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Material Complementar do 4° Bimestre

Escolástica: A matriz aristotélica até Deus

Voltando ao contexto histórico, no século VIII, Carlos magno, rei dos francos coroado imperador do
ocidente em 800 pelo papa leão III, organizou o ensino e fundou escolas ligadas às instituições
católicas. Com isso, a cultura greco-romana, em boa parte guardada nos mosteiros, voltou a ser
mais divulgada, passando a ter influência marcante nas reflexões da época. Era o período da
renascença carolíngia. Renascença carolíngia – refere-se ao estímulo dado à atividade cultural
(letras, arte, educação) que marcou o governo de Carlos magno.
A obra realizada nessa época muito contribuiu para a preservação e a transmissão da cultura da
antiguidade clássica. adotou-se nessas escolas a educação romana como modelo. Começaram a ser
ensinadas matérias como o Trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (geometria,
aritmética, astronomia e música). Todas elas, no entanto, estavam submetidas à teologia.
Com o ambiente cultural dessas escolas e o surgimento posterior das primeiras universidades (a
partir do século Xi), desenvolveu-se uma produção filosófico teológica denominada escolástica
(palavra derivada de escola). A escolástica não abandonou, em um primeiro momento, a filosofia
platônica, especialmente o neoplatonismo. mas, a partir do século XIII, o aristotelismo penetrou de
forma profunda no pensamento escolástico, marcando-o definitivamente. Isso se deveu à descoberta
de muitas obras de Aristóteles, desconhecidas até então, e à tradução para o latim de algumas delas,
diretamente do grego.

Relação entre fé e razão


No período escolástico, a busca de harmonização entre a fé cristã e a razão manteve-se como
problema básico de especulação filosófica. Nesse contexto, a escolástica pode ser dividida em três
fases:
• primeira fase (do século IX ao fim do século XII) – confiança na perfeita harmonia entre fé e
razão;
• segunda fase (do século XIII ao princípio do século XIV) – elaboração de grandes sistemas
filosóficos, merecendo destaque as obras de Tomás de Aquino. nessa fase, considera-se que a
harmonização entre fé e razão pode ser parcialmente obtida;
• terceira fase (do século XIV até o século XVI) – declínio da escolástica, marcada por disputas que
realçam as diferenças entre fé e razão. estudo da lógica além de apresentar o traço fundamental da
filosofia medieval, que é a referência às questões teológicas, a escolástica promoveu significativos
avanços no estudo da lógica. um dos filósofos que mais contribuíram para o desenvolvimento dos
estudos lógicos nesse período foi o romano Boécio, que, embora tenha vivido de 480 a 524, é
considerado o primeiro dos escolásticos. Ele aperfeiçoou o quadrado lógico. Também foi o primeiro
a introduzir a questão dos universais, problema filosófico longamente discutido durante todo o
período da escolástica.

Questão dos universais


Essa questão surgiu no contexto em que se desenvolveu o método escolástico de investigação.
Como observou o historiador francês Jacques le Goff, esse método privilegiava o estudo da
linguagem (as três matérias que compunham o Trivium) para depois passar ao exame das coisas (as
quatro matérias do quadrivium).
Desse modo, era inevitável que, em algum momento, alguém levantasse a seguinte pergunta: qual a
relação entre as palavras e as coisas? Rosa, por exemplo, é o nome de uma flor. quando a flor
morre, a palavra rosa continua existindo. nesse caso, a palavra fala de uma coisa inexistente, de uma
ideia geral. Mas por que isso acontece? o grande inspirador da questão foi o filósofo neoplatônico
Porfírio (234-305, aproximadamente), em sua obra Isagoge:
“Não tentarei enunciar se os gêneros e as espécies existem por si mesmos ou na pura inteligência,
nem, no caso de subsistirem, se são corpóreos ou incorpóreos, nem se existem separados dos
objetos sensíveis ou nestes objetos, formando parte dos mesmos. (Citado em Valverde et al.,
História do Pensamento, v. 1, p. 161.)”
Ou seja, o problema foi colocado de qualquer maneira, gerando muitas disputas. trata-se da
discussão sobre a existência ou não das ideias gerais, os chamados termos universais – que
correspondem à substância, uma das dez categorias de termos ou predicados de Aristóteles. Por
isso, ficou conhecida como a questão dos universais.

