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1. INTRODUÇÃO
A proposição de uma epistemologia medieval implica em assunções e explicações.
Inicialmente é necessário assumir as suas raízes clássicas do século IV a.C., segundo duas
asserções. A primeira, platônica, segundo a qual o conhecimento está dentro do homem, para
quem as coisas são apenas estímulos dos quais ele deve se afastar para se elevar às ideias
(MARÍAS, 2004, p. 53). E a segunda, aristotélica, de que a verdadeira ciência é saber
demonstrativo, epísteme em grego, o saber o que são as coisas a partir de seus princípios, para
os quais, por serem indemonstráveis e não derivarem de nada, deve haver uma intuição, que é
o nous (Ibid., p. 69).
Em seguida é preciso explicar como essa concepção de conhecimento foi
metabolizada pela civilização que se desenvolveu na parte ocidental da Europa entre os
séculos VI e XV, o período da História conhecido por Idade Média, o qual, ao contrário do
suposto por muito tempo, foi decisivo para o progresso da ciência. A importância da
epistemologia que daí aflora reside no fato de naquele longo período terem sido estabelecidos
princípios que viabilizaram e orientaram a expansão do conhecimento que segue nos nossos
dias sem o menor sinal de atenuação.
Não obstante Francis Bacon (1561-1626), um dos grandes pioneiros da organização do
conhecimento moderno, haver criticado a esterilidade dos escolásticos, ele, ao constituir a
pirâmide na qual se superporiam a filosofia natural, a física e a metafísica (BACON, 2006, p.
150), três estágios do conhecimento integrados numa lei suprema e permeados tanto pelas
causas material e eficiente como pelas causas formal e final, objetos da física e da metafísica
respectivamente (Ibid., p. 146), seguia a tradição inaugurada por São Tomás de Aquino
(1225-1274) segundo a qual “a razão do bem pressupõe a razão da causa eficiente e a razão da
causa formal”(AQUINO, 2009, p. 199).
Essa teleologia se reiterava na defesa que o próprio Bacon fez da unidade até a qual
“todas as coisas ascendiam por uma escala” (BACON, 2006, p.150), prosseguia na
Monodologia em que Leibniz (1646-1716) conciliou as causas eficientes com as causas finais,
“harmônicas entre elas” (LEIBNIZ, 1998, p. 183), para culminar no conceito de “fim final da
existência de todas as coisas”, proposto por Kant (KANT, 2009, p. 298). O objeto dessa
teleologia é unívoco. Deus, cujos atributos e atos conferem “dignidade do conhecimento em
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seu arquétipo ou primeiro modelo” (BACON, 2006, p. 63). Deus, “o autor de tudo”, ao qual
nos vinculamos como causa eficiente de nosso ser e como causa final que orienta a nossa
vontade (LEIBNIZ, 1998, p. 192). Deus, causa suprema, que supriu o que faltava ao
“conhecimento da natureza”(KANT, 2009 , p. 298).
O sucesso de São Tomás de Aquino em promover a assimilação da doutrina
aristotélica à teologia católica é um divisor de águas na evolução da filosofia medieval. Com
efeito, para conciliar o saber aristotélico com a doutrina da Igreja católica, ele o vinculou a
um patamar divino por meio da reflexão em torno da criação, “o primeiro problema
metafísico da Idade Média, do qual derivam, em suma, todos os demais” (MARÍAS, 2004, p.
141). Do ponto de vista metodológico, o trabalho de São Tomás de Aquino conciliou não
apenas o aristotelismo com o cristianismo, mas também o platonismo, tendo feito confluir as
duas vertentes epistemológicas que marcaram o período até a Baixa Idade Média e com isso
ter posto a funcionar, efetivamente, a escolástica como instrumento de produção do
conhecimento.
denominados padres da Igreja. A sua vasta produção intelectual entre os séculos II e III, a
patrística, marcada tanto pelo confronto com as ideias pagãs como pela assimilação do saber
grego e latino, teve como principal resultante a construção de uma identidade cristã em torno
da doutrina católica. Como asseverou Étienne Gilson em sua obra A Filosofia na Idade
Média, a reflexão que os autores da patrística desenvolveram teve como matéria os
acontecimentos e a doutrina transmitidos pelo Evangelho, sem que tenha sido identificado
qualquer elemento grego na “substância da fé cristã” (GILSON, 2013, p. XX). No entanto,
elementos essenciais do pensamento grego e latino foram levados em conta por esses
pensadores cristãos que deram à sua religião a funcionalidade de uma filosofia.
