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Escolástica Cristã

Autor: Prof. João Baptista de Almeida Júnior


Colaboradores: Prof. Renato Bulcão
Profa. Tânia Sandroni
Professor conteudista: João Baptista de Almeida Júnior

Em 1970, iniciei o curso de Física na Universidade de São Paulo (USP) e, em 1971, o de Filosofia nas Faculdades
Associadas do Ipiranga (FAI) em São Paulo, em plena ditadura militar. Concluí os dois cursos e comecei a dar aulas de
Física. A Filosofia havia sido banida do Ensino Médio. Completei o doutorado em Filosofia e História da Educação na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 1987. Lecionei na Pontifícia Universidade Católica de Campinas
(PUCCamp) em cursos de Filosofia, Comunicações e no mestrado em Educação.

Em 2000, ajudei a criar a Universidade do Vale do Sapucaí em Pouso Alegre/MG. Ministrei aulas nos cursos de
graduação de Jornalismo e História e nos mestrados de Bioética e Ciências da Linguagem. Trabalho na Universidade
Paulista (UNIP) e no Centro Universitário Salesiano de Campinas (Unisal) e tenho artigos e livros publicados.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

A447e Almeida Junior, João Baptista de.

Escolástica Cristã. / João Baptista de Almeida Junior. – São


Paulo: Editora Sol, 2017.

84 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXIII, n. 2-078/17, ISSN 1517-9230.

1. Escolástica cristã. 2. Fé e razão. 3. Teologia. I. Título.

CDU 2

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Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Aline Ricciardi
Elaine Pires
Juliana Mendes
Sumário
Escolástica Cristã
APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................8

Unidade I
1 A FILOSOFIA DA IDADE MÉDIA.................................................................................................................... 11
1.1 O helenismo e o cristianismo........................................................................................................... 13
1.1.1 A herança grega e a revelação bíblica............................................................................................. 15
1.1.2 O neoplatonismo...................................................................................................................................... 16
2 A PATRÍSTICA E OS PADRES DA IGREJA.................................................................................................. 17
2.1 Os Padres apologistas.......................................................................................................................... 18
2.2 Os luminares de Capadócia............................................................................................................... 20
3 SANTO AGOSTINHO: O HOMEM E O FILÓSOFO.................................................................................... 20
3.1 Vida conturbada.................................................................................................................................... 21
3.2 O projeto de superação: conversões.............................................................................................. 22
4 SANTO AGOSTINHO: O PERCURSO FILOSÓFICO................................................................................... 24
4.1 A metafísica agostiniana: a natureza de Deus.......................................................................... 25
4.2 O tempo, a criação e a origem do mal......................................................................................... 28
4.3 O dualismo corpo-alma...................................................................................................................... 30
4.4 O homem e A Cidade de Deus......................................................................................................... 32

Unidade II
5 A ESCOLÁSTICA NA IDADE MÉDIA............................................................................................................ 40
5.1 O projeto carolino................................................................................................................................. 43
5.1.1 A origem das universidades................................................................................................................. 45
5.1.2 O renascimento do aristotelismo...................................................................................................... 47
6 O DESEQUILÍBRIO ENTRE A FÉ E A RAZÃO: HERESIAS E MISTICISMO........................................ 48
6.1 Abelardo e o método de discussão................................................................................................ 52
6.2 Guilherme de Ockham e o final da Escolástica......................................................................... 55
7 A FILOSOFIA DE SANTO TOMÁS DE AQUINO......................................................................................... 58
7.1 A relação entre filosofia e teologia................................................................................................ 60
7.2 A conciliação entre a fé e a razão.................................................................................................. 60
7.3 A metafísica tomista............................................................................................................................ 61
7.4 Deus: ato puro e provas de existência.......................................................................................... 63
7.5 A alma imortal: o princípio de vida............................................................................................... 67
8 A QUESTÃO DOS UNIVERSAIS..................................................................................................................... 68
APRESENTAÇÃO

Este é um livro-texto sobre Filosofia medieval. Você irá conhecer os filósofos mais representativos do
período medieval e o conteúdo de suas reflexões. Mais importante que o desfile de autores, contudo, é
que você compreenda por que eles escreveram essas reflexões a partir do contexto da Idade Média. Isso
porque a história da Filosofia não é uma sequência progressiva de ideias, de modo que o que foi dito ou
escrito em uma época possa ser considerado ultrapassado em outra. O filosofar, em qualquer época, é
instigante e as questões são sempre recorrentes. Os efeitos do que se escreveu no passado refletem-se
nos pensamentos da atualidade.

Nesse sentido, podemos afirmar que as questões que oxigenaram o ambiente cultural no período
medieval têm desdobramentos consequentes até hoje. São questões que motivam novos questionamentos,
tomados na perspectiva filosófica da Idade Média e retomados segundo nossa ótica de terceiro milênio.

Os temas da Filosofia medieval, à primeira vista, podem parecer desinteressantes. Um olhar mais atento
mostrará que isso não é verdade. Os debates teológicos estão na pauta diária da mídia, o que demonstra
a necessidade de respostas urgentes. Por um lado, no âmbito sociocultural, a urgência é para entender
melhor as notícias de conflitos e intolerâncias entre as ideologias religiosas da contemporaneidade. Por
outro, em um sentido mais pessoal, para proporcionar valores, religiosos ou não, a fim de que tenhamos
condições de dar respostas às angústias que nos afligem no dia a dia.

Não é possível fugirmos dos questionamentos atuais que encontram paralelo nas questões
investigadas no período medieval. A não ser que nossa opção seja a de permanecer totalmente alheio às
realidades a nossa volta. Quem se inicia na tarefa de filosofar logo sai dessa alienação. Quem continua
a filosofar, com método, constrói aos poucos um senso crítico e uma atitude de indignação diante dos
inúmeros e inaceitáveis problemas do presente.

Por isso, convido-o a uma viagem de estudo da Filosofia medieval. Será produtivo revermos as
tomadas de posição dos filósofos medievais para inspirar nossos posicionamentos de hoje.

Nessa direção, ao término do estudo desta disciplina, você deverá ser capaz de situar as correntes
filosóficas, Patrística e Escolástica Cristã, no contexto político-cultural da Idade Média, e reconhecer
as influências das ideias gregas em cada corrente. Na primeira, vamos entender a presença das ideias
de Platão, via neoplatonismo, nas obras de Agostinho. Na segunda, perceberemos a introdução de
elementos das obras de Aristóteles, sem perder de vista a influência neoplatônica, na sistematização
de uma Filosofia de matriz cristã, feita por Tomás de Aquino.

Você deverá entender também que a questão-chave da Filosofia do Medievo – o período


medieval – tanto no início com a Patrística, quanto na segunda metade com a Escolástica, é a
tentativa de harmonização das duas esferas: a fé e a razão. O pensamento de Agostinho é mais
conservador e defende uma subordinação maior da razão em relação à fé. Agostinho acreditava
que a fé pudesse restaurar a condição decaída da razão humana. Muitos séculos mais tarde, Tomás
de Aquino defendeu certa autonomia da razão na obtenção de respostas, por força da inovação do
aristotelismo. Mas em nenhum momento Aquino negou a subordinação da razão à fé. A separação
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entre fé e razão ocorre com Guilherme de Ockham, no final da Escolástica, antecipando a razão
experimental do humanismo que se avizinhava.

INTRODUÇÃO

A Idade Média abrange o período da história, de cerca de mil anos, que vai, aproximadamente,
do século III ao século XIII da Era Cristã. A Patrística e a Escolástica Cristã, que compõem a Filosofia
Medieval, são correntes filosóficas situadas no contexto da Idade Média, entre a Filosofia Grega (século
VI a.C. ao século II d.C.) e o Renascimento (séculos XV e XVI d.C.).

Sobre essa periodização, é importante saber que as datas limítrofes, de início e término
de cada período histórico, são referenciais flexíveis. A datação pode variar de um a outro
historiador, em razão dos marcos de transição escolhidos. Os marcos podem ser, por exemplo,
a morte de um pensador ilustre ou um evento significativo, como uma guerra. A periodização
também pode variar em razão dos temas de especulação que surgem e predominam por um
ciclo, revelando tendências e novos modos de reflexão dos filósofos. Portanto, é interessante
reconhecer que esses marcos funcionam como critérios na nomeação de um novo período para
contextualizar a corrente filosófica que vai ser objeto de estudo. Busque identificar os fatos
históricos considerados mais significativos do início e do fim da Idade Média que servem de
marcos divisórios para o período.

Em termos de conteúdo, há consenso entre os autores de periodização quanto à ênfase em


objetos de investigação, isto é, quanto ao foco predominante da reflexão filosófica ao longo de
cada período.

No período da Antiguidade, que corresponde à Filosofia Clássica, a atenção dos filósofos gregos
estava centrada na natureza, a fim de explicar a organização do mundo a partir da identificação dos
primeiros elementos, dos arquétipos (arché). A visão de mundo nesse período caracteriza-se por ser
cosmocêntrica (cosmos, do grego, ordem).

Na Idade Média, com a Filosofia medieval, o enfoque deprecia os valores da natureza e se volta
para os valores transcendentais associados ao Deus Criador. A visão de mundo se distingue por ser
exclusivamente teocêntrica (theos, do grego, deus).

Por sua vez, a Filosofia moderna é antecedida pelo Renascimento, que foi um movimento
artístico‑cultural que retomou os temas greco-romanos e preparou o terreno para uma visão de mundo
alicerçada em valores mais humanos.

Dentre esses valores, a “razão” se destaca e passa a ser, ao mesmo tempo, instrumento e objeto
da reflexão filosófica. A atenção dos filósofos se volta para o próprio homem no exercício dessa
reflexão. A Filosofia moderna caracteriza-se por ser essencialmente antropocêntrica (anthropo, do
grego, homem). Na Filosofia contemporânea, prevalece como fundamento o enfoque na existência
humana, tomada em novas dimensões: social, econômica, política, psicológica, religiosa etc.

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Portanto, ter uma visão panorâmica das diversas correntes na história da Filosofia é importante,
porque permite contextualizar, na linha do tempo, os focos temáticos e as tendências de cada
período e a forma como uma corrente influencia às sequentes em termos de conteúdo e de
metodologias de reflexão.

Tenha sempre à mão o quadro sinótico a seguir, assim você poderá contextualizar as grandes
correntes filosóficas na História e identificar o foco temático predominante de cada período.

Quadro 1 – Sinótico da periodização da história da Filosofia

Etapa histórica Corrente filosófica Período em séculos Foco temático


Idade Antiga ou Clássica ou Grega VI a.C. a II d.C. Cosmocêntrico
Antiguidade
Idade Média ou Medievo Medieval III d.C. a XIV d.C. Teocêntrico
Renascimento Humanista XV e XVI d.C. Antropocêntrico
Idade Moderna Moderna XVII e XVIII Antropocêntrico
Idade Contemporânea Contemporânea XIX até nossos dias Múltiplos enfoques

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ESCOLÁSTICA CRISTÃ

Unidade I
1 A FILOSOFIA DA IDADE MÉDIA

Figura 1

A Filosofia medieval abrange as filosofias desenvolvidas na Idade Média ou no Medievo, no longo


período que compreende o helenismo, expressão final da Filosofia grega nos séculos IV e V da Era Cristã,
até o início do Renascimento, nos séculos XV e XVI, que antecede a Filosofia moderna.

