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Arte e Estética

Autora: Profa. Eliana Aparecida Alves


Colaboradoras: Profa. Roberta Borges Hoff Matarazzo
Profa. Tânia Sandroni
Professora conteudista: Eliana Aparecida Alves

Graduada como tecnóloga em Processamento de Dados pela Universidade São Marcos. Especialista em Tecnologias
Aplicadas à Educação na Pontifícia Universidade Católica – PUC/COGEAE, além de mestre em Educação – ambas na
área de Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação – TDICs. Palestrante na área de TDICs. É professora da
Universidade Paulista – UNIP.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

A474 Alves, Eliana Aparecida.

Arte e estética. / Eliana Aparecida Alves. São Paulo: Editora Sol,


2021.

152 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230.

1. Arte. 2. Estética. 3. Filosofia. I. Título.

CDU 7

U512.74 – 21

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Universidade Paulista.
Prof. Dr. João Carlos Di Genio
Reitor

Profa. Dra. Marilia Ancona Lopez


Vice-Reitora de Graduação
Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa

Prof. Fábio Romeu de Carvalho


Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças

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Vice-Reitora de Unidades Universitárias

Unip Interativa

Profa. Dra. Cláudia Andreatini


Profa. Elisabete Brihy
Prof. Marcelo Vannini
Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático

Comissão editorial:
Profa. Dra. Christiane Mazur Doi
Profa. Dra. Angélica L. Carlini
Profa. Dra. Ronilda Ribeiro

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista
Profa. Deise Alcantara Carreiro

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Aline Ricciardi
Giovanna Cestari
Sumário
Arte e Estética

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................7

Unidade I
1 FILOSOFIA DA ARTE............................................................................................................................................9
1.1 Origem e conceito epistemológico...................................................................................................9
1.2 Platão......................................................................................................................................................... 14
1.3 Aristóteles................................................................................................................................................. 17
2 FILOSOFIA ESTÉTICA........................................................................................................................................ 19
2.1 A Estética como disciplina filosófica............................................................................................. 19
2.1.1 Baumgarten............................................................................................................................................... 19
2.1.2 Kant............................................................................................................................................................... 20
2.1.3 Schiller.......................................................................................................................................................... 22
2.2 Teorias da Arte........................................................................................................................................ 26
2.2.1 Representacionalismo............................................................................................................................ 28
2.2.2 Formalismo................................................................................................................................................. 32
2.2.3 Teoria institucional.................................................................................................................................. 33
2.2.4 Teoria expressivista................................................................................................................................. 34
3 A ESTÉTICA MODERNA................................................................................................................................... 37
3.1 Do realismo à abstração..................................................................................................................... 38
3.2 Os movimentos de vanguarda......................................................................................................... 43
3.2.1 O Cubismo................................................................................................................................................... 45
3.2.2 O Expressionismo..................................................................................................................................... 53
3.2.3 O Surrealismo............................................................................................................................................ 53
3.2.4 O Dadaísmo................................................................................................................................................ 55
3.2.5 O Futurismo................................................................................................................................................ 57
3.3 A vanguarda moderna no Brasil...................................................................................................... 59
3.3.1 A exposição de Anita Malfatti............................................................................................................ 61
3.3.2 A Semana da Arte Moderna................................................................................................................ 65
4 GUERNICA E A “MORTE” DA MIMESE...................................................................................................... 71
4.1 A função estética................................................................................................................................... 73
4.2 Interpretação e Semiótica................................................................................................................. 75
Unidade II
5 ARTE E ESTÉTICA: DA PÓS‑MODERNIDADE À CONTEMPORANEIDADE...................................... 87
5.1 Andy Warhol............................................................................................................................................ 89
5.2 A massificação da cultura: a linguagem artística na publicidade..................................... 92
6 A INTERAÇÃO ENTRE O ESPECTADOR E A OBRA DE ARTE............................................................... 96
6.1 Expressionismo....................................................................................................................................... 98
6.2 Expressionismo abstrato...................................................................................................................100
6.3 Aspectos culturais e símbolos........................................................................................................103
6.4 A função estética: a implementação, do simples objeto ao objeto de arte................107
6.5 Instalação...............................................................................................................................................109

Unidade III
7 A OBRA DE ARTE E A REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA – UM ESTUDO BASEADO
EM WALTER BENJAMIN...................................................................................................................................114
7.1 Da xilogravura ao cinema................................................................................................................115
8 A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: O ENCONTRO COM A ARTE E COM OS
VALORES ESTÉTICOS..........................................................................................................................................124
8.1 A arte pura ou puristas.....................................................................................................................124
8.2 O encontro com a arte......................................................................................................................125
8.3 Releituras................................................................................................................................................126
8.4 O belo na criação artística...............................................................................................................133
8.5 Fotografia é uma arte?......................................................................................................................135
8.6 Cinema.....................................................................................................................................................138
8.7 O encontro com a arte e com o artista......................................................................................140
APRESENTAÇÃO

A disciplina Arte e Estética busca elucidar o conceito geral de estética, as contribuições filosóficas e
aplicá‑las às Artes Visuais.

Dentro do conceito geral de estética, você estudará o que é belo, o que é contemplativo em uma
obra de arte. Nas correntes filosóficas, abordaremos Platão, Aristóteles, Kant e Schiller.

Entre os estilos, estudaremos o Impressionismo, o Cubismo, a Arte Moderna e os movimentos


de vanguarda.

Mostraremos como o contexto influencia a arte, seja ele qual for: político, religioso, entre outros.
Veremos também a arte na modernidade, na pós‑modernidade e na contemporaneidade. Veremos os
símbolos e a implementação de uma obra de arte - na visão de Benjamin, a reprodutibilidade técnica.

Você perceberá, por meio das leituras, que a interação entre o espectador e a arte aumenta cada
vez mais. Há um novo paradigma, uma nova visão do que é estética e da função da estética. Portanto,
nesta disciplina, você terá a oportunidade de refletir sobre as diferentes concepções de beleza e enxergar
as formas de percepção, criação, contemplação e função estética na sociedade.

Com o objetivo de que aconteça o encontro do espectador com a arte e o artista, esperamos que
você compreenda a função da estética na arte e perceba o belo em diferentes obras.

INTRODUÇÃO

Procuraremos focar, num primeiro momento, a origem e o conceito epistemológico da Estética,


dentro de uma perspectiva generalizada do conhecimento sensorial humano. A partir daí, veremos o
cerne de nosso tema sob o ponto de vista científico e teórico do termo. Questionaremos se a medida da
estética de uma obra de arte é sua forma representacional da natureza.

Afinal, o que garante que uma obra é esteticamente bela? A mesma beleza é perceptível por todos
que contemplam determinada música? Veremos que esses questionamentos foram alvo de investigação
filosófica, na busca da estética em seu contexto universal, ou melhor, no estudo do sentido dessa realidade
embasado pelo pensamento de Platão e Aristóteles. Baseando‑nos nesses conceitos, chegaremos
à noção moderna do conhecimento estético a partir do século XVIII, com Baumgarten instituindo a
Estética como disciplina acadêmica filosófica e influenciando vários intelectuais até os dias de hoje.
Mostraremos os pensamentos dos filósofos Kant e Schiller sobre a metafísica do belo e a questão do
juízo na experiência estética. Por fim, recorremos às teorias de arte e à busca de uma essência comum
a fim de conceituar a arte.

Adentraremos, além disso, no impacto estético do Impressionismo, porta de entrada da Arte Moderna,
e na ascensão da abstração, em que veremos os movimentos de vanguarda como papel fundamental
nas influências artísticas ao longo do século XX, dando ênfase ao Cubismo e a como esse movimento
7
subverteu os impulsos realistas e trouxe liberdade estética à capacidade imaginativa do artista e do
público. A partir daí, estudaremos a vanguarda modernista no Brasil e os eventos que influenciaram a
estética na cultura brasileira. Finalmente, faremos uma incursão pela Guernica de Picasso e procuraremos
avaliar como a obra pode ser considerada símbolo do rompimento com a mimese e materialização de
uma nova linguagem estética.

Retratamos, na sequência, a importância dos contextos histórico, político, econômico, religioso nas
artes; pois influenciam a criação artística. Retomamos a Revolução Industrial para compreender como
a arte e a estética perpassam modernidade, pós‑modernidade e contemporaneidade. A partir da Revolução
Industrial e do consumo crescente, estudamos a escola de Frankfurt e a Pop Art, na qual estão inseridas
as obras de Andy Warhol, que ironizam o cotidiano consumista. Nesse sentido, caminhamos para a
massificação da estética e a exemplificamos através de imagens do período moderno, pós‑moderno e
também na publicidade, que, ao mesmo tempo em que tem fins exclusivamente lucrativos, tem uma
linguagem que se aproxima do espectador, criando uma maior interação entre ele e a arte. Com as novas
mídias e tecnologias, a linha que divide espectador e obra de arte é cada vez mais tênue. Mostramos
como essa aproximação acontece retomando o Expressionismo, mais especificamente, o Expressionismo
abstrato, seguido dos aspectos culturais (e sua terminologia “signos” ou “símbolos”) até a instalação –
estrutura criada para a participação do espectador.

Partindo do conceito de Goodman de que os símbolos são ditados por convenções culturais,
questionamos quando um objeto torna‑se objeto artístico, se é na execução ou na implementação
de uma obra. E, por fim, estudamos a obra de arte e a reprodutibilidade técnica baseada em Walter
Benjamin, pois, com o avanço da tecnologia, indagamos sempre até que ponto é arte e até que ponto é
somente reprodução técnica. De início, mostraremos apenas o ponto de vista de Benjamin para, então,
ampliarmos essa visão dentro da contemporaneidade.

Estudaremos ainda a experiência estética e o que podemos chamar de “o encontro com a arte”.
Iniciamos definindo o conceito de “arte pura” ou “puristas”. Além disso, questionamos qual é função
estética na contemporaneidade. Percebemos uma quebra de paradigmas se compararmos a arte pura
a essa nova função estética que transforma um simples objeto em obra de arte. Abordamos releituras de
obras de arte, mais especificamente da Mona Lisa.

Seguimos repensando a questão do belo que, mesmo disforme, ainda pode ser belo, o belo de cada
criação artística. Dentro da criatividade, falamos da fotografia, da fotografia cultural, e discutimos se ela é
ou não arte; além de abordamos a evolução natural da fotografia para o cinema, e a forma como podemos
estudar com o cinema. Depois dessa ampla visão sobre o que é arte e estética, encerramos falando do
encontro com a arte, mas também com o artista. Quando conhecemos a obra, dialogamos com o artista.

Bons estudos!

8
ARTE E ESTÉTICA

Unidade I
1 FILOSOFIA DA ARTE

Cerne de nossos estudos, a Estética sempre questionou o conhecimento do senso comum, sendo
tema de estudos filosóficos, científicos e teóricos. A medida da Estética foi teorizada pelos estudiosos
gregos sob o contexto universal muito antes de se firmar como disciplina acadêmica, quando o assunto
tomou rumos conceitualizados pelas teorias da arte na busca do que realmente pode ser considerada
arte esteticamente bela.

1.1 Origem e conceito epistemológico

Os juízos estéticos que se valem de termos como “beleza” não precisam


estar presentes nesse nível de interpretação, mas devem ficar restritos ao
âmbito dos pontos de vista mais subjetivos. A interação entre propósito
e composição, e entre estrutura sintática e substância visual, deve ser
mutuamente reforçada para que se atinja uma maior eficácia em termos
visuais (DONDIS, 1997, p. 105).

A palavra “estética” vem do grego aisthesis, que significa “sentir”. Aisthesis é o modo como nos sentimos
em relação ao mundo exterior e, a partir daí, quais as sensações que provêm dessa relação. Para os gregos, a
palavra aisthesis queria dizer algo como a “percepção do mundo sensível” ou a “sensação” (KIRCHOF, 2003b).
Dessa forma, podemos descrever o significado de Estética, de modo generalizado, como o conhecimento
sensorial diante de qualquer experiência externa que altere nossa percepção cognitiva.

Essa definição sobre o significado da Estética se refere ao senso comum. Nos dias atuais, o senso comum
a associa com o ramo do embelezamento e do retardamento da velhice humana. Porém, na esfera do caráter
científico e teórico do termo, o conceito foi contextualizado a partir de estudos sobre o belo e a arte.

Grande parte dos pesquisadores do século XX compreende o conceito


“estética” como a ciência (filosófica) da arte e do belo, Em alguns
contextos, principalmente na Alemanha, o termo pode denotar apenas
a ciência do belo, separada da ciência da arte, pois esta última tem sido
denominada, por vezes, de Kunstwissenschaft (Ciência da arte). Conforme
Tatarkiewicz, por exemplo, “a experiência que, desde o século XVIII, tem
sido chamada de estética, era simplesmente definida como a percepção
do belo nos primeiros séculos”. Muitos autores, por outro lado, empregam
“estética” apenas no contexto do estudo das obras artísticas e de seus
efeitos, tratando o belo como uma dentre outras qualidades estéticas da
arte (KIRCHOF, 2003b, p. 17).
9
Unidade I

Todavia podemos dizer que tanto o senso comum quanto o senso teórico do termo “estética” têm
em comum o problema com o corpo e o belo. Ter ou não estética daria ao objeto questionado o valor
de belo? A medida da estética daria à obra de arte mais ou menos valor artístico? Adentraremos nessa
questão no decorrer de nossos estudos, porém, como vimos até o momento, a estética não se encontra
no mundo exterior, mas na consciência de nossas percepções.

Lembrete
Percepção é uma função cerebral que impõe significado a estímulos
sensoriais. Isso significa que perceber por estímulos fisiológicos é obter,
interpretar, escolher e organizar as informações alcançadas pelos sentidos.

Segundo a artista plástica Fayga Ostrower (1920–2001), polonesa radicada no Brasil, a “percepção
não envolve apenas um ato fisiológico, mas um processo altamente dinâmico e característico da
consciência humana” (OSTROWER, 1998, p. 73). A autora complementa:

Processo ativo e participativo é uma ação e nunca uma reação mecânica ou


instintiva ante estímulos recebidos passivamente. Alcançando áreas recônditas
de nosso inconsciente, articulando e trazendo‑as ao consciente, a percepção
mobiliza todo nosso ser sensível, associativo, inteligente, imaginativo e criativo.
Perceber é sinônimo de compreender (OSTROWER, 1998, p. 73).

A percepção também foi tema fundamental da célebre obra de Rudolf Arnheim, Arte e Percepção
Visual: uma psicologia da visão criadora, escrita em 1954:

Da mesma forma que não se pode descrever um organismo vivo por um


relatório de sua anatomia, também não se pode descrever a natureza de uma
experiência visual em termos de centímetros de tamanho e distância, graus
de ângulo ou comprimentos de onda de cor. Essas medições estáticas definem
apenas o “estímulo”, isto é, a mensagem que o mundo físico envia para os
olhos. Mas a vida daquilo que se percebe – sua expressão e significado – deriva
inteiramente da atividade das forças perceptivas. Qualquer linha desenhada
numa folha de papel, a forma mais simples modelada num pedaço de argila,
é como uma pedra arremessada a um poço. Perturba o repouso, mobiliza o
espaço. O ver é a percepção da ação (ARNHEIM, 1989, p. 8‑9).

Perceber, portanto, depende do que é sentido pelo homem, seja através de influências externas, como
a intensidade, o contraste e o movimento; ou internas, como a motivação, a experiência e a cultura. Essas
influências são individualizadas e organizadas pelo homem. Como isso ocorre? Por que algumas formas
trazem mais sentido, portanto, mais significados, para alguns do que para outros? O que é beleza?

Dentro desse contexto, é fundamental expormos a diferença entre filosofia


estética e filosofia da arte. Enquanto a primeira trata‑se da experiência estética,
ou seja, do julgamento do belo e do gosto, a segunda refere‑se ao objeto
10
ARTE E ESTÉTICA

de arte, “das noções de ‘expressão’ e ‘representação’ que estão ligadas


aos modos de apreciação da arte e dissertam sobre a teoria da arte”
(GHIRALDELLI JR., 2010. p. 84).

Se considerarmos que Estética é o ramo que se dedica a estudar o belo ou a expressão da beleza,
como justificar obras de arte que não expressam exatamente beleza estética? A medida da estética de
uma obra de arte é sua forma representacional da natureza? E qual obra é esteticamente mais bela?
Las Meninas de Velásquez ou a de Picasso?

Figura 1 – Diego Velázquez, Las meninas, 1656, óleo sobre tela, 318 cm x 276 cm, Museu do Prado, Madrid, Espanha

Figura 2 – Pablo Picasso, Las meninas, 1957, óleo sobre tela, 194 cm x 260 cm, Museu Picasso, Barcelona, Espanha

Fonte: Walther (2000, p. 84).

11
Unidade I

O que dizer então dos corpos caídos em A liberdade guiando o povo, de Delacroix?

Figura 3 – Eugène Delacroix, A liberdade guiando o povo, 1830, óleo sobre tela, 260 cm x 325 cm, Museu do Louvre, Paris, França

Para irmos mais além da questão estética vulgar, observemos O grito, de Edvard Munch. Onde se
encontra o belo na obra do pintor norueguês? A beleza é considerada por todos que a contemplam?

Figura 4 – Edvard Munch, O grito, 1893, óleo sobre tela, têmpera e pastel sobre cartão, 91 cm x 73,5 cm

12
ARTE E ESTÉTICA

Essa pintura é descrita por Bueno (2008) como:

[...] uma tela medindo 91 cm x 73,5 cm, com um personagem contorcido


à beira de uma ponte em primeiro plano, as mãos segurando o rosto, a
boca entreaberta, olhos arregalados, emitindo um grito desesperador, de tal
forma que temos a sensação de ouvi‑lo e até sentir a sua agonia (BUENO,
2008, p. 38).

Como podemos observar na imagem anterior, O grito é considerado um ícone da pintura expressionista.
A obra expressa o momento de agonia pelo qual passava Munch, transmitindo angústia e desespero.
São vários os aspectos que reforçam esse sentimento: a sensação de agito e conturbação se deve ao
isolamento do personagem principal isolado em meio a um bombardeio de linhas sinuosas da água e
do céu; a sequência de linhas fortes e retorcidas da face dá a sensação de que, a qualquer momento,
ele pode se atirar da ponte; a perspectiva da ponte, em diagonais paralelas, conduz nosso olhar para o
centro esquerdo do quadro, mostrando ainda mais o isolamento do personagem em relação às outras
pessoas presentes na tela.

