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Frederick Copleston

História da filosofia
Volume II
INDICE
I. INTRODUÇÃO.

PARTE I
INFLUÊNCIAS PRÉ-MEDIEVAIS

II. O PERÍODO PATRÍSTICO

III. SANTO AGOSTINHO - I

IV. SANTO AGOSTINHO - II: O CONHECIMENTO

V. SANTO AGOSTINHO - III: DEUS

VI. SANTO AGOSTINHO - IV: O MUNDO

VII. SANTO AGOSTINHO - V: TEORIA MORAL

VIII. SANTO AGOSTINHO - VI: O ESTADO

IX. O PSEUDO-DIONISIO

X. BOECIO, CASIODORO, SANTO ISIDORO

PARTE II
A RENASCENÇA CAROLINGIA

XI. A RENASCENÇA CAROLINGIA

XII. JOÃO ESCOTO ERÍGENA - I

XIII. JOÃO ESCOTO ERÍGENA - II

PARTE III
NOS SÉCULOS X, XI E XII

XIV. O PROBLEMA DOS UNIVERSAIS

XV. SANTO ANSELMO DE CANTERBURY

'XVI. A ESCOLA DE CHARTRES

XVII. A ESCOLA DE SÃO VÍCTOR

XVIII. DUALISTAS E PANTEÍSTAS

PARTE IV
FILOSOFIA ISLAMICA E JUDIA: TRADUÇÕES

XIX. FILOSOFIA ISLÂMICA

XX. FILOSOFIA JUDIA

XXI. AS TRADUÇÕES

PARTE V
NO SÉCULO XIII

XXII. A UNIVERSIDADE DE PARIS

XXIII. GUILHERME DE AUVERGNE

XXIV. GROSSETESTE E ALEXANDRO DE HALES

XXV. SÃO BOAVENTURA - I

XXVI. SÃO BOAVENTURA - II: EXISTÊNCIA DE DEUS

XXVII. SÃO BOAVENTURA - III : RELACIONAMENTO DAS CRIATURAS A


DEUS

XXVIII. SÃO BOAVENTURA - IV: A CRIAÇÃO MATERIAL

XXIX. SÃO BOAVENTURA - V: A ALMA HUMANA

XXX. SANTO ALBERTO MAGNO

XXXI. SÃO TOMÁS DE AQUINO - I

XXXII. SÃO TOMÁS DE AQUINO - II: FILOSOFIA E TEOLOGÍA

XXXIII. SÃO TOMÁS DE AQUINO - III: PRINCÍPIOS DO SER CRIADO

XXXIV. SÃO TOMÁS DE AQUINO - IV: PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS

XXXV. SÃO TOMÁS DE AQUINO - V: NATUREZA DE DEUS

XXXVI. SÃO TOMÁS DE AQUINO - VI: A CRIAÇÃO

XXXVII. SÃO TOMÁS DE AQUINO - VII: PSICOLOGIA

X'XXVIII. SÃO TOMÁS DE AQUINO - VIII: O CONHECIMENTO

XXXIX. SÃO TOMÁS DE AQUINO - IX: TEORIA MORAL

XL. SÃO TOMÁS DE AQUINO - X: TEORIA POLÍTICA


XLI. SANTO TOMÁS E ARISTÓTELES: CONTROVÉRSIAS

XLII. O AVERROÍSMO LATINO: SIGER DE BRABANTE

XLIII. PENSADORES FRANCISCANOS

XLIV. GIL DE ROMA E ENRIQUE DE GANTE

XLV. DUNS SCOT - I

XLVI. DUNS SCOT - II: O CONHECIMENTO

XLVII. DUNS SCOT - III: A METAFÍSICA

XLVIII. DUNS SCOT - IV: TEOLOGÍA NATURAL

XLIX. DUNS SCOT - V: A ALMA

L. DUNS SCOT - VI: ÉTICA

LI. REVISÃO FINAL

APÉNDICES

I. TÍTULOS HONORÍFICOS APLICADOS NA IDADE MÉDIA AOS FILÓSOFOS


TRATADOS NESTE VOLUME

II. BREVE BIBLIOGRAFÍA


Capítulo I
Introdução

1. Neste segundo volume de minha História da Filosofia era minha primeira intenção
apresentar o desenvolvimento da filosofia através de todo o período medieval, entendendo por
filosofia medieval o pensamento e os sistemas filosóficos que foram elaborados entre a
Renascença carolingio no final do século 8 d. J. C. (João Escoto Erígena, o primeiro filósofo
medieval destacado, nasceu para o ano 810), e o final do século XIV. Mas reflexões posteriores
convenceram-me da conveniência de dedicar dois volumes à filosofia medieval. Já que o volume
primeiro de minha História[1] terminava com uma apresentação do neoplatonismo, e não
continha tratamento algum das ideias filosóficas que podem ser encontrado nos primeiros
escritores cristãos, considerei que era oportuno dizer algo dessas ideias neste volume. É verdade
que homens como san Gregorio Niseno e Santo Agostinho pertencem ao período do Império
romano, e que a filosofia à que se afiliaron foi a platónica, entendendo este termo em seu sentido
mais amplo, e que não pode lhe lhes chamar medievais; mas subsiste o fato de que foram
pensadores cristãos, e que exerceram uma grande influência sobre a Idade Média. Mal é possível
entender a Santo Anselmo ou a São Boaventura sem saber algo de Santo Agostinho, nem seria
possível entender o pensamento de João Escoto Erígena sem conhecer algo do pensamento de
san Gregorio de Nisa e, do Pseudo-Dionisio Areopagita. Por conseguinte, quase greve defender
a decisão de iniciar uma história da filosofia medieval com a consideração de uns pensadores
que pertencem, pelo que respecta à cronología, ao período do Império romano.

Começa, pois, o presente volume com a época mais antiga da literatura cristã, e prossegue a
história da filosofia medieval até chegar ao final do século XIII, incluído Duns Scot (1265-1308
aproximadamente). Em meu terceiro volume proponho-me tratar da filosofia do século XIV,
com uma especial atenção ao ockhamismo. Em dito volume incluirei também o tratamento das
filosofias da Renascença, dos séculos 15 e 16, e da “Idade de Prata” do pensamento escolástico,
ainda que Francisco Suárez não morreu até o ano 1617, veintiún anos após o nascimento de
Descarte. Essa composição pode parecer arbitrária, e, em certa medida, o é. Mas é extremamente
dudoso que possa ser traçado uma exata e tajante linha divisória entre a filosofia medieval e a
moderna, e não seria indefendible que se incluísse a Descarte no período dos últimos
escolásticos, por contrário que isso possa ser às tradições historiográficas. Não me proponho,
empero, chegar a tanto, e se incluo no próximo volume (o terceiro) a alguns filósofos que pode
parecer que pertencem propriamente à Idade Moderna, a razão pela que o faço assim é em grande
parte uma razão de conveniência, a de deixar mais desembarazada a continuação e poder, no
quarto volume, desenvolver de uma maneira sistemática a interligação entre os mais destacados
sistemas filosóficos, a partir de Francis Bacon na Inglaterra e de Descarte na França, até Kant
incluído. Não obstante, qualquer que seja o tipo de divisão adotado, não tem de se esquecer que
os compartimentos em que um divida a história do pensamento filosófico não são
compartimentos tabacarias, que as transições são graduais, não abruptas, que há sobreposições
e interligações, e que os sistemas que se vão acontecendo não estão cortados uns de outros com
um machado.

2. Teve um tempo em que a filosofia medieval se considerou indigna de um estudo sério,


quando se dava por suposto que a filosofia da Idade Média era de tal modo escrava da teología
que era praticamente indistinguible desta, e que, na pequena medida em que podia ser
distinguida, não consistia mal senão em infecundas ninharias lógicas e jogos de palavras. Dito
de outro modo, dava-se por suposto que a filosofia européia constava de dois períodos principais,
o da Antigüedad, que vinha a se reduzir a Platón e Aristóteles, e o moderno, quando a razão
especulativa começou de novo a desfrutar de liberdade, após a escura noite da Idade Média,
durante a qual a autoridade eclesiástica reinava absolutamente e a razão humana, atada por
sólidas correias, se tinha visto obrigada a reduzir ao estudo inútil e fantástico da teología, até
que um pensador como Descarte rompeu ao fim as correntes e deu liberdade à razão. Na
Antigüedad e na Idade Moderna a filosofia podia ser considerado como um homem livre,
enquanto no período medieval era um escravo.

Aparte do fato de que a filosofia medieval compartilhou da maneira mais natural a


desestimación com que costumava se ver, em general, à Idade Média, um fator ao que deve ser
atribuído em parte a atitude adotada ante os pensadores medievais foi sem dúvida a linguagem
utilizada, a propósito do escolasticismo, por homens como Francis Bacon e René Descarte. Do
mesmo modo que os aristotélicos tendiam naturalmente a valorizar o platonismo em termos da
crítica que do mesmo fizesse Aristóteles, assim os admiradores do movimento que parecia
iniciado por Bacon e Descarte se sentiam inclinados a olhar à filosofia medieval através dos
olhos destes, sem advertir que muito do que Francis Bacon, por exemplo, tinha que dizer contra
os escolásticos, não podia ser aplicado legitimamente às grandes figuras do pensamento
medieval, por aplicável que pudesse ser aos escolásticos posteriores e “decadentes”, que rendiam
culto à letra daqueles, em detrimento do espírito. Se desde o princípio os historiadores dirigiam
sua mirada à filosofia medieval a essa luz, dificilmente podia ser esperado que buscassem um
conhecimento daquela mais exato e mais de primeira mão: condenavam-na sem vê-la nem ouví-
la, sem conhecimento da rica variedade do pensamento medieval nem de sua profundidade; para
esses historiadores, toda a filosofia medieval constituía um só bloco, um árido jogo de palavras
e uma servil dependência da teología. Ademais, insuficientemente críticos, não souberam
reconhecer o fato de que, se os filósofos medievais se deixaram influir por um fator externo, a
teología, os filósofos modernos foram também influídos por fatores externos, embora estes não
fossem teólogos. Para a maioria de ditos historiadores seria uma proposição desprovista de
sentido laque sugerisse que Duns Scot, por exemplo, poderia pretender ser considerado como
um filósofo britânico tão grande, pelo menos tão grande, como John Locke, enquanto em sua
elevada estimativa da agudeza de David Hume, não tiveram em conta que certos pensadores dos
últimos tempos da Idade Média tinham já antecipado grande parte da crítica que acostumava se
considerar como a peculiar contribuição do eminente escocês à filosofia.

Citarei um exemplo, o modo de tratar aos filósofos e a filosofia medieval um homem que
foi, a sua vez, um grande filósofo, Georg Wilhelm Friedrich Hegel. É um interessante exemplo,
já que cria-a dialética que Hegel tinha da história da filosofia exigia evidentemente que a
filosofia medieval fosse registrada como tendo feito uma contribuição essencial ao
desenvolvimento do pensamento filosófico, e, pelo demais, Hegel, pessoalmente, não era um
simples antagonista vulgar da filosofia medieval. Agora bem, Hegel admite certamente que a
filosofia medieval realizou uma função útil, a de expressar em termos filosóficos “o conteúdo
absoluto” do cristianismo, mas faz questão de que não é senão uma repetição formalista do
conteúdo da fé, na que Deus se representa como algo “externo”, e se se recorda que para Hegel
a fé é o modo da consciência religiosa, definidamente inferior no ponto de vista filosófico ou
especulativo, o ponto de vista da pura razão, está claro que, a seus olhos, a filosofia medieval
somente pode ser filosofia no nome. Em consequência, Hegel declara que a filosofia escolástica
é realmente teología. O que Hegel quer dizer com isso não é que Deus não seja objeto da
filosofia, o mesmo que da teología; o que quer dizer é que embora a filosofia medieval
considerasse o mesmo objeto que considera a filosofia propriamente dita, o fazia segundo as
categorias da teología, em vez de substituir as conexões externas da teología (por exemplo, o
relacionamento do mundo a Deus como a do efeito externo a seu livre causa criadora) pelas
categorias e conexões sistemáticas, científicas, racionais e necessárias da filosofia. A filosofia
medieval foi, segundo isso, filosofia pelo que respecta a seu conteúdo, mas, pelo que respecta à
forma, foi teología; e, aos olhos de Hegel, a história da filosofia medieval é uma história
monótona, na que os homens trataram em vão de discernir algum estádio claro e diferente de
verdadeiro progresso e desenvolvimento do pensamento.

Na medida em que a opinião de Hegel sobre a filosofia medieval depende de seu próprio
sistema particular, de seu modo de ver o relacionamento entre a religião e a filosofia, a fé e a
razão, o imediato e o mediato, não posso discutir neste volume; mas desejo indicar como o
tratamento hegeliano da filosofia medieval vai acompanhado por uma muito real ignorância do
curso de sua história. É possível, indubitavelmente, que um hegeliano tenha um verdadeiro
conhecimento do desenvolvimento da filosofia medieval e adote no entanto, precisamente por
ser hegeliano, o ponto de vista geral de Hegel respecto da mesma; mas não pode ter nem uma
sombra de dúvida, inclusive se se tem em conta o fato de que o filósofo não editou e publicou
por si mesmo suas lições sobre história da filosofia, que Hegel não possuiu de fato aquele
conhecimento. Como possa, por exemplo, se atribuir um verdadeiro conhecimento da filosofia
medieval a um escritor que inclui a Roger Bacon baixo o epígrafe “Místicos”, e se limita a
observar: “Roger Bacon ocupou-se mais especialmente de física, mas não chegou a exercer
influência. Inventou uma pólvora, espelhos, telescópios, e morreu em 1297? O fato é que Hegel
confiava sua informação a autores como Tennemann e Brucker, a propósito de filosofia
medieval, enquanto sobre esta não existem estudos valiosos até mediados do século XIX.

Ao apresentar o exemplo de Hegel não foi minha intenção, desde depois, culpar a esse
filósofo; trato mais bem de pôr de relevo a grande mudança que se operou em nosso
conhecimento da filosofia medieval graças à obra de modernos eruditos, a partir, mais ou menos,
de 1880. Enquanto é fácil compreender e perdoar as representações errôneas das que um homem
como Hegel foi inconscientemente culpado, é difícil ter muita paciência ante similares errôneas
interpretações de hoje, após a obra de investigadores como Baeumker, Ehrle, Grabmann, De
Wulf, Pelster, Geyer, Mandonnet, Pelzer, etc. Após a luz que espalharam sobre a filosofia
medieval os textos publicados e as edições críticas de outras obras já publicadas anteriormente,
após os esplêndidos volumes editados pelos pais franciscanos de Quaraechi, após a publicação
de tantos números de série de Beitráge, após a produção de Histórias como a de Mauriee De
Wulf, depois que os lúcidos estudos de Etienne Gilson, após o paciente labor realizado pela
Medioeval Academy of America, não parece já possível pensar que os filósofos medievais
fossem “todos da mesma classe”, que a filosofia medieval esteve falta de riqueza e variedade,
que os pensadores medievais foram uniformemente homens de curta estatura e dote mediocres.
Ademais, escritores como Gilson nos ajudaram a reconhecer a continuidade entre a filosofia
medieval e a moderna. Gilson evidenciou como o cartesianismo dependia do pensamento
medieval mais do que primeiramente se achou. Fica ainda muito por fazer no trabalho de edição
e interpretação de textos (basta mencionar o Comentário às Sentenças, de Guilherme de
Ockham), mas agora nos é já possível ver as correntes e o desenvolvimento, o esquema e a
textura, as grandes figuras e as figuras menores da filosofia medieval, em uma mirada sinóptica.

3. Mas embora a filosofia medieval seja efetivamente mais rica e mais variada do que às
vezes se supôs, não têm razão os que dizem que se manteve em um relacionamento tão íntimo
com a teología que é praticamente indistinguible desta? Talvez não é um fato, por exemplo, que
a grande maioria dos filósofos medievais foram clérigos e teólogos, que seguiam os estudos
filosóficos com espírito de teólogos, ou, inclusive, de apologetas?

Em primeiro lugar, é necessário advertir que o relacionamento entre filosofia e teología


constituiu em si mesma um importante tema para o pensamento medieval, e que diferentes
pensadores adotaram atitudes diferentes a propósito de dita questão. Tomando seu ponto de
partida no afã por entender os dados da revelação, na medida em que isso é possível à razão
humana, os medievais mais antigos, de acordo com a máxima Credo ut intelligam, aplicaram a
dialética racional aos mistérios da fé, em um esforço por compreender estes. Desse modo
puseram os fundamentos da teología escolástica, já que a aplicação da razão aos dados teológicos
— no sentido dos dados da revelação — é e reduz-se a ser teología, sem converter-se em
filosofia. Alguns pensadores, em seu desejo entusiasta de penetrar os mistérios pela razão no
mais alto grau possível, parecem a primeira vista ser racionalistas, ou o que poderíamos chamar
hegelianos dantes de Hegel. Não obstante, é um anacronismo ver a esses homens como
“racionalistas”, no sentido moderno do termo, já que quando Santo Anselmo, por exemplo, ou
Ricardo de São Victor, tentavam explicar o mistério da Santísima Trinidad por “razões
necessárias”, não tinham a menor intenção de reduzir o dogma ou deteriorar a integridade da
divina revelação. (Voltarei envelope esse tema no curso desta obra.) Atuavam, pois,
indubitavelmente como teólogos; mas esses homens, que não fizeram, é verdade, uma
delimitação clara das esferas da filosofia e a teología, perseguiram no entanto temas filosóficos
e desenvolveram argumentaciones filosóficas. Por exemplo, ainda que Santo Anselmo seja
importante em primeiro lugar como um dos fundadores da teología escolástica, contribuiu
também ao crescimento da filosofia escolástica, como no caso de suas provas racionais da
existência de Deus. Seria inadequado rotular, sem mais precisas cualificaciones, a Abelardo
como filósofo e a Santo Anselmo como teólogo. Em todo caso, no século XIII, encontramos
uma clara distinção, obra de São Tomás de Aquino, entre teología, que toma como premisas os
dados da revelação, e filosofia (incluída nesta, desde depois, o que chamamos “teología
natural”), que é obra da razão humana, sem uma ajuda positiva da revelação. É verdadeiro que
naquele mesmo século São Boaventura foi um defensor consciente e decidido do que
poderíamos chamar o ponto de vista integralista, agustiniano; mas, embora o doutor franciscano
pôde achar que um conhecimento de Deus puramente filosófico está viciado por sua mesma
incompletud, também ele via com a maior clareza que há verdades filosóficas das que podemos
cerciorarnos por nossa só razão. A diferença entre São Boaventura e santo Tomás foi formulada
assim[2]. Santo Tomás sustenta que seria possível, em princípio, excogitar um sistema filosófico
satisfatório que, com respeito ao conhecimento de Deus por exemplo, fosse incompleto, mas
não falso, enquanto São Boaventura mantém que essa mesma incompletud ou inadecuación tem
o caráter de uma falsificação, de maneira que, embora fosse possível uma filosofia natural
verdadeira sem a luz da fé, não seria possível, sem esta, uma verdadeira metafísica. Se um
filósofo — pensava São Boaventura — prova mediante a razão e mantém a unidade de Deus,
sem conhecer ao mesmo tempo que Deus é três pessoas em uma natureza, esse filósofo atribui
a Deus uma unidade que não é a unidade divina.

Em segundo local, santo Tomás era perfeitamente sério ao conceder seu estatuto à filosofia.
Um observador superficial poderia achar que quando santo Tomás formulava uma clara
distinção entre teología dogmática e filosofia se limitava a formular uma distinção formalística,
que não teve influência em seu pensamento e que ele mesmo não se tomou em sério na prática;
mas semelhante modo de ver estaria longe da verdade, como pode ser advertido por um exemplo.
Santo Tomás achava que a revelação ensina a criação do mundo no tempo, a não-eternidade do
mundo; mas manteve e argumentou vigorosamente que o filósofo como tal não pode provar nem
que o mundo seja criado desde a eternidade nem que seja criado no tempo, embora sim pode
mostrar sua dependência de Deus como Criador. Ao defender esse ponto de vista disentía, por
exemplo, de São Boaventura, e o fato de que mantivesse o ponto de vista em questão manifesta
claramente que se tomava em sério, na prática, sua delimitação teorética dos campos da filosofia
e a teología dogmática.

Em terceiro local, se fosse realmente verdade que a filosofia medieval não foi outra coisa
que teología, teria que esperar que uns pensadores que aceitavam a mesma fé aceitassem também
a mesma filosofia, ou que as diferenças entre eles se limitassem a diferenças no modo de aplicar
a dialética aos dados da revelação. Não obstante, isso está em realidade bem longe de ser a
verdade. São Boaventura, São Tomás de Aquino e Duns Scot, Gil de Roma, e, não há grave
inconveniente em acrescentar, Guilherme de Ockham, aceitavam a mesma fé, mas suas ideias
filosóficas não foram nem muito menos as mesmas em todos os pontos. O que as filosofias
desses homens fossem ou não igualmente compatíveis com as exigências da teología é, desde
depois, outra questão (não é nada fácil considerar a filosofia de Guilherme de Ockham como
inteiramente compatível com aquelas exigências); mas essa questão é independente do tema que
aqui discutimos, já que, fossem ou não compatíveis todas elas com a teología ortodoxa, essas
filosofias existiram e não foram a mesma. O historiador pode seguir as linhas de
desenvolvimento e divergência na filosofia medieval, e, se pode fazê-lo assim, deve estar claro
que há algo ao que pode ser chamado filosofia medieval: do que não existe não pode ter história.

Teremos que considerar diferentes opiniões sobre o relacionamento entre filosofia e teología
no curso desta obra, e não quero levar mais adiante, por agora, o tratamento do tema; mas será
oportuno admitir desde o princípio que, devido ao fundo comum da fé cristã, o mundo que se
oferecia, para sua interpretação, ao filósofo medieval, aparecia, mais ou menos, à mesma luz.
Tanto se um pensador defendia uma clara distinção entre os campos da filosofia e da teología,
como se a negava, olhava ao mundo com olhos de cristão, e dificilmente podia deixar do fazer
assim. Em seus argumentaciones filosóficas podia prescindir da revelação cristã, mas não por
isso a fé e a perspetiva cristãs deixavam de estar no fundo de sua mente. Mas isso não significa
que seus argumentaciones filosóficas não fossem argumentaciones filosóficas, ou que suas
provas racionais não fossem provas racionais; há que considerar a cada argumento ou prova
segundo seus próprios méritos, e não desestimarlos como teología disfarçada pelo fato de que
seu autor fosse cristão.

4. Uma vez estabelecemos que teve realmente uma coisa à que pode ser chamado filosofia
cristã, ou, em todo caso, que pôde a ter, ainda que a grande maioria dos filósofos medievais
fossem cristãos e um grande número deles, por añadidura, teólogos, quero dizer finalmente algo
a respeito do que este livro, e o volume que lhe segue, se propõem, e do modo que tratam seu
tema.

Indubitavelmente não me proponho tentar a tarefa de narrar todas as opiniões conhecidas de


todos os filósofos medievais conhecidos. Em outras palavras, os volumes segundo e terceiro de
minha história não pretendem ser uma enciclopédia da filosofia medieval. Também não é minha
intenção oferecer singelamente um esboço ou uma série de impressões da filosofia medieval.
Propus-me fazer um relacionamento inteligible e coerente do desenvolvimento da filosofia
medieval e das fases através das quais passou, ignorando por completo muitos nomes e
selecionando, para sua melhor consideração, àqueles pensadores que são de especial importância
e interesse pelo conteúdo de seu pensamento, ou que representam e ilustram algum tipo
particular de filosofia ou algum particular estádio do desenvolvimento. consagrei a alguns desses
pensadores um espaço considerável, para ocupar de suas opiniões um pouco por extenso. Tal
feito possa talvez escurecer as linhas gerais de conexão e desenvolvimento, mas, como já disse,
não era minha intenção me limitar a oferecer um esboço da filosofia medieval, e provavelmente
só através de um tratamento algo detalhado dos principais sistemas filosóficos pode ser
evidenciado a rica variedade do pensamento medieval. Pôr claramente de relevo as principais
linhas de conexão e desenvolvimento, e expor ao mesmo tempo com certa extensão as ideias de
filósofos selecionados, não é certamente uma tarefa fácil, e seria insensato supor que minhas
inclusões ou omissões, ou a proporção de espaço concedido a tais ou cuales filósofos, resultem
aceitáveis a todo mundo; ver o bosque a costa de não ver as árvores, ou ver as árvores a costa
de não ver o bosque, é bastante fácil, mas ver com clareza ao mesmo tempo tanto as árvores
como o bosque não é tão fácil. Não obstante, estimo que essa é uma tarefa digna de ser tentada,
e embora não vacilei em considerar com certa extensão as filosofias de São Boaventura, santo
Tomás, Duns Scot e Ockham, tentei fazer inteligible o desenvolvimento geral da filosofia
medieval desde suas polêmicas mais antigas, através de sua esplêndida maturidade, até sua
decadência.

Quando alguém fala de “decadência” se expõe à objeción de que não está falando como
historiador, senão como filósofo. Isso é bastante verdadeiro, mas se se tem de discernir uma
pauta inteligible na filosofia medieval é preciso dispor de um princípio de seleção, e, ao menos
nessa medida, deve ser sido filósofo. A palavra “decadência” tem sem dúvida uma cor e um
aroma valorativo, pelo qual sua utilização pode parecer um desbordamiento dos limites
legítimos do historiador. Talvez o é, em verdadeiro sentido; mas que historiador da filosofia foi
ou é meramente um historiador, no mais estrito sentido do termo? Nenhum hegeliano, nenhum
marxista, nenhum positivista, nenhum kantiano escreve história sem um ponto de vista
filosófico, e é somente o tomista o que tem de ser condenado por uma prática que é realmente
necessária, a não ser que a história da filosofia se converta em ininteligible, por se reduzir a uma
simples sarta de opiniões?
Ao dizer “decadência” quero dizer, pois, decadência, já que eu vejo, francamente, a filosofia
medieval como constituída por três fases principais. Vem em primeiro lugar a fase preparatoria,
até o século 11 inclusive; segue o período de síntese construtivas, no século XIII, e, finalmente,
no século XIV, o período de crítica destructiva, socavación e decadência. No entanto, desde
outro ponto de vista, eu não vacilaria em admitir que a última fase foi inevitável e, à longa, que
pôde ser um benefício, enquanto estimulou aos filósofos escolásticos a desenvolver e estabelecer
seus princípios mais firmemente face à crítica e a utilizar, ademais, todo o que a filosofia
posterior pudesse oferecer de valor positivo. Desde um verdadeiro ponto de vista, a fase sofística
da filosofia antiga (servindo do termo “sofista” mais ou menos no sentido platónico) constituiu
uma decadência, já que caraterizou-se por ser, entre outras coisas, um corrosivo do pensamento
construtivo; mas não por isso deixou de ser uma fase inevitável na filosofia grega, e pode ser
considerado que, à longa, produziu resultados de valor positivo. Ao menos, ninguém que
valorize o pensamento de Platón e Aristóteles pode ver a atividade e a crítica dos sofistas como
um puro desastre para a filosofia.

O plano geral deste volume e do que lhe segue consiste, pois, na exposição das principais
fases e linhas de desenvolvimento da filosofia medieval. Em primeiro lugar tratarei brevemente
o período da patrística, para falar depois daqueles pensadores cristãos que tiveram uma real
influência na filosofia medieval: Boecio, o Pseudo-Dionisio, e, sobretudo, Santo Agostinho de
Hipona. Após essa parte mais ou menos introdutória do volume prossigo com a fase preparatoria
do pensamento propriamente medieval, a renascença carolingio, o estabelecimento das escolas,
a controvérsia a propósito dos conceitos universais e a crescente utilização da dialética, a obra
positiva de Santo Anselmo no século 11, as escolas do lli, e designadamente as de Chartres e
São Victor. Faz-se então necessário dizer algo das filosofias árabe e judia, não tanto por razão
delas mesmas, já que o que primordialmente me interessa é a filosofia da cristandade medieval,
como pelo fato de que árabes e judeus constituíram um importante canal através do qual o
sistema aristotélico chegou a ser conhecido em sua totalidade pelo Occidente cristão. A segunda
fase é a das grandes sínteses do século XIII, as filosofias de São Boaventura, São Tomás de
Aquino e Duns Scot designadamente. A fase seguinte, a do século XIV, contém as novas
direções e a crítica destructiva da escola ockhamista, em um sentido amplo. Finalmente, ofereço
um tratamento do pensamento correspondente ao período de transição entre a filosofia medieval
e a moderna. Fica assim preparado o terreno para uma consideração do que geralmente se chama
“filosofia moderna”, que se aborda no quarto volume desta História.

Para concluir será conveniente mencionar outro par de pontos. O primeiro é que não concebo
que seja tarefa própria do historiador da filosofia o substituir as ideias dos pensadores do passado
pelas suas próprias, ou as de filósofos contemporâneos ou recentes, como se os passados
pensadores dos que se trata não soubesse o que realmente queriam dizer. Quando Platón
formulava a doutrina da reminiscência não fazia formulaciones neokantianas, e embora Santo
Agostinho se antecipasse a Descarte ao dizer Se fallor, sum, seria um grande erro tratar de meter
à força sua filosofia na forma cartesiana. Por outra parte, certos problemas que foram propostos
por filósofos modernos foram propostos também na Idade Média, embora em um quadro
diferente, e é legítimo atrair a atenção sobre as semelhanças nas perguntas ou nas respostas.
Também não é ilegítimo perguntar-se se um determinado filósofo medieval poderia, segundo os
recursos de seu próprio sistema, enfrentar-se com esta ou aquela dificuldade suscitada por algum
filósofo posterior. Em consequência, embora tentei evitar a multiplicação das referências à
filosofia moderna, permiti-me ocasionalmente fazer comparações com filosofias mais tardias, e
discutir a capacidade de um sistema de filosofia medieval para resolver uma dificuldade que
pode ser proposto a um estudioso do pensamento moderno. Mas tenho racionado muito
sobriamente tais comparações e discussões, não só por considerações de espaço, senão também
em atenção aos cánones da história.

O segundo ponto que desejo mencionar é o seguinte. Devido, em grande parte, à influência
do marxismo, há uma verdadeira exigência de que o historiador da filosofia dirija a atenção ao
fundo social e político do período que estude, e espalhe luz sobre a influência dos fatores sociais
e políticos envelope o desenvolvimento e o pensamento filosóficos. Mas, aparte do fato de que
para manter a própria história dentro de uns limites razoáveis, um deve ser concentrado na
filosofia mesma, e não em acontecimentos ou processos políticos e sociais, é ridículo supor que
todas as filosofias ou todas as partes de uma determinada filosofia estejam igualmente influídas
pelo milieu social e político. Para entender o pensamento político de um filósofo é evidentemente
desejável ter algum conhecimento de seu fundo político real, mas para discutir a doutrina de
santo Tomás sobre o relacionamento de essência e existência, ou a teoria de Scot do caráter
unívoco do conceito de ser, não há necessidade alguma de introduzir referências ao fundo
político ou econômico. Ademais, a filosofia está influída por outros fatores, tanto como pela
política e a economia. Platón esteve influído pelo progresso da matemática grega; a filosofia
medieval, embora diferenciable da teología, esteve certamente influída por esta; para a maneira
de ver Descarte o mundo material é importante a consideração do desenvolvimento da física; a
biologia teve influência em Bergson, e assim sucessivamente. Considero, pois, um grande erro
tratar de um modo tão exclusivo do desenvolvimento político e econômico e explicar o progresso
das demais ciências sobre a base decisiva da história econômica, o que implicaria a verdade da
teoria marxista da filosofia. Aparte, pois, do fato de que considerações de espaço não me
permitiram dizer grande coisa do fundo político, social ou econômico, da filosofia medieval,
tenho desatendido deliberadamente a injustificable demanda de que a “superestructura
ideológica” seja explicada em termos da situação econômica. Este livro é uma história de um
verdadeiro período da história da filosofia; não é uma história política nem uma história da
economia medieval.
Parte I
Influências pré-medievais
Capítulo II
O período Patrístico

1. Cristianismo e filosofia grega.

O cristianismo entrou no mundo como uma religião revelada: foi oferecido ao mundo por
Cristo como uma doutrina de redenção e salvação e amor, e não como um sistema abstrato e
teorético; Cristo enviou a seus apóstolos a pregar, não a ocupar cátedras de professores. O
cristianismo era “o caminho”, um caminho para Deus que tinha que ser percorrido na prática,
não um sistema filosófico para acrescentar aos sistemas e escolas da Antigüedad. Os apóstolos
e seus sucessores sentiam-se chamados a converter ao mundo, não a excogitar um sistema
filosófico. Ademais, na medida em que sua mensagem ia dirigido a judeus, os apóstolos tinham
que se enfrentar com ataques teológicos, mais que filosóficos, e, pelo que respecta aos não
judeus, não estamos informados de que, aparte do famoso sermón de san Pablo em Atenas,
tivessem que se enfrentar, nem sequer que tivessem trato, com filósofos gregos no sentido
acadêmico da palavra.

Não obstante, quando o cristianismo foi arraigando e cresceu, provocou a suspicacia e a


hostilidade, não somente dos judeus e das autoridades políticas, senão também de intelectuais e
escritores paganos. Alguns dos ataques dirigidos ao cristianismo foram devidos simplesmente a
ignorância, a crédulas suspeitas, a medo do desconhecido, a representações errôneas; mas
também se lançaram ataques no plano teorético, sobre bases filosóficas, e esses ataques exigiam
resposta. Isso significou que teve que utilizar argumentaciones filosóficas, e não meramente
teológicas. Encontram-se, pois, elementos filosóficos nos escritos dos primeiros Pais e
apologistas cristãos; mas seria evidentemente ocioso buscar ali um sistema filosófico, já que o
interesse daqueles escritores era primordialmente teológico: defender a fé. No entanto, ao chegar
o cristianismo a estabelecer-se mais firmemente e a ser melhor conhecido, e ao chegar a ser
possível que estudiosos cristãos desenvolvessem seu pensamento e sua formação intelectual, o
elemento filosófico tendeu a se fazer mais claramente reconocible, em especial quando do que
se tratava era de enfrentar com os ataques de filósofos paganos profissionais.

A influência da apologética no crescimento da filosofia cristã deveu-se, indubitavelmente,


em primeiro lugar, a uma causa externa ao cristianismo, a saber, o ataque hostil; mas teve
também outra razão para esse crescimento, uma razão que era interna, independente dos ataques
procedentes do exterior. Os cristãos mais intelectuais sentiram de modo natural o desejo de
penetrar, na medida em que lhes era permitido o fazer, os dados da revelação, e também o de se
formar uma imagem totalizadora do mundo e da vida humana à luz da fé. Essa última razão
operou, quiçá, de modo sistemático, mais tarde que a primeira, e, pelo que respecta aos Pais,
atingiu o cénit de sua influência no pensamento de Santo Agostinho; mas a primeira, o desejo
de penetrar os dogmas da fé (uma antecipação da atitude caraterizada pela fórmula Credo ut
intelligam) operou de algum modo desde o princípio. Em parte mediante um simples desejo de
entender e apreciar, em parte mediante a necessidade de definições crescentemente claras do
dogma, face às herejías, os dados originarios da revelação fizeram-se mais explícitos,
desenvolveram-se “”, no sentido de fazer-se explícito o que estava implícito. Desde o princípio,
por exemplo, os cristãos aceitaram que Cristo era ao mesmo tempo Deus e homem, mas só com
o curso do tempo se clarificaram os envolvimentos dessa afirmação, e passou esta a se formular
em definições teológicas, por exemplo, que a perfeita natureza humana de Cristo implicava a
posse por Leste de uma vontade humana. Agora bem, essas definições foram, desde depois,
teológicas, e o progresso do implícito ao explícito foi um progresso na ciência teológica; mas
no processo de argumentación e definição empregaram-se conceitos e categorias tomados da
filosofia. Ademais, como os cristãos não dispunham de uma filosofia própria (no sentido
acadêmico da palavra filosofia), se dirigiram do modo mais natural à filosofia imperante em seu
tempo, que derivava do platonismo, embora estava fortemente impregnada de outros elementos.
Em uma generalização aproximada podemos dizer, pois, que as ideias filosóficas dos primeiros
escritores cristãos foram de caráter platónico ou neoplatónico (com uma mistura de estoicismo),
e que a tradição platónica continuou durante longo tempo dominando o pensamento cristão
desde o ponto de vista filosófico. Mas ao dizer isso devemos recordar que os escritores cristãos
não faziam então nenhuma clara distinção entre filosofia e teología: o que eles se propunham
era mais bem apresentar a sabedoria, ou “filosofia” cristã (em um sentido muito amplo do termo
filosofia), a qual era primordialmente teológica, conquanto contivesse elementos filosóficos no
sentido mais estrito do termo. A tarefa do historiador da filosofia consiste em isolar esses
elementos filosóficos: não é razoável esperar que seja capaz de apresentar um adequado quadro
do antigo pensamento cristão, pela excelente razão de que, ex hypothesi, o historiador da
filosofia não é um historiador da teología dogmática ou da exégesis.

Dado que, por uma parte, os filósofos paganos inclinavam-se a atacar à Igreja e as doutrinas
desta, e, por outra parte, os apologistas e teólogos cristãos se sentiam inclinados a tomar para si
as armas de seus adversários, quando pensavam que ditas armas podiam ser úteis para seus
próprios objetivos, não poderia ser esperado outra coisa senão que os escritores cristãos
mostrassem uma divergência de atitude ante a filosofia clássica, segundo que optassem por ver
a esta como inimiga e rival do cristianismo ou como um útil arsenal ou armazém de materiais,
ou inclusive como uma preparação providencial para o cristianismo. Assim, enquanto, a olhos
de Tertuliano, a filosofia pagana era pouco mais que a loucura deste mundo, Clemente de
Alejandría via a filosofia como um dom de Deus, um médio de educar ao mundo pagano para
Cristo, analogamente a como a Lei era o médio para educar aos judeus. Clemente chegou a
pensar, como Justino pensava dantes dele, que Platón tomava sua sabedoria de Moisés e dos
profetas (a argumentación nesse sentido tinha sua origem em Filão); mas, enquanto Filão tratava
de reconciliar a filosofia grega com o Antigo Testamento, Clemente tratou de reconciliar com a
religião cristã. Por suposto, a atitude que finalmente triunfou foi a de Clemente, e não a de
Tertuliano, já que Santo Agostinho fez um abundante uso de ideias neoplatónicas ao apresentar
seu Weltanschauung cristã.
2. Apologistas gregos (Arístides, san Justino mártir, Taciano,
Atenágoras, Teófilo).

O primeiro grupo de pensadores cristãos cujas obras contêm elementos filosóficos pode ser
considerado formado pelos antigos apologistas que se ocuparam particularmente na defesa da fé
cristã contra os ataques paganos, ou, quiçá melhor, em mostrar às autoridades imperiais que o
cristianismo tinha direito à existência; homens como Arístides, Justino, Melitón, Taciano,
Atenágoras e Teófilo de Antioquía. Em um breve esquema da filosofia patrística, um esquema
cuja inclusão se justifica unicamente como uma preparação para o tema principal deste livro,
não é possível tratar de todos os apologistas, nem também não tratar de algum deles de uma
maneira exaustiva: minha intenção consiste mais bem em indicar a classe de elementos
filosóficos que suas obras contêm.

(I) Marciano Arístides, ao que se designa ao começo de sua obra como “um filósofo de
Atenas”, escreveu uma Apología, que deve ser datado para o ano 140, dirigida ao imperador
Antonino Pío[3]. Grande parte dessa obra está consagrada a um ataque às divinidades paganas
da Grécia e Egito, com uma verdadeira animadversión à moral dos gregos; mas, ao começo,
Arístides declara que, “maravilhado pela ordem do mundo”, e entendendo que “o mundo e todo
quanto nele há se move por impulso de outro”, e vendo que “o que move é mais poderoso que o
que é movido”, conclui que o Motor do mundo “é Deus de tudo, que todo o fez pelo homem”.
Arístides oferece assim em uma forma muito resumida argumentos derivados da finalidade e
ordem do mundo e do fato do movimento, e identifica o computador e o motor com o Deus
cristão, do que passa a pregar os atributos de eternidade, perfección, incomprensibilidad,
sabedoria, bondade. Temos, pois, aqui uma: teología natural muito rudimentaria, e apresentada
não por razões puramente filosóficas, senão em defesa da religião cristã.

(II)Uma atitude bem mais explícita ante a filosofia pode ser encontrado nos escritos de
Flavio Justino (san Justino mártir), que nascia em Neápolis, de pais paganos, para o ano 100, e
se tinha fato cristão, e seria martirizado em Roma para o ano 164. Em seu Diálogo com Trifón
declara que a filosofia é um muito precioso dom de Deus, cuja finalidade é conduzir ao homem
para Deus, embora sua verdadeira natureza e sua unidade não foram reconhecidas pela maioria
das gentes, como claramente se vê pela existência de tantas escolas filosóficas[4]. Pelo que a ele
mesmo se refere, foi primeiramente, em busca de instrução, a um estoico, mas, ao encontrar
insatisfactoria a doutrina estoica envelope Deus, se separou daquele e foi a um peripatético, ao
que cedo abandonou, quando se lhe manifestou como um profissional cobiçoso de honorarios[5].
Ao separar-se do peripatético foi, com entusiasmo ainda não diminuído, a um pitagórico,
reputado em extremo, mas este encontrou ao aspirante a discípulo inadequadamente preparado
para a filosofia, dado sua desconocimiento da música, geometria e astronomia, e como Justino
não desejava perder muito tempo em adquirir o requerido conhecimento de ditas ciências, se
dirigiu aos platónicos, e conheceu com delícia a doutrina das ideias imateriais, que lhe fez
esperar uma clara visão de Deus, o qual, diz Justino, é o objetivo da filosofia platónica[6]. Mas
pouco depois encontrou-se com um cristão que lhe mostrou a insuficiencia da filosofia pagana,
inclusive da de Platón[7]. Justino é, pois, um exemplo de pagano culto convertido ao
cristianismo, que, sentindo sua conversão como o termo de um processo, não pode adotar uma
atitude meramente negativa e hostil para a filosofia grega.
As palavras de Justino no Diálogo referentes ao platonismo manifestam com bastante clareza
a estima em que tinha a filosofia platónica. Justino engrandecia a doutrina platónica do mundo
imaterial e a do ser que está para além da essência ao que ele identificava com Deus, embora
chegou a se convencer de que o conhecimento seguro e verdadeiro de Deus, a “verdadeira
filosofia”, somente se atinge mediante a aceitação da Revelação. Em seus dois Apologías faz
um uso frequente de termos platónicos, como quando designa a Deus como o “Demiurgo”[8].
Não sugiro que quando Justino se vale de palavras e frases platónicas ou neoplatónicas esteja as
entendendo em seu preciso sentido platónico: a utilização de tais palavras e frases é mais bem
efeito de sua educação filosófica e da simpatia que conservou pelo platonismo. Assim, não
duvida em apontar ocasionalmente analogias entre a doutrina cristã e a platónica, em
relacionamento, por exemplo, com as recompensa e castigos após a morte[9], e sua admiração
por Sócrates é patente. Quando Sócrates, em poder do Logos, ou como instrumento deste, tratou
de conduzir aos homens desde a falsidade à verdade, homens maus lhe levaram à morte lhe
acusando de impío ateísmo: do mesmo modo os cristãos, que seguem e obedecem ao Logos
mesmo encarnado, e que denunciam aos falsos deuses, são chamados ateus[10]. Em outras
palavras, bem como a obra de Sócrates, que foi um serviço à verdade, foi uma preparação para
a obra completa de Cristo, também a condenação de Sócrates foi em realidade um ensaio ou
antecipação da condenação de Cristo e de seus seguidores. Por outra parte, as ações dos homens
não estão determinadas, como pensavam os estoicos, senão que os homens atuam bem ou mau
segundo sua própria livre eleição; mas, em mudança, deve-se à ação dos demônios maus o que
Sócrates e os que são como ele sejam perseguidos, enquanto Epicuro e os que são como ele
recebem honras.[11]

Justino não fez, pois, uma distinção clara entre teología e filosofia em sentido estrito: há uma
sabedoria, uma “filosofia”, que se revela plenamente em e através de Cristo, mas da qual foram
uma preparação os melhore elementos da filosofia pagana, especialmente o platonismo. Na
medida em que os filósofos paganos adivinharam a verdade, o fizeram como de algum modo
possuídos pelo Logos; mas Cristo é o Logos mesmo, o Logos encarnado. Esse modo de ver a
filosofia grega e seu relacionamento ao cristianismo teve uma grande influência em escritores
posteriores.

(III)Segundo Ireneo[12], Taciano foi um discípulo de Justino. Era de nacionalidade síria,


educou-se na literatura e a filosofia gregas, e depois fez-se cristão. Não há nenhuma verdadeira
razão para duvidar da verdade da afirmação de que Taciano fosse em algum sentido discípulo
de Justino, mas está perfeitamente claro, a julgar por seu Discurso contra os gregos, que não
compartilhou a simpatia de Justino pela filosofia grega em suas feições mais espirituais. Taciano
declara que conhecemos a Deus por suas obras; tem uma doutrina do Logos, distingue a alma
(Φυχή) do espírito (πνευμα), ensina a criação no tempo e faz questão da liberdade da vontade;
mas pode ter tomado todos esses pontos das Escrituras e dos ensinos cristãos; faz pouco uso da
educação ou do pensamento gregos, embora dificilmente pode ter escapado por completo a sua
influência. De fato inclinou-se para um rigorismo excessivo, e sabemos por san Ireneo e san
Jerónimo[13] que, após o martírio de Justino, Taciano se apartou da Igreja para se unir ao
gnosticismo valentiniano, e que a seguir fundou a seita dos encratitas, que não somente
denunciava o beber vinho e o uso de ornamentos pelas mulheres, senão inclusive o casal, que
não era, a seus olhos, senão violação e fornicación.[14]
Taciano reconhecia a capacidade da mente humana para provar a existência de Deus a partir
das criaturas, e fez realmente uso de noções e categorias filosóficas, no desenvolvimento da
teología, como quando mantém que a Palavra (Verbo), que procede da essência simples de Deus,
não “cai no vazio”, como as palavras humanas, senão que permanece em sua subsistencia e é o
instrumento divino da Criação. Utiliza assim a analogia da formação do pensamento e a fala
humana para ilustrar a procissão do Verbo, e, embora sustenta a doutrina da Criação, se vale de
uma linguagem que recorda ao do Timeo a propósito do Demiurgo. Mas, se utiliza termos e
ideias tomados da filosofia pagana, não o faz, em modo algum, em um espírito de simpatia,
senão mais bem com a ideia de que os filósofos gregos tomava das Escrituras qualquer coisa
que possuíssem para valer, enquanto toda outra coisa que eles acrescentassem não era senão
falsidade e perversión. Os estoicos, por exemplo, perverteram a doutrina da providência
mediante sua diabólica teoria do determinismo fatalista. Há certamente algo de ironia histórica
em que um escritor que manifesta uma tão pronunciada hostilidade para o pensamento grego, e
que traçou uma distinção tão aguda entre a “sofistería” grega e a sabedoria cristã, fosse parar
depois à herejía.

(IV)Uma aproximação mais discreta aos gregos, e mais em harmonia com a de Justino
mártir, foi a de Atenágoras , que dirigiu aos imperadores Marco Aurelio e Cômodo
“conquistadores de Armenia e Sarmatia, e, sobretudo, filósofos”, uma Legación pelos cristãos
(Trp£ou(38ía nspi xPiaTiav>v) ao redor do ano 177. Nesse livro o autor preocupa-se por
defender aos cristãos contra as três acusações de ateísmo, festas de antropofagia, e incesto, e, ao
contestar à primeira acusação, apresenta uma razonada defesa da crença cristã em um só Deus,
eterno e espiritual. Antes de mais nada cita a vários filósofos gregos, por exemplo Filolao,
Platón, Aristóteles e os estoicos. Cita a Platón no Timeo, no sentido de que é difícil encontrar ao
Hacedor e Pai do Universo, e é impossível, ainda que se lhe tem encontrado, lhe declarar; e
pergunta por que os cristãos, que crêem em um Deus, são chamados ateus, enquanto Platón não
é chamado assim por sua doutrina do Demiurgo. Os poetas e filósofos, movidos por um impulso
divino, fizeram o possível por encontrar a Deus, e permite-se aos homens que prestem atenção
a suas conclusões; seria, pois, insensato negar-se, a escutar ao verdadeiro Espírito de Deus, que
fala por boca dos Profetas.

Atenágoras procede a mostrar a seguir que não pode ter uma multidão de deuses materiais;
que Deus, que forma a matéria, deve trascender a esta (embora não acerta mal a conceber a Deus
sem relacionamento com o espaço); que a Causa das coisas perecíveis deve ser imperecível e
espiritual, e apela especialmente ao depoimento de Platón. Adota, pois, a mesma atitude de
Justino Mártir. Não há mais que uma sabedoria ou “filosofia” verdadeira, que só se atinge
adequadamente mediante a revelação cristã, embora os filósofos gregos adivinharam algo da
verdade. Em outras palavras, seu mesmo respeito pelos poetas e pensadores gregos devia levar
a homens reflexivos como Enquadramento Aurelio a apreciar e estimar, quiçá inclusive a
abraçar, o cristianismo. O propósito primordial de Atenágoras é teológico e apologético, mas
em sua tentativa de realizá-lo utiliza argumentos e temas filosóficos; por exemplo, ao tentar
provar o caráter razoável da doutrina da resurrección dos corpos, põe em claro sua convicção,
contrária à opinião platónica, de que o corpo pertence à integridade do homem, que o homem
não é simplesmente uma alma que utilize um corpo.[15]
(V)Um telefonema similar ao pagano inteligente foi feita por Teófilo de Antioquía, em seu
A Autólico, escrito para o ano 180. Após sublinhar o fato de que a pureza moral é necessária
para todo o que queira conhecer a Deus, procede a falar dos atributos divinos, a
incomprensibilidad, o poder, a sabedoria, a eternidade, a inmutabilidad de Deus. Do mesmo
modo que a alma humana, que é invisível, se percebe através dos movimentos do corpo, assim
Deus, a sua vez invisível, se conhece através de sua providência e obras. Teófilo não é sempre
exato em seus relatórios sobre as opiniões dos filósofos gregos, mas está claro que sente uma
verdadeira estimativa por Platón, ao que considera “o filósofo mais respetable entre eles”[16],
conquanto Platón errou ao não ensinar a Criação a partir da nada (que Teófilo afirma claramente)
e em sua doutrina a propósito do casal (em cuja exposição Teófilo não é correto).

3. Gnosticismo e escritores opostos a este (san Ireneo, Hipólito).

Os apologistas de que falámos, os quais escreveram em grego, se interessaram


principalmente por responder aos ataques ao cristianismo. Podemos agora considerar
brevemente ao grande adversário do gnosticismo, san Ireneo, ao qual acrescentamos, por razões
de conveniência, Hipólito. Ambos homens escreveram em grego, e ambos combateram ao
gnosticismo, que floresceu no século ou após Jesucristo, embora a obra de Hipólito possui um
interesse mais vasto, ao conter muitas referências à filosofia e aos filósofos gregos.

Do gnosticismo é suficiente dizer aqui que, em general, foi uma monstruosa fusão de
elementos escriturísticos e cristãos, gregos e orientais, que, pretendendo substituir a fé pelo
conhecimento (gnosis), oferecia uma doutrina de Deus, a Criação, a origem do mau, e a salvação,
aos que gostavam de se ver como pessoas superiores em comparação com o tipo vulgar de
cristão. Teve um gnosticismo judeu anterior à forma “cristã” deste, à que só é possível considerar
como uma herejía cristã na medida em que assumiu certos temas especificamente cristãos; os
elementos orientais e helenísticos são demasiado conspicuos para que seja possível chamar ao
gnosticismo uma herejía cristã no sentido ordinário, embora foi um verdadeiro perigo no século
e seduziu àqueles cristãos que sentiam a atração das raras especulações teosóficas que os
gnósticos ofereciam como “conhecimento”. Em realidade, deram-se numerosos sistemas de
gnosis, como os de Cerinto, Marción, os ofitas, Basílides, Valentino. Sabemos que Marción foi
um cristão que sofreu a excomunión; mas os ofitas eram provavelmente de origem judeo-
alejandrino, e quanto a famosos gnósticos, como Basílides e Valentino (século 2), nunca, que se
saiba, foram cristãos.

Caraterizou em general ao gnosticismo um dualismo entre Deus e a matéria, que, embora


não absoluto, se aproximava ao do posterior sistema maniqueo. O abismo decorrente entre Deus
e a matéria enchia-se com uma série de emanações ou seres intermediários, entre os quais os
gnósticos encontravam um local para Cristo. O complemento do processo de emanação era a
volta a Deus, por via de salvação.

No sistema de Marción, como pode ser suposto, o elemento cristão era muito destacado. O
Deus do Antigo Testamento, o Demiurgo, é inferior ao Deus do Novo Testamento, que
permaneceu desconhecido até que se revelou a Si mesmo em Jesucristo. Em mudança, nos
sistemas de Basílides e Valentino o elemento cristão é menos importante: Cristo representa-se
como um ser inferior (um “Eón”), em uma fantástica hierarquia de emanações divinas e
semidivinas, e sua missão é simplesmente a de transmitir ao homem a gnosis ou conhecimento
salvífico. Como a matéria é o mau, não pode ser a obra do Deus Supremo, senão que se deve ao
“Grande Archón”, que era adorado pelos judeus e que se apresentava a si mesmo como o único
Deus Supremo. Os sistemas gnósticos não foram, pois, dualistas no pleno sentido maniqueo, já
que o Demiurgo, identificado com o Deus do Antigo Testamento, não era um princípio do mau
independente e originario (o elemento neoplatónico era demasiado prominente para admitir um
dualismo absoluto), e sua principal caraterística comum não foi tanto a tendência ao dualismo
como a insistencia na gnosis como médio de salvação. A adoção de elementos cristãos deveu-
se em ampla medida ao desejo de absorver o cristianismo, de substituir a fé pela gnosis.
Adentrarse mais nos rasgos diferencia doure dos diversos sistemas gnósticos e detalhar as séries
de emanações seria uma tarefa cansada e pouco proveitosa: basta com indicar que sua estrutura
geral se formou com uma mistura de temas orientais e gregos (neopitagóricos e neoplatónicos),
com doses variáveis de elementos cristãos, tomados tanto do cristianismo propriamente dito
como de documentos apócrifos e espurios. Hoje resulta-nos difícil compreender como pôde ter
sido o gnosticismo um perigo para a Igreja e algo atraente para uma mente sã; mas não devemos
esquecer que surgiu em um tempo em que uma confusão de escolas filosóficas e de religiões de
mistérios pugnaban por proveer às necessidades espirituais dos homens. Pelo demais, os
sistemas esotéricos e teosóficos, aureolados pelo pseudo-atraente da “sabedoria oriental”, não
perderam por inteiro seu fascinación sobre algumas mentes em épocas bem mais recentes.

(I)San Ireneo (nascido no ano 140, ou pouco dantes), ao escrever contra os gnósticos em seu
Adversus Haereses (“Contra os Hereges”), afirma que há um só Deus, que fez todas as coisas,
Criador do Céu e da Terra. Apela, por exemplo, ao argumento da ordem do mundo, e ao tomado
do consentimento universal, observando que os mesmos paganos aprenderam da criação mesma,
mediante o emprego de sua razão, a existência de Deus como Criador[17]. Deus criou o mundo
livremente, e não por necessidade[18]. Ademais, criou o mundo a partir da nada, e não a partir
de uma matéria previamente existente, como pretendem os gnósticos se apoiando em
“Anaxágoras, Empédocles e Platón”[19]. Mas embora a mente humana pode chegar a conhecer
a Deus através da razão e a revelação, não pode compreender a Deus, cuja essência trasciende a
inteligência humana: pretender conhecer os mistérios inefables de Deus, e ir para além do amor
e da fé humilde, como fazem os gnósticos, é mero orgulho e engreimiento. A doutrina da
reencarnación é falsa, e a lei moral revelada não abroga, senão que cumpre e estende, a lei
natural. Finalmente, “o ensino dos Apóstolos é a verdadeira gnosis”.[20]

Segundo Ireneo, os gnósticos tomaram a maioria de suas ideias dos filósofos gregos. Assim,
por exemplo, lhes acusa de tomar seu moral de Epicuro e dos cínicos, e sua doutrina da
reencarnación, de Platón. Nessa tendência a referir as teorias gnósticas a filosofias gregas, Ireneo
foi seguido por

(II)Hipólito (morrido provavelmente para o ano 236), que foi um discípulo de Ireneo,
segundo Focio[21], e indubitavelmente utilizou os ensinos e escritos daquele. No Proemio a seus
Filosofoúmena (que agora se atribui geralmente a Hipólito), declara sua intenção, só
parcialmente cumprida, de expor os plagios dos gnósticos, mostrando como suas diversas
opiniões era tomadas de filósofos gregos, embora deterioradas pelos próprios gnósticos, e, para
o fazer mais facilmente, começa por fazer contagem das opiniões dos filósofos, confiando sua
informação principalmente, se não por inteiro, à doxografía de Teofrasto. Não obstante, a
informação não é sempre exata. Sua principal acusação contra os gregos consiste em que aqueles
glorificaram as partes da criação com delicadas frases, mas ignoraram ao Criador de todas as
coisas, que as fez livremente a partir da nada, segundo sua sabedoria e presciencia.

4. Apologistas latinos (Minucio Félix, Tertuliano, Arnobio,


Lactancio).

Os autores precedentes escreveram em grego; mas teve também um grupo de apologistas


latinos, Minucio Félix, Tertuliano, Arnobio e Lactancio, o mais importante dos quais foi
Tertuliano.

(I)Não é seguro se Minucio Félix escreveu dantes ou depois que Tertuliano, mas em todo
caso sua atitude para a filosofia grega, segundo aparece em sua Octavio, foi mais favorável que
a de Tertuliano. Ao argumentar que a existência de Deus pode ser conhecido com certeza a partir
da ordem da natureza e da finalidade implicada no organismo, particularmente no corpo
humano, e que a unidade de Deus pode ser inferida a partir da unidade da ordem cósmico,
Minucio Félix afirmou que também os filósofos gregos reconheceram essas verdades. Assim,
Aristóteles reconheceu uma só Divinidad, e os estoicos tinham uma doutrina da providência
divina, e Platón fala em termos quase cristãos quando se refere no Timeo ao Hacedor e Pai do
Universo.

(II)Tertuliano, em mudança, fala de um modo muito diferente da filosofia grega.

Nascido para o ano 160, de pais paganos, e educado como jurista (profissão que exerceu em
Roma), se converteu ao cristianismo, para cair depois na herejía montañista, uma forma de
puritanismo rigoroso e excessivo. Foi o primeiro escritor latino cristão sobresaliente, e em suas
obras aparece de um modo claro e explícito seu desprezo pelo paganismo e pela educação
pagana. Que têm em comum o cristão e o filósofo, o discípulo da Grécia, amigo do erro, e o
discípulo do céu, inimigo do erro e amigo da verdade?[22] Inclusive a sabedoria de Sócrates
representa pouco, já que ninguém pode conhecer realmente a Deus sem Cristo, nem a Cristo
sem o Espírito Santo. Ademais, Sócrates, segundo ele mesmo confessou, se deixou guiar por um
demônio![23] Quanto a Platón, disse que era difícil encontrar ao Hacedor e Pai do Universo,
sendo de modo que o mais singelo dos cristãos lhe encontrou já[24]. Ademais, os filósofos gregos
são os patriarcas dos hereges[25], já que Valentino plagió aos platónicos, Marción aos estoicos,
e os filósofos, por sua vez, tinham plagiado ideias do Antigo Testamento, e depois deformaram-
nas e pretenderam que eram suas próprias.[26]

Não obstante, apesar da antítese que estabelece entre sabedoria cristã e filosofia grega, o
próprio Tertuliano desenvolveu temas filosóficos e foi influído pelos estoicos.

Afirma que a existência de Deus se conhece com certeza a partir de suas obras[27], e também
que da condição increada de Deus podemos inferir a perfección deste (Imperfectum non potest
esse nisi quod factum est)[28]; mas faz a surpreendente afirmação de que todas as coisas, incluído
Deus, são corpóreas. “Todo o que existe é uma existência corpórea sui generis. A nada falta
existência corpórea, exceto ao que é não existente”[29]; “porque, quem negará que Deus é um
corpo, embora “Deus é um espírito”?; porque o espírito tem uma substância corpórea, de sua
própria classe, de sua própria forma”[30]. Muitos escritores concluíram, sobre a base dessas
afirmações, que Tertuliano mantinha uma doutrina materialista e sustentava que Deus era
realmente um ser material, do mesmo modo a como os estoicos consideravam a Deus material;
alguns, no entanto, sugeriram que o que Tertuliano entende por “corpo” é muitas vezes
simplesmente “substância”, e que quando atribui materialidad a Deus o que realmente pensa lhe
atribuir é simplesmente sustancialidad. Segundo essa explicação, quando Tertuliano diz que
Deus é um corpus sui generis, que é corpus e, não obstante, spiritus, o que quer dizer é que Deus
é uma substância espiritual: seria a linguagem o que lhe falharia, mas seu pensamento seria
aceitável. Indubitavelmente não temos direito a excluir a possibilidade de dita explicação, mas
é verdadeiro que Tertuliano, ao falar da alma humana, diz que esta deve ser uma substância
corpórea, já que pode sofrer[31]. Não obstante, também a respeito da natureza da alma fala
ambiguamente, e em sua Apología[32] dá como uma razão em favor da resurrección dos corpos
dos condenados o que “o alma não é capaz de sofrer sem a substância sólida, isto é, a carne”.
Parece, pois, que o mais seguro isto é que, conquanto a linguagem de Tertuliano implica com
frequência um materialismo de tipo bastante grosseiro, sua intenção pode não ter sido sempre a
que sua linguagem parecia implicar. Quando ensina que a alma do menino deriva da simiente
do pai como uma espécie de renovo (surculus, tradux)[33], parece estar ensinando uma doutrina
claramente materialista; mas esse traducianismo foi adotado em parte por uma razão teológica,
a saber, para explicar a transmissão do pecado original, e alguns escritores posteriores que
favoreceram a mesma opinião o fizeram pela mesma razão teológica, sem advertir
aparentemente os envolvimentos materialistas da doutrina. Isso não prova, desde depois, que
Tertuliano não fosse materialista; mas pode ao menos levar-lhe a um a vacilar dantes de formar
a convicção de que seu sentido geral coincidisse sempre com as palavras que ele utilizava. Sua
afirmação da liberdade da vontade e da imortalidade natural da alma se compadecen mau, desde
um ponto de vista lógico, com um charuto materialismo; mas também não isso justificaria que
negássemos em redondo que Tertuliano fosse materialista, já que pôde ter sustentado uma teoria
materialista sem advertir que alguns dos atributos que ele atribuía ao alma eram incompatíveis
com uma posição plenamente materialista.

Um dos grandes serviços prestados por Tertuliano ao pensamento cristão foi o


desenvolvimento de uma terminología teológica, e, em certa medida, filosófica, em linguagem
latino. Assim, a acepción técnica da palavra pessoa se encontra pela primeira vez em seus
escritos: as Pessoas divinas são diferentes como Personae, mas não são substantiae diferentes,
separadas[34]. Em sua doutrina do Verbo[35] apela explicitamente aos estoicos, a Zenón e
Cleantes[36]. Mas aqui não nos concierne falar dos desenvolvimentos teológicos de Tertuliano,
nem de seu ortodoxia ou heterodoxia.

(III)Em seu Adversus Gentes (para 303), Arnobio Lace algumas observações curiosas a
propósito da alma. Assim, embora afirma o creacionismo, contra a doutrina platónica da
preexistencia, considera que o agente criador das almas é um ser inferior a Deus; e afirma
também o caráter gratuito da imortalidade, negando que esta convenha à alma por sua natureza.
Um motivo era evidentemente o de utilizar esse caráter gracioso ou gratuito da imortalidade
como um argumento para se fazer cristão e levar uma vida moral. Outro ponto de interesse é
que, quando combata a teoria platónica da reminiscência, afirma a origem experiencial de todas
nossas ideias com uma só exceção: a ideia de Deus. Descreve-nos a um menino crescido na
solidão, o silêncio e a ignorância, durante toda sua juventude, e declara que, como resultado,
esse menino nada saberia: indubitavelmente não teria nenhum conhecimento “por
reminiscência”. A prova que de sua doutrina oferece Platón no Menón não é convincente.[37]

(IV)A origem da alma por criação direta de Deus, em oposição a qualquer forma de
traducianismo, foi claramente afirmado por Lactancio (250-325, aproximadamente), em sua De
opificio Dei.[38]

5. Escola catequística de Alejandría (Clemente, Origens).

O gnosticismo, segundo conhecemo-lo pelas críticas de san Ireneo e de Hipólito, foi, na


medida em que pode ser razoavelmente posto em conexão com o cristianismo, um sistema
herético especulativo, ou, mais exatamente, uma coleção de sistemas, que, além de elementos
orientais e cristãos, incorporou elementos do pensamento helenístico. Em consequência, um de
seus efeitos foi o suscitar uma decidida oposição à filosofia helenística por parte daqueles
escritores cristãos que exageravam as conexões entre gnosticismo e filosofia grega, à que
consideravam como o semillero das herejías; mas outro efeito foi o contribuir ao esforço por
construir uma “gnosis” não herética, um sistema teológico-filosófico cristão. Esse esforço foi
característico da escola catequística de Alejandría, cujos mais dois nomes famosos são Clemente
e Origens.

(I)Tito Flavio Clemente (Clemente de Alejandría) nasceu para o ano 150, possivelmente em
Atenas, chegou a Alejandría em 202 ou 203, e morreu ali aproximadamente em 219. Animado
pela atitude que se resumiria mais tarde na fórmula Credo, ut intelligam, aspirou a desenvolver
uma apresentação sistemática da sabedoria cristã em uma gnosis verdadeira, oposta à falsa.
Nesse processo seguiu o espírito do tratamento dos filósofos gregos por Justino Mártir, e viu
naqueles uma preparação do cristianismo, uma educação do mundo helenístico para a religião
revelada, mais bem que uma insensatez ou uma ilusão da mente humana. O Logos divino
alumiou sempre às almas; mas enquanto os judeus foram adoctrinados por Moisés e os Profetas,
os gregos tiveram seus sábios, seus filósofos, de modo que a filosofia foi para os gregos o que
foi para os judeus a Lei[39]. É verdade que Clemente pensou, seguindo também em isso a Justino,
que os gregos tinham plagiado o Antigo Testamento, e que, por motivos de vanagloria, tinham
desfigurado o que ali encontrassem; mas também estava firmemente convencido de que a luz do
Logos fez possível aos filósofos gregos atingir muitas verdades, e que a filosofia é em realidade
simplesmente um corpo de verdades que não são exclusivas de nenhuma escola grega, senão
que se encontram, em diversos graus e medidas, em escolas diferentes, conquanto Platón foi em
verdade o maior de todos os filósofos.[40]

Mas a filosofia não somente foi uma preparação para o cristianismo; é também uma ajuda
para o entendimento do cristianismo. Em realidade, a pessoa que se limita a achar e não faz
esforço algum por entender é como um menino em comparação com um homem; a fé cega, a
aceitação pasiva, não constitui um ideal, embora a ciência, a especulação, o razonamiento, não
podem ser verdadeiros se não harmonizam com a revelação. Em outras palavras, Clemente de
Alejandría, como primeiro cristão erudito, quis ver o cristianismo em relacionamento com a
filosofia, e utilizar a razão especulativa Para a sistematización e desenvolvimento da teología.
Acidentalmente é interessante notar que Clemente recusa todo verdadeiro conhecimento
positivo de Deus: somente conhecemos em verdade aquilo que Deus não é, por exemplo, que
não é um gênero, nem uma espécie, que está para além de todo aquilo de que podemos ter
experiência, de todo aquilo que podemos conceber. Está justificado que preguemos aperfeiçoe
de Deus, mas ao mesmo tempo devemos recordar que todos os nomes que aplicamos a Deus são
inadequados, e, portanto, em verdadeiro sentido, inaplicables. Assim, em dependência de
algumas observações de Platón na República, a propósito da ideia de Bem, e em dependência
de Filão, Clemente afirmou a via negativa, tão de preferência dos místicos, que atingiria sua
expressão clássica nos escritos do Pseu do- Dionisio.

(II)Origens, o membro mais eminente da escola catequística de Alejandría, nascia em 1 ano


185 ou 186. Estudou as obras dos filósofos gregos, e diz-se que assistiu às lições de Ammonio
Saccas, o maestro de Plotino. Teve que abandonar a direção da escola de Alejandría por causa
de um processo sinodal (anos 231 e 232), dirigido contra certos rasgos de sua doutrina, e também
contra sua ordenação (se disse que era ordenado sacerdote em Palestina apesar de seu ato de
automutilación), e fundou então uma escola em Cesarea de Palestina, onde san Gregorio
Taumaturgo foi um de seus discípulos. Morreu em 254 ou 255, em consequência da tortura que
teve que sofrer na perseguição de Decio.

Origens foi o mais prolífico e erudito de todos os escritores cristãos anteriores ao Concebo
de Nicea, e não há dúvida de que teve a firme e constante intenção de ser e se manter cristão
ortodoxo; mas seu desejo de reconciliar a filosofia platónica com 1 cristianismo e seu entusiasmo
pela interpretação alegórica das Escrituras levou-lhe a certas opiniões heterodoxas. Assim, baixo
a influência do platonismo, ou mais bem do neoplatonismo, sustentou que Deus, que é
puramente espiritual, a Mónada (νομάς) ou Um (ένάς)[41], e que trasciende a verdade e a razão,
a essência e o ser (em seu livro contra o filósofo pagano Celso[42] diz, seguindo a Platón, que
Deus está “para além da mente e da essência”, eireKira vai) Kat ajotas), criou o mundo desde a
eternidade e por necessidade de sua natureza. Deus, que é bondade, nunca pôde estar “inativo”,
já que a bondade tende sempre à autocomunicación, à autodifusión. Ademais, se Deus criasse o
mundo no tempo, se tivesse alguma vez um “tempo” no que o mundo não fosse, a inmutabilidad
de Deus resultaria deteriorada, o qual é uma imposibilidad[43]. Ambas razões estão concebidas
em dependência do neoplatonismo. Deus é em verdade o criador da matéria, e é, pois, Criador
em 1 sentido estrito e cristão[44], mas há uma infinidad de mundos, que se acontecem uns a
outros, e todos diferentes uns de outros[45]. Como o mau é privação, e não algo positivo, Deus
não pode ser acusado de ser o autor do mau[46]. O Logos ou Verbo é a instância da Criação, a
ιδέα ιδεῶν[47] e todas as coisas são criadas pelo Logos, que atua como mediador entre Deus e as
criaturas[48]. A procissão última dentro da Divinidad é o Espírito Santo, e imediatamente por
embaixo do Espírito Santo estão os espíritos criados, que, mediante o poder do Espírito Santo,
são promovidos ao estado de filhos de Deus, em união com o Filho, e participam finalmente na
vida divina do Pai.[49]

As almas foram criadas por Deus exatamente iguais una-as às outras em qualidade, mas o
pecado, em um estado de preexistencia, fez com que fossem revestidas pelos corpos, e, assim,
as diferenças cualitativas entre as almas se devem ao comportamento destas dantes de sua
entrada neste mundo. Desfrutam de livre albedrío na terra, mas seus atos dependem não só de
sua livre eleição, senão também da graça de Deus, que lhes é distribuída segundo sua conduta
no estado de preencarnación. Não obstante, todas as almas, e inclusive também o diabo e os
demônios, mediante um sofrimento purificador, conseguiriam a união com Deus. Essa é a
doutrina da restauração de todas as coisas (έπανόρθωσις, άποκατάστασις πάντων), segundo a
qual todas as coisas regressarão a seu último princípio, e Deus será tudo em todo[50]. Isso supõe,
desde depois, a negación da doutrina ortodoxa do inferno.

Embora não seja muito o que dissemos a propósito do pensamento de Origens, estará claro
que este tentou uma fusão da doutrina cristã com a filosofia platónica e neoplatónica. Do Filho
e do Espírito Santo, embora dentro da Divinidad, fala-se de um modo que manifesta a influência
do emanatismo do pensamento de Filão e dos neoplatónicos. A teoria do Logos como “Ideia das
ideias”, e a da criação eterna e necessária, procedem da mesma fonte, enquanto a teoria da
preexistencia é platónica. Desde depois, as ideias filosóficas adotadas por Origens foram
incorporadas por este a um quadro e uma estrutura cristãos, de maneira que se lhe pode
considerar em justiça o primeiro grande pensador sistemático do cristianismo, mas embora o as
referiu a bilhetes da Escritura livremente interpretados, seu entusiasmo pelo pensamento grego
lhe conduziu às vezes à heterodoxia.

6. Pais gregos (san Basilio, Eusebio, san Gregorio de Nisa).

Os Pais gregos dos séculos 4 e 5 ocuparam-se principalmente de questões teológicas. Assim,


san Atanasio, que morreu no ano 373, foi o grande adversário do arrianismo; san Gregorio
Nacianceno, que morreu 1 ano 390, e ao que se conheceu pelo sobrenombre de “o Teólogo”, é
notável sobretudo por sua obra de teología trinitaria e cristológiea; san João Crisóstomo
(morrido em 406) é celebrado como um dos maiores oradores da Igreja, e por sua obra sobre as
Escrituras. Ao tratar de dogmas como os da Santísima Trinidad e a união hipostática, os Pais
utilizaram naturalmente termos e expressões filosóficas; mas sua aplicação do razonamiento à
teología não lhes faz filósofos em sentido estrito, e aqui devemos lhes passar por alto. Pode ser
indicado, no entanto, que san Basilio (morrido em 379) estudou na Universidade de Atenas,
junto de san Gregorio Nacianceno, e que em sua Ad adolescentes recomenda um estudo dos
poetas, oradores, historiadores e filósofos gregos, embora deveria ser feito uma seleção dos
escritos daqueles para excluir os bilhetes inmorales; a literatura e a erudición gregas são um
poderoso instrumento de educação, mas a educação moral é mais importante que a formação
literária e filosófica. (O próprio san Basilio, em suas descrições de animais, depende quase por
inteiro das correspondentes obras de Aristóteles.)

Mas, embora não possamos considerar aqui as especulações teológicas dos Pais gregos, deve
ser dito algo de duas figuras eminentes desse período, o historiador Eusebio e san Gregorio de
Nisa.

(I) Eusebio de Cesarea nascia em Palestina para o ano 265, chegou a ser bispo de Cesarea,
seu local de nascimento, em 313, e morreu ali, em 339 ou 340. Principalmente conhecido como
um grande historiador da Igreja, é também importante por sua apologética cristã, e nesse sentido
pode ser citado sua atitude para a filosofia grega, pois, em general, via a esta, especialmente o
platonismo, como uma preparação do mundo pagano para o cristianismo, embora o mesmo
estava muito alerta em frente aos erros dos filósofos gregos e as contradições entre as muitas
escolas filosóficas. No entanto, embora em ocasiões fala violentamente, sua atitude geral é
simpatizante e apreciativa, uma atitude que se manifesta com a maior clareza em sua Praeparatio
evangélica, em quinze livros. É muito lamentável que não chegue até nós os vinte e cinco livros
da obra que Eusebio escreveu em resposta ao ataque de Porfirio ao cristianismo, porque sem
dúvida sua réplica ao eminente neoplatónico e discípulo de Plotino arrojaria muita luz sobre as
ideias filosóficas; mas a Praeparatio evangélica é suficiente para evidenciar não somente que
Eusebio compartilhou o modo de ver general de Justino Mártir, Clemente de Alejandría e
Origens, senão também a extensão de suas leituras dos autores gregos. Eusebio foi,
efetivamente, um homem extremamente instruído, e sua obra é uma de nossas fontes para o
conhecimento da filosofia daqueles pensadores cujas obras não foram conservadas.

Mal poderia ser esperado outra coisa, dada a atitude de seus predecessores, senão que
Eusebio apreciasse especialmente a Platón; efetivamente, consagra ao platonismo três livros (11-
13) da Praeparatio. Clemente falava de Platón como de um Moisés escrevendo em grego, e
Eusebio, em conformidade com Clemente, considera que Platón e Moisés estavam de acordo[51],
e que pode ser chamado a Platón profeta da economia da salvação[52]. Como Clemente e
Origens, e também como Filão, Eusebio pensava que Platón copiava as verdades que expõe do
Antigo Testamento[53]; mas, ao mesmo tempo, está disposto a admitir a possibilidade de que
Platón descobrisse a verdade por si mesmo, ou de que fosse alumiado por Deus[54]. Em todo
caso, não só coincide Platón com a literatura sagrada dos hebreus na ideia de Deus, senão que
sugere também, em suas Cartas, a ideia da Santísima Trinidad. Nesse ponto Eusebio, desde
depois, interpreta a Platón em um sentido neoplatónico, e refere-se aos três princípios de “o Um”
ou o Bem, o Nous ou Mente, e a “Alma do Mundo”[55]. As Ideias são as ideias de Deus, do
Logos, os modelos instâncias da criação, e o quadro da criação no Timeo é similar ao conteúdo
no Génesis[56]. Platón coincide também com as Escrituras em sua doutrina da imortalidade[57],
enquanto o ensino moral do Fedro recorda a Eusebio a de san Pablo[58].

Inclusive o ideal platónico do Estado encontrou sua realização na teocracia judia.[59]

Não é por isso menos verdadeiro que Platón não afirma tais verdades sem alguma mistura
de erro[60]. Sua doutrina de Deus e da Criação está contaminada por sua doutrina da emanação
e por sua aceitação da eternidade da matéria; sua doutrina da alma e da imortalidade, por sua
teoria da preexistencia e da reencarnación, etc. Por conseguinte, Platón, embora fosse um
“profeta”, não foi mais que um profeta: não entrou por si mesmo na terra prometida da verdade,
embora se aproximou a ela: somente o cristianismo é a verdadeira filosofia. Ademais, a filosofia
de Platón foi de um elevado intelectualismo, demasiado alta para ser apreciada pela gente
ordinária, enquanto o cristianismo é para todos, de maneira que homens e mulheres, ricos e
pobres, cultos e incultos, podem ser “filósofos”.

Uma discussão da interpretação de Platón por Eusebio estaria aqui fora de local; é suficiente
notar que, em comum com a maioria dos outros escritores gregos cristãos, dá a palma a Platón
entre os pensadores helénicos, e que, em comum com todos os primeiros escritores cristãos, não
distingue realmente entre teología em sentido estrito e filosofia em sentido estrito. Há uma só
sabedoria, que em forma adequada e completa se encontra somente no cristianismo; os
pensadores gregos atingiram a sabedoria ou verdadeira filosofia na medida em que anteciparam
o cristianismo. Entre aqueles que anteciparam a verdadeira filosofia, Platón foi o mais
destacado; mas nem sequer o passou para além da ombreira da verdade. Naturalmente, a noção
de que Platón e outros pensadores gregos copiaram do Antigo Testamento, embora a mesma
fosse a sua vez, em parte, uma consequência de seu modo de entender a “filosofia”, ajudou
também a confirmar a escritores cristãos como Eusebio em sua muito ampla interpretação do
termo filosofia, como aplicável não só ao resultado da especulação humana, senão também aos
dados da revelação. De fato, apesar de seu muito favorável julgamento sobre Platón, a conclusão
lógica que se segue da convicção de Eusebio e de outros de que os filósofos gregos copiaram do
Antigo Testamento é que a especulação humana, sem a ajuda da direta iluminação de Deus, não
é de grande proveito para atingir a verdade. Porque, que eram os erros com os que, inclusive
Platón, contaminava a verdade, se não o resultado da especulação humana? Se diz-se que a
verdade contida na filosofia grega procede do Antigo Testamento, isto é, da Revelação, é difícil
evitar a conclusão de que os erros da filosofia grega procedem da especulação humana, e, em
consequência, o julgamento desfavorável com respeito ao poder dessa especulação. Essa atitude
foi muito comum entre os Pais, e, já na Idade Média, seria claramente expressa por São
Boaventura, no século XIII, embora não seria a opinião que finalmente prevaleceria (a opinião
de São Tomás de Aquino e de Duns Scot).

(II)Um dos mais instruídos dos Pais gregos, e um dos mais interessantes desde o ponto de
vista filosófico, foi o irmão de san Basilio, san Gregorio de Nisa, que nascia em Cesarea (de
Capadocia, não de Palestina) ao redor do ano 335, e, após ter sido mestre de Retórica, foi eleito
bispo de Nisa, e morreu para o ano 395.

Gregorio de Nisa advertiu claramente que os dados da revelação são aceitados por fé, e não
resultado de um processo lógico de razonamiento; que os mistérios da fé não são conclusões
filosóficas e científicas: se fossem-no, então a fé sobrenatural, própria dos cristãos, e o filosofar
dos gregos seriam indistinguibles. Por outra parte, a fé tem uma base racional, assim que,
logicamente falando, a aceitação dos mistérios em nome da autoridade pressupõe a
averiguabilidad, mediante o razonamiento natural, de certas verdades preliminares,
especialmente a existência de Deus que são suscetíveis de demonstração filosófica. Em
consequência, embora a superioridad da fé deve ser mantida, é perfeitamente razoável invocar
a ajuda da filosofia. A ética, a filosofia natural, a lógica, a matemática, não são somente adornos
para o templo da verdade, senão que podem também contribuir à vida de sabedoria e virtude:
não têm de ser, pois, desprezadas nem recusadas[61], embora a divina revelação deve ser aceitado
como pedra de toque e critério para valer, já que o razonamiento humano deve ser julgado pela
palavra de Deus, e não a palavra de Deus pelo razonamiento humano.[62] É correto empregar a
especulação humana e o razonamiento humano a propósito do dogma; mas as conclusões não
serão válidas a não ser que estejam de acordo com as Escrituras [63].

A ordem cósmico prova a existência de Deus, e a partir da necessária perfección de Deus


podemos inferir sua unicidad, que há um só Deus. Gregorio vai mais longe e tenta dar razões
para a Trinidad de pessoas na Divinidad uma[64]. Por exemplo, Deus deve ter um Logos, uma
palavra, uma razão. Não pode ser menos que o homem, que também tem uma razão, uma
palavra. Mas o Logos divino não pode ser algo de duração efêmera, deve ser eterno, bem como
deve ser vivente. A palavra interior do homem é um acidente efêmero, mas em Deus não pode
ter uma coisa semelhante: o Logos é um em natureza com o Pai, porque não há senão um só
Deus; a distinção entre o Logos e o Pai, a Palavra e o Hablante, é uma distinção de
relacionamento. Não nos interessa entrar agora aqui na doutrina trinitaria, como tal, de san
Gregorio, mas o fato de que este tente, em algum sentido, “provar” a doutrina, é interessante, já
que oferece um precedente para as posteriores tentativas de Santo Anselmo e de Ricardo de São
Victor para deduzir a Trinidad, para a provar rationibus necessariis.

Não obstante, é evidente que a intenção de san Gregorio, como a de Santo Anselmo, era
fazer mais inteligible o mistério, mediante a aplicação da dialética, mas não “o racionalizar”, no
sentido de se apartar da ortodoxia dogmática. De um modo semelhante, sua teoria de que a
palavra “homem” é primariamente aplicável ao universal, e só secundariamente ao indivíduo-
homem, foi uma tentativa de fazer mais inteligible o mistério, como uma ilustração de que a
palavra “Deus” se refere primariamente à essência divina, que é uma, e só secundariamente às
pessoas divinas, que são três, de maneira que não é justo acusar aos cristãos de triteísmo. Mas,
embora a ilustração fosse introduzida para refutar a acusação de triteísmo e fazer mais inteligible
o mistério, foi uma ilustração pouco afortunada, já que implicava uma opinião hiperrealista
envelope os universais.

O platonismo de san Gregorio a propósito dos universais manifesta-se mais claramente em


seu De hominis opificio, onde distingue o homem celestial, o homem ideal, ou universal, do
homem terrenal, o que é objeto de experiência. O primeiro, o homem ideal, ou, mais bem, o ser
humano ideal, existe somente na ideia divina, e não tem determinação sexual, não é nem macho
nem fêmea; o segundo, o ser humano da experiência, é uma expressão do ideal, e está
sexualmente determinado, além de “escindido”, ou parcialmente expressado em muitos
indivíduos singulares. Assim, segundo Gregorio, as criaturas individuais procedem por criação,
não por emanação, da ideia no Logos divino. Essa teoria remonta-se claramente ao
neoplatonismo e ao filonismo, e foi adotada pelo primeiro filósofo sobresaliente da Idade Média,
João Escoto Erígena, que esteve muito influído pelos escritos de Gregorio de Nisa. Deve ser
recordado, no entanto, que Gregorio não pretendeu nunca que tivesse um homem ideal histórico,
sexualmente indeterminado; a ideia divina de homem só será realizada eseatológicamente,
quando (segundo as palavras de san Pablo, em sua interpretação por Gregorio) o homem não
seja macho nem fêmea, já que no céu não terá casal.

Deus criou o mundo por sua abundância de bondade e amor, para que pudesse ter criaturas
que participassem da divina bondade; mas, embora Deus é bondade e criou o mundo por essa
sua bondade, não criou o mundo por necessidade, senão livremente. Deus deu ao homem uma
participação nessa liberdade, e respeita-a, permitindo ao homem que eleja o mau se assim o quer.
O mau resulta do livre albedrío do homem, Deus não é responsável. É verdade que Deus prevê
o mau, e que o permite, mas, apesar dessa presciencia, Deus criou ao homem porque sabia
também que finalmente conduziria de novo a todos os homens para Si mesmo. Gregorio aceitou
assim a teoria origenista da “restauração de todas as coisas”: todos os seres humanos, inclusive
Satanás e os anjos caídos regressarão finalmente a Deus, ao menos mediante os sofrimentos
purificadores do para além. Em verdadeiro sentido, pois, todo ser humano retornará ao fim ao
Ideal e estará contido neste, embora Gregorio aceitou a imortalidade individual. Essa noção da
volta de todas as coisas a Deus, ao Princípio do qual provem, e da consecución de um estado no
que Deus é “tudo em tudo”, foi também tomada por João Escoto Erígena de são Gregorio, e ao
interpretar a linguagem algo ambiguo de João Escoto deve ao menos se recordar o pensamento
de san Gregorio, ainda admitindo a possibilidade de que Scot atribua um significado diferente a
palavras similares.
Mas, embora san Gregorio de Nisa compartilhasse a teoria origeniana da restauração de
todas as coisas, não compartilha com Origens a aceitação da noção platónica de preexistencia, e
no De hominis opificio,[65] diz que o autor do De principiis se deixou extraviar por teorias
gregas. A alma, que não está confinada a uma determinada parte do corpo, é “uma essência
criada (oíala ysvvrprr)), uma essência vivente, intelectual, com um corpo orgânico e sensitivo,
uma essência que tem o valor de dar vida e de perceber objetos sensíveis, enquanto duram seus
instrumentos corpóreos”[66]. Como simples e sem composição (cnrÁfjv rai áoúv0srov), a alma
tem o poder de sobreviver ao corpo[67], com o qual, no entanto, se reunirá finalmente. A alma é,
pois, espiritual e incorpórea; mas em que difere do corpo?; pois o corpo, isto é, um objeto
material concreto, compõe-se, segundo Gregorio, de qualidades que em si mesmas são
incorpóreas. No De hominis opificio[68] diz que a união de qualidades como cor, solidez,
quantidade, peso, dá como resultado o corpo, enquanto sua dissolução significa a morte do
corpo. No capítulo anterior propôs um dilema: ou as coisas materiais procedem de Deus, em
cujo caso Deus, como fonte delas, deveria conter em Si mesmo matéria, ser material, ou bem,
se Deus não é material, então as coisas materiais não procedem de O, e a matéria é eterna.
Gregorio, no entanto, recusa tanto a materialidad de Deus como o dualismo, e a conclusão
natural disso devia ser que as qualidades de que estão compostas as coisas corpóreas não são
materiais. É verdade que, ao afirmar a criação ex nihilo, Gregorio afirma que não podemos
compreender como Deus cria as qualidades a partir da nada; mas é razoável supor que a seus
olhos as qualidades que formam os corpos não são a sua vez corpos: em realidade não poderiam
o ser, já que não há corpo concreto exceto em e através de sua união. Pode presumirse que
Gregorio foi influído pela doutrina platónica das qualidades, exposta no Timeo. Pois bem, como,
então, não são espirituais? E, se são espirituais, como é que a alma difere essencialmente do
corpo? A resposta devia ser sem dúvida que, embora as qualidades se unem para formar o corpo
e, consideradas em sua abstração, não podem ser chamadas “corpos”, têm no entanto um
relacionamento essencial à matéria, já que sua função é formar matéria. Uma dificuldade análoga
reaparece em relacionamento com a doutrina aristotélico-tomista da “matéria” e a “forma”. A
“matéria prima” não é em si mesma um corpo, senão um dos princípios do corpo; então, se
considera-lha em si mesma, como difere do imaterial e espiritual? A filosofia tomista contesta
que a matéria prima nunca existe a sós por si mesma, e que tem uma exigência de quantidade,
uma ordenação essencial a um corpo concreto, e pode presumirse que Gregorio de Nisa opinasse
parecidamente a propósito de suas qualidades primárias. Podemos advertir, de passagem, que
podem ser suscitado dificuldades similares em relacionamento com certas teorias modernas a
propósito da constituição da matéria. Pode ser suposto razoavelmente que se Platón vivesse hoje
saudaria com alegria essas teorias, e não é improvável que Gregorio de Nisa seguisse seu
exemplo.

Resulta claro, pelo dito, que Gregorio de Nisa esteve muito influído pelo platonismo, o
neoplatonismo e os escritos de Filão (fala, por exemplo, da óiiotcoois 0£p como finalidade do
homem, da “fugida do solitário”, da “Justiça- em-si mesma”, do eros, e da ascensión para a
Beleza ideal); mas deve ser sublinhado que, embora Gregorio indubitavelmente fizesse uso de
temas e expressões plotinianas, como também, em menor medida, de outras de Filão, não as
entendeu sempre, em modo algum, em sentido plotiniano ou filoniano. Ao invés, utilizou
expressões de Plotino ou de Platón para expor e formular doutrinas cristãs. Por exemplo, a
“semelhança a Deus” é obra da graça, um desenvolvimento baixo a ação de Deus, com a livre
cooperação do homem, da imagem ou EÍKcbv de Deus impressa na alma pelo batismo.
Igualmente, a “Justiça-em-si” não é uma virtude abstrata, nem sequer uma ideia no Nous; é o
Logos instalado na alma, efeito de cuja habitação é a virtude participada. Esse Logos, ademais,
não é o Nous de Plotino, nem o Logos de Filão; é a segunda pessoa da Santísima Trinidad, e
entre Deus e as criaturas não há nenhuma procissão intermediária de hipóstasis subordinadas.

Finalmente, é digno de nota que san Gregorio de Nisa foi o primeiro verdadeiro fundador da
teología mística sistemática. Também nesse campo utilizou temas plotinianos e filonianos, mas
os empregou em sentido cristão e em uma estrutura de pensamento cristocéntrica. Naturalmente
falando, a mente do homem está adaptada para conhecer objetos sensíveis, e ao contemplar esses
objetos a mente pode chegar a conhecer de Deus e seus atributos (“teología simbólica”, que é
em parte equivalente à teología natural em sentido moderno). Por outra parte, embora o homem
tem por natureza como seu objeto de conhecimento próprio as coisas sensíveis, essas coisas não
são plenamente reais, são espejismos e ilusão, exceto como símbolos ou manifestações da
realidade imaterial, aquela realidade para a que o homem é atraído espiritualmente. A tensão
produzida na alma como consequência, conduz a um estado de áveÁincrría ou “desespero”, que
é o nascimento do misticismo, já que a alma, atraída por Deus, abandona seu objeto natural de
conhecimento, sem ser no entanto capaz de ver ao Deus ao que se sente atraída pelo amor; entra
então nas trevas, às que o tratado medieval chama “a Nuvem do Não-saber”. (A esse estádio
corresponde a “teología negativa”, que tanta influência teve no Pseudo-Dionisio.) No progresso
da alma há dois movimentos, o de interiorización do Deus um e trino e o da saída da alma fora
de si mesma, que culmina no “êxtase”. Origens interpretava intelectualmente o êxtase filoniano,
porque qualquer outra forma de êxtase resultava então suspeita por causa das extravagancias
montañistas; mas Gregorio pôs o êxtase na cúspide do esforço da alma, e interpretou-o em
primeiro e principal local como amor extático.

A “escuridão” que envolve a Deus se deve primordialmente à completa trascendencia da


essência divina, e Gregorio saca a conclusão de que inclusive no céu a alma está sempre
pugnando por progredir, impulsionada pelo amor, para penetrar mais profundamente em Deus.
Um estado estático significaria saciedade ou morte: a vida espiritual exige progresso constante,
e a natureza da trascendencia divina impõe o mesmo progresso, já que a mente humana nunca
pode compreender a Deus. Em verdadeiro sentido, pois, a “escuridão divina” persiste sempre, e
é verdadeiro que san Gregorio deu prioridade a esse conhecimento na escuridão sobre o
conhecimento intelectual, não porque desprezasse o entendimento humano, senão porque
reconhecia a trascendencia de Deus.

O esquema gregoriano da ascensión da alma tem verdadeiro parecido com o de Plotino; mas,
ao mesmo tempo, é inteiramente cristocéntrico. O progresso da alma é obra do Logos divino,
Cristo. Ademais, seu ideal não é o de uma união solitária com Deus, senão mais bem uma
realização do Pleroma de Cristo; os progressos de uma alma contribuem graça e bênção para
outras, e a habitação de Deus no indivíduo afeta a todo o corpo. O misticismo de Gregorio é
também de caráter completamente sacramental: o EtKcbv é restaurado pelo batismo, a união
com Deus é fomentada pela eucaristía. Por último, os escritos de san Gregorio de Nisa são não
somente a fonte da que o Pseudo-Dionisio e os místicos, até san João da Cruz, receberam, direta
ou indiretamente, grande parte de sua inspiração, senão também a fonte daqueles sistemas
filosóficos cristãos que seguem o progresso da alma através de diferentes estados de
conhecimento e amor, até a vida mística e a visão beatífica. Se um escritor puramente espiritual
como san João da Cruz se encontra na linha que se remonta até san Gregorio, também está nesta
o filósofo São Boaventura.

7. Pais latinos (Santo Ambrosio).

O maior dos pais latinos, sem sombra de dúvida, é Santo Agostinho de Hipona; mas, pela
importância de seu pensamento para a Idade Média, considerarei sua filosofia por separado, e
com bastante mais extensão. Nesta seção é suficiente mencionar muito brevemente a Santo
Ambrosio (333-397, aproximadamente), bispo de Milão.

Santo Ambrosio compartilhou a atitude tipicamente romana para a filosofia, a saber, um


interesse pelos assuntos práticos e éticos, combinado com pouca habilidade ou gosto para a
especulação metafísica. Em sua obra dogmática e escriturística dependeu principalmente dos
Pais gregos; mas na ética esteve influído por Cicerón, e em sua De officiis ministrorum,
composto para o ano 391 e dirigido ao clero de Milão, ofereceu uma contrafigura cristã ao De
officiis do grande orador romano. Em dito livro o santo segue de perto a Cicerón em suas
divisões e modo de tratar as virtudes, mas o tratamento inteiro está empapado do ethos cristão,
e o ideal estoico de felicidade, que se encontra na posse da virtude, está complementado pelo
ideal final da felicidade eterna em Deus. Não é que Santo Ambrosio faça nenhuma nova
contribuição particular à ética cristã; a importância de sua obra descansa mais bem em sua
influência sobre o pensamento subsiguiente, no uso que dela fizeram posteriores escritores de
ética.

8. São João Damasceno.

Os Pais gregos, como vimos, foram principalmente influídos pela tradição platónica; mas
um dos fatores que ajudaram a preparar o caminho à favorável recepção eventualmente
concedida ao aristotelismo no Occidente latino foi a obra do último dos Pais gregos, São João
Damasceno.

São João Damasceno, que morreu provavelmente no final do ano 749, foi não só um
adversário resolvido dos “iconoclastas”, senão também um grande sistematizador no campo da
teología, a cujo título pode ser considerado como o Escolástico de Oriente. Ele diz
explicitamente que não tenta oferecer opiniões novas e pessoais, senão preservar e transmitir os
pensamentos de homens santos e instruídos, de maneira que seria inútil examinar seus escritos
em busca de novidades de conteúdo; no entanto, em sua apresentação sistemática e ordenada da
ideia de seus predecessores, pode conceder-lhe-lhe certa originalidad. Sua obra principal é a
Fonte da Sabedoria, na primeira parte da qual dá um esquema da lógica e a ontología de
Aristóteles, embora utiliza a outros escritores aparte de Aristóteles, por exemplo, Porfirio. Nessa
primeira parte, a Dialética, põe em claro sua opinião de que a filosofia e a ciência profana são
instrumentos ou criadas da teología, adotando o ponto de vista de Clemente de Alejandría e dos
dois Gregorios, um ponto de vista que se remonta a Filão, o judeu alejandrino, e que foi muitas
vezes repetido na Idade Média[69]. Na segunda parte de sua grande obra oferece uma história
das herejías, utilizando materiais proporcionados por escritores anteriores, e na terceira parte, o
De Fide Orthodoxa, apresenta, em quatro livros, um tratamento ordenado da teología patrística
ortodoxa. Essa terceira parte foi traduzida ao latín por Burgundio de Calca, em 1151; e foi
utilizada, entre outros, por Pedro Lombardo, Santo Alberto Magno e São Tomás de Aquino. Em
Oriente, São João Damasceno desfruta quase de tanta estima como São Tomás de Aquino em
Occidente.

9. Resumo.

A breve revisão que antecede basta para fazer evidente que seria inútil buscar uma síntese
filosófica sistemática nas obras de nenhum dos Pais gregos, ou dos latinos, a exceção de Santo
Agostinho. Os Pais gregos, que não fizeram nenhuma clara distinção entre os domínios da
filosofia e da teología, consideraram o cristianismo como a única sabedoria ou “filosofia”
verdadeira. Quanto à filosofia grega, tenderam a vê-la como uma propedéutica para o
cristianismo, de maneira que seu principal interesse ao se ocupar dela consistiu em indicar a
antecipação da verdade cristã que viam ali contida, e as aberraciones que, também viam
claramente. O primeiro atribuíram-no frequentemente a plagios do Antigo Testamento; o último,
à debilidade da especulação humana e ao perverso desejo de originalidad, a vanagloria dos
próprios filósofos. Quando adotaram ideias procedentes da filosofia helénica as aceitaram, pelo
geral, porque pensavam que lhes ajudariam na exposição e apresentação da sabedoria cristã, não
com a intenção de incorporar em um sistema filosófico em sentido estrito.

Não obstante, há, como vimos, elementos filosóficos nos escritos dos Pais. Por exemplo,
estes fazem uso de argumentaciones racionais para provar a existência de Deus, particularmente
o argumento da ordem e a finalidade; especulam a respeito da origem e natureza da alma; san
Gregorio de Nisa tem inclusive algumas ideias que caem no campo da filosofia da natureza ou
cosmología. Ainda assim, como seus argumentos, os argumentos para demonstrar a existência
de Deus, por exemplo, não estão realmente elaborados de uma maneira sistemática e estrita,
pode parecer fora de local que sejam tidos em conta. Acho, no entanto, que o erro estaria nesta
última opinião, porquanto, um breve tratamento do pensamento patrístico é suficiente para
evidenciar um ponto que podem tender a esquecer os que sabem pouco do pensamento filosófico
cristão. Devido ao fato de que São Tomás de Aquino, ao que em tempos recentes se concedeu
uma categoria peculiar entre os filósofos católicos, adotou em grande parte o sistema
aristotélico, e devido ao fato de que os primeiros pensadores da “era moderna”, como Descarte
e Francis Bacon, lançaram seus raios contra o escolasticismo aristotélico, se dá às vezes por
suposto que a filosofia cristã, ou, ao menos, a filosofia católica, significa aristotelismo e nada
mais. No entanto, e sem contar com séculos posteriores, uma revisão do pensamento patrístico
é suficiente para mostrar que Platón, e não Aristóteles, foi o pensador grego que conseguiu uma
maior estimativa de parte dos Pais da Igreja. Isso pôde ser devido em grande parte ao fato de
que o neoplatonismo era a filosofia contemporânea vigorosa e dominante, e ao fato de que os
Pais viam a Platón mais ou menos à luz da interpretação neoplatónica e, ademais, sabiam
comparativamente pouco a respeito de Aristóteles, ao menos na maioria dos casos; mas não
deixa de ser verdade que, qualquer que pudesse ser a causa, ou causas, os Pais tenderam a ver
em Platón um precursor do cristianismo, e que os elementos filosóficos que adotaram fossem
tomados, em sua maior parte, da tradição platónica. Se acrescenta-se a isso a consideração
adicional de que o pensamento patrístico, especialmente o de Santo Agostinho, influiu
profundamente não só durante os primeiros tempos medievais, não só em pensadores tão
eminentes como Santo Anselmo e São Boaventura, senão inclusive no próprio São Tomás de
Aquino, poderá ser visto que, ao menos desde o ponto de vista histórico, algum conhecimento
do pensamento patrístico é tão desejável como valioso.
Capítulo III
Santo Agostinho. - I

1. Vida e escritos.

Para a cristandade latina Santo Agostinho é o maior dos Pais, tanto desde o ponto de vista
teológico como desde o literário, um homem que dominou o pensamento ocidental até o século
XIII, e cujo nome não pode perder seu brilho, não obstante o aristotelismo de São Tomás de
Aquino e sua Escola, especialmente se se tem em conta que esse aristotelismo esteve longe de
passar por alto, e mais ainda de desprezar, ao grande Doutor africano. Em realidade, para
entender as correntes de pensamento da Idade Média, é essencial um conhecimento do
agustinismo. Nesta obra o pensamento de Santo Agostinho não pode ser tratado com a extensão
que merece, mas deve ser tratado, embora seja sumariamente.

Nascido em Tagaste, na província de Numidia, o 13 de novembro do ano 354, Agustín


procedia de um pai pagano, Patricio, e de uma mãe cristã, santa Mónica. Esta educou a seu filho
como cristão, mas o batismo de Agustín foi diferido, de acordo com um costume da época,
comum, embora não desejável[70]. O menino aprendeu os rudimentos do latín e da aritmética
com um maestro de escola de Tagaste, mas o jogo, no que desejava ser sempre vencedor, lhe
parecia mais atraente que o estudo, e a língua grega, na que começou a se iniciar algum tempo
depois, lhe foi odiosa, conquanto lhe atraíam os poemas homéricos, considerados como história.
Não é verdadeiro que Agustín não soubesse nada de grego, mas nunca aprendeu o suficiente
para ler com facilidade nessa língua.

Para o ano 365 Agustín transladou-se à cidade de Madaura, onde pôs as bases de seu
conhecimento da gramática e a literatura latinas. Madaura era ainda uma população
predominantemente pagana, e o efeito da atmosfera geral e seu estudo dos clássicos latinos
apartaram ao rapaz da fé de sua mãe, um afastamento que em seu ano de ociosidad em Tagaste
(369-370) não fez nada por mitigar. Em 370, no ano em que morreu seu pai, após se fazer
católico, Agustín começou seus estudos de retórica em Cartago, a cidade maior que nunca via.
Os estilos licenciosos do grande porto e centro de governo, a visão dos ritos obscenos
relacionados com cultos importados de Oriente, combinados com o fato de que Agustín, o
meridional, era já um homem, com paixões vivas e vehementes, lhe levaram a uma prática
ruptura com os ideais morais do cristianismo, e não demorou em se buscar uma amante, com a
que viveu durante dez anos, e da que teve um filho em seu segundo ano de Cartago. No entanto,
apesar de sua vida irregular, Agustín foi um brilhante estudante de retórica e não descurou nada
seus estudos.

Pouco depois de ler o Hortensio de Cicerón, que dirigiu sua mente juvenil à busca da
verdade, Agustín aceitou os ensinos dos maniqueos[71], que pareciam lhe oferecer uma
apresentação racional da verdade, em contraste com as ideias bárbaras e as doutrinas ilógicas do
cristianismo. Por exemplo, os cristãos ensinavam que Deus criou o mundo inteiro, e que Deus é
bom; mas, então, como podiam explicar a existência do mau e do sofrimento? Os maniqueos,
em mudança, mantinham uma teoria dualista, segundo a qual há dois princípios últimos, um
princípio bom, o da luz, Deus ou Ormuzd, e um princípio mau, o das trevas, Ahriman. Esses
princípios são ambos eternos, e eterna é sua luta, uma luta refletida no mundo, que é a produção
dos dois princípios em conflito. No homem, a alma, composta de luz, é obra do princípio bom,
enquanto o corpo, composto de matéria grosseira, é obra do princípio mau. Esse sistema
recomendava-se a si mesmo ante os olhos de Agustín, porque parecia explicar o problema do
mau e por seu fundamental materialismo, já que por então Agustín não podia conceber uma
realidade imaterial, não perceptible pelos sentidos. Consciente de suas próprias paixões e desejos
sensuales, pensava que agora podia atribuir a uma causa má, exterior a si mesmo. Ademais,
embora os maniqueos condenavam o comércio sexual e as comidas de carne, e prescreviam
práticas ascéticas, como o ayuno, essas práticas obrigavam somente aos eleitos, não aos
“oyentes”, nível ao que pertencia Agustín.

Afastado, pois, do cristianismo, tanto moral como intelectualmente, Agustín regressou a


Tagaste no ano 374, e ensinou ali gramática e, literatura latinas durante um ano, ao cabo do qual
abriu uma escola de retórica em Cartago. Viveu ali com seu amante e seu filho, Adeodato, e
nesse período de sua vida ganhou um premio de poesia (uma peça dramática, que não se
conservou) e publicou sua primeira obra em prosa, Depulchro et apto. A estância em Cartago
prolongou-se até o ano 383, e pouco dantes da partida de Agustín para Roma teve local um
acontecimento de alguma importância. Agustín tinha-se visto turbado por dificuldades e
problemas às que os maniqueos não sabiam dar resposta; por exemplo, o problema da fonte da
certeza no pensamento humano, a razão pela que os dois princípios estavam em eterno conflito,
etc. Aconteceu que um conhecido bispo maniqueo, de nome Fausto, chegou a Cartago, e Agustín
decidiu lhe pedir uma solução satisfatória a suas próprias dificuldades; mas, embora encontrou
a Fausto tratable e amistoso, não achou em suas palavras a satisfação intelectual que buscava.
Quando partiu para Roma sua fé no maniqueísmo tinha, pois, começado a resquebrajarse.
Empreendeu a viagem em parte porque os estudantes de Cartago eram díscolos e difíceis de
dirigir, enquanto recebia bons relatórios do comportamento dos estudantes em Roma; e em parte
porque esperava um maior sucesso para sua carreira na metrópole do Império. Chegado a Roma,
Agustín abriu uma escola de retórica, mas, embora os estudantes comportavam-se bem em
classe, tinham o hábito inconveniente de mudar de escola dantes de pagar os honorarios devidos.
Agustín buscou então, e obteve, um posto de professor autárquico de retórica em Milão, em 384;
mas não abandonou Roma sem se ter deixado ali a maior parte de sua fé maniquea, e inclinado,
consequentemente, ao escepticismo acadêmico, embora conservou a adesão nominal ao
maniqueísmo, e não renunciava a alguma das opiniões maniqueas, por exemplo, o materialismo.

Em Milão, Agustín começou a pensar algo melhor do cristianismo, devido aos sermones
sobre as Escrituras pronunciados por Santo Ambrosio, bispo de Milão; mas embora estava
disposto a converter-se de novo em um catecúmeno, não estava ainda convencido da verdade do
cristianismo. Ademais, suas paixões eram ainda demasiado fortes para ele. Sua mãe queria que
se casasse com certa rapariga, com a esperança de que o casal lhe ajudasse a reformar sua vida;
mas, sentindo-se incapaz de esperar o tempo todo que era preciso para casar com aquela rapariga,
Agustín tomou outra amante em local da mãe de Adeodato, da que se tinha apartado de má
vontade ante as perspetivas de casal. Naquele tempo Agustín leu certos tratados “platónicos”,
em tradução latina de Mario Victorino, tratados que eram provavelmente as Enneadas de
Plotino. O efeito do neoplatonismo foi libertar das correntes do materialismo e facilitar-lhe a
aceitação da ideia de uma realidade imaterial. Ademais, o conceito plotiniano do mau como
privação, mais bem que como algo positivo, lhe mostrou como podia ser enfrentado o problema
do mau sem ter que recorrer ao dualismo dos maniqueos. Em outras palavras, a função do
neoplatonismo nesse período foi a de fazer possível a Agustín que visse a razonabilidad do
cristianismo; começou então a releer o Novo Testamento, particularmente os escritos de san
Pablo. Se o neoplatonismo sugeriu-lhe a ideia da contemplação das coisas espirituais, da
sabedoria no sentido intelectual, o Novo Testamento mostrou-lhe que era também necessário
levar uma vida em conformidade com a sabedoria.

Essas impressões foram confirmadas por seu encontro com dois homens, Simpliciano e
Ponticiano. O primeiro, um idoso sacerdote, deu a Agustín um relatório da conversão de
Victorino, o neoplatónico, ao cristianismo, com o resultado de que o jovem “ardeu em desejos
de fazer outro tanto”[72]; o segundo falou-lhe da vida de san Antonio do Egito, que deu a Agustín
o desgosto por seu próprio estado moral[73]. Seguiu a tudo isto aquela intensa luta moral que
culminou na famosa cena que teve local no jardim de sua casa, quando Santo Agostinho ouviu
a voz de um menino que, desde o alto de um muro, gritava uma e outra vez Tolle lege!, Tolle
lege!; abriu a esmo o Novo Testamento e foi dar com as palavras de san Pablo na epístola aos
Romanos[74], que decidiram irrevogavelmente sua conversão moral[75]. Está perfeitamente claro
que a conversão ocorrida então foi uma conversão moral, uma conversão da vontade, uma
conversão que seguiu à conversão intelectual. Sua leitura das obras neoplatónicas foi um
instrumento na conversão intelectual de Santo Agostinho, enquanto sua conversão moral, desde
o ponto de vista humano, foi preparada pelos sermones de Santo Ambrosio e pelas palavras de
Simpliciano e Ponticiano, e confirmada e sellada pelo Novo Testamento. A agonia de sua
segunda conversão, a moral, foi intensificada pelo fato de que já sabia o que devia fazer, embora
por outra parte se sentia sem o poder do cumprir; não obstante, baixo o impulso da graça, deu
às palavras de san Pablo que leu no jardim um “asentimiento real”, e sua vida ficou mudada.
Essa conversão ocorreu no verão de 386.

Uma doença do pulmão que Agustín sofria lhe proporcionou a desculpa que desejava para
se retirar do profesorado, e, em Cassiciaco, através da leitura e a reflexão, e em discussões com
amigos, se esforçou em obter um melhor entendimento da religião cristã, utilizando como
instrumento conceitos e temas tomados da filosofia neoplatónica, pois sua ideia do cristianismo
era ainda muito incompleta, e superficialmente recoberta, mais do que o estaria mais tarde, pelo
neoplatonismo. Desse período de retiro datam suas obras Contra Acadêmicos, De Beata Vita e
De Ordine . De volta a Milão, Agustín escreveu o De Immortalitate Animae (os Soliloquios
foram também escritos mais ou menos nessa época), e iniciou o De Música. No sábado santo do
387 Agustín foi batizado por Santo Ambrosio, pouco depois do qual regressou a Africa. Sua
mãe, que passava a Itália, morreu em Ostia, onde esperavam um barco. (Foi em Ostia onde
ocorreu a celebrada cena descrita nas Confesiones.)[76] Agustín adiou seu regresso a Africa, e,
enquanto residia em Roma, escreveu o De liberto arbitrio, o De quantitate animae e o De moribus
ecclesiae Catholicae et de moribus Manichaeorum. No outono do 338 conseguiu passar a Africa.

De volta a Tagaste, Agustín estabeleceu uma pequena comunidade monástica. Desse período
(388-391) datam seu De Genesi contra Machichaeos, De Magistro e De lado religione, e a
composição final do De Música. É possível que puliese e completasse também então o De
moribus dantes mencionado. Em Cassiciaco, Agustín resolvia não se casar nunca, mas
aparentemente não aspirava ao sacerdocio, pois foi na contramão de seus próprios desejos como
o bispo de Hipona lhe ordenou sacerdote em 391, em uma visita sua à cidade portuária, umas
150 milhas ao oeste de Cartago. O bispo desejava a ajuda de Agustín, e este se estabeleceu em
Hipona e fundou um mosteiro. Envolvido na controvérsia com os maniqueos compôs o De
utilitate credendi, o De duabus animabus, a Disputatio contra Fortunatum, o De Fide et Symbolo,
um sermón envelope o Credo pronunciado ante um sínodo de bispos africanos, e, contra os
donatistas, o Psalmus contra partem Donati. Começou um comentário literal ao Génesis, mas,
como seu nome indica {De Genesi ad litteram liber imperfectus), o deixou sem terminar. O De
diversis quaestionibus (389-396), o Contra Adimantum Manichaeum, De sermone Domini in
monte, o De Mendacio e De Continentia, bem como diversos comentários (envelope Romanos
e Gálatas), datam também do primeiro período da vida sacerdotal de Agustín.

No ano 395-396 Agustín foi consagrado bispo auxiliar de Hipona, e fundou ali outro
estabelecimento monástico muito pouco depois de seu consagración. Quando Valerio, bispo
titular de Hipona, morreu em 396, Agustín lhe aconteceu no cargo e nesse posto permaneceu até
sua morte. Aquilo significava que tinha que enfrentar com a tarefa de governar uma diócesis na
que o cisma donatista estava bem atrincherado, em vez de poder ser consagrado a uma vida de
estudo e tranquila oração. Mas, quaisquer que fossem suas inclinações pessoais, Agustín se
arrojou à luta contra os donatistas em todo ardor, pregou, disputou e publicou escritos polêmicos
antidonatistas. Não obstante, pese a toda aquela atividade, encontrou tempo para compor obras
como o De diversis quaestionibus ad Simplicianum (397), parte da De Doutrina Christiana (o
quarto livro foi acrescentado em 426), parte das Confesiones (a obra completa foi publicada para
o ano 400), e as Anotações ao livro de Job. Agustín trocou também cartas de controvérsia com
o grande erudito san Jerónimo a respeito de questões escriturísticas.

No ano 400 Santo Agostinho começou um de seus grandes tratados, os quinze livros De
Trinitate, que estavam terminados em 417, e em 401 começou os doze livros do De Genesi ad
litteram, completados em 415. No mesmo ano 400 apareceram o De catechizandis rudibus, o
De consenso Evangelistarum, o De Opere Monachorum, o Contra Faustum Manichaeum (trinta
e três livros), o livro primeiro do Contra litteras Petiliani (bispo donatista de Cirta), cujo
segundo livro data de 401-402 e o terceiro de 402-403. Seguiram a seguir outras obras an ti
donatistas, tais como o Contra Cresconium grammaticumpartís Donati (402), embora várias
publicações não foram conservadas, e vários escritos contra os maniqueos. Além dessa atividade
polêmica, Agustín pregava constantemente e escrevia cartas, como a epístola a Dioseorus[77], na
que, em resposta a certas perguntas sobre Cicerón, Agustín desenvolve sua opinião sobre a
filosofia pagana e mostra ainda uma forte predilección envelope o neoplatonismo. A carta data
do ano 410.
No curso do tempo foram-se promulgando edictos imperiais contra os donatistas, e, para o
ano 411, após a conferência que então teve local, Agustín pôde voltar sua atenção a outra equipe
de oponentes, os pelagianos. Pelagio, que exagerava o papel da vontade humana, e minimizava
o da graça, na salvação do homem, negando o pecado original, visitou Cartago em 410,
acompanhado por Celestius. Em 411, após a partida de Pelagio para o este, Celestius foi
excomulgado por um concilio em Cartago. Pelagio tratava de utilizar textos do De liberto arbitrio
de Agustín em apoio de sua própria herejía, mas o bispo pôs completamente em claro sua posição
em sua De peccatorum meritis et remissione, et de baptismo parvulorum, ad Marcellinum, ao
que seguiu, no mesmo ano (412) o De spiritu et littera, e, mais tarde, o De fide et operibus (413),
o De natura et gratia contra Pelagium (415) e o De perfectione iustitiae hominis (415). Mas, não
contente com sua polêmica antipelagiana, Agustín começou, em 413, os vinte e dois livros da
Cidade de Deus (completados em 426), uma de suas obras maiores e mais famosas, escrita
envelope o fundo da invasão bárbara, e preparou muitas de suas Enarrationes in Psalmos.
Ademais, publicou (415) o Ad Orosium, contra Priscillianistas et Origenistas, um livro contra a
herejía iniciada pelo bispo espanhol Prisciliano, e, no curso da ulterior polêmica antipelagiana,
o De Gestis Pelagii (417) e o De Gratia Christi et peccato originali (418). Como se todo isso não
fosse suficiente, Agustín terminou o De Trinitate e escreveu seu In Joannis Evangelium (416-
417) e In Epístolas Joannis ad Parthos (416), para não falar de numerosas cartas e sermones.

Em 418 foi condenado o pelagianismo, primeiramente por um concilio de bispos africanos,


depois pelo imperador Honorio, e finalmente pelo papa Zósimo; mas a controvérsia não
terminava, e, quando Agustín foi acusado por Juliano, bispo herético de Eclanum, de ter
inventado o conceito de pecado original, o santo replicou, na obra De nuptiis et concupiscentia
(419-420), e no mesmo ano 420 dirigiu ao papa dois livros Contra duas epístolas Pelagianorum
ad Bonifatium Papam, seguidos por seu Contra lulianum haeresis Pelagianae defensorem (seis
livros) em 421. O De anime et eius origine (419), o Contra mendacium ad Consentium (420), o
Contra adversarium Legis et Prophetarum (420), o Enchiridion ad Laurentium, De fide, spe,
caritate (421), o De Cura pró mortuis gerenda, ad Paulinum Nolanum (420-421), datam também
desse período.

Em 426 Agustín, pensando que já não viveria muito tempo, proveyó para o futuro de seu
diócesis nomeando um sucessor, o sacerdote Eraclio, cuja nomeação foi aclamado pelo povo;
mas a atividade literária do santo não estava nem muito menos concluída, e em 426-427 publicou
seu De Gratia et liberto arbitrio, ad Valentinum, o De correctione et gratia, e os dois livros das
Retraetiones, que contém uma revisão crítica de seus escritos, e são de grande valor para
estabelecer a cronología destes. Durante todo aquele tempo a situação do Império ia de mau em
pior, e em 429 Genserico conduziu aos vándalos desde Espanha a Africa; mas Agustín
continuava escrevendo. Em 427 publicou o Speculum de Seriptura Sacra, uma seleção de textos
da Biblia, e em 428 sua De haeresibus ad Quodvultdeum, seguido pelo De Praedestinatione
sanctorum ad Prosperum e o De doo perseverantiae ad Prosperum em 428-429. Ademais,
Agustín começou o Opus imperfectum contra Julianum, em 429, uma refutación de um tratado
antiagustiniano do pelagiano Juliano, que era escrito algum tempo dantes, mas não chegava a
mãos do santo até 428; mas não viveu até acabar essa obra (daí seu nome). Agustín entrou
também em contato com o arrianismo, e em 428 apareceu seu Collatio cum Maximino
Arianorum episcopo, e seu Contra Maximinum haereticum.
No final de primavera ou começos de verão do ano 430 os vándalos puseram sítio a Hipona,
e Santo Agostinho morreu durante o mesmo, o 28 de agosto de dito ano, enquanto recitaba os
salmos penitenciales. Posidio informa-nos de que não deixou testamento, porque, como um dos
pobres de Deus, não tinha nada que legar. Os vándalos incendiaram a cidade, embora a catedral
e a biblioteca de Santo Agostinho ficaram a salvo. Posidio escreveu a vida de Agustín, que pode
ser encontrado na Patrología Latina. “Aqueles que leiam o que ele [Agustín] escreveu sobre as
coisas divinas podem obter muito proveito; mas penso que o proveito seria maior se pudesse lhe
ouvir e lhe ver pregar na igreja, e especialmente aqueles que tiveram o privilégio de desfrutar
de íntimo trato com ele.”[78]

2. Santo Agostinho e a filosofia.

Talvez possa parecer estranho que fale das controvérsias teológicas de Agustín, e enumerado
uma grande quantidade de tratados teológicos; mas um esboço de sua vida e atividade é
suficiente para evidenciar que, com poucas exceções, não compôs obras puramente filosóficas,
no sentido que damos hoje ao termo “filosófico”. Desde depois, em um livro como este não
podemos nos propor tratar da doutrina puramente teológica de Agustín, mas, para extrair seus
ensinos filosóficas se tem que recorrer frequentemente ao que são primordialmente tratados
teológicos. Assim, para obter luz a respeito da teoria do conhecimento agustiniano é necessário
consultar os oportunos textos do De Trinitate, enquanto o De Genesi ad litteram expõe a teoria
das rationes seminales, e as Confesiones contêm um tratamento do tempo. Essa mistura de temas
filosóficos e teológicos pode parecemos hoje estranha e pouco metódica, acostumados como
estamos a uma clara delimitação dos campos da teología dogmática e a filosofia; mas devemos
recordar que Agustín, em comum com outros Pais e antigos escritores cristãos, não fez essa clara
distinção. Não é que Agustín deixasse de reconhecer, nem menos ainda que negasse, a
capacidade do intelecto para atingir a verdade sem a revelação; é mais bem que via a sabedoria
cristã como um tudo; que tratava de penetrar a fé cristã mediante seu entendimento, para ver o
mundo e a vida humana à luz da sabedoria cristã. Sabia perfeitamente que era possível alegar
argumentos racionais para provar a existência de Deus, por exemplo, mas não era tanto o mero
asentimiento intelectual à existência de Deus o que lhe interessava quanto o asentimiento real,
a adesão positiva da vontade a Deus; e sabia que em concreto uma adesão assim requer a graça
divina. Dito em poucas palavras, Agustín não desempenhou dois papéis, o papel de teólogo e o
papel do filósofo que considera ao “homem natural”; ele pensava mais bem no homem tal como
é em concreto, humanidade caída e isentada, homem que é certamente capaz de atingir a
verdade, mas que é constantemente solicitado pela graça de Deus, e que precisa dessa graça para
apropriar da verdade salvadora. Se fosse questão de convencer a alguém de que Deus existe,
Agustín veria a prova como um estádio ou como um instrumento no processo total da conversão
e salvação desse homem; reconheceria a prova como racional em si mesma, mas seria muito
consciente não só da preparação moral necessária para dar um asentimiento vivo e real à prova,
senão também do fato de que o reconhecimento da existência de Deus não é suficiente se não
conduz, baixo o impulso da Graça, à fé sobrenatural na revelação de Deus e a uma vida do
homem concreto de acordo com o ensino de Cristo. A razão tem um papel que desempenhar
para levar ao homem para a fé, e, uma vez que o homem tem já fé, a razão tem um papel na
penetração dos dados de dita fé; mas é o relacionamento total da alma a Deus o que
primariamente interessa a Agustín. A razão, como vimos, tem um papel que desempenhar no
estádio intelectual de sua própria conversão, e a razão tem um papel que desempenhar após essa
conversão; generalizando sua própria experiência, pois, Agustín considera que a plenitude de
sabedoria consiste em uma penetração do que se acha, embora na aproximação à sabedoria a
razão ajuda a preparar ao homem para a fé. “A medicina da alma, que é posta em operação pela
providência e a inefable beneficencia divina, é perfeitamente bela em grau e distinção. Porque
está dividida entre a autoridade e a razão. A autoridade pede-nos fé, e prepara ao homem para a
razão. A razão leva-nos a percepción e conhecimento, embora também não a autoridade deixa a
razão totalmente fosse do alcance da vista.”[79]

Essa atitude foi caraterística da tradição agustiniana. O propósito de Santo Anselmo


expressa-se em suas palavras Credo, ut intelligam, e São Boaventura, no século XIII, recusou
explicitamente a delimitação tajante dos campos da filosofia e a teología. A distinção tomista
entre as ciências da teología dogmática e a filosofia, com a correspondente distinção dos
procedimentos a empregar em uma e outra foi indubitavelmente o resultado de uma evolução
inevitável a partir da atitude anterior, embora, inteiramente aparte de dita consideração, tem a
evidente vantagem de corresponder a uma real e verdadeira distinção entre a revelação e os
dados da razão “não ajudada”, entre as esferas sobrenatural e natural. É ao mesmo tempo uma
salvaguarda da doutrina sobrenatural e da capacidade do homem na ordem natural. Não obstante,
a atitude agustiniana tem por sua vez a vantagem de que contempla sempre ao homem tal como
este é, ao homem em concreto, porque de facto o homem tem somente um fim último, um fim
sobrenatural, e, relativo a sua existência atual, não é senão homem caído e isentado: nunca foi,
nem é, nem será, um mero “homem natural”, sem um fim e uma vocação sobrenatural. Se o
tomismo, sem descurar, desde depois, o fato de que o homem em concreto não tem senão um
fim sobrenatural, põe o acento na distinção entre o sobrenatural e o natural, entre a fé e a razão,
o agustinismo, sem esquecer no mais mínimo o caráter gratuito da fé sobrenatural e da graça,
considera sempre ao homem em concreto, e se interessa primordialmente por seu
relacionamento a Deus.

Sendo assim, não é senão muito natural que tenhamos que desenmarañar as ideias
“puramente filosóficas” de Agustín do corpo total de seu pensamento. Fazê-lo assim é, desde
depois, revisar o agustinismo desde um ponto de vista mais ou menos tomista, mas isso não
significa que esse seja uma proposta ilegítima: significa que um busca aquelas ideias de Agustín
que são filosóficas no sentido acadêmico desta palavra. Significa, certamente, arrancar suas
ideias de seu pleno contexto, mas em uma história da filosofia que pressupõe uma verdadeira
ideia do que é a filosofia, não pode ser feito outra coisa. Deve, no entanto, admitir-se que uma
concentração desse tipo nas ideias filosóficas de Santo Agostinho (se se utiliza o adjetivo
“filosófico” em seu sentido tomista), tende a dar uma ideia bastante pobre dos lucros intelectuais
do santo, ao menos a quem esteja formado na atmosfera objetiva e acadêmica do tomismo, já
que Agustín não elaborou nunca um sistema filosófico como tal, nem desenvolveu, definiu nem
estabeleceu suas ideias filosóficas do modo a que o tomista está acostumado. O resultado é que
bastantees vezes é difícil dizer com precisão o que Agustín entende por tal ou qual ideia ou
enunciado: há muitas vezes uma aura de vaguedad, um ar alusivo, uma falta de definição a
propósito de suas ideias, que lhe deixa a um insatisfecho, perplejo e curioso. O tomista de tipo
rígido, suponho, poderia sustentar que a filosofia de Santo Agostinho não contém nada de valor
que não seja muito melhor dito por santo Tomás, mais claramente delineado e definido; mas
subsiste o fato de que a tradição agustiniana não morreu até hoje, e pode ser que a mesma
incompletud e falta de sistematismo do pensamento agustiniano, seu mesmo “caráter sugestivo”,
ajude positivamente à longevidade dessa tradição, porque o “agustiniano” não encontra ante sim
um sistema completo que aceitar, recusar ou mutilar, senão uma atitude, uma inspiração, certas
ideias básicas suscetíveis de considerável desenvolvimento, de maneira que pode perfeitamente
se manter fiel ao espírito agustiniano embora se aparte do que efetivamente disse o Agustín
histórico.
Capítulo IV
Santo Agostinho. - II: O conhecimento

1. Conhecimento em vista à beatitud.

Começar pela “epistemología” de Santo Agostinho é quiçá dar a impressão de que Agustín
se interessou por elaborar uma teoria do conhecimento pelo valor sustantivo desta, ou como
propedéutica metodológica à metafísica. Essa seria, no entanto, uma impressão errônea, já que
Agustín nunca se dedicou a desenvolver uma teoria do conhecimento para depois, sobre a base
de uma teoria realista do conhecimento, construir uma metafísica sistemática. Se Spinoza,
segundo suas próprias palavras[80], teve por objetivo o desenvolvimento da filosofia de Deus ou
da Substância porque é somente a contemplação de um Objeto infinito e eterno o que pode
satisfazer plenamente a mente e o coração e trazer a felicidade à alma, bem mais poderia ser
feito uma afirmação análoga a propósito de Santo Agostinho, o qual sublinhou o fato de que o
conhecimento da verdade tem de ser buscado não com fins meramente acadêmicos, senão
porque contribui a verdadeira felicidade, a verdadeira beatitud. O homem sente seu
insuficiencia, lança-se para um objeto maior que ele mesmo, um objeto que possa lhe trazer paz
e felicidade, e o conhecimento desse objeto é uma condição essencial para o conseguir; mas vê
o conhecimento em função de um fim, a beatitud. Somente o sábio pode ser feliz, e a sabedoria
requer o conhecimento da verdade; mas no pensamento de Santo Agostinho não se trata em
absoluto da especulação como um fim em si mesmo. Quando o jovem Licencio, no Contra
Acadêmicos, mantém que a sabedoria consiste na busca da verdade, e declara, como Lessing,
que a felicidade tem de se encontrar mais bem na perseguição da verdade que no lucro e posse
atual da mesma, Agustín replica que é absurdo chamar sábio a um homem que não tem o
conhecimento da verdade. No De Beata Vita[81], diz que ninguém é feliz se não possui o que
ânsia possuir, de modo que o homem que busca a verdade mas ainda não a encontrou não pode
ser chamado verdadeiramente feliz. O próprio Agustín buscou a verdade porque sentiu a
necessidade dela, e ao considerar retrospectivamente seu próprio desenvolvimento à luz do
conseguido, o interpretou como uma busca de Cristo e da sabedoria cristã, como a atração da
beleza divina, e universalizó essa sua própria experiência. Essa universalización de sua própria
experiência não significa, no entanto, que suas ideias fossem puramente subjetivas: seu
introspección psicológica lhe capacitó para pôr ao nu o dinamismo da alma humana.

Não obstante, dizer que Agustín não foi um “intelectualista”, no sentido acadêmico do termo,
e que sua filosofia é eudemonista, não isto é que não fosse agudamente consciente do problema
da certeza. Mas seria um erro pensar que Agustín estivesse preocupado pela pergunta “Podemos
conseguir a certeza?”. Como veremos daqui a pouco, ele deu resposta a essa pergunta, mas a
questão que ocupou sua atenção no período de maturidade de seu pensamento foi mais bem esta:
“Como podemos conseguir a certeza?” O que se suponha, como um dado, que conseguimos a
certeza, não faz desaparecer o problema: “Como é que a mente humana, finita, mutable, atinge
verdadeiro conhecimento de verdades eternas, verdades que regem e governam a mente e, em
consequência, trascienden a esta?” Após o hundimiento de sua fé no maniqueísmo, Agustín
sentia a tentação de recair no escepticismo acadêmico: sua vitória sobre aquela tentação é-nos
referida em sua Contra Acadêmicos, onde mostra que indubitavelmente conseguimos certeza,
ao menos de certos fatos. Admitido isso, sua leitura de “obras platónicas” lhe sugeriu o problema
de como é que somos capazes não somente de conhecer com certeza verdades eternas e
necessárias, senão também das conhecer como verdades eternas e necessárias. Platón explicava
esse fato mediante a teoria da reminiscência; como o poderia explicar Agustín? É indudable que
a discussão desse problema lhe interessou em si mesma, por razão de si mesma; mas viu também,
no que ele considerava que era a resposta adequada ao problema, uma clara prova da existência
de Deus e de sua ação. O conhecimento de verdades eternas podia, assim, levar a alma, por
reflexão sobre tal conhecimento, ao conhecimento de Deus e de sua atividade.

2. Contra o escepticismo.

Como já disse, no Contra Acadêmicos Agustín se interessa primordialmente por mostrar que
a sabedoria pertence à felicidade e que o conhecimento da verdade pertence à sabedoria; mas
põe também em claro que inclusive lhes céticos estão verdadeiros de algumas verdades, por
exemplo, de que de duas proposições disyuntivas contradictorias uma é verdadeira e a outra
falsa. “Estou verdadeiro de que ou há um mundo ou há mais de um, e que, se há mais de um,
então há um número finito ou um número infinito de mundos.” Semelhantemente, eu sei que o
mundo, ou não tem princípio nem fim, ou tem princípio mas não fim, ou não tem princípio mas
terá fim, ou tem princípio e fim. Em outras palavras, estou ao menos verdadeiro do princípio de
não contradição[82]. Por outra parte, ainda que às vezes engane-me ao pensar que a aparência e
a verdade sempre se correspondem, estou ao menos verdadeiro de minha impressão subjetiva.
“Não tenho de queixar dos sentidos, porque é injusto pedir destes mais do que podem dar: seja
o que seja o que vêem os olhos, o vêem realmente. Então, é verdade o que vêem no caso do
remo metido na água? Inteiramente verdade. Porque, dada a causa pela que aparece dessa
maneira (digamos, torcido), mais bem deveria acusar a meus sentidos de me enganar se mo
apresentassem reto quando se introduz na água. Porque não o veriam como, dadas as
circunstâncias, deveriam o ver... Mas, poderá ser dito, engano-me se dou meu asentimiento.
Então, não dêmos nosso asentimiento mais que ao fato da aparência, e não nos enganaremos.
Porque não vejo como o cético poderia refutar ao homem que diz: sei que esse objeto me parece
branco, sei que esse som me agrada, sei que esse cheiro gosto, sei que disso é suave a meu tacto,
sei que sento frio ao tocar isso.”[83] Santo Agostinho faz referência nesse bilhete aos epicúreos,
e está claro que o que quer dizer é que os sentidos, como tais, nunca mentem nem nos enganam,
embora possamos nos enganar a nós mesmos ao julgar que as coisas existem objetivamente do
mesmo modo em que nos aparecem. A mera aparência do remo torcido não é um engano, porque
teria algo mau em minha vista se meus olhos mo apresentassem reto. Se eu vou mais longe e
julgo que a bengala está realmente dobrada, me equivoco, mas enquanto me limite a dizer, “me
parece torcido”, digo a verdade, e seja que digo a verdade. Semelhantemente, se saio de uma
habitação quente e meto minha mão em água tépida, pode parecer-me fria, mas se meramente
digo, “esta água parece-me fria”, digo algo de cuja verdade estou verdadeiro, e nenhum cético
pode refutarme.

Pelo demais, todo o que dúvida sabe que dúvida, de maneira que está verdadeiro dessa
verdade ao menos, a saber, do fato de que duvida. Assim, quienquiera que duvide se há uma
coisa como a verdade, conhece ao menos uma verdade, de maneira que sua mesma capacidade
de duvidar deve lhe convencer de que há uma coisa como a verdade[84]. Estamos verdadeiros,
também, das verdades matemáticas. Quando alguém diz que sete e três fazem dez, não diz que
podem fazer dez, senão que sabe que fazem dez.[85]

3. Conhecimento de experiência.

Mas que dizer das existências reais? Estamos verdadeiros da existência de algum objeto real,
ou temos de limitar ao conhecimento de princípios abstratos ou de verdades matemáticas?
Agustín responde que um homem está ao menos verdadeiro de sua existência. Ainda supondo
que duvide da existência de outros objetos criados ou de Deus, o fato mesmo de sua dúvida
mostra que ele existe, porque não poderia duvidar se não existisse. Nem serve de nada sugerir
que um poderia ser enganado ao pensar que existe, porque “se não existe, não pode te enganar
em nada”[86]. Desse modo, Agustín antecipa a Descarte: Se fallor, sum.

Com a existência acopla Agustín a vida e o entendimento. No De liberto arbitrio[87] observa


que está claro para um homem o que ele existe, e que tal feito não estaria claro, nem poderia o
estar, a menos de que dito homem estivesse vivo. Ademais, está claro para esse homem que
entende tanto o fato de sua existência como o fato de que vive. Em consequência, está verdadeiro
de três coisas: de que existe, de que vive, e de que entende. Semelhantemente, no De
Trinitate[88], observa que é inútil que o cético insinue que o homem sonha e vê essas coisas em
sonhos, porque o homem não afirma que está acordo, senão que vive: “tanto se dorme como se
está acordo, vive”. Ainda que estivesse louco, seguiria estando vivo. Ademais, um homem é
certamente consciente do que queira. Se um homem diz que quer ser feliz, é uma pura
desvergüenza lhe sugerir que se equivoca. Os filósofos céticos podem parlotear a respeito dos
corpos sensíveis e do modo em que nos enganam, mas não podem invalidar esse conhecimento
verdadeiro que a mente tem de si mesma e por si mesma sem a intervenção dos sentidos[89].
“Existimos, e sabemos que existimos, e amamos esse fato e nosso conhecimento dele; nessas
três coisas que enumerei não nos perturba medo algum a nos equivocar; porque não as
aprendemos mediante nenhum sentido corporal, como aprendemos os objetos externos.”[90]

Santo Agostinho proclama, pois, a certeza do que conhecemos pela experiência interior, pela
autoconciencia. Que pensa de nosso conhecimento dos objetos externos, das coisas que
conhecemos mediante os sentidos? Temos certeza a propósito das mesmas? Agustín era
perfeitamente consciente de que podemos nos enganar a nós mesmos em nossos julgamentos
referentes aos objetos dos sentidos, e algumas observações suas evidenciam que era consciente
da relatividad das impressões sensíveis, no sentido de que um julgamento a respeito do calor ou
o frio, por exemplo, depende em certa medida do estado dos órgãos sensitivos. Ademais, não
considerava que os objetos aprehensibles pelos sentidos constituíssem o objeto próprio do
intelecto humano. Estando principalmente interessado na orientação da alma a Deus, os objetos
corpóreos apareciam-lhe como um ponto de partida na ascensión da mente para Deus, ainda que
nessa mesma feição a alma mesma constitui um ponto de partida mais adequado devemos nos
voltar para nosso próprio interior, onde a verdade moura, e utilizar a alma, imagem de Deus,
como um peldaño para Ele[91]. Não obstante, ainda que as coisas corpóreas, os objetos dos
sentidos, sejam essencialmente mutables, e manifestações de Deus muito menos adequadas do
que o é a alma, ainda que a concentração nas coisas sensíveis seja a fonte dos erros mais
daninhos, ainda assim, dependemos de nossos sentidos para grande parte de nosso
conhecimento, e Agustín não tinha intenção de manter uma atitude puramente cética a propósito
dos objetos dos sentidos. Uma coisa é admitir a possibilidade de erro no conhecimento sensível,
e outra completamente diferente recusar todo crédito aos sentidos. Assim, após dizer que os
filósofos podem falar contra os sentidos, mas não podem refutar a consciência da própria
existência, Agustín acrescenta imediatamente: “longe de nós o duvidar da verdade do que
aprendemos pelos sentidos corporales, já que por eles aprendemos a conhecer o céu e a terra”.
Aprendemos muitas coisas pelo depoimento de outras pessoas, e o fato de que às vezes sejamos
enganados não justifica que retiremos o crédito a todo depoimento: assim, o fato de que às vezes
nos enganemos a propósito dos objetos de nossos sentidos não é uma justificativa para um
escepticismo completo. “Devemos reconhecer que não somente nossos próprios sentidos, senão
os de outras pessoas também, acrescentaram muito a nosso conhecimento.”[92] Para a vida
prática é necessário dar crédito aos sentidos[93], e o homem que pensa que nunca deveria achar
a seus sentidos cai em um erro pior que qualquer no que possa cair por lhes dar crédito. Agustín
diz, pois, que “achamos” nos sentidos, que lhes damos crédito, como damos crédito ao
depoimento de outras pessoas, mas com frequência utiliza a palavra “achar” em oposição ao
conhecimento interior direto, sem implicar por isso que tal “crença” esteja desprovista de razão
adequada. Assim, quando alguém me refere um fato a respeito de seu próprio estado mental, por
exemplo, que ele entende ou deseja tal ou qual coisa, eu “lhe acho”; quando essa pessoa diz algo
que é verdadeiro da alma humana em si mesma, não só da sua própria designadamente, “eu o
reconheço e dou minha asentimiento, porque seja, por autoconciencia e introspección que o que
ele diz é verdadeiro”[94]. Em fim, pode ser que o santo bispo se antecipasse a Descarte com seu
Se fallor, sum, mas ele não se interessava pela questão de se o mundo exterior existe realmente
ou não. Não sentia duvida alguma de que existe, embora via bastante claramente que às vezes
formulamos julgamentos errôneos a respeito do mesmo, e que não sempre é de fiar o depoimento
de nossos próprios sentidos nem o de outras pessoas. Como Agustín se interessava
especialmente pelo conhecimento das verdades eternas e do relacionamento desse conhecimento
a Deus, dificilmente poderia lhe lhe ter ocorrido consagrar muito tempo a uma consideração de
nosso conhecimento das coisas mudables oferecidas pelos sentidos. O fato é que seu
“platonismo”, combinado com sua perspetiva e interesses espirituais, lhe levou a considerar os
objetos corpóreos como não constituindo o objeto próprio do conhecimento, pela mutabilidad
dos mesmos e pelo fato de que nosso conhecimento deles depende dos órgãos corporales dos
sentidos, que não se encontram sempre no mesmo estado, nem mais nem menos que os próprios
objetos sensíveis. Se não obtemos “verdadeiro conhecimento” dos objetos sensíveis isso se deve
não meramente a uma deficiência de parte do sujeito, senão também a uma radical deficiência
do objeto. Em outras palavras, a atitude agustiniana para o conhecimento sensível é bem mais
platónica que cartesiana.[95]
4. Natureza da sensação.

O grau mais baixo de conhecimento é, pois, o conhecimento sensível, dependente da


sensação, a qual é considerada por Santo Agostinho, em conformidade com sua psicologia
platónica, como um ato da alma que utiliza os órgãos dos sentidos como instrumentos seus.
Sentire non est corporis, sejam animae per corpus. A alma anima a todo o corpo, mas quando
incrementa ou intensifica sua atividade em uma parte determinada, isto é, em um particular
órgão sensitivo, exerce o poder de sensação[96]. A consequência que parece seguir dessa teoria
é que qualquer deficiência no conhecimento sensível deve proceder da mutabilidad do
instrumento da sensação, o órgão sensitivo, e do objeto da sensação, e é isso exatamente o que
Agustín pensava. A alma racional do homem põe em exercício verdadeiro conhecimento e atinge
verdadeira certeza quando contempla verdades eternas em si mesma e através de si mesma:
quando se volta para o mundo material e faz uso de instrumentos corporales não pode atingir
verdadeiro conhecimento. Agustín supunha, como Platón, que os objetos de verdadeiro
conhecimento são inmutables, do que se segue como uma consequência necessária que o
conhecimento de objetos mutables não é verdadeiro conhecimento. É um tipo, ou grau, de
conhecimento que é indispensável para a vida prática; mas o homem que concentra sua atenção
na esfera do mutable descura por isso a esfera do inmutable, que é objeto correlativo da alma
humana relativo ao conhecimento no sentido pleno.

A sensação em sentido estrito é comum, desde depois, aos animais e ao homem; mas os
homens podem ter, e têm, um conhecimento racional dos objetos corpóreos. No De Trinitate[97],
Santo Agostinho observa que os brutos podem ter sensação das coisas corpóreas, e as recordar,
e perseguir o útil e evitar o nocivo; mas que não podem confiar coisas à memória
deliberadamente, nem as recordar a vontade, nem executar nenhuma outra operação que requeira
o uso da razão; por conseguinte, pelo que faz ao conhecimento sensível, o conhecimento humano
é essencialmente superior ao do bruto. Ademais, o homem é capaz de formar julgamentos
racionais a propósito de coisas corpóreas, e percebê-las como aproximações a seus modelos
eternos. Por exemplo, se um homem julga que um objeto é mais belo que outro, seu julgamento
comparativo (se supomos o caráter objetivo do belo) implica uma referência a um modelo eterno
de beleza, e um julgamento de que esta ou aquela linha é mais ou menos reta, ou de que essa
figura é um círculo bem traçado, implica uma referência à reta ideal, ou ao círculo geométrico
perfeito. Em outras palavras, tais julgamentos comparativos supõem uma referência a “ideias”
(que não há que entender como puramente subjetivas). “É parte da razão superior o julgar dessas
coisas corpóreas segundo considerações incorpóreas e eternas, as quais, se não estivessem acima
da mente humana, não seriam inmutables. E, no entanto, a não ser que algo nosso se
acrescentasse àquelas, não poderíamos as empregar como modelos a partir dos quais julgar das
coisas corpóreas... Mas essa faculdade nossa que desse modo se refere ao tratamento de coisas
corpóreas e temporárias, é certamente racional, enquanto não é comum a nós e às bestas, senão
que procede da substância racional de nossa mente, pela que dependemos de, e nos aderimos a,
a verdade inteligible e inmutable, e que está destinada a governar e dirigir as coisas
inferiores.”[98]

O significado da doutrina agustiniana é o seguinte. O nível mais baixo do conhecimento, na


medida em que pode ser chamado conhecimento, é a sensação, que é comum ao homem e aos
brutos; e o nível mais alto do conhecimento, peculiar ao homem, é a contemplação das coisas
eternas (sabedoria), pela só mente, sem intervenção da sensação; mas entre esses dois níveis há
uma espécie de estação intermédia, na que a mente julga dos objetos corpóreos de acordo com
modelos eternos e vos incorpore. Esse nível de conhecimento é um nível racional, de maneira
que é peculiar ao homem e não é partilhado pelos brutos; mas supõe o uso dos sentidos e refere-
se a objetos sensíveis, de maneira que é um nível inferior ao da contemplação direta de objetos
eternos e incorpore-vos. Ademais, esse uso inferior da razão está dirigido para a ação, enquanto
a sabedoria não é prática, senão contemplativa. “A ação pela qual fazemos bom uso das coisas
temporárias difere da contemplação das coisas eternas, e a primeira corresponde ao
conhecimento, a segunda à sabedoria... Nessa distinção deve ser entendido que a sabedoria
pertence à contemplação, e o conhecimento à ação.”[99] O ideal é que a sabedoria contemplativa
aumente, mas ao mesmo tempo nossa razão tem de se dirigir em parte ao bom uso das coisas
mutables e corpóreas, “sem as quais esta vida não pode ser levado adiante”, sempre que, em
nossa atenção às coisas temporárias, façamos servir a estas para o lucro das coisas eternas,
“passando rapidamente sobre as primeiras e se aderindo com lealdade às segundas”.[100]

Esse modo de ver é de caráter marcadamente platónico. Há a mesma depreciación dos


objetos sensíveis em comparação com as realidades eternas e imateriais, a mesma admissão
quase rencorosa do conhecimento prático como uma necessidade vital, a mesma insistencia na
contemplação “teorética”, a mesma insistencia na crescente purificación da alma e sua libertação
da escravatura dos sentidos, para acompanhar a ascensión epistemológica. Não obstante, seria
um erro ver na atitude de Santo Agostinho uma mera adoção do platonismo e nada mais. É
verdade que utiliza temas platónicos e neoplatónicos, mas o interesse primeiro e principal de
Santo Agostinho é sempre o lucro do fim sobrenatural do homem, a beatitud, na posse e visão
de Deus; e, apesar da maneira intelectualista de falar que às vezes utiliza e que adotou da tradição
platónica, no esquema total de seu pensamento se concede sempre a primacía ao amor: pondus
meum, amor meus.[101] É verdade que também isso tem sua analogia no platonismo, mas deve
ser recordado que pára Santo Agostinho o objetivo está no lucro não de um bem impersonal,
senão de um Deus pessoal. A verdade é que o santo encontrou no platonismo doutrinas que
considerou admiravelmente adaptadas para a exposição de uma filosofia da vida
fundamentalmente cristã.

5. Ideias divinas.

Os objetos dos sentidos, as coisas corpóreas, são inferiores ao entendimento humano, que
julga destas em relacionamento com um modelo, respecto do qual ficam curtas; mas há outros
objetos de conhecimento que estão acima da mente humana, no sentido de que são meramente
descobertas por esta, que necessariamente assente às mesmas e não pensa nas emendar nem em
julgar que deveriam ser de outra maneira que como são. Por exemplo, eu vejo uma obra de arte
e julgo que é mais ou menos bela, um julgamento que implica não somente a existência de um
modelo de beleza, um modelo objetivo, senão também meu conhecimento desse modelo, porque
como poderia eu julgar que esse arco ou essa pintura é imperfecto, deficiente em beleza, a não
ser que tenha algum conhecimento do modelo da beleza, da beleza em si mesma, ou ideia da
beleza? Como poderia estar justificado meu conhecimento supostamente objetivo, a não ser que
tenha um modelo objetivo, não mudable e imperfecto, como as coisas belas, senão inmutable,
constante, perfeito e eterno?[102] Igualmente, o geómetra considera linhas e círculos perfeitos, e
julga das linhas e círculos aproximados de acordo com aquele modelo perfeito. As coisas circular
são temporárias e passam, mas a natureza da circularidad em si mesma, a ideia de círculo, sua
essência, não muda. Podemos somar sete maçãs e três maçãs e obter como resultado dez maçãs,
e as maçãs que contamos são objetos sensíveis e mutables, são temporários e passam; mas os
números sete e três, considerados em si mesmos e aparte das coisas, são descobertos pelo
matemático como dando, ao se somar, o resultado dez, e essa verdade descoberta é necessária e
eterna, não depende do mundo sensível nem da mente humana[103]. Tais verdades eternas são
comuns a todos. Enquanto as sensações são privadas, no sentido de que, por exemplo, o que
parece frio a um homem não parece necessariamente frio a outro, as verdades matemáticas são
comuns a todos, e a mente individual tem que as aceitar e reconhecer que possuem uma verdade
e uma validade absolutas, independente das particulares reações do sujeito que a considera.

A atitude de Santo Agostinho nesse tema é claramente platónica. Os modelos de bondade e


beleza, por exemplo, correspondem aos primeiros princípios ou ápxcci de Platón, cria-as “
instâncias”, enquanto as figuras geométricas ideais correspondem aos “objetos matemáticos” de
Platón, xa |ia0rmaxiKá, os objetos da Sicxvoia. Por conseguinte, a mesma questão que podia ser
suscitado a propósito da teoria platónica se apresenta de novo a propósito da teoria agustiniana,
a saber, “onde estão essas ideias?” (Por suposto, deve ser recordado, a propósito de ambos
pensadores, que as “ideias” em questão não são ideias subjetivas, senão essências objetivas, e
que a pergunta “onde?” não se refere ao local, já que as “ideias” são ex hypothesi imateriais,
senão ao que poderíamos chamar situação ou status ontológico.) Os neoplatónicos, vendo a
dificuldade que há em aceitar uma esfera de essências imateriais impersonales, isto é, a condição
que, ao menos aparentemente, se atribui às essências nas obras publicadas de Platón,
interpretaram as ideias platónicas como pensamentos de Deus, e as “situaram” no Nous, a mente
divina, emanada do Um como sua primeira hipóstasis. (Compare-se a isso a teoria de Filão, das
ideias como contidas no Logos.) Podemos dizer que Agustín adotou essa posição, sempre que
tenhamos em conta o fato de que ele não aceitou a teoria neoplatónica da emanação. Cria-as
instâncias e as verdades eternas estão em Deus. “As ideias são certas forma arquetípicas, ou
essências estáveis e inmutables das coisas, que não foram a sua vez formadas, senão que,
existindo eternamente e sem mudanças, estão contidas na inteligência divina.”[104] Essa teoria
deve ser aceitado se não quer ser tido que dizer que Deus criou o mundo de um modo
ininteligible.[105]

6. Iluminação e abstração.

Imediatamente apresenta-se, no entanto, uma dificuldade. Se a mente humana contempla


cria-as instâncias e as verdades eternas, e se essas ideias e verdades estão na mente de Deus, não
se segue como consequência que a mente humana contempla a essência de Deus, já que a mente
divina, com todo o que contém, é ontológicamente idêntica à essência divina? Alguns escritores
acharam que Santo Agostinho queria dizer realmente isso. Entre os filósofos, Malebranche
pretendeu que Agustín apoiava sua própria teoria de que a mente contempla as ideias eternas em
Deus, e tratou de escapar à conclusão aparentemente lógica de que em tal caso a mente humana
contempla a essência de Deus, dizendo que a mente vê não a essência divina como é em si
mesma (a visão sobrenatural dos bienaventurados), senão a essência divina enquanto
participable ad extra, como instância da criação. Também os ontologistas pretendem o apoio de
Santo Agostinho para sua teoria da intuición imediata de Deus pela alma.

Agora bem, é impossível negar que alguns textos de Santo Agostinho, tomados em si
mesmos, favorecem esse tipo de interpretação. Mas, concedendo que Agustín parece
ocasionalmente ensinar o ontologismo, me parece claro que, se se tem em conta a totalidade de
seu pensamento, tal interpretação é inadmissível. Eu não me atreveria, desde depois, a afirmar
que Agustín não fosse nunca inconsecuente, mas o que acho é que a interpretação ontologista
de seu pensamento encaixa tão mau em sua doutrina espiritual que, se há outros textos que
favoreçam uma interpretação não ontologista (e efetivamente os há), deve ser atribuído uma
posição secundária e um valor subordinado aos textos aparentemente ontologistas. Santo
Agostinho era perfeitamente consciente de que um homem pode perceber verdades eternas e
necessárias, princípios matemáticos, por exemplo, sem ser em absoluto um homem bom: esse
homem pode não ver aquelas verdades em seu fundamento último, mas indubitavelmente
percebe as verdades. Agora bem, como poderia Santo Agostinho ter suposto que semelhante
homem contempla a essência de Deus, quando em sua doutrina espiritual insiste tanto na
necessidade de purificación moral para se aproximar a Deus, e quando sabe que a visão de Deus
está reservada aos que se salvam, na vida futura? Igualmente, um homem que está espiritual e
moralmente afastado de Deus pode apreciar perfeitamente bem que a catedral de Canterbury é
mais bela que uma casucha oriental, como o próprio Agustín podia discernir graus de beleza
sensível dantes de sua conversão. Em um famoso bilhete das Confesiones, exclama: “Demasiado
tarde cheguei a amar-te, oh, Você, Beleza tão antiga e ao mesmo tempo tão nova; demasiado
tarde chegue a amar-te... de uma maneira desordenada persegui as coisas de Tua criação, que
era Você quem fazias belas.”[106] De um modo semelhante, no De quantitate animae[107] afirma
com toda clareza que a contemplação da Beleza tem local ao final da ascensão da alma. À vista
desses ensinos parece-me, pois, inconcebível que Santo Agostinho ensinasse que a alma, ao
prender verdades eternas e necessárias, prenda realmente o conteúdo mesmo da mente divina.
Os bilhetes que parecem manifestar que pensava assim podem ser explicado como devidos a sua
adoção de expressões platónicas ou neoplatónicas que, tomadas ao pé da letra, não encaixam na
direcção-geral de seu pensamento. Não parece possível formular com exatidão como concebia
Santo Agostinho o status das verdades eternas enquanto presas pela mente humana (a feição
ontológieo da questão não foi nunca, provavelmente, elaborado pelo santo); mas, mais bem que
aceitar uma interpretação puramente neoplatónica ou uma interpretação ontologista, me parece
preferível supor que as idas e verdades eternas, que estão em Deus, cumprem uma função
ideogenética; isto é, que se trata mais bem de que a “luz” que procede de Deus capacita à mente
humana para que veja as caraterísticas de inmutabilidad e necessidade das ideias eternas.

Mas ainda pode ser acrescentado outra consideração na contramão de uma interpretação
ontologista de Santo Agostinho; este utilizou a aprehensión de verdades eternas e necessárias
como uma prova em favor da existência de Deus, argumentando que essas verdades requerem
um fundamento inmutable e eterno. Sem necessidade de chegar mais longe, por agora, no exame
dessa argumentación, vale a pena indicar que, se o argumento tem de ter algum sentido, deve
estar claro que pressupõe a possibilidade de que a mente perceba aquelas verdades sem perceber
ao mesmo tempo a Deus, talvez enquanto dúvida, ou inclusive nega, a existência de Deus. Se
Santo Agostinho está disposto a dizer a um homem, “você dúvidas ou nega a existência de Deus,
mas deve admitir que reconhece verdades absolutas; eu te provarei então que o reconhecimento
de tais verdades implica a existência de Deus”, dificilmente podia supor que o dubitativo ou ateu
tivesse visão de Deus ou dos conteúdos da mente divina. Essa consideração parece-me que
exclui a interpretação ontologista. Mas dantes de seguir adiante com esse tema, é necessário
dizer algo da teoria agustiniana da iluminação, que pode fazer sua posição mais fácil de entender,
embora deve ser admitido que, a sua vez, a interpretação de dita teoria é também algo insegura.

7. corrigir ver original

Diz Santo Agostinho que não podemos perceber a verdade inmutable das coisas a não ser
que estas estejam alumiadas como por um sol[108]. Essa luz divina, que alumia a mente, procede
de Deus, que é a “luz inteligible”, na qual, e pela qual, e através da qual, se fazem luminosas
todas aquelas coisas que são luminosas para o intelecto[109]. Nessa doutrina da luz, comum à
escola agustiniana, o santo faz uso de um tema neoplatónico que se remonta à comparação
platónica da ideia do bem com o sol[110], ao irradiar a ideia do bem os objetos inteligibles ou
ideias subordinados. Para Plotino, o Um ou Deus é o sol, a luz trascendente. A utilização da
metáfora da luz, no entanto, não nos diz, por si mesma, com demasiada clareza, qual é o sentido
que lhe dá o santo. Felizmente podemos contar com a ajuda de textos como o bilhete do De
Trinitate[111] no que o santo diz que a natureza da mente é tal que “quando se dirige às coisas
inteligibles na ordem natural, segundo a disposição do Criador, as vê a uma verdadeira luz
incorpórea que é sui generis, de modo que o olho corporal vê objetos presentes à luz corpórea”.
Essas palavras parecem mostrar que a iluminação em questão é uma iluminação espiritual que
realiza a mesma função, com respeito aos objetos da mente, que a realizada pela luz do sol com
respeito aos objetos da vista. Em outras palavras: bem como a luz do sol faz visíveis ao olho as
coisas corpóreas, assim a iluminação divina faz visíveis à mente as verdades eternas. Daí parece
seguir-se que não é a iluminação mesma o que vê a mente, nem também não o Sol Inteligible,
ou Deus, senão que as caraterísticas de eternidade e necessidade nas verdades eternas e
necessárias são feitas visíveis à mente pela atividade de Deus. E é indudable que essa não é uma
teoria ontologista.

Mas por que postuló Agustín semelhante iluminação?, por que a achou necessária? Porque
a mente humana é mutable e temporária, de modo que o que é inmutable e eterno a trasciende e
parece não estar ao alcance de sua capacidade. “Quando a mente humana se conhece e se ama,
não conhece nem ama nada inmutable”[112], e se a verdade “fosse parangonable a nossas mentes,
seria também mutable”, já que nossas mentes vêem a verdade mais umas vezes e menos outras,
e nesse mesmo fato manifestam a mutabilidad que lhes é própria. A verdade não é nem inferior
nem igual a nossas mentes, senão “superior e mais excelente”[113]. Precisamos, pois, uma
iluminação divina que nos faça capazes de prender o que trasciende de nossas mentes, “porque
nenhuma criatura, por muito racional e intelectual que seja, se alumia por si mesma, senão que
é alumiada por participação na Verdade eterna”[114]. “Deus criou a alma do homem racional e
intelectual, pelo qual pode participar em sua luz... e O de tal modo alumia-a de Si mesmo, que
não somente as coisas que são exibidas pela verdade, senão inclusive a verdade mesma, pode
ser percebida pelo olho da alma.”[115] Essa luz brilha envelope as verdades e faz visíveis à
mutable e temporária mente humana suas caraterísticas de inmutabilidad e eternidade.
Santo Agostinho, como vimos, afirma de maneira explícita que a iluminação divina é algo
comunicado e sui generis. Parece, pois, pouco possível reduzir a teoria da iluminação
simplesmente a uma formulación da verdade de que Deus cria e conserva o intelecto humano, e
que a luz natural do intelecto é uma luz participada. Os tomistas, que desejam mostrar por Santo
Agostinho a mesma reverência que mostrou por ele santo Tomás, se sentem naturalmente pouco
dispostos a admitir uma radical diferença de opinião entre os dois grandes teólogos e filósofos,
e se inclinam a interpretar a Santo Agostinho de um modo que atenuaria a diferença entre seu
pensamento e o de santo Tomás; mas Santo Agostinho clarificou bem vigorosamente que não
entendia por “luz” o intelecto ou a atividade deste, nem sequer com o concurso ordinário de
Deus, já que se postula a existência e atividade da iluminação divina é precisamente por causa
das deficiências do intelecto humano. Dizer que Santo Agostinho se equivocou ao postular uma
especial iluminação divina, e que santo Tomás acertou ao negar a necessidade de tal iluminação,
é uma atitude compreensível; mas parece que é levar a conciliação demasiado longe o tratar de
manter que ambos pensadores diziam a mesma coisa, embora se afirme que santo Tomás dizia
de uma maneira clara e inequívoca o que Santo Agostinho dizia escuramente e com a ajuda de
uma metáfora.

Já indiquei que aceito a interpretação do pensamento agustiniano segundo a qual a função


da iluminação divina é fazer visível à mente o elemento de necessidade nas verdades eternas, e
que recuso qualquer forma de interpretação ontologista. Isso implica, evidentemente, a negación
da opinião de que, segundo Santo Agostinho, a mente contempla diretamente a ideia de beleza,
por exemplo, tal como está em Deus; mas também me resisto a aceitar a opinião de que, segundo
Santo Agostinho, Deus infunde atualmente a ideia de beleza, ou qualquer outra ideia normativa
(isto é, com referência à qual fazemos julgamentos comparativos de grau, tais como que esse
objeto é mais belo que aquele, esta ação mais justa que aquela, etc.), como previamente
confeccionada na alma. Esse modo de ver extremamente ideogenético converteria a função da
iluminação divina em uma espécie de entendimento agente separado: Deus seria assim, em
realidade, um entendimento agente ontológieamente separado que infundiría ideias na mente
humana, sem outra participação da sensibilidade ou o intelecto humano que o papel puramente
pasivo da mente. (Essa referência a um entendimento agente não pretende sugerir, desde depois,
que Santo Agostinho pensasse ou falasse em termos da psicologia aristotélica.) Não me parece
que semelhante interpretação (embora indubitavelmente é muito o que poderia ser dito em favor
da mesma)[116] seja completamente satisfatória. Segundo Santo Agostinho, a atividade da
iluminação divina respecto da mente é análoga à função da luz do sol respecto da visão, e embora
a luz do sol faz visíveis os objetos corpóreos, é indudable que Agustín não pensava que criasse
imagens dos objetos no sujeito humano. Por outra parte, embora a iluminação divina adquire no
pensamento agustiniano o local que ocupa a reminiscência na teoria platónica, de modo que a
iluminação parece realizar alguma função ideogenética, deve ser recordado que o problema de
Santo Agostinho é a propósito da certeza, não a propósito do conteúdo de nossos conceitos ou
ideias: refere-se bem mais à forma do julgamento verdadeiro e à forma da ideia normativa que
ao conteúdo do julgamento ou da ideia. No De Trinitate[117] observa Santo Agostinho que a
mente “recolhe o conhecimento das coisas corpóreas através dos sentidos do corpo”, e, na
medida em que ele se ocupa de um modo ou outro da formação do conceito, parece considerar
que a mente humana discierne o inteligible no sensível, realizando o que, ao menos em alguma
feição, é equivalente à abstração. Mas quando chega a discernir que uma coisa corpórea é, por
exemplo, mais ou menos bela, a julgar o objeto segundo um modelo inmutable, a mente julga à
luz da ação regulatória da ideia eterna, que não é em si mesma visível à mente. A beleza em sim
alumia de tal modo a atividade da mente que esta pode discernir a maior ou menor aproximação
do objeto ao modelo, embora a mente não contempla diretamente a beleza em si. É esse o sentido
em que a iluminação agustiniana realiza a função da reminiscência platónica. Do mesmo modo,
ainda que Agustín não indica claramente como obtemos as noções de sete, e três, e dez, a função
da iluminação não é infundir as noções desses números, senão alumiar o julgamento de que sete
e três somam dez, de modo que possamos discernir a necessidade e eternidade desse julgamento.
De um bilhete ao que já nos referimos[118], e de outros bilhetes[119], parece se seguir que, se
obtemos o conceito de objetos corpóreos, por exemplo, de um cavalo, em dependência dos
sentidos e de uma realidade imaterial como a alma, mediante a autoconciencia e a interpretação,
nossos julgamentos verdadeiros a propósito de tais objetos se fazem à luz da “iluminação”, baixo
a ação regulatória das ideias eternas. Se a iluminação tem uma função ideogenética, como eu
acho que tem em opinião de Santo Agostinho, então essa função se refere não ao conteúdo do
conceito, como se a iluminação infundiese dito conteúdo, senão à qualidade de nosso julgamento
a propósito desse conceito, ou a nosso discernimiento do caráter do objeto em seu
relacionamento à norma ou modelo, que não se encontra contida na simples noção da coisa. Se
isto é assim, então a diferença entre Santo Agostinho e santo Tomás não consiste tanto em suas
respetivas atitudes respecto da abstração (já que, o diga ou não o diga explicitamente Santo
Agostinho, seu modo de ver, segundo nossa interpretação, exigiria ao menos alguma forma de
abstração) quanto no fato de que Agustín achou necessário postular uma especial ação
iluminadora de Deus, aparte de sua atividade criadora e conservadora para a realização na mente
de ideias eternas e necessárias, enquanto santo Tomás não sentiu tal necessidade.

Com essa interpretação da iluminação pode ser entendido como foi que Santo Agostinho
considerasse que as qualidades de necessidade e inmutabilidad das verdades eternas constituem
uma prova da existência de Deus, enquanto isso seria ininteligible dentro de uma interpretação
ontologista, já que, se a mente percebe diretamente a Deus ou às ideias divinas, não pode precisar
prova alguma da existência de Deus. O que Santo Agostinho não explicasse em detalhe como
se forma o conteúdo do conceito, pode ser lamentável, mas não por isso é menos compreensível,
já que, embora interessado na observação, psicológica, o que lhe interessava na mesma não eram
motivos acadêmicos, senão mais bem motivos espirituais ou religiosos. O que primordialmente
interessava a Santo Agostinho era o relacionamento da alma a Deus, e, conquanto a necessidade
e inmutabilidad das verdades eternas (em contraste com a contingencia e mutabilidad da mente
humana) e a doutrina da iluminação lhe ajudaram a pôr esse relacionamento a uma luz clara e a
estimular à alma em sua orientação para Deus, uma investigação a propósito da formação do
conceito como tal não teria um relacionamento tão claro com o Noverim me, noverim Te ..

Em resumem, Santo Agostinho faz-se esta pergunta: Como atingimos um conhecimento de


verdades que são necessárias, inmutables e eternas? O fato de que atingimos tais conhecimentos
é claramente revelado pela experiência. Não nos poder obter um conhecimento assim
simplesmente a partir da experiência sensível, já que os objetos corpóreos são contingentes,
cambiantes e temporários. Nem podemos também não produzir aquelas verdades como uma
projeção de nossas mentes, já que estas são também contingentes e mutables. Ademais, tais
verdades dirigem e dominam nossas mentes, impõem-se a estas, e não fariam tal coisa se
dependessem de nós. Segue-se, pois, que o que nos permite perceber tais verdades é a ação do
único ser que é necessário, inmutable e eterno, Deus. Deus é como um sol que alumia nossas
mentes, ou como um maestro que nos ensina. Nesse ponto começa a dificuldade da interpretação.
O autor desta obra inclina-se à interpretação de que, enquanto o conteúdo de nossos conceitos
dos objetos corpóreos se deriva da experiência sensível e da reflexão sobre esta, a influência
regulatória das ideias divinas (o que quer dizer a influência de Deus) capacita ao homem para
que veja o relacionamento das coisas criadas a realidades eternas suprasensibles, das quais não
há visão direta nesta vida, e que a luz de Deus capacita a mente a discernir os elementos de
necessidade, inmutabilidad e eternidade no relacionamento entre conceitos expressada no
julgamento necessário. Devido, no entanto, à utilização de metáforas por Santo Agostinho, e ao
fato de que este não estava primordialmente interessado em dar uma explicação “escolástica”,
sistemática e claramente definida do processo do conhecimento, não parece possível obter uma
interpretação definitiva de seu pensamento que possa explicar adequadamente todas as
formulaciones que ele fez.
Capítulo V
Santo Agostinho. - III: Deus

1. Prova de Deus a partir das verdades eternas.

Parece acertado dizer que a prova central e favorita da existência de Deus apresentada por
Santo Agostinho é a que parte do pensamento, isto é, a que se apoia na intimidem da consciência
pensante. O ponto de partida dessa prova é a aprehensión pela mente de verdades necessárias e
inmutables, de “uma verdade que não pode chamar tua, nem minha nem de nenhum homem,
senão que está presente a todos e se dá a si mesma a todos por igual”.[120] Essa verdade é superior
à mente, enquanto a mente tem de inclinar-se ante ela e a aceitar: a mente não a constitui, nem
pode a emendar; a mente reconhece que essa verdade a trasciende e governa seu pensamento, e
não ao inverso. Se fosse inferior à mente, esta poderia a mudar ou a emendar, e se fosse igual à
mente, do mesmo caráter que esta, seria ela mesma mutable, como o é a mente. A mente varia
em sua aprehensión da verdade, ao prendê-la com maior ou com menor clareza, enquanto a
verdade permanece sempre a mesma. “Portanto, se a verdade não é nem inferior nem igual a
nossas mentes, não fica senão que seja superior e mais excelente.”[121]

Mas as verdades eternas devem estar fundadas no ser, refletir o fundamento de toda verdade.
Bem como as fantasías humanas refletem a imperfección e o caráter mutable da mente humana,
na que têm seu fundamento, e bem como as impressões dos sentidos refletem os objetos
corpóreos nos que têm seu fundamento, assim também as verdades eternas revelam seu
fundamento, a Verdade mesma, refletindo a necessidade e inmutabilidad de Deus. Isso se refere
a todas as normas ou modelos essenciais. Se julgamos de uma ação que é mais ou menos justa,
por exemplo, julgamos da mesma segundo uma norma, essência ou “ideia”, essencial e
invariável: as ações humanas em concreto podem variar, mas o modelo permanece o mesmo. É
à luz do modelo ou norma eterno e perfeito como julgamos dos atos concretos, e esse modelo
tem de ter seu fundamento no Ser eterno e plenamente perfeito. Se há uma esfera inteligible de
verdades absolutas, não pode ser concebido a esta sem um fundamento para valer, “a Verdade
na qual, e pela qual, e através da qual, são verdadeiras aquelas coisas que são verdadeiras em
qualquer feição”.[122]

Esse argumento que chega a Deus como fundamento da verdade eterna e necessária, além
de ser aceite pela “escola agustiniana”, reaparece no pensamento de vários filósofos eminentes,
como Leibniz.
2. Provas tomadas das criaturas e do consentimento universal.

Santo Agostinho prova também a existência de Deus a partir do mundo corpóreo, extenso;
mas suas palavras neste tema têm mais bem o caráter de insinuaciones, ou alusões, ou
formulaciones sumarias, que o de provas desenvolvidas no sentido acadêmico: o interesse de
Santo Agostinho não se dirigia tanto a provar ao ateu que Deus existe como a mostrar como toda
criação proclama ao Deus que a alma pode experimentar em si mesma, ao Deus vivente. O que
interessava a Santo Agostinho era a atitude dinâmica da alma para Deus, não a construção de
argumentos dialécticos com uma conclusão puramente teorética. Reconhecer com um
asentimiento puramente intelectual, que existe um Ser supremo, é uma coisa; incorporar-se a si
mesmo essa verdade, é algo mais. A alma aspira à felicidade, e muitos inclinam-se a buscá-la
fora de si mesmos: Santo Agostinho trata de mostrar que a criação não pode dar à alma a perfeita
felicidade que esta busca, senão que aponta acima dela ao Deus vivente que há que buscar dentro
de um mesmo. Essa atitude basicamente religiosa e espiritual tem de ter-se presente se quer ser
evitado ver as provas de Santo Agostinho como prova dialéticas em um sentido teorético e
menospreciarlas como formulaciones inadequadas e pouco sérias do que mais tarde santo Tomás
expressaria muito melhor. Os propósitos de ambos homens não eram precisamente os mesmos.

Assim, quando Santo Agostinho, comentando o Salmo 73, observa: “Como seja que está
vivo você, cuja mente não vejo? Como o sei? Você contestará: Porque falo, porque ando, porque
trabalho. Néscio! Pelas operações do corpo eu sei que você vive, e não pode você, pelas obras
da criação, conhecer ao Criador?”, formula de fato a prova da existência de Deus a partir de seus
efeitos; mas não se dispõe a desenvolver a prova por seu próprio interesse teorético, senão que
a apresenta por via de comentário no curso de seu exégesis das Escrituras. Semelhantemente,
quando afirma na Cidade de Deus[123] que “a mesma ordem, disposição, beleza, mudança e
movimento do mundo e de todas as coisas visíveis, proclamam silenciosamente que só podem
ter sido feitos por Deus, o inefable e invisiblemente grande, o inefable e invisiblemente belo”,
está recordando um fato aos cristãos, mais bem que tentando oferecer uma prova sistemática da
existência de Deus. Ou quando, comentando o Génesis[124] enuncia que “o poder do Criador e
sua força omnipotente e omnisciente é para todas e a cada uma das criaturas, a causa de sua
continuada existência, e se essa força cessasse em algum momento de dirigir as coisas que foram
criadas, em um só e mesmo instante suas forma deixariam de ser e sua natureza inteira,
pereceria...”, o que faz é enunciar o fato e a necessidade da conservação divina, recordar a seus
leitores um fato reconhecido, mais bem que dar uma prova filosófica desse fato.

Agustín apresenta, também em forma muito breve, o argumento chamado “do consentimento
universal”. “Tal é — diz — o poder da verdadeira divinidad, que não pode ficar completa e
totalmente escondido à criatura racional, uma vez que esta faz uso de sua razão. Porque, com a
exceção de uns poucos nos que a natureza está excessivamente depravada, toda a raça humana
confessa que Deus é o autor do mundo.”[125] Inclusive se um homem pensa que existe uma
pluralidad de deuses, ainda tenta conceber ao “único Deus de deuses” como “algo mais excelente
e mais sublime que o qual nada existe”, “... todos coincidem em achar que Deus é aquilo que
ultrapassa em dignidade a todos os demais objetos”.[126] Indubitavelmente Santo Anselmo
estava influído por essas palavras de Santo Agostinho quando tomou o “argumento ontológieo”
como ideia universal de Deus “aquilo maior que o qual nada pode ser concebido”.

3. As diversas provas como etapas de um processo.

O professor Gilson, em seu Introduction á l'étude de saint Agustín,[127] observa que no


pensamento de Santo Agostinho há realmente uma extensa prova da existência de Deus, uma
prova que consta de vários passos[128]. Assim, a partir do estádio de dúvida inicial e sua
refutación mediante o se fallor, sum, que é uma espécie de preliminar metódico para a busca da
verdade, que assegura à mente a acsequibilidad desta, a alma procede a considerar o mundo dos
sentidos. Nesse mundo, no entanto, não descobre a verdade que busca, e então se volta para sua
própria intimidem, onde, após considerar sua própria falibilidad e mutabilidad, descobre a
verdade inmutable que trasciende a alma e não depende desta. Assim se vê conduzida à
aprehensión de Deus como fundamento de toda verdade.

O quadro da prova total agustiniana da existência de Deus que oferece Gilson é


indubitavelmente representativo da mentalidade do santo, e tem a grande vantagem não só de
pôr de relevo a prova, baseada no pensamento, nas verdades eternas, senão também de vincular
a “prova” com a busca de Deus pela alma, como fonte de felicidade, como beatitud objetiva, de
tal modo que a prova não se reduz a uma mera atira ou corrente, acadêmica e teorética, de
silogismos. Esse quadro está confirmado por um bilhete como o conteúdo no sermón 241 de
Santo Agostinho[129], no que o santo descreve à alma perguntando às coisas dos sentidos, e
ouvindo a estas confessar que a beleza do mundo visível, das coisas mutables, é criação e reflexo
da beleza inmutable, após o qual a alma se interioriza, se descobre a si mesma, e reconhece a
superioridad da alma sobre o corpo. “Os homens viram essas duas coisas, ponderaram-nas,
pesquisaram-nas, e encontraram que uma e outra são mudables no homem.” Em consequência,
a mente, ao encontrar que tanto a alma como o corpo são mutables, prossegue sua busca do que
é inmutable. “E assim chegaram a um conhecimento de Deus Criador por médio das coisas que
O criou.” Santo Agostinho, pois, não nega em modo algum o que chamamos conhecimento
“natural” ou “racional” de Deus; mas esse conhecimento racional de Deus é considerado em
estreita conexão com a busca pela alma da Verdade beatificante, e como uma espécie de
autorrevelación de Deus à alma, uma revelação completada na plena revelação através de Cristo,
e confirmada na vida cristã de oração. Por conseguinte, Agustín não fazia uma firme dicotomía
entre as esferas da teología natural e da revelada, não porque deixasse de ver a distinção entre
razão e fé, senão mais bem porque considerava o conhecimento de Deus pela alma em conexão
estreita com sua busca espiritual de Deus como o único Objeto e Fonte de beatitud. Quando
Harnack reprocha a Agustín não ter clarificado o relacionamento entre a fé e a ciência[130], não
sabe advertir que o santo se interessava primordialmente pela experiência espiritual de Deus, e
que, a seus olhos, tanto a fé como a razão têm sua parte que desempenhar em uma experiência
que constitui uma unidade orgânica.

4. Atributos de Deus.

Santo Agostinho faz questão de que o mundo das criaturas reflete e manifesta a Deus,
embora o faça de uma maneira muito inadequada, e que “se algo digno de louvor se encontra na
natureza das coisas, tanto se se julga digno de grande como de pequeno louvor, deve ser aplicado
à mais excelente e inefable louvor do Criador”. As criaturas tendem ao não-ser, mas, enquanto
são, possuem uma verdadeira forma, e esta é um reflexo da forma que não pode nem decaer nem
perecer[131]. Assim, a ordem e a unidade da natureza proclamam a unidade do Criador[132], o
mesmo que a bondade das criaturas, sua realidade positiva, revela a bondade de Deus[133], e a
ordem e estabilidade do universo manifestam a sabedoria de Deus[134]. Por outra parte, Deus,
como ser autoexistente, eterno e inmutable, é infinito, e, como infinito, incomprensible. Deus é
sua própria perfección, é “simples”, de maneira que sua sabedoria e conhecimento, sua bondade
e poder são sua própria essência, que é sem acidentes[135]. Deus trasciende o espaço em virtude
de sua espiritualidad e infinitud e simplicidade, bem como trasciende o tempo em virtude de sua
eternidade. “Deus é sim mesmo em nenhum intervalo nem extensão de espaço, senão que em
seu inmutable e preeminente poder, é ao mesmo tempo interior a todas as coisas porque todas
as coisas estão em O, e exterior a todas as coisas porque O está acima de todas as coisas. Assim,
não está também não em nenhum intervalo nem extensão de tempo, senão que em seu inmutable
eternidade é mais antigo que todas as coisas e mais jovem que todas as coisas.”[136]

5. O exemplarismo.

Desde toda a eternidade Deus conhecia todas as coisas que ia fazer. Não as conhece porque
as fez, senão mais bem todo o contrário: Deus conheceu primeiramente as coisas da criação
embora estas não vieram a ser senão com o tempo. As espécies das coisas criadas têm suas ideias
ou rationes em Deus, e Deus desde toda a eternidade viu em Si mesmo, como possíveis reflexos
de si mesmo, as coisas que O podia criar e criaria. Conhecia-as dantes da criação tal como estão
em O, como instâncias, mas as fez tal e como existem, isto é, como reflexos externos e finitos
de sua divina essência[137]. Deus não fez nada sem conhecimento; prévio todo o que faria, mas
seu conhecimento não é um conjunto de atos diferentes de conhecimento, senão “uma só visão
eterna, inmutable e inefable”[138]. É em virtude desse ato externo de conhecimento, de visão,
para o que nada é passado nem futuro, como Deus vê, “prevê”, inclusive os atos livres do
homem, conhecendo “de antemão”, por exemplo, “o que lhe pediremos, e quando, e a quem
atenderá ou não atenderá, e em que questões”[139]. Uma discussão adequada desse último ponto,
que nos obrigaria a considerar a teoria agustiniana da graça, não pode ser tentada aqui.

Ao contemplar sua própria essência desde toda a eternidade, Deus vê em si mesmo todas as
possíveis essências limitadas, os reflexos finitos de sua infinita perfección; de modo que as
essências ou rationes das coisas estão presentes na mente divina desde toda a eternidade, embora,
se se tem em conta a doutrina de Agustín a respeito da simplicidade divina, à que já nos
referimos, isso não pode ser entendido no sentido de que tenha em Deus “acidente”, ideias que
sejam ontológicamente diferentes de sua essência. Nas Confesiones[140] o santo proclama que
as “razões” eternas das coisas criadas se mantêm inmutablemente em Deus, e no De Ideis[141]
explica que as ideias divinas são “certas forma arquetípicas ou razões estáveis e inmutables das
coisas, que não foram a sua vez formadas, senão que estão contidas eternamente na mente divina
e são sempre iguais. Nunca nascem nem perecem, senão que todo quanto nasce ou perece se
forma segundo aquelas”. O corolário é que as criaturas têm verdade ontológica na medida em
que encarnam ou ejemplifican o modelo radicado na mente divina; e que Deus em si mesmo é a
norma da verdade. Essa doutrina ejemplarista recebeu, sem dúvida, a influência do
neoplatonismo, segundo o qual as cria instâncias platónicas estão contidas no Nous, embora pára
Santo Agostinho as ideias estão contidas no Verbo, que não é uma hipóstasis subordinada, como
o Nous neoplatónico, senão a segunda pessoa da Santísima Trinidad, consustancial com o
Pai[142]. A doutrina do exemplarismo passou de Santo Agostinho à Idade Média. Pode ser
considerado como uma caraterística da escola agustiniana, mas deve ser recordado que santo
Tomás não a recusou, embora se esmeró na formular de maneira que não implicasse que tivesse
em Deus cria ontológicamente separadas, uma doutrina que magoaria à da simplicidade de Deus,
já que em Deus não há distinção real, salvo a que se dá entre as três pessoas divinas[143]. Mas
embora o santo de Aquino fosse nessa feição um seguidor de Santo Agostinho, foi São
Boaventura quem mais fez questão de em o século XIII na doutrina do exemplarismo e na
presença das Ideias divinas no Verbo de Deus, uma insistencia que contribuiu a sua atitude hostil
para a metafísica de Aristóteles, que atirava pela borda as ideias platónicas.
Capítulo VI
Santo Agostinho. - IV: O mundo

Seria surpreendente, dada a atitude geral e o caráter do pensamento de Agustín, encontrar


que o santo mostrasse muito interesse pelo mundo material, por razão do mundo em si mesmo.
O pensamento agustiniano centra-se no relacionamento da alma a Deus. Mas a filosofia do santo
implica uma teoria do mundo corpóreo, uma teoria que consta de elementos tomados de
pensadores anteriores, postos em uma estrutura cristã. Seria, no entanto, um erro pensar que
Agustín buscasse suas teorias de um modo puramente mecânico em pensadores anteriores: o
que fez foi sublinhar aquelas linhas que lhe pareceram melhor calculadas para ressaltar o
relacionamento e dependência de Deus da natureza.