O historiador escocês William Robertson (1721-1793) rotulou a Idade Média com a expressão,
não muito simpática, Dark Ages, “séculos obscuros”. Com isso ele quis caracterizar um tempo de
obscurantismo e pobreza intelectual, de ignorâncias e superstições, marcado pelo atraso econômico
do feudalismo. De modo contrário, como será demonstrado neste livro-texto, um olhar mais atento
sobre a Idade Média mostra que as filosofias do período medieval contribuíram com maturidade para
a especulação dos princípios da metafísica e para a sistematização dos métodos de raciocínio lógico.
As produções originais e fecundas de filósofos da estatura intelectual de Santo Agostinho e Santo
Tomás de Aquino, que vamos estudar na sequência, comprovam que o rótulo de “Idade das Trevas”, que
Robertson pretendeu imprimir ao período, está equivocado.

O período do Medievo, a rigor, contempla duas correntes filosóficas: a Patrística e a Escolástica.


A primeira desenvolveu-se nos primeiros séculos da Idade Média (século III a.C.) pelos pensadores da
Igreja Católica, os padres (patris, do latim, pais ou padres); derivando daí a expressão “Patrística” e a
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Unidade I

denominação “Padres da Igreja” para caracterizar os filósofos da época. A corrente escolástica está
concentrada na segunda metade final da Idade Média (século VI a XIV) e corresponde ao ensino da
Filosofia ministrado nos conventos, nos mosteiros e nas escolas episcopais (scholas, do latim; escola,
aula); de onde saiu o título Escolástica, que indica mais um método de estudar e ensinar Filosofia do
que propriamente uma doutrina.

A Escolástica não é um nome exclusivo da corrente dos filósofos cristãos. Há outras filosofias que
são qualificadas de Escolástica, como a bizantina, a muçulmana (árabe ou sarracena) e a hebraica
(ou judaica). Contudo, a Escolástica Cristã, fundamentada na fé católica, representou um pequeno
renascimento dentro do período medieval por ser considerada uma renovação do pensamento filosófico
com a descoberta das obras completas de Aristóteles. Houve um renascimento da Filosofia em novas
bases, com um tipo de saber mais voltado para a realidade natural, característica da Filosofia grega. O
contato com as novas obras de Aristóteles estimulava, nos filósofos, preocupações empíricas, em certo
sentido, mais adequadas do que as de matriz platônica. Trata-se de uma nova aurora do helenismo a
assinalar as tendências científicas da mentalidade que se desenvolverá nos séculos do Renascimento
para consolidar o paradigma racional da Filosofia moderna.

A rigor, como alerta o filósofo e historiador Julián Marías (2004), o título Escolástica Cristã não é
totalmente apropriado para nomear essa escola filosófica. Como veremos, a escolástica é uma filosofia e
o cristianismo é uma religião, duas manifestações culturais distintas em objetos, métodos de abordagem
e finalidades. A nomeação “cristã” não deve definir uma qualificação da Filosofia. Todavia, é possível
admitir que a Escolástica seja uma filosofia exercida por filósofos de índole cristã, determinada pelo
contexto impregnado de ideias cristãs no qual esses pensadores viveram.

O cristianismo teve um papel decisivo na história da metafísica porque modificou de modo


essencial os pressupostos platônicos a partir dos quais se movia o homem grego e, portanto, o contexto
sociopolítico do qual partia para filosofar. Nesse sentido, “é o homem cristão que é outro, e por isso é
outra sua filosofia, distinta da grega” (MARÍAS, 2004, p. 115).

As correntes Patrística e Escolástica Cristã não se diferenciam tanto nas formas de abordagem
reflexiva dos problemas que estudam. Ambas vão buscar fundamentos nas fontes metafísicas do
pensamento grego: inicialmente no platonismo, com base no sistema neoplatônico de Plotino; e, mais
tarde, no sistema aristotélico, em contato com as traduções do filósofo estagirita, feitas pelos filósofos
árabes Avicena e Averróis. De modo geral, tanto a Patrística quanto a Escolástica constroem exegeses
sobre modelos lógicos dos filósofos gregos para auxiliar na explicação e interpretação das Escrituras. As
duas produções estão a serviço da Teologia, que, como visto anteriormente, é a fonte temática e o foco
das investigações dos filósofos do período.

Observação

Estagirita é o cognome de Aristóteles, nascido na cidade grega de


Estagira em 384 a.C., que foi o primeiro sistematizador do pensamento
lógico e morreu em 322 a.C., aos 62 anos.
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ESCOLÁSTICA CRISTÃ

Portanto, da mesma forma que a Patrística é a filosofia especulativa desenvolvida pelos Padres da
Igreja Católica nos primeiros séculos do cristianismo, a Escolástica é a filosofia da fase final do período
medieval, quando a Igreja começa a perder sua força ideológica e intelectual ante o despertar de uma
nova modalidade de investigação baseada no conhecimento empírico.

Saiba mais

Decameron, filme de Pasolini, retrata contos de Boccaccio sobre a


situação dos aldeões da Idade Média: miséria, falta de ética, espertezas em
um mundo de crenças, superstições e fantasias:

DECAMERON. Dir. Pier Paolo Pasolini. Produzioni Europee Associati


(PEA), 1971. 112 minutos.

1.1 O helenismo e o cristianismo

O helenismo ou pensamento helênico designa o conjunto de ideias culturais e princípios


filosóficos da civilização grega que se expandiu fora da Grécia. O helenismo abrangeu e influenciou
todo o império conquistado pelos gregos – a Magna Grécia – e, mais tarde, as outras civilizações
com as quais as ideias gregas entravam em contato. As influências do helenismo vão da conquista
de Alexandre, no século IV a.C., até o final do Império Romano, com a queda de Constantinopla e
o domínio dos turcos, em 1453.

O cristianismo, por sua vez, é a religião derivada da tradição judaica e dos ensinamentos de Jesus
Cristo, compilados no Novo Testamento ou Evangelho (do grego, eu, que significa bom, e aggélion, que
quer dizer nova, notícia). Desde os primórdios do cristianismo, os pregadores levaram as mensagens
evangélicas para o mundo grego. Paulo, o apóstolo, funcionário romano e judeu helenizado, tendo
sido convertido ao cristianismo, passou a difundir a religião cristã em viagens pelo Império Romano. O
apóstolo foi quem mais atuou como interlocutor da Igreja de Pedro com as autoridades representantes
do povo na Grécia e na Itália.

Após a morte de Paulo, as viagens dos pregadores se intensificaram e os sucessores dos apóstolos
espalharam a religião cristã inicialmente pelo Oriente Médio e, depois, pelos territórios helenizados,
atingindo seu auge de aceitação com o Édito de Milão no ano 313 da Era Cristã. À medida que o cristianismo
se espalhava pelo mundo medieval e aumentava o número de adeptos a cada dia, o pensamento helênico
de índole pagã também crescia em resistência diante da nova religião.

As condições dos povos do Império Romano eram de grande miséria econômica e cultural. Os servos,
que trabalhavam nos feudos e deviam aos senhores feudais várias obrigações pelo uso da terra, tinham
condições um pouco melhores de sobrevivência por estarem vinculados ao senhorio da propriedade. Os
outros habitantes, que não conseguiam serviços nos feudos, vagavam como nômades pelas terras, nas
quais não podiam habitar, em busca de algum alimento e teto para sobrevivência diária.
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Unidade I

Em contraposição a essa situação de pobreza geral, as mensagens cristãs começaram a ser mais
aceitas pelas pessoas. Do ponto de vista prático e econômico, as mensagens correspondiam aos
anseios de esperança de uma legião de desprotegidos e desamparados pelas normas feudais do
Império. Do ponto de vista social, participar de uma comunidade fraterna na qual todos se ajudavam
mutuamente tornava-se uma ideia atraente. Entre os admiradores, era comum ouvir expressões de
encantamento tais como: “vejam como eles se amam” e “compartilhavam tudo em comum”, que o
apóstolo Paulo registrou no livro Atos dos Apóstolos (2:44), do Novo Testamento (BÍBLIA SAGRADA,
1990). O cristianismo assinalava às pessoas um caráter universal de pertencimento, diferenciando-se
das modalidades de crenças e idolatrias em voga, muitas vezes, excludentes, porque restritas a grupos
herméticos ou de difícil acesso em regiões específicas. Por fim, do ponto de vista ético, os valores
morais do paganismo, ainda que sob a forma de virtudes estoicas, não tinham conseguido entravar a
corrupção da sociedade permissiva da época.

Helenismo também é a denominação geral que se dá à Filosofia da época alexandrina, isto é, à cultura
helênica que resultou da fusão do pensamento tradicional grego com elementos orientais, consequência
das conquistas do imperador Alexandre Magno. O helenismo seguiu-se à morte de Alexandre (323 a.C.)
e se prolongou até o começo da Era Cristã. Discípulo de Aristóteles, Alexandre conquistou grande parte
dos territórios europeus e do Oriente conhecido e uniformizou a cultura de seus domínios sob o signo
das ideias gregas.

De Alexandria no Egito (323 a.C.), cidade grega onde viveu o imperador Alexandre até o fim da
vida, à cidade de Constantinopla (337 d.C.), criada como capital do Império Romano por Constantino,
transcorreram cerca de seis séculos. Esse período correspondeu ao final do domínio de Alexandre Magno
e à instauração do Império Romano, que coincide com o início da Era Cristã.

O imperador Constantino I, que governou o Império Romano entre 306 e 337 d.C., ano de sua
morte, teve uma importância estratégica no contexto de integração do helenismo com o cristianismo.
Transferiu a sede do Império para a cidade grega de Bizâncio, às margens do rio Bósforo, que passou a
se chamar Constantinopla em sua homenagem. No ano de 313, publicou o Édito de Milão, uma ordem
imperial que, anunciada publicamente, garantia a todos os habitantes do Império a liberdade de culto
de qualquer religião.

A liberação religiosa permitiu que o cristianismo fosse divulgado e as mensagens dos cristãos
passassem a ter mais atenção das pessoas. As mensagens evangélicas, de início rejeitadas pela maioria
pagã e até mesmo motivo de zombaria, quando os cristãos proclamavam sua fé na ressurreição de
Cristo, começaram a ganhar a adesão dos pagãos.

Por outro lado, os padres pregadores, formados nos mosteiros e abadias, onde era ensinada a
Filosofia, perceberam a necessidade de aperfeiçoar o raciocínio lógico para esgrimirem argumentos não
contraditórios e convincentes nas concorridas discussões públicas.

O projeto intelectual dos filósofos cristãos não era o de construção de teorias, mas o de interpretação
das verdades religiosas para a fundamentação dos dogmas de doutrina. Ocorre que a presença de
uma maioria de adeptos do paganismo e os casos de heresia que pontuavam nas polêmicas públicas
14
ESCOLÁSTICA CRISTÃ

pressionavam os filósofos na obrigação de responder aos pensadores pagãos. Daí a necessidade de uma
preparação filosófica mais sólida em lógica e metafísica, de modo a encontrarem argumentos mais
eficientes para revidarem as provocações heréticas.

