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HISTÓRIA DA FILOSOFIA MEDIEVAL

Baseado na obra: História da Filosofia Cristã


De Philotheus Boehner e Etienne Gilson

Seminário Maior Arquidiocesano de Brasília


Curso de Filosofia
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Introdução Geral

Conceito de Idade Média


A noção de “filosofia medieval” está intimamente associada à de “filosofia cristã”, já que
todos os sistemas filosóficos deste período estão intimamente ligados à religião cristã.
A filosofia cristã nasce no último período da filosofia antiga e em íntima relação com
ela, exatamente quando, a partir do século I d.C. temos uma revivescência das escolas
antigas, com o epicurismo de Lucrécio, o ceticismo de Sexto Empírico, o estoicismo de
Epicteto e Marco Aurélio e principalmente o platonismo de Plotino. O Império Romano está
no seu auge e escolas filosóficas pululam nas principais cidades do Império. Filósofos
criavam escolas e ganhavam prestígio, poder e dinheiro. Era quase uma obrigação que um
homem de bem e com algumas posses freqüentasse as lições de algum filósofo e estivesse
por dentro das principais correntes da moda.
Este período foi de grande efervescência espiritual. Não só havia muitas escolas
filosóficas, como uma série de novas religiões vindas do oriente aportava também nas
metrópoles e, entre elas, a seita dos galileus, todas fazendo seguidores e despertando a
desconfiança da autoridade romana, embora possa se dizer que de um modo geral, elas
eram muito tolerantes, mesmo com cultos que mesmo hoje consideraríamos aberrantes. Só
quando algum aspecto da segurança do Estado era ameaçado, é que eles tratavam de
reprimir. Assim, o primeiro período da filosofia cristã, conviveu com o último período da
filosofia pagã e sofreu desta uma ampla influência. Não poderia ser diferente, pois da
segunda metade do século II o cristianismo passou a atrair também uma população mais
culta e diferenciada, que trazia certo gosto e capacidade para expressar a sua fé também
com argumentos de origem filosófica. “Omnia veritas naturaliter christiana”: toda verdade
é naturalmente cristã, já diziam os primeiros filósofos cristãos.
Por outro lado, o conceito de Idade Média não é isento de contradições,
principalmente porque ele é tardio, do final do século XVII e trás um implícito preconceito
iluminista, por representar a época em que a religião e de modo particular a Igreja ditavam
o modo de pensar. Alguém como Dante Alighieri, no fim do século XIV não se achava
“medieval”, mas se chamava “moderno”. “Nós, os modernos...” dizia ele, sabendo que sua
época era bem distinta da antigüidade e mesmo reconhecendo a importância desta, não se
achava alguém imerso numa era de superstição e trevas, como de modo quase caricatural o
preconceito iluminista fez transparecer. Já se podemos perceber elementos o que veio a
ser a “modernidade” desde o fim do século XII.
Tradicionalmente se associa o fim da Idade Antiga às invasões dos povos bárbaros a
partir do início do século V, muito embora desde o início do século III eles já viessem
pressionando as fronteiras do império e se instalando de maneira mais ou menos pacífica
em amplas porções do seu território. O fim do Império Romano do Ocidente foi o fim de
uma estrutura política, mas não o fim de todas as instituições romanas. Muitas delas
sobreviveram nas cortes destes reinos bárbaros que surgiram então. São Gregório Magno,
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papa do início do século VII, percebendo isso, procurou integrar estes povos no seio da
Igreja, tanto que enviou missões a vários deles.
A época de Carlos Magno, fim do século VIII, ainda se sentia herdeira da tradição
romana, tanto que ele tenta restaurar algo do antigo império que se desfizera 300 anos
antes, proclamando-se “imperador do Ocidente”. Ele também procurou preservar a antiga
cultura latina, criando as “escolas palatinas” e chamando para sua corte monges ingleses e
irlandeses, das regiões que preservado e cultivado este saber. Nomes pouco conhecidos,
como Alcuíno e Escotus Erígena foram de certo modo, os “salvadores” da cultura européia.
Não se pode negar que entre os séculos X e XI a Europa mergulhou num grande caos,
por conta de uma série de invasões, muito mais destrutivas que aquelas dos séculos V e VI
e que provocaram de fato uma quebra na civilização e uma perda do patrimônio cultural que
vinha sendo conservado de forma razoável nos mosteiros, catedrais e escolas palatinas. Os
“povos do norte”, mais conhecidos como normandos ou Vikings, provocaram tal destruição,
que por volta do ano 1.000, tinha-se a impressão na cristandade ocidental, que se chegara
ao “fim dos tempos”...
Muito lentamente, a partir do século XII iniciou-se o renascimento da vida urbana,
comercial e cultural no ocidente europeu, que atinge seu ápice no século XIII e que se
expressa do ponto de vista artístico nas grandes catedrais góticas, monumentos de fé e de
arte e as obras filosófico-teológicas de Tomás e Boaventura. Pode-se dizer que a
antigüidade foi lentamente morrendo desde o século III e a modernidade por sua vez foi
nascendo a partir do século XII.
A divisão da história que coloca o ano de 476, fim do Império Romano do Ocidente
como início da Idade Média e o ano de 1453, fim do Império Romano do Oriente para o seu
fim, tem hoje para nós, um objetivo essencialmente didático, pois como se disse, elementos
“medievais” encontram-se presentes desde o século III e elementos “modernos” desde o
século XII, como por sua vez, temos elementos “medievais” convivendo com a modernidade
até o início do século XVIII.
Associar-se a Idade Média ao universo do cristianismo e de modo especial à Igreja
Católica não é de todo errado, já que ela é a principal força cultural e política deste
período. Quando o Império romano estava se esfacelando, foi ela a única força e a única
instituição que sobreviveu ao seu fim, ao mesmo tempo com uma mensagem e com pessoal
capaz de manter vivo alguns dos elementos da cultura antiga. O preconceito iluminista
também difundiu a noção de que a Igreja tivesse escondido ou impedido o acesso ao
conhecimento antigo, quando a verdade é completamente outra. Sem o trabalho humilde e
desconhecido dos monges copistas, praticamente todo o saber antigo teria se perdido. Sem
as universidades, criadas pela e com a proteção da autoridade eclesiástica, a partir do
século XII, não teríamos tido o lento renascimento cultural que culminou na Renascença e
na revolução científica do século XVI. Mesmo o Renascimento é um fenômeno que se dá
dentro e a partir do cristianismo, pois quase todos seus representantes trabalhavam com o
apoio e sustento da autoridade eclesiástica e boa parte dos artistas e cientistas eram eles
mesmos clérigos, como por exemplo, Copérnico, Giotto, Fra Angélico, Monteverdi...
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Outro fato: não houve neste período nenhuma outra expressão de pensamento que
não estivesse ligada ao cristianismo? É certo que a divisão da história é algo que diz
respeito ao mundo ocidental e como tal não tem muito a dizer em relação aos povos e
culturas orientais, que tem um desenvolvimento próprio. Ainda que certos elementos do que
hoje se chama de “globalização” já estivessem presentes desde o século XVI, foi só a
partir do final do século XIX e principalmente com a Primeira Guerra Mundial que a história
do mundo inteiro se tornou uma só. Mas voltemos ao nosso tema: houve alguma outra
expressão filosófica fora do âmbito do ocidente cristão neste período medieval? Se
considerarmos a região do Oriente Médio, temos uma grande civilização que se desenvolveu
autônoma e em concorrência com a civilização cristã. Trata-se da civilização islâmica, que
também motivada por razões religiosas, construiu um mundo que se estendeu do norte da
África à fronteira com a Índia e que produziu uma filosofia, também herdeira da
antigüidade e mesclada com a religião. Além da filosofia islâmica, temos notáveis
pensadores de origem judaica, que também influenciados pelo pensamento antigo e pelos
princípios de sua religião, produziram importante especulação filosófica e que serviu de
ponte entre o oriente e o ocidente.
Como teremos a oportunidade de estudar, a filosofia cristã é muito mais do que uma
cristianização do pensamento antigo. Ela foi capaz de despertar e tratar problemas que os
antigos nem sequer tiveram a oportunidade de sonhar. Os elementos que a religião judaico-
cristã carrega foram suficientes para direcionar o pensamento para rumos completamente
novos e preparar alguns dos elementos da modernidade, que mesmo hoje, desligados de sua
matriz, são inegavelmente de origem cristã.
Conceito de filosofia cristã
É cristã toda filosofia que, criada por cristãos convictos, distinguindo entre os
domínios da ciência e da fé, demonstra suas proposições com razões naturais e, não
obstante, vê na Revelação cristã um auxílio valioso e até certo ponto mesmo moralmente
necessário para a razão.
Esta definição por assim dizer perpassa toda a história da filosofia cristã, e pode
ser encontrada mesmo nos recentes documentos do magistério, como em “Fides et Ratio”,
em que se afirma que a Revelação cristã, antes de ser um empecilho para o livre exercício
da razão, é um estímulo, pois é também próprio da razão o reconhecer-se limitada e como
tal, deve estar aberta a outras contribuições que venham ampliar e esclarecer aquilo que a
própria razão procura, sob pena de tornar-se ela mesma uma razão dogmática e
preconceituosa, quando não cética e niilista. Em geral a tradição cristã está disposta a
acolher todas as escolas filosóficas que estejam abertas ao transcendente, desde que isto
não signifique uma negação do patrimônio específico da Revelação ou um sincretismo
anárquico e confuso, alheio tanto á verdadeira religião, como ao bom exercício da razão.
O cristianismo nunca foi hostil à razão nem negou o patrimônio espiritual que o
precedeu, seja no judaísmo, seja na filosofia grega. Ainda que algumas figuras isoladas
tenham expressado tais opiniões, elas nunca foram as prevalentes. Desde Justino até os
dias de hoje, estabeleceu-se um grande esforço de conciliar a razão com a fé. Esta ruptura
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só e verificou do século XVIII em diante, quando certo conceito de razão passou a


trabalhar a autonomia do pensamento como incompatível com a noção de Deus, ou pelo
menos com o Deus da Revelação. Daí em diante predomina posturas ateístas ou relativistas,
que tornaram este diálogo muito difícil, o que não impediu que desde o final do século XIX
escolas filosóficas nascidas em contextos completamente secularizados, tenham
contribuído também para a especulação teológica, como a fenomenologia e o
existencialismo.
Propriedades da filosofia cristã
Trabalha proposições susceptíveis de uma demonstração racional ou natural - o ponto
de partida não deve estar baseado na Revelação, o que não significa que trabalhe
indiferentemente ou em oposição a ela. Deve estar clara a diferença entre a filosofia
cristã e a teologia cristã: esta última trabalha as proposições reveladas por Deus,
enquanto a primeira tratará das questões, reveladas ou não, que contribuem para a
compreensão racional da fé, mas sempre apelando para a razão natural. Assim, haverão
questões principalmente filosóficas e questões essencialmente teológicas.
A filosofia por sua vez contribui para o progresso da teologia, principalmente de
duas maneiras:
a) demonstrando, de modo racional, questões importantes, ou de base, em relação à
teologia, mas que poderiam não estar diretamente relacionadas com a Revelação.
b) contribuindo para a coerência interna, a clareza, a compreensão dos dogmas, isto é, das
verdades de fé não passíveis de demonstração racional, através do aparato teórico que lhe
é próprio. Desta maneira não é a filosofia que “faz” a teologia, mas contribui para que uma
verdade de fé se torne mais clara, evitando-se erros que a maculariam.
A teologia por sua vez, contribui para a filosofia colocando questões fundamentais no
que se refere ao próprio destino da especulação filosófica, como tem acontecido desde sua
origem. Por exemplo: o problema do mal, a origem da vida.
Uma filosofia cristã autêntica deve estar em consonância com as verdades de fé
formuladas pelo Magistério da Igreja. A filosofia cristã, ao contrário do Magistério, não
goza de infalibilidade: a filosofia aspira à verdade, mas não necessariamente a realiza, bem
como uma argumentação pode ser refutada, segundo um novo paradigma. Isto quer dizer
que em muitas ocasiões certas questões foram tratadas por pensadores cristãos com
sinceridade e tidas por eles como verdadeiras e a Igreja, pelo seu Magistério,
posteriormente, decidiram de outra maneira. Santo Tomás acreditava que a alma era
infundida no corpo depois do terceiro mês de gestação. Igualmente acreditava, ao
contrário de santo Agostinho, na influência dos astros sobre a vida dos homens. Santo
Agostinho por sua vez acreditava que todas as coisas já estavam “pré-formadas” na
natureza. Como podemos observar, estas são questões secundárias, corrigidas
posteriormente pelo Magistério ou pelo desenvolvimento científico, que não chegam a
desautorizar o conjunto da obra de tão importantes pensadores cristãos.
Doutrinas filosóficas em contradição com a fé ortodoxa não podem ser
consideradas autenticamente cristãs, embora tais sistemas possam ser considerados de
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inspiração cristã. Entre estes citamos o gnosticismo, que surgiu no século II e o


maniqueísmo, no século IV. Ambos têm elementos cristãos, mas no seu conjunto negam
princípios fundamentais do cristianismo.
- a fé traça à razão certos limites para preservá-la do erro;
- a fé propõe certas metas ao conhecimento: toda filosofia cristã será uma contribuição à
compreensão da própria fé. Fides quaerens intellectum: este é o princípio que norteia toda
a produção filosófica de inspiração cristã. Uma fé que já se possui, mas que se deseja
aprofundar, para penetrar ainda mais profundamente n’Aquele em quem se tem a fé e para
isso apresenta razões para se compreender mais intensamente. Longe do pensador cristão a
atitude de dúvida ou de indiferença. Ele vive num mundo marcado pela presença de Deus e
como tal procura aproximar-se mais desse mistério.
- a filosofia cristã não substitui a fé, pelo contrário, não pode ser autêntica sem ela.
Philosophia ancilla theologiae: este é o segundo princípio da filosofia cristã. Ela “serve” à
teologia, pois o grande problema a ser trabalhado é Deus enquanto tal e Ele é quem
determina a pesquisa. Não se pode ser um filósofo cristão sem ser ao mesmo tempo um
místico. A filosofia cristã nasce de uma relação com Deus, antes que de uma especulação
teórica. A filosofia será a tentativa de expor de modo racional esta relação.
- é a fé que determina o sentido do labor filosófico: ele se torna uma tarefa religiosa.
Homens como Santo Anselmo, São Boaventura, Santo Tomás ou Duns Scotus assumiram a
tarefa da pesquisa e do ensino filosófico como uma tarefa, que era parte de seus deveres
religiosos, em humildade e obediência. Longe deles o orgulho ou a vaidade intelectual. Estão
cônscios do mistério do qual se aproximam e dos limites de sua inteligência para desvendá-
lo. Todos sabem que seu discurso é aproximativo e analógico.
Características da filosofia cristã.
- A Tradição norteia todo labor filosófico: de Justino a nossos dias há uma continuidade,
mesmo que certas proposições sejam reformuladas
– A filosofia cristã faz uma seleção entre seus problemas. Assim, há questões:
- de 1º ordem: a existência de Deus, a imortalidade da alma, a liberdade humana etc.;
- de 2º ordem: o processo do conhecimento, o ato humano;
- essenciais questões relacionadas à essência divina, os tributos de Deus, sua existência
etc.
- subordinadas: questões de natureza lógica e epistemológica, da divisão e estrutura das
ciências;
- não essenciais: questões relativas à filosofia da natureza.
Relação entre a razão e a Revelação:
- o cristianismo não se apresentou como filosofia, mas como religião, cujo cerne é o
anúncio do Kérigma;
- a filosofia parte do homem; a religião parte de Deus, que vem em busca do homem
decaído. O cristianismo é uma religião de Salvação: o homem, marcado pelo pecado,
necessita da graça para salvar-se;
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- o cristianismo precisava de uma postura crítica, seja perante a mitologia, seja perante as
filosofias do império, e para isso era fundamental conhecer e utilizar este instrumental;
- do mesmo modo, seja por razões apologélicas ou catequéticas (contra as heresias), a
filosofia apresentou-se como um instrumental fundamental.
Problemas filosóficos que o cristianismo colocou
- O conceito de Deus (AT): nem Platão, nem Aristóteles chegaram a uma “definição” de
Deus; seja o Uno ou o Demiurgo ou o Motor Móvel, estão longe do Deus pessoal do
cristianismo ou da implicação moral deste Deus;
- A idéia da Criação: o cristianismo, diferentemente dos mitos cosmogônicos, apresenta a
idéia da criação: poucas frases da Bíblia tiveram uma implicação e desenvolvimento
filosófico tão grande como Gn. 1,1: “No princípio Deus criou o céu e a terra”;
- Deus: cria, por livre vontade, o céu a terra, as criaturas espirituais, o homem e toda a
natureza; a criação coloca uma série de problemas, quanto posta à frente à filosofia grega:
- a relação entre a perfeição divina e o ser contingente;
- a eternidade criada X a criação contínua;
- o mundo sempiterno X o mundo criado no tempo.
- o homem: este ser, segundo Gn. 1,26, é criado à imagem e semelhança de Deus. Isto
implica:
- o lugar do homem no mundo e na ordem da criação;
- o homem tem uma natureza espiritual, como Deus e é, eterno, inteligente, segundo as
faculdades da alma que lhe são próprias.
- o “Ser” de Deus – Ex. 3,14: “Eu sou o que sou”. Só Deus efetivamente é. Como tal, isto
implica a pergunta pela natureza íntima de Deus, se ela é cognoscível ou não, dando, assim,
origem a uma teologia positiva ou negativa.
- a unicidade de Deus – a idéia do Deus único não fora alcançada pela filosofia grega: Dt.
6,4 é a afirmação da unicidade e da exclusividade de Deus. Isto passa a fazer parte da
prova da existência de Deus.
- O conceito de Deus (NT) – Deus é amor e seu nome é Pai (I Jo. 4, 7.16). A apresentação
do Deus de Jesus é a revelação de um Deus passional, que se interessa pelo homem e vem
ao seu encontro.
- para este encontro, é necessária a confissão da fraqueza e indigência do homem;
- mesmo que Aristóteles fale do Motor imóvel atraindo os seres a si, este é o amor Eros,
completamente diferente da noção de Cháris, própria do cristianismo.
- a ética do amor ao próximo – é algo próprio e exclusivo do cristianismo, embora já
presente no AT. Nenhuma escola filosófica antiga chegou à ética da caridade: ela implica
um relacionamento completamente novo entre os homens e, portanto, numa nova ética.
A doutrina do Logos
O Logos como Deus e como pessoa, é a mais alta e séria exigência da razão ao
cristianismo. Neste sentido, o prólogo do Evangelho segundo São João revelou-se prenhe de
um amplo material para a exploração filosófica;
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- já Heráclito falava em Logos e Fílon de Alexandria já apresenta o Logos como a idéia


divina do mundo;
- a necessidade de explicitar a doutrina da encarnação do Verbo levou ao desenvolvimento
de conceitos como natureza, pessoa, hipóstase etc.;
- outra questão foi o lugar e a relação das idéias platônicas com o Logos: se Ele é espiritual
e se as idéias “são” no Logos, logo as idéias se ancoram no pensamento de Deus;
- o Logos como luz do mundo, significaria que Ele é a fonte de todo conhecimento; a
iluminação divina é a causa do conhecimento humano.
A sabedoria cristã
- As epístolas de São Paulo são o paradigma da noção cristã de sabedoria, em que a
sabedoria da cruz é contraposta à sabedoria do mundo;
- a sabedoria cristã como ciência da Salvação – não é um saber superior (gnose), mas um
saber histórico e passional, que acontece na humildade da criatura e na iluminação
interior do Espírito Santo;
- a sabedoria cristã pressupõe a razão, já que Deus e a lei moral são naturalmente
cognoscíveis;
A sabedoria cristã propõe um sentido para a história, que da criação à parusia
expressam o plano de Deus em cooperação ou não com o homem. Santo Agostinho (A Cidade
de Deus) é o primeiro “filósofo da história”...
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SÃO JUSTINO DE ROMA (+165)

Vida - A julgar pelo seu nome e o de seus familiares, Justino não é de origem judaica.
Nasceu na Samaria, na antiga cidade de Siquém que se tornara colônia romana com o nome
de Flávia Neápolis, hoje a cidade palestina de Nablus. Não conhecia o hebraico, nem sofreu
influência do ambiente samaritano circundante, nem era circuncidado. Supõe-se o seu
nascimento por volta do ano 100 e sua conversão por volta do ano 132. Ele conta que se
converteu ao cristianismo depois de se desencantar com todas as correntes filosóficas de
então, quando encontrou um ancião à beira-mar que lhe ensina o essencial da fé cristã.
Havia percorrido muitas cidades e adquirido grande cultura. Freqüentara as aulas dos
estóicos, peripatéticos, platônicos e pitagóricos, sem ter resposta a seus anseios de
encontra uma filosofia que fosse digna e certa, até o diálogo com o ancião. Estabeleceu-se
em Roma e ali exerceu a maior parte de sua atividade, tendo aberto uma escola de filosofia
e escrito suas obras. Acusado de ser cristão diante do prefeito de Roma pelo filósofo
cínico Crescente, foi decapitado em 165, junto com seis companheiros, segundo o relato do
martírio que conta com razoável credibilidade.
Obras – Justino é o melhor apologista do século II, embora não seja um exímio escritor;
não chega também a ser original e profundo, mas não se pode negar que esteja a par das
principais correntes filosóficas de então. Não se pode negar sua erudição e profunda
convicção cristã.
Segundo Eusébio de Cesaréia, Justino deixou grande número de obras: um discurso
dirigido ao imperador Antonino Pio (139-160) e ao senado romano, que seria a atual
Apologia; outro discurso sobre a defesa da fé frente à filosofia, chamado “As Refutações”;
outro intitulado “Sobre a monarquia de Deus”; outro “Sobre os salmos”; outro “Sobre a
alma”; um diálogo com os judeus (o atual diálogo com Trifão).
Justino é citado por Irineu como autor de uma obra intitulada “Contra as heresias” e
outra “Contra Marcião”. De todas estas só nos chegou a Apologia e o Diálogo com Trifão.
Justino é o primeiro a tratar das relações entre a filosofia e a fé e pode ser chamado o
“Pai da filosofia cristã”. Sua argumentação tem um pé nas Escrituras outro na filosofia,
sentindo-se segura para caminhar com os dois, iniciando um diálogo que se prolonga até os
dias de hoje.
A Primeira Apologia
Como é dedicada a Antonino Pio (139-160) e fala que Cristo nasceu há cerca de 150
anos, a Apologia pode ser datada em cerca de 155.
Estrutura - a obra tem uma estrutura ternária:
- Os capítulos 1 a 3 formam uma introdução, em que Justino se dirige ao imperador fazendo
a defesa dos cristãos, pois estes estão sendo condenados à morte pelo simples fato de
serem cristãos.
- Os capítulos 4 a 20 são uma crítica à atitude oficial que consiste em condenar os cristãos
sem averiguar a veracidade das acusações. Justino justifica o comportamento cívico dos
cristãos, pois são cidadãos exemplares, em tudo se submetendo às leis exceto no que se
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refere ao culto aos ídolos e aos sacrifícios públicos, pois seu culto é feito ao Deus único e
seu sacrifício é espiritual. Apresenta em detalhes a doutrina cristã, principalmente no que
se refere ao Batismo e à Eucaristia.
- Nos capítulos 18 a 20 trata da imortalidade da alma. A ressurreição do corpo, algo de
difícil aceitação pela mentalidade da época, só é possível pelo poder de Deus.
- Nos capítulos 21 e 22 tenta apresentar as semelhanças entre o cristianismo e o
estoicismo, coisa perigosa, pois com isso pode negar a originalidade da fé cristã.
- Nos capítulos 23 a 29 procura demostrar que a doutrina de Cristo e dos profetas é
anterior a todos os filósofos, o que garantia sua veracidade, pois a antigüidade era sinal de
veracidade.
- Nos capítulos 30 a 53 fala de como os demônios tentaram ao longo da história afastar os
homens da verdade, do culto ao Deus único, pela idolatria. Os cristãos são melhores
cidadãos, pois “dão a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. A César eles
prestam obediência e pagam tributo e a Deus, prestam a adoração. A doutrina cristã é útil
para manter a ordem e a estrutura social, o que atenua seu conteúdo absolutamente
renovador. Para Justino as perseguições são armadilhas dos demônios para descreditar os
cristãos. Neste sentido ele não consegue ultrapassar a mentalidade de sua época, pois
coloca os demônios como instigadores do paganismo antes de Cristo e das heresias depois
de Cristo.
- Os capítulos 61 a 67 são uma belíssima descrição dos mistérios cristãos do Batismo e da
Eucaristia. Justino é o primeiro a chamar o Batismo de “iluminação”.
A Segunda Apologia
Por sua pequena extensão e por não conter uma dedicatória, considera-se que seja
uma continuação ou complemento da primeira e não uma nova obra, mas uma nova série de
argumentos levantados frente a algumas objeções. Sua composição deve situar-se pouco
depois da primeira, por ocasião de uma nova perseguição movida pelo prefeito de Roma
Lólio Úrbico.
Repete os argumentos sobre a unicidade de Deus, da encarnação do Verbo e que os
cristãos são perseguidos por instigação dos demônios. Critica também Crescente, que será
seu delator e os filósofos, com suas doutrinas vãs e sua conduta imoral. Só os cristãos
possuem o Lógos inteiro; os outros o têm por participação.
Este é o ponto mais importante da segunda apologia: a doutrina do Lógos
Spermátikos: tudo o que é bom e verdadeiro na doutrina dos poetas e filósofos se deve à
participação no Lógos seminal, que é a fonte da sabedoria, e como tal pertence aos
cristãos: Toda verdade é essencialmente cristã!
Não foi em São João, mas no estoicismo que Justino aprendeu a doutrina do Lógos
como razão imanente do universo, como sendo a lei suprema que a tudo rege e dá vida. Cada
homem tem o seu lógos particular, como uma participação no Lógos total, pois é animado e
dirigido por Ele. Pelo conhecimento do Cristo-Lógos, os cristãos têm a plenitude da
verdade e da revelação. Ao encarnar-se, o Lógos foi o criador da sua própria humanidade,
não a recebeu extrinsecamente.
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O tema central de Justino é o plano criador e salvífico de Deus (a economia divina)


manifestada plenamente no Cristo-Lógos. Neste plano há lugar para a sabedoria dos
antigos filósofos, pois a razão humana é uma participação no Lógos divino. Em cada homem
há uma “semente de verdade”, resultante da ação fecundadora do Lógos.
Diálogo com Trifão
É a mais antiga controvérsia entre o cristianismo e o judaísmo e o primeiro
documento fora do NT que procura justificar a superioridade da Nova Aliança sobre a
Antiga. Seus argumentos principais são o universalismo do cristianismo e a plena realização
de tudo o que foi profetizado no AT em Cristo. Justino é continuador de Paulo e está na
mesma linha de Inácio de Antioquia e da carta de Barnabé.
Citando exaustivamente o AT, procura justificar a messianidade e a divindade de
Jesus. N’Ele se cumprem as Escrituras e as figuras. Seu método de interpretação é o
alegórico. Esta disputa é entre Justino e o sábio judeu Trifão, que alguns tentam
identificar com o famoso rabino Tarfão e teria se dado por volta do ano 155.
O estilo literário é imperfeito, confuso, lento, repetitivo, com muitas divagações. Na
verdade é mais um monólogo que um diálogo, frente às longas argumentações e citações de
Justino, ainda que no que há de original se mostre correto e ardoroso.
Estrutura e conteúdo do Diálogo:
Os capítulos 1 a 8 são um prólogo e uma introdução onde Justino descreve sua
evolução intelectual. O corpo da obra divide-se em três partes:
- Primeira parte (9 a 47): são uma explicação da compreensão que os cristãos têm do AT,
demonstrando a superação da Antiga Aliança, substituída pela Nova Lei de Cristo. Esta
Aliança é universal, se estende a todos os povos. Trata igualmente da pré-existência de
Cristo e sua identidade com o Lógos que fala no AT aos patriarcas e profetas e que se
encarnou no seio da Virgem Maria.
- Segunda parte (48 a 108): é uma justificação da adoração de Jesus Cristo como Deus.
Este culto não é contrário ao monoteísmo e por ele os ritos judaicos são superados, pois os
judeus adoram em figuras, os cristãos em realidade.
- Terceira parte (109 a 142): Justino demonstra que as nações que crêem no Cristo e
seguem seus mandamentos são o novo Israel, o verdadeiro povo eleito de Deus.
Justino cuida de escolher as passagens do AT que falam da messianidade e divindade
de Jesus, com ênfase nas que falam da rejeição de Israel e da escolha dos gentios.
Outras coisas relevantes do diálogo: a apresentação da natureza sacrificial da
Eucaristia; a oposição entre Maria e Eva no plano da salvação; a diferenciação do Lógos da
“alma do mundo” (doutrina platônica); a crença no milenarismo.
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A ESCOLA DE ALEXANDRIA

Alexandria era a segunda cidade mais populosa do império romano e do ponto de vista
cultural era mesmo superior a Roma. Centro da cultura helenística, extremamente
cosmopolita, com um enorme contingente judaico, possuidora de diversas escolas de
filosofia e lugar de propagação de diversas religiões. Possuía um grande museu, que era ao
mesmo tempo um centro de estudos e a famosa biblioteca, a maior da antigüidade. Neste
ambiente conviviam filósofos, poetas, artistas, artesãos e matemáticos.
Foi neste ambiente que viveu Fílon de Alexandria (13 a.C. – 42 d.C), maior
expressão do judaísmo helenizado. Interpretando a Escritura à luz da filosofia grega, ele
terá uma enorme importância no desenvolvimento da escola exegética cristã de Alexandria.
Apesar de visões de mundo tão diferentes, judeus e gregos foram forçados a uma
convivência, pois os judeus, para ascender socialmente deveriam freqüentar as escolas
gregas. Fílon usará o arsenal exegético da cultura grega para interpretar a Escritura, na
busca de um significado mais profundo, para além da letra, daí surgindo o alegorismo, uma
criação dos estóicos par tentar conciliar a religião politeísta tradicional com os princípios
éticos desta escola filosófica. Fílon passa a usar o alegorismo para explicar os
antropomorfismos presentes no AT e buscando um significado mais profundo para as
práticas rituais judaicas. Seus esforços não parecem ter sido muito aceitos pelos judeus,
mas os cristãos, a partir de Clemente e Orígenes o utilizaram profundamente e lhe deram
grande desenvolvimento.
A Escola de Alexandria – Não sabemos sua origem, mas é atestado que no final do século
II a igreja de Alexandria era ativa, numerosa e vigorosa. Segundo a lenda Marcos
evangelista teria sido seu fundador. O primeiro nome seguro de um bispo nesta cidade é o
de Demétrio, a partir de 189. Nesta mesma época já era também um ninho de gnósticos:
Valentino, Basílides e Carpócrates moraram ou ensinaram lá e seus nomes são mais
conhecidos que o dos cristãos ortodoxos. A gnose era a pretensão de uma revelação
superior, de uma doutrina mais profunda, para além do que aprendiam os fiéis comuns.
Assim, desde os seus primórdios a igreja alexandrina será marcada pelo gnosticismo e terá
um caráter intelectualista e especulativo. O contato entre cristãos ortodoxos e gnósticos
foi constante e se influenciaram mutuamente. Clemente de Alexandria é o principal fruto
deste contato. Ele, juntamente com Panteno parece ter sido os primeiros mestres da
doutrina cristã, num estilo semelhante ao de Justino, e não como “professor de teologia”,
como posteriormente se tornou Orígenes. Não se sustenta mais a tese de que Panteno teria
sido o fundador da escola, Clemente seu discípulo e Orígenes o continuador. Na verdade a
escola exegética de Alexandria é uma criação de Orígenes. O que os três têm em comum
era um determinado modo de comentar a Escritura, segundo o modelo alegórico criado por
Fílon, que se distingue do método utilizado em Antioquia, literal e histórico.
A origem da escola foi quase por acaso: Orígenes, ao iniciá-la, tinha apenas 18 anos e
tinha sido colocado à frente da instrução dos catecúmenos, pois a perseguição havia
eliminado a maior parte dos catequistas. Como ensinava muito bem suas aulas passaram a
ser freqüentadas por judeus e pagãos. Como crescimento do número de alunos, Héracles
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assume a instrução dos catecúmenos e Orígenes se dedica aos mais “adiantados”. A escola
dependia do bispo Demétrio, que desejava estender sua influência sobre todo o Egito. Não
foi a intenção, nem de Clemente nem de Orígenes, criar uma divisão entre cristãos simples
e instruídos, no entanto sua iniciativa deu origem ao helenismo cristão, que será depois
desenvolvido pelos demais padres, principalmente Basílio.