Tal debate envolveu não apenas problemas linguísticos, gnoseológicos e metafísicos, mas também
teológicos, dando origem a duas posições antagônicas básicas: o realismo e o nominalismo.

Realismo
Os adeptos do realismo sustentavam a tese de que os universais existem de fato, ou seja, as ideias
universais possuem existência própria. Por exemplo: a bondade e a beleza são modelos ou moldes a
partir dos quais se criam as coisas boas e as coisas belas. os termos universais seriam, portanto,
entidades metafísicas, essências separadas das coisas individuais. Essa posição foi defendida, por
exemplo, pelo abade beneditino e arcebispo de Cantuária (Canterbury, cidade inglesa) Santo
Anselmo (1035-1109), que acreditava que as ideias universais existiriam na mente divina. o filósofo
e bispo francês Guilherme de Champeaux (1070-1121) também adotou a interpretação realista ao
propor que entre o universo das coisas e o universo dos nomes há uma analogia tal que, quanto mais
“universal” for o termo gramatical, maior será seu grau de participação na perfeição original da
ideia. assim, por exemplo, o substantivo brancura teria uma perfeição maior do que o adjetivo
branco, que se refere a um ente singular. ou seja, na mesma linha de raciocínio de Platão, o
universal brancura seria mais perfeito do que qualquer coisa branca existente.

Nominalismo
Os defensores do nominalismo, por sua vez, sustentavam a tese de que os termos universais, tais
como beleza e bondade, não existem em si mesmos, pois são somente palavras, sem existência real.
Para os nominalistas, o que há são apenas os seres singulares, e o universal não passa, portanto, de
um nome, uma convenção. Essa era a posição do filósofo francês Roscelin de Compiègne (1050-
1120), para quem só existiria a individualidade – logo, anulam-se os termos universais. Roscelin
também negava que Deus pudesse ser uno e trino ao mesmo tempo (a chamada Santíssima trindade,
um dos dogmas da igreja Católica), porque para ele cada pessoa da trindade seria uma
individualidade separada.

Realismo moderado
Entre essas duas posições contrárias surgiu uma terceira, o realismo moderado, sustentado por
Pedro Abelardo (1079-1142). Para esse filósofo francês, só existem as realidades singulares, mas é
possível buscar semelhanças entre os seres individuais, por meio da abstração, de maneira tal a
gerar os conceitos universais.
Esses conceitos não seriam, de acordo com Abelardo, nem entidades metafísicas (posição do
realismo) nem palavras vazias (posição do nominalismo), mas discursos mentais, categorias lógico-
-linguísticas que fazem a mediação, a ligação entre o mundo do pensamento e o mundo do ser. a
importância da questão dos universais está não só no avanço que essa discussão possibilitou em
relação à investigação sobre o conhecimento e seus vínculos com a realidade, mas também porque,
por meio dela, alcançou-se um alto nível de desenvolvimento lógico-linguístico. isso propiciou o
fortalecimento de uma razão autônoma em relação à teologia, já por volta do século XII.

