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Filosofia da

Educação

Organizadores
Tarcísio Jorge Santos Pinto
Marcus Vinicius da Cunha

Educação em Foco

Juiz de Fora – MG - Brasil

ISSN: 0104-3293

Julho 2015 /
Ed. Foco Juiz de Fora V.20 n.2 p. 01-345
Outubro 2015
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Mayara Helena Alvim
Arte e Diagramação da Capa
Carolina Cerqueira Revisão Geral
Henrique de Abreu Oliveira Bedetti Thenner Freitas da Cunha
Indexadores
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http://ibict.br/comut/htm
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www.bve.cibec.inep.gov.br
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www.latindex.unam.mx
Ficha Catalográfica
Educação em Foco : revista de educação / Universidade Federal de Juiz de Fora,
Faculdade de Educação, Centro
Pedagógico – Vol. 20, n.2 (mar./jun. 2015) – Juiz de Fora : EDUFJF, 2015
345 p.
Quadrimestral
Disponível em: http://www.ufjf.br/revistaedufoco/

ISSN 0104-3293

1. Educação - Periódicos. I. Universidade Federal de Juiz de Fora. Faculdade de


Educação. Centro Pedagógico.
CDU 37
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Educação em Foco – ISSN 0104-3293
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Sumário
Apresentação........................................................................ 9

Eixo Temático

A (TRANS) formação humana na perspectiva foucaultiana:


interpelações à educação escolar e à docência na atualidade..... 15
Pedro Angelo Pagni

Intersubjetividade e Educação: O Estatuto do Olhar


nas Relações Educativas. Uma Reflexão a partir da
fenomenologia existencial de Sartre.................................... 45
Márcio Danelon
Problemas e Desafios para a Produção do Conhecimento em
Educação: Fundamentos Filosóficos................................... 71
Samuel Mendonça

Filosofia da Educação, Exercícios Espirituais e Arte de


Existência........................................................................... 95
Andrea Díaz Genis
Sílvio Gallo

La Bildung de Simón Bolívar. Notas Preliminares............. 115


Gregorio Valera Villegas

Montaigne: filosofia e educação para a vida...................... 147


Márcio Silveira Lemgruber

Gênese da confiança e educação para o “estar junto”......... 169


Hubert Vincent

Razão e Educação Política: Crítica de um Fragmento da


Ideologia Liberal............................................................... 195
Ralph Ings Bannell

Filosofia e Educação em Bergson...................................... 231


Tarcísio Jorge Santos Pinto
Experiência e afeto em Dewey: uma conexão orgânica........ 251
Marcus Vinicius da Cunha

Outras Contribuições

“Currículo e Cultura” ou sobre a formação de professores nos


cursos de pedagogia.......................................................... 269
Geysa Spitz A. de Abreu
Jilvania Lima dos S. Bazzo

Docência Universitária a Distância: Um Estudo sobre


o Processo de Ensino-Aprendizagem na Modalidade
Semipresencial.................................................................. 289
Walteno Martins Parreira Júnior
Silvana Malusá
Guilherme Saramargo de Oliveira

Resenhas

Conversas: História do Currículo e da História da Educação........ 317


Douglas Tomácio Lopes Monteiro

Autores............................................................................. 329
Summary

Presentation...................................................................... 7

Eixo Temático

The human (trans)formation in the Foucault’s perspective:


interpellations to school education and teaching in the actuality..... 15
Pedro Angelo Pagni

Intersubjectivity and education: status of the looks in


educational relations. A reflection based upon Sartre’s
existential phenomenology................................................. 45
Márcio Danelon

Problems and challenges for production of knowledge in


education: philosophical fundamentals............................... 71
Samuel Mendonça

Philosophy of Education, spiritual exercises and art of


existence............................................................................. 95
Andrea Díaz Genis
Sílvio Gallo

The bildung of Simón Bolívar. Preliminary notes............. 115


Gregorio Valera Villegas

Montaigne: philosophy and education for life.................. 147


Márcio Silveira Lemgruber

Genesis of trust and education for the “being together”.... 169


Hubert Vincent
Reason and political education: a critique of a fragment of liberal
ideology.............................................................................195
Ralph Ings Bannell
Philosophy and education in Bergson............................... 231
Tarcísio Jorge Santos Pinto

Experience and emotion in Dewey: an organic connection....... 251


Marcus Vinicius da Cunha

Outras Contribuições

“Curriculum and culture" or the teacher training in


pedagogy undergraduate courses....................................... 269
Geysa Spitz Alcoforado de Abreu
Jilvania Lima dos Santos Bazzo

University distance teaching: a study on the teaching and


learning process in semipresential modality.......................... 289
Walteno Martins Parreira Júnior
Silvana Malusá
Guilherme Saramargo de Oliveira

Resenhas

Conversations: History Curriculum and Education History ..... 317


Douglas Tomácio Lopes Monteiro

Autores............................................................................. 329
Apresentação
Filosofia da Educação
É com grande satisfação que concluímos esta edição
temática especial, primeira edição de Filosofia da Educação
da revista Educação em Foco, que vem se consolidando como
uma das principais revistas qualificadas da área no Brasil e
que, gradativamente, vem aumentando seu reconhecimento
internacional. A publicação desta edição coincide com a
ampliação da área da Filosofia da Educação na FACED/UFJF
através da nomeação de novos professores nos últimos anos, o
que vem permitindo o enriquecimento da docência, da pesquisa
e da extensão neste campo, envolvendo mais estudantes e
professores em torno do estudo e do debate filosóficos e
filosófico-educacionais. Tudo isto tem possibilitado também o
fortalecimento de laços acadêmicos com colegas do campo da
Filosofia da Educação do Brasil e do exterior, laços estes que
ultimamente vêm gerando frutos significativos. Um primeiro
exemplo disto se manifesta nesta própria edição temática
que concretiza uma parceria entre a Faculdade de Educação
da UFJF e o Departamento de Educação, Informação e
Comunicação da USP de Ribeirão Preto por intermédio
dos dois professores que assinam a sua organização. Outro
exemplo pode ser associado à estruturação, há pouco tempo
compartilhada, entre professores da FACED/UFJF e da
UNESP de Marília, da 5ª edição do Simpósio Internacional
em Educação e Filosofia – V SIEF, que reuniu mais de 120
apresentações de trabalhos, contou com a participação de mais
de 250 pessoas e recebeu professores e pesquisadores brasileiros
e estrangeiros já reconhecidos na área.
Acreditamos que esta edição temática vem se acrescentar Educ. foco,
Juiz de Fora,
às iniciativas para o desenvolvimento da Filosofia da Educação, v. 20, n. 2,
p. 9-12,
sobretudo por poder divulgar trabalhos que certamente 9 jul. 2015 / out. 2015
poderão servir de referências para os estudos e pesquisas não
só aqui no Brasil, mas em todo o mundo.
Em síntese, esta edição temática se divide em dois
volumes que trazem um conjunto de textos relativos à
Filosofia da Educação, área de conhecimento considerada
essencial à prática pedagógica. Nos cursos de formação
de professores, a Filosofia da Educação integra o rol das
disciplinas de fundamentos, o que exprime a noção de alicerce
ou base, destinando-se, consequentemente, a conferir solidez
à construção da identidade docente. Embora a separação entre
saberes fundamentais e práticos seja questionável, é inegável
que as qualificações tradicionalmente atribuídas à Filosofia
da Educação transportam uma expectativa histórica: que os
conteúdos dessa área ofereçam sustentação, consistência e,
quiçá, solução para o enfrentamento dos problemas inerentes
ao fenômeno educacional. Essa expectativa pode ser
bem acolhida se posicionarmos sustentação e consistência no
campo dos recursos intelectuais próprios do labor filosófico,
e desvincularmos a palavra solução do terreno das fórmulas
prontas. Fórmulas que, diga-se de passagem, têm sido
frequentemente oferecidas por diversos autores empenhados
em dar à Filosofia feições menos complexas, em troca de sua
popularização.
Nesta edição temática da Educação em Foco, o leitor não
encontrará fórmulas, mas terá a oportunidade de conhecer
renomados pesquisadores brasileiros e estrangeiros discutindo
a educação, sob variadas perspectivas filosóficas, com o intuito
de oferecer alternativas para que a Filosofia figure de modo
significativo no rol dos fundamentos da Educação.
Os trabalhos que compõem os volumes desta edição
distribuem-se em dois agrupamentos temáticos. O primeiro busca
Educ. foco, compreender o status da Filosofia da Educação como área ou
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, campo disciplinar. O segundo focaliza contribuições individuais
p. 9-12,
jul. 2015 / out. 2015 10 de pensadores que participam na composição da referida área.
Integram o primeiro conjunto os seguintes autores e
respectivos textos: Antônio Joaquim Severino (Do estatuto
epistemológico da Filosofia da Educação: o embate entre reflexão
e criação de conceitos); Marisa Meza Pardo (¿Cómo podemos
comprender la Filosofía de la Educación?); Jim Garrison
(Individualidade e igualdade como chaves para a democracia
criativa); Tarso Mazzotti (Retórica, a ciência da educação);
Alfredo Veiga-Neto (Anotações sobre as relações entre teoria e
prática); Maximiliano Valerio López (Habitar poeticamente a
educação: notas sobre a relação entre potência e temporalidade);
Walter Omar Kohan (Um exercício que faz escola: notas para
pensar a investigação educacional a partir de uma experiência de
formação no Rio de Janeiro).
No segundo conjunto, temos os seguintes autores e
respectivos textos: Pedro Angelo Pagni (A (trans)formação
humana na perspectiva foucaultiana: interpelações à educação
escolar e à docência na atualidade); Márcio Danelon
(Intersubjetividade e educação: o estatuto do olhar nas relações
educativas. Uma reflexão a partir da fenomenologia existencial de
Sartre); Samuel Mendonça (Problemas e desafios para a produção
do conhecimento em educação: fundamentos filosóficos); Andrea
Díaz Genis e Sílvio Gallo (Filosofia da Educação, exercícios
espirituais e arte de existência); Gregorio Valera-Villegas (La
bildung de Simón Bolívar. Notas preliminares); Márcio Silveira
Lemgruber (Montaigne: filosofia e educação para a vida);
Hubert Vincent (Gênese da confiança e educação para o “estar
junto”); Ralph Ings Bannell (Razão e Educação Política de um
fragmento da ideologia liberal); Tarcísio Jorge Santos Pinto
(Filosofia e educação em Bergson); Marcus Vinicius da Cunha
(Experiência e afeto em Dewey: uma conexão orgânica).
Agradecemos mais uma vez a todos os colegas que
aceitaram com entusiasmo compor conosco este número
temático e a todos aqueles que, direta ou indiretamente, Educ. foco,
Juiz de Fora,
contribuíram para que ele fosse organizado e finalizado, v. 20, n. 2,
p. 9-12,
especialmente aos Profs. Drs. Marlos Bessa Mendes da Rocha e 11 jul. 2015 / out. 2015
Jader Janer Moreira Lopes, ex editor-chefe e atual editor-chefe
da revista, respectivamente, pelo acolhimento e viabilização da
proposta; ao Prof. Dr. Aimberê Quintiliano Rocha do Amaral,
editor da revista e responsável pela versão digitalizada da edição;
à Profa. Ms. Jane Aparecida Gonçalves de Souza, ex secretária
da revista, pelo apoio permanente; ao Prof. Dimitri Diniz da
Costa, que nos auxiliou na revisão normativa dos textos.
Finalmente, desejamos que esta coletânea possa de fato
trazer perspectivas interessantes e importantes para a reflexão
da Educação, relacionadas a diferentes dimensões de sua
experiência.
Tarcísio Jorge Santos Pinto e Marcus Vinicius da Cunha
Eixo Temático
A (TRANS) FORMAÇÃO A (TRANS) formação
humana na perspectiva
foucaultiana:
interpelações à

HUMANA NA PERSPECTIVA educação escolar e à


docência na atualidade

FOUCAULTIANA: INTERPELAÇÕES
À EDUCAÇÃO ESCOLAR E À
DOCÊNCIA NA ATUALIDADE
Pedro Angelo Pagni 1

Resumo
O tema da formação humana vem sendo objeto de uma
longa discussão no âmbito dos estudos em Filosofia da
Educação. O presente artigo procura abordar esse tema a
partir do pensamento de Michel Foucault e, ao privilegiar essa
perspectiva teórica, apresentar uma de suas faces mais radicais,
objetivando vistas a discutir as possibilidades da restituição
do sentido formativo da educação escolar e da docência na
atualidade. Para isso, recorremos à obra e aos últimos cursos
desse filósofo, particularmente, ao momento em que articula
sua ontologia crítica à estética da existência, ao seu retorno aos
gregos para problematizar no presente a filosofia e a pedagogia
e aos conceitos em torno dos quais sustenta o que chama de
pragmática de si. Dessa forma, procuramos contribuir para
o atual debate sobre o assunto, no campo da Filosofia da
Educação, e para uma reflexão acerca das possibilidades do
sentido (trans)formativo da educação escolar, no presente.

Palavras-chave: Formação humana; Michel Foucault; Arte


de viver; Psicagogia; Educação escolar.

1 Pedro Angelo Pagni é professor adjunto do Departamento de Administração


e Supervisão Escolar e do programa de Pós-graduação em Educação da Educ. foco,
Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, Campus de Marília. Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 15-44,
E-mail: pagni@terra.com.br 15 jul. 2015 / out. 2015
Pedro Angelo Pagni
Abstract
The theme of human formation has been object of a
long discussion within the framework of the studies in
the philosophy of education. This article seeks to address
this theme from the thought of Michel Foucault and, by
favoring this theoretical perspective, to present one of his
faces more radical, aiming to discuss the possibilities of the
refund of the formation of school education and sense of
teaching today. For that, we turn to the work and the last
courses of this philosopher, particularly at the moment in
which articulates its critical ontology aesthetics of existence,
to his return to the Greeks to discuss in this philosophy and
pedagogy and the concepts around which maintains what it
calls himself pragmatic. In this way, we seek to contribute to
the current debate on the subject in the field of philosophy
of education, and a reflection on the possibilities of meaning
(trans) formation of school education, in the present.

Keywords: Human formation; Michel Foucault; Art of


living; Psicagogía; School education.

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 15-44,
jul. 2015 / out. 2015 16
A (TRANS)FORMAÇÃO A (TRANS) formação
humana na perspectiva
foucaultiana:
interpelações à

HUMANA NA PERSPECTIVA educação escolar e à


docência na atualidade

FOUCAULTIANA: INTERPELAÇÕES
À EDUCAÇÃO ESCOLAR E À
DOCÊNCIA NA ATUALIDADE
A formação humana tem sido um tema corrente nos
estudos em Filosofia da Educação em nosso país. O que
tem potencializado a sua discussão mais recente, além das
preocupações presentes, são as possibilidades de pensá-lo a
partir de diversas perspectivas da Filosofia Contemporânea. Ao
meu julgamento, nesse debate, nenhuma perspectiva filosófica
parece ter sido mais radical ao pensá-lo do que aquela que, em
busca da transformação de si, postula um modo de fazer da
própria existência uma obra de arte.
Essa perspectiva inaugurada por Nietzsche teve, na
contemporaneidade, o seu delineamento, dentre outros, nas
primeiras obras de Gilles Deleuze e, principalmente, nas
últimas obras de Michel Foucault. Diferentemente de outros
filósofos contemporâneos, o problema desses dois últimos
filósofos ou o modo como problematizam o empobrecimento
da experiência formativa e a destituição da vida no cenário
biopolítico atual, é distinto, inclusive, entre eles. Em virtude
dos limites deste artigo, não me aterei a explicitar essas
diferenças, tampouco em aprofundar o pensamento de cada
um desses filósofos, mas privilegiar o pensamento de Foucault
de modo a propor um recorte de seus últimos livros e cursos
e uma interpretação sobre uma perspectiva que almejaria
uma reversão do olhar sobre a formação humana e que
poderia interpelar no presente as práticas compreendidas pela
educação escolar. Este é objetivo específico deste artigo que,
Educ. foco,
em um plano mais amplo, procura contribuir para elucidar o Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 15-44,
modo como essa perspectiva teórica aborda esse tema e para 17 jul. 2015 / out. 2015
Pedro Angelo Pagni
o debate produzido no campo da Filosofia da Educação, nos
últimos anos, no Brasil.
Para tais propósitos, no primeiro momento deste
artigo, analiso o modo como esse filósofo francês concebe a
relação entre a sua ontologia crítica e a estética da existência,
de modo a evidenciar em que pressupostos sustentam a
sua concepção de vida como obra de arte. Em seguida,
ao analisar tal concepção formativa a partir das noções de
subjetivação e experimentação, reconstituo brevemente a
importância que esse filósofo concede à filosofia como arte
de viver e a psicagogía como contrapontos às filosofias e
pedagogias modernas, respectivamente, problematizando
as formas como aquela disciplina e essa arte constituiu no
presente. Discuto algumas interpelações à educação escolar
e à atividade docente, por fim, que poderiam advir a partir
da interpretação da parresía e, sobretudo, da pragmática de
si na experiência da antiguidade greco-romana desenvolvidas
por Foucault, levantando algumas questões para que sejam
pensadas pelos educadores na atualidade e contribuam para
certo deslocamento do debate sobre a temática da formação
no campo da Filosofia da Educação.
DA ONTOLOGIA CRÍTICA À ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA: A
VIDA COMO OBRA DE ARTE

Ao retomar o ensaio de Kant sobre o iluminismo,


Foucault (2000, p. 174) procura fazê-lo em defasagem ao
projeto elaborado na Crítica da Razão Pura, argumentando
que a Aufklärung evocaria um apelo à coragem, uma atitude,
necessária para se sair da autoinculpável menoridade. Se,
no projeto crítico kantiano, o apelo à coragem é modulado
pela obediência, pelo respeito à autoridade instituída e à
proposição de outra arte de governo, superior, porque regida
por um ideal verdadeiro e por uma moral transcendental,
nesse ensaio, comenta ele, a sua indicação é a de que a
Educ. foco,
Juiz de Fora, Aufklärung se aproximaria de uma atitude crítica em relação
v. 20, n. 2, p. 15-44,
jul. 2015 / out. 2015 18 ao presente. Ao propor um não ser governado do modo até
então existente, no século XVIII, Kant teria se colocado A (TRANS) formação
humana na perspectiva
foucaultiana:
em questão, como seu elemento e ator de um processo interpelações à
educação escolar e à
histórico, como sujeito, enfim, que problematiza o presente, docência na atualidade

interrogando o seu tempo e a si mesmo sobre o seu próprio


esclarecimento, redefinindo esse movimento acerca do objeto
da reflexão do filósofo e da crítica filosófica. Para ele, esse
problema não teria sido esquecido por Kant, a ponto de ser
retomado em O Conflito das Faculdades (1798), em que se
pergunta: “O que é revolução?”. Se o texto sobre a Aufklärung
teria lhe permitido inaugurar um “[...] discurso filosófico da
modernidade e sobre a modernidade” e interpelar o presente
(com questões como: Qual é esta minha atualidade? Qual é
o sentido desta atualidade? E o que faço quando falo desta
atualidade?), o segundo texto teria introduzido a revolução
como um acontecimento que possuiria um valor de signo
(rememorativo, demonstrativo e prognóstico), na medida em
que suscita em seu entorno o entusiasmo. Esse entusiasmo
é signo de uma “disposição moral da humanidade”, que se
manifesta como direito de escolha a uma constituição política
e como esperança que esta última evite a guerra de todos contra
todos. Enquanto signo, a revolução seria o (entusiasmo) que
finaliza e que dá continuidade à Aufklärung. E, enquanto
problemas do presente, ambos não poderiam ser esquecidos na
modernidade, tanto que, desde Kant, foram constantemente
repostos na história do pensamento que o sucedeu, inclusive
em seu trabalho filosófico.
Por mais que advogue encontrar em Kant um precursor
do discurso filosófico da ou sobre a modernidade, poder-se-ia
dizer, Foucault (1984) não postula uma suposta superioridade
dada pelo sublime, mas, no máximo, que tal sentimento
é parte de uma prova ou fortalecimento moral frente a
esse acontecimento e, mais precisamente, este se manifesta
como signo (rememorativo, demonstrativo e prognóstico)
que necessariamente invoca uma experiência ou uma
Educ. foco,
experimentação. Nesse caso, o que promoveria a necessária Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 15-44,
relação entre a estética e a ética não seriam os juízos do 19 jul. 2015 / out. 2015
Pedro Angelo Pagni
gosto, mas o acontecimento e a sua remissão a uma filosofia
moral que extrapola a repartição entre o subjetivo e objetivo,
estabelecida para justificar os juízos reflexivos e determinantes,
tampouco seria a pressuposição de um sentimento vivido em
virtude do conflito das faculdades, no entanto, talvez, um
sentimento comum, experimentado diversamente, como o
entusiasmo, capaz de mobilizar certa atitude crítica e eticidade
diante da vida, produzindo efeitos no mundo. Mais próxima
de um ethos, isto é, como uma atitude diante da vida sobre a
qual se esculpem os modos de existência, em tal eticidade o
sujeito singular experimenta não propriamente um conflito
das faculdades que pode gerar subjetivamente um sentimento
do sublime, mas as forças mesmas da vida, a fortuna que lhe
é reservada pelo mundo e, com isso, as incertezas que deve
enfrentar cotidianamente, como se vivesse em uma existência
trágica, para aludir aos gregos. Nesse sentido, é a própria
existência que se tornaria objeto de uma obra de arte e a vida
que a compreende, o seu produto. De acordo com Vilela:
A apresentação da existência como uma obra
de arte supõe a afirmação da estética como uma
forma de vida, ou seja, os valores estéticos
passam a constituir-se como a forma, a
configuração e a transformação possível da
vida. O que está em jogo na perspectivação
da existência como uma obra de arte não é
a procura nostálgica da autenticidade do ser
humano – o ser próprio do homem –, nem
o encontro da verdade de si mesmo como
uma pura entidade, mas a realização de um
trabalho sobre si mesmo que leva o sujeito
a inventar-se. A ética assenta, precisamente,
no trabalho que um indivíduo realiza sobre
si mesmo, a partir de um conjunto de
práticas através das quais se delineiam as suas
regras de comportamento, a possibilidade
de modificar-se e de transformar seu modo
Educ. foco,
de ser, isto é, de fazer da vida de cada um
Juiz de Fora, uma obra de arte. (2010, p. 358 – grifos no
v. 20, n. 2, p. 15-44,
jul. 2015 / out. 2015 20 original).
Neste ponto se vê ecoar, na melodia de Foucault, a de A (TRANS) formação
humana na perspectiva
foucaultiana:
Nietzsche e uma tradição mais antiga da história da filosofia. interpelações à
educação escolar e à
Ao retomar a gênese moderna dessa outra relação entre docência na atualidade

estética e ética, entretanto, parece radicalizar o pensamento


nietzschiano, ao buscar na filosofia dos estoicos e, antes deles,
na origem da filosofia grega, com forte apoio na obra de Pierre
Hadot (2002), os exercícios espirituais que prometeram a
ascese necessária ao acesso à verdade e o seu regime mais ético
que epistemológico, o qual conduz o sujeito que para tal deve
ter a formação moral e estar à altura dos acontecimentos.
Para Foucault (2004b), os acontecimentos seriam os
responsáveis por esse dobrar-se e habitar as superfícies próprias
do estoicismo e de toda uma tradição filosófica em que a
abertura ao seu acolhimento e a preparação para ser-lhe digno,
eticamente, implicavam um longo trabalho de preparação,
ainda que fosse para o impreparável e o imponderável, exigindo
uma série de exercícios espirituais e de ascese, denominados
filosofia. Estar à altura do acontecimento, quando atravessasse
a vida e fosse enfrentado pelo filósofo, seria estar aberto a uma
fortuna que, embora jamais fosse conhecida, podendo ser algo
terrível ou inebriante àquele que o vive, não importaria em seu
sentido trágico ou cômico para o ser singular, mas ao sentido
imanente e que emana de racionalidades de um ser do cosmos
ou a sua ontologia.
Bastante diferente da clássica, essa ontologia não tem
essência, é relacional, estabelecendo-se na relação com a coisa
mesma, com o outro e com outrem, com as forças que lhe
dão expressão e forma, às quais o ator se dobra, tendo um
poder relativo sobre o conhecê-las, podendo apenas ocupar-
se delas para que não ponham fim a sua própria vida e em
desgraça perante o mundo. A ascese em relação à verdade e
à espiritualidade, próprias da filosofia, auxiliariam a viver a
vida segundo essa arte e colocam esta última em seu centro.
Antes que uma experiência pensada que pulsa a vida, é esta
Educ. foco,
que impulsa o pensar, sendo a experiência ou a experienciação Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 15-44,
o que dá forma ao ator e a sua existência, expondo-o ao 21 jul. 2015 / out. 2015
Pedro Angelo Pagni
mundo e fazendo com que conviva com uma extensa
multiplicidade de estilos e de modos de viver. Dessa forma,
diversamente do pensamento nietzschiano, que vê na ascese
e na espiritualidade uma renúncia à vida, Foucault (2004b)
vê nelas uma preparação para o impreparável, vendo nele um
fortalecimento moral para suportar os acontecimentos que
lhes advêm e na atitude de pensá-los em seu sentido imanente,
para potencializar a vida e resistir às forças da existência que
tentam extirpá-la ou, simplesmente, apaziguá-la. Restaria
saber, no entanto, se se poderia pensar dessa tradição filosófica
o acontecimento, a necessidade de preparação pedagógica
para acolhê-lo e resguardar o seu sentido ético para a arte de
viver se apoiando, na atualidade, numa ontologia semelhante
àquela que encontra a sua origem no mundo grego e romano.
A partir dessa perspectiva, parece ser possível
problematizar o ideal moderno de formação humana não
somente em sua gênese, como também mostrar que, desde
então, nasce privilegiando certas tradições da antiguidade
grega e romana da Paideia, dando determinados contornos
subjetivos e metafísicos a ela, que desprezam outras que a
promovem como uma arte de viver e como bem próxima ao
modo de existência filosófica, no sentido de uma escolha ética
e política.
Não se trata de recuperar nostalgicamente, com isso, a
formação antiga do homem grego e romano como forma de vida
e como exercício filosófico sobre si mesmo como melhor que o
moderno, porque verdadeiro ou mais adequado aos parâmetros
da escola e da cultura criadas na modernidade. Ao contrário,
parece tratar-se de apresentar como uma alternativa ao que foi
completamente abandonado, em virtude de a modernidade
presumir certos critérios de verdade, ideias de sujeito e posições em
relação ao poder, que desprezam as formas preponderantes como
estiveram associados ao ethos, ao devir e à vida, na Antiguidade
Clássica e Romana, até chegar ao Renascimento. Nesse sentido,
Educ. foco,
Juiz de Fora, retomar essa perspectiva de que a formação do homem se daria
v. 20, n. 2, p. 15-44,
jul. 2015 / out. 2015 22 por meio de uma arte da existência seria produtivo, na medida em
que pode interpelar o destino que foi dado a ela, no presente, e A (TRANS) formação
humana na perspectiva
foucaultiana:
colocá-lo à altura dos desafios contemporâneos, sobretudo, como interpelações à
educação escolar e à
uma forma de resistência política à formalização do existente e à docência na atualidade

instrumentalização da cultura, presumindo a assunção de uma


atitude ética diante da vida que, concomitantemente, pressupõe
certa transformação de si.
É desse ponto de vista que Foucault aborda as práticas de
si como meio para se alçar a liberdade, retomando a cultura grega
e toda a tradição que entende esta última como “[...] condição
ontológica da ética” que, por sua vez, é a “[...] forma refletida
da liberdade” (2004a, p. 267). Contudo, para ele, tal condição
não seria algum pressuposto a priori, mas se materializaria em
uma série de práticas que implicariam o cuidado de si, porque
o exercício das práticas de si deveria ser considerado como a
busca por práticas de liberdade, quer dizer, práticas que possam
ser escolhas éticas no sentido da potencialização da vida e do
aprimoramento da existência. Tais práticas seriam consideradas
por ele como constituidoras de modos de existência, contrapondo-
se à imobilidade das relações de poder e à sedimentação dos
estados de dominação, podendo se encontrar aí certa resistência a
estes últimos, por meio do ensaio de outras relações de poder, que
resultem na transformação de si e na ampliação da liberdade. Para
que isso ocorra, é necessário que os sujeitos participantes de tais
relações e estados se ocupem de si mesmos, como um imperativo
ontológico e ético imanente, fazendo-os voltarem os seus olhares e
os seus pensamentos sobre as verdades e valores morais assimilados
em sua existência, a fim de que possam escolher os seus melhores
guias e aprender a cuidar dos outros. Assim, não é pelo fato de
aprender a cuidar dos outros que esses sujeitos estabeleceriam as
suas ligações com a ética, mas é justamente porque eles cuidariam
de um si, que lhes é anterior ontologicamente, e que se impõe
como um imperativo com base em certa tradição do pensamento
e da cultura da Antiguidade.
Ao reconstruir genealogicamente essa tradição, Foucault
Educ. foco,
(2004b) problematiza toda a historiografia da filosofia Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 15-44,
que interpretou o “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón) 23 jul. 2015 / out. 2015
Pedro Angelo Pagni
socrático como preponderante sobre o cuidado de si (epiméleia
heautoû), para assentar, na consciência de si, as relações entre
o sujeito e a verdade, nos termos em que ela foi concebida
desde a modernidade. Para Foucault (2004b), o cuidado de si
já estaria presente na cultura espartana e emerge nos diálogos
platônicos Alcibíades e Apologia, particularmente nos discursos
e interpelações de Sócrates. No primeiro diálogo, Sócrates
interpela Alcibíades, fazendo com que este último, proveniente
de uma família nobre e ávido por assumir o governo da
cidade, se ocupe de si mesmo, percebendo que, não obstante
o seu desejo e a sua proveniência social, ainda não está em
condições para governar os outros, visto que apresenta um
déficit pedagógico e erótico em sua formação, ignorância em
relação ao objeto de seu projeto político e, enfim, incapacidade
em governar a si próprio. Movimento semelhante Sócrates faz,
no segundo diálogo, ao interpelar aqueles que o acusam de
corromper a juventude ateniense, que resultou em sua morte,
pois os incita a ocuparem-se de si sob o argumento de que
havia recebido essa tarefa dos deuses e o que fez foi apenas
acomodar essa missão divina a um modo de existência que
construiu e viveu, ao longo de sua vida – que podemos chamar
de filosofia. Em seu desenvolvimento subsequente, em resumo,
o cuidado de si se configurou como, na acepção de Foucault:
(1) uma atitude geral para consigo, para com os outros e para
com o mundo; (2) certa forma de olhar que se desloca de fora
para si mesmo, o que acarreta maneiras de atenção “[...] ao
que se pensa e ao que passa no pensamento” (2004b, p. 14) e
em espécies de práticas, próximas aos exercícios e à meditação;
(3) ações exercidas de si para consigo, por meio das quais “[...]
nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos
configuramos” (2004b, p. 15). Em consequência, desde a sua
gênese, o cuidado se configurou como uma atitude ética, um
modo de atenção e um conjunto de práticas exercidas sobre si
mesmo, no sentido de sua própria transformação, sem deixar
Educ. foco,
Juiz de Fora, que o sujeito se fixe em uma fôrma preconcebida e em um eu
v. 20, n. 2, p. 15-44,
jul. 2015 / out. 2015 24 idêntico a esse si mesmo.
É a partir dessa política de verdade e do que denomina A (TRANS) formação
humana na perspectiva
foucaultiana:
ontologia do presente que Foucault (1984), assim, retoma interpelações à
educação escolar e à
o tema do cuidado de si (ephiméleia heautoû), tentando ser docência na atualidade

consequente em relação ao que entende por atitude crítica,


enunciando seu compromisso com as práticas de liberdade
e com uma vida vivida de acordo com uma estética da
existência. Graças àquela atitude, seria possível buscar modos
de existências cada vez mais livres nas relações com as diversas
dimensões e múltiplas artes de governo, resistindo a certas
formas de governamentalização. De acordo com Foucault
(2000), a crítica estaria associada a uma constante atitude de
não querer ser governado de determinada forma, nas relações
estabelecidas pelo sujeito com outro, nas e entre as artes de
governo, bem como a uma busca por táticas e estratégias que
permitissem modos de existências cada vez mais livres, nos
jogos de força compreendidos por essas relações, possibilitando
processos de subjetivação nessa direção.
SUBJETIVAÇÃO E A EXPERIMENTAÇÃO: A VIDA COMO OBRA
DE ARTE

Foucault caracteriza a subjetivação como “[...] o


processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito,
mais precisamente, de uma subjetividade, que evidentemente
não passa de uma das possibilidades dadas de organização da
consciência de si” (2004d, p. 262). Esse processo ocorre pela,
na e com a experiência, visto que compreende esta última
como o processo de racionalização que culmina na formação
dos sujeitos. Nesse sentido, a subjetivação não se confunde
com a pessoa, muito menos com o sujeito, no sentido em que
foram concebidos na modernidade. Ao contrário, salienta
Deleuze,
[...] é uma individuação particular ou
coletiva que caracteriza um acontecimento
[...]. É um modo intensivo e não um sujeito
pessoal. É uma dimensão específica sem Educ. foco,
a qual não se poderia ultrapassar o saber Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 15-44,
nem resistir ao poder. Foucault analisará 25 jul. 2015 / out. 2015
Pedro Angelo Pagni
os modos de existência gregos, cristãos,
como eles entram em certos saberes, como
eles se comprometem com o poder. Mas,
neles mesmos, eles são de outra natureza.
[...] o que interessa a Foucault não é um
retorno aos gregos: mas nós hoje: [...] será
que temos maneiras de nos constituirmos
como “si”, e, como diria Nietzsche, maneiras
suficientemente “artistas”, para além do saber
e do poder? Será que somos capazes disso, já
que de certa maneira é a vida e a morte que
aí estão em jogo? (2000, p. 123-124).

Dessa forma e com tais interpelações, os processos de


subjetivação seriam o material, o fim e o meio sobre o qual se dá
a formação enquanto uma arte da existência, que permite viver
a vida como uma obra em vistas a transformar o próprio sujeito
que a vive e, concomitantemente, o mundo no qual essa vida
acontece. Em busca de uma (trans)formação mais adequada à
sua existência e de uma ação cada vez mais capaz de exprimi-la
no mundo, esse sujeito faria de sua própria subjetividade e de
sua construção objeto de seu pensar. Tanto aquela formação
quanto essa expressividade consistiriam em uma ligação da
estética com a existência e com a sua exposição ao mundo,
respectivamente, com o intuito de trazer-lhe as singularidades
e as particularidades dos processos de subjetivação, em sua
relação com as vicissitudes e os acontecimentos que emanam
da vida e que lhe servem tanto de material para pensar
quanto de força moral necessária a esse pensamento. São
essa subjetividade e essa força que o constituem, ainda que
fluidamente, que se encontrariam em todas as esferas da vida
e do mundo, podendo ser objetos de seu pensar. No entanto,
dado que parte dessa força que o constitui é inconsciente
e parte se sedimenta na memória, o fato de se tornarem
objetos desse pensar não significa a sua plena consciência ou
elaboração intelectual, persistindo como um resto e como um
elemento profundo que permanece ativo, vivo, instigando o
Educ. foco,
Juiz de Fora, pensamento a se re-pensar e, em tal ato, potencializando com
v. 20, n. 2, p. 15-44,
jul. 2015 / out. 2015 26 a vida nua que aí reside o próprio ser desse sujeito ético e de
seu devir. Assim, haveria nessa potencialização produzida com A (TRANS) formação
humana na perspectiva
foucaultiana:
essa experiência pulsante do pensar uma atitude e uma virtude interpelações à
educação escolar e à
geral que precede o pensamento e que resiste irrefletidamente docência na atualidade

ao que não abarca, nem exprime essa experimentação, até que


se converta em ato de pensar, isto é, um ato que se produz
com as forças e a vontade emanadas da vida e diretamente
associado aos modos de sua expressão refletida na existência
de sua habitação no mundo, enfim, com um ethos, nos termos
anteriormente apresentados.
É justamente esse ethos que parece estar alheio à
educação moral pretendida ou, mesmo, à educação do gosto,
anteriormente analisadas, dando o que pensar aos sujeitos
dessas práticas, principalmente no que se refere ao como e ao
onde estaria presente em sua ação e em sua formação, em qual
seria o seu campo efetivo de experimentação no presente, com
a expectativa de promover a transformação de si mesmos e, por
decorrência, do mundo em que os seus resultados emergem.
Diferentemente de buscar a pensar essa transformação
mediante os conceitos de subjetivo e objetivo, Foucault parece
preferir o conceito de subjetivação para designá-la e, de certo
modo, para mostrar que se caracteriza por uma experiência
não apenas interior, como Martin Jay (2009) atribui a
Bataille, mas provocada por um jogo de forças em que o
interior e o exterior intercedem mutuamente. Em síntese,
essa alternativa excluiria qualquer possibilidade de processar
uma repartição entre o racional e o irracional, nos termos em
que modernamente se faz. Ao contrário, significa admitir que,
como advogam alguns filósofos antigos, estoicos e cínicos, há
uma racionalidade inapreensível pela racionalidade humana e
que não permite ao indivíduo conduzir completamente a sua
vida como ele bem deseja ou delibera conscientemente, já que
tal deliberação subjetiva está sujeita a essa racionalidade outra,
às vicissitudes do que se vive e ao acontecimento que lhe
acomete. Não teria sentido, dessa forma, acusar de irracionalista
Educ. foco,
essa posição foucaultiana acerca da arte de viver, como a Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 15-44,
interpretou Hermann (2008). Ao contrário, essa acepção 27 jul. 2015 / out. 2015
Pedro Angelo Pagni
parece compreender outra racionalidade, não abarcada pela
racionalidade subjetiva dos modernos, tampouco por aqueles
que almejam a continuidade do projeto da modernidade,
evidenciando os limites desta e a arrogância de que a razão
humana apreenderia totalmente a realidade. Assim, viver a
vida como obra de arte não significa apenas moldá-la segundo
os traços deliberados do artista, como também se dobrar às
forças da matéria, às asperezas e rugosidades de sua superfície
e daquilo que lhe escapa ao que está sendo moldado, notando
aí um limite e esperando que daí emerja algo novo e outros
modos de existência.
É justamente aquilo que escapa à estagnação em tal
processo e que produz uma experiência do fora (FOUCAULT,
2004c) que provoca a estranheza e a diferença no que o sujeito
tem como idêntico a si mesmo, que o faz se inquietar e se
ocupar de si próprio, transformando-se. Foucault argumenta
que “[...] é a experiência, que é a racionalização de um
processo ele mesmo provisório, que redunda em um sujeito,
ou melhor, em sujeitos” (2004d, p. 262). Esses sujeitos que,
dessa maneira, se formam, re-formam e transformam a si
mesmos, produzindo, nesses processos de subjetivação, novos
modos de existência e estilos de vida, que, por sua vez, se
confrontam com os já existentes e, por vezes, os transformam,
transformando o próprio mundo.
Não obstante a expectativa política compreendida por
certa interpelação e resistência aos modos de existência que não
são mais suportados ou admitidos para guiar a vida individual
e coletiva, nos termos expostos, vislumbra-se nessa perspectiva
de viver a vida como obra de arte um profundo sentido
ético. Embora nos dias de hoje a recomendação de ocupar-
se consigo mesmo seja interpretada como certo “egoísmo”
e “volta sobre si”, nos termos indicados por alguns críticos,
durante séculos ela significou, ao contrário, de acordo com
Foucault, “[...] um princípio positivo matricial relativamente
Educ. foco, a morais extremamente rigorosas” (2004b, p. 17). Aliás, esse
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 15-44,
28 princípio teria sido readaptado pelos códigos e pelas regras do
jul. 2015 / out. 2015
cristianismo e da modernidade, para que se constituíssem em A (TRANS) formação
humana na perspectiva
foucaultiana:
morais não egoístas, de obrigação para com os outros, gerando interpelações à
educação escolar e à
complexos paradoxos e concorrendo para que ocupar-se docência na atualidade

consigo fosse desprestigiado como constituinte de uma ética2.


No âmbito desse tendente desprestígio, para Foucault
(2004b, p. 18), restaria à filosofia ser uma forma de pensamento
que se interroga não mais sobre o que é verdadeiro ou falso,
mas sobre o que torna possível o conhecimento verdadeiro
ou falso, possibilitando ao sujeito ter acesso à verdade,
conforme os seus limites e as suas possibilidades, porque a
espiritualidade da qual a filosofia era parte constituinte ficou
desfigurada e sucumbida a esta última, na modernidade. Com
isso, a espiritualidade, que compreendia um conjunto de
buscas, práticas e experiências que constituem para o sujeito
o preço a pagar pela verdade, passou a ser reduzida a um ato
do conhecimento que não mais exige desse mesmo sujeito
a sua modificação, transformação, deslocamento para ter
direito ao acesso à verdade. Se a espiritualidade põe em jogo
o ser mesmo de sujeito, um trabalho de si para consigo para
ascender à verdade, retomá-la no presente contra esse modo
de restrição a um ato de conhecimento no qual se converteu a
filosofia significa confrontá-la com a sua sombra do passado e
perguntar sobre o seu sentido, na atualidade.
Desse ponto de vista, o cuidado de si não apenas reverte à
forma preponderante de interpretação sobre a Filosofia Antiga,
como também coloca em xeque a função da filosofia como
um ato de pensar destituído de uma atitude ética e política,

2 Foi com aquilo que Foucault (2004a, p. 18) denominou de “momento


cartesiano” que o cuidado de si foi praticamente esquecido para a requalificação
filosófica do “conhece-te a ti mesmo”, ao estabelecer como a primeira certeza,
necessária ao procedimento filosófico, a evidência de uma consciência
entendida como conhecimento de si e, ao fundá-la numa prova ontológica da
existência, concebe o sujeito como aquele que tem acesso à verdade. Assim,
essa requalificação do “conhece-te a ti mesmo” e desqualificação do cuidado
de si, por meio desse procedimento, passa a se constituir como fundante para Educ. foco,
Juiz de Fora,
a filosofia moderna, enquanto a espiritualidade da qual provinha passa a ser v. 20, n. 2, p. 15-44,
desprestigiada. 29 jul. 2015 / out. 2015
Pedro Angelo Pagni
ao recuperá-la como exercício de espiritualidade, como modo
de vida e como arte de viver. Tal retomada consiste não em
desconsiderar a importância que a filosofia adquiriu como ato
de pensar em busca da verdade, mas em entender que essa
é apenas uma de suas faces, e não necessariamente a mais
importante. Analogamente, podemos dizer algo semelhante
quanto à pedagogia, na medida em que, enquanto uma arte
de condução das almas, se dissociou em seu desenvolvimento
não apenas de uma relação com a verdade, como uma atitude
ética e política nos termos da filosofia, mas também, e
principalmente, do processo de transformação do ser em que
consistiu a psicagogía.
Na acepção foucaultiana a pedagogia consiste, como diz
Castro, na “transmissão de uma verdade que tem por função
dotar o sujeito de aptidões, capacidades e saberes.” (2004,
p. 258) Por psicagogía, segundo o mesmo autor, Foucault
entende “a transmissão de uma verdade que tem por função a
modificação do modo de ser do sujeito, e não simplesmente
dotá-lo das capacidades que não possui.” (CASTRO, 2004,
p. 258) Para Foucault, na Antiguidade, a psicagogía estaria
muito próxima da pedagogia como arte da condução das almas
e de transmissão da verdade, enquanto ambas dependem de
uma relação específica entre mestre e discípulo, na qual aquele
conduz a alma deste, e são “[...] experimentadas como Paidéia”
(2004b, p. 493-494). Com o advento do cristianismo, porém,
ocorrem algumas mutações bastante significativas em relação
a esses termos, pois, a quem denominam de mestre não é
simplesmente um outro humano, tampouco a formação da
alma ocorre pela via da condução desse outro e é propagada
por meio do discurso enunciado por ele, mas é dado pelo
divino, pela revelação e pela confissão, respectivamente.
Nesse desenvolvimento das noções de pedagogia e
psicagogía, a primeira prevalece sobre a segunda, constituindo-
se como uma arte de transmissão da verdade que forma as
Educ. foco, aptidões, capacidades e saberes em um sujeito que não os
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 15-44,
30 possui ou não os tem desenvolvidos por intermédio de
jul. 2015 / out. 2015
outrem, que, em tese, deteria a verdade revelada, graças a já ter A (TRANS) formação
humana na perspectiva
foucaultiana:
plenamente formadas aquelas mesmas aptidões, capacidades interpelações à
educação escolar e à
e saberes. Ao desvincular-se da pedagogia, dessa forma, a docência na atualidade

psicagogía se converte num único modo de dizer a verdade,


que faria o ser mesmo se modificar, a confissão, com toda a
sua particularidade. Assim, com o cristianismo, instaura-se
um modo de espiritualidade em que, sublinha Foucault,
[...] é o sujeito do discurso guiado que
deve estar presente no interior do discurso
verdadeiro como objeto de seu próprio
discurso verdadeiro. No discurso daquele
que é guiado, o sujeito da enunciação deve
ser o referente do enunciado: é a definição
de confissão. Na filosofia greco-romana,
ao contrário, quem deve estar presente no
discurso verdadeiro é aquele que dirige.
E deve estar presente não sob a forma da
referência do enunciado [...]; está presente
em uma coincidência entre o sujeito da
enunciação e o sujeito de seu próprio
enunciado. (2004b, p. 495).

Foi, precisamente, essa coincidência que se perdeu,


quando a pedagogia se autonomizou e prevaleceu sobre a
psicagogía, no cristianismo, até o completo esquecimento
desta última, na modernidade. O mesmo se pode dizer sobre a
relação que a psicagogía estabelecia com um estilo e um modo
filosófico de vida e de dizer veraz, já que a pedagogia começa a
se fundar em um discurso de verdade proveniente da filosofia
como um saber superior e um metadiscurso universal a partir
do cristianismo, independente da coincidência com aquele
sujeito que o enuncia e os seus modos de ser. Ao retomar,
assim, a psicagogía como outra forma de relação com a verdade
e, poderíamos dizer, com esse modo de vida denominado
filosófico, o filósofo francês, por um lado, problematiza tanto
a Pedagogia quanto a Filosofia, na atualidade, mediante a
confrontação e o estranhamento gerado com essa reconstituição
Educ. foco,
genealógica desses campos da ação e do saber; por outro, Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 15-44,
parece indicar a possibilidade da produção de algo novo nessa 31 jul. 2015 / out. 2015
Pedro Angelo Pagni
diferenciação entre o passado e o presente. Algo que se distinga
da formação das aptidões, das capacidades e saberes, com base
na transmissão da verdade pressuposta pela Pedagogia e do
modo de relação com a verdade como conhecimento suposto
pela Filosofia, para conduzir à transformação do ser do próprio
pedagogo e do filósofo ou do pedagogo-filósofo, dos processos
de subjetivação produzidos em suas práticas e dos modos de
existir que lhes deveriam habitar, para que, ao transformar-se,
concorram para a transformação do outro e do mundo.
Nessa reversão das tarefas compreendidas pela filosofia,
o ato de pensar e de conhecer é tão importante quanto os
exercícios de meditação e outras formas de ascese, dentre
outros, que constituem a arte de viver. O mesmo se pode dizer
quanto à pedagogia, que, ao ser tensionada com esse modo de
transformação do ser em que consiste a psicagogía, possibilite
que a verdade transmitida aos alunos por essa arte seja
igualmente importante aos exercícios de meditação, de escuta
e de atenção desenvolvidos pelo educador em sua própria ação,
assim como a perscrutação nela do que de acontecimental
propicia a sua própria transformação. Em decorrência, o mais
importante é que essas práticas resultem na transformação de
seus agentes, daqueles que escolheram a filosofia como uma
atitude diante da vida e como um modo de dizer a verdade ou
procuraram na ação formativa um meio de transformar-se, de
aprender, na relação com o outro, a enfrentar as vicissitudes
dessa mesma vida e assumir a responsabilidade pelo mundo,
cultivando a si próprio.
Nessa outra tradição que privilegia a arte filosófica de
viver e faz preponderar a psicagogía, a filosofia e a pedagogia
se concebem como um conjunto de práticas produzidas por
e produtoras de estilos de existência, necessitando para tal
da assunção de certa atitude ética diante da vida e de um
compromisso com a pólis, por parte de seus agentes que, não
Educ. foco,
Juiz de Fora, obstante a sua indispensável formação, também precisam estar
v. 20, n. 2, p. 15-44,
jul. 2015 / out. 2015 32 atentos e dispostos à sua própria transformação.
Na Antiguidade Clássica até o Cristianismo, para A (TRANS) formação
humana na perspectiva
foucaultiana:
conduzir as próprias almas e a dos outros, filósofos e pedagogos interpelações à
educação escolar e à
encontravam, na prática de uma série de exercícios de ascese, docência na atualidade

certa preparação para o inusitado e para os acontecimentos que


atravessam a vida, irrompem no mundo e estariam presentes
nas relações que estabelecem com seus discípulos e alunos.
De acordo com Foucault, tal askesis se constitui no processo
progressivo pelo qual o sujeito exerce um “domínio sobre si
mesmo, obtido não através da renúncia à realidade, mas da
aquisição e da assimilação da verdade”, tendo como meta
“o acesso à realidade deste mundo” (Foucault, 2008, p. 74).
Nas palavras do filósofo francês, a palavra grega que define
essa ascensão à verdade dessa forma é paraskeuazo (“estar
preparado”) que consiste em “um conjunto de práticas as
quais alguém pode adquirir, assimilar e transformar a verdade
em um princípio permanente da ação”, convertendo a alethéia
em ethos e produzindo “um processo para um grau maior de
subjetividade” (2008, p. 74).
Essa verdade como “princípio imanente da ação” parece
aprofundar a busca da verdade pleiteada pela ontologia do
presente e pela atitude crítica que a preside, como uma virtude
geral, e não como um fundamento epistemológico no qual o
discurso se legitimaria. Por conseguinte, essa mesma virtude
parece presidir tanto o que a filosofia como modo de vida
ou como estética da existência presume, quanto o que uma
pedagogia que se permita compreender por intermédio de
uma psicagogía, instando os filósofos e pedagogos não a um
retorno ao passado, mas à criação de algo novo.
Conforme enfatiza Foucault (2004a; 2004d), em
algumas entrevistas, o retorno à moral e aos modos de vida
gregos não visa a relembrar nostalgicamente o passado ou,
simplesmente, fazer com que recordemos o que foi esquecido
no presente, como uma estratégia de sua problematização. Ao
contrário, argumenta ele: Educ. foco,
Nada é mais estranho para mim do que a Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 15-44,
ideia de que a filosofia se desviou em um 33 jul. 2015 / out. 2015
Pedro Angelo Pagni
dado momento e esqueceu alguma coisa
e que existe algum lugar de sua história
um princípio, um fundamento que precisa
que seria preciso redescobrir. [...] O que,
entretanto, não significa que o contato
com esta ou aquela filosofia não possa
produzir alguma coisa, mas então seria
preciso enfatizar que essa coisa é nova.
(FOUCAULT, 2004c, p. 280).

A retomada da tradição filosófica e pedagógica,


inaugurada por Sócrates, desenvolvida pelos estoicos e pelos
cínicos, assim, reporia a vida e a diferença geradora dessa coisa
nova no centro do discurso filosófico atual, confrontando este
último com o seu passado e com um conjunto de práticas que
preparam os sujeitos para serem dignos dos acontecimentos
que irrompem da vida e de suas vicissitudes – como sugeriu
Deleuze (2000), ao interpretar o estoicismo –, bem como para
encarnarem a militância necessária frente aos acontecimentos
da história – como Foucault (2009) interpreta a tradição
cínica, em sua relação com os movimentos revolucionários do
século XIX e de certos movimentos artísticos do século XX.
Ainda que essa última perspectiva teórica postule esse
olhar sobre a filosofia como uma arte de viver e a psicagogía
como um modo de transmissão da verdade em que o
sujeito se transforma, assim como outro modo de conceber
a formação humana, ao fazer da vida uma obra de arte, tais
práticas filosófica e pedagógica compreendem igualmente
certas artes e tecnologias. Para tal perspectiva, porém, essas
práticas seriam ordenadas pelas tecnologias de produção, pelo
sistema de signos ou pelo poder, mas por um trabalho de si
sobre si, em que a busca da inquietação e do cuidado pode
levar a um bem governar a si próprio para, quem sabe, cuidar
do cuidado do e do governo do outro. É nesse movimento
antiassujeitamento e pró-subjetivação de si que Foucault
desenvolve que podemos encontrar, no estranhamento
Educ. foco,
Juiz de Fora, suscitado pela arte do viver e pela arte do transmitir a verdade
v. 20, n. 2, p. 15-44,
jul. 2015 / out. 2015 34 experienciada em que compreende a psicagogía, a criação de
novos modos de resistência e de subjetivação por meio da A (TRANS) formação
humana na perspectiva
foucaultiana:
filosofia e da pedagogia, no presente. Nele também podemos interpelações à
educação escolar e à
encontrar certa reversão do ideal moderno de formação e a docência na atualidade

proposta de uma alternativa que poderia nos auxiliar a criar, se


não outra concepção formativa ou de autoformação, ao menos
fazer com que nos ocupemos de nossa própria transformação,
mesmo que seja na relação com o outro compreendida pela
ação formativa que exercemos, como educadores.
INTERPELAÇÕES DA PARRESÍA E DA PRAGMÁTICA DE SI À
EDUCAÇÃO ESCOLAR

Embora possamos buscar em outros filósofos


contemporâneos uma alternativa a esse ideal moderno
de formação na modernidade, procuramos encontrar
no pensamento de Michel Foucault essa possibilidade,
particularmente, em sua retomada de uma tradição do
pensamento greco-romano abandonada na modernidade e
que pode interpelar, no presente, a filosofia e a pedagogia.
Isso porque entende que essa outra tradição propõe uma
relação diferente com a verdade, nos termos encontrados no
conceito greco-romano de parresía, além das formas como esta
seria produzida pela filosofia e transmitida pela pedagogia,
indicando uma pragmática que contempla uma dramática
de si, deveras abandonada no presente, como alternativa
ao esquecimento da transformação do ser pela pragmática
da linguagem na qual se apoiam a formas de produção e de
transmissão dos saberes, incluindo, as práticas adotadas no
ensino. São essas alternativas quanto ao discurso de verdade
e à pragmática que são os objetos privilegiados nesta última
parte do artigo.
É com o intuito de indicar outras relações entre o saber-
poder, o sujeito e a verdade que Foucault retoma a noção
de parresía como um modo de dizer veraz, originalmente
elaborado pelos filósofos da antiguidade e posteriormente
Educ. foco,
desenvolvido pelos estoicos, epicuristas e cínicos. Em síntese, Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 15-44,
a parresía é um modo de falar a verdade, que contrasta com 35 jul. 2015 / out. 2015
Pedro Angelo Pagni
a retórica e com um modo de dizê-la em que o sujeito que a
enuncia pode dissocia-la daquilo que é enquanto ser; é uma
maneira de falar franco que faz com esse sujeito se abra ao
risco de dizer essa verdade e se vincule ala por dizê-la a partir
do que viveu. De acordo com Foucault: “A parresía é a livre
coragem pela qual você se vincula a si mesmo no ato de dizer a
verdade. Ou, ainda, a parresía é a ética do dizer-a-verdade, em
seu ato arriscado e livre” (2010, p. 64).
Esse modo de relação com a verdade não se dispõe a
enunciar, discursivamente, um conhecimento construído por
argumentos estruturados logicamente e assentados em uma
epistemologia, que garantiria a sua transmissão aos demais.
Não se assenta, igualmente, na retórica, ou seja, no uso desses
argumentos para convencer um determinado público, graças ao
sentido apelativo desse discurso e, ao mesmo tempo, ao clamor
pelo assentimento de seus destinatários. Nem mesmo teria
como único recurso à dialética, para fazer com que destinador
e destinatário encontrem no conflito entre as suas proposições
uma verdade resultante de uma síntese superior – porque
apoiada em um método e em uma epistemologia que, em
tese, representariam uma visão privilegiada no que concerne às
existentes. Ao invés disso, a verdade parresiasta seria expressão
de um falar franco que acarreta, por um lado, a exposição
daquele que a enuncia, como uma espécie de sujeito que
acolhe o acontecimento, fazendo desse processo um trabalho
constante de sua autotransformação, experienciando-o e, nos
limites de suas possibilidades, dizendo-o; por outro, coloca
esse mesmo discurso e o seu sujeito em risco, provocando os
seus interlocutores, antes de os acomodarem e os deixarem
apaziguados. Não se trata também de uma mera confissão
mediante a qual se expia a culpa do sujeito do discurso, tomado
como seu próprio referente, mas consiste em um dizer veraz
em que coincide o discurso enunciado com a verdade vivida
pelo sujeito que o enuncia e que, para tal, experimenta em si
Educ. foco,
Juiz de Fora, mesmo uma modificação de seu próprio ser. Assim, esse modo
v. 20, n. 2, p. 15-44,
jul. 2015 / out. 2015 36 de verdade estaria associado àquilo que se entendia por filosofia
como modo de vida e como a psicagogía, contrastando tanto A (TRANS) formação
humana na perspectiva
foucaultiana:
com a concepção de verdade preponderantemente buscada interpelações à
educação escolar e à
pela filosofia quanto com a de sua transmissão postulada pela docência na atualidade

pedagogia.
Por sua vez, a transformação de si almejada tanto pela
arte de viver quanto pela psicagogía não dispensa uma relação
com o outro nem uma pragmática. Na relação com os outros,
a linguagem ou o discurso e sua pragmática ou circulação
aparecem como elementos importantes. Assim como entende
necessário recorrer ao conhecimento de si sobre o primado
do cuidado e às diversas tecnologias sob a tecnologia de si,
Foucault não deixa de insistir que só se dá a autotransformação
do sujeito pressuposta por essas práticas mediante o seu
trabalho de dizer o que se passa, o que lhe acontece e aquilo
que essa experiência inquieta, na relação com outro e com
a mediação da linguagem, do discurso e de sua enunciação.
Contudo, Foucault (2010), a pragmática da linguagem que
envolve essa relação com o outro não poderia ser aquela que
atualmente se concebe como tal e que busca apenas modificar
o sentido do discurso, em conformidade com os contextos
comunicacionais, porque ela se encontra sob a égide de
um dizer veraz, assentada no pressuposto da cognição, da
representação e da transmissão, o que lhe possibilita pensar
e produzir como diferenciação entre o um e o outro nela
compreendidos, assim como transformação de si.
Para Foucault, a “análise da pragmática do discurso é a
análise dos elementos e dos mecanismos pelos quais a situ-
ação na qual se encontra o enunciador vai modificar o que
pode ser o valor ou o sentido do discurso” (2010, p. 65). Na
parresía, continua ele,
O enunciado, o ato e enunciação vão, ao
mesmo tempo, afetar de uma maneira ou de
outra o modo de ser do sujeito e fazer pura e
simplesmente - |...| -, que aquele que aquele
que disse a coisa a tenha dito efetivamente, Educ. foco,
por um ato mais ou menos explícito, ao fato Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 15-44,
de tê-la dito. Essa retroação, que faz com 37 jul. 2015 / out. 2015
Pedro Angelo Pagni
que o acontecimento do enunciado afete o
modo de ser do sujeito ou que, ao produzir
o acontecimento do enunciado, o sujeito
modifique ou afirme, ou em todo caso
determine e precise, qual é o seu modo de
ser na medida em que fala, pois bem, é isso,
a meu ver, que caracteriza um outro tipo de
fatos de discurso totalmente distintos dos
da pragmática. E o que poderíamos chamar
vamos dizer - |...| - de “dramática” do
discurso é a análise desses fatos do discurso
que mostra como o acontecimento da
enunciação pode afetar o ser do enunciador.
(...) A análise da parresía é a análise dessa
dramática do discurso verdadeiro que revela
o contrato do sujeito falante consigo mesmo
no ato do dizer-a-verdade (FOUCAULT,
2010, p. 66).

É possível dizer, também, que essa dramática que aí


aparece como elemento privilegiado dessa relação do sujeito
do discurso com o outro parece ser um dos principais
aspectos dessa relação, porque ela supõe uma relação não
somente com outrem, restringindo-se a um jogo de poder
que compreende o consciente e o que pode ser evidenciado
linguisticamente, como também com o outro que lhe escapa
à consciência e ao discurso, produzindo uma afecção naquele
outrem, incomodam-no e instigam-no a pensar nesse outro
de si emergente nessa relação. Esse outro de si incomoda e
traumatiza a outrem, dando o que pensar aos partícipes dessas
relações e, sobretudo, o que se pensar em relação a si próprio.
Ele produz um pathos do qual os sujeitos nessa relação
procuram se livrar, vivendo a fragilidade de suas existências e
as incertezas de seus destinos. Decorrendo de acontecimentos
(grandes ou pequenos, históricos ou singulares), aos quais os
sujeitos não podem significar imediatamente, esse outro os
atravessam e os fazem experimentar em si mesmo a ambígua
Educ. foco,
Juiz de Fora, sensação de que não estaria preparado para tal (o “por que
v. 20, n. 2, p. 15-44,
jul. 2015 / out. 2015 38 estou passando por isso?”) e, ao mesmo tempo, de que teria a
força, a virtude da coragem e a estatura moral para enfrentá- A (TRANS) formação
humana na perspectiva
foucaultiana:
los (a confiança de que, mesmo em risco, “devo enfrentá-lo”). interpelações à
educação escolar e à
Essa experimentação de si, decorrente do acontecimento, e docência na atualidade

aquela incerteza proveniente das vicissitudes da vida poderiam


suscitar nos sujeitos que as experienciam um sentimento tal
que, salvo pelo fato de decorrerem de uma existência em
que a arte os auxilia a se dar forma, faz de si mesmos seus
elementos e artistas, em que o devir comporta uma dramática
apresentada como o móvel de sua própria transformação e, ao
mesmo tempo, como o que irrompe a ordem do discurso, não
se deixando apreender pela pragmática na linguagem.
Se essa pragmática está presente na esfera pública e rege
as relações políticas atuais, ela não deixa de conduzir também
a educação e, particularmente, a escola. Isso porque deu nova
configuração à pedagogia, na contemporaneidade. Ao almejar
cada vez mais uma alta eficiência no processo de aquisição de
habilidades e de constituição de competências aos sujeitos
aos quais se destina, a pedagogia se apoiou integralmente
na ciência, na técnica e numa pragmática que se restringe a
transmitir informações com as quais o sujeito a quem se destina
pode lidar e se habilitando com elas conforme a sua cognição
para o exercício de conjuntos de funções sociais específicas.
O ensino pensado em termos pedagógicos se restringiu a
essa transmissão de informações eficientes e, porque úteis
ao desempenho de uma função, supostamente verdadeiras,
desconsiderando os seus efeitos passionais, acontecimentais e
experienciais para a transformação do ser, assim como tudo
que ultrapasse uma racionalidade instrumental, um pensar
único e um sujeito idêntico a si mesmo.
Ao focalizar na pragmática de si uma dramática do
discurso que aborda os fatos que ficaram de fora da significação,
da lógica e da ordem discursiva existente, o filósofo francês
procura contrastá-la à atual pragmática da linguagem,
considerando ser necessário não apenas abrange-los por uma
Educ. foco,
análise mais aguda, como também compreender seus efeitos Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 15-44,
sobre o seu enunciador, o que implicaria a assunção de uma 39 jul. 2015 / out. 2015
Pedro Angelo Pagni
atitude ética em relação à verdade e a assunção de uma posição
política. É nesse sentido, se seguirmos a interpretação de Gros
(2002), que Foucault promove um descentramento a partir do
contraste da subjetivação antiga com a subjetividade moderna,
a fim de fazer se repensar a política, especificamente, em um de
seus aspectos – o dos “assujeitamentos identitários” – criando
a necessidade de se pensar algo novo para ela, por um lado,
tirando-lhe de sua naturalização, e, por outro, concebendo-a
em sua historicidade, ainda que para tal fosse necessário
retomar a antiguidade. Estrategicamente, assim, parece optar
por escolher essa tradição da filosofia como modo de vida em
razão do estranhamento que ela provoca em nós, seus leitores,
no presente. O mesmo se pode inferir em relação à indicação
que faz ao focar a psicagogía em relação à pedagogia, porém,
no que se refere ao ensino em geral e ao ensino de Filosofia em
particular, temas com os quais não se ocupou, pode-se dizer
pouco a partir de suas obras, mas a partir do que entendeu
por essa pragmática da linguagem, que os opera, é possível
considerar que o seu contraste com uma análise da dramática
discursiva, no presente, seria, mais que oportuno, necessário.
Na medida em que aquela pragmática se restringiu,
em sua aplicação ao ensino, nos últimos anos a excluir e a
interditar essa dramática, juntamente com os acontecimentos
que o atravessam, ela se restringiu ao planejado e ao
programado pedagogicamente para dotar seus destinatários de
saberes e, mais recentemente, informações que não possuiriam
originalmente, recorrendo ao gênero analítico da ciência e ao
razão cognoscente da certeza epistêmica, sem se ater aos demais
gêneros discursivos e à verdade ligada ao ethos. Diante desse
quadro, o cuidado requerido pela psicagogía e a mobilização
de outros gêneros do discurso para operar também nesse
sentido da dramática potencializaria um estranhamento do
sujeito que o enuncia, ao atentar a e acolher os acontecimentos
que irrompem na pragmática do ensino e que o mobilizam
Educ. foco,
Juiz de Fora, para uma prática de si em que, eventualmente, antes do que
v. 20, n. 2, p. 15-44,
jul. 2015 / out. 2015 40 transformar aos seus destinatários transforma a si. Mas é dessa
prática de si que se extrai o material, as experiências e os A (TRANS) formação
humana na perspectiva
foucaultiana:
pensamentos a partir dos quais se faz as eventuais escolhas de interpelações à
educação escolar e à
gêneros de discurso a serem utilizados para convidar outrem docência na atualidade

às práticas de si e de liberdade. Nesse caso, não se trata de uma


transmissão pedagógica, tampouco de uma comunicação de
informações rápidas e ágeis para a aquisição de habilidades
e o desenvolvimento de competências, mas da utilização de
discursos que façam gerar atitudes que, muitas vezes, escapam
ao que o sujeito que o enuncia pretende, planeja e programa
para seus destinatários, já que dependem destes últimos, das
condições e, principalmente, das disposições que se encontram.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iluminar essa dimensão sombria da pragmática e do


acontecimento, contemporaneamente, não significa postular
que a educação escolar deveria se restringir, inversamente
ao que faz no presente, a colocar em circulação discursos
exclusivamente que provoquem essas disposições e sejam
capazes de formar atitudes, para reaver o seu sentido
formativo. Isso porque, anacronicamente, isso seria sugerir
que a educação praticada nessa instituição abandonasse as
verdades às quais os seus destinatários também necessitam,
mediante o aprendizado de saberes especializado e de técnicas,
assim como da subordinação a tecnologias do eu, as quais esses
sujeitos se equipam para enfrentar o mundo.
Ainda que não os proveja de atitudes diante da vida
e ampliem o exercício do biopoder, esses conhecimentos
transmitidos aos sujeitos e o domínio de si deles exigidos,
tomam parte nos mecanismos pedagógicos e na arte de governo
exercida historicamente por essa instituição, juntamente
com a função disciplinar e normativa assumida desde a
modernidade. Nesse sentido, essa transmissão e governo de si
são pressupostos ou condições das práticas que compreendem
o ensino ou, mesmo, a educação moral desenvolvida na escola.
Educ. foco,
Ao mesmo tempo, elas são possibilidade de que, nas relações Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 15-44,
de poder entretecidas, se produza também no sujeito algo que 41 jul. 2015 / out. 2015
Pedro Angelo Pagni
ultrapasse seu assujeitamento e que o instigue à criação de
outros modos de subjetivação. Afinal, a escola ocupa apenas
parte do tempo dos indivíduos e, sobretudo, uma etapa de
suas vidas, uma vez que eles transitam por outras instituições
sociais que ampliam a sua equipagem e, nesse trânsito, se
se dispuserem, auxiliam a formar atitudes para enfrentar as
vicissitudes e os acontecimentos com que se deparam. Assim,
os indivíduos aprendem a se conduzir de modo a ultrapassar
a disciplina e as normas impostas pela instituição, na melhor
das hipóteses, tornando-se capazes de fazer escolhas que
possibilitem um viver mais livre e se posicionar nos jogos de
poder que comandam o mundo.
A educação escolar, nessa perspectiva, deveria ser menos
ambiciosa em relação aos seus objetivos, do mesmo modo
que as práticas que a compreendem na escola, ao reformular
os discursos pedagógicos em circulação que prometem além
do possível. Isso porque as práticas que compreendem a
educação escolar são responsáveis por dotar os indivíduos a
quem se destinam de certa equipagem para jogar o jogo, com
suas regras, normas e regulamentos, que os implicam com
as relações de poder nas quais se encontram, porém, podem
também instiga-los a se disporem a enfrentar as vicissitudes da
vida e os acontecimentos que irrompem no mundo. Quando
bem executada, essa tarefa não é desprezível, e é extremamente
importante para que as necessidades sejam supridas e a
liberdade possa emergir não das ideias, mas da ação dos
indivíduos que, diante dos jogos de poder e de governo aos
quais estão submetidos, possam exigir não querer serem
governados mais de determinada forma, como sugerido pela
perspectiva da ontologia crítica foucaultiana.
Os indivíduos poderiam assumir, deliberadamente,
uma atitude crítica relativa ao seu presente e se voltarem
sobre si a fim de encontrar, mais do que conhecimento,
disposição e coragem para agir no sentido de criar condições
Educ. foco,
Juiz de Fora, mais livres para a sua existência e, no mundo, modificar as
v. 20, n. 2, p. 15-44,
jul. 2015 / out. 2015 42 relações com outrem. Mas tal mudança só ocorreria se eles
próprios se ocuparem de sua transformação, nela trabalharem, A (TRANS) formação
humana na perspectiva
foucaultiana:
utilizando o que possuem de recurso e de equipagem pessoal, interpelações à
educação escolar e à
que poderm ser oferecidos por outrem, sejam aqueles que docência na atualidade

têm alguma responsabilidade pela sua educação e, no caso


da escola, de seus professores, seja por um outro, relacionado
àquelas relações ou às que estabelece com o mundo. Assim, se,
por um lado, estariam subordinados a uma relação de poder
em que a governamentalidade e o cuidado se entretecem e
atuam concomitantemente, por outro, poderiam buscar, nas
suas relações com as coisas e com o mundo, se libertar daquilo
que nela os aprisionam, em vistas a produzir uma existência
e práticas de subjetivações mais livres, mesmo em instituições
como a escola.
Restaria saber se, para isso, esses indivíduos teriam
disposição e coragem para atuarem não somente como
elementos, mas como atores dessa instituição e do mundo
ao qual pertence. Uma disposição subjetiva e uma atitude
que, de um lado, supõe a assunção de certo risco diante da
vida, enquanto que, de outro, exige certa abertura para a
sua própria (trans)formação. Este espaço subjetivo, essa
abertura a experimentação de si, parece ser, dessa forma, um
lugar afortunado para a arte de viver no âmbito escolar e,
neste âmbito, a vida como obra de arte pode provocar certo
deslocamento no debate pedagógico atual, sendo essa a meu
ver a principal contribuição das obras e últimos cursos de
Foucault para os estudos recentes em Filosofia da Educação
sobre o tema da formação humana.
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Educ. foco, Data de recebimento: novembro de 2013


Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 15-44,
44 Data de aceite: junho de 2014
jul. 2015 / out. 2015
INTERSUBJETIVIDADE E Intersubjetividade e
Educação: O Estatuto
do Olhar nas Relações
Educativas. Uma

EDUCAÇÃO: O ESTATUTO Reflexão a partir


da fenomenologia
existencial de Sartre

DO OLHAR NAS RELAÇÕES


EDUCATIVAS. UMA REFLEXÃO
A PARTIR DA FENOMENOLOGIA
EXISTENCIAL DE SARTRE
Márcio Danelon1

Resumo
A educação é uma relação dialógica. Se é possível ao
homem auto-instruir, não é, de outra forma, possível a ele
auto-educar, pois a educação pressupõe uma alteridade que
apresente o mundo da cultura historicamente produzida para
o outro. À medida que a educação é relação intersubjetiva,
o olhar presente nessas subjetividades se encontra na arena
do mundo. Isso demarcado, constitui-se em nosso objetivo
demarcar uma fenomenologia do olhar a partir do referencial
teórico da filosofia existencial de Sartre, com a finalidade
de constituí-la como ferramenta na nossa apreciação da
educação como um momento privilegiado em que olhares
emergem no cotidiano das experiências educativas. A partir
da premissa de que olhar é apreender o outro, queremos
potencializar a educação como um momento em que
olhares se entrecruzam, conflitos aparecem, subjetividades
são produzidas, consciências se formam, enfim, pessoas
- educadores e educados – vivenciam, num horizonte de
infinitos olhares, a experiência existencial do olhar e educar.

Palavras-chave: Educação; Fenomenologia; Filosofia da


Educação; Sartre; Subjetividade.

1 Márcio Danelon é professor na Faculdade de Educação da Universidade


Federal de Uberlândia, onde ministra aulas no curso de graduação em Educ. foco,
Pedagogia e no Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGED/UFU. Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 45-70,
E-mail: danelon@faced.ufu.br 45 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Danelon
Abstract
Education is a dialogical relationship. If self-instruction,
on the one hand, is possible for man, self-education, on
the other, is impossible since education presupposes an
otherness which presents the world from the culture
historically produced to the other. Because education is
an intersubjective relationship, the look attached to this
subjectivity finds itself in the world arena. Having that in
mind, the goal of this study is to establish a phenomenology
of the look from the theoretical framework of Sartre’s
existential philosophy, aiming to employ it as a tool in our
approach to education as a privileged moment in which looks
emerge in daily educational experiences. Starting from the
consideration that to look is to capture the other, we mean
to strengthen education as a moment when different looks
intertwine, conflicts appear, subjectivities are produced,
consciences are formed, finally, people - educators and
educated - experience, in a horizon of multiple looks, the
existential experience of looking and educating.

Keywords: Education; Phenomenology; Education


Philosophy; Sartre; Subjectivity.