Essa funcionalidade atendia a necessidades muito amplas e complexas. Havia que se
pleitear o reconhecimento legal da existência da nova religião no Império Romano; enfrentar
o desafio das religiões concorrentes e das filosofias pagãs; depurar a doutrina dos desvios e
erros de interpretação das escrituras; e finalmente, e por certo o mais difícil, como religião
reveladora de uma verdade universal acessível a todos os povos, o cristianismo tinha que
assimilar toda a História precedente, explicando-a através de um fim. Essas necessidades
foram atendidas sucessivamente: pela expansão da fé cristã até a sua transformação em
religião oficial do Império; pelo fenecimento das doutrinas contrárias, estoicismo, epicurismo
e maniqueísmo dentre outras; e pela condenação das heresias, as profundas o gnosticismo e o
arianismo; ficando a questão histórica a ser resolvida pela epistemologia agostiniana.
É bem conhecida a tese de que a ortodoxia católica decorre em boa parte do intenso
debate com as filosofias e doutrinas contrárias nesses primeiros séculos da era cristã. O que
nem sempre fica evidente é que na base dessas controvérsias filosóficas estava a questão do
conhecimento, especificamente o que conhecer e como. O estoicismo vinculava o mundo a
Deus, mas o seu materialismo não alcançava a transcendência que no cristianismo seria o
princípio unificador de todas as coisas. O materialismo epicurista, amplamente especulativo,
não se preocupava em saber o que são verdadeiramente as coisas. Já o maniqueísmo, nas
palavras de Agostinho, “não me dava a razão dos solstícios e dos equinócios, nem de coisa
alguma que aprendera nos livros profanos” (AGOSTINHO, 2012, p. 105).
O mesmo ocorreu às heresias cristãs, as quais, paralelamente ao seu caráter teológico,
propunham o conhecimento por si. A principal delas, o gnosticismo, bastante ativo no século
II, não via em Deus o criador das coisas, uma posição que iria ser ativamente combatida por
Santo Irineu (126-?) em sua obra Exposição e refutação do falso conhecimento, na qual ele
afirma que “o que as coisas são atesta o que é Deus” (GILSON, 2013, p.35). O arianismo,
uma controvérsia manifestamente trinitária do século IV, ao separar de Deus o Verbo, negava
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a causalidade divina de todo ser, sendo enfrentada por Mario Vitorino (300-363) que
demonstrou que o inteligível toma forma a partir do intelectível - o que é provindo do que
verdadeiramente é. Foi do debate com as grandes heresias que a patrística erigiu as fundações
da ortodoxia católica nas quais se encontravam as raízes da epistemologia medieval.
A contribuição seminal da obra de Santo Agostinho para o conhecimento pode ser
compreendida pela sua atividade, na segunda metade do século IV, como professor de
gramática e retórica em Tagaste e Cartago, no Norte da África, e de retórica em Roma e
Milão. A época foi marcada tanto pelo declínio da filosofia grega em proveito da retórica
latina, como pelo neoplatonismo de Plotino (204-270), por sua vez influenciado pelo
cristianismo em ascensão. Foi também um período de desencontros de visões de mundo que
se agravavam na decomposição do Império Romano. A par de sua atividade como professor,
Agostinho, admirador confesso da poesia de Virgílio (70 a.C. – 19 a.C.) e da retórica moral de
Cícero (106 a.C. - 43 a.C.), antes de se reconverter1 ao cristianismo, lera As Dez categorias de
Aristóteles, escrevera o livro Do Belo e do Conveniente (em 380, hoje perdido) e tinha
absorvido os textos neoplatônicos, provavelmente Plotino e Porfírio (232-304), do que reteve
a impressão de que “as obras platônicas sugerem, de todos os modos, Deus e o seu Verbo”
(AGOSTINHO, 2012, p.177). Portanto, tanto pelo seu magistério, como pelas suas reflexões
estéticas, morais e metafísicas, Agostinho era, mesmo antes de sua reconversão, um
conhecedor do saber e da cultura de seu tempo. E mais, ao contrário da grande maioria dos
padres da Igreja, ele era, por sua origem familiar, posição social e profissão, um insider, bem
situado na sociedade romana para empreender a crítica e a mudança que cabiam naquele
momento.