O termo “pagão”, inicialmente, não tinha conotação religiosa. Era uma denominação de caráter
geográfico que designava “aquele que habita o campo” (paganus, do latim, aldeão). Sendo um indivíduo
ligado ao contexto rural, e não à cidade, o pagão é marcado pelo campo, o que revela, sobretudo,
seu respeito à natureza (HELFERICH, 2006). Ele tem uma espécie de veneração aos elementos naturais
(terra, água, animais, plantas...), ao ritmo das estações e aos ciclos de nascimento e morte que presencia
periodicamente na natureza. Veneração que resultava em festas de homenagem e em ritos de passagem,
associados ao início e fim do cultivo da terra, da chegada das chuvas, da semeadura e da colheita, dos
ciclos de vida dos animais e das plantas. Diante desse cenário repetitivo de que era dependente, os
pagãos (aldeões) praticavam o culto aos elementos naturais como forma de reconhecimento e garantia
de manutenção do ciclo da vida.

Apesar do ambiente pagão dos territórios helenizados, a doutrina cristã se espalhava rapidamente
pelo Império Romano, porque suas mensagens de fraternidade portavam um apelo direto para a maioria
do povo abandonado à própria sorte, um povo que lutava pela sobrevivência em um tempo de muitas
misérias e hostilidades.

1.1.1 A herança grega e a revelação bíblica

Figura 2

O cristianismo, enquanto projeto religioso fundamentado na revelação das Sagradas


Escrituras, continuou enfrentando a reação dos pensadores gregos, principalmente dos adeptos
das correntes filosóficas tardias do epicurismo e do estoicismo. Rememorando: o indivíduo
epicurista procurava o prazer, não imediato, mas duradouro, que lhe resultasse em uma espécie
de ascetismo revertido em felicidade; por sua vez, o indivíduo estoico assumia uma atitude
quase heroica de resistir à dor, negar o mal e aceitar a virtude como a única felicidade. As duas
doutrinas, firmadas em bases estritamente morais, apoiavam-se em um sistema prescritivo de
comportamentos éticos individuais.

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Unidade I

Após o Édito de Milão (313 d.C.), o imperador Constantino I converte-se às verdades evangélicas e
decreta que essas devem ser comunicadas a todos os seus súditos. O cristianismo passa a ser a religião
oficial do Império Romano. Mesmo nesse ambiente favorável, os cristãos se debatiam com a filosofia pagã
de herança grega, principalmente com as ideias do epicurismo que, em muitos aspectos, contrariavam
os princípios de revelação bíblica. Enquanto os epicuristas valorizavam os prazeres como caminho para
a felicidade individual, os cristãos propunham uma vida mais ascética na ordem física e moral, junto às
comunidades fraternas.

1.1.2 O neoplatonismo

Em meados do século III da Era Cristã, surge um poderoso movimento, o neoplatonismo, que ganha
corpo em todo o Império Romano. Caracteriza-se por seu ecletismo e por sua forte tendência religiosa e
pragmática. Seu iniciador, na capital Alexandria, foi Amônio Sacas (245 d.C.), que certamente conheceu
de perto o cristianismo.

Amônio, que inicialmente teve uma formação cristã, depois que conheceu a Filosofia, mudou para
o paganismo. Não deixou nenhuma obra escrita, nem pertenceu ao círculo de filósofos notáveis de seu
tempo. Viveu isolado, afastado das reuniões públicas, dando aulas e cuidando exclusivamente da Filosofia.
Contudo, há pelo menos dois grandes motivos para nos lembrarmos de seu nome e referenciá-lo no
contexto do helenismo. Amônio Sacas é considerado o iniciador da corrente denominada neoplatonismo
e foi o tutor direto de Plotino.

Foi por intermédio do discípulo Plotino que ficamos conhecendo o pensamento de seu mestre em
profundidade e a influência recebida de Platão. Muitas das ideias plotinianas provêm de Amônio, dentre
as quais a visão, hoje considerada bastante adequada, de que a Filosofia deve ser entendida como
exercício, não apenas da inteligência (dimensão lógica), mas também de vida e de ascese espiritual
(dimensão moral).

O cenário político do helenismo possibilitou a convivência e aproximação entre a tradição judaica


e a Filosofia grega. Nos dois primeiros séculos da Idade Média, enquanto o cristianismo aos poucos
distinguia-se do judaísmo, os pensadores cristãos pendiam para as ideias de Platão. Os filósofos cristãos,
leitores de Plotino, encontravam no discípulo tardio do mestre da Academia as ideias que convergiam
com as verdades reveladas pelas Escrituras.

Plotino (205-270 d.C.) foi um pensador completamente helenizado, educou-se em Alexandria e, por volta
de 20 anos, por indicação de um amigo, matriculou-se na escola de Amônio Sacas e acompanhou suas aulas
por onze anos, atento ao seu método de investigação e ensinamentos. Depois de viagens de estudos à Síria e à
Pérsia, Plotino reside definitivamente em Roma, onde funda uma escola e escreve uma série de seis grupos de
nove tratados filosóficos. A obra, conhecida por Enéadas (ennéa, do grego, nove), faz uma compilação do que
há de essencial na filosofia helenística, principalmente uma síntese renovada do platonismo.

A teoria do emanacionismo de Plotino coaduna-se estreitamente com a versão da cosmogênese, a


origem do cosmos, revelada na bíblia judaica. Segundo a teoria plotiniana, Deus abrange tudo o que
existe e se manifesta, por emanação, em graus de ontologicidade decrescente: Uno, Nous, Alma e matéria.
16
ESCOLÁSTICA CRISTÃ

Ou seja, tudo o que existe, espiritual e materialmente, procede, emana em estágios decorrentes, de um
Ser Supremo. O Uno, Deus ou o Bem, é a origem de todos os seres e transcende todas as essências e
conhecimentos. O Nous, o Espírito, é a primeira emanação da inteligibilidade reflexiva do Uno, que tem
conhecimento de si e, em si, conhecimento de todas as coisas. É no Nous que se encontram as Ideias, os
arquétipos inteligíveis do universo. A Alma, como segunda emanação, provém do Nous, do qual intui as
Ideias que se convertem em modelos. Através dos modelos, a Alma plasma e dá vida à matéria, último
estágio degradante da emanação. Assim, o universo material deriva do Uno; matéria que é potencialidade,
mas também origem de todo mal físico, moral e metafísico (BASTOS, 1981).

Podemos ainda identificar similaridades entre a teoria emanacionista de Plotino e a concepção da


Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo – da doutrina cristã. É possível ainda percebermos aproximações
da teoria com interpretações da criação do mundo conforme descrita no Gênesis. A influência exercida
por Plotino no cristianismo é enorme. Suas ideias vão repercutir em Santo Agostinho, na fase inicial da
Idade Média, e até em Santo Tomás de Aquino, no período da Escolástica.

Um continuador da corrente plotiniana, que merece ser lembrado pela relevância de sua investigação
e pelo prestígio de sua obra na Idade Média, é Porfírio (232-304 d.C.). O filósofo Porfírio nasceu na Síria
e frequentou a escola de filosofia de Alexandria, onde compilou as lições de Plotino em um breve
tratado intitulado Sentenças sobre os Inteligíveis e Vida de Plotino. Mas a obra seminal que justifica sua
relevância é Isagoge. Conhecida também por Introdução às categorias de Aristóteles, a obra analisa as
cinco vozes – gênero e espécie, diferença, próprio e acidente – no âmbito da discussão do “problema dos
universais” que será estudado adiante.

2 A PATRÍSTICA E OS PADRES DA IGREJA

Figura 3

A Patrística é a corrente filosófica que representa os pensamentos dos pais (patris, em latim) do
cristianismo, mais conhecidos por Padres da Igreja. São os mestres da doutrina cristã, construtores
da Teologia de vertente católica, que viveram no período religioso do helenismo, na época do império
romano. Autores, como Padovani e Castagnola (1993), tomam a figura de Agostinho como marco divisório
17
Unidade I

do período da Patrística e dividem-na em três períodos denominados pré-agostiniano, agostiniano e


pós-agostiniano. No primeiro período, inserem-se os padres apologistas e os alexandrinos; no segundo,
destaca-se Agostinho como o grande sistematizador da Patrística; e, no último, comparecem autores
menores, cujos trabalhos coincidem com a decadência e a cisão do Império Romano.

Os Padres da Igreja não dispunham de nenhum arcabouço filosófico para sistematizar as doutrinas
do Antigo e do Novo Testamento. Careciam de uma ferramenta especulativa para construir uma filosofia
em bases teológicas. Não demoraram muito para recorrer às próprias ideias filosóficas dos gregos, em
particular, à tradição neoplatônica, via Plotino, como já demonstrado, e a alguns comentaristas avulsos
de Aristóteles, para tentar uma espécie de conciliação.

2.1 Os Padres apologistas

Entre os Padres da Igreja que merecem destaque estão os apologistas ou apologetas,


encarregados de dirigirem súplicas aos imperadores reivindicando o direito de praticar livremente
ritos religiosos nas cidades. A apologia era um tipo de texto ou discurso em defesa dos princípios
cristãos. Os apologistas dirigiam-se também às camadas mais populares para defender a fé cristã
contra a falta de fé dos pagãos.

Com o objetivo de convencer os pagãos, muitas vezes, os apologistas buscavam adaptar o discurso
ao público receptor. Produziam argumentos simples no propósito de comparar as qualidades sublimes
do Deus cristão às características equivocadas dos deuses do paganismo, características associadas
aos elementos da natureza, como a terra e a água. Questionavam os interlocutores pagãos: como
podem tais elementos naturais serem considerados divinos se a terra, por exemplo, serve até mesmo
de recipiente de cadáveres, e a água é usada para limpar a sujeira dos homens?

Além da forma apologética de discurso, os Padres também se servem da alegoria como método de
interpretação dos textos bíblicos. Segundo Helferich (2006), a exegese alegórica das Escrituras era um
método grego comum que permaneceu inquestionável durante toda a Idade Média. Quem empregava
a alegoria buscava no teor do texto um segundo sentido oculto. “O texto literal torna-se para ele
(apologista) sinal de uma natureza escondida, que se revela mediante seu procedimento alegórico”
(HELFERICH, 2006, p. 75).

Com o discurso alegórico, abre-se um campo perigoso da exegese, propício ao surgimento de


heresias, conforme veremos. O que pode parecer à primeira vista uma fraqueza discursiva, na verdade,
fundamentava-se na autoridade de quem emitia o discurso. O valor e a autenticidade da alegoria
dependiam do carisma do padre pregador ou do filósofo emissor.

Outro fator que legitimava a eficiência do discurso (e do apologista) era a citação da fonte, isto é,
do texto de origem, do qual o pregador extraíra o trecho para a interpretação e defesa apologética.
Quanto mais antigo o texto de referência, mais importância a assembleia dava ao reconhecer o valor da
tradição. Para isso, o pregador fazia a nomeação do texto‑fonte logo no início do discurso, de modo a
garantir o status de autoridade que lhe serviria de base para proferir a mensagem cristã e conquistar a
fé dos ouvintes por meio da apologia.
18
ESCOLÁSTICA CRISTÃ

Nesse contexto tem grande significado para a Idade Média cristã a tradução em língua latina
das Escrituras hebraicas. No sentido de valorizar a tradição hebraica, como vimos, era necessária a
produção de uma versão canônica integral da Bíblia católica, a ser reconhecida pelas instituições, e
que servisse de base para o estudo filosófico dos Padres da Igreja e para suas pregações públicas. O
apologista Jerônimo (345-420) realizou essa obra. Jerônimo, padre da igreja católica e doutor em
Teologia, não é considerado um filósofo no sentido literal de pensador e sistematizador de ideias.
Contudo, é importante referenciá-lo porque foi o responsável pela versão da Bíblia, conhecida como
Vulgata (vulgaris, do latim, universal), na tradução do grego para o latim. A versão foi tão competente
que se impôs às outras versões em circulação na época, consideradas fragmentadas e com lacunas,
sendo referência ainda hoje para estudos de exegese.

