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Historiografia do Brasil

Autora: Profa. Sonia de Deus Rodrigues Bercito


Colaborador: Prof. Vinicius Carneiro de Albuquerque
Professora conteudista: Sonia de Deus Rodrigues Bercito

Doutora em História Econômica pelo Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo (USP), em 2005, mestre em História Social, em 1991, e graduada em História,
em 1979, pela mesma universidade. Trabalhou como historiadora do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,
Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) nas décadas de 1980 e 1990. Foi professora do Ensino
Básico e Superior em diversas instituições de ensino e de Historiografia Geral e Brasileira no curso de especialização em
História, Sociedade e Cultura da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Cogeae). É coordenadora pedagógica no Ensino
Fundamental do Colégio Objetivo, atuando na coordenação de produção de material didático. Na área de pesquisa,
desenvolveu trabalhos sobre História do Brasil relacionados ao patrimônio histórico, às décadas de 1930 e 1940, e à
história do corpo do trabalhador industrial em São Paulo.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

B485h Bercito, Sonia de Deus Rodrigues.

Historiografia do Brasil. / Sonia de Deus Rodrigues Bercito. –


São Paulo: Editora Sol, 2016.

140 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXII, n. 2-091/16, ISSN 1517-9230.

1. Historiografia brasileira. 2. Evolucionismo. 3. Cientificismo.


I. Título.

CDU 981

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
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Unip Interativa – EaD

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Prof. Marcelo Souza
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Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Ana Luiza Fazzio
Juliana Mendes
Sumário
Historiografia do Brasil

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................9

Unidade I
1 A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA NO SÉCULO XIX............................................................................... 13
2 OS INSTITUTOS HISTÓRICOS ENTRAM EM CENA .............................................................................. 14
2.1 O Romantismo e a formação da nacionalidade....................................................................... 15
2.2 O projeto nacional................................................................................................................................ 18
2.3 O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).............................................................. 21
2.4 Forjar a nação: missão do IHGB...................................................................................................... 22
2.5 A historiografia do IHGB.................................................................................................................... 24
2.6 O legado historiográfico do IHGB.................................................................................................. 30
2.7 Varnhagen, o Heródoto brasileiro................................................................................................... 31
3 EVOLUCIONISMO, CIENTIFICISMO E A PRODUÇÃO HISTÓRICA
NAS ÚLTIMAS DÉCADAS DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO XX.................................................................. 33
3.1 A hegemonia da ciência e a ideologia do progresso ............................................................. 33
3.2 O ambiente cultural brasileiro no final do século XIX ........................................................... 35
3.3 A historiografia brasileira, o cientificismo e os determinismos.......................................... 38
3.4 Capistrano de Abreu, o grande historiador................................................................................ 40
4 A IDENTIDADE NACIONAL EM QUESTÃO................................................................................................ 45

Unidade II
5 A HISTÓRIA DO BRASIL ENCONTRA NOVOS CAMINHOS................................................................. 51
5.1 O Brasil e a historiografia nas décadas iniciais do século XX.............................................. 52
5.2 O papel da História e da Geografia na construção nacional............................................... 53
5.3 A historiografia, a questão nacional e o posicionamento dos intelectuais.................. 57
6 O MODERNISMO E O MOVIMENTO DE REDESCOBRIMENTO DO BRASIL.................................. 58
6.1 Somos, enfim, modernos?.................................................................................................................. 58
6.2 Tradição e modernidade..................................................................................................................... 59
6.3 A cultura brasileira, o nacional e o popular............................................................................... 61
6.4 Retrato de um País triste................................................................................................................... 63
6.5 Pioneiros em caminhos diversos: os intérpretes do Brasil................................................... 64
6.6 Da varanda da Casa-Grande ............................................................................................................ 65
6.7 Emergem os antagonismos............................................................................................................... 71
6.8 A cordialidade como padrão............................................................................................................. 74

Unidade III
7 A PRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA ENTRE OS AUTORITARISMOS E A DEMOCRACIA............. 83
7.1 O pensamento autoritário e a historiografia nas décadas de 1930 e 1940.................. 83
7.2 Oliveira Viana e o pensamento autoritário................................................................................. 84
7.3 O Estado Novo, os intelectuais e a cultura................................................................................. 86
7.4 O nacional e a formação de uma cultura histórica................................................................. 89
7.5 O Serviço do Patrimônio Histórico Nacional.............................................................................. 93
7.6 A História na universidade................................................................................................................ 96
7.7 Ressurgem as dissidências e emerge um pensamento radical........................................... 97
7.8 Novos parâmetros para se entender o Brasil ............................................................................ 98
7.9 O nacionalismo desenvolvimentista.............................................................................................. 99
7.10 Pensar o Brasil em novos termos ..............................................................................................101
7.11 Outras possibilidades para pensar o País.................................................................................103
7.12 Em tempos de radicalização.........................................................................................................105
8 A HISTORIOGRAFIA RECENTE....................................................................................................................107
8.1 As principais influências e questões a enfrentar....................................................................107
8.2 A repercussão na historiografia.....................................................................................................109
8.3 A questão da História nacional.....................................................................................................111
8.4 Alguns caminhos possíveis .............................................................................................................112
APRESENTAÇÃO

Este livro-texto pretende acompanhar os caminhos de constituição de um saber histórico no Brasil


e, ao mesmo tempo, percorrer o pensamento social brasileiro por meio da produção historiográfica
que o integra. Conhecer os contornos e os aspectos formativos dessa historiografia é de fundamental
importância para o desempenho do profissional de História. Na docência, auxilia a problematizar as
narrativas produzidas sobre o passado na bibliografia didática e a discutir de forma crítica a História
com os alunos. Na pesquisa, fornece a base sobre a qual se podem construir os temas e eleger os pontos
de reflexão em análises a serem realizadas sobre a História do Brasil.

Partimos das primeiras manifestações da produção histórica encontrada nos cronistas que
escreveram em tempos de América Portuguesa. Na verdade, somente após a independência é que teve
início a historiografia brasileira propriamente dita. A pesquisa histórica no Brasil, com metodologia
e reflexões de cunho científico, anunciou-se no século XIX e tomou corpo em meados do XX. Assim,
iremos acompanhar os esforços realizados em momentos diferentes desses séculos para se construir
o conhecimento histórico em nosso País. É forçoso reconhecer que, nesse percurso, o passado a ser
buscado era fundamentalmente aquele que sustentasse o Estado constituído tendo a ideia de nação
como substrato: a história nacional.

Com efeito, nossa tradição intelectual tem feito da nação seu sujeito privilegiado. Desde a produção
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) no século XIX, passando pelas teorias raciológicas
e seu impacto nas formas de ver o Brasil, pelos arautos da modernidade dos anos 1920 e ensaístas da
década de 1930, é sempre a ideia de nação brasileira que se encontra subjacente. As reflexões conduzidas
tendo como eixo a ideia de nação e identidade brasileira têm tido longo alcance, responsabilizando-se
pela edificação de matrizes de pensamento histórico, sociológico e político cujos ecos sentimos até hoje.

Ao se dirigir o foco por muito tempo para aquilo que seria comum a todos e comporia a marca de
nossa singularidade, produziram-se silêncios e esquecimentos daqueles que não se reconheceram na
unidade forjada. Precisou-se que novas questões fossem colocadas para o passado por uma historiografia
mais recente, preocupada em estudar a história de minorias e grupos sociais marginalizados naquela
produção historiográfica comprometida com a história nacional, muitas vezes, traduzida em história
das elites.

Nas tendências historiográficas mais recentes, as diferentes faces do Brasil se sobrepõem à ideia
de unidade tantas vezes encobridora das desigualdades de fato. Mesmo assim, apesar da evidente
complexidade da questão identitária, da valorização da diversidade e das singularidades a que
assistimos atualmente, a nacionalidade continua a funcionar como uma argamassa a cimentar laços de
pertencimento social contradizendo aqueles que acreditavam no fim da nação na sociedade globalizada.

Outro aspecto importante da discussão sobre a historiografia brasileira refere-se à sua


institucionalização como saber socialmente reconhecido. Os institutos históricos desempenharam um
importante papel para isso no século XIX. Já no século XX, as universidades começaram a se destacar
como o principal locus de produção historiográfica. Os primeiros frutos da universidade apareceram
inicialmente na década de 1940, e nas décadas de 1950 a 1980 cujas Ciências Econômicas e Sociais
7
tiveram influência marcante, o saber histórico foi sendo produzido cada vez mais em âmbito acadêmico
e de acordo com suas regras. Nas décadas seguintes, a ampliação dos temas e das visões sobre o fazer
historiográfico como resultado, sobretudo, mas não apenas, da influência da nova história francesa,
conduziram ao caráter plural da produção historiográfica que observamos na atualidade.

Em todo esse percurso, a historiografia brasileira foi se encorpando e o saber histórico se construindo
com contornos cada vez mais próximos do rigor das ciências e das academias, ampliando o entendimento
sobre o Brasil e os brasileiros.

Para acompanhar as principais vertentes da produção historiográfica brasileira, numa tentativa de


periodização, podemos definir os seguintes momentos:

I. Primeiros cronistas (1500-1822).

II. Surgimento da História do Brasil e criação dos institutos históricos (1822-1870).

III. Positivismo e cientificismo (1870-1930).

IV. Alargamento dos modelos científicos (1930-1945).

V. Primeiros frutos da universidade (1945-1960).

VI. Triunfo do modelo marxista (1960-1980).

VII. Abertura para novas tendências (1980 em diante).

Inicialmente, estudaremos a produção historiográfica no País, no século XIX, que foi marcada pela
atuação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), sediado no Rio de Janeiro, e seus correlatos
regionais. A figura marcante desse período foi Varnhagen – historiador consagrado no Império e conhecido
como o Heródoto brasileiro. Mais para o final do século, veremos como o evolucionismo e as teorias
deterministas influenciaram o nosso panorama intelectual repercutindo na historiografia. Destacaremos
a importância de Capistrano de Abreu, reconhecido como figura maior dentre os historiadores nacionais.

Em seguida focalizaremos no início do século XX a importância conferida à História e à Geografia na


construção nacional. Na sequência abordaremos a ideia de que o País estava entrando na modernidade
e o contraponto que a valorização das tradições culturais significava. Por fim, trataremos das explicações
seminais e inovadoras oferecidas pela tríade composta por Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado
Júnior e Gilberto Freyre, os chamados “intérpretes do Brasil”.

Discutiremos a concepção de cultura histórica no Estado Novo e a produção historiográfica no


período, com destaque para Oliveira Vianna. Também analisaremos a criação do Serviço do Patrimônio
Histórico Nacional e o surgimento do conhecimento histórico acadêmico. Mais adiante, o assunto é
o nacional-desenvolvimentismo e a importância do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb)
nas formas com que se pensou o País e sua formação histórica naquele momento. Destaca-se a forte
presença do marxismo na historiografia a partir dos anos 1960.
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Finalmente, ofereceremos uma breve apresentação dos rumos assumidos pela historiografia brasileira
nos fins do século XX e início do atual. Em seguida, apresentaremos trechos escolhidos de trabalhos nos
quais historiadores fazem um balanço de algumas abordagens historiográficas presentes no País.

INTRODUÇÃO

Nunca uma sociedade se revela tão bem como quando projeta para trás de
si sua própria imagem.

Charles Olivier Carbonell

O estudo da Historiografia Brasileira envolve um campo amplo de questões a serem discutidas e


temas a serem tratados. As abordagens podem variar e, antes de tudo, é preciso que nos situemos em
relação ao nosso objeto.

Diante das diferentes visões sobre o que vem a ser historiografia – conceito sobre o qual não há
apenas uma definição, nem consenso – é possível tratá-la de formas diversas. Pode-se, por exemplo,
colocar em evidência de que forma se dá a elaboração do conhecimento histórico e seu registro escrito.
Nesse caso, nos aproximamos da teoria da História e de sua epistemologia.

Também é possível sublinhar sua condição de narrativa, importando, sobretudo, o estatuto do


texto histórico como artefato linguístico ou, ainda, como será feito aqui, enfatizar o conjunto das
obras históricas produzidas em determinado contexto, tempo ou local. Nessa última alternativa, a
historiografia assume um caráter historicizado ensejando a possibilidade de se construir uma história
da historiografia.

Com efeito, essa linha de pesquisa, destinada a acompanhar as transformações do conhecimento


histórico no tempo, tem se ampliado com intensidade nas últimas décadas dando origem a
relevantes trabalhos.

Cumpre lembrar que a palavra história tem duplo significado. Refere-se ao conjunto das ações
humanas ocorridas no passado e também aos relatos que são produzidos sobre esse passado que
compõem a historiografia. O segundo caso enseja a reflexão sobre a natureza do vínculo existente entre
o passado vivido e o contado.

A ideia mais aceita hoje é de que a História é uma representação do passado vivido para cuja
elaboração diferentes variáveis operam, devendo ser considerado o historiador em sua subjetividade
intrínseca e as condições históricas e sociais de sua produção.

É fato, amplamente aceito, que a tarefa do historiador, como trabalho intelectual, depende de
condições individuais, mas vincula-se a um determinado contexto social e histórico que o insere em um
âmbito coletivo. A natureza coletiva do conhecimento faz que, como ressalta Maria de Lourdes Janotti,
seja interceptada na “mensagem de uma obra ou em seu estilo o resultado do pensamento de um ou
mais grupos sociais sobre a realidade vivida” (apud FREITAS, 1998, p. 120).
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Tratar da produção historiográfica, com esse entendimento, faz as reflexões no âmbito da
história das ideias se vincularem ao estudo do ambiente sociocultural das épocas em que foram
produzidas, com as necessárias considerações sobre questões econômicas e políticas envolvidas.
Como afirma a historiadora:

Estudos de historiografia supõem o julgamento da obra de História não


apenas como trabalho de inspiração individual, mais ou menos bem-sucedido,
mas também como resultado intelectual do confronto das concepções que
uma sociedade tem sobre si mesma em um determinado momento vivido
de seu percurso. Por esta circunstância, as condições históricas sob as quais
a obra historiográfica foi produzida são tão importantes quanto as citações
bibliográficas nela contidas (apud FREITAS, 1998, p. 119).

A História é, como se sabe, escrita e reescrita a cada geração. Assim, a historiografia constitui
documento de sua época ao mesmo tempo que é reveladora do passado que reconstrói.

Acresce-se a isso que as obras históricas não são necessariamente superadas pelas que lhe sucedem,
não podendo ser descartadas sem consideração, até porque se tornam documentos da época em que
foram produzidas.

De qualquer forma, o fazer historiográfico e o esforço intelectual do profissional de História na


reconstrução do passado, seja sob qual aspecto for, implica exame da produção já existente sobre aquele
momento que irá visitar, ou seja, o ofício do historiador depende do exame crítico da historiografia que
lhe é anterior.

Nessa condição, o conhecimento histórico tem caráter autorreflexivo, como ressalta Jurandir Malerba
ao dizer que:

Devido a uma característica básica do conhecimento histórico, que é sua


própria historicidade, temos de nos haver com todas as contribuições dos
que nos antecederam. Essa propriedade eleva a crítica historiográfica a
fundamento do conhecimento histórico (MALERBA, 2009, p. 11).