Para a compreensão da teoria do conhecimento de Santo Agostinho é útil destacar na
sua extensa produção intelectual algumas obras: duas do início de sua trajetória como
pensador cristão, Contra Academicos (386) e De magistro (389), e duas de suas obras
máximas, Confissões (400) e A Cidade de Deus (413-426). Num primeiro momento,
Agostino demonstra a insuficiência do conhecimento contemporâneo influenciado pelos
estoicos e epicuristas, dos “acadêmicos”, para introduzir novos conceitos, como os de
linguagem e signo, que irão fundamentar a sua teoria do conhecimento. Mais tarde, no início
do século V, essa teoria, completa e amadurecida, seria apresentada nas obras máximas
agostinianas.
1 Apesar de não ter sido batizado, Agostinho fora criado no cristianismo, professado pela sua mãe Mônica.
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Contra Academicos foi a primeira das obras escritas por Agostinho durante o seu
retiro, em Cassicíaco, nas proximidades de Milão, entre setembro e 386 e março de 387, antes
de ser batizado. Pode-se dizer que este foi um livro obrigatório para a trajetória de um dos
pensadores do cristianismo. Nele, Agostinho, utilizando as técnicas do diálogo e da retórica,
ataca a falta de compromisso dos acadêmicos com a busca da verdade. Pode-se afirmar que
este é o ponto central do livro, que haveria de dar início ao desenvolvimento posterior da
epistemologia agostiniana baseada na busca incessante e sistemática da verdade. Na abertura
do livro segundo da obra, na exortação de Alípio a Romaniano, Agostinho aponta que “por
causa de um erro comum a todos os povos, qual seja, ter uma falsa opinião de ter encontrado
para si a verdade, os homens não procuram com diligência, se é que procuram, e nem se
dirigem com vontade decidida para aquilo que é buscado” (AGOSTINHO, 2014, p.37). No
livro primeiro, Agostinho já havia estabelecido que “a ciência se constitui não apenas de
coisas compreendidas, mas compreendidas de tal modo que qualquer um que a exerça não
erre nem deva hesitar frente à pressão de qualquer adversário” (Ibid., p. 30). No livro terceiro,
Agostinho colocou os números como ideias, “uma vez que três vezes três será nove, e o
quadrado de números inteligíveis é necessário que seja verdadeiro mesmo que todo o gênero
humano ronque em sono profundo” (Ibid., 86), um tema a que ele voltará mais tarde em
Confissões, a pedra de toque da teoria de conhecimento agostiniana, a referência para o
pensamento medieval.
Em De magistro, empregando as mesmas técnicas, desta vez num diálogo elaborado
com o seu filho Adeodato, Agostinho deu um passo importante no desenvolvimento de sua
teoria ao explicar como se aprende. Conquanto o livro seja tido como um precursor da ciência
da linguagem e dos signos, a metafísica que o perpassa conduz a uma concepção de
conhecimento a partir do interior do homem. Pela memória, “onde as palavras estão
impressas, reevocando-as faz vir à mente as coisas mesmas (res ipsas), das quais as palavras
são signos” (AGOSTINHO, 2009, p. 75). Pela percepção, através da qual “aprendemos a
força da palavra (vim verbi), isto é, o significado que está latente no som, depois de conhecer
a coisa mesmo (res ipsa) significada; bem ao contrário de percebermos essa coisa por meio de
tal significado” (Ibid., 137). E, finalmente, por Deus, pois, “saber se é verdade o que se diz,
ensina aquele que, quando falava do exterior, nos admoestou que Ele habita em nosso
interior” (Ibid., p. 158).