Figura 5 – Edvard Munch, Autorretrato, 1895, litografia, 45,8 cm x 31,4 cm, Museu Munch, Oslo, Noruega

Seria, então, Estética a expressão emocional da capacidade infinita de transmitir impressões


sensoriais? A questão da beleza artística estaria relacionada com a essência da obra?

A cognição humana, por sua condição subjetiva, seria, portanto, um dos motivos para tantos questionamentos.
É por isso que diversos autores se dedicaram à busca de teorias complexas sobre Estética, sobretudo na
Grécia Antiga, recorrendo aos pensamentos dos filósofos Platão e Aristóteles, nos quais foi desenvolvida
a qualidade nas artes para compreender e apreciar o belo.

13
Unidade I

O conhecimento filosófico se diferencia do científico pelo objeto de investigação e pelo método, ou


seja, o conhecimento científico parte de dados racionais característicos da matéria e da física. Dessa
maneira, por ser metódica, objetiva e sistemática, a ciência é apta à experimentação. Por outro lado, o
conhecimento filosófico tem como objeto a realidade no seu contexto universal, ou melhor, a busca do
sentido dessa realidade. Não há espaço, neste último, para a experimentação.

Sob esta perspectiva, o tema “Estética” foi discutido de forma indireta por filósofos gregos antes
que fosse tratado como disciplina acadêmica filosófica pelo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten,
responsável pelas ideias que influenciaram vários intelectuais e nortearam a noção moderna do
conhecimento estético a partir do século XVIII.

É o que veremos a seguir.

Observação
O que é Filosofia?
Segundo Gregório (2009, p. 10), “Filosofia do grego philos e sophia ‘amor
à sabedoria’. Filósofo é, portanto, o amante da sabedoria. Com o decorrer
do tempo, entretanto, a palavra filosofia foi perdendo esse significado
etimológico. Na própria Grécia Antiga, o termo Filosofia passou a designar
não apenas o amor ou a procura da sabedoria, mas um tipo especial de
sabedoria, aquela que nasce do uso metódico da razão, da investigação
racional em busca do conhecimento” (GREGÓRIO, 2009, p. 10).

1.2 Platão

O filósofo grego Platão (427‑347 a.C.) ocupou‑se, entre outros temas, do sentimento estético
quando, contemplando padrões de beleza, distinguiu o prazer peculiar do prazer comum a fim de
superar a ilusão da aparência. Advertiu, a partir da epistemologia socrática, sobre os poderes ilusórios
da aparência (assim como dos sentidos) para chegar ao conhecimento da realidade.

Observação
Sócrates (469‑399 a.C.), filósofo grego, ficou conhecido através dos
escritos de seu discípulo Platão, de Xenofonte e de outros (HUME, 2005).

Para Platão, existem formas puras que levam às ideias perfeitas, assim como os números. Contudo,
a partir da percepção humana, essas ideias são imitadas de maneira imperfeita, já que a percepção é
uma forma de conhecimento exclusivamente comandado pela alma. Esse raciocínio advém da filosofia
socrática, segundo a qual a alma já existia antes de se incorporar à forma humana, trazendo consigo
recordações que ora são relembradas, porém de maneira imperfeita. Esse conhecimento seria, então,
inato da alma, sem a necessidade de ensinamentos, mas de desenvolvimento da relembrança.
14
ARTE E ESTÉTICA

Segundo Kirchof (2003a):

A percepção é uma forma de conhecimento comandado pela alma, que


se utiliza, para tanto, de alguns órgãos corporais. Dessa forma, a alma se
apropria de seu objeto através de um elemento mediador, o logos. Por isso,
o próprio logos já atua no processo perceptivo, sendo que, nesse sentido, a
alma passa a ser instrumento do logos (KIRCHOF, 2003a, p. 41).

Platão chamou de mímesis a ideia da aparência falseada, em relação às artes, sobre a realidade: a
representação do real pela imitação de um mundo de formas puras. Assim, a representação artística
seria uma cópia de segunda mão do mundo natural. Por esse motivo, segundo a teoria, os artistas
distorceriam a verdade pela capacidade de abstração.

Figura 6 – Platão (ca. 428-348 a.C.)

Fonte: Oliver (1998, p. 141).

Observação

Mímesis, mimésis ou mimese: “princípio teórico básico da criação


artística, que define a imitação da natureza, em um sentido representativo
e não como mera cópia” (PLATÃO, 2006, p. 87).

“Mimetismo é a propriedade que têm certas espécies vivas de


confundir‑se pela forma ou pela cor com o meio ambiente, ou com
indivíduos de qualquer outra espécie” (HOLANDA, 2007, p. 555).

A partir daí, com base no pressuposto de que a alma conhece tudo o que existe, Platão elabora
uma metodologia a partir do cálculo e da aritmética, “uma equivalência entre o ser, a verdade e o bem”

15
Unidade I

(KIRCHOF, 2003a, p. 41), em busca de levar o homem à contemplação do ser em si, ou seja, das ideias em
termos platônicos. Estabelece uma ciência a fim de tornar imutáveis as formas mutáveis da realidade
sensível do ser humano:

A trajetória metodológica rumo à verdade deve iniciar[‑se] com a observação


da realidade sensível. Porém, a mente deve procurar abstrair, no objeto,
sensações contrárias, não se fixando na aparência de unidade. Por exemplo,
ao contemplar um dedo, não se deve admiti‑lo como um objeto inteiro,
conforme os sentidos fazem crer. Antes, deve‑se perguntar pela constituição
de suas várias qualidades, que, não obstante serem múltiplas, se apresentam
aos sentidos sob a aparência da integridade (KIRCHOF, 2003a, p. 41‑42).

Dessa maneira, para alcançar conceitos de finura ou espessura, peso ou leveza, aspereza ou maciez,
por exemplo, a metodologia platônica reconhece a força reflexiva do espírito sobre o ser das próprias
qualidades, tendo em vista cada uma delas admitir seu contraditório.

Lembrete

Segundo Arnheim (1989), a forma ultrapassa sua função prática e primeira


das coisas quando percebemos fatores contraditórios e complementares em
sua configuração: força ou fragilidade, agudeza ou rotundidade, harmonia ou
discordância – classificando‑as, nesse caso, como imagens da condição humana.

Nesse diálogo, Platão contrapõe os sentidos (aisthesis) e a alma (psique): “Os sentidos são descritos
como uma espécie de canal encarregado de apresentar, à alma, uma simples impressão dos objetos do
mundo, a partir de suas qualidades sensíveis (tamanho, espessura, densidade)” (KIRCHOF, 2003a, p. 42).

Segundo Platão, para que a percepção seja capaz de nos levar ao conhecimento, a alma deve evocar
a razão (dianoia) responsável pela abstração dos objetos em qualidades distintas e contraditórias. Em
outros termos, Kirchof resume a metodologia platônica, como podemos verificar na citação a seguir:

[...] a alma deve buscar, através da razão, a desintegração da unidade dos objetos
apreendidos pela aisthesis, através da abstração das suas qualidades, bem
como a oposição dessas qualidades às suas próprias realidades contraditórias
(o princípio do enantion). Se o pensamento for capaz de operar através de
puros números (aritmon), não ligados a objetos físicos quaisquer, a razão (por
vezes, logos e, por vezes, dianoia), terá alcançado supremacia sobre a sensação
(aisthesis), e o sujeito terá atingido o âmbito do mathema, aproximando‑se da
verdade (aletheia) e do ser em si (ousia) (KIRCHOF, 2003a, p. 42).

Para Platão, o belo não dependeria do plano material, era a própria ideia da perfeição, como unidade
absoluta e imutável. Somente através da razão seria possível exprimir um juízo estético, capaz de
conduzir o homem à perfeição pela união eterna entre o belo, a beleza, o amor e o saber.
16
ARTE E ESTÉTICA

Seria a ideia, portanto, que determinaria o padrão do que é belo ou não, segundo o platonismo.

Àqueles para os quais resta o simulacro, ou seja, artistas em geral, Platão propõe que sejam
expulsos da cidade – cidade, segundo o filósofo, é o ideal de perfeição pelos padrões platônicos,
ou seja, livre da mímesis, preservando‑se, contudo, a pluralidade característica da política sem
confinar a unidade essencial de seu apropriado funcionamento.

Sob essa perspectiva, podemos observar o ponto de Platão em um trecho de sua obra mais ontológica,
A república:

Se um homem que, por seu saber, fosse capaz de assumir todas as formas
e de imitar todas as coisas viesse a nossa cidade e quisesse pessoalmente
declamar seus poemas, nós [...] o mandaríamos para outra cidade (PLATÃO,
2006a, p. 398).

Saiba mais

O livro de Platão A república pode propiciar uma inter‑relação com o


conteúdo da unidade:

PLATÃO. A república. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

1.3 Aristóteles

Tanto Platão quanto seu mais ilustre discípulo, Aristóteles (384‑322 a. C.), concebiam na mimese a
representação do universo perceptível. Enquanto, para Platão, a criação era uma imitação da natureza;
para Aristóteles, era o drama que representava a imitação de uma ação, que na tragédia produz o
efeito de catarse (descarga de fortes emoções oriundas de um forte apelo dramático). Para a filosofia
aristotélica, a mímesis seria algo útil por gerar coisas novas, principalmente dois elementos essenciais:
o conhecimento e o prazer.

Observação
O que é catarse?
O termo “catarse” se originou do grego kátharsis, em português,
“purificação”. Segundo Aristóteles, a catarse refere‑se à purificação das
almas por meio de uma descarga emocional provocada por um drama
(FREIRE, 1982, p. 204).

Aristóteles explorou o sentimento de felicidade pelo aprendizado do conhecimento. Colocou a


satisfação do saber como o mais pleno e fim último do homem. Compôs ainda um tratado sobre o belo
17
Unidade I

(tido como perdido) a partir da realidade sensível, abandonando o belo de ser alguma coisa abstrata para
materializar‑se em algo mutável, ou seja, a beleza deixa de ser eterna e passa a evoluir.

Transferindo o belo para a esfera mundana, Aristóteles dá o primeiro passo para a ruptura do belo
coligado ao conceito de perfeição, mantendo a criação artística intrínseca ao homem, e não separada
dele, e abre, a partir daí, perspectivas diante de critérios de avaliação como: composição, simetria,
equilíbrio, ordenação e proposição, favorecendo a individualização do artista.

O que se sabe sobre os conceitos de aesthesis e arte são oriundos de outras obras, principalmente
dos livros Retórica e Poética, em que o filósofo propunha que a arte não imitasse características
universais, nem objetos específicos. Nesse sentido, Aristóteles buscava a compreensão da Estética na
exposição de nossas paixões e sentimentos de natureza universal, maneira à qual ordenamos nossas
próprias emoções. A catarse traria, portanto, uma descarga purificadora, tendo em vista implícito o
processo psicológico do drama.

Aristóteles retomou, ampliou e reformulou doutrinas de seu mestre. Em Poética, sua mais conhecida
obra, ele consagrou um tratado do fenômeno poético e questionou o mundo das ideias, em que, ao
contrário de seu mestre, valorizou a arte como forma representativa do mundo. Conceituou a arte
poética reduzindo sua essência à imitação (que acreditava ser inata ao homem), porém sua concepção
de mímesis diferia também da de Platão, já que esta fornecia ao homem os elementos essenciais
da humanidade: o prazer e o conhecimento, no qual o prazer estético está intimamente unido ao
conhecimento que auferimos na contemplação de obras estéticas.

Observação

O que é arte poética?

Para Marilena Chauí (2000), do ponto de vista da Filosofia, podemos


falar em dois grandes momentos de teorização da arte. No primeiro,
inaugurado por Platão e Aristóteles, a Filosofia trata as artes sob a forma
da poética; no segundo, a partir do século XVIII, sob a forma da estética.

Arte Poética é o nome de uma obra aristotélica sobre as artes da fala e


da escrita, do canto e da dança: a poesia e o teatro (tragédia e comédia).
A palavra “poética” é a tradução para poiesis, portanto, para “fabricação”.
A arte poética estuda as obras de arte como fabricação de seres e gestos
artificiais, isto é, produzidos pelos seres humanos.

Para a filosofia aristotélica, o prazer de contemplar provoca algo muito mais complexo, pois
pode ir além do reconhecer certos detalhes, basta considerar a riqueza, a flexibilidade e a paixão da
ação humana para conhecer, com maior sutileza e exatidão, a anatomia estética de uma obra. Certo
conhecimento seria o fundamento do prazer estético e, segundo Aristóteles, a causa do prazer que
sentimos ao contemplar o que nos é belo.
18
ARTE E ESTÉTICA

Veremos a seguir que os conceitos filosóficos apresentados irão atravessar a arte grega e ocidental
por um vasto período, basicamente, até o século XVIII.

2 FILOSOFIA ESTÉTICA

A discussão sobre a arte e suas implicações estéticas já ocupava as ideias dos pensadores gregos na
Antiguidade. Contudo, foi o filósofo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten (1714–1762) que constituiu
a Estética como disciplina.

A partir das bases conceituais de Platão e Aristóteles, Baumgarten foi o primeiro a cunhar a
palavra “estética” no universo investigativo da filosofia em suas obras Reflexões Filosóficas acerca
da Poesia, de 1735; e Estética: a Lógica da Arte e do Poema, de 1750, passando a ser compreendida
como um conjunto de conhecimentos apropriados ao nível da percepção humana, indo além da
expressão consciente do homem.

2.1 A Estética como disciplina filosófica

2.1.1 Baumgarten

Baumgarten reuniu a percepção, a obra de arte e o belo no mesmo âmbito filosófico, compreendendo
tais termos como diferentes faces de um elemento que o autor chamou de “fenômeno estético”:

O filósofo alemão encontra, nos estudos relativos às faculdades cognitivas


da alma, de um lado, e nos estudos realizados no âmbito da poética e da
retórica, de outro, as bases para formular a existência de um domínio cognitivo
paralelo ao lógico, a saber, o domínio do conhecimento estético, que passa,
já no século XVIII, a receber epítetos diversos, como sensível, confuso, belo,
entre outros (KIRCHOF, 2003a, p. 18).

“Epítetos” seriam os adjetivos utilizados para distinguir o conhecimento estético, responsáveis por
fragmentar o desenvolvimento da disciplina estética no decorrer de sua breve história. Baumgarten
desvencilhou a Metafísica, a Lógica e a Ética da questão estética, marcando definitivamente o nascimento
do conceito e criando novas abordagens de conhecimento da Arte.

Saiba mais

O livro de Marilena Chauí, Convite à Filosofia, pode propiciar uma


inter‑relação com o conteúdo apresentado:

CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática. 2000.

Baumgarten considerava que o belo se estabelecia na região dos sentidos, dominada por percepções
confusas. Dessa forma, o critério de beleza não poderia ser natural, mas transcendental. Assim, o
19
Unidade I

conhecimento das artes foi denominado pelo filósofo como uma faculdade inferior possível de ascender
à abstração metafísica. A partir daí, introduziu os princípios da Estética, definindo‑a como “ciência do
conhecimento sensível” (KIRCHOF, 2003a, p. 21). Podemos observar no trecho a seguir o que pensava
Baumgarten sobre estética:

Verdade estética, isto é, a verdade enquanto aquela que é conhecida


sensitivamente. Conhecemos a verdade metafísica dos objetos como sendo
a harmonia dos mesmos com os princípios universais (BAUMGARTEN,
1993, p. 120).

Baumgarten definiu sua ciência a partir do aisthesis, principalmente em relação ao que os gregos
discutiram a respeito do papel da percepção do conhecimento. A questão das faculdades inferiores, que
denomina “o conhecimento das artes”, tem sido considerada ambígua pelos pesquisadores, pois, para
Baumgarten, tal argumento parte do princípio da capacidade cognitiva humana de compreender a
beleza gerada pelo efeito das obras de arte, mas também admite compreendê‑las como uma estrutura
cognitiva dos sentidos (BAUMGARTEN, 1993).

Diante disso, o autor restringe o valor cognitivo à aparência, distinguindo radicalmente a Filosofia da
Arte da Estética, tendo em vista a última ir além da análise das artes, sejam elas plásticas, arquitetônicas,
musicais, cênicas, literárias etc. A partir daí, podemos observar que, de um modo geral, a diferença entre
a Filosofia da Arte, aquela praticada pelos filósofos gregos, e a Estética instituída a partir do século XVIII
com Baumgarten, é que o objeto de estudos da Estética é o juízo de gosto, a intuição referente ao belo,
o sentimento atribuído à obra, porém independente da obra.

Dessa forma, a disciplina estética surge “pela fusão de tradições, tendências ou campos filosóficos,
anteriormente tratados como objetos distintos pela filosofia” (KIRCHOF, 2003b, p. 29).

A discussão do belo no campo da Filosofia da Arte implicava ao homem uma instância superior,
encoberta pelas forças vitais da natureza. A Estética, por sua vez, conferiu autonomia ao homem,
dando‑lhe liberdade de expressão.

Baumgarten, além de desvincular o belo de qualquer categoria sensitiva, postulou a beleza pelo viés
do conhecimento preciso, ou seja, a Estética compreendida como uma ciência.

A constituição da Estética como disciplina desenvolveu uma fértil criação de pensadores em


acepções mais amplas ou restritas sobre o assunto, em que, dentre muitos, podemos citar os filósofos
alemães Immanuel Kant e Friedrich Schiller. Alguns privilegiaram uma ou outra tradição utilizada por
Baumgarten, recuperando por vezes elementos descartados originalmente.

2.1.2 Kant

Apesar de Baumgarten ser considerado fundador e disseminador da disciplina Estética, foi Kant
(1724–1804) o pensador mais influente sobre o tema no decorrer da história. Kant reformulou o projeto
estético de Baumgarten e, em parte, negou a possibilidade de união entre cognição e juízo estético.
20
ARTE E ESTÉTICA

Figura 7 – Immanuel Kant (1724‑1804)

Fonte: Manfred (2001, fronstispício).

