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PROPÓSITO
Entender o sentido da Filosofia medieval, para fins de conhecimento da via moderna
do nominalismo e da gênese do
direito “das
gentes”, é importante para a sua formação, pois lhe permitirá entender o
arcabouço teórico do Direito e da
política modernos.
PREPARAÇÃO
Antes de iniciar o estudo deste tema, é importante ter à mão um bom dicionário de Teoria Política ou mesmo de Filosofia.
Sugerimos
o Dicionário de Filosofia, de Abbagnano, e o Dicionário de Política, de Bobbio, Matteucci e Pasquino, ambos
disponíveis
virtualmente.
OBJETIVOS
MÓDULO
1
MÓDULO
2
INTRODUÇÃO
Estamos iniciando um percurso que nos levará aos elementos fundamentais da
história da Filosofia medieval. Primeiro,
entenderemos esse conceito, que
consistiu em um diálogo entre a fé religiosa e a razão grega. Em seguida,
veremos suas etapas e
seus principais expoentes:
MÓDULO 1
Definir os conceitos de cidade e justiçaem Santo Agostinho
(GILSON, 1995)
O autor toma o cuidado de esclarecer que, além dos autores cristãos, outros não cristãos
contribuíram com a fecundidade deste
período.
Tais reflexões nasceram a partir de temas que, embora estejam presentes na Bíblia, não
constituem exatamente mistérios
de fé,
mas realidades do mundo e do homem que a perspectiva da fé ajudou a vislumbrar
melhor do que a razão grega havia
feito.
AMOR
Amor, aqui, significa eros , desejo, busca.
Tais crenças só vieram a ser dogmatizadas por ocasião do fim das perseguições, dos
questionamentos dos hereges e da
oportunidade da Filosofia grega.
HERESIA
CONCÍLIOS ECUMÊNICOS
Reunião de dignitários eclesiásticos, especialmente bispos, presidida ou sancionada pelo
papa, para deliberar sobre questões de fé,
costumes, doutrina ou disciplina
eclesiástica.
Figura 1.
Cenas da vida de Santo Agostinho.
Um dos mais representativos pensadores medievais, cuja contribuição filosófica pode ser
interpretada como um dos esforços mais
genuínos por compatibilizar fé e razão (SIMÕES, 2015).
MANIQUEÍSMO
Em Milão, escutava com interesse estético os sermões do bispo Ambrósio (340 d.C.-397
d.C.), e começou a interessar-se
pelos
temas cristãos e a experimentar uma grande alegria espiritual ao ouvir seus
cânticos. O canto ambrosiano é
semelhante ao mais
conhecido canto gregoriano.
Em A Cidade de Deus , Agostinho (2006) defende que uma sociedade se forma a partir do
amor de vários indivíduos pelo
mesmo
objeto. Ele exemplifica com os espetáculos: os espectadores ignoram-se mutuamente,
mas, ao admirarem a performance
do ator,
também passam a nutrir simpatia uns pelos outros.
Atualmente, poderíamos ver algo semelhante nas competições esportivas: uma torcida de futebol,
formada por pessoas que não
se
conhecem, estabelecem um vínculo de simpatia por causa do time que as empolga.
Essa tese agostiniana vai ao encontro da tese de Aristóteles, segundo o qual a polis é o
âmbito dos “amigos”, dos
que amam e
odeiam as mesmas coisas. E contrapõe-se à teoria moderna de Hobbes, do
“contrato social”, que considera
que o Estado nasce
como um pacto para cessar a luta de todos contra todos, para nos
protegermos dos “vizinhos”, e
não dos inimigos externos.
“Cidade” é o conjunto de homens unidos pelo amor comum a certo objeto. E haveria
fundamentalmente duas cidades:
A CIDADE DE DEUS
Unida pelo amor divino e que dirige sua existência
temporal à glória de Deus.
A CIDADE DOS HOMENS
Unida pelo amor às coisas temporais, de costas para
Deus.
É por isso que Agostinho preocupou-se com a arte de governar, pois, para ele, a política deve contemplar o homem em
sua
plenitude constituída de corpo e de alma. Portanto, não haverá política verdadeira se esta não estiver ligada a
Deus.
Nesse contexto, dirigia-se aos que pretendiam governar a “Cidade dos homens” para que não se esquecessem desse princípio
e,
assim, fizessem da cidade terrena uma antecipação da “Cidade de Deus”: a Pátria Celestial.
Se os que governam não pensarem na política como uma arte e que esta não pode ser pensada sem a presença de Deus, não
haverá concórdia na cidade terrena. Assim, as virtudes não serão praticadas e os vícios reinarão. Em suas palavras:
(AGOSTINHO, 2006)
Embora a Igreja Católica seja a realidade que encaminha a vida dos homens à Cidade de Deus definitiva, a divisão entre
esta e a
Cidade dos homens não corresponde exatamente à divisão entre Igreja e mundo, porque há quem esteja na Igreja
com o corpo,
mas com o coração no mundo; e há quem esteja no mundo, mas ingressará na Igreja e na Cidade divina. O
conjunto dos homens
que vivem em uma cidade é chamado de “povo” por Agostinho.
Há um fim comum a toda sociedade, seja qual for, e este fim é, segundo Agostinho, a “paz”. A paz que as sociedades
desejam é
pura tranquilidade de fato, mas a paz verdadeira é a que satisfaz plenamente as vontades de todos tão bem que,
ao ser obtida,
nada mais se deseja. Afinal, “uma coisa não é a ventura da cidade e outra a do homem, pois toda cidade
não passa de homens que
vivem unidos” (AGOSTINHO, 2006).