Confissões pode ser considerada a obra principal de Santo Agostinho, em que ele
consolida sua teoria da criação, da qual depende sua teoria do conhecimento. O título expressa
a intenção de Agostinho, confessar-se a Deus, realizando uma verdadeira catarse que ocupa
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mais da metade da obra, tratando a segunda, a mais relevante, da questão da criação. Tido
como “um dos mais célebres das Confissões”2, o capítulo “O êxtase de Óstia” demonstra
como se deve ascender em espírito à própria alma para dela atingir essa “região de
inesgotável abundância (...). “Ali a vida é a própria Sabedoria, por quem tudo foi criado, tudo
que existiu e o que há de existir, sem que ela própria se crie a si mesma, pois existe como
sempre foi e como sempre será. Antes, não há nela ter sido, nem haver de ser, pois
simplesmente “é”, por ser eterna. Ter sido e haver de ser não são próprios do Ser eterno”
(AGOSTINHO, 2012, p. 219). Há nessa concepção agostiniana de criação uma axiologia
transcendental que contém o princípio orientador de todo conhecimento da existência,
segundo o qual “mesmo o que não foi criado e todavia existe, nada tem em si que antes não
existisse” (Ibid., p, 287), e vai se desdobrar inevitavelmente numa nova concepção de “que
nenhum tempo pode existir sem a criação” (Ibid., p. 313).
O outro grande livro de Santo Agostinho, A Cidade de Deus, é uma escatologia na
qual a História é subordinada ao fim último do homem, conforme reitera o autor na conclusão
do livro X: “direi, com o auxílio de Deus, o que julgar conveniente dizer sobre a origem, o
desenvolvimento e os fins das duas cidades [de Deus e terrena]” (AGOSTINHO, 2007, p.
414). Motivada, sem dúvida, pelo acontecimento que assombrou o mundo da época, o saque
de Roma em 410 pelo visigodo Alarico (375-410), a obra se orienta pela refutação à ideia de
que a debacle romana se devia à adoção pelo Império da religião cristã. Agostinho articula
então uma leitura da história romana, não somente segundo o aspecto político, mas também o
moral, teológico, filosófico e de comportamento, numa reconstrução crítica que acaba por
extrapolar a própria Roma para abarcar o mundo pagão em geral, no passado e presente. O
que é novo nesse texto é a refutação que Agostinho faz do platonismo quanto à existência de
princípios que purificariam o homem, contrapondo a existência do “princípio uno e
verdadeiro” que é “o Verbo criador de todas as coisas”, que “se fez carne e habitou entre nós”
(Ibid., p. 397). A essa altura de sua trajetória como pensador, Agostinho assume integralmente
a concretude de sua obra e oferece pela primeira vez na História a concepção de uma História
verdadeiramente universal.
A época de Agostinho, na qual pontificaram outros pensadores, foi aquela em que se
consolidou a identidade cristã, não só na sua liturgia, mas também, como se viu, pelo
conhecimento que haveria de ser institucionalizado. Não havia ainda se consumado a queda
do Império Romano do Ocidente que levaria à divisão do mundo latino e, consequentemente,
2 Conforme comentário em nota de rodapé da edição consultada dessa obra (AGOSTINHO, 2012, p. 218)
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de sua igreja. A identidade cristã permeava indistintamente o mundo romanizado que, aos
poucos, se desfazia politicamente.
3. INSTITUIÇÃO DO CONHECIMENTO
A etapa seguinte à construção da identidade cristã foi a da institucionalização do
conhecimento. Para tanto foram necessárias uma fonte, a Bíblia, o livro que consolidava num
só idioma os ensinamentos da nova religião; uma perspectiva, a História, que oferecia uma
visão coerente e sincronizada das histórias dos povos formadores da nova religião; e a
definição do quê deveria ser aprendido e ensinado.
