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Ciências Sociais

Autora: Profa. Ivy Judensnaider


Professora conteudista: Ivy Judensnaider

Graduada em Economia pela Faculdade de Economia da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) em 1981,
mestre em História da Ciência pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em 2004, e doutoranda
no Programa de Ensino de Ciências e Matemática da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente é
professora da Universidade Paulista (UNIP) no curso de Ciências Econômicas.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

J92c Judensnaider, Ivy.

Ciências Sociais / Ivy Judensnaider. – São Paulo: Editora Sol, 2022.

156 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230.

1. Pensamento. 2. Globalização. 3. Sociedade. I. Título.

CDU 301

U514.09 – 22

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
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Unip Interativa

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Prof. Marcelo Vannini
Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático

Comissão editorial:
Profa. Dra. Christiane Mazur Doi
Profa. Dra. Angélica L. Carlini
Profa. Dra. Ronilda Ribeiro

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista
Profa. Deise Alcantara Carreiro

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Ricardo Duarte
Willians Calazans
Sumário
Ciências Sociais

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................8

Unidade I
1 INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO CIENTÍFICO SOBRE O SOCIAL.......................................................9
2 PRINCIPAIS CONTRIBUIÇÕES DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO CLÁSSICO.............................. 13
3 COMTE E DURKHEIM...................................................................................................................................... 19
3.1 Auguste Comte: positivismo............................................................................................................. 19
3.2 Émile Durkheim: fatos sociais, consciência coletiva, solidariedade mecânica
e orgânica........................................................................................................................................................ 25
4 MARX E WEBER................................................................................................................................................ 43
4.1 Karl Marx: materialismo histórico e dialético, classes sociais, ideologia
e alienação....................................................................................................................................................... 43
4.2 Max Weber: ética protestante e espírito do capitalismo, teoria da burocracia..............55

Unidade II
5 A GLOBALIZAÇÃO E SUAS CONSEQUÊNCIAS........................................................................................ 74
5.1 Modelos contemporâneos de explicação sociológica sobre a globalização................. 88
5.2 Teorias da globalização....................................................................................................................... 93
6 O MUNDO GLOBAL.......................................................................................................................................... 96
6.1 Pobreza e exclusão..............................................................................................................................101
6.2 O Brasil na nova ordem internacional........................................................................................116
7 SOCIEDADE E TRABALHO............................................................................................................................123
7.1 Transformações no mundo do trabalho: a precarização do trabalho............................123
7.2 Desemprego estrutural, trabalho infantil, trabalho forçado e informalidade............128
8 SOCIOLOGIA E POLÍTICA..............................................................................................................................134
8.1 Democracia e direitos humanos....................................................................................................134
8.2 Cidadania e direitos humanos.......................................................................................................138
APRESENTAÇÃO

Prezado aluno,

Este livro-texto irá introduzi-lo à formação da sociedade contemporânea, às teorias explicativas dos
modos de funcionamento dessa sociedade e às reflexões que, atualmente, se ocupam com a identificação
dos processos associados à expansão do capitalismo e aos seus impactos no mercado de trabalho e no
exercício da cidadania.

Nossa intenção é possibilitar e estimular a reflexão sobre a sociedade atual e as abordagens que
os pensadores, ao longo do tempo, realizaram a respeito das transformações sociais. Afinal, as teorias
explicativas dos modos de organização social foram construídas à medida que a sociedade foi se
transformando e conforme as relações entre as pessoas foram se modificando.

Parece óbvio imaginar que a sociedade existente na Europa feudal tinha características bem
distintas dos centros urbanos que existem hoje nos países industrializados. Aliás, também parece óbvio
supor que as comunidades que vivem em países da Ásia têm características diferentes daquelas que
estão organizadas nos países latino-americanos. Quais os motivos e os fatores que determinaram essas
diferenças? Como podemos compreendê-las? E quais os instrumentos que os sociólogos colocaram à
nossa disposição para que possamos entendê-las?

Nossa proposta não é somente transferir um conjunto predeterminado de saberes. As escolhas


metodológicas e didáticas a partir das quais o livro-texto foi confeccionado incluem o aperfeiçoamento
do espírito crítico e o desenvolvimento das capacidades e habilidades de produção e geração de
conhecimento. Pensar sobre a sociedade com base em abordagens teóricas permite pensar a respeito
de nós mesmos, da forma como vivemos e nos relacionamos com pessoas e instituições. Assim, você
notará que o conteúdo estará sempre entrelaçado ao contexto sócio-histórico que o gerou, bem como
aos problemas do cotidiano da vida acadêmica.

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INTRODUÇÃO

Este livro-texto está dividido em duas unidades. Em cada uma delas, você encontrará o seguinte:

• Textos explicativos que elucidam a matéria.

• Resumo do conteúdo estudado.

• Exercícios comentados.

• A seção saiba mais, com a indicação de filmes e livros que, de alguma forma, complementam os
temas investigados. Não deixe de explorar essas sugestões. Garantimos que você ampliará seu
conhecimento sobre os temas apresentados e que essa ampliação será extremamente útil, não
apenas na questão específica da disciplina, mas na sua vida profissional.

• A seção lembrete, com anotações pontuais que o remetem a alguma informação já conhecida.

• A seção observação, com apontamentos que chamam sua atenção para algum dado que merece
ser destacado sobre o assunto em desenvolvimento. É um recurso que reforça certas questões que
quisemos salientar.

Na unidade I, você será apresentado ao contexto do surgimento da sociologia enquanto ciência,


contexto esse que diz respeito às revoluções burguesas que ocorreram na Europa a partir do século XVIII.
Denominamos burguesas o conjunto de mudanças provocadas pela Reforma Protestante, pela
Revolução Industrial e pela Revolução Francesa. Em razão do surgimento da burguesia, segmento social
com características totalmente distintas das existentes até então, novas indagações e novos valores
mudaram não apenas a abordagem da natureza (e, nesse sentido, a Revolução Científica foi um marco
significativo), mas também as relações sociais. Esse contexto propiciou e estimulou o surgimento de
pensadores que se dispuseram a refletir sobre a sociedade, entre os quais se destacam Auguste Comte
(1798-1857), Émile Durkheim (1858-1917), Karl Marx (1818-1883), Friedrich Engels (1820-1895) e
Max Weber (1864-1920). Estes são tidos como os fundadores da sociologia, e ainda hoje influenciam
largamente a reflexão sociológica.

Na unidade II, você será apresentado, a partir do olhar sociológico, ao mundo em que estamos
vivendo. Portanto, investigaremos o processo de globalização e suas consequências, em especial os
modelos de explicação sociológica do neoliberalismo e as teorias da globalização. Na sequência, veremos
como o mundo global está constituído e qual é o papel do Brasil nessa nova ordem. Em momento
posterior, investigaremos a questão do trabalho, sua transformação no mundo globalizado, o processo
de precarização e a informalidade. Finalmente, discutiremos a questão da política, a democracia, os
direitos humanos e a cidadania.

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CIÊNCIAS SOCIAIS

Unidade I
1 INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO CIENTÍFICO SOBRE O SOCIAL

A sociologia é uma área do conhecimento que tem como objeto de estudo as relações que ocorrem
entre os seres humanos, ou seja, que investiga os grupos sociais, as sociedades e o mundo social. Dessa
forma, a sociologia oferece instrumentos para investigar desde as relações virtuais propiciadas pelas
inovações tecnológicas até os eventos associados ao terrorismo. Seu campo de atuação, portanto, é
bastante amplo e complexo.

Temos certeza de que você está se perguntando: não são esses os temas sobre os quais já pensamos
e refletimos no nosso dia a dia? Esse campo de estudo, afinal, já não é de domínio de todos que vivem as
dificuldades e as vantagens da vida em sociedade nos dias de hoje? Inicialmente, nossa primeira resposta
tende a ser positiva: sim, é fato que esses sejam temas sobre os quais conversamos e nos preocupamos
todos os dias. No entanto, a sociologia reflete e pesquisa sobre eles a partir de pressupostos científicos
e metodológicos próprios. Em outras palavras, a sociologia propõe um olhar diferente daquele que
utilizamos quando colocamos o nosso senso comum a serviço de compreender o mundo em que vivemos.
A sociologia busca ir além do senso comum, propondo-se a abordar a questão das relações sociais a
partir de pontos de vista científicos.

Se todos somos capazes de discutir e opinar a respeito do mundo social, qual é a razão, então, para
construir uma ciência que se preocupe em compreender a mesma coisa que, sem qualquer esforço,
somos capazes de apreender e explicar? É provável que um exemplo o ajude a compreender melhor
do que estamos tratando aqui. Podemos dizer, com base na nossa observação, que as pessoas que
participaram de festas clandestinas em meio à pandemia de coronavírus eram irresponsáveis, e que a
atitude delas denotou ausência de uma moral elevada. Independentemente do conteúdo dessa nossa
opinião, uma coisa é certa: a nossa perspectiva não se apoiou em qualquer estudo científico ou
sistemático, mas tão somente nas nossas impressões. Poderíamos estar certos ou errados em função do
que, seletivamente, observamos.

Essa compreensão da realidade é parcial, já que é nossa, e sem qualquer outra evidência que a
apoie. O que nós fizemos foi simplesmente emitir uma avaliação com base no que vimos e julgamos,
da mesma forma que qualquer outra pessoa poderia fazer. Você há de concordar, no entanto, que essa
explicação é insuficiente para dar conta da complexidade da situação colocada diante de nós. Há uma
série de perguntas que ficam sem resposta: há diferenças no comportamento dos participantes da festa
de acordo com a faixa etária e a classe social? Mulheres e homens comportaram-se da mesma forma?
A realização de festas clandestinas pode ter alguma relação com o relaxamento das normas de isolamento
social em razão do desenvolvimento rápido das vacinas?

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Unidade I

Para que você possa fazer uma análise objetiva sobre o tema, portanto, seria necessário saber, no
mínimo: a) as circunstâncias que cercaram a realização das festas clandestinas; b) as características
sociodemográficas dos participantes; c) as crenças e os valores dos que promoveram e participaram
das festas. Em resumo, seria imprescindível examinar o quadro todo, com objetividade, sistematicidade
e método. Em conclusão: se o senso comum formula opiniões sem qualquer compromisso com provas
ou evidências, a ciência busca explicar por que as coisas acontecem da forma que acontecem, e procura
identificar as variáveis que tornam determinados fenômenos possíveis e outros impossíveis.

Figura 1 – A análise do comportamento de distintas culturas e sociedades em relação


à pandemia de covid-19 é um dos possíveis objetos da sociologia

Disponível em: https://bit.ly/3DtogSj. Acesso em: 12 nov. 2021.

Podemos, então, afirmar que o senso comum é irrelevante? De forma alguma! O senso comum
alimenta e estimula o espírito científico na formulação dos problemas de pesquisa e nos questionamentos
em relação à realidade. Podemos, em contrapartida, dizer que a ciência é infalível? Não, de jeito algum.
No entanto, há maior probabilidade de que, ao usarmos os instrumentos que a ciência nos coloca à
disposição, possamos nos aproximar mais da compreensão da realidade do que se utilizássemos apenas
o senso comum. A ciência reflete sobre o senso comum, de maneira a nos aproximar de explicações a
respeito dos fenômenos sociais e da natureza.

Lembrete

Não estamos afirmando que não há fundamentação científica no senso


comum. Ao contrário, o senso comum nos serve de material para a reflexão
e para a pesquisa científica. De forma alguma estamos defendendo a ideia
de uma ciência infalível em oposição ao senso comum falível.

Por meio de procedimentos sistemáticos e metodologicamente validados, a sociologia vai pensar a


realidade social. Tem ela a capacidade de atingir, como área do conhecimento, a mesma probabilidade
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CIÊNCIAS SOCIAIS

de certeza que outras áreas da ciência? A sociologia, em comparação com outras ciências (em especial
as físicas e as naturais), consegue atingir o mesmo grau de verdade? Esse é um tema muito complexo e
difícil de ser respondido de maneira simples. No entanto, consideraremos o seguinte:

• As ciências físicas e naturais também não alcançam verdades absolutas, imunes a mudanças
conceituais em função do tempo. Aparentemente, o fato de ser possível medir e pesar objetos
justificaria concluir que o conhecimento alcançado pelas ciências naturais é mais seguro do que o
saber construído pelas ciências sociais. Contudo, o fato de as ciências físicas e naturais utilizarem
métodos pretensamente mais objetivos não permite concluir que sejam mais científicas que as
outras ciências, em particular as humanas e as sociais.
• O mundo físico e natural não funciona de forma mecânica, e isso tampouco ocorre com o mundo
social e cultural. Assim, não há como comparar essas vertentes do conhecimento de acordo com
seu conteúdo de verdade e certeza. Segundo Santos (1996, p. 14), “ao serem derrubados os mitos
de certeza e verdade inquestionáveis das ciências da natureza, promoveu-se a aproximação
epistemológica entre as duas vertentes científicas”. Afinal, as transformações e os desenvolvimentos
das ciências naturais mostraram, nas últimas décadas, que o conhecimento que temos a respeito
dos fenômenos físicos não é tão certo e tão seguro quanto imaginávamos. Nossa subjetividade
também age quando estamos medindo ou pesando objetos. Em outras palavras, a suposta
subjetividade na mensuração dos fenômenos sociais não é muito diferente da subjetividade com
que estudamos o mundo natural.

Não faz o menor sentido afirmar serem a física e a biologia mais científicas do que a sociologia. Se
fosse assim, se essas áreas do conhecimento produzissem conhecimentos perpétuos, imunes a qualquer
mudança, ainda acreditaríamos numa Terra plana e imóvel, ou ainda combateríamos o vírus do cólera
com tiros de canhão.

Saiba mais
Sugerimos que leia o livro O amor nos tempos do cólera, de Gabriel
García Márquez. O cenário é o de uma cidade colombiana em meio a um
surto de cólera, no século XIX, quando as pesquisas relacionadas à água
como transmissor do vírus ainda eram incipientes.
GARCÍA MÁRQUEZ, G. O amor nos tempos do cólera. Tradução: Antonio
Callado. Rio de Janeiro: Record, 2019.
Há também um filme homônimo, sob a direção de Mike Newell, que
transferiu para as telas um pouco da magia do livro de García Márquez.
O AMOR nos tempos do cólera. Direção: Mike Newell. Estados Unidos;
Colômbia: Stone Village Pictures, 2007. 139 min.

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Unidade I

Para Santos (1996), a sociologia desenvolveu métodos que permitiram o estudo das ações humanas
em termos das relações sociais estabelecidas. Assim, a sociologia parte do princípio de que é possível
compreender e explicar a realidade social à luz da razão.

Um dos principais instrumentos de abordagem do mundo social desenvolvido pela sociologia é


o que denominamos imaginação sociológica. Essa perspectiva pressupõe que, ao longo do tempo,
desenvolvemos hábitos, crenças, cultura e relações familiares que, em grande medida, nos auxiliam na
apreensão e interpretação da realidade. Somos criaturas do mundo físico e transformamos o mundo
físico por meio de nossas ações. Complementarmente, somos fruto da história, ao mesmo tempo
que produzimos história. Construímos o nosso tempo histórico, e ele determina as possibilidades e
circunstâncias da nossa vida, bem como as formas a partir das quais percebemos o mundo que nos cerca.

A imaginação sociológica constitui um olhar que procura compreender para além das nossas
experiências individuais e pessoais. Ela busca o todo, a reflexão sobre aquilo que vai além da nossa visão
particular sobre o mundo. Afinal, para compreender a realidade social, devemos olhar além da nossa
própria realidade individual. Assim, ter consciência da realidade social significa identificar as ligações
entre uma série de realidades individuais, apreender o contexto em que essas múltiplas relações ocorrem
para além daquilo que é a nossa própria realidade. É para isso que serve a imaginação sociológica,
e é desses elementos que a sociologia se ocupa.

A imaginação sociológica permite a observação do mundo social e a busca de respostas para questões
que permeiam a investigação dos objetos de estudo da sociologia:

• Como cada sociedade está organizada?


• Como as transformações históricas, políticas e econômicas mudaram a organização social e a
maneira de as pessoas se relacionarem?
• Como se caracterizam diferentes sociedades e diferentes culturas?
• Como a cultura faz emergir e determina formas de organização social?

Figura 2 – A complexidade do mundo social e a multiplicidade de aspectos que caracterizam a


realidade social tornam fundamental a elaboração de métodos específicos e apropriados para estudar
a sociedade e as relações que nela ocorrem

Disponível em: https://bit.ly/3DpPBom. Acesso em: 12 nov. 2021.

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CIÊNCIAS SOCIAIS

Segundo Arruda (1994), são inúmeros os objetos estudados pela sociologia, entre eles os métodos
para a pesquisa sociológica, os limites do conhecimento sociológico, as instituições culturais e os
processos históricos envolvendo as questões culturais, as artes, os museus, as universidades, as escolas,
os métodos de ensino, a representação política, a cidadania, a violência social, as políticas públicas, as
relações internacionais, as relações sociais de gênero, as instituições religiosas, a religiosidade popular e
as diversas manifestações religiosas encontradas no Brasil. Também fazem parte do escopo da sociologia
os estudos sobre a América Latina e a África Negra, os quais vêm recebendo atenção especial dos
pesquisadores em razão das heranças históricas que partilhamos com outros países da América do Sul
e com a África.

2 PRINCIPAIS CONTRIBUIÇÕES DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO CLÁSSICO

Enquanto área do conhecimento com especificidades e características próprias, a sociologia surgiu


no final do século XIX como resultado das transformações provocadas pela Reforma Protestante, pela
Revolução Industrial e pela Revolução Francesa. Para que o mundo que conhecemos pudesse surgir,
foi necessário que o mundo feudal se desintegrasse por completo e que surgisse uma burguesia
empreendedora e não submissa aos poderes monárquicos e de Roma. As velhas relações feudais baseadas
na servidão e na descentralização política foram, aos poucos, cedendo espaço ao poder centralizador
das monarquias – posteriormente enfraquecidas pela própria burguesia. A Reforma Protestante,
em contrapartida, enfraqueceu o protagonismo da Igreja católica como centro do qual emanavam
valores e costumes.

O desenvolvimento capitalista criou o mundo como o conhecemos e determinou as relações


entre os vários grupos sociais com vistas à produção, à distribuição e ao consumo de bens e serviços.
Assim, a partir do século XVIII, o crescimento demográfico e a industrialização na Europa mudaram a
geografia e as formas de organização social. O progresso se espalhou pelos continentes, impondo novas
formas de trabalho, outros modos de vida e o redesenho das fronteiras geográficas. Os centros urbanos
modificaram-se com a construção de fábricas e com a degradação ambiental. Bairros de operários
surgiram, estradas foram construídas, e a produção de bens e a troca de mercadorias tornaram-se o eixo
das atividades econômicas (HOBSBAWM, 2009).

Duas novas classes sociais apareceram: os burgueses, empreendedores que criavam novas empresas
e novos processos de produção, e os trabalhadores. Esses últimos foram abandonando o campo aos
poucos em busca de novas formas de sobrevivência e, de maneira também irreversível, foram sendo
desapropriados dos seus instrumentos de produção. O trabalho agora ocorria na fábrica, a partir de
horários e regras impostas, e todos os equipamentos necessários para a produção de bens pertenciam
aos donos das fábricas.

A ascensão da burguesia também estimulou cientistas e inventores, todos preocupados em aumentar


a produtividade do trabalho humano e interessados em colaborar para a materialização das promessas
de um mundo que parecia, naquele momento, bastante promissor. Aliás, a palavra de ordem era
progresso, e o mundo científico assumiu a responsabilidade de permitir o conhecimento e o controle da
natureza. A matemática, a física e a biologia consagraram-se como as áreas do saber responsáveis pela
construção de um mundo mais justo e que permitisse melhores condições de vida para a humanidade
(HOBSBAWM, 2009).

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Unidade I

Mais: se, no início, a burguesia havia fortalecido a monarquia como forma de diminuir o poder dos
senhores feudais e da Igreja de Roma, não demorou para que essa burguesia percebesse que não fazia
sentido algum sustentar uma corte de nobres ociosos. Estava aberto o caminho para as revoluções que
pediam maior participação do povo nos assuntos e decisões do Estado, tal como já vinha ocorrendo
na França. Nas colônias – na Ásia, na América e na África –, a exemplo dos Estados Unidos, revoltas e
conflitos buscavam romper os laços de submissão e dependência aos interesses da Europa industrializada
(HUBERMAN, 1974).

Observação
A Revolução Francesa (1789-1799) foi um movimento que uniu
os esforços da classe burguesa e dos trabalhadores contra a nobreza
e a monarquia. Por conta desse movimento, a monarquia absolutista
foi substituída por um regime republicano secular, independente do
poder religioso.

O avanço do capitalismo havia criado não apenas novas classes sociais, mas também estimulado
o avanço da dominação europeia sobre as nações da América Central e do Sul, da Ásia e da África.
As nações europeias precisavam de mercados fornecedores de matérias-primas e consumidores de
bens manufaturados, e a Europa se lançou na direção de territórios ainda não alcançados pelo modo
capitalista de produção e consumo de mercadorias. Inglaterra, Rússia, França, Alemanha, Itália, Bélgica –
e, posteriormente, até mesmo os Estados Unidos – avançaram em direção a Índia, Singapura, Hong Kong,
Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Argélia, Tunísia, Nova Guiné, Micronésia, Samoa Ocidental, Eritreia,
Somália, Líbia, Congo, Cáucaso, Geórgia, Alasca, Havaí e várias ilhas no Pacífico. Os problemas pelos
quais o capitalismo europeu passava naquele momento favoreciam essa expansão forçada e predatória:
as empresas europeias, esmagadas pela concorrência interna, já não tinham para quem vender, e nem
mesmo a formação de oligopólios conseguira salvar a economia. A resposta para a crise estava fora da
Europa (HOBSBAWM, 2009).

O Iluminismo, principal corrente filosófica do período, preconizou a razão como instrumento


fundamental para a construção do conhecimento. Não se tratava mais de usar a fé e a religião como
formas de acesso ao saber, mas de construir um saber a respeito do mundo que tivesse como base a
racionalidade, essa capacidade maior do ser humano de descrever e compreender os fenômenos da
natureza. Os anos de 1800 materializaram um modelo perfeito e acabado de ciência, cujo desenvolvimento
era estimulado e alimentado pela burguesia. Nas palavras de Fonseca (2009), o avanço da ciência era
parte do projeto burguês de progresso e expansão do capitalismo.

Era necessário expurgar emoções, fantasias e crendices no processo de conhecimento do mundo.


A Inglaterra, país que assumiu a dianteira no desenvolvimento da industrialização, não hesitou em
romper com as amarras do cristianismo católico e com o poder papal. A objetividade e a racionalidade
haviam tornado os valores religiosos desnecessários, e não havia razão alguma para permitir que Roma
e os seus pregadores decidissem o que estudar e como estudar. O escritor Charles Dickens (1812-1870),
mais do que ninguém, soube reproduzir esse espírito, que deslocava as emoções e a subjetividade para
um papel secundário em relação à razão e à ciência.
14
CIÊNCIAS SOCIAIS

Figura 3 – Na obra Tempos difíceis, Charles Dickens faz uma crítica às crenças da sociedade inglesa do
século XIX na objetividade da ciência

Fonte: Dickens (2014, capa).

Em Tempos difíceis, uma de suas obras mais interessantes, Dickens buscou mostrar como a sociedade
inglesa do século XIX priorizava a ciência e a razão. A lógica e a racionalidade eram condições necessárias
para a construção do conhecimento, e outros elementos, como crenças e emoções, só faziam obstruir
o caminho rumo à certeza. Não deveria haver qualquer estímulo às fantasias infantis, já que delas
não resultaria qualquer conhecimento prático; nada de rostos na lua, musiquinhas, personagens
ficcionais, animais falantes ou pensantes. Fatos – se possível, mensuráveis: esses deveriam ser o objeto
do conhecimento a ser ensinado às crianças. A observação e a catalogação ampliavam o saber, sendo o
restante absolutamente dispensável. A seguir, apresentamos um trecho da obra Tempos difíceis, na qual
Dickens procura descrever como a crença na racionalidade contaminou a sociedade inglesa no século XIX.
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Unidade I

Tempos difíceis

O Sr. Gradgrind caminhava da escola para casa em estado de considerável satisfação. Era
sua escola, e ele pretendia que ela fosse um modelo. Pretendia que cada criança nela fosse
um modelo – como os jovens Gradgrinds eram todos modelos.

Havia cinco jovens Gradgrinds, e cada um deles era um modelo. Haviam sido doutrinados
desde a mais tenra infância; adestrados, como pequenas lebres. Assim que puderam correr
sozinhos, foram obrigados a correr para a sala de palestras. O primeiro objeto com o qual
tiveram uma associação, ou do qual conservaram alguma lembrança, foi um grande
quadro‑negro no qual um Ogro seco desenhava a giz sinistros algarismos brancos.

Não que conhecessem, por nome ou natureza, qualquer coisa sobre os ogros. Os Fatos os
livrem! Uso a palavra apenas para definir um monstro que vivia num castelo de palestras, só
Deus sabe com quantas cabeças manipuladas numa só, e capturava a infância, arrastando-a
pelos cabelos para tenebrosos covis estatísticos.

Nenhum dos pequenos Gradgrinds jamais vira um rosto na Lua; já ocupavam alturas
lunares antes de falar direito. Nenhum pequeno Gradgrind jamais aprendera a tola
musiquinha: “Brilha, brilha, estrelinha! Lá no céu, pequenininha!”. Nenhum pequeno
Gradgrind jamais fora impreciso sobre o tamanho de uma estrela, já que, aos cinco anos,
cada pequeno Gradgrind já dissecara a Ursa Maior como um professor Owen e dirigira o
Grande Carro como um maquinista de trem. Nenhum pequeno Gradgrind jamais associara
uma vaca no pasto àquela famosa vaca do chifre torcido que chifrou o cão que perseguiu o
gato que matou o rato que comeu o grão, ou àquela vaca, ainda mais famosa, que engoliu
o Pequeno Polegar: nunca ouvira falar dessas celebridades, e fora apresentado às vacas
apenas como quadrúpedes graminívoros e ruminantes, com vários estômagos.

Àquele prosaico lar, batizado de Stone Lodge, o Sr. Gradgrind dirigia seus passos.
[…] Stone Lodge era um elemento bastante regular na superfície da região. Nenhuma
dissimulação atenuava ou obscurecia aquele intransigente fato da paisagem. Uma casa
enorme e quadrada, com um pórtico pesado que obscurecia as janelas principais, assim
como as pesadas sobrancelhas de seu dono ensombreavam seus olhos. Uma casa calculada,
planejada, equilibrada e testada. Seis janelas de um lado da porta, seis do outro; doze no
total numa ala, doze no total na outra ala; vinte e quatro, somando-se as alas de trás. Um
gramado, um jardim e uma pequena entrada, todos regrados e medidos como um livro de
contabilidade botânica. Gás e ventilação, serviço de água e esgoto, tudo de primeira. Traves
e abraçadeiras de ferro, à prova de fogo de cima a baixo; elevadores para as criadas, e todas
as suas escovas e vassouras; tudo que o coração poderia desejar.

Tudo? Bem, suponho que sim. Os pequenos Gradgrinds também tinham gabinetes para
vários campos da ciência. Tinham um pequeno gabinete de conquiliologia, um pequeno
gabinete de metalurgia e um pequeno gabinete de mineralogia; e os espécimes estavam
todos ordenados e rotulados, e as amostras de pedras e minérios pareciam ter sido extraídas
16
CIÊNCIAS SOCIAIS

com instrumentos extremamente rígidos, como seus próprios nomes; e, para parafrasear a
estúpida rima de Peter Piper, que nunca foi dita pelas babás dos pequenos Gradgrinds, se
os gananciosos Gradgrinds ganhassem mais do que isso, o que, em nome da Grande Graça,
ganhariam os gananciosos Gradgrinds?

O pai dos pequenos Gradgrinds continuava caminhando satisfeito e otimista. Ele era
um pai afetuoso, à sua maneira; porém era provável que se descrevesse (se fosse obrigado a
dar uma definição, como Sissy Jupe) como um pai “eminentemente prático”. Orgulhava‑se da
frase “eminentemente prático”, que parecia ter um significado particular quando aplicada
a ele. […]

Ele chegara ao terreno neutro das cercanias da cidade, que não era nem cidade nem
campo e, no entanto, a perspectiva de ambos foi arruinada quando ele ouviu o som da
música. A banda desengonçada e desafinada, adjacente ao estabelecimento hípico que se
instalara em um pavilhão de madeira, zurrava a plenos pulmões. Uma bandeira, tremulando
no alto do templo, proclamava à humanidade que o “Circo Hípico Sleary” reivindicava sua
intercessão. O próprio Sleary, uma corpulenta estátua moderna com um mealheiro junto
do cotovelo, num nicho eclesiástico de arquitetura gótica primitiva, recolhia o dinheiro.
A Srta. Josephine Sleary, segundo anunciavam folhetos impressos muito longos e estreitos,
iniciava os entretenimentos com seu gracioso carrossel tirolês. Naquela tarde, entre outras
maravilhas agradáveis e sempre estritamente honestas que se deveria ver para crer, Signor
Jupe “mostraria as divertidas proezas de seu cão altamente treinado, Patas Felizes”. Também
exibiria “seu espantoso feito de lançar setenta e cinco pesos de cinquenta quilos em rápida
sucessão por cima da cabeça, formando uma fonte de ferro em pleno ar, um feito que jamais
se tentou neste ou em qualquer outro país, arrancando aplausos arrebatados de multidões
entusiasmadas, e por isso não pode deixar de fazer parte do espetáculo”. O mesmo Signor
Jupe animaria “os vários números, a intervalos frequentes, com gracejos castos e réplicas
shakespearianas”. Por último, ele brindaria a plateia interpretando seu personagem favorito,
o Sr. William Button, da rua Tooley, na “recentíssima e hilariante comédia hípica, A viagem
do alfaiate a Brentford”.

É claro que Thomas Gradgrind não prestou nenhuma atenção a essas trivialidades, mas
passou como um homem prático deveria passar, espantando do pensamento os insetos
barulhentos, ou trancando-os na Casa de Correção. Mas a curva da estrada levou-o aos
fundos do pavilhão, e nos fundos do pavilhão havia numerosas crianças em numerosas
atitudes furtivas, esforçando-se para espiar as glórias secretas do lugar.

Aquilo o fez parar. “Ora, e pensar que esses vagabundos”, disse ele, “estão atraindo jovens
hordas para longe de uma escola-modelo”.

Fonte: Dickens (2014).

17
Unidade I

Saiba mais
Baseado em outra obra do mesmo autor, o diretor Roman Polanski
filmou Oliver Twist. Recomendamos que você assista ao filme, em especial
para conhecer a situação de mendicância das crianças nas cidades inglesas
tomadas pela industrialização.
OLIVER Twist. Direção: Roman Polanski. Reino Unido; República Tcheca;
França; Itália: Sony Pictures, 2005. 130 min.

O mundo e os fenômenos da natureza revelavam-se passíveis de mensuração. Tudo poderia ser


quantificado e medido, incluindo “nascimentos, óbitos, doenças, preços, produção, animais, condenados
por crimes, prostituição, uso do solo, da água e do ar, quantidade de bosques, de moinhos, de rebanhos e
de vinhedos” (JUDENSNAIDER, 2012, p. 56). Qual era o principal objetivo desse esforço de quantificação?
Partia-se do pressuposto de que conhecer o mundo permitiria modificá-lo. Assim, a mensuração e a
quantificação seriam utilizadas como instrumentos importantes para a elaboração de leis que explicassem
o funcionamento do mundo e da sociedade; em outras palavras, a construção de leis explicativas
sobre o mundo e a sociedade tornaria possíveis o controle e o domínio dos homens e da natureza.

A sociologia deu os seus primeiros passos nesse contexto. Afinal, como conhecer a sociedade e
como compreender as relações sociais de forma a transformar e melhorar o mundo? A resposta era bem
simples: caberia à sociologia fazer com que o mundo parecesse menos confuso e incompreensível. Como
afirmado por Mills (1975), era responsabilidade da sociologia investigar os fenômenos sociais com rigor
científico, fazendo uso de métodos apropriados para a compreensão daquilo que era seu objeto: a vida
em sociedade e as transformações sociais. Se a biologia e a física forneciam os instrumentos necessários
para o conhecimento da fauna, da flora, do movimento e do mundo celeste, deveria haver uma área do
saber que se encarregasse de fazer a mesma coisa com o mundo social, uma área do conhecimento que
fosse capaz de analisar a realidade do ponto de vista da física social.

Figura 4 – A sociologia tem a proposta de, por meio de métodos científicos, compreender o mundo
social e explicar o seu funcionamento

Disponível em: https://bit.ly/3oOHXjh. Acesso em: 12 nov. 2021.

18
CIÊNCIAS SOCIAIS

Há quem diga que as ciências, de modo geral, não têm pai ou mãe. A ideia por trás dessa afirmativa
é a de que áreas do conhecimento não surgem por conta da atuação de um ou dois pensadores. Na
maior parte das vezes, elas emergem de formas de pensar a realidade ou de tentativas de responder a
perguntas que o tempo histórico coloca diante dos homens. Assim, elas não são realizações de indivíduos
particularmente talentosos ou geniais, mas de circunstâncias que levam os pensadores a refletir sobre
determinados objetos a partir de determinadas maneiras.

Com base nesse pressuposto, não pretendemos aqui falar a respeito dos “pais” da sociologia. Nossa
intenção é trazer para você algumas ideias consideradas “fundadoras” da sociologia, desenvolvidas
por vários pensadores, que, em razão do seu tempo histórico e das situações diante das quais foram
colocados, construíram abordagens que se mostraram, ao longo do tempo, capazes de delimitar uma
nova área do conhecimento. Esses pensadores, vistos como os fundadores do pensamento sociológico,
são Auguste Comte, Émile Durkheim, Karl Marx, Friedrich Engels e Max Weber. A seguir, entraremos em
contato com as suas reflexões e com o ambiente que estimulou as investigações que realizaram.

3 COMTE E DURKHEIM

3.1 Auguste Comte: positivismo

Na Europa do século XIX, o clima era de otimismo em relação ao futuro. Máquinas, invenções
mirabolantes, novos produtos, aumento da produtividade, crescimento populacional, aumento da oferta
de alimentos e produtos, tudo parecia indicar que o destino humano estava irremediavelmente atrelado
ao ideal de progresso. A sociedade, ao longo do tempo, nada fizera além de melhorar e se desenvolver, e
não havia razão alguma para duvidar de que esse fenômeno tivesse um fim (HOBSBAWM, 2009).

Como explicar o avanço da ciência e do conhecimento se não fosse o progresso o motor do


desenvolvimento social? Afinal, a razão e o saber haviam permitido compreender a natureza e modificá‑la,
num continuum sem fim de melhorias, evolução e aperfeiçoamento. O sentido do desenvolvimento
humano seguia uma marcha de avanço, sempre caminhando para a frente, sempre acumulando
conhecimento. Se as ciências naturais e físicas haviam experimentado esse progresso, era razoável

descobrir, através de pressupostos científicos, as leis ou postulados que


regiam o mundo, para que a realidade pudesse se tornar inteligível. [...] Como
os procedimentos científicos haviam proporcionado inúmeras descobertas
no campo das ciências exatas e naturais, caberia então às ciências sociais
descobrir as leis que possibilitassem o conhecimento do homem. A partir
daí foram criadas, no século XIX, sociedades científicas encarregadas de
desenvolver pesquisas na área de ciências sociais e humanas (FAUSTINO;
GASPARIN, 2001, p. 158).

Por um lado, a biologia havia se tornado o paradigma da investigação científica: observava-se a


realidade, coletavam-se dados e categorizava-se a informação. Por meio da observação objetiva e
racional, Charles Darwin havia conseguido provar a evolução das espécies, em razão de sua capacidade
de adaptação. Progresso e evolução: esses eram atributos inequívocos da natureza, representados pelo
19
Unidade I

aumento da complexidade dos seres vivos. Nada mais razoável, portanto, que usar os mesmos métodos
e chegar às mesmas conclusões a respeito do mundo social. E, se fosse possível apreender as leis de
funcionamento da física social, por que não as utilizar para acelerar o processo de avanço da sociedade?

Figura 5 – Segundo o positivismo, da mesma forma que bebês se tornavam adultos e que
sementes faziam crescer árvores, a sociedade, enquanto forma de organização humana,
também estava fadada ao progresso e ao desenvolvimento

Disponível em: https://bit.ly/3FEi9fJ. Acesso em: 12 nov. 2021.

O pensador que melhor simbolizou essa crença no progresso e na aplicação dos métodos empíricos
(quer dizer, ligados à experiência) para alcançar o conhecimento foi Auguste Comte (1798-1857). Nascido
na França, teve uma vida familiar muito instável e problemática, o que explica algumas dificuldades no
seu desenvolvimento emocional. Na Escola Politécnica de Paris, teve aulas com a nata da intelectualidade
europeia, e esse convívio fortaleceu nele a crença de que a humanidade estava destinada a se organizar,
social e politicamente, de forma racional (GIANNOTTI, 1978), desde que fizesse uso do conhecimento
científico e objetivo.

Este é um aspecto importante do pensamento comtiano: da mesma forma que o conhecimento


havia se desenvolvido ao longo do tempo, deixando para trás as explicações místicas e religiosas, era
possível que a organização da sociedade fosse se aprimorando com o tempo, libertando-se de crendices
e falsas concepções, e permitindo que todos usufruíssem dos benefícios do progresso. Comte também
entrou em contato com as ideias de alguns pensadores franceses e ingleses, de origem liberal, mas
utópicos, que sonhavam em construir sociedades perfeitas, nas quais todos trabalhariam na medida do
preciso, sem que houvesse qualquer necessidade de dinheiro ou posse de bens – sociedades nas quais a
igualdade e a felicidade estariam ao alcance de todos (HEILBRONER, 1996).

A obra maior de Comte e, portanto, a obra fundadora da física social, a sociologia, é o Curso de
filosofia positiva. Nesse livro, Comte ataca a abstração matemática (embora ele mesmo fosse um
matemático) e põe no topo do conhecimento a física, a química e a biologia. Caso a física social pudesse
fazer uso dos métodos experimentais consagrados pela física, pela química e pela biologia, ela faria jus
ao estatuto de ciência.

20
CIÊNCIAS SOCIAIS

Assim, o positivismo desenvolveu-se como uma escola de pensamento cujo traço marcante era
a defesa de soluções para resolver as mazelas sociais, mesmo as decorrentes do desenvolvimento
capitalista. Em outros termos, essa filosofia defendeu ser “possível que a ciência elaborasse instrumentos
para debelar todos os problemas da humanidade, até porque, e principalmente, o modo de produção era
fortemente influenciado pela ciência” (FAUSTINO; GASPARIN, 2001, p. 279). Era necessário dominar as
emoções e permitir que a ordem conduzisse a humanidade na direção do desenvolvimento harmonioso.
Por isso, com exceção da física, da química e da biologia, não havia razão alguma para permitir o
avanço de outras formas de conhecimento. Sim, havia a física social, mas o que garantia o seu atributo
científico era justamente o fato de ela fazer uso dos métodos das ciências consagradas.

Figura 6 – Monumento em homenagem ao pensador Auguste Comte, em Paris

Adaptada de: https://bit.ly/3mFlrH7. Acesso em: 12 nov. 2021.

Para Comte, era condição essencial que a sociedade passasse por transformações para que o futuro
glorioso da humanidade se confirmasse. Era fundamental que houvesse uma nova forma de pensar o
mundo e que essa forma impregnasse todas as áreas do conhecimento, permitindo a construção de uma
nova sociedade (GIANNOTTI, 1978). O conhecimento comtiano partia das seguintes premissas:

1) na história está presente uma lei que tende, através de graus ou


etapas, à perfeição e à felicidade do gênero humano; 2) tal processo de
aperfeiçoamento é geralmente identificado com o desenvolvimento e com
o crescimento do saber científico e da técnica; 3) ciência e técnica são a
principal fonte do progresso político e moral, constituindo a confirmação de
tal progresso (ROSSI, 2000, p. 96).

21
Unidade I

Para Comte, a história do saber mostrava que o homem havia deixado para trás a teologia (a religião)
e a metafísica (a filosofia até então construída). Faltava agora caminhar na direção da ciência positiva, e
isso envolvia um conjunto de princípios que tornasse possível olhar a sociedade a partir de um ponto
de vista científico. Se no estado teológico os fenômenos poderiam ser explicados por meio da ação de
agentes sobrenaturais, e se no estado metafísico as forças sobrenaturais poderiam explicar a experiência
humana, o estado positivo exigia

buscar, através do uso da razão, da observação e de leis efetivas, as


relações que ligam todos os fenômenos. Nesse modelo explicativo, o real
não é estático, porém a dinâmica que ocasiona a transformação se dá de
forma evolutiva, linear e previsível. Apresenta-se com um encadeamento
objetivo, pois o estado da civilização humana em cada geração depende
do estado da geração precedente e que irá produzir o seguinte (FAUSTINO;
GASPARIN, 2001, p. 159).

Qual o motivo de Comte associar o adjetivo positivo ao seu instrumental filosófico? O termo positivo
servia para se contrapor às superstições e crenças sem qualquer fundamentação científica. Para que o
conhecimento positivo pudesse ser construído, era necessário:

• classificar e categorizar os fenômenos da natureza social;

• apreender as leis de funcionamento do mundo social;

• fazer uso dessas leis para melhorar a sociedade e a humanidade.

Vejamos o que diz Comte em sua obra mais importante.

Curso de filosofia positiva

Para explicar convenientemente a verdadeira natureza e o caráter próprio da filosofia


positiva, é indispensável ter, de início, uma visão geral sobre a marcha progressiva do espírito
humano, considerado em seu conjunto, pois uma concepção qualquer só pode ser bem
conhecida por sua história.