Cabe aqui um alerta em nosso estudo. É preciso ter cautela com a presentificação de fatos que
ocorreram no passado. Trazer um fato antigo para o presente e aplicar em sua análise uma ótica da
atualidade pode gerar uma distorção cultural. O deslocamento temporal pode induzir a uma falsa
atualização. Corre-se o risco de exagerar nos traços culturais e de se chegar mesmo a uma imagem
completamente diferente do ocorrido. Por isso, deve-se ter em mente no estudo das ideias dos filósofos
antigos o contexto sociopolítico-cultural em que viveram. No presente estudo, não esquecer a presença
marcante da Igreja Católica e o consequente contexto de circulação de ideias religiosas que se misturavam
com as ideias dos pagãos e de outros grupos, resultando uma mistura de crenças bastante peculiar, uma
espécie de hibridização religiosa.

No grupo dos padres apologistas, temos também Justino, filósofo judeu nascido em Naplusa
(Jordânia) e morto em Roma, como mártir, aproximadamente em 165 d.C. Não se conhece muito de sua
obra, mas teve importância por ser considerado o primeiro filósofo cristão autor de duas Apologias da
Religião Cristã, dirigidas aos imperadores romanos Adriano e Marco Aurélio.

Outro apologista que se destaca é o filósofo e filólogo Clemente de Alexandria (150-215 d.C.). De
acordo com seu topônimo (nome de lugar), insere-se no contexto cultural helênico em que nasceu e
viveu toda sua vida: a cidade de Alexandria. Ali, na famosa biblioteca de Alexandria, pode-se ter acesso
a inúmeras obras, mais tarde desaparecidas, das quais legou à posteridade uma grande quantidade
de referências bibliográficas que até hoje contribuem com os pesquisadores na resolução de lacunas
exegéticas. Clemente defendia a função pedagógica da Filosofia como preparação do entendimento
para interpretar as verdades reveladas. No campo linguístico, pela necessidade de traduções do grego
para o latim das obras às quais tinha acesso, multiplicou termos filosóficos gregos para exprimir
conceitos cristãos, como “gnose” (gnôsis, do grego, ciência superior) e “gnóstico” (gnostikós, do grego,
conhecedor iluminado).

Mais um filósofo significativo da Patrística é Orígenes (185-254), discípulo e compatriota de Clemente,


que dispõe igualmente de vasta cultura grega e recursos filológicos que aplica ao estudo das Escrituras.
Assumiu a direção do Didaskaleion, escola de catequese na qual se estudava a filosofia grega para
auxiliar na interpretação da doutrina cristã. Trabalhou na elaboração de uma obra sobrepondo conceitos
do platonismo ao cristianismo sem muita fecundidade. Entre as centenas de escritos exegéticos e
comentários das Escrituras de menor importância, destaca-se a obra Sobre os Princípios, uma verdadeira
suma teológica que faz uma síntese doutrinal da Igreja cristã da época.
19
Unidade I

Mas nem tudo era unanimidade entre os Pais da Igreja. Ao lado daqueles que defendiam a
proximidade do cristianismo ao helenismo e o uso de recursos metodológicos do último para interpretar
os dogmas católicos, havia os que repudiavam os métodos e discussões da Filosofia grega por ser pagã
e impermeável aos princípios cristãos. Neste grupo de opositores destacam-se os teólogos polemistas:
Taciano (120-173), Tertuliano (155-222) e Lactâncio (240-320).

2.2 Os luminares de Capadócia

No século IV, os filósofos irmãos, Basílio e Gregório de Nissa, mais Gregório Nazianzeno são denominados
os “luminares de Capadócia”. O termo Capadócia era o nome que se dava à antiga região da Ásia Menor,
hoje Armênia, onde ficavam as cidades de Nissa e Nazianza. Daí o nome do filósofo Gregório receber o
topônimo de nazianzeno, ou seja, nascido em Nazianza. O termo “luminares” (de luminar, ilustre, sábio)
funciona como título de honra, atribuído aos filósofos por serem reconhecidos como competentes pela
sólida formação em Filosofia clássica, cursada na tradicional escola de Atenas. Os “luminares da Capadócia”,
na qualidade de bispos consagrados, participaram do II Concílio Ecumênico de Constantinopla, em 381
d.C., e foram os responsáveis pela sistematização da Teologia, a partir da lógica aristotélica, enquanto
instrumento metodológico para a defesa dos dogmas contra as heresias da época.

Lembrete

A Patrística representa o pensamento filosófico dos Padres da Igreja,


dos séculos II ao VIII, responsáveis por um modo de filosofar, a partir da fé,
na elaboração das mensagens bíblicas.

3 SANTO AGOSTINHO: O HOMEM E O FILÓSOFO

Figura 4

O estudo da Filosofia de Santo Agostinho exige o conhecimento simultâneo da vida do homem


Aurélio Agostinho. Não é possível compreender suas reflexões deslocadas dos acontecimentos de
sua vida. Inicialmente, vale ressaltar que não se trata de uma “filosofia de monastério”, como se
20
ESCOLÁSTICA CRISTÃ

alude à filosofia daqueles que se recolhem em clausura para orar, meditar e escrever sobre temas
teológicos, a exemplo de Santo Tomás de Aquino. Ao contrário, no caso de Agostinho, todo o seu
pensamento parte de uma existência profundamente humana e intensamente vivida. Ele não perde
tempo com sistematizações distantes da realidade; constrói sua Filosofia confrontando sua forma
de pensar com todo o contexto em que vive.

Nessa perspectiva, para uma compreensão melhor de sua filosofia, vamos nos basear em sua
obra autobiográfica Confissões, na qual o filósofo se expõe inteiramente ante Deus e os homens. O
título Confissões não corresponde exatamente ao significado religioso atual de “narrar os pecados a
um confessor”. Agostinho emprega o termo em seu sentido bíblico. Confessar é reconhecer a própria
fraqueza e miséria diante de Deus, que é seu interlocutor. Na forma de diálogo, ele proclama o perdão
(misericórdia) e a glória de Deus. É, portanto, uma obra de humildade e de louvor ao Criador, em que sua
filosofia e sua vida aparecem intimamente interligadas.

3.1 Vida conturbada

Aurélio Agostinho nasceu em Tagasta na região da Numídia, província romana ao norte da África
(hoje Argélia), em 13 de novembro de 354 d.C. Viveu toda a sua vida no contexto de uma civilização
helenizada, em consequência da infiltração das ideias gregas no Império Romano. Viveu no tempo
de decadência do Império, fim de uma civilização, em que o povo oprimido, ferido em seu orgulho,
procurava felicidade nas mínimas situações, o mesmo fazendo Agostinho.

Ainda em Tagasta faz um curso elementar e, depois, com 16 anos, vai para Cartago, onde planeja
aperfeiçoar‑se nos estudos. Encaminha todos os seus esforços para a carreira de retórica, isto é, orador
e professor de oratória, competências que pretendia exercer profissionalmente. Leciona em Cartago e
Roma, tendo até mesmo discípulos. Nessa época, conhece uma mulher, por quem se apaixona, e tem
um filho: Adeodato.

Figura 5 – Santo Agostinho, por Simone Martini, atualmente no Museu Fitzwilliam, em Cambridge

21
Unidade I

Em termos de religião, o jovem Agostinho não teve uma formação sólida, em família, que o permitisse
fazer uma escolha legítima. Na juventude, não foi catequizado, nem batizado, vivendo mesmo em um
ambiente de conflito familiar, uma vez que sua mãe era católica e seu pai, materialista. Sua mãe Mônica,
piedosa e de grandes virtudes, foi mais tarde canonizada pela Igreja Católica por seu espírito de bondade.
Seu pai Patrício, ao contrário, era um magistrado pagão, violento e instável. Embora se sentisse muito
perturbado com a atuação de seu pai, foi ele quem mais o incentivou a ingressar na carreira de retórico,
como forma de se sustentar economicamente.

Durante a mocidade, andou na companhia de jovens pouco recomendáveis, formando juntamente


com eles um grupo pervertido à procura apenas de prazeres com os quais, absolutamente, não se
satisfazia. Aos poucos, entre excessos e quedas, desafiando seus próprios limites e inteligência, mas sem
parar de procurar a verdade, vai se aplumando na vida enquanto pai, filósofo, cidadão e homem santo.

3.2 O projeto de superação: conversões

Dois episódios existenciais contribuíram nesse processo de recuperação. Agostinho passa por duas
situações de superação em sua vida, duas conversões, como escreve nas Confissões. A primeira ocorre
na passagem de uma vida completamente libertina para uma vida mais responsável, quando ingressa a
fundo no campo filosófico. A segunda superação ocorre quando se interessa pelas homílias de um bispo
católico, amigo de sua mãe Mônica, e começa a participar de um grupo cristão em Milão.

Referindo-se ao fato de homens que não aceitam a verdade real, por amor por aquilo em que creem,
incluindo a si mesmo, Agostinho escreve em Confissões: “[...] os homens detestam a verdade por amor
do que tomam pela verdade” (1973, p. 59). Ou seja, os homens sentem necessidade de acreditar somente
naquilo que creem, somente será verdadeiro aquilo que para eles é verdade. E acrescenta: “tão grande é
a cegueira dos homens que até de serem cegos se louvam” (1973, p. 59).

Mesmo levando uma vida moral desregrada, Agostinho manteve uma integridade intelectual e
nunca parou de procurar o que pensava ser a verdade. Não teve pressa para encontrar o que entendia
ser sua própria luz, que buscava nas experiências do mundo, no diálogo com pessoas diferentes e nas
leituras. Soube utilizar essa demora como ocasião para ampliar seu conhecimento. Nas Confissões, conta
que roubava não pelo fruto do roubo e sim pela experiência da ação em si. Declara que cometia o erro
tão profundamente como quando se entregou mais tarde à vida de santidade. Eram assim os dias do
jovem africano até a sua primeira prova de superação.

Em um primeiro momento, o que motivou sua vocação filosófica foi o impacto que recebeu com
o nascimento do seu filho Adeodato. O fato arranca-o da indiferença para a responsabilidade. Nesse
mesmo tempo, fazia a leitura de Hortensius, uma obra do orador romano Cícero, que exaltava a prática
da Filosofia como método para se atingir a verdade. Os dois fatos, o filho e o livro, despertam-no da
alienação e deixam-no mais confiante na continuidade de sua busca.

