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Unidade II
5 A ESCOLÁSTICA NA IDADE MÉDIA
Na história das ideias filosóficas, a Escolástica, em geral, designa o movimento doutrinal que se
estabeleceu na segunda metade do período medieval. Mais especificamente, a Escolástica Cristã teve
origem no fim do século VIII, se prolongando por cerca de 500 anos até o seu ápice, no século XIII,
quando entrou em declínio, entre os séculos XIV e XV da Idade Média.
A Escolástica Cristã não foi uma corrente original que inventou um sistema filosófico, mas
foi responsável pela sistematização e consolidação clássicas da filosofia do cristianismo à luz dos
ensinamentos da filosofia grega. Aliás, a qualificação clássica procede, novamente, porque os
filósofos vão se inspirar nas fontes helênicas ao entrarem em contato com as traduções das obras
completas de Aristóteles.
Em termos de periodização, a exemplo do que foi feito com a Patrística e tomando-se como referência
o pensamento de Santo Tomás de Aquino, a corrente denominada Escolástica Cristã pode ser dividida
em três períodos: fase pré-tomista ou de formação, que vai do século IX ao XII; fase do apogeu ou do
aquinate – outro nome atribuído ao filósofo e derivado da sua descendência dos condes de Aquino –,
corresponde ao renascimento cultural patrocinado pelo imperador romano Carlos Magno, se originou
já no século XII e teve seu esplendor no século XIII; fase de declínio, que se processa a partir do fim do
século XIII e se estende até o século XV.
Há uma vertente bizantina, cujo representante mais conhecido é Fócio (820-897), um teólogo
bizantino que foi patriarca de Constantinopla e que, mesmo adepto do platonismo, fez comentários
escritos e lógicos sobre a obra de Aristóteles. Fócio também foi responsável por um projeto educativo de
conservação da filosofia da Antiguidade que visava transmiti-la às gerações futuras.
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ESCOLÁSTICA CRISTÃ
Outra vertente da Escolástica é a muçulmana, ligada aos filósofos árabes que mantiveram um
diálogo estreito com os pensadores cristãos do Ocidente. Da parte dos filósofos árabes, havia um
esforço de releitura dos dogmas do Alcorão sob a luz da filosofia grega de Aristóteles, uma tentativa
de conciliar teses peripatéticas com os temas revelados por Maomé, como: a criação do mundo, o
tempo, a providência divina e outros. As posturas muçulmanas conduziam com o fatalismo, enquanto
Aristóteles defendia a liberdade humana e a eternidade do mundo que Deus não conhecia. Desse grupo
destacam‑se dois nomes importantes: Avicena e Averróis.
Observação
Avicena (980-1037), iraniano de nascimento, estudou Filosofia e Medicina. No último campo, recebeu
o título de príncipe dos médicos. Erudito, autor da obra A Filosofia Iluminativa, Avicena explicava o
mundo pelas categorias metafísicas de potência, ato, matéria e forma – as quatro causas –, além de
retomar todo o tratado de lógica do mestre Aristóteles.
Figura 8 – Avicena
Averróis (1126-1198), nascido em Córdoba, na Espanha, foi médico como Avicena, com quem
se relacionou pelo interesse comum no aristotelismo. Foi tradutor e competente comentador das
obras de Aristóteles. Sua filosofia se inclinou para o materialismo e para o panteísmo, correntes
condenadas na época pela Universidade de Paris. Seu sistema foi uma versão pálida do aristotelismo
e infiltrado de ideias platônicas, comuns entre os seus pares. Ficou conhecido pelos Comentários
de Aristóteles, sobretudo porque seus escritos vinham acompanhados das traduções de trechos
completos das obras do estagirita.
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Unidade II
Figura 9 – Averróis
A importância dos dois filósofos supera as suas modestas produções, quase sempre calcadas
em transliterações dos documentos clássicos. A importância deles está relacionada ao fato de
proporcionarem, aos filósofos cristãos, o acesso direto aos textos aristotélicos até então pouco
conhecidos. Os textos eram traduzidos do grego para o latim e anexados aos comentários escritos
que publicavam.
A terceira vertente da Escolástica latina é a hebraica, que tem em comum com as correntes
árabe e bizantina a abordagem dos problemas fundamentais da relação entre fé e razão, entre
Deus e o mundo e entre o intelecto e a alma. Os filósofos judeus também têm acesso à filosofia
grega, principalmente do peripatetismo, do qual colhem subsídios teóricos para a explicação
das verdades da Torá. A corrente hebraica distingue-se, contudo, em um aspecto, no que se
refere à Cabala, na tentativa de justificar alguns dos problemas fundamentais com elementos do
misticismo. Cabala, termo hebraico que significa tradição, é uma espécie de ciência oculta que faz
interpretações exclusivas da Bíblia. As interpretações, inicialmente transmitidas oralmente entre
os judeus, mais tarde foram recolhidas em forma de tratado.
Um filósofo representativo dessa vertente e que se destaca por ter realizado um trabalho menos
místico e mais racional é Maimônides (1135-1204). Nascido em Córdoba, de família israelita,
para escapar da perseguição dos muçulmanos fugiu para Alexandria, onde teve contato com a
filosofia helênica. Mesmo em ambiente hostil, de maioria cristã e muçulmana, escreveu várias
cartas públicas reafirmando sua fé (THONNARD, 1953). Sua obra principal, O Guia dos Indecisos,
é considerada uma verdadeira suma da teologia judaica. Tomás de Aquino se referia a ele como
Rabbi Moises e inspirou-se nele para desenvolver uma de suas vias de comprovação da existência
de Deus.
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Figura 10 – Maimônides
O termo carolino ou carolíngio é derivado do nome de Carlos I (742-814), rei dos francos e
imperador do ocidente, coroado pelo papa no Natal do ano 800 em Roma. Carlos Magno, como também
é chamado, esteve à frente do governo durante 43 anos e implantou um projeto cultural de grande
envergadura em todo o império, que ficou conhecido mais tarde como o Renascimento carolino. O
projeto tinha como objetivo fazer os povos bárbaros que compunham parte do seu reino se adaptarem
aos padrões greco-romanos assimilados pelo cristianismo. O imperador pretendia legar a todo o seu
império uma cultura verdadeiramente clássica. Para tanto, precisava de um plano educativo eficiente e
que estendesse a cultura a todos os habitantes do império.
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Figura 11 – Momento em que o papa Leão III coroou Carlos Magno como imperador
do Sacro Império Romano no Natal do ano 800
Nessa direção, Carlos Magno não só apoiou o ensino já existente, como também instituiu outros
tipos de escolas para concretizar seu projeto. Daí também a derivação do nome Escolástica; associado a
scholas (do latim escola, aula). O projeto tinha metas abrangentes que incluíam:
• a criação das escolas palacianas e episcopais junto à multiplicação das oficinas de arte nos mosteiros;
• o controle da administração dos condes e dos bispos por intermédio dos emissários do senhor.
Ao mesmo tempo que cuidava das tarefas administrativas, Carlos Magno zelava também pelo
desenvolvimento do cristianismo em todos os territórios conquistados.
Lembrete
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ESCOLÁSTICA CRISTÃ
Vários são os motivos que possibilitaram o novo florescer da Escolástica Cristã nesse ambiente
cultural. Do ponto de vista específico do desenvolvimento das ideias filosóficas, poderíamos salientar
dois fatores fundamentais: a criação das universidades e o ressurgimento da filosofia de Aristóteles.
No fim do século VIII, para colocar em prática seu plano educativo, Carlos Magno mandou convocar
à corte o sábio inglês Alcuíno. O filósofo implantou um programa que consistia no ensino das Artes
Liberais – trívio e quadrívio –, da Medicina, Filosofia, Teologia e, mais tarde, do Direito.
Por exigência do imperador, foram criadas escolas junto aos palácios, conhecidas como escolas
palacianas. Em sentido amplo, a escola palaciana talvez possa ser considerada a semente do que viriam
a ser as universidades que, logo em seguida, surgiram em várias cidades nos séculos XII e XIII.
As escolas monacais funcionavam anexas às abadias beneditinas. No início, eram abertas ao público;
mais tarde, com a criação das escolas episcopais, tornaram‑se reservadas à formação exclusiva dos
monges, futuros professores escolásticos. Por sua vez, as escolas episcopais se estabeleceram junto às
catedrais e se multiplicaram nos séculos XI e XII.
