Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução Geral
papa do início do século VII, percebendo isso, procurou integrar estes povos no seio da
Igreja, tanto que enviou missões a vários deles.
A época de Carlos Magno, fim do século VIII, ainda se sentia herdeira da tradição
romana, tanto que ele tenta restaurar algo do antigo império que se desfizera 300 anos
antes, proclamando-se “imperador do Ocidente”. Ele também procurou preservar a antiga
cultura latina, criando as “escolas palatinas” e chamando para sua corte monges ingleses e
irlandeses, das regiões que preservado e cultivado este saber. Nomes pouco conhecidos,
como Alcuíno e Escotus Erígena foram de certo modo, os “salvadores” da cultura européia.
Não se pode negar que entre os séculos X e XI a Europa mergulhou num grande caos,
por conta de uma série de invasões, muito mais destrutivas que aquelas dos séculos V e VI
e que provocaram de fato uma quebra na civilização e uma perda do patrimônio cultural que
vinha sendo conservado de forma razoável nos mosteiros, catedrais e escolas palatinas. Os
“povos do norte”, mais conhecidos como normandos ou Vikings, provocaram tal destruição,
que por volta do ano 1.000, tinha-se a impressão na cristandade ocidental, que se chegara
ao “fim dos tempos”...
Muito lentamente, a partir do século XII iniciou-se o renascimento da vida urbana,
comercial e cultural no ocidente europeu, que atinge seu ápice no século XIII e que se
expressa do ponto de vista artístico nas grandes catedrais góticas, monumentos de fé e de
arte e as obras filosófico-teológicas de Tomás e Boaventura. Pode-se dizer que a
antigüidade foi lentamente morrendo desde o século III e a modernidade por sua vez foi
nascendo a partir do século XII.
A divisão da história que coloca o ano de 476, fim do Império Romano do Ocidente
como início da Idade Média e o ano de 1453, fim do Império Romano do Oriente para o seu
fim, tem hoje para nós, um objetivo essencialmente didático, pois como se disse, elementos
“medievais” encontram-se presentes desde o século III e elementos “modernos” desde o
século XII, como por sua vez, temos elementos “medievais” convivendo com a modernidade
até o início do século XVIII.
Associar-se a Idade Média ao universo do cristianismo e de modo especial à Igreja
Católica não é de todo errado, já que ela é a principal força cultural e política deste
período. Quando o Império romano estava se esfacelando, foi ela a única força e a única
instituição que sobreviveu ao seu fim, ao mesmo tempo com uma mensagem e com pessoal
capaz de manter vivo alguns dos elementos da cultura antiga. O preconceito iluminista
também difundiu a noção de que a Igreja tivesse escondido ou impedido o acesso ao
conhecimento antigo, quando a verdade é completamente outra. Sem o trabalho humilde e
desconhecido dos monges copistas, praticamente todo o saber antigo teria se perdido. Sem
as universidades, criadas pela e com a proteção da autoridade eclesiástica, a partir do
século XII, não teríamos tido o lento renascimento cultural que culminou na Renascença e
na revolução científica do século XVI. Mesmo o Renascimento é um fenômeno que se dá
dentro e a partir do cristianismo, pois quase todos seus representantes trabalhavam com o
apoio e sustento da autoridade eclesiástica e boa parte dos artistas e cientistas eram eles
mesmos clérigos, como por exemplo, Copérnico, Giotto, Fra Angélico, Monteverdi...
4
Outro fato: não houve neste período nenhuma outra expressão de pensamento que
não estivesse ligada ao cristianismo? É certo que a divisão da história é algo que diz
respeito ao mundo ocidental e como tal não tem muito a dizer em relação aos povos e
culturas orientais, que tem um desenvolvimento próprio. Ainda que certos elementos do que
hoje se chama de “globalização” já estivessem presentes desde o século XVI, foi só a
partir do final do século XIX e principalmente com a Primeira Guerra Mundial que a história
do mundo inteiro se tornou uma só. Mas voltemos ao nosso tema: houve alguma outra
expressão filosófica fora do âmbito do ocidente cristão neste período medieval? Se
considerarmos a região do Oriente Médio, temos uma grande civilização que se desenvolveu
autônoma e em concorrência com a civilização cristã. Trata-se da civilização islâmica, que
também motivada por razões religiosas, construiu um mundo que se estendeu do norte da
África à fronteira com a Índia e que produziu uma filosofia, também herdeira da
antigüidade e mesclada com a religião. Além da filosofia islâmica, temos notáveis
pensadores de origem judaica, que também influenciados pelo pensamento antigo e pelos
princípios de sua religião, produziram importante especulação filosófica e que serviu de
ponte entre o oriente e o ocidente.
Como teremos a oportunidade de estudar, a filosofia cristã é muito mais do que uma
cristianização do pensamento antigo. Ela foi capaz de despertar e tratar problemas que os
antigos nem sequer tiveram a oportunidade de sonhar. Os elementos que a religião judaico-
cristã carrega foram suficientes para direcionar o pensamento para rumos completamente
novos e preparar alguns dos elementos da modernidade, que mesmo hoje, desligados de sua
matriz, são inegavelmente de origem cristã.
Conceito de filosofia cristã
É cristã toda filosofia que, criada por cristãos convictos, distinguindo entre os
domínios da ciência e da fé, demonstra suas proposições com razões naturais e, não
obstante, vê na Revelação cristã um auxílio valioso e até certo ponto mesmo moralmente
necessário para a razão.
Esta definição por assim dizer perpassa toda a história da filosofia cristã, e pode
ser encontrada mesmo nos recentes documentos do magistério, como em “Fides et Ratio”,
em que se afirma que a Revelação cristã, antes de ser um empecilho para o livre exercício
da razão, é um estímulo, pois é também próprio da razão o reconhecer-se limitada e como
tal, deve estar aberta a outras contribuições que venham ampliar e esclarecer aquilo que a
própria razão procura, sob pena de tornar-se ela mesma uma razão dogmática e
preconceituosa, quando não cética e niilista. Em geral a tradição cristã está disposta a
acolher todas as escolas filosóficas que estejam abertas ao transcendente, desde que isto
não signifique uma negação do patrimônio específico da Revelação ou um sincretismo
anárquico e confuso, alheio tanto á verdadeira religião, como ao bom exercício da razão.
O cristianismo nunca foi hostil à razão nem negou o patrimônio espiritual que o
precedeu, seja no judaísmo, seja na filosofia grega. Ainda que algumas figuras isoladas
tenham expressado tais opiniões, elas nunca foram as prevalentes. Desde Justino até os
dias de hoje, estabeleceu-se um grande esforço de conciliar a razão com a fé. Esta ruptura
5
- o cristianismo precisava de uma postura crítica, seja perante a mitologia, seja perante as
filosofias do império, e para isso era fundamental conhecer e utilizar este instrumental;
- do mesmo modo, seja por razões apologélicas ou catequéticas (contra as heresias), a
filosofia apresentou-se como um instrumental fundamental.
Problemas filosóficos que o cristianismo colocou
- O conceito de Deus (AT): nem Platão, nem Aristóteles chegaram a uma “definição” de
Deus; seja o Uno ou o Demiurgo ou o Motor Móvel, estão longe do Deus pessoal do
cristianismo ou da implicação moral deste Deus;
- A idéia da Criação: o cristianismo, diferentemente dos mitos cosmogônicos, apresenta a
idéia da criação: poucas frases da Bíblia tiveram uma implicação e desenvolvimento
filosófico tão grande como Gn. 1,1: “No princípio Deus criou o céu e a terra”;
- Deus: cria, por livre vontade, o céu a terra, as criaturas espirituais, o homem e toda a
natureza; a criação coloca uma série de problemas, quanto posta à frente à filosofia grega:
- a relação entre a perfeição divina e o ser contingente;
- a eternidade criada X a criação contínua;
- o mundo sempiterno X o mundo criado no tempo.
- o homem: este ser, segundo Gn. 1,26, é criado à imagem e semelhança de Deus. Isto
implica:
- o lugar do homem no mundo e na ordem da criação;
- o homem tem uma natureza espiritual, como Deus e é, eterno, inteligente, segundo as
faculdades da alma que lhe são próprias.
- o “Ser” de Deus – Ex. 3,14: “Eu sou o que sou”. Só Deus efetivamente é. Como tal, isto
implica a pergunta pela natureza íntima de Deus, se ela é cognoscível ou não, dando, assim,
origem a uma teologia positiva ou negativa.
- a unicidade de Deus – a idéia do Deus único não fora alcançada pela filosofia grega: Dt.
6,4 é a afirmação da unicidade e da exclusividade de Deus. Isto passa a fazer parte da
prova da existência de Deus.
- O conceito de Deus (NT) – Deus é amor e seu nome é Pai (I Jo. 4, 7.16). A apresentação
do Deus de Jesus é a revelação de um Deus passional, que se interessa pelo homem e vem
ao seu encontro.
- para este encontro, é necessária a confissão da fraqueza e indigência do homem;
- mesmo que Aristóteles fale do Motor imóvel atraindo os seres a si, este é o amor Eros,
completamente diferente da noção de Cháris, própria do cristianismo.
- a ética do amor ao próximo – é algo próprio e exclusivo do cristianismo, embora já
presente no AT. Nenhuma escola filosófica antiga chegou à ética da caridade: ela implica
um relacionamento completamente novo entre os homens e, portanto, numa nova ética.
A doutrina do Logos
O Logos como Deus e como pessoa, é a mais alta e séria exigência da razão ao
cristianismo. Neste sentido, o prólogo do Evangelho segundo São João revelou-se prenhe de
um amplo material para a exploração filosófica;
8
Vida - A julgar pelo seu nome e o de seus familiares, Justino não é de origem judaica.
Nasceu na Samaria, na antiga cidade de Siquém que se tornara colônia romana com o nome
de Flávia Neápolis, hoje a cidade palestina de Nablus. Não conhecia o hebraico, nem sofreu
influência do ambiente samaritano circundante, nem era circuncidado. Supõe-se o seu
nascimento por volta do ano 100 e sua conversão por volta do ano 132. Ele conta que se
converteu ao cristianismo depois de se desencantar com todas as correntes filosóficas de
então, quando encontrou um ancião à beira-mar que lhe ensina o essencial da fé cristã.
Havia percorrido muitas cidades e adquirido grande cultura. Freqüentara as aulas dos
estóicos, peripatéticos, platônicos e pitagóricos, sem ter resposta a seus anseios de
encontra uma filosofia que fosse digna e certa, até o diálogo com o ancião. Estabeleceu-se
em Roma e ali exerceu a maior parte de sua atividade, tendo aberto uma escola de filosofia
e escrito suas obras. Acusado de ser cristão diante do prefeito de Roma pelo filósofo
cínico Crescente, foi decapitado em 165, junto com seis companheiros, segundo o relato do
martírio que conta com razoável credibilidade.
Obras – Justino é o melhor apologista do século II, embora não seja um exímio escritor;
não chega também a ser original e profundo, mas não se pode negar que esteja a par das
principais correntes filosóficas de então. Não se pode negar sua erudição e profunda
convicção cristã.
Segundo Eusébio de Cesaréia, Justino deixou grande número de obras: um discurso
dirigido ao imperador Antonino Pio (139-160) e ao senado romano, que seria a atual
Apologia; outro discurso sobre a defesa da fé frente à filosofia, chamado “As Refutações”;
outro intitulado “Sobre a monarquia de Deus”; outro “Sobre os salmos”; outro “Sobre a
alma”; um diálogo com os judeus (o atual diálogo com Trifão).
Justino é citado por Irineu como autor de uma obra intitulada “Contra as heresias” e
outra “Contra Marcião”. De todas estas só nos chegou a Apologia e o Diálogo com Trifão.
Justino é o primeiro a tratar das relações entre a filosofia e a fé e pode ser chamado o
“Pai da filosofia cristã”. Sua argumentação tem um pé nas Escrituras outro na filosofia,
sentindo-se segura para caminhar com os dois, iniciando um diálogo que se prolonga até os
dias de hoje.
A Primeira Apologia
Como é dedicada a Antonino Pio (139-160) e fala que Cristo nasceu há cerca de 150
anos, a Apologia pode ser datada em cerca de 155.
Estrutura - a obra tem uma estrutura ternária:
- Os capítulos 1 a 3 formam uma introdução, em que Justino se dirige ao imperador fazendo
a defesa dos cristãos, pois estes estão sendo condenados à morte pelo simples fato de
serem cristãos.
- Os capítulos 4 a 20 são uma crítica à atitude oficial que consiste em condenar os cristãos
sem averiguar a veracidade das acusações. Justino justifica o comportamento cívico dos
cristãos, pois são cidadãos exemplares, em tudo se submetendo às leis exceto no que se
10
refere ao culto aos ídolos e aos sacrifícios públicos, pois seu culto é feito ao Deus único e
seu sacrifício é espiritual. Apresenta em detalhes a doutrina cristã, principalmente no que
se refere ao Batismo e à Eucaristia.
- Nos capítulos 18 a 20 trata da imortalidade da alma. A ressurreição do corpo, algo de
difícil aceitação pela mentalidade da época, só é possível pelo poder de Deus.
- Nos capítulos 21 e 22 tenta apresentar as semelhanças entre o cristianismo e o
estoicismo, coisa perigosa, pois com isso pode negar a originalidade da fé cristã.
- Nos capítulos 23 a 29 procura demostrar que a doutrina de Cristo e dos profetas é
anterior a todos os filósofos, o que garantia sua veracidade, pois a antigüidade era sinal de
veracidade.
- Nos capítulos 30 a 53 fala de como os demônios tentaram ao longo da história afastar os
homens da verdade, do culto ao Deus único, pela idolatria. Os cristãos são melhores
cidadãos, pois “dão a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. A César eles
prestam obediência e pagam tributo e a Deus, prestam a adoração. A doutrina cristã é útil
para manter a ordem e a estrutura social, o que atenua seu conteúdo absolutamente
renovador. Para Justino as perseguições são armadilhas dos demônios para descreditar os
cristãos. Neste sentido ele não consegue ultrapassar a mentalidade de sua época, pois
coloca os demônios como instigadores do paganismo antes de Cristo e das heresias depois
de Cristo.
- Os capítulos 61 a 67 são uma belíssima descrição dos mistérios cristãos do Batismo e da
Eucaristia. Justino é o primeiro a chamar o Batismo de “iluminação”.
A Segunda Apologia
Por sua pequena extensão e por não conter uma dedicatória, considera-se que seja
uma continuação ou complemento da primeira e não uma nova obra, mas uma nova série de
argumentos levantados frente a algumas objeções. Sua composição deve situar-se pouco
depois da primeira, por ocasião de uma nova perseguição movida pelo prefeito de Roma
Lólio Úrbico.
Repete os argumentos sobre a unicidade de Deus, da encarnação do Verbo e que os
cristãos são perseguidos por instigação dos demônios. Critica também Crescente, que será
seu delator e os filósofos, com suas doutrinas vãs e sua conduta imoral. Só os cristãos
possuem o Lógos inteiro; os outros o têm por participação.
Este é o ponto mais importante da segunda apologia: a doutrina do Lógos
Spermátikos: tudo o que é bom e verdadeiro na doutrina dos poetas e filósofos se deve à
participação no Lógos seminal, que é a fonte da sabedoria, e como tal pertence aos
cristãos: Toda verdade é essencialmente cristã!
Não foi em São João, mas no estoicismo que Justino aprendeu a doutrina do Lógos
como razão imanente do universo, como sendo a lei suprema que a tudo rege e dá vida. Cada
homem tem o seu lógos particular, como uma participação no Lógos total, pois é animado e
dirigido por Ele. Pelo conhecimento do Cristo-Lógos, os cristãos têm a plenitude da
verdade e da revelação. Ao encarnar-se, o Lógos foi o criador da sua própria humanidade,
não a recebeu extrinsecamente.
11
A ESCOLA DE ALEXANDRIA
Alexandria era a segunda cidade mais populosa do império romano e do ponto de vista
cultural era mesmo superior a Roma. Centro da cultura helenística, extremamente
cosmopolita, com um enorme contingente judaico, possuidora de diversas escolas de
filosofia e lugar de propagação de diversas religiões. Possuía um grande museu, que era ao
mesmo tempo um centro de estudos e a famosa biblioteca, a maior da antigüidade. Neste
ambiente conviviam filósofos, poetas, artistas, artesãos e matemáticos.
Foi neste ambiente que viveu Fílon de Alexandria (13 a.C. – 42 d.C), maior
expressão do judaísmo helenizado. Interpretando a Escritura à luz da filosofia grega, ele
terá uma enorme importância no desenvolvimento da escola exegética cristã de Alexandria.
Apesar de visões de mundo tão diferentes, judeus e gregos foram forçados a uma
convivência, pois os judeus, para ascender socialmente deveriam freqüentar as escolas
gregas. Fílon usará o arsenal exegético da cultura grega para interpretar a Escritura, na
busca de um significado mais profundo, para além da letra, daí surgindo o alegorismo, uma
criação dos estóicos par tentar conciliar a religião politeísta tradicional com os princípios
éticos desta escola filosófica. Fílon passa a usar o alegorismo para explicar os
antropomorfismos presentes no AT e buscando um significado mais profundo para as
práticas rituais judaicas. Seus esforços não parecem ter sido muito aceitos pelos judeus,
mas os cristãos, a partir de Clemente e Orígenes o utilizaram profundamente e lhe deram
grande desenvolvimento.
A Escola de Alexandria – Não sabemos sua origem, mas é atestado que no final do século
II a igreja de Alexandria era ativa, numerosa e vigorosa. Segundo a lenda Marcos
evangelista teria sido seu fundador. O primeiro nome seguro de um bispo nesta cidade é o
de Demétrio, a partir de 189. Nesta mesma época já era também um ninho de gnósticos:
Valentino, Basílides e Carpócrates moraram ou ensinaram lá e seus nomes são mais
conhecidos que o dos cristãos ortodoxos. A gnose era a pretensão de uma revelação
superior, de uma doutrina mais profunda, para além do que aprendiam os fiéis comuns.
