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Instituto São Boaventura

Ordem dos Frades Menores Conventuais


Província São Maximiliano Maria Kolbe (Brasília-DF)

Comentário Filosófico sobre as obras: “Confissões” de Santo


Agostinho e “De Veritate” de São Tomás de Aquino.

Brasília – DF, 13de junho de 2016.


André Salomão Mendes Alves

Comentário Filosófico sobre as obras: “Confissões” de Santo


Agostinho e “De Veritate” de São Tomás de Aquino.

Trabalho apresentado ao curso de Filosofia


na disciplina de Leituras de Obras
Filosóficas, sob orientação do Prof.º Mr. Adail
Pereira como parte do critério de avaliação
semestral.

Brasília – DF, 18 de Novembro de 2016.


“Tudo o que é conhecido, é
conhecido segundo o
conhecedor.”

São Tomás de Aquino


Comentário Filosófico sobre as obras: “Confissões” de Santo
Agostinho e “De Veritate” de São Tomás de Aquino.

Em meio a uma realidade medieval da filosofia, comentaremos a princípio, parte


de duas obras de dois grandes autores da Idade Média: Santo Agostinho e São Tomás
de Aquino. Em Santo Agostinho falaremos sobre o capítulo o Cap. 9 do Livro 10 do
Tratado denominado como Confissões, ao passo que em São Tomás de Aquino,
discorreremos sobre a sua obra denominada como De Veritate, em sua questão 1,
artigo 9. .

A título de curiosidade, salienta-se que há controvérsias no que diz respeito ao


período histórico em que Agostinho situava-se; alguns historiadores dizem que ele faz
parte da Idade Antiga, já a corrente majoritária afirma que tal filósofo está inserido no
princípio da Idade Média, levando em consideração que a migração da antiguidade
para o medievo se da com a mudança de mentalidade do contexto e não por mera
cronologia.

Urbano Zilles, em seu livro “Fé e Razão no Pensamento Medieval” determina a


Idade Média sob vários pontos de vista. O tempo do império constantinopolitano (476 a
1453); o período da pressão islâmica (622 a 1571); o tempo da preponderância nórdica
(410 a 1377), bem como o período da hegemonia cristã, ou melhor, eclesiástica (313 a
1517). Tal autor, ainda escreve:

“Todas essas afirmações baseiam-se no


pressuposto de que haja uma data precisa como
ruptura esquecendo a continuidade na evolução do
pensamento. O período do mundo antigo e o
moderno, diferentes um do outro, convencionou
chamar-se Idade Média, um período com seu
pensamento próprio e criativo. (...) não sendo
possível imaginar-se, sequer, a filosofia moderna
sem a produção de grandes pensadores medievais.
Quando se pretende formar um juízo crítico sobre a
Idade Média toda a prudência é pouca.” (p. 15)
Com a definição de que o Cristianismo seria a religião oficial do Império
Romano, inicia-se um engajamento clerical mais profundo nos sistemas econômicos,
políticos e culturais da época. A Igreja passa a ter uma autonomia estatal maior e
ganha espaço civil na sociedade medieval, bem como resignifica o campo da moral,
influenciando o Império Romano com seus princípios religiosos. A política agora traduz
em uma busca de ideais eclesiásticos; a atividade do campo retoma seu espaço;
cresce a devoção católica.

Em meio às discussões sobre fé e razão, os filósofos membros do clero, passam


a desenvolver sua filosofia com o entendimento de que ela é um instrumento para uma
teologia perfeita, e formulam suas doutrinas religiosas bem como fundamentam os
dogmas, verdades de fé. Um mundo cuja criação é revelada pela fé, deve ser
investigado racionalmente.

Faz-se importante salientar que a divisão entre Filosofia e Teologia é algo ainda
moderno. No período medieval existiu uma filosofia que buscava resolver questões
dogmáticas por vias racionais, ou questionava o dogmatismo cristão pelas mesmas
vias. Buscou-se, acima de tudo, como em qualquer outro momento da filosofia, a
verdade.

Antes de adentrarmos de fato ao assunto deste comentário, é preciso de uma


breve alusão sobre dois elementos históricos de extrema importância, para uma melhor
compreensão da era medieval, em que nossos ilustres autores estavam inseridos. São
eles: Patrística e Escolástica.