Santo Tomás de Aquino

Tomás de Aquino nasceu em Nápoles, sul da Itália. Proclamado pela igreja Católica como Doutor
angélico e Doutor por Excelência, é considerado um dos maiores filósofos da escolástica e
reverenciado nos meios católicos por filósofos e professores de filosofia.
A filosofia de Tomás de Aquino (1226-1274) – o tomismo – também teve o objetivo claro de não
contrariar a fé, empenhando-se em organizar um conjunto de argumentos para demonstrar e
defender as revelações do cristianismo.
Tomás de Aquino reviveu em grande parte o pensamento aristotélico em busca de argumentos que
explicassem os principais aspectos da fé cristã. Assim, fez da filosofia de Aristóteles um
instrumento a serviço da solução dos problemas teológicos que enfrentava, ao mesmo tempo em
que transformou essa filosofia em uma síntese original. Sobre Tomás de Aquino, escreveu o filósofo
católico francês Jacques Maritain (1882-1973):
“Não só transportou para o domínio do pensamento cristão a filosofia de Aristóteles na sua
integridade, para fazer dela o instrumento de uma síntese teológica admirável, como também e ao
mesmo tempo superelevou e, por assim dizer, transfigurou essa filosofia. Purificou-a de todo
vestígio de erro [...] sistematizou-a poderosa e harmoniosamente, aprofundando-lhe os princípios,
destacando as conclusões, alargando os horizontes, e se nada cortou, muito acrescentou,
enriquecendo-a com o imenso tesouro da tradição latina e cristã. (Introdução geral à filosofia, p.
65.)”

Princípios básicos

Retomando as ideias de Aristóteles sobre o ser e o saber (reveja o capítulo 12), Tomás de Aquino
enfatizou a importância da realidade sensorial, ressaltando uma série de princípios considerados
básicos, dentre os quais se destacam:
• princípio da não contradição – o ser é ou não é. Não existe nada que possa ser e não ser ao mesmo
tempo e sob o mesmo ponto de vista;
• princípio da substância – na existência dos seres podemos distinguir a substância (a essência
propriamente dita de uma coisa, sem a qual ela não seria aquilo que é) do acidente (a qualidade não
essencial, acessória do ser);
• princípio da causa eficiente – todos os seres que captamos pelos sentidos são seres contingentes,
isto é, não possuem em si próprios a causa eficiente de suas existências. Portanto, para existir, o ser
contingente depende de outro ser que representa sua causa eficiente, chamado de ser necessário;
• princípio da finalidade – todo ser contingente existe em função de uma finalidade, de uma “razão
de ser”. Enfim, todo ser contingente possui uma causa final;
• princípio do ato e da potência – todo ser contingente possui duas dimensões: o ato e a potência. o
ato representa a existência atual do ser, aquilo que está realizado e determinado. A potência
representa a capacidade real do ser, aquilo que não se realizou mas pode se realizar. É a passagem
da potência para o ato que explica toda e qualquer mudança.
Vemos, portanto, uma pequena mostra de como o filósofo escolástico empreendeu uma
sistematização da doutrina cristã apoiando-se em boa medida na filosofia aristotélica, embora de
forma combinada com diversos elementos estranhos ao aristotelismo, como o conceito de criação
do mundo, a noção de um deus único e a ideia de que o vir a ser (a passagem da potência ao ato)
não é autodeterminado, mas procede de Deus.

Ser e essência
Uma novidade trazida por Tomás de Aquino é a distinção entre o ser (ou a existência) e a essência,
o que implicou a divisão da metafísica em duas partes: a do ser em geral e a do ser pleno, que é
Deus. De acordo com o filósofo, em todas as criaturas o ser (ou existir) é diferente de sua essência.
Para um ser humano, por exemplo, existir é continuar sendo sua essência (um ser humano); quando
ele deixa de existir, sua essência desaparece. o único ser realmente pleno, no qual o ser (ou existir) e
a essência se identificam, é Deus. Deus é ato puro. não há o que realizar ou atualizar em Deus, pois
ele é completo. Por isso, Tomás de Aquino dizia que Deus é Ser, e o mundo tem ser. ou seja, Deus é
o Ser que existe como fundamento da realidade das outras essências, as quais, uma vez existentes,
participam de seu Ser. Já nas outras criaturas, o ser é diferente da essência, pois são seres não
necessários. É Deus que permite às essências realizarem-se em entes, em seres existentes.
Provas da existência de Deus