Observação
Nas escolas monásticas e episcopais, ocorriam duas modalidades de aula do ponto de vista
didático: a lectio (lição) e a disputatio (discussão). A lectio era uma espécie de conferência diária,
ministrada pelos doutores escolásticos e composta de sentenças, quase sempre juízos, retiradas
literalmente das Sagradas Escrituras ou de proposições de autoridades da Igreja. Eram aulas que
tinham o objetivo de transmitir e reafirmar os comentários sobre a doutrina católica. A cada uma
ou duas semanas, seguia-se a disputatio, desenvolvida por meio de objeções e respostas entre os
alunos sob a direção severa do mestre. Quanto à forma, tratava-se de um tipo de debate mais livre
sobre um item da matéria vista anteriormente.
Na disputatio, abordava-se uma determinada questão polêmica (quaestio) para que fosse apreciada
com argumentos favoráveis pelos defensores (defendens) ou contrários pelos opositores (opponens).
O objetivo era encontrar um ponto de equilíbrio entre as opiniões conflitantes, tendo o cuidado de
não se afastar das interpretações das autoridades hierárquicas. A disputatio funcionava como exercício
de dialética, de modo a colecionar argumentos para sustentar as verdades ensinadas e aceitas
impreterivelmente pela fé. Ler e comentar eram, portanto, as formas básicas nas quais o pensador
escolástico se movia, se resguardando dos desvios heréticos.
A principal obra objeto de estudo nas discussões eram os livros de lógica de Aristóteles (REALE;
ANTISERI, 1990). O conteúdo das aulas estava estreitamente relacionado à forma didática de ensino,
que se resumia em leitura e exposição oral. A literatura escrita era composta de coleção de sentenças
(ajuizamentos), compilação de citações das autoridades eclesiásticas sobre itens da doutrina, comentários
sobre os posicionamentos de religiosos ou de obras religiosas e, de modo mais sistemático, de sumas.
Summa, do latim, significa soma, totalidade. Era a designação comum dada aos grandes tratados
filosóficos que continham um resumo total da teologia conhecida na época. A suma era organizada na
forma de perguntas e respostas, para facilitar o entendimento e a memorização.
Observação
Por sua vez, em um nível mais elevado, as faculdades de Filosofia e Teologia exigiam de seus
bacharéis o exercício de ensino por meio do comentário (lectio = lição, leitura) e da exposição de uma
tese (disputatio = disputa, debate), esta última feita em público e dirigida por um mestre escolástico.
Os estudantes que alcançavam os maiores graus nos estudos eram reconhecidos como portadores de
um saber universal e ganhavam o direito de lecionar em todo o mundo cristão latino. Tomás de Aquino
aprofundou seus estudos enquanto docente na Universidade de Paris.
As primeiras universidades de que se tem conhecimento são as de Paris (1215 – onde estudou e lecionou
Tomás de Aquino), Bolonha (início do século XIII, famosa pelo curso de Direito), Tolosa (1233), Louvain (1245),
Salamanca (1248), Oxford (1258), Montpellier (1289), Roma (1265), Nápoles (1224) e outras.
Figura 13
aristotélico. Os árabes, em grande parte responsáveis pela transmissão da filosofia grega para o
ocidente cristão (e, em menor grau, os judeus), doaram ao mundo medieval o pensamento do
estagirita. Intermediários desse legado foram os tradutores de Toledo, na Espanha, que a partir de
meados do século XII se incumbiram de transpor para o latim as obras de Aristóteles, bem como
os comentários dos sábios muçulmanos. Para o Ocidente possuir um conhecimento direto da
filosofia aristotélica seria preciso, então, que fosse abolida a ponte do saber islâmico, isto é, que
as obras de Aristóteles fossem traduzidas do árabe para o latim. Guilherme de Moerbecke, amigo
de Tomás de Aquino, empreendeu essa tarefa, que foi também efetuada por outros eruditos,
como Averróis e Avicena, vistos anteriormente (BASTOS, 1981).
• Uma aceitação moderada (quando não antagônica) por parte da corrente franciscana, na qual
persiste uma atitude platônico-agostiniana.
• Uma aprovação radical, em que a filosofia aristotélica, considerada veículo da razão humana,
passa a ser identificada com a própria verdade (por exemplo, o peripatetismo latino de Siger de
Brabante, na linha do árabe Averróis).
• Uma posição intermediária, que fará a síntese clássica da teologia cristã com a filosofia aristotélica,
resultando, por exemplo, na doutrina aristotélica-tomista, iniciada por Alberto Magno e que teve
sua formulação máxima com Tomás de Aquino.
Observação
A relação entre razão e fé, como vimos, é uma questão recorrente entre os filósofos medievais. Foi
assim entre os filósofos da Patrística e volta a ter importância fundamental na Escolástica Cristã. Antes
de aprofundar essa questão junto aos escolásticos, façamos uma comparação entre os usos da razão nos
dois momentos da filosofia medieval.
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ESCOLÁSTICA CRISTÃ
Figura 14
O contexto era de mudança cultural: passagem do império grego para o romano e surgimento dos
novos valores do cristianismo nascente. Os padres discursavam para pessoas simples e diferentes, cujo
perfil desconheciam. O perfil dos ouvintes do discurso missionário era o de uma espécie de adversário,
alguém a ser convertido às novas ideias cristãs. Podia ser um debate intelectual com os filósofos gregos
de modo a confrontar verdades clássicas com os dogmas cristãos. Ou podia ser um sermão de catequese
dirigido ao povo pagão, medianamente helenizado, que deveria ser convertido aos novos princípios das
mensagens evangélicas. Em qualquer alternativa, o receptor do discurso era encarado como alguém
que desconhecia a novidade que se espalhava pelo império; em suma, o interlocutor do discurso era
considerado um estrangeiro (estranho).
No segundo período da filosofia medieval, época do ensino da filosofia nas escolas dos mosteiros, a
atenção dos filósofos está direcionada às questões de natureza exegética, às interpretações dos textos
bíblicos. Embora os clérigos continuassem com os projetos de catequese junto ao povo por meio de
homilías e pregações, a discussão da filosofia concentrava-se nas escolas patrocinadas pelos reis ou
bispos. O discurso filosófico agora não tem mais como propósito a divulgação das verdades cristãs aos
pagãos. Volta-se para a interpretação dessas verdades a partir das interpretações dos textos sagrados. O
filosofar acontece dentro das escolas. A discussão ocorre no isolamento dos mosteiros ou no ambiente
reservado das escolas palacianas. Portanto, trata-se de uma discussão entre pares que se conhecem,
entre parceiros iguais no domínio de conhecimento, o que pressupõe também alinhamento de princípios.
Não há mais estranhos para converter. Não há mais adversários com filosofias contrárias a confrontar.
Nesse caso, sem filosofias esquivas, a expectativa é de que haja um consenso de fé entre os pares nas
interpretações dos textos bíblicos, mas não é o que acontece no campo da fé.
Vale lembrar que fé é um vocábulo latino (fides) derivado de fidelidade (fidelitas) e denota lealdade,
confiança e segurança. Nos primórdios da Idade Média latina, fé significava adesão do devoto aos
preceitos de sua religião. No caso específico do cristianismo, fé equivalia à fidelidade às verdades
reveladas, mesmo que em termos racionais alguma verdade aparentasse ser ilógica, por exemplo, o
dogma da Santíssima Trindade, existência de três pessoas divinas em um só Deus.
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sua lealdade a Deus. De modo contrário, a não expressão pública de sua religião e o não cumprimento
de sua missão evangélica representavam insegurança e falta de confiança em Deus, que eram sinais
de abandono da fé (apostasia).
A princípio, razão e fé não são coincidentes, há sempre uma tensão conflituosa entre as duas
faculdades no interior do homem. O campo da fé poderá ser distendido se não estiver vinculado a uma
doutrina sólida, por sua vez, mantida por uma tradição em revisão constante. Quando há distensão
no exercício da fé, ampliam-se as interpretações livres da doutrina e despontam as hermenêuticas
personalizadas, sem lastro na tradição. Com a livre capacidade de pensar, de imaginar ou mesmo de
desejar um significado ligado à ideologia da ordem religiosa, os professores deixam transparecer suas
subjetividades e acabam incorrendo em desvios heréticos.
No contexto da Idade Média, heresia (haíresis, do grego, escolha) era a forma de pensar ou
agir contrária ao que tinha sido proclamado pela Igreja como matéria de fé. Como vimos antes, a
fé é a faculdade interior do sujeito em termos de adesão incondicional a uma ou mais verdades,
comunicadas por uma autoridade da hierarquia da Igreja: papa, bispos, clérigos e professores
escolásticos. A fé era demonstrada na forma de obediência, mais ou menos cega, à doutrina religiosa,
isto é, aceitação do ensinamento da autoridade sem o uso agudo da razão e sem nenhuma hipótese
de discordância. Discordar, contestar ou simplesmente desviar-se da forma tradicional de ensino da
Igreja eram vistos como atos de heresia. O sujeito que pensasse ou agisse dessa forma passava a ser
considerado um herético ou herege por ter feito uma escolha diferente da aceitação incondicional
da doutrina católica.