As bases da reflexão sobre a necessidade da crítica historiográfica na produção do conhecimento


histórico estão anunciadas em Benedetto Croce, para quem a historiografia é sempre contemporânea.
Em suas palavras:

Toda história é contemporânea; prova-o a existência da historiografia.


O crivo dessa deliberação é o interesse de um historiador ou de uma
sociedade. [...] sua condição de existência é a inteligibilidade do próprio
fato “para nós”, “que ele vibre na alma do historiador”, através dos
documentos; sempre ligado a seu fato haverá um feixe de narrativas,
de acordo com suas potencialidades para fazer-se sempre vivo e atual
– e as narrativas (historiografia) que se formam vão se tornando, elas
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próprias, fatos documentados de outros tempos, a serem interpretados
e julgados (apud MALERBA, 2009, p. 20).

A ideia de que a historiografia, ela mesma, seria “fato documentado de outros tempos”, reforça a
relevância de sua história e está na base dos caminhos escolhidos para este livro-texto, que se insere na
linha da história da historiografia cujo entendimento ainda se faz de uma última consideração.

Como definir historiografia brasileira e o que ela compreende? Há que se escolher entre três
possibilidades, pois ela pode ser entendida como:

1. Produção sobre História em geral feita por autores brasileiros.

2. Toda produção sobre a História do Brasil feita tanto por brasileiros como por autores de outros países.

3. Produção sobre História do Brasil feita por autores brasileiros.

A terceira possibilidade nos parece trazer vantagens significativas. Esta também é a visão apresentada pelo
historiador Fernando Novais em seu livro Aproximações. Para ele, no primeiro caso, estaríamos colocando em
evidência o “sujeito do discurso” – o historiador – e caberia listar todas as obras de historiadores brasileiros
independentemente do tema ou do período histórico tratado. No segundo, a ênfase estaria no objeto de estudo
– Brasil – e caberia incluir todas as obras escritas sobre o País, inclusive por autores estrangeiros, brasilianistas,
por exemplo. Entretanto, para esse autor, historiografia brasileira stricto sensu deve se referir ao conjunto das
obras de historiadores brasileiros sobre o Brasil (NOVAIS, 2005, p. 314).

Já afirmava José Honório Rodrigues – pioneiro dos estudos sobre historiografia brasileira – em seu
trabalho Teoria da História do Brasil, publicado pela primeira vez em 1949:

[...] a historiografia brasileira é um espelho de sua própria história. A


historiografia, como outros ramos do pensamento e da atividade humanos,
está inegavelmente integrada na sociedade de que é parte. Há, assim, uma
estreita conexão entre a historiografia de um período e as predileções e
características de uma sociedade (RODRIGUES, 1969, p. 32).

Iremos, assim, tratar neste livro-texto, em especial, da produção de intelectuais brasileiros sobre a
História do Brasil. Por vezes, para auxiliar a composição do panorama que se pretende construir, serão
citados autores de outras nacionalidades que escreveram sobre a nossa história.

Mas, sobretudo, vasculhando as formas de pensar de autores brasileiros sobre o nosso passado,
podemos acompanhar a construção no País de uma massa crítica de conhecimento sobre ele, conhecer
as diferentes visões produzidas sobre nossa história e, nesse caminho, lançar luz sobre o contexto em
que as obras foram produzidas.

Focalizando os autores brasileiros e inserindo a historiografia brasileira em seu contexto de produção,


podemos, a um só tempo, compreender o Brasil e o pensamento social brasileiro.
11
Importante mencionar que a produção historiográfica brasileira esteve, do século XIX para cá, sempre
pautada por modelos estrangeiros. As referências notadamente europeias balizam as discussões teóricas
e a definição de métodos e técnicas a serem utilizadas.

Até 1930, a formação dos historiadores era diversificada; muitos vinham das academias de Direito e
alguns tiveram acesso a estudos no exterior, em países como França, Portugal ou Alemanha. A produção
acadêmica de História no Brasil é fenômeno mais recente, perceptível a partir de meados do século XX.

Vincular a historiografia a seu momento de produção nos leva a discutir suas relações com o
poder. A seleção dos temas a serem estudados, os aspectos enfatizados e as análises feitas pelos nossos
historiadores expressam questões relevantes na época e devem ser considerados em suas relações com o
poder constituído, podendo estar a seu serviço ou a ele se contrapor. O quanto a obra histórica expressa
a visão de mundo do seu autor, com seus compromissos de classe e suas condições de formação, precisa
ser ponderado. Imerso em um determinado contexto histórico, expressa uma visão de mundo de sua
época, embora nem sempre de sua classe social e de forma consciente.

O discurso historiográfico é, também, importante recurso de construção de identidade social. Isso


se atesta pela frequente recorrência ao passado e às tradições históricas em momentos em que se quer
sublinhar laços de pertencimento, seja no âmbito das nacionalidades em formação, seja em grupos
sociais que buscam reconhecimento social.

Além disso, vale lembrar que a produção historiográfica, na medida em que cristaliza as versões sobre
o passado, constrói memórias e, no mesmo movimento, produz silêncios e esquecimentos. O acesso ao
passado passa a significar, nesse contexto, uma questão de poder. A historiografia brasileira tradicional
expressou isso de forma marcante elegendo a história da elite branca como a história nacional.

Somente nas décadas mais recentes isso se modificou com o surgimento de trabalhos em que negros,
indígenas, pobres e mulheres foram incluídos como personagens e protagonistas da história brasileira.

12
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

Unidade I
1 A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA NO SÉCULO XIX

Ao considerarmos a historiografia brasileira em seu sentido mais estrito, ou seja, obras de História do
Brasil elaboradas por historiadores brasileiros, somos levados a fixar seu início apenas com o surgimento
do estado nacional após a independência política de Portugal, ocorrida em 1822.

Antes disso, não existia propriamente o Brasil como tal, e os escritos de cronistas dos tempos coloniais
expressam observações sobre um país ainda em formação, em terras sob domínio do colonizador europeu.

Desde muito cedo, ainda nos primeiros tempos da ocupação europeia, foram escritos relatos e
crônicas sobre a história da América Portuguesa. Pero de Magalhães Gândavo, oriundo de Braga, esteve
no Brasil no século XVI e publicou em Lisboa, em 1576, História da Província de Santa Cruz a que
Vulgarmente Chamamos Brasil.

Dali em diante, outros cronistas apresentaram suas versões sobre os primeiros tempos da nossa
história, como o jesuíta baiano José Vicente do Salvador, autor de História do Brasil de 1627, e o Frei
Gaspar da Madre de Deus, que publicou, em 1797, as Memórias da Capitania de São Vicente, hoje,
chamada São Paulo do Estado do Brasil.

Saiba mais

Você pode encontrar o livro História da Província de Santa Cruz para


download gratuito no site oficial. Nesse endereço, há muitas publicações
sobre o Brasil com acesso liberado:

GÂNDAVO. P. M. História da Província de Santa Cruz. Belém:


Universidade do Amazônia, [s.d.]. Disponível em: <http://www.
dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000281.pdf>. Acesso em: 20
set. 2016.

Já Memórias da Capitania de São Vicente pode ser encontrada em:

MADRE DE DEOS, G. Memorias para a Historia da Capitania de S. Vicente;


hoje chamada de S. Paulo, do Estado do Brazil. Lisboa: 1797. <Disponível
em: <http://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/22443>. Acesso em: 20
set. 2016.

13
Unidade I

As primeiras sínteses sobre a História do Brasil surgiram no início do século XIX, logo após a
separação de Portugal, o que nos havia alçado à condição de estado soberano em busca da afirmação
de sua condição de nação independente.

Alguns estrangeiros – destaque para Robert Southey e John Armitage – se dedicaram a reunir
informações sobre o passado desse novo país, não sem intenções utilitárias para os interesses econômicos
de suas terras de origem.

John Armitage (1807 – 1856) foi um comerciante inglês que morou no Rio de Janeiro nas primeiras
duas décadas do início do século XIX. Escrevendo a partir da concepção da missão civilizacional britânica,
defendia em seus escritos a extinção da escravidão, que significaria um entrave ao desenvolvimento do
comércio e também da própria sociedade, indo ao encontro dos valores liberais. Publicou, em 1936,
sua História do Brasil, na qual pretendia divulgar os negócios políticos e financeiros do Império do
Brasil que tinham grande interesse naquele momento para seu país. Projetando uma imagem positiva
da monarquia constitucional brasileira, destacou a singularidade do Brasil ante as nações americanas
e europeias. Lançou as bases para uma historiografia da nação brasileira, antes mesmo do esforço dos
institutos históricos que a isso se dedicaram.

2 OS INSTITUTOS HISTÓRICOS ENTRAM EM CENA

O grande desafio colocado para os historiadores no século XIX era participar dos esforços de
transformar a ex-colônia portuguesa em uma nação. Antes de 1822, vivíamos em tempos de América
Portuguesa. Com a independência, a nação começava. Era preciso desfazer os laços com o antigo
colonizador, construir novos vínculos de pertencimento e cimentar as novas relações políticas e sociais.
A nação que surgia colocava como tarefa a ser empreendida a construção da nacionalidade brasileira.
Urgia criar uma identidade nacional e fazer emergir sentimentos nacionalistas. A História se anunciava
como um poderoso recurso a fim de contribuir com o esforço exigido para alcançar esses objetivos.

Após a independência e ao longo de todo o século XIX, a historiografia nascente no Brasil se construiu
como fundamento de sustentação ao estado monárquico que se constituía – não sem resistências – a
ele oferecendo um relato sobre o passado da nação e um conjunto de tradições.

Cumpre lembrar que nesse momento de uma história nacional nascente a própria História como
disciplina científica dava seus primeiros passos, fazendo dessa tarefa algo que passava por equacionar
questões epistemológicas e metodológicas que se apresentavam.

Sobre essas questões, lançaram-se os historiadores pioneiros de nosso País envolvidos em


controvérsias acerca do escopo do projeto de escrever uma história para a Nação, tarefa cuja necessidade
era ressaltada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).

A necessidade de se construir uma identidade para a nova nação, colocada pela emancipação política,
se manifestava também na ficção romântica. Importava construir um passado, uma memória nacional
para forjar a identidade nacional pretendida. As crônicas históricas, a ficção romântica e as biografias da
nação, embora de natureza diversa, estavam sintonizadas no mesmo movimento.
14
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

2.1 O Romantismo e a formação da nacionalidade

A mais importante discussão no Brasil, ao longo do século XIX, foi a questão nacional. Construir a
nação e a nacionalidade foi preocupação sempre presente no plano da política e da cultura desde o
rompimento com Portugal e a promulgação de nossa independência em 1822.

A literatura da época acompanhou esse mesmo movimento de afirmação nacional. No Romantismo,


surgido no Brasil na década seguinte à da independência, a nacionalidade assumiu uma centralidade
como categoria primordial de reflexão sobre a sociedade.

A vinda da Missão Artística Francesa para o Rio de Janeiro, em 1816, havia colocado em voga a
fórmula do Romantismo daquele país, com ênfase na natureza indomada, nas tradições folclóricas e no
passado comum do povo. Essa “fórmula” se combinou com as intenções emergentes de se forjar uma
literatura própria em terras brasileiras na esteira da necessidade de afirmação nacional.

O importante crítico e professor Antonio Candido, em Formação da Literatura Brasileira,


trabalho fundamental sobre o assunto, relacionou de forma definitiva o Romantismo brasileiro e
o projeto nacional.

A decisão programática desse movimento literário de descrever a nossa realidade e escrever sobre
coisas locais, para esse autor, estaria de acordo com um verdadeiro projeto nacionalista. Nomes como
José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo, Bernardo Guimarães, Castro Alves ou Gonçalves Dias
fizeram do Brasil e dos brasileiros seu assunto principal.

Poemas épicos, grandiloquentes e patrióticos davam o tom retórico ao espírito romântico da época.
A retórica romântica ressaltava, sobretudo, a beleza e a magnitude do novo país que se constituía para o
qual se projetava um futuro brilhante. As representações que produziam deviam impregnar a consciência
popular de patriotismo, civismo e brasilidade comparecendo em obras de grande sonoridade, como
Independência do Brasil, de Teixeira e Souza, Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães, ou
Os Timbiras, de Gonçalves Dias.

Para Antonio Candido, os escritores românticos se viam como portadores de uma missão:
estritamente espiritual e estética para alguns; social para outros. Comum a todos, o fato de exprimirem
a especificidade da realidade brasileira. De acordo com o autor, esses escritores empreenderam uma
interpretação social com rigor e eficácia equivalentes aos estudos históricos e sociais. O romance
romântico significou uma forma de pesquisa e descoberta do País com o inventário de costumes,
lugares e paisagens que conduziu. A observação realizada pelos ficcionistas e a sua imaginação
ampliaram a visão da terra e do homem brasileiro.

O caráter de “exploração e levantamento” deu à ficção romântica a função de tomada de consciência


da realidade brasileira no plano da arte. Dentre os temas abordados por esses escritores, destacam-se os
romances regionalistas e de costumes. O respeito pela realidade e o compromisso com a verossimilhança
na narrativa caracterizaram o romance oitocentista, estilo típico do Romantismo entre os outros
praticados, como a poesia ou o teatro.
15
Unidade I

Com sua linguagem, prestou-se a efetivar a intenção do ideal romântico de criar uma expressão
nova para o novo país que surgia. Os escritores românticos esquadrinharam em suas obras a vida
urbana e também a rural. Realizaram um verdadeiro inventário de costumes, lugares, paisagens e
convenções eternizados em suas obras. O indianismo ocupou muitas páginas, e o romance histórico
foi uma das formas destacadas de expressão do romantismo. Em seu conjunto, a literatura romântica
ajudou a estabelecer um passado heroico e lendário para o País, contribuindo para a construção de
uma identidade nacional.

Importante destacar que a visão produzida sobre o Brasil e os brasileiros nos vinculava à civilização
europeia da qual seríamos uma extensão. O índio, na visão romântica, era uma tradução europeia, e
o negro, o grande ausente. A identidade nacional que se buscava construir deveria demonstrar nossa
filiação às nações europeias, que ofereciam o parâmetro do que se entendia por civilização àquela época.

A nacionalidade brasileira que se pretendia evidenciar era aquela que nos ligasse à tradição europeia.
Reforçava-se a predominância do branco europeu em nossos traços culturais, ofuscando a participação dos
negros e celebrando, por meio do romantismo, uma peculiar presença indígena. A literatura romântica e os
pintores acadêmicos tomaram o indígena como símbolo da nacionalidade. No entanto, conforme se vê nas
pinturas que o retrataram, aparece de pele clara e de feições europeias, guardando enorme distância com seus
modelos verdadeiros, sendo mais uma tradução do “bom selvagem” do que um retrato fiel.

Observação
O contato dos europeus com os índios americanos inspirou reflexões
divergentes. Para Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), restariam no mundo
civilizado pequenas ilhas de bons selvagens numa sociedade cujo egoísmo
e propriedade privada haviam exigido o estabelecimento de um contrato
social para sua existência. Essa visão idílica associada aos indígenas teve
longo alcance, chegando até nossos dias.

