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Frederick Copleston

História da filosofia
Volume VI
ÍNDICE
PRÓLOGO

PARTE I
O ILUMINISMO FRANCÊS

I. O ILUMINISMO FRANCÊS. - I

II. O ILUMINISMO FRANCÊS. - II

III. ROUSSEAU. - I

IV. ROUSSEAU. - II

PARTE II
O ILUMINISMO ALEMÃO

V. O ILUMINISMO ALEMÃO. - I

VI. O ILUMINISMO ALEMÃO. - II

VII. A RUPTURA COM O ILUMINISMO

PARTE III
O NASCIMENTO DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA

VIII. BOSSUET E VICO

IX. DE VOLTAIRE A HERDER

PARTE IV
KANT

X. KANT. - I : VIDA E ESCRITOS

XI. .KANT. - II: OS PROBLEMAS DA PRIMEIRA "CRÍTICA"

XII. KANT. - III: O CONHECIMENTO CIENTÍFICO

XIII. KANT. - IV: O ATAQUE À METAFÍSICA

XIV. KANT. - V: MORALIDADE E RELIGIÃO

XV. KANT. - VI: ESTÉTICA E TELEOLOGÍA

XVI. KANT. - VII: OBSERVAÇÕES A RESPEITO DO "OPUS POSTUMUM"

XVII. RESUMO CONCLUSIVO


APÉNDICE

BREVE BIBLIOGRAFÍA
Prólogo

Minha intenção inicial era a de incluir a filosofia dos séculos XVII e XVIII em um só volume
titulado De Descarte a Kant, Mas o projeto resultou inviable. Ao final dividi a matéria em três
volumes. O IV desta História, De Descarte a Leibniz, estuda os grandes sistemas racionalistas
do continente, e no volume V, De Hobbes a Hume, esbocei o desenvolvimento do pensamento
filosófico britânico até a filosofia escocesa do sentido comum inclusive. No presente volume
considero o Iluminismo francês e alemã, o nascimento da filosofia da história e o sistema de
Kant.

Mais, apesar de ter finalmente dedicado três volumes à filosofia dos séculos XVII e XVIII,
conservei o plano inicial no sentido de que o conjunto se abre com um capítulo introdutório
comum e conta com um resumem conclusivo também comum. O primeiro encontra-se, como é
natural, ao princípio do volume quarto. Não se repetirão aqui as observações introdutórias
referentes ao tema do presente volume. Quanto ao resumem conclusivo, é o último capítulo deste
livro. Adotando um ponto de vista não meramente histórico, senão também filosófico, tentei
discutir nele a natureza, a importada e o valor dos vários estilos de filosofar nos séculos XVII e
XVIII. Deste modo os volumes IV, V e VI desta História da Filosofia formam uma trilogía.
Parte I
o Iluminismo francês
Capítulo I
O Iluminismo francês - I.

1. Observações introdutórias.

Parece ter uma tendência natural em muitos a conceber o Iluminismo francês


primordialmente como uma crítica destructiva e uma aberta hostilidade contra o Cristianismo,
ou pelo menos, contra a Igreja Católica. Aparte de Rousseau, o nome que mais soa quando se
fala dos filósofos franceses do século XVIII é provavelmente o de Voltaire. E este nome suscita
no espírito a imagem de um literato brilhante e agudo, incansable em sua denúncia da Igreja
como inimiga da razão e propugnadora da intolerância. Ademais, quando um leu algo a respeito
do materialismo de autores como A Mettrie e d’Holbach, pode perfeitamente se inclinar a
entender o Iluminismo francês como um movimento antirreligioso que passou do deísmo de
Voltaire e Diderot, em sua primeira fase, ao ateísmo de d’Holbach e à crua visão materialista de
um Cabanis. Dada esta interpretação do Iluminismo, a estimativa em que um a tenha dependerá
consideravelmente das próprias convicções religiosas, ou da ausência delas. O um considerará
a filosofia francesa do século XVIII como um movimento que seguiu adentrándose na impiedad
até dar seus últimos frutos na profanación da catedral de Notre Dá durante a Revolução; e o
outro o considerará como a progressiva libertação espiritual respecto da superstição religiosa e
a tiranía eclesiástica.

Também não é infrequente a ideia de que os filósofos franceses do século XVIII foram todos
inimigos do sistema político existente e prepararam o caminho à Revolução. E dada esta
interpretação política são também obviamente possíveis diferentes estimativas da obra desses
filósofos. Um pode os considerar como irresponsables fomentadores da revolução, cujos escritos
tiveram efeitos práticos no terror jacobino. E outro pode os considerar como representantes de
um determinado estádio de um desenvolvimento sociopolítico inevitável, como escritores que
contribuíram a iniciar o estádio da democracia burguesa, destinada a sua vez a ser substituída
pelo regime do proletariado.

Ambas interpretações do Iluminismo francês — a que a contempla desde o ponto de vista


de sua atitude respecto das instituições religiosas e da religião mesma e a que a interpreta em
base a sua atitude respecto dos sistemas políticos e os desenvolvimentos políticos e sociais —
têm sem nenhuma dúvida fundamento factual. É possível que seus fundamentos não sejam da
mesma solidez. Embora vários filósofos discrepaban sem dúvida do ancien régime, seria um
grande erro achar que todos os filósofos típicos do Iluminismo fomentaram conscientemente a
Revolução. Voltaire, por exemplo, embora desejava certas reformas, não se interessava
propriamente pela promoção da democracia. Interessava-lhe a liberdade de expressão para si
mesmo e para seus amigos, mas é impossível lhe qualificar de democrata. Mais que um governo
popular gostaria de um despotismo iluminista e benévolo, especialmente se a benevolência
beneficiava aos philosophes. Em qualquer caso, não tinha a menor intenção de promover uma
revolução do que para ele era “a canalla”. É verdade, por outra parte, que todos os filósofos
considerados como representantes típicos do Iluminismo francês se opunham, em diversos
graus, ao domínio da Igreja. Muitos deles se opunham também ao cristianismo, e alguns foram
ateus dogmáticos, determinadamente opostos a toda religião, produto, para eles, da ignorância e
o temor, inimiga do progresso intelectual e obstáculo à moralidade verdadeira.

Mas embora tanto a interpretação como atitude respecto da religião quanto a interpretação
sobre a base de convicções políticas (embora esta em menor medida) têm fundamento nos fatos,
o descrever a filosofia francesa do século XVIII como um prolongado ataque ao trono e ao altar
seria dar uma imagem muito inadequada dela. Desde depois que se atacou em nome da razão à
Igreja Católica, a religião revelada e, em certos casos, toda forma de religião. Mas o exercício
da razão era para os filósofos do Iluminismo francês bem mais que a simples crítica destructiva
praticada na esfera religiosa. A crítica destructiva era, por assim o dizer, o lado negativo do
Iluminismo. A feição positiva consistia na tentativa de entender o mundo e, especialmente, o
homem mesmo em sua vida psíquica, moral e social.

Ao dizer isso não pretendo minimizar a importância das opiniões dos filósofos a respeito de
assuntos religiosos, nem as eliminar como irrelevantes. Em verdade que ninguém que
compartilhe as convicções religiosas do autor pode contemplar com indiferença a atitude dos
filósofos iluministas franceses. Mas inclusive completamente aparte das crenças da cada qual, a
atitude dos philosophes respecto da religião teve sem dúvida importância e significação cultural.
Expressava, efetivamente, uma resolvida mudança respecto do ponto de vista da cultura
medieval, e representava realmente um estádio cultural novo e diferente. Temos que recordar ao
mesmo tempo que nessa época somos testemunhas do crescimento e da extensão do ponto de
vista científico. Os filósofos franceses do século XVIII acharam firmemente no progresso, isto
é, na extensão do ponto de vista científico desde a física até a psicologia, a moralidade e a vida
social do homem. Se tendiam a recusar a religião revelada, e às vezes inclusive qualquer religião,
isso se devia em parte a sua convicção de que a religião, revelada e particular ou religião em
general, é um inimigo do progresso intelectual e do uso claro e livre da razão. Por suposto que
não penso que levassem razão. Para mim não há uma incompatibilidad intrínseca entre a religião
e a ciência. Mas minha tese é que se nos detemos demasiado exclusivamente ante sua crítica
destructiva na esfera religiosa, iremos perdendo de vista os objetivos positivos dos philosophes.
E então teremos uma visão unilateral do quadro.

Os filósofos franceses do século XVIII estiveram consideravelmente influídos pelo


pensamento inglês, particularmente por Locke e Newton. Falando em general, pode ser dito que
estavam de acordo com o empirismo do primeiro. O exercício da razão em filosofia não
significava para eles a construção de grandes sistemas deduzidos a partir de ideias innatas ou de
princípios primeiros autoevidentes. Neste sentido recusaram a metafísica especulativa do século
anterior. Isso não quer dizer que não se interessassem pelas sínteses nem que fossem pensadores
puramente analíticos que só prestassem atenção aos vários problemas e às várias questões
particulares sem tentar nunca sintetizar suas várias conclusões. Mas o fato é que estavam
convencidos de que a via adequada é a que leva aos fenômenos mesmos e permite aprender por
observação suas leis e suas causas. Depois podemos proceder à síntese, a formar princípios
universais e a examinar os fatos particulares à luz das verdades universais. Dito de outro modo,
eles entenderam que é um erro supor a existência de um método ideal, o método deductivo da
matemática, aplicável a todos os ramos do estudo. Buffon, por exemplo, viu-o claramente, e
suas ideias influíram algo em Diderot.

Esta proposta empirista do conhecimento levou em alguns casos, como o de d’Alembert, a


uma posição que pode ser chamado positivista. A metafísica, se por tal entende-se o estudo da
realidade transfenoménica, é a esfera do incognoscible. Não podemos ter conhecimento
verdadeiro nesse campo, e é uma perda de tempo se dedicar a ele. O único modo de ter uma
metafísica racional consiste em sintetizar os resultados das ciências empíricas. E na ciência
empírica mesma não nos ocupamos de “ essências” senão de fenômenos. É verdade que em
verdadeiro sentido falamos também de essências, mas se trata simplesmente das que Locke
chamou essências “nominais”. A palavra não se usa então em sentido metafísico.

Mas seria um grave erro achar que todos os filósofos do Iluminismo francês foram
“positivistas”. Voltaire, por exemplo, achava que a existência de Deus é demostrable. E também
o achou Maupertuis. Mas o que sim é verdadeiro é que podemos descobrir uma clara
aproximação ao positivismo em certos pensadores do período. Pelo qual podemos dizer que a
filosofia do século XVIII contribuiu a preparar o caminho ao positivismo do século seguinte.

Mas, ao mesmo tempo, toda essa interpretação do Iluminismo francês é unilateral, porque
resulta demasiado filosófica em verdadeiro sentido. Tomarei o exemplo de Condillac para
ilustrar o que quero dizer. Este filósofo estava muito influído por Locke e dispôs-se a aplicar o
empirismo de Locke, tal como ele o entendia, às faculdades e as operações psíquicas do homem,
tentando mostrar como é possível as explicar todas a base de “sensações transformadas”.
Condillac mesmo não era precisamente o que chamaríamos hoje positivista. Mas é
indubitavelmente possível interpretar seu Tratado das sensações como um passo hada o
positivismo ou um estádio do desenvolvimento deste. Por suposto que também é possível
interpretar simplesmente o livro como um estádio do desenvolvimento da psicologia, e a
psicologia considerada em si mesma não está necessariamente vinculada ao positivismo
filosófico.

Numerosos filósofos, do Iluminismo francês refletiram a respeito das conexões entre a vida
psíquica do homem e suas condições fisiológicas. E em certos casos, como o de Cabanis, isto
redundó em formulaciones de rotundo materialismo. Portanto, um pode tender a interpretar toda
a investigação desses pensadores sobre a base de dito resultado. Mas não menos possível é
considerar o materialismo dogmático de certos filósofos como uma aberración transitória, no
curso do desenvolvimento de uma valiosa linha de estudo. Dito de outro modo: se consideram-
se os estudos psicológicos dos filósofos do século XVIII como experimentos e tentativas nos
primeiros estádios do desenvolvimento dessa linha de investigação, a psicologia, então pode ser
dado menos importância aos exageros e crudezas ditas que se um restringe seu horizonte mental
o Iluminismo Francês considerada em si mesma. É verdade que quando se estuda, como ocorre
nestes capítulos, o pensamento de um período determinado e de um grupo de homens não menos
determinado, há que prestar atenção aos exageros e às crudezas. Mas também é bom ter presente
uma imagem mais geral, e recordar que esses rasgos pertencem a um determinado estádio de
uma linha de desenvolvimento que se alonga para o futuro e é capaz de fornecer ela mesma mais
adiante a crítica e a correção de suas aberraciones temporãs.

Portanto, podemos considerar em general a filosofia do Iluminismo francês como uma


tentativa de desenvolver o que Hume chamava the Science of man, a ciência do homem. É
verdade que essa descrição não recolhe todos os dados. Assim temos, por exemplo, entre eles
teorias cosmológicas. Mas sim que nos solicita a atenção sobre o interesse que tiveram os
filósofos do século XVIII por fazer com a vida psíquica e social o que Newton fazia com o
universo físico. Ao tentar realizar essa tarefa decidiram uma proposta mais inspirada pelo
empirismo de Locke que pelos sistemas especulativos do século anterior.

Também vale a pena observar que os filósofos do Iluminismo francês, igual que certo
número de moralistas ingleses, aspiravam a separar a ética da metafísica e da teología. É verdade
que suas ideias morais diferiam consideravelmente, pois iam, por exemplo, desde o idealismo
ético de Diderot basta o trivial utilitarismo da Mettrie. Mas estavam mais ou menos de acordo
em tentar pôr a moralidade sobre seus próprios pés, por assim o dizer. Esta é realmente a
significação da afirmação de Bayle segundo a qual é perfeitamente possível um estado de ateus,
bem como do acrescentado da Mettrie segundo o qual isso não é só possível, senão também
desejável. Seria, de todos modos, incorreto, dizer que todos os philosophes compartilhassem
esse ponto de vista. Em opinião de Voltaire, por exemplo, se Deus não existisse teria que o
inventar precisamente em bem da harmonia moral da sociedade. Mas, em geral, a filosofia do
Iluminismo continha a tese de uma separação da ética respecto de considerações metafísicas e
teológicas. Coisa, por suposto, aberta à discussão é a de se tal separação é sustentável ou não.

Temos de recordar, por último, que a filosofia do século XVIII, na França igual que na
Inglaterra, foi principalmente faz de homens que não eram professores de filosofia nas
universidades e que frequentemente tiveram interesses extrafilosóficos. Hume, por exemplo, não
foi menos historiador que filósofo. Voltaire escreveu dramas. Maupertuis realizou uma
expedição ao Ártico com a intenção de determinar a forma da Terra nos pólos mediante a
medição exata de um grau de latitude. D’Alembert foi um matemático eminente. Montesquieu
e Voltaire tiveram certa importância no desenvolvimento da historiografía. A Mettrie era
médico. No século XVIII encontramo-nos ainda em tempos nos quais algum conhecimento de
ideias filosóficas se considerava como exigência cultural básica, e a filosofia não se tinha
convertido em um reservado acadêmico. Seguia tendo, ademais, uma conexão clara entre a
filosofia e as ciências, conexão que foi inclusive uma caraterística muito geral do pensamento
filosófico francês.

2. O escepticismo de Bayle.

Entre os escritores franceses que prepararam o caminho para o Iluminismo na França o mais
influente foi talvez Pierre Bayle (1647-1706), autor do famoso Dictionnaire historique et
critique (1695-1697). Educado como protestante, Bayle se fez católico e depois voltou ao
protestantismo. Mas pese a sua definitiva adesão à Igreja Reformada, sempre esteve convencido
de que os católicos não tinham o monopólio da intolerância. E durante sua estância em
Rotterdam, onde viveu a partir de 1680, defendeu a tolerância e atacou ao teólogo calvinista
Jurieu por sua atitude intolerante.
Em opinião de Bayle as controvérsias teológicas da época eram confusas e careciam de
interesse. Tome-se, por exemplo, a controvérsia a respeito dos relacionamentos entre a graça e
o livre albedrío. Tomistas, jansenistas e calvinistas unem-se todos neste ponto contra o
molinismo. E não há realmente diferença fundamental entre eles. Mas os tomistas clamam que
não são “jansenista”, os jansenistas repudian aos calvinistas, e estes condenam a uns e outros.
Pelo que faz aos molinistas, recorrem a argumentos sofísticos em seu desejo de mostrar que a
doutrina de San Agustín é diferente da dos jansenistas. Em general, os seres humanos orgulham-
se demasiado de pensar que têm diferenças quando não as têm, e tendem demasiado a ver
conexões indisolubles entre posições diferentes que não as têm. Muitas controvérsias devem sua
vida e seu vigor ao preconceito e à falta de julgamento claro.

Mas mais importante que as opiniões de Bayle a respeito das controvérsias no campo da
teología dogmática é o que opina a respeito da metafísica e a teología natural ou filosófica. Pensa
que a razão humana está mais capacitada para descobrir erros que para achar verdade positiva,
e que isto pode ser dito particularmente quando se trata de metafísica. Reconhece-se
comummente, por exemplo, que todo filósofo tem direito a criticar qualquer prova da existência
de Deus, sempre que não negue que a existência de Deus pode ser provado de um modo ou
outro. Mas, em realidade, todas as provas conhecidas da existência de Deus foram submetidas a
uma crítica que as destruiu. Também não resolveu ninguém o problema do mau. E nada disso é
surpreendente. Pois não é possível conseguir uma reconciliação da existência do mau no mundo
com a afirmação de um Deus infinito, omnisciente e omnipotente. Os maniqueos davam com
sua filosofia dualista uma explicação do mau muito superior a qualquer explicação proposta pela
ortodoxia. Mas, ao mesmo tempo, a hipótese metafísica dos maniqueos era absurda. Pelo que
faz à imortalidade da alma, não se dispôs nunca de prova evidente.

Bayle não afirmava que as doutrinas da existência de Deus e a imortalidade da alma fossem
falsas. O que fazia era situar a fé fosse do âmbito da razão. Mas esta afirmação requer certas
precisões. Pois Bayle não sustentava simplesmente que as verdades religiosas sejam
insusceptibles de prova racional, ainda não contradizendo à razão, senão que pensava mais bem
que ditas verdades contêm muita coisa que repugna à razão. Por isso acrescentava, sinceramente
ou não, que tem bem mais mérito o aceitar a revelação. Em qualquer caso, se as verdades da
religião pertencem à esfera do não-racional, então não tem o menor interesse se dedicar à
argumentación e a controvérsia teológicas. A tolerância deve substituir à controvérsia.

Há que observar que Bayle não separava só a religião da razão, senão também a religião da
moralidade. Isto é, Bayle fazia questão de que é um grande erro supor que as convicções e as
motivações religiosas são necessárias para levar uma vida moral. Motivos não-religiosos podem
ser tão eficazes ou mais que os religiosos. E seria perfeitamente possível dispor de uma
sociedade moral composta por gentes que não cressem na imortalidade, nem sequer em Deus.
Após tudo, diz Bayle em seu artigo sobre os saduceos no Dictionnaire, os saduceos, que não
criam na resurrección, eram melhore que os fariseos, os quais sim achavam. A experiência da
vida não indica que tenha uma conexão indisoluble entre a crença e a prática. Assim chegamos
ao conceito do ser humano moral e autônomo que não precisa crença religiosa para ter uma vida
virtuosa.
Outros escritores do Iluminismo francês, como Diderot, utilizaram largamente o
Dictionnaire de Bayle, que também teve sua influência no Iluminismo alemão, a Aufklärung.
Em 1767, Frederick o Grande escrevia a Voltaire que Bayle começava a batalha, que lhe tinham
seguido alguns filósofos ingleses e que Voltaire estava destinado à terminar.

3. Fontenelle.

Bernard Lhe Bovier de Fontenelle (1657-1757) é sobretudo conhecido como divulgador de


ideias científicas. Começou sua carreira literária com uma peça teatral que não teve sucesso e
outras produções literárias. Cedo deu-se conta de que a sociedade da época aceitaria
gostosamente exposições claras e inteligibles da nova física. Sua tentativa de satisfazer esta
necessidade teve tal sucesso que Fontenelle se converteu em secretário da Académie dê Sciences.
Em general Fontenelle defende a física cartesiana, e em suas Entretiens sul a pluralité dê mondes
(1686) popularizó as teorias astronómicas de Descarte. Mas não ignorou a importância de
Newton, e em 1727 publicou um Elogio de Newton. De todos modos, defendeu a teoria
cartesiana dos torbellinos em seu Théorie dê tourbillons cartésiens (1752) e atacou o princípio
newtoniano de gravitación, que lhe parecia conter a postulación de uma entidade oculta. As
notas manuscritas que se encontraram em seu estudo a sua morte põem em claro que durante a
última parte de sua vida se ia orientando determinadamente para o empirismo. Todas nossas
ideias se reduzem em última instância aos dados da experiência sensível.

Além de ajudar a difundir o conhecimento das ideias científicas na França do século XVIII,
Fontenelle contribuiu também indiretamente ao crescimento do escepticismo respecto das
verdades religiosas. Publicou, por exemplo, opúsculos a respeito da origem das Fábulas e a
História dos Oráculos. No primeiro recusava a ideia de que os mitos ou fábulas se devam à
faculdade imaginativa e não à inteligência. Os mitos gregos, por exemplo, nasceram do desejo
de explicar os fenômenos, foram o produto da inteligência, embora a imaginação tivesse seu
papel em sua elaboração. A inteligência do homem não era em épocas antigas essencialmente
diferente da inteligência do homem moderno. Igual o homem primitivo que o moderno tentam
explicar os fenômenos; reduzir o desconhecido ao conhecido. A diferença entre um e outro
consiste em isto: nos tempos antigos o conhecimento positivo era escasso, e o espírito via-se
obrigado a recorrer a explicações mitológicas. Em mudança, no mundo moderno o
conhecimento positivo acumulou-se em tal medida que a explicação científica vai ocupando o
local da mitológica. É óbvio o que implica essa tese, embora Fontenelle não o formule
explicitamente.

Em seu escrito a respeito dos oráculos Fontenelle mantém que não há razão de importância
para afirmar que os oráculos paganos se devessem à atividade de demônios ou que ficassem
reduzidos ao silêncio pela vinda de Cristo.

O argumento em favor do poder e a divinidad de Cristo que consiste em dizer que os oráculos
paganos se reduziram ao silêncio carece, por tanto, de todo fundamento histórico. O ponto em
discussão não tem, certamente, grande importância; mas parece dito implicitamente que os
apologetas cristãos recorrem habitualmente a argumentos sem valor.
De todos modos, Fontenelle não era ateu. Sua ideia era que Deus se manifesta a si mesmo
no sistema da natureza, governado por leis, e não na história, na qual reinam a paixão humana e
o capricho. Dito de outro modo: para Fontenelle Deus não é o Deus de nenhuma religião
histórica, o que se revela na história e dá origem aos sistemas dogmáticos, senão o Deus da
natureza, revelado na concepção científica do mundo. Sem dúvida teve ateus entre os filósofos
franceses do século XVIII; mas foi bem mais comum o deísmo, ou teísmo, como o chamou
Voltaire, embora o ateísmo se desse mais frequentemente entre os franceses que entre seus
contemporâneos ingleses.

4. Montesquieu e seu estudo das leis.

Observou-se já que os filósofos do Iluminismo francês aspiravam a entender a vida social e


política do homem. Uma das obras mais importantes neste terreno é o tratado de Montesquieu
sobre a lei. Charles de Sécondat (1689-1755), barón da Brède et de Montesquieu, era entusiasta
da liberdade e inimigo do despotismo. Em 1721 publicou seus Lettres persanes, sátira das
condições políticas e eclesiásticas da França. De 1728 a 1729 esteve na Inglaterra, onde
concebeu grande admiração por certos rasgos do sistema político inglês. Em 1734 publicou seus
Considérations sul cause-lhes da grandeur et da décadence dê Romains. Em 1748, por último,
apareceu sua obra sobre a lei, De l’esprit dê lois, fruto de uns dezessete anos de trabalho.

Nesta última obra empreende Montesquieu um estudo comparativo da sociedade, o direito e


o governo. Seu conhecimento factual não era o suficientemente amplo e preciso como para lhe
permitir realizar uma empresa concebida tão largamente; mas a empresa mesma, esse estudo
sociológico comparado era de importância. É verdade que Montesquieu tinha alguns
predecessores. Aristóteles sobretudo, que iniciava a recopilación de estudos a respeito de um
grande número de constituições gregas. Mas o projeto de Montesquieu tem que entender à luz
da filosofia contemporânea. Montesquieu aplicava ao campo da política e o direito o método
empírico e inductivo que outros filósofos estavam aplicando a outros campos.

A intenção de Montesquieu não estribaba, empero, em descrever simplesmente os


fenômenos sociais, políticos e jurídicos, ou em registrar e descrever grandes números de fatos
particulares. Desejava compreender os fatos, usar o estudo comparativo dos fenômenos como
base para um estudo sistemático dos princípios do desenvolvimento histórico. “Antes de mais
nada examinei aos homens, e cheguei à convicção de que nesta infinita diversidade de leis e
costumes não estão exclusivamente guiados por seus caprichos. Enuncié princípios e vi que os
casos particulares encaixavam com eles como por si mesmos, que as histórias de todas as nações
não são senão as consequências (desses princípios) e que toda lei particular está unida a outra
ou depende de outra mais geral.”[1] Por conseguinte, Montesquieu propunha-se seu tema não
com o espírito do simples sociólogo positivista, senão mais bem como um filósofo da história.

Considerada segundo um de suas feições, a teoria da sociedade, o governo e a lei proposta


por Montesquieu é uma série de generalizações, com frequência muito apressadas, de dados
históricos. Os diferentes sistemas de leis positivas que se dão em diferentes sociedades políticas
são relativos a uma variedade de fatores, como o caráter do povo, a natureza e os princípios das
forma de governo, o clima, as condições econômicas, etc. A totalidade desses relacionamentos
constitui “o espírito das leis”. E o que Montesquieu quer examinar é esse espírito.
Montesquieu fala primeiro do relacionamento das leis com o governo. Divide o governo em
três classes, “republicano, monárquico e despótico”.[2] Uma república pode ser uma democracia,
se é o povo o que possui o poder supremo, ou uma aristocracia, se só uma parte do povo possui
o poder supremo. Em uma monarquia o príncipe governa de acordo com certas leis fundamentais
e há em geral “poderes intermédios”. Em um estado despótico não há leis fundamentais nem
“depositarios” delas. “Por isso costuma ter nesses países tanta influência a religião, porque
constitui uma espécie de depositario permanente, e se isso não pode ser dito da religião, será
verdadeiro dos costumes que se respeitam como se fossem leis.”[3] O princípio do governo
republicano é a virtude cidadã; o do monárquico é a honra; o do despotismo é o temor. Dadas
essas forma de governo e seus princípios, prevalecerão provavelmente certos tipos de sistema
jurídico. “Entre a natureza e a forma de governo há esta diferença, a saber, que sua natureza é
aquilo pelo qual se constitui, e seu princípio aquilo pelo qual obra. A uma é sua estrutura
particular, e o outro é as paixões humanas que o põem em movimento. E as leis têm de ter em
conta tanto o princípio quanto a natureza da cada governo.”[4]

descrevi a teoria de Montesquieu como se não pretendesse ser mais que uma generalização
empírica. E uma das objeciones óbvias contra ela, quando lha interpreta assim, é que sua
classificação é tradicional e artificial, muito inadequada como descrição dos dados históricos.
Mas é importante observar que Montesquieu está falando de tipos de governo ideais. Assim, por
exemplo, por trás de todo despotismo existente podemos discernir um tipo ideal de governo
despótico. Do qual não se segue em modo algum que todo despotismo dado vá encarnar
fielmente esse tipo ideal ou charuto em sua estrutura ou em seu “princípio”. A teoria tipológica
não nos autoriza a inferir que em qualquer república dada o princípio operativo vá ser a virtude
cidadã, ou que em qualquer despotismo o princípio operativo da conduta seja o temor. Mas na
medida em que uma forma de governo não encarna seu tipo ideal se diz que é imperfecta. "Tais
são os princípios dos três governos, o qual não quer dizer que em tal ou qual república os homens
sejam virtuosos, senão que deveriam o ser. Nem prova que em uma determinada monarquia a
gente tenha o sentido da honra, nem que em um determinado estado despótico a gente tenha uma
sensação de medo, senão que assim deveria ser. Pois sem essas qualidades o governo será
imperfecto.”[5] Montesquieu pode dizer, portanto, que baixo uma forma dada de governo teria
que encontrar certo sistema de leis e não o que efetivamente se encontra. O legislador iluminista
velará porque as leis correspondam ao tipo de sociedade política; mas a correspondência não
será um dado necessário.

Afirmações análogas podem ser feito a respeito do relacionamento entre as leis e as


condições climáticas e econômicas. O clima, por exemplo, ajuda a formar o caráter e as paixões
de um povo. O caráter dos ingleses difere do dos sicilianos. E as leis “deveriam ser adaptado ao
povo para o qual se promulgan, de tal modo que as de uma nação resultassem muito
improvávelmente apropriadas para outra”.[6] Montesquieu não diz que o clima e as condições
econômicas determinam sistemas de leis de tal modo que não seja possível um controle
inteligente dos mesmos. Senão que exercem uma influência poderosa sobre as forma de governo
e os sistemas jurídicos; essa influência não é como a de um hado determinante. O legislador
prudente adaptará a lei às condições climáticas e econômicas. Mas isso quer dizer, por exemplo,
que em certas circunstâncias terá que reagir conscientemente contra os efeitos adversos do clima
sobre o caráter e a conduta. O homem não é simples brinquedo de condições e fatores
infrahumanos.

Talvez seja correto distinguir duas ideias importantes no enquadramento da teoria de


Montesquieu. Em primeiro lugar, a ideia dos sistemas jurídicos como resultado de complexos
fatores empíricos. Aqui temos uma generalização a partir de dados históricos, a qual pode ser
usado como hipóteses para uma ulterior interpretação da vida social e política do homem. Em
segundo local, a ideia de ideais operativos nas sociedades humanas. A tipologia de Montesquieu,
pese a sua originaria estrechez, pode, portanto, entender no sentido da tese de que toda sociedade
política é a encarnación imperfecta de um ideal que foi um fator formativo implícito em seu
desenvolvimento e para o qual tende, ou do qual se está separando. A tarefa do legislador
prudente consistirá em discernir a natureza desse ideal operativo e em adaptar a legislação a sua
realização progressiva. Se interpreta-se deste modo, a tipologia de Montesquieu apresenta-se
como algo mais que um resto das classificações gregas de constituições. Pode ser dito que
Montesquieu está tentando expressar uma genuína visão histórica com a ajuda de algumas
categorias antiquadas.

Mas se expomos deste modo a teoria de Montesquieu, estaremos admitindo que o autor se
interessava só pelo entendimento dos dados históricos e que se satisfazia com um relativismo
quanto ao assunto político-jurídico mesmo. Os sistemas jurídicos são resultado de diferentes
complexos de fatores empíricos. Na cada sistema podemos ver um ideal operativo em ação. Mas
não há nenhum critério absoluto por referência ao qual o filósofo possa comparar e estimar
diferentes sistemas políticos e jurídicos.

Mas esta interpretação seria equívoca em duas feições. Em primeiro lugar, Montesquieu
admite leis de justiça inmutables. Deus, o criador e conservador do mundo, estabeleceu leis ou
direitos que governam o mundo físico.[7] E “o homem assim que ser físico está governado por
leis invariáveis como os demais corpos”.[8] Mas assim que ser inteligente ou racional, está
submetido a leis que é capaz de violar. Algumas destas leis são obra sua; mas outras não
dependem dele. “Portanto, temos que reconhecer relacionamentos de justiça que são anteriores
à lei positiva que as promulga.”[9] “Dizer que não há nada justo ou injusto senão o mandado e
proibido pelas leis positivas é o mesmo que dizer que dantes de descrever um círculo não todos
as rádios eram iguais.”[10] Supondo a ideia de um estado de natureza, Montesquieu observa que
dantes de todas as leis positivas se encontram “aquelas leis de natureza, assim chamadas porque
tomam inteiramente sua força de nosso ser”.[11] E para conhecer essas leis temos de considerar
o homem tal como era dantes do estabelecimento da sociedade. “As leis admitidas em um estado
assim seriam as leis de natureza.”[12] É discutible se esta ideia harmoniza bem com as demais
feições da teoria de Montesquieu. Mas não há dúvida de que este sustentou a existência de uma
lei moral natural anterior a todas as leis positivas estabelecidas pela sociedade política. Podemos,
pois, dizer que seu tratado a respeito da lei aponta a um tratamento puramente empírico e
inductivo das instituições políticas e legais, enquanto sua teoria da lei ou o direito natural é um
resto de anteriores filosofias do direito. Mas isso não tira que dito resto seja um elemento real
do pensamento de Montesquieu.

Em segundo local, Montesquieu era um entusiasta da liberdade, e não um observador


distanciado dos fenômenos históricos. E assim, nos livros XI e XII De l’esprit dê lois se põe a
analisar as condições da liberdade política, com o orçamento de que a melhor constituição é a
liberal. Sua análise pode consistir formalmente em dar significação à palavra libertem segundo
seu uso em contextos políticos e em examinar logo as condições nas quais lha pode conseguir e
manter. Em teoria isto pode ser, por suposto, também faz de um filósofo político que não tenha
afición alguma à liberdade política ou que seja indiferente ao problema. Mas Montesquieu tem
presente durante sua análise a constituição inglesa, que ele admirava, e o sistema político
francês, que lhe desagradava. De maneira que sua análise da liberdade política não é só uma
análise abstrata, ao menos pelo que faz a seu espírito e a seu motivo. Pois o que se pergunta é
como tem de se corrigir o sistema francês para que possa albergar e manter a liberdade.

A liberdade política, pensa Montesquieu, não consiste em uma falta total de vínculos, senão
“só em poder fazer o que deveríamos querer fazer e em não estar obrigados a fazer o que não.
deveríamos querer fazer”.[13] “A liberdade é o direito a fazer todo o que as leis permitem.”[14]
Em uma sociedade livre nenhum cidadão vê-se impedido de fazer de um modo permitido pela
lei, e nenhum é obrigado a fazer de um modo determinado se a lei lhe permite seguir sua própria
inclinação. É possível que essa descrição da liberdade não resulte muito iluminadora; mas
Montesquieu precisa depois que a liberdade implica a separação de poderes. Isto é: os poderes
legislativo, executivo e judicial não devem ser encarnado na mesma pessoa ou no mesmo grupo
de pessoas. Têm que estar separados ou ser independentes a cada um dos demais, de modo que
possam fazer como contrapesos os uns dos outros e constituir uma proteção contra o despotismo
e o abuso tiránico do poder.

Montesquieu diz explicitamente que chegou a essa definição das condições da liberdade
política através de um exame da constituição inglesa. Em estados diferentes teve e há outros
ideais operativos. O ideal, a meta de Roma era o aumento do domínio; o do estado judeu era a
preservación e intensificação da religião; o do estado chinês era a ordem pública. Mas há uma
nação, Inglaterra, que tem como objetivo direto de sua constituição a liberdade política. “Não
faz falta muito esforço para descobrir a liberdade política em uma constituição. E já que
podemos ver onde existe, por que teríamos de seguir sua busca?”[15]

Alguns críticos disseram que Montesquieu vê a constituição inglesa com os olhos de teóricos
políticos tais como Harrington e Locke, e que quando falava da separação de poderes como
rasgo distintivo da constituição inglesa ignorava ou não entendia que a Revolução de 1688
impunha definitivamente a supremacía do Parlamento. Dito de outro modo: um homem que se
tivesse baseado exclusivamente na observação da constituição inglesa não diria que a chamada
separação de poderes fosse sua caraterística principal. Mas embora Montesquieu visse e
interpretasse a constituição inglesa à luz de uma teoria a respeito dela, e embora a frase
“separação de poderes” não fosse uma descrição adequada da situação concreta, parece claro
que essas palavras chamavam ao menos a atenção a respeito de rasgos reais daquela. É verdade
que os juízes não constituíam um “poder” no sentido em que o constituía o legislativo; mas, por
outra parte, não estavam submetidos no exercício de suas funções ao controle caprichoso do
monarca ou de seus ministros. Pode ser dito com razão que o que Montesquieu admirava na
constituição inglesa era o resultado de um longo processo de desenvolvimento, e não da
aplicação de uma teoria abstrata a respeito da “separação de poderes”. Mas também não estava
tão hipnotizado por sua fórmula como para exigir, uma vez interpretada a constituição inglesa
como separação de poderes, que fora servilmente copiada em seu país. “Como vou ter esse
propósito, eu que penso que o excesso de razão não é sempre desejável, e que os homens se
adaptam quase sempre melhor aos termos médios que aos extremos?”[16] Montesquieu desejava
uma reforma do sistema político francês, e a observação da constituição inglesa sugeriu-lhe
modos para praticar essa reforma sem uma revolução drástica e violenta.

As ideias de Montesquieu a respeito do equilíbrio de poderes tiveram influência na América


e na França, como se vê pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1791. Mas
posteriormente deu-se mais importância a sua inaugural obra no terreno do estudo empírico
comparativo das sociedades políticas e dos relacionamentos entre as forma de governo, os
sistemas jurídicos e outros fatores condicionantes.

5. Maupertuis.

Na seção dedicada a Fontenelle atendeu-se a seu defesa das teorias físicas de Descarte. A
substituição de Descarte por Newton pode ser iluminista com a atividade de Pierre Louis Moreau
de Maupertuis (1698-1759), o qual atacou a teoria cartesiana dos torbellinos e defendeu a
newtoniana da gravitación. Seu defesa das teorias de Newton contribuiu a sua eleição de fellow
da Royal Society. Em 1736 dirigiu uma expedição a Laponia empreendida, por desejo de Luis
XV, para realizar medições exatas do grau de latitude com objeto de determinar a forma da
Terra. Os resultados dessas observações, publicados em 1783, confirmaram a teoria newtoniana
segundo a qual a Terra tinha que ser algo achatada pelos pólos.

Em alguns respectos as ideias filosóficas de Maupertuis foram empiristas e até positivistas.


Em 1750, atuando de presidente da Academia Prusiana de Berlim por convite de Frederick o
Grande, publicou um Ensaio de cosmología. Nesta obra fala, por exemplo, do conceito de força,
que nasce em nossa experiência da resistência que nos opõem os obstáculos físicos. "A palavra
força expressa em seu sentido próprio uma verdadeira sensação que experimentamos quando
queremos mover um corpo que estava em repouso, ou mudar ou deter o movimento de um corpo
que estava em movimento. A percepción que então temos está tão constantemente acompanhada
por uma mudança no repouso ou o movimento do corpo, que não podemos evitar achar que é a
causa desta mudança. Por isso quando vemos alguma mudança no estado de repouso ou
movimento de um corpo pensamos indefectiblemente que essa mudança é o efeito de alguma
força. E se não temos sensação alguma de esforço feito por nós para produzir essa mudança e
vemos outros corpos aos que atribuir o fenômeno, situamos a força neles, como se a eles
pertencesse.”[17] Em sua origem, a ideia de força não é mais que “um sentimento da alma”[18] e,
como tal, não pode pertencer aos corpos aos quais a atribuímos. Mas não é perigoso falar de
uma força motriz presente aos corpos, sempre que recordemos que se trata só de “ uma palavra
inventada para cobrir nosso (defeito de) conhecimento, e que só significa um resultado de
fenômenos”.[19] Dito de outro modo: não devemos permitir uma confusão devida ao uso da
palavra força, dando em pensar que exista uma entidade oculta nomeada por ela. A força mede-
se “só por seus efeitos aparentes”. Na ciência física não saímos nunca do reino dos fenômenos.
E os conceitos fundamentais da mecânica podem ser interpretado a base das sensações.
Maupertuis achou efetivamente que a impressão de conexão necessária dada pelos princípios
matemáticos e mecânicos pode ser explicado de modo empirista, sobre a base, por exemplo, da
associação de ideias e o costume.
Mas ao mesmo tempo Maupertuis propunha uma concepção teleológica das leis da natureza.
O princípio fundamental da mecânica é o de “ a menor quantidade de ação” ou “ação
mínima”.[20] Este princípio diz que “quando algo muda de local na natureza, a quantidade de
ação utilizada para essa mudança é sempre a menor possível. Deste princípio deduzimos as leis
do movimento”.[21] Dito de outro modo: a natureza utiliza sempre a menor quantidade possível
da força ou energia necessária para conseguir sua finalidade. Esta lei da ação mínima era já
utilizada pelo matemático Fermat em seu estudo da ótica; mas Maupertuis deu-lhe uma aplicação
universal. Samuel Konig, um discípulo de Leibniz, sustentou que este se tinha adiantado a
Maupertuis na formulación dessa lei, e o filósofo francês tentou refutar essa afirmação. Mas a
questão da prioridade não tem por que nos interessar aqui. A questão é que Maupertuis se
considerava autorizado a sustentar que o sistema teleológico da natureza mostra que esta é obra
de um criador omnisciente. O princípio cartesiano da conservação da energia parece separar o
mundo do governo da Divinidad. “Mas nosso princípio, mais conforme com as ideias que
devemos ter das coisas, deixa ao mundo constantemente precisado do poder do Criador, e é uma
consequência necessária do muito sábio uso desse poder.”[22]

Na edição de 1756 de suas Obras incluiu Maupertuis um Système da Nature, uma versão
latina do qual publicava já baixo o seudónimo de Baumann com data 1751. Neste ensaio negava
o filósofo a tajante distinção cartesiana entre o pensamento e a extensão. No fundo, diz
Maupertuis,[23] a repugnancia que se sente a atribuir inteligência à matéria se deve simplesmente
ao fato de que sempre supomos que a inteligência tem que ser como a nossa. Mas, em realidade,
há uma infinidad de graus de inteligência, desde a vadia sensação até os processos intelectuais
claros. E a cada entidade possui seu grau de inteligência. Maupertuis propunha, pois, certa forma
de hilozoísmo segundo a qual até as coisas materiais mais baixas possuem alguma vida e
sensibilidade.

Por causa dessas doutrinas Maupertuis foi às vezes classificado entre os materialistas mais
crasos do Iluminismo francês, que se mencionarão depois. Mas o filósofo opôs-se à interpretação
de sua doutrina por Diderot, que a entendeu como um materialismo destructivo de toda base
argumentativa em favor da existência de Deus. Em sua Resposta às Objeciones do senhor
Diderot, que acrescentou em adendo à edição do Système da Nature de 1756, Maupertuis
observa que quando Diderot deseja substituir a atribuição de percepciones elementares às coisas
materiais pela de sensações análogas às do tacto não faz senão jogar com as palavras, pois a
sensação é uma forma de percepción, e as percepciones elementares não são o mesmo que as
percepciones claras e diferentes das que nós desfrutamos. Não há diferença real entre o que diz
“Baumann” e o que Diderot queira que diga. É óbvio que essas observações não resolvem a
questão de se Maupertuis é um materialista ou não. Mas a questão é difícil. O filósofo sustentou
que os graus superiores da “percepción” se devem a combinação de átomos ou partículas que
desfrutam de percepción elementar, mas são pontos físicos, não pontos metafísicos como as
mónadas de Leibniz. Não há dúvida de que essa é uma tese materialista. Mas ao mesmo tempo
há que ter presente que pára Maupertuis são fenômenos, representações psíquicas, não só as
qualidades, senão inclusive a extensão. E Brunet pôde sustentar [24] que em algumas feições a
filosofia de Maupertuis se parece ao inmaterialismo de Berkeley. O fato é que enquanto os
escritos de Maupertuis contribuíram sem dúvida ao desenvolvimento do materialismo, sua
atitude pessoal foi demasiado equívoca para nos permitir o classificar sem mais entre os filósofos
materialistas do Iluminismo francês. Pelo que faz à interpretação de Diderot, é evidente que
Maupertuis suspeitou que o crítico fingia ao falar das “terríveis” consequências da hipótese de
“ Baumann”, e que o que para valer desejava era difundir ditas consequências as recusando
verbalmente.

6. Voltaire e o deísmo.

Temos visto que Fontenelle e Montesquieu achavam que o sistema cósmico manifesta a
existência de Deus. Também Montesquieu cria em Deus. O mesmo ocorre no caso de Voltaire.
Seu nome está muito vinculado com seus violentos e sarcásticos ataques não só à Igreja Católica
como instituição e aos defeitos dos eclesiásticos, senão também às doutrinas cristãs. Mas isto
não altera o fato de que Voltaire não foi um ateu.

François Marie Arouet (1694-1778), que depois mudou de nome e se assinou M. de Voltaire,
estudou no colégio dos jesuitas de Louís-lhe-Grand em Paris. Após duas visitas à Bastilla chegou
a Inglaterra em 1726 e viveu ali até 1739. Durante sua estância na Inglaterra familiarizou-se com
os escritos de Locke e Newton e desenvolveu a admiração pela relativa liberdade da vida inglesa
que se manifesta em suas Cartas filosóficas,[25] Em outro local observa Voltaire que Newton,
Locke e Clarke seria perseguidos na França, encarcerados em Roma e queimados em Lisboa.
Mas sua fita-cola pela tolerância não lhe impediu expressar sua viva satisfação ao ouvir em 1761
que o governo anticlerical de Lisboa queimava a três curas.

Em 1734, Voltaire retirou-se a Cirey e escreveu ali o Tratado de Metafísica, que considerou
mais prudente não publicar. Sua Filosofia de Newton apareceu em 1738. Voltaire recebeu a
maioria de suas ideias filosóficas de pensadores como Bayle, Locke e Newton, e teve sem
nenhuma dúvida muito sucesso ao as apresentar em escritos lúcidos e agudos, as fazendo
compreensíveis para a sociedade francesa. Mas não foi um filósofo profundo. Embora influído
por Locke, não era um filósofo da mesma categoria, e embora escreveu envelope Newton não
era ele mesmo um físico matemático.

Em 1750, Voltaire passou a Berlim, convidado por Frederick o Grande, e em 1752 compôs
seu sátira de Maupertuis, Doutor Akakia. A sátira desagradou a Frederick, e ao enrarecerse assim
os relacionamentos entre o filósofo e seu real mecenas, Voltaire deixou Berlim em 1753 e se
transladou a Genebra. Seu importante Essai sul lhes mœurs apareceu em 1756.

Voltaire adquiriu uma finca em Ferney em 1758. Cándido apareceu em 1759, o Tratado da
tolerância em 1763, o Dicionário filosófico em 1764, O filósofo ignorante em 1766, um livro
sobre Bolingbroke em 1767, a Profissão de fé teísta em 1768. Em 1778 foi a Paris para a estreia
de sua obra Irène. Acolheu-se-lhe com uma ovação tremenda e morreu pouco depois na mesma
cidade.

Na edição Beuchot de 1829-1834, as obras completas de Voltaire compõem uns setenta


volumes. Foi filósofo, dramaturgo, poeta, historiador e novelista. Como homem tinha sem
nenhuma dúvida dote sobresalientes. Uma imponente dose de sentido comum. E seu apelo em
favor de uma reforma da administração da justiça, junto de seus esforços por revelar desordens
da justiça — embora sua inspiração não fora sempre clara — mostram alguma sensibilidade
humana. Mas em general seu caráter não foi muito admirável. Era vaidoso, vingativo, cínico e
sem escrúpulos intelectuais. Seus ataques a Maupertuis, Rousseau e outros não contribuem a seu
prestígio. Mas nada do que possamos dizer a respeito dos defeitos de seu caráter pode anular o
fato de que Voltaire resume brilhantemente em seus escritos o espírito do Iluminismo francês.

Em sua obra a respeito dos elementos da filosofia newtoniana Voltaire sustenta que o
cartesianismo conduz derechamente ao spinozismo. “Conheço muita gente à qual o
cartesianismo moveu a não admitir mais Deus que a imensidão das coisas, enquanto, pelo
contrário, não vi newtoniano algum que não fosse teísta no mais estrito sentido.”[26] “Toda a
filosofia de Newton leva necessariamente ao conhecimento de um Ser Supremo que criou todas
as coisas e o dispôs livremente tudo.”[27] Se existe o vazio, a matéria tem que ser finita. E se é
finita, é contingente e dependente. Ademais, a atração e o movimento não são qualidades
essenciais da matéria. Por tanto, têm que ter sido implantadas nela por Deus.

Em seu Tratado de Metafísica Voltaire oferece duas linhas de argumentación em favor da


existência de Deus. A primeira é uma argumentación a partir da causalidad final. O mundo
compara-se com um relógio, e Voltaire sustenta que igual que ao olhar um relógio cujas
manecillas assinalam a hora um conclui que foi fabricado por alguém com a finalidade de contar
o tempo, assim também há que inferir da observação da Natureza que esta foi feita por um
Criador inteligente. O segundo argumento parte da contingencia segundo as linhas traçadas por
Locke e Clarke. Mas mais adiante Voltaire prescindió deste segundo argumento e contentou-se
com o primeiro. Ao final do artigo sobre ateísmo de seu Dicionário filosófico observa que “os
geómetras que não são filósofos recusaram as causa finais, mas os verdadeiros filósofos as
admitem. E, como disse um autor conhecido, o catecismo anuncia a Deus aos meninos, enquanto
Newton o demonstra para o sábio”. E no artigo “natureza” sustenta que nenhum ensamblamiento
casual pode dar razão da universal harmonia, ou sistema. “Chamam-me natureza, mas sou arte.”

Mas embora Voltaire manteve até o final de sua vida sua crença na existência de Deus, teve
uma mudança em sua opinião a respeito dos relacionamentos entre o mundo e Deus. Ao
princípio compartilhava o otimismo mais ou menos cósmico de Leibniz e Pope. Assim fala, em
sua obra sobre Newton, do ateu que nega a Deus por causa do mau que há no mundo, e depois
observa que os termos bem e bem-estar são equívocos. “O mau respecto de ti é bom no sistema
geral.”[28] E temos de abandonar nossa conclusão a respeito da existência de Deus, conclusão à
qual a razão nos leva, só porque os lobos devoram aos borregos e as aranhas caçam às moscas?
“Não vê, pelo contrário, que essas contínuas gerações constantemente devoradas e
constantemente reproduzidas entram no plano do universo?”[29]

Mas o desastroso terremoto de Lisboa de 1755 impôs vivamente o problema do mau à


atenção de Voltaire. E este expressou sua reação à catástrofe em seu poema sobre o desastre de
Lisboa e no Cándido. No poema reafirma a liberdade divina, mas em seus escritos posteriores
fá-la necessária. Deus é a causa primeira ou suprema, que existe eternamente. Mas a noção de
causa sem efeito é absurda; portanto, o mundo tem que proceder eternamente de Deus. Não é
uma parte de Deus, e é contingente no sentido de que depende dele em sua existência. Mas a
criação é eterna e necessária. E do mesmo modo, como o mau é inseparável do mundo, é também
necessário. Portanto, depende de Deus; mas Deus não elegeu o o produzir. Só se a criação fosse
livre poderíamos tomar a Deus por responsável pelo mau.
Atendamos ao homem. Na Philosophie de Newton[30] Voltaire conta que várias pessoas que
conhecia a Locke lhe contaram que Newton admitia, em conversa com aquele, que nosso
conhecimento da natureza não é o bastante extenso para nos permitir afirmar a imposibilidad de
que Deus conceda o dom de pensar a uma coisa extensa. Parece claro que Voltaire considerava
que a teoria da alma como ser substancial imaterial é uma hipótese desnecessária. No artigo
“alma” do Dicionário filosófico sustenta que termos como "alma espiritual” são meras palavras
para encobrir nossa ignorância. Os gregos distinguiam entre alma sensitiva e alma intelectual. É
evidente que a primeira não existe, “não é senão a moção de nossos órgãos”. E a razão não pode
achar provas melhore em favor da existência da alma superior que as achadas a propósito da da
alma inferior. “Só pela fé lha pode conhecer.” Neste local Voltaire não escreve com todas as
letras que não existe uma alma espiritual e imortal, mas sua opinião fica suficientemente clara
em outros.

Pelo que faz à liberdade humana em sentido psicológico Voltaire variou de opinião. Em seu
Tratado de Metafísica[31] defendia a realidade da liberdade apelando ao depoimento imediato
da consciência, que se resiste a todas as objeciones teóricas. Na Philosophie de Newton[32]
procede, em mudança, a uma distinção. Em certos assuntos triviais, nos que não há motivo que
me incline a fazer de um modo e não de outro, pode ser dito que tenho liberdade de indiferença.
Por exemplo, posso eleger entre girar à direita ou à esquerda, e se não tenho especial inclinação
em um sentido nem especial aversão à outra possibilidade, a eleição será resultado de minha
própria volición. Como é óbvio, liberdade de “ indiferença” se toma aqui em um sentido muito
literal. Em todos os demais casos, quando somos livres temos a liberdade que se chama
espontaneidad, “ou seja, que quando temos motivos, nossa vontade está determinada por eles. E
esses motivos são sempre o resultado final do entendimento ou do instinto”.[33] Neste caso a
liberdade admite-se nominalmente, mas depois de ter traçado essa distinção Voltaire passa a
dizer que “tudo tem sua causa, portanto, tua vontade a tem. E portanto não pode ser querido
senão como consequência da última ideia que um recebeu... Por isso o prudente Locke não se
aventura a pronunciar a palavra libertem; uma vontade livre parece-lhe uma quimera. Não
conhece mais liberdade que o poder fazer o que um queira”.[34] Em resolução, “temos que
admitir que é impossível contestar às objeciones contra a liberdade como não seja mediante uma
vadia elocuencia; é um triste assunto a respeito do qual o sábio teme inclusive pensar. Só uma
reflexão pode nos consolar, a saber, que qualquer que seja o sistema que um adote, qualquer que
seja o fatalismo pelo qual se considerem determinadas nossas ações, um fará sempre como se
fosse livre”.[35] E no capítulo seguinte Voltaire propõe uma série de objeciones contra a
liberdade de indiferença.

Em seu artigo “Libertem” do Dicionário filosófico Voltaire diz redondamente que libertem
de indiferença é “uma frase sem sentido inventada por gente que tinha muito pouco”. O que um
quer está determinado por motivos, mas um é livre de fazer ou não fazer no sentido de que se
pode ou não ter o poder de realizar a ação que se deseja realizar. “A vontade não é livre, mas o
são os atos; é-se livre de fazer quando se tem o poder de fazer.” No Filósofo ignorante,[36]
Voltaire sustenta que a ideia de vontade livre é absurda, porque uma vontade livre seria uma
vontade sem razão suficiente que cairia fora do curso da natureza. Seria muito curioso que “um
pequeno animal de cinco pés de estatura” fosse uma exceção ao reino universal da lei. Faria por
casualidade: mas a casualidade não existe. “inventámos essa palavra para expressar o efeito
conhecido de uma causa desconhecida”. Pelo que faz à consciência ou sentimento da liberdade,
é perfeitamente compatível com a determinação de nossa vontade. O único que mostra é que um
pode fazer o que lhe plazca quando tem o poder de realizar a ação que desejava.

Esta afirmação de determinismo não significa que Voltaire descarte a ideia de lei moral.
expressou seu acordo com Locke a respeito da ausência de princípios morais innatos. Mas
estamos conformados por Deus de tal maneira que no curso do tempo acabamos por ver a
necessidade da justiça. Sem dúvida costumava Voltaire chamar a atenção a respeito da
variabilidad das convicções morais. Assim por exemplo, no Tratado de Metafísica[37] observa
que o que em uma região se chama virtude se chama vício em outra, e que as regras morais são
tão variáveis como as línguas e as modas. Mas ao mesmo tempo “há leis naturais respecto das
quais têm que concordar todos os seres humanos em todas as partes do mundo”.[38] Deus
facilitou ao homem verdadeiros sentimentos inalienables que são vínculos eternos e dão origem
às leis fundamentais da sociedade humana. O conteúdo da lei fundamental parece muito
restringido, e consiste principalmente em não ofender aos demais e em buscar o que é agradável
para um mesmo, sempre que isto não implique injuria aos semelhantes. Do mesmo modo que
sempre manteve uma posição deísta (ou teísta, como ele dizia), assim também Voltaire evitou
as últimas consequências relativistas em moral. É verdade que não era uma caraterística de
Voltaire o profundo sentimento religioso que pode ser encontrado em Pascal; nem também não
o exaltado idealismo moral. Mas recusava o relativismo ético extremo igual que o ateísmo.

dissemos que Voltaire adotou uma posição determinista pelo que faz à liberdade humana em
sentido psicológico. Ao mesmo tempo era um resolvido defensor da liberdade política. Ao igual
que Locke, cria em uma doutrina dos direitos humanos que devia ser respeitada pelo estado; e,
ao igual que Montesquieu, admirava as condições de liberdade existentes na Inglaterra. Mas é
necessário saber que entendia por liberdade política. Em primeiro lugar e acima de todo pensava
na liberdade de pensamento e de expressão. Dito de outro modo, o que mais lhe preocupava era
a liberdade para os philosophes, pelo menos para os que coincidissem com Voltaire. Não era um
democrata, no sentido de que desejasse promover o poder popular. É verdade que sustentava a
tolerância, considerada necessária para o progresso científico e econômico, e que lhe repugnava
o despotismo tiránico. Mas ria-se das ideias de Rousseau a respeito da igualdade, e seu ideal é
uma monarquia benévola ilustrada pela influência dos filósofos. Desconfiava dos sonhadores e
dos idealistas; e sua correspondência mostra que em sua opinião a canalla, como gostava de
chamar ao povo, seguiria sendo sempre uma canalla. Era perfeitamente possível assegurar baixo
a monarquia francesa melhore condições de liberdade e tolerância e um critério melhor para o
procedimento judicial, sempre que quebrantasse-se o poder da Igreja e que o dogma e a
superstição do Cristianismo se substituíssem pelo Iluminismo filosófico. Nunca pensou Voltaire
que a salvação pudesse vir do povo nem de uma insurrección violenta. Por conseguinte, embora
seus escritos contribuíssem a preparar o terreno para a Revolução, seria um grande erro pintar a
Voltaire como um homem que prevê a Revolução ou a promove conscientemente na forma que
realmente tomou. O inimigo de Voltaire não era o monarca, senão o clero. Não lhe interessava
liberar a constituição no sentido proposto pela “separação” ou “divisão de poderes” de
Montesquieu. Até pode ser dito que Voltaire preferia um aumento do poder da monarquia para
a libertar de influência clerical.
Essas observações não devem ser entendido no sentido de que Voltaire fosse um inimigo do
progresso. Pelo contrário, foi um dos divulgadores mais influentes dessa ideia. Mas o termo
significava para o reino da razão, progresso intelectual, cientista e econômico mais que
progresso político, se é que por este se entende a transição à democracia, ao poder do povo. Pois
em opinião de Voltaire o monarca iluminista é o que mais provavelmente promoverá o progresso
na ciência, a literatura e a tolerância das ideias.

Pese a que as teorias de Montesquieu se estudaram neste capítulo, me proponho, em


mudança, reservar as opiniões de Voltaire a respeito da história para o capítulo dedicado ao
nascimento da filosofia da história.

7. Vauvenargues.

Ao pensar no período conhecido como iluminista ou Idade da Razão, tende, naturalmente, a


imaginar uma exaltação da inteligência crítica e fria. Mas foi Hume uma das maiores figuras do
Iluminismo, o que disse que a razão é e tem de ser escrava das paixões, e o que identificou no
sentimento a base da vida moral. E na França Voltaire, ao que geralmente se retrata como
encarnación verdadeira da inteligência crítica e um tanto superficial, declarava que sem as
paixões não teria progresso humano. Pois as paixões são uma força motivadora do homem; são
as engrenagens que põem as máquinas em marcha.[39] Analogamente diz-nos/dí-nos
Vauvenargues que “nossas paixões não se distinguem de nós mesmos; algumas delas são o
inteiro fundamento e a inteira substância de nossa alma”.[40] A verdadeira natureza do homem
encontra-se nas paixões, não na razão.

Luc de Clapiers, marqués de Vauvenargues, nasceu em 1715. Desde 1733 era oficial nos
exércitos do rei; interveio em várias campanhas até que perdeu a saúde. Passou os dois últimos
anos de sua vida em Paris, amigo de Voltaire. Morreu na cidade em 1747. No ano dantes de
morrer publicava sua Introdução ao conhecimento do espírito humano, seguida pelas Reflexões
críticas a respeito de alguns poetas. A posteriores edições (póstumas) acrescentaram-se
máximas e outros escritos.

O primeiro livro da obra de Vauvenargues está dedicado ao espírito (esprit). “O objeto deste
primeiro livro é dar a conhecer por definições e reflexões fundadas em experiência as várias
qualidades dos homens que se compreendem baixo o nome de espírito. Os que estudam as causas
físicas de ditas qualidades poderão talvez falar delas com menos incerteza se se consegue neste
livro desenvolver os efeitos cujos princípios eles estudam.”[41] Vauvenargues não estava de
acordo com os que tendiam a sublinhar a igualdade de todos os espíritos. Em sua obra discute
brevemente verdadeiro número de qualidades que no caso normal são reciprocamente
excluyentes e originam diversos tipos de espírito. Também acentua o conceito de gênio, no que
vê uma combinação de qualidades normalmente independentes. “Acho que não há gênio sem
atividade. Acho que o gênio depende em grande parte de nossas paixões. Acho que nasce do
encontro de muitas qualidades diferentes e das secretas harmonias de nossas inclinações com
nossas luzes. Quando falta uma dessas condições necessárias não há gênio, ou o há só
imperfecto... A necessidade desse encontro de qualidades mutuamente independentes é
aparentemente a causa de que o gênio seja sempre tão escasso.”[42]
No segundo livro trata Vauvenargues das paixões que, “como diz o senhor Locke”,[43] se
fundam todas no prazer e a dor. Estes têm que se referir respetivamente à perfección e a
imperfección. Ou seja, o homem é naturalmente aficionado a seu ser, e se seu ser não fosse
imperfecto, senão que se desenvolvesse sempre sem obstáculo nem imperfección, não sentiria
nunca senão prazer. Mas, tal como as coisas são, experimentamos prazer ou dor, e “da
experiência desses dois contrários derivamos a ideia de bem e mau”.[44] As paixões (pelo menos
as que chegam “pelo órgão da reflexão” e não são meras impressões imediatas dos sentidos) se
fundam em “ o amor do ser ou da perfección do ser, ou no sentimento de nossa imperfección”.[45]
Há, por exemplo, pessoas nas quais o sentimento de seu imperfección é mais vivo que o da
perfección, capacidade ou poder. Há paixões como a ansiedade, a melancolia, etc. Grandes
paixões nascem da união dos dois sentimentos, o de nossa potência e o de nossa imperfección
ou debilidade. Pois “o sentimento de nossas misérias move-nos a sair de nós mesmos, e o
sentimento de nossos recursos nos anima a atuar e nos põe em esperança”.[46]

No terceiro livro Vauvenargues trata do bem e o mau morais. Temos visto que a ideia de
bem e mau se funda em experiências de prazer e dor. Mas gentes diferentes acharão prazer e dor
em coisas também diferentes. Diferirão, portanto, suas ideias de bem e mau. “Para que a
sociedade inteira tome algo por bom, isto tem de tender ao benefício de toda a sociedade. E para
que algo seja tido por mau tem de tender à ruína da sociedade. Esta é a grande caraterística do
bem e o mau morais.”[47] Já que os homens são imperfectos e não autosuficientes, precisam a
sociedade. E a vida social acarreta a fusão do interesse particular da cada qual com o interesse
geral. “Este é o fundamento de toda moralidade.”[48] Mas a busca do bem comum implica
sacrifício, e não todo mundo está espontaneamente disposto a realizar esses sacrifícios. De aqui
a necessidade da lei.