Em síntese, patrística (séc. IV ao X) é o nome dado aos primeiros conceitos


cristãos elaborados pelos Padres da Igreja no início da Idade Média. A Patrística grega
busca conciliar fé e razão, enquanto a romana objetiva em evidenciar a fé a cima da
razão, por via de uma reinterpretação da filosofia platônica, onde ressaltamos
Agostinho como fundamental personalidade da época. É evidente a tentativa em
fundamentar dogmas e combater heresias.

Resumidamente, a escolástica (séc. XI ao XIV) foi o grande impulso para a


fundação das Universidades e caracteriza-se pela busca em harmonizar os extremos
de fé e razão, sistematizando a filosofia cristã em meio a uma reinterpretação tomista
das obras aristotélicas.
Diante esta breve explanação sobre o contexto de nossos filósofos e também
Teólogos, Santo Agostinho e Tomás de Aquino, prosseguiremos com os comentários
das obras supracitadas, começando pelo pensamento de Santo Agostinho, e,
posteriormente, São Tomás de Aquino.

Santo Agostinho (354 – 430) nasceu em Tagaste, no território Africano, filho de


Patrício e de Santa Mônica, a qual rezou por aproximadamente 30 anos para que seu
filho Agostinho se convertesse ao catolicismo. O que deixa subtendido que Agostinho
nem sempre foi cristão. Pelo contrário, saciava suas paixões nos devaneios de seu
tempo e em lugares pagãos. Tinha grande capacidade intelectual e buscava respostas
aos seus questionamentos nas diversas correntes filosóficas da época, tornando-se
adepto à seita do Manequeísmo, doutrina que afirmava ser o Universo dominado por
dois grandes princípios opostos: o bem e o mal.

Santo Agostinho, ao ler um diálogo de Cícero, intitulado como “Hortensio”, a


princípio por obrigação, se admirou primeiramente com seu estilo e sua forma de
escrever. Ali havia uma exortação à filosofia, e após meditar aquelas palavras, disse
ele:

“Essa leitura transformou minha sensibilidade; (...)


transformou radicalmente minhas aspirações e
meus desejos. Nas minhas vãs esperanças, passei
a ver apenas baixeza e desejei a sabedoria imortal
com inacreditável expansão íntima (...). O que me
seduzia nessa exortação é que ela me excitava, me
inflamava, me incendiava, me levava a amar, a
buscar, a conquistar, a possuir e a abraçar
vigorosamente, não este ou aquele sistema, mas a
própria sabedoria onde quer que ela se
encontrasse.”

Observamos nessas palavras de Agostinho uma disposição de um “eu recém


descoberto e desvelado” em transformar-se a partir das propostas da própria filosofia,
visando nada mais nada menos do que a sabedoria. Alvo em comum daquele que intui
em ser amigo da sabedoria, ou melhor, interesse do filósofo; e se a filosofia é
justamente esse amor à sabedoria, ela será por excelência cristã, considerando que a
sabedoria cristã, para Agostinho, é maior do que a pagã, por ser em plenitude, uma
lugar de encontro pessoal (consigo mesmo) e divino (com Deus).

Observamos que a transformação interna citada pelo próprio Agostinho é o


resultado de uma incessante busca, porque ele se deparou com um caminho para
encontrar o seu próprio “eu”. É como se Agostinho não soubesse o que queria tornar-
se até conhecer a razão, e a partir dessa experiência quebra barreiras e consegue
enxergar para além dos horizontes pagãos, abraçando grande valores; enriquecendo
sua espiritualidade.

Com o falecimento do pai, Agostinho se aprofunda nos estudos, principalmente


na arte da retórica. Por estudar com afinco tal área, se depara com Sermões
de Santo Ambrósio, excepcional orador, e maravilha-se. A sua conversão tem início
quando, na luta contra os anseios carnais, acolheu o convite divino: "Toma e lê", e
assim, debruçando-se com a Sagrada Escritura, identifica: "revesti-vos do Senhor
Jesus Cristo? não vos abandoneis às preocupações da carne para lhe satisfazerdes as
concupiscências" (Rm, 13,13). 

A partir de então, Agostinho, se sente atraído por outros horizontes, que lhe
impulsionam a buscar um conhecimento segundo a filosofia eclesiástica que vinha
surgindo, resignificando os ensinamentos de Platão e Plotino, abandonando a doutrina
maniqueísta até tornar-se um dos principais Padres da Patrística.