Estudando, assim, o desenvolvimento total da inteligência humana em suas diversas


esferas de atividade, desde seu primeiro voo mais simples até nossos dias, creio ter descoberto
uma grande lei fundamental, a que se sujeita por uma necessidade invariável, e que me
parece poder ser solidamente estabelecida, quer na base de provas racionais fornecidas pelo
conhecimento de nossa organização, quer na base de verificações históricas resultantes
dum exame atento do passado. Essa lei consiste em que cada uma de nossas concepções
principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estados
históricos diferentes: estado teológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado
científico ou positivo. Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza, emprega
sucessivamente, em cada uma de suas investigações, três métodos de filosofar, cujo caráter
22
CIÊNCIAS SOCIAIS

é essencialmente diferente e mesmo radicalmente oposto: primeiro, o método teológico,


em seguida, o método metafísico, finalmente, o método positivo. Daí três sortes de filosofia,
ou de sistemas gerais de concepções sobre o conjunto de fenômenos, que se excluem
mutuamente: a primeira é o ponto de partida necessário da inteligência humana; a terceira,
seu estado fixo e definitivo; a segunda, unicamente destinada a servir de transição.

No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas investigações


para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o
tocam, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, apresenta os fenômenos como
produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos,
cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo.

No estado metafísico, que no fundo nada mais é do que simples modificação geral
do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras
entidades (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas
como capazes de engendrar por elas próprias todos os fenômenos observados, cuja
explicação consiste, então, em determinar para cada um uma entidade correspondente.

Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter


noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as
causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso
bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações
invariáveis de sucessão e de similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos
reais, se resume de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos
particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez
mais a diminuir.

O sistema teológico chegou à mais alta perfeição de que é suscetível quando


substituiu, pela ação providencial de um ser único, o jogo variado de numerosas divindades
independentes, que primitivamente tinham sido imaginadas. Do mesmo modo, o último
termo do sistema metafísico consiste em conceber, em lugar de diferentes entidades
particulares, uma única grande entidade geral, a natureza, considerada como fonte exclusiva
de todos os fenômenos. Paralelamente, a perfeição do sistema positivo à qual este tende
sem cessar, apesar de ser muito provável que nunca deva atingi-la, seria poder representar
todos os diversos fenômenos observáveis como casos particulares dum único fato geral,
como a gravitação o exemplifica.

Fonte: Comte (1978, p. 34-37).

Há ainda outro aspecto importante a ser considerado em relação ao positivismo: da mesma maneira
que ele se apoiou na biologia a fim de definir a metodologia ideal para investigar fenômenos sociais,
também absorveu algumas ideias a respeito de evolução, talvez de uma forma que o próprio Darwin não
teria admitido. Assim, o positivismo acabou por ensejar a concepção do darwinismo social. Quais eram os
princípios que norteavam o darwinismo social? O raciocínio era o seguinte: se as espécies evoluíam em
23
Unidade I

função da sua capacidade de adaptação, as formas de organização social também estavam destinadas
a esse processo. Desse modo, era possível imaginar que formas mais primitivas de organização social
seriam capazes, especialmente se estimuladas, de adquirir feições mais “avançadas” e complexas.

Um dos mais importantes representantes do darwinismo social foi Herbert Spencer (1820-1903).
O contexto favorecia a disseminação dessas ideias, já que as viagens marítimas e a chegada ao Novo
Mundo haviam colocado os europeus em contato com outras sociedades, tidas como primitivas. Cabia
aos europeus, mais “avançados”, agir para que essas formas primitivas progredissem para formas mais
complexas e menos inferiores em termos de desenvolvimento social. Assim, o darwinismo social acabou
por dar embasamento teórico às práticas etnocêntricas do século XIX, práticas essas que assumiam que
a sua própria cultura deveria ser utilizada como parâmetro de comparação com outras culturas.

Observação

Alguns autores mencionam a proximidade entre o darwinismo social


e as teorias eugênicas, que no início do século XX defenderam a melhoria
da raça humana a partir de processos artificiais de seleção. Se a sociedade
estava fadada ao progresso e ao desenvolvimento, nada mais justificável do
que eliminar genes defeituosos por meio da esterilização de pessoas que
não fossem “perfeitas” e estimular o nascimento de pessoas que portassem
genes bons. Também há autores que afirmam que essas ideias podem ter
inspirado parte das práticas de extermínio de povos tidos como inferiores,
como as realizadas pelo regime nazista e por outros regimes totalitários.

Assim como ocorreu na Europa e em outros locais, o positivismo transformou o pensamento


político do Brasil no final do século XIX e início do século XX. Era, inclusive, a escola filosófica que mais
encontrava aderência ao momento histórico de um país em construção, povoado por antigos escravos,
índios, mestiços e alguns brancos. Não à toa, nossa bandeira contém os dizeres “ordem e progresso”,
símbolos da ciência positiva. Até mesmo na literatura, o positivismo marcou presença, como na obra de
Monteiro Lobato (1882-1948).

Observação

Admirador da eugenia, Lobato construiu, em sua obra literária,


personagens que materializaram a imagem dos negros como inferiores
do ponto de vista racial, já que, para o autor, a “mistura” entre raças
“comprometia” a formação do povo brasileiro. Tal abordagem é hoje
criticada por professores de literatura e educadores, em especial pelo fato
de Lobato ter escrito uma série de obras infantis que são constantemente
indicadas para crianças em processo de desenvolvimento das habilidades
de ler e escrever. É importante mencionar que a defesa de Lobato do
evolucionismo social é fruto de um contexto muito específico, no qual as
24
CIÊNCIAS SOCIAIS

diferenças raciais eram percebidas como evidência empírica da evolução


da sociedade e do ser humano em direção ao progresso. Curiosamente, o
problema de Lobato não se limitava à questão étnica: outro personagem
seu, Jeca Tatu, serviu para que o autor criticasse o caráter deformado do
caipira caboclo. Jeca Tatu é indolente, preguiçoso, um sujeito sem ambição
política, econômica ou cultural. Para Lobato, Jeca Tatu era o símbolo da
miséria econômica e intelectual na qual o país vivia. Na obra lobatiana, Jeca
Tatu só se transforma num ser humano “evoluído” quando aprende inglês
e vai para os Estados Unidos.

A profunda convicção de Comte em relação às suas ideias inaugurou uma espécie de seita, na qual
seguidores defendiam e buscavam praticar os princípios da filosofia positiva. De fato, não precisou
muito para que o positivismo ganhasse ares de religião. Para acrescentar mais uma peculiaridade, Comte
apaixonou-se profundamente por uma mulher casada (e abandonada pelo marido), Clotilde de Vaux.
A sua devoção a essa mulher, bem como o martírio em que ela vivia por não poder se divorciar, fizeram de
Clotilde a mãe espiritual de várias igrejas positivistas, inclusive no Brasil, onde ela passou a ser adorada.

Em tempo: nas igrejas positivistas, e no decorrer de décadas, as vacinas e as realizações científicas


passaram a ser rechaçadas. Curiosamente, ao lutar contra a religião e o misticismo, Comte inaugurou
outra religião, que passou a preconizar distância em relação à ciência e à objetividade.

3.2 Émile Durkheim: fatos sociais, consciência coletiva, solidariedade mecânica


e orgânica

O francês David Émile Durkheim (1858-1917) desenvolveu a sua obra durante o período em que
o capitalismo não apenas havia se disseminado por toda a Europa, mas também já lograra sucesso
na apropriação dos recursos das economias não capitalistas da Ásia, da África e da América Latina.
A burguesia estava diante de novos problemas que o processo de industrialização e a urbanização
acelerada haviam trazido: que modelo de educação deveria prevalecer, o modelo que consagrava a fé
ou o representado pelo ensino secular? Quais regras e condutas deveriam reger a vida da sociedade, as
religiosas ou as do direito laico? Como e a partir de quais valores a sociedade deveria se organizar?

Do ponto de vista socioeconômico, o capitalismo enfrentava a sua primeira grande crise de superprodução,
ao mesmo tempo que novas invenções assombravam a todos na Exposição Universal de 1900, em Paris. Agora
a humanidade podia dispor de submarinos e aviões, embora o acesso à modernidade fosse desigual.
Havia os que vendiam a sua força de trabalho por salários cada vez menores, que se alimentavam
cada vez menos e viviam em condições cada vez mais degradantes. A indústria gráfica intensificara
a disseminação do conhecimento científico, e o cinema encantava a todos, mas, na Europa, grupos
de trabalhadores revoltavam-se e pegavam em armas – como suas reivindicações não eram ouvidas
(tampouco atendidas), a única saída era a violência (HOBSBAWM, 2009).

Durkheim, filho de uma família de origem judaica, formou-se em filosofia e logo se interessou pela
sociologia. Vários temas chamaram a sua atenção, em especial as questões relacionadas à metodologia

25
Unidade I

do estudo do campo social. Se o objeto da sociologia era diferente dos objetos da física, da química e da
biologia, fazia-se necessário elaborar e identificar métodos próprios, específicos e apropriados.

Para Durkheim, os fenômenos sociais coletivos eram o objeto de estudo da sociologia. Assim,
inicialmente, sua atenção voltou-se para a compreensão das instituições, práticas e crenças religiosas.
Os métodos adotados foram os da observação, descrição e classificação dos dados coletados.
Posteriormente, o uso de métodos matemáticos e estatísticos permitiu que Durkheim apreendesse as
principais características do objeto investigado.

É importante assinalar que, ainda hoje, os métodos desenvolvidos por Durkheim são amplamente
utilizados com o objetivo de investigar comportamentos e crenças de determinados segmentos sociais,
de municiar as instituições com informações para a elaboração de estratégias públicas ou de oferecer
informações para as empresas a respeito dos seus consumidores. Veja, por exemplo, este artigo publicado
pela revista Exame, em 2017, a respeito das características dos millennials e da geração Z, características
essas identificadas por meio de pesquisas sociais quantitativas e qualitativas.

Os millennials, lamentamos informar, são coisa do passado

Os departamentos de marketing e de recursos humanos gastam fortunas para descobrir


o melhor jeito de se comunicar, contratar e, sobretudo, vender para a faixa etária mais
influente e inspiradora da história. A pesquisa “marketing para os millennials” (em inglês)
tem quase 30 milhões de resultados no Google. A Harvard Business Review, principal
publicação sobre gestão de negócios do mundo, tem 2 mil artigos, estudos ou livros sobre
essa geração.

Os millennials são de fato fascinantes: estão sempre conectados, são questionadores,


priorizam a experiência em detrimento da posse, são embaixadores da sustentabilidade.
Mas os jovens de hoje são os velhos de amanhã. E, em dezembro de 2017, os millennials,
lamentamos informar, são coisa do passado. Eles continuarão por aí por décadas e décadas.
Gastarão cada vez mais, terão filhos, netos, bisnetos. Mas quem vai ditar a forma como as
empresas atuam, e como a roda do consumo gira, na próxima década será a geração Z, a
que nasceu de 1995 a 2010 – e tem, portanto, de 7 a 22 anos de idade.

Os Zs são cerca de 26% da população mundial e, só nos Estados Unidos, respondem por
830 bilhões de dólares em gastos por ano, de acordo com uma pesquisa da consultoria Fung
Global Retail & Technology. No Brasil, somam 30 milhões de pessoas. Eles estão afetando
as empresas não só pelo poder de compra, mas principalmente pela influência que exercem.
“A sociedade valoriza cada vez mais a juventude sobre a sabedoria. Os pais dessa geração
estão mais próximos e se identificam mais com os filhos do que as gerações anteriores.
Os Zs, portanto, já nascem com um poder de influência enorme”, diz a americana Kit Yarrow,
psicóloga especialista em consumo e autora de livros como Geração compra: como os jovens
estão revolucionando o varejo (numa tradução livre, sem versão para o português).

26
CIÊNCIAS SOCIAIS

Para entender o que os Zs querem e que impactos eles trarão para a economia do Brasil
e do mundo, as consultorias McKinsey, especializada em gestão, e Box1824, focada em
análise de tendências jovens, destrincharam o comportamento dessa faixa etária no país
numa ampla pesquisa. Entre junho e outubro deste ano, foram realizadas 120 entrevistas
qualitativas com jovens de 14 a 22 anos e grupos de análise com outros 90.

Os pesquisadores também fizeram 2.300 entrevistas quantitativas com pessoas das


gerações baby boomer, X, millennial e Z para entender a diferença entre elas nos padrões de
consumo. “Os jovens da geração Z são mais realistas e pragmáticos do que os millennials.
Eles também não podem ser definidos por rótulos, são mais tolerantes e abertos ao diálogo
e levam as coisas com mais humor e leveza, já que não sentem carregar nas costas o peso
de mudar o mundo”, diz Tracy Francis, sócia responsável pelos setores de bens de consumo
e de varejo da McKinsey na América Latina e uma das responsáveis pelo estudo.

Adaptado de: Kojikovski (2017).

Figura 7 – As empresas de pesquisa e consultoria McKinsey e Box1824 realizaram


uma pesquisa com 2.300 jovens para compreender as diferenças entre os assim
chamados grupos baby boomer, X, millennial e Z

Disponível em: https://bit.ly/3au65zA. Acesso em: 12 nov. 2021.

Durkheim acreditava que a investigação sociológica merecia métodos próprios. Em consequência,


em vez de adotar uma abordagem mecanicista do mundo social (abordagem comum em outras áreas

27
Unidade I

do conhecimento), buscou conceber o reino social como um ambiente organicista, no qual o homem, e
não a máquina ou a tecnologia, era o elemento principal.

Na verdade, Durkheim havia adaptado os métodos das ciências naturais para a investigação dos
fenômenos sociais. A inovação, entretanto, era a definição e a constituição do objeto de estudo da
sociologia, denominado, a partir de então, de fato social. Associado a formas de agir, pensar e se
comportar, o fato social dizia respeito ao que era característico de um grupo de pessoas – dizia
respeito não ao individual (ao comportamento individual, às formas individuais de compreensão do
mundo), mas às regras que eram impostas ao grupo em razão de uma força exterior, quase que como
uma consciência coletiva.

Para Durkheim, o fato social era o objeto do conhecimento sociológico. Ele correspondia a toda
maneira de agir – permanente ou provisória – absorvida e aceita pelo indivíduo em decorrência de uma
coerção exterior. Era o comportamento possível de ser percebido na sociedade, independentemente das
manifestações individuais. O importante não era o agir e o pensar individual, mas aquilo que ultrapassava
o nível do indivíduo e alcançava a sociedade como um todo. Pense, por exemplo, nas maneiras como o
grupo de amigos do qual você faz parte se veste e se comunica. Com certeza há diferenças individuais,
mas há traços gerais que, longe de serem escolhas racionais do grupo, são vistos como naturais, quase
que determinados. Portanto, o fato social não está associado ao comportamento de um indivíduo, mas
ao comportamento de um grupo, cuja explicação está no próprio grupo e nas formas a partir das quais
ele se submete a forças exteriores.

É provável que você esteja se perguntando: mas qual é a origem dessas forças externas de coerção,
que determinam nossos hábitos e crenças? A resposta, para Durkheim, era bastante simples: o próprio
grupo estabelecia os princípios coercitivos, os valores e os hábitos a serem incorporados por todos. Os
fatos sociais tinham origem na própria dinâmica da vida social e, ao mesmo tempo, exerciam controle
sobre essa mesma sociedade. Afinal, quem nos convenceu da importância do consumo consciente?
Quem nos ensinou a acolher e a respeitar diferenças de etnia, gênero e religião? Todas essas ações foram
realizadas pelo próprio corpo social, em função de questões e problemas colocados diante da sociedade
ao longo do tempo.

Vamos pensar a respeito dessas forças exteriores que influenciam e determinam nosso comportamento.
A educação (enquanto processo social e que envolve instituições sociais) tem imensa influência sobre
a nossa maneira de vestir, de consumir, de assumir posições políticas. O mesmo ocorre com a família e
com a mídia. Há algo de coletivo no comportamento do grupo que transcende o que é individual. Por
isso, Durkheim estava convicto de que a educação moral era uma condição necessária para a existência
da sociedade. Mais: era fundamental que a escola pública e laica (não religiosa) educasse os jovens para
a vida em sociedade. O estreitamento dos laços sociais e dos elos entre as pessoas, a internalização de
normas e o estabelecimento de valores e objetivos comuns eram tarefas que deveriam ficar a cargo da
escola, e da escola laica (TURA, 2006). O comportamento das crianças é ensinado; quando a coerção do
grupo acontece de forma não autoritária, praticamente não se percebe o quanto desse comportamento
não é natural ou espontâneo (PILETTI; PRAXEDES, 2010).

28
CIÊNCIAS SOCIAIS

Assim, para Durkheim, a educação não era uma questão que envolvia apenas interesses individuais;
ao contrário, ela afetava a vida em sociedade, já que moldava a formação do cidadão segundo as
necessidades do próprio grupo social. Cabia ao professor transmitir os valores defendidos pelo grupo
social, ao menos nos primeiros anos de vida, e capacitar os alunos para que, posteriormente, eles
pudessem decidir, por conta própria, quais os valores que deveriam seguir e defender.

Observação

Parece claro que, de fato, Durkheim entendia como essencial que


se diminuísse a influência das instituições religiosas na educação das
crianças e dos jovens. No entanto, há sociólogos que consideram suas
ideias bastante conservadoras, já que ele não examinou a escola como
um espaço que pudesse ir além da reprodução dos hábitos, valores e
normas vigentes no grupo social. Por que não considerar a escola como
um espaço de transformação, no qual velhas estruturas pudessem ser
substituídas por outras?

Na perspectiva de Durkheim, a educação, na medida em que exercia poder coercitivo sobre o


comportamento social, era um fato social. O mesmo podia ser dito em relação à estrutura familiar,
às instituições religiosas e às diferentes formas de organização política: todas elas constituíam fatos
sociais, já que não dependiam, única e exclusivamente, das decisões e escolhas individuais. Para melhor
compreender os fatos sociais, Durkheim desenvolveu os conceitos de coerção e solidariedade.

A coerção diz respeito ao caráter impositivo de determinados fatos sociais, e pode ocorrer quando um
grupo organizado age de forma a pressionar um indivíduo isolado, ou quando há imposições indiretas
que obrigam o indivíduo a adotar determinado comportamento. Nesse último caso, estamos falando
da pressão que os indivíduos exercem em si mesmos, em especial quando percebem a necessidade
de assumir certas posturas ou adotar certos valores se isso for uma exigência para a ascensão social
(VARES, 2016). Como explica Durkheim,

se não me submeto às convenções do mundo, se, ao vestir-me, não levo


em conta os costumes observados em meu país e minha classe, o riso que
provoco e o afastamento em relação a mim produzem, embora de maneira
mais atenuada, os mesmos efeitos que uma pena propriamente dita.
Ademais, a coerção, mesmo sendo apenas indireta, continua eficaz. Não sou
obrigado a falar francês com meus compatriotas, nem a empregar as moedas
legais; mas é impossível agir de outro modo (apud VARES, 2016, p. 108).

29
Unidade I

Figura 8 – O bullying refere-se a atitudes ameaçadoras, em geral direcionadas a crianças e


adolescentes. Não são raras as vezes em que o bullying tem o propósito de punir, de alguma forma,
pessoas que não se adéquam a padrões valorizados pelo grupo

Disponível em: https://bit.ly/3DuMkUL. Acesso em: 12 nov. 2021.

A solidariedade, outro conceito importante do pensamento de Durkheim, diz respeito à consciência


coletiva que determina como um grupo deve assumir, aceitar e defender valores e normas em benefício
do próprio grupo. Está associada ao que dissemos antes sobre consciência social: quanto mais
fortalecida a consciência que ultrapassa os limites dos interesses individuais, maior a solidariedade e
a coesão existente numa sociedade. Por conta disso, em geral, encontramos um maior grau de coesão
e solidariedade em comunidades pequenas, nas quais todos se conhecem e os interesses em comum
são mais evidentes. Em sociedades que vivem em centros urbanos, e que se caracterizam pela extrema
complexidade das relações, a solidariedade e a coesão são mais difíceis de alcançar.

Para Durkheim, há duas formas de solidariedade: a mecânica e a orgânica. A mecânica seria aquela
construída nas comunidades menores. Nestas, o interesse de todos prevalece – ou se sobressai – em
relação aos interesses individuais: a chuva que alaga a avenida principal atinge a todos; a falta de
medicamentos no centro de saúde afeta a todos; as comemorações natalinas envolvem a todos. Nas
sociedades mais primitivas, a solidariedade mecânica ocorre quando os indivíduos estão conectados
diretamente ao grupo por meio do compartilhamento de crenças e interesses.

Em contrapartida, a solidariedade orgânica ocorre em sociedades nas quais a divisão do trabalho é


mais intensa, cada indivíduo tornando-se responsável por uma função ou por uma atividade. Os membros
do grupo não compartilham valores e projetos por se sentirem parte de uma mesma comunidade, mas
pela interdependência existente entre eles, por conta da atribuição de tarefas que são indispensáveis à
sobrevivência do grupo. Essa solidariedade ocorre apesar de os indivíduos terem crenças e interesses
distintos, em especial por dependerem uns dos outros em razão da divisão do trabalho. Assim, a coesão
acontece não pelo compartilhamento de valores, mas pelo estabelecimento de códigos e regras que
fixam direitos e deveres.
30
CIÊNCIAS SOCIAIS

Figura 9 – A complexidade da organização social determina o grau e a intensidade dos laços de


solidariedade e coesão existentes no grupo

Disponível em: https://bit.ly/306rLQ6. Acesso em: 12 nov. 2021.

Saiba mais

Um filme extremamente interessante sobre o poder coercitivo do grupo


é A onda. Responsável por ensinar aos alunos a natureza de aparelhos
estatais autocráticos (como o regime nazista e o regime fascista), um
professor adota a estratégia de permitir que os alunos, por meio da coerção,
submetam os colegas a práticas autoritárias e violentas.

A ONDA. Direção: Dennis Gansel. Alemanha: Rat Pack Filmproduktion,


2008. 107 min.

Sugerimos também um filme sobre a questão da coesão social, A vila, que


narra a vida dos habitantes de uma aldeia que decidem se manter isolados
e, portanto, distantes dos vícios e da violência da sociedade moderna.

A VILA. Direção: M. Night Shyamalan. Estados Unidos: Touchstone


Pictures; Blinding Edge Pictures; Scott Rudin Productions, 2004. 120 min.

Por conta da sua análise a respeito do que caracteriza o fato social, e a fim de enfatizar a importância
dada às relações de solidariedade, Durkheim identificou os componentes sociais do crime e da punição.

31
Unidade I

Lembrete

Os atos sociais não podem ser explicados apenas pelo comportamento


do indivíduo. Para entender determinado fenômeno social, deve-se ir
além, compreendendo aquilo que é produzido pelo corpo social e que, por
força da necessária coesão e solidariedade entre os elementos do grupo, é
imposto ao indivíduo.

Em Da divisão do trabalho social, Durkheim fala sobre a consciência coletiva, a consciência que não
deriva de um único indivíduo, mas que se difunde por toda a sociedade. Essa consciência coletiva impõe
normas e valores, o que inclui não apenas a noção do ato criminoso, mas também a da pena à qual ele
está sujeito.

O conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de


uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem vida própria;
podemos chamá-lo de consciência coletiva ou comum. Sem dúvida, ela não
tem por substrato um órgão único; ela é, por definição, difusa em toda
a extensão da sociedade, mas tem, ainda assim, características específicas
que fazem dela uma realidade distinta. De fato, ela é independente das
condições particulares em que os indivíduos se encontram: eles passam,
ela permanece. […] Ela é, pois, bem diferente das consciências particulares,
conquanto só seja realizada nos indivíduos. Ela é o tipo psíquico da sociedade,
tipo que tem suas propriedades, suas condições de existência, seu modo de
desenvolvimento, do mesmo modo que os tipos individuais, muito embora
de outra maneira (DURKHEIM, 1999, p. 50).

Estatísticas, documentos históricos, tradições e quaisquer outras formas de materializar a atividade


social de uma comunidade foram os objetos a partir dos quais Durkheim sugeriu investigar os fatos sociais.
Foi a partir desse ponto de vista que ele analisou a questão da divisão do trabalho. Embora a abordagem
tradicional percebesse a divisão do trabalho apenas como forma de aumentar a posse de bens, o status
social e o prazer (por meio do consumo de bens e serviços que essa divisão permitiria), Durkheim buscou
analisar a divisão de trabalho de outra maneira.

Ao contrário, a capacidade de felicidade humana é restrita e tende a ser


estável, assim como a saúde. Ambas – felicidade e saúde – dizem respeito a
um estado de equilíbrio geral e constante: quem busca mais saúde adoece,
assim como quem busca mais felicidade, que é definida por Durkheim como
sendo a saúde da vida psíquica e moral. […] O ser “civilizado” não seria
mais feliz que o selvagem […], uma vez que a civilização trouxe também
uniformidade e impôs ao homem trabalhos monótonos e contínuos.
Estaríamos hoje expostos a sofrimentos que os selvagens não conhecem
e, portanto, não seria “completamente certo que o balanço se salde em
nosso proveito”. […] A felicidade não seria a soma desses prazeres, ela não
32
CIÊNCIAS SOCIAIS

seria o estado momentâneo de uma dada função particular, e sim a saúde


da vida psíquica e moral no seu conjunto. Enquanto o prazer decorre de
causas efêmeras, a felicidade decorreria de disposições permanentes
(HERCULANO, 2006, p. 26).

Para Durkheim, não se tratava de a sociedade buscar o aumento da felicidade ou do prazer, já que
cada “avanço” na qualidade de vida corresponderia ao surgimento de alguma desvantagem. Do ponto
de vista histórico, haveria um equilíbrio geral em termos de felicidade social. Para o autor, a divisão de
trabalho tinha como origem o aumento da complexidade da sociedade e dos desafios que os homens
deveriam enfrentar para garantir a sua sobrevivência. Assim, a divisão do trabalho poderia proteger a
comunidade de determinados conflitos, já que arrefeceria a necessidade de eliminação mútua.

Em outras palavras, em vez de disputar cada centímetro de chão para garantir a sua sobrevivência,
a sociedade dividiria entre todos as tarefas essenciais para a sobrevivência, garantindo-a coletivamente.
Ocorre que a divisão de trabalho só pode acontecer, nesses termos, quando a sociedade está constituída
e quando os seus membros se percebem como parte de uma mesma comunidade, com as mesmas
necessidades, dificuldades e objetivos. Em resumo, a sociedade deve estar dotada de laços morais.
“É preciso que haja um sentimento de identidade, de união, de partilhamento de coisas em comum, de
fraternidade, para que exista cooperação” (HERCULANO, 2006, p. 27).

Com base nessa análise, Durkheim elaborou o conceito de anomia social, fenômeno associado ao
esgarçamento do tecido social e à ausência de regras para o convívio. Nas sociedades modernas, a anomia
ocorreria porque a industrialização obriga os homens ao trabalho repetitivo e monótono. A falta de um
ideal moral, portanto, reduziria o homem à dimensão econômica, impedindo o seu aperfeiçoamento e
debilitando a vida social.

Na verdade, sublinha Durkheim, é só na sociedade organizada que podemos


falar de indivíduo e de liberdade individual, pois ambos se desenvolvem com
a divisão do trabalho social. Enquanto as sociedades inferiores, segmentares,
têm seus laços, sua solidariedade, assegurados pela comunidade das crenças e
dos sentimentos, as sociedades organizadas têm na interdependência, trazida
pela divisão do trabalho, o seu vínculo moral (HERCULANO, 2006, p. 33).

33
Unidade I

Figura 10 – A anomia social é uma situação na qual a sociedade perde a capacidade de regular o
comportamento da comunidade; em geral, esse fenômeno está associado à perda de vínculos sociais

Disponível em: https://bit.ly/3oWQVeF. Acesso em: 12 nov. 2021.

Por conta da noção de anomia social, Durkheim interessou-se pela questão do suicídio. Para ele, o
suicídio era um reflexo das condições sociais dadas. Assim, ao final do século XIX, Durkheim compreendeu
o suicídio como consequência da vida moderna e do impacto que essa modernidade provocava nas
relações sociais. Inicialmente, Durkheim analisou os dados estatísticos disponíveis e percebeu certa
regularidade no número de suicídios em alguns países da Europa. O cruzamento desses dados com
outros de natureza socioeconômica (idade, estado civil, religião, sexo etc.) permitiu que ele entendesse
melhor as razões sociais vinculadas ao suicídio. Em outras palavras, ele buscou compreender o suicídio
enquanto fato social.

Essa análise possibilitou a diferenciação de três diferentes tipos de suicídio:

• Egoísta: relacionado ao ato individual, de origem extremada.

• Altruísta: relacionado à obediência ou à percepção de que o ato poderia favorecer a coletividade.

• Anômico: relacionado a circunstâncias sociais específicas (crises econômicas, por exemplo).

A seguir, mostramos os dados que Durkheim analisou na sua obra O suicídio. Como você pode notar,
esse processo (de recolher dados e analisá-los) não é muito diferente daquele que estamos acostumados
a realizar, atualmente, quando pretendemos estudar um fenômeno.

34
CIÊNCIAS SOCIAIS

Tabela 1 – Constância do suicídio nos principais países da Europa


(números absolutos)

Ano França Prússia Inglaterra Saxônia Baviera Dinamarca


1841 2.814 1.630 290 337
1842 2.866 1.598 318 317
1843 3.020 1.720 420 301
1844 2.973 1.575 335 244 285
1845 3.082 1.700 338 250 290
1846 3.102 1.707 373 220 376
1847 (3.647) (1.852) 377 217 345
1848 (3.301) (1.649) 398 215 (305)
1849 3.583 (1.527) (328) (189) 337
1850 3.596 1.736 390 250 340
1851 3.598 1.809 402 260 401
1852 3.676 2.073 530 226 426
1853 3.415 1.942 431 263 419
1854 3.700 2.198 547 318 363
1855 3.810 2.351 568 307 399
1856 4.189 2.377 550 318 426
1857 3.967 2.038 1.349 485 286 427
1858 3.903 2.126 1.275 491 329 457
1859 3.899 2.146 1.248 507 387 451
1860 4.050 2.105 1.365 548 339 468
1861 4.454 2.185 1.347 (643)
1862 4.770 2.112 1.317 557
1863 4.613 2.374 1.315 643
1864 4.521 2.203 1.340 (545) 411
1865 4.946 2.361 1.392 619 451
1866 5.119 2.485 1.329 704 410 443
1867 5.011 3.625 1.316 752 471 469
1868 5.547 3.658 1.508 800 453 498
1869 5.114 3.544 1.588 710 425 462
1870 3.270 1.554 486
1871 3.135 1.495
1872 3.467 1.514

Fonte: Durkheim (2000, p. 18).

Para comprovar a influência de Durkheim na formação de sociólogos, vejamos um exemplo de estudo


recente realizado por Souza et al. (2020), que estudaram as circunstâncias envolvidas nas elevadas taxas
de suicídio em comunidades indígenas. Os autores identificaram o problema da seguinte forma:

35
Unidade I

Os povos indígenas representam 0,4% da população total do Brasil.


Caraterizados pela diversidade, apresentam configurações particulares
de costumes, crenças e línguas. Em comum, constata-se que esses povos
enfrentam constantemente situações de tensão social, com ameaça à
integridade de seus territórios e saberes; essa insegurança os coloca em
posição de maior vulnerabilidade frente a uma série de agravos e problemas
concretos, como invasões territoriais, exploração sexual e uso abusivo de
álcool. Conforme a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), a depressão e o
suicídio são cada vez mais frequentes em diversas comunidades indígenas
brasileiras. De fato, o Ministério da Saúde do Brasil aponta que a população
indígena brasileira apresenta altas taxas de suicídio, assim como relatado
em populações nativas da Europa, América do Norte, Oceania e Ásia. Na
população geral do Brasil, o número de óbitos por suicídio cresceu 33,6%
de 2002 até 2012 […]. De 2008 a 2012, os suicídios indígenas representaram
1,0% dos óbitos registrados no território brasileiro, um quantitativo 2,5 vezes
maior do que a proporção de indígenas da população total do país. Em
consonância com esse achado, dados da Secretaria Especial de Saúde
Indígena (Sesai) mostram que a taxa de suicídio em indígenas brasileiros no
ano de 2014 foi de 21,8 por 100 mil habitantes – praticamente quatro vezes
maior do que na população brasileira em geral (SOUZA et. al., 2020, p. 1).

Figura 11 – A fragilidade e a vulnerabilidade das comunidades indígenas fazem com que


o suicídio ultrapasse a esfera individual, caracterizando-se como comportamento social
em resposta às ameaças percebidas

Disponível em: https://bit.ly/3oSOoCc. Acesso em: 12 nov. 2021.

36
CIÊNCIAS SOCIAIS

A análise da literatura já elaborada sobre o tema, ou seja, a pesquisa bibliográfica com estudos a
respeito do tema, revelou que os principais motivos associados ao suicídio entre os indígenas eram:
o abandono das tradições indígenas, o consumo abusivo de álcool e/ou drogas, a falta de acesso à
educação e ao trabalho, a vulnerabilidade socioeconômica, a instabilidade emocional dos jovens, o
confinamento territorial e reassentamentos, a violência sexual, a aproximação da população urbana e
a fragilização cultural (SOUZA et al., 2020). Como você deve ter notado, a pesquisa envolveu a coleta
e a análise de dados, a busca por relações entre as variáveis e a formulação de possíveis explicações
para essas relações.

Outro tema abordado por Durkheim diz respeito às práticas religiosas. Conforme entendemos
atualmente, a religião representa um conjunto de hábitos e práticas associados a valores morais, que
sugerem formas de agir, julgar e se comportar. Na maioria das vezes, as diversas manifestações religiosas
partem do princípio de que há um ser superior (ou vários seres superiores) responsável pela criação do
mundo e pelo destino da humanidade.

As religiões, do ponto de vista prático, recomendam formas e regras para a alimentação, para a
criação dos filhos, para os rituais de morte, para a conduta moral adequada e para a punição dos que
não cumprem as regras estabelecidas. Por exemplo, o cristianismo católico tem na figura da confissão o
ritual a partir do qual o pecador assume os erros que cometeu e se torna ciente do que deve fazer para
se redimir. No judaísmo, o Yom Kipur é o feriado mais sagrado: conhecido como Dia do Perdão, ele é
comemorado por meio de jejum e rezas, de forma que todos os pecados cometidos pelo indivíduo sejam
perdoados. As religiões também contemplam ritos iniciáticos, de introdução do sujeito às normas do
grupo. No cristianismo, por exemplo, o batismo e a crisma materializam essa sujeição do indivíduo às
normas da religião; no judaísmo, o Bar Mitzvá e o Bat Mitzvá (para homens e mulheres, respectivamente)
marcam o início da responsabilidade religiosa daqueles que estão se afastando da infância.

Saiba mais
Algumas religiões sustentam e estimulam o isolamento social em relação
a outros grupos. Por exemplo, os amish americanos são religiosos cristãos
protestantes que vivem em comunidades bastante fechadas, nas quais é
proibido o uso de equipamentos eletrônicos, automóveis, eletricidade
e botões nas roupas. Eles podem ser reconhecidos pela indumentária, já
que as mulheres usam um capuz branco, e os homens, ternos e chapéus
pretos. Um filme bastante interessante sobre esse grupo é A testemunha.
Uma criança da comunidade amish é testemunha de um assassinato, e
um policial é designado para a sua segurança. A narrativa descreve com
bastante detalhe a vida na comunidade e a ausência de relações sociais fora
dela por parte dos seus membros.
A TESTEMUNHA. Direção: Peter Weir. Estados Unidos: Paramount
Pictures, 1985. 112 min.

37
Unidade I

Outra narrativa interessante é a de uma série israelense sobre uma


família haredi (ortodoxa judaica) que vive em Jerusalém, Shtisel, disponível
na Netflix. Como no caso dos amish, os judeus ultraortodoxos evitam
contato com pessoas de fora da comunidade, mantendo-se unidos e
ajudando-se em momentos de dificuldade, para que justamente não se
faça necessário recorrer a qualquer instituição de fora do grupo.
SHTISEL. Direção: Alon Zingman. Israel: Yes Oh, 2013-2021. 41-57 min.
(33 episódios).

Outras religiões buscam se mesclar ao ambiente e às práticas de


outros grupos, configurando o que denominamos sincretismo religioso.
É o caso do candomblé. Iemanjá é a deusa dos mares e dos oceanos, e
representa a maternidade. Xangô é o deus do fogo e do trovão, e simboliza
a justiça. Ogum é o deus da terra e do fogo e, por conta disso, é utilizado
para representar a guerra e a tecnologia. Por meio de um processo de
fusão, foram estabelecidas correspondências entre os entes superiores do
candomblé e os santos católicos: Iemanjá corresponde a Nossa Senhora da
Conceição; Xangô, a São Jerônimo e São João; Ogum, a Santo Antônio e
São Jorge. Sobre esse tema, sugerimos que você assista ao filme O pagador
de promessas, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes e foi indicado ao
Oscar de melhor filme estrangeiro em 1963. A narrativa envolve a promessa
feita por um homem humilde, Zé do Burro, num terreiro de candomblé.
Por ter recebido a graça pedida, ele decide carregar uma enorme cruz de
madeira até a Igreja de Santa Bárbara, em Salvador. Como a promessa tinha
sido feita em um espaço pagão, as autoridades católicas não aceitam que o
homem adentre a igreja com a cruz.

O PAGADOR de promessas. Direção: Anselmo Duarte. Brasil: Cinedistri,


1962. 91 min.

38
CIÊNCIAS SOCIAIS

Figura 12 – Em geral, os amish vivem em comunidades na Pensilvânia ou no Canadá. São facilmente


reconhecíveis por suas vestimentas, que incluem toucas para as mulheres e roupas pretas para os
homens. Eles trabalham em fazendas e, para a locomoção, utilizam charretes

Disponível em: https://bit.ly/3iRdtt4. Acesso em: 12 nov. 2021.

De acordo com Costa (2017), Durkheim entendeu a religião como um dos componentes principais
da integração social. Em outras palavras, a abordagem da religião enquanto objeto de estudo deu-se
por ela ser parte da vida social. Em As formas elementares da vida religiosa, principal obra do sociólogo
sobre religião, Durkheim explicou como a religião funciona, de forma a constituir um sistema de ideais
morais que é parte fundamental do sistema social. Assim, a religião é “um sistema solidário de crenças e
de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa
mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem” (DURKHEIM apud COSTA,
2017, p. 7). Para Durkheim, era importante distinguir o sagrado do profano e da magia. O sagrado tem
esse estatuto porque a sociedade confere a determinados objetos ou fenômenos os atributos de pureza
e santidade. Em razão desses elementos, o sagrado se distingue da magia, que não necessariamente tem
um caráter social. Desse modo, enquanto o sagrado é a marca do que se constrói socialmente, em grupo,
a magia tem uma dimensão individual e é um fenômeno que não ultrapassa essa esfera (COSTA, 2017).

Nos termos sobre os quais já falamos a respeito de Durkheim, a religião é um fato social, e as práticas
religiosas representam uma realidade que é coletiva, que se associa ao grupo. A religião é, portanto,
um fenômeno da sociedade, já que pressupõe o compartilhamento de crenças, ritos e hábitos, e separa
o que é sagrado do que é profano. Essas crenças, ritos e hábitos normatizam o comportamento dos
membros de um grupo, e a mediação entre a realidade humana e o divino se dá por meio da sacralização
de símbolos. Finalmente, é importante mencionar que, para Durkheim, não havia qualquer concepção
39
Unidade I

evolucionista que pudesse ser aplicada às práticas religiosas. Logo, não havia religião superior a outra.
A religião nascia da vida coletiva e tinha a função de contribuir para a vida prática, para o exercício
prático da vida. Em resumo, o papel da religião era ajudar o homem a viver, a atribuir significado ao
mundo e a saber como agir e julgar, de acordo com padrões morais aceitos pela comunidade.

Figura 13 – O totem é qualquer animal, planta ou objeto utilizado como


símbolo ancestral de uma sociedade

Disponível em: https://bit.ly/3o1gau3. Acesso em: 12 nov. 2021.

Dada a importância de Durkheim na constituição do objeto de estudo da sociologia, apresentamos


a seguir alguns trechos da sua obra As regras do método sociológico. Nela, Durkheim expôs o conceito
de fatos sociais, diferenciando-os de outros objetos de investigação científica.