CLEMENTE DE ALEXANDRIA (c. 150 – c.213)

Clemente na verdade fundara uma escola de filosofia cristã, semelhante aquela de


Justino, na qual se propõe a usar o arsenal teórico da cultura pagã para melhor
compreender a Escritura. Ele é extremamente aberto às correntes filosóficas do seu
tempo e seu ecletismo chegou a colocar em risco sua ortodoxia, vendo na filosofia já algo
da verdade proclamada na fé cristã. É alguém aberto ao diálogo com as comunidades
judaicas e pagãs que o circundam. É dele a primeira síntese entre cristianismo e helenismo.
Seu ensino é dirigido a pessoas de elevado nível cultural e era essencialmente oral.
De Panteno, seu antecessor, nada nos chegou. Os escritos de Clemente são
propositadamente difíceis, pois não quer tornar acessível a qualquer um sua doutrina, pois
deve haver um esforço por parte do ouvinte no sentido de adquirir este conhecimento. O
ensino é dirigido aos diferentes níveis de cristãos, mas todos devem se esforçar para
progredir na fé. Todos os homens possuem uma “semente de verdade”, semeada por Deus
no coração de cada um, uma “inteligência comum”, capaz de conduzir o homem a um
conhecimento cada vez maior da verdade eterna. Clemente conheceu o método e a obra de
Fílon, conseguindo uma síntese de elementos judaicos, helenistas e cristãos, com forte
componente gnóstico, mas um gnosticismo ortodoxo, fiel à tradição recebida e expressa
pela Igreja. Seus pressupostos são:
a) Identidade entre o Deus do AT e do NT.
b) Não distinção entre “espirituais” e cristãos comuns: pode-se perfeitamente ser cristão
ser possuir muita cultura.
c) A distinção entre os diversos níveis de cristãos não é por natureza.
d) A visão gnóstica do homem era heterodoxa e estática; Clemente tem uma concepção
dinâmica, pois o cristão é chamado a aprofundar cada vez mais a sua fé.
Vida de Clemente
Nasceu de pais pagãos cerca de 150 em Atenas. Teve excelente formação intelectual
e depois de sua conversão dedicou-se a viajar pela Ásia menor, Síria, Itália meridional e
Egito, até fixar-se em Alexandria em cerca de 180, onde funda sua escola onde passa a
ensinar e escrever livros, principalmente de exegese. Esteve na Capadócia pelo ano 211 e
em Jerusalém. Morre em Alexandria entre 213 e 214.
Obras de Clemente
Suas obras demonstram um esforço de levar o pagão ao cristianismo pelo anúncio do
Lógos. Dele nos chegaram três escritos: Protréptico, O Pedagogo, Stromata.
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- Protréptico ou exortação aos gregos – a obra exorta à conversão e ao aperfeiçoamento


espiritual contínuo na busca do mistério de Deus. A filosofia grega tem um caráter
profético, um primeiro anúncio, que conduz ao Lógos. A verdade chegou aos gregos através
da filosofia, entendida como uma obra da sabedoria de Deus: o papel que a Lei teve para os
judeus, a filosofia teve para os gregos, pois o amor de Deus se estende para além do povo
judeu. A verdade aparece de diversas maneiras e através das grandes obras dos poetas e
filósofos, todos partilham do desejo de vida eterna e de retornar ao mundo divino. No
entanto não é um esforço do conhecimento humano que produz esta ascensão, mas o Verbo,
que coloca esta semente no coração de cada homem. O homem colabora com sua conversão,
na atitude de Ypakon (baixar a cabeça, escutar e obedecer). Este impulso não se baseia na
emotividade, mas na inteligência: é à razão que se comunica o sagrado. No entanto o homem
deve comportar-se com extrema humildade, sem querer ter a pretensão de já haver
compreendido tudo.
- O Pedagogo – o Verbo é o preceptor e médico da alma, que nos conduz nesta vida como
um pedagogo, isto é, o Cristo. O cristão nunca deve se deter no processo do crescimento na
fé. O cristianismo é o verdadeiro conhecimento, o que quer dizer que os ignorantes são os
que se recusam a conhecê-lo.
- Stromata – é uma série de anotações e observações sem muita coerência interna, a moda
de um livro de notas, usando muitas vezes uma linguagem simbólica, com explícita intenção
de esconder seu sentido aos que não são dignos.
Aspectos do pensamento de Clemente
Ao contrário de Irineu, que combate o gnosticismo de fora, como um apologeta,
condenando-o, Clemente assume algumas de suas teses, no intuito de fazer do cristianismo
uma busca de Deus. Clemente quer demonstrar a continuidade entre a filosofia grega e o
cristianismo, pois ambos têm sua origem em Deus. Como Justino, sustenta uma
correspondência entre a filosofia grega e a lei judaica. O cristianismo é verdadeira e plena
filosofia.
Todos os filósofos alcançaram a verdade em certo grau, por inspiração divina.
Portanto, em cada homem há a possibilidade de um “conhecimento natural” de Deus. A
razão é o “sopro divino” concedido por Deus a todos os homens. Como o homem foi criado “à
imagem e semelhança de Deus”, ele se dirige naturalmente ao Lógos, graças à razão. A
inspiração divina foi dada também aos filósofos, pois o mesmo Espírito santo que atuou no
AT, também conduziu homens como Platão e Pitágoras à verdade. Como Justino, Clemente
também defende a tese de que os filósofos “tomaram emprestadas” algumas teses do AT,
visto que Moisés é mais antigo que todos os filósofos. Defende também que alguns anjos
inferiores poderiam ter transmitido aos homens alguns conhecimentos divinos. A verdade
já está semeada no coração humano e este tem um mestre por excelência: o Cristo
histórico. Ele é a verdade plena. Ao mesmo tempo em que a filosofia já é verdade, ela
oferece os meios necessários para o conhecimento mais profundo do texto bíblico através
do método alegórico. A gnose (conhecimento) cristã é a realização do homem em todas as
suas dimensões: a vida e as palavras formam um todo em sua referência ao Verbo Divino. O
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cristão caminha na verdade, de glória em glória. Três são as idéias fundamentais que
conduzem o cristão nesse itinerário:
a) A teoria – na época de Clemente os cristãos eram criticados pelos intelectuais por
aceitar de modo não crítico tudo o que se diz na Sagrada Escritura, sem buscar uma
explicação racional e também pelos gnósticos, que se vangloriavam de possuir um
conhecimento superior, dado somente a eles, os espirituais. Clemente não se propõe a fazer
uma crítica racional da fé, mas defende que a fé é um esforço, um impulso dinâmico que
conduz o cristão a aprofundar os seus conhecimentos e isso só é possível porque o cristão
vive convicto de possuir a verdade. A fé é muito mais do que conclusões de uma
demonstração: é um impulso de aperfeiçoamento.
b) O cumprimento dos mandamentos – o cristão cresce também numa prática de vida.
Neste sentido Clemente retira da Escritura uma série de conselhos para estabelecer o
modo de vida cristão em seus aspectos práticos: o comer, o beber, o vestir-se, etc. O que
conduz clemente neste intento é a noção estóica da apathéia, ou seja, a serenidade, que
por sua vez leva à ataraxía, entendida como impassibilidade e de autarchéia, ou domínio de
si. Para o cristão a apathéia tem o sentido de amor e dom de si a Deus e aos irmãos. O
cristão realiza em sua vida prática aquilo que contempla como teoria.
c) O ideal gnóstico do amor – todo cristão está chamado a ser um catequista, um mestre e
médico por obediência ao Verbo. Clemente descreve esta busca de Deus como theósis:
deificação, divinização. A theósis não é um estado final ao qual se chega, mas um processo
que se alcança pela leitura da Escritura segundo o método alegórico em sua interpretação
espiritual, indo muito além da letra. Este método culmina na contemplação, visão da
majestade de Cristo e mergulho no abismo do Pai, num conhecimento não do que é Deus,
mas daquilo que Ele não é. Deus em si mesmo é inacessível, indizível, ultrapassa toda figura,
nome ou noção. O verdadeiro conhecimento é uma contemplação perpétua, superior à
simples fé, superando as paixões pela serenidade. O gnóstico cristão é um amigo de Deus,
contempla-O na medida em que Ele se deixa contemplar. A verdade é abismo insondável do
Pai e nesta busca é o amor que impulsiona o gnóstico, amor que é fruto da contemplação e
da serenidade, em que o martírio é a máxima expressão.

ORÍGENES (185 – 255)

Nasceu em 185 de pais cristãos. Seu pai, Leônidas, morreu mártir na perseguição de
Sétimo Severo, quando Orígenes tinha 17 anos. Este fato o marcará profundamente.
Orígenes cresceu na Igreja e permaneceu sempre unido à sua estrutura. Aos 18 anos foi
escolhido pelo bispo Demétrio de Alexandria para dirigir a instrução dos catecúmenos. Não
é possível estabelecer se foi discípulo de Clemente. Percebe-se também em Orígenes forte
influência gnóstica, ainda que mais discreta que em Clemente. Segundo a biografia de
Orígenes escrita por Eusébio de Cesaréia, ele teria recebido sua formação clássica e
religiosa do pai. O fato de ter-se tornado mestre dos catecúmenos tão jovem se deve a que
a perseguição tinha eliminado boa parte dos catequistas, além do fato de possuir inegável
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cultura religiosa. Ele aceita o cargo, mesmo sabendo o risco que corria, mas durante toda a
sua vida manteve o desejo de morrer mártir. Sua fama logo se espalhou e passam a chamá-
lo em diversos lugares para participar de instruções e controvérsias teológicas. No entanto
ele e seu bispo se indispõem e ele se muda para Cesaréia da Palestina, onde foi muito bem
recebido pelo bispo Teocsisto e por Alexandre de Jerusalém. Orígenes começou a pregar
na Igreja, o que não era permitido, pois não era sacerdote. Este fato desagradou ainda
mais Demétrio, que o chama de volta. Foi então ordenado sacerdote pelos bispos de
Cesaréia e Jerusalém, sem o consentimento de Demétrio. Dois concílios regionais no Egito
vão proibir Orígenes de ensinar em Alexandria, o consideraram indigno do ministério
sacerdotal e acabou excomungado. Estas decisões foram ratificadas pela Igreja de Roma,
mas não pelas da Palestina e Síria. Demétrio era muito cioso de seu poder e queria manter
toda a comunidade cristã do Egito sob seu controle e Orígenes lhe pareceu uma ameaça.
Por sua vez a fama e o prestígio de Orígenes levava a que agisse sem se importar muito com
questões hierárquicas, apesar de ser muito fiel à doutrina da Igreja. Depois de sua
condenação estabeleceu-se de vez em Cesaréia, esperando sua reabilitação. Passados
alguns meses morre Demétrio e é eleito Héracles, que fora seu companheiro, mas este
mantém a condenação. Esta foi muito mais disciplinar que doutrinal, não tendo sido acusado
de heresia. Em Cesaréia abre uma nova escola e funda uma biblioteca, a mais famosa da
antigüidade cristã, bem como um “curso de estudos” da Sagrada Escritura. No entanto, o
lugar onde mais fielmente se conservou o pensamento de Orígenes foi exatamente
Alexandria, embora logo sua influência se faça sentir por toda a cristandade. Com ele o
cristianismo adquire uma visão realmente universal, pois integra a cultura grega ao
cristianismo, respondendo ao filósofo pagão Celso, que acusava os cristãos de ser gente
sem cultura. Na perseguição de Décio (250) já idoso, Orígenes foi preso e sofreu muitas
humilhações, mas não chegaram a tirar-lhe a vida. Nesta ocasião o bispo Dionísio de
Alexandria o reconcilia com sua Igreja mãe. Morre aos 69 anos quando Galo era imperador.
Aspectos da teologia de Orígenes
A teologia de Orígenes ainda não faz afirmações dogmáticas. Antes de afirmar ou
definir está a buscar e antes de ser teólogo ele é comentador da Escritura. Toda sua
teologia está em função desta primeira preocupação, não se encerrando dentro de um
sistema definido deixando as hipóteses em aberto. Sua interpretação teológica tem três
momentos:
a) Aprofunda a tradição.
b) Propõe soluções.
c) Procura harmonizar as passagens bíblicas difíceis ou contraditórias e às vezes com mais
de uma solução (por exemplo: qual era a situação da criatura humana no paraíso? Tinha ou
não um corpo?).
Obras de Orígenes
Dividem-se anotações, homilias e comentários.
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As anotações – são breves explicações de certas passagens da Escritura, de textos difíceis


e/ou interessantes. Pouco deste material nos chegou e por via indireta, em escritores
posteriores que os copilaram na forma de “catenas”
As homilias – são as pregações de Orígenes em Cesaréia. Chegou a comentar quase todos os
livros da Escritura. Muitos nos chegaram somente em latim, via Jerônimo ou Rufino.
Comentários – são os mais bem elaborados. Chegaram em grego os comentários de João e
Mateus e em latim o comentário do Cântico dos cânticos e à Carta aos romanos. Perderam-
se os comentários ao Gênesis, que tiveram muita influência nos padres posteriores,
principalmente por sua antropologia, Cristologia e doutrina trinitária.
A exegese de Orígenes
Sua primeira preocupação foi filológica. Colecionou a famosa Hexapla, que continha a
versão hebraica e as versões gregas vigentes da Escritura colocando-as em paralelo, o que
permitiu uma ampla crítica textual. Ao mesmo tempo em que pesquisava a exatidão do
texto, ele o interpreta alegoricamente, pois os judeus, vivendo em contato com os cristãos
insistiam na leitura literal e na prática das prescrições da Lei. Por outro lado os gnósticos
recusavam-se a considerar o AT, para eles obra do Demiurgo, o deus inferior criador da
matéria, e não do Deus desconhecido e transcendente revelado por Jesus Cristo. Para
Orígenes judeus e gnósticos erram por aferrar-se ao sentido literal da Escritura. Dois
problemas colocavam-se à exegese cristã:
a) os cristãos combatiam os mitos pagãos, mas ao mesmo tempo não se sentiam à vontade
com os mitos e antropomorfismos presentes na Escritura.
b) o problema da Lei: era importante separar o que estava e o que não estava superado do
AT depois da vinda de Cristo. Os discípulos de Marcião tiveram uma atitude radical:
aboliram completamente o AT e expurgaram do NT tudo que achavam que estava
contaminado por judaísmo. Cabia aos cristãos manter o AT e dar-lhe uma interpretação
compreensível aos contemporâneos sem com isso ter que se judaizar, sem rejeitá-lo
completamente como fizeram os gnósticos. Daí então o alegorismo, que resolvia os dois
problemas.
Tipos de interpretação alegórica
1 – Interpretação tipológica – acontece todas as vezes que personagens do AT se
apresentam com características de personagens do NT. Os personagens do AT são
tipos/figuras de personagens do NT. Isto permite uma interpretação completamente cristã
dos fatos do AT e compreender-se que ele é preparação para o NT, em personagens e em
símbolos.
2 – Interpretação escatológica – certas passagens são projetadas para o “fim dos tempos”.
O Evangelho, por exemplo, é um “Evangelho eterno”.
Interpretação alegórica propriamente dita
Tal interpretação é anterior a Orígenes e já está presente em Paulo, bem como em
Hipólito de Roma, que foi contemporâneo dele, de forma que ele não é um inovador, mas
alguém que desenvolve e aprofunda o método. Isto não quer dizer que desprezasse o
sentido literal. Este deve sempre ser buscado, tanto que procura encontrar o texto o mais
18

exato possível, ao dedicar-se ao estudo da filologia e da gramática do texto bíblico.


Orígenes recupera a Bíblia para a Igreja, como livro seu.
a) A interpretação literal – com a Hexapla Orígenes procurava responder aos ataques dos
doutores judeus que não aceitavam a Tradução dos Setenta. Faziam parte da Hexapla: o
original hebraico, a transliteração do hebraico para o grego, as traduções gregas de Áquila,
Símaco, Teodósio e dos Setenta. Esta obra, que não teve outra cópia, foi guardada na
biblioteca de Cesaréia. Eusébio e Jerônimo chegaram a conhecê-la. Foi destruída pelos
árabes no século VII. Podemos dizer que com Orígenes começa o estudo científico da
Escritura. Ele é o pai da exegese cristã. Para Orígenes o sentido literal é como se fosse o
“corpo” da Escritura. Cabe então procurar-lhe a “alma”. Cristo, ao levar à plenitude a
Revelação, sendo ao mesmo tempo seu sujeito e objeto, quem revela e o que é revelado, é a
chave de interpretação. O corpo humano que Ele assumiu na Encarnação é a letra da
Escritura, que guarda o Lógos Divino. No livro VII do “De Principiis” está a tese
fundamental da exegese de Orígenes: assim como o homem é formado por corpo, alma e
espírito, o mesmo pode ser dito da Escritura, que deus estabeleceu para a salvação dos
homens. Assim cada parte do homem pode receber algo da Escritura e encontrar o que lhe
corresponde no texto bíblico:
- Ao corpo corresponde o sentido literal, que serve para instruir os cristãos comuns, os
simples ou incipientes.
- à alma corresponde o sentido moral que é útil aos que progridem.
- ao espírito corresponde o sentido espiritual, que é acessível aos perfeitos.
O sentido literal tem um valor propedêutico que orienta o cristão para os demais sentidos.
b) A interpretação moral - também chamada psíquica, pode ser caracterizada como uma
interpretação alegórica elementar e consiste em retirar da Escritura normas de tipo
prático e moral para a vida. Por meio desta interpretação se torna possível à alma
estabelecer uma relação pessoal com Cristo.
c) A interpretação espiritual – é o nível mais profundo, acessível só a alguns, os espirituais
ou perfeitos. Ela assume um sentido tipológico em relação ao AT como também ao NT,
sempre fazendo uma referência à vida atual da Igreja. Para Orígenes a única maneira de
progredir na vida cristã é o estudo da Escritura. Este sentido espiritual deve ser a meta a
ser alcançada em toda leitura bíblica. Enquanto o sentido literal pode causar confusão e
mesmo escândalo, o sentido espiritual permite a superação de todas as dificuldades.
Toda vez que na Escritura aparece um trecho que no sentido literal parece
completamente inverossímil, para Orígenes ele foi colocado ali para despertar a atenção
para o sentido espiritual. Não resta dúvida que muitas vezes ele exagera, reduzindo ao
absurdo o sentido literal, com prejuízo para a reta interpretação ainda que sempre se
ressalte a dependência do sentido espiritual do literal. Para evitar arbitrariedades e
subjetivismos, cabe destacar que: a) para se chegar ao sentido alegórico deve-se partir do
sentido literal, pois se trata de um mesmo universo em dois níveis; b) interpreta-se a
Escritura com a Escritura, no sentido de um texto não só se relaciona com outro, mas o
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explica. Para explicar uma determinada passagem, elenca cinco ou dez passagens
relacionadas, para destacar melhoro sentido de uma palavra por exemplo.
Frente a este processo, poder-se-ia perguntar a Orígenes por que o autor bíblico não
deixa logo explícito o sentido espiritual? Ele diz que assim foi feito para que o sentido
fosse encontrado com empenho e esforço. Para isso lembra a passagem em que Jesus diz
que “não se deve dar pérolas aos porcos”. A verdade é algo que não deve ser dada a todos.
Destaca também que as palavras divinas têm infinitos significados, os quais podem ser
conhecidos progressivamente num processo de crescimento espiritual. Sendo a Escritura a
revelação do Cristo/Lógos, é impossível circunscrever e esgotar todos os seus sentidos. É o
Lógos que comunica a cada um, segundo a sua capacidade, um significado. Assim acontece
um processo dinâmico, pelo qual, num esforço de crescimento espiritual, penetra-se cada
vez mais profundamente o sentido inesgotável da Palavra Divina. Este conhecimento nunca
termina e se prolonga até a vida eterna.
A Igreja em Orígenes
Orígenes considera a Igreja instrumento indispensável, fundamental para a salvação.
Ele mesmo esteve integrado à organização eclesiástica, primeiro como catequista. Ainda
que algumas de suas posições fossem elitistas, dizia que o mais simples fiel cristão era mais
sábio que o mais sábio dos filósofos gregos. Sua crítica aos incipientes era um estímulo
para que estes progredissem. Orígenes não poupa críticas aos aspectos pouco edificantes
da vida eclesiástica de seu tempo (intrigas, vaidade, simonia), comparando o clero do seu
tempo aos fariseus do Evangelho.
Orígenes ensina que não há só a Igreja fundada pelo Verbo Encarnado, mas também
de uma “Igreja pré-existente”. Este conceito o encontra-se presente nas origens do
cristianismo e na Carta aos efésios: a Igreja dos primogênitos que está no céu. Esta
doutrina era também comum aos gnósticos. Esta Igreja existe desde a origem dos tempos e
da raça humana e mesmo antes da criação do mundo. A Igreja possuía assim uma existência
anterior. Ela existe pela participação dos justos que viveram desde as origens e que
responderam positivamente ao chamado de amor que Deus fez. Assim como a Igreja visível
tem uma organização hierárquica, assim também a Igreja pré-existente. É a Igreja dos
anjos, a Igreja celeste, paralela à Igreja dos homens e terrestre, também com sua
hierarquia. Neste sentido permite-se certa liberdade frente à hierarquia e Igreja
terrestre, não se devendo absolutizá-la e reconhecendo seus limites.
Orígenes viveu na Igreja visível e quis permanecer sempre nela, mas dava muito mais
importância à Igreja invisível, ao mesmo tempo em que não considerava as duas como
realidades justapostas, mas dinâmicas. Participar da igreja terrestre era já participar da
Igreja celeste e esta deve ser a meta de todo cristão. A imperfeição de cada cristão
impede que a Igreja alcance sua perfeição em Cristo.
A mística de Orígenes
Orígenes fala de um contato pessoal da alma com o Lógos. Ele é o primeiro padre a falar da
presença do Cristo no mundo, através de suas missões invisíveis, ou seja, do Lógos que vai
se revelando aos homens ao longo de história. A sua mística procura, na medida do possível,
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tornar o homem semelhante a Deus. Isto Orígenes encontra desde o início da Bíblia, na
criação, quando o homem é feito imagem de Deus. A semelhança ele a adquirirá na parusia.
Aos homens foi concedida uma possibilidade de perfeição, pela dignidade que lhe foi
outorgada na imagem; a semelhança se alcança pelas obras. O homem, pelo pecado perdeu
esta imagem, ou melhor, esta imagem ficou escondida, mas não perdida, pois está impedida
de se manifestar. O homem reencontra esta imagem em Cristo e avança no conhecimento
místico até alcançar a semelhança.
Para Orígenes a realidade terrestre é sombra da realidade celeste. O homem
assemelha-se cada vez mais a Deus cada vez que se distancia da realidade terrestre, do
mundo e da matéria. Sua realidade plena é sua relação com o Lógos. Numa interpretação
alegórica da caminhada dos hebreus no deserto ele encontra quarenta e duas etapas que
são o itinerário do homem em sua libertação plena deste mundo. A mística de Orígenes
ensina que pelo amor se chega à união com Deus, pois é no amor que está a força que anima
e sustenta esta marcha. A contemplação é o fruto do amor à verdade e a mística é o
caminho do homem até a verdade. A matriz de sua mística é intelectualista: um
conhecimento no amor.
O homem deve participar do Espírito Divino, não só através dos carismas, mas
também ao nível do destino pessoal e para isso acontece um progresso do homem pela ação
do Espírito Santo na sua vida terrena. Por sua natureza espiritual o homem já participa do
Espírito Divino, não de modo estático, mas dinâmico, pois este Espírito conduz sua vida num
progredir constante, pela colaboração de seu esforço pessoal, respondendo ao apelo do
conhecimento e da santidade, ao nível do ser e do obrar. O ápice desta evolução espiritual
não se dá na vida terrena, mas na vida sobrenatural, além da morte, quando então se cresce
indefinidamente. O conhecimento representa a integração do homem em sua totalidade, em
que o corpo é elevado e assumido pelo espírito. A santidade é a vitória do homem interior
sobre o homem carnal, com seus desejos e paixões contrários ao plano de Deus. Esta
integração total tem como resultado o homem espiritual ou pneumático. Não se pode
separar o conhecimento da santidade, que se realiza pela participação no Espírito. isto não
é um privilégio de poucos, mas algo acessível a todos os fiéis.
A perfeição cristã se exprime numa prática e numa teoria. A prática é o exercício da
ascese, que leva ao triunfo do espírito sobre a carne. A teoria é o conhecimento
progressivo que integra o corpo ao espírito no processo de ascensão do homem até Deus.
Quanto mais santo for o homem, mais se acerca ao mistério de Deus, conhecimento que não
é só intelectual, mas também moral. Este itinerário espiritual compreende três etapas: os
iniciantes, os iniciados e os perfeitos, cada um com sua respectiva via: purgativa, iluminativa
e unitiva, que ocorrem em paralelo com as três abordagens da Escritura já descritas, pois a
Escritura é o caminho por excelência para se chegar até Deus. Este caminhar é a passagem
da letra ao Espírito, da sombra à realidade, da figura à verdade. Estes termos não se
opõem, mas apontam para um desenvolvimento e progresso interior em que a fé se torna
conhecimento, pois o conhecimento é a fé consumada.
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Assim se distingue uma fé inicial de uma fé carismática e esta passagem da fé


simples ao conhecimento perfeito todos os cristãos devem empreender, pois o Pai quer
adoradores em Espírito e verdade. Cristo é o ”caminho” para os iniciados e a “verdade” para
os perfeitos. O Cristo segundo a carne permite a contemplação das coisas visíveis, enquanto
o Cristo segundo a sua divindade permite que nos elevemos às coisas invisíveis, até chegar à
“sabedoria escondida no Mistério” que falava Paulo. Sob o Cristo crucificado e humilhado
deve-se buscar a beleza do Cristo glorioso. O campo de batalha deste processo de
crescimento entre a carne e o espírito é o interior mesmo do homem. Esta luta deve se
expressar no fervor espiritual manifestado nas obras, das quais a mais importante é a
sagacidade do espírito em interpretar a Sagrada Escritura. Esta prática nos torna filhos
de Deus e nos afasta de satanás. A força que mantêm o cristão na luta é a caridade. Ela
robustece o espírito para que ele vença a carne. Ela é a fonte de todo crescimento na fé e
no conhecimento. Este caminho não é conhecido de antemão nem é previsto e se faz no meio
das contradições e lutas interiores. A cada instante somos chamados a morrer na carne
para que o espírito se expanda. Este é o sentido que se deve dar à palavra “mortificação”.
A mortificação é o processo pelo qual se morre para a carne, as inclinações ao pecado
e se estabelece a vitória do espírito, sinal da vida nova em Cristo, até alcançar-se a
serenidade, a liberdade dos filhos de Deus. O resultado deste itinerário é o homem
espiritual, que não se fixa mais na letra da Escritura e que ordena sua vida moral ao amor à
perfeição da Lei, na gratuidade de Deus. O homem pneumático experimenta cada vez mais a
serenidade no amor a Deus e aos irmãos, perdendo-se na linguagem do silêncio de Deus.
Doutrina trinitária
Ao caracterizar o Pai, o Filho e o Espírito Santo como hierarquia, Orígenes revela
mais influências platônicas do que em qualquer outro ponto do seu sistema, como
demonstram estas afirmações suas: “Deus Pai, que tudo abrange, chega a cada um dos
seres, fazendo-os participar do seu ser e fazendo-os ser o que são. O Filho é inferior ao
Pai, alcançando apenas as criaturas racionais; com efeito, Ele é o segundo depois do Pai.
Ainda inferior é o Espírito Santo, que só chega aos santos. Por isso o poder do Pai é maior
do que do Filho e o do Espírito Santo; por sua vez o poder do Espírito Santo é superior em
relação a todos os outros seres santos. Por isso, considero que a ação do Pai e do Filho se
dirija tanto aos santos como aos pecadores, aos homens dotados de razão e aos animais
privados da palavra, bem como aos seres que não tem alma e, em geral, a todos os seres. Já
a ação do Espírito Santo não pode dirigir-se em absoluto a seres sem alma ou àqueles que,
embora animados, são privados da palavra e nem mesmo àqueles que são dotados de razão,
mas estão sob o poder do mal, não se voltando absolutamente para o bem”. Deve-se
observar que o “subordinacionismo” de Orígenes foi exagerado por seus adversários, que
dele tiraram conclusões indevidas. É bom destacar que Orígenes traça esta hierarquia, mas,
ao mesmo tempo, ressalta a identidade de natureza, substância ou essência entre o Pai e o
Filho. Ademais, o que é fundamental, afasta-se de modo bastante claro do neoplatonismo,
colocando entre o Deus-Trindade e as outras criaturas uma separação ontológica através
do conceito da “criação do nada”, de modo que o esquema metafísico segundo o qual a
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realidade é criada revela-se completamente diferente do esquema das processões


neoplatônicas, pois para Orígenes a criação já estava, desde toda a eternidade, contida nas
Idéias do Verbo. O Lógos, Filho unigênito de Deus, segunda Pessoa da Trindade, é a
“Sabedoria de Deus substancialmente existente” e nesta sabedoria existente estavam
contidas as formas ou idéias de todas as futuras criaturas. As idéias platônicas assim
tornam-se a sabedoria de Deus.
Doutrina da criação
A doutrina da criação de Orígenes é bastante complexa. Primeiro Deus criou os seres
racionais, livres e iguais entre si e criou-os à sua própria imagem. Porém a natureza finita
das criaturas e a sua liberdade deram origem a uma diversidade nos seus comportamentos.
Algumas permaneceram unidas a Deus, outras se afastaram, pecando, por causa de um
esfriamento do amor a Deus.. Assim nasceu a distinção entre anjos, homens e demônios,
conforme tenham permanecido fiéis a Deus, tenham se afastado numa certa medida ou se
afastado muito de Deus. O corpo e o mundo corpóreo nasceram como conseqüência do
pecado. Deus revestiu de corpos as almas que se afastaram parcialmente dele. Mas o corpo
não é algo negativo, como era para os platônicos e os gnósticos, mas o meio e instrumento
de expiação e purificação. A alma preexistia ao corpo. A diversidade dos homens e de suas
condições remonta à diversidade de comportamentos na sua vida anterior: maior ou menor
afastamento de Deus.
Uma doutrina de Orígenes que ele toma de empréstimo dos estóicos é aquela segundo
a qual o mundo deve ser entendido como uma série de mundos, não contemporâneos, mas
subseqüentes um ao outro. Isto se relaciona à sua concepção segundo a qual, no fim, todos
os espíritos se purificarão resgatados de suas culpas. Mas para isso acontecer, é
necessário que eles sofram uma longa, gradual e progressiva expiação e correção, passando
por muitas encarnações em mundos sucessivos.
Portanto, para Orígenes, o fim será exatamente igual ao princípio, isto é, tudo deverá
ser como Deus havia criado: a apocatástasis, ou reconstituição de todos os seres em seu
estado original: a bondade de Deus, por obra de Cristo, chamará todas as criaturas a um
único fim e este será igual ao início de todas as coisas. Isto não acontecerá em um só
momento, mas lenta e gradualmente, através de infinitos séculos: uns se apressarão e
alcançarão a meta mais rapidamente, outros ficarão muito para trás. Nesse processo,
porém, deve-se destacar que para as criaturas individualmente, pode se verificar tanto um
progresso como um retrocesso, ou seja, tanto uma passagem de demônio a homem ou a anjo,
como, ao contrário, a passagem inversa antes que todas as criaturas retornem ao estado
original. Assim, as almas que pecaram irão, depois da morte, passar por um “fogo
purificador” e pouco a pouco, mas ao mesmo tempo todos os seres racionais, inclusive os
demônios, subirão de grau em grau, até que por fim, ressuscitarão com corpos etéreos.
Cristo encarnou-se uma só vez, neste mundo, de tal modo que sua encarnação é um evento
único e irrepetível.
Orígenes exaltou ao máximo o livre arbítrio das criaturas em todos os níveis da
existência. No estágio final, será o livre arbítrio de cada uma e de todas as criaturas, que
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vencidas pelo amor de Deus, continuará a aderir a Ele, agora de modo definitivo e sem
quedas: a queda foi algo assim “necessário”, para que dela surgisse uma adesão plena, total
e livre de toda criatura a Deus. Conclui-se que Orígenes negava a eternidade do inferno.
As idéias de Orígenes nunca alcançaram unanimidade e embora secularmente
debatidas, ainda hoje encontram, com diferentes enfoques, defensores. Mesmo nunca
tendo sido doutrina oficial da Igreja, algumas delas obtiveram grande difusão. No fim do
século IV, elas passaram ser vistas com grande desconfiança e Santo Epifânio de Salamina
moveu uma verdadeira cruzada contra Orígenes. No século VI vários de seus pontos de
vista foram condenados.