Nas confissões, o filósofo em questão, escreve como sendo uma espécie de


autobiografia. Partilha de momentos de sua vida e busca responder as dúvidas que
envolviam a sua atmosfera intelectual, bem como inquietavam o seu coração que por
muito tempo estava longe de Deus, longe do amor supremo. Ele que buscava fora, mas
esquecera que Deus habitava nele interiormente.

No que diz respeito às principais temáticas abordadas por Agostinho em sua


vida, algumas merecem ser destacadas:

 A compreensão sobre a alma, onde defende o governo do espírito sobre


o corpo, do eterno ao transitório, pois foi criada por Deus para reinar
sobre o corpo. Sempre objetivando a prática do bem;
 A liberdade, que é a própria vontade e é preciso discernimento para não
utilizada de forma equivocada.
 A razão e a fé, onde a primeira auxilia a segunda e a segunda é
indispensável para a compreensão racional.
 A interioridade como sendo o lugar em que a verdade torna-se também
conhecida (metafísica da interioridade).
 O conceito de mal como sendo ausência do bem.
 O sentido existencial do homem, que corresponde à construção, por esta
via habitacional temporal – iniciando nela mesma -, da “cidade de Deus”.

A partir de então, começamos o breve comentário sobre o Palácio da Memória,


encontrdo no Cap. 9 do Livro 10 do Tratado agostiniano denominado como Confissões.
Nos capítulos seguintes Agostinho ainda discorre sobre a memória, mas o objeto deste
comentário delimita-se somente ao capítulo 9.

Os questionamentos e reflexões sobre a memória são elementos de extrema


importância na filosofia de Santo Agostinho, pois ele aponta o início de uma reflexão
filosófica e sistemática de interioridade e memória, para além de si mesmo. É uma
filosofia que tem como objeto si próprio. Considerando a via da memória como um
caminho de busca interior, tal abstração assume uma postura refletida que almeja um
autoconhecimento, diante das tensões manifestadas que revelam o próprio “eu”.

É evidente, até um pouco obvio para nós, que existem lembranças em nosso
ser. Qualificadas, articulam entre si segundo influencias de algumas representações
abstratas, ruminando o que se passou. Não constitui um simples recordar do passado.
É função sim, da memória, relembrar; mas suas capacidades não se prendem a isto.
Para além de uma simples recordação, a memória é reveladora de nossa existência;
um lugar propício para um fecundo encontro consigo mesmo e com Deus, que habita
em nosso interior. Como diz Santo Agostinho no parágrafo 12:

“Chego aos campos e vastos palácios da memória


onde estão os tesouros de inumeráveis imagens
trazidas por percepções de toda espécie. Aí está
também escondido tudo o que pensamos, que
aumentando que diminuindo ou até variando de
qualquer modo os objetos que os sentidos
atingiram. Enfim, jaz aí tudo o que se lhes entregou
e depôs, se é que o esquecimento ainda não
absorveu e sepultou.”

Essas palavras possuem uma carga de beleza tão admirável, que não ouso citá-
la de forma ramificada. Cito sem retirar uma palavra sequer, tal como o corpo do texto
se constitui. Devido a sua magnitude, é evidente em Agostinho uma admiração sem
limites, como ele mesmo vai falar posteriormente no decorrer do texto ora citado.

Posteriormente, sobre algumas particularidades da memória, prossegue


Agostinho:

“Lá se conservam distintas e classificadas todas as


sensações que entram isoladamente pela sua
porta. (...) O grande receptáculo da memória (...)
recebe todas estas impressões, para as recordar e
revistar quando for necessário. Todavia, não são os
próprios objetos que entram, mas as suas imagens:
imagens das coisas sensíveis, sempre prestes a
oferecer-se ao pensamento que as recorda.”

Neste sentido, explica-nos José Carlos de Miranda em sua obra “A memória em


Santo Agostinho”:

“A função cognoscitiva da memória não consiste


porém somente numa apresentação (através da
recordação) ou na elaboração (através da
imaginação) do objecto do conhecimento sensível.
Rigorosamente, ela constitui o objecto enquanto tal,
já que os dados dos sentidos, em si mesmos, e na
sua presença bruta, são caóticos e inacessíveis ao
intelecto. Só a memória garante a presença racional
do objecto ao sujeito.”

É bem verdade que o capítulo 9 em que trabalhamos, se organiza em meio a um


processo de análise dos armazenamentos consequentes das experiências pessoais,
absorvidas pelos sentidos ou pela observância no comportamento do outro; que
determinam, em certa medida, a consciência do indivíduo. Vejamos, segundo este
entendimento, o que nos diz Agostinho:

“Tudo isso1 realizo no imenso palácio da memória.