As regras do método sociológico

Antes de indagar qual o método que convém ao estudo dos fatos sociais, é necessário
saber que fatos podem ser assim chamados. A questão é tanto mais necessária quanto
essa qualificação é utilizada sem muita precisão. Empregam-na correntemente para
designar quase todos os fenômenos que se passam no interior da sociedade, por pouco
que apresentem, além de certa generalidade, algum interesse social. Todavia, desse ponto
de vista, não haveria por assim dizer nenhum acontecimento humano que não pudesse ser
chamado de social. Cada indivíduo bebe, dorme, come, raciocina, e a sociedade tem todo
o interesse em que essas funções se exerçam de modo regular. Porém, se todos esses fatos
fossem sociais, a sociologia não teria objeto próprio e seu domínio se confundiria com o da
biologia e o da psicologia. Na verdade, porém, há em toda sociedade um grupo determinado
de fenômenos com caracteres nítidos, que se distingue daqueles estudados pelas outras
ciências da natureza. […]

40
CIÊNCIAS SOCIAIS

Esses tipos de conduta ou de pensamento não são apenas exteriores ao indivíduo, são
também dotados de um poder imperativo e coercitivo, em virtude do qual se lhe impõem,
quer queira, quer não. Não há dúvida de que essa coerção não se faz sentir, ou é muito
pouco sentida quando com ela me conformo de bom grado, pois então se torna inútil. Mas
não deixa de constituir caráter intrínseco de tais fatos, e a prova é que se afirma desde
que tento resistir. Se experimento violar as leis do direito, estas reagem contra mim de
maneira a impedir meu ato se ainda é tempo; com o fim de anulá-lo e restabelecê-lo em
sua forma normal se já se realizou e é reparável; ou então para que eu o expie se não há
outra possibilidade de reparação. Mas, e em se tratando de máximas puramente morais?
Nesse caso, a consciência pública, pela vigilância que exerce sobre a conduta dos cidadãos
e pelas penas especiais que têm a seu dispor, reprime todo ato que a ofende. Noutros casos,
a coerção é menos violenta; mas não deixa de existir. […]

Noutros setores, embora a coerção seja apenas indireta, não é menos eficaz. Não estou
obrigado a falar o mesmo idioma que meus compatriotas, nem a empregar as moedas legais;
mas é impossível agir de outra maneira. Minha tentativa fracassaria lamentavelmente,
se procurasse escapar dessa necessidade. Se sou industrial, nada me proíbe de trabalhar
utilizando processos e técnicas do século passado; mas, se o fizer, terei a ruína como
resultado inevitável. Mesmo quando posso realmente me libertar dessas regras e violá‑las
com sucesso, vejo-me sempre obrigado a lutar contra elas. E quando são finalmente
vencidas, fazem sentir seu poderio de maneira suficientemente coercitiva pela resistência
que me opuseram. Nenhum inovador, por mais feliz, deixou de ver seus empreendimentos se
chocarem contra oposições desse gênero. Estamos, pois, diante de uma ordem de fatos que
apresenta caracteres muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir
exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem.
Por conseguinte, não poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos, pois consistem
em representações e em ações; nem com os fenômenos psíquicos, que não existem senão
na consciência individual e por meio dela. Constituem, pois, uma espécie nova e é a eles que
deve ser dada e reservada a qualificação de sociais. Essa é a qualificação que lhes convém;
pois é claro que, não tendo por substrato o indivíduo, não podem possuir outro que não seja
a sociedade: ou a sociedade política em sua integridade, ou qualquer um dos grupos parciais
que ela encerra, tais como confissões religiosas, escolas políticas e literárias, corporações
profissionais etc. Por outro lado, é apenas a eles que a apelação convém; pois a palavra
social não tem sentido definido senão sob a condição de designar unicamente fenômenos
que não se englobam em nenhuma das categorias de fatos já existentes, constituídas e
nomeadas. Esses fatos são, pois, o domínio próprio da sociologia. É verdade que o termo
coerção, por meio do qual os definimos, corre o risco de amedrontar os zelosos partidários
de um individualismo absoluto. Como professam que o indivíduo é inteiramente autônomo,
parece-lhes que o diminuímos todas as vezes que fazemos sentir que não depende apenas
de si próprio. Porém, já que hoje se considera incontestável que a maioria de nossas ideias
e tendências não são elaboradas por nós, mas nos vêm de fora, conclui-se que não podem
penetrar em nós senão através de uma imposição; eis todo o significado de nossa definição.
Sabe-se, além disso, que toda coerção social não é necessariamente exclusiva com relação
à personalidade individual. […]
41
Unidade I

Essa definição do fato social pode, além do mais, ser confirmada por meio de uma
experiência característica: basta, para tal, que se observe a maneira pela qual são educadas
as crianças. Toda a educação consiste num esforço contínuo para impor às crianças maneiras
de ver, de sentir e de agir às quais elas não chegariam espontaneamente, observação que
salta aos olhos todas as vezes que os fatos são encarados tais quais são e tais quais sempre
foram. Desde os primeiros anos de vida, são as crianças forçadas a comer, beber, dormir
em horas regulares; são constrangidas a ter hábitos higiênicos, a ser calmas e obedientes;
mais tarde, obrigamo-las a aprender a pensar nos demais, a respeitar usos e conveniências,
forçamo-las ao trabalho etc. Se, com o tempo, essa coerção deixa de ser sentida, é porque
pouco a pouco dá lugar a hábitos, a tendências internas que a tornam inútil, mas que não
a substituem senão porque dela derivam. É verdade que, segundo Spencer, uma educação
racional deveria reprovar tais procedimentos e deixar a criança agir em plena liberdade;
mas como essa teoria pedagógica não foi nunca praticada por nenhum povo conhecido,
não constitui senão um desiderato pessoal, não sendo fato que possa ser oposto àqueles
que expusemos atrás. Ora, esses últimos se tornam particularmente instrutivos quando
lembramos que a educação tem justamente por objeto formar o ser social; pode-se então
perceber, como que num resumo, de que maneira esse ser se constitui através da história.
A pressão de todos os instantes que sofre a criança é a própria pressão do meio social
tendendo a moldá-Ia à sua imagem, pressão de que tanto os pais quanto os mestres não
são senão representantes e intermediários. […]

A estrutura política de uma sociedade não é mais do que o modo pelo qual os diferentes
segmentos que a compõem tomaram o hábito de viver uns com os outros. Se suas relações
são tradicionalmente estreitas, os segmentos tendem a se confundir; no caso contrário,
tendem a se distinguir. O tipo de habitação a nós imposto não é senão a maneira pela
qual todo mundo, em nosso redor – e em parte as gerações anteriores –, se acostumaram
a construir as casas. As vias de comunicação não passam de leitos que a corrente regular
das trocas e das migrações, caminhando sempre no mesmo sentido, cavou para si própria
etc. Sem dúvida, se os fenômenos de ordem morfológica fossem os únicos a apresentar
essa fixidez, poder-se-ia acreditar que constituem uma espécie à parte. Mas as regras
jurídicas constituem arranjos não menos permanentes do que os tipos de arquitetura e,
no entanto, são fatos fisiológicos. A simples máxima moral é seguramente mais maleável;
porém, apresenta formas muito mais rígidas do que os meros costumes profissionais ou do
que a moda. Existe toda uma gama de nuanças que, sem solução de continuidade, liga os
fatos de estrutura mais característicos a essas livres correntes da vida social que não estão
ainda presas a nenhum molde definido. O que quer dizer que não existem entre eles senão
diferenças no grau de consolidação que apresentam. Uns e outros não passam de vida
mais ou menos cristalizada. Pode, sem dúvida, ser mais interessante reservar o nome de
morfológicos para os fatos sociais concernentes ao substrato social, mas sob a condição
de não perder de vista que são da mesma natureza que os outros.

Fonte: Durkheim (1972, p. 1-11).

42
CIÊNCIAS SOCIAIS

4 MARX E WEBER

4.1 Karl Marx: materialismo histórico e dialético, classes sociais, ideologia


e alienação

O alemão Karl Marx (1818-1883) nasceu no seio de uma família de classe média. Embora tenha
iniciado seus estudos na área do direito, resolveu aprofundar-se em filosofia. Por sua contínua oposição
ao governo, e devido à dificuldade em conseguir um emprego público, resolveu dedicar-se ao jornalismo
econômico, atividade na qual também fracassou.

Dado o seu convívio com os pensadores socialistas, que na época defendiam mudanças radicais
nos sistemas econômicos e políticos, Marx conheceu Friedrich Engels (1820-1895), filho de um rico
industrial alemão. Tudo parecia anunciar dificuldades no relacionamento entre os dois, já que tinham
origens familiares bem diferentes. No entanto, formaram uma parceria duradoura, e não foram raras as
vezes em que Engels socorreu financeiramente Marx e sua família.

Figura 14 – Estátua em homenagem a Marx e Engels, em Berlim

Disponível em: https://bit.ly/3oRpfYz. Acesso em: 12 nov. 2021.

A análise que Marx e Engels fizeram da história, e mais especificamente da história do capitalismo,
contrastou com a abordagem do positivismo comtiano. Se para Comte o progresso e a melhoria das
condições de vida da classe trabalhadora eram inevitáveis, Marx e Engels notaram que, apesar de o
capitalismo difundir-se pela Europa e colocar à disposição das pessoas toda espécie de produtos e
43
Unidade I

serviços, a situação da classe trabalhadora só fazia piorar. Ao contrário do que o positivismo pregava, o
mundo não caminhava em direção ao paraíso de felicidade e abundância, e Marx e Engels vaticinaram
um futuro sombrio, no qual os trabalhadores teriam cada vez menos oportunidades de trabalho e
salários cada vez menores (HUBERMAN, 1974).

Claro que havia agora uma burguesia rica, fábricas que empregavam novas tecnologias para a
produção e cidades onde se podia encontrar tudo o necessário para uma vida confortável. No entanto,
não havia qualquer sinal de que essa abundância também alcançasse os trabalhadores. Ao contrário,
eles eram obrigados a aceitar empregos fossem quais fossem os salários, moravam em cortiços sem as
menores condições de higiene, trabalhavam nas fábricas nas piores circunstâncias, não contavam com
qualquer proteção caso adoecessem, eram castigados fisicamente e estavam sujeitos a rotinas perversas
de trabalho incessante e repetitivo (HUBERMAN, 1974).

Em 1845, Engels descreveu a situação da classe trabalhadora na Inglaterra nos seguintes termos.

A situação da classe trabalhadora na Inglaterra

Todas as grandes cidades têm um ou vários “bairros de má fama” onde se concentra


a classe operária. É certo ser frequente a miséria abrigar-se em vielas escondidas, embora
próximas aos palácios dos ricos; mas, em geral, é-lhe designada uma área à parte, na qual,
longe do olhar das classes mais afortunadas, deve safar-se, bem ou mal, sozinha. Na
Inglaterra, esses “bairros de má fama” se estruturam mais ou menos da mesma forma que
em todas as cidades: as piores casas na parte mais feia da cidade; quase sempre, uma
longa fila de construções de tijolos, de um ou dois andares, eventualmente com porões
habitados e em geral dispostas de maneira irregular. Essas pequenas casas de três ou quatro
cômodos e cozinha chamam-se cottages e normalmente constituem em toda a Inglaterra,
exceto em alguns bairros de Londres, a habitação da classe operária. Habitualmente, as
ruas não são planas nem calçadas, são sujas, tomadas por detritos vegetais e animais, sem
esgotos ou canais de escoamento, cheias de charcos estagnados e fétidos. A ventilação na
área é precária, dada a estrutura irregular do bairro e, como nesses espaços restritos vivem
muitas pessoas, é fácil imaginar a qualidade do ar que se respira nessas zonas operárias –
onde, ademais, quando faz bom tempo, as ruas servem aos varais que, estendidos de uma
casa a outra, são usados para secar a roupa.

Examinemos alguns desses bairros miseráveis. Primeiramente, Londres e, em Londres,


o famigerado ninho dos corvos (rookery), St. Giles, que deverá ser destruído pela abertura
de vias largas. St. Giles fica no meio da parte mais populosa da cidade, rodeado de ruas
amplas e iluminadas por onde circula o “grande mundo” londrino – vizinho imediato de
Oxford Street, de Regent Street, de Trafalgar Square e do Strand. É uma massa desordenada
de casas de três ou quatro andares, com ruas estreitas, tortuosas e sujas, onde reina uma
agitação tão intensa como aquela que se registra nas principais ruas da cidade – com a
diferença de que, em St. Giles, vê-se unicamente pessoas da classe operária. Os mercados
são as próprias ruas: cestos de legumes e frutas, todos naturalmente de péssima qualidade e
dificilmente comestíveis, complicam o trânsito dos pedestres e enchem o ar de mau cheiro,
44
CIÊNCIAS SOCIAIS

o mesmo que emana dos açougues. As casas são habitadas dos porões aos desvãos, sujas
por dentro e por fora e têm um aspecto tal que ninguém desejaria morar nelas. Mas isso não
é nada, se comparado às moradias dos becos e vielas transversais, aonde se chega através
de passagens cobertas e onde a sujeira e o barulho superam a imaginação: aqui é difícil
encontrar um vidro intacto, as paredes estão em ruínas, os batentes das portas e os caixilhos
das janelas estão quebrados ou descolados, as portas – quando as há – são velhas pranchas
pregadas umas às outras; mas, nesse bairro de ladrões, as portas são inúteis: nada há para
roubar. Por todas as partes, há montes de detritos e cinzas e as águas servidas, diante
das portas, formam charcos nauseabundos. Aqui vivem os mais pobres entre os pobres,
os trabalhadores mais mal pagos, todos misturados com ladrões, escroques e vítimas da
prostituição. A maior parte deles são irlandeses, ou seus descendentes, e aqueles que ainda
não submergiram completamente no turbilhão da degradação moral que os rodeia a cada
dia mais se aproximam dela, perdendo a força para resistir aos influxos aviltantes da miséria,
da sujeira e do ambiente malsão.

Fonte: Engels (2010, p. 70-71).

Figura 15 – Friedrich Engels era de uma família aristocrática e bastante rica. Não obstante sua origem,
ele tomou a exploração dos trabalhadores como seu principal objeto de estudo

Disponível em: https://bit.ly/3lwtO8t. Acesso em: 12 nov. 2021.

Engels preocupou-se em descrever, de forma minuciosa, as condições em que viviam os trabalhadores


na Inglaterra, berço do capitalismo e do processo de industrialização. Os que morriam de fome ou de
doença eram pessoas que tinham nome, que moravam nas cidades, que estavam à mercê do destino
e da miséria.

45
Unidade I

Numa quinta-feira, 15 de janeiro de 1844, dois meninos foram levados ao


tribunal correcional de Worship Street porque, famintos, haviam roubado
numa loja um pedaço de carne bovina meio cozida, que devoraram
imediatamente. O juiz sentiu-se no dever de recolher mais informações
e recebeu dos policiais os seguintes esclarecimentos: viúva de um antigo
soldado, que depois servira à polícia, a mãe dos meninos, após a morte do
marido, vivia na miséria com seus nove filhos. Morava em Pool’s Place, no
número 2 da Quaker Street (Spitalfields), na maior pobreza: quando a polícia
chegou ao lugar, encontrou-a com seis dos filhos literalmente empilhados
num pequeno quarto dos fundos da casa, tendo como suas apenas duas
cadeiras de vime sem assento, uma mesinha com os pés quebrados, uma
xícara partida e um pequeno prato. Não tinha praticamente como fazer fogo,
a cama de toda a família era uns poucos trapos e os cobertores eram suas
próprias roupas em farrapos. A pobre mulher contou que, no ano anterior,
vendera a cama para comprar comida; os lençóis, deixara-os empenhados
na mercearia – em suma, entregara tudo em troca de pão. O juiz fez com
que se concedesse a essa mulher um significativo subsídio da Caixa dos
Pobres (ENGELS, 2010, p. 74).

Marx e Engels dispuseram-se a compreender o papel da luta pela posse de recursos materiais
limitados na constituição dos eventos da história. O mundo real era o motor da história, um mundo que
envolvia pessoas reais, vivendo num mundo real e buscando satisfazer necessidades reais. Fome, frio,
sede, necessidade de proteção, recursos para os cuidados com a saúde: a luta pela sobrevivência era o
que movia a história, e essa luta tornava-se mais intensa à medida que a organização social se tornava
mais complexa (HUBERMAN, 1974).

Para os dois pensadores, a transição do sistema feudal para o capitalismo mercantil, e posteriormente
para o capitalismo industrial, havia sido motivada pela luta e pelos conflitos em torno da repartição da
riqueza. O sistema feudal falira por causa das características que o haviam constituído e do surgimento
de um novo grupo de indivíduos que também queria sua parte na produção da riqueza. Quais eram as
bases do sistema feudal? O feudo, latifúndio autossustentável, era comandado pelo senhor feudal, que
tinha nos servos a mão de obra necessária para explorar as suas terras em troca de proteção e uma
parte da produção. No entanto, o processo de urbanização, as viagens marítimas e a intensificação das
trocas comerciais fizeram surgir uma nova classe, que não dependia da autorização, dos recursos ou
da proteção do senhor feudal: os comerciantes, os que trabalhavam em pequenas manufaturas e todos
os que atuavam na importação e exportação de mercadorias. Esse novo grupo apoiou a monarquia
para que o poder fosse retirado das mãos dos senhores feudais. Em resumo, a luta pela apropriação da
riqueza havia sido o motor para as grandes transformações pelas quais a Europa passara.

Os mercadores acumularam capital em razão do incremento das trocas internacionais. As inovações


tecnológicas permitiram que surgissem novos modos de produção de bens. Não demorou para que
aparecessem empreendedores dispostos a investir e a construir fábricas para a produção em massa
desses bens. A insuficiência dos meios de produção teria feito surgirem as classes sociais, e os conflitos
entre elas se converteriam no motor da história. A classe capitalista era a dona dos meios de produção
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CIÊNCIAS SOCIAIS

(das fábricas, dos equipamentos, dos recursos necessários para a compra dos insumos para a produção);
por sua vez, a classe trabalhadora possuía apenas a sua força de trabalho para vender (ENGELS, 2016).
Os modos de produção determinavam a existência de diferentes classes sociais, e trabalhadores e
empresários tinham interesses opostos: os primeiros queriam salários maiores; os segundos queriam
lucros maiores, mesmo que às custas de diminuir o salário dos operários.

O que havia provocado a transição do feudalismo para o capitalismo mercantil e estimulado as


mudanças do capitalismo mercantil na direção do capitalismo industrial? A resposta era bastante
simples: o mundo material e as necessidades materiais. A base do pensamento era a realidade material, e
era a realidade material que levava os homens à ação e à organização social. Tudo o que o homem criara
(o Estado, a linguagem, a religião, as normas, os costumes e as leis) era resultado da luta do ser humano
pela sobrevivência. As condições materiais haviam determinado a existência de classes sociais, as formas
de divisão do trabalho e a apropriação da riqueza (MARX; ENGELS, 2009). Portanto, se o mundo material
era o que movia a sociedade e a história, nada mais razoável do que analisar os processos históricos do
ponto de vista materialista.

O método preconizado por Marx e Engels era, assim, o materialismo histórico: era materialista
porque tinha como base as condições materiais de sobrevivência; era histórico porque a história havia
sido construída por meio de sucessivos conflitos entre diferentes grupos em busca de maior participação
na distribuição da riqueza. Para Marx e Engels, se alguém vivesse durante toda a vida recluso num
quarto branco, não seria capaz de “pensar” o céu, as estrelas, os mares, as demais cores. O homem havia
construído o pensamento a partir do contato com o real. Mais: os fenômenos naturais estavam sujeitos
a perpétuo movimento e transformação. A natureza transformava-se como resultado da ação mútua
entre forças contraditórias. Assim também funcionava a história, tal como ocorrera com a transição do
feudalismo para o capitalismo. Na verdade, a história nada mais era do que uma sucessão de relações
recheadas de conflitos e contradições. Isso ocorria no mundo material – no mundo dos fenômenos
naturais – e no mundo social (STALIN, 1945). Portanto, o método a ser utilizado era materialista, era
histórico e era ainda dialético, já que a história colocava em confronto modelos que acabavam por
gerar outro modelo, não necessariamente parecido com os que o haviam gerado. A dialética, para Marx,
era essa luta entre contrários que fazia surgir algo novo: no embate entre o feudalismo e as forças que
haviam sido geradas pela urbanização, surgira um novo modelo, o do capitalismo mercantil.

Figura 16 – A dialética marxista envolve as transformações provocadas pelo contínuo movimento dos
fenômenos e pela sistemática luta pela sobrevivência material. O mundo da natureza se transforma e
o mundo social se modifica em razão dos conflitos entre classes sociais com interesses antagônicos

Disponível em: https://bit.ly/3p6aX6z. Acesso em: 12 nov. 2021.

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Unidade I

Outra dúvida que atormentava Marx dizia respeito às condições que permitiam a apropriação do
lucro pelos burgueses. Como era possível que houvesse lucro se todo o dinheiro ganho com a venda
de mercadoria remunerava os que haviam participado da produção (inclusive o capitalista)? Como era
possível que o capitalismo produzisse riqueza, mas também gerasse fome e miséria?

Como visto, o materialismo histórico explicava o surgimento de duas classes sociais: os capitalistas,
donos das indústrias e do dinheiro, e os trabalhadores, o proletariado, que vendia a sua força de trabalho.
Faltava agora explicar o processo de formação de lucro.

Marx utilizou o seguinte raciocínio: o trabalhador vendia seu trabalho em troca de salário. Por
exemplo, ele trabalharia oito horas por dia na fábrica e receberia, ao final do mês, o valor x. Portanto, a
princípio, ele ganhava conforme o tempo trabalhado. No entanto, a cada hora, ele produzia mercadorias
cujo valor excediam muito o valor que ele havia recebido em troca de suas horas de trabalho. Vamos supor
que, vendendo todas as mercadorias produzidas por esse trabalhador, o capitalista recebesse 7x, e que o
valor a ser remunerado pela matéria-prima utilizada e pelo pagamento de juros do capital empregado
na compra de máquinas e equipamentos fosse de 2x. Remunerando o trabalhador, o capitalista ainda
ficaria com 4x. De onde haviam surgido esses 4x? Eles decorriam do fato de o operário, durante o
tempo em que trabalhava na fábrica, produzir muito mais do que ganhava em termos de salário. A essa
diferença (entre o valor produzido pelo trabalhador e o efetivamente recebido por ele), Marx deu o nome
de mais-valia. A mais-valia correspondia ao valor que o trabalhador deveria receber pelo resultado do
seu trabalho, mas que era apropriado pelo capitalista (HUBERMAN, 1974).

Analisemos essa questão com mais detalhe, pois ela é central na obra marxiana. Para Marx, a
exploração ocorria por meio da apropriação da mais-valia. Por sua vez, a mais-valia só era possível
em razão do modo de produção capitalista, ou seja, das formas a partir das quais bens e serviços
eram produzidos e os agentes sociais eram remunerados. De acordo com Marx, o trabalho era
uma mercadoria, mas de um tipo diferente. Ele era vendido pelo trabalhador, comprado pelo
capitalista, mas utilizado para a produção de mercadorias. O trabalhador ganhava o suficiente para se
manter, mas produzia mercadorias que eram vendidas no mercado. Em suma, o capitalista utilizava
esse “bem” comprado (o trabalho) para produzir mercadorias e auferir lucro. Essa diferença surgia
da apropriação das horas trabalhadas pelo operário, mas não remuneradas, situação que só era
possível por causa do modo de produção capitalista (HUBERMAN, 1974).

Para Marx e Engels, o materialismo histórico não servia apenas para analisar os processos históricos;
ele também fornecia os instrumentos para que a história fosse transformada. As grandes mudanças
históricas não haviam sido promovidas pelos conflitos entre classes sociais, com o propósito de mudar
a repartição da riqueza? Por que, então, não estimular os conflitos que tornariam possível transpor
o capitalismo e garantir que todos, em especial os operários, recebessem uma parcela justa da
riqueza produzida?

Esse discurso foi acolhido com entusiasmo pelos trabalhadores que, na Europa, realizavam greves e
manifestações. Os operários e os revolucionários agora tinham um arsenal teórico para explicar a miséria,
e não faltaram propostas para resolver esse problema. Por exemplo, alguns políticos e empresários
imaginaram que, se promovessem reformas no capitalismo (maiores salários, condições melhores de
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CIÊNCIAS SOCIAIS

trabalho, assistência médica e educação, por exemplo), isso seria o suficiente para conter o movimento
revolucionário. Para os reformistas, não era o caso de mudar estruturalmente o capitalismo, mas apenas
de tratar melhor os trabalhadores.

No entanto, para os apoiadores de Marx e Engels, era necessário que algo fosse proposto para dar
fim à contradição existente entre os propósitos do capital e os do trabalho. O final do século XIX e o
início do XX foram o pano de fundo para inúmeros trabalhos, eventos e obras com vistas a compreender
aquele momento histórico, entre os quais se destacam o Manifesto do Partido Comunista (1848), a
organização da Primeira Internacional (1864), a Segunda Internacional (1889), a publicação de O capital
(1867), os escritos anarquistas, a Comuna de Paris (1871) e a mobilização política sindical e partidária
do operariado.

Saiba mais

Sugerimos que você assista ao filme Os miseráveis. A narrativa tem


como cenário os movimentos revolucionários de julho de 1830, quando
o povo francês e a burguesia liberal realizaram contínuos atos de levante
contra o rei.

OS MISERÁVEIS. Direção: Tom Hooper. Estados Unidos; Reino Unido:


Working Title Films; Cameron Mackintosh; Relativity Media, 2012. 158 min.

Era possível transformar as condições materiais da realidade e construir um futuro melhor para
o proletariado (os operários). Para Marx e Engels, de fato, era apenas o caso de acelerar um processo
que estava destinado a acontecer, mesmo que os capitalistas não o desejassem. Era da essência do
capitalismo que as empresas competissem entre si por mais espaço. Isso as forçaria a produzir cada
vez mais. No entanto, o incremento do uso da tecnologia faria com que o desemprego aumentasse e a
margem de lucro do capitalista diminuísse, já que o lucro surgia justamente da apropriação das horas
trabalhadas, mas não remuneradas, do trabalhador.

Se o capitalismo estava destinado ao desaparecimento, por que não acelerar esse processo? Afinal,
era possível que o trabalhador se libertasse do jugo do capital mediante novas estruturas sociais – ou
melhor, mediante novos modos de produção. Em outras palavras, a realidade histórica, como fruto das
contradições no sistema produtivo, era passível de transformações através da ação dos sujeitos sociais.
A história não devia ser apenas narrada, mas transformada, e pelo materialismo histórico era possível
perceber não somente que o futuro do capitalismo estava ameaçado, mas que o seu final poderia ser
antecipado por meio de uma ação revolucionária por parte dos trabalhadores (HUBERMAN, 1974).

Essa análise levou Marx a se debruçar sobre a questão da ideologia. Para ele, o proletariado não se
via como classe social; de fato, nem tinha a percepção do quanto era explorado. Para a maior parte dos
operários, a divisão do trabalho e a maneira como o trabalho era remunerado pareciam naturais, dadas
pela própria natureza, algo parecido com a ideia de que sempre tinha sido assim. O grande problema é
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Unidade I

que nem sempre tinha sido assim. A exploração havia surgido como consequência da apropriação dos
meios de produção por determinada classe social, a classe capitalista. Para que esse estado de coisas
permanecesse, e para que os trabalhadores não entrassem em conflito com os proprietários do capital,
era fundamental que eles acreditassem que sempre tinha sido assim.

A ideologia, conjunto de ideias, valores e normas do capitalismo, fazia com que o operário não
percebesse a associação entre o poder econômico e o poder político. Por isso, ele não conseguia se dar
conta de que a exploração do seu trabalho não era natural e que a sua condição de explorado podia
ser modificada. Esse conjunto de proposições tinha o objetivo de fazer com que os interesses da classe
dominante parecessem os interesses coletivos, o que não era verdadeiro. A ideologia, portanto, fazia o
papel de um espelho através do qual as imagens eram distorcidas: o que era antagônico (os interesses de
cada uma das classes sociais) pareceria hegemônico, quer dizer, majoritário, dominante. Por causa disso,
era necessário que o proletariado recusasse a ideologia da classe que possuía os meios de produção
e o capital.

Em 1848, em Bruxelas, após Marx ter sido expulso da França, ele e Engels publicaram o Manifesto
do Partido Comunista. Por meio desse documento, eles explicaram a natureza do capitalismo e do
comunismo e convocaram os trabalhadores à extinção da exploração do trabalho pelo capital.

Manifesto do Partido Comunista

Os comunistas são, pois, na prática [Praktisch], o setor mais decidido, sempre


impulsionador, dos partidos operários de todos os países; na teoria, eles têm, sobre a restante
massa do proletariado, a vantagem da inteligência das condições, do curso e dos resultados
gerais do movimento proletário.

O objetivo mais próximo dos comunistas é o mesmo do que o de todos os restantes


partidos proletários: formação do proletariado em classe, derrubamento da dominação da
burguesia, conquista do poder político pelo proletariado.

As proposições teóricas dos comunistas não repousam de modo nenhum em ideias, em


princípios, que foram inventados ou descobertos por este ou por aquele melhorador do mundo.

São apenas expressões gerais de relações efetivas de uma luta de classes que existe, de
um movimento histórico que se processa diante dos nossos olhos. A abolição de relações
de propriedade até aqui não é nada de peculiarmente característico do comunismo.

Todas as relações de propriedade estiveram submetidas a uma constante mudança


histórica, a uma constante transformação histórica.

A Revolução Francesa, por exemplo, aboliu a propriedade feudal a favor da burguesa.

O que distingue o comunismo não é a abolição da propriedade em geral, mas a abolição


da propriedade burguesa.
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CIÊNCIAS SOCIAIS

Mas a moderna propriedade privada burguesa é a expressão última e mais consumada da


geração e apropriação dos produtos que repousam em oposições de classes, na exploração
de umas pelas outras.

Nesse sentido, os comunistas podem condensar a sua teoria numa única expressão:
supressão [Aufhebung] da propriedade privada.

Têm-nos censurado, a nós, comunistas, de que quereríamos abolir a propriedade


adquirida pessoalmente, fruto do trabalho próprio – a propriedade que formaria a base de
toda a liberdade, atividade e autonomia pessoais.

Propriedade fruto do trabalho, conseguida, ganha pelo próprio! Falais da propriedade


pequeno-burguesa, pequeno-camponesa, que precedeu a propriedade burguesa? Não
precisamos de a abolir, o desenvolvimento da indústria aboliu-a e abole-a diariamente.

Ou falais da moderna propriedade privada burguesa?

Mas será que o trabalho assalariado, o trabalho do proletário, lhe cria propriedade?
De modo nenhum. Cria o capital, isto é, a propriedade que explora o trabalho assalariado,
que só pode multiplicar-se na condição de gerar novo trabalho assalariado para de novo o
explorar. A propriedade, na sua figura hodierna, move-se na oposição de capital e trabalho
assalariado. Consideremos ambos os lados dessa oposição.

Ser capitalista significa ocupar na produção uma posição não só puramente pessoal,
mas social. O capital é um produto comunitário e pode apenas ser posto em movimento
por uma atividade comum de muitos membros, em última instância apenas pela atividade
comum de todos os membros da sociedade.

O capital não é, portanto, um poder pessoal, é um poder social.

Se, portanto, o capital é transformado em propriedade comunitária, pertencente a todos


os membros da sociedade, a propriedade pessoal não se transforma então em propriedade
social. Só se transforma o caráter social da propriedade. Perde o seu caráter de classe.

Vejamos agora o trabalho assalariado:

[…] Queremos suprimir apenas o carácter miserável dessa apropriação, em que o


operário só vive para multiplicar o capital, só vive na medida em que o exige o interesse da
classe dominante.

Na sociedade burguesa o trabalho vivo é apenas um meio para multiplicar o trabalho


acumulado. Na sociedade comunista o trabalho acumulado é apenas um meio para ampliar,
enriquecer, promover o processo da vida dos operários. […]

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Unidade I

Os operários não têm pátria. Não se lhes pode tirar o que não têm. Na medida em que o
proletariado tem primeiro de conquistar para si a dominação política, de se elevar a classe
nacional, de se constituir a si próprio como nação, ele próprio é ainda nacional, mas de
modo nenhum no sentido da burguesia.

Os isolamentos e as oposições nacionais dos povos vão desaparecendo já cada vez


mais com o desenvolvimento da burguesia, com a liberdade de comércio, com o mercado
mundial, com a uniformidade da produção industrial e com as relações de vida que
lhe correspondem.

A dominação do proletariado fá-los-á desaparecer ainda mais. A unidade de ação, pelo


menos dos países civilizados, é uma das primeiras condições da sua libertação.

À medida que é suprimida a exploração de um indivíduo por outro, é suprimida a


exploração de uma nação por outra.

Com a oposição das classes no interior da nação cai a posição hostil das nações entre si.

As acusações contra o comunismo que são levantadas sobretudo a partir de pontos de


vista religiosos, filosóficos e ideológicos não merecem discussão pormenorizada.

Será preciso uma inteligência profunda para compreender que com as relações de vida
dos homens, com as suas ligações sociais, com a sua existência social, mudam também as
suas representações, intuições e conceitos, numa palavra, [muda] também a sua consciência?

Que prova a história das ideias senão que a produção espiritual se reconfigura com a da
[história] material? As ideias dominantes de um tempo foram sempre apenas as ideias
da classe dominante.

Fonte: Marx e Engels (2018).

Em que lugar essas ideias poderiam ser testadas? As condições de extrema pobreza no território russo
tornaram o país o celeiro ideal para a revolução pretendida por Marx e Engels. Em março de 1917, o czar
russo Nicolau II (1868-1918) foi deposto. A burguesia, que havia participado do processo de destituição
do czar sob a liderança de Alexander Fyódorovich Kérensky (1881-1970), montou um governo provisório
em substituição à administração czarista. A família imperial foi presa pelo governo provisório de Kérensky.
Em 1918, os bolcheviques executaram a tiros o czar Nicolau II e sua família, com o objetivo de impedir
que a família imperial fosse resgatada por anticomunistas. Com Léon Trotsky (1879-1940) à frente da
milícia revolucionária, em outubro de 1917, o Partido Bolchevique derrubou o governo burguês que até
então comandara a Rússia, instituindo enfim um governo socialista. Os operários passaram a fazer parte
dos conselhos que administravam as esferas da economia, e as propriedades privadas foram estatizadas.
As forças livres do mercado haviam sido substituídas pela concentração de poder nas mãos do Estado
governado pelos trabalhadores revolucionários.

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CIÊNCIAS SOCIAIS

Figura 17 – São Petersburgo teve seu nome alterado para Leningrado em homenagem à revolução
de outubro de 1917. No início da década de 1990, a população, por meio de um plebiscito, resolveu
retornar ao antigo nome

Disponível em: https://bit.ly/30isbTJ. Acesso em: 12 nov. 2021.

Para Marx, a sociedade funcionava como se fosse um prédio: a infraestrutura, constituída pelas
relações de classes estabelecidas no sistema econômico, ou seja, pelos modos de produção, era a base
e os pilares fundadores do prédio. A superestrutura, por sua vez, correspondia ao aparato estatal e às
suas instituições, à cultura, às ciências, às artes e aos demais componentes ideológicos (superestrutura
ideológica); em outras palavras, a superestrutura era criada em função dos grupos que conseguiam
vencer os conflitos existentes na base do sistema. Esse raciocínio levava a uma única conclusão: para
mudar a superestrutura, era necessário substituir as bases fundadoras do sistema, ou seja, mudar as
relações existentes entre as classes sociais. E, transformadas as relações existentes entre as classes
sociais, era necessário criar novos aparatos, novas instituições e novas leis.

Assim, a questão da educação dos trabalhadores era uma das grandes preocupações dos
revolucionários. Segundo Suchodolski (apud BARROCO, 2007, p. 39), o grande desafio era implantar
uma política educacional que estivesse a serviço da ação revolucionária e da criação de “novas relações
materiais entre as pessoas, inclusive, apesar de serem eles mesmos [os revolucionários] um produto das
velhas relações”. A educação, portanto, deveria municiar o proletariado das armas filosóficas e espirituais
para a construção de uma nova nação, na qual não haveria espaço para a ideologia burguesa. Para Marx
e Engels, os alicerces da educação burguesa deveriam ser destruídos. Era a educação que perpetuara
os privilégios dos filhos das classes dominantes, ao mesmo tempo que perpetuara a exploração do
proletariado. Em outras palavras, a educação deveria despertar no trabalhador a consciência de suas
possibilidades criadoras para que, no domínio dessas forças, ele pudesse construir uma nova realidade.
Mais: o trabalhador deveria trabalhar ativamente para a construção da ciência, descolando-se do papel
de mero consumidor da ciência produzida pelas classes dominantes.

53
Unidade I

Cabia à educação desconstruir a alienação dos trabalhadores. Envolvidos na luta diária pela
sobrevivência, completamente massacrados pelo sistema, os operários apenas desejavam um emprego
e um salário com o qual pudessem prover a família. E, afinal, ainda havia a ameaça do desemprego, já
que não faltavam trabalhadores sem qualquer renda que aceitariam trabalhar fosse qual fosse o salário.

Saiba mais

Segundo Marx, um dos efeitos da alienação é o trabalhador não se


reconhecer mais no trabalho que faz. Em outras palavras, se ele participa
apenas de uma ínfima etapa do trabalho, ele perde a visão do conjunto;
ao perder a visão do conjunto, ele não consegue mais reconhecer o que
é o fruto do seu trabalho. Sobre esse tema, sugerimos que você assista ao
filme Tempos modernos. Nesse filme, há uma sequência na qual pode ser
visto um trabalhador operando uma máquina, completamente sem visão
do todo e do conjunto do seu trabalho, ele também se transformando em
um dos mecanismos da máquina.

TEMPOS modernos. Direção: Charlie Chaplin. Estados Unidos: Charles


Chaplin Productions, 1936. 86 min.

Para concretizar os objetivos revolucionários, era preciso dar um fim à alienação. Com esse propósito,
o Estado deveria chamar para si a tarefa de educar, em especial para garantir que o proletariado pudesse
se apropriar não apenas das técnicas laborais, mas também da compreensão integral de todo o processo
produtivo, diminuindo assim a distância historicamente construída entre o trabalho manual e o trabalho
intelectual. O conhecimento necessário era o que permitiria a transição da pequena produção agrícola
para a agricultura coletiva, a industrialização e o emprego racional de material, recursos humanos e
financeiros (BARROCO, 2007).

Para que a economia soviética pudesse crescer, não eram suficientes os projetos de nacionalização
das indústrias e de coletivização; era fundamental que outra mentalidade fosse criada. E se, no passado,
as escolas haviam sido propriedade da Igreja e de setores da burguesia (ou, no caso de instituições
públicas, controladas pela burguesia), era fundamental que o Estado assumisse a tarefa de criar novas
escolas, comprometidas com o ideal revolucionário (BARROCO, 2007).

De acordo com Barroco (2007), os revolucionários passaram a defender o ensino obrigatório e


politécnico, de forma a associar os objetivos da educação com o trabalho social e as metas da nação
soviética. Isso envolvia também a constituição de uma relação distinta com os docentes (a serem eleitos
pela comunidade), bem como transformações profundas na própria maneira de exercer a docência.
Não era o caso de apenas transmitir conteúdo aos alunos, mas de formá-los segundo as prioridades
revolucionárias. A ideia era alfabetizar milhares de crianças, ensejar a criação de um novo homem
soviético (revolucionário e ciente do seu papel de agente transformador da história) e criar uma nação
comprometida com o bem-estar dos trabalhadores e com a justiça social.
54
CIÊNCIAS SOCIAIS

Mais: Marx, que era ateu, entendia que a religião também poderia vir a ser um instrumento de
alienação do trabalhador. Segundo Chagas (2017), ao criar acolhimento para as dores e para o
sofrimento, a religião impedia que o homem tomasse consciência da sua verdadeira condição de
submissão e de exploração; ao prometer um paraíso eterno após a morte, a religião também defendia
a acomodação do operário às suas condições reais, desmotivando-o de transformar a sua realidade e
mudar, concretamente, a sua vida.

Marx e os pensadores que o seguiram marcaram o pensamento sociológico de forma indelével.


Independentemente da concordância ou discordância em relação a suas ideias, com certeza tornou-se
impossível ignorá-los.

4.2 Max Weber: ética protestante e espírito do capitalismo, teoria


da burocracia

As origens de alta classe média do alemão Max Weber (1864-1920) permitiram ao pensador uma
excelente educação de nível superior, em especial nas áreas de história, filosofia e economia. Depois de
uma breve experiência como docente, Weber foi trabalhar como editor de uma revista especializada em
temas sociológicos. Seu principal objeto de estudo era o conteúdo simbólico das relações humanas, ou
seja, o sentido construído a partir das interações sociais. O imenso conjunto de obras escritas por Weber
inclui estudos sobre estruturas burocráticas, racionalização do trabalho, tipos ideais e religiões. Esses
são, afinal, os elementos presentes na sociedade do final do século XIX e início do século XX, quando o
capitalismo já havia se consagrado como modelo econômico e as organizações empresariais alcançavam
a maturidade em termos de seus processos e regras de funcionamento.

Assim como seus antecessores, Weber defendeu ser a sociologia uma área de conhecimento
autônoma, que deveria munir-se de métodos específicos em relação à observação e à compreensão
dos fatos. Aliás, específicos não apenas em termos da diferenciação entre esses métodos e os utilizados
nas ciências naturais, mas também em termos da diferenciação entre esses métodos e os utilizados em
outras áreas das ciências que hoje chamamos de humanas.

Contudo, Weber não pretende cavar um abismo entre os dois grupos de


ciências. Segundo ele, a consideração de que os fenômenos obedecem a
uma regularidade causal envolve referência a um mesmo esquema lógico
de prova, tanto nas ciências naturais quanto nas humanas. Entretanto, se
a lógica da explicação causal é idêntica, o mesmo não se poderia dizer dos
tipos de leis gerais a serem formulados para cada um dos dois grupos de
disciplinas (TRAGTENBERG, 1997, p. 8).

A sociologia weberiana ficou conhecida como sociologia compreensiva. Seu principal propósito era
a análise das manifestações sociais por meio da investigação das ações sociais. Para Weber, as ações
sociais seriam aquelas realizadas pelos indivíduos no contexto do seu grupo social, ações portanto
imersas em valores, sentidos, hábitos e motivos derivados do grupo. Nesse sentido, Weber identificou
quatro tipos de ação social (OLIVEIRA, 2008):

55
Unidade I

• Ação social racional dirigida por objetivos: essa seria a ação na qual, por meio da análise
objetiva da situação e de suas consequências, o indivíduo buscaria alcançar objetivos próprios, em
especial fazendo uso do comportamento racional.
• Ação social racional dirigida por valores: essa seria uma ação na qual o agente agiria segundo
mandamentos ou exigências que acreditasse serem dirigidos a ele, independentemente das
consequências possíveis da ação. O indivíduo agiria conforme o que imaginava ser esperado, sem
qualquer outra preocupação com objetivos ou consequências.
• Ação social afetiva: essa seria a ação dirigida por afetos ou baseada em um contexto emocional.
• Ação tradicional: essa seria a ação orientada pelo sentido, como resposta a um estímulo habitual.

Figura 18 – Um dos principais objetos de estudo de Weber foi a assim chamada


ação social, quer dizer, a ação do indivíduo dentro do seu contexto social

Disponível em: https://bit.ly/3oPhbYf. Acesso em: 12 nov. 2021.

Esse método de análise levou Weber a construir o que chamamos de tipos ideais. O tipo ideal não é
o comportamento ou o indivíduo que consideramos o melhor ou o ideal. De forma alguma representa o
indivíduo ideal. O tipo é ideal porque resulta de uma generalização tipológica: a observação do mundo
social permite que representemos, a partir de determinados recortes da realidade, certos modelos ou
padrões de comportamento. Esses padrões, ou modelos, são os tipos ideais. Como explica Tragtenberg
(1997, p. 8),

as leis sociais, para Weber, estabelecem relações causais em termos de


regras de probabilidades, segundo as quais determinados processos devem
seguir-se, ou ocorrer simultaneamente, a outros. Essas leis referem-se
a construções de “comportamento com sentido” e servem para explicar
processos particulares.

Uma das áreas para a qual Weber contribuiu enormemente foi a sociologia da religião. Weber partiu
da constatação de que a Reforma Protestante havia introduzido na sociedade novos hábitos e valores,
em substituição aos do cristianismo católico. Enquanto o mundo católico pregava o conformismo
diante da vida material, a Reforma Protestante defendia a ideia de que todos poderiam melhorar de
vida por meio do trabalho e da economia. Parece razoável supor que o catolicismo encontrava aderência
56
CIÊNCIAS SOCIAIS

ao contexto do feudalismo, no qual servos nasciam e morriam servos, e senhores feudais nasciam e
morriam como senhores feudais. Mas, numa sociedade em que a urbanização criara uma nova classe
social e na qual a burguesia buscava comerciar e obter lucro, não fazia mais sentido algum entender o
trabalho como castigo divino pelo pecado original.