1. Criação livre a partir da nada.

Uma doutrina que não era desenvolvida pelos pensadores paganos, mas que foi mantida por
Santo Agostinho em comum com outros escritores cristãos, foi a da criação do mundo a partir
da nada, por um ato da livre vontade de Deus. Na teoria emanatista de Plotino, o mundo
representa-se como procedendo de algum modo de Deus, sem que por isso diminuísse nem se
alterasse Deus em modo algum, mas para Plotino Deus não atua livremente (já que tal atividade
significaria, em sua opinião, mutabilidad em Deus), senão necessitate naturae, já que o bem se
difunde necessariamente. A doutrina da criação livre a partir da nada não pode ser encontrado
no neoplatonismo, se se excetua a um ou dois pensadores paganos que, com a maior
probabilidade, foram influídos pelo pensamento cristão. Agustín pôde pensar que Platón
ensinasse a criação no tempo, a partir da nada, mas é improvável, apesar da interpretação do
Timeo por Aristóteles, que Platón tivesse realmente intenção de implicar tal coisa. Mas, fosse o
que fosse o que Santo Agostinho pensasse a respeito da opinião de Platón a esse respecto, ele,
por sua vez, enuncia claramente a doutrina da criação livre a partir da nada, e tal doutrina é
essencial para sua insistencia na completa supremacía de Deus e a inteira dependência do mundo
respecto de Deus. Todas as coisas devem seu ser a Deus.[144]

2. Matéria.

Mas suponhamos que as coisas fossem feitas a partir de alguma matéria sem forma. Seria
essa matéria sem forma independente de Deus? Antes de mais nada, diz Agustín, deve ser
precisado se falamos de uma matéria absolutamente amorfa, ou de uma matéria amorfa somente
em comparação com a completamente formada. No primeiro caso, falamos de algo que é
equivalente da nada. “Aquilo a partir do qual Deus criou todas as coisas é aquilo que não possui
nem figura nem forma; e isso não é mais que a nada.” Mas se do que se fala é do segundo, de
uma matéria que não tem uma forma completa, mas que tem forma incoada, no sentido de
possuir a capacidade para receber forma, então tal matéria não é, em verdade, inteiramente nada,
mas, como algo, tem o ser que tem, qualquer que seja, somente de Deus. “Portanto, ainda no
caso de que o universo fosse criado a partir de alguma matéria sem forma, essa mesma matéria
foi criada a partir de algo que era totalmente nada.”[145] Nas Confesiones[146], Santo Agostinho
identifica essa matéria com a mutabilidad dos corpos (o que equivale a dizer que é o elemento
potencial), e observa que se pudesse a chamar “nada” ou afirmar que não existe, o faria; mas se
é a capacidade de receber forma, não pode ser chamada absolutamente “nada”. Também observa
no De lado religione[147] que não somente a posse de forma, senão inclusive a capacidade de
receber forma, é um bem, e que o que é um bem não pode ser uma nada absoluta. Mas essa
matéria, que não é uma nada absoluta, é também criação de Deus, não precedendo no tempo às
coisas formadas, senão junto da forma[148]; e Santo Agostinho identificou “a matéria amorfa que
Deus fez a partir da nada” com o céu e a terra mencionados no primeiro versículo do capítulo
primeiro do Génesis como primeira criação de Deus[149]. Em outras palavras, Agustín formula
em forma rudimentaria a doutrina escolástica de que Deus criou a partir da nada não uma
“matéria prima” absolutamente sem forma, exenta e aparte de toda forma, senão matéria e forma
juntas, embora, se é que queremos considerar as fórmulas de Santo Agostinho como uma
expressão rudimentaria da doutrina escolástica mais elaborada, devemos recordar também que
o santo não se preocupava tanto de desenvolver uma doutrina filosófica por razão de seu próprio
interesse teorético como de sublinhar a dependência essencial de todas as criaturas respecto de
Deus, e a natureza perecível de todas as criaturas corpóreas. Estas recebem seu ser de Deus, mas
seu ser está submetido à mutabilidad.

3. Rationes seminales.

Uma teoria muito querida pelo próprio Agustín e seus seguidores, embora recusada por santo
Tomás, e que estava orientada a exaltar a ação divina a expensas da atividade causal das
criaturas, foi a das rationes seminales, os gérmenes das coisas que teriam de desenvolver em
decorrência do tempo. Assim, inclusive o homem — ao menos, pelo que respecta a seu corpo,
para deixar pelo momento fora de consideração a origem do alma — foi criado nas rationes
seminales, “de um modo invisível, potencial, causal, do modo em que se fazem as coisas que
têm de ser, mas que ainda não foram feitas”[150]. As rationes seminales são gérmenes de coisas,
ou potências invisíveis, criadas por Deus no princípio, no elemento úmido, e desenvolvendo nos
objetos de diversas espécies mediante sua despliegue temporária. A ideia dessas potencialidades
germinales tem de buscar-se, e sem dúvida ali foi encontrada por Santo Agostinho, na filosofia
de Plotino, e, ultimamente, remonta-se às rationes seminales ou Xóyoi GHEpiJiaTiKOt do
estoicismo, mas é uma ideia de conteúdo mais bem vadio. Em realidade, Santo Agostinho não
supôs nunca que fossem objeto de experiência, que pudessem ser vistas ou tocadas: são
invisíveis, com uma forma meramente incoada, ou uma potencialidade para o desenvolvimento
da forma, segundo o plano divino. As razões seminales não são meramente pasivas, senão que
tendem a sua autodesarrollo, conquanto a ausência das condições e circunstâncias requeridas, e
de outros fatores externos, pode estorvar ou impedir seu desenvolvimento[151]. São Boaventura,
que manteve nesse ponto a doutrina de Santo Agostinho, comparou a ratio seminalis ao capullo
da rosa, que não é ainda atualmente a rosa, mas se desenvolverá na rosa, se se dá a presença dos
necessários fatores positivos e a ausência dos fatores negativos ou impeditivos.
O que Santo Agostinho afirmasse uma teoria bastante vadia a propósito de objetos que não
são o termo de uma experiência direta, parecerá menos surpreendente se se considera por que o
fez. Aquela afirmação foi o resultado de um problema exegético, não de um problema científico,
e foi um problema que surgiu do modo seguinte. Segundo o livro do Eclesiastés[152], “O que
vive por sempre, criou todas as coisas juntas”, enquanto, por outra parte, segundo o livro do
Génesis, os peixes e as aves, por exemplo, não apareceram até o quinto “dia” da criação,
enquanto o gado e as bestas da terra não apareceram até o sexto “dia” (Agustín não interpreta
“dia” no sentido de nosso dia de vinte e quatro horas, já que o sol não foi feito até o quarto
“dia”). Como podem então se reconciliar esses dois enunciados, o de que Deus criou todas as
coisas juntas e o de que algumas coisas foram feitas mais tarde que outras, isto é, que não todas
as coisas foram criadas juntas? Santo Agostinho tratou de resolver o problema dizendo que Deus
criou certamente, no princípio, todas as coisas juntas, mas que não as criou todas na mesma
condição; muitas coisas — todas as plantas, os peixes, as aves, os animais de terra, e o homem
mesmo, foram criados invisiblemente, latentemente, potencialmente, em germen, em seus
rationes seminales. Desse modo, Deus criou no princípio toda a vegetação da terra dantes de que
crescesse realmente sobre a terra[153], e inclusive ao mesmo homem. Assim podia resolver,
mediante uma distinção, a contradição literal entre o Eclesiastés e o Génesis. Se trata-se da forma
atual terminada, o Eclesiastés nada nos diz, enquanto é disso do que fala o Génesis; se inclui-se
uma criação germinal, ou seminal, é a isso ao que se refere o Eclesiastés.

Por que não se contentou Santo Agostinho com “sementes”, no sentido ordinário do termo,
as sementes visíveis das plantas, etc.? Porque no livro do Génesis está implícito que a terra
produziu sua erva verde dantes que as sementes desta[154], e o mesmo se implica com respeito
aos outros seres viventes que reproduzem sua espécie. Agustín viu-se, pois, obrigado a recorrer
a outra espécie de sementes. Por exemplo, Deus criou no princípio a ratio seminales do trigo, a
qual, segundo o plano e a ação de Deus, se despregou no momento decidido como trigo atual,
que continha então semente no sentido ordinário[155]. Ademais, Deus não criou todas as
sementes ou todos os ovos em ato, no princípio, de maneira que também estes requeriam seus
rationes seminales. A cada espécie pois, com todos seus desenvolvimentos futuros e seus futuros
membros particulares, foi criada no princípio em sua apropriada razão seminal.

Pelo que levamos dito deve estar claro que o santo não considerava primordialmente um
problema científico, senão mais bem um problema exegético, de maneira que realmente está
fora de propósito lhe citar como uma autoridade a favor ou na contramão de uma teoria
evolucionista em sentido darviniano ou lamarckiano.

4. Números.

Santo Agostinho fez uso do tema platónico dos números, que se remonta ao pitagorismo.
Naturalmente, seu modo de tratar os números parece-nos às vezes excessivamente imaginativo
e inclusive fantástico, como quando fala de números perfeitos ou imperfectos, ou interpreta
referências a números nas Escrituras; mas, falando em general, considera os números como o
princípio da ordem e da forma, da beleza e a perfección, da proporção e a lei. Assim, as ideias
são números eternos, enquanto os corpos são números temporários, que se despliegan no tempo.
Os corpos podem em verdade ser considerados como números em diferentes sentidos, assim que
todos constam de um número de partes ordenadas e relacionadas, assim que se despliegan em
etapas sucessivas (a planta, por exemplo, germina, rompe em folhas, produz flor e fruto, se
reproduz), ou assim que constam de um número de partes bem dispostas no espaço; em outras
palavras, assim que ejemplifican um número intrínseco, um número temporário, ou um número
local ou espacial. As “razões seminales” são números escondido, enquanto os corpos são
números manifiestos. Ademais, o mesmo que o número matemático tem seu princípio no um e
termina em um número que é também um inteiro, assim a hierarquia dos seres começa com o
supremo Um, Deus, que traz a existência e se reflete em unidades mais ou menos perfeitas. Essa
comparação ou paralelo entre o número matemático e o número metafísico derivava,
indubitavelmente, de Plotino, e, em general, o tratamento agustiniano do número não acrescenta
nada substancial ao tratamento já concedido ao tema na tradição platónico-pitagórica.

5. Alma e corpo.

A cimeira da criação material é o homem, que consta de um corpo e uma alma imortal. Santo
Agostinho é perfeitamente claro a propósito de que o homem consta de alma e corpo, como
quando diz que “uma alma em posse de um corpo não constitui dois, pessoas, senão um só
homem”[156]. Por que é necessário mencionar um ponto tão óbvio? Porque Agustín fala da alma
como de uma substância por direito próprio (substantia quaedam rationis particeps, regendo
corpori accomodatá)[157], e inclusive define ao homem como “uma alma racional que se serve
de um corpo mortal e terreno”[158]. Tal atitude platónica para a alma tem suas repercussões,
como já vimos, na doutrina agustiniana da sensação, que Agustín representa como uma atividade
da alma que utiliza o corpo como um instrumento, mais bem que como uma atividade do
organismo psieofísico total; a sensação é em realidade, segundo Agustín, um incremento
temporário de intensidade na ação pela qual a alma anima uma determinada parte do corpo. A
alma, ao ser superior ao corpo, não pode sofrer a ação deste, senão que percebe as mudanças no
corpo devidos a um estímulo externo.

6. Imortalidade.

A alma humana é um princípio imaterial, embora, como as almas dos brutos, anima ao corpo.
Um homem pode dizer, ou inclusive pensar, que sua alma está composta de ar, por exemplo,
mas nunca pode saber que está composta de ar. Pelo contrário, sabe muito bem que ele é
inteligente, que pensa, e não tem razão alguma para supor que o ar possa pensar[159]. Ademais,
a inmaterialidad da alma e seu substancial!dêem asseguram-lhe a imortalidade. Nesse ponto,
Santo Agostinho se vale de argumentaciones que se remontam a Platón[160]. Por exemplo, utiliza
o argumento do Fedón, segundo o qual a alma é o princípio da vida, e, como dois contrários são
incompatíveis, a alma não pode receber a morte. Aparte do fato de que essa argumentación não
é muito convincente em nenhum caso, não podia parecer aceitável a Santo Agostinho sem
alguma modificação, já que parece implicar que a alma existe por si mesma, ou que é uma parte
de Deus. Agustín fez, pois, uma readaptación do argumento, dizendo que a alma participa da
Vida, recebendo sua ser e essência de um Princípio que não admite contrário algum, e que, como
o ser que a alma recebe desse Princípio (que não admite contrário) é precisamente a vida, a alma
não pode morrer. Não obstante, poderia ser considerado facilmente que esse argumento implica
que também a alma dos animais é imortal, já que também é princípio de vida, e desse modo o
argumento provaria demasiado. Deve, pois, tomar-se em conjunción com outro argumento,
derivado também de Platón, no sentido de que a alma prende uma verdade indestructible, o que
prova que ela a sua vez é indestructible. No De quantitate animae[161] Santo Agostinho distingue
a alma das bestas, que possui o poder de sentir mas não o de razonar e conhecer, das almas
humanas, que possuem aquele e estes, de modo que o argumento somente tem aplicação no caso
das almas humanas. Platón argumentava que a alma humana, como capaz de prender as ideias,
que são eternas e indestructibles, manifesta ser afim a estas, ser “divina”, isto é, indestructible e
eterna; e Santo Agostinho, sem afirmar a preexistencia, prova a imortalidade da alma de uma
maneira-análoga. Acrescenta ademais argumentos que tomam seu princípio do desejo de
beatitud, o desejo de uma felicidade perfeita, argumentos prediletos dos agustinianos, São
Boaventura, por exemplo.

7. Origem da alma.

Santo Agostinho sustentou claramente que o alma é criada por Deus[162], mas não parece
que decidisse de um modo tão claro a questão do preciso momento e modo dessa origem. Parece
que acariciou alguma forma da teoria platónica da preexistencia, embora se negasse a admitir
que o alma fosse posta no corpo como um castigo por faltas cometidas em uma condição
preterrena, mas a questão principal para ele era a de se Deus criou separadamente a cada alma
individual, ou criou todas as demais almas na de Adán, de modo que o alma fosse “transmitida”
pelos pais (traducianismo). Essa segunda opinião parece supor logicamente uma teoria
materialista da alma, enquanto, de fato, é seguro que Agustín não sustentou nenhuma opinião
parecida, e fez questão de que a alma não está presente ao corpo por difusão espacial[163]; mas
foi por razões teológicas, não filosóficas, pelo que se inclinou em favor do traducianismo, já que
pensava que desse modo o pecado original podia ser explicado como uma mancha transmitida
na alma. Se o pecado original considera-se como algo positivo, e não como uma privação em si
mesmo, há, efetivamente, alguma dificuldade em afirmar a criação por Deus da cada alma
humana singular; mas inclusive aparte disso, nada altera o fato de que o traducianismo seja
incoerente com uma afirmação clara do caráter imaterial e espiritual da alma.
Capítulo VII
Santo Agostinho. - V: Teoria moral

1. A felicidade e Deus.

A ética de Santo Agostinho tem em comum com o que poderíamos chamar ética grega típica
seu caráter eudemonista, isto é, o que se propõe um fim para a conduta humana, a saber, a
felicidade; mas essa felicidade tem de encontrar-se unicamente em Deus. “O epicúreo que coloca
o bem supremo do homem no corpo, põe sua esperança em si mesmo”[164], mas “a criatura
racional (...) foi feita de tal modo que não pode ser por si mesma o bem pelo qual é feita
feliz”[165]: o ser humano é mutable e insuficiente para si mesmo, somente pode encontrar sua
felicidade na posse do que é mais que ele mesmo, na posse de um objeto inmutable. Nem sequer
a virtude pode constituir em si mesma a felicidade: “não é a virtude de tua alma o que te faz
feliz, senão o que te deu a virtude, que inspirou tua vontade e te deu o poder da realizar”[166].
Não é o ideal do epicúreo o que pode contribuir felicidade ao homem, nem sequer o do estoico,
senão Deus mesmo: “o anseio de Deus é, pois, o desejo de beatitud, o lucro de Deus é a beatitud
mesma”[167]. Que o ser humano almeja a beatitud ou felicidade, e que beatitud significa o lucro
de um objeto, o sabia bem Agustín por sua própria experiência, conquanto encontrou uma
confirmação desse fato na filosofia; que esse objeto é Deus, o aprendeu também por sua própria
experiência pessoal, embora fosse ajudado a descobrir pela filosofia de Plotino. Mas quando
Santo Agostinho dizia que a felicidade se encontra no lucro e posse do objeto eterno e inmutable,
Deus, no que pensava não era em uma contemplação puramente teorética e filosófica de Deus,
senão em uma união e posse amorosa de Deus, e, mais exatamente, na união sobrenatural com
Deus oferecida aos cristãos como termo de seu esforço ajudado pela graça; não é possível separar
bem no pensamento de Santo Agostinho uma ética natural e uma ética sobrenatural, já que o
santo se interessa pelo homem em concreto, e o homem em concreto tem uma vocação
sobrenatural; ele considerava que os neoplatónicos discernieron algo do que foi revelado por
Cristo, e que o neoplatonismo foi um reconhecimento inadequado e parcial da verdade.

A ética de Santo Agostinho é, pois, primordialmente uma ética do amor; é a vontade o que
leva ao homem para Deus, e por ela toma o homem finalmente posse de Deus e desfruta de O.
“Pois quando a vontade, que é o bem intermediário, se adere ao bem inmutable (...) o homem
encontra em isso a vida bienaventurada”[168]; “porque se Deus é o supremo bem do homem (...)
segue-se claramente, já que buscar o bem supremo é viver bem, que o viver bem não é outra
coisa que amar a Deus com todo o coração, com toda a alma, com toda a mente”[169]. Após citar
as palavras de Cristo, tal como as transcribe san Mateo[170], “amará ao Senhor teu Deus com
todo teu coração, com toda tua alma, e com toda tua mente”, e “amará a teu próximo como a ti
mesmo”, Santo Agostinho afirma que “aqui está a filosofia natural, já que todas as causas de
todas as coisas naturais estão em Deus Criador”, e que “aqui está a ética, já que uma vida boa e
honesta não se forma de outro modo que mediante o amar, como devem ser amado, as coisas
que devem ser amado, a saber, Deus e nosso próximo”[171]. A ética de Santo Agostinho centra-
se, ao redor do dinamismo da vontade, que é um dinamismo de amor (pondus meum, amor
meus)[172], embora o lucro da beatitud, “participação no bem inmutable”, não é possível para o
homem a menos de que seja ajudado pela graça, a não ser que receba “a graça gratuita do
Criador”.[173]

2. Liberdade e obrigação.

A vontade, no entanto, é livre, e a vontade livre é sujeito de obrigação moral. Os filósofos


gregos conceberam a felicidade como a finalidade da conduta, e não pode ser dito que não
tivessem cria alguma da obrigação; mas, devido a sua noção mais clara de Deus e da criação
divina, Santo Agostinho pôde dar à obrigação moral uma base metafísica mais firme da que os
gregos era capazes de lhe dar.

A base necessária da obrigação é a liberdade. A vontade é livre de apartar do Bem inmutable


e aderir-se a bens mutables, tomando como objeto seu ou os bens da alma, sem referência a
Deus, ou os bens do corpo. A vontade busca necessariamente a felicidade, a satisfação, e de
facto essa felicidade unicamente pode ser encontrada em Deus, o Bem inmutable, mas o homem
não tem a visão de Deus nesta vida, e pode voltar sua atenção para os bens mutables e se aderir
a eles em vez da Deus, e “esse apartamiento e esse giro não são ações forçadas, senão
voluntárias”.[174]

A vontade humana é, pois, livre de voltar-se a Deus ou apartar-se de Deus, mas ao mesmo
tempo a mente humana deve reconhecer a verdade: não somente que o que busca, a felicidade,
unicamente pode ser encontrado na posse do Bem inmutable, Deus, senão também que a direção
da vontade a esse Deus está implantada por Deus mesmo, e querida por O, que é o Criador. Ao
apartar-se de Deus a vontade move-se contrariando a lei divina, que tem expressão na natureza
humana, feita por Deus para si mesmo. Todos os homens são conscientes em certa medida de
normas e leis morais: “inclusive os impíos (...) censuran justamente e justamente alabam muitas
coisas na conduta dos homens”. Como podem o fazer assim, se não é porque vêem as regras
segundo as quais devem viver os homens, ainda que eles não obedeçam particularmente tais leis
em sua própria conduta? E onde vêem essas regras? Não em suas próprias mentes, já que estas
são mutables, enquanto “as regras da justiça” são inmutables; não em seus carateres, já que tais
homens são, ex hypothesi, injustos. Vêem as regras morais, diz Santo Agostinho, valendo-se de
sua acostumada, embora escura, maneira de falar, “no livro daquela luz que se chama a
Verdade”. As leis eternas da moralidad estão impressas no coração do homem, “como a
impressão de um anel passa à cera, sem deixar por isso de estar no anel”. Há, certamente, alguns
homens que estão mais ou menos cegos para a lei, mas inclusive esses são “às vezes tocados
pelo esplendor da verdade omnipresente”[175]. Assim, o mesmo que a mente humana percebe
verdades teoréticas eternas à luz de Deus, percebe também, à mesma luz, verdades práticas, ou
princípios que devem dirigir a vontade livre. O homem está por natureza, por sua natureza
considerada em concreto, disposto para Deus; mas deve satisfazer o dinamismo dessa natureza
observando as leis morais que refletem a lei eterna de Deus, e que não são regras arbitrárias,
senão que se seguem da natureza de Deus e do relacionamento do homem a Deus. As leis não
são caprichos arbitrários de Deus, senão que seu observancia é querida por Deus porque O não
criaria ao homem sem querer que o homem fosse o que O queria que fosse. A vontade é livre,
mas está ao mesmo tempo sujeita a obrigações morais, e amar a Deus é um dever.

3. Necessidade da graça.

No entanto, o relacionamento do homem a Deus é o relacionamento de uma criatura finita


ao Ser infinito, e daí resulta que o abismo não pode ser franqueado sem a ajuda divina, sem a
graça: a graça é necessária inclusive para começar a querer amar a Deus. “Quando o homem
trata de viver exclusivamente por sua própria força, sem a ajuda da graça liberadora de Deus, o
homem é vencido pelos pecados; mas, em sua vontade livre, tem em seu poder o crer no
Liberador e receber a graça.”[176] “A lei deu-se, pois, para que a graça pudesse ser buscada; a
graça deu-se pára que a lei pudesse ser cumprida.”[177] “A lei evidencia a nossa vontade que esta
é débil, para que a graça possa remediar sua debilidade.”[178] “A lei de ensinar e mandar o que
não pode ser cumprido sem a graça, demonstra ao homem sua debilidade, para que a debilidade
assim provada possa recorrer ao Salvador, por cujo remédio a vontade poderá ser capaz de fazer
o que em sua debilidade encontra impossível.”[179]

Estaria aqui fora de local entrar no tema da doutrina agustiniana da graça e do


relacionamento desta à vontade livre, questão, em todo caso, verdadeiramente difícil; mas é
necessário não passar por alto o fato de que quando Santo Agostinho faz do amor de Deus a
essência da lei moral, se refere a essa união da vontade com Deus que requer a elevação efetuada
pela graça. Que assim seja é bem natural, dado o fato de que Santo Agostinho considera e trata
do homem em concreto, do homem dotado de uma vocação sobrenatural, o que significa que o
santo complementa e completa a sabedoria da filosofia com a sabedoria das Escrituras. Pode ser
tentado separar, com fins de esquematización, ao Agustín filósofo do Agustín teólogo; mas, aos
próprios olhos do santo, o verdadeiro filósofo é um homem que examina a realidade em concreto
tal como é, e a realidade não pode ser vista tal como é se não se tem em conta a economia da
Redenção e da graça.

4. O mau.

Se a perfección moral consiste em amar a Deus, em dirigir a vontade a Deus e em pôr todas
as demais potências, os sentidos, por exemplo, em harmonia com aquela direção, o mau
consistirá em afastar a vontade de Deus. Mas que é o mau em si mesmo, o mau moral? É algo
positivo? Em primeiro lugar, não pode ser algo positivo no sentido de algo criado por Deus: a
causa do mau moral não é o Criador, senão a vontade criada. A causa das coisas boas é a bondade
divina, enquanto a causa do mau é a vontade criada, que se aparta do Bem inmutable[180]; o mau
é um afastamento de Deus por parte da vontade criada, um afastamento do Bem inmutable e
infinito[181]. Mas o mau não pode ser chamado em sentido estrito uma “coisa”, já que essa
palavra implica uma realidade positiva, e se o mau moral fosse uma realidade positiva teria que
ser atribuído ao Criador, a não ser que quisesse ser atribuído à criatura o poder de uma criação
positiva a partir da nada. O mau, pois, é “aquilo que renuncia à essência e tende ao não-ser (...).
Tende a fazer aquilo que é cessar de ser”[182]. Todo aquilo no que há ordem e medida tem de se
atribuir a Deus, mas na vontade que se aparta de Deus há desordem. A vontade em si mesma é
boa, mas a ausência da reta ordem, ou, melhor, a privação da reta ordem, da que é responsável
o agente humano, é má. O mau moral é, pois, uma privação da reta ordem na vontade criada.

Essa doutrina do mau como privação era uma doutrina de Plotino, na que Agustín encontrou
uma resposta aos maniqueos. Porque se o mau é uma privação e não uma coisa positiva, já não
nos encontramos no dilema de atribuir o mau moral ao Criador bom ou inventar um primeiro
princípio mau que seja responsável pelo mau. Os escolásticos tomaram em general essa doutrina
de Santo Agostinho, e a ela se aderiram vários notáveis filósofos modernos, como Leibniz.

5. As duas cidades.

Se o princípio da mor ah dêem é o amor de Deus, e se a essência do mau é um afastamento


de Deus, segue-se que a espécie humana pode ser dividida em dois grandes campos, o dos que
amam a Deus e põem a Deus acima de si mesmos, e o dos que se preferem a Deus; é o caráter
de suas vontades, o caráter de seu amor dominante, o que assinala decisivamente aos homens.
Santo Agostinho vê a história da espécie humana como a história da dialética desses dois
princípios, o que forma a Cidade de Jerusalém e o que forma a Cidade de Babilonia. “Que a
cada um se pergunte a si mesmo a quem ama, e averiguará de qual dessas duas cidades é
cidadão.”[183]“Há duas espécies de amor (...) essas duas espécies de amor distinguem às duas
cidades estabelecidas pela espécie humana (...) em cuja mistura, pelo dizer assim, passaram as
épocas.”[184] “ouviste e sabe que há duas cidades, hoje misturadas em seus corpos, mas em seu
coração separadas.”[185]

Para o cristão, a história é necessariamente algo profundamente importante. foi na história


onde o homem caiu, e na história onde foi isentado; é na história, progressivamente, onde cresce
e se desenvolve o Corpo de Cristo sobre a terra, e onde se despliega o plano de Deus. Para o
cristão, a história, aparte dos dados da revelação, fica desprovista de seu significado. Não é,
pois, surpreendente que Santo Agostinho considerasse a história desde o ponto de vista cristão,
e que sua perspetiva fosse primordialmente espiritual e moral. Se falamos de uma filosofia da
história no pensamento de Santo Agostinho, a palavra “filosofia” deve ser entendido em um
sentido amplo, como sabedoria cristã. O conhecimento dos fatos da história pode ser
principalmente um conhecimento da existência e desenvolvimento dos impérios asirio e
babilónico; mas os princípios pelos quais os fatos são interpretados e recebem um significado,
e são submetidos a julgamento, não se tomam dos fatos mesmos. O temporário e caduco é
julgado à luz do eterno. O que a tendência de Santo Agostinho a se concentrar sobre aquela
feição de Asiría baixo o qual esta lhe parecia uma encarnación da Cidade de Babilonia (no
sentido moral dessa expressão) não resulte muito recomendável por si mesma ao historiador de
nosso tempo, é coisa bastante compreensível; mas Santo Agostinho não estava interessado em
desempenhar o papel de historiador no sentido ordinário, senão mais bem em oferecer a
“filosofia” da história tal como ele a entendia, e essa “filosofia”, segundo o sentido que o santo
lhe dava, é o discernimiento da significação espiritual e moral dos fenômenos e acontecimentos
históricos. Em realidade, na medida em que possa ter uma filosofia da história, o cristão ao
menos convirá com Santo Agostinho em que somente uma filosofia cristã da história pode
resultar aproximadamente adequada; para o não cristão, a posição do povo judeu, por exemplo,
é radicalmente diferente da posição que o mesmo ocupa aos olhos de um cristão. Se
apresentasse-se a isso a objeción, que evidentemente pode ser apresentada, de que tal coisa supõe
uma interpretação teológica da história, uma leitura da história à luz do dogma, a objeción não
causaria a Santo Agostinho a mais ligeira dificuldade, já que ele não pretendeu nunca fazer a
radical distinção entre teología e filosofia que está implícita naquela.
Capítulo VIII
Santo Agostinho. - VI: O estado

1. O Estado e a Cidade de Babilonia não são idênticos.

Como já observei, Santo Agostinho viu na história, bem como no indivíduo, a luta entre dois
princípios de conduta, dois amores, por uma parte o amor a Deus e a sumisión a sua lei, por
outra parte o amor a si mesmo, ao prazer, ao mundo. Era, pois, perfeitamente natural que visse
a encarnación da Cidade celestial, Jerusalém, na Igreja católica, e que pudesse ver no Estado,
particularmente no Estado pagano, a encarnación da Cidade de Babilonia. O resultado da atitude
de Santo Agostinho nessa ordem de coisas é o de que um se senta tentado a supor que, para o
santo, a Cidade de Deus pode ser identificado com a Igreja entendida como sociedade visível, e
a Cidade de Babilonia com o Estado como tal. Talvez não pergunta, “que são os reinos sem a
justiça, senão grandes bandas de ladrões, e daí é uma banda de ladrões senão um pequeno
reino?”, e não aprova a réplica do pirata a Alexandro Magno, “porque eu o faço com um pequeno
navio me chamam ladrão, e a ti, porque o faz com uma grande frota, te chamam imperador”?[186]
Asiría e a Roma pagana foram fundadas, cresceram e mantiveram-se por médio da injustiça, a
violência, a rapiña e a opresión; não é isso afirmar que o Estado e a Cidade de Babilonia são
uma e a mesma coisa?

É innegable que Santo Agostinho pensou que as encarnaciones históricas mais adequadas da
Cidade de Babilonia se encontram nos impérios paganos de Asiría e Roma, bem como
indubitavelmente pensou que a Cidade de Jerusalém, a Cidade de Deus, se manifesta na Igreja.
Não obstante, as ideias de cidade celestial e terrena são ideias morais e espirituais, cujos contidos
não coincidem exatamente com nenhuma organização real. Por exemplo, um homem pode ser
cristão e pertencer à Igreja; mas se o princípio que dirige sua conduta é o amor a si mesmo e não
o amor a Deus, pertence espiritual e moralmente à Cidade de Babilonia. Igualmente, se um
oficial do Estado conduz-se baixo a direção do amor de Deus, se propõe-se a justiça e a caridade,
pertence espiritual e moralmente à Cidade de Jerusalém. “Agora vemos a um cidadão de
Jerusalém, um cidadão do reino do céu, desempenhando algum cargo na terra, como, por
exemplo, vestindo o púrpura, servindo como magistrado, como edil, como procónsul, como
imperador, dirigindo a república terrenal, mas tem seu coração mais acima, se é cristão, se é dos
fiéis (...). Não desesperemos, pois, dos cidadãos do reino celeste quando lhes vejamos
comprometidos nos assuntos de Babilonia, fazendo algo terrenal em uma república terrenal; nem
também não nos congratulemos, sem mais, por todos os homens aos que vemos comprometidos
em assuntos celestiales, porque inclusive os filhos da pestilencia se sentam às vezes na cadeira
de Moisés (...). Mas virá um tempo de colheita no que serão separados uns de outros com o
maior cuidado...”[187]. Por conseguinte, ainda que a Cidade de Babilonia, em seu sentido moral
e espiritual, tende a ser identificada com o Estado, particularmente com o Estado pagano, e a
Cidade de Jerusalém tende a ser identificada com a Igreja como organização visível, a
identificação não é completa; não pode ser concluído legitimamente que porque um homem seja,
por exemplo, uma personagem eclesiástica, seja necessariamente um cidadão da espiritual
Cidade de Jerusalém, porque, no que diz respeito a sua condição espiritual e moral, pode
pertencer à Cidade de Babilonia. Ademais, se o Estado coincidisse necessariamente com a
Cidade de Babilonia, nenhum cristão poderia ocupar legitimamente cargos no Estado, nem
sequer ser um cidadão, e Santo Agostinho distó muito de subscrever semelhante opinião.

2. O Estado pagano não encarna a verdadeira justiça.

Mas se o Estado e a Cidade de Babilonia não podem ser identificado simplesmente, também
não achou Santo Agostinho que o Estado como tal se fundamentasse na justiça, ou que a
verdadeira justiça se realize em nenhum Estado real; não, desde depois, em nenhum Estado
pagano. É suficientemente evidente que há alguma justiça inclusive em um Estado pagano, mas
a verdadeira justiça exige que se renda a Deus o culto que ao se deve, e a Roma pagana não
rendeu esse culto; mais ainda, nos tempos cristãos fez o que pôde por evitar que tal culto fosse
rendido. No entanto, a Roma pagana foi evidentemente um Estado. Então, como evitar a
conclusão de que a verdadeira justiça não deve ser incluída na definição do Estado? Porque
quem incluísse-a se veria reduzido à impossível posição de negar que a Roma pagana fosse um
Estado. Em consequência, Santo Agostinho define a sociedade como “uma multidão de criaturas
racionais sócias de comum acordo quanto às coisas que amam”[188]. Se as coisas que amam são
boas, se tratará de uma sociedade boa, mas se as coisas que amam são más, se tratará de uma
sociedade má: nada se diz na definição quanto aos objetos, bons ou maus, desse amor, e o
resultado é que tal definição pode ser aplicada inclusive ao Estado pagano.

Isso não significa, desde depois, que a olhos de Santo Agostinho o Estado exista em uma
esfera não moral; ao invés, a mesma lei moral tem validade para os Estados e para os indivíduos.
O que o santo quer fazer constar é que o Estado não encarnará a justiça verdadeira, que não será
realmente um Estado moral, a não ser que seja um Estado cristão; é o cristianismo o que faz aos
homens bons cidadãos. O Estado em si mesmo, como um instrumento de força, tem suas raízes
nas consequências do pecado original, e, dado o fato do pecado original e de suas consequências,
é uma instituição necessária; mas o Estado não pode ser justo a menos de que seja cristão.
“Nenhum Estado está mais perfeitamente estabelecido e preservado que o que se fundamenta e
se vincula à fé e à concordia firme, quando o bem mais alto e verdadeiro, a saber, Deus, é amado
por todos, e os homens se amam no os uns aos outros, sem fingimiento, já que se amam uns a
outros por razão, de O.”[189] Em outras palavras, o Estado, deixado a si mesmo, é informado
pelo amor a este mundo; mas pode ser informado por princípios mais elevados, princípios que
devem derivar do cristianismo.

3. A Igreja, superior ao Estado.

Daí seguem-se duas importantes consequências. (I) A Igreja cristã tem de tratar de informar
à sociedade civil com seus próprios celestiales princípios de conduta: tem a missão de fazer
como o fermento da terra. A concepção agustiniana da Igreja de Cristo e da missão desta foi
essencialmente uma concepção dinâmica e social: a Igreja deve impregnar ao Estado com seus
princípios. (II) A Igreja é, pois, a única sociedade realmente perfeita, e é claramente superior ao
Estado, já que, se o Estado deve tomar seus princípios da Igreja, não pode estar acima desta,
nem sequer a seu mesmo nível. Ao manter essa opinião, Santo Agostinho encabeça a exaltação
medieval da Igreja vis-á-vis do Estado, e foi perfeitamente consequente ao invocar a ajuda do
Estado contra os donatistas, já que, segundo seu modo de ver, a Igreja é uma sociedade superior
à que Cristo submeteu os reinos do mundo, e tem o direito de valer dos poderes deste mundo[190].
Mas se a opinião agustiniana do relacionamento Igreja-Estado foi a que seria caraterística da
cristandade ocidental, e não de Bizancio, não se segue daí que tendesse necessariamente a
socavar a importância da vida civil e social. Como indicou Christopher Dawson[191], embora
Santo Agostinho privasse ao Estado de sua aura de divinidad, insistiu ao mesmo tempo no valor
da livre personalidade humana e da responsabilidade moral, inclusive contra o Estado, de
maneira que nessa feição “fez possível o ideal de uma ordem social que descanse na livre
personalidade e em um esforço comum para fins morais”.
Capítulo IX
O pseudo-Dionisio

1. Os escritos e o autor.

Durante a Idade Média, os escritos que então se atribuíram a Dionisio Areopagita, o


ateniense convertido por san Pablo, desfrutaram de muito alta estimativa, não somente entre
místicos e autores de obras de teología mística, senão também entre teólogos e filósofos
profissionais, tais como Santo Alberto Magno e São Tomás de Aquino. A reverência e respeito
outorgados àqueles escritos deveu-se em grande parte, sem dúvida à equivocada ideia sobre seu
autor, um erro originado no uso por dito autor de um pseudónimo, “Diosinio o Presbítero, ao
também Presbítero Timoteo”[192]. No ano 533, Severo, patriarca de Antioquía, apelou aos
escritos de Dionisio em apoio de sua doutrina monofisita, feito com que permite-nos considerar
com segurança que já por então aqueles escritos desfrutavam de autoridade. Mas, embora Severo
apelasse aos mesmos para apoiar uma doutrina herética, o fato de que estivessem atribuídos a
san Dionisio lhes livrou de toda suspeita quanto a sua própria ortodoxia. Na Igreja oriental
desfrutaram de uma grande circulação, e foram comentados por Máximo o Confesor, no século
7; no 8 interessaram especialmente ao grande Doutor da Igreja oriental, São João Damasceno,
embora Hipatio de Efeso atacou sua autenticidade.

Em Occidente, o papa Martín I apelou aos escritos como autênticos no primeiro concilio de
Letrán (649), e aproximadamente no ano 858, João Escoto Erígena, a requerimiento de Carlos o
Calvo, fez uma tradução do texto grego que era presenteado ao rei Luís, em 827, pelo imperador
de Bizancio, Miguel Balbo. João Escoto, além de traduzir os escritos do Pseudo-Dionisio,
comentou-os também, proporcionando assim a primeira de uma série de comentários na
cristandade ocidental. Por exemplo, Hugo de São Victor (morrido em 1141) comentou o De
hierarquia celeste, utilizando a tradução do Eriúgena, e Roberto Grosseteste (morrido em 1253)
e Alberto Magno (morrido em 1280) contentaram também os escritos. São Tomás de Aquino
compôs um comentário aos Nomes divinos, para o ano 1261. Todos esses autores, bem como
também, por exemplo, Dionisio o Cartujano, aceitavam a autenticidade dos escritos; mas com o
tempo chegaria a pôr-se em claro que estes incorporavam importantes elementos tomados do
neoplatonismo, e que constituíam em realidade uma tentativa de reconciliar o neoplatonismo
com o cristianismo, de maneira que tinham que ser atribuídos a um autor de data muito posterior
à do histórico Dionisio Areopagita. Não obstante, a questão da autenticidade dos escritos não se
identifica com a de sua ortodoxia cristã, e embora no século XVII, quando os críticos começaram
a atacar a autenticidade dos escritos, foi também atacada a ortodoxia dos mesmos, o
reconhecimento de seu caráter inauténtico não implica necessariamente a admissão de sua
incompatibilidad com a doutrina cristã, conquanto deixou, evidentemente, de ser possível a
manutenção de sua ortodoxia sobre a base a priori de que era compostos por um discípulo
pessoal de san Pablo. Pessoalmente, considero que os escritos em questão são ortodoxos relativo
a seu negación do monismo; mas que na questão da Santísima Trinidad é pelo menos muito
discutible o que se lhes possa reconciliar com o dogma cristão ortodoxo. Quaisquer que pudesse
ser as intenções de seu autor, suas palavras, aparte de ser escuras, como admitia São Tomás de
Aquino, são mal compatíveis com a doutrina trinitaria de Santo Agostinho e santo Tomás.
Embora possa objetárseles a escassa atenção concedida ao dogma da encarnación, que é
essencial ao cristianismo, o autor sustenta claramente dita doutrina, e, em todo caso, dizer pouca
coisa a respeito de uma doutrina particular, por central que seja o caráter desta, não é o mesmo
que a negar. Se tomam-se em larga escala os bilhetes mais significativos do Pseudo- Dionisio,
não parece possível os recusar como claramente não ortodoxos nesse ponto, a não ser que se
esteja disposto a recusar também como não ortodoxa a doutrina mística, por exemplo, de um san
João da Cruz, que é um Doutor da Igreja.

Agora bem, embora ninguém supõe na atualidade que os escritos de que falamos fossem
realmente faz de Dionisio Areopagita, não foi possível descobrir seu verdadeiro autor. Com a
maior probabilidade, deveram ser composto para finais do século e, já que incorporam ideias do
neoplatónico Proelo (418-485), e tem-se conjeturado que o Hieroteo que figura neles fosse o
místico sírio Esteban Bar Sadaili. Se os escritos do Pseudo-Dionisio dependem realmente em
um grau ou outro da filosofia de Proelo, não é fácil que seja compostos dantes das últimas
décadas do século e, e, já que se apelou a eles no Concilio do ano 533, é difícil que fossem
compostos muito após o 500. É, pois, indubitavelmente correto atribuir a data de sua composição
ao ano 500 aproximadamente, e é razoável supor que se originaram na Síria. O autor era um
teólogo e, sem dúvida, também eclesiástico; mas não pôde ter sido o próprio Severo, como um
ou dois escritores supuseram temerariamente. Em todo caso, embora pudesse ser interessante
saber com certeza quem foi seu autor, parece muito pouco provável que nunca seja possível
passar de meras conjeturas, e o interesse principal dos escritos se deve não à personalidade de
seu autor, senão ao conteúdo e influência dos mesmos. Tais escritos são os Nomes divinos (De
divinis nominibus), a Teología Mística (De mystica Theologia), a Hierarquia celeste (De eoelesti
Hierarehia) e a Hierarquia eclesiástica (De eeclesiastica Hierarchiá), bem como uma dezena de
cartas. As obras estão editadas na Patrología Graeca,, de Migne, volumes 3-4, e foi iniciada uma
edição crítica do texto.

2. Via afirmativa.

Há dois caminhos de aproximação a Deus, que é o centro de toda especulação, um caminho


positivo (KCCTCCípaTiKr)) e um caminho negativo (01109 cnriKr)). No primeiro caminho, ou
método, a mente começa “pelos enunciados mais universais, e depois, através de termos
intermédios, [procede] até os títulos particulares”[193], começando assim pela “mais alta
categoria”[194]. Nos Nomes divinos, o Pseudo-Dionisio segue esse método afirmativo,
mostrando como nomes tais como Bondade, Vida, Sabedoria, Poder, são aplicáveis a Deus de
um modo trascendental, e como têm aplicação às criaturas somente em virtude de que estas
derivam de Deus, e de seus diversos graus de participação naquelas qualidades que se encontram
em Deus não como qualidades inerentes, senão em substancial unidade. Assim, o autor começa
com a ideia ou nome de bondade, que é o nome mais universal, assim que que todas as coisas,
existentes ou possíveis, participam da bondade em algum grau, mas que, ao mesmo tempo,
expressa a natureza de Deus. “Ninguém é bom, salvo só Deus.”[195] Deus, como o Bem, é a
fonte rebosante da criação, e o objetivo final desta, e “do Bem procede a luz, que é uma imagem
da Bondade, de modo que Deus pode ser descrito com o nome de Luz, ao ser o arquetipo daquela
que se revela na imagem”[196]. Aparece aqui o motivo neoplatónico da luz, e o modo em que o
Pseudo-Dionisio depende do neoplatonismo se manifesta particularmente em sua linguagem
quando continua falando de Deus como Beleza, como a “beleza superesencial”, e faz uso das
frases do Symposium de Platón que reaparecem nas Enneadas de Plotino. Também, quando no
capítulo 13 dos Nomes divinos[197], o Pseudo-Dionisio fala de “Um” como de “o mais
importante título de todos”, é clara sua dependência da doutrina plotiniana do primeiro Princípio
como o “Um”.

Em resumem, pois, o método afirmativo significa adscribir a Deus aperfeiçoe-as que se


encontram nas criaturas, isto é, as aperfeiçoe que são compatíveis com a natureza espiritual de
Deus, embora não existam no do mesmo modo a como existem nas criaturas, já que em Deus
existem sem imperfección, e, no caso dos nomes que se adscriben à natureza divina, sem
diferenciación real. O que, nessa via afirmativa, partamos das categorias mais altas, é devido,
segundo o Pseudo-Dionisio[198], a que devemos começar pelo que é mais afim a Deus, e é mais
verdadeiro afirmar que Deus é vida e bondade que afirmar que é ar ou pedra. Nomeie-os “Vida”
e “Bondade” fazem referência a algo que há realmente em Deus, enquanto Deus é ar ou pedra
somente em um sentido metafórico, ou no sentido de que O é causa dessas coisas. Não obstante,
o Pseudo-Dionisio tem bom cuidado de fazer questão de que, conquanto certos nomes
descrevem a Deus melhor que outros, estão bem longe de representar um conhecimento ou
concepção adequada de Deus por nossa parte; e expressa essa convicção falando de Deus como
“Essência superesencial”, “Beleza superesencial”, etc. Não se Umita a repetir frases da tradição
platónica, senão que expressa a verdade de que a referência objetiva ou conteúdo desses nomes,
segundo se encontra realmente em Deus, trasciende infinitamente o conteúdo dos mesmos
nomes, segundo é este experimentado por nós. Por exemplo, se adscribimos a Deus inteligência,
não pretendemos adscribirle inteligência humana, a única inteligência da qual temos experiência
imediata, e da que obtemos o nome; o que queremos dizer é que Deus é mais, infinitamente
mais, que o que experimentamos como inteligência, e esse fato se expressa da melhor maneira
possível falando de Deus como superinteligeneia, ou como Inteligência superesencial.

3. Via negativa.

A via afirmativa foi seguida principalmente pelo Pseudo-Dionisio nos Nomes divinos, e em
seu Teología Simbólica (perdida), enquanto a via negativa, a que consiste em excluir de Deus
as imperfecciones das criaturas, é caraterística da Teología Mística. A distinção das duas vias
deriva de Proelo, e, segundo o desenvolvimento que lhe deu o Pseudo-Dionisio, passou à
teología e à filosofia cristãs, sendo aceite, por exemplo, por São Tomás de Aquino; mas o
Pseudo-Dionisio deu a palma à via negativa com preferência à afirmativa. Na via negativa a
mente começa por negar de Deus aquelas coisas que mais afastadas estão de O, por exemplo, “a
embriaguez ou a fúria”[199], e segue adiante progressivamente negando de Deus os atributos e
qualidades das criaturas, até que atinge “a Escuridão superesencial”[200]. Como seja que Deus é
completamente trascendente, a melhor maneira de lhe alabar consiste em “negar ou apartar todas
as coisas que são, do mesmo modo que os homens que, ao esculpir uma estátua de mármore,
separam todos os impedimentos que obstaculizan a clara percepción da imagem latente, e por
essa simples separação exibem a estátua escondida em sua beleza escondida”[201]. O ser humano
está inclinado a formar-se conceitos antropomórficos da Divinidad, e é necessário eliminar todas
essas concepções humanas, demasiado humanas, mediante a via remotionis; mas o Pseudo-
Dionisio não quer dizer que desse processo resulte uma clara visão do que Deus é em si mesmo;
a comparação da estátua não deve desorientarnos nesse sentido. Quando a mente despiu sua
ideia de Deus dos modos humanos de pensamento e de conceitos inadequados à Divinidad, entra
na “Escuridão do Não saber”[202], na qual “renuncia a toda aprehensión do entendimento e se
entrega ao que é totalmente intangible e invisível... unida... àquele que é totalmente
incognoscible”[203]; esse é o domínio do misticismo. A “Escuridão do Desconhecido” não se
deve, no entanto, à não inteligibilidad do Objeto considerado em si mesmo, senão à finitud da
mente humana, que fica cegada ante o excesso de luz. Essa doutrina está sem dúvida influída
em parte pelo neoplatonismo, mas pode ser encontrado também nos escritos de teólogos místicos
cristãos, especialmente de san Gregorio de Nisa, cujos escritos, a sua vez, embora também
influídos, no que se refere à linguagem e a apresentação, por tratados neoplatónicos, foram
também expressão de uma experiência pessoal.

4. Interpretação neoplatónica da Trinidad.

A influência neoplatónica envelope o Pseudo-Dionisio manifesta-se com muita força em sua


doutrina da Santísima Trinidad, porque parece nesta animado pelo desejo de encontrar um Um
para além da diferenciación de Pessoas. Admite, certamente, que a diferenciación de Pessoas é
uma diferenciación eterna, e que o Pai, por exemplo, não é o Filho, e o Filho não é o Pai, mas,
na medida em que é possível uma interpretação exata do que ele diz, parece que, em sua opinião,
a diferenciación de Pessoas se dá no plano da manifestação. A manifestação em questão é uma
manifestação eterna, e a diferenciación uma diferenciación eterna dentro de Deus, que há que
distinguir da manifestação externa de Deus em criaturas diferenciadas; mas Deus em Si mesmo,
para além do plano da manifestação, é Unidade indifereneiada. Pode-se, sem dúvida, tratar de
justificar a linguagem do Pseudo-Dionisio com referência à natureza de Deus, que, segundo o
trinitarismo ortodoxo é uma e indivisa, e à qual é substancialmente idêntica a cada uma das
Pessoas divinas; mas parece o mais provável, por não dizer verdadeiro, que o autor estava
influído não somente pela doutrina plotiniana do Um, senão também pela doutrina de Proelo do
Princípio primário que trasciende dos atributos de Unidade, Bondade e Ser. A Unidade
superesencial parece representar o primeiro Princípio de Proelo, e a distinção das Três Pessoas
em unidade de Natureza parece representar a concepção neoplatónica da emanação, que é um
estádio, embora seja um estádio eterno, na automanifestación ou revelação da Divinidad última
ou Absoluto. Quando falamos da Divinidad totalmente trascendente como uma Unidade e uma
Trinidad, não se trata de uma Unidade ou uma Trinidad tais como podem ser conhecidas por
nós... (embora) “aplicamos os títulos de “ Trinidad" e “Unidade" ao que está para além de todos
os títulos, expressando baixo a forma de Ser aquilo que está para além do ser... (A Divinidad
trascendente) não tem nome algum, nem pode ser captada pela razão... Nem sequer o título de “
Bondade" atribuímos-lho porque achamos conveniente tal nome...”[204] (A divinidad) “não é
unidade ou bondade, nem um Espírito, nem Filialidad, nem Paternidad... não pertence à
categoria da não existência nem à da existência”.[205]
É verdade que tais frases poderiam ser defendido, quanto à intenção de seu autor, já que não
quanto às palavras realmente utilizadas, indicando que é correto dizer que o termo “Pai”, por
exemplo, corresponde à Primeira Pessoa Como Pessoa, e não ao Filho, embora a substância
divina existe em identidade numérica e sem diferenciación real intrínseca na cada uma das três
Pessoas Divinas, e também aceitando que o termo “Pai” aplicado à primeira Pessoa, embora seja
o melhor termo disponível na linguagem humana para tal fim, está tomado de um relacionamento
humano e se aplica a Deus em um sentido analógico, de modo que o conteúdo da ideia de Pai
em nossas mentes não é adequado à realidade em Deus. Ademais, o Pseudo-Dionisio fala de
“uma diferenciación na doutrina superesencial de Deus, referindo-se à Trinidad de Pessoas e aos
nomes aplicáveis à cada Pessoa designadamente[206], e nega explicitamente que introduza “uma
confusão de todas as distinções na Divinidad”[207], afirmando que, enquanto nomes tais como
“Supervital”, “Supersabio”, correspondem à “inteira Divinidad”, os nomes de “Pai”, “Filho” e
“Espírito”, “não podem ser trocados nem se afirmam em comum”[208]. Ademais, embora há
“uma continuidade e interioridad mútua” das divinas Pessoas “em uma Unidade completamente
indifereneiada e trascendente”, esta é “sem confusão alguma”[209]. Não obstante, embora muito
do que o Pseudo-Dionisio diz envelope o tema da Santísima Trinidad pode ser interpretado e
defendido desde o ponto de vista da ortodoxia teológica, é difícil não distinguir nele uma forte
tendência a ir para além da distinção de Pessoas até uma Unidade indifereneiada
supertrascendente. Provavelmente, a verdade neste ponto consiste em que o Pseudo- Dionisio,
embora trinitario ortodoxo na intenção, esteve tão influído pela filosofia neoplatónica que uma
tensão entre ambos elementos subyace a seus esforços pelos reconciliar, e se faz manifesta em
seus formulaciones.

5. Ambigua doutrina da Criação.

Com respeito ao relacionamento do mundo a Deus, o Pseudo-Dionisio fala da “emanação”


(upóoBos) de Deus no universo das coisas[210]; mas trata de combinar a teoria neoplatónica da
emanação com a doutrina cristã da criação, e não é panteísta. Por exemplo, já que Deus confere
existência a todas as coisas que são, se diz que se faz multiforme mediante a produção de coisas
existentes a partir de Si mesmo; mas ao mesmo tempo Deus permanece sendo Um inclusive no
ato de “auto-multiplicação”, e in diferenciado inclusive no processo de emanação[211]. Proelo
fazia questão de que o Princípio primeiro não se aminora mediante o processo de emanação, e o
Pseudo-Dionisio repete o mesmo ensino; mas a influência do neoplatonismo parece ter
significado que o Pseudo-Dionisio não reconheceu claramente o relacionamento da Criação à
vontade divina, ou a liberdade do ato de criação, porque se inclina a se expressar como se a
criação fosse um efeito natural e inclusive espontâneo da bondade divina, ainda que Deus seja
diferente do mundo. Deus existe indivisiblemente e sem multiplicação de Si mesmo em todas as
coisas individuais; separadas e múltiplos, e, embora estas participam da bondade que dimana de
O, e embora podem em verdadeiro sentido ser consideradas como uma “extensão” de Deus,
Deus mesmo não está implicado em sua multiplicação: em poucas palavras, o mundo é uma
efusión da bondade divina, mas não é Deus mesmo. O Pseudo-Dionisio é claro nesse ponto da
trascendencia de Deus, bem como no de seu inmanencia; mas seu afición a descrever o mundo
como a efusión da rebosante plenitude de bondade de Deus, e a traçar uma espécie de paralelo
entre as procissões divinas internas e a procissão externa na Criação lhe leva a falar como se a
criação fosse uma atividade espontânea de Deus, como se Deus criasse por uma necessidade de
sua natureza.

Que Deus é Causa trascendente de todas as coisas, o Pseudo-Dionisio o afirma várias vezes,
e explica ademais que Deus criou o mundo através das cria instâncias e arquetípicas, as “preor
dêem aciones” (upoopiajioi) que existem no[212]; ademais, Deus é causa-a final de todas as
coisas, que atrai todas as coisas para Si, como o Bem[213]. Deus é, pois “o Princípio e o Fim de
todas as coisas”[214], “O Princípio, como Causa delas; o Fim, como seu Propósito final”[215]. Há,
pois, um sair de Deus e um regressar a Deus; um processo de multiplicação e um processo de
intercomunión e regresso. Essa ideia seria básica na filosofia do tradutor do “Areopagita”, João
Escoto Erígena.

6. O problema do mau.

Dada a grande insistencia do Pseudo-Dionisio na Bondade divina, tinha que conceder


alguma atenção à existência, e o consiguiente problema, do mau, e assim o fez, em seu tratado
sobre os Nomes divinos[216], se baseando, ao menos em parte, no De subsistentia malí, de Proelo.
Em primeiro lugar, o Pseudo-Dionisio faz questão de que, embora o mau teria que ser referido
a Deus como a sua Causa, se fosse algo positivo, não é, de fato, nada positivo: precisamente
como mau, não tem ser. Se se objeta que o mau pode ser positivo, já que pode ser produtivo (às
vezes, inclusive de bem), e, já que, por exemplo, o libertinaje, que é o oposto da templanza, é
algo mau e positivo, o Pseudo-Dionisio contesta que nada é produtivo precisamente como mau,
senão somente na medida em que é bom, ou mediante a ação do bem: o mau como tal tende
unicamente a destruir e degradar. Que o mau não tem ser positivo por si mesmo pode ser posto
em claro pelo fato de que “bem” e “ser” são sinónimos: todo aquilo que tem ser procede do Bem,
e, como ser, é bom. Significa isso, então, que o mau e a não existência são precisamente o
mesmo? Indubitavelmente, o Pseudo-Dionisio tende a expressar-se como se esse fosse o caso,
mas o que verdadeiramente quer dizer se manifesta em sua fórmula de que “todas as criaturas,
na medida em que têm ser, são boas e procedem do Bem, e na medida em que estão privadas do
Bem, nem são boas nem têm ser”[217]. Em outras palavras, o mau é uma privação ou uma perda:
consiste não simplesmente em não ser, ou na ausência de bem, senão mais bem na ausência de
um bem que deveria estar presente. O pecador, por exemplo, é bom na medida em que tem ser,
vida, existência, vontade; o mau consiste na privação de um bem que deveria estar ali e
realmente não está, no indevido relacionamento de sua vontade à norma de moralidad, na
ausência desta ou aquela virtude, etc.

Segue-se daí que nenhuma criatura, considerada como um ser existente, pode ser má.
Inclusive os demônios são bons na medida em que existem, porque também sua existência deriva
do Bem, e essa existência continua sendo boa: são maus não em virtude de sua existência, de
sua constituição natural, senão “somente por sua falta de virtudes angélicas”[218]; “chama-se-
lhes maus pela privação e a perda pela que foram degradados de suas virtudes próprias”. O
mesmo vale dos seres humanos maus, aos que se chama maus em virtude de “a deficiência de
boas qualidades e atividades, e em virtude da falha e queda devidos a sua própria debilidade”.
“De onde se segue que o mau não inhiere nos demônios ou em nós como mau, senão somente
como uma deficiência ou falta de perfección de suas virtudes próprias.”[219]
O mau físico, não-moral, recebe um tratamento similar. “Nenhuma força natural é má; o
mau de natureza reside na incapacidade de uma coisa para cumprir suas funções naturais.”[220]
Também “a fealdad e a doença são uma deficiência na forma ou uma falta de ordem”, e isso não
é totalmente mau “senão mais bem um bem menor”[221]. Nem a matéria como tal pode ser má,
já que “também a matéria tem uma participação na ordem, a beleza e a forma”[222]; a matéria
não pode ser má em si mesma, já que é produzida pelo Bem, e já que é necessária à natureza.
Não há necessidade de recorrer a dois princípios últimos, bom um e mau o outro. “Em resumem,
o bem procede da única Causa universal; o mau procede de muitas deficiências parciais.”[223]

Se diz-se que algumas pessoas desejam o mau, de modo que o mau, como objeto de desejo,
deve ser algo positivo, o Pseudo-Dionisio responde que todos os atos têm por objeto o bem, mas
que podem estar equivocados, já que o agente pode errar assim que qual seja o adequado bem
ou objeto de desejo. No caso do pecado, o pecador tem o poder de conhecer o bem verdadeiro e
justo, de maneira que seu “erro” é-lhe moralmente atribuible a ele mesmo[224]. Ademais, a
objeción de que a providência deveria conduzir aos homens à virtude inclusive na contramão da
vontade destes, é uma insensatez, porque “não é digno da Providência violar a Natureza”: a
Providência provee à livre eleição, e respeita-a[225].

7. Ortodoxia ou não ortodoxia?

Em conclusão, pode ser observado que, embora Ferdinand Christian Baur[226] parece ter ido
demasiado longe ao dizer que o Pseudo-Dionisio reduziu a doutrina cristã da Trinidad a uma
mera utilização formal de termos cristãos vazia de conteúdo cristão, e que em seu sistema não
cabe uma encarnación especial, deve ser admitido que há em seu pensamento uma tensão entre
a filosofia neoplatónica que adotou e os dogmas cristãos nos quais (não temos uma verdadeira
razão para o negar) achava. O Pseudo-Dionisio tentou harmonizar (e achou conseguí-lo) os dois
elementos, expressar teología cristã e misticismo cristão em um esquema e uma estrutura
filosófica neoplatónica; mas mal pode ser negado que, quando se produzia um choque, os
elementos neoplatónicos tendiam a prevalecer. Um dos principais pontos que os neoplatónicos
paganos, como Porfirio, objetaban ao cristianismo, era o de uma peculiar e específica
encarnación, e embora, como já disse, não está justificado que afirmemos que o Pseudo-Dionisio
negasse a encarnación, no entanto, sua aceitação desta não se adapta bem a seu sistema
filosófico, nem desempenha um grande papel naquelas de suas obras que chegaram até nós. É
perfeitamente legítimo duvidar de se os escritos do Pseudo-Dionisio exercesse na Idade Média
a influência que de fato exerceram envelope os pensadores cristãos, de não ter sido porque estes
acharam que seu autor era efetivamente san Dionisio de Areópago.
Capítulo X
Boecio, Casiodoro, Santo Isidoro

1. Boecio, transmissor de ideias aristotélicas.

Se os escritos do Pseudo-Dionisio constituíram um dos canais pelos que passou à Idade


Média a filosofia do mundo antigo, outro canal, em algumas feições complementar do anterior,
esteve constituído pelos escritos de Boecio (anos 480- 524/525, aproximadamente), um cristão
que, após estudar em Atenas e desempenhar mais tarde uma alta magistratura no corte do rei
ostrogodo Teodorico, foi executado, acusado de alta traição. utilizei a palavra “complementar”
porque, enquanto o Pseudo-Dionisio ajudou a impregnar a primeira filosofia medieval,
especialmente a de João Escoto Erígena, de elementos tomados da especulação neoplatónica,
Boecio transmitiu aos primeiros medievais um conhecimento de Aristóteles, ao menos no campo
da lógica. enumerei suas obras em meu volume sobre a filosofia grega e romana, e não as vou
repetir aqui; baste com recordar que traduziu ao latín o Organon de Aristóteles e o comentou,
além de comentar a Eisagoge de Porfirio e de compor tratados de lógica originais. Escreveu
também vários opúsculos teológicos, e, enquanto esteve encarcerado, sua celebrada Consolación
da Filosofia.

É inseguro se Boecio traduziu ou não, de acordo com seu plano original, outras obras de
Aristóteles aparte do Organon; mas naquelas de suas obras que chegaram até nós, faz menção
de várias destacadas doutrinas aristotélicas. Os primeiros pensadores medievais interessaram-se
predominantemente pela discussão do problema dos universais, e tomaram como ponto de
partida da mesma certos textos de Porfirio e Boecio, enquanto mal advertiram as doutrinas
metafísicas de Aristóteles que podiam ser encontrado nos escritos de Boecio.

O primeiro grande pensador especulativo da Idade Média, João Escoto Erígena, deveu mais
ao Pseudo-Dionisio e a outros escritores dependentes do neoplatonismo que a qualquer
influência aristotélica, e até que o corpus aristotélico chegou a estar disponível em Occidente,
no final do século XII e começos do 13, não se tentou uma síntese filosófica sobre linhas
aristotélicas. Mas isso não altera o fato de que os escritos de Boecio incorporassem importantes
doutrinas de Aristóteles. Por exemplo, em sua obra teológica contra Eutiques[227], Boecio fala
claramente de “matéria”, o substrato comum dos corpos que fundamenta e faz possível a
mudança substancial nos corpos, as substâncias corpóreas, enquanto sua ausência nas
substâncias incorpóreas faz impossível a transformação de uma substância imaterial em outra,
ou de uma substância corpórea em uma incorpórea ou vice-versa. A discussão desenvolve-se em
um mareo teológico e com um propósito teológico, porque Boecio deseja mostrar que em Cristo
a natureza divina e a natureza humana são diferentes e ambas reais, contra Eutiques, que
sustentava que “a união com a Divinidad implicava o desaparecimento da natureza
humana”[228]; mas nesse contexto teológico inclui-se uma discussão filosófica, e as categorias
empregadas nesta são de caráter aristotélico. De uma maneira semelhante, no De Trinitate[229],
Boecio fala de um princípio correlativo à matéria, a saber, a forma. Por exemplo, a terra não é
terra por razão da matéria, não qualificada, senão por uma forma distintiva. (Boecio traduz por
“matéria não qualificada” a expressão grega II-comal, tomada indubitavelmente de Alexandro
de Afrodisia.)[230] Por outra parte, Deus, a Substância Divina, é Forma sem matéria, e não pode
ser um substrato. Como pura Forma, Deus é Um.

Igualmente, no De Trinitate[231], Boecio apresenta as dez categorias ou Praedieamenta, e


procede a explicar que quando chamamos a Deus “substância” não entendemos que seja uma
substância no mesmo sentido em que é substância uma coisa criada: Deus é “uma substância
que é supersubstancial”. De modo similar, se pregamos de Deus uma qualidade, como “justo”,
ou “grande”, não queremos dizer que Deus tenha uma qualidade inerente, porque “se for o caso,
ser justo e ser Deus é uma e a mesma coisa”, e enquanto “o homem meramente é grande, Deus
é grandeza”. No Contra Eutiques[232] aparece a famosa definição boeciana de “pessoa”, naturae
rationalis individua substantia, que foi aceite por santo Tomás e se fez clássica nas diversas
Escolas.

2. Teología natural.

Em sua doutrina da Santísima Trinidad, Boecio apoia-se em grande parte em Santo


Agostinho; mas no De Consolatione Philosophiae desenvolveu em esboço uma teología natural
seguindo linhas aristotélicas, distinguindo assim implicitamente entre teología natural; a parte
mais elevada da filosofia, e teología dogmática, que, a diferença da anterior, toma suas premisas
da Revelação. No livro terceiro[233] mencione ao menos o argumento racional para provar a
existência de Deus como Motor Imóvel, e no livro quinto[234] trata da dificuldade de pôr de
acordo a liberdade humana com a presciencia divina. “Se Deus contempla todas as coisas, e não
pode ser enganado, se segue necessariamente que sua Providência prevê o que vai ocorrer. Por
tanto, se desde a eternidade tem conhecimento prévio não somente das ações dos homens, senão
também de seus propósitos e vontades, não pode ter vontade livre.”[235] Contestar a isso que não
se trata de que os acontecimentos futuros tenham de ter local porque Deus os conhece, senão
mais bem que Deus os conhece porque terão local, não é uma resposta muito satisfatória, já que
implica que acontecimentos temporários e atos temporários das criaturas são causa do
conhecimento eterno de Deus. Seria melhor dizer que, estritamente falando, Deus não “prevê”
nada: Deus é eterno; a eternidade define-se em uma frase famosa como interminabilis vitae tota
simul et perfeita possessio[236], e o conhecimento de Deus é o conhecimento do que lhe está
eternamente presente, de um instante que nunca se desvanece, não um preconocimiento de
coisas que sejam futuras para Deus. Agora bem, o conhecimento de um acontecimento presente
não impõe necessidade a esse acontecimento, de modo que o conhecimento que Deus tem dos
atos livres do homem, que desde o ponto de vista humano são futuros, embora desde o ponto de
vista divino são presentes, não converte a tais atos em determinados ou necessários (no sentido
de não livres). A eternidade da visão de Deus “que é sempre presente, coincide com a qualidade
futura de uma ação”.
Boecio não bebeu exclusivamente em fontes aristotélicas, senão também em Porfirio e
outros neoplatónicos, bem como em Cicerón, por exemplo, e talvez a divisão da filosofia ou
ciência especulativa em física, matemáticas e teología foi tomada diretamente da Eisagoge de
Porfirio; mas deve ser recordado que, a sua vez, Porfirio tomou muitas coisas de Aristóteles. Em
todo caso, se se tem em conta o caráter predominantemente neoplatónico da anterior filosofia
cristã, o elemento aristotélico no pensamento de Boecio é mais notável e significativo que os
elementos especificamente neoplatónicos. É verdade que Boecio fala da bondade divina e seu
caráter difusivo de um modo que recorda ao neoplatonismo (no De Consolatione
Philosophiae[237] diz que “a substância de Deus não consiste em outra coisa que em bondade”)
e que às vezes utiliza termos tais como defluere em conexão com a procissão das criaturas a
partir de Deus[238]; mas é perfeitamente claro a propósito da distinção entre Deus e o mundo, e
quanto à doutrina cristã da Criação. Assim, afirma expressamente que Deus “sem mudança
algum, pelo exercício de uma vontade conhecida somente por Si mesmo, determinou em Si
mesmo formar o mundo e o trouxe ao ser quando não era absolutamente nada, não o sacando de
sua própria substância[239], e nega que a substância divina in externa dilabatur[240] ou “que todas
as rochas que são, são Deus”.[241]

3. Influência da Idade Média.

Boecio, pois, foi de muito considerável importância, porque transmitiu aos primeiros tempos
medievais uma grande parte do conhecimento de Aristóteles então disponível. Ademais, sua
aplicação de categorias filosóficas à teología ajudou ao desenvolvimento da ciência teológica,
enquanto sua utilização e definição de termos filosóficos foi um serviço tanto à filosofia como
à teología. Finalmente, devemos mencionar a influência exercida por sua composição de
comentários, porque esse tipo de escritos chegou a ser um método favorito de composição entre
os medievais. Embora não seja particularmente notável como filósofo original e independente,
Boecio é de sobresaliente significação como transmissor, e como um filósofo que tentou
expressar doutrinas cristãs em termos tomados não somente dos neoplatónicos, senão também
de um filósofo cujo pensamento adquiriria uma influência predominante na maior das sínteses
filosóficas da Idade Média.

4. Casiodoro e as sete artes liberais; a espiritualidad da alma.

Casiodoro (477-565/570, aproximadamente) foi discípulo de Boecio e, como seu maestro,


trabalhou durante algum tempo ao serviço de Teodorico, rei dos ostrogodos. Em seu De artibus
ac disciplinas liberalium litterarum (que é o livro segundo de seus Institutiones) tratou de sete
artes liberais, isto é, as três scientiae sermocinales (gramática, retórica e dialética) e as quatro
scientiae reais (aritmética, geometria, música e astronomia). Casiodoro não pretendia novidade
ou originalidad de pensamento, senão mais bem oferecer uma sinopsis do saber que extraía de
outros escritores[242], e seu livro sobre ditas artes, como o de Marciano Capella, foi muito
utilizado como livro de texto na primeira parte da Idade Média. Em seu De Anima, Casiodoro
seguiu a Santo Agostinho e a Claudiano Mamerto (morrido para 474) em suas provas da
espiritualidad da alma humana. A alma não pode ser uma parte de Deus, já que é mudable e
capaz de mau, mas também não é material nem pode o ser, já que pode ter como objeto de
conhecimento o que é espiritual, e só o que é em si mesmo espiritual pode conhecer o espiritual.
Como espiritual, a alma está totalmente em todo o corpo e totalmente na cada parte do mesmo,
é indivisible e inextensa; mas opera em uma determinada parte do corpo, por exemplo, em um
órgão sensitivo, umas vezes com mais intensidade e outras com menos.[243]

5. As “Etimologías” e as “Sentenças” de Santo Isidoro.

Casiodoro, pois, foi bem mais um “transmissor” que um pensador original, e o mesmo pode
ser dito de Santo Isidoro (morrido para 636), que chegou a ser arcebispo de Sevilla no reino
visigodo, e cuja enciclopédia (os Originum seu Etymologiarum libri XX) foi muito popular na
primeira Idade Média, e fazia parte de toda importante biblioteca monástica. Nessa obra Santo
Isidoro trata de sete artes liberais, como também de um grande número de fatos e teorias
científicas ou cuasicientíficas sobre temas das Escrituras, jurisprudencia, medicina, arquitetura,
guerra, navegação, etc. Santo Isidoro manifesta sua convicção a respeito da origem divina da
soberania e a autoridade capital da moralidad, a lei e a justiça, na sociedade civil, inclusive com
respeito à conduta e atos do monarca. Além das Etimologías, os Libri três sententiarum de Santo
Isidoro (uma coleção de tese teológicas e morais tomadas de Santo Agostinho e de san Gregorio
Magno) foram também largamente utilizados. Seu tratado sobre os números, Líber Numerorum,
que trata dos números que aparecem nas Sagradas Escrituras, é, pelo geral, fantasioso em
extremo nos significados místicos que atribui aos números.
Parte II
A renascença Carolingia
Capítulo XI
A renascença Carolingia

1. Carlos Magno.

No ano 771, a morte de Carlomán deixou a Carlos (Carlos Magno) como único governante
dos domínios francos. A subsiguiente destruição por Carlos Magno do reino dos lombardos, e
sua política geral, converteram-lhe, no final do século, em principalísimo soberano da
cristandade ocidental. Seu coronación como imperador pelo papa no dia 25 de dezembro do ano
800 simboliza o sucesso de sua política imperial e a culminación do poder dos francos. O
Império franco se derrubaria mais tarde, e a coroa imperial passaria a Germanía, mas pelo
momento Carlos Magno foi o dono indisputado da cristandade ocidental, e pôde pôr em pé a
obra de reorganização e reforma que chegava a ser uma urgente necessidade baixo a dinastia
merovingia. O imperador não era simplesmente um soldado, nem sequer uma simples
combinação de soldado e organizador político; sentia também em seu coração a tarefa de elevar
o nível cultural de seus súbditos mediante a extensão e melhora da educação. Para esse propósito
precisava eruditos e educadores, e como estes não eram fáceis de obter no mesmo reino dos
francos, teve que os importar do estrangeiro. Já no século e, a antiga cultura da Galia romanizada
estava em completa decadência, e nos séculos 6 e 7 chegava a um nível realmente muito baixo;
onde tinha escolas, não ensinavam senão a ler e a escrever, com algum conhecimento
rudimentario da gramática latina, aparte, desde depois, de dar instrução religiosa. Para remediar
esse lamentável estado do saber e da educação, Carlos Magno serviu-se de eruditos estrangeiros
como Pedro de Calca e Pablo o Diácono, ambos italianos. O primeiro parece ter sido já de idade
avançada quando ensinava latín na escola palatina de Carlos Magno, enquanto o segundo (Paul
Warnefrid, o Diácono), que chegava a França em 782, em uma tentativa por conseguir a
liberdade de seu irmão, prisioneiro de guerra, ensinou grego de 782 a 786, ano em que se retirou
a Monte Cassino, onde compôs sua História dos lombardos. Outro maestro italiano na escola
palatina foi Paulino de Aquilea, que ensinou desde 777, aproximadamente, até 787.

Além do grupo de gramáticos italianos podemos mencionar a dois espanhóis que chegaram
a França como refugiados: Agobardo, que chegou a ser bispo de Lyón em 816, e Teodulfo, que
foi bispo de Orleáns e morreu em 821. O segundo conhecia os clássicos latinos, e foi ele mesmo
poeta latino. Acidentalmente, o mais antigo manuscrito medieval conhecido de Quintiliano
procede da biblioteca privada de Teodulfo. Mas desde o ponto de vista da importância prática
no labor educacional de Carlos Magno, italianos e espanhóis foram eclipsados pelo famoso
erudito inglês Alcuino de York.
2. Alcuino e a Escola Palatina.

Alcuino (730-804, aproximadamente) recebeu em York sua primeira educação. O saber fazia
progressos na Inglaterra desde o ano 669, quando Teodoro de Tarso,

um monge grego, chegou ao país como arcebispo de Canterbury, e, junto do abad Adriano,
desenvolveu a escola de Canterbury e enriqueceu sua biblioteca. Aquela obra foi levada adiante
por homens como Benedicto Biscop, que fundou os mosteiros de Wearmouth (674) e Jarrow
(682), e Aldhelm, que, após estudar baixo a direção de Teodoro e Adriano, organizou o mosteiro
de Malmesbury em Wiltshire, do que foi abad. Mas uma figura mais importante da erudición
anglosajona foi o grande exegeta e historiador Beda (674-735), um sacerdote e monge de Jarrow.
Devido aos trabalhos do discípulo e amigo de Beda, Egberto, que chegou a ser arcebispo de
York pouco depois da morte de Beda, a escola de York se converteu no principal centro de
educação da Inglaterra, famoso pela riqueza de sua biblioteca.

Alcuino esteve, em York, principalmente baixo o cuidado de Aelberto, em companhia do


qual viajou a Roma, e encontrou a Carlos no caminho. Quando Aelberto aconteceu a Egberto
como arcebispo de York, em 767, o trabalho principal da escola recaiu envelope Alcuino. Leste
foi enviado a Roma por Aelberto em 781, e em Parma encontrou a Carlos por segunda vez; o rei
aproveitou o encontro para insistir com o erudito inglês em que entrasse a seu serviço. Após
receber a permissão de seu próprio rei e do arcebispo, Alcuino aceitou o convite, e em 782 fez-
se cargo da direção da escola palatina, na que se manteve (salvo uma curta visita a Inglaterra em
786 e outra mais longa de 790 a 793) até 796, ano em que aceitou a dignidade de abad de San
Martín de Tours, na que passou nos últimos anos de sua vida.

Para o ano 777, provavelmente, Carlos Magno escreveu uma carta a Baugulfo, abad de
Fulda[244], na que exhortaba ao abad e à comunidade a manter vivo a fita-cola pelo saber, e esse
é simplesmente um dos exemplos de seu pedido constante pela causa da educação. Mas a escola
que está particularmente sócia ao nome de Carlos Magno é a chamada escola palatina, ou de
palácio, que embora não fosse de nova criação do imperador, deveu a este seu desenvolvimento.
Dantes de seu desenvolvimento baixo Carlos Magno parece que a escola existia com a finalidade
de educar aos príncipes e meninos da família real ou da alta nobreza no modo de vida
caballeresco; mas o imperador atendeu especialmente a educação intelectual e, como um
resultado de sua reforma, parece que os discípulos não procediam exclusivamente do círculo do
corte. Muitos escritores franceses pretenderam que a escola palatina foi a origem da
Universidade de Paris; mas deve ser recordado que o corte do imperador estava em Aachen, ou
Aix-a-Chapelle[245], e não em Paris, embora parece que foi mais tarde transladada a Paris por
Carlos o Calvo (morrido em 877). Como a Universidade de Paris se desenvolveu a partir de uma
amalgama das escolas parisinas, pode ser dito que a escola palatina foi em alguma sentido
antepassada da Universidade, conquanto a conexão é pouco estreita.

O principal instrumento de Carlos Magno na organização da escola palatina foi Alcuino, por
cujos escritos podemos nos formar alguma ideia do conteúdo dos estudos. Indubitavelmente,
Alcuino não foi um pensador original, e suas obras didáticas, escritas em forma dialogada, se
baseiam em sua maior parte em autores anteriores. Por exemplo, o De Rethorica utiliza a
Cicerón, com acrescentados procedentes de outros autores, e em outros tratados Alcuino cópia
de Donato, Prisciano, Casiodoro, Boecio, Santo Isidoro, Beda. Mas embora Alcuino carecesse
de originalidad e fosse mediocre como escritor, merecendo mal o título de filósofo, parece ter
sido um maestro eminente e eficaz, e alguma das figuras mais conhecidas da renascença
carolingio, Rabano Mauro por exemplo, foram discípulos seus. Quando Alcuino se retirou à
abadia de San Martín de Tours, continuou seu labor de maestro, como evidencia uma celebrada
carta ao imperador na que descreve como serve a alguns jovens o mel das Sagradas Escrituras,
e como trata de embriagar a outros com o vinho da literatura antiga: alguns se alimentam com
as maçãs dos estudos gramaticais, e a outros lhes ensina a ordem das órbitas brilhantes que
enfeitam os céus azuis. (Carlos Magno sentia um considerável interesse pessoal pela astronomia,
e os dois homens escreviam-se a respeito desse tema.)

Em Tours, Alcuino enriqueceu a biblioteca com cópias de manuscritos que levou ali desde
York, a melhor biblioteca da Europa ocidental. Também consagrou sua atenção à melhora do
método de copiar manuscritos. Em uma carta de 799[246] fala de sua diária batalha com a
“rusticidad” de Tours, do que devemos concluir que a senda da reforma não era ainda demasiado
fácil. É seguro que Alcuino atendeu também à exatidão na cópia e emenda dos manuscritos das
Escrituras, já que fala explicitamente disso em cartas a Carlos Magno em 800[247] e 801[248];
mas, não é seguro que parte tomou exatamente na revisão da Vulgata que foi ordenada pelo
imperador, e que é conhecida como “a revisão de Alcuino”. Dada a importante posição ocupada
pelo maestro na execução das reformas do imperador, é, no entanto, muito razoável supor que
desempenhou um papel reitor naquela importante obra, que ajudou a frear os progressos da
corrução dos manuscritos.

3. Outras escolas; bibliotecas.

Quanto ao desenvolvimento de outras escolas, aparte da escola palatina e da de Tours, podem


ser mencionado as escolas anexa aos mosteiros de St.-Gall, Corbie e Fulda. Nos mosteiros
proporcionava-se educação não somente àqueles discípulos que estavam destinados a se
converter em membros da ordem religiosa, senão também a outros discípulos, embora parece
que tinha duas escolas separadas, a schola claustri, para a primeira classe de discípulos, e a
schola exterior, para a segunda. Assim, em St.-Gall, a schola claustri estava dentro do recinto
do mosteiro, enquanto a schola exterior encontrava-se entre os restantes edifícios. Uma capitular
de Ludovico Pío (817) ordenou que os mosteiros tivessem unicamente escolas para “oblatos”,
mas não parece que se fizesse muito caso dessa portaria.

Se considera-se a escola palatina como uma classe de escolas, as outras se dividem então em
duas classes principais, as escolas catedralicias, ou capitular, e as escolas monásticas. Quanto
ao conjunto de matérias de estudo, ou curriculum, este consistia, aparte do estudo da teología e
a exégesis, especialmente para aqueles discípulos que se preparavam para o sacerdocio ou a vida
de religião, no estudo do Trivium (gramática, retórica e dialética) e do Quadrivium (aritmética,
geometria, astronomia e música), que compreendiam as sete artes liberais. Mas era pouco o
trabalho novo ou original que se fazia em tais temas. Assim, a gramática, que incluía a literatura,
devia ser estudado nos escritos de Prisciano e Donato, e nos livros de texto de Alcuino, por
exemplo, embora foram compostos alguns comentários sobre obras dos gramáticos antigos por
Esmaragdo, por exemplo, e se escreveram algumas obras gramaticais pouco destacadas, como
o Ars grammaticae de Clemente Scot, que começou a ensinar na Escola Palatina nos últimos
anos de Carlos Magno. A lógica era estudada também nos manuais de Alcuino, ou, se se desejava
algo mais, nas obras dos autores em que se baseava Alcuino, Boecio, por exemplo. Em geometria
e astronomia trabalhava-se pouco no século 9, mas a teoria da música progrediu com a Música
enchiriadis, atribuída a Hoger, abad de Werden (morrido no ano 902). As bibliotecas, por
exemplo, a biblioteca de St.-Gall, receberam um considerável incremento no século 9 incluíam,
aparte das obras teológicas e religiosas que constituíam o grosso dos catálogos, obras jurídicas
ou gramaticais e um verdadeiro número de autores clássicos; mas está claro que, pelo que
respecta à filosofia, a única matéria estudada era a lógica ou dialética, que, segundo Aristóteles,
é uma propedéutica à filosofia, não um ramo da filosofia mesma. Somente teve um verdadeiro
filósofo especulativo no século 9, João Escoto Erígena. A renascença carolingio propôs-se
propagar o saber existente, e o que o conseguisse foi já algo verdadeiramente notável; mas não
conduziu a pensamento ou especulação original, exceto no único caso do sistema de Scot. Se o
Império e a civilização carolingia sobrevivesse e continuado sua florecimiento, provocaria à
longa, indubitavelmente, um período de criação original; mas de-fato estavam destinados a
afundar-se na nova Idade Escura, e seria preciso um novo período de renascença dantes de que
pudesse ser cumprido a obra positiva, construtiva e original, da Idade Média.

4. Rabano Mauro.

Em razão de sua importância para a educação em Germania devemos mencionar, em


conexão com a renascença carolingio, o nome de Rabano Mauro, que nasceu para o ano 776 e,
após ter sido discípulo de Alcuino, ensinou no mosteiro de Ful dá, do que chegou a ser abad em
822. Em 847 foi nomeado arcebispo de Mainz, e continuou em tal posto até sua morte, em 856.
Rabano Mauro interessou-se pela educação do clero, e com tal finalidade compôs sua obra De
Institutione clericorum, em três livros. Além de um tratamento dos graus eclesiásticos, a liturgia,
a aprendizagem da predicación, etc., a obra trata também das sete artes liberais, mas Rabano não
deu nela maiores mostras de originalidad que em sua De rerum naturis, uma enciclopédia
derivada em grande parte da de Santo Isidoro. Em general, o autor germano dependeu quase
inteiramente de escritores anteriores, como Santo Isidoro, Beda ou Santo Agostinho. Em
questões exegéticas foi partidário das interpretações místicas e alegóricas. Em outras palavras,
o Praeceptor Germaniae foi um fiel produto da renascença carolingio, um erudito
verdadeiramente entusiasta da educação e zeloso da formação intelectual do clero, mas
marcadamente falto de originalidad em seu pensamento.
Capítulo XII
João Escoto Erígena. - I

1. Vida e obras.

Um dos mais notáveis fenômenos do século 9 é o sistema filosófico de João Escoto Erígena,
que sobressai como uma excelsa rocha no meio de um páramo. Temos visto que em decorrência
do século deu-se uma viva atividade educativa, e, se têm-se em conta os materiais e as
oportunidades normais na época, um crescente interesse pelo saber e a erudición; mas teve pouca
especulação original. Esse é um feito com que não tem de causar grande surpresa tratando de
um período de conservação e propagación; mas é tanto mais notável o que se desse subitamente
um caso isolado de especulação original em larga escala, um caso sem preparação prévia e sem
continuação imediata. Se João Escoto tivesse-se limitado a especular envelope uma ou duas
questões particulares, não teríamos por que mostrar tanta surpresa; mas, de fato, produziu um
sistema, o primeiro grande sistema da Idade Média. Pode ser dito, sem dúvida, que se baseou
em grande parte nas anteriores especulações de san Gregorio de Nisa, por exemplo, e, de modo
especial, no Pseudo-Dionisio, o qual é indubitavelmente verdade; mas, quando se lê o De
divisione naturae de Eriúgena, é difícil evitar a impressão de que se presença uma luta de uma
mente vigorosa, profunda e original, com as categorias e modos de pensamento e ideias que
escritores anteriores lhe tinham legado, como o material no qual e com o qual tinha ele que
trabalhar, moldando em um sistema e impregnando o tudo com uma atmosfera, uma cor e um
tom peculiares a sua própria personalidade. Sem dúvida é interessante, embora não demasiado
proveitoso, perguntar pelas linhas de pensamento que Escoto Eriúgena despregaria se vivesse
em um período mais rico e maduro de desenvolvimento filosófico; em realidade, encontramo-
nos ante uma mente de grande força, travada pelas limitações de seu tempo e pela pobreza do
material de que dispunha. Ademais, conquanto é, indubitavelmente, um erro interpretar o
sistema de João Escoto em termos de uma filosofia muito posterior, condicionada a sua vez Pelo
prévio desenvolvimento do pensamento e as circunstâncias históricas de sua época, por exemplo,
o sistema hegeliano, isso não nos impede nos esforçar em discernir as caraterísticas peculiares
do pensamento de Escoto, que, em certa medida, transformou o significado das ideias e
categorias que tomou em empréstimo de escritores anteriores.

Não sabemos muito da vida de João Escoto. Nasceu na Irlanda para o ano 810, e estudou em
um mosteiro irlandês. “Eriúgena” significa “pertencente ao povo de Erin”, e o termo “Escoto”
não deve ser entendido em relacionamento com Escócia, já que no século 9 Irlanda era conhecida
como “Scotia maior”, e os irlandeses como scoti. Foi sem dúvida em um mosteiro irlandês onde
adquiriu seu conhecimento da língua grega. No século 9, o estudo do grego era, geralmente
falando, peculiar dos mosteiros irlandeses. Beda atingiu um suficiente conhecimento daquela
língua, mas nem de Alcuino nem de Rabano Mauro pode ser dito que soubessem grego. O
primeiro utilizou frases gregas em seus comentários, mas, embora deveu conhecer ao menos o
alfabeto, seus Graeca eram tomadas dos escritos de outros autores, e, em general, evidenciou-se
que o aparecimento de frases gregas em um manuscrito indica que seu autor era irlandês ou que
estava de algum modo relacionado ou influído por algum escritor irlandês. A atenção que se
concedeu à língua grega em St.-Gall, por exemplo, deveu-se originariamente a monges
irlandeses. No entanto, embora a presença de Graeca em um manuscrito indica uma influência
irlandesa direta ou indireta, e embora o estudo do grego no século 9 fosse uma caraterística dos
mosteiros irlandeses, seria extremamente temerario concluir que todos os escritores irlandeses
que utilizavam frases gregas, e, ainda menos, que todos os monges irlandeses, estudassem e
soubessem grego em um sentido sério. A utilização de uma frase grega não constitui, por si
mesma, uma prova de verdadeiro conhecimento da língua grega, mais do que a utilização de
uma frase como fait accompli é, por si mesma, uma prova de conhecimento da língua francesa,
e o número de monges, inclusive irlandeses, que soubessem bem mais que os rudimentos da
língua grega foi, sem dúvida, muito pequeno. Em qualquer caso, João Escoto Erígena estava
entre esse pequeno número, como o manifesta claramente o fato de que pudesse, quando estava
na França, traduzir do grego escritos de san Gregorio de Nisa e as obras do Pseudo-Dionisio, e
que tentasse inclusive a composição de versos em grego. Seria absurdo considerar esse
conhecimento de João Escoto Erígena como típico do século, nem sequer como típico dos
mosteiros irlandeses; a verdade é que ele foi, para o século 9, um notável erudito na língua grega.

Em algum momento entre os trinta e os quarenta anos de sua vida, João Escoto transladou-
se a França. Em todo caso, estava no corte de Carlos o Calvo no ano 850, e ocupava uma posição
prominente na Escola Palatina. Não há provas seguras de que recebesse as ordens sacerdotales,
mas, fosse ou não sacerdote, foi induzido por Hinemar, bispo de Reims, a intervir em uma
disputa teológica referente à predestinación, e o resultado foi sua obra De praedestinatione, que
não agradou a nenhum dos dois bandos em disputa e fez recair sobre seu autor a suspeita de
herejía. João Escoto dirigiu então sua atenção à filosofia, e em 858 empreendeu, por encarrego
de Carlos o Calvo, a tradução das obras do Pseudo-Dionisio, do grego ao latín. Ditas obras era
presenteadas ao rei Luís, em 827, pelo imperador de Bizancio Miguel Balbo, mas nunca era
adequadamente traduzidas. João Escoto propôs-se então não só as traduzir, senão também as
comentar, e em realidade publicou comentários aos escritos do Pseudo-Dionisio, exceto ao De
Mystica Theologia, embora o papa Nicolás I formulou sua queixa porque a publicação se tivesse
feito sem nenhuma referência a ele. João Escoto publicou também traduções das Ambigua, de
Máximo o Confesor, e do De hominis opificio, de san Gregorio de Nisa, e parece que mais tarde
comentou o evangelho de san João, e o De Consolatione Philosophiae e opúsculos teológicos de
Boecio.

Mas a obra pela que Escoto é famoso é o De divisione naturae, que se compôs provavelmente
entre 862 e 866. Essa obra consta de cinco livros, e está escrita em forma dialogada, uma forma
de composição que era então popular, e que foi muito utilizada por Alcuino e outros. Não é uma
obra muito fácil de interpretar, já que a tentativa do autor de expressar os ensinos cristãos e a
doutrina filosófica de Santo Agostinho em linhas sugeridas pelo Pseudo-Dionisio e a filosofia
neoplatónica deixa dúvidas sobre se João Escoto foi um cristão ordoxo ou esteve bem perto, ou
chegou plenamente, a ser um panteísta. Os eruditos que mantêm suas intenções ortodoxas podem
fazer referência a enunciados como o de que “a autoridade das
Sagradas Escrituras deve ser aceite em todas as coisas”[249], mas os que mantêm que o autor
viu a filosofia como superior à teología, e antecipou o racionalismo hegeliano, podem indicar,
por exemplo, o julgamento[250] de que “toda autoridade” (por exemplo, a dos Pais) “que não é
confirmada pela verdadeira razão, parece ser débil, enquanto a verdadeira razão não precisa
apoiar em nenhuma autoridade”. Mas não é proveitoso discutir a questão da interpretação dantes
de ter exposto a doutrina do De divisione naturae, embora seja correto indicar de antemão o fato
de que seu devida interpretação está em disputa.

Parece que João Escoto, não sobreviveu a Carlos o Calvo, o qual morreu em 877. Há diversas
histórias a respeito da última parte de sua vida, proporcionadas por cronistas, por exemplo, a de
que chegou a ser abad de Athelney e foi assassinado pelos monges, mas parece ter poucas provas
da veracidade de tais histórias, e provavelmente são lendas ou se devem a confusão com algum
outro João.
Capítulo XIII
João Escoto Erígena. - II

1. A Natureza.

Ao começar o livro primeiro do De divisione naturae, João Escoto explica, por boca do
Maestro, em um diálogo que tem local entre um Magister e um Discipulus, o que ele entende
por “Natureza”, a saber, a totalidade das coisas que são e as coisas que não são, e oferece
diversos modos de fazer essa divisão geral. Por exemplo, as coisas que são percebidas pelos
sentidos ou que são penetrables pelo intelecto são as coisas que são, enquanto os objetos que
trascienden o poder do entendimento são as coisas que não são. Ou também, as coisas que
permanecem ocultas em suas semina, ainda não atualizadas, “não são”, enquanto as coisas que
se desenvolveram a partir de suas sementes, “são”. Ou também, os objetos que são somente
objeto da razão pode ser dito que são as coisas que são, enquanto os objetos que são materiais,
submetidos ao espaço e ao tempo e à dissolução, podem ser chamadas as coisas que não são.
Também a natureza humana, considerada enquanto enajenada de Deus pelo pecado, pode ser
dito que “não é”, enquanto quando se reconcilia com Deus pela graça, começa a “ser”.

O termo “Natureza” significa, pois, para João Escoto Erígena não somente o mundo natural,
senão também Deus e a esfera sobrenatural denota toda a realidade[251]. Quando, em
consequência, afirma[252] que a natureza se divide em quatro espécies, a saber, Natureza que cria
e não é criada, Natureza que é criada e cria, Natureza que é criada e não cria, e Natureza que
nem cria nem é criada, apresentando assim a Deus e às criaturas como espécies da Natureza,
pode parecer que afirma uma doutrina monista, e, em realidade, se essas palavras se tomam em
sua significação literal, teremos que concluir que assim o fez. Não obstante, a começos do livro
2, em um período longo e algo complicado, põe em claro que não é sua intenção afirmar que as
criaturas sejam realmente uma parte de Deus, ou que Deus seja um gênero cujas espécies seriam
as criaturas, embora mantém a cuádruple divisão de “a Natureza”, e diz que Deus e as criaturas
podem ser considerados como formando juntamente uma universitas, um “universo” ou
totalidade. Pode ser concluído com certeza que João Escoto não tenta formular uma doutrina de
monismo panteísta, ou negar a distinção entre Deus e as criaturas, embora sua racionalização ou
explicação filosófica da saída das criaturas de Deus e seu regresso a Leste pode, tomada em si
mesma, implicar um panteísmo e uma negativa da distinção.

2. Deus e a Criação.

A “Natureza que cria e não é criada” é, desde depois, Deus, em si mesmo, Causa de todas as
coisas, mas O mesmo incausado. O é o princípio primeiro, o começo, já que todas as criaturas
procedem de O; o “médio” (médium), já que as criaturas subsistem e movem-se no e através de
O; e o fim ou causa final, já que O é o termo do movimento de desenvolvimento e autoperfección
das criaturas[253]. É a causa primeira, que traz às criaturas à existência desde um estado de não
existência, a partir da nada (de nihilo)[254]. Tal doutrina de Deus está de acordo com a teología
cristã, e contém uma clara enunciación da trascendencia e da existência a se de Deus; mas Escoto
Eriúgena prossegue dizendo que pode ser dito que Deus é criado nas criaturas, que é feito nas
coisas que O faz, que começa a ser nas coisas que começam a ser. Constituiria, no entanto, um
anacronismo supor que Escoto formula um panteísmo evolutivo, ou que mantém que a Natureza,
em seu sentido ordinário, é Deus-em seu-alteridad, porque depois explica[255] que quando ele
diz que Deus se faz nas criaturas o que quer dizer é que Deus “aparece”, ou se manifesta, nas
criaturas, que as criaturas são uma teofanía. Alguma das ilustrações de que se vale são, em
verdade, algo desafortunadas desde o ponto de vista ortodoxo, como quando diz que o mesmo
que o intelecto humano, quando procede a atualizar no sentido de pensar atualmente, pode ser
dito que se faz em seus pensamentos, assim pode ser dito que Deus se faz nas criaturas que
procedem de O, uma ilustração que parece implicar que as criaturas são atualizações de Deus;
mas, sejam como sejam as ilustrações de que se valha Escoto, e por muito influído que esteja
pela tradição filosófica derivada do neoplatonismo, parece claro que sua intenção ao menos foi
conservar a distinção real entre Deus e as criaturas, e que Deus, em relacionamento com a
criação, é Natura quae creat et non creatur. João Escoto sublinha energicamente a verdade dessa
fórmula.

3. Conhecimento de Deus pelas vias afirmativa e negativa:


inaplicabilidad das categorias a Deus.

Para atingir algum conhecimento da Natura quae creat et non creatur, pode ser feito uso das
vias afirmativa (καταφατική) e negativa (απ οατική). Quando se utiliza o método negativo, se
nega que a substância ou essência divina seja nenhuma daquelas coisas “que são”, isto é, que
podem ser entendidas por nós; quando se utiliza o método afirmativo se pregam de Deus aquelas
coisas “que são”, no sentido de que a causa se manifesta no efeito[256]. Esse método bifronte de
teología foi tomado por Escoto Eriúgena do Pseudo-Dionisio, segundo ele mesmo afirma
claramente[257], e do mesmo escritor tomou a ideia de que Deus não pode ser chamado, por
exemplo, Verdade, ou Sabedoria, ou Essência, senão mais bem Superverdad, ou Supersabiduría,
ou Superesencia, já que nenhum nome tomado das criaturas pode ser aplicado a Deus em seu
sentido próprio e estrito: aplicam-se a Deus metaphorice ou translative. Ademais, em um bilhete
imediato ao anterior[258], Escoto Eriúgena entrega-se a uma muito ingeniosa peça de dialética
do caráter inefable e incomprensible da Divinidad, e que o método negativo é o fundamental.
Por exemplo, valendo do método afirmativo, dizemos que Deus é Sabedoria, enquanto pela via
negativa dizemos que Deus não é sabedoria, e, a primeira vista, parece que isso é uma
contradição; mas, em realidade, quando dizemos que Deus é Sabedoria, utilizamos a palavra
“sabedoria” em um sentido “metafórico” (um sentido “analógico”, diriam os escolásticos),
enquanto quando dizemos que Deus não é sabedoria, utñizamos essa palavra em seu sentido
próprio e primário (isto é, no sentido de sabedoria humana, a única sabedoria da que temos
experiência direta). Por conseguinte, não há verdadeira contradição, senão somente nas palavras,
e pode ser reconciliado ao chamar a Deus Supersabiduría. Agora bem, se julgamos pelas
palavras, pregar de Deus Supersabiduría parece ser um ato da mente em prática da via afirmativa,
mas se examinamos a questão mais de perto chegamos a ver que, embora a frase pertence formal
e verbalmente à via affirmativa, a mente não tem contido algum, nenhuma ideia, que
corresponda à palavra “super”, de maneira que em realidade a frase pertence à via negativa, e a
adição da palavra “super” como prefixo à palavra “sabedoria” equivale realmente a uma
negación. Desde um ponto de vista verbal não há negación alguma no pregado “Supersabiduría”,
mas em relacionamento com o conteúdo da mente há uma negación. A via negativa é, pois,
fundamental e como não pretendemos definir o que é em si mesmo o “super”, a inefabilidad e
incomprensibilidad de Deus não sofre menoscabo. Desde depois, se dizemos que o uso da
palavra “super” equivale simples e exclusivamente a uma negación, se nos apresenta a objeción
óbvia (que poderia apresentar um positivista lógico) de que não há em nossas mentes significado
algum quando utilizamos a frase, que a frase é não significativa. Mas Escoto Eriúgena, embora
não discute realmente essa dificuldade, proporciona uma resposta quando indica que quando
dizemos que Deus é, por exemplo, supersabiduría, entendemos que é mais que sabedoria. Em
tal caso, a adição de “super” não pode equivaler simplesmente a uma negación, já que podemos
dizer “uma pedra não é sábia”, e é certamente algo diferente o que entendemos quando dizemos
“Deus não é sábio” e quando dizemos “uma pedra não é sábia”; o que entendemos é que se se
toma “sábio” com referência à sabedoria humana, então Deus não é sábio, no sentido de que O
é mais que sabedoria humana, enquanto uma pedra não é sábia no sentido de que é menos que
sábia. Esse pensamento parece indicado pelo próprio Escoto em seu exemplo final: “[Deus] é
essência”, uma afirmação; “não é essência”, uma negación; “é superesencial”, uma afirmação e
uma negación ao mesmo tempo[259]. A tese e a antítese reconciliam-se assim dialeticamente na
síntese.

Por conseguinte, se a Deus não pode lhe lhe chamar propriamente “sábio”, termo que não se
prega das coisas puramente materiais, muito menos pode ser pregado do nenhuma das dez
categorias de Aristóteles, que se encontram em objetos puramente materiais. Por exemplo, é
seguro que a quantidade não pode ser pregada de Deus, já que a quantidade implica dimensões,
e Deus não tem dimensão alguma, e não ocupa espaço[260]. Propriamente falando, Deus não é
nem sequer substância ou oúcta, porque O é infinitamente mais que substância, embora pode ser
chamado substância translative, assim que que O é o criador de todas as substâncias. As
categorias encontram-se em, e têm aplicação a, as coisas criadas, e são estritamente inaplicables
a Deus; nem também não o pregado “Deus” é um gênero, nem uma espécie, nem um acidente.
Por conseguinte, Deus trasciende os predicamentos e os predicables, e nessa feição está claro
que Escoto Eriúgena não é monista, dantes bem, sublinha a trascendencia divina do mesmo
modo em que o tinha feito o Pseudo-Dionisio. A teología da Santísima Trinidad ensina-nos
certamente que em Deus se encontra relacionamento, mas daí não se segue que os
relacionamentos em Deus caiam baixo a categoria de relacionamento. A palavra utiliza-se
metaphorice ou translative, e, quando se aplica às Pessoas divinas, não se utiliza em seu sentido
próprio e inteligible: os “relacionamentos” divinos são mais que relacionamentos. Finalmente,
embora podemos aprender pelas criaturas que Deus é, não podemos aprender que é. Aprendemos
que é mais que substância, mais que sabedoria, e assim sucessivamente; mas que seja esse
“mais”, que é o que quer dizer substância ou sabedoria quando se aplicam a Deus, isso não
podemos o saber, porque Deus trasciende de todo entendimento, seja o dos anjos ou o do homem.

4. Como, então, pode ser dito que Deus fez o Mundo?


Mas embora a doutrina da inaplicabilidad das categorias a Deus parece situar para além de
toda duvida a trascendencia de Deus e a clara distinção entre Deus e as criaturas, a consideração
das categorias de facere e pati parece conduzir a Escoto Eriúgena a uma conclusão muito
diferente. Em uma discussão extraordinariamente ingeniosa[261] mostra, o que é bastante óbvio,
que pati não pode ser pregado de Deus, e ao mesmo tempo argumenta que tanto facere como
pati implicam movimento ou mudança. É possível atribuir movimento a Deus? Não, não é
possível. Então, também não o fazer pode ser atribuído a Deus. Mas, nesse caso, como
poderíamos explicar a doutrina das Escrituras de que Deus fez todas as coisas? Em primeiro
lugar, não podemos supor que Deus existisse dantes de fazer o mundo, porque, se assim fora,
não só o mesmo Deus teria estado no tempo, senão que, ademais, seu próprio fazer seria um
acidente que lhe teria incrementado, e ambos supostos são impossíveis. Por conseguinte, o fazer
de Deus deve ser coeterno com O mesmo. Em segundo local, embora o fazer seja eterno e
idêntico a Deus, e não um acidente de Deus, não podemos atribuir movimento a Deus, e o
movimento está implicado na categoria de “fazer”. Que significa, pois, dizer que Deus fez todas
as coisas? “Quando ouvimos que Deus faz todas as coisas, devemos entender não outra coisa
senão que Deus é em todas as coisas, isto é, que é a essência de todas as coisas. Porque somente
O é verdadeiramente, e todo aquilo que com verdade se diz que é nas coisas que são, é Deus
só.”[262] Semelhante fórmula parece acercar-se muito, para dizer de um modo suave, ao
panteísmo, à doutrina de Spinoza, e não é surpreendente que Escoto ponha como prefacio desse
bilhete certas observações sobre o relacionamento entre a razão e a autoridade[263]. Diz o
Eriúgena que a razão é anterior à autoridade, e que a verdadeira autoridade é simplesmente “a
verdade encontrada pelo poder da razão, e transmitida em escritos pelos Pais para uso da
posteridad”. A conclusão é que as palavras, expressões e enunciados da Escritura, por muito
adequadas que sejam para os iletrados, têm de ser racionalmente interpretados pelos que são
capazes do fazer. Em outras palavras, Escoto Eriúgena não se pensa a si mesmo como não
ortodoxo, nem tem intenção do ser, mas sua interpretação filosófica das Escrituras parece
equivaler às vezes à raciónalización destas, e à posição da razão acima da autoridade e da fé. No
entanto, esse ponto de vista não deve ser demasiado acentuado. Por exemplo, apesar do bilhete
panteísta dantes citado, Escoto procede a reafirmar a criação a partir da nada, e fica assim claro
que quando ele se nega a dizer que Deus fez ou faz o mundo não está tratando de negar a criação,
senão mais bem de negar que Deus faça no único sentido no que nós entendemos “fazer”, a
saber, o de um acidente, subsumible baixo uma categoria particular. A existência e a essência
de Deus e seu ato de fazer são ontológicamente uma e a mesma coisa[264], e todos os pregados
que aplicamos a Deus significam realmente a Superesencia única e incomprensible.[265]

A verdade do assunto parece ser que João Escoto, ao mesmo tempo que mantém a distinção
entre Deus e as criaturas, deseja manter a concepção de Deus como a única realidade
omnieomprensiva, ao menos quando Deus é considerado altiori theoria. Assim, Escoto
indica[266] que as divisões primeira e quarta da “Natureza”. (Natura, quae creat et non creatur, e
Natura quae nec creat nec cratur), verificam-se unicamente em Deus, como causa eficiente
primeira e como causa final, enquanto as divisões segunda e terceira (Natura quae et creatur et
creat, e Natura quae creatur et non creat), se verificam somente nas criaturas; mas continua
dizendo[267] que, enquanto a cada criatura é uma participação de Quem existe só em Si mesmo,
toda a natureza pode ser reduzido ao único Princípio, e Criador e criatura podem ser
considerados como uma só coisa.
5. As Ideias divinas no Verbo.

A segunda divisão principal da Natureza (Natura quae et creatur et creat) refere-se às


“causas primordiais”, telefonemas pelos gregos irpcoxótuTra, íSéai, etcétera[268]. Essas causas
primordiais opraedestinationes são causa-as instâncias das espécies criadas, e existem na Palavra
ou Verbo de Deus: são, em realidade, as ideias divinas, os protótipos de todas as essências
criadas. Então, como pode ser dito que são “criadas”? O que pensa Escoto é que a geração eterna
do Verbo ou Filho de Deus supõe a constituição eterna das ideias arquetípicas ou causa
instâncias no Verbo. A geração do Verbo não é processo temporário, senão eterno, e igualmente
o é a constituição das praedestinationes: a prioridade do Verbo, abstratamente considerada, aos
arquetipos, é uma prioridade lógica; não uma prioridade temporária. A emergência daqueles
arquetipos é, assim, parte da procissão eterna do Verbo por “geração”, e somente nesse sentido
se diz que são criados[269]. No entanto, a prioridade lógica do Verbo aos arquetipos e a
dependência dos arquetipos respecto do Verbo significa que, embora nunca teve um tempo no
que existisse o Verbo sem os arquetipos, estes não são omnino coaeternae (causae) com o
Verbo.[270]

Em que sentido, pois, pode ser dito que as causas primordiais são criadas? Se tivesse que se
cingir a enunciados como o de que o upcoTOTunov se difunde (diffunditur) através de todas as
coisas lhes dando essência, ou o de que penetra todas as coisas que fez[271], teria que inclinar a
uma interpretação panteísta; no entanto, Escoto Eriúgena repete[272] que a Santísima Trinidad
“fez a partir da nada todas as coisas que fez”, o que implicaria que os protótipos são causas
somente no sentido de causas instâncias. Nada é criado exceto o que foi eternamente
preordenado, e essas praeordinationes eternas, ou 0£ia 0r)Ár)|iaTa, são os protótipos. Todas as
criaturas “participam” nos arquetipos, por exemplo, a sabedoria humana na Sabedoria-em-si-
mesma[273]. Escoto tomou para sua doutrina copiosos empréstimos do Pseudo-Dionisio e de
Máximo, e parece que se esforçou em reconciliar sua especulação filosófica com a teología cristã
ortodoxa; mas sua linguagem tende a dar a impressão de um esforço excessivo, e parece como
se seu pensamento, apesar de suas intenções ortodoxas, se inclinasse a uma forma de panteísmo
filosófico. A ortodoxia de suas intenções parece bastante clara pelas frequentes cautelae de seu
estilo.

Há real e ontológicamente uma pluralidad de praedestinationes no Verbo? Escoto Eriúgena


contesta negativamente[274]. Os números procedem das macacas ou unidade, e em sua procissão
multiplicam-se e recebem uma ordem. Mas considerados em sua origem, na mónada, não
formam uma pluralidad, senão que estão indivisos uns de outros. Assim, as causas primordiais,
segundo existem no Verbo, são uma e não realmente diferentes, embora em seus efeitos, que
são uma pluralidad ordenada, são múltiplas. A mónada não se aminora nem padece mudança ou
diminuição pela derivação de seus efeitos, ainda que, desde outro ponto de vista, estes estão
contidos naquela. Aqui o Eriúgena adere-se no ponto de vista neoplatónico, segundo o qual o
princípio não sofre mudança nem diminuição alguma pela emanação do efeito, e parece que sua
filosofia experimenta a mesma tensão que pode ser observado no neoplatonismo, a saber, a
tensão entre uma teoria emanacionista e a negativa a admitir que a emanação ou procissão
aminore a integridade do princípio.
6. As criaturas como participações e teofanías.

A Natura quae creatur et non creat, consiste nas criaturas, exteriores a Deus, que formam o
mundo da natureza no sentido limitado desta palavra, um mundo feito por Deus a partir da nada.
João Escoto chama a essas criaturas “participações”, e afirma que participam nas causas
primordiais, bem como estas a sua vez participam imediatamente em Deus[275]. As causas
primordiais, pois, olham para acima, para o princípio último, e para abaixo para seus efeitos
múltiplos, o qual é evidentemente uma doutrina que cheira à teoria neoplatónica da emanação.
“Participação” significa, no entanto, “derivação a partir de”, e interpretando o grego iíetoxtÍ ou
iígtouoícx no sentido de lisraéxouaa, ou jjGTaouaia (pós-essentia, ou secunda essentia), o
Eriúgena diz que a participação não é senão a derivação de uma essência segunda a partir de
uma essência mais elevada[276]. Bem como a água brota de uma fonte e cai no leito do rio, assim
a bondade, a vida, a essência, etc., de Deus, que estão na fonte de todas as coisas, fluem antes
de mais nada nas causas primordiais e as fazem ser, e depois discurren, através destas, para seus
efeitos[277]. Trata-se de uma metáfora claramente emanacionista, e Escoto Eriúgena conclui que
Deus é todo quanto verdadeiramente é, já que Ele faz todas as coisas e se faz em todas as coisas,
“como diz san Dionisio o Areopagita”[278]. A bondade divina difunde-se progressivamente
através do universo da criação, de tal modo que “faz todas as coisas e se faz em todas as coisas
e é todas as coisas”[279]. Isso tem o exato som de uma doutrina panteísta de tipo emanativo; mas
Escoto Eriúgena mantém igualmente que a bondade divina criou todas as coisas a partir da nada,
e explica que ex nihilo não supõe a preexistencia de material algum, formado ou relatório, ao
que pudesse ser chamado nihil; nihil significa mais bem a negación ou ausência de toda essência
ou substância, e de todas as coisas que foram criadas. O Criador não fez o mundo ex aliquo,
senão de omnino nihilo.[280] Também aqui, pois, o Eriúgena trata de combinar a doutrina cristã
da criação e do relacionamento das criaturas a Deus com a filosofia emanacionista neoplatónica,
e essa tentativa de combinação é o que dá razão à diferença de interpretações, segundo se
considere como mais fundamental um ou outro, dos dois elementos de seu pensamento.

Essa tensão faz-se ainda mais clara pela seguinte consideração. As criaturas constituem não
somente uma “participação” da bondade divina, senão também a teofanía ou automanifestación
divina. Todos os objetos do intelecto ou da sensação são “o aparecimento do que não aparece, a
manifestação do oculto, a afirmação do negado (referência à via negativa), o entendimento do
incomprensible, a expressão do inefable, a aproximação do inaproximable, o entendimento do
ininteligible, o corpo do incorpóreo, a essência do superesencial, a forma do informe”, etc.[281]
Bem como a mente humana, em si invisível, se faz visível ou manifesta nas palavras; escritos e
gestos, assim o Deus invisível e incomprensible se revela a si mesmo na natureza, a qual é, em
consequência, uma verdadeira teofanía. Agora bem, se a criação é uma teofanía, uma revelação
da bondade divina, que é em si mesma incomprensible, invisível e oculta, não sugere tal coisa
uma nova interpretação do nihilum do que procede a criação? Consequentemente, Escoto
Eriúgena explica em um bilhete posterior[282] que nihilum significa “a inefable, incomprensible
e inacessível clareza da bondade divina”, porque aquilo que é incomprensible possa, per
exeellentiam, ser chamado nihilum, “nada”, de maneira que quando Deus começa a aparecer em
suas teofanías pode ser dito que procede ex nihilo in aliquid. Pode ser dito que a bondade divina
considerada em si mesma é omnino nihil, embora na criação chega a ser, “já que é a essência do
universo inteiro”. Seria em verdade um anacronismo adscribir a Escoto Eriúgena uma doutrina
do Absoluto, e concluir que o que quer dizer é que Deus, considerado em si mesmo aparte das
“teofanías”, é uma abstração lógica; mas parece que duas linhas diferentes de pensamento estão
presentes em seus ensinos sobre a criação, a saber, a doutrina cristã da criação livre “no tempo”
e a doutrina neoplatónica de uma difusão necessária da bondade divina por via de “emanação”.
Provavelmente ele tentou manter a doutrina cristã, mas ao mesmo tempo considerou que dava
uma legítima explicação filosófica da mesma. Tal atitude resultaria, sem dúvida, facilitada pelo
fato de que em sua época não existia uma clara distinção entre teología e filosofia e as respetivas
esferas de uma e outra, com a consequência de que um pensador podia, sem ser o que hoje
chamaríamos um racionalista, aceitar um dogma revelado como o da Trinidad, e proceder a
seguir com a maior boa fé a “o explicar” ou o deduzir, de tal modo que a explicação mudasse
praticamente o dogma em outra coisa diferente. Se queremos chamar a João Escoto Erígena um
hegeliano dantes de Hegel, devemos recordar que é extraordinariamente pouco verosímil que
ele se desse conta do que estava fazendo.

O relacionamento preciso da natureza criada a Deus na filosofia de Escoto Eriúgena não é


questão fácil de determinar. Que o mundo seja eterno em um sentido, a saber, em seus rationes,
nas causas primordiais, na vontade criadora de Deus, não ocasiona dificuldade alguma, e se o
autor, quando sustenta que o mundo é ao mesmo tempo eterno e criado, quisesse dizer
simplesmente que enquanto preconocido e querido por Deus é eterno, enquanto enquanto fato é
temporário e exterior a Deus, não teria de que se surpreender; mas Escoto mantém que o mundo
não está fora de Deus, e que é ao mesmo tempo eterno e criado dentro de Deus[283]. Pelo que
respecta ao primeiro ponto, que o mundo não é extra Deum, deve ser entendido em termos da
teoria da participação e a “assunção” (est igitur participatio divinae essentiae assumptio)[284].
Como as criaturas derivam de Deus e devem a Deus toda a realidade que possuem, aparte de
Deus são nada, de maneira que, nesse sentido, pode ser dito que não há nada fora de Deus: se a
atividade divina fosse retirada, as criaturas cessariam de ser. Mas devemos ir mais adiante[285].
Deus viu desde a eternidade todo o que O queria criar. Agora bem, se Deus viu às criaturas desde
toda a eternidade, também as fez desde toda a eternidade, já que visão e operação são uma
mesma coisa em Deus. Ademais, bem como viu as criaturas em si mesmo, as fez em si mesmo.
Devemos concluir, pois, que Deus e as criaturas não são diferentes, senão um e o mesmo (unum
et vão ipsum), a criatura subsistindo em Deus, e Deus sendo criado na criatura, “de uma
maravilhosa e inefable maneira”. Deus, pois, “contém e compreende em Si mesmo a natureza
de todas as coisas sensíveis, não no sentido de que contenha de Si mesmo algo aparte de Si
mesmo, senão no sentido de que O é substancialmente todo o que O contém, e a substância de
todas as coisas visíveis é criada em O”[286]. É nesse preciso ponto onde Escoto Eriúgena oferece
sua interpretação da “nada”, a partir da qual procedem as criaturas, como a bondade divina[287],
e conclui que Deus é todas as coisas, que a partir da Superesencialidad de sua natureza (in qua
dieitur non essé), é criado por si mesmo nas causas primordiais, e depois nos efeitos das causas
primordiais, nas “teofanías”[288]. Finalmente, ao termo da ordem natural, Deus atrai a todas as
coisas de regresso a si mesmo à natureza divina da que procedem, sendo assim Causa Primeira
e Causa Final, omnia in ônibus.

Pode ser proposto a objeción de que Escoto diz em primeiro lugar que Deus é Natura quae
criar et non creatur, e depois procede a identificar com Deus a Natura quae creator et non creat
como podem ser reconciliado essas duas posições? Se consideramos a natureza divina como é
em si mesma, vemos que é sem causa, ávapxos e ccvatrios;[289] mas ao mesmo tempo é a causa
de todas as criaturas: temos, pois, direito a chamá-la “a Natureza que cria e não é criada”. Desde
outro ponto de vista, considerado Deus como Causa Final, como termo do ritmo do processo
cósmico, pode lhe lhe chamar “Natureza que nem cria nem é criada”. Por outra parte,
considerado como saindo das escondidas profundidades de sua natureza e começando a
“aparecer”, aparece em primeiro lugar nas causas primordiais ou rationes aeternae. Estas são
idênticas ao Verbo, que as contém, de maneira que ao “criar” as causas primordiais, ou
princípios das essências, Deus se aparece a si mesmo, se faz consciente de si mesmo e se cria a
si mesmo, isto é, engendra o Verbo e as rationes contidas no Verbo. Deus é assim “Natureza que
cria e é criada”. No segundo estádio da teofanía ou procissão divina, Deus chega a ser nos efeitos
das causas primordiais, e é desse modo “Natureza que é criada”, enquanto, como esses efeitos
têm um termo e incluem em conjunto a todos os efeitos criados, de tal maneira que não há já
mais efeitos, Deus é também “Natureza que não cria”.[290]

7. As criaturas estão em Deus.

A explicação alegórica dada por Escoto do relato bíblico dos seis dias da criação[291], que
ele explica em termos de sua própria filosofia, lhe leva, no livro quarto, a sua doutrina do
homem. Podemos dizer do homem que é um animal, mas podemos dizer também que não é um
animal[292], já que se compartilha com os animais as funções de nutrición, sensação, etc., tem
também a faculdade da razão, que lhe é peculiar e lhe eleva acima de todos os animais. No
entanto, não há no homem duas almas, uma alma animal e uma alma racional; há uma só alma
racional, que é simples e está inteiramente presente a todas as partes do corpo, realizando suas
diversas funções. Escoto Eriúgena favorece, pois, a definição do homem como animal rationale,
entendendo por animal o gênero, e por rationale a diferença específica. Por outra parte, a alma
humana está feita a imagem de Deus, é semelhante a Deus, e essa semelhança a Deus expressa
a verdadeira substância e essência do homem. Tal como existe na cada um dos homens reais, é
um efeito; tal como existe em Deus, é uma causa primordial, embora esses são somente dois
modos de considerar a mesma coisa[293]. Desde esse ponto de vista, o homem pode ser definido
como Notio quaedam intellectualis in mente divina aeternaliter facta.[294]

O fato de que essa substância do homem, a semelhança a Deus ou participação em Deus,


existe, pode ser conhecido pela mente humana, do mesmo modo que a mente humana pode
conhecer que Deus existe, mas a mente humana não pode conhecer o que é sua substância, o
mesmo que não pode conhecer o que é Deus. Por conseguinte, enquanto, desde um ponto de
vista, o homem é definible, desde outro ponto de vista é indefinible, já que a mente ou razão do
homem está feita a imagem de Deus, e a imagem, como o mesmo Deus, ultrapassa nosso poder
de entendimento. Nessa discussão da definição do homem podemos discernir elementos
aristotélicos, e também elementos neoplatónicos e cristãos, que dão origem a diferentes atitudes
ou modos de ver a questão.

Escoto Eriúgena sublinha o fato de que o homem é o microcosmos da criação, já que resume
em si mesmo o mundo material e o mundo espiritual, compartilhando com os vegetais as
faculdades de crescimento e nutrición, com os animais as faculdades de sensação e reação
emocional, com os anjos a faculdade do entendimento; o homem é realmente o que Posidonio
chamou o vínculo ou Vos seca, o elo entre o material e o espiritual, entre a criação visível e a
invisível. Desde esse ponto de vista pode ser dito que todo gênero animal está no homem, mais
bem que o homem esteja no gênero animal.[295]

8. Natureza do homem.

O quarto estádio do processo da Natureza é o da Natura quae nec creat nec creatur, a saber,
Deus como o termo e fim de todas as coisas, Deus tudo em tudo. Esse estádio é o do regresso a
Deus, o movimento correspondente ao da procissão a partir de Deus, porque há um ritmo na
vida da Natureza, e o mundo das criaturas que procede das causas primordiais, regressará a ditas
causas. “Porque o final de todo o movimento é seu princípio, já que não é terminado por outro
fim senão por seu princípio, a partir do qual começa o movimento e ao que constantemente
deseja regressar e atingir nele o repouso. E isso deve ser entendido não somente das partes do
mundo sensível, senão do mundo inteiro. Seu fim é seu princípio, o que o mundo deseja, e ao
encontrar o qual deixará de ser, não por perecer sua substância, senão por seu regresso às ideias
(rationes), das quais procede.”[296] O processo é, pois, um processo cósmico, e afeta a toda a
criação, embora a matéria mutable e não espiritualizada, que Escoto Eriúgena, seguindo a san
Gregorio de Nisa, concebia como um complexo de acidentes e como aparência[297], perecerá.

9. Regresso de todas as coisas a Deus.

Ao lado do processo cósmico da criação como um tudo, há um tema especificamente cristão


(embora Escoto, com certa frequência, o “racionaliza” algo), o do regresso do homem a Deus.
O homem caído é levado de novo a Deus pelo Logos encarnado, que assumiu a natureza humana
e isentado a todos os homens nessa natureza humana; e o Eriúgena sublinha a solidariedade da
humanidade tanto na queda de Adán como na resurrección de Cristo. Cristo leva de novo a
humanidade a Deus, embora não todos se unem a Deus no mesmo grau, porque, embora Cristo
isentou a toda a natureza humana, “a alguns lhes restaura ao primeiro estado da natureza humana,
enquanto a outros lhes deifica acima da natureza humana”; no entanto, em ninguém, exceto no
mesmo Cristo, se une substancialmente a natureza humana com a Divinidad[298]. Escoto afirma
assim o caráter único da Encarnación e do relacionamento da natureza humana de Cristo à
Divinidad, embora, quando apresenta as etapas do regresso da natureza humana a Deus, parece
se manifestar outro ponto de vista menos ortodoxo. Tais etapas são:[299] 1) a dissolução do corpo
humano nos quatro elementos do mundo sensíveis; 2) a resurrección do corpo; 3) a mudança do
corpo em espírito; 4) o regresso da natureza, em sua totalidade, às causas primordiais eternas e
inmutables, e 5) o regresso da natureza e das causas primordiais a Deus. “Porque Deus será tudo
em tudo, quando nada exista, senão só Deus.” No entanto, embora a primeira vista esse último
modo de ver parece inteiramente inconsecuente com a teología ortodoxa, e, de modo especial,
com a posição única de Cristo, está claro que Escoto Eriúgena não pretende afirmar uma real
absorción panteísta em Deus, já que diz a seguir que não se refere a um perecer da substância
individual, senão a sua elevação. Se vale do exemplo do ferro esquentado até a fusão, e observa
que, embora pode ser dito que o ferro foi transmutado em fogo, a substância do ferro permanece.
Assim, quando, por exemplo, diz que o corpo humano se muda em espírito, ao que se refere é à
glorificación ou “espiritualización” do corpo humano não a uma espécie de transubstanciación.
Ademais, deve ser recordado que João Escoto afirma expressamente que baseia seus ensinos na
doutrina de san Gregorio de Nisa e de seu comentarista Máximo, pelo que ditas ensinos devem
ser entendidas à luz de tal afirmação. E para que não se pense, diz, que esquece inteiramente aos
latinos em favor dos gregos, acrescenta o depoimento de Santo Ambrosio. Embora os céus e a
terra perecerão e passarão (interpretando-se o perecer como um reditus in causas, que significa
o desaparecimento do mundo material engendrado), isso não significa que as almas individuais
dos homens, em seu reditus in causas, deixem de existir; seu deificatio não significa seu
absorción substancial em Deus mais do que a penetração do ar pela luz significa a destruição ou
transubstanciación do ar. O Eriúgena é perfeitamente claro nesse ponto.

O fato é que no caso do “regresso” cósmico, como em todo seu sistema, Escoto Eriúgena
trata de combinar o ensino das Escrituras e dos Pais com a especulação filosófica da tradição
neoplatónica; ou, mais bem, de expressar a Weltansehauung cristã em termos de dita
especulação. Como considera a sabedoria cristã como uma totalidade, sem nenhuma distinção
clara entre a teología revelada e a filosofia, a aplicação do método especulativo de Escoto
significa necessariamente uma racionalização de facto em muitas ocasiões, qualquer que fosse
a ortodoxia de suas intenções. Por exemplo, embora ele faz questão do fato de que o regresso a
Deus não significa a aniquilación ou a completa absorción do ser humano individual, e embora
se expressa com uma perfeita clareza a propósito desse ponto, sua atitude para a matéria como
o termo da procissão divina descendente lhe leva, no entanto, a dizer[300] que dantes da Queda
os seres humanos não eram sexualmente diferenciados, e que após a resurrección retornarão
àquele estado (opinião em apoio da qual vai a san Pablo, san Gregorio e Máximo). O homem,
de não ter caído, seria sexualmente indiferença do, e na causa primordial a natureza humana não
é sexualmente diferenciada; o reditus in causam implica, pois, um regresso ao estado da natureza
humana in causa, e uma libertação do estado subsiguiente à Queda. Mas o reditus in causam é
uma etapa no processo cósmico da Natureza, de modo que Escoto Eriúgena tem de manter que
a resurrección do corpo tem local por natureza, natura et non per gratiam,[301] embora apela em
apoio de tal tese a san Gregorio de Nisa, Máximo e san Epifanio. Por outra parte, é verdadeiro,
teologicamente ao menos, que algo é atribuible à graça, e Escoto, em consequência, atribui a
deificatio, que não é atingida por todos os seres humanos, ao livre dom e disposição de Deus, à
graça. Esse é um exemplo de sua tentativa de combinar a revelação com as exigências de seu
sistema especulativo, uma tentativa para o qual encontrou, sem dúvida, apoio nos escritos de
anteriores autores cristãos. Por uma parte, João Escoto, devido a suas intenções cristãs, deve
atribuir a resurrección, em uma feição ao menos, à livre graça de Deus, operando através de
Cristo, enquanto, por outra parte, sua doutrina filosófica do regresso de todas as coisas a Deus
significa que tem de apresentar a resurrección, em algum grau, como um processo natural e
necessário, não somente porque a natureza humana como tal tem de regressar a sua causa, senão
também porque toda criação tem de regressar a sua causa e perdurar eternamente, e isso o faz
efetivamente enquanto contida no homem, o microcosmos.[302]

10. O castigo eterno à luz do regresso cósmico.

Mas se tem de ter local um regresso cósmico a Deus em e através da natureza humana, de
modo que Deus, como diz san Pablo, seja “tudo em tudo”, como é possível manter a doutrina
teologicamente ortodoxa do castigo eterno dos condenados? As Escrituras ensinam que os anjos
caídos e os seres humanos que morrem impenitentes serão eternamente castigados, enquanto,
por outra parte, a razão ensina que o mau não pode ser sem fim, já que Deus será tudo em tudo,
e o mau é diametralmente oposto a Deus, que é bondade[303]. Como podem ser reconciliado
essas duas posições sem recusar ou bem a autoridade ou bem a razão? A resposta de Escoto
Eriúgena[304] é ingeniosa, e proporciona um bom exemplo de suas “racionalizações”. Nada do
que Deus fez pode ser mau; portanto, as substâncias ou naturezas dos demônios e dos homens
maus devem ser boas. Escoto cita ao Pseudo-Dionisio nesse contexto. Os demônios e os homens
maus nunca sofrerão, pois, aniquilación. Todo quanto Deus fez retornará a Deus, e toda
“natureza” estará contida em Deus, incluída a natureza humana, de sorte que é impossível que a
natureza humana possa sofrer castigo eterno. Que dizer, então, dos castigos descritos nas
Escrituras? Em primeiro lugar, esses castigos não poderiam ser de caráter corpóreo, ou material,
e, em segundo local, somente podem afetar àquilo que Deus não fez e que, nesse sentido, está
“fora” da “natureza”. Agora bem, Deus não fez a má vontade dos demônios ou dos homens
maus, e isso é o que será castigado. Mas se todas as coisas têm de regressar a Deus, e Deus tem
do ser tudo em tudo, como pode o castigo estar conteúdo em Deus? Ademais, se desapareceu a
malícia e toda a impiedad, que fica para ser castigado? O castigo deve consistir em que Deus
impedirá eternamente a tendência da vontade a fixar nas imagens, conservadas na memória, dos
objetos desejados sobre a terra. Deus será assim tudo em tudo, e todo o mau perecerá, mas o
inicuo será eternamente castigado. É óbvio, no entanto, que, desde o ponto de vista da teología
ortodoxa, “inicuo” e “castigado” têm de se pôr entre aspas, porque Escoto racionalizou o ensino
das Escrituras de maneira que satisfaça as exigências de seu sistema filosófico[305]. Toda
natureza humana, todos os homens, sem exceção, ressuscitarão com corpos espíritualizados e a
posse plena de seus bens naturais, embora somente os eleitos desfrutarão da “deificación”.[306]

A conclusão é, pois, que a natureza divina é o fim e termo de todas as coisas, que regressarão
a suas rationes aeternae e morarão ali, “deixando de ser chamadas pelo nome de criaturas”,
porque Deus será tudo em tudo, “e toda criatura será jogada às sombras, isto é, mudada em Deus,
como as estrelas ao sair o sol”.[307]

11. Interpretação do sistema de João Escoto.

Embora o De divisione naturae não surtió os efeitos que merecia seu sobresaliente qualidade
de sistema metafísico, foi utilizado por uma série de escritores medievais, desde Remigio de
Auxerre a Amalrieo de Bene, passando por Berengario, Anselmo de Laon, Guilherme de
Malmesbury, que elogiou a obra embora desaprovasse a predilección de João Escoto pelos
autores gregos, e Honorio de Autun; e no De Intelligentiis do Pseudo-Avicena, escrito em
meados do século XII ou pouco mais tarde, encontram-se muitos materiais procedentes daquele.
Não obstante, o fato de que os albigenses se apoiassem na autoridade do De divisione naturae,
e o de que Amalrieo de Bene (no final do século XII) utilizasse a doutrina do Eriúgena em um
sentido panteísta, conduziu à condenação da obra, em 1225, pelo papa Honorio III, que ordenou
que fosse queimada, conquanto a ordem distó muito de se cumprir em todos os casos. Essa
condenação do De divisione naturae, e a interpretação que levou a dita condenación, suscita
naturalmente a questão de se Escoto Eriúgena foi ou não panteísta.

Já dei a conhecer dantes minha opinião de que Eriúgena foi ortodoxo em suas intenções;
mas há vários pontos que podem ser mencionados por via de argumentación sumaria em apoio
dessa opinião. Em primeiro lugar, João Escoto bebe copiosamente nos escritos e ideias de
autores aos que indubitavelmente via como ortodoxos,' e com cujas ideias pensava que seu
próprio pensamento estava em harmonia. Por exemplo, Escoto faz um extenso uso de san
Gregorio de Nisa, do Pseudo-Dionisio (a quem ele achava san Dionisio o Areopagita), e, para
que não parecesse que esquecia aos latinos, cita a Santo Agostinho e a Santo Ambrosio em favor
de suas opiniões. Ademais, João Escoto considerava que sua especulação estava fundada nas
Escrituras mesmas. Por exemplo, a teoria do quarto estádio da Natureza, Deus omnia in ônibus,
baseia-se nas palavras de san Pablo:[308] “E quando todas as coisas lhe fossem sujeitas, então
também o mesmo Filho se sujeitará àquele que sujeitou a ele todas as coisas, de modo que Deus
possa ser tudo em tudo”; e a doutrina do corpo “fazendo-se espírito” na resurrección está baseada
na fórmula paulina de que o corpo é semeado na corrução e ressuscitado na incorrupción, que o
corpo ressuscitado é um corpo “espiritual”. Igualmente, João Escoto saca do capítulo primeiro
do evangelho de san João a concepção do Logos através do qual foram feitas todas as coisas,
enquanto o tema da deificatio era comum nos escritos dos Pais.

Mas, ainda que João Escoto escrevesse como se seu sistema estivesse fundado na Escritura
e na Tradição, não poderia ser que racionalizasse conscientemente o texto da Escritura, que, para
o dizer cruamente, utilizasse umas palavras para significar uma coisa diferente? Talvez não
diz[309] que a autoridade procede da razão verdadeira, e nunca ao inverso, a razão da autoridade;
que toda autoridade que não é confirmada pela verdadeira razão parece débil; que a verdadeira
razão não precisa a confirmação de autoridade alguma, e que a autoridade não é outra coisa que
a verdade encontrada pelo poder da razão, e transmitida pelos Pais em seus escritos para uso da
posteridad? e não indica isso que ele não concedia importância alguma à autoridade? Parece-me
que, a julgar pelo contexto, quando Escoto Eriúgena fala aqui de “autoridade”, não se refere às
palavras da Escritura, senão aos ensinos dos Pais e à interpretação que aqueles dava às palavras
da Escritura. Desde depois, embora é verdade que a autoridade deve ser apoiado na razão, no
sentido de que a autoridade deve dispor de boas credenciais, a afirmação de Escoto Eriúgena no
sentido de que a autoridade não é outra coisa que a verdade encontrada pela razão e transmitida
pelos Pais, é, em seu tenor literal, inadmissível desde o ponto de vista teológico (quero dizer, se
julgamos de acordo com a doutrina ortodoxa da Tradição); mas o que João Escoto parece querer
dizer é, não que a doutrina da Trinidad, por exemplo, seja simplesmente uma verdade encontrada
pela razão e não revelada, senão que a proposta “explicação” ou desenvolvimento do dogma
feito por tal ou qual Pai é simplesmente o resultado do esforço racional de dito Pai, e não é
definitiva. Escoto não tenta sugerir que o dado do dogma, segundo se encontra na Escritura e é
preservado, por exemplo, por Santo Agostinho, possa ser legitimamente posto em questão, senão
mais bem que o desenvolvimento intelectual do dogma oferecido por Santo Agostinho, embora
digno de respeito, é obra da razão, e não pode ser situado a igual nível que o dogma mesmo. A
posição do Eriúgena é, pois, esta: Se san Pablo diz que Deus será omnia in ônibus, isso é uma
verdade revelada, mas quando se trata de decidir o que san Pablo entendia por essa formulación,
e como deva esta se entender precisamente, a razão constitui o mais alto tribunal de apelação.
Não trato de sugerir que essa atitude seja teologicamente aceitável; minha intenção é mais bem
que, seja ou não aceitável sua verdadeira opinião, o que faz Escoto, não é pôr em questão um
dogma como tal, nem pretender o direito do negar, senão pretender o direito do interpretar, e
que em isso consiste sua “racionalização”. Não diz uma coisa e pensa outra quando apela à
Escritura, porque sinceramente acha que os dados da revelação têm de ser interpretados
racionalmente, e, poderíamos dizer, filosoficamente. Isso se deve em parte ao fato de que ele
não faz uma clara distinção entre teología e filosofia. Seu sistema pressupõe a “sabedoria cristã”
(incluídas verdades descubribles pela só razão, por exemplo, a existência de Deus, e verdades
reveladas, mas não descubribles pela só razão, por exemplo, a trinidad de pessoas na Divinidad)
e é uma tentativa especulativa de exibir a sabedoria cristã como um todo orgânico e interligado,
sem fazer nenhuma distinção clara entre as esferas da filosofia e da revelação, e uma tentativa
assim supõe necessariamente uma verdadeira raciónalización. Repito que não estou tratando de
defender a racionalização de João Escoto Erígena, senão explicar sua atitude, e minha tese
consiste em que é um erro interpretar dita racionalização como se fosse posterior à clara
distinção entre filosofia e teología; a atitude de Escoto não difere essencialmente da de
posteriores teólogos medievais que tentaram provar a Trinidad rationibus necessariis. Se o
Eriúgena fosse conscientemente um “filósofo” no sentido estrito da palavra, e nada mais que
isso, teríamos que lhe chamar racionalista no sentido moderno; mas era juntamente (ou
confusamente, se assim se prefere) filósofo e teólogo, e sua racionalização era,
psicologicamente, perfeitamente compatível com uma crença na revelação. Por conseguinte,
quando ele diz[310] que não quer que pareça que se resiste ao Apóstolo ou ao depoimento
summae ac sanctae auctoritatis, é completamente sincero. Em realidade, sua verdadeira atitude
fica admiravelmente indicada nesta fórmula sua:[311] “não nos corresponde julgar das opiniões
dos santos Pais, senão as aceitar com piedade e reverência, embora não se nos proíbe escolher
(entre suas opiniões) a que pareça à razão convir melhor com as palavras divinas”. João Escoto
aceita, por exemplo, a doutrina do castigo eterno, porque é uma doutrina revelada, e aceita-a
sinceramente; mas não considera que isso lhe impeça tentar explicar a doutrina de tal modo que
possa ser adaptado ao resto de seu sistema, um sistema que ele vê como fundamentalmente
baseado na revelação.

Pode parecer que a discussão nos fez apartar de nosso tema, mas não é assim. Por exemplo,
a revelação, o dogma cristão, ensina claramente que o mundo foi feito por Deus a partir da nada
e que as criaturas não são Deus. Agora bem, o sistema geral de João Escoto requer que as
criaturas regressem a Deus e que Deus seja tudo em tudo. Considerando que ambas verdades se
fundam no ensino divino, João Escoto tem que conciliarias racionalmente, de tal modo que o
reditus in Deum não conduza à conclusão à que poderia parecer que conduz, a saber, à absorción
panteísta, e que a distinção entre Deus e as criaturas, não contradiga a fórmula paulina de que
Deus será tudo em tudo. O processo de conciliação pode envolver-lhe no que os teólogos
tomistas chamariam “raciónalización”, mas seus cautelae, por exemplo, que as criaturas
regressam a Deus e “se fazem” Deus não ita ut non sint, senão “ut melius sint”, não são
obsequios para obter a venia dos teólogos nem tentativas de encobrir o verdadeiro pensamento,
senão expressões sinceras do desejo de João Escoto de manter o ensino cristão ou o que ele
considera, acertada ou equivocadamente, o ensino cristão.

Que há uma tensão entre os elementos cristãos e os neoplatónicos no pensamento do


Eriúgena é algo que já indicámos, mas não está a mais o sublinhar de novo, pela importância
que tem para a questão de sua “racionalismo”. De acordo com a tradição neoplatónica herdada
através do Pseudo-Dionisio, Escoto mantinha[312] que Deus em si mesmo, Natura quae creat et
non creatur, é impenetrável a si mesmo, desconhecido para si mesmo, enquanto infinito e
superesencial, e que se faz luminoso para si mesmo somente em seus teofanías. Isso é, sem
dúvida, um eco da doutrina neoplatónica de que o Um, a Divinidad última, está para além do
pensamento, para além da autoconciencia, já que o pensamento e a autoconciencia implicam
uma dualidad sujeito-objeto. Agora bem, que Deus em si mesmo é incomprensible à mente
humana, é certamente um dogma cristão, mas que Deus não é luminoso para si mesmo, não é
um ensino do cristianismo. Por conseguinte, Escoto Eriúgena tem de conciliar de algum modo
as duas posições, se quer manter a uma e a outra, e tenta que seja assim fazendo com que a
primeira “teofanía” seja a emergência do Logos que contém as causas primordiais, de maneira
que no Logos e através do Logos Deus se faz (embora não no tempo) autoconsciente, aparecendo
a si mesmo. O Logos corresponde assim ao Nous neoplatónico, e uma ración aliz ación brota do
desejo de conservar juntos a doutrina cristã e os princípios que Escoto vê como a verdadeira
filosofia. O desejo de conservar a doutrina cristã é bastante sincero, mas uma tensão entre os
dois elementos é inevitável. Se toma-se uma série de afirmações isoladas de João Escoto, pode
ser dito que foi panteísta ou que foi teísta. Por exemplo, a afirmação de que a distinção entre os
estádios segundo e terceiro da Natureza é devida unicamente às forma do razonamiento
humano[313] é, considerada em si mesma, claramente panteísta, enquanto a afirmação de que a
distinção substancial entre Deus e as criaturas se conserva sempre, é claramente teísta. Pode
parecer que poderíamos optar, sem cualificaciones, por uma ou outra série, e essa atitude é a que
deu origem à noção de que João Escoto Erígena foi um panteísta consciente, que fez concessões
verbais à ortodoxia sem deixar de pensar de um modo diferente ao sugerido por ditas concessões.
Mas sim reconhece-se que foi um cristão sincero que tentou, empero, conciliar o ensino cristão
com uma filosofia predominantemente neoplatónica, ou, mais bem, expressar a sabedoria cristã
em única estrutura de pensamento que tinha então disponível, e que de fato era
predominantemente neoplatónica, então pode ser reconhecido também que, apesar da tensão
inevitável e da tendência a racionalizar o dogma cristão, João Escoto conseguiu uma conciliação
satisfatória no que diz respeito ao ponto de vista subjetivo do filósofo. Desde depois, isso não
altera o fato de que não poucos enunciados, se se tomam isoladamente, afirmam uma doutrina
panteísta, nem de que outros enunciados são irreconciliables com o ensino teológica ortodoxa,
em questões tais como o castigo eterno; e foi em vista de tais enunciados como o De divisione
naturae pelo que foi condenado pela autoridade eclesiástica. Mas, seja ou não ortodoxa, a obra
testemunha uma mente aguda e poderosa, a mente de um filósofo especulativo que sobressai
extraordinariamente entre todos os pensadores de sua época.
Parte III
Nos séculos X, XI & XII
Capítulo XIV
O problema dos universais

1. Situação que segue à morte de Carlos Magno.

Poderia ser pensado que o reviver das letras e da erudición baixo Carlos Magno conduzisse
a um desenvolvimento gradual e progressivo da filosofia, e (uma vez que se tinha cuidado da
conservação do que já se possuía) que os pensadores pudesse estender o conhecimento e
progredir por uma senda mais especulativa, especialmente após que a Europa ocidental contava
já com um exemplo de especulação e sistematización filosófica, o de João Escoto Erígena. De
fato, no entanto, não foi esse o caso, já que fatores históricos externos à esfera da filosofia
sumiram o Império de Carlos Magno em uma nova Idade Escura, a Idade Escura do século x, e
desmentiram a promessa da renascença carolingio.

O progresso cultural dependia em certa medida da manutenção da tendência à centralização


que era patente durante o reinado de Carlos Magno. Mas após a morte deste, o império se dividiu
entre seus descendentes e esta divisão foi acompanhada pelo crescimento do feudalismo, isto é,
pela descentralização. Como o único modo de recompensar aos nobres era praticamente a
doação de terras, os senhores foram se fazendo a cada vez mais independentes da monarquia, e
seus interesses divergieron ou chocaram. Os eclesiásticos de hierarquia mais elevada
converteram-se em senhores feudales, a vida monástica degradou-se (por exemplo, a efeitos da
prática comum da nomeação de abades laicos), os obispados utilizaram-se como médios para
honrar e recompensar aos servidores dos reis. O papado, que podia ter tentado frear e remediar
o empeoramiento das condições na França, se encontrava a sua vez em uma muito profunda
decadência de seu prestígio espiritual e moral, e, como a educação e o ensino estavam
principalmente em mãos de monges e eclesiásticos, o resultado inevitável da quebra do Império
de Carlos Magno foi o decaimiento da atividade docente e educativa. Não se iniciou uma
reforma até o estabelecimento de Cluny, no ano 910, e a influência da mesma reforma
cluniacense só se fez sentir gradualmente. San Dunstan, que tinha estado no mosteiro
cluniacense de Gante, introduziu na Inglaterra os ideais de Cluny.

Além dos fatores internos que impediram que o fruto da renascença carolingio chegasse a
madurar (fatores tais como a desintegração política que conduziu no século x à transferência da
coroa imperial da França a Germania, a decadência da vida monástica e eclesiástica, e a
degradação do papado), entraram também em ação fatores externos como os ataques dos
normandos durante os séculos 9 e 10 que destruíram centros de riqueza e cultura e detiveram o
desenvolvimento da civilização, bem como também os ataques dos sarracenos e mongoles. A
decadência interna, combinada com perigos e ataques externos, fez impossível o progresso
cultural. Conservar, ou tentar fazê-lo, foi o único caminho practicable: o progresso na erudición
e na filosofia ficava uma vez mais para o futuro. O pouco interesse filosófico existente centrou-
se principalmente em torno de questões dialéticas, e particularmente em torno do problema dos
universais, para a discussão do qual o ponto de partida foi fornecido por certos textos de Porfirio
e Boecio.

2. Origem da discussão em textos de Porfirio e Boecio.

Boecio, em seu Comentário à Eisagoge de Porfirio[314], cita um bilhete deste autor no sentido
de que pelo momento não entra na questão de se os gêneros e as espécies são entidades
subsistentes ou se consistem só em conceitos; e, no caso de que subsistam, se são materiais ou
imateriais, e, finalmente, se estão ou não separados dos objetos sensíveis, matérias todas que,
segundo Porfirio, não podem ser tratado em uma introdução. Mas Boecio, por sua conta, procede
a tratar a questão, observando antes de mais nada a dificuldade desta e a necessidade da
considerar com cuidado, e indicando depois que há dois modos nos quais uma ideia pode ser
formado de tal maneira que seu conteúdo não se encontre em objetos extramentales
precisamente tal e como existe na ideia. Por exemplo, podemos unir arbitrariamente homem e
cavalo para formar a ideia de centauro, combinando objetos que a natureza não permite que se
combinem em unidade, e tais ideias arbitrariamente construídas são “falsas”. Pelo contrário, se
formamo-nos a ideia de uma linha, isto é, uma mera linha tal como a considera o geómetra,
então, embora seja verdade que não existe uma mera linha, por si mesma, na realidade
extramental, a ideia não é “falsa”, já que nos corpos se dão linhas, e todo o que fizemos é isolar
a linha e a considerar em abstração. A composição (como no caso da composição de homem e
cavalo para formar um centauro) produz uma ideia falsa, enquanto a abstração produz uma ideia
que é verdadeira, embora a coisa concebida não exista extramentalmente em estado de abstração
ou separação.

Agora bem, as ideias dos gêneros e as espécies são ideias do segundo tipo, formadas
mediante a abstração. A semelhança de humanidade se abstrae dos homens individuais, e essa
semelhança, considerada pela mente, é a ideia da espécie, enquanto a ideia do gênero forma-se
mediante a consideração da semelhança entre diversas espécies. Em consequência, “os gêneros
e as espécies estão nos indivíduos, mas, enquanto pensados, são universais”. “Subsistem nas
coisas sensíveis, mas são entendidos sem os corpos.” Extramentalmente não há senão um sujeito
para os gêneros e as espécies, a saber, o indivíduo, mas isso não impede o que sejam
considerados por separado mais do que o fato de que uma mesma linha seja ao mesmo tempo
convexa e cóncava impede que tenhamos ideias diversas da concavidad e a convexidad e as
definamos diferentemente.

Boecio oferece assim os materiais para uma solução aristotélica do problema, embora depois
diz que ele não pensa que isso seja suficiente para decidir entre Platón e Aristóteles, e que se
seguiu as opiniões de Aristóteles é porque seu livro se interessa pelas Categorias, obra deste
autor. Mas embora Boecio facilitasse os materiais para uma solução do problema dos universais
segundo linhas do realismo moderado, e embora fossem seus cita de Porfirio e seus comentários
o que iniciou a discussão do problema nos primeiros séculos da Idade Média, a primeira solução
dos medievais não teve local segundo as linhas sugeridas por Boecio, senão que foi uma forma
bastante simplista de realismo extremo.
3. Importância do problema.

O que não refleta/reflita pode supor que ao ocupar desse problema os primitivos medievais
especulavam envelope um tema inútil ou se entregavam a jogos de mãos dialécticos; mas uma
curta reflexão será suficiente para mostrar a importância do problema, ao menos se consideram-
se seus envolvimentos.

Embora o que vemos e tocamos são coisas particulares, quando pensamos essas coisas não
podemos por menos de utilizar ideias e palavras gerais, como quando dizemos, “esse objeto
particular que vejo é uma árvore, um olmo, para ser mais preciso”. Semelhante julgamento
afirma de um objeto particular que é de uma determinada classe, que pertence ao gênero árvore
e à espécie olmo; mas está claro que pode ter outros muitos objetos, aparte do que realmente
percebemos agora, aos que podem ser aplicados os mesmos termos, que podem ser subsumidos
baixo as mesmas ideias. Em outras palavras, os objetos exteriores à mente são individuais,
enquanto os conceitos são gerais, de caráter universal, no sentido de que se aplicam
indistintamente a uma multidão de indivíduos. Mas, se os objetos extramentales são particulares
e os conceitos humanos são universais, está clara a importância que tem o descobrir o
relacionamento entre aqueles e estes. Se o fato de que os objetos subsistentes são individuais e
os conceitos são generais significa que os conceitos universais não têm fundamento na realidade
extramental, se a universalidade dos conceitos significa que estes são meras ideias, então se cria
uma brecha entre o pensamento e os objetos, e nosso conhecimento, na medida em que este se
expressa em conceitos e julgamentos universais, é, quando menos, de dudosa validade. O
cientista expressa seu conhecimento em termos abstratos e universais (por exemplo, não faz um
enunciado a respeito deste elétron designadamente, senão a respeito de elétrons, em general), e
se esses termos não têm fundamento na realidade extramental, sua ciência é uma construção
arbitrária, que não tem relacionamento alguma com a realidade. Mas na medida em que os
julgamentos humanos são de caráter universal, ou compreendem conceitos universais, como na
afirmação de que essa rosa é vermelha, o problema tem de estender ao conhecimento humano
em general, e se a questão relativa à existência de fundamento universal de um conceito
universal é contestada negativamente, o resultado deve ser o escepticismo.

O problema pode ser proposto de várias maneiras, e, historicamente falando, tomou forma
diversas em diversos tempos. Pode ser proposto, por exemplo, desta forma: “Que é o que
corresponde, se há algo que corresponda, na realidade extra- mental, aos conceitos universais
que se dão na mente?” Esse modo de abordar o problema pode ser chamado o ontológico, e foi
nessa forma como os primeiros medievais discutiram a questão. Pode também se perguntar como
se formam nossos conceitos universais. Essa é a maneira psicológica de abordar o problema,
que põe o acento em diferente sítio que a anterior, embora ambas linhas de investigação estão
estreitamente relacionadas, e mal pode ser tratado a questão ontológica sem contestar também
de algum modo a pergunta psicológica. Por outra parte, se supõe-se uma solução conceptualista
(que os conceitos universais são simplesmente construções conceptuais), pode ser perguntado
como é que o conhecimento científico, que é um fato para todos os fins práticos, é possível. Mas
seja qual seja a proposta do problema e adote a forma que adote, é de uma importância
fundamental. Quiçá um dos fatores que podem dar a impressão de que os medievais discutiam
uma questão relativamente pouco importante consiste em que aqueles pensadores reduziam
praticamente sua atenção aos gêneros e as espécies, na categoria da substância. Não é que o
problema, inclusive nessa forma restringida, careça de importância, mas se se propõe também
em relacionamento a outras categorias, seus envolvimentos? em relacionamento com a maior
parte do conhecimento humano fazem-se mais evidentes. Põe-se em claro que o problema de
que se trata é ultimamente o problema epistemológico do relacionamento do pensamento à
realidade.

4. Realismo exagerado.

A primeira solução do problema oferecida pela Idade Média foi a que se conhece como
“realismo exagerado”. O que essa fora cronologicamente a primeira solução resulta manifesto
pelo fato de que os que se opunham a dita opinião foram conhecidos durante algum tempo como
os moderni, enquanto Abelardo, por exemplo, se refere àquela como a antiga doutrina. Segundo
a opinião antiga, nossos conceitos genéricos e específicos correspondem a uma realidade que
existe extramentalmente em objetos próprios, uma realidade subsistente na que participam os
indivíduos. Assim, o conceito “homem” ou “humanidade” reflete uma realidade, a humanidade
ou substância da natureza humana, que existe extramentalmente do mesmo-modo a como é
pensada, isto é, como uma substância unitária na que participam todos os homens. Se pára Platón
o conceito “homem” reflete o ideal de natureza humana que subsiste aparte e “fora” dos homens
individuais, um ideal que os homens individuais encarnam ou “imitam” em maior ou menor
medida, o realista medieval achava que o conceito reflete uma substância unitária que existe
extramentalmente, na que participam os homens, ou da que estes são modificações acidentais.
Semelhante opinião é, desde depois, extremamente ingênua, e indica uma muito má
entendimento do modo em que Boecio tratava o problema, já que supõe que, a não ser que o
objeto refletido pelo conceito exista extramentalmente de uma maneira exata a como existe na
mente, o conceito é puramente subjetivo. Em outras palavras, supõe que o único caminho para
salvar a objetividad de nosso conhecimento consiste em manter uma correspondência exata e
ingênua entre o pensamento e as coisas.

O realismo encontra-se já implícito nos ensinos de, por exemplo, Fredegisio, que aconteceu
a Alcuino como abad de San Martín de Tours; este mantinha que todo nome ou termo supõe
uma realidade positiva correspondente (por exemplo, a escuridão, ou a nada). Também está
implícito na doutrina de João Escoto Erígena. Encontramos uma formulación da doutrina nos
escritos de Remigio de Auxerre (841-908, aproximadamente), o qual sustenta que a espécie é
uma partitio substantialis do gênero, e que a espécie homem, por exemplo, é a unidade
substancial de muitos indivíduos (Homo est multorum hominum substantialis unitas). Uma
formulación assim, se se entende no sentido de que a pluralidad de homens individuais tem uma
substância comum que é numericamente uma, tem como consequência natural a conclusão de
que os homens individuais só diferem acidentalmente uns de outros, e Odón de Tournai (morrido
em 1113), da escola catedral de Tournai (a quem também se chama Odón de Cambrai, porque
chegou a ser bispo dessa cidade) não duvidou em extrair essa conclusão, e manteve que quando
um menino chega ao ser, Deus produz uma nova propriedade de uma substância já existente,
mas não uma nova substância. Logicamente, esse ultrarrealismo devia ter por resultado um
completo monismo. Por exemplo, temos os conceitos de substância e de ser, e, segundo os
princípios do ultrarrealismo, deve ser seguido que todos os objetos aos que aplicamos o termo
“substância” são modificações de uma substância, e que todos os seres são modificações de um
só ser. É provável que essa atitude pesasse em João Escoto Erígena, na medida em que pode ser
chamado a este, com justiça, monista.

Como indicaram o professor Gilson e outros, os que mantiveram o ultrarrealismo na mais


antiga filosofia medieval filosofavam como lógicos, no sentido de que supunham que as ordens
lógico e real são exatamente paralelos, e que por ser o mesmo o significado de, por exemplo,
“homem” nos enunciados “Platón é um homem” e “Aristóteles é um homem”, há uma identidade
substancial na ordem real entre Platón e Aristóteles. Mas eu acho que seria um erro supor que
os ultr arre alistas fossem exclusivamente influídos por considerações lógicas; foram influídos
também por considerações teológicas. Isso está claro no caso de Odón de Tournai, o qual utilizou
o ultrarrealismo para explicar a transmissão do pecado original. Se entende-se o pecado original
como uma infeção positiva da alma humana, se enfrenta um com um dilema: ou há que dizer
que Deus cria a partir da nada uma nova substância humana a cada vez que um menino começa
a ser, com a consequência de que Deus é responsável pela infeção, ou há que negar que Deus
acha a alma individual. O que mantinha Odón de Tournai era uma forma de traducianismo, a
saber, que a natureza humana ou substância de Adán, infetada pelo pecado original, é transmitida
com a geração, e que o que Deus cria é simplesmente uma nova propriedade de uma substância
já existente.

Não é sempre fácil calibrar a significação precisa que deve ser atribuído às palavras dos mais
antigos medievais, porque não sempre podemos dizer com certeza se um escritor advertiu
plenamente os envolvimentos de suas palavras, ou se estava dando um golpe de controvérsia,
talvez como um argumentum ad hominem, sem pretender conscientemente que sua fórmula
fosse entendida segundo seu significado literal. Assim, quando Roscelin disse que as três
Pessoas da Santísima Trinidad poderiam ser justamente chamadas três deuses, se o uso o
permitisse, sobre a base de que todo ser existente é um indivíduo, Santo Anselmo (1033-1109)
perguntou como o que não entende que uma multidão de homens são especificamente um
homem, pode entender que várias Pessoas, a cada uma das quais é perfeitamente Deus, são um
só Deus[315]. Fundando nessas palavras, alguns chamaram a Santo Anselmo ultrarrealista, ou
realista exagerado, e, em verdade, a interpretação natural de ditas palavras, à luz do dogma
teológico em referência de qual se põem, é a de que, o mesmo que há somente uma substância
ou natureza na Divinidad, assim não há mais que uma substância ou natureza (isto é,
numericamente uma) em todos os homens. No entanto, poderia ser que Santo Anselmo
argumentasse ad hominem nessa questão, e que sua pergunta equivalesse à de como um homem
que não reconhece a unidade específica dos homens (no suposto, acertado ou equivocado, de
que Roscelin negasse toda realidade ao universal) podia captar a união bem mais grande das
Pessoas divinas em sua Natureza, uma Natureza que é numericamente uma. Pode ser que Santo
Anselmo fosse ultrarrealista, mas a segunda interpretação de sua pergunta pode ser apoiado no
fato de que ele evidentemente entendeu que Roscelin sustentava que os universais não têm
realidade alguma, senão que são meros flatus vocis, e no fato de que, no Dialogus de
Grammatico[316], distingue entre substâncias primeiras e segundas, e menciona nominalmente a
Aristóteles.

5. O “nominalismo” de Roscelin.
Se o princípio implícito do ultrarrealismo era a correspondência exata entre o pensamento e
a realidade extramental, o princípio dos adversários do ultrarrealismo era que somente existem
os indivíduos. Assim, Heurico de Auxerre (841-876) observava que se alguém trata de sustentar
que “alvo” e “negro” existem absolutamente e sem uma substância à que adiram, não poderá
indicar nenhuma realidade correspondente, senão que terá de referir a um homem branco ou a
um cavalo negro. Os nomes gerais não têm objetos gerais ou universais que lhes correspondam;
seus únicos objetos são indivíduos. Como surgem, então, os conceitos universais, e qual é sua
função e seu relacionamento à realidade? Nem o entendimento nem a memória podem captar
todos os indivíduos, e desse modo a mente reúne (coarctat) a multidão dos indivíduos e forma a
ideia da espécie, por exemplo, homem, cavalo, leão. Mas as espécies de animais e plantas são a
sua vez demasiadas para ser juntamente compreendidas pela mente, e esta reúne então as
espécies para formar o gênero. Há, no entanto, muitos gêneros, e a mente dá um passo mais no
processo de coarctatio, formando o conceito, ainda mais amplo e extenso, de usía (oÚGÍa).
Agora bem, a primeira vista isso parece ser uma posição nominalista, e recordar a teoria das
notas taquigráficas de John Stuart Mili; mas, a falta de provas mais completas, seria temerario
afirmar, que fosse realmente essa a opinião conscientemente mantida por Heurico.
Provavelmente este só pretendeu afirmar, de uma maneira enfática, que unicamente os
indivíduos existem, isto é, negar o ultrarrealismo, e ao mesmo tempo prestar atenção à
explicação psicológica de nossos conceitos universais. Não temos provas suficientes que
garantam a afirmação de que ele negasse qualquer fundamento real para os conceitos universais.

Uma similar dificuldade de interpretação apresenta-se a propósito dos ensinos de Roscelin


(1050-1120, aproximadamente), o qual, após estudar em Soissons e Reims, ensinou em
Compiégne, local de seu nascimento, e em Loches, Bês angón e Tours. Seus escritos perderam-
se, a exceção de uma carta a Abelardo, e temos de confiar no depoimento de outros escritores,
como Santo Anselmo, Abelardo e João de Salisbury. Esses escritores põem, em verdade,
completamente em claro que Roscelin se opôs ao ultrarrealismo, e que manteve que somente os
indivíduos existem, mas seu ensino positivo não está muito clara. Segundo Santo Anselmo[317],
Roscelin mantinha que o universal é uma mera palavra (flatus vocis), e, em consequência, Santo
Anselmo lhe conta entre os contemporâneos heréticos em dialética. Anselmo procede a observar
que esses homens pensam que a cor não é senão corpo, e a sabedoria dos homens não é senão a
alma destes, e encontra a principal falha dos “hereges dialécticos” no fato de que sua razão está
tão limitada por sua imaginação que não podem ser libertado das imagens e contemplar objetos
abstratos e puramente inteligibles[318]. Agora bem, é incuestionable que Roscelin disse que os
universais são palavras, palavras gerais, já que o depoimento de Santo Anselmo é nesse ponto
perfeitamente claro; mas é difícil calibrar com precisão o que realmente entendia ao dizer isso.
Se interpretamos a Santo Anselmo como um, mais ou menos, aristotélico, isto é, como não
ultrarrealista, teremos que dizer que ele entendeu que o ensino de Roscelin supunha a negación
de toda classe de objetividad do universal; enquanto se interpretamos a Santo Anselmo como
um ultrarrealista, podemos supor que Roscelin negava meramente, em um estilo enfático, o
ultrarrealismo. Desde depois, é innegable que, tomado literalmente, o enunciado de que o
universal é um mero flatus vocis é uma negación não só do ultrarrealismo e do realismo
moderado, senão inclusive do conceptualismo e da presença de conceitos universais na mente;
mas não temos suficientes provas para dizer o que Roscelin defendia a propósito do conceito
como tal, se é que se ocupou de algum modo dessa questão. Poderia ser que, em sua decisão de
negar o ultrarrealismo, a subsistencia formal dos universais, opusesse simplesmente o universale
in voce ao universal subsistente, significando que somente os indivíduos existem, e que o
universal, como tal, não existe extramentalmente, mas sem significar nada a respeito do
universale in mente, que podia ter dado por suposto, ou no que, singelamente, pôde não ter
pensado. Assim, está claro por algumas observações de Abelardo em sua carta sobre Roscelin
ao bispo de Paris[319], e em seu De divisione et definitione, que, segundo Roscelin, uma parte é
uma mera palavra, no sentido de que quando dizemos que uma substância completa consta de
partes, a ideia de um todo que consta de partes é uma “mera palavra”, já que a realidade objetiva
é uma pluralidad de coisas individuais ou substâncias; mas seria temerario concluir daí que
Roscelin, se fosse convocado para definir sua posição, estivesse disposto a manter que não temos
ideia alguma de um todo que consta de partes. Não pode ter querido dizer simplesmente que
nossa ideia de um todo que consta de partes é meramente subjetiva, e que a única realidade
objetiva é uma multiplicidad de substâncias individuais? (De um modo semelhante, parece ter
negado a unidade lógica do silogismo, e tê-lo dissolvido em proposições separadas.) Segundo
Abelardo, a aserción de Roscelin de que as ideias de todo e parte são meras palavras, corre casais
com seu aserción de que as espécies são meras palavras; e se pode ser sustentado a interpretação
anterior a propósito do relacionamento todo-parte, podemos a aplicar também a sua doutrina dos
gêneros e as espécies, e dizer que sua identificação destes com palavras é uma afirmação de sua
subjetividad mais bem que uma negación de que tenha ideias gerais.

Não temos, desde depois, nenhuma razão especial importante para interpretar a Roscelin. É,
sem dúvida, possível que fosse um nominalista em um sentido completo e ingênuo do termo, e,
certamente, não estou disposto a dizer que não fosse um nominalista puro e simples. João de
Salisbury parece ter-lhe entendido nesse sentido, porque diz que “alguns têm a ideia de que as
palavras mesmas são os gêneros e as espécies, embora essa opinião foi recusada faz muito
tempo, e desapareceu com seu autor”[320], uma observação que deve ser referido a Roscelin, já
que o mesmo João de Salisbury diz em seu Metalogieus[321] que a opinião que identifica as
espécies e os gêneros com palavras desapareceu praticamente com Roscelin. Mas embora
Roscelin pode ter sido um nominalista puro, e embora os fragmentarios depoimentos relativos a
seus ensinos, tomados literalmente, apoiam certamente essa interpretação, não parece, no
entanto, possível afirmar sem dúvida nem sequer que teve em conta a questão de se temos ou
não ideias de gêneros e espécies, e menos ainda que o negasse, ainda que suas palavras o sugiram
assim. Todo o que temos direito a dizer com certeza é que, nominalista ou conceptualista,
Roscelin foi um antirrealista declarado.

6. Atitude de san Pedro Damián para a dialética.

indicámos dantes, que Roscelin propôs uma forma de “triteísmo” que provocou a hostilidade
de Santo Anselmo e que fez com que fosse condenado e tivesse que retractarse de sua teoria no
concilio de Soissons, em 1092. Esse tipo de incursões no campo da teología por parte dos
dialécticos explica em grande parte a hostilidade manifestada para eles por homens como san
Pedro Damián. Os dialécticos peripatéticos ou sofistas, seglares que procediam da Itália e
viajavam de um centro de estudos a outro, homens como Anselmo o Peripatético de Parma, que
tentavam ridiculizar o princípio de não contradição, puseram naturalmente a dialética a uma luz
bastante pobre mediante sua sofistería e jogos de mãos verbais; mas enquanto limitaram-se a
disputas verbais foram provavelmente pouco mais que impertinentes; foi quando aplicaram sua
dialética à teología, e caíram na herejía, quando provocaram a inimizade dos teólogos. Assim,
Berengario de Tours (1000-1088, aproximadamente), ao manter que os acidentes não podem
subsistir sem a substância que lhes serve de apoio, negou a doutrina da transubstanciación.
Berengario era um monge, e não um peripateticus, mas seu espírito de falta de respeito à
autoridade parece ter sido característico de um grupo de dialécticos do século 11, e foi
principalmente esse tipo de atitude o que levou a san Pedro Damián a chamar à dialética uma
superfluidad, ou a Otloh de St. Emmeran (1010-1070, aprox.) a dizer que certos dialécticos põem
mais fé em Boecio que nas Escrituras.

San Pedro Damián (1007-1072) sentia poucas simpatias pelas artes liberais (são inúteis,
dizia) ou pela dialética, já que tais artes não se interessam por Deus ou pela salvação da alma,
embora, como teólogo e escritor, o santo teve a sua vez que fazer uso da dialética. Estava, no
entanto, convencido de que a dialética é uma ocupação muito inferior, e que sua utilização em
teología é puramente subsidiaria e subordinada, não meramente porque os dogmas são verdades
reveladas, senão também no sentido de que, inclusive os princípios últimos da razão, podem não
ter aplicação em teología. Por exemplo, Deus, segundo san Pedro Damián, não é somente árbitro
dos valores morais e da lei moral (san Pedro Damián veria com simpatia as reflexões de
Kierkegaard sobre o sacrifício de Abraham), senão que também poderia conseguir que um
acontecimento histórico se convertesse em não-fato, que deixasse de ter ocorrido, e se isso
parece ir na contramão do princípio de não contradição, então tanto pior para o princípio de não-
contra dicción: o único que isso prova é a inferioridad da lógica em comparação com a teología.
Em poucas palavras, o já que corresponde à dialética é o de uma criada, velut ancilla
dominae.[322]

A ideia da “escrava” foi empregada também por Gerardo de Czanad (morrido em 1046), um
veneciano que chegou a ser bispo de Czanad, em Hungria. Gerardo sublinhou a superioridad da
sabedoria dos apóstolos sobre a de Aristóteles e Platón, e declarou que a dialética deve ser ancilla
theologiae. Supõe-se muitas vezes que esse é o ponto de vista tomista envelope o domínio da
filosofia, mas, dada a delimitação tomista dos diferentes domínios de teología e filosofia, a ideia
da “escrava” não ajusta na doutrina sobre a natureza da filosofia professada por santo Tomás.

Tal ideia foi mais bem, como observa M. de Wulf, a própria de um “limitado grupo de
teólogos”, homens que faziam pouco aprecio da ciência de moda. No entanto, também não eles
puderam por menos de valer da dialética, e o arcebispo Lanfranc (que nasceu para o ano 1010 e
morreu em 1089, sendo arcebispo de Canterbury) falava com a voz do sentido comum quando
dizia que o que devia ser condenado não era a dialética, senão os abusos da mesma.

7. Guilherme de Champeaux.

A oposição de um santo, e rigoroso teólogo, à dialética, é também um dos motivos da vida


de Abelardo, cuja controvérsia com Guilherme de Champeaux constitui a seguinte etapa na
história da discussão sobre os universais, embora somente afetou à vida de Abelardo, não ao
triunfo final de sua luta contra o ultrarrealismo.

Guilherme de Champeaux (1070-1120), após estudar em Paris e Laon, estudou em


Compiégne baixo a direção de Roscelin. Adotou, não obstante, a teoria exatamente oposta à de
Roscelin, e a doutrina que ele ensinou na escola catedral de Paris foi a do ultrarrealismo.
Segundo Abelardo, que assistiu às lições de Guilherme de Champeaux em Paris, e do que temos
de derivar nosso conhecimento sobre os ensinos deste, o maestro mantinha a teoria de que a
mesma natureza essencial está inteiramente presente ao mesmo tempo na cada um dos membros
individuais da espécie em questão, com a inevitável consequência lógica de que os membros de
uma espécie diferem os uns dos outros não substancialmente, senão só acidentalmente[323]. Se
isso é assim, diz Abelardo[324], há uma mesma substância em Platón em um local e em Sócrates
em outro local, e Platón está constituído por uma equipe de acidentes e Sócrates por outro. Tal
doutrina é, desde depois, a forma de ultrarrealismo corrente na primeira parte da Idade Média, e
Abelardo não teve dificuldade alguma em mostrar as consequências absurdas que implicava.
Por exemplo, se a espécie humana está substancialmente, e, portanto, totalmente, presente ao
mesmo tempo tanto em Sócrates como em Platón, então Sócrates deve ser Platón, e deve estar
presente a dois locais ao mesmo tempo[325]. Ademais, semelhante doutrina conduz em último
termo ao panteísmo, já que Deus é substância, e todas as substâncias serão idênticas à substância
divina.

Pressionado por esse tipo de crítica, Guilherme de Champeaux transformou sua teoria,
abandonou a teoria da identidade em favor da teoria da indiferença, e disse que dois membros
da mesma espécie são a mesma coisa, não essencialmente (essentialiter), senão indiferentemente
(iindifferenter). Dispomos dessa informação por Abelardo[326], que evidentemente considerou
que a nova teoria era um subterfugio, como se Guilherme se limitasse agora a dizer que Sócrates
e Platón não eram a mesma coisa, mas que, no entanto, não eram coisas diferentes. Não obstante,
alguns fragmentos das Sententiae de Guilherme de Champeaux[327] põem em claro a posição
deste. Diz o autor que as duas palavras “um” e “mesmo” podem ser entendidas de duas maneiras,
secundum indifferentiam et secundum identitatem eiusdem prorsus essentiae, e procede a
explicar que Pedro e Pablo são “indiferentemente” homens, ou possuem a humanidade
secundum indifferentiam, assim que que se Pedro é racional, também o é Pablo, e se Pedro é
mortal, também o é Pablo, e assim sucessivamente, enquanto sua humanidade não é a mesma
(quer dizer que sua essência ou natureza não é numericamente a mesma), senão semelhante
(similis), já que são dois homens. Acrescenta Guilherme que esse modo de unidade não pode
ser aplicado à Natureza divina, se referindo, sem dúvida, ao fato de que a Natureza divina é
idêntica na cada uma das três Pessoas divinas. Esse fragmento, pois, pese a sua linguagem algo
escuro, se opõe claramente ao ultrarrealismo. Quando Guilherme de Champeaux diz que Pedro
e Pablo são um e o mesmo em humanidade secundum indifferentiam, quer dizer que suas
essências são iguais, e que essa igualdade é o fundamento do conceito universal de homem, que
se aplica “indiferentemente” a Pedro e a Pablo ou a outro homem qualquer. Seja o que seja o
que Abelardo pensasse dessa teoria modificada, ou a interpretação segundo a qual a atacasse, a
teoria parece ser em realidade uma negación do ultrarrealismo, e não muito diferente do modo
de ver do próprio Abelardo.

Devemos indicar que a referência que dantes fizemos à disputa entre Abelardo e Guilherme
de Champeaux foi uma simplificação, já que o curso preciso dos acontecimentos em dita disputa
não está claro. Por exemplo, embora é seguro que Guilherme, após ser derrotado por Abelardo,
se retirou à abadia de São Victor e ensinou ali, para ser depois nomeado bispo de Chálons-sul-
Marne, não é seguro em que ponto da controvérsia se retirou. Parece provável que mudasse sua
teoria enquanto ensinava em Paris, e depois, submetido a novas críticas de Abelardo, estivessem
estas justificadas ou não, se retirasse da batalha para se enclausurar em São Victor, onde
continuaria ensinando e poderia ter posto os fundamentos da tradição mística da abadia; mas,
segundo M. de Wulf, Guilherme de Champeaux retirou-se a São Victor e ali ensinou a nova
forma de sua teoria, a teoria da indiferença. Afirmou-se também que Guilherme sustentou três
teorias: 1) a teoria da identidade do ultrarrealismo; 2) a teoria da indiferença, que foi atacada por
Abelardo como indistinguible da anterior, e 3) uma teoria anti-realista, em cujo caso pode
presumirse que se retirou a São Victor após ensinar as teorias 1 e 2. Isso poderia ser correto, e
pode ser apoiado na interpretação de Abelardo e a crítica deste à teoria da indiferença; mas é
questionável que a interpretação de Abelardo passasse de ser meramente polêmica, e eu me
inclino a coincidir com De Wulf em que a teoria da indiferença supunha uma negación da teoria
da identidade, isto é, que não era um mero subterfugio verbal. Em qualquer caso, a questão não
é de muita importância, já que todos estão de acordo em que Guilherme de Champeaux
abandonou eventualmente o ultrarrealismo com o que começava.

8. Abelardo.

O homem que derrotou em debate a Guilherme de Champeaux, Abelardo (1079-'1142)


nascia em Lhe Pallet, Palet ou Palais, cerca de Nantes, de onde seu nome de Peripateticus
Palatinus, e estudou dialética como discípulo de Roscelin e de Guilherme, após o qual abriu uma
escola própria, primeiramente em Melun, depois em Corbeil, e mais tarde em Paris, onde teve
local sua disputa com o que era seu maestro. Posteriormente dirigiu sua atenção à teología,
estudou baixo a direção de Anselmo de Laon, e começou a ensinar ele mesmo teología em Paris
em 1113. Em consequência de seu episódio com Heloisa, Abelardo teve que retirar à abadia de
St.-Denis. Em 1121, seu livro De Unitate et Trinitate divina foi condenado em Soissons, e
Abelardo fundou então a escola do Paráclito, cerca de Nogent-sul- Seine, que abandonou em
1125, para se converter em abad de St.-Gildas, na Bretaña, embora deixou o mosteiro em 1129.
Desde 1136 até 1149 esteve ensinando em Santa Genoveva, em Paris, onde João de Salisbury
foi um de seus discípulos. Mas san Bernardo acusou-lhe de herejía, e em 1141 foi condenado no
concilio de Sens. Sua apelação ao papa Inocencio II conduziu a uma nova condenación e a uma
proibição do ensino, após o qual se retirou a Cluny, onde permaneceu até sua morte.

Está claro que Abelardo foi um homem de disposição combativa e despiadado com seus
adversários: ridiculizó a seus maestros em filosofia e em teología, Guilherme de Champeaux e
Anselmo de Laon. Foi também, embora algo sentimental, egoísta e difícil de tratar: é
significativo o que abandonasse tanto a abadia de St.-Denis como a de St.-Gil dá porque era
incapaz de viver em paz com os demais monges. Foi, no entanto, um homem de grande
capacidade, um dialéctico sobresaliente, muito superior nessa feição a Guilherme de
Champeaux; não era uma mediocridad que pudesse ser ignorada, e sabemos que sua brillantez
e destreza dialética (e também, sem dúvida, seus ataques a outros maestros) lhe atraíram uma
grande audiência. Mas suas incursões no terreno da teología, especialmente vindo de parte de
um homem brilhante e de grande reputação, fizeram-lhe parecer um pensador perigoso a olhos
daqueles que tinham escassa simpatia natural pela dialética e a habilidade intelectual, e Abelardo
se viu perseguido pela incansable hostilidade de san Bernardo, que parece ter visto ao filósofo
como um agente de Satanás; indubitavelmente, fez quanto pôde por assegurar da condenação de
Abelardo. Entre outros cargos, acusou a este de sustentar uma doutrina herética sobre a
Santísima Trinidad, cargo cuja verdade Abelardo negou firmemente. É provável que o filósofo
não fosse racionalista na sentido corrente da palavra, no que se refere a suas intenções (não
pretendeu negar a Revelação nem dissolver o mistério com explicações); mas ao mesmo tempo,
em sua aplicação da dialética à teología, parece ter atacado a ortodoxia teológica, de fato, já que
não na intenção. Por outra parte, foi a aplicação da dialética à teología o que fez possível o
progresso teológico e facilitou a sistematización escolástica da teología no século XIII.

Abelardo não teve dificuldade, como já vimos, em evidenciar os absurdos lógicos a que
conduzia o ultrarrealismo de Guilherme de Champeaux; mas lhe incumbía produzir por si
mesmo outra teoria mais satisfatória. Aceitando a definição aristotélica do universal, tal como a
transmitisse Boecio (quod in pluribus natum est praedicari, singulare vero quod non), procedeu
a afirmar que o que se prega não é uma coisa, senão um nome, e concluiu que há que “adscribir
esse tipo de universalidade somente às palavras”[328]. A frase soa muito parecida à opinião
puramente nomina-pronta adscrita tradicionalmente a Roscelin (que também era mestre de
Abelardo), mas o fato de que este tivesse interesse em falar de palavras universais e particulares
evidencia que não podemos concluir imediatamente que negasse toda realidade correspondente
às palavras universais, já que certamente não negava que tivesse uma realidade correspondente
às palavras particulares, a saber, o indivíduo. Ademais, Abelardo (na Lógica nostrorum petitioni
sociorum) procedeu a distinguir vox e sermo, e a dizer, não que Universale est vox, senão que
Universale est sermo. Por que fez Abelardo essa distinção? Porque vox significa a palavra como
entidade física (flatus vocis), uma coisa, e nenhuma coisa pode ser pregada de outra coisa,
enquanto sermo significa a palavra segundo o relacionamento desta ao conteúdo lógico, e é este
o que é pregado.

Qual é, pois, o conteúdo lógico, qual é o intellectus universalis ou ideia universal, que é
expresso pelo nomen universale? Pelas ideias universais a mente “concebe uma imagem comum
e confusa de muitas coisas (...) Quando digo homem, uma verdadeira figura aparece em minha
mente, que se relaciona a homens individuais, que é comum a todos e não própria de nenhum”.
Semelhante linguagem sugere, em verdade, que, segundo Abelardo, não há realmente conceitos
universais, senão só imagens confusas, genéricas ou específicas segundo o grau de sua confusão
e indistinción; mas o autor segue dizendo que os conceitos universais se formam por abstração,
e que mediante esses conceitos concebemos o que há no objeto, embora não o concebemos como
está no objeto. “Porque quando eu considero esse homem somente na natureza de substância ou
de corpo, e não também de animal, ou de homem, ou de gramático, evidentemente não entendo
outra coisa que o que há nessa natureza, mas não considero todo o que há.” Abelardo explica
então que quando disse que nossa ideia de homem é “confusa”, o que quis dar a entender é que
por médio da abstração a natureza se deixa livre de toda individualidad, e se considera de tal
modo que não supõe relacionamento especial alguma a nenhum indivíduo particular, senão que
pode ser pregada de todos os homens individuais. Em resumem, aquilo que se concebe nas ideias
genéricas e específicas está nas coisas (a ideia não está vazia de referência objetiva), mas não
está nelas, isto é, nas coisas particulares, tal como é concebido. Em outras palavras, o
ultrarrealismo é falso; mas isso não significa que os universais sejam puramente construções
subjetivas, e ainda menos que sejam meras palavras. Quando Abelardo diz que o universal é um
nomen ou sermo, o que quer dizer é que a unidade lógica do conceito universal afeta
exclusivamente ao pregado, que este é um nomen e não uma rês ou coisa individual. Se
queremos, com João de Salisbury, chamar a Abelardo “nominalista”, devemos reconhecer ao
mesmo tempo que seu “nominalismo” é simplesmente uma negación do ultrarrealismo e uma
afirmação da distinção entre as ordens lógico e real, sem que isso suponha negativa alguma do
fundamento objetivo do conceito universal. A doutrina de Abelardo é um bosquejo, apesar de
algumas ambigüedades de linguagem, da teoria desenvolvida pelo “realismo moderado”.

Em seu Theologia Christiana e seu Theologia, Abelardo segue a Santo Agostinho, Macrobio
e Prisciano ao situar na mente de Deus formae exemplares ou ideias divinas, genéricas e
específicas, que são idênticas a Deus mesmo, e alaba a Platón nesse ponto, lhe entendendo em
sentido neoplatónico, como tendo colocado as ideias na mente divina, quam Graeei Noyn
appellant.

9. Gilberto da Porrée e João de Salisbury.

O tratamento por Abelardo do problema dos universais foi realmente decisivo, no sentido de
que deu um golpe de morte ao ultrarrealismo, ao mostrar como pode ser negado dita doutrina
sem se ver obrigado ao mesmo tempo a negar toda objetividad aos gêneros e as espécies, e,
embora a escola de Chartres, no século meu (a diferença da escola de São Victor) se inclinou ao
ultrarrealismo, dois das mais notáveis figuras relacionadas com Chartres, a saber, Gilbert da
Porrée e João de Salisbury, romperam com a antiga tradição.