Figura 1 – O Último Tamoio, pintura em tela de Rodolfo Amoedo

16
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

O “espírito romântico” em que se sobressaem o nacionalismo, o nativismo, a ideia de um espírito


nacional autêntico, a partir do reconhecimento de origens comuns, alcança também a historiografia.

Os escritores e os principais historiadores transitam no mesmo campo intelectual; o Instituto Histórico e


Geográfico Brasileiro exerce uma função aglutinadora nesse sentido. Aliás, a entrada de D. Pedro II no IHGB,
com o mecenato que empreende, impulsiona esse caráter nacionalista do Romantismo brasileiro tornando
projeto oficial que passa a inventariar o que deveriam ser as “originalidades locais” (SCHWARCZ, 1998). O
próprio imperador assume o espírito indigenista estudando o tupi-guarani, adornando seu manto imperial de
penas de tucano e fazendo-se fotografar em cenário tropical.

Figura 2 – O imperador D. Pedro II em foto de Joaquim Insley Pacheco de 1883. O cenário escolhido
indicava a intenção de ressaltar a natureza verdejante do país

Figura 3 – Fala do Trono. Pintura de Pedro Américo com D. Pedro II, aos 46 anos de idade, vestindo
a Regalia Imperial do Brasil em 1972. Destaque para o manto com penas de tucano

17
Unidade I

2.2 O projeto nacional

Ao se falar de nação, não se trata apenas de um conceito e de sua definição. Assim como qualquer
fenômeno social, a nação, tal como entendemos hoje, tem também sua história. Apenas a partir do
século XVIII a ideia da existência de um território e um conjunto de habitantes, unificado sob um estado
que os governa, começa a ser identificada. Mas é no século XIX que o conceito de nação se consolida sob
a égide do Estado. No entanto, não se observa nenhum tipo de consenso sobre o que de fato a define.

Para capturar a essência de seu significado, recorre-se a critérios diversificados que variam de
acordo com as condições encontradas nos estados aspirantes a serem identificados como nação.
Pode ser ressaltado o fato de se ter em comum a língua, o território, a etnia e a combinação desses
elementos. Recorre-se com frequência à existência de tradições e de um passado comum. Não se
deixa de lado a consciência ou o sentimento de “pertencimento” a um coletivo. Não raro, a nação se
define como um projeto.

Isso nos leva à polêmica questão de a ideia de nação estar presente antes, ou não, da constituição do
estado nacional. Será o Estado que constrói a nação? Afinal, o que forma uma nação? De acordo com
Maria Clementina Pereira Cunha:

[...] não é apenas de um conceito que se trata: quando nos referimos às


nações, estamos falando de fenômenos históricos, produtos de situações
específicas e essencialmente mutáveis. Situações, aliás, que ainda hoje estão
longe de serem universais e permanentes (CUNHA, 1992, p. 33).

As nações e as nacionalidades foram produzidas em contextos históricos específicos e singulares,


tendo sido o século XIX um momento marcante do processo de advento do Estado-Nação. No contexto
de avanço do capitalismo industrial, a nação significava garantia da propriedade e dos negócios com a
proteção do Estado, a unificação da moeda, das finanças públicas e das taxas e o estabelecimento de
políticas econômicas a favorecer o capital.

No século XIX, assistimos aos esforços dos países europeus de consolidarem seus estados nacionais.
Cada qual recorrendo a características entendidas como capazes de criar o sentimento necessário de
pertencimento e de identidade. Se na Alemanha e na Itália o movimento nacionalista recorria à “língua
culta”, em face da profusão de dialetos regionais, para cimentar a identidade nacional pretendida, na
França o importante era a adoção da cidadania francesa apesar das diferenças de língua ou etnia.

Isso posto, é possível considerar que “não são as ‘nações’ que formam os Estados, mas, ao contrário,
são os Estados que engendram e desenham a ideia e o formato das nações” (CUNHA, 1992, p. 33).

Decorre disso o fato de que a nação, em muitos casos, é um “vir a ser”, e sua criação é produto de
um projeto nacional para efetivação no qual se engajam as forças políticas nele interessadas e que são
por ele favorecidas. Esse movimento visa cimentar a coesão social sob a égide da Nação, o que exige um
intenso investimento simbólico.

18
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

Forjar a identidade nacional, ou seja, transformar o “povo” – uma categoria vaga e indistinta – em
“brasileiro”, “francês” ou “alemão” implica criar uma ideia de pertencimento a uma Nação para além das
diferenças e diversidades. O nacional é a dissolução do diferente em uma unidade comum. Procede-se,
no campo simbólico, à homogeneização do povo ignorando suas diferenças e as desigualdades sociais
existentes. Resulta, disso, a predominância dos interesses das forças políticas elitistas envolvidas nesse
projeto, colocado a serviço do controle e da dominação social.

Nesse sentido, o conceito de nação tem um caráter opressivo e dissolvente ao apresentar como iguais
as diferenças existentes. Esse conceito opera como recurso de legitimação de uma dada construção social
da realidade e, ao criar laços afetivos de pertencimento, solidifica a harmonia social sobrepondo-se às
diferenças e às contradições existentes. O conteúdo autoritário do conceito de Nação fica evidenciado
no trecho a seguir:

A nação apresentada, ao nível das representações simbólicas, como síntese


da sociedade, orienta-se para a totalidade, passando necessariamente pelo
desconhecimento das diferenças e desigualdades sociais, revestindo-se de
inequívoco conteúdo autoritário. A nacionalidade, vista sob a perspectiva
da construção da identidade social no contexto da nação, ao eleger um
denominador comum que, por definição, envolveria todos os componentes
da sociedade num plano universalizante, contém um caráter artificial e
dissimulador, desfazendo as identidades culturais particulares e diluindo
as desigualdades sociais. Nesse sentido, contém igualmente um conteúdo
autoritário e de dominação social (BERCITO, 1991, p. 37).

A nação e a nacionalidade significaram, pois, no século XIX, uma espécie de solução para inserção
dos indivíduos no meio social conferindo-lhes identidade própria. Atribuir-se à nação “uma identidade
original, um espírito próprio e irredutível ao das demais, serviria de fundamento para a historiografia
romântica e nacionalista dos oitocentos” (OLIVEIRA, 2011, p. 20).

O investimento simbólico no nacional inclui cerimônias cívicas, elementos oficiais, como


monumentos, hinos e bandeiras e, com grande importância, a construção de um passado comum
para o qual a historiografia é peça fundamental. É na existência de tradições e de um conjunto de
acontecimentos e personagens históricos comuns que os padrões e os valores sociais, a clivagem social
e a composição do poder são justificados. A História comparece nesse contexto como legitimadora das
condições encontradas no presente.

Não por acaso, na esteira de constituição dos estados nacionais na Europa, a partir do final
do século XVIII prolongando-se pelo XIX, dá-se especial relevo à História e aos “lugares de
memória”, como os arquivos históricos nacionais e os museus nacionais. Urgia gerar sensação
de pertencimento às nações criadas a partir do reconhecimento de tradições e de um passado
comum. A História é colocada em primeiro plano como área de investimento intelectual nesse
sentido, e assistimos a intenso esforço de constituí-la como disciplina científica. A criação dos
institutos históricos deve ser entendida nesse contexto.

19
Unidade I

No Brasil, dada a ausência de uma língua única, com a diversidade de línguas indígenas e
africanas concorrentes com o português, e de um passado que apontasse para uma homogeneidade
étnica ou linguística, a construção da identidade nacional dependeu de um esforço de imaginação
das elites (CUNHA, 1992, p. 33). Além disso, para transformar a ex-colônia portuguesa em nação
com identidade própria, os historiadores engajados nesse projeto, assim como políticos, literatos
e artistas na mesma situação, tinham de equacionar o que se pretendia e o que não se pretendia
que o Brasil fosse.

Apelou-se, de imediato, na visão romântica, para uma simbologia calcada na exuberância dos
trópicos, com suas florestas verdejantes e, no elemento indígena, exotismo a nos singularizar. Mas
a ligação com a civilização europeia deveria ser mantida, ainda que estivéssemos politicamente
separados de Portugal, ou seja, não se pretendia a ruptura com a tradição portuguesa, ainda que
desligados politicamente.

Na verdade, se a ideia mestra era apresentar a nova nação como continuidade da civilização nos
trópicos, essa seria garantida por meio do reforço da origem portuguesa, o liame a não nos distanciar
das luzes, do progresso e da razão que a definiam. Essa escolha nos afastou decisivamente do indígena,
do negro, da república, do estado laico e da América Latina, o que marcou por muito tempo as definições
de identidade nacional que assumimos, com reflexos até nossos dias.

A isso se pode acrescentar a necessidade de consolidação da unidade nacional colocada em pauta


desde a independência e reforçada com as instabilidades que antecederam e em alguma medida
acompanharam a consolidação do Estado monárquico no Segundo Reinado.

A criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro deve ser entendida nesse contexto de
afirmação da nacionalidade brasileira em momento crucial da consolidação do Estado Nacional, que
foi o período das regências. Para legitimar os contornos dessa nação pretendida, importava reunir
conhecimentos sobre a origem da sua gente e a terra que ocupava, daí a reunião da História e da
Geografia na mesma instituição.

A missão do Instituto seria forjar a História pátria como fundamento da existência do Estado
nacional, que almejava consolidar e reforçar a ideia da unidade política e territorial como um
valor a ser preservado. A justificativa para isso deveria ser buscada no passado, em nossas origens.
Urgia, a partir do reconhecimento dessas origens, proceder à definição dos limites territoriais,
da composição do povo e das tradições comuns, ou seja, dos componentes principais da nação.
Para isso, o conhecimento a ser produzido pelos membros do Instituto ou a seu encargo seria de
enorme importância.

Não é inédita a relação, muitas vezes, observada na História entre historiografia e poder. No
Brasil dos oitocentos não foi diferente. A aproximação entre o Estado e os historiadores foi intensa,
especialmente a partir de 1850, quando a estabilização política do regime monárquico reforçou
o projeto centralizador do Império. Ressalta-se, nesse sentido, o papel do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro.

20
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

2.3 O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)

Figura 4 – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) foi a instituição de maior importância para a
construção inicial de uma historiografia brasileira. Sua fundação ocorreu em 1838, na cidade do Rio de
Janeiro, já tornada capital cultural do Império, com apoio direto do Estado. A criação desse Instituto deve
ser entendida pela convergência entre influências europeias e necessidades do contexto histórico local.

Após o turbulento período regencial, a maioridade do imperador, em 1845, trazia a mensagem da


unidade territorial e do reforço da instituição monárquica que deveria garanti-la. A centralização política
veio acompanhada, a partir de 1850, de um período de prosperidade econômica com o crescimento da
economia cafeeira. É nesse momento de consolidação do Império brasileiro que deve ser entendida a
produção historiográfica do IHGB.

O IHGB inspirou-se no Institut Historique de Paris, criado em 1834, um pouco antes de seu congênere
carioca. A ligação dos historiadores brasileiros com o instituto francês foi sempre muito intensa, e diversos
deles participaram dessa agremiação, assim como do seu correlato local. A influência cultural francesa já
era intensa, vinda desde antes da formação do estado nacional brasileiro, e se intensificou. Os modelos
europeus serviam de parâmetros para os nossos intelectuais, e a França assumia progressivamente papel
destacado como referência de civilização e padrão cultural europeu.

Assistia-se, naquele momento, a uma crença inabalável no progresso humano, partilhado pelos dois
institutos, nos quais a História assumia uma função importante para garantir essa continuidade com o
espírito ilustrado presente na civilização europeia, da qual a França era a maior representante. A ligação
com a cultura europeia seria o antídoto necessário para a barbárie que nos ameaçava nos trópicos.

D. Pedro II, patrono do Instituto desde os 12 anos, cedeu inicialmente salas do Palácio Imperial,
antes de o Instituto ter sede própria para a realização das reuniões às quais ele era assíduo e
muitas das quais presidiu. O patrocínio imperial, inclusive financeiro, vinculava o Instituto ao
Estado. O imperador teve participação ativa no IHGB propondo temas de pesquisa, dando apoio
financeiro a projetos e criando prêmios.
21
Unidade I

O imperador manifestava expectativas muito claras com relação ao IHGB no que se refere não apenas
a forjar uma história e um passado para o País, mas também a enaltecer o Império que governava. Em
1849, dirigindo-se aos integrantes do Instituto, cobrava deles uma atitude coerente com essa intenção:

[...] é de mister que não só reunais os trabalhos das gerações passadas, ao


que vos tendes dedicado quase que unicamente, como também pelos nossos
próprios, torneis aquela a que pertenço digna, realmente dos elogios da
posteridade: não dividi, pois, as vossas forças, o amor da ciência é exclusivo,
e concorrendo todos unidos para tão nobre, útil e já difícil empresa, erijamos
assim um padrão de glória à civilização da nossa pátria (RIHGB, n. 12, 1849,
apud GUIMARÃES, 2011, p. 79).

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro se tornou espaço de projeção pessoal e intelectual no


Império. O perfil de seus membros os situava na elite da sociedade da época. Eram sócios do Instituto
basicamente políticos, proprietários de terras e escritores renomados, e alguns deles figuravam em mais
de uma dessas posições. Não causa surpresa o fato de que o discurso ali produzido fosse marcado por
uma visão elitista.

2.4 Forjar a nação: missão do IHGB

No século XIX, o Brasil estava em sintonia com a Europa. Naquele continente, a História vinha se
constituindo como ciência procurando sublinhar suas diferenças em relação aos romances históricos
e às narrativas ficcionais, esforçando-se por construir metodologia e epistemologia próprias. Nesse
percurso, delineava os contornos de histórias nacionais, verdadeiras “biografias” das nações a serem
formadas, como a Itália e Alemanha, ou consolidadas, como a França. Observa-se um nexo fundamental
entre a constituição da História como disciplina científica e a questão nacional. A história científica do
século XIX esteve a serviço da Nação, contribuindo para cimentar laços de nacionalidades que buscavam
no passado as razões de sua presença em territórios com limites em busca de definição.

A História ali produzida pelos historiadores assumia progressivamente um papel de destaque


como recurso de reconstrução do passado e avançava na definição de seus métodos e fundamentos
teóricos. À intenção de alcançar a verdade histórica, comprovada por meio de documentos que
a testemunhavam, somava-se um novo estatuto conferido ao relato histórico. Ambicionava-se
transcender os relatos particulares em uma narrativa totalizante, entendendo-se o singular como
parte de um todo. A abrangência alcançada pela narrativa histórica no século XIX deveria abarcar
o máximo possível do curso dos acontecimentos, nele integrando os eventos singulares que seriam,
assim, dotados de sentido.

O IHGB forjou um modelo de escrita de história e contribuiu para delinear os contornos da nação
pretendida. Intentava fundar a historiografia nacional que servisse à pátria gloriosa em formação.
A convergência com ideais românticos era flagrante, e a exaltação nacional assumia um tom de
patriotismo. Escritores como Gonçalves Dias e Joaquim Manoel de Macedo eram participantes do
Instituto (SCHWARCZ, 1993).

