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Teoria do conhecimento na Idade Média

Aquilo que a verdade descobrir não pode contrariar aos litros sagrados, quer do
Antigo quer do

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Novo Testamento. (Santo Agostinho)

1. A patrística

No período de decadência do Império Romano, quando o cristianismo se expande,


surge a partir do século II a filosofia dos Padres da Igreja, conhecida também como
patrística. No esforço de converter os pagãos, combater as heresias e justificar a fé,
desenvolvem a apologetica, elaborando textos de efesa do cristianismo. Começa aí
uma longa liança entre fé e razão que se estende por toda Idade Média e em que a
razão é considerada auxiliar da fé e a ela subordinada. Daí a expressão agostiniana
"Credo ut intelligam",q ue significa "Creio para que possa entender". Os Padres
recorrem inicialmente à filosofia platônica e realizam uma grande síntese com a
doutrina cristã, mediante adaptações consideradas necessarias. O principal nome
da patrística é Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona, cidade do norte da Africa.
Agostinho retoma a dicotomia platônica referente ao mundo sensível e ao mundo das
idéias e substitui esse último pelas idéias divinas. Segundo a teoria da iluminação, o
homem recebe de Deus o conhecimento das verdades eternas: tal como Sol, Deus
ilumina a razão e torna possível o pensar correto. Santo Agostinho viveu no final
da Antiidade; logo depois Roma cai nas mãos dos bárbaros, tendo início o longo
período da Idade Média. Na primeira metade, conhecida como Alta Idade Média,
continua sendo enorme a influência dos Padres da Igreja, e vários pensadores de saber
enciclopédico retomam a cultura antiga, continuando o trabalho de adequação às
verdades teológicas.

2. A escolástica

A escolástica é a filosofia cristã que se desenvolve desde o século IX, tem o seu
apogeu no século XIII e começo do século XIV, quando entra em decadência.
Continua a aliança entre razão e fé, aquela sempre considerada a "serva da teologia".
Com freqüência as disputas terminam com o apelo ao princípio da autoridade, que
consiste na recomendação de humildade para se consultar os intérpretes autorizados
pela Igreja. No entanto, a partir do século Xl, com o renascimento urbano,
começam a surgir ameaças de ruptura da unidade da Igreja, e as heresias anunciam o
novo tempo de contestação e debates em que a razão busca sua autonomia. Inúmeras
universidades aparecem por toda a Europa e são indicativas do gosto pelo racional,
tornando-se focos por excelência de fermentaçao intelectual. Durante muito
tempo predomina na Idade Média a influência da filosofia de Platão, considerada mais
adaptável aos ideais cristãos. O pensamento de Aristóteles era visto com desconfiança,
ainda mais pelo fato de os árabes terem feito interpretações tidas Como perigosas
para a fé. A partir do século XIII, Santo Tomás utiliza as traduções feitas
diretamente do grego e faz a síntese mais fecunda da escolástica. e que será conhecida
como filosofia aristotélico-tomista. Daí para frente a influência de Aristóteles se fará
sentir de maneira forte, sobretudo pela ação dos padres dominicanos e mais tarde dos
jesuítas, que desde o Renascimento, e por vários séculos, mostraram-se empenhados
na formação dos jovens.

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Se por um momento a recuperação do aristotelismo constitui um recurso fecundo


para Santo Tomás, já no período final da escolástica torna-se um entrave para o
desenvolvimento da ciência. Basta lembrar a crítica de Descartes e a luta de Galileu
contra o saber petrificado da escolástica decadente.

A questão dos universais

Aristóteles não será conhecido na Idade Média a não ser a partir do século XIII,
quando suas obras são traduzidas para o latim. No entanto, no século VI. Boécio
traduzira a lógica aristotélica, tecendo um comentário a respeito da questão da
existência real ou não dos universais. O universal é o conceito, a idéia, a essencia
comum a todas as coisas (por exemplo, o conceito de homem). Em outras palavras,
perguntava-se se os gêneros e espécies tinham existência separada dos objetos
sensíveis: as espécies (como o cão) e os gêneros (como os animais).