(I) Gilbert da Porrée, ou Gilbertus Porretanus, nasceu em Poitiers em 1076, foi discípulo de
Bernardo de Chartres e ensinou a sua vez em Chartres durante mais de doze anos. Mais tarde
ensinou em Paris, embora foi nomeado bispo de Poitiers em 1142. Morreu em 1154.

Gilbert da Porrée manteve-se firme no tema de que a cada homem tem sua própria
humanidade ou natureza humana[329]; mas teve uma opinião peculiar quanto à constituição
interna do indivíduo. No indivíduo devemos distinguir a substância ou essência individualizada,
na que inhieren os acidentes da coisa, e as formae substantiales, ou formae nativae,[330] Essas
forma nativas são comuns no sentido de que são iguais em objetos da mesma espécie ou gênero,
segundo seja o caso, e têm suas instâncias em Deus. Quando a mente contempla as forma nativas
nas coisas, pode abstraerías da matéria na que estão encarnadas ou voltas concretas, e as
considerar por separado, em abstração: está então, em relacionamento com os gêneros e as
espécies, que são subsistentiae, mas não objetos substancialmente existentes[331]. Por exemplo,
o gênero é simplesmente a coleção (colleetio) de subsistentiae obtida mediante a comparação de
coisas que, embora diferentes em espécie, são semelhantes[332]. Gilberto quer dizer que a ideia
de espécie se obtém por comparação das similares determinações essenciais ou forma de
similares objetos individuais, e as reunindo em uma só ideia, enquanto a ideia de gênero se
obtém comparando objetos que diferem especificamente mas que ainda assim têm em comum
algumas forma ou determinações essenciais, como o cavalo e o cão têm em comum a animalidad.
A forma, como observa João de Salisbury a propósito da doutrina do Porretano[333], é sensível
nos objetos sensíveis, mas é concebida pela mente aparte dos sentidos, isto é, inmaterialmente,
e embora individual na cada indivíduo, é, no entanto, comum, ou semelhante, em todos os
membros de uma espécie ou de um gênero.

Suas doutrinas da abstração e da comparação põem em claro que Gilberto foi um realista
moderado, e não um ultrarrealista, mas sua curiosa ideia da distinção entre a substância ou
essência individual e a essência comum (onde “comum” significa semelhante em uma pluralidad
de indivíduos), lhe fez entrar em dificuldades quando procedeu a aplicar à doutrina da Santísima
Trinidad, e distinguiu como coisas diferentes Deus e Divinitas, Pater e Paternitas, do mesmo
modo a como tinha distinto Sócrates de “humanidade”, isto é, da humanidade de Sócrates.
Gilberto foi acusado de menoscabar a unidade de Deus e de ensinar herejías (san Bernardo foi
um de suas acusadores). Condenado no concilio de Reims, no ano 1148, se retractó de suas
proposições heterodoxas.

(II) João de Salisbury (1115-1180, aproximadamente) chegou a Paris no ano 1136, e ali
assistiu às lições de, entre outros, Abelardo, Gilberto Porretano, Adam Parvipontanus e Robert
Pulleyn. Chegou a ser secretário do arcebispo de Canterbury, primeiramente do arcebispo
Teobaldo e mais tarde de santo Tomás Becket, e foi mais tarde nomeado bispo de Chartres, em
1176.

Na discussão do problema dos universais, diz João de Salisbury, o mundo fez-se velho;
dedicou-se a essa empresa mais tempo do requerido pelos césares para conquistar e governar o
mundo[334]. Mas todo o que busca os gêneros e as espécies fora das coisas dos sentidos, está
perdendo seu tempo[335]; o ultrarrealismo é errôneo e contradiz os ensinos de Aristóteles[336],
por quem João de Salisbury tem predilección em matéria de dialética; a propósito dos Tópicos,
observa que é a mais utilidade que quase todos os livros de dialética que os modernos acostumam
expor nas escolas[337]. Os gêneros e as espécies não são coisas, senão mais bem as forma de
coisas que a mente, comparando as semelhanças entre estas, abstrae e unifica nos conceitos
universais[338]. Os conceitos universais, ou gêneros e espécies, abstratamente considerados, são
construções mentais (figurata rationis), já que não existem como universais na realidade
extramental; mas trata-se de uma construção que consiste na comparação de coisas e a abstração
a partir das coisas, de modo que os conceitos universais não estão vazios de fundamentación e
referência objetivas.[339]

10. Hugo de São Victor

Já dissemos que a escola de São Victor se inclinou para um realismo moderado. Assim,
Hugo de São Victor (1096-1141) adotou mais ou menos a posição de Abelardo, e manteve uma
clara doutrina da abstração, que aplicou às matemáticas e à física. O domínio das matemáticas
carateriza-se pela atenção a actus confusos inconfuse,[340] a abstração, no sentido de atenção por
separado, à linha ou a superfície plana, por exemplo, embora nem linhas nem superfícies existem
separadas dos corpos. Também em física se consideram em abstração as propriedades dos quatro
elementos, embora na realidade concreta estes não se encontram senão em diversas
combinações. Semelhantemente, o dialéctico considera as forma das coisas em isolamento ou
abstração, em um conceito unificado, embora na realidade atual as forma das coisas sensíveis
não existem nem isoladas da matéria nem como universais.

11. São Tomás de Aquino.

Os fundamentos da doutrina tomista do realismo moderado era postos, pois, dantes do século
XIII, e em realidade podemos dizer que foi Abelardo quem acabou praticamente com o
ultrarrealismo. Quando santo Tomás declara que os universais não são coisas subsistentes e que
não existem senão nas coisas singulares[341], se está fazendo eco do que Abelardo e João de
Salisbury dizia dantes que ele. Por exemplo, a “humanidade”, a natureza humana, somente tem
existência neste ou aquele homem, e a universalidade que se atribui à humanidade no conceito
é um resultado da abstração, e, portanto, em verdadeiro sentido, uma contribuição subjetiva[342].
Mas isso não supõe a falsidade do conceito universal. Se abstrajésemos a forma específica de
uma coisa e ao mesmo tempo pensássemos que essa forma existe realmente em estado de
abstração, nossa ideia seria certamente falsa, porque implicaria um julgamento falso relativo à
coisa mesma; mas embora no conceito universal a mente conceba algo de uma maneira diferente
a seu modo de existência concreta, nosso julgamento a respeito da coisa mesma não é errôneo;
do que se trata simplesmente é de que a forma, que existe na coisa em um estado individualizado,
é abstraída, isto é, convertida em objeto de atenção exclusiva da mente, por uma atividade
imaterial desta. O fundamento objetivo do conceito específico universal é assim a essência
objetiva e individual da coisa, a qual essência é, pela atividade da mente, libertada de fatores
individualizantes (isto é, segundo santo Tomás, da matéria) e considerada em abstração. Por
exemplo, a mente abstrae do homem individual a essência de humanidade, que tanto faz, mas
não numericamente a mesma, nos membros da espécie humana. E o fundamento do conceito
genérico universal é uma determinação essencial que várias espécies têm em comum, como as
espécies de homem, cavalo, cão, etc., têm em comum a “animalidad”.

Santo Tomás negava assim ambas forma de ultrarrealismo, a de Platón e a dos primeiros
medievais; mas, o mesmo que Abelardo, não desejava recusar o platonismo totalmente e sem
apelação, isto é, não renunciava a conservar de algum modo o platonismo tal como este era
desenvolvido por Santo Agostinho. As ideias, cria-as instâncias, existem na mente divina,
embora não são ontológicamente diferentes de Deus nem constituem realmente uma pluralidad.
No que se refere a essa verdade, a teoria platónica está justificada[343]. Santo Tomás admite,
pois, (I) o universale ante rem, embora fazendo questão de que não é uma coisa subsistente, nem
separada das coisas (Platón) nem nas coisas (primeiros medievais ultrarrealistas), porque é Deus
mesmo, considerado enquanto percebe sua essência como imitable ad extra em um verdadeiro
tipo de criatura; (II) o universale in re, que é a essência individual concreta, igual nos diferentes
membros da espécie; e (nem) o universale pós rem, que é o conceito universal abstrato[344].
Greve dizer que o termo universale in re, utilizado no Comentário às Sentenças, tem de ser
interpretado à luz da doutrina geral de santo Tomás, isto é, como o fundamento do conceito
universal, fundamento que não é outra coisa que a essência concreta ou quidditas rei.[345]

No final da Idade Média o problema dos universais seria replanteado, e uma nova solução
ia ser oferecida por Guilherme de Ockham e seus seguidores; mas o princípio de que somente
os indivíduos existem como coisas subsistentes, permaneceria; a nova corrente do século XIV
não se inclinaria para o realismo, senão que se afastaria deste. Considerarei a história desse
movimento no seguinte volume desta História.
Capítulo XV
Santo Anselmo de Canterbury

1. Santo Anselmo como filósofo.

Santo Anselmo nascia em Aosta, no Piamonte, em 1033. Após os estudos preliminares em


Burgundy, em Avranches, e mais tarde em Bec, entrou na Ordem Benedictina, e chegou a ser
prior de Bec (1063) e posteriormente abad (1078). Em 1093 foi nomeado arcebispo de
Canterbury, para acontecer a seu antigo maestro, amigo e superior religioso, Lanfranc; e nesse
posto morreu, em 1109.

Em general, é ligo dizer que o pensamento de Santo Anselmo pertence à tradição


agustiniana. Como o grande Doutor africano, consagrou seu principal esforço intelectual ao
entendimento da doutrina da fé cristã, e a exposição de sua atitude que está contida no
Proslogium[346] leva impresso o selo inconfundível do espírito agustiniano. “Não tentativa,
Senhor, penetrar tua profundidade, pois julgo minha intelecto inteiramente insuficiente para isso,
mas desejo entender em algum grau tua verdade, que meu coração acha e ama. Porque não busco
entender para poder achar, senão que acho para poder entender. Porque acho também isto, que,
a não ser que cria, não poderei entender.” Essa atitude de Credo, ut intelligam é comum a
Agustín e a Anselmo, e Anselmo está completamente de acordo com Agustín quando observa
em seu Cur Deus Homo[347] que não se esforçar em compreender o que se acha, é negligencia.
Desde depois, isso significa, na prática, para Anselmo uma aplicação da dialética ou o
razonamiento aos dogmas de fé, não com a intenção dos despojar de mistério, senão com a dos
penetrar, os desenvolver e discernir seus envolvimentos na medida em que isso é possível à
mente humana. Os resultados desse processo, por exemplo, seu livro sobre a Encarnación e a
Redenção (Cur Deus Homo), fazem .de Santo Anselmo uma figura de importância na história
do desenvolvimento da especulação teológica.

Agora bem, a aplicação da dialética aos dados da teología segue sendo teología, e Santo
Anselmo mal mereceria um posto na história da filosofia por sua especulação teológica, exceto
porque a aplicação de categorias filosóficas a dogmas revelados supõe necessariamente algum
tratamento e desenvolvimento de ditas categorias filosóficas. De fato, no entanto, o uso do lema
Credo ut intelligam não se limitou no caso de Santo Anselmo, como também não se tinha
limitado no caso de Santo Agostinho, ao entendimento de só aquelas verdades que era reveladas
e não descobertas dialeticamente, senão que se estendeu a verdades como a existência de Deus,
que são certamente aceitadas por fé, mas que podem ser atingidas pelo razonamiento humano.
Ao lado, pois, de sua obra como teólogo dogmático, está também sua obra como teólogo natural
ou metafísico, e nessa feição Santo Anselmo merece um local na história da filosofia, já que
contribuiu ao desenvolvimento desse ramo da filosofia que se conhece como teología natural.
Tanto se seus argumentaciones em favor da existência de Deus consideram-se válidas como se
não, o fato de que ele elaborasse sistematicamente ditas argumentaciones tem sua importância,
e dá à faz títulos para que seja seriamente considerada pelo historiador da filosofia.

Santo Anselmo, ao igual que Santo Agostinho, não fez uma distinção clara entre os campos
da teología e da filosofia, e sua implícita atitude mental pode ser ilustrada do modo seguinte. O
cristão deve tratar de entender e prender racionalmente todo o que acha, na medida em que isso
seja possível à mente humana. Agora bem, cremos na existência de Deus e na Santísima
Trinidad. Devemos, pois, aplicar nosso entendimento ao entendimento de ambas verdades.
Desde o ponto de vista de quem, como os tomistas, fazem uma clara distinção entre filosofia e
teología dogmática, a aplicação do razonamiento à primeira dessas verdades, a existência de
Deus, cairá dentro do campo da filosofia, enquanto a aplicação do razonamiento à segunda
verdade, a Trinidad, cairá dentro do campo da teología; e o tomista sustentará que a primeira
verdade é demostrable pelo razonamiento humano, enquanto a segunda verdade não é
demostrable pelo razonamiento humano, embora a mente humana seja capaz de estabelecer
julgamentos verdadeiros a propósito do mistério, uma vez revelado, e de refutar as objeciones
que o razonamiento humano possa apresentar contra o mesmo. Mas, se um se põe na posição de
Santo Anselmo, isto é, em um estado mental anterior à clara distinção entre filosofia e teología,
é fácil ver como o fato de que a primeira verdade seja demostrable, junto do desejo de entender
todo quanto achamos, e o considerar como um dever a tentativa de satisfazer esse desejo, conduz
naturalmente a uma tentativa de demonstrar a trinidad de Pessoas “por razões necessárias”[348],
e de mostrar do mesmo modo que é impossível que um homem se salve sem Cristo[349]. Se
deseja-se chamar a essa atitude “racionalismo”, como efetivamente se fez, deve ser posto antes
de mais nada em claro o que um entende por “racionalismo”. Se por racionalismo entende-se
uma atitude mental que nega a revelação e a fé, é indudable que Santo Anselmo não foi
racionalista, já que aceitou a primacía da fé e o fato da autoridade, e somente após isso procedeu
a tentar compreender os dados da fé. Se, pelo contrário, quer ser estendido o termo
“racionalismo” de tal modo que cubra a atitude mental que leva a tentar provar os mistérios, não
porque os mistérios não se aceitem Por fé ou pudessem ser recusados se não se chegasse aos
provar, senão porque se deseja entender todo o que se acha, sem ter definido dantes com clareza
os modos em que diferentes verdades podem nos ser acessíveis, então é indudable que sim pode
ser dito que o pensamento de Santo Anselmo era racionalista ou que se aproximava muito ao
ser. Mas manifestaria um absoluto mau entendimento da atitude de Santo Anselmo quem
supusesse que este estava disposto a recusar, por exemplo, a doutrina da Santísima Trinidad se
não era capaz de encontrar rationes necessariae em favor da mesma; Santo Anselmo achava,
antes de mais nada, a doutrina, e somente então tentava entendê-la. A disputa a respeito do
racionalismo ou não racionalismo de Santo Anselmo está inteiramente fora de local, a não ser
que se ponha dantes perfeitamente em claro que ele não tinha a menor intenção de menoscabar
a integridade da fé cristã. Se fazemos questão de interpretar a Santo Anselmo como se este
vivesse após São Tomás de Aquino, e como se distinguisse com clareza os campos da teología
e da filosofia, seremos singelamente culpadas de anacronismo e de incomprensión.
2. Provas da existência de Deus no “Monologium”.

No Monologium[350] Santo Anselmo desenvolve a prova da existência de Deus baseada nos


graus de perfección que se encontram nas criaturas. No capítulo primeiro aplica seu
argumentación à bondade, e no capítulo segundo à “grandeza”, que entende, segundo ele mesmo
nos diz, não como grandeza cuantitativa, senão como uma qualidade semelhante à sabedoria,
que quanto em maior grau seja possuída por um sujeito, melhor, enquanto a grandeza
cuantitativa não é prova de superioridad cualitativa. Tais qualidades encontram-se em graus
diversos nos objetos da experiência, de modo que a argumentación procede da observação
empírica de graus de, por exemplo, bondade, e é portanto uma argumentación a posteriori. Mas
o julgamento a respeito de diferentes graus de perfección (Santo Anselmo supõe, desde depois,
que se trata de julgamentos objetivamente fundamentados) implica uma referência a um modelo
de perfección, e o fato de que a coisa participa objetivamente, em graus diferentes, da bondade,
manifesta que o modelo é em si mesmo objetivo, que há, por exemplo, uma bondade absoluta
na que participam todas as coisas boas e à que se aproximam mais ou menos, segundo os casos.

Esse tipo de argumentación é de caráter platónico (embora também Aristóteles, em sua fase
platónica, argumentava que onde há um melhor deve ter um ótimo) e reaparece na Quarta Via
de São Tomás de Aquino. É, como já disse, uma argumentación a posteriori: não procede da
ideia de bondade absoluta à existência da bondade absoluta, senão de graus observados de
bondade à existência da bondade absoluta, e de graus de sabedoria à existência de sabedoria
absoluta; e a bondade e a sabedoria absolutas identificam-se em Deus. A forma desenvolvida do
argumento, precisaria, indubitavelmente, uma demonstração tanto da objetividad do julgamento
referente aos diferentes graus de bondade, como do princípio em que Santo Anselmo faz
repousar seu argumentación, a saber, o princípio de que se um objeto possui bondade em um
grau limitado, deve ter essa sua bondade da bondade absoluta em si mesma, que é boa per se e
não per aliud. Também tem de se advertir que a argumentación somente pode ser aplicada
àquelas aperfeiçoe que por si mesmas não implicam limitação ou finitud: não poderia ser
aplicada, por exemplo, ao tamanho cuantitativo. (Que esse argumento seja válido ou
demostrativo, ou não o seja, não parece que seja coisa a decidir pelo historiador.)

No capítulo terceiro do Monologium Santo Anselmo aplica ao ser a mesma classe de


argumentación. Todo o que existe, existe por algo ou por nada. A segunda suposição é absurda;
por conseguinte, todo o que existe, existe por algo. Isso significa que todas as coisas existentes
existem, ou a uma pela outra, ou por si mesmas, ou por uma causa de existência. Mas que X
exista por E e E por X, é impensable: nossa opção fica limitada às possibilidades de uma
pluralidad de causas incausadas ou de uma só causa incausada. Até aqui, certamente, o
argumento é simplesmente um argumento de causalidad, mas Santo Anselmo procede a
introduzir um elemento platónico ao dizer que se há uma pluralidad de coisas existentes que têm
que ser por si mesmas, isto é, que dependem de si mesmas e são incausadas, há uma forma de
ser-em-si-mesmo na qual participam todas elas, e nesse ponto a argumentación se faz semelhante
à dantes esboçada. O implicado é que, quando vários seres possuem a mesma forma, deve ter
um ser unitário, externo aos mesmos, que seja essa forma. Não pode ter, pois, senão um último
Ser auto-existente, e deve ser o melhor, mais alto e maior de todo quanto é.
Nos capítulos sétimo e oitavo Santo Anselmo considera o relacionamento entre o causado e
a Causa, e afirma que todos os objetos finitos foram feitos a partir da nada, ex nihilo, não a partir
de uma matéria precedente, nem a partir da Causa entendida como origem material. Santo
Anselmo explica cuidadosamente que dizer que uma coisa foi feita ex nihilo não isto é que seja
feita a partir da nada como material; significa que algo é criado non ex aliquo; que agora tem
existência e dantes não a tinha fora da mente divina. Isso pode parecer bastante óbvio, mas às
vezes se afirmou que dizer que uma criatura foi feita ex nihilo é, ou bem converter à nada em
algo, ou bem ficar expostos à observação de que ex nihilo nihil fit. Santo Anselmo deixa, pois,
em claro que ex nihilo não significa ex nihilo tanquam matéria, senão simplesmente non ex
aliquo.

Quanto aos atributos do ens a se, somente podemos pregar dele aquelas qualidades cuja
posse é absolutamente melhor que sua não posse[351]. Por exemplo, ser ouro é melhor para o
ouro que ser couro, mas não seria melhor para um homem estar fato de ouro. Ser corpóreo é
melhor que não ser nada em absolutos, mas não seria melhor para um espírito ser corpóreo e não
incorpóreo. Ser ouro é melhor que não ser ouro só relativamente, e ser corpóreo em vez de não
corpóreo é melhor só relativamente. Mas é absolutamente melhor ser sábio que não ser sábio,
vivente que não vivente, justo que não justo. Devemos, pois, pregar do Ser Supremo sabedoria,
vida, justiça, mas não podemos pregar do Ser Supremo corporeidad ou ser de ouro. Ademais,
como o Ser Supremo não possui seus atributos por participação, senão por sua própria essência,
O é Sabedoria, Justiça, Vida, etc.,[352] e, como o Ser Supremo não pode estar composto de
elementos (que lhe seriam logicamente anteriores, de maneira que já não seria o Ser Supremo),
os atributos são idênticos com a essência divina, que é simples[353]. Por outra parte, Deus deve
necessariamente trascender o espaço, em virtude de sua simplicidade e espiritualidad, e o tempo,
em virtude de sua eternidade[354]. Está totalmente presente a tudo, mas não localmente ou te
determina, e todas as coisas estão presentes a sua eternidade, que não tem de se conceber como
um tempo sem termo, senão como interminabilis vita simul perfeete tota existens[355]. Podemos
chamar a Deus substância, se fazemos referência à essência divina, mas não se fazemos
referência à categoria de substância, já que Deus não pode receber mudanças nem ser suporte
de acidentes[356]. Em resumem, se aplica-se a Deus qualquer nome que seja também aplicado às
criaturas, ijalde procul dubio intelligenda est diversa significado.

Santo Anselmo procede, no Monologium, a dar razões em favor da Trinidad de Pessoas em


uma só natureza, sem oferecer nenhuma clara indicação de que se dê conta de que está deixando
o campo de uma ciência para entrar no de outra, e nesse novo tema, por interessante que possa
ser para o teólogo, não podemos lhe seguir. Disse-se já, no entanto, o suficiente para evidenciar
que Santo Anselmo fez uma verdadeira contribuição à teología natural. O elemento platónico é
conspicuo, e, aparte de algumas observações desperdigadas, não há um tratamento reflexivo da
analogia; mas Santo Anselmo apresenta argumentos a posteriori em favor da existência de Deus
que são de um caráter bem mais sistemático que os de Santo Agostinho, e se ocupa também
cuidadosamente dos atributos divinos, a inmutabilidad de Deus, a eternidade, etc. Está, pois,
claro cuán errôneo é associar o nome de Santo Anselmo ao “argumento ontológico” de um modo
que possa dar a entender que a única contribuição do santo ao desenvolvimento da filosofia fosse
um argumento cuja validade é ao menos questionável. Sua obra pode não ter exercido uma
influência muito considerável em pensadores contemporâneos ou nos que imediatamente lhe
seguiram, por sua preocupação por outros assuntos (problemas dialécticos, conciliação das
opiniões dos Pais, etc.), mas, vista à luz do desenvolvimento geral da filosofia na Idade Média,
deve ser reconhecido que seu autor foi um dos que principalmente contribuíram à teología e à
filosofia escolásticas, tanto por sua teología natural como por sua aplicação da dialética ao
dogma.

3. A prova da existência de Deus no “Proslogium”.

No Proslogium Santo Anselmo desenvolve o chamado “argumento ontológico”, que procede


da ideia de Deus a Deus como realidade, como existente. Santo Anselmo diz-nos/dí-nos que as
petições de seus irmãos e a consideração das complexas e diversas argumentaciones do
Monologium, lhe conduziram a se perguntar se não poderia encontrar um argumento que fosse
suficiente, por si só, para provar todo quanto achamos concerniente à substância divina, de modo
que um só argumento realizasse a função das muitas argumentaciones complementares de sua
opúsculo anterior. Finalmente pensou ter descoberto um argumento assim, que, por razões de
conveniência, pode ser posto em forma silogística, embora o próprio Santo Anselmo o
desenvolve em forma de prece a Deus.

Deus é aquilo maior que o qual nada pode ser pensado.

Mas aquilo maior que o qual nada pode ser pensado, deve existir, não só mentalmente, em
ideia, senão também extramentalmente.

Por conseguinte, Deus existe, não só na ideia, mentalmente, senão também


extramentalmente, A premisa maior apresenta simplesmente a ideia de Deus, a ideia que tem de
Deus um homem, embora negue sua existência.

A premisa menor está clara, já que se aquilo maior que o qual nada pode ser pensado existisse
só na mente, não seria aquilo maior que o qual nada pode ser pensado. Algo maior poderia ser
pensado, a saber, um ser que existisse na realidade extra-mental e não unicamente na ideia.

A prova parte da ideia de Deus como aquilo maior que o qual nada pode ser concebido, isto
é, como absolutamente perfeito: isso é o que quer dizer Deus.

Agora bem, se tal ser tivesse somente realidade ideal, se existisse somente em nossa ideia
subjetiva, poderíamos conceber um ser maior, a saber, um ser que não existisse simplesmente
em nossa ideia, senão também na realidade objetiva. Segue-se, pois, que a ideia de Deus como
absoluta perfección é necessariamente a ideia de um ser existente, e Santo Anselmo argumenta
que nesse caso ninguém pode ao mesmo tempo ter a ideia de Deus e negar sua existência. Se
um homem pensasse a Deus como, por exemplo, um super-homem, teria perfeito direito a negar
a existência de Deus nesse sentido, mas não negaria realmente a objetividad da ideia de Deus.
Se, pelo contrário, um homem tivesse a devida cria de Deus, se concebesse o significado do
termo “Deus”, poderia certamente negar sua existência com os lábios, mas se adverte o que seu
negación implica (a saber, dizer que o ser que deve existir por sua mesma essência, o ser
necessário, não existe) e segue negando sua existência, se faz réu de patente contradição: não é
senão o louco, o insipiens, que disse em seu coração, “não há Deus”. O ser absolutamente
perfeito é um ser cuja essência é existir, ou que necessariamente implica a existência, já que em
outro caso outro ser mais perfeito poderia ser concebido; é o ser necessário, e um ser necessário
que não existe seria uma contradição nos termos.

Santo Anselmo queria que seu argumento fosse uma demonstração de todo o que achamos
concerniente à natureza divina, e, como o argumento se refere ao ser absolutamente perfeito, os
atributos de Deus estão contidos implicitamente na conclusão do mesmo. Somente temos que
nos perguntar a nós mesmos o que está implicado na ideia de um ser mais perfeito que o qual
nada pode ser concebido, para ver que Deus deve ser omnipotente, omnisciente, supremamente
justo, etc. Ademais, ao deduzir esses atributos no Proslogium, Santo Anselmo concede alguma
atenção à clarificación dessas noções. Por exemplo, Deus não pode mentir; não é esse um signo
de falta de omnipotencia? Não, contesta Santo Anselmo; ser capaz de mentir deve ser chamado
uma impotencia mais bem que um poder, uma imperfección mais bem que uma perfección. Se
Deus pudesse fazer de uma maneira inconsecuente com sua essência, isso seria de sua parte uma
falta de poder, um defeito. Desde depois, poderia objetarse que isso pressupõe que já sabemos
o que a essência de Deus é ou implica, enquanto a essência de Deus é precisamente o ponto que
se trata de clarificar; mas podemos presumir que Santo Anselmo replicaria que já estabeleceu
que Deus é totalmente perfeito, e, por isso, que é ao mesmo tempo omnipotente e veraz: do que
se trata é meramente de mostrar o que a omnipotencia de perfección significa realmente, e de
expor a falsidade de uma equivocada ideia de omnipotencia.

O argumento apresentado por Santo Anselmo no Proslogium foi atacado pelo monge
Gaunilón em seu Liber pró Insipiente adversus Anselmi in Proslogio ratiocinationem, no que
observou que a ideia que temos de uma coisa não é uma garantia de sua existência extramental,
e que Anselmo realizava uma transição ilícita da ordem lógica à ordem real. Poderíamos dizer
também que as ilhas mais belas possíveis deviam existir em algum sítio, já que podemos as
conceber. O santo, em seu Liber Apologeticus contra Gaunilonem respondentem pró Insipiente,
negou a paridade, e negou-a justamente, pois se a ideia de Deus é a ideia de um ser totalmente
perfeito e se a absoluta perfección implica a existência, essa ideia é a ideia de um Ser existente,
e necessariamente existente, enquanto a ideia das ilhas mais belas possíveis não é a ideia de algo
que deva existir: inclusive na ordem puramente lógica, as duas ideias não correm casais. Se Deus
é possível, isto é, se a ideia de um Ser totalmente perfeito e necessário, não contém uma
contradição, Deus deve existir, já que seria absurdo falar de um Ser necessário puramente
possível (é uma contradição nos termos), enquanto não há contradição alguma em falar de umas
ilhas bellísimas meramente possíveis. A principal objeción à prova de Santo Anselmo, que foi
apresentada contra Descarte e à que Leibniz tratou de contestar, é que não sabemos a priori que
a ideia de Deus, a ideia de perfección infinita e absoluta, é a ideia de um ser possível. Pode ser
que não vejamos nenhuma contradição nessa ideia, mas o objetante pode dizer que essa
possibilidade “negativa” não é o mesmo que a possibilidade “positiva”; não evidencia que
realmente não tenha uma contradição na ideia. Que não há na cria contradição alguma, só está
claro quando mostrámos a posteriori que Deus existe.

O argumento do Proslogium não suscitou imediatamente muito interesse; mas no século XIII
foi empregue por São Boaventura, com uma acentuación menos lógica e mais psicológica, e foi
recusado por santo Tomás. Duns Scot se vahó dele como de uma ajuda incidental. Na Idade
Moderna desfrutou de uma carreira brilhante, embora controvertida. Descarte adotou-o e
adaptou, Leibniz defendeu-o de um modo esmerado e ingenioso, Kant atacou-o. Os escolásticos
costumam recusá-lo, embora alguns pensadores individuais mantiveram sua validade.

4. A ideia para valer e outros elementos agustinianos no pensamento


de Santo Anselmo.

Entre as caraterísticas agustinianas da filosofia de Santo Anselmo pode ser mencionado sua
teoria da verdade. Ao tratar da verdade no julgamento[357], Santo Anselmo segue o ponto de
vista aristotélico segundo o qual a verdade consiste em que o julgamento ou proposição afirma
o que realmente existe ou nega o que não existe, a coisa significada é a causa da verdade, e a
verdade reside no julgamento (teoria da correspondência); mas quando, após tratar da verdade
(retitude) na vontade[358], procede a falar da verdade do ser ou essência[359], e faz com que a
verdade das coisas consista em que estas sejam o que “devem” ser, isto é, em sua encarnación
de, ou correspondência com, sua ideia em Deus, Verdade suprema e modelo da verdade, e
quando, a partir da verdade eterna do julgamento, conclui à eternidade da causa da verdade,
Deus[360], o que faz Santo Anselmo é seguir as impressões de Santo Agostinho. Deus é, pois, a
Verdade eterna e subsistente, que é causa da verdade ontológica de todas as criaturas. A verdade
eterna é somente causa, e a verdade do julgamento é somente efeito, enquanto a verdade
ontológica das coisas é ao mesmo tempo efeito (da verdade eterna) e causa (da verdade no
julgamento). Essa concepção agustiniana da verdade ontológica, com o exemplarismo que
pressupõe, foi conservada por santo Tomás no século XIII, embora o aquinatense sublinhou
mais, desde depois, a verdade do julgamento. Assim, enquanto a definição para valer
caraterística de santo Tomás é adaequatio rei et intellectus, a de Santo Anselmo é rectitudo só
mentepereeptibilis.[361]

Em seu modo geral de falar envelope o relacionamento da alma ao corpo, e na falta de uma
teoria da composição hilemórfica de ambos, Anselmo segue a tradição platónico-agustiniana,
embora, como o próprio Agustín, ele era perfeitamente consciente de que alma e corpo formam
um só homem, e assim o afirma. Também suas palavras do Proslogium[362] sobre a divina luz
recordam a teoria iluminista de Santo Agostinho: Quanta namque est lux illa, de qua mieat omne
verum, quod rationali menti lueet.

Quiçá poderia ser dito em general que embora a filosofia de Santo Anselmo está na linha da
tradição agustiniana, é mais sistematicamente elaborada que os correspondentes elementos do
pensamento de Agustín, seu teología natural, e que na aplicação metódica da dialética manifesta
as caraterísticas de uma época mais avançada.
Capítulo XVI
A escola de Charteres

1. Universalismo de Paris e sistematización nas ciências no século


XII.

Uma das maiores contribuições feitas pela Idade Média ao desenvolvimento da civilização
européia foi o sistema da universidade, e a maior das universidades européias foi
incuestionablemente a de Paris. Aquele grande centro de estudos teológicos e filosóficos não
recebeu seu estatuto de Universidade no sentido oficial até começos do século XIII; mas pode
ser falado, em um sentido não técnico, das escolas de Paris como formando já uma
“universidade” no século XII. Em realidade, em algumas feições, no século XII esteve mais
dominado pela erudición francesa que no século XIII, já que foi no século XIII quando outras
universidades, como a de Oxford, adquiriram prominencia, e começaram a exibir um espírito
próprio. Quanto ao sul da Europa, a universidade de Bolonha recebeu sua primeira Carta em
1158, de Frederick I. Mas embora França fosse o grande centro de atividade intelectual, ao
menos no norte da Europa, durante o século XII, um feito com que conduziu ao dito muitas
vezes citado de que “Itália tem o papado, Alemanha o império, e França tem o conhecimento”,
isso não significa, desde depois, que a atividade intelectual fosse exercida simplesmente por
franceses; a cultura européia era internacional, e a supremacía intelectual da França significava
que estudantes, sábios e professores, iam em grande quantidade às escolas francesas. Da
Inglaterra chegaram homens como Adam Smallbridge (Parvípontanus), e Alexandro Neckham,
dialécticos do século XII, Adelardo de Bath e Roberto Pulleyn, Ricardo de São Victor (morrido
em 1173) e João de Salisbury; da Alemanha, Hugo de São Victor (morrido em 1141), teólogo,
filósofo e místico; da Itália Pedro Lombardo (1100-1160, aproximadamente), autor das famosas
Sentenças, que foram objeto de tantos Comentários durante a Idade Média, por exemplo, os fatos
por São Tomás de Aquino e Duns Scot. Assim, pode ser dito que a universidade de Paris
representou o caráter internacional da cultura européia medieval, como o papado representava o
caráter internacional, ou, melhor, supranacional, da religião medieval, embora ambas coisas
estavam, desde depois, estreitamente vinculadas, já que a religião única proporcionava uma
perspetiva intelectual comum, e a linguagem da erudición, a língua latina, era a linguagem da
Igreja. Essas duas unidades, a religiosa e a cultural, tão estreitamente unidas, foram o que pode
ser chamado unidades efetivas e reais, enquanto a unidade política do Sacro Império Romano
Germánico foi mais bem teórica que efetiva, porque, embora as monarquias absolutas foram um
desenvolvimento posterior, o nacionalismo estava já começando a crescer, embora seu
desenvolvimento fosse freado pelo feudalismo, pelo caráter local das instituições políticas e
econômicas medievais, e pela perspetiva intelectual e a linguagem comum.

Esse crescimento e expansão da vida universalizadora encontrou de modo natural uma


expressão intelectual e acadêmica na tentativa de classificar e sistematizar a ciência, o
conhecimento e a especulação da época, uma tentativa que já se deixa ver no século XII.
Podemos apresentar dois exemplos, as sistematizaciones de Hugo de São Victor, e de Pedro
Lombardo. O primeiro, em seu Didascalion[363], segue mais ou menos a classificação
aristotélica. Assim, a lógica é uma propedéutica ou preâmbulo para as ciências, e trata de
conceitos, não de coisas. Divide-se em gramática e na Ratio Disserendi, a qual a sua vez se
subdivide em Demonstratio, Pars Probabilis e Pars Sophistica (dialética, retórica e sofistica). A
ciência, à que a lógica serve de preâmbulo e da que é instrumento necessário, se divide nos
principais apartados de ciência teorética, ciência prática, e “mecânica”. A ciência teorética
compreende a teología, as matemáticas (a aritmética, que trata da feição numérica das coisas, a
música, que trata da proporção, a geometria, que se ocupa da extensão das coisas, e a astronomia,
que se ocupa do movimento das coisas), e a física (que tem como objeto próprio a natureza
interna, ou as qualidades internas, das coisas, e penetra assim mais profundamente que as
matemáticas). A ciência prática se subdivide em ética, “econômica” e política, enquanto a
“mecânica” compreende as sete artes “iliberales”, ou scientiae adulterinae, já que o artesão toma
suas forma da natureza. Essas “artes iliberales” são o hilado, a armaria e carpintería, a navegação
ou comércio, que, segundo Hugo, “reconcilia aos povos, aquieta as guerras, fortalece a paz, e
faz com que os bens privados sejam para uso comum de todos”, a agricultura, a caça (incluída a
cozinha), a medicina e o teatro. Está claro que a classificação de Hugo depende não somente de
Aristóteles (através de Boecio), senão também da obra enciclopédica de escritores como Santo
Isidoro de Sevilla.

Pedro Lombardo, que se educou na escola de São Victor, ensinou na escola catedral de Paris,
e finalmente foi bispo de dita cidade entre 1150 e 1152, compôs suas Libri Quattuor
Sententiarum, uma obra que, embora sem originalidad quanto a seu conteúdo, exerceu uma
tremenda influência, assim que estimulou a outros escritores ao labor de exposição sistemática
e comprehensiva do dogma, e se converteu em objeto de resúmenes e comentários até finais do
século XVI. As Sentenças de Pedro Lombardo eram um livro de texto[364], cujo objeto era reunir
as opiniões ou sententiae dos Pais a respeito de doutrinas teológicas. O livro primeiro estava
dedicado a Deus, o segundo às criaturas, o terceiro à Encarnación e Redenção e às virtudes, e o
quarto aos sete sacramentos e às postrimerías. O maior número de cita e o grosso da doutrina
tomava-se de Santo Agostinho, embora citam-se outros autores latinos, e inclusive São João
Damasceno faz um aparecimento, embora evidenciou-se que Pedro Lombardo só via uma
pequena parte da tradução latina do Fons Scientiae, por Burgundio de Calca. Sem dúvida as
Sentenças são predominantemente uma obra teológica, mas o Lombardo fala daquelas coisas
que são entendidas pela razão natural e podem ser entendidas assim dantes de ser achadas por
fé[365], tais como a existência de Deus, a criação do mundo por Deus e a imortalidade da alma.

2. Regionalismo, humanismo.
Temos visto que o desenvolvimento e expansão da vida intelectual no século XII
manifestou-se na crescente prevalência da “universidade” de Paris e nas primeiras tentativas de
classificação e sistematización dos conhecimentos; mas a posição de Paris não significa que não
florescessem as escolas regionais. Em realidade, o vigor dos interesses e da vida local foi no
período medieval um rasgo complementar do caráter internacional da vida intelectual e religiosa.
Por exemplo, embora alguns dos eruditos que iam a Paris para estudar ficassem depois ali como
professores, outros regressavam a suas próprias terras ou províncias, ou eram adscritos a
instituições educativas locais. Teve aliás uma tendência à especialização: Bolonha, por exemplo,
fez-se famosa por sua escola de leis, e Montpellier pela medicina, enquanto a teología mística
foi uma caraterística dominante da escola de São Victor, fora de Paris.

Uma das escolas locais mais florecientes e interessantes no século XII foi a de Chartres, na
que começaram a adquirir relevo certas doutrinas aristotélicas, embora associadas com uma
muito forte mistura de platonismo. Dita escola teve também relacionamento com os estudos
humanísticos. Assim, Teodorico (Thierry) de Chartres, quem, após estar à frente da escola em
1121, ensinou em Paris, para regressar a Chartes em 1141, onde chegou a chanceler acontecendo
a Gilberto da Porrée, foi descrito por João de Salisbury (o qual era igualmente humanista) como
artium studiosissimus investigator. Seu Heptateuchon ocupou-se das sete artes liberais, e o autor
combateu vigorosamente aos antihumanistas, os “cornificenses”, que vituperaban o estudo e a
forma literária. De um modo parecido, Guilherme de Conches (1080-1154, aprox.), que estudou
baixo a direção de Bernardo de Chartres, ensinou em Paris, e foi tutor de Enrique Plantagenet,
atacou aos cornificenses e fez estudos gramaticais, merecendo de João de Salisbury a afirmação
de que ele foi o gramático melhor dotado após Bernardo de Chartres[366]. Mas foi João de
Salisbury (1115/1120-1180) o melhor dotado dos filósofos humanistas relacionados com
Chartres. Embora não se educou ali, chegou a ser, como já vimos, bispo de Chartres em 1176.
Campeão das artes liberais e conhecedor dos clássicos latinos, de Cicerón designadamente,
detestava a barbarie no estilo, e apodó “cornificenses” àquelas pessoas que se opunham por
princípio ao estilo e a retórica. Cuidadoso de seu próprio estilo literário, João de Salisbury
representa o melhor do humanismo filosófico do século bem como san Bernardo, embora quiçá
não com plena intenção, representa o humanismo por seus hinos e escritos espirituais. No século
seguinte, o 13, se buscaria, em verdade, em vão latinidad nas obras dos filósofos, a maioria dos
quais se preocupavam mais do conteúdo que da forma.

3. O platonismo de Chartres.

A escola de Chartres, embora sua floreat caiu no século XII, teve uma longa história. era
fundada no ano 990 por Fulberto, um discípulo de Gerberto de Aurillac. (Este último foi uma
figura muito destacada do século 10, humanista e erudito, que ensinou em Paris e Reims, fez
várias visitas ao corte do imperador, foi bispo de Bobbio, arcebispo de Reims e arcebispo de
Ravena, e subiu ao trono papal com o nome de Silvestre II, e morreu em 1003.) Fundada no
século x, a escola de Chartres conservava, ainda no século XII, um verdadeiro espírito e estilo
conservador, que se manifesta em sua tradição platónica, especialmente em sua devoción ao
Timeo de Platón, e também aos escritos mais platónicamente orientados de Boecio. Assim,
Bernardo de Chartres, que foi cabeça da escola de 1114 a 1119, e chanceler de 1119 a 1124,
mantinha que a matéria existiu em um estado caótico dantes de ser informada, dantes de que a
ordem se impusesse à desordem. Chamado por João de Salisbury “o mais perfeito entre os
platónicos de nosso tempo”[367], Bernardo representou-se também a Natureza como um
organismo, e manteve a teoria platónica da Alma do Mundo. Em isso foi seguido por Bernardo
de Tours (Silvestres), que era chanceler em Chartres para 1156 e compôs um poema, De mundi
universítate, utilizando o Comentário de Calcidio ao Timeo, e descrevendo a Alma do Mundo
como animadora da Natureza e formadora dos seres naturais a partir do caos da matéria prima,
segundo as ideias existentes em Deus ou o Nous. Guilherme de Conches foi inclusive mais longe
ao identificar a Alma do Mundo com o Espírito Santo, uma doutrina pela que foi atacado por
Guilherme de St.-Theodoric. Ao retractarse, explicou que ele era um cristão, e não um membro
da academia.

Em relacionamento com essas especulações no espírito do Timeo, podemos mencionar a


inclinação da escola de Chartres ao ultrarrealismo, embora, como vimos, dois das figuras mais
envelopes alien tes associadas com Chartres, Gilberto da Porrée e João de Salisbury, não eram
ultr arre alistas. Assim, Clarembaldo de Arras, um discípulo de Teodorico de Chartres, que foi
preboste de Arras em 1152 e arcediano de Arras em 1160, mantém, em seu Comentário ao De
Trinitate de Boecio, contra Gilberto da Porrée, que não há mais que uma humanidade em todos
os homens, e que os homens individuais diferem somente propter aeeidentium varietatem.[368]

4. Hilemorfismo em Chartres.

Mas apesar de seu afición ao Timeo de Platón, os membros da escola de Chartres mostraram
também certa estima por Aristóteles. Não somente seguiram a este na lógica, senão que
introduziram também sua teoria hilemórfica: em realidade, foi em Chartres onde dita teoria fez
seu primeiro aparecimento no século XII. Assim, segundo Bernardo de Chartres, os objetos
naturais estão constituídos por matéria e forma. O chamava às forma formae nativae, e concebia-
as como cópias das ideias em Deus. Sabemos isso por João de Salisbury, quem nos diz que
Bernardo e seus discípulos trataram de mediar entre Platón e Aristóteles, ou os reconciliar[369].
Também para Bernardo de Tours as forma das coisas são cópias das ideias em Deus, como já
vimos, enquanto Clarembaldo de Arras concebia a matéria como estando sempre em um estado
de fluxo, e como sendo a mutabilidad ou vertibilitas das coisas, enquanto a forma seria a
perfección e integridade da coisa[370]. Interpretava assim a “matéria” de Aristóteles à luz da
doutrina platónica sobre a mutabilidad e caráter evanescente das coisas materiais. Guilherme de
Conches diferenciou-se notavelmente em uma linha própria, mantendo a teoria atomística de
Demóerito[371]; mas, em general, podemos dizer que os membros da escola de Chartres adotaram
a teoria hilemórfica de Aristóteles, embora a interpretaram à luz do Timeo.[372]

5. Panteísmo aparente.

A doutrina de que os objetos naturais estão formados de matéria e forma, e de que a forma
é uma cópia da “instância” (a Ideia em Deus), faz uma clara distinção entre Deus e as criaturas,
e não é de caráter panteísta; mas certos membros da escola de Chartres utilizaram uma
terminología que, tomada literalmente e sem cualificaeiones, parece implicar uma concepção
panteísta. Assim, Teodorico de Chartres, irmão menor de Bernardo, mantinha que “todas as
forma são uma só forma; a forma divina é todas as forma”, e que a divinidad é a forma essendi
da cada coisa, e descrevia a criação como a produção dos muitos a partir do um [373]. Por sua
vez, Clarembaldo de Arras dizia que Deus é a forma essendi das coisas, e que, já que a forma
essendi deve estar presente sempre e onde quer que uma coisa é, Deus está sempre e em todas
partes essencialmente presente[374]. Mas, embora esses textos, tomados literalmente e separados
de seu contexto, são de caráter panteísta ou monista, não parece que nem Teodorico de Chartres
nem Clarembaldo de Arras pretendessem ensinar uma doutrina monista. Por exemplo,
imediatamente após dizer que a forma divina é todas as forma, Teodorico observa que, embora
a forma divina é todas as forma pelo fato de que é a perfección e integridade de todas as coisas,
não pode ser concluído que a forma divina seja humanidade. Ao que parece, a doutrina de
Teodorico deve ser entendido à luz do exemplarismo, já que expressamente diz que a forma
divina não pode ser encarnado, e, portanto, não pode ser a forma concreta atual de homem,
cavalo ou pedra. De um modo similar, a doutrina geral do exemplarismo de Clarembaldo de
Arras e sua insistencia em que as forma das coisas materiais são cópias, imagine, é incompatível
com um pleno panteísmo. As frases que parecem ensinar uma doutrina emanatista estão tomadas
de Boecio, e é provável que não expressem em Téodorico ou em Clarembaldo uma interpretação
literal da emanação mais do que o expressam no próprio Boecio; em verdadeiro sentido são
frases tópicas, canonizadas, por assim o dizer, por sua antigüedad, e não há que espremer
indevidamente sua significação.

6. Teoria política de João de Salisbury.

Embora João de Salisbury não se educou em Chartres, é conveniente dizer aqui algo de sua
filosofia do Estado, tal como no-la oferece em seu Polycratieus. As querelas entre a Santa Sede
e o Império e as controvérsias das Investiduras levaram de um modo natural aos escritores que
tomaram parte nas disputas a expressar algumas opiniões, embora fosse de passagem, a
propósito da função do Estado e seu governante. Um ou dois escritores foram algo mais longe e
apresentaram um rude esboço de teoria política. Assim, Manegold de Lautenbach (século XI)
chegou a referir o poder do governante a um pacto com o povo[375], e declarou[376] que se o rei
abandona o governo segundo leis e se converte em um tirano, deve ser considerado que
quebrantou o pacto ao que deve seu poder, e pode ser deposto pelo povo. Tais ideias relativas
ao reinado da lei e a justiça como essencial ao Estado, e relativas ao direito natural, do que a lei
civil deveria ser expressão, estavam baseadas em textos de Cicerón, os estoicos e os juristas
romanos, e reaparecem no pensamento de João de Salisbury, o qual fez também uso do De
Civitate Dei de Santo Agostinho e do De Officiis de Santo Ambrosio.

Embora João de Salisbury não propôs uma teoria compacta ao modo de Manegold de
Lautenbach, fez questão de que o príncipe não está acima da lei, e declarou que, por muito que
os aduladores e encubridores dos governantes trompeteasen em contrário, nunca admitiria que
o príncipe seja Ubre de toda restrição e de toda lei.

Mas que é o que entendia ao dizer que o príncipe está sujeito à lei? Em parte, ao menos,
pensava na lei natural, e essa era verdadeiramente sua principal consideração; seguia em isso a
doutrina estoica de que há uma lei natural, à que todas as leis positivas se aproximam ou devem
ser aproximado. O príncipe não é, pois, livre de promulgar leis positivas que vão na contramão
ou sejam inconciliables com a lei natural e com essa aequitas que é rerum convenientia, tribuens
unicuique quod suum est. A lei positiva define e aplica a lei natural e a justiça natural, e a atitude
do governante nessa matéria evidencia se é um príncipe ou um tirano. Se seus edictos definem,
aplicam ou complementam a lei natural e a justiça natural, é um tirano, que governa segundo
capricho e não cumpre a função de sua oficio.

Entendia João de Salisbury algo mais por lei ao dizer que o príncipe está sujeito à lei?
Mantinha que o príncipe está de algum modo sujeito a uma lei definida? Era sem dúvida opinião
comum que o príncipe estava submetido em verdadeiro sentido aos costumes do país e às leis
promulgadas por seus antecessores, aos sistemas locais de direito ou tradição que se tinham
desenvolvido em decorrência do tempo, e, embora os escritos de João de Salisbury manifestam
poucos relacionamentos com o feudalismo, já que se apoiava tão largamente nos escritores do
período romano, é razoável supor que compartilhasse o comum modo de ver nessas matérias.
Seus julgamentos reais envelope o poder e o oficio do príncipe expressam a perspetiva geral,
embora seu modo formal de abordar o tema é através do direito romano, e indubitavelmente não
teve em conta a aplicação, em sentido absolutista, ao monarca feudal da máxima do jurista
romano: Quodprincipi placuit legis habet vigorem.

Agora bem, como João de Salisbury alabava o direito romano e o considerava como um dos
grandes fatores civilizadores da Europa, se viu ante a necessidade de interpretar a máxima que
acabamos de citar, sem sacrificar ao mesmo tempo suas convicções sobre o limitado poder do
príncipe. Antes de mais nada, como entendia o próprio Ulpiano sua máxima? O era um jurista,
e sua finalidade era justificar, explicar a legalidade dos edictos e constitutiones do imperador.
Segundo os juristas da República, a lei governava aos magistrados, mas era evidente que nos
tempos do Império o mesmo imperador era uma das fontes da lei positiva, e os juristas tinham
que explicar a legalidade dessa situação. Ulpiano disse, em consequência, que, embora a
autoridade legislativa do imperador deriva do povo romano, o povo, pela lex regia, lhe transfere
seu próprio poder e autoridade, de maneira que, uma vez investido com sua autoridade, a vontade
do imperador tem força de lei. Em outras palavras, Ulpiano não fazia senão explicar a legalidade
dos edictos do imperador romano; não se preocupava por estabelecer uma teoria política
mediante a afirmação de que o imperador tivesse direito a passar acima de toda justiça natural e
dos princípios da moralidad. Quando João de Salisbury observava, com referência expressa ao
dito de Ulpiano, que quando se diz que o príncipe está livre da lei isso não deve ser entendido
no sentido de que possa fazer o que é injusto, senão no sentido de que deve seguir a equidad ou
justiça natural por um verdadeiro amor à justiça e não por medo ao castigo, que não lhe é
aplicável, o que fazia era expressar a tradição geral dos juristas feudales e, ao mesmo tempo,
não contradizer a máxima de Ulpiano. Quando, no final da Idade Média, alguns teóricos políticos
desvincularam a máxima de Ulpiano da pessoa do imperador e a transferiram ao monarca
nacional, interpretando em um sentido absolutista, abandonaram o comum modo de ver
medieval, e transformaram ao mesmo tempo a máxima jurídica de Ulpiano em uma formulación
abstrata de teoria política absolutista.

Em conclusão, pode ser observado que João de Salisbury aceitava a supremacía do poder
eclesiástico (Hunc ergo gladium de manu Ecclesiae accipit princeps)[377], e que levou sua
distinção entre príncipe e tirano a sua consequência lógica, admitindo o tiranicidio como
legítimo. Em realidade, já que o tirano opõe-se ao bem comum, o tiranicidio pode às vezes ser
obrigatório[378], embora João de Salisbury fez a curiosa estipulación de que o veneno não podia
ser empregue com tal propósito.
Capítulo XVII
A escola de São Victor

A abadia de São Victor, situada fora das muralhas de Paris, pertencia aos canónigos
agustinos. Já temos visto que Guilherme de Champeaux esteve em relacionamento com essa
abadia, à que se retirou após ser derrotado por Abelardo, mas a escola é principalmente famosa
pela obra de dois homens, um germano, Hugo de São Victor, e um escocês, Ricardo de São
Victor.

1. Hugo de São Victor; provas da existência de Deus, fé, misticismo.

Hugo de São Victor nascia em Sajonia em 1096, de nobre família, e fez seus primeiros
estudos no mosteiro de Hamersleben, cerca de Halberstadt. Após tomar os hábitos foi a Paris
em 1115, para prosseguir seus estudos na abadia de São Victor. Em 1125 iniciou seu labor de
maestro, e de 1133 até sua morte em 1141, teve a escola a seu cargo. Um dos mais sobresalientes
teólogos, dogmáticos e místicos de seu tempo, não era, no entanto, inimigo do cultivo das artes,
e considerava não somente que o estudo das artes, bem entendido, conduz ao progresso da
teología, senão que todo conhecimento é de utilidade. “Aprende-o tudo; depois verá que nada é
supérfluo.”[379] Sua obra principal, desde o ponto de vista filosófico, é o Didascalion, em sete
livros, no que trata das artes liberais (três livros), a teología (três livros) e a meditação religiosa
(um livro); mas seus escritos sobre a teología dos sacramentos são também importantes para o
teólogo. Hugo compôs também obras exegéticas e místicas, e um Comentário sobre a Hierarquia
Celeste do Pseudo-Dionisio, para o que utilizou a tradução latina de João Escoto Erígena.

mencionámos já anteriormente a classificação e sistematización das ciências de Hugo de São


Victor, em conexão com a tendência sistematizadora já claramente discernible no século XII, e
devida em parte à aplicação da dialética à teología; e também sua teoria da abstração, em
conexão com a discussão sobre os universais[380]. Esses dois pontos evidenciam as feições
aristotélicos de seu pensamento, enquanto sua psicologia é de caráter claramente agustiniano.
“Ninguém há realmente sábio que não veja que existe; mas se um homem começa
verdadeiramente a considerar o que ele é, vê que não é nenhuma daquelas coisas que vê ou pode
ver. Porque aquilo que há em nós que é capaz de razonamiento, embora esteja, pelo dizer assim,
infundido e misturado com a carne, é no entanto distinguible pela razão da substância da carne,
e se vê, por isso, que é diferente.”[381] Em outras palavras, a consciência e a introspección
testemunham não somente a existência da alma, senão também sua espiritualidad e
inmaterialidad. Ademais, a alma é por si mesma uma pessoa, que tem, como um espírito
racional, personalidade própria e por si mesma, enquanto o corpo constitui um elemento na
personalidade humana somente em virtude de sua união com o espírito racional[382]. O modo de
união é de “yuxtaposición”, mais bem que de composição.[383]

Hugo contribuiu ao progresso sistemático da teología natural oferecendo argumentos a


posteriori a partir da experiência tanto externa como interna. Uma das linhas de prova apoia-se
no fato experiencial da autoconciencia, a consciência de um “sim mesmo” que é “visto” de modo
puramente racional e não pode ser material. Considerando a autoconsciencia como necessária
para a existência de um ser racional, Hugo sustenta que, como a alma não foi sempre consciente
de sua existência, teve um tempo em que a alma não existia. Mas não poderia ser tido dado a
existência a si mesma: tem de dever, pois, sua existência a outro ser, e este será um ser necessário
e existente por si mesmo, Deus[384]. A prova, incompletamente formulada, supõe as premisas de
que a causa de um princípio racional deve ser por sua vez racional, e que é impossível um
regresso ao infinito. Seu “interioridad” recorda certamente as provas de Santo Agostinho, mas
não é a prova agustiniana que parte do conhecimento de verdades eternas pela alma, nem
pressupõe uma experiência religiosa, nem menos ainda mística, já que se apoia na experiência
natural da autoconsciencia da alma, e esse fundamento na experiência é o que carateriza as
provas da existência de Deus apresentadas por Hugo.

A segunda prova, a tomada da experiência externa[385], apoia-se no fato empírico da


mudança. As coisas estão constantemente começando a ser e deixando de ser, e a totalidade, que
está composta dessas coisas cambiantes, deve também ter tido um princípio. Requer, pois, uma
causa. Nada ao que falte estabilidade, que deixe de ser, pode ter vindo à existência sem uma
causa exterior a isso. A ideia desse tipo de prova está contida no De Fide Orthodoxa de São João
Damasceno[386]; mas Hugo de São Victor tenta superar as deficiências do procedimento de São
João Damasceno.

Além da prova que parte da mudança, Hugo de São Victor apresenta uma prova teológica
em várias partes[387]. No mundo dos animais vemos que os sentidos e os apetitos encontram
satisfação nos objetos; no mundo em general vemos uma grande variedade de movimentos
(Hugo refere-se ao movimento local) que, no entanto, estão ordenados em harmonia. Também
o crescimento é um fato de experiência, e o crescimento, já que supõe a adição de algo novo,
não pode ser realizado somente pela coisa que cresce. Hugo conclui que essas três considerações
excluem a casualidade e postulan uma Providência à que pode ser atribuído o crescimento e que
guia todas as coisas segundo lei[388]. É indudable que a prova resulta pouco convincente, na
forma que lhe dá seu autor, mas se baseia em fatos de experiência, como ponto de partida, e é
caraterística das provas de Hugo em general. Hugo adotou a teoria de Guilherme de Conches
relativa à estrutura atômica da matéria. Os átomos são corpos simples, que são capazes de
aumento e crescimento.[389]

Hugo era, pois, perfeitamente claro quanto à possibilidade de um conhecimento natural da


existência de Deus; mas insistia igualmente na necessidade da fé. A fé é necessária, não somente
porque o oculus contemplationis, pelo que a alma prende em si mesma a Deus et ea quae in Deo
erant, foi completamente escurecido pelo pecado, senão também porque à crença do homem se
propõem mistérios que excedem o poder da razão humana. Esses mistérios são supra rationem,
no sentido de que a revelação e a fé são necessárias para que sejam presos, mas são secundum
rationem, e não contra rationem; em si mesmos são razoáveis, e podem ser objeto de
conhecimento, mas não podem ser objetos de conhecimento em sentido estrito nesta vida,
porquanto a mente do homem é demasiado débil, especialmente em seu estado de
oscurecimiento pelo pecado. O conhecimento, pois, considerado em si mesmo, é superior à fé,
a qual é uma certeza da mente relativa a coisas ausentes, superior à opinião mas inferior à ciência
ou conhecimento, já que os que captam o objeto como imediatamente presente (os scientes) são
superiores aos que acham por razões de autoridade. Podemos dizer, pois, que Hugo de São
Victor faz uma distinção clara entre fé e conhecimento, e que, embora reconhece a superioridad
deste último, não impugna por isso a necessidade da primeira. Sua doutrina da superioridad do
conhecimento sobre a fé não é nem muito menos equivalente à doutrina hegeliana, já que Hugo
não considera que, naturalmente ao menos, a fé possa ser substituída pelo conhecimento nesta
vida.

Mas embora o oculus contemplationis foi escurecido pelo pecado, a mente, baixo o influjo
sobrenatural da graça, pode ascender por graus até a contemplação de Deus em Si mesmo. Esse
misticismo sobrenatural coroa a ascensão do entendimento nesta vida, como a visão beatífica de
Deus o coroa no céu. Entrar no tratamento da doutrina mística de Hugo de São Victor estaria
aqui bastante fora de local; mas vale a pena indicar que a tradição mística de São Victor não foi
simplesmente um luxo espiritual; seu teología mística formava uma parte integrante de sua
síntese teológico-filosófica. Em filosofia a existência de Deus prova-se mediante o uso natural
da razão, enquanto em teología, a mente aprende a respeito da natureza de Deus e aplica a
dialética aos dados da revelação, aceitados pela fé. Mas o conhecimento filosófico e o
conhecimento (dialéctico) teológico são conhecimentos a respeito de Deus; ainda mais alta é a
experiência de Deus, o conhecimento direto de Deus, que se atinge na experiência mística, um
conhecimento amoroso e um amor cognoscente de Deus. Por outra parte, o conhecimento
místico não é visão plena, e a presença de Deus à alma na experiência mística cega por excesso
de luz, de modo que a visão beatífica do céu está por em cima tanto do conhecimento a respeito
de Deus por fé como do conhecimento místico direto de Deus.

2. Ricardo de São Victor; provas da existência de Deus.

Ricardo de São Victor nascia na Escócia, mas foi a Paris muito jovem, e entrou na abadia de
São Victor, onde chegou a ser subprior para 1157 e prior em 1162. Morreu em 1173. A abadia
passou durante aqueles anos por um período difícil, porque o abad, um inglês chamado Ervisio,
esbanjou seus bens e arruinou sua disciplina, comportando de um modo tão independente que o
papa Alexandro III lhe chamou “outro César”, Com alguma dificuldade, o abad foi induzido a
abandonar seu cargo, em um ano dantes da morte de Ricardo. Não obstante, embora seu abad
fosse um indivíduo algo independente e altanero, o prior, segundo nos diz a necrología da abadia,
deixou depois de sim a lembrança de um bom exemplo, uma vida santa e formosos escritos.

Ricardo é uma figura importante na teología medieval, e sua principal obra é o De Trinitate,
em seis livros, mas foi também filósofo, e como teólogo místico publicou duas obras sobre a
contemplação, o Beniamim minor, sobre a preparação da alma para a contemplação, e o
Beniamim maior, sobre a graça da contemplação. Em outras palavras, Ricardo foi um digno
sucessor de Hugo de São Victor, e, como este, fez questão da necessidade de utilizar a razão na
busca da verdade. “li frequentemente que há um só Deus, que é eterno, increado, imenso,
omnipotente e senhor de todo (...) li a propósito de meu Deus que é um e trino, um em substância,
trino em pessoas; todo isso o li; mas não recordo ter lido como se provam todas essas coisas.”[390]
E também: “Em todas essas matérias abundam as autoridades, mas não os argumentos; em todas
essas matérias experimenta desunt, as provas escasean; por conseguinte, acho que farei algo se
posso ajudar um pouco às mentes dos estudiosos, embora não possa lhes satisfazer.”

É evidente a atitude geral anselmiana em cita-as precedentes: Credo, ut intelligam. Uma vez
pressupostos os dados da religião cristã, Ricardo de São Victor dispõe-se a entendê-los e prová-
los. Do mesmo modo que Santo Anselmo declarava sua intenção de tratar de provar a Santísima
Trinidad por “razões necessárias”, assim também declara Ricardo ao começo de seu De
Trinitate[391] que será sua intenção nessa obra, na medida em que Deus o permita, alegar razões
não somente prováveis senão também necessárias em apoio das coisas que achamos. Ricardo
observa que deve ter razões necessárias para aquilo que necessariamente existe; de maneira que,
como Deus é necessariamente trino e um, deve ter uma razão necessária para esse fato. Desde
depois, do fato de que Deus seja necessariamente Tri-Um (Deus é o Ser Necessário) não se segue
em modo algum que nós sejamos capazes de discernir essa necessidade, e Ricardo admite,
efetivamente, que não podemos compreender plenamente os mistérios da fé, particularmente o
da Santísima Trinidad[392], mas isso não impede que ele tente mostrar que do fato de que Deus
é Amor se segue necessariamente uma pluralidad de Pessoas na Trinidad, e demonstrar a trinidad
de Pessoas em uma só Natureza.

A especulação de Ricardo sobre a Trinidad teve uma influência considerável na posterior


teología escolástica; mas desde o ponto de vista filosófico são de maior importância suas provas
em favor da existência de Deus. Tais provas, insiste Ricardo, devem ser apoiado na experiência.
“Devemos começar por aquela classe de coisas das que não podemos ter nenhum tipo de dúvida,
e por médio dessas coisas que conhecemos por experiência, concluir racionalmente o que
devemos pensar a propósito dos objetos que trascienden a experiência.”[393] Essas coisas de
experiência são objetos contingentes, coisas que começam a ser e podem deixar de ser. Só
podemos chegar a conhecer essas coisas através da experiência, já que o que começa a ser e
pode perecer não pode ser necessário, de maneira que sua existência não pode ser demonstrada
a priori, senão que só por experiência pode ser conhecida.[394]

O ponto de partida da argumentación é fornecido, pois, pelos objetos contingentes da


experiência; mas, para que nosso razonamiento sobre essa base possa ter sucesso, é necessário
começar por um fundamento para valer claramente sólido e inamovible[395]; isto é, a
argumentación precisa um princípio seguro e verdadeiro envelope o qual possa descansar. Esse
princípio consiste em que a cada coisa que existe ou que pode existir, ou tem ser desde a
eternidade ou começa a ser no tempo. Essa aplicação do princípio de não-contradição nos
permite estabelecer uma divisão do ser. Qualquer coisa existente tem de ser, ou (I) desde a
eternidade e por si mesma, e portanto autoexistente, ou (II) nem desde a eternidade nem por si
mesma, ou (III) desde a eternidade mas não por si mesma, ou (IV) por si mesma mas não desde
a eternidade. Essa divisão lógica em quatro admite imediatamente uma redução a divisão em
três, já que uma coisa que não é desde a eternidade, mas é por si mesma, é impossível, já que
uma coisa que começa a ser é evidente que não pode ser tido dado o ser a si mesma ou ser um
existente necessário[396]. Começo no tempo e aseidad são, pois, incompatíveis, e o que agora há
que fazer é regressar às coisas da experiência e aplicar o princípio geral. As coisas da
experiência, segundo observamo-las nos reinos humano, animal e vegetal, e na natureza em
general, são perecíveis e contingentes: começam a ser. Por conseguinte, se começam a ser, não
são desde a eternidade. Mas o que não é desde a eternidade não pode ser por si mesmo, como já
se disse. Por conseguinte, devem ser por outro. Mas ultimamente deve existir um ser que exista
por si mesmo, isto é, necessariamente, já que, de não ter um ser assim, não teria razão suficiente
para a existência de nada: nada existiria, enquanto, de fato, algo existe, segundo sabemos pela
experiência. Se se objetase que deve ter, certamente, um ens a se, mas que esse pode muito bem
ser o mundo mesmo, Ricardo replicaria que já excluiu ele essa possibilidade ao indicar que
experimentamos o caráter contingente das coisas de que o mundo está composto.

Se nessa primeira prova o procedimento de Ricardo mostra uma notável mudança com
respeito ao de Santo Anselmo, em sua seguinte prova o Victorino adota uma posição
anselmiana[397]. É um fato de experiência que há graus diferentes e variáveis de bondade ou
perfección, pois, por exemplo, o racional é mais elevado que o irracional. A partir desse fato de
experiência, Ricardo procede a argumentar que deve ter um supremamente elevado, acima do
qual nada tenha maior ou melhor. Como o racional é superior ao irracional, essa substância
suprema deve ser intelectual, e como o mais alto não pode receber o que possui do mais baixo,
do subordinado, deverá ter seu ser e existência por si mesmo. Isso significa necessariamente que
é eterno. Algo deve ser eterno e a se, como já dantes se evidenciou, já que em outro caso nada
existiria, e a experiência nos ensina que algo existe; e se o mais alto não pode receber o que
possui do mais baixo, o eterno a deve ser sido o mais alto, a substância suprema, que é o Ser
eterno e necessário.

Em terceiro local, Ricardo de São Victor tenta provar a existência de Deus a partir da ideia
de possibilidade[398]. Em todo o universo nada pode existir a não ser que tenha a possibilidade
de ser (a potencialidade ou poder para ser) por si mesmo ou a receba de outro. Uma coisa à que
falta a possibilidade de ser, que é completamente impossível, não é nada em absoluto, e para
que algo exista deve receber a capacidade para existir (posse essé) do fundamento da
possibilidade. (Ricardo dá aqui por suposto que os objetos do universo não podem receber de si
mesmos sua possibilidade, não podem ser autofundamentados; em sua primeira prova já mostrou
a incompatibilidad de aseidady temporalidad, ou começo de ser.) Esse fundamento de
possibilidade, que é a fonte da possibilidade e da existência de todas as coisas, deve, pois,
depender de si mesmo, ser último. Toda essência, todo poder, toda sabedoria, devem depender
desse Fundamento, de maneira que este deve ser por si mesmo a suprema Essência, como
fundamento de todas as essências, o supremo Poder, como fonte de todo poder, e a suprema
Sabedoria como fonte de todas as sabedorias, já que é impossível que uma fonte possa conferir
um dom maior que ela mesma. Mas não pode ter uma sabedoria aparte da substância racional
na que é inmanente: por tanto, deve ter uma Substância suprema e racional à que é inmanente a
suprema sabedoria. O Fundamento de toda possibilidade é, pois, a Substância suprema.

Esses argumentos são, desde depois, exercícios da inteligência racional, discursiva, do


oculus rations, superior ao oculus imaginationis, que vê o mundo corpóreo, mas inferior ao
oculus Intel ligentiae, pelo que Deus é contemplado em Si mesmo[399]. No nível inferior, os
objetos dos sentidos vêem-se imediatamente como presentes; no nível médio, a mente pensa
discursivamente a respeito de coisas não imediatamente visíveis, argumentando, por exemplo,
do efeito à causa, ou vice-versa; no nível superior, a mente vê um objeto invisível, Deus, como
imediatamente presente[400]. O nível da contemplação é, pois, por assim dizer, o análogo
espiritual da percepción sensível, já que é semelhante a esta em sua inmediatez e em seu caráter
concreto, em contraste com o pensamento discursivo, embora difere da percepción sensível
assim que que é uma atividade puramente espiritual, dirigida a um objeto puramente espiritual.
A divisão de Ricardo dos seis estádios de conhecimento, desde a percepción da beleza de Deus
na beleza da criação até mentem-na alienatio, baixo a ação da graça, influiu no Itinerarium
mentem ín Deum de São Boaventura.

3. Godofredo de São Victor e Gualterio de São Victor.

Godofredo de São Victor (morrido em 1194) escreveu um Fons Philosophiae no que


classifica as ciências e trata de filósofos e transmissores como Platón, Aristóteles, Boecio e
Macrobio, dedicando um capítulo especial ao problema dos universais e às soluções mantidas
no mesmo. Gualterio de São Victor (morrido após 1180) foi o autor da celebrada diatriba Contra
Quattuor Labyrinthos Francíae, Abelardo, Pedro Lombardo, Pedro de Poitiers e Gilberto da
Porrée, os representantes da teología dialética, quem, segundo Gualterio, era inchados pelo
espírito de Aristóteles, tratavam com ligereza escolástica das coisas inefables da Santísima
Trinidad e da Encarnación, vomitavam muitas herejías e estavam arrepiados de erros. Em outras
palavras, Gualterio de São Victor era um reaccionario que não representa o genuíno espírito de
São Victor, o de Hugo o germano e Ricardo o escocês, com seu razonada combinação de
filosofia, teología dialética e misticismo. Em qualquer caso, as manecillas do relógio não podiam
já ser atrasadas, porque a teología dialética se tinha posto em pé, e no século seguinte atingiu
seu triunfo nas grandes sínteses sistemáticas.
Capítulo XVIII
Dualistas e Panteístas

1. Os albigenses e os cátaros.

No século XIII santo Domingo pregou contra os albigenses. Dita seita, ao igual que a dos
cátaros, se tinha estendido já no sul da França e na Itália durante o século XII. A doutrina
principal dessas seitas era um dualismo de tipo maniqueo, que chegou à Europa ocidental por
via de Bizancio. Existem dois princípios últimos, o um bom e o outro mau, o primeiro dos quais
é causa da alma, enquanto o segundo o é do corpo e da matéria em general. Dessa hipótese,
albigenses e cátaros sacavam a conclusão de que o corpo é mau, e tem de ser dominado pelo
ascetismo, e também que é equivocado se casar e propagar a espécie humana. Pode parecer
estranho que uma seita cujos membros mantinham tais doutrinas pudesse florescer; mas deve
ser recordado que se considerava suficiente que os relativamente pouco numerosos perfecti
levassem essa existência ascética, enquanto seus seguidores mais humildes podiam levar sem
perigo uma vida mais ordinária, contanto que recebessem a bênção de um dos “perfecti” dantes
da morte. Deve ser recordado também, quando se considera a atenção que albigenses e cátaros
receberam de parte dos poderes civis e eclesiásticos, que a condenação da procriação e do casal
como males conduz naturalmente à conclusão de que o concubinato e o casal estão ao mesmo
nível. Ademais, os cátaros negavam a legitimidade dos juramentos e de toda guerra. Era, pois,
natural que essas seitas fossem consideradas como um perigo para a civilização cristã. A seita
dos valdenses, que ainda existe, se remonta ao movimento cátaro, e foi originariamente uma
seita dualista, embora foi absorvida pela Reforma e adotou o antirromanismo e o
antisacerdotalismo como seus principais ensinos.[401]

2. Amalrieo de Bene.

Amalrieo de Bene nascia cerca de Chartres e morreu sendo professor de teología em Paris,
para 1206-1207. São Tomás de Aquino[402] observa que “outros dizem que Deus é o princípio
formal de todas as coisas, e se diz que essa foi a opinião dos amalrieianos”, e Martín da Polônia
diz de Amalrieo que sustentou que Deus era a essência de todas as criaturas e a existência de
todas as criaturas. Ao que parece, Amalrieo interpretou em um sentido panteísta os ensinos de
João Escoto Erígena, bem como as frases utilizadas por Teodorico de Chartres e Clarembaldo
de Arras, chegando o bastante longe para dizer que as Pessoas da Trinidad são criaturas, que as
três se encarnaram, e que a cada homem singular é tão Deus como o foi Cristo. Parece ser que
alguns de seus seguidores sacaram dessa doutrina a conclusão de que o pecado é um conceito
irreal, sobre a base de que, se todo homem é divino, não pode pecar. Sustentasse ou não
conscientemente Amalrieo um verdadeiro panteísmo, foi em todo caso acusado de herejía e teve
que retractarse. Suas doutrinas foram condenadas em 1210, após sua morte, junto das de João
Escoto Erígena.

3. David de Dinant.

Se para Amalrieo de Bene Deus é a forma de todas as coisas, para David de Dinant Deus se
identifica com a matéria primeira, no sentido da potencialidade de todas as coisas. Muito pouco
sabe-se da vida de David de Dinant, ou das fontes das que derivou suas doutrinas, ou das
doutrinas mesmas, já que seus escritos, condenados em 1210 e proibidos em Paris em 1215, se
perderam. Santo Alberto Magno[403] lhe adscribe um De tomis, hoe est, de divisionibus, e os
documentos do concebo de Paris (1210) atribuem-lhe um Quaterni ou Quaternuli, embora
Geyer, por exemplo, supõe que esses dois títulos correspondem à mesma obra, que constava de
um número de seções ou alíneas (quaterni). Em qualquer caso, para nosso conhecimento de suas
doutrinas dependemos de cita-as ou relatórios de Santo Alberto Magno, São Tomás de Aquino
e Nicolás de Cusa.

Na Summa Theologica[404], santo Tomás afirma que David de Dinant “dizia muito
neciamente que Deus é matéria primeira”. Em outro local[405] diz que David dividia as coisas
em três classes: corpos, almas e substâncias eternas, e que os corpos estavam constituídos por
Hyle, as almas por Nous ou mente, e as substâncias eternas por Deus. Essas três fontes
constitutivas são as três indivisibles, e as três indivisibles são uma e a mesma. Assim, todos os
corpos seriam modos de um só ser indivisible, Hyle, e todas as almas seriam modos de um ser
indivisible, Nous; mas esses dois seres indivisibles são um, e foram identificados por David com
Deus, que é a única Substância. “É manifesto (segundo David) que há somente uma substância,
não só de todos os corpos, senão também de todas as almas, e que essa substância não é outra
coisa senão Deus mesmo (...). Está claro, pois, que Deus é a substância de todos os corpos e de
todas as almas, e que Deus, e Hyle, e Mens, são uma só substância.”[406]

David de Dinant tratou de provar essa posição dialeticamente. Para que duas classes de
substâncias difiram entre si, devem diferir em virtude de uma diferença, e a presença de uma
diferença implica a presença de um elemento comum. Agora bem, se a matéria diferisse da
mente, teria que ter uma differentia na matéria primeira, isto é, uma forma e uma matéria, e
nesse caso nos veríamos forçados a um regresso ao infinito[407]. Santo Tomás expressa o
argumento desta forma[408]. Quando as coisas não diferem em modo algum uma de outra, são a
mesma. Agora bem, sempre que duas coisas difiram uma de outra, diferem em virtude de
differentiae, e em tal caso devem ser compostas. Mas Deus e a matéria primeira são
completamente simples, não coisas compostas. Por conseguinte, não podem diferir em modo
algum entre si, e em consequência devem ser a mesma coisa. A esse argumento replica santo
Tomás que as coisas compostas, como, por exemplo, homem e cavalo, diferem certamente uma
de outra em virtude de differentiae, mas que as coisas simples, não; estritamente falando, deve
ser dito que as coisas simples são diversas (diversa esse), não que são diferentes (differré). Em
outras palavras, santo Tomás acusa a David de jogar com os termos, de escolher, para expressar
a diversidade entre Deus e a matéria, um termo que implica composição em Deus e na matéria.

Por que pensaram Santo Alberto Magno e São Tomás de Aquino que valia a pena prestar
tanta atenção a um sistema panteísta cujo fundamento teórico era mais ou menos uma sutileza
dialética? Provavelmente a razão não deve ser buscado tanto em que David de Dinant exercesse
uma grande influência como em que Alberto e Tomás temiam que a herejía de David de Dinant
podia comprometer a Aristóteles. As fontes das quais derivasse David sua teoria constituem um
ponto disputado, mas em general se coincide em que utilizou a exposição de materialismo antigo
tal como aparece na Física e na Metafísica, e está claro que se serve das ideias aristotélicas de
matéria primeira e de forma. Em 1210, o mesmo concilio de Paris que condenou os escritos de
David de Dinant, proibiu também o ensino público e privada da filosofia natural de Aristóteles
na Universidade. Com a maior probabñidad, pois, santo Tomás desejava mostrar que o monismo
de David de Dinant não se seguia em absoluto dos ensinos de Aristóteles; e em sua réplica à
objeción já citada faz expressa referência à Metafísica.
Parte IV
Filosofia Islâmica e Judia: traduções
Capítulo XIX
Filosofia Islâmica

1. Razões para um tratamento da filosofia islâmica

Encontrar com um capítulo sobre a filosofia dos árabes em uma obra dedicada ao
pensamento medieval, no sentido do pensamento cristão medieval pode surpreender a um leitor
que não conhece ainda a filosofia da Idade Média; mas a influência, positiva e negativa, da
filosofia islâmica na do cristianismo é hoje um ponto de conhecimento comum entre
historiadores, e é difícil deixar de dizer algo sobre esse tema. A filosofia árabe constituiu um
dos canais principais para a introdução em Occidente do conjunto das obras de Aristóteles; mas
os grandes filósofos do Islã medieval, homens como Avicena e Averroes, foram algo mais que
meros transmissores ou comentaristas; transformaram e desenvolveram a filosofia de
Aristóteles, mais ou menos segundo o espírito do neoplatonismo, e vários deles interpretaram a
Aristóteles em pontos importantes em um sentido que, fosse ou não exegéticamente correto, era
incompatível com a fé e a teología cristãs[409]. Em consequência, quando apareceu Aristóteles
aos pensadores cristãos medievais, na forma que lhe tinha dado Averroes, por exemplo, apareceu
naturalmente como um inimigo da sabedoria cristã, ou filosofia cristã em sentido amplo. Esse
fato explica em boa medida a oposição feita ao aristotelismo no século XIII por muitos
defensores da tradição cristã, que viam ao filósofo pagano como o inimigo de Santo Agostinho,
de Santo Anselmo e dos grandes filósofos da Cristandade. A oposição deu-se em diversos graus,
desde um desgosto pouco enfatizado e um medo à novidade, até a oposição razonada de um São
Boaventura; mas faz-se mais fácil entender a oposição se recorda-se que um filósofo muçulmano
como Averroes pretendia dar a verdadeira interpretação de Aristóteles, e que essa interpretação
contrastava, em questões importantes, com as crenças cristãs. Isso explica também a atenção
concedida aos filósofos islâmicos por aqueles (particularmente, desde depois, São Tomás de
Aquino) que viam no sistema aristotélico não somente um valioso instrumento para a expressão
dialética da teología cristã, senão também a verdadeira filosofia, porque ditos pensadores tinham
que evidenciar que o aristotelismo não supunha necessariamente a interpretação que do mesmo
davam os muçulmanos; tinham que se desassociar de Averroes e distinguir seu próprio
aristotelismo do deste.

Por conseguinte, para entender plenamente as polêmicas de São Tomás de Aquino e de


outros, é necessário saber algo da filosofia islâmica medieval; mas é também necessário por
outra razão que está em relacionamento com a primeira, a saber, a de que em Paris apareceu
uma escola de filósofos que pretendiam representar o aristotelismo integral, uma escola cuja
principal figura foi o celebrado oponente de santo Tomás, Siger de Brabante. Aqueles
aristotélicos “integrais”, os genuínos aristotélicos segundo consideravam-se a si mesmos,
entendiam por aristotelismo genuíno o sistema de Aristóteles segundo o interpretava Averroes,
o “Comentador” par excellence. Para entender, pois, essa escola, e uma fase importante das
controvérsias de Paris, é evidentemente necessário familiarizar com o papel de Averroes na
história da filosofia, e com sua doutrina.

Mas, embora tenha que apresentar de algum modo a filosofia islâmica, não entra nos limites
deste livro um tratamento da filosofia islâmica pelo próprio interesse desta. Indubitavelmente
tem-o (por exemplo, por seu relacionamento à teología islâmica, suas tentativas de conciliação
e a tensão entre elas, bem como pelo relacionamento do pensamento islâmico ao misticismo do
mundo islâmico, e da filosofia islâmica à cultura islâmica em general), mas o que o leitor deve
esperar aqui não é mais que um breve bosquejo da filosofia islâmica no período medieval, e um
tratamento da mesma menos por seu interesse intrínseco que em função de sua influência sobre
o pensamento cristão medieval. Esse tratamento, quiçá algo unilateral, não tem o propósito de
infravalorar os lucros dos filósofos muçulmanos, nem supõe uma negación do interesse
intrínseco da filosofia islâmica: está ditado simplesmente pelo propósito geral e o objetivo deste
livro, e também, desde depois, por considerações de espaço.

2. Origens da filosofia islâmica.

Se a filosofia islâmica relacionou-se com a filosofia do cristianismo do modo que acabamos


de mencionar, esteve também conectada com o cristianismo em suas origens, devido ao fato de
que foram cristãos sírios quem traduziram primeiramente ao árabe a Aristóteles e outros
filósofos antigos. A primeira etapa consistiu na tradução de obras gregas ao siríaco, na escola
de Edessa (Mesopotamia), que foi fundada por san Efrén de Nisibis no ano 363, e foi clausurada
pelo imperador Zenón, em 489, por causa do nestorianismo que ali prevalecia. Em Edessa,
algumas das obras de Aristóteles, principalmente as obras lógicas, bem como a Eisagoge de
Porfirio, foram traduzidas ao siríaco, e esse labor foi prosseguido em Persia, em Nisibis e
Gandisapora, onde se retiraram os eruditos após o fechamento da escola de Edessa. Assim, obras
de Aristóteles e Platón foram traduzidas ao persa. No século 6, obras de Aristóteles e Porfirio, e
os escritos do Pseudo-Dionisio, foram traduzidos ao siríaco nas escolas monofisitas da Síria.

A segunda etapa consistiu na tradução ao árabe das traduções siríacas. Inclusive dantes da
vida de Mahoma (569-632), tinha um verdadeiro número de cristãos nestorianos que
trabalhavam entre os árabes, principalmente como médicos, e quando a dinastia Abasida
substituiu à dos Omeyas em 750, eruditos sírios foram convidados ao corte árabe de Bagdá.
Antes de mais nada traduziram-se obras médicas; mas ao cabo de um tempo traduziram-se
também obras filosóficas, e, em 832, uma escola de tradutores estava estabelecida em Bagdá,
uma instituição que produziu versões árabes de Aristóteles, Alexandro de Afrodisia, Temistio,
Porfirio e Ammonio. Também se traduziram a República e As Leis de Platón, bem como também
(na primeira metade do século 9), o telefonema Teología de Aristóteles, que consistia em uma
compilação das Enneadas (4-6) de Plotino, erroneamente atribuída a Aristóteles. A isso deve ser
acrescentado o fato de que o Liber de Causis, que era realmente a Institutio Theologiea de
Proelo, foi também atribuído a Aristóteles. Essas falsas atribuições, bem como a tradução ao
árabe de comentaristas neoplatónicos de Aristóteles, ajudaram a popularizar entre os árabes uma
interpretação neoplatónica do sistema de Aristóteles, embora outras influências, e não só a de
Aristóteles e os neoplatónicos, contribuíram à formação da filosofia islâmica, por exemplo, a
mesma religião islâmica e a influência do pensamento religioso oriental, por exemplo o de
Persia.

Os filósofos muçulmanos

Os filósofos muçulmanos podem ser classificados em dois grupos, o grupo oriental e o grupo
ocidental. Nesta seção tratarei brevemente de três pensadores pertencentes ao grupo oriental.

3. Alfarabí.

(I)Alfarabí, que pertenceu à escola de Bagdá e morreu para 950, é um bom exemplo de
pensador sobre o que se fizeram sentir as influências mencionadas na seção anterior. Desse modo
ajudou a introduzir ao mundo de cultura islâmica na lógica de Aristóteles, ao mesmo tempo que,
por sua classificação dos departamentos de filosofia e teología, fez, por assim dizer, à filosofia
consciente de si mesma, a distinguindo da teología. A lógica é uma propedéutica e preparação
para a filosofia propriamente dita, a qual é dividida por Alfarabí em física, que compreende as
ciências particulares (incluída a psicologia, e com a teoria do conhecimento tratada dentro da
psicologia) e metafísica, como os dois ramos da filosofia teorética; e ética ou filosofia prática.
Seu esquema da teología incluía como seções 1) a omnipotencia e justiça de Deus; 2) a unidade
e outros atributos de Deus; 3) a doutrina das sanções na vida futura; 4 e 5) os direitos do
indivíduo e os relacionamentos sociais do muçulmano. Ao fazer da filosofia um domínio
separado, Alfarabí não pretendia, pois, suplantar nem socavar a teología islâmica: mais bem
punha a esquematización e a forma lógica ao serviço da teología.

Ademais, Alfarabí se vahó de argumentos aristotélicos para provar a existência de Deus.


Assim, envelope o suposto de que as coisas do mundo são passivamente movidas, uma ideia que
se adaptava perfeitamente à teología islâmica, argumentou que devem receber seu movimento
de um Primeiro Motor, Deus. Também, as coisas deste mundo são contingentes, não existem
necessariamente: suas essências não implicam suas existências, como se manifesta no fato de
que começam a ser e perecem. Daí segue-se que receberam sua existência, e ultimamente deve
ser admitido um ser que existe essencialmente, necessariamente, e é a causa da existência de
todos os seres contingentes.

Por outra parte, a influência neoplatónica é manifesta no sistema geral de Alfarabí. Assim,
o tema da emanação se emprega para mostrar como da Divinidad última, ou um, procedem a
inteligência e a alma do Mundo, de cujos pensamentos ou ideias Procede o Cosmos, desde as
esferas mais altas ou mais exteriores até as mais baixas ou mais interiores. Os corpos estão
compostos de matéria e forma. A inteligência do homem é alumiada pela inteligência cósmica,
que é o intelecto agente do homem (o voüs éniKTTyros; de Alexandro de Afrodisia). Ademais,
a iluminação do intelecto humano é a explicação do fato de que nossos conceitos “se ajustem”
às coisas, já que as ideias em Deus são ao mesmo tempo as instâncias e fonte dos conceitos da
mente humana e das forma das coisas.

Essa doutrina da iluminação relaciona-se não somente com o neoplatonismo, senão também
com o misticismo oriental. O próprio Alfarabí pertenceu à escola mística ou seita dos sufíes, e
sua filosofia era de orientação religiosa. A mais elevada tarefa do homem consiste em conhecer
a Deus, e, o mesmo que o processo geral do universo é uma emanação de Deus e um regresso a
Deus, também o homem, que procede de Deus no processo emanativo e que é alumiado por
Deus, se esfuerza em regressar e se assemelhar a Deus.

4. Avicena.

(II)O maior dos filósofos muçulmanos do grupo oriental é sem nenhum gênero de dúvidas
Avicena, ou Ibn Sina (980-1037), o verdadeiro criador de um sistema escolástico no mundo
islâmico[410]. Persa de nascimento, nascido cerca de Bokhara, recebeu sua educação em língua
árabe, e a maioria de suas obras, extraordinariamente numerosas, foram escritas em árabe.
Verdadeiro menino precoz, aprendeu sucessivamente o Corán, literatura árabe, geometria,
jurisprudencia, lógica. Aventajando a seus preceptores, estudou por si mesmo teología, física,
matemáticas e medicina, e aos dezesseis anos de idade praticava como médico. Consagrou então
em um ano e médio ao estudo da filosofia e da lógica, mas só quando encontrou um comentário
de Alfarabí foi capaz de entender a sua satisfação a Metafísica de Aristóteles, que lia, segundo
ele nos conta, quarenta vezes sem chegar a entender. O resto de sua vida foi de muitos trabalhos
e aventuras, já que atuou como visir de vários sultanes e praticou a medicina, e experimentou
em sua ir e vir as venturas e desventuras da vida e o favor e disfavor dos príncipes, mas sempre
sem deixar de ser um filósofo, prosseguindo seus estudos e seus escritos onde quer que ia ou
estava, inclusive na prisão ou montado a cavalo. Morreu em Hamadan à idade de cinquenta e
sete anos, após realizar seus- abluciones, arrepender-se de seus pecados, distribuir abundantes
esmolas e dar liberdade a seus escravos. Sua principal obra filosófica é o As-Sifa, conhecido na
Idade Média como as Sufficientiae, que compreende a lógica, a física (incluídas as ciências
naturais), as matemáticas, a psicologia e a metafísica. O Najat era uma coleção de textos,
tomados da obra anterior e dispostos em uma ordem diferente.

A divisão avieeniana de filosofia, em sentido amplo, em lógica, propedéutica da filosofia,


filosofia especulativa (física, matemáticas e teología) e filosofia prática (ética, econômica e
política) não oferece caraterísticas notáveis, salvo que a teología se subdivide em teología
primeira (equivalente à ontología e teología natural) e teología segunda (que compreende temas
islâmicos), e isso distingue a teología islâmica da grega. Mas seu metafísica, apesar do que toma
tanto de Aristóteles como do neoplatonismo, manifesta caraterísticas próprias, que fazem
evidente que, por muito que tomasse de filósofos anteriores, Avicena pensava seu sistema
cuidadosamente e de uma maneira independente, e o tinha soldado em um sistema de selo
peculiar. Por exemplo, embora, simultaneamente de Aristóteles, atribui à metafísica o estudo do
ser enquanto ser, Avicena faz uso de uma ilustração não-aristotélica para mostrar que a mente
prende necessariamente a ideia de ser, embora esta se adquire normalmente através da
experiência. Imaginemos um homem criado repentinamente, que não pode ver nem ouvir, que
flutua no espaço e cujos membros estão dispostos de tal modo que não podem ser tocado uns a
outros. Supondo que esse homem não possa ejercitar seus sentidos e adquirir a noção de ser
através da vista ou do tacto, será por isso incapaz de se formar a noção de ser? Não, porque será
consciente de sua própria existência e a afirmará, de maneira que, embora não possa adquirir a
noção de ser através da experiência externa, a adquirirá ao menos através de sua
autoconsciencia.[411]
A olhos de Avicena a noção de necessidade é também uma noção primária, porque para ele
todos os seres são necessários. É preciso, no entanto, distinguir dois tipos de necessidade. Um
objeto particular no mundo não é necessário por si mesmo: sua essência não implica a existência
necessariamente, como o mostra o fato de que começa a ser e deixa de ser; mas é necessário no
sentido de que sua existência está determinada pela ação necessária de uma causa exterior. Em
consequência, um ser contingente significa para Avicena um ser cuja existência é devida não à
essência do mesmo ser, senão à ação necessária de uma causa externa. Tais seres são certamente
causados, e, portanto, “contingentes”, mas não por isso é menos determinante a ação da causa.

Isso leva a Avicena a argumentar que a corrente de causas não pode ser infinita, já que então
não teria razão alguma para a existência de nada, senão que deve ter uma primeira causa que
seja em si mesma incausada. Esse Ser incausado, o Ser necessário, não pode receber sua essência
de outro, nem pode sua existência fazer parte de sua essência, já que a composição em partes
suporia uma causa anterior unifieadora: essência e existência devem ser, pois, idênticas no Ser
necessário. Esse último Ser é necessário por si mesmo, enquanto os seres “contingentes” não
são necessários por si mesmos, senão necessários através de outro, de modo que o conceito de
“ser”, aplicado ao ser necessário e ao contingente, não tem o mesmo sentido. Esses seres
diferentes não são, pois, espécies de um gênero, senão que mais bem “Ser” corresponde par
excellence, própria e primariamente, ao Ser necessário, e se prega dos seres contingentes só
secundária e analogicamente.

Estreitamente enlaçada com a distinção entre o necessário e o contingente ou possível está a


distinção entre ato e potência. A potência, como disse Aristóteles, é o princípio da mudança em
outro enquanto outro, e esse princípio deve existir ou no agente (potência ativa) ou no paciente
(potência pasiva). Ademais, há graus de potência e ato, que vão desde o limite inferior, a pura
potencialidade, a matéria primeira, até o limite superior, ato puro, o Ser necessário, embora
Avicena não utiliza o termo “ato puro” quoad verbum. Desde essa posição, Avicena procede a
mostrar que Deus é verdade, bondade, amor e vida. Por exemplo, o Ser que é sempre em ato,
sem potencialidade ou privação, deve ser absoluta bondade, e, já que os atributos divinos são
ontológicamente indistinguibles, a bondade divina deve ser idêntica ao amor absoluto.

Como Deus é bondade absoluta, tende necessariamente a difundir sua bondade, a irradiarla,
e isso significa que Deus cria necessariamente. Como Deus é o Ser necessário, todos seus
atributos devem ser necessários. É, portanto, necessariamente criador. Isso implica a sua vez a
conclusão de que a Criação é desde toda a eternidade, porque, se Deus é necessariamente criador
e Deus é eterno, a criação deve ser eterna. Ademais, se Deus cria por necessidade de sua
natureza, segue-se também que não há livre eleição na Criação, que Deus não poderia criar de
outro modo nem outras coisas que as que realmente cria. Mas Deus só pode produzir
imediatamente um ser semelhante a O: é impossível que Deus acha diretamente coisas materiais.
O primeiro ser que logicamente procede de Deus, é, pois, a primeira Inteligência. Essa
Inteligência é criada, no sentido de que procede de Deus: recebe, pois, sua existência, e desse
modo começa a dualidad. Enquanto no Um não há dualidad, na Inteligência primeira há uma
dualidad de essência e existência, enquanto a existência é recebida, e há também uma dualidad
de conhecimento, enquanto a Inteligência primeira conhece ao Um ou Deus como necessário e
a si mesma como “possível”. Desse modo Avicena deduze as dez inteligências, que exibem uma
crescente multiplicidad, e franqueia assim o abismo entre a unidade de Deus e a multiplicidad
da criação. A décima Inteligência é a “dadora de forma”, que são recebidas na matéria prima,
pura potencialidade ou (mais bem, potencialidade “privada de” forma, e, por isso, em verdadeiro
sentido, “má”), e podem assim se multiplicar dentro de suas espécies. As Inteligências separadas
somente podem diferir entre si especificamente, em virtude de seu maior ou menor proximidade
ao Um e seu decreciente simplicidade no processo de emanação; mas, como a matéria é o
princípio de individuación, a mesma forma específica pode ser multiplicado em uma pluralidad
de objetos individuais concretos, embora a matéria prima tem de ser primeiro sacada de seu
estado de indeterminación e disposta para a recepção da forma específica, primeiro mediante a
forma corporeitatis e depois mediante a ação de causas externas que a predisponen à recepção
de uma forma específica particular.

A décima inteligência tem outra função que realizar aparte da de dar as forma; exerce
também a função do intelecto ativo, ou entendimento agente, no homem. Em sua análise da
abstração, Avicena não atribui ao intelecto humano como tal, o ato final da abstração, a
aprehensión do universal em estado de pura inteligibilidad, pois isso suporia que o intelecto
passasse do estado de potencialidade ao ato inteiramente por seu próprio poder, sendo de modo
que nenhum agente pode proceder da potência pasiva ao ato se não é baixo a influência de um
agente exterior, embora semelhante a ele. Avicena distinguiu, pois, os intelectos ativo e pasivo,
mas fez do entendimento agente uma inteligência unitária e separada que alumia ao intelecto
humano e confere a este seu captación intelectual e abstrata das essências. (A essência ou
universalposé rem deve ser distinguida da essência ante rem e in re.)

A ideia de Avicena da criação necessária e sua negación de que o Um tenha conhecimento


direto da multiplicidad dos objetos concretos lhe pôs em divergência com a teología do Corán;
mas o filósofo tentou, na medida em que pôde, reconciliar seu sistema aristotélico-neoplatónico
com a ortodoxia islâmica. Por exemplo, não negava a imortalidade da alma humana, apesar de
sua doutrina referente ao caráter separado do entendimento agente, e mantinha uma doutrina de
sanções na vida de ultratumba, embora a interpretava de um modo intelectualista, que fazia
consistir a recompensa no conhecimento de objetos puramente inteligibles e o castigo na
privação desse conhecimento[412]. Igualmente, embora suas análises e explicação da criação e
do relacionamento do mundo a Deus implicavam necessariamente uma teoria emanatista e,
nessa feição, tendiam para o panteísmo, tratou de salvar-se do panteísmo afirmando a distinção
entre essência e existência em todos os seres que procedem, imediata ou mediatamente, de Deus.
É possível que a doutrina islâmica da omnipotencia divina, ao ser interpretada
“especulativamente”, loja ao panteísmo, e pode muito bem ser que alguns princípios
fundamentais do sistema de Avicena favoreçam ao panteísmo; mas é indudable que o filósofo
não era intencionadamente panteísta.

Quando parte dos escritos de Avicena foi traduzida ao latín no século XII, o mundo cristão
se encontrou pela primeira vez em frente a um sistema firmemente travado que tinha que exercer
uma forte atração sobre certas mentalidades. Assim, Gundissalinus (morrido em 1151) traduziu
ao latín a tradução espanhola feita por João Hispano (Avendeath), e utilizou o pensamento de
Avicena em seu De Anima, seguindo a psicologia avieeniana (e citando a alegoria do “homem
volante” deste), embora deixou a Avicena por Santo Agostinho ao fazer ao intelecto ativo, como
fonte de iluminação, idêntico a Deus. Ademais, em seu De Processione Mundi, tratou de
conciliar a cosmogonía de Avicena com a doutrina cristã, embora seu exemplo nesse ponto não
foi seguido. Dantes de que se dispusesse da totalidade da Metafísica de Aristóteles, reinou a
incerteza quanto a que doutrinas deviam ser atribuídas a Avicena e quais a Aristóteles. Assim,
Roger Bacon pensava que Avicena seguia inteiramente a Aristóteles, embora ele, Bacon, não
dispunha dos livros M e N da Metafísica, e, em consequência, não podia verificar a verdade ou
falta para valer de sua suposição. O resultado foi que Guilherme de Auvergne (morrido para
1249), o primeiro vigoroso oponente de Avicena, atribuiu a cosmogonía deste ao próprio
Aristóteles. Essa cosmogonía, diz Guilherme, era errônea, assim que que admitia intermediários
no processo da criação, concedendo assim às criaturas um poder divino, negava a liberdade
divina, afirmava a eternidade do mundo, fazia da matéria o princípio de individuación, e
considerava ao intelecto ativo separado como causa eficiente das almas humanas. Não obstante,
o próprio Guilherme seguiu a Avicena ao introduzir no escolasticismo latino a distinção entre
essência e existência. Ademais, ao negar a doutrina avieeniana do intelecto ativo, identificou a
este com Deus. Outros pensadores, como Alexandro de Hales, João da Rochela e san Alberto,
embora negando a doutrina de um intelecto ativo separado, fizeram uso da teoria avieeniana da
abstração e da necessidade de iluminação, enquanto Roger Bacon e Roger Marston encontraram
que o erro de Avicena consistia somente em não identificar o intelecto ativo separado e
iluminador com Deus. Sem adentramos mais na questão da influência de Avicena, que
requereria uma monografía especial, podemos dizer que influiu no escolasticismo latino ao
menos em três temas, o do conhecimento e a iluminação, o do relacionamento de essência e
existência, e o da matéria como princípio de individuación[413]. O que um escolástico latino
criticasse a Avicena não significa, desde depois, que esse escolástico não aprendesse nada de
Avicena. Por exemplo, São Tomás de Aquino encontrou necessário criticar o tratamento da
possibilidade pelo filósofo muçulmano[414], mas isso não significa que santo Tomás não
desenvolvesse sua própria posição, em parte, mediante uma consideração da doutrina de
Avicena, ainda que é difícil estimar o grau preciso de influência exercida pelos escritos deste
último no maior dos escolásticos. Mas bem mais influído por Avicena que santo Tomás esteve
Duns Scot, embora não possa lhe lhe chamar com propriedade discípulo de Avicena.

5. Algazel

(III)Algazel (1058-1111), que ensinou durante algum tempo em Bagdá, se opôs às doutrinas
de Alfarabí e Avicena desde o ponto de vista da ortodoxia mahometana. Em seu Maqasid, ou
Intentiones Philosophorum, resumiu as opiniões daqueles dois filósofos, e essa exposição,
traduzida ao latín por Gundissalinus, produziu a impressão, ao ser considerada em si mesma, de
que Algazel estava de acordo com as opiniões expressas. Assim, Guilherme de Auvergne reuniu
como objeto de seus ataques aos “seguidores de Aristóteles”, Alfarabí, Algazel e Avicena, sem
chegar a conhecer o fato de que Algazel procedia a criticar os sistemas dos filósofos em seu
Destructio philosophorum[415], no que tratava de mostrar como os filósofos se contradiziam a si
mesmos. Esse livro provocou mais tarde outro de Averroes, Destructio destructionis
philosophorum. Em seu Revivificación das Ciências Religiosas, Algazel apresentou suas
opiniões positivas, defendendo a doutrina ortodoxa da criação do mundo no tempo e a partir da
nada, contra as ideias avicenistas de emanação e da eternidade do mundo. Algazel defendeu
também a doutrina da causalidad universal de Deus, fazendo com que a conexão entre causa e
efeito dependesse do poder divino, e não de nenhuma atividade causal de parte das criaturas. O
filósofo vê consequência ou conjunción constantes, e conclui o relacionamento de causa e efeito,
enquanto, em verdade, o que um acontecimento siga a outro se deve simplesmente ao poder e
ação de Deus. Em outras palavras, Algazel manteve uma doutrina ocasionalista.

Algazel estava bem longe de ser simplesmente um filósofo que desejasse contrarrestar as
tendências não ortodoxas de seus predecessores helenizados; era também um eminente sufí, um
escritor espiritual e místico. Abandonando seu trabalho em Bagdá, retirou-se a Síria, onde levou
uma vida de ascetismo e contemplação. Às vezes, no entanto, saiu de seu retiro, e, em todo caso,
teve discípulos: inclusive fundou uma espécie de colégio teológico e uma escola de sufismo em
seu local de retiro, Teus. Mas o maior interesse de sua vida esteve constituído pela renascença
da religião, no sentido do misticismo. Sem inspirar-se exclusivamente em anteriores fontes
islâmicas, utilizando ademais ideias neoplatónicas e inclusive ideias do judaismo e do
cristianismo, edificou um sistema de espiritualidad que era de caráter personalista, isto é, não
panteísta. Algumas das expressões de Algazel poderiam parecer a primeira vista implicar ou
supor panteísmo, mas sua neoplatonismo foi posto ao serviço de seu misticismo religioso mais
bem que ao da especulação. Não é que loja a identificar o mundo com Deus, senão mais bem
que sua fusão das doutrinas islâmicas da predestinación e a omnicausalidad divina com um
misticismo religioso muito fortemente acentuado, lhe conduziram a uma espécie de
panenteísmo. O monoteísmo semítico, visto à luz do neoplatonismo e fundido com o misticismo,
não podia lhe levar facilmente em outra direção. No campo da especulação puramente filosófica
manifesta uma atitude algo cética, e representa o protesto do misticismo religioso contra o
racionalismo, bem como a da teología islâmica contra a filosofia aristotélica.

A paisagem de fundo dos filósofos muçulmanos de Occidente foi fornecido pela brilhante
civilização islâmica que se tinha desenvolvido em Espanha no século 10, e que, naquele período,
era enormemente superior à que podia oferecer a cristandade ocidental. O primeiro filósofo do
grupo ocidental foi Ibn Masarrah (morrido em 931), o qual adotou ideias do Pseudo-
Empédocles, enquanto Avempace ou Ibn Baixa (morrido em 1138) e Abubacer ou Ibn Tufail
(morrido em 1185) representaram tendências místicas; mas a maior figura desse grupo é
indubitavelmente Averroes, que ocupa no grupo ocidental a posição prominente que Avicena
representou no oriental.

6. Averroes.

Averroes, ou Ibn Rusd (o Commentator dos escolásticos latinos) nascia em Córdoba em


1126, filho de um juiz. Após estudar teología, jurisprudencia, medicina, matemáticas e filosofia,
ocupou postos judiciais, primeiro em Sevilla e mais tarde em Córdoba, e foi nomeado médico
do Califa em 1182. Mais tarde caiu em desgraça com o califa a o-Mansur, e foi desterrado do
Corte. Finalmente passou a Marrocos, onde morreu em 1198.

Convencido de que o gênio de Aristóteles foi a culminación final do intelecto humano,


Averroes consagrou uma grande quantidade de energia à composição de comentários, que
podem ser agrupado em três classes: (I) os comentários menores ou “meios”, nos que Averroes
apresenta o conteúdo da doutrina de Aristóteles, acrescentando suas próprias explicações e
desenvolvimentos, de tal modo que não é sempre fácil distinguir o que procede de Aristóteles e
o que é próprio de Averroes; (II) os comentários maiores, nos que Averroes apresenta
primeiramente uma porção do texto de Aristóteles e acrescenta depois seu próprio comentário;
e (nem) os pequenos comentários (paráfrasis ou compendios), nos que apresenta as conclusões
a que chegou Aristóteles, ignorando provas e referências históricas, e que estavam destinados a
estudantes incapazes de ir às fontes ou aos comentários maiores. (Ao que parece, Averroes
compôs os comentários médios e os compendios dantes que os comentários maiores.) Todo o
Organon de Aristóteles, nos comentários menores e nos compendios, se conservou, bem como
as traduções latinas às três classes de comentários pelo que respecta aos Analíticos Posteriores,
a Física, o Do caia, o De Anima e a Metafísica. Além desses e outros comentários em traduções
latinas, os escolásticos cristãos possuíram a resposta de Averroes a Algazel (isto é, a Destructio
destructionis philosophorum), várias obras de lógica, uma carta sobre o relacionamento entre a
inteligência abstrata e o homem, uma obra sobre a beatitud da alma, etc.

A escala metafísica ascende desde a pura matéria, como seu limite mais baixo, até o ato
puro, Deus como o mais alto limite. Entre um e outros limites estão os objetos compostos de
potência e ato, que formam a Natura naturata. (As frases da tradução latina, Natura naturans e
Natura naturata, reapareceram eventualmente em Espinoza.) A matéria prima, como equivalente
ao não-ser, como pura potencialidade e ausência de toda determinação, não pode ser o termo do
ato criador: é, pois, coeterna com Deus. Deus, no entanto, saca ou educa as forma das coisas
materiais a partir da potência da pura matéria, e cria as inteligências, em número de dez, em
conexão extrínseca com as esferas, de modo que a teoria avieeniana da emanação fica evitada e
exclui-se um verdadeiro panteísmo. A ordem da criação ou geração das coisas é, no entanto,
determinado.

Não obstante, ainda que o ter recusado a teoria da emanação faça a Averroes, em verdadeiro
sentido, mais ortodoxo que Avicena, o cordobés não seguiu a este em sua aceitação da
imortalidade pessoal. Efetivamente, Averroes seguiu a Temistio e a outros comentadores ao
sustentar que o intellectus materialis é a mesma substância que o intellectus agens, e que ambos
sobrevivem à morte, mas seguiu a Alej andró de Afrodisia ao sustentar que essa substância é
uma Inteligência unitária e separada. (É a Inteligência da lua, a mais baixa das esferas.) O
intelecto pasivo

individual no homem individual converte-se, baixo a ação do intelecto ativo, em “intelecto


adquirido”, o qual é absorvido pelo intelecto ativo de tal maneira que, embora sobrevive à morte
corporal, não o faz assim enquanto pessoal, como indivíduo existente, senão como um momento
na inteligência universal e comum da espécie humana. Há, pois, imortalidade, mas não há
imortalidade pessoal. Essa opinião foi energicamente combatida por São Tomás de Aquino e
outros escolásticos, embora foi mantida pelos averroístas latinos como uma verdade filosófica.

Mas mais interessante que a doutrina filosófica particular de Averroes é sua noção do
relacionamento geral da filosofia à teología. Sustentando, como ele o fazia, que Aristóteles
conseguia a culminación da ciência humana[416], que era o modelo de perfección humana e o
autor de um sistema que é a suprema verdade, interpretando a Aristóteles como se este afirmasse
a unicidad do entendimento agente, e aceitando a doutrina da eternidade da matéria, Averroes
tinha necessariamente que tentar uma reconciliação de suas ideias filosóficas com a teología
islâmica ortodoxa, especialmente quando não faltavam os que estavam dispostos a lhe acusar de
herejía por seu devoción a um autor pagano. Em consequência, tentou essa reconciliação por
médio da chamada teoria “da dupla verdade”. Essa teoria não significa que, segundo Averroes,
uma proposição possa ser verdadeira em filosofia e falsa em teología, ou vice-versa, senão que
uma verdade, que é sempre a mesma, é claramente entendida em filosofia e alegóricamente
expressa em teología. A formulación científica da verdade consegue-se unicamente em filosofia,
mas a mesma verdade é expressar em teología, só que de uma maneira diferente. O ensino
imaginativa do Corán expressa a verdade de uma maneira inteligible para o homem ordinário,
para o iletrado, enquanto o filósofo extrai o meollo do alegórico e atinge a verdade “sem
adornos”, livre dos atavíos de Vorstellung. A ideia de Averroes sobre o relacionamento da
filosofia à teología assemelha-se algo à de Hegel, e devia ser inaceitável, e foi inaceitável, aos
teólogos islâmicos ortodoxos. Mas não era a absurda ideia de que uma proposição possa ser
verdadeira em filosofia, e a proposição diametralmente oposta verdadeira em teología. O que
fez Averroes foi subordinar a teología à filosofia, fazer a esta juiz daquela, de maneira que
corresponderia ao filósofo decidir que doutrinas teológicas precisam ser interpretadas
alegóricamente, e de que modo devem ser interpretadas. Essa opinião foi aceitada pelos
averroístas latinos, e essa opinião foi, também, a que atraiu envelope Averroes, e envelope os
filósofos em general, a inimizade dos teólogos islâmicos. Quanto a afirmações atribuídas a
Averroes que, tomadas literalmente, implicam que uma proposição, por exemplo, que o intelecto
ativo é numericamente um, é verdadeira em filosofia e falsa em teología, se sugeriu que esse foi
simplesmente um modo sarcástico de dizer que a doutrina teológica carece de sentido. Quando
Averroes diz de alguma proposição que é verdadeira na teología fideísta dos conservadores que
recusavam a filosofia, o que quer dizer é que é “verdadeira” na escola dos inimigos da ciência,
isto é, que é singelamente falsa. Averroes sentia pouco aprecio pelos tradieionalistas, como a
tradição alistas sentiam pouco aprecio por ele, e sua atitude nessa matéria conduziu à proibição
na Espanha islâmica do estudo da filosofia grega e à queima de obras filosóficas.

7. O Dante e os filósofos árabes.

Da influência de Averroes na cristandade latina falarei mais adiante; mas terá interesse
acrescentar aqui algumas palavras sobre a atitude do Dante (1265-1321) para os filósofos
árabes[417]. A questão da atitude do Dante para os filósofos árabes surgiu quando os eruditos
começaram a se perguntar seriamente e sem preconceitos por que o Dante, que na Divina
Comédia coloca a Mahoma no inferno, não somente situou a Averroes e a Avicena no limbo,
senão que ademais pôs ao averroísta latino Siger de Brabante no céu, e foi inclusive o bastante
longe para pôr seu elogio em boca de São Tomás de Aquino, que era um esforçado oponente de
Siger. É evidente que o Dante tratava àqueles homens como filósofos, e por esse fato colocou
aos dois pensadores islâmicos tão altos na escala como pôde: como não eram cristãos,
considerou que não podia lhes libertar por completo do Inferno, e por isso lhes situou no limbo.
Siger, pelo contrário, era cristão, e Dante situou-lhe no céu. O que fizesse a santo Tomás recitar
seus louvores, e que lhe pusesse à esquerda de santo Tomás, enquanto Santo Alberto Magno
estava à direita do santo de Aquino, se explica se se recorda que o sistema tomista pressupõe
uma filosofia construída pela só razão natural, e que construir uma filosofia mediante a só razão
natural foi precisamente o que Siger de Brabante tentava fazer; não é necessário supor que o
Dante aprovasse todas as ideias de Siger, senão que lhe tomou como o símbolo da “filosofia
pura”.

No entanto, por que o Dante singulariza a Avicena, Averroes e Siger de Brabante? Foi
simplesmente porque eram filósofos, ou é que o Dante deve algo aos muçulmanos? foi mostrado
por Bruno Nardi[418], e Asín Palácios levou adiante o estudo do tema[419], que o Dante deve
importantes pontos de sua filosofia aos sistemas de Alfarabí, Avicena, Algazel e Averroes, por
exemplo, a doutrina da luz divina, a teoria das Inteligências, a influência das esferas celestes, a
ideia de que somente a parte intelectual do alma é direta e propriamente criada, a necessidade
de iluminação para a intelección, etc. Algumas dessas ideias encontravam-se na tradição
agustiniana, é verdade; mas mostrou-se que o Dante, longe de ser um tomista puro e simples,
tem uma considerável dívida com os muçulmanos, e com Averroes designadamente. Isso pode
explicar por que escolheu, para lhe fazer objeto de um tratamento de especial favor, ao mais
eminente dos filósofos islâmicos, e por que colocou no céu ao maior dos averroístas latinos.
Capítulo XX
Filosofia Judia

1. A Cábala.

A filosofia entre os judeus deve sua origem ao trato com outras nações e culturas. Assim, no
primeiro volume desta história tratei já de Filão, o judeu alejandrino (25 a. J. C.-40 d. J. C.,
aproximadamente), o qual tentou uma conciliação da teología escriturística feijão e a filosofia
grega, e produziu um sistema no que se combinaram elementos da tradição platónica (a teoria
das ideias), o estoicismo (doutrina do Logos) e o pensamento oriental (seres intermediários). Na
filosofia de Filão, a trascendencia de Deus foi vigorosamente sublinhada, e a mesma insistencia
na trascendencia divina foi caraterística da doutrina da Cábala. A Cábala estava constituída por
duas obras, Jezirah (a criação), que se compôs provavelmente após a metade do século 9 e Sohar
(a brillantez), que começou a se compor a princípios do século XIII e foi posta por escrito por
um judeu espanhol para o ano 1300. Posteriormente fizeram-se adições e comentários. A
filosofia cabalística manifesta a influência do neoplatonismo em sua doutrina da emanação e
dos seres intermediários entre Deus e o mundo, e um dos canais pelos quais o neoplatonismo
exerceu também sua influência sobre o Sohar foi o pensamento do judeu espanhol conhecido
pelos escolásticos latinos como Avicebrón.

2. Avicebrón.

Salomón ibn Gabirol, ou Avicebrón (assim chamado pelos escolásticos latinos, os quais
achavam que era um árabe) nascia em Málaga para 1021, se educou em Zaragoza, e morreu em
1069-1070. Esteve naturalmente influído pela filosofia árabe, e sua obra principal, Fons Vitae,
compôs-se originalmente em árabe. No entanto, o original arábigo não se conserva, embora
possuímos a obra na tradução latina de João Hispano (Avendeath) e Domingo Gundissalinus. A
obra consta de cinco livros, e exerceu uma considerável influência nos escolásticos cristãos.

A influência neoplatónica manifesta-se no esquema emanacionista da filosofia de


Avicebrón. A cúspide da hierarquia do ser e a fonte de todo ser limitado é, desde depois, Deus,
que é um e incognoscible pela razão discursiva, e unicamente aprehensible na intuición do
êxtase. A isso acrescentou Avicebrón uma doutrina peculiar relativa à vontade divina pela que
são criados, ou da que emanam, todos os seres inferiores. A vontade divina, como Deus mesmo,
trasciende a composição de matéria e forma, e somente pode ser presa na experiência mística;
mas o relacionamento exato da vontade divina a Deus não é fácil de determinar. A distinção
traçada entre a essência divina e a vontade divina parece fazer desta última uma hipóstasis
diferente, embora por outra parte a vontade divina é descrita como sendo Deus mesmo enquanto
ativo ad extra, como Deus em seu aparecimento. Em qualquer caso, há uma substituição do
Logos pela vontade. A partir de Deus, via vontade divina, seja esta uma feição de Deus ou uma
hipótese diferente, procede o espírito cósmico ou alma do mundo, que é inferior a Deus e está
composto de matéria e forma, matéria universalis e forma universalis. Da alma do mundo, a sua
vez, procedem os espíritos puros e as coisas corpóreas.

Mas o ponto interessante no sistema de Avicebrón não é o esquema emanacionista, senão


sua doutrina da composição hilemórfica universal em todos os seres inferiores a Deus, uma
doutrina derivada, ao menos indiretamente, de Plotino, e que influiu em uma linha de tradição
do escolasticismo cristão. Bem como da alma do mundo procedem as forma individuais, também
procedem da alma do mundo a matéria espiritual, presente à inteligência e na alma racional, e a
matéria corpórea. Por conseguinte, a matéria, que não supõe por si mesma corporeidad, é o
princípio de limitação e de finitud em todas as criaturas: a composição hilemórfica das criaturas
é o que distingue a estas de Deus, porque em Deus não há composição alguma. Essa doutrina da
composição hilemórfica universal das criaturas foi mantida, por exemplo, por São Boaventura,
o grande franciscano contemporâneo de santo Tomás. Ademais, há uma pluralidad de forma na
cada ser que possui em si mesmo uma pluralidad de graus de perfección, como por exemplo o
ser humano, o microcosmos, possui as aperfeiçoe de corporeidad, vida vegetativa, vida sensitiva
e vida intelectual. Todo ser corporal possui a forma corporeitatis, mas tem ademais que receber
seu local determinado na hierarquia dos seres, e isso se cumpre pela recepção da forma ou forma
pelas que é, por exemplo, uma coisa vivente, um animal, um cão. Afirmou-se que a doutrina de
Avicebrón constitui a verdadeira origem da teoria da pluralidad de forma caraterística da escola
agustiniana, mas, ainda o admitindo assim, deve também se recordar que a doutrina ajustava
bem no esquema da filosofia dos agustinianos, já que o próprio Agustín ensinava que a função
das forma inferiores é conduzir para as forma superiores, e que isso é também verdade das forma
enquanto representadas no conhecimento humano, isto é, que a contemplação dos graus
inferiores do ser conduz à mente aos graus superiores.

3. Maimónides.

O mais interessante dos filósofos judeus medievais é, no entanto, Moisés Maimónides, que
nascia em Córdoba em 1135 e morreu no Cairo em 1204, depois de ter que abandonar a Espanha
muçulmana, que deixava de ser favorável aos filósofos. Em seu Script de Perplejos tratou de
proporcionar à teología sua base racional na filosofia, o que para ele queria dizer a filosofia de
Aristóteles, a quem reverenciava como o maior exemplo do poder do entendimento humano,
aparte dos Profetas. Devemos ater-nos/atê-nos ao que nos é dado na percepción sensível e ao
que pode ser estritamente demonstrado pelo intelecto; se afirmações contidas no Antigo
Testamento contradizem patentemente o que é patentemente estabelecido pela razão, então
aquelas afirmações devem ser interpretadas alegóricamente. Não obstante, essa opinião não
significa que Maimónides descartasse os ensinos da teología sempre que Aristóteles sustentasse
algo diferente do ensinado pelas Escrituras. Por exemplo, a teología ensina a criação do mundo
no tempo a partir da nada, e isso significa que Deus deve ser o autor tanto da matéria como da
forma, e que o mundo não pode ser eterno. Se a eternidade do mundo pudesse ser demonstrada
pela razão de tal modo que se visse claramente que o oposto era uma imposibilidad, então
teríamos que interpretar em consequência o ensino das Escrituras; mas, em realidade, o ensino
das Escrituras é clara, e as argumentaciones filosóficas alegadas para demonstrar a eternidade
do mundo não são concluyentes: devemos, pois, neste ponto, recusar o ensino de Aristóteles.
Platón acercou-se à verdade mais que Aristóteles, mas também ele aceitou uma matéria increada.
A criação a partir da nada, tanto da

matéria como da forma, é também necessária, segundo Maimónides, se tem de se admitir o


fato dos milagres, claramente ensinado no Antigo Testamento, já que, se Deus é capaz de
suspender a operação das leis naturais, deve ser o Soberano absoluto da natureza, e não o seria
a não ser que fosse seu criador no pleno sentido da palavra. Para os fanáticos, a interpretação
alegórica por Maimónides de algumas das descrições de Deus nas Escrituras, pareceram
constituir uma venda das Sagradas Escrituras aos gregos, e alguns judeus da França chegaram a
tratar de conseguir a ajuda da Inquisición contra aquela “herejía”; mas em realidade Maimónides
limitava-se a dizer que pode ter uma fonte segura para valer aparte da teología. Em outras
palavras, concedia um estatuto à filosofia, e desse modo influiu no crescimento do interesse
filosófico entre os judeus de Espanha, embora sua principal influência corresponda ao campo da
teología. Que não era um cego adorador de Aristóteles é algo que já evidenciámos. O pensava
que Aristóteles se equivocou ao ensinar a eternidade do mundo, e embora a filosofia não possa
demonstrar a criação no tempo, pode mostrar ao menos que as argumentaciones apresentadas
em favor da posição aristotélica não são concluyentes nem sólidas.

Apoiando-se em parte na teología natural de Alfarabí e Avicena, Maimónides provou a


existência de Deus de várias maneiras, argumentando a partir das criaturas até Deus como
Primeiro Motor, como Ser Necessário e como Causa Primeira. Baseou esses argumentos em
enunciados de Aristóteles na Física e na Metafísica. Mas se Maimónides antecipou a maioria
dos tipos de prova utilizados mais tarde por São Tomás de Aquino, Maimónides insistiu mais
que este último na inaplicabilidad de pregados positivos a Deus. Deus é ato puro, sem matéria e
sem potência, infinitamente separado das criaturas, e, quanto a “qualidades”, podemos dizer o
que Deus não é mais bem que o que é. Deus é um e trascendente (entre Deus e o mundo há uma
hierarquia de inteligências ou espíritos puros), mas não podemos nos formar nenhuma ideia
positiva adequada de Deus. Santo Tomás, desde depois, admitiria isso, mas Maimónides foi
bastante mais insistente na via negativa. Podemos, no entanto, adscribir a Deus atividades, as
atividades de criação e providência, por exemplo, sempre que reconheçamos que a diferença de
nomes não corresponde a diferença alguma em Deus mesmo, e que Deus mesmo é inmutable.
A diferença de Avicebrón, Maimónides admitia uma providência especial de parte de Deus sobre
as criaturas particulares, embora somente no caso do homem, pelo que se refere ao mundo
material. O intelecto ativo é a décima inteligência (as inteligências são “sem matéria”), mas os
intelectos pasivos dos justos são imortais. Por conseguinte, Maimónides não admitia a
imortalidade senão limitadamente, para os justos. Mas mantinha a liberdade da vontade, pela
que os homens se fazem justos, e negava a influência determinante dos corpos celestes e das
esferas respecto da conduta humana. Finalmente, Moisés Maimónides teve mais sucesso na
empresa de reconciliar a filosofia grega com a ortodoxia judia do que tinha Avicebrón, e é digno
de se advertir que a influência do sistema aristotélico é mais evidente na filosofia do primeiro
que na do segundo.
Capítulo XXI
As tradições

1. As obras traduzidas.

Dantes do século XII, parte do Organon de Aristóteles (as Categorias e o De Interpretationé)


tinha estado ao dispor dos filósofos medievais na versão latina de Boecio (.Lógica vetus), mas
o Organon completo não esteve disponível até bem entrado no século XII. Assim, para 1128,
Jaime de Veneza traduziu os Analíticos, os Tópicos, e os Argumentos Sofísticos, do grego ao
latín. Os livros do Organon então traduzidos conheceram-se como a Lógica Nova. Parece que
ao menos fragmentos de outros livros do Organon, aparte das Categorias e o De Interpretatione,
sobrevivia até o século XII na tradução de Boecio; mas, em qualquer caso, uma tradução
completa do Organon ao latín não se realizou até mediados de século. Deve ser advertido que a
tradução de Jaime de Espanha se fez envelope o texto grego, bem como também a tradução do
livro quarto dos Meteorologica feita por Enrique Aristipo dantes do ano 1162. Enrique Aristipo
era arcediano em Catania, na ilha de Sicília, que era um centro importante na obra de tradução.
Foi na Sicília do século XII onde se traduziram do grego ao latín a |i£yáÁTi| gúvtcc^is e a Optica
de Ptolomeo, alguma das obras de Euclides e a Elementatio Physica de Proelo.

Sicília foi um centro do trabalho de tradução. Outro foi Espanha, cuja mais famosa escola
de tradutores foi a de Toledo. Baixo a direção do arcebispo Raimundo (1126-1151), João
Hispano (Avendeath) traduziu ali do árabe ao latín (através do espanhol) a Lógica de Avicena,
e Domingo Gundissalinus traduziu (com a ajuda de outros eruditos) a Metafísica de Avicena,
partes de sua Física, sua De Sufficientia, De Caia-o et Mundo e De Mundo, a Metafísica de
Algazel e o De Scientiis de Alfarabí. Domingo Gundissalinus e João de Espanha traduziram
também do árabe ao latín o Fons Vitae de Avicebrón.

Um distinto membro desse grupo de eruditos foi Gerardo de Cremona, que trabalhou em
Toledo em 1134 e morreu em 1187. Gerardo traduziu do árabe ao latín, de Aristóteles, os
Analíticos Posteriores (junto do Comentário de Temistio), a Física, o De Caia-o et Mundo, o De
generatione et corruptione e os primeiros três livros dos Meteorologica,; de Alkindi, o De
Intellectu, o De Somno et Visione e o De quinqué Essentiis; o Liber de Causis e algumas outras
obras.

A escola de tradutores de Toledo era ainda de importância no século XIII. Assim, Miguel
Scot (morto fazia 1235) traduziu em Toledo o Do caia et Mundo, o De Anima, os escritos de
zoología e também (provavelmente) a Física de Aristóteles, bem como os Comentários de
Averroes ao Do caia et Mundo e ao De Anima, e o compendio de Avicena do De Animalibus; e
Hermán o Alemão, que morreu em 1272, sendo bispo de Astorga, traduziu o “Comentário
médio” de Averroes à Etica Nicomaquea, e também sua compendio da mesma obra e seus
Comentários à Retórica e à Poética.

2. Traduções do grego e do árabe.

Pelo que se disse poderá ser visto que é um erro imaginar que os escolásticos latinos
dependessem inteiramente de traduções a partir do árabe, ou, ao menos, que a tradução a partir
do árabe precedesse sempre à tradução a partir do grego. Assim, a tradução por Enrique Aristipo
do quarto livro dos Meteorologica precedeu à tradução por Gerardo de Cremona dos três
primeiros livros da mesma obra a partir do árabe. Ademais, algo da Metafísica era traduzido do
grego dantes de que estivesse feita a tradução arábiga. A tradução a partir do grego[420], que não
compreendia simplesmente os três primeiros livros e uma pequena parte do quarto, como
primeiramente se supôs, estava em uso em Paris para 1210, e lha conheceu como Metaphysica
Vetus, a diferença da tradução a partir do árabe, que era feita por Gerardo de Cremona ou Miguel
Scot e era conhecida, na primeira metade do século XIII, como Metaphysica Nova. Os livros K,
M e N, bem como bilhetes menores, faltavam nessa tradução. Na segunda metade do século, o
título de Metaphysica Nova, ou Translatio Nova deu-se à tradução do grego feita por Guilherme
de Moerbeke (após 1260), na que santo Tomás baseou seu Comentário. Também se evidenciou
que teve uma translatio média do grego, na que Alberto Magno baseou seu Comentário, e que
foi conhecida por santo Tomás.

Quanto aos escritos éticos de Aristóteles, no final do século XII dispunha-se de uma tradução
dos livros 2 e 3 da Etica Nicomaquea. Essa tradução era feita envelope o texto grego
(possivelmente era obra de Boecio), e conheceu-lha como Ethica Vetus, enquanto uma tradução
mais tardia (do livro 1) foi conhecida por Ethica Nova. Uma tradução completa, atribuída
comummente a Roberto Grosseteste (morrido em 1253), cujos três primeiros livros são uma
recensión da Ethica Vetus e a Ethica Nova, fez-se então sobre o texto grego. A Magna Moralia
foi traduzida por Bartolomé de Mesina durante o reinado do rei Manfredo (1258-1266); mas
somente o livro sétimo da Etica a Eudemofue conhecido no século XIII.

O De Anima foi traduzido do grego dantes de 1215, sendo algo posterior a tradução do árabe
por Miguel Scot. Guilherme de Moerbeke produziu outra versão do grego, ou uma edição
corrigida da primeira tradução do grego. Igualmente teve uma tradução da Física a partir do
grego dantes das duas traduções do árabe por Gerardo de Cremona e Miguel Scot, e uma
tradução do grego do De generatione et corruptione precedeu à tradução do árabe de Gerardo de
Cremona. A Política foi traduzida do grego para 1260 por Guilherme de Moerbeke (não tinha
tradução do árabe), o qual traduziu também provavelmente a Econômica, para 1267. Aquele
homem eminente, que nascia para 1215 e morreu em 1286, sendo arcebispo de Corinto, não
somente traduziu das grego obras de Aristóteles e reeditou traduções anteriores (possibilitando
assim a seu amigo São Tomás de Aquino que escrevesse seus Comentários), senão que também
traduziu do grego alguns Comentários de Alexandro de Afrodisia, Simplicio, João Filópono e
Temistio, bem como também algumas obras de Proelo e a exposição que este fez do Timeo de
Platón[421]. Sua tradução da Elementatio theologica de Proelo permitiu a santo Tomás dar-se
conta de que o Liber de Causis não era obra de Aristóteles, como anteriormente se tinha suposto,
senão que estava baseado na obra de Proelo. Foi também Guilherme de Moerbeke quem traduziu
a Retórica de Aristóteles. Quanto à Poética, os medievais possuíram somente a tradução do
Comentário de Averroes feita por Hermán o Alemão.[422]

Desde que a investigação moderna evidenciou que geralmente traduções feitas envelope os
textos gregos precederam às traduções a partir do árabe, e que, ainda que a tradução original do
grego fosse incompleta, a versão arábigo-latina tinha cedo que dar local a uma tradução nova e
melhor do grego, já não pode ser dito que os medievais não tivessem um verdadeiro
conhecimento de Aristóteles, senão só uma caricatura da doutrina deste, uma reprodução
deformada pela mão dos filósofos árabes. Mas o que sim pode ser dito é que não sempre foram
capazes de distinguir o que devia ser atribuído a Aristóteles do que não devia lhe ser atribuído.
Deu-se um grande passo adiante quando santo Tomás reconheceu que o Liber de Causis não era
obra de Aristóteles. O aquinatense tinha já clara consciência de que os Comentários de Averroes
não tinham que se considerar como a interpretação incuestionable da filosofia de Aristóteles,
mas parece que inclusive pensou, ao menos durante algum tempo, que o Pseudo-Dionisio não
estava longe de ser um seguidor de Aristóteles. A verdade do assunto consiste não em que os
medievais não dispusessem de textos de Aristóteles dignos de confiança, senão em que seu
conhecimento histórico era deficiente: não advertiram adequadamente, por exemplo, o
relacionamento entre Platón e Aristóteles, ou entre o neoplatonismo e Platón ou Aristóteles.
Unicamente quem não conheça os Comentários de santo Tomás pode negar que este seja um
hábil comentarista de Aristóteles; mas seria uma tolice pretender que o mesmo santo Tomás
tivesse um conhecimento da história e o desenvolvimento da filosofia grega como o que podem
ter os eruditos modernos. Santo Tomás fez um bom uso da informação que tinha ao seu dispor,
mas essa informação era bastante limitada.

3. Efeitos das traduções e oposição ao aristotelismo.

A tradução de obras de Aristóteles e de suas comentadores, bem como a dos pensadores


árabes, proporcionou aos escolásticos latinos uma grande riqueza de material intelectual.
Designadamente, proporcionou-lhes o conhecimento de sistemas filosóficos que eram
metodologicamente independentes da teología, e que se apresentavam como a reflexão da mente
humana sobre o universo. Os sistemas de Aristóteles, de Avicena, de Averroes, abriam amplas
perspetivas à razão humana, e os medievais viam claramente que a verdade conseguida nos
mesmos tinha que ser independente da revelação cristã, já que era conseguida por um filósofo
grego e por seus comentadores gregos e islâmicos. Desse modo as traduções ajudaram a pôr em
claro nas mentes medievais o relacionamento entre a filosofia e a teología, e contribuíram em
grande parte à delimitação dos campos de uma e outra. É verdade, sem dúvida, que o sistema de
Aristóteles adquiriu, de um modo bastante natural, o local de preferência entre os de seus
comentaristas, e que a filosofia de Aristóteles tendeu a aparecer, aos olhos daqueles latinos aos
que impressionou favoravelmente, como o non plus ultra do empenho do entendimento humano,
já que constituía o esforço mais extenso e sustentado da mente humana de que eles tinham
conhecimento; mas os cristãos medievais não deixaram de ter clara consciência de que aquilo
era a obra da razão, não uma série de dogmas revelados. Para nós, ao dirigir a eles nossa mirada
retrospectiva ao cabo de um muito longo percurso, pode parecer que alguns medievais
exageraram o gênio de Aristóteles (e sabemos também que não advertiram a existência de
diferentes estratos ou períodos no pensamento de Aristóteles), mas deveríamos pôr por um
momento em seu local e tratar de imaginar a impressão que produziria ao filósofo medieval a
vista do que em qualquer caso é um dos supremos lucros da mente humana, um sistema que,
tanto por seu caráter completo como pela firmeza de sua razonamiento, não podia encontrar
paralelo no pensamento da primeira parte da Idade Média.

Não obstante, o sistema de Aristóteles, embora não pôde ser ignorado, não se encontrou com
uma universal bem-vinda e aprovação. A causa em grande parte do Liber de Causis (até que
santo Tomás descobriu a verdade a respeito deste), do telefonema Teología de Aristóteles
(extratos das Enneadas de Plotino), e do De seeretis seeretorum (composto por um filósofo árabe
no século 11 ou começos do 12), que eram atribuídos a Aristóteles, a filosofia deste tendeu a
aparecer a uma falsa luz. Ademais, a atribuição a Aristóteles de ditos livros fez naturalmente
que parecesse que os comentadores árabes estavam justificados em suas interpretações
neoplatónicas. Daí resultou que em 1210 o Concilio Provincial de Paris, reunido baixo a
presidência de Pedro de Corbeil, arcebispo de Sens, proibiu o ensino público ou privada da
“filosofia natural” de Aristóteles ou dos comentários à mesma. Essa proibição foi imposta baixo
pena de excomunión e aplicada à universidade de Paris. Com toda probabilidade, a “filosofia
natural” incluía a metafísica de Aristóteles, pois quando os estatutos da universidade de Paris
foram sancionados por Roberto de Courgon, legado pontificio, em 1215, foram proibidos os
livros de metafísica e filosofia natural de Aristóteles, bem como os compendios dessas obras e
as doutrinas de David de Dinant, Amalrieo de Bene, e Mauricio de Espanha (provavelmente
Averroes, o Mouro, ou Maurus), embora foi ordenado o estudo da lógica de Aristóteles. O estudo
da Etica não foi proibido.

Como já indiquei, a proibição se deveu em grande parte à atribuição a Aristóteles de obras


que não eram suas. Amalrieo de Bene, cujos escritos foram incluídos na proibição de 1215,
mantinha doutrinas que estavam em divergência com os ensinos cristãos e que pareciam
encontrar algum apoio na filosofia de Aristóteles, se esta era interpretada à luz de todos os livros
que se lhe atribuíam, enquanto David de Dinant, o outro filósofo herético cujos escritos foram
proibidos, apelava realmente à Metafísica, que era traduzida ao latín a partir da versão grega
trazida desde Bizancio dantes de 1210. A essas considerações deve ser acrescentado o fato
indudable de que Aristóteles mantinha a eternidade do mundo. Era, pois, natural que o sistema
aristotélico, sobretudo se se lhe unia às filosofias de David de Dinant, Amalrieo de Bene e
Averroes, aparecesse aos tradieionalistas como um perigo para a ortodoxia. A lógica de
Aristóteles tinha estado em uso desde fazia tempo, ainda que o Organon completo só
recentemente era posto em circulação, mas as doutrinas completas metafísicas e cosmológicas
de Aristóteles constituíam uma novidade, uma novidade à que fazia pelo menos perigosa a
associação com filosofias heréticas.

No entanto, em 1231, o papa Gregorio IX, embora mantendo a proibição, designou uma
comissão de teólogos, Guilherme de Auxerre, Esteban de Provins e Simón de Authie, para que
corrigisse os livros proibidos de Aristóteles, e como essa medida implicava evidentemente que
os livros não eram fundamentalmente errôneos, a proibição tendeu a se descurar. Foi estendida
a Toulouse em 1245 por Inocencio IV, mas naquela data não era já possível deter a difusão do
aristotelismo, e a partir de 1255 se ensinavam oficialmente na universidade de Paris todas as
obras conhecidas de Aristóteles. A Santa Sede não atuou contra a universidade, embora em 1263
Urbano IV renovou a proibição de 1210, provavelmente por medo ao averroísmo; mas a
renovada proibição não passou de letra morrida. O papa deveu saber perfeitamente bem que
Guilherme de Moerbeke estava traduzindo em sua própria corte as obras proibidas de
Aristóteles, e a proibição de 1263 deveu ir dirigida a deter o averroísmo, sem tentar seriamente
pôr fim a todo estudo da filosofia aristotélica. Em qualquer caso, a proibição não surtió efeitos,
e, finalmente, em 1366, os legados de Urbano V exigiam de todos os candidatos à licenciatura
em Artes por Paris um conhecimento de todas as obras conhecidas de Aristóteles. Por então
fazia já tempo que estava claro para os medievais que uma obra como o Liber de Causis não era
de Aristóteles, e que a filosofia aristotélica, salvo, desde depois, aos olhos dos averroístas
latinos, não estava vinculada à interpretação dada por Averroes, senão que podia ser
harmonizado com a fé cristã. Em realidade, os mesmos dogmas da fé era expressos, já por então,
por alguns teólogos em termos tomados do sistema aristotélico. Esse breve resumem da atitude
oficial ante Aristóteles por parte da autoridade eclesiástica e acadêmica evidencia que o
aristotelismo acabou por triunfar. Isso não significa, no entanto, que todos os filósofos medievais
dos séculos 13 e 14 recebessem igual de bem a Aristóteles, nem que todos eles interpretassem a
este da mesma maneira: o vigor e variedade do pensamento medieval se porá em claro nos
capítulos seguintes. É uma afirmação verdadeira a de que a sombra de Aristóteles se cierne
envelope o pensamento filosófico da Idade Média e o domina, mas essa afirmação não constitui
toda a verdade, e teríamos uma ideia muito inadequada da filosofia medieval nos séculos 13 e
14 se imaginássemos que esteve inspirada e caraterizada por uma servil aceitação de todas as
palavras do grande filósofo grego.
Parte V
No Século XIII
Capítulo XXII
A universidade de Paris

1. A universidade de Paris.

Os principais filósofos e teólogos do século meu estiveram todos sócios, em algum período,
à universidade de Paris, que se formou a partir do corpo de professores e alunos pertencentes à
Escola catedral de Notre-Me dá e as outras escolas de Paris. Os estatutos da universidade foram
sancionados por Roberto de Courgon, legado pontificio, em 1215. Alexandro de Hales, São
Boaventura, Santo Alberto Magno, São Tomás de Aquino, Mateo de Aquasparta, Roger
Marston, Ricardo de Middleton, Roger Bacon, Gil de Roma, Siger de Brabante, Enrique de
Gante, Raimundo Liull (ou Lulio), Duns Scot (morrido em 1308), todos estudaram, ou
ensinaram, ou ambas coisas, em Paris. Outros centros de educação superior foram, no entanto,
desenvolvendo-se e adquirindo uma tradição própria. Assim, com a universidade de Oxford
estão associados os nomes de homens como Roberto Grosseteste, Roger Bacon e Duns Scot, e
enquanto Paris foi o palco do triunfo do aristotelismo, o nome de Oxford evoca uma mistura
caraterística de tradição agustiniana e “empirismo”, da que é exemplo a filosofia de Roger
Bacon. No entanto, apesar da importância de Oxford, Bolonha, e, em ocasiões, o corte papal, a
universidade de Paris foi com muito o mais importante centro de estudos superiores na
Cristandade do século XIII. Os eruditos iam a Paris a estudar e regressavam depois a Oxford ou
a Bolonha, para ensinar ali, e desse modo levavam consigo o espírito e os ideais da grande
universidade, e inclusive aqueles eruditos que nunca puseram por si mesmos pés em Paris
estiveram submetidos à influência parisiense. Roberto Grosseteste, por exemplo, que
possivelmente não estudou nunca em Paris, esteve indubitavelmente influído por professores
dessa universidade.

O caráter internacional da universidade de Paris, com sua consiguiente importância na


expressão intelectual e na defesa do cristianismo, fez naturalmente da manutenção da ortodoxia
religiosa dentro de seu recinto um dos interesses da Santa Sede. Assim, a controvérsia averroísta
deve ser considerada à luz da posição internacional da Universidade: esta representava em si
mesma a cultura intelectual da Idade Média, relativo à filosofia e a teología, e a difusão dentro
de seus muros de um sistema de pensamento que era irreconciliable com o cristianismo não
podia deixar indiferente a Roma. Por outra parte, seria um erro supor que tivesse uma rígida
imposição de uma tradição particular. É verdade que São Tomás de Aquino tropeçou com
dificuldades em sua aceitação e propagación do aristotelismo, mas tais dificuldades não foram
muito duradouras; e, mais tarde, embora a filosofia de Aristóteles chegou finalmente a dominar
a vida intelectual da Universidade, nos séculos 13 e 14 ficou ainda muito espaço para diferentes
perspetivas filosóficas.

2. Universidades fechadas e corporaciones privilegiadas.

As Universidades, para estar constituídas como tais, precisavam receber uma Carta formal,
bem do papa ou bem do imperador (a universidade de Nápoles recebeu sua Carta de Frederick
II), ou, mais tarde, dos reis. Essas Cartas conferiam consideráveis privilégios aos professores e
alunos, privilégios que eram zelosamente guardados. Os dois privilégios mais importantes eram
os de jurisdição interna (que ainda sobrevive em Oxford, por exemplo) e o poder de conferir o
grau, que levava consigo a licença para ensinar. Os estudantes estavam exentos de serviço
militar, exceto em circunstâncias especiais, e a universidade estava em general exenta de muitos
impostos, particularmente dos impostos locais. Na Europa do Norte os professores controlavam
a Universidade e o posto de reitor era electivo, enquanto as universidades do sul da Europa
governavam-se frequentemente de um modo claramente democrático, mas tanto em um caso
como em outro a Universidade era uma corporación em grande parte cenada e independente,
que mantinha seus privilégios em frente à Igreja e ao Estado. Nessa feição, as universidades de
Oxford e Cambridge representam a tradição e as práticas medievais mais fielmente que aquelas
universidades continentais cujos reitores e professores são nomeados pelo Estado.

3. Plano de estudos.

Em tempos medievais, e o mesmo pode ser dito de um período muito posterior, os estudantes
ingressavam na Universidade a uma idade bem mais temporã que à que hoje o fazem. Assim,
rapazs de treze ou catorze anos podiam começar a assistir à Universidade, e, se se tem em conta
esse fato, o número de anos que se precisavam para obter o doctorado não parecerá tão
surpreendente. Os cursos de arte duravam entre quatro e médio e seis anos, segundo a
Universidade (embora em Oxford precisavam-se uns sete), e, durante algum tempo ao menos,
os estudantes tinham que qualificar na Faculdade de Artes dantes de passar à de Teología. Nos
cursos de teología tinham que passar quatro anos assistindo a lições sobre a Biblia, e depois
outros dois assistindo a lições sobre as Sentenças, após o qual, o estudante que já tinha vinte e
seis anos de idade, se convertia em bachiller, e dava lições, durante os dois anos seguintes,
envelope dois livros da Biblia. Podia então passar a ensinar nos cursos sobre as Sentenças e,
finalmente, após vários anos dedicados a estudos e disputaciones, podia atingir o doctorado e
ensinar teología, sempre que tivesse quando menos trinta e quatro anos de idade. Para ensinar
as artes, a idade mínima requerida era de vinte. Em Paris, a tendência foi a incrementar o número
de anos requeridos para obter o doctorado, embora em Oxford os cursos de artes duravam mais,
e os de teología menos que em Paris.

Aqueles estudantes que atingiam o grau de doutor e abandonavam a universidade eram


conhecidos como magistri non regentes, enquanto os que ficavam a ensinar ali eram conhecidos
como magistri regentes; mas, por muitos estudantes que possa ter tido da primeira classe, está
claro que os cursos de doctorado tinham como propósito a produção de professores e maestros
de carreira.
Quanto ao conteúdo dos estudos, ou curriculum, a prática geral da universidade do século
XIII consistia em ler ou escutar a leitura de certos textos. Assim, aparte dê os escritos dos
gramáticos como Prisciano e Donato e certos outros textos clássicos, os escritos de Aristóteles
chegaram a dominar completamente a Escola de Artes em decorrência do tempo, e é
significativo que o “averroísmo latino” estivesse representado principalmente por professores
de dita faculdade. Em teología, a Biblia e as Sentenças de Pedro Lombardo dominavam a cena,
e o professor apresentava suas próprias opiniões por via de comentário. Aparte das leituras
existia outra caraterística essencial do currículum, a saber, a “disputación”, que podia tomar a
forma de disputación “ordinária” (disputatio ordinária) ou de disputación “geral” (de quolibet).
As disputationes de quolibet, nas que se elegia um tema entre uma grande variedade dos
mesmos, se sustentavam em festas solenes, e, após a disputación em sentido estrito, isto é, entre
um defensor ou respondens e os objetantes, opponentes, o professor resumia toda a matéria,
argumentaciones, objeciones e réplicas, e acabava dando sua solução considerada (determinatio)
do ponto em questão, para o que começava com as palavras Respondeo dicendum. O resultado
final, ordenado pelo professor, era então publicado como um Quodlibet. (Santo Tomás deixou
onze ou doze deles.) A disputatio ordinária ia também seguida por uma determinatio, e era
publicada como uma Quaestio disputata. Tinha ademais outras forma de disputación, mas essas
duas, a disputatio ordinária e a disputatio de quolibet eram as mais importantes. Tinham como
propósito aumentar o entendimento do estudante a respeito de um tema particular, bem como
seu poder de argumentación e de resposta às objeciones. Em realidade, falando em general, a
educação universitária medieval aspirava a dar um determinado corpo de conhecimentos e a
facilitar a destreza no tratamento do mesmo mais bem que a incrementar o conhecimento de
fatos, como nos modernos institutos de investigação. Indubitavelmente os escolares aspiravam
a incrementar seus conhecimentos especulativamente, mas o incremento do conhecimento
científico, por exemplo, não tinha muito local na educação medieval, embora durante o século
XIV a ciência fez alguns progressos em Paris e Viena.

4. As ordens religiosas em Paris.

De considerável importância na vida de Paris e Oxford foram as ordens religiosas,


particularmente as duas ordens mendicantes fundadas no século XIII, os dominicos e os
franciscanos. A primeira estabeleceu-se em Paris em 1217, e a segunda poucos anos mais tarde.
Ambas ordens procederam então a reclamar cátedras de teología na Universidade, isto é,
pretenderam que suas cátedras de teología fossem incorporadas à Universidade, e que seus
professores e alunos pudessem desfrutar dos privilégios universitários. Teve uma considerável
oposição a essa pretensão por parte do corpo docente da Universidade. Mas em 1229 os
dominicos receberam uma cátedra, e em 1231 uma segunda, no mesmo ano que os franciscanos
recebiam sua primeira cátedra (eles não receberam uma segunda). Rolando de Cremona e João
de San Gil foram os primeiros professores dominicos, e Alexandro de Hales o primeiro professor
franciscano. Em 1248 o capítulo geral da ordem dominicana decretou a erección de studia
generalia (casas de estudo para toda a ordem, a diferença das casas de estudo das províncias
particulares), em Colônia, Bolonha, Montpellier e Oxford, e os franciscanos estabeleceram
studia generalia em Oxford e Toulouse. Em 1260 os agustinos abriram uma casa em Paris, e seu
primeiro doutor oficial foi Gil de Roma, enquanto os carmelitas abriram casas em Oxford, em
1253, e em Paris, em 1259. Outras ordens seguiram seu exemplo.
As ordens religiosas, particularmente os dominicos e franciscanos, desenvolveram um
grande labor no campo intelectual e produziram homens sobre alientemente eminentes (basta
pensar em Santo Alberto Magno e São Tomás de Aquino na ordem dominicana, Alexandro de
Hales e São Boaventura na ordem franciscana); mas tiveram de enfrentar-se com uma grande
oposição, inspirada em parte, sem dúvida, pelas fitas-cola. Seus oponentes não se limitaram a
pedir que nenhuma ordem religiosa pudesse ocupar mais de uma cátedra ao mesmo tempo, senão
que chegaram a atacar o estado de vida religioso em si mesmo. Assim, em 1255, Guilherme de
St.-Amour publicou um panfleto, De periculis novissimorum temporum, que provocou como
resposta o Contra impugnantes Dei cultum de santo Tomás. A brochura de Guilherme de St.-
Amour foi condenado, e em 1257 proibiu-se aos seculares que publicassem escritos contra os
regulares; mas apesar dessa proibição, Gerardo de Abbeville renovou a oposição com sua Contra
adversarium perfectionis christianae. São Boaventura e santo Tomás, por muito que pudessem
disentir em matéria filosófica, estiveram unidos em sua determinação de defender às ordens
religiosas, e ambos publicaram réplicas à obra de Gerardo, as quais provocaram a sua vez um
contragolpe de Nicolás de Lisieux, escrito em favor dos seculares. A disputa entre regulares e
seculares estalló de novo em várias ocasiões posteriores, mas, pelo que respecta ao principal
ponto da disputa, a incorporação à Universidade das cátedras dos regulares, o julgamento
emitido a favor destes já não foi revogado. Teve, no entanto, uma consequência digna de
menção, e foi a fundação, em 1253, do Colégio da Sorbona, por Roberto de Sorbon, capellán do
rei Luís IX, para a educação de estudantes de teología, no que se admitia a estudantes seculares.
Se considero a fundação do Colégio da Sorbona e de colégios parecidos como uma
“consequência” da controvérsia entre regulares e seculares, todo o que quero dizer é que tais
colégios foram fundados em parte talvez para contrarrestar a influência e posição dos regulares,
e, indubitavelmente, para estender a um campo menos limitado os benefícios de um tipo de
educação e adiestramiento pensado para religiosos.

5. Correntes de pensamento do século XIII.

No século XIII podem ser distinguido diversas correntes de pensamento, que tenderam
eventualmente, nas ordens religiosas, a se fazer mais ou menos fixas em escolas tradicionais.
Antes de mais nada, está a corrente agustiniana de pensamento, de caráter conservador e, em
general, de atitude reservada ante o aristotelismo, uma atitude que variou desde uma marcada
hostilidade a uma parcial aceitação. Essa corrente é caraterística dos pensadores franciscanos (e
também dos primeiros dominicos), e está representada por Grosseteste, Alexandro de Hales e
São Boaventura. Em segundo local está a corrente aristotélica, que chegou a ser caraterística dos
dominicos, e está representada por Santo Alberto Magno (em parte) e (plenamente) por São
Tomás de Aquino. Em terceiro local estão os averroístas, representados por Siger de Brabante.
Em quarto local, temos de tomar em consideração a pensadores independentes e ecléticos como
Gil de Roma e Enrique de Gante. Em quinto local, nos anos da mudança de século, aparece a
grande figura de Duns Scot, que revisou a tradição franciscana à luz do aristotelismo e que, com
preferência a São Boaventura, chegou a ser aceite como Doutor de sua ordem. Não posso entrar
em detalhe no pensamento de todos os filósofos do século XIII, mas me esforçarei em pôr
claramente de relevo suas caraterísticas mais destacadas, em mostrar a diversidade de
pensamento dentro de uma estrutura mais ou menos comum, e em indicar a formação e
desenvolvimento das diferentes tradições.
Capítulo XXIII
Guilherme de Auvergne

1. Razões para tratar de Guilherme de Auvergne.

Guilherme de Auvergne (ou Guilherme de Paris), autor de um De Trinitate ou De primo


princípio (para 1225), um De Anime (1230), um De universo creaturarum (para 1231) e outros
tratados menores, foi bispo de Paris de 1228 a 1249, ano de sua morte. Não é um dos pensadores
mais conhecidos da Idade Média; mas chama nossa atenção como um filósofo e teólogo que era
bispo de Paris quando Gregorio IX designou a comissão de teólogos que devia corrigir as obras
de Aristóteles, e modificou assim tacitamente a atitude da Igreja para o filósofo pagano. Em
realidade, Guilherme de Auvergne representa a atitude adotada por Gregorio IX quando ele
(Guilherme) diz em sua De Anima que, embora Aristóteles contradiz com frequência a verdade
e deve então ser recusado, suas doutrinas podem ser aceitado quando estão de acordo com a
verdade, isto é, quando são compatíveis com a doutrina cristã. Em sua linha fundamental de
pensamento, Guilherme de Auvergne continua a tradição de Agustín, Boecio e Anselmo, mas
conhecia não só as obras de Aristóteles senão também os escritos dos filósofos árabes e judeus,
e não duvidava em utilizar largamente suas ideias. Em general, pois, podemos dizer que em
Guilherme de Auvergne vemos a um inteligente e razoável aderido à antiga tradição, bem
disposto para utilizar as novas correntes de pensamento mas perfeitamente consciente dos pontos
em que os árabes e Aristóteles diferiam da doutrina cristã. Encarna, pois, a transição do século
XII ao século XIII, o que lhe dá um título para ser tido em conta quando se está tratando dos
primeiros pensadores desse último século. Ademais, era um sacerdote secular que ocupava a
sede episcopal de Paris na época em que as ordens mendicantes obtinham suas primeiras
cátedras, e também nesse fato se encontra uma justificativa para tratar de suas ideias filosóficas
dantes de proceder a tratar dos pensadores das ordens dominicana e franciscana. Nem é também
não uma figura pouco apreciable em si mesma; ao invés, seu pensamento é vigoroso, original e
sistemático.

2. Deus e as criaturas: essência e existência.

Guilherme de Auvergne tomou de Avicena a distinção entre essência e existência e fez dela
a explicação da finitud e dependência das criaturas. O esse, existência, não pertence à ratio ou
essência de nenhum objeto, salvo aquele único objeto (Deus) no qual a existência é idêntica à
essência; de todos os demais objetos a existência se prega só “acidentalmente”, isto é, pertence
a eles por participação (per participationeni). Se consideramos qualquer objeto finito,
advertimos que há uma distinção entre sua ratio ou natureza essencial e sua existência, que não
é necessário que tal objeto exista; mas se consideramos o Ser Necessário, advertimos que sua
essência não pode ser concebida sem existência.

Finalmente, “em todas as coisas (diferentes de Deus) o ens é uma coisa e o esse ou entitas é
outra”[423]. Isso significa que somente Deus é pura existência, pois a existência é Sua essência,
enquanto os objetos não existem essencialmente, porque tenham que existir, senão porque sua
existência é adquirida, recebida. Por conseguinte, o relacionamento a Deus dos objetos
diferentes de Deus deve ser um relacionamento de criatura a Criador, do que se segue que a
teoria da emanação é falsa[424]: Deus é absolutamente simples. As coisas não preexisten em
Deus como partes de Deus, como teria que ser o caso se emanassem de Deus como as águas de
uma fonte, senão somente nas formae exemplares, que são idênticas a Deus. Deus vê-se a si
mesmo como a causa instância de todas as criaturas.[425]

3. Criação por Deus, diretamente e no tempo.

Se Guilherme de Auvergne recusa a teoria neoplatónica-árabe da emanação, recusa


igualmente a noção de criação por via de intermediários. A hierarquia de inteligências posta por
Aristóteles e seus sucessores não tem fundamento na realidade[426]. Deus criou o mundo
diretamente. Daí segue-se que Deus exerce providência respecto das coisas individuais, e
Guilherme apela abundantemente às atividades instintivas dos animais irracionais como um
exemplo da operação da providência divina[427]. Igualmente é recusada a doutrina aristotélica
da eternidade do mundo. Por muito que alguns queiram dizer, e por muito que possam tratar de
excusar a Aristóteles, é um fato verdadeiro que esse filósofo sustentou que o mundo é eterno e
que não começou a ser, e Avicena lhe seguiu nessa opinião[428]. Em consequência, Guilherme
não se limita a dar as razões de que Aristóteles e Avicena sustentassem tal opinião, senão que
trata das pôr à melhor luz, apresentando suas argumentaciones com a maior força, e procede
depois a refutarlas. Por exemplo, a ideia de que se Deus precedesse à criação do mundo teria
que ter decorrido uma duração infinita dantes da criação, e a ideia de que teria um tempo vazio
dantes da criação, descansam em uma confusão do tempo com a eternidade. A ideia de duração
infinita decorrendo dantes da criação somente teria significado se a eternidade fosse o mesmo
que o tempo, isto é, se não fosse eternidade, se Deus existisse no tempo; e a ideia de um tempo
vazio dantes da criação carece também de sentido, já que dantes da criação não teve tempo
algum. Temos que dizer que Deus precede à criação, que existe dantes que o mundo, mas ao
mesmo tempo temos de recordar que tais expressões estão tomadas da duração temporária, e, ao
se aplicar ao que é eterno, se empregam em um sentido não unívoco, senão analógico.

No entanto, segundo observa Guilherme de Auvergne, não é suficiente contradizer ao


adversário e mostrar a insuficiencia de suas argumentaciones se não se procede a provar a
própria posição de modo positivo. Guilherme apresenta, pois, diversos argumentos em favor da
ideia de criação do mundo no tempo, alguns dos quais reaparecem em São Boaventura, e são
declarados não concluyentes por santo Tomás. Por exemplo, Guilherme argumenta, com as
mesmas palavras do adversário, que se o mundo tivesse estado eternamente na existência teria
que decorrer um tempo infinito dantes do momento presente. Mas é impossível que decorra um
tempo infinito. Portanto, o mundo não pode ter existido desde a eternidade. Portanto, foi criado
no tempo, isto é, pode ser atribuído ao tempo um primeiro momento. Por outra parte, supondo
que as revoluções de Saturno estão com as revoluções do Sol em uma proporção de um a trinta,
o Sol fará desde a criação um número de revoluções trinta vezes superior ao das de Saturno. Mas
se o mundo existe desde a eternidade, tanto Saturno como o Sol fará um número infinito de
revoluções. Agora bem, como possa uma infinitud ser trinta vezes maior que outra?

Pelo dito até agora deve estar claro que Guilherme de Auvergne não se limitou a negar
simplesmente a concepção emanatista neoplatónica e a ideia aristotélica da eternidade do mundo
para manter a doutrina agustiniana da criação livre e direta por Deus no tempo. Ao invés,
detalhou com exatidão e recusou vigorosamente os argumentos de seus oponentes, e elaborou
provas sistemáticas de sua própria tese. O que pudesse o fazer assim se deveu em grande parte
ao fato de que tinha um conhecimento de primeira mão dos escritos de Aristóteles e dos árabes,
e a que não duvidou em utilizar, não somente a lógica e as categorias de Aristóteles, senão
também as ideias do mesmo Aristóteles, e de Avicena e outros, quando eram aceitáveis. Sua
utilização da distinção avieeniana entre essência e existência, por exemplo, foi já mencionada
aqui, e realmente ele foi o primeiro escolástico medieval que fez de dita distinção uma tese
explícita e fundamental em sua filosofia. Àquela distinção, que lhe permitiu desenvolver com
clareza o relacionamento das criaturas a Deus, acrescentou Guilherme a doutrina da analogia. A
propósito da afirmação de que as coisas finitas possuem esse “por participação”, observa que o
leitor não deve ser estranhado pelo fato de que uma mesma palavra ou conceito se aplique a
Deus e às criaturas, já que não se aplica igualmente ou no mesmo sentido (univoce): aplica-se
primariamente a Deus, o qual é esse, e só secundariamente às criaturas, as quais têm esse, isto
é, que participam na existência por receber mediante o ato criador de Deus. São, comenta
Guilherme, prega-se do homem, da urina, da medicina, do alimento, mas não se prega da mesma
maneira ou no mesmo sentido[429]. O exemplo é algo trillado, mas mostra que Guilherme de
Auvergne captava a doutrina da analogia, que é essencial a uma filosofia teísta.

4. Provas da existência de Deus.

Com respeito às provas da existência de Deus, é um fato curioso que Guilherme fez pouco
uso das provas empregadas por Aristóteles e por Maimónides. Não nos dá a prova aristotélica
de Deus como primeiro motor imóvel, e, embora indubitavelmente ele considera a Deus como
Causa primeira, sua prova caraterística é uma que recorda ao menos a linha de argumentación
adotada por Santo Anselmo, ainda que não reproduz o argumento anselmiano. É uma
argumentación que procede do ser que existe por participação ao ser que existe essencialmente,
per essentiam. Isso sugere imediatamente a prova a partir da contingencia, que aparece nas
filosofias árabe e judia, mas Guilherme prefere argumentar de um conceito a outro. Por exemplo,
o conceito, esse adunatum tem seu conceito correlativo esse non causatum; esse eausatum supõe
esse non eausatum; esse secundarium, esse primum, etc.[430] Guilherme fala da analogia
oppositorum, e indica como um conceito ou palavra supõe necessariamente seu conceito ou
palavra correlativo, de maneira que Grunwald[431] pode dizer que Guilherme prefere um tipo de
prova puramente lógico ou inclusive gramatical, enquanto de uma palavra infere outra palavra
que está contida ou pressuposta pela primeira. É verdade que o argumento tende a produzir essa
impressão, e, se fosse um argumento puramente verbal, estaria exposto à réplica de que as
palavras, ou conceitos, esse partieipatum ou esse eausatum supõem certamente as palavras, ou
conceitos, esse per essentiam, ou esse non eausatum, mas que isso não prova que o esse per
essentiam ou o esse non eausatum existam realmente, a não ser que se tenha mostrado em
primeiro lugar que existe um esse partieipatum ou um esse eausatum; isto é, que a prova não
demonstraria a existência de Deus mais do que a demonstra a argumentación a priori de Santo
Anselmo. Mas, embora Guilherme de Auvergne não desenvolve suficientemente o caráter
experiencial de sua prova pelo que respecta no ponto de partida desta, sua argumentación não é
em absoluto puramente verbal, porquanto ele mostra que o objeto que começa a ser não pode
ser autodependiente ou autocausado. O esse indigentiae pede o esse suffieientiae como razão de
sua existência, o mesmo que o esse potentiale requer um ser em ato que lhe ponha em estado de
atualidade. O universo inteiro requer o Ser Necessário como sua causa e razão. Em outras
palavras, embora é fácil ter a impressão de que Guilherme não faz senão analisar conceitos e
hipostasiarlos, sua prova não é meramente lógica ou verbal, senão também metafísica.

5. Hilemorfismo.

Guilherme de Auvergne aceitou a doutrina aristotélica da composição hilemórfica, mas


negou-se a admitir a noção avicebroniana de que as inteligências ou anjos estão compostos
hilemórficamente[432]. Está claro que Aristóteles não pensou que a alma racional contenha
matéria prima, já que claramente afirma que é uma forma imaterial, e a explicação da matéria
prima dada por Averroes, segundo a qual a matéria prima é a potencialidade da substância
sensível, e a substância sensível é o ato final da matéria prima, implica claramente a mesma
coisa, a saber, que a matéria prima é somente a matéria da substância sensível. Ademais, qual
poderia ser a utilidade da matéria prima nos anjos, que função poderia desempenhar? A matéria
em si mesma é algo morrido, não pode contribuir em modo algum às operações intelectuais e
espirituais, nem sequer as receber. Como Guilherme utilizou já a distinção entre essência e
existência para explicar a finitud das criaturas e sua radical diferença de Deus, não precisa para
esse propósito a composição hilemórfica universal, e como considera que postular a presença de
matéria prima nos anjos teria de dificultar mais que facilitar a explicação das operações
puramente espirituais destes, restringe a matéria prima ao mundo sensível, como faria depois
que ele São Tomás de Aquino.

6. A alma.

Em sua psicologia, exposta no De Anima, Guilherme de Auvergne combina temas


aristotélicos e agustinianos. Assim, adota expressamente a definição aristotélica de alma como
perfectio corporis physici organici potentia vitam habentis[433], embora adverte ao leitor que
não cita a Aristóteles como a uma autoridade incuestionable, senão que se propõe mostrar a
verdade dessa definição. Deve estar claro a todo homem que tem uma alma, já que é consciente
de que entende e julga[434]; mas a alma não é toda a natureza do homem. Se assim fosse, então
uma alma humana unida, por exemplo, a um corpo aéreo seguiria sendo um homem, e em
realidade não é assim. Por conseguinte, Aristóteles tinha razão ao dizer que a alma é ao corpo
como a forma à matéria[435]. Não obstante, isso não impede que Guilherme diga que a alma é
uma substância, sobre a base de que deve ser substância ou acidente, e não pode ser acidente; e
Guilherme se vale da comparação agustiniana da alma com um músico, cujo instrumento é o
corpo. Pode parecer que no homem há três almas, uma das quais seria o princípio da vida (alma
vegetativa), a segunda o princípio da sensação (alma animal ou sensitiva) e a terça o princípio
da intelección (alma racional); mas uma ligeira reflexão mostrará que não pode ser assim. Se
tivesse no homem uma alma animal, diferente da alma racional ou humana, então a humanidade,
a natureza humana, não suporia a animalidad, enquanto de fato, um homem é um animal porque
é um homem, a animalidad pertence à natureza humana[436]. Há, pois, no homem uma só alma,
que exerce diversas funções. Essa alma é criada e infundida por Deus, não engendrada pelos
pais nem educida da potencialidade da matéria[437], e é, ademais, imortal, como Guilherme
procede a mostrar mediante argumentos, alguns dos quais são de origem platónico. Por exemplo,
se a malícia de uma alma má não magoa ou destrói sua esse, como pode lhe destruir a morte do
corpo?[438] Por outra parte, já que o corpo recebe a vida da alma, e o poder da alma é tal que
vivifica a um corpo que, considerado em si mesmo, está morrido, isto é, falto de vida, o fato de
que o corpo cesse de viver não pode destruir o poder vital inerente à alma[439]. Ademais, a alma
pode ter comunicação com substantiae separatae, e, portanto, é, como estas, imortal; mas como
a alma humana é uma e indivisible, se segue que toda a alma humana é imortal, e não sua parte
racional simplesmente.[440]

Mas embora aceita a doutrina peripatética da alma como forma do corpo (devemos fazer a
reserva de que às vezes se serve de expressões platónico-agustinianas a propósito da união da
alma com o corpo), Guilherme de Auvergne segue a Santo Agostinho ao se negar a reconhecer
uma distinção real entre a alma e suas faculdades[441]. Somente uma substância pode entender
ou querer, um acidente não poderia. Por conseguinte, é a alma mesma quem entende e queira,
embora empregue-se com relacionamento a diferentes objetos, ou de diferentes modos em
relacionamento aos mesmos objetos, ora prendendo-os, ora desejando-os. Daí devia ser seguido
de uma maneira natural que tinha que recusar a distinção aristotélica entre os intelectos ativo e
pasivo, e, efetivamente, Guilherme de Auvergne recusa por completo as doutrinas do intelecto
agente e da species intelligibilis. Os seguidores de Aristóteles e de seus comentadores
engoliram-se sem refletir a teoria do intelecto ativo, sendo de modo que, não só os argumentos
alegados para provar a teoria são insuficientes, senão que muito bons argumentos podem ser
alegado para provar o contrário, assim por exemplo, o argumento da simplicidade da alma. Por
conseguinte, o intelecto ativo deve ser recusado como uma ficção inútil[442]. Por suposto,
Guilherme recusa a fortiori a ideia árabe de um intelecto ativo separado, uma ideia que ele,
seguindo a Averroes (e provavelmente com razão) atribui ao próprio Aristóteles.

7. O conhecimento.

Com respeito ao intelecto ativo, pois, Guilherme de Auvergne abandona a Aristóteles e aos
árabes em favor de Santo Agostinho, e também em sua teoria do conhecimento é observable a
influência agustiniana. Ao igual que Santo Agostinho, Guilherme sublinha o conhecimento da
alma por si mesma, sua direta autoconsciencia, e, também como Santo Agostinho, minimiza a
importância dos sentidos. É verdade que o homem se inclina a concentrar sua atenção sobre as
coisas corpóreas, objeto dos sentidos; é por isso que o homem pode esquecer os dados da
autoconsciencia, e inclusive ser tão insensato que negue a existência mesma da alma imaterial.
Também é verdade, evidentemente, que os sentidos são necessários para a percepción sensível,
e que os objetos corpóreos produzem uma impressão física nos órgãos sensitivos. Mas as forma
inteligibles, abstratas e universais, pelas que conhecemos os objetos do mundo corpóreo, não
podem proceder nem dos objetos mesmos nem dos fantasmas de tais objetos, já que tanto os
objetos como suas imagens são particulares. Como se produzem, pois, nossas ideias abstratas e
universais dos objetos sensíveis? São produzidas pelo entendimento mesmo, que não é
puramente pasivo, senão ativo, effectrix earum (scientiarum quae a parte sensibilium o advenire
uidentur) apud semetipsam et in[443]. Essa atividade é uma atividade da alma mesma, embora
exercida por motivo das impressões sensíveis.

Que garantia há, então, do caráter objetivo de nossas ideias abstratas e universais? A garantia
consiste no fato de que o intelecto não é meramente ativo, senão também pasivo, embora se é
pasivo o é respecto de Deus, não respecto das coisas sensíveis. Deus imprime no intelecto não
somente os primeiros princípios, senão também nossas ideias abstratas do mundo sensível. No
De Anima[444] Guilherme ensina explicitamente que não são só os primeiros princípios (regulae
primae et per se notae) e as leis da moralidad (regulae honestatis) o que conhecemos dessa
maneira, senão também as forma inteligibles dos objetos sensíveis. A alma humana ocupa uma
posição no limite de dois mundos (velut in horizonte duorum mundorum naturaliter esse
eonstitutam et ordinatam), o mundo dos objetos sensíveis, ao que está unida pelo corpo, e o
outro, que não são as ideias universais de Platón, nem a inteligência separada de Aristóteles,
senão Deus mesmo, creator ipse, que é o exemplar, o speculum, o liber vivus, de tal modo
presente ao intelecto humano que este lê, por assim dizer, em Deus (absque ullo alio médio) os
princípios e regras e as forma inteligibles. Desse modo, Guilherme de Auvergne faz com que o
intelecto ativo de Aristóteles e dos árabes seja Deus mesmo, combinando aquela teoria com a
teoria agustiniana da iluminação, interpretada ideogenéticamente.

8. Guilherme de Auvergne como pensador de transição.

Pode causar surpresa que se tenha dedicado um capítulo especial a um homem cujo nome
não está entre os dos pensadores medievais mais famosos; mas Guilherme de Auvergne tem
interesse não somente como um filósofo vigoroso e sistemático, senão também como um
exemplo do modo em que as ideias metafísicas, cosmológicas e psicológicas de Aristóteles e
dos árabes podiam afetar a um homem de mentalidade aberta situado, falando em general, na
linha da tradição anterior. Guilherme de Auvergne estava bem disposto a aceitar ideias dos
aristotélicos; adotou, por exemplo, a definição aristotélica de alma, e utilizou a distinção de
Avicena entre essência e existência; mas era antes de mais nada um filósofo cristão, e, aparte de
qualquer predilección pessoal por Santo Agostinho, não era o tipo de homem que podia adotar
doutrinas aristotélicas ou supostamente aristotélicas quando lhe parecessem incompatíveis com
a fé cristã. Assim, a doutrina aristotélica da eternidade do mundo, as noções neoplatónico-árabes
de emanação e de “criação” por médio de intermediários, a teoria de um intelecto ativo separado,
unitário e infradivino, foram recusadas por ele sem a menor vacilação. Seria, no entanto, um
erro supor que se limitasse a recusar aquelas ideias somente porque eram incompatíveis com o
cristianismo; ele ficou satisfeito quanto a que os argumentos em favor das posições que não
podia aceitar não eram concluyentes, enquanto sim o eram os que favoreciam suas próprias teses.
Em outras palavras, Guilherme foi um filósofo e escreveu como um filósofo, embora em suas
obras encontremos temas filosóficos e teológicos tratados ao mesmo tempo no mesmo livro, um
rasgo comum à maioria dos filósofos medievais.
Pode ser dito, pois, que Guilherme de Auvergne foi um pensador de transição. Com seu
íntimo conhecimento dos escritos de Aristóteles e dos filósofos árabes e judeus, e com sua
limitada aceitação das teorias dos mesmos, ajudou a preparar o caminho para o aristotelismo
mais completo de san Alberto e santo Tomás, enquanto, por outra parte, ao recusar claramente
algumas noções capitais de Aristóteles e de seus seguidores, preparou o caminho à atitude
explicitamente antiaristotélica de um agustiniano como São Boaventura. Como disse
anteriormente, Guilherme de Auvergne é a encarnación da transição do século XII ao 13;
poderíamos dizer que é o século XII se enfrentando simpaticamente com o século XIII, mas não,
nem muito menos, com uma aceitação ou admiração exenta de crítica.

Mas, embora tenhamos direito a considerar a Guilherme de Auvergne como um pensador de


transição respecto da influência crescente e a aceitação a cada vez mais estendida do
aristotelismo, isto é, como uma etapa no desenvolvimento de pensamento que leva do mais
antigo agustinismo ao aristotelismo cristão de santo Tomás, temos igualmente direito a
considerar sua filosofia como uma etapa no desenvolvimento do agustinismo mesmo. Santo
Anselmo fazia relativamente pouco uso do aristotelismo, do que não tinha senão um
conhecimento muito limitado; mas mais tarde os agustinianos viram-se obrigados a ter em conta
a Aristóteles, e no século XIII encontramos a Duns Scot tentando a construção de uma síntese
na que o agustinismo seria exposto e defendido com a ajuda de Aristóteles. É, sem dúvida,
discutible se deve ser visto a esses pensadores como agustinianos que modificaram e
enriqueceram o agustinismo baixo a influência de Aristóteles, ou mais bem como aristotélicos
incompletos, e a apreciação que se faça de Guilherme de Auvergne deverá ser diferente segundo
que um adote um ou outro desses pontos de vista, mas, a não ser que se esteja decidido a ver a
filosofia medieval simplesmente em função do tomismo, deve ser admitido que pode ser
considerado que Guilherme de Auvergne preparou o caminho a Duns Scot tanto como a santo
Tomás. Provavelmente ambos julgamentos são verdadeiros, embora desde diferentes pontos de
vista. Em verdadeiro sentido, todo filósofo

medieval pretomista que fizesse algum uso de Aristóteles estava preparando o caminho para
uma completa adoção do aristotelismo, e não pode ter dificultem alguma em admitir isso; mas é
também legitimo se perguntar se os elementos aristotélicos se empregavam ao serviço da
tradição agustiniana, de maneira que na filosofia decorrente predominasen os temas
carateristicamente agustinianos, ou se se empregavam na construção de uma filosofia
definidamente orientada para o aristotelismo como sistema. Se um se faz essa pergunta, poucas
dúvidas cabem a respeito de qual deva ser a resposta no caso de Guilherme de Auvergne. Assim
pôde afirmar Gilson que “o complexo agustiniano do século XIII está representado quase por
completo pela doutrina de Guilherme de Auvergne”, e que, embora nada podia já deter a invasão
das escolas por Aristóteles, “certamente, a influência de Guilherme fez muito por retardar e
limitar seu progresso”.[445]
Capítulo XXIV
Roberto Grosseteste e Alexandro de Hales

Quando se trata da filosofia medieval não é fácil decidir de que modo devem ser agrupado
os diversos pensadores. Assim, é perfeitamente possível tratar de Oxford e de Paris por separado.
Em Oxford, a tendência geral em metafísica e psicologia era conservadora, agustiniana,
enquanto ao mesmo tempo desenvolvia-se o interesse por questões empíricas, e a combinação
desses dois fatores proporcionaria alguma razão para seguir o curso da filosofia de Oxford desde
Roberto Grosseteste até Roger Bacon, em uma linha contínua. Em mudança, pelo que respecta
a Paris, o agustinismo de Alexandro de Hales e São Boaventura por uma parte, e o aristotelismo
de Santo Alberto Magno e São Tomás de Aquino por outra, junto do relacionamento entre as
duas escolas, pode fazer desejável que se trate destas em estreita proximidade. No entanto,
semelhante método tem seus desventajas. Por exemplo, Roger Bacon morreu para o ano 1292,
muito depois que Alexandro de Hales (1245), respecto de cujos escritos fez algumas observações
pouco amáveis, e também depois que Santo Alberto Magno (1280), para o que parecia sentir
uma especial hostilidade, de maneira que parece desejável considerar a Roger Bacon após
considerar a esses outros dois pensadores. Poderia então deixar-se também para mais adiante a
Roberto Grosseteste, para o considerar junto de Roger Bacon, mas não deve ser esquecido o fato
de que Grosseteste morreu (1253) muito dantes da condenação em Oxford de duas séries de
teses entre as que figuravam algumas das mantidas por São Tomás de Aquino (1277 e 1284),
enquanto Roger Bacon estava vivo nos anos daquelas condenações, e criticou a de 1277, na
medida em que achava que lhe afetava particularmente. Embora admitamos, pois, que poderiam
ser dito muitas coisas em favor de outro modo de agrupar, no que se atendesse mais às afinidades
espirituais que à cronología, decidi tratar em primeiro lugar de Roberto Grosseteste em Oxford
e de Alexandro de Hales em Paris; depois, do discípulo de Alexandro de Hales, São Boaventura,
o maior representante da tradição agustiniana no século XIII; mais tarde, do aristotelismo de san
Alberto e santo Tomás e as controvérsias provocadas pelo mesmo; e, só em último local, de
Roger Bacon, apesar de seu afinidad espiritual com Grosseteste.

(a) ROBERTO GROSSETESTE

1. Vida e escritos de Roberto Grosseteste.


Roberto Grosseteste nasceu em Suffblk para 1170, e foi nomeado chanceler da universidade
de Oxford para 1221. De 1229 a 1232 foi archidiácono de Leicester, e em 1235 foi nomeado
bispo de Lincoln, local que ocupou até sua morte em 1253.

Aparte de traduções (já mencionámos que provavelmente traduziu a Ética de Aristóteles,


diretamente do grego), compôs comentários aos Analíticos Posteriores, os Argumentos
Sofísticos, e a Física, embora o comentário sobre a Física foi mais bem um compendio, e os
escritos do Pseudo-Dionisio. A afirmação de Roger Bacon no sentido de que Grosseteste
neglexit omnino livros Aristotelis et uias eorum[446] não pode, pois, significar que ignorasse os
escritos de Aristóteles, e deve ser entendido no sentido de que, embora familiarizado com o
pensamento de Aristóteles, Grosseteste abordou os problemas filosóficos de uma maneira
diferente. O próprio Bacon põe-no em claro mais adiante, quando diz que Grosseteste dependia
de outros autores diferentes de Aristóteles e que se apoiava também em sua própria experiência.

Como obras originais, Roberto Grosseteste publicou os livros: De única forma omnium, De
Intelligentiis, De statu causarum, De potentia et actu, De veritate, De ueritate propositionis, De
scientia Dei, De ordine emanandi eausatorum a Deo, e De liberto arbitrio; a autenticidade do De
Anima não é segura. Em obras como as que acabamos de mencionar, fica perfeitamente claro
que Grosseteste se situou na tradição agustiniana, embora conheceu a filosofia de Aristóteles e
utilizou alguns de seus temas. Mas com o agustinismo combinou um interesse pela ciência
empírica que influiu envelope Roger Bacon e excitou a admiração deste, de modo que Bacon
pôde dizer de seu maestro que conhecia as ciências melhor que os demais homens[447], e que era
capaz de explicações causales com ajuda das matemáticas[448]. Assim, Grosseteste escreveu De
utilitate artium, De generatione sonorum, De sphaera, De computo, De generatione stellarum,
De cometis, De impressione aeris, De luze, De lineis, angulis et figuris, De natura locorum, De
iride, De colore, De calore solis, De differentiis localibus, De impressionibus elementorum, De
motu corporali, De motu super-caelestium, De finitate motus et temporis, e Quod homo sit minor
mundus.

2. Doutrina da luz.

A filosofia de Roberto Grosseteste centra-se em torno da ideia de luz, tão cara à mente dos
agustinianos. No De luze[449] observa que a primeira forma corpórea, à que alguns chamam
corporeidad, é, a seu julgamento, a luz. A luz une-se com a matéria, isto é, com a “matéria
prima” aristotélica, para formar uma substância simples sem dimensões. Por que faz Grosseteste
à luz primeira forma corpórea? Porque está na natureza da luz o difundir-se, e ele se vale dessa
propriedade da luz para explicar como uma substância composta de forma não dimensional e
matéria (prima) não dimensional adquire a tridimensionalidad. Se supomos que a função da luz
é se multiplicar e se difundir a si mesma, e ser assim a causa da extensão atual, devemos concluir
que a luz é a primeira forma corpórea, porque não seria possível à primeira forma corpórea
produzir extensão através de uma forma secundária ou subsiguiente. Ademais, a luz é a mais
nobre de todas as forma, e tem o maior parecido com as inteligências separadas, de maneira que,
também a esse título, é a primeira forma corpórea.
A luz (lux) difunde-se em todas direções, “esfericamente”, formando a esfera mais exterior,
o firmamento, no ponto mais afastado de sua difusão, e essa esfera consta simplesmente de luz
e matéria prima. Desde todas as partes do firmamento, a luz (lumen) se difunde para o centro da
esfera. Esta luz (a luz da experiência) é corpus spirituale, sive mauis dicere spiritus
corporalis[450]. Essa difusão tem local por médio de uma automultiplicación e geração de luz,
de maneira que, a intervalos, por assim dizer, aparece uma nova esfera, até que as novas esferas
celestes e concêntricas estão completas; a mais interna é a esfera da Lua. Esta esfera, a sua vez,
produz luz, mas a rarefacción ou difusão é menor à medida que a luz aproxima-se ao centro, e
produzem-se as quatro esferas infralunares, de fogo, ar, água e terra. Há, pois, treze esferas em
todo mundo sensível, as nove esferas celestes, que são incorruptibles e inmutables, e as quatro
esferas infracelestes, que são corruptibles e estão submetidas à mudança.