22
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

A sustentação ao projeto político unificado e centralizador do Imperador contou com certa


militância intelectual por parte de membros do IHGB, pertencentes à elite, que se dedicaram a construir
uma memória para o país que a favorecia. Nessa construção, ressaltava-se a continuidade do estado
monárquico brasileiro com o Império Ultramarino Português e, ao mesmo tempo, a unidade territorial
e política contrastante com a fragmentação das repúblicas espanholas na América. Sob uma pretensa
imparcialidade, assistia-se a uma seleção parcial dos fatos consoante um verdadeiro pacto de não
divulgar episódios históricos incompatíveis com o projeto centralizador e unificador, como os registros
sobre as rebeliões regenciais que são minimizadas (GUIMARÃES, 2011).

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro se esforçou para compor uma imagem de D. Pedro II em
que se sobressaíssem suas maiores qualidades e seu reinado figurasse como uma época de apogeu do
País. Por sua origem, era apresentado como descendente das mais ilustres linhagens nobres europeias,
sem que se deixasse de valorizar que ele havia nascido no Brasil. Sua juventude, ao assumir a chefia do
governo, era comparada ao país, também jovem, com a antevisão de um futuro brilhante para ambos.

D. Pedro II era apresentado como homem culto, intelectual, afeito às artes e às ciências. Sua própria
ligação com o Instituto contribuía para reforçar essa visão. Seu conhecimento de várias línguas, seu
trabalho como tradutor, sua dedicação aos estudos combinavam com a visão de “rei filósofo” que se
queria passar.

Dentre as suas virtudes, a tolerância era destacada, e o fato de não ter precisado usar as armas
para consolidar seu poder era prova disso. Escamoteava-se, dessa forma, a instabilidade nas províncias
contida a duras penas no período regencial, e enaltecia-se a unidade do Império que se queria ressaltar.

Figura 5 – D. Pedro II

23
Unidade I

Lembrete

Ao final do conturbado período regencial (1831-1840), no qual as


rebeliões nas províncias ameaçavam não apenas a estabilidade do Império,
mas também sua integridade territorial, foi antecipada a maioridade de
D. Pedro II. As rebeliões foram, aos poucos, sufocadas, e dava-se início ao
longo reinado desse monarca no qual se investiu na consolidação da nação
brasileira independente.

O IHGB pretendia ser a instância legítima para desempenhar a tarefa de escrever a História
do Brasil cuja importância e necessidade a independência havia levantado e o Segundo Reinado
colocava em destaque, originando expectativas nesse sentido, como se observa em manifestação de
uma revista da época:

Uma história geral e completa do Brasil resta a compor e, se até aqui nem nos
era permitido a esperança de que tão cedo fosse satisfeito esse desideratum,
hoje assim não acontece, depois da fundação do Instituto Histórico cujas
importantíssimas pesquisas no nosso passado deixam esperar que esta
ilustre corporação se dê à tarefa de escrever a história nacional, resultado
final para que devem convergir todos os seus trabalhos (apud GUIMARÃES,
2011, p. 121).

2.5 A historiografia do IHGB

Não duvidamos, senhores, que as melhores lições que os homens podem


receber lhes são dadas pela história.
Januário da Cunha Barbosa, no discurso de inauguração do IHGB

Os objetivos do IHGB estavam, pois, estreitamente relacionados à escrita de uma história vinculada
à construção da nação independente, e isso se reflete em sua produção historiográfica. A História,
conhecimento que acompanhava a humanidade há muito tempo com finalidades diversas, no século
XIX, em meio ao processo de consolidação ou mesmo de construção dos estados nacionais europeus,
vinha recebendo novos significados. Naquele momento, tornava-se poderoso recurso de legitimação
dos estados que se formavam, dotando territórios e populações de tradições comuns e um passado
único. Não se pode esquecer que o crescimento da imprensa e a ampliação do número de leitores
naquele momento potencializavam a disseminação das ideias e acentuavam o caráter político do
discurso histórico.

Nesse contexto, caberia aos historiadores do Instituto cumprir uma missão fundamental e que
poderia ser sintetizada como: “construir uma história da nação, recriar um passado, solidificar mitos
de fundação, ordenar fatos buscando homogeneidades em personagens e eventos até então dispersos”
(SCHWARCZ, 1993).

24
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

A intenção de construir um passado e uma história para a nação independente que se constituía
deixava marcas na visão histórica do período em que se sobressaía um discurso marcado pelo seu
conteúdo político. Nas palavras da historiadora Maria de Lourdes Janotti:

A historiografia brasileira surgiu no momento da Independência,


comprometida definitivamente com a questão nacional. História e
historiografia, ação e pensamento. Estado nacional e suas subsequentes
representações são componentes de um mesmo momento pleno de
historicidade (JANOTTI apud FREITAS, 1998, p. 122).

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro surgiu nesse contexto como um recurso valioso para fazer
avançar o projeto nacional que mobilizava amplamente os políticos e intelectuais brasileiros, inserindo
os seus historiadores nesse mesmo movimento. Com suas obras, eles colaboraram no esforço simbólico
de construir a nação produzindo um passado conveniente para esse propósito. Sobre a vinculação do
IHGB ao projeto nacional, pode-se considerar que:

[...] o processo de construção da ideia de nação brasileira deve ser


compreendido como um “autêntico projeto de Estado”, em que a elite
letrada e os agentes estatais (que, na maior parte das vezes, confundiam‑se)
mobilizam uma série de recursos políticos, econômicos, culturais e
simbólicos a serviço de sua criação. O apoio ao IHGB, que se torna um dos
braços intelectuais desse propósito, ordenando as evidências e os vestígios
do passado nacional, faz parte dessa lógica [...] (KNAUSS; CEZAR apud
GUIMARÃES, 2011, p. 12-3).

Com relação à produção historiográfica propriamente dita, é forçoso reconhecer que os trabalhos
produzidos no contexto europeu inspiraram os emergentes historiadores brasileiros que ali tiveram uma
fonte de teorias e conceitos. Como explica a historiadora Maria da Glória de Oliveira, ao tratar da
importância das biografias no projeto do Instituto:

Na formulação do projeto histórico-biográfico do IHGB observa-se a


preocupação com os procedimentos que passariam a conferir um caráter
mais científico à operação historiográfica: o compromisso com a cronologia,
a constituição de arquivos e o uso metódico dos documentos, visando à
exatidão no estabelecimento dos fatos do passado. Desse modo, os letrados
acreditavam disciplinar o gênero biográfico, fixando-lhe critérios de
fidedignidade, com o intuito de torná-lo, enfim, historiográfico (OLIVEIRA,
2011, p. 22).

Ao longo do século XIX, em que avançaram os estudos históricos na Europa, buscou-se dar
credibilidade a essa área de conhecimento aproximando-a de parâmetros científicos, conforme a visão
da época. Para atingir patamares considerados próprios de uma ciência, o saber histórico precisou
passar por esforços de metodização. A operação historiográfica passava a exigir comprovações a partir
de documentos que funcionavam como fundamentos de um relato verdadeiro, linear, construído de
25
Unidade I

acordo com uma sequência cronológica. Daí a valorização intensa dos arquivos como repositórios dos
valiosos – quase sagrados – documentos históricos, considerados como os testemunhos fundamentais
da veracidade dos fatos.

O IHGB assumia essa visão historiográfica do período que valorizava a reunião compulsiva de
documentos para compor a reconstituição do passado pretendida. A principal preocupação do Instituto
em seu início era reunir grande quantidade de documentos e produzir as bases de uma história nacional.
Os historiadores que circulavam em sua órbita publicaram nas páginas da revista do Instituto, ou em
volumes avulsos, coletâneas de documentos encontrados em arquivos nacionais ou estrangeiros. Com
isso, fizeram um valioso trabalho de reunião de fontes históricas possibilitando seu uso por inúmeros
pesquisadores desde então. Em seu estatuto, publicado já no primeiro número da Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, o Instituto propunha-se a:

[...] coligir, metodizar, publicar ou arquivar os documentos necessários para


a história e geografia do Império do Brasil; e assim também promover os
conhecimentos destes dois ramos filológicos por meio do ensino público,
logo que seu cofre proporcione esta despesa (RIHGB, n. 1, 1839 apud
GUIMARÃES, 2011, p. 53).

A visão de História do Instituto era a de que os ensinamentos do passado serviriam de guia para
o futuro, especialmente em se tratando de uma nação que se formava. Imperava a noção de História
magistra vitae pela qual a experiência das gerações passadas, trazidas à luz pelos historiadores, deveria
orientar a ação de todos no presente e a atuação política dos homens de estado. Com essa finalidade, o
historiador teria um papel destacado:

Com os sucessos do passado ensinará à geração presente em que


consiste a sua verdadeira felicidade, chamando-a a um nexo comum,
inspirando‑lhe o mais nobre patriotismo, o amor às instituições
monárquico‑constitucionais, o sentimento religioso e a inclinação aos
bons costumes (RIHGB, 1847, p. 286).

Não causa surpresa, nessa visão, a importância conferida pelo Instituto às biografias. As vidas de
pessoas ilustres do passado seriam modelos a serem seguidos. Dava-se curso, com a publicação de séries
de biografias na revista do Instituto, ao “projeto historiográfico que ambicionava salvar da voragem do
tempo não somente os fatos memoráveis como os nomes e feitos dos que serviram à nação” (OLIVEIRA,
2011, p. 27).

Ao gosto da época, os estudos sobre medalhas, comendas e moedas ocuparam muitos. As


biografias das personalidades ilustres forneciam o exemplo a ser seguido. O destaque aos estudos
de genealogia e nobiliarquias tinha sua função. O Império brasileiro, surgido com o desligamento de
Portugal, carecia de nobreza local. Para compor a corte, importava demonstrar tradições familiares
da elite autóctone para legitimar a nobreza tropical inventada pelo imperador agraciando membros da
população que aqui viviam.

26
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

Dentre os temas tratados pelos historiadores do Instituto predominavam os estudos sobre o


período colonial, até porque o Império era condição recente. A intenção principal era proceder à
busca sobre as origens da pátria, demarcar o nascimento da nação ainda no período de domínio
português. O tema do “descobrimento do Brasil”, com a polêmica sobre sua intencionalidade, ou não,
recebeu grande ênfase. A atenção a esse momento não causa surpresa. O projeto de História que era
seguido, ao gosto dos historiadores oitocentistas, visava construir a “biografia” nacional destacando
o momento em que esta havia surgido e em quais circunstâncias.

Conhecer as nossas origens assumia destaque e relevância ímpar para atender aos objetivos
pretendidos. Fixar nossas origens no descobrimento nos ligava de forma decisiva com a tradição europeia
e deixava de lado a população indígena preexistente.

Um tópico de grande interesse do Instituto, já presente em sua sessão de fundação, era a


necessidade de definir uma periodização da história brasileira. Essa tarefa era revestida de grande
interesse, pois, a partir dela, seria possível procurar e classificar os documentos necessários para
escrever nossa história. Ao lado disso, caberia ao Instituto erigir um plano a partir do qual fosse
escrita a História do Brasil, de forma global e em sua totalidade. Fazia parte do projeto histórico
do Instituto garantir a lembrança dos fatos marcantes da história nacional pela publicação de
documentos em sua revista.

Saiba mais

A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi criada em


1839 e vem circulando regularmente desde então.

Para conhecer a coleção completa, que encontra-se disponível na


página do Instituto, acesse:

REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO. Rio


de Janeiro: IHGB, [s.d.]. Disponível em: <https://ihgb.org.br/publicacoes/
revista-ihgb/itemlist/filter.html?category=9&moduleId=147>. Acesso em:
20 set. 2016.

Definir os parâmetros da história a ser escrita conduziu à criação de um concurso pelo IHGB
vencido pelo naturalista alemão Karl Friedrich Philipp von Martius com Como se Deve Escrever a
História do Brasil publicado na revista do Instituto em 1845. Nele, são lançadas as bases de um
programa pragmático de estudo pautado pela consideração da importância das três raças (brancos,
negros e indígenas) na formação brasileira. Ainda que a supremacia branca não fosse descartada, com
destaque dado à preponderância portuguesa nessa formação, von Martius lembrou a participação
dos outros grupos a ser analisada. Em suas palavras:

27
Unidade I

Do encontro, da mescla, das relações mútuas e mudanças dessas três raças,


formou-se a atual população cuja história por isso mesmo tem um cunho
muito particular [...].

[...] disso necessariamente se segue que o português que, como descobridor,


conquistador e senhor, deu as condições e garantias morais e físicas para um
reino independente, que o português se apresenta como o mais poderoso
e essencial motor. Mas também de certo seria um grande erro para todos
os princípios da historiografia pragmática se se desprezassem as forças dos
indígenas e dos negros importados, forças estas que igualmente concorreram
para o desenvolvimento físico, moral e civil da totalidade da população.
[...] o sangue português, em um poderoso rio, deverá absorver os pequenos
afluentes das raças índia e etiópica (RIHGB apud RODRIGUES, 2007, p. 5).

A maneira como o IHGB tratou a questão da participação das “três raças formadoras” foi de acordo
com os parâmetros de um país escravocrata, que buscava distanciar-se da presença negra e reafirmar
sua origem europeia. Nessa visão, o predomínio na composição do povo brasileiro, ainda que se parta
da consideração do amálgama racial, é conferido ao branco português, visto como fator de civilização.
Para esse instituto, o negro era concebido como inassimilável e incivilizável. Quanto aos indígenas, as
opiniões variavam. Sua eleição como símbolo da nacionalidade demonstra as voltas do pensamento da
elite brasileira na época comportando visões de valorização e desqualificação desse grupo. Vale destacar
que a temática indígena ocupou várias páginas da revista do Instituto.

Essa visão sincrética da composição da população teve longo alcance, tendo sido levada adiante
por nomes, como Francisco Adolpho de Varnhagen (História Geral do Brasil, 1855) ou Sílvio Romero
(História da Literatura Brasileira, 1888). Conheceu nova angulação com Gilberto Freyre, na década de
1930 (Casa-Grande & Senzala), e mantém forte presença ainda hoje no senso comum, muitas vezes,
sem a devida consideração das tensões e questões políticas envolvidas com a sujeição histórica a que
foram submetidas as populações negras e indígenas.

A ideia de nação anunciada ressaltava uma unidade racial e cultural resultante do cruzamento de
três raças. Com isso, estabeleciam-se os parâmetros da identidade brasileira definindo-se as alteridades
e as singularidades que a delimitavam.

No processo de construção da identidade brasileira declarava-se o que o País não queria ser,
transformando o negro considerado “incivilizável” no “outro” a se distanciar. Celebrando-se a supremacia
do branco europeu, inseria-se a nação brasileira na tradição e no progresso da civilização europeia.
Ao mesmo tempo, fincava-se nossa singularidade como povo na particular composição da população,
produto de um amálgama racial. À medida que o século avançava, assumia-se progressivamente um
projeto de depuração racial por meio do “branqueamento”, como será visto posteriormente.