Observação

O fundador da filosofia crítica

Immanuel Kant, filho de modesta família, nasceu em Königsberg, em


1724, e morreu em 1804, nessa mesma cidade. Para Gregório (2009), a
Crítica da razão pura (1781) e a Crítica da razão prática (1788) sintetizam o
pensamento renovador de Kant e a essência da sua filosofia.

A base da filosofia de Kant (1724–1804) está na teoria do conhecimento.


Ele deseja saber, mas sem erro. Para tanto, elabora‑a na relação entre os
juízos sintéticos a priori e os juízos sintéticos a posteriori. Aos primeiros,
chama‑os “puros”, caberia à matemática desvendá‑los; aos segundos,
“fenômenos”, influenciados pela percepção sensorial. Nesse sentido, o idealismo
e o criticismo kantiano nada mais são do que seus próprios esforços para
aproximar o fenômeno da “coisa em si”.

Kant, em Crítica da razão pura (1781), utilizará o conceito “estética” para se referir à intuição dos
fenômenos oriundos da sensibilidade. Para o filósofo, ainda que o juízo de gosto seja contemplativo
e independente da existência de objetos ou das impressões sensoriais, é impossível estabelecer uma
ciência precisa sobre o juízo estético (ou juízo de gosto), já que não existem certezas nesse plano das
faculdades humanas.

21
Unidade I

Na sua primeira crítica, Kant desenvolve a estética transcendental, na qual,


retornando à concepção dos gregos da aisthesis, define o conhecimento
estético somente a partir da sensação produzida pela intuição empírica
do objeto, deixando de lado todas as questões relativas à poeticidade, à
retoricidade e à beleza dos objetos estéticos, conforme introduzidas por
Baumgarten (KIRCHOF, 2003b, p. 30).

O filósofo de Königsberg dá outra visão à esteticidade de Baumgarten, que se limitava apenas ao


belo e afirmava que “o objeto da estética é a perfeição do conhecimento sensível enquanto tal; com
isso, quer‑se dizer a beleza” (KIRCHOF, 2003b, p. 32). Por sua vez, Kant demanda a existência de duas
propriedades de implicações estéticas: o belo e o sublime. O domínio do belo seria ligado ao sentimento
positivo; enquanto o domínio do sublime, ao negativo, violento e que instiga as forças vitais.

A partir do século XVIII, principalmente após a difusão dos conceitos kantianos de privilégio do belo
como juízo estético (de gosto ou subjetivo), a obra de arte e a beleza serão objetos essenciais para a
investigação estética.

Na filosofia kantiana, não existe o belo como objeto ou conceito, pois a beleza é simplesmente um
estado mental, sem finalidade ou necessidade de demonstrações, conceitos ou inferências. Seu valor é
medido pela obra de arte, surgindo daí o conceito de juízo de gosto, ou seja, a habilidade de pronunciar
julgamento universal aludindo‑se, porém, a qualquer coisa particular, que é o objeto artístico. Essa
experiência de ideia estética, para Kant, ajusta uma conexão entre dois orbes: ao mesmo tempo em
que estamos presos ao aspecto formal sensível, também experimentamos um juízo mental do mundo
superior das ideias.

A partir daí, segundo Kirchof, “Kant também dá início, ainda que de forma embrionária, a outro
processo: a valorização da metafísica do belo” (KIRCHOF, 2003b, p. 33):

Quando a estética passa a conceder, ao belo, mais importância do que à


percepção, à Retórica e à Poética, incorpora, sub‑repticiamente, em seu
domínio, todos aqueles conceitos metafísicos nos quais a Beleza estava
envolvida durante muitos séculos de platonismo na história da filosofia
ocidental (KIRCHOF, 2003b, p. 33).

Diante disso, podemos verificar que essa disposição da qual Kant abeira‑se, o juízo estético da
moral, se potencializa a partir dos conceitos filosóficos de Schiller, segundo os quais a capacidade da
sensibilidade nos permite a transcendência rumo ao divino.

2.1.3 Schiller

O poeta, filósofo e historiador alemão Friedrich Schiller (1759–1805) apontará, dentre essas faculdades, o
sentimento como responsável por indicar o que é belo ou não, sem laços com a materialidade. Tendo em vista
a beleza não ser oriunda do mundo material, a Estética deixa de fazer parte da sensação, ou seja, do conceito
mais puro de aisthesis (etimologicamente falando), como podemos observar na citação a seguir:
22
ARTE E ESTÉTICA

Schiller é um dos primeiros filósofos a colocar a disciplina estética


sistematicamente sob a aura metafísica em que se encontrava antes o
conceito do belo – e, em parte, já também o conceito da arte – nos sistemas
platônicos, anteriores ao século XVIII (KIRCHOF, 2003b, p. 33).

Sob a perspectiva do autor, a obra de arte será para Schiller o objeto estético ideal para se chegar ao
Supremo, já que ela é, ao mesmo tempo, realidade absoluta e formalidade absoluta, em que a realidade
destrói a matéria original, enquanto a formalidade transforma a forma em fenômeno.

Figura 8 – Friedrich Schiller (1759–1805)

Fonte: Martinson (2005, frontispício).

Observação

O que é Metafísica?

Para Chauí (2000), a metafísica é a investigação filosófica que gira em


torno da pergunta “O que é?”. Este “é” apresenta dois sentidos:

• Significa “existe”, de modo que a pergunta se refere à existência da


realidade, podendo ser transcrita como “o que existe”?

• Significa “natureza própria de alguma coisa”, de modo que a pergunta


se refere à essência da realidade, podendo ser transcrita como “qual é
a essência daquilo que existe?”.

Existência e essência da realidade em seus múltiplos aspectos são,


assim, os temas principais da metafísica, que investiga os fundamentos, as
causas e o ser íntimo de todas as coisas, indagando por que existem e por
que são o que são.

23
Unidade I

Para Schiller, a bela arte é a ferramenta mais eficiente para educar a faculdade da sensibilidade,
capaz de unificar a natureza (matéria) e a moral (forma). Nesse contexto, Schiller, inspirado pela filosofia
kantiana, expôs sua ideias através de uma série de 27 cartas enviadas ao seu protetor, o conde de
Augustenburg, intitulada Briefe über die ästhetische Erziehung dês Menschen (Cartas sobre a educação
estética da humanidade), em 1795, considerada sua obra fundamental.

Comprometido pelas emoções de uma França revolucionária, mas ao mesmo tempo desiludido com
aquilo em que se transformou a Revolução Francesa (violência e sucessivos fracassos de governos em
colocar em prática seus ideais), nas Cartas, Schiller afirma que pela beleza é possível elevar a alma e a
moral do povo, que havia encontrado o momento favorável, mas não era merecedor.

Portanto, educando o povo no sentido de adquirir cultura e instrução, Schiller acreditava que este
nunca se curvaria ao despotismo do Estado, que toda melhoria política deveria partir do enobrecimento
do caráter, como podemos observar na citação a seguir:

Por servir de representante da humanidade pura e objetiva no seio de


seus cidadãos, o Estado terá de observar para com eles a mesma relação
em que estes estão para si mesmos e só poderá honrar‑lhes a humanidade
subjetiva no mesmo grau em que ela estiver elevada à humanidade objetiva.
Se o homem interior é uno consigo, ele salva sua especificidade mesmo
na mais alta universalização do seu comportamento, o Estado será apenas
o intérprete de seu belo instinto, a fórmula mais nítida de sua legislação
interna (SCHILLER, 2002, p. 29).

“Mas como o caráter pode enobrecer‑se sob a influência de uma constituição bárbara?”, perguntou
o filósofo nas “Cartas” (SCHILLER, 2002, p. 49). A resposta seria um instrumento que o Estado não
forneceria nem corromperia: as belas‑artes, território no qual o legislador teria poder de interditar, mas
nunca de nele imperar.

Esse panorama concebido por Schiller, a constituição do Estado Estético, só seria possível, ainda,
àquele que pudesse idealizar a si próprio quando se dedica à arte. Enobrecer‑se é transformar‑se em
homem ideal independente de suas origens. O papel do artista, tendo ele o poder de emocionar e,
portanto, mudar o povo, é de se autovalorizar, projetar seu ego, sem nunca perder o cerne de que sua
finalidade maior visa, principalmente, ao interesse, à verdade universal e à construção da liberdade
política da humanidade.

A proposta de Schiller era que o artista se empenhasse em orientar os destinos estéticos da


sociedade: enobrecendo‑se através da arte, enobreceria toda a humanidade. O filósofo aponta como
exemplo a excelência do músico alemão Ludwig van Beethoven (1770–1827), artista consciente da
sua importância.

24
ARTE E ESTÉTICA

Figura 9 – Ludwig van Beethoven (1770–1827)

Disponível em: https://bit.ly/3nmsK8H. Acesso em: 6 set. 2021.

O que podemos concluir quanto ao estudo da Estética como disciplina filosófica é a falta de unidade
quanto à sua fragmentação semântica e ao seu conceito, tendo em vista a divergência observada, e até
de forma radical, quanto ao modo de compreensão do conceito “Estética” dos pensadores até o século XIX,
como vimos até aqui. Não será diferente quanto ao pensamento contemporâneo a respeito do assunto,
que apresenta ainda divergências em relação à concepção dos termos “beleza” e “arte”.

Diante de tal fragmentação e diferentes pontos de vista, Kirchof adota finalmente a seguinte
concepção sobre nosso objeto de estudo:

De forma sucinta, a estética se define como o domínio que estuda a


“esteticidade”, manifesta pela experiência estética ou, conforme o termo
aqui adotado, a percepção estética. Esta, por sua vez, deve ser definida como
uma relação cognitiva [...], cuja ocorrência investiga‑se a partir de signos
pelos quais se manifesta e pela postura do sujeito cognitivo frente a tais
signos (KIRCHOF, 2003b, p. 24).

Baumgarten sustentou a disciplina estética a partir de quatro princípios: a percepção, o belo, a


obra de arte e a linguagem. Kant retirou a experiência estética do campo da percepção, alocando‑a
sobre o campo do juízo, paradoxalmente investigando‑a a partir da metafísica do belo (tendência
seguida por Schiller).

A partir de então, os filósofos do século XIX privilegiaram o belo e a obra de arte pelo vértice da
metafísica platônica, modificando ou criando seus próprios paradigmas.
25
Unidade I

2.2 Teorias da Arte

O que há em comum entre os afrescos de Michelangelo na Capela Sistina e as obras Pop Art de
Andy Warhol? Quase nada. Se não há semelhanças entre as obras, como podemos enquadrá‑las em
um conceito ou mesmo garantir que são obras de arte? Diante de tanta diversidade artística, como
encontrar uma essência comum a fim de conceituar a arte?

Figura 10 – Michelangelo, A criação de Adão, ca. 1510, afresco, 280 cm x 570 cm, teto da Capela Sistina, Roma, Itália

Figura 11 – Andy Warhol, Brillo Soap Pads Boxes, 1964, acrílico, serigrafia, madeira, Galeria Nacional do Canadá, Ottawa, Canadá

Fonte: Shanes (2005, p. 125).

26
ARTE E ESTÉTICA

As teorias da arte têm por finalidade responder a essas perguntas, e uma das respostas é que não há
essência em comum, mas semelhanças parciais entre uma e outra aplicação da obra. Porém, podemos
observar que qualquer coisa é semelhante a algo, como, por exemplo, o edifício Empire State e um
alfinete. Ambos são fabricados de matéria inorgânica e apresentam formato pontudo, contudo são
similitudes limitadas, do contrário perderiam sua classificação e sua função original.

Figura 12 – Empire State, Nova York

Fonte: Berman (2003, p. 12).

Uma teoria parte da delimitação de semelhanças e, a partir daí, estabelecem‑se paradigmas que versam
uma série de características para a aplicação do conceito e criam‑se regras nas quais se compartilham
infimamente as propriedades do objeto e as do paradigma. Dessa metodologia, supõe‑se que dois
objetos (de Michelangelo e Warhol, por exemplo) possam não ter muitas propriedades em comum, mas
que compartilhem o suficiente para que possam ocupar o mesmo conceito.

Outro modo não necessariamente conflitante com o anterior de conceituar a arte é aplicar
subconceitos que se assemelhem entre si. Mesmo que não encontremos no conceito geral essência
comum entre as aplicações da arte, podemos identificar esses subconceitos individualmente, já que
uma aplicação especificamente analisada pode ser mais fundamental que a outra; como podemos
exemplificar na citação a seguir:

A função do sofá, quando o compramos para a sala de televisão, é de


nos acomodar bem. Esse propósito é atingido se a forma do sofá for
adequada para sentarmos. Quando compramos algo intencionalmente,
nossa percepção é clara. Assim, no exemplo da compra do sofá, qualquer
sofá em boas condições de fabricação tende a ter a mesma finalidade: nos
acomodar de modo confortável. Mas, se estamos atentos à aparência do

27
Unidade I

sofá, à textura, à cor, à forma, ao espaço em que está colocado, se é macio


ou firme, nessas circunstâncias, começamos a perceber as suas qualidades
sensoriais. É, então, que podemos gostar ou não do objeto diante dos
nossos olhos, portanto não será qualquer sofá que irá nos satisfazer.
Nossa percepção nos faz sentir prazer ou desprazer, independente de sua
funcionalidade (BUENO, 2008, p. 18).

Dentro dessas perspectivas, uma teoria da arte pode elucidar a essência comum da arte, bem mais
significante e relevante do que estabelecer regras que limitam a palavra “arte” em uma posição na qual
a procura de uma essência em comum revela‑se uma ilusão.

As teorias mais influentes dedicadas à busca da natureza artística são: o Representacionalismo, o


Formalismo, a Teoria Institucional e a Expressivista, tópicos que vamos expor a seguir.

2.2.1 Representacionalismo

Como vimos anteriormente, Platão e Aristóteles idealizavam a arte como mimese, ou seja, uma
representação naturalista da realidade. O representacionalismo é, dessa maneira, a concepção mais
remota que encontramos sobre a natureza artística.

O representacionalismo seria a imitação da natureza na pintura, assim como da ação humana no


drama. Mas o que podemos concluir sobre o que imita a música instrumental? E a pintura moderna?
Esta tornou a concepção do representacionalismo menos plausível ainda. A técnica denominada
trompe‑l’oeil (expressão francesa que significa “engana o olho”) foi muitas vezes estigmatizada como
sem valor estético. Porém, que juízo podemos aferir aos autorretratos que Rembrandt produziu por toda
sua vida? Obras de arte sem valor estético? Veja:

A) B)

Figura 13 - A) Rembrandt van Rijn, Self-portrait as if shouting, 1630, água-forte e ponta-seca,


7,2 cm x 6,2 cm, coleção particular B) Rembrandt van Rijn, Self-portrait in a cap, wide-eyed and
open-mouthed, 1630, água-forte e ponta-seca, 5 cm x 4,5 cm, coleção particular

28
ARTE E ESTÉTICA

A) B)

Figura 14 - A) Rembrandt van Rijn, Self-portrait with dishevelled hair, 1628, óleo sobre tela, 18,7 cm x 22,6 cm, Rijksmuseum
B) Rembrandt van Rijn, Self-Portrait with Beret and Turned-Up Collar, 1659, óleo sobre tela, 84,4 cm x 66 cm, National Gallery of Art

A ideia de representação, que se associa a tal concepção de arte, induz a


pensarmos que a função da obra é produzir, em um plano distinto, imagens
da natureza, humana ou não. A ideia de que a obra de arte é digna pelo
fato de representar objetos nos leva a requisitar elementos cognitivos em
demasia para a apreciação da arte, inclusive a noção de verdade – em especial, é
claro, a noção da verdade como correspondência (GHIRALDELLI JR., 2010, p. 85).

Podemos, contudo, alertar sobre os perigos da generalização, pois, afinal, a maior parte da pintura,
da literatura e da música erudita não são cópias reais de algo. Outra objeção presente na teoria
representativista é que o critério valorativo da obra falha mesmo quando reproduzida a partir da
imitação real de algo, pois como saber realmente se a imitação é boa ou má? Podemos citar como
exemplo a obra O nascimento de Vênus: teria Botticelli executado com perfeição a imitação de sua
obra‑prima?

29
Unidade I

Figura 15 – Sandro Botticelli, O nascimento de Vênus, 1482, têmpera sobre tela, 172,5 cm x 278,5 cm, Galleria degli Uffizi (detalhe)

O representativismo apresenta ainda uma segunda vertente, considerada a teoria representacional


propriamente dita, a qual concebe a obra de arte como uma representação genuinamente convencional ou
simbólica, sem que necessariamente seja uma tentativa de reproduzir a realidade.

A partir dessa perspectiva, podemos considerar um quadro cubista uma obra de arte, mesmo que
ela reproduza bem pouco a realidade. Mas o que podemos julgar do Expressionismo abstrato de Jackson
Pollock (1912–1956) ou do ready‑made de Marcel Duchamp (1887–1968)? O que simbolizaria a Sétima
sinfonia de Beethoven? Convencionalmente, nada.

Figura 16 – Jackson Pollock, Number 32, 1950, laca sobre tela, 269 cm x 457,5 cm,
Museu Kunstsammlung Nordrhein-Westfalen, Düsseldorf, Alemanha

Fonte: Emmerling (2002, p. 36).

30
ARTE E ESTÉTICA

Figura 17 – Marcel Duchamp, A fonte, 1917, cerâmica, 61 cm x 36 cm x 48 cm, Museu Nacional de Arte Moderna, Paris, França

Disponível em: https://bit.ly/3E73Akg. Acesso em: 10 set. 2021.

Observação

A Fonte é a obra ready‑made mais emblemática de Duchamp. A obra,


feita de um urinol de porcelana, recebeu muitas críticas, mas abriu a
discussão sobre o conceito de arte. Na lateral, há a assinatura “R. Mutt”,
nome do fabricante da peça.

Diante dessas indagações, surgiu o neorepresentacionalismo, uma terceira vertente que não exige
que a obra de arte represente necessariamente alguma coisa, mas que, tecnicamente, apresente um
significado, algum valor semântico.