A condição fundamental para que a paz seja permanente é a ordem . Para que um conjunto de partes concorde na busca de um
mesmo fim, é preciso que cada qual esteja em seu lugar e desempenhe sua própria função corretamente. Assim:
A paz da cidade cristã é uma sociedade ordenada de homens que amam a Deus e se amam mutuamente em Deus.
A paz, em tudo, é a tranquilidade da ordem, o bem soberano, assim como define o teólogo:
(AGOSTINHO, 2006)
Obviamente, Agostinho considera a paz da Cidade dos homens uma paz aparente, uma desordem. Por essa razão,
ainda que seus
ensinamentos expressem a transitoriedade da cidade terrena e a definitiva paz na
cidade celestial, ele chamava atenção daqueles
que não praticavam as virtudes. Assim, promoviam
os vícios que desqualificam os sentidos da política terrena, conforme destaca o
trecho a seguir:
(AGOSTINHO, 2006)
A justiça é a virtude que realiza a ordem, que dá a cada um o que é devido: subordina o inferior ao superior, mantém
a igualdade
entre coisas iguais e dá a cada um o que lhe pertence. A justiça deriva da lei eterna, que nos ordena
conservar a ordem e impedir
que ela seja perturbada. Essa lei imutável ilumina nossa consciência moral como a luz do
Mestre interior — que é Cristo, “o Verbo
que ilumina todo homem” — ilumina nossa inteligência.
Assim, também há em nós uma lei, chamada “lei natural”, que é como a “transcrição” da lei eterna ou divina em nossa
alma. A
exigência fundamental da lei é que tudo esteja ordenado. E é a justiça que estabelece no homem a ordem pela
qual o corpo
submete-se à alma e essa a Deus, como declara Agostinho:
(AGOSTINHO, 2006)
Porém, apenas Deus pode dar ao homem a virtude da justiça e as demais virtudes. Nos termos do teólogo:
A VERDADEIRA VIRTUDE CONSISTE, PORTANTO, EM FAZER BOM USO
DOS BENS E
MALES E EM REFERIR TUDO AO FIM ÚLTIMO, QUE NOS PORÁ
NA POSSE DA PERFEITA E INCOMPARÁVEL PAZ.
(AGOSTINHO, 2006)
Uma das maiores batalhas intelectuais de Santo Agostinho foi contra Pelágio (360 d.C.-420 d.C.), que defendia que o
homem
poderia ser justo com seus próprios recursos, sua própria força.
MÓDULO 2
Reconhecer as características das virtudes morais cardeais segundo Santo Tomás de Aquino
CONTEXTO HISTÓRICO
Santo Tomás de Aquino é o maior expoente do período escolástico da teologia e Filosofia católica, cujo nome deriva das
“escolas” monásticas ou catedralícias, nas quais eram ensinadas a teologia e as “artes liberais”:
TRIVIUM
Artes da linguagem (gramática, retórica e lógica).
QUADRIVIUM
Artes das relações numéricas (aritmética, geometria, astronomia, música).
O período escolástico teve início a partir do século IX, quando Alcuíno (735 d.C.-804 d.C.) promoveu a reforma
carolíngia no âmbito
educacional, que foi impulsionada pelo imperador Carlos Magno (742 dC-814 d.C.), do recém-criado Sacro Império
Franco-
Romanol, após a chamada “Idade das Trevas”, provocada pelas invasões bárbaras e pela queda do Império Romano
(séculos V a
VIII).
O “método” da escolástica madura era a disputatio , que consistia em um embate dialético de opiniões contrárias e
favoráveis a
determinada tese. Ele foi inaugurado por Pedro Abelardo (1079-1142), no século XII, iniciando-se a era
das grandes “sumas”.
As “sumas” buscavam compendiar todo o saber teológico e filosófico, reunindo as teses dos padres da Igreja e dos
filósofos,
confrontando-as entre si e com a Bíblia, e buscando a melhor solução para os problemas filosóficos e
teológicos.
À época de Aquino, já haviam sido fundadas as primeiras universidades do Ocidente, a Igreja havia atingido o auge de seu
poder
temporal — quando reinava o Papa Inocêncio III (1161-1216) — e começava a se mundanizar, com o apego dos
eclesiásticos à
riqueza e ao luxo.
Foi quando surgiram as ordens “mendicantes” dos “irmãos menores” ou franciscanos, de São Francisco de Assis (1182-1226),
e dos
“pregadores”, de São Domingos de Gusmão (1170-1221), para pregar a pobreza como ideal de vida cristã.
Também nesse momento, o Sacro Império, que havia passado das mãos dos francos à mão dos germanos, tinha Frederico II
(1194-
1250) à frente, talvez o imperador no qual podemos identificar as primeiras aspirações absolutistas, no auge
da Idade Média. Ele
havia iniciado a caçada violenta aos cátaros e tinha conseguido da Igreja autorização para a
Inquisição.
Tomás de Aquino, frade da Ordem dos Pregadores, ensinava em Paris, e os livros da ética e da metafísica aristotélicas
começaram
a circular na Europa cristã — até então, era fundamentalmente adepta da obra lógica conhecida de Aristóteles
—, a partir das
traduções e interpretações dos árabes, que haviam entrado em contato com a tradição filosófica grega por
meio dos cristãos da
Síria.
Essas interpretações questionavam a visão cristã do mundo, porque Aristóteles era apresentado como alguém que, por
exemplo,
negaria a criação do mundo ao afirmá-lo como eterno.
Santo Tomás solicitou traduções diretas do grego ao latim e pôs-se a comentar Aristóteles — a quem chamava “O Filósofo”
—,
contrapondo às interpretações árabes um entendimento de Aristóteles compatível com a verdade revelada do
cristianismo.