De qualquer forma, sob os auspícios do IHGB inaugura-se a ideia de formação da população


brasileira a partir do “amálgama de três raças” que teve longo alcance dando substância à concepção
da harmonia racial na sociedade brasileira, mito muitas vezes combatido quando se consideram
28
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

as tensões existentes na realidade. Ao se colocar a questão nos termos de “contribuição” de


brancos, negros e índios se oblitera “toda trama de dominação, exploração e conflito que forma
exatamente o contexto de nascimento da nação” (NOVAIS, 2005, p. 316).

O IHGB também tinha seus compromissos com a geografia, o que estava manifestado já na sua sigla.
Também no âmbito dessa outra área, compreendida pelo Instituto, a questão primordial a ser focalizada
era a construção da nação brasileira. Assegurar a definição dos limites do território por meio do seu
reconhecimento, situar cidades, vilas, rios e demais acidentes geográficos era necessário para garantir a
unidade e a identidade da nação.

A questão de definição dos limites do Império recebeu bastante investimento de D. Pedro II,
exigindo um grande esforço diplomático para isso. Importava, para fundamentar as tratativas, um bom
conhecimento das terras brasileiras, tarefa assumida também pelo Instituto. Muitos relatos de viagens,
descrições das áreas visitadas, comentários sobre as condições do transporte, dados demográficos,
entre outros assuntos que poderiam contribuir para a unidade territorial e a integração regional, foram
publicados nas páginas da revista do Instituto. Expedições foram realizadas por membros do Instituto
para conhecer áreas inexploradas com a finalidade de possibilitar a exploração econômica e a integração
política das regiões.

Além daquele inicial, vários outros concursos foram realizados pelo Instituto. Em 1848, por
exemplo, foram premiados trabalhos escritos sobre os seguintes temas propostos: “A história dos
Jesuítas no Brasil”, a “História da Cidade do Rio de Janeiro” e “Quais vestígios confirmam a tese
de que o Brasil já teria sido descoberto antes de 1500 por europeus?” O próprio imperador chegou
a propor temas, como o da elaboração de um dicionário de línguas indígenas e o estudo de sua
cultura (GUIMARÃES, 2011, p. 137).

Outros institutos congêneres ao IHGB foram criados no Brasil. Em Pernambuco, o Instituto


Arqueológico e Geográfico Pernambucano (1862) dedicou-se a fazer uma história de cunho
regional a serviço do enaltecimento de uma elite açucareira em declínio. Já o Instituto Histórico
e Geográfico de São Paulo (1894) se tornou a voz autorizada de uma elite cafeeira ascendente.
Ali se produziu uma história marcadamente paulista, mas com aspiração nacional, pois a história
da província de São Paulo, no entendimento daquele instituto, seria a própria história do Brasil
(SCHWARCZ, 1993, p. 127).

O bandeirismo foi tema caro aos historiadores paulistas. O bandeirante, apresentado como desbravador
valente, logo se tornou o símbolo do perfil vitorioso do estado e da sua gente que interessava à elite
cafeicultora ressaltar. A questão racial também teve espaço na produção do instituto paulista logo
engajada na tese do branqueamento, tão cara ao projeto imigrantista de São Paulo.

Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958) foi historiador ligado ao instituto paulista. Filho do
Visconde de Taunay, romancista e político, estudou engenharia antes de se notabilizar como historiador.
Autor das antológicas História Geral das Bandeiras Paulistas (1924-1950), em 11 volumes, e História
do Café no Brasil, em 15 volumes (1939-1943), é acusado de não demonstrar poder de síntese e de
colecionar fatos e documentos em profusão, sem seleção ou análise.
29
Unidade I

Saiba mais

Ao final do século XIX, o crescimento econômico da Província de São


Paulo relacionado à cafeicultura ressaltava o interesse em conhecer o
território paulista, que se colocava em paralelo ao de se forjar sua história.
Isso ensejou a criação da emblemática Comissão Geográfica e Geológica
(CGG), que percorreu a região de 1886 a 1931 fazendo levantamentos e
pesquisas sobre seus aspectos geológicos e geográficos.

Para saber mais acerca dessa instituição, acesse:

SÃO PAULO (Estado). Secretaria do Meio Ambiente. Comissão Geográfica


e Geológica (CGG). São Paulo, [s.d.]a. Disponível em: <http://mugeo.sp.gov.
br/comissao-geografica-e-geologica/>. Acesso em: 20 set. 2016.

2.6 O legado historiográfico do IHGB

A criação do IHGB levantou novas preocupações e abriu caminhos para colocar a produção historiográfica
brasileira em novas bases, para além das crônicas e dos relatos de base histórica. Preocupou-se em discutir
métodos e fontes, dando início à pesquisa sistemática sobre a História do Brasil. Inaugurou a institucionalização
dessa prática e lançou as bases para a profissionalização da História no País.

O historiador Manoel Luiz Salgado Magalhães considera que a historiografia iniciada sob os auspícios
do Instituto:

“[...] contribuiu, em primeiro lugar, para determinado modelo de escrita da história, ainda com
elementos de uma história iluminista, e, em segundo lugar, para afirmar um modelo indiscutível de nação”
(GUIMARÃES, 2011, p. 54).

Nesses primeiros tempos, forjaram-se os contornos da história oficial, tributária da vinculação dessa
disciplina com a construção nacional que adentrou o século XX. Foi marcante até a década de 1930,
perdurando na longa duração até nossos dias, ainda que em caráter residual. A produção historiográfica
característica desse período foi aquela em que imperavam a narrativa biográfica, com seus mártires e
heróis, e a história factual de marcado conteúdo político.

Os historiadores vinculados ao Instituto dedicaram-se a estabelecer as bases da “biografia da nação”.


Para isso, selecionaram e sistematizaram fontes nos inventários que realizaram e consolidaram fatos que
acabaram por compor as referências principais da historiografia tradicional.

Ainda que a produção do Instituto tenha sido objeto de críticas e revisões historiográficas, não se
pode negar sua importância. As obras produzidas, além de fornecerem interpretações inaugurais sobre
a história brasileira, podem ser tomadas como fontes de pesquisa pela documentação volumosa que
reuniram e compilaram. Foram os primeiros autores em busca de documentos sobre a História do Brasil
30
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

a visitar arquivos que recém se organizavam, dado que arquivos nacionais públicos eram novidade
naqueles anos do século XIX. Seu esforço de reunir e organizar documentos, muitas vezes, copiados
de arquivos distantes, como o da Torre do Tombo, em Portugal, foi muito valioso para o trabalho dos
historiadores que lhes sucederam.

O IHGB forjou um modelo de escrita de história e contribuiu para delinear os contornos da nação
pretendida. Nas palavras de Lilia Schwarcz:

[...] coube aos institutos a montagem de uma nomenclatura própria, bem


como a elaboração de uma agenda com personagens e fatos, da qual muitos
historiadores pouco se libertaram. Presos a um projeto enciclopédico que
encontrava ordem e encadeamento onde existiam apenas eventos singulares
em sua experiência regional, esses profissionais se comprometeram com a
construção de uma história nacional, que, tendo o presente em mira, forjava
o passado em tradição (SCHWARCZ, 1993, p. 133).

Cumpre ressaltar que a produção historiográfica dos institutos históricos foi marcada pela “voz
oficial”. Essas instituições acabaram marcadas como redutos de uma História oficial, elitista e patriótica
inaugurando no País uma historiografia empenhada na construção de valores nacionais. De qualquer
forma, foi no interior e na órbita desses institutos que houve a institucionalização da reflexão e da
pesquisa histórica no Brasil.

A definição de métodos e técnicas de investigação históricas no século XIX foi marcada naquele
período por referências europeias. Esse movimento teve continuidade ao longo do século XX, sendo
notável a influência da historiografia europeia, especialmente francesa, na produção brasileira.

2.7 Varnhagen, o Heródoto brasileiro

Figura 6 – Francisco Adolfo de Varnhagen

31
Unidade I

Dentre os nomes relacionados ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro teve grande destaque
Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro (1816-1878), autor de vasta obra e por muitos
considerado o primeiro historiador brasileiro. Influenciou em grande medida toda a historiografia
brasileira até a década de 1930. Politicamente conservador e monarquista, estudou engenharia em
Portugal, tendo sido, além de historiador, biógrafo, matemático e geógrafo. Filho de pai alemão e mãe
portuguesa, naturalizou-se brasileiro, tendo atuado no serviço diplomático por muitos anos e vivido
fora do Brasil por bastante tempo. Isso permitiu que conhecesse vários arquivos estrangeiros. Neles,
Varnhagen teve a oportunidade de compilar documentos em grande número, muitos deles reproduzidos
em sua obra, enriquecendo sua importância como fonte historiográfica.

Sua História Geral do Brasil (1854-1857) reuniu um extraordinário número de fatos, condensando uma
geração de pesquisas iniciadas com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Capistrano
de Abreu ressaltou a importância dessa obra como a primeira verdadeiramente de historiografia nacional
comparando-a com outras anteriores realizadas sobre o mesmo tema consideradas por ele como
crônicas. Com esse trabalho contribuiu para o estabelecimento do cânon factual da história nacional,
bastante comprometida com os fatos memoráveis das elites, e valorização sobretudo da vida política
(NOVAIS, 2005, p. 313).

A formação inicial de Varhagen se deu em um Portugal já marcado pelo iluminismo de Pombal e


vivendo a preparação do Romantismo. Dedicou-se às Ciências Naturais, bem como aos estudos históricos
com influências de Leopold von Ranke e do criticismo francês. Lançou em 1839 seu primeiro trabalho de
história. Notícias do Brasil, publicado pela Academia Real das Ciências de Lisboa, surgiu nesse “ambiente
marcado por dois princípios básicos – a crença no aperfeiçoamento do ser humano com a ajuda de
conhecimentos científicos e a inclinação para a história como caminho para solidificar a identidade
nacional” (GUIMARÃES, 2011, p. 185).

Já em 1840 estava filiado ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ao longo de sua trajetória,
teve uma situação de grande ligação com o estado, o que marcou suas obras. Chegou a ser subsidiado
diretamente pelo Império, tendo mantido relação de proximidade com D. Pedro II. O tema da identidade
nacional estava realçado no contexto da centralização monárquica do Segundo Reinado e permeou a
obra desse historiador. Para ele, o marco fundador da história nacional estava na vinda dos portugueses.
Varnhagen apregoava que a civilização só se estenderia no Brasil com a destruição dos índios,
considerados incivilizáveis. A colonização teria sido o primeiro passo rumo à civilização. Distanciando‑se
do indigenismo romântico, afirmava em periódico português de 1857:

[...] os índios não eram donos do Brasil, nem lhes é aplicável como selvagens
o nome de brasileiros: não podiam civilizar-se sem a presença da força, da
qual não se abusou tanto como se assoalha; e finalmente de modo algum
podem ser eles tomados para nossos guias no presente e no passado em
sentimentos de patriotismo ou em representação de nacionalidade (apud
GUIMARÃES, 2011, p. 206).

Ao optar, sem nuances, pela nação branca e europeia, relacionava-nos ao que entendia como
civilização superior. Quanto aos demais grupos étnicos, só lhes restariam uma participação passiva no
32
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

projeto de construção nacional e apenas na medida em que fossem integrados racial e culturalmente
pelo branco, “única fonte de legitimação, pois dele decorrem os valores básicos da nacionalidade”
(ODÁLIA, 1997, p. 47).

3 EVOLUCIONISMO, CIENTIFICISMO E A PRODUÇÃO HISTÓRICA NAS ÚLTIMAS


DÉCADAS DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO XX

Na segunda metade do século XIX, ocorreram muitas transformações econômicas, políticas e sociais
no Brasil. Assistimos ao crescimento da economia cafeeira que deslocou o centro econômico exportador
para o Sudeste. Nessa região, construiu-se uma rede ferroviária a fim de atender às necessidades de
transporte do café para os portos. Resultou, de tudo isso, uma tendência ao crescimento das cidades e a
constituição de um modo de viver urbano. A velocidade de propagação das informações e das ideias se
intensificou com a circulação de jornais e revistas de todo tipo. A atmosfera de renovação se espalhava
por todo o País.

No campo, novas formas de utilização da mão de obra surgiram. Os fazendeiros de café paulistas
passaram a receber trabalhadores livres: imigrantes europeus em busca de oportunidades melhores
de trabalho do que aquelas que tinham em seus países de origem. Após as primeiras experiências
frustradas de criar “colônias de parceria”, optou-se pelo trabalho assalariado, dando início a um processo
de imigração em larga escala que durou até início do século XX. Italianos, especialmente, ao lado de
espanhóis e portugueses, vieram engrossar a mão de obra nacional. As repercussões desse movimento
foram muitas, no desenho da composição da população brasileira e em aspectos socioculturais.

O regime de escravidão, que já vinha sendo condenado em nível mundial e combatido intensamente
no País pelo movimento abolicionista, acabou por ruir no ritmo permitido pelos compromissos do
governo imperial com a elite agrária. A ocorrência da abolição em 1888 e o advento da República
no ano seguinte colocavam no centro das discussões novos elementos a serem equacionados. Os
conceitos de nação, raça, povo e cidadania foram redefinidos de acordo com aquele momento. Nesse
cenário, a construção da identidade nacional permanecia como uma questão de grande importância
política e intelectual.

A formação da identidade da nação e da nacionalidade brasileiras no início do período republicano


nos leva novamente à construção da memória histórica. As teorias cientificistas e evolucionistas
difundidas no século XIX vão oferecer os fundamentos para serem estabelecidos os contornos dessa
identidade, com repercussão na historiografia do período. O positivismo e o cientificismo oferecem os
parâmetros para a abordagem histórica, e os conceitos de meio e raça tornam-se as principais chaves
explicativas das virtudes e das mazelas da nação brasileira.

3.1 A hegemonia da ciência e a ideologia do progresso

No final do século XIX, acreditava-se amplamente que a humanidade estivesse sujeita a um


progresso contínuo. Da Europa vinham as ideias de que se vivia sob o signo da civilização e do
progresso. A humanidade teria alcançado seu estágio mais avançado.

33
Unidade I

A ideia de progresso teve origem antes disso, surgindo relacionada à aceleração do desenvolvimento
científico e tecnológico entre os séculos XVI e XVIII, firmando-se, inicialmente, no domínio científico. O
predomínio da razão como motor da vida foi estabelecido nesse momento de nascimento da ciência moderna,
cuja ideia de que o mundo é governado por leis abriu caminho para a formação de uma ideologia do progresso.
A humanidade, e suas realizações, estaria sujeita a um avanço contínuo, progressivo e linear.

A Revolução Francesa estende esse conceito às sociedades humanas, que estariam, também elas,
sujeitas a um avanço contínuo. No pós-Revolução Industrial, e ao longo do século XIX, os progressos
científicos e tecnológicos foram muitos. Inovações surgiam a todo o momento: locomotivas, máquinas
a vapor, eletricidade e telefone, entre outras. As elites conheciam melhorias no seu conforto e no
seu bem‑estar. Os progressos do liberalismo e a disseminação da instrução pública contribuíam para
consolidar a ideologia do progresso.