A ética católica, principal eixo do qual até então haviam emanado todos os valores morais,
considerava normal a existência de diferentes classes sociais e defendia o conformismo do ser humano
a essas condições “dadas”. Para o catolicismo, a esperança estava na vida que os homens levariam
após a morte; a vida terrena era apenas uma fase de transição, e não tinha sentido lutar para modificar
as condições dessa vida terrena. O lucro, a usura e a ganância deveriam ser combatidos, e apenas a
vida após a morte reservaria o melhor para todos.

Você há de concordar que o novo mundo do capitalismo comercial, as cidades movimentadas, as


rotas comerciais, os primeiros bancos que surgiam, nada disso encontrava apoio ou explicação na ética
católica, que prevalecia naquele momento. Assim, a Reforma Protestante buscou corresponder aos
anseios de ascensão da burguesia, defendendo valores que justificavam as ações e o comportamento
dessa nova classe social, que por meio do trabalho objetivava o crescimento e o enriquecimento. Em
outros termos, a Reforma Protestante passou a defender a concepção de que o trabalho era meritório
e serviria de instrumento para a mobilidade social. O trabalho era uma forma de consagrar a Deus, e
não uma punição. O grande problema estava não na conquista de riqueza, mas na maneira como essa
riqueza era gasta. Assim, a piedade, a virtude, o ascetismo, a humildade e a parcimônia eram valores que
deveriam regrar a vida dos indivíduos. Não havia razão alguma para gastar o dinheiro duramente obtido
com roupas, luxo e prazeres; ao contrário, as pessoas, independentemente de sua fortuna, deveriam
manter-se humildes, poupando o dinheiro ganho, que posteriormente poderia ser investido em novos
negócios (HUBERMAN, 1974).

Observação
O ascetismo está relacionado à disciplina do corpo e do espírito. A parcimônia,
a maneira econômica e simples de viver, requer uma vida humilde, sem
luxos e sem gastos excessivos.

Os grandes líderes religiosos que promoveram essa reforma foram Lutero e Calvino. Martinho Lutero
(1483-1546), alemão, confrontara a Igreja católica por conta do comércio de indulgências, no qual
o perdão era vendido mediante favores financeiros. Outras normas do cristianismo católico também
deveriam ser revistas, segundo Lutero: o celibato, a excomunhão e o luxo religioso de Roma. O francês
João Calvino (1509-1564), por sua vez, encarregara-se de disseminar pela Europa um cristianismo bem
distinto do que era promovido por Roma: a austeridade dos ritos religiosos deveria afastar a música dos
ritos cristãos, abolir o Natal, eliminar quadros, vitrais e imagens das igrejas, e estabelecer um sistema
hierárquico no qual as congregações escolhiam seus próprios pastores. Como é possível imaginar, nem
as ideias de Lutero nem as de Calvino repercutiram de forma favorável no mundo católico, pois eles
pregavam contra a autoridade papal e contra a fortuna que Roma amealhava nas suas igrejas.

57
Unidade I

Saiba mais
Sugerimos que você assista ao filme Lutero, obra que narra a vida e os
conflitos vividos por Martinho Lutero.
LUTERO. Direção: Eric Till. Alemanha; Estados Unidos: Eikon Film; NFP
Teleart, 2003. 124 min.
Também recomendamos o filme Elizabeth, que narra os conflitos entre
os anglicanos e católicos na Inglaterra do século XVI.
ELIZABETH. Direção: Shekhar Kapur. Reino Unido: PolyGram Filmed
Entertainment, 1998. 124 min.

Weber buscou explicar o desenvolvimento econômico de certos países em termos dos efeitos e da
influência da Reforma Protestante. Afinal, as últimas décadas do século XIX e o início do XX haviam
presenciado o crescimento da riqueza dos países que tinham sido alcançados pelo declínio do catolicismo
e pela prevalência de vertentes cristãs protestantes. Segundo Weber, tal associação não parecia ser
aleatória. Ao contrário, era possível explicar a riqueza das nações protestantes pela adoção dos novos
costumes e da nova moral que o protestantismo preconizava. Trabalho, poupança, investimento,
disposição para o empreendedorismo: todos esses valores aderiam à moral de uma burguesia que se
dedicava a comerciar, a produzir e a obter lucro. “Em lugar do antigo ideal de estabilidade social e
econômica, de se conhecer e manter o ‘lugar’ de cada um, [o protestantismo] conferiu respeitabilidade
a um ideal de luta, de aperfeiçoamento e progresso material, de crescimento econômico” (HEILBRONER,
1996, p. 80).

Figura 19 – Ao entrar em conflito com os valores defendidos por Roma e pela Igreja católica,
a Reforma Protestante foi acolhida pela burguesia comercial e industrial que se formara
após a dissolução do sistema feudal

Disponível em: https://bit.ly/3oTdQaG. Acesso em: 12 nov. 2021.

58
CIÊNCIAS SOCIAIS

Em sua obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, Weber explicitou suas hipóteses e
conclusões a respeito das relações entre vida econômica e valores religiosos.

A ética protestante e o espírito do capitalismo

1. Filiação religiosa e estratificação social

Uma simples olhada nas estatísticas ocupacionais de qualquer país de composição


religiosa mista mostrará, com notável frequência, uma situação que muitas vezes provocou
discussões na imprensa e na literatura católicas e nos congressos católicos, principalmente
na Alemanha: o fato de que os homens de negócios e donos do capital, assim como os
trabalhadores mais especializados e o pessoal mais habilitado técnica e comercialmente das
modernas empresas, são predominantemente protestantes.

Esse fato não se verifica apenas onde a diferença de religião coincide com uma
nacionalidade, e portanto com seu desenvolvimento cultural, como no caso da Alemanha
oriental e da Polônia. Observamos a mesma coisa onde se fizeram levantamentos de filiação
religiosa, por onde quer que o capitalismo, na época de sua grande expansão, pôde alterar a
distribuição social conforme suas necessidades e determinar a estrutura ocupacional.

Quanto maior foi a liberdade de ação, mais claro o efeito apontado. É bem verdade
que a maior participação relativa dos protestantes na propriedade do capital, na direção
e nas esferas mais altas das modernas empresas comerciais e industriais pode em parte
ser explicada pelas circunstâncias históricas oriundas de um passado distante, nas quais a
filiação religiosa não poderia ser apontada como causa da condição econômica, mas até
certo ponto parece ser resultado daquela.

A participação nas funções econômicas envolve geralmente alguma posse de capital


e uma dispendiosa educação e, muitas vezes, ambas. Hoje tais coisas são largamente
dependentes da posse de riqueza herdada ou, no mínimo, de certo bem-estar material. Certo
número dos domínios do velho império, que eram mais economicamente desenvolvidos,
mais favorecidos pela situação e por recursos naturais, particularmente a maioria das
cidades mais ricas, aderiram ao protestantismo no século XVI.

Os resultados de tais circunstâncias favorecem os protestantes, até hoje, na sua labuta


pela existência econômica. Surge assim a indagação histórica: por que os lugares de maior
desenvolvimento econômico foram, ao mesmo tempo, particularmente propícios a uma
revolução dentro da Igreja? A resposta não é tão simples como se poderia pensar.

A emancipação do tradicionalismo econômico parece sem dúvida ser um fator que


apoia grandemente o surgimento da dúvida quanto à santidade das tradições religiosas e de
todas as autoridades tradicionais. Devemos porém notar, fato muitas vezes esquecido, que
a Reforma não implicou a eliminação do controle da Igreja sobre a vida cotidiana, mas sua
substituição por uma nova forma de controle. Significou de fato o repúdio de um controle
59
Unidade I

que era muito frouxo e, na época praticamente imperceptível, pouco mais que formal, em
favor de uma regulamentação da conduta como um todo, que, penetrando em todos os
setores da vida pública e privada, era infinitamente mais opressiva e severamente imposta.

A regra da Igreja católica, “punindo o herege, mas perdoando o pecador”, mais no passado
do que no presente, é hoje tolerada pelas pessoas de caráter econômico completamente
moderno, [tolerância que] nasceu entre as camadas mais ricas e economicamente mais
avançadas do mundo por volta do século XV. Por outro lado, a regra do calvinismo, como foi
imposta no século XVI em Genebra e na Escócia, entre os séculos XVI e XVII em grande parte
da Holanda, e no século XVII na Nova Inglaterra e, por algum tempo, na própria Inglaterra,
se tornaria a forma mais intolerável de controle eclesiástico do indivíduo que já pôde existir.
E foi exatamente isso que foi sentido por uma grande parte da velha aristocracia comercial
da época de Genebra, da Holanda e da Inglaterra. E a queixa dos reformadores, nessas
regiões de grande desenvolvimento econômico, não era o excesso de controle da vida por
parte da Igreja, mas a sua falta.

Como, pois, aconteceu que os países mais economicamente avançados da época, e suas
classes médias burguesas, não só não se opuseram a essa tirania inédita do puritanismo
como chegaram a desenvolver sua heroica defesa? A burguesia raramente mostrara tal
heroísmo antes e nunca o mostrou depois. Foi o “nosso último heroísmo”, como disse Carlyle
não sem razão.

Além disso há algo especialmente importante: pode ser, como já foi aventado, que a
maior participação dos protestantes nas posições de proprietário e de dirigente na moderna
vida econômica seja entendida hoje, pelo menos em parte, simplesmente como resultado da
maior riqueza material herdada por eles. Contudo, há certos fenômenos que não podem ser
explicados por esse caminho. Só para citar alguns, há uma grande diferença perceptível, em
Baden, na Baviera e na Hungria, no tipo de educação superior que católicos e protestantes
proporcionam a seus filhos. O fato de a porcentagem de católicos entre os estudantes e os
formados nas instituições de ensino superior ser proporcionalmente inferior à população
total, pode, certamente, ser largamente explicado em termos de riqueza herdada. Porém,
entre os próprios formados católicos, a porcentagem dos que receberam formação em
instituições que preparam especialmente para os estudos técnicos e ocupações comerciais
e industriais, e em geral para a vida de negócios de classe média, é muito inferior à dos
protestantes. Por sua vez, os católicos preferem o tipo de aprendizagem oferecido pelos
ginásios humanísticos. Essa é uma circunstância à qual não se aplica a explicação acima
apontada, mas que, ao contrário, é uma das razões do pequeno engajamento dos católicos
nas empresas capitalistas.

Mais notável ainda é um fato que explica parcialmente a menor proporção de católicos
entre os trabalhadores especializados na moderna indústria. Sabe-se que as fábricas
arregimentaram boa parte de sua mão de obra especializada entre os jovens artesãos;
contudo, isso é muito mais verdadeiro para os diaristas protestantes que para os católicos.

60
CIÊNCIAS SOCIAIS

Em outras palavras, entre os diaristas católicos parece preponderar uma forte tendência
a permanecer em suas oficinas e a se tornar com frequência mestres artesãos, enquanto
os protestantes são fortemente atraídos para as fábricas, para nelas ocuparem cargos
superiores, de mão de obra especializada e posições administrativas.

A explicação desses casos é, sem dúvidas, que as peculiaridades mentais e espirituais


adquiridas do meio ambiente, especialmente do tipo de educação favorecido pela atmosfera
religiosa da família e do lar, determinaram a escolha da ocupação e, por isso, da carreira. […]

Nossa tarefa será investigar essas religiões com o intuito de descobrir as particularidades
que têm, ou que tiveram, que resultaram no comportamento descrito acima. Numa análise
superficial, e com base em certas impressões comuns, poderíamos ser tentados a admitir que
a menor mundanidade do catolicismo, o caráter ascético de seus mais altos ideais, tenha
induzido seus seguidores a uma maior indiferença para com as boas coisas deste mundo.
E tal explicação reflete a tendência de julgamento popular de ambas as religiões. Do lado
protestante, é usada como base das críticas de tais ideais ascéticos (reais ou imaginários)
do modo de viver católico, enquanto os católicos respondem com a acusação de que o
materialismo resulta da secularização de todos os ideais pelo protestantismo.

Fonte: Weber (1997, p. 12-14).

O trecho escolhido da obra de Weber nos revela a análise que o pensador fez da religião: ele buscou
compreendê-la não como manifestação individual, mas como construção social determinada por
circunstâncias específicas, cujas características atendiam a necessidades de certos grupos sociais. Aliás,
ele não foi o único a buscar a compreensão dessas relações: um de seus amigos, Werner Sombart
(1863‑1941), realizou uma investigação semelhante na obra Os judeus e o capitalismo moderno, dessa
vez buscando entender as relações entre o judaísmo e a economia.

Observação

A obra de Weber A ética protestante e o espírito do capitalismo foi


publicada em 1904; a de Sombart, em 1911. Embora a influência entre eles
tenha sido mútua, já que mantinham relações de amizade, várias fontes
indicam Sombart como inspirador do trabalho de Weber.

Weber também procurou investigar as formas de organização do capitalismo: afinal, para que ele
pudesse florescer e se expandir, era necessário que as instituições capitalistas funcionassem de acordo
com critérios racionais de precisão e eficácia. Crescimento, redução de custos e aumento do lucro: esses
eram os objetivos das empresas capitalistas, e para alcançá-los era necessário haver regras, normas e
planejamento. Dentro de uma empresa, cada um deveria ter ciência do papel que iria desempenhar,
e todos deveriam trabalhar para que objetivos comuns fossem alcançados. A especialização e a burocracia
eram, portanto, condições necessárias para o desenvolvimento capitalista.

61
Unidade I

Em que consistia a especialização? Ela era resultado da fragmentação do trabalho em várias etapas, a
serem repetidas sempre de acordo com um mesmo padrão. Assim, caso uma fábrica produzisse sapatos,
vários trabalhadores se ocupariam de cada uma das etapas da produção, especializando-se nelas e
tornando-se capazes de repeti-las de forma cada vez mais rápida e produtiva. Por sua vez, a burocracia
ordenaria as relações sociais dentro das organizações, estabelecendo hierarquias e responsabilidades.
Seria inadmissível que, na fábrica de sapatos da qual falamos, um dos trabalhadores resolvesse, por
conta própria, cortar o couro em vez de colar a sola; tampouco seria aceitável que um chefe deixasse
aos operários a decisão de estabelecer horários e metas de produção. Dessa forma, a especialização
e a burocracia tornavam possível o fortalecimento de um mundo no qual as relações humanas eram
secundárias, tal como eram secundárias a realização pessoal e a felicidade existencial. Assim, Weber
entendeu que a racionalidade tinha um papel importante a desempenhar nas relações sociais advindas
do capitalismo.

Para Weber, existiam dois tipos de racionalidade: a formal, associada às instituições jurídicas e à
formalização das instituições de maneira geral, e a substantiva, que levava em consideração o
contexto social e se constituía a partir dos valores que orientavam esse contexto. Mas por que a
racionalização havia conduzido a sociedade moderna à burocratização? Quais eram as relações entre
burocracia e racionalização? Não havia como organizar as instituições sem processos burocráticos
que norteassem suas ações, e não havia como criar instrumentos burocráticos sem o apoio da
racionalidade. Portanto, a burocracia e a racionalidade se tornariam a base da autoridade, elemento
fundamental do sistema capitalista.

Segundo Weber, a autoridade poderia ser:

• Tradicional: apoiada em tradições e costumes, como o papel dos homens nos modelos patriarcais,
ou das mulheres nos modelos matriarcais. Outro exemplo é a autoridade exercida por líderes
religiosos nos países em que vigoram sistemas políticos teocráticos, ou seja, apoiados em
doutrinas religiosas.

• Carismática: apoiada nas características físicas ou de personalidade de líderes, como a exercida


por Adolf Hitler, responsável pelo estabelecimento do regime nazista na primeira metade do
século XX, ou por Antônio Conselheiro, que comandou uma revolta contra o exército brasileiro na
Bahia, no final do século XIX.

• Racional-legal: apoiada em regras e regulamentos, todos reconhecidos e aceitos pelo grupo.


Um exemplo típico de autoridade racional-legal são os processos por meio dos quais os serviços
públicos funcionam, em geral rigidamente conduzidos por normas burocráticas.

62
CIÊNCIAS SOCIAIS

Figura 20 – A burocracia materializa a racionalidade mediando as relações sociais. Segundo Weber, a


combinação entre burocracia e racionalidade resulta em diferentes formas de autoridade

Disponível em: https://bit.ly/3oSxdk8. Acesso em: 12 nov. 2021.

Restava a Weber explicar o processo de racionalização como parte do desenvolvimento histórico do


Ocidente. Para ele, a racionalização resultava do afastamento do indivíduo dos costumes, dos princípios
éticos, morais e religiosos providos pelo próprio grupo. Explicações mágicas e místicas, normas religiosas,
costumes tradicionais: tudo isso deveria ceder espaço aos critérios lógico-racionais consagrados pela
racionalidade. Apenas isso permitiria que o grupo funcionasse de maneira organizada, de forma a se
submeter à autoridade racional-legal.

Em outras palavras, a racionalidade e a burocratização eram processos indissociáveis do capitalismo.


Como já dissemos, para lucrar era necessário planejar e controlar – era necessário que fossem
estabelecidas, de modo rigoroso, hierarquias, funções e relações de autoridade. A estrutura administrativa
submeteria a todos a uma cadeia de autoridade e de comando na qual a criatividade, a originalidade
e a livre‑iniciativa seriam erradicadas, e isso não se aplicava apenas às empresas. Os Estados modernos
também funcionariam de acordo com a dominação autorizada pelos mecanismos burocráticos, o que
garantiria seu funcionamento ordenado e regrado. Veja, a seguir, trechos da obra de Weber na qual ele
explica os fundamentos da burocracia moderna.

O que é a burocracia

A burocracia moderna opera do seguinte modo específico:

I – Existe o princípio de setores jurisdicionais estáveis e oficiais organizados, em geral,


normativamente, ou seja, mediante leis ou ordenamentos administrativos.

1. As atividades normais exigidas pelos objetivos da estrutura governada burocraticamente


dividem-se de forma estável como deveres oficiais.

63
Unidade I

2. A autoridade que dá as ordens necessárias para a alternância desses deveres é


distribuída de forma estável e rigorosamente delimitada por normas referentes aos meios
coativos, físicos, sacerdotais ou de outra espécie, do qual podem dispor os funcionários.

3. O cumprimento normal e continuado desses deveres, bem como o exercício dos


direitos correspondentes, é assegurado por um sistema de normas; somente podem prestar
serviços aquelas pessoas que, segundo as regras gerais, estão qualificadas para tanto.

Esses três elementos constituem, no governo público – e legal, a “autoridade burocrática”.


No âmbito econômico privado fazem parte da “administração” burocrática. Tal como
a descrevemos, a burocracia somente está totalmente desenvolvida nas comunidades
políticas e eclesiásticas do Estado moderno; no caso da economia privada somente o
está nas instituições capitalistas mais avançadas. Uma autoridade burocrática perdurável
e pública, jurisdicionalmente determinada, constitui normalmente uma exceção e não
uma regra histórica. Isso é válido ainda em grandes formações políticas, tais como as do
antigo Oriente, os impérios conquistadores germano e mongólico, bem como a maioria das
formações feudais de Estado. Em todos esses casos, o governante executa as disposições
mais importantes mediante administradores pessoais, colegas de mesa e cortesãos. As
comissões e a autoridade destes não estão delimitadas com precisão, mas estabelecem de
forma temporária e para cada caso.

II – Os princípios de hierarquia de cargos e de diversos níveis de autoridade implicam


um sistema de subordinação ferreamente organizado, onde os funcionários superiores
controlam os funcionários inferiores. Esse sistema permite que os governados possam
apelar, mediante procedimentos preestabelecidos, a decisão de uma repartição inferior
à sua autoridade superior. Um alto desenvolvimento do tipo burocrático leva a uma
organização monocrática da hierarquia de cargos. O princípio de autoridade hierárquica
de cargos dá‑se em qualquer estrutura burocrática: nas estruturas estatais e eclesiásticas,
nas grandes organizações partidárias e nas empresas privadas. Carece de importância para
a índole da burocracia que a sua autoridade seja considerada “privada” ou “pública”. A plena
realização do princípio de “competência” jurisdicional na subordinação hierárquica não
implica – pelo menos nos cargos públicos – que a autoridade “superior” esteja simplesmente
autorizada a cuidar dos assuntos da “inferior”. O normal é, na realidade, o contrário. Uma
vez criado e depois de ter cumprido a sua missão, um cargo tende a continuar existindo e a
ser desempenhado por outro titular.

III – A administração do cargo moderno funda-se em documentos escritos (“arquivos”)


que serão conservados de forma original ou como projetos. Existe, assim, um pessoal de
subalternos e escribas de toda classe. O conjunto dos funcionários “públicos” estáveis, bem
como o correspondente aparato de instrumentos e arquivos, integram uma “repartição”;
isso é o que na empresa privada chama-se “escritório”. A organização moderna do serviço
civil separa, em princípio, a repartição do domicílio privado do funcionário e, geralmente, a
burocracia considera a atividade oficial como um âmbito independente da vida privada. Os
fundos e equipamentos públicos estão separados da propriedade privada do funcionário:
64
CIÊNCIAS SOCIAIS

esse fator condicionante é, em todos os casos, o resultado de um longo processo. Atualmente,


dá-se tanto nas empresas públicas quanto nas privadas; nas privadas, o princípio atinge,
inclusive, o empresário principal. O escritório do executivo está, em princípio, separado do
lar, e também o estão a correspondência de negócios da privada e o capital do negócio das
fortunas particulares. Essas separações são tão sólidas quanto mais arraigadas se encontra
a prática do tipo de administração empresarial moderna. [...]

IV – Administrar um cargo, e administrá-lo de forma especializada, implica, geralmente,


uma preparação cabal e experta. Isso se exige cada vez mais do executivo moderno e do
empregado das empresas privadas, bem como se exige do funcionário público.

V – Se o cargo está em pleno desenvolvimento, a atividade do funcionário requer toda a


sua capacidade de trabalho, além do fato de que a sua jornada obrigatória no escritório está
estritamente fixada. Normalmente, isso é somente produto de uma prolongada evolução,
tanto nos cargos públicos quanto nos privados. Anteriormente, em todas as situações, o
normal era o contrário: consideravam-se as tarefas burocráticas uma atividade secundária.

VI – A administração do cargo ajusta-se a normas gerais, mais ou menos estáveis, mais


ou menos precisas, e que podem ser aprendidas. O conhecimento dessas normas é um saber
técnico particular que o funcionário possui. Envolve a jurisprudência, ou a administração
pública ou de empresas. A natureza em si da administração moderna de um cargo requer
o ajuste a normas. Por exemplo, a teoria da administração pública moderna supõe que a
autoridade para dispor certos assuntos por decreto – legalmente concedida às autoridades
públicas – não lhe dá à repartição direito algum para regular a questão por meio de ordens
dadas para cada caso, mas somente para regulá-la de forma geral.

Fonte: Weber (2012, p. 9-12).

Saiba mais

Sobre o tema, sugerimos que você assista ao filme Eu, Daniel Blake, que
narra a trajetória de um homem de meia-idade que não consegue transpor as
barreiras da burocracia para receber o seguro-desemprego.

EU, Daniel Blake. Direção: Ken Loach. Reino Unido; França; Bélgica: Sixteen
Films, 2017. 100 min.

A partir da sua análise do funcionamento da sociedade e das instituições, Weber concluiu que a
crescente racionalização nas relações sociais estimularia a burocratização cada vez mais e levaria ao
desencantamento do mundo. O que viria a ser esse desencantamento? Seria o processo de depuração da
magia, inclusive no terreno da religião, que substituiria a experiência mística pela primazia de princípios
éticos e morais.
65
Unidade I

Um exemplo interessante de aplicação das teorias de Weber sobre autoridade, burocracia e


desencantamento do mundo pode ser visto no filme Shoah, de Claude Lanzmann (1985). Trata-se de
um documentário de oito horas no qual o cineasta retorna aos campos de concentração e extermínio
construídos durante a Segunda Guerra Mundial para exterminar judeus e outras etnias tidas como
inferiores. Sobre esse documentário, Jaffe (2013, p. 225) afirma o seguinte a respeito do objetivo atingido
pelo cineasta:

Ele explica a lógica e o planejamento da engrenagem técnica da morte.


Inúmeras cenas demonstrando a lotação dos caminhões de gás; os horários
dos trens; os turnos nos fornos crematórios; a capacidade dos caminhões,
câmaras e vagões para receber os prisioneiros; as técnicas de cremação e
enterramento; a velocidade com que as coisas precisariam ser feitas para
dar conta do número de mortos; as medidas econômicas em termos de
material, eletricidade, carpintaria; as formas de destituir os judeus de suas
posses; o destino dos cabelos e dos outros bens extraídos dos prisioneiros;
as experimentações científicas e também psíquicas para compreender o
comportamento dos humanos sob determinadas condições. Toda essa
máquina de morte é exposta como se o espectador estivesse presenciando
uma linha de montagem, uma fábrica altamente planejada. […] Como em
toda parte, mas ainda mais em se tratando da conhecida eficiência alemã,
a burocracia praticamente substituía o conteúdo ou o mérito do que estava
sendo praticado. Em vários trechos, o filme nos faz perceber como, para
alguns oficiais, a eficácia no cumprimento ortodoxo das ordens e deveres
era mais importante do que o objeto da operação: o judeu, o prisioneiro
de guerra, a vitória alemã. Antes de tudo, o que estava em questão era
fazer a máquina funcionar, independente do que estaria sendo produzido:
parafusos ou a liquidação de um povo inteiro. […] A ideologia se entranhava,
em grande parte de forma subliminar, nas engrenagens da máquina,
na burocracia e na linguagem do campo. Na linguagem assim como na
burocracia e na preocupação com o bom funcionamento das operações
ocultam-se, de forma prática, econômica, mas principalmente asséptica,
as vozes do totalitarismo e o desejo de destruição: os prisioneiros jamais
podiam pronunciar a palavra “vítima” para se referir aos judeus que eles
mesmos precisavam enterrar. Deviam dizer “marionetes” ou então “trapos”.
Para os oficiais nazistas, as ordens eram de “ações de transferência”, o
que posteriormente se revelou como “morte”. O extermínio de todos
os judeus era conhecido como “a solução final”. Os judeus cuja função
era lidar com os mortos eram chamados de “judeus de trabalho”. O local
onde os judeus esperavam pela execução era conhecido como o “tubo” ou
“ascensão”. A transferência para um campo de extermínio era chamada de
“reassentamento”. O momento de atacar um grupo de judeus de surpresa
era conhecido como “a hora” e, como esses, seguem-se inúmeros outros
exemplos de higienização e eufemização da linguagem.

66
CIÊNCIAS SOCIAIS

Weber e suas teorias acerca dos tipos ideais, da sociologia da religião e da questão da autoridade e
da burocracia coroam o esforço dos pensadores anteriores no que respeita à constituição da sociologia
como área autônoma do conhecimento, com objetos e métodos próprios. Assim, com a discussão sobre
Weber, encerramos a unidade I, na qual discutimos os principais autores e as ideias fundadoras da
sociologia. Na próxima unidade, utilizaremos esse arsenal teórico para compreender o mundo em que
vivemos. Antes de seguir adiante, recomendamos que você leia o resumo que elaboramos e que resolva
os exercícios propostos.

Resumo

Enquanto área do conhecimento com especificidades e características


próprias, a sociologia surgiu no final do século XIX como resultado das
transformações provocadas pela Reforma Protestante, pela Revolução
Industrial e pela Revolução Francesa. Nesta unidade, nossa preocupação
foi apresentar para você algumas ideias dos pensadores tidos como
fundadores da sociologia: Auguste Comte (1798-1857), Émile Durkheim
(1858-1917), Karl Marx (1818-1883), Friedrich Engels (1820-1895) e Max
Weber (1864-1920).

A sociologia, desde a sua constituição como área do saber, encarregou‑se


de refletir sobre as seguintes questões: como conhecer a sociedade? Como
compreender as relações sociais de forma a transformar e melhorar o
mundo? A resposta era bem simples: caberia à sociologia fazer com que
o mundo parecesse menos confuso e incompreensível. Tal como afirmado
por Mills (1975), era responsabilidade da sociologia investigar os fenômenos
sociais com rigor científico, fazendo uso de métodos apropriados para
a compreensão daquilo que era seu objeto: a vida em sociedade e as
transformações sociais. Em outros termos, se a biologia e a física forneciam
os instrumentos necessários para o conhecimento da fauna, da flora, do
movimento e do mundo celeste, deveria haver uma área do saber que se
encarregasse de fazer a mesma coisa com o mundo social, uma área do
conhecimento que fosse capaz de analisar a realidade do ponto de vista
da física social.

Para Santos (1996), a sociologia desenvolveu, ao longo do tempo,


métodos que permitiram a compreensão das ações humanas em termos de
suas relações sociais. Em outras palavras, o conhecimento científico sobre a
realidade social não é construído a partir de acasos ou de coincidências; ao
contrário, ele parte do princípio de que é possível compreender e explicar a
realidade social à luz da razão.

Auguste Comte é um dos clássicos fundadores da sociologia. Sua


obra maior, e que praticamente inaugurou a física social, é o Curso de
67
Unidade I

filosofia positiva. Nesse livro, ele atacou a abstração matemática (embora


fosse matemático) e colocou no topo do conhecimento a química e a
biologia. Caso essa física social pudesse fazer uso dos mesmos métodos
experimentais dessas áreas do saber, ela faria jus ao estatuto de ciência.
Assim, o positivismo desenvolveu-se como uma escola de pensamento
que tinha, como traço marcante, a defesa de soluções para resolver as
mazelas sociais, mesmo as decorrentes do desenvolvimento capitalista.
Era necessário dominar as emoções e permitir que a ordem conduzisse a
humanidade na direção do desenvolvimento harmonioso. Por isso, com
exceção da física, da química e da biologia, não havia razão alguma para
permitir o avanço de outras formas de conhecimento. O que garantia o
atributo científico da física social era justamente o fato de ela fazer uso dos
métodos das ciências consagradas.

David Émile Durkheim, por sua vez, desenvolveu a sua obra durante o
período em que o capitalismo não apenas havia se disseminado por toda
a Europa, mas também já lograra sucesso na apropriação dos recursos das
economias não capitalistas da Ásia, da África e da América Latina. A burguesia
estava diante de novos problemas que o processo de industrialização e a
urbanização acelerada haviam trazido: que modelo de educação deveria
prevalecer, o que consagrava a fé ou o representado pelo ensino secular?
Quais regras e condutas deveriam reger a vida da sociedade, as religiosas
ou as do direito laico?

Durkheim acreditava que a investigação sociológica merecia métodos


próprios. Em consequência, em vez de adotar uma abordagem mecanicista
do mundo social (abordagem comum em outras áreas do conhecimento), o
sociólogo buscou conceber o reino social como um ambiente organicista, no
qual o homem, e não a máquina ou a tecnologia, era o elemento principal.

Segundo a perspectiva de Durkheim, a educação, na medida em que


exercia poder coercitivo sobre o comportamento social, era um fato social.
O mesmo podia ser dito em relação à estrutura familiar, às instituições
religiosas e às diferentes formas de organização política: todas elas
constituíam fatos sociais, já que não dependiam, única e exclusivamente, das
decisões e escolhas individuais. Para Durkheim, o próprio grupo estabelecia
os princípios coercitivos, os valores e os hábitos a serem incorporados por
todos. Os fatos sociais tinham origem na própria dinâmica da vida social e,
ao mesmo tempo, exerciam controle sobre essa mesma sociedade.

Segundo Durkheim, a coerção diz respeito ao caráter impositivo de


determinados fatos sociais, e pode ocorrer quando um grupo organizado
age de forma a pressionar um indivíduo isolado, ou quando há imposições
indiretas que obrigam o indivíduo a adotar determinado comportamento.
68
CIÊNCIAS SOCIAIS

A solidariedade está associada à consciência social: quanto mais


fortalecida a consciência que ultrapassa os limites dos interesses sociais,
maior a solidariedade e a coesão existente numa sociedade. O sociólogo
considera a existência de duas formas de solidariedade, a mecânica e a
orgânica. A mecânica seria aquela construída nas comunidades menores.
Nestas, o interesse de todos prevalece – ou se sobressai – em relação aos
interesses individuais. Em contrapartida, a solidariedade orgânica ocorre
em sociedades nas quais a divisão do trabalho é mais intensa, cada
indivíduo tornando‑se responsável por uma função ou por uma atividade.
Os membros do grupo não compartilham valores e projetos por se sentirem
parte de uma mesma comunidade, mas pela interdependência existente
entre eles, por conta da atribuição de tarefas que são indispensáveis à
sobrevivência do grupo. Essa solidariedade ocorre apesar de os indivíduos
terem crenças e interesses distintos, em especial por dependerem uns dos
outros em razão da divisão do trabalho.

O avanço da industrialização e a crescente miséria dos trabalhadores


motivaram Marx e Engels a investigar as relações sociais geradas pelo
sistema capitalista. Inicialmente, compreenderam que o que determinava
os eventos da história era a luta pela posse de recursos materiais limitados.
Era o mundo real o motor da história. A insuficiência dos meios de
produção teria feito surgirem as classes sociais, e os conflitos entre elas se
converteriam no motor da história. A classe capitalista era a dona dos meios
de produção (das fábricas, dos equipamentos, dos recursos necessários para
a compra dos insumos para a produção); por sua vez, a classe trabalhadora
possuía apenas a sua força de trabalho para vender. Os modos de produção
determinavam a existência de diferentes classes sociais, que entravam
em conflito. Historicamente, como resultado desse conflito, novos modos
de produção haviam surgido e novas formas poderiam surgir. Caso os
trabalhadores se apropriassem dos meios de produção, não haveria mais
exploração do seu trabalho pelos capitalistas.

Para elaborar essa explicação, Marx e Engels utilizaram o método


materialista histórico dialético: era materialista porque tinha como base
as condições materiais de sobrevivência; era histórico porque a história
havia sido construída por meio de sucessivos conflitos entre diferentes
grupos em busca de maior participação na distribuição da riqueza; e era
dialético porque a história colocava em confronto modelos que acabavam
por gerar outro modelo, não necessariamente parecido com os que o
haviam gerado. A dialética, para Marx, era essa luta entre contrários que
fazia surgir algo novo.

Dos fundadores da sociologia, um papel de destaque é dado a Weber.


Aliás, há autores que afirmam ter sido Weber o pensador a, finalmente,
69
Unidade I

criar o arcabouço de sustentação teórica dessa área do conhecimento.


Conhecida como sociologia compreensiva, a sociologia de Weber teve
o principal propósito de analisar as manifestações sociais por meio da
investigação das ações sociais. As ações sociais poderiam ser divididas em
quatro tipos: 1) ação social racional dirigida por objetivos; 2) ação social
racional dirigida por valores; 3) ação social afetiva; e 4) ação tradicional.
Esse método de análise levou Weber a construir o que chamamos de
tipos ideais. A observação do mundo social permite que representemos, a
partir de determinados recortes da realidade, certos modelos ou padrões
de comportamento.

Outra área para a qual Weber contribuiu enormemente foi a sociologia


da religião. Weber partiu da constatação de que a Reforma Protestante
havia introduzido na sociedade novos hábitos e valores, em substituição
aos do catolicismo cristão. Weber também notou que as últimas décadas
do século XIX e o início do século XX haviam presenciado o crescimento da
riqueza dos países que tinham sido alcançados pelo declínio do catolicismo
e pela prevalência de vertentes cristãs protestantes. Segundo Weber, tal
associação não parecia ser aleatória. Ao contrário, era possível explicar a
riqueza das nações protestantes pela adoção dos novos costumes e da nova
moral que o protestantismo preconizava.

Finalmente, Weber também buscou investigar as formas de organização


do capitalismo: afinal, para que ele pudesse florescer e se expandir, era
necessário que as instituições capitalistas funcionassem de acordo
com critérios racionais de precisão e eficácia. Eram duas as formas de
racionalidade: a formal e a substantiva. A combinação entre racionalidade e
burocracia, por sua vez, associava-se também ao fenômeno da autoridade,
que poderia se manifestar nos seguintes formatos: 1) autoridade tradicional;
2) autoridade carismática; e 3) autoridade racional-legal, apoiada em regras
e regulamentos, todos reconhecidos e aceitos pelo grupo.

70
CIÊNCIAS SOCIAIS

Exercícios

Questão 1. (Enade 2017)

Segue uma lei da história o fato de a solidariedade mecânica, inicialmente única ou quase, perder
progressivamente terreno e de a solidariedade orgânica tornar-se, pouco a pouco, preponderante.
Entretanto, quando se modifica a maneira como os homens são solidários, a estrutura das sociedades
não pode deixar de mudar. A forma de um corpo transforma-se necessariamente quando as afinidades
moleculares já não são as mesmas. Por consequência, se a anterior proposição é exata, deve haver dois
tipos sociais que correspondam a essas duas espécies de solidariedade.

DURKHEIM, E. Da divisão do trabalho social. 4. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. Adaptado.

A partir do texto apresentado, avalie as afirmativas a seguir e a relação proposta entre elas.

I – A divisão do trabalho é uma resultante necessária do desenvolvimento de um novo tipo social


predominante nas sociedades modernas.

porque

II – A substituição da solidariedade mecânica pela solidariedade orgânica está associada ao progresso


da divisão do trabalho nas sociedades modernas.

A respeito dessas afirmativas, assinale a opção correta.

A) As afirmativas I e II são proposições verdadeiras, e a II é uma justificativa correta da I.

B) As afirmativas I e II são proposições verdadeiras, mas a II não é uma justificativa correta da I.

C) A afirmativa I é uma proposição verdadeira, e a II é uma proposição falsa.

D) A afirmativa I é uma proposição falsa, e a II é uma proposição verdadeira.

E) As afirmativas I e II são proposições falsas.

Resposta correta: alternativa D.

71
Unidade I

Análise das afirmativas

I – Afirmativa falsa.

Justificativa: a afirmativa diz que “a divisão do trabalho é uma resultante necessária do


desenvolvimento de um novo tipo social predominante nas sociedades modernas”. No entanto, para
Durkheim, a divisão do trabalho é uma consequência natural do crescimento populacional e do aumento
da complexidade da sociedade. Quanto maior o grupo social, maior a necessidade de dividir as tarefas
que assegurem a sobrevivência de todos.

II – Afirmativa verdadeira.

Justificativa: a afirmativa diz que “a substituição da solidariedade mecânica pela solidariedade orgânica
está associada ao progresso da divisão do trabalho nas sociedades modernas”. A solidariedade mecânica é
aquela que ocorre em grupos menores e menos complexos, em que todos se conhecem e todos
partilham das mesmas crenças e valores. Por sua vez, a solidariedade orgânica surge em sociedades mais
complexas, nas quais a divisão de trabalho ocorre não por conta de todos se conhecerem ou partilharem
dos mesmos projetos, mas por essa divisão ser essencial para a sobrevivência do grupo.

Questão 2. (Fundação Carlos Chagas 2018) Um dos conceitos fundamentais na análise do


capitalismo feita por Karl Marx é o de materialismo dialético. Com o materialismo dialético, Marx
expressa que o movimento da história ocorre tendo por base o antagonismo entre duas classes:

A) A nobreza, que vive de privilégios, e os plebeus, que constituem o restante da sociedade.

B) Os grandes latifundiários, que detêm o poder político, e os escravos, que eram suas propriedades.

C) Os senhores feudais, durante a Idade Média, e os vassalos, que lhes devem lealdade.

D) A burguesia, que detém os meios de produção, e o proletariado, que vende sua força de trabalho.

E) Os ricos, que acumulam dinheiro com a exploração capitalista, e os servos, que servem a seus caprichos.

Resposta correta: alternativa D.

Análise das alternativas

A) Alternativa incorreta.

Justificativa: houve conflito entre classes no tempo da transição do feudalismo para o capitalismo.
No entanto, esse conflito ocorreu entre os senhores feudais e a burguesia nascente, que havia surgido
nas cidades e que vivia do comércio.

72
CIÊNCIAS SOCIAIS

B) Alternativa incorreta.

Justificativa: houve conflito entre classes no tempo da transição do feudalismo para o capitalismo.
No entanto, esse conflito não envolveu os grandes latifundiários, nem os servos, que trabalhavam
nas terras dos senhores feudais. Os servos não eram escravos dos senhores feudais, tampouco uma
mercadoria que pudesse ser negociada.

C) Alternativa incorreta.

Justificativa: houve conflito entre classes no tempo da transição do feudalismo para o capitalismo.
No entanto, esse conflito não envolveu os senhores feudais e os vassalos. As classes que se opuseram
foram as dos senhores feudais e a da burguesia nascente, que havia surgido nas cidades e que vivia
do comércio.

D) Alternativa correta.

Justificativa: ao falar em conflito entre classes sociais, Marx está fazendo referência à burguesia, que
detém os meios de produção (fábricas, equipamentos e capital), e o proletariado, que vende sua força de
trabalho, um tipo diferente de mercadoria.

E) Alternativa incorreta.

Justificativa: houve conflitos entre classes no tempo da transição do feudalismo para o capitalismo,
e no próprio campo do capitalismo. No entanto, eles não envolveram os ricos e os servos. Essas duas
categorias sociais são anacrônicas, ou seja, pertencem a épocas diferentes: os servos estão associados ao
feudalismo; os capitalistas, por sua vez, surgiram no período em que o capitalismo já havia se difundido.

73
Unidade II

Unidade II
Na unidade anterior, entramos em contato com os principais pensadores e fundadores da sociologia.
Como você deve ter percebido, cada um deles procurou responder às perguntas feitas ao seu tempo, em
especial quando relacionadas às relações sociais e à organização social.

Desde o advento da Revolução Industrial até o início do século XX, esses pensadores buscaram
explicar as manifestações sociais, culturais, religiosas e políticas, investigando-as com metodologias
próprias, desenvolvidas ao longo do tempo.

Evidentemente, nossa intenção não foi apenas contar a infância da sociologia; nosso propósito
foi oferecer a você um arsenal teórico capaz de colaborar para a análise e apreensão do mundo em
que vivemos hoje. É, com certeza, um contexto bem diferente daquele que Comte e Weber estudaram.
No entanto, as teorias que eles elaboraram permitem que investiguemos a nossa realidade a partir de
lentes especiais, quais sejam, as que a sociologia constituiu para identificar o seu objeto de estudo e a
metodologia apropriada para o seu conhecimento.