O grau de luz possuído pela cada espécie de corpo determina seu local na hierarquia
corpórea, sendo a luz a species et perfectio corporum omnium[451]. Grosseteste explica também
a cor em termos de luz, afirmando que é lux incorporata perspicuo[452]. Uma abundância de luz
in perspicuo puro é a blancura, enquanto lux pauca in perspicuo impuro nigredo est; e explica
nesse sentido a afirmação de Aristóteles[453] e de Averroes de que a negrura é uma privação. A
luz é também o princípio do movimento, pois o movimento não é outra coisa que a vis
multiplicativa lucis.[454]

3. Deus e as criaturas.

Até aqui foi considerada a luz como algo corpóreo, como um componente do corpóreo; mas
Grosseteste estende seu conceito de luz de maneira que abrace também o mundo espiritual.
Assim, Deus é Luz pura, a Luz eterna (não no sentido corpóreo, desde depois), e os anjos são
também luzes incorpóreas, que participam da Luz eterna. Deus é também “a Forma de todas as
coisas”, mas Grosseteste tem cuidado de explicar que Deus não é a forma de todas as coisas no
sentido de que entre na substância destas, unindo a sua matéria, senão como sua forma
instância[455]. Deus precede a todas as criaturas, mas “precede” deve ser entendido no sentido
de que Deus é eterno, e a criatura é temporária: se entendesse-se no sentido de que há uma
duração comum na que existem tanto Deus como as criaturas, a afirmação seria incorreta, já que
o Criador e as criaturas não compartilham nenhuma medida comum[456]. Nós imaginamos um
tempo no que Deus existia dantes da criação, tão naturalmente como imaginamos um espaço
fosse do universo; mas fiar da imaginação em semelhantes matérias é uma fonte de erro.

4. Doutrina da verdade e da iluminação.

No De veritate propositionis[457], Grosseteste diz que veritas sermonis vel opinionis est
adaequatio sermonis vel opinions et rei, mas ele entende mais a “verdade ontológica”, ao sentido
agustiniano da verdade. Está bem disposto a aceitar a opinião aristotélica da verdade da
proposição como adaequatio sermonis et rei, ou adaequatio rei ad intellectum, mas “verdade”
significa realmente a conformidade das coisas à Palavra eterna quo dicuntur, e consiste em sua
conformidade ao Verbo divino[458]. Uma coisa é verdadeira na medida em que é o que deve ser,
e é o que deve ser quando é conforme ao Verbo, isto é, a sua instância. Essa conformidade
somente pode ser percebida pela mente, de modo que a verdade pode também se definir, com
Santo Anselmo, como rectitudo só mente perceptibilis.[459]

Daí segue-se que nenhuma verdade criada pode ser percebida exceto à luz da suprema
verdade, Deus. Agustín testemunha o fato de que uma verdade criada é visível somente na
medida em que a luz de sua ratio eterna está presente à mente[460]. Como é, pois, que os inicuos
e impuros podem atingir a verdade? Não pode ser suposto que eles vejam a Deus, que é visto
somente pelo charuto de coração. A resposta é que a mente não percebe diretamente o Verbo ou
a ratio eterna, mas percebe a verdade à luz do Verbo. Bem como o olho do corpo vê os objetos
corpóreos à luz do Sol, sem olhar diretamente ao Sol e talvez sem advertir sequer sua presença,
do mesmo modo a mente percebe a verdade à luz da iluminação divina sem que por isso tenha
que perceber diretamente a Deus, a Veritas summa, nem sequer advertir que é só à luz divina
como vê a verdade[461]. Assim, Grosseteste segue a doutrina agustiniana da iluminação divina,
mas recusa explicitamente qualquer interpretação da doutrina que supusesse uma visão de Deus.

Não posso entrar no tema das opiniões de Grosseteste sobre matemáticas, perspetiva, etc.
Com o que vai dito deve bastar para que fique de manifesto como a filosofia de Grosseteste foi
edificada sobre linhas agustinianas por um homem que, no entanto, conhecia e estava bem
disposto a utilizar ideias aristotélicas.

(b) ALEXANDRO DE HALES

5. Atitude de Alexandro de Hales para a filosofia.

Teve dentro da ordem franciscana um partido de fanáticos que adotou uma atitude hostil
para a erudición e outros acomodos às necessidades da vida, que eles viam como uma traição ao
singelo idealismo do Irmão Seráfico; mas a Santa Sede desaprovou àqueles “espirituais”, e, de
fato, a ordem franciscana produziu uma longa série de distintos teólogos e filósofos, a primeira
figura eminente dos quais foi um inglês, Alexandro de Hales, que nascia em Gloucestershire
entre 1170 e 1180, ingressou na ordem franciscana para 1231 e morreu em 1245. Alexandro foi
o primeiro professor franciscano na Faculdade de Teología de Paris, e ocupou a cátedra até
poucos anos dantes de sua morte. João da Rochela foi seu sucessor.

É difícil estabelecer com exatidão que contribuições à filosofia devem ser atribuídas a
Alexandro de Hales em pessoa, porque a Summa Theologica que leva seu nome, e que provocou
cáusticos comentários de Roger Bacon, compreende elementos, particularmente em sua última
parte, tomados dos escritos de outros pensadores, e parece ter chegado a sua forma definitiva
uns dez anos ou mais após a morte de Alexandro[462]. Em qualquer caso, no entanto, a obra
representa uma etapa no desenvolvimento da filosofia ocidental e uma tendência nesse mesmo
desenvolvimento. Representa uma etapa, porque está claro que a filosofia aristotélica, como um
tudo, é já conhecida e utilizada; representa uma tendência, porque a atitude adotada para
Aristóteles é crítica, no sentido de que Alexandro não somente ataca certas doutrinas de
Aristóteles e dos aristotélicos, senão que também considera que os filósofos paganos eram
incapazes de formular uma satisfatória “filosofia”, no sentido amplo do termo, como não
possuíam a revelação cristã: um homem que está no alto de uma colina pode ver mais coisas,
inclusive das contidas no vale, que as que pode ver um homem que está ao pé da colina.
Alexandro seguiu, pois, a seus predecessores cristãos (os Pais, especialmente Santo Agostinho,
Boecio, o Pseudo-Dionisio, Santo Anselmo, os Victorinos) mais bem que a Aristóteles.

6. Provas da existência de Deus.

A doutrina da Santísima Trinidad, por causa da debilidade do intelecto humano, não pode
ser atingida pela razão do homem falta de ajuda[463], mas a existência de Deus pode ser
conhecida por todos os homens, tanto pelos bons como pelos maus[464]. Ao distinguir a
existência de Deus (quia est) de sua natureza (quid est), Alexandro ensina que todos podem
conhecer a existência de Deus através das criaturas, reconhecendo a Deus como causa eficiente
e final[465]. Ademais, embora a luz natural da razão é insuficiente para chegar a um
conhecimento da natureza divina tal como é em si mesma, isso não significa que todo
conhecimento da natureza de Deus esteja impedido ao intelecto natural, já que este pode chegar
a saber algo de Deus, por exemplo, seu poder e sabedoria, ao considerar sua operação nas
criaturas, um grau de conhecimento que está aberto inclusive aos que não se encontram em
estado de graça[466]. Esse tipo de conhecimento não é unívoco, senão analógico[467]. Por
exemplo, a bondade prega-se de Deus e das criaturas, mas enquanto de Deus prega-se per
naturam, como sendo idêntica a sua natureza, e como fonte existente por si mesma de toda
bondade, das criaturas se prega per partieipationem, porquanto as criaturas dependem de Deus,
são efeitos de Deus, e recebem do um grau limitado de bondade.

Para provar a existência de Deus, Alexandro se vale de diversidade de argumentos. Assim,


utiliza a prova de Ricardo de São Victor a partir da contingencia, a argumentación de São João
Damasceno baseada na causalidad, e o argumento de Hugo de São Victor que parte do
conhecimento que a alma tem de ter tido um princípio; mas emprega também a prova de Santo
Agostinho e Santo Anselmo baseada na eternidade da verdade, e aceita a prova anselmiana que
parte da ideia do Ser Perfeito segundo aparece no Proslogium[468]. Ademais, mantém que é
impossível ignorar a existência de Deus[469]. É esta uma proposição surpreendente, mas é
necessário ter em conta certas distinções. Por exemplo, devemos distinguir entre conhecimento
habitual e conhecimento atual (cognitio habito, eognitio aetu). O primeiro, diz Alexandro, é um
hábito naturalmente impresso no entendimento, que capacita a este para conhecer a Deus, e que
pareceria ser pouco mais que conhecimento implícito, se é que pudesse ser chamado
conhecimento a um “conhecimento implícito”. Santo Alberto Magno comenta, algo
sarcasticamente, que tal distinção é uma solutio mirabilis[470]. A sua vez, no conhecimento atual
há que fazer também uma distinção, já que pode compreender o reconhecimento pela alma de
sua não aseidad, ou pode significar uma concentração nas criaturas. Pelo que respecta ao
“conhecimento atual” da primeira classe, a alma não pode por menos de conhecer a existência
de Deus, embora parece que inclusive aqui o reconhecimento atual de Deus pode ser “implícito”;
mas na medida em que a alma se aparta de Deus pelo erro e o pecado, e fixa sua atenção nas
criaturas, pode deixar de reconhecer a existência de Deus. Nesse último caso, no entanto, deve
ser feito uma distinção mais entre conhecimento de Deus in ratione communi e conhecimento
de Deus in ratione propria. Por exemplo, o homem que põe sua felicidade nas riquezas ou nos
prazeres sensuales conhece a Deus em verdadeiro sentido, já que Deus é a beatitud, mas não tem
uma verdadeira noção de Deus in ratione propria. De modo semelhante, o idólatra reconhece a
Deus in communi, por exemplo, como “Algo”, mas não como O é realmente, in ratione propria.
Tais distinções podem parecer em verdade algo forçadas, mas Alexandro tem em conta feitos
tais como o dito de san Pablo[471] de que os paganos conheceram a Deus, mas não lhe
glorificaram como Deus, ou a declaração de São João Damasceno de que o conhecimento de
Deus está naturalmente impresso na mente[472]. A opinião de que a mente humana não pode
estar sem algum conhecimento de Deus é caraterística da escola agustiniana; mas ante o fato de
que existem idólatras e, ao menos, sedicentes ateus, um escritor que deseje manter semelhante
opinião está obrigado a introduzir a distinção entre conhecimento implícito e explícito, ou entre
conhecimento de Deus in ratione communi e conhecimento de Deus in ratione propria.

7. Os atributos divinos.

Alexandro de Hales trata dos atributos divinos de inmutabilidad, simplicidade, infinitud,


incomprensibilidad, imensidão, eternidade, unidade, verdade, bondade, poder e sabedoria, e
apresenta objeciones, sua própria réplica à questão geral, e respostas às objeciones. Apela a
escritores anteriores e a cita de autoridades (são frequentes as de Santo Agostinho e Santo
Anselmo), e não desenvolve a doutrina de um modo particularmente original, mas sua
composição é sistemática e esmerada, e inclui uma considerável soma de reflexão filosófica
geral. Por exemplo, quando trata da unidade em general, definindo a unitas como indivisio entis,
e o unum como ens indivisum in se, divisum autem ab aliis[473], e procede a considerar o
relacionamento da unidade ao ser, à verdade e à bondade[474]. Quanto ao conhecimento divino,
Alexandro mantém, seguindo a Santo Agostinho e a Santo Anselmo, que Deus conhece todas as
coisas em e através de Si mesmo. As instâncias ou “ideias eternas” das criaturas estão em Deus,
embora, consideradas em si mesmas, não constituem uma pluralidad, senão que são idênticas à
essência divina, de maneira que é ao se conhecer a Si mesmo como Deus conhece todas as
coisas. Mas, então, como conhece Deus o mau e o pecado? Somente como defeitos, isto é, como
um defeito de bondade. Se a luz, diz Alexandro, seguindo ao Pseudo-Dionisio, estivesse dotada
com o poder de conhecer, conheceria que esse ou aquele objeto deixava de receber sua ação:
não conheceria a escuridão em si mesma, sem relacionamento alguma à luz. Isso implica, desde
depois, a opinião de que o mau não é nada positivo, senão mais bem uma privação[475], porque,
se o mau fosse algo positivo, seria necessário ou manter um dualismo ou dizer que o mau tem
uma instância em Deus.

Ao tratar da vontade divina, Alexandro de Hales suscita a questão de se Deus pode ou não
ordenar ações que sejam contra a lei natural. A origem imediata da questão é um problema de
exégesis das Escrituras: como explicar, por exemplo, a ordem de Deus aos israelitas de despojar
aos egípcios; mas a questão tem, desde depois, uma significação bem mais ampla. Deus,
responde Alexandro, não pode ordenar uma ação que fosse formalmente contrária à lei natural,
já que isso seria se contradizer a si mesmo. Deus não pode, por exemplo, querer que o homem
tenha outro fim que não seja Deus, já que Deus essencialmente é o fim último. Nem poderia
Deus ordenar aos israelitas que roubassem no sentido próprio da palavra, um ato dirigido contra
Deus mesmo, um pecado. Deus pode, no entanto, privar aos egípcios de sua propriedade, e, em
tal caso, ordenar aos israelitas que a tomem. Também pode ordenar aos israelitas que tomem
algo que pertence a outro, já que isso afeta somente ao ordo ad creaturam, mas não pode ordenar
que o tomem ex cupiditate, já que isso afeta ao ordo ad Deum, e suporia autocontradicción por
parte de Deus[476]. De modo semelhante, Deus pôde ordenar ao profeta Oseas que tivesse tratos
com uma mulher que não era sua esposa, assim que esse ato afeta ao ordo ad creaturam, mas
não pôde ordenar a Oseas que o fizesse ex libídine, já que isso afetaria ao ordo ad Deum. As
distinções de Alexandro de Hales nessa matéria são algo escuras e não sempre satisfatórias, mas
está em todo caso claro que ele não achava que a lei moral dependa de um fiat arbitrário de
Deus, como Ockham manteria mais tarde.

8. A composição das criaturas.

Deus é o Criador imediato do mundo, tanto da matéria como da forma, e a não eternidade
do mundo pode ser provada[477]. Por conseguinte, Alexandro recusa a noção aristotélica da
eternidade do mundo, mas aceita a doutrina da composição hilemórfica. Essa composição
encontra-se em todas as criaturas, já que “matéria” tanto faz a potencialidade, mas uma
composição mais fundamental, que também se encontra em todas as criaturas, é a do quo est e
o quod est[478]. Pode parecer que essa é a distinção entre essência e existência, mas parece mais
bem que o quod est se refere ao ser concreto, um homem, por exemplo, e o quo est à essência
abstrata, a humanidade, por exemplo. Em qualquer caso, trata-se de uma distinção “de razão”,
já que podemos pregar o quo est do quod est, em verdadeiro sentido ao menos, como quando
dizemos que esse ser é um homem. Não há distinção real entre um homem e sua humanidade;
no entanto, a humanidade é recebida. Em Deus não há dependência alguma nem recepção
alguma, nem, por tanto, nenhuma composição de quod est (Deus) e quo est (Deltas).

9. Alma, intelecto, vontade.

De acordo com seu espírito geral de confiança na tradição, Alexandro de Hales apresenta e
defende sete definições ou descrições da alma humana[479]. Por exemplo, o alma pode ser
definida como Deiforme spiraculum vitae[480], ou como substantia quaedam rationis particeps,
regendo corpori accommodata[481], ou como substância spiritualis a Deo criada, propria sui
corporis vivificatrix[482]. Outras definições são tomadas de Santo Agostinho, São João
Damasceno e Séneca. A alma, insiste Alexandro, não é uma substância simplesmente no sentido
de que é uma forma substancial, senão que é um ens in se, uma substância simpliciter, composta
de matéria “intelectual” e forma. Se nessa feição segue a tradição platónico- agustiniana,
inclusive sugerindo que a alma deve ser uma substância já que está em um relacionamento ao
corpo como a do piloto à nave, insiste também em que a alma vivifica ao corpo. Um anjo é
também spiraculum vitae, mas um anjo não é spiraculum vitae corporis, enquanto a alma é o
princípio da vida do corpo.

A cada alma humana é criada por Deus a partir da nada[483]. A alma humana não é uma
emanação de Deus, parte da substância divina[484], nem se propaga do modo pretendido pelos
traducianistas. O pecado original pode ser explicado sem recorrer à teoria traducianista[485]. O
alma está unida ao corpo segundo o modo de união da forma à matéria (ad madum formae cum
materiai)[486], mas isso deve ser interpretado em um sentido agustiniano, já que a alma racional
está unida a seu corpo ut motor mobili et ut perfectio formalis suo perfectibili[487]. A alma tem
os três poderes da vis vegetativa, a vis sensitiva e a vis intellectiva, e embora esses três poderes
ou potências não têm de ser chamados partes da alma no sentido estrito da palavra “parte”[488],
são no entanto diferentes entre si, e da essência da alma. Por conseguinte, Alexandro de Hales
explica a aserción agustiniana da identidade da alma e suas potências dizendo que essa
identidade tem de ser referida à substância, não à essência da alma[489]. A alma não pode
subsistir sem suas potências, nem estas são inteligibles aparte da alma, mas o mesmo que o esse
e o operari não são idênticos, também não o são a essentia e a potentia.

Os intelectos ativo e pasivo são duae differentiae da alma racional. O primeiro refere-se à
forma espiritual da alma, e o segundo a sua matéria espiritual, e o intelecto ativo não está
separado da alma, senão que pertence a esta[490]. Mas junto da classificação aristotélica das
potências racionais da alma, Alexandro de Hales oferece também as classificações de Santo
Agostinho e São João Damasceno, e tenta conciliarias. Por exemplo, o “intelecto” da filosofia
aristotélica faz referência a nosso poder de adquirir conhecimento de forma inteligibles por
médio da abstração[491], e corresponde, portanto, à ratio agustiniana, não ao intellectus ou
intelligentia de Santo Agostinho, que se refere a objetos espirituais. O intelecto no sentido
aristotélico tem que ver com forma incorporadas à matéria, e as abstrae dos phantasmata, mas o
“intelecto” em sentido agustiniano tem que ver com forma espirituais, não incorporadas a
matéria, e quando se trata de conhecer essas forma que são superiores à alma humana o intelecto
carece de poder, a não ser que seja alumiado por Deus[492]. Alexandro de Hales não proporciona
nenhuma explicação clara de que seja precisamente essa iluminação, mas ao menos põe em claro
que aceita a doutrina aristotélica da abstração pelo que respecta ao mundo corpóreo, embora
pelo que respecta ao mundo espiritual a doutrina de Aristóteles tem de ser complementada com
a de Santo Agostinho. Pode também se observar que Alexandro tinha perfeita razão ao ver na
classificação peripatética uma análise psicológica, e na classificação agustiniana uma divisão
segundo os objetos de conhecimento.

Alexandro oferece três definições de livre albedrío: a de Santo Anselmo (potestas servandi
rectitudinem propter sei), a de Santo Agostinho (faculta rationis et voluntatis, qua bonum eligitur
gratia assistente et malum eadem desistenté), e a de san Bernardo (consensus ob voluntatis
inamissibilem libertatem et rationis indeclinabile iudicium), e tenta conciliarias[493]. O liberum
arbitrium é comum a Deus e à alma, mas não se prega nem universalmente nem equívocamente,
senão analogicamente, primariamente de Deus e secundariamente da criatura[494]. No homem é
uma faculdade da razão e da vontade conjuntamente, e só nesse sentido pode ser dito que seja
diferente da razão e da vontade: em realidade, não é uma potência da alma separada daquelas.
Ademais, já que está vinculado à razão e à vontade, é inseparável da alma, isto é, no que se
refere à liberdade natural. Alexandro segue a san Bernardo ao distinguir liberta-a arbitrii e
liberta-a consilii et complaciti, e declara que, embora a segunda pode ser perdido, a primeira
não.

10. Espírito da filosofia de Alexandro de Hales.

Alexandro de Hales é uma figura interessante, já que sua obra principal é um firme esforço
de pensamento sistemático, uma apresentação escolástica da filosofia e a teología cristãs. Pelo
que respecta à forma, pertence ao período medieval das Summas, e compartilha os méritos e
defeitos desse tipo de compilação, em seu caráter sucinto e disposição ordenada, bem como em
sua aridez e ausência de desenvolvimentos que, desde nosso ponto de vista, seriam desejáveis.
Pelo que respecta a seu conteúdo, por uma parte a Summa de Alexandro de Hales está em estreito
relacionamento com o passado, pois o autor está decidido a ser fiel à tradição, e cita com muita
frequência a Agustín e Anselmo, a Bernardo e a João Damasceno, em vez de desenvolver seus
próprios argumentos. Isso não significa que apele simplesmente à autoridade, no sentido de se
limitar a citar nomes famosos, já que com frequência cita as argumentaciones de seus
predecessores; mas sim significa que os argumentos desenvolvidos que seria desejáveis
inclusive no tempo em que ele escreveu, estão ausentes. Não obstante, sua obra é, desde depois,
uma Summa, e há que admitir que uma Summa é um resumem. Por outra parte, a obra evidencia
um conhecimento de Aristóteles, embora este não seja mencionado explicitamente muito com
frequência, e faz algum uso de doutrinas peripatéticas. Está sempre presente, no entanto, o desejo
de harmonizar os elementos tomados de Aristóteles com o ensino de Santo Agostinho e Santo
Anselmo, e a tendência geral é a pôr em contraste de um lado os pensadores cristãos alumiados
por Deus, e, de outro, os filósofos. Não é que Alexandro de Hales dê a impressão de ser um
escritor polêmico nem que confunda filosofia e teología[495], mas ele se interessa principalmente
pelo conhecimento de Deus e de Cristo. Dizer tal coisa é simplesmente dizer que era fiel à
tradição da escola agustiniana.
Capítulo XXV
São Boaventura. - I

1. Vida e obras.

São Boaventura, João de Fidanza, nascia em Bagnorea, na Toscana, no ano 1221. Curado de
uma doença quando era menino, mediante a invocação de sua mãe a san Francisco de Asís,
ingressou na ordem franciscana em uma data que não pode ser determinado com exatidão. Pôde
ter sido pouco dantes ou pouco depois de 1240, mas em todo caso Buenaventura foi franciscano
a tempo de estudar baixo a direção de Alexandro de Hales, em Paris, dantes da morte deste
último, em 1245. O ensino de Alexandro fez evidentemente uma grande impressão em seu
discípulo, porque em seu Praelocutio proemio in secundum librum Sententiarum praemissa,
Buenaventura declara que, bem como no primeiro livro das Sentenças se aderiu à comum
opinião dos maestros, e especialmente à de “nosso maestro e pai, de feliz memória, Irmão
Alexandro”, também não nos livros seguintes se desviará de suas impressões[496]. Em outras
palavras, Buenaventura se embebió na tradição franciscana, isto é, agustiniana, e formou a
determinação de ater-se a ela. Talvez possa ser pensado que sua determinação indicasse
simplesmente um conservadurismo piedoso, e que Buenaventura ignorasse ou não adotasse uma
atitude definida e positiva para as novas tendências filosóficas de Paris; mas o Comentário às
Sentenças data do ano 1250-1251 (Buenaventura iniciou sua atividade de maestro em 1248,
envelope o evangelho de san Lucas) e naquela data Buenaventura, tendo feito seus estudos em
Paris, não podia ignorar a filosofia aristotélica. Ademais, mais adiante veremos que ele adotou
uma atitude muito definida ante essa filosofia, uma atitude que não foi simplesmente o fruto da
ignorância, senão que procedeu de reflexão e convicção razonadas.

São Boaventura esteve envolvido nas mesmas dificuldades entre regulares e seculares nas
que esteve envolvido santo Tomás, e em 1255 foi excluído da Universidade, isto é, se lhe negou
o reconhecimento como doutor e professor do corpo da Universidade. É possível que fosse
readmitido em 1256, mas em todo caso foi aceite, junto de São Tomás de Aquino, em outubro
de 1257, como resultado da intervenção papal. Então foi professor de teología na Universidade,
pelo que faz à aceitação, e indubitavelmente procederia a exercer dita função de não ter sido
eleito ministro geral de sua ordem, o 2 de fevereiro de 1257. O cumprimento das atividades
normais de sua oficio lhe teria impedido por si mesmo levar a vida de um professor da
Universidade, mas ademais, naqueles dias, tinha diferenças de opinião, no interior de sua ordem,
quanto ao espírito, práticas e funções desta, e Buenaventura se enfrentou com a difícil tarefa de
manter ou de restaurar a paz. No entanto, em 1259 escreveu o Itinerarium mentis inDeum , em
1261 suas duas vidas de san Francisco, em 1267 ou 1268 as Collationes de decem praeceptis
(sermones cuaresmales), o De deeem donis Spiritus Saneti, para 1270, e as Collationes in
Hexaemeron em 1273. O Breviloquium foi escrito dantes de 1257. Os Comentários sobre as
Escrituras, tratados místicos curtos, sermones e cartas sobre pontos relacionados com a ordem
franciscana, completam suas outros escritos em diversos períodos de sua vida.

Embora em 1265 Buenaventura conseguia do papa que rescindisse sua nomeação para o
arzobispado de York, foi nomeado bispo de Albano e cardeal em 1273. Em 1274 assistiu ao
concilio de Lyon, onde pregou sobre a reunião da Igreja Oriental com Roma, mas morreu quando
o concilio terminava, o 15 de julho de 1274, e foi enterrado em Lyon em presença do papa
Gregorio X.

2. Espírito.

São Boaventura, além de ser ele mesmo homem de estudos, animou ao desenvolvimento dos
estudos no interior da ordem franciscana, o que pode parecer estranho no caso de um santo
franciscano, quando não pode ser dito que o fundador tivesse a ideia de que seus irmãos se
dedicassem à erudición. Mas para nós está perfeitamente claro, como também o esteve pára São
Boaventura, que uma ordem formada em grande parte por sacerdotes, com uma vocação que
compreendia a predicación, não poderia cumprir essa vocação se seus membros, ao menos os
destinados ao sacerdocio, não estudavam as Escrituras e a teología. Mas era impossível estudar
teología escolástica sem adquirir um conhecimento da filosofia, de maneira que eram
necessários os estudos filosóficos e os teológicos. E, uma vez admitido esse princípio geral,
como devia ser admitido, era dificilmente practicable pôr um limite ao grau dos estudos. Se os
estudantes tinham de preparar-se em filosofia e teología, precisavam professores, e os
professores tinham não somente que ser eles mesmos competentes, senão também que educar a
seus sucessores. Ademais, se a obra apostólica podia supor o contato com homens instruídos,
talvez inclusive com hereges, não podia ser posto sobre bases a priori um limite aos estudos que
podiam ser aconselháveis.

Séria fácil multiplicar as considerações práticas desse tipo, que justificassem o


desenvolvimento dos estudos dentro da ordem franciscana, mas, pelo que respecta a São
Boaventura, devemos mencionar outra consideração igualmente importante. São Boaventura foi
perfeitamente guia ao espírito de san Francisco, ao considerar a união com Deus como o fim
mais importante da vida; mas viu muito bem que seria difícil conseguir sem um conhecimento
de Deus e das coisas de Deus, ou, ao menos, que tal conhecimento, longe de constituir um
impedimento para a união com Deus, devia predisponer à alma a uma união mais estreita. Após
tudo, era o estudo das Escrituras e da teología o que ele recomendava e praticava
particularmente, não o estudo de questões que não tivessem relacionamento com Deus, e essa
foi uma das razões de que lhe desagradasse a filosofia metafísica de Aristóteles, na que não tinha
local para a comunión pessoal com a divinidad nem tinha local para Cristo. Como indicou
Gilson, há um verdadeiro paralelo entre a vida de san Francisco de Asís e os ensinos de São
Boaventura. Porque o mesmo que a vida pessoal do primeiro culminou na comunión mística
com Deus, assim o ensino do segundo culminou em sua doutrina mística, e o mesmo que san
Francisco se tinha aproximado a Deus através de Cristo e via, em concreto, todas as coisas à luz
do Verbo divino, assim Buenaventura fez questão de que o filósofo cristão deve ver o mundo
em seu relacionamento ao Verbo criador. Cristo, segundo diz expressamente São Boaventura, é
o médium ou Centro de todas as ciências, e por isso ele não podia aceitar a metafísica aristotélica,
a qual, longe de conhecer alguma coisa de Cristo, recusava inclusive o exemplarismo de Platón.

Finalmente, a ordem franciscana aceitaria a Duns Scot, como seu Doutor par excellence;
mas, embora tivesse indubitavelmente razão ao fazê-lo assim, e embora Scot fosse sem dúvida
um pensador de gênio, um homem de grande capacidade especulativa e analítica, pode ser dito
quiçá que foi São Boaventura quem esteve, o mesmo no pensamento que no tempo, mais cerca
do espírito do Irmão Seráfico. Em realidade, não foi sem razão que se lhe concedesse o título de
Doutor Seráfico.

3. Teología e filosofia.

A opinião de São Boaventura envelope o propósito e o valor dos estudos, determinada tanto
por suas próprias inclinações e tendências espirituais quanto por sua formação intelectual baixo
a direção de Alexandro de Hales e por sua condição de membro da ordem franciscana, situou-
lhe naturalmente na tradição agustiniana. O pensamento de Santo Agostinho centrava-se em
torno de Deus e ao relacionamento da alma a Deus, e, já que o homem que está em
relacionamento com Deus é o homem real e concreto da história, que caiu de um estado de graça
e que foi isentado pela graça, Agustín se ocupou do homem em concreto, e não do “homem
natural”, isto é, não do homem considerado aparte de sua vocação sobrenatural e em abstração
da operação da graça sobrenatural. Isso representou que Santo Agostinho não pudesse fazer uma
distinção muito rígida entre filosofia e teología, embora distinguisse entre a luz natural da razão
e a fé sobrenatural. Há, desde depois, uma adequada justificativa para que se trate em filosofia
do homem “um estado de natureza”, já que a ordem da graça é sobrenatural, e pode ser feito
uma distinção entre a ordem da graça e a ordem da natureza; mas o que quero observar aqui é
simplesmente que, se se está principalmente interessado no progresso da alma para Deus, como
o estavam Santo Agostinho e São Boaventura, então o pensamento deve ser centrado no homem
em concreto, e o homem em concreto é o homem com uma vocação sobrenatural. O homem
considerado “em estado de natureza” é uma abstração legítima; mas essa abstração legítima não
pode ter atraente para um homem cujo pensamento se centra na ordem histórica. Trata-se
largamente de uma questão de perspetiva e método. Nem Agustín nem Buenaventura negam a
distinção entre o natural e o sobrenatural, mas, como ambos estavam primariamente interessados
pelo homem histórico real, que, o repitamos, é o homem com uma vocação sobrenatural,
tenderam naturalmente a misturar temas filosóficos e teológicos em uma só sabedoria cristã,
mais bem que a fazer uma distinção metodológica rígida entre filosofia e teología.

Pode objetarse que nesse caso São Boaventura é simplesmente um teólogo, e não um
filósofo; mas pode ser dado uma resposta similar no caso de São Boaventura e no de Santo
Agostinho. Se tivesse que definir ao filósofo como aquele que se entrega ao estudo do Ser ou
das últimas causas, ou qualquer outro objeto que um deseje atribuir ao filósofo, sem referência
alguma à revelação, e prescindiendo completamente da teología dogmática, da dispensación
cristã e da ordem sobrenatural, então é indudable que nem Santo Agostinho nem São Boaventura
podem ser qualificados de filósofos; mas se está-se disposto a admitir nas filas dos filósofos a
todos aqueles que se ocupam de temas geralmente reconhecidos como filosóficos, então ambos
homens devem ser reconhecidos como filósofos. Buenaventura pode tratar às vezes, por
exemplo, das etapas da ascensão da alma desde o conhecimento de Deus através das criaturas
até a experiência interior e imediata de Deus, e pode falar dessas etapas sem uma clara
demarcación do que é próprio da teología e o que é próprio da filosofia; mas isso não altera o
fato de que, ao tratar do conhecimento de Deus através das criaturas, desenvolve provas da
existência de Deus, e que essas provas são argumentaciones razonadas, e podem, assim, ser
qualificadas de argumentos filosóficos. Do mesmo modo, o interesse de São Boaventura pelo
mundo material pode ser principalmente um interesse por esse mundo enquanto manifestação
de Deus, e o santo pode ser deleitado ao ver naquele vestigia do Deus um e trino, mas isso não
altera o fato de que sustenta certas opiniões a propósito da natureza e da constituição do mundo
que são de caráter cosmológico, filosófico. É verdade que isolar as doutrinas filosóficas de São
Boaventura é em verdadeiro sentido destruir a integridade de seu sistema; mas em seu sistema
há doutrinas filosóficas, e esse fato dá-lhe direito a um posto na história da filosofia. Ademais,
como veremos, São Boaventura adotou uma atitude muito definida para a filosofia em general,
e para o sistema aristotélico designadamente, e só a esse título mereceria já um local na história
da filosofia. É difícil excluir a Kierkegaard da história da filosofia, embora sua atitude para a
filosofia, no sentido que ele dava ao termo, fosse hostil, porque Kierkegaard filosofou a respeito
da filosofia; ainda menos pode ser excluído a São Boaventura, cuja atitude foi menos hostil que
a de Kierkegaard, e que representa um ponto de vista particular em relacionamento com a
filosofia, o ponto de vista dos que mantêm não só que há uma filosofia cristã, senão também que
toda filosofia independente tem de ser deficiente e inclusive parcialmente errônea como
filosofia. Seja esse ponto de vista acertado ou não, esteja ou não justificado, merece ser
considerado em uma história da filosofia.

Buenaventura integrou-se, pois, na tradição agustiniana. Mas deve ser recordado que desde
a época de Santo Agostinho corria muita água baixo as pontes. Desde aquela época, o
escolasticismo tinha-se desenvolvido, o pensamento era sistematizado, a metafísica aristotélica
chegava a ser plenamente conhecida no Occidente cristão. São Boaventura comentou as
Sentenças de Pedro Lombardo, e familiarizou-se com o pensamento de Aristóteles. Não pode,
pois, nos surpreender encontrar em seus escritos, não somente muitos mais elementos de
escolasticismo e de método escolástico que em Santo Agostinho, senão também uma adoção de
não poucas ideias aristotélicas, porque Buenaventura não recusou em absoluto a Aristóteles de
uma maneira total; ao invés, respeitou-lhe como filósofo natural, embora não tivesse uma
elevada opinião de sua metafísica, ao menos de sua teología. Assim, desde o ponto de vista do
século XIII, o sistema de São Boaventura foi um agustinismo moderno, um agustinismo
desenvolvido ao longo de séculos e repensado em relacionamento com o aristotelismo.

4. Atitude ante o aristotelismo.

Qual foi, pois, o modo de ver São Boaventura o relacionamento geral da filosofia à teología,
e qual seu modo de ver o aristotelismo? As duas perguntas podem ser considerado ao mesmo
tempo, pois a resposta à primeira determina a resposta à segunda.

Como já se observou, Santo Agostinho distinguia fé e razão, e São Boaventura lhe seguiu,
citando palavras de Santo Agostinho no sentido de que o que achamos o devemos à autoridade,
e o que entendemos o devemos à razão[497]. Daí segue-se, ao que parece, que filosofia e teología
são duas ciências separadas e que uma filosofia independente de caráter satisfatório é possível,
ao menos teoricamente. Em realidade, São Boaventura faz uma clara e explícita distinção entre
teología dogmática e filosofia. Por exemplo, no Breuiloquium[498] diz que a teología começa por
Deus, a Causa suprema, no que termina a filosofia. Em outras palavras, a teología toma seus
dados da revelação, e procede de Deus a Seus efeitos, enquanto a filosofia começa pelos efeitos
visíveis e remonta-se a Deus como Causa. Do mesmo modo, no De reductione artium ad
Theologiam[499], divide a “filosofia natural” em física, matemáticas e metafísica, e no In[500]
divide a filosofia em física, lógica e ética.

Em vista disso, como pode ser dito que São Boaventura não admitia uma distinção rígida
entre filosofia e teología? A resposta é que admitia uma distinção metodológica, e também uma
distinção quanto a seus objetos, mas fazia questão de que não pode ser elaborado nenhum
sistema metafísico ou filosófico satisfatório a não ser que o filósofo seja guiado pela luz da fé e
filosofe à luz da fé. Por exemplo, São Boaventura tinha consciência do fato de que um filósofo
pode chegar à existência de Deus sem ajuda da revelação. Ainda que não tivesse estado
convencido disso por sua própria razão e pelo depoimento das Escrituras, a filosofia de
Aristóteles seria suficiente para lhe persuadir disso. Mas ele não se contentava com dizer que o
conhecimento de Deus assim atingido é incompleto e está precisado de um complemento
facilitado pela revelação; ele foi mais adiante e afirmou que tal conhecimento puramente
racional é, e deve ser, errôneo em pontos importantes. Tal afirmação provou-a empiricamente.
Por exemplo, “o nobilísimo Plotino, da seita de Platón, e Tulio, da seita acadêmica”, apesar do
fato de que suas opiniões sobre Deus e o alma eram preferíveis às de Aristóteles, caíram no erro,
já que não tiveram conhecimento do fim sobrenatural do homem, da verdadeira resurrección do
corpo e da felicidade eterna[501]. Não podiam conhecer essas coisas sem a luz da fé, e caíram no
erro precisamente porque não desfrutava dessa luz da fé. Semelhantemente, um mero metafísico
pode chegar ao conhecimento da suprema Causa, mas se é um mero metafísico se deterá aí, e se
se detém aí cairá no erro, porque pensará de Deus algo diferente do que O é, ao não saber que
Deus é um e trino. “A ciência filosófica é o caminho para outras ciências; mas o que deseja se
deter nela, cai na escuridão.”[502] Em outras palavras, São Boaventura não nega que o filósofo
possa atingir a verdade, mas mantém que o homem que se satisfaz com a filosofia, que é um
mero filósofo, cai necessariamente em erro. Uma coisa é que um homem chegue por sua razão
a saber que existe um Deus e passe depois a reconhecer, à luz da fé, que essa unidade é uma
unidade de Natureza em uma trinidad de Pessoas, e outra coisa completamente diferente é que
um homem fique na unidade de Deus. Neste último caso, o homem afirma a unidade de Natureza
com exclusão da trinidad de Pessoas, e cai assim no erro. Se se objeta que não é necessário
excluir a Trinidad, já que um filósofo pode prescindir inteiramente da revelação, de maneira que
seu conhecimento filosófico, embora incompleto não deixa de ser verdadeiro e válido, a resposta
de São Boaventura seria indudable: mente que se um homem é simplesmente um filósofo e se
dá por satisfeito com a filosofia, estará convencido de que Deus é um em Natureza e não Trino
em Pessoas. Para precisar a complementación deverá estar já à luz da fé. A luz da fé não
proporciona os argumentos racionais em favor da existência de Deus (para isso está a filosofia),
mas assegura que o filósofo permaneça “aberto” e não se feche em si mesmo de tal modo que
resulte o erro.

A opinião de São Boaventura a respeito do aristotelismo segue-se com bastante facilidade


dessas premisas. Buenaventura admite a eminencia de Aristóteles como filósofo natural, isto é,
em relacionamento com os objetos sensíveis: o que não admite é que Aristóteles fosse um
verdadeiro metafísico, isto é, que a metafísica aristotélica seja satisfatória. Algumas pessoas,
vendo que Aristóteles era tão eminente em outras ciências, imaginaram que deveu ter atingido
também a verdade na metafísica; mas tal consequência é ilegítima, já que a luz da fé é necessária
para constituir um sistema metafísico satisfatório. Ademais, Aristóteles era tão competente em
outras ciências precisamente porque sua mentalidade e seus interesses eram de tal natureza que
não estava inclinado a constituir uma filosofia que apontasse para além de si mesma. Assim, não
quis buscar o princípio do mundo fosse do mundo: recusou as ideias de Platón[503], e considerou
eterno ao mundo[504]. De seu negación da doutrina platónica das ideias derivou não somente a
negación do creacionismo, senão também a negación do conhecimento divino do particular, e
da presciencia e providência divinas[505]. Ademais, a doutrina da unicidad do intelecto é ao
menos atribuída a Aristóteles por Averroes, e daí segue-se a negación da beatitud individual e
dos castigos após a morte[506]. Em resumem, embora todos os filósofos paganos caíram no erro,
Aristóteles esteve mais sumido no erro que Platón ou Plotino.

Pode ser visto com mais clareza a noção buenaventuriana do relacionamento da filosofia à
teología se tem-se em conta a atitude do filósofo católico na prática. Leste elabora, por exemplo,
seus argumentos em favor da existência de Deus, mas não se converte enquanto em ateu, nem
nega sua fé no dogma da Trinidad: filosofa à luz daquilo no que já acha, e não chega, como
conclusão, a uma unidade de Deus de tal classe que exclua a trinidad de pessoas. Por outra parte,
seus argumentos em favor da existência de Deus são argumentos racionais: não faz neles refere
alguma ao dogma, e o valor das provas como tais se baseia em seus méritos ou deméritos
filosóficos. O filósofo leva adiante seus argumentaciones, psicologicamente falando, à luz da fé
que já possui, e que não descarta durante suas investigações filosóficas, e sua fé lhe ajuda a
formular as devidas pergunta e a evitar falsas conclusões, ainda que não faça nenhum uso formal
da fé em seus argumentos filosóficos. Um tomista diria, desde depois, que a fé é para o filósofo
uma norma extrínseca, que o filósofo prescinde de sua fé, embora não a negue, e que um pagano
poderia, ao menos teoréticamente, atingir as mesmas conclusões filosóficas. Mas São
Boaventura replicaria que, ainda que o filósofo possa não fazer nenhum uso formal do dogma
neste ou aquele argumento metafísico, filosofa indubitavelmente à luz da fé, e isso é algo
positivo: a ação da fé influi positivamente, na mente do filósofo, e, sem ela, este cairia
inevitavelmente no erro. Não podemos dizer exatamente que São Boaventura achasse só em uma
sabedoria cristã total que compreendesse indiferentemente verdades filosóficas e teológicas, já
que ele admite uma classificação das ciências na que figura a filosofia; mas, uma vez admitido
isso, podemos dizer que seu ideal era o de uma sabedoria cristã na que a luz do Verbo se espalha
não somente sobre as verdades teológicas, senão também sobre as filosóficas, e sem a qual
aquelas verdades não são atingidas.

disse que, já que São Boaventura tratou, sem dúvida, de questões filosóficas, tem direito a
ser incluído na história da filosofia, e não vejo como poderia ser discutido seriamente tal coisa;
mas não deixa de ser verdade que São Boaventura foi um teólogo, que escreveu como um
teólogo, e que não considerou por si mesmo os problemas e questões filosóficas. São Tomás de
Aquino foi também primariamente um teólogo, e escreveu primariamente como teólogo; mas
considerou minuciosamente problemas filosóficos e inclusive compôs várias obras filosóficas,
coisa que não fez São Boaventura. O Comentário às Sentenças não é o que hoje chamaríamos
uma obra filosófica. Parece, pois, algo exagerado manter, como o faz Gilson em seu magnífico
estudo do pensamento filosófico de São Boaventura, que há um sistema filosófico
buenaventuriano cujo espírito e conteúdo podem ser claramente definidos. Já temos visto que
São Boaventura considerava à filosofia uma ciência definida, diferente da teología; mas, pelo
que a ele respecta, teria que lhe chamar um filósofo per accidens. É verdade que, em verdadeiro
sentido, o mesmo poderia ser dito de qualquer pensador medieval que fora primariamente um
teólogo, inclusive de santo Tomás; mas é mais significativo e oportuno no caso de um pensador
que se interessou principalmente pela aproximação da alma a Deus. Ademais, Gilson tende
provavelmente a exagerar a hostilidade de São Boaventura para a filosofia pagana e a Aristóteles
designadamente. admiti, certamente, que São Boaventura atacou a metafísica aristotélica (é esse
um feito com que não pode ser negado), e que considerou que todo filósofo que seja meramente
filósofo tem de cair inevitavelmente no erro; mas, nesse contexto, é conveniente recordar o fato
de que o mesmo santo Tomás fez questão da necessidade moral da revelação. Em tal ponto, São
Boaventura e santo Tomás estavam de acordo. Ambos recusavam a filosofia pagana quando era
incompatível com o cristianismo, embora diferiam nos pontos precisos nos que devia ser
recusada, e assim que até que ponto era lícito seguir a Aristóteles.

No entanto, embora eu penso que o gênio de Gilson para captar o espírito peculiar do
pensador e o pôr claramente de relevo lhe levou a exagerar a feição sistemática da filosofia de
São Boaventura, e a encontrar entre as opiniões de São Boaventura e de santo Tomás a propósito
dos filósofos paganos uma oposição maior da que provavelmente existiu em realidade, não posso
subscrever o julgamento de Femand Vão Steenberghen[507] de que “a filosofia de São
Boaventura é um aristotelismo eclético e neoplatonizante, posto ao serviço da teología
agustiniana”. Que São Boaventura fez um uso considerável do aristotelismo, é algo inteiramente
verdadeiro; mas a inspiração de sua filosofia é, em minha opinião, o que, a falta de um termo
mais adequado, podemos chamar “agustinismo”. Como já observei a propósito de Guilherme de
Auvergne, depende em grande parte do próprio ponto de vista o que um chame aristotélicos
incompletos ou agustinianos modificados àqueles teólogos agustinianos que adotaram alguma
seleção de doutrinas aristotélicas em filosofia; mas no caso de um homem cujo inteiro interesse
esteve centrado na ascensão da alma a Deus, que sublinhou de tal modo a ação iluminadora de
Deus, e que, como o mesmo Vão Steenberghen afirma ao criticar a Gilson, nunca elaborou uma
filosofia por si mesma, me parece que a única palavra adequada para descrever seu pensamento
é a palavra “agustiniano”, embora não fosse mais que pelo princípio de que maior pars trahit
minorem e de que deve ser dado ao espírito precedencia envelope a letra.
Capítulo XXVI
São Boaventura. - II: Existência de Deus

1. Espírito das provas buenaventurianas da existência de Deus.

Já temos visto que São Boaventura, como Santo Agostinho, esteve principalmente
interessado no relacionamento da alma a Deus. Esse interesse teve seus efeitos em seu modo de
tratar as provas da existência de Deus: o santo preocupava-se principalmente por apresentar as
provas como etapas na ascensão da alma para Deus, ou, mais bem, pelas tratar em função da
ascensão da alma a Deus. Deve ser advertido que o Deus no que as provas concluem não é, pois,
simplesmente um princípio abstrato de inteligibilidad, senão que é mais bem o Deus da
consciência cristã, o Deus ao que os homens rezam. Não tentativa, desde depois, sugerir que
tenha, ontológicamente, alguma discrepância ou alguma tensão irreconciliable entre o Deus dos
“filósofos” e o Deus da experiência religiosa; mas como Buenaventura se interessa
primariamente por Deus como objeto de adoración e oração e como objetivo da alma humana,
tende a converter as provas em outros tantos telefonemas de atenção para a automanifestación
de Deus, seja no mundo material ou na alma mesma. Em realidade, como podia ser esperado,
São Boaventura põe mais énfasis nas provas que se apoiam na interioridad que nas que tomam
como ponto de partida o mundo material. A prova sem dúvida a existência de Deus a partir do
mundo sensível externo (Santo Agostinho também o tinha fato), e mostra como desde o
conhecimento dos seres finitos, imperfectos, compostos, mutables e contingentes, o homem
pode ser elevado até a aprehensión do Ser infinito, perfeito, simples, inmutable e necessário;
mas as provas correspondentes não são sistematicamente elaboradas, e a razão desse fato não
está em uma incapacidade por parte de São Boaventura para desenvolver as provas
dialeticamente, senão mais bem em sua convicção de que a existência de Deus é tão evidente à
alma mediante a reflexão sobre sim mesma, que a criação extramental serve principalmente só
para no-la recordar. A atitude de São Boaventura é a do Salmista, quando diz: Coeli enarrant
gloriam Dei, et opera manuum eius annuntiat firmamentum. É, Pois, inteiramente verdadeiro
que a imperfección das coisas finitas e contingentes postula e prova a existência da absoluta
perfección, Deus; mas, pergunta São Boaventura de uma maneira verdadeiramente platónica,
“,como poderia o intelecto conhecer que esse ser é defeituoso e incompleto, se não tivesse
conhecimento algum do Ser sem defeito?”[508]. Em outras palavras, a ideia de imperfección
pressupõe a ideia de perfección, de modo que a ideia de perfección ou do perfeito não pode ser
obtido simplesmente por via de negación e abstração, e a consideração das criaturas em sua
finitud e imperfección e dependência serve simplesmente para recordar à alma ou levar a esta a
mais clara consciência do que em verdadeiro sentido lhe é já evidente e conhecido.

2. Provas que partem do mundo sensível.

São Boaventura não nega nem por um momento que a existência de Deus possa ser provada
a partir das criaturas; ao invés, afirma-o. No Comentário às Sentenças[509] declara que Deus
pode ser conhecido a partir das criaturas, como a causa a partir do efeito, e procede a dizer que
esse modo de conhecimento é natural ao homem na medida em que as coisas sensíveis são para
nós os meios de chegar ao conhecimento das “intelligibilia”, isto é, dos objetos que trascienden
dos sentidos. No entanto, a Santísima Trinidad não pode ser provada desse modo pela luz natural
da razão, já que não podemos inferir a trinidad de pessoas nem negando certas propriedades ou
limitações das criaturas, nem pela via positiva de atribuir a Deus certas qualidades das
criaturas[510]. São Boaventura ensina, pois, bastante claramente, a possibilidade de um
conhecimento natural e “filosófico” de Deus, e sua observação sobre a naturalidade psicológica
desse modo de aproximação a Deus através dos objetos sensíveis é de caráter aristotélico.
Também no In[511] argumenta que se existe o ser que é produzido, deve ter um Ser primeiro, já
que deve ter uma causa se há um ser ab alio, deve ter um Ser a se; se há uma coisa composta,
deve ter um Ser simples; se há um ser mutable deve ter um Ser inmutable, quia mobile reducitur
ad immobile. O último enunciado é evidentemente uma referência à prova aristotélica do motor
imóvel, embora São Boaventura somente menciona a Aristóteles para dizer que sobre essas
linhas ele argumentou para concluir a eternidade do mundo, e que nesse ponto estava
equivocado.

De um modo similar, no De Mysterio Trinitatis[512] apresenta São Boaventura uma série de


breves argumentos para mostrar com quanta clareza as criaturas proclamam a existência de
Deus. Por exemplo, se há um ens ab alio, deve existir um ens non ab alio, porque nada pode ser
sacado a si mesmo de um estado de não ser a um estado de ser, e finalmente deve ter um Ser
primeiro que seja existente por si mesmo. Igualmente, se há um ens possibile, um ser que pode
existir e pode não existir, deve ter um ens neeessarium, um ser que não tenha possibilidade
alguma de não existência, já que é necessário para explicar a educción do ser possível a estado
de existência; e se há um ens in potentia deve ter um ens in actu, já que nenhuma potência pode
ser reduzida a ato se não é mediante a ação do que está em si mesmo em ato; e, ultimamente,
deve ter um actus purus, um Ser que seja puro Ato, sem potencialidade alguma, Deus. Também,
se há um ens mutabile, deve ter um ens immutabile, já que, como prova o filósofo, o movimento
tem como seu princípio um ser imóvel, e existe por razão do ser imóvel, que é sua causa final.

Pode parecer, por bilhetes como esses, nos que Buenaventura emprega argumentos
aristotélicos, que não podem ser sustentado as afirmações no sentido de que São Boaventura
considerava o depoimento da existência de Deus por parte das criaturas em função da ascensão
da alma a Deus, e que via a existência de Deus como uma verdade evidente por si mesma. Mas
ele mesmo deixa perfeitamente claro em vários locais[513] que considera o mundo sensível como
o espelho de Deus, e o conhecimento sensível, e o conhecimento obtido através dos sentidos e
da reflexão sobre os objetos sensíveis, formalmente como o primeiro passo nas etapas de
ascensão espiritual da alma, a mais elevada das quais, nesta vida, é o conhecimento experiencial
de Deus por médio do apex mentem, ou synderesis scintilla (neste ponto se mostra fiel à tradição
de Santo Agostinho e os Victorinos), e, no mesmo artigo do De Mysterio Trinitatis no que
apresenta as provas dantes citadas, afirma enfaticamente que a existência de Deus é sem dúvida
alguma uma verdade implantada naturalmente na mente humana (quod Deum esse sit menti
humanae indubitabile, tanquam sibi naturaliter insertum). E acrescenta que, além do que já foi
dito sobre essa matéria, há uma segunda via para mostrar que a existência de Deus é uma verdade
indudable. Essa segunda via consiste em mostrar que, o que toda criatura proclama, é uma
verdade indudable, e nesse ponto é no que apresenta sua sucessão de provas ou, mais bem, de
indicações de que toda criatura realmente proclama a existência de Deus. A seguir acrescenta
que há um terceiro modo de mostrar que não pode ser duvidado da existência de Deus, e procede
a apresentar sua versão da prova de Santo Anselmo no Proslogium. Não pode ter, pois, a menor
dúvida de que São Boaventura afirma que a existência de Deus é evidente por si mesma e que
não pode ser duvidado: a questão é mais bem a de que entende ele exatamente por isso, que é o
que vamos considerar na seção seguinte.

3. Conhecimento a priori de Deus.

Em primeiro lugar, São Boaventura não supõe que todo homem tenha um conhecimento
claro e explícito de Deus, e ainda menos que tal conhecimento se tenha desde o nascimento ou
desde que se atinge o uso de razão. O era perfeitamente consciente da existência de idólatras, e
do insipiens, o insensato que diz em seu coração que não há Deus. Desde depois, a existência de
idólatras não propõe grandes dificuldades, já que os idólatras e paganos não é tanto que neguem
a existência de Deus como que têm uma ideia equivocada da Divinidad. Mas, que dizer do
insipiens? Leste vê, por exemplo, que os impíos não são sempre castigados neste mundo, ou,
pelo menos, que às vezes parece lhes ir melhor neste mundo que a muitas pessoas boas, e infere
daí que não existe uma providência divina, que não há um governante divino do mundo.
Ademais, o mesmo São Boaventura, afirma explicitamente[514] que é evidente por si mesmo,
daquilo a respeito do qual não há dúvida alguma, que embora a existência de Deus é indudable
pelo que se refere à evidência objetiva, pode ser duvidada propter defeetum considerationis ex
parte nostra, por falta de devida consideração e reflexão por nossa parte. Não parece então como
se São Boaventura não dissesse outra coisa senão que, objetivamente falando, a existência de
Deus é indudable (isto é, a evidência, quando lha considera, é indudable e concluyente), mas
que subjetivamente falando pode ser duvidado dela (isto é, porque este ou aquele ser humano
não põe suficiente atenção na evidência objetiva)? E se é a isso ao que se refere quando diz que
a existência de Deus é indudable e evidente por si mesma, em que difere sua posição da de santo
Tomás?

A resposta parece ser a seguinte. Embora São Boaventura não postuló uma ideia clara e
explícita de Deus em todo ser humano, e ainda menos uma experiência ou visão imediata de
Deus, postuló certamente em todo ser humano uma confusa consciência de Deus, um
conhecimento implícito que não pode ser completamente negado e que pode ser convertido em
consciência clara e explícita mediante a só reflexão interna, embora às vezes possa precisar ser
apoiado por uma reflexão sobre o mundo sensível. O conhecimento universal de Deus é, pois,
implícito, não explícito; mas é implícito no sentido de que pode ao menos ser convertido em
explícito mediante a só reflexão interna. Santo Tomás admitiu um conhecimento implícito de
Deus, mas entendeu tal coisa no sentido de que a mente tem o poder de chegar ao conhecimento
da existência de Deus mediante a reflexão sobre as coisas dos sentidos e argumentando dos
efeitos à causa, enquanto São Boaventura entendeu por conhecimento implícito algo mais, isto
é, um conhecimento virtual de Deus, uma confusa consciência que pode ser convertida em
explícita sem recorrer ao mundo sensível.

Pode ser entendido mais facilmente nosso modo de ver se aplicamo-lo a exemplos concretos
do próprio São Boaventura. Por exemplo, todo ser humano tem um desejo natural de felicidade
(appetitus beatitudinis). Mas a felicidade consiste na posse do Bem supremo, que é Deus. Por
conseguinte, todo ser humano deseja a Deus. Mas não pode ter um desejo sem algum
conhecimento do objeto do mesmo (sine aliquali notitiá). Por conseguinte, o conhecimento de
que existe Deus, ou o Bem supremo, está naturalmente implantado na alma[515]. De modo
semelhante, a alma racional tem um conhecimento natural de si mesma, porque está presente a
si mesma e é cognoscible por si mesma. Mas Deus está presentísimo à alma e é cognoscible. Por
conseguinte, um conhecimento de Deus está implantado na alma. Se se objeta que, enquanto a
alma é um objeto proporcionado a seu próprio poder de conhecimento, Deus não o é, a réplica
pode ser que, se isso fosse verdadeiro, a alma não poderia nunca chegar ao conhecimento de
Deus, o qual é evidentemente falso.[516]

Por conseguinte, segundo a precedente linha de argumentación, a vontade humana encontra-


se naturalmente orientada para o Bem supremo, que é Deus, e não somente essa orientação da
vontade é inexplicable a não ser que o Bem supremo, Deus, exista realmente, senão que a mesma
orientação postula um conhecimento a priori de Deus[517]. Esse conhecimento não é
necessariamente explícito ou claro, já que se o fosse não poderia ter ateus, senão que é implícito
e vadio. Se se objeta que um conhecimento implícito e vadio como esse não é conhecimento,
pode ser respondido que um homem sem preconceitos que refleta/reflita na orientação de sua
vontade para a felicidade pode chegar a advertir que a direção de sua vontade implica a
existência de um objeto adequado, e que esse objeto, o Bem completo, deve existir e é o que
chamamos Deus. Esse homem reconhecerá não somente que ao buscar a felicidade está
buscando a Deus, senão que essa busca implica que ele vislumbra em verdadeiro modo a Deus,
já que não pode ter busca do que é inteiramente desconhecido. Por conseguinte, refletindo sobre
sim mesma, sobre a própria dependência e o próprio desejo de sabedoria, de paz, de felicidade,
a alma pode reconhecer a existência de Deus e inclusive a presença de Deus, a atividade de
Deus, dentro dela mesma: não lhe é necessário buscar fora; não tem senão que seguir o conselho
de Santo Agostinho e entrar dentro de si mesma, onde verá que nunca esteve sem uma verdadeira
escura consciência, sem um “virtual” conhecimento de Deus. Buscar a felicidade (e todo ser
humano deve buscar a felicidade) e negar a existência de Deus é em realidade se fazer réu de
contradição, negar com os lábios o que se afirma com a vontade e, ao menos no caso da
sabedoria, com o entendimento. Que essa linha de argumentación seja válida ou que não o seja
não me proponho o discutir aqui. Está obviamente exposta à objeción de que, se não tivesse
Deus, o desejo de felicidade podia ser frustra, ou podia ter outra causa que não fosse a existência
de Deus. Mas está claro ao menos que São Boaventura não postuló uma ideia innata de Deus na
forma crua baixo a qual atacou mais tarde Locke as ideias innatas. Igualmente, quando São
Boaventura declara que a alma conhece a Deus como presentísimo à mesma, não afirma uma
doutrina ontologista nem diz que a alma veja a Deus de uma maneira imediata; o que quer dizer
é que a alma, ao reconhecer sua dependência, reconhece, se reflete, que ela é imagem de Deus,
e vê, assim, a Deus em sua imagem. Como se conhece necessariamente a si mesma, como é
consciente de si mesma, conhece necessariamente a Deus, ao menos de uma maneira implícita.
Ao contemplar-se a si mesma pode converter em explícito esse conhecimento implícito, sem ter
que fazer referência ao mundo exterior. Talvez seja discutible se a ausência de referência ao
mundo exterior é algo mais que formal, no sentido de que o mundo exterior não seja
explicitamente mencionado.

4. O argumento anselmiano.

Temos visto que, para São Boaventura, os mesmos argumentos que partem do mundo
exterior pressupõem um verdadeiro conhecimento de Deus, já que ele se pergunta como poderia
conhecer a mente que as coisas sensíveis são defeituosas e imperfectas se não tivesse um prévio
conhecimento da perfección, em comparação com a qual reconhece as imperfecciones das
criaturas. Deve ser ter# presente esse ponto de vista quando se considere sua formulación da
prova anselmiana, tomada por ele do Proslogium.

No Comentário às Sentenças[518], São Boaventura resume o argumento anselmiano. Deus é


aquilo maior que o qual nada pode ser pensado. Mas aquilo que não pode ser pensado que não
existe é maior que aquilo que pode ser pensado que não existe. Portanto, já que Deus é aquilo
maior que o qual nada pode ser pensado, não pode ser pensado que Deus não exista. No De
Mysterio Trinitatis[519] São Boaventura cita e formula o argumento com alguma maior extensão,
e indica[520] que pode surgir alguma dúvida se alguém tem uma noção errônea de Deus e não
adverte que O é aquilo maior que o qual nada pode ser pensado. Uma vez que a mente adverte
qual é a ideia de Deus, deve advertir também não só que não pode ser duvidado da existência de
Deus, senão também que sua não-existência não pode nem sequer ser pensada. Quanto à
objeción de Gaunilón a respeito da melhor das ilhas possíveis, São Boaventura afirma[521] que
não pode ser estabelecido uma comparação semelhante, já que, enquanto não há nenhuma
contradição implicada no conceito de um Ser maior que o qual não cabe pensar outro, a ideia de
uma ilha melhor que a qual não caiba pensar outra é uma contradição nos termos (oppositio in
adiecto), já que o termo “ilha” denota um ser imperfecto, enquanto “melhor que a qual não cabe
pensar outra” denota um ser perfeito.

Pode parecer que esse método de argumentación seja puramente dialéctico, mas, como já
indicámos, São Boaventura não considera a ideia de perfeito como obtida simplesmente
mediante a negación da imperfección das criaturas, senão como algo orçamento por nosso
reconhecimento da imperfección das criaturas, ao menos no sentido de que o desejo do perfeito
pelo homem supõe um prévio conhecimento. De acordo com a tradição platónico-agustiniana,
São Boaventura pressupõe uma ideia innata virtual do perfeito, que não pode ser outra coisa
senão o selo de Deus na alma, não no sentido de que o alma seja perfeita, senão no sentido de
que a alma recebe a ideia do perfeito, ou se forma a ideia do perfeito à luz de Deus, mediante a
iluminação divina. A ideia não é algo negativo, cuja realização na existência concreta possa ser
negado, porque a presença da ideia mesma implica necessariamente a existência de Deus.
Podemos assinalar aqui a semelhança, ao menos, entre a doutrina de São Boaventura e a de
Descarte.[522]
5. Argumento baseado na verdade.

O argumento favorito de Santo Agostinho em favor da existência de Deus era o baseado na


verdade e na existência de verdades eternas; São Boaventura utilizou também esse argumento.
Por exemplo, toda proposição afirmativa afirma algo como verdadeiro; mas a afirmação de
qualquer verdade afirma também a causa de toda verdade[523]. Inclusive se alguém diz que um
homem é um asno, esse enunciado, seja correto ou não, afirma a existência da verdade primária,
e inclusive quando um homem declara que não há verdade alguma, afirma essa negación como
verdadeira, e implica por isso a existência do fundamento e causa da verdade[524]. Nenhuma
verdade pode ser vista se não é mediante a verdade primeira, e a verdade mediante a qual é vista
qualquer outra verdade, é uma verdade indudable.[525]

Mas também não aqui formula São Boaventura um argumento meramente verbal e
dialéctico. Em um bilhete do In[526], no que observa que o homem que diz que não há verdade
alguma se contradiz a si mesmo, já que afirma como verdadeiro que não há verdade alguma, diz
que a luz da alma é a verdade, que alumia a alma de tal modo que esta não pode negar a existência
da verdade sem se contradizer a si mesma; e no Itinerarium mentem in[527] mantém que a mente
pode prender verdades eternas e obter conclusões verdadeiras e necessárias somente à luz divina.
O intelecto não pode prender com certeza verdade alguma se não é baixo o script da verdade
mesma. Por conseguinte, negar a existência de Deus não é simplesmente incurrir em contradição
dialética; é também negar a existência da fonte dessa luz que é necessária para que a alma atinja
a certeza, a luz quae illuminat omnem hominem venientem in huno mundum: é negar a fonte
em nome do que procede da fonte.
Capítulo XXVII
São Boaventura. - III: Relacionamento das criaturas com
Deus

1. Exemplarismo.

Temos visto que as linhas de prova adotadas por São Boaventura conduzem não ao Motor
imóvel, trascendente e fechado em si mesmo, de Aristóteles (embora o santo não duvida em
utilizar o pensamento do Filósofo e em lhe citar quando o considera a propósito), senão ao Deus,
ao mesmo tempo trascendente e inmanente, que é o Deus que atrai à vontade; a Verdade que é
não somente fundamento de todas as verdades particulares, senão também Luz mediante cuja
irradiación na alma se faz possível a aprehensión de certas verdades; o Original que se reflete
na alma humana e na natureza; o Perfeito a quem deve-se cria-a do perfeito na alma humana.
Desse modo, os argumentos em favor da existência de Deus estão em estreito relacionamento
com a vida espiritual da alma, revelando a esta o Deus ao que sempre viu, embora só fora de um
modo semiconsciente, e o Deus que sempre operou dentro dela. O maior conhecimento de Deus
que é facilitado pela revelação coroa o conhecimento filosófico e abre à alma nivele mais altos
de vida espiritual, e a possibilidade de uma união mais íntima com Deus. Assim se integram a
filosofia e a teología: a primeira conduz à segunda, e esta espalha luz sobre o mais profundo
significado daquela.

Uma similar integração de filosofia e teología pode ser visto na doutrina buenaventuriana do
exemplarismo, que era, a olhos do santo, da maior importância. No In[528] faz do exemplarismo
o ponto central da metafísica. O metafísico, diz São Boaventura, procede desde a consideração
da substância particular, criada, à substância universal e increada (não, desde depois, no sentido
panteísta), e assim, na medida em que trata, em general, do Princípio originador de todas as
coisas, é similar ao filósofo natural, que também considera as origens das coisas; enquanto, na
medida em que considera a Deus como fim último, compartilha até verdadeiro ponto seu tema
com o filósofo moral, o qual considera também o Bem supremo como último fim, pondo sua
atenção na felicidade na ordem prática ou no especulativo. Mas na medida em que o metafísico
considera a Deus, o Ser Supremo, como causa instância de todas as coisas, não compartilha sua
matéria com ninguém mais (cum nullo eommunicat, et verus est methaphysieus). Mas o
metafísico, embora atinja a verdade do exemplarismo, não pode ser detido no mero fato de que
Deus é a Causa instância de todas as coisas, porque o médium da criação, a imagem expressa do
Pai e a instância de todas as criaturas, é o Verbo divino. É verdade que, precisamente como
filósofo, não pode chegar a um conhecimento verdadeiro do Verbo[529]; mas então, se contenta-
se com ser um mero filósofo, cairá no erro; alumiado pela fé, deve ir para além da mera filosofia
e reconhecer que o Verbo divino é a Causa instância de todas as coisas. A doutrina puramente
filosófica do exemplarismo prepara assim o caminho para a teología do Verbo, e, inversamente,
a teología do Verbo espalha luz sobre a verdade atingida pela filosofia, e, nesse sentido, Cristo
é o médium não somente da teología, senão também da filosofia.

Dessa posição segue-se uma conclusão óbvia respecto de Aristóteles. Platón mantinha uma
doutrina de ideias arquetípicas, e, fosse o que fosse o pensado pelo próprio Platón, os
neoplatónicos, ao menos, situava “” ditas ideias na mente divina, de tal modo que Santo
Agostinho pôde alabar a Platón e Plotino por essa razão; mas Aristóteles recusou as ideias de
Platón e atacou sua teoria com acritud (in princípio Metaphysieae et in fine et in multis aliis
loéis exseeratur ideias Platonis)[530]. Também a Ética ataca aquela doutrina, embora as razões
que dá carecem de valor (nihil valent rationes suae)[531] Por que atacou Aristóteles a Platón?
Porque ele era simplesmente um filósofo natural, que se interessava nas coisas do mundo por
razão de si mesmas, e estava dotado com o sermo scientiae, mas não com o sermo sapientiae.
Ao negar-se a desprezar o mundo sensível e a limitar a certeza ao conhecimento do trascendente,
Aristóteles teve razão contra Platón, o qual, em seu entusiasmo pela via sapientiae destruiu a via
scientiae, pelo que foi justamente censurado por Aristóteles; mas este foi a sua vez a parar ao
extremo oposto, e destruiu o sermo sapientiae[532]. Em realidade, ao negar a doutrina do
exemplarismo, Aristóteles comprometeu-se a si mesmo a uma negación da criação divina e da
providência divina, de maneira que seu erro foi pior que o de Platón. Agora bem, o
exemplarismo, no que insistia Platón, é, como vimos, a chave e centro da metafísica, de modo
que Aristóteles, ao recusar o exemplarismo, se excluiu a si mesmo das filas dos metafísicos,
segundo o sentido que São Boaventura dava a este termo.

Mas temos que ir mais longe que Platón, e aprender de Santo Agostinho, a quem foi
concedido tanto o sermo sapientiae como o sermo scientiae[533], porque Agustín conheceu que
as ideias estão contidas no Verbo divino, que o Verbo é o arquetipo da criação. O Pai conhece-
se a si mesmo perfeitamente, e esse ato de conhecimento é a imagem e expressão de si mesmo
é sua Palavra ou Verbo, seu similitudo expressiva[534]. Como procedente do Pai, o Verbo é
divino, é o Filho divino (filius denota a similitudo hypostatica, a similitudo connaturalis)[535], e
como representante do Pai, como Imago, como similitudo expressa, o Verbo também expressa,
representa, todo o que o Pai pode efetuar (quidquid Pater potest)[536]. Se alguém pudesse
conhecer ao Verbo, conheceria todos os objetos cognoscibles (se igitur intelligis Verbum,
intelligis omnia scibilid)[537]. No Filho ou Verbo, o Pai expressou todo o que podia fazer (isto
é, todos os seres possíveis estão ideal ou arque tipicamente representados no Verbo), e todo o
que faria[538]. Por conseguinte, as “Ideias” de todas as criaturas, possíveis e reais, estão contidas
no Verbo, e essas ideias se estendem não somente aos universais (gera e espécies), senão também
às coisas singulares ou individuais[539]. São infinitas em número, já que representam todos os
possíveis, já que representam o infinito poder de Deus[540]. Mas quando se diz que há uma
infinidad de ideias no Verbo não deve ser entendido que as ideias sejam realmente diferentes
em Deus, porque em Deus não há distinção salvo a distinção de pessoas: consideradas como
existentes em Deus, não são diferentes da essência divina, nem as umas das outras (iideae sunt
unum secundum rem)[541]. Daí segue-se que, não sendo diferentes umas de outras, não podem
formar uma verdadeira hierarquia[542]. No entanto, embora as ideias são ontológicamente uma e
não há distinção real entre elas, há uma distinção de razão, de maneira que são plures secundum
rationem intelligendi[543]. O fundamento da distinção não pode ser nenhuma classe de distinção
real na essência divina, já que não somente são as ideias ontológicamente idênticas à essência
divina que é simples, senão que ademais não há relacionamento alguma de parte de Deus às
criaturas, já que O não depende em modo algum das criaturas, embora há uma distinção real de
parte das criaturas a Deus, e Deus e as criaturas não são o mesmo, de maneira que desde o ponto
de vista das coisas significadas ou connotadas, as ideias são diferentes secundum rationem
intelligendi. Em Deus as ideias são uma só coisa, mas desde nosso ponto de vista estão, por
assim dizer, a médio caminho entre Deus que conhece e a coisa conhecida. A distinção não é
uma distinção no que são (isto é, uma distinção real) senão uma distinção no que connotan, e o
fundamento da distinção é a multiplicidad das coisas connotadas (isto é, das criaturas), não uma
distinção real na essência ou no conhecimento divinos.

Platón tendeu para essa teoria das ideias, mas como lhe faltou a luz da fé, não pôde ascender
até a doutrina verdadeira, e, inevitavelmente, ficou curto: para possuir a verdadeira doutrina das
ideias é necessário ter conhecimento do Verbo. Ademais, bem como as criaturas foram
produzidas pelo médium do Verbo e não podiam ter sido produzidas senão pelo médium do
Verbo, assim também não podem ser verdadeiramente conhecidas senão à luz de seu
relacionamento ao Verbo. Aristóteles pôde ser, seguramente foi-o, um eminente filósofo natural,
mas não podia conhecer verdadeiramente nem sequer os objetos que ele selecionou para seus
estudos, já que não os viu, em seu relacionamento ao Verbo, como reflexos da imagem divina.

2. O conhecimento divino.

Por conseguinte, Deus, ao conhecer-se a si mesmo conhece também todos os modos em que
sua divina essência pode ser refletida exteriormente. Deus conhece todas as coisas boas finitas
que podem ser realizadas no tempo, e a esse conhecimento lhe chama São Boaventura cognitio
approbationis, o conhecimento daquelas coisas às que se estende sua beneplacitum voluntatis.
Conhece também, não só as coisas boas que foram, são, ou serão, em decorrência do tempo,
senão também todas as coisas más, e a esse conhecimento São Boaventura lhe chama cognitio
visionis. Greve dizer que São Boaventura não pretende implicar por isso que o mau tenha sua
causa instância em Deus: o mau é mais bem a privação na criatura daquilo que deveria ter
segundo sua ideia em Deus. Deus conhece também todas as coisas possíveis, e São Boaventura
chama a esse conhecimento cognitio intelligentiae. Os objetos deste, os possíveis, são infinitos
em número, enquanto os objetos das duas primeiras classes de conhecimento são finitos[544].
Agora bem, os três tipos de conhecimento não são acidentes em Deus, diferentes entre si;
considerados ontológicamente, como se dão em Deus, são um só ato de conhecimento, idêntico
à essência divina.

O ato de conhecimento de Deus é infinito e eterno, de modo que todas as coisas estão
presentes a Deus, inclusive os acontecimentos futuros; não há sucessão no conhecimento divino,
e se falamos de uma “presciencia” de Deus devemos entender a futuridad como relativa aos
objetos mesmos (no sentido de que se acontecem uns a outros no tempo, e Deus conhece que se
acontecem os uns aos outros no tempo), não como relativa ao conhecimento divino em si mesmo.
Deus conhece todas as coisas por um só ato eterno, e não há sucessão temporária nesse ato, nem
dantes nem depois; mas Deus conhece eternamente, por esse único ato, as coisas acontecendo-
se umas a outras no tempo. São Boaventura faz, pois, uma distinção a propósito da afirmação
de que Deus conhece todas as coisas praesenter, advertindo que essa praesentialitas deve ser
entendida com referência a Deus (a parte cognoscentis), mas não com referência aos objetos
conhecidos (a parte cognitorum). Se entendesse-se neste último sentido, isso suporia que todas
as coisas estariam presentes as una às outras, o qual é falso, já que não estão todas apresente
umas a outras, senão que estão presentes todas elas a Deus[545]. Imaginemos, diz[546], um olho
fixo e imóvel sobre uma parede, que observa os movimentos sucessivos de todas as pessoas e
coisas que há ali em um só ato de visão. O olho não muda, nem seu ato de visão, mas sim as
coisas que há ante a parede. Tal ilustração, observa São Boaventura, não é em realidade nada
parecida ao que ilustra, pois não é possível imaginar desse modo o conhecimento divino, mas
pode ajudar a que se compreenda o que se trata de significar.

3. Imposibilidad da Criação desde a eternidade.

Se não tivesse ideias divinas, se Deus não tivesse conhecimento de Si mesmo e do que pode
realizar, não teria criação, já que a criação exige um conhecimento de parte do Criador,
conhecimento e vontade. Não deve surpreender, portanto, que Aristóteles, que recusou as ideias,
recusasse também a criação e ensinasse a eternidade do mundo, um mundo não criado por Deus.
Ao menos assim entenderam a Aristóteles todos os Doutores gregos, como san Gregorio de Nisa,
san Gregorio Nacianceno, São João Damasceno e san Basilio, bem como todos os comentadores
árabes, e, em verdade, em nenhuma parte se encontra que Aristóteles diga que o mundo teve um
princípio; em realidade, ele mesmo censuró a Platón, o único filósofo grego que parece ter
declarado que o tempo teve um começo[547]. São Boaventura não precisava se ter expressado de
um modo tão cauteloso, pois indubitavelmente Aristóteles não creu em uma criação divina do
mundo a partir da nada.

Santo Tomás não viu incompatibilidad alguma, desde o ponto de vista filosófico, entre a
ideia de criação, por uma parte, e a da eternidade do mundo, por outra, de maneira que para ele
o mundo podia não ter tido começo no tempo e ser no entanto criado, isto é, que Deus podia ter
criado o mundo desde a eternidade; mas São Boaventura considerava que a eternidade do mundo
é impossível, e que Deus não poderia o ter criado desde a eternidade: agora bem, o mundo é
criado, logo o tempo teve necessariamente um começo. A consequência seria, pois, que negar
que o tempo tenha um princípio equivaleria a negar que o mundo seja criado, e provar que o
tempo ou movimento eterno, sem princípio, é impossível, equivale a provar que o mundo é
criado. São Boaventura considerava, pois, a ideia aristotélica da eternidade do mundo como
necessariamente vinculada à negación da criação, e essa opinião, que santo Tomás não
compartilha, aumentava sua oposição a Aristóteles. Naturalmente, tanto santo Tomás como São
Boaventura aceitavam o fato de que o mundo teve um princípio no tempo, já que assim o ensina
a teología; mas diferiam quanto à questão da possibilidade abstrata de uma criação desde a
eternidade, e a convicção de São Boaventura da imposibilidad desta lhe fez determinadamente
hostil a Aristóteles, já que a afirmação por este da eternidade do movimento como um fato, e
não meramente como uma possibilidade, lhe parecia necessariamente uma afirmação da
independência do mundo respecto de Deus, uma afirmação que Buenaventura achava devida
primariamente à negación do exemplarismo.
Por que razões sustentava São Boaventura que o tempo, ou o movimento eterno, sem um
princípio, é impossível? Seus argumentaciones são mais ou menos as que santo Tomás trata
como objeciones a sua própria posição. Ofereço a seguir alguns exemplos.

(I) Se o mundo existisse desde a eternidade, se seguiria que é possível acrescentar algo ao
infinito. Por exemplo, teria já um número infinito de revoluções solares, e no entanto a cada dia
se acrescenta uma nova revolução. Mas é impossível acrescentar algo ao infinito. Portanto, o
mundo não pode ter existido sempre[548]. Santo Tomás responde[549] que se o tempo se supõe
eterno é infinito ex parte ante, mas não ex parte pós, e nada pode objetarse a uma adição que se
faça ao infinito pela parte em que é finito, isto é, pela parte em que termina no presente. A isso
replica São Boaventura que, se se considera simplesmente o passado, então se teria que admitir
um número infinito de revoluções lunares. Mas há doze revoluções lunares por uma revolução
solar. Por conseguinte, enfrentamo-nos com dois números infinitos, dos quais um é doze vezes
maior que outro, e isso é impossível.

(II) É impossível percorrer uma série infinita, de maneira que se o tempo fosse eterno, isto
é, se não tivesse um princípio, o mundo nunca chegaria ao momento presente. E, no entanto,
está claro que chegou.[550]

A isso responde santo Tomás[551] que todo percorrer ou transitus requer um termo inicial e
um termo final. Mas se o tempo é de duração infinita, não teve primeiro termo, nem, portanto,
transitus; pelo que a objeción não pode ser apresentado. São Boaventura replica que ou há uma
revolução do sol que seja infinitamente distante, no passado, da revolução de hoje, ou não a há.
Se não a há, então a distância é finita, e a série deve ter tido um começo. Se há, então, que
devemos dizer da revolução imediatamente seguinte à que está infinitamente distante da de hoje?
Está também essa revolução infinitamente distante da de hoje, ou não? Se não o está, então a
revolução que em hipótese estava infinitamente distante não pode também não estar
infinitamente distante, já que o intervalo entre a “primeira” e a segunda revolução é finito. Se o
é, então, que dizer da terceira revolução, e da quarta, e assim sucessivamente? Estão todas
infinitamente distantes da revolução de hoje? Se estão-no, então a revolução de hoje não está
menos distante delas que da primeira. Em tal caso, não há sucessão, e todas são sincrónicas, o
qual é absurdo.

(III) É impossível que tenha em existência ao mesmo tempo uma infinidad de objetos
concretos. Mas se o mundo existisse desde a eternidade, agora teria em existência uma infinidad
de almas racionais. Portanto, o mundo não pode ter existido desde a eternidade.[552]

A isso responde santo Tomás[553] que alguns dizem que as almas humanas não existem após
a morte do corpo, e outros mantêm que somente permanece um intelecto (comum); outros, ainda,
sustentam a doutrina da reencarnación, e certos escritores mantêm que um número infinito em
ato é possível no caso de coisas que não estão ordenadas (in his quae ordinem non habent). Santo
Tomás, naturalmente, não mantém por si mesmo nenhuma das três primeiras posições; quanto
à quarta, sua própria atitude final parece dubitativa. São Boaventura pôde observar, pois,
bastante cáusticamente, que a teoria da reencarnación é um erro em filosofia e é contrária à
psicologia de Aristóteles, enquanto a doutrina de que somente sobrevive um intelecto comum é
um erro ainda pior. Quanto à possibilidade de um número infinito em ato, ele achava que era
uma noção errônea, sobre a base de que uma multidão infinita não poderia ser ordenada e não
poderia, portanto, estar submetida à providência divina, enquanto aliás todo quanto Deus criou
está submetido a sua providência.

Buenaventura estava, pois, convencido de que pode ser provado filosoficamente, contra
Aristóteles, que o mundo teve um começo, e que a ideia de criação desde a eternidade supõe
uma “contradição manifesta”, já que, se o mundo foi criado a partir da nada, teve ser após não-
ser (esse pós non esse)[554], de maneira que não pôde existir desde a eternidade. Santo Tomás
responde que os que afirmam a criação desde a eternidade não dizem que o mundo foi feito pós
nihilum, senão que foi feito “a partir da nada”, o qual ao que se opõe é “a partir de algo”. Isto é,
a ideia de tempo não está em modo algum implicada na fórmula “ex nihilo”. A olhos de São
Boaventura, já é bastante mau dizer que o mundo seja eterno e increado (um erro que pode ser
desaprovado filosoficamente); mas dizer que foi criado eternamente a partir da nada é se fazer
réu de uma flagrante contradição, algo “tão contrário a razão, que eu não acharia que nenhum
filósofo, por pequeno que fosse seu entendimento, pudesse o afirmar”.[555]

4. Erros que se seguem da negación do exemplarismo e da Criação.

Se nega-se a doutrina do exemplarismo, e se Deus não criou o mundo, é perfeitamente


natural concluir que Deus somente se conhece a Si mesmo, que somente move enquanto causa
final, como objeto de desejo e de amor (ut desiderátum et amatum), e que não conhece nenhuma
coisa particular fosse de Si mesmo[556]. Em tal caso, Deus não pode exercer providência alguma,
ao não ter em si as rationes rerum, as ideias das coisas, pelas que poderia conhecer a estas[557].
A doutrina de São Boaventura é, desde depois, que Deus conhece as coisas diferentes do mesmo,
mas que as conhece em e através de Si mesmo, mediante as cria instâncias. De não sustentar
essa doutrina, teria que dizer que o conhecimento divino recebe um complemento ou perfección
de parte das coisas exteriores a O, isto é, que, em verdadeiro modo, depende das criaturas. Em
realidade, Deus é completamente independente; são as criaturas as que dependem de Deus, e
não podem conferir perfección alguma ao Ser Divino[558]. Mas se Deus está encerrado em Si
mesmo, no sentido de não ter conhecimento algum das criaturas e não exercer nenhuma
providência, se segue que as mudanças ou movimentos do mundo têm local, ou por casualidade,
o qual é impossível, ou por necessidade, segundo sustentavam os filósofos árabes, mediante a
determinação pelos corpos celestes dos movimentos das coisas deste mundo. Mas, em tal caso,
toda a doutrina das recompensa ou castigos desaparece, e, efetivamente, em nenhuma parte se
encontrará que Aristóteles fale de beatitud após a vida presente[559]. Todas essas conclusões
errôneas se seguem, pois, da negación do exemplarismo, e está mais claro que nunca que o
exemplarismo é a chave de uma metafísica verdadeira, e que sem essa chave o filósofo cai
inevitavelmente em erros ao tratar de temas metafísieos.

5. Semelhança das criaturas a Deus, analogia.

Da doutrina do exemplarismo segue-se que há alguma semelhança entre as criaturas e Deus;


mas temos de distinguir diversas classes de semelhança (similitudo) para chegar a obter uma
ideia correta do relacionamento das criaturas a Deus, de maneira que evite-se o panteísmo, por
um lado, e a independência do mundo, pelo outro. No Comentário às Sentenças[560], São
Boaventura diz que similitudo pode significar uma concordancia de duas coisas em uma terça
(e nesse caso ele o lume similitudo secundum univocationem), ou pode significar a semelhança
de uma coisa a outra sem concordancia alguma em outra terça, e é nesse sentido no que se diz
que a criatura é uma semelhança de Deus. Na mesma conclusio (ad 2) distingue a similitudo
univocationis sive participationis, e a similitudo imitationis et expressionis, e procede a observar
que a primeira não convém ao relacionamento entre as criaturas e Deus, porque não há termo
comum algum (quia nihil est commune, isto é, porque não há nada comum a Deus e às criaturas).
O que São Boaventura quer dizer é que Deus e as criaturas não participam no ser, por exemplo,
univocamente (precisamente no mesmo sentido), porque, em tal caso, a criatura seria Deus,
teríamos um panteísmo. A criatura é uma imitação de Deus, da ideia dela mesma em Deus, e
Deus expressa externamente a ideia na criatura finita. Por conseguinte, quando São Boaventura
recusa a similitudo participationis devemos entender que “participatio” quer dizer aqui
participação em algo comum a Deus e as criaturas em sentido unívoco, em um tertium commune,
segundo ele o expressa.

Pode objetarse que se não há nada comum entre Deus e as criaturas, não pode ter semelhança;
mas a comunidade que São Boaventura deseja excluir é a comunidade unívoca, à que ele opõe
a analogia. A semelhança da criatura a Deus ou de Deus à criatura (exemplaris ad exemplatum)
é uma espécie de analogia, e a outra é a de proportionalitas (habitudo duorum ad dúo), que existe
entre séries de coisas que pertencem a gêneros diferentes, embora no caso do relacionamento
entre as criaturas e Deus é somente a criatura a que é membro de uma classe genérica. Assim,
um maestro é a sua escola o que um piloto é a seu navio, já que o maestro (e piloto) dirige a
escola (e o navio)[561]. São Boaventura distingue depois entre proporção em sentido amplo, que
inclui a proporcionalidade, e proporção em sentido estrito, que se dá entre membros da mesma
classe, números aritméticos, por exemplo. Desde depois, nesse sentido estrito, não pode existir
proporção entre Deus e as criaturas.

Mas embora São Boaventura fala de analogia de proporcionalidade, as analogias às que


atende principalmente são as de semelhança, porque sempre gostava de encontrar expressões,
manifestações, imagens ou vestigia de Deus no mundo das criaturas. Assim, no Comentário às
Sentenças[562], após excluir a similitudo per convenientiam omnimodam in natura, que
corresponde às três pessoas divinas, a cada uma das quais é idêntica à Natureza divina, e a
similitudo per partieipationem alicuius naturae universalis, que é a que pode ter entre homem e
asno, em virtude de sua comum participação no genus animal, admite a proporcionalidade,
similitudo secundum proportionalitatem (e é aí onde apresenta o exemplo do piloto e o navio),
e similitudo per convenientiam ordinis (sicut exemplatum assimilatur exemplari), e procede a
discutir esses últimos tipos de analogia, que, como já se disse, podem ambos aplicar ao
relacionamento entre as criaturas e Deus.

Toda criatura, diz São Boaventura, é um vestigium de Deus, e os dois tipos de analogia (a
que há entre o exemplatum e o exemplar e a de proporcionalidade) são aplicáveis a toda criatura;
o primeiro, assim que toda criatura é efeito de Deus e está conformada a Deus através da ideia
divina; o segundo, assim que também a criatura produz um efeito, embora não do mesmo modo
em que Deus produz o seu (sicut enim Deus producit suum effectum, sic et agens creatum, licet
non omnino, já que a criatura não é causa total de seu efeito). Mas embora toda criatura é um
vestigium Dei, essa conformidade geral da criatura a Deus é relativamente remota (magis de
longinquo); há outro tipo de semelhança que é mais estrito (de proximo) e mais expresso, e que
somente tem aplicação a certas criaturas. Todas as criaturas estão ordenadas a Deus, mas
somente as criaturas racionais estão dirigidas imediatamente (immediate) a Deus, enquanto as
criaturas irracionais estão dirigidas a Deus mediatamente (mediante creatura rationali).
Somente a criatura racional pode conhecer a Deus, alabar a Deus e servir a Deus
conscientemente, e tem, por isso, uma maior conformidade a Deus, uma maior convenientia
ordinis, que a criatura irracional. Agora bem, quanto maior é a convenientia ordinis, tanto maior,
mais íntima e mais expressa é a semelhança ou similitudo. Essa semelhança mais estrita é
chamada por São Boaventura imago. Por conseguinte, toda criatura é um vestigium Dei, mas
somente a criatura racional é imago Dei, porque se parece a Deus na posse de potências
espirituais mediante as quais pode ser conformado mais e mais a Deus.

Uma diferença similar entre a criatura racional e a irracional pode ser observado se
consideramos a analogia de proporcionalidade. Com as devidas concessões e reservas, podemos
dizer que como Deus é à criatura, isto é, como a Causa divina é a seu efeito, assim é a criatura a
seu efeito, e isso vale de todas as criaturas na medida em que são agentes ativos; mas o efeito
considerado é extrínseco ao agente, enquanto no caso das criaturas racionais, e só no destas, há
uma proporção intrínseca. Em Deus há uma unidade de natureza em uma trinidad de pessoas, e
no homem há uma unidade de essência com uma trinidad de potências que estão ordenadas umas
a outras, em um relacionamento que se assemelha de algum modo aos relacionamentos em Deus
(quasi eonsimili modo se habentium, sicut se habent personae in divinis). São Boaventura não
pretende que possamos provar a doutrina da Trinidad mediante a luz natural da razão a partir de
uma consideração da natureza humana, porque ele nega a possibilidade de toda prova filosófica
estrita do mistério, senão mais bem que, guiados pela luz da fé, podemos encontrar uma analogia
trinitaria na natureza racional humana. Como a natureza divina é às três pessoas divinas, assim
(quasi eonsimili modo) é a natureza ou essência humana a suas três potências. É essa uma
semelhança “expressa” de proporção, e em razão disso se chama também ao homem “imagem”
de Deus. A palavra “expressa” significa que a Santísima Trinidad se expressou a si mesma, se
manifestou a Si mesma em verdadeiro grau, na constituição da natureza humana, e está claro
que, para São Boaventura, a analogia de semelhança (isto é, a do exemplatum ao exemplar) é
mais fundamental que a analogia de proporcionalidade, pois a segunda se trata em função da
primeira, e não tem nenhum significado ou valor concreto aparte daquela.

Desse modo São Boaventura pode ordenar a hierarquia do ser segundo a proximidade ou
lonjura da semelhança da criatura a Deus. O mundo das coisas puramente sensíveis é o vestigium
ou umbra Dei, embora também aqui encontra São Boaventura analogias da Trinidad; é o liber
seriptus forinsecus. Quando é considerado por um filósofo natural que não é mais que filósofo
natural, é simplesmente natura: um homem assim não sabe ler o livro da natureza, que não é
para ele vestigium Dei, senão algo considerado por razão de si mesmo e sem referência alguma
a Deus[563]. A criação racional encontra-se acima da criação puramente sensível, e é imago Dei,
imagem de Deus em um sentido especial. Mas a frase “imagem de Deus” tem uma ampla
aplicação, porque cobre não somente a substância natural dos homens e dos anjos, senão também
aquela semelhança sobrenatural que é o resultado da posse da graça. A alma que está em graça
é imagem de Deus em um sentido mais elevado que aquele em que o é a essência puramente
natural do homem, e a alma no céu, quando desfruta da visão beatífica, é imagem de Deus em
um sentido ainda mais profundo. Há, pois, muitos graus de analogia, de semelhança a Deus, e a
cada grau deve ser visto à luz do Verbo, que é a imagem consubstancial do Pai e a instância de
toda a criação, refletido nas criaturas segundo diversos graus de “expressão”. Podemos notar
não somente a constante integração de filosofia e teología, senão também o fato de que os
diversos graus de semelhança estão em estreito relacionamento com a vida intelectual e
espiritual do homem. A ascensão a Deus por parte do indivíduo supõe um voltar-se desde a
umbra, ou puro vestigium, contemplada pelos sentidos, do liber seriptus forinsecus, à reflexão
interior da imago Dei, o liber seriptus intrinseeus, em obediência ao preceito de Santo Agostinho
de ir dentro de si mesmo, e, ultimamente, à contemplação de Deus em si mesmo, o exemplar no
exemplatum. O fato de que São Boaventura não trata a teología e a filosofia em compartimentos
tabacarias, lhe faculta para vincular sua visão do universo à vida mística e ascética, e para
merecer assim o nome de pensador especificamente cristão.

6. É este mundo o melhor mundo possível?

É este mundo, que reflete tão admiravelmente ao Criador divino, o melhor de todos os
mundos possíveis? Devemos distinguir antes de mais nada duas questões diferentes. Poderia
Deus ter feito um mundo melhor que este? Poderia Deus ter feito este mundo melhor do que é?
São Boaventura contesta à primeira pergunta que Deus poderia ter feito um mundo melhor que
este, criando essências mais nobres, e que tal coisa não pode ser negada sem limitar o poder de
Deus. Quanto à segunda pergunta, tudo depende do que entendamos por “mundo” e por
“melhor”. Se referimo-nos às substâncias que vão constituir o mundo, que é o que se pergunta?
Se Deus pôde fazer substâncias melhore, no sentido de fazê-las essencialmente mais nobres, isto
é, substâncias de tipo superior, ou se Deus pôde fazê-las acidentalmente melhore, sem deixar de
pertencer a sua própria classe? Se o que se pergunta é o primeiro, então a resposta é que Deus
pôde certamente mudar as substâncias em outras mais nobres, mas que então o mundo não seria
o mesmo, e Deus não faria melhor este mundo. Se o que se pergunta é o segundo, então a resposta
é que Deus pôde fazer melhor este mundo. Para pôr um exemplo: se Deus mudasse um homem
em anjo, o homem deixaria de ser homem, e Deus não faria melhor ao homem; mas Deus pôde
fazer melhor a um homem aumentando sua capacidade intelectual e suas qualidades morais[564].
Ademais, conquanto Deus pôde fazer melhore a este homem ou a este cavalo, devemos fazer
outra distinção se pergunta-se se Deus pôde ou não fazer melhor ao homem como tal, no sentido
de lhe colocar em melhore condições. Absolutamente falando, pôde; mas se tem-se em
consideração o propósito pelo que Deus colocou ao homem nessas condições ou lhe permitiu
estar nessas condições, pode muito bem ser que não pudesse fazer ao homem melhor. Por
exemplo, se Deus fizesse com que todos os homens lhe servissem bem, faria ao homem melhor,
desde um ponto de vista abstrato; mas se considera-se o propósito pelo que Deus permitiu ao
homem lhe servir bem ou mau, não faria ao homem melhor lhe privando de seu livre albedrío.
Finalmente, se alguém pergunta por que, se Deus pôde ter feito ou poderia fazer melhor o
mundo, não o fez ou não o faz assim, a única resposta que pode ser dado é que assim o quis O,
e que O conhece a razão (solutio non potest dari nisi haee, quia voluit, et rationem ipse
novit).[565]
Capítulo XXVIII
São Boaventura. - IV: A criação material

1. Composição hilemórfica de todas as criaturas.

São Boaventura aceitou de seu maestro, Alexandro de Hales, a doutrina da composição


hilemórfica de todas as criaturas, isto é, a doutrina de que todas as criaturas estão compostas de
matéria e forma. Por “matéria” entendia, naturalmente, nesse contexto, o princípio de
potencialidade no sentido mais amplo, e não “matéria” no sentido em que a matéria se opõe ao
espírito. “A matéria, considerada em si mesma, não é nem espiritual nem corpórea, e, por isso,
é em si mesma indiferente à recepção de uma forma espiritual ou de uma forma corpórea; mas
como a matéria nunca existe por si mesma, aparte de uma forma determinada, e como, uma vez
unida com uma forma material ou com uma forma espiritual, é corpórea ou espiritual
respetivamente, se segue que a matéria atualmente presente a uma substância corpórea é
especificamente diferente da que há em uma substância espiritual.”[566] A “matéria” pode ser
considerada a mais de uma maneira. Se considera-lha desde o ponto de vista da privação (per
privationem), abstrayéndola de todas as forma, sejam substanciais ou acidentais, deve ser
admitido que é essencialmente a mesma em todas as criaturas, “porque se qualquer classe de
matéria se separa de todas as forma e de todos os acidentes, não se verá em absoluto diferencia
alguma”. Mas se considera-se a matéria “analogicamente” (secundum analogiam), isto é, como
potencialidade, como uma base para as forma, deve ser feito uma distinção. Assim que a matéria
considera-se como proporcionando uma base para a forma simplesmente na feição do ser (in
ratione entis), é essencialmente a mesma tanto nas criaturas materiais como nas espirituais, já
que tanto as criaturas espirituais como as materiais existem e subsistem, e pode ser considerado
sua existência por si mesma, sem proceder a considerar o modo preciso em que existem ou a
classe de coisas que são. Esse é o modo em que o metafísico considera a matéria, e assim, aos
olhos do metafísico, a matéria é similar na criação material e na espiritual. Mas se a matéria
considera-se simplesmente em seu relacionamento ao movimento em sentido amplo, isto é,
entendido como mudança, então não é o mesmo nas criaturas que não podem receber mudança
substancial ou receber forma corpóreas e nas criaturas que podem sofrer mudança substancial e
receber forma corpóreas, embora pode ser considerada como analogicamente similar, assim que
que os anjos são suscetíveis de, por exemplo, influência divina. É o filósofo natural, ou physicus,
o que considera a matéria desse modo.
Sem entrar em ulteriores distinções feitas por São Boaventura, e sem tratar de julgar sua
doutrina, pode ser dito que seu ensino sobre a composição hilemórfica de todas as criaturas
consiste em que a matéria é o princípio da potencialidade como tal. Tanto as criaturas espirituais
como as criaturas materiais são seres dependentes, seres que não existem por si mesmos, de
maneira que se se considera a potencialidade com abstração de toda forma, a vendo como
coprincipio do ser, pode ser dito que é essencialmente a mesma em umas e outras, como o faz o
metafísico. O filósofo natural considera os corpos e interessa-se pela matéria, não por sua
essência abstrata, senão como existente em um tipo particular de ser, em um relacionamento
concreto a uma determinada classe de forma, à forma material; e a matéria, considerada a essa
luz, não se encontra nos seres espirituais. Pode-se, desde depois, objetar que se a matéria,
enquanto existe concretamente, como unida à forma, é e segue sendo de espécies diferentes,
deve ter algo na matéria mesma que a faça de espécies diferentes, de maneira que sua similaridad
nas ordens criadas material e espiritual não pode ser mais que analógica; mas São Boaventura
admite que a matéria não existe nunca atualmente aparte da forma, e se limita a afirmar que se
lha considera, como pode ser considerada, em abstração de toda forma, como mera
potencialidade, então pode ser dito justamente que é essencialmente a mesma. Se os anjos têm
em sim um elemento de potencialidade, de possibilidade, como o têm, devem possuir matéria,
porgue a matéria, considerada em si mesma, é simplesmente possibilidade ou potência.
Unicamente no Ser que é Ato puro, sem potência ou possibilidade alguma, não há matéria.

2. A individuación.

É a matéria o princípio de individuación? Alguns pensadores, diz São Boaventura[567],


mantiveram-no assim, se apoiando em palavras de Aristóteles, mas é muito difícil ver como o
que é comum a todos pode ser a causa principal da distinção, da individualidad. Pelo contrário,
dizer que a forma é o princípio de individuación e postular uma forma individual, além da forma
da espécie, é ir parar ao extremo oposto e esquecer que toda forma criada pode ter outra igual a
ela. É melhor sustentar que a individuación resulta da união atual de matéria e forma,
mutuamente ajustadas pela união mesma. Os selos fazem-se por diferentes impressões em cera,
e sem a cera não teria pluralidad de selos, mas sem as diferentes impressões a cera não se
converteria em uma pluralidad. Semelhantemente, a matéria é necessária para que tenha
distinção e multiplicidad, número, mas a forma é também necessária, porque a distinção e a
multiplicação pressupõem a constituição de uma substância mediante os elementos que a
compõem. Que uma substância individual seja algo definido, de uma espécie definida, se deve
à forma; que seja esse algo, se deve principalmente à matéria, pela qual a forma adquire uma
posição no espaço e no tempo. “Individuación” denota principalmente algo substancial, uma
substância composta de matéria e forma, mas também denota algo que pode ser considerado um
acidente, a saber, o número. “Individualidad” (idiscretio individuais) denota duas coisas:
individuación, que resulta da união dos dois princípios, matéria e forma, e, em segundo local,
distinção das demais coisas, que é a origem do número; mas o primeiro sentido, o de
individuación, é o mais fundamental.

A personalidade (discretio personalis) aparece quando a forma unida à matéria é uma forma
racional, e acrescenta, pois, à individualidad a dignidade de natureza racional, que ocupa o local
mais alto entre as criaturas criadas e não está em potencial para uma forma substancial mais
elevada. Mas há algo mais que se precisa para que se constitua a personalidade, a saber, que no
suppositum não possa ter outra natureza de maior eminencia e dignidade, isto é, que a natureza
racional possua actualem eminentiam no suppositum. (Em Cristo, a natureza humana, embora
perfeita e completa, não possui actualem eminentiam, e não é, portanto, pessoa.) “Devemos
dizer, pois, que bem como a individualidad resulta da existência de uma forma natural na
matéria, a personalidade resulta da existência de uma natureza nobre e supereminente na
substância.”[568]

Como São Boaventura atribui matéria, isto é, uma matéria espiritual, aos anjos, pode admitir
uma pluralidad de anjos individuais dentro de uma mesma espécie, sem se ver obrigado a
postular, como santo Tomás, tantas espécies angélicas como anjos há. As Escrituras mostram-
nos alguns anjos cumprindo funções similares, e isso arguye uma similaridad em sua ser, e, por
outra parte, o “amor de caridade” também pede a multiplicidad de anjos dentro de uma mesma
espécie.[569]

3. A luz.

Na criação corpórea há uma forma substancial que todos os corpos possuem: a forma de
[570]
luz . A luz foi criada no primeiro dia da criação, três dias dantes da produção do sol, e é
corpórea, em opinião de São Boaventura, embora Santo Agostinho interpretou que significava
a criação angélica. Propriamente falando não é um corpo, senão a forma de um corpo, a primeira
forma substancial, comum a todos os corpos e princípio da atividade destes, e as diferentes
espécies de corpos formam uma hierarquia de graus segundo sua participação maior ou menor
na forma de luz. Assim, os “empíreos” se encontram em um extremo da escala, enquanto a terra
se encontra no outro, no extremo inferior. Desse modo, o tema da luz, tão caro à tradição
agustiniana, e que se remonta até Plotino e até a comparação feita por Platón entre a Ideia de
Bem e o sol, encontra um local destacado na filosofia de São Boaventura.

4. Pluralidad de forma.

Evidentemente, se São Boaventura sustenta que a luz é uma forma substancial possuída por
todos os corpos, deve afirmar também que pode ter uma pluralidad de forma substanciais em
uma mesma substância. O não encontrou dificuldade alguma em afirmar tal coisa, já que
considerava a forma como aquilo que prepara ao corpo para a recepção de outras e mais altas
aperfeiçoe. Enquanto para santo Tomás a forma substancial era limitativa e definidora, de
maneira que não pode ter mais de uma forma substancial em um mesmo corpo, para São
Boaventura a forma remete, por assim o dizer, a algo mais elevado, e, mais que arrendondar e
limitar ao corpo, lhe prepara para novas possibilidades e aperfeiçoe. No In Hexaémneron chega
a afirmar[571] que é uma loucura (insanum) dizer que a forma final se acrescente à matéria prima
sem que tenha algo que seja uma disposição para a receber ou que esteja em potencial para ela,
isto é, sem que tenha alguma forma intermediária; e gostava de traçar um paralelo entre a ordem
da graça e o da natureza. Bem como o dom de conhecimento dispõe para o dom de sabedoria e
não é anulado pelo dom de sabedoria, e bem como os dons não anulam as virtudes, assim
também uma forma predispone para uma forma mais alta, e esta última, quando é recebida, não
expulsa à primeira, senão que a coroa.
5. Rationes seminales.

Tinha que esperar que São Boaventura, que seguia abertamente a senda da tradição
agustiniana, aceitasse a doutrina das rationes seminales, especialmente sendo de modo que dita
doutrina acentua a obra do Criador e diminui a independência dos agentes naturais, embora não
foi uma doutrina mais “científica”, no sentido moderno da palavra, no caso de São Boaventura
que no caso de Santo Agostinho. Para ambos homens, o que a exigia era a exégesis das
Escrituras, ou, mais bem, uma filosofia construída envelope os dados da revelação mais um
motivo extra, no caso de São Boaventura, a saber, o que era sustentada por seu grande
predecessor, o filósofo cristão par excellence, que esteve dotado ao mesmo tempo com o sermo
sapientiae e com o sermo scientiae. “Acho que essa posição deve ser mantida, não somente
porque a razão nos inclina a ela, senão também porque a autoridade de Agustín, em seu
Comentário literal ao Génesis, a confirma.”[572]

São Boaventura manteve, pois, uma verdadeira latitatio formarum das coisas na matéria;
mas negou-se a aceitar a opinião de que as forma das coisas que aparecem no tempo estivessem
originariamente na matéria em um estado “atual”, como um quadro coberto por um pano, de
modo que o agente particular se limitasse às descobrir, como o homem que retira do quadro o
pano e deixa aparecer a pintura. Segundo essa opinião, forma contrárias, que se excluem
mutuamente, teriam estado juntas ao mesmo tempo no mesmo sujeito, o qual é impossível.
Também não aceita São Boaventura a opinião de que Deus é a única causa eficiente na educción
das forma, porque isso significaria que Deus cria todas as forma, do modo em que cria a alma
humana racional, e que o agente secundário, em realidade, não faz nada em absoluto, sendo de
modo que está claro que sua atividade contribui realmente algo ao efeito. A segunda das duas
opiniões desestimadas reduziria ou suprimiria por completo a atividade do agente criado, e a
primeira a reduziria a um mínimo; São Boaventura não está disposto a aceitar nenhuma das duas.
O prefere a opinião que “parece ter sido a de Aristóteles, e é comummente mantida agora pelos
doutores em filosofia e em teología”, a de que “quase todas as forma naturais, as forma corpóreas
ao menos, tais como as forma dos elementos e as forma dos mistos, estão contidas na potência
da matéria e são levadas a atualização (educuntur in actum) mediante a ação de um agente
particular”. Mas isso pode ser entendido de duas maneiras. Pode significar que a matéria tem ao
mesmo tempo a potência para receber a forma e a inclinação a cooperar na produção da forma
e que a forma a produzir está no agente particular como em seu princípio original e eficiente, de
modo que a educción da forma tem local pela multiplicação da forma do agente, como uma vela
acendida pode acender multidão de velas; ou pode significar que a matéria contém a forma a ser
educida, não somente como aquilo no que, e, em certa medida, pelo que é produzida a forma,
senão ademais como aquilo a partir do qual é produzida, embora no sentido de que está
concreada com a matéria e na matéria como uma forma não atual, senão virtual. Na primeira
hipótese não pode ser dito que as forma sejam criadas pelo agente, já que não procedem da nada,
não obstante o qual uma nova forma seria de algum modo produzida. Na segunda hipótese não
se produz nenhuma nova essência ou quididad, senão que a forma que existia em potencial,
virtualmente, é reduzida a ato, recebe uma nova dispositio. Por conseguinte, a segunda hipótese
atribui ao agente criado menos que a primeira, já que o agente criado se limita a fazer com que
o que anteriormente existia de um modo exista agora de outro modo, enquanto na primeira
hipótese o agente criado produziria algo positivamente novo, ainda que não fosse por via de
produção a partir da nada. Se um jardineiro cuida os rosales de maneira que os capullos possam
florescer em rosas, faz certamente algo, mas menos do que faria se tivesse que produzir um rosal
a partir de outra forma vegetal. Por conseguinte, São Boaventura, deseoso de não atribuir nem
sequer uma similitud de potência criadora a um agente criado, elege a hipótese que atribui menos
à ação do agente criado e mais à ação do criador.

As forma que são educidas estiveram, pois, originalmente na matéria em um estado virtual.
Essas forma virtuais são as rationes seminales. Uma ratio seminalis é uma potência ativa
existente na matéria, e é a essência da forma a educir, que se encontra com esta no
relacionamento do esse ineompletum ao esse eompletum, ou do esse in potentia ao esse in[573].
A matéria é, pois, um seminarium ou semillero no que Deus criou em estado virtual as forma
corpóreas que deviam ser sucessivamente educidas dela. Isso tem aplicação não somente às
forma das coisas inorgánicas, senão também às almas dos animais irracionais e das plantas.
Greve dizer que São Boaventura é consciente de que a atividade de agentes particulares é
necessária para o nascimento de um animal, mas não está disposto a admitir a teoria
traducianista, segundo a qual a alma de um novo animal é produzida por “multiplicação” da
alma do pai, embora sem diminuição alguma de parte desta, já que tal teoria implica que uma
forma criada pode produzir uma forma similar a partir da nada[574]. O que ocorre é que os
animais pais atuam envelope o que eles mesmos receberam, o princípio seminal, e este é uma
potência ativa que contém em germen a nova alma, embora a atividade dos pais é necessária
para que o virtual possa ser convertido em atual. São Boaventura escolhe assim uma via média
entre atribuir demasiado pouco, ou nada, ao agente criado, e lhe atribuir o que a ele lhe parecia
excessivo, pois seu princípio geral é que enquanto Deus produz as coisas a partir da nada, um
agente criado somente pode produzir algo que já existisse em potencial, isto é, segundo ele o
entende, em um estado virtual[575]. Mas seria inútil buscar uma descrição e explicação exata das
rationes seminales e seu modo de operar, já que a teoria baseia-se parcialmente na autoridade e
parcialmente em um razonamiento filosófico a priori, não na observação empírica ou na
experimentación científica.
Capítulo XXIX
São Boaventura. - V: A alma humana

1. Unidade da alma humana.

Acabamos de ver que, segundo São Boaventura, as almas dos animais são produzidas
seminaliter; mas, desde depois, isso não tem aplicação no caso da alma humana, que é produzida
imediatamente por Deus, criada por Deus a partir da nada. A alma humana é imagem de Deus,
telefonema à união com Deus, e, por isso (propter dignitatem), sua produção ficou
adequadamente reservada a Deus por Deus mesmo. Esse modo de razonar supõe uma teología,
mas São Boaventura argumenta também que, como a alma humana é imortal, incorruptible, sua
produção só pode ser efetuada por aquele Princípio que por Si mesmo possui vida e perpetuidad.
A imortalidade da alma humana implica em dita alma uma “matéria” que não possa ser um
elemento em uma mudança substancial; mas a atividade dos agentes criados limita-se a operar
sobre matéria transmutable, e a produção de uma substância com matéria inmutable ultrapassa
a capacidade de ditos agentes. Daí segue-se que a teoria traducianista deve ser recusada, ainda
que Santo Agostinho se inclinasse a ela ocasionalmente, porque pensava que permitia explicar
a transmissão do pecado original.[576]

Que é o que Deus cria? São Boaventura responde que a alma inteira, e não somente a
faculdade racional. Há uma só alma no homem, dotada das faculdades racional e sensitiva, e
essa alma é o que Deus cria. O corpo estava contido seminaliter no corpo de Adán, o primeiro
homem, e transmite-se por médio do semen, mas isso não significa que o corpo tenha uma alma
sensitiva, educida da potência da matéria e diferente da alma racional criada e infusa. O semen
contém, é verdade, não somente a superfluidad do alimento do pai, senão também algo de seu
humiditas radicalis, de maneira que no embrião há, dantes da infusão da alma, uma disposição
ativa para o ato da sensação, uma espécie de sensibilidade incoada; mas essa disposição é uma
disposição a cumprir o ato de sensação mediante a potência da alma, uma vez infundida esta: ao
ser o embrião completamente animado pela infusão da alma, aquela sensibilidade incoada cessa,
ou, melhor, é subsumida baixo a atividade da alma, que é o princípio de sensação o mesmo que
o princípio de intelección. Em outras palavras, São Boaventura tem bom cuidado de manter a
continuidade da vida e a realidade da paternidad ao mesmo tempo que evita toda partição da
alma humana em duas.[577]
2. Relacionamento da alma ao corpo.

A alma humana é a forma do corpo: São Boaventura utiliza a doutrina aristotélica contra os
que sustentam que as almas de todos os homens são uma só substância. “A alma racional é o ato
e entelequia do corpo humano; portanto, como os corpos humanos são diferentes, as almas
racionais que aperfeiçoam esses corpos têm de ser também diferentes”[578]; a alma é uma forma
existente, vivente, inteligente, dotada de liberdade[579]. Está totalmente presente à cada parte do
corpo, segundo o ensino de Santo Agostinho, que São Boaventura aprova como preferível à
teoria de que a alma está primordialmente presente a uma parte determinada do corpo, o coração,
por exemplo. “Porque é a forma de todo o corpo, está presente a todo o corpo; porque é simples,
não. está presente a parte aqui e em parte ali; porque é o princípio motor suficiente (motor
sufficiens) do corpo, não tem situação particular alguma, não está presente a um ponto ou em
uma parte determinados.”[580]

Mas embora São Boaventura aceita a definição aristotélica da alma como forma do corpo,
sua tendência geral é de caráter platónico e agustiniano, pois faz questão de que a alma humana
é uma substância espiritual, composta de forma espiritual e matéria espiritual. Não basta com
dizer que na alma há uma composição de ex quo est e quod est, já que a alma pode fazer e
padecer, mover e ser movida, e isso arguye a presença de “matéria”, o princípio da pasividad e
da mutabilidad, embora essa matéria trascienda a extensão e a corruptibilidad, pois é matéria
espiritual e não corpórea[581]. Pode parecer que essa doutrina contradiz a admitida simplicidade
da alma humana, mas São Boaventura indica[582] que “simplicidade” tem vários significados e
graus. Assim, “simplicidade” pode fazer referência a ausência de partes cuantitativas, e o alma
é simples nesse sentido, em comparação com as coisas corpóreas; ou pode fazer referência a
ausência de partes constitutivas, e, nesse sentido, o alma não é simples. Mas o ponto principal
consiste em que a alma, embora forma do corpo e princípio motor deste, é também bem mais
que isso, e pode subsistir por si mesma e é hoe aliquid, embora como um hoe aliquid que é
parcialmente pasivo e mutable, deve ter em si uma matéria espiritual. A doutrina da composição
hilemórfica da alma humana está, assim, calculada para assegurar sua dignidade e sua
capacidade de subsistencia aparte do corpo.

Se o alma está composta de forma e matéria espiritual, segue-se que é individuada por seus
próprios princípios[583]. Mas, se é assim, por que está unida ao corpo, se é uma substância
espiritual por direito próprio? A resposta é que a alma, embora seja uma substância espiritual,
está constituída de tal modo que não somente pode informar um corpo, senão que tem ademais
inclinação natural ao fazer assim. Inversamente, o corpo, embora também composto de matéria
e forma, tem um appetitus a ser informado pela alma. A união de ambos é assim para perfección
de um e outro, e não é em detrimento do corpo nem da alma[584]. A alma não existe
simplesmente, nem sequer primariamente, para mover o corpo[585], senão para desfrutar de
Deus; no entanto, só exerce suas potencialidades plenamente ao informar o corpo, e em algum
dia, com a resurrección se reunirá ao corpo. Aristóteles ignorava isso, e não devemos nos
surpreender por isso, pois, “um filósofo cai necessariamente em algum erro se não é ajudado
pela luz da fé”.[586]
3. Imortalidade da alma humana.

A doutrina da composição hilemórfica da alma humana facilita a prova de sua imortalidade,


já que São Boaventura não vincula a alma ao corpo tão estreitamente como a doutrina
aristotélica; mas sua prova favorita é a baseada na consideração do fim último da alma (ex consi
der atione finis). A alma almeja a perfeita felicidade (“um feito com que ninguém dúvida, a não
ser que sua razão esteja inteiramente pervertida”). Mas ninguém pode ser perfeitamente feliz se
teme perder o que possui; ao invés, é esse medo o que faz desgraçado. Por conseguinte, como a
alma tem um desejo natural de perfeita felicidade, a alma deve ser naturalmente imortal. Essa
prova pressupõe, desde depois, a existência de Deus, e a possibilidade de atingir a felicidade
perfeita, bem como a existência de um desejo natural de felicidade humana; mas foi a prova
favorita de São Boaventura por seu caráter espiritual, por sua conexão com o movimento da
alma para Deus: é para ele a ratio principalis, o argumento principal.[587]

De um modo bastante similar, São Boaventura argumenta[588] a partir da consideração da


causa formal, a partir da natureza da alma como imagem de Deus. Já que a alma foi feita para o
lucro da felicidade, que consiste na posse do bem supremo, Deus, o alma deve ser capaz de
possuir a Deus (capaxDei), e deve, pois, estar feita a sua imagem e semelhança. Mas não estaria
feita a semelhança de Deus se fosse mortal. Portanto, o alma deve ser imortal. Igualmente
(argumentando ex parte materiae), Buenaventura declara que a forma da alma racional é de tal
dignidade que faz à alma semelhante a Deus, com o resultado de que a matéria que está unida a
essa forma (isto é, a matéria espiritual) encontra sua satisfação e complemento na união com
essa forma, e deve ser assim mesmo imortal.

São Boaventura apresenta outros argumentos, tal como o que se toma da necessidade de
sanções em uma vida ulterior[589], e da imposibilidad de que Deus leve ao bom a frustración.
Buenaventura argumenta que iria contra a justiça divina o que o que foi bem feito loja para o
mau e para a frustración. Agora bem, segundo toda doutrina moral, um homem deve morrer
dantes que cometer uma injustiça. Mas se o alma fosse mortal, então toda sua adesão à justiça,
encomiada por todos os filósofos morais, iria parar à nada, e isso é contrário à justiça divina. De
um caráter mais aristotélico são os argumentos tomados da capacidade que a alma tem de refletir
envelope sim mesma e sobre sua atividade intelectual, que não depende intrinsecamente do
corpo, para provar seu superioridad sobre a matéria corpórea e sua ineorruptibilidad[590]. Mas
embora a argumentación aristotélica seja provavelmente mais aceitável para nós, assim que
pressupõe menos coisas e não implica uma teología, a olhos de São Boaventura as provas mais
convincentes eram as tomadas de Santo Agostinho ou baseadas na linha de pensamento
agustiniana, especialmente a que parte do desejo de beatitud. A prova agustiniana baseada na
aprehensión e assimilação pela alma da verdade eterna, aparece também em São Boaventura[591],
mas não como um potissimus modus de provar a imortalidade da alma. Essa cualificación
reserva-se para as argumentaciones baseadas no desejo de beatitud.

Se se objetase a São Boaventura que esse tipo de prova pressupõe o desejo de união com
Deus, isto é, de beatitud em sentido pleno, e que esse desejo somente se elicita baixo a ação da
graça, e pertence portanto à ordem sobrenatural e não à ordem da natureza, que é o objeto de
estudo do filósofo, o santo responderia sem dúvida que ele não tinha a mais ligeira intenção de
negar a obra da graça ou seu caráter sobrenatural, mas que, por outra parte, o verdadeiro filósofo
considera o mundo e a vida humana tal como são, e que um dos dados é precisamente o desejo
de completa felicidade. Ainda que esse desejo implique a operação da graça, é um dado da
experiência, e pode, pois, ser tomado em conta pelo filósofo. Se o filósofo não pode o explicar
sem recorrer à teología, isso não faz senão provar uma vez mais seu princípio de que nenhuma
filosofia pode ser satisfatória se não é alumiada pela luz da fé. Em outras palavras, enquanto o
“tomista” elimina sistematicamente dos dados da experiência todo o que sabe que é sobrenatural,
e então, como filósofo, considera a “natureza” que fica após aquela eliminação, São Boaventura,
e os que filosofam segundo seu modelo, começam pela natureza no sentido de “o dado”. É
indudable que a graça não é algo “dado” no sentido de visível ou aprehensible com certeza pela
só razão, mas alguns de seus efeitos se dão na experiência, e o filósofo deve os ter em conta,
embora não possa os explicar sem fazer referência à teología. O método de santo Tomás e o
método de São Boaventura são, pois, diferentes, e não se lhes pode meter à força em uma mesma
forma sem distorsionar a um deles.

4. Falsidade do monopsiquismo averroísta.

Todo o que se disse envelope a alma humana implica a individualidad desta, mas São
Boaventura conhecia perfeitamente a interpretação averroísta de Aristóteles e argumentou
explicitamente contra ela. Averroes sustentava que tanto o intelecto ativo como o pasivo
sobrevivem à morte, e, fosse o que fosse o que pensasse o próprio Aristóteles, seu comentador,
Averroes, mantinha indubitavelmente que ditos intelectos não são individuais à cada homem,
não são partes ou faculdades dos homens individuais, senão substâncias unitárias, inteligências
cósmicas. Mas semelhante posição é não somente herética e contrária à religião cristã, senão
também contrária à razão e à experiência[592]. É contrária à razão, já que está claro que a alma
intelectual é uma perfección do homem como homem, e os homens diferem uns de outros, são
pessoas individuais, enquanto homens e não somente enquanto animais, como seria o caso se a
alma racional fosse numericamente uma em todos os homens. É contrária à experiência, já que
a experiência ensina que homens diferentes têm pensamentos diferentes. E não vale dizer que
essa diferença de pensamentos procede simplesmente da diversidade das species nas
imaginações dos diferentes homens, isto é, que é somente a imaginação perecível, alimentada
pelos sentidos, o que é diferente em indivíduos diferentes; não vale dizer tal coisa porque os
homens diferem em ideias, por exemplo, das virtudes, que não estão fundadas na percepción
sensível e que não são abstraídas das species imaginativas. Também não é um bom argumento,
desde o ponto de vista de São Boaventura, dizer que a alma intelectual é independente do corpo
e não pode, portanto, ser individuada por este, porque a alma não é individuada pelo corpo,
senão pela união de seus dois princípios constitutivos, a forma espiritual e a matéria espiritual.

5. Conhecimento dos objetos sensíveis e dos primeiros princípios


lógicos.

Quanto ao conteúdo do conhecimento anímico de objetos sensíveis, este depende da


percepción sensível, e São Boaventura coincide com Aristóteles em que a alma não forma a
partir de si mesma conhecimento nem species dos objetos sensíveis: o intelecto humano é criado
em estado de “desnudez”, e depende dos sentidos e da imaginação[593]. O objeto sensível atua
envelope o órgão sensitivo e produz então uma species sensível, que a sua vez atua envelope a
faculdade sensitiva, e então tem local a percepción. Se advertirá que São Boaventura, ao admitir
um elemento pasivo na sensação, se aparta do ensino de Santo Agostinho; mas ao mesmo tempo
afirma que a faculdade de sensação ou potência sensitiva da alma julga o conteúdo da sensação,
por exemplo, que isso é branco: a recepção pasiva da species é atribuída primariamente ao órgão,
e a atividade do julgamento o é à faculdade[594]. Tal julgamento não é, desde depois, um
julgamento reflexivo, senão mais bem uma tomada de consciência espontânea; mas é possível
porque a faculdade de sensação é a faculdade sensitiva de uma alma racional, porque é a alma
quem comunica ao corpo o ato da sensação[595]. As sensações separadas, por exemplo, de cor e
contato, são unificadas pelo “sensorio comum” e conservadas na “imaginação”, que não é o
mesmo que a “memória”, se esta se entende no sentido de recordatio ou rememoración
voluntária[596]. Finalmente, os intelectos ativo e pasivo, trabalhando em cooperação, abstraen a
species da imaginação. Os intelectos ativo e pasivo não são duas potências, uma das quais possa
operar sem a outra, senão que são duas “diferenças” de uma mesma faculdade intelectual da
alma. Podemos certamente dizer que o intelecto ativo abstrae e o intelecto pasivo recebe, mas
São Boaventura qualifica essa fórmula mediante a afirmação de que o intelecto pasivo tem o
poder de abstraer a espécie e a julgar, embora só com a ajuda do intelecto ativo, enquanto o
intelecto ativo depende, quanto a sua atividade de conhecimento, da informação do intelecto
pasivo pela species. Há, em realidade, somente um ato completo de intelección, e os intelectos
ativo e pasivo cooperam nesse ato de um modo inseparável.[597]

Está, pois, claro, aparte de diversos “agustinismos”, como a negativa a estabelecer uma
distinção real entre as faculdades da alma, que a doutrina de São Boaventura envelope o modo
em que adquirimos nosso conhecimento dos objetos sensíveis se aproxima, mais ou menos
estreitamente, à teoria aristotélica. São Boaventura admite que a alma, pelo que faz ao
conhecimento de tais objetos, é originariamente uma tabula rasa[598], e não concede local algum
às ideias innatas. Ademais, seu negación das ideias innatas tem também aplicação a nosso
conhecimento dos primeiros princípios. Alguns disseram que esses princípios são innatos no
intelecto ativo, embora adquiridos pelo que respecta ao intelecto pasivo; mas tal teoria não está
de acordo nem com as palavras de Aristóteles nem com a verdade. Porque se esses princípios
fossem innatos no intelecto ativo, por que não poderia os comunicar ao intelecto pasivo sem a
ajuda dos sentidos, e por que não os conhece este desde sempre? Uma versão modificada do
innatismo consiste em que os princípios são innatos em sua forma mais geral, enquanto as
conclusões ou aplicações particulares são adquiridas, mas com tal opinião seria difícil mostrar
por que um menino não conhece os primeiros princípios em sua forma geral. Ademais, inclusive
esse innatismo modificado está em contradição tanto com Aristóteles como com Santo
Agostinho. São Boaventura considerava sem dúvida que uma teoria em cuja negación coincidem
Aristóteles e Santo Agostinho não pode ser verdadeira. Não fica, pois, senão dizer que os
princípios são innatos somente no sentido de que o intelecto está dotado de uma luz natural que
lhe capacita para prender os princípios em sua universalidade quando adquiriu conhecimento
das oportunas species ou ideias. Por exemplo, ninguém sabe o que é um todo ou uma parte até
que adquiriu a species ou ideia em dependência da percepción sensível, mas uma vez que um
homem adquiriu a ideia, a luz do intelecto lhe capacita para prender o princípio de que o todo é
maior que a parte[599]. Neste ponto, pois, São Boaventura está de acordo com santo Tomás.
6. Conhecimento das realidades espirituais.

Mas embora não tenhamos conhecimento innato algum dos objetos sensíveis e suas
essências ou dos primeiros princípios, lógicos ou matemáticos, daí não se segue que nosso
conhecimento de realidades puramente espirituais seja adquirido mediante a percepción
sensível. “Deus não é conhecido por médio de uma semelhança tomada dos sentidos”[600], senão
mais bem pela reflexão da alma sobre sim mesma. A alma não tem uma visão intuitiva de Deus,
da essência divina, nesta vida, mas está feita a imagem de Deus e está orientada para Deus em
desejo e vontade, de maneira que sua reflexão sobre sua própria natureza e envelope a direção
da vontade, capacita à alma para se formar a ideia de Deus sem recorrer ao mundo sensível
externo. Nesse sentido, a ideia de Deus é “innata”, embora não o é no sentido de que a cada
homem tenha desde sempre um conhecimento de Deus claro, explícito e exato. A direção da
vontade, seu desejo de felicidade completa, é efeito da ação divina mesma, e a reflexão sobre
esse desejo manifesta à alma a existência do objeto do desejo, ao que, em verdade, já conhecia
em uma espécie de vadia consciência, embora não necessariamente em uma ideia explícita. “O
conhecimento dessa verdade [a existência de Deus] é innato na mente racional, enquanto a mente
é imagem de Deus, por cuja razão tem um apetito, e um conhecimento, e uma memória natural
de O, a imagem do qual foi feita e para o qual naturalmente tende, para poder encontrar sua
beatitud em O.”[601] O conhecimento de Deus é de diversas modalidades: Deus tem um
conhecimento comprehensivo de si mesmo; os bienaventurados conhecem-lhe claramente (clare
et perspicué); nós lhe conhecemos parcialmente e de um modo recóndito (ex parte et
inaenigmaté ), com um conhecimento que está contido implicitamente no conhecimento que a
cada alma tem de que não existiu sempre e tem de ter tido um começo.[602]

Também o conhecimento das virtudes deve ser “innato”, no sentido de não derivado da
percepción sensível. Um homem injusto pode saber o que é a justiça; mas evidentemente não
pode conhecer a justiça mediante a presença desta em sua alma, já que não a possui, nem pode
a conhecer por abstração a partir da espécie sensível, já que não se trata de um objeto dos
sentidos nem tem semelhança alguma no mundo dos sentidos. Não pode também não a conhecer
através de seus efeitos, já que não poderia reconhecer os efeitos da justiça a não ser que soubesse
previamente que é a justiça, bem como não podem ser reconhecido os efeitos da atividade de
um homem como efeitos da atividade desse homem a não ser que se conheça previamente a esse
homem[603]. Deve ter, pois, algum conhecimento innato ou a priori das virtudes. Em que sentido
é innato esse conhecimento? Não há ideia innata (species innata) no sentido de uma ideia clara
ou uma semelhança intelectual da virtude que se dê na alma desde sempre; mas está presente à
alma uma luz natural pela que a alma pode reconhecer a verdade e a retitude, e está igualmente
presente uma afección ou inclinação da vontade. A alma conhece, pois, que é a retitude, e daí é
a afección ou inclinação da vontade, e desse modo reconhece o que é a rectitudo affectionis.
Como essa rectitudo é a caridade, a alma conhece o que é a caridade, embora não possua
atualmente a virtude da caridade.[604]

Por conseguinte, o conhecimento das virtudes é innato em um sentido muito parecido àquele
em que é innato o conhecimento de Deus, não como uma ideia ou espécie explícita innata, senão
no sentido de que a alma tem em si mesma todo o material que precisa para formar a ideia
explícita, sem que lhe seja necessário recorrer ao mundo sensível. A ideia innata de São
Boaventura é ideia innata virtualmente. Desde depois, há uma grande diferença entre nosso
conhecimento das virtudes e nosso conhecimento de Deus, porque enquanto nunca podemos
prender nesta vida a essência de Deus, nos é possível prender a essência das virtudes. No entanto,
o modo de chegar ao conhecimento das virtudes e o modo de chegar ao conhecimento de Deus
são similares, e podemos dizer que a alma possui um conhecimento innato dos princípios
necessários para sua conduta. Conhece, por reflexão sobre sim mesma, que é Deus, que é o
medo, que é o amor, e, portanto, conhece o que é temer e amar a Deus[605]. Se alguém se opõe
ao dito citando as palavras do Filósofo, nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu, a
resposta é que ditas palavras devem ser entendido como referidas unicamente a nosso
conhecimento dos objetos sensíveis, ou à aquisição de ideias que podem ser formado por
abstração a partir das espécies sensíveis. [606]

7. Iluminação.

Mas embora São Boaventura não admita que os primeiros princípios referentes ao mundo
que nos rodeia, ou inclusive que os primeiros princípios da conduta estejam implícitos desde
sempre na mente, ou sejam infundidos nesta desde fora, aparte de qualquer atividade de parte
da mesma mente, não se segue daí que esteja disposto a passar sem a doutrina agustiniana da
iluminação; ao invés, considera que esta é uma das verdades cardinales da metafísica.

A verdade é a adaequatio rei et intellectus[607], que supõe um objeto conhecido e um intelecto


cognoscente. Para que a verdade nesse sentido, a verdade presa, possa existir, se requerem certas
condições, tanto de parte do objeto como de parte do sujeito: inmutabilidad, de parte daquele, e
infalibilidad, de parte deste[608]. Mas se São Boaventura mostra-se disposto a fazer suas desse
modo as palavras do Theaetetus, exigindo essas duas condições para que possa existir a cognitio
certitudinalis, ou conhecimento verdadeiro, se tem que enfrentar necessariamente com
problemas similares àqueles com os que se enfrentaram Platón e Santo Agostinho, já que
nenhum objeto criado é estritamente inmutable e todo objeto sensível é perecível, enquanto a
mente humana não é por si mesma infalible com respeito a nenhuma classe de objeto. A mente
deve, pois, receber ajuda desde o exterior, e, naturalmente, São Boaventura recorre à teoria
agustiniana da iluminação, que se recomendava a si mesma a seus olhos, não somente porque
Santo Agostinho a tinha defendido, senão também porque sublinhava ao mesmo tempo a
dependência do intelecto humano respecto de Deus e a atividade de Deus no interior da alma
humana. Para São Boaventura, tratava-se de uma verdade epistemológica e uma verdade
religiosa, algo que podia ser estabelecido como uma conclusão necessária do estudo da natureza
e requisitos da certeza, e também algo no que podia ser meditado provechosamente em sentido
religioso. Em realidade, para São Boaventura, a vida intelectual e a vida espiritual eram
propriamente inseparáveis.

A mente humana está submetida à mudança, à dúvida, ao erro, e os fenômenos de que temos
experiência e que conhecemos são também mutables. Por outra parte, é um fato indudable que
a mente humana possui certezas e sabe que as possui, e que prendemos essências e princípios
inmutables. Mas somente Deus é inmutable, e isso significa que a mente humana é ajudada por
Deus, e que o objeto de seu conhecimento verdadeiro se vê como de algum modo radicado em
Deus, como existindo nas rationibus aeternis ou ideias divinas. Mas nós não prendemos essas
ideias divinas diretamente, em si mesmas, e São Boaventura adverte, com Santo Agostinho, que
seguir a doutrina platónica é abrir a porta ao escepticismo, já que se o único conhecimento
verdadeiro é o conhecimento direto dos arquetipos ou instâncias eternas, e não temos
conhecimento direto desses arquetipos, a conclusão necessária é que a mente humana não pode
atingir a verdadeira certeza[609]. Pelo contrário, não basta com dizer que a ratio aeterna influi na
mente só no sentido de que a mente cognoscente atinge não o princípio eterno mesmo, senão
somente a influência deste, como um habitus mentir, porque este seria a sua vez criado e
submetido às mesmas condições da mente, da qual é uma disposição[610]. As rationes aeternae,
pois, devem exercer uma ação regulatória direta sobre a mente humana, embora sem chegar a
ser vistas elas mesmas. Elas são as que movem à mente e a dirigem em seus julgamentos
verdadeiros, capacitándola para que prenda as verdades verdadeiras e eternas nas ordens
especulativo e moral, e a que formule julgamentos verdadeiros e verdadeiros a propósito
inclusive de objetos sensíveis: é sua ação (que é a iluminação divina) o que capacita à mente
para prender as essências inmutables e estáveis nos fluyentes e cambiantes objetos da
experiência. Isso não significa que São Boaventura contradiga agora a aprovação que dava à
doutrina de Aristóteles a respeito de nosso conhecimento do mundo sensível, mas significa que
considera que dita doutrina é insuficiente. É, sem dúvida, verdade que sem a percepción sensível
nunca conheceríamos objetos sensíveis, e que o intelecto abstrae; mas a iluminação divina, a
ação direta da ratio aeterna, é necessária para que a mente veja no objeto o reflexo da ratio
inmutable, e seja capaz de fazer um julgamento infalible referente ao mesmo. A percepción
sensível é necessária para que possam surgir nossas ideias dos objetos sensíveis, mas a
estabilidade e necessidade de nossos julgamentos concernientes a ditos objetos são devidas à
ação das rationes aeternae, já que nem os objetos sensíveis de nossa experiência são inmutables
nem as mentes que os conhecem são infalibles por si mesmas. As espécies escuras (obtenebratae)
de nossa mente, afetadas pela escuridão dos phantasmata, são alumiadas para que a mente
conheça. “Porque se ter verdadeiro conhecimento significa saber que uma coisa não pode ser de
outro modo, é necessário que só Deus possa causar nosso conhecer, O, que conhece a verdade e
tem a verdade em si mesmo.”[611] Por conseguinte, é mediante a ratio aeterna como a alma julga
de todas as coisas que conhecemos pelos sentidos [612]

No Itinerarium Mentis in[613], São Boaventura descreve como os objetos sensíveis exteriores
produzem uma semelhança deles mesmos (similitudo), primeiramente no médio, e, depois,
através do médio, no órgão do sentido e no sentido interior. O sentido particular, ou a faculdade
de sensação que atua mediante o sentido particular, julga que esse objeto é branco, ou negro, ou
comoquiera que seja, e o sentido interno julga que é agradável, belo, ou o inverso. A faculdade
intelectual, voltando-se para a species, pergunta por que o objeto representado é belo, e julga
que é belo porque possui certas caraterísticas. Mas esse julgamento implica uma referência a
uma ideia de beleza que é estável e inmutable, não limitada pelo espaço e o tempo. É aqui onde
aparece a iluminação divina, para explicar o julgamento em sua feição inmutable e
supratemporal, por referência à ratio aeterna diretriz e regulatória, não para substituir nem para
anular a obra dos sentidos ou a atividade da abstração. Todos os objetos sensíveis que são
conhecidos entram na mente através das três operações psíquicas da apprehensio, a oblectatio e
a diiudicatio, mas esta última operação, para ser verdadeira e verdadeira, deve ser um julgamento
feito à luz das rationes aeternae.
Agora bem, como já vimos, as rationes aeternae são ontológicamente identificadas, e são de
fato idênticas, com o Verbo divino. Segue-se daí que é o Verbo quem alumia à mente humana.
Aquele Verbo que “alumia a todo homem que vem a este mundo”. “Cristo é o mestre interior, e
nenhuma verdade é conhecida senão por médio de O, não porque O fale como nós falamos,
senão porque nos alumia interiormente... O está intimamente presente à cada alma, e por suas
clarísimas ideias resplandece sobre as escuras ideias de nossas mentes.”[614] Nós não temos visão
alguma do Verbo de Deus, e embora a luz está tão intimamente dentro de nós, é invisível,
inaccessibilis: só podemos razonar sua presença baseando na observação de seus efeitos[615].
Por conseguinte, o ensino de São Boaventura não supõe um ontologismo, nem em sua doutrina
da iluminação nem em sua interpretação de Santo Agostinho. A doutrina de São Boaventura
completa o abstraccionismo aristotélico e a negación do caráter propriamente innato inclusive
dos primeiros princípios com um tom e matiz peculiar não aristotélico, agustiniano. É verdade
que abstraemos, mas não podemos captar o inteligible e estável meramente através da abstração,
senão que ademais precisamos a iluminação divina; é verdade que podemos atingir um
conhecimento dos princípios morais mediante a reflexão interior, mas não poderíamos prender
seu caráter inmutable e necessário sem a ação regulatória e diretriz da luz divina. Aristóteles não
viu isso, não soube ver que não podemos conhecer plenamente às criaturas a não ser que as
vejamos como exemplata do exemplar divino, de maneira que não podemos nos formar
julgamentos verdadeiros a respeito delas sem a luz do Verbo divino, ou Ratio Aeterna.
exemplarismo e iluminação estão estreitamente vinculados, e o verdadeiro metafísico reconhece
ambas coisas: Aristóteles não reconheceu nenhuma das duas.

8. A ascensão da alma a Deus.

A alma tem somente quatro faculdades: as potências vegetativa e sensitiva, o intelecto e a


vontade. Mas São Boaventura distingue diversas “feições” da alma, e, designadamente, do
intelecto ou mente, segundo os objetos aos que se dirige sua atenção, e segundo o modo em que
se dirige. Seria, pois, um erro supor que entendia a ratio, o intellectus, a intelligentia, e o apex
mentem ou synderesis scintilla[616], como diferentes faculdades da alma: ditas palavras denotam
mais bem diferentes funções da alma racional em seu caminho de ascensão desde as criaturas
sensíveis a Deus. No Comentário às Sentenças[617], São Boaventura diz expressamente que a
divisão da razão em ratio inferior e ratio superior não é uma divisão em faculdades diferentes: é
uma divisão em officia e dispositiones, o que é algo mais que uma divisão em feições (aspectus).
A razão inferior é a razão dirigida aos objetos sensíveis, a razão superior é a razão dirigida para
os objetos inteligibles, isto é, que os termos “inferior” e “superior” fazem referência a diferentes
funções ou officia da mesma faculdade. Mas há que acrescentar algo mais, e é que a razão ao se
dirigir aos inteligibles se reforça e vigoriza, enquanto, dirigida aos sensíveis, se debñita e
empequeñece, de maneira que, embora há somente uma ratio, a distinção entre razão superior e
razão inferior corresponde não só a funções diferentes, senão também a disposições diferentes
de uma mesma razão.

As etapas da ascensão da alma não precisam aqui uma grande elaboração, já que estão mais
relacionadas com a teología mística e ascética que com a filosofia no sentido que nós lhe damos;
mas como estão relacionadas com a filosofia, segundo a entende São Boaventura, não estará a
mais as tocar muito brevemente, porquanto ilustram a tendência do santo a integrar filosofia e
teología do modo mais íntimo possível. Seguindo as impressões de Santo Agostinho e dos
Victorinos, Buenaventura esboça as etapas ascendentes da vida da alma, etapas que
correspondem a diferentes potencialidades da alma e a conduzem da esfera da natureza à da
graça. Começando pela potência sensitiva da alma (sensualitas), São Boaventura mostra como
a alma pode ver nos objetos sensíveis vestigia Dei, ao contemplar as coisas sensíveis
primeiramente como efeitos de Deus, logo como coisas nas que Deus está presente, para se
retirar então, com Santo Agostinho, dentro de si mesmo e contemplar sua constituição e suas
potências naturais como imagem de Deus. Então mostra-nos à inteligência contemplando a Deus
nas faculdades da alma renovadas e elevadas pela graça, capacitada para isso pelo Verbo de
Deus. Nessa etapa, no entanto, a alma contempla ainda a Deus em sua imagem, que é a alma
mesma, embora elevada pela graça; e pode proceder ainda mais longe, à contemplação de Deus
supra nos, primeiro como Ser, logo como o Bem. O Ser é bom, e a contemplação de Deus como
o Ser, a perfección do ser, conduz ao reconhecimento do Ser como o Bem, como diffusivum sui,
e, por tanto, à contemplação da Santísima Trinidad. Para além, não pode já chegar o intelecto:
para além encontra-se a luminosa escuridão da contemplação mística e do êxtase, o apex affectus
que chega para além que a mente. Não obstante, a vontade é uma faculdade da alma humana, e,
embora saindo da substância da alma, não é um acidente diferente, de maneira que dizer que o
afeto da vontade chega mais longe que o intelecto é simplesmente dizer que a alma se une a
Deus pelo amor tão intimamente que a luz derramada sobre ela a cega. Já não pode ter senão
uma etapa mais alta, reservada para a vida futura, e é a visão de Deus no céu.

9. São Boaventura como filósofo da vida cristã.

Se recordará que os três pontos cardinales da metafísica são, para São Boaventura, a criação,
o exemplarismo e a iluminação. Seu sistema metafísico constitui assim uma unidade na que a
doutrina da criação revela o mundo como procedente de Deus, criado a partir da nada e
inteiramente dependente de Deus, enquanto a doutrina do exemplarismo revela o mundo das
criaturas como estando com Deus no relacionamento da imitação ao modelo, do exemplatum ao
exemplar, e a doutrina da iluminação traça o caminho de regresso da alma a Deus, por via de
contemplação das criaturas sensíveis, de si mesma, e, finalmente, do ser perfeito. A ação divina
é sempre sublinhada. A criação a partir da nada pode ser provada, como também a presença e
atividade de Deus nas criaturas, e especialmente na alma mesma. A ação de Deus entra na
aprehensión de toda verdade verdadeira, e ainda que, para o estabelecimento das etapas mais
elevadas da ascensão da alma se precisam os dados da teología, há em verdadeiro sentido uma
continuidade da ação divina, com uma intensidade crescente. Deus opera na mente da cada
homem quando este atinge a verdade, mas nessa etapa a atividade de Deus não o é tudo, o homem
é também ativo mediante o uso de suas potências naturais; nas etapas mais elevadas a ação de
Deus aumenta progressivamente, até que, no êxtase, Deus toma posse da alma, e a atividade
intelectual do homem fica cesante.

Pode, pois, chamar-se a São Boaventura o filósofo da vida cristã, que emprega tanto a razão
como a fé para produzir sua síntese. Essa integração de razão e fé, de filosofia e teología,
acentua-se pelo já que concede a Cristo, a Palavra de Deus. Bem como a criação e o
exemplarismo não podem ser adequadamente entendidos aparte do reconhecimento de que é
através do Verbo como todas as coisas são criadas, e que o que todas as criaturas refletem é o
Verbo, a imagem consubstancial do Pai, assim a iluminação, em suas diversas etapas, não pode
ser também não adequadamente entendida sem o reconhecimento de que é o Verbo quem alumia
a todo homem, a Palavra de Deus que é a porta pela que a alma entra em Deus, acima de si
mesma, o Verbo que, através do Espírito Santo ao que Ele enviou, inflama a alma e a leva para
além das limitações de suas ideias claras até a união extática. Finalmente, é o Verbo de Deus
quem mostra-nos ao Pai e abre-nos a visão beatífica no céu. Cristo é, efetivamente, o medium
omnium scientiarum[618] tanto da metafísica como da teología, porque embora o metafísico
como tal não pode chegar ao conhecimento do Verbo mediante o uso de sua razão natural, não
pode formar julgamentos verdadeiros e verdadeiros sem a iluminação do Verbo, ainda que não
tenha consciência alguma disso, e ademais sua ciência é incompleta e viciada por seu mesmo
caráter incompleto, a não ser que seja coroada pela teología.
Capítulo XXX
Santo Alberto Magno

1. Vida e atividade intelectual.

Alberto Magno nascia em 1206 em Lauingen, Suabia, mas abandonou a Alemanha para
estudar artes em Padua, onde ingressou na ordem de predicadores em 1223. Após ter ensinado
teología em Colônia e outros locais, recebeu o doctorado em Paris em 1245, e teve ali a São
Tomás de Aquino entre seus discípulos, de 1245 a 1248. Neste último ano regressou a Colônia,
acompanhado por Tomás, para estabelecer ali a casa de estudos dominicana. Sua obra puramente
intelectual viu-se interrompida por tarefas administrativas que lhe foram encomendadas. Assim,
de 1254 a 1257 foi provincial da província de Germania, e, desde 1260 até 1262, bispo de
Ratisbona. Também ocuparam seu tempo visita a Roma e a predicación de uma cruzada em
Bohemia, mas parece ser que elegeu Colônia como local habitual de residência. Desde Colônia
partiu para Paris, em 1277, com a finalidade de defender as opiniões de Tomás de Aquino
(morrido em 1274), e foi em Colônia onde morreu, o 15 de novembro de 1280.

Está bastante claro por seus escritos e atividades que Alberto Magno foi um homem de
amplos interesses e simpatias intelectuais, e seria em verdade surpreendente que um homem
desse tipo ignorasse o auge do aristotelismo na Faculdade de Artes de Paris, especialmente
quando ele era perfeitamente consciente das tensões e preocupações que causavam as novas
tendências. Como homem de mentalidade aberta e fácil simpatia intelectual, não era dos que
podiam adotar uma atitude intransigentemente hostil ante o novo movimento, embora, por outra
parte, não lhe faltavam também não fortes simpatias pela tradição neoplatónica e agustiniana.
Por conseguinte, ao mesmo tempo que adotava elementos aristotélicos para incorporar a sua
filosofia, reteve muito da tradição agustiniana e não aristotélica, e sua filosofia exibe as
caraterísticas de uma etapa de transição no caminho daquela mais plena incorporação do
aristotelismo que foi conseguida por seu grande discípulo, São Tomás de Aquino. Ademais, ao
ser primordialmente um teólogo, Alberto não podia senão ser muito sensível aos importantes
pontos em que o pensamento aristotélico choca com a doutrina cristã, e aquela aceitação acrítica
e indiscriminada de Aristóteles que chegou a se pôr de moda em uma parte da Faculdade de
Artes, era impossível para ele. Não deve nos surpreender, efetivamente, que, embora
compusesse paráfrasis a muitas das obras lógicas, físicas (por exemplo, à Física e ao Do caia et
Mundo), metafísicas e éticas (Etica Nicomaquea, Política) de Aristóteles, não duvidasse em
assinalar erros cometidos pelo Filósofo, e publicasse um De unitate intellectus, contra Averroes.
Sua intenção patente e declarada ao compor seus paráfrasis era a de fazer Aristóteles inteligible
aos latinos, e o que se propôs foi simplesmente fazer uma apresentação objetiva das opiniões de
Aristóteles; mas ao criticar a Aristóteles teve que mostrar algo de suas próprias ideias, embora
seus comentários fossem em sua maior parte paráfrasis e explicações impersonales das obras do
Filósofo.

Não foi possível determinar com algum grau de exatidão as datas dos escritos de san Alberto,
nem sequer a ordem em que os publicou, mas parece que a publicação de seu Comentário às
Sentenças de Pedro Lombardo e a da Summa de Creaturis são anteriores a sua publicação das
paráfrasis das obras de Aristóteles. Publicou também Comentários aos livros do Pseudo-
Dionisio. O De unitate intellectus parece ter sido composto após 1270, e a Summa Theologiae,
que pode ser uma compilação devida a outras mãos, ficou sem terminar.

Não pode ser passado em silêncio uma notável feição dos interesses e atividades de Alberto
Magno, seu interesse pelas ciências físicas. Em veia de ilustrado, fez questão da necessidade da
observação e o experimento em tais matérias, e em suas obras De vegetalibus e De animalibus
apresenta os resultados de suas próprias observações, junto de ideias de escritores anteriores. A
propósito de sua descrição das árvores e as plantas, observa que o que escreve é o resultado de
sua própria experiência, ou que o tomou de autores dos que sabe que confirmaram suas ideias
mediante a observação, porque em tais matérias somente a experiência pode proporcionar
certeza[619]. Suas especulações são com frequência muito sensatas, como quando, em oposição
à ideia de que a terra ao sul do ecuador é inhabitable, afirma que o contrário é provavelmente
verdadeiro, embora o frio nos pólos pode ser tão excessivo que não permita a vida. Mas se há
ali animais viventes devemos supor que possuem peles suficientemente espessa para que lhes
protejam contra o clima, e que essas peles são provavelmente de cor branco. Em qualquer caso,
é irrazonable supor que a gente que viva na parte inferior da terra “se caia” fosse desta, já que o
termo “inferior” é só relativo a nós[620]. Naturalmente, san Alberto confia muito grandemente
nas opiniões, observações e conjeturas de seus predecessores; mas frequentemente apela a sua
própria observação, ao que pessoalmente advertiu com respeito aos hábitos das aves migratorias,
ou à natureza das plantas, por exemplo, e dá mostras de um robusto sentido comum, como
quando declara que as argumentaciones a priori em favor da tese da inhabitabilidad da zona
“tórrida” não podem pesar mais que o fato evidente de que algumas terras que sabemos que
estão habitadas se encontram em dita zona. Igualmente, ao falar do “halo” ou arco íris lunar[621],
observa que segundo Aristóteles esse fenômeno se dá somente duas vezes a cada cincuenta anos,
enquanto ele mesmo e outros o observaram duas vezes em um só ano, de maneira que nessa
matéria Aristóteles deveu falar de ouvidas, e não por experiência. Em todo caso, qualquer que
seja o valor que possam ter as conclusões particulares a que chega san Alberto, o que é notável
é seu espírito de curiosidade e sua confiança na observação e o experimento, que ajudam a lhe
diferenciar de tantos escolásticos de épocas posteriores. Podemos dizer acidentalmente que esse
espírito de investigação e de amplitude de interesses intelectuais lhe acerca especialmente a
Aristóteles, já que também este era consciente do valor da investigação empírica em matérias
científicas, embora discípulos seus tardios acolhessem todas suas afirmações como
incuestionables e carecessem daquele espírito investigador e daquela multiplicidad de interesses.

2. Filosofa e teología.

Santo Alberto Magno tem perfeitamente clara a distinção entre teología e filosofia, e também
entre a teología que toma por base os dados da revelação e a teología que é obra da só razão
natural, e pertence à filosofia metafísica. Assim, a metafísica teológica trata de Deus como
primeiro Ser (secundum quod substat proprietatibus entis primí), enquanto a teología trata de
Deus como conhecido pela fé (secundum quod substat attributis quae per fidem attribuuntur).
Ademais, o filósofo opera baixo a influência da luz geral da razão, concedida a todos os homens,
e pela qual vê os primeiros princípios, enquanto o teólogo opera à luz sobrenatural da fé,
mediante a qual recebe os dogmas revelados[622]. San Alberto sente, pois, pouca simpatia pelos
que negam ou empequeñecen a filosofia, já que ele não somente faz uso da dialética no
razonamiento teológico, senão que reconhece à filosofia em si mesma como uma ciência
independente. Contra quem afirmam que é equivocado introduzir o razonamiento filosófico na
teología, ele admite que dito razonamiento não pode ser primordial, já que um dogma se prova
tamquam expriori, isto é, o teólogo mostra que o dogma foi revelado, e não é uma conclusão de
argumentaciones filosóficas; mas acrescenta que as argumentaciones filosóficas podem ser de
verdadeira utilidade, embora secundária, quando se tratam objeciones apresentadas por filósofos
hostis; e fala de gentes ignorantes que gostam de atacar de todas as maneiras o emprego da
filosofia, e que são como “brutos animais que blasfemam daquilo que ignoram”[623]. Inclusive
na Ordem de predicadores tinha oposição à filosofia e ao estudo de uma ciência tão “profana”,
e um dos maiores serviços prestados por Santo Alberto Magno consistiu em promover o estudo
e a utilização da filosofia dentro de sua própria Ordem.

3. Deus.

A doutrina de Santo Alberto Magno não constitui um sistema homogéneo, senão mais bem
uma mistura de elementos aristotélicos e neoplatónicos. Por exemplo, san Alberto apela a
Aristóteles quando apresenta uma prova da existência de Deus baseada no movimento[624], e
argumenta que uma corrente infinita de principia é impossível e contradictoria, já que em
realidade não teria um principium. O primum principium ou primeiro princípio, pelo fato mesmo
de que é o primeiro princípio, deve ter existência por si mesmo, e não recebida de outro: sua
existência (esse) deve ser sua substância e essência[625]. É o Ser Necessário, sem mistura alguma
de contingencia ou de potência, e san Alberto mostra também que é inteligente, vivente,
omnipotente, livre, etc., de tal modo que é sua própria inteligência; que no conhecimento de
Deus por Si mesmo não há distinção entre sujeito e objeto; que sua vontade não é algo diferente
de sua essência. Finalmente, distingue cuidadosamente a Deus, o primeiro Princípio, do mundo,
para o qual observa que nenhum dos nomes que atribuímos a Deus pode ser pregado de Leste
em seu sentido próprio. Se, por exemplo, chamamos a Deus substância, não é porque Deus caia
dentro da categoria de substância, senão porque está acima de todas as substâncias e da inteira
categoria de substância. Semelhantemente, o termo “ser” refere-se propriamente à ideia geral
abstrata de ser, que não pode ser pregada de Deus[626]. Em fim, é mais exato dizer de Deus que
sabemos o que não é, que dizer que sabemos o que é[627]. Pode ser dito, pois, que na filosofia de
Santo Alberto Magno se descreve a Deus, na linha de Aristóteles, como primeiro Motor imóvel,
como Ato puro, e como Intelecto que se conhece a si mesmo; mas, na linha de Dionisio
Areopagita, sublinha-se que Deus trasciende de todos nossos conceitos e de todos os nomes que
pregamos de O.

4. A Criação.
Essa combinação de Aristóteles e o Pseudo-Dionisio salvaguarda a trascendencia divina e é
o fundamento de uma doutrina da analogia; mas quando passa a descrever a criação do mundo,
san Alberto interpreta a Aristóteles segundo a doutrina dos Peripatetici, isto é, segundo o que,
em realidade, eram interpretações neoplatónicas. Assim, san Alberto utiliza as palavras fluxus e
emanado (fluxus est emanado formae a primo fonte, qui omnium formarum est fons et
origó)[628], e sustenta que o primeiro princípio (intellectus universaliter agens) é a fonte da que
flui a segunda inteligência, que esta é a fonte da que flui a terceira inteligência, etc. Da cada
inteligência subordinada deriva sua própria esfera, até que a terra vem ao ser. Esse esquema
geral (san Alberto oferece vários esquemas particulares sacados de “os antigos”) pode parecer
contrário à trascendencia e à inmutabilidad divinas, bem como à atividade criadora de Deus;
mas san Alberto não pensa, desde depois, que Deus seja aminorado pelo processo de emanação,
nem que experimente mudança algum, e faz questão de que uma causa subordinada somente
opera em dependência da causa superior, e com a ajuda desta, de modo que o processo inteiro
deve ser referido ultimamente a Deus. Esse processo apresenta-se como uma difusão gradual,
de bondade, ou bem como uma difusão graduada de luz. No entanto, está claro que nessa
representação da criação san Alberto se inspira bem mais no Liber de Causis, nos neoplatónicos
e nos aristotélicos neoplatonizantes, que no Aristóteles histórico; e, por outra parte, não parece
ter advertido que a noção neoplatónica de emanação, embora não estritamente panteísta, já que
Deus não deixa de ser diferente de todos os demais seres, não está plenamente a tom com a
doutrina cristã da criação livre a partir da nada. Não pretendo sugerir nem por um momento que
san Alberto tentasse substituir a doutrina cristã pelo processo de emanação neoplatónico; é mais
bem que ele tratou de expressar aquela em termos, deste, sem advertir, ao que parece, as
dificuldades implicadas em tal tentativa.

San Alberto aparta-se da tradição agustiniano-franciseana ao sustentar que a razão não pode
demonstrar com certeza a criação do mundo no tempo, isto é, que o mundo não fosse criado
desde a eternidade[629]; e também ao negar que os anjos e a alma humana estejam compostos de
matéria e forma, sem dúvida porque pensava a matéria vinculada à quantidade; mas, por outra
parte, aceita a doutrina das rationes seminales e a da luz como forma corporeitads. Ademais,
aparte de adotar doutrinas às vezes, do aristotelismo e às vezes do agustinismo ou
neoplatonismo, san Alberto adota frases de uma tradição interpretadas no sentido da outra, como
quando fala de ver as essências à luz divina, querendo dizer que a razão humana e sua operação
é um reflexo da luz divina, um efeito desta, mas não que se requeira uma especial atividade
iluminadora de Deus além da criação e conservação do intelecto. Em general, san Alberto segue
a teoria aristotélica da abstração. Mas também não aqui põe Alberto sua posição completamente
em claro, e é dudoso se considera que a distinção entre essência e existência é real ou conceptual.
Tendo em conta que ele nega a presença de matéria nos anjos, e afirma que estes estão compostos
de “partes essenciais”, parece razoável supor que mantinha a teoria da distinção real, e nesse
sentido se expressa ocasionalmente; mas em outras ocasiões fala como se mantivesse a teoria
averroísta da distinção conceptual. É-nos difícil interpretar seu pensamento neste e em outros
pontos por seu costume de apresentar várias teorias diferentes sem uma indicação definida de
qual seja a solução do problema adotada por ele mesmo. Não sempre está claro até que ponto se
limita a informar das opiniões de outros e até que ponto se compromete a afirmar por sua conta
as opiniões em questão. É, pois, impossível falar de um “sistema” acabado de Alberto Magno:
seu pensamento é realmente uma etapa na adoção da filosofia aristotélica como instrumento
intelectual para a expressão da visão cristã do mundo. O processo de adotar e adaptar a filosofia
aristotélica foi levado bem mais adiante pelo grande discípulo de san Alberto, São Tomás de
Aquino; mas seria um erro exagerar o aristotelismo deste último inclusive. Ambos homens
permaneceram em grande parte fiéis à tradição de Santo Agostinho, embora ambos, san Alberto
de uma maneira incompleta, santo Tomás de uma maneira mais completa, interpretaram a Santo
Agostinho segundo as categorias de Aristóteles.

5. A alma.

San Alberto estava convencido de que a imortalidade do alma pode ser demonstrada pela
razão. Assim, em seu livro sobre a natureza e origem da alma[630], apresenta verdadeiro número
de provas, argumentando, por exemplo, que a alma trasciende da matéria em suas operações
intelectuais e tem em si mesma o princípio de tais operações, de maneira que não pode depender
do corpo secundum esse et essentiam. Mas não admite que sejam válidos os argumentos em
favor da unicidad do intelecto ativo em todos os homens, argumentos que, se fossem
demostrativos, negariam a imortalidade pessoal. San Alberto trata o tema não somente em seu
De Anima, senão também em uma monografía especial, Libellus de unitate intellectus contra
Averroem. Após observar que a questão é muito difícil, e que somente os filósofos experientes,
acostumados ao pensamento metafísico, podem tomar parte na disputa[631], procede a expor
trinta argumentos que os averroístas propõem ou podem propor para apoiar sua pretensão, e
observa que são muito difíceis de contestar. Não obstante, procede a apresentar trinta e seis
argumentos contra os averroístas, esboça sua própria opinião sobre a alma racional, e então
contesta por ordem[632] aos trinta argumentos dos averroístas. A alma racional é a forma do
homem, de maneira que deve ser multiplicado nos homens individuais, e o que se multiplica
numericamente deve ser multiplicado também substancialmente. Por conseguinte, se pode ser
provado, como pode ser provado, que a alma racional é imortal, se segue que as múltiplas almas
racionais sobrevivem à morte. Por outra parte, o esse é o ato de forma-a final da cada coisa
(formae ultimae), e forma-a final do homem é a alma racional. Agora bem, ou os homens
individuais têm seu próprio esse separado ou não o têm. Se diz-se que não possuem seu próprio
esse individual, deve ser estado disposto a admitir que não são homens individuais, o qual é
patentemente falso; e se admite-se que a cada homem tem seu próprio esse individual, então
deve ter também sua própria alma racional.

6. Reputação e importância de san Alberto.

Santo Alberto Magno desfrutou de uma grande reputação, da que chegou a desfrutar em
vida, e Roger Bacon, que estava longe de ser um admirador entusiasta de sua obra, nos diz que
“o mesmo que Aristóteles, Avicena e Averroes são citados (allegantur) nas escolas, assim
também o é ele”. O que Roger Bacon quer dizer é que san Alberto era citado por seu nome, o
que era contrário ao costume então em boga de não mencionar por seu nome a escritores vivos,
e isso dá a medida da estimativa que san Alberto se tinha ganhado. Essa reputação deveu-se sem
dúvida em grande parte à erudición do santo e a seu multiplicidad de interesses, como teólogo,
filósofo, homem de ciência e comentador. Tinha um amplo conhecimento das filosofias árabe e
judia, e frequentemente cita as opiniões de outros autores, de maneira que, apesar da frequente
indeterminación de seu pensamento e de sua expressão, e de seus erros em matérias históricas,
seus escritos dão a impressão de um homem de extenso conhecimento que lia muito e que se
interessava por muitas linhas de pensamento. Seu discípulo, Ulrico de Estrasburgo, um dominico
que desenvolveu o lado neoplatónico do pensamento de san Alberto, lhe chamou “a maravilha
e milagre de nosso tempo”[633]; mas, aparte de seu devoción à ciência experimental, o
pensamento de san Alberto interessa-nos primordialmente por sua influência sobre São Tomás
de Aquino, o qual, a diferença de Ulrico de Estrasburgo, ou de João de Friburgo, desenvolveu a
feição aristotélico de dito pensamento. O maestro, que sobreviveu a seu discípulo, conservou
devotamente sua lembrança, e se diz que san Alberto, em sua ancianidad, acostumava a pensar
em Tomás na lembrança aos difuntos do Canon da Missa, e derramava lágrimas ao pensar na
morte do que era flor e nata do mundo.

A reputação de san Alberto como homem erudito e de amplitude de interesses espirituais foi
plenamente merecida; mas seu mérito principal, como vários historiadores notaram, consistiu
em que viu para o Occidente cristão o tesouro contido no sistema de Aristóteles e nos escritos
dos filósofos árabes. Ao olhar para o século XIII desde uma data muito posterior sentimo-nos
inclinados a contemplar a invasão e a crescente influência do aristotelismo à luz de um período
posterior, que sacrificou o espírito à letra e entendeu inteiramente mau a mentalidade
investigadora do grande filósofo grego, seu interesse pela ciência, e a natureza problemática e
provisória de muitas de suas conclusões; mas ver a essa luz no século XIII é fazer-se culpado de
anacronismo, porque a atitude dos aristotélicos decadentes de um período posterior não foi a
atitude de Santo Alberto Magno. O Occidente cristão não possuía, na ordem da pura filosofia ou
da ciência natural, nada próprio que pudesse ser comparado à filosofia de Aristóteles e dos
árabes. San Alberto reconheceu com clareza esse fato; viu que devia ser adotado uma atitude
definida ante o aristotelismo, que não podia simplesmente lhe lhe deixar de ter em conta, e estava
justamente convencido de que tratar de não lhe ter em conta seria algo ruinoso e desastroso. Viu
também, desde depois, que, em alguns pontos, Aristóteles e os árabes sustentavam doutrinas que
eram incompatíveis com o dogma; mas ao mesmo tempo reconheceu que não tinha razão alguma
para recusar inteiramente o que tinha que ser recusado em parte. Propôs-se a tarefa de fazer a
Aristóteles inteligible aos latinos e mostrar a estes seu valor, ao mesmo tempo que assinalava
seus erros. O que aceitasse tal ou qual ponto, o que recusasse tal ou qual teoria, não é tão
importante como o fato de que advertisse a significação geral e o valor do aristotelismo, e
seguramente não é necessário ser um mesmo um rígido aristotélico para ser capaz de apreciar
seus méritos nessa feição. É um erro sublinhar a independência de san Alberto respecto de
algumas observações científicas de Aristóteles de maneira que perca-se de vista o grande serviço
que realizou ao atrair a atenção sobre Aristóteles e ao exibir parte das riquezas do aristotelismo.
O passo dos anos produziu indubitavelmente uma verdadeira infortunada osificación da tradição
aristotélica; mas não se pode censurar por isso a Santo Alberto Magno. Se tenta-se imaginar o
que seria a filosofia medieval sem Aristóteles, se se prescinde da síntese tomista e da filosofia
de Duns Scot, se se esvazia à filosofia de São Boaventura de todos seus elementos aristotélicos,
não parece possível considerar a invasão do aristotelismo como um infortunio histórico.
Capítulo XXXI
São Tomás de Aquino. - I

1. Vida.

Tomás de Aquino nasceu no castelo de Roccasecca, não longe de Nápoles, no final do ano
1224 ou começos do 1225, filho do conde de Aquino. À idade de cinco anos foi posto por seus
pais na abadia benedictina de Monte Cassino, como oblato, e ali fez seus primeiros estudos o
futuro santo e doutor, que permaneceu no mosteiro desde 1230 até 1239, quando o imperador
Frederick II expulsou aos monges. O rapaz voltou a viver com sua família durante uns meses, e
saiu depois para a universidade de Nápoles, no outono do ano ultimamente citado, quando tinha
catorze anos de idade. Naquela cidade tinha um convento de frailes dominicos, e Tomás, atraído
pela vida destes, ingressou na ordem no curso do ano 1244. Essa decisão não era muito aceitável
para sua família, a qual, sem dúvida, desejava que Tomás ingressasse na abadia de Monte
Cassino, como um primeiro passo para uma brilhante carreira eclesiástica, e pôde ser devido em
parte a essa oposição familiar o que o general dos dominicos resolvesse se levar consigo a Tomás
a Bolonha, onde ia para um capítulo geral, e, depois, enviar à universidade de Paris. Mas Tomás
foi raptado por seus irmãos durante a viagem e foi retido como prisioneiro em Aquino, durante
um ano aproximadamente. Sua determinação de permanecer fiel a sua ordem superou a prova,
e pôde seguir seu caminho para Paris no outono de 1245.

Tomás esteve provavelmente em Paris desde 1245 até o verão de 1248, no que acompanhou
a Alberto Magno a Colônia, onde este ia fundar uma casa de estudos (studium generóle) para a
ordem de predicadores, e onde permaneceu até 1252. Durante todo esse período, primeiro em
Paris, depois em Colônia, Tomás esteve em íntimo contato com san Alberto, que soube
reconhecer as possibilidades de seu discípulo. É óbvio que seu gosto pela erudición e o estudo
deveu de ser grandemente estimulado pelo contato íntimo com um professor de tal erudición e
tão extensa curiosidade intelectual, e seria igualmente difícil supor que o propósito de san
Alberto de utilizar o que o aristotelismo tivesse de valioso pudesse não exercer uma influência
direta na mente de seu discípulo. Embora santo Tomás não tivesse ainda concebido, nessa
temporã data, a ideia de completar a tarefa iniciada por seu maestro, deveu receber ao menos
uma profunda influência da aberta mentalidade deste. Tomás não possuiu a omnímoda
curiosidade de seu maestro (ou quiçá seria melhor dizer que teve um melhor sentido de economia
mental), mas possuiu indubitavelmente maior capacidade de sistematización, e a combinação da
erudición e a amplitude mental do maior dos dois homens e da força especulativa e a capacidade
sintetizadora do mais jovem não podia por menos de produzir esplêndidos frutos. Seria santo
Tomás quem conseguiria a expressão da ideologia cristã em termos aristotélicos e quem
utilizaria o aristotelismo como um instrumento de análise e síntese filosóficas e teológicas; mas
sua estância em Paris e em Colônia em companhia de

san Alberto foi sem dúvida um fator de primeira importância em seu desenvolvimento
intelectual. É coisa de menor importância o que prefiramos considerar o sistema de san Alberto
como um tomismo incompleto ou não; o fato principal é que Santo Alberto Magno foi (mutatis
mutandis) o Sócrates de santo Tomás.

Em 1252 santo Tomás regressou de Colônia a Paris e continuou seus estudos. Leu as
Escrituras, como Baccalaureus Biblicus, durante os cursos 1252-1254, e as Sentenças de Pedro
Lombardo como Baccalaureus Sententiarius durante os cursos 1254-1256, e ao termo de dito
período recebeu sua licenciatura, a licença ou permissão para ensinar na Faculdade de Teología.
No curso do mesmo ano foi nomeado Magister, e ocupou sua cátedra como professor dominico
até 1259. Já fizemos menção da controvérsia que teve local a propósito das cátedras de
franciscanos e dominicos na Universidade. Em 1259 santo Tomás transladou-se de Paris a Itália
e ensinou teología no studium curiae adscrito ao corte pontificia, até 1268. Esteve em Anagni
com Alexandro IV (1259-1261), em Orvieto com Urbano IV (1261-1264), em Santa Sabina de
Roma (1265-1267) e em Viterbo com Clemente IV (1267-1268). Foi no corte de Urbano IV
onde conheceu ao famoso tradutor Guilherme de Moerbeke, e foi Urbano quem encarregou a
Tomás que compusesse o Oficio para a festividade do Corpus Christi.

Em 1268 santo Tomás regressou a Paris e ensinou ali até 1272, envolvido nas controvérsias
averroístas e nas provocadas pelos renovados ataques às ordens religiosas. Em 1272 foi enviado
a Nápoles para estabelecer um studium generale, e continuou sua atividade profesoral até 1274,
data em que o papa Gregorio X lhe convocou a Lyon, para tomar parte no concilio. Santo Tomás
iniciou a viagem, mas nunca chegou a seu termo, porque morreu no caminho, o 7 de março de
1274, no mosteiro cisterciense de Fossanuova, entre Nápoles e Roma. Tinha quarenta e nove
anos de idade, e deixava depois de de si uma vida consagrada ao estudo e ao ensino. Não era
uma vida de grande atividade ou agitación externa, se excetuamos o incidente de sua prisão
juvenil, as viagens mais ou menos frequentes, e as controvérsias em que se viu envolvido; mas
foi uma vida consagrada à busca e defesa da verdade, e uma vida cheia de uma profunda
motivação espiritual. Em algumas feições São Tomás de Aquino pareceu-se muito ao professor
de lenda (há várias histórias que se referem a seus momentos de abstração, ou, melhor, de
concentração, que lhe distraíam inteiramente do que lhe rodeava), mas foi bem mais que um
professor de teología, já que foi um santo, e, embora não permitisse a seu devoción e amor que
se manifestassem nas páginas de seus escritos acadêmicos, seus êxtases e sua união mística com
Deus em seus últimos anos testemunham o fato de que as verdades sobre as quais escreveu foram
as realidades pelas quais viveu.

2. Obras.

O Comentário de santo Tomás às Sentenças de Pedro Lombardo data provavelmente de


1254-1256, o De principiis naturae de 1255, o De Ente et Essentia de 1256, e o De Veritate de
1256-1259. É possível que as Quaestiones quodlibetales 7, 8, 9, 10 e 11, se compusessem dantes
de 1259, isto é, dantes de que santo Tomás saísse de Paris para a Itália. O In Boethium de
Hebdomadibus e o In Boethium de Trinitate atribuem-se também a esse período. Durante sua
estância na Itália santo Tomás escreveu a Summa contra Gentiles, o De Potentia, o Contra erros
Graecorum, o De emptione et venditione, e o De regimine principum. A esse respecto pertencem
também verdadeiro número de Comentários a Aristóteles; por exemplo, os Comentários à Física
(provavelmente) à Metafísica, à Etica Nicomaquea, ao De Anima, e à Política (provavelmente).
A seu regresso a Paris, onde interveio nas controvérsias com os averroístas, santo Tomás
escreveu o De aeternitate mundi contra murmurantes e o De unitate intellectus contra
averroístas, o De Mau (provavelmente), o De spiritualibus creaturis, o De Anime (isto é, a
Quaestio disputata desse nome), o De unione Verbi incarnati, bem como as Quaestiones
quodlibetales 1 ao 6 e os Comentários ao De Causis, as Meteorologica[634] e ao Peri
Hermeneias. Durante sua estância em Nápoles escreveu o De mixtione elementorum, o De motu
cordis, o De virtutibus, e os Comentários às obras de Aristóteles De Caia-o e De generatione et
corruptione. Quanto à Summa Theologica foi composta entre 1265 (o mais cedo) e 1273, a Pars
Prima em Paris, prima-a secundae e Secunda Secundae na Itália, e a Tertia Pars em Paris, entre
1272 e 1273. O Supplementum, constituído com escritos anteriores de santo Tomás, foi
acrescentado por Reginaldo de Piperno, secretário de santo Tomás desde o ano 1261. Devemos
acrescentar que Pedro de Auvergne completou o Comentário ao Do caia e o da Política (a partir
do livro 3, lectio 7), e que deve ser atribuído a Ptolomeo de Lucca uma parte do De regimine
principum, do que santo Tomás escrevia somente o livro primeiro e os quatro primeiros capítulos
do segundo. O Compendium Theologiae, uma obra inacabada, foi um produto dos últimos anos
da vida de santo Tomás, mas não é seguro se foi escrito dantes ou após seu regresso a Paris em
1268.

De um verdadeiro número de obras atribuídas a santo Tomás sabemos hoje com segurança
que algumas não foram escritas por ele, enquanto ainda se duvida da autenticidade de alguma
outra, como o De natura verbi intellectus. A cronología que oferecemos anteriormente não é
aceite por todos: monsenhor Martín Grabmann e o pai Mandonnet, por exemplo, atribuem
algumas obras a períodos diferentes. A respeito desse tema podem ser consultado as oportunas
obras citadas em nossa bibliografía.

3. Modo de exposição da filosofia de santo Tomás.

Propor-se oferecer um esboço satisfatório do “sistema filosófico” do maior dos escolásticos


é propor-se uma tarefa de considerável magnitude. Não me parece uma questão trascendente a
de se deve ser tentado uma exposição sistemática ou uma exposição genética, já que o período
de atividade literária na vida de São Tomás de Aquino compreende somente vinte anos, e,
embora teve modificações e alguns desenvolvimentos doctrinales durante esse período, não se
tratou de um desenvolvimento tão considerável como no caso de Platón, e ainda menos teve uma
sucessão de fases ou períodos como no caso de Schelling[635]. Tratar geneticamente o
pensamento de Platón pode ser considerado desejável (embora, de fato, por razões de
conveniência e clareza, eu adotei uma forma de exposição predominantemente sistemática no
primeiro volume desta obra), e tratar geneticamente o pensamento de Sehelling é essencial; mas
não existe nenhuma verdadeira razão contra que se apresente sistematicamente o sistema de
santo Tomás; ao invés, todas as razões recomendam essa apresentação,
A dificuldade consiste mais bem na questão de qual seja a forma precisa que deva tomar a
exposição sistemática, e como devem ser interpretado e se sublinhar as partes que compõem seu
conteúdo. São Tomás de Aquino foi um filósofo, e, embora ele distingue as ciências da teología
revelada e a filosofia, não elaborou de fato uma exposição sistemática da filosofia por si mesma
(inclusive na Summa contra Gentiles há teología), de modo que o método de exposição não se
encontra já decidido pelo santo mesmo.

Contra isso pode objetarse que santo Tomás fixou certamente o ponto de partida para uma
exposição de sua filosofia, e E. Gilson, em sua notável obra sobre santo Tomás[636] argumenta
que o modo acertado de expor a filosofia tomista consiste em expor segundo a ordem da teología
tomista. Santo Tomás foi um teólogo, e sua filosofia deve ser visto à luz de seu relacionamento
à teología. Não somente é verdade que a perda de uma obra teológica como a Summa Theologica
constituiria um desastre da maior importância para nosso conhecimento da filosofia de santo
Tomás, enquanto a perda de seus Comentários a Aristóteles, embora deplorable, seria de menor
importância; também é verdade que a concepção tomista do conteúdo da filosofia ou do objeto
que considera o filósofo (isto é, o teólogo-filósofo) é que este é o revelable, o que pôde ter sido
revelado mas não foi revelado, e o que foi revelado mas que não precisava ter sido revelado, no
sentido de que pode ser averiguado pela razão humana, por exemplo, o fato de que Deus é sábio.
Como observa acertadamente Gilson, o problema para santo Tomás não foi o de como introduzir
a filosofia na teología sem corromper a essência e natureza da filosofia, senão o de como
introduzir a filosofia sem corromper a essência e natureza da teología. A teología trata do
revelado, e a revelação deve ficar intata. Mas em teología ensinam-se algumas verdades que
podem ser averiguadas sem a revelação (por exemplo, a existência de Deus), enquanto há outras
verdades que não foram reveladas, mas que o poderiam ter sido, e que têm importância para uma
visão geral da criação. A filosofia de santo Tomás deve ser considerada, pois, à luz de seu
relacionamento à teología, e é um erro recolher os temas filosóficos das obras de santo Tomás,
incluídas as de teología, e construir com eles um sistema segundo a própria ideia do que deve
ser um sistema filosófico, sendo de modo que muito provavelmente santo Tomás negaria que
um sistema assim correspondesse a suas verdadeiras intenções. Reconstruir desse modo o
sistema tomista é algo bastante legítimo para um filósofo, mas ao historiador lhe corresponde
mais bem seguir o próprio método de santo Tomás.

E. Gilson expõe seu ponto de vista com sua acostumada lucidez e do modo convincente com
que costuma o fazer, e me parece que, em general, é um ponto de vista que deve ser admitido.
Por exemplo, começar uma exposição histórica de São Tomás de Aquino por uma teoria do
conhecimento, especialmente se esta se separasse da psicologia ou doutrina da alma, mal
representaria o genuíno proceder de santo Tomás, embora seria algo legítimo em uma exposição
do “tomismo” que não pretendesse ser primordialmente histórica. Por outra parte, santo Tomás
escreveu indubitavelmente algumas obras filosóficas dantes de compor a Summa Theologica, e
as provas da existência de Deus que aparecem nesta última obra pressupõem evidentemente
muitas ideias filosóficas. Ademais, como essas ideias filosóficas não são meras ideias, senão
que são, segundo os princípios da própria filosofia de santo Tomás, abstraídas da experiência do
concreto, me parece que há justificativa suficiente para começar pelo concreto mundo sensível
da experiência, e considerar algumas das teorias de santo Tomás dantes de proceder a considerar
seu teología natural. E esse é o procedimento que realmente adotei.
Outro ponto desejo indicar. Santo Tomás foi um escritor extraordinariamente claro; mas,
não obstante, tiveram e seguem tendo, divergências de interpretação respecto de algumas de
suas doutrinas. Agora bem, discutir plenamente os prós e os contras das diferentes interpretações
não é coisa que possa ser feito em uma história geral da filosofia: mal pode ser feito outra coisa
que oferecer a interpretação que parece preferível ao historiador. Ao próprio tempo, pelo que
diz respeito ao autor desta obra, não se considera disposto a afirmar que pode apresentar a
interpretação indubitavelmente correta em pontos de interpretação controvertida. Após tudo, a
propósito de que grande sistema filosófico há uma coincidência universal e completa de
interpretação? Não será no caso de Platón, Aristóteles, Descarte, Leibniz, Kant ou Hegel. No
caso de alguns filósofos, especialmente no caso dos que expressaram seu pensamento de maneira
clara e esmerada, como São Tomás de Aquino, há uma interpretação bastante aceitada
geralmente pelo que respecta ao corpo principal do sistema; mas é dudoso que o consenso possa
ser sempre absoluto e universal. Um filósofo pode escrever com clareza e não expressar, no
entanto, seu pensamento definitivo em todos os problemas que se suscitam em conexão com seu
sistema, especialmente quando algum desses problemas pode não lhe lhe ter ocorrido a ele
mesmo. Seria absurdo esperar de um filósofo que contestasse a todas as perguntas, resolvido
todos os problemas, ou inclusive que arrendondasse e sellado seu sistema de tal modo que não
pudesse ter base alguma para as divergências de interpretação. O autor deste livro tem o máximo
respeito e reverência pelo gênio de São Tomás de Aquino, mas não vê que pudesse ser ganhado
algo com confundir a mente finita do santo com a Mente Absoluta, e pretendendo para seu
sistema algo que o próprio santo não sonharia em pretender.

4. O espírito da filosofia de santo Tomás.

A filosofia de santo Tomás é essencialmente realista e concreta. Santo Tomás adota sem
dúvida a fórmula aristotélica de que a filosofia primeira ou metafísica estuda o ser assim que
ser; mas está perfeitamente claro que a tarefa que ele se propõe é a de explicar o ser existente,
na medida em que isso possa ser conseguido pela mente humana. Em outras palavras, não
pressupõe uma noção a partir da qual tenha de se deduzir a realidade, senão que toma seu ponto
de partida no mundo existente, e inquiere qual é seu ser, como existe, qual é a condição de sua
existência. Ademais, seu pensamento concentra-se na Existência Suprema, no Ser que não
meramente possui existência, senão que é sua própria existência, que é a plenitude mesma da
existência, o ipsum esse subsistens. O pensamento de santo Tomás permanece sempre em
contato com o concreto, com o existente, tanto com aquilo que tem existência como algo
derivado, recebido, como com aquilo que não recebe a existência, senão que é existência. Nesse
sentido é verdadeira a afirmação de que o tomismo é uma “filosofia existeneial”, embora, em
minha opinião, é muito desorientador chamar a santo Tomás “existencialista”, já que a Existenz
dos existeneialistas não é a mesma coisa que o esse de santo Tomás; nem também não o método
tomista de abordar o problema da existência é o mesmo que empregam os filósofos hoje
chamados existeneialistas.