Pelo que faz à virtude e o vício, “a única definição que é digna da virtude e que fixa sua ideia
é a preferência pelo interesse geral respecto do pessoal. E ao inverso, o sacrifício egoísta da
felicidade pública pelo interesse próprio é o sinal eterno do vício”.[49] Mandeville pode sustentar
que os vícios privados são benefícios públicos e que o comércio não floresceria sem avaricia e
vaidade. Mas embora isso seja verdade em verdadeiro sentido, tem que se admitir também que
o bem produzido pelo vício vai sempre misturado com grandes males. E se consegue-se
contrapesar estes e os ter subordinados ao bem público, isso se deve à razão e à virtude.

Vauvenargues propõe consequentemente uma interpretação utilitarista da moralidade. Mas


ao igual que em seu primeiro livro dedica muita atenção ao conceito de gênio, assim também
atende no terceiro, com uma discussão especial, ao conceito da grandeza de alma. “A grandeza
de alma é um instinto sublime que move aos homens para o que é grande, de qualquer natureza
que isso seja, mas lhes dirige para o bem ou para o mau segundo suas paixões, suas luzes, sua
educação, sua fortuna, etc.”[50] A grandeza de alma é pois em si mesma moralmente indiferente.
Quando vai unida com o vício é perigosa para a sociedade (Vauvenargues menciona a Catilina),
mas segue sendo grandeza de alma. “Quando há grandeza a notamos pese a nós mesmos. Sempre
se atacou a glória do conquistador; a gente sofreu sempre por sua culpa, mas sempre lhe
respeitou.”[51] Não é surpreendente que Nietzsche, com sua concepção do super-homem que se
encontra “para além do bem e do mau”, sentisse simpatia por Vauvenargues. Mas este; por
suposto, não estava negando o que dizia a respeito do caráter social da moralidade. Estava
atendendo simplesmente à complexidade da natureza e o caráter humanos. “Há vícios que não
excluem grandes qualidades e, consequentemente, há grandes qualidades que não se relacionam
com a virtude. Reconheço esta verdade com tristeza... (Mas) os que pretendem que o homem
seja completamente bom ou completamente mau não conhecem a natureza. No homem está todo
misturado e todo limitado, e até o vício tem nele seus limites.”[52]

Entre as Máximas de Vauvenargues encontram-se bastantees lembranças óbvias de Pascal.


“A razão não conhece os interesses do coração.”[53] “Os grandes pensamentos vêm do
coração.”[54] E também encontramos nelas a insistencia no papel fundamental das paixões sobre
o qual chamámos já a atenção. “Talvez devamos às paixões as maiores excelências do
espírito.”[55] “As paixões ensinaram ao homem a razão. Na infância de todos os povos, igual que
na dos indivíduos, o sentimento precedeu sempre à reflexão e foi seu primeiro maestro.”[56]
Talvez valha a pena recordar este ponto, já que facilmente se tende a entender a Idade da Razão
como uma época na qual o sentimento e a paixão foram desprezados em favor da fria razão
analítica.

Não seria completamente correto dizer que Vauvenargues não foi um escritor sistemático
meramente pelo fato de que sua obra consta mais de brocardos que de discussões desenvolvidas.
Em sua obra a respeito do espírito humano há uma ordenação mais ou menos sistemática de seu
pensamento. No discurso preliminar indicava que as circunstâncias não lhe tinham permitido
realizar seu plano primeiro. Em qualquer caso, Vauvenargues interessava-se mais pela distinção
e a descrição das diferentes qualidades do espírito e das diferentes paixões que pela investigação
das causas dos fenômenos psíquicos, como ele dizia. Temos de dirigir-nos/dirigí-nos a Condillac
para encontrar um estudo do modo como as operações e funções mentais se derivam de um
fundamento primitivo.

8. Condillac e o espírito humano.

Étienne Bonnot de Condillac (1715-1780) começou a carreira do sacerdocio no seminário


de Saint-Sulpice. Mas deixou o seminário em 1740 para dedicar à filosofia. De 1758 a 1767 foi
tutor do filho do duque de Parma.

A primeira publicação de Condillac foi o Essai sul l’origine dê connaissances humaines


(Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos, 1746) que leva claramente a impressão do
empirismo de Locke. Isso não significa que Condillac se tenha limitado a reproduzir a doutrina
do filósofo inglês. Mas sim que estava de acordo com os princípios gerais deste, segundo os
quais há que reduzir as ideias complexas a ideias simples e atribuir a estas uma origem empírico.

Ao discurrir o desenvolvimento de nossa vida mental Condillac dá grande importância à


função desempenhada pela linguagem. As ideias não se fixam, por assim o dizer, mais que por
sua associação com um signo ou uma palavra. Por exemplo, quando contemplo a erva tenho
uma sensação de verde, os sentidos me transmitem uma simples ideia de verde. Mas essa
experiência isolada — que, por suposto, pode ser repetido indefinidamente — não se converte
em objeto de reflexão nem pode entrar em combinação com outras ideias mais que por sua
vinculação com um signo ou símbolo, que é a palavra verde. O material básico do conhecimento
é, pois, a associação de uma ideia com um signo; e em virtude precisamente dessa associação
somos capazes de desenvolver uma complexa vida intelectual de acordo com nossa crescente
experiência do mundo e com nossas necessidades e intenções. É verdade que a linguagem
ordinária é defeituoso, porque não encontramos nele a correspondência perfeita entre o signo e
o significado que temos na linguagem matemática. Mas, apesar disso, se somos seres
inteligentes, capazes de reflexão, é porque possuímos o dom da linguagem.

Em seu Traité dê systèmes (Tratado dos sistemas, 1749) Condillac submete a crítica o
“espírito de sistema” manifesto na filosofia de pensadores como Descarte, Malebranche,
Spinoza e Leibniz. Os grandes filósofos racionalistas tentaram construir sistemas procedendo a
partir dos primeiros princípios e as definições. Isto se aplica particularmente a Spinoza. Mas o
sistema chamado geométrico é inútil para desenvolver um conhecimento real do mundo. Um
filósofo pode imaginar que suas definições expressam uma aprehensión das essências, mas em
realidade são arbitrárias. Propriamente, são arbitrárias a não ser que concebam-se como mera
formulación dos sentidos em que de fato se usam determinadas palavras. Se são mais que
definições de dicionário, por assim o dizer, não podem cumprir a função que se lhes atribui nos
sistemas filosóficos.

Isso não significa, desde depois, que Condillac condene todos os esforços por sistematizar o
conhecimento. Criticar o espírito de sistema, a tentativa de desenvolver uma filosofia a partir da
mera razão, e de um modo apriórico, não é condenar a síntese. Um sistema, no sentido aceitável
da palavra, é uma disposição ordenada das partes de uma ciência, de tal modo que se manifestem
claramente os relacionamentos entre elas. Sem dúvida terá princípios. Mas princípios significará
só, neste caso, fenômenos conhecidos. Deste modo Newton construiu um sistema mediante o
uso dos conhecidos fenômenos da gravitación, tomados como princípio, à luz do qual explicar
fenômenos como o movimento dos planetas e as marés.

Ideias análogas encontramos na Lógica de Condillac, que apareceu postumamente em 1780.


Os grandes metafísicos do século XVII seguiram um método sintético tomado da geometria,
com sua proceder deductivo a partir de definições. E, como vimos, esse método não pode nos
dar um conhecimento real da natureza. Mas o método analítico não sai nunca da esfera do dado.
Podemos partir de um dado confuso e analisá-lo em suas diferentes partes; podemos recomponer
o tudo de uma forma sistemática. Este é o método natural, o método que segue o espírito humano
para desenvolver naturalmente seu conhecimento. Como chegamos, por exemplo, a conhecer
uma paisagem ou uma região? Primeiro temos uma impressão confusa dela, depois procedemos
gradualmente a um conhecimento diferente de seus vários rasgos componentes e assim
chegamos a ver como esses rasgos juntos compõem o tudo. Ao desenvolver uma teoria do
método não se trata de elaborar uma noção a priori de método ideal; o que temos que estudar é
como trabalha realmente o espírito quando desenvolve seu conhecimento. Nesse estudo se verá
que não há um método único ideal e fixo. A ordem segundo o qual temos de estudar as coisas
depende de nossas necessidades e de nossas intenções. E se desejamos estudar a natureza,
adquirir um conhecimento real das coisas, temos de permanecer dentro da esfera do dado, dentro
da ordem fenoménico que nos é dado, em última instância, na experiência sensível.

Condillac é sobretudo conhecido por seu Traite dê sensations (Tratado das sensações,
1754). Locke distinguiu entre ideias da sensação e ideias da reflexão, admitindo assim duas
fontes das ideias: a sensação e a reflexão ou introspección. Em sua primeira obra a respeito da
origem dos conhecimentos humanos, Condillac adotava mais ou menos exatamente a tese de
Locke. Mas no Tratado das sensações rompe claramente com a teoria de Locke a respeito da
origem dual das ideias. Não há mais que uma origem das ideias, a saber, a sensação.

Em opinião de Condillac, Locke tratou inadequadamente as ideias da reflexão, isto é, os


fenômenos psíquicos. analisou as ideias complexas, como as de substância, em ideias simples;
mas admitindo sem mais as operações mentais do comparar, o julgar, o querer, etc. Por isso é
possível ir para além de Locke. Há que mostrar como essas operações mentais e essas funções
mentais são elas mesmas reducibles à longa a sensações. É verdade que não lhas pode chamar a
todas elas sensações; mas são “sensações transformadas”. Isto é; o inteiro edifício da vida
psíquica consta de sensações. Mostrar isso é a tarefa que Condillac se propõe em seu Tratado
das sensações.

Para argumentar sua tese Condillac propõe ao leitor que se imagine uma estátua que vai
sendo gradualmente dotada de sentidos, começando pelo do olfato. E tenta mostrar como pode
ser explicado toda a vida mental do homem em base à hipótese de que essa vida nasce das
sensações. A analogia da estátua é um tanto artificial. Mas o que Condillac deseja é que seu
leitor se imagine completamente desprovisto de conhecimento e que reconstrua com ele suas
operações mentais sobre a base de sensações elementares. Sua proposta do problema da origem
de nossas ideias foi estimulado pelos dados fornecidos pela experiência de cegos de nascimento
felizmente operados de cataratas por Cheselden, o cirujano de Londres, bem como pelo estudo
da psicologia dos sordomudos por Diderot. No Tratado das sensações,[57] Condillac fala com
certa extensão dos dados fornecidos por uma das operações de Cheselden.

Um dos rasgos principais do tratado é o modo como Condillac tenta mostrar que a cada
sentido, tomado separadamente, pode engendrar todas as faculdades. Tomemos, por exemplo,
um homem (representado por uma estátua) cujo âmbito de conhecimento se limite ao sentido do
olfato. “Se damos à estátua uma rosa para que a cheire, para nós se trata de uma estátua cheirando
uma rosa, mas para ela mesma não há mais que cheiro de rosa.”[58] Ou seja, o homem não terá
ideia nem da matéria, nem de coisas externas, nem de seu próprio corpo. Para sua própria
consciência ele mesmo não será mais que uma sensação de cheiro. Suponhamos que o homem
não tem mais que essa sensação, o cheiro de uma rosa. Isto é “atenção”. Quando se retira a rosa
fica uma impressão, mais ou menos forte segundo a maior ou menor intensidade da atenção.
Aqui temos o nascimento da memória. A atenção à sensação passada é a memória, um mero
modo de sentir, pois. Suponhamos depois que o homem, depois de ter cheirado repetidamente
os perfumes de rosas e claveles, cheira uma rosa. Sua atenção pasiva fica dividida entre as
lembranças dos perfumes de rosas e claveles. Então temos uma comparação, que consiste em
prestar atenção a duas ideias ao mesmo tempo. E “onde há comparação há julgamento... Um
julgamento não é senão a percepción de um relacionamento entre duas ideias que se
comparam”.[59] E se o homem, ao ter presente uma sensação desagradable de cheiro, recorda
uma passada sensação agradável, temos a imaginação. Pois a memória e a imaginação não
diferem em qualidade. Ademais, o homem pode formar ideias, particulares e abstratas. Alguns
cheiros são agradáveis, outros são desagradables. Se o homem adquire o costume de separar as
ideias de satisfação e insatisfacción de suas várias modificações particulares, possuirá ideias
abstratas. Analogamente pode formar ideias de números ao recordar várias sensações sucessivas
diferentes.

Agora bem, toda sensação de cheiro é agradável ou desagradable. E se o homem que agora
experimenta uma sensação desagradable recorda uma passada sensação agradável sente a
necessidade de voltar a atingir o anterior estado, mais feliz. Isto suscita o desejo. Pois “o desejo
não é senão a ação dessas faculdades quando se dirigem às coisas cuja necessidade sentimos”.[60]
E um desejo que expulse aos demais ou chegue a ser, ao menos, dominante é uma paixão. Assim
chegamos às paixões de amor e ódio. “A estátua ama um cheiro agradável que tem ou deseja ter.
E odeia o cheiro desagradable que lhe molesta.”[61] Ademais, se a estátua recorda que o desejo
que agora experimenta foi seguido em outras ocasiões por satisfação, pensará que pode satisfazer
seu desejo. E neste caso diz-se que queira, que exerce a vontade. “Pois por vontade entendemos
um desejo absoluto, ou seja, como pensando que a coisa desejada está em nosso poder.”[62]

Assim tenta mostrar Condillac que todas as operações mentais podem ser derivado da
sensação de cheiro. Está claro que se consideramos nossas faculdades e nossas operações como
meras sensações de cheiro transformadas, seu campo será muito limitado. E o mesmo podemos
dizer da autoconsciencia de um homem limitado ao sentido do olfato. “Seu Eu (o da estátua) não
é senão a coleção das sensações que experimenta e das que a memória lhe recorda.”[63] No
entanto, “embora com um só sentido, o entendimento tem tantas faculdades como com os cinco
juntos”.[64] (“Entendimento” é aqui, simplesmente, o nome aplicado às faculdades cognoscitivas
em seu conjunto.)

Depois considera o ouvido, o tacto e a vista. Condillac sustenta que embora a combinação
do olfato, o ouvido, o tacto e a vista multiplicam os objetos da atenção humana, os desejos e os
prazeres, não produz, em mudança, um julgamento de exterioridad. A estátua “seguirá sem ver
mais que sim mesma... Não suspeitará que deva sua modificação a causas externas... Nem sequer
sabe que tem um corpo”.[65] Dito de outro modo: o sentido do tacto é o responsável verdadeiro
do julgamento de exterioridad. As ideias de Condillac variaram algo neste ponto. Na primeira
edição do Tratado das sensações considerava que o conhecimento da exterioridad é
independente do movimento. Mas na segunda edição admitia que a noção de exterioridad não
nasce com independência do movimento. De todos modos, o tacto segue sendo a causa primária
da noção. Quando um menino passa a mão pelo corpo “se sente a si mesmo em todas as partes
do corpo”.[66] “Mas ao tocar um corpo alheio o Eu que se sente modificado na mão não se sente
modificado no corpo alheio. O eu não recebe do corpo alheio a resposta que recebe da mão.
Portanto, a estátua julga que estes modos estão todos fosse dela.”[67] Quando o tacto se une
gradualmente aos demais sentidos, o homem vai descobrindo seus próprios órgãos dos sentidos
e julga que as sensações de cheiro, som, etc., são causadas por objetos externos. Por exemplo,
tocando uma rosa e acercando-a ou afastando da cara, um homem pode chegar a formar
julgamentos a respeito do órgão do olfato e a respeito da causa externa de suas sensações de
cheiro. Analogamente, só mediante combinação com o tacto pode aprender a vista a ver a
distância, o tamanho e o movimento. Acostumámo-nos de tal modo a estimar o tamanho, a
forma, a distância e a situação por médio da vista que nos inclinamos naturalmente a achar que
esses julgamentos se devem simplesmente à visão. Mas não é assim.
Talvez valha a pena notar de passagem uma mudança de opinião de Condillac entre a
publicação de seu Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos e seu Tratado das
sensações. Na primeira obra parece manter que o vínculo entre a ideia e o signo ou símbolo é
necessário para o entendimento. Na segunda obra modificou-se o ponto de vista. Ao tratar, por
exemplo, o homem limitado ao sentido do olfato Condillac admite que esse homem pode ter
alguma ideia de número. Pode ter as ideias de um e um e um. Mas segundo Condillac “a memória
não capta com distinção quatro unidades ao mesmo tempo. Para além de três não apresenta senão
uma multidão indeterminada... O que nos ensinou a alargar nosso ponto de vista é a arte do
criptografado”.[68] Deste modo no Tratado Condillac sustenta que o entendimento e o uso de
ideias são anteriores à linguagem, embora a linguagem é necessária para o desenvolvimento de
nossa vida mental para além de um estádio rudimentario.

O resultado do Tratado é que “na ordem natural todo conhecimento surge de sensações”.[69]
Todas as operações mentais do homem, inclusive as que geralmente se consideram superiores,
podem ser explicado como “sensações transformadas”. Deste modo pensava Condillac ter dado
um preciso passo para além de Locke. Este último pensava que as faculdades da alma são
qualidades innatas; não suspeitava que pudessem ser originado na sensação mesma. Talvez
possa objetarse que a formulación de Condillac não é suficientemente exata, pois Locke
insinuava que nunca se mostrou que seja impossível para Deus o conceder à matéria a faculdade
de pensar. Mas na prática Locke tinha-se dedicado a analisar e reduzir a seus fundamentos
empíricos as ideias às quais se aplicam nossas faculdades; e não fez o mesmo com as faculdades
ou funções psíquicas.

Agora bem: em seu Essay Concerning Human Understanding[70] Locke sustentava que a
vontade está determinada por “ um mal-estar do espírito devido à necessidade de algum bem
ausente”. Mal-estar ou agitación é o que “determina a vontade das sucessivas acione voluntárias
das que se compõe a maior parte de nossas vidas e pelas que chegamos a fins diferentes por vias
diferentes”.[71] Condillac desenvolveu e alargou o campo desta ideia. Assim no Extrait raisonné
que acrescentou a posteriores edições do Tratado das sensações sustentou que a “inquietude
(inquiétude) é o primeiro princípio que nos dá os hábitos do tacto, a vista, o ouvido, o sentir, o
gosto, a comparação, o julgamento, a reflexão, o desejo, o amor, o temor, a esperança, e que, em
uma palavra, a inquietude dá nascimento a todos os hábitos do espírito e do corpo”. Portanto,
todos os fenômenos psíquicos dependem da inquietude, a qual não é tanto antecipação de um
bem quanto mal-estar ou falta de acalma em certas condições. Por todo isso possa talvez se dizer
que Condillac dá um fundamento “voluntarista” ao inteiro processo pelo qual se desenvolve a
vida mental. A atenção tem que se explicar por relacionamento à necessidade sentida; e a
memória está dirigida pelo apetito e o desejo, mais que por mera associação mecânica de ideias.
Em seu Traité dê animaux[72] Condillac precisa que em sua opinião a ordem de nossas ideias
depende em última instância da necessidade ou o interesse. Trata-se, sem dúvida de uma teoria
fecunda. Daria seus frutos mais tarde na interpretação voluntarista da vida intelectual do homem
que se encontra, por exemplo, em Schopenhauer.

A teoria de Condillac, a tese de que as operações mentais são sensações transformadas,


parece indicar a primeira vista uma posição materialista. E esta impressão aumenta por seu
costume de falar das “faculdades” da alma como de funções derivadas da sensação, o qual pode
ser entendido no sentido de que a alma humana é ela mesma material. Não acrescenta, ademais,
que o homem não é senão a soma de suas aquisições? “Ao dar-lhe (à estátua) novos modos de
ser e novas sensações temos visto que formava desejos, que aprendia pela experiência aos
regular e os satisfazer, e que passava de necessidades a necessidades, de conhecimentos a
conhecimentos, de prazeres a prazeres. Portanto, a estátua não é senão a soma de todo o que
adquiriu. Não pode ocorrer o mesmo com o homem?”[73] O homem pode ser a soma de suas
aquisições; e estas são sensações transformadas.

Parece-me difícil negar que a teoria de Condillac contribua a promover uma visão
materialista, pois teve sua influência sobre os autores materialistas. Mas Condillac mesmo não
foi um materialista. Não o era, por de repente, no sentido do que sustenta que só existem os
corpos e suas modificações. Pois não só afirmou a existência de Deus como causa suprema,
senão que também manteve a teoria de uma alma imaterial, espiritual. Não pretendeu reduzir a
alma a um faça de sensações. Mais bem pressupôs a alma como simples centro de unidade, e
tentou sobre essa base reconstruir sua atividade segundo a hipótese de que todos os fenômenos
psíquicos são em última instância derivables de sensações. É, sem dúvida, discutible que sua
análise reductivo e sua aceitação de uma alma humana espiritual se compadezcan bem. Mas, em
qualquer caso, é inexacto descrever a Condillac como materialista.

Em segundo local, o mesmo Condillac deixou como questão irresuelta a de se existem ou


não coisas extensas. Como vimos, dizia ao princípio que o tacto nos garante a exterioridad. Mas
cedo deu-se conta de que explicar o modo como surge a ideia de exterioridad não é o mesmo
que provar que existem coisas externas. Se queremos dizer que os sons, os cheiros, os tactos e
as cores não existem nos objetos mesmos, também temos que dizer que a extensão não existe
neles. Talvez sejam os objetos extensos, sonoros, táctiles, olorosos e coloridos; mas talvez não
o sejam. “Não sustento nenhuma das duas opiniões, e espero que alguém prove que os objetos
são o que nos parecem ser ou que são outra coisa.”[74] Pode objetarse que se não há extensão,
então não há objetos; mas essa objeción é falsa. “Todo o que razoavelmente poderíamos inferir
seria que os objetos são existências que ocasionam sensações em nós, e que têm propriedades a
respeito das quais carecemos de conhecimento verdadeiro.”[75] Longe, pois, de ser um
materialista dogmático, Condillac deixa inclusive a porta aberta a uma hipótese inmaterialista,
embora também não afirme-a.

Pode ser acrescentado que Condillac não admitiu que sua explicação da vida mental do
homem implicasse um determinismo estrito. Acrescentou em adendo a seu Tratado das
sensações uma disertación a respeito da liberdade na qual discute esta questão.

9. Helvecio e a concepção do homem.

A tentativa por Condillac de mostrar que todos os fenômenos psíquicos são sensações
transformadas foi prosseguido por Claude Adrien Helvétius (1715-1771) em sua obra De l’esprit
(Do espírito, 1758). Helvecio descia de uma família de médicos cujo nome originario, Schweizer
[Suíço], se tinha latinizado. Durante algum tempo ocupou o cargo de fermier général, mas a
oposição desencadeada por seu livro sobre o espírito impossibilitou-lhe o seguir no serviço do
rei. E assim viveu em general tranquilamente em seu finca, aparte de visitar a Inglaterra e Berlim.
Seu livro a respeito do homem (De l’homme, de ses faculte et de são éducation) publicou-se
postumamente em 1772. Helvecio reduz a sensação ou percepción sensível todas as potências
do entendimento humano. Sustentou-se comummente que o homem possui faculdades que
trascienden o nível dos sentidos. Mas essa teoria é falsa. Tome-se o julgamento, por exemplo.
Julgar é perceber semelhanças e desemejanzas entre ideias particulares. Se julgo que o vermelho
é diferente do amarelo, o que faço em realidade é perceber que à cor chamada “vermelho” me
afeta os olhos de forma diferente que a cor chamada “amarelo”. Portanto, julgar é simplesmente
perceber.

Este processo de análise reductivo aplica-se também à vida ética do homem. O amor próprio
é a base universal da conduta humana, e orienta-se à aquisição de prazer. “Os homens amam-se
a si mesmos; todos eles desejam ser felizes e pensam que sua felicidade seria completa se
tivessem o poder suficiente para se tentar toda sorte de prazer. Assim o amor do poder nasce do
amor do prazer.”[76] Os fenômenos do tipo do amor do poder são secundários, são simples
transformações do fundamental amor do prazer. “O único motivo do homem é a sensibilidade
corpórea.”[77] Até virtudes como as de liberalidad e benevolência podem ser reduzido ao amor
próprio, ou seja, ao amor do prazer. “Que é um homem benévolo? É um homem no qual um
espetáculo de miséria produz uma sensação dolorosa.”[78] À longa o homem benévolo aspira a
suprimir ou paliar a miséria e a desgraça humanas simplesmente porque produzem-lhe sensações
desagradables.

Envelope a base dessa crua psicologia reductiva levanta Helvecio uma teoria utilitarista da
moralidade. Os homens de sociedades diferentes sustentam opiniões morais diferentes e
atribuem significações diversas a palavras tais como bem e virtude. E este é o feito com que
introduz tanta confusão nas discussões. Dantes de entrar em discussões de ética deveríamos
começar por fixar as significações das palavras. E “uma vez definidas as palavras as questões
resolvem-se quase nada mais as propor”.[79] Mais não serão essas definições arbitrárias? Não,
diz Helvecio, se são homens livres os que as fazem. “Inglaterra é talvez o único país da Europa
do qual o universo pode esperar e receber esse benefício.”[80] Orce a liberdade de pensamento,
o sentido comum da humanidade achará expressão em um acordo a respeito das significações
próprias dos termos éticos. “A verdadeira virtude tem-se por tal em todas as idades e em todos
os países. Deveria ser dado o nome de virtude às ações que são úteis ao público e concordes com
o geral interesse.”[81] Portanto, embora o próprio interesse é o movimento fundamental e
universal da conduta, o interesse público, a utilidade pública, é a norma da moralidade.

E Helvecio tenta mostrar como é psicologicamente possível o serviço ao interesse comum.


Por exemplo, se ensina-se a um menino a pôr no local do pobre e desgraçado, sentirá impressões
dolorosas, e o amor de si mesmo lhe estimulará a desejar que se mitigue a miséria. No curso do
tempo a força da associação formará um hábito de impulsos e conduta benevolentes. Por
conseguinte, embora o amor próprio seja a base de toda a conduta, o altruismo é
psicologicamente possível.

Essas considerações sugerem que a educação é da maior importância para formar os hábitos
de conduta. Helvecio é, efetivamente, um dos adiantados e promotores da teoria moral
utilitarista, mas uma especial caraterística de seus escritos é a insistencia na força da educação.
“A educação pode fazê-lo todo” e “a educação nos faz ser o que somos”.[82] Mas a instituição
de um bom sistema educativo tropeça com sérios obstáculos. Em primeiro lugar o clero, e, em
segundo local, o fato de que a maioria dos governos são imperfectos ou maus. Não podemos ter
um bom sistema de educação, enquanto não se quebrante o poder do clero e não se realizei um
bom sistema de governo, com sua boa legislação correspondente. O primeiro e único princípio
da moralidade é: “o bem público é a lei suprema”.[83] Poucos governos comportam-se de acordo
com essa lei. Mas “toda reforma importante da parte moral da educação supõe uma reforma das
leis e a forma de governo”.[84]

À luz dessas ideias lança Helvecio seu poderoso ataque contra o despotismo político. No
prólogo ao Do Homem fala do despotismo que submeteu a França e diz que “é característico do
poder despótico o extinguir o gênio e a virtude”.[85] Ao falar da muito desigual distribuição da
riqueza nacional observa que “é uma loucura se fazer a ilusão de uma distribuição igual entre
homens submetidos a um poder arbitrário”.[86] Só em um país livre pode ser conseguido uma
redistribución gradual e mais equitativa da riqueza nacional. Podemos portanto dizer que
Helvecio foi bem mais reformador político que Voltaire; interessava-se bem mais que este pelo
derrocamiento do despotismo e o bem-estar do povo. Por esta razão pode ser citado pelos
escritores esquerdistas como um verdadeiro precursor.

Helvecio é incansable em seus ataques não só ao clero, particularmente ao católico, senão


também à religião “de mistérios” ou revelada, que considera daninha para os interesses da
sociedade. É verdade que quando se lhe acusou de impiedad replicou que não negava um só
dogma do cristianismo. Mas seus escritos permitem ver com toda evidência que não estava
seriamente disposto a aceitar mais que alguma forma de religião natural, ou deísmo. E o
conteúdo dessa religião interpreta-se em função da moralidade mais que em função de crença
teológica alguma. “A vontade de Deus, justo e bom, é que os filhos da Terra sejam felizes e
desfrutem de todo prazer compatível com o bem público. Esta é a verdadeira religião, a que a
filosofia devia revelar ao mundo.”[87] Ou “a moralidade fundada em verdadeiros princípios é a
única religião natural verdadeira”.[88]

Dificilmente poderá ser dito que Helvecio foi um filósofo profundo. Sua redução de todas
as funções psíquicas à sensação é grosseira, e em ética não deu nenhuma análise detalhada em
defesa de suas ideias. Essas deficiências eram evidentes para outros pensadores do Iluminismo
francês. Diderot, por exemplo, opunha-se à tendência niveladora de Helvecio e a sua explicação
de todos os impulsos morais como egoísmo velado. Mas apesar disso a análise reductiva de
Helvecio, sua insistencia na ilustração intelectual e o poder da educação e seus ataques à Igreja
e ao Estado fazem dele um representante de algumas importantes feições da filosofia francesa
do século XVIII, embora seja um exagero lhe apresentar como o pensador mais típico do
período.
Capítulo II
O Iluminismo francês - II

1. A Enciclopédia: Diderot e d’Alembert.

O grande depósito literário das ideias e os ideais do Iluminismo francês foi a Encyclopédie,
ou Dictionnaire raisonné dê arts et dê métiers. A Enciclopédia, sugerida por uma tradução
francesa da Cyclopaedia ou Dictionary de Chambers, foi dirigida por Diderot e d’Alembert. O
primeiro volume apareceu em 1751, e o segundo ao ano seguinte. O governo tentou então deter
a obra por perjudicial à autoridade real e à religião. Mas em 1757 aparecia já sete volumes. Em
1758 d’Alembert retirou-se da direção e o governo francês intensificou sua oposição à obra. Mas
Diderot conseguiu autorização para seguir adiante com a condição de não publicar nenhum
volume mais até que estivesse completa toda a obra. Em 1765 apareceram os dez volumes finais
(8-17), junto do quarto volume de gravados, o primeiro dos quais se tinha publicado em 1762.
Apareceram mais tarde outros volumes de gravados, e em Ámsterdam imprimiu-se um
suplemento em mais cinco volumes dois de índices. A primeira edição completa da Enciclopédia
(1751-1780) constava de trinta e cinco volumes. Teve várias edições estrangeiras.

Aparte de toda discussão a respeito das opiniões expressas nos artigos, a Enciclopédia, como
livremente reconhecem seus diretores, deixava muito que desejar. Os artigos variam muito em
qualidade e critérios, e não há superintendência nem coordenação editoriais. Dito de outro modo,
não podemos esperar achar nessa obra a concisión, a concentração em torno de informação
factual precisa e clara, a coordenação sistemática e a ordenação que se encontram nas
enciclopédias modernas. Mas apesar de todos seus defeitos a Enciclopédia era uma obra de soma
importância. Pois seu objetivo não consistia só em fornecer informação factual aos leitores e
servir de útil instrumento de referência, senão também em guiar e dar forma à opinião. Esta é
precisamente a causa pela qual sua publicação tropeçou com tantos obstáculos. E é que a
Enciclopédia era inimiga ao mesmo tempo da Igreja e do sistema político existente. É verdade
que a redação dos artigos procedeu com prudência, mas a atitude geral dos colaboradores ficava
perfeitamente clara. A Enciclopédia era um gigantesco manifesto escrito por librepensadores e
racionalistas, e sua importância radicaba em sua feição ideológica, mais que em algum valor
permanente como enciclopédia no sentido moderno do termo.

Diderot e d’Alembert rodearam-se de colaboradores que coincidiam quando se tratava, por


exemplo, de atacar à Igreja e a religião revelada, mas que diferiam consideravelmente ante outras
questões. Assim, por exemplo, alguns artigos eram de Voltaire o deísta, pese a que este, quando
pensava que a prudência lho aconselhava, costumava negar com toda falsidade seus
relacionamentos com a Enciclopédia. Outro colaborador foi o declarado materialista d’Holbach,
e a associação de Helvecio não deveu também não de recomendar a obra aos olhos das
autoridades eclesiásticas. Também se contavam entre os colaboradores Montesquieu e o
economista Turgot.

D’Holbach se estudará na seção dedicada ao materialismo, enquanto as ideias de Turgot se


discutirão ao final deste capítulo. Na presente seção limito-me a Diderot e d’Alembert.

a) Denis Diderot (1713-1784) era, como Voltaire, aluno do colégio jesuítico de Louis-lhe-
Grand. E também, como Voltaire, se viu influído pelo pensamento inglês e traduziu ao francês
alguns livros ingleses. Estava entre eles o Essai sul lhe mérite et a vertu (1745), tradução de
Inquiry Concerning Virtue and Merit de Shaftesbury, com notas do próprio Diderot. Como já
vimos, a ideia da Enciclopédia, que é a obra de sua vida, lhe foi sugerida pela Cyclopaedia de
Chambers. Em 1746 publicou em Haia as Pensées philosophiques e em 1749, em Londres, a
Lettre sul lhes aveugles á l’usage de ceux qui voient. As opiniões que expressa lhe valeram em
uns meses de cárcere em Vincennes, depois do qual se dedicou à direção da Enciclopédia. Em
1754 apareceram em Londres seus Pensées sul l’interprétation da nature. Uns quantos ensaios,
entre eles o Entretien entre d’Alembert et Diderot e Lhe revê de d’Alembert, não se publicaram
durante sua vida. Diderot não era nada rico, e em alguma ocasião se encontrou em situação
econômica muito difícil. A emperatriz Catalina da Rússia foi em sua ajuda, e em 1773 Diderot
transladou-se a San Petersburgo, onde passou em alguns meses, com frequentes discussões
filosóficas com sua benfeitora. Diderot era um conversador celebrado.

Diderot não teve um sistema fixo de filosofia. Seu pensamento não se deteve nunca. Não
podemos dizer, por exemplo, que fosse deísta, ateu nem panteísta, pois sua posição mudou ao
respecto. Quando escrevia as Pensées philosophiques era um deísta; e ao ano seguinte escreveu
(1747) um ensaio a respeito da suficiencia da religião natural, o qual não se publicou até 1770.
As religiões históricas, como o judaísmo e o cristianismo, são reciprocamente excluyentes e
intolerantes. São produtos da superstição. Começaram em determinados períodos da história e
todas elas perecerão. Mas todas as religiões históricas pressupõem a religião natural, única que
existiu sempre, que une aos homens em vez dos separar e que se baseia no depoimento que Deus
tem impresso em nós, não no depoimento de seres humanos supersticiosos. Mas em um ulterior
estádio de seu desenvolvimento Diderot abandonou o deísmo para adotar o ateísmo, e exhortó
aos homens a libertar do jugo da religião. O deísmo cortava doze cabeças à hidra da religião;
mas todas as demais recresceriam partindo da que ficava. O único remédio possível consiste em
eliminar totalmente toda superstição. Mais tarde, no entanto, Diderot propôs uma forma de
panteísmo naturalista. Todas as partes da natureza formam em última instância um indivíduo, o
Tudo.

Analogamente, a fluidez de seu pensamento impede afirmar ou negar cortantemente que


Diderot fosse um materialista. Em seu artigo da Enciclopédia a respeito de Locke refere-se à
indicação do filósofo inglês segundo a qual não seria impossível para Deus conferir à matéria a
capacidade de pensar, e considera evidentemente que esse pensamento se desenvolveria a partir
da sensibilidade. No Entretien entre d’Alembert et Diderot, escrito em 1769, deu expressão mais
clara a uma interpretação materialista do homem. Os homens e os animais são em realidade da
mesma natureza, embora suas organizações são diferentes. As diferenças quanto a capacidade
cognoscitiva e inteligência são simples resultados da diferente organização física. Análogas
ideias aparecem em Revê-lhe de d’Alembert, onde se supõe que todos os fenômenos psíquicos
são reducibles a bases fisiológicas, e que o sentimento da liberdade é ilusorio. Diderot estava
sem dúvida influído pela teoria de Condillac a respeito da importância da sensação na vida
psíquica do homem; mas criticou o sensismo de Condillac baseando-se em que a análise deste
último era insuficiente. Temos que considerar, para além da sensação, sua base fisiológica. E é
interessante saber que Diderot ajudou a d’Holbach na composição do Systéme da nature (1770),
aberta exposição de materialismo, embora não há que exagerar a influência deste autor no
pensamento de Diderot. Ao mesmo tempo podemos encontrar em Diderot uma tendência ao
panpsiquismo. Sente muita admiração por Leibniz, ao que elogia na Enciclopédia. E mais tarde
atribui percepción aos átomos, coisa que corresponde às mónadas de Leibniz. Em certas
combinações esses átomos constituem organismos animais nos quais surge a consciência sobre
a base do contínuo formado pelos átomos.

O fluído caráter da interpretação da natureza e o homem por Diderot está relacionado com
seu insistencia no método experimental para a ciência e a filosofia. Em sua obra Da
interpretação da natureza declarava — equivocando-se, por suposto — que a ciência
matemática se deteria cedo e que em menos de um século não ficariam na Europa nem três
grandes geómetras. Sua convicção era que a matemática está limitada por seus conceitos,
produzidos por ela mesma, e é incapaz de nos dar trato direto com realidade concreta. Essa
familiaridad não pode ser obtido mais que mediante o uso do método experimental, pela nova
proposta científica que é um rival triunfante não só da metafísica, senão também da matemática.
Uma vez pomo-nos a estudar a natureza mesma, descobrimos que é cambiante e elástica, rica
em possibilidades novas, caraterizada pela diversidade e a heterogeneidad. Quem conhece todas
as espécies que precederam às nossas? Quem conhece as espécies que seguirão às nossas? Tudo
muda; não há dois átomos nem duas moléculas que sejam perfeitamente iguais; só o todo infinito
é permanente. A ordem da natureza não é estático, senão que perpetuamente nasce de novo.
Portanto, não podemos dar uma interpretação permanente da natureza sobre a base de nossos
esquemas conceptuais e nossas classificações. E uma das primeiras necessidades do pensamento
consiste em manter-se aberto a novos pontos de vista e a novas feições da realidade empírica.

Alguns historiadores sublinharam a discrepância entre os elementos materialistas do


pensamento de Diderot e seu idealismo ético. Por uma parte, sua materialismo elimina a
liberdade e parece considerar inúteis e absurdos o arrepentimiento e o remordimiento. Por outra
parte, se reprochaba o ter escrito sua temporã novela erótica Bijoux indiscrets e sustentava os
ideais de autosacrificio, benevolência e humanidade. Não tinha simpatias pelos materialistas que
uniam a profissão de materialismo e ateísmo com baixos ideais morais; e opunha-se à tentativa
de Helvecio de explicar todos os impulsos e ideais morais por um egoísmo disimulado. Ele
afirmava por sua vez a existência de leis inmutables de moralidade natural. E como crítico de
arte proclamava a livre atividade criadora do artista.

Mas embora podemos estar de acordo com Rosenkranz quando este diz, em sua obra sobre
Diderot, que há uma incoherencia entre o materialismo do filósofo e sua ética, Diderot mesmo
não viu em isso incoherencia alguma. Em sua opinião não há nenhum relacionamento essencial
entre os ideais éticos e a crença em uma alma espiritual. O que o pensamento se derive de
atividades psíquicas mais rudimentarias não implica a negación de elevados ideais morais. Em
seu artigo sobre Locke na Enciclopédia, ao que já aludimos, Diderot se pergunta que diferença
há entre que a natureza pense e que não pense. Como poderia isso afetar à ideia de justiça ou
injustiça?” Não se segue nenhuma má consequência moral da teoria de que o pensamento surge
a partir da sensibilidade. Pois o homem segue sendo o que é e se lhe julga segundo as intenções
boas ou más às que dedica sua capacidade, não segundo que seu pensamento seja uma criação
original ou algo que nasce da sensibilidade. Dito com linguagem moderna: Diderot, que
antecipou a teoria evolucionista de Lamarck, afirma que a hipótese da evolução não afeta à
validade dos ideais morais do homem.

Diderot formou-se em parte suas ideias éticas baixo a influência dos escritos de Shaftesbury.
Mas essas ideias não estavam rigidamente afixadas, salvo no sentido de que sempre contaram
com os ideais de benevolência e humanidade. Sustentou a ideia “racionalista” de leis morais
inmutables. Mas via a base dessas leis na natureza do homem, ou seja, na unidade orgânica dos
impulsos, as paixões e os apetitos do homem, não em ordens a priori da razão. E era hostil ao
ideal ascético, por considerá-lo contrário a natureza. Dito de outro modo: embora Diderot seguiu
sustentando a ideia de lei natural, acentuou a base empírica e a eficácia pragmática dessa ideia
para promover o bem comum se compara-lha com a ética teológica.

b) Jean lhe Rond d’Alembert (1717-1783) era um filho natural abandonado por seus pais.
Devia seu nome, Jean lhe Rond ou Lerond, ao fato de ter sido encontrado cerca da igreja de
Saint Jean lhe Rond de Paris. Ele mesmo se acrescentou o apelido. Criou-o a mulher de um
vidriero chamado Rousseau; mas seu verdadeiro pai, um verdadeiro Chevalier Destouches,
pagava uma renda anual que lhe permitiu estudar.

Em 1738 d’Alembert entrou na ordem dos advogados, mas não exerceu a profissão.
Dedicou-se à medicina; mas ao pouco tempo renunciou também a essa profissão e decidiu se
dedicar inteiramente à matemática. Apresentou vários trabalhos à Academia de Ciências, entre
eles sua Mémoire sul lhe calcul integral (1739), e em 1741 ingressou como membro em dita
academia. Sua obra matemática e científica é de importância considerável. Em 1741 publicou
seu Mémoire sul a refraction dê corps solides, e em 1743 sua Traité de dynamique. Neste tratado
desenvolve o que ainda hoje se conhece com o nome de “ princípio de d’Alembert”; em 1744
aplicou esse princípio em seu Traité de l'équilibre et du mouvement dê fluides. Depois descobriu
o cálculo de diferenças parciais e aplicou-o em suas Réflexions sul cause-a gera-lhe dê vents
(1747), coroadas pela Academia Prusiana. Temos de citar ainda, dentre outros escritos, o Essai
d'une nouvelle théorie sul a résistance dê fluides (1752) e as Recherches sul différents points
importants du systéme du monde (1754-17S6).

Como vimos, d’Alembert colaborou com Diderot na edição da Enciclopédia, de cujo


Discours préliminaire é autor. Escreveu verdadeiro número de artigos para a obra,
principalmente sobre temas matemáticos, mas não só sobre eles. Em 1758 deixou de colaborar,
irritado pelas dificuldades e a oposição oficial. Em 1752 publicava os Mélanges de littérature,
d’histoire et de philosophie, e em 1759 aparecia seu Essai sul lhes éléments de philosophie. Em
1763 visitou Berlim, mas recusou a oferta de Frederick o Grande de que presidisse a Academia,
igual que no ano anterior recusava o convite de Catalina da Rússia que lhe propunha ser tutor
de seu filho, sobre uma base econômica muito generosa. D’Alembert era amigo de David Hume,
que lhe tinha em alta estima por seu caráter moral e sua capacidade, e lhe deixou a sua morte
um legado de 200 libras. Matemático e cientista dantes que nada, d’Alembert esteve menos
exposto que os demais enciclopedistas às suspeitas e os ataques; em 1755 era nomeado membro
do instituto de Bolonha a proposta do papa Benedicto XIV.

Em seu discurso preliminar à Enciclopédia d’Alembert declara que Locke é o criador da


filosofia científica e ocupa uma posição correspondente à de Newton em física. E nos Elementos
de filosofia afirma que no século XVIII é o século da filosofia em um sentido particular. A
filosofia da natureza experimentou uma revolução e quase todos os demais campos do
conhecimento fizeram progressos e tomado forma novas. “Desde os princípios das ciências
seculares até os fundamentos da revelação religiosa, desde a metafísica até as questões de gosto,
desde a música até a moral, desde as disputas escolásticas dos teólogos até: os assuntos
mercantis, desde as leis dos príncipes até as dos povos, desde a lei natural até as arbitrárias leis
das nações... tudo se discutiu e analisado, ou mencionado ao menos. O fruto ou a consequência
dessa geral efervescencia dos espíritos consistiu em arrojar nova luz sobre certas coisas, e novas
sombras sobre outras, do mesmo modo que o efeito da maré consiste em deixar algumas coisas
na praia e arrastar consigo outras.”[89]

Isso não significa que para d’Alembert o progresso intelectual consista simplesmente, nem
sequer primariamente, no mero agregado de fatos novos. D’Alembert mantém, de um modo que
recorda a Descarte, que todas as ciências juntas são o despliegue da inteligência humana. E
sublinha a função da unificação. Supõe que o sistema dos fenômenos é homogéneo e uniforme,
e que o objetivo do conhecimento científico consiste em mostrar a unidade e a coerência desse
sistema à luz dos princípios que ejemplifica.

Mas há que entender adequadamente este ponto. D’Alembert não se interessa por princípios
metafísicos. Nem dedica-se a averiguar as essências das coisas em um sentido metafísico. As
teorias e as especulações metafísicas conduzem-nos a antinomias e acabam no escepticismo;
não são uma fonte de conhecimento. Não podemos saber o por que e o pára que das coisas. Nem
sequer podemos saber que há um mundo externo; mas este é um assunto de instinto, mais que
de conhecimento teorético. E não é em absoluto necessário o resolver teoréticamente para os
fins da filosofia científica; o mesmo ocorre com os demais problemas desta classe. Não há
diferença alguma para nós, por exemplo, entre que possamos penetrar nas essências dos corpos
e que não o possamos, “sempre que, supondo a matéria tal como a concebemos, possamos
deduzir de propriedades consideradas primitivas outras propriedades secundárias que
percebemos na matéria, e sempre que o sistema geral dos fenômenos, uniforme e contínuo, não
nos manifeste em nenhum local uma contradição”.[90] Deduzir fenômenos de princípios não é
deduzir dados empíricos de princípios metafísicos ou essências metafísicas; é deduzir
propriedades secundárias observadas de outras propriedades observadas que se consideram mais
primitivas. A tarefa da filosofia científica consiste em descrever e correlatar fenômenos de um
modo sistemático, mais que nos explicar em sentido metafísico. Quando tentamos fazer isto
último, nos saímos dos limites do que propriamente pode ser chamado conhecimento.

Portanto, podemos dizer que d’Alembert foi um precursor do positivismo. A ciência não
precisa qualidades ou substâncias ocultas, nem teorias ou explicações metafísicas. A filosofia,
ao igual que a ciência, se ocupa só de fenômenos, embora considere um campo de fenômenos
mais amplo que o estudado pelo especialista de algum ramo da ciência. Isso não significa, desde
depois, que o filósofo da natureza não tenha que se ocupar de explicar nada em nenhum sentido.
Envelope a base da experiência sensível tem de formar definições claras e poderá deduzir
conclusões verificables. Mas não pode ir para além do âmbito dos fenômenos ou do
empiricamente verificable, salvo que deseje entrar em uma esfera na que não pode ser
conseguido conhecimento seguro. A metafísica tem que converter em uma ciência de fatos ou
seguir sendo o terreno das ilusões. O estudo da história das opiniões mostra como os homens
desenvolveram teorias meramente prováveis e como em alguns casos a probabilidade se
converteu, por assim o dizer, em verdade, uma vez verificada mediante paciente investigação.
Deste modo o estudo da história das ciências sugere pontos de vista para a ulterior investigação
e para teorias que há que contrastar empiricamente.

Podemos ver na teoria moral de d’Alembert o mesmo interesse por separar a ética da teología
e a metafísica que se dá comummente em todos os filósofos do período. A moralidade é a
consciência de nosso dever respecto do semelhante nosso. Todos os princípios da moralidade
convergen para o mesmo fim, a saber, nos mostrar a íntima conexão que há entre nosso
verdadeiro interesse e a realização de nosso dever social. A tarefa do filósofo moral consiste em
pôr em claro ao homem seu local na sociedade e seu dever em utilizar sua capacidade ao serviço
do bem e a felicidade comuns.

Não podemos legitimamente chamar materialista a d’Alembert. Ele se absteve de pronunciar


a respeito da natureza última das coisas e desconfiou dos materialistas e mecanicistas
dogmáticos. Aparte de sua importância como matemático, o rasgo mais saliente do pensamento
de d’Alembert é provavelmente a insistencia na metodologia positivista. Ao igual que Diderot,
pensava que o progresso podia ser considerado praticamente garantido, no sentido de que a
ilustração intelectual acarretaria sem mais o progresso social e moral. Mas estava profundamente
influído por Newton e o método experimental em sua concepção do desenvolvimento intelectual
e cientista. Seu pensamento movia-se no terreno aberto pelo avanço científico da época, mais
que no enquadramento da controvérsia a respeito da natureza em última instância espiritual ou
material da realidade.

2. O materialismo: A Mettrie, d' Holbach e Cabanis

Teve, no entanto, explícitos materialistas no período do Iluminismo francês; nesta seção se


dirá algo a respeito da Mettrie, d’Holbach e Cabanis.

a) Julien Offray da Mettrie (1709-1751) era um médico ao que a observação em sua própria
pessoa dos efeitos da febre sobre o espírito e o pensamento moveu a estudar os relacionamentos
entre os fatores fisiológicos e as operações psíquicas. Seu Histoire naturelle de l’âme apareceu
em 1745, e ao ano seguinte A Mettrie foi desterrado da França. Em 1748 publicou em Leyden
l’homme machine, e no mesmo ano foi desterrado de Holanda; buscou então refúgio no corte de
Frederick o Grande. L’homme plante apareceu em Potsdam em 1748.

Em sua História natural da alma (mais tarde citada com o título Tratado da alma), A Mettrie
sustenta que a vida psíquica do homem, intelectual e volitiva, nasce das sensações e se
desenvolve pela educação. Onde não há sentidos não há ideias; quantos menos sentidos, menos
ideias; e quando há pouca educação ou instrução, há pobreza de ideias. A alma ou o espírito
depende essencialmente de uma organização física, e sua história natural tem-se que estudar
mediante a observação exata dos processos fisiológicos. Os sentidos, diz A Mettrie, são suas
filósofos. A teoria de uma alma espiritual intrinsecamente independente do corpo é uma hipótese
desnecessária.

No Homem máquina A Mettrie apela à descrição cartesiana do corpo vivo como máquina.
Mas em sua opinião Descarte não tinha fundamento para afirmar o dualismo, ou seja, para
considerar ao homem como um composto de substância pensante, imaterial e livre, e substância
extensa, o corpo. Deveria ter aplicado sua interpretação do organismo físico ao homem inteiro.
Ao mesmo tempo, A Mettrie difere consideravelmente de Descarte em sua ideia da matéria. Para
A Mettrie a matéria não é mera extensão, senão que possui também capacidade de movimento
e de sensação. Ao menos a matéria organizada possui um princípio de movimento que a
diferença da matéria inorgánica e a sensação nasce do movimento. Podemos ser incapazes de
explicar ou de entender detalhadamente essa procedência, mas é que também não podemos
entender detalhadamente a matéria mesma nem suas propriedades básicas. É suficiente com que
a observação nos garanta que o movimento, o princípio da matéria organizada, nasce
efetivamente. Dado o princípio do movimento podem surgir não só a sensação, senão também
todas as demais forma de vida psíquica. Ou seja: todas as forma da vida dependem em última
instância de forma diferentes de organização física. Desde depois que a analogia da máquina
não é plenamente adequada para descrever ao homem. Também podemos usar a analogia da
planta (por isso escreveu L’homme plante). Mas isso não significa que tenha na natureza nivele
diferentes. Há diferenças de grau, não de classe.

Em questões de religião A Mettrie professava um agnosticismo completo. Mas considerava-


se-lhe ateu. Tentou radicalizar ainda mais a tese de Bayle segundo a qual um estado composto
de ateus é perfeitamente possível, acrescentando que é ademais desejável. A religião, dito de
outro modo, não só é completamente independente da moralidade, senão também hostil a ela.
Pelo que faz às ideias éticas da Mettrie, sua natureza fica suficientemente indicada pelo título de
sua obra A arte de desfrutar, ou A escola da voluptuosidad.[91] Não possuía o idealismo moral
de Diderot. Dito seja de passagem, essa obra foi um dos muitos tratados publicados durante o
século XVIII e que representavam as opiniões do círculo dos chamados “libertinos”, embora as
teses expressas iam desde a acentuación do prazer sensorial, que é caraterística da Mettrie, até
programas de desfrute bem mais requintados e intelectualizados.

b) Os escritos da Mettrie influíram muito, mas a principal formulación de uma posição


materialista foi o Système da nature oti dê lois du monde physique et du monde moral (1770) do
barón Paul von Holbach (1723-1789). Nascido na Alemanha, vivia em Paris, pelo que
geralmente se lhe conhece como d’Holbach. Sua casa de Paris era centro de reunião dos
philosophes; ali acolhiam-lhes com pródiga hospitalidade o barón e sua esposa, a qual, dito seja
de passagem, não simpatizaba com a filosofia de seu marido. Quando estava em Paris, Hume
participava naquelas reuniões, embora não se interessava pelo dogmático ateísmo de d’Holbach.
Expressou várias vezes sua afeto pelo barón, mas dentre os membros do círculo preferia a
d’Alembert. Horace Walpole, em mudança, que não tinha nenhum amor aos filósofos, observa
em suas cartas[92] que deixava de ir às comidas de d’Holbach e que “absurdo por absurdo, prefiro
os jesuitas aos filósofos”.
Segundo d’Holbach Descarte errava em considerar que a matéria é por si mesma inerte e que
o movimento tem que lhe lhe acrescentar desde fora, por assim o dizer. O movimento segue-se
necessariamente da essência da matéria, isto é, da natureza dos átomos que compõem em última
instância as coisas. Também errava Descarte ao pensar que a matéria é toda da mesma classe. O
princípio leibniziano dos indiscernibles contém muita mais verdade que a noção cartesiana da
homogeneidad da matéria. E há diferentes classes de movimento, e a cada coisa tem suas
próprias leis do mesmo, inevitavelmente observadas.

As coisas, tal como empiricamente as conhecemos, constam de diferentes organizações de


átomos, e seus comportamentos diferem de acordo com suas diversas estruturas. Por todas partes
achamos os fenômenos de atração e repulsión, mas na esfera humana estes fenômenos tomam a
forma do amor e o ódio. Ademais, a cada coisa aspira a manter no ser. E também o homem está
movido pelo amor próprio ou interesse próprio. Mas isso não exclui o interesse pelo bem-estar
da sociedade. D’Holbach era radicalmente materialista e determinista, mas não propunha uma
vida egoísta. Conhecia-se-lhe um caráter humano e benévolo, e entre as obras anônimas que se
lhe atribuem se encontra o Systéme social ou principes naturels da morale et da politique
(Londres 1773) e A morale universelle (Amsterdã 1776).

A teoria de um determinado sistema da natureza no qual o movimento não é um elemento


estranho, senão uma propriedade essencial das coisas, lhe parecia a d’Holbach suficiente para
excluir toda necessidade de postular a Deus ou seres supramundanos quaisquer. A ordem ou
sistema do mundo não é resultado de um plano divino, senão efeito da natureza das coisas e de
suas leis inmanentes. Mas d’Holbach não estava em modo algum satisfeito com professar o
agnosticismo e dizer que a hipótese religiosa, como a chamava Hume, é desnecessária. Em sua
opinião a religião é inimiga da felicidade e o progresso humanos. Em um célebre bilhete do
segundo livro do Sistema da natureza declara que a ignorância e o medo criaram os deuses, que
a imaginação, o entusiasmo ou o engano enfeitaram ou desfigurado suas imagens, que a
debilidade os adora, a credulidad os conserva e a tiranía sustenta a fé neles porque serve a seus
próprios fins. A fé em Deus, longe de fazer aos homens felizes, aumenta sua ansiedade e seu
medo.

Portanto, se fosse possível derrubar esse poderoso instrumento da tiranía política que é a
religião, seria bem mais fácil assegurar o desenvolvimento de um sistema social racional em
local do sistema responsável de tanto sofrimento e tanta miséria. D’Holbach foi em seus escritos
por regra geral mais aberto na denúncia do ancien régime que seus colegas. Mas recusava a
revolução como solução dos problemas políticos, e em seu Sistema social declarava que a
revolução é pior que a doença que se supõe cura.

Disse-se alguma vez que em seu Sistema da natureza d’Holbach combinou e levou até o
extremo as diferentes tendências dos iluministas franceses. A tese é verdade até verdadeiro
ponto. Mas as ideias de d’Holbach resultavam demasiado radicais para muitos de seus colegas
filosóficos. Voltaire, por exemplo, denunciou a obra por atea. E na Alemanha, Frederick o
Grande chamou a atenção a respeito de algo que ele considerava como uma contradição
manifesta. Segundo d’Holbach, os seres humanos estão tão submetidos ao determinismo como
as demais coisas. E, no entanto, não vacila em denunciar aos sacerdotes e os governos com
apasionadas palavras, nem em reclamar uma nova ordem social, forma de falar que não fazem
sentido mais que se os homens são livres e é possível os elogiar ou os denunciar razoavelmente
por suas ações.

Há, por último, uma valoração muitas vezes citada da obra de d’Holbach desde um ponto de
vista muito diferente. Em Wahrheit und Dichtung (livro XI) Goethe fala de seus estudos em
Estrasburgo e observa que por mera curiosidade ele e seus amigos jogaram um vistazo ao
Sistema da natureza. “Não pudemos entender que se considerasse perigoso um livro assim. A
nós nos pareceu tão cinza, tão nebuloso e cadavérico que nos era difícil suportar sua presença e
nos produzia escalofríos como um espetro.” Para Goethe o livro de d’Holbach arranca à natureza
e à vida todo o que têm de precioso.

c) Uma expressão particularmente crua do materialismo pode ser encontrado nos escritos de
Pierre Jean Georges Cabanis (1757-1808) médico autor dos Rapports du physique et du moral
de l’homme. Cabanis resumiu suas teses na frase lhes nerfs, voila tout l’homme, e declarou que
o cérebro segrega pensamento igual que o hígado segrega bilis. Podia objetarse que neste caso
não teria mais que diferentes classes de secreción, e que resultaria difícil decidir qual delas
possui melhor valor veritativo. Mas seria errôneo supor que toda o Iluminismo francês tem de
estimar à luz das grosseiras afirmações de materialistas como Cabanis. Até perderemos de vista
a significação da mesma corrente materialista se só atendemos a essas formulaciones. Pois sua
importância encontra-se em sua feição programático, mais que no dogmatismo contra o qual
protestaram d’Alembert e outros. Sua importância em longo prazo reside em sua feição de
programa para estudar as conexões entre os fenômenos fisiológicos e os psicológicos, não em
sua redução dogmática dos últimos aos primeiros.

Cabanis sustentava que sua concentração sobre as bases fisiológicas da vida psíquica não
implicava um materialismo metafísico. Pelo que faz às causas últimas professava, efetivamente,
o agnosticismo. Mas em sua opinião a moralidade tem de separar-se drasticamente de
orçamentos metafísicos e teológicos e conseguir uma base firme no estudo científico do homem.
Uma de suas contribuições a esse estudo é seu insistencia na unidade da vida do homem. Asi,
por exemplo, parece-lhe impropio falar, com Condillac, de atribuir tal ou qual sentido a uma
estátua. Os sentidos são interdependentes e estão ademais intimamente relacionados com outras
funções orgânicas.

3. A história natural: Buffon, Robinet e Bonnet.

Diderot disse alguma vez que em certas circunstâncias não há despilfarro maior que a
preocupação pelo método. Isso vale especialmente, segundo ele, da história natural em general
e da botánica designadamente. Diderot não pretendia, desde depois, que seja possível estudar
provechosamente uma ciência de um modo puramente casual. Mas sim que não fazemos mais
que perder o tempo quando tentamos descobrir algum método universal que seja aplicável a
todas as ciências. É absurdo, por exemplo, supor que o método aplicável em matemática é
aplicável também em botánica. A forma do método e da sistematización que é adequada no
estudo da botánica tem que se derivar do especial caráter do tema desta ciência.

Ao afirmar esse ponto de vista Diderot estava mais ou menos influído pelos primeiros
volumes da Histoire naturelle gera-lhe et particulière (1749-1788) de Buffon.
a) Em suas considerações introdutórias à obra recém mencionada, Georges-Louis Leclerc de
Buffon (1707-1788) sustenta que é um grande erro se fazer um ideal de método científico e
tentar logo violentar todos os ramos da investigação científica para que entrem no
enquadramento desse método. Por exemplo, em matemática fixamos com clareza a significação
de nossos símbolos e podemos proceder dedutivamente, despregando os envolvimentos de nosso
ponto de partida; mas não podemos fazer isso quando nos ocupamos da natureza existente e não,
como em matemática, de nossos conceitos ou da significação de símbolos, determinada por nós
mesmos. A verdade é diferente em matemáticas do que é nas ciências naturais. Nestas últimas
temos que partir da observação dos fenômenos, e só sobre a base da observação podemos chegar
a conclusões gerais com a ajuda de analogias. Ao final podemos ver como os fatos particulares
se relacionam uns com outros e como as verdades universais se ejemplifican nesses fatos
particulares. Mas não podemos utilizar o método deductivo da matemática. Buffon estava
encarregado do Jardim do Rei, e é claro que o que diz se aplica com particular força no campo
da botánica.