Assim, desde os seus primórdios a igreja alexandrina será marcada pelo gnosticismo e terá
um caráter intelectualista e especulativo. O contato entre cristãos ortodoxos e gnósticos
foi constante e se influenciaram mutuamente. Clemente de Alexandria é o principal fruto
deste contato. Ele, juntamente com Panteno parece ter sido os primeiros mestres da
doutrina cristã, num estilo semelhante ao de Justino, e não como “professor de teologia”,
como posteriormente se tornou Orígenes. Não se sustenta mais a tese de que Panteno teria
sido o fundador da escola, Clemente seu discípulo e Orígenes o continuador. Na verdade a
escola exegética de Alexandria é uma criação de Orígenes. O que os três têm em comum
era um determinado modo de comentar a Escritura, segundo o modelo alegórico criado por
Fílon, que se distingue do método utilizado em Antioquia, literal e histórico.
A origem da escola foi quase por acaso: Orígenes, ao iniciá-la, tinha apenas 18 anos e
tinha sido colocado à frente da instrução dos catecúmenos, pois a perseguição havia
eliminado a maior parte dos catequistas. Como ensinava muito bem suas aulas passaram a
ser freqüentadas por judeus e pagãos. Como crescimento do número de alunos, Héracles
13
assume a instrução dos catecúmenos e Orígenes se dedica aos mais “adiantados”. A escola
dependia do bispo Demétrio, que desejava estender sua influência sobre todo o Egito. Não
foi a intenção, nem de Clemente nem de Orígenes, criar uma divisão entre cristãos simples
e instruídos, no entanto sua iniciativa deu origem ao helenismo cristão, que será depois
desenvolvido pelos demais padres, principalmente Basílio.
cristão caminha na verdade, de glória em glória. Três são as idéias fundamentais que
conduzem o cristão nesse itinerário:
a) A teoria – na época de Clemente os cristãos eram criticados pelos intelectuais por
aceitar de modo não crítico tudo o que se diz na Sagrada Escritura, sem buscar uma
explicação racional e também pelos gnósticos, que se vangloriavam de possuir um
conhecimento superior, dado somente a eles, os espirituais. Clemente não se propõe a fazer
uma crítica racional da fé, mas defende que a fé é um esforço, um impulso dinâmico que
conduz o cristão a aprofundar os seus conhecimentos e isso só é possível porque o cristão
vive convicto de possuir a verdade. A fé é muito mais do que conclusões de uma
demonstração: é um impulso de aperfeiçoamento.
b) O cumprimento dos mandamentos – o cristão cresce também numa prática de vida.
Neste sentido Clemente retira da Escritura uma série de conselhos para estabelecer o
modo de vida cristão em seus aspectos práticos: o comer, o beber, o vestir-se, etc. O que
conduz clemente neste intento é a noção estóica da apathéia, ou seja, a serenidade, que
por sua vez leva à ataraxía, entendida como impassibilidade e de autarchéia, ou domínio de
si. Para o cristão a apathéia tem o sentido de amor e dom de si a Deus e aos irmãos. O
cristão realiza em sua vida prática aquilo que contempla como teoria.
c) O ideal gnóstico do amor – todo cristão está chamado a ser um catequista, um mestre e
médico por obediência ao Verbo. Clemente descreve esta busca de Deus como theósis:
deificação, divinização. A theósis não é um estado final ao qual se chega, mas um processo
que se alcança pela leitura da Escritura segundo o método alegórico em sua interpretação
espiritual, indo muito além da letra. Este método culmina na contemplação, visão da
majestade de Cristo e mergulho no abismo do Pai, num conhecimento não do que é Deus,
mas daquilo que Ele não é. Deus em si mesmo é inacessível, indizível, ultrapassa toda figura,
nome ou noção. O verdadeiro conhecimento é uma contemplação perpétua, superior à
simples fé, superando as paixões pela serenidade. O gnóstico cristão é um amigo de Deus,
contempla-O na medida em que Ele se deixa contemplar. A verdade é abismo insondável do
Pai e nesta busca é o amor que impulsiona o gnóstico, amor que é fruto da contemplação e
da serenidade, em que o martírio é a máxima expressão.
Nasceu em 185 de pais cristãos. Seu pai, Leônidas, morreu mártir na perseguição de
Sétimo Severo, quando Orígenes tinha 17 anos. Este fato o marcará profundamente.
Orígenes cresceu na Igreja e permaneceu sempre unido à sua estrutura. Aos 18 anos foi
escolhido pelo bispo Demétrio de Alexandria para dirigir a instrução dos catecúmenos. Não
é possível estabelecer se foi discípulo de Clemente. Percebe-se também em Orígenes forte
influência gnóstica, ainda que mais discreta que em Clemente. Segundo a biografia de
Orígenes escrita por Eusébio de Cesaréia, ele teria recebido sua formação clássica e
religiosa do pai. O fato de ter-se tornado mestre dos catecúmenos tão jovem se deve a que
a perseguição tinha eliminado boa parte dos catequistas, além do fato de possuir inegável
16
cultura religiosa. Ele aceita o cargo, mesmo sabendo o risco que corria, mas durante toda a
sua vida manteve o desejo de morrer mártir. Sua fama logo se espalhou e passam a chamá-
lo em diversos lugares para participar de instruções e controvérsias teológicas. No entanto
ele e seu bispo se indispõem e ele se muda para Cesaréia da Palestina, onde foi muito bem
recebido pelo bispo Teocsisto e por Alexandre de Jerusalém. Orígenes começou a pregar
na Igreja, o que não era permitido, pois não era sacerdote. Este fato desagradou ainda
mais Demétrio, que o chama de volta. Foi então ordenado sacerdote pelos bispos de
Cesaréia e Jerusalém, sem o consentimento de Demétrio. Dois concílios regionais no Egito
vão proibir Orígenes de ensinar em Alexandria, o consideraram indigno do ministério
sacerdotal e acabou excomungado. Estas decisões foram ratificadas pela Igreja de Roma,
mas não pelas da Palestina e Síria. Demétrio era muito cioso de seu poder e queria manter
toda a comunidade cristã do Egito sob seu controle e Orígenes lhe pareceu uma ameaça.
Por sua vez a fama e o prestígio de Orígenes levava a que agisse sem se importar muito com
questões hierárquicas, apesar de ser muito fiel à doutrina da Igreja. Depois de sua
condenação estabeleceu-se de vez em Cesaréia, esperando sua reabilitação. Passados
alguns meses morre Demétrio e é eleito Héracles, que fora seu companheiro, mas este
mantém a condenação. Esta foi muito mais disciplinar que doutrinal, não tendo sido acusado
de heresia. Em Cesaréia abre uma nova escola e funda uma biblioteca, a mais famosa da
antigüidade cristã, bem como um “curso de estudos” da Sagrada Escritura. No entanto, o
lugar onde mais fielmente se conservou o pensamento de Orígenes foi exatamente
Alexandria, embora logo sua influência se faça sentir por toda a cristandade. Com ele o
cristianismo adquire uma visão realmente universal, pois integra a cultura grega ao
cristianismo, respondendo ao filósofo pagão Celso, que acusava os cristãos de ser gente
sem cultura. Na perseguição de Décio (250) já idoso, Orígenes foi preso e sofreu muitas
humilhações, mas não chegaram a tirar-lhe a vida. Nesta ocasião o bispo Dionísio de
Alexandria o reconcilia com sua Igreja mãe. Morre aos 69 anos quando Galo era imperador.
Aspectos da teologia de Orígenes
A teologia de Orígenes ainda não faz afirmações dogmáticas. Antes de afirmar ou
definir está a buscar e antes de ser teólogo ele é comentador da Escritura. Toda sua
teologia está em função desta primeira preocupação, não se encerrando dentro de um
sistema definido deixando as hipóteses em aberto. Sua interpretação teológica tem três
momentos:
a) Aprofunda a tradição.
b) Propõe soluções.
c) Procura harmonizar as passagens bíblicas difíceis ou contraditórias e às vezes com mais
de uma solução (por exemplo: qual era a situação da criatura humana no paraíso? Tinha ou
não um corpo?).
Obras de Orígenes
Dividem-se anotações, homilias e comentários.
17
explica. Para explicar uma determinada passagem, elenca cinco ou dez passagens
relacionadas, para destacar melhoro sentido de uma palavra por exemplo.
Frente a este processo, poder-se-ia perguntar a Orígenes por que o autor bíblico não
deixa logo explícito o sentido espiritual? Ele diz que assim foi feito para que o sentido
fosse encontrado com empenho e esforço. Para isso lembra a passagem em que Jesus diz
que “não se deve dar pérolas aos porcos”. A verdade é algo que não deve ser dada a todos.
Destaca também que as palavras divinas têm infinitos significados, os quais podem ser
conhecidos progressivamente num processo de crescimento espiritual. Sendo a Escritura a
revelação do Cristo/Lógos, é impossível circunscrever e esgotar todos os seus sentidos. É o
Lógos que comunica a cada um, segundo a sua capacidade, um significado. Assim acontece
um processo dinâmico, pelo qual, num esforço de crescimento espiritual, penetra-se cada
vez mais profundamente o sentido inesgotável da Palavra Divina. Este conhecimento nunca
termina e se prolonga até a vida eterna.
A Igreja em Orígenes
Orígenes considera a Igreja instrumento indispensável, fundamental para a salvação.
Ele mesmo esteve integrado à organização eclesiástica, primeiro como catequista. Ainda
que algumas de suas posições fossem elitistas, dizia que o mais simples fiel cristão era mais
sábio que o mais sábio dos filósofos gregos. Sua crítica aos incipientes era um estímulo
para que estes progredissem. Orígenes não poupa críticas aos aspectos pouco edificantes
da vida eclesiástica de seu tempo (intrigas, vaidade, simonia), comparando o clero do seu
tempo aos fariseus do Evangelho.
Orígenes ensina que não há só a Igreja fundada pelo Verbo Encarnado, mas também
de uma “Igreja pré-existente”. Este conceito o encontra-se presente nas origens do
cristianismo e na Carta aos efésios: a Igreja dos primogênitos que está no céu. Esta
doutrina era também comum aos gnósticos. Esta Igreja existe desde a origem dos tempos e
da raça humana e mesmo antes da criação do mundo. A Igreja possuía assim uma existência
anterior. Ela existe pela participação dos justos que viveram desde as origens e que
responderam positivamente ao chamado de amor que Deus fez. Assim como a Igreja visível
tem uma organização hierárquica, assim também a Igreja pré-existente. É a Igreja dos
anjos, a Igreja celeste, paralela à Igreja dos homens e terrestre, também com sua
hierarquia. Neste sentido permite-se certa liberdade frente à hierarquia e Igreja
terrestre, não se devendo absolutizá-la e reconhecendo seus limites.
Orígenes viveu na Igreja visível e quis permanecer sempre nela, mas dava muito mais
importância à Igreja invisível, ao mesmo tempo em que não considerava as duas como
realidades justapostas, mas dinâmicas. Participar da igreja terrestre era já participar da
Igreja celeste e esta deve ser a meta de todo cristão. A imperfeição de cada cristão
impede que a Igreja alcance sua perfeição em Cristo.
A mística de Orígenes
Orígenes fala de um contato pessoal da alma com o Lógos. Ele é o primeiro padre a falar da
presença do Cristo no mundo, através de suas missões invisíveis, ou seja, do Lógos que vai
se revelando aos homens ao longo de história. A sua mística procura, na medida do possível,
20
tornar o homem semelhante a Deus. Isto Orígenes encontra desde o início da Bíblia, na
criação, quando o homem é feito imagem de Deus. A semelhança ele a adquirirá na parusia.
Aos homens foi concedida uma possibilidade de perfeição, pela dignidade que lhe foi
outorgada na imagem; a semelhança se alcança pelas obras. O homem, pelo pecado perdeu
esta imagem, ou melhor, esta imagem ficou escondida, mas não perdida, pois está impedida
de se manifestar. O homem reencontra esta imagem em Cristo e avança no conhecimento
místico até alcançar a semelhança.
Para Orígenes a realidade terrestre é sombra da realidade celeste. O homem
assemelha-se cada vez mais a Deus cada vez que se distancia da realidade terrestre, do
mundo e da matéria. Sua realidade plena é sua relação com o Lógos. Numa interpretação
alegórica da caminhada dos hebreus no deserto ele encontra quarenta e duas etapas que
são o itinerário do homem em sua libertação plena deste mundo. A mística de Orígenes
ensina que pelo amor se chega à união com Deus, pois é no amor que está a força que anima
e sustenta esta marcha. A contemplação é o fruto do amor à verdade e a mística é o
caminho do homem até a verdade. A matriz de sua mística é intelectualista: um
conhecimento no amor.
O homem deve participar do Espírito Divino, não só através dos carismas, mas
também ao nível do destino pessoal e para isso acontece um progresso do homem pela ação
do Espírito Santo na sua vida terrena. Por sua natureza espiritual o homem já participa do
Espírito Divino, não de modo estático, mas dinâmico, pois este Espírito conduz sua vida num
progredir constante, pela colaboração de seu esforço pessoal, respondendo ao apelo do
conhecimento e da santidade, ao nível do ser e do obrar. O ápice desta evolução espiritual
não se dá na vida terrena, mas na vida sobrenatural, além da morte, quando então se cresce
indefinidamente. O conhecimento representa a integração do homem em sua totalidade, em
que o corpo é elevado e assumido pelo espírito. A santidade é a vitória do homem interior
sobre o homem carnal, com seus desejos e paixões contrários ao plano de Deus. Esta
integração total tem como resultado o homem espiritual ou pneumático. Não se pode
separar o conhecimento da santidade, que se realiza pela participação no Espírito. isto não
é um privilégio de poucos, mas algo acessível a todos os fiéis.
A perfeição cristã se exprime numa prática e numa teoria. A prática é o exercício da
ascese, que leva ao triunfo do espírito sobre a carne. A teoria é o conhecimento
progressivo que integra o corpo ao espírito no processo de ascensão do homem até Deus.
Quanto mais santo for o homem, mais se acerca ao mistério de Deus, conhecimento que não
é só intelectual, mas também moral. Este itinerário espiritual compreende três etapas: os
iniciantes, os iniciados e os perfeitos, cada um com sua respectiva via: purgativa, iluminativa
e unitiva, que ocorrem em paralelo com as três abordagens da Escritura já descritas, pois a
Escritura é o caminho por excelência para se chegar até Deus. Este caminhar é a passagem
da letra ao Espírito, da sombra à realidade, da figura à verdade. Estes termos não se
opõem, mas apontam para um desenvolvimento e progresso interior em que a fé se torna
conhecimento, pois o conhecimento é a fé consumada.
21
vencidas pelo amor de Deus, continuará a aderir a Ele, agora de modo definitivo e sem
quedas: a queda foi algo assim “necessário”, para que dela surgisse uma adesão plena, total
e livre de toda criatura a Deus. Conclui-se que Orígenes negava a eternidade do inferno.
As idéias de Orígenes nunca alcançaram unanimidade e embora secularmente
debatidas, ainda hoje encontram, com diferentes enfoques, defensores. Mesmo nunca
tendo sido doutrina oficial da Igreja, algumas delas obtiveram grande difusão. No fim do
século IV, elas passaram ser vistas com grande desconfiança e Santo Epifânio de Salamina
moveu uma verdadeira cruzada contra Orígenes. No século VI vários de seus pontos de
vista foram condenados.
Sua obra não tem um caráter sintético: ele não produziu um sistema. Sua vida e obra
se dão no contexto após as grandes perseguições, mais imersa nas questões de ordem
doutrinal: Arianismo, Maniqueísmo, Pelagianismo.
Vida - Aurélio Agostinho nasceu em Tagaste na Numídia (atual Argélia). Seu pai chamava-se
Aurélio e tinha um cargo municipal e só bem tarde em sua vida aproximou-se da Igreja e se
batizou antes de morrer em 371. Sua mãe, Mônica era cristã fervorosa. Tiveram outros
filhos, mas Agostinho foi o que recebeu maior atenção e educação, pois desde cedo
demonstrava ser extremamente dotado intelectualmente. Agostinho chegou a inscrever-se
como catecúmeno na juventude, por ocasião de grave doença, mas não perseverou. Fez seus
primeiros estudos em Tagaste e depois Madaura, pois o pai queria-o professor de retórica.
Em 371 foi para Cartago, maior metrópole da África latina, onde levou vida dissoluta,
ligando-se em concubinato com uma mulher, que lhe deu um filho, Adeodato (372-390). Em
373 lê o diálogo Hortencio de Cícero, hoje perdido, uma exortação à busca da sabedoria,
que lhe despertou o desejo do cultivo da filosofia. Pouco depois aderiu, como ouvinte, à
seita dos maniqueus, que lhe parecia uma religião fundada na razão e livre de toda
autoridade e que se gabava de possuir a verdadeira interpretação do cristianismo. Entre
374-375 termina seus estudos e volta para Tagaste, como mestre de retórica, mas Mônica
não aceita em casa o filho herege. Muda-se então para Cartago, onde se dedica ao ensino de
375 a 383. Neste período suas dúvidas em relação às doutrinas dos maniqueus se
acentuaram: sua cosmologia era incompatível com aquilo que aprendera da filosofia, seu
dualismo se revelava cada vez mais absurdo e seu conceito de Deus como ser corpóreo o
enchia de dúvidas. Nesta ocasião encontrou-se com um dos chefes da seita, Fausto de
Mileve, tido como muito sábio, mas que decepcionou Agostinho, pois sua cultura era inferior
à sua. Em 383 muda-se para Roma e continua a freqüentar os ambientes maniqueus, embora
neste momento, por suas contínuas decepções, tendesse para o ceticismo.
No início de 384, Agostinho obteve por recomendação do prefeito pagão de Roma,
Símaco, a cátedra de mestre de retórica em Milão. Para lá se muda acompanhado da mãe,
24
princípio das Trevas onde moram Satanás e seus demônios. Nos céus desenvolve-se uma
batalha entre estes dois princípios. O Maniqueísmo era uma retomada de princípios
gnósticos, que reaparecem nas doutrinas de Mani, um persa que misturava elementos do
Zoroastrismo com o cristianismo.