Disse-se que santo Tomás, ao adiantar o esse até o primeiro plano do palco filosófico,
superou às filosofias da essência, particularmente a de Platón ou as de inspiração platónica.
Indubitavelmente essa pretensão contém alguma verdade.
Embora Platón não esqueceu a questão da existência, a caraterística mais destacada de sua
filosofia é a explicação do mundo em termos de essências, e inclusive no caso de Aristóteles,
Deus, embora ato puro, é primordialmente pensamento ou ideia, o “Bem” platónico convertido
em “pessoal”. Ademais, embora Aristóteles esforçou-se em explicar a forma e a ordem no
mundo, e os processos inteligibles de desenvolvimento, não explicou a existência do mundo; ao
que parece, ele pensou que não se precisava explicação alguma. Também no neoplatonismo,
embora se explica a derivação do mundo, o esquema geral emanatista é primordialmente o de
uma emanação de essências, embora também a existência, desde depois, é tida em conta. Deus
é primordialmente o Um ou o Bem, não o ipsum esse subsistens nem o Eu sou quem sou. Mas
deve ser recordado que a criação a partir da nada foi uma ideia à que nenhum filósofo grego
chegou com independência do judaismo e do cristianismo, e que, sem dita cria a derivação do
mundo tende a ser explicada como uma derivação necessária de essências. Os filósofos cristãos
que utilizaram a terminología neoplatónica e dependeram dela, falavam do mundo como
procedendo ou emanando de Deus, e o mesmo santo Tomás se vahó em ocasiões de frases desse
tipo; mas um filósofo cristão ortodoxo, qualquer que seja seu terminología, vê o mundo como
livremente criado por Deus, como recebendo seu esse do ipsum esse subsistens. Quando santo
Tomás fazia questão do fato de que Deus é existência subsistente, que sua essência não é
primordialmente bondade ou pensamento, senão existência, não fazia senão explicitar os
envolvimentos da concepção judia e cristã do relacionamento do mundo a Deus. Não tento dar
a entender que a ideia de criação não possa ser atingida pela razão; mas subsiste o fato de que
não foi atingida pelos filósofos gregos, e de que lhes teria sido realmente difícil a atingir dada a
ideia que tinham de Deus.

Do relacionamento geral de São Tomás de Aquino a Aristóteles falarei mais adiante; mas
pode ser oportuno indicar agora um dos grandes efeitos que o aristotelismo teve na perspetiva e
nos procedimentos filosóficos de santo Tomás. Poderia ser esperado que santo Tomás, um
cristão, um teólogo, um fraile, sublinhasse o relacionamento da alma a Deus e tomasse seu ponto
de partida no que alguns filósofos modernos chamam “a subjetividad”; que pusesse a vida
interior no primeiro plano de sua filosofia, como fazia São Boaventura. De fato, no entanto, uma
das principais caraterísticas da filosofia de santo Tomás é seu “objetividad”. O objeto imediato
do entendimento humano é a essência da coisa material, e santo Tomás edifica sua filosofia por
reflexão sobre a experiência sensível. Em suas provas da existência de Deus, o processo da
argumentación vai sempre do mundo sensível a Deus. Indubitavelmente, alguma das provas
poderia ser aplicado à alma mesma como ponto de partida, e desenvolver de um modo diferente;
mas o fato é que não foi essa a maneira de santo Tomás, e a prova à que ele mesmo chama via
manifestior é a que depende mais estritamente dos argumentos de Aristóteles. A “objetividad”
aristotélica de santo Tomás pode parecer desconcertante àqueles para quem “a verdade é a
subjetividad”; mas ao mesmo tempo é uma grande fonte de força, já que significa que suas
argumentaciones podem ser consideradas em si mesmas, aparte da vida de santo Tomás, por
seus próprios méritos e deméritos, e que a questão principal é, se for o caso, não a de sua
espiritualidad pessoal senão a do caráter convincente dos argumentos mesmos. Outra
consequência é que a filosofia de santo Tomás parece “moderna” em um sentido no que é difícil
que o pareça a de São Boaventura. Esta última tende a aparecer como essencialmente vinculada
à perspetiva geral da Idade Média e à tradição e à vida espiritual cristã, de maneira que parece
se encontrar em um plano diferente ao dos filósofos “profanos” dos tempos modernos, enquanto
a filosofia de santo Tomás pode ser desvinculado da espiritualidad cristã e, em grande parte, da
perspetiva e o fundo da Idade Média, e pode entrar em concorrência direta com sistemas mais
recentes. Um renacer do tomismo teve local, como todo mundo sabe; mas é um pouco difícil
imaginar um reviver da filosofia de São Boaventura a não ser que mudasse-se ao mesmo tempo
o conceito de filosofia, e nesse caso seria difícil que o filósofo moderno e São Boaventura
falassem a mesma linguagem.

Apesar do dito, santo Tomás foi um filósofo cristão. Como já indicámos, santo Tomás segue
a Aristóteles ao falar da metafísica como a ciência do ser assim que ser; mas o fato de que seu
pensamento se centrava no concreto, e o fato de que ele era um filósofo cristão, lhe levaram a
sublinhar também a opinião de que “a filosofia primeira se dirige completamente ao
conhecimento de Deus como último fim”, e de que “o conhecimento de Deus é o fim último de
todo conhecimento e operação humanos”[637]. Mas o homem foi criado para um conhecimento
de Deus mais profundo e mais íntimo que o que pode atingir mediante o exercício de sua razão
natural nesta vida, e por isso a revelação era moralmente necessária para que a mente humana
pudesse ser elevada a algo mais alto que o que sua razão pode atingir nesta vida, e para que
pudesse desejar e tender zelosamente, para algo “que excede totalmente do estado atual da
vida”[638]. A metafísica tem, pois, seu objeto próprio, e uma verdadeira autonomia, mas aponta
para algo mais alto e precisa ser coroada pela teología: em caso contrário, o homem não
advertiria o fim para o que foi criado, e não desejaria, não se esforçaria para esse fim. Ademais,
como o objeto primário da metafísica, Deus, excede da capacidade de aprehensión do metafísico,
e da razão humana em general, e como o pleno conhecimento ou visão de Deus não é alcanzable
nesta vida, o conhecimento conceptual de Deus é coroado nesta vida pelo misticismo. A teología
mística não entra nos domínios da filosofia, e a filosofia de santo Tomás pode ser considerado
sem referência àquela; mas não deve ser esquecido que para santo Tomás o conhecimento
filosófico não é nem suficiente nem terminal.
Capítulo XXXII
São Tomás de Aquino. - II: Filosofia e Teología

1. Distinção entre filosofia e teología.

Que santo Tomás fez uma distinção formal e explícita entre teología dogmática e filosofia é
um fato indudable e do que ninguém dúvida. A filosofia, e as restantes ciências humanas,
descansam simples e somente na luz natural da razão. O filósofo utiliza princípios que são
conhecidos pela razão humana (com a participação natural de Deus, desde depois, mas sem a
luz sobrenatural da fé), e saca conclusões que são fruto do razonamiento humano. O teólogo,
pelo contrário, embora utiliza certamente sua razão, aceita seus princípios da autoridade, da fé:
recebe-os como revelados. A introdução da dialética na teología, a prática de tomar como ponto
de partida uma ou várias premisas reveladas e proceder racionalmente a uma conclusão, conduz
ao desenvolvimento da teología escolástica, mas não converte à teología em filosofia, já que os
princípios, os dados, se aceitam como revelados. Por exemplo, o teólogo pode tentar, com a
ajuda de categorias e forma de razonamiento tomadas da filosofia, entender um pouco melhor o
mistério da Trinidad; mas não deixa por isso de se comportar como um teólogo, já que aceita
sem discussão e para sempre o dogma da Trinidad de Pessoas em uma só Natureza, e o aceita
pela autoridade da revelação divina: trata-se para ele de um dado ou princípio, de uma premisa
revelada aceitada por fé, não da conclusão de um razonamiento filosófico. Assim mesmo,
enquanto o filósofo parte do mundo da experiência e remonta-se racionalmente a Deus, na
medida em que Este pode ser conhecido por médio das criaturas, o teólogo parte de Deus
segundo O se revelou a Si mesmo, e o método natural da teología consiste em passar de Deus a
Si mesmo às criaturas, em vez de ascender das criaturas a Deus, como faz e deve fazer o filósofo.

Segue-se daí que a diferença principal entre teología e filosofia radica no fato de que o
teólogo recebe seus princípios da Revelação, e considera os objetos de que se ocupa como
revelados ou como deducibles a partir do revelado, enquanto o filósofo prende seus princípios
pela só razão, e considera os objetos de que se ocupa não como revelados, senão como
aprehensibles e presos pela luz natural da razão. Em outras palavras, a diferença fundamental
entre teología e filosofia não se encontra em uma diferença de objetos considerados. Algumas
verdades são próprias da teología, já que não podem ser conhecidas pela razão e são conhecidas
somente pela revelação (o mistério da trinidad, por exemplo), enquanto outras verdades são
próprias somente da filosofia, no sentido de que não foram reveladas; mas há algumas verdades
que são comuns à teología e à filosofia, já que foram reveladas, embora ao mesmo tempo podem
ser estabelecidas pela razão. É a existência de tais verdades comuns o que faz impossível dizer
que a teología e a filosofia difiram primordialmente porque a cada uma delas considere verdades
diferentes: em alguns casos, consideram as mesmas verdades, mas consideram-nas de uma
maneira diferente; o teólogo considera-as como reveladas, o filósofo as considera como
conclusões de um processo de razonamiento humano. Por exemplo, o filósofo chega em seus
argumentos a Deus como criador, e o teólogo também trata de Deus como criador; mas para o
filósofo o conhecimento de Deus como criador se atinge como conclusão de um argumento
puramente racional, enquanto o teólogo aceita o fato de que Deus é Criador porque está contido
na revelação, de maneira que constitui para ele uma premisa mais bem que uma conclusão, uma
premisa que não é hipoteticamente suposta, senão revelada. Para dizê-lo em linguagem técnico,
o que constitui a diferença entre uma verdade da teología e uma verdade da filosofia não é
primariamente uma diferença de verdades consideradas “materialmente”, ou segundo seu
conteúdo, senão uma diferença de verdades consideradas “formalmente”. Isto é, uma mesma
verdade pode ser enunciada pelo teólogo e pelo filósofo; mas o teólogo chega àquela e a
considera de um modo diferente àquele em que chega à mesma verdade, e a considera, o filósofo.
Diversa, ratio cognoscibilis diversitatem scientiarum inducit... “Não há, pois, razão alguma pára
que outra ciência não possa tratar, enquanto conhecidos pela luz da revelação divina, dos
mesmos objetos dos que tratam as ciências filosóficas, segundo podem estes ser conhecidos pela
luz da razão natural. Por tanto, a teología que pertence à doutrina sagrada difere genericamente
da teología que é parte da filosofia.”[639] A teología dogmática e a teología natural constituem
domínios que em certa medida se sobrepõem; mas ambas ciências diferem genericamente entre
si.

2. Necessidade moral da revelação.

Segundo santo Tomás, quase toda a filosofia se dirige ao conhecimento de Deus, ao menos
no sentido de que uma grande parte dos estudos filosóficos estão orçamentos e são requeridos
pela teología natural, aquela parte da filosofia que trata de Deus. A teología natural, diz santo
Tomás, é a parte da filosofia que deve ser aprendido em último local[640]. Dito seja
acidentalmente, essa afirmação de santo Tomás não serve de apoio à opinião de que deve ser
começado a exposição da filosofia tomista pela teología natural; mas o que agora me interessa
indicar é que santo Tomás, ao ver que a teología natural, para ser adequadamente compreendida,
requer muito estudo e atenção prévios, faz questão de que a revelação é moralmente necessária,
dado o fato de que Deus é o fim do homem. Ademais, não se trata somente de que a teología
natural requeira muita reflexão, estudo e capacidade, em maior medida do que a maioria dos
homens está em situação de lhe consagrar; trata-se também de que, inclusive quando a verdade
está descoberta, a história mostra que é com frequência contaminada pelo erro. Os filósofos
paganos descobriram certamente a existência de Deus, mas suas especulações compreenderam
frequentes erros, bem porque os filósofos não reconhecessem adequadamente a unidade de
Deus, bem porque negassem a providência divina, ou bem porque não chegassem a ver que Deus
é Criador. Se estivéssemos simplesmente ante uma questão de astronomia ou de ciência natural,
os erros não importariam tanto, já que o homem pode atingir seu fim perfeitamente bem ainda
que sustente opiniões errôneas a propósito de astronomia ou de ciência natural; mas Deus é em
Si mesmo o fim do homem, e o conhecimento de Deus é essencial para que o homem possa ser
dirigido devidamente para seu fim, de modo que a verdade referente a Deus é de grande
importância, e o erro referente a Deus é desastroso. Concedido, pois, que Deus é o fim do
homem, podemos ver que é moralmente necessário que a descoberta de verdades tão importantes
para a vida não se deixe simplesmente às sós forças de homens que tenham a capacidade, a fita-
cola e o tempo livre para meditar que podem lhes permitir as descobrir, senão ao invés, que
aquelas verdades sejam também reveladas.[641]

3. Incompatibilidad da fé e a ciência na mesma mente e a


propósito do mesmo objeto.

Em seguida propõe-se a questão de se um mesmo homem pode ao mesmo tempo achar (isto
é, aceitar pela autoridade da fé) e conhecer (como um resultado de demonstração racional) uma
mesma verdade. Se a existência de Deus, por exemplo, foi demonstrada por um filósofo, possa
esse filósofo a achar ao mesmo tempo por fé? No De Veritate4, santo Tomás responde
rotundamente que é impossível que tenha fé e conhecimento a propósito do mesmo objeto, que
a mesma verdade possa ser conhecida cientificamente (filosoficamente) e ao mesmo tempo
achada (por fé) pelo mesmo homem. Envelope esse suposto poderia parecer que um homem que
provou a unicidad de Deus não pode achar essa mesma verdade por fé. Então, para que não
pareça que esse homem deixaria de dar seu asentimiento a artigos de fé, santo Tomás se vê
obrigado a dizer que verdades tais como a da unidade de Deus não são, propriamente falando,
artigos de fé, senão mais bem praeambula ad artigos5. Santo Tomás acrescenta, no entanto, que
nada impede que tais verdades sejam objeto de fé para um homem que não possa entender ou
que não tenha tempo de considerar a demonstração filosófica6, e mantém sua opinião de que é
adequado e justo que tais verdades se proponham à fé7. À questão de se um homem que entende
a demonstração, mas que não está nesse momento a atendendo ou a considerando, pode achar
por fé na unicidad de Deus, santo Tomás não contesta explicitamente. Quanto à frase inicial do
Credo (Credo in unum Deum, creio em um só Deus), que parece implicar que se pede a todos a
fé na unicidad de Deus, santo Tomás diria, de acordo com seus premisas, que aqui a unicidad de
Deus não tem de se entender por si mesma, senão junto do que segue, isto é, como uma unidade
de Natureza em uma Trinidad de Pessoas.

Ir mais longe nesta questão e discutir com que classe de fé acha o iletrado as verdades que
são conhecidas (demonstrativamente) pelo filósofo, estaria aqui fora de local, não somente
porque se trata de uma questão teológica, senão também porque é uma questão que santo Tomás
não discute explicitamente. Nosso principal propósito ao mencionar essa questão é ilustrar o fato
de que santo Tomás faz uma distinção real entre filosofia por uma parte e teología pela outra.
Acidentalmente, se falamos de um “filósofo”, não deve ser entendido que isso exclua ao teólogo;
a maioria dos escolásticos foram ao mesmo tempo teólogos e filósofos, e santo Tomás distingue
as ciências, não os homens que devem as cultivar. Que santo Tomás se tomou essa distinção
com a maior seriedade pode ser visto também pela posição que adotou ante a questão da
eternidade do mundo (à que voltaremos mais adiante). Santo Tomás considerava que pode ser
demonstrado que o mundo é criado, mas pensava que a razão não pode demonstrar que o mundo
não seja criado desde a eternidade, embora pode refutar as provas alegadas para mostrar que foi
criado desde a eternidade. Por outra parte, sabemos pela revelação que o mundo não foi criado
desde a eternidade, senão que teve um começo no tempo. Em outras palavras, o teólogo sabe,
mediante a revelação, que o mundo não foi criado desde a eternidade, mas o filósofo não pode
o provar; ou, melhor dito, nenhum argumento dos que foram propostos para o provar é
concluyente. É evidente que essa distinção pressupõe ou implica uma distinção real entre a
filosofia e a teología.

4. Fim natural e fim sobrenatural.

Diz-se às vezes que santo Tomás difere de Santo Agostinho assim que que enquanto este
último considera ao homem em concreto, como chamado a um destino sobrenatural, santo
Tomás distingue dois fins, um fim sobrenatural, cuja consideração atribui ao teólogo, e um fim
natural, cuja consideração atribui ao filósofo. Que santo Tomás distingue esses dois fins é
absolutamente verdadeiro. No De Veritate8, diz que o bem último, segundo a consideração do
filósofo, difere do bem último, segundo a consideração do teólogo, já que o filósofo considera
o bem último (bonum ultimum) que é proporcionado ao poder humano, enquanto o teólogo
considera como bem último, algo que ultrapassa o poder da natureza, a saber, a vida eterna, pelo
qual santo Tomás entende, desde depois, não simplesmente a sobrevivencia, senão a visão de
Deus. Essa distinção é de grande importância, e tem sua repercussão tanto na moral (onde é o
fundamento da distinção entre as virtudes naturais e as sobrenaturales) como na política (onde é
o fundamento da distinção entre os fins da Igreja e do Estado, e determina os relacionamentos
que devem existir entre ambas sociedades); mas não é uma distinção entre dois fins que
correspondam a duas ordens mutuamente excluyentes, um sobrenatural e o outro de “pura
natureza”: é uma distinção entre duas ordens de conhecimento e de atividade no mesmo ser
humano concreto. O ser humano concreto foi criado por Deus para um fim sobrenatural, para a
felicidade perfeita, que somente é alcanzable na vida futura, na visão de Deus, e que é, ademais,
inalcanzable pelo homem se suas próprias forças naturais não são ajudadas. Mas o homem pode
atingir uma felicidade imperfecta nesta vida mediante o exercício de suas capacidades naturais,
mediante um conhecimento filosófico de Deus obtido a partir das criaturas, e mediante o lucro
e o exercício das virtudes naturais9. Evidentemente esses fins não se excluem mutuamente, já
que o homem pode atingir a felicidade imperfecta em que consiste seu fim natural sem sair por
isso do caminho para seu fim sobrenatural; o fim natural, a felicidade imperfecta, é
proporcionado à natureza e forças humanas, mas, porquanto o homem foi criado para um fim
sobrenatural, o fim natural não pode lhe satisfazer, como argumenta santo Tomás na Soma
Contra Gentiles10; o fim natural é imperfecto, e aponta a para além de si mesmo.

Como afeta isso à questão da distinção entre a filosofia e a teología? Do modo seguinte. O
homem tem um fim último, a beatitud sobrenatural, mas a existência desse fim, que trasciende
os poderes da mera natureza humana, ainda que o homem foi criado para o atingir e recebeu o
poder do fazer assim mediante a graça, não pode ser conhecida pela razão natural, e, portanto,
não pode ser adivinhada pelo filósofo: sua consideração fica reservada ao teólogo. Pelo
contrário, o homem pode atingir, pelo exercício de seus poderes naturais, uma imperfecta e
limitada felicidade natural nesta vida, e a existência desse fim e dos meios para atingir-lhe é
descubrible pelo filósofo, que pode provar a existência de Deus a partir das criaturas, conseguir
um verdadeiro conhecimento analógico de Deus, definir as virtudes naturais e os meios para as
conseguir. Assim, pode ser dito que o filósofo considera o fim do homem na medida em que
dito fim é descubrible pela razão humana, isto é, só de um modo imperfecto e incompleto. Mas
tanto o filósofo como o teólogo consideram ao homem em concreto: a diferença está em que o
filósofo, embora capaz de ver e considerar a natureza humana como tal, não pode descobrir todo
o que há no homem, não pode descobrir a vocação sobrenatural deste; somente pode fazer parte
do caminho na descoberta do destino do homem, precisamente porque o homem foi criado para
um fim que trasciende os poderes de sua natureza. Por conseguinte, não é verdade que para santo
Tomás o filósofo considere ao homem em um hipotético estado de pura natureza, isto é, ao
homem como poderia ter sido se não fosse nunca chamado a um destino sobrenatural; santo
Tomás considera ao homem em concreto, mas não pode saber todo o que há que saber a respeito
do homem em concreto. Quando santo Tomás se propõe a pergunta de se Deus podia ter criado
ao homem in puris naturalibus11, o que pergunta é simplesmente se Deus poderia ter criado ao
homem (que, ainda nessa hipótese, seria criado para um fim sobrenatural) sem a graça
santificante, isto é, se Deus poderia ter criado primeiramente ao homem sem os meios de atingir
seu fim, e depois lhos ter dado; não pergunta se Deus poderia ter dado ao homem um fim último
puramente natural, como alguns escritores posteriores entenderam que queria dizer. Qualquer
que possa ser, pois, o mérito da ideia de um estado de pura natureza considerada em si mesma
(questão que não me proponho discutir aqui), essa ideia não desempenha papel algum na
concepção tomista da filosofia. Em consequência, santo Tomás não difere de Santo Agostinho
tanto como se afirmou algumas vezes, embora determinou os campos da filosofia e a teología
mais claramente do que o tinha feito Santo Agostinho. O que fez santo Tomás foi expressar o
agustinismo em termos da filosofia aristotélica, feito com que lhe obrigou a utilizar a noção de
fim natural, mas interpretou esta de um modo tal que não pode ser dito que adotasse um ponto
de partida filosófico totalmente diferente do de Santo Agostinho.

Realmente, a ideia do estado de pura natureza parece ter sido introduzida no tomismo por
Cayetano. Suárez, que também adotou a ideia, observa que “Cayetano e os teólogos mais
modernos consideraram um terceiro estado, ao que chamaram puramente natural, um estado que
cabe pensar como possível, embora, de fato, não existiu”12. Domingo de Soto13 diz que isso é
uma perversión do sentido de santo Tomás; e Toledo14 observa que existe em nós um desejo e
um apetito natural da visão de Deus, embora essa opinião, que é a de Duns Scot e parece ser a
de santo Tomás, é contrária à de Cayetano.

5. Santo Tomás e São Boaventura.

Indubitavelmente, santo Tomás achou que é teorética'lnente possível que o filósofo elabore
um verdadeiro sistema metafísico sem recorrer à revelação. Tal sistema seria necessariamente
imperfecto, inadequado e incompleto, porque o metafísico interessa-se primordialmente pela
Verdade mesma, por Deus, que é o princípio de toda verdade, e pela investigação racional
puramente humana não é capaz de descobrir todo aquele conhecimento da Verdade mesma, de
Deus, que é necessário para que o homem atinja seu fim último. O mero filósofo nada pode dizer
do fim sobrenatural do homem nem dos meios sobrenaturales para atingir esse fim, e, como o
conhecimento dessas coisas se requer para a salvação do homem, a insuficiencia do
conhecimento filosófico é manifesta. Mas que uma filosofia seja incompleta e inadequada não
significa necessariamente que seja falsa. A verdade de que Deus é um não fica viciada pelo fato
de que nada se diga nem se saiba da Trinidad de Pessoas: a segunda verdade completa à primeira,
mas a primeira verdade não é falsa, embora se considere isoladamente. Se o filósofo afirma que
Deus é um, e simplesmente não diz nada a respeito da Trinidad, porque a ideia de Trinidad nunca
entrou em sua mente; ou se conhece a doutrina da Trinidad e não a acha, e se contenta com dizer
que Deus é um; ou inclusive se expressa a opinião de que a Trinidad, que entende erroneamente,
é incompatível com a unidade divina, segue sendo verdade que a afirmação de que Deus é um
em Sua Natureza é uma afirmação correta. Desde depois, se o filósofo afirma positivamente que
Deus é uma só pessoa, afirma algo que é falso; mas se simplesmente diz que Deus é um e que
Deus é pessoal, sem proceder a enunciar que Deus é uma só pessoa, diz a verdade. Pode ser
pouco verosímil que um filósofo chegue a dizer que Deus é pessoal e se detenha aí, mas isso é
ao menos teoréticamente possível. A não ser que estejamos dispostos a condenar o intelecto
humano como tal, ou, em todo caso, a excluir da descoberta de uma verdadeira metafísica,
devemos admitir que o estabelecimento de uma metafísica satisfatória é possível em abstrato,
inclusive para um filósofo pagano. Santo Tomás estava bem longe de seguir a São Boaventura
em excluir a Aristóteles das filas dos metafísicos; ao invés, Aristóteles era, a olhos de santo
Tomás, o filósofo par excellence, a encarnación mesma da capacidade intelectual da mente
humana que opera sem a fé divina, e o aquinatense tentou, sempre que foi possível, interpretar
a Aristóteles no sentido mais “caritativo”, isto é, no sentido que era mayormente compatível
com a revelação cristã.

Se sublinha-se simplesmente essa feição da atitude de santo Tomás para a filosofia, pode
parecer que um tomista não poderia adotar legitimamente uma atitude, consistentemente hostil
e polêmica ante a filosofia moderna. Se adota-se a posição de São Boaventura e mantém-se que
um metafísico não pode atingir a verdade a não ser que filosofe à luz da fé (embora, desde
depois, sem basear suas provas filosóficas em premisas teológicas), não pode ser esperado outra
coisa senão que um filósofo que recuse o sobrenatural ou que confine a religião dentro dos
limites da razão pura, se extravie lamentavelmente; mas se está-se disposto a admitir a
possibilidade de que inclusive um filósofo pagano elabore uma metafísica mais ou menos
satisfatória, não é razoável supor que em vários séculos de intenso pensamento humano não saia
a luz alguma verdade. Parece, pois, que um tomista deve esperar encontrar novas iluminações
intelectuais nas páginas dos filósofos modernos, e que deve ser acercado a estes com uma
simpatia e expectación inicial mais bem que com uma suspeita, reserva, e inclusive hostilidade,
apriori.

Por outra parte, embora a atitude de santo Tomás para os filósofos paganos, e
designadamente para Aristóteles, fosse diferente da de São Boaventura, não é correto exagerar
suas diferenças de perspetiva. Como já dissemos, santo Tomás apresenta razões de por que é
conveniente que inclusive aquelas verdades a respeito de Deus que podem ser descobertas pela
razão, sejam propostas à fé dos homens. Algumas das razões que ele dá não têm que ver com o
ponto particular que estou discutindo. Por exemplo, é uma verdade indudable que muitas pessoas
estão tão ocupadas em ganhar seu pão quotidiano que não têm tempo para conceder à reflexão
metafísica, ainda que tenham a capacidade para tal reflexão, de maneira que é desejável que
aquelas verdades metafísicas que são de importância para eles sejam propostas a sua crença; em
caso contrário, nunca as conheceriam15, bem como a maioria de nós nunca teria o tempo ou a
energia para descobrir a América por nós mesmos, se não aceitássemos o fato de que existe,
confiados no depoimento de outros; mas daí não se segue necessariamente que os que têm tempo
e capacidade para a reflexão metafísica saquem provavelmente conclusões errôneas, exceto na
medida em que o pensar metafísico é difícil e requer prolongada atenção e concentração, e
“certas pessoas”, como observa santo Tomás, são preguiçosas. No entanto, deve ser tido em
conta este outro ponto16, o de que, em razão da debilidade de nosso intelecto ao julgar, e em
razão da intrusión da imaginação em nossos pensamentos, a falsidade se mistura geralmente
(plerumque) com a verdade nas conclusões da mente humana. Entre as conclusões que são
verdadeiramente demonstradas, se encontra às vezes (aliquando) incluída uma conclusão falsa
que não foi demonstrada, senão que se afirma pela força de um razonamiento provável ou
sofístico ao que achamos uma demonstração. A consequência prática será que inclusive
conclusões verdadeiras e seguras não serão aceites com plena confiança por muitas pessoas,
particularmente quando vêem aos filósofos ensinar doutrinas diferentes, enquanto elas mesmas
são incapazes de distinguir uma doutrina que foi verdadeiramente demonstrada de outra que se
apoia em uma argumentación meramente provável ou sofística. Igualmente, na Summa
Theologica, santo Tomás observa que à verdade a respeito de Deus somente chegam, pela razão
humana, uns poucos homens, ao cabo de muito tempo, e “com mistura de muitos erros”17.
Quando o santo diz que é desejável que inclusive aquelas verdades a respeito de Deus que são
racionalmente demostrables sejam propostas como objeto de fé, para ser aceites pela autoridade
da revelação, está sublinhando as exigências práticas da maioria dos homens mais bem que a
insuficiencia especulativa da metafísica como tal, mas admite que frequentemente o erro está
misturado com a verdade, bem seja por precipitação ao saltar às conclusões, bem seja por
influência da paixão, a emoção ou a imaginação. É possível que ele mesmo não aplicasse essa
ideia de um modo perfeitamente consequente em relacionamento com Aristóteles, e que
estivesse demasiado disposto a interpretar ao Filósofo no sentido que fosse maximamente
compatível com a doutrina cristã, mas subsiste o fato de que ele reconheceu teoréticamente a
debilidade do entendimento humano em seu estado presente, embora não seu perversión radical.
Em consequência, embora santo Tomás difere de São Boaventura em admitir a possibilidade
abstrata, e, certamente, no caso de Aristóteles, o fato concreto, de que uma metafísica
“satisfatória” fosse elaborada por um filósofo pagano, e também em não admitir que seu caráter
incompleto vicie a um sistema metafísico, santo Tomás considera igualmente provável que
qualquer sistema metafísico independente contenha erro.

Quiçá não seja caprichoso sugerir que as opiniões abstratas de ambos homens resultassem
em grande parte de suas respetivas atitudes ante Aristóteles. Poderia, sem dúvida, replicar-se
que isso é pôr a carreta adiante dos bois, mas parecerá mais razoável se se consideram as
circunstâncias reais em que viveram e escreveram. Pela primeira vez a cristandade latina
adquiria conhecimento de um grande sistema filosófico que não devia nada ao cristianismo, e
que era apresentado por seus fervientes partidários, como Averroes, como a última palavra da
sabedoria humana. A grandeza de Aristóteles, a profundidade e o caráter totalizador de seu
sistema, constituíram um fator que não podia ser ignorado por nenhum filósofo cristão do século
XIII; mas era possível pôr-se em frente a ele e lhe considerar de diferentes modos. Por uma
parte, segundo expunha-o Averroes, o aristotelismo chocava em vários pontos importantes com
a doutrina cristã, e era possível adotar uma atitude refractaria e hostil, em razão disso, ante a
metafísica aristotélica. Mas se adotava-se essa atitude, como São Boaventura o fez, tinha que
dizer, ou bem que o sistema aristotélico afirmava a verdade filosófica, mas que o que era
verdadeiro em filosofia podia não o ser em teología, já que Deus podia passar por alto as
exigências da lógica natural, ou bem que Aristóteles se equivocou em sua metafísica. São
Boaventura elegeu essa segunda explicação. Mas por que, em opinião de São Boaventura, se
equivocou Aristóteles, o maior sistematizador do mundo antigo? Evidentemente porque
qualquer filosofia independente tem de equivocar-se em pontos importantes pelo mero fato de
ser independente: somente à luz da fé cristã pode ser elaborado algo que seja um sistema
filosófico completo e satisfatório, já que somente à luz da fé cristã pode o filosófico deixar sua
filosofia aberta à revelação. A falta dessa luz, o filósofo dará por completo e acabado seu
sistema, e o deixará por isso viciado ao menos em parte, especialmente naquelas partes, as mais
importantes de todas, que se ocupam de Deus e do fim do homem. Pelo contrário, se vê-se no
sistema aristotélico um magnífico instrumento para a expressão da verdade e para a soldadura
da filosofia e das verdades divinas da teología, se terá que admitir a capacidade do filósofo
pagano para atingir a verdade metafísica, embora, em vista da interpretação de Aristóteles dada
por Averroes e outros, terá também que ter em conta e explicar a possibilidade de erro por parte
do filósofo. Esse foi o caminho eleito por santo Tomás.

6. Santo Tomás como “inovador”.

Quando se olha retrospectivamente ao século XIII desde uma data muito posterior, não
sempre se reconhece o fato de que santo Tomás foi um inovador, que sua adoção do aristotelismo
foi audaz e “moderna”. Santo Tomás enfrentava-se com um sistema de crescente influência e
importância, que parecia em muitas feições ser incompatível com a tradição cristã, mas que
cautivaba justificadamente o entendimento de muitos estudantes e maestros, particularmente na
Faculdade de Artes de Paris, por causa de sua majestade, sua manifesta coerência e seu caráter
totalizador. Que Tomás apanhasse audazmente o touro pelos cornos e utilizasse o aristotelismo
para a edificación de seu próprio sistema, esteve bem longe de ser uma ação oscurantista; foi,
ao invés, uma ação extraordinariamente “moderna”, e resultou da maior importância para o
futuro da filosofia escolástica, e, em verdade, para a história da filosofia em general. O que
alguns escolásticos de finais da Idade Média ou da época da Renascença desacreditassem o
aristotelismo por sua adesão oscurantista a todos os dita do filósofo, inclusive em matérias
científicas, não tem nada que ver com santo Tomás; o fato verdadeiro é que tais homens não
eram fiéis ao espírito de santo Tomás. O santo prestou, indubitavelmente, um serviço
incomparável ao pensamento cristão ao utilizar o instrumento que se lhe apresentava, e,
naturalmente, interpretou a Aristóteles no sentido mais favorável desde o ponto de vista cristão,
já que, se tinha de ter sucesso em sua empresa, lhe era essencial mostrar que Aristóteles não era
inseparável de Averroes. Ademais, não é verdade que santo Tomás não tivesse um sentido de
interpretação exata: é possível não estar de acordo com todas suas interpretações de Aristóteles,
mas é indudable que, dadas as circunstâncias de seu tempo e a escassez de informação histórica
pertinente ao seu dispor, santo Tomás foi um dos mais concienzudos e finos comentaristas de
Aristóteles que existiram.

Devemos, no entanto, sublinhar, em conclusão, que, embora santo Tomás adotasse o


aristotelismo como um instrumento para a expressão de seu sistema, não foi nenhum cego
adorador de Aristóteles, que eliminasse a Santo Agostinho em proveito do pensador pagano. Em
teología, Tomás segue naturalmente as impressões de Santo Agostinho, embora sua própria
adoção da filosofia aristotélica como instrumento lhe permitiu sistematizar, definir e argumentar
logicamente a partir de doutrinas teológicas, de um modo que era estranho à atitude agustiniana.
Em filosofia, onde abunda o que procede diretamente de Aristóteles, santo Tomás interpreta
com frequência ao Filósofo de um modo consoante com Santo Agostinho, ou expressa
agustinismo em categorias aristotélicas, embora pode ser mais exato dizer que faz ambas coisas
ao mesmo tempo. Por exemplo, ao tratar do conhecimento e providência divinos, santo Tomás
interpreta a doutrina aristotélica de Deus em um sentido que ao menos não exclui o
conhecimento do mundo por Deus, e ao tratar das ideias divinas observa que Aristóteles censuró
a Platón por fazer às ideias independentes tanto das coisas concretas como de um intelecto, com
o envolvimento tácita de que Aristóteles não teria censurado a Platón se este pusesse as ideias
na mente de Deus. Isso é, desde depois, interpretar a Aristóteles in meliorem partem desde o
ponto de vista teológico, e, embora tal interpretação tende a diminuir a distância entre Santo
Agostinho e Aristóteles, é pouco provável que represente a verdadeira teoria de Aristóteles a
respeito do conhecimento divino. Mas do relacionamento de santo Tomás a Aristóteles falarei
mais adiante.
Capítulo XXXIII
São Tomás de Aquino. - III: Princípios de ser criado

1. Razões para começar pelo ser corpóreo.

Na Summa Theologica, que, como seu nome indica, é uma sinopsis da teología, o primeiro
problema filosófico de que trata santo Tomás é o da existência de Deus, após o qual procede a
considerar a natureza de Deus e, depois, das pessoas divinas, para passar mais tarde à criação.
Igualmente, na Summa contra Gentiles, que se parece mais a um tratado filosófico (embora não
se lhe pode chamar simplesmente tratado filosófico, já que trata também de temas puramente
dogmáticos tais como a Trinidad e a Encarnación), santo Tomás começa também pela existência
de Deus. Poderia, pois, parecer natural começar a exposição da filosofia de São Tomás de
Aquino com suas provas da existência de Deus; mas, aparte do fato (mencionado em um capítulo
anterior) de que o próprio santo Tomás diz que a parte da filosofia que trata de Deus vem após
outros ramos da filosofia, as provas mesmas pressupõem alguns princípios e conceitos
fundamentais, e santo Tomás compunha, por exemplo, o De Ente et Essentia dantes de escrever
qualquer das duas Somas. Não seria, pois, natural começar imediatamente pelas provas da
existência de Deus, e o próprio Gilson, que faz questão de que o modo natural de expor a filosofia
de santo Tomás é a expor de acordo com a ordem adotada pelo santo nas Somas, começa
realmente por considerar certas ideias e princípios básicos. Por outra parte, dificilmente poderia
ser discutido o conjunto da metafísica geral de santo Tomás e todas aquelas ideias que, explícita
ou implicitamente, são pressupostas por sua teología natural: é necessário restringir as bases da
discussão.

Para um leitor moderno, familiarizado com o curso e os problemas da filosofia moderna, o


natural pareceria ser começar pelo tratamento da teoria tomista do conhecimento, e propor a
questão de se o santo proporciona ou não uma justificativa epistemológica da possibilidade do
conhecimento metafísico. Mas embora santo Tomás tinha, indubitavelmente, uma “teoria do
conhecimento”, não viveu após Kant, e o problema do conhecimento não ocupava em sua
filosofia o já que ocuparia em épocas posteriores. Parece-me que o ponto de partida natural para
uma exposição da filosofia tomista é a consideração das substâncias corpóreas. Após tudo, santo
Tomás ensina expressamente que o objeto próprio e imediato do intelecto humano nesta vida é
a essência das coisas materiais. Os princípios e noções fundamentais orçamentos pela teología
natural de santo Tomás não são, segundo o mesmo aquinatense, innatos, senão que se prendem
mediante a reflexão e a abstração a partir de nossa experiência de objetos concretos, e parece,
portanto, perfeitamente razoável desenvolver antes de mais nada aqueles princípios e noções
fundamentais através da consideração das substâncias materiais. As provas tomistas da
existência de Deus são a posteriori, procedem das criaturas a Deus, e é a natureza da criatura, a
insuficiencia que em si mesmos mostram os objetos imediatos da experiência, o que revela a
existência de Deus. Ademais, pela luz natural da razão, somente podemos atingir aquele
conhecimento de Deus que pode ser obtido por reflexão sobre as criaturas e seu relacionamento
a Ele. Também por essa razão parece perfeitamente “natural” começar a exposição da filosofia
tomista por uma consideração daqueles objetos concretos da experiência por reflexão sobre os
quais chegamos àqueles princípios fundamentais que nos permitem desenvolver as provas da
existência de Deus.

2. Hilemorfismo.

Com respeito às substâncias corpóreas, santo Tomás adota desde o primeiro momento o
ponto de vista do sentido comum, segundo o qual existem uma multiplicidad de substâncias. A
mente humana conhece em dependência da experiência sensível, e os primeiros objetos
concretos que conhece a mente são os objetos materiais em relacionamento com os quais entra
através dos sentidos. Mas a reflexão sobre esses objetos leva em seguida à mente a formar uma
distinção, ou melhor, a descobrir uma distinção nos objetos mesmos. Se olho por minha janela
em primavera vejo uma tenha com seus jovens e ternas folhas verdes, enquanto em outono vejo
que as folhas mudaram de cor, apesar de que é a mesma árvore o que vejo no jardim. A árvore
é substancialmente o mesmo, uma tenha, em primavera e em outono, mas a cor de suas folhas
não é o mesmo; a cor muda sem que a tenha mude substancialmente. Do mesmo modo, se vou
ao plantío, em um ano vejo os alerces como arbolitos recém plantados; mais tarde vejo-os como
árvores maiores: seu tamanho mudou, mas seguem sendo alerces. No campo vejo as vacas agora
neste local, mais tarde naquele, agora em uma postura, depois em outra, em pé ou deitadas,
fazendo uma coisa ou outra, comendo erva ou rumiando, ou dormindo, padecendo uma coisa
agora e outra depois, sendo ordeñadas, ou lavadas, ou conduzidas, mas sem deixar de ser sempre
as mesmas vacas. A reflexão leva assim à mente a distinguir entre substância e acidente, e entre
as diferentes espécies de acidentes, e santo Tomás aceita de Aristóteles a doutrina das dez
categorias: a substância e as nove categorias de acidentes.

Até aqui a reflexão conduziu-nos somente à ideia de mudança acidental e à noção das
categorias; mas uma nova reflexão levará à mente a um nível mais profundo na constituição do
ser material. Quando a vaca come erva, a erva não segue sendo o que era no campo, senão que
se converte em outra coisa pela assimilação, enquanto, por outra parte, não deixa simplesmente
de ser, senão que algo permanece através do processo de mudança. Essa mudança é substancial,
já que é a erva mesma o que mudou, não meramente sua cor ou seu tamanho, e a análise da
mudança substancial conduz à mente a discernir dois elementos, um elemento que é comum à
erva e à carne em que a erva se transforma, e outro elemento que confere a esse algo sua
determinação, seu caráter substancial, fazendo disso primeiro erva e, mais tarde, carne. Ademais,
podemos ultimamente conceber que qualquer substância material se mude em outra, não
necessariamente, desde depois, de um modo direto ou imediato, mas ao menos mediata e
indiretamente, através de uma série de mudanças. Assim chegamos à concepção, por uma parte,
de um substrato subjacente às mudanças, que, considerado em si mesmo, não pode receber o
nome de nenhuma substância determinada, e, por outra parte, à de um elemento caracterizante
ou determinante. O primeiro elemento é a “matéria prima”, o substrato indeterminado da
mudança substancial; o segundo elemento é a forma substancial, que faz à substância tal como
é, a põe em sua classe específica, e a determina bem como vaca, erva, oxigênio, hidrogênio, ou
o que queira que seja. Toda substância material está, assim, composta de matéria e forma.

Santo Tomás aceitou, pois, a doutrina aristotélica da composição hilemórfica das substâncias
materiais, e definiu a matéria prima como pura potencialidade, e a forma substancial como o ato
primeiro de um corpo físico, onde “ato primeiro” significa o princípio que põe ao corpo em sua
classe específica e determina sua essência. A matéria prima está em potencial para todas as
forma que podem ser forma de corpos, mas, considerada em si mesma, é sem forma alguma,
pura potencialidade: é, como disse Aristóteles, nec quid nec quantum nec quale nec aliud
quidquam eorum quibus determinatur ens.[642] Mas, por essa razão, não pode existir por si
mesma, porque falar de um ser existente atualmente sem ato ou forma seria contradictorio; não
precede, pois, temporariamente à forma, senão que foi criada juntamente com a forma[643]. Santo
Tomás vê, pois, completamente claro que no mundo material somente existem em ato
substâncias concretas, compostos individuais de matéria e forma. Mas embora está de acordo
com Aristóteles em negar a existência separada de universais (embora veremos em seguida que
deve ser feito uma reserva respecto dessa afirmação), segue também a Aristóteles ao afirmar que
a forma precisa ser individuada. A forma é o elemento universal, ao ser o que põe a um objeto
em sua classe, em sua espécie, fazendo dele um cavalo, ou um olmo, ou ferro: precisa, pois, ser
individuada, para que possa ser forma dessa substância particular. Qual é o princípio de
individuación? Somente pode ser a matéria. Mas a matéria é em si mesma pura potencialidade:
não possui aquelas determinações que são necessárias para que possa individuar à forma. As
caraterísticas acidentais de quantidade, etc., são logicamente posteriores à composição
hilemórfica da substância. Santo Tomás viu-se, pois, forçado a dizer que o princípio de
individuación é a matéria signata quantitate, no sentido de matéria que tem uma exigência de
determinação cuantitativa que recebe de sua união com a forma. Trata-se de uma noção difícil
de entender, já que embora a matéria, e não a forma, é o fundamento da determinação
cuantitativa, a matéria considerada em si mesma é sem determinação cuantitativa: tal noção é
em realidade uma reliquia do elemento platónico no pensamento aristotélico. Aristóteles recusou
e atacou a teoria platónica das forma, mas sua própria formação platónica influiu nele até o ponto
de que se viu levado a dizer que a forma, que é por si mesma universal, precisa ser individuada;
e santo Tomás seguiu-lhe em isso. Desde depois, santo Tomás não pensava que as forma
existissem primeiro separadamente e fossem logo individuadas, porque as forma dos objetos
sensíveis não existem em estado de prioridade temporária às substâncias compostas; mas a ideia
de individuación deve-se sem dúvida originariamente ao modo platónico de pensar e de falar a
respeito das forma. Aristóteles substituyó a noção de forma instância “trascendente” pela de
forma substancial inmanente, mas o historiador tem de reconhecer o legado platónico no
pensamento de Aristóteles, e, em consequência, no de santo Tomás.

3. Negación das rationes seminales.


Como uma consequência lógica da doutrina de que a matéria prima como tal é mera
potencialidade, santo Tomás recusou a teoria agustiniana das rationes seminales[644]: admitir
dita teoria equivaleria a atribuir de algum modo atualidade ao que em si mesmo carece dela[645].
As forma não espirituais são educidas da potencialidade da matéria baixo a ação da causa
eficiente, mas não estão previamente na matéria como forma incoadas. O agente não atua, por
suposto, sobre a matéria prima como tal, já que esta não pode existir por si mesma; mas modifica
ou muda as disposições de uma determinada substância corpórea de tal modo que desenvolve a
exigência de uma nova forma, que é educida da potencialidade da matéria. A mudança pressupõe
assim, para o aquinatense o mesmo que pára Aristóteles, uma “privação” ou uma exigência de
uma nova forma que a substância não atingiu ainda, mas que “pede” ter em virtude das
modificações produzidas nela pelo agente. A água, por exemplo, está em estado de
potencialidade para converter-se em vapor, mas não se converterá em vapor até que seja
esquentada até um grau determinado por um agente exterior, e nesse ponto desenvolve uma
exigência pela forma de vapor, que não procede do exterior, senão que é educida da
potencialidade da matéria.

4. Negación da pluralidad de forma substanciais.

Do mesmo modo que recusou a antiga teoria das rationes seminales, santo Tomás recusou a
teoria da pluralidad de forma substanciais na substância composta, e afirmou a unicidad da forma
substancial própria da cada substância. Em seu Comentário às Sentenças, santo Tomás parece
certamente aceitar a forma corporeitatis como primeira forma substancial da substância
corpórea[646]; mas embora primeiramente aceitasse-a, é indudable que mais tarde a recusou. Na
Summa contra Gentiles[647] argumenta que se a primeira forma constituísse a substância como
substância, as forma subsiguientes apareceriam em algo que era já hoc aliquid inactu , algo
atualmente subsistente, e não poderiam ser, por tanto, senão forma acidentais. De modo similar
arguye contra a teoria de Avicebrón[648], observando que somente a primeira forma pode ser
forma substancial, já que conferiria o caráter de substância, com o resultado de que as outras
forma subsiguientes que aparecessem uma substância já constituída seriam acidentais. (Está
claro que isso implica necessariamente que a forma substancial informa diretamente à matéria
prima.) Essa opinião suscitou uma grande oposição, e foi estigmatizada como uma inovação
perigosa, como veremos mais adiante ao tratar das controvérsias em que sua aristotelismo
envolveu a santo Tomás.

5. Restrição da composição hilemórfica às substâncias corpóreas.

A composição hilemórfica que vale para as substâncias materiais foi limitada por santo
Tomás ao mundo corpóreo; não a estendeu, como fez São Boaventura, à criação incorpórea, aos
anjos. Santo Tomás considerou racionalmente demostrable que existam anjos, inteiramente
aparte da revelação, porque sua existência é exigida pelo caráter hierárquico da escala dos seres.
Podemos discernir as ordens ou categorias ascendentes da série das forma, desde as forma das
substâncias inorgánicas, passando pelas forma vegetativas, as forma sensitivas irracionais dos
animais, e a alma racional do homem, até o Ato puro e infinito, Deus; mas nessa hierarquia
adverte-se uma lagoa. A alma racional do homem é criada, finita e encarnada, enquanto Deus é
um espírito puro, increado e infinito: é, pois, perfeitamente razoável supor que entre a alma
humana e Deus há forma espirituais finitas e criadas, mas sem corpo. No mais alto da escala está
a absoluta simplicidade de Deus; no mais alto do mundo corpóreo está o ser humano, em parte
espiritual e em parte corporal: devem existir, pois, entre Deus, e o homem, seres totalmente
espirituais que no entanto não possuam a absoluta simplicidade da Divinidad.[649]

Essa linha de argumentación não era nova: já era empregada na filosofia grega, por
Posidonio, por exemplo. Também influiu em santo Tomás a doutrina aristotélica das
inteligências separadas conectadas com o movimento das esferas, doutrina astronómica que
reaparece na filosofia de Avicena, com a que santo Tomás estava familiarizado; mas o
argumento que pesou mais no pensamento do aquinatense foi o fundado nas exigências da
hierarquia do ser. Do mesmo modo que distinguiu os diferentes graus das forma em general,
distinguiu também os diferentes “coros” de anjos, segundo o objeto de conhecimento destes. Os
que prendem com a máxima clareza a bondade de Deus em si mesma, e são inflamados do amor
correspondente, são os “serafines”, o “coro” mais alto, enquanto os que se ocupam da
providência de Deus respecto das criaturas particulares, por exemplo, com respeito a homens
particulares, são os anjos no sentido mais estrito do termo, o “coro” inferior. O “coro” que se
ocupa, entre outras coisas, dos movimentos dos corpos celestes (que são causas universais que
afetam a este mundo), é o das “virtudes”. Por conseguinte, santo Tomás não postuló
primordialmente a existência de anjos para dar conta do movimento das esferas.

Existem, pois, os anjos. Falta agora se perguntar se estão compostos hilemórficamente. Santo
Tomás afirmou que os anjos não têm esse tipo de composição. Argumentou que os anjos devem
ser puramente imateriais, já que são inteligências que têm como objetos correlativos realidades
imateriais, e também que seu mesmo local na hierarquia dos seres exige sua completa
inmaterialidad[650]. Ademais, como santo Tomás põe na matéria uma exigência de quantidade
(o que talvez não cuadre do tudo com seu caráter de pura potencialidade), não podia atribuir em
nenhum caso composição hilemórfica aos anjos. São Boaventura, por exemplo, argumentava
que os anjos devem estar compostos hilemórficamente porque em outro caso seriam ato puro, e
somente Deus é ato puro; mas santo Tomás replicou a esse argumento afirmando que a distinção
de essência e existência nos anjos é suficiente para salvaguardar seu contingencia e sua radical
distinção de Deus[651]. Voltaremos a essa distinção daqui a pouco.

Uma consequência da negación da composição hilemórfiea dos anjos é a negación da


multiplicidad de anjos dentro de uma mesma espécie angélica, já que o princípio de
individuación é a matéria, e nos anjos não há matéria. A cada anjo é uma forma pura: em
consequência, a cada anjo tem que esgotar a capacidade de sua espécie, e constituir ele só sua
própria espécie. Os coros de anjos não constituem, pois, espécies de anjos; são hierarquias
angélicas que se distinguem não especificamente, senão segundo sua função. Há tantas espécies
angélicas como anjos. Interessa recordar aqui que Aristóteles, ao afirmar na Metafísica uma
pluralidad de motores, ou inteligências separadas, propõe a questão de como é isso possível
sendo a matéria o princípio de individuación; mas não contesta à pergunta. Enquanto São
Boaventura, ao admitir a composição hilemórfica dos anjos, podia admitir, e admitiu de fato,
seu multiplicidad dentro de uma espécie, santo Tomás, que por uma parte defendia que a matéria
é o princípio de individuación, e, por outra parte negava a presença da matéria nos anjos, se viu
obrigado a negar a multiplicidad destes dentro de uma espécie. Por conseguinte, para santo
Tomás, as inteligências convertem-se realmente em universais separados, embora não, desde
depois, no sentido de conceitos hipostasiados. Um das descobertas de Aristóteles foi que uma
forma separada tem de ser inteligente, mas Aristóteles não acertou a ver a conexão histórica
entre as inteligências separadas e a teoria platónica das forma separadas.

6. Potencialidade e ato.

A composição hilemórfica das substâncias materiais revela diretamente a mutabilidad


essencial de ditas substâncias. Indubitavelmente a mudança não é uma questão de casualidade,
senão que tem local segundo um verdadeiro ritmo (não pode ser suposto que uma substância
determinada possa ser transformado imediatamente em qualquer outra substância que a um lhe
agrade, e a mudança é também guiada e influído por causas gerais, tais como os corpos celestes);
mas a mudança substancial somente pode ter local em corpos, e é somente a matéria, o substrato
da mudança, o que lhe faz possível. Envelope a base do princípio que santo Tomás tomou de
Aristóteles, de que o que é mudado ou movido é mudado ou movido “por outro”, ab alio, é
possível inferir das mudanças no mundo corpóreo a existência de um motor imóvel, com a ajuda
do princípio de que é impossível um “regresso infinito” na ordem da dependência; mas dantes
de proceder a provar a existência de Deus a partir da natureza, deve ser penetrado mais
profundamente na constituição do ser finito.

São Tomás de Aquino limita a composição hilemórfica ao mundo corpóreo; mas há uma
distinção mais fundamental, da que a distinção entre matéria e forma não é senão um exemplo.
A matéria prima, segundo vimos, é pura potencialidade, enquanto a forma é ato, de modo que a
distinção entre matéria e forma é uma distinção entre potência e ato, mas esta última distinção é
de uma aplicação mais ampla que a primeira. Nos anjos não há matéria, mas não por isso deixa
de ter potencialidade. (São Boaventura argumentava que, já que a matéria é potencialidade, deve
ter nos anjos. Assim se viu obrigado a admitir a forma corporeitatis, para distinguir a matéria
corpórea da matéria em sentido geral. Pelo contrário, santo Tomás, ao fazer da matéria pura
potencialidade e negar no entanto sua presença nos anjos, viu-se forçado a atribuir à matéria
uma exigência de quantidade, que lhe sobreviene mediante a forma. É óbvio que em ambas
opiniões há dificuldades.) Os anjos podem mudar mediante a realização de atos de entendimento
e de vontade, ainda que não podem mudar substancialmente: há, pois, nos anjos alguma
potencialidade. A distinção de potência e ato percorre, pois, todo mundo criado, enquanto a
distinção de matéria e forma se encontra unicamente na criação corpórea. Assim, sobre a base
do princípio de que a redução da potência ao ato requer um princípio que esteja em ato, podemos
inferir, desde a distinção fundamental que vale para todo mundo criado, a existência de um ato
puro, Deus; mas, em primeiro lugar, deve ser considerado a base da potencialidade nos anjos.
De passagem, podemos indicar que a distinção entre potência e ato é discutida por Aristóteles
em seu Metafísica.

7. Essência e existência.

Temos visto que santo Tomás limitou a composição hilemórfica às substâncias corpóreas;
mas há uma composição mais profunda que afeta a todos os seres finitos. O ser finito é ser
porque existe, porque tem existência: a substância é aquilo que é ou tem ser, e “a existência é
aquilo em virtude do qual uma substância é chamada um ser”[652]. A essência de um ser corpóreo
é a substância composta de matéria e forma, enquanto a essência de um ser finito imaterial é a
forma só; mas aquilo pelo qual uma substância material ou uma substância imaterial é um ser
real (ens) é a existência (esse), que está com a essência no relacionamento do ato à
potencialidade. A composição de ato e potência encontra-se, pois, em todos os seres finitos, e
não somente nos seres corpóreos. Nenhum ser finito existe necessariamente; o ser finito tem ou
possui existência, que é diferente da essência, como o ato é diferente da potencialidade. A forma
determina ou completa na esfera da essência, mas aquilo que atualiza à essência é a existência.
“Nas substâncias intelectuais que não estão compostas de matéria e forma (nelas, a forma é uma
substância subsistente), a forma é aquilo que é; mas a existência é o ato pelo qual é a forma; e,
em razão disso, nas substâncias intelectuais somente há uma composição de ato e potência, a
saber, a composição de substância e existência (...). Nas substâncias compostas de matéria e
forma, no entanto, há uma dupla composição de ato e potência, primeiro, uma composição na
substância mesma, que está composta de matéria e forma, e segundo, uma composição da
substância mesma, já composta, com a existência. Essa segunda composição pode também se
chamar uma composição do quod est e o esse, ou do quod est e o quo est.”[653] A existência,
pois, não é nem matéria nem forma; não é nem uma essência nem parte de uma essência; é o ato
pelo qual a essência é ou tem ser. “Esse denota um verdadeiro ato; porque não se diz que uma
coisa seja (esse) pelo fato de que seja em potencial, senão pelo fato de que é em ato.” Como não
é matéria nem forma, não pode ser forma substancial nem acidental; não pertence à esfera da
essência, senão que é aquilo pelo que as forma são.

Nas escolas foi muito controvertido o ponto de se santo Tomás considerou a distinção de
essência e existência como uma distinção real ou como uma distinção de razão.
Indubitavelmente a resposta a essa pergunta depende em grande parte do significado que se
atribua à frase “distinção real”. Se por distinção real entende-se uma distinção entre duas coisas
que poderiam estar separadas uma de outra, então é seguro que santo Tomás não defendeu a tese
da distinção real entre essência e existência, que não são dois objetos físicos separables. Gil de
Roma sustentou praticamente essa opinião, e fez da distinção em questão uma distinção física;
mas para santo Tomás a distinção era metafísica, pois essência e existência são os dois princípios
metafísicos constitutivos de todo ser finito. Pelo contrário, se por “distinção real” entende-se
uma distinção que é independente da mente, que é objetiva, me parece não somente que santo
Tomás manteve tal distinção entre essência e existência, senão que a mesma é essencial a seu
sistema, e ele lhe concedeu grande importância. Santo Tomás fala do esse como adveníais extra,
no sentido de que procede de Deus, a causa da existência; é o ato, diferente da potencialidade à
que atualiza. Somente em Deus, insiste santo Tomás, são idênticas a essência e a existência, e
aquilo que recebe deve ser diferente daquilo que é recebido. O fato de que santo Tomás
argumente que aquilo cuja existência é diferente de sua essência deve ter recebido a existência
de outro, e que somente de Deus é verdadeiro que sua existência não é diferente de sua essência,
me parece que põe perfeitamente em claro que via a distinção entre essência e existência como
objetiva e independente da mente. A “terceira via” para demonstrar a existência de Deus parece
pressupor a distinção real entre essência e existência nas coisas finitas.

A existência determina a essência no sentido de que é ato, e é por ela por quem a essência
tem ser; mas por outra parte, a existência, como ato, é determinada pela essência, como
potencialidade, a ser a existência desta ou aquela espécie de essência. Mas não devemos
imaginar que a essência existisse dantes de receber a existência (o qual seria uma contradição
nos termos), ou que tenha uma espécie de existência neutra que não seja a existência de alguma
coisa designadamente dantes de unir à essência. Esses dois princípios não são duas coisas físicas
que se unam, senão dois princípios constitutivos concreados como princípios de um ser
particular. Não há essência alguma sem existência, nem existência alguma sem essência; ambas
são criadas juntas, e se a existência cessa, a essência concreta cessa de ser. A existência, pois,
não é algo acidental ao ser finito: é aquilo pelo qual o ser finito tem ser. Se fiamo-nos da
imaginação, pensaremos a essência e a existência como duas coisas ou seres; mas grande parte
da dificuldade para entender a doutrina de santo Tomás neste ponto procede de que se empregue
a imaginação e se suponha que se o aquinatense manteve a distinção real deveu entender à
maneira exagerada e desorientadora de Gil de Roma.

Os filósofos muçulmanos discutia já o relacionamento da existência à essência. Alfarabí, por


exemplo, observava que a análise da essência de um objeto finito não revela sua existência. Se
fizesse-o, bastaria com saber o que é a natureza humana para saber que existe o homem, o que
não é o caso. Por conseguinte, a essência e a existência são diferentes, e Alfarabí sacou a algo
desafortunada conclusão de que a existência é um acidente da essência. Avicena seguiu a
Alfarabí nessa questão. Embora é indudable que santo Tomás não considerava que a existência
fosse um “acidente”, em seu De ente et essentia[654] segue a Alfarabí e a Avicena em seu modo
de abordar a distinção. Todo o que não pertence ao conceito da essência lhe adviene a este desde
fora (adveniens extra) e forma composição com ela. Nenhuma essência pode ser concebida sem
aquilo que faz parte da essência, mas toda essência finita pode ser concebida sem que a
existência esteja incluída na essência. Eu posso conceber “homem” ou “ave fénix” e não saber
se tal coisa existe na natureza. No entanto, seria errôneo interpretar a santo Tomás como se
sustentasse que a essência, dantes da recepção da existência, fosse algo por si mesma, pelo dizer
assim, com uma existência diminuída própria de si mesma: a essência existe somente pela
existência, e a existência criada é sempre a existência desta ou aquela classe de essência. A
existência criada e a essência dão-se juntas, e embora os dois princípios constitutivos são
objetivamente diferentes, a existência é o mais fundamental. Já que a existência criada é o ato
de uma potencialidade, esta última não tem atualidade aparte da existência, que é “entre todas
as coisas, a mais perfeita”, e “a perfección de todas as aperfeiçoe”.[655]

Santo Tomás descobre assim no coração de todo ser finito uma verdadeira instabilidade, uma
contingencia ou não-necessidade, que aponta imediatamente para a existência de um Ser que é
a fonte da existência finita, o autor da composição de essência e existência, e que não pode estar
a sua vez composto de essência e existência, senão que deve ter existência como sua verdadeira
essência, isto é, existir necessariamente. Seria em verdade um absurdo, e uma máxima injustiça,
acusar a Francisco Suárez (1548-1617) e a outros escolásticos que negaram a “distinção real”,
de negar o caráter contingente do ser finito (Suárez negou a distinção real entre essência e
existência, e manteve que o ser finito é limitado por ser ab aliou); mas eu pessoalmente não
experimento a menor dúvida quanto a que São Tomás de Aquino manteve a doutrina da distinção
real, sempre que esta não seja interpretada como a interpretou Gil de Roma. Para santo Tomás,
a existência não é um estado da essência, senão aquilo que põe à essência em estado de
atualidade.

Pode objetarse que eludi a verdadeira questão, isto é, a de qual é o modo preciso em que a
distinção entre essência e existência é objetiva e independente da mente. Mas santo Tomás não
formula sua doutrina de uma maneira que impossibilite toda controvérsia a propósito de seu
significado. Não obstante, parece-me claro que santo Tomás sustentou que a distinção entre
essência e existência é uma distinção objetiva entre dois princípios metafísicos que constituem
a totalidade do ser da coisa finita criada, e que um desses dois princípios, a saber, a existência,
se encontra com o outro, a saber, a essência, no relacionamento em que está o ato à potência. E
não vejo como poderia santo Tomás atribuir a essa distinção a importância que lhe atribuiu se
não pensasse que se tratava de uma distinção “real”.
Capítulo XXXIV
São Tomás de Aquino. - IV: Provas da existência de Deus

1. Necessidade da prova.

Dantes de desenvolver suas provas da existência de Deus, santo Tomás tentou mostrar que
não é inútil ou superñuo facilitar tais provas, já que a ideia da existência de Deus não é,
propriamente falando, uma ideia innata, nem “Deus existe” é uma proposição cuja contradictoria
seja inconcebível ou impensable. Para nós, certamente, que vivemos em um mundo no que o
ateísmo é comum, no que filosofias poderosas e influentes eliminam ou excluem a noção de
Deus, no que multidões de homens e mulheres são educados sem nenhuma crença em Deus,
parece perfeitamente natural pensar que a existência de Deus precisa ser provada. Conquanto
Kierkegaard e alguns filósofos e teólogos que lhe seguem recusaram a teología natural no
sentido ordinário do termo, normalmente falando não poderíamos sonhar em afirmar que a
existência de Deus seja o que São Tomás de Aquino chamava um per se notum. Mas santo
Tomás não vivia em um mundo no que o ateísmo sistemático fosse comum, e teve de ter em
conta não só fórmulas de anteriores autores cristãos que pareciam implicar que o conhecimento
de Deus é innato no homem, senão também o famoso argumento de Santo Anselmo, que
pretende mostrar que a não existência de Deus é inconcebível. Assim, na Summa
Theologica[656], o aquinatense consagra um artigo a responder à pergunta utrum Deunt esse sit
per se notum, e, na Summna contra Gentiles[657], dois capítulos à consideração de opinione
dicentium quod Deum esse demonstran non potest, quum sit per se notum.

São João Damasceno[658] afirma que o conhecimento da existência de Deus é naturalmente


innato no homem; mas santo Tomás explica que esse conhecimento natural de Deus é confuso
e vadio e precisa uma elucidación que o converta em explícito. O homem tem um desejo natural
de felicidade (beatitudo), e um desejo natural supõe um conhecimento natural; mas embora a
verdadeira felicidade somente tem de buscar-se em Deus, não se segue daí que todo homem
tenha um conhecimento natural de Deus como tal: o homem tem uma vadia ideia de felicidade,
já que deseja-a, mas pode pensar que a felicidade consiste no prazer sensual ou na posse de
riquezas, e se precisa uma reflexão ulterior dantes de que possa ser reconhecido que a felicidade
somente pode ser encontrado em Deus. Em outras palavras, embora o desejo de felicidade possa
constituir a base para uma prova da existência de Deus, a prova não deixa de ser necessária.
Igualmente, em verdadeiro sentido é per se notum que há verdade, já que se um homem afirma
que não há verdade alguma, afirma inevitavelmente que é verdade que não há verdade alguma;
mas daí não se segue que tenha uma Verdade básica ou primeira, uma Fonte para valer, Deus:
para reconhecer tal coisa precisa-se uma reflexão ulterior. Do mesmo modo, embora é verdade
que sem Deus nada podemos conhecer, não se segue daí que ao conhecer algo tenhamos um
conhecimento atual de Deus, já que a influência de Deus, que nos capacita para conhecer algo,
não é objeto de intuición direta, senão que somente se conhece por reflexão.[659]

Em general, diz santo Tomás, devemos fazer uma distinção entre o que é per se notum
secundum se e o que é per se notum quoad nos .Diz-se que uma proposição é per se nota
secundum se quando o pregado está incluído no sujeito, como na proposição de que o homem é
animal, já que o homem é precisamente um animal racional. A proposição de que Deus existe é,
pois uma proposição per se nota secundum se, já que a essência de Deus é sua existência, e não
podemos conhecer a natureza de Deus, o que Deus é, sem conhecer a existência de Deus, que
Deus é; mas o homem não tem um conhecimento a priori da natureza de Deus, e somente chega
ao conhecimento do fato de que a essência de Deus é sua existência após ter chegado a conhecer
a existência de Deus, de maneira que ainda que a proposição de que Deus existe é per se nota
secundum se, não é per se nota quoad nos ..

2. O argumento de Santo Anselmo.

Quanto à demonstração “ontológica” ou a priori da existência de Deus dada por Santo


Anselmo, santo Tomás responde antes de mais nada que não todo mundo entende por Deus
“aquilo maior que o qual não cabe pensar nada”. É possível que tal observação, embora
indubitavelmente verdadeira, não seja do todo pertinente, exceto na medida em que Santo
Anselmo considerasse que todo mundo entendesse por “Deus” aquele Ser cuja existência ele
tratava de provar, a saber, o Ser supremamente perfeito. Não deve ser esquecido que Santo
Anselmo se dava conta de que seu argumento era um argumento ou demonstração, não a
enunciación de uma intuición imediata de Deus. Santo Tomás arguye ademais, tanto na Summa
contra Gentiles como na Summa Theologica, que a argumentación de Santo Anselmo
compreende um processo ou transição ilícito da ordem ideal à ordem real. Concedido que Deus
se concebe como o Ser maior que o qual nada pode ser pensado, não se segue necessariamente
que tal Ser exista, aparte de seu ser concebido, isto é, fora da mente. Não obstante, esse
argumento não é adequado, ao menos se se toma por si mesmo, para desaprovar o razonamiento
anselmiano, já que não tem em conta o caráter peculiar de Deus, do Ser maior que o qual nada
pode ser pensado. Tal Ser é sua própria existência, e se é possível que exista um Ser assim, tem
que existir. O Ser maior que o qual nada pode ser pensado é o Ser que existe necessariamente, é
o Ser Necessário, e seria absurdo falar de um Ser Necessário meramente possível. Mas santo
Tomás acrescenta, como vimos, que o entendimento não tem conhecimento a priori da natureza
de Deus. Em outras palavras, devido à debilidade do intelecto humano, não podemos discernir
a priori a possibilidade positiva do Ser supremamente perfeito, o Ser cuja essência é sua
existência, e chegamos ao conhecimento de que tal Ser existe não por uma análise ou
consideração da ideia de um Ser assim, senão mediante argumentaciones baseadas em seus
efeitos, a posteriori.

3. Possibilidade da prova.

Se a existência de Deus não pode ser demonstrada a priori, pela ideia de Deus, por sua
essência, deveremos a provar a posteriori, mediante um exame dos efeitos de Deus. Pode
objetarse que isso é impossível, já que os efeitos de Deus são finitos enquanto Deus mesmo é
infinito, de maneira que não há proporção entre os efeitos e a causa, e a conclusão do processo
de razonamiento conteria assim infinitamente mais do que contêm as premisas. O razonamiento
toma seu ponto de partida em objetos sensíveis, e, portanto, deve terminar em um objeto
sensível, enquanto nas provas da existência de Deus o razonamiento conclui em um Objeto
infinitamente trascendente a todos os objetos sensíveis.

São Tomás de Aquino não se ocupa em detalhe dessa objeción, e constituiria um


anacronismo absurdo pretender que discutisse e dado resposta por adiantado à crítica kantiana
da metafísica; mas o aquinatense observa que, conquanto a partir de uma consideração de efeitos
que não são proporcionados a sua causa não podemos obter um conhecimento perfeito de dita
causa, podemos chegar a conhecer que a causa existe. Podemos razonar desde um efeito até a
existência de uma causa, e se o efeito é de tal classe que somente pode proceder de uma
verdadeira classe de causa, podemos argumentar legitimamente a existência de uma causa dessa
classe. (O emprego do termo “efeito” não deve ser considerado como uma petição de princípio:
santo Tomás argumenta a partir de certos fatos referentes ao mundo, e argumenta que esses fatos
requerem uma explicação ontológica suficiente. É verdade, indubitavelmente, que ele pressupõe
que o princípio de causalidad não é puramente subjetivo nem aplicável somente dentro da esfera
dos “fenômenos”, no sentido kantiano; mas tem perfeita consciência de que tem de se mostrar
que os objetos sensíveis são efeitos, no sentido de que não contêm em si mesmos sua suficiente
explicação ontológica.)

Um tomista moderno que deseje expor e defender a teología natural do santo à luz do
pensamento filosófico posmedieval, deverá dizer algo em justificativa da razão especulativa, da
metafísica. Inclusive se considera que o peso da prova deve ser assumido em primeiro lugar pelo
oponente da metafísica, não pode desconhecer o fato de que a legitimidade e inclusive a
significação das argumentaciones metafísicas foram postas em dúvida, e tem de estar disposto a
fazer frente ao desafio.

Não obstante, não acerto a ver como pode ser exigido a um historiador da filosofia medieval
em general que se ocupe de santo Tomás como se fosse um contemporâneo e um perfeito
conhecedor não somente da crítica kantiana da razão especulativa, senão também da atitude para
a metafísica adotada pelos positivistas lógicos. Não obstante, é verdade que a mesma teoria do
conhecimento tomista proporciona, aparentemente ao menos, uma poderosa objeción contra a
teología natural. Segundo santo Tomás, o objeto próprio do intelecto humano é a quidditas ou
essência do objeto material: o intelecto tem seu ponto de partida nos objetos sensíveis, conhece
em dependência dos phantasmata, e, em virtude de seu estado de encarnación em um corpo, está
proporcionado aos objetos sensíveis. Santo Tomás não admitia ideias innatas nem recorria a
nenhum conhecimento intuitivo de Deus, e se se aplica estritamente o princípio aristotélico de
que não há nada no entendimento que não tenha estado dantes nos sentidos (nihil in intellectu
quod non prius fuerit in sensu), pode perfeitamente parecer que o entendimento humano está
limitado ao conhecimento de objetos corpóreos, sem possibilidade de trascenderlos, seja por sua
natureza mesma ou seja, ao menos, por sua condição presente. Como essa objeción resulta da
doutrina mesma do próprio santo Tomás, é oportuno se perguntar se o santo tratou de lhe fazer
frente, e, em caso afirmativo, como o fez. Da teoria tomista do conhecimento humano me
ocuparei mais adiante[660]; mas agora vou expor brevemente o que me parece ser a posição de
santo Tomás neste ponto.
Os objetos, sejam corporales ou espirituais, somente são cognoscibles na medida em que
participam do ser, na medida em que são em ato, e o entendimento como tal é a faculdade de
prender o ser. Considerado simplesmente em si mesmo, pois, o entendimento tem como objeto
ao ser em toda sua extensão: o objeto primário do entendimento é o ser. Agora bem, o fato de
que um particular tipo de entendimento, o entendimento humano, esteja encarnado e dependa
dos sentidos em sua operação, representa que deve partir das coisas dos sentidos, e que,
naturalmente falando, somente pode chegar a conhecer um objeto que trascienda as coisas dos
sentidos (ignoramos aqui a questão do conhecimento de si mesmo) na medida em que os objetos
dos sentidos acusam um relacionamento àquele objeto e lhe manifestam. Como uma
consequência do fato de que o entendimento humano está encarnado, seu objeto próprio e
natural, proporcionado a seu estado presente, é o objeto corpóreo; mas isso não destrói a
orientação primária do entendimento ao ser em general, e se os objetos corpóreos testemunham
um relacionamento discernible a um objeto que os trasciende, o entendimento pode conhecer
que tal objeto existe. Ademais, na medida em que os objetos materiais revelam o caráter do
trascendente, o entendimento pode atingir algum conhecimento da natureza deste; mas tal
conhecimento não pode ser adequado ou perfeito, já que os objetos dos sentidos não podem
revelar adequada ou perfeitamente a natureza da trascendencia. De nosso conhecimento natural
da natureza divina falarei mais adiante[661]: baste agora indicar que quando santo Tomás diz que
o objeto corpóreo é o objeto natural do entendimento humano, sua afirmação tem de entender
no sentido de que o entendimento humano em seu estado presente está orientado para a essência
do objeto corpóreo, mas que, o mesmo que a condição encarnada do entendimento humano não
destrói seu caráter primário corno entendimento, assim sua orientação, em virtude de seu estado
encarnado, para o objeto corpóreo não destrói sua orientação primária para o ser em general. O
entendimento humano pode, pois, atingir algum conhecimento natural de Deus na medida em
que os objetos corpóreos estão relacionados a Deus e lhe revelam; mas esse conhecimento é
necessariamente imperfecto e inadequado, e não pode ser de caráter intuitivo.

4. As três primeiras provas.

A primeira das cinco provas da existência de Deus apresentadas por São Tomás de Aquino
é a do movimento, que se encontra em Aristóteles[662] e foi utilizada por Maimónides e por
Santo Alberto Magno. Sabemos pela percepción sensível que algumas coisas do mundo se
movem, que o movimento é um fato. “Movimento” entende-se aqui no amplo sentido
aristotélico de passagem da potência ao ato, e santo Tomás, seguindo a Aristóteles, argumenta
que uma coisa não pode ser reduzida ao ato desde seu estado de potência a não ser por algo que
esteja já em ato. Nesse sentido, “todo o que se move é movido por outro”. Se esse outro é a sua
vez movido, deve ser movido a sua vez por outro agente; e como uma série infinita é impossível,
chegamos ao fim a um motor não movido, a um primeiro motor, “e todos entendemos que esse
primeiro motor é Deus”[663]. Santo Tomás chama a esse argumento a via manifiestior[664]. Na
Summa contra Gentiles[665] desenvolve-o com considerável extensão.

A segunda prova, que lhe é sugerida pelo livro II da Metafísica de Aristóteles[666], e que foi
utilizada por Avicena, Alain de Lille e san Alberto, tomada também seu ponto de partida no
mundo sensível, mas desta vez na ordem ou série das causas eficientes. Nada pode ser a causa
de si mesmo, porque, para o ser, teria que ter existido dantes de si mesmo. Por outra parte, é
impossível proceder ao infinito na série das causas eficientes; por conseguinte, deve ter uma
primeira causa eficiente, “à que todos os homens chamam Deus”.

A terceira prova, que Maimónides tomou de Avicena e desenvolveu por sua vez, se baseia
no fato de que alguns seres começam a existir e perecem, o que mostra que podem ser e não ser,
que são contingentes e não necessários, já que se fossem necessários sempre existiria, e nem
começariam a ser nem pereceriam. Santo Tomás arguye então que deve ter um ser necessário, o
qual é a razão de que os seres contingentes cheguem a existir. Se não tivesse nenhum ser
necessário, não existiria nada em absoluto.

Há algumas observações que devem ser feito, embora seja brevemente, a propósito dessas
três provas. Em primeiro lugar, quando santo Tomás diz que uma série infinita é impossível (e
esse princípio é utilizado nas três provas), não pensa em uma série que se estenda no tempo,
uma série “horizontal”, por assim o dizer. Não diz, por exemplo, que porque o menino deva a
vida a seus pais, e seus pais a devam, a sua vez, aos seus, e assim sucessivamente, deveu ter um
casal originaria que não tivesse pais, senão que fosse criada diretamente por Deus. Santo Tomás
não achava que possa ser provado filosoficamente que o mundo não fosse criado desde a
eternidade: ele admite a possibilidade abstrata da criação do mundo desde a eternidade, e tal
coisa não poderia ser admitido sem admitir ao mesmo tempo a possibilidade de uma série sem
princípio. O que santo Tomás nega é a possibilidade de uma série infinita na ordem das causas
atualmente dependentes, isto é, de uma série infinita “vertical”. Suponhamos que o mundo fosse
criado desde a eternidade. Teria uma série histórica ou horizontal infinita, mas a série inteira
constaria de seres contingentes, porque o fato de ser sem princípio não lhes converte em
necessários. Por conseguinte, a série inteira deve depender de algo exterior à série mesma. Mas
se ascende-se verticalmente, sem atingir nunca um termo, não se tem a explicação da existência
da série: devemos concluir na existência de um ser que não seja em si mesmo dependente.

Em segundo local, a consideração de nossas observações precedentes mostra que a chamada


série matemática infinita nada tem que ver com as provas tomistas. Não é a possibilidade de
uma série infinita assim o que santo Tomás nega, senão a possibilidade de uma série infinita na
ordem ontológico de dependência. Em outras palavras, santo Tomás nega que o movimento e a
contingencia do mundo que experimentamos possa não ter nenhuma explicação ontológica
última e adequada.

Em terceiro local, pode parecer uma conduta algo desenvuelta de parte de santo Tomás o
supor que o motor imóvel, ou primeira causa, ou o ser necessário, seja o que chamamos Deus.
Evidentemente, se algo existe, deve ter um Ser necessário: o pensamento deve chegar a essa
conclusão a não ser que a metafísica seja completamente recusada; mas não é tão evidente que
o ser necessário deva ser o Ser pessoal ao que chamamos Deus. Não precisa se elaborar
grandemente a afirmação de que uma argumentación puramente filosófica não nos conduz à
plena noção revelada de Deus; mas, inclusive aparte da plena noção de Deus, como foi revelada
por Cristo e ensinada pela Igreja, uma argumentación puramente filosófica, nos dá um Ser
pessoal? Talvez a fé religiosa de santo Tomás em Deus lhe levou a ver na conclusão do
argumento mais do que realmente tinha na mesma? Dado que santo Tomás buscava argumentos
para provar a existência do Deus no qual achava, não se deu talvez demasiada pressa em
identificar ao primeiro motor, a causa primeira, e o ser necessário, com o Deus do cristianismo
e da experiência religiosa, com o ser pessoal ao que os homens podem rezar? Acho que devemos
admitir que as frases que santo Tomás acrescenta às provas oferecidas na Summa Theologica (et
hoc omnes intelligunt Deum, causam efficientem primam quam omnes Deum nominant, quod
omnes dicunt Deum), constituem, se se tomam em si mesmas, uma conclusão precipitada. Mas,
aparte do fato de que a Summa Theologica é um livro de texto em compendio e (principalmente)
teológico, aquelas frases não devem ser tomado isoladamente. Por exemplo, a prova resumida
da existência de um ser necessário não contém argumento explícito algum para mostrar se esse
ser é material ou imaterial, de modo que a observação feita ao final da prova de que esse ser é
chamado por todo mundo Deus pode parecer falta de garantia suficiente; mas no artigo primeiro
da questão seguinte santo Tomás pergunta se Deus é material ou corpóreo, e argumenta que não
o é. As frases em questão devem, pois, entender-se como expressões de que Deus é reconhecido,
por todos os que crêem em O, como Primeira causa e Ser necessário; não devem ser entendido
como uma injustificable supressão da argumentación ulterior. Em todo caso, santo Tomás
apresenta suas provas simplesmente em esboço, não como se se propusesse a composição de um
tratado contra ateus profesos. Se tivesse que tratar com marxistas, construiria indubitavelmente
suas provas de uma maneira diferente, ou, ao menos, mais elaborada e desenvolvida; na posição
em que de fato se encontrava, o que lhe interessou foi apresentar uma prova dos preambula fidei.
Nem sequer na Summa contra Gentiles, pensava o santo principalmente nos ateus, senão nos
muçulmanos, que tinham uma firme crença em Deus.

5. A quarta prova.

A quarta prova está sugerida por algumas observações da Metafísica de Aristóteles[667], e


encontra-se substancialmente em Santo Agostinho e em Santo Anselmo. Toma seu ponto de
partida nos graus de perfección, de bondade, verdade, etc., nas coisas deste mundo, que
permitem formular julgamentos comparativos tais como “isso é mais belo que isto”, ou “isto é
melhor que aquilo”. Supondo que tais julgamentos têm um fundamento objetivo, santo Tomás
argumenta que os graus de perfección implicam necessariamente a existência de um ótimo, um
maximamente verdadeiro, etc., o qual será também o ser supremo (máxime ens).

Até aqui a argumentación conduz somente a um ótimo relativo. Se pode ser estabelecido que
há verdadeiramente graus para valer, bondade e ser, uma hierarquia de seres, então deve ter um
ser ou vários seres que sejam relativamente supremos. Mas isso não basta para provar a
existência de Deus, e santo Tomás procede a argumentar que o que é supremo em bondade, por
exemplo, deve ser a causa da bondade que há em todas as coisas. Ademais, porquanto a bondade,
a verdade e o ser, são convertibles, deve ter um Ser Supremo que é a causa do ser, da verdade,
da bondade, de toda perfección nos demais seres: et hoc dicimus Deum.

Como o termo da argumentación é um Ser que trasciende todos os objetos sensíveis, é


evidente que as aperfeiçoe em questão somente podem ser aquelas aperfeiçoe capazes de
subsistir por si mesmas, aperfeiçoe puras, que não impliquem nenhum relacionamento
necessário à extensão ou quantidade. O argumento é de origem platónico e pressupõe a ideia de
participação. Os seres contingentes não possuem seu ser por si mesmos, nem também não sua
bondade ou sua verdade ontológica; recebem seus aperfeiçoe, participam delas. A causa última
da perfección deve ser perfeita em si mesma; não pode receber seu perfección de outro, senão
que deve ser sua própria perfección: é ser e perfección autoexistente. O argumento consiste,
pois, na aplicação de princípios, já utilizados nas provas precedentes, às aperfeiçoe puras; não
se aparta realmente do espírito geral das outras provas, apesar de sua ascendência platónica.
Uma de suas principais dificuldades, não obstante, é, como já indiquei, a de mostrar que há
realmente graus de ser e perfección dantes de ter mostrado que há realmente um Ser que é
Perfección absoluta e existente por si mesma.

6. A prova baseada na finalidade.

A quinta via é a prova teológica, pela que Kant sentia um considerável respeito em razão de
sua antigüedad, clareza e poder persuasivo, embora, de acordo com os princípios da Kritik der
reinem Vernunft, se negasse a lhe conceder caráter demostrativo.

Santo Tomás argumenta que observamos objetos inorgánicos que operam por um fim, e
como isso ocorre sempre, ou muito frequentemente, não pode ser devido a esmo, senão que deve
ser o resultado de uma intenção. Mas os objetos inorgánicos carecem de conhecimento: não
podem, pois, tender para um fim a não ser que sejam dirigidos por alguém inteligente, “como a
seta é dirigida pelo arqueiro”. Por conseguinte, existe um Ser inteligente, pelo qual todas as
coisas naturais são dirigidas a um fim; et hoc dicimus Deum. Na Summa contra Gentiles o santo
formula o argumento de um modo algo diferente, dizendo que quando muitas coisas com
qualidades diferentes e inclusive contrárias cooperam para a realização de uma só ordem, a razão
deve ser visto em uma Causa inteligente ou Providência: et hoc dicimus Deum. Se a prova tal
como se apresenta na Summa Theologica sublinha a finalidade interna de um objeto inorgánico,
a apresentada na Summa contra Gentiles sublinha a cooperação de muitos objetos na realização
da ordem ou harmonia únicos do mundo. Por si mesma a prova conduz a um Proyectista, ou
Governador, ou Arquiteto do universo, como observou Kant; requer-se um razonamiento
ulterior para mostrar que esse Arquiteto não é meramente um Demiurgo, senão também o
Criador.

7. A “terceira via” fundamental.

As provas foram enunciadas aqui mais ou menos do mesmo modo audaz e sucinto no que as
enunció santo Tomás. A exceção da primeira prova, que é elaborada com certa extensão na
Summa contra Gentiles, as provas se apresentam em um mero esboço nu, tanto na Summa
Theologica como na Summa contra Gentiles. Mas não fizemos a menor menção das ilustrações
físicas do aquinatense, em nossa opinião algo desafortunadas, como quando diz que o fogo é a
causa das coisas quentes, já que em realidade essas ilustrações não têm que ver com a validade
ou falta de validade das provas como tais. O moderno discípulo de santo Tomás tem
naturalmente não só que desenvolver as provas com muito maior detalhe, e considerar
dificuldades e objeciones que dificilmente podiam lhe lhe ter ocorrido a santo Tomás, senão
também que justificar os princípios mesmos em que se apoia a linha geral da prova. Assim, com
relacionamento à quinta prova apresentada por santo Tomás, o tomista moderno deve ter em
conta as teorias recentes que tentam fazer inteligible a génesis da ordem e finalidade do universo
sem recorrer à hipótese de um agente espiritual diferente do universo, e, com relacionamento à
totalidade das provas, tem não somente que justificar, em atenção à crítica kantiana, a linha de
argumentación em que se apoiam, senão ademais que mostrar, contra os positivistas lógicos, que
a palavra “Deus” tem algum significado. Mas não é tarefa do historiador desenvolver as provas
como teriam que se desenvolver hoje, nem também não é tarefa sua justificar aquelas provas. O
modo em que santo Tomás as formula possa talvez provocar uma verdadeira insatisfacción no
leitor; mas deve ser recordado que o santo de Aquino era primordialmente um teólogo, e que,
como já se disse, não se interessava tanto por fazer um tratamento exaustivo das provas como
de provar de uma maneira resumida os praeambula fidei. Em consequência, ele faz uso de provas
tradicionais, que ou podiam ou pareciam poder ser apoiado em Aristóteles, e que já era
empregadas por alguns de seus antecessores.

Santo Tomás apresenta cinco provas, e dentre essas cinco provas concede certa preferência
à primeira, ao menos na medida em que o lume a via manifestior. Não obstante, seja o que seja
o que possamos pensar dessa afirmação sua, a prova fundamental é realmente a terceira “via”, a
que se baseia na contingencia. Na primeira prova, o argumento baseado na contingencia aplica-
se ao fato especial do movimento ou mudança, na segunda à ordem da causalidad ou produção
causal, na quarta aos graus de perfección, e na quinta à finalidade, à cooperação dos objetos
inorgánicos na ordem cósmico. O argumento da contingencia, em si mesmo, se baseia no fato
de que todo deve ter sua razão suficiente, a razão pela qual existe. O movimento ou mudança
deve ter sua razão suficiente em um motor imóvel, a série de efeitos e causas secundárias em
uma causa incausada, a perfección limitada na perfección absoluta, e a finalidade e ordem na
natureza em uma Inteligência ordenadora. A “interioridad” das provas da existência de Deus
que se dá em Santo Agostinho e em São Boaventura está ausente das cinco vias de santo Tomás;
mas indubitavelmente é possível aplicar seus princípios gerais ao eu, se assim se deseja. De fato,
pode ser dito que as cinco “vias” de santo Tomás são uma explicitación das palavras do Livro
da Sabedoria[668] e da Epístola aos Romanos de san Pablo[669], segundo as quais Deus pode ser
conhecido a partir de suas obras, como algo que trasciende a essas obras.
Capítulo XXXV
São Tomás de Aquino. - V: Natureza de Deus

1. A via negativa.

Uma vez estabelecido que o Ser Necessário existe, parece perfeitamente natural proceder à
investigação da natureza de Deus. É muito insatisfactorio saber simplesmente que existe o Ser
Necessário se não podemos saber ao mesmo tempo que classe de ser é o Ser Necessário. Mas
em seguida propõe-se uma dificuldade. Nesta vida não temos intuición alguma da essência
divina: nosso conhecimento depende da percepción sensível, e as ideias que nós formamos
derivam de nossa experiência das criaturas. Também a linguagem está formada para expressar
essas ideias, e, portanto, se refere primariamente a nossa experiência, e só parece ter referência
objetiva dentro da esfera de nossa experiência. Mas então, como podemos chegar a conhecer um
Ser que trasciende a experiência sensível? Como podemos formar ideias que expressem de
algum modo a natureza de um Ser que ultrapassa o alcance de nossa experiência, de um Ser que
trasciende o mundo das criaturas? Como podem as palavras de uma linguagem humana ser
aplicáveis ao Ser Divino?

Santo Tomás era perfeitamente consciente dessa dificuldade, e em realidade toda a tradição
da filosofia cristã, que sofria a influência dos escritos do Pseudo-Dionisio, dependentes a sua
vez do neoplatonismo, lhe teria ajudado, em caso que precisasse ajuda, a evitar a queda em um
excesso de confiança no poder da razão humana para penetrar a essência divina. O racionalismo
de tipo hegeliano era totalmente estranho a sua mente, e ele mesmo nos diz que não podemos
chegar a conhecer a respeito de Deus quid sit, o que O é, sua “Essência”, senão somente an sit,
ou quod sit, que é (sua existência). Essa afirmação, tomada isoladamente, pareceria supor um
completo agnosticismo a propósito da natureza divina, mas não é isso o que santo Tomás
entende, e aquela afirmação deve ser interpretado segundo sua doutrina geral e a explicação que
ele dá da mesma. Assim, na Summa contra Gentiles[670], diz que “a substância divina excede
por sua imensidão de toda forma que nosso entendimento atinja; e, assim, não podemos prender
mediante um conhecimento do que é, mas temos alguma noção daquela mediante o
conhecimento do que não é”. Por exemplo, chegamos a saber algo de Deus ao reconhecer que
não é, nem pode ser, uma substância corpórea; ao negar do a corporeidad formamo-nos alguma
noção; de sua natureza, já que sabemos que Ele não é corpo, embora isso não nos dá uma ideia
positiva do que seja em si mesma a substância divina, e quantos mais pregados possamos negar
de Deus desse nó, tanto mais nos aproximamos a um conhecimento dele.
Essa é a famosa via remotionis, ou via negativa, tão cara ao Pseudo-Dionisio e a outros
autores cristãos que era fortemente influídos pelo neoplatonismo; mas santo Tomás acrescenta
uma observação muito útil a propósito da via negativa[671]. No caso de uma substância criada,
diz, uma substância que podemos definir, o primeiro que fazemos é atribuir a seu gênero, e assim
conhecemos em general o que é, e depois lhe acrescentamos a diferença pela que se distingue
de outras coisas do mesmo gênero; mas no caso de Deus, não podemos atribuir a um gênero, já
que Deus trasciende todos os gêneros, e, assim, não podemos lhe distinguir das demais coisas
mediante diferenças positivas (per affirmativas differentias). Não obstante, embora não
podemos abordar uma ideia clara da natureza de Deus do mesmo modo em que podemos nos
formar uma ideia clara da natureza humana, a saber, por sucessivas diferenciaciones positivas
ou afirmativas, como vivente, sensitivo ou animal, racional, podemos atingir alguma noção da
natureza de Deus pela via negativa, por uma sucessão de diferenciaciones negativas. Por
exemplo, se dizemos que Deus não é um acidente, lhe distinguimos de todos os acidentes; se
dizemos que não é corpóreo, lhe distinguimos de algumas substâncias; e assim podemos
proceder até que obtemos uma ideia de Deus que lhe pertence a Ele só (propria consi deratió),
e que basta para que seja distinguido de todos os outros seres.

No entanto, não deve deixar de se ter presente que quando de Deus se negam pregados, não
se negam porque Deus esteja falto de alguma perfección expressa em dito pregado, senão porque
Deus excede infinitamente em riqueza aquela limitada perfección. Nosso conhecimento natural
tem seu ponto de partida nos sentidos, e estende-se até onde pode chegar com a ajuda dos objetos
sensíveis[672]. Como os objetos sensíveis são criaturas de Deus, nos poder chegar a conhecer que
Deus existe, mas não podemos, por médio daqueles, chegar a um conhecimento adequado de
Deus, já que as criaturas são efeitos que não estão plenamente proporcionados ao poder divino.
Mas podemos chegar a saber a respeito de Deus aquilo que é necessariamente verdadeiro dele,
como causa de todos os objetos sensíveis. Como causa destes, Deus lhes trasciende, e não é nem
pode ser Ele mesmo um objeto sensível: podemos, pois, negar de Deus todos os pregados que
estão vinculados à corporeidad ou que são incompatíveis com sua ser Causa Primeira e Ser
Necessário. Mas haec non removentur ab eo propter eius defectum, sejam quia superexcedit[673].
Se dizemos, pois, que Deus não é corpóreo, não queremos dizer que Deus seja menos que corpo,
que lhe falte a perfección compreendida no ser corpo, senão que Deus é mais que corpo, que
não possui nenhuma das imperfecciones compreendidas necessariamente no ser uma substância
corporal.

Argumentando por médio da via negativa, santo Tomás mostra que Deus não pode ser
corpóreo, por exemplo, porque o Motor imóvel e o ser necessário deve ser ato puro, enquanto
toda substância corpórea é potencialidade. Ademais, não pode ter em Deus composição alguma,
nem de matéria e forma, nem de substância e acidente, nem de essência e existência. Se tivesse
composição de essência e existência, por exemplo, Deus deveria sua existência a outro ser, o
que é impossível, já que Deus é a Causa Primeira. Não pode ter em Deus composição alguma
porque isso seria incompatível com sua ser Causa Primeira, Ser Necessário, Ato Puro.
Expressamos essa ausência de composição valendo da palavra afirmativa “simplicidade”, mas a
ideia da simplicidade divina atinge-se separando de Deus todas as forma de composição que se
encontram nas criaturas, de maneira que “simplicidade” significa aqui ausência de composição.
Não podemos nos formar uma ideia adequada da simplicidade divina como é em si mesma, já
que trasciende nossa experiência: sabemos, no entanto, que está no pólo oposto, pelo dizer assim,
da simplicidade relativa, ou simplicidade das criaturas. Nas criaturas experimentamos que a
substância mais complexa é a mais elevada, como o homem é mais elevado que a ostra; mas a
simplicidade de Deus significa que O possui a plenitude do Ser e Perfección em um só Ato
indiviso e eterno.

Semelhantemente, Deus é infinito e perfeito, já que seu ser não é algo recebido e limitado,
senão autoexistente; Deus é inmutable já que o Ser Necessário é necessariamente todo o que é,
e não pode ser mudado; é eterno, já que o tempo requer movimento, e no Ser Inmutable não
pode ter movimento algum. É um, já que é simples e infinito. Não obstante, estritamente falando,
diz santo Tomás, Deus não é eterno, senão que é eternidade, já que é seu próprio esse subsistente,
em um só ato indiviso.

É desnecessário percorrer todos os diversos atributos de Deus que podem ser conhecidos
pela via negativa; é suficiente ter dado alguns exemplos para mostrar como, após provar que
Deus existe como Motor Imóvel, Causa Primeira, e Ser Necessário, santo Tomás procede a
separar ou negar de Deus todos aqueles pregados das criaturas que são incompatíveis com o
caráter de Deus como Motor Imóvel, Causa Primeira e Ser Necessário. Em Deus não pode ter
corporeidad, nem composição, nem limitação, nem imperfección, nem temporalidad, etc.

2. A via afirmativa.

Pregados ou nomes tais como “inmutable” ou “infinito” sugerem, por sua mesma forma, sua
associação com a “via negativa”, pois inmutable é equivalente a não mutable, e infinito é
equivalente a não finito; mas há outros pregados aplicados a Deus que não sugerem tal
associação, como por exemplo, bom, sábio, etc. Ademais, diz santo Tomás[674], enquanto um
pregado negativo faz referência direta não à substância divina, senão à “separação” ou negación
de algo da substância divina, isto é, à negación da aplicabilidad de um verdadeiro pregado a
Deus, há nomes ou pregados positivos que se pregam afirmativamente da substância divina. Por
exemplo, o pregado “incorpóreo” nega de Deus a corporeidad, separa-a dele, enquanto o pregado
“bom”, ou “sábio”, se prega afirmativa e diretamente da substância divina. Há, pois, uma via
afirmativa ou positiva além da via negativa. Mas, qual é sua justificativa, se essas aperfeiçoe, a
bondade, a sabedoria, etc., são experimentadas por nós como se dão nas criaturas, e se as
palavras que utilizamos para expressar essas aperfeiçoe expressam ideias que sacamos das
criaturas? Não estaremos aplicando a Deus cria e palavras que não têm aplicação mais que no
domínio da experiência? Talvez nos enfrentamos com o seguinte dilema. Ou pregamos de Deus
pregados que somente têm aplicação no caso das criaturas, e então nossas afirmações a respeito
de Deus são falsas, ou esvaziamos ditos pregados de sua referência às criaturas, e então lhes
deixamos sem conteúdo, já que estão derivados de nossa experiência das criaturas e expressam
essa experiência.

Em primeiro lugar, santo Tomás faz questão de que quando se pregam de Deus pregados
afirmativos, estes se pregam positivamente da substância ou natureza divina. O aquinatense não
compartilha a opinião de quem, como Maimónides, fazem a todos os pregados de Deus
equivalentes a pregados negativos, nem a de quem dizem que “Deus é bom” ou “Deus é vivente”
significa simplesmente “Deus é a causa de toda bondade” ou “Deus é a causa da vida”. Quando
nos dizer que Deus é vivente ou que Deus é vida, não queremos dizer meramente que Deus não
é não-vivente: o enunciado de que Deus é vivente contém em sim um verdadeiro grau de
afirmação que falta no enunciado de que Deus não é corpóreo. Nem também não o homem que
afirma que Deus é vivente se limita a afirmar que Deus é a causa da vida, de todos os seres
viventes, senão que pretende dizer algo positivo a respeito de Deus mesmo. Ademais, se o
enunciado de que Deus é vivente não significasse outra coisa senão que Deus é a causa de todos
os seres viventes, igualmente poderíamos dizer que Deus é corpo, já que também é O a causa de
todos os corpos. No entanto, não dizemos que Deus seja corpo, enquanto sim dizemos que Deus
é vivente, e isso mostra que a afirmação de que Deus é vivente significa algo mais que Deus é
causa da vida, e que se faz uma afirmação positiva a propósito da substância divina.

Por outra parte, nenhuma das ideias positivas por médio das quais nos conceber a natureza
de Deus representa perfeitamente a Deus. Nossas ideias de Deus representam a Deus somente
na medida em que nosso entendimento pode lhe conhecer; mas conhecemos-lhe por médio dos
objetos sensíveis na medida em que esses objetos representam ou refletem a Deus, de maneira
que, já que as criaturas representam a Deus ou lhe refletem só imperfectamente, nossas ideias,
derivadas de nossa experiência do mundo natural, só podem representar a Deus
imperfectamente. Quando dizemos que Deus é bom, ou vivente, queremos dizer que Deus
contém, ou, mais bem, que é a perfección da bondade ou da vida, mas de um modo que excede
e exclui as imperfecciones e limitações das criaturas. Quanto àquilo que se prega (a bondade,
por exemplo), o pregado afirmativo que pregamos de Deus significa uma perfección sem defeito
algum; mas quanto à maneira de pregá-lo, todo pregado implica um defeito, já que pela palavra
(nomen) expressamos algo do modo em que é concebido por nosso entendimento. Daí segue-se,
pois, que os pregados dessa classe, como observava o Pseudo- Dionisio, podem ao mesmo tempo
se afirmar e se negar de Deus: afirmar-se, propter nominis rationem; negar-se, propter
significandi modum. Por exemplo, se afirmamos que Deus é sabedoria, esse enunciado
afirmativo é verdadeiro pelo que respecta à perfección como tal; mas se entendemos que Deus
é sabedoria precisamente no mesmo sentido em que nós temos experiência da sabedoria, então
o enunciado seria falso. Deus é sábio, mas é sabedoria em um sentido que trasciende nossa
experiência: Deus não possui sabedoria como uma qualidade ou forma inerente. Em outras
palavras, afirmamos de Deus a essência da sabedoria, ou da bondade, ou da vida, de um modo
“supereminente”, e negamos de Deus as imperfecciones concomitantes à sabedoria humana, isto
é, à sabedoria segundo nós a experimentamos[675]. Por conseguinte, quando dizemos que Deus
é bom, o que esse enunciado significa não é que Deus seja a causa da bondade, ou que Deus não
seja mau, senão que aquilo que chamamos bondade nas criaturas preexiste em Deus, secundum
modum altiorem. Daí não se segue que a bondade pertença a Deus por razão de que O seja causa
da bondade, senão mais bem que, porque Deus é bom, difunde bondade nas coisas, de acordo
com as palavras de Santo Agostinho, “porque Deus é bom, nós existimos”.[676]

3. A analogia.

O resultado das considerações precedentes é, pois, que não podemos nesta vida conhecer a
essência divina tal como é em si mesma, senão somente tal como está representada nas criaturas,
de modo que os nomes que aplicamos a Deus significam as aperfeiçoe que se manifestam nas
criaturas. Daí podem ser derivado várias importantes conclusões, a primeira das quais é que os
nomes que nos aplicar a Deus e às criaturas não têm de entender em um sentido unívoco. Por
exemplo, quando dizemos que um homem é sábio e que Deus é sábio, o pregado “sábio” não
tem de se entender em sentido unívoco, isto é, precisamente no mesmo sentido. Nosso conceito
de sabedoria está tomado das criaturas, e se aplicamos precisamente esse conceito a Deus,
diremos algo falso a respeito de Deus, já que Deus não é nem pode ser sábio precisamente no
mesmo sentido no que é sábio um homem. Por outra parte, os nomes que aplicamos a Deus não
são puramente equívocos, isto é, não são de significado inteira e completamente diferente do
que têm quando são aplicados às criaturas. Se fossem puramente equívocos, teríamos que
concluir que não podemos obter conhecimento algum de Deus a partir das criaturas. Se
“sabedoria”, segundo prega-se do homem, e “sabedoria”, segundo prega-se de Deus,
significassem algo completamente diferente, o termo “sábio” aplicado a Deus não teria contido
algum, não teria significação alguma, já que nosso conhecimento da sabedoria está tomado das
criaturas, e não baseado em uma experiência direta da sabedoria divina. Desde depois poderia
objetarse que, embora seja verdade que se os termos pregados de Deus se utilizassem em um
sentido equívoco nada conheceríamos de Deus a partir das criaturas, daí não se segue que
conheçamos algo de Deus a partir das criaturas; mas a insistencia de santo Tomás em que
podemos conhecer algo de Deus a partir das criaturas se fundamenta no fato de que as criaturas,
como efeitos de Deus, têm que manifestar a Deus, ainda que só possam o fazer imperfectamente.

No entanto, se os conceitos derivados de nossa experiência das criaturas, e aplicados depois


a Deus, não se usam nem em sentido unívoco nem em sentido equívoco, em que sentido se
usam? Há algum caminho intermédio? Santo Tomás contesta que se utilizam em um sentido
analógico. Quando um atributo se prega analogicamente de dois seres diferentes, isso significa
que se pregam segundo o relacionamento que têm a uma terceira coisa, ou segundo o
relacionamento do um ao outro. Como exemplo do primeiro tipo de predicación analógica, santo
Tomás apresenta seu exemplo favorito, a saúde[677]. Diz-se que um animal está são porque é o
sujeito da saúde, possui saúde, e se diz que a medicina é sã porque é causa da saúde, ou que
alguém tem uma feição que é são porque este é um signo de saúde. A palavra “são” prega-se em
sentidos diferentes do animal em general, da medicina e da feição, segundo os diferentes
relacionamentos destes à saúde; mas não se prega em um sentido puramente equívoco, já que
nos três casos há um verdadeiro relacionamento à saúde. A medicina não é sã no mesmo sentido
em que é ou está são o animal, porque o termo “são” não se utiliza univocamente, mas os sentidos
em que se utiliza não são equívocos ou puramente metafóricos, como quando falamos de um
prado sonriente. Mas esse, diz santo Tomás, não é o modo em que pregamos atributos de Deus
e das criaturas, porque Deus e as criaturas não têm relacionamento alguma a um terceiro objeto:
pregamos atributos de Deus e das criaturas na medida em que a criatura tem relacionamento a
Deus. Quando, por exemplo, pregamos o ser de Deus e das criaturas, atribuímos o ser em
primeiro e principal local a Deus, como ser que existe em si mesmo, e secundariamente às
criaturas, como dependentes de Deus. Não podemos pregar o ser univocamente de Deus e das
criaturas, já que Deus e as criaturas não possuem o ser da mesma maneira, nem também não
pregamos o ser em um sentido puramente equívoco, já que as criaturas têm ser, embora sua ser
não seja como o ser divino, senão dependente e participado.

Quanto ao que quer ser dito pelas palavras que aplicamos a Deus e às criaturas, se atribui
primariamente a Deus, e só secundariamente às criaturas. O ser, como vimos, pertence
essencialmente a Deus, enquanto não pertence essencialmente às criaturas, senão só em
dependência de Deus: é ser, mas é uma classe de ser diferente do ser divino, já que é recebido,
derivado, dependente, finito. Não obstante, embora a coisa significada é atribuída primariamente
a Deus, o nome é pregado primariamente das criaturas. A razão é que conhecemos às criaturas
dantes de conhecer a Deus, de modo que como nosso conhecimento da sabedoria, por exemplo,
deriva das criaturas, e a palavra denota primariamente o conceito derivado de nossa experiência
das criaturas, a ideia e a palavra de sabedoria se pregam primariamente das criaturas e
analogicamente de Deus, embora no fato real a sabedoria em si mesma, a coisa significada,
pertencem primariamente a Deus.

4. Tipos de analogia.

A predicación analógica funda-se na semelhança. No De Veritate[678], santo Tomás distingue


a semelhança de proporção (convenientia proportionis) e a semelhança de proporcionalidade
(convenientia proportionalitatis). Entre o número 8 e o número 4 há uma semelhança de
proporção, enquanto entre as proporções de 6a3yde4a2 há uma semelhança de
proporcionalidade, isto é, uma semelhança ou similaridad de duas proporções. Agora bem, a
predicación analógica em sentido geral pode ser feito segundo ambos tipos de semelhança. A
predicación do ser respecto da substância criada e do acidente, a cada um dos quais está em
relacionamento ao outro, é um exemplo de predicación analógica segundo proporção, enquanto
a predicación da visão respecto da ocular ou a intelectual é um exemplo de predicación analógica
segundo proporcionalidade. O que é ao olho a visão corpórea é à mente a visão ou aprehensión
intelectual. Há uma verdadeira semelhança entre o relacionamento do olho a sua visão e o
relacionamento da mente a sua aprehensión intelectual, uma semelhança que nos permite falar
de “visão” em ambos casos. Aplicamos a palavra “visão” em ambos casos não univocamente,
nem de um modo puramente equívoco, senão analogicamente.

Agora bem, é impossível pregar algo analogicamente de Deus e das criaturas do mesmo
modo em que é possível pregar o ser da substância e do acidente, porque Deus e as criaturas não
têm nenhum relacionamento real mútua: as criaturas têm um relacionamento real a Deus, mas
Deus não tem relacionamento real alguma às criaturas. Nem Deus está incluído na definição de
nenhuma criatura do modo em que a substância está incluída na definição do acidente. Mas daí
não se segue que não possa ter analogia de proporção entre Deus e as criaturas. Embora Deus
não está relacionado às criaturas por um relacionamento real, as criaturas têm um
relacionamento real a Deus, e nós podemos aplicar o mesmo termo a Deus e às criaturas em
virtude desse relacionamento. Há aperfeiçoe que não estão vinculadas à matéria e que não
implicam necessariamente defeito ou imperfección alguma no ser do que sejam pregadas. O ser,
a sabedoria e a bondade constituem exemplos de tais aperfeiçoe. Evidentemente, obtemos o
conhecimento do ser, ou da bondade, ou da sabedoria, a partir das criaturas; mas daí não se segue
que ditas aperfeiçoe se dêem primariamente nas criaturas e só secundariamente em Deus, ou que
se preguem primariamente das criaturas e só secundariamente de Deus. Ao invés, a bondade,
por exemplo, existe primariamente em Deus, que é a bondade infinita e a causa de toda bondade
criada, e se prega primariamente de Deus e só secundariamente das criaturas, embora a bondade
criada seja a primeira que chegamos a conhecer. A analogia de proporção é possível, pois, em
virtude do relacionamento da criatura e sua semelhança a Deus. Cedo voltaremos envelope este
ponto.
Disse-se que santo Tomás chegou a abandonar a analogia de proporcionalidade em favor da
analogia de proporção (no sentido aceitável desta última), mas não me parece provável que fora
assim. No Comentário às Sentenças[679], santo Tomás propõe ambos tipos de analogia, e embora
em obras posteriores, como o De Potentia, a Summa contra Gentiles e a Summa Theologica,
parece pôr maior énfasis na analogia de proporção, não me parece que isso indique que chegasse
a abandonar a analogia de proporcionalidade. Esse tipo de predicación analógica pode ser
utilizado de dois modos, simbolicamente ou propriamente. Podemos falar de Deus como “o sol”,
querendo dizer que o que o sol é ao olho sensível o é Deus à alma; mas em tal caso falamos
simbolicamente, já que a palavra “sol” faz referência a uma coisa material, e somente pode ser
pregada de um ser espiritual em um sentido simbólico. No entanto, podemos dizer que há uma
verdadeira semelhança entre o relacionamento de Deus a sua atividade intelectual e o
relacionamento do homem a sua atividade intelectual, e nesse caso não falamos de modo
meramente simbólico, já que a atividade intelectual como tal é uma perfección pura.

Por conseguinte, o fundamento de toda analogia, aquilo que faz possível a predicación
analógica, é a semelhança das criaturas a Deus. Não pregamos a sabedoria de Deus meramente
porque Deus é a causa de todas as coisas sábias, porque em tal caso igualmente poderíamos
chamar a Deus pedra, já que é a causa de todas as pedras; mas chamamos a Deus sábio porque
as criaturas, efeitos de Deus, manifestam a Deus, são semelhantes a Ele, e porque uma perfección
pura, como a sabedoria, pode ser pregada formalmente de Deus. Mas que é essa semelhança?
Em primeiro lugar, é uma semelhança unilateral, isto é, que a criatura é semelhante a Deus, mas
não podemos dizer propriamente que Deus seja semelhante à criatura. Deus é o modelo absoluto,
por assim o dizer. Em segundo local, as criaturas são semelhantes a Deus só imperfectamente:
não toleram uma semelhança perfeita a Deus. Isso significa que a criatura é ao mesmo tempo
semelhante a Deus e desemejante dele. É semelhante a Deus na medida em que é uma imitação
sua; é desemejante assim que sua semelhança é imperfecta e deficiente. Por conseguinte, a
predicación analógica cai entre a predicación unívoca e a predicación equívoca. Na predicación
analógica o pregado não se aplica a Deus e às criaturas nem precisamente no mesmo sentido
nem em sentidos totalmente diferentes; aplica-se ao mesmo tempo em sentidos semelhantes e
desemejantes[680]. Essa noção de simultânea semelhança e diferença é fundamental na analogia.
É verdadeiro que tal noção pode ocasionar consideráveis dificuldades desde o ponto de vista
lógico; mas não seria oportuno discutir aqui as objeciones dos positivistas modernos à analogia.

Santo Tomás distingue, pois, entre analogia de proporção (analogia secundum


convenientiam proportionis) e analogia de proporcionalidade (analogia secundum
convenientiam proportionalitatis). Como vimos, santo Tomás não admite respecto de Deus e as
criaturas aquela analogia de proporção que é aplicável à substância e ao acidente com respeito
ao ser; por analogia de proporção em teología natural ele entende aquela analogia na que um
pregado se aplica primariamente a um análogo, a saber, Deus, e secundária e imperfectamente
ao outro análogo, a saber, a criatura, em virtude do real relacionamento e semelhança da criatura
a Deus. A perfección atribuída aos análogos está realmente presente a ambos, mas não está
presente do mesmo modo, e um mesmo pregado se utiliza ao mesmo tempo em sentidos que não
são nem completamente diferentes nem completamente similares. A terminología mudou desde
os tempos de santo Tomás, e a essa espécie de analogia chama-se-lhe agora analogia de
atribuição. A analogia de proporcionalidade, a semelhança de proporções, é às vezes chamada
analogia de proporção, para distinguir da analogia de atribuição; mas não todos os escolásticos
nem todos os comentadores de santo Tomás empregam os termos do mesmo modo.

Alguns escolásticos mantiveram que o ser, por exemplo, é predicable de Deus e das criaturas
somente por analogia de proporcionalidade, e não por analogia de atribuição. Sem querer entrar
em uma discussão sobre o valor da analogia de proporcionalidade como tal, não vejo como
poderíamos saber que Deus tem alguma perfección a não ser pela via da analogia de atribuição.
Toda predicación analógica descansa no real relacionamento e semelhança das criaturas a Deus,
e me parece que a analogia de proporcionalidade pressupõe a analogia de proporção ou
atribuição, e que esta é a mais fundamental das duas espécies de analogia.

5. Uma dificuldade.

Se lê-se o que santo Tomás diz da analogia, parece que não faz senão examinar o modo em
que falamos a respeito de Deus, os envolvimentos verbais e conceptuais de nossos enunciados,
e que em realidade não estabelece nada a respeito de nosso conhecimento de Deus. Mas no caso
de santo Tomás é um princípio fundamental que as aperfeiçoe das criaturas devem ser
encontrado no Criador de uma maneira supereminente, de uma maneira compatível com a
infinitud e com a espiritualidad de Deus. Por exemplo, se Deus criou seres inteligentes, Deus
deve possuir intelecto; não podemos supor que O seja menos que inteligente. Ademais, um ser
espiritual deve ser uma forma intelectual, como diz Aristóteles, e o ser espiritual infinito deve
possuir uma inteligência infinita. Por outra parte, a inteligência de Deus não pode ser uma
faculdade diferente de sua essência ou natureza, já que Deus é puro Ato, e não um ser composto,
e não pode conhecer coisas sucessivamente, já que é inmutable e incapaz de determinação
acidental. Deus conhece os acontecimentos futuros em virtude de sua eternidade, pela qual todas
as coisas estão presentes a Ele[681]. Deus deve possuir a perfección da intelectualidad, mas não
podemos nos formar nenhum conceito adequado do que é a inteligência divina, já que não temos
experiência alguma desta: nosso conhecimento da inteligência divina é imperfecto e inadequado,
mas não é falso; é um conhecimento analógico. Somente seria falso no caso de que não nos
déssemos conta de sua imperfección e entendêssemos que tinha que atribuir a Deus uma
inteligência como a finita. Não podemos por menos de pensar e falar da inteligência divina em
termos conceptuais humanos, já que não dispomos de outros, mas ao mesmo tempo somos
conscientes de que nossos conceitos e linguagem são imperfectos. Por exemplo, não podemos
por menos de falar como se Deus “previsse” os acontecimentos futuros, mas sabemos que pára
Deus não há passado nem futuro. Do mesmo modo, devemos atribuir a Deus a perfección do
livre albedrío respecto de objetos diferentes do mesmo, mas o livre albedrío de Deus não pode
supor mutabilidad: Deus quis livremente criar o mundo no tempo, mas qui-lo assim desde a
eternidade, em virtude daquele único ato de vontade que é idêntico com sua essência. Por
conseguinte, não podemos nos formar uma concepção adequada do livre albedrío divino; mas o
relacionamento das criaturas a Deus manifesta-nos que Deus deve possuir livre albedrío, e
podemos nos dar conta de que o livre albedrío divino não pode significar certas coisas; no
entanto, a realidade positiva do livre albedrío divino excede nossa capacidade de entendimento,
precisamente porque nós somos criaturas, e não Deus. Somente Deus pode ser compreendido a
Si mesmo.
É difícil negar, empero, que em relacionamento com a doutrina da analogia se suscita uma
grave dificuldade. Por exemplo, se derivamos da inteligência humana nossa ideia de
inteligência, é evidente que esta não pode, como tal, se aplicar a Deus, e santo Tomás faz questão
de que nenhum pregado que seja aplicável a Deus e às criaturas se prega univocamente. Por
outra parte, a não ser que estejamos dispostos a aceitar o agnosticismo, não podemos admitir
que tais pregados se utilizem em sentidos puramente equívocos. Qual é, pois, o conteúdo
positivo de nosso conceito de inteligência divina? Se santo Tomás contentasse-se com a via
negativa não se apresentaria a dificuldade: teria que dizer simplesmente que Deus não é não-
inteligente, ou que é superinteligente, e admitir que não temos uma ideia positiva do que é a
inteligência divina. Mas São Tomás de Aquino não se ate simplesmente à viu negativa: ele
admite a ida afirmativa. Nossa ideia da inteligência divina tem, pois, um sentido positivo; mas
qual pode ser esse conteúdo positivo? Deverá ser respondido que se obtém um conteúdo positivo
mediante a negación das limitações da inteligência humana, sua finitud, seu caráter discursivo,
sua potencialidade, etc.? Mas, em tal caso, ou bem obteríamos um conceito positivo da
inteligência divina como tal, ou bem obteríamos um conceito “essencial” da inteligência, aparte
da finitud ou infinitud desta, e esse conceito seria unívoco respecto de Deus e das criaturas.
Inclusive pode parecer que as negaciones ou anulam por completo o conteúdo ou fazem deste
uma ideia da essência da inteligência, unívoca respecto da inteligência divina e a inteligência
humana. Seria por essa razão pela que Duns Scot insistiria mais tarde em que podemos formar
conceitos unívocos aplicáveis tanto a Deus como às criaturas, embora na ordem real não tenha
univocidad entre Deus e as criaturas. Às vezes diz-se que os conceitos análogos são em parte o
mesmo e em parte diferentes dos conceitos unívocos, mas reaparece a mesma dificuldade. O
elemento de “mismidad” será um elemento unívoco, enquanto o elemento de “diferença” ou será
negativo ou não terá contido algum, já que não temos uma experiência imediata de Deus da que
pudesse ser derivado a correspondente ideia. Mas é melhor que deixemos a consideração mais
detida deste ponto para quando tratemos a doutrina tomista do conhecimento.[682]

6. As ideias divinas.

O ter mencionado a inteligência divina leva-nos de modo natural a propor a questão do que
pensava santo Tomás a propósito da doutrina das ideias divinas. Em primeiro lugar, santo Tomás
estabelece que na mente divina tem que ter ideias, necesse est ponere in mente divina ideias[683],
já que Deus criou as coisas não a esmo senão inteligentemente, segundo a cria instância pela
concebida em sua mente. O aquinátense observa que Platón errou ao afirmar a existência de
ideias que não estivessem em nenhum intelecto, e observa que Aristóteles censuró a Platón a
esse propósito. Em realidade, Aristóteles, que não cria em uma criação livre de parte de Deus,
não censuró a Platón por fazer às ideias independentes da mente divina, senão por manter sua
subsistencia aparte da mente humana, pelo que respecta a sua realidade subjetiva, e aparte das
coisas, pelo que respecta a sua realidade objetiva como forma. Ao afirmar a existência de ideias
na mente divina, santo Tomás segue, pois, na estela da tradição que se originou em Platón, se
desenvolveu no platonismo médio e no neoplatonismo, e reviveu, em uma montagem cristã, na
filosofia de Agustín e os seguidores deste.

Uma das razões de que os neoplatónicos colocassem as ideias no Nous, a segunda hipóstasis
ou primeiro ser divino emanado, e não no um ou Divinidad suprema, foi que a presença de uma
multiplicidad de ideias em Deus parecia menoscabar a unidade divina. Como fez frente santo
Tomás a essa dificuldade, quando a única distinção real que ele podia admitir em Deus era a
distinção entre as três pessoas divinas da Trinidad (distinção que, desde depois, não podia
considerar enquanto filósofo)? A resposta do aquinatense é que desde um ponto de vista
devemos dizer que há em Deus uma pluralidad de ideias, como disse Santo Agostinho, já que
Deus conhece a cada uma das coisas individuais a criar; mas que, desde outro ponto de vista,
não pode ter uma pluralidad de ideias em Deus, porque isso seria incompatível com a
simplicidade divina. O que santo Tomás quer dizer é o seguinte. Se por ideia referimo-nos ao
conteúdo da ideia, então devemos admitir uma pluralidad de ideias em Deus, já que Deus
conhece muitos objetos; mas se por ideia entendemos a determinação mental subjetiva, a
“espécie”, então não pode ser admitido uma pluralidad de ideias em Deus, já que o entendimento
de Deus é idêntico a sua essência indivisa, e não pode receber determinações nem classe alguma
de composição. Deus conhece sua divina essência não somente como é em si mesma, senão
também como imitable fosse de si mesma em uma pluralidad de criaturas. Esse ato de
conhecimento, segundo como existe em Deus, é um e indiviso e é idêntico a sua essência; mas
já que Deus não somente conhece sua essência como imitable em uma pluralidad de criaturas,
senão que ademais conhece que ao conhecer sua essência conhece uma multiplicidad de
criaturas, podemos e devemos falar de uma pluralidad de ideias em Deus, porque “ideia”
significa não a essência divina tal como é em si mesma, senão a essência divina como a instância
de tal ou qual objeto, como a instância de muitos objetos. Em outras palavras, a verdade ou
falsidade de nossas afirmações referentes a Deus devem ser estimadas em termos de linguagem
humana. Negar sem cualificación uma pluralidad de ideias em Deus seria negar que Deus
conhece uma pluralidad de objetos; mas a verdade de que Deus conhece sua essência como
imitable por uma pluralidad de criaturas não deve enunciarse de tal modo que implique que há
uma multiplicidad de “espécies” reais ou de modificações realmente diferentes no entendimento
divino.[684]

Este ponto das ideias divinas tem seu interesse, porque mostra que santo Tomás não é nem
muito menos simplesmente um aristotélico, senão que, ao menos a este propósito, se adere à
tradição platónico-agustiniana. Em realidade, embora vê claramente que tem de precaverse
contra qualquer menoscabo da simplicidade divina, não se contenta com dizer que Deus, por um
só ato de seu entendimento, por uma “ideia”, conhece sua essência como imitable por uma
pluralidad de criaturas, senão que acrescenta que há em Deus uma pluralidad de ideias. O dá,
sem dúvida, suas razões para fazê-lo assim, mas um tem a impressão de que uma razão tácita
foi sua reverência por Santo Agostinho e pelo modo de falar deste. Deve ser feito, no entanto,
uma distinção. Quando hoje empregamos o termo “cria” nos referimos naturalmente à ideia
subjetiva ou modificação mental, e nesse sentido santo Tomás não admite em Deus uma
pluralidad de ideias realmente diferentes umas de outras; mas santo Tomás pensava
primordialmente na “ideia” no sentido de forma instância, e como a essência divina é conhecida
pelo entendimento divino como imitable em uma pluralidad de criaturas, como a instância de
muitos objetos, achou que tinha direito a falar de uma pluralidad de rationes em Deus, embora
tinha que fazer questão de que essa pluralidad consiste simplesmente no conhecimento que Deus
tem de sua essência com respeito à multiplicidad das criaturas, e não em uma distinção real em
Deus.

7. Nenhuma distinção real entre os atributos divinos.


falámos da inteligência divina e da vontade divina, da bondade, a unidade, a simplicidade
divinas, etc. São esses atributos de Deus realmente diferentes os uns dos outros? E se não são
diferentes uns de outros que justificativa temos para falar deles como se fossem diferentes? Os
atributos de Deus não são realmente diferentes uns de outros, já que Deus é simples: são
idênticos à essência divina. A inteligência divina não é realmente diferente da essência divina,
nem também não o é a vontade divina; a justiça divina e a misericórdia divina são idênticas
segundo existem em Deus. Não obstante, aparte do fato de que a estrutura de nossa linguagem
nos obriga a falar em termos de sujeito e pregado, nós prendemos a perfección divina
fragmentariamente, por assim o dizer. Somente atingimos nosso conhecimento natural de Deus
mediante a consideração das criaturas, efeitos de Deus, e como as aperfeiçoe das criaturas, as
manifestações ou reflexos de Deus nas criaturas, são diferentes, utilizamos nomes diferentes
para significar aquelas diferentes aperfeiçoe. Mas se compreendêssemos a essência divina tal
como é em si mesma e pudéssemos lhe dar seu nome adequado, utilizaríamos um só[685]. Agora
bem, não podemos compreender a essência divina, e a conhecemos somente por médio de
conceitos diversos. Temos, pois, que nos valer de palavras diversas para expressar a essência
divina, embora ao mesmo tempo sabemos que a verdadeira realidade que corresponde a todos
aqueles nomes é uma realidade simples. Se se objeta que conceber um objeto de modo diferente
a como esse objeto é, é o conceber falsamente, a resposta é que não concebemos que o objeto
exista de modo diferente a como realmente é, porque sabemos que Deus é realmente um Ser
simples; mas concebemos de uma maneira composta o objeto que sabemos que é não composto.
Isso significa simplesmente que nossas inteligências são finitas e discursivas, e que não podem
prender a Deus mais que por médio de seus diferentes reflexos nas criaturas. Nosso
conhecimento de Deus é, pois, inadequado e imperfecto, mas não é falso[686]. Há
verdadeiramente um verdadeiro fundamento em Deus para nossos conceitos compostos e
diferentes, mas esse fundamento não é nenhuma distinção real em Deus entre seus atributos,
senão simplesmente sua infinita perfección, que, precisamente por sua riqueza infinita, não
podemos prender por nossa mente humana em um só conceito.

8. Deus como existência em si.

Segundo santo Tomás[687] o nome mais apropriado de Deus é o nome que O mesmo deu a
Moisés na zarza ardente[688], Qui est, o que é. Em Deus não há distinção alguma entre essência
e existência; Deus não recebe sua existência, senão que é sua existência; sua essência é existir.
Pelo contrário, em nenhuma criatura está ausente a distinção entre essência e existência. Toda
criatura é boa e toda criatura é verdadeira; mas nenhuma criatura é sua própria existência: não é
a essência de nenhuma criatura existir. A existência mesma, ipsum esse, é a essência de Deus, e
o nome que se deriva dessa essência é o maximamente apropriado a Deus. Deus é bondade, por
exemplo, e sua bondade é idêntica a sua essência, mas a bondade, em nossa experiência humana,
segue ou acompanha ao ser; por conseguinte, embora não realmente diferente, se concebe como
secundária; mas dizer que Deus é ipsum esse é dar, por assim o dizer, sua natureza íntima.
Qualquer outro nome é de algum modo inadequado. Se dizemos, por exemplo, que Deus é justiça
infinita, dizemos algo que é verdade, mas como nossas inteligências distinguem necessariamente
a justiça e a misericórdia, e sabemos que em Deus são idênticas, a afirmação de que Deus é
justiça infinita é uma expressão inadequada da essência divina. Os nomes que empregamos ao
falar de Deus estão derivados de nossa experiência de forma determinadas, e expressam
primariamente essas forma; pelo contrário, o nome Aquele que é não significa uma forma
determinada, senão “o infinito oceano de substância”.
Capítulo XXXVI
São Tomás de Aquino. - VI: A criação

1. Criação a partir da nada.

Já que Deus é a Causa Primeira do mundo, e já que os seres finitos são seres contingentes
que devem sua existência ao Ser Necessário, os seres finitos devem proceder de Deus por
criação. Ademais, essa criação deve ser a partir da nada. Se as criaturas fosse feitas de um
material preexistente, esse material ou seria Deus mesmo ou seria algo diferente de Deus. Mas
Deus não pode ser o material da criação, já que Deus é simples, espiritual, inmutable; e também
não pode ter coisa alguma independente da Causa Primeira: somente pode ter um Ser Necessário.
Deus é, pois, absolutamente primeiro, e se não pode mudar, se não pode exteriorizarse a si
mesmo na criação, tem que ter criado o mundo a partir da nada, ex nihilo. Essa frase não deve
ser entendido no sentido de que a nada, nihil, seja o material do que Deus fez o mundo. Quando
se diz que Deus criou o mundo a partir da nada quer ser dito, ou bem que primeiro não teve nada
e depois teve algo, ou bem que a frase ex nihilo equivale a non ex aliquo, “não a partir de algo”.
A objeción de que da nada nada procede é, pois, improcedente, já que a nada não se considera
nem como causa eficiente nem como causa material; na criação, Deus é a causa eficiente, e não
há nenhuma classe de causa material[689]. Criação não é, pois, movimento ou mudança em
sentido próprio, e, ao não ser um movimento, no ato de criação não há sucessão.

A criação, considerada no termo do ato criador, isto é, na criatura, é um relacionamento real


a Deus, como princípio do ser da criatura. Toda criatura, pelo fato mesmo de ser criada, tem um
relacionamento real a Deus como criador. Mas não pode ser dito o contrário, que Deus tenha
relacionamento real à criatura. Em Deus, tal relacionamento ou seria idêntica à substância divina
ou seria um acidente em O; mas a substância divina não pode estar necessariamente relacionada
às criaturas, já que em tal caso Deus dependeria de algum modo em sua mesma existência das
criaturas; e Deus não pode também não receber ou possuir acidentes, já que é absolutamente
simples[690]. A proposição de que Deus como Criador não tem relacionamento alguma às
criaturas, parece certamente bastante estranha a primeira vista, pode parecer que se siga dela que
Deus não tem cuidado algum de suas criaturas; mas é uma conclusão estritamente lógica da
metafísica de santo Tomás e de sua doutrina da Natureza divina. Santo Tomás não pode admitir
em modo algum que Deus esteja relacionado às criaturas por sua substância, já que em tal caso
não só a criação seria necessariamente eterna (e pela Revelação sabemos que não o é) senão que
Deus não poderia existir aparte das criaturas: Deus e as criaturas formariam uma Totalidade, e
seria impossível explicar a geração e o cessar de ser das criaturas individuais. Por outra parte,
se fala-se de relacionamento no sentido de uma das nove categorias de acidentes, o
relacionamento é inadmissível no caso de Deus. A aquisição de um relacionamento acidental
permitiria, isso sim, a criação no tempo; mas tal aquisição é impossível de parte de Deus, se
Deus é Ato puro, sem potencialidade. Era, pois, impossível a santo Tomás admitir que Deus
como Criador tenha relacionamento alguma às criaturas; tinha que dizer que o relacionamento
é um relacionamento mental, somente um relacionamento de razão (relatio rationis), atribuída
a Deus pelo entendimento humano. Não obstante, a atribuição é legítima, já que Deus é Criador,
e não nos é possível expressar esse fato em linguagem humano sem falar como se Deus tivesse
relacionamento com as criaturas: o importante é que, ao falar das criaturas como relacionadas a
Deus e de Deus como relacionado às criaturas, devemos recordar que são as criaturas as que
dependem de Deus e não Deus das criaturas, e, em consequência, que o relacionamento real
entre Deus e as criaturas, que é um relacionamento de dependência, se encontra somente nas
criaturas.

2. Somente Deus pode criar

O poder de criação é uma prerrogativa exclusiva de Deus, e não pode ser comunicado a
criatura alguma[691]. A razão pela qual alguns filósofos, Avicena por exemplo, introduziram
seres intermediários, foi que pensavam que Deus criava por uma necessidade de sua natureza,
de maneira que devia ter etapas intermédias entre a simplicidade absoluta da suprema divinidad
e a multiplicidad das criaturas; mas Deus não cria por necessidade de natureza, e não há razão
alguma pela que não possa criar uma multiplicidad de criaturas. Pedro Lombardo pensava que
o poder de criação é comunicable por Deus a uma criatura, de maneira que esta poderia fazer
como um instrumento, não por seu próprio poder; mas isso é impossível, porque, se a criatura
contribui de algum modo à criação, seu próprio poder e atividade ficarão implicados, e esse
poder, que é finito como a criatura mesma, não pode cumprir um ato que exige poder infinito, o
ato de franquear o abismo infinito que separa o ser do não ser.

3. Deus criou livremente.

Mas, se Deus não cria por uma necessidade de natureza, como cria? Um ser inteligente, no
que não há por assim o dizer, elemento algum de inconsciencia, senão que é perfeitamente
autoluminoso e que se possui perfeitamente a si mesmo, não pode atuar de outro modo que
segundo saber, com pleno conhecimento. Para dizê-lo sem rodeos, Deus tem que fazer por um
motivo, em vistas a um fim, a um bem. Mas a natureza de Deus não é somente inteligência
infinita, senão também vontade infinita, e essa vontade é Ubre. Deus ama-se necessariamente,
já que O mesmo é o Bem infinito, mas os objetos diferentes do mesmo não são necessários para
O, já que, como perfección infinita, O é autosuficiente: sua vontade é livre em relacionamento
aos objetos que não são O mesmo. Por conseguinte, embora sabemos que o entendimento e a
vontade de Deus não são realmente diferentes de sua essência, nos vemos obrigados a dizer que
Deus elege livremente um objeto ou fim concebido pelo mesmo como bom. A linguagem
empregada é certamente antropomórfico, mas não dispomos de outra linguagem que do humano,
e não podemos expressar a verdade de que Deus criou o mundo livremente sem pôr em claro
que o ato de vontade pelo que Deus criou não foi nem um ato cego nem um ato necessário, senão
um ato que seguiu, para falar ao estilo humano, à aprehensión de um bem, preso como bom,
embora não como um bem necessário a Deus.

4. O motivo da Criação.

Qual foi o motivo pelo que fez Deus na criação? Como perfección infinita, Deus não pôde
criar para adquirir algo para si mesmo. Deus criou não para obter, senão para dar, para difundir
sua bondade (intendit solum communicare suam perfectionem quae est eius bonitas)[692]. Por
conseguinte, quando se diz que Deus criou o mundo para sua própria glória, tais palavras não
devem ser entendido no sentido de que Deus precisasse algo que ainda não tivesse; ainda menos
têm de entender no sentido de que Deus quisesse obter, se é que pode ser falado assim sem
irreverencia, um coro de admiradores. O que deve ser entendido é que a vontade de Deus não
pode depender de nada aparte de Deus mesmo, que O mesmo, como Bem infinito, deve ser o
fim de seu ato infinito de vontade, e que no caso do ato de criação o fim é sua própria bondade,
enquanto comunicable a seres fosse do mesmo Deus. A bondade divina está representada em
todas as criaturas, embora as criaturas racionais têm a Deus como seu fim de uma maneira
peculiar às mesmas, já que são capazes de conhecer e amar a Deus. Todas as criaturas glorificam
a Deus ao representar sua bondade e participar nela, mas as criaturas racionais são capazes de
apreciar conscientemente e de amar a bondade divina. A glória de Deus, a manifestação de sua
bondade, não é, pois, algo separado do bem das criaturas, porque as criaturas atingem seu fim,
conseguem o melhor para elas, ao manifestar a bondade divina.[693]

5. A imposibilidad da Criação desde a eternidade não foi


demonstrada.

Que Deus criasse o mundo livremente não mostra, sem mais, que o criasse no tempo, que o
tempo tivesse um começo. Como Deus é eterno, poderia ter criado o mundo desde a eternidade.
Santo Tomás nega-se a admitir que se tenha demonstrado que essa suposição é absurda. Santo
Tomás achava que pode ser provado filosoficamente que o mundo foi criado a partir da nada,
mas mantinha que nenhuma das provas filosóficas alegadas para demonstrar que essa criação
teve local no tempo (isto é, que pode ser atribuído idealmente ao tempo um momento primeiro)
era realmente demostrativa; e, em isso, o aquinatense se apartou de Santo Alberto Magno. Por
outra parte, santo Tomás mantinha, contra os averroístas, que não pode ser mostrado
filosoficamente que o mundo não possa ter tido começo no tempo, que a criação no tempo seja
uma imposibilidad. Em outras palavras, embora consciente de que o mundo foi em realidade
criado no tempo, e não desde a eternidade, santo Tomás estava convencido de que esse fato se
conhece unicamente pela revelação, e que o filósofo não pode limpar a questão de se o mundo
foi criado no tempo ou desde a eternidade. Por conseguinte, ele manteve, contra os murmurantes,
a possibilidade (pelo que respecta ao que a inteligência humana pode decidir) da criação desde
a eternidade. Na prática, isso significava que santo Tomás mostrou, ou, ao menos, achou ter
mostrado, que o tipo de razonamiento proposto por São Boaventura para provar a imposibilidad
da criação desde a eternidade, não era concluyente. Mas não temos que mencionar de novo as
réplicas de santo Tomás à argumentación buenaventuriana, já que já o fizemos ao considerar a
filosofia de São Boaventura[694]. Baste recordar agora o fato de que santo Tomás não via
contradição na noção de uma série sem começo. A seus olhos, não se propõe a questão de se
seria possível que o mundo passasse através de um tempo infinito, já que estritamente não há
passar através de uma série infinita quando nessa série não há primeiro termo. Ademais, para
santo Tomás uma série pode ser infinita ex parte ante e finita ex parte pós, e pode ser
incrementada pelo extremo em que é finita. Em general, não há contradição entre receber a
existência e existir desde a eternidade: se Deus é eterno, Deus pôde criar desde a eternidade.

Por outra parte, santo Tomás recusa os argumentos alegados para provar que o mundo tem
que ter sido criado desde a eternidade. “Devemos manter firmemente, como ensina a fé católica,
que o mundo não existiu sempre. E essa posição não pode ser superada por nenhuma
demonstração física.”[695] Pode ser argumentado, por exemplo, que, como Deus é a causa do
mundo e Deus é eterno, o mundo, efeito de Deus, tem que ser também eterno. Como Deus não
pode mudar, como não contém elemento algum de potencialidade e não pode receber novas
determinações ou modificações, o ato criador, o ato livre da criação divina, deve ser eterno.
Portanto, o efeito desse ato deve também ser eterno. Santo Tomás tem de convir, desde depois,
em que o ato criador como tal, isto é, o ato de vontade de Deus, é eterno, já que é idêntico à
Essência divina; mas arguye que o que daí se segue é simplesmente que Deus quis livremente,
desde a eternidade, criar o mundo, não que o mundo tivesse existência desde a eternidade. Se
consideramos a questão meramente como filósofos, isto é, se prescindimos do conhecimento
que temos pela revelação de que Deus criou realmente o mundo no tempo, todo o que podemos
dizer é que Deus pôde querer livremente desde a eternidade que o mundo começasse a existir
no tempo e que Deus pôde querer livremente desde a eternidade que o mundo recebesse a
existência desde a eternidade; não temos direito a concluir que Deus devesse querer desde a
eternidade que o mundo existisse desde a eternidade. Em outras palavras, o ato criador de Deus
é indubitavelmente eterno, mas o efeito externo de dito ato tem de ter local do modo querido por
Deus, e se Deus quis que o efeito externo tivesse esse pós non esse, não terá esse ab aeterno,
conquanto o ato criador, considerado precisamente como ato em Deus, é eterno.[696]

6. Pôde Deus criar uma multidão atualmente infinita?

Uma das razões alegadas por São Boaventura para mostrar que o mundo teve que ser criado
no tempo e não pôde ter sido criado desde a eternidade consistia em que, se o mundo fosse criado
desde a eternidade, teria agora em existência um número infinito de almas humanas imortais, e
que uma multidão infinita atual é impossível. Que opinou santo Tomás a respeito do poder de
Deus de criar uma multidão infinita? A questão propõe-se em conexão com uma multidão extra
genus quantitatis, já que santo Tomás seguiu a Aristóteles na negación da possibilidade de uma
quantidade infinita. No De Veritate[697], o santo observa que a única razão válida para afirmar
que Deus não pode criar uma multidão infinita atual seria a repugnancia essencial ou contradição
na noção de tal infinitud, mas não decide pelo momento em dita questão. Na Summa
Theologica[698] afirma categoricamente que não pode ter uma multidão infinita atual, porque
toda multidão criada deve ter um verdadeiro número e, uma multidão infinita não poderia ser de
um número determinado. Mas no De aeternitate mundi contra murmurantes, ao ocupar-se da
objeción contra a possibilidade da criação do mundo desde a eternidade, a saber, que em tal caso
teria em existência um número infinito de almas humanas imortais, replica que Deus poderia ter
feito o mundo sem homens, ou poderia ter criado o mundo desde a eternidade, mas não ter criado
ao homem até quando aliás o fez, aparte de que “ainda não se demonstrou que Deus não possa
fazer um infinito em ato”. Pode ser que esta última observação indique uma mudança de
pensamento por parte de santo Tomás, ou uma vacilação quanto à validade de sua demonstração
anterior; mas não faz referência explícita ao dito na Summa Theologica, e a observação poderia
não ser senão um argumentum ad hominem, “vocês não demonstraram ainda que Deus não possa
fazer um infinito em ato”. Com tudo, à vista da afirmação da Summa Theologica e à vista da
proximidade no tempo do De aeternitate mundi à primeira parte da Summa Theologica, parece
temerario concluir algo mais que uma possível vacilação de parte de santo Tomás quanto à
imposibilidad de uma multidão infinita em ato.

7. A omnipotencia divina.

A lembrança da questão de se Deus pode ou não criar uma multidão infinita atual suscita de
maneira natural a questão mais ampla do sentido em que deve ser entendido a omnipotencia
divina. Se omnipotencia significa a capacidade de fazer todas as coisas, como poderia Deus ser
omnipotente se não pode fazer com que um homem seja um cavalo ou que o que ocorreu não
ocorresse? Em sua resposta, santo Tomás observa antes de mais nada que o atributo divino de
omnipotencia significa que Deus pode fazer todo o que é possível. Mas “todo o que é possível”,
continua santo Tomás, não deve ser entendido no sentido de “todo o que é possível a Deus”,
porque, se assim fora, quando disséssemos que Deus é omnipotente, não diríamos senão que
Deus é capaz de fazer todo o que é capaz de fazer, fórmula que não nos diria realmente nada.
Como deveremos entender, pois, a frase “todo o que é possível”? É possível aquilo que não tem
uma intrínseca repugnancia a ser; em outras palavras, aquilo cuja existência não implica uma
contradição. Aquilo que em sua mesma noção implica uma contradição não é nem real nem
possível, senão não-ser. Por exemplo, que um homem, sem deixar de ser um homem, possa ser
um cavalo, implica uma contradição: o homem é racional, e o cavalo é irracional, e racional e
irracional são contradictorios. Podemos falar certamente de um cavalo humano ou de um homem
equino, mas tais frases não denotam uma coisa, nem real nem possível; são mera palabrería, sem
nenhum significado concebible. Por conseguinte, dizer que a omnipotencia de Deus significa
que Deus pode fazer todo o que é possível, não supõe uma limitação ao poder de Deus, porque
o poder somente tem significado em relacionamento com o possível. Todo aquilo que tem ou
pode ter ser, é objeto da omnipotencia divina, mas o que é intrinsecamente contradictorio não é
objeto de nenhuma classe. “Por conseguinte, dizer que o que implica contradição não pode ser
feito, é melhor que dizer que Deus não pode o fazer”.[699]

Não deve ser imaginado, no entanto, que tenha um princípio de contradição que valha acima
de Deus, e ao que Deus esteja submetido como os deuses gregos estavam submetidos ao Destino
ou Moira. Deus é o Ser Supremo, ipsitum esse subsistens, e sua vontade de criar é vontade de
criar sua própria similitud, isto é, algo que possa participar no ser. O que implica contradição
está absolutamente apartado do ser; nem tem, nem nunca pode ter algum ser, alguma similitud
a Deus. Se Deus quisesse o que é contradictorio, se apartaria de sua própria natureza, amaria o
que não tem semelhança alguma com O mesmo, isto é, aquilo que é absolutamente nada, aquilo
que é completamente impensable. Mas se Deus pudesse fazer desse modo, não seria Deus. Não
se trata de que Deus esteja submetido ao princípio de contradição, senão mais bem de que o
princípio de contradição se funda na natureza de Deus. Por conseguinte, supor, com san Pedro
Damián (ou com León Chestov) que Deus está acima do princípio de contradição, no sentido de
que pode fazer o que é em si contradictorio, é supor que Deus pode atuar de uma maneira
inconsecuente com sua própria natureza e contrária a ela, e essa suposição é absurda.[700]

Mas isso não significa que Deus possa fazer somente o que de fato faz. Indubitavelmente é
verdade que, já que Deus quer realmente a ordem de coisas que Ele criou e que atualmente
existe, não pode querer outra ordem, já que a vontade divina não pode mudar, como podem
mudar nossas vontades finitas; mas nossa questão não se refere ao poder divino ex suppositione,
isto é, ao suposto de que Deus já elegeu, senão ao poder divino absoluto, isto é, é a questão de
se Deus tinha que querer a ordem que quis ou se podia ter querido outro ordem. A resposta é
que Deus não quis necessariamente a presente ordem de coisas, e a razão é que o fim da criação
é a bondade divina, que excede de tal modo toda ordem criada que não há nem pode ter vínculo
algum de necessidade entre uma ordem determinada e o fim da criação. A bondade divina e a
ordem criada são inconmensurables, e não pode ter nenhuma ordem criada, nenhum universo,
que seja necessário à bondade divina, que é infinita e não pode receber incremento algum. Se
alguma ordem criada estivesse proporcionado à bondade divina, ao fim, então a sabedoria divina
estaria determinada a escolher essa ordem particular; mas como a bondade divina é infinita e a
criação necessariamente finita, nenhuma ordem criada pode ser proporcionado em plenitude de
sentido à bondade divina.[701]

O anteriormente dito permite contestar às perguntas de se Deus pôde fazer coisas melhore
das que fez, e se Deus pôde fazer as coisas que fez melhor de como as fez[702]. Em verdadeiro
sentido, Deus é idêntico a sua essência e a sua infinita bondade; mas daí não podemos concluir
que o objeto extrínseco do ato de Deus, isto é, as criaturas, devem ser as melhore possíveis, e
que Deus esteja obrigado, em razão de sua bondade, a produzir o melhor universo possível, dado
que produza algum. Como o poder de Deus é infinito, pode ter sempre um universo melhor que
o que Deus realmente produz, e a razão pela qual elegeu produzir uma particular ordem de
criação é secreto seu. Santo Tomás diz, pois, que, absolutamente falando, Deus pôde fazer algo
melhor que qualquer coisa dada. Mas se a questão propõe-se com respeito ao universo presente,
deve ser estabelecido uma distinção. Deus não pôde fazer uma coisa dada melhor de como
realmente é essa coisa quanto a sua substância ou essência, já que isso seria fazer uma coisa
diferente. Por exemplo, a vida racional é em si mesma uma perfección mais alta que a vida
meramente sensitiva; mas se Deus tivesse de fazer racional a um cavalo, este deixaria de ser um
cavalo, e em tal caso não poderia ser dito que Deus fizesse melhor ao cavalo. Do mesmo modo,
se Deus mudasse a ordem do universo, não se trataria já do mesmo universo. Em mudança, Deus
pode fazer a uma coisa acidentalmente melhor; por exemplo, melhorar a saúde corporal de um
homem, ou, na ordem sobrenatural, sua graça.

É, pois, manifesto que santo Tomás não coincidiria com o “otimismo” leibniziano, nem
manteria que este é o melhor de todos os mundos possíveis. Dada a omnipotencia divina, a frase
“o melhor dos mundos possíveis” não parece ter muito significado; somente tem significado se
começa-se por supor que Deus cria por uma necessidade de sua natureza, porque daí se seguiria,
já que Deus é a bondade mesma, que o mundo que procede do deve ser necessariamente o melhor
possível. Mas se Deus cria não por uma necessidade de sua natureza, senão de acordo com sua
natureza, de acordo com sua inteligência e vontade, isto é, livremente, e se Deus é omnipotente,
deve ser sempre possível para Deus criar um mundo melhor. Por que, então, criou Deus este
mundo particular? Essa é uma pergunta à que não podemos dar nenhuma resposta adequada,
embora certamente podemos tratar de responder à pergunta de por que criou Deus um mundo
no que estão presentes o sofrimento e o mau: isto é, podemos tratar de responder ao problema
do mau, contanto que tenhamos presente que não podemos esperar conseguir uma solução
completa do problema nesta vida, devido à finitud e imperfección de nossas inteligências e ao
fato de que não podemos sondear os propósitos e planos divinos.

8. O problema do mau.

Ao querer este universo, Deus não quer os males contidos no mesmo. Deus ama
necessariamente sua própria essência, que é bondade infinita, e queira livremente a criação como
uma comunicação de sua bondade; Deus não pode amar o que se opõe à bondade, a saber, o
mau. Mas, não prévio Deus, para falar em linguagem humano, os males do mundo? E, se prévio
os males do mundo, e, ainda assim, quis o mundo, não quis os males do mundo? Se o mau fosse
uma entidade positiva, algo criado, então teria que ser atribuído a Deus como Criador, já que
não há um princípio último do mau, como pensaram os maniqueos; mas o mau não é uma
entidade positiva; o mau é, como ensinou Santo Agostinho, seguindo a Plotino, uma privação.
O mau não é aliquid, algo positivo, e Deus não pode o ter criado, já que não é creable, senão que
existe somente como uma privação no que em si mesmo, como ser, é bom. Ademais, o mau
como tal não pode ser querido nem sequer pela vontade humana, porque o objeto da vontade é
necessariamente o bem, ou o que parece tal. O adúltero, diz santo Tomás, não quer o mau, o
pecado, precisamente como tal; o que quer é o prazer sensível de um ato, o qual supõe o mau.
Pode objetarse que algumas pessoas caíram em perversidad diabólica, que cometeram atos
precisamente porque constituíam uma ofensa a Deus; mas inclusive nesse caso é algum bem
aparente, a completa independência, por exemplo, o que é o objeto da vontade: o desafio a Deus
aparece como bom, e é querido sub specie boni. Não há, pois, vontade alguma que possa querer
o mau precisamente como tal, e Deus, ao criar um mundo cujos males “previa”, não quis os
males, senão que quis o mundo que, como tal, é bom, e quis permitir os males que previa.

Não obstante, não deve ser imaginado que, ao manter a doutrina de que o mau como tal é
uma privação, santo Tomás entenda que o mau é irreal, no sentido de ser uma ilusão. Isso seria
entender sua posição de um modo completamente equivocado. O mau não é um ser, uma emita,
no sentido de que não cai baixo nenhuma das dez categorias do ser, mas a resposta à pergunta
de se existe ou não o mau deve ser afirmativa. É verdadeiro que isso soa a paradoxo, mas santo
Tomás quer dizer que o mau existe como uma privação no bem, e não por direito próprio, como
uma entidade positiva. Por exemplo, a falta da faculdade de visão não constitui uma privação
em uma pedra, porque a uma pedra não lhe corresponde o ver, e a “cegueira” em uma pedra
seria a mera ausência de um poder que seria incompatível com a natureza da pedra; mas a
cegueira no homem é uma privação, a ausência de algo que corresponde à plenitude da natureza
humana. No entanto, essa cegueira não é uma entidade positiva, é uma privação de vista; mas a
privação existe, é real, não é nem muito menos uma ilusão irreal. Não tem significado nem
existência alguma aparte do ser em que existe, mas ao existir nesse ser a privação é
suficientemente real. Do mesmo modo, o mau não pode por si mesmo ser causa de nada, mas
existe, e pode ser causa através do bem no que existe. Em realidade, quanto mais poderoso é o
bem no que existe, maiores são seus efeitos.[703]
Deus não criou, pois, o mau como uma entidade positiva, mas não terá que dizer que Deus
quis o mau em algum sentido, já que criou um mundo no que previa que existiria o mau? É
necessário considerar por separado o mau físico e o mau moral (malum culpaé). O mau físico
foi certamente permitido por Deus, e pode ser dito que em verdadeiro sentido foi querido por
Deus. Indubitavelmente, Deus não o quis por razão de si mesmo, per se, mas quis um universo,
uma ordem natural, que supunha ao menos a possibilidade de defeitos e sofrimentos físicos. Ao
querer a criação da natureza sensitiva, Deus quis aquela capacidade de sentir dor e prazer que é,
naturalmente falando, inseparável da natureza humana. Deus não quis o sofrimento como tal,
mas quis que a natureza (um bem) levasse consigo a capacidade de sofrer. Ademais, diz santo
Tomás, a perfección do universo requer que tenha, além de seres incorruptibles, seres
corruptibles, e, se há seres corruptibles, a corrução, a morte, terá seu local segundo a ordem
natural. Por conseguinte, Deus não quis a corrução (greve dizer que a palavra não se emprega
aqui em seu sentido moral) por razão da mesma, mas pode ser dito que a causou per aeeidens,
já que quis criar e criou um universo cuja ordem exigia a capacidade de defeito e corrução por
parte de alguns seres. Igualmente, a preservación da ordem da justiça exige que o mau moral
possa encontrar castigo (malum poenae), e pode ser dito que Deus quis e causou o castigo, não
por si mesmo, senão para que a ordem da justiça fosse preservado.

Ao tratar do mau físico, santo Tomás tende, pois, a tratar a Deus como um artista, e o
universo como uma obra de arte. A perfección dessa obra de arte requer uma diversidade de
seres, entre os quais se encontrarão seres mortais e capazes de sofrimento, de maneira que pode
ser dito que Deus quis o mau físico não per se senão peraccidens , por razão de um bem, o bem
do universo inteiro. Mas quando se trata da ordem moral, da ordem da liberdade, e de considerar
os seres humanos precisamente enquanto agentes livres, sua atitude é diferente. A liberdade é
um bem, e sem ela os seres humanos não tributarían a Deus aquele amor do que Ele é digno,
não poderiam merecer, etc. A liberdade faz ao homem mais parecido a Deus do que seria se não
fosse Ubre. Por outra parte, a liberdade do homem, quando este não atingiu a visão de Deus,
implica o poder de escolher contra Deus e contra a lei moral, o poder de pecar. Deus não quis a
desordem moral nem o pecado em nenhum sentido, mas os permitiu. Por que? Em razão de um
bem maior, o de que o homem pudesse ser livre e pudesse amar e servir a Deus por sua própria
livre eleição. A perfección física do universo requeria a presença de alguns seres mortais, de
maneira que, como vimos, pode ser dito que Deus quis a morte per accidens; mas embora a
perfección do universo requeria que o homem fosse livre, não requeria que o homem fizesse um
mau uso de sua liberdade, isto é, que pecasse, e não pode ser dito que Deus queira o mau moral,
nem per se nem per accidens. Não obstante, era impossível que tivesse um ser humano na ordem
natural que fosse livre e, ao mesmo tempo, incapaz de pecar, de maneira que pode ser dito que
Deus permitiu o mau moral, embora somente o permitiu em razão de um bem maior.

Teria, desde depois, bem mais que dizer a propósito desta questão, se introduzíssemos
considerações tomadas da teología, e qualquer consideração puramente filosófica do problema
é necessariamente muito menos satisfatória que um tratamento no que se utilizem tanto verdades
filosóficas como verdades teológicas. As doutrinas da queda e da redenção, por exemplo,
espalham envelope o problema do mau uma luz que não pode ser proporcionada por
razonamientos puramente filosóficos. No entanto, os argumentos baseados na revelação e na
teología dogmática devem ser ignorados aqui. A resposta filosófica de santo Tomás ao problema
do mau em seu relacionamento a Deus pode ser resumido em duas afirmações: primeira, que
Deus não quis o mau moral em nenhum sentido, senão somente o permitiu em razão de um bem
maior que o que podia ser atingido impedindo aquele, isto é, não fazendo ao homem livre, e,
segunda, que embora Deus não quis o mau físico por razão do mesmo, pode ser dito que quis
certos males físicos per accidens, em proveito da perfección do universo. Digo “certos males
físicos”, porque santo Tomás não entende que possa ser dito que Deus quis todos os males
físicos, nem sequer per accidens. A corruptibilidad ou a morte pertencem a uma verdadeira
classe de bem, mas muitos males e sofrimentos físicos não estão vinculados à perfección ou bem
do universo, senão que são o resultado do mau moral de parte do homem: não são “inevitáveis”.
Tais males físicos não foram queridos, senão meramente permitidos por Deus.[704]
Capítulo XXXVII
São Tomás de Aquino. - VII: Psicologia

1. Uma só forma substancial no homem.

Já vimos[705] que São Tomás de Aquino manteve a doutrina aristotélica do hilemorfismo, e


que, apartando das opiniões de seus predecessores, defendeu a unicidad da forma substancial na
substância. Talvez santo Tomás começou por aceitar a existência de uma forma corporeitatis
como primeira forma substancial na substância material[706]; mas, em qualquer caso, cedo opôs-
se àquela opinião e sustentou que a forma substancial específica informa imediatamente à
matéria prima, sem a mediação de outra forma substancial alguma. O aquinatense aplicou dita
doutrina ao homem, e manteve que no compositum humano não há mais que uma forma
substancial. Essa única forma substancial é a alma racional, que informa diretamente à matéria:
não há forma corporeitatis, nem menos ainda, forma substanciais vegetativa e sensitiva. O ser
humano constitui uma unidade, e não pode menoscabarse dita unidade, como se faria ao supor
uma pluralidad de forma substanciais. O termo “homem” não deve ser aplicado nem à alma só
nem ao corpo só, senão à alma e ao corpo juntos, à substância composta.

Santo Tomás segue, pois, a Aristóteles ao sublinhar a unidade da substância humana. A alma
única do homem é a que confere a este todas suas determinações de homem, seu corporeidad
(ao informar a matéria prima), e suas operações vegetativas, sensitivas e intelectivas. Em uma
planta só está presente a alma ou princípio vegetativo, que confere vida e as faculdades de
crescimento e reprodução; no animal irracional está só presente a alma sensitiva, que atua como
princípio não somente da vida vegetativa, senão também da sensitiva; no homem só está presente
a alma racional, que é não somente o princípio das operações peculiares à mesma, senão também
das funções vegetativa e sensitiva. Quando chega a morte e a alma se separa do corpo, o corpo
se desintegra: não se trata meramente de que cessem as operações racionais, já que também
cessam as funções sensitivas e vegetativas; é que o único princípio de todas essas operações não
informa já a matéria que anteriormente informava, e em local da substância humana unificada
temos uma multiplicidad de substâncias, cujas novas forma substanciais são educidas da
potencialidade da matéria.

Está, pois, perfeitamente claro que a ideia platónica do relacionamento da alma ao corpo era
inaceitável para santo Tomás. É o indivíduo humano o que percebe não somente que razona e
entende, senão também que sente e exerce sensações. Mas não é possível ter sensações sem ter
um corpo, de maneira que também o corpo, e não só a alma, tem de pertencer ao homem[707].
Um homem é engendrado quando é infundida a alma racional, e morre quando a alma racional
se aparta do corpo: não há nenhuma outra forma substancial no homem aparte da alma racional,
e esta exerce as funções das forma inferiores, realizando por si mesma, no caso do homem, o
que realiza a alma vegetativa no caso da planta, e a alma sensitiva no caso do animal
irracional[708]. Daí segue-se que a união da alma e o corpo não pode ser algo não natural: não
pode ser um castigo sofrido pela alma por um pecado cometido em um estado anterior, como
pensou Origens. A alma humana tem a faculdade de sensação, por exemplo, mas não pode
ejercitar essa função sem um corpo; tem a faculdade de intelección, mas não possui ideias
innatas, e tem de formar suas ideias em dependência da experiência sensível, para o qual precisa
um corpo; a alma está, pois, unida ao corpo porque precisa-o, porque é a forma natural do corpo.
A união de alma e corpo não é em detrimento da alma, senão para seu proveito, propter animam.
A matéria existe para a forma, e não ao inverso, e o alma está unida ao corpo para poder fazer
de acordo com sua natureza.[709]

2. As potências da alma.

Mas embora santo Tomás sublinhasse a unidade do homem, a íntima união de alma e corpo,
manteve que há uma distinção real entre a alma e suas faculdades, e entre umas e outras
faculdades. Somente em Deus a potência de fazer e o ato mesmo são idênticos a sua substância,
já que somente em Deus não há potencialidade: na alma humana há faculdades ou potências de
fazer que estão em potencialidade respecto de seus atos, e que têm de se distinguir segundo seus
próprios atos e objetos[710]. Algumas dessas potências ou faculdades pertencem à alma como
tal, e não dependem intrinsecamente de um órgão corporal, enquanto outras pertencem ao
compositum e não podem ser exercidas sem o corpo; em consequência, as primeiras
permanecem na alma inclusive quando está separada do corpo, enquanto as últimas permanecem
na alma separada só potencialmente (ou virtualmente, virtute), no sentido de que a alma tem
ainda o poder remoto de exercer as faculdades, mas somente se se reunisse com o corpo; em
estado de separação, não pode fazer uso delas. Por exemplo, a faculdade racional ou intelectiva
não depende intrinsecamente do corpo, embora no estado de união com o corpo há uma
verdadeira dependência quanto ao material do conhecimento (em um sentido que explicaremos
mais adiante); mas é evidente que a faculdade de sensação não pode ser exercida sem o corpo.
Por outra parte, também não pode ser exercida pelo corpo sem a alma. Por conseguinte, seu
“sujeito” não é nem a alma só nem o corpo só, senão o compositum humano. Não pode ser dito
simplesmente que a sensação seja obra da alma, que utiliza como instrumento um corpo,
segundo pensava Santo Agostinho; o corpo e a alma desempenham seus respetivos papéis na
produção do ato de sensação, a faculdade de sensação corresponde a ambos em união, não a um
deles por separado.

Nas potências ou faculdades há uma verdadeira hierarquia. A faculdade vegetativa, que


compreende os poderes de nutrición, crescimento e reprodução, tem como objeto simplesmente
ao corpo unido à alma, ou vivendo por médio da alma. A faculdade sensitiva (que compreende
os sentidos exteriores da vista, o ouvido, o olfato, o gosto e o tacto, e os sentidos internos do
sensus communis, phantasia ou imaginação, vis aestimativa e vis memorativa, ou memória) tem
como objeto não simplesmente o corpo do sujeito sentiente, senão todo corpo sensível. A
faculdade racional (que compreende os entendimentos ativo e pasivo) tem como objeto não
somente os corpos sensíveis, senão ao ser em general. Por conseguinte, quanto mais elevada é a
potência, mais amplo e comprehensivo é seu objeto. A primeira faculdade geral relaciona-se ao
próprio corpo do sujeito; mas as outras duas faculdades, a sensitiva e a intelectiva, relacionam-
se também com objetos extrínsecos ao sujeito mesmo, e uma consideração desse fato nos
manifesta que há outras potências além das já mencionadas. Se consideramos a aptidão do objeto
externo para ser recebido no sujeito através do conhecimento, encontramos que há duas classes
de faculdades, a sensitiva e a intelectiva, a primeira das quais é de alcance mais restringido que
a segunda; mas se consideramos a inclinação e tendência da alma para o objeto externo,
encontramos que há outras duas potências, a de locomoção, pela qual o sujeito atinge seu objeto
mediante seu próprio movimento, e a de apetición, pela qual o objeto é desejado como com fim
(finis). A potência de locomoção corresponde ao nível da vida sensitiva; mas a potência de
apetición é dupla, pois compreende o desejo a nível sensitivo, o apetito sensitivo e o desejo a
nível intelectivo, a volición. Encontramos, pois, ao nível vegetativo da vida as três potências de
nutrición, crescimento e reprodução; ao nível sensitivo, os cinco sentidos externos, os quatro
sentidos internos, a potência locomotriz e o apetito sensitivo; e, ao nível racional, o entendimento
ativo, o entendimento pasivo e a vontade. No homem estão presentes todas essas potências.

Essas potências ou faculdades procedem da essência da alma como de seu princípio, mas se
distinguem realmente una de outras. Têm diferentes objetos formais (a vista, por exemplo, tem
como objeto próprio a cor), suas atividades são diferentes, e são, portanto, potências realmente
diferentes (operatio sequitur esse). Mas as distinções reais não devem ser multiplicadas sem
razão suficiente. Por exemplo, um dos sentidos internos é a vis memorativa, ou memória
sensitiva, por médio da qual o animal recorda ao amigo ou ao inimigo, o que lhe produziu prazer
e o que lhe magoou, e, segundo santo Tomás, a memória do passado como passado corresponde
à memória sensitiva, já que o passado como passado faz referência a objetos particulares, e é a
memória sensitiva a que tem relacionamento com o particular. Mas se entendemos por memória
a conservação de ideias ou conceitos, esta deve ser referido ao intelecto, e podemos falar de cor
intelectual; mas a memória intelectual não é uma potência diferente do mesmo entendimento,
mais precisamente, do entendimento pasivo: é o mesmo entendimento visto em um de suas
feições ou funções. Igualmente, o ato de prender uma verdade, de descansar na aprehensión da
verdade, não procede de uma potência ou faculdade diferente da faculdade pela que razonamos
discursivamente; intellectus e ratio não são faculdades diferentes, porque é a mesma mente a
que prende a verdade e a que razona de uma verdade a outra. Nem também não a “razão
superior” (ratio superior), que se ocupa das coisas eternas, é uma faculdade diferente da ratio
inferior, pela que obtemos um conhecimento racional de coisas temporárias. Ambas são uma
mesma faculdade, embora esta receba nomes diferentes segundo os objetos de seus diferentes
atos, como dizia Santo Agostinho. O mesmo tem aplicação aos entendimentos especulativo e
prático, que não são mais que uma faculdade.

3. Os sentidos internos.

Convirá dizer também algumas palavras sobre o tema dos “sentidos internos”, que são
comuns ao homem e aos animais. Santo Tomás observa[711] que Avicena, em seu livro Sobre a
alma, postuló cinco sentidos internos, mas que, em realidade, somente há quatro. Que entende
santo Tomás por “sentidos” nesse contexto? Indubitavelmente, não sentidos na acepción que
nós damos ao termo, já que quando nós utilizamos a palavra “sentido” nos referimos a um dos
sentidos externos. Por que lhes chama, então, sentidos? Para indicar que são operações que
correspondem ao nível da vida sensitiva, e que não supõem razão. Por exemplo, deve ser por
uma operação instintiva pela que o pássaro “julga” que as ramitas que vê lhe serão úteis para
construir seu ninho. O pássaro não pode ver essa utilidade simplesmente pela visão, que se dirige
à cor, e, por outra parte, o pássaro não razona ou julga no sentido próprio desses termos: tem,
pois, um “sentido interno” pelo que prende a utilidade das ramitas.

Em primeiro lugar, deve ter um sentido interno pelo que os dados dos diferentes sentidos
externos são distintos e reunidos. O olho vê a cor, o ouvido ouve sons, mas embora o sentido da
vista distingue uma cor de outro, não pode distinguir a cor do som, já que não pode ouvir; e,
pela mesma razão, não pode referir o som ao objeto colorido visto, como, por exemplo, quando
um homem está falando a seu cão. Essa função de distinguir e reunir é executada pelo sentido
geral ou sensus communis. Em segundo local, o animal é capaz de conservar as forma presas
pelos sentidos, e essa função é executada pela imaginação (phantasia ou imaginatio), que é “um
verdadeiro tesouro das forma recebidas através dos sentidos”. Em terceiro local, o animal é
capaz de prender coisas que não pode perceber por médio dos sentidos, por exemplo, que algo
é útil para ele, que alguém ou algo é amistoso ou hostil, e essa tarefa é realizada pela vis
aestimativa, enquanto, finalmente, a vis memorativa conserva as aprehensiones. Pelo que
respecta às forma sensíveis, diz santo Tomás, não há diferença entre o homem e o animal, já que
todos são afetados do mesmo modo pelos objetos exteriores sensíveis; mas pelo que respecta à
aprehensión de coisas que não são diretamente percebidas pelos sentidos externos, há uma
diferença entre o homem e os animais. Estes percebem coisas tais como a utilidade ou a
nocividad, a amizade ou a hostilidade, por um instinto natural, enquanto o homem compara
coisas particulares. Por conseguinte, o que ele lume nos animais vis aestimativa naturalis, o
chama vis cogitativa no caso dos seres humanos. Algo mais que o mero instinto está suposto
neste segundo caso.

4. O livre albedrío.

Além dos cinco sentidos externos, os quatro sentidos internos, a potência locomotriz, o
apetito sensitivo e as faculdades cognoscitivas racionais (às que voltarei no próximo capítulo,
ao tratar da teoria tomista do conhecimento), o homem tem também vontade (voluntas). A
vontade difere do apetito sensitivo, já que deseja o bem como tal ou o bem em general (bonum
sub communi ratione boni), enquanto o apetito sensitivo não deseja o bem em general, senão os
objetos particulares de desejo apresentados pelos sentidos. Ademais, a vontade está orientada
por sua mesma natureza para o bem em general, e deseja necessariamente o bem em general.
Tal necessidade não é, no entanto, uma necessidade de coação, uma necessidade que vincule à
vontade com violência; procede da vontade mesma, que deseja por sua natureza o fim último ou
felicidade (beatitudo). A vontade, como é uma faculdade apetitiva, não pode ser entendido
aparte de seu objeto natural de desejo, seu finis natural, e esse objeto, diz santo Tomás seguindo
a Aristóteles, é a beatitud, a felicidade, o bem em general. Os homens desejamos
necessariamente ser felizes, não podemos por menos do desejar; mas a necessidade em questão
não é uma necessidade imposta desde fora pela violência (necessitas coactionis), senão uma
necessidade de natureza (necessitas naturalis), que procede da mesma natureza da vontade.
Mas embora o homem deseje necessariamente a felicidade, isso não significa que não seja
livre quanto a suas eleições particulares. Há alguns bens particulares que não são necessários
para a felicidade, e o homem é livre dos querer ou não. Ademais, ainda que a verdadeira
felicidade somente pode ser encontrado na posse de Deus, no lucro do Bem infinito, isso não
significa que todo homem tenha de ter um desejo consciente de Deus, ou que deva
necessariamente querer aqueles meios que lhe conduzam a Deus. Nesta vida o entendimento não
atinge aquela clara visão de Deus, como bem infinito e única fonte de felicidade, que se
precisaria para determinar à vontade. O homem deseja necessariamente a felicidade, mas a
conexão entre a felicidade e Deus não lhe é tão determinadamente clara que seja incapaz de
querer algo diferente de Deus. Desde depois, em verdadeiro sentido o homem sempre quer a
Deus, já que queira necessariamente a felicidade, e, de facto, a felicidade somente pode ser
encontrado em Deus, o Bem infinito; mas, devido a sua falta de visão clara de Deus como Bem
infinito, podem aparecer ao homem como necessariamente relacionados a sua felicidade objetos
que não estão relacionados desse modo a esta, e o homem pode pôr sua felicidade em algo
diferente de Deus. Queira o que queira, o quer como um bem, real ou aparente (o homem queira
necessariamente sub ratione boni), mas não quer necessariamente o verdadeiro Bem infinito.
Em um sentido interpretativo, pode ser dito que o homem queira sempre a Deus; mas, pelo que
se refere à eleição consciente, o homem pode querer algo diferente de Deus, inclusive até a
exclusão de Deus. Se fecha os olhos à verdade e dirige sua atenção aos prazeres sensuales, por
exemplo, pondo nestes sua felicidade, o homem é moralmente culpado; mas isso não altera o
fato de que a incompatibilidad entre o entregar ao prazer sensual desordenado e o lucro da
verdadeira felicidade não lhe é tão evidente que não possa tomar como fim a entrega aos prazeres
desordenados. Um exemplo paralelo pode ser tomado da atividade do entendimento. Se um
homem sabe o que significam os termos, lhe é impossível não assentir aos primeiros princípios
na ordem intelectivo, por exemplo, ao princípio de identidade; mas quando se trata de uma
corrente de razonamientos, como na prova metafísica da existência de Deus, pode negar sua
asentimiento, não porque a argumentación seja insuficiente, senão porque não deseja assentir, e
aparta seu entendimento da percepción da conexão necessária entre as premisas e a conclusão,
ou da atenção à mesma. Semelhantemente, um homem queira necessariamente sub ratione boni,
deseja necessariamente a felicidade; mas pode apartar sua atenção da conexão necessária entre
a felicidade e Deus, e permitir que algo diferente de Deus lhe apareça como fonte da verdadeira
felicidade.

O livre albedrío (liberum arbitrium) não é uma potência ou faculdade diferente da vontade;
mas há uma distinção mental entre aquele e esta, porque o termo “vontade” significa a faculdade
como princípio de toda nossa volición, seja necessária (em relacionamento ao fim, a felicidade)
ou livre (em relacionamento à eleição de médios tendentes a dito fim), enquanto “livre albedrío”,
ou vontade livre, significa a mesma faculdade como princípio de nossa livre eleição dos meios.
Como já se disse, São Tomás de Aquino mantinha que embora o homem queira necessariamente
o fim, a felicidade, não tem uma visão vinculante da conexão entre os meios particulares e aquele
fim, e, portanto, é livre com relacionamento à eleição de ditos meios, sem ser determinado nem
desde fora nem desde dentro. A liberdade do homem segue-se do fato de sua racionalidade. A
ovelha “julga” por um instinto natural que deve fugir do lobo, mas o homem julga que um bem
tem de se atingir ou que um mau tem de evitar por um ato livre de sua inteligência[712]. A razão,
a diferença do instinto, não é determinada em seu julgamento a propósito de eleições
particulares. A eleição refere-se aos meios para o fim último (a felicidade), e ao homem é-lhe
possível considerar qualquer objeto particular desde mais de um ponto de vista: pode considerar
em uma feição bom e julgar que deve ser escolhido, ou pode considerar em uma feição mau,
isto é, assim que falto de algum bem, e julgar que deve ser evitado[713]. O liberum arbitrium é,
pois, a potência pela qual um homem é capaz de julgar livremente[714]. Pode parecer, então, que
a liberdade pertence ao entendimento, e não à vontade; mas santo Tomás observa[715] que
quando se diz que o liberum arbitrium é a potência pela que o homem é capaz de julgar
livremente, não se faz referência a qualquer classe de julgamento, senão ao julgamento decisivo
da eleição que põe fim à deliberación decorrente do fato de que um homem pode considerar um
possível objeto de eleição desde diferentes pontos de vista. Por exemplo, se trata-se de ir passear
ou de não ir passear, eu posso ver o passeio como um bem, como um exercício saudável, ou
como um mau, como uma perda do tempo que preciso para escrever uma carta que tem de sair
no correio da tarde. O julgamento da decisão que diz que sairei de passeio (ou que não sairei,
segundo seja o caso) se faz baixo o influjo da vontade. O liberum arbitrium é, pois, a vontade,
mas designa a vontade não absolutamente, senão em seu relacionamento à razão. O julgamento
como tal pertence à razão, mas a liberdade do julgamento pertence imediatamente à vontade.
Ainda assim, é verdadeiro que a explicação tomista da liberdade é de caráter intelectualista.

5. A faculdade mais nobre.

Esse intelectualismo é patente na resposta tomista à questão de se a faculdade mais nobre é


o entendimento ou a vontade. Santo Tomás responde que, absolutamente falando, o
entendimento é a faculdade mais nobre, já que o entendimento, mediante o ato de conhecimento,
possui o objeto, o contém em si mesmo mediante a assimilação mental, enquanto a vontade
tende para o objeto como externo; e é mais perfeito possuir em um mesmo a perfección do objeto
que tender para este, segundo existe fora de um mesmo. Por conseguinte, pelo que respecta aos
objetos corpóreos, o conhecimento destes é mais perfeito e mais nobre que a volición dos
mesmos, já que pelo conhecimento possuímos em nós mesmos as forma desses objetos, e ditas
forma existem na alma racional de um modo mais nobre a como existem nos objetos corpóreos.
De modo similar a essência da visão beatífica consiste no ato de conhecimento pelo que
possuímos a Deus. Por outra parte, embora a posse do objeto pelo entendimento é em si mesma
mais perfeita que a tendência para o objeto pela volición, a vontade pode ser mais nobre que o
entendimento em certas feições, secundum quid, por razões acidentais. Por exemplo, nesta vida,
nosso conhecimento de Deus é imperfecto e analógico, somente conhecemos a Deus de uma
maneira indireta, enquanto a vontade tende diretamente a Deus: o amor a Deus é, pois, mais
perfeito que o conhecimento de Deus. No caso de objetos que são menos nobres que a alma, os
objetos corpóreos, podemos ter conhecimento imediato, e tal conhecimento é mais perfeito que
a volición; mas no caso de Deus, um objeto que trasciende à alma humana, somente temos, nesta
vida, um conhecimento mediato, e nosso amor a Deus é mais perfeito que nosso conhecimento
de Deus. Não obstante, na visão beatífica, no céu, quando a alma vê a essência de Deus de um
modo imediato, a superioridad intrínseca do entendimento sobre a vontade se reafirma a si
mesma, por assim o dizer. Dessa maneira, santo Tomás adota a atitude intelectualista de
Aristóteles e interpreta-a, ao mesmo tempo, em um enquadramento cristão.[716]

6. A imortalidade.
Temos visto que São Tomás de Aquino recusou a opinião platónico-agustiniana sobre o
relacionamento da alma ao corpo, e adotou a doutrina aristotélica da alma como forma do corpo,
sublinhando a intimidem da união entre ambos. Não há forma corporeitatis, há unicamente uma
forma substancial no homem, a alma racional, e esta informa diretamente a matéria prima e é a
causa de todas as atividades humanas nos níveis vegetativo, sensitivo e intelectivo. A sensação
não é um ato da alma que se vale do corpo como de um instrumento, senão um ato do
compositum; não temos ideias innatas, senão que a mente conhece em dependência da
experiência sensível. Propõe-se, pois, a questão de se a intimidem da união de alma e corpo não
foi acentuada de tal modo que deva ser excluído a possível subsistencia da alma humana aparte
do corpo. Em outras palavras, a doutrina aristotélica do relacionamento de alma e corpo, não é
incompatível com a imortalidade pessoal? Se parte-se da teoria platónica da alma, a imortalidade
fica assegurada, mas a união de alma e corpo faz-se difícil de entender; enquanto se parte-se dê-
a teoria aristotélica da alma, pode parecer que há que sacrificar a imortalidade, que a alma fica
tão intimamente vinculada ao corpo que não pode subsistir aparte deste.

A alma é, efetivamente, a forma do corpo, e, segundo santo Tomás, conserva sempre sua
aptidão para informar a um corpo, precisamente porque é por natureza a forma do corpo; mas
não por isso deixa de ser uma alma racional, e suas potências não se esgotam na informação do
corpo. Ao tratar da imortalidade da alma, santo Tomás argumenta que a alma é incorruptible
porque é uma forma subsistente. Uma coisa que se corrompe é corrompida ou por si mesma (per
seja) ou acidentalmente (per aeeidens), isto é, pela corrução de alguma outra coisa da que
depende sua existência. A alma dos animais irracionais depende do corpo para todas suas
operações, e se corrompe quando se corrompe o corpo (corruptio per aeeidens); mas a alma
racional, que é uma forma subsistente, não pode ser afetada pela corrução do corpo, do que não
depende intrinsecamente[717]. Se isso fosse todo o que santo Tomás tem que dizer para provar a
imortalidade, seria evidentemente culpada de uma grosseira petitio prineipii, já que pressuporia
que a alma humana é uma forma subsistens, e isso é precisamente o que tinha que demonstrar.
Mas santo Tomás argumenta que a alma racional deve ser uma forma espiritual e subsistente,
porque é capaz de conhecer as naturezas de todos os corpos. Se fosse material, estaria
determinada a um objeto específico, como o órgão da visão está determinado à percepción da
cor. Ademais, se dependesse intrinsecamente de um órgão corporal, estaria limitada ao
conhecimento de alguma espécie particular de objetos corpóreos, o que não é o caso[718], e se
fosse ela mesma um corpo, material, não poderia refletir envelope sim mesma[719]. Por essas e
outras razões, a alma humana, que é uma alma racional, deve ser imaterial, isto é, espiritual, do
que se segue que é incorruptible ou imortal por natureza. Fisicamente falando poderia, desde
depois, ser aniquilada por Deus, que a criou; mas sua imortalidade segue-se de sua natureza, e
não é simplesmente um dom gratuito, salvo no sentido em que é gratuita sua mesma existência,
como a existência de qualquer outra criatura.

Santo Tomás argumenta também a partir do desejo de persistência no ser. Há um desejo


natural de imortalidade, e um desejo natural, como implantado por Deus, não pode ser em
vão[720]. “É impossível que um apetito natural seja em vão. Mas o homem tem um apetito natural
de perpétua persistência no ser. Isso está claro pelo fato de que a existência (esse) é desejada por
todas as coisas, mas o homem tem uma aprehensión intelectual do esse como tal, e não somente
do esse aqui e agora, como o tem o bruto. O homem atinge, pois, a imortalidade pelo que respecta
a sua alma, pela que prende o esse como tal e sem limite temporário.”[721] O homem, a diferença
do animal irracional, pode conceber a existência perpétua, separada do momento presente, e a
essa aprehensión corresponde um desejo natural de imortalidade. Como esse desejo tem que ter
sido implantado pelo Autor da Natureza, não pode ser em vão (frustra, ou inane). Contra isso
argumentará mais tarde Duns Scot que, pelo que se refere ao desejo natural (desiderium
naturale), o homem e o bruto estão ao mesmo nível, e ambos rehúyen a morte, enquanto, pelo
que se refere a um desejo elícito ou consciente, temos de mostrar que sua satisfação é possível
dantes de argumentar que deve ser satisfeito[722]. Poderia ser replicado que a possibilidade da
satisfação do desejo se mostra ao provar que a alma não depende intrinsecamente do corpo,
senão que é espiritual, o qual equivaleria a admitir que o argumento fundamental é o tomado da
espiritualidad da alma.

Em vista da epistemología de santo Tomás, de seu insistencia quanto a pôr a origem das
ideias humanas na experiência sensível e quanto ao papel do “fantasma” na formação de ditas
ideias, pode parecer que se contradiz ao afirmar que a mente humana não depende
intrinsecamente do corpo, e pode parecer também que a alma em estado de separação seria
incapaz de atividade intelectiva alguma. Com respeito ao primeiro ponto, no entanto, santo
Tomás mantém que a mente precisa do corpo para sua atividade não como um órgão da atividade
mental, porque esta é da mente só, senão por causa do objeto natural da mente humana nesta
vida, quando está unida a um corpo. Em outras palavras, a mente não depende intrinsecamente
do corpo para seu subsistencia. Possa, então, exercer sua atividade em um estado de separação
do corpo? Sim, porque seu modo de conhecimento é consequência do estado em que se encontra.
Quando está unida ao corpo, a alma racional não chega a conhecer coisas salvo eonvertendo se
ad phantasmata; mas quando está em estado de separação já não é incapaz de se conhecer a si
mesma e a outras almas de uma maneira perfeita e direta, e aos anjos de maneira imperfecta.
Pode parecer que em tal caso é melhor para a alma se encontrar em estado de separação do corpo
que não unida a este, já que os espíritos são objetos de conhecimento mais nobres que as coisas
corpóreas; mas santo Tomás não pode admitir isso, já que ele fez questão de que é natural para
o alma estar unida ao corpo, e que tal união é para bem da alma. Não vacila, pois, em sacar a
conclusão de que o estado de separação é praeter naturam, e que o modo de conhecimento da
alma no estado de separação é também praeter naturam.[723]

7. Os entendimentos ativo e pasivo não são numericamente o mesmo


em todos os homens.