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 45-70,
jul. 2015 / out. 2015 46
INTERSUBJETIVIDADE E Intersubjetividade e
Educação: O Estatuto
do Olhar nas Relações
Educativas. Uma

EDUCAÇÃO: O ESTATUTO Reflexão a partir


da fenomenologia
existencial de Sartre

DO OLHAR NAS RELAÇÕES


EDUCATIVAS. UMA REFLEXÃO
A PARTIR DA FENOMENOLOGIA
EXISTENCIAL DE SARTRE

1.  A EDUCAÇÃO NA FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL DE


JEAN-PAUL SARTRE: UM CAMPO A SER EXPLORADO

A obra de Jean-Paul Sartre (1905-1980) teve,


principalmente em meados dos anos 70 forte presença no
meio acadêmico brasileiro. Fonte de pesquisa em Filosofia,
Psicologia, Teatro e Literatura, sua obra é densamente
analisada por pesquisadores dessas áreas. Notadamente na
Filosofia, a obra de Sartre possui profundidade singular
quanto à discussão, no âmbito da antropologia filosófica,
da constituição da consciência e da subjetividade a partir
do princípio fenomenológico da intencionalidade da
consciência. Para além da filosofia da consciência, o conceito
sartreano de liberdade, visceralmente ligado ao princípio da
intencionalidade da consciência, é profícuo para os debates no
campo da ética. O GT “Filosofia Francesa Contemporânea”,
da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia –
ANPOF – vem produzido, há considerado tempo, valiosos
estudos a partir da obra de Sartre, dentre outros filósofos
franceses (Merleau-Ponty, Paul Ricoeur, Henri Bergson).
Apesar de haver muita obra a ser traduzida para o português,
notadamente a coletânea de artigos intitulada Situações (em
10 volumes), as principais obras filosóficas de Sartre, dentre
elas A Transcendência do Ego, O Ser e o Nada, Crítica da Razão
Educ. foco,
Dialética, estão publicadas em português, além dos teatros – Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 45-70,
Entre Quatro Paredes, As Moscas, A Prostituta Respeitosa – e das 47 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Danelon
obras de literatura A Náusea, O Muro e a trilogia Os Caminhos
da Liberdade,
Na área da educação, a obra de Sartre tem uma entrada
mais modesta, com apropriações de cunho mais geral dos
conceitos da fenomenologia e do existencialismo. A obra de
Morris, conhecido defensor da filosofia existencial de Sartre,
Existentialism in education (1990), apropria-se de conceitos
gerais da filosofia de Sartre como, por exemplo, o conceito de
projeto para defender que uma tarefa eminente da educação
é preparar o educando para construir livremente seu projeto
existencial. Nesse caso, o processo educativo deve levar em
consideração os projetos individuais de cada sujeito, pois cada
um se constitui como uma singularidade. No final das contas,
Morris acaba por ingerir uma educação em bases sartreanas
atrelada ao liberalismo, já que a premissa do existencialismo
de Sartre de que o homem é responsável pelos seus projetos,
é vastamente defendida por Morris como sendo um elemento
que a educação não pode se furtar de enfrentar.
Outra obra que toma a filosofia de Sartre como base
para a educação é a de GORDON e GORDON, Sartre’s
philosophy and the challenge of education (2001) que faz uma
análise, a partir da psicologia de Sartre, de como a educação
deve operar diante da filosofia da consciência tal qual Sartre
desenvolve em O Ser e o Nada. Nesse caso, o processo de
desenvolvimento psíquico da criança, tema fundamental para
a educação, adquire contornos diluídos uma vez que, para
Sartre, o psíquico é projeto de construção e não matéria densa
em que são instituídos, através do processo educativo, valores
e ideologias. É nesse sentido que a filosofia de Sartre constitui-
se num desafio para a educação, uma vez que o psíquico não
existe a priori, mas é um constructo fundado nas escolhas e
ações de cada sujeito.
Essas duas obras tomam como referência principal
o primeiro período da filosofia sartreana, momento em
Educ. foco,
Juiz de Fora, que o filósofo francês está fortemente influenciado pela
v. 20, n. 2, p. 45-70,
jul. 2015 / out. 2015 48 fenomenologia de Husserl e pela filosofia de Hegel e Heidegger,
principalmente. Em pesquisas feitas no Brasil vinculando Intersubjetividade e
Educação: O Estatuto
do Olhar nas Relações
Sartre com a educação, destaco duas que se apropriaram da Educativas. Uma
Reflexão a partir
principal obra que marca o segundo período da filosofia de da fenomenologia
existencial de Sartre

Sartre, Crítica da Razão Dialética, momento em que o filósofo


francês descobre a temática da historicidade e cuja influência
principal está em Marx. Trata-se, primeiro, do escrito Jean-Paul
Sartre: Educação e Razão Dialética (2004), de Walter Matias e
Do individual ao coletivo na critica da razão dialética de Sartre:
perspectivas educacionais tese de doutoramente defendida por
Cássio Donizete Marques, na Unicamp.
Ambas as obras não nos interessa, de fato, neste texto na
medida em que em nenhumas delas a temática da alteridade
é enfrentada. Nas obras do segundo período da filosofia de
Sartre, a intersubjetividade é abordada numa reflexão em torno
do coletivo e da historicidade. Nesse caso, os conflitos são
transferidos para os espaços instituídos para além, portanto,
da subjetividade. É nas obras do primeiro período, conhecido
como fenomenológico, que subjetividade e intersubjetividade
se enfrentam na arena do projeto existencial humano. Emerge
na filosofia sartreana uma fundamentação fenomenológica
da subjetividade. Isso significa que a subjetividade constitui-
se num projeto, ou seja, num constructo resultante do
reconhecimento de si enquanto ser em aberto, inacabado
e em relação com o outro. Está implícito, ao reconhecer a
subjetividade como um projeto, o processo de constituição
de si mesmo – na terminologia de Sartre, da consciência de
si2 - através das escolhas que fazemos no mundo. A filosofia

2 Esta temática da constituição da subjetividade vinculada a educação numa


perspectiva sartreana é tratada por Sílvio Gallo no texto Subjetividade e
Educação: a construção do sujeito. Refiro-me, notadamente a seguinte passagem:
“Entendo a estrutura da subjetividade como fundamentalmente a estrutura da
consciência pela fenomenologia existencial de Jean-Paul Sartre. A subjetividade
e a consciência são duas realidades justapostas, complementares e simultâneas:
a descoberta da consciência dá-se através do reconhecimento da subjetividade
– ‘eu sou’ -, e a subjetividade só tem sentido enquanto fenômeno consciente
– eu me reconheço como eu mesmo”. (GALLO, 2000, p. 48) A análise eleita Educ. foco,
Juiz de Fora,
pelo autor remete ao processo educativo como procedimento de vinculação v. 20, n. 2, p. 45-70,
ideológica que promove tecnologias de subjetivação do aluno. A análise 49 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Danelon
da consciência, à medida que toma a subjetividade como um
constructo, lança o sujeito no meio do mundo como projeto
que tem que se fazer3 enquanto ser de si mesmo. Nesse
caso, o sujeito é um ser jogado no meio do mundo, entre
outros sujeitos, cuja responsabilidade de constituir a própria
subjetividade é de si mesmo.
A temática da intersubjetividade e de sua relação com a
educação a partir da obra de Sartre é abordada em dois artigos que
chamo a atenção. O primeiro é de Benhamida Sartre’s Existentialism
and Education: The Missing Foundations of Human Relationships
que trata de uma crítica a obra de Sartre como base filosófica para
se pensar a educação4. O segundo artigo que queremos destacar é

gravita no campo da escola como instituição que, na maioria das situações,


vincula discursos hegemônicos. O autor não adentra na discussão feita por
Sartre, particularmente no capítulo O Para-Outro, de O Ser e o Nada, em que
a subjetividade se dá como construção intersubjetiva e que, necessariamente, é
conflituosa. É esta, pois, a chave de entrada que nos propomos a enfrentar neste
texto, indo, neste caso, por caminho alternativo do trilhado pelo professor
Sílvio Gallo.
3 É a quarta parte de O Ser e o Nada que Sartre desenvolve suas reflexões em torno
da necessidade do sujeito construir sua subjetividade a partir de seus projetos.
Nesse capítulo, a constituição do ser é resultante do fazer, ou seja, das escolhas
que fazemos no meio do mundo entre outras subjetividades que igualmente
estão fazendo-se ser. Daí o fato irredutível do conflito intersubjetivo, pois as
escolhas, muitas vezes, são conflituosas.
4 Este artigo de Benhamida, levanta algumas objeções à possibilidade de pensar
a educação em bases da filosofia existencial de Sartre. Entre as principais
objeções, destaco:
a-) a visão eminentemente subjetiva e individualista da antropologia existencial
de Sartre. De fato, o período fenomenológico da filosofia sartreana emerge
uma concepção de homem fortemente individualista, particularmente quanto
ao projeto existencial do sujeito e suas escolhas serem singulares. O romance
A Náusea, em especial, revela o projeto egoísta, poderíamos assim dizer, da
personagem Antoine de Roquetin como um projeto individualista, liberal
e pequeno burguês. Segundo Benhamida, como a educação é um processo
dialógico, intersubjetivo e heterônomo, como ele mesmo defende em seu
artigo, essa concepção individualista da antropologia sartreana caracteriza-
se como uma dificuldade insuperável para uma teoria da educação de base
sartreana;
Educ. foco, b-) o problema do conflito entre as subjetividades presente, em especial, no
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 45-70,
capítulo Para-Outro de O Ser e o Nada. Para Sartre, argumenta Benhamida,
jul. 2015 / out. 2015 50 as relações intersubjetivas são sempre conflituosas. Mais do que isso, o outro,
uma tentativa de resposta a esta crítica de Benhamida. Produzido Intersubjetividade e
Educação: O Estatuto
do Olhar nas Relações
por Bonnie Burstow A filosofia sartreana como fundamento Educativas. Uma
Reflexão a partir
da educação retoma, na primeira parte do artigo, as críticas de da fenomenologia
existencial de Sartre

Benhamida à aporia sartreana para as relações humanas – com


implicações para a educação – argumentado que as críticas de
Benhamida remetem tão somente a visão pessimista de Sartre
quanto às relações intersubjetivas desenvolvidas pelo filósofo
francês em O Ser e o Nada. A base da contra-argumentação de
Burstow à Benhamida fundamenta-se na premissa de que Sartre,
em outras obras – O Idiota da Família, em especial – elabora sua
teoria das relações intersubjetivas contemplando a possibilidade
de se estabelecerem ligações em que o conflito não mais aparece
como premissa de constituição de subjetividade - como nos
escritos acima mencionados - mas como facticidade plenamente
superável pelas escolhas e projetos que cada sujeito se propõe.
O que de fato emerge, segundo Burstow, é que Benhamida, em
seu artigo, não acompanhou este movimento tensional da obra
sartreana:
A verdade é que Benhamida e outros que
compartilham seu modo de pensar não
entenderam adequadamente a posição de
Sartre a respeito do que é o ser humano,
nem fazem justiça aos pontos de vista mais
liberais das relações humanas desenvolvidas
em seus últimos textos. O filósofo francês,
já em seus primeiros ensaios, apresenta uma
visão das relações humanas muito mais
promissora do que Benhamida afirma ou do
que pode parecer a uma leitura apressada.
(BURSTOW, 2000, p. 106 e 107)

para Sartre, se constitui num obstáculo para o projeto existencial do sujeito.


A relação Para-Si-Para-Outro é colocada como uma aporia insuperável na
antropologia filosófica. Da mesma forma que argumentamos acima, à medida
que a educação é relação intersubjetiva e o conflito é insuperável nas relações
sociais, antropologia filosófica existencial de Sartre é, para Benhamida, estéril
para a educação;
c-) uma última crítica, esta menos desenvolvida por Benhamida, refere-se ao Educ. foco,
Juiz de Fora,
silêncio da filosofai de Sartre quanto ao tema da infância, objeto privilegiado v. 20, n. 2, p. 45-70,
para a educação. 51 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Danelon
Não obstante essa discussão em torno da obra sartreana,
nos interessa apontar que o debate apresentado em ambos
os autores discorrem sobre a problemática da alteridade na
obra sartreana e sua interface com a educação. Porém, as
relações intersubjetivas demarcam duas subjetividades que se
encontram no meio do mundo, cada qual com seus projetos
e escolhas. Esse encontro, por sua vez, é marcado por uma
via de acesso que nos permite adentrar no ser dessa relação.
O olhar, na fenomenologia sartreana, é a tecnologia que
penetra no ser das relações, ou, na terminologia sartreana, o
olhar implica em seu bojo o “ser-visto-pelo-outro” (SARTRE,
1999, p. 332) como aquele que toma a subjetividade do
outro em seu olhar. Assim, o olhar transpassa o ser de cada
subjetividade presente na relação, de forma que o olhar do
outro endereça o ser do sujeito de si para si mesmo como “pura
remissão a mim mesmo” (SARTRE, 1999, p. 333). A medida
que a educação é pura relação intersubjetiva, é possível ao
homem apenas instruir-se sozinho, de fato. Porém, nenhum
sujeito consegue educar-se sozinho, pois em toda experiência
educativa está presente o ato de entrar em contato com o
mundo da cultura historicamente produzido pelo homem,
cuja entrada se faz através do outro que apresenta para a
criança o mundo da cultura. Nesse caso, o solipsismo está
proscrito das experiências educativas. Sendo, assim, intrínseca
a relação intersubjetividade e educação, a presença do olhar é
fato concreto em toda experiência educativa, seja ela escolar
(professor/aluno), familiar (pais/filho), religiosa (padre/
crente), profissional (patrão/empregado) ou social (colegas
que se educam). É a emergência do olhar, que atravessa as
experiências educativas, o objeto de nossa reflexão nesse texto.
Essa perspectiva de entrada na obra de Sartre, por sua vez,
não foi tematizada nem no artigo crítico de Benhamida à
Sartre, nem na tentativa de resposta de Burstow a Benhamida.
Ambos os artigos gravitam suas reflexões sobre a alteridade e
Educ. foco,
Juiz de Fora, educação, sem penetrar no cerne de toda relação intersubjetiva
v. 20, n. 2, p. 45-70,
jul. 2015 / out. 2015 52 que é o olhar.
2.  O FENÔMENO DO OLHAR NA EDUCAÇÃO: A Intersubjetividade e
Educação: O Estatuto
INSTAURAÇÃO DE UM PROBLEMA do Olhar nas Relações
Educativas. Uma
Reflexão a partir
da fenomenologia
No texto Fenomenologia do olhar, Alfredo Bosi tece, existencial de Sartre

desde os gregos até a contemporaneidade, as diversas maneiras


de como o olhar aparece na literatura. Constitui-se numa
fenomenologia5 do olhar exatamente porque está investido,
independente do lugar histórico desde onde se aborda este
tema, de intencionalidade. Em outras palavras, o olhar e a
intencionalidade estabelecem uma relação visceral, posto que
o “ato de olhar significa um dirigir a mente para um ‘ato de
in-tencionalidade’, um ato de significação” (BOSI, 1996,
p. 65). Se todo olhar é intencional, portanto, carregado de
significação, e se toda intencionalidade é um atirar-se para
fora (SARTRE, 1998, p. 10), é uma visada para o exterior,
então em todo olhar que se dirige para o outro enquanto
sujeito de sua intencionalidade, está carregado de significação.
Olhar para o outro é investi-lo de significação. Assim, olhar
“[...] não é apenas dirigir os olhos para perceber o ‘real’ fora
de nós. É tantas vezes sinônimo de cuidar, guardar, ações que

5 Composta de duas palavras gregas, phainomenon e logos, fenomenologia é


definida como a ciência do fenômeno, ou seja, daquilo que aparece. Porém,
a extensão do termo fenomenologia pode nos trazer imprecisões ou mau
uso do termo, uma vez que sendo o fenômeno tudo o que aparece, tudo que
se mostra, o domínio da fenomenologia é quase ilimitado. Dartigues, no
entanto, aponta precisamente essa tênue linha que separa a fenomenologia,
como tradição filosófica e método de conhecimento, de uma fenomenologia
banal: “ [...] não basta descrever um objeto, qualquer que seja de um ponto de
vista o interesse de sua descrição, para adornar essa descrição com o título de
‘fenomenologia’”. (DARTIGUES, s/d, p. 04) Em nosso caso, podemos falar
de uma fenomenologia do olhar porque esta aparece, particularmente na obra
sartreana, investida de intencionalidade. Todo olhar, para Sartre, é intencional,
é portador de historicidade, de interesse e de projetos. Além disso, o olhar é
instância constitutiva da subjetividade, pois, para Sartre, é pelo olhar do outro
que o sujeito constitui a si mesmo. Por fim, é preciso esclarecer que, numa
fenomenologia do olhar, não há confusão entre o olho e o olhar. Dito em
outras palavras, não podemos confundir e fazer filosofia sobre o olho, mas sobre
o olhar em que o olho aparece como suporte físico, conforme as palavras de
Sartre: “[...] o olhar não é uma qualidade entre outras do objeto que funciona
como olho, nem a forma total deste objeto, nem uma relação ‘mundana’ que se
estabelecesse entre este objeto e eu. Ao contrário, longe de perceber o olhar nos
objetos que o manifestam, minha apreensão de um olhar endereçado a mim Educ. foco,
Juiz de Fora,
aparece sob um fundo de destruição dos olhos que ‘me olham’; se apreendo o v. 20, n. 2, p. 45-70,
olhar deixo de perceber os olhos [...]” (SARTRE, 1999, p. 333). 53 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Danelon
trazem o outro para a esfera dos cuidados do sujeito: olhar
por uma criança...” (BOSI, 1996, p.78). Nesse cenário, é
nas relações intersubjetivas que o olhar ganha estatuto de
produtor de sujeitos ou que, numa fenomenologia do olhar,
emerge uma hermenêutica do sujeito. Ao olhar para o outro
é produzido uma subjetividade daquele que é olhado que,
porém, não lhe pertence: o outro é refém da hermenêutica do
olhar. Numa situação pedagógica em que a intersubjetividade
é pedra angular, o olhar ocupa lugar de destaque nas relações
aluno e professor como fenômeno que marca a construção
da subjetividade de ambos os atores do processo educativo.
Queremos dizer com isso que a escola, enquanto espaço formal
desde onde se produz educação entre subjetidades, surge como
espaço da arquitetura do olhar, como um espaço para olhar e
ser olhado, para vigiar e ser vigiado, conforme as palavras de
Bosi (1996, p. 78): “Estar de olho, ficar de olho, não perder do
olho e trazer de olho marcam um grau de interesse do sujeito
que beira a vigilância”. É esta experiência de estar sob o olhar
avaliador do outro numa situação pedagógica que queremos
explicitar como fenomenologia do olhar na educação.
Emerge, neste caso, uma tecnologia do olhar à medida que
olhar é construir e possuir a subjetividade do outro, segundo a
filosofia existencial de Sartre. Assim, o olhar que capta o aluno
é constitutivo daquilo que ele é, pois o olhar é portador do ser
do ser humano. Se não, vejamos.
No Colégio Ateneu6, Sérgio faz o relato de uma experiência
em sala de aula:
Entretinha-me a espiar os companheiros,
quando o professor pronunciou a o meu

6 Esse romance de Raul Pompéia foi objeto de estudos na área da educação,


tomando-o como cultura material para a compreensão da educação de meados
do século XIX. Entre esses estudos, destaco o texto História, Ficção e Educação:
Imagens do Ensino Brasileiro do Século XIX Projetadas pelo Ateneu, de autoria de
Carlos Henrique de Carvalho e José Carlos Souza Araújo (2005), que tem por
objetivo “[...] aproximar a análise histórico-educacional da obra de ficção, com
isso, poder lançar novos olhares sobre a organização das instituições de ensino
do século XIX no Brasil”. (CARVALGO; ARAÚJO, 2005, p. 44) Chamo a
atenção, também das dissertações de mestrado, De como a educação torna-
se palco no romance brasileiro: (uma tentativa de interpretação de “O Ateneu”
Educ. foco, de Raul Pompéia), de Maria Terezinha da Consolação Teixeira dos Santos,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 45-70,
defendida na PUC/SP, e Dossiê Sérgio: O Ateneu como romance de formação, de
jul. 2015 / out. 2015 54 Danilo de Oliveira Nascimento, defendida na Unicamp.
nome. Fiquei tão pálido que Mânlio – o Intersubjetividade e
Educação: O Estatuto
professor - sorriu e perguntou-me, brando, do Olhar nas Relações
Educativas. Uma
s queria ia à lousa. Precisava examinar-me. Reflexão a partir
da fenomenologia
E pé, vexadíssimo, senti brumar-se-me a existencial de Sartre

vista, numa fumaça de vertigem. Adivinhei


sobre mim o olhar visguento do Sanches, o
olhar odioso e timorato do Cruz, os óculos
azuis do Rebelo, o nariz do Nascimento,
virando devagar como um leme; esperei
a seta do Carlos, o quinau do Maurílio,
ameaçador, fazendo cócegas ao teto, com o
de do feroz; respirei no ambiente adverso
da maldita hora, perfundo pela emanação
acre das resinas do arvoredo próximo, uma
conspiração contra mim da aula inteira,
desde as bajulações de Negrão até a maldade
violenta do Álvares. Cambaleei até à lousa. O
professor interrogou-me; não sei se respondi.
Apossou-se-me do espírito um pavor
estranho. Acovardou-me o terror supremo
das exibições, imaginando em roda a ironia
má de todos aqueles rostos desconhecidos.
Amparei-me à tabula negra, para não cair;
fugia-me o solo aos pés, com a noção do
momento; envolveu-me a escuridão dos
desmaios, vergonha eterna! liquidando-
se a última energia ... pela melhor das
maneiras piores de liquidar-se uma energia”.
(POMPÉIA, 1991, p. 26)

Foi nesses termos de sua narrativa que Sérgio, aluno


do Ateneu, relata sua experiência de estar sob os olhares dos
colegas de classe que emergem como fenômenos no cenário da
sala de aula. Que fenômeno do olhar é esse que rasga o sujeito
por dentro ao ser visto, a ponto de acometê-lo de um desmaio
diante dos olhares? Emerge desta narrativa ficcional uma
técnica do olhar que perpassa a subjetividade da personagem,
num processo cirúrgico de desnudá-lo por dentro de seu
próprio ser. Tal qual o olhar da Medusa7 que petrifica o sujeito,
Educ. foco,
7 As Górgonas eram três, cuja rainha era Medusa, a única mortal. A lenda de Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 45-70,
Medusa a relata como uma jovem muito bela, cujos cabelos eram inigualáveis 55 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Danelon
a tecnologia do olhar presente no espaço escolar ultrapassa os
limites da corporeidade indo ao encontro do ser do humano.
O olhar do professor, consubstanciado pela tecnologia
de avaliação, rasga a imanência do aluno naquilo que ele é
enquanto sujeito de si mesmo, transformando-o, não numa
estátua de pedra como o olhar da Medusa, mas, igualmente
neste caso, num objeto de seu olhar avaliativo. A experiência,
narrada acima, de Sérgio, personagem do Ateneu eleito por
nós como paradigma daquele que está sob olhar alheio, é
universalizada nas inúmeras salas de aula das escolas em que
alunos estão sendo olhados, esmiuçados, avaliados, julgados
e subjetivados pela técnica do olhar do professor. Trata-se de
uma experiência limítrofe da existência humana à medida que
a imanência do sujeito/aluno está exatamente no interstício de
seu ser e do olhar do professor. O aluno, no momento daquela
experiência, tal qual o olhar da Medusa e a experiência de
Sérgio, tem o seu ser petrificado na fronteira da topografia
entre o si e o outro, entre ele, enquanto subjetividade, e o
professor, enquanto portador do processo de subjetivação8 da
imanência do aluno.

em formosura. Esse era o seu principal atrativo e, por ser belíssima, tinha vários
pretendentes. Sabendo de sua beleza ímpar, Medusa tinha orgulho de si e de
seus cabelos. Como, então, se transformou numa Górgona, palavra cuja fonte
é o adjetivo gorgós, que significa “impetuoso, terrível, apavorante”? (Conforme
BRANDÃO, 1988) Na evolução do mito encontramos duas variantes. Uma
primeira possibilidade estaria ligada ao fato de Medusa competir em beleza
com Atenas que, como castigo para tal prepotência, transformou os cabelos
dela em serpentes. Uma segunda variante está ligada à paixão de Poseibon
por Medusa. Conta o mito que o deus dos mares se apaixonou por Medusa e,
transformando-se num pássaro, transportou-a para o templo de Atenas onde
a engravidou. (Conforme COMMELIN, 1993) Irritada com este fato, Atenas
teria transformado Medusa em Górgona. Transformada em monstro, Medusa
tinha a cabeça cheia de serpentes, um dente pontiagudo e olhos flamejantes que,
de tão penetrantes, tinham o poder de transformar todos que ousassem olhar
para ela em pedra. Aquele que olha para os olhos de Medusa se petrificaria.
8 Necessário se faz uma breve digressão a fim de pontuar a diferenciação de
subjetividade e subjetivação. Em nossa reflexão, a subjetividade caracteriza-se
Educ. foco, como um processo autônomo de construção de si por si mesmo enquanto
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 45-70,
singularidade, emergindo dessa tecnologia um território autárquico de sua
jul. 2015 / out. 2015 56 subjetividade e de seu ser. É, nesse caso, a subjetividade como produto do
Consoante interpretações psicologizantes do mito – Intersubjetividade e
Educação: O Estatuto
do Olhar nas Relações
por exemplo, a associação da figura de Medusa a uma pulsão Educativas. Uma
Reflexão a partir
espiritual, portanto, aquele que olha os olhos de Medusa da fenomenologia
existencial de Sartre

vê, na verdade, sua própria alma maculada, manchada, feia,


daí o processo de petrificação – queremos, por hora, nos
interrogarmos sobre a vitalidade do olhar em paralisar, tornar
objeto o olhado? Qual é o significado do olhar e quais as suas
relações com a educação?
O enfrentamento desta situação limítrofe é possível a
partir de uma fenomenologia do olhar relacionando-a com a
educação, num exercício de compreensão o olhar como um fato
presente no bojo da existência humana em sua cotidianidade
intramundana. De fato, o olhar é um fenômeno no meio
do mundo com o qual a realidade humana se depara em seu
cotidiano. Isto significa que, continuamente, entrecruzamos
olhares com o outro, petrificamos e somos petrificados, daí
a emergência da fenomenologia do olhar, pois, a partir dela,
o olhar assume a forma de facticidade na existência humana.

3.  O ESTATUTO DO OLHAR NA FILOSOFIA SARTREANA:


IMPLICAÇÕES EDUCACIONAIS

Na digressão em torno da problemática de uma


fenomenologia do olhar, encontramos na filosofia sartreana,
notadamente, em Ser e o Nada, elementos importantes no
debate dessas idéias. Nessa obra, constituída como uma

exercício da liberdade do sujeito em fazer-se a si por si mesmo. Por subjetivação


compreendemos a produção da subjetividade de forma heterônoma, ou seja, o
sujeito faz-se enquanto sujeito pelos referenciais advindo do outro. No caso da
educação, o professor emerge como aquele outro que porta e constrói, a partir
de sua ideologia, a imanência do educando. Assim, o educando não se faz
sujeito por si mesmo, mas pelo olhar avaliador do outro, seja ele professor, pai,
mãe, padre, etc. Essa diferenciação aqui assumida é situada por Sílvio Gallo,
em “Subjetividade e educação: a construção do sujeito”, particularmente na
seguinte passagem: “No processo de subjetivação (construção heterônoma
da subjetividade-ideologia), o indivíduo recebe sua identidade de fora, da Educ. foco,
Juiz de Fora,
sociedade, enquanto que no processo de singularização (construção autônoma v. 20, n. 2, p. 45-70,
da subjetividade) o indivíduo constrói seu próprio ser”. (GALLO, 2000, p. 54) 57 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Danelon
ontologia fenomenológica, o olhar aparece como um fenômeno
no meio do mundo constituidor do ser do ser humano. Em
outras palavras, é pelo olhar do outro que emerge o ser da
consciência, ou, nas palavras sartreanas, o ser do para-si. Nesse
sentido, o mecanismo que torna possível a emergência do
olhar no universo da consciência é a aparição do fenômeno
humano como um outro. É na dimensão da alteridade9 que se
desenvolve, segundo Sartre, a fenomenologia do olhar.
O que é, então, o outro? Se a Medusa é o outro que
emerge frente à existência humana, petrificando-a com seu
olhar, cabe aqui interrogarmos pelo ser deste outro. Devemos
revelar que, na ontologia sartreana, a realidade humana, jogada
no meio do mundo entre outras existências, está fadada a
prerrogativa de se haver em seu ser numa relação com o outro.
Essa relação de alteridade, na filosofia existencial de Sartre, é
sempre conflituosa, conforme suas palavras:
Tudo que vale para mim vale para o outro.
Enquanto tento livrar-me do domínio
do outro, o outro tenta livrar-se do meu;
enquanto procuro subjugar o outro, o outro
procura subjugar-me. Não se trata aqui,
de modo algum, de relações unilaterais
com um objeto-Em-si, mas sim de relações
recíprocas e moventes. As descrições que se
seguem devem ser encaradas, portanto, pela
perspectiva do conflito (SARTRE, 1999, p.
454).

Numa passagem mais adiante, continua o filósofo


francês: “A essência das relações entre consciências não é o
Mitsein (ser-com), mas o conflito” (SARTRE, 1999, p.

9 A fenomenologia do olhar, na perspectiva sartreana, constitui numa das


estruturas possíveis na constituição antropológica da natureza humana numa
relação dialógica. O que queremos dizer com isso é que, pelo olhar do outro
se revela a possibilidade de constituição ontológica da existência humana, ou
seja, a relação de alteridade perpassada pelo olhar é uma relação de ser a ser:
Educ. foco, “... minha relação com o outro é tal que constitui em uma das estruturas de
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 45-70,
meu ser, devendo, então, ser abordada como uma relação fundamental de ser a
jul. 2015 / out. 2015 58 ser...” (JEANSON, 1965, p. 213).
531). Nesse caso, o encontro entre duas existências é sempre Intersubjetividade e
Educação: O Estatuto
do Olhar nas Relações
marcado pelo conflito, pela luta pelo poder sobre o outro, ou Educativas. Uma
Reflexão a partir
seja, as relações intersubjetivas são sempre relações de poder da fenomenologia
existencial de Sartre

e domínio. O outro é sempre aquele pelo qual não se tem o


controle:
Então, o que é (o outro)? Em primeiro
lugar, o outro é o ser ao qual não volto
minha atenção. É aquele que me vê e que
ainda não vejo; aquele que me entrega o que
sou como não-revelado, mas sem revelar-se
a si mesmo; aquele que me está presente
enquanto me visa e não enquanto é visado;
é o pólo concreto e fora de alcance de minha
fuga, da alienação de meus possíveis e do
fluir do mundo rumo a um outro mundo,
mundo este que é o mesmo e, contudo,
incomunicável com aquele (SARTRE, 1999,
p. 346. Entre parênteses é meu).

É aquele pelo qual o mundo emerge como um todo


organizado de sentidos e significações que não são nossos, mas
advindo do outro:
Assim, a aparição, entre os objetos de meu
universo, de um elemento de desintegração
deste universo, é o que denomino a aparição
de um homem no meu universo. [...] Capto
a relação entre o verde e o outro como uma
relação objetiva, mas não posso captar
o verde como aparece ao outro. Assim,
de súbito, apareceu um objeto que me
roubou o mundo. Tudo está em seu lugar,
tudo existe sempre para mim, mas tudo
é atravessado por uma fuga invisível e fixa
rumo a um objeto novo. A aparição do outro
no mundo corresponde, portanto, a um
deslizamento fixo de todo universo, a uma
descentralização do mundo que solapa por
baixo a centralização que simultaneamente
efetuo (SARTRE, 1999, p. 329 e 330).
Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 45-70,
59 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Danelon
Mais do que o sentido do mundo, pelo outro o meu
próprio sentido advém no meio de existências, ou seja, é pelo
outro que o sentido de meu ser ganha concretude:
E o outro, através do qual esse eu me advém,
não é conhecimento, nem categoria, mas o
fato da presença de uma liberdade estranha.
Na verdade, meu desprendimento de mim
e o surgimento da liberdade do outro
constituem uma só coisa; só posso senti-lo
e vive-los juntos; sequer posso conceber um
sem o outro (SARTRE, 1999, p. 353).

Ora, é essa incontrolável liberdade que se constitui o


outro em nosso horizonte que torna as relações de alteridade
sempre conflituosas. Ter a origem de seu próprio ser ou a sua
imanência na dimensão do outro, é não ter controle sobre
o outro e muito menos sobre si próprio; é estar inseguro do
próprio ser, conforme as palavras de Sartre (1999, p. 457):
Mas, precisamente porque existo pela
liberdade do outro, não tenho segurança
alguma, estou em perigo nesta liberdade;
ela modela meu ser e me faz ser, confere-me
valores e os suprime, e meu ser dela recebe
um perpétuo escapar passivo de si mesmo.
Irresponsável e fora de alcance, esta liberdade
proteiforme na qual me comprometi
pode, por sua vez, comprometer-se em mil
maneiras diferentes de ser.

Se o mundo ganha contornos de mundo - com os seus


sentidos, significações e verdades - pela aparição do outro; se o
sentido do próprio ser é dado pelo outro; se o sujeito tem que
se deparar em seu cotidiano com esta incontrolável liberdade
que se constitui o outro, com o poder de descentralizar a
organização do mundo que cada um efetua, então é com
desconforto que o outro emerge em nosso horizonte. Trata-se
da alteridade como o inferno10. É em função desse descontrole
Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 45-70,
jul. 2015 / out. 2015 60 10 Conforme SARTRE, 2005.
sobre o outro e do sentido do mundo brotar dessa outra Intersubjetividade e
Educação: O Estatuto
do Olhar nas Relações
existência que as relações intersubjetivas são sempre marcadas Educativas. Uma
Reflexão a partir
pelo conflito. Pelo olhar, como um instrumento de exercício da fenomenologia
existencial de Sartre

de construção da subjetividade, que o outro petrifica o sentido


que atribuímos ao mundo e a nós próprios, transformando-
os numa objetividade transcendente a si próprio. É esse,
na perspectiva sartreana, o princípio de alienação, ou a
transformação do sujeito, pelo olhar do outro, numa coisa
manipulável, moldável e estranha a si mesma.
Ora, se as reflexões em torno de uma fenomenologia do
olhar nos conduziram a uma aporia insuperável nas relações
de alteridade11, o que nos revelará a intrincada relação entre

11 Esse é o argumento central de Benhamida para a defesa de sua tese da


insuficiência da filosofia existencial de Sartre servir de fundamento para a
educação. Cito o texto de Benhamida: “ [...] pelo motivo de dois projetos
não poderem se coincidir, a única relação possível entre dois indivíduos é o
conflito”. (BENHAMIDA, 1973, p. 235). O contra-argumento de Burstow e
a defesa de uma possibilidade de deslocamento da ontologia fenomenológica
existencial de Sartre para a educação fia-se na tese, conforme já expusemos, da
intrínseca relação entre alteridade e subjetividade, ou seja, o outro, além de
limite, é condição sine qua non da constituição do sujeito. Cito: “Benhamida
sugere que Sartre vê o Outro como um limite especial à minha liberdade. Nisso
está absolutamente correto. Sartre afirma que o Outro é um ser que de modo
ativo sabota minhas livres escolhas. Além disso, vê o Outro como o ser pelo
qual eu me torno objeto [...] O Outro me dá um exterior do qual estou para
sempre alienado e que fica em suas mãos. Isto constitui um limite genuíno
para minha liberdade. [...] Se a existência do Outro constitui um limite para
minha liberdade, contudo não me limita ‘como ser humano’. Como assim?
Porque é o Outro que me torna um ser humano. Eis um ponto essencial e
um ponto totalmente negligenciado por esses críticos”. (BURSTOW, 2000,
p. 109). A tese de Benhamida está correta ao apontar a aporia das relações
de alteridade na educação. Porém, o conflito ocorre na arena em que dois
olhares se encontram e se digladiam pelo controle sobre a subjetividade alheia.
Esse argumento é premissa da filosofia sartreana e da qual não podemos nos
esquivar. A solução de Burstow não satisfaz, contudo porque fundamenta-se
numa posição sartreana de aceitabilidade e de respeito intersubjetivo que, de
fato, em O Ser e o Nada, não existe. Nesse sentido, a resposta à Benhamida fica
comprometida, pois a crítica deste autor à Sartre circunscreve-se nesta obra de
Sartre – O Ser e o Nada -. A proposta que queremos apresentar caminha numa
outra direção na medida em que o conflito entre subjetividades não se esgota
nele mesmo. O conceito de liberdade, amplamente defendida por Sartre em O Educ. foco,
Juiz de Fora,
Ser e o Nada, parece-me o território plausível para a transcendência do conflito v. 20, n. 2, p. 45-70,
justamente porque cada subjetividade é livre para fazer o que quiser com aquilo 61 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Danelon
a ontologia (já que o olhar é constituidor do ser do mundo e
do próprio sujeito) e a educação? Não encontramos as mesmas
aporias nas relações intersubjetivas presentes na educação? De
fato, não estão presentes na educação relações de conflito e de
poder entre consciências? Não seria exatamente este o papel
dos educadores junto as crianças?
Em sua autobiografia As Palavras, Sartre nos dá uma
pista bastante produtiva de como se estabelece em tênues fios
o equilíbrio nas relações entre criança e adulto, ao afirmar:
Minha verdade, meu caráter e meu nome
estavam nas mãos dos adultos; aprendera
a ver-me com os olhos deles; eu era uma
criança, esse monstro que eles fabricam
com suas queixas. Ausentes, deixavam atrás
de si o olhar, misturado à luz; eu corria, eu
saltava através deste olhar que me conservava
minha natureza de neto, que continuava a
me oferecer meus brinquedos e o universo
(SARTRE, 1964, p. 53).

Destaca-se, dessa passagem, a experiência vivida


por Sartre, ainda em sua infância, de ter sua subjetividade
instituída pelo olhar do outro. A “construção do mostro” foi
o ato inaugurador da subjetividade de Sartre. “Monstro” é a
topografia de si mesmo e do qual Sartre não pode escapar. A
fenomenologia do olhar nos revela, conforme temos afirmado
neste artigo, uma tecnologia do olhar nas relações educativas,
sejam essas relações formais e institucionais ou informais.
Nessas relações encontramos a presença da figura do outro
como aquele que descentraliza o sentido do mundo dado

que o outro fez dele: “Nessas condições a liberdade não pode ser senão esta
nadificação. E através dela que o para-si escapa de seu ser como de sua essência;
é através dela que constitui sempre algo diverso daquilo que pode-se dizer
dele, pois ao menos é aquele que escapa a esta denominação mesmo, aquele
que já está além do nome que se dá ao da propriedade que se lhe reconhece”
(SARTRE, 1999, p. 543). Nesse sentido, em última instância, a objetivação
Educ. foco, do sujeito emergido do conflito é decantada pela liberdade do próprio sujeito
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 45-70,
que, se o seu projeto existencial assim o constitui, pode, a partir de si mesmo,
jul. 2015 / out. 2015 62 transcender a transcendência que o outro fez dele.
pela criança, coagulando-o em seu olhar sobre o mundo. Ora, Intersubjetividade e
Educação: O Estatuto
do Olhar nas Relações
parece-nos que é exatamente isto que nós, adultos, fazemos Educativas. Uma
Reflexão a partir
cotidianamente com as crianças: trazemos até elas a verdade da fenomenologia
existencial de Sartre

do mundo no sentido de que, independente do significado


que ela der para um objeto qualquer, este terá um sentido pré-
determinado instituído pela cultura. Este sentido se constitui
na verdade, independente dos outros sentidos que possam ser
construídos. Dessa forma, é pelas mãos dos adultos que cada
coisa tem um nome correto, com uma forma correta de ser
pronunciada. É papel educativo do adulto corrigir e ensinar a
criança o nome designativo de cada objeto, com o seu sentido,
sua utilidade, sua forma correta de ser usado, etc. As verdades
do mundo estão dadas. Independente do fato da criança dar
o sentido de brinquedo para um apagador, por exemplo, este
sempre será um objeto com um nome definido que deve ser
usado para apagar a lousa. Educar, de fato, é introduzir a
centralidade do mundo efetuada pelo adulto, nesta inquietante
liberdade que é a criança. É no exercício de controle sobre o
imponderável que é a criança, que ela aprende que existe uma
hora determinada para dormir ou saciar a fome e uma forma
correta de se alimentar; que ela aprende que existe um lugar
específico para suas necessidades fisiológicas; que ela aprende o
que pode ser feito e o que é proibido, o que é certo ou errado,
quais os brinquedos de menino e de menina, etc. Conforme
afirmamos acima, o sentido do mundo advindo da criança, é
o sentido do mundo trazido até ela pelo adulto e o papel da
educação é trazer o mundo da cultura para as crianças.
Se é o educador, aquele outro que dá os contornos do
mundo para a criança, quem descentraliza os significados das
coisas emanados delas, quem leva a verdade até elas, é ele,
também, quem atribui o sentido da criança para ela mesma.
Ora, se “minha verdade, meu caráter e meu nome estavam nas
mãos dos adultos”, se “aprendera a ver-me com os olhos deles;
eu era uma criança, esse monstro que eles fabricam com suas
Educ. foco,
queixas”, o próprio ser da criança não a pertence. Aquilo que Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 45-70,
ela é, como se vê, se identifica e se define, suas crenças e valores, 63 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Danelon
sua subjetividade, enfim, são sentidos e conceitos vindos do
adulto. De fato, educar não seria exatamente formar a criança,
introduzi-la uma subjetividade, ou um caráter para o cultivo,
por exemplo, do conhecimento, dos valores e da cidadania?
Não é precisamente isto que o educador faz com as crianças,
classificando-as de acordo com sua interpretação, com seus
critérios de valor? Não é prática do educador definir aquilo que
a criança é com classificações do tipo inteligente, atenciosa,
incapaz ou bagunceira? Nesse caso, educar é atravessar a
criança com sentidos que formatam o que ela é, formando
um sujeito consciente dos sentidos do mundo, consciente dos
valores de certo e do errado, consciente da forma como se deve
viver e quais projetos de vida são desejáveis e indesejáveis.
O estudo da alteridade nos revelou que este outro é
portador de um olhar do qual se efetiva o descentramento do
mundo da criança, coagulando-o e petrificando-o no sentido
do mundo vindo do adulto: o outro é o portador do próprio
olhar da Medusa, conforme as palavras de Sartre (1999, p.
531. Entre parênteses é meu): “O outro, ao surgir, confere
ao Para-si (sujeito consciente) um ser-Em-si-no-meio-do-
mundo, como coisa entre coisas. Essa petrificação em Em-
si (coisa) pelo olhar do outro é o sentido profundo do mito
da Medusa”. Na perspectiva da fenomenologia sartreana, o
descentramento do mundo e do próprio sujeito a partir do
surgimento do outro, se dá pelo olhar do outro: ele é portador
do olhar objetivador do outro, conforme Sartre (1999, p. 359):
“O outro está presente a mim onde que seja, como aquilo pelo
qual eu me torno objeto”. Mais adiante adensa este conceito:
A prova de minha condição de homem,
objeto para todos os outros homens vivos,
lançado na arena debaixo de milhões de
olhares e escapando-me a mim mesmo
milhões de vezes, eu a realizo concretamente
por ocasião do surgimento de um objeto em
Educ. foco,
meu universo, se este objeto me indica ser
Juiz de Fora, provavelmente objeto, no presente, a título
v. 20, n. 2, p. 45-70,
jul. 2015 / out. 2015 64 de isto indiferenciado para uma consciência. É
o conjunto do fenômeno que denominamos Intersubjetividade e
Educação: O Estatuto
olhar (SARTRE, 1999, p. 360). do Olhar nas Relações
Educativas. Uma
Reflexão a partir
da fenomenologia

Finalmente, numa outra passagem, lemos: existencial de Sartre

Eu sou, para além de todo conhecimento


que posso ter, esse eu que o outro conhece.
E esse eu que sou, eu o sou em um mundo
que o outro me alienou, porque o olhar do
outro abraça meu ser e, correlativamente,
as paredes, a porta, a fechadura; todas essas
coisas-utensílios, no meio das quais estou,
viram para o outro uma face que me escapa
por princípio. Assim, sou meu ego para o
outro no meio de um mundo que escoa em
direção ao outro [...] Aqui, ao contrário, a
fuga não tem limites, perde-se no exterior, o
mundo escoa para fora do mundo e eu escôo
para fora de mim; o olhar do outro faz-me ser
para-além de meu ser nesse mundo, no meio
de um mundo que é, ao mesmo tempo, este
mundo e para além deste mundo (SARTRE,
1999, p. 336 - 337).

Pelo olhar o outro torna o sujeito em objeto, petrifica-o


numa coisa disforme. Escoa para fora dele o ser do mundo,
o ser dele próprio. O olhar do adulto dirigido à criança e a
criança tornada objeto do adulto, massa disforme moldada
pelo olhar do adulto. Aqui encontramos o inimigo comum:
é o educador com seu olhar de Medusa dirigido à criança,
paralisando-a diante da revelação de que o outro a vê; é o
educador com seu olhar de Medusa que instaura na criança
a vergonha e o medo de ser pega “fazendo arte”, fazendo
bagunça”; é o olhar de Medusa do educador que petrifica a
criança carimbando, marcando, classificando-a com valores,
conceitos, pré-conceitos que grudam nela com tal densidade
que não se vê mais a criança, mas, sim, a marca, a classificação
que lhe foi dada; é o olhar de Medusa do educador que
educa instaurando a vigilância sobre as ações das crianças,
Educ. foco,
instituindo o controle sobre elas; é o olhar de Medusa do Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 45-70,
educador que institui o controle tornando o corpo irrequieto 65 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Danelon
e arteiro num corpo dócil, controlável, manipulável, com suas
necessidades, funções e seu campo de ação pré-estabelecidos; é
o olhar de Medusa do educador, enfim, que rouba da criança
a possibilidade dela ser, de construir livremente seu ser, sua
visão de mundo, sua ética e seus valores.
(IN)CONCLUSÕES SARTREANAS: LIBERDADE E OLHAR

As relações intersubjetivas vividas no meio do mundo


configuram-se pelo conflito imanente às relações humanas. Estar
diante de outra subjetividade é estar em conflito com ela. Nesse
caso, a experiência de Sérgio de O Ateneu, revela a essência das
relações intersubjetivas presentes na educação, uma vez que, estar
em processo de educação é estar em relação com o outro, num
estratagema de múltiplas experiências de ensino/aprendizagem.
Ter seu ser apreendido pelo olhar do outro, conforme a
experiência de Sérgio, traz consigo o desconforto de seu mundo
estar diluído no meio do mundo do outro. Não obstante isso,
a superação do conflito na filosofia sartreana é premissa para a
constituição de sua ontologia existencial, no sentido de que se o
sujeito se constituísse somente pelo olhar do outro, seu ser não
lhe pertenceria enquanto imanência, mas estaria territorializado
no olhar do outro. Em outras palavras, o sujeito seria um ser
humano sem ser, uma vez que seu ser não estaria em si, mas no
outro, mais precisamente no olhar do outro. Nesse caso, o ser do
ser humano é produto de sua constituição a partir de suas escolhas
e projetos. Ou melhor, é produto de sua construção subjetiva
enquanto um ser que está por fazer-se. Isso é possível à medida
que a antropologia existencial de Sartre define o homem como
liberdade, conforme suas palavras: “Logo, aquilo que chamamos
liberdade não pode diferençar do ser da ‘realidade humana’. O
homem não é primeiro para ser livre depois: não há diferença entre
o ser do homem e seu ‘ser-livre’” (SARTRE, 1999, p. 68). Assim,
a “ [...] liberdade faz-se ato, e geralmente alcançamo-la através do
Educ. foco,
Juiz de Fora, ato que ela organiza com os motivos, os móbeis e os fins que esse
v. 20, n. 2, p. 45-70,
jul. 2015 / out. 2015 66 ato encerra (SARTRE, 1999, p. 541 - 542).
A demarcação da natureza humana como ser-livre Intersubjetividade e
Educação: O Estatuto
do Olhar nas Relações
permite-lhe novamente, a despeito do conflito nas relações Educativas. Uma
Reflexão a partir
intersubjetivas, ser responsável pelo seu próprio ser: a da fenomenologia
existencial de Sartre

subjetividade de cada sujeito é um constructo cuja tarefa,


compromisso e responsabilidade de si para si mesmo. O homem
faz-se ser enquanto liberdade de escolher aquilo que deseja
ser. O ato educativo, nesse caso, é o exercício da liberdade em
transcender, tanto aquilo que ele é enquanto subjetividade,
quanto a objetividade que o outro faz de sua subjetividade.
Todo ato educativo, então, é possibilidade de transcendência
de si mesmo para si enquanto desejo de ser. Este projeto se faz
presente em nós que buscamos na educação, uma experiência
de construção de nosso próprio ser, de nossa identidade e de
nosso lugar e papel na sociedade.
Neste entendimento do ato educativo, o homem se faz
ser num futuro em que ele se realiza enquanto projeto gestado
no bojo de seus motivos e móbiles. Aqui, o homem se faz ser
enquanto uma obra sempre aberta: a existência como uma obra
inacabada. Essa re-significação permite ao autor de si mesmo
recuperar seu passado, vencer as objetivações em seu presente
a partir dos sentidos que ele constrói nos projetos futuros. Em
outras palavras, o passado – aquilo que o sujeito é – e o presente
– aquilo que sujeito não é – ganham sentido a partir do futuro,
ou seja, a partir da transcendência de si rumo ao projeto de si
mesmo. A escrita como produção autêntica de si num lançar-se
ao futuro sempre aberto e inacabado. Inscreve-se uma educação
estética, enquanto construção de si pelo exercício da liberdade
de fazer-se ser. É nessa dimensão da estética que encontramos
uma perspectiva da educação como a instância do cuidado do
ser-no-mundo. Percebemos que uma experiência educativa, tal
qual vivida por Sérgio de O Ateneu em que a objetivação da
subjetividade ocorre através do olhar avaliador do professor e
dos colegas é superada, é transcendida pelo ato de liberdade de
produzir a si mesmo a partir de suas escolhas, num exercício
Educ. foco,
estético de si mesmo. Dito de outra forma, o homem é uma Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 45-70,
multipossibilidade de ser da qual a educação não pode escapar 67 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Danelon
de enfrentar e de se haver. Não há espaço, neste caso, para a
educação conceber, a priori, um fim para a formação do homem;
não há espaço para um objetivo para o processo da educação.
Aquilo que o sujeito se constituir em suas escolhas cotidianas é
projeto autêntico dele próprio e não produto da educação.
Nesse mesmo sentido, uma educação enquanto estética
de si mesmo não se constitui num processo de formação
ou de objetivação da subjetividade, mas ela apresenta as
ferramentas necessárias para o sujeito projetar seu ser, a
partir de suas escolhas, num futuro. Em outras palavras, a
educação apresenta o mundo da cultura – nomes, conceitos,
significados, ideologias, valores éticos etc – para o homem que
faz dessa cultura sua ferramenta primordial para a produção
de sua existência como criação estética de si. Aquilo que o
sujeito faz de si – ser um cidadão com valores burgueses ou
um anarquista amoral – é resultado do processo de construção
da própria existência utilizando os sentidos e significados da
cultura apresentados pela educação. O mesmo se dá para o
sentido atribuído pela cultura ao mundo: constitui-se em
ferramentas para o sujeito construir seu sentido sobre o
sentido dado ao mundo num processo em que externaliza seus
fins autenticamente produzidos. Nesse cenário, o homem é o
artista de sua própria existência e a educação é o pincel, a tela
e as tintas com os quais o sujeito vai produzir, num exercício
de liberdade, sua própria existência. Enfim, o significado e
as cores do mundo, o brilho do verniz que encobre a tela,
a forma correta de elaborar os traços que formam as figuras
do mundo, são formas, cores, traços e tons que o educando
produz a partir de si.
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Educ. foco,
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Data de recebimento: novembro de 2013


Data de aceite: junho de 2014

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. 45-70,
jul. 2015 / out. 2015 70
PROBLEMAS E DESAFIOS Problemas e Desafios
para a Produção do
Conhecimento em
Educação: Fundamentos

PARA A PRODUÇÃO DO Filosóficos

CONHECIMENTO EM EDUCAÇÃO:
FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS
Samuel Mendonça1

Resumo
Examinamos, neste artigo, a importância dos fundamentos
filosóficos para a produção do conhecimento em educação
perpassando aspectos do racionalismo, do empirismo
e de discussões em torno dos paradigmas, no sentido de
explicitar que a insegurança deve ser assumida, de forma
segura e rigorosa, nos tempos atuais, para a produção do
conhecimento educacional. A discussão sobre os problemas
e desafios para a produção do conhecimento educacional
reivindica que se questione, inicialmente, a própria
noção de conhecimento. No entanto, esta noção é tão
problemática que, por meio da interpretação, Friedrich
Nietzsche (1844-1900) enfatiza os riscos de se assumir a
verdade como universal e derradeira. O conhecimento,
a experiência e os paradigmas dizem respeito a aspectos
que fundamentam as discussões sobre os desafios para a
produção do conhecimento em educação. A interpretação,
em especial, o cuidado em não assumir a verdade como
dogmática, refere-se ao principal desafio e problema para a
produção do conhecimento em educação.

Palavras-chave: Conhecimento; Educação; Verdade;


Paradigmas.

1 Samuel Mendonça é professor da Faculdade de Educação da PUC Campinas,


Educ. foco,
onde trabalha também no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Juiz de Fora,
Educação. v. 20, n. 2,
p. 71-94,
E-mail: samuelms@gmail.com 71 jul. 2015 / out. 2015
Samuel Mendonça
Abstract
We examine in this article, the importance of the
philosophical foundations for the knowledge production in
education from aspects of rationalism, empiricism and
discussions of paradigms in order to explain that insecurity
must be assumed, in a safe and rigorous way,  in current
times, for the  knowledge production in education. The
discussion about  the problems and challenges for the
knowledge production in education, initially, requires the
discussion of the notion of knowledge. However, this notion
is so problematic that, through interpretation, Friedrich
Nietzsche (1844-1900) emphasizes the risks of assuming the
truth as universal and ultimate. The knowledge, experience
and paradigms concern to aspects underlying the discussions
about  the challenges for the  knowledge production  in
education. The interpretation, especially taking care not to
presume a dogmatic truth, refers to the main problem and
challenge for the knowledge production in education.

Keywords: Knowledge; Education; Truth; Paradigms.

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
p. 71-94,
jul. 2015 / out. 2015 72
PROBLEMAS E DESAFIOS Problemas e Desafios
para a Produção do
Conhecimento em
Educação: Fundamentos

PARA A PRODUÇÃO DO Filosóficos

CONHECIMENTO EM EDUCAÇÃO:
FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS2
A discussão sobre os problemas e desafios para a produção
do conhecimento em educação, a partir de fundamentos
filosóficos, reivindica que se questione, inicialmente, a própria
noção de conhecimento. Em que pese o fato de que muito
já se produziu sobre o conhecimento ao longo da história
do pensamento humano, ao retomar as contribuições da
teoria do conhecimento do período clássico não se pode
preterir as correntes do racionalismo e do empirismo. A
revolução científica do século XVII foi fundamental para
a reconstrução do saber no momento em que se tinha a
definição do conhecimento de forma sectária, vertical e
cunhada pela tradição medieval. São os filósofos modernos
os protagonistas que passam a reconstruir o conhecimento
a partir da racionalidade e da experiência. No entanto, essa
construção é tão limitada quanto as objeções feitas à forma de
conhecimento do período medieval e será Friedrich Nietzsche
(1844-1900), o grande crítico da racionalidade e da ciência.
Se no primeiro período, inaugurado em 1872 com
a publicação da obra Der Geburt der Tragödie aus dem
Geiste der Musik (1999), Nietzsche se ocupa em discutir o
aspecto trágico do homem, suas relações de forças presentes
nas figuras de Apolo e Dionísio, é na obra intermediária,
Menschliches, Allzumenschliches. Ein Buch für freie Geister
(1999a) que o filósofo vai criticar a postura dos cientistas e

2 Uma versão modificada deste texto foi apresentada no Curso Internacional


“Epistemología e Investigación en Educación”, organizado pelos Programas de Educ. foco,
Maestría en Educación y Doctorado en Ciencias de la Educación com o apoio Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
da Escuela de Posgrado da Pontificia Universidad Católica del Perú, em Lima, p. 71-94,
nos dias 26 e 27/09/2012. 73 jul. 2015 / out. 2015
Samuel Mendonça
a ciência que se consagrara. O fragmento 483 é emblemático
ao afirmar: “Inimigas da verdade – convicções são inimigas
da verdade mais perigosas que as mentiras”3. No entanto,
é no terceiro período, inaugurado a partir de Morgenröte
(1999b), que as temáticas Der Wille zur Macht (a vontade de
potência) e Übermensch (além do homem) são desenvolvidas,
esquadrinhadas e colocadas à luz na construção de um novo
tipo de homem, muito livre. Almeida (2007) apresenta, em
detalhes, a caracterização dos três períodos de Nietzsche.
A educação aparece cada vez mais na pauta de
discussão de gestores públicos nos cinco continentes, por
meio da contribuição de profissionais de diversas áreas do
conhecimento; e, para não se restringir o debate à questão
formal, ligada à escola e ao ensino, é preciso problematizar
a questão da educação não apenas como um campo do
conhecimento sistemático, mas, fundamentalmente, como
caminho para o desenvolvimento da personalidade do homem
e, principalmente, como meio e conteúdo da formação de
cidadãos; logo, a educação parece apontar para a ideia de vida
social organizada, consubtanciada pela democracia. Ora, pensar
os desafios e problemas para a produção do conhecimento em
educação, a partir de fundamentos filosóficos, nesse sentido,
é tarefa complexa. Em primeiro lugar, pelo fato de que não se
tem mais o conceito de conhecimento como algo estabelecido;
qual seria, então, a segurança em discutir um conceito que
é dinâmico e não uniforme? Em segundo lugar, porque as
discussões em torno da ciência e da interpretação, de alguma
forma, apontam para a necessidade de questionar o estatuto
do conhecimento educacional na sociedade atual.
Em um fragmento póstumo de 1886-1887, marcado
pela sua crítica à ciência, em especial contra os utilitaristas
que argumentavam que contra fatos não havia argumentos,
Nietzsche se posicionou claramente:
Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, 3 Tradução livre. No original se lê: “Feinde der Wahrheit. – Überzeugungen sind
p. 71-94,
jul. 2015 / out. 2015 74 gefährlichere Feinde der Wahrheit als Lügen” (NIETZSCHE, 1999a, p. 254).
Contra o positivismo, que permanece junto Problemas e Desafios
para a Produção do
ao fenômeno afirmando “só há fatos”, eu Conhecimento em
Educação: Fundamentos
diria: não, justamente fatos não há, há Filosóficos

apenas interpretações. Nós não podemos


fixar nenhum fato “em si”: talvez seja
mesmo um disparate querer algo assim.
“Tudo é subjetivo”, vós afirmais: mas já
isto é interpretação. O sujeito não é nada
dado, mas algo anexado, colocado por
detrás. – É por fim necessário colocar ainda
o intérprete por detrás da interpretação?
Já isto é poetização, hipótese. Conquanto
a palavra “conhecimento” possui
acima de tudo sentido, o mundo é
cognoscível: mas ele é passível de receber
outras explicitações, ele não possui
nenhum sentido por detrás de si, mas
infindos sentidos, “Perspectivismo”.4
(NIETZSCHE, apud, NOVA, 2001, p. 31).

A questão da interpretação é fundamental para se pensar


os desafios e problemas da educação dos tempos modernos. O
que é educação; afinal? O que é o conhecimento educacional?
Qual ou quais os métodos adequados para a pesquisa
educacional que assegurem qualidade à pesquisa educacional?
Azanha (2011) especula que há sérios problemas nas pesquisas
em educação em relação à dimensão da qualidade.
(...) a má qualidade se evidenciaria por
falhas como as seguintes: inadequado
registro de observações, não fidedignidade
ou não validade dos instrumentos de coleta
de dados, ambiguidade ou imprecisão

4 No original se lê: “Gegen den Positivismus, welcher bei dem Phänomen stehen
bleibt “es giebt nur Thatsachen”, würde ich sagen: nein, gerade Thatsachen giebt
es nicht, nur Interpretationen. Wir können kein Factum “an sich” feststellen:
vielleicht ist es ein Unsinn, so etwas zu wollen. “Es ist alles subjektiv” sagt ihr:
aber schon das ist Auslegung, das “Subjekt” ist nichts Gegebenes, sondern etwas
Hinzu-Erdichtetes, Dahinter-Gestecktes. — Ist es zuletzt nöthig, den Interpreten
noch hinter die Interpretation zu setzen? Schon das ist Dichtung, Hypothese. Educ. foco,
Soweit überhaupt das Wort “Erkenntniß” Sinn hat, ist die Welt erkennbar: aber Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
sie ist anders deutbar, sie hat keinen Sinn hinter sich, sondern unzählige Sinne p. 71-94,
“Perspektivismus”. (NIETZSCHE, 1988, KSA, 12, 7 (60)). 75 jul. 2015 / out. 2015
Samuel Mendonça
conceitual de terg qe mos relevantes, não
representatividade dos casos estudados,
inadequação das técnicas de análise
(estatística ou outras), incoerência na
argumentação etc. E, de fato, até mesmo sem
muito esforço é possível assinalar a presença
de uma ou mais falhas em pesquisa realizadas
em qualquer área, inclusive a educacional”
(AZANHA, 2011, p. 16)

Os problemas levantados por Azanha (2011) indicam


a necessidade de fundamentos filosóficos para a pesquisa
educacional; afinal, o rigor, a precisão, a conceituação e o
cuidado com as fontes revelam um perfil de pesquisador com
preocupação ética e com honestidade intelectual. Isto não
significa que o estudo da filosofia promove, de forma tácita,
esta formação axiológica, todavia, a filosofia pode auxiliar a
formação cuidadosa do pesquisador na medida em que explicita
os limites e desafios para a produção do conhecimento e a
responsabilidade na tomada de decisões quanto ao fenômeno
estudado.
Dentre os problemas e desafios que pretendemos discutir
neste artigo, enfatizaremos dois temas gerais, quais sejam: (i)
a questão do conhecimento e (ii) a questão da interpretação.
Além disso, discutiremos também o conceito de paradigma.
Em seguida, problematizaremos a questão da interpretação
assumida como o principal desafio para a produção do
conhecimento em educação, na dimensão filosófica.
A opção por Nietzsche como marco teórico se justifica
na consideração de que se trata de um crítico contundente
da questão do conhecimento ao colocar à luz o problema da
verdade universal. Se, por um lado, os pensadores da revolução
científica buscavam a verdade a partir do uso de um método
(DESCARTES, 1983), por exemplo, Nietzsche (2012), por
outro lado, critica o conhecimento metódico e denuncia a
Educ. foco, armadilha da então ‘nova’ forma de construir o saber. Incomodado
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, com construções ilusórias e disfarçadas em roupagem de
p. 71-94,
jul. 2015 / out. 2015 76 verdade, denuncia o problema da linguagem, da subjetividade
e do conhecimento, colocando em questão o estatuto daquilo Problemas e Desafios
para a Produção do
Conhecimento em
que se afirmava como “a” verdade. A relevância de Nietzsche Educação: Fundamentos
Filosóficos
para as discussões em torno da produção do conhecimento em
educação, na dimensão filosófica, envolve outros segmentos,
como as políticas públicas educacionais ou mesmo a formação
de professores (ONGE, 2011; HART, 2009).
A partir de Nietzsche (2012) diversos pensadores passam
a formular e a especular formas de conhecimento que não sejam
dogmáticas e sectárias.5 O devir, o movimento, o dinamismo
do saber ganham força na consideração da vontade de
potência (Der Wille zur Macht). No que diz respeito à questão
educacional, o pensamento do filósofo de Sils-Maria parece se
sustentar; afinal, que conhecimento é possível quando temos o
homem como objeto da investigação? Ou, em outros termos,
como assegurar um conhecimento claro e distinto - usando
termos de Descartes (1983) - para a investigação educacional?
Se o homem é vontade de potência e nada além disto, logo, o
campo educacional é terreno fértil para o estabelecimento de
uma política educacional que seja aberta e não sectária, uma
política que leve em consideração o dinamismo do homem,
da sociedade e da cultura; ou seja, uma política educacional
adequada aos tempos atuais.

4.  A QUESTÃO DO CONHECIMENTO

4.1  O RACIONALISMO

René Descartes (1596-1650) teve um papel fundamental


no contexto da Revolução Científica ao estabelecer um método
que fosse capaz de alcançar a verdade. Se o período medieval se
consagrou pelo conhecimento dogmático e sectário, Descartes

5 Em outros textos, discutimos a questão da educação aristocrática em Nietzsche


(MENDONÇA 2011, 2011a, 2012) e o conceito de verdade perpassa
diversos temas com interface para a questão educacional, em específico sobre Educ. foco,
esta concepção de educação. Como pano de fundo, um dos desafios para se Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
pensar a produção do conhecimento em educação, na perspectiva filosófica, p. 71-94,
diz respeito à concepção educacional. 77 jul. 2015 / out. 2015
Samuel Mendonça
inseriu a dúvida como base de sua filosofia e, portanto,
revolucionou a construção do conhecimento, que passou a ser não
mais vertical - isto é, vindo da tradição medieval (Cristandade)
-, mas horizontal - ou seja, construído igualmente por todos os
homens, desde que fizessem uso da razão. É o homem o centro de
sua filosofia e, portanto, o centro da construção do conhecimento.
Uma revolução equivalente, embora produzida em outros termos,
vai ser observada no contexto da educação, séculos mais tarde,
quando John Dewey (1985) - 1859-1952 - critica a concepção
de educação tradicional, conteudista, que tinha o professor como
centro, e passa a estruturar os pressupostos da chamada escola
moderna ou escola nova, que elege o aluno como centro das
atividades e proposições.
Descartes foi um estrategista bélico e sabia o que havia
acontecido com Galileu Galilei, que teve de se retratar perante
à Inquisição Medieval; então, não publicou imediatamente
seus escritos que tratavam da questão do conhecimento. Ele
concordava com a tese de Galileu Galilei sobre o movimento
da terra em torno do sol; seu texto Tratado do Mundo e da Luz
(DESCARTES, 1983, p. XIII) por exemplo, foi publicado anos
depois de ter sido escrito, para evitar, assim, a pressão da Igreja.
É possível argumentar que o pai do racionalismo sabia a
exata medida do que havia construído sobre o conhecimento.
No entanto, em que consistia o conhecimento para esse
pensador? O conhecimento até então era revelado pela
tradição cristã e, com Descartes, volta a ser possível a partir
do uso da razão. Eu afirmo que o conhecimento volta a ser
possível se levarmos em consideração o período pré-socrático,
em que Heráclito (1931), por exemplo, formulava preceitos e
teses não por uma via externa a ele, mas pela dimensão mais
individual que se tem notícia, isto é, por meio de seu daimon.
É de Heráclito a expressão “ethos antrhrôpo daimon”, isto é,
a ética é o ponto mais sublime do homem, sua consciência
Educ. foco, (MENDONÇA, 2003, p. 304). É nesse sentido que o Cogito
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, ergo sum (Penso, logo existo) se sustenta; afinal, se há dúvida é
p. 71-94,
jul. 2015 / out. 2015 78 porque há pensamento, e, se há pensamento, é possível assumir
a existência do ser pensante. A ênfase no conhecimento racional Problemas e Desafios
para a Produção do
Conhecimento em
é tão expressiva que, a partir de Descartes, podemos dizer que Educação: Fundamentos
Filosóficos
o ser que não pensa também não existe, como ser pensante,
obviamente. Logo, é preciso usar a razão para a possibilidade
de se atingir a verdade.
A busca da verdade não é tão simples assim e, para
esse fim, Descartes (1983, p. 37) estruturou um método,
cuja exposição se encontra na segunda parte de seu Discurso.
Em linhas gerais é preciso observar para se certificar do que
será base de análise; dividir a questão em partes menores
para que se consiga ter elementos para o entendimento;
colocar em ordem do simples para o complexo; e, finalmente,
empreender a revisão das partes para confirmar que não houve
falha no procedimento. A estrutura do método é fortemente
influenciada pela matemática e esse é o principal mérito desse
Discurso, dada a base universal dessa ciência. Assim, mesmo
que uma pessoa discorde de Descartes, se ela fizer uso da razão
a partir do método, por certo chegará ao mesmo resultado.
O pensamento cartesiano, nesse sentido, aponta para a
possibilidade da verdade e para o distanciamento da ilusão.
A fundamentação do racionalismo em relação ao
conhecimento, portanto, está condicionada à busca da verdade
e ao recuo em relação à ilusão. Simultaneamente à construção
do método, Descartes, o estrategista, formulou as máximas
da moral provisória. É possível observar o cuidado do pai do
racionalismo com relação à força da Igreja. Sem se confrontar
com ela, aliás, muito ao contrário, ao escrever a necessidade
da obediência e de respeito às leis e aos costumes, primeira
máxima da moral, Descartes transmite a mensagem de que
respeita a Cristandade, no entanto, de forma sutil, avança nas
demais máximas ao falar da necessidade de ser firme e resoluto
nas ações, de buscar vencer-se a si mesmo e do cultivo da razão
(DESCARTES, 1983, p. 42).
O campo educacional recepcionará as bases do Educ. foco,
Juiz de Fora,
racionalismo, assim como o campo das ciências naturais. De v. 20, n. 2,
p. 71-94,
certo modo, embora em contexto absolutamente diferente, 79 jul. 2015 / out. 2015
Samuel Mendonça
Platão (2004) também buscou a construção da verdade e o
distanciamento da ilusão. Na obra A República, por exemplo,
Livro VII, a referência à Alegoria da Caverna é marcante
quanto à busca da verdade. No entanto, tanto no caso de
Platão como no de Descartes podemos questionar: em que
consiste a verdade? É possível mesmo estabelecer a verdade
como algo acabado, final, uma espécie de Aufhebung terminal?
Este é, por certo, um dos desafios para se pensar a importância
da filosofia para a produção do conhecimento em educação.
Passemos à exposição de bases do empirismo.
4.2  O EMPIRISMO

David Hume (1711-1776) é considerado o empirista


radical. A teoria da origem das ideias de David Hume (1999)
parece fundamentar seu método experimental na medida em
que elege o aspecto sensível como critério de verdade. Interessa-
nos investigar a origem das ideias uma vez que constitui a base
do empirismo. Examinaremos também em que medida o
elemento contraditório rechaça ou não a teoria do pensador
escocês. Em outros termos, em que medida as percepções do
espírito humano, tais como as concebe o filósofo agnóstico, na
obra Investigação sobre o Entendimento Humano, fundamentam
efetivamente o conhecimento cien­tífico?
Hume (1999) aponta que há diferença nas percepções
da mente, por exemplo, quando tratamos de alguma
impressão dos sentidos, como a sensação de calor, ou quando
lembramos dessa sensação. Ele considera que a primeira esfera
de percepções (sensações) é mais forte do que a segunda
(memória). As sensações mais fortes (dos sentidos primários)
são sempre mais vivas do que a mera lembrança que se tem
delas. Por exemplo, se um indivíduo entra em contato com
o fogo ele sentirá a dor da queimadura do calor de forma
incomparável, mais intensa, daquele que lê sobre a queimadura.
Educ. foco, Nesse sentido, Hume estabelece uma prioridade em termos
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, da origem das ideias, ou seja, sua teoria do conhecimento se
p. 71-94,
jul. 2015 / out. 2015 80 fundamenta na experiência dos sentidos. Isso não significa que
a razão não tenha importância na teoria do conhecimento do Problemas e Desafios
para a Produção do
Conhecimento em
autor, porém, esse papel é secundário. A razão não é fonte Educação: Fundamentos
Filosóficos
do conhecimento, mas instrumento de entendimento desse
conhecimento.
A razão é importante como faculdade que permite
transpor, combinar, aumentar ou diminuir o material
fornecido pela experiência, no que diz respeito à construção de
ideias, mas não pode, segundo ele, servir de base na construção
do conhecimento, pois o que fundamenta o conhecimento é
efetivamente a experiência sensível.
Segundo o filósofo, há uma diferença significativa entre
a imaginação e a vivência, e ele evidencia a supremacia da
segunda em relação à primeira, ao afirmar que:
O mais vivo pensamento é ainda inferior
à mais embotada das sensações. Podemos
observar que uma distinção semelhante
vale para todas as demais percepções da
mente. Um homem presa de um acesso
de cólera é atuado de maneira diversa
daquele que apenas pensa nessa emoção.
Se me disserem que tal ou tal pessoa está
enamorada, eu compreenderei facilmente o
que isso significa, e farei uma idéia justa da
sua situação, mas nunca poderei confundir
essa idéia com as agitações e desordens
reais da paixão (HUME, 1972, p. 134).6

Isto posto, consideramos como fundamento da teoria


de Hume, portanto, a tese segundo a qual a origem das ideias
reside nas sensações. Para sustentar a afirmação de que as ideias
são inferiores às sensações, ele apresenta dois argumentos. O
primeiro diz respeito a qualquer ideia complexa. Ele entende

6 Lê-se no original: “The most lively thought is still inferior to the dullest sensation.
We may observe a like distinction to run through all the other perceptions of the
mind. A man, in a fit of anger, is actuated in a very different manner from one
who only thinks of that emotion. If you tell me, that any person is in love, I easily Educ. foco,
understand your meaning, and form a just conception of his situation: but never Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
can mistake that conception for the real disorders and agitations of the passion”. p. 71-94,
(HUME, 1999, p. 96). 81 jul. 2015 / out. 2015
Samuel Mendonça
por ideia complexa a que não é simples, ou seja, a que tem em
sua estruturação abstrações ou ainda aglutinação de conceitos sem
uma base sensível correspondente. Por exemplo, a expressão
Deus existe é para o autor uma ideia complexa, na medida
em que não se pode oferecer uma comprovação simples e
objetiva para o vocábulo Deus, tratando-se de uma abstração.
Diz que esta ideia complexa de Deus, como qualquer outra
ideia complexa, tem sua origem na experiência. Pode parecer
estranho esse argumento em um primeiro momento, mas, se
observarmos mais de perto e de forma criteriosa, concluiremos
que Deus existe, de fato, como ideia e, nesse sentido, resta
investigar a sua origem, a qual, segundo o pensador, reside
tão somente na experiência humana. Ou seja, temos clareza
dos conceitos de bondade e de sabedoria formulados com
base da experiência no universo humano. Para formar a ideia
de Deus, basta aumentar em grau infinito esses conceitos e
chegaremos à ideia de um ser infinitamente bondoso e sábio.
Deus é criação do homem, o resultado da nossa faculdade
de aumentar a experiência vivida, não sendo, para Hume,
objeto da ciência, de modo que deve ser deixado de lado
por não oferecer elementos objetivos, pragmáticos para a sua
formulação. A respeito da proposição de que a origem das
ideias reside na experiência sensível, provoca o autor:
Os que desejam negar que esta proposição
seja universalmente verdadeira e mostrar que
ela comporta exceções, só têm um método,
aliás, bastante fácil, de refutá-la: basta
apresentarem uma idéia que, em sua opinião,
não derive desta fonte. Caberá então a nós,
se quisermos sustentar a nossa doutrina,
apontar a impressão ou percepção viva que
lhe corresponde (HUME, 1972, p. 135).7

7 Op. Cit., p. 135. No original se lê: “Those who would assert, that this position is
not universally true nor without exception, have only one, and that easy method
Educ. foco,
of refuting it; by producing that idea, which, in their opinion, is not derived from
Juiz de Fora, this source. It will then be incumbent on us, if we would maintain our doctrine,
v. 20, n. 2,
p. 71-94,
to produce the impression or lively perception, which corresponds to it”. (HUME,
jul. 2015 / out. 2015 82 1999, p. 98).
Esta provocação evidencia uma perspectiva aberta ao Problemas e Desafios
para a Produção do
Conhecimento em
diálogo e fortalece a teoria do autor, na medida em que não parte Educação: Fundamentos
Filosóficos
de uma perspectiva dogmática, fechada, mas abre espaço para
a interlocução e a possibilidade de revisão de seus argumentos.
O segundo argumento apresentado por Hume para
sustentar a tese de que todas as ideias complexas têm origem
nas ideias simples e que, por sua vez, toda ideia simples tem
origem em uma experiência sensível, assegura que uma pessoa
privada de um dos órgãos dos sentidos não consegue ter ideia
correspondente à experiência advinda daquele órgão. Um surdo,
por exemplo, que tenha nascido surdo, não tem ideia dos sons,
ou ainda um cego de nascença não consegue saber a diferença
entre as cores. Considerando o argumento válido, então, parece
possível afirmar que a sua teoria tem uma base de sustentação
razoável, pelo menos no que diz respeito ao que ela se propõe
demonstrar, a saber, que a origem das ideias está nas sensações
e a ausência de um dos sentidos interrompe a possibilidade de
sensação daquele sentido e, consequentemente, de formação de
quaisquer conhecimentos derivados dele.
Em relação ao fenômeno educacional, é possível falar de
conhecimento sem referência à dimensão da experiência? Quais
os desafios para se conceber a produção do conhecimento em
educação a partir da empiria?
O racionalismo e o empirismo, portanto, dizem respeito
às grandes construções da modernidade quanto à questão do
conhecimento e, em que pese o fato de que existem limites a
essas construções teóricas, é preciso enfatizar sua importância
em um contexto histórico determinado, contexto marcado por
bruxaria, por magos e por supostos cientistas que se utilizavam
de um discurso organizado e aparentemente rigoroso, mas,
em muitos casos, ilusórios. Há diversas construções teóricas
que poderiam ser aqui explicitadas, no entanto, o recorte
que realizamos parece suficiente para o que buscamos
questionar: quais os desafios e problemas para a construção do Educ. foco,
conhecimento em educação? Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
p. 71-94,
Passemos à exposição de aspectos dos paradigmas. 83 jul. 2015 / out. 2015
Samuel Mendonça 4.3  A QUESTÃO DOS PARADIGMAS

Se os teóricos da Revolução Científica buscaram


sedimentar o conhecimento a partir de um método que
assegurasse a verdade na sociedade hodierna, inclusive após as
críticas de Nietzsche (2012) sobre a questão do conhecimento,
muitas formulações foram construídas, de diferentes formas.
Antes de Nietzsche, Kant (1974) buscou estabelecer os limites
da razão, ao fazer uma síntese entre o conhecimento racional
e o conhecimento empírico, mas é Thomas Samuel Kuhn
(2003), o historiador das ciências, que coloca em relevo o
papel da chamada ciência normal. Ele descreve a ciência
normal como a que está estabelecida. São diversos institutos
de pesquisas, grupos que envolvem pares que “pesquisam”
a partir de um determinado método, com o propósito de
legitimar os interesses dos institutos, além da influência de
grupos econômicos.
A denúncia de Kuhn evidencia o problema de
manutenção do status quo em relação ao desenvolvimento
do conhecimento científico. Se o cientista da ciência normal
visualiza uma anomalia em seu procedimento, então, ignora
o efeito anômalo, ao invés de exatamente utilizar aquele
fenômeno para empreender esforços para o desenvolvimento
da ciência. Se houvesse esse sentido de direcionamento das
pesquisas quanto às anomalias teríamos revoluções científicas;
segundo Kuhn, no entanto, temos apenas e tão somente a
contínua legitimação de procedimentos, dada a característica
autoritária da ciência, do método e dos institutos de pesquisa.
O conceito de paradigma é central no pensamento
desse historiador das ciências, na medida em que diz respeito
à necessidade de mudança do olhar do pesquisador em relação
ao fenômeno estudado. Conceito continuamente utilizado
na área de educação, o paradigma diz respeito à necessidade
Educ. foco, de superação dos conhecimentos estabelecidos. É a partir da
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, mudança de paradigma que a ciência avança, mas não é assim
p. 71-94,
jul. 2015 / out. 2015 84 que Kuhn visualiza a ciência. Esse caráter dogmático e sectário
da ciência, também presente no campo educacional, diz Problemas e Desafios
para a Produção do
Conhecimento em
respeito a um dos principais desafios para se pensar a questão Educação: Fundamentos
Filosóficos
do conhecimento dessa área o conhecimento. No contexto
das ciência sociais, Santos (2003) se utiliza da construção de
Kuhn para a interpretação e crítica do paradigma dominante.
Acompanhemos a argumentação do autor.
4.4  PARADIGMAS NAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Santos (2003) dedica o seu Discurso sobre as Ciências


para criticar o que nomeia paradigma dominante de uma
forma muito próxima da construção de Kuhn; no entanto,
serão as teses de seu paradigma emergente que constituirão
potência para a discussão dos desafios para a produção do
conhecimento educacional.
O pensador português define como paradigma
dominante aquele que está estabelecido; logo, influenciada
pelo positivismo, a forma de fazer ciência obedeceu a
parâmetros utilizados nas ciências naturais. Paradoxalmente,
o autor enfatiza que as ciências naturais entraram em crise.
Assim, antes mesmo de desenvolver sua argumentação quanto
às ciências sociais e humanas, é a crise do paradigma dominante
- isto é, no campo das ciências naturais -, a motivação para o
desenvolvimento do conhecimento e das ciências.
As ciências sociais por muito tempo copiaram os
métodos e instrumentos das ciências naturais para estabelecer
o conhecimento, e os cientista se esqueceram de lançar a
pergunta básica: é possível construir um estatuto para as
ciências sociais e humanas? Longe de responder negativamente
a essa pergunta, entretanto, temos indícios das dificuldades
em estabelecer parâmetros fechados e estanques para um
fenômeno que envolve o ser humano. A esse respeito, as
discussões antropológicas ganharam força e, também por
influência da psicanálise, perceberam-se as dificuldades
em afirmar sem negar, em reconhecer sem ignorar. É nesse Educ. foco,
Juiz de Fora,
contexto que Santos (2003) estabelece quatro teses em v. 20, n. 2,
p. 71-94,
relação ao que nomeia paradigma emergente - isto é, aquele 85 jul. 2015 / out. 2015
Samuel Mendonça
paradigma que não está desenhado, definido, cristalizado,
formatado, mas que diz respeito aos desafios para a ciência
no período pós-moderno. Suas teses dizem respeito a uma
importante consideração também do fenômeno educacional
na medida em que, dentre os problemas da educação, inclui-se
o a violência psíquica e física, que remetem à uma sociedade
que tem o outro como coisa, como objeto a ser explorado.
A primeira tese do paradigma emergente está assim
formulada: todo conhecimento científico-natural é científico-
social, isto é, “O conhecimento do paradigma emergente tende
assim a ser um conhecimento não dualista, um conhecimento
que se funda na superação das distinções tão familiares e óbvias
que até há pouco considerávamos insubstituíveis” (SANTOS,
2003, p. 64). A distinção dicotômica entre ciências naturais
e ciências sociais deixou de ter sentido e utilidade, se é que
houve algum momento histórico que se justificasse esta
distinção do ponto de vista epistemológico. Essa dicotomia se
assenta numa concepção mecanicista de matéria e de natureza
a que se contrapõe aos conceitos de ser humano, cultura e
sociedade. A superação da dicotomia ciências naturais/ciências
sociais tende assim a revalorizar os estudos humanísticos.
Mas essa revalorização não ocorrerá sem que a humanidade
seja também profundamente transformada. A primeira tese,
portanto, aponta para uma importante mudança que também
tem reflexo no campo educacional.
A segunda tese diz que todo conhecimento é local e
total, isto é, na ciência moderna, o conhecimento avança pela
especialização. “O conhecimento é tanto mais rigoroso quanto
mais restrito é o objeto sobre que incide (SANTOS, 2003,
p. 74). Ao dizer que o conhecimento é total no paradigma
emergente, no horizonte tem-se a totalidade universal, no
entanto, simultaneamente, esse conhecimento total é local,
diz respeito ao campo específico. No contexto da pós-
Educ. foco, modernidade, segundo o pensador português, o conhecimento
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, não é disciplinar, mas temático. O conhecimento se
p. 71-94,
jul. 2015 / out. 2015 86 solidifica quando o objeto se expande. Houve uma excessiva
especificação do conhecimento científico, uma verdadeira Problemas e Desafios
para a Produção do
Conhecimento em
disciplinarização e, simultaneamente, o cientista se tornou Educação: Fundamentos
Filosóficos
um ignorante igualmente parcial. Paradoxalmente houve
mais rigor para o desenvolvimento da ciência; no entanto,
esse rigor gerou também mais distanciamento de formas
complexas do saber. O resultado é que “o conhecimento pós-
moderno, sendo total, não é determinístico, sendo local, não é
descritivista” (SANTOS, 2003, p, 77). A grande vantagem do
conhecimento pós-moderno é que ele não é unidimensional.
Trata-se de um conhecimento que requer diversos campos
do saber em diálogo e há diversos exemplos da necessidade
desse diálogo multidisciplinar. Para a área de educação, por
exemplo, a psicopedagogia diz respeito à necessidade de dois
campos distintos, porém, complementares: a psicologia e a
pedagogia.
Já a terceira tese assinala que todo conhecimento é
autoconhecimento, isto é, “a ciência moderna consagrou
o homem enquanto sujeito epistêmico, mas expulsou-o, tal
como a Deus, enquanto sujeito empírico” (SANTOS, 2003, p.
80). O conhecimento científico moderno deveria ser rigoroso
e, portanto, não poderia abarcar a dimensão axiológica ou
ontológica presentes na interpretação do mundo. Como
campo objetivo, constituído pela noção de imparcialidade, “a
ciência moderna nestes últimos quatrocentos anos naturalizou
a explicação do real, a ponto de não conceber senão nos
termos por ela propostos” (SANTOS, 2003, p. 84). No
paradigma emergente, o objeto é uma continuação do sujeito
por outros meios, por isso todo conhecimento científico é
autoconhecimento. A distinção sujeito/objeto não pode ser
pensada como estanque; afinal, o sujeito é também objeto
enquanto sujeito.
A quarta e última tese de Santos diz que todo
conhecimento visa constituir-se em senso comum, isto é, “a
ciência moderna nos ensina pouco sobre nossa maneira de Educ. foco,
Juiz de Fora,
estar no mundo” (SANTOS, 2003, p. 88). É notável que a v. 20, n. 2,
p. 71-94,
ciência moderna produz conhecimentos, mas também produz 87 jul. 2015 / out. 2015
Samuel Mendonça
desconhecimentos; dessa forma, a distinção conhecimento
sistemático de conhecimento do senso comum, de certa
maneira, além de não explicitar o que é fundamental sobre o
conhecimento - ou seja, a necessidade de investigação de todos
os fenômenos disponíveis -, ainda ignora o senso comum como
campo a ser explorado. O cientista diz respeito a um ignorante
especializado e, ao mesmo tempo, um cidadão comum, um
ignorante generalizado. A ciência pós-moderna busca retomar
o senso comum para observar riquezas para a vivência social.
O que marca a necessidade de senso comum na sociedade,
em específico para o campo educacional, é a percepção do
humano em sua individualidade. Valorizar o cotidiano das
pessoas e considerar a vivência em pequenos grupos sociais é
fundamental para o desenvolvimento humano; as pesquisas
em educação reivindicam, dessa forma, a vida do senso comum
como fonte e meio para a produção do conhecimento.
A partir da exposição das teses de Santos, visualizamos
um terreno fértil para se pensar os desafios e problemas
educacionais; acreditamos que a consideração da
individualidade, de grupos sociais e de revisão de método
de investigação dizem respeito às demandas para a produção
do conhecimento em educação. Mas ainda outra importante
dimensão diz respeito à interpretação do conhecimento.
Passemos, então, à exposição do conceito de interpretação
segundo Nietzsche a partir da consideração do conceito de
verdade como dinâmico e paradoxal.