teriam existência real"? Ou seja, selam realidades, idéias ou apenas" palavras? Essa
questáo é retomada nos séculos XI e XII, alimentando longa polêmica, cujas soluções
principais são: o realismo, o conceptualismo e o nominalismo. Os realistas, como
Santo Anselmo e Guilherme de Champeaux, consideram que o universal tem realidade
objetiva (são res, ou seja, "cOisa"). É evidente a influência platônica do mundo das
idéias. No século XIII, Santo Tomás de Aquino, já conhecendo Aristóteles, é partidário
do realismo moderado, segundo o qual os universais só existem formalmente no
espírito, mas têm fundamento nas coisas. Para os nominalistas, como Roscelino, o
universal é apenas um conteúdo da nossa mente, expresso em um nome. Ou seja, os
universais são apenas palavras, sem nenhuma realidade específica correspondente.
Essa tendência reaparece no século XIV com Guilherme de Ockam, franciscano que
representa a reação à filosofia de Santo Tomás. Pedro Abelardo, grande mestre
da polêmica, opta pela posição conceptualista, intermediária entre as duas anteriores.
Para ele os universais são conceitos, entidades mentais. Podemos analisar o
significado dessas oposições a partir das contradições que estahelecem fissuras na
compreensão mística de mundo medieval. Sob esse aspecto, os realistas são os
partidários da tradição, e como valorizam o universal, a autoridade, a verdade eterna,
representada pela fé. Por outro lado os nominalistas consideram que o individual e
mais real, indicando o deslocamento do critério da verdade da fé e da autoridade para
a razão humana. Naquele momento histórica essa última posição representa a
emergência do racionalismo burguês em oposição às forças feudais que deseja
superar.

Exercícios

1. Qual é a importãncia da apologética, e em que medida essa preocupação


represetara a especificidade do pennsamento medieval?

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2. Como se deu a influência de Platão e Aristóteles no período medieval?


3. Em que consiste a questão dos universais? Em que eles retomam questões
abordadas pelos gregos? Que significado podem ter, considerando as mudanças que
ocorrem naquele período medieval? 4. Leia o texto complementar, de Santo
Tomás , e responda: a) A razão humana pode contrariar as verdades da fé?
b) As verdades da fé podem ser contrárias aos princípios da razão? c) Qual é a
hierarquia que se estabelece entre fé e razão?

Texto complementar

I As verdades da razão natural não contradizem as verdades da fé cristã

Se é verdade que a verdade da fé cristã ultrapassa as capacidades da razão


humana, nem por isso os princípios inatos naturalmente à razão podem estar em
contradição com esta verdade sobrenatural. É um fato que esses princípios
naturalmente inatos à razão humana são absolutamente verdadeiros; são tão
verdadeiros, que chega a ser impossível pensar que possam ser falsos. Tampouco é
permitido considerar falso aquilo que cremos pela fé, e que Deus confirmou de
maneira tão evidente, que só o falso constitui o contrário do verdadeiro, como se
conclui claramente da definição dos conceitos, é impossível que a verdade da fé seja
contrária aos princípios que a razão humana conhece em virtude das suas forças
naturais. (...) Deus não pode infundir no homem opiniões ou uma fé que vão
contra os dados do conhecimento adquirido pela razão natural. É isto que faz o
apóstolo São Paulo escrever, na Epístola aos Romanos: "A palavra está bem perto de ti,
em teu coração e em teus lábios, ouve: a palavra da fé, que nós pregamos" (Romanos,
- capitulo 10. versículo 8). Todavia, já que a palavra de Deus ultrapassa o
entendimento, alguns acreditam que ela esteja em contradição com ele. Isto não pode
ocorrer. Também a autoridade de Santo Agostinho o confirma. No segundo livro
da obra Sobre o Gênese comentado ao pé da letra, o Santo afirma o seguinte: "Aquilo
que a verdade descobrir não pode contrariar aos livros sagrados, quer do Antigo quer
do Novo Testamento". Do exposto se infere o seguinte: quaisquer que sejam os
argumentos que se aleguem contra a fé cristã, não procedem retamente dos primeiros
princípios inatos à natureza e conhecidos por si mesmos. Por conseguinte, não
possuem valor demonstrativo, não passando de razões de probabilidade sofismáticas.
E não é difícil refutá-los.

(Santo Tomás de Aquino ,Súmula contra os gentios, Os pensadores, São Paulo. Abril
Cultural, 1973, p. 70.)

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