Quando santo Tomás prova a imortalidade da alma se refere, naturalmente, à imortalidade


pessoal. Contra os averroístas argumenta que o entendimento não é uma substância diferente da
alma humana e comum a todos os homens, senão que está multiplicado “segundo a multiplicação
dos corpos”[724]. É impossível explicar a diversidade de ideias e de operações intelectivas nos
diferentes homens sobre o suposto de que todos os homens têm um só entendimento. Não são
somente as sensações e os “fantasmas” o que difere de uns homens a outros, senão também suas
vidas e atividades intelectivas. É absurdo supor que os homens têm um só entendimento, como
o seria supor que têm uma só visão.

É importante advertir que não é a opinião de Avicena concerniente à unicidad e o caráter


separado do entendimento ativo o que exclui necessariamente a imortalidade pessoal (alguns
filósofos medievais que mantiveram indubitavelmente a imortalidade pessoal identificaram o
entendimento ativo com Deus ou com a atividade de Deus na alma humana), senão mais bem a
opinião de Averroes concerniente à unicidad e caráter separado do entendimento pasivo, e não
somente do ativo. São Tomás de Aquino põe em claro que seu principal inimigo neste ponto foi
Averroes, ao começo de seu De unitate intellectus contra averroistas. Se aceita-se a teoria
averroísta, “segue-se que após a morte não fica nada das almas dos homens, exceto um só
entendimento; e desse modo há que excluir igualmente a concessão de recompensa e castigos”.
Isso não isto é, desde depois, que santo Tomás aceitasse a teoria da unicidad do entendimento
ativo; argumenta contra a mesma, por exemplo, na Summa contra Gentiles[725], e também na
Summa Theologicai[726]. Um de seus argumentos estabelece que se o entendimento ativo fosse
um em todos os homens, então seu exercício seria independente do controle do indivíduo, e seria
constante, enquanto, em realidade, podemos levar a cabo a vontade a atividade intelectual, e a
abandonar também a vontade. Acidentalmente, São Tomás de Aquino interpreta o bilhete
indubitavelmente escuro de Aristóteles no De Anima[727] como se ensinasse o caráter individual
do intelecto ativo nos indivíduos humanos. É impossível dizer com certeza que a interpretação
de Aristóteles por santo Tomás é equivocada, embora eu me inclino por essa opinião; mas o
acerto ou erro dessa interpretação de Aristóteles não afeta, é evidente, à verdade ou falsidade de
sua própria ideia do entendimento ativo.[728]

Contra a unicidad do entendimento pasivo, santo Tomás argumenta no De unitate intellectus


contra averroistas e na Summa contra Gentiles[729]. Seus argumentos pressupõem muito
largamente a psicologia e a epistemología aristotélicas; mas tal presuposición devia realmente
dar-se por descontada, não somente pelo fato de que santo Tomás aceitava a doutrina aristotélica
segundo ele mesmo a entendia e interpretava, senão também porque os averroistas eram ao
mesmo tempo aristotélicos. Por conseguinte, dizer que São Tomás de Aquino pressupunha a
psicologia e a epistemología aristotélicas é simplesmente dizer que tratou de mostrar aos
averroistas que sua noção do caráter unitário e separado do entendimento pasivo era
inconsecuente com seus próprios princípios. Se a alma é a forma do corpo, como poderia o
entendimento pasivo ser um em todos os homens? Um só princípio não poderia ser a forma de
uma pluralidad de substâncias. Por outra parte, se o entendimento pasivo fosse um princípio
separado, seria eterno; em tal caso, conteria todas as species intelligibiles que foram recebidas
desde sempre, e todos e a cada um dos homens seriam capazes de entender todas aquelas coisas
que em um momento ou outro foram entendidas pelo homem, o qual, evidentemente, não ocorre.
Ademais, se o entendimento ativo fosse separado e eterno, se estaria exercendo desde a
eternidade, e o entendimento pasivo, suposto igualmente separado e eterno, estaria recebendo
desde a eternidade; mas em tal caso se converteriam em desnecessários os sentidos e a
imaginação a efeitos das atividades intelectivas, e a verdade é que a experiência evidencia que
são indispensáveis. E como poderiam ser explicado as diferentes capacidades intelectivas dos
diferentes homens? É indudable que as diferenças dos homens nessa feição dependem em certa
medida das diferenças em suas capacidades infraintelectivas.

Hoje pode resultar algo difícil para nós entender a excitação produzida pela teoria averroísta,
e o interesse que suscitou. Mas é indudable que era incompatível com as doutrinas cristãs da
imortalidade e das sanções na vida futura, e embora santo Tomás mostre um desejo de
desassociar a Aristóteles de Averroes, as consequências morais e religiosas da doutrina
averroísta eram mais importantes para ele que a tentativa de Averroes de atribuir a paternidad
de sua doutrina ao grande filósofo grego. Contra os averroistas fizeram causa comum os
agustinianos e os aristotélicos. Poderíamos comparar aquela reação à hoje provocada pelos
sistemas metafísicos e psicológicos que parecem pôr em perigo a personalidade humana. Nesse
ponto, o idealismo absoluto, por exemplo, suscitou a oposição geral de filósofos que, pelo
demais, estavam profundamente divididos entre eles.
Capítulo XXXVIII
São Tomás de Aquino. - VIII: O conhecimento

1. A “teoria do conhecimento” em santo Tomás.

Buscar em santo Tomás uma epistemología, no sentido de uma justificativa do


conhecimento, de uma prova ou tentativa de prova da objetividad do conhecimento, em frente
aos idealismos subjetivistas de uma classe ou de outra, seria buscar em vão. Que todo mundo,
inclusive os sedicentes céticos, está convencido de que é possível uma espécie ou outra de
conhecimento, estava tão claro para santo Tomás como o tinha estado para Santo Agostinho, e,
se é que há para santo Tomás um problema do conhecimento, se trata do problema de como
salvaguardar e justificar a metafísica em frente à psicologia aristotélica mais bem que o de
justificar a objetividad de nosso conhecimento do mundo extramental em frente ao idealismo
subjetivista, que ainda não fazia seu aparecimento, ou o de mostrar a legitimidade da metafísica
em frente ao criticismo kantiano, que estava mais distante ainda no futuro. Por suposto que isso
não equivale a dizer que os princípios tomistas não possam ser desenvolvido de maneira que nos
proporcionem respostas ao idealismo subjetivista e ao kantismo; mas não deve ser cometido o
anacronismo de fazer com que o santo Tomás histórico conteste a perguntas que ainda não era
formuladas. Em realidade, o tratar a teoria do conhecimento de santo Tomás como algo aparte
de sua doutrina psicológica constitui já em si mesmo um verdadeiro anacronismo, mas acho que
pode ser justificado, já que o problema do conhecimento se propõe a partir da psicologia, e é
possível, ao menos por razões de conveniência, o tratar por separado. Para clarificar o problema
é necessário, antes de mais nada, apresentar um breve esboço do modo em que, segundo santo
Tomás, obtemos nossas ideias e nosso conhecimento natural.

2. O processo do conhecimento: conhecimento do universal e do


particular.

Os objetos corpóreos atuam envelope os órgãos dos sentidos, e a sensação é um ato do


compositum, da alma e o corpo, e não da alma só, que se valesse do corpo como de um
instrumento, segundo pensava Santo Agostinho. Os sentidos estão naturalmente determinados à
aprehensión de realidades particulares, não podem prender universais. Os animais irracionais
têm sensações, mas não captam ideias gerais. O “fantasma” ou imagem, que aparece na
imaginação, e que representa o objeto material particular percebido pelos sentidos, é em si
mesmo particular, o fantasma de um objeto particular. O conhecimento humano intelectivo, no
entanto, é conhecimento do universal; o ser humano, em suas operações intelectivas, prende a
forma do objeto material mediante a abstração: prende um universal. Pela sensação unicamente
podemos prender homens particulares ou árvores particulares, por exemplo, e os fantasmas ou
imagens internas de homens ou de árvores são sempre particulares. Ainda que imaginemos uma
imagem composta de homem, que não representa distintamente a nenhum homem real, senão
que represente confusamente a muitos, essa imagem não deixará de ser

particular, já que imagens ou partes de imagens de homens particulares reais cooperam na


formação de uma imagem que pode ser “genérica” com respeito a homens particulares reais,
mas que não é em si mesma menos particular, a imagem de um homem particular imaginado.
No entanto, a mente pode conceber, e concebe de fato, a ideia geral de homem como tal, ideia
que inclui em sua extensão a todos os homens. Indubitavelmente uma imagem de homem não
tem aplicação a todo homem, mas a ideia de homem, ainda que seja concebida em dependência
da aprehensión sensitiva de homens particulares, tem aplicação a todos os homens. A imagem
de um homem tem de ser a imagem de um homem que tem cabelos na cabeça ou a imagem de
um homem que não tem cabelos na cabeça. No primeiro caso, não representa, nessa feição, aos
calvos; no segundo, não representa nessa feição aos homens que não são calvos; mas se
formamos o conceito de homem como animal racional, a ideia valha pára todos os homens,
sejam ou não calvos, sejam brancos ou negros, altos ou baixos, já que é a ideia da essência de
homem.

Como se efetua, pois, o trânsito do conhecimento sensitivo e particular ao conhecimento


intelectual? Embora a sensação é uma atividade da alma e o corpo juntos, a alma espiritual e
racional não pode ser afetada diretamente por uma coisa material nem pelo fantasma; é, pois,
necessária alguma atividade de parte da alma, já que o conceito não pode ser formado de um
modo simplesmente pasivo. Dita atividade é a atividade do entendimento “ativo”, o qual
“alumia” o fantasma e abstrae deste o universal ou “espécie inteligible”. Santo Tomás fala, pois,
de iluminação, mas não emprega este termo em seu pleno sentido agustiniano (ao menos, não
segundo o que é provavelmente a interpretação correta do sentido agustiniano do termo). O que
santo Tomás quer dizer é que o entendimento ativo, por seu poder natural e sem iluminação
especial alguma de parte de Deus, faz visível a feição inteligible do fantasma, revela o elemento
formal e potencialmente universal contido implicitamente no fantasma. O entendimento ativo
abstrae por si mesmo o elemento universal, e produz no entendimento pasivo a “espécie
impressa” (species impressa). A reação do entendimento pasivo a essa determinação é o verbum
mentem, ou species expressa, o conceito universal em sentido próprio. A fundação do
entendimento ativo (ou “agente”) é puramente ativa, a de abstraer o elemento universal a partir
dos elementos particulares do fantasma, e produzir no entendimento pasivo a species impressa.
O entendimento do homem não contém ideias innatas, mas está em potencial para a recepção de
conceitos. Por conseguinte, tem de ser reduzido ao ato, e essa redução a ato tem que ser efetuada
por um princípio que esteja a sua vez em ato. Como o princípio ativo não dispõe de ideias
próprias já elaboradas que proporcionar, deve obter seus materiais os sacando do proporcionado
pelos sentidos, e isso significa que tem que extrair do fantasma o elemento inteligible. Abstraer
significa isolar intelectualmente o universal separando das notas particularizantes. O
entendimento ativo abstrae assim a essência universal de homem a partir de um fantasma
particular excluindo todas as notas particulares que o limitam a ser o de um homem particular
ou de determinados homens particulares. Como o entendimento ativo é puramente ativo, não
pode imprimir em si mesmo o universal; imprime-o no elemento potencial do entendimento
humano, no entendimento pasivo, e a reação a essa impressão é o conceito em sentido pleno, o
verbum mentem.

É importante advertir, no entanto, que o conceito abstrato não constitui o objeto do ato de
conhecimento, senão seu médio. Se o conceito, a modificação do entendimento, fosse em si
mesmo o objeto do conhecimento, então nosso conhecimento seria um conhecimento de ideias,
não de coisas existentes fosse da mente, e as proposições da ciência se refeririam não a coisas
extramentales senão a conceitos na mente. Em realidade, no entanto, o conceito é a semelhança
do objeto produzida na mente, e constitui assim o médio pelo qual a mente conhece o objeto:
dito na linguagem do aquinátense, é vão quo intelligitur, não vão quod intelligitur[730]. Por
suposto, a mente tem o poder de refletir sobre suas próprias modificações, e desse modo pode
converter em objeto ao conceito; mas o conceito não é objeto do conhecimento senão
secundariamente, enquanto primariamente é instrumento do conhecimento. Ao dizer isso, santo
Tomás evita o colocar em uma posição que seria a do idealismo subjetivo, e que lhe levaria às
dificuldades que espreitam a essa forma de idealismo. A teoria com a que em realidade ele
contrasta a sua própria é a teoria de Platón; mas isso não altera o fato de que ao adotar a atitude
que adotou escapasse a uma armadilha da que é quase impossível se libertar.

Como santo Tomás afirmava que o entendimento conhece diretamente a essência, o


universal, sacou a conclusão lógica de que a mente humana não conhece diretamente as coisas
materiais singulares. Há que sublinhar, desde depois, “mente” e “conhece”, já que não pode ser
negado que o ser humano prende objetos materiais particulares por médio da sensibilidade; o
objeto dos sentidos é precisamente o particular sensível. Mas o entendimento chega a conhecer
mediante a abstração da espécie inteligible a partir da matéria individualizante, e só pode ter,
pois, conhecimento direto de universais. Não obstante, ainda após abstraer a espécie inteligible,
o entendimento exerce sua atividade de conhecimento somente mediante uma “conversão”, uma
volta da atenção aos fantasmas nos que prende os universais, e desse modo tem um
conhecimento indireto ou reflexo das coisas particulares representadas pelos fantasmas. Assim,
a aprehensión sensitiva de Sócrates permite à mente abstraer o “homem” universal; mas tal ideia
abstrata é um médio de conhecimento, um instrumento de conhecimento, para o entendimento
somente na medida em que este se volta para o fantasma e pode assim formar o julgamento de
que Sócrates é um homem. Por conseguinte, não é correto dizer que, segundo São Tomás de
Aquino, o entendimento não tem conhecimento algum dos particulares corpóreos: o que o santo
afirmou é que a mente não tem senão um conhecimento indireto de tais particulares, e que seu
objeto direto de conhecimento é o universal[731]. Mas isso não deve também não entender no
sentido de que o objeto primário da cognición intelectual seja a ideia abstrata como tal: a mente
prende o elemento formal, o elemento potencialmente universal que se dá em Sócrates, por
exemplo, e o abstrae da matéria individualizante. Dito em linguagem técnico, o objeto primário
do conhecimento intelectual é o universal direto, o universal preso no particular; só
secundariamente prende a mente o universal precisamente como universal, o “universal
reflexo”.

Ainda devem ser acrescentado à explicação duas observações. O próprio santo Tomás
explica que, quando ele diz que a mente abstrae o universal a partir do particular corpóreo
mediante sua separação da matéria individualizante, o que quer dizer é que quando a mente
abstrae a ideia de homem, por exemplo, a abstrae dessa carne e esses ossos, isto é, da matéria
individualizante particular, mas não da matéria em general, a “matéria inteligible” (isto é, a
substância como sujeito de quantidade). A corporeidad entra na ideia de homem como tal,
embora a matéria particular não entra na ideia universal de homem[732]. Em segundo local, santo
Tomás não pretende que a coisa particular como tal não possa ser objeto direto de cognición
intelectual, senão que o que não pode o ser é o objeto particular sensível ou corpóreo. Em outras
palavras, exclui-se que o objeto particular corpóreo seja objeto direto do ato de conhecimento
intelectual não precisamente por ser particular, senão por ser material, e porque a mente só
conhece ao abstraer da matéria como princípio de individuación, isto é, ao abstraer dessa ou
aquela matéria.[733]

3. O conhecimento da alma por si mesma.

Por conseguinte, segundo santo Tomás, a mente humana está originalmente em potencial
para conhecer: mas não tem nenhuma ideia innata. O único sentido no que pode ser chamado
innatas às ideias é o de que a mente tem uma capacidade natural para a abstração e a formação
de ideias; mas pelo que respecta a ideias em ato, a mente é originariamente um tabula rasa.
Ademais, a fonte do conhecimento intelectivo é a percepción sensível, já que a alma, forma do
corpo, tem corno objeto natural de conhecimento as essências dos objetos materiais. A alma
racional conhece-se a si mesma só por médio de seus atos, se prende a si mesma não diretamente,
em sua essência, senão no ato pelo qual abstrae as espécies inteligibles dos objetos sensíveis[734].
O conhecimento da alma por si mesma não constitui, pois, uma exceção à regra geral de que
todo nosso conhecimento começa pela percepción sensível e depende da percepción sensível.
Santo Tomás expressa esse fato dizendo que o entendimento, quando está unido a um corpo na
vida presente, nada pode chegar a conhecer nisi convertendo se ad phantasmata[735]. A mente
humana não pensa sem a presença de um fantasma, como está claro a nossa introspección, e
depende do fantasma, como o evidencia o fato de que uma força desordenada da imaginação
(como a que se dá nos loucos) prejudica ao conhecimento. E a razão de tal fato está em que a
capacidade cognoscitiva está proporcionada a seu objeto natural[736]. Em resumem, a alma
humana, como disse Aristóteles, nada entende sem um fantasma, e podemos dizer que nihil est
in intellectu quodprius non fuerit in sensu.

4. A possibilidade da metafísica.

Daí segue-se, evidentemente, que a mente humana não pode, nesta vida, atingir um
conhecimento direto das substâncias imateriais, as quais não são, nem podem ser, objeto dos
sentidos[737]. Mas também se suscita o problema de se, dadas essas premisas, pode ter algum
conhecimento metafísico, o problema de se a mente humana pode ser elevado sobre as coisas
dos sentidos e atingir algum conhecimento de Deus por exemplo, já que Deus não pode ser
objeto dos sentidos. Se nossos entendimentos dependem do fantasma, como podem conhecer
aqueles objetos dos que não há fantasma, aqueles objetos que não impressionam aos
sentidos?[738] Dado o princípio nihil in intellectu quod prius non fuerit insensu , como pode ser
obtido algum conhecimento de Deus, sendo de modo que não podemos dizer que Deus prius
fuerit insensu ? Em outras palavras, dada a psicologia e a epistemología tomista, parece que a
teología natural tomista fica inevitavelmente invalidada: não podemos trascender os objetos dos
sentidos, e há que excluir todo conhecimento de objetos espirituais.

Para entender a réplica de santo Tomás a essa seria objeción é necessário recordar sua
doutrina do entendimento como tal. Os sentidos estão necessariamente determinados a uma
classe particular de objetos, mas o entendimento, que é imaterial, é a faculdade de prender o ser.
O entendimento como tal está dirigido ao ser em toda sua extensão. O objeto do entendimento
é o inteligible: nada é inteligible exceto na medida em que está em ato ou participa do ser, e todo
o que está em ato é inteligible na medida em que está em ato, isto é, em que participa do ser. Se
consideramos o entendimento humano precisamente como entendimento, devemos admitir,
pois, que seu objeto primário é o ser. Intellectus respicit suum obieetum secundum communem
rationem entis; eo quod intellectus possibilis est quo est omnia fieri[739]. Primo autem in
conceptione intellectus cadit ens; quia secundum hoc unumquodque cognoscibile est, inquantum
est actu... Unde ens est proprium obieetum intellectus[740]. O primeiro movimento do
entendimento é, pois, para o ser, não para o ser sensível designadamente, e o entendimento pode
conhecer a essência de uma coisa material somente na medida em que essa coisa tem ser; só
após isso se diz que uma espécie particular de entendimento, o entendimento humano, está
dirigido a uma espécie particular de ser. Por causa de seu estado encarnado e da necessidade da
conuersio ad phantasma, o entendimento humano, em seu estado encarnado, tem ao objeto
sensível como objeto “próprio” e natural de seu aprehensión, mas não perde sua orientação para
o ser em general. Como entendimento humano, encontra seu ponto de partida nos sentidos, nos
seres materiais, mas como entendimento humano pode ir para além dos sentidos, sem limitar às
essências materiais, embora somente pode o fazer assim na medida em que os objetos imateriais
se manifestam em e através do mundo sensível, na medida em que as coisas materiais têm
relacionamento a objetos imateriais. Como intelecto encarnado, como tabula rasa, cujo objeto
natural é a essência material, o entendimento não pode prender por si mesmo diretamente a
Deus; mas os objetos sensíveis, como finitos e contingentes, revelam seu relacionamento a Deus,
de modo que o entendimento pode conhecer que Deus existe. Ademais, os objetos sensíveis,
como efeitos de Deus, manifestam até verdadeiro ponto a Deus, de modo que o entendimento
pode chegar a conhecer algo da natureza de Deus, embora esse conhecimento não pode ser (na
ordem natural) mais que analógico. A necessidade da conversio ad phantasma significa que não
podemos conhecer a Deus diretamente, mas podemos conhecer a Deus na medida em que os
objetos sensíveis manifestam sua existência e nos permitem atingir um conhecimento analógico,
indireto e imperfecto, de sua natureza: podemos conhecer a Deus ut causam, et perexcessum ,
et perremotionem .[741]

Um orçamento dessa posição é a atividade do entendimento humano. Se o entendimento


humano fosse meramente pasivo, se a conversio ad phantasma significasse que as ideias fossem
causadas de um modo simplesmente pasivo, nenhum conhecimento natural de Deus seria
possível, já que os objetos sensíveis não são Deus, e de Deus ou de outros seres imateriais non
sunt phantasmata. É a capacidade ativa do entendimento o que nos faculta a descobrir, por assim
o dizer, no ser sensível o relacionamento ao ser imaterial. O ato de conhecimento sensível não é
a causa total e perfeita de nossa cognición intelectual, senão mais bem a matéria causae da
cognición intelectual. O entendimento ativo faz atualmente inteligible ao fantasma mediante a
operação abstractiva. Por conseguinte, ao não ser o ato de conhecimento sensitivo causa total do
ato de conhecimento intelectual, “não há que se surpreender de que a cognición intelectual
chegue mais longe que a cognición sensitiva”[742]. O entendimento humano, como unido a um
corpo, tem como objeto natural as essências das coisas materiais, mas, por médio dessas
essências, pode ascender a “verdadeiro tipo de conhecimento de coisas invisíveis”. Somente
podemos conhecer esses objetos imateriais per remotionem, negando deles as caraterísticas
peculiares dos objetos sensíveis, ou por analogia; mas não poderíamos os conhecer em absoluto
de não ser pela capacidade ativa do entendimento.[743]

Subsiste outra dificuldade, já mencionada. Como possa, então, ter um conteúdo positivo
nossa ideia de Deus, ou de qualquer objeto espiritual? Se dizemos, por exemplo, que Deus é
pessoal, isso não significa, evidentemente, que queiramos adscribir a Deus personalidade
humana. Mas se todo o que pretendemos dizer é que Deus não é inferior ao que nós conhecemos
como pessoal, há algum conteúdo positivo em nossa ideia de personalidade divina? “Não-
menos-que-pessoal”, é uma ideia positiva? E se dizemo-lo em forma afirmativa, “mais-que-
pessoal”, têm esses termos um conteúdo positivo? Se não o têm, ficaremos reduzidos à via
negativa, e somente poderemos conhecer a Deus per remotionem. Mas santo Tomás não se ate
exclusivamente à via negativa,; também utiliza a via afirmativa, e mantém que podemos
conhecer a Deus per excessum. Agora bem, se quando atribuímos a Deus sabedoria, por
exemplo, dizemos que lha atribuímos modo eminentiori, é difícil ver qual é realmente o
conteúdo de nossa ideia de sabedoria divina. Esta deve estar baseada na sabedoria humana, que
é a única sabedoria de que temos experiência natural e direta; e, no entanto, não pode ser
precisamente sabedoria humana. Mas se é a sabedoria humana sem as limitações e forma da
sabedoria humana, que conteúdo positivo possui a ideia, sendo de modo que não temos
experiência alguma de sabedoria sem limitações? Parece que quem esteja decidido a manter que
a ideia tem um conteúdo positivo deverá dizer, ou bem que a ideia de “sabedoria humana mais
uma negación de seus limites” é uma ideia positiva, ou bem, como Scot, que podemos obter uma
ideia da essência de sabedoria, por assim o dizer, cria que poderia ser pregada univocamente de
Deus e do homem. Esta última teoria, embora útil em algumas feições, não é completamente
satisfatória, já que nem santo Tomás nem o mesmo Scot sustentariam que a sabedoria nem
nenhuma outra perfección se realize univocamente em Deus e nas criaturas. Quanto à primeira
resposta, pode parecer por enquanto um modo de escapar à dificuldade; mas a reflexão mostra
que dizer que Deus é sábio, no sentido de que Deus é mais que sábio (em sentido humano) não
é o mesmo que dizer que Deus não é sábio (em sentido humano). Uma pedra não é sábia (no
sentido humano) e também não é mais que sabia, senão menos que sabia. É verdade que se
utilizamos a palavra “sábio” com a precisa significação da sabedoria de que temos experiência,
a saber, a sabedoria humana, podemos dizer com verdade não somente que a pedra não é sábia,
senão também que Deus não é sábio; mas o significado dessas duas proposições não é o mesmo,
e se o significado não é o mesmo tem que ter um conteúdo positivo na proposição de que Deus
não é sábio (isto é, que Deus é mais que sábio no sentido especificamente humano). Por
conseguinte, a proposição de que Deus é sábio (na que “sábio” significa infinitamente mais que
sábio em sentido humano) tem um conteúdo positivo. Pedir que o conteúdo das ideias analógicas
seja perfeitamente claro e expresable, de modo que possa ser perfeitamente entendido em termos
de experiência humana, seria desconhecer inteiramente a natureza da analogia. Santo Tomás não
era um racionalista, embora admitisse que podemos chegar a aliqualis cognitio Dei. A infinitud
do objeto, Deus, quer dizer que a mente humana finita não pode obter uma ideia adequada e
perfeita da natureza de Deus; mas não significa que não possa atingir uma noção imperfecta e
inadequada da natureza de Deus. Saber que Deus entende, é saber algo positivo a respeito de
Deus, já que nos diz, no mínimo, que Deus não é irracional como uma pedra ou uma planta,
ainda que saber o que é em si mesmo o entendimento divino exceda nossa capacidade de
entendimento.

Voltemos ao exemplo da personalidade. A afirmação de que Deus é pessoal depende do


argumento de que o Ser Necessário e Causa Primeira não pode ser menos perfeito que o que
procede e depende de O. Por outra parte, a psicologia e a epistemología aristotélico-tomistas não
permitem dizer que uma argumentación dessa classe proporcione uma ideia adequada do que é
em si mesma a personalidade divina. Se pretende-se que se possui dita ideia, esta seria derivada
da experiência. Na prática, isso significaria que teria que afirmar que Deus é uma pessoa, de
onde se seguiria uma contradição entre a revelação e a filosofia. Pelo contrário, se reconhece-se
que pela só argumentación filosófica não é possível chegar a uma ideia adequada da
personalidade divina, se reconhecerá que todo o que temos direito a dizer desde o ponto de vista
filosófico é que Deus é pessoal, não que Deus seja uma pessoa. Quando a revelação nos informa
de que Deus é três pessoas em uma só natureza, nosso conhecimento de Deus aumenta, sem que
isso suponha uma contradição entre a teología e a filosofia. Ademais, quando dizemos que Deus
é pessoal, tal afirmação deve ser entendido no sentido de que Deus não é menos que o que
experimentamos como personalidade, que personalidade deve ser dado em Deus da única
maneira em que pode ser dado em um Ser Infinito. Se se objeta que aí há uma petição de
princípio, já que a questão é precisamente a de se são compatíveis a personalidade e a infinitud,
pode ser replicado que as provas em favor da personalidade de Deus e de sua infinitud são
independentes, de maneira que sabemos que personalidade e infinitud devem ser compatíveis,
ainda que não tenhamos experiência direta da personalidade divina nem da infinitud divina. Que
nossa ideia da personalidade divina tem algum conteúdo positivo se manifesta pelo fato de que
o significado da proposição “Deus é superpersonal” (isto é, mais que o que experimentamos
diretamente como pessoal) é diferente do significado da proposição “Deus não é pessoal” (isto
é, em nenhum sentido, como não é pessoal a pedra). Se tivéssemos razões para achar que Deus
não é pessoal, no sentido em que dizemos da pedra que não é pessoal, seria patente a inutilidad
do culto e da oração; mas a afirmação de que Deus é pessoal sugere imediatamente que o culto
e a oração fazem sentido, embora nos falte uma ideia adequada do que seja em si mesmo a
personalidade divina. De um Ser Infinito não podemos ter senão um conhecimento finito e
analógico, precisamente porque nós somos finitos. Mas um conhecimento finito e imperfecto
não é o mesmo que ausência total de conhecimento.
Capítulo XXXIX
São Tomás de Aquino. - IX: Teoria moral

Tratar em detalhe a teoria moral de santo Tomás seria aqui impracticable, mas a discussão
de alguns pontos importantes pode ajudar a pôr em claro seu relacionamento com a ética
aristotélica.

1. Eudemonismo.

Em sua Ética a Nicómaco, Aristóteles argumenta que todo agente faz por um fim, e que o
agente humano obra pela felicidade, com vistas à aquisição da felicidade. A felicidade, diz
Aristóteles, tem de consistir em uma atividade, e primordialmente na atividade que aperfeiçoa a
mais alta das faculdades do homem, dirigida aos objetos mais elevados e nobres. O filósofo
conclui, em consequência, que a felicidade humana consiste primordialmente na theoria, na
contemplação dos objetos mais elevados, principalmente na contemplação do Motor Imóvel,
Deus, embora o desfrute de outros bens, como a amizade e (moderadamente) os bens externos,
é necessário para aperfeiçoar a felicidade[744]. A ética de Aristóteles era, pois, de caráter
eudemonista, teleológieo e marcadamente intelectualista, pois está claro que, para o estagirita,
contemplação significava contemplação filosófica; Aristóteles não se referia a um fenômeno
religioso, como o êxtase de Plotino. Ademais, o fim (telos) da atividade moral é um fim a
adquirir nesta vida. Na ética de Aristóteles não se encontra a menor insinuación de uma visão
de Deus em uma vida futura, e não é nada seguro que ele pessoalmente cresse na imortalidade
pessoal. O “homem verdadeiramente feliz” de Aristóteles é o filósofo, não o santo.

Agora bem, santo Tomás adotou um ponto de vista eudemonista e teleológieo similar, e sua
teoria a respeito do fim da conduta humana é em algumas feições intelectu alista, mas não
demora em se deixar advertir uma mudança de énfasis que marca uma diferença muito
considerável entre sua teoria ética e a de Aristóteles. Os únicos atos do homem que caem
propriamente dentro do campo da moral são os atos livres, aqueles atos que procedem do homem
precisamente como homem, como um ser racional e livre. Esses atos humanos (actiones
humanae, a diferença de actiones hominis) procedem da vontade, e o objeto da vontade é o bem
(bonum). Constitui uma prerrogativa do homem o fazer em vistas a um fim que prendeu, e todo
ato humano é executado em vistas a um fim preso; mas o fim ou bem particular, para cujo lucro
é executado um ato humano particular, não pode aperfeiçoar nem satisfazer a vontade humana,
orientada ao bem universal e que somente pode encontrar satisfação no bem universal. Qual é o
bem universal em concreto? Não pode consistir nas riquezas, por exemplo, já que as riquezas
são simplesmente um médio para um fim, enquanto o bem universal é necessariamente fim
último, e não pode ser a sua vez médio para um fim ulterior. Também não pode consistir no
prazer sensível, já que este somente aperfeiçoa ao corpo, não ao homem inteiro; nem pode
consistir no poder, que não aperfeiçoa a todo o homem nem satisfaz completamente a vontade,
e do que, ademais, pode ser abusado, enquanto é inconcebível que possa ser abusado do bem
universal e último ou que este possa ser empregado para um propósito indigno ou mau. Nem
sequer pode consistir na consideração das ciências especulativas, já que é indudable que a
especulação filosófica não satisfaz completamente ao intelecto nem à vontade humana. Nosso
conhecimento natural obtém-se a partir da experiência sensível; mas o homem aspira ao
conhecimento da causa última tal como é em si mesma, e esse conhecimento não pode ser
adquirido pela metafísica. Aristóteles disse que o bem do homem consiste na consideração das
ciências especulativas, mas ele falava de uma felicidade imperfecta, segundo pode ser obtido
nesta vida. A perfeita felicidade, o fim último, não tem de buscar em nenhuma coisa criada,
senão somente em Deus, o Bem supremo e infinito. Deus é o bem universal em concreto, e
embora é o fim de todas as coisas, tanto das criaturas racionais como das irracionais, unicamente
as criaturas racionais podem atingir esse bem último por via de conhecimento e amor: somente
as criaturas racionais podem chegar à visão de Deus, onde unicamente se encontra a felicidade
perfeita. Nesta vida o homem pode conhecer que Deus existe, e pode atingir uma noção
analógica e imperfecta da natureza de Deus, mas somente na vida futura pode conhecer a Deus
como é em Si mesmo, e nenhum outro fim pode satisfazer plenamente ao homem[745].

Aristóteles, diz santo Tomás, falava de uma felicidade imperfecta, tal como pode ser
conseguido nesta vida; mas Aristóteles, segundo indiquei já, nada diz em seu Etica de outra
felicidade. A ética de Aristóteles era uma ética da conduta humana nesta vida, enquanto santo
Tomás não procede ao desenvolvimento da ética sem dantes tomar em consideração a felicidade
perfeita que somente pode ser conseguido na vida futura, uma felicidade que consiste
principalmente na visão de Deus, embora inclua, desde depois, a satisfação da vontade, enquanto
outros bens, como a sociedade dos amigos, contribuem ao bene esse da beatitud, embora nenhum
bem, exceto Deus, é necessário para a felicidade[746]. Em seguida vemos, pois, que a teoria moral
de santo Tomás se move em um plano diferente do da de Aristóteles, pois, por muito que santo
Tomás se valha da linguagem aristotélico, a introdução da vida futura e da visão de Deus na
teoria moral é estranha ao pensamento de Aristóteles[747]. O que em Aristóteles se chama
felicidade é em São Tomás de Aquino felicidade imperfecta, ou felicidade temporária, ou a
felicidade que pode ser atingido nesta vida, e o aquinatense vê essa felicidade imperfecta como
ordenada à felicidade perfeita, que só pode ser atingido na vida futura e que consiste
principalmente na visão de Deus.

2. A visão de Deus.

A afirmação de santo Tomás de que a felicidade perfeita do homem consiste na visão de


Deus suscita um problema verdadeiramente difícil para todo intérprete da teoria moral do santo,
um problema que tem uma importância muito maior do que ao princípio pode parecer. O modo
comum de apresentar a ética de santo Tomás consistiu em assimilar esta à ética de Aristóteles
até onde isso é compatível com a posição do aquinatense como cristão, e em dizer que santo
Tomás, como filósofo moral, considera ao homem “na ordem natural”, sem referência a seu fim
sobrenatural. Quando o santo fala de beatitud como um filósofo moral, se referiria, pois, à
beatitud natural, isto é, àquele lucro do Bem Supremo, Deus, que é acessível ao homem na ordem
natural, sem que seja necessária a graça sobrenatural. O que lhe distinguiria de Aristóteles seria,
pois, que, a diferença deste, o aquinatense introduz a consideração da vida futura, a propósito
da qual Aristóteles nada diz. A beatitud consistiria principalmente no conhecimento natural e no
amor natural de Deus tal como pode ser atingido nesta vida (beatitud natural imperfecta) e tal
como pode ser atingido na vida futura (beatitud natural perfeita). Serão boas aquelas ações que
conduzem ao lucro da beatitud ou são compatíveis com este, enquanto seriam más as ações
incompatíveis com a beatitud. O fato de que santo Tomás fale do lucro da visão da essência
divina (que é o fim sobrenatural do homem, e não pode ser atingido sem a graça sobrenatural)
quando devíamos esperar que continuasse falando como um filósofo moral, se deveria, então, a
que na prática não separa metodicamente os campos do filósofo e do teólogo, e fala umas vezes
como o um e outras como o outro, sem dar uma clara indicação da mudança. Outra possibilidade
seria a de explicar as referências à visão de Deus como se significassem não a visão sobrenatural
da essência divina, senão meramente o conhecimento de Deus que poderia atingir o homem na
vida futura se não tivesse um fim sobrenatural. De uma ou outra dessas maneiras poderia ser
feito de santo Tomás um filósofo moral que completou a ética aristotélica mediante a introdução
de uma consideração da vida futura.

Desgraçadamente para os mantenedores dessa interpretação, não somente santo Tomás


parece referir à visão de Deus em seu sentido próprio, senão que inclusive fala de um “desejo
natural” de visão de Deus. “A beatitud última e perfeita somente pode consistir na visão da
essência divina.” Isso, dizem alguns comentaristas, não faz referência à visão de Deus como
bem supremo, como O é em si mesmo, senão só à visão de Deus como causa primeira. Mas,
como poderia santo Tomás falar do conhecimento de Deus como causa primeira como se tal
conhecimento fosse ou pudesse ser uma visão da essência divina? Pela luz natural da razão
podemos conhecer que Deus é causa primeira, mas santo Tomás afirma que “para a perfeita
beatitud se precisa que o entendimento possa chegar à essência mesma da causa primeira”[748].
E, em outro local, “a beatitud última consiste na visão da essência divina, que é a essência mesma
da bondade”[749]. Para o lucro dessa visão há no homem um desejo natural: o homem deseja de
um modo natural conhecer a essência, a natureza da causa primeira[750]. Estivesse ou não
acertado santo Tomás ao dizer isso, me parece inconcebível que pretendesse significar
simplesmente o que Cayetano chama uma potentia obedientialis. Que pode ser um “desejo
natural”, se não é algo positivo? Por outra parte, não pode ser suposto que santo Tomás
pretendesse negar o caráter sobrenatural e gratuito da visão beatífica. Alguns comentaristas
(Suárez, por exemplo) têm-se desembarazado da dificuldade dizendo que santo Tomás se referia
à presença no homem de um desejo natural condicional, isto é, condicionado a que Deus elevasse
ao homem à ordem sobrenatural e lhe desse os meios de atingir seu fim sobrenatural. Essa é,
sem dúvida, uma posição razoável; mas, terá que supor que por “desejo natural” santo Tomás
entendesse algo mais que o desejo de conhecer a natureza da causa primeira, a saber, um desejo
que, em concreto, isto é, dada a elevação do homem à ordem sobrenatural e sua destinación a
um fim sobrenatural, significa um desejo de visão de Deus? Em outras palavras, eu sugiro que
santo Tomás considera ao homem em concreto, e que, quando diz que há no homem um “desejo
natural” de conhecer a essência de Deus, e, portanto, de atingir a visão de Deus, entende que o
desejo natural do homem de conhecer o mais possível da última causa, é, na ordem concreta e
real, um desejo de ver a Deus. O mesmo que a vontade somente pode atingir satisfação e repouso
na posse de Deus, assim o entendimento está fato para a verdade e somente pode ser satisfeito
com a visão da verdade absoluta.

Pode objetarse que isso implica, ou bem que o homem tem um desejo natural da visão
beatífica (na acepción do termo “natural” que se opõe a “sobrenatural”), e nesse caso é difícil
salvar a gratuidad da ordem sobrenatural, ou bem que por “natural” santo Tomás não entende
outra coisa que o que frequentemente entendemos por essa palavra, como oposta a “antinatural”
mais bem que a “sobrenatural”, o qual é interpretar ao santo de uma maneira arbitrária e
injustificable. Mas o que eu sugiro é que santo Tomás fala aqui como poderia falar Santo
Agostinho, que considera ao homem em concreto, como vocado a um fim sobrenatural, e que,
quando diz que o homem tem um desejo natural de conhecer a essência de Deus, não pretende
que o homem, em um hipotético “estado de natureza”, tivesse semelhante desejo natural, nem
absoluto nem condicionado, de ver a Deus, senão simplesmente que o termo do movimento
natural do entendimento humano para a verdade é, de facto, a visão de Deus, não porque o
entendimento humano possa por si mesmo ver a Deus, nesta vida ou na outra, senão porque, de
facto, o fim do homem é unicamente o fim sobrenatural. Não acho que santo Tomás considere
no mais mínimo o hipotético estado de natureza quando fala do desiderium naturale, e, se tenho
razão, isso significa evidentemente que a teoria moral tomista não é nem pode ser uma teoria
puramente filosófica. A teoria moral de santo Tomás é em parte filosófica e em parte teológica:
o aquinatense utiliza a ética filosófica, mas adapta-a a uma montagem cristã. Após tudo, o
próprio Aristóteles considerava ao homem em concreto, na medida em que ele sabia o que é
realmente o homem em concreto; e santo Tomás, que sabia muito melhor que Aristóteles o que
o homem em concreto é realmente, tinha uma perfeita justificativa para utilizar o pensamento
de Aristóteles quando o achava correto e o encontrava compatível com o ponto de vista cristão.

É inteiramente verdadeiro que santo Tomás fala de beatitud imperfecta, do bem temporário
do homem, etc.; mas isso não significa que considere ao homem em um hipotético estado de
pura natureza. Se santo Tomás diz que a Igreja foi instituída para ajudar ao homem a atingir seu
fim sobrenatural, e o Estado para ajudar ao homem a conseguir seu bem temporário, seria
absurdo concluir que ao considerar ao homem em seu relacionamento ao Estado lhe estivesse
considerando em uma condição puramente hipotética: santo Tomás considera ao homem real
em certas feições ou funções. Não é que ele ignore o fato de que o lucro do verdadeiro fim do
homem excede da só capacidade deste, senão que em sua teoria moral considera ao homem
como orientado ou vocado àquele fim. Ao responder à pergunta de se a beatitud, uma vez
atingida, pode ser perdido, santo Tomás diz que a beatitud imperfecta desta vida pode ser
perdido, mas que a beatitud perfeita da vida futura não pode ser perdido, já que é impossível que
o que viu uma vez a essência divina deseje não a ver[751]. Isso mostra com bastante clareza que
santo Tomás fala da beatitud sobrenatural. Na resposta à segunda objeción, diz que a vontade
está ordenada ao fim último por uma necessidade natural[752]; mas isso não significa nem que o
fim último em questão seja puramente natural, nem, se é sobrenatural, que Deus não pudesse ter
criado ao homem sem dirigir a esse fim. A vontade deseja necessariamente a felicidade, a
beatitud, e, de facto, essa beatitud somente pode ser encontrado na visão de Deus. Podemos
dizer, pois, que o ser humano concreto deseja necessariamente a visão de Deus.
Parece-me que essa interpretação fica confirmada pela doutrina da Summa contra Gentiles.
Em primeiro lugar[753], santo Tomás argumenta que o fim de toda substância intelectual é
conhecer a Deus. Todas as criaturas estão ordenadas a Deus como a seu fim último[754], e as
criaturas racionais estão ordenadas a Deus principal e peculiarmente por via de sua faculdade
mais elevada, o entendimento. Mas embora o fim e a felicidade do homem têm que consistir
principalmente no conhecimento de Deus, este não é aquele conhecimento que se obtém
filosoficamente, por demonstração. Por demonstração chegamos a conhecer mais bem o que
Deus não é o que é, e o homem não pode ser feliz a não ser que conheça a Deus como O é [755].
Nem também não pode consistir a felicidade humana no conhecimento de Deus que se obtém
pela fé, ainda que pela fé possamos chegar a conhecer mais coisas a respeito de Deus que as que
podemos aprender pelas demonstrações filosóficas. O “desejo natural” satisfaz-se pelo lucro do
fim último, a felicidade completa, mas “o conhecimento por fé não satisfaz o desejo, senão que
mais bem o excita, já que todo mundo deseja ver aquilo que acha”[756]. O fim último e a
felicidade do homem devem consistir, pois, na visão de Deus tal como O é em Si mesmo, na
visão da essência divina, uma visão que nos foi prometida nas Escrituras e pela que o homem
verá a Deus “cara a cara”[757]. Basta com ler a santo Tomás para dar-se conta de que está falando
da visão da essência divina em seu sentido próprio. Por outra parte, basta com ler a santo Tomás
para dar-se conta de que ele tem clara consciência de que “nenhuma substância criada possa,
por sua capacidade natural, chegar a ver a Deus em sua essência”[758] e de que para atingir essa
visão se precisam uma elevação e uma ajuda sobrenaturales.[759]

Que devemos dizer, em definitiva, do “desejo natural”? Não diz explicitamente santo Tomás
que “já que é impossível que um desejo natural seja em vão (inane), e já que esse seria o caso se
não fosse possível chegar ao conhecimento da substância divina, conhecimento que todas as
mentes desejam naturalmente, é necessário dizer que é possível que a substância de Deus seja
vista pelo entendimento”[760], ainda que a essa visão não possa ser chegado na vida presente?[761]
Se há realmente um desejo natural de visão de Deus, não fica comprometido o caráter gratuito
da beatitud sobrenatural? Em primeiro lugar, podemos fazer uma vez mais a observação de que
santo Tomás enuncia explicitamente que o homem não pode atingir a visão de Deus por seus
próprios esforços; tal consigo somente faz-se possível mediante a graça de Deus, segundo o
santo afirma inequivocamente[762]. Mas é realmente difícil ver como a graça, que é o único que
faz possível o lucro do fim último, não é em verdadeiro sentido devida ao homem, se há um
“desejo natural” de ver a Deus e se é impossível que um desejo natural seja em vão. Talvez não
seja possível chegar a uma conclusão definitiva quanto ao que santo Tomás entendia
precisamente por desiderium naturale nesse contexto; mas parece legítimo supor que
considerava o desejo natural do entendimento de conhecer a verdade absoluta, à luz da ordem
real e concreto. O entendimento do homem tem uma inclinação natural para a felicidade, que
deve consistir primariamente no conhecimento da verdade absoluta; mas o homem, na ordem
real concreto, foi destinado a um fim sobrenatural, e não pode ser satisfeito por nada inferior.
Considerando o desejo natural à luz dos fatos conhecidos por revelação, pode ser dito, pois, que
o homem tem um “desejo natural” de visão de Deus. No De Veritate[763] diz santo Tomás que o
homem, segundo sua natureza, tem um apetito natural por aliqua contemplatio divinorum, tal
como é possível que o homem a obtenha por suas forças naturais, e que a inclinação desse desejo
para o fim sobrenatural e gratuito (a visão de Deus) é obra da graça. Como pode ser visto, nesse
local santo Tomás não admite um “desejo natural” em sentido estrito dirigido à visão de Deus,
e me parece razoável supor que, quando na Summa Theologica e na Summa contra Gentiles fala
do desejo natural da visão de Deus, não fala estritamente como filósofo[764], senão como filósofo
que é ao mesmo tempo teólogo, isto é, que pressupõe a ordem sobrenatural e interpreta os dados
da experiência à luz daquela presuposición. Em todo caso, o dito deve bastar para evidenciar a
diferença nos modos de ver o fim do homem próprios de Aristóteles e de santo Tomás.[765]

3. O bem e o mau.

Por conseguinte, a vontade deseja a felicidade, a beatitud, como seu fim, e os atos humanos
são bons ou maus na medida em que são ou não são médios para o lucro de dito fim. A felicidade
deve ser entendido, desde depois, em relacionamento ao homem como tal, ao homem como ser
racional: o fim é aquele bem que aperfeiçoa ao homem como ser racional, não, claro está, como
um entendimento desencarnado, já que o homem não é um entendimento desencarnado, senão
no sentido de que a perfección de suas tendências sensitiva e vegetativa deve ser cumprido em
subordinación a sua tendência primordial, que é a racional: o fim é aquilo que aperfeiçoa ao
homem como tal, e o homem como tal é um ser racional, não um mero animal. Todo ato humano
individual, isto é, todo ato deliberado, ou está de acordo com a ordem da razão (isto é, que seu
fim imediato está em harmonia com o fim último) ou está em desacordo com a ordem da razão
(isto é, que seu fim imediato é incompatível com o fim último), de modo que todo ato humano
é bom ou mau. Um ato indeliberado, como o ato refleto/reflito de espantar uma mosca, pode ser
“indiferente”; mas nenhum ato humano, deliberado, pode ser indiferente, nem bom nem
mau.[766]

4. As virtudes.

São Tomás de Aquino segue a Aristóteles ao tratar as virtudes morais ou intelectuais como
hábitos, como qualidades ou hábitos bons da mente, pelos que o homem vive rectamente[767]. O
hábito virtuoso forma-se mediante atos bons, e facilita a execução de atos subsiguientes para o
mesmo fim. É possível ter as virtudes intelectuais, a exceção da prudência, sem as virtudes
morais, e é possível ter as virtudes morais sem as virtudes intelectuais, a exceção da prudência
e a inteligência[768]. A virtude moral consiste em um meio-termo (in médio consistit). O objeto
da virtude moral é assegurar ou facilitar a conformidade à regra da razão na parte apetitiva da
alma; mas essa conformidade implica que se evitem os extremos do excesso e do defeito, que é
o que significa que o apetito ou paixão se reduza à regra da razão. Por suposto, se considera-se
simplesmente a conformidade à razão, a virtude é um extremo, e toda disconformidad com a
regra da razão, seja por excesso ou por defeito, constitui o outro extremo (dizer que a virtude
consiste em um meio-termo não isto é que consiste na mediocridad); mas se considera-se a
virtude moral com respeito à matéria à que se refere, a paixão ou apetito em questão, então se
vê que consiste em um meio-termo. A adoção dessa teoria de Aristóteles pode parecer que
dificulta a defesa da virginidad ou da pobreza voluntárias, por exemplo, mas santo Tomás
observa que a castidade completa, por exemplo, somente é virtuosa quando está em
conformidade com a razão alumiada por Deus. Se é observada de acordo com a vontade ou
convite de Deus e para o fim sobrenatural do homem, está de acordo com a regra da razão, e é
portanto um meio-termo, no sentido que santo Tomás dá à expressão: mas se é observada por
superstição ou por vanagloria, constitui um excesso. Em general, a virtude pode ser considerado
como um extremo em relacionamento a uma circunstância, e como um médio em
relacionamento a outra circunstância diferente[769]. Em outras palavras, o fator fundamental na
ação virtuosa é a conformidade à regra da razão que dirige os atos humanos a seu fim último.

5. A lei natural.

A regra de medida dos atos humanos é a razão, porque é à razão a quem corresponde dirigir
a atividade do homem para seu fim[770]. É, pois, a razão quem dá ordens, quem impõe
obrigações. Mas isso não significa que a razão seja a fonte arbitrária da obrigação, ou que possa
impor quaisquer obrigações que lhe agradem. O objeto imaginario da razão prática é o bem, que
tem natureza de fim, e a razão prática, ao reconhecer o bem como fim da conduta humana,
enuncia seu primeiro princípio Bonum est faciendum et prosequendum, et malum uitandum,
deve ser feito e buscar o bem, e deve ser evitado o mau[771]. Mas o bem para o homem é aquilo
que convém a sua natureza, aquilo ao que tem inclinação natural como um ser racional. O
homem tem, pois, em comum com todas as outras substâncias, uma inclinação natural à
preservación de sua ser, e a razão, refletindo sobre essa inclinação, ordena que se adotem os
meios necessários à preservación da vida. Ao inverso, o suicídio tem de evitar-se. Igualmente,
o homem, em comum com os demais animais, tem uma inclinação natural a propagar a espécie
e a criar filhos, e, como ser racional, tem uma inclinação natural a buscar a verdade,
especialmente a referente a Deus. A razão ordena, pois, que a espécie seja propagada e os filhos
educados, e que deve ser buscado a verdade, especialmente aquela verdade que é necessária para
a consecución do fim do homem. Por conseguinte, a obrigação é imposta pela razão, mas está
fundada imediatamente na natureza humana mesma; a lei moral é racional e natural, no sentido
de que não é arbitrária ou caprichosa: é uma lei natural, lex naturalis, que tem sua base na mesma
natureza humana, embora é enunciada e ditada pela razão.

Como a lei natural se fundamenta na natureza humana como tal, naquela natureza que é
idêntica em todos os homens, se refere primordialmente àquelas coisas que são necessárias à
natureza humana. Há, por exemplo, obrigação de conservar a própria vida, mas isso não significa
que a cada homem tenha de conservar sua vida exatamente da mesma maneira: o homem tem
que comer, mas daí não se segue que esteja obrigado a comer isto ou o outro, esta quantidade
ou esta outra. Em outras palavras, pode ter atos bons e conforme com a natureza sem ser
obrigatórios. Ademais, embora a razão vê que nenhum homem pode conservar sua vida sem
comer, e que nenhum homem pode ordenar rectamente sua vida sem algum conhecimento de
Deus, vê também que o preceito de propagar a espécie não se aplica ao indivíduo, senão à
multidão, e que se cumpre embora não o cumpram atualmente todos os indivíduos. (Essa seria
a resposta de santo Tomás à objeción de que a virginidad é contrária à lei natural.)[772]

Do fato de que a lei natural se fundamenta na natureza humana mesma se segue que não
pode ser mudada, já que a natureza humana se mantém fundamentalmente a mesma e é a mesma
para todos. A lei natural pode ser “incrementada”, no sentido de que a lei divina e a lei humana
podem promulgar preceitos úteis para a vida humana, embora esses preceitos não caiam
diretamente baixo a lei natural; mas não pode ser mudada, se por mudança se entende supressão
de preceitos da lei natural.[773]
Os preceitos primários da lei natural (por exemplo, a vida tem de ser conservada) são
inteiramente inmutables, já que seu cumprimento é absolutamente necessário para o bem do
homem, e são igualmente inmutables as conclusões próximas derivadas dos princípios
primários, embora santo Tomás admite que estes podem ser mudado em certos casos particulares
pouco numerosos e por razões especiais. Mas santo Tomás não pensa aqui no que nós chamamos
“casos difíceis”, senão em casos como o dos israelitas que se fizeram com os bens dos egípcios.
A ideia de santo Tomás é que, nesse caso, Deus, atuando como senhor e dono supremo de todas
as coisas mais bem que como legislador, transferiu a propriedade dos bens em matéria de os
egípcios aos israelitas, de maneira que estes realmente não cometeram roubo. Assim, a admissão
por santo Tomás da mutabilidad dos preceitos secundários da lei natural em casos particulares
se refere ao que os escolásticos chamam mutatio materiae mais bem que a uma mudança no
preceito mesmo; do que se trata é de que as circunstâncias do ato mudam de tal modo que já não
cai baixo a proibição, e não de que a proibição mesma se suprima.

Ademais, precisamente porque a lei natural fundamenta-se na mesma natureza humana, os


homens não podem a ignorar respecto dos princípios mais gerais, embora pela influência de
alguma paixão podem não aplicar um princípio a um caso particular. Quanto aos preceitos
secundários, os homens podem ignorá-los por preconceito ou paixão, e isso não é senão uma
razão mais pára que a lei natural seja confirmada pela lei divina positiva.[774]

6. A lei eterna e o fundamento da moralidad em Deus.

A obrigação, como vimos, vincula a vontade livre à realização daquele ato que é necessário
para a consecución do fim último, um fim que não é hipotético (que possa ser desejado ou não
o ser), senão absoluto, no sentido de que a vontade não pode por menos do desejar, o bem que
deve ser interpretado em termos da natureza humana. Até aqui a ética de santo Tomás segue de
perto à de Aristóteles. Não há algo mais? A lei natural, promulgada pela razão, não tem um
fundamento trascendental? A ética eudemonista de Aristóteles harmonizava, desde depois, com
sua perspetiva geral finalista; mas não se baseava em Deus, nem poderia ser tido baseado em
Deus, já que o Deus de Aristóteles não era criador nem exercia providência: era causa final, mas
não primeira causa eficiente nem causa instância suprema. No caso de santo Tomás, pelo
contrário, seria extraordinariamente estranho que a ética se deixasse sem uma conexão
demostrable com a metafísica, e em realidade encontramos essa conexão posta de relevo.

Envelope o suposto de que Deus cria e governa o mundo (a prova dessas proposições não
corresponde à ética) pode ser estabelecido que há que conceber a sabedoria divina como
ordenadora das ações humanas para seu fim. Deus, para dizê-lo em forma algo antropomórfica,
tem uma ideia: constitui a lei eterna. Como Deus é eterno, e sua ideia do homem e que se
requerem para a consecución do fim do homem, e a sabedoria divina, assim que dirige os atos
do homem à consecución desse fim, constitui a lei eterna. Como Deus é eterno, e sua ideia do
homem é eterna, a promulgación da lei é eterna ex parte De o, embora não é eterna ex parte
creaturae[775]. Essa lei eterna, existente em Deus, é a origem e fonte da lei natural, a qual é uma
participação da lei eterna. A lei natural expressa-se passivamente nas inclinações naturais do
homem, e é promulgada pela luz da razão como resultado da reflexão sobre ditas inclinações,
de maneira que, como todo homem possui naturalmente a inclinação a seu fim e possui também
a luz da razão, a lei eterna está suficientemente promulgada para todos os homens. A lei natural
é a totalidade dos ditados da reta razão a propósito do bem natural que tem de ser perseguido e
do mau da natureza do homem que tem de ser evitado, e a razão humana poderia chegar, ao
menos em teoria, por sua própria luz a um conhecimento desses ditados. Não obstante, como,
segundo já vimos, a influência da paixão e das inclinações que estão em desacordo com a reta
razão pode extraviar aos homens, e como não todos os homens têm o tempo, ou a capacidade,
ou a paciência que se requerem para descobrir por si mesmos a totalidade da lei natural, era
moralmente necessário que a lei natural fosse positivamente expressa por Deus, como o foi pela
revelação do Decálogo a Moisés. Deve ser acrescentado também que o homem tem de facto um
fim sobrenatural, e para que seja capaz de atingir esse fim sobrenatural era necessário que Deus
lhe revelasse a lei sobrenatural, além da lei natural. “Já que o homem está destinado ao fim da
beatitud eterna, que excede a capacidade da faculdade natural humana, era necessário que, além
da lei natural e da lei humana, fosse também dirigido àquele fim por uma lei posta por Deus.”[776]

É muito importante que se advirta com clareza que a fundamentación da lei natural na lei
eterna, a fundamentación metafísica da lei natural, não significa que a lei natural seja caprichosa
ou arbitrária, isto é, que poderia ser diferente de como é: a lei eterna não depende primariamente
da vontade divina, senão da razão divina, que considera a cria instância da natureza humana.
Dada a natureza humana, a lei natural não poderia ser de outro modo que como é. Por outra
parte, não devemos imaginar que Deus esteja submetido à lei moral, como algo aparte do
mesmo. Deus conhece sua essência como imitable em uma multiplicidad de modos finitos, um
dos quais é a natureza humana, e nessa natureza humana discierne Deus a lei de sua ser e a quer;
quê-la porque ama-se a si mesmo, como Bem Supremo, e porque não pode ser inconsecuente
consigo mesmo. A lei natural fundamenta-se, pois, ultimamente na essência divina mesma, e
por isso não pode mudar. Deus quer, indubitavelmente, a lei moral, mas esta não depende de um
ato arbitrário da vontade divina. Portanto, dizer que a lei moral não depende primariamente da
vontade divina não equivale nem muito menos a dizer que tenha uma lei moral que de alguma
misteriosa maneira se encontre para além de Deus e lhe governe. Deus é em Si mesmo o valor
supremo e a fonte e medida de todo valor: os valores dependem de O, mas no sentido de que são
participações ou reflexos finitos de Deus, não no sentido de que Deus lhes confira
arbitrariamente seu caráter de valores. A doutrina da fundamentación metafísica, teísta, da lei
moral não ameaça em modo algum seu caráter racional e necessário: em definitiva, a lei moral
é a que é porque Deus é o que é, já que a mesma natureza humana, a lei de cujo ser se expressa
na lei natural, depende de Deus.

7. Virtudes naturais reconhecidas por santo Tomás que não era


reconhecidas por Aristóteles; a virtude de religião.

Finalmente, pode ser observado que o reconhecimento por santo Tomás de que Deus é
Criador e Senhor supremo, lhe conduziu, o mesmo, desde depois, que a outros escolásticos, a
reconhecer valores naturais que Aristóteles não teve em conta, nem lhe era possível ter em conta
dada sua ideia de Deus. Sirva de exemplo a virtude da religião (religio). A religião é a virtude
pela qual os homens tributan a Deus o culto e reverência que lhe devem como “primeiro
Princípio da criação e do governo das coisas”. É superior às outras virtudes morais, já que
relaciona-se mais intimamente a Deus, o fim último[777]. Está subordinada à virtude da justiça
(como uma virtus annexa), assim que por médio da virtude da religião o homem paga a Deus
sua dívida de culto e honra, uma dívida que se lhe deve em justiça[778]. A religião fundamenta-
se, assim, no relacionamento do homem a Deus, como criatura a Criador, como súbdito a Senhor.
Aristóteles, que não considerava a Deus como Criador nem lhe concebia exercendo um governo
e providencia conscientes, senão que lhe entendia somente como causa final, fechada em si
mesma e atraindo ao mundo inconscientemente, não podia ver um relacionamento pessoal entre
o homem e o Motor imóvel, embora esperava, desde depois, que o homem concedesse em
verdadeiro sentido honra ao Motor imóvel, como o mais nobre objeto de contemplação
filosófica. Santo Tomás, em mudança, com sua clara ideia de Deus como Criador e como
Governador providente do universo, podia ver, e viu, como dever primordial do homem a
expressão em ato do relacionamento, vinculada a seu mesmo ser. O homem virtuoso de
Aristóteles é, em verdadeiro sentido, o mais independente dos homens, enquanto o homem
virtuoso de São Tomás de Aquino é, em verdadeiro sentido, o mais dependente dos homens, isto
é, o homem que verdadeiramente reconhece e que expressa plenamente seu relacionamento de
dependência respecto de Deus.
Capítulo XL
São Tomás de Aquino. - X: Teoría política

1. Santo Tomás e Aristóteles.

A teoria ética ou teoria da vida moral de santo Tomás está baseada filosoficamente na teoria
moral de Aristóteles, embora santo Tomás complementou-a com uma base teológica que faltava
na teoria de Aristóteles. Ademais, a teoria tomista complica-se pelo fato de que santo Tomás
achava, como cristão, que o homem, de facto, tem somente um fim, um fim sobrenatural, de
modo que uma ética puramente filosófica tinha que ser a seus olhos um script insuficiente na
prática; singelamente, santo Tomás não podia adotar por completo o aristotelismo. O mesmo
pode ser dito de sua teoria política, na qual adotou a estrutura geral da doutrina aristotélica; mas,
ao mesmo tempo, teve que deixar sua própria teoria política “aberta”. Aristóteles supunha, sem
dúvida, que o Estado satisfazia, ou podia satisfazer idealmente, todas as necessidades dos
homens[779]. Mas santo Tomás não podia sustentar isso, dado que ele achava que o fim do
homem é um fim sobrenatural, e que é a Igreja, e não o Estado, a que provee a dito fim. Isso
significava que um problema que não foi nem pôde ser tratado por Aristóteles, o problema dos
relacionamentos entre Igreja e Estado, tinha que ser tratado por santo Tomás, o mesmo que pelos
demais pensadores medievais que se tinham ocupado de teoria política. Em outras palavras,
embora santo Tomás tomou muitas coisas de Aristóteles no referente ao objeto e ao método de
estudo da teoria política, considerou a matéria à luz da perspetiva medieval cristã, e modificou
ou complementou sua aristotelismo de acordo com as exigências da fé cristã. Os marxistas
gostarão de indicar a influência das condições econômicas, sociais e políticas, da Idade Média
na teoria de santo Tomás, mas a diferença importante entre Aristóteles e santo Tomás não é a de
que Aristóteles vivesse em uma cidade-Estado grega e o santo de Aquino na época do
feudalismo, senão mais bem a de que para o primeiro o fim natural do homem é autosuficiente
e se consegue mediante a vida no Estado enquanto para o aquinatense o fim do homem é
sobrenatural e só pode ser conseguido plenamente na vida futura. Que a amalgama do
aristotelismo com a perspetiva cristã do homem e do fim deste constitua uma síntese plenamente
coerente ou uma associação algo frágil, é outra questão; no que insistimos pelo momento é em
que é um erro carregar muito o acento na influência das condições medievais envelope o
pensamento de santo Tomás, e não tanto na influência da religião cristã como tal, que não nasceu
na Idade Média nem se limita à Idade Média. A forma precisa que tomou o problema dos
relacionamentos entre a Igreja e o Estado deve ser vista, indubitavelmente, à luz das condições
medievais; mas, em definitiva, o problema resulta da confrontación de duas diferentes
concepções do homem e de seu destino; o modo preciso de seu formulación em qualquer época
determinada e por qualquer pensador determinado, é algo acidental.

2. A origem natural da sociedade humana e do governo.

O Estado é para santo Tomás, como pára Aristóteles, uma instituição natural fundamentada
na natureza do homem. Ao começo de seu De regimine principum[780], o aquinatense argumenta
que toda criatura tem seu próprio fim, e que enquanto algumas criaturas atingem seu fim de um
modo natural, necessário e instintivo, o homem tem de ser guiado por sua razão para o conseguir.
Mas o homem não é um indivíduo isolado que possa atingir seu fim simplesmente como um
indivíduo, mediante a utilização de sua própria razão individual; o homem é, por natureza, um
ser social ou político, nascido para viver em comunidade com outros homens. De fato, o homem
precisa da sociedade mais do que a precisam outros animais. Porque, enquanto a natureza
proporcionou aos animais vestido, meios de defesa, etc., deixou ao homem desprovisto deles,
em uma condição na que tem de proveer por si mesmo mediante o uso de sua razão, e isso só o
pode fazer mediante a cooperação com outros homens. É necessária a divisão do trabalho, pela
qual um homem pode ser dedicado à medicina, outro à agricultura, etc. Mas o signo mais
evidente da natureza social do homem é sua faculdade de expressar suas ideias a outros homens
por médio da linguagem. Outros animais podem expressar seus sentimentos mediante signos
muito gerais, mas o homem pode expressar seus conceitos de um modo completo (totaliter). Isso
evidencia que o homem está naturalmente adaptado à sociedade, mais que qualquer outro animal
gregario, mais, inclusive, que as hormigas e as abejas.

A sociedade é, pois, natural ao homem. Mas, se a sociedade é natural, também o é, o governo.


O mesmo que os corpos dos homens e dos animais se desintegran quando o princípio que lhes
dirige e unifica (a alma) lhes abandonou, assim a sociedade humana tende a disgregarse, dada,
a multidão de seres humanos e as preocupações egoístas destes, a não ser que tenha alguém que
se encarregue de pensar no bem comum e de dirigir as atividades dos indivíduos com vistas a
esse bem comum. Onde quer que tenha uma multidão de criaturas com um bem comum a atingir,
deve ter algum poder comum dirigente. No corpo há um membro principal: a cabeça ou o
coração; o corpo é governado pela alma, e na alma as partes concupiscible e irascible são
governadas pela parte racional; no universo em general os corpos inferiores são governados
pelos superiores, segundo as disposições da providência divina. Por conseguinte, o que vale para
o universo em general, e para o homem como indivíduo, deve valer também para a sociedade
humana.

3. A sociedade humana e a autoridade política, queridas por Deus.

Se a sociedade e o governo humanos são naturais, estão prefigurados na natureza humana,


segue-se que têm justificada em Deus sua autoridade, já que a natureza humana foi criada por
Deus. Ao criar ao homem, Deus quis a sociedade humana e o governo político, e não temos
direito a dizer que o Estado seja simplesmente o resultado do pecado. Se ninguém fizesse mau,
algumas atividades e instituições do Estado se fariam desnecessárias; mas inclusive no estado
de inocência, se tivesse-se mantido, deveria ter tido uma autoridade que se cuidasse do bem
comum. “O homem é por natureza um animal social. Daí que, no estado de inocência, os homens
viveria em sociedade. Mas uma vida social comum de muitos indivíduos não poderia existir a
não ser que tivesse alguém para dirigir e atender ao bem comum.”[781] Ademais, inclusive no
estado de inocência teria alguma desigualdade nas capacidades, e se um homem fosse
especialmente eminente em conhecimento e retitude, não seria conveniente que não tivesse a
oportunidade de ejercitar sua sobresaliente talento para o bem comum, mediante a direção das
atividades comuns.

4. A Igreja e o Estado.

Ao declarar ao Estado uma instituição natural, santo Tomás deu-lhe, em verdadeiro sentido,
um fundamento utilitario; mas seu utilitarismo é aristotélico; é indudable que o aquinatense não
se limita a considerar o Estado como uma criação do egoísmo ilustrado. Santo Tomás
reconheceu, desde depois, a força do egoísmo e sua tendência centrífuga respecto da sociedade;
mas reconheceu também a tendência e impulso social no homem, e é essa tendência social a que
faz com que a sociedade possa ser mantido apesar da tendência egoísta. Hobbes, ao considerar
o egoísmo como único impulso fundamental, teve de buscar o princípio prático da coesão na
força, uma vez fundada a sociedade pelos ditados prudentes do egoísmo ilustrado; mas, em
realidade, nem o egoísmo ilustrado nem a força seriam suficientes para assegurar a duração da
sociedade se o homem não tivesse, por natureza, uma tendência social. Em outras palavras, o
aristotelismo cristianizado de São Tomás de Aquino permitiu a este evitar ao mesmo tempo a
noção de que o Estado é consequência do pecado original, noção à que ao que parece tendeu
Santo Agostinho, e a noção de que o Estado é simplesmente uma criação do egoísmo. O Estado
encontra-se prefigurado na natureza humana, e, como a natureza humana foi criada por Deus, o
Estado é querido por Deus. Daí segue-se a importante consequência de que o Estado é uma
instituição por direito próprio, com um fim próprio e uma esfera própria. Por conseguinte, santo
Tomás não podia adotar uma posição extremista no problema dos relacionamentos entre o
Estado e a Igreja; não podia, sem cair em uma inconsecuencia lógica, converter à Igreja em um
Súper-Estado e ao Estado em uma espécie de dependência da Igreja. O Estado é uma “sociedade
perfeita” (communitas perfeita), isto é, tem ao seu dispor todos os meios necessários para a
consecución de seu próprio fim, o bonum commune dos cidadãos[782]. A consecución do bem
comum exige em primeiro lugar a paz dentro do Estado, entre os cidadãos; em segundo local, a
direção unificada das atividades dos cidadãos ad bene agendum; em terceiro local, que se provea
adequadamente às necessidades da vida; e o governo do Estado institui-se para assegurar essas
condições necessárias para o bem comum. Também é necessário para o bem comum que os
obstáculos para a boa vida, tais como o perigo dos inimigos de fora e os efeitos desintegradores
do crime no interior do Estado, sejam superados, e o monarca tem ao seu dispor os meios
necessários para o fazer, a saber, as forças armadas e o sistema judicial[783]. O fim da Igreja, um
fim sobrenatural, é mais elevado que o do Estado, de modo que a Igreja é uma sociedade superior
ao Estado, o qual deve subordinarse à Igreja em assuntos referentes à vida sobrenatural; mas
isso não altera o fato de que o Estado é uma “sociedade perfeita”, autônoma dentro de sua esfera
própria. Em termos da teología posterior, santo Tomás deve ser reconhecido, pois, como um
defensor da teoria do poder indireto da Igreja sobre o Estado. Quando o Dante, em seu De
Monarehia, reconhece as duas esferas diferentes da Igreja e do Estado, está de acordo com santo
Tomás, ao menos relativo à feição aristotélico da teoria política deste.[784]
Mas a tentativa de síntese entre a ideia aristotélica de Estado e a ideia cristã de Igreja foi
algo precária. No De regimine principum[785], santo Tomás declara que o fim da sociedade é a
vida boa, e que a vida boa é uma vida segundo a virtude, de modo que o fim da sociedade humana
é a vida virtuosa. A seguir observa que o fim último do homem não é viver virtuosamente, senão
viver virtuosamente para chegar a desfrutar de Deus, e que o lucro desse fim excede das
possibilidades da natureza humana. “Porque o homem não atinge o fim do desfrute de Deus por
poder humano, senão por poder divino, segundo as palavras do Apóstolo, “a graça de Deus, vida
eterna”[786], conduzir ao homem a esse fim não corresponde à lei humana, senão à divina”: a
condução do homem a seu fim último confia-se a Cristo e sua Igreja, de maneira que baixo a
nova Aliança cristã, os reis devem estar submetidos aos sacerdotes. Santo Tomás reconhece,
sem dúvida, que o rei tem em suas mãos a direção dos assuntos humanos e terrenales, e seria
equivocado interpretar no sentido de que negasse que o Estado possui sua própria esfera; mas
faz questão de que ao rei lhe corresponde tentar a vida boa de suas súbditos com atenção ao
lucro da beatitud eterna: “deve ordenar aquelas coisas que conduzem à beatitud celestial e
proibir, na medida do possível, as contrárias”[787]. O ponto está em que santo Tomás não diz que
o homem tenha dois fins últimos, um fim temporário do que se cuida o Estado, e um fim
sobrenatural, eterno, do que se cuida a Igreja; o que diz é que o homem tem um fim último, um
fim sobrenatural, e que é tarefa do monarca, em sua direção dos assuntos terrenales, facilitar o
lucro daquele fim[788]. O poder da Igreja sobre o Estado não é uma potestas direta, já que é ao
Estado, e não à Igreja, ao que corresponde cuidar dos assuntos econômicos e da conservação da
paz; mas o Estado deve ser cuidado desses assuntos com um olho posto no fim sobrenatural do
homem. Em outras palavras, bem está que o Estado seja uma “sociedade perfeita”, mas a
elevação do homem à ordem sobrenatural significa que o Estado é em muito importante medida
um assistente da Igreja. Esse ponto de vista baseia-se não tanto nas práticas medievais como na
fé cristã, e, greve o dizer, não é uma opinião de Aristóteles, que nada sabia de um fim eterno e
sobrenatural do homem. Não tratei de negar que há uma verdadeira síntese entre a teoria política
aristotélica e as exigências da fé cristã no pensamento de santo Tomás; mas acho que a síntese
é, como já sugeri, algo precária. Se fizesse-se questão dos elementos aristotélicos, o resultado
teria que ser uma separação teorética da Igreja e o Estado de um tipo completamente estranho
ao pensamento de santo Tomás. Em realidade, a opinião do aquinatense quanto ao
relacionamento entre a Igreja e o Estado é semelhante a sua opinião sobre o relacionamento
entre a fé e a razão. A razão possui seu próprio campo, mas não por isso deixa a filosofia de ser
inferior à teología. Semelhantemente, o Estado tem sua esfera própria, mas não por isso deixa
de ser, em plenitude de sentido, um servente da Igreja. Ao inverso, se aderimo-nos ao Aristóteles
histórico tão estritamente que fazemos à filosofia absolutamente autônoma em seu próprio
campo, será natural que, na teoria política, tendamos a fazer ao Estado absolutamente autônomo
dentro de sua esfera própria: isso fizeram os averroistas, mas santo Tomás não foi um averroísta.
Podemos dizer, pois, que a teoria política de santo Tomás representa em certa medida a situação
de fato, na que o Estado nacional estava adquirindo consciência de si mesmo, mas na que a
autoridade da Igreja não era ainda expressamente repudiada. O aristotelismo de santo Tomás
permitiu a este apresentar o Estado como uma sociedade perfeita, mas sua cristianismo, sua
convicção de que o homem não tem mais que um fim último, lhe preveniu eficazmente contra o
perigo de converter ao Estado em uma sociedade absolutamente autônoma.
5. O indivíduo e o Estado.

Uma ambigüedad semelhante manifesta-se na doutrina tomista do relacionamento do


indivíduo ao Estado. Na Summa Theologica[789], santo Tomás observa que, já que a parte se
ordena ao todo como o que é imperfecto ao perfeito, e já que o indivíduo é uma parte da
sociedade perfeita, é necessário que a lei tenha sua olha na felicidade comum. É verdade que
santo Tomás trata simplesmente de evidenciar que a lei se interessa primordialmente pelo bem
comum, e não pelo bem do indivíduo, mas fala como se o cidadão individual estivesse
subordinado ao todo do que faz parte. O mesmo princípio de que a parte existe para o tudo, é
aplicado em outros vários locais por santo Tomás ao relacionamento do indivíduo à comunidade.
Por exemplo[790], o santo argumenta que é justo que a autoridade pública prive de sua vida a um
cidadão individual pelos crimes mais graves, se baseando em que o indivíduo se ordena à
comunidade, da que faz parte, como a um fim. E faz realmente uma aplicação do mesmo
princípio quando insiste, em seu Comentário à Etica[791], em que o valor se manifesta quando
se oferece a própria vida pelas melhore causas, como no caso de que um homem morra em
defesa de sua pátria.

Se esse princípio de que a parte se ordena ao tudo, que representa o aristotelismo de santo
Tomás, se levasse a suas últimas consequências, levaria à subordinación do indivíduo ao Estado
até um grau muito notável; mas santo Tomás insiste também em que quem busca o bem comum
da multidão busca igualmente seu próprio bem, já que o próprio bem não pode ser conseguido
a não ser que se consiga o bem comum, embora é verdade que no corpus do artigo em questão
observa que a reta razão julga que o bem comum é melhor que o bem do indivíduo [792]. Mas o
princípio não deve ser sobreestimado, já que santo Tomás era um filósofo e teólogo cristão além
de um admirador de Aristóteles, e era perfeitamente consciente, como já vimos, de que o fim
último do homem está fora da esfera do Estado. O homem não é simplesmente um membro do
Estado, e, em realidade, a coisa mais importante para ele é sua vocação sobrenatural. Não pode
ter, pois, “totalitarismo” algum em santo Tomás, embora é evidente que seu aristotelismo lhe
impedia aceitar uma teoria do Estado do tipo da de Herbert Spencer: o Estado tem uma função
positiva, e uma função moral. O ser humano é uma pessoa, com um valor próprio; não é
simplesmente um “indivíduo”.

6. A lei.

Que o totalitarismo é estranho ao pensamento de São Tomás de Aquino se põe claramente


de manifesto em sua teoria da lei e da origem e natureza da soberania. Há quatro classes de lei:
a lei eterna, a lei natural, a lei divina positiva e a lei humana positiva. A lei divina positiva é a
lei de Deus tal como foi positivamente revelada, imperfectamente aos judeus, perfeitamente
através de Cristo[793], e a lei do Estado é a lei humana positiva. Agora bem, a função do
legislador humano é primordialmente aplicar a lei natural[794] e apoiar a lei mediante
sanções[795]. Por exemplo, o assassinato está proibido pela lei natural, mas a razão mostra que
são desejáveis decretos positivos mediante os quais o assassinato seja claramente definido e se
lhe atribuam sanções, já que a lei natural por si mesma não define claramente o assassinato em
detalhe nem estabelece quais devam ser as sanções imediatas correspondentes. A função
primordial do legislador é, pois, a de definir ou fazer explícita a lei natural, aplicar aos casos
particulares e fazê-la efetiva. Daí segue-se que a lei humana positiva se deriva da lei natural, e
que uma lei humana somente é verdadeira lei na medida em que se derive da lei natural. “Mas
se em algo disiente da lei natural, não será uma lei, senão a perversión da lei.”[796] O governante
não tem direito a promulgar leis que vão contra a lei natural (ou, por suposto, a divina) ou sejam
incompatíveis com a mesma; seu poder legislativo deriva em última instância de Deus, já que
toda autoridade procede de Deus, e ele é responsável pelo uso que faça desse poder: ele mesmo
está submetido à lei natural e não tem direito a transgredirla nem a ordenar a seus súbditos que
façam algo incompatível com aquela. As leis humanas justas obrigam em consciência em virtude
da lei eterna da que ultimamente derivam; mas as leis injustas não obrigam em consciência.
Agora bem, uma lei pode ser injusta por ser contrária ao bem comum, ou por ter sido promulgada
simplesmente para os fins privados e egoístas do legislador, que impõe assim a seus súbditos
um ônus injustificable, ou por impor aos súbditos ônus injustificavelmente desiguais, e tais leis,
ao ser atos de violência mais bem que leis, não obrigam em consciência, a menos, talvez, que
acidentalmente sua inobservancia possa produzir um mau maior. Quanto às leis que sejam
contrárias à lei divina, nunca é lícito as obedecer, já que devemos obedecer a Deus dantes que
aos homens.[797]

7. A soberania.

Como pode ser visto, as faculdades do legislador estão longe de ser absolutas no pensamento
de santo Tomás; e a consideração de sua teoria da soberania e do governo põe em claro o mesmo.
Todos admitem que santo Tomás sustentava que a soberania política procede de Deus, e parece
provável que a opinião do santo fosse que a soberania fosse dada por Deus ao povo como um
tudo, e delegada por este ao governante ou governantes efetivos; mas esse último ponto não me
parece tão verdadeiro como alguns autores pretenderam, já que é possível alegar textos nos que
o aquinatense parece sustentar outra posição. No entanto, é innegable que fala do dirigente como
representante do povo[798], e que afirma rotundamente[799] que o governante não possui poder
legislativo senão na medida em que representa (gerit personam) ao povo[800], e é razoável
entender que tais afirmações implicam que ele opinava que a soberania vem ao governante desde
Deus pela via do povo, embora ao mesmo tempo deve ser admitido que santo Tomás mal discute
essa questão de uma maneira formal e explícita. Em qualquer caso, no entanto, o governante não
possui sua soberania senão para o bem de todo o povo, e não para seu bem privado, e, se abusa
de seu poder, se converte em um tirano. O assassinato do tirano foi condenado por santo Tomás,
o qual fala com certa extensão dos males que podem resultar das rebeliões contra os tiranos. Por
exemplo, o tirano pode ser feito mais tiránico se a rebelião fracassa, enquanto se esta tem sucesso
pode não ter outra consequência que a substituição de uma tiranía por outra. Mas a deposición
do tirano é legítima, especialmente se o povo tem direito a tentar-se um rei (provavelmente santo
Tomás refere-se a uma monarquia electiva). Em tal caso, o povo não faz mau ao depor ao tirano,
embora se tivesse submetido a este indefinidamente, já que o tirano mereceu ser deposto ao
perder a fidelidade que devia a suas súbditos[801]. Não obstante, em vista dos males que pode
ser esperado sigam à rebelião, é muito preferível fazer provisões prévias para impedir que uma
monarquia se converta em tiranía, a se ter que rebelar contra a tiranía uma vez estabelecida. De
ser exequível, não deve ser feito dirigente a ninguém que seja provável que se transforme em
um tirano; mas em todo caso o poder do monarca deve ser tão moderado que seu gobernación
não se converta com facilidade em uma tiranía. A melhor constituição será, de fato, uma
constituição “mista”, na que se dê algum local à aristocracia e também à democracia, no sentido
de que a eleição de certos magistrados deve estar em mãos do povo.[802]

8. As constituições.

Quanto à classificação das forma de governo, santo Tomás segue a Aristóteles. Há três tipos
de governo bom (a democracia observante da lei, a aristocracia e a monarquia) e três más forma
de governo (a democracia demagógica e irresponsable, a oligarquía e a tiranía); a tiranía é a pior
das forma más, e a monarquia é a melhor das forma boas. A monarquia proporciona uma unidade
mais estrita e conduz mais à paz que as outras forma; ademais, é mais “natural” pois é análoga
ao governo da razão sobre as demais funções da alma e ao do coração sobre os outros membros
do corpo. Ademais, as abejas têm sua rainha, e Deus governa sobre toda a criação[803]. Mas não
é fácil que se consiga o ideal de que o melhor homem seja o monarca, e, na prática, a melhor
constituição é, como vimos, uma constituição mista, na que o poder do monarca seja moderado
pelo dos magistrados eleitos pelo povo. Em outras palavras, em termos modernos, santo Tomás
era partidário da monarquia limitada ou constitucional, embora não considera que nenhuma
forma particular de governo honrado seja ordenada por Deus: o importante não é a precisa forma
de governo, senão a promoção do bem público, e embora na prática a forma de governo constitua
uma consideração importante, é em seu relacionamento ao bem público em onde radica sua
importância. A teoria política de santo Tomás é, pois, de caráter flexível, não rígida e doctrinaria,
e conquanto recusa o absolutismo, recusa também implicitamente o laissez-faire. A tarefa do
governante consiste em promover o bem público, e para fazê-lo assim tem de promover o bem-
estar econômico dos cidadãos. Em resumem, a teoria política de santo Tomás carateriza-se pela
moderação, o equilíbrio e o sentido comum.

9. A teoria política de santo Tomás, parte integrante de seu sistema


total.

Em conclusão, podemos observar que a teoria política de santo Tomás é uma parte integrante
de seu total sistema filosófico, e não algo meramente acrescentado a este. Deus é o supremo
Senhor e Governante do universo, mas não é a única Causa, embora é Causa primeira e Causa
final; Deus dirige às criaturas racionais a seu fim de uma maneira racional, mediante atos cuja
adequação e retitude são mostradas pela razão. O direito de qualquer criatura a dirigir a outra,
seja o direito do pai de família sobre os membros desta, ou o do soberano sobre seus súbditos,
se baseia na razão e deve ser ejercitado segundo a razão: como todo poder e autoridade, deriva
de Deus, e é concedido com um propósito especial, nenhuma criatura racional tem direito a
exercer uma autoridade ilimitada, caprichosa ou arbitrária, sobre nenhuma outra criatura
racional. A lei define-se, pois, como “uma ordenação da razão para o bem comum, feita e
promulgada por quem tem o cuidado da comunidade”[804]. O soberano ocupa um local natural
na hierarquia total do universo, e sua autoridade deve ser exercida como uma parte do esquema
geral pelo que é dirigido o universo. Qualquer ideia do soberano como completamente
independente e irresponsable é, pois, essencialmente estranha à filosofia de São Tomás de
Aquino. O soberano tem seus deveres, e os súbditos têm os seus: a “justiça legal”, que deve
existir tanto no soberano como nos súbditos, dirige todos os atos virtuosos para o bem
comum[805]; mas esses deveres têm de ver à luz do relacionamento de meios a fim, que vale em
toda a criação. Como o homem é um ser social, a sociedade política é necessária para que sua
natureza possa ser cumprido; mas a vocação do homem a viver em uma sociedade política deve
ser vista, a sua vez, à luz do fim último para o que o homem foi criado. Entre o fim sobrenatural
e o fim natural do homem deve ter a devida harmonia, e a devida subordinación do segundo ao
primeiro; de modo que o homem deve preferir a qualquer outra coisa a consecución de seu fim
último, e se o soberano ordena-lhe fazer de uma maneira incompatível com a consecución do
fim último, deve desobedecer ao soberano. Toda ideia de subordinación completa e total do
indivíduo ao Estado tinha que repugnar a santo Tomás, não porque ele fosse um extremado
“papista” nos assuntos políticos (coisa que não era), senão por seu sistema total filosófico-
teológico e sua ordem, proporção e subordinación do reino inferior ao superior, embora sem
esclavización ou aniquilación moral do inferior. O homem tem seu posto no esquema total da
criação e a providência: os abusos ou os exageros de fato não podem alterar a ordem e hierarquia
ideais, que se baseiam ultimamente no mesmo Deus. As forma de governo podem mudar, mas
o homem mesmo tem uma essência ou natureza permanente e fixa, e nessa natureza fundamenta-
se a necessidade e a justificativa moral do Estado. O Estado não é nem Deus nem o Anticristo:
é um dos meios pelos quais Deus dirige a seu fim a criação racional encarnada.

Nota sobre a teoria estética de santo Tomás

Não pode ser dito que tenha um tratamento formal da teoria estética na filosofia de São
Tomás de Aquino, e o que este diz envelope tal tema está em sua maior parte tomado de outros
autores, de maneira que, embora suas observações podem ser tomado como ponto de partida de
uma teoria estética, seria um erro desenvolver uma teoria estética sobre a base de ditas
observações e atribuir essa teoria ao aquinatense, como se ele mesmo a tivesse desenvolvido.
Não obstante, pode ser oportuno indicar que quando observa que pulcra dicuntur quae visa
placent[806], não pretende negar a objetividad da beleza. O belo consiste, diz o santo, em uma
adequada proporção, e corresponde à causa formal: é o objeto da capacidade cognitiva, bem
como o bem é o objeto do desejo[807]. Para a beleza requerem-se três elementos: integridade ou
perfección, proporção adequada e clareza[808]; a forma resplandece, por assim o dizer, mediante
a cor, etc., e é objeto de uma aprehensión desinteresada (não-apetitiva). Santo Tomás reconhece,
pois, a objetividad da beleza e o fato de que a apreciação ou experiência estética é algo sui
generis, que não pode ser identificado simplesmente com o ato de conhecimento intelectual e
que não pode ser reduzido à aprehensión do bem.
Capítulo XLI
São Tomás e Aristóteles: Controvérsias

1. A utilização de Aristóteles por santo Tomás.

Embora Santo Alberto Magno avançava bastante na utilização da filosofia aristotélica,


estava reservado a santo Tomás a tentativa de plena reconciliação do sistema aristotélico com a
teología cristã. A deseabilidad dessa tentativa de conciliação era clara, já que recusar o sistema
aristotélico equivaleria a recusar a síntese intelectual mais poderosa e comprehensiva que
conheceu o mundo medieval. Ademais, santo Tomás, com seu gênio para a sistematización, viu
claramente o uso que podia ser feito dos princípios da filosofia aristotélica para o lucro de uma
síntese filosófica e teológica sistemática. Mas quando digo que São Tomás de Aquino viu a
“utilidade” do aristotelismo, não pretendo implicar que seu modo de se enfrentar com aquele
fosse pragmático. Santo Tomás considerava que os princípios filosóficos de Aristóteles eram
verdadeiros, e, como verdadeiros, úteis; não considerava que fossem “verdadeiros” porque eram
úteis. Seria, desde depois, absurdo sugerir que a filosofia de santo Tomás fosse simplesmente
aristotelismo, já que o aquinatense se vale também de outros autores, como Santo Agostinho e
o Pseudo-Dionisio, bem como de seus predecessores medievais, e de filósofos judeus
(Maimónides, designadamente) e árabes. Mas não é menos verdadeiro que a síntese tomista está
unificada pela aplicação de princípios aristotélicos fundamentais. Uma grande parte da filosofia
de santo Tomás é certamente a doutrina de Aristóteles, mas é a doutrina de Aristóteles re-
pensada por uma mente poderosa, não servilmente adotada. Se santo Tomás adotou o
aristotelismo, fê-lo em primeiro lugar porque pensou que era verdadeiro, não simplesmente
porque Aristóteles tivesse um nome ilustre, ou porque um Aristóteles “sem batizar” pudesse
constituir um grave perigo para a ortodoxia: um homem da seriedade intelectual de São Tomás
de Aquino, consagrado à verdade, não adotaria o sistema de um filósofo pagano se não o tivesse
considerado, no principal, um sistema verdadeiro, especialmente quando alguma das ideias que
ele patrocinou eram contrárias à tradição e criaram verdadeiro escândalo e uma vivaz oposição.
No entanto, sua convicção a propósito da verdade da filosofia que adotava não lhe conduziu à
adoção mecânica de um sistema mau digerido: ele consagrou grande parte de seu pensamento e
de sua atenção ao aristotelismo, como pode ser visto por seus comentários às obras de
Aristóteles, e suas próprias obras evidencian o cuidado com que deveu considerar os
envolvimentos dos princípios que adotou e seu relacionamento à verdade cristã. Se agora sugiro
que a síntese de aristotelismo e cristianismo no pensamento de santo Tomás foi em algumas
feições bastante precária, não trato de jogar abaixo o que dantes afirmei nem de dar a entender
que o aquinatense adotasse a Aristóteles de uma maneira puramente mecânica, embora acho que
é verdade que ele não advertiu plenamente a tensão latente, em certos pontos, entre sua fé cristã
e sua aristotelismo. Mas embora esse seja o caso, não deve causar surpresa; santo Tomás foi um
grande filósofo e teólogo, mas não foi uma mente infinita, e um entendimento muito menos
poderoso pode hoje olhar retrospectivamente e discernir possíveis pontos débis no sistema de
um grande intelecto, sem impugnar por isso a grandeza deste.

Podemos escolher alguns exemplos da utilização por santo Tomás de temas aristotélicos com
fins de sistematización. Uma das ideias fundamentais da filosofia aristotélica é a de ato e
potência, ou potencialidade. Santo Tomás, como Aristóteles dantes que ele, viu a interação, a
correlação ato e potência nas mudanças acidentais e substanciais do mundo material, e nos
movimentos (no amplo sentido aristotélico) de todas as criaturas. Adotando o princípio
aristotélico de que nada é reduzido da potencialidade ao ato se não é por obra de algo que está a
sua vez em ato, seguiu a Aristóteles em argumentar, a partir do fato observado do movimento
ou mudança, a necessidade da existência de um Motor imóvel. Mas santo Tomás viu mais
profundamente que Aristóteles: viu que em toda coisa finita há uma dualidad de princípios, a
dualidad da essência e a existência, que a essência é em potencial sua existência, que não existe
necessariamente, e assim pôde argumentar não meramente até o aristotélico Motor imóvel, senão
até o Ser necessário, Deus criador. Santo Tomás pôde, ademais, discernir a essência de Deus
como existência, não simplesmente como pensamento que se pensa a si mesmo, senão como
ipsum esse subsistens, e desse modo, sem deixar de seguir os passos de Aristóteles, pôde chegar
para além que Aristóteles. Ao não distinguir claramente a essência e a existência no ser finito,
Aristóteles não pôde chegar à ideia de existência mesma como essência de Deus, da qual
procedem todas as existências limitadas.

Igualmente, uma ideia fundamental na filosofia aristotélica é a de finalidade; em realidade,


essa ideia é mais fundamental em verdadeiro sentido que a de potência e ato, já que toda redução
da potencialidade ao ato tem local em vistas da consecución de um fim, e a potência existe
somente para a realização de um fim. Que santo Tomás faz uso da ideia de finalidade em suas
doutrinas cosmológicas, psicológicas, éticas e políticas, é um ponto que não precisa uma grande
elaboração; mas aqui podemos falar da ajuda que encontrou naquela para a explicação da
criação. Deus, que faz segundo sabedoria, criou o mundo para um fim, mas esse fim não pode
ser outro que Deus mesmo. Deus criou o mundo, pois, para manifestar sua própria perfección,
comunicando-a por participação às criaturas, difundindo sua própria bondade. As criaturas
existem propter Deum, para Deus, o qual é seu fim último, embora Deus não é o fim último de
todas as criaturas da mesma maneira; somente as criaturas racionais podem possuir a Deus pelo
conhecimento e o amor. As criaturas têm, desde depois, seus fins próximos, o aperfeiçoamento
de suas naturezas, mas esse aperfeiçoamento das naturezas das criaturas está subordinado ao fim
último de toda a criação, a glória de Deus, a manifestação de sua divina perfección, que se
manifesta precisamente pelo aperfeiçoamento das criaturas, de modo que a glória de Deus e o
bem das criaturas não são em absoluto ideias antitéticas. Desse modo, santo Tomás pôde utilizar
a doutrina aristotélica da finalidade em um enquadramento cristão, ou, mais bem, de um modo
que podia harmonizar com a religião cristã.

Entre as ideias particulares tomadas por santo Tomás de Aristóteles, ou pensadas em


dependência da filosofia de Aristóteles, podemos mencionar a seguinte. A alma é a forma do
corpo, individualizada pela matéria informada; não é uma substância completa por direito
próprio, senão que a alma e o corpo unidos constituem a substância completa, o homem. Essa
acentuación do caráter íntimo da união de alma e corpo, e a negación da correspondente teoria
platónica, faz bem mais fácil a explicação de que a alma se uma ao corpo (a alma é, por natureza,
a forma do corpo), mas sugere que, suposta a imortalidade da alma, esta reclama a resurrección
do corpo[809]. Quanto à doutrina da matéria como princípio de individuación, que tem como
consequência a doutrina de que os seres angélicos, desprovistos de matéria, não podem ser
individualizado dentro de uma mesma espécie, vamos ver como excitou a hostilidade dos
críticos do tomismo. Outro tanto pode ser dito da doutrina de que na cada substância há somente
uma forma substancial, uma doutrina que quando se aplica à substância humana, significa que
há que recusar a ideia da forma corporeitatis.

A adoção da psicologia aristotélica tinha que ir acompanhada naturalmente da adoção da


epistemología aristotélica e da insistencia no fato de que o conhecimento humano se deriva da
experiência sensível e da reflexão sobre esta. Isso significava a negación das ideias innatas,
inclusive em forma virtual, e a da teoria da iluminação divina, ou, mais exatamente, a
interpretação da iluminação divina como equivalente à luz natural do entendimento, com o
concurso natural e ordinário de Deus. Essa doutrina suscita dificuldades, segundo vimos dantes,
a propósito do conhecimento analógico de Deus pelo homem.

Mas embora santo Tomás não duvidasse em adotar uma posição aristotélica, ainda que isso
lhe pusesse em conflito com teorias tradicionais, não o fazia senão quando considerava que as
posições aristotélicas eram verdadeiras em si mesmas, e, portanto, compatíveis com a revelação
cristã. Quando se tratava de posições que eram claramente incompatíveis com a doutrina cristã,
santo Tomás as recusava, ou mantinha que a interpretação averroísta de Aristóteles em tais
pontos não era a verdadeira interpretação, ou, ao menos, que não a faziam necessária as palavras
mesmas de Aristóteles. Por exemplo, ao comentar a descrição aristotélica de Deus como
Pensamento que se pensa a si mesmo, santo Tomás observa que daí não se segue que Deus não
conheça coisas diferentes do mesmo, porque ao se conhecer a Si mesmo conhece todas as demais
coisas[810]. Provavelmente, no entanto, o Aristóteles histórico não pensou que o Motor imóvel
conhecesse o mundo nem que exercesse providência. O motor imóvel de Aristóteles é causa do
movimento como causa final, não como causa eficiente. Do mesmo modo, como já indicámos,
santo Tomás, em seu comentário às palavras verdadeiramente escuras de Aristóteles em sua De
Anima a propósito do entendimento ativo e de sua persistência após a morte, interpreta o bilhete
in meliorem partem, e não segundo o sentido averroísta: não é necessário concluir que pára
Aristóteles o entendimento fosse um em todos os homens e não tivesse imortalidade pessoal.
Santo Tomás almejava resgatar a Aristóteles das redes averroístas e evidenciar que a filosofia
do estagirita não implicava necessariamente a negación da providência divina ou a da
imortalidade pessoal; e o aquinatense teve sucesso nessa empresa, por mais que, provavelmente,
sua interpretação do que Aristóteles deveu pensar realmente nessas questões não é a correta.

2. Elementos não aristotélicos no tomismo.

O aristotelismo de São Tomás de Aquino salta tanto à vista que às vezes um tende a esquecer
os elementos não aristotélicos de seu pensamento, apesar de que tais elementos existem
indubitavelmente. Por exemplo, o Deus da Metafísica de Aristóteles, embora causa final, não é
causa eficiente; o mundo é eterno, e não foi criado por Deus. Ademais, Aristóteles considerava
ao menos a possibilidade de uma multiplicidad de motores imóveis que correspondessem às
diferentes esferas, conquanto deixou na escuridão os relacionamentos de uns com outros e da
cada um com o motor imóvel mais elevado[811]. O Deus da teología natural de santo Tomás,
pelo contrário, é primeira Causa eficiente e Criador, bem como causa final; não está
simplesmente encerrado em esplêndido isolamento, como objeto do eros, senão que faz ad extra,
cria, conserva, coincide, exerce providência. Santo Tomás fez quiçá uma verdadeira concessão
a Aristóteles ao admitir que não se tinha demonstrado a imposibilidad de uma criação desde a
eternidade; mas, ainda que o mundo não tivesse começo no tempo, não deixa no mais mínimo
de poder ser provado sua criação, sua completa dependência de Deus. Todo o que santo Tomás
admite é que não se mostrou que a ideia da creatio ab aeterno seja contradictoria em si mesma;
mas não que não possa ser demonstrado a criação. Pode ser dito que a posição de santo Tomás
em teología natural constituiu um complemento da posição aristotélica, mas que não pode ser
afirmado sua não aristotelismo; mas deve ser recordado que para santo Tomás, Deus cria
segundo inteligência e vontade, e que é causa eficiente, Criador, como causa instância: isto é,
Deus cria o mundo como uma imitação finita de sua divina essência, que O conheça como
imitable ad extra de muitas maneiras. Em outras palavras, santo Tomás se vale da posição de
Santo Agostinho respecto das ideias divinas, uma posição que, filosoficamente falando, derivava
do neoplatonismo, o qual a sua vez era um desenvolvimento da filosofia e da tradição platónica.
Aristóteles recusou cria-as instâncias de Platón, bem como a ideia do Demiurgo platónico;
ambas noções estavam presentes, pelo contrário, no pensamento de Santo Agostinho,
transmutadas e em coerência filosófica junto da doutrina da Creatio ex nihilo, à que os gregos
não chegava; e a aceitação por santo Tomás dessas noções vincula ao aquinatense, nesse ponto,
com Santo Agostinho, e também com Platón, através de Plotino, e não com Aristóteles.

A fé cristã de santo Tomás incide frequentemente em sua filosofia e modifica-a. Por


exemplo, convencido de que o homem tem um fim último sobrenatural, e só um fim último
sobrenatural, teve que considerar como termo da ascensión intelectual do homem o
conhecimento de Deus tal como O é em Si mesmo, não segundo o conhecimento próprio do
metafísico e do astrônomo; santo Tomás teve que pôr o objetivo final do homem na vida futura,
não nesta, transformando assim a concepção aristotélica de beatitud; teve igualmente que
reconhecer a insuficiencia do Estado para satisfazer as necessidades do homem inteiro, e a
subordinación do Estado à Igreja em valor e dignidade; teve não somente que admitir sanções
divinas na vida moral do homem, senão também que vincular a ética à teología natural, e admitir
a insuficiencia da vida moral natural em ordem à consecución da beatitud, já que esta é de caráter
sobrenatural e não pode ser conseguida por meios puramente humanos. Seria fácil multiplicar
os exemplos dessa incidência da teología na filosofia; mas envelope o que agora quero chamar
a atenção é envelope o fato da tensão latente em certos pontos entre o cristianismo de santo
Tomás e seu aristotelismo.

3. Tensões latentes na síntese tomista.

Se considera-se a filosofia de Aristóteles como um sistema completo, não pode por menos
de se dar uma verdadeira tensão quando se tenta combinar com uma religião sobrenatural. Para
o filósofo aristotélico, o que realmente importa é o universal e a totalidade, não o indivíduo
como tal: seu ponto de vista é o próprio do que poderia ser chamado um fisicista, e, em parte, o
de um artista. Os indivíduos existem para o bem da espécie; é a espécie o que persiste através
da sucessão dos indivíduos; o ser humano individual atinge seu beatitud nesta vida, ou não a
atinge em modo algum; o universo não é um palco para o homem, subordinado ao homem, senão
que o homem é um elemento, uma parte, do universo; contemplar os corpos celestes é
verdadeiramente algo mais digno que contemplar ao homem. Para o cristão, pelo contrário, o
ser humano individual tem uma vocação sobrenatural, e essa vocação não é uma vocação
terrenal, nem a beatitud última pode ser atingido nesta vida ou pelos esforços naturais do
homem; o indivíduo encontra-se em um relacionamento pessoal com Deus, e, por muito que
possa ser acentuado a feição corporativa do cristianismo, segue sendo verdadeiro que a cada
pessoa humana tem um valor último maior que o de todo o universo material, o qual existe para
o homem, embora tanto o homem como o universo material existem ultimamente para Deus.
Pode-se, sem dúvida, adotar legitimamente um ponto de vista desde o qual se veja ao homem
como um membro do universo, já que o homem é um membro do universo, arraigado no
universo material através de seu corpo, e se se adota, como santo Tomás a adotou, a psicologia
aristotélica, a doutrina de que a alma é por natureza a forma do corpo, individualizada pelo corpo
e dependente deste para conhecer, se sublinha todo o possível o posto do homem como um
membro do cosmos. Desde esse ponto de vista é desde o que um se vê conduzido, por exemplo,
a ver os defeitos físicos e o sofrimento físico, a morte e a corrução do indivíduo, como
contribuições ao bem e à harmonia do universo, como as sombras que põem de relevo a luz do
quadro total. É também desde esse ponto de vista desde o que santo Tomás fala da parte como
existindo em razão do tudo, como o membro de um organismo, utilizando a analogia naturalista
de Aristóteles. Como admitimos, nesse ponto de vista há verdade, e assim pôde lhe lhe dar o
devido énfasis, como um corretivo ao falso individualismo ou ao antropoeentrismo: o universo
criado existe para a glória de Deus, e o homem é uma parte do universo. Indubitavelmente; mas
há também outro ponto de vista. O homem existe para a glória de Deus, e o universo material
existe para o homem; não é a quantidade, senão a qualidade, o que verdadeiramente importa; o
homem é pequeno desde o ponto de vista da quantidade, mas qualitativamente todos os corpos
celestes juntos palidecen até a insignificancia ao lado de uma só pessoa humana; ademais, o
“homem”, que existe para a glória de Deus, não é simplesmente a espécie humana, senão uma
sociedade de pessoas imortais, a cada uma das quais tem uma vocação sobrenatural. Contemplar
ao homem é bem mais digno que contemplar as estrelas; a história humana é mais importante
que a astronomia; os sofrimentos dos seres humanos não podem ser explicado de um modo
simplesmente “artístico”. Não sugiro que ambos pontos de vista não possam ser combinados,
como santo Tomás tentou os combinar; mas sugiro que sua combinação leva consigo uma
verdadeira tensão, e que essa tensão se dá na síntese tomista.

Como, historicamente falando, o aristotelismo era um sistema “fechado”, no sentido de que


Aristóteles não teve nem pôde ter em conta a ordem sobrenatural, e como era um produto da só
razão, sem a ajuda da revelação, é natural que evidenciasse ante os medievais as possibilidades
da razão natural: era o maior lucro intelectual que conheciam. Isso significou que qualquer
teólogo que aceitasse e utilizasse a filosofia aristotélica como o fez santo Tomás, se via obrigado
a reconhecer a autonomia teorética da filosofia, embora reconhecesse também à teología como
norma e critério extrínsecos. Enquanto tratasse-se de teólogos, o equilíbrio entre teología e
filosofia era, desde depois, conservado; mas quando se tratava de pensadores que não eram
primordialmente teólogos, a carta concedida à filosofia tendia a converter em uma declaração
de independência. Olhando retrospectivamente desde nossos dias, e tendo apresente as
inclinações humanas, os carateres, temperamentos e tendências intelectuais, podemos ver que a
aceitação de um grande sistema de filosofia, do que se sabia que era pensado sem a ajuda da
revelação, tinha que levar mais cedo ou mais tarde, quase com certeza, a que a filosofia fizesse
seu próprio caminho com independência da teología. Nesse sentido (e o julgamento não é
valorativo, senão histórico), a síntese conseguida por santo Tomás foi intrinsecamente precária.
A entrada em cena do Aristóteles completo representava quase com certeza, à longa, a
emergência de uma filosofia independente, que começaria por se afirmar sobre seus próprios
pés, sem deixar de querer manter a paz com a teología (às vezes, sinceramente; outras vezes,
quiçá, insinceramente), e acabaria por tratar de suplantar à teología e absorver o conteúdo desta.
A começos de era-a cristã encontramos aos teólogos utilizando este ou aquele elemento da
filosofia grega, para que lhes ajudasse na enunciación dos dados da revelação, e esse processo
continuou durante as etapas do desenvolvimento da escolástica medieval; mas o aparecimento
de um sistema de filosofia feito e direito, embora constituísse um favor inestimable para a
criação da síntese tomista, dificilmente podia deixar de ser, à longa, um desafio. Não é minha
intenção pôr em dúvida a utilidade da filosofia aristotélica para a criação de uma síntese
filosófica e teológica cristã, nem empequeñecer em nenhum sentido os lucros de São Tomás de
Aquino; o que pretendo é indicar que, quando o pensamento filosófico chegasse a madurar e a
se ganhar uma verdadeira autonomia, não podia ser esperado que se contentasse indefinidamente
com permanecer sentado no lar paterno, como o filho maior na parábola do filho pródigo.
Historicamente falando, o batismo administrado por São Tomás de Aquino à filosofia, na pessoa
de Aristóteles, não podia deter o desenvolvimento da filosofia, e, nesse sentido, a síntese tomista
continha uma tensão latente.

4. Oposição às “.novidades” tomistas.

Voltemo-nos, para terminar, e com a brevedad necessária, à oposição provocada pela adoção
tomista de Aristóteles. Essa oposição deve ser considerada envelope o fundo do alarme causado
pelo averroísmo, isto é, pela interpretação averroísta de Aristóteles, que consideraremos no
capítulo seguinte. Os averroistas eram acusados, e, certamente, com justiça, de preferir a
autoridade de um filósofo pagano à de Santo Agostinho e dos Sancti em general, e de pôr em
perigo a integridade da revelação; e alguns tradicionalistas zelosos consideraram que Tomás de
Aquino estava cometendo a traição de deixar passo ao inimigo. Em consequência, fizeram todo
o possível por incluir ao tomismo nas condenações contra o averroísmo. O conjunto dessa
história serve para recordar-nos/recordá-nos que santo Tomás foi em seu tempo um inovador,
que abria novos caminhos; é conveniente recordar em nossos dias, quando o tomismo representa
a tradição, a solidez e segurança teológicas. Alguns dos pontos nos que santo Tomás foi mais
acerbamente atacado pelos tradicionalistas irritables de seu tempo podem não parecemos hoje
particularmente alarmantes; mas as razões pelas que se desencadeou o ataque foram em grande
parte de caráter teológico, e está claro que o aristotelismo tomista, durante algum tempo, foi
considerado “perigoso”, e o homem que agora se nos aparece como o pilar da ortodoxia foi
considerado, pelos tradicionalistas irritables ao menos, como um sembrador de novidades. Nem
sequer reduziram-se os atacantes a pessoas alheias à ordem religiosa do aquinatense; este teve
também de sofrer a hostilidade dos mesmos dominicos, e só gradualmente chegou o tomismo a
ser a filosofia oficial da ordem dos dominicos.
Um dos principais pontos atacados foi a teoria tomista da unicidad da forma substancial.
Dita teoria foi combatida em um debate em Paris, ante o bispo, para o ano 1270, e dominicos e
franciscanos, especialmente o franciscano Peckham, acusaram a santo Tomás de manter uma
opinião que era contrária aos ensinos dos santos, particularmente às de Agustín e Anselmo.
Peckham e o dominico Robert Kilwardby sustentaram vigorosamente esse ponto de vista em
suas cartas, baseando principalmente suas queixas em que a doutrina tomista não permitia
explicar como o corpo morrido de Cristo era o mesmo que seu corpo vivente, já que, segundo
santo Tomás, há somente uma forma substancial na substância humana, e essa forma, a alma, se
separa do corpo no momento da morte, para deixar passo a outras forma alegadas da
potencialidade da matéria. Santo Tomás mantinha indubitavelmente que o corpo morrido de um
homem não é precisamente o mesmo que o corpo vivente, senão que só é o mesmo secundum
quid[812] e Peckham e seus amigos consideravam que essa teoria era fatal à veneração das
reliquias e corpos dos santos. Santo Tomás mantinha, no entanto, que o corpo morrido de Cristo
permaneceu unido à divinidad, de maneira que, inclusive na tumba, esteve unido ao Verbo
divino e era digno de adoración. A doutrina da pasividad da matéria e a da simplicidade dos
anjos estiveram também entre as opiniões novas que deviam ser desaprovadas.

O 7 de março de 1277, Esteban Tempier, bispo de Paris, condenou duzentas dezenove


proposições, e ameaçou com a excomunión a qualquer que as mantivesse. Aquela condenação
dirigia-se principalmente contra os averroístas, contra Siger de Brabante e Boecio de Dacia
designadamente, mas verdadeiro número de proposições eram comuns a Siger de Brabante e a
santo Tomás, de modo que o tomismo viu-se afetado pela decisão do bispo. Assim, as teorias da
unicidad necessária do mundo, da matéria como princípio de individuación, da individualización
dos anjos e seu relacionamento com o universo, foram condenadas, embora a da unicidad da
forma substancial não aparece na condenación, e ao que parece não foi nunca formalmente
condenada em Paris, aparte das censuras que se lhe fizeram em debates e disputaciones
escolásticas.

A condenación de Paris foi seguida, o 18 de março de 1277, por outra condenação em


Oxford, inspirada por Robert Kilwardby, da ordem de predicadores, arcebispo de Canterbury,
na que figuravam, entre outras proposições, as da unicidad da forma substancial e da pasividad
da matéria. Kilwardby observou em uma carta que proibia as proposições como perigosas, sem
as condenar como heréticas, e em realidade não parece que fosse excessivamente otimista quanto
aos prováveis resultados de sua proibição, pois ofereceu uma indulgência de quarenta dias a
qualquer que se abstivesse de propor as ideias ofensivas. A condenação feita por Kilwardby foi
repetida por seu sucessor no arzobispado de Canterbury, o franciscano Peckham, o 29 de outubro
de 1284, embora por aquele tempo o tomismo era oficialmente aprovado na ordem de
predicadores. Não obstante, Peckham proibiu de novo as proposições inovadoras o 30 de abril
de 1286, e declarou-as heréticas.

Enquanto, o tomismo ia aumentando sua popularidade entre os dominicos, como não podia
por menos de se esperar ao tratar de um lucro tão esplêndido conseguido por um membro da
ordem. No ano 1278 o capítulo dos dominicos em Milão, e em 1279 o capítulo de Paris, deram
passos para contrarrestar a atitude hostil que era evidente entre os dominicos de Oxford; o
capítulo de Paris proibiu as condenações do tomismo, embora não chegou a dispor a aceitação
deste. Em 1286, outro capítulo de Paris declarou que os professores que mostrassem hostilidade
ao tomismo seriam separados de seus postos, embora até o século XIV não se fez obrigatória
para os membros da ordem a aceitação do tomismo. A crescente popularidade do tomismo nas
duas últimas décadas do século XIII conduziu naturalmente à publicação, por parte de autores
dominicos, de réplicas aos ataques que lhe tinham sido dirigidos. Assim, o Correctorium Fratris
Thomas, publicado pelo franciscano Guilherme da Mare, provocou uma série de Correções da
Correção, como o Apologeticum veritatis super corruptorium (como os tomistas chamavam ao
Correctorium,), publicado por Ramberto de Bolonha, no final do século, ao que replicaram a sua
vez os franciscanos. Estes, em seu capítulo geral de Asís, em 1279, proibiram a aceitação das
proposições condenadas em Paris em 1277, e em 1282 o capítulo geral de Estrasburgo ordenou
que aqueles que utilizassem a Summa Theologica de Tomás de Aquino não o fizessem sem
consultar o Correctorium de Guilherme da Mare. No entanto, os ataques dos franciscanos e
outros diminuíram de modo natural após a canonización de santo Tomás, o 18 de julho de 1323,
e, em 1325, o então bispo de Paris, retirou as censuras parisienses. Em Oxford não parece que
tivesse nenhuma retirada formal desse tipo, mas os sucessores de Peckham não confirmaram
nem repetiram as censuras deste, e a batalha foi acabando gradualmente. A começos do século
XIV, Thomas de Sutton fala do aquinatense como “Doutor comum, segundo o depoimento de
todos” (in ore omnium communis doutor dicitur).

O tomismo afirmou-se na estimativa dos pensadores cristãos devido ao completo de sua


síntese, a sua lucidez e a sua profundidade. Era uma síntese razonada da filosofia e a teología,
que enlaçava com o passado e se incorporava a este, ao mesmo tempo que utilizava o maior
sistema puramente filosófico do mundo antigo. Mas embora as suspicacias e a hostilidade que
o tomismo, ou certas feições suas, suscitaram ao princípio estavam destinadas a morrer de morte
natural em vista dos innegables méritos do sistema, não deve ser suposto que atingisse durante
a Idade Média a posição oficial na vida intelectual da Igreja que ocupou desde a encíclica Aeterni
Patris do papa León XIII. As Sentenças de Pedro Lombardo, por exemplo, continuaram sendo
comentadas durante muitíssimos anos, e na época da Reforma existiam nas universidades
cátedras para a exposição das doutrinas de santo Tomás, Duns Scot e Gil de Roma, e também
de nominalistas cone Guilherme de Ockham e Gabriel Biel. Em realidade, a regra era a
diversidade, e embora o tomismo chegasse a ser, em data temporã, o sistema oficial da ordem
de predicadores, decorreram muitos séculos dantes de que fosse o sistema oficial da Igreja. (Não
pretendo dar a entender que, nem ainda após a Aeterni Patris, o tomismo, no sentido em que se
distingue do escotismo, por exemplo, se tenha imposto a todas as ordens religiosas e a todos os
institutos eclesiásticos de altos estudos; mas o tomismo foi certamente proposto como norma da
que o filósofo católico somente deve disentir por razões que lhe pareçam inexcusables, e, ainda
então, só com a devida consideração. A posição singular agora concedida ao tomismo deve ser
visto à luz das circunstâncias históricas dos tempos recentes; essas circunstâncias não eram as
que prevaleciam na Idade Média.)
Capítulo XLII
O Averroísmo latino: Singer de Brabante

1. Principais doutrinas dos “averroistas latinos”.

O termo “averroísmo latino” fez-se tão comum que é difícil não fazer uso dele, mas deve ser
reconhecido que o movimento caraterizado por esse nome era de um aristotelismo integral e
radical. O verdadeiro padrão do movimento era Aristóteles, não Averroes, embora este último
era considerado, certamente, como o comentador par excellence, e era seguido em sua
interpretação monopsiquista de Aristóteles. A doutrina de que o entendimento pasivo, o mesmo
que o entendimento ativo, é um e o mesmo em todos os homens, e que somente esse intelecto
único sobrevive à morte, de modo que a imortalidade pessoal individual fica excluída, foi
considerada no século XIII como o dogma característico dos aristotélicos radicais, e como essa
doutrina era apoiada pela interpretação averroísta de Aristóteles, seus defensores chegaram a ser
conhecidos como “os averroistas”. Não vejo por que teria que desaprovar o uso desse termo,
sempre que fique bem entendido que os “averroistas” se viam a si mesmos como aristotélicos
mais bem que como averroistas. Ao que parece, estes pertenceram à Faculdade de Artes de Paris,
e levaram sua adesão a Aristóteles, segundo a interpretação de Averroes, o bastante longe para
ensinar doutrinas filosóficas que eram incompatíveis com o dogma cristão. O ponto mais
destacado de sua doutrina, e o que atraiu a maior atenção, era a teoria de que há somente uma
alma racional para todos os homens. Adotando a interpretação dada por Averroes da escura e
ambigua ensino de Aristóteles nessa matéria, mantinham que não somente o entendimento ativo,
senão também o entendimento pasivo, é um e o mesmo em todos os homens. A consequência
lógica dessa posição é a negación da imortalidade pessoal e das sanções na vida futura. Outra
de suas doutrinas heterodoxas, e que, dito seja acidentalmente, era indubitavelmente aristotélica,
era a da eternidade do mundo. Nesse ponto é importante notar a diferença entre os averroistas e
santo Tomás. Enquanto para santo Tomás não se tinha provado a imposibilidad da eternidade
do mundo (criado), embora certamente também não era provada sua verdade (e de fato sabemos,
pela revelação, que o mundo não foi criado desde a eternidade), os averroistas sustentavam que
a eternidade do mundo, a eternidade da mudança e do movimento, podem ser filosoficamente
demonstradas. Parece, também, que alguns deles, seguindo a Aristóteles, negavam a providência
divina e seguiam a Averroes na afirmação do determinismo. Por conseguinte, é fácil entender
por que os teólogos atacaram aos averroistas, ou, como São Boaventura, atacando ao mesmo
Aristóteles, ou, como santo Tomás, argumentando não somente que a posição averroísta era
intrinsecamente falsa, senão também que não representava o verdadeiro pensamento, ou, ao
menos, inequívocas ensinos de Aristóteles.

Os averroistas ou aristotélicos radicais viam-se, pois, forçados a reconciliar suas doutrinas


filosóficas com os dogmas teológicos, a não ser que estivessem dispostos (e não o estavam) a
negar simplesmente estes últimos. Em outras palavras, estavam obrigados a oferecer alguma
teoria dos relacionamentos entre a razão e a fé que lhes permitisse afirmar com Aristóteles que
há somente uma alma racional para todos os homens, e, ao mesmo tempo, afirmar, com a Igreja,
que a cada homem tem sua própria alma racional individual. Disse-se às vezes que para realizar
aquela reconciliação recorreram à teoria da dupla verdade, mantendo que uma coisa pode ser
verdadeira em filosofia, isto é, segundo a razão, e no entanto sua oposta pode ser verdadeira em
teología, isto é, segundo a fé; e realmente Siger de Brabante fala dessa maneira ao dar a entender
que certas proposições de Aristóteles e de Averroes são irrefutables, embora as proposições
opostas sejam verdadeiras segundo a fé. Pode ser demonstrado racionalmente que não há mais
que uma alma intelectiva para todos os homens, embora a fé nos assegura que há uma alma
intelectiva para a cada corpo humano. Considerada desde um ponto de vista lógico, essa posição
parece conduzir à negación da filosofia ou à da teología, a recusar a razão ou a recusar a fé; mas
parece que os averroístas pretenderam que, na ordem natural, que é aquele do que o filósofo se
ocupa, a alma intelectiva deveria ser única para todos os homens, mas que Deus multiplicou
milagrosamente a alma intelectiva. O filósofo se vale de sua razão natural, e sua razão natural
diz-lhe que a alma intelectiva é única para todos os homens, enquanto o teólogo, que se ocupa
da ordem sobrenatural e expõe a revelação divina, nos assegura que Deus multiplicou
milagrosamente aquilo que por natureza não podia ser multiplicado. Nesse sentido, o que é
verdadeiro em filosofia é falso em teología, e vice-versa. Essa linha de defesa do averroísmo
não atraía naturalmente aos teólogos, que não estavam nada dispostos a admitir que Deus
interviesse para conseguir milagrosamente o que racionalmente era impossível. Nem sentiam
também não grandes simpatias por outra linha de defesa à que às vezes iam também os
averroístas, a saber, a de que eles se limitavam a informar envelope a doutrina de Aristóteles.
Segundo um sermón da época, talvez de São Boaventura, “há alguns estudantes de filosofia que
dizem certas coisas que não são verdadeiras segundo a fé; e quando se lhes diz que algo é
contrário à fé, replicam que Aristóteles o disse, mas que eles mesmos não o afirmam, senão que
simplesmente informam das palavras de Aristóteles”. Essa defesa foi considerada pelos teólogos
como um mero subterfugio, e com razão, dada a atitude dos averroístas para Aristóteles.

2. Siger de Brabante.

O mais destacado dos averroístas ou aristotélicos radicais foi Siger de Brabante, que nascia
para o ano 1235 e foi professor da Faculdade de Artes de Paris. Em 1270, Siger foi condenado
por suas doutrinas averroístas, e parece que não somente se defendeu alegando que ele se
limitava a informar envelope Aristóteles e não tentava afirmar o que fosse incompatível com a
fé, senão que também modificou algo sua posição. Sugeriu-se que os escritos de santo Tomás
lhe permitiram se libertar de seu averroísmo, mas não há provas claras de que o abandonasse
definitivamente. Caso de que o tivesse feito, seria difícil explicar por que se viu compreendido
na condenación de 1277, e por que naquele ano o inquisidor da França, Simón du Val, lhe
ordenou que se apresentasse ante seu tribunal. Em qualquer caso, a questão das mudanças nas
opiniões de Siger de Brabante não pode ser limpada com certeza até que se tenha estabelecido a
cronología de suas obras. As obras descobertas são o De Anime intellectiva, o De Aeternitate
mundi, o De neeessitate et eontingentia eausarum, o Compendium de generatione et
corruptione, algumas Quaestiones Naturais, algumas Quaestiones morais, algumas Quaestiones
logicales, Quaestiones inMetaphysicam , Quaestiones inPhysicam , Quaestiones in livros III De
Anima, seis Impossibilia, e fragmentos do De intellectu e do Liber de felicita-te. Parece que o
De intellectu era uma réplica ao De unitate intellectus contra averroistas, de santo Tomás, e
que, nessa réplica, Siger mantinha que o entendimento ativo é Deus, e que a beatitud do homem
sobre a terra consiste na união com o entendimento ativo. Que Siger fosse ou não monopsiquista
naquela época depende, no entanto, do que pensasse a respeito da unicidad ou multiplicação do
entendimento pasivo: da identificação do entendimento ativo com Deus não pode ser concluído,
sem mais nem mais, que fosse monopsiquista no sentido averroísta. Se Siger apelou à
Inquisición de Roma, é possível que sentisse que era injustamente acusado de heterodoxia. Siger
morreu em Orvieto, para o ano 1282, assassinado por seu secretário louco.

Mencionar a Siger de Brabante simplesmente em conexão com a controvérsia do averroísmo


é dar uma visão parcial de seu pensamento, já que o que ele expôs foi um sistema, e não somente
pontos isolados nos que seguisse a Averroes. Mas seu sistema, embora verdadeiramente
aristotélico na pretensão de seu autor, diferia muito, em feições importantes, da filosofia do
Aristóteles histórico, e não podia por menos de ser assim dado seu averroísmo. Por exemplo,
conquanto Aristóteles considerava a Deus como primeiro motor, no sentido de causa final
última, não no sentido de primeira causa eficiente, Siger seguiu a Averroes em fazer a Deus
primeira causa criadora. Deus opera, no entanto, de um modo mediato, através de causas
intermédias, as inteligências sucessivamente emanadas, e nessa feição Siger seguiu a Avicena
mais bem que a Averroes, de maneira que, como advertiu Vão Steenberghen, a filosofia de Siger
de Brabante não pode ser chamada com estrita exatidão um averroísmo radical. Nem também
não pode ser chamada com exatidão um aristotelismo radical, se no que se pensa é no Aristóteles
histórico, por mais que o termo seja bastante conveniente se no que se pensa é nas intenções do
próprio Siger. A respeito da questão da eternidade da criação, Siger segue a “Aristóteles”, mas
isso por causa de que nesse ponto os filósofos árabes seguiram a “Aristóteles”, e não pelo que o
próprio Aristóteles dissesse sobre o tema, já que o estagirita não considerou em absoluto a
criação. Do mesmo modo, a noção de Siger de que todos os acontecimentos terrestres estão
determinados pelos movimentos dos corpos celestes, cheira a filosofia islâmica. Igualmente,
embora seja de origem aristotélico a ideia de que nenhuma espécie pode ter tido um começo, de
maneira que não pode ter tido um primeiro homem, em mudança não se encontra em Aristóteles
a ideia da eterna volta de processos cíclicos de acontecimentos determinados.

Quanto às mais notorias teses averroistas do monopsiquismo e da eternidade do mundo,


parece ser que Siger de Brabante se retractó de suas opiniões heterodoxas. Assim por exemplo,
ao comentar o De Anima, não somente admite que o monopsiquismo de Averroes não é
verdadeiro, senão que admite o peso das objeciones apresentadas por santo Tomás e outros.
Assim, Siger admite que é impossível que dois atos individuais diferentes, em dois seres
humanos diferentes, procedam simultaneamente de um princípio ou faculdade intelectiva que
seja numericamente uma. Do mesmo modo, em suas Questões sobre a Física concede que o
movimento não é eterno e que teve um começo, conquanto esse começo não pode ser
racionalmente demonstrado. Não obstante, como já advertimos, é difícil pôr em claro com
certeza se essa aparente mudança de posição supunha uma autêntica mudança de opinião, ou se
era mais bem uma atitude prudente adotada em vista da condenação de 1270.

3. Dante e Siger de Brabante.

O fato de que o Dante não somente coloca a Siger de Brabante no Paraíso, senão que põe os
louvores do mesmo em lábios de São Tomás de Aquino, seu adversário, é difícil de explicar.
Mandonnet, que achava, por uma parte, que Siger de Brabante era um verdadeiro averroísta, e,
por outra, que o Dante era antiaverroísta, se viu obrigado a sugerir que o poeta provavelmente
desconhecia as doutrinas de Siger. Mas, como pôs de relevo Gilson, o Dante situa também no
Paraíso, junto a São Boaventura a Joaquín de Fiore, cujas doutrinas foram recusadas tanto por
São Boaventura como por santo Tomás, e é extraordinariamente pouco provável que o Dante
não soubesse o que fazia, tanto no caso de Joaquín de Fiore como no de Siger. O próprio Gilson
sugeriu que Siger de Brabante, tal como aparece na Divina Comédia, é mais um símbolo que o
verdadeiro Siger de Brabante da história. Santo Tomás simboliza a teología especulativa, san
Bernardo a teología mística, e enquanto Aristóteles representa, no Limbo, à filosofia, Siger de
Brabante, que era cristão, a representa no Paraíso. Por conseguinte, quando o Dante faz com que
santo Tomás cante os louvores de Siger de Brabante, não tenta fazer com que o Tomás histórico
alabe ao Siger histórico, senão mais bem que a teología especulativa cumplimente à filosofia.
(Gilson explica de uma maneira análoga o louvor de Joaquín posta em boca de São Boaventura
na Divina Comédia.)

A explicação do problema pelo senhor Gilson parece-me razoável. Há, no entanto, outras
possibilidades. Bruno Nardi argumentou (e foi seguido em isso por Miguel Asín) que a
explicação do problema se encontra no fato de que Dante não era um tomista puro, senão que
fez suas doutrinas não somente de outras fontes escolásticas, senão também de filósofos
muçulmanos, especialmente de Averroes, ao que admirava particularmente. Como o Dante não
podia colocar no Paraíso a Avicena e Averroes, lhes deu entrada no Limbo, enquanto a Mahoma
lhe pôs no Inferno; mas a Siger, como era cristão, lhe situou no Paraíso. O Dante faria, pois,
deliberadamente, para mostrar seu aprecio da devoción de Siger de Brabante à filosofia islâmica.

Embora seja verdade o que Bruno Nardi diz das fontes filosóficas do Dante, me parece que
sua explicação pode ser combinado perfeitamente com a de Gilson. Se o Dante admirava aos
filósofos islâmicos, e era influído por eles, isso explicaria por que pôs a Siger de Brabante no
Paraíso; mas explicaria também por que pôs os louvores de Siger em lábios de santo Tomás? Se
o Dante sabia que Siger era averroísta, sabia também indubitavelmente que santo Tomás era
antiaverroísta. Não poderia ser, como sugere Gilson, que o Dante fizesse de santo Tomás o
símbolo da teología especulativa, e de Siger, o averroísta, o símbolo da filosofia, precisamente
porque Siger foi um membro da Faculdade de Artes, e não um teólogo? Em tal caso, como diz
Gilson, o louvor de Siger por São Tomás de Aquino representaria simplesmente um tributo da
teología à filosofia.

A questão complicou-se com a pretensão de Vão Steenberghen de que Siger de Brabante


abandonou o averroísmo na medida em que este estava em conflito com a teología, e se
aproximou à posição de santo Tomás. Se isso é verdade, e se o Dante tinha conhecimento de
que Siger mudava de opinião, a dificuldade de explicar como podia santo Tomás cantar os
louvores de Siger diminuiria, sem dúvida, grandemente. Em outras palavras, para conseguir uma
adequada explicação do fato de que o poeta não somente situasse no Céu a Siger de Brabante,
senão que fizesse

ademais que lhe alabasse seu adversário santo Tomás, há que conseguir dantes uma ideia
adequada e exata não somente das simpatias filosóficas do Dante, senão também da evolução
das opiniões de Siger.[813]

4. Oposição ao averroísmo: condenações.

Temos visto que a filosofia de santo Tomás suscitou uma considerável oposição de parte de
outros filósofos escolásticos; mas embora fizesse-se uma tentativa por incluir a santo Tomás na
condenación do aristotelismo averroísta, não deixa de ser verdade que a controvérsia a propósito
de doutrinas tomistas tais como a da unicidad da forma substancial, foi uma controvérsia
doméstica, fácil de distinguir da controvérsia do averroísmo propriamente dita, na qual os
teólogos em general, incluído santo Tomás, formaram uma frente única contra os filósofos
heterodoxos. Assim, os franciscanos, desde Alexandro de Hales e São Boaventura até Duns
Scot, foram unânimes com dominicos como Santo Alberto Magno e santo Tomás, com agustinos
como Gil de Roma e com membros do clero secular como Enrique de Gante, opostos todos ao
que consideravam um movimento perigoso. Desde o ponto de vista filosófico, o rasgo mais
importante daquela oposição foi, sem dúvida, a refutación crítica das teorias nocivas, e, nessa
feição, devem ser mencionado o De unitate intellectus contra Averroem (1256), de Santo
Alberto Magno; o De unitate intellectus contra averroistas (1270), de santo Tomás; o De
purificatione intellectus possibilis contra Averroem e os Erros philosophorum (que enumera os
erros de Aristóteles e dos filósofos muçulmanos, mas não trata de Siger de Brabante), de Gil de
Roma; e o Liber contra erros Boetii et Segerii (1298), o Liber reprobationis aliquorum errorum
Averrois, o Disputado Raymundi et Averroistae e os Sermones contra Averroistas, de Raimundo
Lulio.

Os teólogos não se contentaram, desde depois, com escrever e pregar contra os averroistas;
empenharam-se também em conseguir seu condenación oficial pela autoridade eclesiástica. Isso
era perfeitamente natural, como pode ser visto se se considera a ruptura, em pontos importantes,
entre a filosofia averroísta e a fé, e também se se consideram as possíveis consequências teóricas
e práticas de teorias como o monopsiquismo e o determinismo. Em consequência, em 1270, o
bispo de Paris, Esteban Tempier, condenou as doutrinas do monopsiquismo, a negación da
imortalidade pessoal, o determinismo, a eternidade do mundo e a negación da providência
divina. Não obstante, apesar de dita condenación, os averroistas continuaram ensinando em
segredo (“em recantos e ante rapazs”, segundo expressão de santo Tomás), embora em 1272
proibiu-se aos professores da Faculdade de Artes que tratassem de temas teológicos, e, em 1276,
se proibiu o ensino secreto na universidade. Isso conduziu a uma nova condenación, o 7 de
março de 1277, quando o bispo de Paris condenou 219 proposições e excomulgó a todo o que
persistisse nas manter. A condenación ia dirigida principalmente contra os ensinos de Siger de
Brabante e de Boecio de Dacia, e incluía o subterfugio da “dupla verdade”. Boecio de Dacia,
que era um contemporâneo de Siger de Brabante, sustentava a ideia intelectu alista de beatitud
exposta por Aristóteles, afirmando que somente os filósofos podem atingir a verdadeira
felicidade, enquanto os não-filósofos pecam contra a ordem natural. As proposições condenadas,
que “não há outro estado excelente que o consagrar à filosofia”, e que “os sábios do mundo são
unicamente os filósofos”, parecem ter sido tomadas dos ensinos de Boecio de Dacia, ou
resumidas. Boecio, como professor da Faculdade de Artes, ignorava toda menção da ordem
sobrenatural, e tratava a concepção aristotélica de beatitud como adequada, ao menos desde o
ponto de vista da razão.
Capítulo XLIII
Pensadores franciscanos

1. Roger Bacon, vida e obras.

Um dos pensadores medievais mais interessantes é Roger Bacon (nascido para 1212 e
morrido após 1292), chamado Doutor Mirabilis. Seria interessante embora não fosse mais que
por seu interesse e respeito pela ciência experimental e a aplicação das matemáticas à ciência;
mas o que lhe faz consideravelmente mais interessante é que seus interesses científicos se
combinaram com um vivo interesse pela filosofia propriamente dita, e que um e outro interesse
se combinaram com o énfasis tipicamente franciscano no misticismo. Elementos tradicionais
fundiram-se assim com uma perspetiva científica que era realmente estranha à mentalidade da
maioria dos teólogos e filósofos contemporâneos[814]. Ademais, Roger Bacon, impulsivo, algo
intolerante e acalorado, convencido da verdade e o valor de suas próprias opiniões e do
oscurantismo de muitos dos pensadores ponteiros de seu tempo, particularmente dos de Paris,
resulta interessante não somente como filósofo, senão também como homem. Foi, em verdadeiro
modo, a ave das tempestades, a pessoa pendenciera de sua Ordem, mas, ao mesmo tempo, uma
das glórias desta, e uma das figuras destacadas da filosofia britânica. Se estabelecesse-se uma
comparação entre Roger Bacon e Francis Bacon (1561-1626), o resultado não daria nem muito
menos uma vantagem incondicionada para o segundo. Como observou o professor Adamson, “é
provável que com toda justiça, quando falemos de reforma baconiana da ciência, devamos nos
referir ao esquecido monge do século MAIS XIII bem que ao brilhante e famoso chanceler do
século XVII”[815] e Bridges observa que embora Francis Bacon foi “imensamente superior como
escritor, Roger Bacon teve uma mais sólida estima e uma mais fírme captación dessa
combinação do deductivo e o inductivo que carateriza ao descobridor científico”.[816]

Nascido em Ilehester, Roger Bacon estudou em Oxford como discípulo de Adam Marsh e
de Robert Grosseteste. Bacon teve por este último a mais viva admiração, e diz-nos/dí-nos que
conhecia a matemática e a perspetiva (óptica) e que pôde o ter conhecido tudo; Grosseteste tinha
também bastantees conhecimentos de línguas para entender aos homens sábios da
antigüedad[817]. Desde Oxford, Bacon transladou-se a Paris, onde parece que ensinou durante
alguns anos. Pelos professores de Paris manifesta pouco respeito. Assim, da Summa de
Alexandro de Hales observa que pesava mais que um cavalo, mas põe em dúvida sua
autenticidade[818], e censura aos teólogos por suas incursões na filosofia, por sua ignorância das
ciências, e pela não merecida deferencia que concediam a Alexandro de Hales e a Alberto
Magno[819]. A ignorância das ciências e das línguas constituíam seus principais cargos contra os
pensadores de seu tempo, embora também via um defeito na veneração em que se tinham as
Sentenças de Pedro Lombardo, que, segundo diga Bacon, eram preferidas à mesma Biblia, e na
defeituosa exégesis das Escrituras. Em outras palavras, as críticas de Bacon (que muitas vezes
eram injustas, como no caso de Santo Alberto Magno) manifestam a dupla caraterística de seu
pensamento, a devoción à ciência unida a uma atitude tradicional ou conservadora ante a teología
e a metafísica. Pelo que respecta a Aristóteles, Bacon era um admirador do Filósofo, mas
detestava o que ele considerava más e desorientadoras traduções latinas de suas obras, e declarou
que as teria queimado todas se lhe tivesse sido possível o fazer.[820]

Mas embora Bacon servisse-se pouco das grandes figuras da universidade de Paris e
comparasse desfavoravelmente aos pensadores parisienses com seus próprios compatriotas,
encontrou em Paris ao menos um homem que exerceria uma perdurável influência sobre seu
pensamento, Pierre de Maricourt, natural de Picardía e autor de uma Epístola de magnete e de
uma Nova compositio Astrolabii particularis[821]. Segundo Roger Bacon[822], Pierre de
Maricourt era o único homem que podia ser merecidamente alabado por seus lucros na
investigação científica. “Durante os três anos anteriores tinha estado trabalhando na produção
de um espelho que produziria a combustão a distância; um problema que os latinos nunca
resolveram nem tentaram, embora se escreveram livros sobre o tema.” Pierre de Maricourt
estimulou evidentemente a inclinação de Bacon à ciência experimental e ganhou-se seu respeito
ao dirigir suas perguntas à Natureza mesma, em local de tratar de contestá-las a priori e sem
recorrer ao experimento.

Para o ano 1250, Bacon entrou na ordem franciscana, e ensinou em Oxford até 1257, quando
teve que abandonar o ensino público por ter provocado as suspicacias ou a hostilidade de seus
superiores. No entanto, ainda se lhe permitia escrever, embora não publicar suas obras. Em junho
de 1266 o papa Clemente IV, amigo de Bacon, disse a este que lhe enviasse suas obras; mas o
papa morreu pouco depois, e não se sabe com certeza se os manuscritos chegaram a Roma nem,
se é que chegaram, como foram recebidos. Em todo caso, Bacon teve complicações em 1277,
ao escrever o Speculum astronomiae para defender suas ideias sobre a astrología e criticar a
condenação desta por Esteban Tempier. O então geral dos franciscanos, Jerónimo de Ascoli,
levou a Bacon ante um capítulo em Paris, baixo a suspeita de ensinar novidades, e o resultado
foi a prisão de Bacon em 1278. Parece que este permaneceu em prisão até 1292, e que morreu
nesse ano, ou não bem mais tarde. Foi enterrado em Oxford, na igreja dos franciscanos.

A obra principal de Bacon foi o Opus Maius, que talvez foi completada e enviada ao papa.
O Opus Minus e o Opus Tertium vêm a ser resúmenes do material conteúdo no Opus Maius,
embora há também neles temas novos. É no Opus Minus onde Bacon, por exemplo, trata de sete
pecados teologales. Certo número de outras obras, como as Quaestiones supra livros octo
Physicorum Aristotelis e as Quaestiones supra livros Primae Philosophiae, foram publicadas
em catorze volumes das Opera haetenus inédita Rogeri Baconi, dos que apareceram até agora
dezesseis fascículos. Algumas dessas obras parecem ter sido escritas como partes de um
projetado Seriptum Principóle. Bacon escreveu também um Compendium Philosophiae, um
Compendium studii Philosophiae e um Compendium studii Theologiae.
2. Filosofia de Roger Bacon.

Na primeira parte do Opus Maius, Bacon enumera quatro causas principais da ignorância
humana e do falhanço na busca da verdade: a sustentação a uma autoridade não merecida, a
influência dos hábitos, os preconceitos populares e o manifestar uma sabedoria aparente para
encobrir a própria ignorância. As três primeiras causas de erro já era reconhecidas por homens
como Aristóteles, Séneca, Averroes; mas a quarta é a mais perigosa de todas, já que faz com que
o homem oculte sua própria ignorância ao sustentar como verdadeira sabedoria os resultados do
indevido respeito a uma autoridade indigna de confiança, aos hábitos e aos preconceitos
populares. Por exemplo, tal coisa considera-se verdadeira porque disse-a Aristóteles; mas talvez
Avicena eorrigió a Aristóteles nesse ponto, e Averroes a Avicena. Do mesmo modo, porque os
Pais da Igreja não levaram a cabo estudos científicos se dá por suposto que esses estudos
carecem de valor; mas as circunstâncias daquele tempo eram inteiramente diferentes, e o que
para os Pais pôde ser uma desculpa, não tem de ser necessariamente uma desculpa para nós. Os
homens não reconhecem o valor do estudo das matemáticas e das línguas, e menosprecian assim
tais estudos por preconceito.

Na segunda parte, Bacon sublinha o caráter dominante da teología: toda verdade está contida
nas Escrituras. Mas para a elucidación das Escrituras precisamos a ajuda do direito canónico e
da filosofia. A filosofia e o uso da razão em general não podem ser condenados, já que a razão
é de Deus. Deus é o entendimento ativo (assim interpretou Bacon a Santo Agostinho, apelando
a Aristóteles e a Avicena), e alumia a mente humana individual, coincidindo com esta em sua
atividade. A filosofia tem como finalidade conduzir ao homem ao conhecimento e ao serviço de
Deus; a culminación da filosofia é a filosofia moral. As ciências especulativas e morais dos
paganos eram certamente inadequadas, e só encontraram seu necessário complemento na
teología cristã e na ética cristã; mas não deve ser condenado nem descurar partícula alguma da
verdade. De fato, diz Bacon, a filosofia não foi uma invenção pagana, senão que foi revelada
aos Patriarcas. Mais tarde, a revelação foi escurecida pela depravación humana, mas os filósofos
paganos ajudaram a redescubrirla, ao menos em parte. O maior daqueles filósofos foi
Aristóteles, e Avicena é seu principal expositor. Quanto a Averroes, foi um homem de
verdadeira sabedoria, que melhorou em muitos pontos o que seus predecessores dizia, embora
suas próprias teorias estão também precisadas de correção. Em resumem, devemos utilizar a
sabedoria pagana de uma maneira inteligente, sem recusá-la nem condená-la com ignorância,
mas também sem nos aderir servilmente a tal ou qual pensador particular. Nossa tarefa consiste
em levar adiante e aperfeiçoar a obra de nossos predecessores, sem esquecer que, embora é
função da verdade conduzir ao homem para Deus, não devemos considerar como faltos de valor
aqueles estudos que, a primeira vista, não estão relacionados com a teología: toda verdade, da
classe que seja, conduz em último termo a Deus.

Bacon consagra a terceira parte ao tema da linguagem, e sublinha a importância prática do


estudo científico das línguas. Sem um autêntico conhecimento do hebreu e do grego, as
Escrituras não podem ser adequadamente interpretadas e traduzidas, nem podem ser corrigido
os manuscritos quando contêm erros; e também se precisam boas traduções dos filósofos gregos
e árabes. Mas para traduzir precisa-se algo mais que umas noções superficiais da língua, a não
ser que um se conforme com traduções literais insuficientes.
Na quarta parte, Bacon trata das matemáticas, a “porta e chave” das demais ciências. As
matemáticas foram estudadas pelos patriarcas, e chegaram a conhecimento dos gregos por
mediação dos caldeos e dos egípcios; mas entre os latinos caíram no esquecimento. No entanto,
a ciência matemática é quasi innata, ou ao menos aprende-se mais fácil e imediatamente e com
menos dependência da experiência que as outras ciências, de maneira que pode ser dito que é
pressuposta pelas demais ciências. A lógica e a gramática dependem em certa medida das
matemáticas, e é óbvio que sem matemáticas não pode ser feito progrido algum na astronomia;
as matemáticas são úteis inclusive à teología. A astronomia matemática pode, por exemplo,
demonstrar a insignificancia relativa da terra em comparação com os céus, para não falar da
utilidade das matemáticas na solução de problemas cronológicos das Escrituras e para mostrar
os erros do calendário juliano, um tema ao que o papa faria bem em atender. Bacon passa depois
a falar a respeito da luz, sua propagación, reflexão e refração, dos eclipses e marés, da forma
esférica da terra, da unicidad do universo, etc., e, a seguir, procede a falar de geografia e de
astrología. A astrología parece suspeita porque acha-se que implica o determinismo, mas tal
suspeita é injusta. A influência e os movimentos dos corpos celestes afetam aos acontecimentos
terrestres e humanos, e inclusive produzem disposições naturais nos seres humanos, mas não
destroem o livre albedrío; é de pura prudência conseguir todo o conhecimento que possamos, e
o utilizar para fins bons. Bacon aprova o conselho de Aristóteles a Alexandro a propósito de
certas tribos de comportamento inconveniente: muda seu clima, isto é, muda seu local de
habitação, e mudará seu moral.

A ótica constitui o tema da quinta parte, na que Bacon trata da estrutura do olho, os princípios
e condições da visão, a reflexão, a refração, e, finalmente, as aplicações práticas da ciência da
ótica. Bacon sugere que poderiam ser elevado espelhos em locais altos para que pudessem ser
observado os traçados e os movimentos de um acampamento inimigo, e que, valendo da
refração, poderíamos fazer com que coisas pequenas parecessem grandes e objetos distantes
parecessem próximos. Não há provas de que Bacon inventasse realmente o telescópio; mas
concebeu sua possibilidade.

Na sexta parte, Bacon considera a ciência experimental. O razonamiento pode guiar à mente
até uma conclusão verdadeira, mas só a confirmação da experiência exclui a dúvida. Essa é uma
das razões pelas que se utilizam na geometria diagramas e figuras. Muitas crenças são refutadas
pela experiência. Mas a experiência é de duas classes. Em uma classe de experiência
empregamos nossos sentidos corporales, ajudados por instrumentos e por depoimentos de
testemunhas dignos de confiança; a outra classe está constituída pela experiência de coisas
espirituais, e precisa da graça. Este segundo tipo de experiência progride através de diversas
etapas, até os estados místicos extáticos. O primeiro tipo de experiência pode ser utilizado para
prolongar a vida (mediante a melhora da ciência da medicina e a descoberta de antídotos para
os venenos), para inventar substâncias explosivas, para transformar metais innobles em ouro e
para refinar o mesmo ouro, e para desengañar assim aos paganos de suas crenças mágicas.

Finalmente, na sétima parte do Opus maius, Bacon ocupa-se da filosofia moral, que está a
um nível mais alto que a filología, as matemáticas e a ciência experimental. Essas ciências
relacionam-se a ações de diversas classes, enquanto a filosofia moral relaciona-se às ações pelas
que nos fazemos bons ou maus, e instrui ao homem quanto a seus relacionamentos com Deus,
com seus próximos e consigo mesmo. Está, pois, intimamente relacionada com a teología e
participa da dignidade desta última. Envelope o suposto dos “princípios da metafísica”, que
incluem a revelação cristã, Bacon trata da moralidad cívica, e, depois, com maior extensão, da
moralidad pessoal, para o que faz uso dos escritos dos filósofos gregos, romanos e muçulmanos,
particularmente de Séneca, o estoico romano. Em conclusão, trata dos fundamentos de que
dispomos para aceitar a religião cristã. A revelação é necessária, e o cristão aceita a fé baseando
na autoridade; mas ao tratar com os não cristãos não podemos apelar simplesmente à autoridade,
senão que devemos recorrer à razão. Assim, a filosofia pode provar a existência de Deus, sua
unicidad e sua infinitud; e a credibilidade dos escritores sagrados estabelece-se envelope a base
de sua santidad pessoal, sua sabedoria, a prova dos milagres, seu firme constancia nas
perseguições, a uniformidade de sua fé, e sua vitória apesar de sua humilde origem e sua humilde
condição temporária. Bacon finaliza com a doutrina da incorporação do homem a Cristo e sua
participação, através de Cristo, na vida divina. Et quid potest homo plus petere in hac vita? Que
outra coisa pode buscar o homem nesta vida?

O dito bastará para pôr em claro o caráter duplo da filosofia de Bacon. Seu énfasis no
relacionamento da filosofia à teología, na função da filosofia na condução do homem para Deus
e na feição prática e moral da filosofia, o local que na sua concede ao conhecimento interno de
Deus e das coisas espirituais e sua culminación no êxtase, o íntimo relacionamento que
estabelece entrei a teología e a filosofia, sua doutrina de Deus como entendimento ativo
iluminante[823], sua adoção das teorias das “rationes seminales” (pelo desenvolvimento das quais
a matéria tem uma espécie de apetición ativa) e da composição hilemórfica universal das
criaturas, e da pluralidad de forma (desde a forma de corporeidad até a forma individualis), todo
isso lhe carateriza como adicto à tradição agustiniana. Apesar de seu respeito por Aristóteles,
não é infrequente que lhe interprete tortamente e inclusive que lhe atribua doutrinas que
certamente nunca sustentou. Assim, descobre na filosofia de Aristóteles elementos da revelação
cristã que não tinha realmente naquela; e embora refere-se a santo Tomás, não parece ter sido
influído pelas posições tomistas nem ter sentido um especial interesse pelas mesmas. Pelo
contrário, a amplitude de seus interesses e a força de sua insistencia na ciência experimental em
general, no desenvolvimento da astronomia mediante a ajuda das matemáticas, e nas aplicações
práticas da ciência, caraterizam-lhe como um heraldo dos tempos futuros. Por temperamento,
Roger Bacon foi algo seguro de si mesmo, inclinado à impaciência e às críticas e condenações
às vezes injustas; mas pôs o dedo em muitos pontos débis da ciência de seu tempo, bem como
da moral e da vida eclesiástica contemporâneas. Suas teorias científicas dependeram em boa
medida de outros pensadores, como era perfeitamente natural; mas tinha a conveniente agilidade
intelectual para ver a possibilidade de seu desenvolvimento e aplicação, e, como já se observou,
teve uma vigorosa intuición do método científico, da combinação de dedução e indução, que
possuiu mais tarde Francis Bacon, o chanceler da Inglaterra, cuja insistencia no experimento e
a observação e nas aplicações práticas do conhecimento, foi descrita às vezes como sem paralelo
nem antecipação nos filósofos anteriores.

3. Mateo de Aquasparta.

Um agustiniano de tipo diferente foi Mateo de Aquasparta (1240-1302, aproximadamente),


que estudou em Paris, ensinou em Bolonha e Roma, e chegou a ser geral da ordem franciscana
em 1288. Mateo, autor, entre outras obras, de um Comentário às Sentenças, umas Quaestiones
disputatae e umas Quaestiones quodlibetales, aderiu-se em general à posição de São Boaventura,
e viu a Santo Agostinho como a grande fonte da sabedoria. Assim, embora admitia que, para o
homem, as ideias dos objetos corpóreos somente podem ser formado em dependência da
experiência sensível, se negava a admitir que os objetos corpóreos pudessem afetar a algo mais
que o corpo. É à alma mesma a quem há que atribuir a sensação como tal, segundo mantinha
Santo Agostinho, conquanto, desde depois, a sensação requer que um órgão sensitivo seja
afetado por um objeto sensível. Por outra parte, é o entendimento ativo o que transforma a
species sensibilis e produz a ideia no entendimento pasivo. Mateo apela explicitamente a Santo
Agostinho nessa matéria[824]. Mas a atividade da alma só não é suficiente para explicar o
conhecimento: é necessária a iluminação divina. Que é essa iluminação divina? É o concurso
imediato de Deus com a operação do entendimento humano, um concurso por mediação do qual
o entendimento é movido a conhecer o objeto. Deus move-nos a conhecer o objeto cuja species
sensibilis recebemos, e esse movimento é a iluminação divina. O objeto relaciona-se a seu
fundamento instância eterna, a ratio aeterna ou ideia divina, e é a luz divina o que nos capacita
para discernir esse relacionamento: as rationes aeternae exercem um efeito regulatório em nosso
entendimento. Mas nós não discernimos a luz divina, não advertimos o concurso, nem são as
ideias eternas objetos diretamente percebidos; conhecemo-las mais bem como os princípios que
movem ao entendimento a conhecer as essências criadas, ut obiectum movens et in aliud ducens,
não como obiectum in se ducens[825]. Não há, pois, dificuldade alguma em ver como a luz divina
opera em todos os homens, bons ou maus, pois não é questão de uma visão das ideias divinas e
da essência divina como tal, em si mesmas. Deus coopera em todas as atividades das criaturas;
mas a mente humana está feita a imagem de Deus de um modo especial, e o concurso de Deus
com a atividade da mente pode ser chamado com todo direito “iluminação”. Na mesma Quaestio
de cognitione de que já se fez menção, Mateo faz referência à doutrina tomista de que o
entendimento conhece a coisa singular per quandam reflexionem, por um verdadeiro ato de
reflexão[826], e a recusa. É difícil entender essa posição, diz, porque o conhecimento da coisa
singular per refletam/reflitam! ad phantasma significa que o entendimento conhece a coisa
singular ou no fantasma ou diretamente em si mesma. Esta última suposição é excluída por santo
Tomás, enquanto, por outra parte, o fantasma não é atualmente inteligible (intelligibile actu),
senão que a species intelligibilis tem de ser abstraída. Em oposição à opinião tomista, Mateo
afirma que o entendimento conhece as coisas singulares em si mesmas e diretamente, por médio
de species singulares. A intuición sensível prende o objeto como existente, e a intuición
intelectual prende a essência ou quiddidad individual; mas se a mente não tivesse antes de mais
nada uma intuición da coisa singular, não poderia abstraer a noção universal. A species
universalis pressupõe, pois, a species singulares. Desde depois, a coisa singular não é inteligible
se por inteligible se entende dedutivamente demostrable, já que a coisa singular é contingente e
caduca; mas se por inteligible entende-se o que pode ser preso pelo intelecto, nesse caso deve
ser admitido que a coisa singular é inteligible[827]. De outro modo não é possível explicar
satisfatoriamente a abstração e o fundamento real da ideia universal.

Outra teoria de santo Tomás recusada por Mateo de Aquasparta é a de que a alma, enquanto
está unida ao corpo, não tem intuición direta de si mesma e de suas disposições e potências,
senão que conhece indiretamente que existem ela mesma e suas disposições, mediante sua
percepción do ato pelo qual conhece os objetos graças às species abstraídas dos fantasmas. Essa
teoria do conhecimento puramente indireto da alma por si mesma é recusada por Mateo como
contrária aos ensinos de Santo Agostinho e também ao que a razão exige. É irrazonable supor
que a alma esteja de tal modo inmersa no corpo que nada possa prender sem uma imagem ou
fantasma, e que só indiretamente possa ser preso a si mesma e a suas disposições. “Parece
inteiramente absurdo supor ao entendimento tão cego que não se veja a si mesmo, quando é pelo
entendimento pelo que a alma conhece todas as coisas.”[828] Mateo enuncia sua própria teoria
com considerável cuidado. Quanto ao começo do conhecimento, “digo, sem dúvida alguma, que
a alma não pode, intuirse a si mesma, nem intuir os hábitos que se dão nela, e que o primeiro ato
de conhecimento não pode ser dirigido a si mesmo nem às coisas que estão em ele”[829]. A alma
precisa um estímulo procedente dos sentidos corporales para que comece o conhecimento, e
depois, por reflexão sobre seu próprio ato de conhecimento, chega a conhecer suas potências e
a si mesma como existente. Mas depois a alma volta-se envelope sim mesma, por assim o dizer
(quadam spirituali conversione in semetipsam revocata est)[830], e então pode ter uma intuición
direta de si mesma e de seus hábitos, que não são já simplesmente conclusões não intuidas de
um processo de razonamiento, senão objeto direto de uma visão mental. Para que essa visão
intelectual tenha local se requerem quatro condições, o mesmo que para a visão sensível, a saber,
um objeto visível que esteja presente como visível, uma capacidade de visão adequadamente
disposta, proporção mútua e iluminação. Todas essas condições são ou podem ser satisfeitas. A
alma é um objeto intelectualmente visível e está presente ao entendimento; o entendimento é
uma potência imaterial, e não depende intrinsecamente de órgão sensitivo; tanto o entendimento
como a alma são objetos intelectivos finitos, e nada está tão proporcionado à alma como a alma
mesma; e, finalmente, a iluminação divina está sempre presente.[831]

Mateo de Aquasparta foi, pois, um firme seguidor da tradição agustiniana, embora foi-o de
uma maneira razoável e com moderação. Como não podia por menos de se esperar, manteve as
teorias das rationes seminales e da forma corporeitatis. Manteve ademais a doutrina de São
Boaventura sobre a composição hilemórfica universal das criaturas, e recusou que a distinção
real entre essência e existência fosse uma explicação adequada da finitud e contingencia destas.

4. Pedro João Olivio.

Um agustiniano muito menos fiel foi Pedro João Olivio (1248-1298, aproximadamente),
uma figura sobresaliente entre os franciscanos “espirituais”. Leste, embora seguiu abraçado à
teoria da composição hilemórfica de todas as criaturas e da multiplicabilidad dos anjos dentro
de uma mesma espécie, bem como à doutrina da pluralidad de forma, não somente negou a
existência de rationes seminales, senão que sustentou que essa negación estava de acordo com
a doutrina de Santo Agostinho. Na filosofia de Olivio pode ser encontrado uma antecipação da
distinetio formalis a parte rei de Duns Scot, uma distinção intermédia entre a real e a conceptual;
e essa distinção existe entre os atributos divinos, por exemplo, como também ensinou Scot.
Olivio é também notável por ter adotado a teoria dos Impulsos, de João Filópono, isto é, a teoria
de que, quando um projétil é posto em movimento, o motor ou impulsor lhe confere uns
Impulsos ou impulsus que lhe leva para diante embora não esteja já em contato com o motor,
mas que pode ser vencido pela resistência do ar ou por outras forças opostas. Agora bem, a
consideração dessa teoria, que representa o abandono da teoria aristotélica do movimento
violento ou “não natural”, é melhor reservar para nosso volume seguinte, em conexão com os
pensadores que sacaram da doutrina algumas conclusões novas e prepararam o caminho para
uma nova concepção do mundo dos corpos. Uma consideração mais detida da distinetio formalis
a parte rei fica também para mais adiante, quando tratemos do sistema escotista. A verdadeira
razão de que se mencione aqui a Olivio é a de aludir brevemente a sua teoria da alma e do
relacionamento entre alma e corpo. Essa teoria, ou parte da mesma, foi condenada no Concilio
de Vienne, em 1311, e vale a pena mencionar a questão porque certos autores do passado
pretenderam que o Concilio entendia condenar algo que não era certamente o que entendia
condenar.

Segundo Olivio, há três “partes” constitutivas da alma humana, a forma ou princípio


vegetativo, a forma ou princípio sensitivo e a forma ou princípio intelectivo. Essas três forma
juntas constituem a alma humana única, a alma racional, como partes constitutivas da alma
inteira. Não tinha nenhuma novidade especial em manter uma doutrina pluralista das forma; mas
Olivio extraiu de sua teoria a peculiar conclusão de que as três partes formais do alma são unidas
pela matéria espiritual da alma de tal modo que a forma mais elevada influência e move às forma
inferiores só pela mediação da matéria espiritual. Olivio concluía ademais que, enquanto as
partes vegetativa e sensitiva informam ao corpo, a parte intelectiva não informa por si mesma
ao corpo, embora move às outras partes como instrumentos e súbditos seus. Olivio sustentava
que a radicación das três partes na matéria espiritual da alma punha a salvo a unidade do homem
e a união substancial de alma e corpo; mas, ao mesmo tempo, negava-se a admitir que a parte
intelectiva da alma informe ao corpo diretamente. Esse último ponto provocou um movimento
de oposição inclusive entre as filas dos mesmos franciscanos. Uma das razões dessa oposição
era que se fosse verdade que a alma intelectiva não informasse ao corpo diretamente, senão só
de uma maneira mediata, através da forma sensitiva, se seguiria que Cristo, corno homem, não
esteve composto de um corpo e uma alma racional, como ensina a fé[832]. A questão terminou
com que o Concilio de Vienne, em 1311, condenou como herética a proposição de que a alma
intelectiva ou racional não informa ao corpo diretamente (per se) e essencialmente
(essentialiter). Mas a decisão do Concilio não consistiu em condenar a doutrina da pluralidad de
forma e afirmar a tese tomista, como alguns autores trataram de manter. Os Pais do Concilio,
ou, ao menos, a maioria deles, sustentavam por sua vez a doutrina da pluralidad de forma. O
Concilio quis simplesmente preservar a unidade do homem mediante a afirmação de que a alma
intelectiva informa diretamente ao corpo. Isso está claro pela referência à Cristología. A natureza
humana de Cristo consta de um corpo humano passível e uma alma humana racional que informa
ao corpo, e que, juntos, formam a natureza humana. O Concilio não se interessou pela questão
da forma corporeitatis nem pela questão de se há ou não diversas “partes” na alma humana. O
que proclama é simplesmente que a alma racional informa diretamente ao corpo e é, assim, um
princípio que integra ao homem: o condenado era a separação entre a alma intelectiva e o corpo
humano, não a doutrina da pluralidad de forma. Por conseguinte, é completamente errôneo
afirmar que o Concilio de Vienne declarou que a alma humana informa diretamente a matéria
prima, e que a teoria tomista foi imposta pela Igreja.

5. Roger Marston.

Se Pedro João Olivio foi um pensador independente que se apartou em alguns pontos da
tradição agustiniana e preparou o caminho para posteriores etapas do pensamento franciscano,
Roger Marston (morrido em 1303), que durante algum tempo foi ministro da província
franciscana da Inglaterra, foi um completo agustiniano. Abraçou todas as teorias “agustinianas”
caraterísticas, como a da aprehensión intelectual da coisa singular, a da preeminencia da vontade
sobre o entendimento, a da composição hilemórfica universal das criaturas e a da pluralidad de
forma, e criticou a santo Tomás por admitir a possibilidade da criação desde a eternidade e por
ter jogado pela borda as rationes seminales. Em realidade, aquele decidido conservador inglês
encontrou demasiado acomodaticio inclusive a Mateo de Aquasparta, e recusou com firmeza
toda tentativa de adulterar o que ele considerava a genuína doutrina de Santo Agostinho e Santo
Anselmo. Devemos preferir os “santos” a esses “homens infernais”, os filósofos paganos.

Em seu De Anima, Roger Marston oferece uma inflexível interpretação dos ensinos de Santo
Agostinho sobre a iluminação divina. O entendimento ativo pode em verdade ser chamada uma
parte da alma se por “entendimento ativo” entendemos uma disposição natural na alma para o
conhecimento da verdade (sicut perspicuitas naturalis in oculo); mas se por entendimento ativo
entendemos o ato de iluminação, devemos dizer que o entendimento ativo é uma substância
separada, Deus mesmo[833]. O entendimento ativo é a luz eterna ou increada que imprime na
mente, como um selo na cera, uma verdadeira impressão ativa que deixa uma impressão pasiva,
o princípio formal no conhecimento das verdades inmutables[834]. O proporcionado pela luz
eterna. Deus, não são os conceitos ou termos do julgamento, senão a verdade eterna[835]. Por
exemplo, a luz eterna não infunde na mente o conceito de “todo” e o conceito de “parte”, mas é
a irradiación da luz eterna o que capacita à mente para que prenda de maneira infalible o
relacionamento entre os termos, a verdade eterna de que o todo é maior que a parte. As ideias
eternas são assim o fundamento último do julgamento verdadeiro e infalible (rationes aeternae
aliqualiter attinguntur). A explicação do fato de que a raça humana coincida nas verdades
fundamentais se encontra na iluminação comum de todos os entendimentos pela única luz
divina, e Roger Marston se nega a conceder que essa luz divina consista simplesmente na criação
do entendimento humano como uma imitação finita do entendimento divino. Os que negam que
o entendimento ativo é a luz primeira e increada são gentes que se têm “emborrachado com o
néctar da filosofia”, e que pervertem a sentença de Santo Agostinho e dos sancti[836]. Se Santo
Agostinho não pretendesse dizer mais que o que essas gentes lhe fazem dizer, então suas
argumentaciones careceriam de sentido e seriam petições de princípio, já que se se supõe que o
entendimento humano é a fonte de sua própria luz não pode ser concluído a existência de uma
luz increada, que é o que Santo Agostinho indubitavelmente faz[837].

6. Ricardo de Middleton.

Outro notável franciscano inglês foi Ricardo de Middleton que estudou em Oxford e em
Paris. Chegou a Paris em 1278, e, após graduarse, ocupou uma das cátedras franciscanas de
teología até 1286, quando foi nomeado tutor de san Luís de Toulouse, o filho de Carlos II de
Sicília. A data de sua morte é insegura, mas deveu ocorrer para a mudança de século. Compôs
o acostumado Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo e considera-se-lhe autor de umas
Quaestiones disputatae e umas Quodlibeta.

Em alguns pontos, Ricardo de Middleton seguiu a tradição geral franciscana. Manteve, por
exemplo, a imposibilidad da criação desde a eternidade, a composição hilemórfica universal nas
criaturas, a pluralidad de forma e a primacía da vontade. Em outros pontos, no entanto,
aproximou-se à posição tomista, e representa o novo movimento entre os pensadores
franciscanos para um agustinismo modificado, cujo maior expoente seria Duns Scot. Assim,
Ricardo insiste não somente em que todas as demonstrações válidas da existência de Deus são
a posteriori, senão também em que nosso conhecimento, tanto dos seres espirituais como dos
corporales, é abstraído a partir da experiência sensível, e que é desnecessário postular uma
iluminação especial ou identificar o entendimento ativo com Deus. Por outra parte, a mente
prende o singular, embora fá-lo por médio do mesmo conceito pelo que prende o universal.

Ademais, Ricardo manteve algumas ideias mais ou menos originais. Uma das menos felizes
foi a noção de que o que a mente atinge diretamente não é a coisa individual existente, senão
sua esse repraesentatum. Inventou também um principium puré possibile, para mostrar como
podem aparecer forma novas baixo a ação de um agente criado. Pode parecer a primeira vista
que esse principium não seja outra coisa que a matéria prima; mas a matéria, que difere
especificamente nos seres espirituais e nos corpóreos e, portanto, não é homogénea, tem alguma
atualidade própria a olhos de Ricardo de Middleton, enquanto o principium puré possibile não
tem atualidade própria alguma, é com-criado com a matéria e não pode existir por separado. Se
a matéria entende-se como o fundamento primeiro da mudança natural, como aquilo que é
comum aos corpos que se corrompem e se geram e que recebe a forma, então é realmente
diferente do princípio puramente potencial, que se transmuta na forma. O princípio puramente
potencial possa, pois, ser chamado a potencialidade da matéria (potentia materiae), se entende-
se essa potencialidade como o princípio a partir do qual o agente criado educe a forma e que se
transmuta na forma educida; mas nesse caso a potentia materiae é realmente diferente da matéria
mesma. Se, ao invés, por potentia materiae entendemos o poder que a matéria tem de receber a
forma, é o mesmo que a matéria; mas, nesse caso, é realmente diferente do principium puré
possibile[838]. Em outras palavras, o poder de receber a forma não é o mesmo que o poder ser
feito forma. Além da matéria prima como sujeito da mudança, que tem alguma atualidade
própria e que recebe a forma, Ricardo postula, pois, uma espécie de receptáculo de forma, um
princípio puramente potencial que se transmuta naquelas forma que são recebidas na matéria.
Ricardo considerava que essa teoria constituía uma melhora da teoria das rationes seminales, e
tratou de interpretar a Santo Agostinho como se este ensinasse a existência não de forças ativas
(o que equivaleria a uma latitatio formarum) senão de um princípio puramente potencial que se
converte nas forma. Em virtude dessa potencialidade positiva pode ser dito que as forma são
criadas desde o princípio em potencial, mas não deve ser entendido que isso implique a
existência de “gérmenes”. O princípio em questão está na matéria, e Ricardo chama-lhe a parte
mais íntima da matéria e a potencialidade pasiva da matéria; mas, como vimos, não é idêntico à
matéria como sujeito da mudança e recipiente da forma[839]. Não é, pois, algo completamente
separado da matéria, mas é diferente da matéria no sentido ordinário desta.

Esse modo de ver parece supor uma aproximação à concepção tomista da matéria prima, e
em certa medida assim é; mas Ricardo nega-se a abandonar a ideia tradicional de que a matéria
tem alguma atualidade própria, e por isso se vê obrigado a distinguir a matéria, como um
elemento da coisa composta, do princípio potencial que se faz forma baixo a ação do agente
criado.

Além de estar composta de matéria e forma, toda criatura está também composta de essência
e existência. Mas a existência não é algo realmente diferente da essência, algo bem como um
acidente que sobreviniera a esta última. Por outra parte, a existência não é só conceitualmente
diferente da essência, já que acrescenta algo à essência. Que é o que acrescenta? Um
relacionamento duplo: uma relatio rationis a si mesma, já que a existência confere à essência a
dignidade de ser uma hipóstasis ou substância; e um relacionamento real ao criador[840]. Nesse
ponto Ricardo aceitou a posição de Enrique de Gante.

Ao final de sua obra Richard de Middleton[841], o pai E. Hocedez, Séc. I., observa: Richard
finit une époque. Ultimo representante da Escola Seráfica, tentou uma síntese (prudemment
nouvelle) na qual as posições principais de São Boaventura, aprofundadas e aperfeiçoadas,
seriam integradas com o que lhe parecia melhor do aristotelismo e da teología de São Tomás de
Aquino. Que Ricardo de Middleton incorporou ideias alheias à tradição agustiniana é um fato
suficientemente claro; mas não posso coincidir com o pai Hocedez em que aquele movimento
de pensamento “não tinha futuro algum”, e em que Duns Scot dirigiu à filosofia franciscana “por
novos caminhos que iam acabar cedo no nominalismo”. Parece-me melhor dizer que a filosofia
de Ricardo de Middleton constituiu uma etapa no caminho do escotismo, que abriu de par em
par a porta ao aristotelismo, mas não era nominalista nem favorável ao nominalismo.

7. Raimundo Lulio.

Um dos mais interessantes dos filósofos franciscanos é Raimundo Lulio, ou Ramón Llull
(1232/35-1315). Nascido em Mallorca, Raimundo Lulio esteve durante algum tempo no corte
do rei Jaime II; mas para o ano 1265 experimentou uma conversão religiosa e abandonou a sua
família para consagrar-se ao que ele chegava a considerar a grande tarefa de sua vida, combater
contra o Islã e ajudar a erradicar o averroísmo. Com tal finalidade, dedicou nove anos ao estudo
da língua árabe e da filosofia, e o primeiro fruto desse período de estudo foi seu Ars Magna,
seguida pelo Liber principiorum philosophiae. Lulio ingressou na Ordem terceira de san
Francisco e transladou-se a Africa para combater aos mouros; ensinou em Paris, e combateu o
averroísmo; escreveu lógica, filosofia, teología e poesia; escrevia em seu catalão nativo, em latín
ou em árabe. Finalmente foi martirizado na Tunísia, em 1315. Além das duas obras dantes
citadas, podemos mencionar o Ars demonstrativa, o Ars brevis, o Ars generalis ultima e as obras
antiaverroístas como o Liber contra erros Beotii et Segerii (isto é, contra Boecio de Dacia e
Siger de Brabante), o De naturali modo intelligendi, o Liber reprobationis aliquorum errorum
Averrois, o Disputado Raymundi et Auerroistae e os Sermones contra averroistas. Mas isso não
é senão uma seleção da portentosa produção literária de um homem que foi apóstolo e viajante,
poeta e místico.

Os interesses apostólicos de Raimundo Lulio foram de uma grande significação para sua
filosofia; a eles há que atribuir em parte a atitude geral que adotou ante a filosofia, cujo
relacionamento “ancilar” ou ministerial à teología sublinhou. Ele era perfeitamente consciente
da distinção entre fé e razão, e comparava a fé ao azeite que continua descansando sobre a água
sem se misturar com esta, embora se aumente a água; mas seu interesse pela conversão dos
muçulmanos levou-lhe a insistir não somente no relacionamento de subordinación da filosofia à
teología, senão também na capacidade da razão para fazer aceitáveis os dogmas da fé. E é à luz
dessa atitude geral como devemos entender seu propósito de “provar” os artigos da fé mediante
“razões necessárias”. Não se propôs racionalizar (no sentido moderno) os mistérios do
cristianismo mais do que lho tinham proposto Santo Anselmo ou Ricardo de São Victor quando
falavam de “razões necessárias” em favor da Trinidad. Lulio declara expressamente que a fé
trata de objetos que a razão humana não pode entender; mas ele desejava mostrar aos
muçulmanos que as crenças cristãs não eram contrárias à razão, e que a razão pode ser enfrentado
com as objeciones que se opunham àquelas. Ademais, convencido de que a acusação lançada
contra os averroístas de que estes sustentavam uma teoria da “dupla verdade” estava justificada,
e de que a teoria em questão era contradictoria e absurda, lhe interessava evidenciar que não há
necessidade de recorrer a nenhuma separação assim de radical da filosofia e a teología, senão
que, ao invés, os dogmas teológicos harmonizam com a razão e não podem ser impugnados pela
razão. Pelo que respecta às teorias peculiares dos próprios averroístas, ele argumentava que eram
contrárias tanto à fé como à razão. O monopsiquismo, por exemplo, contradiz o depoimento da
consciência: somos conscientes de que nossos atos de pensamento e vontade nos pertencem
como algo próprio.

Se atendesse-se meramente às teorias familiares do agustinismo mantidas por Lulio, tais


como a imposibilidad da criação desde a eternidade, a composição hilemórfica universal das
criaturas, a pluralidad de forma, a primacía da vontade sobre o entendimento, etc., não pareceria
ter nenhum rasgo particularmente interessante em sua filosofia; mas encontramos esse rasgo em
seu Ars combinatoria. Raimundo Lulio supõe, para começar, que há certas categorias ou
princípios gerais que são evidentes por si mesmos e que são comuns a todas as ciências, no
sentido de que sem eles não pode ter nem filosofia nem outra ciência alguma. Os mais
importantes deles são os nove pregados absolutos, bondade, grandeza, eternidade, poder,
sabedoria, vontade, virtude, verdade, glória. (Esses pregados expressam atributos de Deus.) Há
outros nove conceitos que expressam relacionamentos (entre as criaturas): diferença,
conveniência, contrariedad, começo, médio, fim, maioria, igualdade, minoria. Ademais, há
grupos de perguntas fundamentais, como quando, como, onde, etc., de virtudes e de vícios. Lulio
não pode ter atribuído nenhuma importância particular ao número nove, que aparece no Ars
generalis, já que em outros locais dá outros números para os atributos divinos ou pregados
absolutos; por exemplo, no Liber de volúntate infinita et ordinata dá-nos doze, enquanto no De
possibili et impossibili dá-nos vinte; o importante é que há certas ideias fundamentais que são
essenciais à filosofia e à ciência.

Pressupostas essas ideias fundamentais, Raimundo fala como se mediante sua combinação
pudessem ser descoberto os princípios das ciências particulares, e inclusive descobrir novas
verdades, e para que possa ser facilitado o labor de combinação recorre ao simbolismo: os
conceitos fundamentais são simbolizados por letras, e estabelecem-se meios mecânicos de
tabulação e agrupamiento. Por exemplo, Deus era representado pela letra A, e, em escritos
posteriores, os nove princípios, simbolizados também por letras que representam os atributos
divinos, lhe rodeavam. Os citados princípios podiam ser combinado de cento vinte maneiras,
mediante o uso de figuras e círculos concêntricos. Não deve nos surpreender, pois, que alguns
autores veja no esquema de Lulio uma antecipação, do sonho leibniziano da caraterística
universalis e o Ars combinatoria, de um simbolismo algébrico cujo uso permitiria a dedução a
partir de uns princípios fundamentais não somente de verdades já averiguadas, senão inclusive
de verdades novas. Como já mencionámos, Lulio parece, em ocasiões, se propor essa finalidade,
e se esse fosse realmente seu propósito teria que considerar que ele se separou a si mesmo da
tradição escolástica; mas, em realidade, Lulio afirmou expressamente que seu propósito era
facilitar o uso da memória[842]. Ademais, devemos recordar seus interesses apostólicos, que
sugerem que seu esquema foi criado com fins de exposição e explicação mais bem que com fins
de dedução em sentido estrito. O fato de que Leibniz fosse influído por Lulio não prova, desde
depois, nada quanto às intenções deste último. Segundo o doutor Otto Keicher, ou. f. m.[843], são
os principia os que formam a essência não só do Ars generalis, senão de todo o sistema de
Raimundo Lulio; mas embora é bastante óbvio que o que Lulio via como conceitos fundamentais
formava em verdadeiro sentido a base de seu sistema, não parece que sua “arte” possa ser
reduzido ao estabelecimento de certos princípios ou categorias; o próprio filósofo via-o como
algo mais que isso. Desde depois, se sublinha-se a feição expositorio, didático, da “arte”, quase
greve debater quais são seus elementos essenciais e não essenciais; mas, se quer ser considerado
a arte luliana como uma antecipação de Leibniz, é conveniente fazer uma distinção entre o
esquematismo e a técnica mecânica de Lulio, por uma parte, e a noção geral de deduzir os
princípios das ciências a partir de uma combinação de conceitos fundamentais, pela outra, pois
Lulio pôde ter antecipado a Leibniz quanto ao princípio geral deste ainda que seu “álgebra
lógica” fosse radicalmente deficiente. Essa é mais ou menos a opinião do doutor Bernhard
Geyer[844], e eu acho que é correta. O que Lulio leve adiante sua dedução se apoiando em três
princípios fundamentais[845]: manter como verdadeiro todo o que afirma a maior harmonia entre
Deus e o ser criado, atribuir a Deus o que é maximamente perfeito, e supor que Deus fez o que
parece, sem exceção, ser o melhor, não é um argumento contra aquela interpretação. Esta
manifesta indubitavelmente o parentesco espiritual entre Lulio e a tradição agustiniana, mas
recorda ao mesmo tempo um dos pontos importantes do sistema de Leibniz, em alguns séculos
mais tarde.
Capítulo XLIV
Gil de Roma e Enrique de Gante

(a) GIL DE ROMA

1. Vida e obras.

Gil (Aegidius) de Roma nasceu em 1247, ou um pouco dantes, e ingressou na ordem dos
ermitaños de Santo Agostinho para o ano 1260. Fez seus estudos em Paris e, ao que parece,
assistiu às lições de São Tomás de Aquino desde 1269 até 1272. Parece que compôs os Erros
philosophorum para 1270; nessa obra enumera os erros de Aristóteles, Averroes, Avicena,
Algazel, Alldndi e Maimónides. Os Comentários ao De generatione et corruptione, ao De
Anima, a Física, a Metafísica e os tratados lógicos de Aristóteles, o Comentário ao Livro I das
Sentenças, e as obras tituladas Theoremata de corpore Christi e De plurificatione intellectus
possibilis foram também escritas, ao que parece, dantes de 1277. Naquele ano teve local a
famosa condenação feita o 7 de março por Esteban Tempier, bispo de Paris; mas entre a Navidad
do ano 1277 e a Páscoa do 1278, escreveu o De gradibus formarum, no que rompe violentamente
com a doutrina da pluralidad de forma. Por essa e outras ofensas parecidas, Gil de Roma foi
chamado à ordem para que se retractase; mas ele se negou, e foi excluído da Universidade de
Paris dantes de terminar seus estudos teológicos. Nesse período de ausência de Paris escreveu
os Theoremata desse et essentia, e seu Comentário aos Livros II e III das Sentenças.

Em 1285 Gil de Roma regressou a Paris e permitiu-se-lhe receber a licenciatura em teología,


embora dantes teve de fazer uma retractación pública. Então ensinou teología em Paris, até que
foi eleito geral de sua ordem em 1292. Em 1295 foi nomeado arcebispo de Bourges. As obras
que escreveu após seu regresso a Paris em 1285 incluem Quaestiones disputatae desse et
essentia, Quaestiones quodlibtales, um Comentário ao Liber de Causis, obras de exégesis como
o In Hexaemeron, e tratados políticos como o De regimine principum e o De potestate
ecclesiastica. Gil morreu em Avignon em 1316.

2. A independência de Gil de Roma como pensador.

Gil de Roma foi apresentado às vezes como um “tomista”, mas, embora se encontrou de
acordo com santo Tomás em alguns pontos, na contramão dos franciscanos, é pouco exato lhe
considerar um discípulo de santo Tomás; era um pensador independente, e sua independência
evidencia-se inclusive em matérias nas que a primeira vista pode parecer que seguia a santo
Tomás. Por exemplo, embora indubitavelmente manteve a distinção real entre essência e
existência, não é menos verdadeiro que foi para além do que santo Tomás ensinava envelope
dita questão. Ademais, embora recusou a doutrina da pluralidad de forma em 1277, chegando a
declarar que essa doutrina era contrária à fé católica[846], essa não era sempre sua opinião. No
Comentário ao De Anima[847] fala de uma maneira vacilante e dubitativa a propósito da unicidad
da forma substancial no homem, e o mesmo pode ser dito de seus Theoremata de corpore
Christi[848], e nos Erros philosophorum afirmava que a doutrina da unicidad da forma substancial
no homem é falsa[849]. Está claro, pois, que começou por ser partidário da tradição “agustiniana”
ou franciscana, e que só gradualmente passou à teoria oposta[850]. Indubitavelmente foi influído
por santo Tomás, mas não parece que se limitasse a aceitar sem mais a doutrina tomista. Não
vacilou em criticar posições tomistas nem em se desviar destas quando lhe pareceu bem; e
quando se mostrava de acordo com elas é evidente que o fazia como um resultado de seu
pensamento e reflexão pessoal, não porque fosse ou fosse discípulo de santo Tomás. A lenda de
Gil de Roma como “tomista” foi realmente uma conclusão à que se chegou a partir do fato de
que durante um período assistiu às lições do aquinatense; mas a assistência às lições de um
professor não é uma garantia de discipulado.