Só no início do século V a Bíblia atingiria a condição de um texto único na língua
franca da época, o latim, reunindo as escrituras sagradas reconhecidas pela Igreja, na versão
que passaria a ser conhecida como Vulgata. O trabalho complexo de tradução da Bíblia para o
latim coube a São Jerônimo (347-419 ou 420), encarregado em 382 pelo Papa Dâmaso (305-
384), “da revisão dos textos latinos da Bíblia, encaminhando-o assim para seu trabalho
principal, nos anos próximos” (CARPINETTI; MELLO, 2013, p. 15), justamente quando se
estava finalizando o debate acerca do conteúdo das escrituras segundo o cânon, encetado
desde o final do século I. É em sua obra Apologia contra os livros de Rufino que São
Jerônimo expõe as peculiaridades da tradução da Bíblia para o latim, a começar pela
existência de distintas versões da Bíblia entre os cristãos.
3Setenta, ou Septuaginta, abreviada LXX, foi a tradução do Antigo Testamento, do hebreu para o grego, feita
pelos denominados sábios de Alexandria, a partir do século III. Aqui, São Jerônimo se refere a Hesíquio,
possivelmente um alexandrino, que teria revisto, por volta dos anos 300, tanto o Setenta quanto o Novo
Testamento, trabalho que São Jerônimo critica (Ibid.).
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gnóstica. Diante disso, São Jerônimo, que havia escrito um livro, Sobre a melhor maneira de
traduzir (p. 129) e aprendera “o hebraico com um monge de origem judaica” (CAPINETTI;
MELLO, 2013, p. 14) e “a fundo a língua grega” (Ibid., p. 13), assumiu o desafio de traduzir
trechos da Septuaginta do hebraico diretamente para o latim, uma empreitada que, a despeito
de envolve-lo em acerba polêmica, levou-o além da tradução, para formular a concepção
cristã de História, dividida entre o antes e o depois de Cristo.
A partir do século VI, estabelece-se o quê deveria ser conhecido pelos cristãos, tanto
por tratados que procuram abarcar todo o conhecimento existente na época, os mais
importantes escritos por Boécio (470-525), Cassiodoro (477 ou 481-ca.570) e Isidoro de
Sevilha (ca.560-636), como pela obra organizadora do Papa Gregório Magno (540-604).
Como assinala Étiene Gilson, Boécio tinha por intenção “traduzir todos os tratados de
Aristóteles, todos os diálogos de Platão e demonstrar por comentários a concordância
fundamental das duas doutrinas” (p. 158), uma conciliação que só viria a acontecer no século
XIII, em grande parte devido à obra tomista. Ao se lançar a essa descomunal tarefa que não
completaria, Boécio conseguiu, no entanto, estabelecer uma definição e uma classificação das
ciências, todas subordinadas à filosofia, orientadas para os três objetos do conhecimento: os
intelectíveis, os inteligíveis e os naturais, estudados respectivamente pela teologia, pela
psicologia, numa interpretação moderna, e pela física, esta dividida entre as quatro disciplinas
do quadrivium, aritmética, astronomia, geometria e música (p. 159). A outra parte das artes
liberais, o trivium, composta pela gramática, retórica e lógica, segundo Boécio, seriam mais
vocacionadas para a expressão do conhecimento do que à sua aquisição, colocando-se a lógica
“como uma parte da filosofia ou como um instrumento a serviço desta” (Ibid., p. 160). O
conjunto da obra de Boécio foi de extrema importância para o conhecimento da Idade Média,
porquanto o sistematizou através de obras que seriam utilizadas durante todo o período.