Assim, o Aquinate defende que, sem o conhecimento revelado do início temporal do mundo no livro de Gênesis , poderíamos
dizer
que o mundo foi criado desde toda a eternidade, porque o essencial na criação é ter um princípio ontológico (de
origem causal do
ser), e não um princípio cronológico (de início temporal do ser).
CÁTAROS
Adeptos do catarismo: movimento social e heresia gnóstica ou dualista, que negava a bondade da matéria e era resistente ao
casamento e à reprodução, bem como aos vínculos feudais, além de incitar as pessoas ao suicídio.
INQUISIÇÃO
Tribunal eclesiástico instituído pela Igreja Católica, no qual os frades investigavam os erros doutrinários dos supostos hereges. Ao
Estado, era permitido torturar os réus considerados culpados, condenando-os à pena capital da fogueira.
AQUINATE
Termo que expressa o conjunto das obras de Tomás de Aquino, somado aos estudos a partir dele.
Assim como para Agostinho, para Aquino (2011), a lei eterna de Deus é participada à mente humana como “lei natural”, e o
papel de
tal lei — como de todas — é orientar o homem à sua finalidade e felicidade, que é Deus. Como conteúdo, essa lei
é um hábito —
que Tomás também chama de “sindérese” — dos princípios da vida moral.
Vejamos o primeiro desses princípios: “O bem é o que todos desejam”. Dele deriva o primeiro preceito da lei
natural: “O bem deve
ser feito, e o mal, evitado”. A razão prática apreende como bem as coisas para as quais o homem tem
uma inclinação natural:
seguir vivendo, propagar a espécie e educar os filhos, buscar a verdade e viver em sociedade.
A virtude é definida por Aquino (2011) como “uma boa qualidade da mente pela que se vive retamente, da qual ninguém usa
mal,
produzida por Deus em nós sem intervenção nossa”. Em sentido lato, “virtudes” são aquelas humanas, que destinam-se
aos fins da
razão humana e que podem ser obtidas pela reiteração dos atos.
Contudo, para Santo Tomás de Aquino a virtude em sentido próprio é a “infusa”, inseparável da virtude teologal da
caridade, com a
qual Deus incrementa as virtudes humanas ou cardeais — prudência, justiça,
fortaleza e temperança — para o cumprimento do
fim último e sobrenatural da vida humana, que é o próprio Deus.
Vejamos um pouco sobre cada virtude cardeal, pois esse é um conhecimento filosófico de grande densidade existencial:
PRUDÊNCIA
Esta é a virtude pela qual o homem aplica os princípios da sindérese (hábito) ou lei natural à situação concreta. Por
ela, conhecendo
a verdade dos princípios e da situação, o homem atua com justiça. O querer e o agir devem ser conformes
à verdade. A prudência
não se refere ao fim último, mas às vias que a ele conduzem, isto é, ela não decide o que é a
felicidade, mas apenas como chegar
lá . A unidade viva de sindérese e prudência é o que chamamos de “consciência”.
A prudência é cognoscitiva e imperativa: apreende a realidade para, depois, ordenar o querer e o agir. O essencial na
prudência é
que o saber da realidade transforme-se em império prudente, e este, em ação boa. Sem a vontade do bem em
geral, o esforço por
descobrir o prudente e o bom aqui e agora seria ilusório e vão.
Esta é a constante e perpétua vontade de dar a cada um o seu direito. A matéria da justiça é a operação exterior,
enquanto esta, ou
a coisa que por ela usamos, é proporcionada à outra persona, à qual estamos ordenados pela
justiça.
A justiça legal é a mais preclara (notável) entre todas as virtudes morais, na medida em que o bem comum é preeminente
sobre o
bem singular de uma pessoa considerada individualmente.
A justiça particular também sobressai entre as outras virtudes morais por duas razões: a primeira se
toma pelo sujeito, porque se
acha na parte mais nobre da alma, na vontade; a segunda razão deriva de
parte do objeto, porque o justo comporta-se bem a
respeito de outro, e, assim, a justiça é, de certo
modo, um bem de outro.
FORTALEZA
Sua essência não é se expor a qualquer risco, mas entregar-se, de maneira razoável, ao verdadeiro valor do real. A
autêntica
fortaleza supõe uma valoração justa das coisas, tanto das que se arrisca como das que se espera proteger ou
ganhar.
O bem do homem é a realização de si conforme a razão, e o bem da razão vem da prudência. A justiça quer realizar esse
bem. A
fortaleza e a temperança o conservam (com primazia da fortaleza).
Figura 9. Fortaleza , Piero del Pollaiuolo, 1469.
Sem a “coisa justa”, não há fortaleza: a coisa é o que decide, e não o dano que se possa sofrer. Ser forte não é o mesmo
que não
ter medo: a fortaleza supõe o medo do homem ao mal, e sua essência é não deixar que o medo a force ao mal ou a
impeça de
realizar o bem.
O mais próprio da fortaleza é a resistência e a paciência, e não o ataque, pois o mundo real é de tal forma, que só o
caso de
extrema gravidade exige a mais profunda força anímica do homem.
O sentido da temperança é realizar a ordem no interior do homem, com absoluta ausência de egoísmo. Dela brota a
tranquilidade
do espírito. A tendência natural ao prazer sensível que se obtém na comida, na bebida e no deleite sexual
manifesta as forças
naturais mais potentes que atuam na conservação do homem.
Essas energias vitais, que se puseram no ser para conservar no indivíduo e na espécie a natureza, dão as três formas
originais do
prazer e destroem a ordem interior quando se desordenam. Disso resulta que as funções mais específicas da
temperança sejam a
abstinência e a castidade (ordenação do comer, do beber e da sexualidade segundo a razão).