Aí estão presentes o céu, a terra e o mar com todos
os pormenores que neles pude perceber pelos
sentidos, exceto os que já esqueci2. E lá me
encontro a mim mesmo, e recordo as ações que fiz,
o seu tempo, lugar, e até os sentimentos que me
dominavam ao praticá-las. É lá que estão também
todos os conhecimentos que recordo, aprendidos
ou pela experiência própria ou pela crença no
testemunho de outrem. (...) Medito as ações
futuras, os acontecimentos, as esperanças. Reflito
em tudo, como se me estivesse presente. “Farei
isto e aquilo”, digo no meu interior, nesse seio
imenso do espírito, repleto de imagens de tantas e
tão grandes coisas”

Após alguns questionamentos, nosso autor reconhece, a partir da memória, não


só o grande mistério que é o homem, mas que Deus é o único que conhece totalmente
esse mistério, haja vista que o nosso espírito é estreio demais para conter-se sem si
mesmo. Em outras palavras, nós não nos suportamos e a memória é tão imensa que a
nossa capacidade de sondá-la é mínima.

A questão sobre o que é o homem, é uma questão sobre a própria pergunta, que
envolve o mistério de onde a filosofia emerge como epistemologia do ser e do universo.
Porém, o autoconhecimento de um determinado indivíduo se concretiza na medida em
que este refaz o seu caminho, a partir de suas memórias, e transcende interiormente
superando aquilo que já não é, pois mudou por consequência do resgate de suas
lembranças. Seria então, a capacidade de resignificar os elementos propostos pela
realidade.

O homem quando se percebe vai construindo sua própria autenticidade, uma


vez que vai se angustiando em suas relações internas, se enxergando como um ser de
1
Agostinho refere-se às possibilidades da memória, a partir dos sentidos armazenados.
2
Posteriormente, em outro artigo, Agostinho discorrerá sobre a possibilidade da memória se lembrar do que se
esquece.
possibilidade, perspectiva e também de projetos, pela inquietude que engloba sua
atmosfera existencial. O combate entre o real e o ideal são constantes e necessários. A
memória consegue desvelar o que permanecia oculto, e não muda simplesmente a
mente, mas a vida por inteiro. Neste sentido, em outros termos, aquele que se
rememora, tornar-se-á um homem na total plenitude de seu ser, de acordo com suas
oportunidades.

Por fim, no último parágrafo Agostinho afirma que nele reside “não os próprios
objetos, mas as suas imagens.” E que conhece com que sentido do corpo lhe foi
impressa cada imagem. Entretanto, não são os objetos que ocupam a memória e sim
suas imagens, ou seja, as ideias. O mundo suprassensível se concretiza na matéria,
que por sua vez, reflete na memória.

Finalizado o comentário sobre a obra agostiniana supracitada, começaremos


outro comentário, agora no que diz respeito à Escolástica no período medieval. Mais
especificadamente, comentaremos a respeito de São Tomás de Aquino, o fantástico
frade dominicano, dotado de excepcional inteligência, famoso por seus ensinamentos e
admirável em sua sabedoria. Ressalto que, por mais instigante que seja ir direto à
análise objeto deste trabalho, cabe uma prévia elucidativa sobre alguns aspectos de
sua vida.

Tomás de Aquino nasceu em Roccasecca no ano de 122, no seio de uma nobre


família que lhe proporcionou uma notável formação, mas não no intuito de torna-lo um
religioso mendicante, e sim, monge beneditino. Ao contrário dos interesses de seus
pais, ainda jovem, Tomás se deixa atrair pela ordem (mendicante) dos Dominicanos, e
após várias turbulências por parte de seus familiares que eram contra a sua decisão
em ser frade dominicano, a Ordem o acolhe como membro.