No espaço restrito das aulas nas escolas dos mosteiros, o discípulo que apresentasse qualquer desvio
de interpretação era alvo de repreensão pelo mestre escolástico. Se houvesse reincidência no modo de
pensar, era acusado de desobediência doutrinária e, no passo seguinte, de heresia. Consequentemente,
o aluno era passível de punições e até mesmo de condenação à morte. Contudo, mesmo diante dessas
ameaças, constatava-se que o exercício da razão no campo da filosofia proporcionava mais liberdade de
pensamento e favorecia as ocorrências de heterodoxias (doxa, do grego, opinião).
Na modalidade de aula disputatio é que surgia, com mais frequência, o conflito entre a ortodoxia
(mesma opinião) e a heterodoxia (diferente opinião) em relação à dogmática cristã. Todo o período
escolástico conviveu com o problema permanente relacionado à concordância (ortodoxia) com
a corrente de ideias teológicas ou em confronto de discordância (heterodoxia) acerca dessas ideias.
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Outra atitude comum no período escolástico entre os filósofos era a ocorrência do misticismo.
Segundo Abbagnano (1999b, p. 92), o misticismo serviu de instrumento de defesa “contra as aberrações
das heresias e contra as divagações da dialética, isto é, se constituiu em uma arma polêmica para
afirmar o poder da Igreja e reforçar a ortodoxia doutrinal pela qual esse poder era justificado”. Tal
caminho místico era convidativo e até estabelecia uma via fácil para consentir a administração dos
poderes superiores divinos sobre as arrojadas iniciativas racionais dos hereges. Isso porque é própria
do sujeito místico a tentativa de se aproximar da verdade pela própria força da verdade, e não pelo
empenho das suas faculdades racionais.
O filósofo místico dispõe a fé à frente da razão na leitura dos dogmas e abraça a verdade na forma de
união espiritual, como coadunação ou submissão. Aceita unir-se a Deus mediante a ajuda sobrenatural e
direta das forças divinas, deixando a ele apenas a iniciativa da investigação. Na melhor hipótese, trata-se
de uma razão preguiçosa, de uma espécie de abandono de pensar. Na pior hipótese, trata-se de recusa do
exercício da razão, assumindo sua incapacidade de compreender os mistérios divinos. Nesta última condição,
o sujeito místico coloca-se na presença do sagrado como se ingressasse em um campo magnético para ser
atraído por ele. Seu objetivo, ou melhor, seu desejo em nível pessoal, é ser digno de experimentar a iniciativa
divina. Acredita que seja Deus que, do alto, o atrai e que o ergue até a compreensão dos seus mistérios.
Exceção seja feita a Santo Agostinho, que soube resolver bem essa adesão ao místico sem perder a
perspicácia racional. Como vimos, o filósofo soube identificar no âmbito da própria razão, na interioridade
do sujeito, a ação divina na iluminação de suas ideias verdadeiras. Vale ressaltar que é notável em
Agostinho essa ideia de inspiração do alto, resquício do emanacionismo, uma explicação originalmente
filosófica. Para ele, o cristão deveria crer primeiro para depois compreender, ficando a fé iluminada na
dependência da razão esclarecedora. O filósofo soube resolver o equilíbrio entre fé e razão sem incorrer
inteiramente no misticismo. Contudo, não é essa atitude equilibrada e coerente que encontramos
nos pensadores místicos, que praticamente abdicam do uso da razão investigativa, transformando-a
simplesmente em razão contemplativa.
Temos então duas posições antagônicas em cuja base se encontra o desequilíbrio entre fé e razão na
investigação filosófica. À medida que o filósofo amplia o campo de atuação da fé, ingressa no terreno
do misticismo, do ocultismo, até do satanismo, porque se aproxima do insondável e sente-se livre para
imaginar explicações. À medida que o filósofo reivindica maior autonomia para a razão, afastando‑se
do magnetismo da fé, afirma-se na busca de soluções racionais para os problemas teológicos e corre o
risco de cometer heresias.
Por isso é importante a questão da relação entre a razão e a fé no estudo dos filósofos escolásticos.
Há necessidade de definir qual das faculdades tem precedência, de explicitar qual é a relação dialética
entre elas no exercício do filosofar, de questionar se há função especial para a fé na investigação
filosófica no mesmo nível em que há para a razão e de buscar saber se a fé é atividade espiritual
inspirada pelo sagrado – atividade intrínseca à religiosidade do indivíduo – que se serve da razão para
aderir às verdades.
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Por outro lado, considerando a perspectiva política, a relação entre razão e fé na filosofia escolástica
deixa de ser um problema puramente especulativo. Segundo Abbagnano (1999b, p. 12):
Visto dessa perspectiva, o desafio do filósofo escolástico não se resume mais na conciliação da fé com
a razão, na tentativa de estabelecer claramente os domínios e os limites da iniciativa racional em acordo
perfeito com o exercício luminoso da fé. Visto de outra maneira, no fundo, o grande desafio para o
filósofo escolástico passa a ser o de encontrar o ponto de equilíbrio “entre a verdade que o homem pode
conseguir com os seus poderes naturais e a que lhe foi revelada pelo alto e imposta pelas hierarquias”
(ABBAGNANO, 1999b, p. 12). Nessa nova direção, a questão transfere-se do campo lógico‑metodológico
para o âmbito da liberdade humana. Trata‑se de afirmar uma escolha existencial, ressalte‑se que heresia
é escolha. Trata‑se de legitimar uma opção para existir como homem livre, opção que não tem lugar
para o sujeito inserido no contexto religiosamente plano e ordenado do mundo medieval.
É interessante estudarmos o filósofo Pedro Abelardo pelo fermento humanista que trouxe para
sua obra, fruto de uma vida contestadora, como a de Agostinho, mas ao mesmo tempo sistemática e
inovadora, como a de Tomás de Aquino. Não que Abelardo faça sombra aos dois filósofos maiores. O seu
trabalho é relevante do ponto de vista filosófico, e até mesmo político, por ter buscado se subtrair das
determinações hierárquicas e dos condicionamentos institucionais da época. O filósofo, frequentemente,
discordava das estruturas fechadas da igreja e das ordens inconsequentes de seus superiores e tentava
traçar um caminho autônomo na investigação filosófica. Em um contexto de ortodoxia geral, afirmava a
dúvida como ponto de partida para o conhecimento verdadeiro. É de sua reflexão a seguinte afirmação:
“a dúvida nos leva para a investigação, a investigação nos leva para a ciência” (apud ABBAGNANO,
1999b, p. 60). Isso em uma época na qual uma simples dúvida podia ser encarada como apostasia, isto
é, abandono da fé.
Pedro Abelardo nasceu na França, próximo a Nantes, em 1079, de uma família de guerreiros. Foi
discípulo de Roscelin, com quem aprendeu o exercício de levantar objeções nas discussões (disputationes),
e, jovem ainda, tornou-se professor escolástico. Ficou célebre, entre outros fatos, pela sua paixão por
Heloisa, com quem se casou secretamente quando lecionava na Universidade de Paris. Heloisa (1101‑1164)
era sobrinha de um padre parisiense, uma jovem inteligente e literata que fazia diferença para a época
na medida em que participava da vida científica de Paris. Nesse cenário, os dois se conheceram e se
apaixonaram. O desfecho do romance foi uma tragédia psicológica para ambos.
Quando Heloisa engravidou, seu tio, padre Fullbert, perseguiu Abelardo, dando ordens para que
uma armadilha fosse preparada para apanhá-lo e castrá-lo como castigo. Abelardo interrompeu sua
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brilhante carreira de professor escolástico, tornou-se monge, ingressou no mosteiro de Saint Dinis, onde
escreveu suas principais obras e viveu solitário até sua morte em 1142, aos 63 anos. Heloisa, depois de
dar à luz e ser obrigada a entregar a criança para adoção, foi conduzida ao convento de Paracleto, onde
tornou-se abadessa e veio a morrer 22 anos depois de Abelardo. A seu pedido, seus restos mortais foram
reunidos aos de Abelardo, que tinham sido trasladados anteriormente para o cemitério do convento.