Quando a exigência natural do homem de vingar uma injustiça desemboca em desatada cólera, é destruído o que deveria ser
edificado à base de mansidão e doçura. Inclusive a natural ânsia de conhecer pode degenerar, sem temperança, em
ansiedade ou
em mania patológica. Santo Tomás de Aquino chama essa depravação de “curiosidade” e a temperança que a
modera, de
“estudiosidade”.
Castidade, sobriedade, humildade e mansidão, junto com a estudiosidade, são formas da temperança. Luxúria,
desenfreio, soberba
e uma cólera irracional, junto com a curiosidade, são formas da destemperança.
POLÍTICA
Para Aquino (2011), o homem é um “animal sociável e político”: desprovido de instrumentos que lhe garantam
automaticamente a
sobrevivência, mas dotado de razão para buscar os meios da existência, ele não pode, sozinho,
encontrar tudo que necessita.
Portanto, a vida social lhe é natural.
THOMAS HOBBES
Filósofo inglês, segundo o qual, para construir uma sociedade, é necessário que cada indivíduo renuncie a uma parte
de seus
desejos e chegue a um acordo mútuo para não se aniquilar com os outros: um ‘contrato social’, no qual os
direitos que o homem
naturalmente possui sobre todas as coisas são transferidos em favor de um soberano dotado de
direitos ilimitados.
Ao contrário, a Filosofia política de Thomas Hobbes (1588-1679) afirma que o indivíduo, no “estado de natureza”, é “o
lobo do
homem”, e o Estado é um artifício, o “Leviatã” que, por meio da força, impõe a “paz”. Se o homem não pode viver
sua vida a não ser
em sociedade, é preciso sobrepor o bem comum de todos aos bens particulares.
A política é a arte de dirigir a multidão à consecução do bem comum — e não meramente um jogo de luta pelo poder —, para
a qual
é imprescindível a presença de um governante que saiba harmonizar os interesses presentes na sociedade,
subordinando-os aos
interesses mais gerais.
Figura 11. A política de São Tomás de Aquino , Carlo Crivelli, 1476.
Quando o governante busca seu bem privado, o governo é injusto e perverso, implicando:
DEMOCRACIA
Não há que se entender, aqui, a palavra no sentido moderno, mas como oposição à politeia , como “demagogia”.
POLITIA
A princípio, Tomás de Aquino diz preferir o governo do rei para realizar o objetivo primordial da sociedade, que é a
unidade da paz,
precisamente porque considera que um só tem mais condições de evitar o conflito. Depois, no entanto,
Aquino (2016) inclina-se a
um governo misto, que combina os três regimes justos. Em suas palavras:
(AQUINO, 2016)
O fundamental no governo é a orientação da sociedade ao bem comum. O governante não pode deliberar sobre este bem
comum,
mas tão somente sobre os meios para alcançá-lo. Nesse sentido, Tomás de Aquino não veria com bons olhos uma
democracia que
se entendesse, não como método que faz a multidão participar da eleição dos meios ou das estratégias
políticas, mas como fim do
próprio processo político.
É como se a noção do bem comum pudesse ser constantemente refeita por novas demandas.
Figura 12. Nero contempla o grande incêndio de Roma , Karl Theodor von Piloty, 1861.
Entre os regimes injustos, a “democracia” é o mais aceitável, porque os muitos governantes se atrapalham, o que
minimiza os
estragos do regime. O pior é a tirania, pois busca-se somente o bem de um.
Os tiranos esmeram-se para que seus súditos não sejam virtuosos ou magnânimos, perdendo, assim, a capacidade de reagir a
seu
regime. Eles semeiam discórdias entre os súditos para que não haja entendimento entre eles, e, assim, sua tirania
possa se exercer
mais facilmente.
Tomás de Aquino reconhece à sociedade o direito de destituir o governante instituído ou de lhe refrear o poder, caso
abuse
tiranicamente dele. Ao tirano, cujo governo só se sustenta pelo temor, Deus não permite que reine por muito tempo.
Para compreender este “princípio da rebelião”, destacamos os dois princípios estabelecidos no Tratado da Lei: o
primeiro, de que
uma lei humana é injusta, contradiz-se à lei natural (AQUINO, 2016); o segundo
afirma que a autoridade política pertence ao povo
(ou a seus representantes). Vejamos:
ORA, ORDENAR ALGO PARA O BEM COMUM COMPETE A TODA A
MULTIDÃO OU A ALGUÉM
A QUEM CABE GERIR, FAZENDO AS VEZES DE
TODA A MULTIDÃO. PORTANTO, ESTABELECER A LEI PERTENCE A TODA
A MULTIDÃO
OU À PESSOA PÚBLICA À QUAL COMPETE CUIDAR DE TODA
A MULTIDÃO.
(AQUINO, 2016)
Esse segundo princípio não implica menosprezo da ideia bíblica de que “todo poder vem de Deus”, precisamente porque a
lei
natural é uma participação na lei eterna, e a autoridade humana é uma participação no domínio de Deus sobre os
homens.
A política não significa uma ordem humana independente da ordem cósmica, mas inserida nela. Com isso, podemos entender
melhor a relação entre a vida política e o sentido religioso da vida humana segundo Santo Tomás de Aquino.
O fim da sociedade humana é a vida virtuosa, mas o fim último do homem é a fruição divina. Assim, o fim último da
multidão
também é chegar à fruição divina. Disso resulta que os governantes humanos devam estar sujeitos à Igreja,
que realiza a obra de
Cristo de conduzir os homens à bem-aventurança eterna.