Pouco depois procurou resolver o problema do cisma donatista, que se iniciara em
312, com Donato, bispo rigorista, mediante tratados, pregações e disputas. Ponto
culminante foi a “Disputa de Cartago” em 411, à qual compareceram 286 bispos católicos e
279 donatistas.
Seus últimos vinte anos de vida serão dedicados a combater o pelagianismo. Pelágio,
um monge da Britânia (atual Inglaterra), frente à decadência e relaxamento dos costumes,
prega uma moral rigorista, que ensina que o esforço pessoal e a penitência podem superar a
concupiscência, minimizando o papel da graça. Agostinho já aprendera por experiência que
sem o auxílio de Deus, o homem é impotente.
Em 410 Alarico havia tomado Roma e os pagãos responsabilizaram o avanço do
cristianismo pela decadência do império romano. É então que Agostinho responde com sua
magistral obra, “A Cidade de Deus”, uma verdadeira filosofia cristã da história, escrita ao
longo de 14 anos, bem como o seu tratado “Sobre a Trindade”, que considerava sua melhor
obra teológica. Morreu no cerco de Hipona pelos vândalos em 430.
Agostinho é o maior filósofo dentre os padres da Igreja e o maior teólogo do
Ocidente. Ainda em vida suas obras alcançaram enorme difusão. Sua influência se estende
pelos séculos, na filosofia, na teologia dogmática, na teologia moral, no pensamento social,
nas relações entre o poder político e a Igreja e o direito público. Preparou de certo modo a
passagem para a Idade Média, que será um milênio agostiniano. É o “doutor da graça”. Sua
apreensão da verdade cristã se desenvolveu na esteira da obediência à autoridade
eclesiástica e à tradição recebida.
Obras de caráter filosófico
- Confissões: autobiografia e confissão de suas próprias fraquezas.
- Retratações: faz a relação de suas obras (92).
- Contra os Acadêmicos: refutação ao Ceticismo.
- A Vida Feliz: a verdade e felicidade encontram-se na união com Deus.
- Ordenações: a ordem do mal e a providência divina.
- Solilóquios: o problema do conhecimento.
- A Imortalidade da Alma: obra incompleta, continuação da anterior.
- A Quantidade da Alma: origem, natureza e imutabilidade da alma e sua relação com o
corpo.
- A Música: primeira obra de uma série sobre as artes liberais.
- O Mestre: trata da função da linguagem.
- A Verdadeira Religião: apologia do cristianismo contra os maniqueus.
- O Livre Arbítrio: origem do mal, a liberdade e a razão porque o homem foi criado livre.
- A Trindade: doutrina da trindade e das relações entre fé e razão.
- A Cidade de Deus: obra que de certo modo inaugurou a filosofia da história.
26
Assim a verdade está no sujeito existente, vivente e pensante. Mesmo que eu duvide,
estou vivo, e consciente de que estou vivo, se erro, sei que sou um sujeito que erra e isto é
inegável e fica como verdade inegável.
O ceticismo reduz toda a moral a uma questão de verossimilhança: assim os
criminosos poderiam justificar seu comportamento, dizendo agir por uma certeza provável
e portanto não seriam possíveis de ser condenados. Assim o ceticismo moral é destrutivo
para a convivência humana e a sociedade. Mas foi aprofundando estas dúvidas que ele
chegou à certeza mais importante.
A Prova da existência de Deus
A “prova da existência de Deus” de Santo Agostinho é fruto de sua própria
experiência de Deus, que por toda a sua vida, foi uma busca incessante.
Sua busca se deu tanto pela razão como pelo amor (“passio”): a inquietude da alma o
levou a vôos cada vez mais profundos em direção a este encontro.
Inquientum est cor nostrum, donec requiescat in te”- Confessiones. I 1,1
Não há a dúvida em Agostinho quanto a existência de Deus: nele o fervor se dá no
como buscá-Lo a fim de encontrar o repouso na sua posse definitiva. Mesmo no meio da
angústia da busca, no meio do materialismo ou do ceticismo, nunca Agostinho perdeu a
convicção de que há um Deus: não era este seu problema principal ou pessoal.
A “prova” de Agostinho não é um tratado como em Santo Anselmo ou Santo Tomás,
mas sua exposição está casualmente dentro do “De Libero Arbitrio”.
No diálogo, Evródio pergunta se não teria sido melhor que Deus não nos tivesse
concedido o livre arbítrio, tendo em vista o mau uso que dele fazemos. No entanto alega,
que o livre arbítrio, mesmo que ele fosse um bem, ele é imediatamente demonstrável pela
razão natural.
Passa-se então à busca da demonstração da existência de Deus;
A primeira condição é a boa fé, no sentido de que, aquele que duvida deseje
sinceramente, saber, conhecer a verdade. Pela fé, somos como que levados a aceitar o
testemunho daqueles que conviveram com Jesus e que nos chegaram pelas Escrituras, o que
já é algo, visto que também ao cético devemos perguntar por que creríamos ou não em suas
palavras.
No entanto, a prova se dá pela mesma argumentação que refuta o ceticismo:
* Se existimos, vivemos e se vivemos pensamos: é a partir do sujeito cognoscente, que
duvida é que se principia a prova: o sujeito cognoscente pensante, o que duvida, sabe que
ele mesmo existe.
* Se o sujeito pensa, não pode pensar sem viver, nem viver sem existir: ele sabe que pensa,
que vive e que existe.
* Ora aquilo que inclui certas perfeições sem estar incluído nelas é mais perfeito que estas;
* Aquilo que julga de outras coisas, é mais perfeito que as coisas sujeitas que ao seu
julgamento.
28
* Há uma ordem na gradação destes fatos: a pedra existe, mas não vive, o animal existe e
vive, mas não pensa e o homem conhece, e se conhece, vive e existe: o pensar envolve o
existir e o viver, logo é o mais perfeito.
* A ordem do conhecimento sensível: cada sentido apreende algo e produz uma sensação,
mas não é a sensação que produz o conhecimento; há um sentido interior, que reconhece e
forma interiormente o conhecimento – nós sentimos e sabemos que sentimos e isso no nos
vem do exterior, e também os animais possuem esta faculdade.
* Segundo o princípio de que o que julga é superior ao julgado, deve-se supor que a razão é
o que existe de mais elevado no homem.
Mas o que deve julgar a razão? Seria Deus? Mesmo que não seja, seria algo que a
própria razão está sujeita. Ora, acima da razão está a verdade, que julga e modera a razão.
Mas, assim como as minhas percepções são tão somente minhas, e os objetivos que
ela persegue são comuns a todos, será que da razão poder-se-á dizer que há certos objetos
que são comuns a todas as razões particulares?
Os objetos da matemática! Estes são comuns a todas as razões e tal concordância
não deve originar-se nos sentidos: os objetos matemáticos transcendem os sentidos e são
portanto, eternos!
Ora, só procuramos aquilo que de certo modo já conhecemos: se procuramos a
sabedoria (e todos os homens, filósofos ou não a procuram) é porque, de algum modo já
trazemos impressa na mente a idéia da sabedoria, pois, como é possível que todos os
homens buscassem a sabedoria, se ela já não estivesse, previamente presente em seus
espíritos?
Portanto, há certas verdades que são transubjetivas, isto é, encontram-se em todos
os homens, e que são em si imutáveis.
Ora, sabemos que aquilo que julga é superior ao julgado. Essas verdades, comuns a
todos os homens, devem elas julgar ou serem julgadas por nós?
É certo que julgamos em dependência dessas normas interiores: não nos cabe decidir
se 7+3=10 ou se o eterno deve ser preferível ao temporal: isto nos é imposto pela evidência.
Portanto, a razão depara na consciência com algo que lhe é superior, algo que é
absoluto, eterno e imutável; se isto é a verdade última ou não, não importa: o que importa é
que esta realidade última presente à consciência, é que a julga e a domina, é o mais alto que
podemos ir e o mais próximo de uma idéia de Deus.
Agostinho nos torna presente não tanto uma argumentação lógica, mas a certeza de
um dado interior.
A “prova” de Agostinho responde mais ao “o que é Deus” Deus é (a fonte) da
verdade e da sabedoria, pois estás transcendem a razão.
A Doutrina da Iluminação
A teoria do conhecimento agostiniana praticamente coincide com a prova da
existência de Deus.
O conhecimento sensível
29
Há uma clara distinção entre o objeto sensível e o conhecimento que temos dele a
sensação já é algo de natureza espiritual; todo objeto sensível por sua vez é algo corporal.
O objeto sensível desperta a sensação, embora ele mesmo seja incapaz da sensação:
é a alma que sofre toda e qualquer sensação.
A sensação é como uma luz interior que capacita o conhecimento.
Como, no entanto, o corpo influencia a alma para que surja nesta a sensação?
Esta união entre o corpo e a alma deve ser tal que a alma produza a sensação sem ser
influenciada pelo corpo.
O processo material (deslocamento de ar por exemplo), provoca uma mudança no
corpo, a alma percebe esta mudança de maneira ativa, produzindo assim a sensação. É a
alma que atua sobre o corpo e como tal, ela reside nos órgãos corpóreos, está como de
sentinela neles.
A alma é sempre ativa, está de prontidão nos órgãos corporais: a sensação é uma
espécie de exploração do corpo pela alma.
Ao som material percebido pelos órgãos do sentido, a alma produz uma sensação de
som, já de natureza espiritual, e que pertence à segunda classe de sons, que se torna então
a sensação de terceiro grau, que já é ato do próprio pensamento.
A memória faz parte do puro pensamento e é ela que permite julgar e identificar
algo, concatenando as sensações, identificando-as e dando-lhes um sentido.
É assim que, interiormente nós encontramos a luz última que permite o próprio
pensamento e que identifica-se com Deus mesmo.
Todo conhecimento assim provém de Deus.
Normalmente, todo conhecimento é um retirar do interior do próprio espírito o que
ali se encontra em estado latente: nós tão somente reagimos a um estímulo, despertando
em nós mesmos o conhecimento.
Assim, para Agostinho nós nunca aprendemos; nós só despertamos o que em nós já
está presente e esta é a função do aprendizado, pois o conhecimento não provém do corpo,
mas a alma não pode dá-lo a si mesma.
Fora da alma há agentes estimuladores que a alma se apropria para produzir a
sensação e a interpreta: é de si mesma que ela tira a substância que aparentemente lhe vem
de fora.
A alma, assim, em vez de reconcentrar-se sobre si mesma, se abrir para o alto, isto
é, para Deus: o pensamento de diferentes pessoas concorda no que há de mais elevado,
porque é a abertura para a sabedoria do que está em Deus mesmo.
Deus é o único mestre da verdade, pois Ele ilumina as almas com as verdades eternas
e imutáveis, que são as mesmas para todos os homens e às quais devemos nos submeter
incondicionalmente.
Nós, que somos seres temporais, contingentes e mutáveis, só podemos conhecer as
verdades eternas, necessárias e imutáveis, porque Ele mesmo os revela a nós por um
contato imediato.
A tais verdades pertencem os objetos ideais da matemática, da estética e da ética.
30
Assim, a ciência sem a sabedoria, é como uma impureza na alma. Ao mesmo tempo,
não pode haver sabedoria sem ciência: é necessário conhecer, as coisas inferiores, para
poder conformar a vida com as virtudes das coisas superiores.
Entre a sabedoria e a ciência há uma relação harmônica, desde que se viva de acordo
com a vontade de Deus: a primeira é fruto da razão superior, a segunda da inferior. Ambos
devem viver em harmonia, como no matrimônio, homem e mulher constituindo uma só carne.
A ciência é um auxílio indispensável à sabedoria: poucos homens conseguiram alcançar
a sabedoria pura com o olhar da inteligência, e ao alcançá-la, não conseguem demorar-se
ante seu esplendor. É com a ajuda da ciência que o ato místico se torna possível: a razão
inferior recolhe pela experiência, conduz a memória e o espírito reflete sobre seu
conteúdo, para daí elevar-se às idéias eternas.
As ciências propõem um aprendizado e uma hierarquia: o conhecimento da Sagrada
Escritura, das línguas, animais, vegetais e minerais, seu simbolismo místico, a astronomia,
mecânica, história profana e dialética, bem como a filosofia, em particular a platônica:
(simbolismo do despojamento dos egípcios). As ciências se subordinam à unidade da vida
espiritual e ao ideal da sabedoria, em que caridade e razão se confundem para produzir a
felicidade.
A Ordem universal
Deus
A cosmologia agostiniana reage ao dualismo materialista dos maniqueus e ao
imanentismo de Plotino, incompatíveis com a noção cristã de criação.
Deus cria numa hierarquia de perfeição todas as criaturas: o conhecimento das
criaturas não é um fim em si, mas tende ao fim último que é o conhecimento e o amor de
Deus. Todas as criaturas apontam para Deus.
Deus é o sumo ser concebível: aos homens não é possível conhecer sua natureza mais
íntima, mas todos são concordes em afirmar que mesmo que errem a respeito de Deus, nada
há de melhor e mais sublime a ser buscado.
Sabemos que Deus existe, que é a verdade suprema e o fim último, mas não nos é
dado compreendê-lo.
Nenhum dos nomes pelos quais O designamos é capaz de exprimir sua essência: neste
caso, o silêncio é preferível à palavra. O único conhecimento que a alma tem de Deus é o
saber como não o sabe.(este é o princípio da chamada “teologia negativa”)
Todos os nossos conceitos derivam das criaturas, e são aplicáveis ao temporal e
mutável e nenhum deles se aplica propriamente a Deus, embora a Escritura o faça.
Um conhecimento aproximativo de Deus, é possível, se respeitamos as leis do ser e
da razão: o que é certo se dizer a este nível, é que certos conceitos podem ser aplicados a
Deus, embora não se possa chegar ao conceito representativo do que Ele é.
Deus transcende o nosso conhecimento porque Ele transcende o nosso ser: todos os
nossos conceitos apontam para além deles mesmos, para algo que não conseguem exprimir.
A sua incompreensibilidade nos leva a procurá-lo e amá-lo cada vez mais!
As propriedades de Deus
33
Dizer que Deus é eterno, significa que Ele transcende (isto é, está acima ou fora) do
tempo. Nós que somos temporais, é nos impossível resolver os problemas das relações entre
o tempo e a eternidade, já que nossa experiência é só do que é temporal.
Não se deve confundir o conceito de tempo eterno (um tempo durando infinitamente)
com o conceito de eternidade: o tempo é sempre uma existência parcelada: no momento
presente, o passado já deixou de existir (já deixou de ser) e o futuro ainda não existe
(ainda não é): assim as três dimensões do tempo reduzem-se ao presente, em cuja
lembrança o passado ainda vive e em expectativa já se vive o futuro; porém o presente
transcorre sem cessar: é próprio do tempo ser composto de instantes indivisíveis, o que é o
oposto da eternidade, que é permanente e imóvel.
O tempo nos será sempre enigmático, pois composto de instantes individuais, eles não
são mais longos ou mais breves. Como então medir o tempo? Pode-se “comparar” o tempo
com o movimento, pois todo movimento se dá no tempo e até na ausência de movimento há
tempo: portanto, o movimento que mede o tempo e o tempo que move o movimento são coisa
diferentes.
Tomando o tempo em si mesmo, só medimos os tempo passados, que já não existem.
No entanto, o tempo é percebido na alma, pois o que deixou de ser continua a existir na
alma, através da memória e o que ainda não é, se vive em expectativa na alma.
A alma é então uma atenção intensa e distensa, que retém o que se escoa e
apreende o que ainda está por vir, e é esta extensão que perdura.
As criaturas
Deus cria a matéria e a forma das coisas conjuntamente: não há matéria destituída
de forma: a pura matéria é impensável: só pode ser determinada em sentido negativo.
A atividade criadora de Deus está entre dois extremos: o ser puramente espiritual
(o anjo) e o ser puramente material (a matéria sem forma).
Deus criou todas as coisas simultaneamente: como então surgem coisas novas?
Agostinho admite que certos seres foram criados já perfeitos e outros foram apenas
“esboçados” e aos primeiros correspondem os anjos, o firmamento, a terra, o mar, o fogo,
os astros e a alma humana; os germes originais dos seres vivos, como os corpos humanos,
foram criados em estado de pré-formação, ainda não desenvolvidos. Estes germes
primordiais são chamados “rationes seminales” ou “causales”, neles os seres vivos já se
encontram projetados.
A terra estaria impregnada destes grãos a germinar: a essência das “rationes” é afim
à umidade e contém uma energia potencial para desenvolver-se. Todos os seres seriam
criados já pré – formados por Deus. Não haveria lugar para uma evolução ou mudança da
espécie (fixismo). Quando muito as espécies poderiam surgir em tempos diferentes.
É Deus que formaria os seres vivos no seio materno: os pais teriam um papel passivo
na geração: é pela ação ininterrupta de Deus que as forças germinativas se desdobrariam.
Tudo o que foi criado, o foi segundo o modelo das idéias eternas existentes no pensamento
35
Todas as coisas que procederam de Deus, são, para as almas amantes da verdade, um
meio de retorno a Ele. Esta ascensão a Deus provém de Plotino.
Este retorno tem um sentido cristão, que é fruto da humildade, e não um esforço
para espiritualizar-se por um ascender pelo conhecimento, como em Plotino. As criaturas
ajudam o homem a conhecer seu lugar na ordem cósmica e a aspirar sempre o encontro com
Deus, visto que todas elas apontam-no e nunca encontra a alma repouso na criatura.
Todas as criaturas trazem impressas os vestígios da Santíssima Trindade: Agostinho
pensa tudo trinitariamente. Somente a alma humana tem o privilégio de ser imagem de
Deus: isto se dá na alma no espírito ou na mente, que é por onde ela se abre para Deus e
d`Ele se torna capaz. Uma imagem da trindade na alma é a tríade mente – conhecimento –
amor; outra é a tríade memória – entendimento – vontade.