Santo Agostinho de Hipona (354-430)


Pai ou Mestre do ocidente

Sua obra não tem um caráter sintético: ele não produziu um sistema. Sua vida e obra
se dão no contexto após as grandes perseguições, mais imersa nas questões de ordem
doutrinal: Arianismo, Maniqueísmo, Pelagianismo.
Vida - Aurélio Agostinho nasceu em Tagaste na Numídia (atual Argélia). Seu pai chamava-se
Aurélio e tinha um cargo municipal e só bem tarde em sua vida aproximou-se da Igreja e se
batizou antes de morrer em 371. Sua mãe, Mônica era cristã fervorosa. Tiveram outros
filhos, mas Agostinho foi o que recebeu maior atenção e educação, pois desde cedo
demonstrava ser extremamente dotado intelectualmente. Agostinho chegou a inscrever-se
como catecúmeno na juventude, por ocasião de grave doença, mas não perseverou. Fez seus
primeiros estudos em Tagaste e depois Madaura, pois o pai queria-o professor de retórica.
Em 371 foi para Cartago, maior metrópole da África latina, onde levou vida dissoluta,
ligando-se em concubinato com uma mulher, que lhe deu um filho, Adeodato (372-390). Em
373 lê o diálogo Hortencio de Cícero, hoje perdido, uma exortação à busca da sabedoria,
que lhe despertou o desejo do cultivo da filosofia. Pouco depois aderiu, como ouvinte, à
seita dos maniqueus, que lhe parecia uma religião fundada na razão e livre de toda
autoridade e que se gabava de possuir a verdadeira interpretação do cristianismo. Entre
374-375 termina seus estudos e volta para Tagaste, como mestre de retórica, mas Mônica
não aceita em casa o filho herege. Muda-se então para Cartago, onde se dedica ao ensino de
375 a 383. Neste período suas dúvidas em relação às doutrinas dos maniqueus se
acentuaram: sua cosmologia era incompatível com aquilo que aprendera da filosofia, seu
dualismo se revelava cada vez mais absurdo e seu conceito de Deus como ser corpóreo o
enchia de dúvidas. Nesta ocasião encontrou-se com um dos chefes da seita, Fausto de
Mileve, tido como muito sábio, mas que decepcionou Agostinho, pois sua cultura era inferior
à sua. Em 383 muda-se para Roma e continua a freqüentar os ambientes maniqueus, embora
neste momento, por suas contínuas decepções, tendesse para o ceticismo.
No início de 384, Agostinho obteve por recomendação do prefeito pagão de Roma,
Símaco, a cátedra de mestre de retórica em Milão. Para lá se muda acompanhado da mãe,
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do filho e de alguns parentes e amigos. Em Milão suas angústias espirituais e morais se


acentuam. No entanto passa a ouvir com muito gosto as homilias de Ambrósio, que lhe
apresenta a Escritura de um modo completamente novo, pois uma das grandes resistências
de Agostinho ao cristianismo era a pobreza literária da Escritura, bem como a crueza dos
fatos, principalmente do AT. A exegese alegórica desenvolvida por Ambrósio permitiu-lhe
superar os preconceitos que os maniqueus lhe inculcaram. Compreende então que Deus não é
corpóreo, como pregavam os maniqueus, mas puro espírito, bem como a natureza da alma e a
sua liberdade. Ambrósio utilizava conceitos neoplatônicos que pareciam perfeitamente
verossímeis e compatíveis com o cristianismo, bem como refutavam completamente o
maniqueísmo. Em 386 o neoplatônico cristão Mânlio Teodoro faz chegar a Agostinho a
versão latina das obras de Plotino, o que lhe permitiu compreender Deus como ser espiritual
e o mal não como um antideus, mas como ausência do bem. O presbítero Simpliciano lhe
mostrou a compatibilidade do Nous plotiniano com a doutrina do Logos desenvolvida em
João e nos padres gregos. A leitura das epístolas paulinas fizera-no compreender que
somente por graça o homem pode alcançar a união com Deus e não por um esforço
intelectual, como em Plotino.
Ao se acentuar suas dúvidas, Simpliciano conta a Agostinho a história de Mário
Vitorino, senador romano que após muitas lutas interiores aderiu completamente ao
cristianismo, vencendo todas as dúvidas e preconceitos. Lê também a “Vida de Santo
Antão”, bem como a de outros santos monges, o que o impressionou bastante. Neste
momento ocorre o episódio do jardim, quando escuta uma voz de criança que lhe diz: - tolle,
lege! (toma, lê!) quando então, deparando-se com um trecho da epístola aos romanos,
dissipam-se todas as dúvidas. Renuncia a sua cátedra e retira-se para Cassiacum,
propriedade rural de um amigo, para preparar-se para o batismo. Decide então viver em
castidade, bem como renuncia aos bens e às honras de sua cátedra, dedicando-se
inteiramente à investigação da verdade, ou seja, do mistério de Deus.
Na noite de Páscoa de 387 Agostinho foi batizado, juntamente com seu filho e o
amigo Alípio por Santo Ambrósio. Alguns meses depois decide retornar à África, passando
por Roma. Em Óstia, porto de Roma, morre Mônica. Permanece ainda um ano em Roma até
retornar a Tagaste, onde com alguns amigos, vive como monge de 388 a 391. De passagem
por Hipona, onde pensava estabelecerseu mosteiro, sua fama de sabedoria e piedade atrai a
atenção de Valério, bispo de Hipona e do povo, escolhem-no sacerdote em 391, quando, sem
nada suspeitar, entra na igreja, é aclamado pela multidão. A ordenação colocou uma nova
etapa na vida de Agostinho, que se passa a empenhar-se nos estudos bíblicos e teológicos,
bem como com suas obrigações pastorais. Em 395 Valério o faz seu bispo coadjutor. Vindo
este a falecer cinco anos depois, Agostinho o sucede.
Como bispo continua vivendo como monge com seu clero, dedicando-se com todo zelo
ao ministério da pregação e a socorrer as necessidades dos pobres, bem como à atividade
literária, de modo especial as grandes controvérsias que agitavam a Igreja. Até cerca de
400 centralizou sua atenção em combater o maniqueísmo. Os maniqueus opunham ao Deus
único o dualismo dos princípios do Bem e do Mal, o princípio da Luz, onde Deus habita, e o
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princípio das Trevas onde moram Satanás e seus demônios. Nos céus desenvolve-se uma
batalha entre estes dois princípios. O Maniqueísmo era uma retomada de princípios
gnósticos, que reaparecem nas doutrinas de Mani, um persa que misturava elementos do
Zoroastrismo com o cristianismo.
Pouco depois procurou resolver o problema do cisma donatista, que se iniciara em
312, com Donato, bispo rigorista, mediante tratados, pregações e disputas. Ponto
culminante foi a “Disputa de Cartago” em 411, à qual compareceram 286 bispos católicos e
279 donatistas.
Seus últimos vinte anos de vida serão dedicados a combater o pelagianismo. Pelágio,
um monge da Britânia (atual Inglaterra), frente à decadência e relaxamento dos costumes,
prega uma moral rigorista, que ensina que o esforço pessoal e a penitência podem superar a
concupiscência, minimizando o papel da graça. Agostinho já aprendera por experiência que
sem o auxílio de Deus, o homem é impotente.
Em 410 Alarico havia tomado Roma e os pagãos responsabilizaram o avanço do
cristianismo pela decadência do império romano. É então que Agostinho responde com sua
magistral obra, “A Cidade de Deus”, uma verdadeira filosofia cristã da história, escrita ao
longo de 14 anos, bem como o seu tratado “Sobre a Trindade”, que considerava sua melhor
obra teológica. Morreu no cerco de Hipona pelos vândalos em 430.
Agostinho é o maior filósofo dentre os padres da Igreja e o maior teólogo do
Ocidente. Ainda em vida suas obras alcançaram enorme difusão. Sua influência se estende
pelos séculos, na filosofia, na teologia dogmática, na teologia moral, no pensamento social,
nas relações entre o poder político e a Igreja e o direito público. Preparou de certo modo a
passagem para a Idade Média, que será um milênio agostiniano. É o “doutor da graça”. Sua
apreensão da verdade cristã se desenvolveu na esteira da obediência à autoridade
eclesiástica e à tradição recebida.
Obras de caráter filosófico
- Confissões: autobiografia e confissão de suas próprias fraquezas.
- Retratações: faz a relação de suas obras (92).
- Contra os Acadêmicos: refutação ao Ceticismo.
- A Vida Feliz: a verdade e felicidade encontram-se na união com Deus.
- Ordenações: a ordem do mal e a providência divina.
- Solilóquios: o problema do conhecimento.
- A Imortalidade da Alma: obra incompleta, continuação da anterior.
- A Quantidade da Alma: origem, natureza e imutabilidade da alma e sua relação com o
corpo.
- A Música: primeira obra de uma série sobre as artes liberais.
- O Mestre: trata da função da linguagem.
- A Verdadeira Religião: apologia do cristianismo contra os maniqueus.
- O Livre Arbítrio: origem do mal, a liberdade e a razão porque o homem foi criado livre.
- A Trindade: doutrina da trindade e das relações entre fé e razão.
- A Cidade de Deus: obra que de certo modo inaugurou a filosofia da história.
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A História filosófica de Agostinho


Renúncia ao Materialismo
Agostinho imaginava Deus e os anjos como seres corpóreos e ao universo como uma
imensa massa amorfa que Deus penetrava e dava forma. Igualmente outro problema o
atormentava: qual seria a origem do mal, se Deus é sumamente bom?!
Encontrando então a metafísica do neoplatônico Plotino, experimentou forte vivência
mística e principalmente uma explicação do que seria a natureza espiritual.
Compreende que Deus é uma luz incorpórea, universal e espiritual, princípio da
verdade e causa de todas as coisas: Deus só se dá a conhecer a quem se afasta dos
sentidos e das imagens exteriores.
Através dos neoplatônicos, Agostinho aprende a diversidade absoluta entre o Ser
absoluto, isto é Deus, e o ser das criaturas, que têm o ser por participação. Na revelação
do nome de Deus, (Ex. 3,14), encontra-se o eco escriturístico desta doutrina: como só Deus
é plenamente Ser, é mais fácil duvidar da própria existência do que da de Deus.
Também aos platônicos, Agostinho deve a noção de que todas as coisas são boas:
mesmo que elas se corrompam, originalmente foram boas. Assim, o mal não é um ente ou
princípio como acreditava os maniqueus, mas tão somente a privação do bem. Não há o mal
em si. O mal é privação de algo em seu ser, isto é, quando se corrompe. Se todo bem que há
em algo fosse tirado, isto não se tornaria um mal, simplesmente deixaria de existir e
reverteriam ao nada.
Assim Deus cria todas as coisas boas; as cria desiguais para o bem e a harmonia do
universo: o mal, o pecado não é uma substância, mas uma falta, um defeito, uma desordem.
Renúncia ao Ceticismo
Com a leitura dos filósofos, Agostinho conheceu uma astronomia de caráter
mecanicista, isto é, uma explicação racional dos astros e do universo, o que colocava em
xeque a cosmologia absurda dos maniqueus, que via os astros e estrelas como dois
exércitos, do bem e do mal, em conflito. Isto, bem como o encontro com um “mestre” da
seita o desiludiu completamente, visto que este possuía uma erudição bem inferior à sua.
Assim, neste estado da alma, Agostinho estuda os céticos, através de Cícero,
deixando de ter qualquer convicção segura, inclusive sobre a fé cristã, por quem continuou
a se interessar, sem no entanto superar a dúvida de base, da possibilidade do encontro com
a verdade, caindo na suspensão do juízo (“epoché”).
Como chegar a verdade sobre coisas invisíveis? Temos certeza das coisas
matemáticas e de certos dados dos sentidos, mas como ter a certeza da verdade? Foi uma
intuição interior, uma experiência mística, que lhe abriu a porta da superação do ceticismo.
A argumentação cética denuncia o erro dos sentidos, mas não pode atingir quem
busca a verdade no espírito: mesmo que os sentidos se enganem, eles percebem algo (se
nego que percebo o mundo, já não há o que discutir).
Tenho a percepção indubitável da minha existência e do meu pensamento (posso
duvidar do conhecimento e do conteúdo das sensações, mas não de mim como existente).
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Assim a verdade está no sujeito existente, vivente e pensante. Mesmo que eu duvide,
estou vivo, e consciente de que estou vivo, se erro, sei que sou um sujeito que erra e isto é
inegável e fica como verdade inegável.
O ceticismo reduz toda a moral a uma questão de verossimilhança: assim os
criminosos poderiam justificar seu comportamento, dizendo agir por uma certeza provável
e portanto não seriam possíveis de ser condenados. Assim o ceticismo moral é destrutivo
para a convivência humana e a sociedade. Mas foi aprofundando estas dúvidas que ele
chegou à certeza mais importante.
A Prova da existência de Deus
A “prova da existência de Deus” de Santo Agostinho é fruto de sua própria
experiência de Deus, que por toda a sua vida, foi uma busca incessante.
Sua busca se deu tanto pela razão como pelo amor (“passio”): a inquietude da alma o
levou a vôos cada vez mais profundos em direção a este encontro.
Inquientum est cor nostrum, donec requiescat in te”- Confessiones. I 1,1
Não há a dúvida em Agostinho quanto a existência de Deus: nele o fervor se dá no
como buscá-Lo a fim de encontrar o repouso na sua posse definitiva. Mesmo no meio da
angústia da busca, no meio do materialismo ou do ceticismo, nunca Agostinho perdeu a
convicção de que há um Deus: não era este seu problema principal ou pessoal.
A “prova” de Agostinho não é um tratado como em Santo Anselmo ou Santo Tomás,
mas sua exposição está casualmente dentro do “De Libero Arbitrio”.
No diálogo, Evródio pergunta se não teria sido melhor que Deus não nos tivesse
concedido o livre arbítrio, tendo em vista o mau uso que dele fazemos. No entanto alega,
que o livre arbítrio, mesmo que ele fosse um bem, ele é imediatamente demonstrável pela
razão natural.
Passa-se então à busca da demonstração da existência de Deus;
A primeira condição é a boa fé, no sentido de que, aquele que duvida deseje
sinceramente, saber, conhecer a verdade. Pela fé, somos como que levados a aceitar o
testemunho daqueles que conviveram com Jesus e que nos chegaram pelas Escrituras, o que
já é algo, visto que também ao cético devemos perguntar por que creríamos ou não em suas
palavras.
No entanto, a prova se dá pela mesma argumentação que refuta o ceticismo:
* Se existimos, vivemos e se vivemos pensamos: é a partir do sujeito cognoscente, que
duvida é que se principia a prova: o sujeito cognoscente pensante, o que duvida, sabe que
ele mesmo existe.
* Se o sujeito pensa, não pode pensar sem viver, nem viver sem existir: ele sabe que pensa,
que vive e que existe.
* Ora aquilo que inclui certas perfeições sem estar incluído nelas é mais perfeito que estas;
* Aquilo que julga de outras coisas, é mais perfeito que as coisas sujeitas que ao seu
julgamento.
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* Há uma ordem na gradação destes fatos: a pedra existe, mas não vive, o animal existe e
vive, mas não pensa e o homem conhece, e se conhece, vive e existe: o pensar envolve o
existir e o viver, logo é o mais perfeito.
* A ordem do conhecimento sensível: cada sentido apreende algo e produz uma sensação,
mas não é a sensação que produz o conhecimento; há um sentido interior, que reconhece e
forma interiormente o conhecimento – nós sentimos e sabemos que sentimos e isso no nos
vem do exterior, e também os animais possuem esta faculdade.
* Segundo o princípio de que o que julga é superior ao julgado, deve-se supor que a razão é
o que existe de mais elevado no homem.
Mas o que deve julgar a razão? Seria Deus? Mesmo que não seja, seria algo que a
própria razão está sujeita. Ora, acima da razão está a verdade, que julga e modera a razão.
Mas, assim como as minhas percepções são tão somente minhas, e os objetivos que
ela persegue são comuns a todos, será que da razão poder-se-á dizer que há certos objetos
que são comuns a todas as razões particulares?
Os objetos da matemática! Estes são comuns a todas as razões e tal concordância
não deve originar-se nos sentidos: os objetos matemáticos transcendem os sentidos e são
portanto, eternos!
Ora, só procuramos aquilo que de certo modo já conhecemos: se procuramos a
sabedoria (e todos os homens, filósofos ou não a procuram) é porque, de algum modo já
trazemos impressa na mente a idéia da sabedoria, pois, como é possível que todos os
homens buscassem a sabedoria, se ela já não estivesse, previamente presente em seus
espíritos?
Portanto, há certas verdades que são transubjetivas, isto é, encontram-se em todos
os homens, e que são em si imutáveis.
Ora, sabemos que aquilo que julga é superior ao julgado. Essas verdades, comuns a
todos os homens, devem elas julgar ou serem julgadas por nós?
É certo que julgamos em dependência dessas normas interiores: não nos cabe decidir
se 7+3=10 ou se o eterno deve ser preferível ao temporal: isto nos é imposto pela evidência.
Portanto, a razão depara na consciência com algo que lhe é superior, algo que é
absoluto, eterno e imutável; se isto é a verdade última ou não, não importa: o que importa é
que esta realidade última presente à consciência, é que a julga e a domina, é o mais alto que
podemos ir e o mais próximo de uma idéia de Deus.
Agostinho nos torna presente não tanto uma argumentação lógica, mas a certeza de
um dado interior.
A “prova” de Agostinho responde mais ao “o que é Deus” Deus é (a fonte) da
verdade e da sabedoria, pois estás transcendem a razão.
A Doutrina da Iluminação
A teoria do conhecimento agostiniana praticamente coincide com a prova da
existência de Deus.
O conhecimento sensível
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Há uma clara distinção entre o objeto sensível e o conhecimento que temos dele a
sensação já é algo de natureza espiritual; todo objeto sensível por sua vez é algo corporal.
O objeto sensível desperta a sensação, embora ele mesmo seja incapaz da sensação:
é a alma que sofre toda e qualquer sensação.
A sensação é como uma luz interior que capacita o conhecimento.
Como, no entanto, o corpo influencia a alma para que surja nesta a sensação?
Esta união entre o corpo e a alma deve ser tal que a alma produza a sensação sem ser
influenciada pelo corpo.
O processo material (deslocamento de ar por exemplo), provoca uma mudança no
corpo, a alma percebe esta mudança de maneira ativa, produzindo assim a sensação. É a
alma que atua sobre o corpo e como tal, ela reside nos órgãos corpóreos, está como de
sentinela neles.
A alma é sempre ativa, está de prontidão nos órgãos corporais: a sensação é uma
espécie de exploração do corpo pela alma.
Ao som material percebido pelos órgãos do sentido, a alma produz uma sensação de
som, já de natureza espiritual, e que pertence à segunda classe de sons, que se torna então
a sensação de terceiro grau, que já é ato do próprio pensamento.
A memória faz parte do puro pensamento e é ela que permite julgar e identificar
algo, concatenando as sensações, identificando-as e dando-lhes um sentido.
É assim que, interiormente nós encontramos a luz última que permite o próprio
pensamento e que identifica-se com Deus mesmo.
Todo conhecimento assim provém de Deus.
Normalmente, todo conhecimento é um retirar do interior do próprio espírito o que
ali se encontra em estado latente: nós tão somente reagimos a um estímulo, despertando
em nós mesmos o conhecimento.
Assim, para Agostinho nós nunca aprendemos; nós só despertamos o que em nós já
está presente e esta é a função do aprendizado, pois o conhecimento não provém do corpo,
mas a alma não pode dá-lo a si mesma.
Fora da alma há agentes estimuladores que a alma se apropria para produzir a
sensação e a interpreta: é de si mesma que ela tira a substância que aparentemente lhe vem
de fora.
A alma, assim, em vez de reconcentrar-se sobre si mesma, se abrir para o alto, isto
é, para Deus: o pensamento de diferentes pessoas concorda no que há de mais elevado,
porque é a abertura para a sabedoria do que está em Deus mesmo.
Deus é o único mestre da verdade, pois Ele ilumina as almas com as verdades eternas
e imutáveis, que são as mesmas para todos os homens e às quais devemos nos submeter
incondicionalmente.
Nós, que somos seres temporais, contingentes e mutáveis, só podemos conhecer as
verdades eternas, necessárias e imutáveis, porque Ele mesmo os revela a nós por um
contato imediato.
A tais verdades pertencem os objetos ideais da matemática, da estética e da ética.
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Agostinho não é partidário da teoria da reminiscência de Platão: para ele, a


preexistência da alma não explica a maneira pela qual o espírito toma contato com as
verdades eternas, bem como a teoria da reminiscência é inseparável da doutrina da
metempsicose, que para Agostinho é absurda.
Não há em Agostinho uma explicação clara de como a alma racional entra em contato
com as verdades eternas.
As verdades seriam como que impressas na alma (imagem do anel e do selo),
marcando indelevelmente, sem mudar em si e sem obrigar ao que a recebe seguir sua
impressão: as verdades eternas e imutáveis do mundo espiritual tem sede em Deus, que é a
Verdade. Pelo ato consciente da interiorização, a razão toma consciência da presença de
Deus e por esta presença divina, acessível pela recordação, se abre a infinitude de Deus ao
homem.
A busca de Deus
A “prova” agostiniana é um progressivo desprende-se do exterior e um voltar-se
para o interior mesmo da consciência: lá está Deus.
Este ato, porém, implica uma decisão, no sentido de uma ética da busca, da procura
deste conhecido/desconhecido.
Ninguém pode amar aquilo que não conhece: neste sentido, toda busca já é um
encontro; toda pergunta, um princípio de resposta, um saber prévio a respeito do que se
interroga.
Toda procura é também um ato de amor, ao que, de certo modo, já se possui; se
desconhecemos o significado de uma palavra, mas pelo menos ouvimos seu som, suas sílabas,
sabemos o que seja conhecer o sentido. Tudo isto já é um conhecer e o amor ao conhecer
nos leva a procurar o sentido da palavra.
Esta busca não se confunde com a “curiositas”, que é o saber pelo saber, mas um
amor ao saber de que partilham todos os homens.
Assim, ninguém ama o desconhecido: quando buscamos algo, mesmo que confuso,
sabemos o que buscamos; é deste modo que buscamos e amamos o desconhecido no
conhecido e quando o encontramos, dizemos que já o amávamos.
O que busca a alma? Se ela é o que há de mais simples, perfeito e excelente em nós,
é ela que devemos buscar e amar em nós, como já aconselhava Sócrates: conhece-te a ti
mesmo, conhece a tua alma.
Buscar a alma para Agostinho consiste em encontrar e ajuizar o lugar exato que nos
compete no conjunto das coisas: as que devem estar sob o nosso governo e as que devo
sujeitar-me.
A alma pode contemplar em si mesma coisas belas, e até o próprio Deus, mas se as
atribui a si mesma aparta-se de si e cai na soberba.
Se ela cai numa busca incessante, que não já se satisfaz com coisas alguma, lançando-
se sobre as coisas sensíveis, com as quais passa a identificar-se, até achar, como os
materialistas, que até a alma é um corpo.
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A busca da alma é, antes, uma tarefa da vontade e do amor do que do entendimento:


a vontade deve se apartar do sensível e freá-lo para dirigi-se à alma. Nesta busca, a alma
encontra a Deus.
Deus está mais próximo de nós que nós mesmos, assim como nossa alma nos é o mais
próximo. Mas assim como temos dificuldade para nos encontrarmos, temos igualmente,
para encontrar a Deus, pela nossa constante dispersão e falta de recolhimento.
Uma vez despertados de nosso torpor, colocamo-nos numa inquietação, que só se
resolve com o encontro da verdade e, daí à paz, à tranqüilidade e a felicidade.
Mas, como poderíamos amar a verdade e a felicidade se não a conhecêssemos? Ora,
nós já a possuímos pela memória: no íntimo da alma, na memória, ela se abre para Deus e se
torna a causa deste amor.
Deus nos é mais íntimo que o nosso próprio íntimo.
Deus rege a alma sem qualquer intermediário: de todas as criaturas, a alma é a que
mais se achega a Deus.
Deus vive ocultamente na alma, mais próximo de nós que nosso próprio corpo,
exercendo sua ação fecundante sobre a alma, sobre o pensamento.
Deus é a vida da alma. Deus é para a alma o que a alma é para o corpo.
A busca do saber
A busca do saber “produz sabedoria”, mas a sabedoria tem por fim a felicidade e não
o saber pelo saber. Deve haver um saber que produz felicidade.
Assim, Agostinho distingue a sabedoria da ciência, pois esta visa outro fim que não a
felicidade.
Daí Agostinho distinguir duas atitudes do conhecimento: a razão superior e a razão
inferior. Há em nós um homem exterior e um homem interior. O homem exterior constitui-
se no que temos em comum com os animais: a vida, as sensações, as imagens, as
recordações.
O homem interior, enquanto espírito, julga, mede e decide segundo as razões
eternas: é o homem enquanto forma pensante que conhece o mundo interior, e aí ele se
abre às idéias; ao mesmo tempo, deve abrir a mente para as coisas eternas, para delas se
servir e aprendê-las. Num e outro caso, é a mesma razão que atua.
A razão superior e a razão inferior são duas funções ou ofícios da mesma alma. Estes
dois ofícios da alma exigem uma escolha: ao optar pela razão superior transcende-se a si
mesma e tende por aquilo a que ela serve aos seus próprios interesses, para o criado, para o
individual. Se a alma persevera na busca de seus interesses, divorcia-se da razão superior,
e cai na cobiça, raiz de todos os males. Nesta luta para assenhorar-se usa como armo o
próprio corpo, pela percepção das coisas, das imagens, das fantasias; é certo que pode
chegar à ciência, ao saber, mas uma ciência pela ciência.
Se a alma se volta para as razões e leis eternas, imutáveis e necessárias, ela deve
sujeitar-se a estas mesmas leis, renunciando à soberba e cultivando a humildade, que é o
começo da sabedoria: renunciar aos vestígios de Deus, nas criaturas, para buscá-Lo n`Ele
mesmo.
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Assim, a ciência sem a sabedoria, é como uma impureza na alma. Ao mesmo tempo,
não pode haver sabedoria sem ciência: é necessário conhecer, as coisas inferiores, para
poder conformar a vida com as virtudes das coisas superiores.
Entre a sabedoria e a ciência há uma relação harmônica, desde que se viva de acordo
com a vontade de Deus: a primeira é fruto da razão superior, a segunda da inferior. Ambos
devem viver em harmonia, como no matrimônio, homem e mulher constituindo uma só carne.
A ciência é um auxílio indispensável à sabedoria: poucos homens conseguiram alcançar
a sabedoria pura com o olhar da inteligência, e ao alcançá-la, não conseguem demorar-se
ante seu esplendor. É com a ajuda da ciência que o ato místico se torna possível: a razão
inferior recolhe pela experiência, conduz a memória e o espírito reflete sobre seu
conteúdo, para daí elevar-se às idéias eternas.
As ciências propõem um aprendizado e uma hierarquia: o conhecimento da Sagrada
Escritura, das línguas, animais, vegetais e minerais, seu simbolismo místico, a astronomia,
mecânica, história profana e dialética, bem como a filosofia, em particular a platônica:
(simbolismo do despojamento dos egípcios). As ciências se subordinam à unidade da vida
espiritual e ao ideal da sabedoria, em que caridade e razão se confundem para produzir a
felicidade.
A Ordem universal
Deus
A cosmologia agostiniana reage ao dualismo materialista dos maniqueus e ao
imanentismo de Plotino, incompatíveis com a noção cristã de criação.
Deus cria numa hierarquia de perfeição todas as criaturas: o conhecimento das
criaturas não é um fim em si, mas tende ao fim último que é o conhecimento e o amor de
Deus. Todas as criaturas apontam para Deus.
Deus é o sumo ser concebível: aos homens não é possível conhecer sua natureza mais
íntima, mas todos são concordes em afirmar que mesmo que errem a respeito de Deus, nada
há de melhor e mais sublime a ser buscado.
Sabemos que Deus existe, que é a verdade suprema e o fim último, mas não nos é
dado compreendê-lo.
Nenhum dos nomes pelos quais O designamos é capaz de exprimir sua essência: neste
caso, o silêncio é preferível à palavra. O único conhecimento que a alma tem de Deus é o
saber como não o sabe.(este é o princípio da chamada “teologia negativa”)
Todos os nossos conceitos derivam das criaturas, e são aplicáveis ao temporal e
mutável e nenhum deles se aplica propriamente a Deus, embora a Escritura o faça.
Um conhecimento aproximativo de Deus, é possível, se respeitamos as leis do ser e
da razão: o que é certo se dizer a este nível, é que certos conceitos podem ser aplicados a
Deus, embora não se possa chegar ao conceito representativo do que Ele é.
Deus transcende o nosso conhecimento porque Ele transcende o nosso ser: todos os
nossos conceitos apontam para além deles mesmos, para algo que não conseguem exprimir.
A sua incompreensibilidade nos leva a procurá-lo e amá-lo cada vez mais!
As propriedades de Deus
33