Em seguida, o jovem Agostinho ingressa na seita dos maniqueus. Criada por Manés (274 d.C.), a
corrente do maniqueísmo era uma doutrina eclética, baseada nas teorias de Pitágoras e Zoroastro,
que explicava a presença do bem e do mal no mundo associados a dois princípios: um, essencialmente
22
ESCOLÁSTICA CRISTÃ

bom, que provém de Deus e da luz; e outro, essencialmente mau, que deriva do demônio e das trevas.
Agostinho julga ter alcançado, nesse dualismo simples, a verdadeira felicidade, acredita que vai conseguir
terminar com suas angústias e abraça a verdade provisória dos maniqueus.

Frequenta o maniqueísmo durante nove anos, enquanto aguarda a chegada de Fausto, figura e mentor
importante da seita, com quem pretende dissipar algumas dúvidas em relação à doutrina maniqueísta.
Com a chegada de Fausto, percebe que tudo não passava de uma mentira e que suas ideias eram
completamente diversas das teorias difundidas na seita. Agostinho então exclama em tom de desabafo
nas Confissões (1973), referindo-se aos maniqueus: ”[...] diziam Verdade! Verdade! Incessantemente,
falavam-me da Verdade, que nunca existiu neles” (1973, p. 61).

Com a decepção, volta a sentir a angústia a lhe torturar o espírito e aquele sentido de procura
vazia torna a lhe invadir a alma. Passa então a descrer de tudo, até de si mesmo. Viaja para Roma,
juntamente com sua mãe, a mulher e o filho. Lá retorna à vida de prazeres, caindo novamente no estado
de ceticismo. De Roma vai para Milão e se hospeda na casa de um amigo. Aí ocorre a segunda conversão,
mais teológica que filosófica.

Em contato com os cristãos, particularmente o bispo Ambrósio, de quem frequentava os sermões,


Agostinho passa a se interessar pelo estudo sistemático das Sagradas Escrituras. Tem então a intuição
de que Deus é a única felicidade, ao mesmo tempo que se apresenta como o caminho certo e preciso
para chegar à verdade. O filósofo canta então em louvor no seu livro Confissões: “Senhor, tu és a alegria!
Alegrar-se de Ti, em Ti e por Ti, isso é felicidade” (1973, p. 197).

Figura 6

A partir da segunda conversão, Agostinho abandona definitivamente a carreira de retórico e


redime‑se da vida irregular e desmedida. É batizado na Igreja Católica, na Páscoa do ano 387, junto com
seu filho Adeodato. Em 391 é ordenado padre e, quatro anos mais tarde, consagrado bispo da igreja de
Hipona. Morre com 75 anos, no dia 23 de agosto de 430, durante o cerco da cidade pelos vândalos que
depois a invadiram.
23
Unidade I

O seguinte pensamento resume a satisfação de seu espírito e de seu intelecto por terem, ambos,
completado a incansável e permanente investigação pessoal: “Onde encontrei a verdade, aí encontrei a
meu Deus, que é a própria verdade; e desde que aprendi a conhecer a verdade, nunca mais a esqueci”
(1973, p. 212).

Depois do batismo, aos 33 anos, Agostinho iniciou uma intensa atividade de escritor. Dentre suas obras,
destacam-se: Confissões (autobiográfica), Contra os Maniqueus (crítica aos princípios do maniqueísmo,
seita que frequentou anteriormente), De Magistro (sobre o mestre, reflexão sobre educação dirigida
a seu filho Adeodato), Contra os Acadêmicos (diálogo em que retoma um texto homônimo de Cícero
e refuta o ceticismo a partir das revelações bíblicas), A Cidade de Deus (primeira obra de Filosofia da
História, cujas concepções influenciaram Hegel), Sobre a Doutrina Cristã, Sobre a Trindade, Sobre a
Imortalidade da Alma, Sobre o Livre-Arbítrio e muitas outras obras de cunho exegético na forma de
tratados teológicos na condição de bispo de Hipona.

4 SANTO AGOSTINHO: O PERCURSO FILOSÓFICO

A filosofia de Agostinho foi construída com base em uma conciliação entre o neoplatonismo e os
ensinamentos evangélicos dos apóstolos João e Paulo. Do platonismo move-se para o cristianismo, em
um percurso intelectual que reflete existencialmente sua constante busca pela verdade. Aos poucos, vai
depurando essa busca, em vida, por meio de processos de renúncia que desenham seu trajeto filosófico.

Primeiramente, renuncia ao racionalismo, ao descobrir a possibilidade de o espírito iniciar a filosofia


pela fé e não pela ciência, contrapondo-se à posição dos antigos filósofos. Tomando por base o versículo
de Isaías (7:9): “Se não crerdes, não entendereis” (BÍBLIA SAGRADA, 1990), declara que é necessário antes
a fé nos ensinamentos bíblicos para só depois chegar a sua compreensão. Em segundo lugar, renuncia
ao materialismo e ao objetivismo do conhecimento empírico, ao desenvolver a teoria da iluminação,
que se aproxima do inatismo platônico. Nessa direção, supõe uma luz prévia a iluminar interiormente a
experiência concreta na base de todo conhecimento, uma luz incorpórea e interior que se confunde, em
última instância, com a ideia de um Deus puramente espiritual. Em terceiro lugar, renuncia ao ceticismo,
após perceber o quanto de absurdo havia nas teorias do maniqueísmo, que o levaram a um estado de
angústia paralisante, condição só superada quando Ambrósio, bispo de Milão, convidou-o a se batizar
e a ingressar na Igreja Católica.

Saiba mais

Leia, no livro De Magistro (Do Mestre) de Agostinho, o capítulo XI,


intitulado: “Não aprendemos pelas palavras que repercutem exteriormente,
mas pela verdade que ensina interiormente”:

AGOSTINHO, S. Confissões; De Magistro. 2. ed. São Paulo: Abril, 1973.


(Coleção Os Pensadores).

24
ESCOLÁSTICA CRISTÃ

4.1 A metafísica agostiniana: a natureza de Deus

Vimos na biografia filosófica de Agostinho que a busca da verdade foi uma quase obsessão em sua
vida, direcionada unicamente para essa procura. A questão – existe a verdade? – foi o ponto de partida
de sua inquietação intelectual, mas também de sua motivação para viver as mais diversas experiências
que, se o levaram a desordens morais e a extravagâncias durante sua busca, culminaram, no final, na
construção de uma sólida doutrina filosófica de matiz (coloração) cristão.

A síntese que realizou entre fé e razão, ele mesmo a denominou de “filosofia cristã”. Nela, relata
todas as suas “ideias vividas” que gravitaram em torno do problema da busca da felicidade que, como
fim da procura, o filósofo termina por depositar no encontro do Deus revelado e em uma vida de
santidade. Sua síntese filosófica não é uma sistematização de teorias que problematizam o universo
físico, a exemplo dos filósofos gregos. Ao contrário, é uma narrativa da condição humana, a partir de sua
própria experiência, na direção da beatitude. Beatitude que, segundo o filósofo, não pode ser alcançada
pelo caminho da intelectualidade, e, sim, pela intuição da fé iluminada pelo próprio Deus.

Antes de construir sua metafísica com os fundamentos teológicos derivados da fé, Agostinho precisa
demonstrar a incapacidade do conhecimento sensível como base para se chegar à verdade. Do seu
passado maniqueísta, sabe que, para os céticos, a fonte de todo conhecimento é a percepção sensível,
na qual não se pode encontrar qualquer fundamento para a certeza. Os sentidos alimentam o intelecto
(espírito) com dados variáveis que, por serem imperfeitos, podem induzir o espírito a erros. Nessa direção,
de forma crítica, demonstra que a fonte da verdade não está na experiência sensível, pois esta pertence
ao mundo dos corpos mutáveis e corruptíveis.

Contudo, isso não significa que a percepção sensível, enquanto função do corpo, não tenha valor
para o conhecimento da verdade. É que é impossível pensar a multiplicidade das sensações corpóreas
sem antes intuir a unidade que provém da alma.

Por meio de engenhosa argumentação, Agostinho demonstra que as sensações em si não são falsas.
Falso é querer ver nelas a legitimação de uma verdade externa ao próprio sujeito. Embora legítimas,
as sensações não são as fontes dos erros. Estes provêm dos juízos, derivados das sensações, que são
operadas na interioridade do espírito. Do mesmo modo, afirma com genialidade, a fonte da verdade
encontra-se no espírito, que não tem em si a razão de ser. Dessa forma, descobre um novo gênero de
verdade: as verdades da consciência, superando dessa forma o ceticismo que tendia, às vezes, a paralisar
sua reflexão.

Agostinho revela, no exercício de argumentação, sua herança platônica com a teoria da iluminação.
Esclarece que todo o entendimento que assegura como verdadeiro, não o deve a si, mas a um Ser
Superior do qual está em permanente dependência. Todo ser possui uma luz, propriedade apriorística
do espírito, que vem do Ser divino e que, por meio d’Ele, consegue alcançar o mais profundo, a Verdade
absoluta, e não simplesmente particular.

No âmbito da metafísica agostiniana, a essência da Verdade, entendida como uma dimensão


do Sumo Bem, tem como ponto de partida a verdade lógica, ou seja, a relação entre o juízo e
25
Unidade I

a realidade objetiva. Mas esta verdade recua para outro plano, o das ideias essenciais e eternas
existentes na mente de Deus. A verdade lógica, do entendimento humano, coincide com as ideias
essenciais que constituem o mesmo substrato (essência) da Verdade Divina. Como essas ideias
essenciais são Deus, Agostinho conclui que Deus é a Verdade, a Sabedoria e a Felicidade (1973, p.
212): “Eu invoco Deus‑Verdade, Deus‑Sabedoria, Deus‑Felicidade”.

Com esse raciocínio, nas Confissões, Agostinho identifica Deus à Verdade: “[...] basta verificar que
existe algo acima da razão, para dispormos de uma prova da existência de Deus e o que está acima
da razão é a Verdade que julga e modera a razão” (1973, p. 176). É a verdade lógica que permite
ao intelecto, ao espírito humano, contemplar o Sumo Bem. Por isso, todo homem tem em si uma
ideia de sabedoria, como um saber que contém em si as Verdades eternas e imutáveis. Este modo de
explicação será revisitado por Santo Tomás de Aquino em uma das cinco provas lógicas para demonstrar
a existência de Deus.

Saiba mais

Leia o texto de Agostinho sobre a questão dos universais e do valor do


signo (sinal) no texto De Magistro (Do mestre), capítulo IX, intitulado: “Se
devemos preferir as coisas, ou o conhecimento delas, aos seus sinais”:

AGOSTINHO, S. Confissões; De Magistro. 2. ed. São Paulo: Abril, 1973.


(Coleção Os Pensadores).

Agostinho sempre admitiu a existência de um Deus supremo em qualquer tempo e circunstância


de sua vida. Mesmo na sua fase mais cética, não conseguia pensar a inexistência de um Ser Absoluto.
Racionalmente, o filósofo concorda com a ideia da existência divina, porque julga que essa ideia se
patenteia de modo simples na interioridade do homem, visto que esse conceito pertence aos conceitos
fundamentais do espírito. Quais são então as provas da existência de Deus para o filósofo? Há como
demonstrar a ontologicidade do Ser Supremo por meio de provas materiais ou lógicas?

Observação

Ontologicidade: faculdade ou qualidade relativas ao ontologismo,


doutrina filosófica que defende que o homem possui uma intuição imediata
e real do Ente Supremo no interior do próprio espírito.