A Ordem Moral
Há uma ordem objetiva nas questões morais, a que o entendimento e a vontade
devem aquiescer, isto é, concordar; a vontade deve reconhecê-la e evitar perturbá-la. (Lei
natural). O fim da moralidade é a manutenção desta ordem; o mal consiste na transgressão
culposa desta ordem.
Se esta ordem é perturbada, a justiça divina pode restaurá-la numa ordem superior:
(“ó feliz culpa!”)
Esta identificação do ideal moral com a reta ordem revela influência helenista, pela
noção de proporção, a que também o comportamento moral e social devem enquadrar-se.
Esta ordem é o efeito da vontade divina, como uma lei interna, regendo todas as
coisas.
Assim, as normas da razão e da vontade remontam à mesma fonte, como o que é
válido para as realidades matemáticas. As leis morais, ao contrário das ciências, não
necessitam de prova: somos nós que devemos conformar a elas nossa conduta.
A força motriz para a realização da ordem moral é o amor que atinge seu ápice na
caridade. A força orientadora do amor é a vontade, que culmina na liberdade; a vontade é o
princípio da atividade que identifica o próprio Ser: a alma é antes de tudo, sua vontade.
Os afetos básicos da alma são: o desejo, a alegria, o medo e a tristeza; todas as
afeições da alma consistem na aceitação ou na rejeição pela vontade de algo bom ou mal.
A vontade tem seu “peso” e seu “lugar” próprio, que é o amor: assim o amor é a
própria essência do homem. Por isso ele não encontra repouso enquanto não encontrar o seu
amor isto é, Deus.
No entanto, a vontade de amar pode tender tanto ao bem quanto ao mal, sendo assim,
tudo o que se faz por amor se faz por prazer, mesmo o mal. Na ausência de algo para amar,
ama-se o próprio amor.
O problema moral então se resume na reta escolha das coisas a serem amadas. O
objeto último do nosso querer é Deus.
O que vai nos levar a Deus é o amor a Deus, isto é, a caridade. Ela é um peso interior
que atrai a alma para Deus. O amor com que se ama um ser pessoal é diferente do que ama
as coisas, que está na ordem da nossa própria pessoa.
37
Amar o outro é amá-lo como a nós mesmos, o que só é possível no nível da igualdade:
ou os elevamos ao nosso nível ou elevamo-nos ao seu nível. Assim, ama-se mais
perfeitamente a quem não depende ou não precisa de nós, quem já é feliz e a quem nada se
pode dar.
A caridade nunca deixa de gerar seu próprio bem: se nos sacrificássemos totalmente
ao ser amado, a igualdade seria lesada e o amor seria imperfeito.
Há portanto a necessidade de uma reciprocidade: os amantes deve exprimir amor um
pelo outro por meio de sinais.
Entre o amor a Deus e aos homens há um elemento comum: o amor ao Bem e ao Ser.
Deus é sumo bem e o ser por excelência, por isso deve ser amado sobre todas as coisas.
Mas amar a Deus é amar o bem como tal: não há mais uma relação de igualdade; para
amá-Lo verdadeiramente, devemos fazê-lo amando – o mas que a nós mesmos, sem
esperança de retribuição e sem comparação, de modo absoluto e infinito: a medida do
amor a Deus é o amor sem medida.
Amando a Deus acima de tudo, não estamos nos aniquilando, pois o esquecer-se
eqüivaleria a encontrar-se e o perde-se, ao ganhar-se.
Tudo o que se deseja além ou no lugar deste bem supremo só serve para entravar o
amor a este mesmo bem supremo.
A caridade (isto é, o amor a Deus) é o cerne da vida moral: dominada pelo amor (a
Deus) a alma cumpre a verdadeira justiça. Amar, fazer o bem e cumprir a justiça, são
sinônimos.
O Livre Arbítrio
A existência da vontade livre ou livre arbítrio é uma verdade evidente e
incontestável. O problema está no uso desta livre vontade, a vontade; em si é neutra, pois
podemos usa-la para o bem ou para o mal.
Se a vontade opta pelo bem torna-se boa; se opta pelo mal torna-se má; se o nosso
fim é a felicidade, a nossa vontade deve ordenar-se para este fim, deve ser algo que
livremente busco, e que seja meu: a felicidade é sempre pessoal.
A vontade, em vez de procurar o sumo bem, deleita-se egoisticamente no seu próprio
bem. Isto constitui o pecado: quando aspira governa-se por si mesma, quando se ocupa com
o que não é da sua conta ou sucumbe aos aspectos carnais: a soberba, a curiosidade e o
vício.
Prosseguindo assim, o homem passa a merecer a morte, como conseqüência do mau
uso de sua vontade. A vontade, mesmo querendo o bem, está marcada pelo pecado original e
atual e somente libertos destes empecilhos, nossa vontade pode ser verdadeiramente livre.
O homem caiu livremente; mas é incapaz de reeguer-se por sua própria força e sem a graça
de Deus.
Para poder retornar à justiça perfeita, foi necessário o auxílio gratuito de Deus: a
força para praticar o bem procede de Deus; a vontade quer o bem mas, realizá-lo depende
da graça divina. O livre arbítrio cristão é um livre arbítrio libertado: de Deus vem a força
38
para fazer o bem, mas é o livre arbítrio que decide fazê-lo. Criatura alguma é auto-
suficiente: tudo procede de Deus, igualmente na ordem moral isto se dá.
A ordem da caridade segundo Santo Agostinho se dá segundo os conceitos “uti” e
“frui” a vida moral consiste em atos individuais e numa posição face às coisas: ou delas
fruímos, ou delas nos utilizamos.
Fruir é afeiçoar-se a algo por amor a ela mesma.
Usar é ao contrário, servir-se de algo para alcançar o objeto que se ama, supondo
que tal objeto seja digno de ser amado, pois um uso ilícito deveria chamar-se excesso ou
abuso.
Deve-se fruir ante de tudo de Deus. Isto implica em colocar certos limites no nosso
amor aos objetos e seres, segundo o seu valor.
A primeira tarefa moral é colocar-nos o verdadeiro valor de cada coisa e
conformarmos nosso amor a esta valoração, o que eleva o homem a ordem do amor, pela
prática da virtude, que é o amor bem ordenado.
Não se deve amar o que não é digno do nosso amor, nem deixar de amar o que se deve
ser amado.
Não se deve amar com um amor maior o que só merece amor menor, nem amar com
amor menor o que merece amor maior; o grau ínfimo do amor é o amor aos bens externos,
inclusive a riqueza. Para Agostinho ela não é um mal! Mau é abuso que dela se faz.
Acima dos bens estão os homens, são nossos semelhantes: amamo-lhe tanto o corpo
como a alma, embora esta seja a parte mais excelente a ser amada.
Porém a alma não é o bem supremo e portanto não deve fluir de si mesma, mas “usar-
se” para chegar a Deus: não se deve interpor-se nada entre Deus e a alma.
A sujeição ao criador nos torna livres em face a todas as criaturas, o cristão que faz
uso de todas as coisas é livre em face a tudo para fruir tão somente de Deus. A verdadeira
observância da lei é a liberdade nascida do amor: cumpre-se a lei por temor e por amor; por
temor, a liberdade permanece na escravidão; com o advento da graça e do amor, a lei passa
a ser aceita e amada por amor a Deus, aderindo o homem à lei por livre e expontânea
vontade. (Teologia da graça).
A ordem social
A ordem social deve ser um prolongamento da ordem moral, pela reta ordem do amor.
A vida moral e a felicidade pressupõem uma vida em sociedade/comunidade o homem que
ama a Deus a todos os seus semelhantes e deseja que todos amem a Deus.
O objetivo de toda sociedade é a paz. A existência das guerras não contradiz este
princípio, pois mesmo o que faz a guerra almeja a paz segundo seus princípios. A paz se
identifica com a ordem ou pelo menos com certa ordem.
Há pois uma paz boa e justa, que é a paz do justo, e uma paz falsa que é a do injusto.
A paz justa é a paz segundo a ordem, que é a disposição que atribui a todas as coisas o
lugar que lhes corresponde: a paz de todas as coisas é a tranqüilidade que nasce da ordem.
A presença da ordem da paz depende de duas coisas: a) não fazer o mal a ninguém; b)
socorrer a todos os que padecem necessidades.
39
Os que prestam tais cuidados devem por sua vez ser respeitados e obedecidos pelos
que recebem os cuidados.
O dever de ministrar a ordem se estende ao direito de castigar os que a perturbam.
Ora, o estado deveria se deixar reger pelo amor de Deus, porém não há nenhum estado que
o faça.
Em todo estado pode-se discernir uma dupla comunidade: o estado de Deus e estado
do demônio.
Esta idéia de Santo Agostinho pretende interpretar toda a história religiosa da
humanidade e não se identificam respectivamente com a Igreja e o estado, mas enquanto
comunidades inspiradas em atitudes mentais e morais divergentes.
Santo Agostinho não identifica todos os estados terrenos com o estado do demônio,
pois ele tem plena convicção de que o estado e não é só benéfico como necessário.
Para Santo Agostinho só pode haver verdadeiro estado se houver a justiça que se
revela na adoração de um só Deus.
O povo é o conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de
objetos amados: o que constitui um povo é o amor a um bem comum compartilhado por
todos. Avalia-se a índole de um povo observando o que ele ama.
As coisas temporais podem ser ordenadas a uma paz terrena ou a uma paz eterna ou
divina; o primeiro é o fim de estado terreno e segundo ao estado de Deus. Os que se
associam no amor ao fim terreno formam a cidade do demônio e os que unem pela caridade
formam o estado de Deus.
A cidade terrena baseia-se no amor si levado até o desprezo de Deus; a cidade de
Deus baseia-se no amor de Deus levado até o desprezo de si. Tanto o estado de Deus como
o terreno estabelecem uma ordem espiritual e não material; materialmente ambos se
confundem devido a íntima convivência dos seus cidadãos.
No entanto, cada um visa um fim diferente, os que vivem na fé, buscam e usufruem
dos bens como passageiros ou viajantes, pois esperam os bens eternos que hão de vir. A
cidade terrena, que não vive da fé, também busca a paz, mas dependeram neste intento de
certo consenso das vontades humanas.
A cidade terrena encontra sua perdição na adoração de vários deuses, o que impediu
que os homens tivessem em comum uma mesma fé. Com isso, a cidade de Deus entrou em
conflito com a cidade terrena, que passou a persegui-la. A cidade de Deus, por sua vez, faz
cidadãos de todas as raças e línguas, formando uma cidade peregrina, não se perturbando
com a diversidade de leis e costumes.
A cidade de Deus utiliza para seus fins o que dispõe a cidade terrena, e mesmo tenta
concorrer para uma harmonia da paz terrena e da paz celeste.
Agostinho faz a primeira e grande interpretação filosófica/teológica da história:
tenha-se em mente que para ele a história é antes de tudo a narrada na Escritura.
Agostinho traça um paralelo entre o processo histórico da humanidade e o
crescimento corporal e espiritual do homem: primeira idade = nutrição; segunda idade ou
infância = memória; terceira idade ou adolescência = procriação; quarta idade ou juventude
40
= participa, dos ofícios públicos e sujeita-se às leis; quinta idade ou adulta e a sexta idade
ou velhice que com as enfermidades termina na morte = Este é o homem carnal.
O homem espiritual se nutre primeiro da autoridade, depois da razão e avança de
idade e idade até a sétima, que é a vida eterna. Paralelamente, Santo Agostinho interpreta
a história como uma passagem da humanidade da primeira idade, em Adão, até a sexta em
Cristo, aguardando a sétima, que é a glória celeste.
A história é assim a descrição da evolução dos dois estados, com seus conflitos até a
vitória do estado de Deus sobre o estado terreno.
Começa com a queda de Adão e a cisão dos dois estados no seio da humanidade e daí
se segue toda a interpretação da história sagrada, a partir destes paradigmas das duas
cidades. Os dois estados desaparecerão na terra e no céu e a formar-se-á o estado de
Deus na mansão celeste.
A história é um drama que só chegará ao final no fim dos tempos, que embora
encenado pelos homens, tem por autor o próprio Deus, o artista eterno.
41
Como as verdades da fé superam em muito o que a razão pode alcançar, não se pode
fazer a fé depender da argumentação racional. Pode-se no entanto ir da fé à inteligência,
isto é, ao esforço para melhor entender a fé.
A fé não suprime a inteligência e a razão, mas a desperta para aprofundar a si
mesma.
Por amor o coração abraça o objeto de fé e o amor desperta o desejo de penetrar o
objeto e apossar-se espiritualmente dele, pela compreensão. Quem, uma vez confirmado na
fé, não procura compreender o que crê, é um negligente.
Também o sentimento de ausência de Deus, estimula, pela fé, a procurá-Lo com as
armas da razão, em meio às trevas, e incertezas presentes.
A razão se torna assim um meio termo, entre a fé pura e o fim último, que é a visão
de Deus face a face: o entendimento é, portanto, sempre meio a não fim e nunca pode
substituir ou suplantar os dados da revelação.
Santo Anselmo, como praticamente todos os escolásticos, não se colocavam a questão
de uma filosofia que prescinda da fé. É certo que certas verdades de fé ele considerava
possíveis de demonstração puramente racional, mas não todas.
É Santo Anselmo que cunha a expressão “Fides Quaerens Intellectum” que é a mote
de toda a especulação Escolástica.
2 – A definição da verdade
A verdade se encontra nos mais diversos domínios:
A verdade dos juízos: quando uma posição ou juízo é verdadeira, significando uma
realidade assim como esta deve significá-la; ou falsa, se este juízo significa uma realidade
“Como não deve” significá-la.
Deve-se no entanto distinguir entre o significado da proposição e sua significação
enquanto aplicada a realidade. Esta última poderá ser verdadeira ou falsa. A primeira, pelo
menos enquanto existir linguagem será sempre verdadeira.
A verdade do pensamento: quando há uma relação de retidão entre o pensamento e a
realidade: quando pensamos algo e a realidade é tal como a pensamos.
A verdade da vontade: quando queremos aquilo que devemos querer e quando não
queremos o que não devemos querer.
A verdade das Essências: quando nos colocamos à procura de algo comum às várias
espécies de verdades, que são as essência existentes no intelecto divino: É a retidão do ser
das coisas que concorda com sua verdade em Deus.
A verdade é portanto uma espécie de retidão, invisível, perceptível só pelo espírito
(definição anselmiana de verdade).
Deus sendo a suma verdade, é por Ele que todas as verdades devem nortear-se. Só
Deus é a que é, e por isso se torna a medida de todas as verdades, ao mesmo tempo que a
sua verdade não se mede por nenhuma outra.
Deus é a causa de todas as verdades e retitudes, sendo sua verdade e retitude
incausada. Esta verdade independe de todas as verdades particulares, ao mesmo tempo que
é sua garantia.
43
Igualmente a palavra “maior” não tem um sentido claro e seria necessário “ver” este
ser maior que todos os outros e enquanto isto não se der, não se pode afirmar a sua
existência.
A Apologia de Anselmo
Anselmo admite, como pede Gaunílio, que não possuímos a representação espiritual da
essência divina, mas não se segue que não possuímos uma idéia a respeito de Deus, pois
podemos claramente compreender o sentido do que se diz: “um ser em comparação ao qual
não existe outro maior” e consequentemente, a sua necessária existência, mesmo que o que
isto signifique em última instância não nos seja acessível.
Ora, o conceito de Deus que Anselmo propõe é o de um ser que possui todas as
perfeições em grau absoluto e portanto, um ser sem começo e sem fim, um ser absoluto e
necessário.
Tudo o que pode ser pensado como não existente, é susceptível de começo e fim e
portanto não é necessário, logo não se pode comparar com um ser do qual não se possa
pensar outro maior.
Ora, o ser que não se pode pensar outro maior é o máximo absoluto precisamente por
não poder não existir. Mesmo que tal noção não esgote o que seja Deus, ela não se aplica a
outro ser que não seja Deus.
Esta idéia não seria inata: nós a temos por experiência: se sabemos o que seja um
bem, não é difícil pensar um bem que seja maior e se sua bondade é tal, não podemos deixar
de pensá-lo como não – existente..... tal bem não pode ter começo nem fim, ao passo que
todos bens tem começo e fim, vem – a - ser e deixam – de – ser ...
A partir da experiência, obtêm-se a idéia de um bem supremo que, sendo
eterno, também deve ser necessário e, como tal, não pode ser pensado como não –
existente.
4 – Relações entre Deus e o Mundo
Deus é um ser necessário, que existe por si mesmo, independentemente de qualquer
causa exterior e sem se haver produzido a si mesmo. Deus existe, ou “é” pura e
simplesmente, Ele é a sua essência e sua essência é ser.
Do fato de Deus ser simplesmente ser, se derivam outras propriedades, tal como sua
inteligibilidade, sua onipotência, sua misericórdia, sua impassibilidade, sua justiça e sua
inacessibilidade.
Deus é a causa do ser de tudo aquilo que existe fora dele. Deus criou a matéria para
formar o mundo do nada e com isto não se quer dizer que o nada seja alguma coisa ou que
Deus a tirasse de si ( com isso o mundo seria consubstancial a Deus) ou existisse desde
sempre (pois assim ela teria a mesma propriedade de Deus, a eternidade). Deus fez o
mundo e antes que o fizesse, nada havia senão Deus.
Mas o mundo não era um nada absoluto antes da criação: ele, como protótipo já
estava presente no intelecto divino, com “ratio facientis”, como pensamento criativo do
Verbo Divino. Assim como há uma palavra interior ao espírito, assim o mundo existia no
intelecto divino, como palavra interior e inarticulada no Espírito de Deus.
46
O pensar de Deus no entanto é igual à essência das próprias coisas, que Ele tira de si
mesmo, e não das coisas (como nós). A locução interior de Deus é idêntica a sua própria
essência.
Os seres criados por Deus e tirados do nada, existem em dependência d`Ele, que é o
conservador do mundo.