Os mais importantes conceitos aplicáveis a Deus são os de “ser”, “é” e “essência”


enquanto plenitude de Ser: nada pode aumentar-lhe a perfeição ou causar-lhe a menor
mudança. Ele existe imutável e simples.
Neste sentido, é que Agostinho interpreta a Revelação de Deus a Moisés, como “Eu
sou aquele que sou”, “Eu sou”.
Todas as determinações e enunciados a respeito de Deus devem exprimir uma mesma
realidade: 12 são os predicados atribuíveis a Deus: eterno, imortal, imperecível, imutável,
vivo, sábio, poderoso, belo, justo, bom, feliz e espírito, todos redutíveis a um só: Ser!
O Criador é a origem de tudo o que existe: as realidades empíricas tendem à
mudança, à degeneração e ao nada; não possuem a maneira mais perfeita de ser, mas
dependem de uma realidade imutável e perfeita.
Deus cria do nada: não da sua substância divina (panteísmo), o mundo não é um
organismo vivo cuja alma seria Deus, nem tão pouco o mundo é feito de algo coexistente a
Deus. Deus cria do nada.
A criação é um ato livre de Deus, a razão deste ato é a bondade de Deus, mas não
como efeito necessário, pois Ele poderia não ter criado o mundo e permanecido bom. A
criação nada acrescenta ou tira de Deus.
Deus, ou seja, Ele não tem nenhuma necessidade do mundo e das criaturas. A
criação é um ato do entendimento e uma revelação as sabedoria de Deus: antes de serem
feitas, as criaturas já existiam ou viviam no intelecto divino, na forma de idéias. As coisas
tem uma dupla existência, uma real, sucessiva à criação e outro ideal, co-eterna ao espírito
de Deus. Estas idéias, chamadas razões, formas ou regras eram/ são os protótipos das
coisas a serem criadas. Ao contrário de Platão, para quem as idéias tem uma existência
separada, as idéias em Agostinho existem no próprio Deus ou no Verbo Divino.
Todos os seres têm suas idéias exemplares na inteligência divina, bem como as idéias
gerais das espécies e gêneros estão no Intelecto de Deus.
Cada indivíduo humano corresponde a uma idéia particular na inteligência Divina.
Todos os seres são bons, porque criados por Deus, mas como Ele os criou do nada, isto
implica uma certa imperfeição intrínseca em todas as coisas.
O Tempo
Para Agostinho, baseado na escritura, e ao contrário de Aristóteles, o mundo teve
um começo e portanto não é e nem pode ser eterno.
Deus existe e é na eternidade e como tal, não comporta qualquer mudança; a criação
do mundo e das criaturas coincide com o início do tempo.
Não se pode falar de um “antes” do tempo ou da criação, ou o que Deus “fazia” antes
da criação, pois estamos sempre nos referindo à nossa realidade, que é intratemporal e
portanto incapaz de compreender o que seja a eternidade.
A existência de Deus “é” na eternidade, que não é um tempo que dura sempre mas o
próprio estado de imutabilidade divina (nada pode ser tirado ou acrescentado). Nós que
vivemos no tempo, somos mutáveis e isto é parte da essência de toda criatura: o tempo
existe tão somente para as criaturas.
34

Dizer que Deus é eterno, significa que Ele transcende (isto é, está acima ou fora) do
tempo. Nós que somos temporais, é nos impossível resolver os problemas das relações entre
o tempo e a eternidade, já que nossa experiência é só do que é temporal.
Não se deve confundir o conceito de tempo eterno (um tempo durando infinitamente)
com o conceito de eternidade: o tempo é sempre uma existência parcelada: no momento
presente, o passado já deixou de existir (já deixou de ser) e o futuro ainda não existe
(ainda não é): assim as três dimensões do tempo reduzem-se ao presente, em cuja
lembrança o passado ainda vive e em expectativa já se vive o futuro; porém o presente
transcorre sem cessar: é próprio do tempo ser composto de instantes indivisíveis, o que é o
oposto da eternidade, que é permanente e imóvel.
O tempo nos será sempre enigmático, pois composto de instantes individuais, eles não
são mais longos ou mais breves. Como então medir o tempo? Pode-se “comparar” o tempo
com o movimento, pois todo movimento se dá no tempo e até na ausência de movimento há
tempo: portanto, o movimento que mede o tempo e o tempo que move o movimento são coisa
diferentes.
Tomando o tempo em si mesmo, só medimos os tempo passados, que já não existem.
No entanto, o tempo é percebido na alma, pois o que deixou de ser continua a existir na
alma, através da memória e o que ainda não é, se vive em expectativa na alma.
A alma é então uma atenção intensa e distensa, que retém o que se escoa e
apreende o que ainda está por vir, e é esta extensão que perdura.

As criaturas
Deus cria a matéria e a forma das coisas conjuntamente: não há matéria destituída
de forma: a pura matéria é impensável: só pode ser determinada em sentido negativo.
A atividade criadora de Deus está entre dois extremos: o ser puramente espiritual
(o anjo) e o ser puramente material (a matéria sem forma).
Deus criou todas as coisas simultaneamente: como então surgem coisas novas?
Agostinho admite que certos seres foram criados já perfeitos e outros foram apenas
“esboçados” e aos primeiros correspondem os anjos, o firmamento, a terra, o mar, o fogo,
os astros e a alma humana; os germes originais dos seres vivos, como os corpos humanos,
foram criados em estado de pré-formação, ainda não desenvolvidos. Estes germes
primordiais são chamados “rationes seminales” ou “causales”, neles os seres vivos já se
encontram projetados.
A terra estaria impregnada destes grãos a germinar: a essência das “rationes” é afim
à umidade e contém uma energia potencial para desenvolver-se. Todos os seres seriam
criados já pré – formados por Deus. Não haveria lugar para uma evolução ou mudança da
espécie (fixismo). Quando muito as espécies poderiam surgir em tempos diferentes.
É Deus que formaria os seres vivos no seio materno: os pais teriam um papel passivo
na geração: é pela ação ininterrupta de Deus que as forças germinativas se desdobrariam.
Tudo o que foi criado, o foi segundo o modelo das idéias eternas existentes no pensamento
35

de Deus(Santo Agostinho desconhecia completamente o processo genérico e reprodutivo


como o conhecemos hoje).
O Homem
O homem é uma unidade substancial de corpo e alma e não somente a alma, embora
esta seja a parte mais excelente. Cabe a alma, como parte superior, governar o corpo; a
alma é de natureza espiritual (os maniqueus afirmavam o contrário).
Como se pode provar a espiritualidade da alma? Ora, ela pode conceber objetos
completamente incorporais, como os elementos matemáticos, daí concluindo-se que a alma
não tem matéria nem é externa (isto é, ocupa lugar no espaço). Além disso, a alma
apercebe-se de modo imediato, por sua atividade cognoscitiva, rememorativa e volitiva, por
estar sempre presente a si mesma. A alma, por ser criatura, não procede de substância
divina, mas também não evoluiu da matéria ou de uma alma animal, bem como a alma não
preexiste ao corpo ou formada de uma substância imaterial produzida no início da criação.
Há quatro possibilidades:
A alma seria transmitida pelos pais – isto dificulta a salvaguarda da personalidade.
A alma seria criada por Deus no momento da união com o corpo – isto dificulta a
explicação do pecado original.
As almas teriam sido criadas no início da criação para serem infundidas nos
respectivos corpos por Deus, por uma intervenção d`Ele.
As almas teriam sido criadas no início da criação e se infundiriam naturalmente nos
corpos, sem intervenção direta de Deus.
Nestes dois últimos casos, fica difícil explicar o porquê da união do corpo e da alma...
Como se prova a imortalidade da alma? Ora, ela é portadora de verdades
imperecíveis e nem mesmo o erro presente nela pode destruí-la: a alma está unida ao
conhecimento divino, refletindo a verdade eterna.
A alma está intimamente unida a Deus e se alimenta d`Ele em sentido metafísico. É
pela união do corpo e da alma que o homem alcança a natureza suprema de Deus.
A alma é única e é ela que confere ao corpo a vida e a beleza interior e exterior. A
alma está toda inteira em cada parte do corpo e pode em cada parte dele comunicar a
totalidade de sua energia. É a alma que comunica ao corpo tudo o não o contrário, pois ela
não pode sofrer nenhuma ação do corpo.
No entanto, o porquê e como se dá a união da alma e do corpo permanece misterioso.
A alma é mediadora entre as idéias divinas e o corpo vivificado pela alma: por sua
natureza espiritual, ela se abre às idéias espirituais, pois o corpo, por sua natureza
material, não pode ter acesso direto a elas.
O corpo só é o que é por esta mediação, pois é a alma que lhe comunica sua forma,
proporção, configuração etc.
A função da alma de fazer o corpo participar da natureza divina se dá segundo sete
graus: desde a função de animação, até a contemplação da divindade.
O Retorno das Criaturas para Deus
36

Todas as coisas que procederam de Deus, são, para as almas amantes da verdade, um
meio de retorno a Ele. Esta ascensão a Deus provém de Plotino.
Este retorno tem um sentido cristão, que é fruto da humildade, e não um esforço
para espiritualizar-se por um ascender pelo conhecimento, como em Plotino. As criaturas
ajudam o homem a conhecer seu lugar na ordem cósmica e a aspirar sempre o encontro com
Deus, visto que todas elas apontam-no e nunca encontra a alma repouso na criatura.
Todas as criaturas trazem impressas os vestígios da Santíssima Trindade: Agostinho
pensa tudo trinitariamente. Somente a alma humana tem o privilégio de ser imagem de
Deus: isto se dá na alma no espírito ou na mente, que é por onde ela se abre para Deus e
d`Ele se torna capaz. Uma imagem da trindade na alma é a tríade mente – conhecimento –
amor; outra é a tríade memória – entendimento – vontade.
A Ordem Moral
Há uma ordem objetiva nas questões morais, a que o entendimento e a vontade
devem aquiescer, isto é, concordar; a vontade deve reconhecê-la e evitar perturbá-la. (Lei
natural). O fim da moralidade é a manutenção desta ordem; o mal consiste na transgressão
culposa desta ordem.
Se esta ordem é perturbada, a justiça divina pode restaurá-la numa ordem superior:
(“ó feliz culpa!”)
Esta identificação do ideal moral com a reta ordem revela influência helenista, pela
noção de proporção, a que também o comportamento moral e social devem enquadrar-se.
Esta ordem é o efeito da vontade divina, como uma lei interna, regendo todas as
coisas.
Assim, as normas da razão e da vontade remontam à mesma fonte, como o que é
válido para as realidades matemáticas. As leis morais, ao contrário das ciências, não
necessitam de prova: somos nós que devemos conformar a elas nossa conduta.
A força motriz para a realização da ordem moral é o amor que atinge seu ápice na
caridade. A força orientadora do amor é a vontade, que culmina na liberdade; a vontade é o
princípio da atividade que identifica o próprio Ser: a alma é antes de tudo, sua vontade.
Os afetos básicos da alma são: o desejo, a alegria, o medo e a tristeza; todas as
afeições da alma consistem na aceitação ou na rejeição pela vontade de algo bom ou mal.
A vontade tem seu “peso” e seu “lugar” próprio, que é o amor: assim o amor é a
própria essência do homem. Por isso ele não encontra repouso enquanto não encontrar o seu
amor isto é, Deus.
No entanto, a vontade de amar pode tender tanto ao bem quanto ao mal, sendo assim,
tudo o que se faz por amor se faz por prazer, mesmo o mal. Na ausência de algo para amar,
ama-se o próprio amor.
O problema moral então se resume na reta escolha das coisas a serem amadas. O
objeto último do nosso querer é Deus.
O que vai nos levar a Deus é o amor a Deus, isto é, a caridade. Ela é um peso interior
que atrai a alma para Deus. O amor com que se ama um ser pessoal é diferente do que ama
as coisas, que está na ordem da nossa própria pessoa.
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Amar o outro é amá-lo como a nós mesmos, o que só é possível no nível da igualdade:
ou os elevamos ao nosso nível ou elevamo-nos ao seu nível. Assim, ama-se mais
perfeitamente a quem não depende ou não precisa de nós, quem já é feliz e a quem nada se
pode dar.
A caridade nunca deixa de gerar seu próprio bem: se nos sacrificássemos totalmente
ao ser amado, a igualdade seria lesada e o amor seria imperfeito.
Há portanto a necessidade de uma reciprocidade: os amantes deve exprimir amor um
pelo outro por meio de sinais.
Entre o amor a Deus e aos homens há um elemento comum: o amor ao Bem e ao Ser.
Deus é sumo bem e o ser por excelência, por isso deve ser amado sobre todas as coisas.
Mas amar a Deus é amar o bem como tal: não há mais uma relação de igualdade; para
amá-Lo verdadeiramente, devemos fazê-lo amando – o mas que a nós mesmos, sem
esperança de retribuição e sem comparação, de modo absoluto e infinito: a medida do
amor a Deus é o amor sem medida.
Amando a Deus acima de tudo, não estamos nos aniquilando, pois o esquecer-se
eqüivaleria a encontrar-se e o perde-se, ao ganhar-se.
Tudo o que se deseja além ou no lugar deste bem supremo só serve para entravar o
amor a este mesmo bem supremo.
A caridade (isto é, o amor a Deus) é o cerne da vida moral: dominada pelo amor (a
Deus) a alma cumpre a verdadeira justiça. Amar, fazer o bem e cumprir a justiça, são
sinônimos.

O Livre Arbítrio
A existência da vontade livre ou livre arbítrio é uma verdade evidente e
incontestável. O problema está no uso desta livre vontade, a vontade; em si é neutra, pois
podemos usa-la para o bem ou para o mal.
Se a vontade opta pelo bem torna-se boa; se opta pelo mal torna-se má; se o nosso
fim é a felicidade, a nossa vontade deve ordenar-se para este fim, deve ser algo que
livremente busco, e que seja meu: a felicidade é sempre pessoal.
A vontade, em vez de procurar o sumo bem, deleita-se egoisticamente no seu próprio
bem. Isto constitui o pecado: quando aspira governa-se por si mesma, quando se ocupa com
o que não é da sua conta ou sucumbe aos aspectos carnais: a soberba, a curiosidade e o
vício.
Prosseguindo assim, o homem passa a merecer a morte, como conseqüência do mau
uso de sua vontade. A vontade, mesmo querendo o bem, está marcada pelo pecado original e
atual e somente libertos destes empecilhos, nossa vontade pode ser verdadeiramente livre.
O homem caiu livremente; mas é incapaz de reeguer-se por sua própria força e sem a graça
de Deus.
Para poder retornar à justiça perfeita, foi necessário o auxílio gratuito de Deus: a
força para praticar o bem procede de Deus; a vontade quer o bem mas, realizá-lo depende
da graça divina. O livre arbítrio cristão é um livre arbítrio libertado: de Deus vem a força
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para fazer o bem, mas é o livre arbítrio que decide fazê-lo. Criatura alguma é auto-
suficiente: tudo procede de Deus, igualmente na ordem moral isto se dá.
A ordem da caridade segundo Santo Agostinho se dá segundo os conceitos “uti” e
“frui” a vida moral consiste em atos individuais e numa posição face às coisas: ou delas
fruímos, ou delas nos utilizamos.
Fruir é afeiçoar-se a algo por amor a ela mesma.
Usar é ao contrário, servir-se de algo para alcançar o objeto que se ama, supondo
que tal objeto seja digno de ser amado, pois um uso ilícito deveria chamar-se excesso ou
abuso.
Deve-se fruir ante de tudo de Deus. Isto implica em colocar certos limites no nosso
amor aos objetos e seres, segundo o seu valor.
A primeira tarefa moral é colocar-nos o verdadeiro valor de cada coisa e
conformarmos nosso amor a esta valoração, o que eleva o homem a ordem do amor, pela
prática da virtude, que é o amor bem ordenado.
Não se deve amar o que não é digno do nosso amor, nem deixar de amar o que se deve
ser amado.
Não se deve amar com um amor maior o que só merece amor menor, nem amar com
amor menor o que merece amor maior; o grau ínfimo do amor é o amor aos bens externos,
inclusive a riqueza. Para Agostinho ela não é um mal! Mau é abuso que dela se faz.
Acima dos bens estão os homens, são nossos semelhantes: amamo-lhe tanto o corpo
como a alma, embora esta seja a parte mais excelente a ser amada.
Porém a alma não é o bem supremo e portanto não deve fluir de si mesma, mas “usar-
se” para chegar a Deus: não se deve interpor-se nada entre Deus e a alma.
A sujeição ao criador nos torna livres em face a todas as criaturas, o cristão que faz
uso de todas as coisas é livre em face a tudo para fruir tão somente de Deus. A verdadeira
observância da lei é a liberdade nascida do amor: cumpre-se a lei por temor e por amor; por
temor, a liberdade permanece na escravidão; com o advento da graça e do amor, a lei passa
a ser aceita e amada por amor a Deus, aderindo o homem à lei por livre e expontânea
vontade. (Teologia da graça).
A ordem social
A ordem social deve ser um prolongamento da ordem moral, pela reta ordem do amor.
A vida moral e a felicidade pressupõem uma vida em sociedade/comunidade o homem que
ama a Deus a todos os seus semelhantes e deseja que todos amem a Deus.
O objetivo de toda sociedade é a paz. A existência das guerras não contradiz este
princípio, pois mesmo o que faz a guerra almeja a paz segundo seus princípios. A paz se
identifica com a ordem ou pelo menos com certa ordem.
Há pois uma paz boa e justa, que é a paz do justo, e uma paz falsa que é a do injusto.
A paz justa é a paz segundo a ordem, que é a disposição que atribui a todas as coisas o
lugar que lhes corresponde: a paz de todas as coisas é a tranqüilidade que nasce da ordem.
A presença da ordem da paz depende de duas coisas: a) não fazer o mal a ninguém; b)
socorrer a todos os que padecem necessidades.
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Os que prestam tais cuidados devem por sua vez ser respeitados e obedecidos pelos
que recebem os cuidados.
O dever de ministrar a ordem se estende ao direito de castigar os que a perturbam.
Ora, o estado deveria se deixar reger pelo amor de Deus, porém não há nenhum estado que
o faça.
Em todo estado pode-se discernir uma dupla comunidade: o estado de Deus e estado
do demônio.
Esta idéia de Santo Agostinho pretende interpretar toda a história religiosa da
humanidade e não se identificam respectivamente com a Igreja e o estado, mas enquanto
comunidades inspiradas em atitudes mentais e morais divergentes.
Santo Agostinho não identifica todos os estados terrenos com o estado do demônio,
pois ele tem plena convicção de que o estado e não é só benéfico como necessário.
Para Santo Agostinho só pode haver verdadeiro estado se houver a justiça que se
revela na adoração de um só Deus.
O povo é o conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de
objetos amados: o que constitui um povo é o amor a um bem comum compartilhado por
todos. Avalia-se a índole de um povo observando o que ele ama.
As coisas temporais podem ser ordenadas a uma paz terrena ou a uma paz eterna ou
divina; o primeiro é o fim de estado terreno e segundo ao estado de Deus. Os que se
associam no amor ao fim terreno formam a cidade do demônio e os que unem pela caridade
formam o estado de Deus.
A cidade terrena baseia-se no amor si levado até o desprezo de Deus; a cidade de
Deus baseia-se no amor de Deus levado até o desprezo de si. Tanto o estado de Deus como
o terreno estabelecem uma ordem espiritual e não material; materialmente ambos se
confundem devido a íntima convivência dos seus cidadãos.
No entanto, cada um visa um fim diferente, os que vivem na fé, buscam e usufruem
dos bens como passageiros ou viajantes, pois esperam os bens eternos que hão de vir. A
cidade terrena, que não vive da fé, também busca a paz, mas dependeram neste intento de
certo consenso das vontades humanas.
A cidade terrena encontra sua perdição na adoração de vários deuses, o que impediu
que os homens tivessem em comum uma mesma fé. Com isso, a cidade de Deus entrou em
conflito com a cidade terrena, que passou a persegui-la. A cidade de Deus, por sua vez, faz
cidadãos de todas as raças e línguas, formando uma cidade peregrina, não se perturbando
com a diversidade de leis e costumes.
A cidade de Deus utiliza para seus fins o que dispõe a cidade terrena, e mesmo tenta
concorrer para uma harmonia da paz terrena e da paz celeste.
Agostinho faz a primeira e grande interpretação filosófica/teológica da história:
tenha-se em mente que para ele a história é antes de tudo a narrada na Escritura.
Agostinho traça um paralelo entre o processo histórico da humanidade e o
crescimento corporal e espiritual do homem: primeira idade = nutrição; segunda idade ou
infância = memória; terceira idade ou adolescência = procriação; quarta idade ou juventude
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= participa, dos ofícios públicos e sujeita-se às leis; quinta idade ou adulta e a sexta idade
ou velhice que com as enfermidades termina na morte = Este é o homem carnal.
O homem espiritual se nutre primeiro da autoridade, depois da razão e avança de
idade e idade até a sétima, que é a vida eterna. Paralelamente, Santo Agostinho interpreta
a história como uma passagem da humanidade da primeira idade, em Adão, até a sexta em
Cristo, aguardando a sétima, que é a glória celeste.
A história é assim a descrição da evolução dos dois estados, com seus conflitos até a
vitória do estado de Deus sobre o estado terreno.
Começa com a queda de Adão e a cisão dos dois estados no seio da humanidade e daí
se segue toda a interpretação da história sagrada, a partir destes paradigmas das duas
cidades. Os dois estados desaparecerão na terra e no céu e a formar-se-á o estado de
Deus na mansão celeste.
A história é um drama que só chegará ao final no fim dos tempos, que embora
encenado pelos homens, tem por autor o próprio Deus, o artista eterno.
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Santo Anselmo da Cantuária (1033-1109)


(Pai da Escolástica)

Com ele se assiste ao nascimento da Escolástica, com a inauguração de novas formas


de especular a verdade cristã, sem negar os padres da Igreja, principalmente na linha de
Agostinho e Boécio.
Começa um período que atinge seu apogeu nos séculos XIII e XIV.
Santo Anselmo está ligado à cosmovisão do mosteiro beneditino: Vida de silêncio,
oração e trabalho ligado à terra (sedentariedade) e que propiciava também o ócio
necessário à pesquisa e ao cuidado com a preservação da cultura em bibliotecas, sem
descuidar das atividades missionárias.
Vida
Nasceu em Aosta, de origem Longobarda em 1033. Aos 27 anos entrou para o
mosteiro de Bec, na Nomandia; Discípulo de Lanfranco, o sucede em 1063 quando este se
torna Abade do mosteiro de Caen.
Entre 1063 e 1073 escreve suas principais obras; em 1073 é feito abade e
empreende várias visitas à Inglaterra. Em 1093 sucede a Lanfranco como arcebispo primaz
da Inglaterra.
Permanece como Arcebispo da Cantuária até a sua morte em 1109 em constante
conflito com o rei (Questão das investiduras).
Obras
1 – Monologium: trata da existência de Deus, dos atributos divinos e da Santíssima
Trindade.
2 – Proslógion: contém o famoso argumento, anselmiano da existência de Deus.
3 – Apologia contra Gaunílio: responde às objeções feitas por Gaunílio à argumentação
contida no Proslógion.
4 – Diálogo sobre a verdade.
5 – Diálogo sobre a vontade.
6 – Diálogo sobre o livre arbítrio.
7 – Diálogo sobre a gramática: trata da semântica e da significação das palavras.
8 – Diálogo sobre a fé trinitária e sobre a Encarnação do Verbo.
Santo Anselmo segue a trilha de Santo Agostinho, na doutrina e no estilo; como o
mestre, não compôs um sistema de doutrinas filosóficas ou teológicas, mas dedicou-se a
alguns problemas de que suas obras são tema.
1 – A relação entre a fé e a razão
A fé para Santo Anselmo, não só é um ato da vontade, mas uma experiência e regra
de vida, e pressuposição para toda a especulação sobre as verdades divinas.
Ele, como Santo Agostinho, coloca a relação entre a fé e razão segundo o versículo
do profeta Isaías (Is. 7,5) “Se não credes, não compreendereis”, acrescentando que
também é necessário compreender (para crer mais profundamente): assim toda a
investigação da verdade se torna uma tarefa sagrada.
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Como as verdades da fé superam em muito o que a razão pode alcançar, não se pode
fazer a fé depender da argumentação racional. Pode-se no entanto ir da fé à inteligência,
isto é, ao esforço para melhor entender a fé.
A fé não suprime a inteligência e a razão, mas a desperta para aprofundar a si
mesma.
Por amor o coração abraça o objeto de fé e o amor desperta o desejo de penetrar o
objeto e apossar-se espiritualmente dele, pela compreensão. Quem, uma vez confirmado na
fé, não procura compreender o que crê, é um negligente.
Também o sentimento de ausência de Deus, estimula, pela fé, a procurá-Lo com as
armas da razão, em meio às trevas, e incertezas presentes.
A razão se torna assim um meio termo, entre a fé pura e o fim último, que é a visão
de Deus face a face: o entendimento é, portanto, sempre meio a não fim e nunca pode
substituir ou suplantar os dados da revelação.
Santo Anselmo, como praticamente todos os escolásticos, não se colocavam a questão
de uma filosofia que prescinda da fé. É certo que certas verdades de fé ele considerava
possíveis de demonstração puramente racional, mas não todas.
É Santo Anselmo que cunha a expressão “Fides Quaerens Intellectum” que é a mote
de toda a especulação Escolástica.
2 – A definição da verdade
A verdade se encontra nos mais diversos domínios:
A verdade dos juízos: quando uma posição ou juízo é verdadeira, significando uma
realidade assim como esta deve significá-la; ou falsa, se este juízo significa uma realidade
“Como não deve” significá-la.
Deve-se no entanto distinguir entre o significado da proposição e sua significação
enquanto aplicada a realidade. Esta última poderá ser verdadeira ou falsa. A primeira, pelo
menos enquanto existir linguagem será sempre verdadeira.
A verdade do pensamento: quando há uma relação de retidão entre o pensamento e a
realidade: quando pensamos algo e a realidade é tal como a pensamos.
A verdade da vontade: quando queremos aquilo que devemos querer e quando não
queremos o que não devemos querer.
A verdade das Essências: quando nos colocamos à procura de algo comum às várias
espécies de verdades, que são as essência existentes no intelecto divino: É a retidão do ser
das coisas que concorda com sua verdade em Deus.
A verdade é portanto uma espécie de retidão, invisível, perceptível só pelo espírito
(definição anselmiana de verdade).
Deus sendo a suma verdade, é por Ele que todas as verdades devem nortear-se. Só
Deus é a que é, e por isso se torna a medida de todas as verdades, ao mesmo tempo que a
sua verdade não se mede por nenhuma outra.
Deus é a causa de todas as verdades e retitudes, sendo sua verdade e retitude
incausada. Esta verdade independe de todas as verdades particulares, ao mesmo tempo que
é sua garantia.
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Neste sentido, Anselmo é “realista” isto é, acredita na existência dos universais:


estes não são meros sons (“flatus voces) mas realidades inteligíveis.
Quatro são as fontes do conceito de verdade: a) a interioridade das essências em
relação aos indivíduos; b) a realidade dos universais; c) a independência da verdade em
relação às coisas das quais predicada; d) a existência da verdade em Deus.
3 – As Provas da existência de Deus
Monologium – meditação metafísica sobre o conteúdo da fé, tentando descobrir à luz da
razão e sem o auxílio da Revelação, tudo que a fé ensina sobre a essência de Deus. Depende
do “De Trinitate” de Santo Agostinho.
Primeira prova:
- Sabemos por experiência que há inúmeros bens, dos quais fruímos.
- Logo a multiplicidade dos bens deve sua bondade à existência de um bem único, que é a
causa e da bondade de todos os outros bens.
- Um tal bem deve ser bom por si mesmo e tudo quanto mais há deve sua bondade a este
bem e não há bem que a iguale e Ele, é o bem supremo.
- Assim como se chega a um ser soberanamente bom se pode chegar a um ser que é grande
em si mesmo, não em tamanho mas em sabedoria
Segunda Prova:
Tudo o que existe, existe em virtude de um só e mesmo ser, pois tudo que existe ou
vem de algo, ou vem do nada. Sabemos que do nada, nada se deriva.
As coisas derivam por sua vez, de um só ou muitos seres? Se de muitos, eles devem
ordenar-se de modo que: 1) um só lhes dê existência, ou 2) existem por si mesmos, ou 3)
derivam a existência um do outro.
Ora, se existem por si mesmos, deve haver uma força ou natureza graças à qual
existem; ora, esta força ou natureza deve ser única, já que todas dela participam: Logo eles
existem em razão desta natureza e não por si mesmos.
Se existem um em dependência do outro, cria-se uma circularidade: não é razoável
que uma coisa possa receber o ser daquilo que dela deriva.
Logo a multiplicidade dos seus existe em função de uma causa única, que existe por si
mesma e que é maior que as coisas que dela recebe existência.
Logo, existe um ser único que possuía existência em grau sumamente elevado e que é
soberanamente bom e grande.
Também as essências das coisas peculiares apontam para uma essência ou natureza
suprema: as várias essências possuem diferentes perfeições que se hierarquizam, logo,
deve haver uma essência ou natureza suprema que excede todas as demais.
Esta natureza ou essência deve ser única: não poderia haver duas iguais ou múltiplos,
pois seriam todas redutíveis a uma única.
Deve haver uma natureza suprema, auto existente, da qual tudo o mais deriva
sua existência e sua natureza. Esta, por ser suprema, deve existir por si mesma e,
por existir por si mesma, deve ser soberanamente boa e sumamente grande.
44