Se partirmos do pressuposto de que a arte admite interpretação, ela tem, mesmo que sem ser
convencionalmente estabelecido, um conteúdo semântico. Se uma música manifesta um sentimento de
alegria, apesar de não ser um conteúdo semântico, nada nos impede de concluir que a obra musical é
sobre aquele sentimento. Até mesmo a obra que não pretende apresentar alguma interpretação pode,
paradoxalmente, tematizar uma ausência de significado.

A teoria representacional pode ser aplicada a qualquer manifestação artística, porém, apesar de
necessária, acredita‑se ser uma condição insuficiente para identificar a natureza artística, afinal tudo
tem conteúdo semântico, mas nem tudo pode ser considerado arte.
31
Unidade I

2.2.2 Formalismo

A teoria formalista (ou teoria da forma) caracteriza uma obra de arte menos por seu aspecto
representativo e mais pela sua forma significante.

Uma das saídas para a objeção da arte como representação ou cópia é a que
diz que a obra de arte deve perseguir formas. Enquanto o representacionismo
coloca a obra de arte sob o jugo do real e da natureza, o formalismo coloca
que a arte é a busca do melhor balanço entre os elementos da obra de arte
e a conquista da mais harmoniosa presença de uniformidade com variedade
– características da forma, segundo tal escola (GHIRALDELLI JR., 2010, p. 85).

As características da forma significante (termo utilizado pelo crítico inglês Clive Bell, um dos mais
destacados filósofos do formalismo contemporâneo, em 1914, em sua obra Art) resultam da “combinação
particular de linhas, cores, formas e relações entre elas capazes de despertar nossas emoções estéticas
mais profundas” (BUENO, 2007, p. 32). Desse modo, o que definiria uma obra de arte não se encontra
na própria arte, mas no sujeito que a aprecia.

Apesar disso, na teoria da forma significante, há ainda uma essência comum, uma emoção
particular que evoca todas as obras de arte: a emoção estética. Nota‑se que a obra de arte, aqui, não
exprime emoção, mas provoca emoção (caso contrário, estaríamos falando da teoria expressionista,
tema que veremos em breve).

Consideremos os quadros de Piet Mondrian, caracterizados pela harmonização de formas


geométricas e de cores puras. A estética abstrata do artista holandês e sua busca na essência de uma
linguagem plástica objetiva provoca contemplação tal ao ponto de produzir uma emoção estética
àqueles sensíveis à arte.

Figura 18 – Pietro Mondrian, Composition with red, yellow and blue, 1920, óleo sobre tela

32
ARTE E ESTÉTICA

Segundo a teoria da forma significante, a representação e o contexto não seriam relevantes. No


universo artístico, porém, pode ser difícil encontrar obras em que tais elementos não sejam importantes.
Podemos exemplificar a já citada série de autorretratos produzidos por Rembrandt, cujo contexto era
expressar a decadência aferida pelo tempo. Ou, ainda, A Jangada da Medusa, como podemos verificar
na imagem a seguir:

Figura 19 – Théodore Géricault, A jangada da medusa, 1818, óleo sobre tela, 491 cm x 716 cm, Museu do Louvre, Paris, França

Na obra do pintor francês Théodore Géricault (1791‑1824), apesar da importância da composição,


é até mais relevante o que ela representa: um naufrágio inspirado por um fato verídico. O drama e
a esperança são elementos que potencializam nossa sensibilidade, são conteúdos simbólicos que,
adicionados à composição naturalista, resulta numa produção do sentimento estético de grande impacto.

Embora o formalismo tenha a vantagem de incluir todos os tipos de obra de arte, desde que
provoque emoções estéticas, existe ainda na teoria outras objeções além daquela já mencionada. Uma
delas refere‑se ao fato de que nem sempre as pessoas sentem algum tipo de emoção diante de certas
obras. Quer dizer que a obra não pode ser considerada arte? Algumas obras, portanto, são consideradas
arte para uns e não para outros?

O formalismo é acusado de, muitas vezes, “dar vazão ao desinteresse exacerbado e fazer da obra
de arte mera peça decorativa” (GHIRALDELLI JR., 2010, p. 85), além de não explicar convincentemente
qual a combinação de formas significativas que emana de todas as obras de arte e que definem sua
“forma significativa”.

2.2.3 Teoria institucional

A teoria institucional da arte foi sustentada pelo filósofo norte‑americano George Dickie na década
de 1960. Pregava uma instituição de conjuntos preliminares que conferiria à obra de arte esse status,
analisada por uma comunidade capacitada do mundo das artes denominada “art world”.
33
Unidade I

Dessa maneira, para o institucionalismo, a obra de arte é qualquer manifestação que o art world
tenha assim designado.

Um fato que pode servir de exemplo são as obras de Alfred Wallis, marinheiro que, aos 70 anos,
após a morte da esposa, decidiu pintar temas marítimos. Dois pintores de passagem pela Cornualha,
Inglaterra, gostaram do trabalho de Wallis e o inseriram no establishment da arte. Atualmente seus
quadros podem ser vistos em muitos museus ingleses.

Figura 20 – Alfred Wallis, The blue ship, 1934, óleo sobre madeira, 438 cm x 559 cm

A teoria institucional traz, a partir daí, várias críticas aos critérios que definem quem pode agir
em nome do art world. Outra objeção ainda é entender quais as bases utilizadas para considerar
uma obra como sendo de arte, com razões ou arbitrariamente. Se as razões são embasadas, então,
são razões que constituem qualquer outra teoria da arte, como, por exemplo, definir uma obra que apresente
uma combinação particular de linhas, cores, formas e relações entre elas. Nesse caso, estaríamos
inseridos na teoria formalista. Se as obras de Wallis fossem ainda fundamentadas pela sua representação
significativa e pelo seu valor semântico, aí, então, estaríamos falando da teoria representacional.

2.2.4 Teoria expressivista

Segundo Ghiraldelli Jr., “o formalismo não é tão popular quanto o representacionismo e quanto a
ideia de arte como expressão. A teoria da arte como expressão, faz algum tempo, conquistou o senso
comum” (GHIRALDELLI JR., 2010, p. 85).

A teoria expressivista, ou da arte como expressão, concede ao artista o papel de compreensão da


arte – pois esta é expressão de emoções e sentimentos – tomando‑a como autoexpressão. Em relação
à teoria expressionista, embora ela já esteja presente na Poética, de Aristóteles, foi o filósofo inglês
R. G. Collingwood (1889‑1943), em seu livro The principles of arts, que desenvolveu um pacto especial
entre a obra de arte e o artista, concepção que, além de resolver problemas de outras concepções, era
inédita até então. Ele foi capaz de concluir que, quando uma pessoa expressa suas emoções o suficiente
para transmiti‑las aos demais, essa pessoa criou uma obra de arte.

34
ARTE E ESTÉTICA

O interesse das questões estéticas de R.G. Collingwood foi um dos mais persistentes ao longo de
toda a sua obra, sendo referência obrigatória nas décadas de 1960–1970.

Diferente das teorias representacionista e formalista, que apontam a arte apenas para o lado exterior,
Collingwood coloca o artista como ponto central da valorização e da questão do que é e do que não é
arte, distinguindo ainda a “arte em si” ou “arte própria” (artproper), a verdadeira arte, da má arte, e ainda
da falsa arte (so‑called), aquela que é conceituada como obra de arte sem sê‑la, e que se encontra a
serviço da corrupção da consciência. Para diferenciar uma obra de arte de outros tantos objetos de arte
como o artesanato (craft), dever‑se‑ia levar em consideração a finalidade para a qual foi concebida, sua
funcionalidade material ou sua dedicação à contemplação artística. A arte, para Collingwood, é também
uma prática contemplativa e altruísta que está intrinsecamente ligada à atitude estética (1974).

A arte so‑called, ou aquela “assim chamada”, para Collingwood, é dividida em dois tipos: a arte
mágica e a arte entretenimento. A arte como mágica teria um papel utilitário, como um hino que
instiga o sentimento patriótico. Já a arte como entretenimento remeteria ao hedonismo, pela busca sem
limites ao que proporciona prazer e, apesar de também ter seu lugar, uma sociedade na qual se buscasse
somente a diversão seria é decadente e inferior (1974).

O artista, segundo a teoria expressivista, não tem a emoção estética antes de produzir, sente apenas
uma espécie de excitação inicial e inexplicável, a qual será reconhecida, definida e refinada conforme
sua imaginação e produção forem sendo colocadas em prática. A partir daí, e conforme vão sendo estas
emoções clarificadas, o público as reconhece e será capaz de apreciar a arte.

A Guernica de Picasso é um exemplo de como as emoções estéticas sofrem mutações. Motivado pelo
bombardeio de Guernica pelos nazistas em 1937, durante a Guerra Civil Espanhola, Picasso expressou
suas emoções e revolta no famoso painel.

Figura 21 – A cidade de Guernica, após o bombardeio de 1937

Fonte: Preston (2012, frontispício).

35
Unidade I

Contudo, essas emoções brutas advindas, por exemplo, da leitura de um jornal sobre o bombardeio,
foram sendo transformadas no público e no próprio artista em emoções estéticas, muito mais elevadas,
ampliando a consciência. Essa teoria pode ser sintetizada da seguinte forma:

Imaginação

Sentimento Obra de arte Reconhecimento


inexplicável do (expressão de emoções dos sentimentos
artista sendo colocadas em prática) pelo público

Emoções estéticas
ampliação da
consciência

Figura 22

Nesse contexto, tão importante quanto as emoções expressas no ato criativo, para Collingwood (1974),
o é também a imaginação originária desse processo, e é por ela que o artista depura os seus sentimentos
e os pronuncia, enquanto o público decifra e compreende as emoções expressas na obra de arte.
O resultado é a alteração das emoções em ambos os lados, ou seja, a capacidade de entender seus
próprios sentimentos, ampliando e restabelecendo sua consciência e autoconhecimento.

A função da arte, segundo o Expressionismo, encontra‑se nessa ampliação e restabelecimento da


consciência, como descreve Collingwood:

Conhecer a nós mesmos é a fundação de toda a vida que se desenvolve


além do nível de experiência meramente física. Uma consciência verdadeira
dá ao intelecto uma fundação firme; uma consciência corrompida força o
intelecto a construir sobre areia movediça (COLLINGWOOD, 1974, p. 284).

Um ponto de indagação reporta à teoria de Collingwood no sentido de como caracterizar e distinguir


a emoção estética das emoções comuns. Outra questão seria de que maneira essa funcionalidade é
capaz de impedir a corrupção da consciência.

A resposta a essas questões está, primeiramente, no fato de as emoções estéticas terem um


componente de universalidade, que se eleva além das emoções comuns. Essa transcendência visa a
atingir objetos os quais não supostamente representa, mas com os quais pode estar associada.

Apontemos novamente a Guernica para servir de exemplo: as emoções que transcendem a obra de
Picasso se associam a vários outros sentimentos que surgem após chacinas de inocentes. Podemos ainda
citar o músico Beethoven e sua Nona Sinfonia, composta em 1821‑24 a partir de um poema de Schiller,
a Ode à alegria.

36
ARTE E ESTÉTICA

Nessa nova sinfonia, centralizada na Ode à Alegria de Schiller, Beethoven


queria deixar um monumento público dos seis sentimentos liberais para
a posteridade. Sua decisão de elaborar uma grande obra para transmitir a
visão utópica do poeta sobre a irmandade humana é uma declaração de
apoio aos princípios de democracia, numa época em que a ação política
direta, em relação a esses princípios, era difícil e perigosa (LOCKWOOD,
2005, p. 476).

A Nona Sinfonia teve o mais variado espectro de interpretações, focadas principalmente no contexto
poético de Schiller. Com a mensagem final de fraternidade, a música tornou‑se naturalmente símbolo
de eventos políticos que celebraram a liberdade (como em 25 de dezembro de 1989, na ocasião do
concerto regido por Bernstein em comemoração à queda do Muro de Berlim), mas também preferida
do regime nazista entre 1933 e 1945 (apesar de a mensagem dificilmente se enquadrar na doutrina de
superioridade ariana).

Apesar de possuir o poema como objeto próprio (“Alegria, bela centelha divina”), a “Nona”
pode ser associada, portanto, não somente à síntese do otimismo schilleriano de liberdade e
alegria, mas também a qualquer carga afetiva política, patriótica, religiosa, de tristeza, de ira etc.
Essa associação com outras representações corrobora a teoria da maior intensidade das emoções
estéticas, já que é capaz de favorecer a ordenação dos conteúdos mentais e, consequentemente,
de ampliar a consciência humana.

Uma forte objeção a essa teoria é a de que ela é restrita, paroquial, e não
forneceria um conceito de arte propriamente dito, apenas uma qualificação
de certos aspectos da obra de arte. Ela, a obra, como meio de tornar visível o
“eu interior” do artista, determinaria toda a arte como delimitada por visões
restritas à intimidade de cada um (GHIRALDELLI JR., 2010, p. 86).

Para entender a posição de Collingwood de forma muito sumária e captar a ideia geral sobre os
princípios da arte, a arte é uma religião, salvadora, ou seja, entidade muito alta, que é capaz de mover a
espiritualidade do mundo e do artista, que é um gênio‑profeta manifestando a verdade através de seu
trabalho. Segundo o filósofo, o trabalho do artista, assim como a arte, eleva espiritualmente a sociedade:
“A arte é a medicina comunitária para a pior doença de mente, que é a corrupção da consciência”
(COLLINGWOOD, 1974, p. 336).

3 A ESTÉTICA MODERNA

O Impressionismo, porta de entrada da Arte Moderna, e a ascensão da abstração trouxeram grande


impacto estético ao longo do século XX. Os movimentos de vanguarda e o Cubismo tiveram papel
fundamental nas influências artísticas, subvertendo os impulsos realistas e trazendo liberdade estética
na capacidade imaginativa do artista e do público.

37
Unidade I

3.1 Do realismo à abstração

Eu não entendo as pessoas que falam sobre Beleza. O que é Beleza? Na


pintura você tem que falar sobre problemas! Pinturas são nada além de
pesquisa e experiência. Nunca pintei um quadro como uma obra de arte.
Tudo é pesquisa. Eu continuo pesquisando, e nesta investigação constante
há um desenvolvimento lógico (PICASSO, 2006, p. 66, tradução nossa).

Após a Revolução Industrial, houve uma rápida ascensão da modernidade, rompendo com o realismo
que ainda dominava as camadas da sociedade.

O ritmo acelerado da crescente urbanização e o surgimento de novas camadas da sociedade também


se refletem no âmbito artístico, na tentativa de promover mais sensibilidade e resgatar o que havia se
perdido em meio ao aglomerado de máquinas.

Dentro desse universo de revolução em todos os âmbitos da sociedade, a invenção da fotografia seria
outro fator determinante na mudança da estética, principalmente no movimento artístico impressionista
pois, ao em vez de rivalizar com a pintura como muitos declamaram, ela auxiliou diretamente a obra
de alguns artistas, como Degas, para quem a fotografia contribuiu com a descoberta e a fascinação de
cenas e ângulos inesperados, como podemos observar nas imagens a seguir:

Figura 23 – Edgar Degas, O absinto, 1876, óleo sobre tela, 92 cm x 68 cm,


Museu de Orsay, Paris, França

38
ARTE E ESTÉTICA

Figura 24 – Claude Monet, A canoa sobre o Epte, 1890, óleo sobre tela, 133 cm x 146 cm,
Museu de Arte de São Paulo, São Paulo, Brasil

Para Ernst H. Gombrich, um dos mais reconhecidos historiadores e teóricos das artes plásticas e
visuais contemporâneos, a fotografia assumiu a função da arte pictórica, na qual só “[...] o pintor podia
derrotar a natureza transitória das coisas e preservar o aspecto de qualquer objeto para a posteridade”
(GOMBRICH, 1988, p. 416). Isso causou um golpe na posição da maioria dos artistas, conflito não ocorrido
com o movimento impressionista.

Antes dessa invenção, era muito comum que, ao longo de suas vidas, as pessoas posassem ao menos
uma vez para seu retrato. A partir da invenção da fotografia, entretanto, se sujeitar a horas posando
para um pintor passou a ser cada vez mais raro.

Assim sendo, os artistas viram‑se cada vez mais compelidos a explorar regiões em que a fotografia
não podia acompanhá‑los. De fato, a Arte Moderna dificilmente se converteria no que é sem o impacto
dessa invenção (GOMBRICH, 1988, p. 416).

O fato é que o impacto causado pela fotografia na intelectualidade europeia tomou proporções
nunca antes vistas. Três gerações após o advento da fotografia, alguns pintores abandonaram o
retratismo e passaram à abstração, e outros abriram seus ateliers fotográficos, primeiramente como
atividade paralela e, logo depois, como atividade exclusiva.

Neste ínterim, o Impressionismo surgiu como primeiro movimento artístico a sofrer as influências
que a fotografia começava a proporcionar no âmbito cultural e, mais tarde, nos movimentos de
vanguarda, à medida que artistas introduziram algo novo quanto à percepção visual além das novas
experiências com a própria linguagem estética.

Veremos a seguir os movimentos de vanguarda que influenciaram a estética na história da Arte.

39
Unidade I

Nota‑se que o avanço acontece gradualmente, com Delacroix, nos anos de 1830, no uso das cores e
movimentos; com Courbet nos anos de 1840, com o tema e com Manet, nos anos de 1850, na alteração
da luminosidade e da forma, para citar alguns exemplos.

Figura 25 – Gustave Courbet, Les Demoiselles des bords de la Seine (été), 1857,
óleo sobre tela, 174 cm x 206 cm, Museu Petit Palais, Paris, França

Figura 26 – Édouard Manet, Música nas Tulherias, 1862,


óleo sobre tela, 76,2 cm x 118,1 cm, National Gallery, Londres, Inglaterra

40
ARTE E ESTÉTICA

Observação

A vida urbana parisiense, a sociedade educada e elegante, retratadas


com naturalidade e delicadeza, as personagens extraídas do cotidiano
vão se diluindo ao fundo em contornos menos incisivos. Manet liderou a
criação do “Salão dos Recusados” (pela pintura oficial), abrindo caminho
para os impressionistas.

O movimento impressionista foi, portanto, a porta de entrada para a experimentação que tomaria
conta do cenário artístico do século XX. Seus maiores expoentes foram Renoir, Monet e Degas.