Deus cria e conserva as coisas por estar integralmente presente no espaço e no
tempo (onipresença). Deus está em toda parte e em todas as coisas.
Ao mesmo tempo, Deus não é limitado por nenhum espaço e nenhum tempo, pois é
simultaneamente presente em todo espaço e tempo e isso decorre da necessidade de sua
própria existência e da dependência de todas as criaturas d`Ele.
Deus é um ser que existe por si e portanto necessariamente e de maneira alguma
pode ser pensado como não – existente.
47
Obras
- Glosas menores
- Dialética, em três redações sucessivas
- Sobre a Unidade e a Trindade Divina
- Teologia Cristã
- Teologia – refundição do “Sobre a unidade”
- Sic e Non – coletânea de citações dos Santos Padres
- Ética
- História das minhas calamidades
- Correspondência com Heloísa
A questão dos universais
Na obra Isagogué de Porfírio, filósofo neoplatônico do séc. IV, estão três problemas
não solucionados:
* Qual o modo de existência dos universais? Existem eles na realidade, ou apenas no
pensamento?
* Se se admite a sua existência real, serão eles de natureza corporal ou incorporal?
* Estão eles separados das coisas sensíveis ou no interior delas?
* É necessário que exista alguma coisa correspondente à denominação dos gêneros e das
espécies enquanto tais, ou pode o universal continuar a existir graças à significação do
conceito, mesmo se todos os indivíduos assim denominados fossem destruídos?
Resumindo:
Onde se encontram os universais: só nas palavras ou também nas coisas? E isso deu
origem a duas posturas opostas, respectivamente a nominalista e a realista.
1 – O universal não é uma coisa
Guilherme de Champeaux propõe que o universal é uma coisa, uma realidade
essencialmente idêntica na diversidade das coisas. Esta coisa material existiria por si
mesma e constituiria a essência material das coisas individuais, “diferenciando-se somente
nos seus acidentes”.
Haveria igualmente uma substância comum presente em todos os seres vivos que
assumiria diferentes formas nos diversos seres vivos. Esta substância seria universal e
comum por natureza, incorpórea, não sensível, mas que se tornaria sensível pelos acidentes.
Abelardo diz que tais pontos são insustentáveis, pois uma mesma essência (animal)
poderia ter formas opostas (racional e irracional). Guilherme modifica sua tese e passa a
afirmar que o universal é uma coisa que não é essencialmente, mas só indiferentemente
idêntica nos distintos indivíduos.
Haveria então, para cada gênero uma “coisa” indiferente e idêntica, que torna os
espécimes individuais, mas que permaneceria universal sob o aspecto da indiferença e da
semelhança.
Abelardo sustenta que tal coisa não existe. Fora do indivíduo só há o conceito, pois
do contrário, seria possível encontrar-se, separadamente dos indivíduos, o universal como
algo idêntico em todos os indivíduos, o que não se dá.
49
Vida - nasceu entre 1224 e 1225 em Rocca Secca, perto de Nápoles, filho dos condes de
Aquino, eleitores do império.
- Entre 1230 e 1239 foi educado no mosteiro de Monte Cassino pelo Abade Sinibaldo, seu
tio paterno.
- Entre 1239 e 1244 estuda as artes liberais em Nápoles
- Em 1244 entra na ordem dos frades dominicanos à revelia da família.
- A família o retém e o seqüestra a caminho de Paris e o confina por vários meses em
cárcere privado, até que por intervenção da irmã, lhe é reconstituída a liberdade
- Novamente com os dominicanos, dirige-se a Paris onde, de 1245 a 1248 é aluno de Santo
Alberto Magno, a quem acompanha a Colônia até 1252, para organizar o “studium
generale” da ordem
- Entre 1252 e 1257 está em Paris, preparando-se para obter o título de mestre em
teologia, podendo assim ensinar publicamente a partir de então.
- Em 1259 participa do capítulo geral da ordem, sendo então enviado a Roma onde ensinou
teologia na corte papal; neste período inicia a redação da Suma contra os gentios e da
Suma teológica
- Entre 1269 e 1270 esta novamente em Paris para combater o aristotelismo averroísta.
- Em 1274 é convocado pelo papa Gregório X para participar do Concílio de Lyon, mas
morre a caminho do mosteiro dos Cistercienses em Fossa Nova
Obras
- Comentários sobre a Sagrada Escritura - (9)
- Comentários filosóficos sobre Aristóteles - (13)
- Obras sistemáticas:
- Comentário das sentenças de Pedro Lombardo
- Suma contra os gentios
- Suma Teológica
- Questões disputadas (14?)
- Questões quadlibetoles (12)
- Opúsculos – Filosóficos opúsculos filosóficos e filosófico sociais (47), opúsculos sociais,
teológicos e sobre a vida religiosa.
- Filosóficos Sociais
- Teológicas e sobre a vida religiosa
I - As provas da existência de Deus ( quinque viae)
- Para Santo Tomás é da natureza humana que seu conhecimento se inicie pelos sentidos
para daí elevar-se ao supra - sensível e à divindade.
- Assim ele não segue nem Santo Agostinho, nem Santo Anselmo em suas posturas, mas
parte de Aristóteles, fazendo todo conhecimento derivar do sensível.
52
- de Deus: por isso predicamos o ser Analogicamente de Deus. Do mesmo modo, tudo o que
afirmamos de Deus, o fazemos a partir das criaturas e atribuímos a Ele de modo
analógico por exemplo; justiça, bondade, beleza, verdade As criaturas assemelham-se a
Deus por serem causadas por Ele: a causa está contida de algum modo ou grau no efeito.
- Nada é univocamente predicável de Deus e das criaturas: devido à dissemelhança entre
Deus e as criaturas, não se pode aplicar as mesmas qualidades a uns e Outro. Logo nada
é predicável univocamente de Deus.
- Certos predicados não são enunciados de modo puramente equívoco de Deus, pois do
contrário, nada saberíamos dele. Logo há uma certa semelhança entre as causas
equívocas e seus efeitos.
- Os predicados positivos são enunciados Analogicamente de Deus e das criaturas: Deus é
ser por natureza e no sentido absoluto da palavra e de modo primário e as criaturas de
modo secundário, embora na ordem do conhecimento primeiro prediquemos o ser das
criaturas e secundariamente o Ser etc.
III – A Criação
Deus cria por um ato livre, de natureza espiritual: Deus conhece aquilo que quer
criar; assim, no intelecto divino, já existiam desde sempre as idéias de todas as coisas.
Por idéia se entende a forma das coisas, existindo antes e à parte no intelecto divino. É a
partir destas formas que Ele criou o mundo, pois este não surgiu do acaso ou de um ato
natural ou necessário.
Existem assim em Deus uma multiplicidade de idéias. Mas em Deus, as idéias são o
oposto do que em nós se dá como idéias: nós formamos as idéias a partir das coisas,
enquanto as idéias divinas existem como modelos ou arquétipos das coisas existentes.
As idéias são co-eternas e co-existentes a Deus: isto quer dizer que n’Ele as idéias
coincidem com sua essência, já que Ele conhece a si mesmo de modo total e pleno; a
multiplicidade das idéias não afeta a unidade e simplicidade de Deus.
Cada criatura tem o seu ser, mas este ser é tão somente um modo de participar da
Essência Divina: assim, enquanto idéia, a criatura não é outra coisa senão a essência criativa
de Deus.
Deus, graças à sua perfeita atualidade contem em si a razão suficiente para o ser
análogo das coisas. As coisas “emanam” de Deus e como tal revelam os diferentes, múltiplos
e maravilhosos graus do ser do próprio Deus.
Santo Tomás, ao contrário de Aristóteles, é criacinista mas não chega a comungar
nem com a idéia da eternidade do mundo ( de Aristóteles e Averróis) ou de seu começo e
fim no tempo (Agostinho e Boaventura)
Para ele não há argumentos a favor e contra a eternidade do mundo, pela via racional;
tal problema, como o da Santíssima Trindade, foge ao alcance da razão. Isto quer dizer que
ele aceita a criação do mundo como algo revelado por Deus e não algo alcançável pela razão.
III.I - As Criaturas
Deus é a origem do ser e da causalidade das criaturas. Ele as causa não como o
genitor gera o gerado, que continua a existir independente deste, ao lhe dar a forma, pois
55
se Deus se retraísse da criatura, esta retorna ao nada. Seria contraditório supor que Deus
criasse algo capaz de existir sem Ele.
Deus conserva continuamente as coisas no ser pela continuação do ato criador e as
mantém como causa primeira, mesmo existindo várias causas secundárias.
As criaturas dispõe no entanto de atividade própria; no caso do homem, as mais
importantes, são o livre arbítrio e o conhecimento. O ser de cada coisa individual é
determinado por sua forma e estas não são mais do que diferentes graus de perfeição
Assim os seres se dispõe numa ordem hierárquica de perfeição: ao querer a
diversidade dos seres, Deus quis simultaneamente a perfeição do mundo em seu conjunto e
na sua totalidade.
Não é necessário que cada indivíduo atinja a perfeição, mas o conjunto deve estar de
tal modo organizado que as coisas individuais se encontrem devidamente proporcionadas.
Em alguns seres a perfeição é perecível, enquanto que em outros esta é permanente:
portanto o mal é a deficiência em um determinado grau de bem.
Assim, toda criatura pode ser dita um “mal”, já que, como deve seu ser a Deus e
sempre em um grau diferente d’Ele, é portanto imperfeita. Esta imperfeição no entanto não
é nada mais que o reverso de sua perfeição.
Toda natureza aspira à existência e à perfeição. O ser que lhe é próprio constitui um
bem para a respectiva natureza.
O mal por sua vez não possui qualquer “realidade” : O mal é tão somente ausência do
ser e do bem: o mal é privação ou carência daquilo que deveria estar presente.
Pode-se mesmo dizer que o bem é a causa do mal, pois este, sendo a privação na
substância, deve ter uma causa, mas para ter causa é preciso ser, e se algo é (isto é, tem
ser), já é um bem. Portanto, para haver o mal, há sempre um bem maior. Deus, no entanto
não é a causa do mal, pois Ele é o Sumo Bem e n’Ele não há privação, carência ou
potencialidade alguma.
No nosso agir, sempre pode haver uma privação ou um defeito em nossa atividade e
portanto um certo mal. No agir de Deus no entanto, não há privação ou deficiência alguma,
graças à sua perfeição absoluta.
O mal que existe na natureza, sempre, de alguma maneira decorre para o bem e a
harmonia da totalidade do mundo.
III.II - O Homem
- Ponto de convergência da criação: nele convergem as energias espirituais, sensitivas
vegetativas e inanimadas.
- Santo Tomás prega a unidade de forma humana, a alma, e sua união substancial com o
corpo: algo só pode ser dito humano, se para isso converge a atividade do corpo e da alma: o
homem é uma união substancial de corpo e alma e não uma união acidental.
- Corpo e alma tomadas separadamente nada significam do homem: a matéria é atualizada
pela forma como o ser-homem, o corpo pela alma.
- À alma o homem deve sua forma substancial única: o ser-corpo, a sensibilidade e a
racionalidade: a alma humana confere ao corpo os diferentes graus do ser.
56
- Para Santo Tomás a alma seria infundida no corpo quando o embrião passasse da fase
vegetativa para a sensitiva, mais ou menos pelo 3º mês de gestação. Santo Tomás
desconhecia a fecundação.
- A alma intelectiva contém a alma sensitiva e as duas são inseparáveis.
- O homem pela sua alma, possui o ser, a vida a sensibilidade e a racionalidade.
- A matéria do corpo é o princípio de individuação, pela qual surge cada pessoa: a alma por si
realiza a essência humana de maneira genérica: a essência do homem surge da alma. Cada
homem concreto é determinado pela sua matéria individual (matéria “signada”)
- A pluralidade dos homens só é possível pela matéria como princípio de individuação.
- A alma é de tal maneira que se destingue tanto dos seres puramente espirituais como dos
animais. Mas sua natureza racional é tal que ela só exerce suas operações próprias, se
ligada ao corpo.
- A alma humana está no limite entre a criação espiritual e corporal.
Mas a alma humana é capaz de transcender a matéria e tornar-se cada vez mais
independente desta, embora nunca totalmente.
III.II.I - A Teoria do Conhecimento
- A alma possui um conhecimento sensitivo e intelectivo
O Conhecimento sensível:
- O conhecimento sensível está na origem de todo conhecimento, mesmo do conhecimento
racional e espiritual.
- A potência sensitiva possui cinco graus de operação:
- Os sentidos próprios – cada sentido é influenciado de modo imediato pelo objeto
sensível: quanto mais imaterial for a ação do sentido, tanto mais elevado ele é.
- O tato é o mais inferior, segue-se a gustação, o olfato e audição. O mais perfeito é a
visão, que não é influenciado, por nenhuma alteração no objeto sensível.
- Sentido comum – recebe as impressões e o próprio ato da sensação, julgando o objeto
referente aos diversos sentidos.
- Imaginação ou fantasia – é a capacidade de reter as imagens das coisas sensíveis
através da sua força representativa.
- Memória ou reminiscência – reapresenta ou evoca o que foi apreendido e conservado. No
animal a memória se dá sem um esforço consciente.
- Razão particular ou intelecto passivo – cumpre o papel do instinto no homem, revelando-
lhe o que é nocivo ou benéfico.
O Conhecimento Intelectivo
- O intelecto humano apresenta-se num primeiro momento como pura possibilidade,
destituído de qualquer conhecimento e apto para receber o conhecimento.
- O intelecto humano é o antípoda do intelecto divino, em que tudo é atual e presente.
- O intelecto humano está em potência para o conhecimento inteligível: ao conhecer, ele
passa da potência ao ato, o intelecto é “ tábula rasa”.
57
- Nesta vida o amor a Deus é superior ao conhecimento de Deus, pois a vontade atinge o
objeto de modo mais imediato que o entendimento. Na visão beatífica, o conhecer a
Deus terá a primazia sobre a vontade e será esta a dirigir o caminho do amor e por
conseqüência, da vontade.
- A vontade como princípio ativo, move as potências sensitivas e intelectivas da alma,
menos as vegetativas.
- A vontade é por definição, livre. Se não fosse livre não seria vontade, mas automatismo
ou instinto
- Ao mesmo tempo é por existir vontade livre que nossos atos se tornam morais, isto é,
dignos de aprovação ou repreensão: sem vontade livre não haveria moralidade.
- Para Santo Tomás a negação do livre arbítrio, nega igualmente toda uma parte da
filosofia.
- A vontade, mesmo que ela queira necessariamente o fim último, ainda assim não há uma
rígida determinação no que diz respeito aos caminhos e meios para chegar a ele: neste
sentido se diz que a vontade é indeterminada, livre quanto aos objetos intermediários.
- Também em relação ao ato, este não é determinado, pois a vontade é livre para por ou
deixar de por um ato: ela move a si mesma sem ser movida.
- Quanto à ordenação ao fim, a vontade pode querer o que conduz a ele realmente, como o
que conduz aparentemente, pois ela pode escolher entre meios diferentes e ter uma
opinião errônea quanto aos meios.
- Se a vontade tende para uma beatitude aparente que a razão ilusoriamente lhe propõe,
pode se dizer que a vontade tende ao mal.
IV.I - A Estrutura do ato humano
- A intenção – é a direção da vontade para uma finalidade – fixação do fim a atingir
- O conselho – é a deliberação dos meios para poder se chegar ao fim, no que eles têm de
contingente e variável
- O consentimento - dentre os vários caminhos que o conselho delibera, ele apresenta a
ação sob diferentes aspectos de bondade e é para esta bondade que se volta a potência
apetitiva, daí resultando a experiência e apreensão imediata da bondade do ato.
- A eleição - caso haja uma única opção, a eleição é a culminância do ato volitivo para o
qual convergem razão e vontade, para a escolha livre, para o ato da vontade.
IV.II – A Moralidade do Ato Humano
- Santo Tomás distingue o ato voluntário interior e o ato voluntário exterior.
- O objeto do ato interior é o fim. Objeto do ato exterior é a coisa para a qual se tende.
- A bondade da ação procede do fim sobre o qual recai o ato interior.
- O fim do ato interior para ser bom, deve estar de acordo com a razão e é mal aquilo que
é contrário à razão ou que lhe repugna.
- Ao que não é conveniente nem repugnante chama-se indiferente.
- Assim, para um ato ser chamado bom, deve ser visto quanto ao seu fim e não quanto aos
meios e da reta ordenação do ato para o fim ou da intenção
59
- A virtude – é uma disposição ou inclinação (hábito) para agir conforme a razão é por isso
uma virtude é uma perfeição do ato humano para regular nossa vida inteira.
- Como há necessidade da volição no pensar e no querer, há uma disposição de virtudes
intelectuais e volicionais.
IV.III - As Virtudes Intelectuais:
- A ciência: é o hábito das conclusões dedutíveis dos princípios.
- O intelecto: é o hábito dos princípios.
- A sapiência :encerra ambos e julga convenientemente segundo princípios supremos.
- A prudência: aplicação do que é reto às circunstâncias concretas, de modo a conduzir ao
fim o que foi deliberado pela vontade.
IV.IV - As Virtudes Morais:
- Justiça – visa dar o que é devido ou não a cada um, independentemente das questões
subjetivas.
- Fortaleza – refreia as paixões que enfraquecem a ação, subordinando-as à reta razão.
- Temperança – refreia as paixões exageradamente impulsivas e precipitadas
subordinando-as à reta razão; as três virtudes morais, juntamente com a prudência
formam as virtudes cardeais.
IV.V - As leis
visam nortear nossa vida externa: são regras ou preceitos relativos às nossas ações. A
lei suprema dos atos humanos é a razão.
- O que é ordenado por lei deve servir a um fim comum e não a um fim individual.
- Também as leis devem nortear-se ao fim último do homem que é a beatitude.
- A lei visa a felicidade comum e o bem estar da coletividade.