Proslógion – conhecido como “ratio Anselmi” de argumento anselmiano, passou a ser


chamado, depois de Kant, de argumento ontológico.
Tal argumento pretende ser evidente e ponto de partida para toda a teologia.
Para tal, admitimos nossas poucas luzes para penetrar tão grande mistério,
principalmente porque nossa natureza encontra-se obnubilada pelo pecado e necessitamos
de uma graça especial para a inteligência da fé.
Exposição – uma das definições de Deus é o de um ser em comparação ao qual não se pode
conceber outro maior. Esta definição é clara e acessível ao entendimento, embora não seja
evidente a sua existência real, pois uma coisa é a existência no entendimento, outra, sua
existência real.
Ora, um tal ser em comparação ao qual não pode se conceber outro maior não pode
estar apenas no entendimento, ele poderia ser ainda pensado como existindo na realidade, e
existir na realidade é mais do que existir apenas no entendimento.
Logo, se o ser em comparação ao qual não se pode conceber outro maior só existisse
no entendimento, ele seria excedido pelo ser que existiria também na realidade e portanto
não seria o máximo pensável.
Existe, pois, um ser tal que não se pode pensar outro maior, existente não só no
entendimento, mas também na realidade.
De outro modo, o ser em comparação ao qual não se pode pensar outro maior, não
pode ser pensado como não existente.
Mas se o ser em comparação ao qual não se pode pensar outro maior pode ser
pensado como não existente segue-se que o ser que não pode ser pensado como não
existente é maior que o primeiro. Se algo que pode ser pensado como existente, é maior do
que algo que pode ser pensado como não existente, segue-se que o ser que não se pode
pensar outro maior, necessariamente existe.
Há um ser realmente existente, em comparação ao qual não se pode pensar
outro maior e que existe de tal maneira que a sua não existência não pode ser
pensada sem contradição. Este ser é Deus.
A Crítica de Gaunílio
Podemos ter pensamentos de coisas existentes, inexistentes ou impossíveis de
tornarem-se existentes.
Se eu pesar em Deus e compreender o significado da palavra “Deus”, não se segue
que seja impossível pensar que Deus não exista; se com a mera compreensão do que seja
Deus, se chegue à sua existência, não haveria necessidade de provas.
Será realmente que a idéia de Deus está presente ao nosso entendimento? Pois
mesmo que eu tenha uma noção aproximada de um determinado ser, não se segue
necessariamente que ele exista, mesmo que eu compreenda necessariamente o significado
da palavra. Assim há uma distância entre o que possa entender pela palavra de Deus e a
idéia verdadeira de quem seja Deus....
45

Igualmente a palavra “maior” não tem um sentido claro e seria necessário “ver” este
ser maior que todos os outros e enquanto isto não se der, não se pode afirmar a sua
existência.
A Apologia de Anselmo
Anselmo admite, como pede Gaunílio, que não possuímos a representação espiritual da
essência divina, mas não se segue que não possuímos uma idéia a respeito de Deus, pois
podemos claramente compreender o sentido do que se diz: “um ser em comparação ao qual
não existe outro maior” e consequentemente, a sua necessária existência, mesmo que o que
isto signifique em última instância não nos seja acessível.
Ora, o conceito de Deus que Anselmo propõe é o de um ser que possui todas as
perfeições em grau absoluto e portanto, um ser sem começo e sem fim, um ser absoluto e
necessário.
Tudo o que pode ser pensado como não existente, é susceptível de começo e fim e
portanto não é necessário, logo não se pode comparar com um ser do qual não se possa
pensar outro maior.
Ora, o ser que não se pode pensar outro maior é o máximo absoluto precisamente por
não poder não existir. Mesmo que tal noção não esgote o que seja Deus, ela não se aplica a
outro ser que não seja Deus.
Esta idéia não seria inata: nós a temos por experiência: se sabemos o que seja um
bem, não é difícil pensar um bem que seja maior e se sua bondade é tal, não podemos deixar
de pensá-lo como não – existente..... tal bem não pode ter começo nem fim, ao passo que
todos bens tem começo e fim, vem – a - ser e deixam – de – ser ...
A partir da experiência, obtêm-se a idéia de um bem supremo que, sendo
eterno, também deve ser necessário e, como tal, não pode ser pensado como não –
existente.
4 – Relações entre Deus e o Mundo
Deus é um ser necessário, que existe por si mesmo, independentemente de qualquer
causa exterior e sem se haver produzido a si mesmo. Deus existe, ou “é” pura e
simplesmente, Ele é a sua essência e sua essência é ser.
Do fato de Deus ser simplesmente ser, se derivam outras propriedades, tal como sua
inteligibilidade, sua onipotência, sua misericórdia, sua impassibilidade, sua justiça e sua
inacessibilidade.
Deus é a causa do ser de tudo aquilo que existe fora dele. Deus criou a matéria para
formar o mundo do nada e com isto não se quer dizer que o nada seja alguma coisa ou que
Deus a tirasse de si ( com isso o mundo seria consubstancial a Deus) ou existisse desde
sempre (pois assim ela teria a mesma propriedade de Deus, a eternidade). Deus fez o
mundo e antes que o fizesse, nada havia senão Deus.
Mas o mundo não era um nada absoluto antes da criação: ele, como protótipo já
estava presente no intelecto divino, com “ratio facientis”, como pensamento criativo do
Verbo Divino. Assim como há uma palavra interior ao espírito, assim o mundo existia no
intelecto divino, como palavra interior e inarticulada no Espírito de Deus.
46

O pensar de Deus no entanto é igual à essência das próprias coisas, que Ele tira de si
mesmo, e não das coisas (como nós). A locução interior de Deus é idêntica a sua própria
essência.
Os seres criados por Deus e tirados do nada, existem em dependência d`Ele, que é o
conservador do mundo.
Deus cria e conserva as coisas por estar integralmente presente no espaço e no
tempo (onipresença). Deus está em toda parte e em todas as coisas.
Ao mesmo tempo, Deus não é limitado por nenhum espaço e nenhum tempo, pois é
simultaneamente presente em todo espaço e tempo e isso decorre da necessidade de sua
própria existência e da dependência de todas as criaturas d`Ele.
Deus é um ser que existe por si e portanto necessariamente e de maneira alguma
pode ser pensado como não – existente.
47

Pedro Abelardo (1079 – 1142)


e a questão dos universais

Paris centro da vida filosófica e teológica a partir do séc. XII.


A cidade se mostra propícia para o estabelecimento de escolas. Abelardo herda o
gosto pela lógica e o desejo de elucidar os mistérios da fé por vida racional. É ele que
estabelece os limites para a especulação lógica.
Vida: nasceu perto de Nantes, de família nobre. Tudo o levaria à vida militar, mas
renunciou a tudo pela vida de estudos.
Educou-se com Roscelino, da escola nominalista e depois, dirigiu-se a Paris, onde foi
aluno de Guilherme de Champeaux, com quem não demorou a se indispor.
Funda então uma escola em Melun, onde grangeia muitos alunos. O excesso de
trabalho o afasta por vários anos da docência.
Volta a Paris onde novamente se indispõe com Guilherme sobre a questão dos
universais. Este ensinava que uma única e mesma coisa, essencialmente universal encontra-
se ao mesmo tempo nos vários indivíduos da mesma espécie, de sorte que estas não se
distinguem quanto à essência, mas apenas no conjunto dos acidentes.
Abelardo obriga Guilherme a admitir que esta única mesma e única coisa não existe
essencialmente, as só de modo indiferenciado nas coisas individuais.
A vitória fazia crer que Abelardo se tornaria o principal professor de Paris, após
reabrir sua escola em Melun e a retirada de Guilherme. Numa nova disputa, vence a
Guilherme e seu sucessor, tornando-se o titular da cátedra de dialética.
Afasta-se temporariamente de Paris para resolver problemas familiares e ao voltar
passa a ambicionar tornar-se mestre em teologia.
Freqüenta as aulas de Anselmo de Laon, que fora discípulo de Santo Anselmo, mas
logo passa a criticá-lo e a se indispor com ele, quanto aos seus métodos de ensino. Numa
disputa, acaba por suplantar o professor, e assim torna-se mestre de teologia e filosofia.
Envolve-se com a sobrinha de um cônego, Heloísa, e os irmãos desta o castram. O
episódio desmoralizou Abelardo, que se retira para a Abadia de São Dionísio, onde passa a
dedicar-se totalmente à teologia, e onde funda uma escola.
Escreve um livro sobre a Unidade e a Trindade Divina, que obtém grande sucesso,
mas que desperta a inveja de seus adversários, que fazem com que o livro fosse condenado
em 1121. Retirar-se então para um lugarejo nas cercanias de Paris, para onde novamente
afluem numerosos discípulos, o que desperta novamente o ódio dos seus adversários.
Aceita então ser abade de São Gildas, na Bretanha, em 1128. Novamente se indispõe
com os monges que ameaçam matá-lo. Não suportando a situação retorna a Paris em 1136,
onde retoma suas lições de lógica. Nesta ocasião, enfrenta uma disputa com São Bernardo e
em 1141 é novamente condenado pelo concílio de Sens.
Vencido, refugia-se na Abadia de Cluny e depois no Priorado de S. Marcelo, onde
morre em 1142.
48

Obras
- Glosas menores
- Dialética, em três redações sucessivas
- Sobre a Unidade e a Trindade Divina
- Teologia Cristã
- Teologia – refundição do “Sobre a unidade”
- Sic e Non – coletânea de citações dos Santos Padres
- Ética
- História das minhas calamidades
- Correspondência com Heloísa
A questão dos universais
Na obra Isagogué de Porfírio, filósofo neoplatônico do séc. IV, estão três problemas
não solucionados:
* Qual o modo de existência dos universais? Existem eles na realidade, ou apenas no
pensamento?
* Se se admite a sua existência real, serão eles de natureza corporal ou incorporal?
* Estão eles separados das coisas sensíveis ou no interior delas?
* É necessário que exista alguma coisa correspondente à denominação dos gêneros e das
espécies enquanto tais, ou pode o universal continuar a existir graças à significação do
conceito, mesmo se todos os indivíduos assim denominados fossem destruídos?
Resumindo:
Onde se encontram os universais: só nas palavras ou também nas coisas? E isso deu
origem a duas posturas opostas, respectivamente a nominalista e a realista.
1 – O universal não é uma coisa
Guilherme de Champeaux propõe que o universal é uma coisa, uma realidade
essencialmente idêntica na diversidade das coisas. Esta coisa material existiria por si
mesma e constituiria a essência material das coisas individuais, “diferenciando-se somente
nos seus acidentes”.
Haveria igualmente uma substância comum presente em todos os seres vivos que
assumiria diferentes formas nos diversos seres vivos. Esta substância seria universal e
comum por natureza, incorpórea, não sensível, mas que se tornaria sensível pelos acidentes.
Abelardo diz que tais pontos são insustentáveis, pois uma mesma essência (animal)
poderia ter formas opostas (racional e irracional). Guilherme modifica sua tese e passa a
afirmar que o universal é uma coisa que não é essencialmente, mas só indiferentemente
idêntica nos distintos indivíduos.
Haveria então, para cada gênero uma “coisa” indiferente e idêntica, que torna os
espécimes individuais, mas que permaneceria universal sob o aspecto da indiferença e da
semelhança.
Abelardo sustenta que tal coisa não existe. Fora do indivíduo só há o conceito, pois
do contrário, seria possível encontrar-se, separadamente dos indivíduos, o universal como
algo idêntico em todos os indivíduos, o que não se dá.
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2 – O Universal é um nome ou um “Sermo”


O universal é tão somente um nome que se predica das várias coisas individuais, não
no sentido nominalista de mero “som”, mas um termo verdadeiramente designativo e
significativo.
Pode-se aplicar um mesmo nome e vários indivíduos, pois estes, embora distintos
tanto pela essência quanto a forma guardam entre si certas semelhança. Há tão somente
um “estado” ou relação entre os indivíduos que permite que deles se diga algo e que
representa esta relação, sem existir na realidade.
Tais representações universais são imagens ou construções do entendimento, que as
faz semelhantes às coisas individuais.
O entendimento não necessita dos sentidos para construir a matéria de sua
atividade, basta-lhe uma semelhança da coisa, produzida pelo espírito, pois este guarda uma
imagem espiritual que se torna assim o substrato para a intelecção do universal.
Esta forma produzida pelo entendimento é algo desprovido de “objetividade”, é como
algo “imaginado” e não se enquadra em nenhuma categoria.
O conceito expresso num nome universal é uma imagem comum ou indeterminada de
várias coisas; o conceito expresso num nome particular é a forma propriamente dita e
singular de uma só coisa. O conceito universal é menos claro que o conceito particular, mas
no entanto é mais “operativo” para o entendimento, que dele se utiliza normalmente.
O verdadeiro conhecimento é sempre do particular e é a partir dele que se chega ao
conhecimento universal (indução), que deve estar firmemente apoiado no conhecimento do
particular.
Para Abelardo o intelecto faz, a partir do particular uma verdadeira imagem da
realidade e depois desta expressão é que ele forma a representação das coisas universais,
por semelhança.
Abelardo admite no entanto a representação de formas inacessíveis aos sentidos.
Como as idéias puras e abstratas presentes no intelecto divino e segundo as quais Deus
criou todas as coisas. Destas idéias não possuímos representações, pois nosso
conhecimento se origina da compreensão de coisa sensíveis.
3 – Formação e validade dos universais
Os universais não são coisas ou idéias, mas o significado dos nomes, não se
identificando nem com as coisas, nem com a atividade do entendimento. Os universais se
formam por abstração (ab – extrair = tirar de dentro). Na realidade, as coisas se dão como
um composto de matéria e forma.
O intelecto é capaz de atender à matéria sem a forma ou a forma sem a matéria ou
às duas em conjunto. Quando atende só à matéria ou só à forma, fazemos uma abstração:
“esta abstração pode dar-se em vários níveis de universalidade”; e “tomando-se um ser
particular, seja quanto a sua matéria, como quanto a sua forma, é possível deste se
abstrair vários universais. Ex. João quanto à sua matéria, é corpo, é altura, é peso é cor
etc. Quanto à sua forma, é vivente é racional, é sensibilidade etc.
50

Do ser particular é indivisível “João” o intelecto é capaz de abstrair inúmeros


universais, ou seja, de uma única substância, o intelecto “separa” determinados aspectos,
tornados ou explicitados compreensíveis e racionalizáveis, comparado-os com outros seres
semelhantes.
Tal potencialidade do intelecto não altera ou diminui o valor do conhecimento que por
ele advém, mesmo que ele nos apresente determinados aspectos de uma coisa que não
existe separadamente, pois esta coisa sempre existe em relação a um determinado ser
particular existente.
Erro seria querer aplicar a um ser particular existente um universal que não lhe cabe
na realidade, embora nada nos impeça de prendermos a atenção a um único e determinado
aspecto em relação aos vários particulares existentes. Por ex: o universal “corpo” é
derivável de homem, planta animal, pedra etc.
A solução de Abelardo não é a mesma de Aristóteles, como se verá ao estudar a
psicologia tomista: Abelardo aplica a abstração tanto a conceitos particulares como
universais. O aristotelismo parte do particular e só dele para chegar ao conceito universal.
4 – Solução de Abelardo aos problemas levantados por Porfírio
- Se os universais são algo existente ou meras ficções da mente:
Sim, os universais existem, não como “coisas separadas” como queriam os realistas,
mas como coisas realmente existentes, no intelecto e não nos sentidos; a partir do
intelecto se deriva sua existência, pois é ele que abstrai o universal dos demais aspectos do
ser particular, como uma representação indeterminada, mas significativa. Estas
representações por sua vez não são vazias de conteúdo como queriam os nominalistas ou
carentes de qualquer referência à realidade.
- Se a subsistência dos universais é corporal ou incorporal:
Ora, enquanto sons, os nomes tem algo de corporal, mas enquanto significados, são,
sem dúvida, de natureza incorporal.
- Se existem os universais nas coisas sensíveis ou fora delas
Pode-se dizer que os universais existem nas coisas sensíveis porque são delas
derivados, não de sua forma externa, mas de sua substância interna.
- Se é necessário haver coisas correspondentes aos universais
Sim, enquanto nomes designativos. Pois só dos seres reais é que se pode predicar os
nomes universais. No entanto, se todos os exemplares desaparecessem, restaria o nome
enquanto um significado e este permanece e dele se poderia afirmar pelo menos que não
existe.
Assim, a postura de Abelardo pode ser chamada conceptualista: a universalidade
convém aos nomes enquanto estes exercem a função de expressões significativas e o
significado outra coisa não é senão a apreensão da realidade. Mas essa apreensão, que não é
uma realidade nova, mas sim uma representação, um objeto do pensamento
51

SANTO TOMÁS DE AQUINO (1224/5 - 1274)


O Doutor Angélico

Vida - nasceu entre 1224 e 1225 em Rocca Secca, perto de Nápoles, filho dos condes de
Aquino, eleitores do império.
- Entre 1230 e 1239 foi educado no mosteiro de Monte Cassino pelo Abade Sinibaldo, seu
tio paterno.
- Entre 1239 e 1244 estuda as artes liberais em Nápoles
- Em 1244 entra na ordem dos frades dominicanos à revelia da família.
- A família o retém e o seqüestra a caminho de Paris e o confina por vários meses em
cárcere privado, até que por intervenção da irmã, lhe é reconstituída a liberdade
- Novamente com os dominicanos, dirige-se a Paris onde, de 1245 a 1248 é aluno de Santo
Alberto Magno, a quem acompanha a Colônia até 1252, para organizar o “studium
generale” da ordem
- Entre 1252 e 1257 está em Paris, preparando-se para obter o título de mestre em
teologia, podendo assim ensinar publicamente a partir de então.
- Em 1259 participa do capítulo geral da ordem, sendo então enviado a Roma onde ensinou
teologia na corte papal; neste período inicia a redação da Suma contra os gentios e da
Suma teológica
- Entre 1269 e 1270 esta novamente em Paris para combater o aristotelismo averroísta.
- Em 1274 é convocado pelo papa Gregório X para participar do Concílio de Lyon, mas
morre a caminho do mosteiro dos Cistercienses em Fossa Nova
Obras
- Comentários sobre a Sagrada Escritura - (9)
- Comentários filosóficos sobre Aristóteles - (13)
- Obras sistemáticas:
- Comentário das sentenças de Pedro Lombardo
- Suma contra os gentios
- Suma Teológica
- Questões disputadas (14?)
- Questões quadlibetoles (12)
- Opúsculos – Filosóficos opúsculos filosóficos e filosófico sociais (47), opúsculos sociais,
teológicos e sobre a vida religiosa.
- Filosóficos Sociais
- Teológicas e sobre a vida religiosa
I - As provas da existência de Deus ( quinque viae)
- Para Santo Tomás é da natureza humana que seu conhecimento se inicie pelos sentidos
para daí elevar-se ao supra - sensível e à divindade.
- Assim ele não segue nem Santo Agostinho, nem Santo Anselmo em suas posturas, mas
parte de Aristóteles, fazendo todo conhecimento derivar do sensível.
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- As provas de argumentos estão tanto na Suma contra os Gentios como na Suma


Teológica
1º Argumento - Argumento do 1º motor - é a preferida de Santo Tomás
- É algo atestado pela experiência a existência do movimento (como vir- a- ser, passagem
da potência ao ato)
- Tudo o que é movido e movido por algo diferente de si : mover-se não é nada mais que
levar algo da potência ao ato.
- Só algo real e existente é que pode levar algo da potência ao ato; igualmente é logo uma
coisa não pode ser motora e movida sob o mesmo tempo e sob o mesmo ponto de vista (é
impossível mover-se a si mesmo)
- Logo tudo o que move deve fazê-lo em conseqüência de algo que lhe dá o movimento
- Se um motor é movido por outro e este por um outro, não se há de fazer uma regressão
ao infinito, pois se assim se fizesse, nunca se chegaria a um primeiro motor
- Logo, é necessário que exista um primeiro motor que não é movido por nenhum outro, ao
qual somos concordes em chamar de Deus
2º Argumento - Argumento da causa eficiente
- Nas coisas sensíveis observa-se uma ordem de causas eficientes, ao mesmo tempo não
se concebe que algo possa ser a causa eficiente de sí mesma, pois como a causa
eficiente precede a coisa, esta deveria ser anterior a si mesma
- Mesmo numa seqüência de causas eficientes com muitas causa intermediárias, deverá
haver obrigatoriamente uma primeira sem a qual a última não acontece e igualmente as
causas médias.
- Ora, se se procede ao infinito nas causas eficientes, nunca se encontraria a causa
eficiente primeira, nem o efeito último e isso contraditório
- Logo é necessário admitir uma causa eficiente primeira a qual damos o nome de Deus.
3º Argumento - Argumento do existente necessário
- Entre as coisas que encontramos na natureza, há as que podem ser e não ser, pois podem
ser geradas e corromperem-se
- Tais coisas não podem existir sempre, bem como deve ter havido um tempo em que
nenhuma delas existia
- Mas se assim fosse, ainda agora nada existiria, pois o que existe, só pôde começar a
existir de uma coisa já existente
- Se nenhum ente viesse a existir em alguma ocasião, ainda agora nada existiria.
- Daí se deriva que há seres que são puramente possíveis (que vem a ser e deixam de ser)
mas deve haver um ser necessário
- O que é necessário ou tem a causa fora de sua necessidade ou não a tem
- Como não é possível proceder ao infinito na busca dos seres necessários, é de se
admitir que haja um ser necessário por sí mesmo, não tendo de fora sua necessidade e
que é a causa da necessidade dos outros: este ser é Deus.
53

4º Argumento - Argumento pelos graus do ser


- Há entre as coisas, diferenças entre suas qualidades: maior ou menor verdade, bondade
ou beleza.
- Ora, o mais ou menos que se diz das coisas diversas só se diz enquanto estas se
aproximam em proporção diversa de algo que contém o máximo ser.
- O que é maximamente verdadeiro é ao mesmo tempo maximamente ser e o que é deste
modo (maximamente ser) deve ser a causa de todo ser.
- Há assim um ser que é a causa do ser, da bondade e da perfeição de todos os seres e a
este chamamos Deus.
5º Argumento - Argumento do Governador Supremo das Coisas
- Certas coisas carentes em si de conhecimento, operam em vista de um fim e o fazem no
sentido de conseguir o ótimo para o qual é dirigido
- Daí se conclui que chegam ao seu fim não pelo acaso, mas pela intenção
- Ora, o que não possui conhecimento, só tende ao fim quando dirigido por algo
conhecedor e inteligente.
- Há algo inteligente pelo qual todas as coisas naturais se ordenam a um fim, a que
chamamos Deus.
II - O conhecimento de Deus:
- Para Santo Tomás, a existência de três pessoas em um só Deus é algo que se subtrai à
razão natural e o que à Trindade se refere baseia-se na fé.
- A essência de Deus e sua relação com o mundo nos é acessível até certo ponto, mesmo
que não possamos definir a essência divina.
O conhecimento negativo da essência divina
- Sendo Deus o primeiro motor imóvel, Ele é absolutamente independente do tempo:
- Imobilidade e Imutabilidade são sinônimos para Santo Tomás, pois o que começa a
existir ou cessa de existir sofre movimento: só Deus é imutável, não tem começo nem
fim, é eterno: atemporal
- Deus é puro ato, nele não há nada em potência (o que tem potência pode existir ou não
existir) Deus é ato puro, pois nada n`Ele tudo o que é, existe plena e totalmente.
- Deus não tem matéria, pois tudo o que tem matéria é potencial: Ele é imaterial
- Deus não tem composição, já que não tem matéria; por isso é perfeitamente simples
- Em Deus, sua essência coincide com sua existência: Deus simplesmente é
O conhecimento analógico
- Um saber puramente negativo permanece estéril: Embora não conheçamos a Deus tal
qual Ele é ( pois isto suporia uma contemplação direta de essência divina) nos é possível
conhecê-lo de modo analógico, isto é, aplicando-lhes todos os nomes não predicados de
modo negativo.
- A doutrina da analogia se contrapõe à teoria da iluminação: analogia supõe semelhança e
comparação: mesmo que haja uma distância infinita entre o criador e a criatura, esta lhe
imita de modo finito as perfeições infinitas
54

- de Deus: por isso predicamos o ser Analogicamente de Deus. Do mesmo modo, tudo o que
afirmamos de Deus, o fazemos a partir das criaturas e atribuímos a Ele de modo
analógico por exemplo; justiça, bondade, beleza, verdade As criaturas assemelham-se a
Deus por serem causadas por Ele: a causa está contida de algum modo ou grau no efeito.
- Nada é univocamente predicável de Deus e das criaturas: devido à dissemelhança entre
Deus e as criaturas, não se pode aplicar as mesmas qualidades a uns e Outro. Logo nada
é predicável univocamente de Deus.
- Certos predicados não são enunciados de modo puramente equívoco de Deus, pois do
contrário, nada saberíamos dele. Logo há uma certa semelhança entre as causas
equívocas e seus efeitos.
- Os predicados positivos são enunciados Analogicamente de Deus e das criaturas: Deus é
ser por natureza e no sentido absoluto da palavra e de modo primário e as criaturas de
modo secundário, embora na ordem do conhecimento primeiro prediquemos o ser das
criaturas e secundariamente o Ser etc.
III – A Criação
Deus cria por um ato livre, de natureza espiritual: Deus conhece aquilo que quer
criar; assim, no intelecto divino, já existiam desde sempre as idéias de todas as coisas.
Por idéia se entende a forma das coisas, existindo antes e à parte no intelecto divino. É a
partir destas formas que Ele criou o mundo, pois este não surgiu do acaso ou de um ato
natural ou necessário.
Existem assim em Deus uma multiplicidade de idéias. Mas em Deus, as idéias são o
oposto do que em nós se dá como idéias: nós formamos as idéias a partir das coisas,
enquanto as idéias divinas existem como modelos ou arquétipos das coisas existentes.
As idéias são co-eternas e co-existentes a Deus: isto quer dizer que n’Ele as idéias
coincidem com sua essência, já que Ele conhece a si mesmo de modo total e pleno; a
multiplicidade das idéias não afeta a unidade e simplicidade de Deus.
Cada criatura tem o seu ser, mas este ser é tão somente um modo de participar da
Essência Divina: assim, enquanto idéia, a criatura não é outra coisa senão a essência criativa
de Deus.
Deus, graças à sua perfeita atualidade contem em si a razão suficiente para o ser
análogo das coisas. As coisas “emanam” de Deus e como tal revelam os diferentes, múltiplos
e maravilhosos graus do ser do próprio Deus.
Santo Tomás, ao contrário de Aristóteles, é criacinista mas não chega a comungar
nem com a idéia da eternidade do mundo ( de Aristóteles e Averróis) ou de seu começo e
fim no tempo (Agostinho e Boaventura)
Para ele não há argumentos a favor e contra a eternidade do mundo, pela via racional;
tal problema, como o da Santíssima Trindade, foge ao alcance da razão. Isto quer dizer que
ele aceita a criação do mundo como algo revelado por Deus e não algo alcançável pela razão.
III.I - As Criaturas
Deus é a origem do ser e da causalidade das criaturas. Ele as causa não como o
genitor gera o gerado, que continua a existir independente deste, ao lhe dar a forma, pois
55

se Deus se retraísse da criatura, esta retorna ao nada. Seria contraditório supor que Deus
criasse algo capaz de existir sem Ele.
Deus conserva continuamente as coisas no ser pela continuação do ato criador e as
mantém como causa primeira, mesmo existindo várias causas secundárias.
As criaturas dispõe no entanto de atividade própria; no caso do homem, as mais
importantes, são o livre arbítrio e o conhecimento. O ser de cada coisa individual é
determinado por sua forma e estas não são mais do que diferentes graus de perfeição
Assim os seres se dispõe numa ordem hierárquica de perfeição: ao querer a
diversidade dos seres, Deus quis simultaneamente a perfeição do mundo em seu conjunto e
na sua totalidade.
Não é necessário que cada indivíduo atinja a perfeição, mas o conjunto deve estar de
tal modo organizado que as coisas individuais se encontrem devidamente proporcionadas.
Em alguns seres a perfeição é perecível, enquanto que em outros esta é permanente:
portanto o mal é a deficiência em um determinado grau de bem.
Assim, toda criatura pode ser dita um “mal”, já que, como deve seu ser a Deus e
sempre em um grau diferente d’Ele, é portanto imperfeita. Esta imperfeição no entanto não
é nada mais que o reverso de sua perfeição.
Toda natureza aspira à existência e à perfeição. O ser que lhe é próprio constitui um
bem para a respectiva natureza.
O mal por sua vez não possui qualquer “realidade” : O mal é tão somente ausência do
ser e do bem: o mal é privação ou carência daquilo que deveria estar presente.
Pode-se mesmo dizer que o bem é a causa do mal, pois este, sendo a privação na
substância, deve ter uma causa, mas para ter causa é preciso ser, e se algo é (isto é, tem
ser), já é um bem. Portanto, para haver o mal, há sempre um bem maior. Deus, no entanto
não é a causa do mal, pois Ele é o Sumo Bem e n’Ele não há privação, carência ou
potencialidade alguma.
No nosso agir, sempre pode haver uma privação ou um defeito em nossa atividade e
portanto um certo mal. No agir de Deus no entanto, não há privação ou deficiência alguma,
graças à sua perfeição absoluta.
O mal que existe na natureza, sempre, de alguma maneira decorre para o bem e a
harmonia da totalidade do mundo.
III.II - O Homem
- Ponto de convergência da criação: nele convergem as energias espirituais, sensitivas
vegetativas e inanimadas.
- Santo Tomás prega a unidade de forma humana, a alma, e sua união substancial com o
corpo: algo só pode ser dito humano, se para isso converge a atividade do corpo e da alma: o
homem é uma união substancial de corpo e alma e não uma união acidental.
- Corpo e alma tomadas separadamente nada significam do homem: a matéria é atualizada
pela forma como o ser-homem, o corpo pela alma.
- À alma o homem deve sua forma substancial única: o ser-corpo, a sensibilidade e a
racionalidade: a alma humana confere ao corpo os diferentes graus do ser.
56

- Para Santo Tomás a alma seria infundida no corpo quando o embrião passasse da fase
vegetativa para a sensitiva, mais ou menos pelo 3º mês de gestação. Santo Tomás
desconhecia a fecundação.
- A alma intelectiva contém a alma sensitiva e as duas são inseparáveis.
- O homem pela sua alma, possui o ser, a vida a sensibilidade e a racionalidade.
- A matéria do corpo é o princípio de individuação, pela qual surge cada pessoa: a alma por si
realiza a essência humana de maneira genérica: a essência do homem surge da alma. Cada
homem concreto é determinado pela sua matéria individual (matéria “signada”)
- A pluralidade dos homens só é possível pela matéria como princípio de individuação.
- A alma é de tal maneira que se destingue tanto dos seres puramente espirituais como dos
animais. Mas sua natureza racional é tal que ela só exerce suas operações próprias, se
ligada ao corpo.
- A alma humana está no limite entre a criação espiritual e corporal.
Mas a alma humana é capaz de transcender a matéria e tornar-se cada vez mais
independente desta, embora nunca totalmente.
III.II.I - A Teoria do Conhecimento
- A alma possui um conhecimento sensitivo e intelectivo
O Conhecimento sensível:
- O conhecimento sensível está na origem de todo conhecimento, mesmo do conhecimento
racional e espiritual.
- A potência sensitiva possui cinco graus de operação:
- Os sentidos próprios – cada sentido é influenciado de modo imediato pelo objeto
sensível: quanto mais imaterial for a ação do sentido, tanto mais elevado ele é.
- O tato é o mais inferior, segue-se a gustação, o olfato e audição. O mais perfeito é a
visão, que não é influenciado, por nenhuma alteração no objeto sensível.
- Sentido comum – recebe as impressões e o próprio ato da sensação, julgando o objeto
referente aos diversos sentidos.
- Imaginação ou fantasia – é a capacidade de reter as imagens das coisas sensíveis
através da sua força representativa.
- Memória ou reminiscência – reapresenta ou evoca o que foi apreendido e conservado. No
animal a memória se dá sem um esforço consciente.
- Razão particular ou intelecto passivo – cumpre o papel do instinto no homem, revelando-
lhe o que é nocivo ou benéfico.
O Conhecimento Intelectivo
- O intelecto humano apresenta-se num primeiro momento como pura possibilidade,
destituído de qualquer conhecimento e apto para receber o conhecimento.
- O intelecto humano é o antípoda do intelecto divino, em que tudo é atual e presente.
- O intelecto humano está em potência para o conhecimento inteligível: ao conhecer, ele
passa da potência ao ato, o intelecto é “ tábula rasa”.
57