5.  INTERPRETAÇÃO EM NIETZSCHE COMO DESAFIO AO


CAMPO EDUCACIONAL

Nietzsche não busca o tipo de conhecimento que se


familiariza com o diferente ou, em outros termos, com a
redução do que é estranho ao familiar, como é comum nas
Educ. foco, teorias do conhecimento que partem de categorias explicativas
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, dos fenômenos. Ao contrário, o filósofo sugere que só é
p. 71-94,
jul. 2015 / out. 2015 88 possível conhecer os fenômenos por meio de perspectivas,
percebendo-os à luz da vontade de potência. Ou seja, não Problemas e Desafios
para a Produção do
Conhecimento em
é possível conhecer os fenômenos em si mesmos e, nesse Educação: Fundamentos
Filosóficos
sentido, seu pensamento aproxima-se do de Kant, que,
na Kritik der reinen Vernunft, mostrou os limites da razão
humana no que se refere ao “entendimento”; ao mesmo
tempo, distancia-se de Kant por considerar improvável que
tenhamos algum “entendimento” dos fenômenos, mesmo
quando se refere às ciências da natureza: o que temos são
flashes e não propriamente um conhecimento circunscrito e
determinado. As “representações” não se referem efetivamente
à dimensão da apreensão do conhecimento pelo homem, elas
apenas dão pistas para a apropriação do fenômeno. Todavia,
é a vontade de potência que viabiliza, no devir, a “vivência”
dos fenômenos e, portanto, é a “compreensão” desses que se
dá de forma dinâmica e paradoxal. As coisas não são aquilo
que a representação fornece, mas referem-se à possibilidade
do vir a ser; logo, transformam-se a todo tempo, deixando
de ser o que se percebe e passando a ser aquilo que as
perspectivas permitem que se perceba. O que construímos
são perspectivas e não abstrações, embora possamos construir
também perspectivas abstratas. Aliás, não há abstração ou fatos
estanques para Nietzsche. Portanto, a teoria do conhecimento
desse pensador parece sugerir outra forma de apreensão da
realidade, a interpretação. Essa será, talvez, o principal desafio
para a produção do conhecimento em educação, na perspectiva
filosófica.
O sugestivo fragmento póstumo abaixo fornece
elementos para a melhor compreensão do papel da
interpretação em Nietzsche:
Que o valor do mundo está em nossa
interpretação [...], que as interpretações até
agora existentes são avaliações perspectivas
por meio das quais nós nos conservamos
na vida, [...] que cada elevação do homem
Educ. foco,
traz consigo a superação de interpretações Juiz de Fora,
mais estreitas, que todo o fortalecimento v. 20, n. 2,
p. 71-94,
alcançado e todo alargamento de potência 89 jul. 2015 / out. 2015
Samuel Mendonça
abre novas perspectivas e faz crer em
novos horizontes – isto percorre meus
escritos. O mundo, que em algo nos
importa, é falso, ou seja, não é nenhum
fato, mas, uma composição (Ausdichtung)
e arredondamento (Rundung) sobre uma
magra soma de observações. O mundo é ‘um
fluxo’ como algo que vem a ser, como uma
falsidade que sempre novamente se desloca,
que jamais se aproxima da verdade – pois não
existe nenhuma verdade (NIETZSCHE,
1988, KSA 12, 2 (108), apud., AZEREDO,
2002, p. 71-72)

Então, a teoria do conhecimento de Nietzsche não


parte das mesmas categorias que as clássicas teorias existentes
– como razão, experiência, verdade, causalidade, lógica,
entre outras – embora inclua essas categorias com sentidos
diversos. Parece possível pensar que se trata de outra teoria,
mas, ainda assim, de uma teoria do conhecimento. O
pensamento do filósofo não oferece uma evidente teoria do
conhecimento, tal como encontramos nos clássicos Descartes,
Hume e Kant, tanto que o termo “evidente” já anuncia uma
perspectiva contrária aos escritos do filósofo no que se refere
ao conhecimento, na medida em que supõe algo verdadeiro.
Se tomarmos o pensamento de René Descartes no que
tange à busca das ideias claras e distintas, teremos uma forte
tendência a não validar a possibilidade de conhecimento em
Nietzsche, pois o filósofo do eterno retorno critica qualquer
base certa, segura e evidente do conhecimento. Todavia, os
termos são outros e o foco é a vontade de potência - como
temos mostrado ao longo dessas reflexões - que caracteriza a
teoria do conhecimento do filósofo de forma dinâmica e não
sectária e, fundamentalmente, estabelece a base que se verifica
na oposição, na resistência. Mais do que isso, a interpretação
Educ. foco, encontra amparo na vontade de potência e só é possível falar
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, em interpretação em Nietzsche devido ao caráter paradoxal e
p. 71-94,
jul. 2015 / out. 2015 90 dinâmico da vontade de potência.
A produção do conhecimento em educação, à luz da Problemas e Desafios
para a Produção do
Conhecimento em
filosofia, deve, então, ser repensada e assumida como paradoxal Educação: Fundamentos
Filosóficos
e dinâmica, acompanhando a caracterização da vontade de
potência. Como consequência dessa produção, não é possível
aguardar ou ter como expectativa algum conhecimento
formatado, derradeiro, sectário. O conhecimento educacional,
nessa perspectiva, passará a ser, talvez, não científico. É
possível legitimar um conhecimento acadêmico com tais
características?
Nietzsche rechaça qualquer vertente estática, isolada
ou de força inativa para a vontade de potência, perfazendo
um sentido completamente ativo, dinâmico, que pode se
manifestar ou esquivar-se por ocasião da superação de outra
resistência. Toda atividade é possível como agressão, como
vontade de domínio ou assimilação que existe entre quanta
individual ou grupos de porção de força. É nesse sentido que
toda atividade diz respeito à luta por mais força, gerando
tensão entre as porções de força e as forças individuais.
Então, na consideração da vontade de potência, passando
pela interpretação, notamos a dinâmica de escritos que
assumem dimensão paradoxal e até contraditória. O desafio
para se pensar a produção do conhecimento em educação a
partir de Nietzsche é complexo, mas possível.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo dessas reflexões, notamos que são diversos os


problemas e desafios para a produção do conhecimento em
educação, no horizonte da filosofia. Podemos sistematizá-los
assim: (i) a discussão do conceito de conhecimento ao longo da
história do pensamento e a acepção de que o conhecimento não
é estanque ou sectário; (ii) a análise do conceito de experiência
a partir do empirismo, na consideração do hábito como sendo
um problema para a formulação de um juízo e principalmente
o distanciamento da leviandade; (iii) a consideração das teses Educ. foco,
Juiz de Fora,
de Santos, em especial aquela que sugere a continuidade entre v. 20, n. 2,
p. 71-94,
sujeito e objeto; e (iv) o esquadrinhamento da interpretação 91 jul. 2015 / out. 2015
Samuel Mendonça
frente ao conceito de verdade a partir de Nietzsche, em
específico no que diz respeito ao distanciamento da verdade
derradeira.
Se consideramos essas quatro vertentes para se pensar
a produção do conhecimento em educação, é preciso incluir,
de forma derradeira, o desafio de superação da dicotomia
“quantidade” vs “qualidade” em relação à pesquisa, da mesma
forma que a superação da pseudo dicotomia “pesquisa
empírica” vs “pesquisa teórica”. Essas classificações didáticas:
quali/quanti; teoria/prática não devem ser tomadas como
derradeiras, dado que não há pesquisa teórica que não aponte
para a prática e não há pesquisa prática que não reivindique
uma teoria. (DALBOSCO, 2010).
Por fim, lançamos três perguntas que parecem
corresponder aos principais desafios da produção do
conhecimento educacional: (i) qual o papel, para a produção do
conhecimento educacional, à luz da filosofia, da interlocução
entre pesquisadores de diferentes instituições?; (ii) qual o
papel das associações organizadas quanto à produção do
conhecimento, em se tratando de ciência, epistemologia e
conhecimento?; e, (iii) qual o papel dos gestores (coordenadores,
diretores de cursos) quanto à formulação de estratégias para
a produção do conhecimento em educação, na perspectiva
filosófica?
Se estas perguntas apontam para desafios para que a
pesquisa educacional se aperfeiçoe, por certo, a consideração da
verdade como busca do conhecimento e da interpretação como
possibilidade de validação do conhecimento parecem direcionar
a atenção à subjetividade; afinal, há imparcialidade na produção
do conhecimento educacional? Quem é o homem que produz
o conhecimento educacional? Quais são os protagonistas da
construção do conhecimento na área de educação?
Este número especial da Revista Educação em Foco
Educ. foco, significa a possibilidade de contribuição da filosofia para a
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, interlocução, a parceria, e o intercâmbio institucional para
p. 71-94,
jul. 2015 / out. 2015 92 tratar de desafios e problemas referentes à produção do
conhecimento em educação. Desejamos que estes problemas Problemas e Desafios
para a Produção do
Conhecimento em
possam ser repensados a partir de outras bases, de outras fontes Educação: Fundamentos
Filosóficos
e, em última instância, de outra concepção educacional. Que
educação almejamos?
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Data de recebimento: novembro de 2013


Data de aceite: junho de 2014

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
p. 71-94,
jul. 2015 / out. 2015 94
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO, Filosofia da Educação,
Exercícios Espirituais
e Arte de Existência

EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS
E ARTE DE EXISTÊNCIA
Andrea Díaz Genis1
Sílvio Gallo2

Resumo
Na última parte da obra de Michel Foucault, a partir do
curso A Hermenêutica do Sujeito e dos dois que se seguiram
a ele (O Governo de Si e dos Outros e A Coragem da Verdade),
aparece uma possível leitura da filosofia como exercício
espiritual e arte de existência. Tal leitura é influenciada,
entre outros, por Pierre Hadot, especialista no pensamento
antigo. A filosofia deixa de ser pensada como tendo seu foco
apenas na criação de conceitos, saberes e sistemas de ideias
ou pensamentos, como um exercício puramente racional.
Desta perspectiva, no coração mesmo da filosofia antiga,
encontramos a perspectiva educativa (ou formativa) do
gênero humano. Tudo isso nos leva a pensar uma filosofia
da educação mais abrangente, que entenderá a filosofia
como pedagogia do gênero humano, que ainda que não
descarte seu vetor teórico e conceitual, entende que filosofia
e educação identificam-se, tendo como foco problemático
a vida mesma.

Palavras-chave: Filosofia da Educação; Arte de existência;


Pedagogia do gênero humano; Vida.

1 Andrea Díaz Genis – Professora Doutora da Universidad de la República


(Uruguai), Diretora do Departamento de Historia y Filosofía de la Educación.
E-mail: diazgena@gmail.com
Educ. foco,
Juiz de Fora,
2 Sílvio Gallo – Professor Associado da Faculdade de Educação da Universidade v. 20, n. 2,
Estadual de Campinas, no Departamento de Filosofia e História da Educação 95 p. 95-114,
jul. 2015 / out. 2015
E-mail: silvio.gallo@gmail.com
Andrea Díaz Genis
Sílvio Gallo Abstract
In the last part of the work of M. Foucault, from the
hermeneutics of the subject and other seminars that arise
from it (The government of itself and the other I and II),
appears a possible reading of philosophy as spiritual exercise
and art of existence. This reading is based on the influence,
among others, specialist in ancient thought, Pierre Hadot.
The philosophy is no longer thought only from the creation
of concepts, knowledge, or system of ideas or thoughts, and
from a purely rational exercise. From this perspective, in
the heart of ancient philosophy, we find the educational
perspective, or training of mankind. All this will allow us
to define a philosophy of education more comprehensive
that means the philosophy as pedagogy of mankind, that
while not exclude its theoretical and conceptual side,
understands that philosophy and education are identified
with a problematic focus life itself, along the life.

Keywords: Philosophy of education; Existence art;


Pedagogy of humankind; Life.

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
p. 95-114,
jul. 2015 / out. 2015 96
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO, Filosofia da Educação,
Exercícios Espirituais
e Arte de Existência

EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS
E ARTE DE EXISTÊNCIA

1.  A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO E A VIDA

A filosofia é uma espécie de matéria estranha, que


continuamente volta a pensar-se e a falar de si mesma. O eterno
retorno da própria ideia de si é sempre diferente, ou pode ser
diferente, ainda que existam os “parentescos de família”, para
falar com Wittgenstein, isto é, um pano de fundo comum,
posto que há no ocidente uma história da filosofia de mais
de vinte e cinco séculos. Em relação à educação, nem falemos
em “definição”, uma vez que apresenta uma amplitude e uma
complexidade que faz com que seja difícil encontrarmos uma
única ou a melhor definição, uma vez que é através dela que o
ser humano transforma-se em humano.
De qualquer forma, em que pesem as complexidades e
abrangências da filosofia e da educação, neste artigo focaremos
uma tradição, no contexto da história da filosofia ocidental, e o
faremos desde uma perspectiva bastante particular. Na última
parte da obra de Michel Foucault, de forma especial em seus
três últimos cursos no Collège de France (A Hermenêutica do
Sujeito, de 1981-1982; O Governo de Si e dos Outros, de 1983,
e A Coragem da Verdade, de 1984), aparece uma possível leitura
da filosofia como exercício espiritual e arte de existência.
Tal leitura está baseada na influência, dentre outros, de um
especialista no pensamento antigo, Pierre Hadot. A filosofia
deixa de ser pensada apenas como criação de conceitos,
saberes, ou como um sistema de ideias ou de pensamentos
e como sendo produzida a partir de um exercício puramente
racional.
Educ. foco,
A filosofia nasceu e se desenvolveu, desde a antiguidade até Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
a modernidade, pelo menos desde o século V a.C. até o século 97 p. 95-114,
jul. 2015 / out. 2015
Andrea Díaz Genis
Sílvio Gallo XVII d.C., como “arte de existência”, isto é, com uma função
predominantemente formativa. O que nos interessa ressaltar é o
foco desta perspectiva filosófica, que é a própria vida (bios). O
seu meio de desenvolvimento é o exame de si mesmo através
da relação pedagógica com um outro, que pode ser o mestre,
o amigo, o conselheiro, incluído o “médico da alma”, como
Sêneca se define para Lucílio, em suas cartas a ele endereçadas.
Nesta perspectiva, no coração mesmo da filosofia encontramos a
perspectiva educativa (ou formativa) do gênero humano. Como
afirmou Aristóteles, a filosofia nasceu a partir do assombro ou da
admiração (thaumas), um ponto de partida que exige e implica
para os seres humanos uma espécie de “conversão” (metanoia)
do olhar, da forma de estar no mundo a partir do diálogo, o
encontro, o pensamento, que tem como centro o autoexame e o
exame dos outros, o exame da vida, enfim.
Esta preocupação com o bios, podemos ver naquilo
que Foucault denomina “momento socrático-platônico”,
no diálogo Laques. Este escrito poderia ser considerado,
precisamente, como um texto sobre a boa ou a má educação.
É chamativo o motivo pelo qual os pais que aparecem no
diálogo como personagens centrais (Lisímaco e Melésias)
perguntam-se pela “boa educação”. Precisamente eles, como
antes seus pais (por serem importantes estrategos, personagens
públicos), creem que não se dedicaram nem se preocuparam
suficientemente com a educação de seus filhos.3 Porém, ao se
encontrarem com Sócrates o problema central a ser pensado
muda sensivelmente: já não é sobre qual é a melhor educação e
quem estaria mais indicado a falar dela (que, definitivamente,
seria o “técnico da alma”), mas sim, como sempre ocorre
na educação socrática, é a pergunta por nós mesmos.4 Isto

3 Ver a análise deste diálogo feita por Andrea Díaz no Epílogo (“La enseñanza
socrática en tres actos: amor a la sabiduría, cuidado del alma, cuidado de la
vida”) em PUCHET, 2012.
4 “Me parece que ignoras que, si uno se halla cerca de Sócrates en una discusión
Educ. foco,
Juiz de Fora, o se le aproxima dialogando con él, le es forzoso, aún si empezó a dialogar
v. 20, n. 2,
p. 95-114,
sobre cualquier otra cosa, no despegarse, arrastrado por él en el dialogo, hasta
jul. 2015 / out. 2015 98 que lo sopese bien y suficientemente todo. Yo estoy acostumbrado a éste; sé
é: como passamos os dias, que fazemos com nossas vidas, Filosofia da Educação,
Exercícios Espirituais
e Arte de Existência
enfim, a pergunta pelo cuidado de si e dos outros, a partir da
inquietude consigo mesmo e do autoconhecimento.5
O mestre é o meio, básanos, isto é, a “pedra de toque”
(instrumento que, na antiga Grécia, era usado para saber se
uma pedra era ou não de ouro, roçando uma na outra). O
mestre é o musikos aner, diz Sócrates no Laques, o que significa
que ele possui uma espécie de “harmonia ontológica”, como
afirma Foucault ao comentar essa passagem. E tal harmonia
está dada por uma exigência que aparece vez ou outra em toda
esta tradição grega, helenística e romana do cuidado de si: que
o filósofo tenha uma coerência entre o que diz e o que faz.6
O núcleo da filosofia da educação socrática é, pois, ao menos
nesta tradição e a partir deste texto,7 o bios, a vida do sujeito
que deve ser examinada. A vida não está em função da escola,
mas é a escola que está – ou deve estar – em função da vida,
como nos dirá Sêneca posteriormente. Parece-nos que este é
o grande ensinamento desta filosofia da educação, ao menos
nesta releitura contemporânea (foucaultiana) da tradição
antiga.
O importante, pois, é começar a destacar uma visão
da filosofia, e especificamente da filosofia da educação, como
forma de vida e experiência de exame e autoexame de si mesmo
e do mundo, que tem como finalidade formativa o cuidado
de si mesmo e o cuidado dos outros. É claro que as ideias
filosóficas sobre a “escola” são parte da preocupação da filosofia
da educação como disciplina centrada em um saber. Mas, em
se tratando de ideias, não devemos levar conta apenas as ideias

que hay que soportar estas cosas, como también que estoy a punto de sufrir tal
experiencia personal” (Platón, Laques, 188c).
5 Amplos e diversos desenvolvimentos desta questão podem ser encontrados em
DÍAZ; PUCHET, 2010.
6 Este tema é bastante estudo por Foucault no curso de 1983, O Governo de Si e
dos Outros. Sugerimos ver especialmente a aula de 16 de fevereiro de 1983, na Educ. foco,
qual Foucault estuda a questão do érgon (a atividade) filosófico em Platão. Juiz de Fora,
7 No diálogo Alcebíades vemos, porém, outro rumo para esta tradição. Ver o v. 20, n. 2,
p. 95-114,
capítulo de Andrea Díaz em PUCHET, 2012. 99 jul. 2015 / out. 2015
Andrea Díaz Genis
Sílvio Gallo sobre a instituição escolar, sejam quais forem seus níveis, ou
sobre o ensino e/ou a aprendizagem na instituição escolar, a
educação formal ou informal etc. Mas o foco do pensamento
se ampla, abarcando toda a formação do humano enquanto
humano, a formação da humanidade inclusive como meta a
ser superada por uma humanidade melhor (o que não pode ser
desenvolvido aqui, mas que implica em uma mescla do ideal
kantiano da ilustração com a ideia nietzschiana de um além-
do-humano).8
Pensamos, pois, que a filosofia pode ser entendida como
muito mais que uma disciplina, uma tradição, mas como o
topos, o lugar a partir do qual a humanidade tem pensado
“pedagogicamente” a si mesma para possibilitar uma vida
melhor. E uma vida melhor é uma vida examinada, uma vida
inquieta consigo mesma, preocupada consigo mesma e com
os outros, uma vida que se pensa a si mesma para melhorar. E
uma tal filosofia, portanto, apresenta-se, de fato e de direito,
como uma filosofia da educação em seu próprio âmago.
Para compreender melhor essa filosofia da educação
como “arte de existência”, faremos uma breve incursão pela
ideia de “exercícios espirituais”, que Foucault empresta
de Pierre Hadot, uma vez que tais exercícios são a prática
cotidiana desta filosofia.

2.  EM TORNO DOS EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS E DE


SUAS PRÁTICAS 9

O conceito de exercício espiritual como conversão


do sujeito, trabalho de si sobre si mesmo, tão importante
nos últimos trabalhos de Foucault, servindo de base para a
proposição de uma “estética da existência”, foi tomado de
empréstimo a Pierre Hadot, um especialista em Filosofia antiga

8 Especificamente sobre a relação Kant-Nietzsche, consultar DÍAZ, 2004 e


Educ. foco,
Juiz de Fora, DÍAZ, 2008.
v. 20, n. 2, 9 Esta parte do artigo é uma retomada, com poucas alterações, de parte de um
p. 95-114,
jul. 2015 / out. 2015 100 texto já publicado (GALLO, 2012).
que Foucault estudou com paixão e que, em vários momentos, Filosofia da Educação,
Exercícios Espirituais
e Arte de Existência
consultou sobre dúvidas em seus cursos.10
Para Hadot a Filosofia na antiguidade grega foi
fundamentalmente exercício espiritual:
A verdadeira filosofia é, então, na
Antiguidade, exercício espiritual. As teorias
filosóficas são, ou postas explicitamente
ao serviço da prática espiritual, como é o
caso do estoicismo e do epicurismo, ou
então tomadas como objetos de exercícios
espirituais, isto é, uma prática da vida
contemplativa que não é ela mesma, ao
final, outra coisa que um exercício espiritual.
Não é, pois, possível compreender as teorias
filosóficas da Antiguidade sem ter em conta
esta perspectiva concreta que lhes dá sua
verdadeira significação. (HADOT, 2002, p.
65-66).

Porém, essa marca não é apenas da antiguidade. Hadot


inicia o texto do qual o trecho acima foi extraído com uma
citação de G. Friedmann, de uma publicação de 1970, na qual
exprime a Filosofia e a potência da sabedoria como decorrentes
de “exercícios espirituais”. No prefácio à edição original de
1993 de Exercices Spirituels et Philosophie Antique, o próprio
Hadot comenta que essa ideia não lhe veio dos antigos, mas
de contemporâneos como Bergson.
O presente volume condensa os estudos, já publicados
ou inéditos, que escrevi ao longo de muitos anos. Mas o
tema geral ao qual eles se reportam está no centro de minhas
preocupações desde a juventude. Um dos meus primeiros
artigos, publicados nas Actes du congrès de philosophie de
Bruxelas em 1953, ensaiava já descrever o ato filosófico como

10 Em vários momentos dos cursos de 1982 a 1984 Foucault citou Hadot e em


outros comentou que consultava especialistas em Filosofia antiga. No artigo Educ. foco,
Um dialogue interrompu avec Michel Foucault – convergences et divergences, Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
Hadot (2002, p. 305-311) comenta suas raras, mas proveitosas, conversas com p. 95-114,
o colega. 101 jul. 2015 / out. 2015
Andrea Díaz Genis
Sílvio Gallo uma conversão e lembro-me sempre do entusiasmo com o
qual, no verão ameaçador de 1939, depois de meu baccalauréat
de filosofia, eu comentava o assunto da dissertação retirado de
Henri Bergson: “A filosofia não é uma construção de sistema,
mas a resolução, uma vez tomada, de olhar inocentemente
em si e em torno de si”. Sob a influência de Bergson, depois
do existencialismo, eu sempre concebi a filosofia como uma
metamorfose total da maneira de ver o mundo e de nele estar.
(HADOT, 2002, p. 15).
Exercícios espirituais como marca da Filosofia antiga,
mas também como desafio de pensar o presente, pois. E
Hadot aponta que era essa também a perspectiva de Foucault,
a quem conheceu pessoalmente em 1980 e este lhe disse que
havia lido com atenção alguns de seus trabalhos, em especial
aqueles relacionados com esse tema. Ainda que demarque suas
divergências com Foucault, em especial na afirmação de que
existiria, no pensamento antigo, uma “estética da existência”,11
o estudioso da antiguidade clássica afirma que ambos estavam
preocupados com a questão da filosofia na atualidade, e cita
a introdução ao segundo volume da História da Sexualidade,
O Uso dos Prazeres, quando Foucault afirma o ensaio como
a forma da Filosofia, bem como a entrevista a Dreyfus e
Rabinow, em 1983, quando afirma sua derradeira concepção
da Filosofia como estética da existência, que provavelmente
a praticou durante a vida. E arremata: “Nesse trabalho de si
sobre si, nesse exercício de si, reconheço igualmente, por minha
parte, um aspecto essencial da vida filosófica: a filosofia é uma
arte de viver, um estilo de vida que engaja toda a existência”
(Hadot, 2002, p. 308). São essas considerações de Foucault e

11 Apenas indicando de forma breve, Hadot afirma que na antiguidade não


se pensava numa “construção de si”, que poderia significar uma estética da
Educ. foco,
existência. Ao contrário, todas as filosofias antigas concebiam o ser como
Juiz de Fora, dado e, assim, os exercícios espirituais não poderiam ser uma “construção de
v. 20, n. 2,
p. 95-114,
si”; seriam, mais justamente, uma transformação, uma transfiguração, uma
jul. 2015 / out. 2015 102 “superação de si”.
de Hadot que nos encorajam a pensar, contemporaneamente, Filosofia da Educação,
Exercícios Espirituais
e Arte de Existência
uma filosofia da educação como arte de existência.
Mas fiquemos, por ora, com o conceito de exercícios
espirituais. Assim Hadot delineia seus contornos:
“Exercícios espirituais”. A expressão
incomoda um pouco o leitor contemporâneo.
De início, não é de muito bom tom, hoje,
empregar a palavra “espiritual”. Mas é preciso
se resignar a empregar esse termo, porque os
outros adjetivos ou qualificativos possíveis:
“psíquico”, “moral”, “ético”, “intelectual”,
“de pensamento”, “da alma”, não dão conta de
todos os aspectos da realidade que queremos
descrever. Poderíamos, evidentemente, falar
de exercícios de pensamento, porque, nesses
exercícios, o pensamento é tomado de alguma
maneira por matéria e procura modificar-se
a si mesmo. Mas a palavra “pensamento”
não indica de maneira suficientemente clara
que a imaginação e a sensibilidade intervêm
de uma maneira muito importante nesses
exercícios. Pela mesma razão, não podemos
nos contentar com “exercícios intelectuais”,
ainda que os aspectos intelectuais (definição,
divisão, raciocínio, leitura, pesquisa,
amplificação retórica) desempenhem aí
um papel importante. “Exercícios éticos”
seria uma expressão bem sedutora porque,
o veremos, os exercícios em questão
contribuem potentemente à terapêutica das
paixões e se reportam à condução da vida.
No entanto, seria ainda uma via muito
limitada. De fato, esses exercícios – nós o
entrevemos pelo texto de G. Friedmann
– correspondem a uma transformação da
visão do mundo e a uma metamorfose da
personalidade. A palavra “espiritual” permite
fazer entender que esses exercícios são a obra
não somente do pensamento, mas de todo
o psiquismo do indivíduo que se eleva à
Educ. foco,
vida do Espírito objetivo, isto é, se recoloca Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
p. 95-114,
103 jul. 2015 / out. 2015
Andrea Díaz Genis
Sílvio Gallo
na perspectiva do Todo (“eternizar-se ao se
superar”) (HADOT, 2002, p. 20-21).

No delineamento do conceito, fica claro então que não


se trata apenas do pensamento, de um “pensamento puro”,
mas de uma atividade que implica em todo o psiquismo e
que, assim, está aquém e além do pensamento. É anterior
a ele e é mais do que o pensamento, ao mesmo tempo. É
exatamente o ponto que destacou Foucault, ao colocar os
exercícios espirituais como uma forma de conceber a prática
da Filosofia, de modo distinto de uma outra visão, que centra
essa prática no pensamento e apenas nele, orientando-se para
o conhecimento como algo destacado do sujeito que pensa,
que conhece e que vive, não mais.
Na sequência de sua análise, Pierre Hadot destaca que
predominou na antiguidade essa visão da Filosofia como
prática, sendo que algumas correntes a definiram muito
explicitamente como um conjunto de exercícios. Caso típico
dos estoicos. Para eles, “a filosofia não consiste no ensino de uma
teoria abstrata, menos ainda de uma exegese de textos, mas de
uma arte de viver” (idem, p. 22), o que fazia desta prática algo
que dizia respeito à existência e, mais do que algo situado
no âmbito do conhecimento, uma prática na ordem do “si
mesmo”, ou como gostava de enunciar Foucault, um “trabalho
de si sobre si mesmo”. Esta arte de viver, segundo Hadot,
organizava-se nos mais diversos âmbitos, sendo o primeiro
deles uma espécie de “terapêutica das paixões”, orientada para
uma transformação de si mesmo. Essa terapêutica era exercida
através de distintos exercícios, como a investigação, o exame
aprofundado, a leitura, a audição, a atenção, as meditações,
culminando com a enkrateia, isto é, uma espécie de “governo
de si mesmo”, no qual se tem controle sobre suas paixões.
Mas, se a filosofia é uma arte de viver, é também uma
espécie de “aprendizado do diálogo”, uma arte do diálogo, e
Educ. foco,
Juiz de Fora,
aqui Hadot dedica, como seria de se esperar, especial atenção
v. 20, n. 2,
p. 95-114,
a Sócrates (2002, p. 38-47). Em sua visão, os diálogos são
jul. 2015 / out. 2015 104
também uma espécie de exercício espiritual, especialmente Filosofia da Educação,
Exercícios Espirituais
e Arte de Existência
porque implicam em uma conversão do sujeito, sendo os
diálogos platônicos, como exercícios dialéticos, os exercícios-
modelo. Aprender a viver, aprender a dialogar, mas também
aprender a morrer. É o terceiro polo dos exercícios espirituais
e aqui Hadot dedica especial atenção a Platão e a Plotino.
Quarto e último polo, aprender a ler: “passamos nossa vida
‘lendo’, mas não sabemos mais ler, quer dizer, parar, nos liberar
de nossas preocupações, voltar a nós mesmos, deixar de lado nossas
buscas de sutileza e de originalidade, meditar calmamente,
ruminar, deixar os textos nos falar” (idem, p. 73-74).
Aprender a viver, aprender a morrer; aprender a dialogar,
aprender a ler. Exercícios espirituais, enfim, Filosofia como
exercício, como prática, como trabalho sobre si mesmo, mais
do que simplesmente uma busca de conhecimento, orientada
exclusivamente pelo e para o saber. É o que nos indica a visão
perspectiva de Pierre Hadot sobre a antiguidade, quando
afirma:
A filosofia aparece então, em seu aspecto
original, não mais como uma construção
teórica, mas como um método de formação
para uma nova maneira de viver e de ver o
mundo, como um esforço de transformação
do homem. [...] Foi apenas com Nietzsche,
Bergson e o existencialismo que a filosofia
voltou a ser conscientemente uma maneira
de viver e de ver o mundo, uma atitude
concreta. (HADOT, 2002, p. 71-72).

É esta atitude filosófica como esforço humano de


transformação de si, que ficou esquecida na modernidade,
que Foucault procura recuperar, sob a inspiração de Hadot,
nos últimos cursos que deu no Collège de France e que neste
artigo nos orienta a pensar uma outra filosofia da educação.

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
p. 95-114,
105 jul. 2015 / out. 2015
Andrea Díaz Genis
Sílvio Gallo
3.  A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO DESDE A POSIÇÃO DA
IGNORÂNCIA

Se a filosofia da educação era e pode ser tomada como


uma arte da existência, isto significa que o mestre é um médium,
ou topos, que nos vincula com nossas próprias perguntas; no
dizer de Nietzsche em Schopenhauer como Educador, com
nosso “unicum”. O filósofo pedagogo, na tradição antiga, é
aquele que acompanha, dialoga, aconselha (como era o caso
dos estoicos), ensina como um exemplo (como era o caso dos
cínicos), indaga, ajuda a que o discípulo se pense a si mesmo
e teorize a partir das preocupações de sua própria vida (como
era o caso de Sócrates). A cena do cuidado de si (epimeleia
heautou), que implica a inquietude consigo mesmo e o
autoconhecimento (gnothi seauton) ocorria no marco da cidade
(Polis). Somos cidadãos da polis e, neste sentido, políticos, ainda
que o mestre Sócrates se afastasse eventualmente da ágora e da
função pública que lhe correspondia como cidadão. No curso
a Coragem da Verdade, Foucault nos explica a razão: Sócrates
alheou-se do meio político ateniense para não morrer antes.
Sua missão inquietante, que gerava desassossego, inquietude e
mesmo vergonha (é o que Sócrates produz em Alcibíades no
Banquete e o que esclarece o Sócrates platônico na Apologia),
que questionava, que pedia “conversão” (uma transformação
no olhar e no modo de viver), incomodava os poderes
instituídos. De todo modo, Sócrates morreu, mas resulta que
teria morrido antes, se tivesse se dedicado à política.
Converter-se à filosofia implica produzir uma comoção
interna, que traz uma transformação radical em nossa maneira
de ver nossa própria vida e o mundo. Quando alguém é
“mordido pelos discursos filosóficos”, segundo a expressão
usada por Alcibíades no Banquete, não pode deixar de se
examinar durante toda a vida... Ou, ainda, quando vemos
perguntar o Sócrates platônico no Laques (188c) para aqueles
Educ. foco, que dele se aproximavam, se estariam desejosos de aprender
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, enquanto vivessem e se não acreditavam que a velhice, por
p. 95-114,
jul. 2015 / out. 2015 106
si só, lhes traria o senso comum. Esta é a grande função da Filosofia da Educação,
Exercícios Espirituais
e Arte de Existência
filosofia na educação como formadora do gênero humano.
Sócrates costumava dizer que era o “mosquito” da
humanidade, no sentido que sua função era picar, molestar,
desacomodar, estimular as pessoas a se preocuparem,
perguntarem, conhecerem, se inquietarem. Uma vez que
somos “molestados” pelo mosquito da filosofia, esta passa a
ser para nós um modo de viver e de estar no mundo. Por isso,
a filosofia é mais que uma matéria, uma disciplina ou uma
tradição. É um modo de existência, é uma arte de existência,
uma maneira de estar no mundo que, por sua vez, “pica”,
morde e, ainda mais, enamora com um amor que não nos
deixa, que não acaba, como mostra Platão no Banquete. Mas é,
sobretudo, uma experiência, um acontecimento que se realiza
com outros, em diálogo com outros que compartilham este
modo de vida.
Em sua Carta VII, Platão afirma algo muito interessante
sobre essa experiência, que pode ser vista como acontecimento:
Desde luego, no hay ni habrá nunca una
obra mía que trate de estos temas, no se
pueden, en efecto precisar como se hace con
otras ciencias, sino que después de una larga
convivencia con el problema y después de
haber intimado con él, de repente, como la
luz que salta de una chispa, surge la verdad
en el alma y crece ya espontáneamente.
(PLATÓN, Carta VII, 513).

Ao analisar esta mesma Carta VII de Platão no curso


de 1983, O Governo de Si e dos Outros, Foucault faz algumas
considerações que vale a pena destacar. Ele comenta a relação
de Platão com o texto, destaca a passagem em que este afirma
que nunca escreveu nada, que ninguém poderia afirmar: “isso
foi dito por Platão”, uma vez que a filosofia não se transmite
através de textos (as mathémata), ela só pode ser aprendida na
convivência com quem a pratica. Em outras palavras, só se Educ. foco,
Juiz de Fora,
aprende filosofia quando se vive a filosofia. v. 20, n. 2,
p. 95-114,
107 jul. 2015 / out. 2015
Andrea Díaz Genis
Sílvio Gallo
Este percurso das mathémata, essa
enformação do conhecimento em fórmulas
ensinadas, aprendidas e conhecidas, isso não
é, diz o texto de Platão, o caminho pelo qual
passa efetivamente a filosofia. As coisas não
acontecem assim, não é ao fio das mathémata
que a filosofia se transmite. Como se
transmite? Pois bem, ele diz: a filosofia
se adquire por “synousía perì tò prâgma”.
E um pouco adiante ele utiliza o verbo
syzên. Synousía é o ser com, é a reunião, é
a conjunção [...] Quem deve se submeter
à prova da filosofia deve “viver com”, deve,
empreguemos a palavra, “coabitar” com
ela [...] Que aquele que filosofa tenha que
coabitar com ela, é o que vai constituir a
própria prática da filosofia e sua realidade.
(FOUCAULT, 2010, p. 225).

O ato pedagógico atravessado pela filosofia é uma


experiência transformadora que comove o ser e transforma a
vida em concomitância com tal acontecimento. Em um de
seus escritos, Sêneca se perguntava onde estaria o sábio que
tanto buscamos; e a figura que mais se aproxima desta figura
ideal é Sócrates. Precisamente Sócrates, que se coloca no lugar
da ignorância... O acento precisa estar na busca e em saber
harmonizar esta busca com um modo de vida. Não é que
Sócrates não saiba nada, mas sim que este lugar da ignorância
é o local que nos posiciona na busca filosófica a partir da
falta. A filosofia, quando é formativa, não apenas deve ensinar
um saber (isto já seria história da filosofia, que, obviamente,
pode ser ensinada filosoficamente), mas especialmente
ensinar a ignorar, a examinar tudo, e perceber que aquilo que
supúnhamos ser seguro já não o é tanto.
Aqui podemos lembrar outro filósofo contemporâneo,
Jacques Rancière, que ao buscar a filosofia antiga nos convida a
pensar o contemporâneo de outras maneiras. Por exemplo, ele
Educ. foco,
Juiz de Fora,
apresentou uma provocação interessante quando, dirigindo-
v. 20, n. 2,
p. 95-114,
se a professores de filosofia franceses, afirmou que o lugar da
jul. 2015 / out. 2015 108
filosofia na escola deveria ser o de promover uma experiência Filosofia da Educação,
Exercícios Espirituais
e Arte de Existência
da ignorância, coisa que nenhuma outra disciplina é capaz
de fazer. Em sua proposta, cabe à filosofia uma transmissão,
mas é a transmissão de um “sentimento de ignorância”,
compartilhado pelos filósofos desde a experiência primeira de
Sócrates.
Escreveu ele que
[...] a filosofia pode ser, na instituição, este
lugar onde se reverta o fundamento da
autoridade do saber, onde o sentimento justo
da ignorância apareça como a verdadeira
superioridade do mestre: o mestre não é
aquele que sabe e transmite; ele é aquele que
aprende e faz aprender, aquele que, para falar
a linguagem dos tempos humanistas, faz seu
estudo e determina cada um a fazer por sua
conta. A filosofia pode ocupar este ponto
de reversão porque ela é o lugar de uma
verdadeira ignorância. Todos sabem que,
desde o começo da filosofia, os filósofos não
sabem nada, não por falta de estudos ou de
experiências, mas por falta de identificação.
Também o ensino da filosofia pode ser este
lugar onde a transmissão dos conhecimentos
se autoriza a passar a algo mais sério: a
transmissão do sentimento de ignorância.
(in DERRIDA et al, 1986, p. 119-120).

Como dizia Kant, não se ensina filosofia, mas


primeiramente se ensina a filosofar. O professor de filosofia
uruguaio Silva García afirmou em uma entrevista que concedeu
a Andrea Díaz pouco antes de morrer: “assim como alguns
são budistas e outros são cristãos, eu escolhi a filosofia como
forma de vida” (Díaz, 1995, p. 24). Este mosquito que pica,
esta mordida que envenena, mas também apaixona, não deve
ficar apenas no mestre. O mestre possibilita esta conexão, essa
sublimação (para dizer com Freud) da energia sexual, da libido
que permite conectar com algo que não acaba. Este infinito mar Educ. foco,
Juiz de Fora,
de perguntas, essa conexão com a incerteza que busca certeza v. 20, n. 2,
p. 95-114,
109 jul. 2015 / out. 2015
Andrea Díaz Genis
Sílvio Gallo para encontrá-la e tornar a perdê-la, este nada e este alguma
coisa (a meio caminho entre o saber e a ignorância), cheio de
sentidos que de novo se perdem e tornam-se imprecisos sob a
luz da interrogação que predomina, sempre.

4.  A FILOSOFIA, A EDUCAÇÃO E O AMOR QUE NÃO SE


POSSUI

Muitas vezes entendemos o filósofo como sábio


(sophos) e não como amante (erastés) ou amigo da sabedoria
(justamente o que significa filo-sophia); na tradição socrático-
platônica da qual partimos, ser amante da sabedoria significa
amar algo que nunca se possui. Para compreender bem isso,
precisamos nos remeter, ainda que de modo breve, a uma
obra madura de Platão, O Banquete. Nosso objetivo aqui não
é propriamente comentar o texto platônico, senão que, para
poder fundamentar nosso pensamento particular, partir desta
tradição de pensamento, nos instalando em seu interior.
A partir do relato de Diotima de Mantineia, a mulher
que sabe sobre o amor no Banquete e que, de algum modo,
é o alter ego feminino de Sócrates no imaginário platônico,
ocorre que o grande amado (erómeno) passa a ser Sócrates
(e isto converte-se em um escândalo, não apenas pela feiura
de Sócrates, mas especialmente porque ele ocupa o lugar de
erastés – amante e não de erómeno – amado). Na interpretação
foucaultiana (de modo especial no segundo volume da História
da Sexualidade), o que verdadeiramente deve ser amado é a
filosofia. É bastante interessante esse giro; sabemos que no
Banquete Platão faz serem apresentadas diferentes visões sobre
o amor, mas é esta que nos interessa destacar nesse momento.
Neste texto, que trata precisamente do tema do amor (e,
neste sentido, a filosofia não é apenas amor da sabedoria, mas
também uma sabedoria do amor), Alcibíades, um dos jovens
mais belos e apreciados da Grécia, está enamorado por seu
Educ. foco, mestre. Quer possuí-lo em sentido literal, sente por ele um
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
p. 95-114,
jul. 2015 / out. 2015 110
desejo erótico irrefreável.12 Ao possuí-lo, quem sabe possa Filosofia da Educação,
Exercícios Espirituais
e Arte de Existência
possuir seu saber, sua atenção, seu amor, sua sabedoria. Mas
não é assim que as coisas funcionam.
A pederastia, tema mais do que complexo, dada a
distância cultural que nos separa dos antigos gregos, é um
tema que foi desenvolvido de forma muito interessante
por Foucault e a ele nos remetemos.13 A relação sexual era
algo presente entre o mestre (que era o amante – erastés)
e o discípulo (que era o amado – erómeno), mas toda a
preocupação da antiguidade dizia respeito a sob que formas,
como, durante quanto tempo etc. essa relação poderia dar-se.
A questão, então, é que Sócrates muda essa problemática em
um sentido surpreendente. Recusa-se a ter relações sexuais com
Alcibíades (afirma, no Banquete, que ao levá-lo para a cama
uma vez levantou-se, pois se sentia como se tivesse se deitado
com um pai ou um irmão). Este não é um episódio menor
nessa história da filosofia da educação e nesta perspectiva que
estamos tentando fundamentar, ao remeter-nos a uma certa
leitura da antiguidade. O assunto é precisamente este: o que
verdadeiramente é preciso amar não é a Sócrates; Sócrates, o
mestre, é aquele que atrai, mas como porta de entrada e para
permitir o ato de sublimação posterior da energia amorosa.
Sócrates é o responsável por uma iniciação, ao afirmar que o
que verdadeiramente deve ser amado é a sabedoria. A relação
com o mestre é uma porta de entrada, uma introdução ao
processo de se chegar a amar, a desejar a sabedoria com toda a
intensidade. Mas, como sabemos, com Sócrates, a sabedoria é
algo que não se possui, nunca; ela está sempre mais além, na
medida em que nos mantemos sempre na ignorância.
O movimento da filosofia, pois, é o movimento de
iniciar-se em um amor de algo que nunca se vai possuir. Em

Educ. foco,
12 Este tema é desenvolvido de forma detida por Andrea Díaz em PUCHET, Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
2012. p. 95-114,
13 A este respeito ver FOUCAULT, 1984. 111 jul. 2015 / out. 2015
Andrea Díaz Genis
Sílvio Gallo nossa compreensão, no resgate dessa tradição, também esta é a
matéria de uma filosofia da educação.

5.  ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PARA FINALIZAR

Ao longo deste artigo, de estilo deliberadamente


fragmentário, quisemos construir uma espécie de mosaico
de ideias em torno de uma certa leitura da filosofia antiga
inspirada por Foucault. O filósofo francês, em seus últimos
trabalhos, de forma especial nos cursos do Collège de France,
recorreu aos textos antigos, gregos e romanos, inspirado em
Pierre Hadot, procurando construir a ideia de que naquele
período predominou uma filosofia como arte de viver, como
arte de existência. Em tal perspectiva, a relação da filosofia
com a verdade era bastante especial, pois a verdade estava
presente na própria constituição do sujeito, isto é, nos modos
de subjetivação. A partir da modernidade ocidental, porém,
passou a predominar uma visão da filosofia como saber,
como orientação para uma verdade pensada fora do sujeito. A
filosofia da educação produzida em nossos dias está orientada
por essa visão moderna e pensamos que a provocativa leitura
de Foucault da filosofia antiga pode nos levar a pensar também
uma outra filosofia da educação, como arte de existência.
Os fragmentos que fomos apresentando neste texto são
passos na construção desta filosofia da educação como arte de
existência. Pensar a vida (bios); praticar exercícios espirituais;
ocupar o lugar da ignorância; exercitar esse amor por um
objeto que não se possui e nunca se possuirá. São formas de
se irem resgatando relações da filosofia com a educação que já
foram bastante estreitas no pensamento antigo, possibilitando
um processo de si mesmo na relação com os outros.
Reiteramos que não se trata de uma recusa da construção
disciplinar da filosofia da educação como campo de saber.
Esse movimento foi e tem sido importante; construiu e tem
Educ. foco,
Juiz de Fora, construído relações interessantes da filosofia com a educação.
v. 20, n. 2,
p. 95-114, Mas ele não é suficiente. E, mais do que isso, o investimento
jul. 2015 / out. 2015 112
nessa filosofia da educação orientada para o saber não pode Filosofia da Educação,
Exercícios Espirituais
e Arte de Existência
significar o apagamento e o esquecimento de toda uma
tradição que vicejou na antiguidade, afirmando a filosofia
como a própria formação do espírito humano, como vetor
de construção daquilo que se é. A essa perspectiva, Foucault
denominou, de forma talvez não muito apropriada, de
“psicagogia”, ou seja, uma “condução da alma”, tão importante
quanto a pedagogia.14
Uma outra filosofia da educação, pensada na vida, nos
modos de subjetivação, como conjunto de exercícios espirituais
e como arte de existência, pode, assim, levar-nos para outros
caminhos nessa experiência de pensar a vida presente e o
mundo presente.
REFERÊNCIAS

DERRIDA, Jacques et al. La Grève des Philosophes – école et philoso-


phie. Paris: Osiris, 1986.
DÍAZ, Andrea. Travesía de la razón. Entrevista con el profesor
Mario Silvia García. In: Revista Posdata. Montevideo, 24 de agosto
de 1995.
DÍAZ, Andrea; PUCHET, Enrique. Inquietud de sí y educación.
Hacia un replanteo de la filosofía de la educación I, Montevideo,
Editorial Magró, 2010.
FOUCAULT, Michel. A Coragem da Verdade. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2011.
______. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes,
2004.

14 Na aula de 10 de março de 1982, Foucault fez a caracterização disso que


denominou “psicagogia”:
“Chamemos, se quisermos, ‘pedagógica’ a transmissão de uma verdade que tem por
função dotar um sujeito qualquer de aptidões, capacidades, saberes, etc., que
ele antes não possuía e que deverá possuir no final desta relação pedagógica.
Se chamamos ‘pedagógica’, portanto, essa relação que consiste em dotar um
sujeito qualquer de uma série de aptidões previamente definidas, podemos, Educ. foco,
creio, chamar de ‘psicagógica’ a transmissão de uma verdade que não tem por Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
função dotar um sujeito qualquer de aptidões, etc., mas modificar o modo de p. 95-114,
ser do sujeito a quem nos endereçamos.” (FOUCAULT, 2004, p. 493). 113 jul. 2015 / out. 2015
Andrea Díaz Genis
Sílvio Gallo
______. História da Sexualidade II – o uso dos prazeres. Rio de
Janeiro: Graal, 1984.
______. O Governo de Si e dos Outros. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2010.
GALLO, Sílvio. O aprender filosofia como exercício de si. In:
XAVIER, I.M.; KOHAN, W.O. (org.). Filosofar – aprender e en-
sinar. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. p. 69-84.
HADOT, Pierre. Exercices Spirituels et Philosophie Antique. Paris:
Albin Michel, 2002.
NIETZSCHE, Friedrich. Schopenhauer como educador. In:
______. Obras Completas, Volumen I. Escritos de Juventud. Ma-
drid: Editorial Técnos, 2011.
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______. Alcibíades I. Madrid: Gredos, 1992.
______. Apología de Sócrates. Madrid: Gredos, 2003.
______. Carta VII. Madrid: Gredos, 1992.
______. Laques. Madrid: Gredos, 2003.
PUCHET, Enrique. De la Filosofía y la educación. Cuidado de sí,
inquietud de sí. Montevideo: Ediciones La Fuga, 2012 (en prensa).

Data de recebimento: novembro de 2013


Data de aceite: junho de 2014

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
p. 95-114,
jul. 2015 / out. 2015 114
LA BILDUNG DE SIMÓN BOLÍVAR. La Bildung de Simón
Bolívar. Notas
Preliminares

NOTAS PRELIMINARES
Gregorio Valera Villegas1

Resumen
En este trabajo se realiza un estudio sobre el proceso formativo
de Simón Bolívar desde la perspectiva de su bildung; valga
decir, de su trayectoria, el ir de camino por los senderos
que transitó, en su llegar a ser el que llegó a ser. Para ello
hemos tomado como referentes fundamentales a sus viajes
de formación. Se trata, metodológicamente hablando, del
despliegue de una fenomenología hermenéutico crítica de
la bildung orientada por el viaje de formación; con miras,
entre otras cosas, a bocetar una relación de narración
/ formación, especialmente referida a la formación
intelectual de la persona / personaje llamado Simón
Bolívar. Entre los objetivos pueden destacarse: realizar un
análisis interpretativo, fenomenológico/hermenéutico, de la
invención histórica de un sujeto; desarrollar una mirada de
su bildung a partir de unos hitos referenciales conformados
por los viajes de formación realizados y la subsecuente
metamorfosis sufrida. Como uno de sus principales aportes
está la interpretación del viaje de formación como elemento
fundamental de la bildung de Bolívar.

Palabras clave: Bolívar. Bildung. Viaje de formación.


Fenomenología.

Abstract
In this Work we make a study on the formation process of
Simón Bolívar from the perspective of bildung, in other words,
his trajectory, his pathings which he walked. To become
who he was. So, we‘ve taken as fundamental references his
upbringing trips. This means, methodologically speaking,
the deployment of a hermeneutic phenomenological critique

1 Gregorio Valera-Villegas é Profesor de Filosofía da Educação da Universidad Educ. foco,


Juiz de Fora,
Central de Venezuela y da Universidad Simón Rodríguez. v. 20, n. 2,
p. 115-146,
Email: gregvalvil@yahoo.com 115 jul. 2015 / out. 2015
Gregorio Valera Villegas
of bildung oriented for the upbringing trips, with the view
to, among other things, to sketch a narrative relationship /
training, especially referring to the intellectual formation
of this person / character named Simón Bolivar. Among
his objectives can be highlighted: To make an interpretive
analysis, phenomenological / hermeneutic of historical
invention of a subject, develop a look of his bildung from
a referential milestones comprised of his formation trips
made ​​and the subsequent suffered metamorphosis. As one
of his main contribution is the interpretation of the training
journey as a key element of Bolívar bildung

Keywords: Bolívar; bildung; upbringing trips;


phenomenology.

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
p. 115-146,
jul. 2015 / out. 2015 116
LA BILDUNG DE SIMÓN BOLÍVAR. La Bildung de Simón
Bolívar. Notas
Preliminares

NOTAS PRELIMINARES.
PRESENTACIÓN

De Simón Bolívar, aquel que llega a convertirse en El


Libertador, se han hecho muchísimos estudios, sin embargo
la mayoría se ha concentrado en su vida como genio político,
militar y estadista. Sus biógrafos generalmente han enfatizado
en su trayectoria como hombre público, estadista y guerrero;
los grandes éxitos militares, los países y naciones que liberó y
gobernó, sus amores, sus dotes como diplomático, ideólogo y
visionario. No obstante, su proceso formativo, su formación
intelectual, esa que tiene que ver con el: cómo se llega a
ser lo que se es; ha sido mucho menos estudiada. Aquí nos
referiremos a este último aspecto, no sin antes acotar que el
presente texto es el producto parcial de un estudio mayor.
Hablar del proceso formativo de Simón Bolívar es
hacerlo de su bildung; valga decir, de su trayectoria particular,
única e irrepetible. Buscar su bildung es ir de camino por los
senderos que transitó, de su llegar a ser el que llegó a ser.
La bildung de Bolívar es de él, sólo de él. Su relato de
vida es historia ejemplar no hay duda. Y responde, en tanto
bildung, a una experiencia. Ella se concibe como una aventura
de vida de un individuo que llega a convertirse en una persona,
y también en un personaje, de extraordinaria significación en
el decurso de su trayecto vital, de una vida plenamente vivida.
Bolívar se con-forma desde una acción sobre sí mismo, desde
un cultivo de sus sobresalientes talentos y facultades para ir
esculpiendo su propia forma. Así, como ser individual, lo que
no exime su condición de ser histórico y social, sino que lo
supone; como individualidad en tanto totalidad compleja y
armónica, rica en matices, con sus virtudes en grado sumo, Educ. foco,
Juiz de Fora,
y sus defectos, sus errores; va dándose forma en el trajinar de v. 20, n. 2,
p. 115-146,
vivencias, de experiencias propias. De esta manera se configura 117 jul. 2015 / out. 2015
Gregorio Valera Villegas
un alguien con nombre propio, de una gran riqueza personal,
con un estilo característico, singular, de una irrepetible
originalidad. Su bildung es vida y con-formación, vida y
experiencia, vivencias hechas para sí, que le van amoldando.
Ahora bien, aquí se trata de bocetar una relación de
narración / formación, especialmente referida a la formación
intelectual de la persona / personaje llamado Simón Bolívar,
para contribuir a la desmitificación de un héroe, aquella que
le achaca a Don Simón Rodríguez poderes mágicos en su con-
formación, idea manida a tenor de una interpretación insulsa
de la Carta de Pativilca, 1924, que él le dirige a Rodríguez.
O aquella que llega a negar su altísimo nivel intelectual sólo
por el hecho de que nunca curso estudios en la universidad,
punto de vista por demás históricamente desubicado, porque
desconoce la realidad de la universidad de sus tiempos, entre
otras cosas. O, finalmente, la mágica/religiosa que le inviste de
un don extraterrestre, paranormal, un ungido.
De su experiencia escolar, de su desempeño como
alumno, puede decirse que fue muy irregular, su permanencia
en la escuela estuvo marcada por la brevedad. Finalizada su
permanencia en la Escuela de las Primeras Letras que dirigía
Simón Rodríguez, al renunciar a su cargo de maestro por
razones principalmente políticas, para iniciar su vida de
trotamundos en distintos países del norte (Jamaica, Estados
Unidos, países europeos); el niño Bolívar es reubicado en la
Academia de Matemáticas y Ciencias Naturales, dirigida por
el padre Andújar1 (la cual, por cierto, funcionaba en casa de su
tío materno, Carlos Palacios, ya que en la universidad y en el
seminario no había espacio para ello). Su permanencia en esta
escuela fue muy nutritiva para la formación de aquel alumno.
Allí, según refiere el padre Andújar, estudiará aritmética,
álgebra, geometría, geografía y dibujo.

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, 1 Conocido como padre Francisco de Andújar, su nombre real era Francisco de
p. 115-146,
jul. 2015 / out. 2015 118 Paula Ravé y Berdura. Un sabio naturalista.
En la formación escolar de Bolívar hay que señalar La Bildung de Simón
Bolívar. Notas
Preliminares
también la militar. Ella se inicia a principios de 1797, en ese
año ingresa en el Batallón de Infantería de Blancos de los
Valles de Aragua. En la evaluación de su actuación se destaca
su aplicación, que es considerada de sobresaliente.
En este ámbito hay que destacar la relevancia para el
futuro Libertador que tiene su estancia, aunque breve, por el
Colegio Real de Sorèze (L’École de Sorèze) en el Sur de Francia,
en el departamento del Tarn, realizada durante su primer viaje
a Europa. Allí en aquella institución, de acuerdo con Zerega-
Fombona (s/f ), de gran prestigio, se orientará su formación
militar y su disciplina intelectual. Brevedad que no afectó la
formación alcanzada por poseer un talento e inteligencia fuera
de lo común, puede decirse que a él con poco le era suficiente
para hacer crecer su espíritu e intelecto.
Puede afirmarse que en su educación la presencia de
institutores particulares, tuvo una importantísima relevancia.
En la aristocracia de aquellos años de finales del siglo XVIII y
los primeros del siglo XIX, se acostumbraba que la educación
fuera principalmente conducida por institutores, práctica
educativa que se realizaba usualmente dentro del hogar
doméstico. El institutor era una persona, en muchas ocasiones,
de un alto nivel educativo, como fue el caso de los institutores
de Bolívar: Andrés Bello, el padre Andújar, Guillermo Pelgrón.
Sin embargo, ni la academia de matemáticas y ciencias
naturales, ni las lecciones de sus institutores, ni la escuela
militar resultaron suficientes para calmar su espíritu inquieto;
y el sueño que mantenía desde los 11 años se hizo realidad,
viajar a Europa para continuar formándose. Sus tíos Esteban
y Carlos Palacios, responsables de su educación y cuidado,
terminaron por aceptar que ese sueño lo hiciera realidad.
Irse de viaje, viajar, tuvo un significado fundamental en su
formación. Veamos este aspecto con más detalle.
La bildung de Bolívar podemos mirarla como la Educ. foco,
Juiz de Fora,
invención histórica de un sujeto, sujeto persona, sujeto v. 20, n. 2,
p. 115-146,
personaje. Esta perspectiva nos lleva a mirar su bildung a 119 jul. 2015 / out. 2015
Gregorio Valera Villegas
partir de unos puntos de mira, suerte de hitos referenciales,
como: el nombre propio, el nombre del personaje, la
narración histórica, la metamorfosis y la identidad personal.
Su bildung se va haciendo sin caminos previamente trazados
y como heredero de una tradición, herencia, que recrea, que
reinventa, y allí en un espacio y tiempo de situación, se genera
su metamorfosis, su identidad personal en la narración de lo
vivido, interpretado, asimilado. Su bildung es una invención
histórica que se expresa en una narración que es intercepción,
quiebre y ruptura entre el poder y la resistencia, entre la mal
venida y la bienvenida u hospitalidad, entre el extrañamiento
y el reconocimiento; cualquier orientación que pretenda
interpretarla desde cartografías hechas, sacralizadas, está
condenada a extraviarse.
Por tanto, en su bildung la presencia del viaje es
fundamental para su comprensión. Viaje, viajar, en el sentido
de viaje de formación, no puede entenderse como el mero
traslado de un lugar a otro, a una distancia larga o corta. El
viaje implica un cambio de situación que supone un tocar o
trastocar al viajero, valga decir, en el que se vive, se llega a
tener, o se tiene una experiencia que, de algún modo, llega a
cambiarlo. El viaje de formación, es, con mucho, este último.
En la bildung de Bolívar este tipo de viaje va a ser fundamental.
No es que las escuela, sus institutores de Caracas no fueran
importantes; sino que esta experiencia le va a representar
auténticos procesos de metamorfosis en la trayectoria, sinuosa,
confusa, contradictoria e irrepetible, de ese llegar a ser él que
se es. El viaje es vía, no preestablecida, de perfeccionamiento,
pero, principalmente de metamorfosis en su proceso de con-
formación. Viajar y narrar-se para con-formarse, para ser
distinto y el mismo a la vez.
Tres fueron, al menos, sus viajes de formación, nos
referimos a los realizados a Europa, a saber:
Educ. foco,
1. El primero, 1799, es un viaje de escuela e institutores en la
Juiz de Fora, España y la Francia de la época. En él llega a convertirse,
v. 20, n. 2,
p. 115-146,
jul. 2015 / out. 2015 120
siguiendo a Valera-Villegas (2012), en un lector inquieto, La Bildung de Simón
Bolívar. Notas

de estudios intensos y profundos. Preliminares

2. El segundo, 1804, es el viaje de su descubrimiento


político. Viaje de viajes. Viaje de aprendizaje con
Rodríguez como compañero, maestro y guía. España,
Inglaterra, Francia, Portugal, Italia, parte de Austria,
Bélgica, Alemania y los Estados Unidos; fueron los lugares
de la ruta. Un viaje de forja de ideales éticos y políticos y
también de aventura, núcleo de experiencia y formación.
3. El tercero, 1810, en él el talante es el de un viajero
observador, crítico y reflexivo, especialmente de la vida
cotidiana y de las instituciones, específicamente de
las inglesas. Experiencias muchas que van acrisolando
su formación política. En este conoce a Francisco de
Miranda.

6.  LA BILDUNG COMO VIAJE DE FORMACIÓN

El viaje de formación tiene que ser realizado, vivido,


sentido, contado por el viajero. No puede ser algo fabricado,
controlado, porque él juega a lo nuevo, a lo sorprendente,
incluso a lo imprevisto. La narración de un viaje, cuando
es un viaje de verdad y el de formación lo es, sólo puede ser
hecha cuando se ha vivido a plenitud. Su saber es con sabor,
en el sentido de lo que se ha probado. Este viaje responde a
una tradición de larga data; el viajar para conocer, el viajar
para mejor comprender, el viajar para ser distinto1. El viaje así
entendido supone la experiencia y ello implica poner en juego,
en términos de Gadamer (1999), los prejuicios2, hallarse con

1 Los primeros filósofos (Tales de Mileto, Anaximandro y Anaxímenes), los


llamados físicos, realizaron grandes viajes, en los que se combinaron sus afanes
mercantiles y de formación.
2 Prejuicio no debe ser entendido aquí como prejuzgar, ni tampoco como una
opinión sesgada, mantenida tercamente sobre algo o alguien de quien o del que Educ. foco,
poco se sabe. Prejuicio, como presupuesto, tiene el sentido dado por la filosofía Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
hermenéutica, esto es, el sujeto de la comprensión tiene una tradición; la cual p. 115-146,
es asumida plenamente, y tiene un papel activo que ayuda a abrirse a lo nuevo. 121 jul. 2015 / out. 2015
Gregorio Valera Villegas
lo incierto, inseguro; y a la vez posibilitar la imaginación y, en
el sentido de Marías (2009), la ilusión1.
El viaje de formación puede combinar lo académico, los
libros y la propia experiencia de la aventura; es decir, aquella
que combina la contingencia, el acontecimiento, lo incierto y
el riesgo. Nuevas personas, nuevas culturas, nuevas geografías,
nuevas ciudades, nuevas instituciones, nuevas costumbres;
vistas, desde luego, a los ojos del viajero. Está claro que siempre
han existido lugares de referencia para los viajes de formación,
los llamados centros de la cultura, desde los clásicos Grecia y
Roma, en el mundo occidental; hasta las grandes capitales y
países que se van alternando de acuerdo con el viajero y sus
intereses.
Un aspecto a destacar es el carácter específico del viaje de
formación; es decir, su significación y relevancia es subjetiva,
aunque no arbitraria, depende del viajero, de su circunstancia,
de su talento, intereses, inclinaciones y de lo que culturalmente
valora. Así, este tipo de viaje está referido a una persona, a su
circunstancia, a su contexto.
En este viaje, a diferencia de lo que muchas veces sucede
en la escuela, los errores, las fallas, los resultados adversos
pueden constituir auténticas experiencias de formación.
En él la concepción, la proyección y la realización
dependen del viajero; y su estimación, apropiación y
trascendencia, en tanto experiencia, no sólo se desarrolla
durante la travesía, por así llamarla; sino en lo que sigue al
finalizarlo, en sus productos, obras y realizaciones posteriores.
El viaje de formación es una acción que se vive antes, durante
y después; antes de entrar en él, dentro de él, y fuera de él, más
allá de él.