Trata-se não de confusão entre Estado e Igreja (teocracia), mas de uma distinção sem separação, com uma subordinação
do
Estado, não nos assuntos eminentemente políticos, e sim naquilo que toca à salvação dos homens.
É nesse contexto que Santo Tomás de Aquino apresenta as três condições exigidas para uma boa vida da multidão:
A unidade da paz.
O procedimento virtuoso dos cidadãos, isto é, a ação em conformidade com o bem moral que se expressa na lei natural.
MÓDULO 3
Distinguir a novidade na concepção de lei no nominalismo e
GUILHERME DE OCKHAM
Com sua Filosofia “nominalista”, Guilherme (ou William) de Ockham iniciou o processo fideísta e
racionalista que
caracteriza a
Modernidade, com suas separações entre fé e razão, graça e natureza, Igreja e Estado, as quais quebram a
harmonia buscada por
Agostinho e Tomás de Aquino.
Ockham ensinou em Oxford, onde a investigação filosófica pendeu para o conhecimento empírico da natureza, com as
pesquisas
de Roberto de Grosseteste sobre a natureza da luz e as intuições de
Roger Bacon sobre o que seria
posteriormente o método
científico moderno.
Figura 13. Guilherme de Ockham representado
FIDEÍSTA
RACIONALISTA
“Tido em geral como uma das principais figuras da Universidade de Oxford no século XII. Sua importância é tanto mais
significativa
para o movimento cultural que se desenvolveu em torno desta universidade quanto se pode
incontestavelmente atribuir a ele certo
número de características que balizaram tal movimento por vários séculos:
recurso às fontes neoplatônicas, importância da
matemática como chave do estudo da natureza, relevância da ótica
como modelo de conhecimento matematizado do mundo
material” (NASCIMENTO, 1974).
ROGER BACON
Filósofo, cientista e teólogo inglês. Difusor e crítico de Aristóteles, Bacon adotou uma doutrina dos universais de
tipo conceitualista e
propôs a "ciência experimental" como alternativa à dialética escolástica. No entanto, tudo
isso foi baseado em uma cosmovisão
crente, segundo a qual a ciência é baseada na teologia (dom divino), e a
Filosofia — seu servo — vem da revelação de Adão.
NOMINALISMO METAFÍSICO-TEOLÓFICO E
EPISTEMOLÓGICO
No ambiente mais científico (em nosso atual sentido) e menos especulativo, Ockham (MARCONDES, 2016) considerou que a
razão
não poderia conhecer com certeza a transcendência e unicidade de Deus, a imortalidade da alma, tampouco existiria
uma lei moral
natural. Deus, a alma e os deveres morais seriam assuntos exclusivos da Revelação.
Aos poucos, a teologia e a Filosofia/ciência tornaram-se estranhas, “sem assunto”: a Revelação sobrenatural não seria
mais o
suplemento de uma busca natural pelo Criador, pela vida eterna e pelo bem, e não faria mais sentido falar de
“preâmbulos da fé” —
os pontos máximos da Filosofia metafísica ou “teologia natural”, que tangenciam os problemas da fé
revelada.
MARTINHO LUTERO
Sacerdote católico alemão de convicções intensas que representa, com sua concepção do homem como um indivíduo isolado
de
Deus, da história e do mundo, um dos pilares sobre o qual assenta a Modernidade. Foi Lutero que iniciou a Reforma
Protestante,
rejeitando a autoridade do papa e enfraquecendo o poder da Igreja Católica.
RENÉ DESCARTES
Filósofo, físico e matemático francês. Depois do esplendor da Filosofia grega antiga e do apogeu e da crise da
escolástica na
Europa medieval, os novos ventos do Renascimento e a revolução científica que o acompanhou dariam origem,
no século XVII, ao
nascimento da Filosofia moderna.
A Onipotência, e não mais a Inteligência ou o “Logos”, torna-se o atributo divino por excelência.
Além disso, Deus é colocado tão acima da criação, que poderíamos dizer que a teologia fideísta de Ockham termina
gerando, por
contraste, o deísmo racionalista que nega a Providência e a Revelação (agnosticismo prático).
Trata-se de uma Onipotência suprarracional, pois Ockham considera que Deus não poderia se submeter nem mesmo às chamadas
"Ideias Eternas", pois seria uma espécie de “constrangimento” para a liberdade divina.
Exatamente pelo fato de que o mundo não foi feito segundo uma Razão Eterna ou segundo Razões Eternas, nele, não existem
essências (quididades) imutáveis e universais, mas apenas entes ou essências (coisas) singulares.
Assim, o problema do conhecimento é conduzido à solução nominalista: os conceitos serão meros “nomes" ou “símbolos” que
agregarão realidades similares, pois o “conceito universal” seria tão somente uma apreensão “confusa” de uma realidade
única.
Por exemplo, “homem” é uma apreensão confusa de “Sócrates”. Esse encaminhamento do problema epistemológico abriu espaço
para o desenvolvimento do conhecimento matematizante típico da Ciência moderna.
Figura 14. Sacrifício de Isaac, Rembrandt, 1635.
NOMINALISMO MORAL
No campo moral, desaparecendo o conceito de “essência” ou “natureza” universal (associado à criação segundo paradigmas
eternos), também desapareceu o conceito de “lei natural” e surgiu uma “liberdade de indiferença”: o ato humano será
moralmente
bom ou mau na medida em que se conformar ou não à obrigação legal imposta por Deus (que poderia nos mandar
odiá-lo, segundo
Ockham).