- As formas inteligíveis não pertencem naturalmente ao intelecto humano, ele precisa


recebê-las passivamente a partir da experiência sensível – É o intelecto passivo ou
possível.
- Cabe ao intelecto ativo ou agente fazer passar o intelecto passivo da potência ao ato:
ele apreende os elementos inteligíveis potencialmente contidos nas coisas sensíveis.
- Para possuir o conhecimento ou saber atual, intelecto ativo volta-se para as coisas
sensíveis e apropria-se dos conteúdos inteligíveis nelas contidas.
- Só as coisas sensíveis são imediatamente acessíveis ao homem: das realidades
puramente espirituais, ele possui um saber abstrativo, adquirido a partir da experiência
sensível.
- Neste ponto a diferença com a doutrina agostiniana da iluminação é total: mesmo os
princípios mais gerais do conhecimento nos são dados pela experiência sensível.
- Cabe ao intelecto agente ou ativo retirar do espécime ou indivíduo o que ele tem de
genérico, abandonando suas características individuais e formando assim o fantasma,
que é a matéria para o intelecto passivo: a este processo Santo Tomás chama abstração
– (tirar, trazer de dentro) o intelecto passivo recebe esta representação ou fantasma e
forma a espécie inteligível que opera somente com o que há de universal e essencial na
representação ou fantasma.
- Também para conhecer a si mesma a alma precisa do conhecimento sensível
- A alma conhece sucessivamente o seu objeto, a sua atividade e por último a sua própria
natureza
- A alma humana é incapaz de inteligir realidades puramente espirituais, já que todo
conhecimento principia pelo sensível.
- O homem também é passivo no processo do conhecimento: ele, ou melhor o intelecto
recebe passivamente as formas inteligíveis, isentas de erro.
- O objeto próprio do intelecto é a essência da coisa: a “qüiditas” ou qüididade – a
essência é sempre imediatamente apreensível e isenta de errância.
- A verdade por sua vez, decorre de um acréscimo do intelecto à realidade externa, o que
chamamos juízo: o juízo é sempre uma adequação do intelecto à coisa. Uma vez a
essência sendo conhecida, o intelecto a reconhece na realidade externa e assim é capaz
de emitir um juízo, como verdadeiro.
IV - Ética
- O homem foi feito para um determinado fim e é capaz de conhecê-lo, como tem
conhecimento espiritual e tendência racional, insere-se no reino da moralidade.
- O homem como possui a sensação e o intelecto, também seus atos são determinados pelo
apetite sensitivo ou sensualidade e o apetite intelectivo ou racional.
- É esta última propriamente chamada de vontade, como potencialidade da alma racional.
- A vontade procura sempre seu último fim que é a beatitude, mas esta é um bem geral,
que não é diretamente reconhecida. Quase sempre a vontade tende para os bens
particulares e depois ao bem geral, pois há bens particulares que são necessários para
que se alcance a beatitude, e outros que não são.
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- Nesta vida o amor a Deus é superior ao conhecimento de Deus, pois a vontade atinge o
objeto de modo mais imediato que o entendimento. Na visão beatífica, o conhecer a
Deus terá a primazia sobre a vontade e será esta a dirigir o caminho do amor e por
conseqüência, da vontade.
- A vontade como princípio ativo, move as potências sensitivas e intelectivas da alma,
menos as vegetativas.
- A vontade é por definição, livre. Se não fosse livre não seria vontade, mas automatismo
ou instinto
- Ao mesmo tempo é por existir vontade livre que nossos atos se tornam morais, isto é,
dignos de aprovação ou repreensão: sem vontade livre não haveria moralidade.
- Para Santo Tomás a negação do livre arbítrio, nega igualmente toda uma parte da
filosofia.
- A vontade, mesmo que ela queira necessariamente o fim último, ainda assim não há uma
rígida determinação no que diz respeito aos caminhos e meios para chegar a ele: neste
sentido se diz que a vontade é indeterminada, livre quanto aos objetos intermediários.
- Também em relação ao ato, este não é determinado, pois a vontade é livre para por ou
deixar de por um ato: ela move a si mesma sem ser movida.
- Quanto à ordenação ao fim, a vontade pode querer o que conduz a ele realmente, como o
que conduz aparentemente, pois ela pode escolher entre meios diferentes e ter uma
opinião errônea quanto aos meios.
- Se a vontade tende para uma beatitude aparente que a razão ilusoriamente lhe propõe,
pode se dizer que a vontade tende ao mal.
IV.I - A Estrutura do ato humano
- A intenção – é a direção da vontade para uma finalidade – fixação do fim a atingir
- O conselho – é a deliberação dos meios para poder se chegar ao fim, no que eles têm de
contingente e variável
- O consentimento - dentre os vários caminhos que o conselho delibera, ele apresenta a
ação sob diferentes aspectos de bondade e é para esta bondade que se volta a potência
apetitiva, daí resultando a experiência e apreensão imediata da bondade do ato.
- A eleição - caso haja uma única opção, a eleição é a culminância do ato volitivo para o
qual convergem razão e vontade, para a escolha livre, para o ato da vontade.
IV.II – A Moralidade do Ato Humano
- Santo Tomás distingue o ato voluntário interior e o ato voluntário exterior.
- O objeto do ato interior é o fim. Objeto do ato exterior é a coisa para a qual se tende.
- A bondade da ação procede do fim sobre o qual recai o ato interior.
- O fim do ato interior para ser bom, deve estar de acordo com a razão e é mal aquilo que
é contrário à razão ou que lhe repugna.
- Ao que não é conveniente nem repugnante chama-se indiferente.
- Assim, para um ato ser chamado bom, deve ser visto quanto ao seu fim e não quanto aos
meios e da reta ordenação do ato para o fim ou da intenção
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- A virtude – é uma disposição ou inclinação (hábito) para agir conforme a razão é por isso
uma virtude é uma perfeição do ato humano para regular nossa vida inteira.
- Como há necessidade da volição no pensar e no querer, há uma disposição de virtudes
intelectuais e volicionais.
IV.III - As Virtudes Intelectuais:
- A ciência: é o hábito das conclusões dedutíveis dos princípios.
- O intelecto: é o hábito dos princípios.
- A sapiência :encerra ambos e julga convenientemente segundo princípios supremos.
- A prudência: aplicação do que é reto às circunstâncias concretas, de modo a conduzir ao
fim o que foi deliberado pela vontade.
IV.IV - As Virtudes Morais:
- Justiça – visa dar o que é devido ou não a cada um, independentemente das questões
subjetivas.
- Fortaleza – refreia as paixões que enfraquecem a ação, subordinando-as à reta razão.
- Temperança – refreia as paixões exageradamente impulsivas e precipitadas
subordinando-as à reta razão; as três virtudes morais, juntamente com a prudência
formam as virtudes cardeais.
IV.V - As leis
visam nortear nossa vida externa: são regras ou preceitos relativos às nossas ações. A
lei suprema dos atos humanos é a razão.
- O que é ordenado por lei deve servir a um fim comum e não a um fim individual.
- Também as leis devem nortear-se ao fim último do homem que é a beatitude.
- A lei visa a felicidade comum e o bem estar da coletividade.
- Como a lei visa o bem comum, ela deve emanar da comunidade ou da pessoa que
legitimamente a representa
- Como a lei visa sempre a comunidade, há tantas leis quantas há comunidades, sendo a
primeira delas o mundo governado por Deus.
- Assim a razão eterna de Deus é a lei suprema: a natureza humana traz como reflexo, em
si algo desta lei eterna, pela qual ela participa da razão divina.
- A esta participação na lei divina, que reconhecemos de modo imediato, chamamos lei
natural, que é a soma das obrigações reconhecidas pela razão, como sendo conformes à
natureza.
- A lei natural primeira e suprema é: deve-se fazer o bem e evitar o mal (pg 481)
- pela lei natural o homem participa dos princípios gerais e comuns da lei divina. Cabe ao
legislador particularizar estes princípios, dando origem às leis humanas.
- Assim, a observância ou a transgressão da reta ordem por parte do homem deve ter
como conseqüência um bem ou um mal, que não se dá como necessidade natural, mas em
consonância com a atividade humana pessoal, daí os prêmios ou castigos necessitarem de
uma legislação particular
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São Boaventura 1221 - 1274


(Doutor Seráfico)

Vida
Nasceu João Fidanza em Bagnorea, perto de Viterbo em 1221. Em 1243 faz-se
franciscano, após ser promovido a mestre das artes liberais e estuda teologia sob
orientação de Alexandre de Hales. Bacharel bíblico em 1248 e bacharel sentenciário em
1250.
Mestre em teologia em 1253, por intervenção do papa, visto a oposição dos seculares,
iniciando seu magistério na Universidade de Paris. Eleito Ministro Geral dos Franciscanos,
renuncia ao magistério, sendo considerado o segundo fundador da Ordem.
Feito bispo e cardeal, participa com sucesso no Concílio de Lyon. Falece em 1274;
Canonizado em 1482; doutor da Igreja em 1587.
Obras
- Comentário aos quatros livros das Sentenças de Pedro Lombardo.
- Questões disputadas sobre a Ciência Cristã e sobre o Mistério Trinitário.
- Brevilóquio – compêndio de teologia em sete volumes.
- Itinerário da mente à Deus.
- Lições sobre Hexameron
Enquanto S. Tomás procura incorporar o aristotelismo à teologia cristã, São
Boaventura procura uma renovação e sistematização do Agostinismo.
As relações entre filosofia e teologia
São Boaventura nunca se interessou pelo aristotelismo puro, que para ele visava
principalmente o domínio das ciências, isto é, do mundo sensível e visível. Para São
Boaventura, é o Platão o mestre da sabedoria, pois este se voltar para o mundo supra
sensível.
Ainda assim, é em Agostinho que está a síntese perfeita entre a ciência e a
sabedoria e é quem pretende seguir no ideal da sabedoria.
A sabedoria teria quatro graus:
1º - o saber das coisas humanas e divinas = filosofia;
2º - o conhecimento das coisas sublimes, que se opõe ao das coisas criadas;
3º - o conhecimento de Deus pela piedade ou religiosidade = fé, esperança, caridade;
4º - a mística – conhecimento experimental de Deus.
Sabedoria é portanto a apreensão ou contato imediato com Deus, que principia no
conhecimento e remata no amor, culminando na contemplação e degustação mística da
doçura de Deus. Assim, para S. Boaventura os termos, Sapiência, Caridade, Paz, Êxtase,
etc. são sinônimos.
A meta de toda aspiração terrena é o amor de Deus na sabedoria: cabe à filosofia e à
teologia organizar, com auxílio da revelação, um saber santo e, para tal, todas as ciências
devem estar a serviço do amor.
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A filosofia como tal deve ser apenas um instrumento para conduzir o homem a Deus,
devendo para isto subordinar-se e deixar-se guiar por ela. É pela fé que a alma possui já
nesta vida, um saber seguro de Deus, por isso a fé é o ponto de partida para todo
conhecimento, inclusive filosófico.
Da fé deve-se avançar ao entendimento (fides quarens intelectum) para se chegar à
contemplação mística. A fé possui um elemento que nos estimula à especulação, isto é, o
amor, pois o que crê, deseja abraçar com todas as forças o objeto da fé e penetrá-lo com a
razão.
A filosofia e a teologia por sua vez não se confundem: a primeira procura um saber
adquirido exclusivamente pela razão, que conduz a um conhecimento naturalmente certo,
assentado numa intuição racional e distinta da verdade, baseado nos primeiros princípios. O
objetivo da filosofia é organizar e coordenar todo o saber.
A filosofia, embora brote da luz divina, foi afetada pela corrupção do pecado
original, o que fez com que ela produzisse vários erros, como os que ele nota no
aristotelismo: Os filósofos caíram no erro por desconhecer o pecado original. Sujeitando-
se a fé, a filosofia abre o caminho para que o homem retorne a Deus, estando a meio
caminho entre a fé pura e a teologia, que se abre por sua vez à sabedoria ou contemplação:
as ciências são estações da peregrinação da alma para Deus.
Toda a metafísica de Boaventura é um movimento em três estágios:
- A Emanação: que trata do mundo criado por Deus;
- A Exemplaridade: trata sobre Deus enquanto arquétipo da criação;
- A, Consumação ou Redução: trata de Deus enquanto fim último dos espírito criados, que
tocados por sua luz, retornam à pátria.
I – A Emanação
São Boaventura é um intransigente defensor da criação temporal do mundo (ao
contrário de Aristóteles para quem o mundo é eterno ou S. Tomás, para quem pode-se
arrolar argumentos pró e contra a eternidade do mundo).
Para S. Boaventura, se o mundo fosse eterno, isto é, existisse desde sempre e para
sempre, poder-se-ia acrescentar novos dias, ou seja, mais tempo, ao que já é eterno não se
pode acrescentar ou infinito.
Igualmente, um número não suporta uma seqüência ordenada: se não há começo, não
há ordem, isto é, um antes de um depois de cada fenômeno a que se seguem outros. Se o
mundo fosse eterno, não há como estabelecer uma seqüência interdependente de
fenômenos.
Ora, qualquer ponto desta seqüência infinita está a uma distância infinita do ponto
seguinte e todos estão a uma distância infinita entre si, o que exclui toda sucessão.
– O mundo dos Corpos e dos Seres Vivos
S. Boaventura toma emprestado da escola de Oxford a metafísica da luz, para quem
os princípios estruturais dos corpos são a matéria e a forma luminosa. Quanto maior a
quantidade de luz contida num corpo, mais elevado o seu lugar na ordem da natureza.
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A luz é o princípio ativo universal: a atividade dos corpos procede de uma força
inerente à sua própria substancialidade, isto é, a luz. A luz forma o ser substancial dos
elementos e novamente sob a influência, em diferentes graus de complexificação, os
minerais, os vegetais, os animais e os homens.
Luz  Luz  Luz
Vegetais

Luz  elementos  os mistos (minerais)  complexos  animais

Plantas

Em toda a natureza, a irradiação substancial da fonte luminosa, de forma


imperceptível preside aos fenômenos vitais, atuando como elo de ligação entre o corpo e a
alma, dispondo a matéria para receber a vida, ocasiona a geração animal, faz surgir as almas
vegetativas e sensitivas da potência da matéria.
S. Boaventura, como Agostinho, prega a existência da forma dos seres vivos
potencialmente presentes na matéria, as “rationes seminales”. Ao contrário, para S.
Tomás, a matéria é pura potencialidade e não contém forma alguma.
Assim, a matéria possuiria os gérmens das formas, ativados e desenvolvidos por
influências externas. Deus teria criado a matéria profusamente dotada de todas as formas
em estado virtual: assim não haveria a criação de novos seres, mas tão somente a ativação
dos seres presentes em estado latente na matéria, sob influência da luz.
O princípio germinal é o princípio e o término da evolução, pois ao atingir sua
perfeição, volta em seguida ao estado latente. Nada perece, nada se cria de novo, todas as
coisas se desdobram e se recolhem num processo ininterrupto de transformação, que só
terá fim quando Deus aprouver.
- A alma humana
A alma humana distingue-se tanto de Deus como do mundo material: só Deus é vida e
é entendimento. A alma possui/tem vida e possui/tem entendimento, porque os recebeu de
Deus. Para S. Boaventura, também a alma é um composta de matéria e forma, pois para ele,
tudo o que foi criado, deve possuir matéria e forma, daí, a alma humana, para receber o
entendimento e a vida, deve ter matéria, sendo um composto de matéria e forma. À
substância individual se juntam os acidentes.
Como possuidores de razão, as pessoas se tornam indivíduos, pela composição de
matéria e forma: assim a pessoa é uma dignidade outorgada à substância pela forma e
imediatamente inerente ao sujeito.
A razão principal da multiplicidade das almas é a manifestação da bondade divina e
para o amor recíproco entre os homens. A alma foi criada à imagem da Santíssima Trindade
essencialmente una, mas com três potências; intelecto, vontade, memória: é suficiente que
a alma seja alma, substância espiritual e autoconsciente, para recordar-se, conhecer-se e
amar-se.
63

A alma é criada imediatamente por Deus, composta de matéria e forma, é imortal em


razão de sua dignidade, pois traz em si a imagem de Deus. Como é semelhante a Ele, deve
ter em comum com Ele a imortalidade. A matéria é tão veementemente unida à forma que é
veementemente atraída por ela e sacia-se nesta união.
A tendência para a felicidade que há no homem, o faz aspirar pelo absoluto e pela
perpetuidade. A alma só será plenamente feliz se puder alcançar este Bem, que por sua vez
só é possível pela imortalidade. Esta é, portanto, uma exigência e conseqüência de seu
desejo mais íntimo.
II – A exemplaridade
Versa sobre Deus como arquétipo da criação. As idéias: Deus conhece a si mesmo, é
totalmente inteligível a si mesmo: n`Ele, o intelecto coincide com a inteligibilidade (ao
contrário dos homens, que possuem um intelecto possível e conhecem em parte).
Deus se conhece perfeitamente e se apreende totalmente num só ato, a totalidade
do seu ser. Em Deus há total identidade entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido;
Deus assim não só se conhece como retrata a si mesmo, e a isto S. Boaventura denomina,
chama de Semelhança (“similitude”).
O “retrato” que Deus apresenta de si mesmo em nada difere d`Ele mesmo, por isso,
exprime tudo o que Ele é, sabe e pode: é o Verbo de Deus. O Verbo por sua vez, como auto
– expressão de Deus é também a imagem ou exemplar de todas as coisas, como a idéia em
que o artista representa suas obras futuras: o Verbo é a arte eterna do Pai.
Assim como o entendimento, ao conhecer um objeto, concebe ou engendra uma
representação deste objeto, ou seja, o conceito do objeto, Deus, ao conhecer-se a si
mesmo no Verbo e engendra as idéias.
As idéias em Deus são idênticas ao Verbo, mas o nosso intelecto as conhece
distintas, porque nós as conhecemos nas coisas, que são distintas entre si e por estas
surgem os diferentes graus de analogia das criaturas com o criador. Assim, toda a criação
guarda uma semelhança com o Criador: toda criatura é, Analogicamente sombra, vestígio e
imagem do criador.
Sombra, enquanto o seu ser pressupõe a Deus como causa;
Vestígio, pelas qualidades que se referem a alguma ação causal divina;
Imagem, enquanto tem Deus por objeto (que produz a imagem), como as criaturas
racionais, que são assim “imagem” do “objeto” Deus. As criaturas materiais são vestígios e
sombras da Divindade. Só o homem pode ser dito “imagem” de Deus.
Para S. Boaventura, a essência profunda da criatura só é acessível à luz do
exemplarismo , isto é, da relação analógica entre Deus e a criatura, que sempre guarda uma
estrutura trinitária.
Por exemplo, todas as coisas existem segundo três princípios: a matéria, a forma e o
composto, e daí Boaventura vê a relação trinitária: assim como o Pai é o princípio original, o
Filho a imagem e o Espírito Santo o amor ou liame entre Eles.
Toda a criação é uma urdidura de analogias; para ele, a verdadeira ciência e
conhecimento está no descobrir os vestígios de Deus Uno e Trino, que antes do pecado
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original era fácil ao homem e que após, se tornou confusa, de modo que por um esforço
místico, o homem pode encaminhar-se a encaminhar-se diretamente para Deus: Itinerário
da mente a Deus.
III – A Redução
O retorno da alma para Deus se efetua pela iluminação: de Deus descende a luz que
nos reconduzirá a Ele mesmo, o que se dá pelo conhecimento, auxiliado pela graça e na
graça.
O conhecimento sensível
O homem possui uma faculdade sensitiva, pela qual ele percebe as coisas corporais;
como as coisas são compostas de matéria e luz, a forma da luz nas coisas é que permite a
sensação. A alma, ao perceber o estímulo sensitivo, recebe uma impressão e reage a este
estímulo. A alma não extrai de si mesma o conteúdo da sensação (diferentemente do que
afirmava Agostinho). Ela julga o conteúdo da sensação segundo certas normas ou leis
eternas impressas na alma por Deus. E assim a alma inteira participa no ato da percepção.
O sentido comum por sua vez resume as sensações particulares e permite distinguir
o que estamos percebendo neste momento. Na memória se conservam os espécies sensíveis
impressos pela percepção, depois de julgados e caracterizados. A memória por sua vez se
distingue em passiva, que compõem-se da imaginação, da fantasia e da memória sensitiva e
ativa, que é capaz de trazer, por um esforço da consciência, o material guardado pela
imaginação na memória sensitiva.
O Conhecimento Intelectivo
A espécie sensível existente na alma como representação, deve-se transformar em
espécie inteligível, e aqui Boaventura recorre a Aristóteles, na teoria da abstração com a
distinção entre intelecto agente e intelecto possível.
O intelecto passivo deve voltar-se para a imagem representativa – sensitiva, para
dela receber, pela força abstrativa do intelecto agente, a imagem espiritual ou conceito.
Assim entre eles há uma cooperação para a produção da imagem inteligível.
Para o ato do conhecimento há a necessidade, não só do dado sensível (com isto
concordando com Aristóteles), como da alma como receptor da experiência, mas também
dos primeiros princípios pelos quais se tem a experiência dos objetos sensíveis.
Assim, para S. Boaventura, assim como, pelos primeiros princípios, o homem toma
consciência de sua vida, toma também consciência da vida moral e de Deus.
Teoria da Iluminação
A verdade do conhecimento se funda na verdade do ser: é no ser, que é posto e
concebido pelo pensamento, que está a verdade. Assim a verdade só pode ser determinada
pelo ser por excelência que é Deus. Como Deus é a causa de todo ser, Ele deve ser
igualmente a causa do nosso conhecimento e sem Deus, seria impossível qualquer
conhecimento da verdade.
Assim como o saber seguro exige um objeto imutável e este não se encontra nas
coisas mutáveis ou no nosso intelecto, deve-se procurar o fundamento último de todas as
65

coisas em Deus. No entanto, a verdade das coisas não se dá como um mero influxo da ação
divina, mas por um contato direto da alma com Deus.
As razões eternas cooperam na produção do ato cognitivo, submetendo o nosso
intelecto parcial e falho à norma eterna, bem como recolhem e ordenam as nossas múltiplas
experiências sensíveis. A luz nos permanece inacessível na vida presente e mesmo na visão
mística que se realiza pela caridade, daí receber o nome de “douta ignorância”.
Toda vez que o intelecto realiza um juízo na verdade, ele encontra o seu fundamento
último em Deus: a este processo S. Boaventura denomina “resolução plena”. Exemplificando:
a noção de princípio eterno é o conceito de ser e através dele que compreendemos a todos
os objetos e idéias.
O Conhecimento de Deus
S. Boaventura propõe três vias, que convergem num único argumento da existência de
Deus.
Primeira via – o auto conhecimento
A idéia de Deus está como que impressa na própria natureza humana, pois temos em
nós mesmos uma aspiração natural pela sabedoria: o amor à sabedoria é inato ao homem.
Como não se pode amar o que se ignora, o homem deve trazer em sua natureza um saber
acerca da sabedoria eterna.
Também todos nós aspiramos a felicidade. Assim, de algum modo, nossa alma já
conhece, e portanto deseja o Sumo Bem. Igualmente nosso desejo de paz, que só pode ser
realizado na posse de um Ser imutável e eterno, que de algum modo nossa alma já conhece.
Segunda via – O mundo externo
Se Deus é a causa de todas as coisas, devemos poder inferir-lhe a existência a partir
dos efeitos. Se há um ser produzido, deve haver um Ser Primeiro. Se há um ser relacionado
a um outro, deve haver um ser que basta-se a si mesmo. Se há o ser composto, deve haver
um ser absolutamente simples. Se há um ser em movimento, deve haver um ser imóvel. Se
há um ser relativo deve haver um ser que é absoluto, que basta a si mesmo.
Terceira via – O argumento anselmiano
Se partimos de uma clara idéia de Deus vê-se que sua existência é imediatamente
evidente. Se afirmo, “Deus existe” e compreendo de imediato o que significa “Deus”, como
um Ser ao qual não se pode conceber outro maior, a sua existência é participativa do
próprio conceito de Deus e do juízo, pois na afirmação “Deus existe”, o predicado está
contido no sujeito: Se Deus é, Deus existe.
Igualmente se chega a esta conclusão pelo conceito da Verdade: Se a Verdade não
existe, existe pelo menos uma verdade; que a verdade não existe; se existe esta verdade,
deve existir uma verdade primeira, fundamento desta verdade, que é o próprio Deus.
Assim é impossível negar a existência da verdade sem afirmá-la no mesmo juízo e se
Deus é a verdade, é impossível negá-lo, sem ao mesmo tempo afirmar sua existência.
66

João Duns Scotus (1265-1308)


(O doutor sutil)

Torna-se cada vez mais difícil, malgrado o otimismo inicial, presente na obra de
Santo Tomás, uma conciliação plena entre a ciência aristotélica e a teologia. Torna-se
igualmente necessário delimitar e salvaguardar os domínios da teologia frente à filosofia,
que passa a querer julgar os conteúdos da fé exclusivamente a partir da lógica, da
metafísica e da cosmologia aristotélica ou dos comentadores, como Averróis e Avicena.
Surge Duns Scotus como o primeiro a realizar esta delimitação em favor da teologia
ao mesmo tempo reconhecendo os limites desta e da filosofia. Herdeiro e continuador de S.
Tomás e S. Boaventura e tendo livre acesso a todos os escritos de Aristóteles e dos
comentários e Averróis e Avicena, além de conhecedor profundo de Agostinho e da
Sagrada Escritura e inflamado pelo rigor lógico e demonstrativo, Duns Scotus pôde iniciar
uma grande obra em teologia, em que a metafísica recebeu um novo e diferente impulso,
interrompida por sua morte prematura, aos 42 anos de idade.
Vida
Nasceu em 1265 ou 1266 em Duns, no Condado de Berwick na Escócia, donde o nome
Duns (da Aldeia de Duns) Scotus (na Escócia). Entrou em 1278/9 para o convento
franciscano de Dunfries por seu tio, que era guardião e em 1278/9 recebeu o hábito
franciscano aos 15 anos. Em 1291 foi ordenado sacerdote em Northampton e de 1293 a
1296 estuda em Paris e depois ensina em Cambridge e Oxford, entre 1297 a 1301.
Entre 1302 e 1303 está em Paris para tirar o Bacharelado Sentenciário, atividade
interrompida pelo conflito entre o Rei da França e o papa, finalmente concluído em 1304.
Em 1304 é designado para o licenciado do magistério de teologia, ensinando em Paris e
posteriormente em Colônia, onde faleceu em 1308 aos 42 anos.
Obras
Muitas obras de Duns Scotus nos chegaram misturadas em comentários de discípulos
e continuadores, o que torna difícil uma opinião sobre sua autenticidade.
Obras filosóficas
- Questões sobre os Universais de Porfírio
- Questões sobre os livros “De Anima” de Aristóteles
- Questões sutilíssimas na Metafísica de Aristóteles
- Tratado do Primeiro Princípio – visa tornar filosoficamente evidentes certas verdades
referentes a Deus, já aceitas pela fé.
Obras teológicas
- Teoremata – trata de proposições da fé filosoficamente indemonstráveis
- Opus Oxonienais ou Ordenatio – primeiro esboço do comentário às sentenças
- Reportata Parisiensia – coleções de notas de aula
- Questiones Quadlibetales- redigidas após a conquista do magistério
- Collationes e Parisiesis et Oxoniensis.
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Relações entre a Teologia e a Filosofia


A influência do averroísmo, que propugna o livre exame das questões de fé segundo
os critérios e categorias da filosofia, ainda fazia carreira na Universidade de Paris,
quebrando a harmonia entre a fé e ciência que por algum tempo pareceu possível. Duns
Scotus pretende examinar cada uma das questões presentes no conflito com o máximo de
rigor, corrigindo os exageros de ambas as partes.
A primeira questão é o lugar e a necessidade da Revelação, pois para os filósofos, a
luz natural isto é, a razão, já se afigurava suficiente para o conhecimento de Deus. Após
cuidadosa elaboração, Duns Scotus conclui que em nosso estado presente, necessitamos do
auxílio sobrenatural da Revelação.
Em primeiro lugar, por não possuirmos um conhecimento distinto do nosso
verdadeiro fim: em nossa experiência presente nada encontramos que nos permita concluir
que a visão beatífica é nosso fim último.
Em segundo lugar por não sabermos o modo de chegarmos a ele, os meios que a ele
nos conduzem e se estes meios são suficientes, pois a razão por si mesma é incapaz deste
conhecimento e nossas boas obras, como atos contingentes, são indemonstráveis como
suficientes.
Em terceiro lugar por não podermos atingir somente pela razão natural, o
conhecimento do que é mais valioso e necessário, tal seja certas características essenciais
do mundo espiritual e de Deus.
Ora, nosso conhecimento principia pelo sensível e como tal não é capaz de atingir as
propriedades das substâncias espirituais. Assim Duns Scotus, antes de ser um cético
quanto à validade do conhecimento racional, pretende colocá-la em aberto ao saber
superior à própria razão, que é a Revelação.
A Teologia frente à metafísica
Duns Scotus faz uma diferenciação entre:
Conhecimento em si – que é aquele que atinge o seu objeto na medida exata em que este
pode manifestar-se a um entendimento proporcionado.
Conhecimento em nós – é o que pode ser alcançado pelo nosso entendimento: assim, a
teologia em si é o conhecimento atingível por um intelecto proporcionado ao objeto
teológico, ao passo que a nossa teologia é o conhecimento acessível ao nosso intelecto
limitado.
A Teologia das verdades necessárias – as verdades relativas a Deus considerado em si
mesmo.
A Teologia das verdades contingentes – trata das verdades sobre Deus e sua relação com
o mundo.
O conceito supremo da teologia em si, é Deus em sua essência: este conhecimento
não nos é possível. O conceito supremo da nossa teologia, é o de ser infinito: é com este
conceito que a teologia opera.
68