1 La ilusión debe ser entendida en el sentido dado por Marías; es decir, como
Educ. foco,
Juiz de Fora, aquella que tiene como condición lo futuriza, “…es decir, el hecho de que,
v. 20, n. 2,
p. 115-146,
siendo real y por tanto presente, actual, está proyectada hacia el futuro,
jul. 2015 / out. 2015 122 intrínsecamente referida a él en la forma de la anticipación y la proyección...”.
Él no sólo se despliega en las instituciones académicas La Bildung de Simón
Bolívar. Notas
Preliminares
a las que se pueda acudir, a los libros y autores que se puedan
estudiar, a los maestros y compañeros que se puedan encontrar;
sino también en las ciudades y pueblos, en el clima y en el
paisaje geográfico, en la gente, en la cultura, en los olores y
sabores, en la lengua, en la música, en las fiestas; y por qué
no en la llamada mala vida1. Este viaje hace posible el vivir/
formarse en una circunstancia; y, por tanto, es lugar y camino
que se recorre y habita; y que termina con-formando al viajero
desde la vivencia, la experiencia única e irrepetible.
La bildung y el viaje de formación. La bildung puede
ser entendida como un trayecto, un recorrido, con y sin camino
preestablecido, a través del cual una persona se inclina hacia
su propia con-formación. A ella, a la bildung, le acompaña lo
incierto, el desconcierto, lo referido, lo contado, lo vivido, lo
mostrado por un alguien, por un algo, que sirve de modelo.
En ella también está implicada una aventura.
Dos momentos fundamentales se presentan en la bildung,
a saber: el primero, un camino por hacer, inconcluso; envuelto
en la ventura, sin objeto claro, a lo que depare la suerte, a la
contingencia; y el segundo, el modelo o juego a la mimesis. Un
modelo que puede influir, no como copia fiel sino como influencia
y huella. Porque la bildung es búsqueda de una imagen, desde y
más allá de un modelo, de adentro afuera y de afuera adentro.
La bildung es tiempo e historia, valga decir, está situada
en una circunstancia, un yo y una circunstancia, al decir de
Ortega y Gasset. Ella es un llegar a ser de un ser humano. El
presente estudio está referido a la de Simón Bolívar, al cómo
llegó a ser sabio y virtuoso, educado según un modelo, bajo
unas influencias. Su camino es la experiencia, la vivencia, la
aventura, todas ellas reflejadas en el viaje de formación, en
sus viajes de formación. Su bildung, que tiene que ver aquí

1 Entendida no desde el dualismo, mala vida/buena vida, sino desde una


Educ. foco,
perspectiva de la vida humana como un espejo de dos caras, incluso de más de Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
dos. De tal manera que la vida del bar, del burdel, de la bohemia es también p. 115-146,
vida; y ella también puede formar. 123 jul. 2015 / out. 2015
Gregorio Valera Villegas
con su bildungroman1 (VALERA-VILLEGAS, 2005), es de
un trotamundos, un caminante, un viajero. Así, el viaje de
formación se convierte en el escenario de un movimiento
exterior / interior para darse forma, para con-formarse. El
conocimiento de la bildung de Bolívar, referido en este caso a
sus viajes de formación, tiene que ver con una fase de su proceso
de formación, que trasciende a la pura instrucción, al simple
aprender; que implica, por consiguiente, el esculpido de un
forma espiritual, al aprovechamiento de sus potencialidades
para alcanzar la plenitud, en su búsqueda de llegar a ser el que
se es, para convertirse en el ser histórico, único e irrepetible,
que llegó a ser.

7.  LOS VIAJES Y LA BILDUNG DEL LIBERTADOR

La formación tiene, para nuestros fines, una inclinación


hacia el formarse así mismo, de manera completa. De esta
manera la bildung, con especial referencia al individuo, se
relaciona estrechamente con: el espíritu (geist) y la libertad
(freiheit), claves para comprender la formación de un
ser humano, en nuestro caso Bolívar. El cultivo de sí, el
autoformarse, implica un trayecto de sí interior / exterior,
una realización inconclusa que supone una emancipación
intelectual, ética y política.
Por cierto, cabe señalar que Bolívar, a juzgar por
su epistolario, es presumible que tuvo una infancia muy
armoniosa, feliz, llena de mucho afecto, se diría, enmarcada
en un niño perteneciente a la aristocracia de la época; a pesar
de haber perdido a sus padres a temprana edad.

1 La bildungroman o novela de formación, que muestra el despliegue de la formación


de un sujeto individual en un mundo o circunstancia, en ella se produce una
Educ. foco,
metamorfosis del héroe o protagonista; y también el viaje por el mundo, el alejamiento
Juiz de Fora, y sus implicaciones, la aventura de viajar y sus riesgos, y el retorno transformado en
v. 20, n. 2,
p. 115-146,
lo que se es. En otro estudio nos hemos referido a las particularidades de la novela de
jul. 2015 / out. 2015 124 formación latinoamericana en contraste con la europea.
La bildung es expresión de una unidad o totalidad La Bildung de Simón
Bolívar. Notas
Preliminares
personal, en ese llegar a ser lo que se es, como imperativo
nietzschiano. De tal suerte, que el viaje de formación es
una de las expresiones de ese cuidado de sí para la propia
formación, para alcanzar un sentido a la propia vida. El viaje
contribuye al desarrollo de un pensamiento crítico, con la
capacidad de un pensar por sí mismo, y con el desarrollo de
la imaginación personal. El viaje va a tener como vehículos
importantes, siguiendo a Dilthey y a Gadamer, a: la vivencia,
la comprensión, la interpretación y la expresión; y está referido
a un tiempo histórico y a una circunstancia. El viaje a su vez es
expresión palmaria de la temporalidad humana.
De la mano de un ejercicio de fenomenología
hermenéutica y de una pedagogía hermenéutica abordaremos
a continuación una parte fundamental de la vida de Bolívar
como lo fueron sus viajes de formación, ello nos ayudará a
comprender, en alguna medida, el cómo llego a ser el que
fue, y al mismo tiempo contribuir, desde una perspectiva
hermenéutica crítica, a la comprensión de un personaje
ejemplar.
Los viajes que realizó Bolívar a Europa marcaron una
impronta en su formación, no hay duda. Aunque por motivos
inmediatos distintos, el fondo de los mismos fue el mismo,
la con-formación de quien fue, del que llegó a ser; desde la
vivencia de experiencias múltiples y nutricias, y la búsqueda
de un sentido a su vida. Cada uno le ofreció la posibilidad
de estudiar y conocer en la vida, en la escuela y en los
libros un conjunto de conocimientos amplios y profundos
sobre: culturas, filosofías, sistemas políticos, ideologías,
organizaciones sociales, concepciones y prácticas económicas
y valores humanos. Él tuvo plena conciencia de la importancia
que revestía para su formación el viajar, de allí la ilusión que se
formó, a muy temprana edad, de viajar a Europa con ese fin.
No puede dejarse de señalar el papel importante que en Educ. foco,
la formación de Bolívar tuvieron las grandes travesías militares Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
y políticas que realizó, entre 1811 y 1830. Sin embargo, el 125 p. 115-146,
jul. 2015 / out. 2015
Gregorio Valera Villegas
motivo principal era otro. De ellas pueden señalarse, entre otras:
la estancia en Jamaica, la estancia en Haití y especialmente las
acciones militares: la Campaña Admirable1 y el Paso de Los
Andes2.
7.1  EL LER VIAJE

Hemos dicho en líneas anteriores que este primer viaje,


el de 1799, es un viaje de escuela e institutores en la España
y la Francia de la época. En él llega a convertirse en un lector
inquieto, de estudios intensos y profundos.
Bolívar lo inició cuando contaba 15 años y medio, y
el motivo fundamental es de estudios. El recorrido incluyó
México y Cuba, España y Francia. En España, en Madrid, se
reúne con su tío Esteban Palacios. El remanente principal del
viaje pudiera resumirse así: vivencias sociales y culturales, una
cultura general y el haber dispuesto de excelentes institutores.
Ello permanece hasta que su tío cae en desgracia política, y
tiene que irse de Madrid. En el ínterin lo envían a vivir con
uno de sus maestros más importantes, el Marqués de Ustariz.
La lectura permanente y acuciosa fue una de las constantes de
su formación.
De las vivencias más relevantes, y que, seguramente,
tocarán profundamente su proceso formativo, pueden
destacarse:
1. Presencia la coronación de Napoleón, lo que le generará
un resquemor por la ambición ciega del poder.

1 La Campaña Admirable fue una acción militar liderada por Simón Bolívar
para la liberación de Venezuela, y comprendió el trayecto desde Cúcuta, 14
de mayo de 1813, hasta Caracas, a la cual arriba triunfal el 6 de agosto de
1813. En ella se le da su más grande apelativo, el de Libertador. Esta acción
comprendió varias batallas: la de Cúcuta, la de Niquitao, la de Los Horcones.
2 El Paso de Los Andes, 1819, fue una acción militar de altísimo valor estratégico

Educ. foco,
durante la Campaña de Liberación de la Nueva Granada. Esta acción es
Juiz de Fora, considerada una de las más resaltantes y una auténtica proeza si se toma en
v. 20, n. 2,
p. 115-146,
consideración los recursos de la época; en ella se muestra el genio político y
jul. 2015 / out. 2015 126 militar de Bolívar.
2. Se casará en María Teresa Rodríguez del Toro y Alaiza, el La Bildung de Simón
Bolívar. Notas

26 de mayo de 1802. Preliminares

3. En Madrid asiste a salones de lectura, de baile y tertulia;


y observa con admiración la corte del reino desde los
Jardines de Aranjuez. Visitó la corte de Carlos IV y jugó
en los jardines de Aranjuez con el príncipe Don Fernando.
4. Viaja a Francia (Bayona, Burdeos y París). Breve estancia
en la L’École de Sorèze.

En este sentido puede señalarse que aquí la bildung es


presentada como experiencia de un individuo en el mundo,
en nuestro caso Bolívar. Él debe con-formarse, formarse a sí
mismo. Y es aquí en donde la experiencia vivida a plenitud
por un alguien, representa un progresivo entregarse al mundo,
a vivirlo, y al impacto profundo que le deja en su vida, en
su formación. Concebir la bildung como experiencia es
pensarla como aventura de un sujeto; por lo que ella supone
lo contingente, lo incierto y el riesgo; llena de acontecimientos
que no se identifican por la repetición y lo previsto. La bildung
es cultivo sobre sí, cultivo de sus talentos para su con-formación
propia. El individuo es visto como una totalidad, como una
relación figura / fondo en la que se configura un estilo propio,
particular, en su originalidad. Esta relación figura / fondo es
individuo / mundo1 en que un alguien se da su propia forma y
manera; una identidad que delinea en la relación de narración.
Una experiencia significativa para la formación de
Bolívar fue, en este su primer viaje, la relación amorosa que
inicia en Madrid en 1800 cuando tenía 17 años; y el posterior
matrimonio con su enamorada, María Teresa Rodríguez del
Toro. Él de 19 años y María Teresa de 21. Relación de amor
profunda, corta y de final inesperado y prematuro. Ella muere
nueve meses después del matrimonio. Esta experiencia lo
tumba, lo derrumba, y se convierte en el acicate de su segundo
viaje.
Educ. foco,
1 Aquí cabe la imagen de un ser humano superándose a sí mismo en su relación Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
con el mundo, a pesar, muchas veces, de las limitaciones o resistencias que se le p. 115-146,
puedan presentar. 127 jul. 2015 / out. 2015
Gregorio Valera Villegas
Es este, su primer viaje, el de un novicio que inicia una
aventura de formación, su bildung, de un llegar a ser lo que se
es. El involucra un primer salto de un alguien que comienza.
Sin embargo, es una persona que da muestras incipientes de su
talento, dominio de sí mismo y amor propio; lo que se puede
colegir de la lectura de su primera carta1, de fecha 20 de marzo
de 1799. Leamos:
Vera Cruz 20 de Marzo de 1799.

SEÑOR DON PEDRO PALACIOS Y SOJO

Estimado tio mío:

Mi llegada a este puerto ha sido felizmente,


gracias a Dios: pero nos hemos detenido aquí con
el motibo de haber estado bloqueada la Abana,
y ser preciso el pasar por allí; de sinco nabios y
onse fragatas inglecas. Después de haber gastado
catorse días en la nabegasión entramos en dicho
puerto el dia dos de febrero con toda felicidad.
Hoy me han susedido tre cosas que me an
conplasido mucho: la primera es el aber sabido
que salia un barco para Maracaibo y que por
este conducto podia escribir a Vd. mi situasion,
y participarle mi biaje que ise a México en la
inteligencia que usted con el Obispo lo habían
tratado, pues me allé haqui una carta para su
sobrino el oidor de allí recomendandome a él,
siempre que hubiese alguna detención, lo cual
lo acredita esa que le entregara usted, al Obispo
que le manda su sobrino el oidor, que fue en
donde bibi los ocho días que estube en dicha
ciudad. Dn. Pedro Miguel de Hecheberria
costeo el biaje que fueron cuatrocientos pesos
poco mas o meno de lo cual determinara usted,
si se los paga aquí o allá a Don Juan Esteban
de Hechesuria que es compañero de este Señor
a quien bine rrecomendado por Hechesuria, y
siendo el condudto el Obispo. Hoy a las onse
Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, 1 Escrita en el Puerto de Veracruz de camino a Cuba y a España, dirigida a su tío
p. 115-146,
jul. 2015 / out. 2015 128 Pedro Palacios y Sojo, tutor y tío materno.
de la mañana llegue de México y nos bamos La Bildung de Simón
Bolívar. Notas
a la tarde para España y pienso que tocaremos Preliminares

en la Abana porque ya se quitó el bloqueo


que estaba en ese puerto, y por esta razón a
sido el tiempo muy corto para haserme mas
largo. Vsted no estrañe la mala letra pues ya
lo hago medianamente pues estoy fatigado del
mobimiento del coche en que hacabo de llegar,
y por ser muy a la ligera (*) la he puesto muy
mala y me ocurren todas las espesies de un golpe.
Espresiones a mis ermanos y en particular a
Juan Visente que ya lo estoy esperando, a mi
amigo Dn. Manuel de Matos y en fin a todos a
quien yo estimo.

Su mas atento serbidor y su yjo.

SIMÓN BOLÍVAR.

Yo me desenbarqué en la casa de Dn. José


Donato de Austrea el mario de la Basterra
quien me mandó recado en cuanto llegue aquí
me fuese a su casa y con mucha instancia y me
daba por razón que no había fonda en este
puerto.

(*)Tachado en el original: “pues ya me voy a


embarear”. (O’LEARY, 1915).

Sin contar para nada las fallas ortográficas que se aprecian


en el texto, lo fundamental es el ingenio que ya comenzaba
a despuntar, la resolución para actuar y una prosa elegante
y fuerte. Bolívar llegaría a ser un fino escritor, de acuerdo
con Mora (1999) y Subero (1983), de un estilo definido, de
muchísimas cartas y otros textos como: ensayos, proclamas,
manifiestos, discursos, entre otros1.

1 Son obras de referencia fundamental del Bolívar escritor: El Manifiesto de


Educ. foco,
Cartagena, 1812; la Carta de Jamaica, 1815; el Discurso de Angostura, 1819. Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
Mención aparte merece Mi Delirio sobre el Chimborazo, 1823. Obra de un gran p. 115-146,
lirismo como poema en prosa. 129 jul. 2015 / out. 2015
Gregorio Valera Villegas 7.2  EL 2° VIAJE

Del segundo viaje, 1804, señalábamos antes que era el


viaje de viajes, debido a su trascendencia formativa. Un viaje
de forja de ideales éticos y políticos (enmarcados, grosso modo,
en las ideas liberales y en las de la libertad y la igualdad para
los hombres sin distinción de razas o creencias) y también
de aventura. Una profunda desilusión embarga a Bolívar, la
muerte prematura de su esposa. Decide marcharse una vez
más a Europa. Nuevos caminos, nuevas aventuras, nuevas
experiencias lo componen. El viaje dura tres años. De España
a los Estados Unidos fue la ruta, y comprendió Inglaterra,
Francia, Portugal, Italia, Austria y Alemania. El viaje dura tres
años, al final de los cuales, en 1807, llega a Estados Unidos,
allí permanece durante tres meses. Después de un decurso de
un viajero itinerante, trotamundos y ávido de experiencias;
ese mismo año regresa a Caracas; y en 1808 se inicia su vida
pública y política.
Un aspecto muy relevante del viaje, es la idea que logra
construir de la América como un mundo distinto al europeo.
Este último con una larga cultura lograda en un tiempo
histórico de más de dos mil años; mientras que entiende que
él primero necesita todo un proceso de liberación y de unidad
para alcanzar una identidad y un reconocimiento propio.
El estudio es una constante de este viaje, los clásicos son
sus lecturas predilectas (Helvecio, Holbach, Locke, Hume,
Rousseau, Voltaire, Montesquieu, entre otros). El diálogo con
Humboldt, Bonpland, y Simón Rodríguez y las orientaciones
dadas, por este último, son fundamentales. Es él de la persona
ávida que pregunta y busca, que busca porque pregunta, en la
ruta de un dominio de distintos campos del saber.
Entre las vivencias más relevantes, que, seguramente,
tocarán profundamente su proceso formativo, están:
1. El viaje, de acuerdo con Mancini (1944), representó un
Educ. foco,
Juiz de Fora, período pletórico de aventuras; entre las que se cuenta
v. 20, n. 2,
p. 115-146, una vida de disipación, faustuosa tanto en Viena como en
jul. 2015 / out. 2015 130
Londres, en Madrid, en Lisboa1. Lleva, en parte, una vida La Bildung de Simón
Bolívar. Notas

de libertinajes, de desenfrenos, especialmente en París. Preliminares

Estas vivencias las combina con el estudio y la reflexión,


con largas conversaciones con intelectuales y políticos.
Todas contribuirán a formarlo. Como dato curioso puede
señalarse que en él se afilia a la masonería, que ejercerá
alguna influencia en la edificación de su carácter.
2. En este viaje Bolívar es un trotamundos, esto le ayudará
a formar sus ideales filosóficos, ideológicos y políticos.
Presencia la proclamación de Napoleón Bonaparte
como emperador. En una actitud crítica ante este
acontecimiento, llega a afirmar:
“…miraba sorprendido a la Francia, una gran república
cubierta con los trofeos y monumentos que ostentaba el
poder de sus ejércitos y de sus instituciones, cambiando
por una corona el gorro de la libertad, y al pueblo
abdicando su soberanía en un monarca…”(O’LEARY,
1915, p.81).
3. Se hace un lector profundo de Montesquieu, Plutarco,
Voltaire y Rousseau, especialmente de estos últimos que le
acompañarán toda su vida.
4. El encuentro con Simón Rodríguez es fundamental en su
formación. Con éste trashumante viajará, leerá y hablará.
5. El viaje por distintos pueblos europeos y por el
norteamericano le proporcionará una formación y una
perspectiva para comprender mejor, siguiendo a Ortega
y Gasset (1987), su yo y su circunstancia. Él propicia
escenarios para la reflexión profunda y crítica.

El viaje, mirado desde la bildung, implica un proceso


temporal e histórico por el que un ser humano, en nuestro
caso Bolívar, adquiere una formación. Es ese ser humano
en relación con una circunstancia, que se aspira sea lo más
plena y diversa posible. El viaje visto así permite esa relación
dialéctica del sí mismo / otro, en términos de Ricoeur (1996):
el sí mismo como otro. La realización del individuo es un salir
Educ. foco,
Juiz de Fora,
1 En este viaje se aficiona por los juegos de azar. Llegando incluso a perder en v. 20, n. 2,
p. 115-146,
una noche hasta cien mil libras. 131 jul. 2015 / out. 2015
Gregorio Valera Villegas
y un retornar; tanto en el plano de su yo, como en la acción
del viajar como experiencia (trans)formadora. Un salir de lo
propio, de lo de uno mismo, para retornar transformado.
En la experiencia formativa del viaje no cabe una visión de
acumulación de información pura y simple, a la manera de
un tour turístico; sino un cultivo de sí, una experiencia de
sí. El viaje es un experimentarse a sí mismo a plenitud, y es
esa búsqueda del yo en su circunstancia. En el viaje Bolívar
se muestra como un tipo talentoso, muy distante del héroe,
ávido de conocimiento y sabiduría. Y las preguntas le vendrán
posiblemente a su mente: ¿quién soy yo? ¿en qué puedo
convertirme? ¿qué puedo hacer? ¿Qué me cabe esperar? Por
tanto, el viaje llega a ser bildung de sí.
En el viaje como bildung, los aprendizajes no son
preparados como en la escuela; sino vivencias plenas y
conscientes (el viajero, por así llamarlo, da cuenta de ellas y se
da cuenta de lo que le ha pasado), que incluyen desde luego
las padecidas/recibidas en la lectura. La relación pedagógica
que puede llegar a establecerse, y en el caso de Bolívar es muy
clara, es la de un aprendiz y maestros que se encuentra en su
viajar. El viajar es de algún modo errancia1 fecunda, al decir
de Picón Salas según Álvarez Arocha (2011), por cuanto no
implica arraigo.
En este segundo viaje de Bolívar sus biógrafos han
insistido mucho en la tribulación que le embarga; sin
embargo, lo fundamental es que en él se da un proceso que
“obedece a una teleología del devenir sí mismo a través de las
metamorfosis (…) [descubrir] el sentido de su vida, su unidad
bajo las variaciones…” (FABRE, 2011, p. 219).
De especial referencia es el viaje que realiza en compañía
de Simón Rodríguez. Bolívar al tener noticia de que Rodríguez
se encontraba en Viena, decide ir a reunirse con él. Algunos

Educ. foco,
Juiz de Fora,
1 La errancia, considerado por Rosenblat un neologismo de Picón Salas, debe
v. 20, n. 2,
p. 115-146,
ser entendida como más allá del hecho de ir de un lado a otro, para enfatizar el
jul. 2015 / out. 2015 132 carácter de itinerario espiritual que ella implica.
días después se separan para volver a encontrarse en París1. La Bildung de Simón
Bolívar. Notas
Preliminares
Al llegar el trashumante Rodríguez, deciden viajar juntos,
en compañía de Fernando Toro, por tierras francesas, suizas
e italianas, una buena parte a pie, suerte de peregrinos por
tierras extrañas. En este viaje, realizado en 1805, desarrollaran
una especie de curso de viaje/formación entre el institutor y su
discípulo. En él seguirán la ruta: “… de París a Lyon, luego a
Chamberry, en donde los romeros visitan y allí contemplan la
mansión de Juan Jacobo, en las Charmettes. En tierra italiana,
recorren poblaciones como Turín; en Milán asisten a los juegos
olímpicos, y en Monte-chiaro, cerca de Castiglione, presencian
la revista que pasó Napoleón en las llanuras de Marengo; de
Milán dirígense a Venecia y conocen Verona, Vicenza y Padua,
Fentara, Bolonia y Florencia (…) de donde se trasladaron a
Roma…” (CARBONELL, 1965, pp.314-315). Y en Roma2
es en donde realiza Bolívar el conocido Juramento del Monte
Sacro, en el monte Aventino. Desde Roma siguieron rumbo a
Nápoles (RUMAZO GONZÁLEZ, 2006). Viaje de vivencias
muchas, vividas a plenitud, de lecturas, de diálogos infinitos
con su institutor, que marcaran profundamente su bildung.
7.3  EL 3ER VIAJE

Del tercer viaje, 1810, hemos señalado arriba que en


él el talante es el de un viajero observador, crítico y reflexivo.
Viaje que contribuye a fortalecer su formación política. En
este conoce a Francisco de Miranda.
Las experiencias más resaltantes, según sus biógrafos,
son las relacionadas con la diplomacia; sin embargo no pueden
subestimarse las otras experiencias vividas por él, en este viaje

1 Bolívar se encuentra para aquellos días francamente extenuado. Este


reencuentro le es favorable; sin embargo decide continuar su viaje, y se dirige
a Londres, Madrid y Lisboa. Sigue su vida de dandi, en la farra y en el juego,
al libertinaje en suma; y también en sus estudios. En ese juego dialéctico que Educ. foco,
pudiera llamarse: mala vida / buena vida, que también le forma. Juiz de Fora,
2 En Roma también vive una experiencia particular con el papa Pío VII, al v. 20, n. 2,
p. 115-146,
negarse a besar su sandalia. 133 jul. 2015 / out. 2015
Gregorio Valera Villegas
de formación, si se pretende comprender su bildung. Es claro,
en efecto, que su papel como representante oficial, o miembro
de una comisión oficial, del nuevo gobierno venezolano, en
el marco del proceso de independencia política del imperio
español, fue mi rica; por lo que ella puede ser caracterizada
como el producto de un aprender haciendo. Todo su talento
y genio puesto al servicio diplomático, valga decir, a llevar
a buen término las negociaciones con el Reino Unido. En
la práctica de este servicio pudo poner en juego su sentido
común, su inteligencia y tacto, que no es poco decir. La
práctica diplomática, en cuanto a esta experiencia formativa
para él, fue la llamada: diplomacia ad hoc, la cual, siguiendo
a Nicolson (1995), la representatividad es temporal, es decir,
por un tiempo determinado y para un objetivo específico.
A raíz de los sucesos anteriores y posteriores al 19 de
abril de 1810; el nuevo gobierno empezó a generar nuevas
expectativas. Las noticias de lo acontecido en Caracas llegan
a Londres. Poco tiempo después llega el ofrecimiento del
gobierno británico de facilitar los medios para que la Junta
de Caracas enviara una delegación si así lo consideraba. De
esta manera, Bolívar, Luis López Méndez y, como secretario,
su amigo e institutor, Andrés Bello integraron la misión
diplomática con el objeto de buscar el apoyo británico a la
Junta1. La misión no logró los objetivos completamente,
porque la posición de los británicos fue la de negarse a dar
apoyo político a Venezuela2, ellos terciaron las negociaciones
hacia acuerdos comerciales en función de sus intereses.
No obstante, si se lograron algunas cosas como: la secreta
connivencia inglesa, relaciones comerciales y la promesa de
que Inglaterra mediara, en alguna medida, con España en

1 Para el momento se contaba con una coyuntura favorable puesto que España
y Gran Bretaña eran ahora naciones aliadas frente a Napoléón y sus apetencias
imperialistas. La idea era impedir una posible invasión de Francia o de la
Educ. foco,
España en poder de Napoleón.
Juiz de Fora,
2 Gran Bretaña le había dado ayuda militar a España, además la posición
v. 20, n. 2,
p. 115-146,
venezolana de negarse a aceptar la autoridad del Consejo de Regencia español,
jul. 2015 / out. 2015 134 entre otras razones.
beneficio de los intereses de Venezuela. Estos logros contaron La Bildung de Simón
Bolívar. Notas
Preliminares
con la participación de Francisco de Miranda, quien era
para la época una figura reconocida en aquel medio (GIL
FORTOUL, 1954 y POLANCO ALCÁNTARA, 2001).
Entre las vivencias más relevantes, y que, seguramente,
tocarán profundamente su proceso formativo, pueden
destacarse:
1. Bolívar en este viaje tiene la oportunidad de observar
con mucha calma, admiración y mirada crítica, la vida
institucional, política y cotidiana de la Gran Bretaña,
pueblo por el que siempre mostró admiración. Es un
Bolívar otro, distinto, a aquel del segundo viaje, el de la
vida bohemia por así llamarla.
2. Su formación política es especialmente tocada. De hecho
adquiere una perspectiva del pueblo inglés desde la
referencia de Venezuela y América. Así, llega a sentir el
deseo fundar en América repúblicas basadas en la libertad
y la democracia.
3. Aquí también es necesario destacar el con Francisco de
Miranda por su gran influencia en su formación.

En la bildung de una persona /personaje la aventura va


generando avances y retrocesos, giros, ilusiones y decepciones,
ensayos, aciertos y errores; así se va configurando, se va dando
forma a fuerza de tropiezos y alegrías propias, particulares y en
carne viva. Ahora bien, una bildung va al compás zeitgeist, es
decir, influida por el momento histórico, cultural y social en
el que se vive. Desde luego, que esta vida solo es experiencia
si se recrea de manera reflexiva, siguiendo las tesis de Hegel
(1986) y de Gadamer (1999), si se convierte en conciencia y
se muestra en acciones, en obras.
Un importante aspecto de este viaje, ya señalado, es
el encuentro con Francisco de Miranda; por cuanto él va a
representar uno de las personas de mayor influencia sobre la
formación de Bolívar, el otro es, sin duda, Rodríguez. Es claro,
Educ. foco,
que aquí la influencia no va por la vía de un institutor, sino, a Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
nuestro entender, de un modelo de referencia, de pensamiento 135 p. 115-146,
jul. 2015 / out. 2015
Gregorio Valera Villegas
y una obra, para su mimesis1 formativa. La influencia
de Miranda va a estar en el orden de un tipo de mimesis
particular, diferente, en parte, a la de Rodríguez. Mientras
que este último fue el institutor, contertulio, compañero de
viaje, y tutor en el estudio de algunos autores y obras; la del
primero es en la obra realizada y en la acción político/militar.
Desde luego, que en este viaje en el que se encuentran Bolívar
y Miranda, el diálogo fue la vía predilecta de influencia;
preponderantemente el diálogo pedagógico. Diálogo en el
que estuvo presente la asimetría maestro / alumno, de mucho
respeto y reconocimiento mutuo. Diálogo que respondía
a una búsqueda abierta, y de agenda abierta por así decirlo,
de preguntas y respuestas sin condicionantes; y también en
el que estaban en juego los prejuicios y los malentendidos;
para superar estos últimos desde aquellos y más allá de ellos.
Los asuntos tratados fueron variados, especialmente los de
carácter político, militar, filosófico y artístico. Bolívar para el
momento es ya una persona de un alto nivel teórico, filosófico
y político; de tal manera que aquel encuentro le sirvió para
potenciar su talento y genio. Por supuesto que Miranda no
sólo representó una oportunidad de mimesis formativa en
la lección a viva voz, sino en su obra escrita, y poco tiempo
después en la acción militar, como su jefe. Bolívar pudo desde
esta mimesis recrear, reinventar y aplicar muchas de las ideas y
proyectos políticos, geopolíticos y jurídicos de Miranda, entre
otros: la idea de Colombia, la de la nación suramericana.
CIERRE: LA FORMACIÓN DE UN ROMÁNTICO

Ahora bien, cabe preguntar si en el marco de la bildung de


Bolívar conviene hablar de que él llega a ser, parcial o completamente,
un romántico. ¿Bolívar un romántico? Vamos por partes.

1 Mimesis no en el sentido de copia o imitación cruda y llana; sino de recreación


Educ. foco,
Juiz de Fora, y reinvención de la vida y obra de un sujeto con respecto a otro. Bolívar
v. 20, n. 2,
p. 115-146,
amalgama su ser desde la mimesis de Miranda, sin perder su condición de sí
jul. 2015 / out. 2015 136 mismo como otro, único e irrepetible.
Quién es un romántico. La mirada que daremos La Bildung de Simón
Bolívar. Notas
Preliminares
al sujeto romántico se orientará desde la perspectiva del
zeitgeist; para acercarnos al espíritu del tiempo romántico,
el cual tiene que ver con el ambiente cultural e intelectual
de su época1. Visto así, en términos hegelianos, el zeitgeist
se refiere, específicamente, a la experiencia en el ambiente
cultural del romanticismo y su implicación en la formación
de una persona. Preguntemos ahora, desde perspectiva, qué
es un romántico. Para dar una respuesta preliminar se pudiera
enumerar los siguientes aspectos: aquel que cree y cultiva
su libertad de pensamiento y expresión, la imaginación, la
fantasía y el sueño creador; asume su vida de acuerdo con una
misión social a cumplir; defiende la libertad en lo político,
religioso, artístico y sentimental; es contrario, en lo político,
al absolutismo, cree en el nacionalismo y que en el pueblo
reposa el poder; puede padecer de pesimismo; el romántico
suele ser apasionado, orgulloso, enamorado, perseguido por la
fatalidad, gentil y noble (ABRAMS, 1992).
Bolívar y Rousseau. La relación de Bolívar y Rousseau
fue el resultado de una lectura, un estudio, que se prolongó a
lo largo de la vida del primero. Por lo que pudiera decirse que
si Bolívar fue, o adquirió en su bildung, algunos rasgos del
romanticismo, los tuvo, en parte, proveniente de la influencia
del ginebrino; y claro está, por la influencia directa de otro
estudioso de Rousseau, Simón Rodríguez. De hecho, ambos,
en su viaje por Europa visitan Chamberry para conocer
Les Charmettes, la residencia del autor del Contrato Social y
del Emilio, o De la Educación2. Bolívar referirá, con mucha
frecuencia, en su obra escrita y en su epistolario a Rousseau.
En el Discurso de Angostura, 1819, por ejemplo dirá: “…La
libertad, dice Rousseau, es un alimento suculento, pero de
difícil digestión. Nuestros débiles conciudadanos tendrán que

1 Ubicada al final del siglo XVIII y el siglo XIX, especialmente su primera Educ. foco,
mitad; aun cuando su manifestación varía de país a país. Juiz de Fora,
2 Otra de especial estudio para Bolívar, además de las señaladas: Discurso sobre el v. 20, n. 2,
p. 115-146,
origen de la desigualdad entre los hombres. 137 jul. 2015 / out. 2015
Gregorio Valera Villegas
enrobustecer su espíritu mucho antes que logren digerir el
saludable nutritivo de la libertad.” En el Discurso es significativa
la influencia del ginebrino, especialmente en conceptos como:
república, soberanía del pueblo, libertad individual y colectiva,
ciudadanía, entre otros (BLANCO FOMBONA, 2007). Y en
una carta dirigida a Rafael Urdaneta, fechada el 28 de marzo
de 1827, dice: “¡Quién sabe lo que hará el congreso! Deseo
saber sus bellas resoluciones para juzgar desde luego si el país
se pierde o no. Lo mejor sería que no hiciera nada, porque
“En la ignorancia de lo que se debe hacer, dice Rousseau, la
sabiduría aconseja la inacción”.
Mi delirio sobre el Chimborazo como expresión de
un romántico. Bolívar en poco o en mucho es un romántico,
decíamos que en su escritura es muy frecuente la presencia de
Rousseau; y también, podemos agregar, en ella, en su estilo
escritural, hay expresiones claras del romanticismo. Sobre su
estilo se ha sostenido (BLANCO FOMBONA, 2007) que:
Este proceso de su estilo puede seguirse en
el Epistolario del Libertador, que es, quizás, lo
mejor de su pluma. También puede seguirse allí
el proceso mental del prócer y advertirse
que al optimismo de 1810 a 1824, mientras fue
menester vencer, sucedió hasta promedios de 1826 la
embriaguez del triunfo, y luego vino poco a poco el
pesimismo apoderándose de su espíritu hasta
que, en 1830, la desesperación lo aniquila. En aquel
hombre todo fue grande, hasta el dolor. (p. 23).

Como podemos ver, Blanco Fombona, señala una suerte


de tres etapas en el proceso de estilo escritural a saber el más
largo, el que va de 1810, año de su primera epístola, a 1824,
sus rasgos característicos son: el optimismo, el crecer y creer,
por el ascenso en suma. De prosa de fuego, en este período
se ubican texto como, la Carta de Jamaica, 1815, el Discurso
de Angostura, 1819, y Mi delirio sobre el Chimborazo, 1822.
Educ. foco,
Luego está el que va de 1824 a 1826, es la escritura del triunfo,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
de lo dionisíaco, se puede destacar aquí su epistolario: la carta
p. 115-146,
jul. 2015 / out. 2015 138 de Pativilca a Rodríguez, 1824, las cartas de amor a Manuelita
Sáenz, la Elegía del Cuzco, 1825. Leamos un fragmento de la La Bildung de Simón
Bolívar. Notas
Preliminares
Elegía.
Todo lo que tengo de humano se removió
ayer en mí: llamo humano lo que está
más en la naturaleza, lo que está más
cerca de las primitivas impresiones. Vd.,
mi querido tío, me ha dado la más pura
satisfacción, con haberse vuelto a sus
hogares, a su familia, a su sobrino y a su
patria. Goce Vd., pues, como yo, de este
placer verdadero; y viva entre los suyos el
resto de los días que la Providencia le ha
señalado, y para que una mano fraternal
cierre sus párpados y lleve sus reliquias a
reunirlas con las de los padres y hermanos
que reposan en el suelo que nos vio nacer.

Mi querido tío, Vd. habrá sentido el sueño


de Epiménides: Vd. ha vuelto de entre
los muertos a ver los estragos del tiempo
inexorable, de la guerra cruel, de los hombres
feroces. Vd. se encontrará en Caracas como
un duende que viene de la otra vida y
observará que nada es de lo que fue.1

Y, finalmente, el período pesimista, de 1826 a 1830, es


la del desencanto, la desesperanza y la impotencia; se destaca
aquí su Última Proclama. Leamos:
Colombianos:

Habéis presenciado mis esfuerzos para


plantear la libertad donde reinaba antes
la tiranía. He trabajado con desinterés,
abandonando mi fortuna y aun mi
tranquilidad. Me separé del mando cuando
me persuadí que desconfiabais de mi

1 Esta carta, una obra literaria en el género epistolar, que se conoce con el nombre
de Elegía del Cuzco fue dirigida a Esteban Palacios, tío de Bolívar, y con quien Educ. foco,
se reúne en Madrid en su primer viaje de formación. Fue escrita en Cuzco, Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
Alto Perú, hoy Bolivia. Es sin duda una hermosa muestra de su romanticismo, p. 115-146,
combinación de nostalgia, dulzura y melancolía. 139 jul. 2015 / out. 2015
Gregorio Valera Villegas
desprendimiento. Mis enemigos abusaron
de vuestra credulidad y hollaron lo que
me es más sagrado, mi reputación y mi
amor a la libertad. He sido víctima de mis
perseguidores, que me han conducido a
las puertas del sepulcro. Yo los perdono.
(BLANCO FOMBONA, 2007, p. 300).

Estos períodos del estilo escritural son la expresión de


la bildung, de sus viajes de formación, y de su zeitgeist con su
componente romántico.
Ahora bien, Mi delirio sobre el Chimborazo, perteneciente al
primer período, es una obra poética de enorme fuerza romántica.
Este poema es de pasión sin límites y de amor profundo por
la libertad. Es también un ejercicio filosófico/poético de la
finitud humana y de lo infinito. De ella se ha afirmado: “En
ella llega a mostrar, con gran vivacidad, la pequeñez humana
delante de lo infinito Es evidente que este poema en prosa es
una alegoría. Es como una ensoñación, como un delirio. Es una
gran obra literaria (…) por su elaboración: lírica, en la primera
parte, por la forma como expresa la ascensión al Chimborazo;
es dramática en la segunda, pues da una solución simbólica, es
decir, estética, al terrible y pavoroso drama aludido” (MORA,
1999, p. 5). Esta obra poética, la única conocida de Bolívar,
tiene un carácter autobiográfico. Leámosla:
Mi delirio sobre el Chimborazo

Yo venía envuelto en el manto de Iris, desde


donde paga su tributo el caudaloso Orinoco
al Dios de las aguas. Había visitado las
encantadas fuentes amazónicas, y quise subir
al atalaya del Universo. Busqué las huellas de
La Condamine y de Humboldt seguílas audaz,
nada me detuvo; llegué a la región glacial, el
éter sofocaba mi aliento. Ninguna planta
humana había hollado la corona diamantina
que pusieron las manos de la Eternidad
Educ. foco, sobre las sienes excelsas del dominador de los
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, Andes. Yo me dije: este manto de Iris que me
p. 115-146,
jul. 2015 / out. 2015 140 ha servido de estandarte, ha recorrido en mis
manos sobre regiones infernales, ha surcado La Bildung de Simón
Bolívar. Notas
los ríos y los mares, ha subido sobre los Preliminares

hombros gigantescos de los Andes; la tierra


se ha allanado a los pies de Colombia, y el
tiempo no ha podido detener la marcha de
la libertad. Belona ha sido humillada por el
resplandor de Iris, ¿y no podré yo trepar sobre
los cabellos canosos del gigante de la tierra?
Sí podré! Y arrebatado por la violencia de un
espíritu desconocido para mí, que me parecía
divino, dejé atrás las huellas de Humboldt,
empañando los cristales eternos que circuyen
el Chimborazo. Llego como impulsado por el
genio que me animaba, y desfallezco al tocar
con mi cabeza la copa del firmamento: tenía a
mis pies los umbrales del abismo.

Un delirio febril embarga mi mente; me


siento como encendido por un fuego extraño
y superior. Era el Dios de Colombia que me
poseía.

De repente se me presenta el Tiempo bajo


el semblante venerable de un viejo cargado
con los despojos de las edades: ceñudo,
inclinado, calvo, rizada la tez, una hoz en la
mano…

«Yo soy el padre de los siglos, soy el arcano


de la fama y del secreto, mi madre fue la
Eternidad; los límites de mi imperio los señala
el Infinito; no hay sepulcro para mí, porque
soy más poderoso que la Muerte; miro lo
pasado, miro lo futuro, y por mis manos pasa
lo presente. ¿Por qué te envaneces, niño o
viejo, hombre o héroe? ¿Crees que es algo tu
Universo? ¿Que levantaros sobre un átomo
de la creación, es elevaros? ¿Pensáis que los
instantes que llamáis siglos pueden servir de
medida a mis arcanos? ¿Imagináis que habéis
visto la Santa Verdad? ¿Suponéis locamente
que vuestras acciones tienen algún precio a Educ. foco,
Juiz de Fora,
mis ojos? Todo es menos que un punto a la v. 20, n. 2,
p. 115-146,
presencia del Infinito que es mi hermano». 141 jul. 2015 / out. 2015
Gregorio Valera Villegas
Sobrecogido de un terror sagrado, «¿cómo,
¡oh Tiempo! —respondí— no ha de
desvanecerse el mísero mortal que ha subido
tan alto? He pasado a todos los hombres
en fortuna, porque me he elevado sobre la
cabeza de todos. Yo domino la tierra con
mis plantas; llego al Eterno con mis manos;
siento las prisiones infernales bullir bajo mis
pasos; estoy mirando junto a mí rutilantes
astros, los soles infinitos; mido sin asombro
el espacio que encierra la materia, y en tu
rostro leo la Historia de lo pasado y los
pensamientos del Destino».

«Observa —me dijo—, aprende, conserva


en tu mente lo que has visto, dibuja a los
ojos de tus semejantes el cuadro del Universo
físico, del Universo moral; no escondas los
secretos que el cielo te ha revelado: di la
verdad a los hombres».

La fantasma desapareció.

Absorto, yerto, por decirlo así, quedé


exánime largo tiempo, tendido sobre aquel
inmenso diamante que me servía de lecho.
En fin, la tremenda voz de Colombia me
grita; resucito, me incorporo, abro con mis
propias manos los pesados párpados: vuelvo
a ser hombre, y escribo mi delirio.

Por cierto que a propósito del romanticismo del Bolívar


en ella expresado, como no reseñar la coincidencia entre dos
pintores, que desde miradas distantes en el tiempo interpretan el
romanticismo. Nos referimos a Caspar David Friedrich y su obra
Viajero frente a un mar de nubes (Óleo sobre tela.), de 1818, véase a
la figura 1. Obra símbolo del romanticismo; en la cual se muestra la
pequeñez humana delante de lo inmensidad del mundo, aunado,
claro está, a la idea de mirar y experimentar la naturaleza. El otro
Educ. foco, pintor es Tito Salas y su obra Bolívar en el Chimborazo (Óleo sobre
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, tela), de 1929, véase a la figura 2. En ella su autor supo expresar
p. 115-146,
jul. 2015 / out. 2015 142 plenamente el espíritu romántico del siglo anterior
La Bildung de Simón
Bolívar. Notas
Preliminares

Figura 1: Viajero frente a un mar de nubes

Figura 2: Bolívar en el Chimborazo


Un sentimiento de misterio, propio del romanticismo;
y una gama cromática un tanto fría está en ambos, así
encontramos el negro en la figura central del primer cuadro, y
el predominio del marrón oscuro en la segunda; este marrón
está en las rocas en ambas obras, y también el gris y el blanco
de la niebla y el cielo. Igual, para ambas obras, puede decirse
de los colores más cálidos en el primer plano y los más fríos en
el fondo. La llamada perspectiva aérea es lograda en los dos. Lo
simbólico, alegórico, es también alcanzado en ellos, más allá Educ. foco,
de la pintura de un mero paisaje. El anonimato predomina en Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
p. 115-146,
143 jul. 2015 / out. 2015
Gregorio Valera Villegas
la figura del primero, mientras que la imagen de Bolívar es la
figura central en el segundo.
Por último, la bildung de Bolívar requiere para su
comprensión de una doble perspectiva, la primera, la de la
particularidad de un ser humano que llega a ser lo que se es; y,
la segunda, la del zeitgeist, es decir, la del momento histórico,
cultural y social en el que vivió; dialécticamente relacionadas.
Su bildung es el camino, propio, particular en la búsqueda
de sí mismo. Y ella podrá dar cuenta de lo que llegará a ser
sólo cuando adquiera conciencia de ello. La mirada, o razón,
narrativa será la principal vía para la trans-formación. El
auténtico despliegue, desde la experiencia, del post hoc ergo
propter hoc; es decir, después de la experiencia, que toca o
trastoca, la trans-formación. El yo es el autor/narrador de su
bildung, en el proceso de construirse a sí mismo, en el afán
de alcanzar una conciencia de sí. En ese proceso apuesta a la
imaginación en su repensarse y repensar el mundo.
Puede decirse también que la bildung de Bolívar es el
tránsito del aristócrata al intelectual orgánico, en un proceso
de forjamiento de una identidad que se acera no sólo desde su
espada, sino también desde su pluma, o mejor, apoyado en su
pluma y en su espada.
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­­______. La narración/formación del extraño: lectura/escritura de
una bildung froteriza, Revista Venezolana de Ciencias Sociales, Vol.9,
Nº2, 2005, pp.298-316.
ZEREGA-FOMBONA, Alberto. Un año misterioso de la vida del
Libertador. En Boletín de historia y antigüedades. Bogotá, Academia
Colombiana de Historia, vol. XLV, Nos. 681-720.

Data de recebimento: novembro de 2013 Educ. foco,


Juiz de Fora,
Data de aceite: junho de 2014 v. 20, n. 2,
p. 115-146,
145 jul. 2015 / out. 2015
MONTAIGNE: FILOSOFIA E Montaigne: filosofia e
educação para a vida

EDUCAÇÃO PARA A VIDA


Márcio Silveira Lemgruber1

Resumo
A partir de um levantamento em diversos livros de história da
educação, de autores nacionais e estrangeiros, procuro analisar
o lugar neles ocupado por Michel de Montaigne, ou seja, quais
os principais aspectos de suas ideias são enfatizados em cursos de
formação de professores. Concluo que as ideias mais estritamente
pedagógicas dos Ensaios, expressas nos capítulos Pedantismo e Da
educação das crianças, têm uma razoável divulgação. Entretanto,
outras formulações como as epistemológicas ou acerca da
diversidade cultural, que poderiam ser muito estimulantes para a
formação do futuro docente, pouca ou quase nenhuma presença
têm naquelas obras.

Palavras-chave: Montaigne; Filosofia da Educação;


História da Educação.

Abstract
Based upon a survey of publications on the history of
education, both national and international, I seek to analyse
the role assigned to Michel de Montaigne, that is, the main
aspects of his thinking that are emphasised in teacher training
courses. I conclude that the most strictly pedagogic ideas of
his  Essays, particularly those expounded in the chapters  Of
Pedantry  and  On the education of children, have reasonable
dissemination. Nonetheless, other conceptions, particularly
those of an epistemological nature or those on cultural
diversion, which could prove stimulating in training of future
teachers, have little or no presence in the works examined.

Keywords: Montaigne; Philosophy of Education; History


of Education.

1 Márcio Silveira Lemgruber é professor aposentado da UFJF, trabalhando


Educ. foco,
atualmente como professor do Programa de Pós Graduação em Educação da Juiz de Fora,
Universidade Estácio de Sá do Rio de Janeiro. v. 20, n. 2,
p. 147-168,
E-mail: mslemgruber@gmail.com 147 jul. 2015 / out. 2015
MONTAIGNE: FILOSOFIA E Montaigne: filosofia e
educação para a vida

EDUCAÇÃO PARA A VIDA


Meu ofício, minha arte, é viver.
Montaigne

Nosso mundo, cada vez mais, vai se caracterizando pelo


excesso e, consequentemente, pela descartabilidade, seja de
objetos, crenças ou valores. Passamos a viver sob avalanches
diárias de informações, atualizações da última versão de
produtos, planos que prometem créditos, ligações e conexões
ilimitadas, além de centenas de canais que nunca desligam. Ser
“ilimitado”, ou melhor, consumir ilimitadamente é o remédio
(ou a droga?) que nos é apregoado para suportar o mal-estar
da civilização. Já se disse que tudo que é sólido se desmancha
no ar, só que, agora, quase instantaneamente.
Arriscaria apontar a fugacidade como característica
fundante da contemporaneidade, concordando com Italo
Calvino, que, em suas Seis propostas para o próximo milênio,
destaca a leveza e a rapidez. Contudo, evitando tomar os opostos
como excludentes, não deixa de nos advertir que aquelas são
tão somente escolhas, em polaridades complementares. Ou
seja, o peso e a lentidão – seus contrapontos – não são, em si,
considerados defeitos, qualidades negativas.
Porém, tal sabedoria não impera onde nada perdura, o
prazo de validade das coisas - materiais e ideias – é cada vez
menor. Tudo é fugaz, é mudança incessante, instantânea.
Se essa sensação é tão presente hoje, cabe salientar que ela
não é nova; o ritmo das transformações é que se potencializou,
vertiginosamente, nos últimos anos. À guisa de ilustração,
lembro de um livro que muito me marcou. Nos anos 1950,
Robert Pirsig inicia Zen e a arte da manutenção de motocicletas, Educ. foco,
Juiz de Fora,
que se tornou um clássico da geração beat, explicitando sua v. 20, n. 2,
p. 147-168,
insatisfação: 149 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Silveira Lemgruber
Talvez por causa desses progressos, a corrente
da consciência nacional flui agora com maior
velocidade e é mais caudalosa; entretanto,
parece estar cada vez menos profunda.
... “Quais são as novidades?” É a eterna
pergunta, interessante e abrangente; mas, se
só perguntarmos isso, obteremos uma série
interminável de banalidades e modismos,
o lodo do futuro. Eu prefiro me preocupar
em perguntar: “o que é melhor?” (PIRSIG,
1985, p. 15)

Recentemente, li uma entrevista no jornal, em que um


especialista norte-americano sustentava que não mais se lerá
romances extensos, pois eles não cabem mais no ritmo da vida
contemporânea, onde não há o tempo que se gasta para lê-
los. Olhei, na estante, para A Montanha Mágica de Thomas
Mann e lamentei pelas gerações de terráqueos que não
teriam mais o privilégio de humanizar-se, conhecendo Hans
Castorp. Afinal, essa me parece ser também, assim como para
Todorov (2009), a maior contribuição da literatura: ajudar a
nos conhecer, conhecendo outros. E, com isso, ajudar a nos
aceitar, a suportar a vida. É o que faz um clássico perdurar por
séculos ou milênios. Pode mudar radicalmente a roupagem,
mas o que é visceralmente humano permanece atual. Às vezes,
uma atualidade intrigante, assustadora mesmo. Para além de
cenários que nos são tão distantes, como a Grécia antiga de
Antígona, o reino da Dinamarca de Hamlet, ou o Sertão de
Riobaldo, os clássicos são espelhos onde nos deparamos com
nossos próprios sentimentos.
É significativo, por exemplo, que dos romances de
cavalaria, quem mais ficou foi exatamente o anti-herói. Os
guerreiros invencíveis foram suplantados pelo “cavaleiro da
triste figura”, que nos conecta com o ridículo que trazemos em
Educ. foco, nós mesmos. Poucas décadas antes de Cervantes fazer ficção
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, expondo as fraquezas humanas, Montaigne o fez como não-
p. 147-168,
jul. 2015 / out. 2015 150 ficção, escrevendo sobre si mesmo.
Chegamos a nosso personagem: Michel de Montaigne, Montaigne: filosofia e
educação para a vida

um nobre francês que viveu no século XVI. Em seu castelo,


perto de Bordeaux, lia, meditava e escrevia, diariamente. Ao
fim de duas décadas, legou para a posteridade seus Ensaios,
uma obra de cerca de mil páginas, com 107 capítulos sobre
os mais variados assuntos, desde grandes temas filosóficos
como reflexões sobre a ética ou a morte, até a exposição de
intimidades como problemas no casamento, no desempenho
sexual, ou, ainda, sentimentos nada edificantes como a inveja
dos vizinhos e a sua tão proclamada preguiça.
Diante do que apontávamos como características
do mundo contemporâneo, não seria lícito especular que
seus escritos - tão antigos e extensos - estariam duplamente
condenados ao esquecimento? Entretanto, Montaigne é, hoje,
o patrono dos blogueiros.
Sua atualidade, mais do que sobre o que escreve, se
dá, sobretudo, pela maneira como o faz, tomando-se como
objeto de reflexão. Sua metafísica era o estudo de si mesmo.
Séculos antes de Freud elaborar o conceito de inconsciente, já
desconfiava de que a consciência pudesse ser submetida à razão.
Ao longo da vida, cada vez mais, reforça tal convicção: “Nunca
estamos em nós; estamos sempre além.” (MONTAIGNE,
1996, vol. I, p. 39); “...não me encontro onde me procuro,
e mais me descubro por acaso, do que apelando para a
inteligência.” (Idem, vol. I, p. 60); “... somos, não sei como,
dois seres em um só, o que faz que, em uma mesma coisa,
acreditemos e não acreditemos, não podendo desfazer-nos do
que condenamos.” (Idem, vol. II, p. 13)
Penso que esse é um importante traço de originalidade
de Montaigne, assumir-se como sujeito cindido, ao contrário
da tradição de diários ou confissões em que o autor promete
– ou, mesmo, jura perante Deus – que só dirá a verdade,
que não se deixará levar pela falsa consciência. As Confissões Educ. foco,
Juiz de Fora,
de Rousseau, apesar de posteriores aos Ensaios, servem para v. 20, n. 2,
p. 147-168,
ilustrar tal diferença. 151 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Silveira Lemgruber
“Talvez a história universal seja a história de algumas
metáforas”, escreveu certa vez Jorge Luis Borges (2005, p. 15).
Uma dessas metáforas recorrentes é a do véu distorcendo a
visão da realidade. Aqui, vou confessar que não li as Confissões,
mas me apoiarei em Jorge Larrosa (2006, p. 32) que se utiliza
repetidamente da metáfora do véu, ao analisar a busca da
verdade interior na escrita autobiográfica de Rousseau: “E
todo o seu esforço, e seu abismo, será denunciar a aparência
e eliminar esse véu ilusório que cobre as coisas e que também
se interpõe entre uma pessoa e ela mesma”. Cita a declaração
de princípios do filósofo genebrino, logo no início de suas
Confissões: “concebo uma tarefa da qual jamais houve um
exemplo e cuja execução não terá imitação. Quero mostrar,
a meus semelhantes, um homem em toda a verdade de
sua natureza; e esse homem serei eu”. (ROUSSEAU apud
LARROSA, 2006, p. 24). Rousseau busca continuamente
– fracassando como Sísifo – o “eu verdadeiro” por detrás da
aparência.
Para Montaigne, não há esse eu “substancial”, a ser
descoberto. Aplica-se, também nesse caso, a analogia que
usa para argumentar quanto à fluidez da jurisprudência:
“Quem nunca viu uma criança tentando dar forma a uma
bola de mercúrio? Quanto mais se obstina, tanto mais se
fragmenta o metal rebelde e se dispersa em gotas incontáveis”.
(MONTAIGNE, 1996, vol. II, p. 356). Ele sabe que a
consciência que temos de nós mesmos é necessariamente
movediça, que não há uma “realidade em si” por trás do
véu, mas, tão somente, outros véus. É como se quiséssemos
arrancar os olhos para ver melhor, pois eles nos limitam uma
percepção plena.
Montaigne não se toma como exemplar, mas,
simplesmente, como exemplo:
Gostaria mais de entender bem o que se
verifica em mim do que compreender
Educ. foco,
Juiz de Fora, perfeitamente Cícero. Na minha experiência
v. 20, n. 2,
p. 147-168,
própria já tenho com que me tornar sábio,
jul. 2015 / out. 2015 152 desde que atente para os seus ensinamentos.
... A vida de César não nos oferece mais Montaigne: filosofia e
educação para a vida
exemplos do que a nossa, porque tanto a
de um imperador quanto a de um homem
vulgar são vidas humanas e sujeitas a todos
os acidentes humanos. Escutemos nossa
experiência, e veremos que nos diz tudo
aquilo de que temos necessidade especial.
(Idem, vol. II, p. 362)

Avesso a deduzir as singularidades a partir de essências


metafísicas, constrói uma sabedoria a partir do exame de sua
vida cotidiana, adotando a estratégia de falar do humano
tendo como base um homem, mais precisamente, ele próprio.
“Apresento uma vida das mais vulgares, que nada tem de
especial. A vida íntima do homem do povo é de resto um
assunto filosófico e moral tão interessante quanto a do
indivíduo mais brilhante; deparamo-nos em qualquer homem
com o Homem.” (Idem, vol. II, p. 154).
Decididamente, Montaigne não adota um tom
professoral sobre a vida. Não escreve para ensinar, para
prescrever como se deve viver, mas para contar e meditar sobre
o que se passa em sua vida e ao seu redor: “Outros autores
têm como objetivo a educação do homem; eu o descrevo. E
o que assim apresento é bem malconformado.” (Idem, vol. II,
p. 153).
Apesar de, em geral, adotar essa postura, dois capítulos
dos Ensaios têm um estilo mais prescritivo abordando a
educação como tema central. São eles - Pedantismo e Da
educação das crianças – que conferem a Montaigne um lugar
nos livros de História da Educação. Mas, qual seria esse lugar?
Resolvi, então, ir a uma biblioteca e fazer um levantamento
sobre o que os educadores e alunos (futuros educadores) leem
a respeito de suas ideias pedagógicas.
Pude constatar que três dos livros de autores nacionais
mais utilizadas em cursos de História da Educação (História Educ. foco,
Juiz de Fora,
das Ideias Pedagógicas, de Moacir Gadoti; História da Educação, v. 20, n. 2,
p. 147-168,
de Nelson e Claudino Piletti; e História da Educação e da 153 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Silveira Lemgruber
Pedagogia - Geral e Brasil, de Maria Lucia Aranha) conferem
certa importância ao pensamento montaigniano, enfatizando
principalmente sua contribuição em termos de crítica à
memorização e de defesa de uma educação voltada para a vida.
Em especial Gadoti, que reproduz um texto de quatro páginas
do capítulo Da educação das crianças e propõe que o aluno
elabore uma dissertação sobre suas concepções educacionais.
Por sua vez, Maria Lucia Aranha apresenta um trecho do
capítulo Pedantismo e, a partir dele, também propõe exercícios.
Quanto a autores internacionais, passei os olhos,
inicialmente, por obras escritas na primeira metade do
século passado: História da Educação, de Paul Monroe;
História Geral da Pedagogia, de Francisco Larroyo; e História
do Pensamento Educacional, de Frederick Mayer. Também
encontro referências positivas a Montaigne, ressaltando,
sobretudo, a atualidade de suas ideias: “a crítica sutil que
fez do retoricismo e do memorismo e sua defesa de um tipo
de educação destinada a formar o juízo prático dos jovens
para as coisas da vida (realismo social) aproximaram-no das
tarefas educativas de nosso tempo”. (LARROYO, 1982, vol.
I, p. 369) E, também: “Montaigne soa-nos quase como um
educador do século XX. Seu adiantado sistema prenunciou
os ideais do pragmatismo moderno”. (MAYER, 1976, pág.
242). Por outro lado, registro que Mário Manacorda, autor
influente no pensamento pedagógico brasileiro nas últimas
décadas, em História da Educação: da antiguidade aos nossos
dias, não lhe faz referência.
Foi somente em obras mais recentes - História da
Pedagogia, de Franco Cambi e A Pedagogia: Teorias e práticas
da Antiguidade aos nossos dias, organizada por Clermont
Gauthier e Maurice Tardif – que me deparei com limitações
sendo apontadas. O autor italiano, alerta que “não se deve,
todavia, esquecer que do conjunto de sua obra emerge uma
Educ. foco, proposta para a qual a cultura é aristocraticamente entendida
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, como patrimônio privilegiado de uma elite intelectual.”
p. 147-168,
jul. 2015 / out. 2015 154 (CAMBI, 2007, p. 270). Por sua vez, Gauthier destaca que os
escritos de Montaigne sobre educação representam “uma elite Montaigne: filosofia e
educação para a vida

que não ensina, dirigem-se primeiro a essa elite e respondem


às suas preocupações... não são discursos de docentes que
têm grupos de alunos a administrar no terreno da classe; são,
antes, reflexões gerais sobre a educação”. (GAUTHIER, 2010,
p. 125). Mas, mesmo esses autores, quando se dedicam à
apreciação do conteúdo das propostas de Montaigne para a
educação das crianças, tecem comentários favoráveis.
Afinal, quais são essas ideias que constituem um consenso
como precursoras da pedagogia moderna? Vamos abordá-las
com muita brevidade, pois estão razoavelmente presentes nos
livros de história da educação. A seguir, pretendo trazer alguns
aspectos pouco explorados neles, mas que considero relevantes
para a formação de professores.
Vimos que um dos dois capítulos centralmente
pedagógicos dos Ensaios se chama Pedantismo. O próprio
título nos é uma boa pista. Recorro a Celso Azar Filho, quando
alerta para a mudança de significados que, então, se dava:
... no francês médio, a denominação
‘pedante’ significava preceptor, mestre-
escola, pedagogo, em suma, professor; se
a língua francesa retém hoje apenas, como
no português, o sentido pejorativo do
termo, esta acepção começa a tomar forma
no Renascimento – e no texto em questão
podemos ver como isso aconteceu: pela
reprovação do saber afastado da vida e das
preocupações e necessidades cotidianas, e
daí negligente com relação à sua dimensão
moral ou à sua utilidade no aprimoramento
da pessoa humana”. (AZAR FILHO, 2012,
p. 108)

“Pedagogia pedante” é depositar no educando, pela


memorização, um imenso elenco de informações. Assim, por
meio das citações “arquivadas” sobre os mais diversos assuntos, Educ. foco,
Juiz de Fora,
o indivíduo teria a oportunidade de mostrar a erudição de v. 20, n. 2,
p. 147-168,
sua formação, granjeando reconhecimento intelectual. 155 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Silveira Lemgruber
Ensinar é, portanto, uma atividade calcada no “argumento de
autoridade”: “Sabem dizer ‘como observa Cícero’, ‘eis o que
fazia Platão’, ‘são palavras de Aristóteles’, mas que dizemos nós
próprios? Que pensamos? Que fazemos? Um papagaio poderia
substituir-nos.” (MONTAIGNE, 1996, vol 1, p. 141).
Daí o desprezo, manifestado ao longo dos Ensaios,
igualmente, pelas escolas de retórica que primavam pela
prolixidade, pelo esbanjamento de fórmulas servis. Montaigne
lamenta que tivessem perdido a ideia de que falar bem é bem
argumentar, da tradição clássica, reduzindo a retórica a um fichário
de chavões: “Abaixo a eloqüência que atrai a nossa atenção para
ela mesma e não para seus temas.” (Idem, vol. 1, p. 231).
A rejeição à memorização do “pedantismo” constitui o
tema mais destacado nos livros de educação, como na analogia
dos mestres com os pássaros: “Assim como os pássaros vão às
vezes em busca de grão que trazem aos filhotes sem sequer
sentir-lhe o gosto, vão nossos mestres pilhando a ciência nos
livros e a trazendo na ponta da língua tão somente para vomitá-
la e lançá-la ao vento.” (Idem, vol. I, p. 140) Montaigne é
um severo crítico da erudição pedante, lembrando que “a
esses sábios de pacotilha dá-se por brincadeira o apelido de
‘Lettreferus’ (ferido pelas letras), isto é, indivíduo que as
letras atordoaram à maneira de uma martelada”. (Idem, vol.
I p. 142) Ou, ainda: “Saber de cor não é saber: é conservar
o que se entregou à memória para guardar. Do que sabemos
efetivamente, dispomos sem olhar para o modelo, sem voltar
os olhos para o livro. Triste ciência a ciência puramente
livresca!” (Idem, vol. I, p. 153).
É isso que o faz precursor da pedagogia moderna, a
rejeição da educação como transferência de conteúdos a
serem memorizados. A imagem de que Montaigne faz uso
para representar tal concepção de ensino - “cabeças de pote”
- sugere um recipiente onde algo é depositado. A ideia do
Educ. foco, depósito estará, séculos adiante, na metáfora freiriana da
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, “educação bancária”. Também antecedendo Freire, em seu
p. 147-168,
jul. 2015 / out. 2015 156 “pensar certo”, Montaigne afirma que “cumpre, entretanto,
indagar quem sabe melhor e não quem sabe mais”. (Idem, vol. Montaigne: filosofia e
educação para a vida

I, p. 140), ou seja, que é melhor ter uma cabeça bem formada


do que exageradamente cheia. Recorre a uma analogia entre
a abelha e o aluno para defender a emergência da autoria no
processo educacional.
As abelhas libam flores de toda espécie, mas
depois fazem o mel que é unicamente seu e
não do tomilho ou da manjerona. Da mesma
forma os elementos tirados de outrem, ele
os terá de transformar e misturar para com
eles fazer obra própria, isto é, para forjar sua
inteligência. (Idem, vol. I, p. 152).

Ao invés de soar como a doação de um acervo, o


ensino deve, assim, estar subordinado à finalidade de preparar
para a vida. O aluno não deve receber um saber pronto
para tão somente decorar, mas que seja instigado a buscar
o conhecimento e realizar uma produção própria. Como
ilustração, sua ideia de ensino de História:
Mas que o guia desse menino se lembre do
objetivo de sua missão e que procure gravar
menos no seu discípulo a data da destruição
de Cartago que os costumes de Aníbal ou
Cipião. Que lhe ensine a apreciar os fatos
mais do que os registrar. Uns estudam a
história decorando, outros como um filósofo
que analisa. (Idem, vol. I, p. 156).

Também soa muito atual sua indagação em prol do


ensino de filosofia na infância: “Visto que a filosofia é a
ciência que nos ensina a viver e que a infância como as outras
idades dela pode tirar ensinamentos, por que motivo não lha
comunicaremos?” (Idem, vol. I, p. 162). Enfim, penso que
o trecho a seguir serve como uma síntese de sua proposta de
educação voltada para a vida:
Este mundo tão grande é o espelho em que
Educ. foco,
devemos nos mirar para nos conhecermos de Juiz de Fora,
maneira exata. Em suma, quero que seja esse o v. 20, n. 2,
p. 147-168,
livro de nosso aluno. A infinidade de costumes, 157 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Silveira Lemgruber
seitas, juízos, opiniões e leis ensina-nos a
apreciar sadiamente os nossos, a reconhecer
suas imperfeições e fraquezas naturais, o que já
não é pouco. (Idem, vol. I, p. 158)

Como foi apontado por alguns autores de história da


educação, Montaigne não escreve sobre a prática pedagógica
com o foco no âmbito escolar, ao qual quase não faz referências.
Quando o faz, critica severamente a disciplina rígida e os
castigos físicos que nele imperavam:
A disciplina rigorosa da maior parte de
nossos colégios sempre me desagradou.
São verdadeiras prisões para cativeiro da
juventude... Ide ver esses colégios nas horas
de estudo: só ouvireis gritos de crianças
martirizadas e de mestres furibundos. Linda
maneira de acrodar o interesse pelas lições
nessas almas tenras e tímidas, essa de ministrá-
las carrancudo e de chicote nas mãos! Que
método iníquo e pernicioso! Como seriam
melhores as classes se juncadas de flores e
folhas e não de varas sanguinolentas! (Idem,
vol. I, p. 164).