Outro aspecto importante da filosofia tomista são suas provas da existência de Deus. Em um de seus
mais famosos livros, a Suma teológica, Tomás de Aquino propõe cinco vias como provas,
fundamentadas na existência do mundo e na experiência (ou seja, são provas a posteriori). a ideia
básica é a de que, se existe o efeito (o mundo), existe a causa (um ser transcendente, Deus).
Vejamos:
• o primeiro motor (1a prova) – tudo aquilo que se move é movido por outro ser. Esse outro ser, por
sua vez, para se mover necessita também ser movido por outro ser, e assim sucessivamente.
Se não houvesse um primeiro ser movente, cairíamos em um processo indefinido. logo, conclui
Tomás de Aquino, é necessário chegar a um primeiro ser movente que não seja movido por nenhum
outro. Esse ser é Deus;

• a causa eficiente (2a prova) – todas as coisas existentes no mundo não possuem em si a causa
eficiente de suas existências. Devem ser consideradas efeitos de alguma causa. tomás de aquino
afirma ser impossível remontar indefinidamente à procura das causas eficientes. logo, é necessário
admitir a existência de uma primeira causa eficiente, responsável pela sucessão de efeitos. Essa
causa primeira é Deus;

• ser necessário e ser contingente (3a prova) – esse argumento, uma variante do segundo, afirma que
todo ser contingente, do mesmo modo que existe, pode deixar de existir. ora, se todas as coisas que
existem podem deixar de ser, então em algum momento nada existiu. mas, se assim fosse, também
agora nada existiria, pois aquilo que não existe somente começa a existir em função de algo que já
existia. Então é preciso admitir que há um ser que sempre existiu, um ser absolutamente necessário,
que não tenha fora de si a causa de sua existência, mas, ao contrário, que seja a causa da
necessidade de todos os seres contingentes. Esse ser necessário é Deus;

• os graus de perfeição (4a prova) – em relação à qualidade de todas as coisas existentes, pode-se
afirmar que há graus diversos de perfeição. assim, estabelecemos que tal coisa é melhor que outra,
ou mais bela, ou mais poderosa, ou mais verdadeira etc. ora, se uma coisa possui “mais” ou
“menos” determinada qualidade positiva, isso supõe que deva existir um ser com o máximo dessa
qualidade, no nível da perfeição. Devemos admitir, então, que existe um ser com o máximo de
bondade, de beleza, de poder, de verdade, sendo, portanto, um ser máximo e pleno. Esse ser é Deus;

• a finalidade do ser (5a prova) – todas as coisas brutas, que não possuem inteligência própria,
existem na natureza cumprindo uma função, um objetivo, uma finalidade, tal como a flecha
orientada pelo arqueiro. Devemos admitir, então, que existe algum ser inteligente que dirige todas
as coisas da natureza para que cumpram seu objetivo. Esse ser é Deus.

Atividades

1) Nas últimas décadas, deparando com a complexa “engenhosidade” da natureza e do cosmo,


diversos cientistas (físicos, químicos, biólogos etc.) têm colocado em dúvida, cada um a seu modo,
o entendimento predominante no mundo da ciência de que o universo e toda a vida são o resultado
de um acaso materialista. Haveria uma inteligência, consciência ou intencionalidade por detrás de
tudo o que existe?
Comente a respeito
2) Em que contexto histórico desenvolveu-se a escolástica?

3) Explique a chamada “questão dos universais”. Qual posição você adotaria nessa discussão?
Justifique.

4) Inserida no movimento escolástico, a filosofia de Tomás de Aquino já nasce com objetivos


preestabelecidos: não contrariar a fé. Explique essa afirmação e ilustre com, pelo menos, um
exemplo do texto.

5) Qual é a diferença, estabelecida por Tomás de Aquino, entre ser em geral e ser pleno?

6) Santo Tomás de Aquino elaborou cinco provas para demonstrar racionalmente a existência de
Deus. Reveja cada uma delas. Qual seria, para você, a prova que apresenta a melhor argumentação?
E a mais fraca? Justifique

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