A Metafísica frente à teologia


Qual o objetivo supremo da metafísica? Para Avicena, é o ser; para Averróis é Deus.
Duns Scotus opta pelo primeiro, pois: - Se Deus fosse o objeto supremo da Metafísica,
seria necessário que a existência deste objeto Deus fosse demonstrado por outra ciência,
e com isto a metafísica se subordinaria à física! Ora, a Metafísica é muito mais competente
para demonstrar a existência de Deus, pois esta inicia a demonstração pela análise do ser e
seus atributos até chegar a um ser necessário e primeiro.
Mas aí a Metafísica pára e não pode dizer mais nada sobre Deus, preenchendo então
a teologia, com as verdades reveladas, algo mais sobre a natureza de Deus. Duns Scotus
quer antes de tudo persuadir os filósofos de sua própria insuficiência e assegurar à fé e à
teologia o lugar que o racionalismo exagerado lhes contestava.
Duns Scotus quer defender o direito da teologia positiva no âmbito das verdades
contingentes, cuja aceitação deve buscar-se na palavra de Deus.
O Conhecimento
Duns Scotus como Boaventura propugna que o intelecto não é pura potencialidade ou
passividade frente ao objeto dos conhecimentos: ele engendra o conhecimento a partir de
sua ilimitada energia ativa.
Duns Scotus igualmente dá preferência e prioridade ao conhecimento do singular ao
contrário de Aristóteles e S. Tomás que prioriza o conhecimento do universal.
Para tal ele faz uma distinção entre o conhecimento intuitivo e o conhecimento
abstrativo:
- O conhecimento abstrativo (do universal) prescinde e abstrai a existência e presença do
objeto, para dele apreender tão somente a essência através de uma imagem cognoscitiva.
- O conhecimento intuitivo (do particular) visa o objeto enquanto existente e presente, de
modo imediato, sem intervenção de qualquer imagem. O conhecimento intuitivo nos capacita
a entrar em contato imediato com a própria coisa e como tal, como sua realidade e
positividade, no entanto não podemos distinguir entre duas coisas totalmente iguais. A
individualidade é uma perfeição e o seu conhecimento é algo perfeito.
A Abstração
A natureza de uma coisa (o que a coisa é, sua essência) é anterior tanto a sua
singularidade (existência no particular) como sua universalidade (existência enquanto
universal, por abstração, no intelecto): há uma natureza comum que os objetos de nossa
experiência constituem uma unidade, que não ;é nem a unidade conceitual (do universal),
nem a unidade numérica (do singular) e sim a unidade de essência ou de natureza.
Para Duns Scotus, a abstração não é a universalização do particular e sim da
natureza comum: não há des – singularização, seguida de universalização (como propõe Sto.
Tomás), mas sim uma passagem da indeterminação da natureza comum para a
indeterminação da natureza universal e é isto a abstração.
É o intelecto agente o responsável por este processo; a fantasia ou representação é
tão somente causa parcial e subordinada do conhecimento abstrativo: são o objeto e o
intelecto agindo conjuntamente que produzem o conhecimento.
69

O Valor do Conhecimento humano


Duns Scotus neste ponto abandona Agostinho e Boaventura, rejeitando a teoria da
iluminação e propondo que o intelecto humano possui uma capacidade ilimitada, que por si
mesmo é capaz de iluminar ativamente tudo que entra sob seu domínio. Nosso intelecto é
capaz de apreender de modo imediato os primeiros princípios do conhecimento: alguns
juízos fazemos independente dos dados dos sentidos, outros não, os primeiros nos são
dados pelos primeiros princípios.
Igualmente, embora a experiência sensível não possa abranger todos os casos
particulares de um fenômeno, o observador pode concluir, para a totalidade dos casos o que
observou a partir de um número limitado de casos, e isso se deve aos primeiros princípios.
Do mesmo modo, nossa atividade psíquica nos advém pelos primeiros princípios; posso errar
quanto ao que percebo (isto é, aos dados dos sentidos) mas não posso negar que percebo.
A Metafísica
A Metafísica e sua fundamentação estão no centro das preocupações de Duns
Scotus. Ele distingue entre o ser enquanto objeto do nosso intelecto por um lado e o ser
enquanto conceito que serve para os nossos enunciados metafísicos de outro.
O ser é o objeto primeiro para o qual se volta o nosso intelecto; ele está aberto para
a totalidade do ser, sendo-lhe possível conhecer todo o ente e, portanto, ilimitado: o
intelecto pode conhecer tudo o que é verdadeiro.
No entanto, o intelecto só pode ser colocado em movimento senão por objetos
materiais, o que não quer dizer que o conceito de ser valha somente para as coisas
sensíveis. A partir da experiência sensível do ser, nosso intelecto pode atingir o ser
imaterial.
Ser é um termo predicável de toda a realidade ou de todo ente, tendo um sentido
unívoco. As coisas não tem um caráter unívoco evidentemente, mas o conceito de ser se
predica univocamente das coisas e não de seus conceitos. O conceito de ser se aplica a todo
ente, sem qualquer determinação ulterior.
Os adversários de Duns Scotus argumentam que o conceito de ser não é concebível
sem suas determinações (como necessidade, contingência, finitude ou infinitude, etc), mas
ele responde que o conceito de ser é tão simples e genérico que se aplica a qualquer ente
antes mesmos de suas determinações.
Para ele, o nosso conhecimento a cerca de Deus, bem como a metafísica, exigem um
conceito unívoco de ser, pois do contrário cairíamos sempre em equívocos. O ser se situa
além das categorias, isto é, além da realidade das criaturas: o conceito de ser é
transcendente, bem como tudo que dele pode ser predicado.
A Metafísica é assim a ciência dos transcendentais, isto é, das diferentes
determinações do ser.
Há três classes transcendentais
Os predicados conversíveis com o ser ou as determinações supremas do ser: o
uno, o verdadeiro, o bom e o belo, que podem ser predicados de todo ente e por isso tem a
mesma extensão que o conceito de ser. Os transcendentes disjuntivos são determinações
70

predicáveis em pares de todo ser (finito e infinito, necessário e contingente, absoluto e


relativo, dependente e independente, simples e composto, substância e acidente). A
existência do menos perfeito permite a conclusão da existência do mais perfeito, mas não o
contrário.
As perfeições puras: são as perfeições que por sua natureza não contém nenhuma
imperfeição: a natureza humana e o pensamento raciocinativo são perfeições, mas limitados
ao ser finito; a sabedoria é uma perfeição pura, podendo ser infinita em Deus e finita na
criatura.
Os conceitos das perfeições puras: como o conceito de ser, são unívocos. Se nos
detemos sobre certas perfeições criaturais, fixando-se tão somente na sua essência em si,
podemos predicar um conceito que vale univocamente, tanto para a criatura quanto para
Deus, servindo de traço de união entre a criatura e Deus.
As provas da existência de Deus
Ao contrário de Santo Tomás, que pergunta se Deus existe, ele coloca, à maneira de
Santo Anselmo, se há, no domínio dos seres, um Ser infinito realmente existente. Mas Duns
Scotus reconhece, ao contrário de Anselmo, que a idéia “há um ser infinito” ou “Deus
existe”, não seja auto evidente; é necessário demonstrar que os conceitos “Ser”, “infinito”,
“existente” não sejam contraditórios.
Do mesmo modo, não dispomos de imediato de um conceito da essência divina que
permita conceber, de imediato, a necessidade da existência de Deus. Temos que
demonstrá-la a partir das criaturas ou dos efeitos de Deus, o que não pode ser feito a
partir das propriedades de Deus, quais sejam a inteligência ou a vontade infinitas. As
propriedades divinas relativas às criaturas são três: causalidade eficiente, causalidade
final e eminência
É a partir delas que se deve demonstrar se há um Ser infinito que existe por si
mesmo e que é portanto necessário e se estas três primazias coincidem em um só Ser. Aqui
apresentaremos o argumento de maneira muito sucinta, pois a argumentação de Scotus
supõe um conhecimento de lógica e metafísica além da nossa compreensão comum.
Argumento pela causalidade eficiente
É possível haver uma causa eficiente absolutamente primeira que não é produzida por
nenhuma outra, nem deriva sua eficiência de outra causa eficiente.
Demonstração: Scotus faz a demonstração da seguinte maneira: algum ser é efetível; o
que é efetível só pode sê-lo por si mesmo, ou pelo nada ou por outro ser. Do nada não pode
efetuar-se, pois o que nada é, nada causa; nem por si mesmo, pois é impossível que alguma
coisa cause a si mesma. Logo, deve efetuar-se por um outro, que é a sua causa eficiente;
logo, deve haver uma causa eficiente. Se esta é causa em sentido absoluto, já temos a
prova, se não, temos que investigar sua causa e esta passa a ser a causa segunda e devemos
repetir àquela as perguntas que fizemos a esta. Assim, ou retrocedemos ao infinito ou nos
detemos numa primeira causa eficiente primeira , à qual nada pode ser anterior.
71

Argumento pela causalidade final


Da demonstração da existência de Deus como causa eficiente é possível demonstrar-
lhe a existência como causa final. Algum fim é absolutamente primeiro, isto se prova da
mesma maneira que a da causa eficiente.
Demonstração: o primeiro fim é incausável pela razão de não estar ordenado a nenhum
outro fim, do contrário não seria o primeiro na ordem da finalidade. O primeiro fim existe
realmente, pois se a primeira causa final é possível, ela deve existir realmente, visto haver
contradição em derivar-lhe a existência de outro.
Argumento pela eminência
Isto é, pela perfeição e eminência do ser de Deus.
Demonstração: alguma natureza eminente é simplesmente primeira em perfeição, se se
exclui o regresso ao infinito. A natureza mais eminente é incausável, pois ela não pode estar
ordenada a um outro fim. A natureza suprema realmente existe, pois sua perfeição
suprema exige sua presença real.
Demonstração da unidade essencial das três primeira naturezas
Deus não é a causa unívoca das criaturas: a primeira causa eficiente é a mais elevada
e a mais sublime que todas as causas eficientes, o que nos permite concluir que a primeira
causa eficiente é a natureza (essência) mais eminente, pois, ao conter em si a causa
eficiente de todos os demais seres, é igualmente o mais perfeito e o mais eminente ser
pensável.
É necessário estabelecer a necessidade da primeira causa eficiente: isto decorre
dela existir por si mesma pois: A existência de duas naturezas necessárias é impossível,
bem como a existência de duas naturezas supremas ou eminentíssimas, pois o universo não
pode estar ordenado para dois fins supremos.
Demonstração da infinidade da Natureza Suprema
Cabe agora demonstrar a presença de um intelecto e de uma vontade no ser supremo
e infinito.
Se a Natureza Suprema é intelecto e vontade
Ora, os seres da natureza atuam segundo fins desconhecidos deles; se sua atividade
é necessária, eles devem ser determinados por um agente independente que conhece e ama
aqueles fins.
A existência de um intelecto e de uma vontade na causa eficiente primeira, resulta
de algo ser causado contingentemente. Se algo ocorre não por necessidade natural, mas por
necessidade contingente, é necessário que as causas segundas causem contingentemente e
que a causa eficiente primeira cause necessariamente, sem ela mesma ser contingente. O
Ser necessário é ao mesmo tempo causa de todo ser contingente e se é a causa eficiente
primeira, não só conhece como quer o fim de todo ser contingente, bem como conhece e
quer o seu próprio fim. Logo, o intelecto e a vontade da primeira causa não se distingue da
sua essência.
A primeira causa eficiente ama o primeiro fim e este amor é inteiramente incausado
e como tal existe necessariamente, ou seja, a causa primeira coincide com a vontade. O
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conhecimento da primeira natureza deve ser idêntico a ela mesma, pois o querer supõe o
conhecer, bem como o conhecimento que antecede o amor está mais próximo à natureza,
donde o intelecto ser idêntico a esta natureza.
O intelecto do primeiro Ser tem um conhecimento eterno, distinto e necessário de
tudo o que se pode ser conhecido e este conhecimento é naturalmente anterior à existência
real destas coisas em si mesmas.
Deus, enquanto artista supremo, deve conhecer clara e distintamente todas as coisas
que irá produzir, isto antes de produzi-las, do contrário, o seu modo de operar seria
imperfeito e sendo o seu conhecimento a medida do seu operar, Deus tem um conhecimento
distinto de tudo quanto pode criar.
Se a natureza suprema é um ser infinito
Infinito para Duns Scotus é aquilo que excede qualquer dado finito, não em medida
finita mas além de toda medida finita determinável.
O Primeiro Argumento diz que um movimento infinito pressupõe uma energia infinita: ora,
a causa eficiente primeira deve possuir toda a energia ativa das coisas possíveis, a ela
subordinadas. Como estas são susceptíveis de uma continuidade infinita no tempo, logo a
causa primeira deve possuir esta energia temporalmente infinita de modo unitário e
simultâneo.
O Segundo Argumento parte do conhecimento divino. Deus conhece clara e distintamente
todas as coisas criáveis. Estas coisas por sua vez sendo inteligíveis e possíveis, são infinitas
em número e se elas estão atual e simultaneamente presentes ao intelecto que tudo
conhece, segue-se que este deve ser infinito.
O Terceiro Argumento deriva da causalidade final: nossa vontade sempre tem a
capacidade de querer e amar algo superior a qualquer bem finito e limitado, bem como
nosso intelecto pode conhecer coisas sempre mais elevadas. Assim, se a nossa vontade ama
um bem infinito e não pode encontrar repouso a não ser neste bem, segue-se que a nossa
vontade pode alcançá-lo, visto que, caso não pudesse, experimentaria uma aversão natural
por ele.
O Quarto Argumento funda-se na eminência do ser supremo – resta saber se a infinidade
não repugna ao Ser supremo. Se Ele é eminentíssimo, é também infinito.
O ponto decisivo é saber se a infinidade não repugna ao ser, e por conseguinte, se o
conceito do ser infinito é possível. Se o conceito de ser infinito é possível, ele existe na
realidade.
O nosso intelecto não percebe nenhuma contradição no conceito de um ser infinito, e
este descobre nele o mais perfeito de todos os objetos cognoscíveis: se houvesse uma
contradição no conceito de ser infinito, o nosso entendimento perceberia.
As criaturas
Na doutrina escotista das idéias, a tônica recai na atividade divina. Deus conhece
todas as coisas através de sua própria essência. Disto porém não se deduz a existência
desde toda a eternidade dos modelos ou arquétipos de todas as coisas passíveis de
existência. Isto explica Scotus da seguinte maneira: num primeiro momento Deus conhece a
73

essência das coisas em si mesmo. Num segundo momento Deus cria as essências. Num
terceiro momento Deus compara a essência das coisas entre si e com o seu próprio
intelecto, o que dá origem a uma relação de razão. Num quarto momento o intelecto divino
como que reflete sobre esta relação. Assim o intelecto divino conhece e possui em si a idéia
de todo objeto a ser criado sem necessariamente traze-lo à existência. Note-se que estes
“momentos” são lógicos e não cronológicos.
Scotus se recusa a admitir a concepção tomista segundo a qual a matéria é pura
possibilidade de receber uma forma. Isto seria reduzi-la ao nada. Ele nota que é possível
estabelecer uma série de enunciados positivos a respeito da matéria: ela é um princípio da
natureza, ela é causa, é substrato de mudanças substanciais, é criada e conhecida por Deus
donde se segue que ela deve possuir algum ser, pois como princípio e causa do ser
hileomórfico, é necessário que ela possua algum ser próprio e portanto alguma coisa em ato.
A matéria tem portanto uma realidade diferente da forma, com um ser positivo no âmbito
do possível, sem no entanto ser conhecido pelo intelecto humano, embora o seja pelo
intelecto divino. A matéria seria em si mesma algo que pode existir sem forma.
O homem
Seguindo a escola franciscana e distintamente de Santo Tomás, que chama o corpo
matéria e a alma forma do homem, Scotus admite duas formas no composto humano: a
forma da corporeidade que determina o corpo e a forma intelectiva, que enquanto alma,
determina o homem. As duas formas se distinguem realmente uma da outra. À forma do
corpo se sobrepõe a forma superior da alma, contendo, em unidade íntima, as energias vital,
sensitiva e intelectual. As energias vitais e sensitivas são distinguíveis só teoricamente,
pois compõem uma mesma potência e se ligam ao corpo. Por sua vez, a energia intelectiva se
dirige a Deus.
Ao contrário de Santo Tomás também, Scotus afirma não ser possível demonstrar
racionalmente a imortalidade da alma, se ela é uma forma apta a existir por si mesma e sem
o corpo. Por outro lado, a alegação da necessidade de uma recompensa ou castigo depois da
morte é algo que supõe a existência de um supremo juiz e não é possível demonstrar que o
Ser supremo e infinito seja também Supremo Juiz, pois este fato só nos é dado pela fé. O
argumento de que aspiramos naturalmente a imortalidade e a ressurreição é uma “petição
de princípio”, isto é, supõe o que se deveria demonstrar. Os animais também defendem sua
vida e desejam auto preservar-se sem que com isso se possa derivar a sua imortalidade.
Para Scotus a imortalidade da alma a ressurreição, a recompensa ou castigo eternos são
coisas que Deus, na sua infinita misericórdia revelou aos homens, já que todos os filósofos
até hoje nada conseguiram saber de seguro sobre nosso destino último.
A ética
Neste ponto Scotus é absolutamente fiel à tradição agostiniana e à influência de
Santo Anselmo. Seu propósito é harmonizar os direitos de Deus com os do indivíduo
humano: procura salvaguardar ao mesmo tempo a contingência e a dignidade da pessoa
humana.
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Scotus insiste no primado da vontade no sentido que ela não é determinada pelo
conhecimento do bem e nem sequer pelo Sumo Bem, podendo mesmo apartar o intelecto da
consideração do Sumo Bem, pois o que mais caracteriza a vontade é não se deixar
determinar por nenhuma causa que não seja ela mesma. Deste modo o intelecto mantêm
uma relação de subserviência em relação à vontade no que se refere ao ato volitivo. Ela
detém a função de instância suprema no domínio das decisões humanas. O que transtorna
mais o homem é o erro da vontade e não da inteligência. Como Santo Anselmo afirma que a
vontade é o motor por excelência do reino da alma e tudo lhe obedece.
A vontade de Deus é por sua vez a norma suprema da moralidade. Deus não quer as
coisas por serem boas, mas elas são boas porque Deus as quer e as ama. Com isso não se
afirma que o domínio da ética depende do arbítrio incondicional de Deus, mas que a vontade
divina se faz orientar por normas estritamente lógicas e sobretudo pela sua própria
essência.
Existem duas modalidades de valor: o ”bonum honesti” e o “bonum commodi ou
delectabile”. O primeiro comporta em si mesmo um valor objetivo. O segundo comporta uma
fonte de prazer e satisfação para o sujeito (valor subjetivo). O “bonum commodi” mais
elevado é a beatitude, entendida como felicidade e não exatamente a visão beatífica; esta
contém sempre o bem honesto. O “bonum honesti” mais elevado é a caridade, que encerra
necessariamente o “bonum commodi”.
De acordo a estes princípios, a alma, ou mais precisamente a vontade, pode ser
afetada de dois modos diferentes e isto nos leva a distinguir uma dupla afeição na vontade:
uma “affectio commodi”, que inclina a vontade natural à satisfação subjetiva, e a “affectio
iustitiae”, pela qual a vontade se inclina à afirmação suprema do valor objetivo. Ambas as
afeições só encontram seu fim último em Deus, por meio de um contato imediato com Ele, já
que Deus é um bem ao mesmo tempo justo e deleitável.
Se a “affectio commodi” visa satisfazer nossa tendência natural à felicidade, a
genuína liberdade manifesta-se no amor desinteressado dos valores, o qual se sobrepõe à
nossa tendência egocêntrica, orientando-a e moderando-a. Desta forma, a vontade culmina
no mais elevado e puro amor aos valores e longe de suprimir o elemento afetivo, tem a
função de norteá-lo em direção ao bem supremo. No entanto, o ato pelo qual o homem entra
no pleno gozo de um valor é sempre precedido pela degustação daquele valor; por isso, todo
bonum honesti comporta em algum grau o bonum commodi. O valor último e supremo é a
sabedoria e a caridade, que para Duns Scotus são uma única coisa. A sabedoria suprema é a
entrega total que o homem faz de si mesmo a Deus, em que o homem é supremo valor para
Deus, pois o ama infinitamente.
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GUILHERME DE OCKHAM (1280 – 1349)

Contexto histórico
O século XIV é o último século da Idade Média. Se o século XIII foi o apogeu da
civilização cristã européia, marcado pelo ideal da unidade política, religiosa e cultural, em
que o papa exercia não só a autoridade suprema na Igreja, como era também o árbitro das
nações, o século XIV vê desaparecer esta unidade numa série de conflitos de ordem
religiosa, política e intelectual.
A figura que abre este século é o papa Bonifácio VIII, que ao tentar manter sua
autoridade suprema na cristandade, entra em conflito com o rei da França, Filipe, o belo, o
qual termina por exilá-lo e trazer para Avignon, no território francês, a cúria e elegendo
um papa submisso à sua política. Este fato veio desprestigiar tremendamente o papado, que
passa a ser um instrumento do rei da França. Esta situação perdurou de 1309 a 1417, e
agravou-se quando o papa retorna a Roma em 1377, pois passa a haver um papa em Avignon
e outro em Roma, no que ficou conhecido como “Cisma do Ocidente”.
Bonifácio VIII decretou o primeiro ano jubilar da história (1300), procurando
catalisar a seu favor o arroubo místico que perpassara todo o século XIII, expresso na
florescente vida religiosa deste período, ao mesmo tempo em que tentou aumentar o seu
poder temporal. Fracassado seu projeto, a Igreja passou por um processo de decadência de
suas estruturas e instituições ao mesmo tempo em que se acentuava um ardente desejo de
reforma e renovação espiritual no seio de toda a cristandade. Expressão deste desejo de
renovação é o florescimento formas de espiritualidade, essencialmente leigas e de elevada
exigência ascética, que conhecidas como “devotio moderna”, de caráter intimista,
espiritualista e fideísta, avessa às estéreis e complexíssimas discussões de escolas que se
acentuarão a partir de então.
Outra coisa que emerge no século XIV é a afirmação dos estados nacionais. Durante
toda a Idade Média, do século IX ao XIII, a Europa se vê sob a égide de duas figuras
teocráticas, o papa e o imperador romano germânico. Este último, desde Carlos Magno,
representava o ideal de uma Europa unida sob um único soberano, ainda que seu poder
fosse, em muitas partes, meramente simbólico. O imperador por sua vez era sempre
coroado pelo papa, que expressava desta forma sua autoridade e o prestígio da Igreja.
Como o papa agora era controlado pelo rei da França, o novo imperador Luís
(Ludovico/Ludwig) da Baviera dispensou-se deste gesto, expressando o afastamento da
região germânica da autoridade centralizada da Igreja. Por sua vez a França tenta afirmar-
se como a principal potência européia, encontra na Inglaterra uma séria oponente. Esta
disputa levará à “guerra dos cem anos” entre a Inglaterra e a França (1337-1453). Cada
nação européia tentará criar sua própria estrutura política, administrativa, militar e
lingüística, rompendo uma unidade que se manteve sob a égide da Igreja até então.
O florescimento das cidades e do comércio e o aumento da população traz uma nova
realidade social: o surgimento das “comunas” ou cidades livres, em que a aristocracia local
ora se aliava ora disputava o poder com a burguesia nascente. Esta nova classe social traz
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reivindicações não só de caráter político, mas também espiritual. Ela será a principal
divulgadora da “devotio moderna” de que falávamos atrás.
Grande catástrofe natural do século XIV será a “peste negra”, que se supõe tenha
matado a terça parte da população européia de então, a partir de 1346, provocando um
grande desequilíbrio demográfico, social e econômico.
As revoltas de camponeses, esmagados por impostos, fome e guerras avassalarão o
norte da Itália, a França (a Jacquerie) e depois a Inglaterra (revolta dos lolardos). Estas
revoltas tinham caráter acentuadamente anticlerical, pois os camponeses se ressentiam que
o clero desfrutasse de tantos bens e eles vivessem na maior miséria.
Este anticlericalismo se expressa no desejo de ver a Igreja afastada das suas
atividades mundanas, como disputas de poder político e controle de atividades econômicas,
voltando-se para a simplicidade do Evangelho, pois sua atual estrutura parecia afastar a
Igreja de seus verdadeiros fins. Uma grande disputa perpassou a ordem franciscana neste
período: a questão da pobreza. Para os chamados “espirituais”, a fidelidade a esta virtude
deveria ser radical, enquanto para outros era algo flexível, pois os bens materiais estavam
a serviço das atividades evangélicas. É claro que esta polêmica não era exclusiva da ordem
franciscana, mas era discutida também em relação ao papa, aos bispos e abades. Uma
expressão deste movimento foi o “joaquimismo”, iniciado pelo frade Joaquim de Fiore, a
partir do sul da Itália, espalhando-se por toda a Europa. Este frade misturava os princípios
da pobreza evangélica com uma acentuada expectativa escatológica, em que pregava o
surgimento de uma terceira era, a “era do Espírito”, que levaria toda a cristandade a um
processo de profunda renovação e purificação moral e espiritual. Embora Joaquim de Fiore
pregasse esta reforma pelas palavras, alguns de seus adeptos passaram a atitudes mais
radicais, queimando mosteiros e conventos e matando nobres, burgueses e eclesiásticos.
Este movimento, ainda que perseguido, permaneceu subterrâneo e ativo por bastante
tempo.
Do ponto de vista estritamente cultural, o século XIV vive à sombra das várias
condenações de que foi objeto, no fim do século XIII, o aristotelismo averroísta de Siger
de Brabante e o aristotelismo tomista. Em 1277 o arcebispo de Paris, Estevão Tempier
colocou sob suspeita várias teses tomistas e no ano seguinte o bispo de Oxford, Roberto
Kilwardby proibiu que se ensinasse as teses tomistas da geração, da passividade da
matéria, da introdução de novas formas no corpo humano após a morte e a unidade da
forma humana. Estas condenações foram reafirmadas em 1284 pelo sucessor de Kilwadby
John Peckham. Isto foi somente o prelúdio das disputas que opuseram os seguidores de
Tomás e Boaventura e depois de Tomás e Scotus . Há uma queda da capacidade de reflexão
e na produção teológica, imersa em inúteis discussões ou se contentado em comentar
autores que se tornavam clássicos. A tentativa de conciliação entre fé e razão intentada
por Tomás não teve continuadores. Scotus tentou uma delimitação do campo das duas
formas de conhecimento, em favor da teologia, mas Ockham expressará a opinião da
completa irredutibilidade de uma à outra e embora ele mesmo não fosse um racionalista, as
77

conseqüências de suas posturas mudarão completamente o panorama intelectual a partir de


então.
Vida e obras
A figura que representa mais do que qualquer outra todos estes aspectos que
caracterizam o final da Idade Média foi o franciscano Guilherme de Ockham, conhecido
como “o príncipe dos nominalistas”. Durante a retomada dos estudos sobre a escolástica,
Ockham foi de certo modo relegado a um segundo plano, pois não se percebeu de imediato
sua importância para o desenvolvimento de várias áreas do conhecimento, como a lógica, a
ciência, a filosofia e a teologia, principalmente na sua concepção do conhecimento
especificamente empírico da natureza, na separação definitiva da filosofia da teologia e no
campo político, a separação do poder temporal do espiritual, que em resumo expressam a
afirmação do indivíduo em seu poder criador e a liberdade de pesquisa livre de amarras e
censuras, que tanto caracterizará o Renascimento.
Nasceu no condado de Surrey, na aldeia de Ockham, uns 30 quilômetros de Londres,
entre os anos de 1280 e 1285, tendo ingressado na ordem fransciscana com cerca de 20
anos. Ordenado diácono em 1307, cumpriu seus estudos universitários em Oxford entre
1309 e 1315. Bacharel bíblico entre 1315 e 1317 e bacharel sentenciário entre 1317 e 1319
comentando as sentenças de Pedro Lombardo. Entre 1317 e 1324 escreveu a Lectura libri
sententiarium, a Expositio aurea e a Expositio super physicam, bem como a Ordenatio e os
Quodlibeta. Não foi promovido a Magister regens por oposição de John Lutterell, chanceler
de Oxford, que acabou rejeitado da universidade e privado de seu posto pelo bispo de
Oxford.
Em 1324 transfere-se para o convento franciscano de Avignon, pois o papa João
XXII o convocara para responder a acusações de heresia. De fato, o ex-chanceler havia
extraído dos escritos de Ockham uma série de pontos considerados suspeitos de heresia.
Depois de três anos de estudo a comissão nomeada pelo papa condenou sete pontos como
heréticos, trinta e sete como falsos e quatro como temerários. Neste período concluiu suas
maiores obras, a Summa logicae e o Tratactus de sacramentis.
Neste meio termo sua situação agravara-se ainda mais, pois na polêmica surgida no
seio da ordem franciscana sobre a questão da pobreza, Ockham alinhara-se com a ala
intransigente, opondo-se à postura moderada do papa. Vendo sua situação tornar-se crítica
em Avignon, foge e se abriga junto de Luís, o bávaro, em Pisa, quando teria dito: “o
imperador defende-me com a espada e eu o defendo com minhas palavras”. Seguido o
imperador, estabeleceu-se em Munique, na Baviera. Com a morte de Luís, vendo-se
desamparado, procurou fazer as pazes com a Ordem e com o papa. Não sabemos se a
reconciliação se deu. Morre em Munique em 1349, vítima possivelmente da peste negra.
Neste seu último período não escreveu mais sobre filosofia, mas produziu várias
obras de caráter político religioso, das quais podemos citar: o Opus nonaginta dierum e o
Compendium errorum papae Johannis XXII, onde defende um conceito rigoroso de
pobreza, contra a postura conciliatória do pontífice. No Breviloquium de potestate papae e
no Dialogus, defende a possibilidade de se depor o papa em caso de tornar-se ele herético,
78

bem como das relações entre o papa, o concílio e o imperador. Escreveu ainda o Tratactus
de iurisdictione in causis matrimonialibus e o De imperatorum et pontificum potestate.
Relação entre fé (teologia) e razão (filosofia)
Ockham tinha consciência da fragilidade teórica da harmonia entre razão e fé e do
caráter subsidiário da filosofia em relação à teologia. As tentativas de conciliação de
Tomás, Boaventura e Agostinho, a partir de elementos aristotélicos ou agostinianos,
através de construções metafísicas e gnoseológicas pareceram-lhe inúteis e danosas. O
plano do saber racional baseado na clareza e na evidência lógica e o plano da doutrina
teológica, orientados pela moral e pela revelação são essencialmente assimétricos. Não são
somente distintos, mas separados. A filosofia não é mais serva da teologia, pois esta não
pode ser considerada ciência, mas sim um complexo de proposições que se vinculam não por
uma coerência racional, mas pela força de coesão da fé. O mistério da Santíssima Trindade,
por exemplo, não tem como ser demonstrado ou explicitado racionalmente. A razão não está
em condições de fornecer suporte para a fé, porque não consegue tornar o dado revelado
mais claro do que pode fazê-lo a fé. As verdades de fé são um dom gratuito de Deus e não
é honesto tentar revestir de logicidade racional verdades que transcendem a esfera de
compreensão humana. A razão tem uma função diferente do domínio da fé.
Para fundamentar esta tese Ockham apela para um princípio teológico: a onipotência
de Deus é ilimitada e o mundo é obra contingente de sua liberdade criadora. Assim sendo
não há um vínculo entre Deus onipotente e a multiplicidade dos indivíduos singulares e
finitos, a não ser pelo ato de sua atividade criadora, algo não passível de ser conhecido por
nós, mas somente por sua sabedoria infinita. Assim a proposição metafísica das Idéias
criadoras de Deus (Agostinho) ou das formas universais (Tomás) subsistindo no Intelecto
Divino e servindo de modelo ou intermediário para as criaturas individuais não passavam de
resquícios de paganismo. A metafísica do ser, de Tomás e Scotus, que permitiam uma
analogia e uma continuidade entre a onipotência de Deus e a contingência das criaturas
pertencem a um reino que esta a meio caminho entre a fé e a razão, incapaz de alimentar a
primeira e sustentar a segunda.
O primado do conhecimento do particular
Com a radical separação entre Deus e as criaturas faz com que o mundo para Ockham
seja um conjunto de elementos individuais sem qualquer laço verdadeiro entre si e não
ordenável em termos de natureza ou essência. Neste sentido ele concebe o indivíduo de tal
maneira unitariamente que não admite uma distinção interna entre matéria e forma, pois se
esta fosse real, estaria comprometida a unidade e a existência do indivíduo (a distinção
entre corpo e alma no homem seria, portanto, puramente ideal e não real).
Conseqüência imediata deste princípio é que só é verdadeiro o conhecimento do
individual ou particular. Ao contrário das teses aristotélicas e tomistas, que só achavam
verdadeiro o saber a partir do universal, Ockham coloca como objeto próprio da ciência o
objeto individual. Eliminando o sistema de relações de causas necessárias e ordenadas de
cosmo platônico e aristotélico, faz emergir um universo fragmentário de indivíduos isolados
e contingentes, submetidos tão somente à onipotência divina. Segundo estes princípios,
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tornam-se supérfluos os conceitos de substância e acidente, matéria e forma, ato e