Sua perspectiva ao discorrer sobre a formação


intelectual da criança é, analisando sua própria experiência, a
do preceptorado. Logo que desmamou, antes que destravasse
a língua, foi confiado a um preceptor alemão que ignorava
completamente o francês. Ele e mais dois ajudantes, só se
dirigiam ao pequeno Michel em latim. “Excelente foi o
resultado. Sem método, sem livros, sem gramática, sem
regras, sem chicote, sem lágrimas, aprendera um latim tão
puro quanto o de meu professor, porquanto nenhuma noção
de uma outra língua o podia perturbar.” (Idem, vol. I, p. 170)
Fala pouco de sua fase escolar, no Colégio de Guyenne,
em Bordeaux, que tinha um diretor português atipicamente
Educ. foco, liberal para a época, o que rendeu perseguições e, por fim, a
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, demissão. Sua cartilha foram as fábulas das Metamorfoses de
p. 147-168,
jul. 2015 / out. 2015 158 Ovídio, escolha que, nos Ensaios, corroboraria como o livro
mais fácil e adequado pelo assunto à sua idade. Elogia alguns Montaigne: filosofia e
educação para a vida

professores quanto ao estímulo de leituras agradáveis: “Se


tivessem tido a mania de mo impedir, creio que só houvera
trazido do colégio ódio aos livros, como acontece com quase
toda a nossa nobreza.” (Idem, vol. I, p. 172).
Essa postura, de tratar tangencialmente sua experiência
escolar, coloca-nos diante de um traço característico das
meditações montaignianas. Elas não têm como objeto de
análise as instituições ou os grandes acontecimentos que
vivenciou. E, quanto a isso, ele teria, sem dúvida, um material
fartíssimo, pois, além de prefeito de Bordeaux por mais
de uma vez, esteve rodeado de intrigas e assassinatos, tão
corriqueiros na corte francesa, nas duas décadas das guerras
religiosas que coincidem com a redação dos Ensaios. Mas, em
vez de narrar a macropolítica, opta por tecer reflexões sobre a
sociedade a partir do fragmento que é a sua vida. Seus juízos
são construídos pelo encontro de uma vasta bagagem clássica
greco-romana com a observação de sua experiência pessoal.
É com esse olhar que ele abordará outros aspectos que
não são tão destacados nos livros de educação, mas que seriam
muito valiosos para a formação de professores. Talvez, nem
tanto pelos temas em si, porém, pela maneira como os vê,
pelo exercício de não ter o seu ponto de vista como o certo,
o único. Vivendo numa conjuntura fortemente marcada
pela intolerância, Montaigne nos brinda com um admirável
exemplo de pluralismo.
Dentre eles, destaco, inicialmente, a religião. As duas
décadas de elaboração dos Ensaios foram marcadas, desde a
“Noite de São Bartolomeu” até quase o “Edito de Nantes”,
pelo banho de sangue das guerras religiosas. Apesar de sua
inquestionável fé católica, jamais sucumbiu à intolerância,
chegando mesmo a afirmar que nada superava os católicos em
crueldade. Denunciou a ação dos espanhóis no Novo Mundo,
invertendo o qualificativo de “bárbaro”: Educ. foco,
Juiz de Fora,
Ter-se-á jamais perpetrado tanto crime em v. 20, n. 2,
p. 147-168,
benefício do comércio? Quantas cidades 159 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Silveira Lemgruber
arrasadas, quantos povos exterminados!
Milhões de indivíduos trucidados, em tão
bela e rica parte do mundo, e tudo por
causa de um negócio de pérolas e pimenta!
Miseráveis vitórias! ... Em outra ocasião,
os espanhóis mandaram queimar vivos
quatrocentos e sessenta prisioneiros de
guerra... Todos esses pormenores por eles
próprios nos foram comunicados, pois
não somente confessam tais barbaridades
como delas se vangloriam. Se esses bárbaros
tinham a intenção de propagar a nossa fé,
deviam pensar que não é de territórios que
ela precisa apossar-se e sim de almas. (Idem,
vol. I, ps. 238 e 239)

É significativo que, ao longo de mil páginas, não haja


qualquer alusão a Jesus Cristo. Mesmo quando vai tratar
de exemplos de atitude diante da morte, recorre a Catão
ou Sócrates, mas omite a crucificação. Fala sobre tabernas,
entretanto não faz referência à audiência em que foi recebido
pelo Papa Gregório XIII, no Vaticano. Transparece que sua
verdadeira religião é o legado humanista greco-romano,
em especial as tradições do estoicismo, do epicurismo e do
ceticismo. É claro que isso irá desagradar às autoridades
católicas e trará sérias consequências quanto à censura dos
Ensaios.
Montaigne compreendia que sua opção religiosa era
determinada não por uma verdade transcendental, mas,
sobretudo, pelas contingências culturais:
Tudo isso é sinal muito evidente de que
não compreendemos nossa religião, senão
a nosso modo e a nosso bel-prazer, como
compreendemos qualquer outra religião. Se é
nossa, é porque o destino nos fez nascer em um
país onde ela existe... Em outras regiões, outras
influências, promessas e ameaças poderiam
Educ. foco,
Juiz de Fora, igualmente impor-nos outras crenças. Somos
v. 20, n. 2, cristãos como somos perigordinos ou alemães.
p. 147-168,
jul. 2015 / out. 2015 160 (Idem, vol. I, p. 375)
Outra contribuição sua, que poderia ser trabalhada Montaigne: filosofia e
educação para a vida

na formação de professores no sentido da desnaturalização


da educação, diz respeito à sua visão da diversidade cultural.
Admirador, desde a infância, das Metamorfoses de Ovídio,
herda um fascínio pelos relatos sobre as terras e povos dos
continentes recém-descobertos. Sustenta que “a qualidade
mais universal é a variedade” (Idem, vol. II, p. 138), e que
devemos, a partir do conhecimento do que nos é diverso, ver e
julgar as insuficiências de nossa própria cultura, relativizando
hábitos e crenças. Ou seja, percebê-los como construções
culturais:
O principal efeito da força do hábito reside
em que se apodera de nós a tal ponto que
já quase não está em nós recuperar-nos e
refletirmos sobre os atos a que nos impele...
e imaginamos que as ideias aceitas em torno
de nós, e infundidas em nós por nosso pais,
são absolutas e ditadas pela natureza. Daí
pensarmos que o que está fora dos costumes
está igualmente fora da razão. (Idem, vol. I,
p. 122)

No famoso ensaio Os canibais, apresenta sua visão


simpática aos costumes primitivos e estrangeiros. “Nada vejo
de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na
verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica
em sua terra.” (Idem, vol. I, p. 195). Montaigne teve em sua
propriedade um empregado que vivera na França Antártica,
fundada pelo almirante Villegaignon, no Brasil. Gostava de
conversar sobre os índios com esse homem que tinha a seu
serviço, que lhe apresentou marinheiros e comerciantes que
conhecera na viagem. Dedicava muito tempo à leitura das
obras sobre os povos recém-descobertos. Gostava sobretudo da
Histoire d’um Voyage fait em terre Du Brésil (1578), de Jean de
Léry, cronista protestante que descrevia a sociedade tupinambá
com simpatia; e da Brevisima relación de la destruccion de las Educ. foco,
Juiz de Fora,
Indias, de Bartolomé de Las Casas, que defendia a causa da v. 20, n. 2,
p. 147-168,
humanidade dos silvícolas. 161 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Silveira Lemgruber
Uma passagem célebre de Os Canibais é quando narra
o encontro, em Rouen, na corte do rei Carlos IX, com três
índios tupinambás trazidos do Brasil (lastima que se tenham
deixado tentar pela novidade e abandonado seu clima suave).
O que mais lhe chamou a atenção foi a percepção dos índios
quanto à desigualdade na sociedade francesa:
observaram que há entre nós gente bem
alimentada, gozando as comodidades da vida,
enquanto metades de homens emagrecidos,
esfaimados, miseráveis, mendigam às portas
dos outros (em sua linguagem metafórica a
tais infelizes chamam “metades”); e acham
extraordinário que essas metades de homens
suportem tanta injustiça sem se revoltarem e
incendiarem as casas dos demais. (Idem, vol.
I, p. 203)

Após tantas reflexões sérias, que representavam “cortar


na própria carne” de sua cultura, seu bom-humor emerge
na conclusão de Os Canibais: “Tudo isso é, em verdade,
interessante, mas, que diabo, essa gente não usa calças!” (Idem,
vol. I, p. 203).
Ousaria afirmar que a maior lacuna da abordagem dos
livros de História da Educação em relação ao pensamento
montaigniano se dá quanto às ideias epistemológicas. Suas
reflexões apresentam grande atualidade em relação à filosofia
da ciência. Fustiga incessantemente, ao longo de sua obra, a
onipotência da razão humana:
Que me explique pelo raciocínio em que
consiste a grande superioridade que pretende
ter sobre as demais criaturas. Quem o autoriza
a pensar que o movimento admirável da
abóboda celeste, a luz eterna dessas tochas
girando majestosamente sobre sua cabeça, as
flutuações comoventes do mar de horizontes
infinitos, foram criados e continuem a existir
unicamente para sua comodidade e serviço?
Educ. foco,
Juiz de Fora,
Será possível imaginar algo mais ridículo do
v. 20, n. 2, que essa miserável criatura, que nem sequer
p. 147-168,
jul. 2015 / out. 2015 162 é dona de si mesma, que está exposta a
todos os desastres e se proclama senhora do Montaigne: filosofia e
educação para a vida
universo? (Idem, vol. I, p. 379)

Somando-se aos protestos quanto à falta de engajamento


nas querelas religiosas ou à liberalidade de sua abordagem da
sexualidade, espezinhar o orgulho humano, sua atividade
intelectual preferida, foi a gota d’água para a inclusão dos
Ensaios no Índex de livros proibidos, de 1662 a 1854, sob
a alegação de que, ali, o homem não era considerado uma
criação especial de Deus.
Montaigne percebe o papel das metáforas fundantes, das
“licenças poéticas” a que recorrem as ciências quando tratam
de “questões que sobre-excedem a inteligência do homem”:
Duvido que Epicuro, Platão e Pitágoras
tenham acreditado seriamente em suas
teorias dos átomos, das ideias e dos números;
eram demasiado sábios e prudentes para
crerem em coisas tão pouco assentadas e
tão discutíveis. O que na realidade pode
assegurar-se é que, dada a obscuridade das
coisas do mundo, cada um desses grandes
homens procurou encontrar uma imagem
luminosa delas. Seus espíritos acharam
explicações que tinham pelo menos uma
certa verossimilhança e que, embora não
averiguadamente verdadeiras, podiam ser
sustentadas contra as ideias contrárias: “esses
sistemas são ficções do gênio de cada filósofo
e não o resultado de suas descobertas”.
(Sêneca). (Idem, vol. I, p. 428)

Acentuando o caráter de construção social dos modelos


teóricos e não de descobertas naturais, insiste em que
Assim faz a ciência; ela nos oferece, pedindo-
nos que as suponhamos verdadeiras, coisas
que ela própria declara inventadas. Esses
epiciclos, esses círculos excêntricos e
concêntricos de que vale a astronomia para
explicar o movimento das estrelas, não os Educ. foco,
Juiz de Fora,
propõe ela senão como o que de melhor v. 20, n. 2,
p. 147-168,
pôde encontrar. Do mesmo modo age a 163 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Silveira Lemgruber
filosofia, apresentando-nos, não o que é ou
crê ser, mas o que imagina como solução
mais elegante e adequada às aparências.
(Idem, vol. I, p. 450)

Duvidando da eternidade das descobertas ou teorias


“definitivas”, desafia argumentos de autoridade, ousando
indagar que “carta de recomendação” trazem os ensinamentos
de Aristóteles, por exemplo, para não serem superados?
Temos, portanto, quando se apresenta uma
nova doutrina, razões de sobra para desconfiar e
lembrar que antes prevalecia a doutrina oposta.
Assim como esta foi derrubada pela doutrina
recente, no futuro uma terceira substituirá
provavelmente a segunda. Antes que os
princípios de Aristóteles tenham tido crédito,
outros existiram que também davam satisfação
à razão humana. Que carta de recomendação
trazem os últimos? Que privilégio especial lhes
garante que as nossas invenções os preservarão
eternamente? (Idem, vol. I, p. 477)

A ideia de mundo – tanto do planeta, quanto do universo


- estava sofrendo uma radical transformação, durante a vida
de Montaigne. A astronomia passava por uma mudança de
paradigma, com o geocentrismo de Ptolomeu sendo superado
pelo heliocentrismo de Copérnico:
O céu e as estrelas foram durante três mil
anos considerados em movimento. Todos
acreditaram, até que Cleantes de Samos
ou, segundo Teofrasto, Nicetas de Siracusa,
se lembrou de sustentar que a terra é que
girava em torno de seu eixo, seguindo o
círculo oblíquo do zodíaco; e em nosso
tempo Copérnico demonstrou tão bem esse
princípio, que dele se vale em seus cálculos
astronômicos. Que concluir, senão que não
temos que nos preocupar com saber qual dos
Educ. foco,
Juiz de Fora, sistemas é o verdadeiro? Quem sabe daqui
v. 20, n. 2, a mil anos outro sistema não os destruirá a
p. 147-168,
jul. 2015 / out. 2015 164 ambos? (Idem, vol. I, p. 477)
Montaigne saúda o novo conhecimento, mas se recusa a Montaigne: filosofia e
educação para a vida

considerar que o homem, enfim, decifrara o cosmos. Também


esta será a sua postura em relação ao descobrimento do Novo
Mundo, como etapa final do conhecimento das fronteiras do
planeta em que vivemos:
Ptolomeu, que foi personagem de realce,
determinara os limites de nosso mundo;
os filósofos antigos pensavam nada ignorar
a esse respeito acerca do que existia, salvo
algumas ilhas longínquas que podiam ter
escapado às suas investigações; e, há mil
anos, fora agir como os pirrônicos pôr em
dúvida o que então ensinava a cosmografia
e as opiniões aceitas por todos; referir-se à
existência de antípodas era heresia. E eis que
nesse século se descobre um continente de
enorme extensão, não uma ilha, mas uma
região quase igual em superfície às que
conhecíamos. Os geógrafos de nosso tempo
não deixam de afirmar que agora tudo é
conhecido: “pois nos comprazemos com
o que temos, o que nos parece superior ao
resto” (Lucrécio). Pergunto então se, visto
que Ptolomeu se enganou outrora acerca
do que constituía o ponto de partida de seu
raciocínio, não seria tolice acreditar hoje
resolutamente nas ideias de seus sucessores,
e se não é provável que esse grande corpo
denominado “mundo” seja bem diferente do
que julgamos? (Idem, vol. I, p. 478)

Talvez o debate em torno de proposições como essas


pudesse ser um bom estímulo para os futuros professores em
relação à natureza do conhecimento, suas possibilidades e
limitações.
Mas há ainda uma faceta de sua obra que traria grande
contribuição na formação de professores: sua atitude diante da
vida. Quanto a sua filiação filosófica, Montaigne é apontado Educ. foco,
Juiz de Fora,
como um dos principais representantes do humanismo v. 20, n. 2,
p. 147-168,
renascentista, leitor apaixonado de Sêneca e Plutarco. Sua 165 jul. 2015 / out. 2015
Márcio Silveira Lemgruber
atração pelas escolas pragmáticas da antiguidade - estoicismo,
epicurismo e o ceticismo – vinha do lugar elevado na hierarquia
dos valores que elas conferiam à atenção constante sobre a
própria vida, através da ataraxia, isto é, a imperturbabilidade
enquanto diminuição da ansiedade:
A grandeza da alma consiste menos em se
elevar e avançar do que em se ordenar e se
circunscrever. Grande é tudo o que é suficiente;
e há mais elevação em amar as coisas comuns
do que as eminentes. Nada é tão legítimo e
belo como desempenhar o papel de homem
em todos os seus aspectos. Não há ciência mais
árdua do que a de saber viver naturalmente; e
a mais terrível das moléstias é o desprezo pela
vida. (Idem, vol. II, p. 392)

Montaigne sabe que a vida pode ser tudo, menos


exatidão. A lógica do falso ou verdadeiro nela não impera. Ao
contrário dos sistemas plenamente formalizáveis, das questões
redutíveis ao cálculo, a vida não tem gabarito. Quando sustenta
que “a virtude que as coisas deste mundo exigem é uma virtude
flexível, capaz de se adaptar à fraqueza humana; não é pura
nem simples; não é reta, constante, imaculada” (Idem, vol. II,
pág. 298), ele distingue territórios que suportam diferentes
concepções de racionalidade. Entende que não se pode
construir uma ética more geometrico, que os conhecimentos
dessa ordem não resolvem os dilemas da conduta humana.
A grandeza da alma consiste menos em se
elevar e avançar do que em se ordenar e
se circunscrever. Grande é tudo o que é
suficiente; e há mais elevação em amar as
coisas comuns do que as eminentes. Nada
é tão legítimo e belo como desempenhar o
papel de homem em todos os seus aspectos.
Não há ciência mais árdua do que a de saber
viver naturalmente; e a mais terrível das
moléstias é o desprezo pela vida. (Idem, vol.
Educ. foco, II, p. 392).
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
p. 147-168,
jul. 2015 / out. 2015 166
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Data de recebimento: novembro de 2013


Data de aceite: junho de 2014

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
p. 147-168,
jul. 2015 / out. 2015 168
GÊNESE DA CONFIANÇA Gênese da confiança
e educação para
o “estar junto”

E EDUCAÇÃO PARA O
“ESTAR JUNTO”
Hubert Vincent1

Resumo
Este artigo é uma análise de dois parágrafos da Teoria da
Justiça de J. Rawls, § 70: A autoridade moral; § 71: A moral
do grupo. Estes parágrafos me pareceram importantes
porque há neles uma análise muito profunda e uma noção
bastante heterodoxa de autoridade. Pode-se dizer que
previamente não há nenhuma autoridade dada e sim uma
relação em que a autoridade é construída ou não. Se esta
relação depende de adultos, pode-se dizer que eles são
responsáveis; no entanto, é, em um sentido muito especial,
a noção de dependência. Finalmente, estes argumentos
são fixados a uma certa imagem da subjetividade e uma
reavaliação de passividade.

Palavras-chave: Confiança; estar junto; autoridade; Rawls;


educação.

Abstract
This article is an analysis of two paragraphs of the Theory
of Justice by J. Rawls: § 70: The moral of authority; and
§ 71: The moral of the group. These paragraphs seemed
important because there is a very deep analysis and quite
heterodox notion of authority. There is no authority might
say, there is a relationship in which authority is built or not.
If this relationship depends adults, if one can say they are
responsible of it, however, it’s in a sense quite particular of the
notion of dependency. Finally, these arguments are fixed to
a certain image of subjectivity and a revaluation of passivity.

Keywords: Trust; being together; authority; Rawls;


education.

1 Hubert Vincent é professor de Filosofia na Universidade de Rouen, Educ. foco,


Juiz de Fora,
Departamento de Ciências da Educação. v. 20, n. 2, p.
169-194,
E-mail: huvinc@gmail.com 169 jul. 2015 / out. 2015
GÊNESE DA CONFIANÇA Gênese da confiança
e educação para
o “estar junto”

E EDUCAÇÃO PARA O
“ESTAR JUNTO”
Ao longo do texto, procuro fazer uma defesa da
subjetividade passiva, mostrando a importância desta temática
para o que chamamos de “estar junto” e para as problemáticas
relativas à educação para a cidadania.
Digo defesa, porque nada disso é evidente. No uso
comum do termo, como em seu uso educativo, o sentido é
quase sempre pejorativo. A pessoa passiva é aquela que espera,
que não faz nada, aguardando que os outros a assumam.
Também é assim a criança passiva por condição, no sentido
em que é dependente e supervisionada, sendo a finalidade da
educação fazê-la ultrapassar este estado.
Poderíamos dizer que a educação é o processo pelo
qual as crianças deixam de ser crianças e abandonam sua
passividade, enquanto qualidade e enquanto estado.
Ainda que faça sentido repreender alguém por sua
passividade, existem muitas ocasiões e situações em que não
prezamos particularmente o ser ativo, em que a passividade não
representa necessariamente um mal. É o caso, por exemplo,
das atividades que exigem uma espera e uma observação mais
meticulosas; daquelas em que devemos seguir certos hábitos
sem questionar em demasia suas razões (que parecem já ter
passado por demonstrações); daquelas em que devemos voltar
ao que sabemos, repensando-o de forma mais adequada,
tornando-o nosso e nos apropriando melhor dele; daquelas
ainda em que devemos “deixar brotar”, dizendo para nós
mesmos que, se precipitarmos as coisas, elas não acontecerão.
Se as palavras tiverem realmente um sentido, nada disso supõe
ou exige uma atividade. Educ. foco,
Juiz de Fora,
Sendo assim, podemos adiantar que, de forma alguma, v. 20, n. 2, p.
169-194,
a atividade é uma obrigação constante. 171 jul. 2015 / out. 2015
Hubert Vincent
Sem entrar na diversidade dos casos ou situações em
que a norma da atividade merece ser suspensa, gostaria de
identificar as características gerais da subjetividade passiva
e os seus objetos. Basicamente, o que requer de nós que
sejamos sujeitos passivos? O que exige passividade, no lugar de
atividade? Como delimitar melhor esta noção através daquilo
que a produz?
Para dar maior precisão a certos traços da subjetividade
passiva, me apoiarei em algumas análises de J. Rawls, mais
precisamente nos § 70-72 de sua Teoria da Justiça, que me
parecem muito fecundos para este ponto.

8.  TORNAR-SE CONFIANTE

Alguns elementos gerais determinam a boa interpretação


dos parágrafos em questão.
8.1  A CONFIANÇA COLOCADA COMO QUESTÃO

O primeiro elemento diz respeito ao lugar ocupado por


estes parágrafos na economia geral do livro. Nos capítulos
anteriores, Rawls apresenta a questão dos princípios de
uma sociedade justa. Como sabemos, ele responde, por
um lado, com o enunciado de três princípios fundamentais
e hierarquicamente ordenados; por outro lado, com a
legitimação de um procedimento suscetível de construir a
necessidade destes princípios.
A problemática desenvolvida em seguida, na qual se
inserem os parágrafos lidos neste trabalho, se apresenta algo
independente da construção inicial. Rawls pretende tratar a
questão da estabilidade dos regimes políticos e dos sistemas
institucionais: o que faz com que uma sociedade permaneça
estável e consiga regular e compensar seus desequilíbrios? Na
Educ. foco, medida em que toda sociedade pode ser tida como um sistema
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. em equilíbrio relativamente frágil, como este sistema consegue
169-194,
jul. 2015 / out. 2015 172 se autorregular? O sentido da justiça de seus membros é uma
das forças positivas suscetíveis de regular este equilíbrio. Resta Gênese da confiança
e educação para
o “estar junto”
saber como ele se constrói.
Neste caso, a reflexão muda um pouco de sentido. Não
se trata mais de pensar de maneira abstrata sobre os princípios
de uma sociedade justa, mas de investigar o que faz com
que estes indivíduos desenvolvam, ou não, um sentido de
justiça. Ou seja, como se constrói, em cada um, um mínimo
de confiança nas pessoas com quem vivem e nas instituições
em que vivem. Reformulando do ponto de vista do objeto,
trata-se de saber o que seria uma instituição ou o que seriam
pessoas confiáveis, dado que a confiança se desenvolve com
base nesta fiabilidade. O que faz com que as instituições e
as pessoas que as incarnam nos pareçam até certo ponto
fiáveis ou suscitem nossa confiança, antes mesmo de estarmos
prontos para confrontar as realidades institucionais com certos
princípios abstratos de justiça? Mesmo na criança, a confiança
não é um dado imediato que possamos supor. Em todo caso,
ela é distinta da dependência na qual a criança se encontra e
responde a certas relações: mas quais?
Neste patamar, a questão encontra-se ainda muito
solta: os indivíduos e as histórias são muito diversos. Alguns
desenvolvem certo sentido da justiça, outros não. Alguns têm
experiências de instituições e de pessoas fiáveis, conseguindo
dar-lhes crédito para além de suas falhas pontuais, ainda que
não sem limites, outros não. Por quê? De quê isto depende? O
que podemos dizer sobre as condições gerais que favorecem ou
prejudicam o desenvolvimento da confiança relativa, concedida
às instituições e às pessoas? Veremos toda a importância
desta questão, se acrescentarmos que o desenvolvimento do
sentido da justiça não é independente do desenvolvimento
geral da pessoa; ou seja, as pessoas que efetivamente somos se
desenvolvem em função de certa fiabilidade em relação a seu
ambiente e graças a ela, porque puderam confiar.
A estabilidade de nossos sistemas institucionais é, Educ. foco,
Juiz de Fora,
portanto, irredutível ao enunciado dos princípios da justiça e v. 20, n. 2, p.
169-194,
ao conhecimento destes princípios. É preciso ainda um sentido 173 jul. 2015 / out. 2015
Hubert Vincent
de justiça engendrado de outra forma e alhures, dependente,
antes de mais nada, do crédito e da confiança concedidos
às pessoas que nos cercam e às instituições próximas. O
que nos tornou confiantes ou amorosos, se entendemos
que nosso desenvolvimento (e a própria possibilidade desta
questão) teria sido perturbado caso a confiança ou amor não
tivessem acontecido? Nesse sentido, diremos que houve uma
constituição primeira, que nossa “passividade” não é um dado
bruto, mas uma evolução ou o resultado de algo (ou não).
8.2  FRAGILIDADE

Acredito que, além de possibilitar a apresentação da


questão mais geral de nosso tornar-se passivo, ou do surgimento
em nós da passividade ou confiança, este texto traz igualmente
para a questão uma primeira resposta. Se o solicitarmos um
pouco para além do que diz, devemos valorizar esta primeira
ideia: o sentido da justiça é primeiramente feito da experiência
ou da compreensão de que nossas instituições são relativamente
frágeis ou mortais. Ele depende da intuição primeira, ou da
experiência cultivada de que nossas instituições são frágeis.
Como afirma Rawls, o sentido da justiça tem a função de
regular o sistema titubeante e potencialmente instável de
nossas instituições.
Um ponto importante: uma cidade, um vilarejo e um
bairro podem morrer; uma família, uma turma de escola e um
grupo de amigos podem morrer, assim como estes laços podem
se apagar, diluir ou quebrar. A construção do sentimento
da fragilidade - quando não exige de forma brutal nossa
responsabilidade, mas sim o sentimento de que isto depende
parcial e frequentemente de nosso agir, de forma bastante
relativa - não me parece fácil nem irredutível ao enunciado de
um simples dever de responsabilidade. Da mesma forma, não
me parece evidente a construção das seguintes experiências:
Educ. foco, se os laços ou a instituição se desfazem, esta é a ocasião e
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. possibilidade para que outros laços se teçam; e nós somos, em
169-194,
jul. 2015 / out. 2015 174 parte, arquitetos desses novos laços.
Inversamente, a injustiça se desenvolveria baseada Gênese da confiança
e educação para
o “estar junto”
em uma norma de certeza ou de expectativa de serviços e
instituições perfeitos, sem nenhuma carência ou defeito, como
se não tivéssemos nada para mudar, como se tudo devesse ser
perfeito, como se toda imperfeição devesse ser tratada como
um defeito ou uma ausência e como se, de toda forma, nós, ou
melhor, nossas ações, não pudessem modificar nada.
Acredito ver aqui um importante ponto da primeira
argumentação de Rawls: falar de instituição em equilíbrio
e portanto, frágil, equivale a construir um conceito de
responsabilidade onde a manutenção dos laços e sua dissolução
dependem, e não dependem, de nós. Se temos o poder de
modificar, perturbar e invalidar a exterioridade a ponto de
não poder ser atingida e se somos capazes de fazê-lo, ainda
assim ela permanece até certo ponto sólida e sensível. Nem
impotente, nem omnipotente. Como sabemos, algumas vezes
as crianças sentem a necessidade de testar a solidez de seus
laços e de questioná-los, para sentirem que resistem, ou ainda
para assegurarem-se de seu próprio poder. Acrescentemos algo
que não parece apresentar maiores questionamentos: seja do
ponto de vista das próprias crianças, seja do ponto de vista do
que elas questionam, esta experiência não é ilimitada.
Deve ser colocada, por outro lado, a questão da educação
e do desenvolvimento deste sentimento. Como educar para a
experiência e para o sentido da fragilidade, no cruzamento das
experiências de cada um, se distanciando ao mesmo tempo da
ideia de que tudo é frágil e da ideia de que tudo é perfeitamente
sólido e eterno? Me contentarei destas duas observações.
Primeiramente, poderíamos objetar que isto não é fácil,
devido à impossibilidade de se viver constantemente em função
desta preocupação. Não posso perguntar-me, a todo instante,
se o que faço ou digo pode deteriorar e quebrar, ou refazer e
emendar o estar junto, e de que maneira. Também não posso
questionar-me a todo momento se este coletivo vale a pena ser Educ. foco,
Juiz de Fora,
mantido, ou não; se devo decidir abandoná-lo e aceitar este v. 20, n. 2, p.
169-194,
abandono, ou não. Sou eu, a cada instante, e em cada um de 175 jul. 2015 / out. 2015
Hubert Vincent
meus atos, responsável pelo coletivo? Tal reponsabilidade não
seria excessivamente esmagadora?
As últimas formulações são enganosas: elas argumentam
como se a questão se colocasse em termos de ausência, ou de
presença: os laços existem e são seguros, ou não existem. Tal
questão seria angustiante e suscitaria, efetivamente, o impulso
de se precipitar para este ou aquele vínculo. Precisamente, a
construção do sentimento de fragilidade tenta escapar deste
dualismo, criando a noção de uma responsabilidade limitada,
mas segura.
Não mais original do que a primeira, a segunda observação
consiste em dizer que a cultura de tal sentimento passa por
um tipo de saber histórico: civilizações, impérios, cidades e
famílias foram aniquilados. Aquilo que acreditávamos ser mais
sólido e mais real revelou-se uma construção, ou uma realidade
viva. Mais ainda, deparamo-nos aqui com toda a importância
adquirida pelos saberes ecológicos, na medida em que se ligam
aos saberes históricos e mostram que os “sistemas naturais”,
tomados em qualquer nível, podem ser analisados segundo a
ideia de equilíbrio ou segundo uma história específica.
O educar para o viver junto conhece a experiência da
dissolução, da morte, da fragilidade das instituições e dos
círculos em que vivemos. Este sentimento pode ser reforçado
e elaborado graças a certas disciplinas, em particular a
história, a ecologia, mas também a geografia e a economia,
que integram os saberes históricos. A passividade se aloja,
aqui, na experiência de que, na maior parte do tempo, não
conhecemos ou dominamos mal o conjunto de razões e
motivos do surgimento e da destruição de tal coletividade,
reagrupamento ou meio. Se dominamos mal estes fatores, a
razão está em fazermos parte deles por nosso próprio poder
de agir.
Alegarão, talvez, que seria preciso olhar para os
Educ. foco, renascimentos, muito mais legítimos. Não concordo, pela
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. seguinte razão: insistir exclusivamente nos nascimentos,
169-194,
jul. 2015 / out. 2015 176 porque supostamente caminham no sentido da vida, acentua
de forma demasiado sistemática a imagem adequada e, em Gênese da confiança
e educação para
o “estar junto”
parte, falsa, da natureza entendida como lugar de perpétuo
renascimento, no qual não estaríamos mais atentos às
condições do nascimento. Acima de tudo, famílias, cidades ou
novas doutrinas não renascem no mesmo sentido que crianças,
que renascem continuamente. Mesmo no plano da natureza,
as coisas não são tão simples assim, e o nascimento nem
sempre é natural: nos zoológicos, os animais têm dificuldade
em reproduzir-se; casais modernos, na Europa do Norte pelo
menos, têm tido dificuldade em dar à luz. O nascimento não
transcende todas as condições; os nascimentos também são
frágeis e incertos, mesmo no que toca à natureza. A questão
seria então: em que medida este último saber não quebra nossa
“confiança” na natureza mas, ao contrário, a reconstrói de
outra forma?
8.3  DESENVOLVIMENTO OU CAMADA

O último elemento mais geral destas análises diz respeito


ao estatuto exato das diferentes etapas de desenvolvimento do
sentimento de justiça.
Rawls distingue três etapas. A primeira, denominada
moral da autoridade, sobre a qual me estendi longamente em
um artigo anterior, localiza a análise do sentimento de amor
e a análise das condições de seu nascimento no centro deste
momento. Em especial, investiga como ele é engendrado
pela capacidade dos adultos de dirigirem-se às crianças e de
acolher sua atividade espontânea. Está em questão, portanto,
a construção da docilidade: a docilidade das crianças não é de
forma alguma natural, nem evidente. Como, e em função de
que relações, tal docilidade se constrói?
A segunda etapa, ou moral do grupo, coloca no centro
da análise a leitura da confiança no grupo, mais exatamente
no sistema institucional. Ela se foca nas noções de norma e de
função social, mostrando que este aspecto das coisas é solidário Educ. foco,
Juiz de Fora,
com o desenvolvimento de certa inteligência, precisamente v. 20, n. 2, p.
169-194,
para compreender o “sistema” das obrigações recíprocas, nas 177 jul. 2015 / out. 2015
Hubert Vincent
quais os indivíduos devem aprender a situar-se. A noção de
norma e, mais ainda, de sistema de norma, apresenta-se de
forma singular.
Por fim, o último elemento faz, da última etapa, seu
objeto : trata-se da moral dos princípios, obtida de nossa
capacidade de poder pensar sobre algo enquanto princípio,
de acordo com o procedimento recebido do contrato, sob a
forma dada por ele em sua teoria (o véu da ignorância).
Observemos que as diferentes etapas não possuem, ou
pelo menos não somente, o sentido de um desenvolvimento que
anula as etapas anteriores, fazendo com que elas desapareçam
ou tornem-se ilegítimas nas etapas seguintes; mais ou menos
como acontece com Piaget, para quem as etapas anteriores
devem ser anuladas pelo desenvolvimento cognitivo e moral,
ou como acontece com Freud, ou um certo Freud, que
compreende toda doença ou nevrose como regressão ou fixação
em uma etapa “normalmente” ultrapassada. No caso de Rawls,
podemos falar de desenvolvimento, mas também de camadas
que se conservam e devem conservar-se no desenvolvimento
ulterior. Ele o diz claramente no fim da primeira etapa: a
questão da tolerância, sobretudo, se enraíza na primeira etapa,
na medida em que supõe um sentimento de confiabilidade
com relação a nossas instituições, um simples sentimento de
confiança naquelas. O sentimento de justiça será construído
graças ao crédito que podemos conceder a nossas instituições;
crédito este que se constrói primeiramente no conjunto
de nossas relações pessoais, sem reduzir-se a elas. Trata-se,
portanto, da fiabilidade, e de sua relativa independência com
relação à reflexão sobre os princípios.
De forma subjetiva, isto significa que não devemos
pensar que somos unicamente adultos realizados. Significa
ainda que se, neste ponto, existir algum dever (esforçar-se
Educ. foco, em agir segundo a moral dos princípios), este dever não é
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. absoluto. Ele é relativo e não poderia esquecer nosso gosto e
169-194,
jul. 2015 / out. 2015 178 nossa propensão para confiar e contar com os outros, de forma
simples, inconsciente e sem razão, seguindo sem mais certas Gênese da confiança
e educação para
o “estar junto”
normas e padecendo por isso.
Segue que a primeira etapa, ou “moral da autoridade”, na
qual há certa docilidade e, mais precisamente, uma confiança
em nossas instituições e em seu poder de resistir, tem seus
direitos e seu lugar no seio da vida adulta. Faz, portanto,
sentido dizer que a abordagem “principial”, que examina e
pode examinar segundo os princípios, deve compor com elas.
Isto quer dizer que, qualquer crítica, ou poder crítico garantido
pelo conhecimento dos princípios, deve poder levar em conta
a continuidade ou fiabilidade de nossas instituições. Como diz
o provérbio francês: “O melhor é algumas vezes inimigo do
bem”. Algumas vezes.
Observemos que os elementos abordados em seguida
são constitutivos tanto de uma relação com a infância, quanto
da relação dos adultos consigo mesmos. Seguiremos a leitura
de Rawls, que permite pensar o tema da subjetividade passiva
para além da infância e para além da questão educacional
(compreendida como um simples “ir além” da infância, na
idade adulta).

9.  O PRAZER COM A PRESENÇA DO OUTRO

O que encontramos face ao primeiro estágio ou primeira


camada (a moral da autoridade)?
Rawls observa que, no tempo e no lugar em que a
construção da docilidade está em pauta, devemos tornar
possível algo como o simples prazer com a presença do outro.
As crianças devem poder viver o acontecimento de adultos
tendo prazer com sua mera presença. Dito de outra forma,
devem poder viver o acontecimento do amor adulto não
condicionado por um agir disciplinado. Os adultos devem
poder oferecer este prazer tirado da presença simples e
exclusiva. Educ. foco,
Juiz de Fora,
O estar junto dos adultos com as crianças depende, v. 20, n. 2, p.
169-194,
pelo menos inicialmente, da capacidade daqueles de estar com 179 jul. 2015 / out. 2015
Hubert Vincent
as crianças, de estar simplesmente com elas, sem finalidade.
Chamarei isto de possibilidade simples e primeira de estar em
“comércio com os outros”; resgatando um uso antigo da língua
francesa para dizer a “relação com o outro”. O desenvolvimento
das crianças depende dessa relação, porque ela libera sua
capacidade de empreender, de tentar e de explorar.
Na negativa, isso significa que existe um primeiro nível
de relação que se define pela não orientação em função de um
fim, de um projeto ou de uma finalidade determinada. Trata-se
de dizer que, aqui, a possibilidade do estar junto não depende
da condição de agir segundo uma finalidade estabelecida e
coletiva.
Segundo Rawls, encontramos, nesse caso, uma condição
para o desenvolvimento da criança. Por esse viés, e somente
por ele, a criança adquirirá confiança nela mesma e no
outro, o que lhe permite ser o que ela é precisamente porque
encontra prazer com sua presença simples e exclusiva. Nela,
encontramos ao certo uma norma do nosso agir parental.
Isto é, algo que nos permite aceitar julgar-nos a nós mesmos,
lamentando por exemplo não poder ter estado próximos o
suficiente de nossas crianças, e não poder ter simplesmente
estado com elas (encontramos igualmente este sentimento
em pais divorciados, pelo menos no caso dos que não têm a
guarda, e dizem ser o “estar junto”, neste sentido, o que mais
perdem). Isto não faz mais do que manifestar a realidade da
norma.
Seria interessante debruçarmo-nos sobre as condições
de tal experiência. E a intermitência me parece ser uma delas:
“nos encontramos, nos esperamos, nos distanciamos e nos
reencontramos toda noite, talvez toda semana. Te asseguro que
estarei aqui”. Quero dizer que o prazer vivo com a presença de
alguém depende ainda dos reencontros, do fato de se rever
regularmente e de garantir este reencontro. Deste ponto
Educ. foco, de vista, podemos arriscar a hipótese de que existiria uma
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. vantagem da escola sobre a família. Na família, a exigência
169-194,
jul. 2015 / out. 2015 180 de fazê-lo acontecer quotidianamente é mais dificilmente
sustentada. Nós, adultos modernos, estamos quase sempre Gênese da confiança
e educação para
o “estar junto”
ocupados demais e, felizmente, existem os avós, os professores
e as professoras.
Devemos igualmente dizer que a escola reconfigura o
“prazer com a presença do outro”, de maneira diferente. Ela
poderia ou deveria, por exemplo, ligar este prazer ao motivo de
um trabalho, de um diálogo sustentado, ou ainda de um risco
compartilhado. O que significa ter prazer com a presença do
outro quando trabalhamos em comum, quando dialogamos
e quando nos expomos a riscos compartilhados? “Ter prazer
com a mera presença do outro” toma aqui necessariamente
outras figuras, que o aproximam do mundo adulto.
Se a escola reconfigura, desta forma, os diferentes modos
de “ter prazer com a presença do outro”, ela também convida
a compreender que esta norma não pode ser única, mas deve
compor com outras expectativas recíprocas (por exemplo, a
fiabilidade no trabalho e na palavra dada).
Minha leitura caminha no sentido de que estaríamos
enganados em pensar que esta norma vale unicamente nas
relações dos pais, ou adultos próximos, com as crianças.
Ela vale também para nós adultos, na qualidade de nosso
“estar junto”. Ter prazer com a simples presença do outro ou
esforçar-se para que outros tenham prazer com nossa presença
vale também para nós adultos, em nossas relações de trabalho
e nas relações sociais mais amplas.
O tema tipicamente francês da relação com o outro foi
muito elaborado, entre outros, por Montaigne (relação que o
renascentista analisou por meio de três figuras: a conversação,
o amor e os livros).
Apresentarei um exemplo próprio, para não permanecer
demasiado indicativo ou geral. No âmbito da preparação
de um colóquio, ou de certos modos de tomar a palavra
publicamente, poderia e até mesmo deveria perguntar-me, ou Educ. foco,
Juiz de Fora,
ter-me perguntado sobre o prazer extraído da simples presença v. 20, n. 2, p.
169-194,
do outro. O que deve ser esta fala, para tornar efetivo algo 181 jul. 2015 / out. 2015
Hubert Vincent
como o prazer de estar junto, não bebendo juntos, mas apenas
conversando? Dito de outra forma, porque estamos aqui
reunidos? Seria insensato admitir que, se aqui estamos, este
estar aqui possui ou deve possuir, antes de mais nada, o sentido
de um prazer vindo da presença e do pensamento de cada um?
Quando falamos e trocamos algo, não são igualmente nossos
pensamentos e reflexões que desejamos trocar? Acredito que
tal exigência se adequa à nossa seriedade: a seriedade dos
problemas e a urgência frequente em responder a eles. Estar
atento ao “prazer com a presença do outro”, neste caso, equivale
a poder distanciar os problemas, a desfazer a influência que a
preocupação com o futuro nos impõe, muitas vezes de forma
excessiva, e a dizer para si mesmo que, se existe um futuro, ele
nasce primeiramente de nosso poder de estar juntos, não da
exposição de nossas preocupações relacionadas a ele.
A modalidade de nossa relação com o outro, e com a
temporalidade, são o ponto central deste simples prazer.
Nenhum professor, instrutor, conferencista ou
trabalhador poderia dispensar tal questionamento.
O mesmo vale para a importância de nos perguntarmos
como cada um pode preservar o simples prazer com a presença
do outro; como seria necessário marcá-lo, com que tipo de
sorriso, de cumprimento, de recepção, de escuta. Ou seja, com
aquilo que poderíamos determinar como a boa educação, se
este termo não estivesse envolvido por um certo conformismo.
Desenhei, de forma ampla, o tema de uma subjetividade
passiva: ter prazer com a presença do outro sem finalidade,
sem ação particular, atento a um tempo ou espaço partilhado,
mas atento sem uma exigência determinada do que poderia
surgir na sequência. O outro não vale pelo que é capaz de
trazer para a coletividade; ele vale, antes de mais nada, pela
sua presença e pela promessa mais ou menos associada a esta
presença.
Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p.
169-194,
jul. 2015 / out. 2015 182
10.  TRANSMISSÃO DAS NORMAS E RELAÇÃO COM AS Gênese da confiança
e educação para
NORMAS o “estar junto”

Desde já atento à terceira camada, na qual encontramos


nossa aptidão para pensar segundo os princípios, gostaria agora
de estudar a segunda camada do desenvolvimento moral: a
moral da coletividade, cuja maior noção se confunde com a
norma e com a relação com as normas.
Insistirei em 3 pontos, ou aspectos.
10.1  AS DUAS VIAS

O primeiro aspecto que gostaria de percorrer, e que me


parece ter sido explicitado nas análises de Rawls, consiste no
fato de a experiência do “estar junto” ser assegurada por duas
vias distintas, todavia relacionadas.
Para uma das vias dos princípios e da reflexão sobre
os princípios, o procedimento do véu da ignorância resulta
ser absolutamente central. Ela expressa a capacidade, em
formação nos indivíduos, de especular por si e coletivamente
sobre estes princípios, examinando suas vivências à luz dos
princípios, para poder aprofundar, corrigir ou, poderíamos
dizer, concretizar seu conhecimento dos princípios.
Outra via, um pouco diferente desta vez, toca o viver
como tal, e o viver com os outros. Em particular, o viver
segundo um sistema de normas e de funções, quando o
sistema está ausente ou pouco presente; quando é dado e nos
situamos nele ao invés de constitui-lo; quando é anterior a
qualquer possibilidade de reflexão, mesmo devendo permitir
sua existência; quando às vezes sentimos seu peso e seu excesso
com relação ao que desejamos; e, por fim quando, às vezes,
experimentamos que é útil e torna possível nossos próprios
desenvolvimentos.
Esta distinção nos lembra a tese kantiana que contrasta
dois aspectos da cidadania. Por um lado, temos o que Kant Educ. foco,
Juiz de Fora,
designa como uso privado da razão, no qual somos uma peça v. 20, n. 2, p.
169-194,
de uma máquina ou de um sistema no qual temos que fazer 183 jul. 2015 / out. 2015
Hubert Vincent
nossa parte do trabalho social e que obedecer e realizar, da
melhor forma possível, as tarefas de que fomos incumbidos.
Neste caso, o cidadão obedece ou aprende a obedecer; isto é,
a dobrar-se ou a adotar a função social à qual supostamente
deve pertencer. Este uso é seguramente ligado à reflexão, ou
pelo menos a uma reflexão de tipo instrumental.
Por outro lado, Kant fala de um uso público da razão,
no qual todo cidadão, e os mesmos que anteriormente, podem
expressar e articular qualquer crítica que considerem dever fazer
à organização, neste ou naquele aspecto. Direitos e liberdades
de expressão, direito também àquela “voice”, para retomar a
categoria que Hirschman aplicou aos bens encontrados em
situação de monopólio.
Gostaria de ressaltar aqui a ideia de que a capacidade
de obedecer ou de me limitar à minha função, como simples
executante, é com certeza condicionada pelo saber de que
também posso, e de forma regular, fazer um uso público de
minha razão. Existem lugares e tempos para isso, lugares e
tempos nos quais se espera que os indivíduos expressem o que
não vai bem, o que não convém em tal ou tal outra parte
do sistema. Isto deve igualmente ser repensado de acordo
com as novas perspectivas e finalidades, remetendo-nos a
certos aspectos absolutamente centrais de nossas instituições
políticas. Mas, no próprio seio da escola e porque não dizer
das empresas e instituições, isto remete ainda à instituição
regular de momentos nos quais sabemos que as dificuldades
e experiências que podemos fazer do primeiro ponto de vista
poderão ser ditas e, antes de tudo, formalizadas. Portanto, um
espaço público. Certas correntes pedagógicas conseguiram
colocar no centro da educação momentos em que seria
efetivamente possível expressar as dificuldades encontradas
no sistema e encontradas na adaptação aos elementos do
sistema, aproximando-se e melhor compreendendo, por aí, as
Educ. foco, razões do sistema e os disparates locais. Construímos aqui a
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. possibilidade de um reformismo, entendido como capacidade
169-194,
jul. 2015 / out. 2015 184 de compreender, de forma local, tal ou tal outro aspecto do
sistema, assim como de criticar este ou aquele outro. Mas Gênese da confiança
e educação para
o “estar junto”
também a possibilidade de uma relação inventiva com relação
às regras (que devemos distinguir da preocupação com a
originalidade). Nos surpreendemos com a constatação de que
a mera instauração de um protocolo minimalista, que coloca
efetivamente em relação o coletivo classe com o coletivo
professores, apenas 3 ou 4 vezes por ano, pode ter efeitos
reguladores sobre a relação com a instituição e com a regulação
dos conflitos (Ver Escoubes e Moreau, De la Démocratie à
l’École). Esta dupla relação vale tanto para os adultos como
para as crianças, como mostrarei na sequência.
Gostaria de realçar que o que chamamos de “estar
junto” não é uma coisa una, chata, homogênea e já mais ou
menos presente. Ele é construído por duas coisas: por nossa
vida dentro de normas e dentro de sistemas de obrigações
recíprocas, e ao mesmo tempo por nossa capacidade de dizer
a nós mesmos coisas sobre ela e antes de mais nada de sofrer
com seu peso e seu excesso, capacidade de suportá-los e de
não suportá-los. Por fim, de falar sobre ele e de dizê-lo. Não
existe o estar junto sem isso, se não acontecer o jogo que
remete continuamente nossas vidas à capacidade de dizermos
constantemente as coisas, de formular nossas impaciências ou
nossas paciências e de ouvir também os outros formularem e
dizerem sua paciência e sua impaciência. Isto começa com a
capacidade de poder formular e formalizar o que não está bem
no que vivemos, e nas próprias regras que organizam nossas
vidas. No princípio acontece a formulação: em primeiro lugar,
o poder dizê-lo. É verdade, naturalmente, que esperamos que
estas falas tenham um efeito sobre as regras, que a possibilidade
e o gosto de dizê-lo seja dependente dos efeitos e das
modificações efetivas que as palavras provocam. Ainda assim,
acredito que podemos igualmente dizer que o prazer de falar
e compreender, de formular o mais claramente o que não vai
bem, de entrar em acordo com outros, de considerar injustas Educ. foco,
Juiz de Fora,
as fórmulas que nos reúnem, em si, seria já algo com efeitos v. 20, n. 2, p.
169-194,
iluminadores para a compreensão, a liberação, e a constituição 185 jul. 2015 / out. 2015
Hubert Vincent
do estar junto. Estar junto significa, também, ser capaz de
dizer coletivamente e claramente o que não funciona ou o
que funciona, e poder concordar sobre este diagnóstico. Nesta
medida, ele é irredutível à preocupação de transformação.
Encontramos aqui o mero prazer de estar junto, aquém da
preocupação exclusiva com a ação transformadora.
10.2  RELAÇÃO COM AS NORMAS E INTRANSIGÊNCIA.

Passemos à questão das normas.


Rawls escreve: “ensinamos às crianças as virtudes de um
bom colega ou de um bom aluno”.
Relativamente ao modo de apresentação destas normas,
ele acrescenta em seguida, como virtudes desta idade, que:
“achamos um pouco mais difícil zangarmo-nos, se os outros
não fizerem suas obrigações”.
A transmissão das normas e, para seguir a direção
de minha análise, também nossa própria relação com as
normas se constrói a partir de duas coisas: por um lado, a
partir do conhecimento e das condições progressivas de sua
compreensão; de outro lado, a partir do sentimento de um
excesso das normas e, diria, até mesmo de qualquer norma.
Como compreender tais formulações e, em particular,
a segunda delas? Se é verdade que ela expressa alguma
tolerância, como compreendê-la? O que nos torna tolerantes?
O que faz de nós seres tolerantes?
Algo semelhante a uma crítica da intransigência é o foco
desta formulação. O que significa ser intransigente? Alguém
intransigente supõe que o defeito de adaptação às normas se
deve à simples fraqueza ou preguiça, o que evidentemente
acontece. Existe ainda outra coisa, dada a rapidez com que a
fraqueza e a preguiça são desculpadas (são ainda crianças, seres
Educ. foco, fracos, devemos ser pacientes...). O que mais existe? Me parece
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. que certo desconhecimento, certa ausência de distância de si
169-194,
jul. 2015 / out. 2015 186 mesmo com relação às normas.
Vejamos um primeiro exemplo. Um professor pede às Gênese da confiança
e educação para
o “estar junto”
crianças de uma turma da educação especial que apresentem
uma definição verbal para o adjetivo “espesso”. Uma criança
responde mostrando ou fazendo uma mímica da espessura.
O professor se enfurece e fica intransigente: ele considera a
primeira resposta sem interesse e pede um equivalente verbal.
A criança, por sua vez, não entende a razão: ela não sabia o que
espesso significa, e não soube mostrá-lo?
Neste primeiro caso, a razão para o professor ter se
mostrado intransigente e ter perdido rapidamente a calma está
no fato de naturalizar a norma e considerá-la absolutamente
evidente e óbvia, não sabendo muito bem, na realidade,
o que estava exigindo. A crítica de sua postura não se deve
exatamente ao fato do professor dever ser mais paciente, nem
ainda ao próprio exercício (que talvez não fosse adequado
àquelas crianças, para as quais deveriam encontrar outras vias).
Ela se deve mais propriamente a ele não ter ideia alguma do
significado da exigência da definição verbal ou do equivalente
verbal.
O sociólogo B. Lahire que apresenta este exemplo explica
que tal demanda constrói ou tem como pré-requisito uma
distância com relação à língua que, no entender de alguns, não
tem nenhum atributo óbvio. Desta forma, o sentido da norma
existe em função da relação com a língua e da experiência de
nossa relação com a língua.
Além disso, o professor do exemplo simplesmente
desconhece a particularidade desta norma e, dito de outra
forma, a particularidade do uso que ela pretende regular. Por
que, ao certo, definir verbalmente, quando o mostrar pode em
muitos casos ser suficiente e igualmente atestar que a criança
compreende bem o sentido dos termos? Por quê, quando,
onde e como desejamos definir? Para que efeito? O sentido de Educ. foco,
Juiz de Fora,
uma norma depende portanto do uso que ela busca regrar e v. 20, n. 2, p.
169-194,
este uso deve poder ser explicado e sobretudo exposto. 187 jul. 2015 / out. 2015
Hubert Vincent
O que este uso provoca em nós e em nosso espírito? O
que ele exige? Que relação comigo mesmo, com o outro e com
o saber ele pode inaugurar e construir? Como explicá-la?
A intransigência pode surgir quando não compreendemos
este uso, nem sabemos o que fazer dele. Isto é, quando não
sabemos dizer a razão, nem em que ocasiões ou circunstâncias
devemos definir verbalmente, e o motivo para isto ser inútil e
até mesmo contra produtivo em outras ocasiões ou segundo
outras perspectivas. Ela é a ausência de um saber, o saber
do uso. E remete subjetivamente ao fechamento da norma
distinta do uso, que deveria supostamente regrar.
Passemos ao segundo exemplo. Em uma escola, crianças
de 6 anos devem copiar algo. Um professor constata que
os resultados são ruins e que, no final das contas, elas não
conseguem. Ele continua tendo paciência, mas as crianças
parecem bloqueadas. Ele decide não se zangar, nem consultar
um especialista da didática, mas colocar o problema para os
alunos. E pergunta para as crianças: “Por que copiar? Por que é
difícil?”. “O que fazemos quando copiamos? O que queremos
fazer? O que quer o professor, que pede que vocês copiem?”.
As crianças, neste caso, falam, se expressam, dizem um certo
número de coisas, e em especial dizem que não sabiam
exatamente como evoluir. Mas que já o viam melhor. De fato,
os resultados melhoraram.
Encontramos aqui a ilustração das teses expostas acima:
basta poder, por si próprio, analisar o por quê e o como para
que a atividade alcance certa fluidez.
Qual é a natureza desta reflexão? O copiar foi colocado
como um problema, mas foi desnaturalizado. Questionaram
simultaneamente sobre o por quê e sobre o como, sobre as
razões de copiar ou de não copiar em função das finalidades
e efeitos procurados. Falaram igualmente das razões das
Educ. foco, dificuldades e das facilidades. O professor soube colocar
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. palavras nos dois aspectos, assim como as crianças. Copiar
169-194,
jul. 2015 / out. 2015 188 é um exercício que, em certos casos e situações, pode fazer
sentido, mas em outros não. Daí em diante, ocorrem muito Gênese da confiança
e educação para
o “estar junto”
menos problemas na sua realização.
Para o professor, a questão não é de saber se ele faz bem
ou não ao propor tal exercício. Acontecem os exercícios de
cópia, mas acontece juntamente com eles uma reflexão ou
o início de uma reflexão sobre o por quê e o como: o que
permite o exercício e o que o impede.
Em ambos os casos analisados, reconhecemos a
existência de normas, mas elas são situadas com relação ao
uso que regulam. Ou seja, estimulamos na sala de aula uma
reflexão sobre o quando, o como, o onde e o em que caso
da norma e de seu uso. O que construímos ao fazer alguém
copiar? O que construímos ao exigir e ao treinar a definição
verbal? Estas reflexões um tanto quanto livres não são distintas
do agir, mas o acompanham, sem contudo determiná-lo.
Desta forma, a intransigência do professor se deve ao
fato de não “imaginar” o que significa “dar uma definição
verbal”. Ele não imagina outra alternativa, não vê que forma
de vida particular se traduz ou se diz nesta norma, tudo o
que ela permite e torna possível, nem que forma de vida ela
supõe em contraste e por oposição a outras formas de vida.
A intransigência, neste sentido, resulta do desconhecimento
de si e das formas que nos constituem. A tendência a
universalizar e a naturalizar certas formas de vida não passa de
um desconhecimento de si.
Podemos adiantar, desde já, que tal fórmula (de
Rawls) só pode ser efetiva com o desenvolvimento de um
conhecimento da diversidade e dos modos de relação das
normas possíveis. Em uma palavra, de um conhecimento
histórico, antropológico e etnológico. Não se trata da crítica
da norma, nem de dizer que a norma exigindo a capacidade
de definir verbalmente deva ser denunciada. Trata-se de dizer Educ. foco,
Juiz de Fora,
que ela deve ser situada e conhecida em sua particularidade, v. 20, n. 2, p.
169-194,
ou criticada no sentido filosófico do termo. 189 jul. 2015 / out. 2015
Hubert Vincent
O essencial seria dizer que a transmissão das normas
supõe necessariamente uma primeira aproximação e um
conhecimento de sua situação; por conseguinte, supõe o
conhecimento e a abertura para outras situações possíveis.
Dito de outra forma, a universalização e a naturalização são
aquilo que prejudica ou danifica a transmissão das normas.
Por outro lado, podemos pensar que elas são transmitidas
corretamente quando apresentamos nossas normas em função
de um contexto de vida.
A estrutura da subjetividade passiva abordada aqui diz
respeito a nosso ser, dependente das normas e dos contextos
das normas. Existem certos usos (copiar, ter que definir de
forma verbal), mas o que estes usos fazem de nós? Quais são as
alternativas possíveis? Não poderíamos imaginar um mundo
em que as crianças não tivessem que copiar? Um mundo em
que elas não devessem mais definir verbalmente? O estar junto
se desenvolve, nestes usos, na medida em que todas as crianças
se situam com relação a uma norma que nem eles, nem os
adultos, escolheram, e cujos recursos ou limitações excessivas
podem explorar da mesma forma que os adultos. O que estas
normas fazem de nós? Que razões particulares temos para
aceitá-las ou recusá-las, quando e onde?
Pedagogicamente falando, me parecem existir aí grandes
consequências, porque a atenção do professor não é orientada
pelas normas e pela preocupação em inculcá-las. Ela me parece
ser de preferência orientada pela atenção aos contextos em que
fazem sentido e aos contextos em que não se impõem. O que
faziam os que não tinham que copiar? Se copiar equivale a
memorizar, será que memorizamos bem copiando? Como
memorizar sem passar pela cópia? Podemos ser tentados por
isso?
A razão pela qual me detive mais na crítica da
intransigência, e da condescendência à qual está ligada, está no
Educ. foco, fato de nossas sociedades e, em particular, a sociedade francesa
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. de hoje (por razões relacionadas ao ethos particular da cultura
169-194,
jul. 2015 / out. 2015 190 francesa, pela pressão da concorrência internacional e pela
forma de enfrentá-lo), me parecerem padecer particularmente Gênese da confiança
e educação para
o “estar junto”
deste defeito. Somos ou vivemos em sociedades cada vez mais
intransigentes. (Nobremente, mas sem os critérios de nobreza;
portanto, pela pura forma da obrigação).
10.3  NORMAS E IDENTIDADE

Por que não podemos ter normas do ser francês, por


conseguinte do ser homem?
Farei uma observação: fórmulas como ser um bom
francês, um bom canadense ou um bom camaronês estão
ausentes desta lista. E o leitor o compreende. Isso não quer
dizer que Rawls esqueceu algo importante. Me parece que as
identidades, a questão das identidades ou do “quem eu sou”
não dependem de nenhum discurso normativo.
Podemos desenhar o quadro do que é ser um bom pai, ou
um bom colega. Cada um compreende ou pode compreender
que, se desenhamos tal quadro, ele não se refere diretamente
a nossas possibilidades de sermos, neste ou naquele outro
momento, um bom colega ou não. A educação para o
companheirismo não passa da exploração destes diferentes
casos.
O mesmo acontece com o “ser um bom patriota”:
qualquer que seja o país de onde viemos, podemos examinar e
desenhar esta função social. Mais uma vez, vamos em seguida
examinar os casos: por que, e em que caso, isto seria fácil,
difícil ou discutível?
O caso do “ser francês” me parece oposto, dado que
a idealização tem um sentido diferente do que precede. Ela
não desenha características abstratas ou elementos de funções,
mas conserva preferencialmente os traços ideais da realidade
complexa, escondendo os outros. Ela idealiza, porque mascara
o lado ruim ou os lados que não desejamos ver.
Por isso Montaigne pôde dizer, quando queria mostrar- Educ. foco,
Juiz de Fora,
se exatamente como era, que não tinha a intenção de pintar um v. 20, n. 2, p.
169-194,
retrato idealizado dele mesmo, mas de mostrar-se como era, em 191 jul. 2015 / out. 2015
Hubert Vincent
sua realidade plural, misturada e disforme. Evidentemente, ele
pensava a mesma coisa do ser homem: tratava-se, para ele, de
dizer o homem e sua natureza misturada, diversa, irredutível a
uma unidade ou imagem, em qualquer sentido que tomemos
esta noção. Ao mesmo tempo, isto não o impediu de tentar
dizer o que era um bom leitor, um bom aluno, um bom
amante, um bom príncipe, um bom servidor de seu rei, etc.
Estas questões faziam sentido, enquanto as primeiras nem
tanto.
Não existe, portanto, uma norma para a questão de
nossas identidades. O problema de nossas identidades (a
minha, a sua, a nossa) não depende da norma. Em termos
wittgensteinianos, a gramática da norma é alheia à gramática
de nossas identidades; provavelmente porque as normas
regulam nossas ações e não nós mesmos. Nossas identidades
são demasiado misturadas, profundas, obscuras em seus limites
e ao mesmo tempo demasiado abertas, para que possamos
nos preocupar com tal coisa. Elas deveriam ser algumas vezes
expostas por sua insignificância, com frequência por seu
ridículo, por seus traços ilustres ou exemplares.
Sou francês ou, poderia dizer, um filósofo tipicamente
francês do fim do século 20 e início do século 21. Possuo
esta característica, perfeitamente reconhecível por qualquer
um que tenha viajado um pouco, da mesma forma que um
filósofo alemão, anglo-saxão, africano, etc. Algumas vezes
isso me desalenta, outras vezes isto me reconforta, quando
adivinho estes ou aqueles ancestrais sob meu semblante.
Esta é precisamente uma característica de nossas identidades:
ricas, diversas, obscuras, misturadas, algumas vezes objeto
de vergonha, outras objeto de orgulho. Eis a relação com as
regras e com as normas de nosso agir. Direi mais: sou assim,
quaisquer que sejam os esforços para curvar minha linguagem
às regras de certa cientificidade. Este é um fato perturbador,
mas um fato, não uma norma.
Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p.
Isto não equivale a dizer que a questão não tenha sua
169-194,
jul. 2015 / out. 2015 192 importância. Equivale a dizer que a questão da preservação
de nossas diferenças culturais e a preocupação em manter sua Gênese da confiança
e educação para
o “estar junto”
vitalidade me parecem absolutamente diferentes, não levando
obrigatoriamente a algo como a idealização de nossas diferenças
culturais. Ou equivale ainda a dizer que a injustiça começaria
quando a preocupação em preservar nossas diferenças levasse
a uma pretensão de normatizar nossas identidades.
CONCLUSÃO

Minha intenção era pensar sobre o motivo de certa


passividade e medir seu peso para o que chamamos de “estar
junto”, tanto quanto para sua educação.
Se procuro reunir as diferentes análises propostas,
seguindo Rawls, mesmo que em sua maioria independam
dele, creio que é porque procurei focar sobre um tipo de laço
equívoco com aquilo que chamei de instituição, ou mesmo
de vínculo; equívoco porque se é verdade que podemos dizer-
nos dependentes desses laços, se nossas vidas efetivamente
dependem deles do começo ao fim e dependem de laços que me
parece impossível termos criado como desejávamos, também é
verdade que estes laços de dependência não chegam a coagir-
nos completamente. As normas em que aprendemos a situar-
nos, desde nosso nascimento, são seguramente constitutivas
do mais profundo de nosso próprio ser. Ao mesmo tempo,
e isto foi o que busquei realçar, parte do jogo permanece
aberta e a educação para o estar junto nada mais é do que o
desenvolvimento desta parte do jogo. Ou seja, a recusa de uma
pura e simples identificação com as normas e do fantasma de
sua rejeição. Eis a reformulação de uma tese foucaultiana (Dits
et Écrits; tomo 2, p. 1528).

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p.
169-194,
193 jul. 2015 / out. 2015
Hubert Vincent
REFERÊNCIAS

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HIRSCHMAN, A. Vers une économie politique élargie. Paris: Minu-
it, 1986.
LAHIRE, B. Culture écrite et inégalité scolaire. Québec: PUL, 1993.
MONTAIGNE, M. de. Les Essais. Paris: Gallimard.
RAWLS, J. Théorie de la justice. Paris: Points, 2009.
RUEFF-ESCOUBES, C. et MOREAU, J.F. La démocratie dans
l’école. Paris: Syros, 1988.

Data de recebimento: novembro de 2013


Data de aceite: junho de 2014

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p.
169-194,
jul. 2015 / out. 2015 194
RAZÃO E EDUCAÇÃO POLÍTICA: Razão e Educação
Política: Crítica de
um Fragmento da
Ideologia Liberal

CRÍTICA DE UM FRAGMENTO
DA IDEOLOGIA LIBERAL
Ralph Ings Bannell1

Resumo
Esse artigo desenvolve uma análise crítica da teoria do
liberalismo político de John Rawls, argumentando que
acaba legitimando a organização político e econômico
liberal, portanto sendo um fragmento da ideologia liberal.
Tenta explorar a tensão entre, de um lado, a defesa que Rawls
faz do liberalismo com uma forma política historicamente
constituída e, de outro lado, sua tentativa de vincular a
própria razoabilidade, um “poder moral” do cidadão, com
o liberalismo, portanto sugerindo que o liberalismo seja
a única forma racional da política. Analisa o papel que
Rawls dá à filosofia política, seu construtivismo político,
suas concepções da sociedade e da pessoa, bem como sua
análise do julgamento político e razão pública. Termina
com algumas reflexões sobre o papel da teoria de Rawls na
educação política.

Palavras-chave: liberalismo político, John Rawls, sociedade,


pessoa, educação.

Abstract
This article develops a critical analysis of John Rawls´
theory of political liberalism, arguing that it functions to
legitimise a liberal political and economic organisation of
society, thereby operating as a fragment of liberal ideology.
It tries to explore the tension between, on the one hand,
Rawls´ defence of liberalism as a historically instituted
political regime and, on the other hand, his attempt to link

1
Ralph Bannell é professor associado da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, onde trabalha também no Programa de Pós Graduação em Educ. foco,
Educação. Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
Email: ralph@puc-rio.br 195 jul. / out. 2013
Ralph Ings Bannell
reasonableness, a “moral power” of citizens, with liberalism,
thereby suggesting that liberalism is the only rational form
of political organisation. The paper analyses the role Rawls
gives to political philosophy, his political constructivism,
his conceptions of society and the person, as well as his
analysis of political judgement and public reason. It ends
with some reflections on the role of Rawls´ theory in
political education.

Keywords: political liberalism, John Rawls, society, person,


education.

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
jul. / out. 2013 196
RAZÃO E EDUCAÇÃO POLÍTICA: Razão e Educação
Política: Crítica de
um Fragmento da
Ideologia Liberal

CRÍTICA DE UM FRAGMENTO
DA IDEOLOGIA LIBERAL2
INTRODUÇÃO

É comum associarmos a política liberal à racionalidade.


De fato, desde os tempos dos teóricos do contrato social dos
séculos XVII e XVIII, pensa-se ser inevitável que o uso da
razão leva indubitavelmente a um sistema político liberal3.
E esta premissa é valida para muitos filósofos políticos
contemporâneos como Rawls, Habermas e Sen, embora em
maneiras diferentes, para citar apenas três exemplos. Seria
compreensível então concluir que a prática da razão (pública)
fosse também uma prática política liberal. Neste artigo tentarei
elucidar a concepção de racionalidade que fundamenta a
teoria política de um dos três filósofos mencionados acima –
John Rawls – e suas implicações para a educação política, algo
enfatizado pelo próprio autor.
No seu livro, Liberalismo Político, publicado em
1993, e Justiça como Equidade: Uma Reafirmação, publicada
em 2001, Rawls delineia uma teoria liberal de política que
tenta acomodar o pluralismo - o fato de que sociedades
contemporâneas liberais contém diferentes grupos, cada um
deles com o que ele nomeia de uma “doutrina abrangente”,
um conjunto de crenças religiosas, morais e filosóficas que não
são compartilhadas por nenhum outro grupo 4. Sua premissa é

2 Gostaria de agradecer Beatriz de Freitas Monteiro para ajuda com a tradução


deste artigo.
3 É interessante notar que Hume, crítico das teorias de contrato social, foi
também cético em relação ao alcance da razão.
4 O estudo clássico de Rawls, Uma Teoria da Justiça, não foi objeto de análise
neste artigo – ao invés disto, concentrei-me nos últimos textos que incluem
revisões da sua teoria baseadas nas críticas que ela recebeu ao longo dos anos. Educ. foco,
Juiz de Fora,
Eles representam, entretanto, a maturidade do seu pensamento nas questões v. 18, n. 2, p. 195-230,
sobre justiça e liberalismo político. 197 jul. / out. 2013
Ralph Ings Bannell
de que todas as doutrinas abrangentes e razoáveis são legítimas
e não há teoria política que possa dizer que umas são melhores
que outras5. Entretanto, mediante o conflito profundo
existente entre as diferentes doutrinas, Rawls acredita que
uma sociedade pluralista só seria viável se houvesse um espaço
de vida humana capaz de gerar as crenças, valores e virtudes
necessários para manter uma estabilidade a longo prazo –
crenças, valores e virtudes independentes do conteúdo de
quaisquer destas doutrinas. É este espaço que ele nomeia de
dimensão política e sua teoria é, neste sentido, supostamente
diferente de qualquer teoria de doutrina abrangente. Por
isso, chamou-a de liberalismo político, numa tentativa de
distingui-la de várias formas do que ele chama de liberalismo
abrangente, que são fundamentados em valores e princípios
específicos que podem ser considerados como parte de uma
doutrina compreensiva 6.
É a dimensão política que pode supostamente unir as
disparidades entre os grupos da comunidade política – uma
dimensão capaz de ser coesiva mesmo em face das diferenças
entre cada grupo. É preciso enfatizar, entretanto, que esta
dimensão não pressupõe uma defesa duma concepção de
política supostamente neutra em relação a valores e virtudes.
Pelo contrário, a concepção de Rawls do cidadão ideal é
aquele que se orgulha dos valores e virtudes da política liberal,
considerados por ele como necessários para os cidadãos
estabelecem uma estrutura institucional que garanta o que
ele considera uma sociedade justa com sua constituição, leis e
estrutura básica.
O importante é que estes valores e virtudes - a virtude
da razão pública sendo central a eles - são especificamente
“políticos”, isto é, eles não são parte da doutrina específica

5 Isto não significa que elas são verdadeiras. Para Rawls, legitimidade não é
associada à verdade e sim à razão pública. Mas isto será discutido posteriormente.
Educ. foco, 6 Isto inclui sua própria teoria de justiça como expressa no seu primeiro livro
Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
Uma teoria da Justiça como equidade, que é fundamentada numa filosofia moral
jul. / out. 2013 198 específica.
de nenhum grupo a que qualquer cidadão possa pertencer 7. Razão e Educação
Política: Crítica de
um Fragmento da
Outro aspecto importante é que a teoria de Rawls se refere Ideologia Liberal

explicitamente somente a sociedades liberais ocidentais.


Pelo menos nos seus últimos trabalhos, ele não argumenta
para nenhum princípio de universalidade na sua teoria. Por
conseguinte, alguns categorizaram esta teoria como produto
de uma virada hermenêutica no seu trabalho.
Há alguns problemas associados a esta concepção do
político, bem conhecidos e divulgados na literatura crítica.
Um é a tentativa de separar a dimensão política das outras. Os
comunitaristas, por exemplo, argumentam que esta tentativa
está fadada a falhar porque toda política é permeada pela
cultura e identidades associadas a valores e práticas culturais
especificos. Portanto, é conceitualmente incoerente tentar
separá-la. Os marxistas dizem, por sua vez, que a dimensão
política não pode ser separada da econômica. Se isto for
verdade, qualquer tentativa de fazer isto irá necessariamente
subestimar a influência da dimensão econômica nas
instituições políticas, tais como o Estado, bem como formas
de democracia – e como o pensamento, o discurso e a ação dos
indivíduos e das classes sociais são determinados pela estrutura
social prevalente na sociedade.
Não vou repetir essas criticas. Minha analise vai focar nos
pressupostos ontologicos, antropologicos e epistemologicos
por trás as análises da justiça e da política feitas por Rawls.
Por mais que seja uma teoria normativa que descreve a
sociedade que Rawls gostaria de ver concretizada, ele afirma
que sua concepção da política está entranhada nos poderes dos
cidadãos, sua psicologia moral e sua racionalidade, bem como
uma concepção da sociedade largamente aceita na cultura
política liberal. No entanto, tentarei mostrar que essa conexão
é parcial, portanto privilegiando uma organização social e

7 Entretanto, Rawls nomeia esta concepção de justiça como uma concepção Educ. foco,
Juiz de Fora,
“moral” – que quer dizer uma concepção de politica fundada numa consciência v. 18, n. 2, p. 195-230,
moral universal (RAWLS, 2001, p. 26). Retorno a esse ponto mais adiante. 199 jul. / out. 2013
Ralph Ings Bannell
econômica específica, bem como formas específicas de pensar
e agir, em nome da universalidade de razão.
Partirei do pressuposto de que quando pensamos
e agimos, fazemos isso por razões e que essas razões estão
embutidas nas tradições culturais nas quais estamos socializadas.
Isso se aplica as razões para pensar e agir politicamente tanto
quanto qualquer outra forma de pensamento e ação. Nesse
sentido, nos encontramos dentro de um espaco de razões8, a
“geografia” do qual, digamos assim, está formada pelas lutas
históricas dos grupos que convivem nesse espaço. Assim,
algumas razões vão se consolidar como razões fortes de pensar
e agir, enquanto outras vão se enfraquecer, dependendo das
forças sociais, econômicas e políticas prevalentes na sociedade
em questão.
Meu argumento principal será o de que Rawls confunde
razões hegemônicas nas sociedades liberais com as únicas razões
que são legítimas para cidadãos se organizarem politicamente
nessas sociedades. Assim, ele acaba privilegiando a posição da
classe social burgues como a posição universal da qual uma
sociedade justa e igual poderia ser vislumbrada e construida.
O PAPEL DA FILOSOFIA

Rawls trabalha com algumas ideias fundamentais, que


permeam seu raciocínio teórico. Um dos mais importantes é
o “papel prático” da filosofia política como parte da cultura
política pública da sociedade em acomodar conflitos políticos
e resolver o problema da ordem. Este papel é manifestado na
sua própria tentativa de tentar desenvolver uma concepção
política ideal de justiça como base da cooperação e respeito
mútuo entre cidadãos. O que é interessante neste papel
da filosofia é sua ênfase na resolução de conflitos através
do discurso filosófico e a crença relacionada que uma das
principais raízes do conflito é nas diferentes doutrinas morais
Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
8 Esse termo vem de Sellars, emprestado e analisado por McDowell. Ver
jul. / out. 2013 200 McDowell, 1996.
e filosóficas encontrada numa sociedade. É claro que há uma Razão e Educação
Política: Crítica de
um Fragmento da
verdade nisto já que estas doutrinas podem ser vistas como Ideologia Liberal

ideologias que ajudam a sustentar ou transformar ordens


sociais específicas, mas é característico de Rawls subestimar as
raízes econômicas e políticas do conflito. De fato, sua teoria
como um todo pode ser interpretada como uma contribuição
para o papel aparente da filosofia na resolução de conflitos.
Este papel “educativo” da filosofia, aliado ao que Rawls chama
de “condição de publicidade”, será elucidado no final deste
artigo.
Um segundo papel da filosofia política, de acordo, com
Rawls, é o da “orientação”. Aqui ele se refere a dar cidadãos
um sentido de pertencer a uma tradição compartilhada
de pensamento – um espaço conceitual, ou o que estou
chamando de um espaço de razões – dentro do qual eles podem
se compreender como “membros que tem um certo status
político” (RAWLS, 2001, p. 3). A tradição que Rawls tem
em mente, é claro, é a tradição de pensamento liberal como
foi desenvolvida nos últimos quatro séculos, especialmente
na Europa e na América do Norte. Aqui podemos entender
Rawls como alguém que faz uma tentativa de articular o que
ele concebe como a dimensão política do espaço de razões.
O terceiro papel enfatizado por Rawls é o da
“reconciliação”. Ele afirma que a filosofia política deve
tentar acalmar as frustrações e a raiva contra
sociedade e sua história, mostrando que a
maneira pela qual as instituições, quando
totalmente compreendidas do ponto de vista
da filosofia, são racionais e se desenvolveram
ao longo de tempo até amadurecer na sua
forma racional atual (ibid).

Isto deve nos fazer “aceitar e afirmar nosso mundo


social positivamente, não somente nos resignarmos com ele”.
Defendendo esta posição, Rawls compara uma sociedade
política tanto como uma comunidade de membros unidos pela Educ. foco,
Juiz de Fora,
mesma doutrina compreensiva como com uma associação de 201 v. 18, n. 2, p. 195-230,
jul. / out. 2013
Ralph Ings Bannell
membros que entram e saem voluntariamente, sugerindo que
tem menos coesão do que a primeira e mais do que a última.
Aqui, como na sua teoria como um todo, Rawls usa contrastes
e comparações que dispersam a atenção dos interesses sociais
e econômicos dos membros da sociedade. Entretanto, numa
nota de rodapé, ele levanta a possibilidade da filosofia política
ser “ideológica no sentido marxista”, perguntando: “Será que
as ideias básicas [que a teoria de justiça como equidade] utiliza
são ideológicas?” (Ibid., p. 4). Entretanto, embora ele diz
que “de vez em quanto temos que nos perguntar se justiça
como equidade, ou qualquer outra perspectiva, é ideológica
nessa maneira”, seu trabalho nunca questionou ou respondeu
seriamente esta pergunta.
O papel final dado à filosofia política por Rawls é
de que esta seja “realisticamente utópica”, isto é, “testar os
limites da possibilidade política viável”. Esta possibilidade
tem que ser contemplada dentro de “condições razoavelmente
favoráveis mas ainda possivelmente históricas; condições
estas permitidas pelas leis e tendências do mundo social”,
incluindo “uma cultura democrática como nós conhecemos”
(ibid). Novamente, a condição central enfatizada por Rawls
é “o fato de um pluralismo razoável”, que quer dizer um
pluralismo cultural, racial, étnico, no qual as condições sócio-
econômicas são assumidas como imutáveis. Mais uma vez,
Rawls reconhece a dificuldade em determinar as condições
do nosso mundo social, afirmando que “o problema aqui é
que os limites do possível não são dados pelo atual, porque
em alguma medida podemos mudar as condições sociais e
políticas e muito mais”, mas ele simplesmente descarta esta
possibilidade difícil anunciando que “não vou prosseguir essa
questão profunda aqui” (ibid., p. 5).
A descrição dos papéis da filosofia política é reveladora
por uma diversidade de razões. Primeiro, deixa de lado a
possibilidade de mudanças nas raízes sócio-econômicas dos
Educ. foco, conflitos como difíceis ou impraticáveis, aceitando assim
Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
202 organizações sócio-econômicas existentes sem questioná-las.
jul. / out. 2013
Segundo, seu objetivo é a reconciliação naquela organização Razão e Educação
Política: Crítica de
um Fragmento da
através da busca pelo acordo político baseado na razão. Ideologia Liberal

Um terceiro aspecto que vale a pena ressaltar é a defesa de


Rawls da cultura política liberal desenvolvida nos últimos
séculos na Europa e América do Norte. É claro que isto não é
surpreendente porque, como foi mencionado anteriormente,
Rawls afirmou, ele mesmo, que havia desenvolvido uma teoria
para as sociedades liberais ocidentais sem a pretensão de que
ela se tornasse universal na sua aplicação. Entretanto, isto
mostra sua incapacidade ou falta de vontade de compreender a
natureza real dos conflitos e condições nas sociedades às quais
ele mesmo estava tentando reconciliar seus cidadãos. Ou, se
isso parecer injusto, já que ele mesmo acusou a sociedade
norte americana de ser essencialmente injusta, sua inabilidade
de ver que a falta de justiça que ele mesmo identificou tem
raízes mais profundas do que ele está preparado para admitir
e que a alternativa que ele propõe é inviável, porque se baseia
ainda na organização socioeconômica e política capitalista.
Para o específico propósito de avaliar a importância das
ideias de Rawls em educação, devemos enfatizar dois aspectos
de igual importância:
1. O primeiro é a influência que a teoria da justiça de Rawls
e o liberalismo político tiveram nos filósofos da educação
e outros escrevendo sobre educação. Considero sua
influência como reconhecida e difundida.
2. O segundo aspecto é o papel educacional da teoria em
si associado à “condição de publicidade”. Rawls mesmo
enfatiza a importância deste papel, que é, como vimos,
um dos aspectos do papel prático que ele atribui à
filosofia política. A ideia básica é que na medida em que
sua teoria é disponível na esfera pública, como parte da
cultura política pública de uma sociedade democrática e,
portanto, publicamente reconhecida por cidadãos, esta
deve atingir um nível de legitimidade que poderá levar
subsequentemente à modificação da estrutura básica da
sociedade de acordo com suas recomendações e aplicação Educ. foco,
plena. Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
203 jul. / out. 2013
Ralph Ings Bannell
Além do mais, isto deveria gerar um círculo virtuoso
na medida em que estas estruturas devem reenforçar a cultura
política pública que, por sua vez, realimenta a estrutura básica
da sociedade, criando assim uma organização social estável
e cooperativa a longo prazo. Como Rawls (2001, p. 125)
mesmo afirma:
Aqueles que crescem numa sociedade bem
organizada na qual [a concepção política de
justiça] é realizada normalmente desenvolvem
modos de pensamento e julgamento, assim
como as disposições e sentimentos, que
os levam a apoiar a concepção política
naturalmente: seus ideais e princípios são
percebidos como especificando boas razões. Os
cidadãos aceitam as instituições existentes
como justas e normalmente não tem o
desejo de violar ou negociar os termos
da cooperação social, dada sua presente e
prospectiva posição social (minha ênfase).