- Como a lei visa o bem comum, ela deve emanar da comunidade ou da pessoa que
legitimamente a representa
- Como a lei visa sempre a comunidade, há tantas leis quantas há comunidades, sendo a
primeira delas o mundo governado por Deus.
- Assim a razão eterna de Deus é a lei suprema: a natureza humana traz como reflexo, em
si algo desta lei eterna, pela qual ela participa da razão divina.
- A esta participação na lei divina, que reconhecemos de modo imediato, chamamos lei
natural, que é a soma das obrigações reconhecidas pela razão, como sendo conformes à
natureza.
- A lei natural primeira e suprema é: deve-se fazer o bem e evitar o mal (pg 481)
- pela lei natural o homem participa dos princípios gerais e comuns da lei divina. Cabe ao
legislador particularizar estes princípios, dando origem às leis humanas.
- Assim, a observância ou a transgressão da reta ordem por parte do homem deve ter
como conseqüência um bem ou um mal, que não se dá como necessidade natural, mas em
consonância com a atividade humana pessoal, daí os prêmios ou castigos necessitarem de
uma legislação particular
60
Vida
Nasceu João Fidanza em Bagnorea, perto de Viterbo em 1221. Em 1243 faz-se
franciscano, após ser promovido a mestre das artes liberais e estuda teologia sob
orientação de Alexandre de Hales. Bacharel bíblico em 1248 e bacharel sentenciário em
1250.
Mestre em teologia em 1253, por intervenção do papa, visto a oposição dos seculares,
iniciando seu magistério na Universidade de Paris. Eleito Ministro Geral dos Franciscanos,
renuncia ao magistério, sendo considerado o segundo fundador da Ordem.
Feito bispo e cardeal, participa com sucesso no Concílio de Lyon. Falece em 1274;
Canonizado em 1482; doutor da Igreja em 1587.
Obras
- Comentário aos quatros livros das Sentenças de Pedro Lombardo.
- Questões disputadas sobre a Ciência Cristã e sobre o Mistério Trinitário.
- Brevilóquio – compêndio de teologia em sete volumes.
- Itinerário da mente à Deus.
- Lições sobre Hexameron
Enquanto S. Tomás procura incorporar o aristotelismo à teologia cristã, São
Boaventura procura uma renovação e sistematização do Agostinismo.
As relações entre filosofia e teologia
São Boaventura nunca se interessou pelo aristotelismo puro, que para ele visava
principalmente o domínio das ciências, isto é, do mundo sensível e visível. Para São
Boaventura, é o Platão o mestre da sabedoria, pois este se voltar para o mundo supra
sensível.
Ainda assim, é em Agostinho que está a síntese perfeita entre a ciência e a
sabedoria e é quem pretende seguir no ideal da sabedoria.
A sabedoria teria quatro graus:
1º - o saber das coisas humanas e divinas = filosofia;
2º - o conhecimento das coisas sublimes, que se opõe ao das coisas criadas;
3º - o conhecimento de Deus pela piedade ou religiosidade = fé, esperança, caridade;
4º - a mística – conhecimento experimental de Deus.
Sabedoria é portanto a apreensão ou contato imediato com Deus, que principia no
conhecimento e remata no amor, culminando na contemplação e degustação mística da
doçura de Deus. Assim, para S. Boaventura os termos, Sapiência, Caridade, Paz, Êxtase,
etc. são sinônimos.
A meta de toda aspiração terrena é o amor de Deus na sabedoria: cabe à filosofia e à
teologia organizar, com auxílio da revelação, um saber santo e, para tal, todas as ciências
devem estar a serviço do amor.
61
A filosofia como tal deve ser apenas um instrumento para conduzir o homem a Deus,
devendo para isto subordinar-se e deixar-se guiar por ela. É pela fé que a alma possui já
nesta vida, um saber seguro de Deus, por isso a fé é o ponto de partida para todo
conhecimento, inclusive filosófico.
Da fé deve-se avançar ao entendimento (fides quarens intelectum) para se chegar à
contemplação mística. A fé possui um elemento que nos estimula à especulação, isto é, o
amor, pois o que crê, deseja abraçar com todas as forças o objeto da fé e penetrá-lo com a
razão.
A filosofia e a teologia por sua vez não se confundem: a primeira procura um saber
adquirido exclusivamente pela razão, que conduz a um conhecimento naturalmente certo,
assentado numa intuição racional e distinta da verdade, baseado nos primeiros princípios. O
objetivo da filosofia é organizar e coordenar todo o saber.
A filosofia, embora brote da luz divina, foi afetada pela corrupção do pecado
original, o que fez com que ela produzisse vários erros, como os que ele nota no
aristotelismo: Os filósofos caíram no erro por desconhecer o pecado original. Sujeitando-
se a fé, a filosofia abre o caminho para que o homem retorne a Deus, estando a meio
caminho entre a fé pura e a teologia, que se abre por sua vez à sabedoria ou contemplação:
as ciências são estações da peregrinação da alma para Deus.
Toda a metafísica de Boaventura é um movimento em três estágios:
- A Emanação: que trata do mundo criado por Deus;
- A Exemplaridade: trata sobre Deus enquanto arquétipo da criação;
- A, Consumação ou Redução: trata de Deus enquanto fim último dos espírito criados, que
tocados por sua luz, retornam à pátria.
I – A Emanação
São Boaventura é um intransigente defensor da criação temporal do mundo (ao
contrário de Aristóteles para quem o mundo é eterno ou S. Tomás, para quem pode-se
arrolar argumentos pró e contra a eternidade do mundo).
Para S. Boaventura, se o mundo fosse eterno, isto é, existisse desde sempre e para
sempre, poder-se-ia acrescentar novos dias, ou seja, mais tempo, ao que já é eterno não se
pode acrescentar ou infinito.
Igualmente, um número não suporta uma seqüência ordenada: se não há começo, não
há ordem, isto é, um antes de um depois de cada fenômeno a que se seguem outros. Se o
mundo fosse eterno, não há como estabelecer uma seqüência interdependente de
fenômenos.
Ora, qualquer ponto desta seqüência infinita está a uma distância infinita do ponto
seguinte e todos estão a uma distância infinita entre si, o que exclui toda sucessão.
– O mundo dos Corpos e dos Seres Vivos
S. Boaventura toma emprestado da escola de Oxford a metafísica da luz, para quem
os princípios estruturais dos corpos são a matéria e a forma luminosa. Quanto maior a
quantidade de luz contida num corpo, mais elevado o seu lugar na ordem da natureza.
62
A luz é o princípio ativo universal: a atividade dos corpos procede de uma força
inerente à sua própria substancialidade, isto é, a luz. A luz forma o ser substancial dos
elementos e novamente sob a influência, em diferentes graus de complexificação, os
minerais, os vegetais, os animais e os homens.
Luz Luz Luz
Vegetais
Plantas
original era fácil ao homem e que após, se tornou confusa, de modo que por um esforço
místico, o homem pode encaminhar-se a encaminhar-se diretamente para Deus: Itinerário
da mente a Deus.
III – A Redução
O retorno da alma para Deus se efetua pela iluminação: de Deus descende a luz que
nos reconduzirá a Ele mesmo, o que se dá pelo conhecimento, auxiliado pela graça e na
graça.
O conhecimento sensível
O homem possui uma faculdade sensitiva, pela qual ele percebe as coisas corporais;
como as coisas são compostas de matéria e luz, a forma da luz nas coisas é que permite a
sensação. A alma, ao perceber o estímulo sensitivo, recebe uma impressão e reage a este
estímulo. A alma não extrai de si mesma o conteúdo da sensação (diferentemente do que
afirmava Agostinho). Ela julga o conteúdo da sensação segundo certas normas ou leis
eternas impressas na alma por Deus. E assim a alma inteira participa no ato da percepção.
O sentido comum por sua vez resume as sensações particulares e permite distinguir
o que estamos percebendo neste momento. Na memória se conservam os espécies sensíveis
impressos pela percepção, depois de julgados e caracterizados. A memória por sua vez se
distingue em passiva, que compõem-se da imaginação, da fantasia e da memória sensitiva e
ativa, que é capaz de trazer, por um esforço da consciência, o material guardado pela
imaginação na memória sensitiva.
O Conhecimento Intelectivo
A espécie sensível existente na alma como representação, deve-se transformar em
espécie inteligível, e aqui Boaventura recorre a Aristóteles, na teoria da abstração com a
distinção entre intelecto agente e intelecto possível.
O intelecto passivo deve voltar-se para a imagem representativa – sensitiva, para
dela receber, pela força abstrativa do intelecto agente, a imagem espiritual ou conceito.
Assim entre eles há uma cooperação para a produção da imagem inteligível.
Para o ato do conhecimento há a necessidade, não só do dado sensível (com isto
concordando com Aristóteles), como da alma como receptor da experiência, mas também
dos primeiros princípios pelos quais se tem a experiência dos objetos sensíveis.
Assim, para S. Boaventura, assim como, pelos primeiros princípios, o homem toma
consciência de sua vida, toma também consciência da vida moral e de Deus.
Teoria da Iluminação
A verdade do conhecimento se funda na verdade do ser: é no ser, que é posto e
concebido pelo pensamento, que está a verdade. Assim a verdade só pode ser determinada
pelo ser por excelência que é Deus. Como Deus é a causa de todo ser, Ele deve ser
igualmente a causa do nosso conhecimento e sem Deus, seria impossível qualquer
conhecimento da verdade.
Assim como o saber seguro exige um objeto imutável e este não se encontra nas
coisas mutáveis ou no nosso intelecto, deve-se procurar o fundamento último de todas as
65
coisas em Deus. No entanto, a verdade das coisas não se dá como um mero influxo da ação
divina, mas por um contato direto da alma com Deus.
As razões eternas cooperam na produção do ato cognitivo, submetendo o nosso
intelecto parcial e falho à norma eterna, bem como recolhem e ordenam as nossas múltiplas
experiências sensíveis. A luz nos permanece inacessível na vida presente e mesmo na visão
mística que se realiza pela caridade, daí receber o nome de “douta ignorância”.
Toda vez que o intelecto realiza um juízo na verdade, ele encontra o seu fundamento
último em Deus: a este processo S. Boaventura denomina “resolução plena”. Exemplificando:
a noção de princípio eterno é o conceito de ser e através dele que compreendemos a todos
os objetos e idéias.
O Conhecimento de Deus
S. Boaventura propõe três vias, que convergem num único argumento da existência de
Deus.
Primeira via – o auto conhecimento
A idéia de Deus está como que impressa na própria natureza humana, pois temos em
nós mesmos uma aspiração natural pela sabedoria: o amor à sabedoria é inato ao homem.
Como não se pode amar o que se ignora, o homem deve trazer em sua natureza um saber
acerca da sabedoria eterna.
Também todos nós aspiramos a felicidade. Assim, de algum modo, nossa alma já
conhece, e portanto deseja o Sumo Bem. Igualmente nosso desejo de paz, que só pode ser
realizado na posse de um Ser imutável e eterno, que de algum modo nossa alma já conhece.
Segunda via – O mundo externo
Se Deus é a causa de todas as coisas, devemos poder inferir-lhe a existência a partir
dos efeitos. Se há um ser produzido, deve haver um Ser Primeiro. Se há um ser relacionado
a um outro, deve haver um ser que basta-se a si mesmo. Se há o ser composto, deve haver
um ser absolutamente simples. Se há um ser em movimento, deve haver um ser imóvel. Se
há um ser relativo deve haver um ser que é absoluto, que basta a si mesmo.
Terceira via – O argumento anselmiano
Se partimos de uma clara idéia de Deus vê-se que sua existência é imediatamente
evidente. Se afirmo, “Deus existe” e compreendo de imediato o que significa “Deus”, como
um Ser ao qual não se pode conceber outro maior, a sua existência é participativa do
próprio conceito de Deus e do juízo, pois na afirmação “Deus existe”, o predicado está
contido no sujeito: Se Deus é, Deus existe.
Igualmente se chega a esta conclusão pelo conceito da Verdade: Se a Verdade não
existe, existe pelo menos uma verdade; que a verdade não existe; se existe esta verdade,
deve existir uma verdade primeira, fundamento desta verdade, que é o próprio Deus.
Assim é impossível negar a existência da verdade sem afirmá-la no mesmo juízo e se
Deus é a verdade, é impossível negá-lo, sem ao mesmo tempo afirmar sua existência.
66
Torna-se cada vez mais difícil, malgrado o otimismo inicial, presente na obra de
Santo Tomás, uma conciliação plena entre a ciência aristotélica e a teologia. Torna-se
igualmente necessário delimitar e salvaguardar os domínios da teologia frente à filosofia,
que passa a querer julgar os conteúdos da fé exclusivamente a partir da lógica, da
metafísica e da cosmologia aristotélica ou dos comentadores, como Averróis e Avicena.
Surge Duns Scotus como o primeiro a realizar esta delimitação em favor da teologia
ao mesmo tempo reconhecendo os limites desta e da filosofia. Herdeiro e continuador de S.
Tomás e S. Boaventura e tendo livre acesso a todos os escritos de Aristóteles e dos
comentários e Averróis e Avicena, além de conhecedor profundo de Agostinho e da
Sagrada Escritura e inflamado pelo rigor lógico e demonstrativo, Duns Scotus pôde iniciar
uma grande obra em teologia, em que a metafísica recebeu um novo e diferente impulso,
interrompida por sua morte prematura, aos 42 anos de idade.
Vida
Nasceu em 1265 ou 1266 em Duns, no Condado de Berwick na Escócia, donde o nome
Duns (da Aldeia de Duns) Scotus (na Escócia). Entrou em 1278/9 para o convento
franciscano de Dunfries por seu tio, que era guardião e em 1278/9 recebeu o hábito
franciscano aos 15 anos. Em 1291 foi ordenado sacerdote em Northampton e de 1293 a
1296 estuda em Paris e depois ensina em Cambridge e Oxford, entre 1297 a 1301.
Entre 1302 e 1303 está em Paris para tirar o Bacharelado Sentenciário, atividade
interrompida pelo conflito entre o Rei da França e o papa, finalmente concluído em 1304.
Em 1304 é designado para o licenciado do magistério de teologia, ensinando em Paris e
posteriormente em Colônia, onde faleceu em 1308 aos 42 anos.
Obras
Muitas obras de Duns Scotus nos chegaram misturadas em comentários de discípulos
e continuadores, o que torna difícil uma opinião sobre sua autenticidade.
Obras filosóficas
- Questões sobre os Universais de Porfírio
- Questões sobre os livros “De Anima” de Aristóteles
- Questões sutilíssimas na Metafísica de Aristóteles
- Tratado do Primeiro Princípio – visa tornar filosoficamente evidentes certas verdades
referentes a Deus, já aceitas pela fé.
Obras teológicas
- Teoremata – trata de proposições da fé filosoficamente indemonstráveis
- Opus Oxonienais ou Ordenatio – primeiro esboço do comentário às sentenças
- Reportata Parisiensia – coleções de notas de aula
- Questiones Quadlibetales- redigidas após a conquista do magistério
- Collationes e Parisiesis et Oxoniensis.
67
conhecimento da primeira natureza deve ser idêntico a ela mesma, pois o querer supõe o
conhecer, bem como o conhecimento que antecede o amor está mais próximo à natureza,
donde o intelecto ser idêntico a esta natureza.
O intelecto do primeiro Ser tem um conhecimento eterno, distinto e necessário de
tudo o que se pode ser conhecido e este conhecimento é naturalmente anterior à existência
real destas coisas em si mesmas.
Deus, enquanto artista supremo, deve conhecer clara e distintamente todas as coisas
que irá produzir, isto antes de produzi-las, do contrário, o seu modo de operar seria
imperfeito e sendo o seu conhecimento a medida do seu operar, Deus tem um conhecimento
distinto de tudo quanto pode criar.
Se a natureza suprema é um ser infinito
Infinito para Duns Scotus é aquilo que excede qualquer dado finito, não em medida
finita mas além de toda medida finita determinável.
O Primeiro Argumento diz que um movimento infinito pressupõe uma energia infinita: ora,
a causa eficiente primeira deve possuir toda a energia ativa das coisas possíveis, a ela
subordinadas. Como estas são susceptíveis de uma continuidade infinita no tempo, logo a
causa primeira deve possuir esta energia temporalmente infinita de modo unitário e
simultâneo.
O Segundo Argumento parte do conhecimento divino. Deus conhece clara e distintamente
todas as coisas criáveis. Estas coisas por sua vez sendo inteligíveis e possíveis, são infinitas
em número e se elas estão atual e simultaneamente presentes ao intelecto que tudo
conhece, segue-se que este deve ser infinito.
O Terceiro Argumento deriva da causalidade final: nossa vontade sempre tem a
capacidade de querer e amar algo superior a qualquer bem finito e limitado, bem como
nosso intelecto pode conhecer coisas sempre mais elevadas. Assim, se a nossa vontade ama
um bem infinito e não pode encontrar repouso a não ser neste bem, segue-se que a nossa
vontade pode alcançá-lo, visto que, caso não pudesse, experimentaria uma aversão natural
por ele.
O Quarto Argumento funda-se na eminência do ser supremo – resta saber se a infinidade
não repugna ao Ser supremo. Se Ele é eminentíssimo, é também infinito.
O ponto decisivo é saber se a infinidade não repugna ao ser, e por conseguinte, se o
conceito do ser infinito é possível. Se o conceito de ser infinito é possível, ele existe na
realidade.
O nosso intelecto não percebe nenhuma contradição no conceito de um ser infinito, e
este descobre nele o mais perfeito de todos os objetos cognoscíveis: se houvesse uma
contradição no conceito de ser infinito, o nosso entendimento perceberia.
As criaturas
Na doutrina escotista das idéias, a tônica recai na atividade divina. Deus conhece
todas as coisas através de sua própria essência. Disto porém não se deduz a existência
desde toda a eternidade dos modelos ou arquétipos de todas as coisas passíveis de
existência. Isto explica Scotus da seguinte maneira: num primeiro momento Deus conhece a
73
essência das coisas em si mesmo. Num segundo momento Deus cria as essências. Num
terceiro momento Deus compara a essência das coisas entre si e com o seu próprio
intelecto, o que dá origem a uma relação de razão. Num quarto momento o intelecto divino
como que reflete sobre esta relação. Assim o intelecto divino conhece e possui em si a idéia
de todo objeto a ser criado sem necessariamente traze-lo à existência. Note-se que estes
“momentos” são lógicos e não cronológicos.