A recusación por Buffon de toda concepção rígida de um método científico ideal de


aplicação universal se acompanha com a rejeição também da ideia de que os organismos possam
ser classificado em espécies separadas umas de outras por rígidos limites. Até Linneo tinha-se
equivocado neste ponto durante seus estudos de botánica, pois selecionava arbitrariamente certas
caraterísticas das plantas como chaves clasificatorias, e o fato é que não podemos entender a
natureza desse modo. Na natureza há continuidade, transições graduais, não tipos rigidamente
afixados. Dito de outro modo: Buffon substitui a ideia de uma hierarquia de classes claramente
delimitadas pelo conceito de uma série ou corrente de classes na cada uma das quais os membros
se reúnem segundo o parentesco observado. Não recusava completamente a noção de classe ou
espécie, mas a espécie devia ser entendido simplesmente como um grupo de indivíduos mais
parecidos entre eles, em virtude das caraterísticas observadas, que parecidos a outras coisas. É
errôneo supor que nossa classificação expresse a aprehensión de essências fixas. Podemos dizer,
se assim o desejamos, que Buffon entendia a classificação ao modo do que Locke chamava
“essência nominal”. Mas seu tema capital é que temos de obedecer à natureza observada e
manter elásticos nossos conceitos clasificatorios, em vez de construir um fixo esquema
conceptual e forçar a natureza para que encaixe nele. Se só tivéssemos que ocupar de nossas
ideias ou definições e de suas consequências, esse procedimento violento seria adequado. Mas
em botánica, por exemplo, temos de atender ao conhecimento da realidade, não a um sistema
ideal semelhante ao da matemática.

É provavelmente correto dizer que as opiniões de Buffon ajudaram algo a preparar o


caminho à teoria da evolução. Mas, de todos modos, não é lícito inferir de sua ideia de !a série
ou corrente das espécies que Buffon fora já um evolucionista. O que ele pensava é que há
numerosos tipos de organismos que nascem em uma série contínua na medida em que as
condições externas possibilitam sua sobrevivência. Mas não afirmou nunca que uma espécie
atravesse um processo de trasformación até dar em outra. Mais bem pensava em uma espécie de
arquetipo ideal da coisa viva, o qual representaria a unidade do plano divino e poderia tomar um
indeterminado número de forma concretas possíveis. E embora esses tipos concretos não sejam
fixos nem rígidos, a criação da cada um deles é um ato especial.
b) A ideia de série aparece também nos escritos de Jean-Baptiste Robinet (1735-1820). Para
ele a natureza se encontra com o problema de realizar da maneira mais perfeita possível as três
funções vitais da alimentação, o crescimento e a reprodução, as quais se dão em verdadeiro
sentido em toda matéria. A solução da natureza a esse problema encontra-se no homem, o qual
é, portanto, a culminación da série no mundo material. Mas podemos também imaginar uma
gradual libertação de atividade — nota essencial da substância — respecto da matéria e de
qualquer dependência de órgãos materiais. E esta concepção leva-nos à ideia de inteligência
pura.

c) Mas a teoria de uma série puramente linear apresenta consideráveis dificuldades. Charles
Bonnet (1720-1793) sugeriu que a natureza pode produzir linhas principais nas séries, e estas a
sua vez linhas subordinadas. O naturalista e viajante alemão Peter Simón Pallas (1741-1811)
chega já à analogia da árvore com seus diversos ramos. Mas em Buffon mesmo encontra-se a
analogia da rede.

4. O dinamismo de Boscovich.

O jesuita Roger Joseph Boscovich (1711-1787) não pode ser considerado, desde depois,
como um filósofo do Iluminismo, se por Iluminismo se entende um movimento oposto à religião
sobrenatural. Mas o termo não deve ser usado nesse restringido sentido. É verdade que estamos
estudando o Iluminismo francês, e Boscovich, que nascia em Ragusa, não era francês. Mas
durante dez anos (1773-1783) trabalhou como diretor de ótica da marinha, em Paris; e em
qualquer caso este é o local mais adequado neste livro para fazer umas poucas observações a
sua respecto.

Em 1740 Boscovich foi nomeado professor de matemática no Colégio Romano (a atual


Universidade Gregoriana), e enquanto desempenhava esse cargo publicou ensaios a respeito de
vários temas matemáticos e astronómicos. Em 1758 publicou em Viena seu Philosophiae
naturalis theoria, redige ad unicam legem virium in natura existentium. Durante uma estância
na Inglaterra foi nomeado fellow da Royal Society, e em 1769 esta lhe convidou a empreender
uma viagem a Califórnia para observar o passo de Venus; Boscovich não pôde aceitar por causa
de que o governo espanhol expulsava aos jesuítas de todos seus territórios. Em 1785, depois de
voltar de Paris a Itália, publicou opera-as pertinentia ad opticam et astronomiam, em cinco
volumes. Entre outras obras podemos mencionar suas Elementa universae matheseos (1754).

Em opinião de Boscovich não há contato real entre dois corpos. A teoria newtoniana da
gravitación mostrou que ação é ação a distância. Portanto, não podemos seguir pensando que o
movimento ou a energia se comuniquem por contato imediato. O que temos que postular é
átomos que se atraem e repelen os uns aos outros, sem se tocar realmente nunca. A cada átomo
tem uma posição no espaço e possui uma força potencial, no sentido de que dois átomos
quaisquer se atraem ou se repelen entre eles. Para qualquer distância superior a uma dada, esta
força é uma atração que varia em razão inversa do quadrado da distância. No caso de distâncias
menores a força é atração em um caso e repulsión em outro. Nesta zona as leis que regulam a
atração e a repulsión não se descobriram ainda, embora segundo Boscovich ao diminuir a
distância para além de todo limite a força de repulsión aumenta ilimitadamente. Portanto, dois
átomos não podem nunca estar em contato imediato. Sem dúvida há sistemas de átomos, mas
nenhum sistema pode ocupar o mesmo espaço que outro, pois quando um sistema se aproxima
a outro há um ponto no qual a repulsión entre os átomos dos dois sistemas cresce a tal ponto que
não pode ser vencida. Não é necessário dizer que Boscovich não sustentava que os átomos
fossem a única realidade. Estava falando só dos corpos e queria mostrar a aplicação de sua teoria
do atomismo dinâmico aos problemas de mecânica e física.

5. Os fisiócratas: Quesnay e Turgot.

Os enciclopedistas estavam animados pela ideia do progresso manifesto no crescimento das


ciências e na correspondente libertação respecto da superstição. A ilustração do espírito iria
acompanhada por um aumento da tolerância e pela reforma política e social. A ideia de progresso
aparece também nas teorias do grupo de economistas franceses do século XVIII conhecidos por
fisiócratas "”. O nome foi inventado por Dupont de Nemours (1739-1817), que pertencia ao
grupo. Os fisiócratas chamaram-se inicialmente economistas, mas esse nome especial (composto
com as palavras gregas physis, natureza e kratein, governar, dominar) é adequado porque chama
a atenção a respeito de sua tese principal. Esta diz que há leis econômicas naturais, e que o
progresso econômico depende de que permitamos que essas leis funcionem sem restrição.

Segue-se dessa posição que o governo tem que intervir o menos possível nos assuntos
econômicos. A sociedade baseia-se em um contrato pelo qual o indivíduo se submete à limitação
de sua liberdade natural na medida em que o exercício desta é incompatível com os direitos de
outros indivíduos. E o governo deve ser limitado a garantir o cumprimento desse contrato. Se
tenta interferir no campo da economia, restringindo, por exemplo, a participação, ou mantendo
privilégios e monopólios, interferirá em realidade com a operação da “lei natural”. E nenhum
bem pode ser derivado dessa interferência: a natureza é mais sábia.

Isso não significa que os fisiócratas fossem democratas entusiastas, no sentido de promotores
zelosos da ideia de governo popular. Pelo contrário, tendiam a considerar que o despotismo
iluminista era o melhor instrumento para realizar sua política. As doutrinas de não interferência
e laissez-faire se prestavam, no entanto, a servir em sentido revolucionário como parte de uma
reivindicação geral de liberdade; e assim foram usadas efetivamente. Mas nem Quesnay nem
Turgot, por exemplo, podem ser considerado advogados da revolução nem da substituição do
governo monárquico por um poder popular.

a) François Quesnay (1694-1774) estudou medicina e cirurgia e foi médico de Luis XV. Mas
no corte dedicou-se ao estudo da economia, de modo que o grupo dos fisiócratas centrou-se em
torno seu e de Jean de Gournay (1712-1759). Quesnay escreveu alguns artigos de tema
econômico para a Enciclopédia. Publicou também, entre outros escritos, umas Máximes
générales de gouvernement économique d’um royaume agricole (1758), e naquele mesmo ano
o Tablean économique avec são explication, ou extrait dê économies royales de Sully.

A riqueza nacional depende, segundo Quesnay, da produtividade agrícola. Os únicos


trabalhos realmente produtivos são os que aumentam a quantidade de matérias prima. E a riqueza
nacional é o excesso desses produtos respecto de seu custo de produção. A manufactura e o
comércio limitam-se a dar novas forma à riqueza já produzida (pois entre as matérias prima se
encontram, por exemplo, os metais) e a transferir a riqueza de umas mãos a outras. São, portanto,
“estéreis”, não “produtivos”, embora isso não quer dizer que não sejam úteis.

Portanto coincide o interesse do proprietário da terra com o interesse da sociedade. Quanto


maior a produção agrícola, tanto maior a riqueza nacional. Ou, como dizia Quesnay: a
camponeses pobres reino pobre, e a reino pobre rei pobre. Portanto, o aumento do “produto neto”
tem de ser o objetivo do economista prático. O comércio distribui a riqueza, mas as classes
comerciantes e manufatureiras ganham a costa da nação, e o bem comum requer que esses custos
se reduzam o mais possível. As rendas do estado dependem do produto neto da agricultura, e
têm de proceder de um imposto sobre a terra.

Não todos os fisiócratas compartilhavam essa acentuación da produção agrícola em frente à


indústria e ao comércio; mas a tese era caraterística de alguns membros destacados do grupo.
Adam Smith, que conheceu a Quesnay durante sua visita a Paris em 1764-1766, lhe tinha em
alta consideração, mas, embora em alguma medida lhe influíram os fisiócratas, não estava de
acordo com a descrição da indústria e o comércio como atividades “estéreis”.

b) Anne Robert Jacques Turgot, barón de Laune (1727-1781) começou estudos religiosos,
mas abandonou-os dantes de ordenar-se; depois ocupou vários cargos do parlamento e a
administração. Era amigo de Voltaire e conheceu também a Quesnay, Gournay, Dupont de
Nemours e outros economistas da escola fisiocrática. Além de interessar pelas reformas
econômicas escreveu vários ensaios e artigos, alguns deles para a Enciclopédia. Em 1770
escreveu seus Leitres sul libertei-a du comtnerce dê grains e em 1776 publicou em um volume
seus Réflexions sul a formation et a distribution dê richesses, que aparecia já em 1769-1770 em
um jornal. Em 1774 foi nomeado ministro de marinha, e pouco depois intendente geral. Neste
último cargo, equivalente ao de ministro de fazenda, conseguiu aumentar o crédito nacional.
Contou primeiro com o apoio do rei, mas seus planos de abolir os privilégios, submeter todas as
classes aos impostos e proclamar o livre comércio do trigo lhe acarretaram muitos inimigos, ao
mesmo tempo que seus projetos de sistema educativo e de ajuda aos pobres resultaram já
demasiado para o mesmo rei. Em 1776 viu-se obrigado a demitir. Durante o resto de sua vida
dedicou-se ao estudo.

Como economista Turgot compartilha as ideias de Quesnay a respeito da terra como única
fonte de riqueza e a respeito da necessidade de uma liberdade completa na indústria e o
comércio. Mas não era meramente um economista. Em seu artigo sobre existência para a
Enciclopédia, por exemplo, desenvolve toda uma interpretação positivista. O dado é uma
multiplicidad de fenômenos, os relacionamentos mútuos entre os quais mudam constantemente.
Mas em alguns grupos há relacionamentos de coordenação relativamente persistentes. Um
desses grupos é o que chamamos o eu ou mismidad, um grupo particular de percepciones
relacionadas com percepciones ou sentimentos de prazer ou dor. Afirmar a existência do mundo
externo é afirmar que outros grupos de fenômenos, imediatamente dados ou postulados, se
encontram em relacionamentos espaciais ou causales com o eu. Portanto, existência significa
para nós existência como sujeito ou para um sujeito no sistema de relacionamentos espaciais e
causales. A questão de que é a existência em si mesma ou a de que coisas existentes há fora do
sistema de relacionamentos espaço-temporários e causales não é uma questão que possamos
resolver. Dito de outro modo: não podemos resolver problemas metafísicos. A ciência ocupa-se
da descrição dos fenômenos, não de “ questões últimas”.

Turgot tem importância no desenvolvimento da interpretação positivista da história. A


diferença do que ocorre na história animal, na história humana há progresso, no sentido de que
os lucros intelectuais de uma geração são recolhidos, alargados e ultrapassados pela seguinte.
Na cada período cultural podemos achar certo esquema recorrente. Mas, em general, o avanço
intelectual da espécie humana passa por três fases principais, a religiosa, a filosófica ou
metafísica e a cientista. Nesta terceira fase as ciências matemáticas e naturais triunfam envelope
a metafísica especulativa e põem os fundamentos de um posterior avanço científico e de novas
forma de vida social e econômica. Deste modo antecipa Turgot a interpretação da história que
exporia Auguste Comte durante o século seguinte. E embora desde o ponto de vista da economia
há que classificar a Turgot junto de Quesnay e os demais fisiócratas, desde o ponto de vista
filosófico, que é mais amplo, é possível classificar junto dos diretores da Enciclopédia,
d’Alembert e Diderot.

6. Observações finais.

o Iluminismo francês identifica-se quase com frequência com o rotundo materialismo e as


polêmicas antirreligiosas de homens como Helvecio, A Mettrie e d’Holbach. A tendência a fazê-
lo assim tem causas compreensíveis, e sem dúvida é esse, efetivamente, uma feição real da
filosofia francesa do século XVIII. Mas o espírito do movimento fica provavelmente melhor
representado globalmente por homens como d’Alembert, Diderot e Turgot, os quais tendiam
mais bem a se abster de pronúncias dogmáticos a respeito da realidade última, e esperavam que
o progresso científico e o incremento da tolerância contribuíssem forma novas e mais racionais
de vida social e política. Não há dúvida de que a filosofia francesa do século XVIII ajudou a
preparar o caminho à Revolução; mas os filósofos mesmos não aspiravam a uma revolução
sangrenta, senão mais bem à difusão do conhecimento, e, por médio dela, à reforma social. Não
estou dizendo com isto que os pontos de vista doctrinales de lhes philosophes fossem bons, nem
que eu coincida com seu ponto de vista antimetafísico. Mas sim que é um erro os contemplar
simplesmente à luz do materialismo dogmático de alguns dentre eles. Como já se indicou, o
fazer assim é passar por alto e ignorar a feição programático de sua obra, o programa que se
propunha alargar todo o que fosse possível a esfera do conhecimento empiricamente verificado.
Deixando aparte as formulaciones cruas e grosseiras, os filósofos iluministas interessam-se em
realidade, e por exemplo, pelo desenvolvimento da psicologia e a biologia empíricas, pelo dos
estudos sociológicos e pelo da economia política. No século seguinte os idealistas sentiram a
necessidade de reconciliar e sintetizar as visões religiosa, metafísica e científica. Mas esse ideal
pressupunha, como é óbvio, a presença do ponto de vista científico e positivista; os filósofos do
século XVIII tiveram muita importância na produção desse ponto de vista. Como o
compreenderam os idealistas do século XIX, o ponto de vista científico não tinha de se negar,
senão que se tratava de modificar mediante sua incorporação em uma síntese mais ampla. Isso
aparte da questão de se tiveram sucesso ou não na construção de tal síntese.
Capítulo III
Rousseau - I.

1. Vida e escritos.

Jean Jacques Rousseau nasceu em Genebra o 28 de junho de 1712; era filho de um relojero.
Em 1725 começou com um grabador uma aprendizagem que tinha de durar cinco anos, mas
escapou ao pouco tempo. O cura de Confignon, um povo próximo de Genebra, apresentou o
rapaz à baronesa de Warens, que ia ter uma importante participação em sua vida. Baixo sua
influência Rousseau converteu-se ao catolicismo, e em 1728 ingressou em um hospicio para
catecúmenos, instituição da que deu um desfavorável retrato em seus Confessions. Depois de
um período de viagens e existência desordenada voltou junto a madame de Warens em 1731.
Mais tarde tem idealizado como episódio idílico sua vida com ela, em Chambery primeiro e
depois em Lhes Charmettes. Neste período esforçou-se Rousseau por compensar mediante a
leitura as deficiências de sua primeira educação asistemática.

De 1738 a 1740 Rousseau trabalhou como tutor dos filhos de um Monsieur de Mably; nessa
época conheceu a Condillac. Em 1742 dirigiu-se a Paris, mas já em 1743 estava em Veneza
como secretário do novo embaixador francês, o conde de Montaigu. Os dois homens não se
entendiam bem, de maneira que ao ano seguinte Rousseau, despedido por insolência, se
encontrava de novo em Paris. Em 1745 viu por vez primeira a Voltaire, e em 1749 Diderot
encarregou-lhe os artigos de música para a Enciclopédia. Também lhe introduziram no salão de
d'Holbach. Naquele mesmo ano a Academia de Dijon ofereceu um premio para o melhor ensaio
a respeito da questão de se o progresso das artes e das ciências tendeu a apurar ou a corromper
a moralidade. O Discurso sobre as artes e as ciências de Rousseau ganhou o premio e publicou-
se em 1750. Seu autor convertia-se de repente em um homem famoso. Mas já que tinha-se
decidido por um ataque à civilização e a seus efeitos corruptores envelope o homem, suas
opiniões chocaram, naturalmente, com as de lhes philosophes, que se opuseram energicamente
a elas, e assim se produziu uma batalha de palavras. Rousseau tendia já a uma ruptura com o
círculo de d’Holbach. Não obstante, e apesar da oposição, decidiu-se a coincidir a outro premio
oferecido pela Academia de Dijon, desta vez a respeito da questão da origem da desigualdade
entre os homens, e de se está autorizada pela lei natural. Seu Discurso sobre a origem e
fundamento da desigualdade entre os homens não obteve o premio, mas se publicou em 1758.
Encontramos nele uma imagem do homem natural, ou homem em estado de natureza, isto é, do
homem despojado dos atributos e acrescentados da civilização. O homem é bom por natureza,
mas a civilização acarretou desigualdade e uma legión de males consequentes. Naquele mesmo
ano de 1755 imprimia-se na Enciclopédia o artigo de Rousseau sobre economia política. O artigo
apareceu em separata em 1758 com o título de Discurso sobre a economia política. Neste ensaio
aparece por vez primeira a ideia de vontade geral.
Rousseau encontrava-se a contragosto vivendo em Paris, como se reflete em seus dois
primeiros discursos. Pensava com frequência em sua cidade natal. Em 1754 voltou as costas à
capital francesa e dirigiu-se a Genebra. Ali voltou à igreja protestante. Mas a mudança não
significou nenhuma renovação religiosa. Como o mesmo Rousseau observou, se seus amigos
filósofos de Paris fazia algo por ele, esse algo era a destruição de toda fé que tivesse no dogma
católico. Sua principal razão para voltar ao protestantismo foi, como ele mesmo reconheceu, o
desejo de voltar a adquirir a cidadania ginebrina. Mas o filósofo não permaneceu muito tempo
em Genebra. De volta a Paris em outubro de 1754 enviou uma instância de seu Discurso sobre
a desigualdade a Voltaire, o qual lhe escreveu lhe agradecendo o envio de “ seu novo livro
contra a espécie humana”.

De 1756 a 1762 Rousseau viveu retirado em Montmorency. Foi um período de grande


atividade literária. Em 1758 escreveu a Lettre á d’Alembert sul lhes spectacles, que se refere ao
artigo da Enciclopédia a respeito de Genebra no qual d’Alembert criticava a proibição ginebrina
dos espetáculos teatrais. No ano 1762 viu a publicação da Nouvelle Hcloise, a novela de
Rousseau. E em 1762 apareceram não só sua famosa obra Du contrat social (Contrato Social),
senão também o Émile, seu livro a respeito da educação. Nesta época Rousseau rompia já com
Diderot. Sua ruptura decisiva com lhes philosophes expressou-se nas Lettres morais, que não se
publicaram, no entanto, até 1861.

Como consequência da publicação do Contrato Social e do Émile, Rousseau teve que se


refugiar em Suíça. Mas também em Genebra foi hostil a reação a suas obras, de maneira que em
1763 Rousseau renunciou formalmente à cidadania ginebrina. Em 1765 partiu para Berlim, mas
já em caminho decidiu mudar de destino e passar a Inglaterra; em janeiro de 1766 atravessou o
canal com David Hume, que lhe tinha oferecido refúgio na Inglaterra. Não pode ser dito que a
visita fosse um sucesso. Já então Rousseau, sempre hipersensible e suspicaz, sofria de manía
persecutoria, e se convenceu de que Hume se tinha confabulado com seus inimigos. Hume, sem
poder compreender o patológico estado de Rousseau, enfadou-se sobremaneira, sobretudo
porque ele enquanto tinha estado tentando conseguir uma pensão real para o amigo; por isso,
pese a todos os conselhos na contramão, publicou em Londres e Paris sua versão do incidente.
Em maio de 1766 Rousseau voltou a França e foi hospedado pelo príncipe de Com ti. Em 1770,
depois de várias viagens, voltou a Paris sem preocupar pelo fato de que ali podia ser detido. O
verdadeiro é que a polícia não lhe molestou, embora caiu sobre ele uma campanha literária de
desprestigio, devida sobretudo a Grimm e Diderot. Em maio de 1778 transladou-se a
Erménonville, como hóspede do marqués de Girardin, e ali morreu o 2 de julho. Seus
Confessions, e as Revenez du Promeneur Solitaire publicaram-se postumamente (1782-1789).
As Considerações sobre o governo da Polônia apareceram em 1782.

O caráter e a vida de Rousseau fornecem abundante material para o psicólogo. É verdade


que parte das anomalías se deveram a má saúde física. Durante anos sofreu uma doença da
vejiga, e seguramente morreu de uremia. A adaptação social foi-lhe difícil desde o princípio, e
embora era capaz de profundo afeto, era demasiado sensível, suspicaz e intolerante para manter
amizades constantes. Era muito dado ao autoanálisis e, no entanto, muitas vezes entendeu-se
muito mau, a si mesmo e aos demais. Era um filósofo, mas com um temperamento sumamente
emotivo, e sempre estava atento à tensão entre pensamento e emoção, espírito e coração, que lhe
oprimiu durante toda a vida. Romântico, emotivo, com um genuíno sentimento religioso, mas
egocéntrico e mentalmente desequilibrado, não é surpreendente que Rousseau rompesse com
lhes philosophes. D’Holbach advertiu a Hume que estava esquentando uma víbora em seu seio.
E Hume qualificou depois a Rousseau de “ o mais curioso de todos os seres humanos”, e depois
observou muito agudamente que Rousseau não fazia mais que sentir durante toda sua vida, e
que nele a sensibilidade chegou a uma culminación sem exemplo. Mas é claro que nada disso
afeta à importância de Rousseau na história da filosofia.[93]

2. Os males da civilização.

“É um nobre e formoso espetáculo o de ver ao homem levantar-se a se mesmo desde a nada,


por assim o dizer, com seu só esforço.” [94] Estas palavras são o começo da primeira parte do
Discurso sobre as artes e as ciências de Rousseau. Um esperaria as ver seguidas por um elogio
das bênçãos da civilização. Se o autor fosse d’Alembert, por exemplo, não há dúvida de que essa
expectativa se teria visto satisfeita. Mas não foi assim no caso de Rousseau. Cedo lemos que “o
espírito tem suas necessidades, igual que o corpo; as do corpo são a base da sociedade, as do
espírito são seus ornamentos”.[95] Estas palavras podem ser tomado em um sentido plenamente
innocuo, embora parecem implicar que a satisfação de todas as necessidades não físicas não é
mais que um ornamento inesencial da sociedade. Mas pouco depois inteiramo-nos de que as
artes, a literatura e as ciências tecem guirnaldas de flores nas correntes que sujeitam ao homem,
e afogam no peito deste o sentimento da liberdade para o que parecia ter nascido. Aqueles
“ornamentos” fazem com que os homens amem sua escravatura. “A necessidade levantou os
tronos; as artes e as ciências consolidaram-nos.” [96]

Assim se prepara o caminho para um ataque retórico à sociedade chamada civilizada.


Rousseau atende particularmente à artificialidad da vida social. É possível que a natureza
humana não fora em forma de sociedade mais rudimentarias fundamentalmente melhor do que
é hoje; mas os homens eram sinceros e abertos, e permitiam que se lhes visse tal como eram.
Agora “não nos atrevemos já a aparecer o que realmente somos, senão que mentimos baixo
perpétua constricción”.[97] Todos os homens fazem exatamente igual salvo quando intervém
algum motivo particularmente poderoso; e desapareceram a amizade sincera e a confiança real.
O véu da cortesía convencional disimula toda sorte de atitudes indignas. Não tomaremos talvez
o nome de Deus em vão para vulgares juramentos; mas a blasfemia real não nos molesta em
absoluto. Não nos damos a vanagloria extravagante, mas destruímos sutilmente os méritos dos
demais e os caluniamos com astúcia. “Diminui nosso ódio às demais nações, mas com ele morre
o patriotismo. Despreza-se a ignorância, mas aconteceu-lhe um escepticismo perigoso.”[98]
Rousseau desaprovava o espírito cosmopolita do Iluminismo, que lhe repugnava.

É evidente que em seu retrato da sociedade civilizada Rousseau está generalizando sua
experiência de Paris, cidade na qual se tinha apresentado nos ambientes distintos não sobre a
base de seu mérito, senão em uma humillante posição de dependência. De todos modos, algo do
que diz é sem dúvida suficientemente verdadeiro para fornecer material ao predicador. É
verdade, por exemplo, que na sociedade civilizada o ingênuo e extravagante gloriarse se
considera ridículo, mas se persegue o mesmo objetivo por médio de uma sutil depreciación dos
demais. O peculiar é que Rousseau atribui essa situação ao crescimento das artes e as ciências.
"Nossos espíritos foram corrompendo na medida em que progrediam as artes e as ciências.” [99]
E o progresso científico deve-se à “vã curiosidade”.[100] Agora bem: uma coisa é chamar a
atenção a respeito de algumas feições sombrias da sociedade do século XVIII e outra
completamente diferente indicar como causa desses defeitos o avanço das artes e as ciências.

Por suposto que Rousseau se esfuerza por sustentar sua tese mediante referências históricas.
Assim nos diz que Egito foi o pai da filosofia (tese muito discutible) e das belas artes, mas cedo
foi conquistado por Cambises, e depois pelos gregos, os romanos, os árabes e finalmente os
turcos. Na Grécia, diz Rousseau, o progresso das ciências produziu cedo maneiras disolutas, e
acarretou a imposição do jugo macedonio. “Nem a elocuencia de Demóstenes pôde inspirar vida
a um corpo esgotado pelo luxo e as artes.”[101] Contemplemos, em mudança, as virtudes dos
antigos persas e dos escitas, por não falar já da “singeleza, a inocência e a virtude”[102] das tribos
germánicas conquistadas pelos romanos. Nem também não temos de esquecer a Esparta, “prova
eterna da vaidade da ciência”.[103]

Na segunda parte do Discurso Rousseau conta-nos que “a astronomia nasceu da superstição,


a elocuencia da ambição, o ódio, a falsidade e a adulación; a geometria da avaricia; a física de
uma perversa curiosidade, e até a filosofia moral nasce do orgulho humano. Assim as artes e as
ciências devem seu nascimento a nossos vícios”.[104] Nascem do mau e conduzem a más
consequências. Produzem o luxo e a debilidade. As virtudes militares dos romanos extinguiram-
se à medida que foram cultivando as belas artes. E “se o cultivo das artes é perjudicial para as
qualidades militares, ainda o é mais para as qualidades morais”.[105] Assim se chega a fornecer
uma educação cara que o ensina todo menos a probidad, e a integridade morais. Premeiam-se
com honras a excelência literária, a artística e a cientista, enquanto deixam de premiar-se as
virtudes morais. Depois, para o final do Discurso, Rousseau recorda que está escrevendo à
Academia de Dijon e com a intenção de conseguir um premio literário. E parece-lhe oportuno
dizer algo em favor de homens como Francis Bacon, Descarte e Newton, “maestros da
humanidade”.[106] Mas contrapõe esses gênios, aos que a natureza mesma declarou discípulos
seus, “ao rebanho de autores de manuais”,[107] os quais violaram indiscretamente o santuário das
ciências, abrindo suas portas a um populacho indigno para que se informe e conheça ideias que
seria melhor que ignorasse. Pouca dúvida pode ter de quem são branco desse ataque de
Rousseau.

Não foi nada difícil para os críticos de Rousseau mostrar as deficiências dos conhecimentos
históricos deste e as debilidades de sua argumentación da tese de que a degeneração moral é
fruto do desenvolvimento das artes e as ciências. Se vivesse hoje Rousseau acrescentaria sem
dúvida que as necessidades militares estimularam o desenvolvimento da investigação científica
em alguns ramos, e sustentaria que o progresso correspondente nasceu de vícios humanos e terá
más consequências. Mas está claro que a moeda tem também outra cara. Embora o progresso
em física atômica, por exemplo, seja estimulado de algum modo pela guerra, os frutos da
investigação podem ser usado para fins não destructivos. Também é fácil criticar a idealización
de Esparta por Rousseau contra Atenas e sua panegírico das virtudes das tribos germánicas. Mas
o próprio Rousseau admitiu explicitamente a falta de lógica e de ordem de sua obra, bem como
a debilidade de sua argumentación. Não obstante, e pese a suas evidentes debilidades, o Discurso
tem importância como contrapartida ao princípio dos enciclopedistas segundo o qual o avanço
das artes e das ciências representa o progresso humano em general. Em realidade não deve ser
entendido como uma rejeição completa e global da sociedade civilizada. Era mais bem a
expressão de um sentimento, de uma atitude adotada à luz de uma ideia que lhe chegou a
Rousseau com a força de uma iluminação repentina. Mas mais tarde, sobretudo no Contrato
Social, tentaria justificar o passo do estádio primitivo do homem à sociedade organizada, e
averiguar que forma de instituição social é mais compatível com a bondade natural do homem
e menos capaz de lhe corromper e lhe viciar. Resulta ademais que em 1750 ou 1751 Rousseau
começou a planejar uma obra sobre Instituições políticas, da que desistiu depois de ter tomado
de suas notas a substância do Contrato Social. Todo isso indica que nunca deveu de achar
seriamente, nem sequer na época de redação do primeiro discurso, que a sociedade civilizada
seja tão essencialmente má que tenha que a recusar totalmente. Mas, por outra parte, seria
errôneo achar que Rousseau não fosse sincero no que disse a respeito das artes e as ciências. A
ideia geral de que o homem foi corrompido pelo crescimento de uma civilização artificial e pelo
racionalismo esteve sempre em seu pensamento, embora para obter uma imagem adequada de
sua filosofia tenha que equilibrar essa ideia com sua doutrina positiva respecto do estado e sua
função. Pois em seus últimos escritos há uma mudança de atitude, embora não tal que equivalha
a uma anulação de suas obras temporãs.

3. A origem da desigualdade.

Se admitimos que o homem foi corrompido por uma civilização artificial, qual é o estado
natural, o estado de natureza do que foi afastado? Ou seja, que significação positiva há que
atribuir ao termo ‘estado de natureza’? Esta questão discute-se no Discurso sobre a origem e
fundamento da desigualdade entre os homens.

Não podemos observar o estado de natureza, como é óbvio, pois só conhecemos ao homem
em sociedade. A condição realmente primitiva do homem se sustrae à investigação empírica.
Portanto, nossa interpretação tem de tomar a forma de uma explicação hipotética. “Comecemos,
pois, por deixar de lado os feitos com que não afetam à questão. As investigações que temos de
realizar ao tratar este tema não têm que se considerar como verdades históricas, senão só como
razonamientos meramente condicionais e hipotéticos, calculados para explicar a natureza das
coisas mais que para averiguar sua origem real, como as hipóteses que hoje enuncian nossos
físicos a respeito da formação do mundo.”[108] Isso significa na prática que temos de tomar o
homem tal como o conhecemos, e depois retirar dele todos seus dons sobrenaturales e todas as
faculdades que só pode adquirir no curso de um longo processo de desenvolvimento social. Ou
seja, temos que fazer abstração da sociedade mesma.

Fazendo dessa maneira, encontramos ao homem “acalmando a fome com a primeira encina
à mão, e a sejam no primeiro ribeiro com que tropece; tomando por cama o pé da árvore que lhe
deu de comer; e todas suas necessidades assim satisfeitas”.[109] Um homem assim seria
fisicamente robusto, sem o menor temor aos animais, aos que supera por habilidade, embora não
em força, submetido a poucas causas de doença e pouco precisado de medicinas e ainda menos
de médicos. Sua preocupação principal seria a conservação da vida. Seriam finísimos os sentidos
da vista, o ouvido e o olfato, mais não os do tacto e o gosto, que só se aperfeiçoam com a molicie
e a sensualidad.
Em que difere o homem selvagem do animal? “O que constitui a diferença específica entre
o homem e o animal não é tanto a inteligência quanto a qualidade humana da liberdade... e a
espiritualidad de sua alma se despliega particularmente em sua consciência dessa liberdade. Pois
a física pode explicar em alguma medida o mecanismo dos sentidos e a formação das ideias;
mas no poder de querer ou, por melhor dizer, de, eleger, e no sentimento dessa capacidade não
pode ser encontrado mais que atos que são puramente espirituais e completamente inexplicables
pelas leis do mecanismo.”[110] Rousseau nega, pois, categoricamente a adequação de uma
interpretação puramente materialista e mecanicista do homem.

Outra qualidade que distingue ao homem do animal é a faculdade de auto-aperfeiçoamento


do primeiro, seu perfectibilidad. Mas ao princípio o homem estava governado por desejos
imediatos, o instinto e o sentimento. “Querer e não querer, desejar e temer têm que ser as
operações primeiras e quase únicas de sua alma, até que novas circunstâncias ocasionem um
novo desenvolvimento de suas faculdades.”[111] Os desejos do selvagem não vão nunca para
além de suas necessidades físicas. “Os únicos bens que reconhece no universo são o alimento, a
fêmea e o sonho; e os únicos males que teme são a dor e a fome.”[112]

Rousseau imagina ao homem “viajando pelos bosques, sem indústria, sem linguagem e sem
lar, alheio por igual a toda guerra e a todo laço, sem precisar de seus semelhantes nem desejar
lhes magoar”.[113] O homem retrata-se assim privado de vida social e sem ter atingido ainda o
nível da reflexão. Podemos dizer de um homem de modo que possua qualidades morais? Em
sentido estrito não; mas não se segue disso que possa ser chamado vicioso ao homem em estado
de natureza. Do fato de que em seu estádio mais primitivo o homem não tivesse a ideia de
bondade não podemos inferir que fosse mau. Também não há conceitos claros de justiça e
injustiça onde não há “meu” nem “teu”; mas disso não se segue que em ausência de ditos
conceitos os homens tenham que comportar de um modo violento e desconsiderado. A imagem
do estado de natureza dada por Hobbes, como uma situação de guerra de todos contra todos,
carece de justificativa. Hobbes levava razão ao dizer que o amor próprio é o impulso
fundamental; mas o amor próprio, no sentido de instinto de conservação, não implica por si
mesmo maldade nem violência. Nos começos o indivíduo fixava-se pouco em seu semelhante;
quando se fixou nele, entrou em ação o sentimento natural ou innato de compaixão. Este é
anterior a toda reflexão, e até os animais o manifestam às vezes. Na última seção deste capítulo
voltarei a tratar este tema da compaixão natural e de seu relacionamento com o amor próprio.
Pelo momento basta com observar que para Rousseau o homem em seu primitivo estádio de
natureza é bom. Embora não se lhe possa chamar bom em sentido estritamente moral, a
moralidade não é mais que um desenvolvimento de seus sentimentos e seus impulsos naturais.
Em sua carta a Cristophe de Beaumont, arcebispo de Paris, impressa em 1763, Rousseau pôde
dizer redondamente que o princípio ético fundamental é que o homem é por natureza bom e que
não há perversión nem pecado original na natureza humana.

Se terá notado que Rousseau apresenta ao homem primitivo sem linguagem. E na primeira
parte do Discurso sobre a desigualdade faz algumas reflexões a respeito das origens da
linguagem e a respeito de sua importância no desenvolvimento intelectual do homem. A
linguagem originou-se em “ o simples grito da natureza”;[114] mas no curso do tempo
estabeleceram-se por consentimento com signos convencionais, com um nome para a cada coisa.
Rousseau não pretende explicar como ocorreu a transição desse estádio do desenvolvimento
linguístico ao uso de termos gerais para expressar ideias gerais. “As ideias gerais não podem ser
introduzido no espírito sem a ajuda de palavras, nem o entendimento pode ser feito com elas
senão por médio de proposições.”[115] Mas as palavras parecem postular ideias ou pensamentos;
e assim combinamos com um problema aberto. Mas, ademais, tem-se o problema do
relacionamento da linguagem com a sociedade. “Deixo ao que queira a empreender a discussão
do difícil problema de que era mais importante, a existência da sociedade para a invenção da
linguagem ou a invenção da linguagem para estabelecer a sociedade.”[116] Mas qualquer que
seja a solução de tais problemas, o desenvolvimento da vida intelectual do homem seria
inimaginable sem o da linguagem.

Na segunda parte do Discurso sobre a desigualdade Rousseau discute o passo do estado de


natureza à sociedade organizada. Imagina como os homens chegaram gradualmente a
experimentar a vantagem das empresas comuns e como chegaram a desenvolver um sentido dos
vínculos sociais, ao menos pára determinadas ocasiões. Mas o ponto mais acentuado por
Rousseau é o estabelecimento da propriedade privada. “O verdadeiro fundador da sociedade
civil foi o primeiro homem que, depois de cercar uma porção de terra, teve a ocorrência de dizer
Isto é meu e deu com gente o suficientemente simples para lhe fazer caso.”[117] Introduziu-se a
propriedade, desapareceu a igualdade, as selvas converteram-se em campos feraces, e a
escravatura e a miséria cresceram com as colheitas. “A metalurgia e a agricultura foram as duas
artes que produziram essa grande revolução.”[118] Apareceram também as distinções entre a
justiça e a injustiça. Mas isso não significa que os homens fossem melhore do que era no estado
de natureza. “As usurpações dos ricos, os roubos dos pobres e as desenfrenadas paixões de uns
e outros afogaram as vozes da compaixão natural e a voz, ainda débil, da justiça, e encheram
aos homens de avaricia, ambição e vício... O recém nascido estado da sociedade produz assim
um horrível estado de guerra.”[119] Dito de outro modo: a propriedade privada foi resultado do
apartar-se o homem de seu estado de singeleza primitiva, e acarretou males indecibles.

Temos visto que o estado primitivo de natureza rousseauniano não corresponde ao de


Hobbes; não era uma situação na que pudesse ser dito homo homini lupus. Em mudança, a forma
de sociedade recém descrita sim que era comparada por Rousseau com uma situação de guerra,
e era neste respecto análoga ao estado de natureza de Hobbes, embora discrepara dele em alguns
outros respectos. Por exemplo, as distinções morais nascem segundo Rousseau no estádio da
sociedade civil que, considerado abstratamente, precede à constituição da sociedade política,[120]
enquanto para Hobbes as distinções morais seguem realmente à convenção pela qual se
estabelecem a sociedade política e o governo.

Dados a insegurança e outros males próprios do estabelecimento e o desenvolvimento da


instituição da propriedade privada, o estabelecimento da sociedade política, do governo e da lei
era consequência imediata. “Todos se precipitaram a tomar suas correntes com a esperança de
se assegurar assim a liberdade; ou bem tinham a inteligência justa para perceber a vantagem das
instituições políticas, sem experiência suficiente que lhes "permitisse prever seus perigos.”[121]
Assim o governo e a lei se estabeleceram por consentimento comum. Mas Rousseau não se
entusiasma com esse desenvolvimento. Pelo contrário, a instituição da sociedade política
“aplicou novas ataduras ao pobre e deu novos poderes ao rico; destruiu irrecuperablemente a
liberdade natural, fixou eternamente a lei da propriedade e a desigualdade, converteu a astuta
usurpação em direito inalterable e, para vantagem de uns poucos indivíduos ambiciosos,
submeteu a humanidade inteira ao trabalho, a escravatura e a miséria a perpetuidad”.[122]

Rousseau declara consequentemente que está disposto a aceitar a opinião comum e a


considerar o estabelecimento da sociedade política como um “contrato real entre o povo e os
chefes por ele eleitos; contrato pelo qual ambas partes se obrigam a observar as leis expressas
nele e que constituem os vínculos de sua união”.[123] Podemos depois passar a perguntar pelo
curso do desenvolvimento da sociedade política. Começou pelo poder arbitrário e o despotismo,
ou foi o despotismo um desenvolvimento posterior? A resposta de Rousseau a esta pergunta é
inequívoca. “Considero verdadeiro que o governo não começou pelo poder arbitrário, senão que
este é a depravación, o termo extremo do governo, que o reconduce finalmente à mesma lei do
mais forte que ao princípio estava destinado a substituir.”[124]

No estado de natureza não tinha mais desigualdade que a natural, a qual consiste em
desigualdade de dons e talentos naturais, físicos ou intelectuais. É inútil perguntar-se qual é a
fonte dessa desigualdade, pois já seu mesmo nome diz que foi posta pela natureza. Portanto, o
tema do Discurso é o que Rousseau chama “desigualdade moral ou política”.[125] Esta se deve
inicialmente ao desenvolvimento de nossas faculdades, e “se converte em permanente e
legitimada por obra do estabelecimento da propriedade e as leis”.[126] Podemos dizer ademais,
que quando não é proporcional à desigualdade natural ou física, se encontra em contradição com
o direito natural. Assim, por exemplo, é injusto que “os poucos privilegiados abundem em bens
supérfluos enquanto a faminta multidão carece do mais elementar para a vida”.[127] Ao chegar
ao despotismo descrevemos, por assim o dizer, um círculo inteiro. Os indivíduos, reduzidos
todos a escravatura, voltam a sua primitiva igualdade. Já que seu dono carece de todo travão, se
desvanecem também todas as distinções morais e os princípios de equidad. Com isso os homens
voltaram ao estado de natureza. Mas este novo estado difere do primeiro, que o foi de inocência
e singeleza, enquanto agora se deve à corrução.

Como vimos, ao começo de seu Discurso Rousseau propunha dar de lado os fatos e
desenvolver uma hipótese, uma explicação hipotética da origem da desigualdade. E, de acordo
com sua hipótese, a desigualdade moral ou política pode ser atribuído não só ao aperfeiçoamento
das faculdades humanas, senão também e antes de mais nada ao estabelecimento da propriedade
privada primeiro e ao da sociedade política, o governo e a lei. Ao final encontramo-nos com
uma aguda antítese entre a bondade e a singeleza natural do homem primitivo e a corrução do
homem civilizado e os males da sociedade organizada. Mas, ao mesmo tempo, a perfectibilidad
considera-se como um dos rasgos diferenciadores que separam ao homem do animal. Assim
pode ser entendido a objeción de Charles Bonnet (1720-1793), que escrevia com o pseudónimo
de Philopolis, segundo a qual se a perfectibilidad é um atributo natural do homem, então a
sociedade civilizada é natural.

E por suposto que essa não é a única objeción que pode ser dirigido ao Discurso sobre a
desigualdade.

Mas embora Rousseau repete em seu Discurso o ataque à ideia de progresso que já realizava
no primeiro discurso, deixa, no entanto, em claro que não está sustentando a absurda ideia de
uma destruição da sociedade. “Por conseguinte, que há que fazer? Há que abolir totalmente as
sociedades? Há que aniquilar o meum e o tuum, e temos de voltar à selva a viver entre os
ursos?”[128] Os que o desejem podem voltar à selva; mas os que, como Rousseau, não possam
viver de bellotas nem sem leis e magistrados, se preocuparão pela reforma da sociedade, ainda
mostrando um são desprezo pelo edifício da civilização. Assim se abre a possibilidade de uma
doutrina positiva da sociedade política. E efetivamente, como acabamos de ver, uma das
principais ideias de Rousseau, a do contrato social ou político, aparece no Discurso sobre a
desigualdade.

4. O aparecimento da teoria da vontade geral.

Outra das ideias rectoras de Rousseau, a de vontade geral, aparece no Discurso sobre a
economia política. Depois de distinguir entre o estado e a família, Rousseau diz que O primeiro
é um “ente moral que conta com uma vontade”.[129] Estão 'Vontade geral que tende sempre à
preservación e o bem-estar do todo e da cada parte, e que é fonte das leis, constitui para todos
os membros do estado, em seus relacionamentos recíprocos e com o estado mesmo, a norma do
justo e o injusto”.[130] Assim é errôneo, por exemplo, dizer que os meninos espartanos eram
moralmente culpados de roubo quando sustraían o complemento de suas insuficientes comidas.
Pois estavam fazendo de acordo com a vontade geral do estado espartano. E essa era para eles a
medida do justo e o injusto, o legítimo e o ilegítimo.

Se tem-se em conta que o Discurso sobre a economia política esta escrito praticamente ao
mesmo tempo que o Discurso sobre a desigualdade, e talvez imediatamente dantes que ele, um
pode ficar assombrado pela diferença de tom entre ambas obras. Mas, como já se indicou na
segunda seção deste capítulo, resulta que Rousseau se tinha formado suas ideias positivas a
respeito do estado dantes de coincidir aos premio oferecidos pela Academia de Dijon com
ensaios retóricos a respeito de temas obrigados. No Discurso sobre a desigualdade discutem-se
as ideias do estado de natureza e da transição à sociedade organizada, e aparece a teoria da
sociedade política baseada em um contrato; mas nenhum dos dois discursos se apresentava como
um tratado sistemático de teoria política. Depois encontramos, no Discurso sobre a economia
política, um esboço da teoria da vontade geral. E efetivamente esta obra dá a impressão de estar
mais cerca do Contrato Social que dos dois primeiros discursos; mas o conceito de vontade geral
não se apresenta como se Rousseau o pensasse então por vez primeira.

Voltemos à teoria da vontade geral. Se consideramos uma sociedade determinada dentro do


estado, como um grupo religioso, por exemplo, veremos que essa sociedade possui uma vontade
que é geral respecto de seus membros, isto é, que possui uma vontade comum orientada à
consecución dos objetivos desse grupo. Mas essa vontade é particular se compara-lha com a
vontade geral do estado. Agora bem, a bondade moral implica a identificação da vontade
particular do sujeito com a vontade geral. Do qual se segue que um homem pode ser, por
exemplo, bom membro de algum grupo religioso, mas mau cidadão. Pois embora sua vontade
pode, identificar com a vontade geral do grupo religioso, esta última pode discrepar da vontade
geral do estado que compreende ao grupo religioso mesmo.

Rousseau pressupõe que a vontade geral se orienta ao bem ou interesse comum, que “a
vontade mais geral é sempre ao mesmo tempo a mais justa, e que a voz do povo é de fato a voz
de Deus”.[131] A vontade geral do estado, por ser mais geral que a vontade geral de qualquer
grupo incluído nele, tem que prevalecer chegado o caso, porque é mais justa e se orienta a um
bem mais universal. Do qual podemos inferir que “a lei primeira e mais importante do governo
legítimo ou popular, isto é, do governo cujo objeto é o bem do povo, consiste... em seguir em
todo a vontade geral”.[132] E “se querem realizar a vontade geral, ponham todas as vontades
particulares de acordo com ela; dito de outro modo, e já que a virtude não é senão essa
conformidade das vontades particulares com a vontade geral; estabeleçam o reino da
virtude”.[133] Mas se a virtude não é mais que a conformidade com a vontade geral, então
estabelecer o reino da virtude não pode ser nada mais que conformar todas as vontades
particulares à vontade geral. Portanto, a educação pública, cuja necessidade sublinha sempre
Rousseau, tem que se dirigir à posibilitación e a garantia daquela conformidade.

Rousseau traça uma distinção entre a soberania e o governo. O soberano é o poder que possui
o direito de legislação; a função do governo é executiva e administrativa, ou seja, a
administração da lei. "O primeiro dever do legislador consiste em fazer com que as leis sejam
conforme à vontade geral.”[134] E “a vontade geral está sempre do lado que é mais favorável ao
interesse público, isto é, do lado mais equitativo; de tal modo que é necessário legislar com a
certeza de seguir a vontade geral”.[135]

Que temos de entender por vontade geral? Há uma tendência natural a interpretar a ideia de
Rousseau como uma identificação da infalible vontade geral com a voz do povo expressada pelo
voto na assembleia. Mas Rousseau mesmo não praticou essa identificação. Em um estado
grande, tais assembleias gerais de todo o povo são irrealizables; mas inclusive quando é
realizable uma assembleia geral, “não é em modo algum seguro que sua decisão seja expressão
da vontade geral”.[136] Desde depois que quando se fala de uma vontade geral cuasimística do
estado, precisada de expressão articulada, se tenderá inevitavelmente a identificar com a decisão
expressa pelo corpo legislativo ou por algum outro suposto porta-voz do povo. E sem dúvida
apresenta-se em Rousseau esta tendência. Dificilmente podia evitá-la, dados seus orçamentos.
Mas não passa de ser uma tendência. Não é nunca uma posição explicitamente adotada por ele.
Assim, por exemplo, admite explicitamente que uma decisão efetiva do corpo legislativo
soberano pode não ser expressão verdadeira da vontade geral. Pode ser também expressão de
interesses privados que prevaleça injustamente por alguma causa. Portanto, o dizer que a vontade
geral é o critério do justo e o injusto não isto é que não possam ser criticado as leis do estado
por injustas. Por isso pode Rousseau dizer que o primeiro dever do legislador consiste em fazer
com que as leis sejam conforme com a vontade geral, e que !ou único necessário é fazer de tal
modo que se tenha a certeza de estar seguindo a vontade geral. Está claro que essas
formulaciones supõem que a lei não é necessária, nem inevitavelmente expressão verdadeira da
vontade geral, e que nem sequer as decisões comuns de uma assembleia geral estão inmunes de
crítica moral.

Pelo que faz ao Discurso sobre a economia política, é evidente que Rousseau supunha nesse
texto a existência de algo superior ao estado. Temos visto que a vontade geral é para ele a mais
justa. Portanto, podemos dizer que, ao igual que as vontades particulares dos indivíduos e de
sociedades em comandita dentro do estado são vontades particulares respecto da vontade geral
do estado, assim também a vontade de um estado individual é uma vontade particular se se
considera em relacionamento com “a grande cidade do mundo... cuja vontade geral é sempre a
vontade da natureza, e da qual são membros individuais os diferentes estados e povos”.[137] Dito
de outro modo: parece ter no fundo do pensamento de Rousseau o conceito tradicional de uma
lei moral natural gravada nos corações dos homens e a obediência à qual conduz
necessariamente ao bem-estar e à felicidade. E a vontade geral de uma sociedade política é uma
canalización particular, por assim o dizer, da orientação universal da vontade humana ao bem.
A tarefa do legislador consiste em pôr as leis em conformidade com essa vontade geral; e a tarefa
do cidadão consiste em pôr sua vontade particular em harmonia com a vontade geral.

Se esta vontade geral representa em uma sociedade política dada a orientação universal da
vontade humana para o bem do homem, representa o que a cada membro da sociedade queira
“realmente”. Isto permite a Rousseau responder à objeción de que o pertence à sociedade e a
obediência à lei supõem restrição e mutilación da liberdade. Os homens são livres por natureza.
E unem-se em sociedades para assegurar não só sua propriedade e sua vida, senão também sua
liberdade. Mais de fato submetem-se a constricción quando formam sociedades organizadas;
então convertem-se em súbditos e deixam de ser donos. Não é então sumamente paradójico dizer
que os homens se fazem livres ou preservam a liberdade se convertendo em súbditos? Rousseau
contesta apelando à ideia de lei. “Só à lei devem os homens justiça e liberdade.”[138] Mas esta
resposta não pode ser eficaz senão na medida em que a lei expresse a vontade geral e na medida
em que esta última represente a sua vez a vontade “real” da cada qual, e o que “realmente” dita
a razão da cada qual. Ao obedecer à lei um homem obedece assim a sua própria razão e a seu
próprio julgamento, e está seguindo sua própria vontade real. Mas seguir o julgamento próprio
e a vontade própria é ser livre. Portanto, o cidadão obediente é o homem verdadeiramente livre,
porque obedece uma lei que expressa sua própria vontade real. Esta noção ia ser de grande
importância na posterior filosofia.

Por conseguinte, no Discurso sobre a economia política, cujo tom, como se notou já, difere
cortantemente do dos dois primeiros discursos, encontramos um enfático enunciado da principal
teoria do Contrato Social, a teoria da vontade geral. Esta teoria suscita dificuldades e problemas
consideráveis ; mas será melhor pospor a discussão até o capítulo seguinte. A seção final deste
capítulo pode, de todos modos, alumiar um pouco mais a concepção geral de Rousseau.

Nas últimas páginas do Discurso sobre a economia política Rousseau trata o tema dos
impostos. Em sua opinião, o sistema fiscal mais equitativo e, portanto, o mais adequado a uma
sociedade de homens livres, seria um imposto de capitación proporcional à propriedade que o
indivíduo possui acima das necessidades da vida. O que não possua mais que o necessário para
atender a estas necessidades não tem de tributar nada em absoluto.

E pelo que faz aos demais cidadãos, o imposto deve ser imposto não em razão simples da
propriedade dos gravados, senão segundo uma razão composta respecto das diferenças entre
suas condições e a superfluidad de suas posses. É absolutamente justo que um homem pague
tantos mais impostos quanto mais rico seja. Pois, por de repente, o rico obtém mais vantagens
do contrato social. A sociedade protege suas posses e abre-lhe fácil acesso a posições lucrativas
de eminencia e de poder. Os ricos têm pois muitas vantagens das que não podem desfrutar os
pobres. Por conseguinte, dado que quanto mais rico é um homem tanto mais obtém do estado,
por assim o expressar, terá que ser gravado em proporção de sua riqueza. Também deveriam ser
imposto pesados impostos sobre todos os luxos. Deste modo ou bem o rico substituirá despesas
socialmente inúteis por despesas socialmente benéficos, ou bem o estado perceberá impostos
muito altos. Em qualquer caso sairá beneficiado o estado.

Se desejamos traduzir a linguagem moderna as ideias de Rousseau, poderemos dizer que


propunha um sistema de imposto progressivo envelope as rendas, segundo o qual os indivíduos
que desfrutem de rendas muito baixas não pagam nada e os que contem com rendas acima de
verdadeiro tipo pagarão impostos crescentes com seus rendimentos. Ele não o diz assim, por
suposto, ou ao menos não exatamente. Pois ele pensa em base ao conceito de propriedade e de
“ superfluidades”, não mediante o conceito de renda. Mas sim que fica indicado assim o espírito
de sua proposta. E é notável que fale dessa proposta como de um sistema que tenderia
imperceptivelmente “a pôr todas as fortunas mais cerca da condição média que constitui a
genuína força do estado”.[139]

5. A filosofia rousseauniana do sentimento.

Tese constante de Rousseau foi a ideia de que o impulso fundamental do homem é o amor
de si mesmo. Nossas necessidades originam nossas paixões; e como as necessidades do homem
primitivo, bem como seus desejos, eram puramente físicos, a autoconservación “foi seu principal
e quase única preocupação”.[140] Nele Émile se nos diz que “nossos primeiros deveres são
deveres para com nós mesmos; nossos primeiros sentimentos centram-se em nós mesmos; todos
nossos instintos se dirigem primeiro a nossa própria conservação e a nosso próprio bem-
estar”.[141] E “a origem de nossas paixões, a raiz e o berço de todo o demais,' o único innato ao
homem e que não lhe abandona enquanto vive, é o amor próprio; esta paixão é primitiva,
instintiva, precede a todo o demais, e toda outra coisa é em verdadeiro sentido mera modificação
dela”.[142]

Mas essa paixão fundamental do amor próprio, do amor de si mesmo, não deve ser
confundido com o egoísmo. Pois o egoísmo é um sentimento que nasce só em sociedade e que
move ao homem a preferir aos demais. “No verdadeiro estado de natureza não existe o
egoísmo.”[143] Pois o homem primitivo não fazia as comparações que se requerem para que seja
possível o egoísmo. O amor próprio considerado em si mesmo é "sempre bom, sempre em
concordancia com a ordem da natureza”.[144] Em sua carta ao arcebispo de Paris Rousseau diz
que o amor próprio é “uma paixão em si mesma indiferente ao bem e ao mau; faz-se boa ou má
só por acidente e segundo as circunstâncias nas quais se desenvolva”.[145] Mas já a chame boa
ou indiferente, a paixão de amor próprio não é para ele nunca má, nem deve ser identificado
com o que chamamos egoísmo.

Também descreve ao homem primitivo como movido pela piedade ou compaixão natural,
apresentada por Rousseau como “a pura emoção da natureza, anterior a todo tipo de
reflexão”.[146] Este sentimento atua, desde depois, só quando o homem se deu de algum modo
conta de seus semelhantes, mas não se dá nenhuma razão de que a compaixão seja desejável,
senão que se limita à sentir. É um impulso natural.

Rousseau parece às vezes afirmar implicitamente que a compaixão é um sentimento ou uma


paixão diferente do amor próprio e independente deste. Assim diz que a compaixão é “um
sentimento natural que, ao moderar a violência do amor de si mesmo na cada indivíduo, contribui
a preservar a inteira espécie”.[147] E acrescenta depois que no hipotético estado de natureza a
compaixão ocupa o local das leis, a moral e as virtudes. Mas embora é possível distinguir entre
amor próprio e compaixão, em realidade esta última deriva-se do primeiro. Diz-se-nos no Émile
que “o primeiro sentimento do menino é o amor de si mesmo (e que) seu segundo sentimento,
derivado daquele, é o amor dos que estão em torno seu”.[148] É verdade que nesse ponto
Rousseau fala de algo que ultrapassa a piedade ou compaixão natural. Mas mais adiante diz-
nos/dí-nos como nasceu a piedade, “o primeiro sentimento relativo que afeta ao coração humano
segundo a ordem da natureza”.[149] E aprendemos então que o indivíduo simpatiza com ou sente
compaixão por aqueles, e só aqueles, que são mais desgraçados que ele e sofrem de males dos
que ele mesmo não se acha inmune. Dito de outro modo: o homem sente piedade porque
identifica-se com o que sofre. E neste caso pode ser dito não já que o impulso originario do amor
próprio esteja acompanhado e modificado por um sentimento natural e independente de piedade
e compaixão, senão ainda mais, a saber, que o último este incluído no primeiro e nasce dele
assim que que o homem se dá conta da existência de seus semelhantes. Neste sentido é “o
primeiro sentimento relativo”.

Toda a moralidade se funda nesses sentimentos naturais. Em sua carta ao arcebispo de Paris,
Rousseau observa que o amor próprio não é uma paixão simples. Pois o homem é um ser
composto, sensível e inteligente. Os apetitos sensíveis tendem ao bem do corpo, enquanto o
desejo da parte inteligente do homem, o desejo ou amor da ordem, tendem ao bem da alma.
“Este último amor, desenvolvido e ativo, tem o nome de consciência”;[150] mas as operações da
consciência, o amor da ordem, implicam um conhecimento da ordem. Só quando o homem
começou a se dar conta da existência de seus semelhantes, a prender relacionamentos e a fazer
comparações chega a ter ideias como as de justiça e ordem, e pode atuar a consciência. Dada a
reflexão necessária, nascem então as virtudes e os vícios e formam-se os conceitos morais. Mas
todo isso se funda nos sentimentos fundamentais do homem. O conceito de justiça, por exemplo,
funda-se no amor próprio. “Deste modo, a primeira noção de justiça nasce não do que nós
devemos a outros, senão do devido a nós.”[151] E da emoção natural da compaixão “fluem todas
as virtudes sociais das que (Mandeville) nega a posse ao homem. Que são a generosidad, a
clemência, a humanidade senão a compaixão aplicada ao débil, ao culpado ou à humanidade em
general?”[152] E a consciência, como vimos, se funda no amor de se mesmo tal como este se
apresenta no homem, que é um ser inteligente ou racional.

Se toda nossa vida moral depende de nossos impulsos ou paixões fundamentais, não pode
surpreender que Rousseau ataque aos que mantêm que a educação moral consiste em extirpar
ditas paixões. “Nossas paixões são o principal médio da autoconservación; portanto, tentar
destruí-las é tão absurdo como inútil; seria tanto como superar a natureza,, dar nova forma à
obra da mão de Deus.”[153] O desenvolvimento moral consiste realmente na reta direção e
ampliação da paixão básica de amor próprio. “O amor próprio alargado aos demais transforma-
se em virtude, em uma virtude que tem suas raízes no Gojcazón da cada um de nós.” [154] O
amor próprio é suscetível de desenvolvimento em amor da humanidade inteira e na promoção
da felicidade geral, coisas que são o objeto de todo homem verdadeiramente virtuoso.