Essa citação mostra que Rawls aceita a ideia de que


razões para agir estão sedimentadas nas tradições sociais e
políticas de uma sociedade e, se forem consolidadas, podem
parecer para muitos como as únicas razões disponíveis.
A teoria de Rawls, então, tem um papel educacional
importante na criação de uma sociedade justa e igualitaria,
assim como na legitimação da sua concepção de justiça após
tal sociedade ser instituída. Em outras palavras, sua filosofia
política pode ser vista como uma tentativa de reenforçar a
ontologia de razões criada dentro de uma tradição da cultura
política liberal apoiada numa realidade social capitalista.
A HERMENÊUTICA POLÍTICA

Com o objetivo de tentar realizar o papel prático da


filosofia política como ele a compreende, Rawls desenvolve
uma teoria que Sen (2009) nomeia de “institucionalismo
Educ. foco,
Juiz de Fora,
transcendental”, ao mesmo tempo em que ele tenta
v. 18, n. 2, p. 195-230,
jul. / out. 2013 204 fundamentá-la numa reflexão hermenêutica sobre liberalismo
democrático ocidental. Em outras palavras, embora o ideal Razão e Educação
Política: Crítica de
um Fragmento da
que ele descreve seja claramente distante da realidade das Ideologia Liberal

sociedades para as quais ele estava escrevendo, ele argumenta


que as ideias centrais, entretanto, podem ser encontradas
na cultura liberal política destas sociedades. Esta mistura do
normativo com a hermenêutica é importante porque rejeita as
teorias tradicionais de lei natural e contrato social9.
Neste sentido, Rawls é mais consciente da origem social
das concepções centrais de sua teoria do que, por exemplo, os
teóricos originais do contrato social nos séculos XVII e XVIII.
É em razão disto que ele começa pelo resgate hermenêutico
das ideias centrais das sociedades liberais ocidentais. Ele
afirma: “olharmos para a cultura política pública de uma
sociedade democrática, e para as tradições de interpretação de
sua constituição e leis básicas, para certas ideias familiares que
podem ser concatenadas numa concepção de justiça política”
(ibid., p. 5). Entretanto, como mencionado anteriormente,
Rawls está cego para a verdadeira natureza histórica dessas
sociedades, assumindo erroneamente que suas condições
objetivas são, senão imutáveis, então certamente a única viável
(practicable) organização sócio-econômica. Além do mais,
ele argumenta que existem condições subjetivas universais,
incluindo a psicologia moral, que todo cidadão razoável
deveria ter, algo que criticarei posteriormente.
Obviamente, como já foi mencionado, Rawls não
está sugerindo que estas ideias são realizadas nas sociedades
liberais contemporâneas. Se isto fosse verdadeiro, não
haveria necessidade do papel prático da sua filosofia política.
Entretanto, ele está afirmando que estas ideias são parte
dos valores normativos e os ideais da política liberal como
ela foi desenvolvida nas sociedades ocidentais democráticas
nos últimos séculos. Elas contém, utilizando a terminologia
anterior, as razões para a ação centrais às sociedades liberais
democráticas. Isto permite a ele afirmar que seu modelo ideal
Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
9 Inclusive aquelas de seu primeiro livro A Teoria de Justica. 205 jul. / out. 2013
Ralph Ings Bannell
não é um castelo de areia mas uma utopia realística arraigada
numa longa tradição da política cultural.
Entretanto, estas ideias aparentam quase que inevitáveis
visto as comparações e contrastes que Rawls adota com o
objetivo de fazer esclarecer o seu ponto de vista. Para isto, ele
desenvolve uma ideologia, no sentido marxista da palavra,
em favor de uma concepção de sociedade liberal e de sujeito
liberal10. As ideias fundamentais da teoria de Rawls são
reforçadas reciprocamente de uma maneira que praticamente
proíbem uma análise externa, demovendo da vista, em
consequência disto, de qualquer alternativa que não aceita as
pressuposições básicas no qual este modelo está fundamentado.
Isto, anexado a sua escolha de comparações, dá a impressão
que a teoria de Rawls é a única aceitável racionalmente numa
sociedade democrática. Ou seja, o leitor é levado à conclusão
de que esta é a única alternativa disponível/viável para cidadãos
racionais e razoáveis. Desenvolverei minha crítica a esta teoria
observando quatro aspectos:
3. O construtivismo político de Rawls;
4. Sua concepçao de pessoa e da identidade moral;
5. Sua análise do julgamento político;
6. A ideia de razão pública e a condição de publicidade.
CONSTRUTIVISMO POLÍTICO

Rawls promove o que ele chama de construtivismo


político. A ideia central aqui é que o conteúdo de qualquer
concepção política de justiça é o resultado de um processo de
construção. Assim, o construtivismo rejeita tanto o realismo
como o intuicionismo político e moral. Na teoria de Rawls,
este processo é modelado na famosa posição original na

10 Estou utilizando o termo “ideologia” aqui no sentido positivo. Como se


sabe, existem duas possíveis interpretações da teoria marxista de ideologia:
uma negativa, na qual a ideologia é compreendida como “falsa consciência”
e contraposta a uma compreensão “científica” do mundo social; e uma
Educ. foco, interpretação positiva, na qual ideologia é compreendida como a forma de
Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
consciência e expressão de interesses de classe, determinada pela estrutura
jul. / out. 2013 206 social da sociedade, toda teoria sendo, portanto, ideológica, nesse sentido.
qual agentes racionais, como representantes dos cidadãos, Razão e Educação
Política: Crítica de
um Fragmento da
selecionam os princípios de justiça que regulam a estrutura Ideologia Liberal

básica da sociedade. Isto supostamente impõe condições


rigorosas no processo e elimina quaisquer interesses pessoais
ou coletivos do processo de construção. Rawls nos afirma
sobre este processo que:
(ele) encompassa todos os requisitos
relevantes da razão prática e nos mostra
como os princípios de justiça advém dos
princípios da razão prática em união com
as concepções de sociedade e de sujeito, eles
mesmos ideias da razão prática. (RAWLS,
1993, p. 90)

A esperança é que se uma concepção política pode ser


construída a partir de ideias compartilhadas da sociedade
e da pessoa, então ela teria uma grande probabilidade de
assegurar um consenso sobreposto, isto é, de ser endossada
pelas perspectivas de uma pluralidade de doutrinas
abrangentes razoáveis, garantindo assim uma legitimidade
e uma estabilidade a longo prazo. Mas a pergunta óbvia é:
quais são os requisitos e os princípios da razão prática e como
as concepções de sociedade e sujeito podem, em si mesmas,
serem ideias da razão prática?
O problema aqui não está na natureza construtivista do
processo, e sua rejeição do realismo moral – pelo menos, em
sua forma metafisica – mas no fato de que a razão prática é
necessariamente associada a concepções abstratas e específicas
de sociedade e sujeito, quer dizer, a sociedade como um sistema
justo de cooperação e cidadãos como livres e iguais, racionais
e razoáveis. Não é surpreendente, então, que os princípios da
razão prática produzam princípios de justiça que reenforçam
estas concepções de sociedade e de sujeito! Além do mais,
falar em cidadãos “se utilizando os princípios da sua razão
prática comum” (ibid) pressupõem que a razão prática seja
uma faculdade da mente humana, compartilhada por todos Educ. foco,
os cidadãos, que fornece princípios de ação válidos para todos. Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
207 jul. / out. 2013
Ralph Ings Bannell
Novamente, a estratégia de Rawls é comparar sua
concepção construtivista com outras concepções fáceis a serem
rejeitadas, portanto privilegiando seu argumento em favor de
sua alternativa. Se ele a comparasse com outras alternativas,
talvez não pareceria tão convincente. Rawls rejeita a ideia
intuicionista que os primeiros princípios e fundamentos da
ação humana são, quando corretos, independentes da atividade
humana no sentido de que não são construções humanas, mas
válidos por isso. Ele mesmo rejeita a ideia que estes princípios
são conhecidos pela razão teórica. Além do mais, ele rejeita
o que ele chama de “uma rasa concepção de sujeito” como
sendo definido como meramente um conhecedor, alguém
que conhece primeiros princípios e age pelo conhecimento
deles. E finalmente ele também rejeita a teoria de verdade
enquanto correspondência no que se refere às “verdades”
políticas e morais. Ora, parece-me que não há nada de errado
com esta crítica. O que, então, Rawls oferece no lugar destas
características do intuicionismo?
Primeiramente, como nos é bem sabido, ele afirma que
princípios de justiça política são construídos pelos agentes
racionais – os representantes – que selecionam estes princípios
sujeitos a “condições razoáveis”, isto é, na posição original e
atrás de um véu de ignorância. É importante perceber que
estes representantes não existem: eles não são pessoas reais.
A ideia de representantes construindo princípios de justiça
que vão regular a conduta dos cidadãos reais é um artifício
que tem a função de desvendar algumas características básicas
das pessoas e da sociedade que, na opinião de Rawls, são
inquestionáveis. Neste sentido, a cena dos representantes na
posição original e atrás de um véu de ignorância espelha estas
características básicas. Nessa maneira, Rawls afirma que esta
cena representa o que os cidadãos reais escolheriam se eles não
estivessem tão preocupados com as exigências e interesses das
suas posições sociais.
Educ. foco, O segundo aspecto é que este procedimento se baseia na
Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
208 razão prática e não na razão teórica e, de acordo com Rawls,
jul. / out. 2013
“a razão prática se preocupa com a produção de objetos de Razão e Educação
Política: Crítica de
um Fragmento da
acordo com uma concepção destes objetos” (ibid., p. 93). Ideologia Liberal

Novamente, a questão óbvia é: De onde vem esta concepção


original de objetos?
O terceiro aspecto da alternativa de Rawls é que
supostamente utiliza “uma concepção complexa de sujeito
e sociedade” (ibid). Como mencionado anteriormente, a
forma e a estrutura que constituem a sociedade é a de um
sistema equitativo de cooperação. Pessoas, por outro lado, são
concebidos como tendo dois poderes morais – uma capacidade
para um senso de justiça e outra para uma concepção do bem.
E mais, “precisamos adicionar a estes conceitos aqueles que
formulam os poderes da razão, inferência e julgamento. Estes são
poderes companheiros essenciais destes dois poderes morais e
são necessários à sua existência e à prática das virtudes” (ibid)
(minha ênfase).
Gostaria de argumentar que estes poderes da razão podem
ser compreendidos como a chave para o empreendimento
teórico de Rawls. Sem esta capacidade central, seres humanos
não compreenderiam os princípios de justiça, nem chegariam
a algum acordo sobre eles através do processo de justificação
pública e muito menos seriam capazes de praticar as virtudes
necessárias com o fim de materializar e sustentar uma sociedade
justa.
O que há de errado com estas características? Primeiro,
razão prática e teórica são compreendidas como faculdades
separadas, uma preocupada em gerar conhecimento e a outra
em gerar princípios de ação. Mas, como Searle argumenta,
a razão teórica é (...) um caso especial
da razão prática. (...) Racionalidade em
ação é sempre uma questão de um agente
raciocinando conscientemente no tempo,
sob as pressuposições de liberdade, sobre o
que fazer agora ou no futuro. No caso da
razão teórica, é uma questão do que aceitar,
concluir ou acreditar; no caso da razão Educ. foco,
Juiz de Fora,
prática, é uma questão de que ação tomar. 209 v. 18, n. 2, p. 195-230,
jul. / out. 2013
Ralph Ings Bannell
Há um sentido em que toda raciocínio é
prático, porque sempre acarreta numa ação.
(SEARLE, 2001, p. 90)

A ideia central aqui é a noção de ter razões para


agir, inclusive para acreditar, e que essas razões podem ser
dependentes-do-desejo ou independentes-do-desejo do
agente. Mas quais razões os representantes, responsáveis pela
construção dos princípios de justiça, teriam para agir? Eles não
poderiam ter nenhuma razão dependente-de- desejos próprios,
porque isto implica que eles teriam interesses normais das
pessoas reais. Mas estes foram excluídos de suas deliberações
através do véu de ignorância? Tambem, eles não poderiam ter
nenhuma razão substantiva independente-de-desejos porque
estas vêm do que McDowell (1996) chama do “repositório da
tradição, um armazém de sabedoria acumulada historicamente
sobre o que é uma razão para o que”. E é exatamente isto que
a noção de ‘véu de ignorância’ também elimina do processo de
construção.
De acordo com Rawls, eles têm interesses de “ordem
superior” (higher order interests) dos cidadãos para guiá-los
em suas deliberações. Isto é, seus interesses são o de assegurar
as condições sociais nas quais cidadãos comuns possam
desenvolver e exercitar plenamente seus dois poderes morais
e seus poderes de razão. Já que um destes poderes morais é ter
uma concepção do bem, os representantes têm que desenvolver
princípios de conduta que permitem que o cidadão real possa
avançar sua concepção de bom – seja lá o que for. E, já que
os cidadãos têm um senso de justiça, da mesma maneira
devem desenvolver princípios de conduta que permitam que
cidadãos reais possam desenvolver e aplicar esse senso de
justiça. Em suma, a capacidade dos cidadãos é definida por
estes dois poderes morais e a habilidade de deliberar sobre suas
concepções de bem e sua capacidade de fazer justiça.
Na posição em que se encontram os representantes, suas
Educ. foco,
Juiz de Fora, escolhas supostamente modelam a autonomia racional dos
v. 18, n. 2, p. 195-230,
jul. / out. 2013 210 cidadãos, fazendo com que suas escolhas sejam as melhores
que os cidadãos fariam se estivessem agindo conforme seus Razão e Educação
Política: Crítica de
um Fragmento da
interesses de ordem superior e não os interesses individuais Ideologia Liberal

que eles adquiriram ao longo de suas vidas. Obviamente, isto


é resultado de um processo de deliberação racional, no qual as
razões pró e contra os vários princípios de justiça são pesadas
pelos representantes - um processo que descreverei a seguir.
O ponto importante a notar, por hora, é que esta estratégia
pretende situar cidadãos de maneira justa uns em relação aos
outros, isto é, numa posição de pura reciprocidade. Isto espelha
a igualdade do cidadão, enquanto sua liberdade consiste no fato
de que pode perseguir qualquer concepção de bem que quiser,
desde que não esteja justificada por uma doutrina abrangente
não razoável. Esta concepção de autonomia significa, entre
outras coisas, que tanto os cidadãos como os representantes
não são constrangidos por nenhum critério independente do
que é justo, ou, melhor dizendo, independente do que eles
mesmos construíram. Os únicos constrangimentos são seus
poderes morais e sua capacidade para a racionalidade.
Agora, como Rawls mesmo afirma, nada disso especifica
um conteúdo para princípios de justiça adotados a partir de
uma posição original. Isto só pode ser fornecido tentando
decidir em qual medida será possível assegurar os bens
primários necessários para a implementação dos interesses
de ordem superior dos cidadãos. Tais bens especificam as
condições sociais e os meios necessários para cada cidadão
desenvolver e exercitar seus poderes morais, para perseguir sua
concepção do bem e de seu senso de justiça.
Em algum ponto, Rawls afirma que se encontrarmos o
procedimento correto para construção “por reflexão, usando
os poderes da razão. Mas como estamos usando a razão para
descrever ela própria e como a razão não é auto-transparente,
podemos nos equivocar na descrição da razão como em
qualquer outra coisa” (ibid., p. 96-97). Sugiro que Rawls
representa mal nossa capacidade para razão, concebendo-a
como algum tipo de faculdade capaz de se auto-descrever e Educ. foco,
Juiz de Fora,
produzir princípios, tais como de cooperação social e uma 211 v. 18, n. 2, p. 195-230,
jul. / out. 2013
Ralph Ings Bannell
ordem de valores apropriados a uma sociedade democrática.
A posição original e seus estratagemas se tornam então
“artifícios da razão”. Mas esta me parece ser uma concepção
equivocada de racionalidade. Se concebermos a racionalidade
de uma outra maneira, como sugerido acima, acredito que
poderemos demonstrar que os representantes dos cidadãos
baseam suas deliberações não em interesses de ordem superior
mas nos interesses reais dos cidadãos que foram construídos
historicamente – e que não são universais – bem como nas
historicamente construídos razões independentes-do-desejo
para agir, elas mesmas o resultado da atividade humana
construtora da realidade social11.
É importante notar que o que é construído na posição
original é o conteúdo de uma concepção política de justiça,
não o procedimento da posição original ele mesmo. O
procedimento é pressuposto. Assim, ele é constrangido por
certas condições, como simetria e limites das informações que
são consideradas relevantes para que o argumento seleciona
os princípios de justiça para a sociedade em questão, como
descrevi. Rawls (1993:104) afirma que “o processo ele mesmo
é simplesmente apresentado utilizando como referências
iniciais as concepções básicas de sociedade e de pessoa, os
princípios da razão prática, e o papel público da concepção
política de justiça”. Então, quais são essas concepções da
sociedade e da pessoa e os princípios da razão prática que são
tão inquestionaveis que são pressupostos no constructivismo
político de Rawls?
Com respeito às concepções de sociedade e de pessoa,
elas são vistas como complementares aos princípios da razão
prática. Elas são, digamos, elementos igualmente importantes
no processo de construção dos princípios de justiça. Rawls
argumenta:

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
11 Não há espaço nesse artigo de desenvolver esse argumento. Ver Bannell,
jul. / out. 2013 212 2012, onde se encontra uma tentativa de analisar essas questões.
Os princípios da razão prática são expressos Razão e Educação
Política: Crítica de
nos pensamentos e juízos das pessoas um Fragmento da
Ideologia Liberal
razoáveis e racionais e aplicados por eles nas
suas práticas sócio-políticas. Estes princípios
não se aplicam a si mesmos, mas são usados
por nós para formar nossas intenções e
ações, planos e decisões e em nossas relações
com outras pessoas. Partindo-se desta
premissa, podemos nomear as concepções de
sociedade e de pessoa como “concepções da
razão prática”: elas caracterizam os agentes
que raciocinam e especificam o contexto dos
problemas e questões pelo qual os princípios
da razão prática se aplicam. Assim, a razão
prática tem dois aspectos: os princípios
da razão prática e do juízo, de um lado,
e pessoas, naturais ou corporativas, cuja
conduta é informada por estes princípios, do
outro (1993, ps. 107-8).

Neste trecho, Rawls parece sugerir, apropriadamente,


que são os agentes que raciocinam sobre o que fazer. Mas ao
mesmo tempo ele afirma que eles agem de acordo com os
princípios da razão prática e do juízo que são necessariamente
associados a uma concepção de sociedade como um sistema
equitativo de cooperação e uma concepção de pessoa como
razoável e racional. Então, quais concepções são essas? Por
falta de espaço, vou me deter somente na concepção de pessoa.
A CONCEPÇÃO DE PESSOA

No centro da teoria de Rawls está o modelo ideal de


cidadãos tanto como razoáveis como racionais12. Ser racional
aqui significa ser prudente, a ideia familiar de “avançar
somente da perspectiva do que fazer para o seu próprio bem”
(RAWLS, 2001, p. 6). Ser razoável, por outro lado, significa
aceitar restrições sobre sua vontade própria pelo bem dos
“termos equitativos de cooperação [que] especificam a ideia
Educ. foco,
Juiz de Fora,
12 Esta distinção espelha a famosa distinção de Kant entre razão prática pura e v. 18, n. 2, p. 195-230,
razão prática empírica, mas sem sua estrutura metafísica transcendental. 213 jul. / out. 2013
Ralph Ings Bannell
de reciprocidade, ou mutualidade: todos que fazem sua parte
e seguem as regras reconhecidas se beneficiam com os acordos
padronizados firmados publicamente” (ibid). Um sistema justo
de cooperação social, neste caso, poderá ser compreendido,
portanto, como “guiado por regras reconhecidas publicamente
e procedimentos que são aceitos como apropriados para regular
a conduta daqueles que cooperam” (ibid). Os princípios de
justiça de Rawls especificam quais são esses termos justos
de cooperação. É importante percebermos que, na teoria de
Rawls, cooperação social é uma atividade social coordenada por
regras reconhecidas publicamente e aceitas como legítimas por
cidadãos comuns. Estas regras especificam, basicamente, que
todos devem atuar segundo suas próprias vantagens racionais,
há não ser que isso cria uma distribuição desigual de riqueza
e de renda, como definida pelo segundo princípio de justiça,
o tal “princípio de diferença”. Neste caso, a cooperação social
exige que todos sigam um padrão acordado publicamente,
desde que todos façam o mesmo. Espera-se, desta maneira,
que todos se beneficiem desta forma de cooperação, incluindo
os menos avantajados da sociedade 13.
O que Rawls chama de sociedade bem organizada,
portanto, seria aquela em que todos os cidadãos ajam
razoavelmente e também racionalmente, aceitando restrições
às suas próprias vantagens com o intuito de criar um sistema
justo de cooperação. E é claro que muito depende então deste
conceito de razoável. Como Rawls mesmo afirma:
sujeitos razoáveis (...) compreendem que
eles devem honrar os princípios de justiça,
mesmo às custas de seus próprios interesses
quando as circunstâncias exigirem, desde

13 Os princípios de justiça de Rawls são: “a) cada pessoa tem o mesmo direito
de um mesmo esquema de liberdades básicas, que é compatível com o mesmo
esquema de liberdades para todos; e b) desigualdades sócio-econômicas devem
satisfazer a duas condições: primeiro, todas as posições a serem preenchidas em
Educ. foco, órgãos públicos ou privados devem ser abertas a todos os sujeitos em igualdade
Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
de oportunidades; e segundo, desigualdades sócio-econômicas devem trazer
jul. / out. 2013 214 maiores benefícios aos membros mais em desvantagem da sociedade.”
que outros também façam o mesmo. Não Razão e Educação
Política: Crítica de
seria razoável não ser pronto para propor um Fragmento da
Ideologia Liberal
estes princípios, assim como não honrar
termos justos de cooperação que outros
estejam preparados para aceitar; é mais do
que irrazoável fingir honrá-los mas estar
pronto para violar acordos em vantagem
própria quando a situação permitir (...).
O senso comum normalmente percebe o
razoável mas não, em geral, o racional como
uma ideia moral no sentido de sensibilidade
moral (ibid., p. 7).

Ora, os acordos fundamentais decididos pelos


representantes dos cidadãos na posição original incluem
não só o acordo dos princípios de justiça política mas,
também, “acordo sobre os princípios do raciocínio e as
regras da evidencia à luz das quais os cidadãos vão decidir
se os princípios de justiça devem ser aplicados, quando e
como eles serão preenchidos, e quais as leis e políticas que
se adéquam melhor às condições sociais existentes” (ibid., p.
89). O que significa isto é que quando os cidadãos apresentam
publicamente suas razões para suas escolhas políticas, eles não
podem escolher baseados em doutrinas abrangentes ou teorias
sociais ou econômicas controversas, como razões aceitáveis
publicamente. Rawls, ele mesmo, afirma: “isto significa
que nossas razões devem ser submissas aos valores políticos
expressos por uma concepção política de justiça” (ibid., p.
91). E quais são estes valores políticos? Eles são divididos em
dois tipos: os valores de justiça política; e os valores de razão
pública. O primeiro grupo se compõe “os valores da liberdade
política e civil igual; igualdade de oportunidade; os valores
de igualdade social e reciprocidade econômica; e os valores
do bem comum como também as condições várias necessárias
para estes valores“. O segundo grupo inclui ser razoável e ser
preparado para honrar o dever (moral) de civilidade e as regras
da auditoria pública (RAWLS, 1993, p. 224).
Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
215 jul. / out. 2013
Ralph Ings Bannell
Como já mencionei anteriormente, Rawls privilegia a
cultura política pública das sociedades democráticas liberais e
isto inclui um ideal de cidadão como tendo uma identidade
legal e uma identidade moral além da identidade de classe,
cultura, raça e sexualidade que este cidadão adquire por fazer
parte de um grupo social específico.
Esta identidade moral e legal define a pessoa como um
cidadão. A identidade moral da pessoa, na opinião de Rawls, é
especificada por seus compromissos políticos e não-políticos.
Compromissos políticos incluem o desejo de ver os valores da
justiça política arraigados nas instituições políticas e práticas
sociais. E compromissos não-políticos incluem trabalhar pelos
valores e objetivos das diferentes associações das quais pertence
o cidadão. Estes dois tipos de identidade moral “dão forma ao
estilo de vida de uma pessoa, o que nos confrontamos fazendo e
tentando realizar no mundo social” (ibid., p. 22) e que podem,
ás vezes, estar em conflito. Entretanto, pode se argumentar que
esta é uma concepção muito superficial e simplista do conceito
de pessoa e não a concepção “relativamente complexa” como
Rawls afirma ser.
O que é o mais interessante nesta versão de identidade
moral é o componente político. Numa sociedade bem
organizada, diz Rawls, os valores políticos e os compromissos
que constituem o componente político é “praticamente a
mesma coisa” (ibid., p. 23). Agora é importante perceber que
não se endossa aqui um conjunto de compromissos políticos
universalmente válidos e a priori. Em vez disso, Rawls afirma
que os cidadãos ideais de uma sociedade liberal perfeita iriam
- como conseqüência da sua estrutura básica e da cultura
política pública – todos comungar, contingentemente, mais
ou menos os mesmos valores políticos. Isto faz com que haja
uma identidade moral contingente numa sociedade mas de
uma maneira que elimina a pluralidade moral ou política
desta, pelo menos numa sociedade bem-organizada. Doutrinas
Educ. foco, morais abrangentes podem ser pluralistas, na visão de Rawls,
Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
216 mas identidades morais não. Um cidadão livre, parece, sempre
jul. / out. 2013
desenvolveria a mesma identidade moral, porque esta é Razão e Educação
Política: Crítica de
um Fragmento da
composta de valores políticos e compromissos compartilhados Ideologia Liberal

por todos os membros da sociedade política.


No entanto, esta versão de identidade moral levaria a uma
consequência incrível, que trai a análise da posição de classe de
Rawls. Somos levados a pensar que condições desiguais sociais
têm valores equitativos. Nas palavras de Rawls:
o fato de ocuparmos uma posição social
particular, digamos, não é uma boa razão
para aceitarmos, ou esperarmos que outros
aceitem, uma concepção de justiça que
favoreça aqueles que estão nessa posição.
Se somos ricos, ou pobres, não esperamos
que todos aceitem uma estrutura básica que
favoreça ricos, ou pobres, simplesmente por
essa razão (ibid., p. 18, minha ênfase).

Esta é uma afirmação extraordinária! Nos pede para


aceitar que estruturar uma sociedade para favorecer os pobres
não teria um peso maior como razão para agir que montar
uma estrutura de sociedade para favorecer os ricos! Isto é um
absurdo e somente alguém em favor de uma ideologia liberal
poderia acreditar que isto seria verdadeiro14. Se a justiça
requer que agir em maneiras específicas, então uma teoria que
não faz distinção entre a razao “que são ricos” e a razão “que
são pobres” é no mínimo suspeita.
Outro aspecto deste enfoque é o de que nossa identidade
moral seria a mesma numa sociedade bem organizada, mesmo
se contingentemente. Venho defender uma perspectiva mais
hermenêutica, na qual identidades morais são construídas
dentro de contextos sociais e éticos contingentes. Charles
Taylor (1989), por exemplo, defende que construímos nossas
identidades morais dentro de um espaço ético, que pode ser

14 Claro, o que faz com que seja um absurdo é o fato de que os ricos são capazes
de satisfazer suas necessidades, enquanto os pobres não o são. Para que isso
seja importante precisaria ser fundamentado numa teoria de necessidades e Educ. foco,
Juiz de Fora,
capacidades (capabilities). Ver Sen, op cit, e Nussbaum, 2011, para uma análise v. 18, n. 2, p. 195-230,
de capacidades (capabilities) da perspectiva liberal. 217 jul. / out. 2013
Ralph Ings Bannell
concebido como o horizonte e rede de “avaliações fortes” que
definem as normas éticas, motivações e princípios de um
grupo social e cultural particular. Se isso é verdadeira, então a
busca por uma identidade moral em comum é uma quimera;
o que existe é uma ética social de grupos específicos. Ora, se
aceitamos essa caracterização de nossa identidade moral, não
há razão para incorporar uma determinada concepção da
identidade moral às pressuposições de posição original. Ao
fazer isto, Rawls está se apossando de uma identidade ética
liberal dentro de uma suposta posição original neutra.
Um importante aspecto desta identidade moral de
Rawls é o conjunto de virtudes políticas que um sujeito
razoável deve adotar, que inclui tolerância, respeito mútuo,
senso de justiça e civilidade. Rawls afirma que estas virtudes
não são construídas e sim “fatos sobre as possibilidades de
construção” (ibid., p. 123). A maneira como compreendo
esta afirmação é que ele quer dizer que sem estas virtudes não
conseguiríamos construir uma concepção política que passasse
em certos testes de objetividade, como discutirei um pouco
mais tarde. Ora, parece que ele coloca estas virtudes na base da
fundação do conceito de justiça. São essas virtudes que fazem
com que uma concepção de justiça seja construída, que, por
sua vez, fornece “princípios e preceitos que identificam quais
fatos são ponderados como razões”, o que, por sua vez, fornece
“uma estrutura de raciocínio que pode ser identificada dentro
dos que são relevantes do ponto de vista apropriado e que
determinam seus pesos enquanto razões” (ibid., p. 122). Volta
a uma analise dessa estrutura de racicionio mais adiante.
Incluindo concepções de sociedade e de pessoa como
“ideias da razão prática”, Rawls privilegia concepções
específicas como tão básicas que as fazem inquestionáveis.
Para ele, como ideias da razão elas não podem ser construídas
e sim “colecionadas e montadas”. Rawls se refere a elas como
ideias que são compartilhadas por todos, “ideias fundamentais
Educ. foco, implícitas na cultura política pública” (ibid). Entretanto,
Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
218 a tradição de cultura política pública na qual Rawls baseia
jul. / out. 2013
sua análise é heterogênea mesmo dentro dos moldes liberais. Razão e Educação
Política: Crítica de
um Fragmento da
Se incluirmos outros fios ideologias principais, tais como Ideologia Liberal

conservadoras, socialistas ou anarquistas, para mencionar


somente algumas, observamos que Rawls privilegia apenas
uma parte da nossa herança política cultural, que ele usa
para representar o padrão para julgar todas as práticas sociais
e instituições políticas. De fato, Rawls se resigna ao que ele
chama de “ambigüidade” da cultura política pública, afirmando
“que contém uma variedade de ideias possíveis de organização
que possam ser utilizadas como alternativas, várias ideias de
liberdade e igualdade, e outras ideias da sociedade. Tudo que
temos que afirmar é que a ideia da sociedade como um sistema
justo de cooperação está arraigada na cultura e, portanto, que
não é irrazoável examinar os méritos desta ideia como uma
ideia central.” (RAWLS, 2001, p. 5).
No entanto, ele reconhece que a “razoabilidade
intrínseca” desta ideia não pode justificá-la completamente. A
justificativa repousa no peso da coerência entre a concepção de
justiça favorecida por Rawls e “nossas convicções ponderadas
de justiça política em todos os seus níveis de generalidade
no que podemos chamar de equilíbrio reflexivo abrangente
(e geral)” (ibid). Mas essa ideia de sociedade e tao razoavel
como Rawls acha? Alem disso, de quem sao “nossas convicções
de justica politica”? (minha ênfase). Para melhor analisar essas
questões, precisamos entrar na análise Rawls faz do julgamento
politico.
O JULGAMENTO POLÍTICO

Rawls aceita que o julgamento de um sujeito possa ser


diferente do julgamento de outro sujeito e que o conjunto de
julgamentos, ou de uma pessoa ou entre pessoas, não formam
um todo coerente. Então como é possível fazer com que
nossos julgamentos sejam consistentes dentro de nós mesmos
e entre os cidadãos? Rawls tenta resolver este problema com o
conceito de equilíbrio reflexivo. “Equilíbrio reflexivo estreito” Educ. foco,
Juiz de Fora,
se refere ao estado de uma pessoa quando este alinha seu 219 v. 18, n. 2, p. 195-230,
jul. / out. 2013
Ralph Ings Bannell
julgamento com outras convicções gerais, princípios e crenças
com um mínimo de reajuste possível entre estes. Por outro
lado, “equilíbrio reflexivo amplo” se refere ao estado de uma
pessoa após sua reflexão sobre conceitos de justiça política
que podem ser encontrados dentro da nossa tradição política,
considerando todos os argumentos contidos nelas e chegando
a um julgamento coerente com suas outras convicções. É
claro que este segundo estado pode requer uma mudança
de convicções, princípios e crenças de uma maneira que o
equilíbrio reflexivo estreito não precisa. Finalmente o que Rawls
chama de “equilíbrio reflexivo pleno” é alcançado quando
cidadãos de uma sociedade bem organizada chegam a uma
mesma concepção de justiça, ou seja, quando os julgamentos
reflexivos de todos confirmam esta concepção. Neste estado,
há um consenso – afirmado mutuamente para cada pessoa
no seu estado de equilíbrio reflexivo – sobre o ponto de vista
do qual pretensões à justiça podem ser avaliadas. Isto é o que
Rawls chama de consenso sobreposto. Para fazer com que a
sociedade seja estável ao longo do tempo, é necessário eliminar
ou , pelo menos, reduzir radicalmente, diferenças e conflitos
entre julgamentos.
O que faz o resultado deste processo de construção do
conteúdo da concepção política de justiça “objetiva”, isto é,
não interligada a opiniões pessoais ou coletivas? De acordo
com Rawls, agentes razoáveis reconhecerão seis elementos
essenciais de objetividade, assim “assegurando as condições
de pano de fundo necessárias para acordos entre julgamentos”
(ibid., p. 112). Esses seis elementos são os seguintes:
i. Os critérios e a evidência para se chegar a julgamentos e
fazer inferências devem ser mutuamente reconhecidos.
ii. O conceito de julgamento correto, isto é, do que faz um
julgamento razoável, ao invés de pura retórica, deve existir.
iii. Uma ordem de razões precisa ser especificada e
internalizada (assigned to) por agentes como razões
que eles precisam pesar e que podem os guiar. Isto é
Educ. foco,
Juiz de Fora, essencialmente uma versão de como pessoas podem
v. 18, n. 2, p. 195-230,
jul. / out. 2013 220 aprender a dominar uma ordem de razões. Uma vez
aprendidos e dominados, agentes podem aplicá-las Razão e Educação
Política: Crítica de

corretamente e, portanto, chegar a conclusões iguais ou um Fragmento da


Ideologia Liberal

parecidas.
i. É preciso poder distinguir entre um ponto de vista
objetivo (o de agentes racionais e razoáveis) como
diferente daquele de indivíduos ou de grupos.
ii. Deve valer para acordos e juízos entre os agentes razoáveis.
iii. Finalmente, deve ser possível explicar os motivos para
desacordos, o que Rawls faz com o conceito de pesos do
julgamento.

Em resposta à pergunta do porquê de haver uma


diversidade de opiniões, mesmo sobre a concepção política de
justiça, que deve guiar a estrutura básica da sociedade Rawls
oferece o argumento de “pesos do julgamento”.
De acordo com este argumento “desacordos razoáveis”
são devidos a cinco obstáculos que podem afetar qualquer
tentativa de se chegar a um julgamento sobre qualquer assunto.
a) A evidência pode ser complexa, conflitante e difícil de se
avaliar.
b) Mesmo que concordemos com a evidência, podemos
discordar dos diferentes pesos atribuídos a evidência
específica.
c) Nossos conceitos são normalmente vagos e
indeterminados, quer dizer, temos que confiar nas
interpretações deles, que podem ser diferentes.
d) As experiências de vida dos diferentes membros de grupos
de sujeitos são tão variadas que elas inevitavelmente
afetarão a avaliação da evidência e no peso dado aos
valores morais e políticos,
e) É difícil avaliar diferentes considerações normativas entre
os diferentes participantes no processo de julgamento.

É importante notar que estes pesos de julgamento


afetam não só doutrinas abrangentes mas também concepções
do político, incluindo a própria concepção de Rawls, como ele
mesmo reconhece. Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
221 jul. / out. 2013
Ralph Ings Bannell
Boas razões para ação, para Rawls, são fundamentadas
numa ordem de razão que seja objetiva e convincente e,
portanto, uma prioridade em decidir o que acreditar e o que
fazer.
Convicções políticas (que são também, é
claro, convicções morais) são objetivas –
em realidade fundamentadas numa ordem
de razões – se sujeitos razoáveis e racionais,
que são suficientemente inteligentes e
conscienciosos ao exercerem os poderes da
razão prática, e cujos raciocínios não exibem
nenhuma falha comum a este processo,
endossarão finalmente estas convicções, ou
estreitarão significantemente suas diferenças
sobre elas, desde que estes sujeitos estejam
cientes dos fatos relevantes e tenham
analisado suficientemente os fundamentos
relativos ao assunto sob condições favoráveis
para reflexão (RAWLS, 1993, p. 119).

Estes seis elementos essenciais da noção de objetividade,


descrita acima, precisam ser satisfeitos para uma concepção
política de justiça ser mutuamente reconhecida e considerada
razoável. Tal concepção de justiça poderá então especificar
quais são as razões para ação que podem ser consideradas
objetivas. Mas, se levamos em consideracao os pesos de
julgamento, por que deveriamos optar para a ideia de justiça
e da política de Rawls? Parece que a aposta seja no terceiro
elemento da objetividade mencionado acima, ou seja: Uma
ordem de razões precisa ser especificada e internalizada
(assigned to) por agentes como razões que eles precisam pesar
e que podem os guiar. Aqui vemos a importância de educação
política na teoria de Rawls, inclusive o papel educativo de sua
própria teoria, mencionado no incício desse artigo.
Mas como podemos saber se este conjunto de razões
realmente é o melhor e mais razoável? A resposta de Rawls a
esta questão é a que invoca o critério de sucesso. Quer dizer,
Educ. foco,
Juiz de Fora, “o sucesso da prática compartilhada entre os agentes racionais
v. 18, n. 2, p. 195-230,
jul. / out. 2013 222 e razoáveis é o que garante a nossa afirmação de que há uma
ordem de razões” (ibid., p. 120). Mas a questão óbvia é: O que Razão e Educação
Política: Crítica de
um Fragmento da
conta como uma prática bem sucedida? Bem sucedida para Ideologia Liberal

quem?
Não é dificil ver, então, que Rawls identifique o
razoável e, por conseguinte, o ponto de vista objetivo com o
ponto de vista liberal. Em outras palavras, a “base pública de
justificação para cidadãos” (ibid., p. 115) – o acordo entre os
julgamentos que permite uma discussão pública – deve ser as
razões reconhecíveis de uma posição específica num espaço de
razões, portanto excluindo assim outras razões reconhecíveis
de outras posições. Rawls está certo ao rejeitar ao “ponto de
vista vindo de lugar nenhum”, quando ele articula a noção
de ponto de vista objetivo, insistindo que “deve sempre ser
de algum lugar”. Entretanto, o “lugar” que Rawls invoca é
um lugar social e politico bastante específico, ou seja, o da
burguesia.
A IDEIA DE RAZÃO PÚBLICA

Quero explorar agora os valores da razão pública


que Rawls considera essencial para decidir “se os princípios
substantivos se aplicam corretamente e para identificar leis
e políticas públicas que melhor os satisfazem” (RAWLS,
1993, p. 224). A primeira coisa a notar é que o processo de
justificativa pública não é uma busca pela verdade. Implica
na crença que nos podemos ter boas razões para afirmar algo,
mesmo se a crença seja falsa. Como Rawls afirma: “justificação
é endereçada àqueles que discordam de nós” (RAWLS, 2001,
p. 27).
O ponto de partida, portanto, é o conflito em julgamento
sobre questões políticas e a afirmação é de que um consenso
compartilhado sobre questões constitucionais básicas deveria
ser alcançados numa sociedade bem ordenada. E isso, por
sua vez, seria alcançado através de “raciocínios e inferências
apropriadas a questões políticas fundamentais, e se apelando
Educ. foco,
a crenças, fundamentos e valores políticos que é razoável que Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
outros também reconhecem. A justificativa pública procede 223 jul. / out. 2013
Ralph Ings Bannell
de algum consenso: de premissas que todas as partes, no
pressuposto que são livres e iguais e capazes plenamente
da razão, podem razoavelmente ser esperados a endossar e
compartilhar” (RAWLS, 2001, p. 27). Estas premissas, juntas
com a forma de raciocinar que Rawls sugere, como ja vimos,
devem ser empregadas nos processos de justificativa pública.
Ora, a razao publica, para Rawls, é o processo de
justificacao no fórum público. Portanto, a razão pública se
aplica a partidos políticos e seus candidatos, no legislativo,
no executivo em atos públicos e, acima de tudo, ao Supremo
Tribunal Federal numa democracia que oferece a possibilidades
de revisão judicial (judicial review). Embora a razão pública se
aplique principalmente nestes grupos, ela também se aplica
para os cidadãos comuns porque indivíduos racionais e
razoáveis deveriam ser capazes de endossar os ideais obtidos
pela razão pública e tem o dever (de civilidade) de ser capaz
de explicar entre si como os princípios e políticas públicas que
eles advogam possam ser apoiados pelos valores políticos da
razão pública. Portanto, cidadãos deveriam compreender o
ideal da razão pública.
Mas, afinal, quais são os valores políticos que
fundamentam a razão pública? Eles são compostos de duas
partes: os princípios substantivos de justiça para a estrutura
básica da sociedade; e as diretrizes do debate público, isto é, os
princípios do raciocínio e regras de evidência que permitem
aos cidadãos decidir quando e se os princípios substantivos
devem ser aplicados. Este segundo grupo inclui as virtudes de
razoabilidade e prontidão para honrar o dever de civilidade,
essencial, na opinião de Rawls, para uma discussão pública
fundamentada na razão. Ora, estas regras excluem todas as
razões que não são “crenças geralmente aceitas e formas de
raciocínio encontradas no senso comum” como ilegítimas.
Devemos confiar nas “verdades que são aceitas por todos ou
que são disponíveis para todos os cidadãos” (ibid., p. 225).
Educ. foco, Para que os princípios e a estrutura constitucional das políticas
Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
224 públicas e legais sejam legítimas, elas precisam seguir as mesmas
jul. / out. 2013
diretrizes que são impostas aos representantes dos cidadãos Razão e Educação
Política: Crítica de
um Fragmento da
quando eles escolhem uma concepção política de justiça. Ideologia Liberal

Rawls sugere que isto impõe uma “considerável disciplina no


debate público. Não todo valor pode razoavelmente passar neste
teste, ou ser considerado um valor político; e também não é
o caso que qualquer equilíbrio de valores políticos poderia ser
razoável” (ibid., p. 227, grifos meus).
Agora, Rawls admite que acordos fortes são raramente
possíveis, mas ele insiste que isso não é motivo para abandonar
a razão pública como ele a concebe. A razão pública, e os
valores políticos nos quais ela está baseada, portanto se tornam
os critérios para julgar se algum arranjo constitucional ou
política pública em relação à estrutura básica da sociedade é
razoável. Cidadãos são então encorajados a invocar somente
esses valores políticos quando discutindo ou avaliando questões
de justiça básica. Isto, por sua vez, supostamente apóia as
instituições básicas de uma sociedade bem-organizada. Ora,
não se requer muita reflexão para ver que os valores políticos da
razão pública assim concebidos vão excluir do debate público
uma série de importantes crenças e teorias – e exatamente as
que são controversiais. Isto não é exatamente “disciplina” mas
censura. Além do mais, o dever de “civilidade” parece mais
com o dever de aquiescência num mundo social que, embora
seja melhor do que o presente, improvavelmente seria capaz de
fornecer a estrutura básica para uma vida decente para todos.
A CONDIÇÃO DE PUBLICIDADE E A EDUCAÇÃO POLÍTICA

Como vimos, no modelo de Rawls, uma sociedade justa


e equitativa somente é possível se os cidadãos exercitarem
as suas capacidades de razão, especialmente a capacidade de
razoabilidade. Por conseguinte, um dos principais objetivos
para a educação deveria ser o desenvolvimento desta capacidade.
Entretanto, como vimos, a concepção de razão prática de
Rawls é definida de tal maneira a limitar esta capacidade,
porque ela incorpora concepções de sociedade e de pessoa, Educ. foco,
Juiz de Fora,
bem como valores políticos, que não são, eu sugeriria, as únicas 225 v. 18, n. 2, p. 195-230,
jul. / out. 2013
Ralph Ings Bannell
que sejam razoáveis e são disponíveis na tradição da cultura
política pública da qual ele está se referindo. O resultado disso
é que a educação política, na visão de Rawls, deveria ser uma
iniciação numa posição social específica dentro de um espaço
de razões que incorpora as razões para agir estabelecidas na
tradição liberal da cultura política, incluindo uma concepção
de razoabilidade que é definida de maneira a incluir, na sua
própria definição, concepções liberais de pessoa e de sociedade.
A condição de publicidade de Rawls é interessante
porque ela especifica as condições que uma concepção de
justiça teria que satisfazer para ser completamente aceitável
para os cidadãos de uma sociedade. São três níveis a essa
condição. O primeiro nível é atingido quando a sociedade é
regulada pelos princípios públicos de justiça. Isto significa que
cidadãos conhecem e aceitam estes princípios e sabem que
estes são publicamente reconhecidos por todos. Além do mais,
como vimos, todos que sao “razoáveis” reconhecem que estes
princípios definem uma estrutura básica justa da sociedade “na
base de crenças partilhadas em comum e confirmadas pelos
métodos da investigação e maneiras de raciocinar aceitas como
apropriadas nas questões de justiça política” (ibid., p. 66).
Agora, aí está a questão. Estas crenças são entendidas
como tão generalizadas que, numa sociedade bem organizada,
todos concordariam com elas. Na mesma maneira, os métodos
de investigação e formas de raciocínio que as apóiam também
são supostamente compartilhados, especificamente, como
mencionado antes, as “conclusões da ciência e do pensamento
social, quando eles são bem estabelecidos e não mais sujeitas
a controvérsias” (ibid., p. 67). Além do mais, são estas crenças
que são designadas como sendo dos representantes dos
cidadãos na posição original. Ora, mesmo numa sociedade
bem organizada, tal consenso seria impossivel na base de
uma estrutura social de classes e uma economia capitalista.
São essas condições sociais que determinam as controversas e
Educ. foco, a luta ideologia. Pensar, como Rawls pensa, que uma pode ser
Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
jul. / out. 2013 226
eliminada sem a outra é de ignorar os determinacoes sociais Razão e Educação
Política: Crítica de
um Fragmento da
da consciencia. Ideologia Liberal

O terceiro nível da condição de publicidade é que a


justificativa filosófica plena para uma concepção política
de justiça precisa estar disponível para escrutínio de todos
os cidadãos e, se possível, conhecida publicamente. Deve
estar presente na cultura pública e refletida nas instituições
legais e políticas da sociedade e as tradições históricas da sua
interpretação. A defesa de Rawls da sua própria concepção
política de justiça assume um papel na cultura pública, como
parte do que ele chama de “condição de publicidade plena”.
A esperança é que os cidadãos vão, nas palavras de Rawls, “ser
conscientizados e educados para esta concepção. (...) Para
realizar a condição de publicidade plena é realizar um mundo
social no qual o ideal de cidadania pode ser aprendido e
desperte um desejo efetivo de ser aquele tipo de pessoa” (1993,
p. 71).
Ora, através da restrição de informação e das formas de
raciocínio aceitáveis numa sociedade bem organizada, Rawls
ajusta tudo em favor de crenças liberais já existentes – mesmo
sendo formas ideais dessas crenças – e formas de raciocínio
existentes. Mas isto é arbitrário! Porque algo tão importante
como os princípios que regulam a estrutura básica da
sociedade deveria ficar limitado desta maneira, especialmente
se considerarmos os pesos do julgamento? Ainda mais,
restringir os representantes dos cidadãos, que devem construir
os princípios de justiça, do mesmo modo é desenhado para
garantir que crenças e formas de raciocínio controversiais
nem entram nas suas elaborações. Que melhor maneira então
de silenciar aqueles cuja experiência não coincide com a
experiência da “maioria” e que tem razões para crer e para agir
que são diferentes?
Porém, como estas restrições são arbitrárias, não há
garantia que outras crenças e formas de raciocínio sejam
silenciadas. Na realidade, elas serão sempre expressas e Educ. foco,
Juiz de Fora,
vociferadas pelos grupos marginalizados da sociedade. Numa 227 v. 18, n. 2, p. 195-230,
jul. / out. 2013
Ralph Ings Bannell
nota de rodapé, Rawls afirma que “numa sociedade livre
que todos reconhecem como justa, não há lugar para ilusões
e desilusões de ideologia para que a sociedade funcionasse
corretamente e para que os cidadãos a aceitem de boa-
vontade. Neste sentido, numa sociedade bem organizada
pode não ter ideológica ou uma consciência falsa” (ibid., p.
68-69). Mas, como anteriormente argumentado, sem remover
a base material da sociedade de classes, nao há como eliminar
a ideologia.
As razões para agir dos individuos são aprendidos na
cultura política pública de uma sociedade. Ora, na medida
em que esta cultura contém uma concepção política, mesmo
uma ideal como na teoria de Rawls, esta concepção se torna
o que Rawls chama de “educadora”. Na medida em que
uma sociedade com este ideal se sustenta, a longo prazo,
determinadas razões para agir são fortificadas e reconhecidas
por um número crescente da população. Se isto acontece, a
ontologia de razões da qual elas são uma parte central também
vai se fortalecer enquanto as alternativas vão se enfraquecer.
Além do mais, isto coloca em relevância o papel educativo da
própria teoria de Rawls. A esperança de Rawls é que “possamos
aprender essa esquema normativa e usá-lo para nos expressar
nela em nossos pensamentos e ações políticas e morais” (1993,
p. 88). Obviamente, com as restrições da informação e formas
de raciocínio mencionado acima, não é surpreendente que
quando os cidadãos oferecem razões, entre si, para suas crenças
e ações, isto fortalecerá uma compreensão pública específica e
hegemônica de justiça.
Sugiro que isto seja uma base perigosa para a educação
política. Criaria um ideal de cidadania que estimularia o
desejo nas pessoas de se tornar um burguês e de desenvolver
um mundo social baseado nos princípios do liberalismo.
Mas, como afirmei no início deste artigo, cidadãos ocupam
diferentes posições no espaço de razões que herdamos das
Educ. foco, nossas tradições de pensamento e ação. Sugerir, como Rawls
Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
228 faz, que a razão tem que nos situar dentro de determinadas
jul. / out. 2013
tradições e práticas contingentes é de promover uma prática de Razão e Educação
Política: Crítica de
um Fragmento da
razão bem específica naquele espaço em nome da razoabilidade. Ideologia Liberal

Podemos ver aqui uma das consequências do papel prático que


Rawls designa a sua filosofia política: a eliminação de qualquer
objeção séria a sua teoria como, essencialmente, irrazoável.
REFERÊNCIAS

BANNELL, R.I. The Practice of Reason: Rationality,


Language and Social Ontology. Educação e Filosofia, 2012.
Uberlândia: UFU
MCDOWELL, J. Mind and World. Cambridge:
Harvard University Press, 1996.
NUSSBAUM, M. Creating Capabilities: The Human
Development Approach. Harvard University Press, 2011.
RAWLS, J. Political Liberalism. Expanded edition. New
York: Columbia University Press, 2005.
RAWLS, J. Justice as Fairness: A Restatement. Edited by
Erin Kelly. Cambridge: Harvard University Press, 2001.
SEARLE, J.R. Rationality in Action. Cambridge: MIT
Press, 2001.
SEARLE, J.R. Making the Social World. Oxford: Oxford
University Press, 2010.
TAYLOR, C. The Sources of the Self. Cambridge:
Cambridge University Press, 1989.

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 18, n. 2, p. 195-230,
229 jul. / out. 2013
FILOSOFIA E EDUCAÇÃO Filosofia e Educação
em Bergson

EM BERGSON
Tarcísio Jorge Santos Pinto1

Resumo
O presente artigo tem o intuito de refletir em que sentido o
pensamento de Henri Bergson se apresenta como original e
revolucionário diante da tradição filosófico-científica de sua
época a partir da criação do conceito de duração. Além disto,
deseja ressaltar a importância do método da intuição em
sua filosofia e alguns dos seus principais desdobramentos,
especialmente no campo da educação. A partir daí,
procura discutir, em conclusão, em que sentido a filosofia
bergsoniana continua sendo capaz de trazer importantes
contribuições para a reflexão de algumas questões de nosso
tempo, iluminando-as de forma profunda e criadora.

Palavras-chave: Henri Bergson; duração; intuição;


educação

Abstract
This article is intended to reflect in what sense the thought
of Henri Bergson presents itself as unique and revolutionary
on the philosophical-scientific tradition of his time from
the creation of the concept of duration. In addition, wish
to emphasize the importance of intuition method in his
philosophy and some of its main outcomes, especially in the
area of education. From there, try to discuss in conclusion,
in what sense the Bergsonian philosophy continues to be
able to make important contributions to the reflection of
some issues of our time, illuminating them profoundly and
creatively.

1 Tarcísio Jorge Santos Pinto é Professor Adjunto da Faculdade de Educação


da UFJF. Professor do Programa de Pós-graduação em Educação/PGE e do
Educ. foco,
Programa de Pós-graduação Profissional em Gestão e Avaliação da Educação Juiz de Fora,
Pública/PGP. v. 20, n. 2,
p. 231-250,
E-mail: tarcisio.pinto@ufjf.edu.br 231 jul. 2015 / out. 2015
Keywords: Henri Bergson; duration; intuition; education Filosofia e Educação
em Bergson

FILOSOFIA E EDUCAÇÃO
EM BERGSON
AS ORIGENS DO PENSAMENTO BERGSONIANO: A CRÍTICA
À TRADIÇÃO E UMA NOVA FILOSOFIA DA TEMPORALIDADE

Nascendo em Paris no ano de 1859, num contexto


histórico de efervescência científica e de intenso debate
filosófico, Henri Bergson, desde muito jovem, apresenta uma
grande aptidão para os estudos da Filosofia e das ciências.
Dedica-se especialmente à Filosofia, mas, com o tempo, não
encontra na tradição filosófica nenhuma linha de pensamento
que deseje seguir. Vê nas diversas filosofias um excesso de
racionalismo abstrato e generalista e não encontra nada
em princípio que julga poder atender às necessidades de
seu tempo: para ele, uma filosofia que expresse realmente a
realidade da vida, em suas as suas dimensões, fundamentando-
se nas grandes descobertas que as ciências de sua época estão
efetivando (PESSANHA, 1984; GOUHIER, 1991). Bergson
deseja tornar a própria Filosofia um saber que consiga se
impor ao espírito humano com a mesma força da ciência.
Isto vai se tornar um traço característico do seu pensamento,
manifestando-se depois no momento da publicação de cada
uma de suas obras filosóficas. Henri Gouhier destaca que “aos
olhos de Bergson, a Filosofia é uma ciência, cada livro traz
em si o resultado de pesquisas metodicamente conduzidas e
este resultado não deve ser publicado senão quando puder
se impor a todos os leitores competentes...”1. Na linha de

1 Também outro grande estudioso de Bergson, Alexis Philonenko, destaca


a importância de registrarmos esse caráter de sua filosofia. Ele defende
que cometem um grave erro aqueles que tendem a considerar a filosofia Educ. foco,
bergsoniana como vaga. Segundo Philonenko, um dos sinais do rigor que Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
Bergson dá a sua filosofia está no fato dele sempre respaldá-la nos dados p. 231-250,
científicos de sua época. Além disso destaca também a preocupação de Bergson 233 jul. 2015 / out. 2015
Tarcísio Jorge Santos Pinto
Descartes, de quem tanto vai se distinguir, Bergson almeja
que a metafísica seja tomada como “science rigoureuse”.
Também como Descartes, concebe que há uma continuidade,
ou melhor, uma complementaridade entre ciência e filosofia,
esta entendida como metafísica. Mas enquanto o primeiro
tem como paradigma de ciência a Matemática – “por causa
da certeza e evidência de suas razões...” (DESCARTES,
1954, p. 7) –, o segundo busca na Biologia os dados para dar
sustentação ao seu discurso filosófico. Por este motivo destaca
Henri Gouhier: “a filosofia é ciência à maneira das matemáticas
segundo Descartes, à maneira da biologia segundo Bergson”
(GOUHIER, 1991, p. XII)1. Isto é diretamente atestado
através de um artigo publicado por Bergson no Boletim da
Sociedade Francesa de Filosofia de 2 de maio de 1901 com o
título de Le parallélisme psycho-physique et la métaphysique
positive, no qual o filósofo francês defende que
é preciso romper os quadros matemáticos,
levar em conta as ciências biológicas,
psicológicas, sociológicas, e sobre esta mais
larga base edificar uma metafísica capaz de
subir mais e mais alto através do esforço
contínuo, progressivo, organizado, de todos
os filósofos associados no mesmo respeito à
experiência (BERGSON, 1972, p. 488).

de só entregar ao público obras que considere realmente finalizadas, após


estudos e revisões meticulosos. Por este motivo, no seu testamento (tanto ele
quanto Gouhier destacam este fato), Bergson chega a proibir a publicação de
qualquer texto – estudos, anotações de aulas, etc – que não tenha esse caráter.
Philonenko escreve que alguns acabavam “vendo na sua obra uma psicologia
que se alargava progressivamente para encontrar seu fim num espiritualismo
impreciso e por assim dizer vago. Este julgamento, defende ele, não deve ser
recebido e ao mesmo tempo deve ser inteiramente revisado; o que ditou a
evolução de Bergson na sua reflexão foi, como veremos, uma lógica rigorosa
de significações. Naturalmente eu abster-me-ei de falar em todo momento
de lógica de significações. Sentiremos isso suficientemente só através de um
estudo analítico dos grandes textos” (PHILONENKO, 1994, p. 10 e ss.).
1 Madeleine Barthélemy-Madante escreve também que “a obra bergsoniana não

Educ. foco,
se desenvolve à maneira de um sistema que estende seus tentáculos hipotético-
Juiz de Fora, dedutivos, mas seguindo o método do biologista que observa, experimenta,
v. 20, n. 2,
p. 231-250,
coloca hipóteses diretivas, sempre pronto a precisar o confuso, a enriquecer o
jul. 2015 / out. 2015 234 contorno de seu universo” (BARTHÉLEMY-MADANTE, 1967, p. 97).
Mostrando-se insatisfeito com a filosofia positivista de Filosofia e Educação
em Bergson

seu tempo, influenciada diretamente pela física mecanicista


de cunho matemático, Bergson assinala a necessidade de uma
filosofia que se distancie dessa tendência de pensamento,
aproxime-me mais das ciências da vida e recupere o valor
da metafísica. É então nesse estado de insatisfação frente à
tradição que ele acaba tomando contato com o pensamento
de Herbert Spencer e descobre que este filósofo inglês
escreve uma vasta obra na qual as ciências da vida passam a
ser referência básica, ocupando a ideia de evolução um lugar
central. Spencer defende o evolucionismo como inerente não
só à Biologia, mas também a outros campos de conhecimento
tais como o da Ética e o da Sociologia. Ele começa a defender
a ideia de evolução num ensaio denominado A Hipótese do
Desenvolvimento (1852) e na obra Princípios da Psicologia
(1855) antes mesmo de Darwin publicar A Origem das
Espécies em 1859. Bergson, ao ler a obra seguinte de Spencer
– Os Primeiros Princípios (1864) –, acredita encontrar nesse
pensador a orientação para a filosofia que deseja construir.
Fascina-o de imediato a ideia de evolução que Spencer apresenta
perpassando tudo na natureza, tanto a materialidade quanto a
espiritualidade e tudo sendo tecido a partir de dados concretos.
No entanto, logo que começa a estudar mais profundamente a
noção de tempo na qual esse pensador embasa sua concepção
de evolução, Bergson chega à conclusão de que tal concepção
sustenta-se também no mecanicismo de tradição cartesiana e
newtoniana, não descrevendo realmente a vida, mas dando
dela uma representação equivocada. Fundamentado nos
“dados imediatos” da experiência, Bergson passa a defender
que a temporalidade inerente a todo movimento vital só é
verdadeiramente apreendida por meio da intuição e, assim
sendo, deve ser compreendida e conceituada como duração
(“la durée”), onde o passado faz corpo com o presente e este
desde sempre se liga ao futuro, num processo contínuo e Educ. foco,
Juiz de Fora,
ininterrupto de mudança. Ele assinala que toda uma tradição v. 20, n. 2,
p. 231-250,
de pensamento filosófico e científico acaba se sustentando em 235 jul. 2015 / out. 2015
Tarcísio Jorge Santos Pinto
uma concepção de tempo que não é a de tempo real, mas,
ao contrário, de uma temporalidade por assim dizer artificial,
repetição de instantâneos que, em última instância, não é
mais do que a representação de espaço apresentada com uma
outra roupagem (BERGSON, 1991, p. 62 e ss.). Afastando-se
da experiência concreta, que nos assegura que tudo na vida
é duração, tal tradição incorre em uma série de erros e falsos
problemas no que concerne à representação da realidade.
Para posicionar-se criticamente diante dela, Bergson toma
justamente a intuição da duração como ponto de partida de
sua filosofia, considerando-a como aquilo ao qual tudo em
sua doutrina deve se remeter para fazer sentido e respaldar-se
pela experiência1. Sustentado na intuição da duração, Bergson
busca recuperar o sentido próprio da metafísica e elabora uma
outra concepção de evolução da vida, oposta a de Spencer
que passa a ser considerada como um “falso evolucionismo”
(BERGSON, 1991, p. 654).
Na obra bergsoniana, a concepção de intuição como
o meio de conhecimento por direito da realidade que dura
só se explicita totalmente em A Evolução Criadora (1907),
terceira das obras fundamentais do filósofo francês. É aí que
ele pode unir finalmente, depois do que já havia exposto no
Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (1889) e em
Matéria e Memória (1896), teoria do conhecimento e teoria
da vida, explicitando como a evolução da vida acontece de
modo intimamente relacionado à evolução das formas de
conhecimento na natureza – torpor, instinto, inteligência

1 Acerca do significado da intuição da duração no conjunto da obra bergsoniana,


um artigo de Frederic Worms, traduzido no Brasil, torna-se também uma
referência importante. Reforçando o que aqui estamos querendo ressaltar,
Worms chega a esclarecer que seu artigo não estuda “o lugar de uma questão
geral numa filosofia singular entre outras, a saber, ‘a’ questão do tempo na
filosofia ‘de Bergson’”. Isso porque “é toda a sua filosofia, com efeito, que
Educ. foco,
Bergson apresenta como decorrência, não da ‘questão’ do tempo, mas da
Juiz de Fora, simples constatação da passagem do tempo, do simples fato de que o tempo
v. 20, n. 2,
p. 231-250,
passa” (WORMS, 2004, p. 129; grifo nosso). Cf. também JANKÉLÉVITCH,
jul. 2015 / out. 2015 236 1959, p. 3.
e intuição. Somente desta forma Bergson considera poder Filosofia e Educação
em Bergson

tecer sua teoria do conhecimento o mais próximo possível


da experiência concreta da realidade da vida, afastando-a
das representações arbitrárias e tendo consciência dos meios
possíveis de ampliar sua filosofia (BERGSON, 1991, p. 492
e 493). Até chegar a explicitar, em A Evolução Criadora, que
a duração é a substância mesma da vida e que a intuição é o
seu método de conhecimento por excelência, Bergson desvela
primeiramente o que representa a duração no plano da
consciência do homem e no plano da relação do espírito com a
matéria com a qual se relaciona intimamente: eis os campos de
estudo do Ensaio e de Matéria e Memória, respectivamente. Em
sua obra final As Duas Fontes da Moral e da Religião (1932), ele
desdobra essa sua concepção de duração na sua interpretação
do desenvolvimento da moral e da religião, defendendo
que a partir de uma intuição especial da duração da vida, a
“intuição mística” (“l’intuition mystique”), algumas grandes
personalidades são capazes de promover uma renovação ética
e religiosa que deve nos servir de referência. Esta referência,
inclusive, além de ético-religiosa pode ser vista também como
educacional, uma vez que os místicos se apresentam como
“grandes mestres da humanidade”, capazes de indicar meios
preciosos para auto formação de cada um de nós a partir de
seus próprios exemplos de vida. Deste modo, embora talvez
possamos encontrar a reflexão de determinadas questões éticas
e educacionais no interior das quatro obras bergsonianas
principais, de fato é a partir de As Duas Fontes que somos
capazes de encontrar mais diretamente a abordagem destas
questões por Bergson, questões que se mostram intimamente
relacionadas e que, além de serem trabalhadas nessa obra,
são enfocadas também em certas cartas, discursos e ensaios
bergsonianos, conforme buscaremos mostrar em seguida.
Antes de passarmos a abordá-las gostaríamos apenas de
destacar, por fim, que além das quatro obras fundamentais Educ. foco,
Juiz de Fora,
mencionadas acima, nas quais trabalha temas clássicos da v. 20, n. 2,
p. 231-250,
Filosofia, Bergson também escreve uma série de artigos e 237 jul. 2015 / out. 2015
Tarcísio Jorge Santos Pinto
conferências nos quais explora determinados aspectos das
principais reflexões desenvolvidas ao longo de sua trajetória
filosófica, escritos estes que são reunidos em duas importantes
coletâneas: A Energia Espiritual (1919) e O Pensamento e o
Movente (1934).
ÉTICA, EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA A PARTIR DA FILOSOFIA
DE BERGSON

As reflexões bergsonianas acerca da educação, de


fato, devem ser relacionadas à concepção geral que Bergson
desenvolve em As Duas Fontes da Moral e da Religião, opondo
uma educação moral que toma por modelo a mística e outra
que desenvolve uma tendência de adestramento moral1. Aí
podemos já encontrar alguns elementos fundamentais de uma
certa concepção pedagógica na qual a intuição ocupa desde o
início um papel fundamental. De acordo com o que aí ressalta
Bergson, os bons educadores, ao perceberem a verdadeira
origem da moral, devem ensinar a seus alunos tanto o papel
da “pressão social” quanto a importância da “aspiração”. Não
devem se dedicar a ensinar uma moral resultante apenas da
“pura razão” e direcionada a ela, mas sim levar os alunos a
intuírem que a sociabilidade e a moralidade aparecem a partir
da evolução real da vida na natureza e que por intermédio
dessa intuição podem vislumbrar a possibilidade de uma
abertura do que há de “fechado” e “estático” no campo social
e moral (BERGSON, 1991, p. 1057; também p. 1208 e ss).
Considerando a educação moral desta forma, Bergson não
descarta a importância que nela desempenha a razão. Pelo
contrário, reconhece que é através da reflexão inteligente
que sistematizamos os principais deveres necessários à boa
organização da sociedade. O que, no entanto, enfatiza é que
tal educação não deve se restringir somente à razão, mas antes
de tudo deve se dedicar à orientação da vontade que lhe é
anterior. Refletindo sobre essa relação entre a inteligência e
Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
p. 231-250,
jul. 2015 / out. 2015 238 1 Cf. também LOMBARD, 1997, p. 10 e ss.
a vontade no horizonte da moralidade, Bergson escreve o Filosofia e Educação
em Bergson

seguinte:
Não negamos a utilidade, a necessidade
mesmo de um ensino moral que se dirija à
pura razão, que defina os deveres e os ligue
a um princípio do qual siga, no pormenor,
as diversas aplicações. É no plano da
inteligência, e nele somente, que a discussão
é possível, e não há moralidade completa
sem reflexão (...). Mas se um ensino que
se dirija à inteligência é indispensável para
dar ao senso moral garantia e sutileza; se ele
nos torna plenamente aptos para realizar
nossa intenção quando nossa intenção for
boa, seria preciso que houvesse primeiro
intenção, e a intenção assinala uma direção
da vontade tanto ou mais que da inteligência
(BERGSON, 1991, p. 1057).

Neste sentido, uma orientação da vontade se faz


necessário e para isso, segundo Bergson, há duas pedagogias
que podemos tomar como referências fundamentais. Ou a do
adestramento, que se dá a partir do ensino da obediência a
“hábitos impessoais” que é justificado pela inteligência. Ou a
da misticidade, que aponta a possibilidade da aproximação do
modo de viver de uma grande personalidade moral, buscando
mesmo promover “uma união espiritual, uma coincidência
mais ou menos completa com ela”, a qual irá impulsionar o
aperfeiçoamento do eu (BERGSON, 1991, p. 1058). Neste
segundo caso é principalmente à intuição que o educador deve
recorrer para indicar o caminho dessa “coincidência”, dessa
“simpatia” com o grande místico que também se concretiza
por meio da intuição. De acordo com Bergson, em nosso viver
em sociedade somos quase sempre conduzidos pelo primeiro
método, que “age no impessoal”. Todavia, esse método
deverá ser completado e por vezes mesmo substituído pela Educ. foco,
Juiz de Fora,
misticidade, no intuito de se garantir o aprimoramento do v. 20, n. 2,
p. 231-250,
homem (BERGSON, 1991, p. 1058 e ss.). 239 jul. 2015 / out. 2015
Tarcísio Jorge Santos Pinto
Conforme podemos notar através do estudo de As Duas
Fontes da Moral e da Religião, os próprios místicos tornam-se
os maiores representantes de uma pedagogia profunda, uma
vez que eles mesmos orientam diretamente milhares de pessoas,
mostrando-lhes o modo de aperfeiçoarem a si mesmos, por
esforço próprio, através do exercício da intuição da duração e
da vivência profunda da emoção do amor. Mais do que pelas
palavras que profere, o grande místico educa por seu exemplo
de vida. Segundo o que nos aponta Bergson, ele se torna um
ser humano de uma saúde intelectual excepcional que se
manifesta “pelo gosto da ação, a faculdade de se adaptar e de
se readaptar às circunstâncias, a firmeza junto à maleabilidade,
o discernimento profético do possível e do impossível, um
espírito de simplicidade que triunfa sobre as complicações”
(BERGSON, 1991, p. 1169). Isso tudo revela no místico um
“bom senso superior”, que em última instância representaria
o exercício equilibrado da atividade intelectual através de sua
devida complementação pela atividade intuitiva. Conforme
observa Bergson, os místicos não atingem esse estágio elevado
do bom senso sem esforço. Antes de alcançá-lo, inclusive, há
ocasiões em que essas personalidades superiores são consideradas
como “loucos”, devido aos “êxtases” e “arrebatamentos” que
vivenciam. Contudo, segundo o que bem destaca Bergson,
é preciso distinguir um êxtase religioso legítimo de uma
loucura comum (BERGSON, 1991, p. 1169). Esses estados
anormais, e por vezes mórbidos, pelos quais passa o místico,
fazem parte, na verdade, da agitação que é “a passagem do
estático ao dinâmico, do fechado ao aberto, da vida rotineira à
vida mística”, concretizando um “rearranjo” da alma em vista
de um “equilíbrio superior” (BERGSON, 1991, p. 1170). É,
então, justamente esse “equilíbrio superior”, representativo de
um bom senso elevado, que se torna um dos principais fins
Educ. foco, do caminho formativo dos grandes místicos e que deve servir
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, de referência concreta para nossa própria formação e para a
p. 231-250,
jul. 2015 / out. 2015 240 pedagogia a ela associada.
Sabemos que Bergson não escreve nenhuma obra Filosofia e Educação
em Bergson

sobre educação, mas é notório que ele participa ativamente


de movimentos educativos na França, chegando a ser
inclusive conselheiro superior da Educação Pública. Além
disso exerce influência marcante entre importantes teóricos
da educação: Claparède, Ferrière e Kerschensteiner, entre
outros representantes do movimento de educação renovada,
na Europa; John Dewey e William James, precursores da
Escola Nova na América do Norte (TREVISAN, 1995,
p. 130 e ss.). A preocupação com a educação está presente
em alguns dos mais importantes discursos bergsonianos,
aparecendo também dispersa em alguns de seus principais
textos. Bergson preocupa-se antes em desenvolver algumas
ideias do que indicar normas e procedimentos. Por isso sua
contribuição educacional coloca-se mais no plano teórico do
que prático. De qualquer modo, tal contribuição é riquíssima,
conforme é enfatizado por renomados filósofos da educação na
atualidade, e vem se tornando cada vez mais manifesta através
dos inúmeros estudos consolidados, no Brasil e no mundo, em
torno da relação do seu pensamento com a educação. Um dos
testemunhos diretos disto, nos últimos anos, foi o Colóquio
Internacional Henri Bergson – “Há cem anos de A Evolução
Criadora”, que reuniu diversos pesquisadores nacionais e
internacionais que vêm tomando o pensamento bergsoniano,
direta ou indiretamente, como uma das principais fontes
de referência para seus trabalhos, não só vinculados ao
campo educacional mas a diversos outros campos além do
especificamente filosófico. Com efeito, de acordo com o que
assinalaram os organizadores do evento no livro publicado
por ocasião do mesmo, este filósofo francês se apresenta
como um dos grandes pensadores “para os quais a filosofia
não se afirma em oposição à ‘não-filosofia’, mas em diálogo
com ela. A diversidade e a produtividade dos ecos de sua
obra em outros campos que não o filosófico (literatura, artes, Educ. foco,
Juiz de Fora,
física, medicina, antropologia, comunicação) convalidam essa v. 20, n. 2,
p. 231-250,
apreciação” (LECERF; BORBA; KOHAN, 2007, p. 15). 241 jul. 2015 / out. 2015
Tarcísio Jorge Santos Pinto
Em particular, no campo da educação, conforme é destacado
na continuidade deste texto – cujo objetivo principal foi
justamente o de destacar a “atualidade de Bergson” –, esse
congresso publicou, através de seus anais, inúmeros trabalhos
extremamente significativos relacionados a diversas questões
de estudo da teoria e da prática educacionais (LECERF;
BORBA; KOHAN, 2007, p. 15-16).
A concepção pedagógica de Bergson mostra-se coerente
com sua própria concepção filosófica em geral. Segundo ele a
educação deve estimular a liberdade e a criação, favorecendo
a potencialização do “impulso vital” (“élan vital”) inerente
ao homem como a todos seres vivos; em outras palavras, a
educação deve estar em consonância com a duração da própria
vida. Para tanto, conforme nos apontam os estudiosos do
pensamento bergsoniano relacionado à educação, Bergson vai
defender que devemos valorizar e promover uma formação
que busque desenvolver tanto a inteligência quanto a
intuição dos alunos por intermédio de diferentes matérias do
conhecimento humano, sem que umas sejam mais valorizadas
em detrimento de outras: desde as artes, a filosofia, a história
e os estudos clássicos em geral, até as diversas ciências exatas,
principalmente a Matemática e a Geometria (TREVISAN,
1995; LECERF, BORBA, KOHAN, 2007). Segundo o que
defende este filósofo francês, a educação não deve ser mero
acúmulo de conhecimentos que se repetem continuamente,
mas, ao contrário, deve promover a renovação e a criatividade.
Isto ele deixa claro quando, referindo-se às crianças, escreve na
introdução de O Pensamento e o Movente:
Em todas as áreas, seja das Letras, seja
das Ciências, nosso ensino conservou-se
demasiadamente verbal. (...) Como seremos
ouvidos? De que modo seremos entendidos?
Pois que, a criança é investigadora e
inventora, sempre à espreita de novidade,
impaciente quanto às regras, enfim, mais
Educ. foco,
Juiz de Fora,
próxima da natureza daquilo que o homem
v. 20, n. 2, cria. (...) Contudo, por mais enciclopédico
p. 231-250,
jul. 2015 / out. 2015 242 que seja o programa, aquilo que a criança
poderá assimilar de uma ciência acabada Filosofia e Educação
em Bergson
reduzir-se-á a poucas coisas e será, muitas
vezes, a contragosto e esquecido logo em
seguida. (...) Cultivemos antes na criança
um saber infantil e evitemos de sufocá-la sob
o acúmulo de ramos e folhas secas, produto
de vegetações antigas; a planta nova não pede
nada, senão o deixá-la crescer (BERGSON,
1991, p. 1326).