A partir do final do século XX, uma mudança significativa transformou os modos como a sociedade
passou a viver, a negociar e a se comunicar. Como é sabido, o fenômeno da globalização envolveu
inúmeros fatores históricos, políticos e econômicos. Com o tempo, porém, o termo globalização foi
utilizado em tantos sentidos que, não raras vezes, perdeu completamente a razão de ser. Enunciada como
sinônimo de internacionalização, mundialização, universalização e ocidentalização, a globalização vem
reunindo, desde o final do século XX, vários significados, nem sempre semelhantes, tampouco opostos.

Faz tempo que a reflexão e a imaginação sentem-se desafiadas para


taquigrafar o que poderia ser a globalização do mundo. Essa é uma busca
antiga, iniciada há muito tempo, continuando no presente, seguindo pelo
futuro. Não termina nunca (IANNI, 1998, p. 23).

Nesta unidade, buscaremos compreender o fenômeno da globalização em termos de suas abordagens e


de suas dimensões. Além disso, buscaremos investigar como esse processo atingiu o Brasil no século XX,
um país que havia recentemente conseguido estabilizar sua moeda, mas que ainda tinha que encontrar
formas de minimizar as imensas desigualdades sociais existentes em seu território.

5 A GLOBALIZAÇÃO E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, os vencedores (americanos, ingleses, russos e franceses)
redesenharam o mapa mundial, dividindo entre si as áreas que ficariam sob sua influência. Comunismo
e capitalismo se contrapunham em termos de modelos econômicos. Na URSS (União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas), o Estado detinha o poder sobre os meios de produção e sobre o planejamento
74
CIÊNCIAS SOCIAIS

econômico; no mundo capitalista, defendia-se o livre mercado e a produção e distribuição de bens e


serviços por empresários, se possível sem qualquer intervenção do aparato governamental. No entanto,
embora houvessem dividido o mundo de forma pacífica, os dois blocos estabeleceram um clima de
mútua desconfiança (período que ficou conhecido como Guerra Fria), cada um tentando mostrar as
vantagens do seu próprio modelo socioeconômico e ampliar o seu poder geopolítico. Por conta desse
ambiente, colocaram seus recursos à disposição de inúmeras guerras. Coreia, Vietnã, Camboja e Cuba
são algumas regiões que serviram de cenário para embates militares sustentados, apoiados e financiados
pelos dois blocos antagônicos (HOBSBAWM, 1995).

Em 1961, foi construído um muro que cortava a cidade de Berlim ao meio, dividindo-a entre o
mundo capitalista e o mundo comunista. Essa era a punição que os países vencedores da Segunda
Guerra Mundial haviam imposto aos perdedores, os alemães: ter sua capital repartida entre os dois
blocos que haviam ganhado a guerra (HOBSBAWM, 1995). Esse muro foi destruído em 1989. Na verdade,
antes mesmo disso, ele já não impedia a comunicação entre a população dos dois lados da cidade. Sua
derrubada, porém, foi um marco importante, um sinal ao mundo de que não havia mais animosidade
entre os dois sistemas econômicos.

Saiba mais

Sugerimos assistir ao filme A ponte dos espiões. Durante a Guerra Fria,


no momento em que o Muro de Berlim está sendo construído, um advogado
defende um espião soviético capturado pelos americanos e que deverá ser
trocado por um piloto americano preso na URSS.

A PONTE dos espiões. Direção: Steven Spielberg. Estados Unidos:


Touchstone Pictures; DreamWorks, 2015. 141 min.

Tal percepção foi, e ainda é, alvo de controvérsias. A questão principal é que, aparentemente, havia
algo novo no ar. Houve até quem decretasse o fim da história: se comunistas e capitalistas não estavam
mais em disputa, o conflito entre capital e trabalho analisado quase um século antes por Marx e Engels
não fazia mais sentido.

O final do século XX assistiu ao esgotamento do conflito entre URSS e Estados Unidos: os choques
do petróleo, em 1973 e 1979 (quando os países árabes quintuplicaram o preço do barril do petróleo
em represália ao apoio norte-americano a Israel), geraram inflação como um efeito dominó, atingindo
todos os países. O capitalismo enfrentava mais uma de suas crises cíclicas, com excesso de produção e
carência de mercados consumidores. Os americanos estavam pressionados pela turbulência econômica
e pela escassez de recursos públicos para financiar seus planos militares. Por sua vez, o bloco soviético
também havia exaurido suas reservas materiais e financeiras para sustentar os confrontos armados, e as
repúblicas que o compunham queriam agora liberdade e independência. A bipolaridade entre comunistas
e capitalistas tinha chegado ao fim em razão daquilo que as havia constituído (HOBSBAWM, 1995).

75
Unidade II

Coincidentemente ou não, em 1989, no mesmo ano em que o Muro de Berlim foi destruído, presidentes
de bancos centrais, ministros e financistas do bloco ocidental reuniram-se em Washington, firmando o
que passou a ser conhecido como Consenso de Washington, uma lista de medidas que todos os países
deveriam adotar para estimular sua economia, diminuir a pobreza e atenuar as desigualdades sociais.

Várias diretrizes foram sugeridas nessa reunião para limitar o poder do Estado e facilitar o comércio
e os negócios internacionais:

• Os governos deveriam adotar um rigoroso sistema de disciplina fiscal, priorizando determinados


setores de interesse e gastando apenas o que fosse possível remunerar com a arrecadação de
tributos e impostos. Para que isso fosse possível, o Estado deveria economizar em programas
sociais e em subsídios para privilegiar setores da economia.
• As legislações nacionais deveriam facilitar ao máximo a circulação do capital financeiro. Ainda,
os sistemas de câmbio deveriam ser livres, ou seja, o Estado não poderia, por meio das suas
instituições econômicas, controlar artificialmente as taxas de câmbio, quer dizer, os parâmetros
por meio dos quais moedas de diferentes países eram comparadas.
• Quaisquer entraves ao livre-comércio deveriam ser eliminados. Assim, os países não deveriam
fazer uso de impostos de importação e exportação para proteger a indústria nacional, nem para
impedir que artigos e mercadorias fossem importados.
• Os governos deveriam privatizar as empresas estatais, de preferência atraindo investimentos
diretos estrangeiros.
• A economia deveria ser desregulamentada ao máximo e o direito autoral fortemente protegido
(em especial no caso de produtos que tivessem exigido, para a sua elaboração, investimentos em
pesquisa e tecnologia).

É possível perceber, de maneira geral, que as políticas do consenso eram voltadas basicamente para
diminuir a regulação e o controle da economia, constituir um regime de livre mercado, reduzir o tamanho
do Estado e aumentar as oportunidades para o comércio internacional. Essas medidas, especialmente
elaboradas para auxiliar as economias desenvolvidas e industrializadas no enfrentamento à crise de
superprodução, acabaram por constituir o que passou a ser conhecido como neoliberalismo: o sufixo
neo, referente a novo; o termo liberalismo, associado à política de livre-comércio e não intervenção do
Estado na economia que havia sido defendida pelos liberais entre os séculos XVI e XVII. Efetivamente,
era uma releitura daquela liberdade preconizada pelos primeiros pensadores que se dispuseram a refletir
sobre um novo sistema que surgia com a Revolução Industrial: o capitalismo. Para Stiglitz (2007, p. 62),

a grande esperança da globalização [era] que ela elevar[ia] os padrões de


vida em todo o mundo: dar[ia] aos países pobres acesso aos mercados
externos para que p[udessem] vender seus produtos, permitir[ia] a entrada
de investimentos estrangeiros, que fabric[ariam] novos produtos a preços
menores, e abrir[ia] as fronteiras, de tal modo que as pessoas po[deriam]
viajar para o exterior a fim de estudar, trabalhar e mandar para a casa
dinheiro para ajudar suas famílias e financiar novos negócios.
76
CIÊNCIAS SOCIAIS

O neoliberalismo propagandeado pelos Estados Unidos e pela Inglaterra – por intermédio dos
governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher – ecoou como música nos ouvidos do mundo
capitalista: liberdade era tudo o que ele mais queria. Para isso, sugeriu-se restringir o poder do Estado
de estabelecer normas e regras para os negócios, diminuir o poder dos sindicatos e eliminar quaisquer
barreiras legais para a circulação de bens, serviços e recursos financeiros (BARBOSA, 2006).

Saiba mais

Sugerimos a leitura do seguinte texto:

BATISTA, P. N. O Consenso de Washington: a visão neoliberal dos


problemas latino-americanos. 1994. Disponível em: https://bit.ly/3bWYDxE.
Acesso em: 12 nov. 2021.

Também recomendamos que você assista ao filme A dama de ferro,


que narra a trajetória política de Margaret Thatcher, primeira-ministra da
Inglaterra no período de 1979 a 1990. Decidida a modernizar o país, Thatcher
enfrentou sindicatos e políticos, num esforço muito grande para equilibrar
o país financeiramente e estimular a economia, ao mesmo tempo que se
fazia necessário proteger o que havia sobrado do grande império britânico.

A DAMA de ferro. Direção: Phyllida Lloyd. Reino Unido; França: Pathé;


Film4 Productions; UK Film Council; Goldcrest Films, 2011. 104 min.

Figura 21 – A globalização surgiu em razão da ocorrência simultânea do fim da Guerra Fria e do


advento do neoliberalismo

Disponível em: https://bit.ly/3iTNRMe. Acesso em: 12 nov. 2021.

77
Unidade II

A globalização, então, apareceu como resultado da soma de dois fatores concomitantes e


complementares: o fim do conflito entre URSS e Estados Unidos e a disseminação do neoliberalismo como
modelo a ser incorporado por todos os países. Para melhor compreender os fenômenos abarcados pela
globalização, organizaremos os aspectos que analisamos anteriormente em três diferentes perspectivas:
a histórica, a espaçotemporal e a ideológica (BARBOSA, 2006).

De acordo com a abordagem histórica, a globalização associa-se aos eventos referentes à queda
do Muro de Berlim e ao esgotamento da Guerra Fria, ou seja, ao suposto fim do embate entre capital
e trabalho.

De acordo com a abordagem do espaço e do tempo, a globalização pode ser explicada a partir da
diluição das fronteiras geográficas (alcançada por meio da constituição de blocos comerciais, como a
União Europeia e o Mercosul) ou a partir da criação de um espaço global virtual.

De acordo com a abordagem ideológica, é certo que o discurso neoliberal funcionou como “liga”
para juntar os elementos econômicos e políticos. A ideologia pregava que os valores liberais deveriam
ser hegemônicos. Esse discurso foi propagandeado com tamanha intensidade que, em muitos países,
qualquer crítica à globalização e ao neoliberalismo era associada a conservadorismo e atraso.

Lembrete

Na unidade anterior, discutimos a questão da ideologia quando tratamos


da teoria marxista e do marxismo dialético histórico. A ideologia, segundo
Marx, representa o conjunto de valores da classe dominante que se impõe
para todos. Ou seja, a ideologia é a forma de convencer a todos que os
objetivos da classe dominante não são apenas dela, mas de todos os grupos
sociais. De certa forma, o neoliberalismo também funcionou dessa maneira:
embora ele realmente beneficiasse apenas as nações industrializadas,
foi divulgado como o sistema ideal para todos os países, inclusive os
subdesenvolvidos e os em desenvolvimento.

É importante mencionar que a abordagem ideológica justificou as políticas econômicas a partir


dali recomendadas, já que a globalização resultou no incremento da ação das empresas multinacionais
e da internacionalização da economia, na livre circulação de mercadorias e na uniformidade de bens e
serviços colocados à disposição. Para qualquer lugar do mundo que se fosse (com raríssimas exceções),
era possível tomar uma Coca-Cola, comprar um computador da Apple, vestir uma calça jeans, comer
um Big Mac ou adquirir um carro da Mercedes. Mais: era possível que um indivíduo fosse funcionário da
Johnson & Johnson caso morasse no Brasil ou nos Estados Unidos, estando sujeito, nas duas situações, à
mesma cultura organizacional. Na verdade, cultura e valores empresariais também foram compartilhados
e difundidos entre vários países. “Junto consigo, como um de seus efeitos [da globalização], surge uma
consciência de que valores morais e sociais fundamentais devem ser estendidos para todos os povos”
(BARBOSA, 2006, p. 12).

78
CIÊNCIAS SOCIAIS

Finalmente, para compreender a globalização como algo além da mera soma de fenômenos históricos
(como o fim da Guerra Fria), circunstâncias ideológicas (como o surgimento do neoliberalismo) e
efeitos geopolíticos, faz-se necessário adicionar à operação as novas tecnologias, que permitiram o
armazenamento e intercâmbio de informações e possibilitaram o funcionamento das empresas em rede,
facilitando os negócios em termos de flexibilidade e adaptabilidade. Aliás, sem essas tecnologias, não
teria sido possível que os fluxos financeiros fossem realizados de forma tão rápida e que os mercados
se comunicassem de modo tão eficaz. O neoliberalismo não teria conseguido conquistar tudo o que
conquistou caso continuassem os conflitos entre comunistas e capitalistas, e caso não houvesse uma
tecnologia que possibilitasse o compartilhamento de informações de forma rápida e de maneira a criar
um ambiente “global”, que permitisse, ao menos teoricamente, a participação de todos os países.

Segundo Barbosa (2006), a globalização manifesta-se em quatro dimensões: comercial, produtiva,


financeira e tecnológica. Vejamos com detalhes cada uma delas.

Dimensão comercial

A dimensão comercial diz respeito ao aumento do comércio entre blocos e países, inclusive em razão
da defendida liberdade comercial e do fim dos entraves ao comércio. É claro que esse fenômeno não
acarreta apenas resultados benéficos. Embora ele promova certa universalização de hábitos e costumes,
“pode trazer consigo um acirramento do desemprego e o enfraquecimento de regiões produtoras de
artigos específicos” (BARBOSA, 2006, p. 42). Expliquemos melhor esses resultados. Caso o país A não
consiga produzir um bem que possa competir com o fabricado pelo país B, é evidente que o país A irá
interromper a produção do bem e passar a importá-lo de B. Se não houver uma política de realocação
de mão de obra, os que ficarem desempregados em A não terão como garantir a sua subsistência.

Como podemos saber se o comércio internacional se intensificou a partir da década de 1980?


Segundo Barbosa (2006, p. 41), quando o volume comercializado – ou seja, quando “a produção
destinada ou proveniente de outros mercados – cresce mais rapidamente do que o volume total de
produtos fabricados mundialmente, isso indica que as economias estão se abrindo e que os mercados
internos perdem importância como fonte de escoamento da produção local”. No mesmo sentido, Prado
(2003, p. 4) afirma que a discussão sobre os aspectos da globalização comercial não é particularmente
controversa: “Se o crescimento do comércio mundial […] [se dá] a uma taxa de crescimento média anual
mais elevada do que a do PIB mundial, podemos afirmar que há globalização comercial”.

Podemos supor que a extinção de barreiras comerciais e práticas protecionistas, bem como o
surgimento de grandes blocos comerciais, enfraqueceu os entraves que antes existiam para o comércio
entre os países. O discurso das nações industrializadas em defesa do fim das práticas protecionistas
(quando realizadas pelos países em desenvolvimento, é claro) provocou a intensificação das trocas
internacionais, mesmo que ao custo de prejuízos para as nações em desenvolvimento que ainda
praticavam políticas de proteção a mercados ou a setores da indústria. Além disso, podemos considerar
que a formação de blocos comerciais colaborou para o fim de tarifas alfandegárias e para o aumento da
livre movimentação de pessoas, bens e serviços.

79
Unidade II

Observação

Nos dias de hoje, mais de 30 anos depois da reunião que definiu o


Consenso de Washington, algumas unanimidades sofreram um forte abalo.
Por exemplo, o movimento Brexit, que teve início em 2017 (e parece ter se
encerrado em 2020) e que defendeu a retirada do Reino Unido do bloco
da União Europeia. Desde o início da participação inglesa no bloco, havia
reservas do governo britânico quanto à criação de uma moeda única, o euro
(o que diminuiria a soberania do país na organização e no planejamento de
sua economia), e quanto à livre movimentação de pessoas (o que poderia
provocar um colapso no país com a chegada de milhões de imigrantes em
busca de uma vida melhor ou em busca de asilo por conta da violência
no Oriente Médio).

Figura 22 – A eliminação de barreiras alfandegárias entre os países estimulou o comércio


internacional e possibilitou a formação de blocos comerciais

Disponível em: https://bit.ly/3DtanUc. Acesso em: 12 nov. 2021.

A partir dos dados do relatório Global Powers of Retailing, da Deloitte, Pereira (2020) investigou
como, no ambiente da globalização, o capital comercial expandiu-se e teve que se adaptar (ou se
modificar) em diferentes contextos geográficos e territoriais. No gráfico a seguir, Pereira mostra qual
foi, em 2016, a participação de negócios, no exterior e no país de origem, de algumas das 10 maiores
empresas globais.

80
CIÊNCIAS SOCIAIS

% da receita de operações no exterior

80,0% 40

Quantidade de países em que opera


70,0% 35
60,0% 30
50,0% 25
40,0% 20
30,0% 15
20,0% 10
10,0% 5
0,0% 0
Walmart Costco Kroger Schwarz Walgreens Amazon The Home Aldi Carrefour CVS
Wholesale Group Boots Depot Health
Alliance
% da receita de operações no exterior Quantidade de países em que opera

Figura 23 – Expansão de empresas globais e operações territoriais

Fonte: Pereira (2020, p. 3).

Como afirma Pereira (2020, p. 3),

as operações em diversos mercados nacionais pelas corporações


transnacionais de varejo mostram como o caminho da internacionalização
foi, para muitas empresas, frutífero em termos de ampliação dos lucros e
do crescimento econômico. Ir para outros países, inserir-se no mercado
com a concorrência local, adaptar-se (ou não) à cultura de determinadas
formações socioespaciais, são desafios presentes na estratégia de
internacionalização. […] Essa estratégia acaba sendo uma lógica global que
reorganiza os territórios nacionais num contexto de uma lógica competitiva
entre as empresas no mercado global, produzindo cada vez mais a unificação
territorial e econômica, e a fragmentação e diferenciação espacial, num
processo contraditório que tem o Estado, o país, [como] sua base de ação;
daí falar-se em um “espaço nacional da economia internacional”.

Dimensão produtiva

A dimensão produtiva diz respeito às formas como as estruturas de produção se organizam.


Esse fenômeno manifestou-se a partir de dois cenários: a divisão da produção em diferentes pontos
geográficos ou a divisão da distribuição para consumo segundo estratégias geopolíticas.

No primeiro caso, o país A ficaria encarregado da etapa 1, o B da etapa 2 etc. No segundo, mais
complexo, os produtos seriam oferecidos ao mercado de acordo com uma lógica na qual os produtos
inovadores e de última geração seriam primeiramente oferecidos nos mercados mais “nobres” (Estados
Unidos e Europa), sendo oferecidos aos países periféricos apenas em momento posterior, quando outros
produtos envolvendo tecnologia mais moderna pudessem ser distribuídos ao mercado “nobre”.

81
Unidade II

A imensa liberdade que as grandes corporações passaram a usufruir permitiu a elas fazer

investimentos em lugares onde os custos são mais baixos, produzir peças


num país para serem transformadas em outros e comercializadas em todo
o planeta. Ou seja, por trás da expansão do comércio, a economia atual é
regida por uma variável ainda mais forte: a expansão rápida da produção
comandada por empresas que realizam suas atividades fora do seu país de
origem (BARBOSA, 2006, p. 55).

Saiba mais

Sugerimos que você assista ao filme Roger e eu. Ele narra as tentativas
do diretor do documentário, Michael Moore, de conversar com o presidente
da General Motors, que havia fechado várias fábricas na cidade de Flint,
Michigan, Estados Unidos. Como a maior parte da população da cidade
trabalhava nas indústrias, Flint foi sendo abandonada e seus moradores
foram empurrados para a miséria.

ROGER e eu. Direção: Michael Moore. Estados Unidos: Dog Eat Dog
Films, 1989. 91 min.

Tal movimento fez com que as empresas multinacionais (as que possuem ao menos uma filial fora do
seu país de origem) se espalhassem por todos os cantos do globo, buscando se instalar nos locais cujas
políticas ambientais, tributárias ou trabalhistas fossem mais favoráveis.

Essa instalação deu-se a partir de duas formas distintas: ou as multinacionais fundiram-se com
empresas já existentes, por meio de investimentos estrangeiros diretos (IEDs), ou apenas abriram filiais
em outros países que não o seu de origem. Como é possível imaginar, o fluxo de IED para o país sinaliza
o quanto o mercado internacional acredita no seu potencial e na sua capacidade de gerar lucro. Daí a
sua importância como indicador do crescimento da economia. Da mesma forma, o fluxo de IED do país
para o exterior mostra a segurança e a estabilidade da economia nacional, que sente confiança em
investir em outros locais. No caso do Brasil, segundo Ribeiro e Silva Filho (2013, p. 32),

nos anos 2000, o país, que foi o 11º em volume recebido de IED, viu sua
posição variar significativamente, tornando-se um dos cinco maiores
receptores de investimentos diretos em 2011, com participação de 4,37%
nos fluxos totais, atrás apenas de Estados Unidos, China, Bélgica e Hong
Kong. Quando se considera o estoque acumulado ao longo dos anos,
pode‑se ver que o Brasil tem melhorado sua posição como destino de IED.
Em 2011, o país possuía 3,27% desse estoque e foi o oitavo principal destino
para os investidores estrangeiros. A participação atual do Brasil como fonte

82
CIÊNCIAS SOCIAIS

de capitais para investimentos diretos é bastante pequena, não chega a 1%,


mas também tem crescido nos últimos anos. Apesar de não ser um grande
e tradicional exportador de investimentos diretos, o Brasil melhorou sua
participação percentual nos fluxos globais de capitais.

Na tabela a seguir, podemos ver o quanto de IED entrou no Brasil e o quanto de IED teve o Brasil
como origem, entre 2000 e 2009.

Tabela 2 – A importância do Brasil nos estoques globais de IED

Estoque de IED no Brasil Estoque de IED do Brasil


Ano
Percentual Posição Percentual Posição
2000 1,64 13ª 0,65 20ª
2001 1,63 14ª 0,64 21ª
2002 1,34 18ª 0,70 22ª
2003 1,41 18ª 0,55 24ª
2004 1,45 18ª 0,59 24ª
2005 1,57 15ª 0,64 23ª
2006 1,54 18ª 0,73 22ª
2007 1,73 16ª 0,73 23ª
2008 1,86 15ª 0,95 21ª
2009 2,22 13ª 0,85 23ª
2010 3,39 7ª 0,90 23ª
2011 3,27 8ª 0,96 23ª

Fonte: Ribeiro e Silva Filho (2013, p. 33).

Dimensão financeira

Outra dimensão importante da globalização é a financeira, que diz respeito, segundo Prado
(2003, p. 14), ao

processo de integração dos mercados financeiros locais – tais como os


mercados de empréstimos e financiamentos, de títulos públicos e privados,
monetário, cambial, seguros etc. – aos mercados internacionais. No limite
os mercados nacionais operariam apenas como uma expressão local de
um grande mercado financeiro global. Portanto, esse fenômeno não trata
apenas do crescimento de transações financeiras com o exterior, mas da
integração dos mercados financeiros nacionais na formação de um mercado
financeiro internacional.

A ideia principal está em deixar que o capital circule com a maior liberdade possível entre países,
interligando mercados tanto nacional quanto internacionalmente. Essa liberdade de movimentação

83
Unidade II

acabou por criar um imenso supermercado de dinheiro, no qual os agentes financeiros estão interligados
por meio de tecnologias de informação e comunicação, 24 horas por dia.

Outra característica importante da dimensão financeira da globalização diz respeito ao fato de


o capital financeiro e sua movimentação não terem mais única e exclusivamente a função de garantir o
comércio internacional, nem de equilibrar a balança de pagamento de cada país. De fato, o capital circula
dentro de uma lógica própria, que não tem relação alguma com trocas comerciais ou investimentos
produtivos. Aliás, na maior parte das vezes, essa movimentação é de caráter especulativo, ou seja,
os grandes investidores movimentam recursos em razão de expectativas de lucro, mesmo que essa
movimentação desestabilize determinados países (PLIHON, 2007).

Dado esse caráter especulativo da movimentação do capital, é razoável afirmar que ela não tem como
garantir, de forma satisfatória, o problema da falta de recursos dos países. Ao contrário, a globalização
financeira tornou-se mais um elemento de preocupação para os países em desenvolvimento, que podem
ter sua economia seriamente prejudicada por movimentos abruptos do capital (PLIHON, 2007). Segundo
Barbosa (2006), essa movimentação especulativa do capital, sempre em busca do porto mais seguro ou
do terreno mais fértil (leia-se, que proporciona menos restrições para a sua movimentação), gera mais
malefícios do que benefícios, em especial por crescer mais do que a economia real, criando verdadeiras
bolhas ilusórias de riqueza.

Figura 24 – Na esfera financeira, a globalização se associa à circulação do capital dentro de uma


lógica própria, que não tem relação alguma com trocas comerciais ou investimentos produtivos. Aliás,
na maior parte das vezes, essa movimentação é de caráter especulativo

Disponível em: https://bit.ly/2YEb1Q6. Acesso em: 12 nov. 2021.

É necessário reconhecer ainda que, se a movimentação do capital ocorre entre países, uma
instabilidade qualquer em alguma nação pode provocar um efeito cascata imenso, arrastando todo o
globo para a crise. É o que aconteceu, apenas para citar um exemplo, em 2008. Comparada à crise de
1929 em termos de extensão e profundidade, a crise de 2008 ocorreu pelo descompasso entre o valor
de títulos imobiliários e a renda da população, caracterizando o que chamamos de bolha imobiliária. Isso
aconteceu por conta de os bancos facilitarem crédito para a compra de imóveis sem análises realistas
84
CIÊNCIAS SOCIAIS

sobre a capacidade dos consumidores de quitar suas dívidas. A facilidade de crédito elevou o preço dos
imóveis; em contrapartida, os bancos passaram a ter prejuízo com o não pagamento de empréstimos
por parte da população. Um dos maiores bancos americanos, o Lehman Brothers, “quebrou”, o que
resultou numa queda generalizada das bolsas mundiais, bem como numa crise financeira difícil de ser
controlada e que afetou, em especial, os países em desenvolvimento.

Atualmente, temos três grandes instituições mundiais encarregadas de normatizar, controlar e


acompanhar a economia global:

• Fundo Monetário Internacional (FMI): criado em 1944, tem como objetivo colaborar para a
cooperação econômica entre os países e procurar evitar crises econômicas nos países-membros.
Tem ainda como propósito promover a cooperação financeira internacional e a estabilidade
cambial, e coloca-se à disposição para assessorar as equipes econômicas dos países no sentido de
orientá-las na direção de políticas de saneamento econômico e financeiro.

• Banco Mundial: também criado em 1944, tem a função de realizar empréstimos para países em
dificuldades financeiras. Tais recursos são entregues mediante a aceitação pelo FMI das políticas
adotadas por esses países para a solução de crises econômicas.

• Organização Mundial do Comércio (OMC): é responsável por regulamentar o comércio


internacional, monitorando acordos e a execução de políticas comerciais dos países-membros.

Como é possível verificar, nem mesmo a existência de instituições internacionais para o monitoramento
dos mercados financeiros e comerciais conseguiu impedir a crise de 2008, tampouco suas devastadoras
consequências na economia dos países-membros. Como afirma Barbosa (2006, p. 73),

enquanto não existir uma autoridade global encarregada de implementá-la


[a regulação dos fluxos financeiros internacionais] e as crises não afetarem
os países mais poderosos, a esfera financeira tende a se expandir ainda mais,
gerando instabilidade.

Dimensão tecnológica

A dimensão tecnológica tem relação com a rápida disseminação da tecnologia de internet e telefonia
celular no final do século XX, configurando o que alguns sociólogos e economistas consideram ser a
Terceira Revolução Industrial. De fato, seria impossível tamanha troca de informações em tempo real sem
que houvesse uma tecnologia capaz de dar conta disso. Essa revolução traduziu-se na implementação
e no uso de satélites e cabos de fibra óptica, o que tornou os custos e a qualidade dos serviços de
telecomunicação acessíveis a todos os países.

Essa revolução envolveu governos, empresas e universidades, processo que sinalizou a importância
que a informação teria a partir daquele instante. Assim, a informação passou a ser o recurso de produção
mais significativo em qualquer negócio – e não apenas a informação, mas a capacidade de reagir,
interagir e inovar a partir das informações disponíveis.
85
Unidade II

Figura 25 – As tecnologias de informação e comunicação colaboraram para criar o mito da aldeia


global, o mundo no qual tudo e todos estão interligados por laços de comunhão e solidariedade

Disponível em: https://bit.ly/31yipO8. Acesso em: 12 nov. 2021.

O mito de uma aldeia global e a narrativa de que todos, em qualquer lugar do planeta, poderiam
fazer uso das tecnologias de comunicação e informação não se concretizaram como os profetas da
globalização desejavam. A desigualdade social dentro dos países e entre os países aumentou em razão
do surgimento de uma nova categoria de exclusão: a exclusão digital. Em outros termos, a globalização
reforçou a disparidade econômica entre os países e, dentro deles, a desigualdade social entre os
vários segmentos da população. Nesse sentido, é interessante considerar uma análise publicada pela
Agência Brasil.

Quase metade do planeta ainda não tem acesso à internet, aponta estudo

Em 2019, o acesso à internet passou a estar disponível a 51% da população mundial.


Foi o primeiro ano em que a conectividade ultrapassou a casa dos 50%. Contudo, o índice
mostra que, a despeito de a rede mundial de computadores ter ganhado importância nas
mais diversas esferas sociais nos últimos 20 anos, quase metade da população ainda não
dispõe desse recurso. […]

Quando considerados os domicílios, o índice aumenta, chegando a 57,8%. Em 2005,


19% das casas conseguiam navegar na web. Contudo, quando considerada a banda larga
fixa, o percentual cai para 14%. Já o ritmo de crescimento de conectividade em lares
desacelerou, tendo saído de 53% para 54,8% entre 2017 e 2018. Em países mais pobres, a
taxa de crescimento caiu de 19% em 2017 para 17,5% em 2018.

A análise sobre a presença de lares atendidos por serviços de banda larga é considerada
importante por pesquisadores, uma vez que as conexões móveis em geral possuem limitações

86
CIÊNCIAS SOCIAIS

para a fruição plena de serviços, como franquias que restringem o consumo de vídeos em
quantidade razoável. […]

O relatório aponta que, além de metade da população estar fora da internet, entre
os conectados há desigualdades importantes. “As distâncias existentes na adoção de
conectividade são conduzidas por brechas de diferentes tipos: geografia (áreas urbanas x
rurais), renda (ricos x pobres), idade, gênero, entre outros”, destaca o relatório.

Enquanto a conexão de baixa qualidade foi apontada por 43% das pessoas em países
mais pobres, o problema foi mencionado por 25% dos entrevistados em nações mais ricas.
Outro exemplo mais claro está no preço dos pacotes entre diferentes regiões do globo.
Enquanto o preço de uma franquia de 1 giga em países do sul da Ásia consome 1,2% da
renda mensal média, na África subsaariana o serviço custa o equivalente a 6,8% da receita
média mensal.

Contudo, conforme o relatório, a infraestrutura avançou e hoje abrange 96% da


população mundial. [...]

Para os autores, a internet se encontra em uma “encruzilhada”. “Há um reconhecimento


crescente de que os desafios e riscos demandam políticas e regulações específicas, assim
como novas abordagens de negócio e iniciativas industriais voltadas a mitigar efeitos não
intencionados e resultados negativos da adoção da internet.”

O documento ressalta que as pessoas não podem apenas ser divididas entre usuários
e não usuários, mas deve ser entendida a diversidade de formas de conectividade e
experiências online. O reconhecimento dessas especificidades passa pela consideração de
públicos mais vulneráveis em sua presença na web. Mulheres estão sujeitas a perseguição,
assédio e discurso de ódio na web. Já crianças são vítimas de abuso, exploração e bullying.

Diante da variedade de formas de acesso, os autores defendem o que chamam de


“conectividade universal relevante”. Essa noção envolve uma banda larga “disponível, acessível,
relevante, barata, segura, confiável e que empodere os usuários, levando a impactos
positivos”. Essa percepção leva em consideração não somente o custo, mas também
diferentes motivadores para se conectar e ter experiências de qualidade no ambiente online.

Considerando a variedade de experiências, o relatório traz dados sobre diferentes


modalidades de atividade na web. A troca de mensagens por apps como WhatsApp e
Facebook Messenger é a atividade mais popular, seguida por navegação em redes sociais,
ligação online e leitura de notícias. As ações variam conforme a renda, e a prática de obter
informação e comprar produtos é mais comum em países mais ricos.

Adaptado de: Valente (2019).

87
Unidade II

Como podemos perceber, até o momento, a promessa feita por economistas e presidentes de bancos
centrais no final da década de 1980 – qual seja, a promessa de um futuro promissor, no qual não haveria
mais pobreza – não se concretizou. A seguir, veremos como a sociologia buscou elaborar modelos para
explicar o fenômeno da globalização e as consequências provocadas por ela.

5.1 Modelos contemporâneos de explicação sociológica sobre a globalização

Se a globalização é um fenômeno difícil de ser explicado, e se a sua compreensão exige um imenso


esforço para a interpretação de fatos, situações e movimentos que extrapolam os limites do que é
nacional, é justificável configurá-la como um objeto que desafia o arsenal sociológico de investigação.
Segundo Ianni (1998), das ciências sociais são esperados procedimentos para a reflexão a respeito da
realidade social, que hoje ultrapassa de maneira visível os desafios até então enfrentados pela sociologia.

O objeto das ciências sociais deixa de ser principalmente a realidade


histórico-social nacional, ou o indivíduo em seu modo de ser, pensar, agir,
sentir e imaginar. Desde que se evidenciam os mais diversos nexos entre
indivíduos e coletividades, ou povos, tribos, nações e nacionalidades,
em âmbito mundial, o objeto das ciências sociais passa a ser também a
sociedade global. Muito do que é social, econômico, político, cultural,
linguístico, religioso, demográfico e ecológico adquire significação não só
extranacional, internacional ou transnacional, mas propriamente mundial,
planetária ou global. Quando se multiplicam as relações, os processos
e as estruturas de dominação e apropriação, bem como de integração e
fragmentação, em escala mundial, nesse contexto estão em causa novas
exigências epistemológicas (IANNI, 1998, p. 2).

Os mecanismos e os procedimentos de pesquisa sociológica, então, devem levar em conta que as


condições históricas e teóricas, no contexto da globalização, abarcam inúmeros desencontros, conflitos,
tensões, rupturas e descontinuidades. As categorias de análise devem considerar os novos sentidos e
significados que adquiriram os fenômenos da história, da memória, da lembrança e do esquecimento.
“Alteram-se mais ou menos drasticamente as condições, as possibilidades e os significados do espaço e
do tempo, já que se multiplicam as espacialidades e as temporalidades” (IANNI, 1998, p. 2).

O sentido de espaço a partir do qual as ciências sociais trabalharam nos séculos XVIII e XIX agora é
outro. O espaço, ao menos no sentido comum em que sempre foi compreendido, não dá mais conta de
nomear o que no final do século XX e começo do século XXI passou a ser compreendido como espaço.
O mesmo ocorre com os fenômenos da cultura, da religião, da política, das tradições e dos hábitos de
convívio social. Nossa memória, agora, abarca não apenas o que aconteceu no passado com nossa
família e nosso país, mas também o que aconteceu lá fora, no espaço que nos parece distante, mas que
está próximo.

Se o sentido de fronteiras mudou, e se a noção do que é específico em cada cultura mudou, temos
que construir outros instrumentos de análise, diferentes dos que foram usados até agora. Um sushi
(prato da culinária japonesa), aqui no Brasil, ganhou formas, cores e receitas que, provavelmente, são
88
CIÊNCIAS SOCIAIS

inconcebíveis para os orientais. Essa busca de acomodação à cultura local tornou-se um verdadeiro
desafio para todas as marcas e produtos globais. Afinal, o mercado é global, mas os consumidores têm
especificidades que devem ser contempladas e levadas em conta pelas grandes indústrias e corporações.

Figura 26 – A busca de acomodação à cultura local tornou-se um verdadeiro


desafio para todas as marcas e produtos globais

Disponível em: https://bit.ly/3v9P8UA. Acesso em: 12 nov. 2021.

Embora as Torres Gêmeas tenham sido atingidas em Nova York, em 2001, a lembrança dos prédios
desabando por conta dos atos terroristas pertence a todos nós. Aquele é um evento que não faz parte
apenas da narrativa histórica dos Estados Unidos; ao contrário, tornou-se um elemento do imaginário
de todos. O mesmo podemos dizer a respeito da imagem de um menino sírio morto numa praia da
Turquia, em 2015: a foto, divulgada exaustivamente em todos os meios de comunicação, não apenas
deu um rosto e um nome aos refugiados que buscam escapar da guerra e da fome em seu país, mas
acabou por moldar boa parte da consciência mundial em relação ao drama dos imigrantes. Da mesma
forma que as Torres Gêmeas desabaram na nossa sala, por meio da televisão, essa criança morreu
também na nossa rua e na porta da nossa casa.

Saiba mais

Sugerimos que você assista a três filmes muito interessantes.

Babel: o filme cria um mosaico de vários eventos ocorrendo


simultaneamente, de forma não linear. Um tiro que atinge uma turista
americana no Marrocos provoca outros acontecimentos nos Estados
Unidos, no México e no Japão.

BABEL. Direção: Alejandro González Iñárritu. Estados Unidos; México;


França: Anonymous Content; Zeta Film; Central Films; Media Rights Capital,
2006. 143 min.

89
Unidade II

Encontro com Milton Santos ou O mundo global visto do lado de cá:


por meio de entrevistas com o geógrafo Milton Santos (1926-2001), o
documentário propõe-se a discutir a globalização, o consumo, a ideia de
território e as consequências advindas das novas faces do capitalismo a
partir do final do século XX. Milton Santos não foi apenas um dos maiores
pensadores da geografia no Brasil, mas uma importante voz no cenário
mundial. Sua obra tem, como principal característica, uma profunda
crítica ao processo de globalização, em especial no que se refere às suas
consequências para os países pobres ou em desenvolvimento.

ENCONTRO com Milton Santos ou O mundo global visto do lado de cá.


Direção: Sílvio Tendler. Brasil: Caliban Produções, 2006. 90 min.

Adeus, Lênin: o filme é uma tragicomédia que narra as experiências


de uma socialista convicta que, por conta de um enfarto, fica em coma
durante oito meses. Quando ela acorda, a Alemanha Oriental já não existe
mais, o Muro de Berlim foi destruído e o capitalismo tornou-se o modelo
econômico hegemônico. O seu filho, para protegê-la, faz de tudo para que
ela não descubra a verdade.

ADEUS, Lênin. Direção: Wolfgang Becker. Alemanha: X-Filme Creative


Pool, 2003. 121 min.

Para Ianni (2001), uma das grandes dificuldades a serem enfrentadas pelas ciências sociais é que
o seu paradigma básico (ou seja, o seu modelo de análise) se construiu a partir da ideia de sociedade
nacional, categoria que vem sendo esgarçada pelos defensores da globalização.

“A sociedade global apresenta desafios empíricos e metodológicos, ou históricos e teóricos, que


exigem novos conceitos, outras categorias, diferentes interpretações” (IANNI, 2001, p. 237). Assim,
todo o arsenal de investigação sociológica baseado nos antigos padrões e modelos de análise precisa
acomodar uma realidade internacional, transnacional e multinacional.

É provável que grande parte dos obstáculos ao trabalho do sociólogo tenha como origem o fato
de que, curiosamente, ao mesmo tempo que o mundo tende a (ou pretende) se transformar em algo
global, percebem‑se movimentos contrários a esse molde. Conforme assinala Ianni (2001), os
Estados‑nação ainda existem, da mesma forma que permanecem as fronteiras entre territórios,
a circulação de moedas diferentes, a existência de distintas constituições e conjuntos de normas
legais, e os monumentos a diferentes heróis. Além disso, não são raros os movimentos nacionalistas
e fundamentalistas, que não apenas ameaçam a hegemonia do discurso globalizador, mas também
atacam e buscam destruir as origens desse mesmo discurso.

90
CIÊNCIAS SOCIAIS

Lembrete

Falamos anteriormente do ataque às Torres Gêmeas de Nova York.


Diversos pesquisadores entendem esse ato de terrorismo como resultado
da clara intenção de afrontar o mundo ocidental – em última instância, o
criador do discurso da globalização.

No mesmo sentido, outras manifestações se opõem à utopia do mundo global, como os movimentos
nacionalistas similares ao Estado Islâmico do Iraque e da Síria (Isis), que surgiu a partir da ação de
remanescentes da Al-Qaeda (justamente a organização responsável pelo ataque às Torres Gêmeas) e
que, em 2013, já havia crescido e se espalhado em torno do objetivo de criar um Estado islâmico. Outro
exemplo de manifestação contrária ao discurso globalizador é a junção de parte do fundamentalismo
cristão com os supremacistas brancos – grupos ligados ao neonazismo que acreditam na falsa
superioridade do homem branco. Esses grupos têm se apresentado contra a globalização (chamada por
eles de globalismo) contínua e agressivamente. Como afirma Ianni (1998, p. 5),

a originalidade e a complexidade da globalização, no seu todo ou em


seus distintos aspectos, desafiam o cientista social a mobilizar sugestões
e conquistas de várias ciências. Acontece que a globalização pode ser
vista como um vasto processo não só político-econômico, mas também
sociocultural, compreendendo problemas demográficos, ecológicos, de
gênero, religiosos, linguísticos e outros. Ainda que a pesquisa privilegie
determinado ângulo de análise, está continuamente desafiada a levar em
conta outros aspectos da realidade, sem os quais a análise econômica,
política, sociológica, ecológica ou outra resulta em abstrações carentes de
realidade, consistência ou verossimilhança.

