriminação contra as pessoas LGBTI+. Estatisticamente o
Brasil é o país que mais mata essas pessoas no mundo e no escopo da atuação
profissional de assistentes sociais, esta prática pode levar em cerceamento da liberdade,
policiamento de comportamentos e prejuízo no acesso a direitos e às políticas sociais nas
quais estes profissionais estejam à frente.
Uma postura crítico-propositiva frente às demandas que se apresentam para o/a
assistente social na interface com a população LGBTI+ vai demandar destes/as
profissionais a) o reconhecimento das particularidades deste segmento populacional; b)
rompimento com a estrutura hetero-patriarcal-cisnormativa; c) compromisso ético-político
assegurado pela direção social almejada pelo projeto hegemônico na categoria.

717
3. CONCLUSÃO

Estar atentos/as a estes marcadores sociais da diferença no que se refere as


pessoas LGBTI+ qualifica o exercício profissional de assistentes sociais na direção
societária socialmente referenciada defendida hegemonicamente por esta categoria
profissional. Conforme Santos (2013), o serviço social possui três dimensões: ético-
política, teórico-metodológica e técnico-operativa. A apreensão destes marcadores
sociais exige apropriação teórico metodológica que irá embasar o técnico-operativo e isso
se refletirá na dimensão ético-política, numa relação intrínseca e dialética.
O trabalho profissional de assistentes sociais deve orientar-se para superação de
uma cultura histórica do pragmatismo e de ações improvisadas, de controle e
disciplinarização de condutas, de reprodução de posturas conservadoras,
moralizadoras e preconceituosas frente aos diferentes grupos com os quais
trabalham: mulheres, comunidades LGBTI, jovens negros e negras moradores/as
das periferias das cidades, rompendo com visões que naturalizam ou
criminalizam a pobreza e com as variadas formas de discriminação, violência e
violação de direitos da classe trabalhadora, sobretudo seus grupos mais
subalternizados (DEGENSZAJN, 2020, p. 38).

Quando do seu exercício profissional, o/a assistente social é convidado/a a


reinterpretar suas atribuições e competências de modo que estas estejam à serviço da
população que requisita/demanda sua intervenção. Neste sentido, a categoria é chamada
a refletir sobre os alicerces dessa sociabilidade, como o sistema sexo/gênero, a
heteronormatividade, a cisnormatividade e refletir criticamente na direção de garantir a
todos e todas o tratamento mais respeitoso possível, incluindo todas as especificidades
da população LGBTI+.

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719
ufjf.br/facssocial/vii-seminario-internacional/

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