Do ponto de vista material, Agostinho não vê necessidade de provas formais de demonstração,


visto que o conjunto exterior de todos os seres criados confere, de modo magistral, um atestado da
relação causal entre Deus e o mundo. As coisas naturais falam por si o tempo todo, como em um ato de
louvor, no qual Deus é o Criador e elas, as criaturas. Como um atestado natural, a realidade contingente
convence sobre a existência de um livre Criador e revela suas qualidades extraordinárias: porque as
26
ESCOLÁSTICA CRISTÃ

coisas são bonitas, Deus é mais belo ainda; porque as coisas são incrivelmente benfeitas e ordenadas
no tempo e no espaço, Deus é o perfeito arquiteto de sua obra; se são boas as criaturas, Deus é um ser
boníssimo em grau maior de excelência criativa. Na obra Sobre a Trindade, lê-se que: “A existência de
Deus não é proclamada somente pela autoridade dos livros santos, mas toda a natureza que nos cerca e
à qual pertencemos, proclama que reconhece a existência de um Criador excelso” (1995, p. 64).

Se na dimensão do conhecimento empírico a existência de Deus pode ser provada, fundamentalmente,


a priori, por meio do fenômeno grandioso da Criação, é na dimensão lógica que o espírito vai experimentar
uma presença real e particular de Deus (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1993). Isso porque Deus está no
silêncio da alma de todo homem e é nessa intimidade que Ele se revela. Dessa forma, procurar a Deus é
um ato de recolhimento do espírito do homem, é reclinar-se sobre si, perscrutar seu íntimo e reconhecer-
se na própria natureza espiritual.

Agostinho tem uma concepção de Deus diferente do Uno de Plotino, divindade equivalente à “alma
do mundo” que induz ao panteísmo, um Deus impregnando tudo. Ao contrário, o seu Deus é o do Antigo
Testamento, onipotente sobre a criação e que intervém soberanamente sobre a história. A ideia de um
Deus interventor que não abandona sua criação será importante, mais tarde, para a visão histórica do
filósofo expressa na obra Cidade de Deus.

Mais ainda, o Deus bíblico de Agostinho é concebido também em uma dimensão de pessoalidade.
A despeito de sua grandiosidade e onipotência, Deus dirige-se como uma pessoa a outra pessoa,
a sua criatura. Essa concessão divina possibilita a experiência de uma relação pessoal – um eu‑tu
existencial – como base para o desenvolvimento de uma interioridade subjetiva na qual Deus
estará sempre presente. Trata-se de uma relação de diálogo com Deus no âmbito da consciência,
ao modo de uma conversa direta com um interlocutor interno (espécie de autoconsciência),
tratando Deus até com certa informalidade: “E Tu me gritaste de longe: ‘Na verdade, Eu sou o que
sou’. E eu ouvi como se ouve no coração, sem deixar motivo para dúvidas; antes, mais facilmente
duvidaria de minha vida que da Tua” (1973, p. 139).

No limite de sua convicção, Agostinho sustenta que Deus é o único ser que tem existência verdadeira,
porque é o único que não depende de nada. Revela que Deus é mais íntimo dele do que seu próprio
íntimo. E completa em tom testemunhal:

Poderia duvidar da minha própria existência, mas nunca da existência de


Deus. Os homens são meros participantes da existência do Ser, cuja existência
se pode constatar através das coisas criadas que dependem inteiramente
dele, porque possui verdadeira existência (1973, p. 139).

Transcendendo o seu platonismo, o filósofo compreende a natureza de Deus segundo a ótica


cristã com múltiplos atributos: poderoso, racional, infinito, eterno, imutável, simples, espírito, pessoa,
consciência... Mais ainda, luz, voz, perfume e abraço na alma humana. Deus é amor. Em suas palavras:
“Porque Deus é bom, somos” (1973, p. 131).

27
Unidade I

Exemplo de aplicação

Vamos exercitar o raciocínio lógico, a exemplo de Agostinho. O trecho a seguir, extraído de A Cidade
de Deus: Parte II, traz sentenças que estruturam uma demonstração com força argumentativa. Vamos
destacar as ideias principais interligando as sentenças que o filósofo encadeia a fim de entender melhor
seu raciocínio. Observe que ele não faz um jogo de palavras, e, sim, um exercício coerente de lógica.

“Pois, se me engano, existo. Quem não existe não pode enganar-se; por isso, se me engano, existo.
Logo, quando é certo que existo, se me engano? Embora me engane, sou eu que me engano e, portanto,
no que conheço que existo, não me engano. Segue-se também que, no que conheço que me conheço,
não me engano. Como conheço que existo, assim conheço que conheço” (2012, p. 26).

Com efeito, a partir das sentenças do silogismo amplo e bem montado, Agostinho deduz que é
possível ao sujeito enganar-se (ter dúvidas) a respeito de tudo: Deus, os outros homens, as coisas do
mundo, os entes espirituais. Contudo, o sujeito não pode estar enganado no momento em que se
engana. Logo, um pressuposto salta do silogismo. Saber-se causador do engano e responsável por ele
traz ao menos uma primeira constatação – a existência do “eu” que se engana. Como consequência, a
certeza da existência do sujeito é, assim, a condição de possibilidade de qualquer engano (dúvida). Se o
“eu” não existisse, o engano (dúvida) seria impossível.

Com sabedoria, Agostinho afirma a dúvida como princípio metodológico, ao mesmo tempo que
refuta a dúvida enquanto ceticismo vazio. Mais tarde, no período da Filosofia moderna, René Descartes
utilizará um raciocínio semelhante para concluir que “se penso (duvido), logo existo”.

4.2 O tempo, a criação e a origem do mal

A criação é a realização das ideias contidas na plenitude do Criador. Na visão agostiniana, a criação
não partiu da matéria eterna, como pensava Platão, mas de dois princípios – o de emanação, proposta pela
vertente neoplatônica, e o de criação a partir do nada (ex nihilo), proposta singular da tradição judaica,
originalíssima entre as crenças do mundo medieval. Contudo, na análise de Agostinho, a proposta do
emanacionismo introduzia o finito e o mutável na natureza de Deus, o que seria impossível dos pontos
de vista lógico e metafísico. Isso o leva a concluir, sem a necessidade da revelação do Gênesis, que tudo
partiu do nada. Pensando dessa forma, Agostinho supera o neoplatonismo no tocante ao princípio de
emanação, ao mesmo tempo que derruba a tese do universo eterno dos gregos.

Quanto ao tempo, este outro componente metafísico da cosmogênese (do grego: gênesis significa
origem e cosmos quer dizer ordem, universo). Agostinho entende que o tempo começou a existir
exatamente junto com a criação. Por isso não se pode dizer quando se deu a criação porque ela não se
insere no tempo. Deus está fora do tempo porque Ele é que o criou. Para Deus o seu hoje, o seu momento
presente, é a eternidade, ou seja, não tem sequência de passado, presente e futuro. De maneira original
para a época, o filósofo declara que somente a alma do homem pode perceber a passagem do tempo,
ingressando em uma dimensão espiritual.

28
ESCOLÁSTICA CRISTÃ

Já a criação está em constante mutabilidade, em constante processo de transformação, passando


constantemente pelo tempo. Logo, o tempo e a criação podem se identificar, mas nunca criação e
eternidade, porque esta é totalmente diferente do tempo. A criação é simultânea no plano da formação
da matéria.

Por sua vez, a matéria é informe, mas o seu papel é o de manifestar a forma. É criada do nada
como expressão da obra de Deus. No momento em que a matéria começou a existir, passou a existir a
forma, simultaneamente, pois até então matéria e forma estavam fora do tempo. Se elas já estivessem
nele, não seriam simultaneamente criadas, pois com o tempo há sucessão. Porém, ressalta o filósofo, é
preciso notar que há uma diferença no devir da forma: certos seres como o dia, o firmamento, a terra,
o mar, o ar, o fogo e as almas humanas receberam existência imediatamente com a forma, enquanto
outros, como os seres vivos e o corpo humano, formam-se aos poucos no decurso de uma evolução.
Finalmente, Agostinho assinala que a matéria pode ser espiritual como a dos anjos ou material como
a dos seres da natureza.

No capítulo XI das Confissões, Agostinho dá um destaque especial ao problema do tempo. Coloca uma
questão astuta que, certamente, ouvira em um dos debates públicos sobre religião de que participara.
Talvez ele mesmo tenha elaborado a questão, em tom provocativo, a algum pregador cristão antes
de se converter ao catolicismo. Talvez ele mesmo tenha aplicado a questão a si para desenvolver sua
investigação sobre os desígnios divinos. A questão é a seguinte: “Que fazia Deus antes da Criação?”
(1973, p. 241). Essa questão suscita uma reflexão interessante sobre o momento da criação, e o produto
de seu desenvolvimento resulta em uma metafísica inovadora da parte do filósofo: o conceito de que o
tempo é uma criatura de Deus, porquanto não existe tempo na ausência da criação.

Por isso, conclui, é impossível pretender atingir o princípio da existência de Deus dentro do tempo.
É um paradoxo pensar em um início de Deus na ordem temporal, primeiramente porque Deus é, em
essência, o eterno presente, portanto fora do tempo; e, em segundo lugar, substancialmente, porque o
tempo é criação de Deus. Uma criatura não pode ser anterior ao criador.

Dessa forma, não se pode pensar num tempo corrente antes do ato da criação, ou seja, o tempo
começou a fluir com a criação. Logo, a vontade divina de criar surgiu no mesmo momento, porque uma
vez que Deus é eterno, não se pode falar que n’Ele aparece a vontade que antes não existia. A vontade
de Deus não é uma criatura, ela pertence a sua própria substância.

Ainda na ordem da criação, surge o problema metafísico da existência indubitável do mal no mundo.
Problema que desafia a doutrina de ser Deus um Deus de bondade. Agostinho então se questiona. Como
explicar teologicamente o mal no contexto da obra de Deus, fonte de bondade? Não seria incoerência
pensar que Deus, além do bem, criou o mal?

A argumentação para a solução que Agostinho apresenta é uma tese que ainda é referência nos debates
metafísicos, por sua originalidade. O filósofo raciocina da seguinte forma. Admite que toda substância
criada tem uma participação do Bem, que é Deus. Logo, toda substância é boa. Se o mal é o contrário do
bem e não poderia ter sido criado por Deus, que é bom, então o mal não é uma substância. O que não
significa que o mal inexiste, mas que é um limite: o mal é uma ausência de substância do bem, ou seja, o
29
Unidade I

mal é uma privação de ser. Dito de outra forma, “o mal não é uma realidade independente, é uma inversão
da vontade humana através de seu distanciamento de Deus” (HELFERICH, 2006, p. 81). Essa concepção é
originalíssima na história das religiões, até mesmo no âmbito da Igreja Católica contemporânea.

Saiba mais

Para complementar a questão da existência do mal no mundo, leia, no


texto Confissões de Agostinho, o capítulo VII, item 5, intitulado “É Deus o
autor do mal?”:

AGOSTINHO, S. Confissões; De Magistro. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural,


1973. (Coleção Os Pensadores).