De acordo com Bergson, para que a educação não


se reverta em um mero meio de transmissão de conteúdos
enciclopédicos e pré-estabelecidos e possa tornar-se um
instrumento de desenvolvimento da liberdade, é necessário
que ela se converta de fato em um saber que potencializa
a criatividade e, ao mesmo tempo, lhe dê força e aponte
caminhos para um bem viver. Segundo ele, para que isto se
efetive, é essencial o cultivo da faculdade da intuição de forma
tão estimulante quanto o cultivo da faculdade da inteligência,
sendo que o exercício da primeira é importante inclusive
para determinar os limites da segunda. Trata-se com isso de
despertar e desenvolver no homem o que Bergson denomina,
já no discurso pronunciado ainda jovem na Sorbonne, de
“bom senso” (“le bon sens”), isto é, “a faculdade de se orientar
na vida prática, (...) um certo hábito de permanecer em
contato com a vida prática, mesmo sabendo olhar mais longe”
(BERGSON, 1972, p. 359). Relacionando essa faculdade à
educação, ele nos diz que:
A educação do bom senso não consistirá
pois somente em libertar a inteligência
das ideias pré-fabricadas, mas em desviá-la
também das ideias demasiadamente simples,
em detê-la no limiar das deduções e das
generalizações, enfim em preservá-la de uma
confiança demasiadamente grande em si
mesma (BERGSON, 1972, p. 370).
Educ. foco,
Juiz de Fora,
Assim, a noção de “bom-senso”, desde esta sua primeira v. 20, n. 2,
p. 231-250,
referência no conjunto da obra bergsoniana até sua significação 243 jul. 2015 / out. 2015
Tarcísio Jorge Santos Pinto
no contexto de As Duas Fontes acima assinalada, representa
o equilíbrio da atividade inteligente do espírito humano
por meio de um esforço capaz de aproximá-lo da duração
criadora da vida (SANTOS PINTO, 2010, p. 219 e ss.). E
isto, conforme podemos acompanhar no desenvolvimento do
pensamento de Bergson, é obtido precisamente por meio do
exercício da intuição. Nesse sentido, o bom-senso e a intuição
podem e devem ser cultivados, segundo ele, e para isso uma boa
formação educacional é fundamental, sobretudo na medida em
que realmente considera o papel imprescindível da filosofia,
da arte e dos estudos clássicos como complemento dos estudos
científicos1. Só por meio da “educação do bom-senso”, que é a
educação de um certo equilíbrio entre a inteligência e a intuição,
podemos de fato contrapor-nos ao excesso de intelectualismo
que nos aliena, para fazer que nossa reflexão fique mais
próxima da vida e nosso viver mais harmonioso, sabendo
valorizar também, como nos diz Bergson, o “querer e a paixão
das grandes coisas”. Para que reflitamos sobre o significado do
conceito bergsoniano de “bom senso” em relação com o de
“intuição” é esclarecedor o que escreve Franklin Leopoldo e
Silva:
Em nossa vida prática, uma certa dose de conhecimento
extra-intelectual se faz presente, como o provam as antipatias e
simpatias inexplicáveis que sentimos em relação a certas pessoas
que mal conhecemos, ou a determinação de efetuar uma certa
ação, que não vem do fato de pensarmos cuidadosamente os
prós e contras, mas antes de algo que, do interior de nós mesmos,
nos impele independentemente de razões e justificações. Na
vida cotidiana, este equilíbrio, quando cultivado, resulta numa

1 Entre as considerações de Bergson sobre o assunto, além das que estão presentes
no texto Le bon sens, são relevantes sobretudo as que ele faz durante uma
discussão na “Sociedade Francesa de Filosofia”, em 18 de dezembro de 1902,
sobre “O lugar e o caráter da filosofia no ensino secundário” (in Mélanges, p.
Educ. foco,
568 a 571). Ainda a respeito desse modo de Bergson entender a formação
Juiz de Fora, educacional, é bastante esclarecedor o que escreve TREVISAN,1995, p. 139
v. 20, n. 2,
p. 231-250,
ss., citando fragmentos de textos de Bergson e dos principais comentadores do
jul. 2015 / out. 2015 244 tema da educação em sua obra.
certa capacidade de lucidez, que se torna um hábito, com o Filosofia e Educação
em Bergson

tempo quase um instinto, e que caracteriza precisamente as


pessoas, a que chamamos de “bom senso”. Reencontramos
assim, em outro plano, o paralelismo que existe entre o bom
senso e a intuição, pois o que é a intuição senão a recusa da
hegemonia da frieza analítica no conhecimento do real, e o
cultivo de uma certa ‘simpatia’ com este real, que aos poucos
nos introduz em segredos que ficariam para sempre vedados
ao procedimento analítico? (...) O cultivo do bom senso
inclui uma espécie de ‘refinamento’ desta desconfiança (em
relação à inteligência), a fim de fazer dela um instrumento que
possa servir de suplemento da inteligência na vida cotidiana
(LEOPOLDO E SILVA, s/data, p. 139-142).
EM CONCLUSÃO ...

Podemos perceber que foi a descoberta da duração e do


método mais adequado para a seu conhecimento, que guiou
todo o desenvolvimento do pensamento de Bergson e de seu
posicionamento crítico diante da tradição. Encontrando a
duração e a intuição, ele constatou uma série de erros presente
em algumas das principais teorias filosóficas e científicas de seu
tempo e a partir daí procurou empreender novas soluções para
os velhos problemas, principalmente como forma de criticar
uma tendência de pensamento presa a conceitos abstratos e
distante da verdadeira realidade da vida. Reforçando ainda
mais o que destacamos no início deste artigo, é interessante
citar a seguinte passagem de uma entrevista que Bergson
concede a Jean de la Harpe onde reflete sobre o significado de
sua própria filosofia. Nela o filósofo francês assim se exprime:
Compreenda-me bem: “a duração” foi na
minha filosofia a resultante, a porta de
saída por onde eu escapei das incertezas do
verbalismo. (...) Meus livros foram sempre a
expressão de um descontentamento, de um
Educ. foco,
protesto. Eu poderia escrever muitos outros, Juiz de Fora,
mas eu não escreveria senão para protestar v. 20, n. 2,
p. 231-250,
contra o que me pareceria falso. (...) Parto da 245 jul. 2015 / out. 2015
Tarcísio Jorge Santos Pinto
“duração” e procuro esclarecer esse problema,
seja por contraste, seja por semelhança com
ele (BERGSON, H. Essais et témoignages,
recolhidos por BÉGUIN e THÉVENAZ,
1943, p. 359 e 360, apud PHILONENKO,
1994, p. 12 e 13)

É importante também mencionar a famosa carta que


escreve a H. Höffding. Nela Bergson assinala o seguinte: “no
meu entender, qualquer resumo dos meus pontos de vista
os deformará no seu conjunto e os exporá, por isto mesmo,
a muitas objeções, se não se coloca primeiramente e não se
volta sempre àquilo que considero como o centro de minha
doutrina: a intuição da duração” (BERGSON, 1972, p. 1148).
Com efeito, foi sempre fundamentado na intuição
da duração que Bergson conseguiu apresentar, entre outras,
concepções filosóficas inovadores acerca do eu psicológico
humano e da liberdade inerente a ele; acerca da realidade da
matéria, do funcionamento da memória e da relação entre
a matéria e o espírito; acerca da vida e de sua evolução na
natureza; acerca da moralidade humana e da possibilidade
de aprimoramento moral e religioso; acerca da natureza e de
Deus; acerca da destinação da educação e dos meios necessários
para uma de formação pedagógica mais rica e ao mesmo
tempo mais próxima da vida. Como podemos constatar, todas
essas concepções bergsonianas entraram em consonância
com muitas das teorias que foram responsáveis por avançar
a ciência e a Filosofia e por delinear uma nova compreensão
da realidade a partir do século XIX. Bergson se apoiou em
determinados dados das principais correntes científicas de
sua época e também, por certo, forneceu, através de suas
conclusões, importantes contribuições para a reflexão de alguns
dos temas de estudo mais caros à ciência contemporânea.
Ao mesmo tempo, essas concepções inovadoras de Bergson,
Educ. foco, paralelamente às contribuições que apresentaram ao campo da
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, ciência, auxiliaram sobremaneira no avanço do conhecimento
p. 231-250,
jul. 2015 / out. 2015 246 propriamente filosófico desde sua época. São reconhecidas
as influências de Bergson deixou à filosofia da consciência, à Filosofia e Educação
em Bergson

metafísica, à teoria do conhecimento, à filosofia da natureza,


à ética, à filosofia da educação, à história da filosofia, entre
outros ramos de estudo da Filosofia1.
Procurando acompanhar ao longo de toda a obra
bergsoniana como Bergson vai ampliando sua concepção
da intuição da duração, vemos que, de fato, ele termina
por nos fornecer as características de um método não só
fundamental para que a ciência e a filosofia possam avançar
seus conhecimentos teóricos acerca da realidade concreta e
movente, mas também para que possamos melhor conduzir
nossas vidas e nosso convívio em sociedade. Especialmente
em relação a esse último aspecto, a abordagem da teoria ética
de Bergson e de sua concepção de “bom senso” associada à
educação pode nos mostrar isso. Na verdade, talvez pudéssemos
considerar, inclusive, que a teoria bergsoniana do “bom senso”
apresenta-se como um complemento fundamental de sua
teoria do método, permitindo ainda mais a concretização
do objetivo essencial de Bergson que é o de aproximar sua
filosofia da vida, conforme ele deixa claro em A intuição
filosófica (BERGSON, 1991, p. 1345). Por tudo isto, vemos
que a filosofia de Bergson está aberta a estudos renovados que
podem contribuir bastante para a discussão de problemas
importantes do nosso tempo, especialmente o da educação.
Nosso objetivo aqui foi apontar caminhos de um estudo que
também estamos procurando percorrer.

1 Bento Prado Júnior, num artigo publicado na Folha de São Paulo procura
defender exatamente isso. Nele, Bento Prado apresenta uma série de
argumentos procurando defender que “o pensamento do intelectual francês
(Bergson) antecipou e pode revitalizar o atual debate filosófico”. Entre outras Educ. foco,
coisas, ele afirma que “o pensamento contemporâneo, percorrendo linhas Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
diferentes, encontrou em seu limite último algumas das ideias fundamentais p. 231-250,
de Bergson”. 247 jul. 2015 / out. 2015
Tarcísio Jorge Santos Pinto
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Data de recebimento: novembro de 2013


Data de aceite: junho de 2014

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
p. 231-250,
249 jul. 2015 / out. 2015
EXPERIÊNCIA E AFETO EM DEWEY: Experiência e afeto
em Dewey: uma
conexão orgânica

UMA CONEXÃO ORGÂNICA


Marcus Vinicius da Cunha1

Resumo
Experiência é uma das noções mais importantes da
concepção educacional desenvolvida no século XX, e John
Dewey é o autor mais citado quando o assunto é experiência.
Este trabalho analisa a noção de experiência na filosofia de
John Dewey, focalizando especialmente o livro Experiência e
educação. Esse exame é complementado por reflexões de Jim
Garrison em Dewey and Eros e por alguns excertos de Arte
como experiência de Dewey.

Palavras-chave: John Dewey; Pragmatismo; Teoria


Educacional; Filosofia da Educação.

Abstract
Experience is one of the most important notions of the
educational conception developed in 20th century, and
John Dewey is the most mentioned author when the issue
is experience. This work analyses the notion of experience
in John Dewey’s philosophy, focusing specially the book
Experience and education. This exam is complemented by
reflections of Jim Garrison in Dewey and Eros and by some
excerpts of Art as experience de Dewey.

Keywords: John Dewey; Pragmatism; Educational Theory;


Philosophy of Education.

1 Marcus Vinicius da Cunha é Professor Associado do Departamento de


Educ. foco,
Educação, Informação e Comunicação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Juiz de Fora,
Letras de Ribeirão Preto – USP v. 20, n. 2,
p. 251-266,
E-mail: mvcunha@hotmail.com 251 jul. 2015 / out. 2015
EXPERIÊNCIA E AFETO EM DEWEY: Experiência e afeto
em Dewey: uma
conexão orgânica

UMA CONEXÃO ORGÂNICA2


INTRODUÇÃO

Grande parte – se não a totalidade – das novas


pedagogias, desenvolvidas no decorrer século XX e ainda hoje
presentes, prescreve valorizar a experiência dos educandos
para a obtenção de sucesso no processo educativo. O termo
“experiência” assume várias conotações, dependendo da
corrente filosófica a que se filiam os teóricos, o que dificulta
sensivelmente o estabelecimento de consensos e até mesmo
interlocuções efetivas na área.
Neste texto, cujo caráter é meramente introdutório,
examinarei a noção de “experiência” em John Dewey (1859-
1952), talvez o filósofo mais mencionado por quem se
reivindica adepto de inovações educacionais. Sua notoriedade
decorre do fato de ter examinado o tema em inúmeros
trabalhos, sendo considerado por muitos estudiosos “o
filósofo da experiência”.3 Tomarei por base o livro Experiência
e educação de John Dewey, complementando a sua análise com
as considerações de Jim Garrison apresentadas em Dewey and
Eros, no intuito de destacar a relevância dos fatores afetivos no
conceituação deweyana.
Vale observar que Experiência e educação foi publicado
em 1938, quando Dewey já havia escrito grande parte de sua
obra filosófica e educacional, como se pode ver pela seguinte
amostragem de seus títulos:4 Como pensamos (1910, reformulado

2 Este texto foi adaptado da comunicação que apresentei no evento “O


pensamento educacional de Dewey em debate”, realizado na Faculdade de
Educação da UFRJ em 4 de novembro de 2010, com a presença de Renato José
de Oliveira e Susana de Castro Amaral Vieira, a quem agradeço a hospitalidade
e as contribuições oferecidas. Educ. foco,
3 Sobre Dewey, em consonância com a abordagem aqui adotada, ver Teixeira Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
(1978), Amaral (1990), Cunha (1994) e Pappas (2008). p. 251-266,
4 Indicarei em português as obras cujas traduções foram publicadas no Brasil. 253 jul. 2015 / out. 2015
Marcus Vinicius da Cunha
em 1933); Democracia e educação (1916); Reconstrução em
filosofia (1920); Human nature and conduct (1922); Experience
and nature (1925); The quest for certainty (1929); Arte como
experiência (1934). No mesmo ano de Experiência e educação,
Dewey publicou também Logic: the theory of inquiry e, no ano
seguinte, Teoria da valoração. Experiência e educação, portanto,
é um livro de reflexões amadurecidas, cuja elaboração visava a
delimitar os posicionamentos do autor perante novas e antigas
concepções de educação, conforme esclarecerei logo mais.
O OBJETIVO GERAL DO LIVRO

Em Experiência e educação, Dewey visa esclarecer


os pontos essenciais de sua proposta educacional, toda ela
fundamentada na noção de “experiência”, buscando contrapor-
se a duas outras concepções: a tradicional e a progressiva.
A oposição de Dewey ao ensino dito tradicional é bastante
conhecida; o que se destaca nesse livro são as reservas do autor,
nem sempre bem compreendidas, à educação progressiva, uma
das vertentes do amplo movimento de renovação do ensino
iniciado no final do século XIX em países da Europa e nos
Estados Unidos.
Experiência e educação é um livro importante porque,
dentre outros motivos, demarca os limites entre a filosofia
educacional deweyana e determinadas orientações do ensino
renovado tão em voga no início do século passado – e, de
certo modo, ainda hoje –, fundamentadas na tese de que o
aluno deve ocupar o centro do processo educacional, o que,
consequentemente, desloca para segundo plano a interferência
do professor e os programas de ensino.
A discordância de Dewey ante os dois modelos
educacionais, o antigo e o novo, é fundamentada na crítica aos
dualismos, tanto no campo da filosofia quanto no da educação.
O primeiro parágrafo do livro é bastante significativo, nesse
Educ. foco,
Juiz de Fora,
aspecto:
v. 20, n. 2,
p. 251-266,
O homem gosta de pensar em termos de
jul. 2015 / out. 2015 254 oposições extremadas, de pólos opostos.
Costuma formular suas crenças em termos de Experiência e afeto
em Dewey: uma
“um ou outro”, “isto ou aquilo”, entre os quais conexão orgânica

não reconhece possibilidades intermediárias.


Quando forçado a reconhecer que não se
pode agir com base nessas posições extremas,
inclina-se a sustentar que está certo em teoria
mas na prática as circunstâncias compelem
ao acordo. (DEWEY, 1971, p. 3)

Esse modo de pensar examinado por Dewey tem


reflexos na filosofia da educação, cuja história é “marcada pela
oposição entre a idéia de que educação é desenvolvimento de
dentro para fora e a de que é formação de fora para dentro”;
há pensadores que defendem que a educação deva ser baseada
nos “dotes naturais” dos educandos, enquanto outros definem
o trabalho educativo como “um processo de vencer as
inclinações naturais e substituí-las por hábitos adquiridos sob
pressão externa” (DEWEY, 1971, p. 3).
No primeiro capítulo e em outras passagens do livro,
Dewey explica os termos opostos em que se dividem a escola
tradicional, de um lado, e escola progressiva, de outro,
compondo um cenário que pode ser visualizado de maneira
sumária pelo seguinte quadro de oposições:

Escola Tradicional Escola Progressiva


Informações, habilidades Informações, habilidades e
e regras morais originadas regras morais correspondentes às
no passado necessidades vitais atuais dos alunos
Transmissão desses Valorização das oportunidades do
conteúdos e preparação presente
para o futuro
Aluno como receptor de Aluno como ser ativo; aprendizagem
conteúdos de matérias; pela experiência
aprendizagem como
aquisição por meio de
professores, que são Educ. foco,
comunicadores de Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
conhecimentos 255 p. 251-266,
jul. 2015 / out. 2015
Marcus Vinicius da Cunha
Escola Tradicional Escola Progressiva
Disciplina externa; Atividade livre (interna); expressão e
imposição de cima para cultivo da individualidade
baixo, sustentada na
autoridade do professor
Conteúdos estáticos e Conteúdos oriundos de um mundo
acabados, próprios de em permanente mudança
uma realidade que não se
transforma
Predomínio do adulto; Predomínio da criança; emergência
permanência do velho do novo

Os termos – colocados em destaque no quadro – que


definem a escola tradicional refletem um compromisso
educacional com a estabilidade e a permanência de valores
e comportamentos, enquanto os termos – igualmente
destacados no mesmo quadro – que caracterizam o movimento
progressivista sugerem o exato oposto. O distanciamento e as
barreiras entre ambos impede qualquer trânsito entre os dois
polos conceituais.

PROBLEMA E SOLUÇÃO

Considerando a vigência desses dualismos, Dewey


elege um problema a enfrentar: necessitamos de uma nova
filosofia da educação. Não se trata de recusar integralmente os
princípios da educação progressiva, mas é preciso reconhecer
que todos os princípios são, “em si mesmos, abstrações”; eles
se tornam “concretos somente nas consequências que resultam
de sua aplicação” (DEWEY, 1971, p. 7).
O parâmetro adotado é típico da concepção filosófica
pragmatista a que Dewey se filia, consistindo em jamais
descartar a priori quaisquer formulações teóricas, entendendo
Educ. foco, que a validade de cada uma delas ou a superioridade de uma
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, sobre outra não se define pelo debate estritamente teórico,
p. 251-266,
jul. 2015 / out. 2015 256 mas pela avaliação das consequências resultantes da aplicação
da teoria em situações concretas da vida, de modo geral, e da Experiência e afeto
em Dewey: uma
conexão orgânica
educação, em particular.
Exatamente porque os princípios acima
indicados são de tamanho alcance e tão
fundamentais, é que tudo depende da
interpretação que lhes for dada ao pô-los em
prática na escola e no lar. (...) A filosofia geral
da educação nova pode ser boa e certa, mas
a diferença em princípios abstratos não é o
que vai decidir o modo por que as vantagens
morais e intelectuais neles contidas se irão
concretizar na prática. (DEWEY, 1971, p. 7)

Na análise acerca da “autoridade”, compreende-se o


posicionamento de Dewey (1971, p. 8-9) perante os dualismos:
Quando se rejeita o controle externo, o problema é
como achar os fatores de controle inerentes ao processo de
experiência. Quando se refuga a autoridade externa, não se
segue que toda autoridade deva ser rejeitada, mas antes que
se deve buscar fonte mais efetiva de autoridade. Porque a
educação velha impunha ao jovem o saber, os métodos e as
regras de conduta da pessoa madura, não se segue, a não ser
na base da filosofia dos extremos de “isto-ou-aquilo”, que o
saber da pessoa madura não tenha valor de direção para a
experiência do imaturo.
Ao contrário disso, se a educação tomar por base a
“experiência pessoal” de todos os envolvidos no processo,
professores e alunos, pode-se obter, na prática, “contatos
mais numerosos e mais íntimos entre o imaturo e a pessoa
amadurecida” e, assim, “mais e não menos direção e orientação
por outrem”. Dewey, portanto, não rejeita a necessidade
orientar e dirigir os educandos, mas defende que essa meta
não pode ser alcançada pela imposição de objetivos externos
à experiência dos alunos, ou seja, conferindo à palavra Educ. foco,
Juiz de Fora,
“autoridade” a conotação consolidada pela visão tradicional v. 20, n. 2,
p. 251-266,
de educação. Não se trata de recusar a autoridade representada 257 jul. 2015 / out. 2015
Marcus Vinicius da Cunha
pelo professor, mas de conferir a ela o caráter de cooperação
com a experiência do aprendiz.
A solução, segundo Dewey (1971, p. 9) está em uma
“filosofia bem elaborada dos fatores sociais que operam na
constituição da experiência individual”. Como os princípios
abstratos não resolvem o problema na prática – ao contrário,
levantam novos problemas –, faz-se necessária uma “nova
filosofia da experiência”. Essa nova teoria é esboçada no
segundo capítulo do livro, no qual Dewey (idem, p. 14) toma,
como ponto de partida, a afirmação de que existe “conexão
orgânica entre educação e experiência pessoal”, o que torna a
filosofia da educação “comprometida com alguma espécie de
filosofia empírica e experimental”.
Essa última ideia, expressão de determinado
posicionamento teórico, não se explica por si mesma; ao
contrário, ela faz parte do problema que Dewey se dispõe
a enfrentar: antes de tudo, precisamos entender o que é a
experiência, para então podermos conhecer o significado
do empirismo que pleiteamos assumir. A questão central,
portanto, reside em responder à indagação sobre “o que é
experiência”.
CONEXÃO ORGÂNICA

Ao abordar o vínculo entre experiência e educação,


Dewey utiliza a expressão “conexão orgânica” para indicar
a estreita relação entre os dois termos, que são, para ele,
mutuamente dependentes, inseparáveis, constituindo uma só
unidade. A mesma expressão é utilizada por Dewey em outras
passagens de sua obra, usualmente para exprimir esse mesmo
significado.
No oitavo capítulo de Reconstrução em filosofia, por
exemplo, ao comentar os termos “indivíduo” e “sociedade”, tal
qual se apresentam nas teorizações da filosofia social, Dewey
Educ. foco,
Juiz de Fora,
(1959b, p. 177) diz que “a sociedade e os indivíduos são, entre
v. 20, n. 2,
p. 251-266,
si, correlativos, formando um todo orgânico”. Nesse mesmo
jul. 2015 / out. 2015 258
capítulo, como faz em Experiência e educação, Dewey também Experiência e afeto
em Dewey: uma
conexão orgânica
pretende romper certo dualismo, defendendo, dessa vez, a
indissociabilidadede entre o indivíduo e a sociedade; e alerta
para o fato de que de nada adianta afirmarmos abstratamente
tal indissociação, pois é preciso analisar, na prática, em cada
caso particular, qual é a relação concreta entre determinada
coletividade e seus membros (DEWEY, 1959b, p. 184).
Nota-se que o referencial adotado por Dewey é sempre
a prática, em oposição à abstração, à teorização, à idealização,
uma vez que afirmações teóricas constituem um problema, não
uma solução. Em Reconstrução em filosofia, o que está em pauta
é a defesa de que as teorizações são apenas “pontos de partida
de pesquisas acerca de cada instituição da comunidade”,
e Dewey (1959b, p. 184-185) considera “surpreendente”
o “desperdício de energia” que se dá quando insistimos em
“discutir problemas de ordem social em termos de conceitos
universais”.
O QUE É EXPERIÊNCIA?

Voltemos à questão: o que é a experiência, ou melhor,


o que é uma experiência verdadeiramente educativa? Podemos
dizer “verdadeiramente” porque, segundo Dewey (1971, p.
16), nem toda experiência é educativa: “Tudo depende da
qualidade da experiência por que se passa”. O critério para
julgar a qualidade ou o valor de uma experiência consiste em
examinar o que sucede após a experiência, ou seja, é preciso
levar em conta as experiências futuras. Dewey (idem, p. 14)
afirma que é “deseducativa toda experiência que produza o
efeito de parar ou distorcer o crescimento em direção a novas
experiências posteriores”,.
Dewey (1971, p. 14-15) apresenta uma série de situações
em que uma experiência pode ser deseducativa, no sentido
de dificultar novas experiências futuras. Por exemplo, se a
experiência produzir “dureza, insensibilidade, incapacidade Educ. foco,
Juiz de Fora,
de responder aos apelos da vida”; se “aumentar a destreza v. 20, n. 2,
p. 251-266,
em alguma atividade automática”, mas, com isso, habituar 259 jul. 2015 / out. 2015
Marcus Vinicius da Cunha
“a pessoa a certos tipos de rotina”; se for “imediatamente
agradável”, mas ainda assim “concorrer para atitudes
descuidadas e preguiçosas”. Por fim, as experiências serão de
baixa qualidade quando forem “desconexas e desligadas umas
das outras”, não se articulando “cumulativamente”, gerando
“hábitos dispersivos, desintegrados, centrífugos”, e, ainda, se
impedirem o aprendizado do “domínio de si mesmo”.
Para Dewey (1971, p. 16), a qualidade de uma experiência
deve ser avaliada segundo dois critérios: o “imediato”, que
diz respeito a ser “agradável ou desagradável”, e o “mediato”,
relativo à “sua influência sobre experiências posteriores”. Se o
primeiro soa “óbvio e fácil de julgar”, o segundo oferece certa
dificuldade, consistindo em um “problema para o educador”,
cuja tarefa é “dispor as coisas para que as experiências,
conquanto não repugnem ao estudante e antes mobilizem seus
esforços, não sejam apenas imediatamente agradáveis, mas o
enriqueçam e, sobretudo, o armem para novas experiências
futuras”.
No terceiro capítulo de Experiência e educação
encontram-se dois princípios que ajudam a compreender o
problema da qualidade de uma experiência: continuidade
e interação. O primeiro refere-se ao que já foi dito
anteriormente: uma experiência possui mais qualidade quando
afeta experiências subsequentes. Dewey (1971, p. 28-29)
reafirma que uma experiência de qualidade deve atuar sobre
as “condições objetivas em que ocorrerão novas experiências”;
uma experiência qualitativamente superior é a que “desperta
curiosidade, fortalece a iniciativa e suscita desejos e propósitos
suficientemente intensos para conduzir uma pessoa aonde for
preciso no futuro”; o valor de uma experiência “não pode ser
julgado, se não na base de para que e para onde ela se move”.
Sobre o princípio da interação, Dewey (1971, p. 35)
afirma: “Qualquer experiência normal é um jogo entre dois
Educ. foco, grupos de condições”, as “internas” e as “externas”, sendo que
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, ambas, tomadas em conjunto, constituem uma “situação”.
p. 251-266,
jul. 2015 / out. 2015 260 As condições “externas” ou “objetivas” remete aos fatores
ambientais que controlam a experiência individual, enquanto Experiência e afeto
em Dewey: uma
conexão orgânica
as condições “internas” dizem respeito aos traços inerentes da
pessoa que passa pela experiência.
Os princípios de interação e continuidade apresentam-
se de tal modo inseparáveis que podemos caracterizá-los como
constituintes de uma conexão orgânica. São dois termos que
“não se separam um do outro”; eles “se interceptam e se unem”;
são “aspectos longitudinais e transversais da experiência”,
conclui Dewey (1971, p. 37):
Diferentes situações sucedem umas às outras.
Mas, devido ao princípio de continuidade,
algo é levado de uma para outra. Ao passar
o indivíduo de uma situação para outra,
seu mundo, seu meio ou ambiente se
expande ou se contrai. (...) O que aprendeu
como conhecimento ou habilitação em
uma situação torna-se instrumento para
compreender e lidar efetivamente com a
situação que se segue.

Dewey (1971, p. 37-38) considera ainda que a “unidade


substancial” do processo reside no “fator individual, elemento
integrante da experiência”. Assim, uma “personalidade
completamente integrada” somente “existe quando as
sucessivas experiências se integram umas com as outras” e
quando essa personalidade pode “edificar o seu mundo como
um universo de objetos em perfeito relacionamento”.

A PRÁTICA COMO CRITÉRIO

Nos quatro capítulos seguintes de Experiência e educação,


Dewey analisa as oposições que separam a educação tradicional
da educação progressiva, buscando mostrar de que maneira é
possível superá-las. Não farei a exposição desses capítulos, pois
isto nos conduziria para muito longe do objetivo estabelecido Educ. foco,
Juiz de Fora,
no presente texto; vou ater-me apenas às ideias que finalizam v. 20, n. 2,
p. 251-266,
o livro. 261 jul. 2015 / out. 2015
Marcus Vinicius da Cunha
No último capítulo da obra, Dewey (1971, p. 95)
afirma que, no decorrer de sua exposição, deu como certo o
princípio de que a educação deva ser baseada na experiência,
“que é sempre a experiência atual de vida de algum indivíduo”.
Em outras palavras, ele informa que tomou por pressuposto o
vínculo orgânico entre educação e experiência, caracterizando
“experiência” como algo estritamente individual. Afirma
também que não argumentou “para a aceitação deste princípio”,
nem procurou justificá-lo; esforçou-se apenas para mostrar o
aspecto geral de uma educação que siga o “método científico
no desenvolvimento das possibilidades da experiência sempre
crescente e em expansão”.
A única possibilidade de fracasso de uma proposta de
educação que siga tais princípios reside no modo como esses
mesmos princípios – que são enunciados teóricos – forem
colocados em prática pelos educadores. Com esta afirmação,
Dewey mostra-se fiel ao que explanou anteriormente: a questão
central da educação não reside nos princípios abstratos que
buscamos para nortear a nossa prática, mas na própria prática,
ou seja, no modo como interpretamos e colocamos aqueles
princípios em ação em situações concretas. E os princípios
expostos por Dewey não fogem a essa regra: eles poderão
ser acatados por nós quando, na prática, mostrarem a sua
efetividade.
EXPERIÊNCIA E AFETOS

Para conferir maior amplitude à noção deweyana de


“experiência”, é importante observar que, em Democracia e
educação, Dewey (1959a, p. 153) comenta que uma experiência
nunca é “primariamente cognitiva”, pois seu valor “reside na
percepção das relações ou continuidades” a que nos remete. Se
a experiência não é primariamente cognitiva, então o que ela
é, primariamente?
Educ. foco, Ao discorrer sobre o conceito de “reflexão” ou
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, “investigação” em Arte como experiência, Dewey (p. 109-
p. 251-266,
jul. 2015 / out. 2015 262 110) diz que o processo de pensar reflexivamente é o que
propicia uma “experiência singular”, expressão que define Experiência e afeto
em Dewey: uma
conexão orgânica
o que ocorre “quando o material vivenciado faz o percurso
até a sua consecução”. Temos uma experiência singular
quando a experiência é “integrada e demarcada no fluxo
geral da experiência proveniente de outras experiências”,
como acontece quando concluímos uma obra qualquer,
quando solucionamos uma questão matemática ou quando
terminamos uma refeição. Uma experiência singular forma
“um todo e carrega em si um caráter individualizador e sua
autossuficiência. Trata-se de uma experiência”.
Uma experiência não se dissipa facilmente, não evapora
de maneira displicente; uma experiência é a que culmina na
resolução de um problema original, formando assim um todo
organizado. Embora seja desse modo, as experiências singulares
não trazem nenhuma “revelação final”, pois, para Dewey, não
podemos contar com o apoio de uma tabela eterna de valores.
Os valores a que somos conduzidos pela experiência singular
são construções sociais contingentes, sensíveis ao contexto,
às circunstâncias, à nuances da ocasião; em suma, são valores
constantemente abertos à reconstrução.
É por meio dessa análise que Jim Garrison (2010, p.
25) caracteriza a reflexão como “atividade artística criativa”,
poiësis. O autor extrai o significado de poiësis das intervenções
de Diotima no Banquete de Platão, em que se lê: denomina-se
“criação ou poesia a tudo aquilo que passa da não-existência
à existência” (Platão, 1954, p. 161). Garrison (2010, p. 8-9)
compreende poiësis como a arte de “chamar alguma coisa à
existência”, atribuir significado a alguma coisa (ver CUNHA;
PIMENTA, 2011).
O conhecimento relativo à poiësis é uma techné, palavra
cujo significado é sensivelmente diferente do que se atribui
ao termo theoria, vinculado à atitude de “especulação,
contemplação”, do qual advém o conhecimento denominado
epistéme. Por envolver techné, a poiësis é um empreendimento Educ. foco,
devotado à prática, exprimindo um saber aplicável, capaz de Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
operar transformações. Poiësis, portanto, diz respeito a atribuir 263 p. 251-266,
jul. 2015 / out. 2015
Marcus Vinicius da Cunha
significado a alguma coisa e, com isso, transformar a própria
coisa, criar novos sentidos para o mundo que nos cerca.
Para atingir essa realização, os poetas – segundo a
denominação antiga – operam, antes de tudo, sobre os
sentimentos das pessoas, sobre os componentes passionais
da alma, não sobre ingredientes racionais, cognitivos. Sendo
assim, quando Dewey afirma que a experiência nunca é
“primariamente cognitiva”, ele quer dizer que a experiência é,
primariamente, afetiva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Seguindo as proposições de Dewey, podemos dizer


que existe uma conexão orgânica entre experiência e afeto.
Uma experiência é algo que vivenciamos no interior de um
processo reflexivo que nos mobiliza para solucionar alguma
situação problemática, indeterminada, no intuito de torná-
la clara, definida, determinada; a solução a que chegamos,
no entanto, nunca é final, definitiva. Por isso, o que confere
valor a uma experiência é a sua capacidade de nos tornar mais
bem equipados para experiências futuras. Para que seja assim,
nenhuma verdadeira experiência acontece sem que estejamos,
de fato, afetivamente envolvidos por um problema.
Essa é a proposta de Dewey para a educação: os
professores deveriam propiciar aos alunos a oportunidade de
ter experiências, experiências verdadeiramente significativas
para eles. Para isso, os mestres deveriam operar não só no
âmbito do conhecimento científico sistematizado, que é o
objetivo de toda educação, mas também, e principalmente,
no espaço psicológico em que se localizam os afetos daqueles a
quem pretendem educar.
Mas podemos ir além. Os próprios educadores
deveriam fazer de seu trabalho uma experiência, concebendo
o seu ofício como um problema a ser enfrentado na prática.
Educ. foco,
Juiz de Fora,
Sem desconsiderar as teorias, os professores deveriam fazer
v. 20, n. 2,
p. 251-266,
da vivência em sala de aula uma experiência singular. Assim,
jul. 2015 / out. 2015 264
em vez de simples ação mecânica destinada a transmitir Experiência e afeto
em Dewey: uma
conexão orgânica
conhecimentos formalizados, a atuação do mestre deveria ser
continuamente reinventada por meio da constante reflexão
sobre a contingência que a envolve, sobre o caráter único das
situações em que se desenvolve.
REFERÊNCIAS

AMARAL, Maria Nazaré C. Pacheco. Dewey: filosofia e experiência


democrática. São Paulo: Perspectiva, EDUSP, 1990.
CUNHA, Marcus Vinicius. John Dewey: uma filosofia para educa-
dores em sala de aula. Petrópolis: Vozes, 1994.
CUNHA, Marcus Vinicius; PIMENTA, Rita. Reflexão, democra-
cia e poética em John Dewey. In: FÁVERO, Altair Alberto; TO-
NIETO, Carina (Orgs.). Leituras sobre John Dewey e a educação.
Campinas: Mercado de Letras, 2011.
DEWEY, John. Democracia e educação: introdução à filosofia da ed-
ucação. Tradução Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. 3. edição.
São Paulo: Nacional, 1959a.
______. Reconstrução em filosofia. Tradução António Pinto de Car-
valho. 2. edição. Nacional: São Paulo, 1959b.
______. Experiência e educação. Tradução Anísio Teixeira. São Pau-
lo: Nacional, 1971.
______. Arte como experiência. Tradução Vera Ribeiro. São Paulo:
Martins Fontes, 2010.
GARRISON, Jim. Dewey and Eros: wisdom and desire in the art of
teaching. Charlotte: Information Age Publishing, 2010.
PAPPAS, Gregory Fernando. John Dewey’s ethics: democracy as ex-
perience. Bloomington: Indiana University, 2008.
PLATÃO. Diálogos: Mênon, Banquete, Fedro. Tradução Jorge Pa-
leikat. 3. edição. Rio de Janeiro: Globo, 1954.
TEIXEIRA, Anísio. A pedagogia de Dewey. In: DEWEY, John.
Vida e educação. 10. edição. São Paulo: Melhoramentos, 1978.

Data de recebimento: novembro de 2013 Educ. foco,


Juiz de Fora,
Data de aceite: junho de 2014 v. 20, n. 2,
p. 251-266,
265 jul. 2015 / out. 2015
Outras Contribuições
“CURRÍCULO E CULTURA” “Currículo e Cultura”
ou sobre a formação
de professores nos
cursos de pedagogia

OU SOBRE A FORMAÇÃO
DE PROFESSORES NOS
CURSOS DE PEDAGOGIA
1
Geysa Spitz A. de Abreu
Jilvania Lima dos S. Bazzo2

Resumo
Este trabalho está inserido em uma pesquisa mais ampla
que vem discutindo a formação de professores da educação
infantil e anos iniciais do ensino fundamental em nível
superior. Considerando as contribuições conceituais e
analíticas de Bourdieu (1978; 1983; 2001) relativas à
formação cultural de estudantes advindos de distintas
classes sociais, visa-se refletir acerca dos componentes
curriculares para a formação de professores da educação
básica. Valendo-se da abordagem qualitativa (MEKSENAS,
2003; CANDAU, 2000) como horizonte epistemológico,
discute-se sobre a relação entre currículo, educação e
cultura, compreende-se o perfil dos ingressantes dos cursos
de licenciatura e busca-se entender os espaços e os tempos
destinados à ampliação cultural dos graduandos. Para tanto,
debate-se sobre uma experiência de formação inicial, no
curso de Pedagogia de uma Universidade Pública do Estado
de Santa Catarina, mediante a apreciação de algumas ações
curriculares: atividades complementares, programas de
curso/ensino e práticas de estágio curricular supervisionado.
A partir dessa discussão, concebe-se a formação cultural

1 Geysa Spitz Alcoforado de Abreu - Professora Adjunta do Centro de Ciências


Humanas e da Educação- FAED, da Universidade do Estado de Santa Catarina
– UDESC, vinculada ao Grupo de Pesquisa: Didática e Formação Docente, na
linha de pesquisa: Formação Docente e Infância.
E-mail: geysa.abreu@uol.com.br
2 Jilvania Lima dos Santos Bazzo - Professora colaboradora do Centro de
Educ. foco,
Ciências Humanas e da Educação- FAED, da Universidade do Estado de Santa Juiz de Fora,
Catarina – UDESC, vinculada ao Grupo de Pesquisa: PROLINGUAGEM. v. 20, n. 2,
p. 269-288,
E-mail: jilvaniabazzo@gmail.com 269 jul. 2015 / out. 2015
Geysa Spitz A. de Abreu
Jilvania Lima dos S. Bazzo
dos futuros profissionais da educação como uma ação
contínua e entende-se que, ao destinar tempo e espaço
para a ampliação do repertório cultural dos licenciandos,
os cursos de pedagogia contribuem para a promoção e o
desenvolvimento da pessoa humana e, em última análise,
para o fortalecimento da escola básica.

Palavras-chave: Formação docente; Currículo; Cultura.

Abstract
This paper is part of a wider research that has been
discussing the training of teachers from kindergarten to
college. From Bourdieu’ contributions (1978, 1983, 2001)
about concerning cultural education of students coming
from different social classes, we try to reflect on the essential
curriculum components to the basic teachers’ training.
Therefore, we chose a qualitative approach (MEKSENAS,
2003; CANDAU, 2000) as an epistemological horizon
and we discuss about relationships among curriculum
components, education and culture. We tried to understand
the undergraduates’ cultural background and we also want
to know about the learning situations have been promoting
the expansion of the students’ cultural background.
Therefore, we discuss about an experience of initial training
at the Faculty of Education at, a public university in the
state of Santa Catarina – Brazil, through assessment of some
curricular actions: complementary activities, teaching plans
and practices and supervised training. From this discussion,
we conceived cultural training of future professionals
of education as a continuous action. We think when the
pedagogy courses intended time and space to expand
the cultural repertoire of undergraduates, they have been
contributing to promotion and development the human
person and, ultimately, strengthening basic education.

Keywords: Teacher training; Curriculum; Culture.

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
p. 269-288,
jul. 2015 / out. 2015 270
“CURRÍCULO E CULTURA” “Currículo e Cultura”
ou sobre a formação
de professores nos
cursos de pedagogia

OU SOBRE A FORMAÇÃO
DE PROFESSORES NOS
CURSOS DE PEDAGOGIA
INTRODUÇÃO

O processo de ensino e aprendizagem não se resume ao


domínio de con­teúdos específicos pelo pro­fessor e à capacidade
de transmi­ ti-los – transposição didática. Inclui também
experiências éticas e estéticas que permitam a ampliação do
repertório cultural dos estudantes, isto é, um conjun­to de
experiências, de saberes, de informações e de conhecimentos
concretizado pela cultura: música, cinema, teatro, dança, artes
visuais, literatura, costumes, tradições, modos de produção,
de vivências e de relações interpessoais.
Concebendo a formação como um processo e a cultura
como aquilo que se vive e se produz, portanto de ação
contínua, entende-se que a preocupação com a ampliação
do repertório cultural do profissional que atuará na educação
básica deva permear o currículo dos cursos de pedagogia,
buscando fornecer ferramentas para possibilitar outras leituras
e interpretações do real.
Resta, no entanto, saber se as situações de aprendizagem,
disponibilizadas ao longo do curso de graduação, têm
oportunizado a ampliação do capital cultural dos alunos.
A partir dessa problematização, importa refletir acerca dos
componentes curriculares para a formação de professores da
educação infantil e ensino fundamental - anos iniciais.
Nesse contexto, pretende-se discutir em torno de algumas
das atividades desenvolvidas com os estudantes de graduação Educ. foco,
Juiz de Fora,
no curso de Pedagogia de uma instituição pública de ensino v. 20, n. 2,
p. 269-288,
superior do Estado de Santa Catarina, durante a realização de 271 jul. 2015 / out. 2015
Geysa Spitz A. de Abreu
Jilvania Lima dos S. Bazzo sua formação, nas diversas disciplinas que integram o projeto
do Curso e nas demais atividades acadêmicas oferecidas aos
graduandos ao longo de sua trajetória. Para tanto, este texto está
estruturado em três tópicos, que, no seu conjunto, procuram
responder às seguintes questões: Qual a relação entre currículo,
educação e cultura? Qual o perfil dos ingressantes nos cursos
de licenciatura? Quais os espaços e os tempos destinados para
a formação cultural dos graduandos dos cursos de pedagogia?
Ao propor uma superação de método único e
procedimentos únicos no campo da educação, Meksenas
(2003) compreende que, para se efetivar a ciência como um
processo democrático, o pesquisador precisa se reconhecer
como professor e, do mesmo modo, o professor precisa se
reconhecer como pesquisador. Na sua perspectiva, superar a
aparente dicotomia entre pesquisador e professor em si – ao
tempo em que se atinge “uma ação do conhecimento por si”
– ajuda sobremaneira a corrigir a “hierarquização existente
entre trabalho intelectual e trabalho manual, entre dirigentes
e dirigidos” (MEKSENAS, 2003, p. 28).
A partir dessa percepção de articulação crítica entre o
“fazer” e o “pensar”, o trabalho ora apresentado se fundamenta
na abordagem qualitativa como horizonte epistemológico. A
análise documental se constituiu no instrumento fundamental
para a coleta dos dados. Sem negar outras fontes de informações,
as principais foram: os planos de ensino das disciplinas, bem
como os processos e respectivos pareceres relativos aos projetos
de ensino, pesquisa e extensão encaminhados ao Departamento
de Pedagogia nos últimos dois anos.
Registra-se que este trabalho está inserido em uma
pesquisa mais ampla que vem discutindo a formação de
professores da educação infantil e anos iniciais do ensino
fundamental em nível superior. Nesta pesquisa, vem-se
reunindo esforços na análise da consolidação de um novo
Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
p. 269-288,
jul. 2015 / out. 2015 272
modelo curricular3 instituído pelas exigências legais, tentando “Currículo e Cultura”
ou sobre a formação
de professores nos
identificar as repercussões na formação de professores, a partir cursos de pedagogia

das ações empreendidas pelas instituições formadoras para


atender às novas demandas sociais.
RELAÇÕES ENTRE CURRÍCULO, EDUCAÇÃO E CULTURA

A relação entre currículo, educação e cultura não pode


ser pensada de forma dissociada, uma vez que
toda educação, e em particular toda
educação de tipo escolar, supõe sempre na
verdade uma seleção no interior da cultura e
uma reelaboração dos conteúdos da cultura
destinados a serem transmitidos às novas
gerações. (FORQUIN, 1993, p.14)

O currículo transmite uma parte da cultura, a que


passou pelo crivo e se transformou em saber importante ou
válido ou essencial de ser aprendido. Ademais, cabe destacar
que, por ser um processo, é pela vivência dessa seleção cultural
que os estudantes poderão produzir outras e novas culturas –
isto é, modos de viver e de pensar ampliados, para além de suas
experiências anteriores. O currículo é, sem dúvidas, um campo
de disputas, um “território contestado” onde os saberes estão
hierarquicamente organizados (SILVA, 1999, p.16). Pode-se,
a partir disso, pensar acerca do jogo de forças políticas entre
os envolvidos na reformulação das propostas pedagógicas dos
cursos. A partir daí, uma questão que se coloca é: “quem deve
controlar a seleção e distribuição do conhecimento? Por meio
de que instituições?” (PACHECO, 2005, p.31).
Forquin (1993, p.168) estabelece uma relação entre
cultura e educação, destacando que “a cultura é o conteúdo
substancial da educação, sua fonte e sua justificativa última” e
que educar, ensinar é

3 A mudança curricular ocorreu a partir da Resolução Nº 1/2006, do Conselho


Educ. foco,
Nacional de Educação, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
o curso de Pedagogia, sendo que a docência passou a ser o foco prioritário da p. 269-288,
formação do pedagogo. 273 jul. 2015 / out. 2015
Geysa Spitz A. de Abreu
Jilvania Lima dos S. Bazzo
colocar alguém em presença de certos
elementos da cultura a fim de que ele deles se
nutra, que eles os incorpore à sua substância,
que ele construa sua identidade intelectual e
pessoal em função deles (FORQUIN, 1993,
p. 168).

A compreensão da cultura enquanto conteúdo


substancial da educação oferece também a possibilidade de
análise do currículo escolar como prática cultural. Refletir,
portanto, acerca da seleção cultural presente no currículo para
formação de professores é, de certa maneira, problematizar
a capacidade dos formadores para selecionar e distribuir
o conhecimento já sistematizado. E, para além disso, a
capacidade dos formadores de criar as condições necessárias
para a produção de novas culturas, modos de viver, de pensar
e de se relacionar das pessoas.
Na sociedade contemporânea coexistem distintas
instâncias de socialização, produtoras de valores culturais
e referências identitárias, das quais Setton (2002) propõe
considerar a família, a escola e a mídia. Essas instâncias se
relacionam de forma dinâmica, podendo ser essa relação
de continuidade ou de ruptura. A família assume papel
fundamental, pois é o primeiro núcleo promotor de
ação educativa sobre seus integrantes, responsável pelo
desenvolvimento sociocultural.
A escola, instância de socialização secundária, introduz
um indivíduo já socializado em novos setores do mundo
objetivo da sociedade (BERGER & LUCKMANN, 1987,
p. 175). Outros sistemas de valores, vistos como “maquinaria
conceitual”, interiorizados na socialização secundária,
atuam para formar uma estrutura mental marcada pelo
entrecruzamento com os valores adquiridos na socialização
Educ. foco, primária. O contato com outras instituições sociais, além da
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, família, possibilita mudanças na concepção de mundo, sendo
p. 269-288,
jul. 2015 / out. 2015 274 esta redefinida em referência a um campo especializado de
atividades, sobretudo nas instituições escolares, mas também “Currículo e Cultura”
ou sobre a formação
de professores nos
em outras instituições sociais. cursos de pedagogia

A construção da identidade social seria estruturada


dentro de um contexto em que diferentes concepções de
mundo se entrecruzam, se redefinem e, muitas vezes, entram
em conflito e em (re)negociação. Dessa forma, as instituições
de socialização não são consideradas como funcionalmente
integradas e complementares umas às outras, existindo a
possibilidade de transformação da identidade social adquirida
na socialização primária (ABREU, 2007).
Atribui-se a escola um importante papel na formação
cultural dos indivíduos, na ampliação de saberes acumulados,
que é condição para o desenvolvimento da capacidade crítica
e criativa do indivíduo. Além do conhecimento “de tipo
escolar”, arbitrariamente selecionado no rol de conhecimentos
produzidos pela humanidade, o processo de formação deve
também incluir um conjun­to de experiências, de saberes, de
informações e de conhecimentos concretizados pela cultura,
incluindo a música, o cinema, o teatro, a dança, as artes visuais,
a literatura e, ainda, os costumes, as tradições, os modos de
produção, de vivências e de relações interpessoais.
Sem dúvida, é por meio da imersão nesse universo
cultural mais amplo que o indivíduo amplia a sua compreensão
do mundo, por meio de outras leituras e interpretações do
real. Por ser pro­cesso, trata-se de ação contínua e, além dis­so,
cumulativa. É importante destacar que o indivíduo não é aqui
entendido como um ser passivo, que sofre a ação socializadora
das diferentes instituições sociais. Aqui vale ressaltar também
a dimensão constitutiva da linguagem, como um lócus de
produção de discursos e de formação de seres humanos
(ORLANDI, 2001; SMOLKA, 2001).
Em outras palavras, ao considerar a possibilidade de
conflito entre os valores dos padrões normativos da primeira
e da segunda socialização, atribui-se uma participação ativa Educ. foco,
Juiz de Fora,
do indivíduo nas instâncias socializadoras, conferindo a ele v. 20, n. 2,
p. 269-288,
maior autonomia e liberdade reflexiva. Esse indivíduo é 275 jul. 2015 / out. 2015
Geysa Spitz A. de Abreu
Jilvania Lima dos S. Bazzo concebido como tendo capacidade de dialogar, questionar e
escolher um universo de relações, bem como os valores que
constituem esse universo diferente dos demais (Cf. BERGER
& LUCKMANN, 1987; SETTON, 2005; ABREU, 2007).
Nesse sentido, o currículo de um curso de pedagogia
haverá de prever espaços formativos de intenso diálogo, isto é,
de encontro entre pessoas, para fomentar a troca e a construção
de informações, conhecimentos e saberes de diversas naturezas:
científica, artística e sociocultural. Ao mesmo tempo, criadas
as situações de aprendizagem, o currículo poderá estimular
o desenvolvimento da capacidade de recepção e elaboração
de conflitos como também de negociação, os quais são
inerentes ao processo de relação entre os professores – sujeitos
que selecionam a priori os conhecimentos produzidos e
sistematizados pelos/nos ambientes formais de educação –
e os estudantes cuja produção resultará de um movimento
entre culturas visando favorecer significativamente a formação
e ampliação do acervo cultural para um determinado fim,
qual seja: ser professor da educação básica atuando como
profissional da educação infantil e anos iniciais do ensino
fundamental. Conforme ressalta Sacristán,
[...] não será fácil melhorar a qualidade do
ensino se não se mudam os conteúdos, os
procedimentos e os contextos de realização
dos currículos. Pouco adiantará fazer
reformas curriculares se estas não forem
ligadas à formação dos professores. Não existe
política mais eficaz de aperfeiçoamento de
professorado que aquela que conecta a nova
formação àquele que motiva sua atividade
diária, o currículo (SACRISTÁN, 2000, p.
10).

Em suma, pensar sobre a formação cultural dos


professores da educação básica exigirá ainda mais uma
Educ. foco, postura crítico-reflexiva frente aos desafios educacionais do
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, século XXI no sentido de garantir uma imbricação entre “os
p. 269-288,
jul. 2015 / out. 2015 276 conteúdos, os procedimentos e os contextos de realização dos
currículos”, bem como as situações e os contextos estruturados “Currículo e Cultura”
ou sobre a formação
de professores nos
e estruturantes aos quais estão imersos esses professores. cursos de pedagogia

REFLEXÕES SOBRE O PERFIL CULTURAL DOS


INGRESSANTES NOS CURSOS DE LICENCIATURA

Bourdieu e Passeron (1978) problematizam a ideologia


da “escola libertadora”, que toma o sistema escolar como fator
de mobilidade social, para descrever os mecanismos objetivos
responsáveis pelas desigualdades no rendimento escolar de
estudantes pertencentes aos diferentes grupos sociais. Em sua
análise, os autores ressaltam que as oportunidades de acesso ao
ensino superior é resultado de uma seleção direta ou indireta
ao longo da escolaridade, que pesa de maneira desigual sobre
os indivíduos das diferentes classes sociais.
Nos cursos de licenciatura, se comparados a outros
cursos superiores com maior prestígio social, a relação entre
candidatos/vaga no processo seletivo é relativamente baixa.
É comum encontrar alunos que, embora tenham escolhido
uma das áreas da educação, ressaltam o desejo de realizar
outro curso superior e afirmam ainda que não conseguiram
aprovação – ou sequer tentaram se inscrever para a seleção –
por não se considerarem aptos para tal.
Bagno (2010) apresenta uma descrição do perfil
socioeconômico e cultural dos estudantes que são aprovados
nos cursos de licenciatura. De acordo com o pesquisador,
O desprestígio que vem acompanhado
fielmente a profissão docente nas últimas
quatro ou cinco décadas – devido à degradação
progressiva e permanente das condições de
trabalho e aos salários aviltantes – tem levado
a uma redução drástica do contingente de
pessoas bem formadas, bem letradas e de
origem socioeconômica privilegiada (classes Educ. foco,
Juiz de Fora,
médias e altas) que querem se dedicar ao v. 20, n. 2,
p. 269-288,
ensino básico (BAGNO, 2010, p. 20). 277 jul. 2015 / out. 2015
Geysa Spitz A. de Abreu
Jilvania Lima dos S. Bazzo Esses alunos, ainda segundo Bagno (2010), têm
um histórico de letramento muito reduzido, ou seja, eles
possuem pouca relação com a cultura escrita e audiovisual
mais elaborada, não têm acesso a livros, revistas, enciclopédias
etc., não são falantes das normas urbanas de prestígio e têm
domínio muito precário da leitura e da escrita.
Em função desse perfil, pode-se afirmar que o poder
aquisitivo da maioria dos alunos dos cursos de Pedagogia, bem
como dos alunos das demais licenciaturas, difere significativamente
da maioria daqueles que frequentam os cursos de “alta demanda”
(Medicina, Direito, Engenharias, Odontologia, entre outros),
aliado ao fato dos estudantes não terem acesso aos bens culturais
mais elaborados que são produzidos e difundidos socialmente e
de direito de todos, a exemplo do teatro, do cinema, da música,
de exposição de arte e de ciência.
Vê-se nas oportunidades de acesso ao ensino superior
o resultado de uma seleção direta ou indireta que, ao longo
da escolaridade, pesa com rigor desigual sobre os sujeitos das
diferentes classes sociais. Esses dados indicam a necessidade de
uma especial atenção à formação inicial de professores.
Por conta dessa constatação, o conceito de capital
cultural de Bourdieu (1983; 2001) nos ajuda a entender as
contradições presentes no sistema escolar4. O capital cultural
aparece como um bem, constituído de saberes, códigos e
outras competências, cuja posse confere aos seus detentores
uma distinção social, uma vez que os habilita a apresentar
os “melhores desempenhos escolares e uma relação de
naturalidade e de intimidade com as práticas sociais e culturais
mais valorizadas socialmente” (SETTON, 2005).

4 Bourdieu formulou o conceito de capital cultural para dar conta da desigualdade


de desempenho escolar de crianças de diferentes classes sociais, relacionando
o “sucesso escolar” com a distribuição desse capital específico entre as classes,
Educ. foco,
distanciando-se dos pressupostos da teoria das “aptidões individuais” e
Juiz de Fora, das teorias do “capital humano”. De acordo com o conceito elaborado por
v. 20, n. 2,
p. 269-288,
Bourdieu, o capital cultural existe sob três formas: incorporado, objetivado e
jul. 2015 / out. 2015 278 institucionalizado (Cf. BOURDIEU, 1983, p. 71-79).
Relativizadas as críticas em torno do caráter hereditário “Currículo e Cultura”
ou sobre a formação
de professores nos
e determinista da perspectiva teórica de Bourdieu (1978; cursos de pedagogia

1983; 2001), sua contribuição consiste em indicar a existência


de formas imateriais de capital (simbólico, social, cultural)5 e
permite compreender as relações entre competências culturais
e linguísticas próprias de determinada classe social e suas
configurações no desempenho da/na escola.
Assim, pode-se inferir que quanto maior e mais
diversificado for o capital cultural dos professores, mais
numerosas e apropriadas serão as escolhas possíveis para que
este professor possa mediar a apropriação dos conhecimentos
escolares pelas crianças, jovens e adultos da educação básica.
Conforme destaca Bourdieu (1983, p. 62), é função da escola
“de fato e de direito [...] desenvolver em todos os membros da
sociedade, sem distinção, a aptidão para as práticas culturais
que a sociedade considera como as mais nobres”.

ESPAÇOS E TEMPOS PARA A FORMAÇÃO CULTURAL:


SOCIALIZANDO EXPERIÊNCIAS E SENTIDOS

Uma obra de arte vivenciada pode


efetivamente ampliar a nossa concepção de
algum campo de fenômenos, levar-nos a ver
esse campo com novos olhos, a generalizar
e unificar fatos amiúde inteiramente
dispersos. É que, como qualquer vivência
intensa, a vivência estética cria uma atitude
muito sensível para os atos posteriores, e,
evidentemente, nunca passa sem deixar
vestígios para o nosso comportamento. [...]
De forma idêntica, toda vivência poética
parece acumular energia para futuras ações,
dá a essas ações um novo sentido e leva a ver
o mundo com novos olhos (VIGOTSKI,
2004, p. 342-343).
Educ. foco,
Juiz de Fora,
5 Mesmo que essas formas imateriais de capital não estejam totalmente v. 20, n. 2,
p. 269-288,
desvinculadas da posse de capital econômico. 279 jul. 2015 / out. 2015
Geysa Spitz A. de Abreu
Jilvania Lima dos S. Bazzo Importa ratificar a crença na força da vivência da
arte – e por que não dizer da ciência também – no processo
formativo dos seres humanos para provocar a construção de
outros sentidos, referências e significados, e ainda enfatizar
que esta vivência amplia o seu acervo cultural, isto é, seus
valores, suas regras, seus procedimentos e suas atitudes, que
são incorporados ao modo de ser e de fazer dos indivíduos
que experienciam o vigor do encontro e da relação, imbuídos
em um fluxo caótico e descontínuo, cujos resultados serão
observados em longo prazo.
De igual modo, pontuar também que a prática como
profissional da educação básica – na educação infantil e anos
iniciais do ensino fundamental, sobretudo quanto à formação
e vivência estética do professor em “espaços de cultura” – exige
uma densa carga de estudos e pesquisas relativas às questões
que articulam intrinsecamente educação, cultura e currículo.
Na sequência das reflexões aqui empreendidas, tendo
como referência as relações anteriormente ressaltadas entre
currículo e cultura, passa-se a refletir sobre uma experiência
de formação inicial, no curso de Pedagogia de uma instituição
pública de ensino superior do Estado de Santa Catarina.
Nessa proposta curricular, existem alguns momentos bem
evidenciados, que visam a possibilitar a formação cultural dos
futuros professores da educação básica, a saber: nas atividades
complementares, mediante os programas e projetos de ensino,
pesquisa e extensão, no interior das disciplinas e nas práticas
de estágio curricular supervisionado. Desses momentos,
destacam-se as seguintes experiências/ações:

11.  DAS ATIVIDADES COMPLEMENTARES

Os estudantes são convidados a participar de diversas


atividades durante a sua formação para refletirem e vivenciarem
Educ. foco, algumas ações vinculadas à tarefa de ensinar a leitura e a
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, escrita para crianças, jovens e adultos. Essas atividades são
p. 269-288,
jul. 2015 / out. 2015 280 desenvolvidas por meio de projetos de ensino e de extensão,
que têm como objetivo primordial trabalhar as questões “Currículo e Cultura”
ou sobre a formação
de professores nos
voltadas para a linguagem e o ensino de língua portuguesa cursos de pedagogia

da educação infantil ao ensino fundamental, incluindo a


modalidade de educação de jovens e adultos.
Como parte integrante de mais dois projetos de ensino
e extensão, acontecem anualmente a Jornada de Linguagem
da FAED e a Semana de Pedagogia com palestras, oficinas,
mostras educativo-culturais, mesas redondas, debates, exibição
de filmes, entre outras atividades.
Tendo em vista a ênfase na utilização da música nas/
pelas instituições escolares, bem como entendendo que, no
processo de formação de professores, é preciso garantir um
tempo para se pensar e experienciar a linguagem musical, na
instituição pesquisada tem sido oferecidas oficinas sobre a
linguagem musical na formação do pedagogo.
Outra experiência interessante vem sendo desenvolvida
por meio da linguagem cinematográfica. Na instituição estudada,
a linguagem cinematográfica é interpretada como aquela
capaz de ativar outras concepções/percepções diferenciadas
em torno de uma questão problematizadora. Assim, o cinema
vem sendo explorado pelos professores das diversas áreas das
Ciências Humanas (Filosofia, Psicologia, História, Sociologia,
Antropologia, entre outras) desde o primeiro semestre do Curso
de Pedagogia, quer seja integrado aos projetos de extensão, quer
seja aos projetos de ensino, com uma proposta pautada em
oportunizar o acesso a filmes para além do circuito comercial.
Nesse sentido, defendem que o cinema educa o olhar, as relações
entre as pessoas e os seus modos de perceber/compreender os
desafios impostos pela vida,
digamos que o cinema é a arte do visível, a
que foi dada a capacidade do relato, graças
ao movimento. E, também, sem dúvida,
muitas outras capacidades, várias delas
ainda desconhecidas. Ninguém disse que
Educ. foco,
o cinema é somente um artefato para se Juiz de Fora,
contar histórias. Quiça, pudesse-se dizer v. 20, n. 2,
p. 269-288,
que, no cinema, do que se trata é do olhar, 281 jul. 2015 / out. 2015
Geysa Spitz A. de Abreu
Jilvania Lima dos S. Bazzo
da educação do olhar. De precisá-lo e de
ajustá-lo, de ampliá-lo e de multiplicá-
lo, de inquietá-lo. O cinema abre-nos os
olhos, os coloca na justa distância e os põe
em movimento (TEIXEIRA, LARROSA,
LOPES, 2006, p. 12).

Os resultados alcançados, tanto na fase de


acompanhamento quanto de avaliação dessa proposta,
apontam que as discussões ainda não atingiram um patamar
mais avançado no sentido de explorar alguns recursos usados
pelo cinema. Sem dúvida, será preciso mais investimento nos
processos de interlocução e mediação entre leitores experientes
(os formadores) e menos experientes (os graduandos) a fim
de ampliar ainda mais o repertório cultural dos estudantes
de Pedagogia, especialmente no tocante ao acervo pessoal
– de cada um dos envolvidos – relacionado a esta arte. De
qualquer forma, é inegável reconhecer que essa linguagem tem
se mostrado bastante atrativa, contribuindo para possibilitar
o desenvolvimento das competências e habilidades requeridas
aos professores da educação básica. Alguns alunos relatam
que tais experiências suscitaram o desejo, por exemplo, de
frequentar salas que exibem filmes alternativos àqueles do
circuito comercial.
É importante ressaltar os alertas de outros pesquisadores
de que a política de eventos é o oposto de uma política
cultural: “designa um conjunto de programas isolados - que
não configuram um sistema, não se ligam necessariamente
a programas anteriores nem lançam pontes necessárias
para programas futuros” (TEIXEIRA-COELHO, apud
NOGUEIRA, 2008).
Nogueira (2008, p. 10) enfatiza que essa política
não contribui para “alavancar medidas que efetivamente
Educ. foco, proporcionem a construção de um processo de formação
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, cultural”, uma vez que, geralmente, quem se mobiliza a
p. 269-288,
jul. 2015 / out. 2015 282 participar já está previamente sensibilizado para a importância
das manifestações culturais e já faz parte de um pequeno grupo “Currículo e Cultura”
ou sobre a formação
de professores nos
privilegiado em relação ao acesso aos bens culturais. cursos de pedagogia

Para o grupo maior, aquele formado por


alunos que não puderam usufruir de
uma formação cultural sólida no âmbito
familiar ou no da educação básica, essas
iniciativas passam desapercebidas, pois não
os mobiliza, nem os convoca a uma postura
de responsabilidade perante sua própria
formação. Dessa forma, a universidade
reforça o fosso cultural existente, no nosso
país, que separa os “bem nascidos”, os que
têm acesso aos bens culturais produzidos
pela humanidade, da grande massa que
consome apenas os produtos de valor
estético duvidoso que a indústria cultural
lhes oferece (NOGUEIRA, 2008, p. 11).

Não podemos deixar de destacar, no entanto, que há


no projeto do curso da instituição analisada a preocupação
em envolver um número maior de acadêmicos de Pedagogia.
Isso se faz evidente em outras iniciativas, a exemplo da
institucionalização de uma viagem de estudos interestadual
no terceiro semestre do curso de Pedagogia que, para muitos
estudantes, pode ser a primeira oportunidade de sair de sua
cidade/estado de origem. A título de ilustração, cabe mencionar
um dos roteiros de uma viagem empreendida à cidade de São
Paulo, que incluiu visita ao Museu da Língua Portuguesa,
à Pinacoteca, ao Centro Cultural do Banco do Brasil do
Estado de São Paulo e ao Museu Afro Brasil. Na justificativa
da professora responsável pela viagem, essas são instituições
educativas que abrigam inúmeras obras a partir da produção
literária, técnica, científica e histórica do país e de outras
partes do mundo, podendo, por isso, propiciar a compreensão Educ. foco,
Juiz de Fora,
da variedade das produções artísticas e concepções estéticas v. 20, n. 2,
p. 269-288,
presentes na história das diferentes culturas e etnias. 283 jul. 2015 / out. 2015
Geysa Spitz A. de Abreu
Jilvania Lima dos S. Bazzo
12.  DAS DISCIPLINAS E DOS ESTÁGIOS CURRICULARES
OBRIGATÓRIOS

Atentos ao fato de que os estudantes do curso de


Pedagogia raramente ou quase nunca frequentavam/circulavam
por espaços culturais e artísticos, algumas disciplinas foram
especialmente selecionadas para promover a vivência da arte
e da cultura, na busca de superar os limites da reprodução
de modelos e concepções alheias que legitimam as ideologias
dominantes.
No programa de uma das disciplinas do currículo,
são objeto de reflexão os conceitos de “arte, educação e
ludicidade”, prevendo em seu plano de ensino a realização de
visitas a museus, a cinemas, a teatros e a brinquedotecas, a fim
de problematizar os espaços intrinsecamente relacionados ao
trabalho efetivo em sala de aula e, com isso, também ampliar
o repertório cultural dos graduandos.
No programa das disciplinas de Prática de Ensino/
Estágio Supervisionado, constam visitas a outras redes públicas
de ensino, dentre as quais, podemos mencionar: visitas a
instituições de educação infantil dos municípios de Gaspar-SC
e Pomerode - SC e visita a escolas da rede pública municipal
de Porto Alegre. Essas saídas para estudos e investigações são
justificadas como oportunidades de observar outras práticas
e aprender com diferentes experiências, podendo contribuir
para a produção de inovações didático-pedagógicas e/ou para
a compreensão de que existem outros caminhos teóricos e
metodológicos possíveis.
Por meio da análise da metodologia presente no plano
de ensino, constatou-se que há uma seleção prévia de um texto-
suporte para leitura, antes de cada visita. Estão previstos registros
fotográfico e fílmico, quando permitidos. Após a efetivação
da visita, os estudantes devem elaborar um relatório no qual
Educ. foco, apresentam as suas impressões, as emoções vividas/sentidas, os
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, registros fotográficos e as relações com o texto lido. Quando
p. 269-288,
jul. 2015 / out. 2015 284 possível, relacionam a atividade ao estágio curricular obrigatório.
Além de saídas de campo, consta no plano de ensino “Currículo e Cultura”
ou sobre a formação
de professores nos
dessas disciplinas a apresentação de seminários integrados a cursos de pedagogia

oficinas sobre desenho, material artístico, linguagem musical,


linguagem teatral e linguagem corporal através da dança. Ao
final do semestre, os estudantes deverão apresentar um artigo
articulando os conhecimentos adquiridos/ produzidos durante
o curso e em sincronia com as atividades desenvolvidas no
estágio curricular supervisionado.
Em uma sociedade onde a distribuição do acesso a bens
culturais privilegia determinadas camadas em detrimento de
outras, e onde a consciência dessa desigualdade é socialmente
condicionada, o papel da Universidade na superação das
desigualdades culturais de seus alunos torna-se essencial.
Podemos problematizar se a existência de ações, tais como
as saídas de campo/viagem de estudos ou sessões de cinema
como parte do programa de algumas disciplinas, prevendo
a participação obrigatória dos acadêmicos, são ações
fundamentais na construção de um processo de superação das
desigualdades culturais, pela ampliação do repertório cultural
de professores em formação.

A guisa de conclusões
O que trocam os professores e alunos quando estão em
uma relação de ensino e de aprendizagem? Possivelmente, as
concepções e os modos de relacionar e ser/fazer compartilhados
– quer sejam através de suas ações quer sejam pela explicitação
das escolhas teóricas e metodológicas – portanto, cultura (ou
seriam culturas?).
Considerando que a arte não é um dom, como muitos
ainda acreditam, e que as práticas escolares não devem ser
pautadas na imposição do padrão estético de belo do adulto
e/ou do artista consagrado, ressaltou-se, ao longo do texto, a
necessidade de oportunizar o contato dos acadêmicos do curso Educ. foco,
Juiz de Fora,
de Pedagogia com material oriundo das diferentes linguagens v. 20, n. 2,
p. 269-288,
artístico-culturais, que lhes possibilite distintas leituras da 285 jul. 2015 / out. 2015
Geysa Spitz A. de Abreu
Jilvania Lima dos S. Bazzo realidade e que promova outras reflexões e outras práticas
criativas nas instituições de educação básica.
Acredita-se que vivenciar experiências estéticas pode,
sim, estimular os acadêmicos a perceber a necessidade de
também investirem na sua própria formação cultural, o que
certamente será um diferencial no exercício de sua função
social: ser professor de crianças, jovens e adultos.
Algumas questões, contudo, ainda estão em aberto e
necessitam de outras análises e outros estudos de maior fôlego
para serem respondidas, dentre elas: Quais são as repercussões
de uma formação docente que priorize a ampliação do
repertório cultural dos professores da educação infantil e anos
iniciais do ensino fundamental?
Há uma aposta na constituição de sujeitos pela imersão
em espaços propiciadores do “livre criar” em conexão
com as diferentes formas de manifestação de ser, de viver
e de produzir dos povos em geral – arte, ciência, tradições,
costumes, culinária, moda, valores, regras etc. Existe uma
crença também na partilha dessas diferentes formas de vida,
isto é, das diferentes culturas – conforme destacou Homi
Bhabha no seu livro “O local da cultura” – como possibilidade
de abrir um caminho farto de possibilidades a ponto de os
estudantes irem além do reconhecimento e do acolhimento
das diversidades culturais, bem como das críticas aos racismos,
às discriminações e às exclusões.
Nesse sentido, outra questão que se apresenta é: os
professores egressos dos cursos de Pedagogia têm conseguido
nas suas práticas pedagógicas, oportunizar aos seus alunos a
experiência com diferentes linguagens artísticas e a vivência em
espaços educativo-culturais, para além dos muros da escola?
REFERÊNCIAS

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Juiz de Fora,
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Data de recebimento: outubro de 2012


Data de aceite: dezembro de 2013

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
p. 269-288,
jul. 2015 / out. 2015 288
DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA Docência Universitária
a Distância: Um Estudo
sobre o Processo de
Ensino-Aprendizagem

A DISTÂNCIA: UM ESTUDO na Modalidade


Semipresencial

SOBRE O PROCESSO DE
ENSINO-APRENDIZAGEM NA
MODALIDADE SEMIPRESENCIAL
Walteno Martins Parreira Júnior 1
Silvana Malusá 2
Guilherme Saramargo de Oliveira 3

Resumo
Este trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa sobre
docência universitária a distância, em cursos de formação
de professores que adotam a modalidade semipresencial.
Teve como objetivo compreender como ocorre o olhar
do professor universitário sobre sua prática pedagógica.
Utilizou-se como instrumento de pesquisa um questionário,
construído nas abordagens quanti e qualitativa, composto
por três partes: identificação/qualificação docente, conteúdo
programático e questões abertas. Os docentes atuam em
dois cursos de uma Instituição do Ensino Superior do
Triângulo Mineiro, Minas Gerais Ele foi aprovado sob o

1 Walteno Martins Parreira Júnior – Mestre em Educação pela Universidade


Federal de Uberlândia – UFU. Professor da Universidade do Estado de
Minas Gerais/UEMG - Unidade Ituiutaba. Membro do grupo de pesquisa
“Desenvolvimento profissional e docência universitária: saberes e práticas
educativas” do Programa de Pós-Graduação.
E-mail: waltenomartins@yahoo.com
2 Silvana Malusá – Doutora em Educação pela Universidade Metodista
de Piracicaba – Unimep. Professora da Faculdade de Educação da UFU,
coordenadora do grupo de pesquisa “Desenvolvimento profissional e docência
universitária: saberes e práticas educativas” PPGEd-UFU.
E-mail: malusa@faced.ufu.br
3 Guilherme Saramago de Oliveira – Doutor em Educação pela UFU,
professor da Faculdade de Educação da UFU, membro do grupo de pesquisa Educ. foco,
“Desenvolvimento profissional e docência universitária: saberes e práticas Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p.
educativas” do PPGEd-UFU. 289-314,
E-mail: gsoliveira@ufu.br. 289 jul. 2015 / out. 2015
Walteno Martins Parreira Júnior
Silvana Malusá
nº 638/11 do Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade
Guilherme Saramargo de Oliveira
Federal de Uberlândia – UFU. Os docentes pertencem a
dois cursos de uma Instituição de Ensino Superior – IES
do Estado de Minas Gerais. Os resultados constataram
que os profissionais pesquisados fazem uso das Tecnologias
de Informação e Comunicação – TICs - no processo
de ensino-aprendizagem para a interação, organização,
desenvolvimento dos conteúdos disciplinares e atividades
de avaliação.

Palavras-chave: Docência universitária a distância; Prática


didático-pedagógica; Ensino semipresencial.