Saiba mais
Além do romance trágico, Abelardo se tornou célebre enquanto doutor escolástico pelas aulas que
ministrou nas cidades de Melun e Corbell, até abrir sua própria escola na colina de Santa Genoveva,
em Paris. Muitos estudantes e admiradores de toda a região vinham assistir suas conferências. Segundo
Reale e Antiseri:
Devido ao seu passado de vida irregular na ótica institucional da Igreja Católica, que monitorava
o trabalho dos docentes nas escolas e universidades, o controle dos superiores sobre os escritos de
Abelardo passou a ser mais rigoroso e frequente. Isto posto, o docente foi acusado e condenado duas
vezes pela Igreja por suas audácias filosóficas nas aulas que ministrava. No Concílio de Soisson, em
1121, foi condenado por suas teses sobre o mistério da Santíssima Trindade. No Concílio de Sens, em
1140, foi acusado de cometer desvios em suas teses relativas à lógica e ao papel confiado à razão na
investigação das verdades cristãs. Como vimos, qualquer mudança no equilíbrio entre fé e razão era
motivo de controle ideológico pelos pares e superiores. Abelardo, em lugar de admitir como todos
que o cristão é um sujeito de fé, assumia de forma desafiadora que “ser cristão significa ser lógico”
(HELFERICH, 2006, p. 92).
Na controvérsia dos universais, ou seja, na explicação das categorias de gênero, espécie, diferença,
propriedade e acidente, Abelardo tende para o conceitualismo. Foi o primeiro filósofo que fundamentou
sua solução na função do universal, de significar as coisas, e rejeitou a suposta realidade metafísica do
conceito. Ele assume a definição de Aristóteles lida na introdução de Tópicos (livro 1, item 6): “o gênero
universal é o que nasceu para ser predicado de muitas coisas” (1973, p. 15). Acentua, dessa forma, a
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natureza lógica e funcional do conceito, negando que possa apresentar uma objetividade ontológica ou
gnosiológica (ABBAGNANO, 1999b).
A importância, contudo, de Abelardo está em sua habilidade com a dialética (lógica), por isso o
destacamos. O filósofo sabia aplicar a dialética à teologia, tanto para resolver as contradições dos padres
quanto para explicar os dogmas da Igreja. Diante dos discursos retóricos dos seus adversários, muitas
vezes repetitivos e inconclusivos, Abelardo desenvolveu um método próprio de discussão. O método
simples consistia na exposição enumerada de argumentos precisos, dispostos lado a lado em objeções e
respostas, a partir dos quais, um a um, o filósofo examinava logicamente e demonstrava o que era válido
e o que não era válido no argumento: o sim e o não. O êxito nos debates revelava-se tão produtivo que
Abelardo escolheu Sim e Não como título para uma obra em que sistematizou as objeções que fazia
nas muitas discussões de que participava. Com isso, impulsionou a filosofia racional e, aos poucos, foi
deixando claro que a teologia só poderá elevar-se ao status de ciência se adotar a preciosa ajuda da
razão lógica. Vale lembrar que para ele “ser cristão significa ser lógico” (apud HELFERICH, 2006, p. 92).
A obra de Abelardo pode ser dividida em três grupos, conforme as formas de abordagem: ética, lógica e
teológica. Na abordagem ética, escreveu História das Calamidades, texto autobiográfico, escrito na forma de
correspondência, em que narra o romance que teve com Heloisa em tom de resignação. A obra denominada
Conhece-te a Ti Mesmo é considerada a primeira ética da Idade Média. Constitui‑se em um tratado de moral
em que o autor guarda os referenciais teológicos e afirma a noção filosófica de consciência, revelando uma
nova percepção do problema da subjetividade da razão humana (HELFERICH, 2006).
Apesar de ser sua última obra e estar incompleta, Conhece-te a Ti Mesmo valoriza o elemento
subjetivo e intencional na vida moral, em confronto com o elemento objetivo e legal. Em contraste com
a doutrina moral da Idade Média, Abelardo desenvolve uma ética da intenção, ou seja, propõe que, para
avaliar uma ação, é mais importante a intenção (a consciência) do sujeito que age do que propriamente
o resultado obtido da ação. Outro texto ético é Diálogo entre um Filósofo, um Judeu e um Cristão,
no qual faz declarações sinceras sobre a relação entre as religiões, antecipando, em vários séculos, a
questão do ecumenismo e do problema da intolerância entre as religiões.
No que se refere à lógica, escreveu a obra Glosas Literais, que recebeu mais tarde o título Introduções
Dialéticas, quando foi publicada com fins didáticos para iniciantes em filosofia. Ainda no âmbito da
lógica, a obra metodológica que lhe deu o maior destaque foi Sic et Non (Sim e Não). Como vimos antes,
trata-se de uma coleção de objeções a citações das autoridades da tradição cristã que se contradizem
e uma proposta de resolução dessas contradições. Desde o título, incomum para a época, passando
pelas citações comparadas uma a uma, até suas soluções ao final, tudo traduzia um tom provocativo.
Provocação da qual seus adversários tentavam fugir, temendo sua superioridade intelectual nos debates
que participava.
Do ponto de vista teológico, escreveu uma Teologia Cristã, que mais tarde, com propósitos didáticos,
teve o título mudado para Introdução à Teologia. Vale ressaltar também nessa obra uma inovação
de Abelardo. Ele foi o primeiro teólogo a utilizar o termo teologia como síntese da doutrina cristã.
Antes dele, em Agostinho e no começo da Idade Média, o termo designava “uma especulação pagã ou
puramente filosófica sobre a divindade” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 511).
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Além do problema pessoal que viveu, Abelardo foi uma figura controversa em sua época por se
comportar ao mesmo tempo como filósofo e teólogo, grego e cristão, cético e sistemático, com um
grande pendor para a crítica e para a dialética (PADOVANI; CASTAGNOLI, 1993).
Figura 15
O século XIV é o último século do período correspondente à filosofia medieval. No campo político,
a Alemanha se afasta do poder temporal da Igreja de Roma. O imperador alemão Ludovico V, o bávaro,
que reinou de 1314 a 1347, fez votar o decreto, que ficou conhecido por Sanção Pragmática de
Frankfurt, para demonstrar sua discordância em relação às ordens papais. O decreto proclamava de vez
a independência do império germânico em relação ao poder do papado. O clima de descontentamento
contra Roma era geral e crescente. Fato que, um século mais tarde, vai levar o frade agostiniano Martinho
Lutero a repetir o gesto de ruptura em relação ao papa, justificando, desta feita, com argumentos do
campo doutrinário, além dos de ordem econômica.
O final da Idade Média assistiu a um lento e determinante movimento, entre as forças populares,
de tentativa de laicização do mundo. O objetivo era o de subtrair todo o poder temporal da Igreja e do
sumo pontífice e submetê-lo à autoridade do Estado, no que se refere às questões mundanas (REALE;
ANTISERI, 1990).
Reale e Antiseri (1990, p. 612) escreveram sobre a nova percepção que o sujeito medieval passou a
desenvolver em sua relação com as instituições religiosas católicas:
Polêmicas internas às ordens religiosas e entre seguidores de Tomás de Aquino deixam em aberto
a crise que vai se estender pelo século XIII e se ampliar no século XIV para demonstrar que a razão e
55
Unidade II
a filosofia, antes consideradas subsídios necessários à fé, são vistas agora como instrumentos quase
inúteis em meio às disputas dos escolásticos, disputas vazias de conteúdo real.
Nesse ambiente de tensão, surge o filósofo franciscano Guilherme de Ockham, que representa, mais
do que qualquer outro filósofo da Escolástica, as múltiplas instâncias com que se encerra a Idade Média
e se abre o século XV.
Guilherme, conhecido como príncipe dos nominalistas, nasceu em 1280 na aldeia de Ockham, que lhe
conferiu o sobrenome, como era o costume da época. A aldeia fica perto de Londres, Inglaterra, onde viveu
até completar 20 anos e ingressar na ordem dos franciscanos. Na abadia, recebeu uma formação primorosa
e exigente. Mais tarde, conclui seus estudos universitários em Oxford, comentando a obra Sentenças, de
Pedro Lombardo, que lhe deu o título de bacharel em sentenças. Frequentou ainda as lições do mestre
escolástico Duns Scoto, em Paris, de quem foi, ao mesmo tempo, discípulo e opositor na polêmica dos
universais. Foi dessas experiências de debate com o mestre que iniciou sua teoria do terminismo.
Guilherme volta para Oxford e começa a dar aulas e escrever uma parte significativa de sua obra.
Em 1324, transfere-se para Avignon, sede papal, convocado pelo papa João XXII para responder às
interpelações de desvios doutrinários. Cerca de 50 pontos extraídos de seus escritos eram acusados
de heresia. Uma comissão nomeada pelo papa, depois de três anos de exame, concluiu que da lista
apresentada: sete pontos eram heréticos, 37 eram falsos e quatro considerados temerários. Guilherme
aproveitou esse período em que participava do julgamento em Avignon e concluiu suas maiores obras,
a Suma de Toda a Lógica e o Tratado dos Sacramentos.