4. EXPANSÃO DO CONHECIMENTO
Quatro são os desenvolvimentos históricos que propiciaram a expansão do
conhecimento na Idade Média: a fundação de um núcleo difusor nas Ilhas Britânicas no
século VII, a evangelização da parte ocidental do continente a partir desse núcleo; o
renascimento carolíngio no século VIII e o renascimento do século XII. Em cada um desses
desenvolvimentos, pode-se distinguir tanto fatores espaciais e quantitativos, na abrangência
de territórios e populações alcançados, quanto fatores qualitativos, nos processos e interações.
No século VI estavam consumados o desaparecimento do Império Romano do
Ocidente e o fracasso da tentativa da reconquista por parte do Império Romano do Oriente.
Distintos reinos bárbaros tinham consolidado seu poder sobre regiões extensas da futura
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para o renascimento que viria a acontecer dois séculos mais tarde, qual seja, o início da
recuperação da obra de Aristóteles, da qual só se conhecia até o século X “uma tradução
latina das Categorias e do tratado Da interpretação; era ignorado, pois, o resto de sua lógica”
(Ibid.). O movimento de reforma prosseguiria no final do século XI com a fundação da ordem
de Císter, também na Borgonha, a qual pretendeu retomar a regra beneditina que entendia
como perdida por Cluny, e, sob a orientação de Bernard de Clairvaux (1090-1153), vai
adquirir a sua “coerência intelectual e institucional“ (VINCENT, 2011, p.170) que, junto com
Cluny, contribuirá para “uma maior padronização das práticas da Igreja” (ROBERTS;
WESTAD, 2013, p. 484).
Além da escrita e do monasticismo, foi pela interação com outros saberes e culturas
que aconteceu o renascimento do século XII e essa interação ocorreu em dois processos: as
traduções das “obras científicas, metafísicas e morais de Aristóteles” (GILSON, 2013, p. 461)
e a assimilação das filosofias árabe e judaica. Ao longo da Alta Idade Média, a cristandade
ocidental havia perdido o contato com as fontes remanescentes da tradição clássica, devido ao
afastamento entre as Igrejas de Roma e Constantinopla, ao esquecimento do grego e à
conquista da Síria pelos árabes islamizados, onde se depositavam em mosteiros cristãos
nestorianos muitas obras de Aristóteles traduzidas para o siríaco.
A evolução da filosofia medieval até o século XII se deu a partir do conhecimento
incompleto do aristotelismo auferido da patrística, por sua vez, fortemente influenciada pelo
platonismo e neoplatonismo. Ainda que o neoplatonismo também contaminasse as traduções
siríacas dos textos aristotélicos, com eles os árabes haviam passado a dispor de um material
desconhecido dos pensadores cristãos, o qual, depois de assimilado pelos comentários,
interpretações e formulações de Alkindi (801-873), Alfarabi (ca.872-950), Avicena (ca.980-
1037), Avempace (1095-1138) e Averróis (1126-1198), proporcionou-lhes uma superioridade
de conhecimento científico que durou até o século XIII. Essa vantagem era reconhecida pelos
cristãos, que já no século X procuravam se inteirar dos avanços da filosofia e da ciência
árabes, como fez o monge beneditino Gerberto de Aurillac (946-1003), indo tomar contato
com a ciência árabe na Espanha e acumulando notável saber, antes de se tornar o Papa
Silvestre II.
As traduções dos textos aristotélicos e árabes no Ocidente aconteceram em duas
etapas. A primeira no século XII, centrada na escola de tradução de Toledo, era mais limitada,
por que tinha que traduzir do árabe para o vernáculo e deste para o latim textos que tinham
sido originalmente traduzidos do grego para o siríaco e deste para o árabe, e ainda haviam
sofrido modificações apontadas pelo próprio Averróis que “acusou os primeiros autores
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levar em consideração as manifestações artísticas ocorridas nesse século por intermédio das
monumentais catedrais, da música polifônica e das artes plásticas.
A explosão da construção de catedrais expressou “uma parte essencial da
instrumentalização do evangelismo e educação na terra (...). Suas janelas eram repletas de
imagens das estórias da Bíblia que eram o core da cultura europeia; suas fachadas eram
cobertas com representações didáticas do destino esperado por justos e injustos” (ROBERTS;
WESTAD, 2013, p. 487). Já a música nesse século experimentou notável avanço, com a
adoção da polifonia nos cantos litúrgicos, materializado no primeiro “livro de música em
duas, três e quatro partes a circular de forma manuscrita” (BURROWS; WIFFEN, 2007, p.