Muitos artistas impressionistas buscaram espaços diferenciados em suas experimentações sensoriais,


como fizeram principalmente os pintores Renoir e Monet. Observavam espaços urbanos e elementos
naturais cotidianos na vida dos parisienses, além de estudarem as nuances temporais do ambiente,
repetindo inúmeras vezes a incidência da luz natural e as alterações cromáticas dos diferentes horários,
criando a técnica chamada “séries” de pinturas, como esclarece Canton:

O Impressionismo tem a ver com a atitude de pintar as impressões, e não


a realidade que se vê. Os artistas impressionistas não se preocupavam com
o que pintar, mas, sim, com como pintar. Em sua maioria, pintavam cenas
de ruas, edifícios, paisagens, flores. O francês Claude Monet (1840‑1926) é
considerado o mais impressionista desses pintores. Ele usava pinceladas soltas,
captando brilho e luz em diferentes horários do dia (CANTON, 2006, p. 32).

Figura 27 – Claude Monet, Rouen Cathedral, full sunlight, 1894, Figura 28 – Claude Monet, Rouen Cathedral, red, 1894, óleo sobre
óleo sobre tela, 107 cm x 73,5 cm, Museu de Orsay, Paris, França tela, 390 cm x 600 cm, Museu Nacional da Sérvia, Belgrado, Sérvia

41
Unidade I

Figura 29 – Pierre-Auguste Renoir, O almoço dos remadores, 1881,


óleo sobre tela, 129,9 cm x 172,7 cm, Coleção Phillips, Washington D.C., EUA

Dentro desse contexto, a fotografia era considerada a tradução fiel da representação, um relato
visual de tamanha exatidão que quase sugeria um exagero de detalhe. O fotógrafo, porém, tem a capacidade
de controlar a natureza da câmera, manipulando‑a tanto técnica quanto esteticamente, e é esse o
motivo pelo qual se encadeia ao interesse pela abstração.

Enquanto a representação é o instrumento mais eficaz da mensagem visual, o estado abstrato, por
sua vez, é o essencial.

É extremamente útil no processo de exploração descompromissada de um


problema e no desenvolvimento de opções e soluções visíveis. A natureza da
abstração libera o visualizador das exigências de representar a solução final e
consumada, permitindo, assim, que aflorem à superfície as forças estruturais
e subjacentes dos problemas compositivos, que apareçam os elementos
visuais puros e que as técnicas sejam aplicadas através da experimentação
direta (DONDIS, 1997, p. 103).

Nossa percepção é capaz de suprir pormenores da mensagem estética, como uma ação que, por
meio de outra ação, tende a anular a precedente estabelecendo o equilíbrio e outras ações decorrentes
de motivos racionais como o emprego de métodos planejados.

Mas a abstração é muito mais respeitável que isso para o significado. Enquanto a abstração pura
manifesta‑se pela redução da mensagem até a mínima informação representacional, ela também se
manifesta desconstituída de qualquer vínculo com os dados visuais manifestos, sejam eles quais forem.
O ato da abstração é decisivo, repleto de caluniosos inícios. Busca‑se a pureza dos elementos básicos e
a liberdade da expressão, qualidades não oriundas da câmera fotográfica – afinal, “[...] por que competir
com ela?” (DONDIS, 1997, p. 104).

42
ARTE E ESTÉTICA

A abstração não carece necessariamente de ter alguma analogia com o desenvolvimento de


símbolos quando estes são construídos pela imposição de haver significado. Ao reduzirmos a mensagem
visual pelos elementos básicos, também desenvolvemos um processo de abstração e observamos uma
estratégia importante na compreensão da estrutura da mensagem.

Quanto mais representacional for a informação visual, mais específica será sua referência; quanto
mais abstrata, mais geral e abrangente. Em termos visuais, a abstração é uma simplificação que busca
um significado mais intenso e condensado (DONDIS, 1997, p. 95).

A partir do século XX, as tendências estéticas foram em busca da forma ideal. “Em termos visuais, a
abstração é uma simplificação que busca um significado mais intenso e condensado” (DONDIS, 1997,
p. 95). Como consequências dessa inquietação, surgiram várias tendências que se sobrepuseram à
racionalidade da abstração sobre a emotividade do Impressionismo: Surrealismo, Cubismo, Fauvismo,
Construtivismo, Futurismo, Expressionismo e Dadaísmo são alguns exemplos do novo lugar da estética
na primeira metade do século XX.

O rompimento da tradição acadêmica pelas abstrações artísticas tem seu auge com o surgimento
da Arte Moderna, tornando a discussão sobre o inconsciente e “morte” da arte cada vez mais frequente.
A psicanálise de Freud, apontando para a descoberta do inconsciente, revoluciona a concepção do
homem, marcada até então pela filosofia cartesiana. Dessa forma, o artista se libertava do retratismo
visível e dava asas às suas realidades psíquicas pelo formalismo em detrimento do tema.

3.2 Os movimentos de vanguarda

Após a Revolução Industrial, a desigualdade social começou a fazer parte do processo na Europa,
onde figurava a elite de um lado, a massa de operários excluídos de outro e o avanço no processo
burguês‑industrial na disputa de domínio de mercado. Nesse clima de euforia e insatisfação, a classe
artística começou a introduzir novas experiências com a linguagem estética, que representavam um
anseio de oposição social. Esses artistas foram denominados “vanguardistas” e tiveram papel fundamental
nas influências artísticas ao longo do século XX.

O termo “vanguarda”, do francês avant‑garde (marcha na frente), designa originalmente as tropas


de frente no campo de batalha. No decorrer do século XIX, a palavra foi metaforizada, como explica
Lúcia Helena em Movimentos da vanguarda europeia:

Significa o movimento artístico que “marcha na frente”, anunciando a criação de


um novo tipo de arte. Esta denominação tem também uma significação militar
(a tropa que marcha na dianteira para atacar primeiro), que bem demonstra o
caráter combativo das “vanguardas”, dispostas a lutar agressivamente em prol
da abertura de novos caminhos artísticos (HELENA, 1993, p. 8).

Dessa forma, o movimento de vanguarda representa o que o próprio nome diz: uma batalha avançada
com o propósito de abrir novos caminhos para o futuro. A expressão, primeiramente aplicada no contexto
político e de progresso social, foi se deslocando à posição reacionária de autonomia da arte, marcada pelo
43
Unidade I

protesto realizado em 1863, em Paris, por artistas recusados no Salão de Paris por serem considerados,
pelos membros da Real Academia Francesa de Pintura e Escultura Francesa (uma divisão da Academia de
Belas Artes), “não acadêmicos”. Na ocasião, Édouard Manet teve seu quadro, Almoço na relva, considerado
insolente e erótico, ainda mais por ter retratado pessoas conhecidas da sociedade parisiense.

Figura 30 – Édouard Manet, Almoço na relva, 1863,


óleo sobre tela, 208 cm x 264,5 cm, Museu de Orsay, Paris, França

O protesto, encabeçado por Manet, que gozava de grande prestígio nos meios mais avançados, teve
apoio dos impressionistas, intelectuais, escritores e admiradores e resultou em uma exposição paralela
autorizada pelo imperador Napoleão III no Salón des Refusés (Salão dos Recusados) em resposta às
fortes declarações dos artistas recusados em relação à falta de democracia e transparência na seleção.
A mostra acabou atraindo grande público, disposto a ridicularizar as obras dos recusados, nos anos
posteriores, contudo, esse público mudou seu ponto de vista e o salão passou a ser forte concorrente ao
salão oficial da academia.

Após esse polêmico episódio considerado marco do surgimento da Arte Moderna, vários artistas
começaram a expor seus quadros individualmente, principalmente os impressionistas. O termo “vanguarda”
se estendeu aos movimentos que foram se formando na Europa e passou a representar uma nova estética
da arte, caracterizada pela experimentação voltada à individualidade e subjetividade do artista e pela
ruptura das linhas éticas e estéticas que regiam as normas e linguagens artísticas da época.

Dentre os movimentos vanguardistas que se formaram a partir de então, destacam‑se o Expressionismo,


o Cubismo, o Surrealismo, o Dadaísmo e o Futurismo, tópicos que veremos a seguir.

44
ARTE E ESTÉTICA

Observação

O Salão de Paris

Exposição de arte oficial da Academia de Belas Artes de Paris, fundada


em 1667, e organizada anualmente, e depois bienalmente, no Salón
Carré do Museu do Louvre. Os jurados, cada vez mais academistas e
conservadores, pouco abertos a novos artistas e a novas linguagens, se
mostravam menos receptivos ainda aos impressionistas, recusando cada
vez mais obras a cada mostra.

O governo francês retirou o patrocínio oficial do Salão de Paris em


1881, que passou a ser organizado por um grupo denominado “Sociedade
dos Artistas Franceses” e que propunha a exposição de artistas jovens
não premiados. Desde então, o Salão de Paris foi perdendo seu prestígio
na França.

3.2.1 O Cubismo

A forma vem resgatar, com a Arte Moderna, a solidez que o Impressionismo dissolvera em luz,
tornando‑a expressiva e impactante, propensa a experimentações. Foi com o movimento cubista que a
Arte Moderna chegou ao seu auge, modificando completamente as noções de estética.

Fernand Léger (1881‑1955), representante do Cubismo francês, resume o aparecimento da Arte


Moderna da seguinte maneira:

[...] Toda obra pictórica deve comportar esse valor momentâneo e eterno,
que é responsável por sua duração fora da época de criação. Se a impressão
pictórica mudou, é porque a vida moderna tornou‑a necessária. A existência
dos homens criadores modernos é muito mais condensada e mais complicada
do que a das pessoas dos séculos precedentes. A coisa representada por
imagem fica menos fixa, o objeto em si mesmo se expõe menos do que antes.
Uma paisagem atravessada e rasgada por um automóvel, ou por um trem,
perde em valor descritivo, mas ganha em valor sintético; a janela dos vagões
ou o vidro do automóvel, conjugados à velocidade adquirida, mudaram o
aspecto habitual das coisas. O homem moderno registra cem vezes mais
impressões do que o artista do século XVIII; a tal ponto, por exemplo, que
nossa linguagem está cheia de diminutivos e de abreviações. A condensação
do quadro moderno, sua variedade, sua ruptura das formas, é a resultante
de tudo isso (LÉGER, 1989, p. 29‑30).

45
Unidade I

Figura 31 – Fernand Leger, Contrastes de formes, 1913, óleo sobre tela,


46 cm x 55 cm, Museu Nacional Fernand Leger, Biot, França

Fonte: Lanchner e Léger (2010, p. 4).

A arte de Picasso é um bom exemplo disso. Uma exposição de arte africana, em 1905, causou‑lhe
tamanha impressão que ele procurou retratá‑la em suas pinturas, tornando-se referência para outros
artistas do Modernismo. A simplicidade das formas e predominância de cores terrosas, principalmente
das máscaras sagradas, podem ser notadas na fase da obra de Picasso denominada por alguns
estudiosos de protocubismo.

A) B)

Figura 32 – A) Máscara africana do Congo, Museu Barbier Mueller, Genebra; B) Pablo Picasso, Les demoiselles d’Avignon
(detalhe), 1907, óleo sobre tela, 243,9 cm x 233,7 cm, Museu de Arte Moderna, Nova York, EUA

A) Disponível em: https://bit.ly/3jUdpKj. Acesso em: 8 set. 2021.


B) Disponível em: https://bit.ly/3yQyqcR. Acesso em: 8 set. 2021.

46
ARTE E ESTÉTICA

No Cubismo, a espontaneidade evidencia a preocupação do artista somente com o necessário,


desvinculado do realismo da representação e destacando o aspecto conceitual a fim de acender
sentimentos e emoções no espectador. Segundo Gombrich, essas obras “possuíam precisamente o que a
arte europeia parecia ter perdido nessa longa busca – expressividade intensa, clareza de estrutura e uma
simplicidade linear na técnica” (GOMBRICH, 1988, p. 563).

A forma ganha novo impulso com o Cubismo. Sua característica marcante é


apresentar o objeto significante sob vários ângulos. Apresenta nos seus traços
a frente e as costas, o que está dentro e fora, o acima e o abaixo, com o
objetivo de desmistificar a ilusão da perspectiva linear, para uma representação
simultânea da totalidade do objeto representado (SILVA, 2005, p. 54‑55).

A Arte Moderna foi um processo gradativo quanto às suas características. O pintor francês Paul
Cézanne (1839–1906), por exemplo, foi se distanciando do Impressionismo e sua arte já esboçava o
bastante para que ele fosse considerado por alguns estudiosos como o “pai da modernidade”:

Figura 33 – Paul Cézanne, Les grandes baigneuses, 1898-1905,


óleo sobre tela, 210,5 cm x 250,8 cm, Museu de Arte da Filadélfia, Filadélfia, EUA

Diante de Les grandes baigneuses, verificam‑se características como contrastes, hachuras e pinceladas
diagonais encurtadas que, por sinal, por assemelharem‑se a cubos, aludem ao nome do movimento.
As faces esquematizadas dos corpos femininos e a peculiaridade das formas “cubificadas” e sem detalhes
serviram de inspiração à obra de Picasso.

Junto ao francês Georges Braque (1882–1963), Pablo Picasso, artista plástico espanhol (1881‑1973),
foi um dos maiores expoentes da escola de pintura abstrata, em voga no século XX. Os abstracionistas
se distanciavam cada vez mais do mundo real, aproximando o espectador de elementos que criavam
uma relação de significados. Em Woman with a guitar, Braque introduziu letras, partituras e cordas para
aludir à ideia de um instrumento musical. Percebe‑se a guitarra e a pessoa a partir de traços; e pelos
olhos fechados da mulher, a sensação de satisfação e prazer. Nesse contexto, podemos entender que

47
Unidade I

o jogo de associações criado pelo artista através de simbologias e elementos do mundo reconhecido
aproxima o observador da linguagem do artista, facilitando, de alguma forma, a compreensão da obra.

Figura 34 – Georges Braque, La femme à la guitare, 1913, carvão,


óleo e tela, 130 cm x 73 cm, Centro Georges Pompidou, Paris, França

Disponível em: https://bit.ly/3CdWIzV. Acesso em: 10 set. 2021.

O estilo de Picasso, por sua vez, caminhou por várias vertentes da linguagem plástica, do Expressionismo
ao clássico, bem como do semiabstrato ao abstrato.

Figura 35 – Pablo Picasso, Le repas frugal, 1904, gravura em papel, 46,5 cm x 37,6 cm, Museu de Arte Moderna, Nova York, EUA

Fonte: Dondis (1997, p. 96).

48
ARTE E ESTÉTICA

Figura 36 – Pablo Picasso, Le moulin de la Galette, 1900, óleo sobre tela, 90,2 cm x 117 cm,
Museu Solomon R. Guggenheim, Nova York, EUA

Fonte: Calosse (2011, p. 7).

Figura 37 – Pablo Picasso, Yo, Picasso, 1901, óleo sobre tela, 73,5 cm x 60,5 cm, coleção particular

Fonte: Calosse (2011, p. 8).

49
Unidade I

Figura 38 – Pablo Picasso, Femme à la mandoline, 1909, óleo sobre tela, 92 cm x 73 cm, Museu Hermitage, São Petersburgo, Rússia

Fonte: Calosse (2011, p. 55).

Picasso alterou os fatores visuais para destacar a cor e a luz, não obstante tenha cultivado o realismo
e a tendência realista. Sempre inclinado à devoção pela informação representacional, se dedicou ao
divinismo da figura humana que, mesmo na fase mais clássica, era visível por meio de seus traços
levemente exagerados.

As grandes liberdades que tomou com a realidade resultaram, primeiro,


em efeitos extremamente manipulados, e, por fim, no completo abandono
do conhecido, em favor do espaço e do tom, da cor e da textura. Assim,
este último estilo visual estava apenas preocupado com questões de
composição e com a essência do design. Nesse avanço que o levou da
preocupação com a observação e do registro do mundo circundante a
experimentos com a essência mesma da criação de mensagens visuais
elementares, o desenvolvimento da obra de Picasso seguiu por um caminho
não necessariamente sequencial, mas que percorreu etapas diferentes do
mesmo processo (DONDIS, 1997, p. 98).

50
ARTE E ESTÉTICA

O percurso de Picasso pode ser distinguido mais facilmente se o compararmos à evolução artística do
neoclássico inglês J. M. W. Turner (1775–1851). Quando jovem, Turner tinha como característica artística
sua dedicação à detalhada sutileza de suas pinceladas, sendo detentor de uma técnica representacional
extraordinária. Buscou, ainda, nessa fase, preservar sua época na maioria de seus temas.

Porém, com o tempo, a obra de Turner foi adquirindo uma insinuação incerta e questionadora da
realidade, até atingir, finalmente, características quase que completamente abstratas, com predominância
de formas quase sempre ausentes de rastros visuais, como elucidamos nas imagens a seguir:

Figura 39 – William Turner, Folly Bridge and Bacon’s Tower, 1787, aquarela sobre papel, 32,5 cm x 44,5 cm, Coleção Tate, Inglaterra

Figura 40 – William Turner, The wreck of a transport ship, 1810, óleo sobre tela, 241 cm x 173 cm

51
Unidade I

Figura 41 – William Turner, Venice: the mouth of the Grand Canal, 1840, aquarela, 22,2 cm x 31,8 cm,
Yale Center for British Art, Connecticut, EUA

O movimento cubista trouxe muitas críticas quanto a sua natureza estética disforme, manifestando‑se
pela falta de compreensão diante da nova linguagem. No entanto, as contribuições para a história, a
partir das direções estéticas tomadas após o Cubismo, consagraram ao movimento importância análoga
à do Renascimento.

O movimento cubista não apenas rompeu com o comportamento do plano


tridimensional da pintura mas, sobretudo, resgatou sua forma bidimensional,
mostrando o objeto sob vários ângulos, simultaneamente, determinando forte
influência no desenho da página impressa (SILVA, 2005, p. 55).

O movimento não se extinguiu, mesmo tendo sua expansão interrompida durante a Primeira
Grande Guerra, abrindo campo para novas experiências estéticas e evoluindo em direção a outras
manifestações artísticas e de aspectos comerciais como, por exemplo, o design publicitário que
predominou durante toda a década de 1920. Isso corrobora o fato de que o Cubismo concebeu
mais que uma nova linguagem, tendo em vista a nova estética sugerir a construção das imagens
redesenhadas para um conceito que imitasse menos a realidade.