Sua situação também se agravou no interior da ordem franciscana, principalmente por ter-se
alinhado à ala intransigente dos freis, que rejeitava as orientações moderadas do papa sobre o problema
da pobreza. Guilherme defendia um conceito rigoroso de pobreza, uma postura de despojamento dos
bens por parte da Igreja e das ordens religiosas, a exemplo de Cristo. Postura que, obviamente, contrariava
a posição conciliatória do papa João XXII. Temendo maiores sanções, foge de Avignon e se refugia em
Pisa, junto ao imperador germânico Ludovico, o bávaro, que apoiava os franciscanos na questão da
distribuição dos bens da Igreja. Mais tarde, seguindo o imperador que lhe dava proteção contra Roma,
viaja para Munique, Alemanha, onde vem a falecer de cólera em 1349.
Saiba mais
____. Que o universal não é uma coisa exterior. In: OCKHAM, W. et. al.
Seleção de textos. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores).
56
ESCOLÁSTICA CRISTÃ
Atuando como teólogo no âmbito da filosofia, Guilherme de Ockham defendeu uma tese sobre
a Trindade Divina, que reproduzimos a seguir, para exemplificar a crise que se instaurou na filosofia
escolástica, deixando exposta a ruptura do equilíbrio entre fé e razão.
O fato de que uma única essência simplicíssima seja três pessoas realmente
distintas é algo que nenhuma razão natural pode se persuadir, sendo
afirmada unicamente pela fé católica, como algo que supera todo sentido,
todo intelecto humano e quase toda razão (OCKHAM, 1973 apud REALE;
ANTISIERI, 1990, p. 615).
Isso significa dizer que a razão é descartável? Não, significa dizer que a razão tem domínio e funções
diferentes do domínio e das funções da fé. Fé e razão não são conciliáveis porque não são relacionáveis
ou dependentes. A razão não é mais a serviçal da fé, nem se trata de libertação da razão. Para Guilherme,
nunca houve essa submissão, pelo simples motivo que a razão e a fé, enquanto faculdades inerentes ao
homem, são diferentes e aplicam-se a domínios distintos.
Essa ruptura entre fé e razão tem como consequência a separação entre Filosofia e Teologia como
campos distintos de investigação. E aí começa a implodir o edifício da Escolástica Cristã. Uma corrente
filosófica que se estendeu por dez séculos no período medieval, sempre em seu enfoque teocêntrico.
A ruptura absoluta entre razão e fé levará à negação de qualquer possibilidade de metafísica, isto é,
negará, pelas vias racionais, o conhecimento de Deus, da alma, do espírito humano e até da moral. Esses
seres abstratos pertencem ao campo da fé (fideísmo), pela fonte das revelações. Abre-se então um terreno
investigativo propício para o surgimento da razão experimental que vai admitir que o conhecimento
sensível é superior ao conhecimento intelectual, ocasião para o aparecimento das correntes empiristas
e racionalistas.
57
Unidade II
Observação
Por outro lado, com a redução da função da fé, fundamento da concepção espiritual do homem
enquanto alma alojada em um corpo, começa a firmar-se um humanismo moderno que, gradativamente,
vai valorizar o homem em si mesmo, seu corpo, seus conhecimentos científicos e suas artes.
Saiba mais
Tomás nasceu em 1225 no castelo de Roccasecca, junto a Nápoles, sul da Itália. Era descendente da
família dos Condes de Aquino, da qual derivou mais tarde o apelido de aquinate. Fez seus primeiros
estudos com os beneditinos, no mosteiro de Monte Cassino. Mais tarde, cursou a Universidade de Nápoles,
onde iniciou os estudos de moral e metafísica, além de Artes Liberais. Aos 19 anos, não obstante a grande
oposição da família que o manteve prisioneiro por um ano, ingressou na ordem dos dominicanos. Um
ano mais tarde, em 1245, tomou definitivamente o hábito de monge e fez sua confissão de fé religiosa.
Desde o início de sua formação, o jovem Tomás mostrou-se muito empenhado nos estudos e fiel
à sua vocação religiosa. A determinação nos estudos e a dedicação à vida religiosa ajudaram-no a
forjar uma disciplina intelectual que contribuiria, mais tarde, na função de sistematizador doutrinário e
religioso dos conteúdos do cristianismo.
Enquanto moço, Tomás teve como professor e mentor a pessoa amiga do frei Alberto Magno, que
o conduziu nos estudos teológicos, primeiro na Universidade de Paris e depois na Universidade de
Colônia, na Alemanha. Já tendo conquistado alguns graus no estudo, em 1248, fundou com seu mestre
Alberto um grupo de estudo: o Studium Generale. O grupo reunia estudantes e mestres, de diferentes
regiões, ligados a uma ordem religiosa sob a orientação de pesquisa e discussão de um ou dois mestres
mais graduados. No caso desse grupo, Tomás atuou, ao mesmo tempo, como professor colaborador e
discípulo do mestre Alberto.
58
ESCOLÁSTICA CRISTÃ
Depois de somar contínuas e importantes experiências docentes, voltou a Paris e, em 1257, recebeu o
título de mestre em Teologia. O título de doutor angélico (que tem natureza de anjo) é uma homenagem
dupla por sua douta sabedoria e seu temperamento sereno de monge beneditino. Retornou à Itália,
onde travou conhecimento com o helenista dominicano Guilherme de Moerbecke, que lhe fornece as
traduções de Aristóteles feitas diretamente do grego (BASTOS, 1981).
Daí em diante até o final da vida, consagrou-se a uma dupla missão inteiramente intelectual: em
primeiro lugar, assimilar as riquezas das ideias de Aristóteles repensando o aristotelismo a partir de
uma ótica cristã; em segundo plano, servir-se dessa base racional e construir uma síntese teológica
que seria sua obra verdadeiramente original. Para cumprir fielmente essa missão, Tomás de Aquino
sacrificou generosamente qualquer dignidade exterior, resguardando-se a uma vida simples de pregador
e professor de Teologia, além de escritor.
59
Unidade II
O objeto da Escolástica Cristã é Deus, como o de todas as filosofias teocêntricas do período medieval.
Mas de modo diferente das outras, particularmente da Patrística, para quem a teologia, a ciência de
Deus, deve preceder o exercício do filosofar. Na Escolástica, a filosofia e a teologia, a rigor, coexistem
numa relação de subordinação.
Na perspectiva escolástica, a filosofia é concebida como produto da razão natural que tem a tripla
função de discernir, interpretar e classificar (hierarquizar) o mundo das coisas e dos seres criados,
preparando o entendimento humano para a acolhida e aceitação das verdades teológicas. A filosofia,
enquanto disciplina preliminar e auxiliar, é subordinada à teologia; antecede, enquanto método, a
abordagem dos problemas teológicos.
Assim, segundo Tomás de Aquino, teologia e filosofia são disciplinas diferentes. O fundamento da
teologia é a razão divina, enquanto o da filosofia é a razão humana. Todavia, a independência que
existe entre seus respectivos conhecimentos não implica incompatibilidade, mas complementaridade.
Ou melhor, as duas ciências se coadunam quanto ao referencial de veracidade. Isto é, tanto a teologia,
revelada por Deus, quanto a filosofia, exercitada pelo homem, dirigem-se, simultaneamente, à verdade
(BASTOS, 1981).
Para o tomismo, a filosofia é uma disciplina essencialmente teorética, é serva da teologia. Por sua vez,
a teologia não deve ser compreendida como uma ciência, a exemplo da filosofia, ou seja, conhecimento
produzido pelo trabalho da razão humana. A teologia é uma teoria, no sentido aristotélico de visão
contemplativa (visão de Deus). As verdades da fé só se tornam perceptíveis na visão do próprio Deus.
A razão humana, por seu lado, consegue ter acesso às verdades teológicas apenas por analogia, no
esforço de compreensão da sabedoria revelada. Desse modo, a filosofia, por meio de princípios racionais
próprios, busca o conhecimento verdadeiro, o qual, em última instância, refere-se à verdade divina, que,
segundo a fé, já se encontra depositada nas Escrituras Sagradas.
escrituras sagradas, é considerada essencialmente uma teologia revelada, o saber de Deus. Doutrina que,
por ser objeto de aceitação a priori pela fé, pode ou não depender da filosofia para sua interpretação
e confirmação. Ou seja, o arcabouço da filosofia se constitui no instrumental lógico-metodológico
para defender e confirmar, no caso dos pagãos, ou esclarecer e interpretar, com exegese, as verdades
teológicas, no caso das discussões entre pares. Nunca, porém, a filosofia vai servir para refutar as verdades
reveladas, o que seria entendido como heresia. A questão da relação entre fé e razão, portanto, é uma
questão de conciliação entre ambas: de cooperação ou de subordinação, jamais de oposição.