Essas camadas de sentido e significado da globalização constituem verdadeiros desafios para as


ciências sociais. Segundo Ianni (1998), os principais são:

• A realidade social, o “objeto” de estudo da sociologia, agrega características nacionais, regionais


e locais. Os antigos conceitos de identidade, nação e ideologia não são suficientes para
descrever e investigar as relações sociais que acontecem num mundo em que a circulação de
informações ignora fronteiras, criando novas formas de organização sindical, de discussões
políticas e de mobilização social.

• As construções teóricas a respeito de sociedade civil, Estado, povo, cidadania, conflito de classes,
divisão do trabalho, capitalismo, socialismo e revolução só fazem sentido quando as sociedades
são investigadas local ou nacionalmente. Em outras palavras, ainda não existem construções
teóricas que permitam a investigação de fenômenos globais.

• As pesquisas passaram a requerer orientação multidisciplinar.

91
Unidade II

• As pesquisas passaram a utilizar, de maneira mais intensa, métodos comparativos a partir de um


contexto bastante diversificado. Mais do que nunca, diante da problemática da globalização, o
cientista social é levado a realizar comparações complexas, com rigor metodológico.

• As antigas categorias de passado e presente precisam ser reavaliadas. Apenas para dar
um exemplo, consideremos uma análise que envolva aspectos históricos relacionados ao
colonialismo e ao imperialismo. Dadas as novas faces da globalização, é evidente que esses
aspectos não podem mais ser investigados da mesma forma que fazíamos no início do século XX.
Os fenômenos do colonialismo e do imperialismo exigem que incorporemos, para a sua
compreensão, um olhar de hoje, um olhar impregnado de percepções a respeito das relações
econômicas, sociais e culturais que surgiram a partir da globalização. Como lembra Ianni (1998, p. 5),
devemos conduzir nossa investigação “como se uma nova luz permitisse clarificar com outras
cores o que parecia desenhado, assim como desvendar traços, movimentos, sons e cores que não
se havia percebido” anteriormente.

• O sujeito do conhecimento, ou seja, nós que investigamos a realidade social, também não é mais o
mesmo. Nosso olhar agora incorpora experiências e sensações de maneira “desterritorializada”:
em alguns momentos, nosso ponto de partida não é o país em que moramos, nem o espaço
que conhecemos. Somos capazes de perceber o mundo a partir do ponto de vista de diferentes
nacionalidades, diferentes percursos históricos e diferentes hábitos e formas de organização social.

Figura 27 – No mundo globalizado, nosso olhar incorpora experiências e


sensações de maneira “desterritorializada”

Disponível em: https://bit.ly/3lvir0w. Acesso em: 12 nov. 2021.

De acordo com Ianni (2001, p. 239), “a sociedade global se constitui como um momento epistemológico
fundamental, novo, pouco conhecido, desafiando a reflexão e a imaginação de cientistas sociais, filósofos
e artistas”. Concluímos, então, que o fenômeno da globalização exige, para a sua compreensão, um

92
CIÊNCIAS SOCIAIS

aparato metodológico especial por parte das ciências sociais. Veremos, a seguir, algumas das teorias que
procuram dar conta de explicá-la.

5.2 Teorias da globalização

Os sociólogos vêm buscando desenvolver teorias que expliquem o fenômeno da globalização do


ponto de vista das relações sociais e das consequências advindas das novas formas de trabalho,
de circulação de bens e pessoas, de troca incessante de informações e de entendimento da questão do
nacional, do regional e do local.

Segundo Ianni (2001), algumas dessas teorias elaboraram a noção de sistema-mundo, ou


economia‑mundo. Na opinião do autor, essas teorias ocupam-se com a análise do conflito entre
o centro e a periferia do mundo, entre desenvolvimento e subdesenvolvimento. A ideia de sistema-mundo
ajuda a explicar as crises nos centros do capitalismo, crises essas que criam ondas e se propagam para
a periferia, afetando – ou tornando mais perversas e evidentes – as estruturas de desigualdade social
por meio de relações que tensionam e colocam em conflito as nações dominantes e as que a elas se
submetem. Em continuidade, Ianni (2001, p. 33) cita Wallerstein (1979) para explicar em que consiste
esse sistema mundial:

O sistema mundial é um sistema social, um sistema que possui limites,


estrutura, grupos, membros, regras de legitimação e coerência. Sua
vida resulta das forças conflitantes que o mantêm unido por tensão e
o desagregam, na medida em que cada um dos grupos busca sempre
reorganizá-lo em seu benefício. Tem as características de um organismo, na
medida em que tem um tempo de vida durante o qual suas características
mudam em alguns dos seus aspectos, e permanecem estáveis em outros.
Suas estruturas podem definir-se como fortes ou débeis em momentos
diferentes, em termos da lógica interna de seu funcionamento. […] Até
o momento só têm existido duas variedades de tais sistemas mundiais:
impérios-mundo, nos quais existe um único sistema político sobre a maior
parte da área, por mais atenuado que possa estar o seu controle efetivo; e
aqueles sistemas nos quais tal sistema político único não existe sobre toda
ou virtualmente toda a sua extensão. Por conveniência, e à falta de melhor
termo, utilizamos o termo “economias-mundo” para definir esses últimos.

Outro grupo importante de teorias tem o objetivo de entender a internacionalização do capital e


sua importância para o processo globalizador. O mundo transformou-se numa grande fábrica global,
ao mesmo tempo que ganhou características típicas de um shopping center mundial. Essas metáforas
(as de fábrica e shopping center globais) conseguem se fazer reais no mundo em que vivemos porque as
relações de produção e consumo ganharam novos formatos com a globalização – aliás, não apenas
as relações de produção e consumo, mas também as formas de gerar e fazer circular o capital financeiro.
Essa modalidade de capital circula sem nacionalidade e sem pátria. Ele não pertence a país algum e
não defende quaisquer interesses nacionais. É o capital gerado por meio da acumulação nas atividades
produtivas, mas que cresce por conta da especulação de grandes financistas ou grandes corporações
93
Unidade II

financeiras, e que reverbera na vida da sociedade por conta da diversidade que cria ou destrói. Segundo
Ianni (2001, p. 64),

é claro que a internacionalização do capital, compreendida como


internacionalização do processo produtivo ou da reprodução ampliada do
capital, envolve a internacionalização das classes sociais, em suas relações,
reciprocidades e antagonismos. Como ocorre em toda formação social
capitalista, também na global desenvolve-se a questão social. Quando se
mundializa o capital produtivo, mundializam-se as forças produtivas e as
relações de produção. Esse é o contexto em que se dá a mundialização das
classes sociais, compreendendo suas diversidades internas, suas distribuições
pelos mais diversos e distantes lugares, suas múltiplas e distintas
características culturais, étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e outras.

Figura 28 – No mundo globalizado, mudam não apenas as relações de produção e consumo, mas
também as formas de gerar e fazer circular o capital financeiro

Disponível em: https://bit.ly/3BBJZH9. Acesso em: 12 nov. 2021.

Devem ser mencionadas também as teorias que buscam compreender a interdependência das
nações. Já vimos que, apesar do discurso globalizador, as nações mantiveram sua identidade, suas
políticas econômicas e sociais, sua cultura e seus valores, sem que isso comprometesse a fluidez do
processo da globalização ou ameaçasse a ideia de uma rede mundial na qual as nações pudessem
manter a paz, mesmo que isso significasse ignorar as relações de dominação ou a desigualdade da
divisão internacional do trabalho e da riqueza.

Em consequência das discussões mencionadas, outro grupo de teorias vem tentando analisar a
questão da modernização do mundo e da sua ocidentalização. Parece haver um inexplicável consenso
de que a globalização, o capitalismo e a mundialização são as melhores escolhas que um país pode fazer,
mesmo que isso não seja verdadeiro para nações que vivem situações econômicas muito específicas. Por
94
CIÊNCIAS SOCIAIS

exemplo: caso um país tenha na agricultura sua maior base econômica, faz sentido abrir o mercado para
produtos agrícolas estrangeiros mais baratos? No entanto, essa ideia de única e melhor solução

é uma tradução da ideia de que o capitalismo é um processo civilizatório não


só “superior”, mas também mais ou menos inexorável. Tende a desenvolver-se
pelos quatro cantos do mundo, generalizando padrões, valores e instituições
ocidentais (IANNI, 2001, p. 99).

Mais: o discurso da superioridade do modelo é feito de tal forma que todos os povos, independentemente
de condição social ou etnia, tendem a acreditar que devem colaborar para a concretização dos projetos
globalizadores.

Lembrete

Vale a pena relembrar a teoria marxista a respeito da alienação. De


certa forma, podemos ver alguma semelhança entre o processo descrito
por Marx e a predominância da tecnologia, nos dias de hoje, definindo o
que somos, com quem conversamos, o que compramos e o que pensamos.
Nesse sentido, como afirma Ianni (2001, p. 114), “aos poucos, a sistemática
da tecnologia povoa e organiza também o imaginário de indivíduos
e coletividades. Ao entrar na fábrica de simulacros e virtualidades, a
tecnologia ajuda a instituir parâmetros de pensamento e imaginação”.

Finalmente, um conjunto de teorias tem se ocupado da compreensão racional do mito da aldeia


global. Esse mito criou a ideia de que somos todos irmãos e partilhamos o mesmo espaço, como se, de
fato, vivêssemos orientados por ideias de solidariedade e comunhão mundial. Ianni (2001, p. 119) diz que

a noção de aldeia global é bem uma expressão da globalidade das ideias,


padrões e valores socioculturais, imaginários. Pode ser vista como uma
teoria da cultura mundial, entendida como cultura de massa, mercado de
bens culturais, universo de signos e símbolos, linguagens e significados
que povoam o modo pelo qual uns e outros situam-se no mundo, ou
pensam, imaginam, sentem e agem. A aldeia global pode ser uma metáfora
e uma realidade, uma configuração histórica e uma utopia. Sim, pode ser
simultaneamente todas essas possibilidades. Desde que as técnicas da
eletrônica propiciaram a intensificação e a generalização das comunicações,
além de toda e qualquer fronteira, acelerou-se um processo que já vinha
desenvolvendo-se no âmbito das relações internacionais, das organizações
multilaterais e das corporações transnacionais. O que o mundo já conhecia
em fins do século XIX e começo do XX, como monopólios, trustes e
cartéis, tecendo geoeconomias e geopolíticas de sistemas imperialistas, ou
economias-mundo, prenunciava os primeiros contornos do que seria no fim
do século XX a aldeia global. Na medida em que se desenvolvem as relações,
os processos e as estruturas de dominação e apropriação constituindo
95
Unidade II

a sociedade global, o que se intensifica e generaliza com a crescente


mobilização de técnicas eletrônicas, muitos começam a perceber o mundo
como uma vasta e insólita ou idílica aldeia global.

É deveras interessante perceber como esse mito persiste, apesar de todas as evidências em contrário.
No caso da pandemia de coronavírus de 2020, por exemplo, não faltaram discussões a respeito de
compras gigantescas de vacinas e equipamentos individuais de segurança por parte de determinados
países, certamente não preocupados com o fato de que outros países também precisariam de vacinas
e equipamentos. A ideia de aldeia global, portanto, só existe no campo utópico. Por conta disso,
investigaremos a seguir as questões da pobreza e da exclusão, e o papel do Brasil no cenário do
mundo globalizado.

6 O MUNDO GLOBAL

Segundo Stiglitz (2007), economista que recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 2001 e
ex‑funcionário graduado do Banco Mundial, não demorou muito para que o mundo percebesse que
as promessas do discurso globalizador não eram tão fáceis de serem concretizadas. Quinze anos após a
reunião que constituiu o Consenso de Washington, os problemas já eram visíveis e os questionamentos
cada vez mais frequentes.

Os países mais pobres não haviam alcançado os patamares de riqueza previstos. As instituições
internacionais, notadamente o FMI e o Banco Mundial, não conseguiam garantir processos sustentáveis
de desenvolvimento nesses países. Em verdade, eram poucos os que ainda não haviam percebido a
hegemonia da qual desfrutavam os países desenvolvidos quando em situação de conflito ou diante de
reclamações que necessitassem da intermediação das instituições internacionais.

Até mesmo nos países economicamente bem-sucedidos, alguns trabalhadores


e algumas comunidades foram afetados de forma negativa pela globalização.
[…] A revolução nas comunicações globais aumenta a consciência dessas
disparidades. […] Esses desequilíbrios globais são moralmente inaceitáveis e
politicamente insustentáveis (STIGLITZ, 2007, p. 67).

Figura 29 – Em praticamente todos os países, os trabalhadores foram afetados pela globalização

Disponível em: https://bit.ly/3v08CuN. Acesso em: 12 nov. 2021.

96
CIÊNCIAS SOCIAIS

O maior fator de descontentamento era o de que, ao invés da globalização da riqueza, apenas


a pobreza havia sido globalizada. Nos países em desenvolvimento, o desemprego havia aumentado e a
renda per capita diminuído. A grande maioria dos países não desenvolvidos lutava contra panoramas
crescentes de desigualdade e vulnerabilidade social. As conclusões pareciam óbvias: as regras da
globalização haviam sido criadas para dar mais vantagens aos países industrializados, regras essas que
castigavam preferencialmente os países mais pobres.

Segundo Stiglitz (2007), não ocorreu qualquer diminuição da pobreza e da desigualdade social,
mas aumentou a dependência dos países pobres em relação aos países mais ricos, em especial no que
diz respeito ao crédito, aos investimentos estrangeiros diretos e ao acesso a medicamentos e outros
produtos e serviços envolvendo tecnologias protegidas por patentes.

Mesmo a ação do FMI e do Banco Mundial gerava reclamações. Para que essas instituições ajudassem
economias em crise e dificuldade, os países solicitantes tinham que atender às exigências feitas por elas,
como privatização de setores estratégicos da economia ou redução de subsídios agrícolas, entre outras
medidas prejudiciais ao seu mercado interno e à qualidade de vida dos seus cidadãos. Afinal, uma
coisa era criticar práticas protecionistas de mercado quando realizadas em países fortes do ponto de
vista econômico; outra bem distinta era eliminar essas políticas quando as poucas indústrias nacionais
lutavam ferozmente para enfrentar a concorrência mundial. Mais: uma coisa era diminuir os valores
gastos com programas sociais em países em que a riqueza era mais bem distribuída; outra bem distinta
era diminuir (ou eliminar) seguro-desemprego, sistema público de saúde e programas de transferência
de renda em países mais pobres.

Outro aspecto levantado pelos críticos à globalização é que o processo ignorava o que havia de
mais globalizante no neoliberalismo: a degradação ambiental em escala global. Desde 1989, esse tema
ganhou cada vez mais espaço nos fóruns mundiais e, inclusive, nas negociações comerciais. Havia, e
ainda há, uma imensa associação entre globalização e degradação ambiental, e essa associação atinge a
todos os países, industrializados ou não. Aliás, os recentes índices de crescimento da economia da Índia
e da China evidenciam o quanto a intensificação das atividades econômicas deixa marcas quando esse
processo não é planejado e sustentável.

Quais as soluções para dar um fim à globalização da pobreza? Uma delas é a concessão de ajuda
financeira sob a forma de doação, sem prazo ou juros para ser restituída, em especial quando vinculada
à proteção ambiental e ao combate da vulnerabilidade social. Outras soluções podem vir sob a forma
de acordos comerciais mais justos, nos quais os países menos desenvolvidos tenham a mesma força de
negociação dos países mais ricos (STIGLITZ, 2007). Em resumo, as soluções devem passar pelo crivo
do significado real do livre-comércio de acordo com as especificidades de cada país. O comércio só
pode ser livre se todos os países puderem se beneficiar dele; em outras palavras, o argumento do
livre‑comércio não deve ser utilizado para justificar o aumento da pobreza e da dependência dos países
menos desenvolvidos.

97
Unidade II

Figura 30 – A proposta de livre-comércio deve considerar as especificidades e necessidades de cada


país. Em outras palavras, ela não pode beneficiar apenas as nações mais desenvolvidas

Disponível em: https://bit.ly/3iRYgIh. Acesso em: 12 nov. 2021.

Afinal, como competir com produtos estrangeiros barateados pelo fato de, nos países de origem, a
legislação trabalhista ser mais flexível? Como competir com países que não primam por uma legislação
ambiental rigorosa? Como competir se o desenvolvimento, mais do que nunca, está atrelado à questão
da propriedade intelectual?

Sempre haverá a necessidade de contrabalançar o desejo dos inventores de


proteger suas descobertas – e os incentivos que essa proteção proporciona –
e as necessidades do público que se beneficia do acesso mais amplo ao
conhecimento, com uma resultante aceleração do ritmo de descoberta e os
preços mais baixos que vêm da competição (STIGLITZ, 2007, p. 196).

Saiba mais
O aspecto mencionado é fundamental na hora de refletir sobre a
disponibilidade de medicamentos para doenças que assolam todos os
continentes do mundo, mas que atingem, de forma especial, os países em
desenvolvimento. A respeito desse tema, sugerimos que você assista ao
filme Contágio. Ele narra, no campo da ficção, o combate a uma pandemia
que se manifesta, pela primeira vez, na Ásia. Segundo o diretor, o roteiro
inspirou-se nos eventos relacionados ao surto de Sars e a outras pandemias.
CONTÁGIO. Direção: Steven Soderbergh. Estados Unidos: Participant
Media; Imagenation Abu Dhabi; Double Feature Films, 2011. 106 min.
Sobre o filme, e a respeito das representações sociais das pandemias e
doenças, sugerimos que você leia este artigo:
JUDENSNAIDER, I. Contágio: o discurso do medo. Prometeica, ano 3,
n. 6, p. 79-95, 2012. Disponível em: https://bit.ly/3n492h2. Acesso em:
12 nov. 2021.

98
CIÊNCIAS SOCIAIS

Devem ser discutidas ainda as diferenças entre os ganhos com recursos naturais e os ganhos
provenientes de bens manufaturados. Parece claro que há uma imensa desigualdade nos lucros que
países exportadores de café recebem, comparativamente aos lucros dos países que exportam máquinas,
computadores e produtos que envolvam tecnologia. Por conta disso, segundo Stiglitz (2007), os países
em desenvolvimento que são ricos em recursos naturais, não raras vezes, percebem-se em situação de
extrema dependência do mercado internacional, já que os bens que exportam são commodities.

Observação

Commodities são matérias-primas que não envolvem processos de


industrialização.

Finalmente, as reservas de determinados recursos naturais vêm provocando guerras em diversas


regiões do mundo, conflitos esses em geral fortalecidos com a ajuda internacional de países interessados
em controlar essas reservas. Há também disputas entre países fronteiriços, especialmente quando uma
nação tem reservas de algum recurso valioso e a outra não. Há mais conflito ainda quando as fronteiras
foram demarcadas pelas antigas potências coloniais, como se observa no caso de vários países africanos.
Essas disputas muitas vezes motivam movimentos de independência ou conflitos armados para garantir
a posse do recurso. Assim, a posse de recursos naturais valiosos acaba por gerar violência, instabilidade
política ou corrupção. “A riqueza gera poder, o poder que possibilita que a classe dominante mantenha
essa riqueza” (STIGLITZ, 2007, p. 238). É um curioso mundo global: a posse de recursos não garante o
desenvolvimento, e a falta deles tampouco impede o crescimento. Como evidências desse paradoxo,
temos o caso do Japão (um país minúsculo em termos geográficos) e dos Países Baixos.

Saiba mais

Exemplos dos fenômenos citados são os eventos que ocorrem em


Ruanda, República Democrática do Congo, Angola e Uganda. Essas regiões
são ricas em minério, especialmente em diamantes e coltan, um recurso
essencial para a produção de computadores, tablets e celulares. Um
filme bastante interessante sobre o quanto os países industrializados são
cúmplices dos conflitos na região é Diamante de sangue.

DIAMANTE de sangue. Direção: Edward Zwick. Estados Unidos:


Bedford Falls Productions; Virtual Studios; Initial Entertainment Group,
2006. 134 min.

99
Unidade II

Figura 31 – As reservas de coltan, insumo fundamental para a indústria 4.0, têm sido
motivo de conflitos e guerras no Congo e em outros países da África

Disponível em: https://bit.ly/3ltM9Da. Acesso em: 12 nov. 2021.

Há inúmeras medidas que podem colaborar para a diminuição da desigualdade entre países:

• a instituição de órgãos e fóruns de consultoria e aconselhamento político, em especial para países


em que os regimes democráticos estão sob ameaça;

• a formulação de cláusulas ambientais que devem ser respeitadas por todos os países (se há um
país que desmata floresta tropical para exportar madeira, há um país que a importa);

• a intensificação do controle de armas e a imposição de obstáculos ao desenvolvimento de


energia nuclear;

• a definição de regras internacionais em relação ao controle e à punição de fake news.

Assim, segundo Stiglitz (2007), as sugestões para um desenvolvimento que incorpore ética devem
incluir:

• políticas de sustentabilidade que priorizem a necessidade de um uso mais racional dos


recursos naturais;

• o fortalecimento das instituições e órgãos internacionais responsáveis pela vigilância da paz


e da justiça;

• a inclusão social e tecnológica das nações (e dentro das nações) menos favorecidas – o combate
à exclusão social é prioritário;

• a proteção às políticas sociais, fazendo disso uma condição para a concessão de empréstimos e
financiamentos para nações em desenvolvimento;
100
CIÊNCIAS SOCIAIS

• o apoio aos pequenos e médios negócios, em todos os países;

• o apoio às técnicas de uso intensivo de mão de obra, especialmente nos projetos financiados com
recursos internacionais.

Em resumo, democratizar a globalização significa desenvolvimento sustentável com justiça social.


Sem que seja democratizada, a globalização só faz gerar pobreza e exclusão.

6.1 Pobreza e exclusão

A desigualdade social estimulada pela globalização é um fenômeno que merece atenção especial,
inclusive por não atingir apenas os países quando observados comparativamente. Dentro de cada país
também é possível perceber quão desigual é a distribuição de renda e como vem aumentando, cada
vez mais, o número de pessoas econômica e socialmente vulneráveis. Talvez ainda mais importante
do que a constatação da existência dessas desigualdades seja o fato de que o mundo construído pela
globalização oferece poucas chances de mobilidade, tanto do ponto de vista do país quanto do ponto
de vista das classes sociais internas ao país. Vejamos como esses fenômenos se manifestam.

Desigualdade social, riqueza e bem-estar

É fato que o processo de globalização fez com que o desemprego nos países mais pobres aumentasse.
A necessidade de capacitação, mesmo no caso de trabalhos industriais e mecânicos, gerou um contingente
imenso de pessoas sem qualquer condição de encontrar um posto de trabalho. Na verdade, um dos
fenômenos mais comuns tem sido a transferência de postos de trabalho de um país para outro. Como
afirma Stiglitz (2007, p. 145),

o lado negativo desse cenário cor-de-rosa é a possibilidade de que se percam


empregos na medida em que eles se transferem de um país para outro – por
exemplo, os americanos compram bens baratos feitos na China em vez de
em seu próprio país.

Para os trabalhadores, sobram poucas alternativas quando uma empresa se retira de um país em
desenvolvimento ou quando o desemprego atinge parte da população. De fato, há um efeito dominó
que afeta todos os países, já que a precarização do trabalho e a perda de direitos trabalhistas têm
ocorrido em todos os lugares do mundo.

Lembrete

Já mencionamos o que ocorre quando uma fábrica americana resolve


fechar suas filiais e se transferir para países em que a mão de obra é mais
barata. Falaremos mais sobre a questão do trabalho adiante.

101
Unidade II

Como afirmamos anteriormente, décadas depois da reunião que materializou o Consenso de


Washington, há provas cabais de que o neoliberalismo e a globalização não deram conta de resolver os
problemas de desigualdade social e de desigualdade econômica, dois fenômenos distintos que costumam
ser tratados como sinônimos.

Reflita sobre a seguinte situação: o Brasil é considerado uma das mais importantes economias do
mundo, apesar da distribuição injusta de renda e da desigualdade de oportunidades para todos os
grupos sociais. Se fizermos uma lista das maiores economias do mundo, não será difícil localizar o Brasil
na oitava posição entre os países com maior produto interno bruto (PIB) – ou seja, tudo o que o país
produz no período de um ano.

Tabela 3 – Maiores economias do mundo (PIB em trilhões de US$)

País 2016 2017 2018


EUA 1ª 19,28 1ª 20,23 1ª 21,17
China 2ª 11,87 2ª 12,90 2ª 13,99
Japão 3ª 5,16 3ª 5,37 3ª 5,53
Alemanha 4ª 4,26 4ª 4,46 4ª 4,66
França 5ª 3,15 6ª 3,30 6ª 3,47
Reino Unido 6ª 3,15 5ª 3,34 5ª 3,54
Brasil 7ª 2,47 7ª 2,61 8ª 2,76
Índia 8ª 2,36 8ª 2,59 7ª 2,82
Itália 9ª 2,35 9ª 2,45 9ª 2,54
Rússia 10ª 2,20 10ª 2,27 10ª 2,36
Canadá 11ª 1,93 11ª 2,03 11ª 2,10
Austrália 12ª 1,53 15ª 1,53 13ª 1,66
Espanha 13ª 1,51 13ª 1,57 14ª 1,63
Coreia do Sul 14ª 1,49 12ª 1,60 12ª 1,73
México 15ª 1,44 14ª 1,52 15ª 1,60

Adaptada de: Maiores… (s.d.).

Examinemos melhor esse quadro. Temos um PIB maior do que a Itália, o Canadá, a Austrália e o
México; no entanto, podemos afirmar que a população brasileira tem uma qualidade de vida superior à
da população desses países, não tão “ricos” quanto o nosso em termos de produção?

Segundo Ianni (1994, p. 159), “a sociedade global é o cenário mais amplo do desenvolvimento
desigual, combinado e contraditório […], em que se expressam diversidades, localismos, singularidades,
particularismos ou identidades”. Diferentes processos históricos e diferentes posições em relação à
dinâmica de centro/periferia determinaram diferentes marchas em termos de política econômica e
social. Falamos anteriormente da República Democrática do Congo. Esse país detém cerca de 75% das
reservas mundiais de coltan, um item precioso para a indústria 4.0. No entanto, o país tem uma das maiores
taxas de mortalidade infantil e um PIB per capita que é o pior do mundo.

102
CIÊNCIAS SOCIAIS

Observação

O PIB per capita mede quanto cada habitante – do ponto de vista da


média matemática – apropria-se da riqueza produzida. É um indicador que
pode mascarar a realidade. Imagine que você e um amigo ganhem um
salário mínimo por mês. Caso o seu amigo receba uma herança, e caso
façamos novamente a média de renda de cada um dos dois, você e ele terão
ficado mais ricos. No entanto, apenas ele enriqueceu.

Por causa das diferenças entre riqueza e bem-estar, e como o PIB e o PIB per capita podem não
revelar a realidade, os economistas procuraram novas formas de mapear a qualidade de vida de uma
nação por meio de um indicador. Para o cálculo desse novo indicador, o índice de desenvolvimento
humano (IDH), são consideradas as seguintes variáveis:

• anos de escolaridade da população e número de matrículas por nível educacional;

• longevidade e expectativa de vida;

• renda média corrigida pelo custo de vida.

Os anos de escolaridade e o número de matrículas mostram o quanto a sociedade investiu em


educação e quanto tempo as crianças estudam antes de se inserirem no mercado de trabalho; revelam
ainda a capacidade de produção tecnológica e científica do país. A longevidade e a expectativa de vida
indicam o quanto a sociedade usufrui de serviços de saúde e saneamento básico. Finalmente, o poder
de compra corrigido pelo custo de vida mede o quanto de bens e serviços, em uma nação, o salário
permite adquirir.

O IDH varia de 0 a 1: quanto mais próximo de 0, menor o desenvolvimento humano; quanto mais
próximo de 1, maior o desenvolvimento humano. Em termos categóricos, o IDH costuma ser dividido
em três níveis:

• De 0 a 0,499: baixo desenvolvimento humano.

• De 0,5 a 0,799: médio desenvolvimento humano.

• Acima de 0,80: alto desenvolvimento humano.

Lembra-se da oitava posição do Brasil no ranking dos países com maior PIB, acima do Canadá?
Pois bem, segundo o Index Mundi (2021), em 2017, uma criança canadense tinha a expectativa de
viver 83,26 anos, e uma brasileira, 74,02 anos. Em outras palavras, se nascida em 2017, uma criança
canadense viveria quase 10 anos a mais do que uma criança brasileira. Para que você possa identificar a
posição do Brasil, comparativamente a outros países, veja a tabela a seguir.

103
Unidade II

Tabela 4 – Valores de IDH (2019)

Posição País IDH


1 Noruega 0,954
2 Suíça 0,946
3 Irlanda 0,942
4 Alemanha 0,939
4 Hong Kong 0,939
6 Austrália 0,938
6 Islândia 0,938
8 Suécia 0,937
9 Singapura 0,935
10 Holanda 0,933
11 Dinamarca 0,930
12 Finlândia 0,925
13 Canadá 0,922
84 Brasil 0,765
185 Burundi 0,423
186 Sudão do Sul 0,413
187 Chade 0,401
188 República Centro-Africana 0,381
189 Níger 0,377

Adaptada de: Ruic (2019).

Figura 32 – O IDH é um indicador que procura mensurar variáveis qualitativas


relacionadas ao desenvolvimento social

Disponível em: https://bit.ly/3GdIr8e. Acesso em: 12 nov. 2021.

104
CIÊNCIAS SOCIAIS

Quais os processos e as estratégias que podem corrigir as desigualdades sociais e econômicas,


independentemente do grau de riqueza de uma nação? O economista indiano Amartya Sen, ganhador
do Prêmio Nobel de Economia de 1988 (e que esteve à frente dos estudos que iniciaram a elaboração do
IDH), vem desenvolvendo pesquisas para compreender a estrutura e a natureza da desigualdade social
e da pobreza.

Para Sen (2000), a desigualdade social é, acima de tudo, fruto da falta de liberdade de fazer
escolhas. Em outras palavras, a desigualdade maior se dá em relação à diferença de oportunidades
de escolha. Uma criança nascida numa cidade sem escola e sem saneamento básico tem as mesmas
oportunidades que uma criança nascida numa grande cidade e moradora de um bairro com todos
os equipamentos de saúde e educação? Parece bem claro que elas têm diferentes oportunidades de
ascensão social e de expectativa e qualidade de vida. De acordo com Sen, há escolhas, ou liberdades
fundamentais, que são mais básicas do que os projetos profissionais das pessoas. Segundo o
Unicef (2017),

cerca de 3 em cada 10 pessoas em todo o mundo, ou 2,1 bilhões de pessoas,


não têm acesso a água potável e disponível em casa, e 6 em cada 10 pessoas, ou
4,4 bilhões de pessoas, não têm acesso a saneamento gerido de forma segura,
de acordo com um novo relatório divulgado pela Organização Mundial da
Saúde (OMS) e o Unicef. […] “A água potável, o saneamento e a higiene em
casa não devem ser somente privilégios de pessoas ricas ou das que vivem
em centros urbanos”, diz o Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral
da Organização Mundial da Saúde. “Estes são alguns dos requisitos mais
básicos para a saúde humana, e todos os países têm a responsabilidade de
garantir que todas as pessoas possam acessá-los.”

Figura 33 – Para Amartya Sen, a desigualdade é, acima de qualquer outro aspecto,


a falta de liberdade de fazer escolhas

Disponível em: https://bit.ly/3mHOA4q. Acesso em: 12 nov. 2021.

105
Unidade II

Sen (2000) afirma que não há liberdade sem oportunidade. Para reduzir a desigualdade social
e a pobreza, é necessário que todos sejam livres para fazer escolhas em iguais condições. Na maior
parte dos países que conseguiram diminuir a desigualdade e reduzir a pobreza, os governos tomaram
a iniciativa de criar políticas públicas específicas para o estímulo ao saneamento básico, para a
criação de um sistema público de saúde que atendesse a todos indistintamente, para a execução de
programas de transferência de renda a fim de garantir uma renda mínima etc. Outro instrumento
bastante utilizado foi a aplicação de políticas de ação afirmativa, como o estabelecimento de cotas
para vagas em universidades públicas ou para cargos públicos. Nesse sentido, as ideias de Amartya Sen
são bastante inovadoras. Consideramos importante que você tenha contato com algumas delas.
Por isso, apresentamos a seguir um trecho da principal obra do autor.

Desenvolvimento como liberdade

É tão importante reconhecer o papel crucial da riqueza na determinação de nossas


condições e qualidade de vida quanto entender a natureza restrita e dependente dessa
relação. Uma concepção adequada de desenvolvimento deve ir muito além da acumulação
de riqueza e do crescimento do produto nacional bruto e de outras variáveis relacionadas
à renda. Sem desconsiderar a importância do crescimento econômico, precisamos enxergar
muito além dele.

Os fins e os meios do desenvolvimento requerem análise e exame minuciosos para uma


compreensão mais plena do processo de desenvolvimento; é sem dúvida inadequado adotar
como nosso objetivo básico apenas a maximização da renda ou da riqueza […]. Pela mesma
razão, o crescimento econômico não pode sensatamente ser considerado um fim em si
mesmo. O desenvolvimento tem de estar relacionado sobretudo com a melhora da vida que
levamos e das liberdades que desfrutamos. Expandir as liberdades que temos razão para
valorizar não só torna nossa vida mais rica e mais desimpedida, mas também permite que
sejamos seres sociais mais completos, pondo em prática nossas volições, interagindo com o
mundo em que vivemos e influenciando esse mundo. […]

Um número imenso de pessoas em todo o mundo é vítima de várias formas de privação


de liberdade. Fomes coletivas continuam a ocorrer em determinadas regiões, negando a
milhões a liberdade básica de sobreviver. Mesmo nos países que já não são esporadicamente
devastados por fomes coletivas, a subnutrição pode afetar numerosos seres humanos
vulneráveis. Além disso, muitas pessoas têm pouco acesso a serviços de saúde, saneamento
básico ou água tratada, e passam a vida lutando contra uma morbidez desnecessária, com
frequência sucumbindo à morte prematura. Nos países mais ricos é demasiado comum
haver pessoas imensamente desfavorecidas, carentes das oportunidades básicas de acesso
a serviços de saúde, educação funcional, emprego remunerado ou segurança econômica e
social. Mesmo em países muito ricos, às vezes a longevidade de grupos substanciais não
é mais elevada do que em muitas economias mais pobres do chamado Terceiro Mundo.
Adicionalmente, a desigualdade entre mulheres e homens afeta – e às vezes encerra
prematuramente – a vida de milhões de mulheres e, de modos diferentes, restringe em
altíssimo grau as liberdades substantivas para o sexo feminino.
106
CIÊNCIAS SOCIAIS

No que se refere a outras privações de liberdade, a um número enorme de pessoas em


diversos países do mundo são sistematicamente negados a liberdade política e os direitos
civis básicos. Afirma-se com certa frequência que a negação desses direitos ajuda a estimular
o crescimento econômico e é “benéfica” para o desenvolvimento econômico rápido. Alguns
chegaram a defender sistemas políticos mais autoritários – com negação de direitos civis e
políticos básicos – alegando a vantagem desses sistemas na promoção do desenvolvimento
econômico. Essa tese (frequentemente denominada “tese de Lee”, atribuída em algumas
formas ao ex-primeiro-ministro de Singapura Lee Kuan Yew) às vezes é defendida por
meio de algumas evidências empíricas bem rudimentares. Na verdade, comparações mais
abrangentes entre países não forneceram nenhuma confirmação dessa tese, e há poucos
indícios de que a política autoritária realmente auxilie o crescimento econômico. As
evidências empíricas indicam veementemente que o crescimento econômico está mais
ligado a um clima econômico mais propício do que a um sistema político mais rígido. […]

O desenvolvimento econômico apresenta ainda outras dimensões, entre elas a segurança


econômica. Com grande frequência, a insegurança econômica pode relacionar-se à ausência
de direitos e liberdades democráticas. De fato, o funcionamento da democracia e dos
direitos políticos pode até mesmo ajudar a impedir a ocorrência de fomes coletivas e
outros desastres econômicos. Os governantes autoritários, que raramente sofrem os efeitos
de fomes coletivas (ou de outras calamidades econômicas como essa), tendem a não ter
estímulo para tomar providências preventivas oportunas. Os governos democráticos, em
contraste, precisam vencer eleições e enfrentar a crítica pública, dois fortes incentivos para
que tomem medidas preventivas contra aqueles males. Não surpreende que nenhuma fome
coletiva jamais tenha ocorrido, em toda a história do mundo, em uma democracia efetiva
– seja ela economicamente rica (como a Europa ocidental contemporânea ou a América do
Norte) ou relativamente pobre (como a Índia pós-independência, Botsuana ou o Zimbábue).
A tendência tem sido as fomes coletivas ocorrerem em territórios coloniais governados
por dirigentes de fora (como a Índia britânica ou a Irlanda administrada por governantes
ingleses desinteressados), em Estados unipartidaristas (como a Ucrânia na década de 1930
ou a China no período 1958-1961, ou ainda o Camboja na década de 1970), ou em ditaduras
militares (como a Etiópia, a Somália ou alguns países subsaarianos no passado recente). [...]

Porém – mais fundamentalmente –, a liberdade política e as liberdades civis


são importantes por si mesmas, de um modo direto; não é necessário justificá-las
indiretamente com base em seus efeitos sobre a economia. Mesmo quando não falta
segurança econômica adequada a pessoas sem liberdades políticas ou direitos civis, elas
são privadas de liberdades importantes para conduzir sua vida, sendo-lhes negada
a oportunidade de participar de decisões cruciais concernentes a assuntos públicos.
Essas privações restringem a vida social e a vida política, e devem ser consideradas
repressivas mesmo sem acarretar outros males (como desastres econômicos). Como
as liberdades políticas e civis são elementos constitutivos da liberdade humana, sua
negação é, em si, uma deficiência. Ao examinarmos o papel dos direitos humanos no
desenvolvimento, precisamos levar em conta tanto a importância constitutiva quanto
a importância instrumental dos direitos civis e liberdades políticas [...]
107
Unidade II

Deve ter ficado claro, com a discussão precedente, que a visão da liberdade aqui
adotada envolve tanto os processos que permitem a liberdade de ações e decisões como
as oportunidades reais que as pessoas têm, dadas as suas circunstâncias pessoais e sociais.
A privação de liberdade pode surgir em razão de processos inadequados (como a violação
do direito ao voto ou de outros direitos políticos ou civis), ou de oportunidades inadequadas
que algumas pessoas têm para realizar o mínimo do que gostariam (incluindo a ausência de
oportunidades elementares como a capacidade de escapar de morte prematura, morbidez
evitável ou fome involuntária). [...]

Existem boas razões para que se veja a pobreza como uma privação de capacidades
básicas, e não apenas como baixa renda. A privação de capacidades elementares pode
refletir‑se em morte prematura, subnutrição significativa (especialmente de crianças),
morbidez persistente, analfabetismo muito disseminado e outras deficiências. Por
exemplo, o terrível fenômeno das “mulheres faltantes” (resultante de taxas de mortalidade
incomumente elevadas para as mulheres de determinadas faixas etárias em algumas
sociedades, particularmente no sul da Ásia, na Ásia ocidental, na África setentrional e na
China) tem de ser analisado à luz de informações demográficas, médicas e sociais, e não
com base nas baixas rendas, pois esse segundo critério às vezes nos revela pouquíssimo
sobre o fenômeno da desigualdade entre os sexos.

A mudança de perspectiva é importante porque nos dá uma visão diferente – e mais


diretamente relevante – da pobreza, não apenas nos países em desenvolvimento, mas
também nas sociedades mais afluentes. A presença de níveis elevados de desemprego na
Europa (cerca de 10% a 12% em muitos dos principais países europeus) implica privações
que não são bem refletidas pelas estatísticas de distribuição de renda. Com frequência se
tenta fazer com que essas privações pareçam menos graves, argumentando que o sistema
europeu de seguridade social (incluindo o seguro-desemprego) tende a compensar a perda
de renda dos desempregados. Mas o desemprego não é meramente uma deficiência de
renda que pode ser compensada por transferências do Estado (a um pesado custo fiscal que
pode ser, ele próprio, um ônus gravíssimo); é também uma fonte de efeitos debilitadores
muito abrangentes sobre a liberdade, a iniciativa e as habilidades dos indivíduos. Entre
seus múltiplos efeitos, o desemprego contribui para a “exclusão social” de alguns grupos e
acarreta a perda de autonomia, de autoconfiança e de saúde física e psicológica. Não
é difícil perceber a evidente incongruência que há nas tentativas europeias atuais de
voltar‑se para um clima social mais centrado no esforço pessoal sem conceber políticas
adequadas para reduzir os elevados e intoleráveis níveis de desemprego que dificultam ao
extremo a sobrevivência graças ao esforço pessoal.

Fonte: Sen (2000, p. 27-36).

108
CIÊNCIAS SOCIAIS

Saiba mais

Não é apenas por meio de cotas que o problema da desigualdade


social pode ser enfrentado. Muhammad Yunus, economista e banqueiro
de Bangladesh, foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz, em 2006, por
conta de um trabalho pelo qual, dentro do próprio contexto do capitalismo,
conseguiu planejar mecanismos para diminuir a pobreza. Yunus criou
um banco destinado à concessão de microcrédito, já que as pessoas
mais carentes eram justamente as que mais precisavam de crédito e as
que mais encontravam dificuldade para obtê-lo nos bancos tradicionais.
Assim, seu banco passou a emprestar pequenas quantias para pessoas que
trabalhavam com artesanato ou que necessitavam de recursos financeiros
para a compra de matéria-prima. Ao contrário do que se imaginava, a
taxa de inadimplência foi baixíssima, mesmo com o banco não exigindo
qualquer contrapartida para a concessão do dinheiro. Além disso, Yunus
deu preferência ao empréstimo a mulheres, buscando, com isso, diminuir
a situação de desvantagem social feminina e permitindo que elas se
tornassem protagonistas no processo de aquisição de crédito. Sugerimos a
leitura do livro em que Yunus detalha o seu projeto:

YUNUS, M. O banqueiro dos pobres. Tradução: Maria Cristina Guimarães


Cupertino. São Paulo: Ática, 2006.

Os movimentos migratórios e a questão dos refugiados

Outra questão muito importante, e que está inegavelmente atrelada aos efeitos da pobreza e da
exclusão causadas pela globalização, vincula-se às ondas migratórias de nações em desenvolvimento,
subdesenvolvidas ou em guerra, por meio das quais a população procura proteção em países onde
há emprego e melhores condições de vida. Segundo o Alto-Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (ACNUR, 2021), os refugiados são

pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores
de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade,
pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como
também devido a grave e generalizada violação de direitos humanos e
conflitos armados.