Lembrete

O que é iconografia?

O significado etimológico da palavra “iconografia” provém do grego


eikon, que significa “imagem”, e graphia, que significa “escrita”, ou seja,
“escrita da imagem”. Por outro lado, iconologia, cujo prefixo é o mesmo, difere
pelo significado do sufixo logia, logos ou pensamento, ou seja, “pensamento
da imagem”, que indica a ideia de análise em sentido mais profundo.

Apesar das tensas circunstâncias iniciais, o moderno se estabeleceu e transformou a cultura. Essa
resistência ao novo, aliás, se manifesta sempre que algo vem de encontro ao pensamento tradicional.
52
ARTE E ESTÉTICA

3.2.2 O Expressionismo

No início do século XIX, surgiu o movimento expressionista como resposta à estética impressionista
a qual propagava que o objetivo do artista era a materialização de suas expressões emocionais, e não
da forma e da luz.

Com força mais evidente na Alemanha, caracterizou‑se pela agressividade de expor os traços sociais
da realidade, em uma crítica à burguesia vigente e aos interesses econômicos em detrimento dos valores
humanos. Os maiores representantes do Expressionismo foram Vincent Van Gogh, Paul Klee, Pablo
Picasso, Wassily Kandinsky e Edvard Munch. No Brasil, seus maiores ícones foram Cândido Portinari e
Anita Malfatti nas artes plásticas, e Nelson Rodrigues no campo teatral.

Figura 42 – Paul Klee, Warning of the ships, 1917

Saiba mais
Para melhor compreensão das obras do artista Paul Klee e do
movimento da arte abstrata, pesquise imagens, conteúdo e bibliografia
no site a seguir:
Disponível em: http://www.tate.org.uk/. Acesso em: 10 set. 2021.

3.2.3 O Surrealismo

O Surrealismo foi um movimento de vanguarda que surgiu na França em 1924, no período entre as
guerras mundiais e com base na experiência de outros movimentos, tais como: Futurismo, Cubismo e,
principalmente, Dadaísmo e Expressionismo.

53
Unidade I

O Manifesto do Surrealismo, idealizado por seu precursor, o escritor francês André Breton
(1896–1966), fundou sua ação na construção de uma utopia de sociedade livre e influenciada
pelos ideais freudianos do inconsciente como forma de liberdade de associação das ideias. Para o
movimento, o instinto era uma das fases da criação, necessária na busca de um caminho de acesso ao
profundo psiquismo humano. A partir daí, seria possível encontrar a imaginação e fundi‑la à razão.

Freud se interessava pelo sonho e pela livre associação de maneira


bem diferente da de Breton e a incompreensão mútua foi grande. Ela
se baseia no fato de [que] os elementos do sonho não oferecem, para
a Psicanálise, interesse em si mesmos, mas em um contexto, que é
constituído, ao mesmo tempo, pelas circunstâncias da vida e pelas
associações que o paciente fará a respeito deles. O Surrealismo, ao
contrário, corta, isola esses elementos do processo de sua produção e
de sua interpretação, e os dá a ler ou a ver tais como se apresentam
(COMPAGNON, 1996, p. 73).

O Surrealismo explorou o reverso da lógica como verdade estética no cinema, nas artes plásticas e
nas letras, tendo como maiores representantes André Breton, Louis Aragon, Joan Miró e Salvador Dalí.

Figura 43 – Salvador Dalí, A mão de Dalí retirando um velo de ouro em forma de nuvem para mostrar à Gala a Aurora Nua,
muito, muito longe por trás do Sol, 1977, óleo sobre tela, 197,5 cm x 138 cm, Fundação Gala-Salvador Dalí, Girona, Espanha

Fonte: Moorhouse (1990, p. 109).

54
ARTE E ESTÉTICA

Observação

Um exemplo que deu outra perspectiva à pintura representacional,


transgredindo a tradição com aptidão e mérito ao encontrar soluções visuais
pela livre experimentação, a pintura hiper‑realista do catalão Salvador Dalí
(1904–1989) expressou a forma subjetiva do subconsciente, interpretada
como surreal.

3.2.4 O Dadaísmo

Considerado o movimento de vanguarda mais radical entre todos, por seu caráter de negação, o
Dadaísmo foi criado na Suíça, em 1916, pelo poeta Tristan Tzara. Diante do clima de instabilidade gerado
pelo temor e comoção social durante a Primeira Guerra Mundial, o conflito bélico foi o maior estímulo
para seu surgimento, cujas características principais eram o escárnio e ilogismos textuais, além da
aversão à arte racional, ao convencional, ao bom senso e à serenidade.

O caráter crítico do Dadaísmo indica uma função para a arte além da questão estética, característica
de todos os movimentos da vanguarda europeia. Epistemologicamente, “dada” não significa nada, sendo
que este “nada”, segundo o manifesto dadaísta, é sua expressão fundamental, sem apego aos vários
“ismos” que surgiam no início do século XX.

Com agressividade e incoerência, o Dadaísmo buscava se apropriar de um sistema de


representação social, normalmente objetos corriqueiros do cotidiano que, de forma irreverente,
eram transformados em arte para exprimir liberdade de criação e contestação. Esse era o principal
objetivo do movimento: contestar, além de desmitificar a arte e ridicularizá‑la, destruindo qualquer
significado lógico sobre ela.

Essa irreverência e linguagem propositalmente sem significado, sem ritmo ou rima podem ser
observadas no texto de Tzara de 1920, em que ele ensina a escrever um poema dadaísta:

Pegue um jornal.
Pegue a tesoura.
Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja dar a seu poema.
Recorte o artigo.
Recorte em seguida com atenção algumas palavras que formam esse artigo
e meta‑as num saco.
Agite suavemente.
Tire em seguida cada pedaço um após o outro.
Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tiradas do saco.
O poema se parecerá com você..
E ei‑lo um escritor infinitamente original e de uma sensibilidade graciosa,
ainda que incompreendido do público (TRISTAN apud TELES, 1986, p. 132).

55
Unidade I

Depois do Futurismo, o Dadaísmo foi o movimento da vanguarda europeia de maior adesão, e


teve como principais representantes os artistas Max Ernst, Marcel Duchamp e Francis Picabia, além
do poeta Tristan Tzara.

Figura 44 – Max Ernst, The hat makes the man, 1920, guache, colagem, lápis e tinta, 35,6 cm x 45,7 cm,
Museu de Arte Moderna de Nova York, Nova York, EUA

Fonte: Motherwell (1981, p. 96).

Figura 45 – Patrycya Olynyk, Bound, 2001

Fonte: Noyce (2010, p. 16).

56
ARTE E ESTÉTICA

3.2.5 O Futurismo

Experiências com o intuito de estudar o movimento humano e animal por meio da utilização de sequências
fotográficas tornaram‑se frequentes nas comunidades científica e artística no final do século XIX. O fotógrafo
inglês Eadweard Muybridge foi um desses precursores.

O estudo realizado por Muybridge sobre o movimento influenciou o pintor francês Marcel Duchamp
em uma de suas maiores obras, Nu Descendo uma Escada, de 1912. Nessa pintura, Duchamp contrapôs
às ideias futuristas seu interesse pela análise do movimento, na qual ele decompõe o movimento em
instantes sucessivos de imagens fixas, estabelecendo uma íntima relação entre o Cubismo e o Futurismo.

Figura 46 – Eadweard Muybridge, Estudo de mulher descendo escada (detalhe), 1887, fotografia

Figura 47 – Marcel Duchamp, Nu descendo uma escada, 1912, óleo sobre tela, 89 cm x 146 cm,
Museu de Arte de Filadélfia, Filadélfia, EUA

Fonte: Sant’Anna (2007, p. 25).

57
Unidade I

Observação

Muybridge e a fotografia sequencial

Na década de 1870, com o intuito de captar o movimento, Muybridge


fez várias imagens de um mesmo objeto de diferentes ângulos, com dezenas
de câmeras. Ele desenvolveu conceitos fundamentais para o cinema e o
stop motion (animação que utiliza centenas de fotografias, quadro a
quadro), revelando o movimento dos corpos de pessoas e animais. Além
da contribuição científica, seu estudo influenciou vários animadores e
cineastas até os dias de hoje.

O Futurismo foi o mais radical e subversivo dos movimentos de vanguarda, influenciando diretamente
a plataforma modernista no Brasil. Publicado em 1909 pelo escritor e poeta italiano Filippo Tommaso
Marinetti, o Manifesto futurista propunha a destruição por completo do passado e do academicismo
das artes e a exaltação da tecnologia pela capacidade imaginativa através da utilização de versos livres
e liberdade de expressão, como se nota no poema Ode triunfal, de Álvaro de Campos, heterônimo do
poeta português Fernando Pessoa:

Ode triunfal

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica


Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r‑r‑r‑r‑r‑r‑r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde‑me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas! (PESSOA, 1997, p. 87).

Sob essa perspectiva, a junção com o Cubismo trouxe o fluxo de movimento na pintura de uma forma
nunca antes vista. Na obra de Duchamp, observa‑se a nítida representação da ação como realmente
acontece, cuja pretensão é a eternização do efêmero. O memo se opera na obra a seguir, do italiano
Luigi Russolo:

58
ARTE E ESTÉTICA

Figura 48 – Luigi Russolo, Dinamismo de um automóvel, 1913, óleo sobre tela, 139 cm x 184 cm,
Museu Nacional de Arte Moderna, Paris, França

O interesse principal do artista não era representar o automóvel, mas a dinâmica plástica em
movimento do objeto no espaço. Dentre seus maiores representantes, além dos já citados Duchamp,
Marinetti, Russolo e Pessoa, podemos mencionar ainda os italianos Umberto Boccioni e Carlo Carrà e os
brasileiros Oswald de Andrade e Anita Malfatti.

3.3 A vanguarda moderna no Brasil

No início do século XX, em meio a um Brasil agrário e aristocrático, em que a Revolução


Industrial caminhava a passos lentos, surgiam as primeiras levas migratórias para as grandes cidades
brasileiras e explodiam discussões sobre a identidade nacional e os problemas sociais germinados pela
industrialização. Poucos burgueses, artistas e intelectuais tinham acesso às influências que a Europa
ocupava na posição vanguardista cultural.

Figura 49 – Classe operária paulistana no início do século XX

Disponível em: https://bit.ly/3l2gkQc. Acesso em: 9 set. 2021.

59
Unidade I

Eufóricos pelo nacionalismo emergido da Primeira Guerra Mundial e contagiados pelo centenário da
Independência do Brasil, jovens de famílias paulistas abastadas eram exceção e já, em 1912, o escritor
Oswald de Andrade e a pintora Anita Malfatti (então com 22 e 23 anos de idade, respectivamente) já
tinham percorrido a Europa e mantido contato com os movimentos de vanguarda, principalmente com
Marinetti e seu Manifesto Futurista.

Figura 50 – Edifício Martinelli, o primeiro


arranha‑céu de São Paulo, inaugurado em 1929

Fonte: Amaral (1998, p. 25).

A proposta estética futurista, renovadora e pregando o desprezo pelo passado, influenciou


diretamente esses jovens artistas que buscavam não mais copiar os modelos estéticos europeus e sim
criar uma arte que pudessem chamar de “brasileira”. Perceberam que a diversidade cultural e racial do
Brasil poderia reconstruir uma identidade e renovar as artes e as letras pela pesquisa estética a que
tinham direito, como assinala Amaral:

Assistimos, além dessa derrubada, à atualização da linguagem brasileira


com a do mundo contemporâneo, ou seja, universalismo de expressão.
Como consequência imediata daquele nacionalismo, emerge a consciência
criadora nacional: voltar‑se para si mesmo e perceber a expressão do povo e
da terra sobre a qual ele se estabeleceu (AMARAL, 1998, p. 13).

Após uma interrupção devido à Primeira Grande Guerra, o contato foi retomado. Duas
personalidades de liderança foram imprescindíveis para o plano teórico e a divulgação dos novos
movimentos estéticos das artes: Mário de Andrade e Oswald de Andrade, vindo a eclodir com a
Semana de Arte Moderna, evento realizado no Teatro Municipal de São Paulo entre os dias 7 e 17 de
fevereiro de 1922.
60
ARTE E ESTÉTICA

Figura 51 – Mário de Andrade

Disponível em: https://bit.ly/3E0aQ17. Acesso em: 9 set. 2021.

Figura 52 – Tarsila do Amaral, Retrato de Oswald de Andrade, 1922, óleo sobre tela,
óleo sobre tela, 51 cm x 42 cm, coleção particular

Disponível em: https://bit.ly/3ttedJ1. Acesso em: 9 set. 2021.

3.3.1 A exposição de Anita Malfatti

Entretanto, apesar de a Semana de Arte Moderna de 22 ser unanimidade entre os estudiosos, outro
evento serviu de pré‑estreia ao advento da Arte Moderna no Brasil: a exposição de Anita Malfatti,
realizada em 1917, mesmo ano em que Mário e Oswald se conheceram. Após seus estudos e retorno
da Europa, Anita realiza uma mostra de suas obras, chamada “Exposição de Pintura Moderna/Anita Malfatti”,

61
Unidade I

e agita e choca a vida cultural paulistana. Influenciadas pelo Expressionismo e pelo Cubismo, as 53 telas
da artista – entre elas O homem amarelo, O japonês, A estudante e A boba – são vistas sem alarde
por um público de cultura medíocre e de informação artística limitada, até que o jornal O Diário
de São Paulo publica a crítica do escritor Monteiro Lobato em 20 de dezembro de 1917, aferindo
um pesado julgamento às obras da artista e à Arte Moderna e defendendo a arte acadêmica, como
nos aponta Fonseca:

O artigo irado, que ficará conhecido por uma indagação de percurso,


“Paranoia ou mistificação?”, abala em primeiro lugar amigos e familiares de
Anita Malfatti. Em meio ao mal‑estar causado pela truculência das palavras
de Lobato, sai no Jornal do Comércio de janeiro de 1918 um pequeno artigo
em defesa da artista. Aproveitando o ensejo do encerramento da exposição,
o articulista elogia a coragem da pintora de apresentar seus trabalhos em
um ambiente tão impermeável a experiências inovadoras. E consagra Anita
Malfatti como artista (FONSECA, 2007, p. 114).

Apesar da defesa pública de Oswald, o prestígio de Lobato gera um golpe terrível para Anita. Muitos
compradores devolvem seus quadros e outros são atacados na exposição a bengaladas, tamanha
hostilidade que se formou em torno da artista.

A exposição Anita Malfatti

Encerra‑se hoje a exposição da pintora paulista sra. Anita Malfatti, que durante um mês
levou ao salão da Rua Líbero Badaró, 111, uma constante romaria de curiosos.

Exigiria longos artigos discutir‑se a sua complicada personalidade artística e o seu


precioso valor de temperamento. Numa pequena nota cabe apenas o aplauso a quem se
arroja a expor no nosso pequeno mundo de arte pintura tão pessoal e tão moderna.

Possuidora de uma alta consciência do que faz, levada por um notável instinto
para a notável eleição dos seus assuntos e da sua maneira, a brilhante artista não
temeu levantar com seus cinquenta trabalhos as mais irritadas opiniões e as mais
contrariantes hostilidades. Era natural que elas surgissem no acanhamento da nossa
vida artística. A impressão inicial que produzem os seus quadros é de originalidade
e de diferente visão. As suas telas chocam o preconceito fotográfico que geralmente
se leva no espírito para as nossas exposições de pintura. A sua arte é a negação da
cópia, a ojeriza da oleografia.

Diante disso, surgem desencontrados comentários e críticas exacerbadas. No entanto,


um pouco de reflexão desfaria, sem dúvida, as mais severas atitudes. Na arte, a realidade
na ilusão é o que todos procuram. E os naturalistas mais perfeitos são os que melhor
conseguem iludir. Anita Malfatti é um temperamento nervoso e uma intelectualidade
apurada, a serviço de seu século. A ilusão que ela constrói é particularmente comovida,
é individual e forte e carrega consigo as próprias virtudes e os próprios defeitos da artista.
62
ARTE E ESTÉTICA

Onde está a realidade, perguntarão, nos trabalhos de extravagante impressão que ela expõe?

A realidade existe mesmo nos mais fantásticos arrojos criadores e é isso justamente o
que os salva.

A realidade existe, estupenda, por exemplo, na liberdade com que se enquadram na


tela as figuras número 11 [O Homem Amarelo] e número 1 [Lalive]; existe, impressionante
e perturbadora, na evocação trágica e grandiosa da terra brasileira que é o quadro 17
[Paisagem de Santo Amaro]; existe, ainda, sutil e graciosa, nas fantasias e estudos que
enchem a exposição.

A distinta artista conseguiu, para o meio, um bom proveito, agitou‑o, tirou‑o da sua
tradicional lerdeza de comentários e a nós deu uma das mais profundas impressões de
boa arte.

Fonte: Andrade (1990, p. 144).

Essa passagem traumática resulta no ponto de partida para a Arte Moderna no Brasil, e Anita passa
a ser conhecida pelos intelectuais paulistanos, formados por Menotti del Picchia, Di Cavalcanti, Victor
Brecheret, além dos próprios Oswald, Mário. Mário de Andrade é um dos mais entusiasmados pela
qualidade artística de Anita, que “em parte resulta de assimilação consistente de tendências da vanguarda
estética. Naquela oportunidade, adquire O homem amarelo, obra que acompanhará o escritor até o fim
da vida” (FONSECA, 2007, p. 116).

Figura 53 – Anita Malfatti, O homem amarelo, 1915‑1916, óleo sobre tela, 51 cm x 61 cm,
Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil

Disponível em: https://bit.ly/3jY2RJY. Acesso em: 10 set. 2021.

63
Unidade I

Observação

Paranoia ou mistificação?

“Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem as coisas
e em consequência fazem arte pura, guardados os eternos ritmos da vida,
e adotados, para a concretização das emoções estéticas, os processos
clássicos dos grandes mestres. [...] A outra espécie é formada dos que veem
anormalmente a natureza e a interpretam à luz das teorias efêmeras, sob
a sugestão estrábica das escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos
da cultura excessiva. [...] Estas considerações são provocadas pela exposição da
sra. Malfatti, onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude
estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e cia.” (LOBATO,
2008, p. 73‑74).

A partir desse histórico episódio, os pejorativamente denominados “futuristas paulistanos” escandalizariam


a sociedade. Achacados de loucos, rebeldes e estranhos, suas obras são o verdadeiro manifesto modernista
brasileiro: as esculturas de Brecheret, a Paulicéia desvairada, de Mário de Andrade, as mulatas de Di
Cavalcanti, a música de Villa‑Lobos etc.

Figura 54 – Capa do livro Paulicéia desvairada, de Mário de Andrade, 1920‑1921

Disponível em: https://bit.ly/3tqsUNc. Acesso em: 9 set. 2021.

64
ARTE E ESTÉTICA

Figura 55 – Victor Brecheret, Monumento às bandeiras, 1936‑1954, granito, 12 m x 50 m x 15 m, Parque Ibirapuera, São Paulo, Brasil

Disponível em: https://bit.ly/2X7vnAc. Acesso em: 9 set. 2021.

Figura 56 – Di Cavalcanti, Mulher com gato, 1966, óleo sobre tela, 152,5 cm x 125,5 cm, CCBB Brasília, Brasília, Brasil

Fonte: Farthing (2008, p. 751).

3.3.2 A Semana da Arte Moderna

Idealizada pelo pintor Di Cavalcanti, a Semana de 22 contava com novos adeptos do Modernismo,
como Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Sergio Milliet, Guiomar Novaes, Hildegardo Leão Velloso,
Guilherme de Almeida, Henri Mugnier, Zina Aita, Ferrignac, Ernani Braga, Wilhelm Haarberg, Tácito
de Almeida, Cândido Motta de Almeida e Georg Przyrembel. Arquitetos, poetas, músicos, escultores,
literários, pintores de São Paulo, Rio de Janeiro e de outros países, a maioria a postos para desfilar suas
65
Unidade I

novidades no evento. O objetivo destrutivo da Semana de 22 traria, como diria mais tarde Mário de
Andrade, “o direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a
estabilização de um consciência criadora nacional (ANDRADE apud AMARAL, 1998, p. 13).

Figura 57 – São Paulo, 1913: Viaduto do Chá: à esquerda, o Teatro São José; à direita, o Teatro Municipal

Fonte: Amaral (1998, p. 67).

O espetáculo tinha o apoio do governo estadual e municipal, e contava ainda como o incentivo do
mecenas Paulo Prado, da tradicional aristocracia cafeeira paulistana, que conseguiu o patrocínio do então
presidente do Brasil, Washington Luís Pereira de Sousa. A programação de três dias foi divulgada pelo
O Estado de São Paulo.

Figura 58 – Di Cavalcanti, Cartaz da Semana de Arte Moderna, 1922

Disponível em: https://bit.ly/2VrNTm3. Acesso em: 9 set. 2021.

66
ARTE E ESTÉTICA

Figura 59 – Programa da Semana de Arte Moderna, 1922

Disponível em: https://bit.ly/3l2t3lW. Acesso em: 9 set. 2021.

Com exceção da abertura realizada no dia 7 de fevereiro, em que a plateia de gala desfilava no
saguão entre obras e palestras, os dias 15 e 17 são marcados por várias manifestações hostis de vaias e
de inquietação, como aponta Fonseca pelos olhos de Menotti del Picchia:

Menotti del Picchia, mestre‑de‑cerimônias no dia 15, lembra que


naquela noite os ânimos estão exaltados. Quando se proclama o nome
de Oswald de Andrade, a plateia desaba em vaias: “Uivos, gritos, pateadas
no assoalho, risadas, dichotes chistosos ou impertinentes. Um caos!”
(FONSECA, 2007, p. 131).

E completa:

Há viva disposição do público presente de impedir o espetáculo, com tumulto


generalizado. “Oswald não se perturbou. Marchou impávido para a frente da
ribalta. Tomou entre as mãos gordas mas firmes as tiras datilografadas de
um capítulo de Os condenados e pôs‑se a ler fundindo‑se sua voz na gritaria.
Em vão tentei restabelecer silêncio e ordem” (FONSECA, 2007, p. 131).

O relato de Menotti del Picchia, mesmo com o decorrer dos anos, parece ainda gravar a forte
impressão da contenda:

67
Unidade I

Como um herói numa trincheira visada por todos os lados pela fuzilaria
inimiga e revidando com o esvaziar a carga da única arma, Oswald, calmo,
com o sorriso mordaz com que fazia suas travessuras literárias, continuava a
ler a história da Alma, das criaturas fatalizadas e torturadas que torturavam
seu romance Os Condenados. Ao terminar, o estrondo de vaias aumentou
(PICCHIA apud FONSECA, 2007, p. 131).

O mesmo clima se impôs no encerramento da Semana de 22, cujo acontecimento mais marcante
foram as vaias para Villa‑Lobos que entrara com sapato em um pé e sandália em outro. O ato, visto
como provocação pela plateia, não o era: o músico tinha machucado o pé, o que não o impediu de se
apresentar naquela noite.

Figura 60 – Heitor Villa‑Lobos (1887‑1959)

Disponível em: https://bit.ly/3BXp55e. Acesso em: 9 set. 2021.

Com exceção das obras de Villa‑Lobos e de Malfatti, pouco havia de vanguarda e moderno no festival:

Porém, mesmo que não fosse vanguarda, aquilo que foi apresentado,
chocou. O grupo que rejeitava o passadismo era vitorioso na intenção
demolidora. Inexistente a qualidade, a segurança de linguagem, a audácia
maior, estavam presentes, contudo, a inquietação, em sintonia com o País, e
a percepção da necessidade de mudança (AMARAL, 1998, p. 16).

Vista na época como uma manifestação elitista, a Semana de Arte Moderna de 1922 deixou sua
mensagem de pré‑consciência do espírito nacional. Foi o ponto de partida para o vanguardismo
brasileiro pela redescoberta do Brasil por um projeto no qual a língua e a cultura foram objetos da nova
estética que surgia. Após a Semana de 22, ideias se fundiram a diversos manifestos nacionalistas, como
o Movimento Antropofágico de Oswald e Tarsila do Amaral. Obras literárias como Macunaíma, João
Miramar, Pau Brasil, Grande Sertão: Veredas, composições emblemáticas de Villa‑Lobos e quadros como
68
ARTE E ESTÉTICA

o Abaporu, de Tarsila, e os painéis Guerra e Paz, de Portinari, entre tantos outros, são resultados desse
esboço que se projetou muito além de seus objetivos iniciais.

A origem embrionária da Semana de 22, repleta de atitude estética revolucionária, atravessou os


anos 1920, 1930 e até os dias de hoje, seus propósitos estéticos são disseminados na cultura brasileira:

O grupo modernista que se forma em torno da Semana de Arte Moderna


vai se dispersando em novos núcleos e interesses. Para alguns ficou como
saudade da pauliceia que desvairou com seus jovens gloriosos, para outros,
um vendaval que se foi. Para Oswald e Mário, a vida artística começa a
intensificar seu brilho (AMARAL, 1998, p. 142).

Figura 61 – Tarsila do Amaral, Abaporu, 1928, óleo sobre tela, 85 cm x 72 cm,


Museu de Arte Latino-americana; de Buenos Aires, Buenos Aires, Argentina

Disponível em: https://bit.ly/3tuNlZu. Acesso em: 9 set. 2021.

69
Unidade I

Figura 62 – Cândido Portinari, Guerra, 1955, óleo sobre madeira compensada, 14 m x 10 m,


Memorial da América Latina, São Paulo, Brasil

Disponível em: https://bit.ly/3lfGH5E. Acesso em: 9 set. 2021.

Figura 63 – Capa do livro Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa, 1956

Disponível em: https://bit.ly/2YGVmPA. Acesso em: 9 set. 2021.

70
ARTE E ESTÉTICA

4 GUERNICA E A “MORTE” DA MIMESE

Apesar das correntes tradicionais contrárias ao movimento cubista no início do século XX, seus
artistas mantiveram firmes seus conceitos e reconstruíram a maior parte do pensamento estético
daquele período.

Para esclarecermos as ideias estéticas desse momento, faremos um estudo sobre a Guernica, tendo
ainda como propósito compreender as tendências vanguardistas que vieram depois desse período.

Produzida trinta anos após sua primeira obra cubista, Les demoiselles d’Avignon, de 1907 (considerada a
obra que anunciou as transformações de concepção estética do belo), Guernica marca o traço inovador
e vigoroso do artista espanhol, modificando os rumos tomados da estética na história da Arte, frisando a
materialização do movimento e a simbologia da paz.

Figura 64 – Pablo Picasso, Les demoiselles d’Avignon, 1907, óleo sobre tela, 243,9 cm x 233,7 cm,
Museu de Arte Moderna, Nova York, EUA

Disponível em: https://bit.ly/3neVFLL. Acesso em: 9 set. 2021.

Assim como a intervenção de vários artistas modernos registrava a denúncia como forma de
expressão, ela foi objeto de interpretações sobre o tema mais utilizado dentre as obras de Picasso.
Impulsionou ainda mais as mudanças estéticas do século XX e ousou guiar‑se pelo caminho das
sensações, do pensamento e das ideias.

71
Unidade I

Dentro desse universo ideológico no qual a arte se insere, encontra‑se a estética como produto
das manifestações artísticas de forma subjetiva, assim, podemos afirmar que Guernica é a expressão
emocional e particular do autor que proporciona ao observador percorrer o mesmo caminho da
percepção de tristeza causada pela guerra.

Como vimos anteriormente, Picasso, ao tomar conhecimento das barbaridades ocorridas na


cidade de Guernica, norte da Espanha, criou, em menos de um mês, uma das obras mais significativas
e importantes da história: a obra Guernica. Pintado a óleo, o imenso painel de 350 cm por 776 cm
tornou evidentes seus sentimentos com relação à Guerra Civil Espanhola, além da utilização de figuras
distorcidas como ligação dos signos com a realidade, traço peculiar da nova estética.

Figura 65 – Pablo Picasso, Guernica, 1937, óleo sobre tela, 350 cm x 776 cm,
Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Madrid, Espanha

Disponível em: https://bit.ly/2YBuPmx. Acesso em: 9 set 2021.

Observação

“Foi você quem fez Guernica?”

D’Alessio (1998) conta que Picasso, durante a ocupação alemã em


Paris, foi interrogado por um oficial alemão, que lhe perguntou: “Foi você
quem fez Guernica?”, ao que ele respondeu: “Não, foram vocês”. Não se
sabe ao certo se a anedota é exata, mas, de qualquer maneira, ela é muito
pertinente. É evidente que há a representação, mas não se pode esquecer o
fato (D’ ALESSIO, 1998, p. 30).

72
ARTE E ESTÉTICA

Figura 66 – Pablo Picasso (1881‑1973)

Disponível em: https://bit.ly/3zXQDXy. Acesso em: 9 set. 2021.

4.1 A função estética

Guernica foi além da função social; foi resultado da leitura do mundo de seu autor e de como seus
sentimentos se manifestaram quanto ao ocorrido na cidade homônima. A influência subjetiva que a
cultura exerce no processo de conscientização do sujeito serve de norte aos seus interesses e profundas
aspirações, bem como às possíveis necessidades de afirmação como ser social.

Podemos afirmar, portanto, que a cultura norteia o ser sensível e o ser consciente. Consequentemente,
a cultura vem estruturar a sensibilidade do indivíduo, guiando‑o em suas ações e em sua imaginação.
Suas ações podem ou não influenciar seu meio, mas mesmo que Picasso não tenha transformado o
pensamento de seus contemporâneos quanto às atrocidades acontecidas em Guernica, sua mensagem
foi transmitida para as gerações posteriores.

A partir de barbáries como as ocorridas em Guernica, por tratar‑se de injustiça social, violência ou
busca desenfreada pelo poder, suscita especialmente questões relativas à ética. Para Schiller, a estética
governa o sujeito a um estado ético: “a Arte é filha da liberdade e quer ser legislada pelas leis do espírito,
não pela privação da matéria” (SCHILLER, 2002, p. 21‑22).

A obra Guernica levanta aspectos relativos à ética e, por meio de sua estética inquietante,
transporta o observador para o mundo de seus próprios sentimentos, em que seus valores e estado
ético são questionados.

A sensação preliminar do observador é reconhecer as figuras que expressam aflição, horror, dor,
sofrimento, reveladas pelo jogo de cores, predominantemente em branco, preto e tons de cinza. As cores
potencializam o sentimento, remetendo‑o à morte, à guerra e à desumanização; além de conferir ainda
uma credibilidade jornalística à atrocidade.
73
Unidade I

Tudo em Guernica é capaz de sugerir possibilidades de interpretação, raciocínio, análise


e imprecisão.

Sob essa perspectiva, notamos a interferência do Cubismo como agente construtor de uma interpretação
nova da realidade, através da linguagem própria do artista potencializada por um discurso inteligente. Uma
reconstrução baseada na exploração do inconsciente, contudo, que percorre também as vias da razão.

Decodificar Guernica conduz à impressão, como já dissemos, de destruição e de morte, não apenas
por consequência do uso de cores, mas também pelos símbolos e associações que remetem ao mesmo
contexto. As associações provenientes de áreas profundas de nosso inconsciente ordenam o mundo
de nosso poder imaginativo. Espontâneas, elas convergem com rapidez tão admirável, que são quase
imperceptíveis para o consciente avaliar. As experiências vividas, com a carga de todo o sentimento e
emoção que existem na complexidade humana, são descontroladas da nossa percepção imediata.

Não há coincidência ao associar, mas coerência. As associações direcionam nossas percepções para
um mundo fantástico, não no sentido ilusório, mas na busca de experimentos criativos, imaginativos e
hipotéticos, dando amplitude ao nosso poder de imaginação e reação, mesmo que no campo mental.
E, a partir dessa potencialização perceptiva, anseios e expectativas são também ampliadas em nossa
mente, influenciando nosso desejo de criar.

Nossa capacidade de expressar a percepção vem de formas simbólicas de comunicação, como a fala,
mas aquela que se encontra na essência da criação é nossa capacidade de expressar‑se por meio de
nossas ordenações, ou seja, pelas formas. “Se a fala representa um modo de ordenar, o comportamento
também é ordenação. A pintura é ordenação, a arquitetura, a música, a dança, ou qualquer outra prática
significante” (OSTROWER, 1998, p. 24).

[Formas simbólicas] são configurações de uma matéria física ou psíquica


(configurações artísticas ou não artísticas, científicas, técnicas, comportamentais)
em que se encontram articulados aspectos espaciais e temporais (OSTROWER,
1998, p. 25).

Perceber as formas simbólicas significa perceber circunstâncias dinâmicas do nosso ser. Encadeamentos
rítmicos de forças, desequilíbrios e equilíbrios emocionais, tristeza, marasmo, alegria, placidez, inquietude,
ansiedade são movimentos interiores por meio dos quais analisamos nossa percepção sobre nós mesmos.

Essa avaliação de nossa experiência de vida é o modo de configurarmos essa percepção e tomarmos
consciência dela. Essa movimentação é, portanto, um processo afetivo, a força motriz para concretizar a
expressão ordenada da forma simbólica, são as nossas formas psíquicas vinculadas ao ato criativo, junto
às ordenações externas.

Podemos falar com emoção, mas também sobre nossas emoções. Consequentemente, nos
distanciamos de nós mesmos e, imaginativamente, colocamo‑nos no lugar de outros. Assim como o
artista revela a frieza da guerra na sua arte, o cineasta o faz a partir de um filme, e o fotógrafo por meio
de seu olhar. Trata‑se de diferentes formas de nos apresentar à realidade. Voltamos a enxergar e, com o
senso estético, a nos emocionar com aquela informação.
74
ARTE E ESTÉTICA

4.2 Interpretação e Semiótica

Para nos auxiliar a enxergar a estética da obra de Picasso, iremos utilizar as premissas da Teoria
Semiótica de Peirce na relação triádica entre o ícone, índice e símbolo.

Observação

O que é Semiótica?

A Semiótica é uma ciência que estuda a relação entre os símbolos,


o poder de comunicação entre eles e o significado que oferecem. Por se
tratar de uma ciência nova, não se prende a ideias e conceitos fechados,
tornando‑se flexível e oferecendo maior abertura a novas concepções, sem
deixar de lado todo o conteúdo analisado anteriormente sobre o assunto
estudado. Seu maior objetivo é modificar, ou não, sob o olhar de novas
perspectivas, o que se analisa sob sua visão. Ela engloba todos os aspectos
de uma forma geral e influencia a percepção da imagem, não somente
nos signos que a compõem, mas também em todo o contexto no qual ela
está inserida.

Para a Semiótica, um ícone é a antecipação de uma ideia – por exemplo, um pássaro. Esse signo é
desprovido de categorias ou valores, assim como de outra associação a não ser aquela própria do que
realmente é representado.

O índice vem da palavra “indicar”, ou seja, é o signo que indica algo mais pessoal, que inclui o
sujeito como interpretador desse signo, por isso seu entendimento é subjetivo. Se voltarmos ao exemplo
anterior, para as pessoas que conhecem o Twitter, o pássaro azul significa mais do que uma categoria
do mundo animal, ele é um índice.

O símbolo, por sua vez, é a definição da marca, oriunda principalmente de valores simbólicos
construídos, como um carro esporte de alto valor aquisitivo. O signo simbólico indica, nesse caso, que o
consumidor é milionário.

Observação

Quanto mais abstrato for o símbolo, mais intensa deverá ser sua
penetração na mente do público para educá‑lo quanto ao seu significado.

As imagens são representadas como signos icônicos, mas nem todos os ícones são imagens visuais.
As formas acústicas, táteis, olfativas e conceituais de semelhança significam e também se encaixam
nessa categoria. A característica de semelhança entre o signo da imagem e o seu objeto de referência é
também uma das causas para a polissemia do conceito “imagem”.
75
Unidade I

O signo de imagem se constitui de um significante visual (representamen para Peirce), que remete a
um objeto de referência ausente e evoca o observador um significado (interpretante) ou uma ideia do
objeto, portanto, na semiologia:

• Representamen: refere‑se à forma como o signo se apresenta.