No processo de aperfeiçoamento da razão por meio dos instrumentos lógicos da filosofia com o
objetivo de melhorar a compreensão dos textos bíblicos e dos dogmas católicos, apresentam-se duas
alternativas que caracterizam as respectivas correntes da Patrística e da Escolástica: ora a fé ilumina e
direciona a razão, ora a razão coloca-se predominantemente em função da fé, ou seja, a filosofia serve
a teologia.
No âmbito da Patrística, era preciso, com a razão, esclarecer a teologia revelada à fé, afinal, com a
iluminação divina, a razão não pode ser enganada, Deus não permitiria, e, se surgir algum equívoco ou
dilema, sua solução estaria ao nível racional do esclarecimento para compreensão.
Na ordem da Escolástica, será necessário primeiro refinar os raciocínios para compreender melhor
os dogmas revelados. Não se pode perder de vista, porém, que as duas correntes têm como objetivo
final a formação filosófico-teológica dos padres para a missão de ensinar e de catequizar os pagãos,
divulgando assim o cristianismo aos gentios.
Resumindo, para Tomás de Aquino há um equilíbrio estabelecido naturalmente nas relações entre fé
e razão e, consequentemente, entre teologia e filosofia. São distintas nos enfoques de seus objetos, mas
não se separam metodologicamente. A filosofia utiliza as luzes da razão natural, ao passo que a teologia
se vale das luzes da razão divina manifestadas na revelação.
É importante ressaltar, inicialmente, que a corrente tomista navega de modo tranquilo no rio
do continuísmo doutrinário da cristandade durante todo o período medieval. Se o contexto é o
do pensamento comum da Igreja em toda a parte, o pensamento de Tomás de Aquino reflete essa
serenidade ideológica.
Mesmo quando suas ideias próprias repercutem na corrente comum, o filósofo evita as
incompreensões e opta por permanecer alinhado à tradição. Tal tradição era representada:
61
Unidade II
• Em primeiro lugar: pelas Sagradas Escrituras, cujas verdades reveladas têm adesão
incondicional do filósofo.
Não é diferente com Tomás de Aquino ao desenvolver sua metafísica: ele não pretende inovar. Não
só ressuscita Aristóteles, como o conduz a uma lapidação teórica – com inserções complementares
do platonismo – que vai resultar em uma obra‑síntese, a Suma Teológica. É no domínio da metafísica
aristotélica que o filósofo se move e é por aí que se compreende sua visão de mundo e de Deus.
Saiba mais
• A metafísica geral constitui a ontologia, que tem como objeto o ser, tomado em seu sentido mais
amplo, e as leis a ele relativas.
• A metafísica especial estuda o ser em suas inúmeras especificações, representadas em categorias
conceituais, como Deus, alma, espírito e mundo. É também chamada de teologia natural, para
distingui-la da teologia revelada.
Assim, a chave fundamental da metafísica tomista, mais uma vez conforme o aristotelismo, é
o princípio de potência e ato, aplicado para todos os níveis da realidade, desde o mais abstrato
e imponderável do Ser Absoluto ao das manifestações mais simples e concretas da matéria no
mundo físico.
62
ESCOLÁSTICA CRISTÃ
Tomás de Aquino toma emprestada de Aristóteles a ferramenta conceitual de potência e ato para
aplicá-la na análise das coisas do mundo. Potência é a não realidade ou imperfeição, uma capacidade
de concretização de algo, uma capacidade de atingir uma perfeição. Ato designa realidade, perfeição,
concretude resultante da potência em ação. Assim, potência é a possibilidade de determinação das
coisas em ato, que se efetua no movimento do vir a ser. Nessa perspectiva, a matéria é um não ente
(potência) que adquire realidade sob uma forma, isto é, se atualiza (ato) e é determinada pela forma.
A forma é a essência das coisas, entendidas como naturais e materiais, por exemplo, água, ouro,
madeira etc. A substância é um ser completo e real, uma matéria potencializada que obteve uma forma,
uma atualização (ato) enquanto ser no mundo físico. Por fim, a substância é a confluência da matéria
(possibilidade) e da forma (essência).
Lembrete
A unidade do sistema tomista exige que se apresentem também alguns elementos da sua epistemologia
a fim de compreender como o homem constrói seu conhecimento. Do ponto de vista epistemológico, o
tomismo não difere da concepção aristotélica. Admite duas modalidades de conhecimento, o sensível e
o inteligível, processando-se este mediante aquele. As essências são abstraídas do mundo material por
meio do intelecto agente. Estas são transmitidas ao intelecto passivo, no qual se processa, de fato, o
conhecimento racional das coisas. A adequação (adequatio) entre a coisa e o intelecto é que propicia,
então, o conhecimento lógico e verdadeiro dos seres.
Ao contrário da concepção agostiniana que admitia que Deus era conhecido imediatamente pela
intuição, Tomás de Aquino sustenta que Deus pode ser conhecido, mas de modo racional, pelos caminhos
lógicos da demonstração. Deus pode ser inferido da observação das suas criaturas, porquanto o efeito (a
criação) deve ter semelhança com a causa (o Criador). Trata-se da doutrina tomista da analogia, atribuir
a Deus, por comparação ad infinitum, as perfeições da natureza elevadas ao mais alto grau de perfeição.
Assim, para que o raciocínio tenha sucesso, Tomás de Aquino elimina todas as limitações e imperfeições
(potencialidades) dos seres, na ordem da demonstração, para concluir que Deus é a perfeição maior, o
ato puro.
Assim, para Tomás, Deus é a fonte, ao mesmo tempo criadora e explicativa, de todos os seres, é a
causa primeira de todas as criaturas e a causa final para a qual todas as coisas se dirigem. Para justificar
essa tese, o filósofo retoma a teoria da potência e do ato, o princípio metafísico aristotélico do motor
imóvel e ensina que Deus é a causa primeira e absoluta da qual se origina tudo o que existe e tudo
o que se movimenta no Universo. É o único Ser que não precisa ser movido, tal qual o motor imóvel
aristotélico, pois é autossuficiente e se realiza em si. O filósofo ainda confirma teologicamente que
63
Unidade II
Deus é distinto do mundo, negando assim a concepção panteísta, ainda que seja a causa e o princípio
do universo-criatura. Deus também é a Verdade maior, uma identidade consubstancial entre essência e
existência, sendo, devido a essa integração perfeita, o único ato puro.
Saiba mais
Tomás de Aquino constata que, mesmo sendo Deus o primeiro na ordem ontológica, isto é, o
fundamento de tudo o que existe, os homens não conseguem alcançar Deus, espontaneamente, ou
por meio da adesão à fé (fideísmo), ou por uma intuição iluminada de cima (emanacionismo), como
acreditava Agostinho.
Para o filósofo beneditino, Deus deve ser objeto de investigação da razão por meio do
exame de provas, de modo a garantir uma dedução, sem erros, de sua existência. Esse exame
deve resultar em uma demonstração racional dessa existência. Tomás, então, assume para si
esse desafio: provar, de modo filosófico, a existência de Deus. Para realizar essa tarefa, propõe
cinco vias de argumentação. As cinco vias ou caminhos podem ser assim listadas em termos
de argumentos comprobatórios:
• 1ª via: a constatação dos motores que movem os móveis exige um primeiro motor imóvel.
• 2ª via: o encadeamento em série de causas eficientes exige uma primeira causa na série.
• 3ª via: há necessidade de um ser não contingente (necessário) na ordem dos seres contingentes.
• 4ª via: as perfeições, em menor grau constatadas nos seres, supõem essas mesmas perfeições, em
grau máximo, concentradas em um Ser Supremo.
• 5ª via: a organização perfeita do mundo requer uma inteligência organizadora que seja
infinita e onipotente.
64
ESCOLÁSTICA CRISTÃ
Como nenhum ente ou ninguém pode ser causa de si, novamente, levando o procedimento até
o infinito, é necessário parar em uma Causa primeira, infinita e imparticipada (sem a participação de
nenhum outro ser). Se essa causa não existisse, nada mais existiria, pois dela dependem não somente a
série ou o encadeamento geral das outras, mas também cada uma delas.
O quarto argumento, que corresponde à quarta via, procede dos graus de perfeição existentes nas
coisas. Constata-se no mundo de criaturas perfeições puras realizadas em graus diversos de manifestação.