48), de autoria de Léonin (1150-1201) e Pérotin (1160-1230), ambos da catedral de Notre-
Dame em Paris. Por sua vez, as artes plásticas exprimiram um interesse inusitado por Adão e
Eva, no qual se constata uma psicologia capaz de expressar o sentimento de transgressão
contido no pecado original, reencontrando-se “o gosto pela nudez, a beleza dos corpos e de
rostos, num momento em que se introduzia a prática do exame de consciência pela confissão e
da busca da intenção no pecado” (LE GOFF, 2007, p. 76).
O que se depreende do didatismo das catedrais, da sincronia embelezadora da música
polifônica escrita e da redescoberta da beleza natural é a consecução nesse século XII de uma
meta de equilíbrio, talvez melhor expressa no que Umberto Eco designou como proporção,
“proporção no sentido de adequação (...), não (...) como quantidade matemática, senão como
conveniência qualitativa” (ECO, 2004, p. 95).
5. NOVO CONHECIMENTO
Julían Marías, renomado filósofo espanhol, apontou que o surgimento das
universidades e a incorporação da filosofia escolástica produziram “o grande século clássico
da Idade Média” (p.171). Foi o século XIII, no qual, para Étienne Gilson, começa a “grande
época da teologia e da filosofia escolástica”(p. 473).
A universidade do século XIII foi, inicialmente, a reunião de todas as faculdades
existentes num determinado centro urbano, o conjunto dos estudantes e professores, e não a
organização formal das faculdades numa só instituição. Elas refletem a valorização do ensino
e do conhecimento na sociedade medieval que atingiu no século XII uma patamar inédito.
Novas condições de vida nas cidades, expansão da educação e disponibilidade de bons
empregos nas chancelarias reais e ducais, bem como na justiça, fizeram com que mais pessoas
se dirigirem às cidades afamadas por suas escolas e faculdades em busca do aprendizado das
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uma unidade causada pelo intelecto, “não porque seja um em todos, mas por ser imaterial”
(item 8, p.91). Com isso, São Tomás institui a transcendentalidade do conhecimento a que
todo homem está vocacionado, independentemente de suas aptidões, algo de grande
significado para a civilização ocidental, na medida em que estimulou uma busca infinita de
conhecimento numa multiplicidade indefinida de formas.
Numa outra parte da vasta produção intelectual de São Tomás de Aquino, a
transcendentalidade do conhecimento se orienta para a ação, dessa vez, política, no seu
comentário ao livro X de Aristóteles, em que pontua que “as leis instituídas assemelham-se às
ações políticas, porque aquelas são criadas como regras destas e os homens que desconhecem
quais ações são convenientes são incapazes são conhecer as leis convenientes” (2013a, p.
136). Portanto, segundo São Tomás, as ações políticas e legislativas convenientes partiriam de
um conhecimento superior dos homens “exímios conhecedores das coisas singulares” (Ibid.),
sendo o acesso a esse conhecimento das coisas singulares dado pela faculdade de uma
verdade única alcançável pelo intelecto imaterial. Nessa mesma vertente política, São Tomás,
em sua obra dirigida ao Rei Hugo II de Chipre (1252-1267), deixa evidente a teleologia que
dá sentido às ações dos homens, ao colocar que “tem o homem um fim, para o qual se
ordenam toda a sua vida e ação, porquanto age pelo intelecto, que opera manifestamente em
vista do fim. Acontece, porém, que os homens agem de modos diversos em vista do fim, o
que a própria diversidade das intenções e atos humanos patenteia” (2013b, p. 27).