Essa ideologia permeou as principais teorias surgidas na época. O positivismo de Auguste Comte,
por exemplo, considerava que o progresso das sociedades humanas as levaria ao estágio Positivo. O
historicismo, por sua vez, encontrou leis de grande alcance com o intuito de explicar o desenvolvimento
histórico. O marxismo elegeu um sentido da progressão da história rumo à construção de uma sociedade
socialista. Também o evolucionismo de Charles Darwin, bem como sua transposição para o social por
Herbert Spencer, está imbuído da ideologia do progresso.

Teorias deterministas de conteúdo diverso se desenvolveram apoiadas na ideologia do progresso e


no avanço das Ciências Biológicas. A Origem das Espécies (1859) de Charles Darwin colocou em cena
uma referência teórica que balizou estudos científicos e sociais.

O evolucionismo, tal como foi entendido na época, pelo qual os diferentes seres vivos estariam
sujeitos a uma seleção natural a partir da luta pela vida, com sobrevivência do mais apto, foi estendido
aos estudos das sociedades. Herbert Spencer se dedicou à definição de um evolucionismo social com
o qual se justificava a supremacia de povos e nações sobre outros. Nações compostas por povos mais
fortes naturalmente sobrepujariam povos mais fracos, que tenderiam a desaparecer. As condições de
sucesso das nações estariam condicionadas ao tipo racial de seu povo, bem como às condições naturais
do ambiente onde viviam.

As raças humanas vinham sendo classificadas desde o século XVIII de acordo com a cor de sua pele.
Gradativamente, estabeleceu-se uma hierarquia racial na qual o branco europeu era considerado a raça
superior, e sua cultura, o estágio mais avançado da evolução da humanidade.

As ideias evolucionistas permitiram justificar a supremacia de determinados grupos sociais sobre


outros a partir de critérios físicos e raciais. Condições físicas, raciais e até mesmo climáticas passavam a
ser entendidas como determinantes condicionando a vitalidade do grupo social.

O determinismo racial, como uma lei do progresso das sociedades, servia para explicar o nível
de desenvolvimento dos países e o sucesso das civilizações. Abria-se caminho para naturalizar-se a
desigualdade entre os povos. O sucesso das sociedades e seu progresso econômico e social estariam
relacionados às características raciais da sua população. A civilização superior seria a do branco europeu.
34
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

Países com grande número de negros e mestiços não alcançariam a civilização, estando fadados ao
fracasso como povos. Nessa visão, a presença europeia em países desse tipo era, mais que tudo, uma
missão civilizadora.

O evolucionismo, na forma do darwinismo social, acabou fornecendo fundamentação teórica para


o racismo, dando-lhe caráter científico. A ciência conferia legitimidade ao imperialismo dos países
europeus que, naquele momento – como você já estudou em outras disciplinas –, estendiam seu domínio
e disputavam territórios na África e na Ásia.

Durante o século XVIII, a ciência era assunto de homens educados em salões e encontros sociais.
No seguinte, torna-se o referencial cultural mais importante em nível mundial, posição que não perdeu
até o momento. No final daquele século, a ciência parecia conferir substância às ideias de progresso da
humanidade, evidenciado no estágio civilizatório a que se chegara nos países europeus.

As Ciências Biológicas, entre todas, firmavam-se como o parâmetro fundamental para a definição de
ciência e a construção de metodologia científica. Sob os ensinamentos do positivismo e de acordo com
o espírito cientificista em curso, a História também buscava seu respaldo na ciência.

3.2 O ambiente cultural brasileiro no final do século XIX

No último quartel do século XIX, a situação no Brasil era complexa. A Guerra do Paraguai e a
campanha abolicionista abalavam o regime monárquico e colocavam questões a serem equacionadas
pelas elites dirigentes e pelos intelectuais. Começava a ficar evidente a distância que havia entre o
pensamento social brasileiro e a realidade em que se vivia.

As correntes evolucionistas, cientificistas e deterministas da época ofereciam novas alternativas


teóricas para tratar os problemas nacionais e projetar alternativas de futuro. A chamada Geração de
1870 apoiava-se no cientificismo para fazer crítica social. Homens como Tobias Barreto, Silvio Romero e
José Veríssimo pertenciam a essa geração autorreferida como combatente, engajada na defesa de uma
regeneração nacional.

Na década de 1870, as cidades cresceram, especialmente no Sudeste. Com a urbanização acelerada e


o aumento da população nas cidades, as camadas urbanas começaram a figurar com maior destaque no
cenário político e a se constituir como importante mercado consumidor de produtos culturais. Muitas
vezes, acompanhando os trilhos das estradas de ferro, jornais, revistas, livros e espetáculos teatrais
chegavam com mais facilidade e intensidade ao interior. A atmosfera de renovação circulava por
todo o País. O Manifesto Republicano, a crescente campanha abolicionista e a crença na capacidade
transformadora da educação davam o tom do debate político.

No início do período republicano, o Rio de Janeiro, centro político, comercial e financeiro desde o
Império, dava continuidade à sua centralidade no cenário cultural do País assumindo ares cosmopolitas.
Com sua população aumentada devido à afluência de antigos escravos, imigrantes e contingentes
derrotados do Paraguai, os cortiços proliferavam, e os morros começavam a ser ocupados. A influência
europeia fez que houvesse um grande investimento na remodelação das regiões centrais.
35
Unidade I

Assiste-se a um “bota-abaixo” de cortiços e à abertura de avenidas largas que, acreditava-se,


promoveriam a “higienização” do espaço urbano, numa época em que pouco se sabia das formas de
transmissibilidade das doenças. De Paris vinha a inspiração. A reforma ali empreendida pelo Barão
Haussmann causava admiração. A abertura da avenida Central pelo prefeito Pereira Passos se conjugava
à criação de um espaço urbano de características arquitetônicas sintonizadas com o que se fazia na
Europa. O Rio de Janeiro na belle époque brilha remodelado, ainda que à custa da expulsão de grupos
populares das áreas centrais. A mudança empreendida trazia consigo o significado de reconstrução
nacional rimando com os novos tempos anunciados pela República.

Saiba mais

A chamada belle époque no Rio de Brasil, período que se estende dos


fins do XIX até as primeiras décadas do século seguinte, pode ser estudada
a partir de uma coleção de documentários realizados pela Fundação de
Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj). Para saber mais acerca da
época, acesse:

KIFFER, D. O Rio de Janeiro da belle époque é retratado em


videodocumentários para estudantes. Faperj, Rio de Janeiro, 2015. Disponível
em: <http://www.faperj.br/?id=2880.2.5>. Acesso em: 20 set. 2016.

A elite brasileira se encantava com a civilização europeia, da qual Paris era o símbolo maior. A
moda e os costumes que vinham de lá eram sinônimo de refinamento e índice de modernidade. Na
rua do Ouvidor eram encontradas as novidades, inclusive as literárias. Hábitos e expressões culturais
brasileiros, especialmente de origem africana, eram condenados por nos ligarem ao passado colonial e
nos afastarem da modernidade pretendida.

A cidade do Rio de Janeiro exercia uma força de atração considerável para os jovens literatos de
outras províncias – ou estados, depois da promulgação da República –, oferecendo as principais opções
de trabalho intelectual no Brasil. Houve, naquele momento, uma expressiva convergência de escritores,
jornalistas e intelectuais em geral que, muitas vezes, vinham ocupar a função de professores ou
burocratas da administração pública. Ocupar uma cátedra no prestigioso Colégio D. Pedro II era função
conquistada em disputadíssimos concursos. Do Recife veio Sílvio Romero, do Pará, José Veríssimo, e do
Ceará vieram Araripe Jr. e Capistrano de Abreu, só para citar alguns nomes. A vida política era intensa. A
circulação de ideias era frequente e de lá se propagavam as novidades de todo o tipo.

Toda uma geração de intelectuais foi influenciada por essas ideias, em diferentes formas de expressão.
Literatos como Euclides da Cunha, críticos como Sílvio Romero, pensadores como Tobias Barreto ou
historiadores como Capistrano de Abreu e Oliveira Vianna.

A moda cientificista, na verdade, penetrava no Brasil inicialmente por meio da literatura. O


Naturalismo absorveu a influência dessas ideias em desprezo pela estética romântica, considerada
36
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

exagerada e desvinculada do progresso científico. O romance oitocentista tinha compromisso com a


verossimilhança, como foi destacado anteriormente. Isso se observou não somente no Romantismo
como também no Naturalismo do final do século, que rumou em direção ao jornalismo e ao cientificismo,
impregnados de determinismos climáticos e raciais.

Observação

O Cortiço (1880) de Aluísio de Azevedo é exemplo da ideia do


entendimento de que o meio tem ação determinante no comportamento
humano. Jerônimo, um personagem central na trama, é branco de origem
portuguesa. A princípio persistente, trabalhador e calculista, se “abrasileira”
à medida que se envolve com a mulata Rita Baiana, torando-se preguiçoso,
sem espírito de luta e indolente.

A ciência influenciava também as políticas públicas, como a higienização do espaço urbano e o


saneamento básico, além das primeiras iniciativas de vacinação em resposta às preocupações com
a proliferação de doenças, como a febre amarela e a varíola. Agir de acordo com preceitos de base
científica se tornava símbolo de modernidade e progresso.

No Rio de Janeiro, assim como em outros centros urbanos, foram criadas instituições de caráter
científico: museus etnográficos e serviços de higiene. Os “homens de ciência” começam a disputar espaço
e notoriedade com os intelectuais de formação beletrista oriundos das faculdades de direito. Nomes
como Nina Rodrigues, Osvaldo Cruz, Paula Souza, só para citar alguns, passaram a ser reconhecidos a
partir de sua atividade embasada na ciência.

A adoção de modelos europeus de civilidade e o respeito ao conhecimento dali advindo


contribuíam para a credibilidade das ideias científicas. É digno de nota, no entanto, que as
principais obras de referência da época chegavam ao País nem sempre em sua versão original,
mas em trabalhos de divulgação científica. Trechos de Spencer, Comte ou Darwin eram escolhidos
pelos jornais locais para serem publicados e dali as ideias cientificistas eram espalhadas por todo
o País em fragmentos das obras nas quais estavam contidas. O que, na verdade, se consumia aqui
eram “modelos evolucionistas e social-darwinistas originalmente popularizados como justificativas
teóricas de práticas imperialistas de dominação (SCHWARCZ, 1993, p. 30).

A partir de 1870, nas palavras de Sílvio Romero, o País fora invadido por “um bando de ideias
novas”. A hegemonia intelectual da França, que vivia dificuldades com seu insucesso na Guerra
Franco‑Prussiana, abria espaço para a influência de autores ingleses e alemães que chegaram
ao Brasil, como Spencer, Darwin, Buckle, Ratzel e Ranke, que se somaram aos franceses Auguste
Comte, Gustave Le Bon e Taine.

Assistia-se a uma sobreposição de critérios positivistas a uma herança romântica. Após os primeiros
anos da república, que causaram alguma decepção em setores intelectuais, o crítico José Veríssimo conferia
37
Unidade I

à literatura a missão de levantar o espírito nacional e regenerar a nação. Para isso, no seu entendimento,
seria necessário o rompimento com a tradição europeia e a valorização dos elementos étnicos formadores
da nossa nacionalidade. Isso se daria pelo “caldeamento” étnico das três raças formadoras.

Ainda que com matizes diversos, as palavras-chave no final do século XIX e início do XX que
percorriam todo o pensamento social da época de forma interligada passavam a ser: nação, povo e raça.

3.3 A historiografia brasileira, o cientificismo e os determinismos

As novas ideias repercutem na produção historiográfica. Ao voltar-se para o passado, os historiadores


afastavam-se da perspectiva que havia imperado anteriormente na qual a ênfase recaía na busca de
se forjar um passado legitimador do regime monárquico e oferecer uma visão de unidade nacional.
Abria‑se espaço para a existência de outras abordagens dirigidas a entender no passado a formação do
povo e sua composição étnica.

Do ponto de vista histórico-metodológico, a produção historiográfica no Brasil esteve sujeita às


mesmas influências teóricas que se difundiram na Europa: o positivismo e o historicismo. A objetividade
do conhecimento histórico, a valorização dos documentos como testemunhos da verdade dos fatos e a
presença quase hegemônica da história política são os seus principais traços.

Mas as teorias raciológicas e os determinismos climáticos e biológicos, em um ambiente


marcadamente cientificista que funcionava sob o signo do evolucionismo, são referências marcantes na
história praticada no País. Esse conjunto de ideias vai nortear as explicações sobre o Brasil e definir as
expectativas quanto aos rumos da nação brasileira. Avulta o entendimento da sociedade como sujeita
a leis gerais de desenvolvimento, à semelhança das leis da natureza, sobretudo, na ótica positivista. As
explicações distanciavam-se cada vez mais de visões religiosas ou metafísicas, em prol das abordagens
empíricas e cientificistas.

Do ponto de vista do fazer histórico, as sociedades e seu passado são reconhecidos amplamente
como passíveis de conhecimento objetivo. A ideia de que haveria uma lógica científica em todos os
fenômenos, inclusive humanos, impregnou o ambiente historiográfico da concepção de que existiria
uma certa determinação na história. Isso deu origem a dois modelos de explicação sobre o Brasil. Os
dois extremamente pessimistas em sua análise. Nos dois tipos, estaríamos fadados ao fracasso como
povo e nação.

Do ponto de vista do determinismo climático, apoiados em Ratzel e Buckle, concebia-se que o


desenvolvimento cultural de uma nação seria totalmente condicionado pelo meio. No Brasil, o clima
tropical, as selvas úmidas, os ventos alísios e outras características do ambiente não eram considerados
propícios ao desenvolvimento de uma civilização.

Quanto ao determinismo racial, as teorias que circulavam na época confirmavam a pouca possibilidade
de sucesso para um país comprometido em sua composição racial. A forte presença no Brasil de negros,
indígenas e mestiços apontava inequivocamente para o seu fracasso como nação.

38
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

Iniciadores da Ciência Social da época dedicaram-se a investigar o País a partir de critérios de


meio e raça, como Euclides da Cunha; sublinhando a participação do negro, como Nina Rodrigues; ou
ressaltando a presença das “três raças formadoras”, como Sílvio Romero. De toda forma, nota-se que
os problemas nacionais começam a aparecer com mais frequência no final do século XIX nos discursos
dos intelectuais, dos políticos, dos literatos e dos homens de ciência, e também na produção histórica. A
partir de 1890, por exemplo, observa Lilia Schwarcz que diminui a atitude laudatória e a imagem idílica
do País na revista do IHGB:

[...] uma nova forma de entender a história começa a preponderar. Escrever


a história nacional significava tomar parte de um debate sobre os problemas
do momento e das incertezas do futuro, e se inteirar sobre os avanços
científicos da época (SCHWARCZ, 1993, p. 116).