Conhecido como “Doutor Angélico” ou “Boi Mudo”, Tomás de Aquino escreve


diversas obras de filosofia e teologia e caracteriza o tempo em que viveu como a era da
síntese, onde no cerne de seus questionamentos busca responder as enigmáticas
questões sobre Deus e o homem com profunda técnica lógica; com um conteúdo rico,
em uma literatura muito bem estruturada, considerando a forma como distribui seus
conceitos, resignificando as obras aristotélicas.
O filósofo em questão é um dos maiores de sua época, e sua filosofia abre
espaço para uma discussão tanto aos que professam algum credo religioso, quanto
aos que não aceitam algum tipo de fé. A partir de sua releitura das obras de Aristóteles,
apelidado por ele como “O Filósofo”, desenvolve em sua empreitada teórica um árduo
trabalho de explicação sobre o ente, a essência, o real, a transcendência, entre outros
conceitos. Faz-se necessário lembrar que a filosofia aristotélica se desenvolve até a
concepção de substância do ser. Tomás vai além, isto é, após a substância desenvolve
um estudo sobre ente e essência.

Sobre a relação da filosofia tomista com a aristotélica, vejamos o que diz Urbano
Zilles:

“O ser é, para Tomás, como para Aristóteles, um


conceito análogo, realizando-se em ato e potência.
Mas o Aquinato vai mais longe. Vê no ser não
apenas uma simples relação entre potência e ato,
mas a relação transcendental entre essência e
existência. Esta é, em primeiro lugar, ato de todos
os atos. Desta forma, Deus é, para o Aquinate, não
apenas ato puro, mas o Ato de existir subsistente e
a criatura o ato de existir, participado por uma
essência finita, tudo centrado no actus essendi (ato
existencial).”

Compreendemos a partir do pensamento de Aristóteles que tudo o que se move


é movido por outro ser. Diante mão, este ser, para que de fato se mova, precisa
também ser movido por outro ser e assim continua-se de forma sucessiva. Neste
sentido, se não existisse um primeiro ser movente cairíamos em um processo
indefinido, ao passo que não seria possível a sucessão de movimentos acima
mencionada. Com efeito, Aristóteles conclui a necessidade de se chegar a um “primeiro
motor” que não é movido por outrem, mas move-se a si mesmo. Para Tomás de
Aquino, tal motor é Deus.

Sobre a metafísica tomista, explica Giovanni Reale em sua obra “História da


Filosofia”:
“A metafísica de Tomás distingue o ente da
essência e privilegia o primeiro em relação à
segunda. O ente pode ser lógico (conceitual) e real
(extramental). O ente lógico tem a função de unir
conceitos, mas isso não significa que para cada
ente lógico corresponda um ente real. (...) Tudo o
que existe é ente e, portanto, também Deus e o
mundo. Todavia, Deus e o mundo são entes de
modo diverso: (...) Deus é o ser, o mundo tem o
ser.”

No que diz respeito aos principais temas abordados por Tomás de Aquino em
suas empreitadas filosóficas, alguns conceitos assumem maior destaque, bem como
nos auxiliam para uma melhor compreensão de seus ensinamentos. São eles:

 O ser por analogia;


 Ser necessário e ser contingente3;
 A prevalência do ser sobre a essência;
 Os transcendentais do ser, a concepção de que todo ente compreende
em si o uno, o verdadeiro e o bom.
 As cinco vias que comprovam a existência de Deus; do movimento, da
causa, da contingência, dos graus de perfeição e do finalismo;
 Semelhança e dessemelhança de Deus com o criado: a relação de
analogia e a teologia negativa;

Sobre os transcendentais, estendo um pouco mais, ainda de forma breve, a


explicação segundo Tomás de Aquino, pois são de extrema importância para a nossa
compreensão a cerca de sua obra “De Verit.” que estamos estudando. Uso das
palavras de Reale:

“Dizer que o ser é uno significa afirmar que ele é


intrinsecamente não contraditório; mas também
neste caso a unidade se predica de Deus e do
homem apenas por analogia. Deus, com efeito, é
verdadeiramente simples; o homem, ao contrário, é
uma unidade por composição (essência = actus
essendi). O verdadeiro é um transcendental do

3
O primeiro é somente Deus, pois possui como próprio o ato de ser; o segundo é o mundo e o homem, por
possuírem o ser apenas por participação.
ente no sentido de que todo ente é inteligível. Mas
isso pode ser dito em dois sentidos: de um lado,
para afirmar que existe uma verdade ontológica 4, e
por outro lado (...) uma verdade lógica 5. A verdade
de um ente depende do grau de ser que possui;
neste sentido, Deus, que é sumo ente, é também
suma verdade. Por fim, tudo o que é, é também
bom porque é fruto da bondade difusiva de Deus.
Nessa luz Deus se apresenta como Sumo bem.”
(grifo nosso)

Neste sentido, iniciamos o comentário sobre a obra tomista denominada como


De Veritate em sua questão 1 e em seu artigo 9, que questiona a possibilidade da
verdade existir nos sentidos.