A moralidade é pois o desenvolvimento sem constricción nem impedimentos das paixões e


os sentimentos naturais do homem. O vício não é natural ao homem, senão que constitui uma
distorsión de sua natureza. “Nossas paixões naturais são poucas; são os meios da liberdade, e
tendem à autoconservación. Todas as que nos esclavizan e destroem têm outra origem; não é a
natureza a que no-las impõe, senão que as adquirimos apesar dela.”[155] Assim, por exemplo, o
desenvolvimento da civilização multiplicou as necessidades e os desejos do homem, e isto
provocou o egoísmo, e “odiosas e irritadas paixões”. Assim se compreende a insistencia de
Rousseau em que os mais abertos à voz da consciência são os singelos, os que estão mais cerca
da natureza e cujos sentimentos e cujas paixões foram menos corrompidos por uma civilização
artificial. “Virtude! Sublime ciência das mentes singelas, fazem falta tanta indústria e tanta
preparação para conhecer-te? Não estão teus princípios gravados em todo coração? Precisamos,
para aprender rus leis, algo mais que nos examinar a nós mesmos e atender à voz da consciência
quando as paixões calam? Esta é a verdadeira filosofia, e com ela temos que nos satisfazer.”[156]
E Rousseau faz afirmar ao vicario saboyano que “no fundo de nossos corações há um innato
princípio de justiça e verdade pelo qual, apesar de nossas máximas, julgamos de nossas próprias
ações ou das de outros e as estimamos boas ou más; a esse princípio chamo consciência”.[157]
“Existir é sentir; nosso sentimento é sem dúvida anterior a nossa inteligência, e tivemos
sentimentos dantes que ideias... Conhecer o bem não é o amar; este conhecimento não é innato
no homem. Mas assim que que a razão lhe leva ao perceber, sua consciência lhe move ao amar.
Este sentimento é o que é innato.”[158] Portanto, embora Rousseau não nega, senão que afirma,
que a razão e a reflexão têm que desempenhar uma função no desenvolvimento da moralidade,
o que acentua é o sentimento. “O que sento como justo é justo, e o que sento como injusto é
injusto... só quando nos sumimos em cavilaciones recorremos às sutilezas da
argumentación.”[159] É verdade que essas palavras se põem em boca do singelo vicario
saboyano, mas representam um elemento muito real do pensamento de Rousseau.

É também verdade que a palavra “sentimento”, tal como está usada no último texto citado,
significa aprehensión imediata, intuición, mais que sentimento no sentido em que a piedade é
um sentimento. E a palavra tem mais ou menos essa mesma significação quando o vicario
saboyano a usa a propósito do reconhecimento da existência de Deus. O mundo é um sistema
ordenado de entidades interrelacionadas, e este fato manifesta a existência de uma inteligência
divina. “Atendamos à voz interna do sentimento; que mente sã pode recusar sua evidência?”[160]
“Acho, portanto, que o mundo está governado por uma vontade sábia e poderosa; vejo-o, ou,
mais bem, o sento, e é grande coisa o saber.”[161] “Vejo a Deus por todas partes em suas obras;
e sento-lhe dentro de mim mesmo.”[162] Também sei que sou um ser livre, ativo. “Em vão
discutirão disto comigo; sento-o assim, e este sentimento me fala mais persuasivamente que a
razão que discute com ele.”[163]

Temos visto que a moralidade desenvolve-se quando o homem começa a reconhecer seus
relacionamentos com seus semelhantes. Por isso pode Rousseau dizer que “a sociedade tem de
estudar no indivíduo, e o indivíduo na sociedade; os que pretendem tratar por separado a política
e a moral não entenderão nunca nenhuma das duas”.[164] Quando só se tem presente o Contrato
Social possa um se inclinar a interpretar esse enunciado no sentido de que as distinções morais
ficam pura e simplesmente afixadas pela vontade geral expressa na legislação positiva. Mas
temos de ter presente a primeira parte do enunciado, a saber, que a sociedade tem de estudar no
indivíduo. O dito até agora mostra que para Rousseau a natureza mesma orientou nossa vontade
para o bem do homem. Mas não possuímos uma ideia innata desse bem. Por isso podemos nos
formar ideias errôneas a sua respecto. E não há garantia de que o que os cidadãos individuais,
embora estejam reunidos em assembleia, considerem favorável ao bem comum o seja realmente.
Ao mesmo tempo existe por embaixo de todas as paixões pervertidas e de todas as ideias
errôneas uma orientação universal e natural da vontade para o bem.' Portanto, o oficio do
legislador consiste em interpretar essa vontade e ditar leis em conformidade com ela. Por isso
pode dizer Rousseau no Contrato Social que “a vontade geral é sempre justa e atende à vantagem
pública; mas disso não se segue que as deliberaciones do povo sejam sempre igualmente justas.
Nossa vontade está sempre em favor de nosso próprio bem, mas não sempre vemos que é esse
bem ; o povo não está nunca corrompido, mas se engana com frequência, e só nessas ocasiões
parece querer o mau”.[165]

Não acho que esta feição da teoria rousseauniana da vontade geral, teoria que deve muito à
concepção tradicional de direito natural, seja o mais importante desde o ponto de vista do
desenvolvimento histórico da teoria política. Outras feições dela se discutirão no capítulo
seguinte. Mas se temos em conta o relacionamento entre o conceito da vontade geral infalible e
a teoria moral de Rousseau tal como fica desenvolvida em outros escritos seus, resulta mais fácil
de entender por que chegou a propor aquele conceito.

A exaltação por Rousseau da intuición e do sentimento interior (sentiment intérieur)


expressava uma reação contra o árido racionalismo frequente na segunda metade do século
XVIII. Também dava a essa rebelião um impulso poderoso. O culto da intuición e da
sensibilidade deve muito a Rousseau. E a profissão de fé do vicario saboyano, com seu
fundamentación da fé em Deus e na imortalidade no sentimento e não no mero razonar, exerceu
uma considerável influência em Robespierre e em seus seguidores. Mas, à longa, o deísmo
sentimental de Rousseau fez provavelmente mais em favor da restauração do catolicismo que na
contramão dele.
Capitulo IV
Rousseau - II.

1. O Contrato social.

O primeiro problema que tem de considerar o Contrato Social se formula deste modo: “O
homem nasce livre, mas por todas partes se encontra encadeado. Um se acha dono dos demais e
segue sendo mais escravo que eles. Como se produziu esta mudança? Não o sei. Que possa
legitimarlo? Acho que posso dar resposta a esta pergunta”.[166] Já que postula um inicial estado
de natureza no qual os homens eram livres. Rousseau está obrigado a condenar a ordem social
no qual não existe já a primitiva liberdade do homem e a dizer que os homens devem romper
suas correntes o dantes possível, ou bem a justificar essa ordem de algum modo. A primeira
possibilidade elimina-se porque “a ordem social é um direito sagrado, base de todos os demais
direitos”.[167] Portanto, Rousseau vê-se obrigado a mostrar que a ordem social é justificado e
legítimo.

Para resolver esse problema recorre Rousseau à teoria contractual que já encontrámos em
forma várias nas filosofias de Hobbes e Locke. Resiste-se a basear a ordem social na força, pois
a força não confere direito. “A força é um poder físico e não vejo que possa ter efeito moral. O
obedecer à força é um ato de necessidade, não de vontade, e seria no máximo um ato de
prudência. Em que sentido se lhe poderá chamar dever?”[168] Se os cidadãos têm um dever de
obediência, este não poderá ser fundado simplesmente na posse do poder pela pessoa ou as
pessoas às que se tributa obediência. Ao mesmo tempo, não há um direito natural para legislar
para a sociedade, pois a sociedade e o estado de natureza são coisas diferentes. Portanto, para
que a ordem social seja legítimo e justificado terá que fundar no acordo ou a convenção.

Rousseau propõe a hipótese de que os homens atingiram o ponto no qual os obstáculos


opostos a sua conservação no estado de natureza resultam já mais poderosos que seus recursos
para se manter e conservar nesse estado. Portanto, têm que se unir e formar uma associação.
Mas o problema não consiste simplesmente em achar uma forma de associação que proteja as
pessoas e os bens da cada membro. Também estriba em achar uma associação na qual a cada
membro segua se obedecendo só a si mesmo, segua tão livre como dantes. "Este é o problema
fundamental cuja solução oferece o Contrato Social.”[169]

No essencial pode ser expressado o contrato social do modo seguinte: “A cada um de nós
põe sua pessoa e todo seu poder em comum baixo a direção suprema da vontade geral, e em
nossa condição associada recebemos à cada membro como a uma parte indivisible do tudo”.[170]
Este ato de associação cria diretamente um corpo moral e coletivo. Uma pessoa pública, a
república ou corpo político. Chama-se-lhe Estado quando se lhe considera passivamente,
Soberano quando ativamente, e Poder quando comparado com outros corpos análogos. Seus
membros chamam-se coletivamente o povo, e individualmente cidadãos, no respecto de
partícipes do poder soberano, e súbditos, no respecto de submetidos às leis do Estado.

Esta teoria do contrato social difere manifestamente da de Hobbes. Segundo a teoria deste
os indivíduos convêm em ceder seus direitos a um soberano que fica fora da convenção, que não
é uma parte dela. Deste modo o governo fica constituído pelo mesmo acordo que cria uma
sociedade organizada; aliás a existência do corpo político depende politicamente de seu
relacionamento com o soberano, o qual pode ser uma assembleia e não indivíduo, mas que em
todo caso se distingue das partes contratantes. Em mudança, na teoria de Rousseau, o contrato
originario cria um soberano idêntico com as partes contratantes tomadas coletivamente, e não
se diz absolutamente nada a respeito do governo. Para Rousseau o governo é pura e
simplesmente um poder executivo dependente, respecto de seu poder mesmo, da assembleia
soberana ou corpo político soberano. O problema de Hobbes era um assunto de coesão social.
Dada sua opinião a respeito do homem e do estado de natureza, encontrava-se com a tarefa de
achar um contrapeso efetivo às forças centrífugas presentes na natureza humana. Ou, por dizê-
lo mais concretamente, encontrava-se com o problema de achar um remédio eficaz contra o
maior mau de uma sociedade, que é a guerra civil. Achou a solução no governo centralizado,
em uma teoria da soberania que insistia sobretudo na posição do governo. E como aceitava a
hipótese do estado de natureza, tinha que introduzir essa acentuación da importância do governo
em sua exposição do contrato pelo qual se realiza a transição do estado de natureza ao de
sociedade organizada. O problema de Rousseau era diferente. Dada seu insistencia na liberdade
e dado seu desejo de mostrar que o passo do estado de natureza ao de sociedade organizada não
é uma substituição da liberdade pela escravatura em benefício da mera segurança, se sentiu
obrigado a mostrar que na sociedade se adquire uma forma de liberdade superior àquela da que
se desfruta no estado de natureza. Por isso não pode ser esperado que em sua exposição do
contrato social sublinhe a ideia de governo, nem a de que as duas partes contratantes cedem seus
direitos a um soberano situado fora do contrato. Em vez disso lhe veremos acentuar a tese de
um acordo mútuo entre as partes contratantes, acordo que cria uma nova entidade moral na qual
a cada membro se realiza mais plenamente que no estado de natureza.

Desde depois que isso representa uma notável mudança de atitude e de tom respecto dos dois
discursos. Verdadeiro que no Discurso sobre a desigualdade podemos registrar, como já se
observou no capítulo anterior, alguns elementos da teoria política madura de Rousseau, os quais
assomam por vez primeira naquele texto. Mas o primeiro discurso dá inevitavelmente a
impressão de que para Rousseau a sociedade política é um mau, enquanto no Contrato Social
vemos como, por assim o dizer, a verdadeira natureza do homem se consuma na ordem social.
O homem passa de ser “um animal estúpido e sem imaginação (a ser)... um ser inteligente, um
homem”.[171] Mas não há uma contradição pura entre o primeiro discurso e o Contrato Social.
Naquele discurso fala Rousseau dos males da sociedade civilizada tal como esta existe
realmente, e particularmente na França, enquanto no Contrato Social fala da sociedade política
tal como esta deveria ser. E inclusive nesta última obra, ainda indicando os benefícios que obtém
o homem pelo contrato social, observa que “os abusos desta nova condição lhe degradam com
frequência por embaixo da condição que abandonou”.[172] Pese a tudo é difícil negar a notável
mudança de tom e de acento. E o mesmo pode ser dito a respeito do relacionamento entre o
Contrato Social e o Discurso sobre a desigualdade. A impressão dada por este último é que o
homem, naturalmente bom, adquire ideias e qualidades morais em sentido estrito ao longo de
um processo de desenvolvimento gradual no qual a sociedade civil, no sentido de laxos vínculos
sociais, precede à formação da sociedade política organizada. Mas no Contrato Social Rousseau
fala como se mediante a instituição da sociedade política o homem passasse diretamente e
inesperadamente de um estado amoral ao estado moral. “O passo do estado de natureza ao estado
civil produz uma mudança muito notável no homem ao substituir em sua conduta o instinto pela
justiça e ao dar a suas ações a moralidade da que anteriormente careciam.”[173] O estado
converte-se em fonte da justiça e em base dos direitos. Mas talvez também não neste caso tenha
real contradição. Pois, após tudo, o contrato social não é senão uma ficção filosófica, por dizer
com as palavras de Hume; e podemos, se queremo-lo, considerar que Rousseau está praticando
uma distinção mais teórica ou lógica que histórica entre o homem em sociedade e o homem
abstração feita da sociedade. Como mero indivíduo isolado, o homem, embora não vicioso nem
mau em si mesmo, não é propriamente um ser moral; só em sociedade se desenvolve sua vida
intelectual e moral. E isto é substancialmente o que Rousseau dizia no Discurso sobre a
desigualdade. Mas, ao mesmo tempo e apesar disso, há sem dúvida uma mudança de tom. É
verdade que esta mudança de tom pode ser explicado em grande parte pela diferença de intenção.
No Discurso Rousseau ocupa-se das origens da desigualdade, e atribui à instituição da sociedade
a origem do que chama “desigualdade moral ou política”. O acentuado é a desigualdade, como
o indica já o título do Discurso. No Contrato Social Rousseau ocupa-se em mudança dos
benefícios que obtém o homem da instituição da sociedade, como o é a substituição da liberdade
meramente “natural” pela liberdade civil e moral. Mas embora a mudança de tom possa ser
explicado em grande parte pela diferença de intenção, não deixa de estar presente. No Contrato
Social se despliega uma feição nova e mais importante da teoria política de Rousseau.

Assim podemos ver o equívocas que são as palavras iniciais do primeiro capítulo do
Contrato Social se se tomam como formulación adequada da posição de Rousseau. “O homem
nasce livre, mas por todas partes se encontra encadeado.” Essas palavras formulam um
problema, não uma solução. A solução encontra-se na ideia da transformação da liberdade
natural em liberdade civil e moral. “O que um homem perde pelo contrato social é sua liberdade
natural e um direito ilimitado a todo o que consiga aferrar; o que ganha é a liberdade civil e a
propriedade de todo o que possui.”[174] A liberdade natural não está limitada mais que pela força
do indivíduo; a liberdade civil está limitada pela vontade geral, com a qual se unifica a vontade
real da cada membro da sociedade. O efeito da força ou do direito de primeiro ocupante é a mera
posse; a propriedade funda-se em um título positivo, é um direito conferido pelo estado. “Acima
de todo isso podemos acrescentar ao que o homem adquire no estado civil a liberdade moral,
que é o tánico que realmente lhe converte em dono de si mesmo. Pois o mero impulso do apetito
é escravatura, enquanto a obediência a uma lei que nos prescrevemos nós mesmos é
liberdade.”[175] Em algumas forma de sociedade — por exemplo, em uma ditadura tiránica e
caprichosa — os homens ficam efetivamente reduzidos a escravatura, e podem ser encontrado
em pior situação que no estado de natureza. Mas isto é acidental, no sentido de que não se segue
da essência do estado. Se consideramos o estado segundo sua essência, temos de dizer que sua
instituição é de benefícios incalculables para o homem.

Como é natural, ao aceitar a teoria contractual Rousseau se enfrenta com a mesma


dificuldade a que teve de fazer frente Locke. Diremos que as partes contratantes originarias se
vincularam não só a si mesmas, senão também a seus descendentes? E em caso afirmativo, como
podemos justificar esse modo de dizer? Rousseau não parece considerar explicitamente o
problema, embora deixa em claro que os cidadãos de um estado podem dissolver o contrato em
qualquer momento. “Não há nem pode ter lei fundamental de nenhuma classe que ate ao corpo
do povo, nem sequer o contrato social mesmo.”[176] E “não há no estado lei fundamental alguma
que não possa abrogarse, sem excluir sequer o contrato social mesmo; pois se todos os cidadãos
concordassem em romper o contrato, é impossível pôr em dúvida que ficaria legitimamente
rompido”.[177] E pelo que faz ao indivíduo tomado singularmente, Rousseau se refere à opinião
de Grocio segundo a qual a cada homem pode renunciar a ser membro de seu estado e recobrar
sua liberdade natural abandonando o país. Aprova essa opinião acrescentando que “seria absurdo
que todos os cidadãos reunidos em assembleia não pudessem fazer o que pode fazer a cada um
deles por separado”.[178] (Rousseau acrescenta ainda uma nota para dizer que essa fugida do país
para sustraerse às correspondentes obrigações seria um ato criminoso e penalizable se se
realizasse em um momento de necessidade pública.) Provavelmente Rousseau pensava que já
que o contrato social dá nascimento a um novo ente moral, este ser segue existindo embora
alguns de seus membros morram ou nasçam outros, enquanto os membros, coletivamente, não
anulem o contrato em uma de suas assembleias periódicas. O pertence ao estado não é o que
produz a existência contínua deste como ente moral.

2. Soberania, vontade geral e liberdade.

Temos visto que segundo Rousseau a pessoa pública formada pela união de indivíduos
através do contrato social chama-se soberano quando lha considera em sua atividade. Isto
significa que o soberano é o inteiro corpo do povo assim que legislador, assim que fonte do
direito. Agora bem, a lei é expressão da vontade. Por isso Rousseau pode dizer que a soberania
não é “nada menos que o exercício da vontade geral”.[179] A cada indivíduo tem uma capacidade
dúplice. Como membro do ente moral que é fonte da lei, o indivíduo é membro do soberano.
Mas considerado como submetido à lei e obrigado a lhe obedecer, o indivíduo é súbdito. Desde
depois que o indivíduo possui ademais sua vontade particular, e esta pode ser encontrado em
discrepância com a vontade geral. O dever social do indivíduo consiste em adecuar sua vontade
particular à vontade geral do soberano, do qual é membro ele mesmo.

Rousseau faz questão de que a soberania é inalienable, pois consiste no exercício da vontade
geral, e esta vontade não pode alienarse nem se transferir. Pode-se trasferir poder, mas não
vontade. Por isso insiste mais adiante Rousseau em que o povo não pode eleger representantes
no pleno sentido da palavra; o único que pode fazer é eleger deputados. “A soberania não pode
ser representado, pela mesma razão que a faz inalienable; descansa essencialmente na vontade
geral, e não admite representação. Ou é a mesma ou é outra; não há nenhuma possibilidade
intermédia. Portanto, os deputados do povo não são nem podem ser seus representantes, são
simplesmente seus administradores, e não podem levar a cabo nenhum ato definitivo. Toda lei
que o povo não ratifique diretamente é nula e vazia...”[180] (Rousseau infere a conclusão de que
o povo da Inglaterra só é livre durante a eleição dos membros do parlamento, para recair depois
na escravatura.)

Pela mesma razão a soberania é indivisible. Pois a vontade cujo exercício se chama soberania
é a vontade geral, e esta não pode ser dividido. Se divide-lha se obterá só vontades particulares
e, portanto, não se terá soberania. Não podemos dividir a soberania em vários poderes, como os
poderes executivo e legislativo. O poder executivo, ou governo, não é o soberano nem uma parte
do mesmo; ocupa-se só da administração da lei e é um mero instrumento do soberano. Para
Rousseau o soberano é o poder legislativo, e o poder legislativo é o povo. Em um estado
determinado o soberano nominal pode ser uma pessoa ou certas pessoas, e não o povo; mas o
soberano verdadeiro é sempre o povo. Não é necessário dizer que por “ povo” Rousseau não
entende uma determinada classe do estado diferente de outra classe ou de outras classes; entende
o inteiro corpo dos cidadãos. Também podemos observar que Rousseau usa a palavra
“legislador’' em um sentido técnico seu, para indicar uma pessoa que formula leis, como de
Licurgo se diz que escolheu leis para os espartanos. Está claro que um legislador neste sentido
não é uma pessoa que possua poder soberano. Sua função é de conselho ou ilustração, no sentido
de que sua tarefa consiste em alumiar ao povoo soberano para que este faça com uma ideia clara
de em que consiste no momento dado o interesse comum.

A soberania é, pois, o exercício da vontade geral; e o soberano é o povo, no qual reside essa
vontade. Mas que se entende por vontade geral?

A tentação mais natural consiste, desde depois, em entender o termo “vontade geral” em
relacionamento, primariamente, com o sujeito volitivo, o povo soberano em sua função
legislativa. Mas então podemos facilmente chegar à ideia de que a vontade geral se identifica
para todos os fins práticos com a decisão expressa pelo voto maioritário da assembleia. E se
interpretamos a Rousseau desta maneira concluiremos provavelmente que sua descrição da
vontade geral como infalible e sempre tendente ao bem público é absurda e daninha. Absurda,
porque não há nenhuma garantia de que uma lei votada por uma assembleia popular vá ser
sempre útil para o bem público; e daninha porque promove a tiranía e a intolerância. Mas a
interpretação em que se baseiam essas conclusões é incorreta, e em qualquer caso acentua mau
a ideia.

Temos de recordar antes de mais nada a célebre distinção de Rousseau entre a vontade geral
(volonté générale) e a vontade de todos (volonté de tous). "Há com frequência uma grande
diferença entre a vontade de todos e a vontade geral. Esta última considera só o interesse comum,
enquanto a primeira tomada em conta o interesse privado e não é mais que uma soma de vontades
particulares.”[181] A vontade geral é, efetivamente, general no sentido de que é a vontade de um
sujeito universal, o povo soberano; mas o que Rousseau acentua é a universalidade do objeto, a
saber, o bem, o interesse ou a vantagem comuns. E essa vontade geral não pode ser identificado
sem mais com a soma de vontades particulares que se manifestam em um voto maioritário ou
inclusive unânime. Pois o resultado do voto pode expressar uma ideia equivocada do que implica
e exige o bem comum; e uma lei promulgada como resultado desse voto pode ser
contraproducente para o bem público. “Por si mesmo o povo queira sempre o bem, mas por si
mesmo não é sempre capaz do ver. A vontade geral está sempre no justo, mas o julgamento que
o script não é sempre iluminista... O público quer o bem que não vê.”[182] E este fato é o que
“faz necessário um legislador”[183] no sentido dantes descrito.

Portanto, a “vontade de todos” não é infalible; só a “vontade geral” é infalible e tem sempre
razão. E isso significa que se orienta sempre ao bem comum. Parece-me claro que Rousseau
alargou seu conceito da bondade natural do homem ao novo ente moral que nasce pelo contrato
social. O indivíduo, fundamentalmente impulsionado pelo amor próprio (que, como se
recordará, não tem de identificar com o egoísmo em sentido moralmente condenable), busca de
modo natural seu próprio bem, embora disso não se segue que tenha uma ideia clara da
verdadeira natureza desse bem.[184] A “pessoa pública” à que dá existência o contrato social
busca também inevitavelmente seu bem, o bem comum. Mas o povo não entende sempre onde
está seu verdadeiro bem. Portanto precisa ilustração para poder expressar adequadamente a
vontade geral.

Suponhamos que faça sentido falar do estado como uma entidade moral capaz de vontade.
Se dizemos que sua vontade, a vontade geral, é sempre justa, mas distinguimos entre essa
vontade e a vontade de todos considerada como a soma das vontades particulares, então a
afirmação de que a vontade geral é infalible não nos obriga a afirmar que toda lei votada pela
assembleia popular seja necessariamente a lei mais adequada para o benefício público nas
circunstâncias dadas. Segue tendo possibilidade de crítica. Mas ao mesmo tempo estamos
correndo o risco de reduzir nossas afirmações a mera tautología. Pois se dizemos que a vontade
geral é sempre justa entendendo por isso que a vontade geral se orienta sempre ao bem comum,
se apresenta a questão de se estamos nos limitando a dizer que a vontade do bem comum é a
vontade do bem comum, ou seja, se não estamos definindo a vontade geral por um objeto
universal, a saber, o bem ou interesse comum. Por isso pode ser afirmado que a única maneira
de evitar a Rousseau o reproche de um acrítico sometimiento às decisões legislativas das
assembleias públicas consiste em reduzir o que diz a uma innocua tautologia.

Aqui pode ser observado que o realmente necessário é uma explicação clara do que significa
falar do estado como de uma entidade moral dotada de vontade. Que é essa vontade, se não é
idêntica com a vontade de todos? É algo situado acima de todas as vontades particulares? Ou é
mais bem as vontades particulares tomadas coletivamente e consideradas segundo sua
orientação natural ao bem, não aos particulares conceitos dos bem presentes nos espíritos dos
sujeitos? No primeiro caso temos um problema ontológico, o problema do estatuto ontológico
dessa vontade geral subsistente. No segundo caso Rousseau teria que reconsiderar um tanto seu
individualismo inicial. Pois a vontade da orienta-se ao bem de A, e a vontade de B ao bem de B.
Portanto, se afirmamos que as vontades de B, C, etc., consideradas em sua orientação natural
para o bem, formam coletivamente a vontade geral (que se orienta ao bem comum), teremos
provavelmente que manter que os homens são seres sociais por natureza e desde o primeiro
momento, e que suas vontades se orientam naturalmente não só a seu bem privado, senão
também ao bem comum, ou que se orientam para seus bens privados assim que compreendidos
no bem comum ou assim que contribuição a este. Acho que no fundo Rousseau pensava algo
assim. Mas ao apresentar-nos/apresentá-nos primeiro uma imagem individualista do homem e
propor-nos/propo-nos depois a ideia de uma nova pessoa pública moral com sua própria vontade,
deixou-nos na escuridão a exata natureza da vontade geral e seu exato relacionamento com as
vontades particulares. Não parece que Rousseau dedique a esses problemas a longa reflexão que
requeriam. Podemos identificar em sua filosofia política várias linhas de pensamento que é
difícil harmonizar. A principal é sem dúvida a que se baseia na ideia do estado como uma
entidade orgânica que possui sua vontade própria, a qual é, em algum sentido escassamente
definido, a vontade “verdadeira” da cada membro do estado. Volto agora a considerar esta
noção.
Não pretendo dizer que não tenha para Rousseau nenhuma conexão entre a vontade geral e
a atividade legislativa do povoo soberano. O dizer, como ele diz, que há com frequência uma
grande diferença entre a vontade de todos e a vontade geral não é afirmar que não coincidam
nunca. E um dos problemas de Rousseau como teórico político consistia em propor médios para
garantir, dentro do possível, que a infalible vontade geral consiga expressão concreta na lei. Um
dos meios por ele propostos se mencionou já: o emprego de um sábio “legislador”. Outro médio
é a evitación, dentro do possível, de sociedades parciais dentro do estado. A questão apresenta-
se assim. Se a cada cidadão vota com inteira independência, as diferenças entre eles se
compensarão, pensa Rousseau, “e ficará como soma das diferenças a vontade geral”.[185] Mas
se formam-se fações e partidos, a cada um deles com sua vontade relativamente geral, as
diferenças serão menos numerosas e os resultados menos gerais e menos expresivos da vontade
geral. Ainda pior: se uma associação ou um partido é tão forte ou tão numeroso que sua vontade
tenha de prevalecer inevitavelmente sobre a dos demais cidadãos, o resultado não é em modo
algum expresivo da vontade geral do estado, senão só de uma vontade particular (particular
respecto da vontade geral do estado, embora seja geral respecto dos membros da associação ou
o partido). A conclusão de Rousseau é que “resulta essencial para que a vontade geral possa ser
expressado que não tenha nenhuma sociedade parcial dentro do estado, e que a cada cidadão
pense só seus próprios pensamentos”.[186]

Essa é, por suposto, uma das razões pelas quais a Igreja Cristã desagrada a Rousseau.
“Sempre que o clero é um corpo organizado, é dono e legislador em sua própria terra... Dentre
todos os escritores cristãos, só o filósofo Hobbes viu o mau e como remediarlo, e se atreveu a
propor a reunião das duas cabeças da águia e a completa restauração da unidade política... Mas
deveria ter visto que o dominante espírito do Cristianismo é incompatível com seu sistema, e
que o interesse do clero será sempre mais poderoso que o do estado.”[187] É verdade que quando
ataca à Igreja Cristã e fala em favor de uma religião puramente civil Rousseau não está tratando
o problema da vontade geral e sua expressão. Mas suas observações são de todos modos
obviamente relevantes. Pois se a Igreja mesma põe-se como um cuasi-soberano, sua influência
se cruzará inevitavelmente com a expressão da vontade geral do verdadeiro soberano, a saber, o
povo.

Rousseau supõe que se os cidadãos estão devidamente informados e se suprimem as


sociedades parciais dentro do estado (ou se, caso de ser isso impossível, ditas sociedades são tão
numerosas que seus interesses e influências divergentes se anulam reciprocamente), o voto da
maioria expressará inevitavelmente a vontade geral. “Se quando o povo, provisto da adequada
informação, realiza suas deliberaciones os cidadãos não se comunicam entre si, o total das
pequenas diferenças dará sempre a vontade geral, e a decisão será sempre boa.”[188] E “não há
mais que uma lei que por sua natureza requeira consentimento unânime. É o contrato social...
Aparte deste contrato primitivo, o voto da maioria vincula sempre ao resto... A vontade geral
encontra-se contando os votos”.[189] Isso não contradiz exatamente o que diz Rousseau a respeito
da distinção entre a vontade geral e a vontade de todos. Pois a distinção estabelece-se para dar
razão da possibilidade de que os interesses privados, particularmente o interesse de grupos e
associações, determine a decisão do povo em assembleia. E quando ocorre esse abuso, o
resultado do voto não representa a vontade geral. Mas quando se evitam esses abusos, o resultado
dará sem dúvida expressão à vontade geral.
Por suposto que isso é obviamente verdadeiro em um sentido, a saber, no sentido de que a
vontade da maioria é mais geral que a vontade de uma minoria. Mas isso é uma tautología. E
não é o que Rousseau está pensando. Pois uma lei expressão da vontade geral é para ele uma lei
que tende ao bem ou interesse comum, ou o assegura ou o preserva. Se, pois, evita-se a influência
dos interesses de grupo, a vontade expressa da assembleia levará infaliblemente ao bem comum.
A crítica à vontade expressa pela assembleia não será legítima senão envelope a base de uma
indevida influência de algum partido privado e de interesses de grupo. Se supomos que a cada
cidadão está “pensando seus próprios pensamentos” e não está exposto a pressões ilegítimas,
não parece ter razão, dados os orçamentos rousseaunianos, para criticar a vontade expressa pela
assembleia, embora a tenha expressado um voto meramente maioritário. É verdade que
Rousseau sustenta que a maioria tem de ir aproximando à unanimidade à medida que aumenta
a importância dos assuntos que se decidem; mas isso não altera o fato de que “a vontade geral
se forma contando os votos (e) todas as qualidades da vontade geral residem na maioria”.[190]

A discussão da vontade geral por Rousseau está intimamente relacionada com o problema
da liberdade. Como vimos, Rousseau desejava justificar a transição do hipotético estado de
natureza ao da sociedade política organizada. Pensando que o homem é livre por natureza e que
a liberdade é um valor inestimable. Rousseau sentia-se obrigado a mostrar que mediante o
contrato social que dá nascimento ao estado o homem não perde liberdade, senão que adquire
uma classe superior dela. Pois “renunciar à liberdade é renunciar a ser um homem”.[191]
Rousseau mantém, por tanto, que mediante o contrato social se muda a liberdade natural pela
liberdade civil. Mas é óbvio que em sociedade os homens estão obrigados a obedecer à lei. Se
não obedecem sofrem castigo. Dada essa situação, é possível sustentar que ao mudar o estado
de natureza, no que era livre e podia fazer todo o que fisicamente fosse capaz de fazer, pelo
estado de sociedade política o homem se fez mais livre que dantes ou, pelo menos, adquiriu uma
liberdade mais verdadeira e plena? O tratamento deste problema por Rousseau é célebre.

Em primeiro lugar, há que entender o contrato social de tal modo que inclua a obrigação
tácita de submeter à vontade geral e que todo o que se negue ao fazer possa ser submetido a
constricción. “O cidadão dá seu consentimento a todas as leis, incluídas aquelas que se
promulgan com sua oposição, e até as que lhe castigam se se atreve a violar uma delas.”[192]

Em segundo local — e este é o ponto mais destacado — a vontade geral é a vontade real da
cada homem. E a expressão da vontade geral é a expressão da vontade real da cada cidadão. Mas
o seguir a própria vontade é fazer livremente. Portanto, o ver-se obrigado a conformar a vontade
própria à vontade geral é ver-se obrigado a ser livre. É ser posto em uma situação na qual um
quer o que “realmente” quer.

Esta é o célebre paradoxo de Rousseau. “Para que o contrato social não seja uma fórmula
vazia, tem de incluir tacitamente a cláusula única que pode dar força ao resto, a saber, que o que
se negue a obedecer à vontade geral será obrigado a se submeter a ela pelo inteiro corpo social.
Isto significa nada menos que aquele será obrigado a ser livre.”[193] E "... a vontade geral acha-
se contando os votos. Por conseguinte, se prevalece a opinião contrária à minha, isso prova, nem
mais nem menos, que eu estava equivocado, e que o que eu achava ser a vontade geral não o
era. Se impusesse minha vontade particular, realizaria o contrário de minha vontade e não seria
livre”.[194]
É difícil ver por que o fato de que prevaleça por voto maioritário uma opinião diferente da
minha “prova” que eu estivesse equivocado. Rousseau limita-se a supo-lo. Mas, ainda passando
por alto este ponto, podemos atender ao ambiguo uso da palavra livre. Muitas outras pessoas
prefeririam dizer que se liberdade significa liberdade para fazer o que um deseja fazer e é
fisicamente capaz de fazer, então não há dúvida de que a liberdade fica limitada pelo pertence
ao estado. Mas a limitação da liberdade da cada um pela lei é essencial para o bem-estar da
sociedade e, tendo em conta que as vantagens da sociedade ultrapassam seus inconvenientes,
essa limitação não precisa mais justificativa que sua utilidade. O único problema importante
consiste em conseguir que a restrição seja a mínima requerida pelo bem comum. Mas essa
proposta puramente empírico e utilitario não era do gosto de Rousseau. Este deseja mostrar que
a aparente limitação da liberdade não é realmente limitação alguma. Por isso se vê obrigado a
adotar a paradójica posição de que um indivíduo pode ser obrigado a ser livre. E o mero fato de
que essa atitude manifeste em seguida seu caráter paradójico sugere que a palavra livre está
recebendo agora um sentido que, qualquer que seja, é em todo caso diferente do sentido ou dos
sentidos que normalmente tem. Aplicar essa palavra a um homem que está sendo obrigado, por
exemplo, a se submeter a uma determinada lei não é precisamente clarificar as coisas. A
aplicação da palavra fora de seu normal âmbito de significação equivale a sugerir que a força e
a constricción não são realmente nem força nem constricción.

A crítica linguística pode parecer cansina e superficial a alguns. Mas a verdade é que tem
muita importância prática. Pois a trasferencia de nomes ou epítetos nobres a situações que caem
fora de seu âmbito significativo normal é um expediente clássico dos propagandistas políticos
que desejam fazer mais aceitáveis ditas situações. Assim, por exemplo, o termo democracia,
talvez com o prefixo “verdadeira” ou “real”, se aplica às vezes a estados nos quais uns poucos
tiranizan aos mais com a ajuda da força e o terror. Chamar à constricción “obrigação de ser
livre” é um caso do mesmo tipo. Mais tarde encontraremos a Robespierre dizendo que a vontade
dos jacobinos é a vontade geral e chamando ao governo revolucionário despotismo da liberdade.
A crítica linguística pode efetivamente arrojar uma luz muito necessária sobre essas águas
turbias.

Essas observações não pretendem, desde depois, insinuar que Rousseau mesmo seja um
aficionado ao despotismo, a tiranía ou o terror. Seu paradoxo não se deve ao desejo de convencer
à gente de que o negro é branco, senão à dificuldade de justificar um rasgo normal da vida social,
a restrição do capricho pessoal por leis universais, tendo em conta o quadro que previamente
dava do estado de natureza. E embora é perfeitamente razoável puntualizar os perigos inerentes
ao uso de tais paradoxos, também é verdade que o limitar à crítica linguística do tipo aludido
equivaleria a deixar de perceber a importância histórica da teoria rousseauniana da vontade geral
e as diferentes vias pelas quais é suscetível de desenvolvimento. Talvez seja esta uma das razões
pelas quais essa crítica pode parecer cansina e superficial. Na seção final deste capítulo se
incluirão outras observações a respeito da teoria de Rousseau. Pelo momento atenderemos ao
problema do governo.

3. Governo.
Toda ação livre, diz Rousseau é produto da participação de duas causas. Uma delas é uma
causa moral, a saber, a vontade que determina o ato; a outra é uma causa física, a saber, a força
física que executa o ato. Ambas causas são necessárias. Um paralítico pode querer correr; mas
como carece da força física necessária para o fazer, ficará onde esteja.

Aplicando esta distinção ao corpo político temos de distinguir entre o poder legislativo, que
é o povo soberano, e o poder executivo ou governo. O primeiro dá expressão à vontade geral em
leis universais, e não se ocupa diretamente de ações nem pessoas particulares. O segundo aplica
e executa a lei, e ocupa-se, portanto, de ações e de pessoas particulares. “Chamo governo ou
administração suprema ao exercício legítimo do poder executivo, e príncipe ou magistrado ao
homem ou à corporación à que se confia essa administração.”[195]

A ação pela qual o povo se situa baixo um príncipe não é um contrato: “é pura e
simplesmente um encarrego”.[196] Disso se segue que o soberano pode limitar, modificar ou
recuperar o poder executivo segundo sua vontade. Rousseau considera efetivamente assembleias
periódicas do povoo soberano nas quais se votem por separado duas questões: “quer o soberano
manter a presente forma de governo?” e “quer o povo deixar sua administração nas mãos dos
atuais encarregados dela?”[197] Como é óbvio, Rousseau pensa em pequenos estados do tipo dos
cantones suíços, nos que é fisicamente possível para o povo se reunir periodicamente. Mas o
princípio geral — que o governo não é senão o instrumento ou ministro do povoo soberano —
valha pára todos os estados. Está claro que dizer que o povo pode “recuperar” o poder executivo
não significa que possa decidir o exercer diretamente. Nem sequer em um pequeno cantón suíço
pode o povo realizar diretamente a administração quotidiana. E, de acordo com os princípios de
Rousseau, o povo ocupa-se em qualquer caso da legislação, não da administração, salvo no
sentido de que se está descontentamento da administração do presente governo pode lhe despedir
e confiar o poder executivo a outro governo.

De acordo com Rousseau, o poder executivo possui “uma personalidade particular, uma
sensibilidade comum a seus membros, e uma força e uma vontade próprias que tendem a sua
preservación”.[198] Mas isso não altera o fato de que “o estado existe por si mesmo, e o governo
só pelo soberano”.[199] Aliás essa dependência não impede ao governo atuar com vigor e
celeridade; mas a vontade dominante nele tem de ser a vontade geral expressa na lei. Se o
governo chegasse a ter uma vontade particular própria mais ativa e poderosa que a do soberano
“teria, por assim o dizer, dois soberanos, o um legítimo e o outro de fato, a união social se
dissiparia instantaneamente e se dissolveria o corpo político”.[200] Rousseau não era amigo de
príncipes ou governos caprichosos e tiránicos.[201] Os governos têm de ser servidores, não amos
dos povos.

Embora Rousseau discute tipos de governo, não faz falta dizer muito a respeito deste tema.
Pois muito agudamente nega-se a afirmar que exista uma forma de governo ideal, adequada para
todos os povos e todas as circunstâncias. “A questão de qual é o melhor governo carece de
resposta e de determinação; ou, mais bem, há tantas respostas quantas combinações possíveis
das situações absolutas e relativas de todas as nações.”[202] E “em todas as épocas teve muitas
disputas a respeito da melhor forma de governo, sem ter em conta o fato de que a cada uma delas
é em algum caso a melhor e em outro a pior”.[203] Mas podemos dizer que os governos
democráticos são adequados para estados pequenos, os governos aristocráticos para os estados
de dimensão média e os governos monárquicos para os grandes estados. Não obstante, todas as
forma de constituição são suscetíveis de abuso e degeneração. “Se tivesse um povo de deuses,
seu governo seria democrático. Um governo tão perfeito não é para os homens.”[204] Rousseau
refere-se aqui à democracia em sentido literal, a forma de constituição mais tendente a produzir
fações e guerra civil. É óbvio que a monarquia está muito exposta ao abuso. “A disposição
melhor e mais natural” consiste em que “os mais sábios governem à multidão se está garantido
que governarão em benefício desta, e não em benefício próprio”.[205] Mas isso, por suposto, não
está nunca garantido. A aristocracia pode degenerar como qualquer outra forma de governo. Em
realidade a tendência à degeneração é natural e inevitável em todas as forma de constituição. “O
corpo político, ao igual que o corpo humano, começa a morrer desde que nasce, e leva em si
mesmo as causas de sua destruição.”[206] É verdade que os homens têm de se esforçar por
conservar o corpo político na melhor saúde possível e durante o tempo mais dilatado possível,
igual que fazem com seus próprios corpos. E a melhor maneira de fazer isto consiste em separar
claramente o poder executivo do poder legislativo, bem como em utilizar vários expedientes
constitucionais. Mas até o estado melhor constituído terminará em um dia, e embora seja mais
longevo que outros, deixando aparte circunstâncias imprevisíveis, morrerá igual que morrem os
corpos humanos sãos e robustos, ainda sobrevivendo a outros corpos débis e doentes.

4. Observações finais.

Alguma parte do que Rousseau escreve no Contrato Social se refere claramente a seu
predilección pelas repúblicas reduzidas, como sua cidade de Genebra. Só em um estado muito
pequeno seria possível, por exemplo, que os cidadãos se reunissem periodicamente e exercessem
suas funções legislativas. A cidade-estado grega e a pequena república suíça fornecem-lhe o
ideal de estado pelo que faz à dimensão. Ademais, os extremos de riqueza e pobreza que afeaban
a França contemporânea e escandalizaban a Rousseau estavam ausentes da vida, mais singela,
do povo suíço. E o sistema de representação desaprovado por Rousseau é promovido pela grande
dimensão dos estados, embora “chegue a nós desde o governo feudal, aquele sistema inicuo e
absurdo que degrada a humanidade e deshonra o nome de humano”.[207] Não há dúvida de que
Rousseau compreendia muito bem que um estado muito pequeno tem também seus
inconvenientes, como, por exemplo, a dificuldade para se defender; mas aceitava a ideia de
federações de estados pequenos.

De todos modos, a predilección rousseauniana pelos estados pequenos é só uma feição


relativamente intrascendente, embora llamativo, de sua teoria política. Não era tão fantasioso
como para supor que França, por exemplo, pudesse realmente se reduzir a uma multiplicidad de
pequenos estados ou a uma confederación de tais estados. Em qualquer caso, sua ideia da
soberania do povo e Seu ideal de governo para o povo foram de maior importância e influência
que quaisquer de suas ideias a respeito das dimensões adequadas do estado. A ideia da soberania
popular influiu em Robespierre e os jacobinos, e depois através deles. E podemos dizer que
quando as palavras Libertem e Igualdade se difundiram por Europa, se difundiam em realidade,
e em parte ao menos, as ideias de Rousseau, embora ele mesmo não fosse um advogado da
revolução. Rousseau não era um cosmopolita: desagradava-lhe o cosmopolitismo do Iluminismo
e lamentava a falta daquele patriotismo, daquele amor do país que era característico de Esparta,
da temporã República romana e do povo suíço. Podemos, pois, dizer que pelo menos a ideia
rousseauniana de soberania popular nacional tinha certa afinidad com o desenvolvimento da
democracia nacional e se diferencia do internacionalismo socialista.

Estimar a influência prática dos escritos de Rousseau nos desenvolvimentos práticos


políticos e sociais é dificilmente possível, de maneira que neste ponto vemo-nos limitados a
indicações mais ou menos gerais. É bem mais fácil, desde depois, rastrear as influências de suas
teorias em outros filósofos. E os pensadores que em seguida saem a colación são Kant e Hegel.

A teoria rousseauniana do contrato social tem pouca ou nenhuma importância a este


respecto. Ele mesmo lhe deu relevo, como o mostra claramente o título de sua principal obra
política; mas em realidade tratava-se só de um expediente artificial tomado de outros autores
para justificar a transição do hipotético estado de natureza ao da sociedade política. Não era uma
teoria com futuro. Bem mais importante era a doutrina da vontade geral. Mas esta doutrina podia
ser desenvolvido por duas vias ao menos.

Na primeira redação do Contrato Social Rousseau fala da vontade geral como de algo que é
na cada homem um ato puro de entendimento, pelo qual se razona a respeito do que um homem
pode pretender de seu semelhante e do que seu semelhante tem direito a pretender dele. A
vontade descreve-se aqui como vontade racional. Ao que podemos acrescentar a doutrina
expressa no Contrato Social segundo a qual “o mero impulso do apetito é escravatura, enquanto
a obediência a uma lei que nos prescrevemos nós mesmos é liberdade”.[208] Temos, pois, uma
vontade racional autônoma, ou razão prática, pela qual o homem, em seu superior naturalza, por
assim o dizer, legisla para si mesmo e pronuncia uma lei moral à qual está submetido ele mesmo
em sua natureza inferior. E esta lei é universal no sentido de que a razão prescreve o que é' justo
e, implicitamente ao menos, o que deve fazer todo homem em determinadas circunstâncias. Esta
noção de vontade autônoma que legisla na esfera moral é uma manifesta antecipação da ética
kantiana. Pode objetarse que a vontade kantiana é puramente racional, enquanto Rousseau
acentua o fato de que a razão seria ineficaz como script para a ação se a lei não estivesse impressa
com carateres indelebles no coração dos homens. A vontade racional precisa uma força motora
que se encontra nos impulsos fundamentais do homem. Todo isso é verdade, ou seja: é
verdadeiro que Rousseau acentua o papel desempenhado por lhe sentiment intérieur na vida
moral do homem. Mas é que não se trata de afirmar que a teoria rousseauniana da vontade geral
e a teoria kantiana da razão prática sejam pura e simplesmente o mesmo. O único que se trata
de indicar é que há elementos da primeira suscetíveis de desenvolvimento em sentido kantiano.
E Kant esteve sem dúvida influído pelos escritos de Rousseau.

Mas a vontade geral é universal não só em relacionamento com seu objeto. Para Rousseau é
também universal em relacionamento com seu sujeito. Ou seja, é a vontade do povoo soberano,
do ser moral ou pessoa pública nascida à existência por obra do contrato social. Aqui temos o
germen da teoria organicista do estado desenvolvida por Hegel. Este último criticou e recusou a
teoria do contrato social, mas elogiou a Rousseau por ter posto a vontade como princípio do
estado.[209] Desde depois que Hegel não tomou sem mais as teorias rousseaunianas do estado e
da vontade geral; mas estudou sua obra e recebeu dela estímulo e influência para o
desenvolvimento de sua própria teoria política.
observámos que Rousseau expressou certa predilección pelos estados pequenos. No tipo de
sociedade política que ele considerava como ideal a vontade geral se manifestaria por
democracia direta, ou seja, mediante o voto dos cidadãos na assembleia popular. Mas se
supomos um estado grande no qual tais assembleias sejam de todo ponto impracticables, a
vontade geral não poderá ser expressado em legislação direta. Poderá achar expressão parcial
em eleições periódicas, mas para expressar na legislação precisará a mediação interpretativa de
um homem ou vários homens diferentes do povoo soberano. Não há grande distância disto à
ideia da vontade nacional infalible que encontra expressão articulada por boca de algum
caudillo. Não penso que Rousseau aprovasse uma interpretação assim de sua teoria. Pelo
contrário, essa interpretação lhe teria horrorizado, e Rousseau poderia alegar passos de seus
escritos que explicitamente se opõem a ela. Mas, apesar disso, a ideia de uma vontade cuasi-
mística que busca expressão articulada tende por si mesma a ser explodida deste modo.

Ainda se percebe uma via mais pela qual podia ser desenvolvido a teoria da vontade geral.
Podemos imaginar que uma nação possui verdadeiro ideal operativo que se expressa
parcialmente em sua história, suas tradições e suas instituições, plástico no sentido não fixado
por formulaciones teóricas, no sentido de que não é um ideal gradualmente construído e que
requer modificações e reformulações à luz do desenvolvimento da nação. Talvez possamos
entender neste suposto a tarefa dos legisladores e dos teóricos políticos, parcialmente ao menos
como a tentativa de dar expressão concreta a esse ideal, para mostrar assim à nação o que
“realmente deseja”. Não acho que essa concepção seja inmune à crítica. Limito-me a dizer que
é possível apresentar uma teoria da vontade geral sem se ver obrigado a conceber o órgão
interpretativo da mesma como um altavoz infalible. O poder legislativo e o governo podem
tentar averiguar que é o melhor para a nação à luz de suas tradições, suas instituições e suas
circunstâncias históricas; mas não se segue disso que a interpretação do melhor tenha de se
considerar por força acertada. É possível manter a ideia de que a nação deseja o melhor para ela,
e que o governo e o poder legislativo tentam dar expressão a essa vontade, ou estão obrigados
ao tentar, sem ter que supor por isso que tenha nenhum órgão infalible de interpretação e
expressão. Dito de outro modo: seria possível adaptar a teoria de Rousseau à vida de um estado
democrático do tipo atual na cultura ocidental.

Uma das principais, razões pelas quais é possível dar vários desenvolvimentos diferentes da
teoria de Rousseau é, por suposto, a ambigüedad que pode registrasse em sua formulación da
teoria. A seguinte ambigüedad é de particular importância: quando Rousseau diz que a ordem
social é a base de todos os direitos, seu formulación pode ser entendido em um sentido trivial se
entendemos por “ direito” direito positivo, direito legal. Neste caso o enunciado é uma
perogrullada. Mas se o que quer dizer é que a legislação dá nascimento à moralidade, [210] então
o enunciado sugere que o estado é a fonte das distinções morais. E se acrescentamos a isto o
ataque de Rousseau às sociedades parciais e seu defesa da religião civil contraposta à religião
revelada e mediada pela Igreja, resulta fácil entender como pode ser afirmado que a teoria
política de Rousseau aponta no sentido do totalitarismo. Mas Rousseau não pensava que a
moralidade dependesse simplesmente do estado. Em última instância, tem insisitido sempre na
necessidade de cidadãos virtuosos para que o estado seja bom. Assim tropeçava Rousseau com
o dilema de Platón. Não pode ter estado bom sem cidadãos bons. Mas os cidadãos não serão
bons se o estado, em sua legislação e no governo, tendem aos corromper e depravarlos. Esta é
uma das razões pelas quais Rousseau recorreu à ideia do “legislador” iluminista, ao estilo de
Solón ou de Licurgo. Mas o mero fato de que tropeçasse com este dilema prova que não pensava
que a moralidade dependesse exclusivamente do estado, no sentido de que seja justo o que o
estado declare justo. Rousseau achava, ademais, que há uma lei natural escrita nos corações dos
homens. E se achava que, dadas certas condições e precauções, essa lei natural acharia sem
dúvida expressão articulada na vontade declarada do povoo soberano, este otimismo devia-se a
sua fé na bondade natural do homem, não a um positivismo ético. Não pode ser negado, no
entanto, que Rousseau formulou proposições com verdadeiro sabor de positivismo ético, no
sentido de que parece implicar que a moralidade se deriva da legislação e da opinião social. Dito
de outro modo: tomada em seu conjunto, a teoria é ambigua. O homem queira sempre o bem,
mas pode errar quanto à natureza deste. Quem tem de interpretar a lei moral? A resposta é
ambigua. Umas vezes Rousseau diz-nos/dí-nos que a consciência, e outras vezes que o poder
legislativo. Por uma parte, a voz do poder legislativo não é necessariamente infalible; pode estar
influída por interesses egoístas, e então não expressa a vontade geral. É, pois, de presumir que a
consciência tenha de ser o fator decisorio. Por outra parte, a cada homem tem que adecuarse à
decisão do povoo soberano: caso necessário, se verá obrigado a ser livre. Dificilmente poderá
ser afirmado que não tenha ambigüedad neste ponto. Portanto, embora o mesmo Rousseau faça
questão da lei gravada com carateres indelebles no coração dos homens e também faça questão
da importância da voz da consciência, temos de admitir a objeción de que em sua teoria há
elementos incompatíveis, e de que o elemento propriamente novo nela é a tendência a eliminar
o conceito tradicional de lei moral natural.

Uma observação final. considerámos a Rousseau baixo o rótulo geral do Iluminismo francês.
E tendo em conta o fato de que ele mesmo se separou dos enciclopedistas e do círculo de
d’Holbach, a classificação pode parecer inadequada. Por outra parte, considerando a história da
literatura, Rousseau exerceu uma profunda influência não só na literatura francesa, senão
também na alemã, particularmente a do período do Sturm und Drang. O qual pode parecer uma
razão mais para separar do Iluminismo francês. Mas Rousseau não foi a origem da literatura da
sensibilidade, embora lhe tenha dado um impulso poderoso; nem também não foi entre os
filósofos e escritores franceses do século XVIII o único em sublinhar a importância das paixões
e do sentimento na vida humana. Basta pensar em Vauvenargues, por exemplo. A situação
parece ser como segue: se identificamos como rasgos principais do Iluminismo na França um
racionalismo árido, um escepticismo religioso e uma tendência ao materialismo, então, por
suposto, temos que dizer que Rousseau ultrapassou o Iluminismo ou ficou fora dela. Mas com a
mesma razão podemos revisar nossa concepção do período para incluir nele a Rousseau:
podemos achar no período algo mais que racionalismo árido, materialismo e escepticismo
religioso. O importante é, de todos modos, que embora teve suas raízes no movimento geral do
pensamento da França do século XVIII, Rousseau é uma figura demasiado destacada na história
da filosofia e da literatura para que tenha interesse lhe pôr uma etiqueta e achar que com isso se
satisfez toda justiça. Nosso escritor é e será sempre Jean-Jacques Rousseau, não um mero
exemplo de um tipo. Algumas de suas teorias, como a do contrato social, são típicas da época,
e têm um interesse pouco mais que histórico. Em outras feições de seu pensamento político,
pedagógico e psicológico Rousseau antecipou-se ao futuro. E alguns de seus problemas, como
o do relacionamento entre o indivíduo e o estado, são sem dúvida tão reais hoje como quando
ele escreveu, embora hoje tendamos a dar a seus problemas formulaciones diferentes.
Parte II
o Iluminismo alemão
Capítulo V
O Iluminismo alemão - I

1. Christian Thomasius.

A primeira fase do Iluminismo (Aufklärung) na Alemanha fica talvez representada do melhor


modo por Christian Thomasius (1655-1728), filho do Jakob Thomasius que foi um dos maestros
de Leibniz. De jovem insistia Christian Thomasius na superioridad dos franceses respecto dos
alemães no terreno da filosofia. Os alemães têm uma inclinação às abstrações metafísicas, a qual
não promove o bem comum nem a felicidade individual. A metafísica não produz conhecimento
real. Ademais, a filosofia "culta” ensinada nas universidades pressupõe que o fim da reflexão
racional é a contemplação da verdade abstrata por si mesma. Mas esse orçamento é um erro. O
valor da filosofia estriba em sua utilidade, em sua tendência a contribuir ao bem comum ou
social e à felicidade ou o bem-estar do indivíduo. Dito de outro modo, a filosofia é um
instrumento do progresso.

Esta hostilidade à metafísica e ao charuto intelectualismo fundava-se até verdadeiro ponto


em um empirismo. Segundo Thomasius o espírito tem que apurar de seus preconceitos e
preconceptos, particularmente dos que são característicos do aristotelismo e o escolasticismo.
Mas se recusava a metafísica aristotélica e escolástica, não o fazia para pôr outra em seu local.
Assim, por exemplo, Thomasius criticava a Medicina mentis de Tschirnhaus (1651-1708), o
qual, baixo a influência de Descarte e Spinoza, propunha a aplicação do método matemático em
uma filosofia de descoberta, e proclamava que a consecución da verdade é o ideal mais nobre
da vida humana. Para Thomasius está claro que nosso conhecimento natural depende dos
sentidos. Não possuímos ideias innatas, nem podemos descobrir verdades a respeito do mundo
mediante um método puramente deductivo. A experiência e a observação são as únicas fontes
fidedignas de conhecimento; e os limites do conhecimento estão determinados pelos sentidos.
Por um lado, se há algo tão pequeno que não impressione os sentidos, não podemos o conhecer.
Por outro lado, há coisas tão grandes que ultrapassam a capacidade de nosso espírito. Assim,
por exemplo, podemos saber que os objetos dos sentidos dependem de uma Causa Primeira: mas
não podemos conhecer, por filosofia ao menos, a natureza dessa causa. A dependência em que
nosso espírito se encontra respecto da percepción sensível e a consiguiente limitação do âmbito
de nosso conhecimento mostram a vaciedad da especulação metafísica. Nem devemos permitir-
nos/permití-nos uma recaída na metafísica pelo procedimento de pôr em dúvida a fidelidade dos
sentidos para tentar depois dar uma prova filosófica de que são fidedignos. Por suposto que a
dúvida tem seu local em nossa vida mental, pois devemos submeter a dubitación as opiniões do
passado que não resultaram úteis. Mas o são sentido comum põe limites à dúvida. Não devemos
cair no escepticismo nem na metafísica. Temos mais bem de nos dedicar a conseguir
conhecimento do mundo que nos apresentam os sentidos, e não pelo conhecimento mesmo,
senão por sua utilidade.

A ideia da filosofia que tem Thomasius, tal como aparece na Einleitung zur Vernunftlehre
(Introdução à doutrina da razão) e na Ausübung der Vernunftlehre (Exercício da doutrina da
razão), ambas de 1691, é em certa medida expressão de um ponto de vista empirista; mas
provavelmente estão no justo os historiadores que a relacionam também com certos
desenvolvimentos sociais e com a concepção geral da Reforma Protestante. É, desde depois,
exagerado limitar-se a afirmar que a importância dada à ideia de bem comum seja simples
expressão da ascensão da classe média, pois a ideia de bem comum era já importante, por
exemplo, na filosofia medieval. Mas, ao mesmo tempo, provavelmente é verdade que a
concepção utilitarista de filosofia, com sua concentração em torno da ideia de razão ilustrada
que utiliza suas capacidades para promover o bem comum, tem algo que ver com a estrutura
posmedieval da sociedade, pelo que resulta razoável considerar esse pensamento como filosofia
“burguesa”. Pelo que faz à vinculação religiosa, vale a pena notar que essa filosofia burguesa
foi o prolongamento secularizada das concepções da Reforma Protestante. O verdadeiro serviço
divino tem de ver nas forma ordinárias da vida social, não na isolada contemplação de verdades
eternas ou no apartamiento do mundo mediante o ascetismo e a mortificación. Esta ideia, uma
vez separada de seu fundamento estritamente religioso, leva facilmente à conclusão de que o
progresso social e o sucesso individual neste mundo são sinais do favor divino. E se a reflexão
filosófica não tem senão escassa ou nenhuma concorrência na esfera teológica, como pensava
Lutero, parece razoável que se dedique a promover o bem social e a felicidade individual
temporal. O motivo capital dessa reflexão será a utilidade, não a contemplação da verdade. Ou
seja, a filosofia se ocupará de questões de ética, organização social e direito, mais que de
metafísica e teología. Se centrará em torno do homem, e sua principal finalidade ao considerar
ao homem será a de promover o bem temporário deste, não o integrar uma antropologia
filosófica em uma metafísica geral do ser. O homem será considerado psicologicamente, não
metafisicamente nem desde um ponto de vista teológico.

Isso não significa, por suposto, que a filosofia tenha de ser antirreligiosa. Como vimos, a
filosofia do Iluminismo francês foi frequentemente hostil ao Catolicismo e, no caso de alguns
pensadores, à religião em general, vista como inimiga do progresso social; mas este ponto de
vista não foi, certamente, característico do Iluminismo alemão em general nem de Thomasius
designadamente. Este último estava bem longe de ser um homem irreligioso. Pelo contrário,
estava relacionado com o pietismo, movimento que nasceu na Igreja Luterana para fins do século
XVII e que tendia a infundir uma nova devoción ao corpo religioso. Não pode ser dito
licitamente que o pietismo reduzisse a religião ao sentimento, mas, de todos modos, é um feito
com que não tinha simpatia pela metafísica nem pela teología escolástica, senão que acentuava
a importância da fé pessoal e da interioridad. O pietismo, portanto, ao igual que o empirismo,
embora por razões diferentes, contribuiu a que a filosofia se apartasse da metafísica e da teología
natural.[211]

A conclusão da Doutrina da razão é que a metafísica é inútil e que a razão tem de se utilizar
para promover o bem do homem. A teoria ética de Thomasius formula-se em sua Einleitung zur
Sittenlehre (1692), ou Introdução à doutrina dos costumes e em seu Ausübung der Sittenlehre
(1696) ou Exercício da doutrina dos costumes. Mas a teoria experimenta uma curiosa
metamorfosis. Primeiro ensina-nos Thomasius que o bem supremo do homem é a tranquilidade
da alma, o caminho para a qual é descoberto pela razão, enquanto a vontade é a faculdade que
aparta ao homem do bem. O ideal é individualista. Mas Thomasius arguye depois que o homem
é por natureza social e que só como membro da sociedade é propriamente homem. Disso se
segue que o homem não pode conseguir a serenidad da alma fosse do vínculo social, sem amor
por seus semelhantes; e que o indivíduo deve ser sacrificado ao bem comum. Graças ao amor
recíproco nasce uma vontade comum que trasciende a vontade meramente privada e egoísta.
Disso parece se seguir a imposibilidad de caraterizar a vontade como necessariamente má. Pois
o “amor racional” é uma manifestação da vontade, e do amor racional nascem as virtudes. Mas
apesar disso Thomasius segue sustentando que a vontade humana é má. A vontade é escrava dos
impulsos ou instintos básicos, como os desejos de riqueza, honras e prazer. Não podemos
conseguir por nossos próprios esforços a virtude de desprendimiento ou generosidad. A eleição
e a ação humanas não podem produzir senão pecado; só a graça divina é capaz de resgatar ao
homem de seu impotencia moral. Dito de outro modo: o pietismo pronuncia a última palavra na
ética de Thomasius, o qual acaba reprochándose o ter achado alguma vez que um homem possa
desenvolver por seu próprio esforço uma moralidade natural.

Thomasius é sobretudo conhecido por suas obras de jurisprudencia e direito internacional.