potência, nos quais se baseava a metafísica ocidental desde há cem anos.
Conhecimento intuitivo e conhecimento abstrativo
O primado do indivíduo leva ao primado da experiência, na qual se baseia o
conhecimento. Ockham faz uma distinção entre conhecimento incomplexo, relativo aos
singulares e aos objetos que eles designam, e conhecimento complexo, relativo às
proposições resultantes, compostas de termos. A evidência de uma proposição deriva da
evidência dos termos que a compõem. Não havendo esta, não pode haver aquela.
O conhecimento incomplexo por sua vez pode ser intuitivo e abstrativo. Pelo
conhecimento intuitivo se dá o reconhecimento de uma verdade contingente; igualmente é
por ele que julgamos se uma coisa existe, quando existe e também se não existe e quando
não existe. Ele é o conhecimento fundamental, sem o qual os outros conhecimentos não
seriam possíveis; ele está na base do conhecimento experimental e é por ele que se pode
passar de uma verdade contingente a uma verdade necessária. Este “corte” operado por
Ockham é radical: prenuncia o empirismo ainda que não de caráter sensístico.
O conhecimento abstrativo por sua vez pode ser tomado em duplo sentido: por um
lado quando se refere a algo abstrato de muitos singulares, de modo que o conhecimento
abstrativo é o conhecimento de algo universal abstraível de muitos; por outro lado o
conhecimento é abstrativo quando faz a abstração da existência ou não existência e das
outras condições que ocorrem ou são atribuíveis a uma coisa, de forma contingente. O
conhecimento abstrativo acompanha o intuitivo, mas diferentemente dele, não se ocupa da
existência ou não do objeto. O objeto de ambos os conhecimentos é idêntico, mas captado
sob aspectos diversos: o conhecimento intuitivo capta a existência ou inexistência de uma
realidade, ao passo que o conhecimento abstrativo prescinde desses dados.
Os dois conhecimentos são intrinsecamente distintos, porque cada qual tem o seu
próprio ser: o primeiro diz respeito a juízos de existência, o segundo não. O primeiro está
ligado à existência ou não de uma coisa, o segundo prescinde disso. O primeiro é causado
pelo objeto presente, o segundo o pressupõe e é posterior à sua apreensão. O primeiro
trata de verdades contingentes, o segundo de verdades necessárias.
O universal e o nominalismo
Ockham afirma em diversas ocasiões que o universal não é real. A realidade do
universal é contraditória e não deve ser admitida: a realidade é essencialmente individual.
Os universais são nomes e não uma realidade, nem tem seu fundamento na realidade. No
indivíduo não há nenhuma natureza universal realmente distinta daquilo que é próprio de um
indivíduo. A realidade portanto é toda singular. Neste sentido cai por terra o problema da
individuação, que tanto foi discutida desde os gregos, pois não há, como sempre se supôs,
passagem da natureza específica ou essência universal ao indivíduo particular. Igualmente
torna-se supérflua a discussão do problema da abstração como tematização da natureza
específica.
Se os universais não são coisas existentes fora da alma, ou nas coisas ou entes das
coisas, eles são simplesmente formas verbais (nomes), através das quais a mente humana
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estabelece uma série de relações de exclusiva dimensão lógica. Qual é então a origem do
conhecimento abstrativo? Será ele o conhecimento extraído de muitos objetos individuais?
Ora, se cada realidade singular provoca um conhecimento também singular, a repetição e
muitos atos de conhecimento relativos a coisas semelhantes entre si, geram no intelecto
conceitos que não significam uma coisa singular, mas uma multiplicidade de coisas
semelhantes entre si. Sinais abreviatórios de coisas semelhantes, os universais não
representam mais que a reação do intelecto à presença de realidades semelhantes.
Mas se não existe a natureza comum e nem se pode considerar real o universal, como
fica então a ciência, que segundo tanto aristotélicos como agostinianos, não tem por objeto
o particular, mas o universal? Ockham exclui um sistema de leis universais e uma estrutura
hierárquica e sistemática do universo e não se lamenta disso, pois para ele estas
construções prejudicam muito mais que ajudam o conhecimento. Para ele é suficiente o
conhecimento provável, que baseando-se em repetidas experiências, permite prever que
aquilo que aconteceu no passado tem um alto grau de possibilidade de acontecer no futuro.
Recusando-se a fundamentar a fundamentação da ciência em demonstrações metafísico-
físicas, ele contenta-se com um certo grau de probabilidade derivado da pesquisa, ao
mesmo tempo que concebe o universo como composto de coisas individuais e múltiplas, não
relacionadas por nexos imutáveis e necessários. Note-se que probabilismo não é sinônimo de
indutivismo: não é passagem de um conhecimento particular ao universal, mas passagem de
um conhecimento particular a um conhecimento provável.
A “navalha de Ockham”
Neste contexto de estrita fidelidade ao individual, temos um preceito metodológico
de simples enunciação, mas cheio de conseqüências: “Não se multipliquem os entes se não
for necessário”. Este princípio ficou conhecido como “navalha de Ockham” e se tornou uma
arma crítica contra o platonismo das essências e contra os aspectos do aristotelismo com
resquícios platônicos. Com este princípio, caem por terra os fundamentos da metafísica e
da teoria do conhecimento tradicionais.
Ockham rejeita tanto a metafísica do ser analógico de Tomás de Aquino, como a
metafísica do ser unívoco de Scotus, em nome de um único princípio unitivo entre o infinito
e o finito, constituído pelo ato puro da vontade criadora de Deus, ato este que não é
passível de uma abordagem racional: ele está acima e além da razão. Desaparece também o
conceito de substância. Nós só conhecemos das coisas as qualidades e acidentes que a
experiência nos revela. O conceito de substância representa uma realidade desconhecida,
admitida de modo arbitrário como conhecida. Este conceito milita contra o princípio da
economia da razão. O mesmo pode ser dito do princípio da causa eficiente. Tudo o que é
possível de se conhecer empiricamente é a diversidade entre causa e efeito, que um
fenômeno se sucede ao outro. É possível conhecer-se as leis que regulam os fenômenos, mas
não seu vínculo metafísico e portanto o elo necessário entre causa e efeito. O mesmo
raciocínio vale para a causa final. O princípio de que cada ação tende a um determinado fim,
desejado ou querido só pode ser dito metaforicamente, pois desejo e amor não implica a
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necessidade de que estes atinjam determinado fim. Por sinal, para a maioria dos fenômenos
é impossível determinar qualquer causa final.
No que se refere à teoria do conhecimento a simplificação é ainda mais radical: no
ácido debate entre averroístas e tomistas, na distinção entre intelecto agente e intelecto
possível, Ockham afirma que esta é uma questão supérflua, optando pela unidade do ato
cognoscitivo e a individualidade do intelecto que o realiza. A necessidade de categorias e
princípios universais, que havia levado à distinção entre intelecto possível e intelecto
agente é considerada artificial e inútil para a efetiva concretização do conhecimento. Se o
conjunto das operações cognoscitivas é único, única deve ser o intelecto que o realiza. Se
nem a memória e nem o conhecimento conceitual nos pode afastar do contato imediato com
o mundo empírico, então todas as entidades intermediárias e mediadoras entre sensível e
inteligível deve ser considerada supérflua. Com isto a distinção de espécies sensíveis e
inteligíveis: elas são inúteis para explicar a percepção dos objetos, pois se o objeto não
fosse por nós captado de modo intuitivo e imediato, a existência ou a distinção de espécies
não poderiam torná-lo conhecido ou conhecido mais perfeitamente. Nada substitui a
simples presença do objeto para o seu conhecimento e reconhecimento.
Resumindo, o princípio da “navalha de Ockham” abre caminho para um tipo de
consideração “econômica” da razão, que tende a excluir do mundo e das ciências entes e
conceitos supérfluos, a começar pelos entes e conceitos metafísicos, que imobilizam a
realidade e a ciência, configurando o que posteriormente será chamado de rejeição de
hipóteses “ad hoc”. Por outro lado tal crítica parte do pressuposto de que não é necessário
admitir nada fora dos indivíduos, bem como que o conhecimento fundamental é o
conhecimento empírico.
A nova lógica
Como fica, com todo este discurso crítico, a lógica, cujas regras devem ser
respeitadas por todo discurso científico? Ockham se propõe então a libertar o nosso
pensamento da confusão entre entidades lingüísticas e entidades reais, entre elementos do
discurso e elemento da realidade. O que ele propõe é que não devemos atribuir aos sinais,
necessários para a comunicação nenhuma outra função que a de representação ou símbolo,
cujo significado está em assinalar ou indicar realidades diversas dela.
Neste sentido ele, antes de falar das proposições, ele fala dos termos que compõe a
proposição e faz a distinção entre termo mental, que é uma invenção ou modificação na
alma, por sua natureza significante ou co-significante de algo, capaz de fazer parte de uma
proposição mental. O termo oral por sua vez é a parte da proposição enunciada pela boca e
perceptível pelo ouvido. Por fim, o termo escrito é a parte de uma proposição fixada sobre
algum corpo, de modo que se deve ou se pode ver com os olhos do corpo. O termo mental é
natural, ao passo que os dois outros são convencionais, visto que mudam de língua para
língua.
Ockham fala ainda de termos categoremáticos: aqueles que têm um significado
definitivo e preciso, como o termo “homem”, que significa todos os homens singulares, o
termo “animal”, que significa todos os animais singulares ou o termo “brancura”, que
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significa todas as coisas brancas. Por sua vez, são termos sincategoremáticos os termos
como: cada, nenhum, algum, tudo, exceto, somente, enquanto e similares, que não têm um
significado definido e preciso e só ganham sentido quando se ligam aos termos
categoremáticos, fazendo-os significar algo diferente.
Por fim é preciso distinguir os termos absolutos e os termos conotativos. Os
primeiros são aqueles que não significam primariamente alguma coisa e secundariamente
alguma outra coisa, mas sim, com o mesmo nome, significa qualquer coisa, que é significada
toda primariamente; por exemplo, o nome “animal”, que significa os bois, os asnos e as
ovelhas, não significa um primariamente e outro secundariamente. Já o termo conotativo é
aquele que significa uma coisa primariamente e outra secundariamente, como o termo
“branco”, que significa primariamente o sujeito a que se atribui a cor e, secundariamente, a
brancura possuída pelo sujeito designado.
O uso dos termos conotativos visa indicar as modalidades de certas entidades,
no sentido de que indica diretamente uma coisa e indiretamente outra, conotando
precisamente entre os objetos uma relação que, porém, não se reveste de uma realidade
diferente deles.
Além das propriedades já citadas, os termos também têm propriedades que
derivam do lugar que ocupam na proposição. É a teoria da suposição, que indica o
significado que, de quando em vez, um termo adquire ou revela no contexto de uma
proposição. A suposição, por assim dizer, é o colocar algo no lugar de alguma coisa, de modo
que, quando um termo está no lugar de alguma coisa numa proposição, supõe esta coisa.
Cabe ainda distinguir: a) a suposição pessoal, que se dá quando um termo supõe, por seu
significado, tanto quando esse significado coincide com uma coisa extramental, como
quando coincide com um termo mental ou escrito, como quando se diz: “o homem é um
animal”; neste caso “homem” significa cada homem singular e “animal” um conceito mental;
b) a suposição simples se dá quando um termo supõe por um conceito, mas não é tomado de
modo significativo, como quando se diz: “o homem é uma espécie” em que a palavra homem
supõe a palavra espécie, sem que com isso homem signifique espécie; c) a suposição
material, que é quando um termo não supõe significativamente, mas sim pelo termo oral ou
escrito, quando por exemplo se diz: “homem é um nome”.
Em suma, o mesmo termo pode ter um significado diverso segundo a função com o
qual, na proposição, ele denota algo diferente de si mesmo. Nos casos examinados, o valor
do termo “homem” brota sempre de algo concreto e distinto, que é a materialidade da
palavra, a pessoa dos indivíduos ou a própria realidade psíquica da impressão geral que está
presente na mente de quem pensa o conceito de homem.
Estas observações evidenciam a intenção de Ockham de dar à lógica um estatuto
autônomo e mais rigoroso que o dado por seus antecessores. O que é importante destacar é
a constante negação de qualquer objetividade aos termos, no sentido de que sua função é
sempre a de indicar algo diverso de si mesmo. Trata-se de uma separação radical entre a
lógica e a realidade, entre termos e coisas, entre o plano conceitual e o plano real.
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Esta clara separação entre lógica e realidade permite a Ockham tratar os


termos como se fossem puros símbolos e relacioná-los entre si sem se preocupar com a
realidade designada. Deste modo ele se coloca em condições de oferecer uma impecável
teoria da demonstração lógica, evidente e rigorosa em si mesma, porque constituída por
puros símbolos. À luz dos resultados a que chegou a moderna lógica simbólica, sobretudo
com a distinção entre “sintática” e “semântica”, é fácil perceber a genialidade da intuição
de Ockham, que antecipou-se quase sete séculos a ela.
Ockham, ao chamar a nossa atenção sobre o modo com que nos servimos de certos
termos e, portanto, das proposições que fazemos, não só na sua estrita lógica interna, mas
em sua relação com a realidade, exige uma base experimental, como meio de controlar
nossa linguagem, evitando-se assim a proposição de termos vazios ou confusos. Ele associa
de modo indiscutível, o rigor do discurso científico, com o rigor da linguagem. A fidelidade
à suposição lógica, em suas várias formas, induz a descartar expressões aproximativas e
indicar com precisão aquilo de que se está falando, evitando assim danosas obstruções
lingüísticas. Em suma, trata-se de uma construção lógica que põe em ordem no pensamento,
leva clareza à linguagem e exige realismo no saber.
O problema da existência de Deus
No contexto das exigências lógicas, bem como da teoria do conhecimento, Ockham
exclui toda intuição de Deus e, no que se refere ao conhecimento abstrativo (que parte dos
entes do mundo), ele destaca toda a incerteza em relação a isso. Nada pode ser conhecido
em si pela via natural se não for conhecido intuitivamente por via puramente natural.
Quanto à possibilidade de um conhecimento “a posteriori” de Deus, isto é, por seus efeitos
no mundo, tal como elencam Scotus e Tomás, ele nega a possibilidade deste salto.
Tendo derrubado a metafísica do ser, ele considera que mais do que causas
“eficientes”, é preciso se basear nas causas “conservantes”. Se mantivermos a noção
aristotélica e averroísta da eternidade do mundo, nada nos impede de regredirmos
infinitamente na busca das causas eficientes.
Ele entende que a noção de causas conservantes é mais fecunda. Por conservação
entende-se aqui o ato através do qual uma coisa conserva o seu ser. Assim argumenta
Ockham: Alguma coisa é realmente produzida por um ente se, durante todo o tempo em que
se mantém no ser real, é conservada por um ente. Ora, é certo que o mundo é produzido;
logo ele é conservado por um ente durante todo o tempo em que se mantém no ser. Sobre o
ente que o conserva, eu me pergunto: ou é produto de outro ente que o conserva ou então
não é. Se não é produto de um outro, ele é a primeira causa eficiente, assim como é a
primeira causa conservante, considerando que toda causa conservante é também causa
eficiente. Se, no entanto, aquele ente que conserva o mundo no ser é produto de um outro
ente, então será conservado por um outro. E a propósito desse outro propõe-se a mesma
interrogação de antes. E, assim, ou iremos ao infinito ou então será necessário nos
determos em algum ente que só conserva e não é conservado, o qual será a causa eficiente
primeira. Mas é impossível proceder ao infinito nas causas conservantes, porque nesse caso
existiria o infinito em ato, o que é absurdo.
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O motivo pela qual Ockham prefere este tipo de argumentação parece ser a
seguinte: a realidade da causa conservante é tal no ato em que expressa a potência que faz
ser e não ser, que conserva e não conserva; por isso, a certeza de sua existência está ligada
à existência em ato do mundo, que necessita a cada instante ser mantido no ser.
No entanto, a razão não pode ir além disso e nada se pode afirmar dos atributos
divinos (unidade, infinitude onipotência, providência). As provas apresentadas em favor de
tais atributos são argumentos prováveis, sem alcançar a demonstrabilidade, pois não
conseguem excluir toda dúvida. Não é possível ir além da afirmação da transcendência de
uma causa conservante e eficiente. Isto permite a Ockham escapar da acusação de
agnosticismo, pois, ao propor a causa como transcendente à ordem finita, ela garante as
premissas que tornam possível que tal Absoluto se manifeste à razão humana com meios
próprios, isto é, com a Revelação, da qual e somente por ela, pode-se captar sua verdadeira
fisionomia. Ao criticar as tradicionais “provas” da existência de Deus, Ockham não
pretende desconhecer a existência de Deus, mas sim destacar a fraqueza dos argumentos
humanos.
Se o âmbito da razão humana é assim tão restrito no que se refere a Deus, pode-se
então compreender que o âmbito das verdades conhecidas através da Revelação, a partir do
Deus superiormente bom, a razão humana deve abandonar a mania de argumentar, de
demonstrar ou de explicitar a propósito destas verdades de fé, principalmente porque
estas verdades são de ordem prática e não cognoscitiva e a razão não tem nenhum relevo
neste âmbito. Mesmo as afirmações de ordem especulativa, como “Deus criou o mundo” ou
“Deus é Uno e Trino”. No entanto, estas proposições são de tal natureza que não tem
relação com a prática e são uma forma de saber que ultrapassa a capacidade da razão,
sendo satisfeita pela luminosidade da fé.
Ockham, com suas argumentações, não só derruba o edifício metafísico da teologia,
mas também muitas pretensões da razão. Para ele a função do teólogo não é a de
demonstrar pela razão as verdades aceitas pela fé, mas sim, da altura daquelas verdades,
demonstra a insuficiência da razão. Deste modo Ockham pensa instituir um conceito de
razão mais rigoroso, reduzindo-a aos seus legítimos limites, ao mesmo tempo em que
salvaguarda a especificidade e a alteridade (em relação à razão) das verdades de fé.
Os ditames da fé estão presentes como puros “dados” da Revelação na sua beleza
original, sem os enfeites da razão. A sua aceitação deve-se exclusivamente ao dom da fé. A
fé é o fundamento da vida religiosa, assim como o é da verdade cristã. Enquanto o esforço
da escolástica moveu-se na direção da conciliação entre fé e razão, com mediações e
construções de diversas dimensões, o esforço de Ockham se orienta no sentido de
derrubar tais mediações, apresentando como separados o universo da natureza e o universo
da fé.
O novo método da pesquisa científica
Os cânones de Ockham para a pesquisa científica estão intimamente ligados à nova
lógica e à crítica da cosmologia tradicional. Se o mundo é contingente, criado pela absoluta
liberdade de Deus onipotente, não é lícito partir de pressupostos que o mundo se estrutura
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segundo relações necessárias, passíveis de conhecimento por um processo metafísico. Além


da multiplicidade de indivíduos, não é necessário admitir mais nada. Assim sendo o
fundamento de todo conhecimento científico é o conhecimento experimental. Daí o seu
primeiro cânone: só se pode conhecer cientificamente o que é controlável através
experiência empírica. A lógica, instrumento lingüístico de análise e crítica, também impele
para a fidelidade ao mundo real, obrigando-nos a precisar a exatidão dos termos que
entram nas proposições, bem como a relacionar o conteúdo das afirmações à efetiva
realidade dos indivíduos.
Essa fidelidade ao concreto leva Ockham a rejeitar toda postulação de caráter
metafísico a respeito de entidades como o movimento, o espaço, o tempo, o lugar natural
etc. O movimento, por exemplo, ele não o considera como uma realidade distinta da coisa
real que está em movimento. Há tão somente os corpos em movimento e nada mais. Vejam
como Ockham define o movimento, fazendo uso de seu instrumental lógico: “tal termo (o
movimento) está em função ou no lugar de indivíduos singulares conotando a modalidade de
mutação de suas recíprocas posições”. Os processos reais, portanto, se resolvem em uma
série de estados, diferentes por sua quantidade, no sentido da mudança de posição de um
em relação ao outro. A estrutura temporal dos acontecimentos físicos se reduz a uma série
de “estações”, cada uma das quais se substitui à anterior. A perspectiva qualitativa, típica
da mecânica aristotélica, é suplantada pela visão quantitativa.
Essas reflexões nos levam ao segundo cânone fundamental do método de Ockham:
mais do que nos preocuparmos com o que são os fenômenos, precisamos nos preocupar com
como eles se verificam. Em outras palavras, não a natureza, mas sim a função. Da
metafísica passa-se à física. Tais idéias levariam à matematização das ciências e, portanto,
à aplicação dos métodos do cálculo matemático ao entendimento das diversas fases dos
fenômenos. O caminho da física moderna começa a substituir o caminho da pesquisa
aristotélica, que é físico-metafísico. A visão hierárquica do universo passa a ser suplantada
por uma visão do universo como um conjunto de indivíduos, nenhum dos quais constitui o
centro ou o polo dos outros.
A esse respeito, vale a pena acrescentar uma outra observação, indicativa da nova
direção da física. Persuadido que o mundo é um complexo de indivíduos e de que, no seu
conjunto, é essencialmente contingente, isto é, privado de um status metafísico do qual
emergiria uma necessidade e ordem universal, propõe que é possível e até legítimo examinar
todas as hipóteses explicativas, desde que nos obriguemos a controlar tais hipóteses com
os dados experimentais oferecidos pelo conhecimento intuitivo sensível. Aqui pode-se
antever um método baseado no procedimento “por imaginação”, destinado a fecundos
desdobramentos.
Fiel ao princípio da “navalha”, Ockham nega que entre o mundo sublunar e a esfera celeste
haja aquela diferença substancial defendida por Aristóteles, um corruptível e o outro
incorruptível: não é lícito admitir uma diversidade tão radical entre as partes de um mesmo
universo. isto abre caminho para as idéias de um universo homogêneo em seus elementos
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estruturais. Daí surgirá a rejeição da “animação” dos céus pelas “inteligências” e a redução
das esferas celestes (as órbitas dos planetas) à natureza material da esfera terrestre.
Com esses acenos ao método e a algumas teses occamistas, fica claro que estamos
diante do epílogo da “ciência” medieval e do prelúdio de uma nova física. A queda do sistema
de causas necessárias e ordenadas, que constituíam a estrutura do universo aristotélico,
bem como a superação da hipostasiação de entidades como o tempo, o espaço, o movimento,
o lugar natural, etc., sobre a qual se baseava grande parte da reflexão medieval, confirmam
que, com Ockham, encerra-se um período e abre-se um novo.
Filosofia política
Ockham foi um dos mais inteligentes intérpretes da decadência, na consciência
coletiva, dos ideais e dos poderes universais encarnados pelas figuras teocráticas: o
imperador e o pontífice. A defesa intransigente do “indivíduo” como única realidade
concreta, a tendência a basear o valor do conhecimento na experiência direta e imediata,
bem como a separação entre o saber racional e a experiência religiosa e portanto entre fé
e razão, não podiam deixar de conduzi-lo à defesa do poder civil em relação ao poder
espiritual e portanto, à exigência de uma transformação profunda da estrutura e espírito
da Igreja. Este projeto atinge os fundamentos da cultura medieval, lançando os
pressupostos do humanismo e do renascimento do século seguinte. Envolvido no conflito
entre o imperador e o papa, Ockham pretende redimensionar o poder do pontífice e
demitificar o caráter sagrado do império, interessando-se mais pelo primeiro que pelo
segundo.
Falando sobre o caráter teocrático do papado, Ockham escreve no “Brevilóquio”: -
Começarei por essa plenitude de poderes, de uma vez que alguns consideram que o papa
recebeu de Cristo tal plenitude de poderes a ponto de ter o direito de dispor de qualquer
coisa, tanto na ordem espiritual como na ordem temporal. A refutação dessa concepção
baseia-se na convicção de que a teoria da plena soberania papal contrasta com o princípio
ordenador da lei evangélica, que, diferentemente da lei mosaica, é a lei da liberdade. Se o
papa houvesse recebido de Cristo tal plenitude de poderes e se comportasse em
consonância com isso, submeteria a si todos os cristãos. Teríamos então uma escravidão
pior que a antiga, porque diria respeito a todos os homens. Trata-se de uma tese não
apenas contrária ao Evangelho, também às exigências fundamentais da convivência humana.
O poder do papa é limitado: o papa é um Ministro, não um Dominador. Deve servir,
não sujeitar. O seu poder é instituído em benefício dos súditos e não para que lhes fosse
retirada aquela liberdade que está na base do ensinamento de Cristo. Tal poder não cabe ao
papa nem ao Concílio, porque ambos são falíveis. É a Igreja, enquanto comunidade livre de
fiéis, que no curso de sua tradição histórica, sanciona as verdades que constituem sua vida
e o seu fundamento. A que seria reduzida a presença do Espírito Santo na comunidade de
fiéis se a função de sancionar leis ou impor verdades coubesse ao papa e ao Concílio? A
teocracia e a aristocracia não têm lugar na Igreja. É preciso abrir espaço para os fiéis,
para todos os fiéis, membros efetivos da Igreja, cuja comunidade é a única à qual cabe a
infalibilidade.
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É esse o ideal em nome do qual Ockham critica o papado, rico e autoritário, que tende
a subordinar a si a consciência religiosa dos fiéis, em claro contraste com o ideal da Igreja
como comunidade livre, estranha a toda preocupação mundana, na qual a autoridade do papa
deve ser somente a defesa da livre fé dos seus membros. Além de redimensionar o poder
do papa no interior da Igreja, ele faz o mesmo, e com mais ênfase, em suas relações com o
poder temporal. Se a autoridade do papa tem um caráter apenas pastoral e moral, ele não
pode legislar para todo o povo no que se refere ao temporal, âmbito que é da competência
do imperador. Trata-se de duas esferas independentes e autônomas, cada qual soberana no
seu campo. A autoridade imperial não provêm de Deus através do papa. Ela não é sagrada,
não sendo lícito inseri-la em um contexto providencialista e teleológico, como se derivasse
de Deus tendo em vista a instituição da Igreja, que a teria preparado e da qual deveria
depender. O Império Romano nasceu antes da Igreja, sendo legítimo e válido em si mesmo.
Dos romanos o império foi transferido para Carlos Magno e daí à nação franca e germânica.
Assim, as romanos e depois os germânicos, têm o direito da eleição imperial, excluindo-se
toda jurisdição do papado sobre o império. Portanto, o imperador não pode ser considerado
vassalo do papa. A teoria das “duas espadas” só deve ser entendida no sentido de que os
dois poderes devem ser representados por duas pessoas diferentes, independentes uma da
outra.
Com base nisso, pode-se concluir que Ockham pretendia defender o imperador
contra o papa, no sentido de defender seus direitos contra o absolutismo papal, que queria
se erigir em árbitro das consciências religiosas dos fiéis. Mas, mais do que na política
imperial, seu interesse está na vida da Igreja, que ele queria que fosse reformada nas
estruturas e nas orientações. O papa é falível, como o é o Concílio, uma reunião de homens
falíveis. Só é infalível a Igreja enquanto comunidade universal de fiéis, que não pode ser
dissolvida por nenhuma vontade humana, porque segundo a vontade de Cristo, durará até o
fim dos séculos. Para tanto, torna-se necessário, que a Igreja se reforme, na cabeça e nos
membros, retornando à pobreza evangélica, sem ambições terrenas e pretensões
autoritárias. No fundo, trata-se do ideal franciscano, ao qual ele remete, com aquele
elemento polêmico devido ao debate sobre a pobreza, que ele pretendia que fosse radical,
começando pela ordem franciscana e estendendo-se a toda a Igreja.
Pode-se perceber aí a aspiração á reforma, que se acentuaria ainda mais no século
seguinte, até desembocar na reforma protestante. Os gérmens foram lançados, mas seu
florescimento não é um prelúdio ao retorno à unidade medieval, mas sim a afirmação
daquele pluralismo que, primeiro com Wyclif e depois com Lutero, iria se tornar divisão e
dispersão. A época da unidade e harmonia entrou em decadência. A acentuação do indivíduo,
no interior da Igreja, na ordem franciscana, e na sociedade civil, leva ao nascimento do
direito subjetivo e portanto à noção moderna de liberdade individual e de sua autonomia,
tendo por resultado o nascimento da ciência do direito, primeiro eclesiástico e depois civil.
Essas são as conseqüências últimas da tese fundamental da separação entre ciência e fé,
entre a ordem temporal e a ordem espiritual, resultando sobretudo no primado do indivíduo
sobre qualquer universal.
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Com Ockham a escolástica encontra seu epílogo: no século XIV, depois dele, não
surgiram mais nem grandes personagens, nem novos sistemas. Vêem-se apenas escolas: os
tomistas, os escotistas e os occamistas disputando espaça e polemizando sobre as teses de
seus respectivos mestres. O tomismo e o escotismo representavam a “via antiqua”,
enquanto os occamistas se impõem como a “via moderna”, em seu criticismo em relação com
a tradição escolástica. Apesar das proibições e condenações, tal orientação vai corroendo
lentamente os antigos sistemas e fazendo surgir uma nova visão de mundo. Em 1339 a
leitura de Ockham é proibida em Paris, proibição esta reafirmada em 1340, acompanhada
da condenação de suas principais teses. Apesar disso, o occamismo conquistou terreno nas
principais universidades, com homens dedicados a demonstrar a inconsistência da
cosmologia aristotélica, como Jean Buridan e Nicolau D’Oresme, a mostrar a
inconciliabilidade da fé com a razão, em nome de um conceito de ciência mais rigoroso,
como Nicolau de Autrecourt e por fim, com a defesa de uma reforma radical da Igreja,
como o inglês John Wiclif (1328-1384) e do tcheco Jan Huss (1369-1415).

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