Para inicio de conversa, Tomás evidencia as teses de que pareceria não existir
verdade nos sentidos, e elenca pensamentos correspondentes à defesa deste ponto de
vista. Para Anselmo a verdade consiste na retidão, perceptível exclusivamente à
inteligência; Agostinho demonstra que a verdade do corpóreo não é conhecida pelos
sentidos e por tal motivo não residirá nos sentidos. A contratese seria, obviamente, que
a verdade reside também nos sentidos.

Sabemos que a verdade pode ser tanto relativa, imutável quanto real, e
dependendo de tal situação, corresponder-se-á de forma relacional ou não, com os
sentidos. A verdade em relação ao conhecedor é relativa; com a fonte, imutável;
conforme o objeto, real. Podemos então, observar, que a verdade ainda que existindo,
é desvelada diversamente.

Tomás de Aquino, na De Verit., q.1, a.9, co.Resp., afirma:

“A verdade está tanto na inteligência como nos


sentidos, ainda que de maneira diversa. Na
inteligência, a verdade reside como alguma coisa
que resulta da atividade do intelecto, e como é algo
que é conhecido através da inteligência. (...) A
verdade é conhecida pelo intelecto, enquanto este
reflete sobre o seu próprio ato. (...) Ora, isto só
pode ser conhecido se se conhece a própria
4
Verdade ontológica: Todo ente é verdadeiro porque se adapta ao intelecto divino que o pensa.
5
Verdade lógica: Adequação da mente humana ao objeto.
natureza do ato, e isto, por sua vez, só pode ser
conhecido se se conhece a natureza do princípio
ativo. (...) É por isso que a inteligência apreende a
verdade enquanto reflete sobre si mesma.”

Vejamos o que diz G. Reale:

“A verdade do ente depende do grau de ser que ele


possui. Deus é a suma verdade porque é sumo ser.
Os entes finitos são mais ou menos verdadeiros
com base no grau de ser ou de participação no ser
divino. Todos os entes, porém, são verdadeiros,
porque cada qual a seu modo expressa um projeto,
tem uma razão de ser, apresenta uma vocação:
alguns são necessariamente fiéis a tal vocação;
outros, dotados de inteligência e vontade, podem
ser fiéis ou trais tal vocação, que, no entanto,
permanece inscrita em sua essência ou natureza,
como uma espécie de permanente lembrete.”

Observando a posição em que Tomás responde a questão enunciada, podemos


ver que ele explica a verdade, se esta se encontra nos sentidos como algo resultante
de suas próprias atividades, na “medida em que o juízo dos mesmos (sentidos) diz
respeito às coisas.”

Nestes termos, Tomás prossegue:

Contudo, a verdade não se encontra nos sentidos


como algo que foi conhecido por eles. Pois, quando
o conhecimento sensitivo emite um juízo correto
sobre as coisas, é importante notar que este
conhecimento sensitivo — ao contrário do
conhecimento intelectivo — não conhece a verdade
através da qual julga corretamente. Pois, embora a
faculdade sensitiva conheça e saiba que está
agindo, não conhece a sua própria natureza, e
consequentemente também não a natureza do seu
agir e as relações deste último com as coisas, e por
conseguinte também não a sua verdade. (...) o que
é mais perfeito dentro da esfera dos seres (...) volta
à sua própria essência com um regresso completo.
Com efeito, para que alguma coisa possa conhecer
algo que está fora dela, necessita de certa forma
sair de si mesma; no momento, porém, em que
toma consciência de que está conhecendo, já
começa a voltar para si mesma, visto que o ato de
conhecer está a meio caminho entre o elemento
cognoscente e o elemento conhecido. A
mencionada volta se completa enquanto o elemento
cognoscente conhece a sua própria essência.

O conhecimento sensitivo, por ser o que mais do


que todos se aproxima do conhecimento próprio
das substâncias espirituais, começa, sim, a voltar à
sua própria essência, pois não conhece apenas o
que cai sob o domínio dos sentidos, mas também o
fato de estar em ação. Todavia, a sua volta à
própria essência não chega a completar-se,
porquanto o conhecimento sensitivo não conhece a
sua própria essência. (...) Ora, é impossível que um
órgão se interponha entre a capacidade
cognoscitiva dos sentidos e ela mesma. Com efeito,
as potências naturais destituídas de sensibilidade
de forma alguma podem voltar a si mesmas, pois
não são capazes.