4.3 O dualismo corpo-alma

Como vimos, Agostinho jamais duvidou da existência de um Ser Superior e seu maior problema não
era provar essa existência, mas saber como encontrar Deus. A certeza intuitiva que tinha sobre Deus,
pois ainda não havia abraçado a fé, justificava suas aventuras obstinadas e equivocadas em encontrá-Lo.
Dessa forma, transferiu sua investigação filosófica da ordem ontológica para o plano existencial do dia a
dia. Vimos também que, como resultado das suas dúvidas perturbadoras, ele chega ao entendimento de
que o caminho para se chegar a Deus está na alma do homem, está em seu próprio interior. Por isso, a
questão da natureza e das funções do corpo e da alma passa a ser imprescindível em sua epistemologia.

Na visão agostiniana, o homem é uma dualidade corpo e alma, corpo material e alma espiritual, um
ser pensante cujo pensamento não se confunde com a materialidade do seu corpo. Explicação que se
aproxima da dualidade platônica corpo e alma, esta última servindo-se do corpo, independente dele,
pois o que é inferior não pode agir sobre o que é superior. Para o filósofo, a alma é superior ao corpo, ela
é que age sobre este. Não enquanto agente causal, mas agente aglutinador das experiências do corpo
sensível e receptivo.

Contudo, o corpo não é negativo, faz parte da natureza humana e é responsável por reunir as
sensações externas e conduzi-las à alma. A razão, uma das faculdades da alma, funciona como um
sentido interno, por meio do qual o sujeito sabe que pensa e existe. Mas a razão não é autossuficiente,
precisa de uma interferência superior, de uma iluminação divina, para alcançar as verdades imutáveis.
Com efeito, ensina no De Magistro:

Pois, não podendo saber a maioria das coisas, sei porém quanto é útil
acreditar nelas. No que diz respeito a todas as coisas que compreendemos,
não consultamos a voz de quem fala, a qual soa de fora, mas a verdade
que dentro de nós preside à própria mente, incitados talvez pelas palavras
a consultá-la. Quem é consultado ensina verdadeiramente, e este é Cristo,
que habita no homem interior (1973, p. 351).

30
ESCOLÁSTICA CRISTÃ

Com a ideia de “homem interior”, o filósofo supera a dualidade platônica e excludente entre corpo e
alma. O homem é um ser intermediário entre os animais e os anjos.

Para explicar como o homem pode receber de Deus o conhecimento (luzes) para compreender
as verdades eternas, Agostinho, inspirado nas reminiscências de Platão, cria a teoria da iluminação,
a centelha divina que habita interiormente a mente humana. Por essa Teoria, a alma é veículo da
causalidade sobre-eminente reservada exclusivamente a Deus. Ou seja, o conhecimento intelectual das
verdades que transitam pela alma processa-se unicamente pela interferência divina.

A sede do pensamento é a mente, com as funções da inteligência e da razão, os atributos mais


elevados da alma. Se Deus está na alma, os caminhos do intelecto e da razão para chegarem à Verdade,
que é Deus, passam logicamente pela interioridade do homem, passam pela iluminação de sua alma.
Assim, todas as proposições que a alma intui e compreende na ordem intelectual são verdadeiras porque,
a priori, foram agraciadas pela luz divina. Nesse sentido, a alma é dependente de Deus e, na medida em
que é iluminada, participa das perfeições de Deus. A alma, portanto, é uma centelha de Deus e tem sua
mesma substância divina, por isso é imortal.

Em sua intervenção emanacionista, Deus não limita a alma (sentido de liberdade). Ao contrário, a
enriquece e a potencializa, não somente com a sua realidade substancial, mas também com as perfeições
nas quais o seu ser se expande. Quanto mais a alma depende de Deus, tanto mais é perfeita. A explicação
dessa influência da Verdade criadora sobre a alma encontra-se em A Cidade de Deus: “Dando aos seres
a sua perfeição substancial e conservando-os na evolução da sua evolução, a Verdade criadora funda as
operações próprias a cada um deles e é a sua explicação última” (1964, p. 224).

Ao lado da inteligência e da razão, a memória completa as funções do intelecto no processo de


construção da interioridade do sujeito. Ao mesmo tempo que a razão viabiliza o conhecimento das
proposições verdadeiras, a memória possibiliza a intuição da existência de Deus.

Saiba mais

Os Filósofos, de Rosselini, – Santo Agostinho: o DVD (legendado)


mostra, com rigor histórico, a vida do filósofo, suas obras, ideias, oratória e
posicionamento sobre o declínio do Império Romano.

OS FILÓSOFOS: Santo Agostinho. Dir. Roberto Rosselini. Itália: Versátil


Home Vídeo, 1972. 115 minutos.

31
Unidade I

4.4 O homem e A Cidade de Deus

Figura 7

A partir da versão do Gênesis de que o homem foi criado à imagem de Deus, Agostinho deduz
que todo homem tem uma vocação (chamado), em si, para procurar seu Criador e desejar amá-Lo.
Ele mesmo experimentou isso em sua vida. Por isso sua antropologia contempla essa imagem do
homem que, moldado à imagem divina, tem sede de voltar ao Criador. Essa ideia de retorno vai
determinar, no homem, uma forma tríplice de se encaminhar ao Absoluto, forma que está inscrita
em sua natureza humana.

No capítulo XI das Confissões, o filósofo descreve esses três aspectos que são imbricados em uma só
unidade, ou seja, uma só vida, uma só mente e uma só essência.

Eu sou, eu conheço, eu quero. Sou enquanto sei e quero; sei por ser e querer;
quero ser e saber. Veja quem puder como nestas três coisas existe uma vida
inseparável, uma única vida, uma única mente, uma única essência e como
a distinção é inseparável e, todavia, existe (1973, p. 292).

Os três aspectos da alma representam as faculdades da memória (quem sou), da inteligência (o que
conheço) e da vontade (o que quero). Cada faculdade, em seu exercício, compreende simultaneamente
as outras e, mesmo revelando-se diferente, constitui com as outras uma única entidade substancial. É
visível na concepção da unidade tríplice da alma humana o paralelo com a imagem da Trindade divina:
imagens desiguais, mas substâncias iguais, consubstancialidade.

A doutrina política de Agostinho aparece principalmente na obra A Cidade de Deus, obra de


maturidade intelectual. É uma obra síntese de seu pensamento político, na qual oferece uma visão
de duas cidades: a celeste e a terrena. As duas cidades materializam as respectivas atitudes sociais
de justiça ou de iniquidade e representam, no plano individual de todo cristão, o dilema de viver o
bem ou o mal.

Muito certamente, essa visão dualista do mundo é reflexo do contexto político no qual o filósofo
vivia em sua época. De um lado, a realidade dos habitantes do Império civilizado, em que, mesmo
32
ESCOLÁSTICA CRISTÃ

dispersos e distantes, os cidadãos romanos tinham um sentido de unidade patriótica diante das
ameaças externas dos bárbaros. De outro lado, e por oposição à visão anterior, a realidade dos
estrangeiros, dos diversos grupos de bárbaros que invadiam com frequência os domínios do Império,
associados à violência e à morte.

Agostinho trabalha, então, com uma grande metáfora político-religiosa que descreve a luta entre
as duas cidades: a cidade celeste da comunidade dos justos (civilização romana) e a cidade terrena
do diabo e dos ímpios (horda de bárbaros). Cada cidade constituindo um símbolo que se compara a
realidades políticas ou a caminhos psicológicos que sugerem o retorno ao Criador ou, de modo contrário,
o distanciamento de Deus.

Do ponto de vista psicológico, a metáfora das cidades funciona para descrever duas realidades
relacionadas a comportamentos dos indivíduos: os que vivem segundo a carne ou aqueles que vivem
segundo o espírito; os que constroem uma cidade com amor a si e desprezo a Deus ou aqueles que
edificam uma cidade pelo amor de Deus com desprezo de si.

Lê-se em A Cidade de Deus:

[...] os cidadãos da cidade terrena são dominados por uma tola ambição que
os induz a subjugar os outros; os cidadãos da cidade celeste oferecem seus
serviços uns aos outros com espírito de caridade e respeitam docilmente os
deveres da disciplina social (1964, p. 28).

Por fim, o texto sugere que cada homem faça uma reflexão e se pergunte: a qual cidade pertence?
Qual cidade pretende construir?

Do mesmo modo que a vida singular do homem é condicionada pela alternativa fundamental de
viver o bem ou o mal, Agostinho tem a ideia de transferir esse antagonismo para a história do mundo.
Entende que toda a história dos homens é o desenvolvimento dessas duas tendências: viver sem leis ou
viver sob as leis. E as leis, nesse caso, são os mandamentos bíblicos e os ensinamentos de Cristo. Assim,
a história do mundo, desde a criação, é uma luta permanente entre a cidade de Deus e a cidade dos
homens. Nunca um tipo de cidade prevalece sobre a outra, fazendo-a desaparecer seja na direção do
bem ou do mal. As duas cidades convivem em conflito até o fim dos tempos, aguardando o juízo final
de Deus. A Igreja tem um papel fundamental nessa caminhada. A Igreja, como encarnação mundana
da cidade de Deus e depositária das verdades da fé, deve ter supremacia sobre a cidade dos homens,
sobre o Estado e a civilização. A Igreja deve agir também na inspiração dos governos e na orientação das
consciências dos cidadãos.

Essa concepção de história que adquire um sentido, uma finalidade dirigida desde o início da
criação até o final dos tempos pela providência divina, era estranha ao pensamento grego. Para os
gregos, o tempo era cíclico, sem início e sem fim. A concepção de Agostinho confere-lhe o título
de pioneiro na Filosofia da História, que contribuirá, mais tarde, na formulação do tempo histórico
por Hegel.

33
Unidade I

Lembrete

Santo Agostinho transformou a doutrina da reminiscência platônica na


teoria da iluminação: Deus está no intelecto humano na forma de uma luz
ou uma lei que legitima as ideias verdadeiras.

Resumo

Vimos nesta unidade que a Filosofia Medieval abrange as correntes


filosóficas da Idade Média: a Patrística (séculos III a VII) e a Escolástica
(séculos VIII a XIV). A primeira compreende o pensamento dos Padres da
Igreja (patris, do latim, pais ou padres); de que deriva a expressão Patrística.
A segunda corresponde à Filosofia ensinada nas escolas dos mosteiros
(scholas, do latim, aula), que representava mais um método de estudo do
que propriamente uma doutrina filosófica.

O contexto europeu é o do Império Romano. Duas correntes de


pensamento florescem nesse ambiente feudal: o helenismo e o cristianismo.
Helenismo é o conjunto de ideias culturais da civilização grega que
se expandiu fora da Grécia com a conquista do território europeu por
Alexandre Magno. Mesmo sendo derrotada pelos romanos desde o século
IV a.C., a cultura helênica continuou a influenciar pela sua pujança os
povos vencedores. Com a morte de Alexandre (323 a.C.), o helenismo segue
influenciando a Europa latina. Helenismo também é a denominação geral
que se dá à filosofia alexandrina, que resultou da fusão do pensamento
grego com elementos orientais.