Em 1688 publicou os Institutionum jurisprudentiae divinae libri três, in quibus fundamenta juris
naturae secundum hypotheses ill. Pufendorfii perspicue demonstrantur. Como o indica o título,
a obra está escrita baixo a influência do célebre jurista Samuel Pufendorf (1632-1694). Mais
originalidad e independência mostrou Thomasius em sua posterior publicação Fundamenta juris
naturae et gentim ex sensu communi deducta (1705). Thomasius começa com uma consideração
psicológica, não metafísica, do homem. Acha neste três impulsos fundamentais: o desejo de
viver tão longa e felizmente como seja possível, a repugnancia instintiva pela morte e a dor e o
desejo de propriedade e domínio. Enquanto a razão não domina esses impulsos ou instintos
existe o estado natural da sociedade humana, que é uma mistura de guerra e paz, sempre com a
tendência a degenerar em guerra. Esta situação não pode remediarse mais que se a reflexão
racional a domina e se orienta a conseguir para o homem a vida mais dilatada e feliz que seja
possível. Mas que é uma vida feliz? Por de repente é vida justa; e o princípio da justiça consiste
em não fazer a outros o que não desejamos que se nos faça. Neste princípio baseia-se a lei natural
no sentido mais estreito, a saber, assim que orientada à conservação de relacionamentos externas
pacíficas. Em segundo local, uma vida feliz carateriza-se pelo decoro (decorum) ou decencia; e
o princípio do decoro ou conveniência é que façamos aos demais o que desejamos que se nos
faça. Neste princípio baseia-se a política, orientada a promover a paz por médio da ação
benévola. Em terceiro local, uma vida feliz exige virtude e respeito de si mesmo (honestum), e
o princípio é neste caso nos fazer a nós mesmos o que desejamos que outros se façam a eles
mesmos segundo suas capacidades. Neste princípio baseia-se a ética, orientada à consecución
da paz interior.

Aqui temos, pois, uma visão que discrepa da sugerida pelas observações de Thomasius em
sua Ausübung der Sittenlehre a respeito da incapacidade em que está o homem de desenvolver
uma vida moral por suas próprias forças. Pois em fundamenta-os juris naturae et gentium ex
sensu communi deducta adota claramente a atitude segundo a qual pode ser derivado da razão
humana um direito natural, do mesmo modo que mediante o exercício de dita razão o homem
pode superar seus instintos egoístas e promover o útil, ou seja, o bem comum. Também
Pufendorf derivava o direito natural da razão; mas Thomasius separava a lei natural da
metafísica e da teología de um modo bem mais tajante que seu predecessor. Assim encontramos,
em qualquer caso, uma cria caraterística do Iluminismo, a saber, que a razão pode curar as feridas
da vida humana, e que o exercício da razão tem que orientar ao bem social. O indivíduo deve
achar seu próprio bem na superação de seus desejos e suas cobiças egoístas, e em sua
subordinación ao bem da sociedade. Não se trata de que Thomasius descartasse a fé religiosa, a
crença no sobrenatural. Mas tendia a separar a religião, que pertence à esfera da fé, o sentimento
e a devoción, da esfera da reflexão filosófica. A acentuación calvinista da comunidade aparece
assim de um modo secularizado, mas coexiste em Thomasius com o pietismo luterano.

2. Christian Wolff.

O principal representante da segunda fase do Iluminismo alemão é Christian Wolff (1679-


1754). Mas com ele passamos a uma concepção de conjunto muito diferente da de Thomasius.
Desaparece do todo a hostilidade deste à metafísica, e a combinação dessa hostilidade com o
pietismo. Em local disso encontramos uma renascença da filosofia acadêmica e a metafísica de
escola, bem como um racionalismo que o penetra tudo. Com isso não se trata de afirmar que
Wolff fosse um racionalista no sentido de um pensador antirreligioso; nada disso. Mas
desenvolveu um sistema racional completo de filosofia que incluía a metafísica e a teología
natural e exerceu uma poderosa influência nas universidades. Sem dúvida acentuava o fim
prático da filosofia e está claro que sua intenção era promover a difusão da inteligência e a
virtude entre os homens. Mas nota-a caraterística de seu pensamento é a confiança e a insistencia
na capacidade da razão humana para conseguir certeza no campo da metafísica, incluído o
conhecimento metafísico de Deus. Este racionalismo expressa-se já nos títulos de suas obras
alemãs, que começam frequentemente com as palavras “Pensamentos racionais a respeito de...”
(Vernünjtige Gedanken von...), como, por exemplo, nos Pensamentos racionais a respeito de
Deus, o Mundo e a Alma do Homem, de 1719. E suas obras latinas compõem a “Filosofia
Racional” (Philosophia rationalis). A separação pietista entre esfera da fé e esfera da razão, bem
como a eliminação da metafísica por insegura e inútil, são coisas completamente alheias ao
espírito de Wolff. Neste sentido Wolff continuou a grande tradição racionalista da filosofia
continental posterior à Renascença. Wolff depende consideravelmente de Leibniz, cujo
pensamento expressou em forma escolástica e acadêmica. Mas embora careceu da originalidad
de Leibniz e de seus demais grandes predecessores, Wolff é de todos modos uma figura
importante na filosofia alemã. Quando Kant discute a metafísica e as argumentaciones
metafísicas, está frequentemente pensando na filosofia de Wolff. Pois em seu período precrítico
estudava e assimilado as ideias de Wolff e de seus seguidores.

Wolff nasceu em Bratislava, e ao princípio ia estudar teología, embora cedo dedicou-se à


filosofia, que ensinou em Leipzig. Algumas notas sobre a Medicina mentis de Tschirnhaus
puseram-lhe em relacionamento com Leibniz, por recomendação do qual Wolff obteve uma
praça de professor de matemáticas em Ache; ali ensinou não só matemáticas, senão também
vários ramos da filosofia. Suas opiniões provocaram a oposição de seus colegas pietistas, os
quais lhe acusaram de ateísmo e conseguiram que Frederick Guillermo I lhe expulsasse de sua
cátedra (1723). Wolff recebeu ordem de abandonar Prusia baixo pena de morte no prazo de dois
dias. Foi acolhido em Marburgo, onde continuou suas atividades docentes e de escritor, enquanto
seu caso provocava animadas discussões por toda Alemanha. Em 1740 Frederick II chamou-lhe
pára que voltasse a Ache e posteriormente lhe ennobleció. Enquanto a influência de suas ideias
tinha-se estendido por todas as universidades alemãs. Morreu em Ache em 1754.

Em alguns respectos Wolff foi um racionalista radical. Assim por exemplo o método ideal
era para ele o deductivo. Seu uso fora da lógica formal e da matemática pura é possível, segundo
Wolff, pelo fato de que o princípio supremo, o de não-contradição, se aplica a toda a realidade.
Desse princípio podemos derivar o de razão suficiente, o qual, como o de não- contradição, é
um princípio ontológico, não só lógico. E o princípio de razão suficiente é de grande importância
em filosofia. O mundo, por exemplo, tem de ter sua razão suficiente em um ser trascendente,
que é Deus.

Wolff dava-se conta, por suposto, de que o método deductivo só não bastaria para construir
um sistema de filosofia, e ainda menos para desenvolver as ciências empíricas. Não podemos
adiantar nestas sem experiência e indução, e até em filosofia precisamos elementos empíricos.
Portanto, muitas vezes temos que nos contentar com a mera probabilidade. Algumas proposições
são absolutamente verdadeiras, pois não podemos afirmar suas opostas sem incurrir em
contradição. Mas há muitas outras proposições que não podem ser reduzido ao princípio de não
contradição, senão que desfrutam simplesmente de graus vários de probabilidade.

Dito de outro modo: Wolff adotava as distinções de Leibniz entre verdades de razão — as
opostas às quais não podem ser afirmado sem contradição e que são, portanto, necessariamente
verdadeiras — e verdades de fato, as quais são verdadeiras não necessária, senão
contingentemente. Tenho aqui um exemplo do modo como aplicava a distinção. O mundo é o
sistema de coisas finitas interrelacionadas, e é como uma máquina que trabalha ou se move
necessariamente de verdadeiro modo pelo fato de ser como é. Mas essa necessidade é hipotética.
Se Deus tivesse-o querido, o mundo poderia ser diferente do que é. Disso se segue que há muitos
enunciados verdadeiros a respeito do mundo cuja verdade não é absolutamente necessária. Ao
mesmo tempo, o mundo compõe-se em última instância de substâncias, a cada uma das quais
ejemplifica uma essência que, ao menos idealmente, pode ser concebida mediante uma ideia
clara e pode ser, portanto, definida. Se possuíssemos um conhecimento dessas essências,
poderíamos deduzir uma série de verdades necessárias. Pois quando concebemos as essências
fazemos abstração da existência concreta e consideramos a ordem da possibilidade, sem ter em
conta a divina eleição deste mundo. Pode ser sustentado que a ideia de Wolff segundo a qual o
mundo poderia ser diferente do que é não encaixa bem com sua teoria das essências. Pois poderia
ser sustentado que, dadas as essências que compõem o mundo, a ordem deste não pode ser senão
o que é. Mas o que aqui me interessa puntualizar é que o racionalismo de Wolff, seu insistencia
nas ideias claras, diferentes e definibles e na dedução, lhe move a descrever a filosofia como a
ciência do possível, de todas as coisas possíveis, em base ao conceito inicial de que uma coisa
possível é simplesmente algo que não implica contradição.

aludimos já a Leibniz, e não há dúvida de que a filosofia deste influiu grandemente no


pensamento de Wolff. Brevemente veremos exemplos dessa influência. Mas ao restabelecer a
ideia das essências Wolff alude explicitamente à escolástica. E embora, dado o difundido
desprezo pela escolástica que é próprio da época, Wolff precisa que está aperfeiçoando as ideias
dos escolásticos, não oculta, no entanto, que, de acordo com o exemplo de Leibniz, não
simpatiza com a condenação global das opiniões e a obra daqueles. De fato está clarísimo que
Wolff experimentou a influência da escolástica. Mas a concentração de seu pensamento em
torno da noção do ser como essência recorda mais a Duns Scott que a Tomás de Aquino. O que
influiu em Wolff foi o escolasticismo tardio, não o dos tomistas. Assim, por exemplo, se refere
em seu Ontología elogiosamente a Suárez, cujos escritos tiveram muito sucesso nas
universidades alemãs, inclusive nas protestantes.

A influência da escolástica pode ser apreciado na divisão wolffiana da filosofia. A divisão


fundamental, que se remonta a Aristóteles, distingue entre filosofia teórica e filosofia prática. A
filosofia teórica, ou metafísica, se subdivide em ontología, que trata do ente como tal, psicologia
racional, que se ocupa da alma, cosmología, que trata do sistema cósmico, e teología natural ou
racional, que tem como tema a existência e os atributos de Deus. (A filosofia prática divide-se,
com Aristóteles, em ética, economia e política.) A separação explícita entre ontología ou
metafísica geral e teología natural não se remonta à Idade Média, pelo que algumas vezes se
atribuiu a Wolff mesmo. Mas já o cartesiano Clauberg (1622-1665), que falava de “ ontosofía”
em vez de “ ontología”, praticaria a distinção, e o escolástico Jean-Baptiste Duhamel (1624-
1706) utilizava o termo “ontología” em seu Philosophia universalis: Wolff aspirava
explicitamente em seu Ontología a melhorar as definições dadas pelos escolásticos, bem como
o tratamento da ciência do ente como ente. E embora sua divisão da filosofia difere da de santo
Tomás, por exemplo, no entanto, a disposição hierárquica de seus ramos desenvolveu-se
claramente baixo influência escolástica.[212] A coisa pode parecer de escassa importância; mas
é pelo menos interessante observar que a tradição escolástica teve continuação no pensamento
de uma das figuras rectoras do Iluminismo alemão, embora, desde um ponto de vista
estritamente tomista, a forma de escolasticismo que se inseriu na filosofia wolffiana não resulte
nada fundamentada. Sem dúvida será esta a opinião dos que, com Gilson, contrapõem o
“existencialismo” de santo Tomás e seus fiéis sucessores ao “esencialismo” da posterior
escolástica.[213]

A influência leibniziana pode ser percebido claramente no tratamento do conceito de


substância por Wolff. Embora evita o termo ‘mónada’, Wolff postula a existência de substâncias
simples imperceptibles sem extensão nem figura; nenhum par delas é completamente igual. As
coisas que percebemos no mundo material são agregados dessas substâncias ou átomos
metafísicos; e a extensão pertence, como diz Leibniz, à ordem fenoménico. O corpo humano é
também, por suposto, um agregado de substâncias. Mas no homem há ademais uma alma que é
uma substância simples e cuja existência pode ser provado por referência ao fato da consciência,
a autoconsciencia e a consciência do mundo externo. A existência do alma é imediatamente
evidente para qualquer na autoconsciencia.

Wolff insistia muito no papel da consciência. A alma, como substância simples que é, possui
uma potência ativa; mas essa potência consiste na capacidade que tem a alma de se representar
o mundo. E as diferentes atividades da alma, as duas fundamentais das quais são o conhecimento
e o desejo, são simplesmente manifestações diversas dessa mesma potência de representação.
Pelo que faz ao relacionamento entre o corpo e a alma, há que a descrever sobre a base da
harmonia preestablecida. Não há interação direta entre a alma e o corpo; assim o ensinava já
Leibniz. Deus dispôs de tal modo as coisas que a alma se representa a si mesma o mundo
segundo as modificações que ocorrem nos órgãos dos sentidos de seu corpo.
A principal prova da existência de Deus é segundo Wolff um argumento cosmológico. O
mundo, o sistema das coisas finitas interrelacionadas, exige uma razão suficiente de sua
existência e de sua natureza, e essa razão suficiente é a vontade divina, embora a mesma opção
divina tem a sua vez razão suficiente, a saber, a força atraente do bem concebido por Deus. Isso
significa, naturalmente, que Wolff tem que seguir as linhas da teodicea leibniziana. E ao igual
que Leibniz distingue, efetivamente, entre mau físico, mau moral e mau metafísico. Este último
é a imperfección necessariamente anexa à finitud e, portanto, é inseparável do mundo. Quanto
ao mau físico e ao mau moral, o mundo requer pelo menos sua possibilidade. Em realidade, a
questão não estriba em saber se Deus podia ter criado um mundo sem mau, senão em se há razão
suficiente para criar um mundo do qual não pode estar ausente o mau ou, pelo menos, a
possibilidade do mau. A resposta de Wolff é que Deus criou o mundo para ser reconhecido,
honrado e glorificado pelo homem.

Como se vê, tudo isto nos leva bastante longe da opinião de Thomasius segundo a qual a
mente humana é incapaz de atingir a verdade na metafísica e a teología natural. Além de sua
prova cosmológica da existência de Deus, Wolff aceitava o argumento ontológico, convencido
de que o desenvolvimento deste argumento por Leibniz e por ele mesmo o tinha inmunizado em
frente às críticas habituais. A acusação de ateísmo apresentada contra Wolff era realmente
absurda. Mas compreende-se que seus inimigos pietistas pensassem que Wolff estava colocando
a razão no local da fé e socavando assim seu conceito de religião.

Do mesmo modo que recusava a tese da incapacidade intelectual do homem na esfera da


metafísica, assim também recusava Wolff a ideia da incapacidade moral do homem, isto é, a
tese de que, deixado a si mesmo, o homem não é capaz mais que de pecar. Sua teoria moral
baseia-se na ideia de perfección. O bem se define como o que nos faz mais perfeitos, a nós
mesmos e a nossa condição; enquanto o mau define-se como o que nos faz mais imperfectos.
Mas Wolff admitia como de antigo reconhecido, “pelos antigos”, esse princípio de que só
queremos o que consideramos bom no sentido de perfectivo de nós mesmos, e que não queremos
nada que consideremos mau. Dito de outro modo, Wolff admite a doutrina escolástica de que o
homem elege sempre sub specie boni. Está claro, portanto, que Wolff tem de encontrar algum
critério que distinga entre o bem no amplo sentido do termo, ou seja, como inclusivo de todo o
que seja objeto da eleição da vontade, e o bem em sentido moral, ou seja, no sentido do que
temos que eleger, ou daquilo ao que devemos aspirar. Sem dúvida acentua a ideia de perfección
de nossa natureza. Mas está claro que este conceito tem que tomar um conteúdo mais concreto
que nos permita distinguir entre ações morais e ações inmorales. Ao tentar fazê-lo assim Wolff
dá preeminencia à ideia de harmonização da multiplicidad de elementos da natureza humana
baixo o governo da razão e das condições internas e externas do homem. Alguns autores
sustentaram que ao incluir o bem externo no summum bonum ou fim do esforço moral humano,
Wolff estava expressando uma “ética protestante”. Mas já séculos dantes Aristóteles incluía no
bem do homem a suficiencia em bens externos. Em qualquer caso, há que observar que Wolff
deseja evitar o individualismo que poderia ser derivado de uma ética do autoperfeccionamiento.
Por isso acentua o fato de que o homem não pode ser aperfeiçoado mais que se se esfuerza por
ajudar a seus semelhantes e por levantar acima de seus impulsos puramente egoístas. A
promoção das honras devidos a Deus e do bem comum pertence à ideia de
autoperfeccionamiento. A “lei natural” ordena, portanto, que façamos o que nos aperfeiçoa a
nós mesmos, e o que aperfeiçoa nossa condição e a condição dos demais, e que não façamos o
que nos faz mais imperfectos a nós mesmos, ou o que faz mais imperfectos aos demais.

Wolff afirma a liberdade como condição da vida moral. Mas não lhe é nada fácil explicar a
possibilidade da liberdade, se é que liberdade significa que Um homem pôde ter feito outra
eleição que a que efetivamente fez. Pois, como vimos, Wolff considera a natureza por analogia
com minha máquina na qual todos os momentos são determinados e (hipoteticamente)
necessários. Mas apesar dessa dificuldade Wolff segue afirmando que o homem é livre. Para
justificar sua tese apela à teoria da harmonia preestablecida entre a alma e o corpo. Não há uma
interação direta entre eles Portanto, as condições somáticas e os impulsos sensíveis, por exemplo
não podem determinar a eleição da alma. A decisão da alma surge de sua própria espontaneidad
e é portanto livre.

Wolff tropeça com dificuldades também a propósito do relacionamento entre a inteligência


e a vontade na vida moral. Segundo ele, o começo e o fundamento da virtude é uma vontade
constante de não fazer mais que o que corresponde à lei moral natural. Mas podem o
entendimento ou a razão, o conhecimento do bem e o mau morais, produzir essa direção
constante da vontade? Não terá de ser essa produção um efeito da vontade mesma? Já que a
direção constante da vontade para o bem moral objetivo não é nada dado desde o começo, e já
que é difícil mostrar que possa a produzir o mero entendimento, Wolff sublinha a necessidade e
a importância da educação na vida moral. Por educação não deixa de entender educação
intelectual, formação de ideias claras e diferentes. Portanto, embora Wolff não forneça uma
resposta completamente satisfatória à questão de como pode ter o homem uma vida
verdadeiramente moral graças a seu próprio esforço, fica claro que o racionalismo pronuncia
para ele a última palavra. O principal objetivo da educação consiste em produzir as ideias claras
a respeito da vocação moral do homem que possam servir como forças motivadoras da vontade.
O fundo de seu pensamento parece bastante claro. A vontade busca por natureza o bem. Mas o
homem pode ter ideias erradas a respeito do bem. De aqui a importância de desenvolver ideias
verdadeiras, claras e adequadas. Só o entendimento pode dirigir adequadamente a vontade. É
possível que Wolff não consiga explicar com precisão por que o entendimento pode governar a
vontade e produzir os desejos retos; mas está fora de dúvida que ele o acha assim.

Às vezes fala Wolff como se o objetivo da educação do espírito fosse produzir ideias úteis.
E se temos presente seu insistencia em que o homem tem de trabalhar para promover assim o
bem comum, além de se manter a si mesmo, poderemos talvez nos inclinar a inferir que seu ideal
moral é simplesmente o do cidadão decente e trabalhador. Dito de outro modo, podemos chegar
à conclusão de que também Wolff tem uma concepção plenamente burguesa do homem e de sua
vocação moral, concepção que pode ser descrito como forma secularizada de protestantismo, ou
da noção protestante da vocação do homem neste mundo. Mas embora essa concepção constitua
sem dúvida um elemento de seu pensamento, não é o único. Wolff, efetivamente, dá uma
significação muito ampla ao termo “útil”. Ser útil à sociedade não significa simplesmente prestar
leal serviço como trabalhador manual ou como servidor público. O artista e o filósofo, por
exemplo, desenvolvem suas potencialidades, aperfeiçoam-se a si mesmos e são “úteis” para a
sociedade. A educação para a vida não tem de tomar em um sentido estreito e filisteo. Wolff
tenta combinar uma ampla ideia da educação e a autoperfección com a insistencia no dever de
servir ao bem comum, dever que considera como a nota caraterística de sua filosofia moral.
Pensando na ideia kantiana de que o homem está obrigado a buscar a perfección moral e que
esta perfección não pode ser conseguido em um tempo finito, vale a pena observar que dantes
já, para Wolff, a perfección moral não é nada que possa ser conseguido precisamente aqui e
agora. O homem, por assim o dizer, não pode atingir seu objetivo e se pôr a descansar. A
obrigação de buscar a perfección moral implica a obrigação de seguir constantemente para
adiante, em busca dela, a obrigação de aspirar infinitamente à harmonização completa dos
impulsos e os afectos baixo o governo da razão. E esta obrigação recai tanto envelope o
indivíduo quanto sobre a espécie em seu conjunto.

Os direitos do homem baseiam-se em seus deveres. Por natureza são todos os homens iguais,
e têm o mesmos deveres assim que homens. Portanto, também têm os mesmos direitos. Pois
temos um direito natural a todo o que nos permite satisfazer nossos deveres naturais. Também
há, desde depois, direitos adquiridos; mas pelo que faz aos direitos naturais, todos os homens
são iguais.

Wolff baseia o estado em um contrato. Mas o estado tem uma justificativa natural no fato de
que só em uma sociedade grande pode o homem obter com suficiencia os bens da vida, e
defender contra a agressão. Portanto, o estado existe para promover o bem comum. Pelo que faz
ao governo, este se baseia em última instância no consentimento dos cidadãos, os quais podem
ser reservado o poder supremo ou trasferirlo a alguma forma de governo. O poder do governo
abarca só as atividades dos cidadãos que estão relacionadas com a consecución do bem comum.
Mas Wolff concede ao governo amplos poderes de superintendência pelo bem-estar físico e
espiritual dos cidadãos. Isso se deve a que Wolff interpretava o bem comum sobre a base da
perfección humana, não de um modo puramente econômico.

As nações, diz Wolff em sua Jus Gentium,[214] têm de considerar-se como “pessoas
individuais livres que vivem em estado de natureza”. E do mesmo modo que há uma lei moral
natural que obriga aos homens individuais e origina os direitos, assim também há uma lei natural
das nações, ou lei necessária das nações, a qual é inmutable e dá origem a direitos iguais. Esta
lei é a lei moral natural assim que aplicada às nações.

Tem de entender-se, ademais, que todas as nações juntas formaram, por consentimento
suposto, um estado supremo. Pois a natureza mesma obriga às nações a formar uma sociedade
internacional por seu bem comum. Portanto, podemos concluir que as nações em seu conjunto
possuem o direito a obrigar a determinadas nações a cumprir suas obrigações para com a
sociedade mais ampla. E do mesmo modo que em um estado democrático a vontade da maioria
tem de se considerar como representativa da vontade do povo inteiro, assim também no estado
supremo a vontade da maioria das nações tem de se considerar representativa da vontade de
todas as nações. Mas, como poderá ser expressado essa vontade, já que as nações não podem ser
reunido ao modo como podem o fazer grupos de indivíduos? Segundo Wolff, temos de
considerar como vontade de todas as nações aquilo sobre o qual se poriam de acordo se
seguissem a reta razão. E disto infere que a lei das nações é o que foi aprovado por “ as nações
mais civilizadas”.
Wolff chama “direito voluntário das nações” ao direito derivado do conceito de uma
sociedade de nações. E situa-o baixo o rótulo geral de direito "positivo das nações”, junto do
direito estipulativo, que se baseia no consentimento expresso das nações, e com o direito
consuetudinario, que se baseia em seu consentimento tácito. Mas completamente aparte da
possível crítica da ideia de um estado supremo com governante fictício, pareceria mais natural
situar o que Wolff lume jus gentium voluntarium baixo o rótulo do jus gentium naturale que
baixo o de jus positivum. Pois esta última classificação parece exigir a existência de uma
sociedade suprema ou universal efetiva, e não simplesmente a de uma suposta sociedade das
nações. De todos modos, ao afirmar a existência do “direito voluntário das nações” Wolff atuava
baixo a influência de Grocio, ao que se remete precisamente, embora lhe reprocha não ter
distinguido entre direito voluntário, estipulativo e consuetudinario. Em qualquer caso, a ideia de
uma sociedade de nações é de valor indiscutible, aceitemos ou recusemos o uso da ideia por
Wolff.

Se compara-se a Wolff com pensadores como Descarte, Spinoza e Leibniz, há que o


classificar, evidentemente, como figura menor na história da filosofia. Mas se considera-se-lhe
no contexto do desenvolvimento do pensamento alemão, o julgamento terá de ser muito
diferente. Aparte de Leibniz, Alemanha produzia até o momento muito pouca coisa em filosofia;
o grande período da filosofia alemã encontrava-se ainda no seio do futuro. Wolff atuou nessa
fase como uma espécie de educador filosófico de sua nação. Muitas vezes tem-se-lhe criticado,
e com razão, sua aridez, sua dogmatismo e sua formalismo. Mas precisamente por seu fácil
comprensibilidad e por sua ordenada e formal disposição, seu sistema pôde proporcionar uma
filosofia de escola para as universidades alemãs. Sua influência desenvolveu-se por toda
Alemanha e fora dela, e pode ser afirmado que suas ideias dominaram as universidades alemãs
até o triunfo do criticismo kantiano. O sistema, que não foi em si mesmo nada muito importante,
estimulou deste modo o desenvolvimento da reflexão filosófica. Triunfou sobre seus oponentes
teológicos, embora pouco depois essa filosofia fora a sua vez derrubada pela de Kant e seus
sucessores. Dito de outro modo: Wolff ocupa um local importante na história do pensamento
alemão, e não há crítica por falta de originalidad ou por formalismo que possa expulsar desse
local.

3. Seguidores e críticos de Wolff.

O termo “filosofia leibnizo-wolffiana”, recusado pelo mesmo Wolff, foi acuñado por Georg
Bernhard Bilfinger (1693-1750), professor de filosofia durante algum tempo em San
Petersburgo e depois (desde 1731) professor de teología em Tubinga. Seus Dilucidationes
philosophicae de Dco, anima humana, mundo et generalibus rerum affectionibus (1725)
ajudaram a difundir o sistema de Wolff, embora Bilfinger não o seguisse em todo ponto. Entre
outros discípulos de Wolff convém também citar a Ludwig Philipp Thümmig (1697-1728), que
perdeu sua cátedra de Ache ao mesmo tempo que Wolff, e Johann Christoph Gottsched (1700-
1766), autor de uns Erste Griinde der gesamten Weltweisheit (Primeiros princípios da inteira
sabedoria mundanal), 1733, nos que tentava utilizar a filosofia wolffiana no campo da crítica
literária. Também há que mencionar a Martin Knutzen (1713-1751), embora não fosse senão
porque desde 1734 foi professor de lógica e de metafísica em Königsberg e teve a Kant entre
seus alunos. Era matemático e astrônomo ao mesmo tempo que filósofo, e contribuiu a suscitar
o interesse de Kant pela ciência newtoniana. No campo da filosofia estava influído por Leibniz
e por Wolff, mas foi ao mesmo tempo um pensador independente. Assim abandonou, por
exemplo, a doutrina da harmonia preestablecida por uma teoria da causalidad eficiente. Não terá
que dizer que Knutzen não é o causante da filosofia crítica de Kant, mas suas lições foram um
dos fatores que contribuíram a formar as opiniões filosóficas do Kant do período pré-crítico. Em
religião Knutzen tendia ao pietismo; mas baixo a influência de Wolff modificou
consideravelmente a recusación da teología natural ou filosófica que era uma das caraterísticas
do movimento pietista. Publicou, efetivamente, uma Demonstração filosófica da verdade da
religião cristã (1740). Pode ser dito que tentou combinar a espiritualidad pietista com o
“racionalismo” wolffiano.

Figura mais importante é Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762), professor em


Frankfurt do Oder, que produziu verdadeiro número de manuais nos que expunha e desenvolvia
a filosofia de Wolff. Seu Metafísica, por exemplo, era utilizada por Kant em suas classes, de
maneira nada acrítica, por suposto. Mas a importância de Baumgarten não se encontra
primariamente em seu relacionamento com Kant, nem em seu enriquecimento do vocabulário
filosófico alemão mediante a tradução de termos latinos, senão no fato de que foi o verdadeiro
fundador da teoria estética alemã. Em seus Meditationes philosophicae de nonnullis ad poema
pertinentibus (1735), que se traduziram ao inglês com o título de Reflections onPoetry , acuñó
a palavra “estética” (aesthetica). Desenvolveu suas teorias em uma obra em dois volumes
titulada precisamente Aesthelica (1750-1758).

A dedicação de Baumgarten à estética esteve em grande parte determinada pela filosofia de


Wolff. Este último ignorava deliberadamente o tratamento da arte e da beleza, porque o tema
não entrava bem no esquema de sua filosofia. Wolff ocupava-se de ideias “diferentes”, isto é,
de conceitos que fossem comunicables por médio de palavras; não se interessava por conceitos
que fossem “claros”, mas não “diferentes”, ou seja, por conceitos que ainda sendo claros não
podem ser comunicado verbalmente, como é o conceito de uma cor determinada. E como achava
que os conceitos relacionados com o desfrute da beleza não são conceitos diferentes, ignorou
todo estudo da estética. Por outra parte, ao considerar as potências ou faculdades do homem
Woft atendeu principalmente às “potências superiores” (vires superiores), prescindiendo das
“potências inferiores” (vires inferiores). E sua crença de que o desfrute estético é uma função
das potências inferiores, das faculdades da sensação, é também uma razão de que não
considerasse a teoria estética. Tinha por tanto uma lagoa na filosofia wolffiana, e Baumgarten
dispôs-se a colmá-la. Para um discípulo de Wolff, essa tarefa implicava um estudo das potências
sensitivas do homem. O crescente conhecimento do empirismo britânico na Inglaterra fazia
ainda mais aguda a necessidade desse estudo.

A ideia de estética que tem Baumgarten é de caráter humanístico, no sentido de que está
vinculada com uma ideia do homem. Ao princípio da Estética observa efetivamente que “o
filósofo é um homem entre os homens; não deve considerar alheia a si mesmo nenhuma parte
do conhecimento humano”.[215] O filósofo tem que aspirar a um conhecimento da sensibilidade,
já que esta é tão importante na vida humana, e embora não seja capaz de criar beleza, como a
produz o artista, deve tentar conhecer sistematicamente o belo. Baumgarten define a estética
como ciência da beleza e das coisas belas. Mais a beleza é perfección no campo da sensibilidade,
do conhecimento sensível. Portanto, a estética é a ciência da perfección do conhecimento
sensível. “O objeto da estética é a perfección do conhecimento sensível como tal. E isto é a
beleza.” [216]

Baumgarten descreve também a estética como a arte de pensar formosamente (ars pulchre
cogitandi). Esta desgraçada definição ou descrição tende evidentemente a provocar equívocos e
usos incorretos. Mas Baumgarten não pretendia dizer que a ciência da estética consistisse em
saber como pensar “ideias formosas”; estava pensando na arte de usar adequadamente as
faculdades chamadas inferiores para conseguir sua “perfección”. E se reunimos seus várias
definições ou descrições podemos dizer que esperava da estética uma psicologia da sensação,
uma lógica dos sentidos e um sistema de crítica estética.

A ideia de uma lógica dos sentidos é importante. Como seguidor de Wolff, Baumgarten
dispunha as ciências filosóficas em ordem hierárquico, e com a mesma naturalidade situava a
estética em uma posição subordinada. Pois a estética ocupa-se de potências inferiores e de
conhecimento inferior. Se é uma ciência, de todos modos, tem que ser uma atividade de
pensamento; mas como não trata da província das ideias diferentes, tem de ocupar uma posição
inferior no que poderia ser chamado a escala do conhecimento. Ao mesmo tempo Baumgarten
compreende que não é possível tratar a intuición estética como uma forma de pensamento
puramente lógico que por uma ou outra razão não conseguisse atingir os critérios do pensamento
lógico pleno. Não é que seja "ilógica”. A intuición estética tem sua própria lei interna, sua
própria lógica. Por isso fala Baumgarten da estética como da arte do análogo da razão. “A
estética (a teoria das artes liberais e o conhecimento inferior, a arte de pensar formosamente, o
análogo da razão) é a ciência do conhecimento sensitivo.”[217] Baumgarten não indica sempre
com suficiente clareza se está falando da intuición estética mesma ou de nossa representação
reflexiva e conceptual da mesma; mas há ao menos duas coisas que ficam claras. Primeira, que
não há que excluir a sensibilidade da esfera do conhecimento pelo mero fato de que o
“conhecimento sensível” não seja conhecimento puramente lógico nem matemático. Segunda,
que a sensibilidade é uma classe peculiar de conhecimento. Para tratar com ela precisamos uma
epistemología especial, conhecimento ou teoria do conhecimento inferior (gnoseología inferior).
Pois a lei que governa a intuición estética não pode ser expressado com conceitos diferentes e
puramente lógicos; é um “análogo da razão”. A lógica pura significa abstração, e a abstração
significa empobrecimiento, no sentido de que o concreto e individual se sacrifica em favor do
abstrato e universal. Mas a intuición estética salva o abismo entre o individual e o universal,
entre o concreto e o abstrato; sua “verdade” encontra-se em qualidades concretas. E a beleza é
algo que não pode ser expressado com conceitos abstratos.

Ao incluir tal variedade de temas baixo o rótulo geral de estética, Baumgarten não facilitou,
certamente, a consecución de generalizações claras. Mas o ponto mais destacado de sua teoria
estética é o reconhecimento do fato de que conceitos como o de beleza têm seus usos peculiares.
Deste modo constituiu a estética como ramo de investigação filosófica independente. Por
exemplo, ao falar da linguagem da poesia, Baumgarten põe em claro que não podemos constreñir
todos os usos da linguagem na mesma forma e os interpretar do mesmo modo. Na poesia as
palavras ficam, por assim o dizer, saturadas de conteúdo sensível: “a linguagem perfeita do
sentido”, escreve Baumgarten nas Meditações, “é a poesia”.[218] A linguagem da poesia tem que
se diferenciar do da ciência física, por exemplo. As palavras não funcionam da mesma maneira.
Mas disso não se segue que os enunciados poéticos sejam sinsentidos. Expressam e evocam
intuiciones vivas que não são irracionais, senão que possuem sua própria analogia de razão.
Segundo a frase de Baumgarten, têm “vida de conhecimento” (vita cognitionis).

Desde depois que não há que exagerar a importância de Baumgarten. Em primeiro lugar,
não é verdade que seja “o pai da estética”. Por não nos remontar mais atrás na história,
Shaftesbury e Hutcheson, por exemplo, escrevia já na Inglaterra a respeito desse tema. Em
segundo local, em frente ao elogio desmesurado às vezes dado a sua obra, há que recordar, como
antídoto, a frase de Benedetto Croce segundo a qual “salvo em seu título e em suas primeiras
definições, a Estética de Baumgarten está configurada pela forma da antigüedad e o local
comum”.[219] Todo isso, empero, não tem de bastar para negar sua importância no
desenvolvimento da teoria estética na Alemanha. E também é indudable, como observa o mesmo
Croce, que Baumgarten tem importância na história da estética como “ciência em formação...
da estética condenda, não condita”.[220] Pois Baumgarten reconheceu ao menos que há uma
investigação que é a filosofia da estética, e, ademais, que a linguagem da estética tem suas
particularidades. Sem dúvida interpretou o tema à luz da filosofia de Wolff; e pode-se-lhe criticar
um intelectualismo excessivo para o tema, por exemplo, o uso de expressões relativas ao
conhecimento e à verdade. Mas o importante é que Baumgarten notou a inadecuación de uma
interpretação puramente racionalista da intuición e o desfrute estéticos, e que preparou o
caminho para um desenvolvimento ulterior da teoria estética. Quaisquer que seja as
insuficiencias de Baumgarten, este filósofo viu que há uma feição da vida e da atividade
humanas que é objeto adequado da consideração filosófica, mas que não pode ser entendido por
ninguém que se empenhe em levar à esfera do pensamento lógico abstrato, baixo pena de uma
completa exclusão da filosofia.

O discípulo de Baumgarten Georg Friedrich Meier (1718-1777) expôs as doutrinas de seu


maestro em Ache e publicou uns Anfangsgründe aller schönen Wissenschaften (Princípios
iniciais de todas as ciências belas) em três volumes (1748-1750), bem como umas Betrachtungen
über dêem ersten Grundsätzen aller schönen Künste und Wissenschaften (Considerações a
respeito dos primeiros princípios de todas as artes e ciências belas) em 1757. Também Moses
Mendelssohn (1729-1786), do que se voltará a falar no capítulo seguinte, esteve baixo a
influência de Baumgarten pelo que faz à teoria estética. Mas não tem interesse dar aqui uma lista
de nomes. Baste com dizer que a segunda metade do século XVIII viu uma verdadeira floração
de escritos de estética. Em seu Conspecto da história e a bibliografía do estético J. Koller
afirmava em 1799 que a juventude patriótica podia observar comprazida que Alemanha produziu
envelope este tema mais bibliografía que outro país algum.

Atendamos agora aos oponentes e críticos de Wolff. Convém citar antes de mais nada a
Joachim Lange (1670-1744), de Ache, um das personagens mais ativas e eficazes dentre os que
conseguiram a expulsión de Wolff daquela universidade em nome da ortodoxia religiosa e a
piedade. Bem mais profundamente filosófico como pensador foi Andreas Rüdiger (1673-1731),
que ensinou nas universidades de Ache e Leipzig e atacou a noção de que o método matemático
pode ser aplicado em filosofia. A matemática ocupa-se da esfera do possível, enquanto a
filosofia interessa-se pelo atual. Portanto, o filósofo tem de basear no fundamento da
experiência, o qual nos é dado na percepción sensível e na autoconsciencia. Dessas fontes tem
de obter o filósofo suas definições fundamentais e os axiomas nos que fundamentar seu
razonamiento. Rüdiger opôs-se também a outras doutrinas caraterísticas da tradição de Wolff e
de Leibniz, por exemplo e señaladamente à doutrina da harmonia preestablecida entre o corpo e
a alma. Sua tese é que o alma é extensa e há uma interação física entre ela e o corpo.

Outro contrincante de Wolff que vale a pena considerar é Christian August Crusius (1715-
1775), professor de filosofia e de teología na Universidade de Leipzig. Crusius atacou em
general o otimismo e o determinismo característicos da filosofia de Leibniz e de Wolff. Não
podemos interpretar o sistema do mundo como um sistema de harmonia preestablecida, pois se
opõe a isso o fato de que no mundo há seres livres, a saber, os homens. Crusius critica ademais
o uso que Leibniz e Wolff fazem do princípio de razão suficiente, embora a crítica não lhe
impede pôr em local daquele outro princípio escogitado por ele mesmo, a saber, a proposição
de que o que não pode ser pensado é falso e aquilo do que não pode ser pensado que seja falso
é verdadeiro.[221] Desta instructiva proposição deduze mais três princípios: o princípio de não
contradição, que nada pode ser e não ser ao mesmo tempo; o princípio dos inseparáveis, que
aquelas coisas que não podem ser pensado separadamente não podem existir separadamente; e
o princípio dos incompatíveis, que aquelas coisas que não podem ser pensado juntas não podem
existir juntas. Como é óbvio, Crusius não se opunha em realidade ao espírito da filosofia
wolffiana, embora a seus contemporâneos parecesse um contrincante de Wolff pelo fato de ter
recusado algumas das teses caraterísticas deste. Dito seja de passagem, Kant tinha boa opinião
de Crusius, embora criticou sua noção de metafísica.
Capítulo VI
O Iluminismo alemão - II

1. Observações introdutórias; Frederick o Grande; os “filósofos


populares”.

a) A filosofia de Wolff e de suas continuadores foi em verdadeiro sentido uma culminación


da Aufklärung alemã. Constituía algo bem como um programa para reunir todas as províncias
da atividade intelectual humana baixo a batuta da razão. Essa foi, por suposto, a razão que moveu
aos teólogos luteranos pietistas a se enfrentar com Wolff; pois pensaram que seu racionalismo
era inimigo da fé. O sistema de Wolff representou ademais a ascensão da classe média culta.
Assim, por exemplo, a razão tinha de julgar a respeito de que é e daí não é aceitável de por fé a
propósito de Deus; as convicções pessoais do monarca ou do soberano local não tinham de ser
o fator decisorio ao estabelecer a religião do povo. Do mesmo modo, o “gosto” e o julgamento
estéticos não são prerrogativa da aristocracia nem do gênio: a razão filosófica pode alargar seu
império até cobrir também o campo estético. É verdade que são relativamente poucos os que se
ocupam de filosofia; mas a razão mesma é universal. A fé, a moral, as forma do estado e do
governo, a estética, tudo está submetido ao julgamento impersonal da razão.

Essas feições da filosofia wolffiana e de seus derivados vinculam-na com o movimento geral
do Iluminismo. Mas ao mesmo tempo, e como vimos, o sistema de Wolff estava intimamente
relacionado com o pensamento de Leibniz e, portanto, com o movimento de metafísica
racionalista característico da filosofia postrenacentista do continente europeu. Deste modo
encontrava-se um tanto fosse do espírito do Iluminismo tal como este se manifestou na França
e na Inglaterra. Mas na fase da Aufklärung que será brevemente considerada neste capítulo se
acusa mais a influência do pensamento francês e inglês.

b) Dificilmente se encontrará símbolo dessa influência melhor que Frederick o Grande


(1712-1786). Educado por uma governanta e um tutor franceses, Frederick sentiu grande
entusiasmo pelo pensamento e a literatura franceses, junto de verdadeiro desprezo da literatura
alemã manifesto em sua preferência por falar e escrever em francês. É verdade que em
verdadeiro período simpatizó intensamente com as filosofias de Leibniz e de Wolff, e, como
vimos no capítulo anterior, restituiu a este sua cátedra de Ache. Frederick não sentia simpatia
alguma pelos teólogos que conseguia a expulsión de Wolff por Frederick Guillermo I. Pelo que
faz às crenças religiosas, o príncipe era tolerante, não só para com outros sistemas dogmáticos,
senão também para com o racionalismo, o agnosticismo e inclusive o ateísmo. O rei não podia
tolerar que um homem da eminencia de Wolff estivesse fosse de Prusia só porque não se aderia
ao pietismo. Mas com o tempo mudou a opinião que tinha de Wolff como pensador, e caiu baixo
a influência predominante do pensamento francês e inglês. Nos capítulos dedicados ao
Iluminismo Francês vimos como Frederick convidou a filósofos como Voltaire e Maupertuis a
Potsdam onde gostava de falar com eles a respeito de temas filosóficos e literários. Pelo que faz
ao pensamento inglês, apreciava muito a Locke, e dispôs que em Ache se dessem cursos sobre
sua filosofia.

Embora Frederick o Grande cria em Deus, tendia muito ao escepticismo, e apreciava


grandemente a Bayle. O rei era muito librepensador. Ao mesmo tempo sentia veneração por
Enquadramento Aurelio, o imperador estoico; e, como os estoicos, dava grande importância ao
sentimento do dever e à virtude. Assim em seu Ensaio a respeito do amor de si mesmo
considerado como princípio da, moral (1770) tentava mostrar que o amor de si mesmo não pode
ser satisfeito senão conseguindo e praticando a virtude, que é o verdadeiro bem do homem.

Tendo em conta os sucessos militares de Frederick, bem como seu conseguido propósito de
robustecer o estado político e militar de Prusia, um pode ser inclinado a contemplar ao “filósofo
de Sans Souci”, como gostava de se chamar a si mesmo, como se contempla a um cínico. Mas
seu elogio de Enquadramento Aurelio não era só cháchara vazia. Desde depois que não pode ser
retratado ao monarca prusiano como a um santo sem canonizar; mas não há dúvida de que
possuiu um agudo sentido do dever e de suas responsabilidades, de maneira que sua afirmação,
no Antimaquiavelo (1740), de que o príncipe tem de se considerar como o primeiro servidor do
povo estava pensada seriamente. Pode ter sido um déspota; mas um déspota iluminista que se
preocupava, por exemplo, de impor uma imparcial administração da justiça e de promover e
difundir a educação, desde a elementar até a reorganização e o desenvolvimento da Academia
Prusiana.[222] Seu interesse pela educação faz de Frederick uma das figuras rectoras do
Iluminismo alemão.

c) A difusão das ideias filosóficas na Alemanha viu-se favorecida pela obra dos chamados
“filósofos populares”, os quais, sem ser pensadores produtivos, conseguiram levar a filosofia ao
público educado. Christian Garve (1742-1798), por exemplo, traduziu ao alemão algumas obras
de moralistas ingleses como Ferguson, Paley e Adam Smith. Friedrich Justus Riedel (1742-
1785) contribuiu a difundir as ideias estéticas com sua Teoria das belas artes e ciências (1767),
que costuma se considerar como uma mera recopilación. Christian Friedrich Nicolai (1733-
1811) exerceu uma grande influência como diretor, primeiro da Bibliothek der schönen
Wissenschaften (1757-1758), depois das Briefe, die neueste Litteratur betreffend (1759-1765)
e, por último, da Allgemeine deutsche Bibliothek (1765-1805), revistas literárias que
conseguiram autofinanciarse. Também vale a pena citar, embora fosse muito escassamente
filósofo em sentido acadêmico, a Christoph Martin Wieland (1733-1813), pietista, literato e
poeta que traduziu ao alemão vinte e duas peças de Shakespeare e descreveu na novela
autobiográfica Agathon (1766) a história do desenvolvimento de um jovem através,
principalmente, das influências sucessivas de diferentes filosofias.

2. O deísmo: Reimarus; Mendelssohn.

Um dos efeitos da influência do pensamento inglês e o francês na Alemanha foi o


desenvolvimento do deísmo. Em 1741 apareceu em alemão a obra de Tindal Christianity as old
as the Creation, aparte de que já a princípios de século John Toland visitava durante algum
tempo os cortes de Hannover e Berlim.
a) Destaca entre os deístas alemães Hermann Samuel Reimarus (1694-1768), professor de
hebreu e línguas orientais no Instituto de Hamburgo. Sua obra principal foi uma Apologie oder
Schutzschriftt für die vernünftigen Verehrer Gottes (Apología ou escrito em defesa dos razoáveis
adoradores de Deus). Reimarus não publicou a obra, mas em 1774-1777 Lessing publicou
algumas partes dela baixo o título de Fragmentos de Wolffenbüttel. Lessing não dava o nome do
autor, senão que declarava ter encontrado ditos fragmentos na localidade de Wolffenbüttel.
Outra parte publicou-se em Berlim em 1786 baixo o pseudónimo de C. A. E. Schmidt, e outros
fragmentos mais apareceram em 1850-1852.

Reimarus opunha-se, por uma parte, ao mecanicismo puramente materialista. O mundo


assim que sistema inteligible é a autorrevelación de Deus; a ordem do mundo é inexplicable sem
Deus. Mas, por outro lado, Reimarus opunha-se determinadamente à religião sobrenatural. O
mundo mesmo é a revelação divina, e as demais supostas revelações são invenções humanas.
Ademais a ideia do mundo como sistema mecânico causalmente interconexo é o grande lucro
do pensamento moderno, e não podemos já aceitar a ideia de uma revelação divina sobrenatural
e milagrosa. Os milagres seriam indignos de Deus, pois Deus, realiza seus fins através de um
sistema racionalmente inteligible. Dito de outro modo, a teología natural de Reimarus segue o
habitual esquema deísta.

b) O filósofo hebreu Moses Mendelssohn (1729-1786), amigo de Lessing e corresponsal de


Kant, pode ser citado entre os “filósofos populares” porque contribuiu a popularizar as ideias
religiosas e filosóficas do Iluminismo. Mas é interessante também por suas próprias ideias.

Em 1755 Lessing e Mendelssohn publicaram um ensaio espetacularmente titulado Pope ein


Metaphysiker! (Pope metafísico!). A Academia Prusiana convocava um concurso a propósito
do suposto sistema filosófico de Pope, que segundo Maupertuis era um mero resumem da
filosofia leibniziana. (A intenção do concurso parece ter sido atacar indiretamente o prestígio de
Leibniz.) Mas Lessing e Mendelssohn sustentaram que Pope podia ter sido um poeta ou um
metafísico, mas não ambas coisas ao mesmo tempo, e que em realidade não tinha nenhum
sistema filosófico. A filosofia e a poesia são duas coisas completamente diferentes. Mendelssohn
expressou de um modo mais geral essa diferenciación entre o conceptual e o estético em seus
Briefe über die Empfindungen (Cartas a respeito das sensações, 1755), bem como em outros
escritos. Em sua quinta carta diz que há que distinguir entre a “Venus celeste”, que é a adequação
perfeita dos conceitos, e a “Venus terrenal”, ou beleza. A experiência da beleza não é um assunto
de conhecimento; não podemos aferraría por um processo de análise e definição. É errôneo
pensar que experimentaríamos mais perfeito desfrute estético se possuíssemos potências
cognoscitivas mais perfeitas. Também não é a beleza objeto de desejo. Pois na medida em que
algo é desejado deixa de ser, se é que alguma vez o tinha sido, objeto de contemplação e desfrute
estéticos. Mendelssohn postula, portanto, uma faculdade diferente à que chama “faculdade de
asentimiento” (Billigungsvermögen). Em seus Morgenstunden (7.ª) indica como signo especial
da beleza o ser contemplada com “prazer sereno” com independência de que a possuamos ou
não. Ao insistir assim no caráter desinteresado da contemplação estética Mendelssohn escrevia
em alguma medida baixo a influência da teoria estética inglesa.
Na esfera da religião Mendelssohn mantinha que a existência de Deus é suscetível de prova
estrita. Sua demonstração, tal como aparece nas Morgenstunden (Horas matutinas, 1785),
seguia mais ou menos as linhas do sistema de Wolff; e aceitava e defendia o argumento
ontológico. Deus é possível. Mas a pura possibilidade é incompatível com a ideia do ser mais
perfeito. Portanto, Deus existe.

Em seu Phädon oder über die Unsterblichkeit der Seele (Fedón, ou da imortalidade da alma,
1767), Mendelssohn tenta modernizar a Platón, e arguye que a alma não é nem mera harmonia
do corpo nem coisa corruptible que possa, por assim o dizer, desgastarse ou desaparecer. A alma
tem uma tendência natural e constante à autoperfección; e seria incompatível com a sabedoria
divina e com a bondade de Deus criar a alma humana com esse impulso e fazer impossível sua
satisfação permitindo que a alma recaia na nada.

Portanto, o filósofo pode provar a existência de Deus e a imortalidade da alma, ou seja, os


fundamentos da religião natural. Ao fazê-lo limita-se a dar justificativa teorética de verdades
que a alma humana reconhece espontaneamente por si mesma, ao menos de um modo confuso.
Mas isso não significa que o estado tenha direito a impor a aceitação uniforme de concretas
crenças religiosas. E nenhum corpo religioso que exija a seus membros uniformidade de crenças
pode invocar a ajuda do estado para atingir esse fim. O estado ocupa-se de ações, não de crenças.
E embora sem dúvida deve promover, na medida em que isso seja compatível com a liberdade
de pensamento, a formação de ideias que tendam a redundar em atividade desejável, não deve
alargar seu poder de coação passando da esfera da ação à do pensamento. A tolerância é o ideal,
embora, como observou Locke, não podemos tolerar aos que tentam substituir a tolerância pela
intolerância.

Mendelssohn viu-se envolvido em uma célebre disputa com Jacobi a respeito de Spinoza e
o panteísmo. Algo disso diremos na seção dedicada a Lessing, já que o debate se produziu em
relacionamento com o suposto spinozismo deste.

3. Lessing.

Ao ingressar na Universidade de Leipzig, Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) fê-lo


como estudante de teología. Mas cedo abandonou os estudos teológicos em favor de uma carreira
literária; e por suposto que é mais conhecido como dramaturgo e crítico de arte e literatura. Mas
também há que lhe reservar um local na história da filosofia. Pois embora nunca foi um filósofo
profissional e sistemático no sentido em que o foi Wolff, se interessava profundamente por
questões filosóficas, e suas ideias, pese a ser um tanto fragmentarias, tiveram uma influência
considerável. Mas mais importante que qualquer de suas teses ou ideias tomadas soltas é o fato
de que seus escritos tenderam a formar uma expressão literária unificada do espírito da
Aufklárung. Isso não quer dizer que suas obras refletam/reflitam simplesmente as ideias de
outros como um espelho. Em certa medida foi, efetivamente, assim. Por exemplo, Nathan der
Weise (Nathan o sábio, 1779) expressava em forma dramática o ideal da tolerância religiosa que
foi um rasgo destacado do Iluminismo. Mas ao mesmo tempo Lessing desenvolve inclusive as
ideias que toma de outros. Assim por exemplo, embora estava influído pelo deísmo de Reimarus,
o desenvolveu parcialmente baixo a inspiração de sua interpretação de Spinoza em um sentido
que recorda mais bem o que depois tinha de ser o idealismo que o que normalmente se entende
por deísmo.

Como já se disse, Lessing publicou algumas partes da obra principal de Reimarus baixo o
título de Fragmentos de Wolffenbüttel. Isto lhe acarretou os ataques de alguns, particularmente,
como era de esperar, de quantos, estando em desacordo com os Fragmentos, os acharam obra de
Lessing. Mas em realidade as ideias de Lessing a respeito da religião não coincidiam com as de
Reimarus. Este estava convencido de que as verdades fundamentais da religião natural são
estritamente demostrables, enquanto Lessing achava que nenhum sistema de crenças religiosas
é demostrable mediante argumentos universalmente válidos. A fé descansa na experiência
interna, não em provas teoréticas.

Também não coincidia Lessing com a atitude de Reimarus respecto das religiões dogmáticas
ou positivas. Não podemos aceitar a distinção radical feita pelos deístas racionalistas entre as
verdades da religião natural, que podem ser provado pela razão, e os dogmas da chamada religião
revelada, que têm de ser recusados pelos iluministas. Não é que Lessing aceite a ideia de
revelação no sentido ortodoxo. Recusava, por exemplo, a ideia de que a Biblia seja uma
revelação indiscutible, e até foi um adiantado da crítica bíblica que se ia pôr tão de moda durante
o século XIX. Mas estava convencido de que o valor das ideias e as crenças religiosas tem de
estimar por seu efeito na conduta, por sua capacidade de influir na conduta de um modo
desejável. O modo cristão de vida existia já não só dantes de que se fixasse o canon do Novo
Testamento, senão inclusive dantes de que se escrevesse evangelho algum. E a crítica dos
documentos não pode afetar ao valor desse modo de viver. Portanto, se todas as crenças
religiosas se baseiam em última instância na experiência, e se seu valor tem de se estimar
primariamente por sua tendência a promover a perfección moral, então tende a desdibujarse e a
desaparecer a distinção deísta entre as verdades racionalmente demostrables da religião natural
e os dogmas do cristianismo, feitos pelo homem. A interpretação dos dogmas cristãos por
Lessing não era a interpretação ortodoxa; mas, ao mesmo tempo, permitia-lhe dar uma
estimativa do cristianismo mais positiva que a que podiam emitir os deístas racionalistas.

Lessing, desde depois, não pensava que não tivesse nunca razões para preferir uma posição
religiosa ou filosófica a outra. Mas tratava-se para ele de uma questão de graus da verdade, de
uma infinita aproximação à verdade absoluta, e não da consecución, em um momento dado, de
uma verdade absoluta com validade última e universal. Este ponto de vista fica simbolizado por
sua famosa observação de que se Deus lhe oferecesse na mano direita a verdade completa e na
esquerda a busca infinita da verdade, escolheria isto último embora isso significasse que ia estar
sempre no erro. A posse da verdade pura e última é só de Deus.

Não é raro que essa atitude se tenha criticado desde vários pontos de vista. Por exemplo,
tem-se objetado muitas vezes que, dada sua negación de que o homem possa possuir uma
verdade absoluta e inmutable, Lessing não tem critério para distinguir entre graus para valer.
Pode, sem dúvida, manter que os graus para valer têm de estimar por sua tendência a promover
linhas de conduta diferentes. Mas então aparece inevitavelmente um problema na distinção entre
tipos de conduta mais ou menos desejáveis, entre o moral e o inmoral, etc. Não é possível entrar
em uma discussão detalhada desta questão. Basta com indicar de passagem que surgem esses
problemas O ponto de interesse em um esboço das ideias de Leibniz é mais bem a deslocação
que representam desde a atitude racionalista dos deístas para uma ideia “dinâmica”, por não
dizer fluída, da verdade. Esta ideia reaparecerá mais tarde em contextos muito diferentes do
pensamento de Lessing.

A ideia para valer de Lessing está intimamente relacionada com sua noção da história. Em
Die Erziehung dê Menschengeschlechts (A educação do gênero humano, 1780) afirma que “a
revelação é para o inteiro gênero humano o que a educação é para o ser humano individual”.[223]
A educação é revelação feita ao indivíduo, enquanto a revelação é a contínua educação do gênero
humano. Portanto, para Lessing revelação quer dizer educação divina da espécie humana na
história. É um processo que procedeu sempre, que segue discurriendo e que seguirá adiante no
futuro.

Ademais, a revelação, como educação do gênero humano em general, é análoga à educação


do indivíduo. O menino educa-se por médio de premio e castigos sensíveis. E na infância do
gênero humano Deus não pôde dar “mais religião nem lei que as impostas pela observancia ou
inobservancia do que Seu povo esperava ou temia como felicidade ou desgraça aqui na
terra”.[224] A infância do gênero humano corresponde, portanto, mais ou menos exatamente à
situação descrita no Velho Testamento. A essa fase segue a adolescencia ou juventude da
humanidade, que corresponde ao Novo Testamento. Aqui aparecem motivos da conduta moral
mais nobres que os castigos e os premio terrenales; pregam-se pois a imortalidade da alma e o
premio e o castigo eternos no para além. Ao mesmo tempo a concepção de Deus como o Deus
de Israel se desenvolve até dar na concepção do Pai universal; e o ideal da pureza interior de
coração como preparação da vida celeste substitui à obediência meramente externa à lei com a
intenção de conseguir a prosperidade temporária. É verdadeiro que os cristãos acrescentaram ao
ensino de Cristo especulações teológicas próprias; mas temos de reconhecer um valor positivo
nelas, pois estimularam o exercício da razão e através delas o homem se acostumou a pensar a
respeito de coisas espirituais. Lessing menciona e racionaliza alguns dogmas determinados; mas
o importante não é tanto que os racionalize quanto que veja neles um valor positivo. Neste ponto
Lessing preanuncia a Hegel em vez de recordar aos deístas. Por último chegará a idade adulta
do gênero humano. “Por verdadeiro que chegará o tempo de um novo evangelho eterno, que nos
foi prometido nos livros elementares da Nova Aliança.”[225] O termo “livros elementares” não é
polêmico. Para Lessing os livros do Velho Testamento são Elementarbücher em comparação
com o Novo Testamento, e os deste são a sua vez Elementarbücher em comparação com o
ulterior estádio da revelação divina. Neste terceiro estádio da revelação o homem fará o bem por
amor do bem mesmo, e não por premio algum, nem terrenal nem celestial. Assim, pois, Lessing
acentua a importância da educação moral do gênero humano. Esta educação é um processo
infinito, e Lessing sugere inclusive uma teoria da palingenesis ou reencarnación. Seria muito
dizer afirmar que formule a teoria; limita-se a sugerir em uma série de perguntas. “Por que a
cada ser humano não poderia estar presente senão uma vez neste mundo? É a hipótese ridícula
pelo fato de ser a mais antiga?... Por que não tenho de voltar tantas vezes quantas tenho estado
para adquirir novo conhecimento, novas capacidades?”[226]

Em 1783, Jacobi (cujas ideias se esboçarão no capítulo seguinte) escreveu a Mendelssohn


que ao visitar a Lessing pouco dantes de sua morte este lhe tinha dito abertamente que era
spinozista. A admissão era surpreendente para Jacobi, convencido de que o panteísmo é simples
ateísmo baixo outro nome. Mendelssohn não era panteísta, mas a carta de Jacobi lhe ofendeu,
pois a entendeu não já só como um ataque a Lessing, senão também como um ataque contra ele
mesmo, que estava preparando uma edição das obras daquele. Por isso atacou a sua vez a Jacobi
em uma de suas Horas matutinas, a raiz do qual Jacobi publicou uma réplica junto de sua
correspondência com Mendelssohn (1785). Herder e Goethe ficaram complicados na
controvérsia, e ambos desaprovaram a identificação por Jacobi da doutrina de Spínoza com o
ateísmo.

Lessing parece ter dito a Jacobi que a ideia ortodoxa de Deus não lhe era de nenhuma
utilidade, que Deus é um e tudo e que se podia ser considerado ele mesmo discípulo de alguém,
teria do ser de Spínoza. Embora admitamos a possibilidade de que Lessing quisesse escandalizar
a Jacobi, não há dúvida de que esteve baixo a influência de Spinoza nem de que reconhecia uma
afinidad entre suas ideias tardias a respeito de Deus e as do grande filósofo judeu. Lessing
achava, por exemplo, que as ações humanas estão determinadas. O mundo é um sistema cuja
causa universal última é Deus. Ademais, Lessing sugere claramente que todas as coisas estão
compreendidas no Ser divino. Basta para convencer-nos/convencê-nos disto com jogar um
vistazo às alíneas tituladas Da realidade das coisas fora de Deus, escritos para Mendelssohn.
Referindo à teoria de que as coisas existentes são diferentes das ideias divinas dessas coisas se
pergunta Lessing: “Por que as ideias que Deus tem das coisas reais não têm de ser essas coisas
reais mesmas?” Se objetará que de ser assim terá costure contingentes na essência inmutable de
Deus. Mais “não consideraram nunca, já que vos vêem obrigados a atribuir a Deus cria de coisas
contingentes, que as ideias de coisas contingentes são cria contingentes?” Sem dúvida Lessing
dá à individualidad bem mais valor que o que lhe dava Spinoza e, como vimos, acentua muito o
movimento da história para uma meta, a perfección moral. Deste modo suas teorias apontavam
em certa maneira ao posterior idealismo, com seu acentuación do desenvolvimento histórico, e
não à passada filosofia de Spinoza. Mas a questão não estriba em se Léssing interpreta
corretamente a Spinoza, senão em se há alguma verdade autobiográfica nas observações que fez
a Jacobi. E parece claro que a há.