Para reconhecer a importância da obra de São Tomás de Aquino é útil ter em conta o
que apontou Bertrand Russell, o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1950: “o
tomismo se tornou a doutrina oficial da Igreja romana, e como tal é ensinada em todas as suas
universidades e escolas. Nenhuma outra filosofia desfruta hoje de condição tão destacada e de
apoio tão poderoso exceto o materialismo dialético, doutrina oficial do comunismo”
(RUSSELL, 2001, p. 216-217). No entanto, ao se percorrer as principais passagens da obra de
São Tomás de Aquino, em particular na sua Suma Teológica a noção de causalidade
mencionada no início desse artigo, o que se constata, para além do apoio oficial da Igreja
católica, é a dimensão científica da escolástica lançada pelo tomismo, “pois método, na
ciência, não é o modo como se descobre algo, mas um procedimento por meio do qual se
justifica algo” (POPPER, 2013, p. 5).
6. O LEGADO MEDIEVAL
As grandes contribuições da epistemologia medieval ao conhecimento derivam da
religião que fundou a civilização ocidental, o cristianismo, cuja doutrina se distinguiu das
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grandes religiões monoteístas exatamente pela relação entre ela e o conhecimento. Porém,
ainda que a explicação para um legado epistemológico medieval seja religiosa, os princípios
que se podem identificar nas sucessivas etapas de identidade, institucionalização, expansão e
criação do conhecimento ao longo de mil anos, presentes hoje nas ciências, não são, e não
poderiam ser, de natureza religiosa.
O primeiro deles é a transcendência, tomada no seu significado metafísico, como um
grande princípio orientador de todo conhecimento, segundo o qual explicações e fins últimos
situados num estágio superior e inalcançável continuam a ser buscados indefinidamente e sem
qualquer sinal de esgotamento. Na Idade Média esse entendimento de transcendência adveio
da concepção de Trindade, segundo a qual o Verbo, que é a palavra, divino se fez homem,
projetando essa dupla natureza não apenas em Cristo, mas, necessariamente, no conhecimento
que o homem deveria ter dele, Cristo, conhecimento, portanto, humano e divino.
Modernamente, as assertivas de Albert Einstein sobre a convergência da ciência em Deus e as
possibilidades de relação entre ciência e consciência reveladas pela Física quântica reforçam o
aspecto transcendental da ciência.
Historicidade é o segundo grande princípio, advindo da noção da Encarnação, que
dividiu todo o passado entre um antes e um depois, e, simultaneamente, unificou as
cronologias em favor de uma História universal que passou a abranger todos os fatos e
acontecimentos que chegavam ao conhecimento dos monges nas diferentes partes da Europa,
e depois, pelo mundo afora. Na Idade Média, a Encarnação assumiu o papel de grande
acontecimento que pelas suas coordenadas históricas de tempo, segundo uma nova cronologia
e metafísica; de espaço, expandido ao todo habitado; e mudança, trazida pelo Evangelho, fez
de Cristo não só objeto da Teologia como da História.
Outro foi a linguagem, cedo percebida no cristianismo, graças principalmente ao
trabalho de Santo Agostinho, como essencial à religião, que se propagaria pela liturgia, pelo
simbolismo e pelas artes. A despeito de a Igreja se valer de uma língua originalmente erudita,
o latim clássico, para elaborar e difundir sua doutrina, aos poucos essa língua se vulgarizou e,
das romanices, as maneiras locais de falar o “romano”, vieram os vernáculos. A necessidade
de transmitir a mesma mensagem a diferentes povos em línguas distintas deslocou na Idade
Média o Trivium do campo do estudo das línguas para o do pensamento, que se desdobrou em
nossos dias nos estudos da linguagem e semiótica, cujos grandes especialistas, não por acaso,
têm grande interesse na Idade Média.
Na medida em que instrumentalizaram o conhecimento ao longo de sua história,
transcendência, historicidade e linguagem constituem o grande legado da epistemologia
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medieval. Aproximar-se dela e conhecer-lhe os contornos será sempre uma empreitada difícil,
um salto audacioso ao passado, mas também uma porta promissora para a compreensão das
grandes questões epistemológicas do nosso tempo.
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