• Interpretamen: refere‑se ao sentido do signo, é o próprio significado.
• Objeto: refere‑se àquilo a que o signo se reporta.

Quando observamos o significado de Guernica, vemos que a obra não se forma apenas pela análise
dos signos que a compõem, mas sim pela análise de todo o contexto que envolve sua elaboração. Essa
análise nada mais é do que a utilização da Semiótica para analisar o que a imagem significa.

Na Guernica, portanto, o ícone mais evidente é a figura do touro, representando a nação espanhola
em metáfora ao ícone nacional associado às touradas. O ícone é chamado de “primariedade”, pois
representa um signo em sua primeira instância. A secundariedade, segundo a Semiótica, seria o
índice, a interpretação subjetiva de cada um em relação ao signo. Dessa forma, tourada pode ter uma
interpretação individual de cada um, que remete a um significado particularizado como, por exemplo, a
manifestação da materialização do orgulho, do instinto animal ou do misticismo. Tudo vai depender do
conhecimento e da bagagem cultural adquirida pelo signo.

Figura 67 – Pablo Picasso, Guernica (detalhe), 1937, óleo sobre tela, 350 cm x 776 cm,
Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Madrid, Espanha

Disponível em: https://bit.ly/3C23nNq. Acesso em: 10 set. 2021.

76
ARTE E ESTÉTICA

Na relação entre o signo e o objeto, o símbolo, deste modo, materializa a ideia, ou seja, no nosso
contexto primário, a própria guerra é o objeto de Guernica e a mensagem de Picasso. Secundariamente,
podemos identificar vários símbolos: o cavalo simbolizaria a brutalidade, a fumaça simbolizaria o fogo
das bombas, a mãe com a criança nos braços, a fragilidade, a luz que emana da lamparina segura com
mãos firmes, a esperança ou a vida.

Figura 68 – Pablo Picasso, Guernica (detalhe), 1937, óleo sobre tela, 350 cm x 776 cm,
Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Madrid, Espanha

Disponível em: https://bit.ly/3C23nNq. Acesso em: 10 set. 2021.

Figura 69 – Pablo Picasso, Guernica (detalhe), 1937, óleo sobre tela, 350 cm x 776 cm,
Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Madrid, Espanha

Disponível em: https://bit.ly/3C23nNq. Acesso em: 10 set. 2021.

77
Unidade I

Um homem de braços abertos surge ao lado direito do painel. O movimento e a expressão levam
a crer que Picasso se inspirou na obra El Tres de Mayo de 1808 en Madrid, do pintor conterrâneo
Francisco De Goya (1746–1828), que retrata o fuzilamento de espanhóis pelo exército de Napoleão.
Comparemos as duas obras:

Figura 70 – Pablo Picasso, Guernica (detalhe), 1937, óleo sobre tela, 350 cm x 776 cm,
Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Madrid, Espanha

Disponível em: https://bit.ly/3C23nNq. Acesso em: 10 set. 2021.

Figura 71 – Francisco Goya, El Tres de Mayo de 1808 en Madrid, 1814, óleo sobre tela, 266 cm x 345 cm,
Museu do Prado, Madrid, Espanha

78
ARTE E ESTÉTICA

Ao estabelecermos um paralelo entre as obras, observamos Goya denunciar o trágico massacre de


espanhóis inocentes por forças militares estrangeiras. Na imagem de desespero da figura central, que
ergue os braços clamando por misericórdia entre cadáveres e pessoas ajoelhadas, é possível notar a
semelhança com Guernica. Nota‑se que as duas obras estabelecem uma relação intertextual, mas com
um detalhe: o personagem de Picasso direciona os braços em direção aos céus, em referência às bombas
que caíam sobre a cidade. Picasso retoma as particularidades expressivas do tema e do idealismo, da
representação e da reflexão, entretanto, especialmente livre da rigorosa forma acadêmica, aproximando
a arte do lúdico através do jogo de cores e imagens.

A arte, pelos padrões platônicos, livre da mimese, leva o artista à sensação de liberdade, de reflexão
e do prazer estético, rompendo com a objetividade e desenvolvendo‑se moralmente.

Observação

Schiller afirma que, através da beleza, é possível elevar a alma e a


moral do povo e que, pelas belas‑artes, o homem se idealiza e se enobrece.
Para o autor, “não existe maneira de fazer racional o homem sensível sem
torná‑lo, antes, estético” (SCHILLER, 2002, p. 113).

Vale observar que Goya produziu sua obra no período anterior ao Cubismo, mas já demonstrava certa
ruptura com o estilo realista, essencialmente diante da temática histórica e das pinceladas, de certa forma, sem
nitidez. Por meio das obras de Goya e de outros artistas, esse momento da arte demonstra o despertar de novas
experiências estéticas, levando à representação ao mundo das ideias e da reflexão, conjuntura que podemos
observar na comparação de duas obras de Goya produzidas em um intervalo de 45 anos:

Figura 72 – Francisco Goya, Partida de caza, 1775, óleo sobre tela, 146 cm x 83 cm, Museu do Prado, Madrid, Espanha

79
Unidade I

Figura 73 – Francisco Goya, Saturno devorando um filho, 1820, óleo sobre reboco trasladado a tela, 290 cm x 290 cm,
Museu do Prado, Madrid, Espanha

Segundo a filosofia schilleriana, a estética que leva à reflexão ocasiona, consequentemente, sensações
de fascínio, pois alcança a linguagem do artista e compreende a excepcionalidade do novo, escapando
da linguagem objetiva e das formas convencionais. Essa experiência de construir novos significados,
segundo Schiller, é capaz de elevar o espírito, pois liberta o sujeito do estado lógico.

A estética cubista vem, portanto, proporcionar esta condição de subversão dos impulsos realistas
e a liberdade estética intrínseca no progresso espiritual e, a partir do momento que se manifesta o
conteúdo de pensamento, consequentemente, amplia‑se o conhecimento. Caso contrário, “para aquele
cuja mente não esteja desde logo preparada para ir, além da realidade, ao reino das ideias, o mais rico
conteúdo será aparência vazia e o mais alto ímpeto poético, extravagância” (SCHILLER, 2002, p. 62‑63).

Numa obra de arte verdadeiramente bela, o conteúdo nada deve fazer, a


forma tudo; é somente pela forma que se atua sobre o todo do homem, ao
passo que o conteúdo atua apenas sobre forças particulares. O conteúdo,
por sublime e amplo que seja, atua sempre como limitação sobre o
espírito, e somente da forma pode‑se esperar verdadeira liberdade estética
(SCHILLER, 2002, p. 111).
80
ARTE E ESTÉTICA

Para Schiller, o que limita a liberdade estética é o conteúdo, e não a forma. A forma, por sua vez,
é o que conduz o observador, a priori, à sensação de prazer. O conteúdo estaria ligado ao intelecto,
que dependeria da capacidade da percepção subjetiva para alcançar o nível de reflexão. Nesse
aspecto, notamos a capacidade do Cubismo de remeter à reflexão através de sentidos conotativos,
metáforas. Em Guernica, Picasso não diz, sugere, como elucida o filósofo e escritor italiano Umberto
Eco (nascido em 1932):

A experiência de decodificação torna‑se aberta, processual e nossa


primeira reação é acreditar que tudo quanto fazemos convergir para a
mensagem está de fato nela contido. Pensamos assim que a mensagem
exprime o universo das conotações semânticas, das associações emotivas,
das reações fisiológicas que sua estrutura ambígua e autorreflexiva suscitou
(ECO, 1976, p. 59).

A citação anterior corrobora o fato de que a compreensão de uma obra é subjetiva. Codificar seria
abrir um leque de interpretações que habita a percepção particular. Sob esse contexto, na construção do
conceito temático sobre a guerra em Guernica, Picasso poderia ter conceituado a figura do touro como
símbolo da brutalidade, e não exatamente como ícone do país em referência às touradas.

Essa situação, segundo o pensamento schilleriano, pressupõe que a abstração percorra o campo do
sentimento na busca de elementos que possam chegar à razão pura. Isso significa que o conhecimento
parte do sensível e volta para o lógico.

O Cubismo seria, portanto, o condutor que leva a percepção ao campo lógico a fim de concretizar
as informações textuais da obra de arte. A concepção lógica em Guernica está relacionada à iconografia
contida na apresentação das figuras metonímicas que, decifradas, montam a narrativa geral da obra.
A materialização da leitura se projeta a partir do raciocínio de compreender as possibilidades de
combinação e a ampliação do olhar. Esse processo aproxima o mundo do artista ao do espectador.

Na estética, Schiller chamou de impulsos as forças lógicas que transportam o espectador ao campo
da abstração. Veja:

O primeiro desses impulsos, que chamarei sensível, parte da existência física


do homem ou de sua natureza sensível, ocupando‑se em submetê‑lo às
limitações do tempo e em torná‑lo matéria. [...] O âmbito desse impulso
estende‑se até onde o homem é finito (SCHILLER, 2002, p. 63‑64).

Para Schiller, essa decodificação está relacionada a uma junção entre o estado lógico e lúdico, como
um jogo de diálogo entre o artista e o espectador. O limite será a capacidade imaginativa que leva o
espectador à reflexão e à compreensão narrativa sugerida pelo artista.

Guernica foi além dos princípios estéticos e críticos do Cubismo determinados pelo inconsciente,
estabelecendo o contexto social diante os nítidos anseios de transformação da época, e não somente
no panorama artístico.
81
Unidade I

Mesmo que atualmente o conceito de guerra não seja mais o mesmo, o fato é que Guernica mantém
o tema em relação à morte e injustiça atual e sublime, pois a mensagem de repúdio ao bombardeio
da cidade espanhola e contra a violência que Picasso deixou para a humanidade permanece até os
dias de hoje.

Guernica, assim como toda expressão artística, é um documento histórico. Através dela, é possível analisar
características culturais, sociais e políticas de uma época conturbada da nossa história, cujos significados
são percebidos coletivamente ou não. Simultaneamente é atemporal, pois se ajusta no tempo como uma
denúncia do aspecto sombrio e desumano da guerra, além de ser manifesto político e humanitário.

Depois de muitos anos em Paris e exposta no Museu de Arte Moderna de Nova York, a obra‑prima de
Picasso retornou para a Espanha em 1992. Atualmente encontra‑se no Museu Rainha Sofia, centro de
arte contemporânea da capital espanhola. O desejo de Picasso foi que Guernica só retornasse à Espanha
quando o país fosse novamente um Estado democrático.

Ícone da concretização do Cubismo, símbolo de uma declaração pela paz, Guernica está incluída
no rol de obras excepcionais da história da arte. Perguntado sobre a arte em tempo de guerra, Picasso
respondeu: “Não, a pintura não está feita para decorar apartamentos. Ela é uma arma de ataque e defesa
contra o inimigo” (PICASSO, 1945, tradução nossa).

Resumo

O termo “estética” pode ser definido genericamente como o


conhecimento sensorial diante de qualquer experiência externa que altere
nossa percepção cognitiva. Contudo, em um campo tão complexo como
o das artes, seria quase impossível contextualizá‑la pelo senso comum.
Afinal, qual a medida da estética de uma obra de arte? Por que algumas
obras são consideradas belas e outras não? O conhecimento filosófico sobre
a aisthesis tem como objetivo buscar seu contexto universal: o sentido da
realidade estética.

Platão e Aristóteles se dedicaram indiretamente ao tema, enquanto


o alemão Baumgarten, responsável pela introdução da Estética como
disciplina filosófica acadêmica, influenciou os vários intelectuais a partir
do século XVIII, como Kant e Schiller. Enquanto Baumgarten sustentou a
disciplina estética a partir dos princípios da percepção, do belo, da obra
de arte e da linguagem; Kant retirou a experiência estética do campo
da percepção, alocando‑a sobre o campo do juízo, paradoxalmente
investigando‑a a partir da metafísica do belo (tendência seguida
por Schiller). A partir de então, a metafísica platônica foi dominante
no estudo do conhecimento estético, modificando ou criando seus
próprios paradigmas.
82
ARTE E ESTÉTICA

À parte a disciplina filosófica, teorias de arte se empenham em encontrar


a essência comum a fim de conceituar “estética” ou até de aferir o valor de
uma obra de arte.

A busca pela experimentação engatilhada pela Revolução Industrial


e pelo movimento impressionista trouxe o interesse pela abstração,
desvinculando a mensagem visual da informação representacional e
transportando‑a para o estado psíquico, para um mundo de significados
mais intensos e condensados, e também proporcionando liberdade de
expressão estética. A partir desse contexto, a classe artística começou a
introduzir novas experiências com a linguagem estética.

Denominados “vanguardistas”, os revolucionários participantes desse


processo tiveram papel fundamental nas influências artísticas ao longo do
século XX, que eram voltadas para a subjetividade do artista e propagavam
a ruptura das linhas éticas e estéticas que regiam as normas e linguagens
artísticas da época. O Expressionismo, o Cubismo, o Surrealismo, o Dadaísmo
e o Futurismo foram os movimentos de vanguarda mais influentes da
história da arte, sendo o Futurismo a plataforma modernista que mais
influenciou a vanguarda no Brasil.

A proposta estética futurista, por seu caráter renovador, influenciou


diretamente jovens artistas que buscavam principalmente criar uma arte
que pudessem chamar de “brasileira”. O movimento modernista no Brasil
teve como personalidades principais Mário de Andrade e Oswald de Andrade,
figuras notáveis na divulgação dos novos movimentos estéticos das artes,
especialmente no evento que marcou o início da vanguarda brasileira: a
Semana da Arte Moderna.

O rompimento da tradição acadêmica pela abstração é intenso no


movimento de vanguarda cubista, como vemos na obra Guernica, de Pablo
Picasso, em que o artista impulsionou ainda mais as mudanças estéticas do
século XX e ousou guiar‑se pelo caminho das sensações, do pensamento e
das ideias. Levantando questões éticas, Guernica traz o próprio conceito da
estética cubista: transportar o observador para o mundo de seus próprios
sentimentos, em que seus valores e estado ético são questionados. E, a partir
do momento em que se manifesta o conteúdo de pensamento, amplia‑se,
consequentemente, nosso conhecimento.

83
Unidade I

Exercícios

Questão 1. (Fadesp 2013, adaptada) “Kant, ao contrário de Baumgarten, criador do termo ‘estética’,
segundo o qual os juízos sobre a beleza pertenciam à província de uma ‘cognição inferior’, mediada
pelos sentidos, que completa a cognição ‘clara e distinta’ mediada pelo intelecto, nega que a nossa
apreensão da beleza seja cognição”.

Fonte: OSBORNE, H. Estética e teoria da arte. São Paulo: Cultrix, 1993. p. 159.

Para Kant, a experiência estética se fundamenta

A) no sentimento dos objetos que nos satisfazem, independentemente da natureza real que possuem.
Essa satisfação começa e termina com os objetos que a provocam.

B) na intuição intelectual, inseparável dos conceitos, mediante a qual formamos ideias das coisas e
de suas relações.

C) na sensibilidade e no entendimento, pois as intuições sem os conceitos são cegas e os conceitos


sem as intuições são vazios.

D) em uma faculdade empírica específica, que possibilita ao homem perceber as coisas e deleitar-se
com o reconhecimento do belo.

E) no gênio artístico, estabelecido, desde o surgimento do pensamento humanista, como critério


fundamental de valor artístico.

Resposta correta: alternativa A.

Análise da questão

Justificativa: de acordo com Kirchorf (2003b, p. 30): “na sua primeira crítica, Kant desenvolve a
estética transcendental, na qual, retornando à concepção dos gregos da aisthesis, define o conhecimento estético
somente a partir da sensação produzida pela intuição empírica do objeto, deixando de lado todas as
questões relativas à poeticidade, à retoricidade e à beleza dos objetos estéticos, conforme introduzidas
por Baumgarten”.

84
ARTE E ESTÉTICA

Questão 2. (Enade 2011) No século XVI, chegaram à Europa alguns objetos de arte africana, mas
despertaram curiosidade apenas por seu lado exótico.

“A expansão do domínio colonial europeu na África, que se deu de forma mais intensa no final do
século passado, contribuiu para o aumento do contato da Europa com a arte daquele continente e
motivou diversas pesquisas antropológicas sobre os povos e as culturas africanas. Como resultado, a arte
africana foi classificada em um conjunto variado de estilos, que, por aproximação com a arte europeia,
foram chamados de naturalista, expressionista e abstrato. Mas essas denominações não são muito
corretas, pois a arte africana nunca se organizou em tendências ou movimentos estéticos, conforme
temos visto na evolução da arte ocidental.

Atualmente, considera-se de grande importância a escultura africana, como as terracotas, os


trabalhos em bronze e madeira da Nigéria, da Costa do Marfim ou do Zaire.”

Fonte: PROENÇA, G. História da arte. São Paulo: Ática, 2003. p. 157.

A cultura e a arte africana influenciaram a obra de vários artistas, entre eles Pablo Picasso, Fernand
Léger e Braque, que

I – admitiram aproximação entre a arte africana e as suas pinturas.

II – apontaram a influência da arte africana como responsável pela origem do cubismo.

III – reconheceram, na arte africana, expressividade intensa, clareza de estrutura e simplicidade


linear na técnica.

IV – compreenderam que o artista africano pinta ou esculpe com liberdade, e não de acordo com as
tendências de um movimento estético.

É correto o que se afirma em:

A) I, II e III, apenas.

B) I, II e IV, apenas.

C) I, III e IV, apenas.

D) II, III e IV, apenas.

E) I, II, III e IV.

Resposta correta: alternativa C.

85
Unidade I

Análise das afirmativas

I – Afirmativa correta.

Justificativa: os artistas citados reconhecem a influência da arte africana nas suas obras.

II – Afirmativa incorreta.

Justificativa: a arte africana não pode ser considerada a responsável pelo surgimento do cubismo.

III – Afirmativa correta.

Justificativa: o estudo da cultura africana permitiu a observação das características citadas na


arte africana.

IV – Afirmativa correta.

Justificativa: o enunciado afirma que “a arte africana nunca se organizou em tendências ou


movimentos estéticos”.

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