3. Essência e existência.

Gil de Roma esteve consideravelmente influído pela teoria neoplatónica da participação. A


existência (esse) flui de Deus e é uma participação da existência divina. É recebida pela essência,
e é realmente diferente da essência. Que é recebida pela essência é algo que pode ser estabelecido
empiricamente pelo que respecta às substâncias corpóreas, já que estas começam a existir e não
estão sempre unidas à existência, um feito com que evidencia que estão em potencialidade para
existir, e que a existência é realmente diferente da essência da coisa sensível. Em realidade, se
a existência não fora realmente diferente da essência em todas as coisas criadas, as criaturas não
seriam criaturas: existiriam em virtude de sua própria essência e seriam, portanto, independentes
da atividade criadora de Deus. A distinção real é, pois, uma salvaguarda essencial da doutrina
da criação. Greve dizer que a afirmação de que a existência criada é uma participação da
existência divina não deve ser entendido em um sentido panteísta. Era precisamente o caráter
criado das coisas finitas, das participações, o que Gil de Roma desejava defender. Por essência,
Gil entende, no caso das coisas materiais, o composto de matéria e forma. O composto ou
essência corpórea possui um modo de ser (modus essendi) que deriva da união de matéria e
forma (no caso das criaturas imateriais o modo de ser deriva da forma só); mas não possui de
seu existência em sentido próprio (esse simpliciter), a qual é recebida. A atribuição de um modus
essendi à essência parece fazer desta uma coisa, e essa feição da teoria é acentuado pelo ensino
explícito de Gil de Roma de que essência e existência não são só realmente diferentes, senão
também separables. De fato, não vacila em falar delas como de coisas separables.

Essa exagerada versão da teoria da distinção real conduziu a uma viva controvérsia entre Gil
de Roma e Enrique de Gante, o qual atacou a doutrina do primeiro em seu primeiro Quodlibet
(1276). As Quaestiones disputatae desse et essentia contêm a resposta de Gil a Enrique; mas este
voltou ao ataque em seu X Quodlibet (1286), ao que replicou Gil em seu XII Quaestio
disputasse, na que mantém que a não ser que a existência e a essência sejam realmente diferentes,
no sentido em que ele ensinava a distinção real, a aniquilación de uma criatura seria impossível.
Seguiu, pois, mantendo que sua distinção real é absolutamente necessária para salvaguardar a
verdade de que a criatura depende absolutamente de Deus. O fato de que Gil ensinasse uma
distinção real entre essência e existência lhe relaciona com São Tomás de Aquino; mas é
indudable que santo Tomás não ensinava que essência e existência sejam duas coisas separables;
isso foi uma contribuição original, embora algo estranha, do próprio Gil.

4. Forma e matéria; alma e corpo.

Como evidencia sua teoria da essência e a existência, Gil de Roma se inclinava a supor que
sempre que a mente deteta uma distinção real há uma separabilidad. Assim, a mente abstrae o
universal do singular (a abstração é a obra do entendimento pasivo, quando o entendimento ativo
alumiou ao entendimento pasivo e ao fantasma) ao prender a forma do objeto sem a matéria. Por
conseguinte, forma e matéria são realmente diferentes e separables. Agora bem, a matéria, que
somente se encontra nas coisas corpóreas, é o princípio de individuación, e daí se segue que, se
a matéria e todas as condições individuais que procedem dela, pudessem ser separadas, os
indivíduos de qualquer espécie dada seriam um só. Quiçá essa é uma legítima conclusão da
doutrina da matéria como princípio de individuación; mas, em qualquer caso, é evidente a
tendência ao ultrarrealismo, e a conclusão deve-se, em parte, à inclinação de Gil de Roma a
considerar que “realmente diferente de” é equivalente a “separable de”.

Do mesmo modo, a forma (a alma) é realmente diferente e separable do corpo. Não há nada
novo nessa ideia, desde depois; mas Gil sugere que o corpo pode seguir sendo um corpo, isto é,
numericamente o mesmo corpo, após a separação da forma, já que dantes da separação atual era
separable, e a separação atual não muda sua identidade numéricas[851]. Corpo, nesse sentido,
significaria matéria extensa e organizada. Essa teoria, dito seja acidentalmente, proporcionava a
Gil de Roma uma explicação singela do modo em que o corpo de Cristo era numericamente
idêntico dantes e após a morte de Cristo na Cruz. Assim não precisava nem recorrer à doutrina
de uma forma corporeitatis (na que não achava), nem tinha que referir a identidade numérica do
corpo de Cristo no sepulcro com seu corpo dantes da morte simplesmente a sua união com a
Divinidad. Ademais, uma das razões pelas que Gil de Roma atacava a doutrina da pluralidad de
forma como incompatível com a ortodoxia teológica era a de que, em sua opinião, dita doutrina
punha em perigo a da morte de Cristo. Se há várias forma no homem, e somente uma delas, a
que é peculiar ao homem e não se encontra nos animais irracionais, se separa à morte, então não
poderia ser dito que Cristo sofria morte corpórea. Mas a razão teológica não constituía, nem
muito menos, sua única razão para atacar a doutrina da pluralidad de forma; por exemplo, ele
achava que as forma diferentes são contrárias, e não podem ser achado juntas na mesma
substância.

5. Teoria política.

O De potestate ecclesiastica tem interesse não só intrinsecamente, por tratar do


relacionamento entre Igreja e Estado, senão também porque foi uma das obras utilizadas pelo
papa Bonifacio VIII na composição de sua famosa bula Unam Sanctam (18 de novembro de
1302). Em seu De regimine principum, escrito para o príncipe que chegaria a ser Felipe o
Formoso da França, Gil depende de Aristóteles e santo Tomás; mas no De potestate ecclesiastica
propôs uma doutrina de soberania papal absoluta e de jurisdição do papa inclusive em matérias
temporárias, dirigida especialmente contra as pretensões dos monarcas e que comprazia
maximamente a Bonifacio VIII. Nessa obra, Gil de Roma baseou-se bem mais na atitude
mostrada por Santo Agostinho ante o Estado que no pensamento político de santo Tomás, e o
que Santo Agostinho dizia tendo principalmente em conta os estados paganos, foi aplicado por
Gil aos reinos contemporâneos, com a adição da soberania papal[852]. Há dois poderes, duas
espadas, a do papa e a do rei; mas o poder temporário está submetido ao espiritual. “Se o poder
terrenal equivoca-se deve ser julgado pelo poder espiritual, como seu superior; mas se o poder
espiritual, e especialmente o poder do Sumo Pontífice, atua equivocadamente, somente pode ser
julgado por Deus.”[853] Quando Felipe IV da França acusou a Bonifacio VIII de ter afirmado,
na Unam Sanctam, que a Santa Sede tem potestade direta sobre os reis inclusive em matérias
temporárias, o papa replicou que essa não era sua intenção: ele não tratava de usurpar o poder
dos reis, senão pôr em claro que os reis, o mesmo que qualquer outro membro da Igreja, estavam
submetidos a esta, ratione peccati. Mas parece que Gil de Roma, o qual falava, desde depois,
simplesmente como um teólogo privado, chegava bem mais longe que Bonifacio VIII nessa
matéria. Gil admite que há duas espadas e dois poderes, e que um desses poderes está concedido
ao monarca e o outro à Igreja, e especialmente ao papado; mas procede a dizer que, embora os
sacerdotes, e especialmente o Sumo Pontífice, baixo a nova lei, isto é, na dispensación cristã,
não devam esgrimir a espada temporária além da espiritual, isso não é porque a Igreja não possua
a espada material, senão mais bem porque a possui non ad usum, sejam ad nutum. Em outras
palavras, que bem como Cristo possuiu todo poder, espiritual e temporária, mas não fez
realmente uso de seu poder temporário, assim a Igreja possui poder em matérias temporárias,
embora não seja oportuno que exerça esse poder de uma maneira imediata e contínua. Bem como
o corpo está ordenado à alma e deve estar submetido à alma, assim o poder temporário está
ordenado ao poder espiritual e deve lhe estar submetido, inclusive em matérias temporárias. A
Igreja tem, pois, suprema jurisdição, inclusive em matérias temporárias; e a consequência lógica
é que os reis são pouco mais que lugartenientes da Igreja[854]. “Todas as coisas temporárias estão
colocadas baixo o domínio e poder da Igreja, e especialmente do Sumo Pontífice.”[855] Essa
teoria foi seguida por Jaime de Viterbo em sua De regimine christiano, dantes de setembro de
1302.

Em 1287 concedeu-se a Gil de Roma a distinção honorífica de ser nomeado doutor de sua
ordem durante sua vida, não somente com respeito ao que já escrevia, senão também com
respeito ao que escrevesse no futuro.

(b) ENRIQUE DE GANTE

6. Vida e obras.

Enrique de Gante Nasceu em Tournai, ou em Gante, em uma data que não pode ser precisada.
(Sua família procedia, em todo caso, de Gante; mas não era uma família nobre, como a lenda
pretendia.) Para 1267, Enrique era canónigo de Tournai, e em 1276 foi nomeado arcediano de
Bruxas. Em 1279 passou a ser arcediano principal de Tournai. Os deveres de seu oficio não
parecem ter sido muito exigentes, pois Enrique ensinou em Paris, primeiro na Faculdade de
Artes, e, mais tarde (a partir de 1276) na de Teología. Em 1277 fez parte da comissão de teólogos
que assessorou a Esteban Tempier, bispo de Paris. Suas obras incluem uma Summa Theologica,
quinze Quodlibeta, Quaestiones super Metaphysicann Aristotelis (1-6), um Syncathegorematum
Liber, e um Commentum in Librum de Causis; mas não parece que as três últimas obras possam
lhe lhe atribuir com certeza, e o mesmo pode ser dito do Comentário à Física de Aristóteles.
São, pois, a Summa Theologica e as Quodlibeta as que constituem a fonte segura para nosso
conhecimento dos ensinos de Enrique de Gante. Leste faleceu no dia 29 de junho de 1293. Nunca
foi membro da ordem dos servitas, como alguma vez se disse.

7. Eclecticismo, ilustrado pelas doutrinas da iluminação e o


innatismo.

Enrique de Gante foi um pensador eclético, e não pode lhe lhe chamar nem agustiniano nem
aristotélico. Uma boa ilustração de sua eclecticismo é sua teoria do conhecimento. Quando se lê
uma proposição como omnis cognitio nostra a sensu ortum habet[856], pode ser suposto que
Enrique foi um aristotélico decidido, com escassas simpatias pelo agustinismo, e ainda mais se
essa proposição se lê junto a sua afirmação de que o homem pode conhecer o que é verdadeiro
nas criaturas sem nenhuma especial iluminação divina, senão simplesmente mediante suas
potências naturais, ajudadas pelo concurso ordinário de Deus[857]. Mas esse não é mais que uma
feição de seu pensamento. O conhecimento das criaturas que podemos obter mediante a
experiência sensível não é senão um conhecimento superficial, e embora, sem iluminação,
podemos conhecer o que é verdadeiro nas criaturas, não podemos, sem iluminação, conhecer
sua verdade. A razão pela qual o conhecimento baseado simplesmente na experiência sensível é
superficial, é a seguinte. A species intelligibilis não contém mais que o que estava contido na
species sensibilis: por esta última prendemos o objeto em sua singularidade, e pela primeira
prendemos o objeto em sua feição universal; mas nem a uma nem a outra nos dão a essência
inteligible do objeto em seu relacionamento às ideias divinas, e sem a aprehensión da essência
inteligible não podemos formar um julgamento verdadeiro concerniente ao objeto. A “verdade”
(Veritas) do objeto consiste em seu relacionamento à Verdade inmutable, e para prender esse
relacionamento precisamos a iluminação divina[858]. Assim, quando Enrique de Gante diz que
nosso conhecimento procede dos sentidos, restringe a extensão do termo “conhecimento”: “uma
coisa é conhecer, a respeito de uma criatura, o que é verdadeiro nela, e outra coisa é conhecer
sua verdade”. A “verdade” de uma coisa é concebida por Enrique de uma maneira aviceniana, e
para prendê-la é necessária a iluminação. Por mais que Enrique faça relativamente pouco uso da
teoria da iluminação, por muito que possa ter aguado, até verdadeiro ponto, o agustinismo, o
elemento agustiniano esteve sempre presente, sem dúvida alguma, em seu pensamento: as
operações naturais dos sentidos e do entendimento explicam o que poderíamos chamar o
conhecimento normal do homem, que é um conhecimento relativamente superficial dos objetos,
mas não explicam nem podem explicar todo o possível conhecimento humano.

Uma tendência eclética similar pode ser visto em sua doutrina do innatismo. Enrique de
Gante recusou a doutrina platónica do innatismo e da reminiscência, bem como a teoria
aviceniana de que nesta vida as ideias são impressas pelo Dator formarum; mas não aceitou a
teoria aristotélica (segundo é comummente interpretada) de que todas nossas ideias se formam
por reflexão sobre os dados da experiência sensível. Enrique fez sua a afirmação de Avicena de
que as ideias de ser, coisa e necessidade são de tal classe que são impressas diretamente na alma
por uma impressão que não deve nada a ideias anteriores e melhor conhecidas[859]. Por outra
parte, as ideias primárias, a mais importante e radical das quais é a de ser, não são innatas em
sentido estrito, senão que se concebem juntamente com a experiência[860]. A mente parece sacar
essas ideias de si mesma, ou, mais bem, as formar desde dentro, por motivo da experiência
sensível[861]. Como a ideia de ser se estende tanto ao ser criado como ao increado[862], pode ser
dito que a ideia de Deus é em verdadeiro sentido innata; mas isso não significa que o homem
tenha desde seu nascimento uma ideia atual de Deus, cuja origem seja inteiramente independente
da experiência; a ideia é innata só virtualmente, no sentido de que o homem a forma a partir da
ideia de ser, a qual é a sua vez pressuposta pela experiência dos objetos concretos, mas não
aparece com clareza à consciência, não está atualmente formada, até que se desfruta da
experiência. Como a metafísica consiste realmente em uma investigação da ideia de ser e no
reconhecimento do relacionamento entre as essências inteligibles do ser criado e do ser increado,
poderia ser esperado que fosse sublinhada a necessidade da iluminação; mas Enrique descreve
frequentemente a génesis das ideias e do conhecimento sem referência alguma a uma iluminação
especial, possivelmente baixo a influência de Aristóteles e Avicena. Sua tendência ao
eclecticismo parece ter-lhe levado a um verdadeiro descuro da coerência.

8. Ideia da metafísica.

Enquanto o filósofo natural, ou physicus, começa pelo objeto singular, e forma depois por
abstração a noção universal do objeto sensível, o metafísico começa pela ideia de ser (ou rês, ou
aliquid), e procede a descobrir as essências inteligibles contidas virtualmente naquela ideia[863].
Algo se sobrepõem, desde depois, os domínios da física e da metafísica, já que, por exemplo,
quando o metafísico diz que o homem é um animal racional, prende o mesmo objeto que o físico,
que diz que o homem é um corpo e uma alma; mas o ponto de partida e o método do metafísico
são diferentes dos do físico. O metafísico, que procede do mais universal ao menos universal,
do gênero à espécie, define a essência inteligible do homem, enquanto o físico começa pelo
homem individual, e, por abstração, prende e enuncia os componentes físicos de todos os
homens.

O “ser” ou rês, no sentido mais amplo, compreende a rês secundum opinionem (tal como
uma montanha de ouro), que somente tem ser mental, e a rês secundum veritatem, que tem uma
existência extramental atual ou possível[864], e é o ser no segundo sentido o que é ens
metaphysicum, o que constitui o objeto da metafísica. Bem como o ens em sentido amplo divide-
se analogicamente, assim o ens metaphysicum se divide analogicamente em aquilo que é ipsum
esse, Deus, e aquilo cui convenit esse, a criatura. O ser não é, pois, um gênero ou predicamento.
Igualmente, o ser no último sentido, aliquid cui convenit vel natum est convenire esse,
compreende e divide-se analogicamente em substâncias, às que corresponde existir em si
mesmas (esse in seja), e acidentes, aos que corresponde existir em outro (esse in alio), isto é, em
uma substância. Indubitavelmente, é verdade que também para Aristóteles a metafísica é a
ciência do ser enquanto ser; mas para Aristóteles, a ideia de ser não constituía o ponto de partida,
cujo anáfisis conduziria à descoberta das divisões analógicas do ser; Enrique de Gante esteve
inspirado nesse ponto pelo pensamento de Avicena, cuja filosofia influiria também na
construção do sistema escotista. Tanto segundo Duns Scot como segundo Enrique de Gante, o
metafísico estuda a ideia do ser, e a metafísica se move primariamente em um nível conceptual.

Pode parecer que com esse modo de ver não só é difícil realizar o passo do nível essencial
ao nível existencial, senão também que poderia ter confusão entre a rês secundum opinionem e
a rês secundum veritatem. No entanto, Enrique de Gante manteve que as essências que são
atualizadas ou que são objetivamente possíveis podem ser discernidas como tendo uma realidade
própria, um esse essentiae, a posse do qual as distingue dos charutos entia rationis. No entanto,
não deve ser entendido que a teoria do esse essentiae, que Enrique tomou de Avicena, implique
uma espécie de existência incoada, como se a essência tivesse uma existência extramental de
uma classe rudimentaria; Enrique acusou a Gil de Roma de sustentar uma teoria desse tipo. O
que significa é que a essência existe no pensamento, que é definible, que é uma essência
inteligible[865]. Seu inteligibilidad, sua possibilidade intrínseca, distingue-a da rês secundum
opinionem, como por exemplo da noção de um ser médio homem e médio cabra, que é uma
noção contradictoria. Quanto ao relacionamento entre o nível essencial e o nível existencial, é
bastante evidente que só podemos conhecer a existência do singular mediante a experiência do
singular (na filosofia de Enrique de Gante não há questão da dedução dos singulares), enquanto
a essência inteligible, que é de caráter universal, não é tanto deduzida da noção de ser como
“disposta” baixo a noção de ser. Já temos visto que o filósofo natural deteta no homem seus
componentes físicos, corpo e alma; mas o homem é definido pelo metafísico como um animal
racional, em termos de gênero e espécie, em termos de sua essência inteligible. Essa essência
inteligible é assim disposta baixo a noção de ser e suas “contrações” (analógicas), como uma
espécie particular de substância; mas o homem atualmente existente só é conhecido por médio
da experiência. Por outra parte, a essência inteligible é um reflexo (um exemplatum, ou ideatum)
da Ideia em Deus, a essência instância ou absoluta, e Deus conhece as coisas singulares através
da essência considerada como multiplicable em substâncias ou supposita numericamente
diferentes. Em Deus não há ideias das coisas singulares como tais, mas estas são conhecidas por
Deus em e através da essência especifica[866]. Daí pareceria seguir-se ou bem que as coisas
singulares estão contidas de alguma maneira na ideia universal e são, teoricamente ao menos,
deducibles a partir daquela, ou bem que deve ser renunciado a toda tentativa de fazer inteligibles
às coisas singulares[867]. Enrique não podia admitir que a individualidad acrescente elemento
real algum à essência específica[868]; as coisas singulares diferem umas de outras simplesmente
em virtude do fato de que existem atual e extramentalmente. Então, se a individuación não pode
ser explicada em termos de um elemento real acrescentado, tem que ser explicada em termos de
uma negación, uma negación dupla, a de divisão interna ou intrínseca e a de identidade com
qualquer outro ser. Scot atacou esse ponto de vista sobre a base de que o princípio de
individuación não pode ser uma negación e que a negación tem que pressupor algo positivo;
mas está claro que Enrique pressupôs algo positivo, a saber, a existência.[869]

Pode parecer que o que até agora oferecemos seja uma informação confusa e quiçá não muito
significativa de diversos temas da doutrina de Enrique de Gante; mas nosso propósito foi
evidenciar uma dificuldade fundamental no sistema de dito pensador. Na medida em que a
metafísica é um estudo da ideia de ser e das essências inteligibles, e na medida em que os
indivíduos não são considerados inteligibles senão assim que contidos na essência, a metafísica
de Enrique é uma metafísica de tipo platónico, e no entanto sua teoria sobre a individuación
antecipa o ponto de vista ockhamista de que não é necessário buscar nenhum princípio de
individuación, já que uma coisa é individual pelo mero fato de que existe. Se o primeiro ponto
de vista postula uma explicação dos objetos em termos de essência, o segundo pede uma
explicação em termos de existência, de criação e produção; e Enrique yuxtapone ambos pontos
de vista, sem conseguir uma conciliação adequada.

9. Essência e existência.

Temos visto que Enrique de Gante dotou à essência inteligible de um esse essentiae, a
diferença do esse existentiae. Qual é a natureza da distinção em questão? Em primeiro lugar,
Enrique recusou a teoria de Gil de Roma, o qual levava a distinção ao plano físico e a tinha
convertido em uma distinção entre coisas separables, a essência e a existência. Contra esse modo
de ver, Enrique argumentou em seu Quodlibet 1 (9) no 10 (7), e no 11 (3). Se a existência fosse
diferente da essência no sentido querido por Gil de Roma, a existência seria a sua vez uma
essência, e requereria outra existência para existir, de maneira que teria que supor um regresso
infinito. Ademais, que seria uma existência realmente diferente da essência? Substância, ou
acidente? Nenhuma das duas respostas pode ser mantido. Ademais, Enrique recusou a distinção
real entendida como uma distinção metafísica: a essência de um objeto existente não é
indiferente em modo algum à existência ou não existência; na ordem concreta, uma coisa é ou
não é. A existência não é um elemento ou princípio constitutivo de uma coisa, de modo que a
coisa fosse uma síntese de essência e existência; qualquer síntese que possa ter, isto é, a adição
de essência e existência, é obra da mente[870]. Por outra parte, o conteúdo do conceito de essência
não é idêntico ao conteúdo do conceito de existência: a ideia de uma essência existente contém
mais que a mera ideia de essência como tal. A distinção, pois, ainda sem ser uma distinção real,
não é uma distinção puramente lógica, senão uma distinção “intencional”, pois expressa
diferentes intentiones relativas a uma mesma coisa simples.[871]

Mas se a essência atualizada contém mais que a essência concebida como possível, e se não
deve ser introduzido de novo a distinção real entre essência e existência, que é o que pode ser
esse “mais”? Segundo Enrique de Gante, consiste em um relacionamento, o relacionamento do
efeito à Causa, da criatura ao Criador. Para uma criatura, existir e depender de Deus são a mesma
coisa[872]. Ser um efeito de Deus e ter esse existentiae ab ipso é o mesmo, a saber, um respectus
ou relacionamento a Deus. A essência considerada meramente como possível é um exemplatum
e depende do conhecimento divino, enquanto a essência atualizada ou existente depende do
poder criador divino[873], de modo que a noção da segunda contém algo mais que a noção da
primeira mas embora o relacionamento da existência atualizada a Deus é um relacionamento
real de dependência, não é diferente da essência na ordem concreta com uma distinção real.
Desde o ponto de vista metafísico, pois, somente Deus pode ser pensado sem relacionamento a
outro ser algum; a criatura, aparte de seu duplo relacionamento a Deus (como o exemplatum ao
exemplar e como o efeito à causa), não é nada. Pelo primeiro relacionamento em si mesma, a
essência não existe “fora” de Deus; pelo segundo relacionamento, existe como uma essência
atualizada; mas, aparte desse relacionamento, não tem esse existentiae, já que o esse existentiae
e o respectus ad Deum são a mesma coisa.

10. Provas da existência de Deus.


Enrique de Gante admitiu as provas a posteriori da existência de Deus; mas considerou-as
como de caráter físico (suas ideias da física ou filosofia natural e da metafísica não podiam levar
a outra conclusão) e como inferiores à prova a priori. As provas físicas podem conduzir-
nos/conduzí-nos o reconhecimento de um Ser preeminente, mas não podem nos revelar a
essência desse Ser; pelo que respecta a ditas provas, a existência de Deus aparece como uma
existência de fato, mas não se revela também como uma existência de direito. A prova
metafísica, em mudança, permite-nos ver a existência de Deus como necessariamente contida
em sua essência, ou, mais bem, como idêntica a esta[874]. Do mesmo modo, unicamente a prova
metafísica pode estabelecer solidamente a unicidad de Deus, ao mostrar que a essência divina
tem uma repugnancia intrínseca a toda multiplicação.[875]

A ideia a priori de Deus, a da Suprema Perfección simples concebible, que não pode não
existir, foi suposta por Enrique de Gante como uma das noções primárias, a saber, Ser, Coisa ou
essência, e Necessidade. Poderia ser esperado que tratasse de deduzir as noções de Ser
necessário e ser contingente a partir de um conceito original unívoco de ser; mas de fato negou-
se a admitir o caráter unívoco do conceito de ser. Nosso reconhecimento do que é o Ser
necessário e nosso reconhecimento do que é o ser contingente se produzem parí passu: não
podemos ter um conhecimento imperfecto do segundo sem um conhecimento imperfecto do
primeiro, nem um conhecimento perfeito do segundo sem um conhecimento perfeito do
primeiro[876]. Não há um conceito unívoco de ser, comum a Deus e às criaturas: há dois
conceitos, o de Ser necessário e o de ser contingente, e nosso conceito de ser deve ser um ou
outro. Podemos, no entanto, confundir os dois. Há duas classes de indeterminación, a
indeterminación negativa e a indeterminación privativa. Um ser é negativamente indeterminado
quando exclui toda possibilidade de determinação no sentido da finitud, e somente Deus é
indeterminado nesse sentido; enquanto um ser é privativamente indeterminado quando possa ou
deve ser determinado, mas ainda não o é, ou se considera em abstração de suas
determinações[877]. Assim, se consideramos o ser em abstração de suas determinações,
consideramos o ser criado, que, em concreto, deve ser substância ou acidente, mas que pode ser
considerado com abstração dessas determinações, e esse conceito de privative indeterminatum
não compreende a Deus (negative indeterminatum). Mas a mente pode facilmente confundir
esses dois conceitos e concebê-los como um só, embora em realidade são duas. Ao afirmar isso
e ao excluir todo conceito unívoco de ser comum a Deus e às criaturas, Enrique de Gante
desejava evitar a ideia aviceniana da criação necessária, que parece a consequência lógica de
que se deduza o ser necessário e o ser contingente a partir de um originario conceito unívoco de
ser; mas acercou-se perigosamente à doutrina (da que foi acusado por Duns Scot) de que os dois
conceitos de ser são equívocos. É indudable que Enrique de Gante expôs uma doutrina da
analogia e que afirmou que o “ser” não se prega de um modo puramente equívoco de Deus e das
criaturas[878]; mas insistiu tanto em que o conceito de ser não é nem o conceito de Deus nem o
conceito de criatura, e em que entre estes não há comunidade positiva alguma, senão somente
negativa (sem que tenha fundamento positivo algum para a negación, isto é, para a
“indeterminación”), que a acusação de Scot parece estar consideravelmente justificada[879]. Scot
objetaba que, dado o modo de ver de Enrique, todo argumento que se remontasse a Deus a partir
das criaturas deveria ser falaz, e em verdade parece que, se se sublinha essa feição do
pensamento de Enrique ao que objetó Scot, o único caminho para salvaguardar o conhecimento
filosófico de Deus pelo homem seria o de reconhecer a existência de uma ideia a priori de Deus,
uma ideia que não tivesse que ser derivada da experiência das criaturas.
11. Espírito geral e significação da filosofia de Enrique de Gante.

Como já se disse, Enrique de Gante foi um eclético, e já oferecemos alguns exemplos de seu
eclecticismo. Conquanto combatia a teoria da distinção real proposta por Gil de Roma (e
inclusive a de santo Tomás, embora fosse Gil o objeto particular de seus ataques), conquanto
negou-se a admitir a possibilidade da criação desde a eternidade e a teoria tomista da
individuación, também recusou a doutrina da composição hilemórfica universal das criaturas e
se opôs à doutrina da pluralidad das forma em seres materiais não humanos. No primeiro
Quodlibet, Enrique adotou a teoria tomista da unidade da forma substancial no homem, mas no
segundo Quodlibet mudou de opinião e admitiu a forma corporeitatis no homem. Por outra parte,
conquanto postuló uma iluminação especial de tipo restringido e manteve a superioridad da
vontade livre envelope o entendimento, também tomou muitas coisas de Aristóteles, foi
fortemente influído pela filosofia de Avicena, e, em sua doutrina da individuación, se parece
mais aos pensadores do movimento ockhamista que a seus predecessores. Não obstante, chamar
a um filósofo “eclético”, sem mais cualificaciones, implica que esse filósofo não chegou a uma
síntese, e que sua filosofia é uma coleção de opiniões yuxtapuestas tomadas de diversas fontes.
No caso de Enrique de Gante, apresentar a essa luz seria cometer uma injustiça. É verdade que
não foi sempre consequente, e que suas opiniões e tendências de pensamento não sempre
harmonizam bem entre si; mas ele pertence de um modo claramente definido à tradição platónica
no pensamento cristão, e o que tomasse de Aristóteles ou de pensadores aristotélicos não afeta
realmente àquele fato; também São Boaventura fazia uso de Aristóteles sem deixar de ser um
agustiniano. A tendência principal de Enrique de Gante como metafísico foi a de construir uma
metafísica do inteligible, uma metafísica de essências mais bem que do concreto, e isso lhe
carateriza como um filósofo da tradição platónica.

Mas se Enrique pertenceu à tradição platónica, foi também um filósofo cristão. Assim,
manteve claramente a doutrina da criação livre a partir da nada. Não tratou de deduzir a
existência criada a partir da ideia de ser, e, em seu desejo de evitar o necesitarismo na ideia de
criação, recusou a univocidad do conceito de ser como um ponto de partida para a dedução
metafísica. É indudable que também não Platón tentou nunca uma dedução desse tipo; mas
Enrique, a diferença de Platón e dos demais filósofos paganos, tinha uma ideia clara da criação
e sublinhava a dependência de todas as coisas criadas respecto de Deus, mantendo que, aparte
de seu relacionamento a Deus, as coisas criadas são nada. Esse sobresaliente elemento cristão
de seu pensamento situa-lhe na tradição agustiniana, da que ele toma sua doutrina da iluminação
e das ideias virtualmente innatas (ideias que podem ser formado “desde dentro”). Por outra parte,
embora tratou de evitar aquilo que lhe parecia errôneo na filosofia de Avicena, sua própria
metafísica esteve muito influída pelo pensamento do filósofo muçulmano, de modo que Gilson
pôde falar, nesse contexto, de um augustinisme avicennisant. Aparte do fato de que Enrique
juntasse em um a Deus em sua função iluminadora (Santo Agostinho) e ao entendimento ativo
separado de Avicena (um rapprochement que não foi exclusivo de Enrique), sua doutrina do
innatismo mitigado lhe inclinou de um modo natural a uma metafísica de essências inteligibles
mais bem que a uma metafísica do concreto, e, como Avicena, atribuiu uma verdadeira realidade
ou objetividad, embora não independente de Deus, às essências consideradas assim que
possíveis, essências que se seguem necessariamente do entendimento divino e são, portanto (em
si mesmas, ao menos) deducibles. Mas quando se tratava da existência, do concreto mundo
existente da criação, Enrique tinha que se separar de Avicena. Este último, ao considerar que a
vontade divina estava sujeita à mesma necessidade que o entendimento divino, fez a emergência
das existências paralela à emergência das essências, e às inteligências subordinadas responsáveis
por prolongar a atividade da Causa primeira e levar a cabo a transição do universal ao particular;
mas Enrique de Gante, como pensador cristão, tinha que admitir a criação livre, e também a
criação no tempo. Viu perfeitamente bem que o sensível e concreto não pode ser feito
plenamente inteligible, se fazer algo plenamente inteligible significa o explicar em termos de
essência, e traçou, em consequência, uma firme divisão entre metafísica e física, duas ciências
diferentes, a cada uma das quais tem seu próprio ponto de partida e seu próprio modo de
proceder.

Com tudo, pese às tendências platónicas e avicenianas de seu pensamento, Enrique de Gante
ajudou em verdadeiro sentido a preparar o caminho ao nominalismo. A insistencia na iluminação
conduz facilmente a um verdadeiro escepticismo quanto à capacidade da mente para atingir um
sistema metafísico baseado na experiência, e, ao mesmo tempo, a tendência de Enrique à
simplificação ao tratar do mundo criado (por exemplo, ao negar toda distinção real entre essência
e existência, ou em sua teoria da individuación, que leva consigo o abandono do realismo) possa,
considerada em si mesma, se entender como o heraldo das tendências simplificadoras e do
conceptualismo do século XIV. Indubitavelmente, esse não é senão uma feição de sua filosofia,
e não o mais importante ou característico, mas não por isso deixa de ser uma feição verdadeira.
Ockham criticou o pensamento de Enrique de Gante em suas demais feições; mas isso não
significa que o pensamento de Enrique de Gante não exercesse influência no movimento cuja
figura principal foi Ockham. Chamou-se a Enrique uma figura “intermediária” entre os séculos
13 e 14, e seria difícil negar tal coisa; mas, dantes de que aparecesse o ockhamismo, Duns Scot,
que tão frequentemente criticou a Enrique de Gante, como Enrique criticava a Gil de Roma, ia
tentar o desenvolvimento e a justificativa de uma síntese de agustinismo e aristotelismo, se
esforçando assim, apesar de suas polêmicas contra Enrique de Gante, em cumprir
satisfatoriamente o que este não cumpria satisfatoriamente.
Capítulo XLV
Duns Scot. - I

1. Vida.

John Duns Scot, o Doutor Subtilis, nasceu na Escócia, em Maxton, no condado de Roxburgh,
embora seu nome de família. Duns, procedia de um local do condado de Berwiek. Hoje podemos
considerar seguro que era escocês, não simplesmente pelo fato de que, em seu tempo, já não se
chamava indiscriminadamente Scoti aos escoceses e aos irlandeses, senão também porque uma
série de descobertas de documentos de autoridade dificilmente questionável o provaram assim.
Mas se o país de seu nascimento é hoje seguro, a data não o é tanto, embora é provável que
nascesse em 1265 ou 1266, e que entrasse na Ordem de frailes menores em 1278, para tomar o
hábito em 1280, e ser ordenado sacerdote em 1291. A data tradicionalmente atribuida a sua
morte é o 8 de novembro de 1308. Morreu em Colônia, e foi enterrado na igreja dos franciscanos
de dita cidade.

As datas da carreira acadêmica de Duns Scot não são seguras, mas parece que estudou em
Paris baixo a direção de Gonzalo de Espanha, de 1293 a 1296, após uma breve estância em
Oxford. Segundo a opinião tradicional, Scot transladou-se depois a Oxford, onde comentou as
Sentenças e produziu o Opus Oxoniense, ou Comentário às Sentenças de Oxford. O fato de que
no livro IV do Opus Oxoniense cite uma bula de Benedicto XI (do 31 de janeiro de 1304) não é
um argumento seguro contra a opinião tradicional, pois é indudable que Scot retocó e fez adições
posteriores a sua obra[880]. Em 1302 regressou a Paris, e comentou ali as Sentenças; mas em
1303 foi desterrado de Paris por ter apoiado ao partido pontificio contra o rei Felipe o Formoso.
Não está muito claro onde passou nos dias de seu desterro: sugeriram-se como locais de estância
Oxford, Colônia e Bolonha. Em todo caso, ensinou em Oxford no ano acadêmico 1303-1304,
voltou a Paris em 1304 e recebeu o doctorado em teología em 1305. É possível que regressasse
de novo a Oxford para uma curta estância, mas indubitavelmente estava em Paris, dedicado a
comentar as Sentenças, quando foi enviado a Colônia no verão de 1307. Em Colônia prosseguiu
sua obra de professor, mas em 1308, como já dissemos, morreu, quando tinha quarenta e dois
ou quarenta e três anos de idade.

2. Obras.
A ineertidumbre relativa ao curso exato da vida de Scot é lamentável: mas bem mais
lamentável é a ineertidumbre concerniente à autenticidade de algumas obras que se lhe atribuem
na edição de Luke Wadding. No entanto, está, felizmente, fora de discussão a autenticidade geral
dos dois grandes comentários às Sentenças, embora nem o Opus Oxoniense nem as Reportata
Parisiensia, em sua forma tradicional, podem atribuir-lhe-lhe em sua totalidade. Pelo que faz ao
Opus Oxoniense, ao texto original tal como Scot o deixou (a Ordinatio, da que ainda não foi
descoberto manuscrito algum) fizeram adições discípulos seus que quiseram completar a obra
do maestro oferecendo uma exposição completa de seu pensamento, embora em alguns códices
posteriores os escreva tentaram advertir das adições que era feitas. Em uma situação similar
encontram-se as Reportata Parisiensia, pois também neste caso o desejo de dar conta completa
dos ensinos de Scot conduziu a seus discípulos a reunir exposições parciais procedentes de
diferentes fontes, mas sem fazer nenhuma tentativa séria de descobrir a autoridade e valor das
diferentes partes do mosaico. A tarefa da comissão designada para a revisão e a edição crítica
das obras de Scot não é, pois, uma tarefa fácil; mas, embora os Comentários de Paris e Oxford
representam basicamente o pensamento de Scot, um quadro seguro e definitivo desse
pensamento não é possível até que apareça a edição crítica dos Comentários, mais exatamente,
até que se publique, livre de acrescentados, o liber Scoti, ou Ordinatio original.

A autenticidade do De primo princípio não está em discussão, embora os argumentos


alegados pelo P. Ciganotto para mostrar que aquela foi a última obra de Scot não parecem ser
decisivos. As Quaestiones quodlibetales são também autênticas[881], e igualmente as quarenta e
seis Collationes (Wadding somente conheceu quarenta, mas C. Balic descobriu outras seis) e os
nove primeiros livros das Quaestiones subtilissimae super livros Metaphysicorum Aristotelis.
Quanto ao De Anima, a questão de sua autenticidade foi muito debatida. Pelster manteve que
era autêntica, enquanto Longpré tratou de mostrar que não o era, embora seus argumentos foram
declarados insuficientes por Fleig. Agora se aceita geralmente como autêntica, inclusive por
Longpré. Pelo contrário, a Grammatiea speculativa deve ser atribuído a Tomás de Erfurt, e o De
rerum princípio é também inauténtico, e, provavelmente, ao menos em parte, é um plagio das
Quaestiones quodlibetales de Godofredo de Fontaines. São também inauténticas a Metaphysica
textualis (que provavelmente tem de se atribuir a Antonio Andrés), as Conclusões metaphysicae,
e os Comentários à Física e Meteorologia de Aristóteles.

Determinar com certeza quais são e quais não são as obras autênticas de Duns Scot é
indubitavelmente um assunto importante. Algumas doutrinas que aparecem no De rerum
princípio, por exemplo, não aparecem nas obras cuja autenticidade é segura, de maneira que se
tivesse que aceitar a autenticidade do De rerum princípio (hoje recusada, segundo já dissemos),
teríamos que supor que Scot ensinou primeiramente uma doutrina que mais tarde abandonou, já
que não pode ser pensado que seu pensamento contivesse patentes contradições. Afirmar uma
mudança de opinião a propósito de uma doutrina relativamente secundária sendo de modo que
tal mudo não teve realmente local, pode não ser um erro de grande importância, embora dele
resulte um relatório inexacto envelope o desenvolvimento doctrinal de Scot; mas a questão da
autenticidade ou in autenticidade é bem mais importante quando se trata dos Theoremata. Nessa
obra o autor afirma que não pode ser provado que há somente um Princípio último, ou que Deus
é infinito, ou inteligente, etc., e tais afirmações estão, ao menos a primeira vista, em clara
contradição com o ensino das obras indubitavelmente autênticas de Scot. Então, se tivesse que
aceitar como autênticos os Theoremata, teria que supor uma surpreendente volte-face de parte
de Scot, ou tentar uma difícil tarefa de interpretação e conciliação.

O primeiro ataque à autenticidade dos Theoremata foi o do pai de Basly, no ano 1918, ataque
continuado pelo pai Longpré. Este último argumentou que ainda não era descoberto manuscrito
algum que atribuísse explicitamente a obra a Duns Scot; que os ensinos contidos na obra são
contrárias às contidas nas obras indubitavelmente autênticas de Scot; que Ockham e Tomás de
Sutton, que atacaram a teología natural de Scot, nunca citam essa obra como sua; que a doutrina
dos Theoremata é de caráter nominalista e deve ser atribuída à escola ockhamista; e que João de
Reading, que conheceu a Scot, cita as obras autênticas deste quando trata a questão de se a
existência de Deus pode ser demonstrada pela luz natural da razão, mas não menciona os
Theoremata. Esses argumentos pareceram convincentes, e, em general, aceitou-se que limpavam
a questão, até que o pai Balic propôs outros argumentos que opor à tese de Longpré. Dando-se
conta de que os argumentos de Longpré estavam em sua maior parte baseados em provas
internas, Balic tentou evidenciar não só que as argumentaciones baseadas em provas internas
não são convincentes, senão também que tinha bons argumentos, fundados em provas externas,
para provar que os Theoremata eram realmente faz de Scot. Assim, há quatro códices que
atribuem explicitamente a obra a Scot, e no capítulo quarto do De Primo Princípio se encontram
as palavras in sequenti, seilicet in Theorematibus, ponentur eredibilia. A frase seilicet in
Theorematibus não pode ter sido acrescentada por Wadding, já que se encontra em vários
códices. Ademais, os Theoremata foram citados como obra de Scot, entre outros, por João o
Canónigo, um escotista do século XIV. Baudry tratou então de evidenciar que, embora algumas
das teorias contidas nos Theoremata revelem um espírito nominalista, as doutrinas fundamentais
da obra não são de origem ockhamista, e Gilson (nos Arquive d'histoire doctrínale et littéraire
du Moyen Age, 1937-1938) tentou provar que os dezesseis primeiros Theoremata não estão em
contradição com as obras indubitavelmente autênticas de Scot. Segundo Gilson, Duns Scot fala
nos Theoremata (supondo que a obra seja realmente sua) como um filósofo que mostra o que
pode atingir por seus próprios meios a razão humana, enquanto no Opus Oxoniense, que é uma
obra teológica, mostra o que pode ser atingido pela metafísica ajudada pela teología. Ainda que
as conclusões às que se chega nos Theoremata pareçam se acercar às de Ockham, seu espírito é
diferente, já que Scot achava que o teólogo pode apresentar argumentos metafísieos e
demostrativos em favor da existência de Deus e dos atributos divinos, enquanto Ockham o
negava e recorria à só fé. Na última edição (1944) de sua obra A philosophie au Moyen Age,
Gilson deixa como uma questão aberta a da autenticidade ou in autenticidade dos Theoremata;
mas mantém que, se os Theoremata foram obra de Scot, não há dificuldade em reconciliar a
doutrina que contêm com a doutrina do Opus Oxoniense. O filósofo puro trata do ser em um
sentido universal, e nunca pode ir para além de um primeiro motor que é o primeiro na corrente
das causas, mas que não deixa de fazer parte da corrente; não pode chegar à concepção de Deus,
à que pode chegar o filósofo que é também teólogo.

Inclino-me a considerar dudosa a validade da pretensão de Gilson. No Comentário de


Oxford, Scot afirma que muitos atributos essenciais de Deus podem ser conhecidos pelo
metafísico[882], e em ambos comentários afirma que o homem pode atingir um conhecimento
natural de Deus, embora não pode, ex puris naturalibus, chegar a conhecer verdades como a da
Trinidad[883]. Encontro difícil supor que, quando Scot diz que o homem pode chegar a conhecer
verdades a respeito de Deus ex puris naturalibus, pense no metafísico que é ademais teólogo.
Nem vejo que Scot pretenda limitar o conhecimento de Deus pelo filósofo puro ao conhecimento
de Deus como Primeiro Motor: ele diz claramente que o metafísico pode chegar mais longe que
o physicus[884]. Ademais, parece-me extraordinariamente estranho, supondo que os Theoremata
fossem obra de Scot, que este prove no De Primo Princípio, que Deus, ou o Primeiro Princípio,
é, por exemplo, inteligente, e que depois nos Theoremata declare que essa verdade é um credibile
e não pode ser demonstrada. É indudable que Scot limitou algo o alcance da razão natural no
concerniente a Deus (ele não achava que a omnipotencia de Deus possa ser estritamente
demonstrada pela razão natural); mas, à vista dos Comentários, do De Primo Princípio, e das
Collationes, parece que Scot considerou indubitavelmente que é possível uma teología natural,
independentemente da questão de se o filósofo é também teólogo ou não[885]. Desde depois, se
alguma vez provasse-se concluyentemente, por provas externas, que os Theoremata são obra
autêntica de Scot, teria que recorrer a alguma teoria como a de Gilson para explicar a patente
contradição entre os Theoremata e as outras obras do filósofo; mas enquanto parece-me que é
levar demasiado longe o esforço de conciliação sugerir que não há contradição, e eu, ao expor a
teología natural de Scot, me proponho não ter em conta os Theoremata. Mas, embora deixe de
ter em conta os Theoremata, admito, como já disse, que, no caso de que a autenticidade dessa
obra fosse satisfatoriamente provada, não teria mais remédio que dizer, com Gilson, que em dita
obra Scot considerava simplesmente a capacidade do filósofo natural (elphysieus) quanto à
consecución de um conhecimento natural de Deus. Mas o que me interessa sublinhar é que, até
que a autenticidade dos Theoremata seja provada, não parece que tenha nenhuma razão
adequada que obrigue a afirmar que o metafísico das obras indubitavelmente autênticas tenha
que ser um metafísico que possua a base da fé. Tratarei, pois, com fins práticos, os Theoremata
como não autênticos, mas sem pretender limpar definitivamente a questão nem acrescentar
novas razões às já alegadas por outros autores para os recusar como apócrifos.

discuti com certa extensão o problema dos Theoremata para evidenciar a dificuldade que há
para interpretar com exatidão o pensamento de Duns Scot. Ainda que mantenha-se que as
doutrinas dos Theoremata e as do Opus Oxoniense não sejam discordantes, senão conciliables,
a mesma conciliação teria como resultado uma imagem da filosofia de Scot que mal poderia ser
a sugerida por um primeiro conhecimento do Opus Oxoniense. Por outra parte, embora a
autenticidade dos Theoremata não seja demonstrada e embora pareça preferível a recusar, a
conveniência de exposição não é um critério seguro de autenticidade ou inautenticidad, e, em
vista das recentes tentativas de reabilitar a obra em questão, não pode ser excluído a
possibilidade de que no futuro se aprove com certeza que é autêntica, ainda que as provas
internas sugiram o contrário.

3. Espírito da filosofia de Scot.

Deram-se várias interpretações gerais da filosofia de Scot, que vão desde a interpretação
deste como um revolucionário, como um precursor direto de Ockham e de Lutero, até a tentativa
de suavizar as diferenças entre o escotismo e o tomismo e interpretar a Scot como um seguidor
da obra de São Tomás de Aquino. A primeira interpretação, que é a de Landry, pode ser
descartada, ao menos em sua forma extrema, como extravagante e desprovista de fundamento
suficiente, enquanto, pelo contrário, é impossível negar que o escotismo difere do tomismo. Mas
há que considerar a Duns Scot como um continuador da tradição franciscana que, ao mesmo
tempo, adotou muitas coisas de Aristóteles e de seus predecessores medievais não franciscanos,
ou há que lhe considerar como um pensador que levou adiante a tradição aristotélica de São
Tomás de Aquino mas, ao mesmo tempo, corrigiu a santo Tomás à luz do que ele considerava
que era a verdade, ou há que lhe considerar simplesmente como um pensador independente que,
ao mesmo tempo, dependia, como a todos os filósofos tem que lhes ocorrer, de pensadores
precedentes quanto aos problemas propostos e discutidos? Essa pergunta não é fácil de contestar,
e toda tentativa de lhe dar uma contestación definitiva tem que pospor até a produção da edição
crítica das obras de Scot; mas parece que a cada uma das sugestões precedentes contém alguma
verdade. Scot foi, em verdade, um Doutor franciscano, e embora descartasse verdadeiro número
de doutrinas geralmente mantidas em comum pelos anteriores pensadores franciscanos,
considerou-se indubitavelmente a si mesmo fiel à tradição franciscana. Por outra parte, embora
é indudable que Scot criticou opiniões tomistas em pontos importantes, é também possível lhe
considerar como um continuador da obra de síntese à que santo Tomás se tinha consagrado.
Finalmente, Scot foi, sem dúvida, um pensador independente; mas, ao mesmo tempo, construiu
sobre alicerces já existentes. Mas, embora o escotismo não suponha uma completa ruptura com
o passado, é perfeitamente razoável que se faça hincapié em suas feições relativamente originais
e independentes, e se dirija assim a atenção para a diferença entre o escotismo e outros sistemas.

Em algumas feições de seu pensamento, Scot continuou certamente a tradição agustiniano-


franciscana: em sua doutrina da superioridad da vontade sobre o entendimento, por exemplo,
bem como também em sua admissão da pluralidad de forma e em sua utilização do argumento
anselmiano da existência de Deus. Ademais, provou-se que Scot não inventou a distinetio
formalis a parte rei, senão que já se tinham servido desta alguns pensadores franciscanos
precedentes. No entanto, Scot acentuou muitas vezes ou pôs um selo peculiar nos elementos que
adotava daquela tradição. Assim, ao tratar do relacionamento da vontade ao entendimento,
sublinhou a liberdade mais bem que o amor, embora também é verdade que sustentou a
superioridad do amor sobre o conhecimento, uma superioridad intimamente relacionada com
sua teoria de que o supremo princípio prático é que Deus deve ser amado sobre todas as coisas.
Igualmente, embora utilizou o argumento anselmiano, o chamado “argumento ontológico”, não
o aceitou como uma prova concluyente da existência de Deus, senão que manteve, não somente
que tem que ser “enfatizado” dantes de que se lhe possa empregar eficazmente, senão também
que nem sequer então é uma prova demostrativa da existência de Deus, já que os únicos
argumentos demostrativos são a posteriori.

Mas se em algumas feições Scot continuou a tradição agustiniano-franeiscana, em outros se


apartou da mesma. Não está do todo claro se ensinou ou não a composição hilemórfica dos
anjos; mas recusou explicitamente como desnecessárias as teorias das rationes seminales e da
iluminação especial do entendimento humano, e não viu contradição alguma, como São
Boaventura a tinha visto, na ideia de criação desde a eternidade, ainda que nesse tema fala mais
vacilantemente que santo Tomás. A influência do aristotelismo tinha, pois, penetrado no
escotismo mais profundamente que na filosofia de São Boaventura, e devemos mencionar
designadamente a influência de Avicena. Por exemplo, Scot faz questão de que o objeto da
metafísica é o ser assim que ser, e em seu insistencia nesse ponto, e em seu modo de tratar o
problema de Deus, parece ter sido influído por dito filósofo islâmico, cujo nome aparece não
infrecuentemente nas páginas das obras de Scot. É verdade que o próprio Aristóteles declarava
que a metafísica, ou, melhor dito, a filosofia primeira, é a ciência do ser assim que ser; mas a
metafísica de Aristóteles centra-se na prática na doutrina das quatro causas, enquanto Scot trata
extensamente da ideia e natureza do ser, e o impulso para isso parece proceder em parte de
Avicena. Também, por exemplo, a discussão dos universais por Scot manifesta a dívida deste a
Avicena.

Mas embora Scot devesse a Aristóteles e a seus comentadores bem mais do que lhes deveu
São Boaventura, e embora apelasse à autoridade de Aristóteles em apoio de tal ou qual teoria,
esteve longe de ser um mero seguidor do “Filósofo”, ao que não duvida em criticar. Mas, aparte
de particulares detalhes de crítica, a inspiração filosófica de Scot, por assim dizer, foi diferente
da de Aristóteles. A seus olhos, a concepção de Deus como primeiro motor era uma concepção
muito inadequada, já que não vai para além do mundo físico e não atinge ao ser infinito,
trascendente, do que dependem essencialmente todos os seres finitos. Igualmente, da doutrina
ética de Scot segue-se que a ética aristotélica tem de ser insuficiente, porquanto a noção de
obrigação, dependente da vontade divina, não aparece nesta. Indubitavelmente pode ser dito que
qualquer filósofo cristão tem de encontrar a Aristóteles deficiente em tais matérias, e que
também santo Tomás teve que complementar a Aristóteles com Santo Agostinho; mas o que
aqui nos interessa é que Scot não dava rodeos desnecessários para “explicar” a Aristóteles ou
“reconciliar” suas opiniões com o que ele mesmo considerava verdadeiro. Por exemplo, na
medida em que no escotismo há uma filosofia moral em sentido estrito, é difícil ver que se dê
uma dependência de Aristóteles.

A atitude de Scot para santo Tomás foi apresentada nos últimos anos a uma luz bastante
diferente daquela na que anteriormente costumava se apresentar: teve, e não deixa de ser natural,
uma tendência a minimizar suas divergências do tomismo. Indicou-se, por exemplo, que em suas
polêmicas, Scot se referia muitas vezes a outros pensadores, como Enrique de Gante. Isso é
indubitavelmente verdade; mas subsiste o fato de que muitas vezes critica posições tomistas,
que apresenta argumentaciones de santo Tomás e as refuta. Mas, qualquer que seja a justiça ou
injustiça de tal ou qual crítica concreta, está claro que Scot não criticava pelo mero gosto da
crítica. Se insistia, por exemplo, em uma verdadeira intuición intelectual do objeto singular, e
se sublinhava a realidade da “natureza comum”, sem cair, no entanto, no realismo exagerado
dos antigos filósofos medievais, fazia-o assim não simplesmente para diferir de santo Tomás,
senão para salvaguardar, segundo achava, a objetividad do conhecimento. Do mesmo modo, fez
questão do caráter unívoco do conceito de ser porque considerou sua própria doutrina
absolutamente necessária para evitar o agnosticismo, isto é, para salvaguardar o caráter objetivo
da teología natural. E se fez um extenso uso da distinctio formalis a parte rei, não foi
simplesmente para exibir sua sutileza, embora era certamente um pensador e dialéctico sutil e
às vezes tortuoso, senão porque considerava que aquele uso era requerido pelos fatos e pela
referência objetiva de nossos conceitos. Por conseguinte, se Scot pode ser considerado como um
sucessor de santo Tomás e como um continuador do tomismo, deve ser reconhecido que se
esforçou em corrigir o que via, reta ou equivocadamente, como deficiências e tendências
perigosas na filosofia de São Tomás de Aquino.

Convém ter presente a preocupação de Duns Scot pela salvaguarda teorética da objetividad
do conhecimento humano e, designadamente, da teología natural, já que o reconhecimento
daquela preocupação serve de contrapeso à tendência a considerar-lhe como sobretudo um
crítico destructivo. É verdade que Scot foi algo rigoroso em sua ideia do que constitui uma prova,
e que não admitiu que as provas alegadas para demonstrar a imortalidade da alma, por exemplo,
fossem demostrativas, concluyentes; mas sua filosofia não deixa por isso de ser uma das grandes
sínteses medievais, um esforço do pensamento construtivo e positivo. Ademais, dita síntese
tinha uma inspiração religiosa, como pode ser visto pelas invocações a Deus que às vezes
aparecem nos escritos escotistas, e que não podem ser posto simplesmente aparte como adornos
literários.

Não obstante, embora veja-se o escotismo como uma etapa no desenvolvimento da filosofia
medieval, seria ocioso negar que de facto ajudou a estimular o movimento crítico do século XIV.
Quando Scot afirmava que certos atributos divinos não podem ser demonstrados pela razão
natural, e quando negava o caráter demostrativo dos argumentos alegados para provar a
imortalidade da alma humana, não tentava socavar a filosofia positiva; mas, considerada a
questão desde o ponto de vista puramente histórico, o criticismo escotista contribuiu
indubitavelmente a preparar o caminho ao criticismo bem mais radical de Ockham. Que este
último olhasse ao escotismo com hostilidade não tem realmente nada que ver com o que
dizemos. E, do mesmo modo, embora é falso que Scot fizesse depender toda a lei moral da
arbitrária decisão da vontade divina, dificilmente poderá ser negado que os elementos
voluntaristas de sua filosofia ajudaram a preparar o caminho ao autoritarismo de Ockham. Por
exemplo, a doutrina escotista da obrigação moral e sua afirmação de que os preceitos
secundários do Decálogo não pertencem, em sentido estrito, à lei natural, e estão sujeitos à
dispensación divina em casos particulares. Não estou sugerindo que o ockhamismo seja o filho
legítimo do escotismo, senão simplesmente que, após o lucro da suprema síntese medieval do
tomismo, a obra do intelecto crítico ou da função crítica da filosofia era todo o que podia ser
esperado, e que o uso restringido e moderado do criticismo por Scot preparou, de fato, o caminho
à crítica radical e destructiva caraterística do ockhamismo. Um julgamento histórico desse tipo
não significa necessariamente que o criticismo de Scot não estivesse justificado, nem que o
criticismo radical dos pensadores posteriores carecesse de justificativa: essa é questão a decidir
pelo filósofo, não pelo historiador. Desde depois, se alguma vez provasse-se que os Theoremata
são autênticos, isso acentuaria a feição crítica do escotismo.

Em resumem, pois, a filosofia de Scot olha para o passado tanto como para o futuro. Como
um sistema positivo e construtivo pertence ao século XIII, no século que foi testemunha das
filosofias de São Boaventura e, sobretudo, de São Tomás de Aquino; mas em suas feições
críticas e em seus elementos voluntaristas, embora estes últimos estejam associados à tradição
agustiniano-franciscana, aponta para adiante, ao século XIV. Um triunfo do talento dialéctico, e
de um pensamento cuidadoso e paciente, a filosofia de Duns Scot é a obra de um homem que,
embora impregnado de tradição, foi um pensador poderoso, vigoroso e original, um homem que
pertencia em realidade à última época da “filosofia dogmática” e era, ao mesmo tempo, heraldo
do novo movimento.
Capítulo XLVI
Duns Scot. - II: O conhecimento

1. O objeto primário do entendimento humano.

O objeto natural primário de nosso entendimento é o ser assim que ser, do qual se segue que
todo ser, toda coisa que seja inteligible, cai dentro do alcance do entendimento[886]. Scot
apresenta, entre outras provas, uma tomada de Avicena no sentido de que, se o ser não fosse o
objeto primário do entendimento, o ser poderia ser descrito ou se explicar em termos de algo
mais último, o qual é impossível. Mas se o ser assim que ser é o objeto natural do entendimento,
e se o ser toma-se como incluindo todo objeto inteligible, não se segue que o Ser Infinito, Deus,
é um objeto natural do entendimento humano? Em verdadeiro sentido a resposta deve ser
afirmativa, já que o ser inclui ao Ser infinito e ao ser finito, mas daí não se segue que o homem
tenha um conhecimento natural imediato de Deus, já que o entendimento humano em seu estado
presente está dirigido imediatamente às coisas sensíveis. Mas, diz Scot, se falamos do objeto
primário do entendimento, é perfeitamente razoável atribuir-lhe como tal aquilo que é objeto
primário do entendimento como entendimento, não aquilo que é o objeto primário do
entendimento neste ou aquele caso particular. Por exemplo, não dizemos que o objeto primário
da visão seja aquilo que o olho pode ver à luz de uma vela, senão que atribuímos à visão como
seu objeto primário aquilo que é seu objeto simplesmente como potência ou faculdade[887]. Por
conseguinte, embora o homem em seu estado presente (homo viator) conheça antes de mais nada
criaturas, isso não significa que o objeto primário adequado de seu entendimento não seja o ser
assim que ser. Pode ser acrescentado que tal doutrina não significa que o entendimento humano
tenha a capacidade natural de conhecer a essência divina em si mesma, ou as pessoas divinas na
Trinidad, já que o conceito geral (e unívoco) de ser não inclui essa essência particular como
particular, e as criaturas não são imitações tão perfeitas de Deus que revelem a essência divina
tal como é em si mesma[888]. A essência divina como tal move naturalmente (movet) e é objeto
natural do entendimento divino somente; só pode ser conhecida pelo entendimento humano
mediante a livre decisão e atividade de Deus, não pela potência natural do entendimento
humano.

Mas, conquanto Scot, ao atribuir o ser assim que ser como objeto primário adequado do
entendimento humano, não confundia em modo algum o conhecimento natural e o conhecimento
sobrenatural, não é menos verdadeiro que se propunha recusar o modo de ver de santo Tomás,
ou o que ele mesmo via como tal, envelope o objeto primário da mente humana. Santo
Tomás[889] mantinha que o objeto natural do entendimento humano é a essência da coisa
material, a qual essência se faz inteligible ao entendimento quando é abstraída da matéria
individualizante. É natural ao entendimento angélico conhecer naturezas que não existem em
matéria; mas o entendimento humano não pode fazer tal coisa em seu estado presente, de união
ao corpo. E a união com o corpo é o estado natural do entendimento humano; estar separado do
corpo é praeter naturam. Santo Tomás argumenta, pois, que, porquanto o objeto natural do
entendimento humano é a forma da coisa material, e porquanto nós conhecemos esse tipo de
forma abstrayéndola do “fantasma”, o entendimento humano depende necessariamente do
“fantasma”, e, portanto, da experiência sensível para conhecer[890]. Scot[891] interpreta o ensino
de santo Tomás no sentido de que a quiddidad ou essência, conhecida por abstração a partir do
fantasma, é o objeto primário do entendimento humano considerado não simplesmente como
estando em um determinado estado, a saber, na vida presente, senão em sua natureza, como uma
potência ou faculdade de verdadeiro tipo, e replica que essa opinião é insostenible para um
teólogo, isto é, para um homem que aceita a vida futura e a doutrina da beatitud eterna. No céu
a alma conhece diretamente coisas imateriais. Agora bem, o entendimento segue sendo no céu
a mesma potência que foi na terra. Por conseguinte, se pode conhecer no céu costure imateriais,
não podemos dizer que seu objeto primário, se consideramos o entendimento como potência,
deve abarcar tanto as coisas imateriais como as materiais, ainda que nesta vida não possa
conhecer diretamente as coisas imateriais. A restrição do entendimento, nesta vida, a um
determinado tipo de objeto, deve ser secundária, não primária. Se contesta-se que no céu o
entendimento é elevado de modo que possa conhecer diretamente objetos imateriais, Scot replica
que esse conhecimento ou excede o poder do entendimento ou não o excede. Se não o excede,
então o objeto primário do entendimento considerado ex natura potentiae não pode ser a
quiddidad da coisa material, enquanto se o excede, então o entendimento no céu passa a ser outra
potência diferente, o qual, indubitavelmente, não era o que santo Tomás se propunha ensinar.

Scot argumenta também que, se a opinião de santo Tomás fosse correta, a ciência metafísica
seria impossível para nossos entendimentos, já que a metafísica é a ciência do ser assim que ser.
Se o objeto primário do entendimento humano fosse a essência da coisa material, não seria mais
possível ao entendimento humano conhecer o ser assim que ser que o que lhe é à potência da
visão o ir para além do que constitui seu objeto natural, a cor e a luz[892]. Se a tese tomista fosse
verdadeira, ou bem a metafísica, entendida em seu sentido próprio, seria impossível, ou bem não
trascendería da física. Em resumem, “não parece conveniente limitar o entendimento,
considerado como potência, à coisa sensível, de tal modo que somente trascienda os sentidos
por seu modo de conhecer”, isto é, e não também por seu objeto.

Como Scot também mantém[893] que no entendimento humano há um desejo natural de


conhecer distintamente “a causa” e que um desejo natural não pode ser em vão, e como conclui
que o objeto primário do entendimento não podem ser as coisas materiais, que são efeitos da
causa imaterial, pode parecer que contradiz sua aserción de que não podemos ter um
conhecimento natural da essência divina; mas deve ser recordado que Scot não nega que o
entendimento humano em seu estado presente tenha um alcance limitado, embora faz questão
de que não deve ser confundido o objeto de uma potência em uma determinada condição e o
objeto dessa potência considerada em si mesma. Ademais, Scot não considerava que uma análise
do ser assim que ser possa produzir o conhecimento da essência divina tal como é em si mesma,
porque, embora o ser seja o objeto primário e adequado do entendimento humano, não se segue
daí que não formemos nossa ideia de ser por um caminho que não seja o da abstração. Em
general, podemos dizer que Scot aceitou a explicação aristotélica da abstração, embora ele
considerava que os entendimentos ativo e pasivo não são duas potências diferentes, senão duas
feições ou funções de uma só potência.[894]

2. Por que o entendimento depende do fantasma.

Quanto à razão pela qual o entendimento humano em seu estado presente, nesta vida,
depende do fantasma, Scot declara que isso se deve à ordem estabelecida pela sabedoria divina,
seja por um castigo pelo pecado original, ou com vistas à operação harmoniosa de nossas
diversas potências (propter naturalem coneordiam potentiarum animae in operando), o sentido
e a imaginação que prendem a coisa individual, o entendimento que prende a essência universal
de dita coisa, ou, em ñn, por razão de nossa debilidade (ex infirmitate). O entendimento em sua
condição presente, repete Scot, somente é movido de modo imediato pelo que é imaginable ou
sensível, e a razão de tal coisa pode ser a justiça punitiva (forte propter peccatum, sicut videtur
Augustinus dieere) ou uma causa natural, assim que que a ordem ou harmonia das potências
pode o requerer pelo que diz respeito ao estado da vida presente. “Natureza” significa, pois,
nesse contexto, natureza em um particular estado ou condição, não natureza absolutamente
considerada; Scot faz questão desse ponto[895]. Não é esta uma explicação muito satisfatória nem
muito clara ou decidida; mas no que Scot é perfeitamente claro é em que o entendimento,
absolutamente considerado, é a faculdade do ser assim que ser, e recusa com decisão o que ele
considera que é a doutrina tomista. Que Scot seja justo ou não em sua interpretação de santo
Tomás, é outra questão. Às vezes santo Tomás afirma explicitamente que o objeto próprio do
entendimento é o ser.[896]

No entanto, é verdade que santo Tomás faz questão do caráter natural da necessidade da
conversio ad phantasma[897], argumentando que se essa necessidade fosse simplesmente o
resultado da união com um corpo, e não natural à alma mesma, se seguiria que a união de alma
e corpo teria local para o bem do corpo, e não também para bem da alma, já que esta seria
estorvada em suas operações naturais por sua união com o corpo. Ao sublinhar essa feição da
doutrina tomista, Scot concluiu que o tomismo era incapaz, logicamente falando, de justificar a
possibilidade da ciência metafísica.

3. A incapacidade da alma para intuirse a si mesma nesta vida.

A opinião de Scot sobre o objeto primário do entendimento humano teve a natural influência
em seu modo de tratar a disputada questão relativa ao conhecimento da alma por si mesma.
Segundo São Tomás de Aquino, a alma, em seu estado presente, que é seu estado natural,
conhece por médio de ideias abstraídas a partir dos objetos sensíveis, e daí conclui o aquinatense
que a alma não tem conhecimento imediato de sua própria essência, senão que se conhece a si
mesma somente de maneira indireta, por reflexão sobre os atos pelos quais abstrae ideias e
conhece os objetos nessas ideias[898]. Scot, em mudança, sustentou que, embora a alma careça
realmente de intuición imediata de si mesma nesta vida, é para si mesma um objeto natural de
intelección, e se intuiría atualmente “se não fosse impedida”[899]. A seguir procede a sugerir as
causas desse impedimento, que já foram mencionadas. A diferença entre Scot e santo Tomás
refere-se, pois, à explicação do fato mais bem que ao fato mesmo. Ambos coincidem em que a
alma não tem atualmente intuición imediata de si mesma nesta vida; mas, enquanto santo Tomás
explica esse fato em termos da natureza da alma humana, e ataca o modo platónico de ver o
relacionamento alma-corpo, Scot explica-o não em termos da natureza da alma, absolutamente
considerada, senão em termos de um impedimento, sugere que esse impedimento pode ser
devido ao pecado, e cita a Santo Agostinho em apoio dessa sugestão. A atitude de santo Tomás
é consequência da adoção por este da psicologia aristotélica, enquanto a posição de Scot pode
ser associado com a tradição agustiniana. Neste tema deve ser visto a Scot não como um
inovador revolucionário ou como um crítico destructivo do tomismo, senão mais bem como um
defensor da tradição agustiniano-franciscana.

4. A aprehensión intelectual da coisa individual.

Temos visto que Scot considerava que sua doutrina relativa ao objeto primário do
entendimento era essencial para a manutenção e justificativa da metafísica; também considerou
sua doutrina da aprehensión intelectiva da coisa individual como essencial para a manutenção
da objetividad do conhecimento humano. Segundo santo Tomás[900], o entendimento não pode
conhecer diretamente as coisas materiais individuais, já que o entendimento conhece somente
por abstração do universal separado da matéria, a qual é o princípio de individuación. Santo
Tomás admite, não obstante, que a mente tem um conhecimento indireto das coisas individuais,
já que somente pode conhecer o universal abstraído mediante a conversio ad phantasma. A
imaginação desempenha sempre seu papel, e a imagem é uma imagem da coisa individual; mas
o objeto primário e direto do conhecimento intelectivo é o universal.

Scot nega-se a aceitar essa doutrina tomista. A vehemente repudiación de dita doutrina, pela
que esta é declarada falsa e inclusive herética (sobre a base de que os Apóstolos acharam que
um verdadeiro ser humano individual, visível e palpable, era Deus) procede de uma obra
inauténtica, o De rerum princípio; mas as obras autênticas de Scot põem perfeitamente em claro
a posição deste. Scot aceitou em general a doutrina aristotélica da abstração; mas faz questão de
que o entendimento tem uma confusa intuición primária da coisa singular. Seu princípio é que a
potência mais alta conhece o que a potência inferior prende, embora a potência superior conhece
o objeto de uma maneira mais perfeita que a potência inferior, de modo que o entendimento, que
coopera na percepción, conhece intuitivamente a coisa singular presa pelos sentidos. O
entendimento conhece proposições contingentes verdadeiras e razona a partir das mesmas; e tais
proposições referem-se a coisas singulares conhecidas intuitivamente como existentes. Por
conseguinte, embora o conhecimento abstrato e cientista refira-se aos universais, como
Aristóteles ensinou acertadamente, devemos também reconhecer um conhecimento intelectivo
das coisas singulares como existentes[901]. Como já se disse, a muito vehemente repudiación da
posição tomista, que é atribuída a Scot pelo pai Parthenius Minges, por exemplo[902], procede
do inauténtico De rerum princípio, e certas observações que se encontram nas obras autênticas
podem levar a supor que a posição de Scot na questão do conhecimento intelectivo da coisa
singular é exatamente paralela a sua posição na questão da intuición da alma por si mesma. Scot
faz questão de que a coisa singular é inteligible em si mesma, e que o entendimento humano tem
ao menos a capacidade remota da entender; mas parece implicar, ou inclusive afirmar
explicitamente, que em sua condição atual é incapaz disso. “A coisa singular é inteligible em si
mesma, relativo à coisa mesma; mas se não é inteligible a algum entendimento, ao nosso, por
exemplo, isso não se deve a ininteligibilidad de parte da coisa singular mesma.”[903] E, mais
adiante, “não é uma imperfección conhecer a coisa singular”, senão que “se se diz que nosso
entendimento não entende a coisa singular, respondo que isso é uma imperfección (que se dá)
em seu estado presente”[904]. Mas o que Scot parece querer dizer é que, conquanto não temos
um conhecimento claro da coisa singular como singular (uma deficiência que se deve, não a
falta de inteligibilidad da coisa mesma, senão à imperfección de nossas operações intelectivas
nesta vida), não por isso deixamos de ter uma intuición intelectual primária, embora confusa, da
coisa singular como existente. Essa parece ser a opinião expressa no Quodlibet[905] em que Scot
argumenta que, se se diz que temos um conhecimento intelectual do universal e experiência
sensível do singular, isso não deve ser entendido no sentido de que uma e outra potência sejam
disparejas mas de igual dignidade, de modo que o entendimento não poderia conhecer em
absoluto o singular, senão no sentido de que a potência inferior está subordinada à superior, e
que embora a potência superior pode operar de um modo no que a inferior não pode o fazer, não
pode ser suposto que o oposto seja também verdade. Do fato de que os sentidos não possam
conhecer o universal não se segue que o entendimento não possa conhecer o singular. O
entendimento pode ter um conhecimento intuitivo do singular como existente, embora o
conhecimento da essência seja conhecimento do universal.

Se estamos dispostos a aceitar o De Anime como autêntico, a opinião de Scot fica fora de
dúvida. Em dita obra[906], Scot recusa a doutrina tomista de nosso conhecimento do singular,
bem como a do princípio de individuación, na qual se apoia a primeira, e argumenta que a coisa
singular é (I) inteligible em si mesma; (II) inteligible para nós, inclusive no estado presente, e
(III) não inteligible para nós em nosso estado presente com um conhecimento claro. A coisa
singular é inteligible em si mesma porque o que não é inteligible em si mesmo não pode ser
conhecido por entendimento algum, e a coisa singular é indubitavelmente conhecida pelos
entendimentos divino e angélico. É inteligible para nós inclusive em nosso estado presente,
como o evidencia o processo da indução e o fato de que podemos amar uma coisa individual,
sendo de modo que o amor pressupõe o conhecimento. Mas não é inteligible para nós em nosso
estado presente de uma maneira clara e completa (sub propria ratione). Se duas coisas materiais
fossem privadas de toda diferença acidental (de local, cor, figura, etc.), nem o sentido nem o
entendimento poderiam distinguir uma de outra, ainda que sua “singularidade” (a haecceitas de
Scot) subsistiria, e isso evidencia que, em nosso estado presente, não temos um conhecimento
claro e completo da singularidade de uma coisa. Podemos dizer, pois, que o objeto do sentido é
a coisa individual e o objeto do entendimento é o universal, se o que entendemos é que o
entendimento não é movido pela singularidade como tal e não a conhece de maneira clara e
completa em seu estado presente; mas não temos direito a dizer que o entendimento não tenha
intuición alguma da coisa individual como existente. Dizer tal coisa seria destruir a objetividad
do conhecimento. “É impossível abstraer universais a partir do singular sem um conhecimento
prévio do singular; porque nesse caso o entendimento abstraería sem conhecer aquilo a partir do
qual abstraería.”[907] Está claro que Scot recusou a doutrina tomista não meramente porque
recusasse a concepção tomista da individuación, nem sequer meramente porque lhe parecesse
que o processo da indução mostrasse a falsidade da doutrina tomista, senão também porque ele
estava convencido de que a doutrina tomista punha em perigo a objetividad daquele
conhecimento científico e universal no que os próprios tomistas punham tanto énfasis. Scot não
pretendia recusar (ele o põe perfeitamente em claro) a doutrina aristotélica de que a ciência
humana é uma ciência do universal, mas considerava essencial complementar dita doutrina com
a aceitação de nossa intuición intelectual da coisa singular como existente, e achava que essa
complementación era exigida pelos fatos. A preocupação por salvaguardar a objetividad do
conhecimento humano manifesta-se também na maneira de tratar Scot o problema dos
universais: mas é melhor deixar a consideração desse problema para o capítulo sobre a
metafísica, onde poderá ser tratado em conexão com o problema da individuación.

5. É a teología uma ciência?

Desde um verdadeiro ponto de vista não é irrazonable manter, como foi mantido, que o ideal
escotista de ciência era a ciência matemática. Se entende-se “ciência” no sentido em que
Aristóteles utiliza dito termo no livro primeiro da Analítica posteriora, isto é, o sentido no que a
ciência requer necessariamente o caráter necessário de seu objeto, bem como a evidência e
certeza deste, não pode ser dito que a teología, assim que se ocupa da encarnación e dos
relacionamentos de Deus com o homem em general, seja uma ciência, já que a encarnación não
é um acontecimento necessário ou deducible[908]. Pelo contrário, se consideramos a teología
assim que ocupa-se de seu objeto primário, a saber, Deus tal como é em si mesmo, então a
teología trata de verdades necessárias, como a trinidad de pessoas, e é uma ciência; mas devemos
acrescentar que é ciência em si mesma, mas não para nós, já que as verdades em questão, embora
verdadeiras, não são objetivamente evidentes para nós. Se alguém é incapaz de entender as
argumentaciones dos geómetras, mas aceita suas conclusões baixo a palavra dos mesmos, para
ele a geometria é um objeto de crença, não uma ciência, embora não por isso deixe a geometria
de ser em si mesma uma ciência[909]. A teología, considerada assim que ocupa-se de Deus em
Si mesmo, é, pois, em si mesma, uma ciência, mas não o é para nós, já que, apesar da necessidade
de seu objeto, seus dados são aceitados por fé. Em mudança, a teología, assim que ocupa-se de
operações externas de Deus, trata de acontecimentos “contingentes”, isto é, não necessários, e,
em consequência, não é ciência nesse sentido. Está claro que Scot toma a ciência geométrica
como modelo de ciência em sentido estrito.

Deve ser acrescentado, no entanto, que quando Scot nega que a teología seja uma ciência no
sentido que nos acabar de clarificar, não trata de desacreditar a teología nem de arrojar dúvidas
sobre sua certeza. O afirma explicitamente que se se entende “ciência” não em seu sentido mais
estrito, senão como Aristóteles a entendia no livro sexto da Etica, a saber, em contraste com a
opinião e a conjetura, então a teología é uma ciência, já que é certa e verdadeira, embora é mais
adequado que lha chame “sabedoria”[910]. Ademais, a teología não está subordinada à
metafísica, já que, embora seu objeto está até verdadeiro ponto compreendido no objeto da
metafísica (Deus, assim que cognoscible pela luz natural da razão, está compreendido no objeto
da metafísica), não recebe seus princípios da metafísica, e as verdades da teología dogmática
não são demostrables mediante os princípios do ser. Os princípios da teología dogmática são
aceites por fé, sobre a base da autoridade; não estão demonstrados pela razão natural nem são
demostrables pelo metafísico. Por outra parte, a metafísica, em sentido estrito, não é uma ciência
subordinada à teología, já que o metafísico não toma seus princípios do teólogo.[911]

A teología, segundo Scot, é uma ciência prática; mas Scot explica com muito esmero e
extensão como entende tal coisa[912]. “Inclusive a teología necessária”, isto é, o conhecimento
teológico das verdades necessárias concernientes a Deus em Si mesmo, é logicamente anterior
ao ato elícito de vontade pelo qual elegemos a Deus, e os primeiros princípios da conduta
salutífera são tomados deste. Scot discute as opiniões de Enrique de Gante e de outros, e as
recusa em favor da sua própria. Separa-se assim de santo Tomás, o qual diz[913] que a teología
é uma ciência especulativa, o mesmo que se aparta de santo Tomás quando este declara que a
teología é uma ciência[914]. Scot, como poderia ser esperado dada sua doutrina da primacía da
vontade sobre o entendimento, sublinha aquela feição da teología pelo que esta é uma norma de
conduta salutífera para o homem.

As considerações precedentes podem parecer aqui inoportunas, já que referem-se à teología


dogmática; mas se entende-se a posição de Scot a propósito da teología dogmática, pode ser
visto cuán injustas e falsas são algumas das acusações que lhe foram feitas. Se diz-se
simplesmente que, enquanto São Tomás de Aquino considerava que a teología era uma ciência,
uma ciência especulativa, Scot declarou que a teología não é uma ciência e que, na medida em
que pode ser chamada ciência é uma ciência prática, pode ser concluído que para Scot as
doutrinas teológicas eram postulados provistos somente de um valor prático ou pragmático; e,
de fato, Scot foi realmente comparado com Kant. Mas se tem-se em conta o que Scot queria
dizer, tal interpretação resulta evidentemente injusta e falsa. Por exemplo, Scot não nega que a
teología seja uma ciência pelo que se refere a seu caráter de certeza; todo o que diz é que, se se
define a ciência no sentido de que é ciência a geometria, a teología não pode ser chamada ciência.
Santo Tomás coincidiria com essa posição. A teología, diz santo Tomás, é uma ciência porque
seus princípios derivam-se dos de uma ciência mais alta, própria de Deus e dos bienaventurados,
de maneira que são absolutamente verdadeiros; não é uma ciência no mesmo sentido no que são
ciências a geometria e a aritmética, já que seus princípios não são evidentes por si mesmos à luz
natural da razão[915]. Por outra parte, Scot diz que a teología é para nós uma ciência prática,
principalmente porque a revelação se nos dá como uma norma para a conduta salutífera, para
que possamos atingir nosso fim último, enquanto para santo Tomás[916] a teología é
primariamente uma ciência especulativa, embora não exclusivamente, porque trata mais das
coisas divinas que dos atos humanos. Em outras palavras, a diferença principal entre santo
Tomás e Scot é nesta matéria uma diferença de énfasis, uma diferença que era de esperar dado
o énfasis geral de santo Tomás no entendimento e a contemplação teorética e o énfasis geral de
Scot na vontade e o amor; e isso é algo que deve ser visto à luz das tradições aristotélica e
franciscana, e não à luz do kantismo e do pragmatismo. Se alguém deseja fazer de Scot um
kantiano dantes de Kant, não encontrará razões sólidas em favor de tal tentativa na doutrina
escotista referente à teología dogmática.

6. Nosso conhecimento baseia-se na experiência sensível, e não é


necessária nenhuma iluminação especial para a atividade intelectiva.

Embora Scot insiste, segundo vimos, em que o objeto primário do entendimento é o ser em
general, e não simplesmente as essências materiais, sua aristotelismo lhe leva também a
sublinhar o fato de que nosso conhecimento se origina na sensação. Não há, pois, ideias innatas.
Nas Quaestiones subtilissimae super livros Metaphysicorum[917] afirma que o entendimento não
possui, em virtude de sua própria constituição, um conhecimento natural de noções simples nem
complexas, “porque todo nosso conhecimento procede da sensação”. Isso tem aplicação
inclusive ao conhecimento dos primeiros princípios. “Porque primeiro o sentido é movido por
algum objeto simples, e não complexo, e mediante o movimento do sentido o entendimento é
movido e prende objetos simples: esse é o ato primeiro do entendimento. Em segundo local,
após a aprehensión de objetos simples segue outro ato, o de reunir objetos simples, e após essa
composição o entendimento é capaz de assentir à verdade do complexo, se este é um primeiro
princípio.” O conhecimento natural dos primeiros princípios não significa senão que, quando os
termos simples foram entendidos e combinados, o entendimento assente imediatamente, em
virtude de sua própria luz natural, à verdade do princípio; “mas o conhecimento dos termos é
adquirido a partir dos objetos sensíveis”. O que Duns Scot quer dizer é o seguinte: obtemos as
noções de “todo” e “parte”, por exemplo, mediante a experiência sensível; mas quando o
entendimento reúne os termos, vê imediatamente a verdade da proposição de que o todo é maior
que a parte. O conhecimento do que é um todo e do que é uma parte procede da experiência
sensível; mas a luz natural do entendimento permite a este ver imediatamente a verdade do
objeto complexo, o primeiro princípio. Em resposta à objeción de Averroes de que nesse caso
todos os homens assentiriam aos primeiros princípios, e, no entanto, aliás os cristãos não
assentem ao princípio de que “da nada, nada se faz”, Scot replica que ele fala de primeiros
princípios em sentido estrito, como o princípio de contradição e o princípio de que o todo é
maior que a parte, mas não de princípios que alguns homens acham que são ou podem ser
conclusões a partir dos primeiros princípios. Mas no Comentário de Paris[918] faz questão de que
o entendimento não pode errar quanto àqueles princípios e conclusões que vê claramente que se
seguem dos primeiros princípios. No mesmo local fala do entendimento como uma tabula nuda,
sem nenhuma ideia ou princípio innato.

Scot recusa também a doutrina de que uma iluminação especial do entendimento é necessária
para que este possa prender verdades verdadeiras. Apresenta os argumentos de Enrique de Gante
em defesa da teoria da iluminação[919], e procede a criticá-los, objetando que os argumentos de
Enrique parecem levar à conclusão de que todo conhecimento natural e verdadeiro é
impossível[920]. Por exemplo, se fosse verdade que não pode ser obtido certeza alguma a
propósito de objetos continuamente cambiantes (e os objetos sensíveis são continuamente
cambiantes, segundo Enrique), a iluminação não serviria de ajuda em modo algum, já que não
conseguimos a certeza quando conhecemos um objeto diferentemente de como em realidade é.
Em todo caso, acrescenta Scot, a doutrina de que os objetos sensíveis são continuamente
cambiantes é a doutrina de Heráclito, e é falsa. Do mesmo modo, se o caráter cambiante da alma
e das ideias desta é um obstáculo para a certeza, a iluminação não serve para remediar o defeito.
Em resumem, o modo de ver de Enrique de Gante conduziria ao escepticismo.

Scot defende, pois, a atividade e a capacidade natural do entendimento humano, e uma


preocupação similar manifesta-se em sua negación da doutrina tomista de que a alma, quando
se separa do corpo, não pode adquirir novas ideias das coisas mesmas[921]. Scot apresenta a
opinião de santo Tomás mais ou menos com as mesmas palavras que este usa em seu Comentário
sobre as Sentenças[922], e argumenta que o conhecer, o abstraer, o querer, pertencem à natureza
da alma, de maneira que, como a alma é também de tal natureza que pode existir separada do
corpo, podemos concluir legitimamente que a alma pode adquirir novos conhecimentos por
meios naturais em seu estado de separação. A opinião de santo Tomás, diz Scot, degrada à alma
humana. A opinião do próprio Scot está, desde depois, relacionada com sua tese de que a alma
depende nesta vida dos sentidos pró statu isto, forte ex peccato. Também está relacionada com
seu negación da doutrina de que a alma é puramente pasiva e que a causa da ideia é o fantasma.
A alma, no estado de separação do corpo, não está, pois, excluída da aquisição de conhecimentos
novos, nem limitada à intuición: pode ejercitar também seu poder de abstração.

7. Conhecimento intuitivo e abstractivo.

Scot distingue entre conhecimento intuitivo e conhecimento abstractivo. O conhecimento


intuitivo é conhecimento de um objeto como presente a sua existência atual, e seria contra a
natureza do conhecimento intuitivo que tivesse conhecimento de um objeto não atualmente
existente e presente[923]. No entanto, Scot distingue entre conhecimento intuitivo perfeito, que é
conhecimento imediato de um objeto como presente, e conhecimento intuitivo imperfecto, que
é conhecimento de um objeto existente como existente no futuro, como antecipado, ou como
existente no passado, como recordado[924]. O conhecimento abstractivo, por sua vez, é
conhecimento da essência de um objeto considerada em abstração de sua existência ou não
existência[925]. A diferença entre o conhecimento intuitivo e o conhecimento abstractivo não
consiste, pois, em que o primeiro seja conhecimento de um objeto existente e o segundo o seja
de um objeto não existente, senão em que o primeiro é conhecimento de um objeto como
existente e atualmente presente, isto é, intuido em sentido próprio, enquanto o último é
conhecimento da essência de um objeto considerada em abstração da existência, exista ou não o
objeto realmente. “Pode ter conhecimento abstractivo de um objeto não existente tanto como de
um objeto existente, mas somente pode ter conhecimento intuitivo de um objeto existente como
existente.”[926] Teríamos que acrescentar as palavras “e presente”, porque “é contra a natureza
do conhecimento intuitivo que seja de algo não atualmente existente e presente”[927]. Em
consequência, Scot diz que embora os bienaventurados possam lhe ver a ele em Deus, isto é, na
visão beatífica, como existente e escrevendo, esse conhecimento não seria conhecimento
intuitivo, já que “eu não. estou atualmente presente a Deus, ao que os bienaventurados
contemplam no céu”[928]. A doutrina escotista do conhecimento abstractivo, o conhecimento de
essências em abstração da existência ou não existência, levou à comparação dessa feição de seu
pensamento com o método da moderna escola fenomenológica.

8. Indução.

Scot estava suficientemente imbuido do espírito da lógica aristotélica para pôr o maior
énfasis na dedução e para ter uma ideia rigorosa da prova demostrativa; mas fez algumas
observações interessantes sobre a indução. Não podemos ter experiência de todos os casos de
um tipo particular de acontecimento natural; mas a experiência de verdadeiro número de casos
pode ser suficiente para mostrar ao cientista que o acontecimento em questão procede de uma
causa natural, e seguirá sempre a esta causa. “Todo o que acontece na maioria dos casos (isto é,
nos casos que pudemos observar) não procede de uma causa livre, senão que é o efeito natural
da causa.” A verdade dessa proposição é reconhecida pelo entendimento, que vê que uma causa
livre não produzirá sempre o mesmo efeito: se a causa pode produzir outro efeito, nós poderemos
observar que assim o faz. Se um efeito é frequentemente produzido pela mesma causa (quer
dizer Scot: se o mesmo efeito é produzido pela mesma causa, em toda a extensão de nossa
experiência), a causa não pode ser nessa feição uma causa livre, nem pode ser uma causa
“casual”, senão que deve ser a causa natural desse efeito. Às vezes temos experiência do efeito,
e somos capazes de reduzir o efeito a um relacionamento causal evidente de seu, em cujo caso
podemos proceder a deduzir o efeito, e obter assim um conhecimento ainda mais verdadeiro que
o que tínhamos pela experiência, enquanto em outras ocasiões podemos ter experiência da causa
de tal modo que não possamos demonstrar a conexão necessária entre causa e efeito, senão
somente que o efeito procede da causa como de uma causa natural.[929]
Capítulo XLVII
Duns Scot. - III: A metafísica

1. O ser e seus atributos trascendentales.

A metafísica é a ciência do ser assim que ser. O conceito de ser é o mais simples de todos os
conceitos, e não pode ser reduzido a outros conceitos mais últimos: o ser, portanto, não pode ser
definido[930]. Podemos conceber o ser distintamente por si mesmo, porque em sua mais ampla
significação significa simplesmente aquilo que não inclui contradição alguma, aquilo que não é
intrinsecamente impossível; mas qualquer outro conceito, qualquer conceito que não seja o de
ser, senão de um tipo determinado de ser inclui o conceito de ser[931]. O ser em seu sentido mais
amplo inclui, pois, aquilo que tem ser extramental e aquilo que tem ser intramental[932], e
trasciende todos os gêneros.[933]

Há diversas passiones entis (poderíamos chamar-lhes categorias de ser, sempre que a palavra
“categoria” não se entenda no sentido aristotélico), as passiones convertibiles e as passiones
disiunctae. As primeiras são aquelas categorias de ser que são designadas por um só nome, que
não se dão em casal, e que são convertibles com o ser. Por exemplo, um, verdadeiro, bom, são
passiones convertibiles. A cada um dos seres é um, verdadeiro, e bom, pelo só fato de ser um
ser, e não há distinção real entre essas passiones convertibiles nem entre elas e o ser, embora há
uma distinção formal, já que denotam diferentes feições do ser[934]. As passiones disiunctae,
pelo contrário, não se convertem simplesmente com o ser se lhas toma por separado, embora são
convertibles se lhas toma por casais. Por exemplo, não todo ser é necessário e não todo ser é
contingente; mas todo ser é ou necessário ou contingente. Do mesmo modo, não todo ser é
simplesmente ato e não todo ser é potência; mas todo ser deve ser ou ato ou potência, ou ato em
uma feição e potência em outro. Scot fala das passiones disiunctae como trascendentes[935], já
que, embora nenhuma passio disiuncta compreende a totalidade do ser nem é simplesmente
convertible com a noção de ser, não põe a um objeto em um determinado gênero ou categoria
(no sentido aristotélico). O fato de que um ser seja contingente, por exemplo, não nos diz se esse
ser é substância ou acidente.

Como Scot sustentava que o conceito de ser é unívoco, no sentido que discutiremos daqui a
pouco, pode parecer que tratasse de deduzir a realidade das passiones disiunctae; mas não era
essa sua intenção. Nunca poderemos deduzir a partir da noção de ser que existe o ser contingente,
nem podemos evidenciar a existência do ser contingente a partir da existência do ser necessário,
embora podemos mostrar que, se existe o ser contingente, existe o ser necessário, e que, se existe
o ser finito, existe o ser infinito. Em outras palavras, não podemos deduzir a existência de
lapassio disiuncta menos perfeita a partir da mais perfeita, embora sim podemos proceder ao
inverso. Quanto à existência do ser contingente, só se conhece pela experiência.[936]

2. O conceito unívoco de ser.

Temos visto que, em opinião de Scot, é necessário manter que o objeto primário do
entendimento é o ser em general, se é que quer ser posto a salvo a possibilidade da metafísica.
Ao dizer isso não tenho a intenção de sugerir que a doutrina escotista envelope o objeto primário
do entendimento fosse motivada simplesmente por razões pragmáticas. É mais bem que ele
sustentou que o entendimento como tal é a faculdade de prender o ser em general e, uma vez
afirmada tal coisa, advertiu sobre o que lhe parecia desafortunada conclusão que se seguia da
posição de São Tomás de Aquino. Do mesmo modo, Scot manteve que, a não ser que tenha um
conceito de ser que seja unívoco respecto de Deus e das criaturas, não é possível conhecimento
metafísico algum de Deus; mas não afirmou essa doutrina do caráter unívoco do conceito de ser
por uma consideração puramente utilitaria; ele estava convencido de que há realmente um
conceito unívoco de ser, e indicou subsequentemente que, a não ser que se admita sua existência,
não pode ser posto a salvo a possibilidade de um conhecimento metafísico de Deus. Nossos
conceitos formam-se em dependência da experiência sensível, e representam imediatamente
quiddidades ou essências materiais. Mas nenhum conceito de uma quiddidad material como tal
é aplicável a Deus, porque Deus não está incluído entre as coisas materiais. Em consequência, a
não ser que possamos formar um conceito que não esteja restrito à quiddidad material como tal,
senão que seja comum ao ser finito e ao ser infinito, ao ser material e ao ser imaterial, não
poderemos atingir um verdadeiro conhecimento de Deus por médio de conceitos que lhe sejam
adequados. Se a doutrina de Enrique de Gante sobre o caráter equívoco do conceito de ser
aplicado a Deus e às criaturas fosse verdadeira, se seguiria que a mente humana teria que se
limitar (nesta vida, ao menos) ao conhecimento das criaturas; a consequência da teoria de
Enrique de Gante seria o agnosticismo[937]. Se mencionei em primeiro lugar essa feição da
questão, não o fiz para dar a entender que a motivação de Scot consistisse simplesmente em
considerações pragmáticas ou utilitarias, senão mais bem para evidenciar que, a olhos do próprio
Scot, a questão não tinha um interesse meramente acadêmico.

Que é o que entende Duns Scot por conceito unívoco de ser? No Comentário de Oxford[938],
diz: et ne fiat eontentio de nomine univocationis, eonceptum univocum dico, qui ita est umas,
quod eius unitas sufficit ad contradictionem, affirmando et negando ipsum de eodem. Sufficit
etiam pró médio syllogistico, ut extrema unita in médio sic um, sine falhada aequivocationis,
concludantur inter se unum. O ponto primeiro de Scot é, pois, que um conceito unívoco significa
para ele um conceito cuja unidade é suficiente para implicar contradição se se afirma e se nega
a ideia do mesmo ao mesmo tempo. Se dissesse-se “o cão (isto é, o animal) corre”, e, ao mesmo
tempo, “o cão (isto é, a estrela assim telefonema, ou Canícula) não corre”, não teria verdadeira
contradição, já que “corre” e “não corre”, não se prega do mesmo sujeito; a contradição é
puramente verbal. Do mesmo modo, se dissesse-se “o unicornio é” (no sentido de que unicornio
tem uma existência intramental) e “o unicornio não é” (no sentido de que o unicornio não tem
existência extramental, na natureza), não teria verdadeira contradição. Mas Duns Scot refere-se
a uma palavra cujo significado é suficientemente o mesmo para levar consigo uma verdadeira
contradição se se afirma e nega do mesmo sujeito ao mesmo tempo. Por exemplo, se diz-se que
o unicornio é e o unicornio não é, entendendo “é” em ambos julgamentos como referindo à
existência extramental, teria uma verdadeira contradição. Do mesmo modo, se diz-se que Deus
é e que Deus não é, com referência em ambos casos à existência real, teria uma contradição.
Que entende Duns Scot por sufficit? Nos julgamentos “Deus é” e “Deus não é”, é suficiente para
a produção de uma contradição que “é” se entenda oposto à nada ou ao não-ser. Há uma
contradição em dizer ao mesmo tempo que Deus se opõe à nada e que Deus não se opõe à nada.
Deve ser recordado que Scot está mantendo a existência de um conceito unívoco de ser que é
aplicável a Deus e às criaturas, de maneira que pode ser dito que Deus é e que a criatura é,
utilizando a palavra “é” no mesmo sentido. Scot tem, sem dúvida, perfeita consciência de que
Deus e as criaturas se opõem realmente à riada de maneiras diferentes, e não trata de negar que
assim seja; mas o ponto que lhe interessa é que se se entende por “é” simplesmente o oposto da
nada ou não-ser, então a palavra “ser” pode ser pregado, de Deus e das criaturas no mesmo
sentido, prescindiendo das maneiras concretas em que Aquele e estas se opõem à nada. Em
consequência, ele diz sufficit ad contradictionem não no sentido de que Deus e as criaturas se
oponham à nada da mesma maneira. Mas embora oponham-se à nada de maneiras diferentes,
não por isso deixam de se opor à nada, e se se forma o conceito de ser para denotar a pura
oposição à nada, um conceito que implica contradição se se afirma e se nega do mesmo sujeito
ao mesmo tempo, esse conceito pode ser pregado univocamente de Deus e das criaturas.

Quanto à observação a respeito do silogismo, Scot diz que um conceito unívoco, segundo
ele o entende, é um conceito que, quando se emprega como meio-termo em um silogismo, tem
um significado “suficientemente” idêntico em ambas premisas para evitar que se corneta um
sofisma de equivocidad. Para valer de um exemplo basto, se alguém argumentasse “todo gato é
animal, esse objeto (se fazendo referência ao instrumento para levantar carros) é um gato, logo
esse objeto é um animal”, o silogismo seria um sofisma de equivocidad, e não seria válido.
Consideremos agora o seguinte argumento. “Se há sabedoria em algumas criaturas, deve ter
sabedoria em Deus; mas em algumas criaturas há sabedoria; depois há sabedoria em Deus.” Se
o termo “sabedoria” empregasse-se equívocamente, em sentidos inteiramente diferentes
segundo aplicasse-se a Deus ou às criaturas, o argumento seria sofístico; para que a
argumentación seja válida é necessário que a ideia de sabedoria aplicada a Deus e às criaturas
seja suficientemente idêntica para que se evite a equivocidad. Scot dirige-se contra Enrique de
Gante, segundo opinião do qual os pregados que aplicamos a Deus e às criaturas são equívocos,
embora os dois significados se parecem entre si o bastante para que possa ser empregado para
ambos uma mesma palavra. Scot objeta

que admitir a verdade da opinião de Enrique de Gante seria tanto como admitir que todo
argumento que proceda das criaturas a Deus cometeria o sofisma de equivoeidad e seria
ilegítimo. A univocidad que Scot afirma não se limita, pois, ao conceito de ser. “Todas as coisas
que são comuns a Deus e às criaturas pertencem ao ser com indiferença de seu caráter finito ou
infinito.”[939] Se considera-se o ser com abstração da distinção entre ser finito e ser infinito, isto
é, se considera-se-lhe enquanto significa a mera oposição à nada, se tem um conceito unívoco
do ser, e os atributos trascendentales do ser, as passiones convertibiles, podem também dar
origem a conceitos unívocos. Se pode ser formado um conceito unívoco de ser, podem ser
formado também conceitos unívocos de um, verdadeiro, bom[940]. E que dizer da sabedoria? A
bondade é unapassio convertibilis, assim que que todo ser é bom pelo mero fato de ser; mas não
todo ser é sábio. Scot responde[941] que as passiones disiunctae, tais como necessário ou
possível, ato ou potência, são trascendentes no sentido de que nem um nem outro membro
determina seu sujeito como pertencente a um gênero especial, e que a sabedoria e outros
atributos semelhantes podem também ser chamados trascendentes, assim que que trascienden a
divisão do ser em gêneros.

Scot põe muito énfasis em sua doutrina da univocidad. Toda investigação metafísica
concerniente a Deus supõe a consideração de algum atributo e a remoción, em nossa ideia do
mesmo, da imperfección que se acrescenta ao atributo quando este se encontra nas criaturas.
Desse modo conseguimos uma ideia da essência ou ratio formalis do atributo, e então podemos
pregá-lo de Deus em um sentido supremamente perfeito. Scot considera os exemplos de
sabedoria, entendimento e vontade[942]. Em primeiro lugar, separamos da ideia de sabedoria, por
exemplo, as imperfecciones da sabedoria finita, e chegamos a um conceito da ratio formalis de
sabedoria, do que a sabedoria é em si mesma. Então atribuímos sabedoria a Deus da maneira
mais perfeita (perfectissime). “Por conseguinte, toda investigação concerniente a Deus supõe
que o entendimento tem o mesmo conceito unívoco, que recebe das criaturas.”[943] Se nega-se
que possamos formar assim uma ideia da ratio formalis de sabedoria, etc., segue-se a conclusão
de que não podemos chegar a conhecimento algum de Deus. Por uma parte nosso conhecimento
baseia-se em nossa experiência das criaturas, enquanto, por outra parte, não podemos pregar de
Deus atributo algum precisamente como se encontra nas criaturas. Por conseguinte, a não ser
que possamos atingir um meio-termo comum com um significado unívoco, não há possibilidade
de argumentación válida que leve das criaturas a Deus. Que podemos formar um conceito
unívoco de ser, sem referência ao caráter finito ou infinito do ser, é algo que Scot vê como um
fato de experiência.[944]

Scot coincide com Enrique de Gante em que Deus não está em um gênero, mas não lhe segue
em sua negativa do caráter unívoco do conceito de ser. “Eu sustento a opinião média, que é
compatível com a simplicidade de Deus, o que tenha algum conceito comum ao e às criaturas,
mas que esse conceito comum não é um conceito genericamente comum.”[945] Agora bem,
Enrique de Gante, em opinião de Scot, mantinha que o conceito de ser, enquanto aplicável a
Deus e às criaturas, é equívoco, e se entende facilmente que Scot recusasse essa opinião. Mas,
qual foi sua atitude com respeito à doutrina da analogia de São Tomás de Aquino? Em primeiro
lugar, Scot afirma decididamente que Deus e as criaturas são completamente diferentes na ordem
real, sunt primo diversa in realitate, quia in milha realitate conveniunt[946]. Daí que acusar a
Duns Scot de spinozismo seja claramente absurdo. Em segundo local, Scot não recusa a analogia
de atribuição, já que admite que o ser pertence primária e principalmente a Deus, e ensina que
as criaturas são a Deus como mensurata ad mensuram, vel excessa ad excedens[947], e no De
Anima[948] diz que omnia entia habent attributionem ad ens primum, quod est Deus. Em terceiro
local, no entanto, Scot faz questão de que a mesma analogia pressupõe um conceito unívoco, já
que não poderíamos comparar as criaturas a Deus como mensurata ad mensuram, vel excessa
ad excedens se não tivesse um conceito comum a ambos[949]. Deus é cognoscible pelo homem
nesta vida somente por médio de conceitos tomados das criaturas, e, a não ser que esses
conceitos sejam comuns a Deus e às criaturas, nunca poderíamos comparar as criaturas com
Deus como o imperfecto com o perfeito: não seria possível tender uma ponte desde as criaturas
a Deus. Inclusive aqueles maestros que negam a univocidad com os lábios a pressupõem
realmente[950]. Se não tivesse conceitos unívocos, somente poderíamos ter um conhecimento
negativo de Deus, o qual não é o caso. Podemos dizer que Deus não é uma pedra, mas também
podemos dizer que uma quimera não é uma pedra, de maneira que ao dizer que Deus não é uma
pedra não sabemos mais de Deus que o que sabemos da quimera[951]. Ademais, o conhecimento
de que algo é um efeito de Deus não é suficiente por si mesmo para nos dar nosso conhecimento
de Deus. Uma pedra é um efeito de Deus; mas, não dizemos que Deus é uma pedra porque seja
causa da pedra, enquanto dizemos que Deus é sábio, e isso pressupõe um conceito unívoco de
sabedoria que é trascendente (no sentido escotista). Em fim, o que Scot ensina é que, embora
todas as criaturas têm um essencial relacionamento de dependência respecto de Deus, esse fato
não seria suficiente para nos proporcionar conhecimento positivo algum de Deus, já que não
possuímos uma intuición natural de Deus, a não ser que pudéssemos nos formar conceitos
unívocos comuns a Deus e às criaturas. Em consequência, ele diz que “todos os seres têm uma
atribuição ao ser primeiro, que é Deus...; no entanto, apesar desse fato, pode abstraerse de todos
eles uma feição comum que se expressa por essa palavra, ser, e que é um logicamente falando,
embora não seja um natural e metafisicamente falando”, isto é, falando à moda do “filósofo
natural” ou do metafísico.[952]

Essa última observação suscita a questão de se Scot considerava que a univocidad dos
conceitos do ser se limitava realmente à ordem lógica. Alguns autores afirmam-no assim. O
bilhete do De Anima que acabamos de citar pareça enunciarlo positivamente, e a observação de
Scot, citada anteriormente, de que Deus e as criaturas sunt primo diversa in realitate, quia in
nulla realitate conveniunt, parece ensinar o mesmo. Mas se o conceito unívoco de ser limitasse-
se à ordem lógica de tal modo que fosse um ens rationis, como poderia nos ajudar a assegurar o
conhecimento objetivo de Deus? Ademais, no Comentário de Oxford[953], Scot considera a
objeción (a sua teoria) de que a matéria tem um esse próprio. A objeción consiste em que, no
caso dos análogos, uma coisa ou atributo está realmente presente, exceto por via de
relacionamento ao primeiro analogado. A saúde está realmente presente ao animal, enquanto na
urina só está presente per attributionem ad illud. O esse procede da forma; por conseguinte, não
está realmente presente à matéria, senão só através de seu relacionamento com a forma. Em
resposta a essa objeción, Scot diz que o exemplo alegado não vale, já que há cem exemplos em
contrário, e depois observa: “porque não há maior analogia que a que há entre a criatura e Deus
in ratione essendi, e, não obstante, o esse, a existência, pertence primária e principalmente a
Deus, de tal modo que no entanto pertence real e univocamente à criatura; e do mesmo modo
com a bondade, e a sabedoria, e os atributos semelhantes”[954]. Aqui Scot utiliza juntas as
palavras “real e univocamente” (realiter et univoee). Se a doutrina da univocidad dirige-se a
assegurar o conhecimento objetivo de Deus a partir das criaturas, parece essencial à doutrina
que o conceito unívoco não seja meramente um ens rationis, que possa ter um fundamento real
ou uma contrapartida na realidade extramental. Por outra parte, Scot faz questão de que Deus
não está em um gênero, e em que Deus e as criaturas são na ordem real primo diversa. Como
podem ser conciliado essas duas séries de afirmações?

O conceito de ser é abstraído a partir das criaturas, e é o conceito de ser sem determinação
alguma; é logicamente anterior à divisão do ser em ser finito e ser infinito. Mas, em realidade,
todo ser tem que ser ou finito ou infinito; tem que se opor à nada ou como ser infinito ou como
ser finito; não há nenhum ser realmente existente que não seja infinito nem finito. Nesse sentido,
o conceito unívoco de ser, como logicamente anterior à divisão do ser em infinito e finito, possui
uma unidade que pertence à ordem lógica. É evidente que o filósofo natural não considera o ser
nesse sentido, nem também não o metafísico assim que se interessa pelo ser realmente existente
e pelo ser possível, já que o conceito de um ser que não é finito nem infinito não poderia ser o
conceito de um ser possível. Por outra parte, ainda que todo ser real é finito ou infinito, todo ser
se opõe realmente à nada, embora de maneiras diferentes, de maneira que há um fundamento
real para o conceito unívoco de ser. Como intentio prima, o conceito de ser está fundado na
realidade, pois em caso contrário não poderia ser abstraído, e tem referência objetiva, enquanto
como intentio secunda é um ens rationis; mas o conceito de ser como tal, seja considerado como
intentio prima ou como intentio secunda, não expressa algo que tenha uma existência formal
fosse da mente. É, pois, um conceito lógico. O lógico “considera segundas intenções como
aplicadas a primeiras intenções”, diz Scot quando fala dos universais[955], e o que é unívoco para
o lógico é equívoco[956] para o filósofo que estuda coisas reais.

Pode ser dito, pois, que o conceito unívoco de ser é um ens rationis. Por outra parte, o
conceito unívoco de ser tem um fundamento real. O caso é em verdadeiro modo paralelo ao do
universal. É indudable que Scot não considerou adequadamente todas as possíveis objeciones
contra sua teoria; mas a verdade do assunto parece ser que esteve tão atento na refutación da
doutrina de Enrique de Gante, a qual lhe pareciam pôr em perigo ou fazer impossível todo
conhecimento objetivo de Deus nesta vida, que não atendeu suficientemente a todas as
complexidades do problema e às dificuldades que podiam ser suscitado contra sua própria teoria.
Deve ser recordado, no entanto, que Scot postuló uma distinção formal entre os atributos do ser
e entre o ser e seus atributos. “O ser contém muitos atributos que não são coisas diferentes do
ser mesmo, como prova Aristóteles ao começo do livro quarto da Metafísica, mas que se
distinguem formalmente e quidditativamente, isto é, por uma distinção formal, objetivamente
fundamentada, uns de outros, e também do ser, por uma formalidade real e quidditativa,
digo.”[957] Em tal caso, o conceito unívoco de ser não pode ser um mero ens rationis, no sentido
de uma construção puramente subjetiva. Não há uma coisa separada nem separable, que exista
extramentalmente, que corresponda ao conceito unívoco de ser; mas há um fundamento objetivo
de tal conceito, apesar disso. Pode ser dito, pois, que o conceito unívoco de ser não é puramente
lógico, sempre que não se pretenda que tenha uma coisa, na realidade extra-mental, que
corresponda a dito conceito.

3. A distinção formal objetiva.

tratei com alguma extensão a doutrina da univocidad, não somente porque essa doutrina é
uma das caraterísticas do escotismo, senão também porque Scot lhe atribuía uma importância
muito considerável, pela considerar salvaguarda da teología natural. Passo agora a uma breve
consideração de outra doutrina caraterística de Duns Scot, a da distinetio formalis a parte rei, a
distinção formal objetiva, que desempenha um papel importante no sistema escotista, e um uso
da qual acabamos de mencionar.

A doutrina da distinção formal não foi invenção de Duns Scot: podemos encontrá-la já na
filosofia de Olivio, por exemplo, e foi atribuída ao próprio São Boaventura. Em todo caso,
chegou a ser uma doutrina comum entre os pensadores franciscanos, e o que fez Scot foi tomar
a doutrina de seus predecessores e fazer um extenso uso da mesma. A doutrina, resumidamente
exposta, consiste em que há uma distinção menor que a distinção real, mas mais objetiva que
uma distinção virtual. A distinção real dá-se entre duas coisas que são fisicamente separables,
ao menos pelo poder divino. É bastante óbvio que há uma distinção real entre as duas mãos de
um homem, já que são coisas diferentes; mas há também uma distinção real entre a forma e a
matéria de qualquer objeto material. Uma distinção puramente mental significa uma distinção
feita pela mente quando não há uma distinção objetiva correspondente na coisa mesma. A
distinção entre uma coisa e sua definição, por exemplo, entre “homem” e “animal racional”, é
puramente mental. Uma distinção formal dá-se quando a mente distingue em um objeto dois ou
mais formalitates que são objetivamente diferentes, mas que são inseparáveis uma de outra,
inclusive para o poder divino. Scot afirmava, por exemplo, a distinção formal entre os atributos
divinos. Misericórdia e justiça são formalmente diferentes, embora a justiça divina e a
misericórdia divina são inseparáveis, pois, apesar da distinção formal entre elas, uma e outra são
realmente idênticas à essência divina.

Um exemplo tomado da psicologia pode fazer mais clara a tese escotista. No homem há
somente uma alma, e não pode ter uma distinção real entre a alma sensitiva e a alma intelectiva
ou racional (no homem): se o homem pensa e tem sensações, é em virtude de um único princípio
vital. Nem sequer Deus pode separar a alma racional de um homem de sua alma sensitiva,
porque, se a separação fosse possível, deixaria de ter alma humana. Mas, por outra parte, a
sensação não é pensamento; a atividade racional pode existir sem atividade sensitiva, como no
caso dos anjos, e a atividade sensitiva pode existir sem atividade racional, como no caso da alma
puramente sensitiva dos brutos. No homem, pois, os princípios sensitivo e racional são
formalmente diferentes, com uma distinção que é objetiva, isto é, independente da atividade
diferenciadora da mente; mas não são coisas realmente diferentes; são formalitates diferentes de
uma mesma coisa, a alma humana.

Por que afirmou Scot a existência da distinção formal, e por que não se contentou com a
chamar distinctio rationis cum fundamento in re? A razão decisiva foi, sem dúvida, que ele
pensava que a distinção estava não somente justificada, senão também exigida pela natureza do
conhecimento e pela natureza do objeto de conhecimento. O conhecimento é a aprehensión do
ser, e se a mente vê-se forçada, por dizê-lo assim, a reconhecer distinções no objeto, isto é, se
não é simplesmente que construa de uma maneira ativa uma distinção no objeto, senão que
reconhece uma distinção que se lhe impõe, tal distinção não pode ser simplesmente uma
distinção mental, e o fundamento da distinção na mente deve ser uma distinção objetiva no
objeto. Por outra parte, há casos em que o fundamento da distinção não pode ser a existência de
diferentes fatores separables no objeto. Por conseguinte, é necessário dar local a uma distinção
que seja menor que a distinção real, tal como a que se dá entre o corpo e a alma no homem, mas
que, ao mesmo tempo, esteja fundamentada em uma distinção objetiva no objeto, uma distinção
que somente pode ser dado entre formalidades diferentes, mas não separables, de um mesmo
objeto. Tal distinção manterá a objetividad do conhecimento sem atentar por isso contra a
unidade do objeto. Pode, sem dúvida, objetarse que a distinção formal, tal como a aplica Duns
Scot, ao menos em alguns casos, põe em perigo a devida unidade do objeto e se acerca
excessivamente ao “realismo”; mas, ao que parece, Scot achou necessária aquela distinção para
a manutenção da objetividad do conhecimento.
4. Essência e existência.

Uma das questões nas que Duns Scot faz uso de sua distinção formal é a questão da distinção
que se dá entre a essência e a existência das criaturas[958]. Scot nega-se a admitir uma distinção
real entre essência e existência: “é singelamente falso que a existência (esse) seja algo diferente
da essência”[959]. E “é falsa a proposição de que, bem como a existência se relaciona à essência,
assim a operação (operari) se relaciona à potência, pois a existência é realmente o mesmo que a
essência, enquanto o ato ou operação procede da potência e não é realmente o mesmo que a
potência”[960]. A aserción simpliciter falsum est, quod esse sit aliud ab essentiaparece,
certamente, dirigida contra afirmações de santo Tomás como ergo oportet quod omnis talis rês,
cuius esse est aliud a natura sua, habeat esse ab alie[961]; mas, se tem-se em conta a doutrina
escotista da distinção real, sua negación de uma distinção real entre a essência e a existência das
criaturas tem uma maior significação contra a doutrina de Gil de Roma, para quem essência e
existência eram fisicamente separables, que contra a de santo Tomás.

Mas quando Scot discute o tema do relacionamento de essência e existência, sua polêmica
vai dirigida não tanto contra São Tomás de Aquino, nem sequer contra Gil de Roma, como
contra Enrique de Gante. Este último não mantinha uma distinção real entre a essência e a
existência nos seres criados, mas distinguia um esse essentiae e um esse existentiae, o primeiro
dos quais era o estado da essência tal como é conhecido por Deus, enquanto o segundo era seu
estado após a criação, a qual não acrescentava elemento positivo algum à essência, senão
somente um relacionamento a Deus. Enrique de Gante afirmava essa doutrina do esse essentiae
para dar conta do fato da ciência, no sentido de conhecimento de verdades intemporales a
respeito das essências, independentemente da existência real dos objetos, mas Duns Scot
argumentava que a doutrina de Enrique destruía a ideia cristã de criação. Por exemplo, a criação
é produção a partir da nada; mas se uma pedra primeiramente, dantes de sua criação, tivesse esse
verum reale, então, ao ser produzida pela causa eficiente, não seria produzida a partir da
nada[962]. Ademais, como a essência é conhecida eternamente por Deus, se seguiria daquela
concepção que a essência dantes da existência atual possuiria já esse reale, e que a criação seria
eterna. Teria, pois, que admitir outros seres necessários além de Deus. Somente aquilo que existe
atualmente tem esse reale; a existência possível (esse possibilé) é somente esse secundum
quid[963]. A essência assim que conhecida pode ser dito que possui um esse diminutum; mas
essa existência (esse) de uma essência na mente divina dantes de sua produção atual é
simplesmente esse cognitum. Scot e santo Tomás vão de acordo nesse ponto: a criação significa
a produção do objeto inteiro a partir da nada, e a essência dantes da criação não possui nenhum
esse próprio. Mas Scot diferia de santo Tomás em sua concepção do relacionamento entre a
essência e a existência do objeto criado, já que ele recusava a distinção real, embora, como já
observámos, o que em realidade negava era a distinção real mantida por Gil de Roma mais bem
que a ensinada por santo Tomás.

5. Os universais.

A distinção formal objetiva foi também utilizada por Duns Scot em sua discussão dos
universais. Na questão dos universais, Scot não era certamente um realista exagerado, e a
afirmação de Suárez[964] de que Scot ensinava que a natureza comum é numericamente a mesma
em todos os indivíduos da espécie, apresenta incorretamente a posição de Scot, ao menos se se
saca de seu contexto e de seu relacionamento à doutrina do próprio Suárez. Scot enuncia
inequivocamente que “o universal em ato não existe exceto no entendimento” e que não há
universal atualmente existente que seja predicable de um objeto diferente daquele no que
existe[965]. A natureza comum não é numericamente a mesma em Sócrates e em Platón; não
pode ser comparada à essência divina, que é numericamente a mesma nas três pessoas
divinas[966]. Não obstante, há uma unidade, que é menor que a numérica (unitas minor quam
numeralis). Embora a natureza física de um objeto é inseparável da haecceitas desse objeto (a
“estidad” ou princípio de individuación do objeto, da que nos ocuparemos daqui a pouco) e
embora não pode existir em nenhum outro objeto, há uma distinção formal objetiva entre a
natureza humana e a “socrateidad” ou haecceitas de Sócrates, mas não uma distinção real, de
modo que a natureza humana pode ser considerada simplesmente como tal, sem referência à
individualidad nem à universalidade. Apelando a Avicena[967], Scot observa que a “caballidad”
ou “equinidad” é simplesmente isso (equinitas est tantum equinitas), e que, por si mesma, não
tem nem esse singulare nem esse universale[968]. Em outras palavras, entre a haecceitas e a
natureza de um objeto concreto existe uma distinctio formalis a parte rei; e é necessário supor
essa distinção, porque em caso contrário, isto é, se a natureza fora por si mesma individual, se,
por exemplo, fora por si mesma a natureza de Sócrates, não teria um fundamento objetivo,
válido, para nossas enunciaciones universais. A abstração do universal lógico pressupõe uma
distinção no objeto entre a natureza e a haecceitas.

É importante, no entanto, recordar que essa distinção não é uma distinção real, isto é, que
não é uma distinção entre duas entidades separables. Forma e matéria são separables, mas a
natureza e a haecceitas não o são. Nem sequer o poder divino pode separar fisicamente a
“socrateidad” de Sócrates e a natureza humana de Sócrates. Por conseguinte, embora a afirmação
feita por Duns Scot da distinção objetiva formal é certamente uma concessão ao realismo, não
implica que a natureza humana de Sócrates seja objetiva e numericamente idêntica à natureza
humana de Platón. O que Scot se propõe não é o apoio ao realismo exagerado, senão o dar razão
da referência objetiva de nossos julgamentos universais. Que um esteja ou não de acordo com
sua teoria é, desde depois, outra questão; mas, em qualquer caso, acusar a Scot de uma recaída
na antiga forma medieval do realismo exagerado é malentender e apresentar tortamente sua
posição. Scot está disposto a dizer, com Averroes[969], Intellectus est qui facit universalitatem in
rebus; mas faz questão de que essa proposição não deve ser entendido de maneira que exclua a
unitas realis minor unitate numerali que existe dantes da operação da mente, já que semelhante
exclusão faria impossível explicar por que “o entendimento é movido a abstraer um conceito
específico a partir de Sócrates e de Platón mais bem que a partir de Sócrates e de uma pedra”[970].
É a referência objetiva da ciência o que interessa a Scot.

J. Kraus[971] manteve que Duns Scot distingue três universais. Está, em primeiro lugar, o
universal físico, que é a natureza específica que existe realmente nos objetos individuais; em
segundo local, está o universal metafísico, que é a natureza comum, não tal como existe
atualmente na coisa concreta, senão com as caraterísticas que adquire mediante sua abstração
pelo entendimento ativo, a saber, a indeterminación positiva ou predicabilidad de muitos
indivíduos in potentia próxima; e, em terceiro local, está o universal lógico, o universal em
sentido estrito, que é o universal metafísico concebido reflexivamente em seu predicabilidad e
analisado em suas notas constitutivas. Mas essa divisão tricotómica não deve ser entendido no
sentido de que o universal físico seja separable ou realmente diferente da individualidad do
objeto em que existe. O objeto concreto consiste na natureza e a haecceitas, e entre estas há não
uma distinção real, senão uma distinetio formalis a parte rei. A menção por Scot do
relacionamento da matéria a sucessivas forma[972] não deve desorientarnos, já que, para Scot,
entre a matéria e a forma há uma distinção real, e a mesma matéria pode existir baixo suas
sucessivas forma, embora não possa existir simultaneamente baixo forma ultimamente
determinantes. O universal físico, em mudança, embora indiferente, se considera-se-lhe em si
mesmo, a esta ou aquela haecceitas, não pode existir em si mesmo extra-mentalmente, e é
fisicamente inseparável de sua haecceitas.

6. O hilemorfismo.

Que Scot ensinou a doutrina do hilemorfismo está suficientemente claro[973]; mas não está
tão claro se aceitou ou não a tese de São Boaventura consistente na atribuição de composição
hilemórfica aos anjos. Se o De rerum princípio fosse autêntico, não teria duvida alguma quanto
à aceitação por Scot da tese de São Boaventura, mas o De rerum princípio não é obra de Scot, e
este, em seus escritos autênticos, não afirma explicitamente em parte alguma a doutrina
buenaventuriana. Assim, o pai Parthenius Minges, ou. f. m., que faz uso do De rerum princípio
em sua obra Joannis Duns Scoti Doutrina philosophica et theologica, tem que admitir que “nos
Comentários às Sentenças, nas Quaestiones quodlibetales e nas Questões sobre a Metafísica de
Aristóteles, Scot não enuncia expressamente essa doutrina, senão que somente a toca, a insinua
ou a supõe mais ou menos”[974]. A mim me parece que somente poderia ser dito que o modo de
tratar Scot o tema em seus Comentários “supõe” a doutrina da composição hilemórfica da alma
racional e dos anjos, no caso de que um se decida ao afirmar assim sobre fundamentos diferentes
aos proporcionados pela leitura de ditas obras, por exemplo, se um se decide a aceitar o De
rerum princípio como obra de Duns Scot. Mas é verdade que no De Anima [975] Scot observa
que “provavelmente pode ser dito que na alma há matéria”. Agora bem, nesse caso, do que trata
Scot é de mostrar que a presença de matéria na alma pode ser deduzido com probabilidade das
premisas de Aristóteles e santo Tomás, ainda que santo Tomás não defendesse aquela doutrina.
Por exemplo, diz Scot que se a matéria é o princípio de individuación, como santo Tomás (mas
não o próprio Scot) afirmava, então deve ter matéria na alma racional. É inútil dizer que a alma,
uma vez separada do corpo, se distingue de outras almas por seu relacionamento ao corpo,
primeiramente porque a alma não existe para o corpo, em segundo local porque o relacionamento
ou inclinação ao corpo, que já não existe, não seria mais que uma relatio rationis, e em terceiro
local porque o relacionamento ou inclinação supõe um fundamento, isto é, esta alma, de modo
que a “estidad” não poderia ser devido ao relacionamento. Assim trata Duns Scot, no De Anima,
de mostrar que se se mantém, com santo Tomás, que a matéria é o princípio de individuación,
deve ser afirmado a presença de matéria na alma racional para explicar a individualidad da alma
racional após a morte; ele não afirma que essa conclusão represente sua própria opinião. É
possível que representasse a opinião do próprio Scot, e que este quisesse evidenciar que os
tomistas, de acordo com suas próprias premisas, deveriam a compartilhar; mas é difícil decidir
positivamente que Scot mantivesse sem dúvida a doutrina de São Boaventura, e se se está
disposto a recusar a autenticidade do De Anima, então não há razão nem sequer provável para
afirmar que a mantivesse.
Mas fora qual fosse a opinião de Scot sobre a doutrina do hilemorfismo universal, é
indudable que manteve que a matéria, realmente diferente da forma, é uma entidade por direito
próprio, e que está em potentia subjetiva, e não simplesmente em potentia obieetiva, isto é, que
é algo existente, e não algo que é meramente possível[976]. Ademais, a matéria é um ens
absolutum, no sentido de que poderia existir por si mesma sem a forma, ao menos mediante o
poder divino[977]. Uma entidade que é diferente de outra entidade e anterior a esta, pode existir
aparte desta outra sem que se implique contradição alguma. Que a matéria é diferente da forma
se prova pelo fato de que junto da forma constitui um ser real composto; e que é anterior à forma,
ao menos logicamente anterior, se prova pelo fato de que recebe à forma, e aquilo que recebe à
forma deve ser logicamente anterior à forma[978]. Ademais, já que Deus cria a matéria
imediatamente, poderia conservá-la imediatamente, isto é, sem nenhum agente conservador
secundário. E igualmente, a forma não pertence à essência da matéria, nem o esse que a forma
confere à matéria pertence à matéria mesma, já que se aparta desta na mudança substancial[979].
Em outras palavras, a realidade da mudança substancial postula a realidade da matéria. Em
resposta à objeción tomista de que é contradictorio falar da matéria como de uma entidade real,
isto é, como existindo atualmente sem a forma, já que dizer que a matéria existe atualmente por
sua própria conta e dizer que tem uma forma é a mesma coisa, Scot responde que ato e forma
não são necessariamente termos convertibles. Desde depois, se entende-se “ato” como aquilo
que é recebido e que atualiza e distingue, então a matéria, que é receptiva, não é ato; mas se ato
e potência entendem-se em um sentido mais amplo, toda coisa que esteja extra causam suam
está em ato, inclusive as privações, e nesse sentido a matéria está em ato, embora não é uma
forma.[980]

7. Rejeição das rationes seminales e conservação da pluralidad de


forma.

Scot recusa a teoria das rationes seminales, sobre a base de que dita teoria não é necessária
para evitar a conclusão de que o agente eficiente criado cria e aniquila nas mudanças que leva a
efeito, e que não há outra razão que a recomende[981]. Mas embora recusa a teoria das rationes
seminales, retém a da pluralidad de forma. Contra a aserción dos tomistas de que não há
necessidade de postular uma forma de corporeidad, já que sine necessitate non est conferência
pluralitas, Scot replica que neste caso sim há necessidade, hic enim est necessitas ponendi plura,
e procede a argumentar que, embora o corpo, quando a alma se separou, tende continuamente à
dissolução, não por isso deixa de ser um corpo, ao menos durante um verdadeiro tempo, e tem
que possuir aquela forma que faz corpo a um corpo[982]. Ademais, o corpo de Cristo na tumba
teve que possuir uma forma de corporeidad. Do fato de que o corpo humano loja naturalmente
à dissolução quando a alma se separou não se segue que o corpo, em estado de separação da
alma, não tenha sua própria forma; somente segue-se que não tem uma perfeita subsistencia
própria, e a razão disso está em que a forma de corporeidad é uma forma imperfecta que dispõe
ao corpo para uma forma mais elevada, a alma.

Mas se Scot afirma a existência de uma forma de corporeidad no corpo humano e, desde
depois, em todo corpo orgânico, forma que é transmitida pelos pais ao mesmo tempo que Deus
infunde a alma racional, e que é realmente diferente desta última, da que pode ser separada, não
deve ser imaginado que rompa a alma humana em três forma realmente diferentes, nem sequer
em três partes diferentes, os princípios vegetativo, sensitivo e intelectivo; ao invés, Scot recusa
as teorias que lhe parecem contrárias à unidade da alma. A alma racional do homem contém
essas três potências unitive, “embora são formalmente diferentes”[983]. Seria falso sugerir que
Scot ensinasse a existência de três almas no homem, ou que mantivesse que as potências
vegetativa e sensitiva fossem diferentes da potência racional do modo em que é diferente a forma
de corporeidad. Enquanto a distinção entre a forma de corporeidad e a alma humana é uma
distinção real, a que se dá entre as potências da alma mesma é uma distinção formal, entre
formalitates inseparáveis de um mesmo sujeito, não entre entidades ou forma separables.

8. A individuación.

É necessário dizer alguma coisa da algo escura doutrina escotista da individuación, cuja
escuridão se encontra mais na feição positiva que na feição negativa da doutrina.

Duns Scot critica e recusa a teoria de santo Tomás segundo a qual a matéria prima é o
princípio de individuación. A matéria prima não pode ser a razão primária da distinção e a
diversidade já que ela mesma é indistinta e indeterminada[984]. Ademais, se a matéria fosse o
princípio de individuación, se seguiria que, no caso da mudança substancial, as duas substâncias,
a que se corrompe e a que se engendra, seria precisamente a mesma substância, já que a matéria
é a mesma, ainda que as forma sejam diferentes. A teoria de santo Tomás parece implicar que a
quantidade é realmente o princípio de individuación; mas a quantidade é um acidente, e uma
substância não pode ser individuada por um acidente. Digamos de passagem que Duns Scot trata
de mostrar que Aristóteles é erroneamente citado como autoridade em pró da teoria tomista da
individuación.

O princípio de individuación não é, pois, a matéria prima, nem pode o ser também não a
natureza comum como tal, já que do que se trata é precisamente da individuación da natureza.
Qual é, pois, esse princípio? Uma entitas individualis. “Essa entidade não é nem a matéria nem
a forma, nem a coisa composta, pois nenhuma daquelas é uma natureza; é a realidade última do
ser que é matéria, ou forma, ou coisa composta.”[985] A entitas singularis e a entitas naturae, seja
esta última matéria, ou forma, ou um compositum, são formalmente diferentes; mas não são,
nem podem ser, duas coisas. Não são coisas separables; nem também não está a entitas singularis
com a entitas naturae no relacionamento da diferença específica ao gênero[986]. A palavra
haecceitas não se emprega para o princípio de individuación no Comentário de Oxford, embora
sim nas Reportata parisiensia[987] e nas Quaestiones in livros Metaphysicorum.[988]

Não é tão fácil entender exatamente o que é em realidade essa haecceitas ou entitas singularis
vel individualis, ou ultima realitas entis. Como vimos, não é nem matéria, nem forma, nem a
coisa composta; mas é uma entidade positiva, a realidade final da matéria, da forma e da coisa
composta. Um ser humano, por exemplo, é esse ser composto, composto dessa matéria e essa
forma. A haecceitas não confere uma ulterior determinação cualitativa, mas sella ao ser como
esse ser. A opinião de Scot não pode, desde depois, identificar com a teoria de que toda natureza
é por si mesma individual, já que Scot nega explicitamente essa teoria; mas em vista do fato de
que Scot, embora postulando uma distinção formal entre haecceitas e natureza, nega a distinção
real entre estas, parece estar implicado que uma coisa tem haecceitas ou “estidad” pelo fato de
que existe. Sua teoria não é idêntica à dos nominalistas, já que ele postula uma contração da
natureza pela “realidade última”; mas o fato de que fale de “realidade última” parece implicar
que uma natureza adquire essa realidade última por sua existência, embora esta não é, diz Scot,
a existência mesma.[989]
Capítulo XLVIII
Duns Scot. - IV: Teología natural

1. A metafísica e Deus.

Deus não é, propriamente falando, objeto da ciência metafísica, diz Scot[990], apesar do fato
de que a metafísica é a ciência do ser, e Deus é o ser primeiro. Uma verdade pertence
propriamente àquela ciência na que é conhecida a priori, a partir dos princípios dessa ciência, e
o metafísico somente conhece a posteriori as verdades referentes a Deus. Deus é, pois, o objeto
próprio da teología, ciência na que é conhecido como é em sua essência, em si mesmo; Deus é
objeto da metafísica somente secumdum quid, porquanto o filósofo chega a conhecer a Deus
somente em e através de seus efeitos.

Essa afirmação não deve certamente entender no sentido de que para Scot o filósofo ou
metafísico seja incapaz de atingir um conhecimento verdadeiro de Deus. “Por nosso poder
natural (ex naturalibus) podemos conhecer algumas verdades referentes a Deus”, diz Scot[991],
e procede a explicar que os filósofos podem conhecer muitas coisas (multa) a respeito de Deus
mediante uma consideração de seus efeitos. Pelo poder natural da razão pode ser concluído que
Deus é um, supremo, bom, mas não que Deus é três em pessoas[992]. A teología trata das pessoas
divinas mais propriamente que dos atributos essenciais de Deus, porque a maioria dos atributos
essenciais (essentialia plurima) podem nos ser conhecidos na metafísica[993]. Em consequência,
a afirmação de que Deus, estritamente falando, é o objeto da teología mais bem que o da
metafísica, não significa que Scot exclua da metafísica o estudo de Deus, já que embora Deus
não seja o objeto primário da metafísica, não por isso é menos considerado na metafísica do
modo mais nobre em que pode ser estudado em ciência natural alguma[994]. No De primo
princípio[995], Scot recapitula aperfeiçoe-as que os filósofos provaram que pertencem a Deus, e
as distingue de outras aperfeiçoe, tais como a omnipotencia e a providência geral e especial, que
pertencem mais propriamente às credibilia, isto é, àquelas verdades que não foram provadas
pelos filósofos, mas que são achadas pelos Catholici. Essas outras verdades, diz Scot, serão
consideradas no seguinte tratado (in sequenti tractatu, e foram acrescentadas as palavras scilicet
in Theorematibus). Já mencionámos no Capítulo XLV que se tentou refutar essa identificação
do “seguinte tratado” com os Theoremata, e que essa tentativa se deveu em grande parte à ao
menos aparente contradição entre os Theoremata e o De primo princípio, e, como ali expliquei,
eu me proponho expor a teología natural de Scot sobre o suposto de que os Theoremata não são
obra autêntica deste, no bem entendido de que, se alguma vez se provasse satisfatoriamente a
autenticidade dos Theoremata, teria que explicar a aparente contradição em alguma linha como
a adotada por Gilson. Em todo caso, Scot pôs perfeitamente em claro em suas obras
indubitavelmente autênticas que o filósofo pode provar muitas verdades a respeito de Deus pela
luz natural da razão, sem emprego algum dos dados da revelação. Nas páginas seguintes
indicaremos alguns dos pontos a propósito dos quais Scot restringe o alcance do entendimento
humano quando não dispõe da ajuda da revelação; mas é importante advertir que Scot não foi
um cético nem um agnóstico em relacionamento com a teología natural, e os Theoremata,
embora fossem autênticos, não permitiriam em modo algum desfazer dos depoimentos claros e
abundantes que oferecem nesse ponto os Comentários às Sentenças e o De primo princípio.

2. O conhecimento de Deus a partir das criaturas.

É indudable que Scot pensou que a existência de Deus está precisada de uma prova racional,
e que essa prova racional tem que ser a posteriori. Mais tarde falarei de como se valeu do
argumento anselmiano.

Antes de mais nada, o homem não tem conhecimento intuitivo algum de Deus nesta vida, já
que a intuición de Deus é precisamente aquela forma de conhecimento que põe ao homem extra
statum viae[996]. Nosso conhecimento tem sua origem nas coisas sensíveis, e a nosso
conhecimento conceptual natural de Deus chega-se mediante a reflexão sobre os objetos da
experiência[997]. Ao considerar às criaturas como efeitos de Deus, a mente humana é capaz de
se formar conceitos que são aplicáveis a Deus; mas há que acrescentar que os conceitos de Deus
que se formam a partir das criaturas são imperfectos[998], em contraste com os conceitos
baseados na essência divina mesma. Daí segue-se que nosso conhecimento natural de Deus é
indistinto e escuro, já que não é um conhecimento de Deus como imediatamente presente ao
entendimento em sua essência.[999]

Nosso conhecimento natural de Deus descansa em nossa capacidade de formar conceitos


unívocos, segundo explicámos no capítulo anterior. Scot afirma que “as criaturas que imprimem
suas próprias ideias (species) no entendimento podem também imprimir as ideias de (atributos)
trascendentes que pertencem em comum a elas mesmas e a Deus”[1000]; mas não seria possível
proceder de um conhecimento das criaturas ao conhecimento de Deus se não pudéssemos formar
a partir das criaturas conceitos unívocos. Quando o entendimento formou tais conceitos, pode
os combinar para se formar uma ideia quidditativa composta de Deus. O mesmo que a
imaginação pode combinar as imagens de montanha e de ouro para formar a imagem de uma
montanha de ouro, assim o entendimento pode combinar as ideias de bondade, supremo e
atualidade, para formar o conceito de um ser supremamente bom e atual[1001]. Greve dizer que
essa comparação não deve desorientarnos de maneira que pensemos que, para Scot, a atividade
combinadora da mente na teología natural seja exatamente paralela à atividade combinadora da
imaginação e a fantasía; a primeira atividade está governada pela verdade objetiva e a
necessidade lógica presa, enquanto a construção imaginativa de uma montanha de ouro é
“imaginaria”, isto é, obra arbitrária da fantasía.

3. A prova da existência de Deus.


Como prova Duns Scot a existência de Deus? No Comentário de Oxford[1002] afirma que a
existência da causa primeira se mostra de um modo bem mais perfeito a partir dos atributos
(passiones) das criaturas considerados na metafísica que a partir daqueles que são considerados
pelo filósofo natural. “Porque é um conhecimento mais perfeito e imediato do ser primeiro o
conhecer-lhe como ser primeiro ou necessário que o lhe conhecer como primeiro motor.” Scot
não nega com essas palavras que o filósofo natural possa evidenciar que o fato de movimento
requer um primeiro motor; mas o que lhe interessa pôr em claro é que o argumento que parte do
fato do movimento não trasciende por si mesmo a ordem física e não chega ao ser necessário,
que é a causa total última de seus efeitos. O primeiro motor, considerado como tal, é
simplesmente a causa do movimento. O argumento que parte do movimento está, pois, longe de
ser a prova favorita de Duns Scot. Podemos advertir, de passagem, que se o Comentário à Física,
que agora se recusa como espurio, fora autêntico, as dificuldades que há para aceitar os
Theoremata poderiam diminuir. Na obra primeiramente citada[1003], o autor põe em claro sua
crença de que o argumento baseado no movimento não nos leva, por si só, a um conceito
recognoscible de Deus, já que somente chega a um primeiro motor, sem indicação alguma sobre
a natureza desse primeiro motor. Desse modo, se pudesse ser mantido que o autor dos
Theoremata se referisse à filosofia natural ao dizer que não pode ser provado que Deus seja
vivente ou inteligente, pareceria que a contradição entre os Theoremata e as obras
indubitavelmente autênticas de Scot teria solução. No entanto, como as Questões sobre a Física
de Aristóteles não são autênticas, e como a autenticidade dos Theoremata não foi demonstrada,
não vale a pena levar adiante a questão. Em todo caso, segue sendo verdade que Scot sublinhou
aquelas provas da existência de Deus que se baseiam nas passiones metaphysicae. Ademais, no
Comentário de Oxford[1004], Scot observa que a proposição de que o motor e o movido devem
ser diferentes “somente é verdadeira nas coisas corpóreas”, e “eu acho (inclusive) que não é
necessariamente verdadeira”, enquanto “digo que, ao menos relativo aos seres espirituais, é
simplesmente falsa”.

No De primo princípio[1005], Scot argumenta a partir do fato da contingencia para chegar à


existência de uma causa primeira e um ser necessário. Está claro que há seres que podem ter ser
após não o ter, que podem começar a existir, que são contingentes; e tais seres requerem uma
causa de sua ser, já que não podem nem se causar a si mesmos nem ser causados por nada (nec
a se nec a nihilo). Se A é a causa do ser de um objeto contingente, tem que ser a sua vez causado
ou incausado. Se é a sua vez causado, digamos que B é a causa de A. Mas é impossível proceder
até o infinito, de maneira que tem que ter ultimamente uma causa que não seja causada. Scot
distingue claramente entre a série de essentialiter ordinata e a série de accidentaliter ordinata, e
indica que o que se nega não é a possibilidade de um regresso inacabable de causas sucessivas,
a cada uma das quais, tomada em si mesma, fosse contingente, senão a possibilidade de uma
série (vertical) inacabable de causas totais simultâneas. Como ele observa, embora concedamos
a possibilidade de uma série infinita de causas sucessivas, a corrente inteira requer uma
explicação, e essa explicação deve ser encontrado fora da corrente mesma, já que a cada um dos
membros desta é causado, e, portanto, contingente. Uma série infinita de seres contingentes que
se acontecem não pode explicar sua própria existência, já que a série inteira é contingente se o
é a cada um de seus membros; é necessário que postulemos uma causa trascendente. “A
totalidade dos efeitos ordenados (causatorum) é em si mesma causada; por conseguinte (foi
causada), por alguma causa que não pertence à totalidade.”[1006] Se, por exemplo, se postula que
a raça humana se remonta para atrás até o infinito, há uma sucessão infinita de pais e filhos. O
pai é causa do filho; mas, após a morte do pai, o filho continua existindo, e segue sendo
contingente. É necessária uma causa última, não só para o ser do filho aqui e agora, senão
também para toda a série de pais e filhos, já que o regresso infinito não faz necessária à série. O
mesmo princípio deve ser estendido ao universo dos seres contingentes em general; o universo
dos seres contingentes requer uma causa trascendente (incausada) atual. Uma sucessão infinita
“é impossível, exceto em virtude de alguma natureza de duração infinita (durante infinite), da
que dependa toda a sucessão e a cada um dos membros de esta”.[1007]

Scot procede então a mostrar que a primeira causa na ordem essencial de dependência tem
que existir atualmente, e não pode ser meramente possível[1008], que é um ser necessário, isto é,
que não pode não existir[1009], e que é um[1010]. Não pode ter mais que um ser necessário. Scot
argumenta, por exemplo, que se tivesse dois seres com uma natureza comum de ser necessário,
teria que distinguir formalmente entre a natureza comum e a individualidad, a qual seria então
algo diferente do ser necessário. Se responde-se que em um ser necessário não se dá tal distinção,
a consequência seria que ambos seres necessários seriam indistinguibles, e, portanto, que não
seriam dois, senão um. Esse argumento, embora baseado na teoria escotista da natureza comum
e da individuación, recorda-nos um argumento análogo proposto por Santo Anselmo. Ademais,
a ordem essencial um do universo postula somente um primum effectivum. Scot passa depois a
mostrar que há uma primeira causa final, primum finitivum[1011], e um ser primeiro na ordem
da eminencia[1012], e procede a mostrar que o primum effectivum, o primum finitivum e o
primum eminens (operfectissimum) são idênticos.[1013]

No Comentário de Oxford às Sentenças[1014], Scot argumenta de um modo muito parecido.


Temos que proceder das criaturas a Deus mediante a consideração do relacionamento causal
(tanto respecto da causalidad eficiente como do final) ou do relacionamento de excessum a
excedens na ordem da perfección. O ser contingente, o effectibile, é causado ou por nada, ou
por si mesmo, ou por outro. Como é impossível que seja causado por nada ou por si mesmo, tem
que ser causado por outro. Se esse outro é a causa primeira, encontrámos o que íamos buscando;
em caso contrário, devemos prosseguir a busca. Mas não podemos proceder até o infinito na
ordem vertical de dependência. Infinitas autem est impossibilis in[1015]. E também não podemos
supor que os seres contingentes se causem uns a outros, porque então nos moveríamos em um
círculo, sem chegar a uma explicação última da contingencia. Seria inútil dizer que o mundo é
eterno, já que também a série eterna dos seres contingentes requer uma causa[1016]. Do mesmo
modo, na ordem da causalidad final tem que ter uma causa final que não se dirija a outra causa
final mais última[1017], e na ordem da eminencia tem que ter um ser maximamente perfeito, uma
suprema natura[1018]. Esses três seres são um e o mesmo. A primeira causa eficiente opera com
vistas a um fim último; mas nenhuma outra coisa que o mesmo ser primeiro poderia ser seu fim
último. Do mesmo modo, a primeira causa eficiente não é unívoca com seus efeitos, isto é, não
pode ser da mesma natureza, senão que tem de trascenderlos e, como causa primeira, deve ser o
ser “maximamente eminente”.[1019]

4. Simplicidade e inteligência de Deus.

Como o ser primeiro é incausado, não pode possuir partes essenciais como matéria e forma,
nem pode possuir acidentes; dito brevemente, não pode estar composto em modo algum, senão
que tem de ser essencialmente simples[1020]. Tem que ser inteligente e possuir vontade. No
mundo, os agentes naturais que não operam conscientemente operam, no entanto, para um fim;
e isso significa que o fazem assim pelo poder e o conhecimento do agente que lhes trasciende.
Se os agentes naturais no mundo operam teleológicamente, isso supõe que a causa primeira
conhece o fim e o quer, já que nada pode ser dirigido a um fim exceto em virtude de
conhecimento e vontade (como a seta, poderíamos dizer, é dirigida a um fim por um arqueiro
que o conhece e o quer). Deus ama-se a si mesmo e se quer a si mesmo necessariamente; mas
não quer necessariamente nada exterior a si mesmo, já que nada exterior a Deus é necessário a
Deus: somente O é ser necessário. Daí segue-se que Deus causa seus efeitos livremente, e não
por necessidade. Deus conhece e entende desde a eternidade todo o que O pode produzir. Deus
entende atual e distintamente todo inteligible, e essa intelección é idêntica a si mesmo (idem
sibi).[1021]

5. A infinitud de Deus.

Mas Scot atendeu preferencialmente à infinitud de Deus. O conceito de Deus mais simples
e mais perfeito que podemos formar é o de ser absolutamente infinito.

Este é mais simples que o de bondade ou outro parecido, já que a infinitud não é como um
atributo ou passio do ser do que é pregada, senão que significa o modo intrínseco desse ser. É
também o conceito mais perfeito, já que o ser infinito inclui virtualmente a verdade infinita, a
bondade infinita e toda perfección que seja compatível com a infinitud[1022]. É verdade que toda
perfección em Deus é infinita, mas “tem sua perfección formal da infinitud da essência como
sua raiz e fundamento”[1023]. Todas as aperfeiçoe divinas estão fundamentadas na essência
divina, a melhor descrição da qual é a de infinitud de ser; não é, pois, correto afirmar que, para
Scot, a essência divina consista em vontade. “Embora a vontade é formalmente infinita, não
inclui, no entanto, todas as aperfeiçoe intrínsecas formalmente em si mesmas... senão que só a
essência inclui todas as aperfeiçoe dessa maneira.”[1024]

No Opus Oxoniense[1025] e no De primo princípio[1026], Scot apresenta uma série de provas


da infinitud divina. Pressupondo a compatibilidade da infinitud com o ser, Scot toma como texto
de seu primeiro argumento as palavras de Aristóteles, Primum movet motu infinito; ergo habet
potentiam infinitam, e arguye que a conclusão é ilegítima se se entende como derivada do
movimento infinito em duração, já que a magnitude da duração não faz a uma coisa mais
perfeita, embora é válida se se entende como derivada do poder de produzir mediante o
movimento efeitos infinitos, sucessivamente. Deus, como primeira causa eficiente, capaz de
produzir uma infinidad de efeitos, deve ser infinito em poder. Ademais, como Deus possui em
Si mesmo de um modo mais eminente a causalidad de todas as possíveis causas segundas, tem
de ser infinito em si mesmo, intensive[1027]. Em segundo local, Deus tem que ser infinito já que
conhece uma infinitud de objetos inteligibles. Esse argumento pode parecer uma franca petitio
principii; mas Scot dá uma razão algo singular para supor que Deus conhece uma infinitud de
intelligibilia. “Quaisquer coisas que sejam infinitas em potencial, de maneira que se se tomam
uma após outra podem não ter fim, são infinitas em ato, se se dão juntas em ato. Mas está bastante
claro que os objetos inteligibles são infinitos em potencial com respeito ao entendimento criado,
e no entendimento increado todos (os intelligibilia) que são sucessivamente inteligibles pelo
entendimento criado, são atualmente entendidos juntos. Por conseguinte, há (no entendimento
increado) um número infinito de objetos atualmente presos.”[1028] Em terceiro local, Scot
argumenta envelope a base da finalidade da vontade. “Nossa vontade pode desejar e amar um
objeto maior que qualquer objeto finito... e, o que é mais, parece ter uma inclinação natural a
amar acima de tudo a um bem infinito... Assim se faz manifesto que no ato de amar temos
experiência de um bem infinito; em realidade, a vontade parece não encontrar perfeito descanso
em nenhum outro objeto...” O bem infinito deve, pois, existir[1029]. O quarto argumento do
Comentário de Oxford[1030] consiste em que não é incompatível com o ser finito que tenha um
ser mais perfeito, mas é incompatível com o ens eminentissimum que tenha um ser mais perfeito.
Mas a infinitud é maior e mais perfeita que a finitud, e a infinitud e o ser são compatíveis. O ens
eminentissimum deve, pois, ser infinito. A prova de que a infinitud é compatível com o ser se
reduz pouco mais ou menos a dizer que não podemos discernir incompatibilidad alguma. No De
primo princípio[1031], Scot prova também a infinitud de Deus a partir do fato de que seu
entendimento é idêntico a sua substância, já que tal identificação seria impossível em um ser
finito.

Tendo provado, ao menos a satisfação sua, a infinitud de Deus, Duns Scot encontra-se em
condições de mostrar que Deus tem que ser um e só um.[1032]

6. O argumento anselmiano.

Em sua discussão da infinitud divina, Scot introduz o chamado argumento ontológieo de


Santo Anselmo[1033]. Scot acaba de observar que o entendimento, cujo objeto é o ser, não
encontra mútua repugnancia entre “ser” e “infinito”, e que seria surpreendente que, se fossem
incompatíveis, o entendimento não discerniese seu incompatibilidad, “quando uma disonancia
nos sons ofende tão facilmente ao ouvido”. Se há essa incompatibilidad, por que o entendimento
não “retrocede” ante a ideia de infinito, que seria incompatível com o objeto próprio do
entendimento, o ser? Scot procede então a afirmar que o argumento de Santo Anselmo no
capítulo primeiro do Proslogium pode ser “colorido” (potest eolorari) e que deve ser entendido
do modo seguinte. “Deus é aquilo maior que o qual, tendo sido pensado sem contradição, nada
pode ser pensado sem contradição. Que as palavras “sem contradição” devem ser acrescentadas,
está claro, pois aquilo no pensamento do qual há incluída uma contradição, é impensable.”
Disse-se que, como Scot admite que o argumento anselmiano deve ser “colorido”, é que o
recusa. Mas é indudable que não o recusa sem mais nem mais. Pára que teria que “o colorir”, de
não ser para o utilizar? E, em realidade, Scot utiliza-o. Em primeiro lugar, tenta mostrar que a
ideia de um summum eogitabile não contém contradição alguma, isto é, que a essência do esse
quidditativum é possível, e depois observa que se o summum eogitabile é possível, deve existir,
deve ter esse existentiae. Maius igitur eogitabile est, quod est in re quam quod est tantum in
intelleetu. Aquilo que realmente existe é maius eogitabile que aquilo que não existe realmente
senão que é meramente concebido, porquanto aquilo que realmente é “visível” ou suscetível de
ser intuido, e aquilo que pode ser intuido é “maior” que aquilo que pode ser meramente
concebido ou pode ser conhecido somente pelo pensamento abstractivo. A consequência é, pois,
que o summum eogitabile deve existir realmente. Scot não diz que tenhamos uma intuición
natural de Deus; o que faz é razonar o julgamento de que o que existe realmente é maior ou mais
perfeito que o que não existe na realidade extramental.
Não há dúvida, pois, de que Scot utiliza o argumento anselmiano. Propõem-se, portanto,
duas questões. Em primeiro lugar, em que consiste a colorado do argumento? E, em segundo
local, como pensava Scot que esse emprego do argumento era consequente com sua clara
afirmação de que somente a posteriori podemos demonstrar a existência de Deus? Antes de mais
nada, a colorado consiste em uma tentativa de evidenciar que a ideia do ser maximamente
perfeito é a ideia de um ser possível, e o faz primordialmente observando que não se vê
contradição alguma na ideia do ser maximamente perfeito. Em outras palavras, Scot antecipa a
tentativa leibniziana de mostrar que a ideia de Deus é a ideia de um ser possível, já que a ideia
não contém contradição alguma, e a ideia de um ser que não contém contradição alguma
constitui a ideia de um ser possível. Por outra parte, Scot não considerava que o fato de que não
possamos observar uma contradição na ideia do ser maximamente perfeito fosse uma prova
demostrativa de que não continha contradição alguma. Não podemos mostrar apodíctieamente
e a priori que o ser maximamente perfeito é possível, e por isso afirma Scot em outro local que
o argumento anselmiano pertence às provas que não são senão persuasiones probabiles[1034].
Isso proporciona a resposta a nossa segunda pergunta. Scot considerava que sua utilização do
argumento anselmiano era compatível com sua afirmação de que só a posteriori podemos
demonstrar a existência de Deus, porque ele não via o argumento anselmiano como uma
demonstração, senão somente como uma “persuasión provável”. Duns Scot não se limitou a
recusar o argumento, como fazia santo Tomás; mas não lhe satisfazia o argumento tal como se
encontrava, e pensou que era necessário “o colorir”. Por outra parte, não achava que o
“colorido”, a prova de que a ideia de Deus é a ideia de um ser possível, fosse uma prova
demostrativa, e, em consequência, propôs o argumento como meramente provável. Utilizou-o
como uma argumentación auxiliar para mostrar o que está compreendido ou implicado na ideia
de Deus, mais bem que como uma demonstração estrita da existência de Deus. É como se
dissesse: “Isso é o melhor que podemos fazer com esse argumento, que tem sua utilidade se se
aceitam suas premisas; mas eu não o vejo como uma demonstração. Se quer-se uma
demonstração estrita da existência de Deus, terá que proceder a posteriori.”

7. Atributos divinos que não podem ser demonstrados


filosoficamente.

Scot considerava que não podemos demonstrar pela razão natural todos os atributos
essenciais de Deus. Assim, no De primo princípio[1035], diz que a consideração dos atributos de
omnipotencia, imensidão, onipresença, verdade, justiça, misericórdia e providência dirigidos a
todas as criaturas e às criaturas inteligentes designadamente, terá de ser posposta até o seguinte
tratado, já que são credibilia, isto é, objetos de fé revelados. Pode parecer estranho ler que a
omnipotencia, por exemplo, não pode ser filosoficamente demonstrada como um atributo divino,
quando Scot não duvida em concluir a infinitud de Deus a partir de seu infinito poder; mas Scot
distingue entre a omnipotencia no sentido propriamente teológico (proprie theologice), que não
pode ser demonstrada com certeza pelos filósofos, e o poder infinito (potência infinita), que
pode ser demonstrado pelos filósofos[1036]. A distinção consiste no seguinte. O poder de Deus
para produzir todo efeito possível, imediata ou mediatamente, pode ser provado pela filosofia;
mas não pode o ser seu poder para produzir todos os efeitos imediatamente. Ainda que a causa
primeira possua em si mesma eminentius, a causalidad das causas segundas, não se segue
necessariamente, diz Scot, que a causa primeira possa produzir imediatamente o efeito da causa
segunda sem a cooperação desta, não porque a causalidad da causa primeira precise ser
incrementada, por assim dizer, senão porque a imperfección do efeito pode requerer, até onde o
filósofo é capaz de discernir, a operação causal da causa finita para que possa ser explicado.
Scot não ataca, pois, a demostrabilidad do poder criador de Deus; o que diz é que a proposição
“todo o que a causa eficiente primeira pode fazer com a cooperação de uma causa segunda, pode
o fazer imediatamente por si mesma”, não é nem evidente nem objetivamente demostrable,
senão que é conhecida pela fé (non est nota ex terminis ñeque ratione naturali, sejam est tantum
crédito). A objeción de que a causalidad imediata universal de Deus poderia destruir a causalidad
própria das criaturas, não pode ser descartada pela só razão.[1037]

Quanto à imensidão e onipresença divinas, a negación por Duns Scot da demostrabilidad


desse atributo divino depende de seu negación da doutrina de santo Tomás sobre a actio in
distans, a ação a distância. Segundo santo Tomás[1038], a actio in distans é impossível, enquanto
pára Scot, quanto maior é a eficácia do agente, tanto maior é seu poder de ação a distância. “Por
conseguinte, já que Deus é o agente maximamente perfeito, não pode ser concluído a propósito
de O, pela natureza da ação, que está junto a (essencialmente presente a) qualquer efeito causado
por O, senão mais bem que está distante.”[1039] É difícil ver que poderia significar a actio in
distans com respeito a Deus; mas, pelo que respecta a Duns Scot, este não nega que Deus seja
omnipresente nem que a onipresença seja um atributo necessário de Deus, senão somente que a
onipresença de Deus seja filosoficamente demostrable, e, designadamente, que a suposta
imposibilidad da actio in distans seja uma razão válida para mostrar que Deus seja omnipresente.

Provavelmente, o atributo de “verdade” deve ser tomado junto dos de misericórdia e justiça,
vindo a significar nesse contexto algo muito parecido a “justiça”. Ao menos, se não se aceita
essa sugestão dos comentadores, é extraordinariamente difícil ver qual é o sentido de Scot, já
que verdade e veracidade são enumeradas entre os atributos divinos que são conhecidos pela
razão natural[1040]. Quanto à justiça, Scot parece às vezes dizer que a justiça divina pode ser
conhecida pela luz natural da razão[1041]; mas quando nega que a justiça de Deus seja
filosoficamente demostrable, parece querer dizer que não pode ser provado que Deus
recompense e castigue na vida futura, já que o filósofo não pode provar estritamente a
imortalidade da alma[1042], ou que não podemos justificar por nossa razão todos os caminhos da
justiça de Deus em relacionamento com o homem. Que Deus é misericordioso, no sentido de
que perdoa os pecados e renúncia a exigir o castigo, não pode ser filosoficamente demonstrado.
Finalmente, quanto à providência divina, quando Scot diz que não pode ser filosoficamente
provada, parece querer dizer não que não pode ser demonstrado providencia alguma, senão que
não pode ser demonstrado filosoficamente uma ação providencial especial ou imediata de parte
de Deus, sem o emprego das causas segundas. Scot afirmou com certeza que a criação, a
conservação e o governo do mundo por Deus, podem ser demonstradas.

8. A distinção entre os atributos divinos.

Scot recusou as teorias de São Tomás de Aquino e de Enrique de Gante sobre a ausência em
Deus de qualquer distinção que não fosse a distinção real entre as pessoas divinas, e postuló uma
distinção formal objetiva entre os atributos divinos. A ratio formalis da sabedoria, por exemplo,
não é idêntica à ratio formalis da bondade. Agora bem, “a infinitud não destrói a ratio daquilo
ao que se acrescenta”[1043]. Por conseguinte, se o caráter formal do conceito unívoco de
sabedoria não é o mesmo que o caráter formal do conceito unívoco de bondade, a sabedoria
infinita terá que ser formalmente diferente da bondade infinita. Daí segue-se, pois, que os
atributos divinos de sabedoria e bondade serão formalmente diferentes, independentemente da
operação da mente humana. Por outra parte, não pode ter em Deus composição alguma, nem
nenhuma distinção real, no sentido técnico, entre os atributos divinos. A distinção entre estes
deve ser, pois, não uma distinção real, senão uma distinctio formalis a parte rei, e a fórmula será
que os atributos são real ou substancialmente idênticos (in re), mas formalmente diferentes.
“Assim, concedo que a verdade é idêntica à bondade in re, mas não, no entanto, que a verdade
seja formalmente bondade.”[1044] Scot pretendia que a distinção entre a essência e os atributos
divinos, e entre uns e outros atributos, não prejudica a simplicidade divina, já que os atributos
não são acidentes de Deus, nem informam a Deus como os acidentes finitos informam às
substâncias finitas. Como infinitos, são realmente idênticos à essência divina, e Deus pode ser
chamado Verdade, ou Sabedoria, ou Bondade; mas subsiste o fato de que as rationes formais
para valer, sabedoria e bondade são formal e objetivamente diferentes.[1045]

9. As ideias divinas.

Manteve-se no passado que as ideias divinas dependem, segundo Duns Scot, da livre vontade
de Deus, de maneira que as cria instâncias são criação arbitrária de Deus. Mas em realidade Scot
ensina explicitamente que é o entendimento divino o que produz as ideias: “o entendimento
divino, precisamente como entendimento, produz em Deus as rationes ideais, as naturezas ideais
ou inteligibles”[1046]. No entanto, o fundamento das ideias é a essência divina. “Deus primeiro
conhece sua essência, e no segundo instante entende (intelligit) as criaturas por médio de sua
essência, e então desse modo o objeto cognoscible depende do entendimento divino quanto a
seu ser conhecido (in esse cognito), já que é constituído em seu esse cognito por esse
entendimento.[1047] As ideias divinas não dependem, pois, da vontade divina. “O entendimento
divino, assim que em verdadeiro modo, isto é, logicamente, anterior ao ato da vontade divina,
produz aqueles objetos em seu ser inteligible (in esse intelligibili), e assim, com respeito a estes,
parece ser uma causa meramente natural, já que Deus não é uma causa livre mais que respecto
daquilo que pressupõe de algum modo sua vontade, ou um ato de sua vontade.[1048] Os possíveis
não são produzidos pela omnipotencia divina, senão pelo entendimento divino, que os produz
in esse intelligibili .[1049]

As ideias divinas são infinitas em número, e são substancialmente idênticas à essência


divina; mas não são formalmente idênticas à essência divina[1050]. São necessárias e eternas, mas
não são formalmente necessárias e eternas precisamente no mesmo sentido que a essência
divina, já que a essência divina tem uma verdadeira prioridade lógica. Ademais, “embora a
essência divina fosse desde a eternidade causa-a instância da pedra em sua ser inteligible, no
entanto, por uma verdadeira ordem de prioridade, as pessoas foram “produzidas” dantes que a
pedra em sua ser inteligible... embora este seja eterno”[1051]. Logicamente falando, a essência
divina é imitable dantes de que o entendimento divino a prenda como imitable[1052]. As ideias
são participações ou imitações possíveis da essência divina, presas pelo entendimento divino, e
por causa de que a essência divina é infinita e imitable de um infinito número de maneiras, as
ideias são infinitas, embora a presença das ideias não obriga a Deus a criar os objetos
correspondentes.[1053]

10. A vontade divina.

Scot não ensinou que a vontade divina atue de uma maneira simplesmente caprichosa e
arbitrária, embora se lhe tenha atribuído tal doutrina. “A Vontade de Deus é sua essência,
realmente, perfeitamente e identicamente”[1054], e a volición divina é um só ato em si
mesma[1055]. A vontade divina, e o ato da vontade divina, que são uma só coisa in re, não podem,
pois, mudar, embora daí não se segue que o que Deus quer eternamente tenha necessariamente
que existir eternamente. “A operação (da vontade) é na eternidade, e a produção do esse
existentiae é no tempo.”[1056] Logicamente falando, ainda em Deus o entendimento precede à
vontade, e Deus quer do modo mais racional (rationabilissime). Embora, ontológicamente, não
há mais que um ato da vontade divina, podemos distinguir o ato primário pelo que Deus quer o
fim ou finis, O mesmo, o ato secundário pelo que Deus quer o que está imediatamente ordenado
ao fim, por exemplo, mediante a predestinación dos eleitos, o ato terceiro pelo que Deus quer
aquelas coisas que são necessárias para atingir o fim (por exemplo, a graça), e o ato quarto pelo
que Deus quer médios mais remotos, como o mundo sensível[1057]. Mas embora o entendimento
divino preceda logicamente à vontade divina, a vontade divina não precisa direção como se
pudesse errar ou escolher algo inconveniente, e, nesse sentido, a vontade divina é sua própria
regra. Scot afirma às vezes, é verdade, que a vontade divina queira porque queira, e que não
pode ser dado nenhuma razão para isso; mas deixa bastante claro o sentido de tal afirmação.
Após citar a Aristóteles a propósito de que buscar para todo uma razão demostrativa é a marca
do homem ineducado, Scot argumenta que não são somente os primeiros princípios o que não
pode ser demonstrado, senão também as costure contingentes, porque as costure contingentes
não se seguem de princípios necessários. A ideia da natureza humana em Deus é necessária; mas
por que Deus quis que a natureza humana fosse representada neste ou naquele indivíduo, ou
neste ou naquele momento, é uma questão à que não pode ser dado resposta alguma, salvo que
“porque O o quis, e por isso foi bom que fosse”[1058]. O que Scot pensa é que as costure
contingentes não podem ser deduzidas por demonstrações necessárias, já que, se pudessem o
ser, seriam necessárias, e não contingentes. Se perguntas, diz Scot, por que esquenta o calor, a
única resposta é que o calor é calor: assim, a única resposta à questão de por que Deus quis uma
costure contingente é que a quis[1059]. Scot não nega que Deus faz para um fim, O mesmo, nem
que atua “da maneira mais racional”; mas quer evidenciar o absurdo que é buscar uma razão
necessária para o que não é necessário. “De um (princípio) necessário não se segue algo
contingente.”[1060] A livre decisão de Deus é a razão última de costure-as contingentes, e não
podemos legitimamente ir para além da decisão livre de Deus e buscar uma razão necessária que
determine essa decisão. O entendimento de Deus não determina sua obra criadora por razões
necessárias, já que a criação é livre, nem também não é Deus determinado pela bondade dos
objetos, já que os objetos não existiam ainda; mais bem estes são bons porque Deus quer que
sejam. Entende-se que Deus somente pode criar o que é uma imitação de sua essência, e que,
portanto, não pode criar nada mau.

Scot insistia, pois, na liberdade da vontade de Deus com respeito a suas operações ad extra;
mas também mantinha que, embora Deus se ama necessariamente e não pode não querer nem
amar a si mesmo, tal amor é, não obstante, livre. Essa teoria parece certamente algo singular.
Que a vontade de Deus é livre com respeito aos objetos finitos se segue da infinitud da vontade
divina, que somente pode ter como seu objeto necessário um objeto infinito, Deus mesmo; mas
que Deus possa ser amado a si mesmo necessariamente e livremente ao mesmo tempo, parece
certamente, ao menos a primeira vista, implicar uma contradição. A posição de Scot é a seguinte.
A liberdade pertence à perfección da volición, e deve estar formalmente presente a Deus. Como
a volición dirigida ao fim último é a mais perfeita classe de volición, deve incluir o que pertence
à perfección da volición. Deve ser, pois, livre. Por outra parte, a vontade divina, idêntica a Deus,
não pode senão querer e amar o fim último, Deus mesmo. O princípio de reconciliação das duas
proposições aparentemente contradictorias é que a necessidade no ato supremo da vontade não
exclui, senão que mais bem postula, o que pertence à perfección da vontade. “A condição
intrínseca do poder mesmo, seja absolutamente ou em ordem a um ato perfeito, não é
incompatível com a perfección na operação. Mas a liberdade é uma condição intrínseca da
vontade absolutamente ou em ordem ao ato da vontade. Por conseguinte, a liberdade é
compatível com uma condição possível perfeita na operação, e tal condição é a necessidade,
especialmente quando é possível.”[1061] Scot oferece um exemplo para mostrar o que quer dizer.
“Se alguém se arroja voluntariamente por um precipício (voluntarle se praecipitat), e, ao cair,
continua sempre o querendo, cai em verdade necessariamente, pela necessidade da gravidade
natural, e no entanto queira livremente sua queda. Assim Deus, embora vive necessariamente
sua vida natural, e isso com uma necessidade que exclui toda liberdade, queira no entanto
livremente viver essa vida. Por conseguinte, não pomos a vida de Deus baixo a necessidade (isto
é, não atribuímos necessidade à vida de Deus) se entendemos por “ vida” a vida como amada
por Deus por livre vontade.”[1062] Scot pareça querer dizer, pois, que podemos distinguir em
Deus a necessidade natural pela que se ama a si mesmo, e sua livre ratificação, pelo dizer assim,
daquela necessidade, de modo que o amor necessário a Si mesmo e o livre amor a Si mesmo não
são incompatíveis. Pode ser pensado que essa distinção não é particularmente proveitosa; mas,
em todo caso, está claro que a doutrina voluntarista e libertaria de Scot não implica que Deus
possa ser abstido de se querer a Si mesmo, nem que seu amor a Si seja arbitrário. A verdade do
assunto é que Scot atribuiu tanto valor à liberdade como uma perfección da vontade que se
resistia à excluir inclusive daqueles atos de vontade que se via obrigado a considerar necessários.
Isso se fará patente quando nos ocupemos de sua doutrina sobre a vontade humana.

11. A Criação.

Scot manteve que o poder de Deus para criar a partir da nada é demostrable pela luz natural
da razão. Deus, como primeira causa eficiente, tem de ser capaz de produzir algum efeito de
modo imediato, já que, em caso contrário, também não poderia os produzir mediatamente (dado
que é primeira causa eficiente). “Por conseguinte, está claro para o entendimento natural que
Deus pode causar desse modo que algo seja a partir do (isto é, que algo tenha seu ser de Deus),
sem que nenhum elemento disso seja orçamento, nem seja recebido em elemento receptivo
algum. Está, pois, claro à razão natural que, embora o Filósofo (Aristóteles) não o dissesse assim,
pode ser provado que algo é capaz de ser causado por Deus dessa maneira.” “E digo que
Aristóteles não afirmou que Deus cria algo desse modo; mas não se segue daí que o contrário
[isto é, o contrário à opinião de Aristóteles] não possa ser conhecido pela razão natural...”[1063]
Ademais, pode ser provado que Deus pode criar a partir da nada[1064]. Mas o relacionamento
implicado pela criação não é mútua: o relacionamento da criatura a Deus é um relacionamento
real, enquanto o relacionamento de Deus à criatura é somente um relacionamento mental (relatio
rationis), já que Deus não é essencialmente Criador, e não pode ser chamado criador no mesmo
sentido em que é chamado sábio ou bom. Deus é realmente Criador; mas seu relacionamento às
criaturas não é um relacionamento real, já que Deus não é Criador por essência, já que, se o
fosse, criaria necessariamente, e, por outra parte, não pode receber um relacionamento acidental.

Quanto à questão de se pode ser provado a criação no tempo, Scot inclinou-se à posição de
São Tomás de Aquino, embora não aceitou as razões de santo Tomás, de que a criação no tempo
não pode ser provado filosoficamente. Pode ser provado a prioridade lógica da nada “pois, em
outro caso, não poderia ser admitido a criação”; mas não é necessário que a prioridade lógica
implique prioridade temporária. Scot fala, no entanto, de um modo vacilante. “Não parece
necessário que a nada preceda ao mundo temporariamente; mas parece suficiente que o preceda
logicamente.”[1065] Em outras palavras, Scot recusou a opinião de São Boaventura da
imposibilidad de que a criação desde a eternidade possa ser filosoficamente demonstrada, e se
inclinou à opinião de santo Tomás de que também não a criação no tempo pode ser demonstrado
filosoficamente; mas Scot fala nesse ponto mais vacilam temem te que santo Tomás.
Capítulo XLIX
Duns Scot. - V: A alma

1. A forma específica do homem.

Que a alma racional é a forma específica do homem pode ser provado filosoficamente[1066],
e a opinião de Averroes de que o entendimento é um princípio separado, é ininteligible. “Todos
os filósofos, falando em general, incluíram “racional” na definição de homem como sua
diferença específica, entendendo por “ racional” que a alma intelectiva é uma parte essencial do
homem.” Nenhum filósofo de nota nega tal coisa, “embora aquele maldito Averroes em sua
ficção Sobre a alma, que não é inteligible nem para ele mesmo nem para os demais, afirma que
o entendimento é uma verdadeira substância separada, que pode ser unido a nós por médio dos
phantasmata; uma união que nem ele nem nenhum discípulo seu foi até agora capaz de explicar,
nem ele pôde por médio dessa união salvar (a verdade de) que o homem entende. Porque,
segundo ele, o homem não seria formalmente senão uma espécie de animal irracional superior,
mais excelente que outros animais em virtude de seu tipo de alma sensitiva, irracional”.[1067]

Scot prova por um entimema que a alma racional é a forma do homem. “O homem entende
(iintelligit, prende intelectualmente) formal e adequadamente; portanto, a alma intelectiva é a
forma própria do homem.”[1068] O antecedente, diz Scot, parece estar bastante claro pela
autoridade de Aristóteles; mas, em caso que alguém caprichosamente o negue, deve ser
apresentado uma prova racional. Entender propriamente (intelligere proprié) significa entender
por um ato de conhecimento que trasciende de toda espécie de conhecimento sensitivo, e que o
homem entende nesse sentido pode ser provado do modo seguinte. Exercer a atividade
intelectiva em sentido próprio é, como se indicou, exercer uma atividade que trasciende o poder
dos sentidos. Agora bem, a aprehensión sensitiva é uma função orgânica, já que a cada um dos
sentidos tem uma determinada classe de objeto, o objeto do sentido especial em questão. Assim,
a visão está determinada à percepción da cor, o ouvido à do som. Mas o entendimento não está
determinado dessa maneira; seu objeto é o ser, e este não está vinculado a um órgão corpóreo
no sentido em que o está a sensação. O entendimento pode prender objetos que não estão
imediatamente dados à sensação, como os relacionamentos genéricos e específicas, por
exemplo. Por conseguinte, a cognición intelectiva trasciende a potência dos sentidos, e daí
segue-se que o homem pode intelligereproprie.[1069]
Que a conclusão do original entimema (“a alma intelectiva é, pois, a forma do homem”) se
segue do antecedente, pode ser mostrado de duas maneiras. A cognición intelectiva, como uma
função do homem, tem que ser “recebida” no homem mesmo, em algo que não é extenso e que
não é nem uma parte nem o todo do organismo corporal. Se fosse recebida em algo extenso,
teria que ser ela mesma extensa, e uma função puramente orgânica, já se provou que não o é.
Quando Scot fala de que a cognición intelectiva é “recebida”, quer dizer que não é idêntica a
nossa substância, já que não estamos sempre ejercitando nossa capacidade de cognición
intelectiva; por conseguinte, deve ser o ato de algum princípio radicado em nós. Mas não pode
ser o ato da parte material do homem; por conseguinte, tem de ser o ato de um princípio formal
espiritual, e qual pode ser este senão a alma intelectiva? Em segundo local, o homem é dono de
seus atos voluntários, é livre, e sua vontade não está determinada a nenhuma espécie particular
de objeto apetecível. Por conseguinte, trasciende do apetito orgânico, e seus atos não podem ser
os atos de uma forma material. Daí segue-se que nossos atos livres, voluntários, são os atos de
uma forma intelectiva, e se nossos atos livres são atos nossos, como o são, então a forma da qual
são atos tem que ser nossa forma. A alma intelectiva é, pois, a forma do homem; é sua forma
específica, que diferencia ao homem dos brutos.[1070]

2. União de alma e corpo.

No homem há somente uma alma, embora há, como já dissemos, uma forma de corporeidad.
Há, como também dissemos dantes, diversas “formalidades” na alma humana única,
formalidades que, embora não realmente diferentes (separables) umas de outras, são diferentes
com uma distinetio formalis a parte rei, já que as atividades intelectivas, sensitivas e vegetativas,
são formal e objetivamente diferentes; mas são formalidades da única alma racional do homem.
Essa alma racional única é, pois, não somente o princípio da cognición intelectiva do homem,
senão também o princípio de sua atividade sensitiva e de sua vida. Dá o esse vivum, e é o
princípio formal pelo qual o organismo é um organismo vivente[1071]; é a forma substancial do
homem[1072]. Por conseguinte, a alma é uma parte do homem, e só impropriamente pode ser
chamada subsistente, já que é parte de uma substância mais bem que a substância mesma. É o
ser composto, o corpo e a alma, o que é per se unum[1073]. A alma, em seu estado de separação
do corpo, não é, propriamente falando, uma pessoa[1074]. A alma aperfeiçoa ao corpo somente
quando este está adequadamente disposto para isso, e esta alma tem uma aptidão para este corpo.
Isso significa, diz Scot[1075], que a alma não pode ser individuada pela matéria à que informa, já
que a alma, isto é, uma alma particular, é infundida a um corpo, e sua criação é logicamente
anterior a sua união com o corpo.

Scot difere também de santo Tomás ao sustentar que a alma racional não confere o esse
simpliciter, senão o esse vivum e o esse sensitivum; como já dissemos, há uma forma de
corporeidad. Se a alma racional conferisse ao homem o esse simpliciter, o homem não poderia
realmente morrer. A morte supõe a corrução da “entidade” do homem, e isso implica que tanto
o corpo como a alma têm realidade própria, que o ser do homem como homem é seu ser como
compositum, não seu ser como alma. Se a alma conferisse esse simpliciter e não tivesse outra
forma no corpo, a separação de alma e corpo não significaria a corrução do ser do homem como
homem. Para que a morte tenha local, o homem tem de ter um ser como compositum, um ser
diferente do de suas partes componentes, juntas ou por separado, porque é esse ser do homem
como compositum o que se corrompe com a morte. Pelo demais, São Tomás de Aquino, segundo
Scot, contradiz-se a si mesmo. “Em outra parte diz que o estado da alma no corpo é mais perfeito
que seu estado fosse do corpo, já que é uma parte do compositum”; no entanto, ao mesmo tempo
afirma que a alma confere, e portanto possui, esse simpliciter, e que não é menos perfeita
meramente pelo fato de que não comunique esse esse a outra coisa que a si mesma. “Segundo
diz, a alma possui o mesmo esse totalmente em estado de separação que quando está unida ao
corpo...; por conseguinte, não é em modo algum mais imperfecta pelo fato de que não comunique
esse esse ao corpo.”[1076]

O alma está unida ao corpo para a perfección do homem inteiro, que consta de alma e corpo.
Segundo santo Tomás[1077], o alma está unida ao corpo para bem da alma. A alma depende
naturalmente dos sentidos para seu ato de conhecimento, pois a conuersio ad phantasma é-lhe
natural[1078], e, portanto, o alma está unida ao corpo para o bem da alma, para que possa operar
de acordo com sua natureza. Para Scot, em mudança, como já vimos, a direção do entendimento
humano para as coisas materiais e sua dependência de facto dos sentidos tem sua origem não
tanto na natureza da alma humana assim que tal como no estado presente da alma, isto é, sua
condição no corpo como caminhante ou uiator. (O mesmo Scot sugere como alternativa que o
pecado pôde ser o fator determinante daquele estado.) Santo Tomás objetaría que nesse caso a
união da alma com o corpo seria parabién do corpo, e não da alma, e que isso é irracional, “já
que a matéria é para a forma, e não ao inverso”. A resposta de Scot a uma objeción assim é que
o alma está unida ao corpo não para bem do corpo simplesmente, senão para bem do ser
composto, o homem. É o homem, o ser composto, o que é termo do ato criativo, não a alma
considerada em si mesma nem o corpo considerado em si mesmo, e a união do corpo e a alma
se efetua para que possa ser realizado esse ser composto; a união existe, pois, para o bem do ser
humano inteiro, propter perfectionem totius. A união da alma com o corpo não tem local “para
a perfección do corpo, nem para a perfección da alma só, senão para a perfección do todo que
consta dessas partes; e assim, embora a esta ou aquela parte não poderia ser acumulado
perfección alguma que não fosse possuída sem tal união, a união, não obstante, não tem local
em vão, já que a perfección do tudo, que é o principalmente tentado pela natureza, não poderia
ser dado exceto desse modo”.[1079]

3. Vontade e entendimento.

Já dissemos algo, no capítulo sobre o conhecimento, da ideia escotista da atividade


intelectiva humana; mas devemos oferecer aqui uma breve discussão de sua doutrina a propósito
do relacionamento da vontade ao entendimento, porque esta deu origem a alguma confusão
concerniente a sua posição geral.

O conhecimento não é, como a vontade, uma potência livre. “Não está em poder do
entendimento o se abster de assentir às verdades que prende; porque na medida em que a verdade
dos princípios se lhe faz clara a partir de seus termos, ou a verdade das conclusões a partir de
seus princípios, nessa medida tem que dar sua asentimiento, por razão de sua falta de
liberdade.”[1080] Assim, se a verdade da proposição de que o todo é maior que a parte se faz clara
ao entendimento a partir do reconhecimento do que é um todo e do que é uma parte, ou se a
verdade da conclusão de que Sócrates é mortal se faz clara a partir da consideração das premisas
de que todos os homens são mortais e que Sócrates é um homem, então o entendimento não é
livre de negar seu consentimento à proposição de que o todo é maior que a parte, ou à conclusão
de que Sócrates é mortal. O entendimento é, pois, uma potentia naturalis.

A vontade, pelo contrário, é livre, uma potência liberta, e é livre essencialmente, pois sua
vatio formalis consiste mais em sua liberdade que em seu caráter de apetito[1081]. É necessário
distinguir entre vontade no sentido de inclinação natural e vontade como livre, e somente a
vontade livre é vontade em sentido próprio; daí segue-se que a vontade é livre por sua mesma
natureza, e que Deus não poderia, por exemplo, criar uma vontade racional que fosse
naturalmente incapaz de pecar[1082]. Por um ato elíeito de sua vontade livre, diz Scot, san Pablo
quis “ser dissolvido “ e ser em Cristo”; mas esse ato elíeito era contrário a sua “vontade” natural,
no sentido de inclinação natural[1083]. Ambas são, pois, diferentes, e essa distinção é de
importância quando se considera o desejo de felicidade do homem, ou o de seu fim último. A
vontade, como apetito natural ou inclinação à autoperfección, deseja necessariamente a
felicidade sobre todas as coisas, e como a beatitud, de fato, somente pode ser encontrado em
Deus, há no homem uma inclinação natural à beatitud “designadamente”, a Deus. Mas daí não
se segue que a vontade como livre deseje necessária e perpetuamente o fim último, nem que
necessariamente elicite um ato consciente e deliberado em relacionamento com dito objeto[1084].
Scot clarifica que não pretende implicar que a vontade possa eleger a desgraça como tal, ou o
mau como tal: “Não quero a beatitud” não é o mesmo que “quero o oposto à beatitud”; significa
que aqui e agora não elicito um ato respecto daquela, não que elicite a eleição de seu oposto,
que não pode ser objeto da vontade. Mas se elicito um ato, isto é, um ato de querer a beatitud,
esse ato será livre, já que todo ato elicito da vontade é livre[1085]. Ademais, Scot não vacila em
sacar a conclusão de que no céu os bienaventurados querem e amam a Deus livremente[1086].
Por conseguinte, recusa a doutrina de santo Tomás de que quando o summum bonum está
claramente presente a vontade o elege e ama necessariamente, e chega o bastante longe para
dizer que os bienaventurados conservam o poder de pecar. Mas quando diz isso não tenta dizer
outra coisa senão que a vontade como tal segue sendo livre no céu, já que é essencialmente livre
e o céu não destrói sua liberdade: moralmente falando, os bienaventurados no céu não somente
não quererão pecar, senão que não poderão pecar, embora tal necessidade é só secundum quid,
procedente do “hábito de glória” (ihabitus gloriae) e da inclinação produzida na vontade, não de
uma determinação física da vontade[1087]. A vontade do bienaventurado é, pois, moralmente
impecable, mas não fisicamente impecable. Scot não difere de santo Tomás quanto a que de fato
o bienaventurado não quer pecar, e inclusive está disposto a dizer que não pode pecar, sempre
que “não pode” não se entenda em um sentido que implique uma ameaça à essência da
vontade[1088].