Por exemplo, a perfeição de ser e de unidade, bondade, beleza e nobreza realizam-se de modo verdadeiro
e diverso nos reinos mineral, vegetal, animal e humano. Ora, toda perfeição pura só se explica como
participação a um grau supremo que se realiza, de um modo infinito, ao se aproximar de um Ser que
possui em si a máxima perfeição. Portanto, existe um Ser supremo que é a fonte de todas as perfeições.
A esse Ser perfeito chamamos Deus.
O quinto argumento parte da constatação da ordem existente no mundo e do governo das coisas,
como escreve Tomás. Existe no mundo uma ordem perfeita, estática e dinâmica, nas realizações
65
Unidade II
continuadas, que sugere uma unidade na multiplicidade, isto é, que supõe a existência de um Uno
a governar, do simples ao complexo, o conjunto da obra ordenada. Esse Uno deve ser necessariamente
uma inteligência infinita e perfeita, capaz de constituir e reconstituir sempre a ordem, mesmo sendo
esta mesclada de imperfeições. A ordem do mundo exige a existência de uma Inteligência perfeita
(de um relojoeiro que seja o montador da maquinaria perfeita ou de um arquiteto criador da obra
fenomenal). Essa Inteligência superior denominamos Deus.
Via Filósofos de
Argumento da prova influência
1ª via: a constatação dos motores que movem os Aristóteles
móveis exige um primeiro motor imóvel.
2ª via: o encadeamento em série de causas eficientes Avicena
exige uma primeira Causa na série.
3ª via: há necessidade de um Ser não contingente Maimônides
(necessário) na ordem dos seres contingentes.
4ª via: as perfeições em menor grau dos seres supõem Agostinho
perfeições, máximas, de um Ser Supremo.
5ª via: a organização perfeita da máquina do mundo Anaxágoras e
exige uma inteligência infinita e onipotente. Platão
O mérito de Tomás de Aquino, contudo, foi o de compilar os argumentos separados e elaborar uma
síntese ontológica, conferindo um peso conceitual mais convincente às provas de demonstração.
Para ele, do mesmo modo que para Aristóteles, são as provas racionais que produzem o saber
verdadeiro, e mais que os indícios, que são incertos e podem levar o intelecto a um conhecimento
apenas provável.
66
ESCOLÁSTICA CRISTÃ
Saiba mais
Tomás de Aquino, ainda segundo o aristotelismo, concebe a alma enquanto uma essência (forma)
do corpo (matéria). A alma, no homem, molda a racionalidade enquanto uma essência subsistente,
imaterial, podendo assim prescindir do corpo e possuir, enquanto substância espiritual, a imortalidade.
Na matriz de essência, a alma é o princípio vital do mundo e se manifesta de três formas: a forma
vegetativa das plantas, a sensitiva dos animais e a racional dos homens. No caso dos seres racionais,
além de exercerem as funções vegetativa e sensitiva, inerentes à matéria, a alma é espiritual porque
possui os dons do intelecto e da verdade. Em decorrência dessa imaterialidade, a substância espiritual
da alma é una e indestrutível, consequentemente, imortal.
A alma do homem, princípio vital do corpo, foi criada por Deus e anexada ao corpo no momento do
nascimento. Depois da morte corporal do homem, por decomposição da matéria corruptível, sua alma
imaterial, incorruptível, continua a existir, formando, por si, um novo corpo espiritual, por meio do qual
atuará para sempre na eternidade junto a Deus.
Do ponto de vista civilizatório, da mesma forma que para Aristóteles, o homem, para Tomás de Aquino,
é naturalmente um ser político e procura estar em sociedade. Esse homem deve tributar lealdade à Igreja e
a Deus, mas tem, também, de obedecer ao Estado, porquanto este recebeu o seu poder da Igreja.
Saiba mais
Para complementar o estudo sobre a relação entre corpo e alma do
homem no tomismo, leia na Suma Teológica, Parte II, a Questão 76 – Da
união da alma e do corpo.
AQUINO, T. Suma teológica. [s.l.]. 2003. Disponível em <https://
sumateologica.files.wordpress.com/2017/04/suma-teolc3b3gica.pdf>.
Acesso em: 21 jul. 2017.
67
Unidade II
Não poderíamos deixar de abordar uma polêmica filosófica chave, conhecida como o problema dos
universais, que também foi objeto de discussão na filosofia escolástica.
A questão não é original, pois pode ser encontrada nas categorias de Aristóteles, iniciando‑se
na Escolástica Cristã no século XI a partir dos comentários feitos à obra Isagoge, de Porfírio, filósofo
alexandrino do começo da Patrística. A palavra Isagoge, do grego isos (igual) e agoge (ação de conduzir),
significa introdução, isto é, conduzir o pensamento com noções básicas.
A Isagoge de Porfírio era um tratado preliminar de noções básicas com o objetivo de instruir
com comentários sobre as categorias de Aristóteles. Acontece que um trecho especial dessa obra
motivou a retomada da questão dos universais pelos filósofos escolásticos. O trecho instigador é
o seguinte:
O texto sugere originalmente três propostas para analisar a relação entre a categoria abstrata e a coisa
concreta que representa, ou seja, entre o universal e o indivíduo (singular). Contudo, deixa sem respostas
as seguintes questões: Os universais são reais? Qual é o lugar ontológico (real) ou epistemológico (lógico)
dos universais? Como se processa a correspondência entre os universais e os indivíduos, se é que existe
essa correspondência? A falta de consenso entre os filósofos medievais deixou em aberto o problema,
que se manteve polêmico até o presente.
As soluções dadas pela Escolástica sobre a possível realidade dos universais e suas relações com os
indivíduos são numerosas. Contudo, fundamentalmente, essas soluções se restringem a três formas de
explicação: o realismo, o nominalismo e o conceitualismo. Uma quarta posição busca intermediar as
anteriores e é denominada realismo moderado ou conceitualismo mitigado. Por se tratar de uma forma
mais eclética, não vamos desenvolvê-la.
A primeira explicação, derivada do realismo, nega o objeto concreto como objeto da ciência,
isto é, substitui o objeto concreto por uma ideia subsistente que traz em si todos os caracteres
dos nossos conceitos abstratos. Platão havia pensado assim. Desse modo, só os universais têm
valor absoluto de realidade (o mundo é uma cópia das ideias essenciais, platonismo autêntico).
68
ESCOLÁSTICA CRISTÃ
Entretanto, a solução realista deixa em aberto a resolução quanto ao lugar (topos) dos universais;
é necessário completar a explicação determinando onde se encontram essas realidades: estariam
em um mundo à parte (o mundo eidético de Platão); na mente de Deus; ou simplesmente seriam
imanentes às coisas materiais?
A segunda explicação, pelo nominalismo, afirma inicialmente o objeto concreto como existente, em
seguida nega a ideia espiritual (a essência platônica) e a substitui por um nome comum, um nome simples
que represente o grupo de indivíduos (objetos concretos). A relação entre o indivíduo e o universal é
por indução; de novo, há apenas uma correspondência entre os universais e as coisas significadas numa
relação de indução indivíduo-universal (categoria geral). Contudo, resta ainda explicar como se formam
os caracteres de universalidade e de necessidade no caso das ciências.
Para o nominalista, o indivíduo (objeto concreto) é real, enquanto os universais não, pois são entes
mentais, são nomes comuns dados a grupos de indivíduos afins, sempre a posteriori.
Em síntese, para o realismo, as ideias gerais (os universais) existiriam por si, enquanto entidades
metafísicas (essências) seriam separadas das coisas (indivíduos). O representante dessa corrente é Santo
Anselmo.
Para o nominalismo, as ideias gerais (as categorias universais, como beleza e bondade) não existiriam
em si; são apenas palavras sem existência real. O que existe são apenas os seus singulares (os indivíduos).
O universal não passa de um nome, não passa de uma convenção (signo) atribuída a um grupo real de
objetos. O defensor dessa corrente é Roscelin de Compiègue.
Para o conceitualismo, as ideias gerais (os universais) existiem e são, a priori, presentes no
espírito, do mesmo modo que os indivíduos também são reais e presentes no mundo concreto;
duas formas objetivas de ser, mas não correspondentes. Um exemplo de representante da corrente
é Pedro Abelardo.
Essas eram as explicações possíveis dadas ao problema dos universais pelos filósofos medievais,
influenciados pelas ideias neoplatônicas e religiosas da época. Hoje, com o avanço das ciências
cognitivas, entende-se que os universais (as categorias mentais) não têm outra objetividade que não
seja a fabricada pelo espírito: uma objetividade conceitual não real.