A vida moral é marcada pela “obrigação”, e não pela “graça” ou “benevolência”, que permite cumprir a lei. Assim, a
moralidade foi
separada do clássico (e bíblico) desejo de felicidade e, com o tempo, os 10 Mandamentos — considerados
arbitrários. Sem o
suporte de uma fé vivida existencialmente — senão transformada em mera instalação social, em uma
cultura cada vez mais
secularizada (mundana) —, a moral cristã parecia um fardo.
A verdade é que essas concepções já haviam sido preparadas pelo estado de coisas sociopolítico. A Inquisição inaugurou
um
procedimento intolerante com o espírito cristão e católico. A fé não era vista como “graça”, mas reduzida a elemento
do bem comum
temporal, podendo, assim, ser criminalizada pelo Estado — muito além daquelas heresias que poderiam ser
consideradas
verdadeiras sedições (crimes), que foi o caso específico do catarismo.
Consequentemente, o Estado assumiu um papel religioso muito além da tradicional defesa da realidade física dos fiéis e
da Igreja
ou do apoio logístico à evangelização. Assim, preparou-se, com a cooperação imprudente da própria Igreja, a
estatolatria moderna
ou o ressurgir do espírito do Império Romano pagão, ou o “Leviatã”, que o equilíbrio medieval entre
o poder espiritual da Igreja e o
poder temporal do Sacro Império havia contido até então.
Na nova moral nominalista, não existia mais um “sentido” (a busca do bem) que envolve toda a vida e todos os seus atos,
mas atos
individuais desconexos que poderiam ser perfeitamente realizados na direção contrária, se Deus “mudasse de
ideia”.
Essa moral da obrigação teve seu máximo expoente em Immanuel Kant (1724-1804), que reduziu o cristianismo a esse papel
moralizante. Foi repudiada pelo utilitarismo e pelo hedonismo, perdendo-se, assim, de uma ou de outra forma, a conexão
entre
felicidade, lei (natural como reflexo da eterna) e consciência.
Esta, portanto, converteu-se em legisladora de seus próprios imperativos. Em um primeiro momento, pela instalação
social, ela
ainda foi condizente com os ideais cristãos, mas, com o tempo, expressou apenas as próprias vontades e os
próprios desejos.
Figura 15. Immanuel Kant, retratado por Johann Gottlieb Becker (1768).
Influenciada por essa perspectiva, a teologia moral católica distanciou-se do Novo Testamento, de Agostinho e de Tomás
Aquino, e
converteu-se, na prática, em “teologia jurídica”, com o surgimento do “casuísmo” dos teólogos jesuítas e dos
grandes manuais de
teologia moral, como o de Santo Afonso de Ligório (1696-1787). No campo religioso, as ideias de
Ockham influenciaram
diretamente a reforma luterana, o que excede nosso campo.
NOMINALISMO POLÍTICO
A obra Breviloquium (MARCONDES, 2016) é a síntese da Filosofia política de Ockham. O Breviloquium divide-se em seis
livros.
No quinto livro discute-se a famosa passagem bíblica das “duas espadas” (Lucas 22:38), afirmando que, em nenhuma
parte da
Escritura, está expresso este sentido místico em que se afirma que as duas espadas devem ser entendidas como os
dois poderes:
o temporal e o espiritual.
No sexto livro analisa-se a Donatio Constantini, considerando-a provavelmente apócrifa. Segundo Ockham, só o povo romano
poderia transferir para o papa a autoridade juntamente com todas as suas competências. Alguém que fosse apenas um
usuário
delas (pessoa individual ou moral) não poderia transferi-las ou doá-las. O imperador não poderia transferir
autoridade ao papa, em
todo ou em parte, de onde decorre a ilegitimidade da donatio .
A seguir, Ockham indica as competências (em regime de uso) que poderiam, dentro desses pressupostos, ser conferidas ao
papa:
entre elas encontram-se todas as que se referem ao governo espiritual (no foro externo), mas não as competências
em matéria
estritamente temporal. Estão sujeitas ao papa todas as coisas que visam ao culto de Deus e à estabilidade dos
cristãos.
Como a donatio teria sido uma concessão de Constantino, movida por sua devoção e fidelidade ao Papa Silvestre, os
infiéis
ainda poderiam ter um verdadeiro império ou poder temporal, uma verdadeira jurisdição temporal e uma verdadeira
potestade
(supremacia) da espada material.
A autoridade papal é puramente espiritual e religiosa, ainda que também tenha algum poder temporal sobre determinados
bens
físicos ou materiais com vistas ao fim espiritual, e na medida em que é necessário para o cumprimento de sua missão
de salvação.
Porém esse poder temporal é de origem humana, e seu uso foi transferido ao papa pelo imperador. O imperador, por sua
vez,
recebeu o poder do povo romano e somente pode transmiti-lo dentro das limitações do mandato recebido.
Portanto, Ockham não impugna a instituição divina do papado nem seu direito a reger os assuntos espirituais conforme a
lei divino-
positivo e o direito natural (como ele o entende), mas opõe-se vigorosamente às pretensões da Cúria (corte
papal) de intervir nos
assuntos temporais no imperium . Ele preconiza coordenação e cooperação de ambas as potestades.
ESCOLAS DE SALAMANCA E COIMBRA E O “DIREITO DAS
GENTES”
APOCRIFA
Diz-se de obra religiosa destituída de autoridade canônica [que segue os dogmas da Igreja].
DONATIO CONSTANTINI
Suposto documento do imperador Constantino (306 d.C.-337 d.C.), que cede à Igreja Católica propriedades ao então Papa Silvestre
I (285 d.C.-335 d.C.).
Missionário e teólogo italiano que se dedicou à recristianização de Nápoles e sua região. Ele criou a Congregação dos
Redentoristas e desenvolveu um sistema de teologia moral a meio caminho entre o rigor e o laxismo, que foi chamado de
equiprobabilismo. Ele foi canonizado em 1839 e declarado doutor da Igreja em 1871.