Em verdadeiro sentido o Pantheismusstreit (a disputa do panteísmo) não foi muito


proveitosa. A questão de se o panteísmo é ateísmo baixo outro nome é das que se clarificam do
melhor modo por via de definição. Mas, por outra parte, a controvérsia estimulou o interesse
pela filosofia de Spinoza as ideias a respeito da qual eram vadias e inexactas.

No campo da teoria estética Lessing propôs-se no Laokoon (1766) analisar as caraterísticas


especificamente diferenciadoras da poesia e as artes plásticas, a pintura e a escultura. O grande
crítico Winckelmann (1717-1768) observava que o efeito artístico do grupo de Laocoonte no
Vaticano é o mesmo que produz a descrição por Virgilio da história correspondente na Eneida.
Lessing utiliza essa observação como ponto de partida. Já temos visto que traçava, em
relacionamento com Pope, uma distinção tajante entre a filosofia e a poesia. No Laocoonte
sustenta que a poesia se ocupa de Ja apresentação de ações humanas e da vida da alma através
delas. E por esta razão condenava a poesia pictoricamente descritiva. A escultura, em mudança,
ocupa-se da apresentação do corpo, particularmente da beleza somática ideal. Lessing tenta
ademais mostrar como os materiais utilizados pelas diversas artes determinam suas
caraterísticas.
Se a ação humana é o tema específico da poesia, isso pode ser afirmado ainda mais
categoricamente do drama, tema ao que Lessing prestou atenção na Hamburgische Dramaturgie
(1767-1769). Nesta obra fazia questão da unidade do drama, unidade que consiste
essencialmente na unidade de ação. Segundo Lessing, a Poética de Aristóteles, fruto de uma
reflexão sobre as grandes tragédias gregas, é “uma obra tão infalible como os Elementos de
Euclides” (Dramaturgia hamburguesa, último capítulo). Ao mesmo tempo atacava Lessing
energicamente a preocupação francesa pelas “três unidades”. Os franceses entendiam mau a
Aristóteles ao afirmar que as unidades de tempo e de local são caraterísticas essenciais do drama.
Se levassem razão, Shakespeare não seria um verdadeiro dramaturgo. Lessing aceitava também
a tese aristotélica de que o objeto da tragédia consiste em “ purgarnos de compaixão e medo”.
Ademais, Aristóteles tem razão ao ver na imitação a essência da arte. O drama imita as ações
humanas, e a tragédia imita ou apresenta uma unidade de ação humana de tal modo que o homem
se ennoblezca pela produção e a “purificación” das paixões de compaixão e temor. A tragédia
tem, pois, uma finalidade moral.

Estas observações desordenadas e em qualquer caso breves dão, certamente, uma imagem
muito inadequada de Lessing como escritor de teoria estética e crítico de arte. Lessing não foi
um pensador original no sentido de autor que propõe ideias novas em filosofia ou em teoria
estética. Neste último campo estava muito influído por autores franceses, ingleses e suíços e,
pelo que faz ao drama, muito influído por Aristóteles. Mas embora a maior parte de suas ideias
tem seu paralelo em algum outro local, Lessing tinha o dom de dar vida às ideias, e neste sentido
ao menos foi original e produtivo. No prólogo ao Laocoonte observa que "nós, os alemães, não
carecemos de livros sistemáticos”. Sua própria obra, acrescenta, pode não ser tão sistemática e
concisa como a de Baumgarten. Mas felicitava-se do fato de que enquanto Baumgarten admitia
ter tomado dos escritos de Gesner muitos dos exemplos citados em sua Estética, “meu próprio
exemplo tem mais sabor de fonte”. Ou seja: tal como podia ser esperado de um homem que era
ele mesmo dramaturgo e poeta. Lessing esforçou-se por basear suas reflexões estéticas na
consideração direta das obras da arte e a literatura. Por isso é indubitavelmente verdade que o
espírito de Lessing se aparta do formalismo e que, por grande que seja sua dependência respecto
de outros autores, apresenta suas ideias de um modo que estimula ulteriores reflexões, embora
discurran por outro caminho. O mesmo pode ser dito de suas observações nas esferas da
metafísica e da filosofia da história.

4. A psicologia.

O período da Aufklärung viu os começos do estudo da psicologia na Alemanha. Uma figura


importante neste terreno é Johann Nikolaus Tetens (1736-1807), professor de filosofia em Kiel
durante algum tempo. Em 1789 aceitou um convite para transladar-se a Copenhague.

A tendência geral do pensamento de Tetens consistia em mediar entre a filosofia empirista


da Inglaterra e a filosofia racionalista do continente. Não era em modo algum um antimetafísico.
Publicou obras de metafísica e estudos a respeito das provas da existência de Deus, afirmando a
possibilidade e a validade da metafísica e das argumentaciones metafísicas, embora ao mesmo
tempo esforçava-se por averiguar a razão pela qual são tão escassas as teses metafísicas
universalmente aceitadas. Mas fez questão de que o ponto de partida em psicologia não deve
constar "de orçamentos metafísicos, senão que deve ser a análise dos fenômenos psíquicos; logo
essa análise pode dar a base de reflexões metafísicas a respeito da alma. Este é um exemplo da
tendência mediadora à que acabamos de aludir.

A introspección é segundo Tetens a base da psicologia científica. Mas a alma não é


consciente de si mesma mais que em suas atividades, e só é consciente de suas atividades na
medida em que estas produzem fenômenos psíquicos. A alma não é objeto seu imediato de
intuición. Portanto, ao classificar as potências ou faculdades da alma e ao tentar determinar a
natureza da alma mesma como fundamento de suas atividades dependemos necessariamente de
hipóteses.

Junto do entendimento, a atividade da alma assim que pensa e produz imagens, e a vontade,
atividade pela qual a alma produz mudanças (movimentos do corpo, por exemplo) que não são
eles mesmos representações psíquicas, Tetens reconhece o sentimento como atividade diferente.
Assim podemos, pois, distinguir três potências da alma, o entendimento, a vontade e o
sentimento, o último dos quais se descreve como receptividad ou modificabilidad da alma. Mas
Tetens aponta a hipótese de que essas três capacidades sejam reducibles em última análise a uma
potência fundamental, a do sentimento e a autoactividad, capaz de aperfeiçoamento sucessivo.
A diferença entre o homem e os animais é particularmente visível na perfectibilidad da atividade
da alma.

Os Ensaios filosóficos a respeito da natureza humana e seu desenvolvimento (2 vols., 1777)


mostram a proposta predominantemente analítica da psicologia que é característico de Tetens.
O Ensaio sobre a alma (1753) de Karl Kasimir von Creuz (1724-1770) mostra uma atitude básica
diferente. Ao igual que Tetens mais tarde, von Creuz se esforçava por mediar entre as filosofias
inglesa e continental (Leibniz) da alma. E também, como Tetens, fazia questão do fundamento
empírico da psicologia. Interessava-lhe reconciliar a ideia leibniziana da alma como substância
simples ou mónada com a análise fenomenista do eu proposto por Hume. Von Creuz concedia
a Hume que não é possível descobrir um eu metafísico pontual, sem extensão. Mas ao mesmo
tempo negava-se a reconhecer que o eu possa ser dissolvido em fenômenos discretos separados.
Tem partes, e neste sentido é extenso. Mas suas partes não são separables. Essa inseparabilidad
das partes da alma distingue-a das coisas materiais e constitui uma razão para afirmar a
imortalidade da alma, embora os fundamentos últimos desta afirmação não podem ser achado
nessa argumentación, senão na revelação divina.

Tetens teve sem dúvida mais importância que von Creuz para o desenvolvimento da
psicologia. Como vimos, fazia questão da conveniência de uma proposta analítica preciso. Mas
ao mesmo tempo vinculava a psicologia analítica com uma filosofia geral da natureza humana
e de seu desenvolvimento, como o indica já o título de sua obra principal. Em sua opinião temos
de estudar não só, por exemplo, as origens das ideias humanas na experiência, senão também
todo o crescimento da vida intelectual até sua expressão nas diferentes, ciências. Seu insistencia
no sentimento como "faculdade” diferente apontava a um estudo da expressão da vida do
sentimento e da sensibilidade no mundo da arte e da literatura.

5. A teoria da educação.
A influência do Émile de Rousseau na teoria da educação em. Alemanha durante a época da
Aufklärung foi considerável. Experimentou-a, por exemplo, Johann Bernhard Basedow (1723-
1790), autor, entre outras obras pedagógicas, de um extenso volume titulado Elementarwerk
(Obra elementar, 1774), pensado como uma espécie de enciclopédia para maestros e texto para
pais e meninos. Mas embora Basedow foi estimulado pela ideia rousseauniana de uma educação
“natural”, sua teoria pedagógica não se complicava com orçamentos a respeito dos deletéreos
efeitos da civilização nos seres humanos. Assim podia propor como finalidade e objeto da
educação a preparação dos meninos para uma vida patriótica e feliz ao serviço do bem comum.
Em suas ideias a respeito dos métodos didáticos estava também influído por Comenius (1592-
1671), o autor da Grande Didática.

O estimulante efeito de Rousseau aprecia-se também no famoso pedagogo suíço Johann


Heinrich Pestalozzi (1746-1827), que influiu no desenvolvimento das Volksschulen ou escolas
populares (escolas elementares) alemãs. Mas em Pestalozzi, igual que em Basedow,
encontramos uma acentuación da educação para a vida social. Também dava grande importância
à educação na família e na comunidade rural, bem como à educação em general como
instrumento privilegiado da reforma social, sempre, naturalmente, que promova o
desenvolvimento moral, não só o intelectual.

Basedow foi durante algum tempo professor de filosofia moral; mas é difícil chamar filósofo
a Pestalozzi, e estaria fora de local o discutir aqui suas particulares ideias a respeito da
pedagogia, por famoso que seja seu nome na história da teoria da educação. Baste com observar
que o Iluminismo produziu seus teóricos da educação na Alemanha igual que nos demais países.
Na Inglaterra teve-se a Locke, na França a Rousseau, na Alemanha e Suíça a Basedow e
Pestalozzi. E a ideia da educação para a vida social, representada pelos dois últimos, era muito
concorde com a orientação geral do pensamento da Aufklärung.
Capítulo VII
A ruptura com o Iluminismo.

1. Hamann.

No ano da morte de Wolff cumpria vinte e quatro um homem de tipo muito diferente, Johann
Georg Hamann (1730-1788). Wolff era um grande sistematizador; Hamann não saberia que
fazer com sistemas filosóficos. Wolff representava a abstração e o poder da razão discursiva;
Hamann odiava o que considerava abstração unilateral e recusava a tiranía da razão discursiva.
Wolff aspirava a ideias claras e diferentes; Hamann escrevia sentenças de oráculo que
contribuíram a lhe acarretar o título de Mago do Norte. Dito de outro modo; Hamann enfrentou-
se com o racionalismo do Iluminismo, que representava para ele o poder do diabo, não o da
razão divina.

Nascido em Königsberg, Hamann era homem de caráter instável, passou de uma a outro
ramo dos estudos e de uma ocupação a outra, desde preceptor familiar até agente comercial. Em
uma ocasião em que se viu reduzido a pobreza extrema e profundo tormento do espírito se deu
ao estudo da Biblia e desenvolveu o pietismo radical que é característico de seus escritos.
Hamann era amigo de Herder e Jacobi, e teve também amistosos relacionamentos com Kant,
embora criticou energicamente a filosofia deste quando, já acordo de seu sonho dogmático,
começou a publicar suas Críticas.

Pode parecer que o Mago do Norte esteja fora de local em uma história da filosofia. Mas o
fato é que expressou, embora seja asistemática e exageradamente, ideias que foram caraterísticas
da reação contra o Iluminismo, e que sem dúvida exerceu uma influência considerável, embora
a que tivesse em Herder seja exagerada por alguns historiadores.

Uma das caraterísticas principais do antirracionalismo de Herder é seu fundamento religioso.


Tomemos, por exemplo, a controvérsia a respeito da linguagem. Contra a opinião racionalista
de que o homem inventou a linguagem, como se este fosse uma espécie de produto mecânico,
Herder sustentou que a linguagem é coetáneo com a espécie humana, Hamann foi sempre desta
mesma opinião. Mas não lhe bastava com dizer que a linguagem não é uma invenção artificial
da razão humana, para lhe atribuir depois alguma causa ou algumas causas empíricas. Em sua
opinião a linguagem era, de algum misterioso modo, comunicação de Deus, revelação divina.
Também estava Hamann convencido de que a poesia não é produto da razão. Tal como diz em
seu Aesthetica in Nuce (contida nas Cruzadas de um filólogo, 1762) a poesia é a língua materna
da humanidade. A linguagem dos homens primitivos era sensação e paixão, e não entendiam
mais que as imagens. Expressavam-se mediante a música, o canto e a poesia. Ademais, a grande
poesia não é o produto de uma razão superior; não há que a atribuir a uma grande capacidade de
compreender e observar normas. Homero e Shakespeare criaram suas obras graças ao gênio, não
mediante a aplicação de regras intelectualmente descobertas. Mais que é o gênio? O gênio é um
profeta cuja inspiração é divina. A linguagem e as artes são produtos da revelação.

Sem dúvida é possível dar a esses enunciados uma interpretação singela e de sentido comum.
Por exemplo, como observou Goethe, é verdade que Deus fez ao homem, e se a linguagem é
natural ao homem assim que se diferencia dos animais, então é verdade que Deus fez a
linguagem. Analogamente, todo teísta (ou panteísta, que para este caso é o mesmo) estará
disposto a atribuir gênio à faz criadora de Deus. Mas Hamann expressava-se em um estilo de
oráculo com tons místicos, o que sugere que estava pensando em algo mais que nessas paráfrasis
razoáveis, embora seja difícil precisar de que se tratava.[227] Em qualquer caso, não lhe satisfazia
o insistir, por exemplo, no caráter natural da linguagem humana e separar da ideia de um invento
racional; insistia ademais em sua origem divina.

Também não bastava-lhe, por outra parte, com atacar a tiranía da razão discursiva e sua
pretendida concorrência universal, nem com abrir um local na vida humana à fé em Deus e na
revelação divina. Seu pietismo conduzia-lhe a desprezar a razão e comprazer-se em restringir
seu poder. É significativo que afirme a existência do gênio poético, mas não do gênio científico.
Não podemos chamar gênios aos grandes cientistas. Pois trabalham com a razão, e a razão não
é órgão de inspiração. Pelo que faz à esfera religiosa, não se trata só de que a teología natural de
Wolff seja inadequada; é que há que a destruir em nome da fé. Embora a concepção da história
por Hamann como comentário à palavra ou autoexpresión de Deus influiu muito em Herder, o
primeiro ficou muito desconcertado pelo fato de que o segundo utilizasse fontes profanas e
tentasse aplicar um método científico em seus estudos históricos. Para Hamann a história, ao
igual que as Escrituras, possui um sentido interno místico ou “verdadeiro” que é revelado por
Deus, não descoberto pelo paciente e incansable esforço da razão. Dito de outro modo: Hamann
tende a aplicar ao entendimento da história a concepção protestante do sentido verdadeiro da
Escritura, revelado pelo Espírito Santo ao crente individual silencioso e orante. A exégesis
profunda, da Biblia ou da história, é assunto só de Deus.

De todos modos, não podemos despachar a Hamann como mero pietista que se merece
alguma consideração do filósofo a deve só ao fato de que há que prestar também atenção ao
contrincante. Sua noção da história como revelação divina, como obra da divina providência,
compartilhada por Herder, ia ter considerável importância pouco depois. Pois essa noção,
traspuesta, certamente, a um sistema de filosofia especulativa que pareceria a Hamann uma
intolerável manifestação de racionalismo, ia ser um elemento integrante da filosofia hegeliana
da história. Ademais, o antirracionalismo de Hamann ia junto de um desgosto pela abstração
que não era produto do mero preconceito. Vale a pena aludir brevemente a este tema.

Goethe observou[228] que as afirmações de Hamann podem ser reduzido ao princípio de que
todo o que o homem tenta fazer, já seja pela palavra, pelos atos ou de qualquer outro modo,
nasce da potência total, unida, da personalidade. Desde o princípio foi o homem poeta, músico,
pensador e adorador ao mesmo tempo. Os racionalistas do Iluminismo tinham hipostasiado, na
opinião de Hamann, a razão, falando dela e de seus lucros como se fossem algo independente e
como se o ideal da vida humana consistisse na conquista de todas as esferas pela razão. Deste
modo tenderam a dar ao homem uma concepção falsa de si mesmo e de suas atividades.
Abstrajeron uma função da atividade do homem e converteram-na no tudo.

Esta hostilidade para com o que considera abstrações falsas ou unilaterais é manifesta na
crítica de Hamann à primeira Crítica de Kant. Em seu Metacrítica do purismo da razão pura[229]
Hamann atacava as separações kantianas de razão, entendimento e sentido e de forma e matéria
na sensação e a conceptualización. Kant trabalha com abstrações. Sem dúvida há, por exemplo,
uma atividade chamada “razonamiento”; mas não existem “a razão” nem “o entendimento". Há,
simplesmente, atividades diferentes realizadas por um ser, um organismo, uma pessoa. É
evidente que, embora sua crítica não possa ser uma destruição da Crítica da razão pura, Hamann
está dizendo algo sério. Algo que muitas vezes se diz também em outros contextos e por filósofos
cuja concepção geral está bem longe da do Mago do Norte.

2. Herder.

Hamann opunha-se claramente ao racionalismo do Iluminismo. Com Herder encontramos


um homem que partiu do ponto de vista da Aufklärung (na medida em que esteja justificado
falar “do” ponto de vista em questão) e saiu por si mesmo dele. Razão pela qual embora os
historiadores possam ter perfeita razão para falar da ruptura de Herder com o Iluminismo,
também é possível ver nesse processo um desenvolvimento de certas linhas de pensamento
dentro do movimento iluminista. A maneira de descrevê-lo dependerá do modo como definamos
certos termos. Se entendemos por Iluminismo o racionalismo wolffiano e o individualismo de
alguns pensadores, é óbvio que Herder rompeu com a Aufklärung. Mas se damos ao termo uma
significação mais ampla, incluindo nele os primeiros gérmenes ou sementes de atitudes às que
Herder deu expressão, a palavra “ruptura* parecerá exagerada. Mas, de todos modos, a coisa
fica mais clara se se segue a prática tradicional e se apresenta a Herder como um pensador que
reage contra o Iluminismo e rompe com ele.

Johann Gottfried Herder (1744-1803) nasceu em Mohrungen, na Prusia Oriental; era filho
de um maestro pietista. Em 1762 entrou como estudante de medicina na Universidade de
Königsberg, embora em seguida passou a teología. Assistiu às classes de Kant, que estava então
expondo a filosofia de Wolff e dando cursos de astronomia e geografia. Kant introduziu-lhe à
leitura de Rousseau e Hume. Em Königsberg entabló também Herder amizade com Hamann,
embora é difícil que já então lhe influísse profundamente sua antirracionalista amigo. Pois
quando se transladou a Riga em 1764 seguiu escrevendo ensaios e resenhas para órgãos
iluministas. Em 1765 foi ordenado pastor protestante.

Ao ano seguinte apareciam anonimamente em Leipzig as duas primeiras partes de Über die
neuere deutsche Literatur: Fragmente (Sobre a recente literatura alemã: fragmentos). A obra
leva a data de 1767, que é quando se completou. Em seu curso discute Herder problemas
referentes à linguagem, tema que ocupou grande parte de seu pensamento. Ao igual que
Mendelssohn e Lessing, fazia questão de uma distinção entre linguagem poética e linguagem
científica (filosófico em sua terminología). Mas a distinção tinha um fundamento genético ou
histórico. Herder distingue quatro estádios de desenvolvimento linguístico, classificados
segundo uma analogia com o desenvolvimento humano, analogia sugerida por Rousseau.
Primeiro vem a infância, estádio no qual a linguagem consta de signos de paixão e sentimento.
Depois vem o período da juventude, idade poética da linguagem, na qual a poesia e o canto são
o mesmo. Em terceiro local tem-se o estado adulto o qual, embora segue possuindo poesia, se
carateriza pelo desenvolvimento da prosa. Em quarto local; por último, tem-se a velhice da
linguagem, a idade filosófica, na qual a vida e a riqueza se sacrificam à exatidão pedante.

O contexto da teoria da linguagem de Herder é a discussão a respeito da língua alemã. Não


podemos entrar aqui nos detalhes dessa discussão. Baste com dizer que Herder, por causa de seu
insistencia na diferença entre linguagem poética e linguagem filosófico, recusou a noção de que
o que precisava a poesia alemã era clareza lógica. Essa ideia era proposta, por exemplo, por J.
G. Sulzer (1720-1779), para o qual os poetas são mediadores entre a filosofia especulativa e o
povo. Herder recusou também a ideia de que a língua alemã tivesse que aperfeiçoar mediante a
imitação da literatura estrangeira. A poesia alemã pode ser grande se cresce a partir da poesia
espontânea do povo e se é fruto do gênio nacional. Mais tarde Herder contribuiria muito a
promover uma renascença do interesse pela poesia popular. Com esta atitude opunha-se aos
pensadores da Aufklärung que desprezavam a linguagem alemão e pensavam que a única
esperança da literatura alemã era a “imitação”.

Todo isso pode parecer de pouca monta para a filosofia. Mas é interessante observar que
Herder (e não só ele, desde depois) distinguia entre diversos tipos de linguagem. Ademais via
que a questão do uso é de grande importância. Se estudamos as origens dos diferentes tipos de
linguagem, é porque queremos examinar, diz Herder, seus usos de um modo mais exato. Os usos
da linguagem são um tema muito discutido na filosofia inglesa do século XX. A insistencia de
Herder no alemão e na poesia espontânea do povo como base de uma literatura poética
desenvolvida pode ser considerado também como um estádio inicial no desenvolvimento de sua
posterior filosofia da cultura e da história, a qual acentua o desenvolvimento das culturas
nacionais consideradas como totalidades nas quais as linguagens têm uma função de importância
extrema.

Em seus Kritische Wälder (Selvas críticas, 1769) Herder tomada como ponto de partida o
Laocoonte de Lessing, embora tem em conta outros autores aparte de Lessing, ao que reconhece
como destacado dramaturgo. Nessa obra toca Herder uma grande variedade de questões,
distingue, por exemplo, entre a escultura e a pintura e arguye que embora Homero foi sem dúvida
o maior poeta grego, as criações de seu gênio poético estiveram condicionadas historicamente,
e que seus métodos não podem ser tomado por normas. Isto é para nós completamente óbvio;
mas o ponto de vista de Herder é importante porque representa uma feição de seu sentido do
desenvolvimento histórico e de seu recusación da crítica e a teoria puramente abstratas e
racionalistas.

Na quarta parte das Selvas, que .não se publicou até após sua morte, Herder submetia a aguda
crítica as ideias de Friedrich Justus Riedel (1742-1786), autor de uma Teoria das belas artes e
ciências (1767). Riedel afirmava a existência de três faculdades fundamentais do espírito — o
sentido comum, a consciência e o gosto — correspondentes a três absolutos, a verdade, o bem e
a beleza. Herder sustenta, por exemplo, que é absurdo supor que tenha uma faculdade chamada
“sentido comum” pela qual o homem possa captar a verdade absoluta de um modo imediato e
sem processo de razonamiento. Noções antiwolffianas desta natureza obrigariam a voltar, à
filosofia de Wolff se esta parecesse admissível. E a tese de uma faculdade do gosto, com sua
consequência de que todo o que gosta é formoso ou, pelo menos, que o que gosta ao maior
número de pessoas é o mais formoso, resulta um absurdo. Bem mais acertado estava Baumgarten
ao distinguir entre a lógica e a estética, mas mantendo ao mesmo tempo que pode e deve ter uma
ciência da estética, uma ciência da sensação que seria uma parte importante da filosofia do
homem. Para Herder a estética deveria examinar a lógica da simbolización artística. Ao igual
que Baumgarten via que é necessário distinguir entre a estética por um lado e a lógica abstrata
e a ciência por outro; mas sua proposta era mais histórica. O que se precisa é uma análise
histórica das diferentes culturas e do desenvolvimento e a natureza de seus respetivos ideais
estéticos. Mas, ainda recusando a teoria de Riedel a respeito de uma faculdade universal do gosto
que correspondesse ao absolutamente formoso, Herder vacila em sua discussão do tema da
beleza absoluta. Pode parecer que sua ideia de uma proposta histórica, com suas correspondentes
investigações psicológicas e fisiológicas, tivesse de levar a uma concepção relativista da beleza;
e efetivamente Herder entende que a beleza artística é relativa às diferentes culturas e aos
diferentes períodos dessas culturas. Mas ao mesmo tempo parece afirmar que seria impossível
achar um denominador comum mediante a só proposta histórica. Pois uma proposta histórica
não significa meramente o registro de diferentes concepções da beleza artística, senão também
um exame dos fatores psicológicos, fisiológicos e ambientais que determinam aquelas
concepções. É verdade que o próprio Riedel defendia uma proposta psicológica da estética,
utilizando a psicologia de Johann Georg Darjes (1714-1791), um autor influído pela psicologia
das faculdades de Crusius. Mas a tese de Herder é que a proposta psicológica tem que se integrar
em outro histórico. Não podemos cortar pelo são postulando uma faculdade sempre uniforme
em suas operações em todas as culturas e que seja correlativa a um ideal absoluto, universal e
inmutable.

Em 1769 Herder demitiu de seu cargo de pastor em Riga e pôs-se em viagem até Nantes, de
ali passou a Paris e de Paris a Estrasburgo, onde coincidiu com o jovem Goethe (1770-1771). O
fruto literário daquele tempo foi seu Diário de viagem. Esta obra, que não se destinava à
publicação, é de importância considerável, porque manifesta uma mudança no pensamento de
seu autor. Este expressa retrospectivamente seu descontentamento com os mortos detalhes
técnicos da crítica estética, descreve suas Selvas críticas como inúteis, grosseiras e pobres, e
lamenta não se ter dado ao estudo do francês, das ciências naturais e da história, ou seja, à
aquisição de conhecimento positivo do mundo e do homem. Se tivesse-o feito assim, diz, não se
teria convertido em um depósito de letra impressa. E olhando para o futuro prevê um novo tipo
de escola e de educação no qual o menino, mediante sucessivos estádios de familiarização com
seu ambiente natural, mediante uma apresentação concreta da geografia, a etnografía, a física e
a história, chegue até o estudo sistemático e mais abstrato dessas ciências. O método seria, pois,
inductivo, procedendo do concreto ao abstrato, de tal modo que as ideias abstratas se fundassem
em experiência. A educação religiosa e moral seria, desde depois, uma parte do plano geral. E o
resultado ao que se aspiraria seria o desenvolvimento de uma personalidade humana plena e
equilibrada. O pensamento do Herder do Diário de viagem está, pois, dominado pelas ideias de
conhecimento positivo e de educação.

Em Estrasburgo Herder conseguiu comunicar a Goethe algo de seu próprio interesse e de


sua estima pela poesia popular e a herança cultural nacional. Escreveu então seu Abhandlung
über dêem Ursprung der Sprache (Tratado envelope a origem da linguagem). Terminado no
final de 1770, conseguiu a princípios de 1771 um premio oferecido pela Academia de Berlim.
Recusando as teses extremas e opostas da origem divina da linguagem e sua “invenção”, Herder
faz questão de que a questão da origem da linguagem, na medida em que faz sentido, não pode
ser resolvido senão envelope o banco de dados empíricos referentes ao desenvolvimento e o uso
ou os usos da língua, e que não pode ser limpado mediante enunciados dogmáticos e teorias a
priori. Na discussão Herder ataca a psicologia das faculdades, sustenta que linguagem primitiva
e poesia primitiva eram o mesmo e sublinha a função social da poesia.

Herder não estava a seu gosto em Estrasburgo. Em 1771 passou a Bückeburg como capellán
do conde de Schaumburg-Lippe. Estimulado pela fantasiosa criação ossiánica de James
Macpherson interveio em um volume titulado Von deutscher Art und Kunst (Do modo de ser e
a arte alemães, 1773) com um ensaio sobre Ossian e a poesia popular e outro envelope
Shakespeare. Nesta época Herder estava já em rebeldia contra as ideias típicas do Iluminismo
segundo os quais o Iluminismo mesmo era a culminação suprema do desenvolvimento histórico
e a classe média praticamente a única fonte de razoáveis luzes. Também afirmava que os grandes
sistemas racionalistas de Descarte, Spinoza, Leibniz e outros eram ficções poéticas, e
acrescentava que a poesia de Berkeley era superior e mais fundada. Não pode surpreender que
Herder completasse por então sua ruptura com o Iluminismo, ruptura simbolizada por Auch eine
Philosophie der Geschichte (Outra filosofia da história, 1774).

Nesta obra expõe Herder as sucessivas idades da humanidade, desde a Idade de Ouro de sua
infância. Mas o esquema não pretende ser tomado completamente em sério, como se desprende
do fato de que Herder afirma redondamente que quando um descreveu uma inteira idade ou um
povo inteiro não fez mais que acuñar uma palavra genérica. As caracterização gerais são
intrinsecamente débis. Há efetivamente muita ironia na exposição das idades históricas por
Herder. Diz de Roma que representa a idade adulta da espécie humana, com a consequência de
que no século XVIII, tão elogiado pelos homens do Iluminismo, representa então a senilidad. E
Herder não vacila em chamar a atenção sobre a vaciedad de algumas das pretensões do século
XVIII. Por exemplo embora é verdade que os iluministas formaram e expresso ideias e
princípios sublimes, não é menos verdadeiro que se debilitaram a inclinação e os impulsos que
possibilitam uma vida nobre e generosa. A Europa ilustrada orgulha-se de sua liberdade, mas
silencia-se a invisível escravatura das classes, e exportam-se a outros continentes os vícios da
Europa.

Mais importante que o ataque de Herder à complacencia dos homens do Iluminismo é, desde
um ponto de vista filosófico, seu ataque à historiografía ilustrada. Os iluministas acercam-se à
história com o orçamento de que ela tem de representar um movimento ascendente desde o
misticismo religioso e a superstição para uma moralidade livre e irreligiosa. Mas se estudamos
a história à luz desses orçamentos, jamais conseguiremos entender sua realidade concreta.
Temos de estudar a cada cultura e a cada fase dela por seu próprio interesse, tentando entrar em
sua complexa vida e a entender, dentro do possível, desde dentro, sem julgamentos de valor e
sem estimar seu maior ou menor felicidade. A cada nação, diz Herder, leva consigo sua própria
felicidade, e o mesmo pode ser dito da cada período do desenvolvimento da cada nação. Não
podemos dizer de um modo geral que a juventude seja mais feliz que a infância nem que a idade
provecta seja mais desgraçada que a juventude. Nem podemos fazer legitimamente
generalizações análogas a respeito das nações no curso de seu desenvolvimento.
Há sem dúvida verdadeiro historicismo nesta atitude. Mas Herder insiste claramente em uma
verdade importante, a saber, que para entender realmente o desenvolvimento histórico do
homem há que se abster de forçar os dados históricos recortando no leito de Procusto de um
esquema preconcebido. A coisa parece-nos hoje completamente óbvia, mas, dada a tendência
geral do Iluminismo a utilizar a história para provar uma tese, e uma tese discutible, ademais, a
formulación de Herder não era em modo algum uma perogrullada no momento em que ele a fez.

Em 1776 Herder transladou-se de Bückeburg a Weimar, onde recebeu a nomeação de


Superintendente Geral, ou seja, de cabeça do clero luterano. Em 1778 publicou um ensaio Vom
Erkennen und Empfinden der menschlichen Seele (Do conhecer e sentir da alma humana) no
que expressava a opinião de que não é possível uma psicologia que não seja fisiología à cada
passo. Essa tese é curiosamente conductista, embora em fisiología Herder postulaba uma força
vital. Também escreveu extensamente a respeito de temas literários, como a poesia popular e
sua importância cultural, ou questões teológicas, e a propósito de certos livros da Biblia e do
espírito da poesia hebréia. Mas a obra capital deste período são seus Criem sul Philosophie der
Geschichte der Menschheit (Ideias para a filosofia da história da humanidade) que apareceram
em quatro partes entre 1784 e 1791; a redação interrompeu-se por uma viagem a Itália (1788-
1789). A projetada quinta parte não chegou a se escrever. Como me proponho discutir as Ideias
mais adiante, em um capítulo dedicado ao nascimento da filosofia da história, não direi aqui
nada a respeito de seu conteúdo.

No período que vai de 1793 a 1797 apareceram as Briefe zur Beförderung der Humanität
(Cartas para a elevação da humanidade) que tratam uma ampla série de temas. Mais adiante,
em relacionamento com as Ideias, se mencionará um par de noções expressas nas Cartas. A
teoria geral da obra é que a “humanidade”, o caráter ideal da espécie, é innata em nós como
potencialidade ou predisposición, e que tem que se desenvolver por médio de uma educação
formativa. A finalidade da ciência, da arte e de toda outra instituição humana consiste em “
humanizar” ao homem, em desenvolver a perfección da “humanidade” nesse sentido. Herder
suscita a objeción de que esse desenvolvimento levaria à produção de um super-homem, de um
ser situado fora da espécie humana; mas responde dizendo que esse homem perfeito não seria
um super-homem, senão simplesmente a realização da “humanidade”. Podemos observar que os
ideais educativos de Herder ultrapassaram o estádio da teoria, pois ele mesmo planejou e
realizou na medida em que pôde o fazer uma reforma da educação no ducado de Weimar.

Durante seus últimos anos Herder publicou uns quantos trabalhos de teología,
particularmente os Escritos cristãos (1794-1798), os quais são em general surpreendentemente
racionalistas, bem mais próprios de um iluminista que de um amigo de Hamann. Também
escreveu contra a filosofia crítica de Kant, que condenava energicamente. Em 1799 publicou
uma Metacrítica da Crítica da razão pura, na que apresenta a obra de Kant como um puro jogo
de palavras, uma monstruosidad linguística e uma desorientada eternización da psicologia das
faculdades. Não se ache que a crítica de Herder é escassa de entendimento. Baseia-se, pelo
contrário, em um razonado exame das teorias de Kant. Contra a teoria kantiana do caráter
sintético das proposições matemáticas, por exemplo, Herder sustenta que são “idênticas”, ou
seja, que são o que Wittgenstein chamou “tautologías”. Herder recusa também a visão kantiana
do espaço e o tempo. O geómetra não analisa a forma a priori do espaço, porque não há tal
forma. E embora Herder não explica claramente que é o que analisa o geómetra, parece pensar
que o geómetra analisa os envolvimentos de seus próprios axiomas e postulados fundamentais.
Mas a explicação da matemática não é mais que um exemplo da crítica de Herder a Kant. Sua
principal ideia é que toda a empresa kantiana está mau concebida. Embora tivesse uma faculdade
sustantiva chamada “razão” estaria fora de local o falar de “ criticá-la”. Há que partir mais bem
da linguagem, pois o razonar se expressa só na linguagem e é ademais inseparável dele, embora
não seja coextensivo com todos seus usos. Segundo Herder o pensamento é linguagem interior,
enquanto falar em sentido corrente é pensar sonoramente. Não existe a entidade “razão”, senão
o processo, a atividade do homem como personalidade total, e a linguagem é um instrumento
indispensável deste processo, e se funde com ele. Por último, a Crítica da razão pura baseia-se
segundo Herder em uma psicologia errônea.

Em 1880 publicou Herder a Kalligone, crítica da Crítica do julgamento kantiana. Herder não
escreveu nenhuma crítica da segunda Crítica, mas não porque estivesse de acordo com ela.
Pensava escrevê-la, mas abandonou a ideia, em parte porqué lho desaconsejaron e em parte
também, e talvez sobretudo, porque estava dedicado a outro trabalho. empreendia a publicação
de uma nova revista literária, Adrastea (1800-1804), da que era o principal colaborador em
forma de ensaios e temas poéticos.[230] O quinto volume da revista contém entregas da tradução
alemã por Herder do Romancero do Cid (tradução do francês, compulsada com uma versão
castelhana tardia).

Herder morreu em Weimar o 18 de dezembro de 1803. O anterior resumem de sua vida


mostra que foi homem de interesses vários; e embora não foi um grande filósofo sistemático, foi
um escritor fecundo que teve grande influência na vida e o pensamento alemães. Tem-se-lhe
chamado maestro do movimento do Sturm und Drang; mas ademais influiu no posterior
movimento romântico, por seu insistencia na importância da poesia popular, por sua ideia da
importância da linguagem na cultura e no desenvolvimento da consciência estética, por sua ideia
da história como revelação divina e por seu defesa de Spinoza na controvérsia sobre o panteísmo.
A. W. Schlegel (1767-1845) e F. Schlegel (1772-1829) eram ambos deudores de Herder. Mas,
como observaram os historiadores da literatura alemã, o Herder que mais influiu no romantismo
foi o mais jovem, o rebelde contra o racionalismo do Iluminismo. Em seus últimos anos Herder
não podia competir no terreno literário com a influência de Goethe, inevitavelmente sentida
inclusive pelos escritores que discrepaban dele.[231]

3. Jacobi.

Mencionou-se a Jacobi já em relacionamento com a controvérsia sobre o panteísmo.


Friedrich Heinrich Jacobi (1743-1819), que chegou a ser presidente da Academia das Ciências
de Munich, era um filósofo da fé. Fazia questão do fato de que sua intenção não era construir
um sistema acadêmico de filosofia, senão que seus escritos eram expressão de sua vida interior
e de sua experiência, impostos, como ele mesmo dizia, por um poder superior e irresistible.

Jacobi estudava a Spinoza e em sua opinião a filosofia deste era o único sistema lógico. Pois
no processo de demonstração de verdades a razão humana só pode passar do condicionado ao
condicionado: não pode ser alçado acima do condicionado até uma Divinidad trascendente. Por
isso todas as demonstrações metafísicas de um fundamento último da existência têm de levar ao
monismo, à concepção de um sistema do mundo que equivale ao ateísmo, como sustentou Jacobi
em sua correspondência com Mendelssohn. Mas todo isso não quer dizer que tenha que aceitar
o spinozismo. Pelo contrário, há que o recusar em nome da fé, que é um assunto do ânimo
(Gemüt) e não da razão especulativa.

O resultado desta posição é, naturalmente, uma separação completa entre a filosofia e a


esfera da fé. Tentar demonstrar a existência de Deus equivale a tentar reduzir a Deus a um ser
condicionado; à longa, a metafísica especulativa tem que desembocar no ateísmo. Mais vale
reconhecer os serviços prestados por Hume ao destruir as pretensões da metafísica, sempre,
naturalmente, que atribuamos plena validade à fé. Do mesmo modo que não demonstrámos a
existência do mundo externo, senão que desfrutamos na percepción sensível uma intuición
imediata da existência dos objetos dos sentidos, assim também temos (ou podemos ter) uma
intuición imediata da realidade suprasensible, intuición à que chamamos "fé”. Em seus últimos
escritos Jacobi fala da razão superior (Vernunft, diferente do Verstand ou entendimento) pela
qual prendemos imediatamente a realidade suprasensible. Não podemos provar a existência de
Deus ao que a negue; mas com seu negación exclui-se ele mesmo de uma feição da experiência
humana. Ou, mais bem, sua negativa é um resultado de sua cegueira para todo o que não seja a
percepción do mundo corpóreo e o conhecimento dos relacionamentos entre coisas finitas. A luz
vem-nos da esfera da realidade suprasensible, mas assim que que tentamos aferraría por médio
da razão discursiva, junto do que ela faz visível para a razão superior ou intuitiva, essa luz
palidece e se apaga.

Em certa medida estava Jacobi de acordo com Kant. Achava, por exemplo, que, “o campo
do conhecimento — do conhecimento científico ou teórico — está limitado ao reino da
experiência possível, experiência no sentido do sensível, e concordava com Kant quanto à
incapacidade da razão para provar a existência de realidades suprasensibles. Nessa medida,
portanto, acolheu favoravelmente a filosofia crítica como um movimento que limpava o terreno
para a fé. Mas recusava a teoria kantiana dos postulados da razão prática. A crença em Deus,
por exemplo, não é um postulado prático, senão resultado da fé, de uma iluminação interna da
razão superior. Também recusava em Kant o que ele interpretava como fenomenismo. O que
percebemos não são fenômenos vinculados por forma subjetivas da intuición e por categorias
do entendimento; são as coisas reais mesmas. Insistia também na inmediatez da intuición moral,
ou sentido moral, em frente ao que considerava vazio formalismo da teoria kantiana do
imperativo categórico. Pode ser pensado que Jacobi interpretou mau a Kant; mas o interesse de
sua crítica da filosofia kantiana é que aceita essa filosofia na medida em que coincide com sua
ideia da incompetência da razão discursiva para trascender a esfera do sensível, e a recusa na
medida em que lhe parece excluir a aprehensión direta de Deus e dos valores morais. Há que
observar também que em opinião de Jacobi a doutrina kantiana da coisa em se é uma anomalía,
não no sentido de que não tenha realidades metafenoménicas, senão no de que para a filosofia
kantiana a afirmação de coisas em si não pode ser justificado mais que pelo princípio de
causalidad, e este, segundo o próprio Kant, é um princípio de fundamento subjetivo e só
aplicável a fenômenos.

4. Observações finais.

Temos visto que os três pensadores considerados neste capítulo não só se opuseram ao
racionalismo do Iluminismo senão que, ademais, submeteram a crítica a nova filosofia kantiana.
Mas o grande movimento do idealismo especulativo alemão da primeira metade do século XIX
arrancou precisamente de Kant. É verdade que muitas das objeciones suscitadas por aqueles
pensadores contra o kantismo foram compartilhadas pelos idealistas. Por exemplo, a objeción
de Jacobi segundo a qual a afirmação kantiana da coisa em si, tomada junto da doutrina kantiana
das categorias, situa a Kant em uma posição insostenible, foi uma tese recolhida por Fichte. Mas
a linha de desenvolvimento tomada pelo idealismo especulativo não foi em absoluto a que
aprovaria Hamann, Herder ou Jacobi. (Jacobi acusou a Schelling de tentar ocultar as
consequências spinozistas de seu pensamento.) Neste sentido aqueles pensadores nadavam
contra uma corrente que ia resultar demasiado forte para eles. Também a ideia que Herder se
fazia da história como uma educação progressiva da humanidade e como manifestação da
providência, junto de sua insistencia na totalidade orgânica nas esferas cultural e psicológica e
contra a fragmentação analítica se incorporariam ao movimento idealista, especialmente no
sistema hegeliano. É verdade que também Hamann sustentava a noção da história como uma
espécie de comentário do logos divino. Mas suas fórmulas eram demasiado escuras para ter o
efeito das ideias de Herder. Por isso historicamente o mais importante dos três pensadores foi
Herder.

Pode ser pensado que deveríamos considerar esses três homens não só em relacionamento
com o ulterior desenvolvimento filosófico, senão por seus próprios méritos, reconhecendo que
realizaram uma útil tarefa ao chamar a atenção a respeito de feições da vida espiritual do homem
que o Iluminismo racionalista tendia a ignorar. Talvez seja justa essa objeción. Mas, por outra
parte, é difícil que o espírito humano fique satisfeito e tranquilo com o tipo de dicotomía entre
filosofia e fé que praticaram Hamann e Jacobi. Se, como sustentava Herder, a religião é uma
parte da cultura humana e não algo do qual deva ser desprendido o homem, como acharam
alguns iluministas, então o homem, ao tentar entender seu próprio desenvolvimento histórico,
tem de tentar entender também a religião. E esta é, por suposto, uma das coisas que tentou
Herder. Ao fazê-lo pôs a razão especulativa acima da inmediatez da fé, adotando assim uma
atitude contraria à de Hamann e Jacobi que estimulou depois a Kierkegaard a sua reafirmación
da fé. Assim temos a reação de Hamann e Jacobi contra o racionalismo do Iluminismo, e depois
a reação de Kierkegaard contra a forma hegeliana de racionalismo. Isto faz pensar que Hamann
e Jacobi no final do século XVIII[232] e Kierkegaard a princípios do XIX representam um fato
importante, o papel da fé na vida humana. Mas também sugere que faz falta uma síntese mais
satisfatória — racionalmente satisfatória — da fé e a filosofia, mais que a oferecida por esses
rebeldes contra um árido racionalismo ou contra um intelecto especulativo que tudo o absorvia.
Parte III
O nascimento da filosofia da história
Capítulo VIII
Bossuet e Vico

1. Observações preliminares: os gregos; San Agustín.

Segundo a afirmação de Aristóteles na Poética,[233] a poesia é mais filosófica e de maior


importância que a história, porque suas proposições são da natureza dos universais, enquanto as
da história são particulares.[234] A ciência e a filosofia atendem ao universal, enquanto a história
é a esfera do particular e contingente. A poesia não é, desde depois, filosofia nem ciência; mas
é “mais filosófica” que a história. Em realidade, Aristóteles formula enunciados gerais a respeito
de desenvolvimento histórico, enunciados que poderiam perfeitamente se classificar baixo o
rótulo de filosofia da história; Pois, ao igual que fazia já Platón, Aristóteles fala na Política das
várias classes de revolução que tendem a ocorrer baixo instituições diferentes, de suas causas,
dos meios para as impedir e das tendências que têm certos tipos de constituição a converter em
outros tipos. Mas essas observações são reflexões de tipo muito geral, das que o mesmo
historiador pode perfeitamente fazer ele mesmo. Em mudança, se por filosofia da história
entendemos uma visão total do desenvolvimento histórico tendente a mostrar que esse
desenvolvimento, tal como o conhecemos pela investigação histórica, segue um esquema
racional, cumpre algum plano ou ejemplifica algumas leis universais e necessárias, dificilmente
poderemos dizer que os gregos tenha filosofia da história. Sem dúvida contaram com
historiadores, como Tucídides, mas isto é outra questão. Também é verdade que entre os gregos
era corrente a ideia de volta cíclico da história universal, e que essa ideia pode perfeitamente se
considerar base de uma filosofia da história. Mas também não pode ser afirmado que os gregos
elaborassem essa ideia até fazer dela uma teoria. E se atendemos principalmente à tradição que
ao final resultou ser a dominante na filosofia grega, ou seja, a tradição platónica, achamos nela
uma tendência acusada a empequeñecer a importância do desenvolvimento histórico, tendência
relacionada, como é natural, com a insistencia platónica em que a realidade espiritual inmutable
é a esfera do verdadeiro ser, a diferença da esfera do devir. A expressão mais enérgica desta
tendência encontra-se provavelmente na obra de Plotino;[235] quando este descreve os
acaecimientos históricos como meros incidentes de um espetáculo que não tem nada que ver
com a vida interior, com a volta espiritual da alma a Deus, se não é assim que obstáculo. É
verdade que Plotino não sustrae a história ao poder da lei e da “providência”. Até pode ser dito
que sua visão da história humana pode ser entendido como uma filosofia da história, na medida
em que se relaciona intimamente com sua concepção filosófica geral; nesta medida é uma parte
de seu sistema, igual que foi parte do sistema filosófico dos estoicos a ideia da história cósmica
como uma série de ciclos. Mas Plotino tende a empequeñecer os acontecimentos aos que o
historiador dá máxima importância. E, em qualquer caso, não aparece nunca a ideia da história
humana em general como um desenvolvimento para uma meta atingida na história e pela
história.
A ideia da história como desenvolvimento progressivo para uma meta única, e não como
uma série de ciclos, é caraterística do pensamento judeu e cristão, não do pensamento grego.
Mas a íntima conexão dessa ideia com as doutrinas do Mesías no judaísmo e da Encarnación no
cristianismo, bem como com as doutrinas escatológicas feijões e cristãs, conduz a uma teoria do
desenvolvimento histórico de natureza teológica, no sentido de que pressupõe doutrinas
teológicas. O exemplo mais notável de filosofia da história especificamente cristã é, desde
depois, a teoria de san Agustín apresentada em sua De civitate Dei. Nela desempenham papéis
importantes a história do povo judeu e a fundação e o crescimento da Igreja cristã. Não penso
repetir aqui o já dito no segundo volume desta História[236] a respeito da filosofia agustiniana
da história. Baste com recordar que san Agustín pensou sobre a base de uma “sabedoria cristã”
total, sem contar com uma distinção sistemática entre teología e filosofia. Por isso não é em
modo algum incoerente com sua concepção geral o fato de que sua visão da história seja em
grande parte uma interpretação teológica, com referências aos relacionamentos providentes de
Deus com os judeus, tal como estas se manifestam no Velho Testamento e à Encarnación e a
seu prolongamento, por assim o dizer, na Igreja, corpo místico de Cristo. Até possa argüirse,
desde um ponto de vista cristão pelo menos, que uma interpretação da história como processo
de desenvolvimento para um objetivo determinado tem que ser por força uma interpretação
teológica, enquanto uma interpretação não teológica da história, na medida em que possa ser
válida, tem que ser reducible a enunciados sobre a história do tipo que os historiadores mesmos
têm concorrência para fazer. Dito de outro modo: desde um ponto de vista cristão pode ser
sustentado a imposibilidad de uma filosofia da história, se o termo entende-se no sentido de uma
interpretação da totalidade da história como movimento inteligible para um objetivo
determinado, e se se pressupõe uma distinção sistemática entre filosofia e teología. Por suposto
que essa negación se refere só a uma filosofia válida da história. Pois está claro que existiram e
existem filosofias da história que não pressupõem doutrinas teológicas. A filosofia marxista da
história é um exemplo. E embora neste volume não temos de nos ocupar do marxismo sim que
temos que estudar a transição de uma interpretação teológica da história a uma interpretação não
teológica.

2. Bossuet.

Jacques Bénigne Bossuet (1627-1704), o grande orador que foi bispo de Condom e depois
de Meaux, expôs uma interpretação teológica da história em sua Discours sul l’histoire
universelle (Discurso sobre a história universal, 1681). No prólogo à obra, que está dedicada
ao Golfinho, sublinha duas feições da história universal: o desenvolvimento da religião e o dos
impérios. Pois “a religião e o governo político são os dois pontos em torno dos quais giram todos
os assuntos humanos”.[237] O estudo da história pode mostrar aos príncipes a inevitável presença
e a importância da religião, em suas sucessivas forma, e as causas das mudanças políticas e das
transições de uns impérios a outros.

É óbvio que esses dois temas podem ser tratados por um historiador não religioso e sem
orçamento teológico algum. Mas em seu Discurso sobre a história universal Bossuet tem
intenções apologéticas. Na primeira parte esboça doze épocas: Adán, ou a criação; Noé, ou o
Diluvio; a vocação de Abraham; Moisés, ou a Lei escrita; a tomada de Troya; Salomón, ou a
edificación do Templo; Rómulo, ou a fundação de Roma; Ciro, ou a restauração dos judeus;
Escipión, ou a conquista de Cartago; o nascimento de Jesucristo; Constantino, ou a paz da Igreja;
e Carlomagno, ou o estabelecimento do novo Império. Bossuet estuda, pois, as providenciales
relacionamentos de Deus com o povo eleito, com a difusão do Império Romano entendida como
preparação da Cristandade, a Encarnación e o estabelecimento da Igreja e da sociedade cristã.
Os impérios orientais não aparecem em cena mais que em função de seus relacionamentos com
o povo judeu. Assim se ignoram a Índia e a China. O enquadramento do esquema histórico do
autor fica dado pelas doutrinas teológicas da criação, a divina providência e a Encarnación. E as
doze épocas caem baixo sete “idades do mundo”, na sétima e última das quais se situa o
nascimento de Cristo.

Na segunda parte, dedicada ao desenvolvimento da religião, dominam também as


considerações apologéticas. Passamos desde a criação, através da idade dos patriarcas, até a
revelação da Lei a Moisés; e dos reis e os profetas à revelação cristã. Pois conquanto Bossuet
discute algumas religiões diferentes do judaísmo e o cristianismo, como as religiões de Roma e
Egito, suas observações são meramente incidentales respecto do tema principal, a saber, que o
cristianismo é o desenvolvimento perfeito da religião. “Esta Igreja, sempre atacada e nunca
conquistada, é um milagre perpétuo e um depoimento concluyente da inmutabilidad dos divinos
conselhos.”[238]

Também na terceira parte do discurso, dedicada à sorte dos impérios, destaca a ideia da
providência divina. Assim se lê nela que “a maior parte desses impérios têm um relacionamento
necessário com a história do povo de Deus”.[239] Deus utilizou aos asirios e aos babilonios para
castigar aos judeus, aos persas para restaurar em suas terras, a Alejandro e seus primeiros
sucessores para protegê-los, e aos romanos para manter sua independência em frente aos reis da
Síria. E quando os judeus recusaram a Cristo, Deus utilizou esses mesmos romanos para os
castigar, embora os romanos não entendessem a significação da destruição de Jerusalém. Mas
Bossuet não se limita a essas afirmações gerais, que não eram novas. Também discute as causas
particulares da ruína de vários impérios e estados, desde Egito até Roma, tentando obter para o
Golfinho algum ensino dessas discussões. Sua conclusão última é que nenhum homem pode
dirigir o curso da história de acordo com seus próprios planos e desejos. Um príncipe pode
aspirar a produzir um determinado efeito mediante seus atos e conseguir em realidade outro.
“Não há poder humano que não sirva, pese a se mesmo, a desígnios diferentes dos seus; só Deus
sabe o reduzir tudo a Sua vontade. Por isso todo resulta surpreendente quando se consideram só
causas particulares; mas tudo procede segundo um desenvolvimento ordenado.”[240] Dito de
outro modo: as mudanças históricas têm suas causas particulares, e o modo como operam essas
causas não está previsto em todo caso, nem menos é querido, pelos homens. Mas ao mesmo
tempo a providência divina cumpre-se em e pelas operações dessas causas particulares.

Talvez possa ser dito, portanto, que Bossuet reconhecia, por assim o dizer, dois planos
históricos. Tem-se o plano das causas particulares consideradas pelo historiador. Este pode
determinar, por exemplo, as causas particulares que contribuíram à queda do império babilónico
ou da Roma imperial. Mas também se tem o plano da interpretação teológica, segundo o qual se
cumpre a divina providência em e pelos acaecimientos históricos. Mas nosso conhecimento de
como se cumpre a providência divina na causación histórica é um conhecimento limitado. Isto
é sem dúvida uma das razões pelas quais Bossuet faz questão dos relacionamentos do Egito,
Asiría, Babilonia e Persia com o povo judeu, pois nesses casos pode recorrer ao ensino do Velho
Testamento.

Assim renova Bossuet no século XVII a tentativa de san Agustín de desenvolver uma
filosofia da história. Mas, como já se observou e como sem dúvida sabia perfeitamente Bossuet,
nossa capacidade de desenvolver esse tipo de filosofia da história, a base, isto é, da ideia de
providência divina, é muito limitada. A importância capital do Discurso estriba provavelmente
no fato de que chamou a atenção sobre a história humana como tema de reflexão filosófica.

3. Vico.

Giambattista Vico (1688-1744), um dos maiores filósofos italianos, foi uma figura de muito
maior importância no nascimento da filosofia da história. Durante a vida de Vico realizou-se
uma grande massa de investigação histórica, A Reforma e a Contrarreforma tinham-na
estimulado, e, como observaram os historiadores, a formação de estados nacionais e de
interesses dinásticos foi um estímulo ulterior no mesmo sentido. Assim se dedicou Leibniz, por
exemplo, a escrever a história da casa de Braunschweig, enquanto na Itália Muratori,
bibliotecário do duque de Módena a princípios do século XVIII, recebia o encarrego de escrever
uma história da casa de Leste.[241] Mas a investigação histórica e o agregado de material para
escrever história não é o mesmo que historiografía; e historiografía, escrever história, não é o
mesmo que teoria ou filosofia da história. Pelo, que faz a esta última nos interessa Vico.

Em 1699 Vico é professor de retórica na Universidade de Nápoles, e conservará essa praça


até 1741.[242] Nessa condição pronunciou vários discursos inaugurais. Os primeiros mostram a
influência do cartesianismo; mas no de 1708 adota outra atitude. Os modernos, diz, introduziram
grandes progressos em algumas ciências, particularmente as físicas; mas subestimaram e
desprezado os ramos de estudo cujo tema depende da vontade humana e não pode ser tratado
pelo mesmo método que a matemática, por exemplo. Entre essas ciências contam-se a poesia, a
história, a ciência da linguagem, da política, da jurisprudencia. Ademais, os modernos tentaram
alargar a aplicação do método demostrativo matemático a ciências nas quais esse método não
pode fornecer senão demonstrações aparentes.

Esse ponto de vista desenvolve-se mais detalhadamente em De antiquissima italorum


sapientia (Antiquísima sabedoria dos itálicos, 1710). Nesta obra Vico ataca energicamente a
filosofia de Descarte. Antes de mais nada, o cogito, ergo sum não pode servir adequadamente
como refutación do escepticismo nem como base do conhecimento científico. Pois a certeza de
que um está pensando pertence ao plano da consciência não reflete, e não ao plano da ciência.
Em segundo local, a clareza e a distinção das ideias não servem como critério universal da
verdade. Podem servir como critério da verdade na matemática. Mas se, por exemplo, resulta
aplicável em geometria, isso se deve a que a geometria é uma ciência construtiva, na qual o
espírito constrói ou produz suas próprias entidades. As entidades matemáticas não são realidade
no sentido no qual o são os objetos das ciências naturais; são ficções feitas pelo homem. E são,
desde depois, claras e diferentes, mas o são precisamente porque construiu-as o espírito mesmo.
Portanto, a construção do objeto é mais fundamental que a clareza e a distinção, e nos fornece o
critério da verdade. “A regra e critério da verdade é tê-la fato.”[243] Mas a construção do objeto
não significa exatamente o mesmo em física, por exemplo, que em geometria pura. Nesta última
os objetos são entidades irreales, ficções intelectuais; na primeira não o são. A construção do
objeto significa em física uso do método experimental. As coisas que podemos provar em física
são aquelas respecto das quais podemos realizar algo parecido. E as ideias mais claras de coisas
naturais são aquelas que podemos fundar em experimentos que imitam a natureza.

A formulación do princípio do verum factum — que o critério da verdade consiste na ter


feito — não leva, portanto, à conclusão de que o método geométrico seja universalmente
aplicável a todas as ciências. Nem também não tem de entender no sentido de que o espírito
acha os objetos físicos como cria as entidades matemáticas. Não temos de interpretar a Vico
como se suas teses sustentassem que as coisas são ficções intelectuais, meras ideias. O fazer ou
construir o objeto tem de entender-se em sentido gnoseológico mais que existencial. Quando o
espírito reconstrói a estrutura do objeto partindo de seus elementos consegue a certeza da
verdade pelo mesmo ato da reconstrução. Neste sentido são idênticos conhecer e fazer, e fazem-
se um e o mesmo o verum e o factum. Já que criou todas as coisas, Deus conhece
necessariamente com clareza todas as coisas. A única analogia estrita desta verdade encontra-se
no conhecimento matemático humano, no qual os objetos ou entidades são ficções mentais. Nós
não criámos a natureza na ordem existencial. Mas, por assim o dizer, só temos conhecimento
científico da natureza na medida em que voltamos a fazer a estrutura do objeto na ordem
cognoscitivo. E não podemos saber se estamos praticando corretamente essa reconstrução mais
que mediante a ajuda do método experimental. A dedução a partir de conceitos puramente
abstratos criados por nós mesmos não nos pode garantir um conhecimento da natureza existente,
por claros e diferentes que sejam aqueles conceitos.

A Antiquísima sabedoria não aplicava essas ideias à história, mas era já fácil prever a linha
geral que ia adotar o pensamento de Vico. É o homem o que faz a história humana; portanto, a
história é compreensível para o homem. Os princípios da ciência histórica têm de buscar nas
modificações do espírito humano, na natureza humana. A história presta-se em realidade à
investigação científica e à reflexão mais facilmente que a natureza física. A natureza é obra
exclusiva de Deus, sem intervenção do homem; portanto, só Deus pode ter um conhecimento
adequado e pleno da natureza. Mas a sociedade humana, as leis humanas, a linguagem e a
literatura são todo obras do homem. Portanto, o homem pode verdadeiramente entendê-los, bem
como entender os princípios de seu desenvolvimento. Aqui temos um autêntico investimento da
atitude cartesiana. As ciências que Descarte subestimava em benefício das físicas se encontram
agora em uma posição de superioridad.

Vico discute os princípios desta nova ciência em sua obra principal, os Principi dei uma
scienza nuova d’intorno alla comune natura delle nazioni (Princípios de uma ciência nova
relativa à natureza comum das nações, geralmente conhecida pela Ciência Nova, 1725, 2.ª ed.
1730, 3.ª ed. 1744). Em seu autobiografía escreveu Vico que durante algum tempo admirava a
dois homens acima de todos: Platón e Tácito. “Pois com incomparável espírito metafísico
contempla Tácito o homem tal como é, e Platón o homem tal como deveria ser.”[244] Podemos
relacionar com essa admiração pelas duas personagens a intenção que manifesta Vico na Ciência
Nova de determinar a lei universal e eterna da história e os modos pelos quais se explícita dita
lei nas histórias dos diversos povos. A “sabedoria esotérica” de Platón tem-se que combinar com
a “sabedoria comum” de Tácito. Mas Vico acrescenta os nomes de outros dois homens com os
que se reconhece em dívida especial. O primeiro deles é Francis Bacon, de cujo De augmentis
scientiarum e de cujo Novum organum recebeu profunda inspiração para o desenvolvimento de
sua ciência nova. (O mesmo título de Ciência Nova pode estar inspirado pela expressão Novum
organum.) O segundo é Grocio. Bacon tinha visto que a soma de conhecimentos existente na
época tinha que se completar e se corrigir, mas pelo que faz a leis, não conseguiu explicitar as
que regem a história humana. “Mais Grocio reúne em um sistema de lei ou direito universal a
totalidade da filosofia e a filología, com as duas partes desta última, a história, por um lado, dos
fatos e os acaecimientos fabulosos e reais e, por outro, as três línguas, o hebreu, o grego e o
latín; ou seja, as três línguas cultas da Antigüedad que nos transmitiu a religião cristã.”[245] Vico
desejava continuar a obra de Grocio. Com sua leitura dos filósofos do direito natural, como
Grocio e Pufendorf (ao que podemos acrescentar Hobbes), se tem de relacionar seu formulación
do problema da história como questão que em parte principal se refere às origens da civilização.
O tema beneficia-se de uma atenção particular na Ciência Nova.