O cristianismo é o movimento religioso, derivado da tradição judaica


e dos ensinamentos de Jesus Cristo no Evangelho, que se difundiu pelo
território europeu a partir da expansão do Império Romano. Por opção
missionária, os sucessores dos apóstolos espalharam o cristianismo
pelo Oriente Médio e pelos territórios helenizados, atingindo o auge de
aceitação com o Édito de Milão. Proclamado pelo imperador Constantino,
em 313 d.C., o decreto garantia a todos os habitantes a liberdade de culto
religioso. Logo após a publicação, o imperador converte-se ao cristianismo,
que passa a ser a religião oficial do Império. Mesmo em ambiente favorável,
os filósofos cristãos se debatiam com a filosofia pagã de herança grega,
sobretudo o epicurismo e o neoplatonismo de Plotino.

Plotino, filósofo grego e autor das Enéadas, em que faz uma síntese
renovada do platonismo, é o autor que mais influencia o pensamento dos

34
ESCOLÁSTICA CRISTÃ

Padres da Igreja com a teoria do emanacionismo, pela aproximação que


essa teoria tem com a história da criação do livro do Gênesis e com o
dogma da Trindade.

Os Padres da Igreja deparam-se com os dois movimentos ideológicos:


o helenismo, de natureza cultural e filosófica, e o cristianismo, de
caráter religioso. À medida que o cristianismo se espalha pelo Medievo,
o helenismo pagão cresce em resistência ao modo de pensar dos filósofos
cristãos. O projeto desses filósofos não era a construção de teorias,
mas a interpretação das verdades religiosas para a fundamentação dos
dogmas de doutrina.

A Patrística pode ser considerada a tentativa de síntese entre a Filosofia


grega e a exegese dos dogmas católicos. A seguir, os filósofos que mais se
destacaram no período pelo reconhecimento de suas obras. Amônio Sacas é
considerado o iniciador da corrente denominada neoplatonismo e foi o tutor
direto de Plotino em Alexandria. O filósofo sírio Porfírio (232-304 d.C.), que
também frequentou a escola de Alexandria, destaca-se por sua obra seminal
Isagoge, responsável por inaugurar na discussão do “problema dos universais”
as cinco vozes – gênero e espécie, diferença, próprio e acidente – no âmbito
da Filosofia medieval.

Entre os apologistas, Justino (morte em 165 d.C.) foi o primeiro filósofo


cristão autor de duas Apologias da Religião Cristã, dirigidas a imperadores
romanos. Clemente de Alexandria (150-215 d.C.), filósofo e filólogo,
defendeu a função pedagógica da Filosofia na interpretação das verdades
reveladas. Como filólogo, auxiliou nas traduções de textos da Filosofia
grega para o latim e criou termos filosóficos gregos para exprimir conceitos
cristãos. Orígenes (185-254 d.C.), discípulo e compatriota de Clemente, foi
importante pela obra Sobre os Princípios, uma primeira suma teológica, tipo
de literatura que faz a síntese doutrinal da Igreja cristã da época. No final
do século IV, os filósofos Basílio, Gregório de Nissa e Gregório Nazianzeno,
os “luminares de Capadócia”, participam do Concílio de Constantinopla na
defesa dos dogmas cristãos contra as heresias da época.

A rigor, os filósofos desse período não desenvolveram um sistema


filosófico original. Ecléticos, estudavam os autores que mais lhes
parecessem úteis para seus fins de defesa das ideias cristãs. Conhecem
Platão de modo indireto, via Plotino; e, em menor grau, excertos de
Aristóteles, nos comentários dos colegas alexandrinos. Limitados às fontes
do neoplatonismo, dialogam com Santo Agostinho e vão ainda exercer
uma forte influência até o século XIII, quando são conhecidas as obras
completas de Aristóteles.

35
Unidade I

Para compreender Santo Agostinho, é preciso tomar sua vida e obra


como uma unidade. Sua Filosofia não procede de sistematizações, mas
de uma existência intensamente vivida, o que revela na autobiografia
Confissões, em que se expõe inteiramente a Deus e aos homens. Uma obra
que denota um gesto de humildade e de louvor ao Criador, na qual vida e
Filosofia aparecem intimamente interligadas.

Aurélio Agostinho nasceu em Tagasta, província romana na África,


em 13 de novembro de 354 d.C. Viveu todo tempo no contexto de uma
civilização helenizada, durante a decadência do Império Romano. Aos
16 anos, vai para Cartago estudar retórica. Leciona em Cartago e Roma.
Conhece uma mulher, com quem tem um filho: Adeodato. Enquanto
jovem, não foi catequizado, nem batizado, devido a um conflito familiar
entre sua mãe católica e seu pai materialista. Levou uma vida desregrada,
desafiando seus próprios limites e sua inteligência, mas sem parar de
procurar a verdade.

Agostinho passa por duas conversões em seu processo de superação,


como escreve nas Confissões. A primeira é o impacto com o nascimento do
seu filho Adeodato, que coincidiu com a leitura que fazia de Hortensius, de
Cícero, livro que exaltava a Filosofia como método para se atingir a verdade.
Ingressa profundamente no campo filosófico. A segunda conversão ocorre
ao se interessar pelas homílias de um bispo católico e começar a estudar a
Bíblia com um grupo cristão.

Mesmo levando uma vida moral desregrada, Agostinho manteve sua


integridade intelectual e nunca parou de procurar a verdade. Frequenta a
seita dos maniqueus por nove anos e se decepciona com a doutrina eclética
e dualista do maniqueísmo; começa a descrer de tudo, até de si. A pedido
de sua mãe, frequenta os sermões do bispo Ambrósio, em Milão, ao mesmo
tempo que inicia o estudo sistemático das Sagradas Escrituras. Tem então
a intuição de que o caminho que procurava para chegar à verdade está
em Deus. Agostinho é batizado junto com seu filho Adeodato. Em seguida,
em 391, é ordenado padre e, quatro anos mais tarde, consagrado bispo da
igreja de Hipona. Morre com 75 anos, no dia 23 de agosto de 430.

A Filosofia de Agostinho concilia platonismo e cristianismo. Após


renunciar ao materialismo, ao ceticismo e ao racionalismo, move-se do
neoplatonismo de Plotino para os ensinamentos dos apóstolos João e Paulo,
em um percurso intelectual que reflete existencialmente sua constante
busca da verdade.

Desenvolve a teoria da iluminação divina, que se aproxima do inatismo


platônico, para a qual tudo o que o entendimento assegura como verdadeiro
36
ESCOLÁSTICA CRISTÃ

não deve a si, mas a um Ser Superior com o qual vive em permanente e
íntima dependência.

Na metafísica, afirma que a Verdade deve ser entendida como uma


dimensão divina e que tem seu ponto de partida na verdade lógica, na
relação entre o juízo e a realidade objetiva. A verdade lógica do entendimento
humano coincide com as ideias essenciais e eternas existentes na mente
divina. Deus, ao mesmo tempo, é Verdade espiritual e verdade lógica que
permite ao espírito humano contemplar seu Sumo Bem. Por isso, todo
homem tem em si uma ideia de sabedoria, como um saber que contém as
verdades eternas e imutáveis.

Deus tem uma dimensão de pessoalidade; a despeito de sua


grandiosidade, dirige-se a sua criatura como uma pessoa num diálogo.
Com base nessa relação Agostinho desenvolve o conceito de interioridade
subjetiva, na qual Deus está sempre presente.

Para Agostinho, o ato da criação é a realização das ideias contidas na


plenitude do Criador. O tempo começou a existir exatamente junto com a
criação. Por isso não se pode dizer quando ocorreu a criação porque ela não
se insere no tempo. Do mesmo modo, a matéria não é eterna, foi criada do
nada por Deus. No momento em que começou a existir, passou a existir
também a forma. Até então matéria e forma estavam fora do tempo. O mal
é o contrário do bem e não foi criado por Deus, que é bom. O mal é uma
ausência de substância do bem, ou seja, o mal é uma privação de ser.

O homem é uma dualidade de corpo material e alma espiritual, um ser


pensante cujo pensamento não se confunde com a materialidade do seu
corpo – explicação que se aproxima da dualidade platônica corpo e alma. A
razão, faculdade da alma, funciona como um sentido interno, por meio do
qual o sujeito sabe que pensa e existe, mas não é autossuficiente, precisa
da iluminação divina para alcançar as verdades imutáveis.

A doutrina política de Agostinho aparece na obra A Cidade de Deus,


na qual descreve duas cidades – a celeste e a terrena –, que materializam
socialmente as respectivas atitudes de justiça ou iniquidade e, no plano
individual, o dilema do bem ou o do mal.

Exercícios

Questão 1. Os quadrinhos a seguir apresentam, com humor, uma hipotética discussão entre Santo
Agostinho e Boécio, filósofo romano, apontado como um dos fundadores da Escolástica.

37
Unidade I

Disponível em <http://www.willtirando.com.br/santo-agostinho-x-boecio/>. Acesso em 11 jun. 2018.

Com base na leitura e nos seus conhecimentos, analise as afirmativas.

I – O personagem, no último quadrinho, recusa-se a fazer a aposta com Deus sobre o final da
discussão entre os dois filósofos pois considera que, se existe a onisciência de Deus sobre nosso passado,
nosso presente e nosso futuro, Ele já saberia que Santo Agostinho e Boécio iriam se agredir fisicamente.

II – O livre-arbítrio, para Santo Agostinho, é a capacidade do homem, que sempre escolhe o caminho
do bem e da verdade, pois é guiado por Deus.

III – Os quadrinhos fazem referência ao pensamento estritamente racional e antropocêntrico de


Santo Agostinho.

É correto o que se afirma em:

A) I, II e III.

B) I e II, apenas.

C) II e III, apenas.

D) I e III, apenas.

E) I, apenas.

Resposta correta: alternativa E

Análise das afirmativas

I – Afirmativa correta.

Justificativa: se Deus tudo sabe, como afirma Boécio, o final da discussão já seria conhecido por Ele.

38
ESCOLÁSTICA CRISTÃ

II – Afirmativa incorreta

Justificativa: o livre-arbítrio é a possibilidade de escolha entre o bem e o mal, e não a capacidade de


escolher sempre o bem.

III – Afirmativa incorreta

Justificativa: o pensamento de Santo Agostinho não é estritamente racional e tampouco é antropocêntrico.

Questão 2. Leia o trecho e analise as afirmativas a seguir.

A filosofia de Agostinho (354-430) é estreitamente devedora do platonismo cristão milanês: foi


nas traduções de Mário Vitorino que leu os textos de Plotino e de Porfírio, cujo espiritualismo devia
aproximá-lo do cristianismo. Ouvindo sermões de Ambrósio, influenciados por Plotino, que Agostinho
venceu suas últimas resistências (de tornar-se cristão).

PEPIN, Jean. Santo Agostinho e a patrística ocidental. In: CHÂTELET, François (org.) A Filosofia
medieval. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983, p. 77.

I – Santo Agostinho converteu-se ao cristianismo, religião que predominou no período medieval no


Ocidente, mas procurou separar filosofia e crença, afirmando a superioridade da razão.

II – O pensamento de Santo Agostinho apresenta grande influência de Platão e Aristóteles, para


quem o mundo das ideias e da verdade era inacessível aos homens. Por isso, no pensamento agostiniano,
a verdade não existe.

III – Para Santo Agostinho, o conhecimento humano é resultado da iluminação divina, a centelha de
Deus que existe em cada um.

É correto o que se afirma em:

A) I, II e III.

B) I e II, apenas.

C) II e III, apenas.

D) I e III, apenas.

E) III, apenas.

Resolução desta questão na plataforma.

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