O entendimento é, pois, uma potentia naturalis, e a vontade uma potentia liberta, e, dada a
insistencia de Scot na liberdade como perfección, sua posição na controvérsia referente à
primacía do entendimento sobre a vontade ou da vontade sobre o entendimento não pode
oferecer dúvidas. É verdade que o entendimento precede a todo ato elícito da vontade, já que a
vontade não pode ejercitar sua eleição em relacionamento com um objeto inteiramente
desconhecido (Scot não era “irracionalista”), e é difícil, diz ele, embora não impossível, que a
vontade não se incline ao que é finalmente ditado pela razão prática. Mas, por outra parte, a
vontade pode mandar ao entendimento. Scot não tenta dizer, por suposto, que a vontade possa
mandar ao entendimento assentir a proposições que se vê que são falsas; a vontade não
acrescenta nada ao ato de entender como tal[1089], nem é a causa do ato do entendimento[1090].
Mas a vontade pode cooperar mediatamente, como uma causa eficiente, movendo ao
entendimento a atender a este ou aquele objeto inteligible, a considerar este ou aquele
argumento[1091]. Daí segue-se que “a vontade, ao mandar ao entendimento, é uma causa superior
respecto de seu ato. Mas o entendimento, embora seja causa da volición (isto é, como causa
parcial, ao proporcionar o conhecimento do objeto) é uma causa subordinada da vontade” [1092]

Scot apresenta outras razões para afirmar a primacía da vontade. A vontade é mais perfeita
que o entendimento porque a corrução da vontade é pior que a corrução do entendimento; odiar
a Deus é pior que não conhecer a Deus ou não pensar em Deus. Igualmente, o pecado significa
querer algo mau, enquanto pensar em algo mau não é necessariamente um pecado; somente é
um pecado quando a vontade dá algum consentimento ou experimenta algum prazer no mau
pensado[1093]. Ademais, o amor é um bem maior que o conhecimento, e o amor reside na
vontade[1094], e a vontade é a que desempenha o papel principal na beatitud última, unindo a
alma a Deus, possuindo a Deus e desfrutando dele. Embora ambas potências, o entendimento e
a vontade, tomam parte na beatitud, a faculdade mais alta, a vontade, é o médio mais imediato
de união com Deus[1095]. Scot recusa assim a doutrina tomista da primacía do entendimento e
da essência da beatitud, e permanece fiel à tradição da escola agustiniano-franeiscana. Não
parece, em realidade, um assunto de grande importância que se adote o ponto de vista tomista
ou o escotista, toda vez que ambas partes coincidem em que a beatitud, considerada extensive,
compreende ambas potências; mas é necessário explicar a posição de Scot para mostrar cuán
insensatas são as acusações de irraciónalismo ou de voluntarismo absoluto.

4. A imortalidade do alma não está estritamente demonstrada.

Era de esperar, dada o claro ensino de Scot, não somente que da atividade intelectiva da alma
trasciende a capacidade dos sentidos, senão também de que pode ser provado filosoficamente
seu trascendencia dos sentidos e da matéria, que Scot tratasse de demonstrar a imortalidade da
alma humana; mas, em realidade, não achou que essa verdade possa ser estritamente
demonstrada pelo Filósofo, e criticou as provas alegadas por seus predecessores. Das três
proposições, primeira, que a alma racional é a forma específica do homem, segunda, que o alma
é imortal, e terceira, que a alma, após a morte, não permanecerá em perpétuo estado de separação
do corpo (isto é, que o corpo ressuscitará), a primeira é conhecida pela luz natural da razão, e o
erro oposto a ela, o de Averroes, é “não somente contra a verdade da teología, senão também
contra a verdade da filosofia (isto é, a doutrina averroísta não somente vai contra a verdade
conhecida pela fé, senão que ademais pode ser refutada filosoficamente)”. “Mas as outras duas
(proposições) não são suficientemente conhecidas pela razão natural, embora há certos
argumentos prováveis e persuasivos (persuasiones probabiles) em favor delas. Em favor da
segunda há, certamente, vários (argumentos) mais prováveis; daí que o Filósofo pareça a ter
sustentado magis expresse.” Mas em favor da terça há menos razões e, consequentemente, a
conclusão que se segue de ditas razões não é suficientemente conhecida pela razão natural[1096].
A posição geral de Scot consiste, pois, em que podemos provar filosoficamente que à alma
racional é a forma específica do homem; mas que não podemos provar demonstrativamente em
filosofia nem que o alma é imortal nem que o corpo ressuscitará. Os argumentos filosóficos em
favor da imortalidade da alma têm maior peso que os em favor da resurrección do corpo, mas
não por isso deixam de ser meros argumentos prováveis. Os argumentos a priori, a saber, aqueles
que se baseiam na natureza da alma, são melhore que os argumentos a posteriori, como, por
exemplo, os baseados na necessidade de sanções em uma vida futura. Pode ser dito que a
imortalidade do alma é moralmente provável, ex induetione, e é certamente mais provável,
filosoficamente falando, que sua mortalidade; mas os argumentos alegados para afirmá-la não
são argumentos demostrativos e necessários que desfrutem de absoluta certeza[1097].

Quanto à autoridade de Aristóteles, Scot declara que sua opinião não é realmente clara.
“Porque fala de maneiras diversas em diferentes locais, e tem princípios diferentes, de alguns
dos quais parece se seguir uma (opinião) oposta, e de outros outra. É provável, pois, que sempre
tivesse dúvidas quanto àquela conclusão, e uma vez se inclinasse a um lado, outra a outro,
segundo tratasse de uma matéria que harmonizasse mais com um lado que com o outro.”[1098]
Em todo caso, não todas as aserciones dos filósofos foram provadas por estes se valendo de
razões necessárias, senão que “frequentemente tiveram só algumas persuasiones prováveis
(alguns argumentos prováveis e persuasivos), ou a opinião geral de filósofos precedentes”[1099].
A autoridade de Aristóteles não constitui, pois, um argumento seguro em favor da imortalidade
da alma.

Quanto aos argumentos alegados por São Tomás de Aquino e outros filósofos cristãos, não
são absolutamente concluyentes. Na Summa Theologica[1100], santo Tomás argumenta que a
alma humana não pode ser corrompido per aeeidens, em virtude da corrução do corpo, já que é
uma forma subsistente, nem pode ser corrompido per se, já que o esse pertence a uma forma
subsistente de tal modo que a corrução natural da forma significaria que a forma se separaria de
si mesma. A isso responde Scot que santo Tomás faz uma petição de princípio, já que pressupõe
que a alma é uma forma per se subsistens, o qual é precisamente o ponto que se trata de provar.
A proposição de que a alma humana é uma forma dessa classe se aceita como um objeto de
crença, mas não é conhecida pela razão natural[1101]. Se se objeta que essa crítica é injusta,
porque santo Tomás dedicava previamente um artigo (o 2) a mostrar que a alma humana é um
princípio incorpóreo e subsistente, Scot replica que, embora possa ser provado que a alma
racional em sua atividade intelectiva não utiliza um órgão corpóreo, e que sua atividade
intelectiva trasciende o poder dos sentidos, daí não se segue necessariamente que a alma racional
não dependa, quanto a sua ser, do compositum inteiro, o qual é indubitavelmente
corruptible[1102]. Em outras palavras, o fato de que a alma humana não empregue um órgão
corpóreo em sua atividade puramente intelectiva não prova necessariamente que não dependa
naturalmente para sua existência da existência do compositum. Teria que demonstrar que uma
forma que trasciende da matéria em uma verdadeira operação é necessariamente independente
quanto a sua existência, e isso, segundo Scot, não foi provado concluyentemente.[1103]

Quanto ao argumento baseado no desejo de beatitud, que suporia a imortalidade, Scot


observa que se por desejo se entende um desejo natural em sentido estrito, um desejo que é
simplesmente a inclinação da natureza a certa coisa, então está claro que um desejo natural de
uma coisa não pode ser provado a não ser que se tenha provado dantes a possibilidade natural
deste: afirmar a existência de uma inclinação natural para um estado cuja possibilidade é ainda
desconhecida é se fazer réus de uma petitio principia. Se, pelo contrário, por desejo natural
entende-se um desejo natural em sentido amplo, isto é, um desejo elícito que está de acordo com
uma inclinação natural, não pode ser mostrado que o desejo elícito seja natural nesse sentido até
que se tenha provado que há um desejo natural no sentido estrito. Pode ser dito que um objeto
que chega a ser o objeto de um desejo elícito imediatamente que é preso, deve ser o objeto de
um desejo ou inclinação natural; mas nesse caso poderia ser dito também que, porque um homem
vicioso está imediatamente inclinado a desejar o objeto de seu vício quando o prende, tem por
este uma inclinação ou desejo natural, enquanto em realidade a natureza não é de seu viciosa, e,
indubitavelmente, não o é em todos. Não deve ser dito que um objeto que, assim que é preso, é
o objeto de um desejo elícito segundo a reta razão seja o objeto de um desejo natural, já que toda
a questão está em descobrir se o desejo de imortalidade está ou não de acordo com a reta razão,
e não é legítimo que o dêmos por suposto. Ademais, se diz-se que o homem tem um desejo
natural de imortalidade porque tende naturalmente a fugir da morte, e que portanto a
imortalidade é ao menos uma possibilidade, poderia ser argumentado com a mesma razão que
os brutos têm um desejo natural de imortalidade, e que portanto podem sobreviver e
sobrevivem.[1104]

Pode ser conveniente recordar que Scot não diz que os argumentos em favor da imortalidade
não são prováveis nem persuasivos, nem ainda menos que estejam faltos de valor; o que diz é
que, em sua opinião, não são demostrativos. O argumento baseado no desejo não é concluyente,
porque se se fala da inclinação biológica a escapar da morte ou do que leva à morte, também os
brutos possuem essa inclinação, enquanto se se fala de um desejo elicito, consciente, não pode
ser concluído legitimamente do desejo de imortalidade o fato da imortalidade, a não ser que se
tenha mostrado primeiramente que a imortalidade é possível, que a alma humana pode
sobreviver à desintegração do compositum. Está muito bem dizer que os sofrimentos desta vida
pedem uma contrapartida em outra vida; mas segue sendo verdade que o homem está exposto
ao sofrimento nesta vida, o mesmo que é capaz de prazer e alegria nesta vida, pelo mero fato de
ter a natureza que tem, de modo que a exposição ao sofrimento é natural, e não podemos dizer
sem mais nem mais que o sofrimento tenha que ser contrapesado por uma felicidade
ultramundana. Quanto ao argumento de que deve ter sanções em uma vida ulterior, e que,
portanto, existe uma vida ulterior, não é válido até que se tenha mostrado que realmente Deus
recompensa e castiga aos homens desse modo, e Scot não acha que isso possa ser provado de
um modo puramente filosófico[1105]. O melhor argumento em favor da imortalidade da alma
pode ser o baseado na independência do entendimento de um órgão corporal; mas embora Scot
pensava que essa prova era um argumento muito provável, não considerava que fosse
absolutamente concluyente, já que pode ser que a alma, que é criada como parte de um
compositum, não possa existir se não é como parte de um compositum.
Capítulo L
Duns Scot. - VI: Ética

O que me proponho neste capítulo não é expor todas as doutrinas éticas de Duns Scot, senão
mais bem evidenciar que a acusação que se dirigiu contra ele de ensinar o caráter puramente
arbitrário da lei moral, como se esta dependesse única e exclusivamente da vontade divina, é no
fundamental, uma acusação injusta.

1. A moralidad e os atos humanos.

Um ato é naturalmente bom (naturaliter bonus) quando possui todo o que se requer para seu
esse naturale, como um corpo é belo quando possui todas aquelas caraterísticas de tamanho, cor,
forma, etc., que cuadran ao corpo e harmonizam entre si. Um ato é bom moralmente quando
possui todo o requerido não pela natureza do ato tomado meramente em si mesmo, senão pela
reta razão (reta ratio). Para cair dentro da ordem moral, um ato tem que ser livre, porque “um
ato não é digno de louvor nem de oprobio se não procede da vontade livre”; mas está claro que
isso se requer tanto para os atos moralmente bons como para os moralmente maus; para que um
ato seja moralmente bom se requer algo mais, e esse algo mais é a conformidade com a reta
razão[1106]. “Atribuir bondade moral é atribuir conformidade com a reta razão.”[1107] Todo ato
moralmente bom tem de ser objetivamente bom, no sentido de ter um objeto conformable com
a reta razão; mas nenhum ato é bom só por isso, salvo o amor a Deus, que não pode em
circunstância alguma ser moralmente mau. E, igualmente, nenhum ato é moralmente mau pela
só razão de seu objeto, salvo o ódio a Deus, que não pode ser moralmente bom em circunstância
alguma[1108]. É impossível, por exemplo, amar a Deus com uma intenção má, já que em tal caso
não teria amor, o mesmo que é impossível odiar a Deus com uma intenção boa. Mas, em outros
casos, “a bondade da vontade não depende somente do objeto, senão de todas as demais
circunstâncias, e principalmente do fim (a fine)”, que ocupa o primeiro local entre as
circunstâncias do ato[1109]. Mas embora o fim ocupe o primeiro local entre as circunstâncias do
ato, um ato não é moralmente bom simplesmente porque seu fim seja bom: o fim não justifica
os meios. “É necessário que todas as circunstâncias (requeridas) se dêem juntas em um ato moral
para que este seja moralmente bom; o defeito de qualquer circunstância é suficiente para que (o
ato) seja moralmente mau”[1110]; “não devem ser feito coisas más para que possam ser obtido
bons resultados”[1111]. Por conseguinte, para que um ato seja moralmente bom deve ser livre,
deve ser objetivamente bom, deve ser feito com intenção boa, de maneira adequada, etc. Se
possui todas essas circunstâncias, estará em conformidade com a reta razão.
2. Atos indiferentes.

Todo ato humano, isto é, todo ato livre, é bom ou mau de alguma maneira, não somente no
sentido de que todo ato, considerado em termos puramente ontológicos, isto é, enquanto entidade
positiva, é bom, senão também no sentido de que todo ato tem um objeto que ou está de acordo
com a reta razão ou é contrário a esta. Mas, já que pára que um ato moral seja completamente
bom se requer a bondade de todas suas circunstâncias, se alguma circunstância é deficiente na
bondade que deveria ter, o ato pode ser “indiferente”. Por exemplo, para que o dar esmolas seja
um ato moral completamente bom, para que possa ter pleno valor moral, deve estar fato com
uma intenção moral. Agora bem, dar esmolas com uma intenção má converteria em mau ao ato;
mas é possível dar esmola simplesmente por uma inclinação imediata, por exemplo, e um ato
assim, diz Scot, pode ser chamado moralmente indiferente; nem é um ato mau nem é um ato
plenamente moral[1112]. Na admissão de atos elícitos indiferentes (e Scot fazia questão de que
não se referia a atos reflexos, como o se espantar uma mosca da cara)[1113], Scot adotou uma
opinião oposta à de São Tomás de Aquino, mas para que melhor a entendamos é importante
saber que, para Scot, “o primeiro princípio prático é: Deus deve ser amado”[1114]. Não é que um
homem esteja sempre obrigado a referir seu ato a Deus, nem atual nem virtualmente, porque,
diz Scot, Deus não lhe pôs baixo essa obrigação, mas, se não o faz, seu ato não será
completamente bom desde o ponto de vista moral. Por outra parte, e como não estamos
obrigados a referir assim todo ato, não há que sacar a consequência de que o ato não referido a
Deus seja um ato mau. Se é incompatível com o amor de Deus, será mau; mas pode ser
compatível com o amor de Deus e não estar referido a Deus nem atual nem virtualmente. Em tal
caso, trata-se de um ato indiferente. Scot pensava que a referência “habitual” não é suficiente
para dotar a um ato de pleno valor moral.

3. A lei moral e a vontade de Deus.

Temos visto que um ato moralmente bom tem de estar de acordo com a reta razão. Então,
qual é a norma da reta razão e da moralidad de nossas ações? Segundo Scot, “a vontade divina
é a causa do bem, e, assim, pelo fato de que Deus quer algo, isso é bom”[1115]. Essa formulación,
tomada em si mesma, parece implicar do modo mais natural que a lei moral depende
simplesmente da vontade arbitrária de Deus; mas não era essa a opinião de Duns Scot, e este
não queria dizer outra coisa senão que o que Deus quer é bom, porque Deus, por sua mesma
natureza, não pode querer nada mais que o que é bom. Assim e tudo, Scot faz à lei moral
dependente em verdadeiro sentido da vontade divina, e devemos pôr em claro sua posição. Como
o entendimento divino, considerado como antecedente do ato da vontade divina, percebe os atos
que estão em conformidade com a natureza humana, a lei moral eterna e inmutable se constitui
em relacionamento com o conteúdo de dito entendimento; mas somente adquire força
obrigatória mediante a livre decisão da vontade divina. Pode ser dito, pois, que não é o conteúdo
da lei moral o que se deve à vontade divina, senão a obrigatoriedade da lei moral, sua força
moralmente vinculante. “O mandar pertence unicamente ao apetito ou à vontade.”[1116] O
entendimento diz que tal coisa é verdadeira ou que não o é, tanto na esfera do prático como na
do especulativo, e embora inclina a uma ação de um verdadeiro tipo, não dita que deva ser feito
dessa maneira. Scot não diz simplesmente que a obrigação pese envelope os seres humanos
somente porque Deus quis lhes criar, o que seria bastante óbvio, já que mau poderiam estar
obrigados se não existissem, senão que a vontade divina é a fonte da obrigação mesma. Parece
seguir-se daí que se Deus não quisesse impor a obrigação, a moralidad seria uma questão de
autoperfeccionamiento, no sentido de que o entendimento poderia perceber que um verdadeiro
tipo de ação convém à natureza humana, e julgaria que é razoável e prudente fazer dessa
maneira. Se teria assim uma ética do tipo representado pela ética de Aristóteles. Mas, em
realidade, Deus quis aquele tipo de ação, e esse ato da vontade divina reflete-se na obrigação
moral: transgredir a lei não é, pois, algo simplesmente irracional, senão que é pecado, no sentido
teológico da palavra.

Que o conteúdo da lei moral não se deve simplesmente ao capricho ou decisão arbitrária de
Deus é algo que Scot clarifica abundantemente. Falando do pecado de Adán, observa[1117]: “Um
pecado que é pecado somente porque está proibido, é menos pecado formalmente que o que é
pecado em si mesmo, e não porque esteja proibido. Agora bem, comer daquela árvore não era
mais um pecado, pelo que se refere ao ato mesmo, que comer de outra árvore, exceto pelo fato
de que estava proibido. Mas todos os pecados relativos aos dez mandamientos são formalmente
maus, não só porque estão proibidos, senão porque são maus; em consequência, são proibidos,
já que pela lei da natureza o oposto de todo mandamiento é mau, e por razão natural um homem
pode ver que qualquer desses preceitos deve ser observado.” Aí afirma Scot claramente que os
dez mandamientos não são meramente preceitos arbitrários, e que um homem pode discernir sua
validade mediante o emprego natural da razão; tal afirmação impõe a conclusão de que Deus
mesmo não poderia os mudar, não porque O esteja submetido àqueles, senão porque estão
fundamentados ultimamente em sua natureza.

Propõe-se, no entanto, a dificuldade de que Deus parece ter feito verdadeiras dispensa em
alguns dos preceitos secundários do Decálogo (os preceitos da segunda tabela). Por exemplo,
Deus disse aos israelitas que despojassem aos egípcios, e encarregou a Abraham que sacrificasse
a seu filho Isaac. Ao tratar dessa matéria, Scot pergunta em primeiro lugar se a totalidade dos
dez mandamientos pertencem à lei da natureza, e procede a estabelecer uma distinção. Aquelas
leis morais que são evidentes por si mesmas ou que se seguem necessariamente de princípios
práticos evidentes por si mesmos, pertencem à lei natural no sentido mais estrito, e no caso de
ditos princípios e conclusões nenhuma dispensa é possível. Deus não poderia, por exemplo,
permitir ao homem que tivesse outros deuses, ou que tomasse seu nome em vão, pois tais atos
seriam inteiramente incompatíveis com o fim do homem, o amor a Deus como Deus, que
necessariamente implica culto e reverência exclusivos. Por outra parte, uma lei moral pode
pertencer à lei da natureza não como consequência necessária de princípios práticos primários,
necessários e evidentes por si mesmos; e deste tipo são os mandamientos da segunda tabela. No
caso desses mandamientos morais, Deus pode fazer dispensa[1118]. Scot procede a argumentar,
ou a sugerir a argumentación[1119] de que ainda que o amor ao próximo pertence à lei natural em
sentido estrito, de maneira que eu estou necessariamente obrigado-a querer que meu próximo
ame a Deus, não pode ser concluído necessariamente que eu deva querer que meu próximo tenha
este ou aquele bem particular. Mas isso não impede que Scot chegue a dizer[1120] que os preceitos
do Decálogo são obrigatórios em todo estado, e que, dantes de que se desse a lei escrita, todos
os homens estavam obrigados aos observar, “porque estavam escritos interiormente no coração,
ou talvez por algum ensino externo dada por Deus, que aprenderam os pais e transmitiram a seus
filhos”. Scot explica ademais que os israelitas não precisavam realmente dispensa alguma
quando despojaram aos egípcios, porque Deus, como senhor supremo, transferiu aos israelitas
os bens dos egípcios, de maneira que aqueles não tomaram o que não era seu. Não obstante, a
posição geral de Scot é que os dois primeiros mandamientos da primeira tabela do Decálogo
pertencem à lei natural no sentido mais estrito (a respeito do terceiro mandamiento, o relativo à
observancia do sábado, expressa dúvidas), enquanto os preceitos da segunda tabela não
pertencem à lei natural no sentido mais estrito, embora sim em um sentido mais amplo. Deus
pode, pois, dispensar no caso dos preceitos da segunda tabela, e não pode dispensar no caso de
mandamientos que pertencem estritamente à lei natural. Neste tema de dispensa-a, a opinião de
Scot difere da dos tomistas, que não admitem que Deus possa, propriamente falando, dispensar
de nenhum dos preceitos do Decálogo, já que todos derivam imediata ou mediatamente dos
princípios práticos primários. Os tomistas explicam as aparentes dispensa, que preocupavam a
Scot como exemplos de mutatio materiae, de modo muito parecido a como o próprio Scot
explicou a expoliación dos egípcios pelos israelitas.

Não estamos obrigados a discutir aqui tais bilhetes escriturísticos, já que estes não entram
na filosofia; mas devemos observar que embora Scot admita a possibilidade de dispensa no caso
de alguns mandamientos, o fato de que se negasse a admitir essa possibilidade com respeito aos
preceitos morais que pertencem estritamente à lei natural, manifesta claramente que não
considerava toda a lei natural como devida simplesmente à decisão arbitrária da vontade divina.
Scot pôde pensar que a inviolabilidad da propriedade privada, e a consiguiente maldade do
roubo, não estavam tão vinculadas à lei natural que não pudesse ter exceções legítimas, inclusive
“em casos difíceis”; mas afirmou claramente que se um preceito moral pertence à lei natural em
sentido estrito, é inalterable. Não pode ser negado que Scot faz observações como a de que a
vontade divina é a primeira regra de retitude, ou a de que “nenhuma coisa que não inclua
contradição é incompatível com a vontade divina, absolutamente falando, de modo que quanto
Deus faz ou pode fazer tem de ser reto e justo”[1121]; mas é indudable que não pensava que Deus,
sem contradição, pudesse ordenar ou permitir atos contrários a princípios práticos evidentes por
si mesmos ou a princípios que se deduzam necessariamente daqueles. Parece que há uma íntima
conexão entre a doutrina de Scot referente à obrigação moral e a referente aos preceitos
secundários do Decálogo. Os preceitos primários são evidentes por si mesmos, e estão tão
intimamente ligados com princípios evidentes por si mesmos que seu caráter obrigatório é óbvio.
Os preceitos secundários, em mudança, não são imediatamente deducibles dos princípios
práticos primários, ainda que seja evidente sua harmonia com aqueles princípios e suas
derivações imediatas. Seu caráter obrigatório não é, pois, evidente por si mesmo ou necessário,
senão que depende da vontade divina. Seu conteúdo não é puramente arbitrário, já que sua
harmonia e consonancia com princípios necessários é clara; mas a conexão não é tão estrita que
Deus não possa fazer exceções. Se é sua vontade o que reforça a harmonia natural dos preceitos
secundários com os princípios necessários, de maneira que aqueles se façam obrigatórios em um
sentido moral pleno, sua vontade pode igualmente dispensar deles.

Parece, pois, que Scot ocupa uma posição intermédia, se pode ser dito assim, entre São
Tomás de Aquino e Guilherme de Ockham. Coincide com o primeiro em que há princípios
morais que são inalterables, e não ensina que toda a lei moral dependa da arbitrária decisão da
vontade de Deus. Por outra parte, atribui à vontade divina na determinação da ordem moral um
grau bem mais alto de preeminencia que o que lhe atribuísse santo Tomás, e parece ter sustentado
que a obrigação, ao menos com respeito a certos mandamientos, depende de dita vontade, como
diferente do entendimento divino. Por conseguinte, enquanto consideramos a filosofia de Scot
em si mesma, devemos admitir que sua doutrina moral não é a do autoritarismo divino arbitrário,
devemos também admitir, se atendemos ao desenvolvimento histórico do pensamento, que sua
doutrina moral ajudou a preparar o caminho à de Ockham, a olhos do qual a lei moral, incluído
o Decálogo inteiro, é criação arbitrária da vontade divina.

4. A autoridade política.

Quanto à autoridade política, Scot distingue-a cuidadosamente da autoridade paternal[1122],


e parece sugerir que se apoia no livre consentimento. “A autoridade política... pode ser justa
pelo consentimento comum e a decisão da comunidade mesma.”[1123] Scot refere-se a homens
que vêem que não podem ser valido sem alguma autoridade e lembram encarregar o cuidado da
comunidade a uma pessoa, ou a uma comunidade de pessoas, e, ou bem a um homem para si
mesmo, de modo que tenha depois que eleger a seu sucessor, ou bem a um homem para si e para
seu descendencia[1124]. Em outro local[1125] fala de muitas pessoas independentes que, “para
conseguir um contínuo estado de paz, puderam, por mútuo consentimento de todos, eleger dentre
eles um príncipe...”.

A autoridade legítima é um dos fatores requeridos nos legisladores; o outro é a “prudência”,


a aptidão para legislar de acordo com a reta razão[1126]. O legislador não deve promulgar leis
para sua vantagem privada, senão para o bem comum, que é o fim da legislação[1127]. Ademais,
a lei humana positiva não deve estar em conflito nem com a lei moral natural nem com a lei
divina positiva. Duns Scot não poderia ter maior simpatia que São Tomás de Aquino pela ideia
de um governo despótico ou pela de que o mesmo Estado fosse a fonte da moralidad.
Capítulo LI
Revisão final

É óbvio que uma revisão geral da filosofia medieval deve ser deixado para a conclusão de
nosso volume seguinte; mas pode valer a pena que indiquemos aqui algumas feições gerais do
curso da filosofia tratada neste, embora a omissão do ockhamismo, que não será considerado até
o próximo volume, restringe o alcance de nossas reflexões.

1. Teología e filosofia.

Podemos considerar o desenvolvimento da filosofia no mundo cristão, desde os dias do


Império romano até as sínteses do século desde o ponto de vista de seu relacionamento à
teología. Nos primeiros séculos de era-a cristã não teve mal filosofia no sentido moderno, isto
é, no sentido de ciência autônoma diferente da teología. Os Pais tiveram consciência, desde
depois, da diferença entre razão e fé, entre as conclusões científicas e os dados da revelação;
mas distinguir razão e fé não é necessariamente o mesmo que fazer uma distinção clara entre
filosofia e teología. Os apologistas e escritores cristãos que desejavam mostrar o caráter razoável
da religião cristã, empregaram a razão para provar, por exemplo, que há um só Deus, e, na
medida em que o fizeram assim, pode ser dito que desenvolveram temas filosóficos; mas sua
finalidade era apologética, e não primariamente filosófica. Inclusive aqueles escritores que
adotaram uma atitude hostil para a filosofia grega tinham que empregar a razão com fins
apologéticos, e prestaram atenção a temas que se considera que pertencem ao domínio da
filosofia; mas embora nós podemos isolar aqueles argumentos e discussões que entram no
capítulo da filosofia, não seria sério supor que um apologista cristão dessa espécie fosse um
filósofo; talvez tomasse mais ou menos dos filósofos, mas via à “filosofia” como pervertidora
da verdade e como inimiga do cristianismo. Quanto aos escritores cristãos que adotaram uma
atitude predominantemente favorável para a filosofia grega, tenderam a ver esta como uma
preparação da sabedoria cristã, e à sabedoria cristã como compreendendo não somente os
mistérios revelados da fé, senão também toda verdade a respeito do mundo e da vida humana
vistos com olhos cristãos. Na medida em que os Pais não se limitaram a aplicar a razão ao
entendimento, correta formulación e defesa dos dados da revelação, senão que ademais trataram
de temas que era considerados pelos filósofos gregos, ajudaram não somente a que se
desenvolvesse a teología, senão também a proporcionar materiais para a construção de uma
filosofia que fosse compatível com a teología cristã; mas eles foram teólogos e exegetas, não
filósofos em sentido estrito, salvo de modo ocasional e incidental; e inclusive quando levavam
adiante temas filosóficos, o que faziam era arrendondar, por assim o dizer, a total sabedoria
cristã, e não construir uma filosofia ou ramo da filosofia diferente. Isso é verdade inclusive no
caso de Santo Agostinho, porque, embora a partir de seus escritos é possível reconstruir uma
filosofia, ele foi sobretudo um teólogo e não se interessou por edificar um sistema filosófico
como tal.

Pais da Igreja como san Gregorio de Nisa e Santo Agostinho, que utilizaram em seus escritos
elementos tomados do neoplatonismo, encontraram na filosofia neoplatónica materiais que lhes
ajudaram para o desenvolvimento de uma “filosofia” da vida espiritual, à que, como cristãos e
como santos, prestavam especial atenção. Era perfeitamente natural que falassem da alma, de
seu relacionamento ao corpo, de sua ascensão a Deus, em termos que recordavam intensamente
o platonismo e o neoplatonismo; mas, como não podiam considerar (e, em todo caso, não o
desejavam) a ascensão da alma a Deus em abstração da teología e da revelação, sua filosofia,
que se concentrava tanto na alma e sua ascensão a Deus, teve que entremezclarse
inevitavelmente com a teología e ficar integrada nesta. Por exemplo, não é nada fácil tratar a
doutrina agustiniana da iluminação como uma doutrina puramente filosófica; em realidade, deve
ser vista à luz da doutrina geral de Santo Agostinho a propósito do relacionamento da alma a
Deus e da ascensão da alma a Deus.

A atitude geral dos Pais deu o tom, por assim o dizer, ao que chamamos “o agustinismo”.
Santo Anselmo, por exemplo, foi um teólogo, mas viu que a existência do Deus que revelava os
mistérios da religião cristã precisava ser provada, e por isso desenvolveu uma teología natural,
embora seria um erro que no-lo imaginássemos consagrando à elaboração de um sistema de
filosofia como tal. O fides quaerens intellectum, para expressá-lo em forma algo crua, pode
funcionar para adiante ou para atrás. Funcionar para adiante a partir dos dados da revelação e
aplicar o razonamiento aos dogmas teológicos para entender na medida do possível, com o que
produz a teología escolástica. Funcionar para atrás, no sentido de considerar os orçamentos da
revelação, com o que desenvolve as provas da existência de Deus. Mas a mente que funciona
em um ou outro caso é a mente de um teólogo, ainda que no segundo caso opere dentro do
campo da filosofia e com os métodos desta.

Se o espírito do agustinismo, nascido nos escritos dos Pais, foi o do fides quaerens
intellectum, poderia chamar-lhe-lhe igualmente o espírito do homo quaerens Deum. Essa feição
do agustinismo é particularmente ressaltado por São Boaventura, cujo pensamento esteve tão
profundamente arraigado na espiritualidad afectiva do franeiscanismo. Um homem pode
contemplar as criaturas, o mundo exterior e o mundo interior, e discernir sua natureza; mas seu
conhecimento é de escasso valor a não ser que discierna na natureza o vestigium Dei e em si
mesmo a imago Dei, a não ser que possa detetar a operação de Deus em sua alma, uma operação
oculta em si mesma, mas que se faz visível em seus efeitos, em seu poder. Certo número de
agustinianos mantiveram, sem dúvida, a doutrina da iluminação, por exemplo, como resultado
de seu conservadurismo e respeito à tradição; mas no caso de um homem como São Boaventura,
a conservação da doutrina foi bem mais que tradicionalismo. Disse-se que de duas doutrinas,
uma das quais atribui mais a Deus e a outra menos, os agustinianos escolhem a que atribui mais
a Deus e menos à criatura; mas isso somente é verdade na medida em que a doutrina se sente
em harmonia com a experiência espiritual e como expressão desta, e na medida em que
harmoniza com a perspetiva teológica geral e pode ser integrada nela.
Se entende-se o lema fides quaerens intellectum como expressão do espírito do agustinismo
e como índice do local da filosofia na mente dos agustinianos, pode objetarse que semelhante
descrição do agustinismo é demasiado ampla, e que teria que classificar como agustinianos a
pensadores aos que não se pode razoavelmente chamar agustinianos. O trânsito da fé ao
“entendimento”, à teología escolástica por uma parte e à filosofia por outra, foi ultimamente o
resultado do fato de que o cristianismo era dado ao mundo como uma doutrina revelada de
salvação, não como uma filosofia em sentido acadêmico, nem sequer como uma filosofia
escolástica. Os cristãos começavam por achar, e só depois, em seu desejo de defender, explicar
e entender o que achavam, desenvolviam uma teología e, em subordinación a esta, uma filosofia.
Em verdadeiro sentido essa foi a atitude não somente dos primeiros autores cristãos e dos Pais,
senão também de todos aqueles pensadores medievais que foram primordialmente teólogos.
Antes de mais nada achavam, e depois tratavam de entender. Isso podia ser verdade do mesmo
São Tomás de Aquino. Mas, poderia ser chamado a santo Tomás agustiniano? Não é melhor
limitar o termo “agustiniano” a certas doutrinas filosóficas? Se faz-se assim, se tem um médio
para distinguir aos agustinianos dos não agustinianos. Em caso contrário, não pode ser saído da
confusão.

Há muita verdade nessa pretensão, e deve ser admitido que para poder discriminar entre
agustinianos e não agustinianos a propósito do conteúdo de suas filosofias, é desejável pôr em
claro antes de mais nada que doutrinas se está disposto a reconhecer como agustinianas, e por
que. Mas eu estou falando agora do relacionamento entre a teología e a filosofia, e, a propósito
desse ponto, sustento que, com uma importante cualifieación que será mencionada em breve,
não há uma diferença essencial de atitude entre o próprio Santo Agostinho e os grandes filósofos-
teólogos do século XIII. São Tomás de Aquino, fez, sem dúvida, uma distinção formal e
metodológica entre filosofia e teología, uma distinção que não era claramente feita por san
Gregorio de Nisa, Santo Agostinho ou Santo Anselmo; mas a atitude do fides quaerens
intellectum foi, no entanto, a atitude de santo Tomás. Nesse ponto, pois, estou disposto a
classificar a santo Tomás como um “agustiniano”. Com respeito ao conteúdo doctrinal há que
adotar outro critério. Também São Boaventura fez uma distinção formal entre filosofia e
teología, mas fez suas e sublinhou doutrinas geralmente reconhecidas como “agustinianas”,
enquanto santo Tomás as recusou, e com respeito a essas doutrinas pode ser dito que a filosofia
de São Boaventura foi agustiniana e a filosofia de santo Tomás foi não agustiniana. Por outra
parte, São Boaventura, como vimos, sublinhou bem mais que santo Tomás a insuficiencia da
filosofia independente, de maneira que se disse, inclusive, que a unidade do sistema de São
Boaventura deve ser buscado a nível teológico, e não a nível filosófico. Não obstante, o próprio
santo Tomás não achou que uma filosofia puramente independente fosse, de fato e na prática,
completamente satisfatória, e ele, o mesmo que São Boaventura, foi primordialmente um
teólogo. Há muito que dizer em favor da pretensão de E. Gilson de que para santo Tomás a
esfera da filosofia é a esfera de lhe révélable (no sentido em que Gilson utiliza esse termo, e não,
como é óbvio, em qualquer sentido possível).

A “importante cualificaeión” que mencionei dantes, é esta. Como um resultado da


descoberta do Aristóteles completo e sua adoção por santo Tomás, na medida em que tal adoção
era compatível com a ortodoxia filosófica, santo Tomás proporcionou o material para uma
filosofia independente. Como já sugeri ao tratar de santo Tomás, a utilização do sistema
aristotélico ajudou à filosofia a atingir consciência de si mesma e a aspirar a sua independência
e autonomia. Quando o material filosófico era relativamente escasso, como no período patrístico
e nos primeiros séculos da época medieval, mal podia ser pensado em uma filosofia autônoma
que fizesse seu próprio caminho (não há que se tomar muito em sério o episódio dos dialecticí);
mas uma vez que o aristotelismo, que parecia ao menos ser um sistema filosófico completo,
elaborado com independência da teología, entrou em cena e se teve ganhado seu direito a estar
ali, era moralmente inevitável uma bifurcación dos caminhos; a filosofia tinha-se desenvolvido,
e cedo reclamaria sua primogenitura e se marcharia do lar paterno. Mas essa não foi em absoluto
a intenção de São Tomás de Aquino, que pretendia utilizar o aristotelismo na construção de uma
vasta síntese filosófico-teológica, na que a teología constituiria a medida última. Mas os filhos,
quando cresceram, não se conduzem sempre exatamente do modo que seus pais esperava ou
desejado. São Boaventura, san Alberto, santo Tomás, utilizaram e incorporaram uma crescente
soma de novos materiais filosóficos, e criaram assim a um filho que cedo empreenderia seu
próprio caminho; mas os três homens, por mais que diferissem entre si em muitos pontos de suas
doutrinas filosóficas, foram realmente unânimes no ideal de uma síntese cristã. Pertenceram aos
sancti, não aos philosophi; e se deseja-se encontrar um contraste radical entre a filosofia e a
teología, há que contrastar não a Santo Anselmo e São Boaventura, por uma parte, com santo
Tomás pela outra, senão a Santo Anselmo, São Boaventura, santo Tomás e Duns Scot, por uma
parte, e aos averroístas latinos, e (no século XIV) ao movimento ockhamista pela outra. Os
philosophi e os peripatéticos radicais alçaram-se contra os Pais, contra os teólogos e contra os
sancti.

2. “Filosofia cristã”.

O que dissemos nos conduz à questão da “filosofia cristã”. Pode ser falado da “filosofia
cristã” da Idade Média? E, em caso afirmativo, em que sentido? Se a filosofia é um reino
legítimo e autônomo dos estudos e conhecimentos humanos (“autônomo” no sentido de que o
filósofo disponha de seu próprio método e objeto de estudo) parece que não é nem pode ser
“cristã”. Soaria absurdo que se falasse de uma “biologia cristã” ou umas “matemáticas cristãs”:
um biólogo ou um matemático pode ser cristão, mas não podem o ser sua biologia ou suas
matemáticas. Do mesmo modo, poderia ser dito, um filósofo pode ser cristão, mas não sua
filosofia. Sua filosofia pode ser verdadeira e compatível com o cristianismo; mas não pode ser
chamado cristão a um enunciado científico simplesmente porque é verdadeiro e compatível com
o cristianismo. O mesmo que as matemáticas não podem ser paganas, nem muçulmanas, nem
cristãs, embora os matemáticos possam ser paganos, ou muçulmanos, ou cristãos, a filosofia não
pode ser pagana, muçulmana nem cristã, embora os filósofos possam ser paganos, muçulmanos
ou cristãos. A questão pertinente a propósito de uma hipótese científica é a de se é verdadeira
ou falsa, se está confirmada ou refutada pela observação e a experimentación, não se foi proposta
por um cristão, ou um indiano, ou um ateu; e a questão pertinente a respeito de uma doutrina
filosófica é a de se é verdadeira ou falsa, mais ou menos adequada como explicação dos feitos
com que pretende explicar, não a de se foi exposta por um crente em Zeus, por um seguidor de
Mahoma ou por um teólogo cristão. O mais que a frase “filosofia cristã” pode significar
legitimamente é “filosofia compatível com o cristianismo”; se significa algo mais que isso, se
está falando de uma filosofia que não é simplesmente filosofia, senão que é, ao menos em parte,
teología.
Esse é um ponto de vista razoável e inteligible, e representa indubitavelmente uma feição da
atitude de São Tomás de Aquino para a filosofia, a feição que o aquinatense expressa mediante
sua distinção formal entre teología e filosofia. O filósofo toma seu ponto de partida nas criaturas
e o teólogo em Deus; os princípios de que se vale o filósofo são os discernidos pela luz natural
da razão, os princípios de que se vale o teólogo são revelados; o filósofo ocupa-se da ordem
natural, o teólogo trata primordialmente da ordem sobrenatural. Mas se um se adere estritamente
a essa feição do tomismo, um se encontra em uma posição algo difícil. São Boaventura não
achava que pudesse ser conseguido nenhuma doutrina filosófica satisfatória salvo à luz da fé. A
doutrina filosófica de cria-as instâncias, por exemplo, está estreitamente vinculada à doutrina
teológica do Verbo. Terá que dizer, pois, que São Boaventura não tinha uma filosofia,
propriamente falando, ou terá que entresacar os elementos filosóficos dos teológicos? E em tal
caso, não se corre o risco de construir uma “filosofia buenaventuriana” que o próprio São
Boaventura mal reconheceria como expressão adequada de seu pensamento e de suas intenções?
Não seria talvez mais singelo admitir que a ideia que São Boaventura tinha da filosofia era a de
uma filosofia cristã, no sentido de uma síntese geral cristã tal como a que os primeiros autores
cristãos se esforçaram em conseguir? Um historiador tem direito a adotar esse ponto de vista.
Se um fala simplesmente como um filósofo que está convencido de que a filosofia, ou se apoia
envelope seus próprios pés, ou não é filosofia em absoluto, um não admitirá a existência de uma
“filosofia cristã”; ou, em outras palavras, se um fala simplesmente como um “tomista”, um se
verá forçado a criticar qualquer outra diferente concepção da filosofia. Mas se um fala como um
historiador que vê as coisas desde fora, por assim o dizer, um reconhecerá que teve duas
concepções de filosofia, a de São Boaventura, a concepção de uma filosofia cristã, e a de santo
Tomás e Scot, a concepção de uma filosofia que não poderia ser propriamente telefonema
“cristão” salvo no sentido de compatível com a teología cristã. Desde esse unto de vista pode
ser dito que São Boaventura, embora fizesse uma distinção formal entre teología e filosofia,
continuou a tradição dos Pais, enquanto com santo Tomás a filosofia recebeu um estatuto de
autonomia. Nesse sentido, o tomismo era “moderno” e olhava para o futuro. Como um sistema
de filosofia autosuñciente, o tomismo pode entrar em competição e discussão com outras
filosofias, porque pode prescindir por completo da teología dogmática, enquanto dificilmente
poderia fazer outro tanto uma filosofia cristã do tipo da de São Boaventura. Um verdadeiro
buenaventuriano poderia, desde depois, discutir com os filósofos modernos a propósito de
pontos particulares, as provas da existência de Deus, por exemplo; mas seria difícil que o sistema
inteiro pudesse entrar na arena filosófica em termos de igualdade, precisamente porque não é
simplesmente um sistema filosófico, senão uma síntese cristã.

Mas, não há um sentido no qual tanto a filosofia de san Alberto e de santo Tomás como a de
Santo Agostinho e São Boaventura podem ser telefonemas cristãs? Os problemas que todos eles
discutiram foram em grande parte propostos pela teología ou pela necessidade de defender a
verdade cristã. Quando Aristóteles concluiu a existência de um motor imóvel dava resposta a
um problema proposto pela metafísica (e pela física); mas quando Santo Anselmo, e São
Boaventura, e santo Tomás, provaram a existência de Deus, mostravam os fundamentos
racionais para a aceitação de uma revelação na que já achavam. São Boaventura interessava-se
também por mostrar a atividade inmanente de Deus na alma; e embora santo

Tomás empregasse o mesmo argumento aristotélico, não dava simplesmente resposta a um


problema abstrato nem se interessava simplesmente por mostrar que há um motor imóvel, uma
causa última do movimento; interessava-se em provar a existência de Deus, um Ser que
significava para santo Tomás bem mais que um motor imóvel. Seus argumentos podem ser
considerados; mas ele abordou a questão desde o ponto de vista de um teólogo que considerava
a prova da existência de Deus como um praeambulum fidei. Ademais, embora santo Tomás
falou indubitavelmente da filosofia ou metafísica como a ciência do ser assim que ser, e embora
sua declaração de que o conhecimento racional de Deus como parte mais alta da filosofia, à que
conduzem as demais partes, pode certamente se ver como sugerida por palavras de Aristóteles,
em suas Summae (que têm tanta importância desde o ponto de vista filosófico como desde o
ponto de vista teológico) segue a ordem sugerida pela teología, e sua filosofia se adapta
intimamente a sua teología, constituindo uma síntese. Santo Tomás não abordou os problemas
filosóficos com o espírito de um professor da Faculdade de Artes de Paris; abordou-os com o
espírito de um teólogo cristão. Ademais, apesar de seu aristotelismo e apesar de sua repetição
de enunciados aristotélicos, acho que pode ser sustentado que para santo Tomás a filosofia não
é tanto um estudo do ser em general como um estudo de Deus, da atividade e os efeitos de Deus,
na medida em que a razão natural nos serve para isso; de maneira que

Deus é o centro de sua filosofia como o é o de seu teología, o mesmo Deus, embora se chegue
ao por caminhos diferentes. Já sugeri dantes que o estatuto formal atribuído por santo Tomás à
filosofia significava que esta acabaria por seguir seu próprio caminho, e acho que assim é; mas
isso não isto é que santo Tomás previsse ou desejasse a “separação” de filosofia e teología. Ao
invés, ele tentou uma grande síntese, e a tentou como um teólogo cristão que era também
filósofo; ele considerou sem dúvida que o que lhe parecia ser os extravíos e erros dos filósofos
em séculos anteriores se deveram em boa medida àquelas mesmas causas em atenção às quais
ele declarou que a revelação era moralmente necessária.

3. A síntese tomista.

dedicámos à filosofia de São Tomás de Aquino mais capítulos que à de nenhum outro
filósofo, e bem está assim, já que o tomismo é incuestionablemente a síntese mais imponente e
comprehensiva das consideradas neste volume. Posso ter acentuado aquelas feições do tomismo
que são de origem não aristotélico, e acho que devem ser tido presentes essas feições se não quer
ser esquecido que o tomismo é uma síntese, e não simplesmente uma adoção literal do
aristotelismo; mas não por isso deixa, nem muito menos, o tomismo de poder ser visto como o
processo que culmina um movimento do Occidente cristão para a adoção e utilização da filosofia
grega representada por Aristóteles. Devido ao fato de que filosofia, na época dos Pais, queria
dizer, a todos os efeitos, filosofia neoplatónica, utilizar a filosofia grega significava para os Pais
utilizar o neoplatonismo; Santo Agostinho, por exemplo, não conheceu grande coisa do sistema
histórico de Aristóteles como diferente do neoplatonismo. Ademais, o caráter espiritualista do
neoplatonismo atraía à mentalidade dos Pais. Que as categorias do neoplatonismo continuassem
dominando o pensamento cristão na primeira Idade Média foi perfeitamente natural, em vista
do fato de que os Pais as tinham utilizado e de que era consagradas pelo prestígio dos escritos
do Pseudo-Dionisio, considerado como um converso de san Pablo. Ademais, ainda que o corpus
dos escritos de Aristóteles chegava a estar disponível em traduções latinas do grego e do árabe,
as diferenças entre o aristotelismo propriamente dito e o neoplatonismo propriamente dito não
se reconheciam nem muito menos com clareza; não puderam ser claramente reconhecidas
enquanto o Liber de causis e a Elementado Theologica foram atribuídos a Aristóteles,
especialmente quando os grandes comentaristas muçulmanos bebia também por sua vez
abundantemente no neoplatonismo. Que Aristóteles criticava a Platón era algo que estava, sem
dúvida, perfeitamente claro na Metafísica; mas a verdadeira natureza e alcance daquela crítica
não estava tão clara. A adoção e utilização de Aristóteles não significava, pois, que fosse negado
ou recusado todo neoplatonismo, e embora santo Tomás se deu conta de que o Liber de causis
não era obra de Aristóteles, a interpretação tomista de Aristóteles de acordo com o cristianismo
pode ser visto não meramente como uma interpretação in meliorem partem (o que em verdade
é, desde o ponto de vista de quem é ao mesmo tempo cristão e historiador), senão também como
na linha da maneira geral de entender a Aristóteles naquele tempo. É verdade que São
Boaventura ensinou que a crítica aristotélica de Platón levava consigo a necessidade de recusar
o exemplarismo (e, em minha opinião, São Boaventura tinha toda a razão); mas santo Tomás
não pensava dessa maneira, e interpretou a Aristóteles em consequência. Pode ser sentido a
tentação de pensar que santo Tomás “branqueasse” a Aristóteles, mas não deve ser esquecido
que, para santo Tomás, “Aristóteles” não tinha o significado estrito que tem para o moderno
historiador da filosofia grega; era, ao menos em certa medida, um Aristóteles visto através de
comentadores e filósofos que não eram por sua vez puramente aristotélicos. Inclusive os que
queriam ser e se tinham por aristotélicos radicais, os averroistas latinos, não eram aristotélicos
charutos em sentido estrito. Se adota-se esse ponto de vista, se encontrará mais fácil entender
que Aristóteles aparecesse ante santo Tomás como “o Filósofo”, e poderá ser visto que quando
santo Tomás batizou ao aristotelismo não se limitou a substituir o neoplatonismo pelo
aristotelismo: o que fazia era completar o processo de absorción da filosofia grega que começava
nos primeiros tempos da era cristã. Em verdadeiro sentido podemos dizer que o neoplatonismo,
o agustinismo, o aristotelismo, e as filosofias islâmicas e feijões se reuniram e fundiram no
tomismo, não no sentido de que alguns elementos selecionados fossem yuxtapuestos
mecanicamente, senão no sentido de que foi conseguida uma verdadeira fusão e síntese baixo o
script regulatório de certas ideias básicas. O tomismo, em seu sentido mais pleno, é assim uma
síntese de teología cristã e filosofia grega (aristotelismo unido com outros elementos, ou
aristotelismo interpretado à luz da filosofia posterior), uma síntese na qual a filosofia se vê à luz
da teología, e a teología por sua vez é expressa, em considerável medida, em categorias tomadas
da filosofia grega, particularmente de Aristóteles.

afirmei que o tomismo é uma síntese de teología cristã e filosofia grega, e pode parecer que
isso implique que o tomismo em sentido estreito, isto é, assim que denota simplesmente a
filosofia tomista, seja uma síntese da filosofia grega, e não seja outra coisa que filosofia grega.
Em primeiro lugar, parece preferível falar de filosofia grega mais bem que de aristotelismo, pela
singela razão de que a filosofia de santo Tomás foi uma síntese de platonismo (utilizando o
termo em um sentido amplo, que inclua o neoplatonismo) e aristotelismo, sem esquecer que
também os filósofos muçulmanos e judeus tiveram importante influência na formação do
pensamento do aquinatense. No primeiro volume de minha História argumentei que Platón e
Aristóteles podem ser considerados como pensadores complementares, ao menos em algumas
feições, e que se precisava uma síntese. São Tomás de Aquino levou a cabo essa síntese. Por
conseguinte, não podemos falar de sua filosofia como se fosse simplesmente aristotelismo; é
mais bem uma síntese da filosofia grega, harmonizada com a teología cristã. Em segundo local,
o tomismo é uma verdadeira síntese e não uma simples yuxtaposición de elementos
heterogéneos. Por exemplo, santo Tomás não se limitou a assumir a tradição platónico-
plotiniano-agustiniana das cria instâncias e a yuxtaponerla à doutrina aristotélica da forma
substancial: concedeu à cada elemento seu status ontológico, fazendo à forma substancial
subordinada a cria-a instância e explicando em que sentido temos direito a falar de “ideias” em
Deus. Igualmente, se adotou a ideia (originariamente) platónica da participação, não a empregou
de uma maneira que pudesse chocar com os elementos aristotélicos de seu metafísica. Santo
Tomás foi para além do hilemorfismo aristotélico e discernió, na distinção real entre essência e
existência uma aplicação mais profunda do princípio da potência e o ato. Essa distinção
permitiu-lhe utilizar a noção platónica de participação para explicar o ser finito, e, ao mesmo
tempo, seu conceito de Deus como ipsum esse subsistens mais bem que como um mero motor
imóvel, lhe permitiu utilizar a ideia de participação de tal modo que pusesse de relevo a ideia de
criação, que não poderia ser encontrado nem em Aristóteles nem em Platón. Greve dizer que
santo Tomás não tomou a participação, em seu sentido pleno, como uma premisa; a ideia
completa de participação não podia ser atingida até que se tivesse provado a existência de Deus,
mas o material para a elaboração daquela ideia foi fornecido pela distinção real entre essência e
existência.

4. Diversas maneiras de considerar e interpretar a filosofia medieval.

Alguns dos pontos de vista adotados neste livro podem parecer algo inconsecuentes; mas
deve ser recordado que é possível adotar pontos de vista diferentes a propósito da história da
filosofia de qualquer época. Aparte do fato de que se adotará naturalmente um ponto de vista
diferente e se interpretará o desenvolvimento da filosofia a uma luz diferente segundo se seja
tomista, escotista, kantiano, hegeliano, marxista ou positivista lógico, é possível inclusive que o
mesmo homem discierna diferentes princípios ou modos de interpretação, nenhum dos quais
quereria recusar como totalmente ilegítimo, e para nenhum dos quais está disposto a pretender
completa verdade e adequação.

Assim, é possível, e, desde certos pontos de vista, perfeitamente legítimo, adotar o modo de
interpretação linear ou progressivo. É possível ver a absorción e a utilização da filosofia grega
pelos pensadores cristãos como partindo praticamente de zero nos primeiros anos da era cristã,
incrementando graças ao pensamento dos Pais até o escolasticismo medieval mais antigo,
enriquecendo de um modo súbito, relativamente falando, pelas traduções do árabe e do grego,
desenvolvendo no pensamento de Guilherme de Auvergne, Alexandro de Hales, São Boaventura
e Santo Alberto Magno, até atingir seu culminación na síntese tomista. Segundo essa linha de
interpretação, teria que ver a filosofia de São Boaventura como uma etapa no desenvolvimento
do tomismo, e não como uma filosofia paralela e heterogénea. Pode ser visto o realizado por
santo Tomás, mais que como uma adoção de Aristóteles em local de Santo Agostinho ou do
platonismo neoplatónico, como uma confluencia e síntese das diversas correntes da filosofia
grega e da filosofia islâmica e judia, bem como das ideias originais contribuídas pelos
pensadores cristãos. A filosofia medieval anterior a santo Tomás pode ser considerado não como
um “agustinismo”, no sentido oposto a “aristotelismo”, senão como um escolasticismo
pretomista, ou como um escolasticismo da primeira parte da Idade Média. Essa linha de
interpretação parece-me perfeitamente legítima, e tem a grandísima vantagem de não levar a
uma ideia deformada do tomismo como puro aristotelismo. Seria inclusive possível e legítimo
ver o tomismo como um platonismo aristotelizado mais bem que como um aristotelismo
platonizado. O que dissemos do caráter sintético do tomismo e de seu relacionamento à filosofia
grega e islâmica em general, mais bem que ao aristotelismo, poderia servir de apoio a essa linha
de interpretação, sugerida também pelo dito em nosso primeiro volume a propósito do caráter
complementar das filosofias platónica e aristotélica.

Por outra parte, se segue-se exclusivamente essa linha de interpretação, corre-se o risco de
desaproveitar por completo a rica variedade da filosofia medieval e a individualidad dos
diferentes filósofos. O espírito de São Boaventura não era o mesmo que o de Roger Bacon, nem
o mesmo que o de santo Tomás, e historiadores franceses como E. Gilson prestaram-nos um
grande serviço ao atrair a atenção sobre o gênio peculiar dos pensadores individuais e pô-lo de
relevo. Essa “individualización” dos filósofos medievais tem de ser tanto melhor vinda se tem-
se em conta o fato de que os pensadores cristãos compartilharam um fundo teológico comum,
de maneira que suas diferenças filosóficas se expressaram dentro de um campo relativamente
reduzido, com o resultado de que a filosofia medieval pode parecer que consiste em uma série
de repetições nos pontos importantes e uma série de diferenças em pontos relativamente
insignificantes. Se diz-se simplesmente que São Boaventura postuló uma iluminação especial e
santo Tomás a recusou, a diferença entre um e outro não apresentará tanto interesse como se a
teoria da iluminação de São Boaventura é vinculada à totalidade de seu pensamento e a negación
por santo Tomás de toda iluminação especial se vê envelope o fundo de seu sistema em general.
Mas não pode ser descrito totalmente o pensamento de São Boaventura ou o sistema geral de
santo Tomás sem pôr de relevo o espírito peculiar da cada pensador. É possível que Gilson,
como sugeri anteriormente neste volume, exagere as diferenças entre São Boaventura e santo
Tomás, e é possível ver a filosofia de São Boaventura como uma etapa na evolução do tomismo
mais bem que como uma filosofia paralela e diferente; mas também é possível que homens
diferentes tenham diferentes concepções do que é a filosofia, e se um homem não aceita o ponto
de vista tomista não se sentirá provavelmente mais inclinado a ver a São Boaventura como um
santo Tomás incompleto que o que poderia um platónico se sentir inclinado a ver a Platón como
um Aristóteles incompleto. Eu acho que é um erro insistir tanto no tipo linear de interpretação
que se exclua como ilegítimo o tipo de interpretação representado por E. Gilson, ou, ao inverso,
fazer questão das caraterísticas individuais e espíritos peculiares dos diferentes pensadores até
perder de vista a evolução geral do pensamento até uma síntese completa. É difícil que a
estrechez de visão produza um entendimento adequado.

Ademais, se é possível ver o desenvolvimento da filosofia medieval como um


desenvolvimento para a síntese tomista e considerar as filosofias pretomistas como etapas desse
desenvolvimento, e se é possível se concentrar mais nas particularidades das diferentes filosofias
e nos gênios individuais dos diferentes pensadores, também é possível ver e pôr de relevo
diferentes linhas gerais de desenvolvimento. Assim, é possível distinguir diferentes tipos de
“agustinismo”, em vez de conformar com uma palavra curinga; distinguir, por exemplo, o
agustinismo tipicamente franciscano de São Boaventura do agustinismo aristotelizado de
Ricardo de Middleton e do agustinismo avicenizado de Enrique de Gante, e, em certa medida,
de Duns Scot.

É possível seguir as impressões no pensamento medieval das influências respetivas de


Avicena, Averroes e Avicebrón, e tentar a classificação correspondente. Daí frases como
augustinisme avicennisant, augustinisme avicebronisant, avicennisme latín, utilizadas pelos
historiadores franceses. É innegable o valor de uma investigação de tais influências; mas a
classificação produzida por uma investigação assim não pode ser visto como uma classificação
completa e inteiramente adequada das filosofias medievais, já que a insistencia nas influências
do passado tende a escurecer as contribuições originais, aparte de que o que se classifique a um
filósofo como principalmente influído por Avicena, Averroes ou Avicebrón, depende em grande
parte dos pontos de sua filosofia que se tenham presentes.

Também é possível ver o desenvolvimento da filosofia medieval desde o ponto de vista do


relacionamento do pensamento cristão ao “humanismo”, ao pensamento grego, e à cultura e à
ciência em general. Desde esse ponto de vista, se san Pedro Damián foi um representante da
atitude negativa para o humanismo, Santo Alberto Magno e Roger Bacon representam uma
atitude positiva, enquanto, na feição política, o tomismo representa uma harmonização do
natural e o humanístico com o sobrenatural, harmonização que falta na teoria política
caraterística de Gil de Roma. Santo Tomás, ao atribuir à atividade humana no conhecimento e
na ação uma parte mais importante que a que lhe atribuíssem seus predecessores e
contemporâneos, pode ser dito que representa uma tendência humanista.

Para terminar, a filosofia medieval pode ser considerada baixo várias feições, a cada um dos
quais tem sua justificativa, e deve ser tido em conta se quer ser chegado a ter uma visão
suficientemente adequada daquela; mas qualquer tratamento mais extenso da filosofia medieval
em general deve ser adiado até a conclusão de nosso próximo volume, quando seja discutida a
filosofia do século XIV. No presente volume, a grande síntese de São Tomás de Aquino ocupa,
de um modo natural e perfeitamente justificado, a posição central, embora, como vimos,
filosofia medieval e filosofia tomista não são sinónimos. No século XIII foi o século do
pensamento especulativo, e um século excecionalmente rico em pensadores especulativos. Foi
um século de pensadores originais, cujo pensamento não se tinha ainda endurecido nas tradições
dogmáticas das escolas filosóficas. Mas embora os grandes pensadores do século XIII
diferenciassem-se entre si em suas doutrinas filosóficas e se criticassem mutuamente, o fizeram
envelope um fundo de princípios metafísicos aceitados em comum. Deve ser distinguido a crítica
relativa à aplicação de princípios metafísicos aceitados da crítica dos fundamentos mesmos dos
sistemas metafísicos. A primeira foi praticada por todos os grandes pensadores especulativos da
Idade Média, mas a última não apareceu até o século XIV. concluí este volume com uma
consideração de John Duns Scot, o qual, desde o ponto de vista da cronología, se encontra na
divisória dos séculos XIII e XIV; mas, embora em sua filosofia podem discernirse os débis
começos do espírito crítico mais radical que ia caraterizar ao movimento ockhamista do século
XIV, a crítica que o próprio Scot fez de seus contemporâneos e predecessores não supunha uma
negación dos princípios metafísicos comummente aceitados durante o século XIII. Ao dirigir
uma mirada retrospectiva à Idade Média, podemos tender a ver no sistema de Duns Scot uma
ponte entre os dois séculos, entre a época de São Tomás de Aquino e a época de Guilherme de
Ockham; mas é indudable que o próprio Ockham não viu em Duns Scot um parente espiritual,
e acho que, embora a filosofia de Scot preparou o caminho para uma crítica mais radical, seu
sistema deve ser considerado como a última das grandes sínteses especulativas medievais. Acho
que é difícil negar que algumas das opiniões de Scot, em psicologia racional, em teología natural
e em ética, olhavam para diante, por assim o dizer, na direção da crítica oekhamista da metafísica
e da concepção peculiarmente ockhamista da natureza da lei moral; mas, se considera-se a
filosofia de Scot em si mesma, sem referência a um futuro que nós conhecemos mas que ele não
conheceu, temos que reconhecer que aquela filosofia foi, nem mais nem menos que qualquer
dos grandes sistemas do século XIII, um sistema metafísico. Por isso me pareceu que o posto de
Scot estava mais neste volume que no seguinte. No próximo volume espero tratar a filosofia do
século XIV, as filosofias da Renascença, e o renacer do escolasticismo nos séculos XV e XVI.
Versão editada por “Beyond”.
APÉNDICES
APÉNDICE I

Títulos honoríficos aplicados na Idade Média aos filósofos tratados neste volume.

RABANO MAURO Praeceptor Germaniae

ABELARDO Peripateticus Palatinus

ALAIN DE LILLE Doutor Universalis

AVERROES Commentator

Alexandro de Hales Doutor Irrefragíbilis

São Boaventura Doutor Seraphicus

Santo Alberto Magno Doutor Universalis

São Tomás de Aquino Doutor Angelicus e Doutor Communis

ROGER BACON Doutor Mirabilis

RICARDO DE MIDDLETON Doutor Solidus

RAIMUNDO LULIO Doutor Illuminatus

GIL DE ROMA Doutor Fundatissimus

ENRIQUE DE GANTE Doutor Solemnis

Duns Scot Doutor Subtüis


APÉNDICE II
BREVE BIBLIOGRAFÍA

Obras gerais sobre filosofia medieval

BRÉHIER, E.: Histoire da Philosophie, tomo I. L’Antiquité et lhe Moyen Áge, Paris, 1943.
(Há tradução espanhola, 4 edição, 1956.)

CARLYLE, R. W., e A. J. A.: A History of Mediaeval Political Theory in the West, 4 vols.,
Londres, 1903- 1922.

DEMPF, A.: Die Ethik dê Mittelalters, Munich, 1930. (Há tradução espanhola, Madri, 1958.)

-Metaphysik dê Mittelalters, Munich, 1930. (Há tradução espanhola, Madri, 1957.)

DE WULF, M.: Histoire da philosophie médiévale, 3 vols., Lovaina, 1934-1947 (6a edição).

(Há tradução espanhola, igualmente em três volumes, México, 1945-1949.)

GEYER, B.: Die patristische and scholastische Philosophie, Berlim, 1928. (É o segundo
volume da edição revisada da História Geral de Überweg.)

GILSON, E.: A philosophie au moyen áge, Paris, 1944 (2.a edição, revisada e aumentada).
(Há tradução espanhola, da segunda edição francesa, Madri, 1958.)

-L’esprit da philosophie médiévale, 2 vols., Paris, 1944 (2a ed.).

-Etudes de philosophie médiévale, Estrasburgo, 1921.

-The Unity of Philosophical Experience, Londres, 1938.

-Reason and Revelation in the Middle Ages, Nova York, 1939.

GRABMANN, M.: Die Rhilosophie dê Mttelalters, Berlim, 1921.

-Mittelalterliches Geistesleben, 2 vols., Munich, 1926 e 1936.

GRUNWALD, G.: Geschichte der Gottesbeweise im Mittelalter bis zum Ausgang der
Hoebnscholastik, Münster, 1907. (Beitráge zur Geschichte der Philosophie and Theologie dê
Mttelalters, 6, 3.) HAURÉAU, B.: Histoire da philosophie scolastique, 3 vols., Paris, 1872-1880.

HAWKINS, D. J. B.: A Sketch of Mediaeval Philosophy, Londres, 1946.


LOTTIN, Ou.: Psychologie etmorale au Xlle et XlIIe siécles. Tomo I. Problémes de
Psychologie, Lovaina, 1942; tomo II, Problémes de morale, 1948.

-Lhe droit naturel chez Séc. Thomas d’Aquin et ses prédécesseurs, Bruxas, 1931 (2.a
edição). PICAVET, F.: Esquisse d’une histoire générale et comparée dê philosophies
médiévales, Paris, 1907 (2a edição).

-Essais sul l'histoire générale et comparée dê théologies et dê philosophies médiévales, Paris,


1913. ROMEYER, B.: A philosophie chrétienne jusqu'á Descarte, 3 vols., Paris, 1935-1937.
RUGGIERO, G. DE: A filosofia do cristianesimo, 3 vols., Bari.

STÓCKL, A.: Geschichte der Philosophie dê Mttelalters, 3 vols. Mainz, 1864-1866.


VIGNAUX, P.: A pensée au moyen áge, Paris, 1938.

Capítulo II. O período patrístico

a)Textos: Coleções gerais de

MIGNE: Patrología Graeca, Paris.

MIGNI: Patrología Latina, Paris.

Die griechischen christlichen Schriftsteller dê ersten drei Jahrhunderte, Leipzig. Corpus


Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum, Viena.

Ante-Nieene Christian Lábrary, Translations of the writings of the Fathers down to A. D.,
325, Edimburgo.

A Library of the Fathers (English Translations), Oxford.

Aneient Christian Writers: the works of the Fathers in Translation, Westminster, Maryland,
USA, 1946 (edit. J. Quasteny J. C. Plumpe). (Em tradução espanhola existe a Patrología de
Quasten, Madri, B. A. C., 1947, 2 vols., até o Concilio de Calcedonia, ano 451.)

b)Textos particulares

ARISTIDES: “Apologie”. Em Zwei griechische Apologeten, J. Geffcken, Leipzig, 1907.

-“Apologie”. Em Texte and Untersuchungen, IV, E. Hennecke (editor), Leipzig, 1893.


ARNOBIO: “Libri VII adversus gentes”. Acrescentado a Lactantii Opera Omnia (L. C.
Firmiani), Paris, 1845.
ATENÁGORAS: “Apologie”. Em Zwei griechische Apologeten, J. Geffcken, Leipzig,
1907.

-“Libellus pró Christianis e Oratio de resurrectione cadaverum”, em Texte and


Unter^suchungen, IV, E. Schwartz (editor), Leipzig, 1891.

CLEMENTE DE ALEJANDRÍA: A exhortación aos gregos, etc. G. W. Butterworth (editor),


Londres, 1919.

EUSEDIO: The Proof of the Gospel (Demonstratio Evangélica), 2 vols., W. J. Ferrar


(editor), Londres, 1920.

GREGORIO DE NISA, SAN: The Catechetical Oration of St. Gregory of Nyssa, J. H.


Srawley (edi^tor), Londres, 1917.

-A création de l'homme, J. Laplacey J. Daniélou, Paris, 1943.

HIPÓLITO: Philosophoumena, 2 vols., F. Legge (editor), Londres, 1921.

IRENEO, SAN: The Treatise of Irenaeus of Lugdunum against the Heresies, F. R.


Montgomery Hitchcock (editor), Londres, 1916.

JUSTINO MÁRTIR, SAN: The Dialogue with Trypho, A. L. Williams (editor), Londres,
1930. LACTANCIO: Opera Omnia, L. C. Firmiani, Paris, 1843.

MINUCIO FÉLIX: The Octavius of Minucius Félix, J. H. Freese (editor), Londres, sem data.
ORIGENS: Homélies sul a Genése, L. Doutreleau (editor), Paris, 1943.

-Origem on First Principies, G. W. Butterworth (editor), Londres, 1936.

TACIANO: “Oratio ad Graeeos”, em Texte und Untersuchungen, IV. E. Schwartz (editor),


Leipzig, 1888. TERTULIANO: Tertullian concerning the Resurrection of the Flesh, A. Souter
(editor), Londres, 1922.

Tertullian against Praxeas, A. Souter (editor), Londres, 1920.

-Tertullian’s Apology, J. E. B. Mayer (editor), Cambridge, 1917.

(Há tradução espanhola da Apología de Tertuliano, Buenos Aires, Espasa Calpe, 1947.) (A
Apología de Arístides, as duas Apologías e o Diálogo com Trifón de Justino, o Discurso contra
os gregos de Taciano, a Legación em favor dos cristãos e o Tratado sobre a resurrección dos
mortos de Atenágoras, os Três livros a Autólico, de Teófilo de Antioquía, e o Escarnio dos
filósofos paganos, de Hermias, estão editados em tradução castelhana de Daniel Ruiz Bom em
um volume, Pais Apologetas Gregos (século II), Madri, B. A. C., 1954.)
Outras obras

ARNOU, R.: De “platonismo” Patrum, Roma, 1935.

BALTHASAR, HANS VON: Présence et pensée. Essai sul a philosophie religieuse de


Grégoire de Nysse, Paris, 1943.

BARDY, G.: Clément d'Alexandrie, Paris, 1926.

BAYLIS, H. J.: Minucius Félix, Londres, 1928.

DANIÉLOU, J.: Platonisme et théologie mystique. Essai sul a doctrine spirituelle de saint
Grégoire de Nysse, Paris, 1944.

DIEKAMP, F.: Die Gotteslehre dê heiligen Gregor von Nyssa, Münster, 1896.

ERMONI, V.: Saint Jean Damascéne, Paris, 1904.

FAIRWEATHER, W.: Origem and the Greek Patristic Philosophy, Londres, 1901.

FAYE, E. DE: Gnostiques et gnosticisme, Paris, 1925 (2a edição).

HITCHCOCK, F. R. MONTGOMERY: Irenaeus of Lugdunum, Cambridge, 1914.

LEBRETON, J.: Histoire du dogme da Trinité, Paris, 1910.

MONDÉSERT, C.: Clément d’Alexandrie, Lyon, 1944.

MORGAN, J.: The importance of Tertullian in the development of Christian dogma,


Londres, 1928. PICHON, R.: Étude sul lhes mouvements philosophiques et religieux sous lhe
régne de Constantin, Paris, 1903.

PRESTIGE, G. L.: God in Patristic Thought, Londres, 1936.

PUECH, A.: Histoire da littérature grecque chrétienne depuis origine-lhes jusqu’á o fim du
IVe siécle, 3 vols., Paris, 1928-1930.

RIVIÉRE, J.: Saint Basile, évéque de Césarée, Paris, 1930.

THAMIN, R.: Saint Ambroise etla morale chrétienne au IVe siécle, Paris, 1895.

Capítulos III-VIII: Santo Agostinho


Textos

Patrología Latina (Migne), vols. 32-47.

Corpus scriptorum ecclesiasticorum latinorum, vols. 12, 25, 28, 33, 34, 36, 40, 41-4, 51-3,
57, 58, 60, 63... City of God, 2 vols. (Everyman Edition), Londres, 1945.

Confessions, F. J. Sheed, Londres, 1943.

The Letters of St. Augustine, W. J. Sparrow-Simpson (editor), Londres, 1919. (As obras
completas de Santo Agostinho estão publicadas em castelhano em vários volumes, Madri, B. A.
C.)

Estudos sobre Santo Agostinho

BARDY, G.: Saint Augustin, Paris, 1946 (6a edição).

BOURKE, V. J.; Augustine's Quest of Wisdom, Milwaukee, 1945.

BOYER, C.: Christianisme et néo-platonisme dans a formation de saint Augustin, Paris,


1920.

L'idée de vérité dans a philosophie de saint Augustin, Paris, 1920.

Essais sul a doctrine de saint Augustin, Paris, 1932.

COMBES, G.: A doctrine politique de saint Augustin, Paris, 1927.

FIGGIS, J. N.: The Political Aspects of St. Augustine ’s City of God, Londres, 1921.
GILSON, E.: Introduction á 1‘étude de saint Augustin, Paris, 1943 (1' ed.).

GRABMANN, M.: Der góttliche Grund menschlicher Wahrheitserkenntnis nach


Augustinus and Thomas von Aquin, Colônia, 1924.

Die Grundgedanken dê heiligen Augustinus über Seele and Gott, Colônia, 1929 (2a edição).
HENRY, P.: L’extase d’Ostie, Paris, 1938.

HESSEN, J.: Augustins Metaphysik der Erkenntnis, Berlim, 1931.

LHE BLOND, J. M.: Lhes conversions de saint Augustin, Paris, 1948.

MARTIN, J.: A doctrine sociale de saint Augustin, Paris, 1912.

Saint Augustin, Paris, 1923 (2.a edição).


MAUSBACH, J.: Die Ethik dê heiligen Augustinus, 2 vols., Friburgo, 1929 (2.a ed.).

MESSENGER, E. C.: Evolution and Theology, Londres, 1931 (para a teoria agustiniana das
ratioTies seminales).

MUÑOZ VEGA, P.: Introdução asa síntese de Santo Agostinho, Roma, 1945.

PORTALIÉ, E.: Augustin, saint. Dictionnaire de théologie catholique, vol. I, Paris, 1902.
SWITALSKI, B.: Neoplatonism and the Ethics of St. Augustine, Nova York, 1946.

Publicações do 15 centenário de Santo Agostinho

A monument to St. Augustine, Londres, 1930.

Aurelius Augustinus, Colônia, 1930. Séc. Agostino, Mlán, 1931.

“Etudes sul saint Augustin”, Arquive de Philosophie, vol. 7, caderno 2, Paris, 1930.

Religião e Cultura. XV Centenário da morte de Santo Agostinho, Madri, 1931.

Mélanges augustiniens, Paris, 1930.

Miseellanea agostiniana, 2 vols., Roma, 1930-1931.

Capítulo IX: O Pseudo-Dionisio

Textos

Patrología Graeca, vols. 3-4.

Dyonisius the Areopagite on the Divine Inhames and the Mysticat Theology, C. E. Rolt
(editor), Londres, 1920.

Capítulo X: Boecio, Casiodoro, Santo Isidoro

Textos

Patrología Latina (Migne), vols. 63-64 (Boecio), 69-70 (Casiodoro) e 81-84 (Santo Isidoro).
(Em castelhano há tradução das Etimologías de Santo Isidoro, Madri, B. A. C., 1951.)
BOECIO: The Theologieal Tractates and the Consolation of Philosophy, H. F. Stewarty E.
K. Rand (editores), Londres, 1926.

De consolatione philosophiae, A. Fortescue (editor), Londres, 1925.


(Há tradução castelhana da Consolación da Filosofia, Buenos Aires, 2a edição, 1946.)

Estudos

BARRETT, H. M.: Boethius: Some Aspects of his Times and Work, Cambridge, 1940.

PATCH, H. R.: The Tradition of Boethius, a Study of his Importance in Medieval Culture,
Nova York, 1935.

RAND, E. K.: Founders of the Mddle Ages, cap. 5, Boethius the Scholastic, Harvard Ou. P.,
1941.

Capítulo XI: A renascença carolingio

Textos

Patrología Latina (Migne), vol. 100-101 (Alcuino), 107-112 (Rabano Mauro).

Estudos

BUXTON, E. M. WILMOT: Alcuin, Londres, 1922.

LAISTNER, M. L. W.: Thought and Letters in Western Europe, A. D. 500-900, Londres,


1931. TAYLOR, H. Ou.: The Medioeval Mind, vol. I, Londres, 1911.

TURNAU, D.: Rabanus Maurus praeceptor Germanise, Munich, 1900.

Capítulos XII-XIII: João Escoto Erígena

Textos

Patrología Latina (Migne), vol. 122.

Seleções (em inglês), em Selections from Mediaeval Philosophers, vol. I, por R. McKeon,
Londres, 1930.
Estudos

BETT, H.: Johannes Scotus Eriúgena, a Study in Medioeval Philosophy, Cambridge, 1925.
CAPPUYNS, M.: Jean Scot Erigéne, sa vie, são auvre, sa pensée, Paris, 1933.

SCHNEIDER, A.: Die Erkenntnislehre dê Johannes Eriúgena im Rahmen ihrer


metaphysischen und anthropologischen Voraussetzungen, 2 vols., Berlim, 1921-1923.

SEUL, W.: Die Gotteserkenntnis bei Johannes Skotus Eriúgena unter Berücksichtigung ihrer
neo^platonischen und augustinischen Elemente, Bonn, 1932.

Capítulo XIV: O problema dos universais

Textos

Patrología Latina (Migne), vols. 105 (Fredegisio), 139 (Gerberto de Aurillac), 144-145 (san
Pedro Damián), 158-159 (Santo Anselmo), 160 (Odón de Tournai), 163 (Guilherme de
Champeaux), 178 (Abelardo), 188 (Gilberto da Porrée), 199 (João de Salisbury), 175-177 (Hugo
de São Victor). (Há tradução castelhana de Santo Anselmo, Obras Completas, Madri, B. A. C.,
núms. 82 e 100.)

GEYER, B.: Die philosophi se hen Schriften Peter Abelards, 4 vols., Münster, 1919-1933.
“Seleções de Abelardo”, em Selections from Mediaeval Philosophers, vol. I, por McKeon,
Londres, 1930.

Estudos

BERTHAUD, A.: Gilbert da Porrée et sa philosophie, Poitiers, 1892.

CARRÉ, M. H.: Realists and Nominalists, Oxford, 1946.

COUSIN, V.: Ouvrages inédits d'Abélard, Paris, 1836.

DE WULF, M.: Lhe probléme dê universaux dans são évolution historique du IXe au XHIe
siécle, Arehiv für Geschichte der Philosophie, 1896.

LEFEVRE, G.: Lhes variations de Guillaume de Champeaux et a question dê universaux,


Lille, 1898. OTTAVIANO, C.: Pietro Abelardo, a vita, opere-lhe, il pensiero, Roma, 1931.

PICAVET, F.: Gerbert ou lhe Pape philosophe, Paris, 1897.


-Roscelin philosophe et théologien, d’aprés lalégende et d'aprés l’histoire, Paris, 1911.
REINERS, J.: Der aristotelische Realismus in der Frühscholastik, Bonn, 1907.

-Der Nominalismus in der Frühscholastik, Münster, 1910 (Beitráge, 8, 5).

REMUSAT, C. DE: Abaelard, 2 vols., Paris, 1845.

SICKES, J. G.: Peter Abaelard, Cambridge, 1932.

Capítulo XV: Santo Anselmo de Canterbury

Textos

Patrología Latina (Migne), vols. 158-159.

Estudos

BARTH, K.: Fides quaerens intellectum. Anselms Beweis der Existenz Gottes im
Zusammenhang seines theologischen Programs, Munich, 1931.

FISCHER, J.: Die Erkenntnislehre Anselms von Canterbury, Münster, 1911 (Beitráge, 10,
3). FILLIATRE, C.: A philosophie de saint Anselme, ses príncipes, sa nature, são influence,
Paris, 1920. GILSON, E.: “Sens et nature de l’argument de saint Anselme”, em Arquive
d’histoire doctrínale et littéraire du moyen áge, 1934.

KOYRE, A.: L'idée de Dieu dans a philosophie de saint Anselme, Paris, 1923.

LEVASTI, A.: Sant'Anselmo. Vita e pensiero, Barí, 1929.

Capítulo XVI: A Escola de Chartres

Textos

Patrología Latina (Migne), vol. 199 (João de Salisbury, contendo também fragmentos de
Bernardo de Chartres, colunas 666 e 938), 90 (Guilherme de Conches, Philosophia, entre as
obras de Beda). JANSSEN, W.: Der Kommentar dê Clarembaldus von Arras zu Boethius De
Trinitate, Breslau, 1926. BARACH, C. Séc. e WROBEL, J.: Bernardos Silvestris, De mundi
universitate libri dúo, Innsbruck, 1896. SITES, C. C. J.: John of Salisbury, Londres, 1932.

-Policraticus, Oxford (2. vols.), 1909.


Estudos

CLERVAL, A.: Lhes écoles de Chartres au moyen áge du Vê au XVIe siécle, Paris, 1895.
FLATTEN, H.: Die Philosophie dê Wilhelmvon Conches, Coblenza, 1929.

SCHARSCHMIDT, C.: Johannes Saresberiensis nach Leben und Studien, Schriften und
Philosophie, Leipzig, 1862.

WEBB, C. C. J.: John of Salisbury, Londres, 1932.

Capítulo XVII: A escola de São Victor

Textos

Patrología Latina (Migne), vols. 175-177 (Hugo), 196 (Ricardo e Godofredo).

Estudos

EBNER, J.: Die Erkenntnislehre Richards von Sankt Viktor, Münster, 1917 (Beitráge, 19,
4). ETHIER,

A. M.: Lhe De Trinitate de Richard de Saint-Víctor, Paris, 1939.

KILGENSTEIN, J.: Die Gotteslehre dê Hugo von Sankt Viktor, Wurzburgo, 1897.

MIGNON, A.: Origine-lhes da scolastique et Hugues de Saint-Víctor, 2 vols., Paris, 1895.


OSTLER, H.: Die Psychologie dê Hugo von Sankt Viktor, Münster, 1906 (Beitráge, 6, 1).
VERNET, F.: “Hugues de Saint Víctor”. Dictionnaire de théologie cotholique, vol. 7.

Capítulo XVIII: Dualistas e panteístas

ALPHANDERY, P.: Lhes idées morais chez lhes hétérodoxes latins au début du XHIe
siécle, Paris, 1903. BROEKX, E.: Lhe catharisme, Lovaina, 1916.

CAPELLE, G. C.: Autour du décret de 1210: III, Amaury de Béne, Etude sul são panthéisme
for^mel, Paris, 1932 (Bibliothéque thomiste, 16).

RUNCIMAN, Séc.: The Mediaeval Manichee, Cambridge, 1947.


THERY, C.: Autour du décret de 1210: I, David de Dinant, Etude sul são panthéisme
matérialiste, Paris, 1925 (Bibliothéque thomiste, 6).

Capítulo XIX: Filosofia islâmica

Textos

ALFARABÍ: Alpharabius de intelligentiis, philosophia prima, Veneza, 1508.

Alpharabis philosophische Abhandlungen, aus dem arabischen übersetzt, Fr. Dieterici,


Leiden,

1892.

Alfarabi über dêem Ursprung der Wissenschaften, Cl. Baeumker, Münster, 1933.

Alfarabius de Platonis Philosophia. Editado por F. Rosenthal e R. Walzer. Prato Arabus, vol.
II, Londres, Warburg Institute, 1943.

ALGAZEL: Algazel's Metaphysics, a Mediaeval Translation, Toronto, 1933.

AVICENA: Avicennae Opera, Veneza, 1495-1546.

-Avicennae Metaphysices Compendium, Roma, 1926 (em latín).

AVERROES: Aristotelis Opera Omnia, Averrois in ea opera commentaria, em 11 vols.,


Veneza. - Die Epitome der Metaphysck dê Averroés, Séc. Vão dêem Bergh, Leiden, 1924.

Accord da religião et da philosophic, traité d’Ibn Rochd (Averroés), traduit et annoté, L.


Gauthier, Argel, 1905.

Estudos: Generais

BOER, T. J. DE: History of Philosophy in Islã, tradução ao inglês por E. R. iones, Londres,
1903. CARRA DE VAUX, B.: Lhes penseurs d'Islã, 5 vols., Paris, 1921-1926.

GAUTHIER, L.: Introduction a 1‘étude da philosophie muçulmana, Paris, 1923.

MUNK, Séc.: Mélanges de philosophie juive et arabe, Paris, 1927.

Ou’LEARY, DE LACY: Arabic Thought and its place in History, Londres, 1922.

-The Legacy of Islã, T. Arnold e A. Guillaume (eds.), Oxford, 1931.


Particulares

ALONSO, M.: Teología de Averroes, Madri-Granada, 1947.

ASÍN E PALÁCIOS, M.: Algazel: dogmática, moral, ascética, Zaragoza, 1901.

CARRA DE VAUX, B.: Gazali, Paris, 1902.

Avicenne, Paris, 1900.

GAUTHIER, L.: A théorie d’Ibn Rochd sul lesrapports da religião et da philosophie, Paris,
1909.

-Ibn Rochd (Averroés), Paris, 1948.

GOICHON, A. M.: Introduction á Avicenne, Paris, 1933.

A distinction de l’essence et de l’existence d’aprés Ibn Sina (Avicenna), Paris, 1937.

A philosophie d’Avicenne, Paris, 1944.

HORTEN, M.: Die Metaphysik dê Averroés, Ache, 1912.

KLINE, W.: Die Substanzlehre Avicennas bei Thomas von Aquin, Friburgo, 1933.RENAN,
E.: Averroés et 1’averroisme, Paris, 1869 (3a ed.).

SALIBA, D.: Étude sul a métaphysique dAvicenne, Paris, 1927. SMITH, M.: A o-Ghazali
the Mystic, Londres, 1944.

SWEETMAN, J. W.: Islã and Christian Theology, vol. I, Londres, 1945. WENSINCK, A.
J.: A pensée de Ghazali, Paris, 1940.

Capítulo XX: Filosofia judia

Textos

Aveneebrolis Pons Vitae, ex arabico in latinum translatus ab Johanno Hispano et Dominico


Gundissalino, Münster, 1892-1895.

MAIMÓNIDES: Lhe guide dê égarés, traité de théologie et de philosophie, 3 vols., Paris,


1856-1866.
Estudos

GUTTMANN, J.: Die Philosophie dê Judentums, Munich, 1933.

HUSIK, I.: A History of Mediaeval Jewish Philosophy, Nova York, 1918.

LEVY, L. G.: Malmonide, Paris, 1932 (2a edição).

MUNK, Séc.: Mélanges de philosophie juive et arabe, Paris, 1927.

MUNZ, J.: Moses ben Maimón, seen Leben und seine Werke, Frankfurt a. M., 1912.

ROHNER, A.: Dá Schópfungsproblem bee Moses Maimónides, Albertus Magnus und


Thomas vão Aquin, Münster, 1913 (Beitráge, 11, 5).

ROTH, L.: Spinoza, Descarte and Maimónides, Oxford, 1924.

Capítulo XXI: As traduções

Ver a bibliografía em M. de Wulf, Histoire da philosophie médiévale, vol. 2, 6a edição


francesa. Ver também B. Geyer, Die patristische und scholastische Philosophie (1928), pp.
342_1351, com a bibliografía correspondente, p. 728.

Capítulo XXII: Introdução (ao século XIII)

BONNEROT, J.: A Sorbonne, sa vie, são role, são oeuvre á travers lhes siécles, Paris, 1927.

DENIFLE, H. e CHATELAIN, A.: Chartularium Universitatis Parisienses, 4 vols., Paris,


1889-1897. – Auctuarium Chartularii Universitatis Parisienses, 2 vols., Paris, 1894-1897.

-Lhes universités francaises an moyen áge, Paris, 1892.

GLORIEUX, P.: Répertoire dê maitres em théologie de Paris an Xllle siécle, 2 vols., Paris,
1933_|1934. GRABMANN, M.: 1 divieti ecclesiastici dei Aristotele sotto Innocenzo e Gregorio
IX, Roma, 1941. LITTLE, A. G.: The Grey Friars in Oxford, Oxford, 1892.

RASHDALL, H.: The Universities of Europe in the Middle Ages, nova edição, editada por
F. M. Powickey A. B. Emden, 3 vols., Oxford, 1936.

SHARP, D. E.: Franciscan Philosophy at Oxford in the Thirteenth Century, Oxford, 1936.
Capítulo XXIII: Guilherme de Auvergne

Textos

Opera, 2 vols., Paris, 1674.

Estudos

BAUMGARTNER, M.: Die Erkenntnislehre dê Wilhelm von Auvergne, Münster, 1895


(Beitráge, 2,1). MASNOVO, A.: Dá Guglielmo d’Auvergne a San Tommaso d’Aquino, Milão,
vol. 1 (1930 e 1945), vol. 2 (1934 e 1946), vol. 3 (1945).

Capítulo XXIV: Robert Grosseteste e Alexandro de Hales

Textos

Die philosophischen Werke dê Robert Grosseteste, Bischof von Lincoln, L. Baur, Münster,
1912 (Beitráge, 9).

THOMSON, Séc. H.: The Writings of Robert Grosseteste, Bishop of Lincoln, 1175-1253,
Cambridge, 1940 (Bibliográfico).

Doctoris irrefragabilis Alexandri de Hales, Ou. M. Summa Theologica, 3 vols., Quaracehi,


1924_|1930.

Estudos

BAUR, L.: Die Philosophie dê Robert Grosseteste, Münster, 1917 (Beitráge, 18, 4-6). Para
Alexandro de Hales, ver a Introdução à edição crítica de Quaracchi (supra).

Capítulos XXV-XXIX: São Boaventura

Texto

Opera Omni a, 10 vols., Quaracchi, 1882-1902.


(Em castelhano dispõe-se dos seis volumes do B. A. C. [o primeiro com abundante
bibliografía], edição feita sobre a citada de Quaracchi.)

Estudos

BISSEN, J. M.: L'exemplarisme divin selon saint Bonaventure, Paris, 1929.

DE BENEDICTIS, M. M.: The Social Thought of Saint Bonaventure, Washington, 1946.


GILSON, E.: The Philosophy of St. Bonaventure, Londres, 1938.

(Há tradução espanhola de Fr. Esteban de Zudaire, Buenos Aires, Desclée, 1948; incorpora
correções e textos suplementares, em adendos, aparecidos na segunda edição francesa.)

ROSNA WALD, Séc.: Franziskanisehe Mystik. Versuch zu einer Darstellung mit


besonderer Berüchsichtigung dê heiligen Bonaventura, Munich, 1931.

LUTZ, E.: Die Psychologie Bonaventuras, Münster, 1909 (Beitráge, 6, 4-5).

LUYCKX, B. A.: Die Erkenntnislehre Bonaventuras, Münster, 1923 (Beitráge, 23, 3-4).
Ou’DONNELL, C. M.: The Psychology of St. Bonaventure and St. Thomas Aquinas,
Washington, 1937.

ROBERT, P.: Hylémorphisme et devir chez Séc. Bonaventure, Montreal, 1936.

ROSENMOLLER, B.: Religiose Erkenntnis nach Bonaventura, Münster, 1925 (Beitráge,


25, 3-4).

Capítulo XXX: Santo Alberto Magno

Textos

Opera Omnia, A. Borgnet, 38 vols., Paris, 1890-1899. (Ver também G. Meersseman,


Introduetio in opera omnia beati Alberti Magni Ou. P., Bruxas, 1931.)

De vegetalibus, C. Jessen, Berlim, 1867.

De animalibus, H. Stradler, Münster, 1916 (Beitráge, 15-16).

Estudos

ARENDT, W.: Die Staats- und Gesellschaftslehre Alberts dê Grossen nach dêem Quellen
daarges^tellt, Jena, 1929.
BALA, H.: AlbertusMagnus ais Zoologe, Munich, 1928.

FRONOBER, H.: Die Lehre von dar Materie und Form nach Albert dem Grossen, Breslau,
1909. GRABMANN, M.: “Der Einfluss Alberts dê Grossen auf dá mittelalterliche
Geistesleben”, em Mittelalterliches Geistesleben, vol. II, Munich, 1936.

LIERTZ, R.: Dar selige Albert der Grossen ais Naturforscher und Lehrer, Munich, 1931.

REILLY, G. C.: Psychology of St. Albert the Great compared with that of St. Thomas,
Washington, 1934. SCHEEBEN, H. C.: Albertus Magnus, Bonn, 1932.

SCHMIEDER, K: Alberts dê Grossen Lehre von natürlichem Gotteswissen, Friburgo de Br.,


1932. SCHNEIDER, A.: Die Psychologie Alberts dê Grossen, Münster, 1903-1906 (Beitráge,
4, 5-6).

Capítulos XXXI-XLI: São Tomás de Aquino

Textos

Opera Omnia (Edição Leonina), Roma, 1882. foram publicados 15 vols.

Opera Omnia (Edição de Parma), 25 vols., Parma, 1852-1873; reimpresa em Nova York,
1948. Opera Omnia (Edição Vivés), 34 vols., Paris, 1872-1880.

Os pais dominicos ingleses publicaram traduções da Summa Theologica, a Summa contra


Gentiles e as Quaestiones disputatae, Londres (B. Ou. W.), Everyman Library, Londres.

Escritos básicos de santo Tomás, editados por A. Pegis, 2 vols., Nova York, 1945.
(Em castelhano dispõe-se das edições do B. A. C., Summa Theologica e Summa contra
Gentiles.)

Estudos:

Bibliografía:

BOURKE, V. J.: Thomistic Bibliography, 1920-1940, St. Louis, Missouri, Ou. Séc. A, 1945.
GRABMANN, M.: Die echten Schriften dê heiligen Thomas von Aquin, Münster, 1920 (2a
edi^ción).

-Die Werke dê heiligen Thomas von Aquin, Münster, 1931.


MANDONNET, P.: Dê écrits authentiques de St. Thomas, Friburgo (Suíça), 1910 (2a
edição). MANDONNET, e DESTREZ, J.: Bibliographie thomiste, Paris, 1921.

Vida

CHESTERTON, G. K.: St. Thomas Aquinas, Londres, 1933, 1947.


(Há tradução ao castelhano, Madri, Espasa-Calpe, 1942.)

DE BRUINE, E.: St. Thomas d'Aquin. Lhe milieu, 1’homme, a visão du monde, Bruxelas,
1928. GRABMANN, M.: Dá Seelenleben dê heiligen Thomas von Aquin, Munich, 1924.
(Em castelhano há tradução do librito mais reduzido do mesmo Grabmann, São Tomás de
Aquino [5.a ed. alemã, 1925], Barcelona, Ed. Labor, 2a ed., 1945.)

Estudos gerais

D’ARCY, M. C.: Thomas Aquinas, Londres, 1931.

DE BRUYNE, E.: Ver acima.

GILSON, E.: Lhe thomisme, Paris, 1944 (5a edição). (Há tradução ao castelhano, Buenos
Aires, 1951.)

LATTEY, C. (editor): St. Thomas Aquinas, Londres, 1924. (Publicações da Escola de Verão
de Cambridge.)

MANSER, G. M.: Dá Wesen dê Thomismus, Friburgo (Suíça), 1931. (Há tradução


espanhola da 2a ed. [1947], Madri, 1953.)

MARITAIN, J.: St. Thomas Aquinas, Londres, 1946 (3a edição).

OLIGIATI, F.: A Key to the Study of St. Thomas (trad. de J. Séc. Zybura), St. Louis, Ou.
Séc. A., 1925.

PEILLAUBE, E.: Initiation á a philosophie de Séc. Thomas, Paris, 1926.

RIMAUD, J.: Thomisme etméthode, Paris, 1925.

SERTILLANGES, A. D.: Séc. Thomas d’Aquin, 2 vols., Paris, 1925 (4a edição). (Há
tradução ao castelhano, Buenos Aires, Desclée, 1946.)

VANN, G.: Saint Thomas Aquinas, Londres, 1940.

Metafísica
FINANCE, J. DE: Etre et agir dans a philosophie de Séc. Thomas. Bibliothéque dê Arquive
de Philosophie, Paris, 1945.

FOREST, A.: A structure métaphysique du concret selon Séc. Thomas d'Aquin, Paris, 1931.
GILSON, E.: L'Étre etlEssence, Paris, 1948.

GRABMANN, M.: “Doutrina Séc. Thomae de distinctione reali ínter essentiam et esse ex
documentis ineditis saeculi XIII ilustrata”, Roma, 1924 (Ata hebdomadae thomisticae).

HABBEL, J.: Die Analogie zwischen Gott und Welt nach Thomas von Aquin und Suárez,
Friburgo (Suíça), 1929.

MARO, A.: L'idée de l’étre chez Séc. Thomas et dans a scolastique postérieure, Paris, 1931.
(Arquive de Philosophie, 10, 1.)

PIEPER, J.: Die Wirkliehkeit und dá Gute nach Thomas von Aquin, Münster, 1934.

RÉGNON, T. DE: A métaphysique dê cause d'aprés Séc. Thomas et Albert lhe Grand, Paris,
1906. ROLAND-GOSSELIN, M. D.: Lhe “De Ente et Essentia” de Séc. Thomas d'Aquin, Paris,
1926 (Biblio théque thomiste, 8).

SCHULEMANN, G.: Dá Kausalprinsip in der Philosophie dê heiligen Thomas von Aquin,


Münster, 1915 (Beitráge, 13, 5).

WÉBERT, J.: Essai de métaphysique thomiste, Paris, 1926.

E ver Estudos Gerais.

Teología natural

GARRIGOU-LAGRANGE, R.: Dieu, são existente et sanature, 6 edição, 1933.

PATTERSON, J. L.: The Conceptof God in the Philosophy of Aquinas, Londres, 1933.

ROLFES, E.: Die Gottesbeweise bel Thomas von Aquin und Aristóteles, Limburgo a. d.
Lahn, 1927 (2.a edição).

E ver Estudos Gerais.

Cosmología

BEEMELMANNS, F.: Zeit und Ewigkeit nach Thomas von Aquin, Münster, 1914
(Beitráge, 17, 1). CHOISNARD, P.: Saint Thomas d'Aquin etl'influence dê astres, Paris, 1926.
CORNOLDI, G. M.: The Physical System of St. Thomas. Tradução de E. H. Dering,
Londres, 1895. MARLING, J. M.: The Order of Nature in the Philosophy of St. Thomas
Aquinas, Washington, 1934.

E ver Estudos Gerais.

Psicologia

LOTTIN, Ou.: Psychologie et morale aux XII' et XHIe siécles. Tomo I, Problémes de
Psychologie, Lovaina, 1942.

MONAHAN, W. B.: The Psyehology of St. Thomas Aquinas, Londres, sem data.

Ou'MAHONY, L. E.: The Desire of God in the Philosophy of St. Thomas Aquinas, Londres,
1929.

PEGIS, A. C.: St. Thomas and the Problem of the Soul in the Thirteenth Century, Toronto,
1934. E ver Estudos Gerais.

Conhecimento

GRABMANN, M.: Der góttliche Grund menschlicher Wahrheitserkenntnis nach


Augustinus und Thomas von Aquin, Colônia, 1924.

HUFNAGEL, A.: Intuition und Erkenntnis nach Thomas von Aquin, Colônia, 1924.

MARECHAL, J.: Lhe point de départ da métaphysique. Caderno 5: Lhe thomisme devantla
philosophie critique, Lovaina, 1926.

(A obra inteira, O ponto de partida da Metafísica, tem edição espanhola, Madri, Gredos.)

MEYER, H.: Die Wissenschaftslehre dê Thomas von Aquin, Fulda, 1934.

NOEL, L.: Note d’épistémologie thomiste, Lovaina, 1925.

PÉGHAIRE, J.: Intellectus et Ratio selon Séc. Thomas d'Aquin, Paris, 1936.

RAHNER, K.: Geist in Welt. Zur Metaphysik der endlichen Erkenntnis bei Thomas von
Aquin, Innsbruck, 1939.

ROMEYER, B.: “Séc. Thomas et notre connaissance de l'esprit humain”, Paris, 1928
(Arquive de

Philosophie, 6, 2).
ROUSSELOT, P.: The Intellectualism of St. Thomas. Trad. de Fr. James 0. Séc. E C.,
Londres, 1935. TONQUEDEC, J. DE: Lhes príncipes da philosophie thomiste. Critique-a da
connaissance, Paris, 1929 (Bibliothéque dê Arquive de Philosophie).

VÃO RIET, G.: L’épistémologie thomiste, Lovaina, 1946.

WILPERT, P.: Dá Problem der Wahrheitssícherung bei Thomas von Aquin, Münster, 1931
(Beitráge, 30, 3).

Teoria moral

GILSON, E.: Séc. Thomas d’Aquin (Lhes moralistes chrétiens), Paris, 1941 (6a ed.).

LEHU, L.: A raison, régle da moralité d’aprés St. Thomas d'Aquin, Paris, 1930. LOTTIN,
Ou.: Lhe droit naturel chez Séc. Thomas et ses prédécesseurs, Bruxas, 1926.

PIEPER, J.: Die ontische Grundlage, dê Sittlichen nach Thomas von Aquin, Münster, 1929.
ROUSSELOT, P.: Pour l’histoire du probléme de l'amour au moyen áge, Münster, 1908
(Beitráge, 6, 6). SERTILLANGES, A. D.: A philosophie Morale de Séc. Thomas d’Aquin, Paris,
1942 (nova edição).

Teoria política

DEMONGEOT, M.: Lhe meilleur régime politique selon St. Thomas, Paris, 1928.

GRABMANN, M.: Die Kulturphilosophie dê heiligen Thomas von Aquin, Augsburgo,


1925. KURZ, E.: Individuum und Gemeinschaft beim heiligen Thomas von Aquin, Friburgo de
Br., 1932. MICHEL, G., A notion thomiste du bem commun, Paris, 1932.

ROCCA, G. DELLA: A política dei Séc. Tommaso, Nápoles, 1934.

ROLAN-GOSSELIN, B.: A doctrine politique de Séc. Thomas d’Aquin, Paris, 1928.

Teoria estética

DE WULF, M.: Études historiques sul l’esthétique de Séc. Thomas d’Aquin, Lovaina, 1896.
DYROFF, A.: Über die Entwicklung und dêem Wert der Aesthetik dê Thomas von Aquino,
Berlim, 1929 (Homenagem a Ludwig Stern).

MARITAIN, J.: Art and Seholasticism, Londres, 1930.

Controvérsias
EHRLE, E: “Der Kampf und die Lehre dê heiligen Thomas von Aquin in dêem ersten fünfzig
Jahren nach seinem Tode”, em Zeitschrift für katholische Teologie, 1913.

Capítulo XLII: Averroísmo latino: Siger de Brabante

Textos

BAEUMKER, C.: De Impossibilia dê Siger von Brabant, Münster, 1898 (Beitráge, 2, 6).
BARSOTTI, R.: Sigeri dei Brabant. De aeternitate mundi, Münster, 1933 (Opuscula et Textus,
13). DWYER, W. J.: L’Opuscule de Siger de Brabant “De Aeternitate Mundi”, Lovaina, 1937.
GRABMANN, M.: “Die Opuscula De summo bono sive de vita philosophi und De sompnüs dê
Boetius von Dacien”, em Mttelalterliches Geistesleben, vol. 2, 1936.

-Neuaufgefundene Werke dê Siger von Brabant und Boetius von Dacien, Academia de
Munich, 1924. MANDONNET, E: “Siger de Brabant et l’averroisme latin”. (Lhes Philosophes
Beges, 6), Lovaina, 1908, 1911.

STEGMÜLLER, F.: “Neugefundene Quaestionen dê Sigers von Brabant”, em Recherches


de théo^logie ancienne et médiévale, 1931.

VÃO STEENBERGHEN, F.: “Siger de Brabant d'aprés ses oeuvres inédites”. (Lhes
Philosophes Beges, 12), Lovaina, 1931.

Estudos

BAUEMKER, C.: “Zur Beurteilung Sigers von Brabant”, em Philosophisches Jahrbuch,


1911. MANDONNET, P.: Ver acima (Lhes Philosophes Beges, 6-7).

OTTAVIANO, C.: Séc. Tommaso d’Aquino, Saggio contro a dottrina aweroistica dell’unitá
dell'inte^lletto, Lanciano, 1930.

SASSEN, E: Siger de Brabant et a double vérité. Revue néo-scolastique, 1931.

VÃO STEENBERGHEN, F.: Lhes oeuvres et a doctrine de Siger de Brabant, Bruxelas,


1938. Ver acima (Lhes Philosophes Beges, 12-13).

Aristote em Occident, Lovaina, 1946.

Capítulo XLIII: Pensadores franciscanos


1. BACON:

Textos

BREWER, J. Séc.: Fratris Rogeri Baconi opera quaedam hactenus Medita, Londres, 1859.
BRIDGES, J. H.: The Opus Maius of Roger Bacon, 2 vols., Oxford, 1897.

Supplementary volume, Oxford, 1900.

BURKE, R. B.: The Opus Maius of Roger Bacon, 2 vols. (em inglês), Filadelfia, 1928.
RASHDALL, H.: Fratris Rogeri Baconi Compendium studii theologiae, Aberdeen, 1911.

STEELE, R.: Opera hactenus Medita Rogeri Baconi. Publicados dezesseis fascículos,
Oxford, 1905 - 1940.

Estudos

BAEUMKER, C.: Roger Bacons Naturphilosophie, Münster, 1916.

CARTON, R.: A synthése doctrínale de Roger Bacon, Paris, 1929.

L’expérience mystique de rillumination intérieur chez Roger Bacon, Paris, 1924.

L’expérience physique chez Roger Bacon, contribution á l'étude da méthode et da seien^ee


expérimentale auXIIIe siécle, Paris, 1924.

CHARLES, E.: Roger Bacon, sa vie, ses ouvrages, ses doctrines, Paris, 1861. LITTLE, A.
G.: Roger Bacon. Essays contributed by various writers, Oxford, 1914.

2. MATEO DE AQUASPARTA:

Textos

Quaestiones disputatae de fide et de cognitione, Quaraeehi, 1903.

A. DANIELS (Beitráge 8, 1-2), Münster, 1909, dá extratos do Comentário às Sentenças.

Estudos

LONGPRÉ, E.: “Matthieu d’Aquasparte”, Dictionnaire de théologie catholique, vol. 10,


1928.
3.- PEDRO JOÃO OLIVTO:

Textos

JANSEN, B.: Petri Johannis Olivi Quaestiones in II librum Sententiarum, 3 vols., Quaraeehi,
1922 - 1926.

-Petri Johannis Provencalis Quodlibeta, Veneza, 1509.

Estudos

CALLAEY, F.: “Olieu ou Olivi”, Dictionnaire de théologie catholique, vol. 11, 1931.
JANSEN, B.: Die Erkenntnislehre Olivis, Berlim, 1931.

“Die Unsterblichkeitsbeweise bei Olivi und ihre philosophiegesehichtliehe Bedeutung”, em


Franziskanische Studien, 1922.

“Quonam spectet definitio Concilii Viennensis de anima”, em Gregorianum, 1920.

4.- ROGER MARSTON:

Textos

FRATRIS ROGERI MARSTON, Ou. F. M.: Quaestiones disputatae, Quaraeehi, 1932.

Estudos

BELMOND, Séc.: “A théorie da connaissance d’aprés Roger Marston”, em France


franciscaine,

1934.

GILSON, E.: “Roger Marston, um cas d'augustinisme avicennisant”, em Arquive d’histoire


doctrínale et littéraire du moyen áge, 1932.

JARRAUX, L.: Pierre-Jean Olivi, sa vie, sa doctrine”, em Etudes franciscaines, 1933.

PELSTER, F.: “Roger Marston, ein englischer Vertreter dê Augustinismus”, em Scholastik,


1928.

5.RICARDO DE MIDDLETON:
Textos

Quodlibeta, Veneza, 1509; Brescia, 1591.

Supra quatuor livros Sententiarum, 4 vols., Brescia, 1591.

Estudo

HOCEDEZ, E.: Richard de Mddleton, savie, ses oeuvres, sa doctrine, Paris, 1925.

6. RAIMUNDO LULIO:

Textos

Opera Omnia, I. Salzinger, 8 vols., Mainz, 1721-1742.

Obras de Ramón Llull, Palma, 1745.

Ou. KEICHER (ver mais abaixo) publicou a Declaratio Raymundi na série de Beitráge. (Em
castelhano, Obras literárias, Madri, B. A. C., e algumas edições soltas, como o Livro de Amigo
e Amado, por M. de Riquer, Barcelona, 1950.)

Estudos

CARREIRAS E ARTAU, T. e J.: História da filosofia espanhola. Filosofia cristã dos séculos
XIII e XIV, vols. 1 e 2, Madri, 1939-1943.

KEICHER, Ou.: Raymundus Lullus und seize Stellung zur arabischen Philosophie, Münster,
1909 (Beitráge, 7, 45).

LONGPRÉ, E.: “Lulle”, em Dictionnaire de théologie catholique, vol. 9.

OTTAVIANO, C.: L'ars compendiosa de Raymond Lulle, Paris, 1930.

PEERS, E. A.: Fool of Love; the Life of Ramón Llull, Londres, 1946.

PROBST, J. H.: Caractére et origine dê idées du bienheureux Raymond Lulle, Toulouse,


1912.

A mystique de Raymond Lull et l’Art de Contemplation, Münster, 1914 (Beitrüge, 13, 2-3).
SUREDA, F.: O beato R. Llull, sua época, sua vida, suas obras, suas empresas, Madri, 1934.
Capítulo XLIV: Gil de Roma e Enrique de Gante

1. GIL DE ROMA:

Textos

Edições antigas, ver UEBERWEG-GEYER: Die patristische und scholastiche Philosophie,


pp. 532- 533.

HOCEDEZ, E.: Aegidii Romani Theoremata desse et essentia, texte précedé dune
introduction historique et critique, Lovaina, 1930.

KOCH, J.: Giles of Rome: Erros philosophorum. Texto crítico com notas e introdução,
traduzido por J. 0. Riedl, Milwaukee, 1944.

SCHOLZ, R.: Aegidius Romanus, de ecclesiastica potestate, Weimar, 1929.

Estudos

BRUÑI, G.: “Egidio Romano e a sua polêmica an ti tomista”, em Rivista dei filosofia
neoscolastica, 1934. HOCEDEZ, E.: “Gilíes de Rome et saint Thomas”, em Mélanges
Mandonnet, Paris, 1930.

“Gilíes de Rome et Henri de Gand”, em Gregorianum, 1927.

2.- ENRIQUE DE GANTE:

Textos

Summa Theologica, 2 vols., Paris, 1520; 3 vols., Ferrara, 1646. Quodlibeta, 2 vols., Paris,
1518; Veneza, 1608.

Estudos

HOCEDEZ, E. “Gilíes de Rome et Henri de Gand”, em Gregorianum, 1927.

PAULUS, J.: Henri de Gand. Essai sul lhes tendances de sa métaphysique, Paris, 1938.
Capítulos XLV-L: John Duns Scot

Textos

WADDING, L.: Opera Omnia, Lyon, 1639, 12 vols. Opera Omnia ed.), Paris (Vive), 1891-
1895, 26 vols.

B. J. D.: Scoti Commentaria Oxoniensia (envelope os livros I e II das Sentenças), Quaraeehi,


1912-1914, 2 vols. Tractatus de Primo Princípio, Quaraeehi, 1910.

MULLER, P. M., Ou. F. M.: Tractatus de Primo Princípio. Editionem curavit Marianius,
Friburgo de Br., 1941. (Em 1950 a Comissão Escotista iniciou em Roma a primeira edição crítica
das Obras de Scot.)

Cf. Ratio criticae editionis operum omnium J. D. Scoti Relatio a Commissione Scotistica
exhibita Capitulo Generali Fratrum Minorum Assisii A. D. 1939 celebrato, Roma, 1939.

Para um resumem de controvérsias e artigos recentes sobre obras e doutrina de Scot, cf.:
BETTONI, E., Ou. F. M.: Vent'anni dei Studi Scotisti (1920-1940), Milão, 1943.

Estudos

BELMOND, Séc., 0. F. M.: Essai de synthése philosophique du Scotisme, Paris, Bureau da


France Franciscaine, 1933.

Dieu. Existence et Cognoscibilité, Paris, 1913.

BETTONI, E., Ou. F. M.: L'ascesa a Deu in Duns Scot, Milão, 1943.

DE BASLY, D., Ou. F. M.: Scotus Docens, ou Duns Scot enseignant a philosophie, a
théologie, a mystique, Paris, A France Franciscaine, 1934.

GILSON, E.: “Avicenne et lhe point de départ de Duns Scot”, Arquive d’histoire doctrínale
et lit^téraire du moyen áge, vol. I, 1927.

“Lhes seize premiers Theoremata et a pensée de Duns Scot”, Areh d’hist. doct. et litt. du
moyen áge, 1937-1938.

GRAJEWSKI, M. J., Ou. F. M.: The Formal Distinction of Duns Scotus, Washington, 1944.

HARRIS, C.: Duns Scotus, Oxford, 1927, 2 vols. (Utiliza muito o inauténtico De rerum
princípio.) HEIDEGGER, M.: Die Kategorien- und Bedeutungslehre dê Duns Scotus, Tubinga,
1916. KRAUS, J.: Die Lehre dê J. Duns Skotus von der Natura Communis, Friburgo (Suíça),
1927. LANDRY, B.: Duns Scot, Paris, 1922.
LONGPRÉ, E., Ou. F. M.: A philosophie du B. Duns Scot, Paris, 1924. (Contém uma réplica
asa faz de Landry.)

MESSNER, R., Ou. F. M.: Schauendes und begriffilches Erkennen nach Duns Skotus,
Friburgo de Br., 1942.

MINGES,Ou. E M.: Der angeblich exzessive Realismus dê Duns Skotus, 1908 (Beitráge, 8,
1). - J.

Duns Scoti Doutrina Philosophica et Theologica quoad rês praecipuas proposita et expo sita,
Quaracchi, 1930, 2 vols. (Cita escritos inauténticos; mas é obra muito útil.)

PELSTER, F.: “Handschriftliches zu Skotus mit neuen Angaben über sein Leben”, Franzisk.
Studien, 1923.

ROHMER, J.: A finalité morale chez lhes théologiens dê saint Augustin á Duns Scot, Paris,
1939.
Notas

[1]
História da Filosofia, vol. I, Grécia e Roma. <<

[2]
Essa tajante formulación, no entanto, embora patrocinada por Gilson, deve ser algo
enfatizada. Ver nosso capítulo XXV, 4. <<

[3]
Cita-as são da edição publicada em Texts and Studies, vol. 1. <<

[4]
2, 1. <<

[5]
2, 3. <<

[6]
2, 4-6. <<

[7]
3, 1 e sig. <<

[8]
I Apol., 8, 2. <<

[9]
Ibid., 8, 4. <<

[10]
Ibid., 5, 3 e sig. <<

[11]
II Apol, 6 (7), 3. <<

[12]
Contra os Hereges, I, 28. <<

[13]
Adv. Jovin., I, 3; Comm. in Amos. <<

[14]
Contra os Hereges, I, 28. <<

[15]
Sobre a Resurrección. <<
[16]
A Autólico, 3, 6. <<

[17]
2, 9, 1. <<

[18]
2, 1, 1; 2, 5, 3. <<

[19]
2, 14, 4. <<

[20]
4, 33,8. <<

[21]
Bibl., cod. 121. <<

[22]
Apología, 46. <<

[23]
De Anima, 1. <<

[24]
Apol, 46. <<

[25]
De An., 3. <<

[26]
Apol, 47. <<

[27]
De Resurrectione, 2-3. <<

[28]
Herm., 28. <<

[29]
De Carne Christi, 11. <<

[30]
Adv. Prax., 7. <<

[31]
De An., 7; cf. 8. <<

[32]
48. <<
[33]
Ver De Anima, 19. <<

[34]
Adv. Prax., 12. <<

[35]
Sereno, Ratio. <<

[36]
Apol., 21. <<

[37]
2, 20 e sig. <<

[38]
19. <<

[39]
Stromata, 1, 5. <<

[40]
Paedagogus, 3,11. <<

[41]
De principiis, 1, 1, 6. <<

[42]
1, 38. <<

[43]
De princ., 1, 2, 10; 3, 4, 3. <<

[44]
Ibid, 2, 1, 4. <<

[45]
Ibid., 3, 5, 3; 2, 3, 4-5. <<

[46]
In Joann , 2, 7. <<

[47]
Contra Celsum, 6, 64. <<

[48]
De princ ., 2, 6, 1. <<
[49]
Ibid, 6, 1-3. <<

[50]
Ver Ibid., 3; 6, 1 e sig.; 1, 6, 3. <<

[51]
11, 28. <<

[52]
13, 13. <<

[53]
10, 1; 10, 8; 10, 14. <<

[54]
11, 8. <<

[55]
11, 16; 11, 20. <<

[56]
11, 23; 11, 29; 11, 31. <<

[57]
11, 27. <<

[58]
12, 27. <<

[59]
13, 12; 12, 16. <<

[60]
13, 19. <<

[61]
De Vita Moysis, P. G., 44, 336 D. G.. 360 BC. <<

[62]
Ver De Anima et Resurrectione; P. G., 46, 49 C. <<

[63]
Cf. Contra Eunom., P. G., 45, 341. B. <<

[64]
Cf. Orado Cateehetica, P. G., 45. <<

[65]
P. G., 44, 229 e sig. <<
[66]
De anima et rês, P. G., 46, 29. <<

[67]
Ibíd., 44. <<

[68]
Cáp. 24. <<

[69]
P. G., 94, 532 AB. <<

[70]
Confesiones, 1, 11, 17. <<

[71]
O maniqueísmo, fundado por Mane, ou Mani, no século 3, teve sua origem em Persia, e era
uma mistura de elementos persas e cristãos. <<

[72]
Conf, 8, 5, 10. <<

[73]
Ibid., 8, 7, 16. <<

[74]
Ad Rom., 13, 13-14. <<

[75]
Conf, 8, 8-12. <<

[76]
Ibid., 9- 10; 23-26. <<

[77]
Epist., 118. <<

[78]
Vita Séc. Aug., 31. <<

[79]
De lado religione, 24, 25. <<

[80]
De Intellectus Emendatione. <<

[81]
2, 10 e 14; 4, 27 e sig. <<
[82]
Contra Acadêmicos, 3, 10, 23. <<

[83]
Ibid., 3, 11, 26. <<

[84]
De lado relig., 39, 73. <<

[85]
De Lib. arbitr., 12, 34. <<

[86]
De Lib. arbitr., 2, 3, 1. <<

[87]
2, 3, 7. <<

[88]
15, 12, 21. <<

[89]
Ibid. <<

[90]
De Civitate Dei, 11, 26. <<

[91]
Cf. De lado relig., 39, 72; Sem., 330, 3: Retract., 1, 8, 3, etc. <<

[92]
De Trinit ., 15, 12, 21. <<

[93]
Conf., 6, 5, 1. <<

[94]
De Trinit., 9, 6, 9. <<

[95]
Scot repetiu a sugestão agustiniana de que a condição do conhecimento sensível pode estar
em relacionamento com o pecado original. <<

[96]
Cf. De Música. 6-5, 9, 10; De Trina ., 11, 2, 2-5. <<

[97]
12, 2, 2. <<
[98]
De Trinit., 12, 2, 2. <<

[99]
Ibid., 12,14, 22. <<

[100]
Ibid., 12, 13. 21. <<

[101]
Conf., 13, 9, 10. <<

[102]
Cf. De Trinit., 9, 6, 9-11. <<

[103]
Cf. Ibid., 12, 14, 22-23; 12, 15, 24; De Lib. arbitra., 2, 13, 35; 2, 8, 20-24. <<

[104]
De Ideis, 2. <<

[105]
Cf. Retract., 1, 3, 2. <<

[106]
Conf, 10,27, 38. <<

[107]
35, 79. <<

[108]
Soül, l, 8, 15. <<

[109]
Ibid, 1, 1, 3. <<

[110]
Rep., 514-518. <<

[111]
12, 15, 24. <<

[112]
De Trinit., 9, 6. 9. <<

[113]
De Lib. arbitr., 2, 13, 35. <<
[114]
In Ps. 119; Serm., 23, 1. <<

[115]
In Ps. 118; Serm., 18, 4. <<

[116]
Ver, por exemplo, o artigo dedicado a Santo Agostinho no Dictionnaire de Théologie
Catholique de Por talhei. <<

[117]
9, 3, 3. <<

[118]
De Trinit ., 9, 3, 3. <<

[119]
Sol., 1, 8, 15; In Joann. Euang., 35, 8, 3; De Trina ., 9, 15, 24. etc. <<

[120]
De Lib. arbitr., 2. 12. 33. <<

[121]
Ibid. <<

[122]
Solil., 1, l, 3. <<

[123]
11, 4, 2. <<

[124]
De Gene. ad litt., 4, 22. 22. <<

[125]
In Joann. Evang., 106, 4. <<

[126]
DeDoctr christ., I, 7,7. <<

[127]
Capítulo 2. <<

[128]
Ver também G. Grunwald, “Geschichte der Gottesbeweise im Mittelalter”, em Beitrüge, 6,
3, p. 6. <<

[129]
Serm., 241, 2, 2 e 3, 3. <<
[130]
Lehrbueh der Dogmengesehichte, 3a ed., t, 3, p. 119. <<

[131]
De Lib. arbitr., 2, 17, 46. <<

[132]
Ibid, 2, 23, 70. <<

[133]
De Trinit.. 11, 5, 8. <<

[134]
De Civit. Dei. 11, 28. <<

[135]
De Trinit., 5. 2, 3; 5. 11. 12; 6, 4, 6; 6, 10, 11; 15. 43, 22; InJoann. Euang., 99, 4, etc. <<

[136]
De Gene. ad litt.. 8, 26, 48. <<

[137]
Cf. Ibid., 5, 15, 33; Ad. Orosium, 8, 9. <<

[138]
De Trinit., 15. 7, 13. <<

[139]
Ibid., 15, 13, 22. <<

[140]
1, 6, 9. <<

[141]
2. <<

[142]
De Trinit., 4, 1.3. <<

[143]
Cf., por exemplo, Summa Theol1.aparte, 15, 2 e 3. <<

[144]
De Lib. arbitr., 3, 15, 42. <<

[145]
Cf. De lado relig., 18, 35-36. <<
[146]
12, 6, 6. <<

[147]
Local citado. <<

[148]
De Gene . ad. litt., 1, 15, 29. <<

[149]
De Gene. contra Manich., 1, 17, 11. <<

[150]
De Gene. ad litt., 6, 5, 8. <<

[151]
De Trinit., 3, 8, 13. <<

[152]
18, 1. <<

[153]
De Gene. ad litt., 5, 4, 7-9. <<

[154]
Gén., 1, 11. <<

[155]
De Gene. ad. litt., 5, 4, 9. <<

[156]
In Joann. Evang., 19, 5, 15. <<

[157]
De quant. anim., 13, 21. <<

[158]
De moribus eccl., 1, 27, 52; In Joann. Evang., 19, 5, 15. <<

[159]
De Gene. ad litt., 7, 21, 28; De Trina., 10, 10, 14. <<

[160]
Cf. Solil, 2, 9, 33: Ep., 3. 4: De immort. An., caps. 1-6. <<

[161]
28, 43 e sig. <<

[162]
De anime et eius origine, 1, 4, 4. <<
[163]
Ep., 156. <<

[164]
Serm.,150, 7, 8. <<

[165]
Ep., 140, 23, 56. <<

[166]
Serm., 150, 8, 9. <<

[167]
De moribus eccl., 1, 11, 18. <<

[168]
De Lib. arbitr., 2, 19, 52. <<

[169]
De mor eccl., 1, 25, 46. <<

[170]
22, 37-39. <<

[171]
Ep., 137, 5, 17. <<

[172]
Conf, 13, 9, 10. <<

[173]
Ep., 140, 21, 14. <<

[174]
De Lib. arbitr., 2, 19, 35. <<

[175]
De Trinit., 14, 15, 21. <<

[176]
Expósito quarondum prop. ex epist. Ad Rom, 44. <<

[177]
De spir. et litt., 19-34. <<

[178]
Ibid., 9, 15. <<
[179]
Ep., 145, 3, 4. <<

[180]
Enchir., 23. <<

[181]
De Lib. arbitr., 1, 16, 35. <<

[182]
De mor. eccl., 2, 2, 2. <<

[183]
In Ps.. 64, 2. <<

[184]
De Gene. ad litt., 11. 15, 20. <<

[185]
InPs., 136, 1. <<

[186]
De Civ. Dei, 4, 4. <<

[187]
In Ps., 51, 6. <<

[188]
De Civ. Dei, 19. 24. <<

[189]
Ep., 137, 5, 18. <<

[190]
Cfr. Ibid., 105, 5, 6; 35, 3. <<

[191]
A Monument to St. Augustine, pp. 76-77. <<

[192]
Exordium aos Nomes divinos. <<

[193]
Teol. Míst., 2. <<

[194]
Ibid, 3. <<

[195]
Nora. div., 2, 1; Mateo, 19, 17. <<
[196]
Nom. div., 4, 4. <<

[197]
13, 1. <<

[198]
Teol. Míst., 3. <<

[199]
Ibid. <<

[200]
Ibid., 2. <<

[201]
Ibid. <<

[202]
O autor do tratado místico medieval A nuvem do não saber depende, sem dúvida, direta ou
indiretamente, dos escritos do Pseudo-Dionisio. <<

[203]
Teol. Míst., 1. <<

[204]
Nomes div., 13, 3. <<

[205]
Teol. Míst., 5. <<

[206]
Nomes div., 2, 5. <<

[207]
Ibid, 2. <<

[208]
Ibid, 3. <<

[209]
Ibid, 4. <<

[210]
Ibid, 5, 1. <<

[211]
Nomes div, 2, 11. <<
[212]
Ibid, 5, 8. <<

[213]
Ibid., 4, 4e sig. <<

[214]
Ibid, 4, 35. <<

[215]
Ibid., 5. 10. <<

[216]
Ibid., 4, 18 e sig. <<

[217]
Nomes div.. 4. 20. <<

[218]
Ibid., 23. <<

[219]
Ibid., 24. <<

[220]
Ibid., 26. <<

[221]
Ibid, 27. <<

[222]
Nomes div., 28. <<

[223]
Ibid, 30. <<

[224]
Ibid., 4, 35. <<

[225]
Ibid., 33. <<

[226]
Em seu Chrisliche Lehre von der Dreieittigkeit und Menschwerdung Gottes, vol. 2, p. 42.
<<

[227]
Contra Eutyehen, 6. <<
[228]
Ibid., 5. <<

[229]
2. <<

[230]
Ver as obras deste De Anima, 17, 17, e De Anima ibri mantissa, 124, 7. <<

[231]
4. <<

[232] <<

[233]
12. <<

[234]
2 e sig. <<

[235]
5, 3. <<

[236]
5, 6. <<

[237]
3, 9. <<

[238]
Ver Lib. de hebdom., 173. <<

[239]
De Fide Catholica. <<

[240]
De Cons. Phil., 3, 12. <<

[241]
Quomodo Substantiae. Desde depois, não pretendo dar a entender que tenha em Aristóteles
uma doutrina da criação. <<

[242]
De Anima, 12. <<

[243]
Ibid, 4. <<
[244]
Embora Baugulfo não chegasse a ser abad até 788, a carta não pode ser datada dantes desse
ano. <<

[245]
Os espanhóis chamaram-na mais tarde Aquisgrán, que é o nome com o que costuma
aparecer na História de Espanha. (TV. do T.) <<

[246]
Ep., 4, 172. <<

[247]
Ep., 195. <<

[248]
Ibid, 205. <<

[249]
De div. nat., 1, 64. <<

[250]
Ibid., 1, 69. <<

[251]
Cf. 3, 1. <<

[252]
1, 1. <<

[253]
1, 11. <<

[254]
1, 12. <<

[255]
Ibid. <<

[256]
1, 13. <<

[257]
1, 14. <<

[258]
Ibid. <<
[259]
1, 14. <<

[260]
1, 15. <<

[261]
1, 70-72. <<

[262]
1, 72. <<

[263]
1, 69. <<

[264]
1, 77. <<

[265]
1, 75. <<

[266]
2, 2. <<

[267]
Ibid. <<

[268]
Ibid. <<

[269]
2, 20. <<

[270]
2, 21. <<

[271]
2, 27. <<

[272]
2, 24, col. 580. <<

[273]
2, 36. <<

[274]
Cf. 3, 1. <<

[275]
3, 3. <<
[276]
Ibid. <<

[277]
3, 4. <<

[278]
3, 4. <<

[279]
Ibid. <<

[280]
3, 5. <<

[281]
3, 4. <<

[282]
3, 19. <<

[283]
Ver a longa discussão em 3, 5 e sig. <<

[284]
3, 9. <<

[285]
3, 17. <<

[286]
3, 18. <<

[287]
3; 19. <<

[288]
3, 10. <<

[289]
3, 23. <<

[290]
Ibid. <<

[291]
3, 24 e sig. <<
[292]
4, 5. <<

[293]
4, 7. <<

[294]
Ibid. <<

[295]
4, 8. <<

[296]
5, 3. <<

[297]
1, 34. <<

[298]
5, 25. <<

[299]
5, 8. <<

[300]
5, 20. <<

[301]
5, 23. <<

[302]
5, 25. <<

[303]
5, 26-27. <<

[304]
5, 27-28. <<

[305]
2, 29-36. <<

[306]
5, 26. <<

[307]
3, 23. <<

[308]
1 Cor., 15, 28. <<
[309]
1, 69. <<

[310]
1, 7. <<

[311]
2, 16. <<

[312]
Por exemplo, em 3, 23. <<

[313]
63 2, 2. <<

[314]
P L., 64, col. 82-6. <<

[315]
De fide Trin., 2. <<

[316]
10. <<

[317]
De fide Trin., 2; P L.., 158, 265 A. <<

[318]
De fide Trin., 2; P. L., 158, 265 B. <<

[319]
P. L., 178, 358 B. <<

[320]
Polyeraticus, 7, 12; P L., 199, 665 A. <<

[321]
2, 17; P L., 199, 874 C. <<

[322]
De div. Omnip., P. L., 145, 63. <<

[323]
Hist. calam., 2; P L., 178, 119 AB. <<

[324]
Dialética, edição de Geyer, p. 10. <<
[325]
De Generibus et speeiebus; Cousin, Ouvrages inédits d’Abélard, p. 153. <<

[326]
Hist. calam. 2; P. L., 178, 119 B. <<

[327]
Edição Lefévre, p. 24. <<

[328]
Ingredientibus, edição de Geyer, p. 16. <<

[329]
In Boeth., de dual, nat.; P. L., 64, 1378. <<

[330]
In Boeth. de Trinit., P. L., 64,1393; Cf. João de Salisbury, Meta-os, 2, 17; P L., 64. <<

[331]
PL., 64, 1267. <<

[332]
Ibid., 64, 1389. <<

[333]
Ibid, 64, 875-6. <<

[334]
Polycrat, 7, 12. <<

[335]
Metal., 2, 20. <<

[336]
Ibid. <<

[337]
Ibid., 3, 10. <<

[338]
Ibid, 2, 20. <<

[339]
Ibid., 3, 3. <<

[340]
Didasc., 2, 18; P L., 176, 785. <<

[341]
Contra Gent., 1, 65. <<
[342]
Séc. T., Ia, 85, 1, ad 1; 85, 2, ad 2. <<

[343]
Contra Gent., 3; 24. <<

[344]
In Sent., 2; Dist. 3, 2, ad 1. <<

[345]
A distinção entre universale ante rem, in rei pós rem, era feita por Avicena. <<

[346]
P L., 158, 227. <<

[347]
Ibid., 158, 362. <<

[348]
De fide Trinit., 4, PL., 158, 272. <<

[349]
Cur Deus Homo, P L., 158, 361. <<

[350]
P L., 158. <<

[351]
Cap. 15. <<

[352]
Cap. 16. <<

[353]
Cap. 17. <<

[354]
Caps. 20-24. <<

[355]
Cap. 24. <<

[356]
Cap. 26. <<

[357]
Dialogus de Veritate, 2; PL., 158. <<
[358]
Dial, 4. <<

[359]
Ibid., 7 e sig. <<

[360]
Ibid., 10. <<

[361]
Dial., 11. <<

[362]
Cap. 14. <<

[363]
PL, 176. <<

[364]
Cf. o Prólogo. <<

[365]
3, 24, 3. <<

[366]
Metal., I, 5. <<

[367]
Ibid, 4, 35. <<

[368]
Edição W. Janssen, p. 42. <<

[369]
Metal, 2,17. <<

[370]
Ed. W. Janssen, pp. 44e 63. <<

[371]
P. L., 90, 1132. <<

[372]
Gilberto da Porrée interessa-se pela teoria hilemórfica ao comentar o Contra Eutyehen, ou
Liber de duabus Naturis et uma Pessoa Christi, de Boecio; P L., 64, 1367. <<

[373]
De sex dierurn operibus, ed. W. Janssen, pp. 16, 21, 108, 109. <<
[374]
Ed. W. Janssen, p. 59. <<

[375]
Liber ad Gebehardum, 30 e 47. <<

[376]
Ibid., 47. <<

[377]
Polycrat., 4, 3. <<

[378]
Ibid., 8, 10. <<

[379]
PL., 176, 800 C. <<

[380]
Ver nosso capítulo XVI, 1, e capítulo XIV, 10. <<

[381]
PL, 176, 825 A. <<

[382]
Ibid., 409. <<

[383]
Ibid. <<

[384]
De Saeramentis, 3, 7; PL., 176, 219. <<

[385]
Ibid, 3, 10; P L., 176, 219; e Senl, I, 3; PL., 176, 45. <<

[386]
1, 3, P. G., 94, 796 A. <<

[387]
P L., 176, 826. <<

[388]
Cf. De fide orthod., 1, 3; P G., 94, 795 B. <<

[389]
De saeramentis, 1, 6, 37; PL, 176, 286. <<

[390]
De Trinit., 1, 5; P L., 196, 893 BC. <<
[391]
PL., 196, 892 C. <<

[392]
Ibid., 72 A. <<

[393]
Ibid, 894. <<

[394]
Ibid., 892. <<

[395]
Ibid., 893. <<

[396]
PL., 196, 893. <<

[397]
De Trinit1, 11; P. L., 196, 895-6. <<

[398]
Q De Trinit, 1, 12; PL., 196, 896. <<

[399]
De gratia contemplationis, 1, 3, 7; P L., 196, 66 CD, 72 C. <<

[400]
Ibid., 1, 3, 9; PL., 196, 110 D. <<

[401]
As fontes de que dispomos para o conhecimento da doutrina dos albigenses não são ricas,
e a história do movimento está algo escura. <<

[402]
Séc. T, Ia, 3, 8, in corpore. <<

[403]
Séc. T., P, 4, 20, 2, quaest inádens. <<

[404]
P, 3,8, in corpore. <<

[405]
II Sení, 17,1,1. <<

[406]
Séc. Alb. M., Séc. T., envolve, t. 12, q. 72, membr. 4, a. 2, n. 4. <<
[407]
Ibid, a, t. 4, q. 20, membr. 2; InMetaph., t. 4, c. 7. <<

[408]
Séc. T, a, 3, 8, ob. 3. <<

[409]
É verdade, no entanto, que alguns filósofos islâmicos, como Avicena, facilitaram, mediante
seus escritos, uma interpretação cristã de Aristóteles. <<

[410]
O nome “Avicena”, pelo que foi conhecido Ibn Sina no mundo medieval, procede da versão
hebréia, Aven Sina. <<

[411]
Sifa, 1. 281 e 363. <<

[412]
Deve ser observado que foi a doutrina averroísta da unicidad do intelecto pasivo ou possível
o que necessariamente implicava a negación da imortalidade pessoal. A doutrina da unicidad do
intelecto ativo não implica necessariamente tal negación, seja que o intelecto ativo se identifique
com uma inteligência subordinada ou que se identifique com Deus em sua função iluminadora.
Quanto a Aristóteles, é possível que ele mesmo não cresse na imortalidade pessoal, mas a
negación da imortalidade pessoal não se segue necessariamente de sua doutrina do intelecto
ativo, enquanto sim se segue da doutrina de Avenes. Nesse ponto as posições de Avicena e de
Averroes devem ser claramente distintas. <<

[413]
Sobre a influência de Avicena. cf. Roland-Gosselin, comentário ao De ente et essentia, pp.
59 e 150. <<

[414]
Cf. De Pot., 5, 3; Contra Gent., 2, 30. <<

[415]
Mais propriamente, Incoherenüaphilosophorum. <<

[416]
De Anima, 3, 2. <<

[417]
Para algumas novas observações sobre esse tema, ver nosso capítulo XLI, 3. <<

[418]
Intorno altomismo dei Dante e alia quistione dei Sigieri (Giornale Dantesco, XXII, 5). <<
[419]
O Islã e a Divina Comédia. (O autor cita a tradução inglesa abreviada, Islã and the Divine
Comedy, Londres, 1926. — N. do T) <<

[420]
A Translatio Boethii, de santo Tomás. <<

[421]
O Timeo de Platón era conhecido em Occidente graças a Cicerón e a Calcidio, mas até o
século XII não se traduziram o Mellón e o Fedón (por Enrique Aristipo). <<

[422]
Até que ponto utilizou realmente santo Tomás a tradução de Guilherme, foi muito discutido.
<<

[423]
Cf. De Universo, 1, 3, 26; 2, 2, 8; De Trinitate, 1 e 2. <<

[424]
De Univ., 1, 1, 17. <<

[425]
Ibid., 1, 1, 17. <<

[426]
Ibid., 1, 1, 24e sig. <<

[427]
Ibid., 1, 3, 2-3. <<

[428]
Ibid., 1, 2, 8. <<

[429]
De Trinit., 7. <<

[430]
Ibid., 6. <<

[431]
Geschichte der Gottesbeweise im Mittelalter, Beitráge, 6, 3, p. 92 <<

[432]
De Universo, 2, 2, 8. <<

[433]
De Anima, 1, 1. <<
[434]
Ibid, 1, 3. <<

[435]
Ibid, 1, 2. <<

[436]
De Anima, 4, 1-3. <<

[437]
Ibid., 5, 1 e sig. <<

[438]
Ibid, 6, 1. <<

[439]
Ibid, 6, 7. <<

[440]
Ibid, 6, 8. <<

[441]
Ibid. <<

[442]
Ibid, 7, 3. <<

[443]
De Anima, 5, 6. <<

[444]
1, 6. <<

[445]
A philosophie au moyen âge, 3.ª ed., pp. 423-424. <<

[446]
Compendium studii, edição Brewer, p. 469. <<

[447]
Ibid., p. 472. <<

[448]
Opus maius, edição Bridges, 1, 108. <<

[449]
Edição Baur, p. 51. <<

[450]
P. 55. <<
[451]
P. 56. <<

[452]
De colore, p. 78. <<

[453]
Física, 201, a 6; Metaph, 1065 b 11. <<

[454]
De motu corporali et luze, p. 92. <<

[455]
De única forma omnium, p. 109. <<

[456]
De ordine emanandi causatorum a Deo, p. 149. <<

[457]
P. 144. <<

[458]
De veritae, pp. 134-135. <<

[459]
Ibid., p. 135. <<

[460]
Ibid., p. 137. <<

[461]
De veritae, p. 138. <<

[462]
As referências seguintes correspondem à Summa Theologica segundo a edição de
Quaraechi, e citam-se o volume e a seção. <<

[463]
1, n° 10. <<

[464]
1, n° 15. <<

[465]
1, n° 21. <<

[466]
I, n° 15. <<
[467]
1, n° 21. <<

[468]
1, n° 25. <<

[469]
I, n° 26. <<

[470]
Séc. T., p. 1, tr. 4, q. 19. <<

[471]
Ad Romanos, 1. <<

[472]
De fide orthod., 1, cc. 1 e 3; P G., 94; 790 e 794. <<

[473]
1, n° 72. <<

[474]
1, n° 73. <<

[475]
Cf. I, núms. 123 e sig. <<

[476]
I, n° 276. <<

[477]
II, n° 67. <<

[478]
II, núms. 59-61. <<

[479]
II, n° 321. <<

[480]
Cf. De sp. et an., c. 42 (posto entre as obras de Agustín, P L. 40, 811) e Santo Agostinho,
De Gene. ad litt., 7, ce. 1-3. <<

[481]
Santo Agostinho, De quant. an., c. 13, n.° 22. <<

[482]
Casiodoro, De Anima, c. 2. <<
[483]
II, núms. 329e 322. <<

[484]
II, n° 322. <<

[485]
II, n° 327. <<

[486]
II, n° 347. <<

[487]
II, n° 345. <<

[488]
II, n° 351. <<

[489]
II, n° 349. <<

[490]
II, n° 372. <<

[491]
II, n° 368. <<

[492]
II, n° 372. <<

[493]
Cf. núms. 3936. <<

[494]
II, n° 402. <<

[495]
Cf. I, n° 2. <<

[496]
Alexandro de Hales reaparece como “nosso pai e maestro” em II Sent., 23; 2, 3; II, p. 547.
<<

[497]
Agustín, De utilitae credendi, 11.25; Buenaventura, Breviloq., 1, 1, 4. <<

[498]
I, 1 <<
[499]
4. <<

[500]
4; 2. <<

[501]
In Hexaém.;7, 3 e sig. <<

[502]
De donis, 3, 12. <<

[503]
InHexaem ., 6, 2. <<

[504]
Ibid., 4. <<

[505]
Ibid., 2-3. <<

[506]
Ibid., 4. <<

[507]
Aristote em Occident, p. 147. <<

[508]
Itin., 3; 3. <<

[509]
1, 3; 2: Utrum Dens sit cognoscibilis per creaturas. <<

[510]
I Sent., 3, 4. <<

[511]
5, 29. <<

[512]
1, 1, 10-20. <<

[513]
Por exemplo, no itinerarium mentem in Deum, c. 1. <<

[514]
De Mysterio Trinitatis, 1, 1, conclusio. <<
[515]
De Myst. Trinit., 1, 1, 7. <<

[516]
Ibid., 10. <<

[517]
Quando falamos aqui de uma orientação “natural” da vontade não pretendemos utilizar o
termo em um sentido estritamente teológico, senão mais bem no sentido de que a vontade do
homem em concreto se dirige a conseguir a Deus, prescindiendo inteiramente da questão de se
há ou não um desiderium naturale videndi Dem. <<

[518]
I, 8, 1, 2. <<

[519]
I, 1, 21-4. <<

[520]
Ibid., conclusio. <<

[521]
Ibid., 1, 1, 6. <<

[522]
Cf. o Comentário de E. Gilson ao Discurso do Método, a propósito da ideia do perfeito. <<

[523]
I Sent., 8, 1,2, conclusio. <<

[524]
Ibid., 5 e 7. DeMyst. Trinit., 1, 1, 26. <<

[525]
De Myst. Trinit., 1, 1, 25. <<

[526]
4, 1. <<

[527]
3, 2 e sig. <<

[528]
1, 13 <<

[529]
InHexaëm ., 1,13. <<
[530]
Ibid., 6, 2. <<

[531]
Ibid. <<

[532]
Serm, 18. <<

[533]
Serm., 4, 19. <<

[534]
Breviloq., 1,3. <<

[535]
Ibid. <<

[536]
InHexaem , 3, 4 <<

[537]
Ibid. <<

[538]
Ibid., 1, 13. <<

[539]
I Sent, 35, art. unicus, 4. <<

[540]
Ibid., 5. <<

[541]
Ibid., 2. <<

[542]
Ibid., 6. <<

[543]
Ibid., 3. <<

[544]
Cf. I Sent., 39, 1, 2 e 3; De scientia Christi, 1. <<

[545]
Cf. I Sent., 39, 3, conclusio. <<

[546]
Ibid., 2, conclusio. <<
[547]
In Hexaëm., 6, 4. <<

[548]
II Sent, 1, 1, 1, 2, 1. <<

[549]
Contra Gent., 2, 38. <<

[550]
II Sent., 1, 1, 1, 2, 3. <<

[551]
Contra Gent., 2, 38; Séc. T, P, 36, 2 ad 6. <<

[552]
II Sent., 1, 1, 1, 2, 5. <<

[553]
Contra Gent., 2, 38. <<

[554]
II Sent., 1, 1, 1, 2, 6. <<

[555]
Ibid., conclusio. <<

[556]
InHexaëm , 6, 2. <<

[557]
Ibid., 3. <<

[558]
Cf. I Sent, 39, 1, 1, conclusio. <<

[559]
InHexaëm , 6, 3. <<

[560]
1, 35, art. um, 1, conclusio. <<

[561]
Cf. I Sent., 3, 1, art. um., 2, 3 e 1 Ibid., 48, 1, 1, conclusio. <<

[562]
II Sent., 16, 1, 1, conclusio. <<
[563]
InHexaëm ., 12, 15. <<

[564]
I Sent., 44, I, 1, conclusio. <<

[565]
Ibid., ad 4. <<

[566]
II Sent.; 3, 1, 1, 2, conclusio ad 3. <<

[567]
II Sent., 3, 1, 2, 3, conclusio. <<

[568]
II Sent., 3, 1, 2, 2, conclusio. <<

[569]
Ibid, 3, 1, 2, 4. <<

[570]
Ibid., 13. <<

[571]
4, 10. <<

[572]
II Sent., 7, 2, 2, 1, resp. <<

[573]
II Sent., 18, 1, 3, resp. <<

[574]
Ibid., 2, 15, 1, 1, resp. <<

[575]
Ibid., 7, 2, 2, 2, resp. <<

[576]
II Sent., 18, 2, 3, resp. <<

[577]
Cf. II Sent., 30, 3, 1 e 31, 1, 1. <<

[578]
Ibid, 18, 2, 1, contra 1. <<

[579]
Breviloq., 2, 9. <<
[580]
I Sent., 8, 2, art. um., 3, resp. <<

[581]
II Sent., 17, 1, 2, resp. <<

[582]
Ibid., ad 5. <<

[583]
II Sent., 18, 2, 1, ad 1. <<

[584]
Cf. Ibid., 17,1, 2, ad 6. <<

[585]
Ibid., 18, 2, 1, ad 6. <<

[586]
Ibid. <<

[587]
II Sent., 19, 1, 1, resp. <<

[588]
Ibid. <<

[589]
Ibid., sejam contra, 3, 4. <<

[590]
Ibid., 7e sig.; cf. De Anima, livro 3. <<

[591]
II Sent., 11. <<

[592]
II Sent., 18, 2, 1, resp. <<

[593]
Ibid.,3, 2, 2,1, resp. e ad 4. <<

[594]
II Sent., 8, 1, 3, 2, ad 7. <<

[595]
Ibid., 25, 2, art. um., 6, resp. <<
[596]
Ibid., 7, 2, 1, 2, resp., onde Buenaventura distingue a memória como hábito, retentio speeiei,
do ato de recordaro recordatio. <<

[597]
Ibid, 24 1,2, 4. <<

[598]
Ibid., resp. <<

[599]
II Sent., 39, 1, 2, resp. <<

[600]
Ibid. <<

[601]
De Myst. Trinit., 1, 1, resp. <<

[602]
De Myst. Trinit., 1, 2, ad 14. <<

[603]
De Scientia Christi, 4, 23. <<

[604]
I Sent, 17, 1, art um., 4, resp. <<

[605]
II Sent, 39,1, 2, resp. <<

[606]
II Sent., 39, 1, 2, resp. <<

[607]
I Sent, resp., ad 1, 2, 3; cf. Breviloq., 6, 8. <<

[608]
De Scientia Christi, 4, resp. <<

[609]
Ibid. <<

[610]
Ibid. <<

[611]
InHexaën ., 12, 5. <<
[612]
Itin. Mentis inDeum, 2, 9. <<

[613]
2, 4-6. <<

[614]
In Hexaëm., 12, 5. <<

[615]
Ibid, 12, 11. <<

[616]
Itin. Ment. in Deum, 1, 6. <<

[617]
II Sent., 24, 1, 2, 2, resp. <<

[618]
InHexaém ., 1. <<

[619]
Liber 6, de Veget. et Plantis, Tract. 1, c. 1. <<

[620]
Cf. De natura locorum, Tract. 1, caps. 6, 7, 8, 12. <<

[621]
Liber 3 Meteorum, Tract. 4, c. 11. <<

[622]
I Summa Theol., 1, 4, ad 2 et 3. <<

[623]
Comm. inEpis t 9 B. Dion. Areop., 7, 2. <<

[624]
Lib. 1 de causis etproc univerátaús, 1, 7. <<

[625]
Ibid., 1, 8. <<

[626]
Ibid., 3, 6. <<

[627]
Comm. in Epist., 9 B. D. Areop., 1. <<

[628]
Lib. I de causis o proc. universitatis, 4, 1. <<
[629]
In Phys., 8, 1, 13. <<

[630]
Liber de natura et origine animae, 2, 6; cf. também De Anima, 3 <<

[631]
C. 3. <<

[632]
C. 7. <<

[633]
Summa de bono, 4, 3, 9. <<

[634]
O Suplemento ao Comentário às Meteorologica parece ter sido completado por um autor
anônimo na linha de Pedro de Auvergne. <<

[635]
No entanto, a investigação recente tende a evidenciar que no pensamento de santo Tomás
teve um desenvolvimento maior do que às vezes se supôs. <<

[636]
Lhe Thomisme, 5.ª ed., Paris, 1944. <<

[637]
Contra Gent., 3, 25. <<

[638]
Ibid., 1, 5. <<

[639]
Séc. T. X 1, 1, ad 2. <<

[640]
Contra Gent.; 1, 4. <<

[641]
Cf. Séc. T., I a, 1, 1, Contra Gent., 1, 4. <<

[642]
In VII Metaph., lectio 2. <<

[643]
Séc. T., Ia, 66, 1, incorpore . <<
[644]
In II Sent., 18, 1, 2. <<

[645]
Santo Tomás emprega certamente o nome, aniones seminales, mas o que entende pelo
mesmo é primariamente as forças ativas de obptos concretos, por exemplo, o poder ativo que
controla a geração dos seres vivos e a limita à mesma espécie, e não a doutrina de que tenha
forma incoadas na matéria prima. Essa última teoria, ou recusa-a, ou diz que não concorda com
o ensino de Santo Agostinho (cf. loe cit., Séc. T, Ia 115, 2; De Veril, 5, 9, cid 8 e ad 9). <<

[646]
Cf. In I Sent., 8. 5, 2; II Sent., 3, 1, 1. <<

[647]
4, 81. <<

[648]
Quodlibet, 11, 5, 5, incorpore . <<

[649]
Cf. De spirit. creat., 1, 5. <<

[650]
Séc. T, Iª, 50, 2; De spirit. creat., 1,1. <<

[651]
De spirit. creat., 1, 1; Séc. T., Iª, 50, 2, ad 3; Contra Gent., 2, 30; Quodlibet, 9, 4, 1. <<

[652]
Contra Gent., 2, 54. <<

[653]
Ibid. <<

[654]
C. 4. <<

[655]
De Potentia,?, 2, ad 9. <<

[656]
Iª, 2, 1. <<

[657]
1, 10-11. <<

[658]
De fide orthodoxa, 1, 3. <<
[659]
Pode parecer que a atitude de santo Tomás em relacionamento com o conhecimento
“innato” de Deus não difere da de São Boaventura em nada substancial. Em verdadeiro sentido,
assim é, já que nem o um nem o outro admitiu uma ideia innata explícita de Deus; mas São
Boaventura pensava que há uma espécie de conhecimento inicial implícito de Deus ou ao menos
que a ideia de Deus pode ser feito explícita mediante a só reflexão interna, enquanto todas as
provas apresentadas por santo Tomás partem do mundo exterior. Embora acentue-se a feição
“aristotélico” da epistemología de São Boaventura, subsiste a diferença de énfasis e de
procedimentos na teología natural de ambos filósofos. <<

[660]
Ver Cáp. 38. <<

[661]
Ver Cáp. 35. <<

[662]
Metaf., livro 12: Física, livro 8. <<

[663]
Séc. T., Iª, 2. 3. in corpore. <<

[664]
Séc. T., Iª; 2, 3, incorpore . <<

[665]
1, 13. <<

[666]
Cáp. 2. <<

[667]
2, 1; 4, 4. <<

[668]
Cáp. 13. <<

[669]
Cáp. 1. <<

[670]
1, 14. <<

[671]
Contra Gent., 1, 14. <<

[672]
Séc. T, Iª. 12,12, incorpore . <<
[673]
Séc. T. Iª 12, 12, incorpore . <<

[674]
Séc. T., Iª, 13. 2, incorpore . <<

[675]
Contra Gent.; 1, 30. <<

[676]
Séc. T, Iª, 13, 2. <<

[677]
Contra Gent., 1, 34: Séc. T, Iª, 13, 5. <<

[678]
2, 11, incorpore . <<

[679]
In IV Sent., 49, 2, 1. ad 6. <<

[680]
Cf. Séc. T, Iª, 13, 5, incorpore . <<

[681]
Cf. Séc. T., Iª, 14, 13. <<

[682]
Ver Cáp. XXXVIII, sec. 4. <<

[683]
Séc. T, Iª, 15, 1. <<

[684]
Cf. Séc. T, Iª, 15, 1-3: Contra Gent., 1, 53-4. <<

[685]
Contra Gent., 1, 31. <<

[686]
Cf. Séc. T, Iª, 13, 12, incorpore , e ad 3. <<

[687]
Séc. T., Iª, 13, 11; Contra Gent., 1, 22. <<

[688]
Éxodo, 3, 14. <<

[689]
Sobre o sentido de creatio ex nihilo. cf. De Potentia, 3, 1. ad 7; Séc. T. Ia, 45, 1, ad 3. <<
[690]
Contra Gent., 2, 1 1-13; Séc. T., Ia, 45. 3; De Potentia, 3, 3. <<

[691]
Cf. De Potentia, 3, 4. <<

[692]
Séc. T, I, 44, 4. <<

[693]
Cf. Séc. T., Iª. 65, 2. <<

[694]
Ver nosso Capítulo XXVII, 3. <<

[695]
De Potentia, 3, 17. <<

[696]
Sobre este tema, ver Contra Gent., 2, 31-7; Séc. T., Ia, 46, 1; De Potência , 3, 17; De
aternitate mundi contra murmurantes. <<

[697]
2, 10. <<

[698]
Iª. 7, 4; 1, 46, ad 8. <<

[699]
Cf. Séc. T., Iª, 25. 3-4; De Potentia, 1, 7. <<

[700]
Cf. Contra Gent., 1, 84. <<

[701]
Cf. Séc. T. Iª, 19. 3; 1, 25. 5; Contra Gent., 2, 26-7; De Potentia, 1. 5. <<

[702]
Séc. T., a, 25, 6. <<

[703]
Cf. Séc. T., Iª, 48, 1-5. <<

[704]
Sobre o tema do mau e seu relacionamento a Deus, ver, por exemplo, Séc. T, Iª, 19, 9; a,
48-9; Contra Gent., 3, 4- 5; De Mau, questões 1-3; De Potência, 1, 6. <<
[705]
Cáp. 33. <<

[706]
Cf. In I Sent., 8, 5. 2; In II Sent., 3, 1. 1. <<

[707]
Séc. T., Iª, 76, 1. <<

[708]
Ibid., Iª, 76, 4. <<

[709]
Cf. Ibid., Iª, 76, 5; a, 89, 1. <<

[710]
Ibid., a, 77, 1-3; De Anima, 1, lectio 2. <<

[711]
Séc. T., Iª, 78, 4. <<

[712]
Séc. T., Iª, 83, 1. <<

[713]
Ibid., Tem, 13, 6. <<

[714]
De Veritate, 24, 4 e 6. <<

[715]
Ibid., 24, 6. <<

[716]
De Veritate, 22, 11; cf. Séc. T., Iª, 82, 3. <<

[717]
Séc. T., Iª, 75, 6; Contra Gent., 2, 79. <<

[718]
Ibid., 75, 2. <<

[719]
Contra Gent., 2, 49. <<

[720]
Séc. T., Iª, 75, 6. <<

[721]
Contra Gent., 2, 79. <<
[722]
Opus oxon., 4, 43, 2, núms. 29 e sig. <<

[723]
Séc. T., a, 89, 1 e sig. <<

[724]
Ibid., 76, 2. <<

[725]
2, 76. <<

[726]
Iª, 79, 4-5. <<

[727]
3, 5; 430 a., 17 e sig. <<

[728]
Sobre Aristóteles, ver Summa contra Gentiles. 2, 78, e o Comentário ao De Anima, 3, lectio
10. <<

[729]
2, 73-5. <<

[730]
S.T., a, 5, 2. <<

[731]
S.T., a, 86, 1. <<

[732]
Ibid., 85, 1. <<

[733]
Ibid., 86, 1, ad 3. <<

[734]
S.T., Iª, 87, 1. <<

[735]
Ibid., 84, 7. <<

[736]
Ibid. <<

[737]
Ibid., 88, 1. <<
[738]
Ibid., 84, 7, ad 3. <<

[739]
S.T., Iª, 79, 7. <<

[740]
Ibid., 5, 2. <<

[741]
Ibid., 84, 7 ad 3. <<

[742]
S.T., a, 84, 6, in corpore, e ad 3. <<

[743]
Cf. Ibid.. 84, 7, in corpore, e ad 3. <<

[744]
Pode ser visto um tratamento mais completo da ética aristotélica no primeiro volume desta
História. <<

[745]
A respeito do precedente, ver designadamente Séc. T., a, IIa, questões 1-3. <<

[746]
Ver Séc. T., Ia, Tem, 4. <<

[747]
Refiro-me aos ensinos de santo Tomás nas Somas. Não pretendo que isso implique que
santo Tomás recusasse a possibilidade de uma ética puramente filosófica. <<

[748]
S.T., Iª, 3, 8. <<

[749]
Ibid., 4, 4. <<

[750]
Ibid., 3, 8. <<

[751]
S.T., Iª, IIª, 5, 4. <<

[752]
Ibid. <<
[753]
3, 25. <<

[754]
3, 18. <<

[755]
3, 39. <<

[756]
3, 40. <<

[757]
3, 51. <<

[758]
3, 52. <<

[759]
3, 52-4. <<

[760]
S.T., Iª, IIª, 3, 51. <<

[761]
3, 47-8. <<

[762]
3, 52. <<

[763]
21, 2. <<

[764]
Cf. De Verit., loe. cit., e também De Mau, 5, 1, 15. <<

[765]
A respeito da questão do “desejo natural” de visão de Deus, pode ser visto o resumem e
discussão das opiniões por A. Motte no Bulletin Thomiste. 1931 (núms. 651-676) e 1934 (núms.
573-590). <<

[766]
S.T., Iª, IIª, 18, 9. <<

[767]
Ibid., 55 e sig. <<

[768]
Ibid., 58, 4-5. <<
[769]
S.T., Iª, IIª, 64, 1. <<

[770]
Ibid., 90, 1. <<

[771]
Ibid., 94, 2. <<

[772]
Cf. S.T., Iªa, IIª, 152, 2. <<

[773]
Ibid., 94, 5. <<

[774]
Ibid, 95, 6; 99, 2, ad 2. <<

[775]
S.T, Iª, IIª, 9, 1; 93, 1 e sig. <<

[776]
Ibid., 91, 4. <<

[777]
Sobre a virtude da religião, cf. S.T., Tem, Tem, 81, 1-8. <<

[778]
S.T., Iª, IIª, 80, articulus unicus. <<

[779]
Essa foi, ao menos, a opinião assumida por Aristóteles, e que não é fácil que ele repudiase
expressamente, embora é verdadeiro que o ideal individualista da contemplação teorética tendia
a se abrir passo por entre o ideal da autosuficiencia da cidade-estado. <<

[780]
1, 1. <<

[781]
S.T., Iª, 96, 4. <<

[782]
Cf. S.T., Iª, IIª, 90, 2. <<

[783]
Cf. De regimine principum, I, 15. <<
[784]
O Dante preocupou-se mais por sustentar a autoridade do imperador contra a do papa, e não
esteve muito a par dos tempos em seus sonhos imperiais; mas tentou não apartar da teoria das
duas esferas. <<

[785]
1, 14. <<

[786]
Ad Romanos, 6, 23. <<

[787]
De regimine principum, 1, 15. <<

[788]
Santo Tomás dirige-se, desde depois, a um príncipe cristão. <<

[789]
S.T., Iª, IIª, 90, 2. <<

[790]
Ibid., IIª, IIª, 65, 1. <<

[791]
Ethieorum, lectio 4. <<

[792]
S.T. IIª, IIª, 47, 10, in corpore e ad 2. <<

[793]
S.T, Iª, IIª, 91, 5. <<

[794]
Ibid., 3. <<

[795]
Ibid., 95, 1. <<

[796]
Ibid., 2. <<

[797]
Cf. Ibid., 96, 4. <<

[798]
Cf. S.T., Iª, IIª, 90. 3. <<

[799]
Embora aparentemente refere-se ao governo electivo. <<
[800]
S.T., Iª, IIª, 97, 3, ad 3. <<

[801]
De regimine principum, 1,6. <<

[802]
Séc. T. Iª, IIª, 105, 1. <<

[803]
De regimine principum, 1,2. <<

[804]
S.T., Iª, IIª, 90. 4. <<

[805]
S.T., IIª, IIª, 58. 6. <<

[806]
Ibid., Iª, 5, 4, ad 1. <<

[807]
Ibid. <<

[808]
Ibid., 39, 8. <<

[809]
A resposta somente pode ser que essa resurrección é conveniens, mas não algo estritamente
devido, já que não pode ser conseguida por meios naturais. Parece, pois, que nos enfrentamos
com o dilema de que ou a alma (aparte da intervenção de Deus) ficaria após a morte em uma
condição “não natural”, ou teria que revisar a doutrina da união da alma com o corpo. <<

[810]
In XII Metaph., lect. 11. <<

[811]
Ver o primeiro volume desta História. <<

[812]
S.T., IIIª, 50, 5. <<

[813]
Cf. P. Mandonnet, Siger de Brabant, 2a ed.; 1911; B. Nardi, Sigieri dei Brabante nella
Divina Commedia, 1912; F. Vão Steenberghen, Lhes ouvres etla doctrine de Siger de Brabant,
1938; E. Gilson, Dante et a philosophie, 1939. <<
[814]
Refiro-me, desde depois, à ciência experimental. <<

[815]
Roger Bacon: The Philosophy of Science in the Middle Ages, p. 7. <<

[816]
J. H. Bridges, Introduction ao Opus Maius, pp. xci-xcii. <<

[817]
Opus Tertium, c. 25. <<

[818]
Opus Minus, edição J. Séc. Brewer, p. 326. <<

[819]
Ibid., pp. 322e sig. <<

[820]
Compendium philosophiae, p. 469. <<

[821]
O nome de Peregrinos, dado a Pierre, parece dever ao fato de que assistiu a uma cruzada.
<<

[822]
Opus Tertium, c. 13. <<

[823]
Está claro que essa doutrina não é averroísta. Bacon condenava o monopsiquismo averroísta
como erro e herejía. <<

[824]
Quoestio disputata de cognitione, p. 291 e p. 280. <<

[825]
Ibid., p. 254. <<

[826]
P. 307. <<

[827]
De cognitione, p. 311. <<

[828]
Ibid., p. 328. <<

[829]
De cognitione, p. 329. <<
[830]
Ibid. <<

[831]
As doutrinas da intuición da alma por si mesma e do conhecimento intelectual da coisa
singular aparecem também nos ensinos do franciscano Vital du Four (morrido em 1327). <<

[832]
Em apoio das teses de Óbvio deu-se a razão de que se a forma intelectiva informasse
diretamente ao corpo comunicaria a este sua própria imortalidade ou bem a perderia, por sua
vez, como resultado de dita informação. <<

[833]
De Anima, p. 259. <<

[834]
Ibid., p. 263. <<

[835]
Ibid., p. 262. <<

[836]
Ibid., p. 273. <<

[837]
Ibid., p. 256. <<

[838]
In II Sent., 12, 1, 10. <<

[839]
Ibid., 12, 1, 1. <<

[840]
In II Sent., 3, 1, 1; Quodlibet, 1, 8. <<

[841]
Paris, 1925. <<

[842]
Compendium artis demonstrativae, pról. <<

[843]
Beitrage, 7, 4-5, p. 19. <<

[844]
Ueberweg-Geyer, Die patristische und scholastische Philosophie, p. 460. <<
[845]
Ver o artigo “Lulio”, pelo P. E. Longpré, no Dictionnaire de théologie catholique, vol. 9.
<<

[846]
De gradibus formarum, f. 211 v. <<

[847]
I, 12, 16. <<

[848]
Prop. 47, f. 36 v. <<

[849]
1, 11. <<

[850]
Sobre a questão da data e a autenticidade dos Erros philosophorum, ver a edição de J. Kock,
citada na Bibliografía. <<

[851]
Pode parecer que, segundo a teoria de Gil, a alma (isto é, a forma) em estado de separação
do corpo não seria individual: mas deve ser recordado que, para ele. o mesmo que para santo
Tomás, a alma era individuada por sua união com a matéria, e conservava sua individualidad.
<<

[852]
Não quero dizer que Santo Agostinho recusasse a preeminencia da Seda Romana: mas seria
absurdo dizer que o santo de Hipona mantinha a doutrina da jurisdicciSn papal nos assuntos
temporários. <<

[853]
1, 5. <<

[854]
Cf. I, 8-9. <<

[855]
2, 4. <<

[856]
Summa, 3. 3, 4; 3, 4, 4, 12. <<

[857]
Ibid., 1,2, 11 e 13. <<

[858]
Ibid., 1, 2, 26. <<
[859]
Avicena, Metafísica. 1, 2, 1; Enrique de G., Summa. 1, 12, 9; 3, 1, 7. <<

[860]
Cf. Summa, 1, 11, 6; 1, 5, 5. <<

[861]
Cf. Ibid., 1, 11, 18. <<

[862]
Veja-se a seção 10, para apreciar a matización que faz com que esse enunciado não seja
estritamente verdadeiro. <<

[863]
Quodlibet, 4, 4, 143. <<

[864]
Quodlibet, 7, 1, 389. <<

[865]
Ibid., 3, 2, 80. <<

[866]
Scot atacou esta teoria de Enrique de Gante. <<

[867]
Cf. Quodlibet, 2, 1, 46. <<

[868]
Ibid., 8, 57 e sig. <<

[869]
Para a doutrina de Enrique da dupla negación, cf. Quodlibet, 5, 8, 245 e sig. <<

[870]
Cf. Quodlibet, 3, 9. 100; Summa, 21, 4, 10. <<

[871]
Cf. Summa, 21, 4, 7 e sig.; 27. I, 25; 28, 4, 7. <<

[872]
Quodlibet, 10, 7, 153. <<

[873]
Summa, 21, 4, 10. <<

[874]
Cf. Summa, 24, 6, 7; 22, 4; 22, 5. <<
[875]
Ibid., 22, 3; 25, 2-3. <<

[876]
Ibid., 24, 8, 6; 7, 7. <<

[877]
Ibid., 21, 2, 14. <<

[878]
Cf. Summa, 21, 2, 6 e 8. <<

[879]
Ibid., 21, 2, 17; 21, 2, ad 3. <<

[880]
Disse-se que Scot ensinou também em Cambridge, dantes ou após seu ensino em Oxford.
<<

[881]
P. Glorieux, A littérature quodlibétique, tomo II (Bibliotéque Thomiste. 21), Paris, 1935.
<<

[882]
Ox. prólogo, 4, n.° 32. <<

[883]
Ibid., I, 3, I: Rep., 1, 3, 1; Rep.. pról., 3, núms. 1 e 4. <<

[884]
Rep., pról., 3, 1. <<

[885]
Minges, que aceita os Theoremata, trata de mostrar que nessa obra Scot entende
“demostradon“ no mais estrito sentido aristotélico, como demonstratio ex causis. Se isso pudesse
ser provado, não teria, desde depois, contradição alguma entre os Theoremata e as obras
indubitavelmente autênticas de Scot. Não obstante, Longpré argumenta contra essa interpretação
do sentido escotista. Cf. Minges, vol. 2, pp. 29-30; Longpré, p. 109 (ver nossa Bibliografía). <<

[886]
Ox., pról. q. 1. <<

[887]
Ibid., 1, 3, 3 n° 24. <<

[888]
Ox., 3, 2. 16: cf. Quodlibet, 14: Utrum anima suae naturali perfectioni relicta possit
cognoscere Trinitatem personarum in Divinis. <<
[889]
S.T., Iª, 12, 4. <<

[890]
Cf. Ibid., Iª, 81, 1. <<

[891]
Ox.. 1, 3, 3, núms. 1 e sig. <<

[892]
Ox., 1, 3, 3, núms. 1 e sig. <<

[893]
Ibid., 1, 3, 3, n° 3. <<

[894]
De Anima, 13. <<

[895]
Cf. Ox., 1, 3, 3, n° 24; 2, 3, 8, n.° 13. <<

[896]
Por exemplo, em S.T . Iª, 5, 2. <<

[897]
S.T., Iª, 89, 1. <<

[898]
Ibid., Iª, 87, 1. <<

[899]
Ox., 2, 3, 8, n.° 13. <<

[900]
S.T., Iª, 86, 1. <<

[901]
Ox., 4, 45, 3, n.° 17. <<

[902]
J. Duns Scoti, Doutrina Philosophica et Theologica, p. 247. <<

[903]
Ox., 2, 3, 6, n.° 16. <<

[904]
Ibid., 2, 3. 9, n.° 9. <<

[905]
13, 8-10. <<
[906]
22. <<

[907]
De Anima, 22, 3 <<

[908]
Ox. pról. 3, n.° 28. <<

[909]
Ibid., 2 lat.; n.° 4. <<

[910]
Ibid., 3, n.° 28. <<

[911]
Ibid., 3, n.° 29. <<

[912]
Ibid., 4. <<

[913]
S.T., Iª, 1, 4. <<

[914]
Ibid., 1, 2. <<

[915]
Ibid. <<

[916]
Ibid., 1, 4. <<

[917]
2, 1, n.° 13. <<

[918]
2, 23, n.° 13. <<

[919]
Ox, 1, 3, 4, núms. 2-4. <<

[920]
Ibid., 1, 3, 4, n.° 5. <<

[921]
Ox., 4, 45, 2. <<
[922]
4, 50, 1, 1; e cf. S.T., a, 89, 1-4. <<

[923]
Ox., 1, 2, 7, n.° 42; 2, 9, 2, n.° 29. <<

[924]
Ox., 3, 14. 3, n.° 6. <<

[925]
Ibid., 2, 3, 9, n.° 6. <<

[926]
Quodlibet. 7, n.° 8. <<

[927]
Ox, 2, 9, 2, n.° 29. <<

[928]
Ibid., 4, 14, 3, n.° 6. <<

[929]
Ox., 1, 3; 4, n.° 9. <<

[930]
Quodlibet, 7, n.° 14; 1, 39, n.° 13. <<

[931]
Ox., 1, 3, 2, n.° 24. <<

[932]
Quodlibet, 3, n.° 2. <<

[933]
Ox., 2, 1, 4, n.° 26. <<

[934]
Ibid., 1, 3, 3. n.° 7; 2, 16, n.° 17. <<

[935]
Ox., 1, 8, 3. n.° 19. <<

[936]
Ibid., 1, 39, n.° 13. <<

[937]
Ox., 1, 8, 3, núms. 4 e sig. Assim interpreta Scot a doutrina de Enrique. <<

[938]
1, 3, 2, n.° 5. <<
[939]
Ox, 1, 8, 3, n.° 18. <<

[940]
Ibid, 1, 8, 3, n.° 19. <<

[941]
Ox, 1, 8, 3, n.° 19. <<

[942]
Ibid., 1, 3, 2, n.° 10. <<

[943]
Ibid. <<

[944]
Cf. ibid, 1, 3, 2, n.° 6. <<

[945]
Ibid, 1, 8, 3, n.° 16. <<

[946]
Ox, 1, 8, 3, n.° 11. <<

[947]
Ibid., 1, 8, 3, n.° 12. <<

[948]
21, n.° 14. <<

[949]
Ox., 1, 8, 3, n.° 12. <<

[950]
Rep., 1, 3, 1, n.° 7. <<

[951]
Ox., 1, 3, 2; 1, 8, 3, n° 9. <<

[952]
De Anima , 21, n.° 14. <<

[953]
2, 12, 2, n.° 2. <<

[954]
Ox., 2, 12, 2. n.° 8. <<
[955]
Ox., 2, 3, 1, n.° 7. <<

[956]
Para Scot, “equívoco” significa de significados diferentes ou diferentes. O cientista, por
exemplo, considera corpos reais que diferem, mas pode ser formado um conceito comum de
corpo em general. <<

[957]
Ox., 2, 16, quaestio única, n.° 17. <<

[958]
Deve ser admitido que Duns Scot se limita a negar a distinção real, e não aplica
explicitamente a distinção formal objetiva ao relacionamento entre essência e existência nos
seres criados; mas parece-me que a doutrina dos escotistas nesse ponto é uma razoável
interpretação da mente do maestro. <<

[959]
Ox, 4, 13, 1, n.° 38. <<

[960]
Ibid., 2, 16, n.° 10. <<

[961]
De ente et essentia, 5. <<

[962]
Ox., 1, 36, n.° 13. <<

[963]
Ibid., 1, 30, 2, n.° 15. <<

[964]
Disputationes Metaphysieae, 6, 1, n.° 2. <<

[965]
Rep., 2, 12, 5, n.° 12. <<

[966]
Ibid, 2, 12, 5, n.° 13. <<

[967]
Metaph, 5,11. <<

[968]
Ibid., 5, 11. <<

[969]
De Anima , 1, 8. <<
[970]
Rep., 2,12, 5,n.° 13. <<

[971]
Die Lehre dê J. Duns Skotus von der natura communis, Friburgo, 1927. <<

[972]
Local citado. <<

[973]
Cf. Ox, 2, 12,1. <<

[974]
P. 46. <<

[975]
15, n.° 3 e sig. <<

[976]
Ox., 2, 12, 1, n.° 10. <<

[977]
Cf. ibid, 2, 12, 2; Rep., 2, 12, 2. <<

[978]
Ox, local citado, n.° 3. <<

[979]
Rep., 2, 12, 2, n.° 5. <<

[980]
Ox, 2, 12, 2, n.° 7. A distinção da matéria prima em matéria primo prima, matéria secunda
prima, e matéria tertio prima, encontra-se somente no in autêntico De rerum princípio. <<

[981]
Rep., 2, 18,1. <<

[982]
Ox, 4, 11, 3, núms. 54e sig. <<

[983]
Ibid, 2, 16, n.° 17. <<

[984]
Ox, 2, 3, 5, n.° 1. <<

[985]
Ibid, 2, 3, 6, n.° 15. <<
[986]
Ibid. <<

[987]
2, 12, 5, núms. 1, 8, 13, 14. <<

[988]
7, 13, núms. 9 e 26. <<

[989]
Quaestiones in livros Metaph., 7,13, n.° 7. <<

[990]
Rep., pról., 3, n.° 1. <<

[991]
Ibid., n.° 6. <<

[992]
Ox, 1, 1, 2, n.° 2. <<

[993]
Ibid, pról., 4, n.° 32. <<

[994]
Ox, pról., 4, n.° 20. <<

[995]
Por exemplo, em 4, núms. 36, 37. <<

[996]
Quodlibet, 7, n.° 8. <<

[997]
Ox., 1, 3, 2, núms. 1 e 30. <<

[998]
Ox., pról., 1, n.° 17. <<

[999]
Rep., pról., 3, 2, n.° 4. <<

[1000]
Ox, 1, 3, 2, n.° 18. <<

[1001]
Ibid. <<
[1002]
Pról., 2, lateralis, n.° 21. <<

[1003]
3, 7. <<

[1004]
2, 24, quaestio única, n.° 12. <<

[1005]
3. <<

[1006]
De primo princípio, 3, 3. <<

[1007]
De primo princípio, 3, 4. <<

[1008]
Ibid., 3, n.° 5. <<

[1009]
Ibid., 3, n.° 6. <<

[1010]
Ibid., 3, núms. 6-7. <<

[1011]
Ibid, n° 9. <<

[1012]
76 ad,núms. 9-10. <<

[1013]
Ibid., núms. 11-14 <<

[1014]
Ox, 2, 2, núms. 10 e sig. <<

[1015]
Ox., 2, 2, n.° 11. <<

[1016]
Ibid, núms. 14-15. <<

[1017]
Ibid, n° 17. <<

[1018]
Ibid, n° 18. <<
[1019]
Ibid. <<

[1020]
De primo princípio, 4, núms. 1-4. <<

[1021]
Ibid, 4, n ° 14 <<

[1022]
Ox, 1,2,3;n.° 17. <<

[1023]
Ibid., 4, 3, 1, n.° 32. <<

[1024]
Ibid., 4, 13,1, n.° 32. <<

[1025]
2, 2, núms. 25 e sig. <<

[1026]
4, núms. 15 e sig. <<

[1027]
Cf. Ox, 1, 2, 2, núms. 25-9. <<

[1028]
Ox, 1, 2, 2, n.° 30: cf. Deprimo princípio. 15 e sig. <<

[1029]
Ox, 1, 2, 2, n.° 31. <<

[1030]
1, 2, 2, núms. 31-2. <<

[1031]
4, n.° 21. <<

[1032]
Ox, 1, 2, 3; De primo princípio, 4, núms. 38-40. <<

[1033]
Ox, 1, 2, 2, n.° 32. <<

[1034]
Rep., 1, 2, 3, n.° 8. <<
[1035]
4, n.° 37. <<

[1036]
Ox., 42, quaestio única, n.° 2. <<

[1037]
Cf. Rep., 1, 42, 2, n.° 4; Quodlibet, 7, núms. 4 e 18. <<

[1038]
S.T., Iª, 8, 1, ad 3. <<

[1039]
Rep., 1, 37, 2, núms. 6 e sig. <<

[1040]
Cf. Deprimo princípio, 4, núms. 36 e sig.; Ox., pról., 2, n.° 10; 3, 23, n.° 5; 3, 24, n.° 22.
<<

[1041]
Cf. Ibid., 4, 17, n.° 7; Rep., 4, 17, n.° 7. <<

[1042]
Cf. Ox, 4, 43, 2, n.° 27. <<

[1043]
Ibid, 1, 3, 4, n.° 17. <<

[1044]
Ibid, n.° 18. <<

[1045]
Ox, 1, 8, 4, núms. 19 e sig. <<

[1046]
Ibid, 1, 36, n.° 4; cf. n.° 6. <<

[1047]
Rep., 1, 36, 2, n.° 33. <<

[1048]
Ox, 1, 3, 4, n.° 20. <<

[1049]
Ibid, 2, 1, 2, n.° 6. <<

[1050]
Rep., 1, 36, 3, n.° 27. <<
[1051]
Collationes, 31, n.° 5. <<

[1052]
Ox, 1, 35, n.° 8. <<

[1053]
Ox, 1, 38, n.° 5. <<

[1054]
Rep., 1, 45, 2, n.° 7. <<

[1055]
Ox, 1, 17, 3, n.° 18. <<

[1056]
Ibid., 1, 39, n.° 21; cf. Ibid., 2,1, 2, n.° 7. <<

[1057]
Ibid., 3, 32, n.° 6. <<

[1058]
Ibid., 2, 1, 2, n.° 65. <<

[1059]
Ibid., 1, 8, 5, núms. 23 e sig.; cf. Quodlibet, 16. <<

[1060]
Rep., 1, 10, 3, n.° 4. <<

[1061]
Quodlibet, 16, n.° 8. <<

[1062]
Ibid., 16, n.° 9; cf. Rep., 1, 10, 3, núms. 3 e sig. <<

[1063]
Rep., 2, 1, 3, núms. 9-11; cf. Ox, 2, 1, 2; Collationes, 13, n.° 4. <<

[1064]
Ox, 4, 1, 1, núms. 27 e sig. <<

[1065]
Ox., 2, 1, 3, n.° 19. <<

[1066]
Ox., 4, 43, 2, núms. 4-5. <<

[1067]
Ibid., n.° 5. <<
[1068]
Ibid., n.° 6. <<

[1069]
Ox., 4, 43, 2, núms. 6-11. <<

[1070]
Ibid, n.° 12. <<

[1071]
Ibid., 2, 16, n.° 6. <<

[1072]
Ox, 2, 1, 4, n.° 25. <<

[1073]
Ibid., 4, 12,1, n.° 19. <<

[1074]
Quodlibet, 9, n.° 7 e 19, n.° 19. <<

[1075]
Ibid., 2, 3 e sig. <<

[1076]
Ox, 4, 43, 1, núms. 2-6. <<

[1077]
S.T, Iª, 89, 1. <<

[1078]
Cf. Ibid., a, 84, 7. <<

[1079]
Ox, 4, 45, 2, n.° 14. <<

[1080]
Ibid., 2, 6, 2, n.° 11. <<

[1081]
Ibid., 1, 17, 3, n.° 5; 2, 25, n.° 16. <<

[1082]
Ox, 2, 23, núms. 8 e 7. <<

[1083]
Ibid., 3, 15, n.° 37. <<
[1084]
Cf. Ibid., 4, 49, 10, n.° 3; 2, 23, n.° 8; 1, 1, 4, n.° 16; Collationes, 16, n.° 3. <<

[1085]
Cf. Ox, 4, 49, 10, núms. 8 e sig. <<

[1086]
Ibid., 1, 1, 4, núms. 13 e sig. <<

[1087]
Ibid., 4, 49, 6, n.° 9. <<

[1088]
Cf. Collatio, 15. <<

[1089]
Rep., 2, 42, 4, n.° 7. <<

[1090]
Collationes, 2, n.° 7. <<

[1091]
Rep., 1, 35, 1, n.° 27. <<

[1092]
Ox., 4, 49, quaestio ex latere, núms. 16 e 18. <<

[1093]
Ibid, n.° 17. <<

[1094]
Ibid., n.° 21. <<

[1095]
Rep., 4, 49, 3, n.° 7; Ox, 4, 49, 3, núms. 5 e sig. <<

[1096]
Ox., 4, 43, 2, n.° 26. <<

[1097]
Cf. Rep., 4, 43, 2, núms. 15 e sig. <<

[1098]
Ox, 4, 43, 2, n.° 16. <<

[1099]
Ox, 4, 43, 2, n.° 16. <<

[1100]
Iª, 75, 6. <<
[1101]
Ox, 4, 43, 2, n.° 23. <<

[1102]
Ibid., n.° 18. <<

[1103]
Cf. também Rep., 4, 43, 2, n.° 18. <<

[1104]
Ox, 4, 43, 2, núms. 29-31. <<

[1105]
Ibid., n.° 27. <<

[1106]
Ox., 2, 40, quaestio única, núms. 2-3. <<

[1107]
Ibid., 1, 17, 3, n.° 14. <<

[1108]
Rep., 4, 28, n.° 6. <<

[1109]
Ox., 1, distinctio ultima, núms. 1 e 2. <<

[1110]
Ibid. <<

[1111]
Ibid., 4, 5, 2, n.° 7. <<

[1112]
Rep., 2, 41, n.° 2. <<

[1113]
Cf. Ox., 2, 41, n.° 4. <<

[1114]
Ibid., 4, 46, 1, n.° 10. <<

[1115]
Rep., 1, 48, quaestio única. <<

[1116]
Ox, 4, 14, 2, n.° 5. <<
[1117]
Rep., 2, 22, quaestio única, n.° 3. <<

[1118]
Ox., 3, 37, quaestio única, núms. 5-8. <<

[1119]
Ibid., n.° 11. <<

[1120]
Ibid., núms. 13-15. <<

[1121]
Rep., 4, 46, 4, n.° 8. <<

[1122]
Rep., 4, 15, 4, núms. 10-11. <<

[1123]
Ox, 4, 15, 2, n.° 7. <<

[1124]
Ibid., n.° 7. <<

[1125]
Rep., 4, 15, 4, n.° 11. <<

[1126]
Ox., 4, 15, 2, n.° 6. <<

[1127]
Ibid., 4, 14, 2, n.° 7. <<

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