Vico não gostava de arrancar dos “homens licenciosos e violentos” de Hobbes, nem dos
“bobos solitários, débis e precisados” de Grocio, nem dos “vagabundos arrojados ao mundo sem
ajuda nem cura divina” de que fala Pufendorf: assim se expressa Vico ao começo do primeiro
livro da Ciência Nova (1.ª edição). Em substância, Vico resiste-se a supor um começo absoluto
com homens nessas condições. Pois o Génesis não indica que Adán estivesse ao princípio no
estado de natureza sugerido, por exemplo, por Hobbes. Por isso Vico introduz um período que
dê local à bestialización do homem, bestialización, isto é, nas raças paganas. E então toca-lhe
aparecer ao problema da origem da civilização.

Vico supõe que os primeiros começos da civilização se deram com o sedentarismo. O tronar
e o fogo do deus do céu moveram aos homens, com suas mulheres, a proteger nas cavernas. E
estas primitivas habitações possibilitaram o nascimento do primeiro estádio da civilização, a
“idade dos deuses” ou “estádio das famílias”, no qual o pai da família era rei, sacerdote, árbitro
moral e juiz. Este estádio familiar da civilização teve três princípios, a saber, religião, casal e
sepultura do morto.

Mas nesse primitivo estádio da civilização teve sempre tensões e desigualdades. Entre os
nómadas, por exemplo, que não se tinham organizado ainda em famílias fixas com deuses fixos
que adorar e benefício comum do solo, uns eram fortes e outros débis. E é possível imaginar que
os débis se refugiassem cerca de famílias já sedentarias, em condição de servos, para proteger
de seus colegas nómadas violentos e mais fortes. E também podemos imaginar que os pais de
família se concertaram para dominar aos servos. Ou seja, as ordens patricio e plebeu foram-se
formando gradualmente, e assim nasceram os “estados heróicos”, nos quais os magistrados
pertenciam à ordem patricio. Este foi o segundo estádio do desenvolvimento da civilização, a
“idade dos heróis”.

Mas esse estádio era intimamente instável. Os patricios ou nobres desejavam naturalmente
conservar a estrutura da sociedade tal como estava, pois queriam conservar sua posição e seus
privilégios intatos. Mas com a mesma naturalidade os plebeus desejavam mudar a estrutura da
sociedade. E no curso do tempo tiveram sucesso, e foram conseguindo participação em um
privilégio depois de outro, desde o reconhecimento legal de seus casamentos até a cidadania e a
elegibilidade para cargos públicos. Deste modo a idade dos heróis foi dando gradualmente passo
a “ a idade dos homens”, caraterizada pelas repúblicas democráticas. Era a idade dos homens
porque reconheceu-se largamente a dignidade do homem assim que tal, assim que ser racional.

Mas este terceiro estádio do desenvolvimento da civilização levava em si a semente de sua


própria decadência. Com o florecimiento da racionalidade, religião, que tinha estado presente
desde o começo e que era um agente de importância capital na ascensão do homem a uma
condição civilizada, foi cedendo seu local à filosofia e a um estéril intelectualismo. A igualdade
acarretou o declinar do espírito público e o aumento da licença. Sem dúvida fizeram-se as leis
mais humanas e aumentou a tolerância, mas a decadência acompanhou a esse processo de
humanización, até que ao final a sociedade se desintegró desde dentro ou sucumbiu a um ataque
externo. O qual levou, como ao final do império romano, a um regresso da barbarie.

Uma vez terminado um ciclo começa outro novo. Em Occidente, o aparecimento do


cristianismo anunciou uma nova idade dos deuses. A Idade Média representa a idade dos heróis
do novo ciclo. E no século XVII, no século das filosofias, foi uma nova fase dos homens.
Também se acham ciclos nas histórias dos diversos povos, e esses ciclos particulares são a
manifestação concreta de uma lei universal. Mas esta teoria dos ciclos que Vico considerava
inductivamente confirmada não tem de se entender erroneamente. Vico não afirma que os
acaecimientos históricos estejam determinados nem que na cada ciclo tenham de ocorrer
conjuntos de acaecimientos precisamente análogos. Também não afirma, por exemplo, que a
Cristandade seja um fenômeno religioso temporal que tem seu valor respecto de um ciclo
determinado, de tal modo que tenha de ceder no futuro seu local a outra religião. O recorrente
não é o fato ou acaecimiento histórico particular, senão o esquema geral em que ocorre o fato.
Ou, por melhor dizer, o recorrente é o ciclo das mentalidades. Assim, por exemplo, a
mentalidade primitiva, que se expressa na linguagem do sentido, a imaginação e a paixão, é
gradualmente substituída pela emergência da racionalidade reflexiva. Esta, a sua vez, se isola de
outras camadas da natureza humana e tende a dar em crítica disolvente e razão cética. E a
dissolução da sociedade não se detém até que o homem volta a se fazer com a espontânea
mentalidade primitiva que lhe proporciona um renovado contato com Deus, uma renascença da
religião. A civilização “começou na cada caso com a religião, e completou-se com as ciências,
as disciplinas e as artes”.[246] Há ciclo das mentalidades, das forma do desenvolvimento
histórico, mas não dos conteúdos, os fatos e os acaecimientos singulares. A ideia de Vico recorda
efetivamente teorias gregas da volta cíclica; mas não afirma uma teoria fatalista da repetição
necessária de acaecimientos singulares. Nem também não exclui sua teoria dos ciclos todo
progresso. Por exemplo, o cristianismo pode corresponder em um novo ciclo ao que Vico chama
as “horríveis religiões” da primitiva idade dos deuses; mas disso não se segue que o cristianismo
não seja superior a ditas religiões.

É errôneo achar que Vico não ofereça em sua filosofia da história mais que uma teoria dos
ciclos. Há nela bem mais que um esquemático mapa do desenvolvimento da cada povo ou nação.
Por de repente, é possível encontrar em sua obra um são contrapeso ao racionalismo no sentido
de interpretação superintelectualista do homem e de sua história. Os filósofos, diz Vico, são
incapazes de formar-se por si mesmos uma ideia veraz das origens da sociedade; pois sempre
tendem a projetar no passado seu próprio modo de considerar as coisas e a racionalizar o que
não foi obra da razão no sentido que eles dão a esta palavra. Assim, por exemplo, os filósofos
iusnaturalistas nos descrevem uns homens em estado de natureza que concertam um pacto ou
contrato, o qual dá origem à sociedade. Mas as origens reais da sociedade não podem ter sido
assim. O fator que empurrou aos nómadas ou vagabundos a se refugiar em grutas e outros
abrigos primitivos análogos e a estabelecer neles habitação mais ou menos fixa não foi senão o
temor ou, mais em general, a necessidade sentida.

Essa ideia crítica não se aplica só aos filósofos do século XVII, senão também aos da
Antigüedad. Estes, submetidos à mesma tendência racionalizadora que se dá em seus sucessores
modernos, atribuíram as leis dos estados a iluministas legisladores como Licurgo em Esparta.
Mas as leis não começaram como produtos da razão reflexiva, embora com o tempo, à medida
que se desenvolvia a civilização, foram sem dúvida submetidas a revisão racional. O mau é que
os filósofos, ao adorar a razão reflexiva, vêem nela a essência do homem. Acham-se que é a
razão a que une aos homens como vínculo comum, de maneira que ela teria de ser a fonte do
direito, que é um fator unificador. E pensam que a imaginação, os sentidos e as paixões separam
aos homens. Mas em realidade os homens dos primeiros estádios da civilização regem-se mais
pela imaginação e o sentimento que pela razão reflexiva. Sem dúvida estava presente a razão
também nesses estádios, mas se expressava em forma próprias da imaginação e o sentimento.
Desde o ponto de vista psicológico a religião primitiva é produto espontâneo do temor e de um
sentimento de impotencia, não da razão em sentido filosófico; e o direito primitivo está
intimamente relacionado com a religião primitiva. Ambos são produto não da razão filosófica,
senão de uma lógica do sentimento e da imaginação. O direito foi em suas origens o costume
naturalmente constituído, não fruto do entendimento previsor.

Vico dava muita importância à poesia e a mitología. O terceiro livro da Ciência Nova está
dedicado à “Descoberta do verdadeiro Homero”. Para conhecer os primeiros estádios da religião,
a moralidade, a lei, a organização social e a economia temos de abster-nos/abstê-nos de teorizar
abstratamente e pôr-nos/pô-nos a estudar os dados da filología, que são principalmente a poesia
e o mito. Ao interpretar, por exemplo, os poemas homéricos temos de evitar duas ideias errôneas.
Em primeiro lugar, não devemos achar que os mitos sejam imposturas deliberadas, mentiras
úteis do tipo recomendado por Platón na República. Em segundo local, não temos dos
racionalizar, como se seus autores estivessem expressando alegóricamente ideias e teorias
concebidas claramente e racionalmente formuladas. Os poemas homéricos são mais bem
expressão da “sabedoria vulgar”, da “sabedoria poética” de um povo; os mitos dão-nos em
general a chave do modo de pensar dos povos no momento em que aqueles se constituíram. Os
poemas homéricos, por exemplo, expressam com “carateres poéticos” a religião, os costumes, a
organização social, a economia e até as ideias científicas dos gregos da idade heróica. São, por
assim o dizer, expressão literária espontânea ou depósito da mentalidade e a vida de um povo
em um momento dado de seu desenvolvimento. A isso se deve seu grande valor para a
reconstrução da história. Desde depois que não temos de aceitar todo o que dizem como verdade
literal. Zeus, por exemplo, não foi uma pessoa real na forma em que se lhe descreve nos poemas
homéricos. Mas, por outra parte, também não é um mero expediente literário para simbolizar
alguma noção abstrata da divinidad. É a expressão imaginativa de um temporão estádio do
contato com o divino. Não é que as descrições poéticas do divino cubram, por assim o dizer,
uma teoria filosófica da divinidad que estivesse por sua vez formulada com clareza pela razão
reflexiva; o pensamento religioso desse período é pensamento poético. Tem sua lógica, mas essa
lógica o é da imaginação e o sentimento, não é a lógica abstrata do filósofo.
Outro ponto que vale a pena observar na filosofia viquiana da história é sua insistencia na
unidade complexa da cada período cultural. A cada “idade” ou estádio de um ciclo tem seus
tipos próprios de religião, direito, organização social e economia. Não há dúvida de que Vico
exagera na simplificação esquemática dos fatos; mas fornece, por assim o dizer, um programa
para um estudo da história que não se limite à narração de acaecimientos dinásticos, políticos e
militares, senão que penetre na vida dos povos em todas as sucessivas fases de suas histórias e
explore essas vidas por todas suas ramificações, manifestando as conexões entre a religião, a
moralidade, o costume e a lei, a organização social e política, a economia, a literatura e a arte.
Ao mesmo tempo Vico esboça programas de estudo comparativo do desenvolvimento da
mentalidade humana em general e das ciências e as artes particulares.

Assim, pois, a história nos revela a natureza humana. Não podemos conseguir conhecimento
da natureza humana pelo procedimento de considerar ao homem tal como este é, ponhamos por
caso, no segundo período da “idade dos homens”, ou tomando como critério instância ao
filósofo. Temos que atender à revelação gradual da natureza do homem em sua história, em sua
poesia, em sua arte, em seu desenvolvimento social e jurídico, etc. A história é obra do homem;
portanto, é compreensível para o homem. E ao estudar a história o homem consegue uma
consciência reflexiva de sua própria natureza, do que foi, é e pode ser. É néscio exaltar os lucros
da idade da razão, a idade dos filósofos, e desprezar o passado e o primitivo, pois o inteiro curso
da história é a revelação do homem. Na primitiva idade dos deuses vemos ao homem como
sentidos; na idade dos heróis vemo-lo como imaginação; na idade dos homens vemo-lo como
razão.

Mas o fato de que a história seja obra do homem — já consideremos as ações humanas, ou
os monumentos da arte e a literatura, ou as instituições — não significa que se encontre separada
da divina providência e que não seja em algum sentido faz de Deus. O que ocorre é que segundo
Vico a divina providência faz primordialmente através da vontade e o pensamento humanos, ou
seja, através de meios naturais, não por intervenção milagrosa. Os homens aspiraram
frequentemente a um fim e realizaram outro. Por exemplo, “os patriarcas tendem a exercer sem
restrições sua poder sobre os servos e submeteram-nos ao poder civil do que nasceram as
cidades. A classe dominante dos nobres queria abusar da senhorial liberdade para oprimir aos
plebeus, e isso lhe levou a ter que se submeter a leis que estabeleciam a liberdade popular”.[247]
Quaisquer que fossem os objetivos que se propuseram os indivíduos, o fato é que a civilização
nasceu e se desenvolveu por suas ações. E na segunda fase da idade dos homens, quando os
librepensadores, por exemplo, tentam destruir a religião, contribuem à dissolução da sociedade,
ao final de um ciclo cultural e, portanto, a uma renascença da religião, que é o fator principal
que facilita a conquista pelo homem de suas próprias paixões egoístas e conduz ao nascimento
de uma nova cultura. Os homens fazem livremente, mas suas livres ações são os meios pelos
quais se realizam os propósitos eternos da providência divina.

Não é muito exato dizer que a Ciência Nova de Vico foi completamente ignorada por seus
contemporâneos, pois algumas de suas teses foram objeto de discussão. Mas desde depois que
não se apreciou a importância geral de suas ideias, e Vico não começou a ser lido como
corresponde até entrado no século XIX. Em 1787 Goethe visitou Nápoles e fixou-se na Ciência
Nova. O grande poeta prestou o livro a Jacobi, e em 1811 Jacobi fez uma alusão ao que ele
achava antecipação de Kant por Vico. O texto foi utilizado por Coleridge em seu Theory of Life
(1816, publicada em 1848); nos anos seguintes falou de Vico com verdadeiro entusiasmo. Na
França, Michelet publicou uma tradução abreviada da obra principal de Vico (1827), e em 1835
reeditou-a junto de uma tradução da Autobiografía e de alguns outros escritos. Na Itália
interessaram-se por Vico Rosmini e Gioberti, bem como os idealistas, por exemplo Spaventa,
os quais sustentavam que a recepção do hegelianismo na Itália era como a volta de Vico a sua
pátria, pois Vico seria o precursor da filosofia alemã. Mas a moderna difusão do interesse por
Vico deve-se sobretudo a Benedetto Croce, que o apresentou como o descobridor “da verdadeira
natureza da arte e da poesia, e inventor, por assim o dizer, da ciência da estética”.[248]

4. Montesquieu.

Montesquieu (1689-1755) não se refere em seus escritos publicados a Vico; mas parece
provável que conhecesse a Ciência Nova durante sua viagem por Itália em 1728, ou seja, dantes
de publicar sua famosa obra a respeito das causas da grandeza e a decadência dos romanos
(1734) e a obra a respeito do espírito das leis (1748). O fato de que Montesquieu empreendesse
um estudo comparativo da sociedade, o direito e o governo para averiguar os princípios do
desenvolvimento histórico sugere imediatamente que Vico exercesse alguma influência nele,
pelo menos por via de estímulo, mas não prova essa influência. De todos modos, as notas
pessoais de Montesquieu parecem provar a hipótese positiva pelo que faz à teoria viquiana dos
ciclos e a decadência da civilização, sem que permitam estimar sua importância.

Como as ideias de Montesquieu se esboçaram já no primeiro capítulo deste volume, não se


acrescentará nada a respeito delas. Bastará com indicar que em Vico e em Montesquieu
encontramos a ideia de um método histórico comparativo, e que ambos autores se propõem
utilizar dados históricos como base para determinar as leis que regem o desenvolvimento
histórico dos povos. Desses dois homens Montesquieu, pensador típico do Iluminismo,
apasionado pela liberdade, teve muitíssimo mais sucesso em sua própria época. A estrela de
Vico não começou a brilhar realmente senão uma vez esgotado o Iluminismo.
Capítulo IX
De Voltaire a Herder.

1. Observações prévias.

Diz-se às vezes que o espírito do Iluminismo século XVIII foi a-histórico. Se a frase entende-
se no sentido de que o Iluminismo não escreveu história, então se trata de um enunciado
manifestamente falso. Baste citar a Histoire da grandeur dê Romains et de leur décadence
(1734) de Montesquieu, Decline and Fall of the Roman Empire (1776-1781) de Gibbon, a
Histoire de Charles XII (1731) e o Siècle de Louis XIV (1751) de Voltaire, bem como as obras
históricas de Hume. Também não pode ser dito que a historiografía do século XVIII se limitasse
às batalhas, as pugnas políticas e diplomáticas e as façanhas dos “grandes homens”. Pelo
contrário, precisamente nesse período vemos nascer a ideia de história como história da
civilização humana. Charles Pinot Duclos, autor de uma Histoire de Louis XI (1745) e de umas
Considérations sul lhes moeurs de ce siècle (1750), declarava que seu tema eram os usos e os
costumes dos homens, não as guerras nem a política. Nesta atitude coincidia com Voltaire. Não
há dúvida de que no século XVIII viveu uma ampliação da ideia de história.

Quando se diz que o espírito do Iluminismo do século XVIII foi ahistórico a afirmação pode
ser referido em parte à tendência de vários autores a tratar a história como uma forma de belles-
lettres e a emitir julgamentos precipitados sem conhecimento real ou sem entendimento das
fontes. Mas também se refere em parte, e em parte mais importante, à tendência a tratar a idade
da razão e da “iluminação”, bem como seus ideais, como uma espécie de critério absoluto de
julgamento, e a desprezar o passado exceto no que pudesse ser interpretado como caminho para
a idade dos philosophes. Essa atitude, junto de sua concomitante tendência a utilizar a história
para provar tese, particularmente a tese da superioridad do século XVIII em general e dos
filósofos designadamente, não conduzia a um entendimento objetivo do passado. Seria, desde
depois, um exagero dizer que todos os pensadores iluministas sustente uma teoria ingênua do
progresso. Até em Voltaire manifesta-se verdadeiro pesimismo. Mas em linhas gerais os
filósofos estavam convencidos de que progresso e triunfo da razão emancipada são sinónimos;
e sua ideia da razão dificultava-lhes o entendimento de uma mentalidade primitiva, por exemplo,
ou da da Idade Média. Quando os filósofos tentavam se imaginar o homem primitivo
começavam por se pôr diante o homem contemporâneo, eliminando depois dessa imagem
qualidades e hábitos que pudessem ser atribuído claramente à civilização, mas lhe deixando
cuidadosamente o exercício da razão que lhe permitiria concertar o contrato social. Vico viu a
artificialidad desse método analítico e deu importância ao exame da poesia, o canto, a arte, os
restos de costumes e de práticas religiosas para conseguir uma base segura de entendimento da
mentalidade de tempos passados. Mas Vico foi um gênio algo isolado do Iluminismo e
conscientemente oposto ao exagerado racionalismo e ao intelectualismo de tantos
contemporâneos seus. Sua estimativa da época não era, certamente, a do philosophe médio. Pelo
que faz à Idade Média, os homens do Iluminismo foram completamente incapazes de
entendimento simpatética da cultura e o espírito medievais; a Idade Média representava para
eles uma treva da qual surgiu paulatinamente a luz da razão. Assim, pois, embora alargaram a
noção do estudo histórico e fizeram uma valiosa contribuição ao futuro da historiografía,
tendiam demasiado a utilizar a história para provar tese e glorificar o Iluminismo, e seus
preconceitos lhes dificultaram a penetração com o entendimento em culturas e concepções que
lhes resultassem muito diferentes das suas próprias e que eles se sentissem inclinados a
desprezar. Neste sentido temos de entender a acusação de ahistoricidad dirigida à mentalidade
do Iluminismo.

2. Voltaire.

Voltaire, cuja posição filosófica general se discutiu já no primeiro capítulo deste volume,
afirmava que seu Essai sul lhes mœurs (1740-1749, publicado em 1756) queria ser uma
continuação da obra de Bossuet. “O ilustre Bossuet, que em seu discurso a respeito de uma parte
da história universal captou seu verdadeiro espírito, se deteve em Carlomagno.”[249] Voltaire
quer continuar desde onde terminou Bossuet; de aqui o título completo de sua obra: Ensaio a
respeito da história geral e dos costumes e o espírito das nações desde Carlomagno até nossos
dias. De fatos empero, arranca bem mais atrás, desde a China, depois de de a qual passa à Índia,
Persia e Arabia, para continuar com a Igreja de Oriente e de Occidente anterior a Carlomagno.

Mas embora Voltaire anuncia sua intenção de continuar a obra de Bossuet, é óbvio que sua
ideia da história é muito diferente da do bispo de Meaux. Para Bossuet, os acaecimientos
importantes da história são a criação, a aliança de Deus com o povo judeu, a Encarnación e o
desenvolvimento da Igreja; Bossuet considera a história humana, desde a criação até o
julgamento final, como uma manifestação da providência divina servida pelas livres decisões
humanas. Na obra de Voltaire brilha por sua ausência o ponto de vista teológico de san Agustín
e Bossuet. A história é o campo de interação das vontades e as paixões humanas. O progresso é
possível na medida em que o homem se levanta acima da condição animal e a razão domina
envelope o conjunto, particularmente quando toma a forma do despotismo iluminista, único que
pode contribuir uma reforma social verdadeira. Desaparece a ideia da história como
cumprimento de um plano divino segundo um movimento que aponta a uma meta sobrenatural.
E com ela desaparece toda convicção robusta a respeito da unidade e a continuidade da história.

Desde depois que Voltaire proclama, por uma parte, a ideia de um estudo empírico da
história, sem orçamentos dogmáticos. Escreveu uma Philosophie de l’histoire (1765) que
apareceu anteposta à edição de 1769 do Essai sul lhes moeurs; mas o ensaio contém pouca
filosofia no sentido ordinário da palavra. Quando Voltaire fala da necessidade de escrever a
história com espírito filosófico se está referindo simplesmente à necessidade de excluir lendas e
histórias fantásticas. A coisa fica clara, por exemplo, em seus Remarques sul l’histoire, quando
se pergunta se um homem sensato e nascido no século XVIII pode ser permitido falar em sério
dos oráculos de Delfos. Em última instância, o que Voltaire está reclamando é que se eliminem
do todo as explicações sobrenaturales. Escrever história com espírito filosófico é fazer com o
espírito de um philosophe, de um homem do Iluminismo. E “o ilustre Bossuet” não era um
philosophe.
A convicção de que não é tarefa do historiador o entretener ao leitor com episódios fabulosos
e inverosímiles histórias é uma das razões pelas quais Voltaire aconselha estudar a história dos
tempos modernos, não a dos antigos. Em seus Nouvelles considérations sul l’histoire observa
que tratar a história antiga é se obrigar a misturar umas poucas verdades com mil mentiras. Mas
é óbvio que um historiador dos tempos antigos não está obrigado a escrever ao modo gárrulo e
chismoso de Herodoto, nem a aceitar como verdadeira toda fábula ou lenda. Completamente
aparte do fato de que o estudo dessas lendas, e até o dos oráculos de Delfos, pode ser — como
viu Vico, mas não veria Voltaire — de grande utilidade para o historiador sério, o remédio da
história incerta e fabulosa é a investigação paciente. Voltaire tinha, desde depois, outra razão
para preferir a história dos tempos modernos, a saber, uma convicção da superioridad do mundo
moderno, particularmente dos filósofos. Nas breves Remarques sul l’histoire expressa o desejo
de que os jovens comecem um estudo sério da história “a partir da época em que começa a ser
para valer interessante para nós, ou seja, segundo me parece, desde finais do século XV”. Por
então mudou a Europa de feição, efetivamente. A ideia de Voltaire pode ser expressado de outro
modo dizendo: a Idade Média não tem interesse real para nós.

Este ponto de vista manifesta-se em bastantees passos dos escritos de Voltaire. Assim lemos
neles que há que se comportar respecto da Antigüedad como se nunca existisse; ou que o mundo
dos antigos judeus é tão diferente do nosso que dificilmente poderá ser tomado dele uma regra
de conduta aplicável hoje; ou que o estudo dos tempos antigos satisfaz simplesmente a
curiosidade, enquanto o estudo dos tempos modernos é uma necessidade; etcétera. Está claro
que esta atitude constitui uma debilidade de Voltaire como historiador e como filósofo da
história.

Mas Voltaire tem também seus pontos fortes, como é natural. Em seu pequeno ensaio
titulado Nouvelles considérations sul l’histoire observa que depois de ter lido três ou quatro mil
descrições de batalhas e o conteúdo de uns quantos centenas de tratados não se sentia bem mais
sábio que dantes. “Não conheço aos francos e aos sarracenos pela batalha de Charles Martel
mais do que conheço aos tártaros e aos turcos pela vitória de Tamerlán envelope Bayaceto.” Em
vez da narração de batalhas e façanhas de reis e cortes um tem de encontrar nas histórias
exposições das virtudes e os vícios dominantes das nações, explicações de sua potência e de sua
debilidade, a história da fundação e o crescimento das artes e as indústrias. Para o homem que
deseja ler a história “como cidadão e filósofo”, “serão principal objeto de estudo as mudanças
dos costumes e das leis”.[250] Analogamente escreve ao começo do capítulo 69 do Esprit dê
moeurs: “Gostaria de mostrar que era naquele tempo (nos séculos XIII e XIV) a sociedade
humana, como vivia a gente na intimidem da família, que artes se cultivavam, em vez de repetir
tantos desastres e combates, morridos temas da história (corrente), gastados exemplos da malícia
humana”. O filósofo pode ter subestimado a importância da história política e militar, mas está
fora de toda dúvida que chamou a atenção a respeito de feições da vida humana que hoje se
consideram universalmente como partes de soma importância do objeto da história, enquanto
até então era praticamente ignoradas pelos historiadores-cronistas, hipnotizados pelas façanhas
dos monarcas e os heróis.

Parece claro que em suas ideias gerais a respeito da história Voltaire não foi tão profundo
como Montesquieu, ao que critica, por não falar já de Vico; mas em sua concepção da
historiografía social podemos ver a expressão instância do desenvolvimento da consciência
burguesa. Para Voltaire a história tem de deixar de ser história dinástica, instrumento de
glorificación ou condenação, segundo os casos, de potentados em pugna; a história tem de ser
uma exposição de como se produziram a vida, as artes, a literatura e a ciência do século XVIII,
ou, mais largamente, uma exposição da vida social do homem através das idades.

Dantes de terminar esta consideração das ideias históricas de Voltaire vale a pena equilibrar
o dito a respeito de seu desprezo do mundo prerrenacentista indicando que no Esprit dê moeurs,
se se têm em conta os acrescentados que foi fazendo à obra, Voltaire pintou realmente em ampla
tela. Não só fala da Europa, senão também do Extremo Oriente e da América, e não só do mundo
cristão, senão também do mahometano e das religiões orientais. Seu conhecimento, por suposto,
é com frequência insuficiente; mas isso não afeta à dimensão de seu projeto. Em verdadeiro
sentido sua história era menos universal que a de Bossuet, porque o enquadramento teológico
deste continha em uma unidade inteligible o conjunto da história humana. Mas em outro sentido
mais material o Esprit dê moeurs voltairiano é mais universal que o Discours sul l’histoire
universelle do bispo, a saber, no sentido de que o primeiro trata também de nações e de culturas
que o segundo ignora.

3. Condorcet.

Na seção dedicada aos fisiócratas, no segundo capítulo deste volume, prestou-se atenção à
teoria do progresso proposta por Turgot, a qual antecipa a visão da história exposta no século
XIX por Auguste Comte. Efetivamente achou Turgot no progresso bem mais que Voltaire. Pois
Voltaire, pese a suas convicções a respeito da superioridad da Idade das Luzes não cria em
mudança em leis que governem a história humana. Não desejo, empero, repetir o já dito a
respeito de Turgot, senão que atenderei a outro representante destacado da ideia de progresso na
última parte do século XVIII, a saber, Condorcet.

Marie Jean Antoine Nicolas Caritat, marqués de Condorcet (1743-1794), foi matemático
tanto quanto filósofo. À temporã idade de vinte e dois anos compôs um tratado sobre o cálculo
integral que mereceu o aprecio de d’Alembert. Condorcet sentiu grande admiração por
d’Alembert, igual que por Voltaire e Turgot, cujas biografias escreveu mais tarde (a de Turgot
em 1786, a de Voltaire em 1787). Interveio na preparação da Enciclopédia e foi eleito membro
da Academia de Ciências em 1769 e da Academia Francesa em 1782. Em 1785 publicou um
ensaio sobre a probabilidade, uma segunda edição do qual, revisada e alargada, apareceu em
1804 com o título de Eléments du calcul dê probabilités et são application aux jeux de hasard,
à a lotterie et aux jugements dê hommes.

Condorcet interessou-se também por temas econômicos e, baixo a influência de Turgot,


escreveu em favor do livre comércio do trigo. Em política foi democrata e republicano
entusiasta. Acolheu favoravelmente a Revolução e foi eleito deputado à Convenção. Mas era um
espírito demasiado independente para poder sobreviver muito naqueles dias tempestuosos.
Criticou a constituição adotada pela Convenção e defendeu o projeto que ele apoiava
previamente; denunciou a detenção dos girondinos e, por sua oposição de princípio à pena de
morte, opôs-se também à conduta dos chefes da Montanha, Robespierre, Marat, Danton. Sua
atitude crítica conduziu a que se lhe declarasse inimigo da República e a que lhe pusessem fosse
da lei. Durante algum tempo viveu escondido em casa de uma viúva, Madame Vernet; mas
suspeitou que a casa estava vigiada e fugiu para não pôr em perigo a vida de sua benfeitora. Foi
capturado ao final e morreu em uma cela de Bourg-reine-a-. Não está claro se morreu de um
ataque cardíaco, envenenado por outros ou por si mesmo.

Durante o tempo que permaneceu escondido escreveu Condorcet sua obra sobre o progresso,
Esquisse d’um tablean historique dê progres de l'esprit humain (1794), seu principal título de
filósofo. As ideias básicas e generais do texto são a da perfectibilidad do homem, a concepção
da história da espécie humana como um progresso gradual desde a treva para a luz, desde a
barbarie para a civilização, e a ideia do progresso ilimitado no futuro. Esta obra escrita à sombra
da guillotina está permeada pelo espírito do otimismo. Condorcet explica a violência e o mau da
época por mal instituições e leis criadas por sacerdotes e dirigentes. Pois Condorcet é inimigo
não só da monarquia, senão também do sacerdocio e até de toda religião. Os meios principais
para a promoção do progresso parecem-lhe ser a reforma constitucional e a educação. Em 1792
é um dos que apresentam à Assembleia o plano de organização da educação estatal que foi a
base do posteriormente adotado pela Convenção. Segundo este plano os temas principais da
educação superior são a matemática e a ciência natural, técnica, moral e política, enquanto o
estudo das linguagens, vivos ou mortos, ocupa um local de menor importância. O acento recai,
pois, sobre a ciência da Natureza e a ciência do Homem.

A interpretação da história passada por Condorcet desenvolve-se à luz de sua ideia de cultura
científica. Distingue nove estádios ou épocas. Na primeira época os homens, surgindo de um
estado de barbarie no qual só fisicamente diferiam dos animais, se unem em grupos de caçadores
e pescadores, reconhecem relacionamentos familiares e usam já uma linguagem. No segundo
estádio do desenvolvimento, que é o pastoral, aparecem a desigualdade e a escravatura, junto de
algumas artes rudimentarias; e no terceiro período, que é o agrícola, se fazem mais progressos.
Condorcet admite que essas primeiras épocas preliminares são meramente conjeturadas; mas
com a invenção da escritura alfabética passar da conjetura ao fato histórico. A cultura da Grécia
representa para Condorcet a quarta época, e a de Roma a quinta. Depois divide o período
medieval em duas épocas. A sexta termina com as cruzadas, e a sétima com a grande invenção
da imprenta. A oitava época é mais ou menos a Renascença, que começa com a invenção da
imprenta e termina com o novo giro dado por Descarte à filosofia. A nona época termina com a
Revolução de 1789. Inclui assim mesmo a descoberta por Newton do verdadeiro sistema da
natureza, a abertura por Locke da ciência do Homem, ou seja, da natureza humana, e a
descoberta do sistema da sociedade humana por Turgot, Rousseau e Price.

Condorcet considera depois uma futura décima época. Nela, diz, terá um progresso para a
igualdade entre as nações, para a igualdade entre as classes e para o aperfeiçoamento físico,
moral e intelectual dos indivíduos. Igualdade não significa para Condorcet igualdade
matemática, senão liberdade com igualdade de direitos.

O progresso do passado contempla-se, pois, como orçamento de progresso futuro. A


justificativa dessa crença otimista é claramente o suposto de que há alguma lei de progresso ou
de desenvolvimento humano que permite inferências do passado ao futuro. Mas o fator mais
acentuado por Condorcet como garantia do progresso futuro não é nenhuma lei hipotética que
opere inevitavelmente, senão a educação, ou seja, a ilustração racional, a reforma política e a
formação moral. Em sua opinião, não podemos pôr limite ao avanço do progresso humano nem
à perfectibilidad do homem. Ao falar da décima época Condorcet faz questão de que o progresso
ilimitado é possível não só na ciência moral (por exemplo, na reconciliação do interesse
individual com o bem comum), senão também na ciência física, na técnica e até na matemática
(isto último contra a opinião de Diderot).

Está fora de dúvida que as interpretações da história dadas por Turgot e Condorcet
prepararam o caminho ao sistema positivista de Auguste Comte. A teología desaparece para
todos eles à medida que se intensifica a luz da razão científica, e o mesmo pode ser dito da
filosofia metafísica salvo na medida em que possa ser reduzido a uma síntese de leis científicas.
Não se trata de que Condorcet adorasse aos philosophes e os considerasse como a culminación
do progresso histórico. É verdade que admirava a Voltaire e compartilhava sua anticlericalismo.
Mas não coincidia com sua fé no despotismo iluminista nem com seu desprezo do povo.
Condorcet aspirava a uma civilização democrática e científica; e a despecho dos defeitos de seu
Essay, tanto em seu esquema quanto em muitos de seus detalhes, seu texto é em verdadeiro
sentido bem mais moderno que o de Voltaire. Condorcet não canoniza no século XVIII, senão
que aponta ao futuro. Desgraçadamente carecia de sensibilidade para com importantes feições
da realidade e do homem; pelo demais, essa cegueira encontra-se também em seus seguidores
do século XIX. E pelo que faz ao dogma do progresso, este sofreu um sério resquebrajamiento
no século XX.

4. Lessing.

Na Alemanha a ideia de progresso está representada por Lessing. Mas, como vimos no
capítulo VI deste volume, sua teoria do progresso histórico tinha um fundamento teológico. Na
educação do gênero humano (1780) Lessing escrevia que a educação é ao indivíduo humano o
que a revelação é ao gênero humano inteiro. O progresso é antes de mais nada e sobretudo a
educação moral da humanidade por Deus. Desde depois que a concepção da história que tem
Lessing difere muito da de san Agustín ou Bossuet. Pois Lessing não considera que o
cristianismo seja a definitiva revelação de Deus ao homem. Do mesmo modo que o Velho
Testamento consta de “ livros elementares” em comparação com os do Novo, assim também o
Novo Testamento consta de “ livros elementares” em comparação com ulteriores estádios da
revelação divina que se terão quando os homens aprenda a fazer o bem por si mesmo, não por
nenhum premio nesta vida nem em outra. Esta ideia de superar a moralidade cristã com sua
doutrina das sanções põe a Lessing muito em harmonia com a corrente geral da teoria moral
caraterística do Iluminismo. Ao mesmo tempo, sua concepção da história como progressiva
revelação divina permite pelo menos alguma analogia entre Lessing e os filósofos da história do
tipo de san Agustín e Bossuet. O pensamento de Lessing apresenta sem dúvida a impronta do
século XVIII; mas está claro que difere muito da teoria de Condorcet, para o qual o progresso
histórico não é obra de Deus, senão mais bem uma libertação respecto da religião.[251]

5. Herder.

Na filosofia da história de Herder encontramos diferenças importantes respecto das teorias


caraterísticas do Iluminismo. Como vimos no capítulo VII deste volume,[252] Herder atacou a
autocomplacencia do Iluminismo, a tendência dos filósofos do século XVIII a pensar que a
história levava até sua época por um processo de desenvolvimento progressivo. Mas, como
também vimos, Herder não baseava simplesmente seu ataque em um desacordo com a
interpretação do Iluminismo por seus protagonistas, senão que atacava também a concepção
geral da história própria destes. Para Herder, os iluministas contemplam a história com
preconceitos e utilizam-na para provar uma tese preconcebida. Sem dúvida sua tese diferia da
tese preconcebida de Bossuet, mas não deixava de ser também um preconceito teórico, a saber,
a tese de que a história representa um movimento ascendente desde o misticismo religioso e a
escravatura da superstição para uma moralidade livre e não-religiosa. Sem dúvida os filósofos
do Iluminismo replicaria que sua interpretação se baseava em induções, não em orçamentos.
Mas Herder poderia replicar a sua vez que as seleções dos fatos em que baseavam
inductivamente sua interpretação se deviam a sua vez a orçamentos. O argumento capital de
Herder é que a proposta da história pelos iluministas lhes impede estudar e entender a cada
cultura por si mesma, segundo seu próprio espírito e sua própria complexa unidade. Em Outra
filosofia da história (1774) Herder divide a história em idades ou períodos, mas chamando a
atenção sobre os perigos desse procedimento. Quando delimitamos uma “idade” e a
descrevemos com umas poucas generalizações podemos nos combinar com meras palavras e
pode lhe nos escapar a realidade, a rica vida de um povo. Só o estudo paciente e detalhado dos
dados nos permitirá entender o desenvolvimento de um povo. Como já vimos, Herder dá
importância à poesia e às temporãs canções populares como fontes para o entendimento do
desenvolvimento do espírito humano. Não pode ser dito que o fazer questão do entendimento
do desenvolvimento da linguagem e da literatura estivesse em contradição com as ideias
ilustradas. Mas Herder sublinhava a importância do relativamente primitivo ao interpretar o
homem e sua história. Não apreciaríamos acertadamente a importância das fases culturais
temporãs se persistíssemos nas julgar por referência a critérios baseados nos ideais e os
orçamentos racionalistas dos filósofos do século XVIII.

A grande obra de Herder Criem sul Philosophie der Geschichte der Mensckheit (Ideias
referentes à filosofia da história da humanidade, 1784-1791) está concebida a escala gigantesca.
Nas primeiras duas partes da obra, a cada uma das quais contém cinco livros, Herder trata o
meio físico e a organização da vida do homem, com a antropologia e o período prehistórico,
pelo dizer paradoxalmente, do desenvolvimento do homem. Na terceira parte, que compreende
os livros XI-XV, chega finalmente à história documentada, e leva a exposição até a queda do
império romano. A exposição continua-se na parte quarta (livros XVI-XX), até o ano 1500
aproximadamente. Não chegou a escrever a parte quinta. Pese à ambição do esquema, Herder
não formula pretensões vaidosas; até o título é significativo de modéstia. E o autor afirma
explicitamente que a obra é um conjunto de “ sillares para um edifício que só nos séculos podem
terminar”.[253] Herder não era tão insensato como para supor que ele podia completar o edifício.

Depois de estudar o meio físico do homem, ou seja, as forças do cosmos físico e a posição e
a história da terra, Herder chega ao tema da vida orgânica e do homem mesmo. Não afirma a
evolução, no sentido de que o homem proceda de alguma espécie animal, senão que considera
os gêneros e as espécies como uma pirâmide no ápice da qual se encontra o homem. Por toda a
vida orgânica encontramos, segundo Herder, a manifestação de uma força vital (que corresponde
à entelequia aristotélica) a qual, à medida que subimos pela escala dos gêneros e as espécies, se
expressa na crescente diferenciación de funções. A concepção dessa hierarquia por Herder é de
caráter francamente teológico. As espécies inferiores preparam em sua ordem ascendente o
caminho para o aparecimento do homem assim que ser capaz de pensamento conceptual, do
homem como ser racional e livre. Ao aparecer o homem cumpre a intenção da natureza, ou seja,
de Deus. Mas Herder observa que, enquanto ao nível do puro instinto os estímulos fundamentais
do organismo funcionam de modo infalible, a possibilidade de erro aumenta com o
desenvolvimento da vontade. “Quanto mais débil faz-se o instinto, tanto mais cai baixo o
domínio da vontade arbitrária (ou capricho) e, por tanto, do erro.”[254]

A história é para Herder história natural das faculdades, as ações e as propensiones do


homem, modificadas pelo tempo e o local. Embora não expõe uma teoria evolucionista
transformista ou, pelo menos, não o faz de um modo explícito, Herder sublinha a continuidade,
por assim o dizer, do homem com seu ambiente físico e com as forma inferiores da vida.
Também acentua a importância da organização do homem. O homem “está organizado para” a
razão e a liberdade. veio ao mundo para aprender a razão e conquistar a liberdade. Por isso
Herder pode falar de uma entidade de humanidade (Humanität) latente no homem e que ainda
tem que se desenvolver. A primeira vista pode parecer uma contradição nos termos essa ideia
de uma humanidade latente no homem. Mas Herder usa o termo em dois sentidos. Em um
significa o ideal que o homem é capaz de conseguir; em outro significa a capacidade de atingir
esse ideal. Assim o ideal está latente no homem e Herder pode dizer que o homem está
organizado para a humanidade. Desde depois que assim que realidade física o homem está já
presente. Mas tem ademais a potencialidade da perfección do homem, da “humanidade”.

Também se diz que o homem está organizado para a religião. A religião e a humanidade
estão intimamente relacionadas, até o ponto de que a primeira se descreve como a humanidade
suprema. A origem da religião encontra-se segundo Herder em uma inferência espontânea que
pratica o homem desde os fenômenos visíveis a sua causa invisível. Dizer que a religião se deve
ao medo (por exemplo, ao temor produzido por fenômenos meteorológicos hostis, perigosos ou
amenazadores) é apelar a uma causa totalmente inadequada. “Dizer que o medo inventou os
deuses da maioria dos povos não isto é nada. Pois o medo como tal não inventa nada, senão que
se limita a acordar o entendimento.”[255] Até as falsas religiões dão depoimento da capacidade
humana de reconhecer a Deus. O homem pode inferir a existência de seres que não existem tal
como ele os concebe; mas essa inferência do visível ao invisível, dos fenômenos à causa oculta,
é um passo justificado.

Ao estudar a Herder no capítulo VII citamos sua afirmação, contida no estudo Do


conhecimento e a sensação da alma humana (1778), segundo a qual não é possível uma
psicologia que não seja fisiología à cada passo. Por isso valerá a pena indicar que no livro quinto
da primeira parte de suas Ideias Herder afirma explicitamente a espiritualidad e a imortalidade
da alma humana. Descreve o espírito como uma unidade. Os fenômenos de associação de ideias
não se podem argüir como prova na contramão disso. As ideias associadas na cada caso
pertencem a um ser que “evoca lembranças por sua própria energia... e conexiona as ideias
segundo uma atração ou repulsión internas, não segundo uma mecânica externa”.[256] Há leis
puramente psicológicas segundo as quais a alma realiza suas atividades e combina seus
conceitos. Isso ocorre sem dúvida em relacionamento com mudanças orgânicas, mas isto não
altera a natureza da alma ou espírito. “Se o instrumento não vale, o artista não pode fazer
nada.”[257] Herder, pois, clarifica sua posição em frente aos materialistas.
A segunda parte das Ideias de Herder é como uma polêmica constante com a tendência dos
pensadores iluministas a desprezar o primitivo. Sem dúvida teve desenvolvimento desde o mais
primitivo até o menos primitivo, desenvolvimento no qual foi um importante fator a reação ao
ambiente físico (como diz Montesquieu). E Herder dá uma explicação hipotética do
desenvolvimento da família em clã, do clã em tribo com chefe eleito, e da tribo em sociedade
com monarca hereditario. Mas é absurdo dizer que os povos primitivos careciam de cultura, e
ainda mais absurdo afirmar que eram desgraçados e miseráveis porque não contavam com os
supostos privilégios do século XVIII.

Herder ataca também a ideia de que a história tenha de se interpretar como um movimento
de progresso para o estado moderno. Sugere pelo menos que o desenvolvimento do estado
moderno tem pouco que ver com a razão e se deve mais bem a fatores puramente históricos. Os
membros de uma tribo podem perfeitamente ter sido mais felizes que muitos dos habitantes de
um grande estado moderno no qual “centenas de homens têm que morrer de fome para que um
possa ser comprazido e nadar no luxo”.[258] A antipatía de Herder pelo governo autoritario está
fora de dúvida. Ao publicar a segunda parte da obra teve que tachar a afirmação de que o melhor
dirigente é o que mais contribui a que os governantes sejam supérfluos, e a de que os governos
são como os maus médicos, que tratam a seus pacientes de tal modo que sempre tenham
necessidade de seu tratamento. Mas o que deixa sem tachar é já suficientemente claro. Em sua
opinião “o homem que precisa um senhor é um animal; assim que que se converte em ser
humano deixa de precisar senhor”.[259] Concluyente pelo que faz ao ideal do despotismo
iluminista.

Em todo isso Herder se encontra parcialmente sumido em um ataque indireto a Kant. Este
publicava uma reseña hostil da primeira parte das Ideias; na segunda Herder aproveitou a
ocasião para atacar indiretamente a obra de Kant Crie zu einer allgemeinen Geschichte in
weltbürgerlicher Absicht (Ideia de uma história geral em sentido cosmopolita, 1784). Kant
estava disposto a desprezar todos os estádios da organização social que não pudessem ser
contemplado como contribuição ao desenvolvimento do estado racional. E, por outra parte, um
estado racional tem de ter um “senhor”, pois o homem é tão deficiente que não pode viver em
sociedade sem senhor. É possível que Kant levasse razão neste ponto; mas Herder preferia crer
na bondade e a perfectibilidad naturais do homem. Em qualquer caso, estava tentando recusar a
noção de que a história possa ser beneficiosamente interpretada como um progresso para o
estado moderno, à luz do qual tivesse que julgar todas as demais forma de organização social.

Na terceira parte das Ideias Herder chega à história documentada. Seu princípio metódico
geral é que o espírito do historiador deve estar livre de hipótese e que não tem de tomar como
favorito nenhum povo nem nação, desprezando ou empequeñeciendo outros. O historiador da
humanidade tem que julgar imparcial e desapasionadamente, “como o criador de nossa
espécie”.[260] Em general Herder se esfuerza por realizar esse princípio, embora nota-se-lhe
claramente antipatía por Roma e uma coerente indulgência para com a civilização fenicia.

Herder não se limita a Europa, senão que considera também, por exemplo, as culturas da
China, a Índia, Egito e os judeus, embora seu conhecimento da China e a Índia era, naturalmente,
escasso. Ao chegar a Grécia[261] encontra um ciclo cultural completo, a ascensão e o declinar de
um povo, e utiliza-o para conseguir conclusões gerais. Toda cultura tem seu centro de gravidade,
e quanto mais profundamente se encontra esse centro de gravidade no equilíbrio das forças vivas
ativas da cultura, tanto mais sólida e duradoura é essa cultura. Por isso podemos dizer que a
culminación de uma cultura se produz quando suas forças ativas se encontram mais em
equilíbrio. Mas essa culminación é, por suposto, um ponto; ou seja, o centro de gravidade move-
se inevitavelmente, e o equilíbrio perturba-se. As forças ativas podem ser despregado de tal
modo que o equilíbrio se restaure temporariamente, mas não para sempre. A decadência
apresenta-se infaliblemente, dantes ou depois. Herder fala como se a vida de uma cultura
estivesse determinada por leis naturais, em analogia com a vida de um organismo biológico. O
destino de Roma estava predeterminado não por intervenção divina, senão por fatores naturais.
O ambiente obrigou a Roma a converter em uma nação militar, e este desenvolvimento
configurou sua história, sua grandeza e sua decadência. O império se desequilibró e não pôde
ser sustentado.

Na quarta parte das Ideias Herder segue sua exposição da história européia desde a queda
do império romano. Acentua o papel do cristianismo no desenvolvimento da cultura européia.
É verdade que encontramos no texto consciência da importância dos fatores econômicos: a
exposição das cruzadas é concluyente a este respecto; e também é verdade que Herder percebe
a importância dos inventos técnicos e do novo conhecimento científico. Mas está bem longe da
mentalidade ilustrada que considerava o desenvolvimento desejável da civilização como um
movimento de apartamiento da religião. Herder pode ter sido liberal como cristão, mas estava
profundamente convencido da indispensabilidad da religião na cultura humana.

Como Herder acentua a importância dos grupos étnicos, das nações e as culturas, bem como
o papel dos povos germánicos na origem da cultura cristã, alguma gente desorientada, como por
exemplo os nazistas, tentaram lhe apresentar como um nacionalista e até como um racista. Mas
essa interpretação é errada. Herder não diz nunca que os germanos tenham de dominar às demais
nações. Mais bem condenação, por exemplo, o comportamento dos caballeros teutónicos com
seus vizinhos do este. E em seus escritos ataca frequentemente o militarismo e o imperialismo.
Seu ideal é um despliegue harmonioso das culturas nacionais. Do mesmo modo que os
indivíduos são ou deveriam ser livres e, no entanto, unidos em sociedade, assim também as
diferentes nações deveriam formar uma família, dando a cada uma sua contribuição ao
desenvolvimento da “humanidade”. Quanto ao racismo, Herder achava que os grupos étnicos
constituem a base mais natural do estado. E em sua opinião um dos fatores que contribuíram à
instabilidade de Roma foi precisamente o modo como a conquista de outros povos destruiu sua
unidade étnica. Mas essa ideia, válida ou não, não tem nada que ver com o racismo, se é que
este consiste em afirmar que uma raça é intrinsecamente superior a outras e tem direito às
dominar. Herder estava longe de ser um antisemita. Mas não vale a pena perder o tempo nesta
discussão. Nenhum historiador sensível e objetivo supõe que a teoria herderiana da história
como desenvolvimento das culturas nacionais implique nacionalismo no sentido peyorativo,
militarismo e imperialismo, ou a teoria da superioridad intrínseca de alguma raça. Desde depois
que em algum sentido Herder foi nacionalista, mas não no sentido de que se dedicasse a reclamar
os direitos de sua própria nação e fosse contrário aos conceder a outras.

A filosofia da história de Herder é bastante complexa. Em primeiro lugar aparece seu


insistencia na necessidade de um exame objetivo e desapasionado da cada cultura por si mesma,
sem teorias preconcebidas. Regra excelente para o historiador, por suposto. Depois temos sua
teoria da vida das culturas por analogia com os organismos; e esta teoria parece tender a uma
interpretação que recorda a teoria viquiana dos ciclos. Mas em terceiro local temos a ideia de “
humanidade”, a qual encaixa melhor em uma teoria do progresso que em uma teoria de ciclos.
De todos modos, é perfeitamente possível harmonizar os dois pontos de vista. A cada cultura
tem seu ciclo, mas o movimento geral tende à realização da potencialidade de “ humanidade”
latente no homem.

Não parece completamente claro se a aproximação progressiva ao ideal de humanidade é


para Herder inevitável ou não. Nas Ideias observou que “a filosofia das causa finais não trouxe
vantagens à história natural”.[262] É absurdo pensar, por exemplo, que as más ações de Roma
foram necessárias e imprescindibles para que a cultura de Roma pudesse ser desenvolvido e
atingir sua culminación. Mas ao mesmo tempo, e embora não possamos justificar realmente
todas as ações da história as declarando necessárias para o cumprimento de algum plano
providencial, Herder parece afirmar que o desenvolvimento gradual da “humanidade” é
inevitável. Assim diz a seus leitores que todo o que pode ocorrer dentro dos limites de
circunstâncias nacionais, temporárias e espaciais dadas acontece realmente.[263] E isto parece
implicar que se a aproximação progressiva ao ideal de humanidade é uma coisa possível, então
essa aproximação ocorrerá inevitavelmente. Efetivamente diz Herder que todas as forças
destructivas têm de contribuir em última instância a conservar forças e trabalho para o
desenvolvimento do tudo.[264]

Uma ambigüedad parecida dá-se na série das Briefe zur Beförderung der Humanität (Cartas
para a elevação da humanidade, 1793-1797). Nessas Cartas, nas que Herder se mostra bem
mais disposto que dantes a reconhecer que as mudanças políticas podem contribuir ao progresso
da humanidade,[265] seu ponto de vista gerar pareça ser que há e terá em general um movimento
progressivo para a realização do ideal de humanidade. Ao mesmo tempo faz questão da
necessidade de uma educação que desenvolva as potencialidades innatas no homem. Sem essa
incesante formação educativa, o homem recairia inevitavelmente na bestialidad.[266] Tese desse
tenor não parecem implicar a inevitabilidad do progresso. Herder distingue três fases no
desenvolvimento do espírito europeu. Primeiro teve-se a mistura de cultura romana e cultura
germánica que produziu a organização religiosa e política da Europa. Logo a Renascença e a
Reforma. Por último, a fase contemporânea de Herder, o resultado da qual não podemos
prever.[267] Também neste ponto parece se apresentar dúvida respecto do futuro, embora essa
dúvida podia sem dúvida compadecerse com uma crença geral no avanço da humanidade para
o desenvolvimento último de suas potencialidades supremas.

Talvez possa ser resumido do modo seguinte a situação. Assim que historiador hostil à
tendência a julgar todas as culturas à luz da civilização de sua época, Herder se inclinava
profundamente pelo historicismo e o relativismo, dificilmente compatíveis com o dogma do
progresso. Mas como filósofo que achava não só na bondade e a perfectibilidad naturais do
homem, senão também na obra da divina providência em e pelas ações do homem, Herder se
inclinava naturalmente pela conclusão de que as potencialidades supremas do homem se
realizarão apesar de todos os obstáculos e retrocessos que se dêem pelo caminho.
Parte IV
Kant
Capítulo X
Vida e escritos.

1. A vida e o caráter de Kant.

Se prescindimos da história de seu desenvolvimento intelectual e dos resultados deste não


precisaremos muito tempo para expor os fatos da vida de Kant. Pois foi uma vida
excecionalmente desprovista de acontecimentos e de incidentes dramáticos. É verdade que a
vida de qualquer filósofo está primariamente dedicada à reflexão, e não a uma atividade externa
no palco da vida pública. O filósofo não é um comandante no campo de batalha, nem um
explorador do Ártico. E a não ser que veja-se obrigado a tomar veneno, como Sócrates, ou que
lhe queimem na fogueira, como a Bruno, a vida do filósofo tende a ser pouco dramática. Mas
Kant não foi nem sequer um homem de mundo e viajante, como Leibniz. Não saiu em toda sua
vida da Prusia Oriental. Nem também não ocupou a posição de ditador filosófico na universidade
de alguma capital, como mais tarde Hegel em Berlim. Kant foi simplesmente um excelente
professor da universidade, nada célebre, de uma cidade provinciana. Nem também não teve um
caráter dos que fornecem inesgotável caça aos psicólogos analistas, como é o caso de
Kierkegaard ou Nietzsche. Em seus últimos anos seus conciudadanos conheciam-no pela
metódica regularidade de sua vida e por sua puntualidad, mas a ninguém se lhe ocorreria ver em
Kant uma personalidade anormal. E, no entanto, não será extravagante dizer que o contraste
entre sua vida tranquila e sem acontecimentos e a grandeza de sua influência tem já de por si
uma qualidade dramática.

Immanuel Kant nasceu em Königsberg o 22 de abril de 1724. Era filho de um talabartero.


Cresceu no espírito do movimento pietista, tanto em sua casa, de menino, quanto no Collegium
Fridericianum, no que estudou desde 1732 até 1740. Durante toda sua vida seguiu apreciando
as qualidades dos pietistas sinceros; mas é evidente que reagiu com energia contra os ritos
religiosos que teve que observar no colégio. Este, por outra parte, lhe deu um bom conhecimento
do latín.

Em 1740 começou Kant os estudos universitários em sua cidade natal, e assistiu a cursos
sobre matérias várias. A maior influência sobre ele pode ser atribuído a Martin Knutzen,
professor de lógica e metafísica. Knutzen era discípulo de Wolff, mas tinha particular interesse
pela ciência natural, de maneira que ensinava física, astronomia e matemática além de filosofia.
Pôs ao dispor de Kant sua biblioteca e animou-lhe a estudar a ciência newtoniana. Os primeiros
escritos de Kant são, por verdadeiro, de tema científico, e o filósofo conservou sempre um
interesse profundo por essa temática.
Ao terminar seus estudos universitários Kant teve que aceitar, por razões econômicas, uma
praça de preceptor em uma família da Prusia Oriental; este período de sua vida durou uns sete
ou oito anos, até 1755, ano no qual conseguiu o grau que chamaríamos doctorado e a venia
legendi, o título de Privatdozent . Em 1756 tentou obter a cátedra de Knutzen, que ficava vaga
pela morte deste. Mas Knutzen não era catedrático ordinário, senão professor “extraordinário”,
e o governo, movido por considerações econômicas, considerou amortizada a praça. Em 1764
recebeu Kant a oferta da cátedra de poesia, oferta que recusou sabiamente. Em 1769 recusou
uma oferta análoga da universidade de Jena. Por último, em março de 1770 era professor
“ordinário” de lógica e metafísica em Königsberg. Assim, pois, seu período de Privatdozent
durou de 1755 a 1770, embora durante os últimos quatro anos desse período sua situação
econômica melhorou graças a uma praça de ayudante bibliotecário. (Em 1772 renunciou a esta
praça que era incompatível com a cátedra.)

Durante esses quinze anos, que correspondem ao que geralmente se chama o período
precrítico de Kant, o filósofo deu um número enorme de cursos a respeito de matérias muito
várias. Mais de uma vez deu não só lógica, metafísica e filosofia moral, senão também física,
matemática, geografia, antropologia, pedagogia e mineralogía. Todas as informações coincidem
em que era um professor excelente. Era então norma o expor livros de texto no curso, e Kant
ateu-se a essa prática. Utilizou a Metafísica de Baumgarten. Mas não vacilava em apartar do
texto ou no criticar, e suas classes se adobaban com humor e até com episódios e narrações. Em
seus cursos filosóficos aspirava sobretudo a estimular a seus oyentes a que pensassem por sua
conta ou, como ele dizia, a que se sustentassem sobre seus pés.

Não há que pensar que Kant fosse uma pessoa retraída. Mais tarde se veria obrigado a ganhar
tempo, mas no período ao que nos referimos agora tinha muito trato na sociedade local. Em
realidade, Kant cultivou o trato social durante toda sua vida. Ademais, embora ele mesmo não
viajava nunca, gostava de falar com gente que tivesse experiência de outros países, e às vezes
lhes surpreendia com seus conhecimentos, conseguidos, por suposto, mediante a leitura. Era
homem de interesses muito amplos. Assim, por exemplo, a influência dos escritos de Rousseau
lhe estimulou um vivo interesse pela reforma da educação, aparte de lhe ajudar a desenvolver
suas opiniões políticas em um sentido radical.

Dificilmente poderá ser datado, como é natural, o momento exato em que termina o período
precrítico do pensamento de Kant e começa o período crítico. Seria, isto é, pouco razoável pensar
que possa ser dito exatamente quando recusou Kant o sistema leibnizo-wolffiano e começou a
trabalhar em seu próprio sistema. Mas, por pôr uma data, é lícito tomar como ano decisivo o de
sua nomeação de catedrático, 1770. No entanto, a Crítica da razão pura não apareceu até 1781.
Durante os onze anos que passaram Kant esteve elaborando sua filosofia. Ao mesmo tempo
(mais precisamente, até 1796 inclusive) tinha seu trabalho de professor. Seguiu utilizando livros
de texto wolffianos para os cursos de filosofia, e seguiu também dando cursos sobre temas não
filosóficos; os de antropologia e geografia física tiveram particular sucesso. Kant estava
convencido de que todo estudante precisa conhecimento factual desse tipo, com objeto de
entender o papel da experiência em nosso conhecimento. A teorización filosófica no vazio não
era em modo algum um ideal kantiano, embora um vistazo geral à primeira Crítica possa sugerir
o contrário.
Depois do aparecimento da primeira edição da Crítica da razão pura em 1781 apresentam-
se em rápida sucessão os demais escritos célebres de Kant. Em 1783 publica os Prolegómenos
a toda metafísica, futura, em 1785 a Fundamentación da metafísica dos costumes, em 1786 os
Primeiros princípios metafísicos da ciência natural, em 1787 a segunda edição da Crítica da
razão pura, em 1788 a Crítica da razão prática, em 1790 a Crítica da faculdade de julgar, em
1793 a Religião dentro dos limites da mera razão, em 1795 um breve tratado sobre A paz
perpétua, e em 1797 a Metafísica dos costumes. Compreende-se que com um programa tão
pesado Kant fosse avaro de seu tempo. Fez-se famoso o horário de sua jornada, tenazmente
respeitado durante seus anos de professor. Levantava-se pouco dantes das cinco da manhã e
passava a primeira hora, até as seis, tomando o chá, fumando uma pipa e pensando no trabalho
do dia. De seis a sete preparava as classes, que começavam às sete ou às oito, segundo a estação
do ano, e duravam até as nove ou as dez. Depois dedicava-se a escrever até a comida de meio
dia, na que sempre estava acompanhado e que se prolongava várias horas, pois Kant gostava da
conversa. Depois passeava durante uma hora aproximadamente, e dedicava o resto da tarde à
leitura e a reflexão. Deitava-se às dez da noite.

Só uma vez entrou Kant em conflito com a autoridade política, a propósito da Religião
dentro dos limites da mera razão. Em 1792 o censor autorizou a primeira parte da obra —
titulada “Do mau radical da natureza humana” — pelo fato de que, como os demais escritos de
Kant, não se destinava ao leitor comum. Mas a segunda parte — “Sobre o conflito entre o bom
princípio e o mau” — não satisfez à censura porque atacava a teología bíblica. De todos modos
o conjunto da obra, que constava de quatro partes, foi aprovado pela faculdade teológica de
Königsberg e pela faculdade filosófica de Jena, e publicado em 1793. Então começou o conflito.
Em 1794 Frederick Guillermo II, sucessor de Frederick o Grande no trono de Prusia, expressou
seu desgosto pela obra e acusou a Kant de deformar e desprezar vários princípios fundamentais
das Escrituras e do cristianismo. O rei ameaçou a Kant com determinadas penas se atrevia-se a
repetir a ofensa. O filósofo negou-se a retractarse de suas opiniões, mas prometeu abster-se de
toda outra pronúncia pública, em seus cursos ou por escrito, a respeito da religião natural ou
revelada. Não obstante, à morte do rei Kant considerou que ficava liberto de sua promessa, e em
1798 publico o Conflito das faculdades, no qual discutia o relacionamento entre a teología no
sentido de crença bíblica e a filosofia ou razão Crítica.