Scotus se recusa a admitir a concepção tomista segundo a qual a matéria é pura
possibilidade de receber uma forma. Isto seria reduzi-la ao nada. Ele nota que é possível
estabelecer uma série de enunciados positivos a respeito da matéria: ela é um princípio da
natureza, ela é causa, é substrato de mudanças substanciais, é criada e conhecida por Deus
donde se segue que ela deve possuir algum ser, pois como princípio e causa do ser
hileomórfico, é necessário que ela possua algum ser próprio e portanto alguma coisa em ato.
A matéria tem portanto uma realidade diferente da forma, com um ser positivo no âmbito
do possível, sem no entanto ser conhecido pelo intelecto humano, embora o seja pelo
intelecto divino. A matéria seria em si mesma algo que pode existir sem forma.
O homem
Seguindo a escola franciscana e distintamente de Santo Tomás, que chama o corpo
matéria e a alma forma do homem, Scotus admite duas formas no composto humano: a
forma da corporeidade que determina o corpo e a forma intelectiva, que enquanto alma,
determina o homem. As duas formas se distinguem realmente uma da outra. À forma do
corpo se sobrepõe a forma superior da alma, contendo, em unidade íntima, as energias vital,
sensitiva e intelectual. As energias vitais e sensitivas são distinguíveis só teoricamente,
pois compõem uma mesma potência e se ligam ao corpo. Por sua vez, a energia intelectiva se
dirige a Deus.
Ao contrário de Santo Tomás também, Scotus afirma não ser possível demonstrar
racionalmente a imortalidade da alma, se ela é uma forma apta a existir por si mesma e sem
o corpo. Por outro lado, a alegação da necessidade de uma recompensa ou castigo depois da
morte é algo que supõe a existência de um supremo juiz e não é possível demonstrar que o
Ser supremo e infinito seja também Supremo Juiz, pois este fato só nos é dado pela fé. O
argumento de que aspiramos naturalmente a imortalidade e a ressurreição é uma “petição
de princípio”, isto é, supõe o que se deveria demonstrar. Os animais também defendem sua
vida e desejam auto preservar-se sem que com isso se possa derivar a sua imortalidade.
Para Scotus a imortalidade da alma a ressurreição, a recompensa ou castigo eternos são
coisas que Deus, na sua infinita misericórdia revelou aos homens, já que todos os filósofos
até hoje nada conseguiram saber de seguro sobre nosso destino último.
A ética
Neste ponto Scotus é absolutamente fiel à tradição agostiniana e à influência de
Santo Anselmo. Seu propósito é harmonizar os direitos de Deus com os do indivíduo
humano: procura salvaguardar ao mesmo tempo a contingência e a dignidade da pessoa
humana.
74
Scotus insiste no primado da vontade no sentido que ela não é determinada pelo
conhecimento do bem e nem sequer pelo Sumo Bem, podendo mesmo apartar o intelecto da
consideração do Sumo Bem, pois o que mais caracteriza a vontade é não se deixar
determinar por nenhuma causa que não seja ela mesma. Deste modo o intelecto mantêm
uma relação de subserviência em relação à vontade no que se refere ao ato volitivo. Ela
detém a função de instância suprema no domínio das decisões humanas. O que transtorna
mais o homem é o erro da vontade e não da inteligência. Como Santo Anselmo afirma que a
vontade é o motor por excelência do reino da alma e tudo lhe obedece.
A vontade de Deus é por sua vez a norma suprema da moralidade. Deus não quer as
coisas por serem boas, mas elas são boas porque Deus as quer e as ama. Com isso não se
afirma que o domínio da ética depende do arbítrio incondicional de Deus, mas que a vontade
divina se faz orientar por normas estritamente lógicas e sobretudo pela sua própria
essência.
Existem duas modalidades de valor: o ”bonum honesti” e o “bonum commodi ou
delectabile”. O primeiro comporta em si mesmo um valor objetivo. O segundo comporta uma
fonte de prazer e satisfação para o sujeito (valor subjetivo). O “bonum commodi” mais
elevado é a beatitude, entendida como felicidade e não exatamente a visão beatífica; esta
contém sempre o bem honesto. O “bonum honesti” mais elevado é a caridade, que encerra
necessariamente o “bonum commodi”.
De acordo a estes princípios, a alma, ou mais precisamente a vontade, pode ser
afetada de dois modos diferentes e isto nos leva a distinguir uma dupla afeição na vontade:
uma “affectio commodi”, que inclina a vontade natural à satisfação subjetiva, e a “affectio
iustitiae”, pela qual a vontade se inclina à afirmação suprema do valor objetivo. Ambas as
afeições só encontram seu fim último em Deus, por meio de um contato imediato com Ele, já
que Deus é um bem ao mesmo tempo justo e deleitável.
Se a “affectio commodi” visa satisfazer nossa tendência natural à felicidade, a
genuína liberdade manifesta-se no amor desinteressado dos valores, o qual se sobrepõe à
nossa tendência egocêntrica, orientando-a e moderando-a. Desta forma, a vontade culmina
no mais elevado e puro amor aos valores e longe de suprimir o elemento afetivo, tem a
função de norteá-lo em direção ao bem supremo. No entanto, o ato pelo qual o homem entra
no pleno gozo de um valor é sempre precedido pela degustação daquele valor; por isso, todo
bonum honesti comporta em algum grau o bonum commodi. O valor último e supremo é a
sabedoria e a caridade, que para Duns Scotus são uma única coisa. A sabedoria suprema é a
entrega total que o homem faz de si mesmo a Deus, em que o homem é supremo valor para
Deus, pois o ama infinitamente.
75
Contexto histórico
O século XIV é o último século da Idade Média. Se o século XIII foi o apogeu da
civilização cristã européia, marcado pelo ideal da unidade política, religiosa e cultural, em
que o papa exercia não só a autoridade suprema na Igreja, como era também o árbitro das
nações, o século XIV vê desaparecer esta unidade numa série de conflitos de ordem
religiosa, política e intelectual.
A figura que abre este século é o papa Bonifácio VIII, que ao tentar manter sua
autoridade suprema na cristandade, entra em conflito com o rei da França, Filipe, o belo, o
qual termina por exilá-lo e trazer para Avignon, no território francês, a cúria e elegendo
um papa submisso à sua política. Este fato veio desprestigiar tremendamente o papado, que
passa a ser um instrumento do rei da França. Esta situação perdurou de 1309 a 1417, e
agravou-se quando o papa retorna a Roma em 1377, pois passa a haver um papa em Avignon
e outro em Roma, no que ficou conhecido como “Cisma do Ocidente”.
Bonifácio VIII decretou o primeiro ano jubilar da história (1300), procurando
catalisar a seu favor o arroubo místico que perpassara todo o século XIII, expresso na
florescente vida religiosa deste período, ao mesmo tempo em que tentou aumentar o seu
poder temporal. Fracassado seu projeto, a Igreja passou por um processo de decadência de
suas estruturas e instituições ao mesmo tempo em que se acentuava um ardente desejo de
reforma e renovação espiritual no seio de toda a cristandade. Expressão deste desejo de
renovação é o florescimento formas de espiritualidade, essencialmente leigas e de elevada
exigência ascética, que conhecidas como “devotio moderna”, de caráter intimista,
espiritualista e fideísta, avessa às estéreis e complexíssimas discussões de escolas que se
acentuarão a partir de então.
Outra coisa que emerge no século XIV é a afirmação dos estados nacionais. Durante
toda a Idade Média, do século IX ao XIII, a Europa se vê sob a égide de duas figuras
teocráticas, o papa e o imperador romano germânico. Este último, desde Carlos Magno,
representava o ideal de uma Europa unida sob um único soberano, ainda que seu poder
fosse, em muitas partes, meramente simbólico. O imperador por sua vez era sempre
coroado pelo papa, que expressava desta forma sua autoridade e o prestígio da Igreja.
Como o papa agora era controlado pelo rei da França, o novo imperador Luís
(Ludovico/Ludwig) da Baviera dispensou-se deste gesto, expressando o afastamento da
região germânica da autoridade centralizada da Igreja. Por sua vez a França tenta afirmar-
se como a principal potência européia, encontra na Inglaterra uma séria oponente. Esta
disputa levará à “guerra dos cem anos” entre a Inglaterra e a França (1337-1453). Cada
nação européia tentará criar sua própria estrutura política, administrativa, militar e
lingüística, rompendo uma unidade que se manteve sob a égide da Igreja até então.
O florescimento das cidades e do comércio e o aumento da população traz uma nova
realidade social: o surgimento das “comunas” ou cidades livres, em que a aristocracia local
ora se aliava ora disputava o poder com a burguesia nascente. Esta nova classe social traz
76
reivindicações não só de caráter político, mas também espiritual. Ela será a principal
divulgadora da “devotio moderna” de que falávamos atrás.
Grande catástrofe natural do século XIV será a “peste negra”, que se supõe tenha
matado a terça parte da população européia de então, a partir de 1346, provocando um
grande desequilíbrio demográfico, social e econômico.
As revoltas de camponeses, esmagados por impostos, fome e guerras avassalarão o
norte da Itália, a França (a Jacquerie) e depois a Inglaterra (revolta dos lolardos). Estas
revoltas tinham caráter acentuadamente anticlerical, pois os camponeses se ressentiam que
o clero desfrutasse de tantos bens e eles vivessem na maior miséria.
Este anticlericalismo se expressa no desejo de ver a Igreja afastada das suas
atividades mundanas, como disputas de poder político e controle de atividades econômicas,
voltando-se para a simplicidade do Evangelho, pois sua atual estrutura parecia afastar a
Igreja de seus verdadeiros fins. Uma grande disputa perpassou a ordem franciscana neste
período: a questão da pobreza. Para os chamados “espirituais”, a fidelidade a esta virtude
deveria ser radical, enquanto para outros era algo flexível, pois os bens materiais estavam
a serviço das atividades evangélicas. É claro que esta polêmica não era exclusiva da ordem
franciscana, mas era discutida também em relação ao papa, aos bispos e abades. Uma
expressão deste movimento foi o “joaquimismo”, iniciado pelo frade Joaquim de Fiore, a
partir do sul da Itália, espalhando-se por toda a Europa. Este frade misturava os princípios
da pobreza evangélica com uma acentuada expectativa escatológica, em que pregava o
surgimento de uma terceira era, a “era do Espírito”, que levaria toda a cristandade a um
processo de profunda renovação e purificação moral e espiritual. Embora Joaquim de Fiore
pregasse esta reforma pelas palavras, alguns de seus adeptos passaram a atitudes mais
radicais, queimando mosteiros e conventos e matando nobres, burgueses e eclesiásticos.
Este movimento, ainda que perseguido, permaneceu subterrâneo e ativo por bastante
tempo.
Do ponto de vista estritamente cultural, o século XIV vive à sombra das várias
condenações de que foi objeto, no fim do século XIII, o aristotelismo averroísta de Siger
de Brabante e o aristotelismo tomista. Em 1277 o arcebispo de Paris, Estevão Tempier
colocou sob suspeita várias teses tomistas e no ano seguinte o bispo de Oxford, Roberto
Kilwardby proibiu que se ensinasse as teses tomistas da geração, da passividade da
matéria, da introdução de novas formas no corpo humano após a morte e a unidade da
forma humana. Estas condenações foram reafirmadas em 1284 pelo sucessor de Kilwadby
John Peckham. Isto foi somente o prelúdio das disputas que opuseram os seguidores de
Tomás e Boaventura e depois de Tomás e Scotus . Há uma queda da capacidade de reflexão
e na produção teológica, imersa em inúteis discussões ou se contentado em comentar
autores que se tornavam clássicos. A tentativa de conciliação entre fé e razão intentada
por Tomás não teve continuadores. Scotus tentou uma delimitação do campo das duas
formas de conhecimento, em favor da teologia, mas Ockham expressará a opinião da
completa irredutibilidade de uma à outra e embora ele mesmo não fosse um racionalista, as
77
bem como das relações entre o papa, o concílio e o imperador. Escreveu ainda o Tratactus
de iurisdictione in causis matrimonialibus e o De imperatorum et pontificum potestate.
Relação entre fé (teologia) e razão (filosofia)
Ockham tinha consciência da fragilidade teórica da harmonia entre razão e fé e do
caráter subsidiário da filosofia em relação à teologia. As tentativas de conciliação de
Tomás, Boaventura e Agostinho, a partir de elementos aristotélicos ou agostinianos,
através de construções metafísicas e gnoseológicas pareceram-lhe inúteis e danosas. O
plano do saber racional baseado na clareza e na evidência lógica e o plano da doutrina
teológica, orientados pela moral e pela revelação são essencialmente assimétricos. Não são
somente distintos, mas separados. A filosofia não é mais serva da teologia, pois esta não
pode ser considerada ciência, mas sim um complexo de proposições que se vinculam não por
uma coerência racional, mas pela força de coesão da fé. O mistério da Santíssima Trindade,
por exemplo, não tem como ser demonstrado ou explicitado racionalmente. A razão não está
em condições de fornecer suporte para a fé, porque não consegue tornar o dado revelado
mais claro do que pode fazê-lo a fé. As verdades de fé são um dom gratuito de Deus e não
é honesto tentar revestir de logicidade racional verdades que transcendem a esfera de
compreensão humana. A razão tem uma função diferente do domínio da fé.
Para fundamentar esta tese Ockham apela para um princípio teológico: a onipotência
de Deus é ilimitada e o mundo é obra contingente de sua liberdade criadora. Assim sendo
não há um vínculo entre Deus onipotente e a multiplicidade dos indivíduos singulares e
finitos, a não ser pelo ato de sua atividade criadora, algo não passível de ser conhecido por
nós, mas somente por sua sabedoria infinita. Assim a proposição metafísica das Idéias
criadoras de Deus (Agostinho) ou das formas universais (Tomás) subsistindo no Intelecto
Divino e servindo de modelo ou intermediário para as criaturas individuais não passavam de
resquícios de paganismo. A metafísica do ser, de Tomás e Scotus, que permitiam uma
analogia e uma continuidade entre a onipotência de Deus e a contingência das criaturas
pertencem a um reino que esta a meio caminho entre a fé e a razão, incapaz de alimentar a
primeira e sustentar a segunda.
O primado do conhecimento do particular
Com a radical separação entre Deus e as criaturas faz com que o mundo para Ockham
seja um conjunto de elementos individuais sem qualquer laço verdadeiro entre si e não
ordenável em termos de natureza ou essência. Neste sentido ele concebe o indivíduo de tal
maneira unitariamente que não admite uma distinção interna entre matéria e forma, pois se
esta fosse real, estaria comprometida a unidade e a existência do indivíduo (a distinção
entre corpo e alma no homem seria, portanto, puramente ideal e não real).
Conseqüência imediata deste princípio é que só é verdadeiro o conhecimento do
individual ou particular. Ao contrário das teses aristotélicas e tomistas, que só achavam
verdadeiro o saber a partir do universal, Ockham coloca como objeto próprio da ciência o
objeto individual. Eliminando o sistema de relações de causas necessárias e ordenadas de
cosmo platônico e aristotélico, faz emergir um universo fragmentário de indivíduos isolados
e contingentes, submetidos tão somente à onipotência divina. Segundo estes princípios,
79
estabelece uma série de relações de exclusiva dimensão lógica. Qual é então a origem do
conhecimento abstrativo? Será ele o conhecimento extraído de muitos objetos individuais?
Ora, se cada realidade singular provoca um conhecimento também singular, a repetição e
muitos atos de conhecimento relativos a coisas semelhantes entre si, geram no intelecto
conceitos que não significam uma coisa singular, mas uma multiplicidade de coisas
semelhantes entre si. Sinais abreviatórios de coisas semelhantes, os universais não
representam mais que a reação do intelecto à presença de realidades semelhantes.
Mas se não existe a natureza comum e nem se pode considerar real o universal, como
fica então a ciência, que segundo tanto aristotélicos como agostinianos, não tem por objeto
o particular, mas o universal? Ockham exclui um sistema de leis universais e uma estrutura
hierárquica e sistemática do universo e não se lamenta disso, pois para ele estas
construções prejudicam muito mais que ajudam o conhecimento. Para ele é suficiente o
conhecimento provável, que baseando-se em repetidas experiências, permite prever que
aquilo que aconteceu no passado tem um alto grau de possibilidade de acontecer no futuro.
Recusando-se a fundamentar a fundamentação da ciência em demonstrações metafísico-
físicas, ele contenta-se com um certo grau de probabilidade derivado da pesquisa, ao
mesmo tempo que concebe o universo como composto de coisas individuais e múltiplas, não
relacionadas por nexos imutáveis e necessários. Note-se que probabilismo não é sinônimo de
indutivismo: não é passagem de um conhecimento particular ao universal, mas passagem de
um conhecimento particular a um conhecimento provável.
A “navalha de Ockham”
Neste contexto de estrita fidelidade ao individual, temos um preceito metodológico
de simples enunciação, mas cheio de conseqüências: “Não se multipliquem os entes se não
for necessário”. Este princípio ficou conhecido como “navalha de Ockham” e se tornou uma
arma crítica contra o platonismo das essências e contra os aspectos do aristotelismo com
resquícios platônicos. Com este princípio, caem por terra os fundamentos da metafísica e
da teoria do conhecimento tradicionais.