Fonte: Biografías y Vidas.
A Universidade de Salamanca foi fundada em 1243 por Fernando III, o Santo (1201-1252), rei de Leão e Castela. Foi uma
das
quatro grandes universidades da cristandade medieval, junto com Paris, Bolonha e Oxford.
A Universidade de Coimbra, fundada em 1290, também merece destaque por manter-se como uma das instituições mais antigas
do
mundo, que, desde sua origem, ofereceu os cursos de Artes, Direito Canônico, Direito Civil e Medicina. Foi nessas
universidades
que nossos personagens se destacaram.
FRANCISCO DE VITÓRIA
Francisco de Vitória (1483-1546) estudou em Paris, dedicando-se especialmente ao estudo da Antropologia tomista. Foi um
grande mestre universitário e criador de uma escola filosófico-teológica que teria influência decisiva na Espanha e na
América.
Suas obras De potestate civili , De indis e De iure belli expressam seu pensamento sobre a origem da autoridade civil, os
títulos
legítimos e ilegítimos dos espanhóis para conquistar a América, e o direito à guerra contra os nativos do novo
continente.
(SANTOS, 2016)
Não há lugar para o anarquismo, nem existe nada de definitivo sobre as formas concretas de organização política.
Todos os povos podem escolher para si mesmos a forma de governo que consideram idônea.
Toda república pode ser castigada pelo pecado do rei, segundo o princípio de solidariedade entre o governante e os
governados,
que são corresponsáveis pelas culpas do governante.
Sobre a justificativa da guerra, Vitória aplica os critérios do “mal menor” e do “bem possível”. Isto é, nenhuma
guerra é justa caso
verifique-se que se sustenta às custas de um mal maior do que o bem e a utilidade da República,
por mais que sobrem razões para
uma guerra justa.
Vitória criou o direito das gentes (ius gentium ), precursor de nosso Direito internacional, que justifica, sobre a
base da
solidariedade internacional dos povos — e não sobre o direito natural, como concebido classicamente por
Agostinho e Tomás de
Aquino —, uma espécie de fraternidade universal dos homens entre si.
Sobre a conquista espanhola, Vitória estabeleceu sua conhecida relação de sete títulos ilegítimos e de oito títulos
legítimos.
Os sete títulos ilegítimos são:
Os índios se obstinam em não receber a fé de Cristo, apesar de lhes ter sido proposta e os terem exortado com insistência.
Os pecados são dos próprios bárbaros — alguns contra natura (contra a natureza).
Há uma especial doação por parte de Deus — como ocorreu no caso dos israelitas quanto à sua Terra prometida.
Os espanhóis têm direito a percorrer as terras americanas sem serem molestados e sem receber dano.
A religião cristã pode ser propagada naquelas terras — no caso de os índios aceitarem espontaneamente a fé católica, não
haveria o direito a declarar guerra contra eles nem de ocupar suas terras.
Os nativos que se converteram à fé católica devem ser protegidos contra as perseguições de seus próprios reis, ainda pagãos.
Se boa parte dos nativos tivesse se convertido à fé católica, o papa poderia, com causa justa, impor-lhes um príncipe cristão e
destituir o príncipe infiel.
Cabe à tirania de seus próprios senhores ou às leis desumanas que estes promulgam.
Pela pouca “civilização e polícia” dos nativos, poderia ser imposto a eles um príncipe cristão — este lhe parece um título
duvidoso.
FRANCISCO SUÁREZ
Para Francisco Suárez (1548-1617), a lei natural é uma verdadeira e autêntica lei divina e seu legislador é Deus. Em
Deus, supõe
um juízo que Deus mesmo emite a respeito da conveniência ou inconveniência de tais atos e a vontade de
obrigar os homens a
cumprir o que dita a reta razão. Essa vontade supõe um juízo a respeito da malícia, por exemplo, da
mentira ou de coisas
semelhantes.
Entretanto, a autêntica proibição ou obrigação do preceito não surge em virtude do mero juízo, uma vez que não se pode
entender
isso independentemente da vontade. A lei natural, portanto, não se limita a manifestar a desconformidade
natural de tal ato ou
objeto com a natureza racional, mas também é um signo da vontade divina que o proíbe.
Figura 18. Francisco Suárez.
FRANCISCO SUÁREZ
Para Suárez, no ato humano existe um tipo de bondade ou malícia em função do objeto em si mesmo considerado, segundo
esteja
ou não de acordo com a reta razão. E o ato humano recebe, de modo especial, o nome de pecado ou culpa para
com Deus por
razão da transgressão de uma verdadeira lei dada pelo próprio.
Suárez interpreta essa específica malícia como a “prevaricação” de que fala São Paulo: “onde não há lei, tampouco há
prevaricação
[transgressão].” O ato humano contrário à natureza racional não teria esse caráter de “transgressão” ou
“prevaricação”.
Aqui, observamos a mentalidade moderna de Suárez: uma sutil transposição da questão da verdade divina da lei natural
(como
reflexo da “lei eterna”) para a vontade divina de impô-la como lei natural. E a interpretação da passagem de
São Paulo é forçada:
“onde não há lei”, na mente do apóstolo, é “onde há fé e a graça do amor”, isto é, onde a lei
já está sendo cumprida e, portanto, não
pode haver transgressão .
(COSELLA, 2012)
Assim, o direito “das gentes” não manda nada que seja por si mesmo necessário para a retidão ou a conduta, nem proíbe
nada que
seja essencial e intrinsecamente mau. Tudo isso pertence ao direito natural.