O evolucionismo fornecia à intelectualidade brasileira conceitos para tratar essa problemática. As


explicações do atraso brasileiro diante das nações europeias que nos serviam de referência passavam
pelo equacionamento das questões relativas ao meio e à raça. Como afirma Renato Ortiz (1985):

Os parâmetros raça e meio fundamentam o solo epistemológico dos intelectuais


brasileiros de fins do século XIX e início do século XX. A interpretação de toda
a história brasileira escrita no período adquire sentido quando relacionada
a esses dois conceitos-chave. [...] na realidade, meio e raça se constituíam
em categorias do conhecimento que definiam o quadro interpretativo da
realidade brasileira. A compreensão da natureza, dos acidentes geográficos,
esclarecia, assim, os próprios fenômenos econômicos e políticos do País.
Chegava-se, desta forma, a considerar o meio como o principal fator que teria
influenciado a legislação industrial e o sistema de impostos, ou ainda que
teria sido elemento determinante na criação de uma economia escravagista.
Combinada aos efeitos da raça, a interpretação se completa. A neurastenia
do mulato do litoral se contrapõe, assim, à rigidez do mestiço do interior
(Euclides da Cunha); a apatia do mameluco amazonense revela os traços
de um clima tropical que o tornaria incapaz de atos previdentes e racionais
(Nina Rodrigues). A história brasileira é, desta forma, apreendida em termos
deterministas, clima e raça explicando a natureza indolente do brasileiro, as
manifestações tíbias e inseguras da elite intelectual, o lirismo quente dos
poetas da terra, o nervosismo e a sexualidade desenfreada do mulato.

O evolucionismo se combina, assim, a dois conceitos-chave que na verdade


têm ressonância limitada para os teóricos europeus. No entanto, são fatores
importantes para os intelectuais brasileiros, na medida em que exprimem
o que há de específico em nossa sociedade. Quando se afirma que o Brasil
não pode ser mais uma “cópia” da metrópole, está subentendido que a
particularidade nacional se revela através do meio e da raça. Ser brasileiro
significa viver em um país geograficamente diferente da Europa, povoada
por uma raça distinta da europeia (ORTIZ, 1985, p. 16-7).
39
Unidade I

3.4 Capistrano de Abreu, o grande historiador

João Capistrano Honório de Abreu (1853-1927), nascido no Ceará, é considerado um dos maiores
historiadores de sua época. Autodidata, leu obras de Geografia, História, Psicologia e Antropologia.
Deslocou-se em 1876 para o Rio de Janeiro onde foi concursado para a Biblioteca Nacional, local em
que pôde estabelecer contato direto com muitos livros e documentos, bem como para a cadeira de
História do Brasil no Colégio Pedro II.

Foi autor de obras seminais da historiografia brasileira e, até a década de 1920, quando preponderavam
os estudos históricos com visão factual interpretativa, detinha o posto de responsável pelas principais
obras de renovação historiográfica. Escreveu, entre outros livros e artigos em periódicos, Caminhos
Antigos e Povoamento do Brasil (1899) e Capítulos de História Colonial (1907), clássico da historiografia
nacional. Em seus escritos, renovou os estudos históricos introduzindo novos sujeitos e interpretações.

Saiba mais

Você pode ter acesso ao texto completo digitalizado de Capítulos de


História Colonial, de Capistrano de Abreu, na Biblioteca do Senado Federal,
assim como a outros títulos importantes sobre o Brasil. Para tanto, acesse:

ABREU, J. C. Capítulos de história colonial: 1500-1800. Brasília:


Conselho Editorial do Senado Federal, 1998. Disponível em: <http://www2.
senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1022/201089.pdf?sequence=4>.
Acesso em: 20 set. 2016.

A relevância de Capistrano de Abreu na historiografia brasileira é amplamente reconhecida. Além


de sua produção propriamente histórica, com trabalhos de peso, foi autor de críticas historiográficas
e de ampla pesquisa documental. Pesquisador aplicado e incansável, fez descobertas importantes
identificando nomes e obras que se tornariam fundamentais para a historiografia brasileira, como
Cultura e Opulência do Brasil (1711) de J. Antonil e História do Brasil (1627) de Frei Vicente do Salvador
(NOVAIS, 2005). Procedeu à revisão da obra de Varnhagen, do qual foi leitor atento e crítico.

As condições em que esses dois autores escreveram foi diversa, assim como sua origem social.
Varnhagen havia nascido em berço da elite; Capistrano, com origem mais modesta, reconhecia-se,
sobretudo, como homem do sertão. Quando o primeiro escrevia sua obra sobre a história do Brasil,
vivíamos a fase de consolidação da monarquia. Já o segundo o fez após os abalos da Guerra do Paraguai
e sob a influência das novas ideias aportadas no País a partir de 1870. A formação de Capistrano de
Abreu se deu em ambiente intelectual, marcadamente cientificista, com ênfase nas teorias raciológicas
e deterministas.

Em âmbito historiográfico, sob as influências teóricas recebidas por Capistrano, José Carlos
Reis acompanhou as visões, nem sempre concordantes, de estudiosos que se dedicaram a esse

40
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

assunto (REIS, 1999). Como síntese das variações encontradas, resulta a concepção de que no
pensamento daquele historiador formado nos finais do século XIX estaria presente a confusão
intelectual existente no Brasil daquela época, cujos historicismo e positivismo compareciam sem
que houvesse nitidez para sua identificação.

Teria sido Capistrano mais positivista ou mais historicista? Há traços tanto de uma corrente quanto
de outra. Foi leitor de Taine, Spencer, Comte e Buckle, mas se valeu também de autores alemães como
Ranke e Ratzel. No célebre necrológio que fez para Varnhagen, Capistrano evidencia sua crença na
possibilidade de estabelecer leis para a história. Mas em seus trabalhos posteriores, fica evidenciada
a influência alemã que o conduz ao estudo rigoroso dos documentos, à busca da sua autenticidade
e ao esforço da análise objetiva, com método crítico. Em tempos de cientificismo e determinismo,
sua preocupação com as relações entre o homem e o meio geográfico o encaminhou para os estudos
sobre o povo brasileiro.

A par de sua atualização teórica, a posição inovadora de Capistrano na historiografia brasileira


estaria justamente neste ponto: a definição da composição do que seria “brasileiro”. Nas palavras de
José Carlos Reis (1999):

Capistrano será um dos iniciadores da corrente de pensamento histórico


brasileiro que “redescobrirá o Brasil”, valorizando o seu povo, as suas lutas,
os seus costumes, a miscigenação, o clima tropical e a natureza brasileira.
Ele atribuirá a este povo a condição de sujeito da sua própria história, que
não deveria vir mais, nem de cima, nem de fora, mas dele próprio. O futuro
do Brasil torna-se tarefa do povo brasileiro e, para melhor vislumbrá‑lo,
Capistrano recupera o passado desse povo com suas lutas e vitórias.
Capistrano foi pioneiro na procura das identidades do povo brasileiro, contra
o português e o Estado Imperial e as elites luso-brasileiras (REIS, 1999, p. 5).

Os caminhos novos apontados por Capistrano estão presentes, sobretudo, em Capítulos de História
Colonial. Nessa obra, afasta-se do formato preponderante encontrado no modelo forjado pelo IHGB. Não
se trata mais de uma história político-administrativa, laudatória das elites e com ênfase nas biografias
de homens ilustres. Produz uma história mais econômica e social cujo personagem principal é o povo
brasileiro. Pouco preocupado com fatos e datas, percorre temas ainda inexplorados, como “sua vida,
alimentação, tipos étnicos, condições geográficas, os caminhos, economias, povoamentos, modos de
viver, as formas psicológicas, profissões, divertimentos, costumes, crenças, diferenças sociais, o comércio,
a vida urbana e rural [...]” (REIS, 1999, p. 6).

Capistrano valoriza o povo brasileiro como sujeito da história e sua composição étnica como aspecto
fundamental da identidade brasileira. Destaca com insistência a presença indígena nessa formação,
mas dedica pouco espaço aos afrodescendentes. Divergia de seus colegas da época com relação aos
indígenas, considerados por ele como preponderantes na formação da nacionalidade brasileira. Silvio
Romero, por exemplo, de forma oposta, valorizava o negro em vez do indígena. Em resposta a essa visão,
as palavras de Capistrano em artigo na Gazeta de Notícias, de março de 1880, são contundentes:

41
Unidade I

A minha tese é a seguinte: o que houver de diverso entre o brasileiro e o


europeu atribuo-o em máxima parte ao clima e ao indígena. Sem negar a
ação do elemento africano, penso que ela é menor que a dos dois fatores,
tomados isoladamente ou em conjunção (apud GONTIJO, 2003, p. 23).

Por muitos anos, Capistrano estudou com afinco as línguas dos povos indígenas e seus
costumes. Importante destacar que o avanço da fronteira econômica, na época em que esse
historiador escrevia, colocava em primeiro plano a preocupação com a própria sobrevivência
desses povos. Interessava-se intensamente nesse componente do povo brasileiro que privilegiava,
ao lado do branco e do mameluco, o quadro de influências para a composição do brasileiro em que
a presença negra é apontada, mas pouco valorizada. De forma inversa à visão corrente na época,
traz um ponto de vista original:

Para Capistrano, “alienígenas”, “exóticos” são os europeus e os africanos


e não o indígena e a terra do Brasil. Para vê-los assim, ele se coloca do
ponto de vista do indígena e da terra do Brasil, que veem chegar novos e
desconhecidos elementos. Ele olha da praia para o oceano cheio de caravelas,
enquanto Varnhagen olhava da caravela de Cabral para a praia e via uma
terra exótica povoada por alienígenas (REIS, 1999, p. 7).

O brasileiro concebido por Capistrano é aquele forjado no interior do País, no sertão, cuja
importância enfatiza, e não no litoral. Apesar da forte presença das teorias raciológicas no
ambiente intelectual da época, sua perspectiva é menos racial do que cultural, antecipando uma
visão que se tornará presente mais adiante com Gilberto Freyre ou Sérgio Buarque de Holanda.
Como explica João José Reis (1999):

Nos Capítulos de História Colonial aparecem os caminhos que levam ao


sertão e o próprio sertão brasileiro. Vivendo no interior do Brasil, ilhado
e sem vínculos contínuos com o litoral, convivendo com os indígenas e
a natureza brasileira, foi-se constituindo um “homem novo”, até então
inexistente no mundo: a história universal ganhava um novo personagem,
“o brasileiro”. Mas, enfatizando o sertanejo, ele não perde de vista o
nacional, a unidade brasileira em suas diferenças regionais [...]. Para
Capistrano, o que houve de diverso entre o brasileiro e o europeu deveu-se
ao clima e ao indígena. O brasileiro é um europeu que sofreu um processo
de diferenciação: o clima e a miscigenação com o índio” (REIS, 1999, p. 6).

A importância conferida ao clima e à mestiçagem está de acordo com as ideias em voga na


época. As teorias raciológicas e mesológicas, a raça e o meio figuravam como chave explicativa
para as condições sociais e seus desníveis, também para explicar a composição do povo com suas
características físicas e os contornos do caráter nacional. Entretanto, para Capistrano as leis da
ciência não poderiam ser tomadas sem consideração do que demonstram os fatos, servindo mais
de inquérito do que de sentença.

42
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

No índice dos Capítulos de História Colonial temos:

• Antecedentes indígenas.

• Fatores exóticos.

• Primeiros descobridores.

• Primeiros conflitos.

• Capitanias hereditárias.

• Capitanias da coroa.

• Franceses e ingleses.

• Guerra flamenga.

• Sertão.

• Formação de limites.

• Três séculos depois.

A ênfase dada ao povo brasileiro nesse trabalho abriu espaço para uma história menos harmônica
na qual são consideradas expressões de rebeldia contra os lusitanos, de forma muito diferente da que
vimos ao tratarmos da produção dos historiadores mais tradicionais do IHGB, comprometidos com os
interesses monárquicos e com uma concepção de agentes históricos restritos à elite. Temas como o
conflito dos Emboabas, a Guerra dos Mascates ou as agitações em Minas Gerais e a sedição do século
XVIII são abordados como expressões de uma luta independentista dos brasileiros.

Ao tratar da luta por independência do novo povo que surgia, o trabalho de Capistrano estaria
revelando “o processo de constituição da diferença entre o projeto colonizador e o novo interesse e
sentimento que se formara gradualmente, o interesse e sentimento brasileiros” (REIS, 1999, p. 6).

Nota-se uma nova angulação no entendimento da construção da identidade brasileira, questão


colocada em cena com a independência política no início dos oitocentos, como vimos anteriormente,
e que se manteve presente ao longo de todo esse século, adentrando o posterior, como veremos
mais adiante.

A independência, entretanto, não teria sido sinônimo de uma consciência nacional acabada, que
ainda estaria por acontecer, deixando Capistrano na expectativa pouco esperançosa de um protagonismo
mais eficiente do povo brasileiro em prol de uma verdadeira independência. Como observa José Carlos
Reis sobre o desfecho de Capítulos de História Colonial:
43
Unidade I

Capistrano esforça-se por definir uma “brasilidade”, apesar da dominação


portuguesa e contra ela. “Brasilidade” que começa com a fundação de São
Vicente e Piratininga, que cresceu com as bandeiras, com a ocupação da
Amazônia, com o gado e as minas. “Brasilidade” que se exaltou durante
o século XVIII e se expressou através de rebeliões diversas, sangrentas.
“Brasilidade” de uma população numerosa, mestiça, com seus próprios modos
de viver e pensar, com suas atividades econômicas específicas, adaptadas a
regiões diversas [...]. O final revela uma expectativa não realizada, um esforço
frustrado, a “revolução brasileira” não passou de um espírito e que não se
encarnou, não deu nascimento a um novo mundo histórico. Capistrano
passa do elogio à vitória brasileira a um tom crítico em relação ao novo
povo brasileiro que se constituía – ele esperava mais ação, mais vontade e
determinação, mais eficácia histórica (REIS, 1999, p. 12).

Com Capistrano de Abreu, percebe-se um movimento que tende a afastar a historiografia do modelo
tradicional do IHGB encaminhando-a para novas direções. A história oficial, política e factual ligada
intrinsecamente ao Estado e que ressaltava a obra lusitana contrasta com um viés renovador trazido
por Capistrano, ao anunciar novas possibilidades historiográficas que se consolidavam posteriormente.
Em obra menos prolixa que a de Varnhagen – que acumula fatos e documentos – faz uma obra mais
enxuta em que inverte os atores principais e os coadjuvantes. José Carlos Reis (1999) ainda nos ajuda a
entender a operação historiográfica efetuada por Capistrano:

[...] não faz um elogio da conquista e da colonização portuguesa, mas da


conquista e da colonização do Brasil pelo brasileiro mestiço; não relata a
conquista do litoral, mas a ocupação do interior; o sujeito da história do
Brasil não é mais o europeu branco, cristão e súdito do rei, mas o brasileiro
mestiço, ainda cristão, mas sem uma expressão política clara; não faz uma
história da constituição da identidade brasileira em moldes europeus, mas
busca as identidades brasileiras no interior, no sertão e nas rebeliões (REIS,
1999, p. 12).

Para o historiador Fernando Novais, com Capistrano de Abreu se encerra a primeira fase da
historiografia brasileira, a proveniente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro cuja produção esse
cearense criticou e superou. A partir daí se daria a passagem para a produção historiográfica moderna
da década de 1930, com Gilberto Freyre, Caio Prado Junior e Sérgio Buarque de Holanda.