109
Unidade II

Os dados coletados pelo Acnur (2021) mostram que

a Síria foi o país que mais gerou refugiados no mundo. Cerca de


824.400 pessoas foram forçadas a fugir dos conflitos que assolam o país.
As crises na África subsaariana também levaram a novos deslocamentos.
Quase 737.400 pessoas deixaram o Sudão do Sul para escapar de uma crise
humanitária que cresceu consideravelmente em 2016. Burundi, Iraque,
Nigéria e Eritreia também geraram grande número de refugiados. […]

Os 5,5 milhões de sírios que foram forçados a fugir constituem o maior


grupo de refugiados do mundo. Os refugiados do Afeganistão aparecem em
segundo lugar se considerado o país de origem. […]

A Turquia recebeu o maior número de refugiados – um total de


2,9 milhões, vindos principalmente da Síria. O país também abriga cerca
de 30.400 refugiados do Iraque. As crises na África subsaariana tendem a
forçar as pessoas a fugir para os países vizinhos e, como resultado, essa
região continua a acolher um número cada vez maior de refugiados do
Sudão do Sul, Somália, Sudão, República Democrática do Congo, República
Centro‑Africana, Eritreia e Burundi. […]

O Paquistão acolheu a segunda maior população de refugiados no final de


2016: 1,4 milhão de pessoas vindas principalmente do Afeganistão. Esse
número diminuiu ligeiramente devido aos refugiados que regressaram para
casa. Cerca de 1 milhão de refugiados buscaram segurança no Líbano e
979.400 no Irã. […]

Uganda vivenciou um aumento dramático da população de refugiados, que


saltou de 477.200 no final de 2015 para 940.800 no final de 2016. Essa
população era constituída por pessoas vindas principalmente do Sudão
do Sul (68%), mas também contava com números significativos de pessoas
vindas da República Democrática do Congo, Burundi, Somália e Ruanda. Na
verdade, Uganda registrou o maior número de novos refugiados em 2016. […]

O número de refugiados também aumentou na Etiópia, Jordânia e República


Democrática do Congo. Na Alemanha, a população de refugiados mais do
que duplicou em 2016 e chegou a 669.500 pessoas. O principal motivo para
esse aumento foi o reconhecimento de solicitações de refúgio apresentadas
em 2015 principalmente por sírios.

110
CIÊNCIAS SOCIAIS

Saiba mais

Recomendamos fortemente que você explore o site da Acnur – em


especial, o menu das publicações.

Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/. Acesso em: 12 nov. 2021.

Sugerimos também que você assista ao filme Sergio, que narra os últimos
dias de vida do diplomata brasileiro Sergio Vieira de Mello, que atuava no
Iraque quando foi morto em um atentado terrorista às instalações da ONU.

SERGIO. Direção: Greg Barker. Estados Unidos: Black Rabbit Media;


Anima Pictures; Itapoan, 2020. 118 min.

A situação dos refugiados atualmente é uma das maiores evidências de que a distribuição de riqueza
e prosperidade para todos, prometida pelo projeto neoliberal, não ocorreu. Há inúmeras possibilidades
de reflexão sobre o contexto em que acontecem as migrações, as suas origens e as suas consequências.
Martine (2005), por exemplo, lembra que o horizonte do migrante é o mundo, seja ele um mundo real
ou imaginário, criado pela televisão ou pelo cinema. O discurso globalizador reforça o mito da aldeia
global, sem fronteiras, em que a riqueza e a perspectiva de uma vida melhor estão disponíveis para
todos. Aparentemente, essas são as regras do modelo da globalização. Martine (2005, p. 3) observa:

Essas regras, porém, são seguidas seletivamente pelos próprios países que
as promovem. O resultado é que a globalização apresenta dificuldades e
morosidades no cumprimento de suas promessas. Muitos países crescem
pouco ou nada e, enquanto isso, as disparidades entre ricos e pobres
aumentam. Tais desigualdades contribuem para aumentar o desejo, e até
mesmo a necessidade, de migrar para outros países. Entretanto, as regras
do jogo da globalização não se aplicam à migração internacional: enquanto
o capital financeiro e o comércio fluem livremente, a mão de obra se
move a conta-gotas.

Na verdade, a globalização acentua as desigualdades entre os países, processo que incentiva e


estimula a migração internacional. E, ao mesmo tempo que a globalização dissemina a mensagem
de que não há mais fronteiras entre os países, os países industrializados criam inúmeros obstáculos
e regras que dificultam a mobilidade dos migrantes. “As fronteiras abrem-se para o fluxo de capitais e
mercadorias, mas estão cada vez mais fechadas aos migrantes: essa é a grande inconsistência que define
o atual momento histórico no que se refere às migrações internacionais” (MARTINE, 2005, p. 8).

111
Unidade II

Figura 34 – As ondas migratórias, que traduzem o desespero de pessoas em fuga de zonas de conflito
ou de fome, mostram que o mundo perfeito da globalização ainda não se concretizou

Disponível em: https://bit.ly/2YIW532. Acesso em: 12 nov. 2021.

Basicamente, os movimentos migratórios em direção aos países mais desenvolvidos são dificultados
porque os países receptores de migrantes consideram que esse não é um fenômeno benéfico para
suas economias. Embora a migração internacional apresente vantagens para os lugares de origem e de
destino, há também desvantagens. Vejamos como Martine (2005) analisa esse cenário.

Entre as vantagens para os países de origem estão as remessas de dinheiro que podem ser feitas por
aqueles que migraram e têm condições de auxiliar os que ficaram. A migração para países desenvolvidos
pode não apenas aliviar as tensões locais nos países de origem, mas também permitir a emancipação de
grupos perseguidos ou vítimas de preconceito e violência. Para os lugares de destino, os benefícios advêm
de os migrantes trabalharem em atividades que os habitantes locais não desejam, inclusive recebendo
salários menores. Além disso, no caso de economias estagnadas ou com crescimento populacional
negativo, a entrada de migrantes estimula a economia.

As desvantagens, porém, são inúmeras. Para os países de origem, a migração pode representar
uma “fuga de cérebros”, ou seja, de pessoas com maior qualificação que não conseguem se realizar
profissionalmente. O mesmo acontece com a fuga de pessoas mais criativas e empreendedoras, que
não conseguem espaço para concretizar seus planos. Outros obstáculos estão associados ao fato de
os migrantes saberem, de antemão, que serão vítimas de preconceito e discriminação por parte dos
habitantes dos países de destino e, em alguns casos, que estarão sujeitos aos riscos da migração em
condições insalubres e perigosas (travessias no mar em embarcações frágeis, caminhadas por grandes
extensões territoriais etc.). Para os países de destino, a pressão sobre o sistema de saúde e de educação
provocada pelos migrantes é um aspecto que demanda atenção, da mesma forma que o aumento
de riscos por conta da necessidade de maiores gastos com segurança. As reações de sindicatos e de
trabalhadores com a redução do número de empregos também desestimulam políticas de acolhimento
a refugiados, e o desconforto social diante de novas expressões culturais (tanto por parte dos migrantes
quanto por parte dos locais) costuma gerar conflitos que não raras vezes deságuam em violência.

112
CIÊNCIAS SOCIAIS

Por conta disso, Martine (2005, p. 18-19) afirma que

a maneira com que a comunidade dos países desenvolvidos e não desenvolvidos


lida, atualmente, com os movimentos migratórios internacionais pode ser
considerada inadequada. A atitude concreta dos países desenvolvidos
constitui uma manifestação importante das inconsistências entre o discurso e a
prática liberal na atual fase de globalização. Essa e as outras incongruências
mencionadas aqui devem fazer parte da agenda de trabalho dos movimentos
sociais progressistas e tornar-se objetos de advocacy, de conscientização,
de mobilização social e de reivindicação política. A eliminação dessas
inconsistências certamente ajudaria na redução das brechas entre países e
promoveria a convergência econômica. Por outro lado, a atitude dos países
em desenvolvimento pode também ser inadequada – na medida em que
ela é hesitante, ambígua e reativa. Para tirar partido das potencialidades
da migração, seria necessária uma gama de atitudes proativas, baseadas
na convicção de que a emigração é tanto inevitável como potencialmente
benéfica para o desenvolvimento e a redução da pobreza. A redução das
barreiras migratórias nos países desenvolvidos estimularia uma maior
intensidade e heterogeneidade de rotas migratórias, à medida que os
deslocamentos internacionais se tornassem cada vez mais parte da rotina,
dentro de um mercado global de trabalho. Sem embargo, a mobilização de
movimentos sociais e de organizações políticas em favor da liberalização
da migração internacional tem sido relativamente morosa – em parte pela
falta de consenso a respeito do significado social, econômico e político dos
movimentos migratórios além-fronteira.

Para exemplificar, voltaremos agora nossa atenção para dois processos de deslocamento populacional
que, por suas dimensões, foram motivo de debates e discussões nos contextos políticos e acadêmicos no
Brasil: os fluxos migratórios de haitianos e venezuelanos para o território brasileiro nas primeiras duas
décadas do século XXI.

A migração haitiana para o Brasil explica-se por diferentes aspectos:

• O Haiti é um país que sempre sofreu com a miséria e com o subdesenvolvimento, o que
continuamente motivou a saída de pessoas para lugares em que houvesse melhores condições
de vida e possibilidades de ascensão social. Além disso, a situação de extrema pobreza estimulou
conflitos sociais e a guerra civil. Em 2004, a ONU organizou a Missão das Nações Unidas para
a Estabilização no Haiti, coordenada por militares brasileiros. A presença desses militares no
território haitiano colaborou para a criação de laços afetivos entre os países.

• Em 2010, um terremoto devastou o território haitiano, provocando mortes e uma catástrofe de


grandes dimensões.

• O Brasil, com a realização de eventos esportivos internacionais (Copa do Mundo e Olimpíadas),


tornou-se um polo atrativo por conta da geração de empregos.
113
Unidade II

No caso da Venezuela, o fluxo migratório tem origem na crise econômica e política que tomou conta
do país a partir da morte de Hugo Chávez, presidente entre 1999 e 2013, e que governou de maneira
extremamente autoritária.

A fome, a miséria, o desabastecimento geral, a inflação e a ausência de garantias para as liberdades


individuais motivaram a saída de venezuelanos em direção ao Brasil. Segundo o Acnur (2021),

no Brasil, o intenso fluxo de refugiados e migrantes venezuelanos observado


a partir de 2017 levou a um decreto federal, em fevereiro de 2018, que
reconheceu a situação como uma crise humanitária. Entre julho de 2017 e
outubro de 2020, mais de 260 mil venezuelanos foram acolhidos no país.
E as estimativas mostram que a maioria entrou e se estabeleceu na região
norte, em Roraima (50%) e no Amazonas (19%). Roraima é um dos estados
mais pobres do Brasil, tendo contribuído com apenas 0,2 por cento do
PIB em 2019. É também um dos menores estados do Brasil, com uma
população de cerca de 630 mil pessoas em 2020. Após a chegada em
grande escala de venezuelanos, a proporção da população venezuelana
em Roraima aumentou para representar cerca de 12% da população do
estado. Em resposta, o Governo Federal do Brasil, o Acnur, outras agências
da ONU e parceiros da sociedade civil no país estão apoiando a gestão
em Roraima da crise humanitária. A assistência de emergência é prestada
principalmente através da Operação Acolhida, por meio de seus três eixos:
ordenamento de fronteira e documentação; fornecimento de assistência
humanitária, incluindo abrigo; e interiorização, que envolve a realocação
voluntária de venezuelanos. A estratégia de interiorização já realocou cerca
de 50 mil venezuelanos de Roraima para outras cidades brasileiras, onde há
maiores oportunidades de geração de renda e integração social e econômica.

Figura 35 – A fuga de venezuelanos para o Brasil em razão da miséria e do governo autoritário de


Nicolás Maduro criou um problema humanitário de dimensões internacionais

Disponível em: https://bit.ly/3mGftXv. Acesso em: 12 nov. 2021.

114
CIÊNCIAS SOCIAIS

Um método bastante interessante para a investigação da dimensão do problema dos movimentos


migratórios é a elaboração de um estudo de anamorfose geográfica. Nesse tipo de análise, os países
são redesenhados não de acordo com suas dimensões geográficas corretas, mas de maneira deformada,
em função de um tema de interesse. Segundo Lima (2020), trata-se de um recurso “de representação
cartográfica no qual os limites, aqui dados pelas unidades da Federação, são distorcidos para estabelecer
uma relação proporcional entre a área e a quantidade de dados de interesse da geografia”. Para facilitar
a compreensão dessa metodologia, observe o mapa a seguir, no qual as dimensões geográficas são as
comumente utilizadas.

População total - 2017


(mil habitantes)
menos de 25.000,0
25.000,1 - 75.000,0
75.000,1 - 150.000,0
150.000,1 - 325.000,0
mais de 1.339.180,1

Figura 36 – Mapa segundo as dimensões geográficas corretas

Disponível em: https://bit.ly/3HcHrCp. Acesso em: 12 nov. 2021.

Agora, veja o mapa mundial de acordo com o número de refugiados, por país de origem, em 2015.
A análise comparativa dos dois mapas permite que percebamos a dimensão do problema dos refugiados
e dos que são forçados a deixar seu lar e seu país “para evitar os efeitos de conflitos armados, situações
de violência generalizada, violação de direitos humanos ou desastres naturais ou ocasionados pelo
homem e que permaneceram em seus países de origem” (IBGE EDUCA, 2021).

115
Unidade II

Anamorfose - mundo - Refugiados,


por país de origem - (mil pessoas)
10,0 - 59,0
59,1 - 120,0
120,1 - 622,5
1.123,0 - 2.663,0
4.850,8

Figura 37 – O mapa mundial por número de refugiados, por país de origem, em 2015

Disponível em: https://bit.ly/3cKxzlF. Acesso em: 12 nov. 2021.

Parece plausível imaginar que todos os países tiveram que se reposicionar em razão do processo de
globalização. Por causa de crises econômicas, de crises políticas ou de reposicionamento na configuração
tradicional de centro e periferia, as nações viram-se colocadas diante de novos desafios e, para dar
conta deles, agiram de forma bastante particular. No próximo tópico, veremos como o Brasil tem se
movimentado no cenário da globalização e qual é o papel que cumpre nessa nova ordem internacional.

6.2 O Brasil na nova ordem internacional

Historicamente, o Brasil sempre se situou na periferia mundial, apesar de todos os esforços de


industrialização e crescimento. Fomos, somos e, provavelmente, seremos por muito tempo um país
exportador de matérias-primas. Nossas empresas e indústrias sempre tiveram que lutar com intensidade
para fazer frente à concorrência internacional e conquistar parcelas significativas do mercado. Como,
então, podemos identificar a posição do Brasil nos termos de uma nova ordem internacional?

Vamos iniciar nossa análise com os indicadores do crescimento quantitativo do país. No gráfico a
seguir, temos o crescimento do PIB, da população e da renda per capita no Brasil, entre 1822 e 2022 (por
meio de projeções). Uma das informações mais importantes é que o PIB cresceu nesse período.

116
CIÊNCIAS SOCIAIS

1000

Crescimento em escala logarítmica


100

10

1
1822
1832
1842
1852
1862
1872
1882
1892

1922
1932
1942
1952
1962
1972
1982
1992
1902

2002

2022
1912

2012
PIB População Renda per capita

Figura 38 – Crescimento do PIB, da população e da renda per capita no Brasil (1822-2022, previsão)

Adaptada de: https://bit.ly/2YBPmYJ. Acesso em: 12 nov. 2021.

Como é possível verificar, o PIB aumentou mais do que a população, o que invalida a hipótese de
que houve mais gente para dividir a renda gerada. Vejamos o gráfico a seguir, no qual estão comparados
o crescimento do PIB e da renda per capita no Brasil. Segundo Alves (2017), os dados mostram que a
distância entre o PIB e a renda per capita aumentou a partir de 2017, o que nos permite considerar
a possibilidade de uma maior concentração de renda a partir desse momento.
115

110
Índice: 2010 = 100

105

100

95

90

85
2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022
PIB Renda per capita

Figura 39 – Crescimento do PIB e da renda per capita no Brasil (2010-2022, previsão)

Adaptada de: https://bit.ly/3ksWgam. Acesso em: 12 nov. 2021.

117
Unidade II

Observemos agora os indicadores de desenvolvimento humano do país. Como já vimos, o IDH não
se limita a medir o crescimento quantitativo da economia do país por meio do aumento do PIB, mas
busca mensurar o desempenho da nação em termos de desenvolvimento humano. Dividamos a nossa
análise em dois períodos, ambos referentes ao século XXI. Observe o gráfico a seguir, que mostra o
comportamento do IDH brasileiro desde o final do século XX até os primeiros anos do século XXI.
0,8
0,739 0,740 0,742 0,744
0,731
0,705
0,7
0,682

0,612
0,6

0,545

0,5
1980 1990 2000 2005 2008 2010 2011 2012 2013

Figura 40 – Evolução do IDH do Brasil entre 1980 e 2013

Adaptada de: Senado Federal (2015).

Com referência ao primeiro período, é possível perceber que o IDH cresceu entre 1980 e 2013, embora
esse movimento tenha perdido força a partir de 2010. Em outras palavras, o IDH continuou crescendo,
mas a taxas menores. Podemos explicar esse fenômeno por meio de alguns aspectos importantes da
história brasileira:

• Com o Plano Real, o Brasil conseguiu finalmente controlar a inflação que minava a economia e a
sociedade desde o final da década de 1970. Em particular, é preciso lembrar que, de forma geral,
a inflação sempre penalizou mais intensamente as classes mais vulneráveis do ponto de vista
social. Um aumento no preço da passagem de ônibus pesa mais para famílias que ganham até
um salário mínimo do que para famílias que ganham dez salários mínimos.

• O crescimento da economia chinesa e a relativa tranquilidade do quadro financeiro internacional


(pelo menos até a crise de 2008) fizeram com que o Brasil se visse diante de inúmeras possibilidades
de expansão e diversificação da pauta de exportações, o que favoreceu o fortalecimento da
economia.

• A partir do final da década de 1990, os governos que se sucederam (dois mandatos de Fernando
Henrique Cardoso e dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva) buscaram priorizar programas de
distribuição de renda, como o Programa Fome Zero e o Bolsa Família. Além disso, outras medidas
(estabelecimento de cotas para as universidades públicas e programas de crédito para o Ensino
Superior) colaboraram para que um contingente expressivo de profissionais com capacitação
pudesse encontrar uma posição no mercado de trabalho.

118
CIÊNCIAS SOCIAIS

O segundo período refere-se aos anos entre 2014 e 2019. Nesse período, o comportamento do
IDH sofreu os efeitos da crise de 2008, da desaceleração do crescimento da economia chinesa e da
deterioração do quadro político brasileiro. Pior: mesmo com os sucessivos aumentos do IDH, os problemas
estruturais da desigualdade social no Brasil mantiveram-se.

Saiba mais

Sugerimos que você consulte o seguinte texto:

PNUD BRASIL. Relatório Anual 2019. Pnud Brasil, 3 set. 2020. Disponível
em: https://bit.ly/3wDB0U6. Acesso em: 12 nov. 2021.

Observação

Em 2020, estava prevista a realização do censo do Instituto Brasileiro


de Geografia e Estatística (IBGE), que ocorre a cada 10 anos. Por causa da
pandemia, o censo foi adiado para 2021, mas até o momento não há previsão
orçamentária do governo para realizar a pesquisa.

Outra abordagem permite que identifiquemos o crescimento do Brasil em relação ao crescimento de


outros países. No caso do Brasil, vale a pena observar que os dados referentes ao PIB brasileiro em séries
temporais mostram algumas repercussões da crise de 2008 na economia do país (ALVES, 2017).

Veja no gráfico a seguir, por exemplo, como a participação do PIB brasileiro no PIB mundial caiu
significativamente a partir de 2008, a data da crise de subprime nos Estados Unidos.
3,5

3,0

2,5

2,0
(%)

1,5

1,0

0,5

0,0
1822
1827
1832
1837
1842
1847
1852
1857
1862
1867
1872
1877
1882
1887
1892
1897

1922
1927
1932
1937
1942
1947
1952
1957
1962
1967
1972
1977
1982
1987
1992
1997
1902

2002

2022
1912
1917

2012
2017
1907

2007

Figura 41 – Participação percentual do PIB brasileiro no PIB mundial (1822-2022, previsão)

Adaptada de: https://bit.ly/2YKmfCE. Acesso em: 12 nov. 2021.

119
Unidade II

Esse é mais um dos argumentos que prova que, independentemente dos supostos benefícios da
globalização, o Brasil continua sendo um país que luta contra as limitações para o seu crescimento e
desenvolvimento, fenômeno esse que impede corrigir as imensas desigualdades sociais existentes no
país. Vejamos, por exemplo, o cálculo da expectativa de vida em diferentes regiões, por unidade da
Federação. Segundo dados disponíveis, em 2017 a média de expectativa de vida no Brasil era de 76 anos.
No entanto, caso procuremos ir além da média (que, como vimos, muitas vezes mascara a realidade),
naquele ano, uma criança nascida no Maranhão tinha a expectativa de viver 70,9 anos, enquanto a
expectativa de uma criança nascida em Santa Catarina era de 79,4 anos. No gráfico a seguir, vemos
a esperança de vida ao nascer, em 2017, por unidade da Federação.
Maranhão 70,9
Piauí 71,2
Rondônia 71,5
Roraima 71,8
Alagoas 72,0
Amazonas 72,1
Pará 72,3
Sergipe 72,9
Paraíba 73,5
Tocantins 73,7
Bahia 73,7
Ceará 74,1
Amapá 74,2
Acre 74,2
Pernambuco 74,3
Goiás 74,3
Mato Grosso 74,5
Mato Grosso do Sul 75,8
Rio Grande do Norte 76,0
Brasil 76,0
Rio de Janeiro 76,5
Paraná 77,4
Minas Gerais 77,5
Rio Grande do Sul 78,0
São Paulo 78,4
Distrito Federal 78,4
Espírito Santo 78,5
Santa Catarina 79,4
66 68 70 72 74 76 78 80 82
Anos

Figura 42 – Esperança de vida ao nascer por unidade da Federação (2017)

Adaptada de: https://bit.ly/30o8g6b. Acesso em: 12 nov. 2021.

Nesse contexto, cabe a pergunta: quais os motivos para o Brasil não ter, aparentemente, se
beneficiado com o processo de globalização? Para responder a essa questão, discutamos alguns aspectos
relacionados à divisão internacional do trabalho.

A noção de divisão internacional do trabalho parte do princípio de que, no cenário mundial, cada país
dá conta – ou se apropria – de uma parte das atividades produtivas. Assim, países mais desenvolvidos
fabricam produtos com elevados níveis de tecnologia, ou agregam tecnologia a matérias‑primas
compradas de outros países. Em contrapartida, aos países menos desenvolvidos, com menor capacidade
de inovação, é atribuída a tarefa de fornecer essas matérias-primas por meio da exportação de
alimentos e minérios.

120
CIÊNCIAS SOCIAIS

Tal divisão internacional de trabalho não é nova, pelo menos no caso do Brasil. Desde a exploração
colonial, o país tem se conformado à “tradição natural” de exportar commodities, colocando-se, assim,
em situação de subordinação aos interesses do mercado internacional. Evidentemente, isso não equivale
a dizer que as atividades produtivas no Brasil mantiveram as mesmas características primitivas e
atrasadas do período da colonização. No entanto, conforme lembra Pereira (2010, p. 350-352),

essa modernização e esse desenvolvimento das forças produtivas (realizada


muitas vezes por capitais externos) não são acompanhados de uma melhora
significativa das condições de vida para a maior parte da população, e
muitas vezes não suprem as necessidades mais essenciais de grande parte
da sociedade brasileira, que, por sua vez, conhece um processo acelerado
de urbanização, uma concentração dos meios de produção, o aumento
da escassez e da pobreza (no campo e nas cidades) e uma ampliação sem
tamanho da desigualdade e da diferença no consumo de bens e serviços,
sobretudo nos maiores centros urbanos. A ação de grupos econômicos
estrangeiros na atividade agrícola moderna (no mais das vezes, com amplo
apoio do poder público) impulsionou a produção de grãos e derivados,
tornando o Brasil um dos principais produtores mundiais desses gêneros.
No entanto, os circuitos produtivos das principais commodities agrícolas
estão sob o comando exclusivo de grupos econômicos internacionais
(Cargill, Bunge, ADM, Monsanto etc.) ou de alguns poucos grupos nacionais
que praticam as mesmas lógicas globais de produção (como é o caso do
Grupo André Maggi). A ação desses grupos hegemônicos no Brasil tem
ocasionado importante reordenação do território no interior do país, com o
surgimento de novos fronts agrícolas nos cerrados de Mato Grosso, Bahia,
Piauí, Maranhão e mesmo na Amazônia, ou com o surgimento das modernas
“cidades do campo” […]. Regiões produtivas modernas (extremamente
especializadas) e muito funcionais às demandas externas se constituem
no interior do país, mas, por esse mesmo motivo, são muito vulneráveis às
demandas do mercado internacional.

Em razão desse cenário, propomos uma reflexão: será que o Brasil, em termos de política externa,
tem alguma importância num mundo tão marcado pelas diferenças entre países industrializados e em
desenvolvimento? Segundo Sato (2020), o olhar em direção à vizinhança foi um marco da política
externa brasileira a partir da década de 1980. No caso da vizinhança geográfica, isso resultou no
incentivo às relações comerciais com outros países da América Latina por meio da criação do Mercado
Comum do Sul (Mercosul). Embora o objetivo fosse repetir o sucesso da União Europeia, o bloco, até
hoje, representa muito mais um conjunto de intenções do que de resultados concretos, o que não é
muito difícil de explicar: os dois países mais desenvolvidos da região – Brasil e Argentina – estão muito
mais preocupados em se refazer economicamente depois de um longo período de recessão e inflação do
que em fazer concessões em prol de objetivos regionais.

O olhar da política internacional brasileira se voltou não apenas para a vizinhança geográfica, mas
também para os países da África (com os quais compartilhamos muitas heranças históricas e culturais) e
121
Unidade II

os demais países em desenvolvimento. Por conta disso, o Brasil, a partir do início do século XXI, fortaleceu
laços com a China, a Rússia, a Índia e a África do Sul, todos eles países que haviam apresentado taxas
de crescimento superiores à média mundial. Segundo o Brics Brasil (2019),

o Brics é o agrupamento formado por cinco grandes países emergentes –


Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – que, juntos, representam cerca
de 42% da população, 23% do PIB, 30% do território e 18% do comércio
mundial. O acrônimo Bric foi cunhado em 2001 pelo banco de investimentos
Goldman Sachs, para indicar as potências emergentes que formariam, com
os Estados Unidos, as cinco maiores economias do mundo no século XXI.
Em 2006, os países do Bric deram início ao diálogo que, desde 2009, tem
lugar nos encontros anuais de chefes de Estado e de Governo. Em 2011,
com o ingresso da África do Sul, o Brics alcançou sua composição definitiva,
incorporando um país do continente africano.

A partir do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (entre 2003 e 2011), o Brasil procurou atuar de
forma mais ativa no que presumia ser o jogo de poder no cenário mundial (SATO, 2020). Com vistas a
conseguir um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, o governo brasileiro
expandiu a rede de representações diplomáticas no Caribe e na África. Segundo Sato (2020, p. 79), um
dos argumentos do governo brasileiro

era o de que sua participação no Conselho de Segurança da ONU seria


vista pelas potências como um reforço para os objetivos centrais da ONU,
que eram o de promover a paz e o entendimento pacífico entre as nações.
O argumento considerava que a longa tradição diplomática brasileira seria
uma forte credencial para qualificar o país para um assento permanente no
Conselho de Segurança da ONU. Essa tradição apontava para uma história
do país predominantemente pacífica em relação à convivência com seus
vizinhos e apontava também para a índole e a competência da diplomacia
brasileira, marcada pela preferência permanente pela solução pacífica das
controvérsias e pela ênfase no desenvolvimento da capacidade de negociação.

Observação

Vale a pena lembrar que, até o momento, o desejo do Brasil de ter


um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU ainda
não se concretizou.

Outras iniciativas do governo brasileiro em termos de política externa marcaram esse período:

• a colaboração com as forças de paz da ONU, enviando tropas para países como Haiti (a respeito
do qual falamos anteriormente), Sudão, Chipre e Líbano;

122
CIÊNCIAS SOCIAIS

• um investimento expressivo na construção de um grande potencial de soft power, em especial


com a iniciativa brasileira de receber dois eventos esportivos de dimensões mundiais: a Copa do
Mundo, em 2014, e a Olimpíada, em 2016 (ambos os eventos foram organizados com o objetivo
de mostrar o potencial brasileiro de realizar e concretizar projetos de envergadura e de captar
recursos estrangeiros para investir nas áreas de informação e de tecnologia).

Figura 43 – O soft power configura-se como a capacidade de um país exercer influência internacional
por meio da cultura, da diplomacia ou de outras ações políticas que atraem as atenções mundiais e se
materializam em resultados positivos para o país que o detém

Disponível em: https://bit.ly/3bIKKmh. Acesso em: 12 nov. 2021.

Se a posição periférica do Brasil no cenário mundial pouco mudou, embora sejam notáveis os
esforços da política internacional brasileira de marcar presença e se fazer ouvir, falta analisarmos o
quanto as condições de trabalho no país se transformaram (para pior ou melhor) com a globalização,
nosso próximo assunto.

7 SOCIEDADE E TRABALHO

Neste tópico, discutiremos as transformações no mundo do trabalho decorrentes da globalização e


refletiremos sobre a precarização das condições de trabalho, o desemprego estrutural e a informalidade
como características permanentes do cenário brasileiro.

7.1 Transformações no mundo do trabalho: a precarização do trabalho

Na escravidão, o homem era uma mercadoria. Na servidão, típico regime de trabalho do período
feudal, o servo devia obrigações e submissão ao dono da terra. No capitalismo, entretanto, o trabalho
é uma mercadoria, vendida pelo trabalhador ao preço, supostamente, negociado entre ele e o dono da
empresa. Esse valor, que corresponde ao salário, deve ser o suficiente para a subsistência do trabalhador

123
Unidade II

e de sua família. Dessa forma, o emprego assalariado é um fenômeno típico do capitalismo. Aliás, de
acordo com Karl Marx, outra característica importante do trabalho sob a ótica capitalista é que ele faz
parte de um contexto em que há uma classe social detentora dos meios de produção (capital, máquinas
e equipamentos) e outra que tem apenas a sua força de trabalho para vender. A classe dos capitalistas
compra a força de trabalho do operário e produz mercadorias que serão vendidas no mercado.

Lembrete

Anteriormente, discutimos essas ideias de Marx com mais detalhe. Caso


tenha dúvidas, retorne à primeira unidade do livro-texto.

O trabalho é um fenômeno social. Trabalhamos porque nossa sobrevivência depende do trabalho.


Interagimos socialmente porque essa estratégia permite que dividamos o trabalho e obtenhamos o
máximo em termos da produção dos bens e serviços necessários para a nossa manutenção.

A divisão do trabalho requer a especialização e, quanto mais complexa for uma sociedade, maior
será a divisão de trabalho nela realizada, já que maior será a necessidade de laços de solidariedade
entre os indivíduos. Assim, o grupo divide o trabalho entre seus membros por meio da cooperação. Em
resultado, o trabalho se torna fonte de coesão social.

O necessário aumento da produção para atender aos interesses do capitalismo fez surgir, nas primeiras
décadas do século XX, uma concepção de produção baseada na superespecialização e na organização do
trabalho numa escala em que cada um seria responsável por uma pequena e ínfima parcela do processo.
Henry Ford foi um dos primeiros a criar esse modelo, que por isso recebeu o nome de fordismo.

Observação

O fordismo também recebe a denominação de taylorismo, por ter


sido Frederick Taylor (1856-1915) o administrador que buscou conferir
cientificidade ao modelo de produção em escala.

O modelo fordista e taylorista foi copiado, posteriormente, pelas indústrias de todos os segmentos
de produção. Faziam parte do esquema o rigoroso controle do tempo de produção, a fragmentação do
trabalho na linha de produção, a rígida hierarquia organizacional e a verticalização da produção (ou seja,
a fábrica encarregava-se de produzir todas as peças e distribuir os produtos). A proposta era conseguir
escala e diminuir os custos.

124
CIÊNCIAS SOCIAIS

Figura 44 – A linha de produção de carros, de inspiração fordista, tem o objetivo de diminuir custos e
estabelecer linhas de montagem que alcancem níveis máximos de produtividade

Disponível em: https://bit.ly/3GM59Wc. Acesso em: 12 nov. 2021.

As bases do taylorismo e do fordismo entraram em crise na década de 1970: a queda da taxa de


lucro, o aumento da competitividade em cada setor industrial e as taxas de inflação fizeram com que o
desemprego aumentasse e o crescimento industrial sofresse retração. Dessa forma, tornou-se urgente
que as empresas buscassem maximizar os lucros por meio de outros modelos de gestão de estoques e
processos produtivos.

O modelo que buscou atender às necessidades desse contexto foi o toyotismo, conjunto de princípios
adotados pela Toyota, no Japão, após o fim da Segunda Guerra Mundial. O toyotismo defendeu valores
bem diferentes dos que vigoravam até então:

• A equipe deveria trabalhar em conjunto para construir a imagem da empresa e garantir a qualidade
dos produtos.

• Os trabalhadores deveriam se adaptar às necessidades da empresa, desenvolvendo, assim,


competências plurais.

• As indústrias deveriam atender às necessidades específicas dos consumidores, criando nichos de


mercado e segmentando a produção.

• A produção deveria ser horizontalizada (ou seja, com terceirização ou subcontratação de outras
empresas), e a indústria deveria focalizar aquilo que era mais importante: a fabricação de mercadorias.

O modelo toyotista inaugurou o processo de terceirização e, portanto, de precarização do trabalho.


Vejamos o seguinte exemplo. Uma empresa fabrica móveis. Portanto, ela deve centrar-se naquilo
que é a razão de ser do seu trabalho, a fabricação de móveis. Todas as demais atividades (limpeza,
segurança, suporte à informatização, alimentação e transporte, por exemplo) deverão ser transferidas

125
Unidade II

para outras empresas – que se encarregarão de contratar seus próprios funcionários –, ou seja, deverão
ser terceirizadas.

É fácil perceber como o trabalhador foi prejudicado pela terceirização. Imagine que um vigia
recebesse dois salários mínimos para trabalhar na segurança da empresa. Tendo que ser contratado por
uma empresa de segurança, é obvio que ele ganhará menos, já que a empresa precisará retirar o seu
lucro de algum fator de produção. Assim, para os trabalhadores, isso representa queda no salário, já que
as empresas que contratarão funcionários (para limpeza ou segurança, como no nosso exemplo) terão
que diminuir a remuneração de trabalho para garantir a sua taxa de lucro.

Cabe mencionar, entretanto, que não foi apenas o toyotismo o responsável pelo processo de piora nas
condições de trabalho. O crescimento econômico da China também incentivou mudanças importantes
nas relações de trabalho, uma vez que o modelo chinês não inclui direitos trabalhistas nem qualquer esquema
de proteção ao trabalhador. Ao contrário, espera-se que o trabalhador dê tudo de si para que a empresa cresça
e ele possa manter seu posto, mesmo que para isso tenha que lidar com longas jornadas de trabalho.

Saiba mais

Sugerimos que você assista ao documentário Indústria americana, que


mostra as dificuldades relacionadas à interação cultural e ao ambiente
organizacional quando uma empresa chinesa resolve abrir uma indústria
nos Estados Unidos.

INDÚSTRIA americana. Direção: Steven Bognar e Julia Reichert. Estados


Unidos: Higher Ground Productions; Participant Media, 2019. 110 min.

Figura 45 – A precarização do trabalho é um dos problemas mais urgentes do mundo contemporâneo.


Ela envolve diminuição de salários, aumento da jornada de trabalho e piora nas condições de
segurança do trabalhador

Disponível em: https://bit.ly/3BI2EQX. Acesso em: 12 nov. 2021.

126
CIÊNCIAS SOCIAIS

Deve-se também levar em conta que a revolução tecnológica mudou o contexto do trabalho. Ela
não apenas incentivou o aumento da competição entre setores e mercados, mas também provocou
profundas transformações na produção e no sistema econômico. A jornada de trabalho extrapolou os
limites das empresas. O celular e o e-mail colocaram o trabalhador à disposição da empresa 24 horas
por dia, sete dias por semana. O trabalho precarizou-se ainda mais, fazendo surgir o fenômeno da
uberização, processo que deve o seu nome à empresa de transporte Uber, na qual não há um empregador
aparente, mas apenas um trabalhador que, em razão do seu empreendedorismo, irá trabalhar quantas
horas desejar.

É óbvio que há um equívoco muito grande na caracterização da uberização como fenômeno


empreendedor. Os motoristas dependem do dono do aplicativo para trabalhar e, dado o baixo valor
de remuneração do seu trabalho, acabam por se submeter a jornadas longas e sem qualquer proteção
trabalhista ou individual. Dessa forma, o processo de uberização constitui-se pela eliminação dos direitos
do trabalhador, bem como pela manutenção da situação de subordinação.

Tal fenômeno tornou-se evidente com a atuação da companhia Uber no


mundo, a qual hoje conta com uma multidão de milhões de motoristas
autônomos e milhões de consumidores online. Mas em realidade já está
presente em diversos setores econômicos e é uma possibilidade para diversas
ocupações. Advogados, médicos, professores, operários da construção
civil, caminhoneiros, trabalhadores do setor de limpeza, fisioterapeutas,
motofretistas são algumas das categorias profissionais que já estão
fortemente uberizadas. […] A uberização deixa clara a informalidade não
como excrescência, mas como forte tendência das relações de trabalho,
quando há uma combinação perversa (MARQUES et al., 2018, p. 12).

Figura 46 – A uberização, ou seja, a precarização das condições de trabalho, acabou por atingir
todo e qualquer trabalho no qual há flexibilidade de horário e jornada. Nesse modelo de
relação de trabalho, supostamente, o trabalhador pode decidir o quanto e como quer trabalhar.
Atribui-se o caráter empreendedor à inexistência de quaisquer garantias trabalhistas e às
remunerações cada vez mais baixas

Disponível em: https://bit.ly/2ZPsWDj. Acesso em: 12 nov. 2021.

127
Unidade II

7.2 Desemprego estrutural, trabalho infantil, trabalho forçado e informalidade

A precarização do trabalho não é a única herança do processo de globalização no cenário do trabalho.


Em especial nos países em desenvolvimento, o desemprego estrutural, a informalidade, o trabalho infantil
e o trabalho escravo são problemas que permanecem e ainda requerem soluções urgentes.

No contexto do século XIX, Marx desenvolveu a ideia de exército industrial de reserva. O significado
por trás desse conceito era o seguinte: fazia parte da própria estrutura do capitalismo que houvesse
sempre um contingente de pessoas sem emprego, e que estivesse disposto a trabalhar fosse qual fosse
o salário. Em outras palavras, para o capitalismo não era vantajoso que houvesse emprego para todos.
Se isso acontecesse, caso algum trabalhador não gostasse das condições de trabalho numa empresa,
conseguiria facilmente encontrar emprego em outro lugar. O fato de haver um contingente de
desempregados, portanto, era uma garantia para o sistema de que não faltariam trabalhadores, jamais.

No contexto do século XXI, o fenômeno do desemprego assume diferentes características em razão


de situações distintas. Por exemplo, o desemprego sazonal decorre de circunstâncias específicas do
tipo de trabalho realizado. Caso os trabalhadores atuem na colheita de um produto agrícola, sua força
de trabalho será necessária apenas por determinado período de tempo.

Outro tipo de desemprego é o conjuntural, ou seja, que depende da conjuntura econômica. Se


observarmos o cenário do mercado de trabalho resultante da pandemia do coronavírus, veremos que
muitos trabalhadores perderam seu emprego por causa da crise econômica, que se supõe ser temporária,
conjuntural. É possível que, terminada a pandemia, a atividade econômica retome sua intensidade e os
postos de trabalho sejam colocados à disposição dos trabalhadores.

Há também o desemprego natural, que ocorre por diferenças entre as necessidades do mercado e a
qualificação do trabalhador. Em outras palavras, o desemprego de pessoas que não possuem as habilidades
necessárias para momentos específicos é chamado de desemprego natural. Ainda tomando como base
o exemplo anterior, da pandemia, é possível observarmos que certas características passaram a ser
demandadas dos empregados pela mudança de circunstâncias. Tornaram-se cruciais as competências
relacionadas ao home office, ao manuseio de tecnologia de comunicação, à capacidade de organização
do trabalho independentemente da supervisão de outros etc. Talvez, depois de terminada a pandemia,
essas competências deixem de ter a importância que têm agora.

O tipo de desemprego mais complexo em termos do panorama do capitalismo é o estrutural, já


que ele decorre de estruturas que, dificilmente, podem ser modificadas com rapidez. Vamos imaginar a
seguinte situação. Já falamos em momentos anteriores sobre o papel do Brasil na divisão internacional
do trabalho. Pelas necessidades do capitalismo internacional, ficamos com a tarefa de produzir e exportar
commodities. Esse processo, ao longo das primeiras décadas do século XXI, resultou na desindustrialização.
Passamos a importar cada vez mais mercadorias (em vez de produzi-las internamente), o que levou
as indústrias locais a demitir grande parte de seus trabalhadores. Essa mão de obra dispensada não
conseguiu – e não conseguirá – trabalho de forma automática. Não é fácil (às vezes, é impossível)
transferir trabalhadores e operários qualificados para o setor de serviços ou para o setor de produção de
128
CIÊNCIAS SOCIAIS

produtos agrícolas. Assim, cria-se um desemprego que é estrutural, que ocorre por mudanças estruturais
do sistema econômico. Outro exemplo é o emprego no setor de serviços, que há algumas décadas não
exigia qualquer tipo de capacitação; hoje, é difícil encontrar algum posto de trabalho que não exija
alfabetização digital.