O direito “das gentes” não forma parte do direito natural tampouco distingue-se dele por ser um direito específico
dos homens. O
direito “das gentes” é simplesmente humano e positivo, e seus preceitos diferenciam-se dos preceitos
do Direito civil pelo fato de
não estarem formados por leis escritas e sim por costumes, não deste ou daquele
Estado, mas de todas ou quase todas as nações.
Afinal, o direito humano é de duas classes: escrito e não escrito. O direito não escrito está formado por costumes,
e, se foi
estabelecido pelos costumes de um só povo e a ele só obriga, segue sendo Direito civil. Se, pelo
contrário, foi estabelecido pelos
costumes de todos os povos e se a todos obriga, esse é o direito “das gentes”
propriamente dito, segundo Suárez.
Com isso, o Direito internacional identifica-se com os costumes universais positivos e compreende apenas o mínimo
comum de
práticas extremamente indispensáveis para a manutenção de uma comunidade internacional pacificada.
Estamos, aqui, longe da necessidade (moral) de uma adequação universal aos costumes ideais e conformes com a lei
natural, que
uma sociedade objetivamente mais justa poderia ter alcançado e desejaria difundir (sem violência).
Portanto, estamos na origem de certo relativismo ético político, já que o indispensável são apenas os costumes
universais de fato ,
e não aqueles de direito (direito natural, entenda-se, na concepção pré-moderna).
Agora vamos aprofundar o conceito de Nominalismo, mas a partir das ideias de Guilherme de Ockham
VERIFICANDO O APRENDIZADO
CONCLUSÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As éticas agostiniana e tomasiana, como fundamentação do agir formalmente ético, são inseparáveis da moral, como
conteúdo
concreto em que a forma da ética se realiza. De outra parte, ética e moral têm uma fundamentação metafísica,
pois estão
ancoradas no próprio ser da pessoa humana, em sua natureza ou essência, naquilo que a tradição clássica
chamou de lei (moral)
natural. E a lei natural tem uma fundamentação teológica: é o reflexo em nossa consciência da “lei
eterna” divina.
Aqui, a palavra “natureza” tem o sentido clássico anterior à separação entre natureza e espírito, ou natureza e
história, ou natureza
e cultura.
A lei natural nos dois maiores clássicos da Filosofia medieval não deve ser entendida como alguma espécie de dado
“espontâneo”
ou meramente biológico, mas como a leitura ou interpretação que a razão humana faz das inclinações naturais
e a consequente
promulgação dos deveres/direitos daí decorrentes. Também, ou principalmente, a razão constitui a
natureza da pessoa humana.
Para Agostinho e Tomás de Aquino, a reflexão e a prática política e jurídica são inseparáveis da ética e da religião: o
exercício do
governo, as relações sociais, as leis e o bem comum devem estar em harmonia com o que é considerado bom e
justo para o
indivíduo, segundo a lei natural radicada na lei divina. Com Ockham, ocorre uma separação entre as
obrigações morais e a lei
divina, e a ética pende, agora, do conceito de “obrigação”.
Francisco de Vitória inauguraria a investigação do “direito das gentes”, buscando ajuizar a conquista americana pelos
espanhóis, a
partir da ideia de uma solidariedade internacional. E Francisco Suárez separaria a lei natural do conceito
de “transgressão” ou
“pecado”, e entenderia o direito das gentes como um mínimo de costumes internacionais comuns. Com
isso, todo o arcabouço
jurídico-político moderno já está montado para ser edificado.
PODCAST
Agora, o especialista Ronaldo Pelli Junior aborda questões fundamentais da filosofia medieval, como a relação entre fé e política, e
como estas influenciaram os pensadores posteriores.
AVALIAÇÃO DO TEMA:
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO. A Cidade de Deus. 9. ed. Bragança Paulista: USF, 2006.
AQUINO, T. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Tradução e introdução de Francisco Benjamin de Souza Neto.
Petrópolis: Vozes, 2011. (Coleção Textos Filosóficos)
BELLO, J. O moral e o teologal: felicidade e religação em Xavier Zubiri e Santo Tomás. Trilhas Filosóficas, v. 9, n. 1,
2016.
COSELLA, P. 400 anos do DE LEGIBUS de Francisco Suarez. In : Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, São Paulo, v. 106-107, p. 25-33, jan./dez. 2012.
MARCONDES, D. Guilherme de Ockham e a crise da escolástica: uma iniciação à Filosofia. São Paulo: Zahar, 2016.
SANTOS, P. Sobre o direito de guerra – Estudo introdutório e tradução comentada da Relectio de iure belli de Francisco
de Vitória. 2016. Dissertação (Mestrado em Estudos Clássicos) – Instituto de Estudos Clássicos, Faculdade de Letras,
Universidade
de Coimbra, Coimbra, 2016.
SIMÕES, M. C. Os caminhos da reflexão metafísica: fundamentação e crítica. Curitiba: Intersaberes, 2015.
EXPLORE+
No Blog Acadêmico ICTYS , é possível encontrar artigos que aprofundam temas de Filosofia medieval pertinentes como: O
problema dos universais e As bases medievais do laicismo moderno .
O livro A Filosofia política na Idade Média , de Sérgio Ricardo Strefling, distribuído virtual e gratuitamente, é um
importante
material introdutório sobre o assunto. Vale a leitura!
A Revista Portuguesa de Filosofia (v. 75, n. 3, 2019) é inteiramente dedicada às teorias políticas medievais.
Publicada pela
Aletheia – Associação Científica e Cultural, em Braga, também está disponível virtualmente. Pesquise e
aprofunde seu
conhecimento.
CONTEUDISTA
Joathas Soares Bello
CURRÍCULO LATTES