Ockham rejeita tanto a metafísica do ser analógico de Tomás de Aquino, como a
metafísica do ser unívoco de Scotus, em nome de um único princípio unitivo entre o infinito
e o finito, constituído pelo ato puro da vontade criadora de Deus, ato este que não é
passível de uma abordagem racional: ele está acima e além da razão. Desaparece também o
conceito de substância. Nós só conhecemos das coisas as qualidades e acidentes que a
experiência nos revela. O conceito de substância representa uma realidade desconhecida,
admitida de modo arbitrário como conhecida. Este conceito milita contra o princípio da
economia da razão. O mesmo pode ser dito do princípio da causa eficiente. Tudo o que é
possível de se conhecer empiricamente é a diversidade entre causa e efeito, que um
fenômeno se sucede ao outro. É possível conhecer-se as leis que regulam os fenômenos, mas
não seu vínculo metafísico e portanto o elo necessário entre causa e efeito. O mesmo
raciocínio vale para a causa final. O princípio de que cada ação tende a um determinado fim,
desejado ou querido só pode ser dito metaforicamente, pois desejo e amor não implica a
81
necessidade de que estes atinjam determinado fim. Por sinal, para a maioria dos fenômenos
é impossível determinar qualquer causa final.
No que se refere à teoria do conhecimento a simplificação é ainda mais radical: no
ácido debate entre averroístas e tomistas, na distinção entre intelecto agente e intelecto
possível, Ockham afirma que esta é uma questão supérflua, optando pela unidade do ato
cognoscitivo e a individualidade do intelecto que o realiza. A necessidade de categorias e
princípios universais, que havia levado à distinção entre intelecto possível e intelecto
agente é considerada artificial e inútil para a efetiva concretização do conhecimento. Se o
conjunto das operações cognoscitivas é único, única deve ser o intelecto que o realiza. Se
nem a memória e nem o conhecimento conceitual nos pode afastar do contato imediato com
o mundo empírico, então todas as entidades intermediárias e mediadoras entre sensível e
inteligível deve ser considerada supérflua. Com isto a distinção de espécies sensíveis e
inteligíveis: elas são inúteis para explicar a percepção dos objetos, pois se o objeto não
fosse por nós captado de modo intuitivo e imediato, a existência ou a distinção de espécies
não poderiam torná-lo conhecido ou conhecido mais perfeitamente. Nada substitui a
simples presença do objeto para o seu conhecimento e reconhecimento.
Resumindo, o princípio da “navalha de Ockham” abre caminho para um tipo de
consideração “econômica” da razão, que tende a excluir do mundo e das ciências entes e
conceitos supérfluos, a começar pelos entes e conceitos metafísicos, que imobilizam a
realidade e a ciência, configurando o que posteriormente será chamado de rejeição de
hipóteses “ad hoc”. Por outro lado tal crítica parte do pressuposto de que não é necessário
admitir nada fora dos indivíduos, bem como que o conhecimento fundamental é o
conhecimento empírico.
A nova lógica
Como fica, com todo este discurso crítico, a lógica, cujas regras devem ser
respeitadas por todo discurso científico? Ockham se propõe então a libertar o nosso
pensamento da confusão entre entidades lingüísticas e entidades reais, entre elementos do
discurso e elemento da realidade. O que ele propõe é que não devemos atribuir aos sinais,
necessários para a comunicação nenhuma outra função que a de representação ou símbolo,
cujo significado está em assinalar ou indicar realidades diversas dela.
Neste sentido ele, antes de falar das proposições, ele fala dos termos que compõe a
proposição e faz a distinção entre termo mental, que é uma invenção ou modificação na
alma, por sua natureza significante ou co-significante de algo, capaz de fazer parte de uma
proposição mental. O termo oral por sua vez é a parte da proposição enunciada pela boca e
perceptível pelo ouvido. Por fim, o termo escrito é a parte de uma proposição fixada sobre
algum corpo, de modo que se deve ou se pode ver com os olhos do corpo. O termo mental é
natural, ao passo que os dois outros são convencionais, visto que mudam de língua para
língua.
Ockham fala ainda de termos categoremáticos: aqueles que têm um significado
definitivo e preciso, como o termo “homem”, que significa todos os homens singulares, o
termo “animal”, que significa todos os animais singulares ou o termo “brancura”, que
82
significa todas as coisas brancas. Por sua vez, são termos sincategoremáticos os termos
como: cada, nenhum, algum, tudo, exceto, somente, enquanto e similares, que não têm um
significado definido e preciso e só ganham sentido quando se ligam aos termos
categoremáticos, fazendo-os significar algo diferente.
Por fim é preciso distinguir os termos absolutos e os termos conotativos. Os
primeiros são aqueles que não significam primariamente alguma coisa e secundariamente
alguma outra coisa, mas sim, com o mesmo nome, significa qualquer coisa, que é significada
toda primariamente; por exemplo, o nome “animal”, que significa os bois, os asnos e as
ovelhas, não significa um primariamente e outro secundariamente. Já o termo conotativo é
aquele que significa uma coisa primariamente e outra secundariamente, como o termo
“branco”, que significa primariamente o sujeito a que se atribui a cor e, secundariamente, a
brancura possuída pelo sujeito designado.
O uso dos termos conotativos visa indicar as modalidades de certas entidades,
no sentido de que indica diretamente uma coisa e indiretamente outra, conotando
precisamente entre os objetos uma relação que, porém, não se reveste de uma realidade
diferente deles.
Além das propriedades já citadas, os termos também têm propriedades que
derivam do lugar que ocupam na proposição. É a teoria da suposição, que indica o
significado que, de quando em vez, um termo adquire ou revela no contexto de uma
proposição. A suposição, por assim dizer, é o colocar algo no lugar de alguma coisa, de modo
que, quando um termo está no lugar de alguma coisa numa proposição, supõe esta coisa.
Cabe ainda distinguir: a) a suposição pessoal, que se dá quando um termo supõe, por seu
significado, tanto quando esse significado coincide com uma coisa extramental, como
quando coincide com um termo mental ou escrito, como quando se diz: “o homem é um
animal”; neste caso “homem” significa cada homem singular e “animal” um conceito mental;
b) a suposição simples se dá quando um termo supõe por um conceito, mas não é tomado de
modo significativo, como quando se diz: “o homem é uma espécie” em que a palavra homem
supõe a palavra espécie, sem que com isso homem signifique espécie; c) a suposição
material, que é quando um termo não supõe significativamente, mas sim pelo termo oral ou
escrito, quando por exemplo se diz: “homem é um nome”.
Em suma, o mesmo termo pode ter um significado diverso segundo a função com o
qual, na proposição, ele denota algo diferente de si mesmo. Nos casos examinados, o valor
do termo “homem” brota sempre de algo concreto e distinto, que é a materialidade da
palavra, a pessoa dos indivíduos ou a própria realidade psíquica da impressão geral que está
presente na mente de quem pensa o conceito de homem.
Estas observações evidenciam a intenção de Ockham de dar à lógica um estatuto
autônomo e mais rigoroso que o dado por seus antecessores. O que é importante destacar é
a constante negação de qualquer objetividade aos termos, no sentido de que sua função é
sempre a de indicar algo diverso de si mesmo. Trata-se de uma separação radical entre a
lógica e a realidade, entre termos e coisas, entre o plano conceitual e o plano real.
83
O motivo pela qual Ockham prefere este tipo de argumentação parece ser a
seguinte: a realidade da causa conservante é tal no ato em que expressa a potência que faz
ser e não ser, que conserva e não conserva; por isso, a certeza de sua existência está ligada
à existência em ato do mundo, que necessita a cada instante ser mantido no ser.
No entanto, a razão não pode ir além disso e nada se pode afirmar dos atributos
divinos (unidade, infinitude onipotência, providência). As provas apresentadas em favor de
tais atributos são argumentos prováveis, sem alcançar a demonstrabilidade, pois não
conseguem excluir toda dúvida. Não é possível ir além da afirmação da transcendência de
uma causa conservante e eficiente. Isto permite a Ockham escapar da acusação de
agnosticismo, pois, ao propor a causa como transcendente à ordem finita, ela garante as
premissas que tornam possível que tal Absoluto se manifeste à razão humana com meios
próprios, isto é, com a Revelação, da qual e somente por ela, pode-se captar sua verdadeira
fisionomia. Ao criticar as tradicionais “provas” da existência de Deus, Ockham não
pretende desconhecer a existência de Deus, mas sim destacar a fraqueza dos argumentos
humanos.
Se o âmbito da razão humana é assim tão restrito no que se refere a Deus, pode-se
então compreender que o âmbito das verdades conhecidas através da Revelação, a partir do
Deus superiormente bom, a razão humana deve abandonar a mania de argumentar, de
demonstrar ou de explicitar a propósito destas verdades de fé, principalmente porque
estas verdades são de ordem prática e não cognoscitiva e a razão não tem nenhum relevo
neste âmbito. Mesmo as afirmações de ordem especulativa, como “Deus criou o mundo” ou
“Deus é Uno e Trino”. No entanto, estas proposições são de tal natureza que não tem
relação com a prática e são uma forma de saber que ultrapassa a capacidade da razão,
sendo satisfeita pela luminosidade da fé.
Ockham, com suas argumentações, não só derruba o edifício metafísico da teologia,
mas também muitas pretensões da razão. Para ele a função do teólogo não é a de
demonstrar pela razão as verdades aceitas pela fé, mas sim, da altura daquelas verdades,
demonstra a insuficiência da razão. Deste modo Ockham pensa instituir um conceito de
razão mais rigoroso, reduzindo-a aos seus legítimos limites, ao mesmo tempo em que
salvaguarda a especificidade e a alteridade (em relação à razão) das verdades de fé.
Os ditames da fé estão presentes como puros “dados” da Revelação na sua beleza
original, sem os enfeites da razão. A sua aceitação deve-se exclusivamente ao dom da fé. A
fé é o fundamento da vida religiosa, assim como o é da verdade cristã. Enquanto o esforço
da escolástica moveu-se na direção da conciliação entre fé e razão, com mediações e
construções de diversas dimensões, o esforço de Ockham se orienta no sentido de
derrubar tais mediações, apresentando como separados o universo da natureza e o universo
da fé.
O novo método da pesquisa científica
Os cânones de Ockham para a pesquisa científica estão intimamente ligados à nova
lógica e à crítica da cosmologia tradicional. Se o mundo é contingente, criado pela absoluta
liberdade de Deus onipotente, não é lícito partir de pressupostos que o mundo se estrutura
85
estruturais. Daí surgirá a rejeição da “animação” dos céus pelas “inteligências” e a redução
das esferas celestes (as órbitas dos planetas) à natureza material da esfera terrestre.
Com esses acenos ao método e a algumas teses occamistas, fica claro que estamos
diante do epílogo da “ciência” medieval e do prelúdio de uma nova física. A queda do sistema
de causas necessárias e ordenadas, que constituíam a estrutura do universo aristotélico,
bem como a superação da hipostasiação de entidades como o tempo, o espaço, o movimento,
o lugar natural, etc., sobre a qual se baseava grande parte da reflexão medieval, confirmam
que, com Ockham, encerra-se um período e abre-se um novo.
Filosofia política
Ockham foi um dos mais inteligentes intérpretes da decadência, na consciência
coletiva, dos ideais e dos poderes universais encarnados pelas figuras teocráticas: o
imperador e o pontífice. A defesa intransigente do “indivíduo” como única realidade
concreta, a tendência a basear o valor do conhecimento na experiência direta e imediata,
bem como a separação entre o saber racional e a experiência religiosa e portanto entre fé
e razão, não podiam deixar de conduzi-lo à defesa do poder civil em relação ao poder
espiritual e portanto, à exigência de uma transformação profunda da estrutura e espírito
da Igreja. Este projeto atinge os fundamentos da cultura medieval, lançando os
pressupostos do humanismo e do renascimento do século seguinte. Envolvido no conflito
entre o imperador e o papa, Ockham pretende redimensionar o poder do pontífice e
demitificar o caráter sagrado do império, interessando-se mais pelo primeiro que pelo
segundo.
Falando sobre o caráter teocrático do papado, Ockham escreve no “Brevilóquio”: -
Começarei por essa plenitude de poderes, de uma vez que alguns consideram que o papa
recebeu de Cristo tal plenitude de poderes a ponto de ter o direito de dispor de qualquer
coisa, tanto na ordem espiritual como na ordem temporal. A refutação dessa concepção
baseia-se na convicção de que a teoria da plena soberania papal contrasta com o princípio
ordenador da lei evangélica, que, diferentemente da lei mosaica, é a lei da liberdade. Se o
papa houvesse recebido de Cristo tal plenitude de poderes e se comportasse em
consonância com isso, submeteria a si todos os cristãos. Teríamos então uma escravidão
pior que a antiga, porque diria respeito a todos os homens. Trata-se de uma tese não
apenas contrária ao Evangelho, também às exigências fundamentais da convivência humana.
O poder do papa é limitado: o papa é um Ministro, não um Dominador. Deve servir,
não sujeitar. O seu poder é instituído em benefício dos súditos e não para que lhes fosse
retirada aquela liberdade que está na base do ensinamento de Cristo. Tal poder não cabe ao
papa nem ao Concílio, porque ambos são falíveis. É a Igreja, enquanto comunidade livre de
fiéis, que no curso de sua tradição histórica, sanciona as verdades que constituem sua vida
e o seu fundamento. A que seria reduzida a presença do Espírito Santo na comunidade de
fiéis se a função de sancionar leis ou impor verdades coubesse ao papa e ao Concílio? A
teocracia e a aristocracia não têm lugar na Igreja. É preciso abrir espaço para os fiéis,
para todos os fiéis, membros efetivos da Igreja, cuja comunidade é a única à qual cabe a
infalibilidade.
87
É esse o ideal em nome do qual Ockham critica o papado, rico e autoritário, que tende
a subordinar a si a consciência religiosa dos fiéis, em claro contraste com o ideal da Igreja
como comunidade livre, estranha a toda preocupação mundana, na qual a autoridade do papa
deve ser somente a defesa da livre fé dos seus membros. Além de redimensionar o poder
do papa no interior da Igreja, ele faz o mesmo, e com mais ênfase, em suas relações com o
poder temporal. Se a autoridade do papa tem um caráter apenas pastoral e moral, ele não
pode legislar para todo o povo no que se refere ao temporal, âmbito que é da competência
do imperador. Trata-se de duas esferas independentes e autônomas, cada qual soberana no
seu campo. A autoridade imperial não provêm de Deus através do papa. Ela não é sagrada,
não sendo lícito inseri-la em um contexto providencialista e teleológico, como se derivasse
de Deus tendo em vista a instituição da Igreja, que a teria preparado e da qual deveria
depender. O Império Romano nasceu antes da Igreja, sendo legítimo e válido em si mesmo.
Dos romanos o império foi transferido para Carlos Magno e daí à nação franca e germânica.
Assim, as romanos e depois os germânicos, têm o direito da eleição imperial, excluindo-se
toda jurisdição do papado sobre o império. Portanto, o imperador não pode ser considerado
vassalo do papa. A teoria das “duas espadas” só deve ser entendida no sentido de que os
dois poderes devem ser representados por duas pessoas diferentes, independentes uma da
outra.
Com base nisso, pode-se concluir que Ockham pretendia defender o imperador
contra o papa, no sentido de defender seus direitos contra o absolutismo papal, que queria
se erigir em árbitro das consciências religiosas dos fiéis. Mas, mais do que na política
imperial, seu interesse está na vida da Igreja, que ele queria que fosse reformada nas
estruturas e nas orientações. O papa é falível, como o é o Concílio, uma reunião de homens
falíveis. Só é infalível a Igreja enquanto comunidade universal de fiéis, que não pode ser
dissolvida por nenhuma vontade humana, porque segundo a vontade de Cristo, durará até o
fim dos séculos. Para tanto, torna-se necessário, que a Igreja se reforme, na cabeça e nos
membros, retornando à pobreza evangélica, sem ambições terrenas e pretensões
autoritárias. No fundo, trata-se do ideal franciscano, ao qual ele remete, com aquele
elemento polêmico devido ao debate sobre a pobreza, que ele pretendia que fosse radical,
começando pela ordem franciscana e estendendo-se a toda a Igreja.
Pode-se perceber aí a aspiração á reforma, que se acentuaria ainda mais no século
seguinte, até desembocar na reforma protestante. Os gérmens foram lançados, mas seu
florescimento não é um prelúdio ao retorno à unidade medieval, mas sim a afirmação
daquele pluralismo que, primeiro com Wyclif e depois com Lutero, iria se tornar divisão e
dispersão. A época da unidade e harmonia entrou em decadência. A acentuação do indivíduo,
no interior da Igreja, na ordem franciscana, e na sociedade civil, leva ao nascimento do
direito subjetivo e portanto à noção moderna de liberdade individual e de sua autonomia,
tendo por resultado o nascimento da ciência do direito, primeiro eclesiástico e depois civil.
Essas são as conseqüências últimas da tese fundamental da separação entre ciência e fé,
entre a ordem temporal e a ordem espiritual, resultando sobretudo no primado do indivíduo
sobre qualquer universal.
88
Com Ockham a escolástica encontra seu epílogo: no século XIV, depois dele, não
surgiram mais nem grandes personagens, nem novos sistemas. Vêem-se apenas escolas: os
tomistas, os escotistas e os occamistas disputando espaça e polemizando sobre as teses de
seus respectivos mestres. O tomismo e o escotismo representavam a “via antiqua”,
enquanto os occamistas se impõem como a “via moderna”, em seu criticismo em relação com
a tradição escolástica. Apesar das proibições e condenações, tal orientação vai corroendo
lentamente os antigos sistemas e fazendo surgir uma nova visão de mundo. Em 1339 a
leitura de Ockham é proibida em Paris, proibição esta reafirmada em 1340, acompanhada
da condenação de suas principais teses. Apesar disso, o occamismo conquistou terreno nas
principais universidades, com homens dedicados a demonstrar a inconsistência da
cosmologia aristotélica, como Jean Buridan e Nicolau D’Oresme, a mostrar a
inconciliabilidade da fé com a razão, em nome de um conceito de ciência mais rigoroso,
como Nicolau de Autrecourt e por fim, com a defesa de uma reforma radical da Igreja,
como o inglês John Wiclif (1328-1384) e do tcheco Jan Huss (1369-1415).