O desemprego estrutural é uma das características mais marcantes do sistema capitalista. No


entanto, há outros problemas cuja dimensão se sobrepõe, inclusive, ao desemprego estrutural. Um deles
está relacionado ao trabalho infantil, em especial nos países em desenvolvimento. Tornou-se comum
encontrar crianças trabalhando na agricultura, no ambiente doméstico e nas fábricas com uso intensivo
de mão de obra. Tal fenômeno é preocupante não apenas por submeter crianças ao trabalho insalubre
e sem qualquer rede de proteção, mas também porque retira a criança da escola, interrompendo seu
processo de formação escolar. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), hoje o trabalho
infantil atinge mais de 150 milhões de crianças no mundo. Veja, a seguir, os números e os fatos
apresentados pela OIT.

Trabalho infantil

O trabalho infantil é ilegal e priva crianças e adolescentes de uma infância normal,


impedindo-os não só de frequentar a escola e estudar normalmente, mas também de
desenvolver de maneira saudável todas as suas capacidades e habilidades. Antes de tudo,
o trabalho infantil é uma grave violação dos direitos humanos e dos direitos e princípios
fundamentais no trabalho, representando uma das principais antíteses do trabalho decente.

O trabalho infantil é causa e efeito da pobreza e da ausência de oportunidades para


desenvolver capacidades. Ele impacta o nível de desenvolvimento das nações e, muitas
vezes, leva ao trabalho forçado na vida adulta. Por todas essas razões, a eliminação do
trabalho infantil é uma das prioridades da OIT.

Fatos e números globais

Em 2020, 160 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos foram vítimas de


trabalho infantil no mundo (97 milhões de meninos e 63 milhões de meninas).

Quase metade dessas crianças e desses adolescentes (79 milhões) realizava formas
perigosas de trabalho, colocando em risco sua saúde, segurança e desenvolvimento moral.

A maior parte do trabalho infantil – tanto para meninos quanto para meninas – continua
a ocorrer na agricultura. De fato, 70% de todas as crianças e adolescentes em trabalho
infantil (112 milhões) estão na agricultura.

O progresso global contra o trabalho infantil estagnou desde 2016. A porcentagem de


crianças e adolescentes no trabalho infantil permaneceu inalterada ao logo dos últimos
quatro anos, enquanto o número absoluto aumentou em mais de 8 milhões.

129
Unidade II

A crise da covid-19 ameaça piorar ainda mais o progresso global contra o trabalho
infantil, a menos que medidas urgentes de mitigação sejam tomadas. Novas análises
sugerem que mais de 8,9 milhões de crianças e adolescentes estarão em trabalho infantil
até o final de 2022, como resultado de uma pobreza crescente impulsionada pela pandemia.

Fatos e números no Brasil

Em 2019, havia 38,3 milhões de pessoas entre 5 e 17 anos de idade no país, das quais
1,8 milhão estavam em situação de trabalho infantil (4,6%). Desse total, 706 mil estavam
ocupadas nas piores formas de trabalho infantil.

Do total de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, 1,3 milhão estavam


em atividades econômicas e 436 mil em atividades para consumo próprio.

Entre as pessoas de 16 a 17 anos de idade que realizaram atividades econômicas,


estima-se um contingente de 772 mil em ocupações informais, o que significa uma taxa de
informalidade de 74,1% nesse grupo etário.

Adaptado de: OIT (2021).

Figura 47 – A eliminação do trabalho infantil é uma das prioridades da OIT

Disponível em: https://bit.ly/3bHfunG. Acesso em: 12 nov. 2021.

Outro problema de grande dimensão é o trabalho forçado, em geral associado a práticas de escravidão.
Nessa condição, o trabalhador não tem liberdade para se negar a trabalhar ou é submetido a condições
degradantes e sem quaisquer direitos, inclusive os de remuneração.

130
CIÊNCIAS SOCIAIS

Observação

Um dos fenômenos cada vez mais frequentes é o tráfico de pessoas.


Nesse contexto, pessoas vulneráveis economicamente ficam à mercê do
aliciamento; são enganadas com promessas de remuneração e trabalho
e, depois, deparam-se com condições degradantes de trabalho, inclusive
sendo exploradas sexualmente.

O fenômeno do trabalho forçado é mais frequente nos países em que setores da população estão em
situação de vulnerabilidade econômica. Quanto mais vulnerável for a situação econômica do indivíduo,
mais propenso ele estará a aceitar trabalhos sem remuneração ou sem qualquer recompensa financeira.
Nessas situações, o trabalhador troca a sua força de trabalho por abrigo, segurança ou alimentação, o
que caracteriza a ausência de remuneração salarial. Apesar da rigorosa vigilância e punição, o trabalho
forçado é mais comum do que se imagina. As instituições internacionais preconizam e defendem
rigorosos programas de prevenção ao trabalho forçado e assistência às vítimas.

Trabalho forçado

O trabalho forçado é um fenômeno global e dinâmico, que pode assumir diversas


formas, incluindo a servidão por dívidas, o tráfico de pessoas e outras formas de escravidão
moderna. Ele está presente em todas as regiões do mundo e em todos os tipos de economia,
até mesmo nas de países desenvolvidos e em cadeias produtivas de grandes e modernas
empresas atuantes no mercado internacional. Acabar com o problema exige não só o
comprometimento das autoridades governamentais como também um engajamento
multifacetado de trabalhadores, empregadores, organismos internacionais e sociedade civil.

Fatos e números globais

Mais de 40 milhões de pessoas foram vítimas da escravidão moderna em 2016, sendo


que 71% eram mulheres e meninas.

Desse total, cerca de 25 milhões de pessoas foram submetidas a trabalho forçado e


15,4 milhões foram forçadas a se casar.

Das 24,9 milhões de pessoas submetidas a trabalho forçado, 16 milhões foram exploradas
no setor privado (por exemplo, trabalho doméstico, construção ou agricultura), 4,8 milhões
sofreram exploração sexual forçada, e 4 milhões estavam em situação de trabalho forçado
imposto por autoridades governamentais.

As mulheres representam 99% das vítimas do trabalho forçado na indústria comercial


do sexo e 84% nos casamentos forçados.

131
Unidade II

Uma em cada quatro vítimas da escravidão moderna é criança.

Os trabalhadores migrantes e os povos indígenas são particularmente vulneráveis ao


trabalho forçado.

Fatos e números do Brasil

Entre 1995 e 2015, foram libertados 49.816 trabalhadores que estavam em situação
análoga à escravidão no Brasil.

Os trabalhadores libertados são, em sua maioria, migrantes internos ou externos, que


deixaram sua casa para a região de expansão agropecuária ou para grandes centros urbanos,
em busca de novas oportunidades ou atraídos por falsas promessas.

95% dos trabalhadores libertados são homens, 83% têm entre 18 e 44 anos de idade, e
33% são analfabetos.

Os 10 municípios com maior número de casos de trabalho escravo do Brasil estão na


Amazônia, sendo 8 deles no Pará.

Tradicionalmente, a pecuária bovina é o setor com mais casos no país. No entanto,


há cerca de 10 anos intensificaram-se as operações de fiscalização em centros urbanos,
até que em 2013, pela primeira vez, a maioria dos casos ocorreu em ambiente urbano,
principalmente em setores como a construção civil e o de confecções.

Adaptado de: OIT (s.d.).

Finalmente, é importante refletirmos sobre a informalidade, outra característica intensificada


nos últimos anos. A primeira dificuldade com a qual nos defrontamos diz respeito aos inúmeros
conceitos sobre a informalidade que têm convivido indistintamente no meio acadêmico, em especial
no que diz respeito às diferenças entre o trabalho por conta própria e a informalidade (SANTIAGO;
VASCONCELOS, 2017).

Para a OIT, a informalidade é caracterizada pela ausência de sistemas formais. Do ponto de vista
legal ou prático, a informalidade ocorre quando os trabalhadores e as unidades produtoras não estão
inseridos em um sistema formal (SANTIAGO; VASCONCELOS, 2017). Em 2003, a OIT sugeriu novas formas
de caracterizar o emprego no setor informal por meio da inclusão da questão da economia informal e
da definição de trabalho informal.

Ficou estabelecido que, quando se trata do setor informal, parte-se da


perspectiva de unidade produtiva, enquanto o emprego informal está
associado a postos de trabalho. Dessa forma, segundo a 17ª Ciet, as
modalidades de inserção no trabalho que se constituem em emprego

132
CIÊNCIAS SOCIAIS

informal são: trabalhadores por conta própria e empregadores proprietários


de unidades produtivas no setor informal, trabalhadores em ajuda a
membro do domicílio e assalariados (se a relação de trabalho não está
sujeita à legislação trabalhista nacional e à proteção social), membros de
cooperativas de produtores informais e trabalhadores que produzem bens
prioritariamente para o próprio uso (MARQUES et al., 2018, p. 8-9).

Embora o número de trabalhadores informais tenha caído na primeira década do século XX, a
informalidade ainda está presente na estrutura econômica do Brasil, inclusive por conta de fatores
a respeito dos quais já conversamos (crescimento econômico com desigual distribuição da riqueza,
descontinuidade de políticas públicas de transferência de renda e de apoio a grupos vulneráveis etc.).

Em razão desse cenário, também é esperado que o setor público seja capaz de enfrentar

o racismo institucional e outras formas de opressão que mantêm os


trabalhadores e, principalmente, as trabalhadoras negras, sem a devida
proteção social e com piores condições de vida, em função da maior
incidência nessa população do trabalho informal e precário. […] Oscilando
entre empregos com carteira mal remunerados e empregos sem carteira,
entre desemprego e pequeno comércio de rua, entre cooperativas, empregos
temporários, terceirizados e até clandestinos e/ou ilícitos, empreendimentos
familiares, a combinação de diferentes ocupações – algumas que
podem nem mesmo ser reconhecidas como trabalho – trabalhadores/as
seguem itinerários ocupacionais que se distanciam da figura padrão
do assalariamento fortemente calcada nos elementos que sustentam o
trabalho formal. Além de apresentar uma realidade que é distante das
categorias estanques de trabalho formal/informal, essa situação evidencia
diversos níveis de desproteção, mostrando-nos a distância entre a realidade
da maioria da população brasileira e a concepção de direitos sociais que
são estruturados e compreendidos a partir de uma concepção de sociedade
salarial (MARQUES et al., 2018, p. 10 e 23).

Marques et al. (2018) organizaram alguns dados interessantes (e recentes) sobre a informalidade
na estrutura de emprego da economia brasileira. Para que se tenha ideia, em março de 2018, apenas
48,71% da população economicamente ativa tinha vínculos formais de emprego. Essa faixa compreende
os 36,33% de funcionários do setor privado e os 12,38% de servidores públicos (incluindo militares). Na
informalidade estão 51,29% dos trabalhadores.

Uma das soluções para a diminuição da informalidade no mercado de trabalho é o governo


desenvolver políticas públicas que favoreçam a formalização da situação de trabalho. Por exemplo,
o surgimento do microempreendedor individual (MEI) tem contribuído para aumentar a cobertura
social de um grande número de trabalhadores. Segundo Santiago e Vasconcelos (2017, p. 242-243), o
processo de formalização não deve ser encarado como um fim em si mesmo,

133
Unidade II

e sim como um primeiro passo de inclusão e acesso a patamares básicos


de cidadania, como um meio para que as pessoas tenham melhores
condições de desenvolver seu potencial produtivo e percebam maior nível
de bem‑estar. […] [No entanto] apenas 13,7% da população urbana e adulta
que trabalha por conta própria contribui para a previdência social e, ao
mesmo tempo, tem suas atividades registradas no CNPJ. O grande desafio
para os formuladores da política de formalização consiste na ampliação da
taxa de formalidade junto à população negra e parda, mais jovem, residente
nas regiões Norte e Nordeste, de baixa escolaridade, que trabalha há pouco
tempo, em casa ou na rua, com baixa remuneração e que atua no ramo
da construção civil. O trabalho por conta própria continuará sendo um
componente estrutural do mercado de trabalho brasileiro. O Brasil vivenciou
na última década um crescimento significativo da proporção do emprego
assalariado formal no total de ocupados (9,7% entre 2001 e 2014), mas a
proporção de trabalhadores por conta própria foi reduzida em apenas 1%.
Diante desse cenário, a estratégia de desenvolvimento nacional deve
incorporar como objetivo a redução das disparidades de bem-estar entre
os trabalhadores por conta própria informais e aqueles que se formalizam,
para que não haja uma dicotomia tão expressiva como a observada entre
catadores e doutores.

Neste tópico, investigamos as mudanças ocorridas no campo do trabalho por causa da globalização.
Propomos, a seguir, outra reflexão: quais as transformações no âmbito da política provocadas pela
globalização? Como a globalização vem afetando as estruturas democráticas e enfrentando os diversos
e complexos problemas na área dos direitos humanos?

8 SOCIOLOGIA E POLÍTICA

Neste tópico, discutiremos alguns aspectos fundamentais do contexto da política, a partir do olhar
sociológico. Esses aspectos envolvem os direitos humanos, a democracia como condição para o convívio
social e a cidadania como direito básico de todos os habitantes do planeta.

8.1 Democracia e direitos humanos

Segundo Giddens (2006, p. 70), a democracia pode ser descrita como um sistema

que envolve competição efetiva entre partidos políticos que querem ocupar
posições de poder. Em democracia, há eleições regulares e honestas, em
que todos os membros da população podem tomar parte. Esses direitos
de participação derivam das liberdades civis: liberdade de expressão e
discussão, a que se junta a liberdade de pertencer a grupos ou associações
de natureza política.

134
CIÊNCIAS SOCIAIS

Isso posto, pode-se afirmar que não há graus de democracia. Não há democracia se todos não
tiverem os mesmos direitos civis. Igualmente, não podemos dizer que um país é menos democrático do
que o outro por permitir eleições diretas para a formação do Congresso, mas não para a presidência. Ou
há ou não há democracia. O que diferencia a experiência democrática, quando comparamos países, são
as especificidades históricas e locais que determinam formas de viver em democracia.

Figura 48 – As eleições para vereadores, prefeitos, governadores, deputados, senadores e


presidente fazem parte da rotina de um regime democrático

Disponível em: https://bit.ly/3bA7PaL. Acesso em: 12 nov. 2021.

Em tempos globais, um esforço especial deve ser feito para democratizar a democracia, ou seja,
levá‑la às relações internacionais. Isso envolve instituições internacionais que tratem igualmente países
em desenvolvimento e países desenvolvidos, arcabouços legais que impeçam países de se confrontarem
por reservas naturais etc.

Lembrete

Como já vimos, o FMI, a OMC e o Banco Mundial são mais sensíveis


às demandas dos países industrializados e desenvolvidos. Uma maior
democratização nas ações e escolhas dessas instituições tem sido uma
demanda constante nas últimas décadas, em particular pelos países
em desenvolvimento.

Uma frente de debate que tem mobilizado os sociólogos diz respeito à separação entre Estado e
sociedade. Quais são – ou devem ser – os limites entre esses dois ambientes? A resposta mais frequente
a essa questão tem sido dizer que o Estado foi criado pela sociedade justamente para dar conta de
organizar a vida de todos, de forma autônoma. A sociedade civil nasce com a criação do Estado e surge
como fruto da ação do Estado, que propiciará as condições para a existência de uma esfera privada.

Vale a pena nos determos mais nessa discussão. A criação do Estado fez surgir uma fronteira entre
o que é resultado da sua ação e o que é fruto do movimento espontâneo e organizado da sociedade.
Assim, a sociedade civil envolve ações e iniciativas que independem do Estado, como é o caso das
organizações não governamentais, que atuam nas mais diferentes áreas (educação, saúde e outros
projetos de cidadania). Essas organizações não surgem a partir da ação do Estado. Ao contrário, elas
surgem por decisão de grupos de indivíduos que se organizam em prol de determinados objetivos, em

135
Unidade II

geral no contexto de áreas em que o Estado falha no atendimento às necessidades dos indivíduos ou
aos direitos elementares.

Historicamente, temos duas formas a partir das quais o Estado se atribuiu – ou não – o direito e
o dever de proteger, criar e preservar direitos civis, sociais e políticos. No Estado de bem-estar social
(conhecido como welfare state), o Estado traz para si o compromisso e a obrigação de criar redes de
proteção aos cidadãos, garantindo educação, saúde, auxílio-desemprego, aposentadoria etc. No Estado
mínimo, o aparelho estatal busca diminuir ao máximo sua interferência na vida econômica e social do
país. Assim, as maneiras como o Estado concebe sua missão determinam, em grande parte, o quanto
os direitos coletivos prevalecerão sobre os direitos individuais. Determinam ainda o quanto o Estado
considerará sua tarefa de diminuir as desigualdades sociais.

Em geral, a democracia representativa é materializada sob a forma de regimes parlamentaristas ou


republicanos. Seus elementos principais são o sufrágio universal (o direito de voto a todos), a vigência
de constituições que norteiam a vida dos cidadãos, a alternância no poder, e a eleição de representantes
diretos para as funções executivas e legislativas. O Brasil é um exemplo de democracia representativa, na
qual os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) agem livremente, mas de forma interdependente.

O Poder Executivo é aquele que executa os atos públicos. O Poder Legislativo é aquele que produz as
leis que irão governar a vida dos cidadãos. O Poder Legislativo estabelece as leis por meio do Congresso
Nacional, que reúne a Câmara dos Deputados e o Senado. Ao Poder Legislativo cabe também fiscalizar
o Poder Executivo. O Poder Judiciário é o que julga os cidadãos a partir das leis.

Observação

No sistema parlamentarista, o primeiro-ministro é o encarregado de


executar os atos da administração pública. Nos países em que ainda há
sistemas monárquicos (como na Inglaterra, na Espanha e na Holanda),
os reis e rainhas exercem um papel apenas simbólico, sendo o poder, em
geral, exercido pelo Parlamento. Nos regimes monárquicos constitucionais,
portanto, o monarca é o chefe de Estado, e o primeiro-ministro é o chefe
de Governo. Nas monarquias absolutistas, o poder dos monarcas é absoluto
e concentra as funções executivas, judiciárias e legislativas. Omã e a Arábia
Saudita são exemplos de monarquias absolutistas.

A ditadura é o oposto da democracia, e ela surge quando não há pluralidade de partidos, alternância
no poder e liberdade e autonomia para a atuação do Parlamento. No Brasil, tivemos dois períodos
ditatoriais: entre 1930 e 1945, sob o Governo Getúlio Vargas, e entre 1964 e 1985, quando o país foi
governado por militares não eleitos pelo povo, e as eleições do Legislativo tiveram que obedecer a regras
restritivas para a participação de candidatos. O processo de redemocratização do país ocorreu com a
transferência paulatina do poder dos militares aos civis, o que demandou um longo e complexo processo
de negociação e de contestação de setores da sociedade insatisfeitos com o ritmo lento desse movimento.

136
CIÊNCIAS SOCIAIS

Figura 49 – Ao final da década de 1970, intensificou-se o movimento a favor da anistia ampla, geral
e irrestrita. Como proposta básica, esse movimento buscou negociar uma solução consensual entre o
governo militar que pretendia entregar o governo para civis, e os movimentos sociais que pediam
o retorno dos que haviam se exilado por conta de ações contra o regime militar

Disponível em: https://bit.ly/3GKkQgl. Acesso em: 12 nov. 2021.

Há inúmeros mitos que cercam a questão da democracia. Por exemplo, há quem diga que
a democracia é, por excelência, a melhor forma de governo para uma economia de mercado.
Segundo Giddens (2006), efetivamente, a melhor forma de governo é a democrática, mas ela não
exige que, do ponto de vista econômico, haja uma estrutura capitalista de mercado. Pode haver
regimes democráticos em países que adotam outros formatos de organização econômica.

Outro mito – e esse bastante resistente a críticas – é o de que a democracia estimula a corrupção.
Com isso, pretende-se dizer que em regimes autoritários não há corrupção. O grande equívoco nessa
idealização é o fato de que, nas democracias, a corrupção é exposta ao público em razão da liberdade de
imprensa; nos países autoritários, isso não acontece.

A maior ocorrência de conflitos nas sociedades democráticas faz parte da construção de outro
mito em defesa de regimes mais autoritários. Nestes, os conflitos são mascarados, já que são contidos
por meio da força. Assim, não é possível afirmar que regimes democráticos favoreçam ou estimulem
conflitos, enquanto outros regimes, mais autoritários, os tornam desnecessários.

Segundo Motta (2008), é no campo democrático que surge espaço para o conflito entre os diferentes
grupos sociais que lutam por direitos. Isso equivale a dizer que os direitos não nascem sozinhos. Ao
contrário, eles são gestados pela sociedade e pelas transformações pelas quais ela passa. Motta afirma
ser importante considerar que foi no dia a dia e no cotidiano que os grupos sociais conquistaram
direitos até então inexistentes, ou não legitimados pelas instituições e pela burocracia. Nesse sentido,
a democracia vem se apresentando como o modelo que, por excelência, permite que grupos sociais se

137
Unidade II

manifestem e se façam representar politicamente, inclusive – e especialmente – buscando construir


novos direitos e ampliar a cidadania. Sobre a questão da cidadania, falaremos a seguir.

8.2 Cidadania e direitos humanos

Falamos antes a respeito da necessidade de democratizar a democracia enquanto modelo de governo.


Essa afirmativa está associada, em particular, ao reconhecimento da existência de desigualdades sociais
que ameaçam não apenas o próprio sistema democrático, mas também a capacidade de todos os
grupos sociais se fazerem representar e, portanto, terem mecanismos para garantir seus direitos sociais
básicos. Como afirma Silva (2019, p. 11),

considerando que o exercício da democracia ocorre sempre num contexto


socioespacial e se inter-relaciona com outros espaços […], importa também
dar conta das formas de desigualdade em nível multidimensional, em
particular em torno do reconhecimento efetivo dos direitos de cidadania.

O que vem a ser cidadania? Segundo Manzini-Covre (2002, p. 9),

ser cidadão significa ter direitos e deveres, ser súdito e ser soberano. Tal
situação está descrita na Carta de Direitos da Organização das Nações
Unidas (ONU), de 1948, que tem suas primeiras matrizes marcantes nas
cartas de direitos dos Estados Unidos (1776) e da Revolução Francesa (1798).
Sua proposta mais funda de cidadania é a de que todos os homens são
iguais ainda que perante a lei, sem discriminação de raça, credo ou cor.
E ainda: a todos cabem o domínio sobre seu corpo e sua vida, o acesso a
um salário condizente para promover a própria vida, o direito à educação,
à saúde, à habitação, ao lazer. E mais: o direito de todos poderem expressar-se
livremente, militar em partidos políticos e sindicatos, fomentar movimentos
sociais, lutar por seus valores. Enfim, o direito de ter uma vida digna […].
Isso tudo diz mais respeito aos direitos do cidadão. Ele também deve
ter deveres: ser o próprio fomentador da existência dos direitos a todos, ter
responsabilidade em conjunto pela coletividade, cumprir as normas e
propostas elaboradas e decididas coletivamente, fazer parte do governo,
direta ou indiretamente, ao votar, ao pressionar através dos movimentos
sociais, ao participar de assembleias – no bairro, sindicato, partido ou escola.

De acordo com Manzini-Covre (2002), a questão da cidadania envolve o exercício de alguns direitos:

• Direitos civis: dizem respeito ao direito de dispor do próprio corpo, de se locomover, de ter
segurança. Assim, colocar a população em risco por conta da excessiva tolerância com quem
atenta contra a salubridade do ambiente, por exemplo, é um desrespeito ao direito civil de todos
de viver em segurança. Outros exemplos são forçar uma criança a se casar ou proibir alguém de
sair do país; ambos são atos que desrespeitam os direitos civis.

138
CIÊNCIAS SOCIAIS

• Direitos sociais: dizem respeito ao atendimento das necessidades humanas básicas – alimentação,
habitação, saúde e educação. A existência de pessoas morando debaixo de viadutos, sem condições
mínimas de sobrevivência e de dignidade, por exemplo, é um desrespeito aos direitos sociais.

• Direitos políticos: dizem respeito à liberdade de expressão, de pensamento e de prática política


e religiosa. Esses direitos são reforçados com a eleição de representantes e a proteção aos
movimentos sociais.

Claro que há espaço para discussão a respeito do que pode ou não ser considerado exercício da
cidadania. Vejamos o caso de alguém que se sinta no direito de disseminar fake news pelas mídias sociais.
Proibi-la de agir dessa forma pode atentar contra os seus direitos individuais. No entanto, é preciso
proteger também os direitos coletivos. Para efeito de provocação, vamos apresentar aqui outro dilema
a respeito dos limites entre direitos individuais e direitos coletivos: é legítimo que o Estado permita
que pais não vacinem os filhos em razão de crenças religiosas ou de opiniões pessoais? Considere o
texto a seguir.

Governo tem poder de tornar vacinação obrigatória e dever de incentivá-la,


dizem juristas

A Constituição brasileira permite, sim, que o governo crie mecanismos para obrigar que
as pessoas se vacinem – não só pode como tem o dever de fazê-lo, explica Roberto Dias,
professor de direito constitucional da FGV (Fundação Getulio Vargas).

Isso porque, em casos como esse, a justiça coloca na balança dois direitos: de um lado,
a liberdade individual e, de outro, a saúde pública – e, no caso de epidemias de doenças
que são uma clara ameaça à saúde pública, como a covid-19, o direito à saúde pública é
prevalente, afirma Dias.

“Nenhum direito fundamental é absoluto, ou seja, o direito à liberdade não é absoluto a


ponto de estar acima do direito à saúde das outras pessoas”, afirma a professora de direito
constitucional Estefânia Barbosa da UFPR (Universidade Federal do Paraná).

Há diversos dispositivos na legislação brasileira que permitem a vacinação


obrigatória – da Constituição a uma lei assinada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro
em fevereiro, a Lei 13.979, que autoriza autoridades a tomar medidas como tornar
compulsória a vacinação.

Caso a ciência encontre uma vacina efetiva e segura contra a covid-19, o governo tem
não só a possibilidade como o dever de incentivar a aplicação e torná-la disponível aos
brasileiros, explica Dias. Isso porque o artigo 196 da Constituição Federal determina que
saúde é um direito de todos e um dever do Estado.

O Estado tem obrigação constitucional de implementar políticas sociais que visem à


redução do risco de doenças, afirma Dias.
139
Unidade II

“Num momento como esse, em que vacinas, desde que tenham passado por todos os
testes e sejam recomendadas pelas autoridades de saúde, serão possivelmente a melhor
resposta para a pandemia, o governo tem a obrigação de divulgar, incentivar e garantir uma
política pública ampla de vacinação”, afirma Roberto Dias. [...]

“A dimensão objetiva do direito à saúde significa que o poder público tem o dever
de garantir esse direito a todos, independentemente de pleitos individuais ou coletivos”,
explica Estefânia Barbosa. […]

E deixar de se vacinar não é apenas uma questão de escolha individual, é uma atitude
que afeta toda a coletividade, explica o cientista Fernando Rosado Spilki, presidente da
Sociedade Brasileira de Virologia.

“Se uma parcela importante da população não se vacina, o vírus continua circulando
em níveis que permitem sua manutenção prolongada na população, trazendo evidentes
danos à saúde e por conseguinte à economia, além de todos os outros aspectos afetados
por eventuais quarentenas”, explica.

Fonte: Machado e Mori (2020).

Figura 50 – No Brasil, as campanhas de vacinação buscam atingir toda a população. No caso de


algumas vacinas aplicadas em crianças, sua obrigatoriedade faz com que os pais, compulsoriamente,
mantenham os filhos vacinados

Disponível em: https://bit.ly/3EDrHX6. Acesso em: 12 nov. 2021.

Como você deve ter percebido, as fronteiras entre direitos individuais e direitos coletivos estão no
centro da controvérsia e do debate. Para que se possa chegar a qualquer conclusão a respeito, o debate
democrático e não violento é a única estratégia possível. Outra discussão pertinente, e que permeia a
questão dos limites entre o individual e o coletivo, diz respeito ao papel que se atribui ao Estado.

140
CIÊNCIAS SOCIAIS

Segundo Silva (2019), as desigualdades e as situações de vulnerabilidade social podem comprometer,


e muito, a democracia. Afinal, para que um país seja democrático, não é suficiente que o seu governo
não seja autoritário; é necessário que todos possam se fazer ouvir e ter seus direitos protegidos.

A democracia representativa, se representa um notável ganho histórico em


relação aos anteriores sistemas despóticos e autocráticos, raramente e só de
modo subalterno representa os mais destituídos social e economicamente,
além de ser vulnerável a esquemas informais ou laterais de corrupção,
descredibilizando e favorecendo a abstenção ou a procura de soluções
extremistas, nomeadamente da ultradireita classista, xenófoba, racista,
homofóbica e misógina. É perante essas insuficiências e deficiências, impasses
e/ou mesmo obstáculos da democracia formal que devemos questionar
até que ponto é possível, necessário e até desejável encontrar caminhos
de cidadania, garantias protetoras de direitos e modos complementares
à democracia representativa e/ou alternativos pela via da democracia
participativa, associativa, local e direta e com potencial emancipatório
(SILVA, 2019, p. 14).

Observação

A xenofobia diz respeito ao ódio e à antipatia por pessoas estranhas


ao seu ambiente, em geral por estrangeiros. O racismo se refere ao
comportamento que pressupõe uma hierarquia entre as etnias. A homofobia
é o ódio e a antipatia ao homossexual ou à homossexualidade. A misoginia
tem a ver com o ódio e a aversão às mulheres.

Sendo real ou não o mito da aldeia global, o grande problema a ser enfrentado pela globalização é o
de garantir que os direitos de cidadania de todos os habitantes do globo – e de quaisquer países – sejam
respeitados. Isso envolve combater a pobreza no mundo, a violência no mundo, o racismo no mundo,
a desigualdade social existente no mundo. O tráfico de pessoas, o drama dos refugiados, a fome crônica
em alguns países da África, as pandemias que assolam partes do planeta, todos esses são fenômenos de
alcance global e que encontram explicações na forma como a globalização atinge, de maneira desigual,
países pobres e ricos, industrializados e em desenvolvimento.

Esses são os grandes desafios do mundo pretensamente globalizado. Se os benefícios do aumento


da riqueza devem se estender a todos, é de responsabilidade de todos que os entraves à justiça social e
ao desenvolvimento sejam enfrentados.

141
Unidade II

Resumo

O final do século XX assistiu ao esgotamento do conflito entre URSS


e Estados Unidos. Os americanos encontravam-se pressionados pela
turbulência econômica e pela escassez de recursos públicos para financiar
seus planos militares. Por sua vez, o bloco soviético também havia exaurido
suas reservas materiais e financeiras para sustentar os confrontos armados,
e as repúblicas que compunham a união agora queriam liberdade e
independência. Ainda no final do século XX, mais precisamente em 1989,
presidentes de bancos centrais, ministros e financistas do bloco ocidental
reuniram-se em Washington, compactuando o que passou a ser conhecido
como Consenso de Washington, uma lista de medidas que todos os países
deveriam tomar para estimular sua economia, diminuir a pobreza e atenuar
as desigualdades sociais.

As políticas do consenso eram voltadas basicamente para diminuir a


regulação e o controle da economia, constituir um regime de livre mercado,
reduzir o tamanho do Estado e aumentar as oportunidades para o comércio
internacional. Essas medidas, especialmente elaboradas para auxiliar
as economias desenvolvidas e industrializadas a enfrentar a crise de
superprodução, acabaram por constituir o que passou a ser conhecido como
neoliberalismo.

Podemos identificar três diferentes abordagens em relação à


globalização. 1) Segundo a abordagem histórica, a globalização associa-se
aos eventos referentes à queda do Muro de Berlim e ao esgotamento da
Guerra Fria, ou seja, ao suposto fim do embate entre capital e trabalho.
2) De acordo com a abordagem do espaço e do tempo, a globalização pode
ser explicada a partir da diluição das fronteiras geográficas (alcançada por
meio da constituição de blocos comerciais, como a União Europeia e o
Mercosul) ou a partir da criação de um espaço global virtual. 3) Conforme
a abordagem ideológica, é certo que o discurso neoliberal funcionou como
“liga” para juntar os elementos econômicos e políticos. A ideologia pregava
que os valores liberais deveriam ser hegemônicos.

O processo de globalização tem como constituintes quatro dimensões.


1) A dimensão comercial diz respeito ao aumento do comércio entre blocos
e países, inclusive em razão da defendida liberdade comercial e do fim dos
entraves ao comércio. 2) A dimensão produtiva diz respeito às formas como
as estruturas de produção se organizam. Esse fenômeno manifestou‑se
a partir de dois cenários: a divisão da produção em diferentes pontos
geográficos ou a divisão da distribuição para consumo segundo estratégias

142
CIÊNCIAS SOCIAIS

geopolíticas. 3) A dimensão financeira está associada à liberdade da qual o


capital passou a desfrutar, circulando com a maior liberdade possível entre
países, interligando mercados tanto nacional quanto internacionalmente.
4) A dimensão tecnológica tem relação com a rápida disseminação
da tecnologia de internet e telefonia celular no final do século XX,
configurando o que alguns sociólogos e economistas consideram ser a
Terceira Revolução Industrial.

O mito de uma aldeia global e a narrativa de que todos, em qualquer


lugar do planeta, poderiam fazer uso das tecnologias de comunicação
e informação não se concretizaram como os profetas da globalização
desejavam. Além de compreender os motivos que explicam o insucesso
da globalização, as ciências sociais ainda precisam enfrentar um imenso
problema, qual seja, o de que o seu paradigma básico se construiu a partir
da ideia de sociedade nacional, categoria que vem sendo esgarçada pelos
defensores da globalização.

Apesar dessa dificuldade, os sociólogos desenvolveram várias teorias


para compreender e explicar a globalização. Algumas dessas teorias buscam
desenvolver a noção de sistema-mundo, ou economia-mundo. Outras
procuram entender a internacionalização do capital e sua importância
para o processo globalizador. Há teorias que tentam compreender a
interdependência das nações. Já vimos que, apesar do discurso globalizador,
as nações buscam manter sua identidade, suas políticas econômicas e
sociais, sua cultura e seus valores, sem que isso comprometa a fluidez do
processo da globalização ou ameace a ideia de uma rede mundial. Outras
teorias procuram analisar a questão da modernização do mundo e da sua
ocidentalização. Finalmente, há um conjunto de teorias que tem se ocupado
da compreensão racional do mito da aldeia global. Esse mito criou a ideia de
que somos todos irmãos e partilhamos o mesmo espaço, como se, de fato,
vivêssemos orientados por ideias de solidariedade e comunhão mundial.

Várias décadas após a disseminação do discurso globalizador, seus


críticos são unânimes em afirmar que não apenas não ocorreu qualquer
diminuição da pobreza e da desigualdade social como aumentou a
dependência dos países pobres em relação aos países mais ricos, em especial
no que diz respeito ao crédito, aos investimentos estrangeiros diretos e
ao acesso a medicamentos e outros produtos e serviços que envolvam
tecnologias protegidas por patentes. Outro aspecto levantado pelos críticos
à globalização é que o processo ignora o que há de mais globalizante no
neoliberalismo: a degradação ambiental em escala global.

É um curioso mundo global: a posse de recursos não garante o


desenvolvimento, e a falta deles tampouco impede o crescimento. Como
143
Unidade II

evidências desses paradoxos, temos o caso do Japão (uma país minúsculo


em termos geográficos) e dos Países Baixos. Em resumo, democratizar a
globalização significa desenvolvimento sustentável com justiça social.

Como resultado do processo de globalização, temos que investigar


a questão da desigualdade social enquanto fenômeno que não atinge
apenas os países quando observados comparativamente. Dentro de cada
país também é possível perceber quão desigual é a distribuição de renda
e como vem aumentando, cada vez mais, o número de pessoas econômica e
socialmente vulneráveis. Talvez ainda mais importante do que a constatação
da existência dessas desigualdades seja o fato de que o mundo construído
pela globalização oferece poucas chances de mobilidade, tanto do ponto de
vista do país quanto do ponto de vista das classes sociais internas ao país.
Uma das conclusões possíveis sobre o processo de globalização é a de que
os países ricos ficaram mais ricos, e os países pobres, mais pobres.

Em alguns países menos desenvolvidos, ocorreu um fenômeno curioso


de aumento quantitativo da riqueza acompanhado por uma diminuição
qualitativa do bem-estar social. Por conta disso, sociólogos e economistas
vêm procurando trabalhar com indicadores distintos para mensurar o
desenvolvimento e o crescimento econômico.

Outra face cruel da globalização tem relação com as ondas migratórias


de nações em desenvolvimento, subdesenvolvidas ou em guerra, por meio
das quais a população procura proteção em países onde há emprego e
melhores condições de vida. No caso específico do Brasil, observa-se um
aumento da riqueza e do desenvolvimento humano nas últimas décadas.
Apesar disso, em 2017, aproximadamente 7% da população brasileira ainda
permanecia analfabeta. Naquele ano, havia quase 12 milhões de pessoas
que não sabiam ler nem escrever. Em 2019, 54,8 milhões de brasileiros
estavam abaixo da linha da pobreza, ou seja, 25% da população tinha
renda mensal, por pessoa, inferior a R$ 406 por mês, critério estabelecido
pelo Banco Mundial para demarcar essa fronteira.

Em termos de panorama mundial, o Brasil continua na periferia da


divisão internacional do trabalho, tendo como alternativa econômica
a produção e a exportação de commodities. Em relação ao contexto do
trabalho, é necessário aceitar o fato de que a globalização, por meio dos
processos de terceirização e uberização, piorou as condições de trabalho do
trabalhador. Além disso, em razão da estrutura econômica brasileira, que
não privilegia uma distribuição mais justa da riqueza, ainda precisamos
eliminar a ocorrência do trabalho escravo e do trabalho infantil.

144
CIÊNCIAS SOCIAIS

Um dos maiores desafios a serem enfrentados pela globalização


diz respeito à democratização da democracia, ou seja, fazer com que a
democracia permeie as relações internacionais. Isso envolve instituições
internacionais que tratem igualmente países em desenvolvimento e países
desenvolvidos, arcabouços legais que impeçam países de se confrontarem
por reservas naturais etc.

A ditadura é o oposto da democracia, e ela surge quando não há


pluralidade de partidos, alternância no poder e liberdade e autonomia
para a atuação do Parlamento. Nesse sentido, a democracia vem se
apresentando como o modelo que, por excelência, permite que grupos
sociais se manifestem e se façam representar politicamente, inclusive – e
especialmente – buscando construir novos direitos e ampliar a cidadania
(que envolve o exercício de direitos civis, sociais e políticos).

As desigualdades e as situações de vulnerabilidade social podem


comprometer, e muito, a democracia. Afinal, para que um país seja
democrático, não é suficiente que o seu governo não seja autoritário; é
necessário que todos possam se fazer ouvir e ter seus direitos protegidos.
Assim, o grande problema a ser enfrentado pela globalização é o de
garantir que os direitos de cidadania de todos os habitantes do globo – e
de quaisquer países – sejam respeitados. Isso envolve combater a pobreza
no mundo, a violência no mundo, o racismo no mundo e a desigualdade
social existente no mundo.

145
Unidade II

Exercícios

Questão 1. (Enade 2008) A globalização é o processo de constituição de uma economia mundial,


da crescente integração dos mercados nacionais e do aprofundamento da divisão internacional do
trabalho. No que diz respeito a esse processo, assinale a opção incorreta.

A) A globalização de capitais, proporcionada pelas fusões transnacionais, gera gigantes econômicos.


B) A etapa atual da globalização fundamenta-se no aumento generalizado das barreiras mercadológicas.
C) Intensificam-se, nesse processo, as trocas comerciais e a organização dos países em blocos
econômicos.
D) O processo de globalização acentuou as diferenças entre países desenvolvidos e emergentes.
E) Os megablocos econômicos contribuem para ampliar a escala das atividades econômicas e facilitar
a centralização de capitais.

Resposta correta: alternativa B.

Análise da questão

Uma das características da globalização é justamente a diminuição e o enfraquecimento das barreiras


mercadológicas.

Questão 2. (Enade 2017) A imigração haitiana para o Brasil passou a ter grande repercussão na
imprensa a partir de 2010. Devido ao pior terremoto do país, muitos haitianos redescobriram o Brasil
como rota alternativa para migração. O país já havia sido uma alternativa para os haitianos desde 2004,
e isso se deve à reorientação da política externa nacional para alcançar liderança regional nos assuntos
humanitários. A descoberta e a preferência pelo Brasil também sofreram influência da presença do
exército brasileiro no Haiti, que intensificou a relação de proximidade entre brasileiros e haitianos.
Em meio a esse clima amistoso, os haitianos presumiram que seriam bem acolhidos em uma possível
migração ao país que passara a liderar a missão da ONU.

No entanto, os imigrantes haitianos têm sofrido ataques xenofóbicos por parte da população brasileira.
Recentemente, uma das grandes cidades brasileiras serviu como palco para uma marcha anti-imigração,
com demonstrações de um crescente discurso de ódio em relação a povos imigrantes marginalizados.

Observa-se, na maneira como esses discursos se conformam, que a reação de uma parcela dos
brasileiros aos imigrantes se dá em termos bem específicos: os que sofrem com a violência dos atos de
xenofobia, em geral, são negros e têm origem em países mais pobres.

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146
CIÊNCIAS SOCIAIS

A partir das informações do texto, conclui-se:

A) A crescente onda de xenofobia que vem se destacando no Brasil evidencia que o preconceito
e a rejeição por parte dos brasileiros em relação aos imigrantes haitianos são pautados pela
discriminação social e pelo racismo.

B) As reações xenófobas estão relacionadas ao fato de que os imigrantes são concorrentes diretos
para os postos de trabalho de maior prestígio na sociedade, aumentando a disputa por boas
vagas de emprego.

C) O nacionalismo exacerbado de classes sociais mais favorecidas, no Brasil, motiva a rejeição aos
imigrantes haitianos e a perseguição contra os brasileiros que pretendem morar fora do seu país
em busca de melhores condições de vida.

D) O processo de acolhimento dos imigrantes haitianos tem sido pautado por características
fortemente associadas ao povo brasileiro: a solidariedade e o respeito às diferenças.

E) O acolhimento promovido pelos brasileiros aos imigrantes oriundos de países do leste europeu
tende a ser semelhante ao oferecido aos imigrantes haitianos, pois no Brasil vigora a ideia de
democracia racial e do respeito às etnias.

Resposta correta: alternativa A.

Análise da questão

A xenofobia decorre da desconfiança ou do medo em relação a pessoas estranhas, ou que têm


origem em outros países e lugares. A xenofobia tem como origem o preconceito e a discriminação social,
mesmo que os imigrantes apenas trabalhem em postos de trabalho de menor prestígio.

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