Capistrano “estendeu a ponte de passagem, evitando a solução de continuidade” entre a


primeira fase da historiografia brasileira representada pelo IHGB e a geração de 1930 que viria
a produzir um diálogo integrativo com as Ciências Sociais e a fase posterior que viria com a
produção universitária após a criação da Universidade de São Paulo em 1934. Para esse autor,
Capistrano teria encaminhado a ultrapassagem de uma história setorial para outra mais global e
de uma história puramente narrativa para outra que, sem deixar de ser narrativa, seria também
explicativa (NOVAIS, 2005, p. 313).

44
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

4 A IDENTIDADE NACIONAL EM QUESTÃO

Já vimos que a definição de nação é questão complexa. Pode-se buscar delimitá-la a partir da
existência de uma unidade linguística, religiosa, cultural, de costumes, bem como pela ocupação de
um determinado território. Seja qual for o critério que se vá sublinhar, é sempre uma construção que
se dá em contextos históricos específicos e singulares, com uma determinada correlação de forças a
determinar a ação dos agentes políticos envolvidos em sua construção. A construção da nação se dá
fortemente em uma dimensão ideológica e é revestida de representações simbólicas marcantes. Da
mesma forma, os nacionalismos configuram-se como movimentos políticos que objetivam a realização
de um destino comum.

Sobre a construção da identidade nacional brasileira no período imperial já nos ocupamos aqui em
páginas anteriores. Da mesma forma, acompanhamos as repercussões havidas nas expectativas quanto
à construção da memória histórica e a produção historiográfica nesse período.

Na passagem do regime imperial para o republicano, essa questão assumiu novos contornos. A
República trouxe muitas mudanças, e não apenas no plano político-administrativo. Do ponto de vista
da relação entre sociedade e estado, transformara súditos em cidadãos republicanos, trazendo novas
angulações quanto à construção da identidade nacional brasileira. Essa nova condição repercutiu no
pensamento social brasileiro, ocupando políticos e intelectuais de todo tipo.

A construção da identidade coletiva das populações no âmbito da nação comporta identificar


similaridades e diferenças capazes de singularizá-la entre todos os outros grupos sociais. Os processos
identitários se fazem a partir do binômio identidade-alteridade, ou seja, com o reconhecimento do que
se tem em comum e com a evidenciação das diferenças havidas com o outro. Laços de pertencimento
são criados a partir de representações simbólicas que permitem definir o “caráter nacional” ou a
“personalidade nacional”.

No Brasil, o esforço para construir a identidade nacional na virada do século XIX para o XX se deu
com a consideração das “raças formadoras” do povo brasileiro. As teorias raciológicas surgidas na esteira
do cientificismo e do evolucionismo ofereceram o quadro teórico para o entendimento da dinâmica
das raças na composição de um povo. Na verdade, construíram-se argumentos no âmbito do “racismo
científico” para explicar as razões do nosso atraso a partir da composição racial do povo brasileiro. O fato
de resultarmos de uma composição racial deficiente, de acordo com essa visão, era apontado, muitas
vezes, como um entrave ao nosso desenvolvimento social, como um obstáculo ao progresso da nação
brasileira. Em contrapartida, a mesma composição racial é também usada como recurso na construção
da identidade nacional.

Cumpre destacar que houve uma leitura seletiva das teorias do racismo científico. Dentre as diferentes
visões concorrentes sobre o papel destinado às raças na determinação do sucesso ou do fracasso dos
povos e das nações, os políticos e intelectuais brasileiros buscaram aquelas que mais se ajustavam ao
projeto de construção nacional em curso. Nas palavras de Lilia Schwarcz:

45
Unidade I

[...] o pensamento racial europeu adotado no Brasil não parece fruto da


sorte. Introduzido de forma crítica e seletiva, transforma-se em instrumento
conservador e mesmo autoritário na definição de uma identidade nacional
e no respaldo a hierarquias sociais já bastante cristalizadas (SCHWARCZ,
1993, p. 42).

Numa vertente das teorias raciológicas, considerava-se que, embora existisse uma hierarquia
entre as raças humanas, haveria qualidades em cada uma delas. Assim, também os negros poderiam
apresentar qualidades como raça. Mas a miscigenação, a mistura racial, era absolutamente condenada.
Isso porque, acreditava-se, o fruto do cruzamento das raças herdaria as más qualidades dos pais.
Países com alto grau de miscigenação sofreriam um processo de degeneração de seu povo e estariam
condenados ao declínio.

Entretanto, abandonou-se aqui essa visão em prol de outra mais adequada aos propósitos
de construção de uma identidade nacional positiva e de um projeto de nação viável. Apostou-se
amplamente na singularidade de nossa condição mestiça, mas projetou-se para o futuro a definição
de nossa identidade, pois seríamos ainda um povo em formação. Selecionou-se a visão positiva da
mestiçagem deixando de lado seu entendimento como fator de degeneração. Por meio do cruzamento
com os brancos, reforçados em seu número pela afluência de imigrantes europeus para a economia
cafeeira, as más características de negros e indígenas seriam gradativamente reduzidas com o gradativo
“branqueamento” da raça.

De toda forma, a construção da identidade nacional, questão crucial para os intelectuais e políticos
brasileiros no final do século XIX, como você já teve condição de notar, passava necessariamente pela
ideia da mestiçagem. Como nos explica Renato Ortiz (1985):

Neste momento, torna-se corrente a afirmação de que o Brasil se constituiu


através da fusão de três raças fundamentais: o branco, o negro e o índio. O
quadro de interpretação social atribuía, porém, à raça branca uma posição
de superioridade na construção da civilização brasileira [...]. Associa-se,
desta forma, a questão racial ao quadro mais abrangente do progresso da
humanidade. Dentro desta perspectiva, o negro e o índio se apresentam
como entraves ao processo civilizatório. [...] surge assim um problema teórico
fundamental para os “cientistas” do período: como tratar a identidade
nacional diante da disparidade racial. Do equacionamento deste problema
decorre a necessidade de se sublinhar o elemento mestiço. Na medida em que
a civilização europeia não pode ser transplantada integralmente para o solo
brasileiro (vimos que o meio ambiente é diferente do europeu), na medida
em que no Brasil duas outras raças consideradas inferiores contribuem
para a evolução da história brasileira, torna-se necessário encontrar um
ponto de equilíbrio. Os intelectuais procuraram justamente compreender
e revelar esse nexo que definiria nossa diferenciação nacional. O mestiço
é para os pensadores do século XIX mais do que uma realidade concreta,
ele representa uma categoria através da qual se exprime uma necessidade
46
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

social – a elaboração de uma identidade nacional. A mestiçagem moral e


étnica possibilita a “aclimatação” da civilização europeia nos trópicos [...]. A
temática da mestiçagem é neste sentido real e simbólica; concretamente se
refere às condições sociais e históricas da amálgama étnica que transcorre
no Brasil, simbolicamente conota as aspirações nacionalistas que se ligam à
construção de uma nação brasileira [...]. O ideal nacional é na verdade uma
utopia a ser realizada no futuro, ou seja, no processo de branqueamento
da sociedade brasileira. É na cadeia da evolução social que poderão ser
eliminados os estigmas das “raças inferiores”, o que politicamente coloca
a construção de um Estado nacional como meta e não como realidade
presente (ORTIZ, 1985, p. 20-1).

Em resumo, tendo como paradigma teórico o evolucionismo, os conceitos de meio e raça são
escolhidos como as duas categorias fundamentais para se discutir as razões do atraso brasileiro. Dentre
os dois, foi sublinhado o de raça, por meio do qual se podem apontar os motivos do atraso, assim como
sua superação. O diagnóstico sombrio da nossa condição aos olhos do racismo científico fez que fosse
projetada para o futuro a solução dos problemas dela decorrentes.

A tese do “branqueamento” permitiria o equacionamento da questão racial. O depuramento


progressivo da raça com o sucessivo cruzamento de negros e mestiços com indivíduos da raça branca
permitiria a ultrapassagem do atraso que nos distanciava dos países europeus. Com isso, seria possível
alcançar a posição almejada de figurar no “concerto das nações” dos países civilizados.

Nesse sentido, as ideias raciais possibilitaram o engendramento de um projeto político de


manutenção da ordem social num contexto de transformação de mão de obra, renovando
mecanismos de exclusão social que fizeram perdurar a manutenção de uma situação opressiva
para a população negra e a mulata.

A ideologia racial vai trabalhar para reproduzir as diferenças sociais embaralhadas com a
instauração da igualdade jurídica de brancos e negros produzida pela abolição e pela república. Por
meio dessa ideologia, mantinha-se inferiorizada essa população que, não sendo mais escravizada,
estaria sujeita às mesmas regras de cidadania republicana. Os indígenas ainda tiveram de aguardar
mais tempo ainda para começarem a ser considerados partícipes da cidadania brasileira.

A nação era concebida como um “vir a ser”, projetando-se para o futuro sua concretização. A
identidade brasileira, a ser ainda fixada, estaria na mestiçagem, resultado do amálgama produzido a
partir das três raças formadoras. Como questão em aberto, o equacionamento do fator racial ainda
vai perdurar por várias décadas como elemento destacado na definição da identidade nacional. As
ideias relacionadas à composição racial do povo brasileiro como fator de construção de identidade
nacional serão sucessivamente reelaboradas, reinterpretadas, atualizadas e abandonadas na dinâmica
do pensamento social brasileiro ao longo do século XX.

47
Unidade I

Lembrete
É preciso destacar que, do ponto de vista biológico, raças humanas não
existem. Sua presença decorre de construções sociais, havendo de fato
apenas uma raça: a humana.

Resumo

Após a independência, teve início, de fato, a historiografia brasileira.


Antes disso, alguns cronistas se dedicaram a escrever a história daquilo que
ainda era a América Portuguesa. Com a emancipação política, ressaltava‑se
a importância de construir um passado para o País de forma que o
transformasse em uma nação com identidade própria.

A criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) deve ser


entendia a partir desse objetivo de afirmação da nacionalidade brasileira
no contexto do estado monárquico. O passado a ser criado deveria ser
o fundamento para as intenções centralizadoras do Império e para sua
consolidação. O Romantismo, vibrando nesse mesmo movimento, significou
também uma manifestação da nacionalidade no plano das artes.

O escopo da nacionalidade a ser constituída apontava para a


manutenção dos liames que nos ligavam à tradição e à civilização
europeia. Com isso nos afastamos das origens indígenas e africanas,
a não ser para, mais para o final do século, introduzirmos explicações
baseadas no racismo científico possibilitando que fosse equacionada
nossa composição racial de forma positiva.

Do ponto de vista da produção historiográfica, o Instituto Histórico


expressou uma visão de história comprometida com os interesses das elites
e da monarquia. Deu início à constituição de cânones historiográficos
que ultrapassaram o período e influenciaram a historiografia nacional.
A história ali produzida apoiou-se na coleta exaustiva de documentos e
na valorização da política. O grande nome do Instituto no século XIX foi
Francisco Adolfo de Varnhagen.

Mais para o final do século XIX, as ideias evolucionistas, deterministas


e positivistas forneceram o quadro teórico aos intelectuais e aos
políticos. Equacionar os problemas da sociedade brasileira, que nos
afastavam da civilização e do progresso, palavra de ordem do período,
significava encaixá-los nas explicações oriundas dessas teorias. A
tese do “branqueamento” forneceu o caminho de superação de uma
48
HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

composição racial considerada deficiente e, ao mesmo tempo, projetou


um futuro grandioso para o País.

Capistrano de Abreu foi o principal historiador do final do século, tendo


construído a ponte entre a historiografia oficial do IHGB e a produção de anos
posteriores. A força de sua obra foi sentida até as primeiras décadas do século XX.

Exercícios
Questão 1. (Enade, 2011) No bojo da constituição do Estado Nacional brasileiro, é criado, em 1838, o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), com a função de pensar a gênese da sociedade nacional.
Temas como civilização e nacionalidade estiveram nas pautas do Instituto desde seus primórdios. Nesse
contexto, assinale a opção que corresponde ao encadeamento correto entre nacionalidade e civilização
no âmbito da História da Nação escrita no século XIX:

A) A nova Nação brasileira se reconhece enquanto continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela
colonização portuguesa. Embora parta da composição da sociedade brasileira a partir das três
raças, há destaque para a presença branca europeia.

B) Pensando em termos de linha evolutiva da humanidade, os historiadores do IHGB elaboraram uma


História da Nação na qual indígenas e negros haviam conquistado o mesmo nível de civilização
que os brancos.

C) A historiografia brasileira nascente qualifica os grupos indígenas brasileiros como civilizações por
possuírem o patamar de desenvolvimento das civilizações pré-colombianas: Inca, Asteca e Maia.

D) Ao se propor dar conta da gênese da Nação brasileira, a escrita histórica incentivada pelo IHGB
negava as ideias de civilização e progresso como forma de priorizar o sincretismo brasileiro.

E) No projeto de desvendamento da gênese da sociedade brasileira, há a preferência pelo elemento


indígena, tido como a base da nova nação que se queria constituir.

Resposta correta: alternativa A.

Análise das alternativas

A) Alternativa correta.

De fato, o branco assume uma proeminência no processo civilizador.

B) Alternativa incorreta.

De maneira nenhuma, já que o branco assume a primazia nessa suposta tarefa civilizadora. Houve
tentativas de criação da figura de um indígena como o brasileiro original, aproximando-o dos valores

49
Unidade I

cavalheirescos medievais, mas esse projeto não vingou. Os negros, por sua vez, estiveram completamente
à margem de tais considerações.

C) Alternativa incorreta.

Não. Os historiadores do IHGB sempre se ressentiram do fato de os indígenas brasileiros não terem
alcançado o mesmo “nível” civilizatório de tais sociedades.

D) Alternativa incorreta.

Pelo contrário. Concebida no seio de uma tradição positivista de matriz francesa, a nação brasileira
nascia do melhoramento das raças, entendido por muitos como resultante do “branqueamento” da
população.

E) Alternativa incorreta.

Alternativa incorreta, por motivos já citados.

Questão 2. (Enade, 2008) Na primeira metade do século XX, Jonathas Serrano, professor de História
do Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, já percebia a importância do uso das imagens no ensino de
História, afirmando que elas ajudariam os alunos a aprender “pelos olhos”. Atualmente, em tempos
de grande valorização da imagem e de maiores facilidades para a sua difusão, discute-se a sua
utilização no ensino de História, em suas mais diversas modalidades. Como orientação metodológica,
para que o professor use a imagem em sala de aula, o que se deve recomendar que ele considere?

A) O seu papel como ilustração dos conteúdos, independentemente do tipo de imagem escolhida,
tornando o aprendizado mais fácil.

B) O seu caráter de representação fiel da realidade, capaz de levar o aluno a “viver” o passado, tal
como ele aconteceu.

C) A necessidade de os alunos fazerem a interpretação dos elementos integrantes da imagem, com


os mesmos recursos utilizados para os documentos escritos.

D) A sua condição mais satisfatória que os documentos escritos, como instrumentos de reconstituição
do passado histórico.

E) As suas múltiplas possibilidades de leitura, sem perder as referências de sua historicidade.

Resolução desta questão na plataforma.

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