Com efeito, o filósofo Sávio Laet de Barros Campos, em seu ensaio “Da Verdade
em Santo Tomás” partilha sobre a verdade conhecida pelo intelecto e sobre a
impossibilidade de conhecimento da verdade sobre os sentidos. Vejamos:

A verdade, para o espírito humano, é a adequação


do intelecto à coisa conhecida.13 Por conseguinte,
no que toca ao intelecto do homem, a verdade se
manifesta somente quando conhecemos a
conformidade do nosso intelecto com a coisa
conhecida: “Daí resulta que conhecer tal
conformidade é conhecer a verdade.” Ora, os
sentidos não podem conhecer esta conformidade:
“Hanc autem nullo modo sensus cognoscit”6. O
intelecto, ao contrário, pode conhecer tal
conformidade e, ipso facto, pode conhecer a
verdade: “Intellectus autem conformitatem sui ad
intelligibilem cognoscere potest (...)”7. Contudo, tal
apreensão não se dá no conhecimento da essência
da coisa: “sed tamen non apprenhendit eam

6
“Ora, esta conformidade, o sentido não a conhece de modo algum (...)”.
7
“Quanto ao intelecto, ele pode conhecer sua conformidade com a coisa inteligível.”
secundum quod cognoscit de aliquo quod quid est
(...)”8.

Chegamos à conclusão de que por mais que o conhecimento sensitivo possa


chegar ao pleno entendimento da essência humana, ou melhor, em um campo mais
individual do ser, no íntimo da pessoa, um entendimento próprio do seu ser pela
verdade que perpassa os sentidos, que não está aprisionada neles mas utiliza-os para
uma compreensão mais complexa da verdade primária.

Com efeito, é admirável em Tomás a sua metodologia em elucidar os


argumentos em seus aspectos negativos e positivos, organizando logicamente, e,
articulando com excepcional maestria, as razões e contrarrazões sobre a existência da
verdade nos sentidos.

Finalizado o comentário sobre obra tomista denominada como De Veritate em


sua questão 1 e em seu artigo 9, são perceptíveis algumas diferenças tanto filosóficas
quanto científicas entre Agostinho e Tomás, e a partir deste confronto inúmeros
benefícios epistemológicos foram alcançados. As diferenças seja na escrita, em que
Tomás escreve de forma menos “oracional” que Agostinho e com uma técnica científica
de sistematização melhor estruturada, ou sejam no conteúdo, em que Agostinho
partilha mais de suas experiências do que Tomás, inspiram ainda mais em, por via dos
sentidos, com o uso da memória, buscar cada vez mais a Suma Verdade.

Entretanto, é de suma importância lembrar, que para uma melhor compreensão


da doutrina tanto agostiniana quanto tomista, é necessário um estudo mais profundo,
devido ao nobre estilo de leitura, que é obscuro, porém rico não somente em conteúdo
filosófico, mas também em ensinamentos diversos. É admirável quando observamos
que o intuito de ampliar o conhecimento crítico sobre as obras, permanece nos
horizontes acadêmicos, motivando um entendimento mais pleno e claro da própria
filosofia e suas condições em nossa realidade.
Referências Bibliográficas

8
“No entanto, não é pelo fato de conhecer a essência da coisa que ele (o intelecto) apreende essa conformidade
(...)”
AGOSTINHO. Confissões

AQUINO, Tomás de. De Veritate

ZILLES, Urbano (1993). Fé e Razão no Pensamento Medieval. Coleção: Filosofia-1.


Ed. EDIPUCRS, Porto Alegre – RS.

GUSDORF, Georges (1912). Professores para quê?: para uma pedagogia da


pedagogia; tradução M. F. – 3ª Ed. – São Paulo: Martins fontes, 2003.

MIRANDA, José Carlos de; A memória em Santo Agostinho: Memoria Rerum, Memoria
Sui, memoria Dei. Revista Humanitas – vol. LIII, Coimbra: 2001, P. 225 – 246.

REALE, Giovanni. História da Filosofia: patrística e escolástica, v. 2. Tradução Ivo


Storniolo. – São Paulo: Paulus, 2003

CAMPOS, Sávio Laet de Barros. Da Verdade em Santo Tomás. Disponível em:


http://www.geocities.ws/webfilosofante/DaVerdadeemTomas.pdf

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