Abstract
This paper presents the results of an investigation into
the university pedagogical practices of professors who
adopt the semipresential modality in education teaching
courses. Aimed to understand how this professional looks
upon his own practice As a survey instrument, it was
used a questionnaire, built on quantitative and qualitative
approaches, consisting of three parts: identification /
teaching qualification, syllabus and open questions. He
was approved under no. 638/11 the Ethics and Research
Committee of the Federal University of Uberlândia –
UFU. The teachers belong in two courses of a Higher
Education Institution in Minas Gerais State. The results
showed that these professionals make use of Information
and Communication Technologies –ICTs – in the process
of teaching and learning, for interaction, organization,
development of syllabuses and evaluating activities.

Keywords: University distance teaching; Didactic and


pedagogical practice; Semipresential teaching.

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p.
289-314,
jul. 2015 / out. 2015 290
DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA Docência Universitária
a Distância: Um Estudo
sobre o Processo de
Ensino-Aprendizagem

A DISTÂNCIA: UM ESTUDO na Modalidade


Semipresencial

SOBRE O PROCESSO DE
ENSINO-APRENDIZAGEM NA
MODALIDADE SEMIPRESENCIAL
INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como finalidade apresentar os


resultados de pesquisa desenvolvida com um grupo de
professores cujo tema é a docência universitária a distância e a
prática do docente que atua com disciplina semipresencial e a
distância em cursos de graduação de formação de professores
na modalidade presencial. O objetivo é compreender, através
de entrevistas com os docentes que atuam nesses cursos, qual
o olhar sobre a própria prática didático-pedagógica, com
ênfase no material instrucional utilizado. Espera-se chegar a
um entendimento mais completo sobre como o docente faz
uso das TICs no processo ensino-aprendizagem e entender a
relação dele com esses recursos na prática cotidiana da sala de
aula virtual.
É recomendável que as instituições elaborem
seus materiais para uso a distância, buscando
integrar as diferentes mídias, explorando a
convergência e integração entre materiais
impressos, radiofônicos, televisivos,
de informática, de videoconferências e
teleconferências, dentre outros, sempre na
perspectiva da construção do conhecimento
e favorecendo a interação entre os múltiplos
atores. (BRASIL, 2007, p.15)

O professor universitário é desafiado, cotidianamente, Educ. foco,


Juiz de Fora,
pela rapidez com que os recursos tecnológicos evoluem v. 20, n. 2, p.
289-314,
e permitem novas formas de acesso à informação e de 291 jul. 2015 / out. 2015
Walteno Martins Parreira Júnior
Silvana Malusá comunicação. Esse avanço nas TICs exige do docente
Guilherme Saramargo de Oliveira
um esforço para compreender as oportunidades desses
instrumentos, assim como o funcionamento deles. Com a
disponibilidade dos recursos digitais, novas oportunidades
para o cotidiano da educação a distância podem ser utilizadas
na interação professor-aluno.
Atualmente, a maioria dos estudantes possuem acesso
às TICs e estão habituados a utilizá-las para se comunicar
ou informar. Considerando que esse é um dado irreversível,
observa-se que são os docentes que necessitam de capacitação e
incentivo para a utilização desses recursos em sala de aula. Tanto
é que muitas escolas já utilizam blogs, vídeos, hiperlinks, chats
e e-mails, entre outros, e exigem, cada vez mais, a qualificação
de seus professores nesse sentido para que complementem as
atividades cotidianas das disciplinas que lecionam, sejam elas
presenciais ou a distância.
Este trabalho é desenvolvido como uma pesquisa
aplicada, exploratória, de abordagem quanti e qualitativa e
do tipo estudo de caso. Essa definição foi adotada devido à
natureza do objeto de pesquisa ser as práticas didáticas de um
grupo de professores de curso de graduação presencial em uma
IES onde lecionam disciplinas semipresenciais.
O ensino semipresencial também é
conhecido como ensino híbrido ou
misto, porque abarca uma miríade de
possibilidades: múltiplas combinações
de abordagens e de métodos conforme as
necessidades, circunstâncias e metas, uso
de práticas comumente vistas em educação
a distância (recursos multimídia, streaming
vídeo, comunicação síncrona e assíncrona,
etc.), comunidades de aprendizagem, etc.
(QUEVEDO, 2011, p.18)

Para Goldenberg (1997, p.62), a utilização de diferentes


Educ. foco, abordagens de pesquisa contribui para a análise de diversas
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. questões, ou seja, “o conjunto de diferentes pontos de vista,
289-314,
jul. 2015 / out. 2015 292 e diferentes maneiras de coletar e analisar dados (qualitativa e
quantitativamente), que permitem uma idéia (sic) mais ampla Docência Universitária
a Distância: Um Estudo
sobre o Processo de
e inteligível da complexidade de um problema”. Ensino-Aprendizagem
na Modalidade
A maior parte dos pesquisadores em ciências Semipresencial

sociais admite, atualmente, que não há


uma única técnica, um único meio válido
de coletar os dados em todas as pesquisas.
Acreditam que há uma interdependência
entre os aspectos quantificáveis e a vivência
da realidade objetiva no cotidiano.
(GOLDENBERG, 1997, p.62)

Na instituição escolhida para este estudo há 33 docentes


atuando nos cursos de Pedagogia e Química. Desse total, foram
selecionados, para a aplicação do instrumento de pesquisa, 13
docentes responsáveis por ministrarem as disciplinas oferecidas
no regime semipresencial.
Esses cursos são ofertados no período noturno e em
regime anual. O aluno frequenta a maioria das disciplinas
presencialmente e, em cada série, há duas ou três delas que
são ministradas na modalidade semipresencial. Esse modelo
educacional está contemplado na Portaria Ministerial
4.059/2004, onde define que cursos já reconhecidos podem
ofertar até 20% de sua carga horária a distância. Essas
disciplinas são desenvolvidas de forma que parte da carga
horária delas é ministrada presencialmente e a outra parte –
de 33% até 75% – a distância.
O instrumento de pesquisa foi aprovado pelo Comitê
de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da UFU conforme
parecer nº. 638/11 dessa instituição. Está dividido em
três partes distintas. A primeira, denominada de “Dados
gerais sobre o sujeito pesquisado”, contém um conjunto
de informações sobre a sua caracterização. A segunda,
denominada “Categorias a serem estudadas”, foi estruturada
a partir de quatro categorias selecionadas no documento
intitulado “Referenciais de qualidade para educação superior Educ. foco,
Juiz de Fora,
a distância”, que foi publicado pelo Ministério da Educação v. 20, n. 2, p.
289-314,
– MEC. 293 jul. 2015 / out. 2015
Walteno Martins Parreira Júnior
Silvana Malusá
As categorias são empregadas para se
Guilherme Saramargo de Oliveira
estabelecer classificações. Nesse sentido,
trabalhar com elas significa agrupar
elementos, idéias (sic) ou expressões em
torno de um conceito capaz de abranger
tudo isso. Esse tipo de procedimento, de um
modo geral, pode ser utilizado em qualquer
tipo de análise em pesquisa qualitativa.
(GOMES, 1994, p.70)

Todas as categorias apresentam sete frases afirmativas,


às quais são atribuídos valores, por parte de cada sujeito
participante, dentro da escala Likert de cinco pontos.
Neste trabalho está sendo abordada a categoria “o material
instrucional utilizado”.
A DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA

A docência universitária é exercida por um bacharel ou


licenciado na área de conhecimento da disciplina que ministra
e tem preocupado os especialistas há algum tempo. Segundo
Malusá e Silva (2007, p.207), a formação de docentes para o
ensino superior não está regulamentada de forma específica,
requerendo apenas que seja preparada em cursos de pós-
graduação.
Escreve Cicillini (2010, p.30) que o desenvolvimento
profissional do docente universitário ocorre em um processo
dialético e dialógico, que faz com que o profissional tenha
uma relação reflexiva com suas ações pedagógicas cotidianas,
suas ações com relação aos colegas, por meio da troca de
informações e experiências, e sua produção de conhecimentos.
Segundo Delors e demais autores (1998, p.152), a
contribuição dos professores para o desenvolvimento das
sociedades no século XXI será crucial, com a finalidade de
preparar os jovens para encarar o futuro com confiança e
Educ. foco, também de maneira responsável. Assim, os professores têm
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. papel determinante na formação do aluno e com as atitudes
289-314,
jul. 2015 / out. 2015 294 dele perante aos estudos, devendo despertar-lhe a curiosidade,
a autonomia, o rigor intelectual, além de criar-lhe as condições Docência Universitária
a Distância: Um Estudo
sobre o Processo de
para o sucesso da educação formal e permanente. Ensino-Aprendizagem
na Modalidade
Semipresencial
O trabalho do professor não consiste simplesmente
na transmissão de informações ou conhecimentos, mas sim
de apresentá-los na forma de problemas, situando-os em um
contexto e na perspectiva com a qual o aluno possa estabelecer
a ligação entre a solução deles e de outras situações análogas
(DELORS et al.,1998, p.157).
Segundo Nóvoa (2008, p.229), o trabalho docente
depende da participação do discente, posto que ninguém
ensina a quem não quer aprender.Ele complementa afirmando
que “o problema se torna mais complicado se considerarmos
as circunstâncias da presença do aluno, que não é produto
de um ato de vontade, mas antes, de uma obrigação social
e familiar”. Nóvoa (2008, p.232), citando Labaree (2000),
escreve ainda que o “bom docente é aquele que se torna não-
indispensável (sic)”, que faz com que seus alunos aprendam de
forma autônoma, sem a sua ajuda.
Lessard e Tardif (2008, p.268) defendem que as TICs são
inevitáveis e os docentes devem aprender a utilizá-las para fins
pedagógicos e, assim, transformar o papel deles, deslocando-
se da transmissão dos conhecimentos para a de facilitador da
assimilação e a incorporação por parte dos alunos que são, cada
vez mais, competentes para realizar tarefas e aprendizagens
complexas de maneira autônoma.
Com o advento do computador, uma série de novidades
e de oportunidades surgiu com a possibilidade de se fazer mais
rápido e mais fácil. Porém, durante anos, continuou “sendo
utilizado mais como uma ferramenta de apoio ao professor e
ao aluno. As atividades principais ainda estavam focadas na fala
do professor e na relação com os textos escritos” (MORAN,
2004).
Segundo Valente (1993), a função da escola não Educ. foco,
Juiz de Fora,
deve ser a de ensinar o aluno, mas sim a de criar condições v. 20, n. 2, p.
289-314,
de aprendizagem para o educando. E isso significa que o 295 jul. 2015 / out. 2015
Walteno Martins Parreira Júnior
Silvana Malusá professor precisa mudar de atitude, deixar de ser o repassador
Guilherme Saramargo de Oliveira
de conhecimento e assumir o papel de desenvolvedor de
ambientes de aprendizagem e de facilitador do processo de
desenvolvimento intelectual do aluno.
Educar em ambientes virtuais exige mais
dedicação do professor, mais apoio de uma
equipe técnico-pedagógica, mais tempo de
preparação – ao menos nesta primeira fase
– e principalmente de acompanhamento,
mas para os alunos há um ganho grande
de personalização da aprendizagem,
de adaptação ao seu ritmo de vida,
principalmente na fase adulta. (MORAN,
2003, p.5)

Diante desse contexto de transformação e de novas


exigências em relação ao aprender, as mudanças prementes
não dizem respeito à adoção de métodos diversificados, mas
sim à atitude diante do conhecimento e da aprendizagem,
bem como a uma nova concepção de homem, de mundo e de
sociedade. Isso implica que o professor terá papéis diferentes
a desempenhar, fazendo-se necessários novos modos de
formação que possam prepará-lo para o uso pedagógico do
computador.
A entrada de novas tecnologias no ambiente
escolar traz uma nova dimensão à práxis
educacional. Isso porque a sociedade
atual, também chamada de Sociedade
da Informação, sofre mudanças radicais
nas relações econômicas, políticas, sociais
e culturais. Neste contexto, o processo
educacional tenta fazer uma ponte entre o
modelo tradicional das escolas regulares,
que passa por transformações, e esse grande
avanço da tecnologia. (BARROS, 2009, p.2)

Usar o computador como uma ferramenta de apoio


Educ. foco, no processo ensino-aprendizagem é transformar a relação já
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. existente entre educador e aluno, permitindo o uso de TICs,
289-314,
jul. 2015 / out. 2015 296 tanto em sala de aula tradicional quanto nas atividades de
pesquisa e complementação dos estudos fora dela, estimulando Docência Universitária
a Distância: Um Estudo
sobre o Processo de
o discente a buscar novas informações e a construir o seu Ensino-Aprendizagem
na Modalidade
próprio conhecimento. Semipresencial

O resultado é um modelo educacional


que pode ser eficiente, em que o professor
torna-se um orientador no processo
ensino-aprendizagem do aluno. Em outras
palavras, o mestre, detentor do saber, deixa
de existir, dando lugar a um companheiro
de novas descobertas, significando dar ao
aluno a direção da própria aprendizagem.
(SANTARELLI; SANTANNA, 1998)

Castells (2000, p.108-109) faz referências a características


importantes para o entendimento do paradigma das TICs com
relação à capacidade de transformação social que elas têm. A
primeira característica é que as informações são matérias-primas,
“são tecnologias para agir sobre a informação”, diferentemente
de outras revoluções tecnológicas que ocorreram. A segunda
característica é referente “à penetrabilidade dos efeitos das
novas tecnologias”, que vão moldar os processos de existências
individuais e coletivas, interagindo através do novo meio
tecnológico. O terceiro aspecto é relativo à lógica de redes,
onde qualquer sistema ou conjunto de relações usando as
novas tecnologias de informação permite a flexibilidade
na comunicação, viabilizando um crescimento da rede em
detrimento de elementos que estão fora dela.
Por último, Castells (2000, p.109) faz referência
à crescente convergência de tecnologias específicas que
possibilitam a influência de um sistema altamente integrado
nos sistemas de informação na vida em sociedade. As
tecnologias de transmissão e conexão das telecomunicações são
apenas uma forma de processamento da informação e estão,
cada vez mais, diversificadas e integradas em redes operadas
por computadores. Educ. foco,
Juiz de Fora,
Para o professor que assume a docência ensinando a v. 20, n. 2, p.
289-314,
distância, além dos conhecimentos científicos e didáticos, 297 jul. 2015 / out. 2015
Walteno Martins Parreira Júnior
Silvana Malusá é também necessário que tenha o domínio de recursos
Guilherme Saramargo de Oliveira
tecnológicos que são indispensáveis para o seu cotidiano.
Para compreender o papel do professor, pode-se
considerar os parâmetros de referência de qualidade definidos
pelo MEC. Segundo eles, os professores devem ser capazes de
desenvolver um conjunto de ações:
a) Estabelecer os fundamentos teóricos do projeto;
b) Selecionar e preparar todo o conteúdo curricular
articulado a procedimentos e atividades pedagógicas;
c) Identificar os objetivos referentes a competências
cognitivas, habilidades e atitudes;
d) Definir bibliografia, videografia, iconografia, audiografia,
tanto básicas quanto complementares;
e) Elaborar o material didático para programas a distância;
f ) Realizar a gestão acadêmica do processo de ensino-
aprendizagem, em particular motivar, orientar,
acompanhar e avaliar os estudantes;
g) Avaliar-se continuamente como profissional participante
do coletivo de um projeto de ensino superior a distância
(BRASIL, 2007, p.20).

De acordo com os referenciais de qualidade apresentados


pelo MEC como competências que os professores devem ter
para exercer a atividade a distância (BRASIL, 2007) e também
com os propostos por Castells (2000) para o uso das TICs na
sociedade moderna, pode-se observar que o uso das tecnologias
deve seguir um planejamento apropriado, interdisciplinar –
juntamente com as habilidades e competências dos professores
– para estimular os alunos a empregá-las na construção do seu
conhecimento.
Ressalta-se que no processo de ensino e aprendizagem,
desenvolvido por meio de Ambientes Virtuais de Aprendizagem
– AVAs, é necessária a participação efetiva de todos os atores
por meio do compartilhamento de experiências, pesquisas
Educ. foco, e descobertas. Nesse modelo, o professor é o mediador da
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. aprendizagem e responsável pelo planejamento, desenvolvendo
289-314,
jul. 2015 / out. 2015 298 ações e atividades que sejam interessantes e desafiadoras, mas
também de acordo com o perfil e nível intelectual dos alunos Docência Universitária
a Distância: Um Estudo
sobre o Processo de
(KENSKI et al., 2009, p.224). Ensino-Aprendizagem
na Modalidade
Semipresencial
Aliar a utilização das TICs às salas de aulas de cursos
presenciais é um dos objetivos da proposta de utilização dos
20% a distância em cursos semipresenciais, para estimular a
autonomia do aluno e também os recursos digitais.
Na modalidade semipresencial, estudantes
e professores estão separados fisicamente
em determinados momentos da disciplina,
mas interligados por meio das tecnologias
de comunicação e interação e dos
materiais didáticos empregados. Por tais
especificidades, a semipresencialidade torna-
se um elemento a mais de flexibilização
curricular, no que diz respeito às condições
individuais de cada estudante, ao ritmo
de aprendizagem, ao local e ao tempo
de dedicação aos estudos. (MARCHI,
ARAÚJO; ISTREIT, 2008, p.2)

Uma preocupação a mais é a transição de um curso da


modalidade presencial para um modelo híbrido, no qual a
maioria das disciplinas continua naquela modalidade e algumas
vão passar para o modelo semipresencial. Determinante saber
como será conduzida essa alteração no modelo e de que modo
essas disciplinas serão ofertadas.
Muitas organizações estão se limitando
a transpor para o virtual adaptações do
ensino presencial (aula multiplicada ou
disponibilizada). Há um predomínio de
interação virtual fria (formulários, rotinas,
provas, e-mail) e alguma interação on-line
(pessoas conectadas ao mesmo tempo, em
lugares diferentes). Os cursos são muito
empacotados, seguem fórmulas semelhantes,
dão ênfase excessiva ao conteúdo e pouca
à aprendizagem em pequenos grupos,
Educ. foco,
à pesquisa significativa, à produção de Juiz de Fora,
conhecimento adaptado à realidade de cada v. 20, n. 2, p.
289-314,
aluno e grupo. (MORAN, 2003, p.8) 299 jul. 2015 / out. 2015
Walteno Martins Parreira Júnior
Silvana Malusá Para a produção de um material instrucional com
Guilherme Saramargo de Oliveira
qualidade técnica e didática é necessário: “ [...] o mesmo
cuidado com que o professor planeja a sua aula e seleciona os
textos e autores mais adequados, também deve selecionar os
programas e vídeos apropriados” (MALUSÁ, 2003, p.147). A
autora complementa citando Kenski (1996), que alerta para
que o professor tenha o cuidado de não usar esses recursos
meramente como ferramentas auxiliares, que vão funcionar
autonomamente. É preciso que os alunos estejam informados
sobre os aspectos e o contexto do que se está trabalhando em
sala de aula (2003, p.148). Como se observa nos parâmetros
de qualidade do MEC:
A produção de material impresso, vídeos,
programas televisivos e radiofônicos,
videoconferências, CD-Rom, páginas web,
objetos de aprendizagem e outros, para uso
a distância, atende a diferentes lógicas de
concepção, produção, linguagem, estudo e
controle de tempo. Para atingir estes objetivos,
é necessário que os docentes responsáveis
pela produção dos conteúdos trabalhem
integrados a uma equipe multidisciplinar,
contendo profissionais especialistas em
desenho instrucional, diagramação,
ilustração, desenvolvimento de páginas web,
entre outros. (BRASIL, 2007, p.13-14)

As disciplinas oferecidas na modalidade semipresencial


se distinguem por serem organizadas em estrutura modular
de ensino e aprendizagem, focada na aprendizagem autônoma
do aluno, por se utilizarem da mediação de recursos
didáticos organizados em diferentes suportes tecnológicos e
por dependerem de esforço para serem desenvolvidas. Elas
exigem um planejamento cuidadoso e a organização de um
cronograma detalhado, considerando as aulas presenciais e a
Educ. foco,
distância.
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. Diante do exposto, observa-se que a profissão docente
289-314,
jul. 2015 / out. 2015 300 é complexa e exigente na forma de atuar e se capacitar.
Com o desenvolvimento das tecnologias da informação e Docência Universitária
a Distância: Um Estudo
sobre o Processo de
comunicação, deve ser constante e necessário o esforço para se Ensino-Aprendizagem
na Modalidade
manter atualizado no domínio e na utilização pedagógica dos Semipresencial

recursos digitais.
RESULTADOS E DISCUSSÕES

Dos treze instrumentos de pesquisa distribuídos, dez


foram preenchidos e devolvidos, ou seja, 76,9% dos sujeitos
responderam às indagações. Tem-se que do curso de Química
todos os cinco questionários foram respondidos; e dos oito
distribuídos no curso de Pedagogia, apenas cinco docentes os
responderam.
Na primeira parte do instrumento de pesquisa é
realizada a identificação e caracterização dos respondentes. São
sete sujeitos do sexo feminino e três do masculino. Esse dado
comprova a tendência, nos cursos de formação de professores,
de haver maior número de docentes do sexo feminino. Isso está
provavelmente ligado à questão histórica de que o magistério
foi atribuição das mulheres e ainda hoje é visto dessa forma
por muitas pessoas.
Quanto à titulação dos docentes, 10% possuem o título
de Doutor, 40% possuem o título de Mestre e os outros 50%
possuem especialização. De acordo com 70% dos docentes, a
opção pelas especializações foi para servir de aperfeiçoamento
pessoal e 30% foram diretamente focadas para o mestrado.
Quanto à faixa etária, 50% dos pesquisados estão acima
de 50 anos, 20% têm entre 41 a 50, 30% entre 31 a 40 e
nenhum dos docentes está na faixa inicial de 21 a 30 anos.
Quanto ao tempo de docência universitária, 40% dos
entrevistados possuem mais de 20 anos, seguidos de 30%
que têm de 11 a 20, outros 20% têm entre cinco e 10 anos e
10% contam menos de cinco anos de exercício no magistério
superior. Educ. foco,
Juiz de Fora,
Os participantes da pesquisa são experientes e isso pode v. 20, n. 2, p.
289-314,
facilitar a atuação deles em sala de aula, mas a utilização das 301 jul. 2015 / out. 2015
Walteno Martins Parreira Júnior
Silvana Malusá TICs nas disciplinas semipresenciais pode ser um problema,
Guilherme Saramargo de Oliveira
uma vez que não tiveram preparação específica na formação
inicial. Segundo Zabalza (2004, p.141), o domínio e o
exercício da profissão são adquiridos ao longo do tempo e não
ocorre por transferência da sabedoria divina.
Esses saberes provêm de fontes diversas
(formação inicial e continuada dos
professores, currículo e socialização escolar,
conhecimento das disciplinas a serem
ministradas, experiência na profissão, cultura
pessoal e profissional, aprendizagem com
seus pares etc.). (TARDIF; RAYMOND,
2000, p.212)

Outra informação adquirida com o instrumento de


pesquisa é que a maioria (70%) dos professores participou
de cursos de capacitação para a utilização de ferramentas
digitais; 20% não responderam e 10% que não participaram.
A capacitação deles deve ser abrangente, preparando-os para a
utilização de recursos tecnológicos que se compõem de vídeos,
sons, fóruns, entre outros, além de um ambiente virtual de
aprendizagem para ser utilizado como concentrador das ações
da disciplina e do curso.
Quanto à capacitação para a utilização de ambientes e
técnicas de educação a distância, 60% afirmaram que foram
capacitados e 20% que não foram, enquanto outros 20% não
responderam. Deve-se ressaltar que essa capacitação é uma
etapa importante para a preparação dos docentes que vão
atuar nas disciplinas a distância.
É necessário que os professores busquem
uma formação para o uso das tecnologias
sendo que tal formação deve favorecer
ao entendimento de que as TICs podem
proporcionar valiosas possibilidades de
ensino, aprendizagem, pesquisa, promoção
Educ. foco,
Juiz de Fora,
e divulgação de conhecimentos. Ou seja,
v. 20, n. 2, p. somente a justaposição das tecnologias no
289-314,
jul. 2015 / out. 2015 302 fazer pedagógico não basta, é necessário
que se mudem as metodologias de ensino. Docência Universitária
a Distância: Um Estudo
(FELDKERCHER, 2010, p.8) sobre o Processo de
Ensino-Aprendizagem
na Modalidade
Semipresencial

Essa opinião é compartilhada com outros autores que


acreditam na necessidade de atualização do docente para
utilizar esses recursos no cotidiano da aula a distância.
Uma outra atividade importante nesse
momento é a capacitação para o uso das
tecnologias necessárias para acompanhar o
curso em seus momentos virtuais: conhecer
a plataforma virtual, as ferramentas, como se
coloca material, como se enviam atividades,
como se participa num fórum, num chat,
tirar dúvidas técnicas. (MORAN, 2004,
p.249)

Segundo Francisco e Machado (2006, p.6), na elaboração


de cursos em Educação a Distância – EAD é necessário
oferecer suporte aos professores envolvidos. Esse suporte passa
pelo treinamento em tecnologia e na metodologia do curso,
assessoria para a produção de materiais e acesso a ferramentas
apropriadas e também no reconhecimento financeiro e/
ou acadêmico do trabalho em EAD. E, no caso analisado, a
maioria dos respondentes afirmou que participaram de cursos
de formação para atuarem em EAD.
[...] as TICs parecem completamente
inevitáveis e os docentes devem aprender
a utilizá-las para fins pedagógicos. Elas
podem transformar o papel do docente,
deslocando o seu centro da transmissão
dos conhecimentos para a assimilação e a
incorporação destes pelos alunos, cada vez
mais competentes para realizar de maneira
autônoma tarefas e aprendizagens complexas.
(TARDIF; LESSARD, 2008, p.269)

A parte dois do instrumento de pesquisa está dividida


em quatro categorias e cada uma delas está subdividida em Educ. foco,
Juiz de Fora,
sete itens. Neste trabalho, será analisada apenas uma categoria. v. 20, n. 2, p.
289-314,
Cada item dela apresenta uma afirmação e foi solicitado ao 303 jul. 2015 / out. 2015
Walteno Martins Parreira Júnior
Silvana Malusá respondente que valorasse a fase, considerando uma escala de
Guilherme Saramargo de Oliveira
um a cinco, em que o numeral um significa “Nada importante”,
o dois “Pouco importante”, o três indica “neutro”, o quatro
“Importante” e o número cinco da escala equivale a “Muito
importante”. Deve-se considerar que algumas frases não foram
valoradas em alguns questionários, possivelmente porque o
docente não tem uma opinião formada sobre o tema em pauta
ou não quer se posicionar.
Para a análise da categoria Qualidade do material didático
institucional, as frases selecionadas estão relacionadas com o
planejamento e produção do material didático utilizado no
processo ensino-aprendizagem, considerando a organização,
preparação e apresentação do conteúdo programático por
parte do professor para que o aluno possa participar de suas
aulas a distância.
Entre os diversos componentes do sistema de
EAD, sempre foi considerado de importância
fundamental o material didático, produzido
especificamente para quem estuda sem
contar com o apoio presencial de um
professor. Por isso, a equipe de produção
de material didático assume papel único e
específico no processo de ensinar. [...] Porém,
é importante salientar que, ao falarmos de
material didático, estamos nos referindo a
uma diversidade de meios tecnológicos que
podem ser utilizados no processo de ensinar,
com o objetivo de propiciar aprendizagem
por parte do estudante. Portanto, não
se restringe ao texto didático impresso.
(PRETI, 2010, p.14-15)

Chaves (1998, p.33) escreve que as TICs revolucionaram


as tecnologias utilizadas, tornando possível transformar as
“palavras faladas, palavras escritas e impressas, outros sons,
gráficos, desenhos, imagens estáticas e em movimento” em
Educ. foco,
Juiz de Fora,
arquivos digitais. Ele explica que:
v. 20, n. 2, p.
289-314,
Com o computador, surgiu multimídia: um
jul. 2015 / out. 2015 304 megameio de comunicação que incorpora,
em um mesmo ambiente, todos os meios Docência Universitária
a Distância: Um Estudo
de comunicação anteriores. Em seu sentido sobre o Processo de
Ensino-Aprendizagem
mais lato, o termo “multimídia” se refere à na Modalidade
Semipresencial
apresentação ou recuperação de informações
que se faz, com o auxílio do computador, de
maneira multissensorial, integrada, intuitiva
e interativa. (CHAVES, 1998, p.33)

Para ele, é possível utilizar esses recursos para transformar


dados em informação da forma mais adequada, “de modo
a garantir a facilidade do uso, a eficácia da apresentação ou
recuperação da informação, a efetividade da sua compreensão
e a eficiência de todo o processo” (CHAVES, 1998, p.34).
Considerando os referenciais de qualidade do MEC,
deve-se observar suas recomendações quanto à produção e
utilização de material instrucional:
[...] é recomendável que as instituições
elaborem seus materiais para uso a distância,
buscando integrar as diferentes mídias,
explorando a convergência e integração entre
materiais impressos, radiofônicos, televisivos,
de informática, de videoconferências e
teleconferências, dentre outros, sempre na
perspectiva da construção do conhecimento
e favorecendo a interação entre os múltiplos
atores. (BRASIL, 2007, p.14)

Para a frase 1, Usar material didático impresso, 40%


dos respondentes consideraram-na muito importante, 20%
que é importante, outros 20% pouco importante, 10%
se manifestaram de forma neutra e 10% não avaliaram a
frase. Assim, os resultados anotados apontam que 60% dos
respondentes consideraram importante ou muito importante
sua utilização, o que pode significar que ainda há uma
preponderância desse tipo de material sobre o digital. Conforme
apresenta Preti, “escrever um texto didático significa comunicar,
socializar conhecimentos, estabelecer interação com o leitor/ Educ. foco,
Juiz de Fora,
estudante, ainda mais na EAD, em que os interlocutores estão v. 20, n. 2, p.
289-314,
distantes no tempo e no espaço” (2010, p.20). 305 jul. 2015 / out. 2015
Walteno Martins Parreira Júnior
Silvana Malusá A frase 2, Usar outros materiais didáticos (sites, vídeos,
Guilherme Saramargo de Oliveira
áudios, etc.), foi considerada por 50% dos docentes como
muito importante e a outra parte a considerou importante,
enquanto as outras valorações não foram consideradas. Pode-
se observar que a maioria dos respondentes está de acordo
com Kenski (2005, p.7), que escreve que a utilização de AVAs
possibilita o uso concomitante de vários recursos, tais como
vídeos, textos, animações e até a própria imagem, tanto de
alunos como de professores.
A frase 3, Usar a internet como recurso para transmissão
de conhecimentos, foi considerada como importante por
50% dos respondentes, para 40% como muito importante
e 10% não responderam. Logo, sendo considerada por 90%
dos respondentes como importante ou muito importante,
tal situação está de acordo com a pesquisa bibliográfica e
também com os documentos oficiais que indicam ser essa
a oportunidade para a oferta de informações e assistência
ao aluno, tanto para transmissão de conteúdo como para o
atendimento a dúvidas e questionamentos.
A frase 4, Planejar e organizar os conteúdos disciplinares
para posteriormente produzir o material instrucional, 70%
dos docentes consideram-na muito importante, 30% como
importante e as outras opções não foram escolhidas. Os
dados mostram que 100% dos docentes consideram muito
importante ou importante e esse resultado está de acordo
com a literatura pesquisada e com as respostas anteriores da
categoria. Considerando que os sujeitos utilizam recursos
tecnológicos diferentes para a apresentação do conteúdo é
necessário que ocorra um planejamento e a escolha de qual
deles empregar em cada situação.
A produção do material instrucional a ser utilizado pelo
professor deve ser planejada em conformidade com o projeto
pedagógico do curso, buscando-se atingir os objetivos propostos.
Educ. foco,
Juiz de Fora, Assim, todo o planejamento do professor
v. 20, n. 2, p. até a elaboração do material didático e das
289-314,
jul. 2015 / out. 2015 306 atividades teórico/práticas que o compõe
deve relacionar-se para que o conteúdo Docência Universitária
a Distância: Um Estudo
seja apresentado ao aluno de forma que o sobre o Processo de
Ensino-Aprendizagem
mesmo consiga atingir os seus objetivos. na Modalidade
Semipresencial
Partindo dessa visão, incentiva-se que o
professor construa o seu material, levando
em consideração normas e padrões, e
respeitando a lei de Direitos Autorais –
Lei nº. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.
(BERTAGNOLLI et al., 2008, p.4)

Observando a frase 5, Transformar o material utilizado


em sala de aula presencial em documento digital, vê-se que 50%
dos respondentes consideram importante a transformação,
40% muito importante e 10% não responderam. Observa-
se que 90% dos respondentes consideram importante ou
muito importante a transposição do material. Esse resultado é
condizente com Neves e Medeiros (2006, p.41), pois, segundo
as autoras, para o profissional da educação no século XXI,
será necessário ter as competências de produzir em diferentes
linguagens e mídias, principalmente em quatro áreas básicas,
“material impresso, TV/vídeo, rádio e informática/rede”.
Isto exposto, ainda é importante fazer uma observação
mais cuidadosa das respostas apresentadas, pois ocorre, em muitas
situações, uma simples transposição do texto escrito para o texto
digital sem o tratamento imprescindível de observação da qualidade
necessária para que ocorra o aproveitamento pelo aluno.
A frase 6, O material instrucional deve promover a
autonomia do aluno, é considerada muito importante para
80% dos sujeitos, para 20% é importante e as outras opções
não foram consideradas. Essa frase é considerada importante
ou muito importante por todos os docentes, portanto pode-se
concluir que os sujeitos da pesquisa estão preocupados com
a autonomia dos discentes quanto aos estudos e a aquisição
do conhecimento, considerando as dificuldades de se estudar
sozinho e sem o apoio imediato do professor. Educ. foco,
Juiz de Fora,
Essa autonomia preconizada pelos sujeitos da pesquisa v. 20, n. 2, p.
289-314,
é apresentada por Carmona (2008, p.7-8), para quem há 307 jul. 2015 / out. 2015
Walteno Martins Parreira Júnior
Silvana Malusá um sentimento de que na EAD e com o uso das TICs há o
Guilherme Saramargo de Oliveira
desenvolvimento da autonomia do estudante por meio da
educação. Ele complementa que:
En diferentes análisis que se han realizado
acerca de la educación virtual, es común
encontrar la concepción de que una de las
características de esta, es la posibilidad que
brinda a los sujetos participantes del proceso
de desarrollar capacidades de autonomía.
(CARMONA, 2008, p.8)

Para a frase 7, O material instrucional deve ser revisto


periodicamente, pode-se observar que 50% dos respondentes
consideram importante a revisão do material utilizado e que
outros 40% acreditam que é muito importante e somente 10%
avaliaram a questão como neutra. Pode-se observar, portanto,
que 90% dos respondentes consideram importante ou muito
importante a revisão do material utilizado.
É uma das funções do professor a observação da aceitação
e das condições de atualidade de seus materiais instrucionais
e fazer as correções necessárias, tanto de um ano para o outro
como ao longo da disciplina. Deve o docente ficar atento aos
sinais de falta de entendimento ou de pouca compreensão
por parte do aluno quando da exposição da matéria e buscar
formas alternativas de apresentação dos temas.
Um bom curso de educação a distância
procura ter um planejamento bem
elaborado, mas sem rigidez excessiva.
Permite menos improvisações do que uma
aula presencial, mas também deve evitar
a execução totalmente hermética, sem
possibilidade de mudanças, sem prever a
interação dos alunos. Precisamos aprender
a equilibrar o planejamento e a flexibilidade
(que está ligada ao conceito de liberdade, de
Educ. foco,
Juiz de Fora,
criatividade). Nem planejamento fechado,
v. 20, n. 2, p. nem criatividade desorganizada, que vira só
289-314,
jul. 2015 / out. 2015 308 improvisação. (MORAN, p.147)
Escreve Malusá (2003, p.165) que a atividade docente Docência Universitária
a Distância: Um Estudo
sobre o Processo de
necessita de aperfeiçoamento contínuo para atender o Ensino-Aprendizagem
na Modalidade

desenvolvimento dos conhecimentos científico e cultural. Por Semipresencial

essa razão, segundo ela, há necessidade de se repensar a prática


docente a cada período letivo para que os processos de ensino e
aprendizagem ocorram de forma atualizada. Os respondentes,
em sua maioria, também concordam que o material a ser
utilizado necessita ser atualizado com periodicidade para
se manter condizente com os conhecimentos científicos e
tecnológicos.
Após a exposição e interpretação das frases da categoria,
nota-se que há uma escolha predominante para a opção
muito importante na escala de valoração, bem como uma
segunda opção bem considerada e também significativa que
é o importante. Há uma única valoração para a opção neutra
(frase 1), enquanto dois respondentes consideraram a opção
pouco importante para a mesma frase. Há que considerar que
um sujeito da pesquisa não valorou três frases dessa categoria,
possivelmente por não ter uma opinião formada sobre o tema
ou não querer se posicionar sobre o assunto.
Um bom curso é mais do que conteúdo, é
pesquisa, troca, produção conjunta. Para
suprir a menor disponibilidade ao vivo do
professor, é importante ter materiais mais
elaborados, mais autoexplicativos, com mais
desdobramentos (links, textos de apoio,
glossário, atividades [...]. (MORAN, p.147)

Segundo Maia e Mattar (2007, p.71), há uma alteração


na metodologia pedagógica na transposição da disciplina
presencial para a disciplina a distância, pois pelo fato de “ser
discursiva e baseada na exposição oral do professor presencial,
a metodologia de EAD, fundada em novas mídias, propõe
recursos de interatividade, colaboração, troca e cooperação Educ. foco,
Juiz de Fora,
por meio de um ambiente [virtual]”. E é o que se percebe v. 20, n. 2, p.
289-314,
da análise das respostas apresentadas pelos docentes, que 309 jul. 2015 / out. 2015
Walteno Martins Parreira Júnior
Silvana Malusá confirmam a utilização de recursos digitais e novas mídias para
Guilherme Saramargo de Oliveira
a apresentação e discussão do conteúdo programático.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando-se os dados coletados com o instrumento


de pesquisa, pode-se observar que na categoria Usar material
didático impresso os docentes avaliados apontam na direção
da plena utilização das TICs, pois valoraram as frases de
forma positiva, considerando-as como importante ou muito
importante na maioria dos casos.
Transformar um curso presencial em semipresencial
é uma ação que deve ser planejada e que requer uma
dedicação de todo o grupo, desde a coordenação e docentes
até os técnicos e a administração, pois há muitas alterações a
serem desenvolvidas para atender aos requisitos definidos na
legislação.
Os professores consideram a utilização de vários recursos
pedagógicos, além do tradicional texto, declarando – em suas
respostas afirmativas – que estão aproveitando alguns recursos
tecnológicos em suas aulas. Logo, ocorreu uma transposição do
material antes utilizado em sala de aula para novas plataformas
tecnológicas.
Este trabalho pode contribuir com a discussão,
posicionando que a apresentação de um assunto de forma
presencial não pode ser explorada da mesma forma que na
modalidade a distância. Sua transposição para o virtual
necessita de um planejamento cuidadoso, observados os
objetivos pedagógicos a serem alcançados, a disponibilidade
de recursos tecnológicos e a capacidade dos alunos de terem
acesso técnico e cultural ao produto disponibilizado. Pode-se
apoiar em Kenski (2005, p.2), o qual escreve que a exploração
didática de um mesmo assunto precisa sofrer alterações para
Educ. foco,
usufruir dos diversos suportes tecnológicos disponíveis.
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p. Para a melhoria da qualidade da aula, seja presencial ou
289-314,
jul. 2015 / out. 2015 310 a distância, é necessário um conjunto de ações que passam
pela formação inicial e continuada dos docentes, oferta de Docência Universitária
a Distância: Um Estudo
sobre o Processo de
recursos tecnológicos para a construção de suas aulas, apoio Ensino-Aprendizagem
na Modalidade
institucional por parte da coordenação e direção da escola, Semipresencial

remuneração digna dos profissionais da educação e também


pelo reconhecimento do esforço desprendido pelo docente na
elaboração, aplicação e correção das atividades, bem como o
atendimento virtual aos alunos. Conforme escrevem Delors e
demais autores (1998, p.153), para melhorar a qualidade da
educação, antes de tudo, deve-se melhorar o recrutamento,
a formação, o estatuto social e as condições de trabalho dos
professores para que possam corresponder com suas qualidades,
conhecimentos, competências e motivação.
É consenso que o planejamento e a execução das
disciplinas remodeladas de presencial para a distância
necessitam de novos parâmetros bem mais complexos do que
a simples transposição da prática anteriormente utilizada para
o ambiente digital, sendo necessária uma nova preparação,
com novos conceitos. Quanto a isso, escreve Quevedo (2011,
p.18) que a recriação das atividades da educação presencial
para o formato eletrônico ou a utilização dos princípios de
aprendizagem que produziram bons resultados no passado
não garante o sucesso quando de sua aplicação imediata na
aula digital.
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Data de aceite: julho de 2014

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, p.
289-314,
jul. 2015 / out. 2015 314
Resenhas
CONVERSAS: HISTÓRIA Conversas: História
do Currículo e da
História da Educação

DO CURRÍCULO E DA
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
Douglas Tomácio Lopes Monteiro1

CARVALHO, Fábio Garcez de; FERREIRA, Marcia


Serra; XAVIER, Libania. História do Currículo e História
da Educação: interfaces e diálogos (orgs). Rio de Janeiro:
Quarter: Faperj, 2013. 380p.

1 Douglas Tomácio Lopes Monteiro, Mestre em educação pela Universidade


Federal de Juiz de Fora (UFJF), é especialista em docência e gestão do ensino
superior, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-
Educ. foco,
MG), graduado em pedagogia pela Universidade do Estado de Minas Gerais Juiz de Fora,
(UEMG) e em história, bacharelado e licenciatura, também pela PUC-MG. v. 20, n. 2,
p. page 273-326,
E-mail: dtlmeduc@gmail.com 317 jul. 2015 / out. 2015
ESPAÇOS TRANSFRONTEIRIÇOS Conversas: História
do Currículo e da
História da Educação

EM DIÁLOGO: CONVERSAS
E ENTRECRUZAMENTOS
NOS CAMPOS DA HISTÓRIA
DO CURRÍCULO E DA
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

Fruto de pesquisas conjuntas do Núcleo de Estudos


de Currículo (NEC/UFRJ) e Programa de Estudos e
Documentação, Educação e Sociedade (Proedes/UFRJ),
ambos alocados no Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGE/UFRJ), o
livro “História do Currículo e História da Educação: interfaces
e diálogos” nasce com o claro intuito de divulgar os estudos
históricos por esses grupos desenvolvidos, extrapolando, em
paráfrase à Sílvia Alícia Martínez, as reflexões geralmente
circunscritas nos intramuros da academia.
Embora dividida em três partes, quais sejam: “Tempos,
culturas e discursos”; “Currículos, disciplinas e materiais
didáticos”; e, por fim, “Professores, intelectuais e instituições”,
a supracitada obra, esforço conjunto de variados autores sob
a organização de Fábio Carvalho, Marcia Ferreira e Libania
Xavier, estabelece um prolífico diálogo entre as partes
que a constituem, deixando-nos claro o caráter quase que
absolutamente didático da divisão apresentada.
Feitura de distintas mãos, pautadas em interesses
muitas vezes comuns – ainda que com riqueza abarquem
suas especificidades –, os autores dos 15 textos no livro
coletados, reconhecendo o transfronteiriço espaço entre Educ. foco,
Juiz de Fora,
História da Educação e História do Currículo, permeado de v. 20, n. 2,
p. page 273-326,
entrecruzamentos e diálogos que em suas abordagens se fazem 319 jul. 2015 / out. 2015
Douglas Tomácio Lopes Monteiro
sentir, acabam por ratificar o caminho pelo qual há algum
tempo perpassamos na investigação científico-acadêmica,
caminho este de renovação teórica, metodológica e disciplinar,
que nos oferta, em grande amplitude, questionamentos
acerca das interfaces do conhecimento, indo de encontro
às inférteis clivagens. Assim, basilados por distintas fontes,
desde as primárias às secundárias, e tendo em vista as referidas
interfaces dos assinalados campos, os trabalhos da obra se
lançam a desafios variados no que tange à discussão acerca da
produção do conhecimento, bem como de sua divulgação por
meio dos currículos e disciplinas escolares e acadêmicas, isso
em um exercício constante de identificar a imbricada conexão
entre esse conhecimento e os saberes científicos e pedagógicos.
Concomitantemente, assinalam uma abordagem circunscrita
aos professores, à formação profissional destes e suas condições
de trabalho, lançando luz, inclusive, sobre a importante ação
do professorado enquanto categoria efetiva na produção de
conhecimento e reflexões sobre a educação.
Tendo traçado de modo mais conciso as similitudes que
permeiam a obra e que, de algum modo, proeminentemente
caracterizam o diálogo entres os autores, neste momento me
deterei mais especificamente aos eixos norteadores de cada
uma das três seções que a compartimentam.
Em sua primeira parte, em voga está a análise das
categorias “tempo”, “cultura” e “discurso”, as quais se fazem
marcantes nos diálogos estabelecidos entre a História da
Educação e História do Currículo e a historiografia hodierna.
Vale destacar que as categorias elencadas são contempladas pelos
autores a partir, principalmente, da abordagem culturalista.
Estes, nessa perspectiva que suportada é pelas teorias do
Discurso e da História, em suas postulações advogam outras
possibilidades de produção do conhecimento histórico.
Assim, sob o viés pós-fundacional do Discurso, o leitor é
Educ. foco, evocado, por exemplo, a teorizações acerca da “temporalidade”
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, e “historicidade”; especialmente quando referentes à história
p. page 273-326,
jul. 2015 / out. 2015 320 das disciplinas escolares (bem como do currículo), entendidas
a partir do “hibridismo” (p.29) discursivo existente nos Conversas: História
do Currículo e da
História da Educação
campos da Educação e da História ao tocarem a referida
temática. Ainda nesta mesma primeira parte, poderá o leitor
desmantelar uma concepção arraigada nas cristalizações dos
unívocos “panos de fundo” históricos, tão recorrentes nas
esquematizações contextuais que, por vezes, insistem em
apresentar a “realidade domesticada” – tida quase que como
uma evidência já sabida (p.62). Em um convite à necessária
problematização (p.72), tortuosa e afinada ao enigma, cabe
dizer, os autores apresentam os “diferentes presentes”, na
tentativa de elucidar as distintas possibilidades dentro de um
mesmo contexto que, ao fim, revela-se múltiplo, polissêmico,
instável, complexo.
Nesse mesmo viés, descortinando o que para além
está do oficialmente construído (consensual em essência),
encontra-se a análise que, perscrutando a “natureza interna do
ensino” (p.12), volta-se à investigação das facetas do trabalho
escolar, o qual contornado é por táticas e opiniões resistentes
de professores e alunos. Ao perpassar pelos estudos críticos
curriculares, reforçando concomitantemente o elo existente
com a História da Educação, entende-se o currículo como
espaço de luta, resistência e poder, uma “arena” de confrontos
entre distintos interesses sociais (p.96).
Em seu turno, a segunda parte do livro, referendada
no diálogo entre a historiografia contemporânea e a história
do currículo, apresenta-se como lócus privilegiado de análise
das categorias “currículo”, “disciplina” e “material didático”.
Em um exercício de desnaturalização das relações existentes
entre currículo e ciências de referência, as investigações nesta
parte apresentadas corroboram com os debates atuais dos
supracitados campos que, como dito, entrecruzam-se.
Dentre os trabalhos apresentados, encontra-se, por
exemplo, aquele que, delimitando-se no intervalo entre as
décadas de 1960-1980 (em uma escola pública de referência Educ. foco,
Juiz de Fora,
do Rio de Janeiro), aborda a história do espaço institucional v. 20, n. 2,
p. page 273-326,
analisado com vistas à compreensão da relação entre a seleção 321 jul. 2015 / out. 2015
Douglas Tomácio Lopes Monteiro
de docentes e as definições curriculares. Na investigação,
ressalta-se que muitas vezes as referidas definições são frutos
mais diretos das relações de poder no espaço engendradas. Estas
assumem, pois, um caráter mais significativo que as próprias
ciências de referência: “essa divisão de poder entre o professor
Carlos Potsch e os coordenadores de Ciências/Biologia [...]
ampliou as possibilidades de que algumas das inovações nos
anos 1960-70 pudessem ocupar um espaço institucional um
pouco diferenciado” (p.175).
Em outra investigação, tendo como foco de análise
a própria instituição em que está alocada (UFRJ), mais
especificamente restringindo-se ao curso de Pedagogia e
ao currículo por este ofertado, um interessante exame se
dá sob os olhares de uma autora atenta ao impasse acerca
da base identitária do profissional pedagogo, a qual é hoje
compreendida a partir da atividade docente. Tal investigação
centra-se no campo de disputa existente na instituição entre
os anos de 1980 e 1990, em que de um lado estavam aqueles
que advogavam a esfera da formação nas “especialidades” e de
outro os que ratificavam o discurso que centra a supracitada
identidade na docência, esta inclusive avessa à fragmentação
e ao caráter tecnicista (vale destacar, conforme postula a
autora, que esta última perspectiva de certo modo já se
anunciava nos idos de 1940, p.203). Ao abordar esse impasse
e, por conseguinte, a promulgação de uma nova proposta
curricular da/na Faculdade de Educação, o texto levanta
ainda a importância desta na difusão de inovadoras ideias
que impulsionariam o debate educativo, inclusive, na década
posterior, quais sejam: o caráter de cientificidade da Educação/
Pedagogia; a superação da clássica fragmentação dos conteúdos,
dando passos robustos rumo à interdisciplinaridade; e ainda o
combate ao discurso que muitas vezes insistia por dissociar
teoria e prática.
Educ. foco, Por fim, na terceira e última parte, estão reunidos
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, os trabalhos que abordam as variadas atuações e relações,
p. page 273-326,
jul. 2015 / out. 2015 322 em espaços-tempo também múltiplos, arquitetadas por
professores, intelectuais e pesquisadores em seus locais de Conversas: História
do Currículo e da
História da Educação
atuação (não desconsiderando, em absoluto, a simbiose
entre essas figuras). Eles, concebidos como sujeitos ativos na
formulação e disseminação de conhecimentos, destacadamente
naqueles circunscritos à sua própria atuação profissional, são
tidos como preponderantes intelectuais no que se refere aos
processos formativos e identitários.
É o caso, por exemplo, do trabalho que, lançando
reflexões sobre os conceitos de “intelectual” e “geração”,
entendidos enquanto categorias dotadas de intencionalidades
(p.350), volta-se às efetivas contribuições dos variados sujeitos
que, de modo reflexivo e criativo, agem nos espaços educativos
em que se inserem. Isso a partir do constante exercício
de se pensar esses atores em seus respectivos contextos,
particularidades e a relação empreendida entre suas produções
e o pensamento de uma dada época; elementos que devem ser
atentamente observados por aqueles que, no contato com as
fontes analisadas, intentam o caminho investigativo: “Quando
partimos desse tipo de análise seguindo os contextos que os
autores delimitaram, abre-se um universo na relação entre o
texto e o contexto que muitas vezes não fora observada de
modo atento quando realizamos uma determinada pesquisa”
(p.348). Cabe destacar que a análise no texto empreendida,
embora dialogue com amplas categorias, não desconsidera,
por exemplo, os “diferentes presentes” assinalados no primeiro
momento da obra, algo perceptível no reportar do autor aos
dizeres de Lacapra e Kaplan (1985): “[...] o apelo ao contexto
é enganoso, pois nunca se tem um contexto apenas. Temos
sim uma série de contextos em interação” (p.347); assinalando
dessa forma o coeso eixo que norteia a produção, que, mesmo
assim, com destreza garante as singularidades das distintas
abordagens apresentadas.
Em uma conversa constante entre o amplo/relacional
e as especificidades, embasado pelos discursos da micro- Educ. foco,
Juiz de Fora,
história italiana e atendo-se à cidade cearense de Icapuí, está v. 20, n. 2,
p. page 273-326,
o trabalho também interessado na profissão docente, mais 323 jul. 2015 / out. 2015
Douglas Tomácio Lopes Monteiro
especificamente na figura dos “professores(as) leigos(as)”,
circunscritos no período entre 1940 e 2000 – apesar de a
emancipação do município estudado ocorrer no ano de 1985,
o que demarca o caráter político do trato dado pelo autor ao
considerar o território/município enquanto uma “construção
social no tempo” (p.287). O particular e o geral, o contexto, as
mudanças sociais em suas facetas compreensíveis, as relações
de poder localizadas e generalizadas são elementos encarados
como importantes ferramentas de pesquisa e estas se fazem
presentes na análise que, dentre outras coisas, interessa-
se por saber como a micro-história tem sido incorporada
na escrita da História da Educação. É importante ressaltar,
em consonância com os estudos que balizaram o texto, que
a dimensão local e regional assumem uma “qualificação
epistemológica” (p.290). Assim, detectando tensões, conflitos
e discrepâncias que envolviam os professores leigos em sua
relação com o Estado, normatizador das condições de trabalho
desses profissionais, a investigação centra-se, sobretudo, nas
contradições dessa dinâmica social, indo, como em outros
trabalhos aqui assinalados, de encontro à “aparente coerência
e homogeneidade funcional do contexto social” (p. 292).
Enfim, ainda que reconhecendo as lacunas deste
trabalho, tendo em vista, por exemplo, o enfoque dado
apenas a alguns dos textos na obra contemplados, cabe dizer
que o livro “História do Currículo e História da Educação:
interfaces e diálogos”, com destreza, alcança o objetivo ao
qual se propôs: ultrapassar os limites físicos institucionais
ao oferecer à comunidade acadêmica acesso às profícuas
discussões elaboradas pelos grupos de pesquisa do PPGE/
UFRJ nos últimos anos. No ato de inquirir o conhecimento,
revelando impasses e incompletudes, especificidades e
semelhanças, lançando olhares outros sobre as categorias
analíticas, fontes e correntes teórico-metodológicas, o trabalho
Educ. foco, fornece importantes subsídios para novas interlocuções
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2, entre os inúmeros pesquisadores dos mais variados centros
p. page 273-326,
jul. 2015 / out. 2015 324 acadêmicos, estando ou não circunscritos à História da
Educação e História do Currículo. Afinal, como fica claro a Conversas: História
do Currículo e da
História da Educação
partir do contato da obra, muitos são os entrecruzamentos
entre o que nela se apresenta e a educação brasileira nos mais
diversos âmbitos.

Data de recebimento: novembro de 2014


Data de aceite: março de 2015

Educ. foco,
Juiz de Fora,
v. 20, n. 2,
p. page 273-326,
325 jul. 2015 / out. 2015
Autores
Pedro Angelo Pagni
Possui livre-docência em Filosofia da Educação e
doutorado em Educação pela Universidade Estadual Paulista
(UNESP), com pós-doutorado na Universidad Complutense
de Madrid. Atualmente é professor adjunto do Departamento
de Administração e Supervisão Escolar, onde leciona a
disciplina Filosofia da Educação, e do programa de Pós-
graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências
da UNESP, Campus de Marília. Coordena o Grupo de Estudos
e Pesquisas em Educação e Filosofia (GEPEF). Atualmente
é pesquisador do CNPq e coordenador do GT-Filosofia da
Educação da Anped.
Email: pagni@terra.com.br

Márcio Danelon
Doutor em Educação (Filosofia e História da Educação)
pela Unicamp e professor Adjunto na Faculdade de Educação
da Universidade Federal de Uberlândia, atuando na Licenciatura
em Pedagogia e no Programa de Pós-Graduação em Educação
da UFU, onde orienta dissertações com a temática da Filosofia
da Educação. Possui como linhas de pesquisa: 1) Fenomenologia
de expressão francesa e sua interface com a Educação; 2) Ensino
de Filosofia. É pesquisador do CNPq, desenvolvendo projeto de
pesquisa sobre o ensino de filosofia.
Email: danelon@faced.ufu.br

Samuel Mendonça
Doutor em Educação (Filosofia da Educação) -
Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é Professor
Pesquisador e Coordenador do Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Educação da PUC Campinas, Consultor
do Comitê Assessor Especial da Coordenação Geral de
Cooperação Internacional da CAPES e Assessor Científico
da FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de 329
São Paulo. É presidente da Associação Latinoamericana de
Filosofia da Educação (ALFE), membro do GT 17 - Filosofia
da Educação - da ANPED - Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Educação, do INPE - International
Network of Philosophers of Education, do PES - Philosophy
of Education Society e da SOFIE - Sociedade Brasileira de
Filosofia da Educação. Autor de Projeto e Monografia Jurídica.
4.ed. Campinas: Millennium, 2009. É orientador de Mestrado
e de Iniciação Científica nos seguintes temas: filosofia da
educação, formação do educador, fundamentos da educação,
metodologia da pesquisa, ética, teoria do conhecimento,
política educacional e emancipação.
Email: samuelms@gmail.com

Andrea Díaz
Doutora em Filosofía pela Facultad de Filosofía y
Letras de la Universidad Autónoma de México (Suma Cum
Laude), Diretora do Departamento de Historia e Filosofía
da Educação da Faculdade de Humanidades e Ciências
da Educação, Universidad de la República, no Uruguay.
Professora Agregada de Filosofia da Educação em dedicação
exclusiva. Investigadora do Sistema Nacional de Investigadores
nivel I(ANII). Autora de diversos livros: La construcción de la
identidad en América Latina. Una aproximación hermenéutica
(2004); El eterno retorno de lo mismo o el terror a la Historia
(2008); organizadora junto a E. Puchet do livro Inquietud
de sí y educación. Hacia un replanteo de la Filosofía de la
educación (2010). Tem sido conferencista e professora
convidada em diversos países de Europa e América Latina. Pós
doutorado pela Universidad Autónoma de Madrid. Presidiu
o II Congresso Latinoamericano de Filosofia da educação
que se realizou na Universidad de la República, Montevideo,
Uruguay, entre 21 e 23 de março de 2013.
Email: diazgena@gmail.com
330
Sílvio Gallo
Professor Associado da Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas desde 1996. Entre
junho de 2006 e junho de 2010 atuou como Coordenador
do Programa de Pós-Graduação em Educação desta
universidade. Pesquisador do CNPq. Graduado em Filosofia
(PUC-Campinas, 1986); Mestre em Filosofia da Educação
(UNICAMP, 1990); Doutor em Filosofia da Educação
(UNICAMP, 1993); Livre Docente em Filosofia da Educação
(UNICAMP, 2009). Foi professor na Universidade Metodista
de Piracicaba entre fevereiro de 1990 e fevereiro de 2005, onde
exerceu os cargos de Chefe do Departamento de Filosofia;
Coordenador do Curso de Filosofia e Diretor da Faculdade
de Filosofia, História e Letras. Pesquisador do anarquismo e
da pedagogia libertária, procura organizar sua prática docente
universitária segundo estes referenciais. Publicou dezenas de
artigos como resultado de suas pesquisas neste campo, além
de quatro livros. Atualmente, desenvolve pesquisas na área
de filosofia francesa contemporânea e suas interfaces com
a educação, estudando autores como Deleuze e Foucault,
além de dedicar-se a investigações concernentes ao ensino
da filosofia. Sobre estes temas, publicou dezenas de artigos e
alguns livros, sendo os mais recentes Subjetividade, Ideologia
e Educação (Ed. Alínea, 2009) e Metodologia do Ensino de
Filosofia (Ed. Papirus, 2012).
Email: silvio.gallo@gmail.com

Gregorio Valera-Villegas
Pesquisador do Centro de Estudios Latinoamericanos
Rómulo Gallegos. Membro do Programa de Promoción
del Investigador (PPI-3) do Ministério de Ciência e
Tecnologia da Venezuela. Membro do Programa de Estímulo
a la Investigación y la Innovación (PEII Nivel C) del
Ministerio del Poder Popular para a Ciencia, Tecnologia.
Prêmio Municipal de Literatura 2010, Menção Ensayo del 331
Municipio Libertador del Distrito Capital, Caracas. Tem sido
conferencista convidado en universidades venezuelanas y do
exterior. Editor-Chefe de Ensayo y Error (Revista de Educación
y Ciencias Sociales). Possui varios artigos publicados em
revistas especializadas. Entre seus trabalhos pode-se destacar:
Pedagogía de la alteridad. Una dialógica del encuentro con el otro
(2002); Tiempo, relato y formación. Una lectura antropoética del
paria (2006); El lector inquieto. Formación, tiempo y cuerpo,
(2012); Una hermenéutica de la formación de sí. Lectura,
escritura y experiencia, com Gladys Madriz (2006); Las letras en
el tejido de la vida, também com Gladys Madriz, na coletânea
Literatura del yo y educación organizada por Jorge Larrosa
y Carlos Skliar; Entre Pedagogía y Literatura (2005); Entre
filosofía y filosofar. Pensamiento, infancia y ciudadanía (2009),
organizado junto com Gladys Madriz e Arleny Carpio;
Formación de la sensibilidad. Filosofía, arte, pedagogía (2011),
organizado também com Gladys Madriz e Arleny Carpio;
El Silencio y los juegos de la memoria (2003); Del habla, del
silencio, del otro. Cuaderno de Poesía (2006).
Email: gregvalvil@yahoo.com

Márcio Silveira Lemgruber


Professor e pesquisador da linha TICPE do PPGE da
Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, onde orienta
doutorandos e mestrandos. Doutor em Educação pela UFRJ,
1999. Mestre em Educação pelo IESAE/FGV RJ, 1990.
Professor Associado aposentado da Faculdade de Educação
da UFJF, onde integrou a coordenação do Projeto Veredas e
do curso Pedagogia UAB/UFJF. Organizou, juntamente com
Renato José de Oliveira, o livro Teoria da Argumentação e
Educação (Ed. UFJF, 2011).
Email: mslemgruber@gmail.com

332
Hubert Vincent
Ex-aluno da École Normale Supérieure de Paris na rue
d’Ulm, é professor “agrégé” de Filosofia na Universidade de
Rouen, Departamento de Ciências da Educação. Doutor
em Filosofia e Ciências da Educação, autorizado a orientar
pesquisas de graduação e pós-graduação, trabalha desde
1990 com questões filosóficas relacionadas com a educação
e tem publicado livros e artigos sobre o assunto, tais como O
ceticismo em Montaigne e Educação, Arte e verdade em Nietzsche,
Le “peuple enfant” chez Alain . Tem ainda se esforçado para
pensar as condições de produção filosófica do ponto de vista
pedagógico e da alteridade, a construção de um diálogo fora
da Europa, incluindo pensadores e professores na África,
em Taiwan e no Brasil. Dirigiu, entre outros, dois livros em
torno dessas questões: Cidadania Global: questões, conceitos,
problemas e Experiências de dialogo e cruzamentos de fronteira.
No Brasil, em 2013, trabalhou como professor convidado
da UNICAMP e, no mesmo período, desenvolveu, durante
7 dias, atividades acadêmicas na Faculdade de Educação da
UFJF.
Email: huvinc@gmail.com

Ralph Bannell
Doutor em Teoria Social e Política pela Universidade de
Sussex, Inglaterra. Pós-doutorado pelo Institute of Education,
Universidade de Londres. Orienta trabalhos de mestrado e
doutorado nas áreas de filosofia da educação. Publicou o livro
Habermas e a Educação (Belo Horizonte: Autêntica, 2006) e
organizou o livro Formação para a Cidadania e os Limites do
Liberalismo (Rio de Janeiro: 7 Letras/ FAPERJ, 2011).
Email: ralph@puc-rio.br

333
Tarcísio Jorge Santos Pinto
Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo,
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal de
Juiz de Fora. Publicou pela Editora Loyola o livro O método da
intuição em Bergson e a sua dimensão ética e pedagógica e vem
publicando capítulos de livros e artigos nas áreas da Filosofia
e da Filosofia da Educação. Atualmente é coordenador do
GEFILE – Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia e
Educação.
Email: tarcisio.pinto@ufjf.

Marcus Vinicius da Cunha


Pesquisador do CNPq. Doutor em Educação pela
Universidade de São Paulo (USP) e Livre-Docente em
Psicologia da Educação pela Universidade Estadual Paulista
(UNESP). Atua no Programa de Pós-Graduação em Educação
da USP-Ribeirão Preto e é colaborador no Programa de
Pós-Graduação da UNESP de Araraquara. Ensina e orienta
trabalhos nas áreas de história e filosofia da educação. Dentre
suas publicações, destacam-se John Dewey, uma filosofia para
educadores em sala de aula (Vozes, 1994); John Dewey, a utopia
democrática (DP&A, 2002); “A apropriação de Aristóteles por
John Dewey” (Educação e Filosofia, 2011, em coautoria com
Rita Pimenta de Araújo) e “Concordâncias e discordâncias de
Dewey com Freud” (Educar em Revista, 2012, em coautoria
com Erika N. F. de Andrade).
Email: mvcunha@ hotmail.com

Walteno Martins Parreira Júnior


Mestre em Educação pela Universidade Federal de
Uberlândia – UFU. Professor da Universidade do Estado
de Minas Gerais/UEMG - Unidade Ituiutaba. Membro do
334 grupo de pesquisa "Desenvolvimento profissional e docência
universitária: saberes e práticas educativas" do Programa de
Pós-Graduação.
E-mail: waltenomartins@yahoo.com.

Silvana Malusá
Doutora em Educação pela Universidade Metodista de
Piracicaba – Unimep, professora da Faculdade de Educação da
UFU, coordenadora do grupo de pesquisa "Desenvolvimento
profissional e docência universitária: saberes e práticas
educativas" PPGEd-UFU.
E-mail: malusa@faced.ufu.br

Guilherme Saramago de Oliveira


Doutor em Educação pela UFU, professor da Faculdade
de Educação da UFU, membro do grupo de pesquisa
"Desenvolvimento profissional e docência universitária:
saberes e práticas educativas" do PPGEd-UFU.
E-mail: gsoliveira@ufu.br.

Douglas Tomácio Lopes Monteiro


Mestre em educação pela Universidade Federal de Juiz
de Fora (UFJF), é especialista em docência e gestão do ensino
superior, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC-MG), graduado em pedagogia pela Universidade do
Estado de Minas Gerais (UEMG) e em história, bacharelado
e licenciatura, também pela PUC-MG.
Email: dtlmeduc@gmail.com

335
Geysa Spitz Alcoforado de Abreu
Doutora em Educação pela PUC/SP (2007) e mestre em
Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(2003). É graduada Pedagogia pela Universidade Federal do
Paraná (1999), com habilitação em Educação Infantil, séries
iniciais do Ensino Fundamental, Supervisão e Orientação
Educacional. Atualmente é professora adjunta do Centro de
Ciências Humanas e da Educação - FAED, da Universidade
do Estado de Santa Catarina - UDESC. Tem experiência
na área de Educação, atuando principalmente nos seguintes
temas: formação de professores, fundamentos da Educação,
planejamento educacional, Supervisão Escolar, Educação
Infantil, Ensino Secundário e Linguagem.
E-mail: geysa.abreu@uol.com.br

Jilvania Lima dos Santos Bazz


Doutora em Educação pelo Programa de Pesquisa e
Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação,
Universidade Federal da Bahia - FACED/UFBA. Atualmente,
trabalha na Universidade do Estado de Santa Catarina -
UDESC, no curso de Pedagogia,onde ministra as disciplinas
relativas ao campo da Linguagem, Alfabetização e Letramento.
Tem experiência na área de educação e linguagem, com ênfase
em filosofia da educação, metodologia e prática de ensino,
atuando e desenvolvendo pesquisas nos seguintes temas:
estágio curricular, literatura e ensino, leitura e produção de
textos.
E-mail: jilvaniabazzo@gmail.com

336
Permutas
1. Universidade Estadual Paulista (UNESP) Campus Bauru
- Ciência e Educação
2. UNIMEP (Universidade Metodista de Piracicaba) -
Comunicações – Caderno do programa de P.G.
3. Ministério da Educação (MEC) Secretaria de Educação
Especial - Integração MEC – Sec. Educação Especial
4. CEUC (Centro Universitário de Corumbá) UFMS –
Seção Biblioteca.
5. UFG (Universidade Federal de Goiânia)- Cadernos de
Educação.
6. UNIC (Universidade de Cuiabá) - Cadernos De
Educação.
7. USJT (Universidade São Judas Tadeu) - Integração –
Ensino pesquisa.
8. FAESA (Faculdades Integradas Espírito-Santenses) -
Revista de Educação da FAESA.
9. UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso) - Revista
Educação Pública UFMT.
10. UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) - Núcleo
de Estudos Sobre Trabalho e Educação.
11. UFV (Universidade Federal de Viçosa) – DEBATE.
12. FAEEBA (Faculdade de Educação do Estado da Bahia) -
Revista da FAEEBA.
13. Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE) - Biblioteca
Conselheira Nair Fortes Abu-Merhy.
14. Editora UaPÊ Espaço Cultural Barra - Espaço Cultural
Barra.
15. Cibec (Centro de Informação e Biblioteca em Educação).
16. Ibero-Amerikanisches Institut (IAI) Preußischer
Kulturbesitz. 337
17. Unitins (Fundação Universidade do Tocantins).
18. UPE (Universidade de Pernambuco).
19. USP (Universidade de São Paulo) - Serviço de Biblioteca e
Documentação.
20. Uneb (Universidade do Estado da Bahia).
21. Unemat (Universidade do Estado de Mato Grosso).
22. UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais).
23. Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina).
24. UEA (Universidade do Estado do Amazonas).
25. UEPA (Universidade do Estado do Pará).
26. UEPB (Universidade Estadual da Paraíba).
27. UNEAL (Universidade Estadual de Alagoas).
28. Unicamp (Universidade de Campinas) - Faculdade de
Educação.
29. UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas) -
Educação e Sociedade – CEDES.
30. UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana).
31. UEM (Universidade Federal de Maringá).
32. UEG (Universidade Estadual de Goiás).
33. UEL (Universidade Estadual de Londrina).
34. Unimontes (Universidade Estadual de Montes Claros).
35. UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul).
36. UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa).
37. UERR (Universidade Estadual de Roraima) - Multiteca.
38. UESC (Universidade Estadual de Santa Cruz).
39. UEAP (Universidade do Estado do Amapá).
40. UECE (Universidade Estadual do Ceará).
41. Unicentro Paraná (Universidade Federal do Centro-
Oeste).
338
42. UEMA (Universidade Estadual do Maranhão).
43. UENP (Universidade Estadual do Norte do Paraná).
44. UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense) -
Biblioteca.
45. Unioeste (Universidade Estadual do Oeste do Paraná).
46. Fecilcam (Faculdade Estadual de Ciências e Letras de
Campo Mourão).
47. UESPI (Universidade Estadual do Piauí).
48. UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).
49. UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia).
50. UERGS (Universidade Estadual do Rio Grande do Sul).
51. UERN (Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte).
52. URCA (Universidade Regional do Cariri).
53. Uvanet (Universidade Estadual Vale do Acaraú).
54. PUC Paraná (Pontifícia Universidade Católica do Paraná)
- Revista Diálogo Educacional PUC-PR.
55. PUC Campinas (Pontifícia Universidade Católica de
Campinas).
56. PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
Campus Perdizes.
57. PUC-SP Campus de Consolação.
58. PUC-SP Campus de Santana.
59. PUC-SP Campus de Sorocaba.
60. PUC-SP Campus de Barueri.
61. PUC-SP.
62. PUC Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro).
63. UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense.
64. UNESP / Botucatu.
339
65. FAPA (Faculdade Porto Alegrense) -Revista Ciências &
Letras.
66. UNESP Bauru.
67. UCDB (Universidade Católica Dom Bosco) - Série de
estudo periódicos do mestrado em Educação da UCDB.
68. PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul) - Revista Diálogo Educacional PUC-PR.
69. PUC-RS / Revista FAMECOS.
70. UNIMEP (Universidade Metodista de Piracicaba).
71. UFBA (Universidade Federal da Bahia – Campus
Ondina) / Gestão em Ação.
72. UFBA (Universidade Federal da Bahia) - Revista do
Núcleo política e Gestão da Educação.
73. UNISINOS - Universidade do Vale do Rio dos Sinos -
Revista Entrelinhas.
74. UNESP (Universidade Estadual Paulista) Campus de
Presidente Prudente - Nuances.
75. PUC Minas Gerais (Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais) - Cadernos de Educação.
76. UFU (Universidade Federal de Uberlândia) - Revista
Educação Popular.
77. UNESP Marília - Educação em Revista.
78. UFPR (Universidade Federal do Paraná) - Revista de
Textos e debates.
79. UFPA (Universidade Federal do Pará) - Revista ver
educação.
80. UFMA (Universidade Federal do Maranhão) - Revistas de
Políticas Públicas.
81. UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) -
Revista educação em questão.
82. USP (Universidade de São Paulo) - Revista Educação e
Pesquisa.
340
83. UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Revista Horizontes Antropológicos.
84. UFSM (Universidade Estadual de Santa Maria) Revista
Educação.
85. UFSM (Universidade Federal de Santa Maria) - Revista
Educação Especial.
86. UEL (Universidade Estadual de Londrina) - Boletim –
Centro de Letras e ciências Humanas.
87. UCS (Universidade de Caxias do Sul) - Revista Métis.
88. UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) -
Revista Rascunhos Culturais.
89. UFV (Universidade Federal de Viçosa) - Revista Ciências
Humanas.
90. UFV - Revista Educação em Perspectiva.
91. UCB (Universidade Católica de Brasília) - Revista
Diálogos.
92. UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) -
Educação em Revista.

341
Normas para publicação
O envio dos artigos para a Revista Educação em Foco deverá
ser feito obedecendo as seguintes orientações:
1. O texto deverá ser original, comprometendo-se o articulista
em termo que estabelece a sua responsabilidade na garantia
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dedois membros do conselho cientifico nacional ou
internacional,ou dois pareceristas ad hoc, indicando ou
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tenha, será re-enviado aos pareceristas para o aceite final.
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h) Espaçamento justificado;
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k) Referências Bibliográficas: ao final do texto, de
acordocom as normas da ABNT em vigor.
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m) Quantidade de páginas:
- Mínimo de 12 páginas;
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A revista Educação em Foco também publica resenhas,
que devem atender às seguintes orientações: a) devem
referir-se à obra relacionada Educação; b) devem ser
redigidas em língua portuguesa ou espanhola. No
caso de serem redigidas em língua inglesa ou francesa,
devem ser acompanhadas da respectiva tradução; c)
devem ser inéditas, conter a identificação completa
da obra e ter extensão de até 18.000 caracteres (com
espaços), incluindo, se houver, citações e referências
bibliográficas; d) devem se estruturar a partir de uma
descrição do conteúdo da obra, com fidelidade a
idéias principais, fundamentos, metodologia, bem
como análise crítica, ou seja, um diálogo do autor da
resenha com a obra; e) devem apresentar qualidade
textual em termos de estilo e linguagem acadêmica.
As etapas para avaliação das resenhas são as mesmas
usadas para artigos. 343
5. Encaminhamento:
- Pelo cadastro no site da revista no endereço
eletrônico: http://educacaoemfoco.ufjf.emnuvens.
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Universidade Federal de Juiz de Fora


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Revista Educação em Foco
Campus Universitário/ Cidade Universitária
Juiz de Fora – Minas Gerais | CEP: 36036-330

344 Site da Revista: http://educacaoemfoco.ufjf.emnuvens.com.br/edufoco


Informações Gráficas

Formato: 16 x 23 cm.
Mancha: 12,8 x 18,4 cm.
Tipologia: Adobe Garamond Pro – Garamond – Alberta extralight – Miniom Pro.
Papel: Offset 90 g/m² (miolo) – Cartão Supremo 250 g/m² (capa) com laminação fosca.
Tiragem: 300 exemplares. 345

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