69
Unidade II
A questão dos universais foi objeto também da análise de Tomás de Aquino, mas não de
sua exclusividade. Desde Platão e Aristóteles, o problema incomodou os filósofos, exigindo uma
resposta gnosiológica para dar legitimidade aos conceitos formulados e à realidade dos seres aos
quais esses conceitos se referiam. A questão, na verdade, não se restringe somente à ordem do
conhecimento (gnosiologia), mas refere-se também à ordem das coisas (ontologia), na tentativa
de conciliar esses planos de explicação dos seres.
Saiba mais
Segundo Abbagnano (1970), de forma resumida, a questão dos universais consiste na explicação
da correlação entre categorias conceituais – gêneros e espécies – denominadas os universais e os
indivíduos (coisas) do mundo. Observa-se que indivíduo não é sinônimo de sujeito ou pessoa, como se
utiliza no cotidiano. Indivíduo significa o que não se divide, o indivisível, isto é, qualquer corpo ou ser
que constitui um todo distinto em relação à espécie a que pertence.
70
ESCOLÁSTICA CRISTÃ
Explicando de outro modo, as coisas ou objetos do mundo, percebidos por um sujeito no ato
de conhecimento, são indivíduos singulares. Por exemplo: a laranjeira no quintal, o cachorro de
estimação, o carro na garagem e o vizinho Edson. Em contrapartida, os conceitos ou categorias
conceituais, com que o observador pensa esses objetos, são os universais: respectivamente, árvore
(laranjeira), animal (cachorro), veículo (carro) e homem (Edson). Em suma, os objetos percebidos
são pensados segundo seu gênero ou espécie, isto é, são pensados em função de categorias
conceituais universais.
As questões que basicamente desafiaram Tomás de Aquino a se dedicar ao problema dos universais
podem ser assim apresentadas:
b) Em que medida o conhecimento da mente refere-se verdadeiramente à realidade das coisas que
esta conhece?
Na Idade Média, na época de Tomás de Aquino, destacavam-se duas posições filosóficas que
apresentaram soluções diferentes para essas questões: a do realismo e a do nominalismo.
Para os filósofos da vertente realista, os universais são coisas (res) e estão presentes em todos os
homens, distinguindo-se das coisas do mundo apenas por acidentes. De modo oposto, para os filósofos
nominalistas, o que existe são somente as coisas singulares (indivíduos), não se encontrando nada na
natureza que seja universal. Os universais, por sua vez, estão na mente como algo posterior às coisas e
são expressos e conhecidos pelas palavras (MARÍAS, 2004).
Tomás de Aquino buscou integrar as duas correntes. De modo sintético, tenta reunir os níveis de
abstração – o gnosiológico e o ontológico - na seguinte solução: os universais são produtos mentais
do espírito, mas estão fundados no real extramental. Os universais, enquanto produtos formais da
mente, não existem na mente de modo espontâneo ou a priori; independentemente da experiência,
são algo que a mente produziu a partir da experiência corporal da realidade, portanto, têm um
fundamento na realidade. “O universal tem uma existência, mas não como coisa separada, e sim como
um momento das coisas; não é res, como queriam os realistas extremados, mas tampouco é uma
palavra, é in re” (MARÍAS, 2004, p. 145).
Para Tomás os universais constituem essências autônomas que tornam inteligíveis os seres
particulares. O conhecimento só ocorre no domínio das essências universais, aquelas formas universais
mediante as quais são determinados os seres individuais.
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Unidade II
Para o conceitualista Pedro Abelardo, só existiriam as realidades singulares, mas seria possível buscar
semelhanças entre os seres individuais por meio da abstração de maneira a gerar os conceitos universais.
Tais conceitos não seriam nem entidades metafísicas (posição do realismo), nem palavras vazias (posição
do nominalismo), mas discursos mentais, categorias lógico-linguísticas que fazem a mediação, a ligação
e a conexão entre o mundo do pensamento e o mundo do ser – o racional e o real (HELFERICH, 2006).
Por fim, Tomás de Aquino responde às questões ordenadas no início de sua investigação sobre o
problema dos universais. Quanto à relação entre universais e indivíduos (questão a), trata-se de uma
relação de vínculo empírico entre o intelecto passivo e o mundo ativo, uma abstração mental de um
produto concreto extramental. Quanto à relação do conhecimento com a realidade (questão b), Tomás
ensina que a ideia, que está na mente, é verdadeira se está adequada à realidade da coisa conhecida.
Finalmente, a respeito de os universais também serem coisas, o filósofo deduz que os universais não são
coisas, no sentido ontológico, mas abstrações extramentais.
Tomás de Aquino, independentemente da fé, constrói uma filosofia natural pelo método indutivo
a partir da experiência do mundo. Emprega o método lógico-indutivo aristotélico para atingir suas
conclusões teológicas.
A filosofia de Tomás de Aquino, com forte sentido sistemático, combinou a filosofia aristotélica às
linhas dogmáticas do cristianismo.
Comparando as filosofias, pode-se dizer que Agostinho construiu uma sabedoria de base existencial
e cristã, enquanto Tomás de Aquino desenvolveu uma metafísica para a sistematização da doutrina
cristã, separando em domínios distintos a função da filosofia e da teologia.
O declínio da Escolástica ou o período pós-tomista (do final do século XIII ao XV) caracteriza-se por
um retorno ao platonismo, com misturas de elementos aristotélicos. Os projetos metafísicos do tomismo
cedem lugar ao fideísmo, corrente na qual a fé é anteposta à razão, e as verdades são aceitas a priori para
depois serem compreendidas, representando uma espécie de retrocesso ao pensamento agostiniano.
Do ponto de vista teológico não seria problema, pois o enfoque teocêntrico é o mesmo, não havendo
desvios doutrinários a assinalar. O problema que se depara aqui é que esse retrocesso atrasou, por
quase dois séculos, a consolidação da mentalidade científica. Mesmo assim, os métodos indutivos e as
pesquisas experimentais, atitudes postas de lado ou tidas com pouco apreço pelos escolásticos durante
toda a Idade Média, começam a surgir, de maneira pontual, mas intensa, em várias cidades europeias,
inaugurando o desenvolvimento das ciências empíricas.
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ESCOLÁSTICA CRISTÃ
Resumo
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Unidade II
O Tomás jovem teve como professor o frei e filósofo Alberto Magno, que
o orientou nos estudos na Universidade de Paris e depois na Universidade
de Colônia, Alemanha. Após obter vários graus no estudo, funda um grupo
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ESCOLÁSTICA CRISTÃ
Exercícios
Questão 1 (Enade 2014). A quarta via se toma dos graus que se encontram nas coisas. Encontra-se
nas coisas algo mais ou menos bom, mais ou menos verdadeiro, mais ou menos nobre etc. Ora, mais ou
menos se dizem de coisas diversas conforme elas se aproximem diferentemente daquilo que é em si o
máximo. Assim, mais quente é o que se aproxima do que é sumamente quente. Existe em grau supremo
algo verdadeiro, bom, nobre e, consequentemente, o ente em grau supremo, pois, como se mostra no
livro II da Metafísica, o que é em sumo grau verdadeiro é ente em sumo grau. Por outro lado, o que se
encontra no mais alto grau em determinado gênero é causa de tudo que é desse gênero: assim o fogo,
que é quente, no mais alto grau, é causa do calor de todo e qualquer corpo aquecido, como é explicado
no mesmo livro. Existe então algo que é, para todos os outros entes, causa de ser, de bondade e de toda
a perfeição: nós o chamamos de Deus.
Essa via da existência de Deus, elaborada por Tomás de Aquino, difere de suas outras vias, pois
conjuga o princípio de casualidade aristotélico com outro princípio da filosofia antiga. Com base no
modo de demonstração evidenciado pelo texto acima, infere-se que se trata do princípio:
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ESCOLÁSTICA CRISTÃ
Análise da alternativa
O trecho selecionado trata do grau das coisas, considerando que há o grau supremo que dá medida
aos demais entes do gênero. Assim, a existência de Deus é afirmada com a ideia de que existe algo que
é, “para todos os outros entes, causa de ser, de bondade e de toda a perfeição”.
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FIGURAS E ILUSTRAÇÕES
Figura 1
Figura 2
Figura 3
Figura 4
Figura 5
Figura 6
Figura 7
Figura 8
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Figura 9
Figura 10
Figura 11
Figura 12
Figura 13
Figura 14
Figura 15
Figura 16
ZURBARÁN, F. Apoteose de Santo Tomás de Aquino. 1631. Óleo sobre tela. 475 cm x 375 cm.
79
REFERÊNCIAS
Audiovisuais
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EM NOME de Deus. Dir. Peter Mullan. Irlanda/Reino Unido: NBO, 1988. 108 minutos.
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___. A Cidade de Deus: parte 1. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. Disponível em:
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Exercícios
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Informações:
www.sepi.unip.br ou 0800 010 9000