Kant morreu o 12 de fevereiro de 1804. Tinha já cinquenta e sete anos quando publicou sua
primeira obra depois célebre, a Crítica da razão pura, de maneira que sua produção literária
entre 1781 e o momento de sua morte compõe um lucro espantoso. Em seus últimos anos estava
trabalhando em uma reformulação de sua filosofia, e as notas destinadas a ser material para uma
versão revisada do sistema foram publicadas em edição Crítica por Erich Adickes, em 1920,
baixo o título de Kants Opus postumum.

O rasgo mais destacado do caráter de Kant foi provavelmente sua seriedade moral e sua
devoción à ideia de dever, devoción que encontra expressão teorética em seus escritos éticos.
Como dissemos, era um homem sociable; também era amável e benévolo. Nunca foi rico, o que
lhe moveu a ser sempre muito cuidadoso em assuntos de dinheiro; mas isso não impediu que
ajudasse sistematicamente a verdadeiro número de pobres. Está fora de dúvida que sua economia
não foi nunca fruto de egoísmo nem de dureza de coração. Não era em absoluto sentimental,
mas foi um amigo sincero e leal, e se conduziu sempre com cortesía e com um notável respeito
dos demais. Pelo que faz à religião, Kant não gostava dos ritos correntes nem tendia, desde
depois, ao misticismo. Também não pode ser dito que fosse precisamente um cristão ortodoxo.
Mas sem dúvida achou realmente em Deus. Embora manteve que a moralidade é autônoma, no
sentido de que seus princípios não se derivam da teología, nem da natural nem da revelada,
também estava convencido de que a moralidade implica ou supõe em última instância crença
em Deus em um sentido que estudaremos mais adiante. Seria um exagero dizer que não tivesse
ideia da experiência religiosa, e o que o dissesse suscitaria infaliblemente indignadas alusões à
reverência de Kant pelo céu estrellado no alto e pela lei moral em seu interior. Mas não mostrou
nenhum aprecio pelas atividades de adoración e oração nem pelo que o barón von Hügel
chamava o elemento místico da religião. Isso, desde depois, não significa que não reverenciasse
a Deus, embora seu contato com a religião ocorresse exclusivamente através da consciência da
obrigação moral. O fato é, segundo toda aparência, que do mesmo modo que escreveu sobre a
estética e a experiência estética sem ter aparentemente nenhum gosto pessoal e vivo pela música,
por exemplo, assim também escreveu de religião sem ter nenhum entendimento profundo da
piedade cristã ou do misticismo oriental, por exemplo. O caráter de Kant carateriza-se pela
seriedade moral mais que pela devoción religiosa, sem que isto tenha de entender no sentido de
que fosse um homem irreligioso ou de que sua afirmação de sua crença em Deus fosse insincera.
Só em solemnidades que exigissem sua presença assistiu a serviços eclesiásticos, e seu caráter
pode ficar em parte revelado por aquela advertência sua a um amigo: que o progresso em
bondade moral vai acompanhado pelo abandono da oração.

Em política Kant tendia ao republicanismo, se entende-se o termo de tal modo que inclua
também a monarquia limitada, constitucional. Simpatizaba com os americanos na Guerra da
Independência, e depois simpatizó também com os ideais — ao menos — da Revolução
Francesa. O militarismo e o chovinismo eram completamente alheios a seu espírito; o autor da
paz perpétua não foi o tipo de pensador que os nazistas podiam utilizar de algum modo
persuasivo. Suas ideias políticas estavam, desde depois, intimamente relacionadas com sua
concepção do valor da livre personalidade moral.

2. Os primeiros escritos e a física newtoniana.

Como vimos, o interesse de Kant pelos assuntos científicos foi estimulado por Martin
Knutzen na Universidade de Königsberg. Também é evidente que durante o período em que
trabalhou como preceptor na Prusia Oriental leu muita literatura científica. A tese doctoral que
apresentou à Universidade em 1755 era sobre o fogo (De igne); e no mesmo ano publicou uma
Allgemeine Naturgeschichte und Theorie dê Himmels (História natural general e teoria do céu).
Esta obra era o arredondamento de dois ensaios anteriores (1754), um a respeito do movimento
de rotação da Terra e o outro a respeito da questão física de se a Terra está envelhecendo. Neste
trabalho propôs sua original antecipação da hipótese da nebulosa, mais tarde formulada por
Laplace.

Por todo isso alguns historiadores preferem, à corrente divisão da vida intelectual de Kant
em dois períodos — um precrítico, baixo a influência do sistema leibnizo-wolffiano, e o período
crítico, no que concebe e expressa sua própria filosofia —, uma divisão triplo. Pensam, isto é,
que há que reconhecer a existência de um período inicial no qual Kant se ocupa
fundamentalmente de problemas de natureza científica. Este período duraria até 1755 ou 1756,
enquanto o período filosófico precrítico cobriria mais ou menos nos anos sessenta.

Sem dúvida há argumentos em favor dessa divisão em três períodos. Pois serve para fixar a
atenção no caráter predominantemente científico dos primeiros escritos de Kant. Mas para fins
de exposição geral parece-me suficiente a tradicional divisão em dois períodos. Em realidade
Kant não abandonou nunca a física newtoniana em favor de nenhuma outra classe de física,
enquanto em mudança abandonou a tradição filosófica wolffiana em favor de outra filosofia
nova. E este é o fato decisivo de seu desenvolvimento espiritual. Ademais, a divisão em três
períodos pode dar local a confusão. Pois os escritos primeiros de Kant, embora sejam
predominantemente científicos, não o são de modo exclusivo. Assim por exemplo, em 1755
segue ao De igne uma disertación latina titulada Principiorum primorum cognitionis
metaphysicae nova dilucidatio (Nova dilucidación dos primeiros princípios do conhecimento
metafísico), composta para conseguir a venia legendi. Por outro lado, Kant publicou alguns
trabalhos científicos também durante o período crítico. Assim publicou em 1785 um ensaio
Ueber die Vulkane in Monde (Envelope os vulcões da Lua).

Mas seria uma perda de tempo o seguir discutindo esta questão. O ponto de importância é
que Kant, embora não foi nunca um físico ou astrônomo profissional, por assim o dizer, adquiriu
um conhecimento da ciência newtoniana, e que a validade da concepção científica do mundo foi
sempre para ele um dado firme. Por suposto: a natureza do conhecimento científico era assunto
aberto e sujeito a discussão, e o âmbito de aplicabilidad das categorias e os conceitos científicos
constituía um problema. Mas Kant não duvidou nunca da validade geral da física newtoniana
dentro de seu próprio campo, e seus posteriores problemas surgiram sobre a base dessa
convicção. Por exemplo: como pode ser reconciliado o mundo da experiência moral, que implica
liberdade, com a concepção científica do mundo como um sistema regido por leis e no que a
cada acaecimiento tem seu curso determinado e determinante? Ou que justificativa teorética
podemos achar da universalidade dos enunciados científicos e da validade da predição científica
em frente ao empirismo de David Hume, que parece deixar a concepção científica do mundo
desprovista de toda justificativa teorética racional? Não pretendo afirmar que tais problemas
estivessem presentes desde o princípio no espírito de Kant; nem quero antecipar neste momento
uma discussão das questões que em um posterior estádio originaram sua filosofia Crítica. Mas
para uma apreciação da problemática caraterística de Kant, que é o tema aqui interessante,
resulta essencial o entender desde o primeiro momento que Kant aceitou ao princípio e aceitou
até o final a validade da ciência newtoniana. Dada essa aceitação e dado o empirismo de Hume,
Kant se veria obrigado no curso do tempo a se propor questões a respeito da natureza do
conhecimento científico. E, por outra parte, dada sua aceitação da concepção científica do
mundo e dada sua aceitação da validade da experiência moral, Kant se veria também obrigado
com o tempo a discutir a reconciliação do mundo da necessidade com o mundo da liberdade.
Por último dados os fatos do avanço científico e da aceitação comum da física clássica, Kant se
veria obrigado a se perguntar se a ausência de um avanço análogo na metafísica e de uma
aceitação comum de algum sistema metafísico não exigiam uma revisão radical de nossas ideias
a respeito da natureza e a função da metafísica. O tratamento desses problemas por Kant era
assunto de sua idade madura; mas sua mesma proposta pressupunha a aceitação da ciência
newtoniana que se manifesta em seus escritos primerizos.
3. Escritos filosóficos do período precrítico.

Ao falar do período precrítico do desenvolvimento intelectual de Kant um se refere, como é


natural, ao período anterior à concepção e a elaboração de sua própria filosofia. Dito de outro
modo, há que tomar o termo em sentido técnico, e não no sentido de “ acrítico”, “ingênuo”, etc.
Neste período Kant adere-se mais ou menos plenamente no ponto de vista da filosofia wolffiana;
mas nunca aceitou essa filosofia de um modo servil e acrítico. Já em 1755, em sua obra latina
citada Principiorum primorum cognitionis metaphysicae nova dilucidatio, criticaria Kant
algumas doutrinas de Leibniz e de Wolff, como, por exemplo, o uso por eles fato do princípio
de razão suficiente. Naquela época Kant conhecia limitada e inadequadamente a verdadeira
filosofia de Leibniz, diferente da escolástica versão dela que elaboraram Wolff e seus
sucessores: nos escritos kantianos dos anos sessenta podemos ver como aumenta a atitude
Crítica respecto do sistema leibnizo-wolffiano, embora só ao final desse decenio aparece o ponto
de vista crítico em sentido técnico.

Em 1762 publicou Kant Die falsche Spitzfindigkeit der vier syllogistischen Figurem (A falsa
sutileza das quatro figuras silogísticas), escrito no que sustentava que a divisão lógica do
silogismo em quatro figuras é excessiva e desnecessária. E ao final do mesmo ano publicava
Der einzig mögliche Beweisgrund zu einer Demostration dê Dasein Gottes (O único fundamento
possível de uma demonstração da existência de Deus). Como esta obra tem verdadeiro interesse,
vale a pena se deter aqui a fazer algumas observações a sua respecto.

Ao final deste ensaio Kant observa que “embora é do todo necessário estar convencido da
existência de Deus, não o é tanto o o demonstrar”[268]. Pois a Providência não dispôs que a única
via para chegar a um conhecimento de Deus seja a das sutilezas metafísicas. Se assim fora, por
verdadeiro, nos encontraríamos em uma triste situação. Pois até o momento não se encontrou
nenhuma demonstração construtiva que tenha alguma analogia com as da matemática. De todos
modos, é natural que o filósofo profissional se pergunte se é possível uma demonstração estrita
da existência de Deus. E a intenção de Kant é contribuir algo a essa investigação.

Todas as demonstrações da existência de Deus têm de descansar no conceito do possível ou


na ideia empírica do existente. A cada uma dessas classes pode subdividirse em duas subclases.
Em primeiro lugar, podemos tentar argüir da possibilidade como fundamento à existência de
Deus como consequência, ou da possibilidade como consequência à existência de Deus como
fundamento dessa possibilidade. Em segundo local, ou seja, quando partimos das coisas
existentes, temos também dois caminhos practicables em princípio. Ou bem tentamos provar a
existência de uma causa primeira e independente dessas coisas, para mostrar depois que essa
primeira causa tem de possuir certos atributos que justificam o que lha chame Deus. Ou bem
tentamos mostrar ao mesmo tempo ambas coisas, a existência e os atributos de Deus. Toda prova
da existência de Deus tem de tomar, segundo Kant[269], alguma dessas quatro forma.

A primeira linha argumentativa, a que procede da possibilidade como fundamento à


existência de Deus como consequência, corresponde ao que se chama o argumento ontológico,
que vai da ideia de Deus à divina existência, foi proposto de forma diversas por san Anselmo e
Descarte e reformulado e aceitado por Leibniz. Kant recusa-o neste trabalho porque pressupõe
que a existência é um pregado, o qual é um orçamento falso. A terceira linha de argumentación,
que corresponde ao que Kant lume depois o argumento cosmológico e que, segundo observa, é
muito usado por filósofos da escola de Wolff, fica eliminado sobre a base de que não podemos
demonstrar que uma primeira causa tenha de ser o que chamamos Deus. Pela quarta linha de
argumentación, que corresponde à prova teleológica ou da finalidade, Kant mostra, como
seguirá fazendo no futuro, considerável respecto, sempre que o acentuado seja a teleología
inmanente do organismo. Mas essa argumentación não pode ser admitido como demonstração
da existência de Deus, senão que nos leva no máximo a uma mente ou inteligência divina que
produz no mundo sistema, ordem e teleología; mas não nos leva a um criador. Dito de outro
modo: esse argumento enfrenta-nos com um dualismo, uma mente supraterrenal por um lado e,
por outro, o material ao que tem de dar forma esse espírito. E se não se dispõe mais que desse
argumento, não se resolve a questão de se o material é dependente ou independente de Deus.

Fica, pois, a segunda linha de argumentación, a que procede da possibilidade como


consequência à existência de Deus como fundamento. E esta é a linha argumentativa que Kant
propõe como a única base possível de uma demonstração da existência de Deus. Não há, diz
Kant, contradição lógica intrínseca na negación de toda existência em general. Mas o que não
podemos fazer legitimamente é afirmar a possibilidade e negar ao mesmo tempo que tenha um
fundamento existente dessa possibilidade. Mas temos que admitir a possibilidade. Pois não
podemos a negar sem pensar, e pensar é afirmar implicitamente o reino da possibilidade. Kant
arguye então que o ser fundamento da possibilidade tem de ser um, simples, inmutable, eterno,
espiritual e todo o demais incluído na significação do termo “Deus” tal como se usa na
metafísica.

Dentro da filosofia medieval, essa linha de argumentación recorda muito a Duns Scott, que
tentou argüir da possibilidade à existência e os atributos de Deus; em todo caso, o recorda mais
que a santo Tomás de Aquino. É verdade que em sua terça via santo Tomás baseia a
argumentación no conceito de entes “possíveis”; mas seu conceito de possibilidade deriva-se do
fato empírico de que certas coisas chegam a ser e perecem, pelo que são “possíveis” (o que os
escolásticos em general chamam “contingentes”). E Kant está arguyendo que a existência de
Deus fica implicada por todo pensamento, não que a existência de coisas contingentes manifeste
a existência de Deus. Talvez possa ser dito que Kant postula que a argumentación leíbniziana
que arranca das verdades eternas se converta em uma demonstração estrita. Em qualquer caso é
interessante observar que sua linha de pensamento, embora diferente da do argumento
ontológico, é de caráter a priori em comparação, por exemplo, com o argumento teleológico, e
que pressupõe uma concepção leibniziana da metafísica como ciência não-empírica. O que não
significa que Kant não perceba claramente uma diferença intrínseca entre a matemática e a
metafísica. A diferença afirma-se claramente em uma obra à que se fará referência agora.

No único fundamento possível[270] Kant falava da metafísica como de “ um abismo


insondable” e “um escuro oceano sem orlas nem faros”. Alguma coisa mais explícita diz-nos/dí-
nos na Untersuchung über die Deutlichkeit der Grundsätze der natürlichen Theologie und der
Moral (Investigação a respeito da distinção dos princípios da teología natural e da moral,
1764). No ano anterior a Academia de Berlim oferecia um premio a um ensaio sobre a questão
de se as verdades metafísicas em general e, designadamente, os primeiros princípios da teología
natural e da moral são suscetíveis do mesmo grau de certeza demostrativa que os princípios da
geometria. Em caso de resposta negativa, tratava-se de precisar o grau de certeza de que
desfrutam e se esse grau é suficiente para justificar a convicção plena. O ensaiou de Kant não
ganhou o premio, que foi outorgado a um trabalho de Mendelssohn; mas é, naturalmente, de
grande interesse.

Kant afirma que há diferenças fundamentais entre a metafísica e a matemática[271]. A


matemática é uma ciência construtiva, no sentido de que procede “sinteticamente”, construindo
a seu arbitrio as definições. A definição de uma figura geométrica não é resultado da análise de
um conceito ou uma ideia previamente possuídos, senão que o conceito mesmo nasce pela
definição. Em filosofia (“sabedoria do mundo”, Weltweisheit, o lume Kant) as definições obtêm-
se em mudança — quando se obtêm — mediante análise. Ou seja, temos primeiro a ideia de
algo, e essa ideia é confusa ou inadequada; e depois tentamos clarificá-la comparando exemplos
de sua aplicação e realizando um trabalho abstractivo. Neste sentido a filosofia procede de modo
analítico, não sintético. Para ilustrar a diferença Kant alega o exemplo do tempo. Já temos
alguma ideia e conhecimento do tempo dantes de empreender uma investigação filosófica a
respeito do mesmo. E a investigação toma a forma de uma comparação e uma análise de diversos
exemplos da experiência do tempo para formar um conceito abstrato adequado. “Se tentasse
chegar sinteticamente a uma definição do tempo teria que ter muita sorte para conseguir um
conceito que expressasse completamente a ideia previamente dada”[272]. Ou seja, se
construíssemos uma definição do tempo arbitrariamente, tal como o geómetra constrói suas
definições, seria uma questão de pura sorte o que essa definição desse explícita expressão
abstrata à concreta ideia de tempo já possuída por mim mesmo e por qualquer outra pessoa.

Pode objetarse a isso o que de fato muitos filósofos constroem “sinteticamente” suas
definições. Por exemplo, Leibniz arbitró uma substância simples que possui representações
escuras ou confusas, e a chamou mónada durmiente. É verdade. Mas o importante é que quando
os filósofos constroem arbitrariamente suas definições, essas definições não são propriamente
filosóficas. “Essas determinações da significação de uma palavra não são nunca definições
filosóficas. Se para valer há que as considerar como esclarecimentos, o serão só
gramaticais”[273]. Sem dúvida posso explicar em que sentido vou usar o termo “mónada
durmiente”, mas ao o fazer atuo como gramático, não como filósofo. Leibniz “não explicou essa
mónada, senão que a imaginou; pois a ideia em questão não era dada, senão que foi produzida
por ele mesmo”[274]. Analogamente, o matemático trata com frequência com conceitos que são
suscetíveis de análises filosófico e que não são construções meramente arbitrárias. O conceito
de espaço é um exemplo oportuno. Mas o matemático recebe esses conceitos, os quais não são
propriamente conceitos matemáticos no mesmo sentido que o de um polígono, por exemplo.

Podemos dizer que enquanto na matemática não temos conceito enquanto a definição não o
forneça, em metafísica[275] temos conceitos previamente dados, embora confusos, e tentamos os
fazer claros, explícitos e determinados[276]. Como diz san Agustín, sei perfeitamente que é o
tempo enquanto ninguém me exija uma definição dele. E em metafísica posso conhecer
perfeitamente algumas verdades a respeito de um objeto do pensamento e obter conclusões
válidas dessas verdades sem ser capaz, no entanto, de definir o objeto. Kant dá ao respecto o
exemplo do desejo. Posso dizer muitas coisas verdadeiras a respeito da natureza do desejo ainda
sem ser capaz do definir. Em resolução: enquanto na matemática começa-se pelas definições em
metafísica segue-se o caminho inverso. E Kant conclui que a regra principal que tem de se
observar para obter certeza em metafísica consiste em averiguar que é o que um conhece
imediatamente e com certeza a respeito do assunto que esteja considerando, e determinar os
julgamentos a que dá origem esse conhecimento.

A metafísica é, pois, diferente da matemática. Ao mesmo tempo temos de admitir que as


teorias filosóficas foram geralmente como meteoros, cujo brilho não é garantia de longevidade.
“A metafísica é sem dúvida o mais difícil de todos os estudos humanos; o que passa é que jamais
até agora se escreveu uma metafísica”[277]. Faz falta uma mudança de método. "O método
genuíno da metafísica é fundamentalmente da mesma classe do que Newton introduziu na
ciência da natureza e foi tão fecundo nela”[278]. O metafisico deve partir de alguns fenômenos
da “experiência interna”, descrevê-los cuidadosamente e averiguar os julgamentos imediatos a
que dá pé essa experiência e que podemos aceitar com certeza. Depois pode ser perguntado se
os diversos fenômenos podem ser reunido baixo um só conceito ou uma só definição,
analogamente a como se opera, por exemplo, com a lei da gravitación. Como vimos, Kant usava
livros de texto wolffianos em filosofia, e em metafísica precisamente utilizava o livro de
Baumgarten. O método de Baumgarten consistia em partir de definições muito gerais e proceder
para o mais particular. Esse é precisamente o método que recusa Kant. O metafisico não estuda
primariamente o relacionamento de fundamento a consequência em um sentido puramente
lógico e formal. Ocupa-se de “ fundamentos reais”, e tem que partir do dado.

Pelo que faz às questões de detalhe propostas pela Academia de Berlim a propósito da
teología natural e da moral, Kant mantém ainda na Investigação que os princípios da teología
natural são verdadeiros ou podem o ser. Refere-se também brevemente a sua demonstração da
existência de Deus como fundamento atual da possibilidade. Mas em moral a situação parece-
lhe algo diferente. Pois, por de repente, há que reconhecer o papel do sentimento na vida moral.
Kant alude a “ Hutcheson e outros” e observa que “em nossos dias principalmente os homens
começaram a ver que enquanto a faculdade de se representar a verdade é conhecimento, a de
perceber o bem é sentimento, e que não há que confundir uma com outra”[279]. (A influência dos
moralistas e os esteticistas britânicos manifesta-se também nas kantianas Beobachtungen über
dá Gefühl dê Schönen und Erhabenen (Observações a respeito do sentimento do formoso e o
sublime, 1764.) Mas completamente aparte do papel desempenhado pelo sentimento na vida
moral, os primeiros princípios da moralidade não foram nunca postos em claro. A distinção que
traça aqui Kant entre “necessidade problemática” (para atingir o objetivo X há que utilizar o
médio E) e “necessidade legal” (se está obrigado a fazer tal ou qual coisa por si mesma, não
como médio) é uma verdadeira antecipação da posterior teoria ética kantiana. Ao mesmo tempo
escreve Kant que, depois do pensar muito, chegou à conclusão de que o primeiro princípio
formal da obrigação diz “Faça o mais perfeito que te seja possível”[280], mas que desse princípio
não podem ser deduzido obrigações concretas enquanto não se dêem também primeiros
princípios “materiais”. Todos esses temas têm que se examinar e se pensar cuidadosamente
dantes de poder dar aos primeiros princípios da moral o grau supremo de certeza filosófica.

As observações de Kant na Investigação a respeito da clarificación da ideia de tempo podem


fazer pensar que esteja reduzindo a filosofia à “análise linguística”, a uma análise do uso dos
termos. Mas Kant não pretende negar o alcance existencial da metafísica. Isto fica claro, por
exemplo, com o que diz a respeito da teología natural. O que nesta obra lhe interessa dizer é que
a metafísica que realmente utilize o método matemático ficará limitada à apresentação de
relacionamentos de envolvimento formal. Se o metafísico queira para valer aumentar nosso
conhecimento da realidade, tem que se abster de imitar ao matemático e adotar mais bem um
método análogo ao utilizado com tanto sucesso por Newton na ciência natural. Tem que começar
por clarificar os confusos conceitos da experiência, lhes dando uma expressão adequada e
abstrata; e então talvez seja capaz de proceder por inferência e construir uma metafísica. Isto
não permite inferir que Kant tivesse muita fé na capacidade da metafísica para alargar nosso
conhecimento teorético para além da esfera das ciências. E quando se lêem estes textos tendo
em conta o posterior desenvolvimento do pensamento kantiano algumas observações da
Investigação parecem muito naturalmente uma tentativa de antecipação de seu posterior ponto
de vista. Tal é, por exemplo, o caso da observação segundo a qual a metafísica se ocupa dos
primeiros princípios de nosso conhecimento. Mas não estaria justificado o atribuir ao Kant desta
época o pleno ponto de vista crítico. O único que podemos dizer é que sua recomendação ao
metafísico de que substitua o método matemático pelo método newtoniano não deve nos
esconder o crescente escepticismo de Kant ou, pelo menos, a progressiva cristalización de sua
dúvida respecto das pretensões da metafísica especulativa. A recomendação é em parte
expressão disso, pois vai junta com a convicção de que enquanto a ciência natural cumpriu sua
promessa de aumentar nosso conhecimento do mundo, a metafísica não fez o mesmo com a sua.
E a indicação a respeito de como poderia o fazer não significa sem mais que Kant se adira às
pretensões da metafísica especulativa. Em realidade Kant dirá claramente muito cedo que está
longe do fazer assim.

Em 1766 publicou Kant anonimamente (embora a identidade do autor não foi nunca um
segredo) uma obra em parte séria e em parte humorística titulada Träume eines Geistersehers,
erláutert durch Träume der Metaphysik (Sonhos de um visionario, comentados pelos sonhos da
metafísica). Durante algum tempo tinha sentido Kant curiosidade pelas experiências visionarias
de Immanuel Swedenborg; estudou os Arcana coelestia deste último, e o resultado de suas
reflexões ao respecto foram os Sonhos de um visionario. Kant não aceita nem recusa
categoricamente a origem possível das experiências visionarias na influência exercida por um
mundo de espíritos. Dá-nos, por um lado, o que chama “um fragmento de filosofia
esotérica”[281], no qual, dado o suposto (não provado) de um mundo de espíritos, sugere um
modo pelo qual pode ser projetado em visões imaginativas a influência dos espíritos nas almas
dos homens. A isso acrescenta “um fragmento de filosofia vulgar”[282], no que sugere uma
explicação de experiências como a de Swedenborg pelo procedimento de apresentar a seus
sujeitos como claros candidatos ao tratamento médico. O leitor pode adotar a explicação que
prefira. Mas o principal não é a discussão das experiências visionarias por Kant, senão sua
pergunta de se as teorias da metafísica especulativa, na medida em que pretendem trascender a
experiência, estão em melhor posição que as visões de Swedenborg. Kant deixa em claro que se
encontram, em sua opinião, em posição ainda mais débil. Pois é possível que as visões de
Swedenborg se devessem ao contato com um mundo de espíritos, embora isso não possa ser
provado. Mas das teorias metafísicas supõe-se que se provam racionalmente, e isso é
precisamente o que não pode ser feito com teorias a respeito de seres espirituais. Nem sequer
podemos ter noção positiva dos espíritos. Sem dúvida podemo-los descrever por via de
negaciones. Mas segundo Kant a possibilidade desse procedimento não descansa nem na
experiência nem na inferência racional, senão em nossa ignorância, nas limitações de nosso
conhecimento. A conclusão é que a doutrina dos espíritos tem de se excluir da metafísica, a qual,
se quer ser científica, tem que consistir exclusivamente em determinar “os limites do
conhecimento, postos pela natureza à razão humana”[283].
Ao adotar essa atitude respecto da metafísica Kant estava influído pelo criticismo de Hume.
Isto fica suficientemente claro pelo que se diz nos Sonhos de um visionario a respeito do
relacionamento causal. Este relacionamento não tem de se confundir com a de envolvimento
lógica. Não há nenhuma contradição lógica na afirmação da causa com simultânea negación do
efeito. As causas e os efeitos não podem ser conhecido senão pela experiência. Portanto, não
podemos utilizar a ideia de causalidad para trascender a experiência (a experiência sensível) e
conseguir conhecimento de uma realidade suprasensible. Kant não nega que tenha realidade
suprasensible; o que nega é que a metafísica possa abrir uma porta para essa realidade ao modo
como os metafísicos do passado o acharam possível.

Não é correto dizer, observa Kant, que a metafísica tradicional seja necessária para a
moralidade, no sentido de que os princípios morais sejam dependentes de verdades metafísicas
como a imortalidade da alma e o premio e o castigo divinos na outra vida. Os princípios morais
não são conclusões obtidas da metafísica especulativa. E a crença moral (der moralische
Glaube) possa, por outra parte, apontar perfeitamente para além do mundo empírico. “Parece
mais concorde com a natureza humana e com a pureza da moral o fundar a expectativa do mundo
futuro na experiência de uma alma virtuosa que fundar, ao inverso, a atitude moral dessa alma
na esperança em outro mundo”[284].

Assim, pois, nos Sonhos de um visionario encontramos antecipações das posteriores


opiniões de Kant. A metafísica especulativa do tipo tradicional não é nem pode ser uma fonte
de conhecimento científico, demonstrado. A moralidade é autônoma e não depende da
metafísica nem da teología. Ou seja: os princípios morais não são conclusões obtidas de premisas
metafísicas ou teológicas. Mas, por outra parte, a moralidade pode apontar a para além de si
mesma, no sentido de que a experiência moral produz uma fé moral (razoável) em certas
verdades que não podem ser demonstradas pelo metafísico. De todos modos, Kant não chegou
ainda a sua caraterística concepção madura da filosofia, embora se acerca muito a ela com a
ideia de que a metafísica tem de tomar a forma de ciência dos limites do conhecimento humano.
Ainda predomina o lado negativo de seu pensamento, o criticismo cético respecto da metafísica
especulativa.

O ensaio a respeito do espaço e o tempo que publicou em 1768 mostra claramente que Kant
não chegava ainda a seu ponto de vista crítico. Neste ensaio desenvolve algumas ideias de
Leonard Euler (1707-1783), pelo que sentia grande admiração, e sustenta que “o espaço absoluto
tem uma realidade própria independente da existência de toda matéria...”[285] Ao mesmo tempo
Kant mostra-se consciente das dificuldades próprias da teoria de que o espaço é uma realidade
objetiva independente. E observa que o espaço absoluto não é um objeto da percepción externa,
senão um conceito fundamental que possibilita dita percepción[286]. Este ponto de vista se
desenvolveria na disertación inaugural.

4. A tese de 1770 e seu conteúdo.

A afirmação kantiana da introdução aos Prolegómenos a toda metafísica futura segundo a


qual foi David Hume o que acordou ao filósofo de seu sonho dogmático se cita e repete tão
frequentemente que um pode passar por alto ou subestimar a influência de Leibniz. Em 1765
publicaram-se os Novos ensaios sobre o entendimento humano e em 1768 apareceu a edição dos
escritos de Leibniz por Duten, com a correspondência Leibniz-Clarke. Dantes da publicação
desses escritos Kant entendia o pensamento de seu grande precursor sobretudo através da
filosofia wolffiana, e é claro que a nova luz baixo a qual apareceu a de Leibniz teve uma grande
influência em seu espírito. Os primeiros resultados de suas reflexões ao respecto acharam
expressão em sua disertación inaugural como professor: De mundi sensibilis atque intelligibilis
forma et principiis (Da forma e os princípios do mundo sensível e inteligible, 1770).

Arranquemos de um ponto concreto. Pelo que faz à correspondência Leibniz-Clarke, Kant


se convenceu de que o primeiro levava razão ao sustentar contra Newton e Clarke que o espaço
e o tempo não podem ser realidades absolutas nem propriedades de coisas-em-si. Se tentamos
adotar a posição de Clarke encontramo-nos inevitavelmente sumidos em antinomias. Portanto,
Kant aceitou o ponto de vista de Leibniz segundo o qual o espaço e o tempo são fenoménicos, e
não propriedades das coisas-em-si. Mas, por outra parte, não estava disposto a admitir a noção
leibniziana de que o espaço e o tempo são representações ou ideias confusas. Pois neste caso a
geometria, por exemplo, não seria a ciência exata e certa que é. Por isso Kant fala do espaço e
do tempo como de “ intuiciones puras”.

Para entender esta posição temos que retroceder um pouco. Em seu disertación inaugural
Kant divide o conhecimento humano em conhecimento sensível e conhecimento intelectual. Esta
distinção não tem de se entender como coincidente com a distinção entre conhecimento confuso
e conhecimento diferente. Pois o conhecimento sensível possa perfeitamente ser diferente, como
o é no caso da geometria, protótipo desse conhecimento. E o conhecimento intelectual pode ser
confuso, como não poucas vezes ocorre em metafísica. Por tanto, a distinção tem de entender-
se como baseada nos objetos: os objetos do conhecimento sensível são as coisas sensíveis, os
sensibilia capazes de afetar à sensibilidade (sensualitas) do sujeito, que é a receptividad deste,
sua capacidade de ser afetado pela presença de um objeto e de produzir uma representação do
mesmo.

Deixando pelo momento aparte o conhecimento intelectual para atender ao sensível, temos
de distinguir nele entre a matéria e a forma. A matéria é o dado, ou seja, as sensações, o
produzido pela presença dos objetos sensíveis. A forma é o que coordena a matéria; é
contribuída, por assim o dizer, pelo sujeito conhecedor e é a condição do conhecimento sensível.
Dois são essas condições, o espaço e o tempo. Em seu disertación inaugural Kant chama-os
“conceitos”. Mas observa que não são conceitos universais baixo os quais se agrupem coisas
sensíveis, senão conceitos singulares nos quais os sensibilia se convertem em objeto do
conhecimento. Estes “conceitos singulares” descrevem-se como “intuiciones puras”. A intuición
divina é o arquetipo e princípio ativo das coisas, mas isto não ocorre com nossas intuiciones,
que são pasivas. Sua função consiste só em coordenar as sensações que recebem e possibilitar
assim o conhecimento sensível. “O tempo não é nada objetivo e real; não é nem acidente, nem
substância, nem relacionamento; é a condição subjetiva, necessária pela natureza do espírito
humano, da coordenação de todos os sensibilia por uma verdadeira lei, e é intuición pura. Pois
só mediante o conceito de tempo coordenamos substâncias e acidentes segundo a simultaneidad
e a sucessão...”[287] Também não “o espaço é nada objetivo e real; não é nem substância, nem
acidente, nem relacionamento; é subjetivo e ideal e procede da natureza do espírito por uma lei
estável, como esquema de coordenação de todos os sensa externos”[288]. Assim, pois, a intuición
pura de tempo é condição necessária de todo conhecimento sensível. É impossível, por exemplo,
ter consciência dos próprios desejos internos se não é no tempo. A intuición pura do espaço é
condição necessária de todo conhecimento de sensa externos.

Portanto, para evitar as dificuldades e as antinomias que se produzem ao sustentar que o


espaço e o tempo são realidades independentes, absolutas, ou que são propriedades objetivas e
reais das coisas, Kant afirma que são intuiciones puras (isto é, carentes de todo conteúdo
empírico) subjetivas, as quais formam, junto das sensações, matéria do conhecimento sensível,
o que na disertación se chama “aparências” (apparentiae). A tese não deve ser entendido no
sentido de que o ser humano aplique consciente e deliberadamente essas intuiciones puras às
sensações. A união da forma e a matéria precede a toda reflexão. Isto é: por ser o que é, o sujeito
humano percebe necessariamente os objetos sensíveis no espaço e o tempo. O ato de distinguir
entre forma e matéria é obra da reflexão filosófica. Mas pelo que respecta a nossa consciência,
a união é algo dado, embora na posterior reflexão possamos distinguir entre o devido à presença
de objetos sensíveis e o contribuído pelo sujeito.

É possível interpretar do modo seguinte o ponto de vista de Kant. Suponhamos, com Hume,
que no conhecimento sensível o dado consiste em última instância em impressões ou sensações.
É óbvio que o mundo da experiência não consta simplesmente de impressões, sensações ou
dados sensíveis. Por isso se apresenta a questão de como se sintetiza o dado em última instância
para formar o mundo da experiência. Esta pergunta soa assim com a terminología da disertación
inaugural de Kant: quais são a forma e os princípios do mundo sensível? Antes de mais nada
(não cronologicamente, senão desde o ponto de vista de la prioridêem lógica) se percebem os
elementos dados nas intuiciones puras ou “conceitos” de espaço e tempo. Há coordenação
espacial e temporária. Com isso temos as “aparências”. Logo o espírito, mediante o que Kant
lume o uso lógico do entendimento, organiza os dados da intuición sensível deixando intato seu
caráter fundamentalmente sensual. Com isso temos o mundo fenoménico da “experiência”. “Da
aparência à experiência não há mais via que a da reflexão segundo o uso lógico do
entendimento”[289]. Em seu uso lógico ou função lógica o espírito organiza simplesmente os
dados da intuición sensível; com isso temos os conceitos empíricos da experiência. Assim se
possibilitam as ciências empíricas graças ao uso lógico do entendimento. Estas ciências
pertencem à esfera do conhecimento sensitivo, não no sentido de que não se utilize nelas o
intelecto ou entendimento (afirmação que seria absurda), senão no sentido de que o
entendimento, por assim o dizer, não fornece nelas conceitos de sua própria colheita, senão que
se limita a organizar logicamente os materiais tomados das fontes sensíveis. O uso lógico do
entendimento não se limita em realidade à organização do material tomado da fonte sensível;
mas ao usar deste modo seu uso não transforma o conhecimento sensitivo em conhecimento
intelectual no sentido em que Kant utiliza esses termos na disertación.

Que entende Kant por conhecimento intelectual e por mundo inteligible? Conhecimento
intelectual ou racional é conhecimento de objetos que não afetam aos sentidos, ou seja,
conhecimento não de sensibilia , senão de intelligibilia . E estes formam juntos o mundo
inteligible. O conhecimento sensível é conhecimento de objetos tal como aparecem, isto é,
submetidos ao que Kant chama “as leis da sensibilidade”, que são as condições a priori de
espaço e tempo; enquanto o conhecimento intelectual é conhecimento de coisas tal como são
(sicut sunt)[290]. As ciências empíricas caem na categoria do conhecimento sensível, enquanto a
metafísica é o exemplo primário de conhecimento intelectual.

Esse desenvolvimento sugere obviamente que na metafísica a mente prende objetos que
trascienden os sentidos, começando por Deus. Mas desfrutamos de intuición das realidades
espirituais? Kant nega-o explicitamente. “O homem não dispõe de intuición dos objetos
inteligibles, senão só de conhecimento simbólico”[291] deles. Ou seja: concebemos os objetos
suprasensibles por médio de conceitos universais, não por intuición direta. Que justifica, então
a ideia de que nossas representações conceptuais das realidades suprasensibles são válidas?

A dificuldade pode ser formulado do modo seguinte. Como vimos, Kant falava do uso lógico
do entendimento ou intelecto, que é sua função de comparar e organizar material procedente de
fontes sensíveis ou suprasensibles. No caso de materiais procedentes de uma fonte sensível, o
entendimento tem algo com o qual trabalhar, a saber, os dados procedentes da intuición sensível
pela combinação, se assim pode ser dito, das sensações com as intuiciones puras de espaço e
tempo. Mas se não temos intuición da realidade suprasensible, então neste caso o entendimento
não terá nada com o qual trabalhar. Pois em seu uso lógico o entendimento não fornece materiais,
senão que se limita a organizar logicamente materiais.

Tenho aqui como pode ser desenvolvido o problema. Kant distinguia entre o uso lógico do
entendimento ou intelecto e seu “uso real”. Segundo seu uso real o entendimento produz
conceitos por si mesmo, ou seja, forma conceitos que não são de caráter empírico. Nos Nouveaux
Essais Leibniz criticava o empirismo de Locke, sustentando, contra este, que não derivamos
todos nossos conceitos empiricamente. Neste ponto Kant milita do lado de Leibniz, embora não
lhe segue na aceitação de ideias innatas. “Assim, pois, como na metafísica não achamos
princípios empíricos, os conceitos que encontramos nela têm que se buscar não nos sentidos,
senão na natureza mesma do entendimento puro, e não como conceitos innatos (connati), senão
como conceitos abstraídos das leis intrínsecas do espírito (atendendo a suas ações por motivo da
experiência) e, portanto, adquiridos. Desta classe são os conceitos de possibilidade, existência,
necessidade, substância, causa, etc., junto de seus opostos ou correlatos...”[292] Assim, pois, os
conceitos de substância e causa, por exemplo, não se derivam da experiência sensível, senão do
espírito mesmo por motivo da experiência. Mas assim se propõe a questão de se a falta de
material intuitivo, quando se trata do mundo inteligible, esses conceitos poderão ser usado para
captar realidades suprasensibles de tal modo que possamos sentar afirmações positivas e certas
a respeito delas. Dito de outro modo: possa ter uma metafísica dogmática que possa licitamente
pretender que contém conhecimento de intelligibilia ?

Temos visto que Kant divide o conhecimento em conhecimento sensível e conhecimento


intelectual, e que, sem se limitar a isso, divide também o mundo em mundo sensível e mundo
intelectual. Isto sugere em seguida que o conhecimento intelectual é conhecimento de
intelligibilia , igual que o conhecimento sensível é conhecimento de sensibilia . E já que as
realidades suprasensibles pertencem à classe dos intelligibilia, poderia ser suposto que Kant
sustentasse a possibilidade da metafísica dogmática considerada como sistema de verdades
conhecidas. O fato é que seu esquema dúplice do conhecimento e dos objetos do conhecimento,
proposto baixo a influência de Leibniz, lhe dificulta a recusación da metafísica dogmática. Ao
mesmo tempo, já na disertación diz Kant as coisas suficientes para debilitar consideravelmente
a posição da metafísica dogmática e para pôr em dúvida suas pretensões, embora não chegue à
recusar abertamente e com todas as letras. Vale a pena deter-se brevemente neste ponto, de tanta
importância no posterior desenvolvimento do pensamento de Kant.

Em primeiro lugar, e como vimos, Kant afirma que o “uso real” do entendimento na esfera
dos intelligibilia nos dá só conhecimento simbólico. Isto poderia fazer pensar a uma pessoa
formada na tradição tomista que Kant sustenta em realidade a possibilidade de um conhecimento
válido das realidades suprasensibles, embora dito conhecimento seja de caráter analógico. Mas
o que Kant parece pensar realmente é que a falta de material intuitivo a ampliação do “uso real”
do entendimento (uso no qual o entendimento produz por si mesmo seus conceitos e seus
axiomas por motivo da experiência) a seu uso dogmático nos dá indicações meramente
simbólicas a respeito de realidades suprasensibles, de tal modo, por exemplo, que a descrição
de Deus como primeira causa seria um caso de simbolismo. Não há muita distância entre esta
posição e a que será caraterística do Kant crítico. É fácil dar o passo ulterior que consiste em
sustentar que a função primária de conceitos como os de causa e substância é sintetizar os dados
da intuición sensível, e que embora sem dúvida é possível psicologicamente aplicar esses
conceitos às realidades suprasensibles, a aplicação não produz conhecimento científico de ditas
realidades.

Em segundo local discute Kant o seguinte importante ponto. Nas ciências naturais e na
matemática, onde a intuición sensível fornece os dados ou material e o entendimento se utiliza
exclusivamente segundo seu uso lógico (ou seja, na comparação e organização lógica dos dados,
não para fornecer por sua própria natureza interna conceitos e axiomas), “o uso produz o
método”[293]. Isto é: só quando essas ciências conseguiram já verdadeiro grau de
desenvolvimento refletimos a respeito do método utilizado e o analisamos, considerando modos
de aperfeiçoar no detalhe. A situação é análoga à que impera no caso da linguagem. Não se
elaboraram primeiro as regras gramaticais para começar depois a falar, senão que o
desenvolvimento da gramática seguiu ao uso da linguagem, não lhe precedeu. “Em mudança na
filosofia pura, como é a metafísica, na que o uso do entendimento respecto dos princípios é real,
isto é, onde os conceitos primitivos das coisas e relacionamentos e os axiomas mesmos
procedem do entendimento puro e, já que não há intuiciones, não estamos defendidos do erro, o
método precede à ciência; todo o que se empreenda dantes de elaborar como é devido os
preceitos deste método e dos estabelecer solidamente parece concepção temeraria e destinada a
ser recusada como vã e ridícula atividade do espírito”[294]. Ao tratar de coisas materiais que
afetam aos sentidos podemos chegar a saber muito delas sem necessidade de ter elaborado dantes
todo um método científico. Mas quando se trata de realidades suprasensibles, como Deus, ou de
coisas em si, assim que diferentes do modo como aparecem a nós na intuición sensível, é
essencial averiguar dantes como podemos chegar às conhecer. Pois a falta de intuición o
problema do método faz-se de importância soma.

Kant afirma que a principal regra do método consiste em velar porque os princípios do
conhecimento sensível não se estendam das realidades sensíveis às suprasensibles. Como vimos,
o filósofo estabelecia uma distinção precisa entre os planos sensível e intelectual do
conhecimento humano. Insiste também em que temos de nos guardar de aplicar a realidades
suprasensibles conceitos que só são aplicáveis na esfera do conhecimento sensível, o que
equivale a converter os princípios do conhecimento sensível em princípios universais. Dá Kant
como exemplo o axioma de que todo o que existe, existe em algum local e algum tempo. Não
podemos afirmar esse princípio de um modo universal, rebajando assim a Deus, por exemplo, à
esfera espaço-temporária. O entendimento, no que Kant chama “uso refutatorio” (usus
elencticus), tem a missão de expor o injustificable de tais enunciados universais. Neste uso
refutatorio ou crítico o entendimento pode assim manter a esfera da realidade suprasensible livre,
por assim o dizer, de contaminação pela aplicação de conceitos e princípios em realidade
próprios do conhecimento sensível.

Há que distinguir entre uso crítico e uso dogmático do entendimento. O que possamos dizer,
por exemplo, que Deus não está no espaço nem no tempo não significa necessariamente que
possamos conseguir conhecimento positivo e verdadeiro de Deus por médio do puro
entendimento. E, como se observou já, basta apenas que Kant de ainda o passo consistente em
sustentar que a função cognoscitiva dos conceitos primitivos do entendimento puro estriba só
em sintetizar os dados da intuición sensível para eliminar com isso a metafísica dogmática, se
se entende por tal um sistema de verdades verdadeiras a respeito de realidades suprasensibles
como Deus e a alma imortal do homem. Falando estritamente, o conceito de causa, por exemplo,
seria então inaplicable a Deus. Psicologicamente falando, está claro que poderíamos aplicar esse
conceito do modo indicado; mas tal uso nos daria só uma indicação simbólica de Deus, não
conhecimento científico.

Kant não mantém que não tenha realidades suprasensibles; não o manterá nunca. Pode sem
dúvida objetarse que, dada a dúvida que projeta envelope a metafísica dogmática, não tem
fundamento algum para afirmar que existam ditas realidades. Mas na disertación não recusa a
metafísica dogmática de um modo aberto e claro. Quando mais tarde chegue ao fazer
abertamente, desenvolverá ao mesmo tempo sua teoria dos postulados da lei moral, tema que
pelo momento temos de ignorar.

Na disertación Kant fala do uso dogmático do entendimento como extensão dos princípios
gerais do entendimento puro à concepção de um noumenon perfeito ou realidade puramente
inteligible como medida de todas as demais realidades. Na esfera teorética (ou seja, na esfera do
ser, do que é) esta medida ou instância é Deus, o ser supremo. Na esfera prática (na esfera do
que deveria ser feito pela ação livre) se trata da perfección moral. Portanto, a filosofia moral, no
que se refere a seus princípios fundamentais, pertence à filosofia pura. Kant afirma que esses
princípios dependem da razão mesma, não da percepción sensível. Coincide com Hume em que
é impossível fundar os princípios morais na percepción sensível. Mas, por outra parte, Kant não
estava disposto a admitir que os princípios morais sejam expressão do sentimento, abandonando
assim toda tentativa de lhes dar um fundamento puramente racional. Por isso merece Epicuro
severos reproches, igual que “Shaftesbury e seus seguidores”[295], que o são de Epicuro em certa
medida. Mas Kant não desenvolve o tema. A elaboração de sua filosofia moral ia ser coisa do
futuro.

5. A concepção da filosofia Crítica.

A princípios de setembro de 1770 Kant escreveu a J. H. Lambert que durante o inverno se


propunha continuar suas investigações de filosofia moral pura, “na qual não há princípios
empíricos”[296]. Também falava de sua intenção de revisar e alargar algumas seções de sua
disertación inaugural. Designadamente desejava desenvolver a ideia de uma ciência concreta,
embora negativa, que tem de preceder à metafísica. Esta ciência, descrita como “fenomenología
general”[297], deixa em claro o alcance da validade dos princípios do conhecimento sensível e
evita assim a aplicação injustificada desses princípios na metafísica. Já temos visto que Kant
fala de uma ciência assim na disertación mesma, na qual, igual que na carta, lha chama
“propedéutica” da metafísica[298].

Mas suas reflexões durante o inverno de 1770-1771 levaram a Kant a abandonar a ideia de
alargar a disertación inaugural, e moveram-lhe a projetar em vez disso uma nova obra. Em junho
de 1771 escrevia a Marcus Herz[299], um antigo aluno seu, que estava trabalhando em um livro
titulado Die Grenzen der Sinnlichkeit und der Vernunft (Os limites da sensibilidade e da razão).
Nesta obra propõe-se estudar os relacionamentos entre os princípios e as leis fundamentais —
tomados como determinados dantes da experiência do mundo sensível — e os problemas da
teoria do gosto, a metafísica e a moral. Temos visto que na disertación inaugural de 1770 Kant
expunha a teoria segundo a qual o espaço e o tempo são “leis” subjetivas da coordenação das
sensações, e que nesse mesmo trabalho adotava a teoria de que o entendimento puro deriva de
si e por si mesmo, por motivo da experiência, os conceitos fundamentais da metafísica. Também
sustenta Kant a tese de que os princípios fundamentais da moral se derivam da mera razão.
Agora se propõe uma investigação dos conceitos e as leis fundamentais que se originam na
natureza do sujeito e que se aplicam aos dados de experiência da estética, a metafísica e a moral.
Dito de outro modo, propõe-se tratar em um volume os temas que ao final precisariam três
volumes, a saber, as três Críticaséc. Nesta carta fala Kant dos princípios subjetivos “não só da
sensibilidade, senão também do entendimento” (dê Verstandes)[300]. Kant está já pois em
caminho de descobrir sua grande empresa: a identificação dos elementos a priori do
entendimento humano. Há que estudar o relacionamento entre forma e matéria no conhecimento
não só em relacionamento com a sensibilidade, na qual os elementos subjetivos são as
intuiciones puras de espaço e tempo, senão também respecto do entendimento e o papel que este
desempenha na síntese do dado. E a investigação tem que atender não só ao conhecimento
teorético, senão também à experiência moral e estética.

Em outra carta a Herz escrita em fevereiro de 1772 Kant volta a referir-se a seu projetado
livro sobre Os limites da sensibilidade e da razão. De acordo com seu plano inicial o livro
constaria de duas partes, uma teorética e outra prática. A primeira parte se subdividiría em duas
seções, dedicadas respetivamente à fenomenología geral e à metafísica considerada segundo sua
natureza e seu método. A segunda parte constaria também de duas seções, dedicadas
respetivamente aos princípios gerais do sentimento do gosto e aos fundamentos últimos da
moralidade. Mas enquanto pensava na primeira parte Kant deu-se conta, segundo escreve a Herz,
de que precisava ainda algo essencial, a saber, um tratamento a fundo do relacionamento entre
as representações mentais (Vorstellungen) e os objetos do conhecimento. Há que dizer aqui algo
a respeito das observações de Kant ao respecto, porque nos lhe mostram já em pugna com seu
problema crítico.

Nossas representações sensíveis não propõem nenhum problema, sempre que sejam o
resultado da afección do sujeito pelo objeto. É verdade que os objetos sensíveis se nos
apresentam de tal modo e não de outro por ser nós como somos, ou seja, por causa das intuiciones
a priori de espaço e tempo. Mas no conhecimento sensível a forma aplica-se a uma matéria
passivamente recIbída; nossa sensibilidade é afetada por coisas externas a nós. Portanto, não se
apresenta nenhum problema grave a propósito da referência objetiva de nossas representações
sensíveis. A situação muda quando se trata de representações intelectuais. Dito abstratamente, a
conformidade objetiva de conceito e objeto ficaria garantida se o entendimento produzisse seus
objetos mediante seus conceitos, isto é, se o entendimento criasse os objetos pelo mero fato dos
conceber ou os pensar. Mas só o intelecto divino é um entendimento arquetípico neste sentido.
Não podemos supor que o entendimento humano acha seus objetos pelo fato dos pensar. Kant
não aceitou nunca um idealismo puro neste sentido. Ao mesmo tempo, os conceitos puros do
entendimento não são, segundo Kant, abstraídos da experiência sensível. Os conceitos puros do
entendimento têm de “ ter suas origens na natureza da alma, mas de tal modo que nem são
causados pelo objeto nem dão eles mesmos ser ao objeto”[301]. Neste caso, empero, propõe-se
imediatamente a questão de como esses conceitos se referem a objetos e como os objetos se
conformam com eles. Kant observa que em seu disertación inaugural se tinha limitado a expor
negativamente a questão. Ou seja, que se tinha contentado com dizer que “as representações
intelectuais... não são modificações da alma pelo objeto”[302], silenciando a questão de como
essas representações intelectuais ou conceitos puros do entendimento referem a objetos se não
são afetados por estes.

Dado o suposto de Kant, a saber, que os conceitos puros do entendimento e os axiomas da


razão[303] pura não se derivam de fontes empíricas, esta questão é sem dúvida pertinente. E o
único modo de dar-lhe resposta última instância, se é que se tem de manter aquele suposto,
consiste em abandonar a tese da disertación segundo a qual as representações sensíveis nos
apresentam os objetos tal como estes aparecem, enquanto as intelectuais nos dão os objetos tal
como estes são; em vez disso terá que dizer que os conceitos puros do entendimento têm como
função cognoscitiva a ulterior síntese dos dados da intuición sensível. Dito de outro modo: ao
final Kant se verá obrigado a sustentar que os conceitos puros do entendimento são, por assim o
dizer, forma subjetivas mediante as quais concebemos necessariamente (porque o espírito é o
que é) os dados da intuición sensível. Os objetos se conformarão então com nossos conceitos e
nossos conceitos referirão a objetos porque esses conceitos são condições a priori da
possibilidade de objetos do conhecimento e realizam uma função análoga à das intuiciones puras
do espaço e o tempo, embora a um nível superior, que é o intelectual. Ou seja, Kant poderá
seguir mantendo seu tajante distinção entre o sentido e o intelecto; mas terá que abandonar a
noção de que enquanto as representações sensíveis nos dão as coisas segundo sua aparecer, as
representações intelectuais nos dão as coisas tal como estas são em si mesmas. Em vez disso se
terá um processo ascendente de síntese pela qual se constitui a realidade empírica. Como as
forma sensíveis e intelectuais do sujeito humano são constantes e como as coisas não são
cognoscibles mais que assim que submetidas a essas forma, terá sempre conformidade entre os
objetos e nossos conceitos.

Voltemos à carta de Kant a Herz. Platón, diz Kant, postulaba uma intuición da divinidad em
uma existência anterior como fonte dos conceitos puros e dos princípios fundamentais do
entendimento. Malebranche postulaba uma intuición presente e contínua das ideias divinas.
Crusius supunha que Deus implanta na alma certas regras de julgamento e certos conceitos tais
que tenham de concordar com os objetos segundo uma harmonia preestablecida. Mas todas essas
teorias recorrem a um Deus ex machina, e suscitam assim mais problemas dos que resolvem.
Portanto, há que buscar alguma outra explicação da conformidade entre conceitos e objetos. E
Kant escreve a Herz que sua investigação de “ filosofia trascendental” (sua tentativa de reduzir
os conceitos da razão pura a um número determinado de categorias) está já o suficientemente
adiantado como para oferecer uma Crítica da razão pura (eine Kritik der reinem Vernunft)[304]
que estudará a natureza do conhecimento teorético e do conhecimento prático (moral). A
primeira parte apareceria, pensava Kant, dentro de três meses, e trataria das fontes, o método e
os limites da metafísica. Na segunda parte, que apareceria mais tarde, estudaria os princípios
básicos da moralidade.

Mas o trabalho não adiantou tão velozmente como o imaginava Kant ao princípio. Ao lutar
com seus problemas foi dando-se conta finalmente de sua complexidade. Ao cabo de verdadeiro
tempo deu-se conta de que teria que dividir a matéria que pensava tratar em uma só Crítica. Ao
final sentiu-se molesto pelo atraso e redigiu em quatro ou cinco meses o Kritik der reinem
Vernunft (Crítica da razão pura), que apareceu em 1781. Nesta obra famosa Kant trata do
conhecimento matemático e cientista e tenta justificar a objetividad deste em frente ao
empirismo de David Hume. Fá-lo propondo sua “revolução copernicana”, ou seja, a tese de que
os objetos se adecuan ao espírito, e não ao inverso. Os objetos se nos aparecerão sempre de
verdadeiro modo porque a estrutura da sensibilidade e do espírito humano é constante. Por isso
podemos formar julgamentos científicos universais que valem não só para a experiência atual,
senão para toda experiência possível: Deste modo fica justificada a ciência newtoniana apesar
das disolventes tendências do empirismo. Mas desta posição segue-se que os conceitos puros do
entendimento não nos permitem prender as coisas em si mesmas com independência de seu
modo de aparecemos, nem também não as realidades suprasensibles. E na primeira Crítica Kant
tenta explicar como nasce a metafísica especulativa de tipo tradicional e por que está condenada
ao falhanço. No capítulo seguinte se discutirão os problemas básicos da Crítica da razão pura.

Kant viu que a Crítica da razão pura resultava objeto de más interpretações, e que o público
se queixava de sua escuridão. Por esta razão escreveu os Prolegomena zu einer jeden kiinftigen
Metaphysik (Prolegómenos a toda metafísica futura, 1783), obra mais breve, destinada não a
completar a Crítica, senão a lhe servir de introdução ou comentário aclaratorio. Em 1787
publicou uma segunda edição da Crítica. Em cita-as alude-se à primeira edição mediante A e à
segunda mediante B.

Enquanto Kant dirigia a atenção aos princípios fundamentais da moral. E em 1785 publicou
seu Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (Fundamentación da metafísica dos costumes).
Seguiu-lhe em 1788 a Kritik der praktischen Vernunft (Crítica da razão prática), embora entre
uma e outra publicava Kant não só a segunda edição da Crítica da razão pura, senão também
os Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft (Elementos metafísicos da ciência
natural, 1786). A teoria moral de Kant se estudará em um capítulo posterior. Aqui bastará com
dizer que do mesmo modo que na primeira Crítica o filósofo tenta identificar e dar uma
exposição sistemática dos elementos a priori do conhecimento científico, assim tenta em seus
escritos morais identificar e dar uma exposição sistemática dos elementos a priori ou formais
da moralidade. Kant propõe-se fundar a obrigação e a universalidade da lei moral não no
sentimento, senão na razão prática, ou seja, na razão como legisladora da conduta humana. Isso
não significa que tente deduzir da mera razão todos os concretos deveres de Sánchez ou de
García. Nem também não que pensasse que podemos explicitar um conjunto de concretas leis
morais que vinculem sem mais ao homem, sem referência, a nenhum material empírico dado.
Mas sim pensava que nos julgamentos morais há, por assim o dizer, uma “forma” que não pode
ser derivado senão da razão prática e que se aplica ao material empiricamente dado. A situação
em moral é, pois, análoga em alguma medida à da ciência. Tanto na ciência quanto na vida moral
do homem — ou seja, tanto no conhecimento teorético quanto no prático — está o dado, a
“matéria”, e o elemento “formal” e a priori. Kant ocupa-se particularmente deste em seus
escritos de moral. Neste sentido ocupa-se da “metafísica” da moral.

Mas nesses escritos éticos Kant ocupa-se de metafísica também em outro sentido: tenta
estabelecer como postulados da lei moral as grandes verdades da liberdade, a imortalidade e
Deus. Deste modo as principais verdades que, segundo a primeira Crítica, são insusceptibles de
demonstração científica se reintroducen depois como postulados de fé moral ou prática. A teoria
não é um mero adendo à filosofia kantiana, nem menos uma excrecencia supérflua. Pois é uma
parte essencial da tentativa kantiano de harmonizar o mundo da ciência newtoniana com o
mundo da experiência moral e da fé religiosa. A noção de que os conceitos puros do
entendimento nos podem dar conhecimento teorético das coisas em si mesmas e de um mundo
suprasensible foi destruída na primeira Crítica. Mas, ao mesmo tempo, conseguiu-se espaço
para a “fé”. E nos escritos de ética as verdades da liberdade humana, a imortalidade e a existência
de Deus introduzem-se não como noções cientificamente demostrables, senão como
envolvimentos da lei moral, no sentido de que o reconhecimento do fato da obrigação moral
resulta exigir ou postular uma fé prática nessas verdades. Deste modo segue Kant sustentando
que há uma esfera suprasensible; mas acha a chave para penetrar nela não na metafísica
dogmática, senão na experiência moral.

Se recordará que na obra que projetava envelope Os limites da sensibilidade e da razão Kant
queria tratar não só a metafísica e a moral, senão também os princípios fundamentais da teoria
do gosto (die Geschmackslehre). O julgamento estético, ou julgamento de gosto, trata-se
extensamente na terça Crítica, a Kritik der Urteilskrajt (Crítica da faculdade de julgar), que
apareceu em 1790. Esta obra consta de duas partes principais, a primeira das quais trata do
julgamento estético e a segunda do julgamento teleológico, ou de finalidade, na natureza; sua
importância é grande. Pois nesta obra tenta Kant cobrir, pelo que faz, ao menos, a nossa
consciência, o abismo aberto entre o mundo mecânico da natureza tal como se apresenta na
ciência física e o mundo da moralidade, a liberdade e a fé. Ou seja, tenta mostrar como passa o
espírito de um a outro desses mundos. Kant propõe-se a tarefa difícil de mostrar que a transição
é razoável, sem anular por isso o que já disse a respeito da vaidade da metafísica dogmática e
da afirmação da fé moral ou prática como único médio de acesso nosso ao mundo suprasensible.
O conteúdo da obra se discutirá mais adiante. Mas vale a pena observar já o profundamente
interessado que estava Kant por reconciliar o ponto de vista científico com o do homem moral
e religioso.

Em 1791 publicou Kant um artigo “sobre o falhanço de todas as tentativas filosóficos em


teología” (Ueber dá Misslingen aller philosophischen Versuche in der Theologie). Neste
trabalho sustentava Kant que na teodicea ou teología natural os temas são em realidade assuntos
de fé, e não verdade cientificamente demostrable. Seguiu a esse trabalho, em 1793, Die Religião
innerhalb der Grensen der blossen Vernunft (A religião dentro dos limites da mera razão). Em
uma seção anterior deste capítulo falou-se já dos conflitos que produziu a publicação deste livro.
E também nos referimos, já ao breve tratado sobre A paz perpétua (Zum ewigen Frieden, 1795)
no qual a paz perpétua, fundada sobre uma base moral, se apresenta como um ideal prático do
desenvolvimento histórico e político[305]. Por último, em 1797 apareceram as duas obras que
constituem as duas partes da Metaphysik der Sitten (Metafísica dos costumes), a saber, os
Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre (Elementos metafísicos da doutrina do direito)
e os Metaphysische Anfangsgründe der Tugendlehre (Elementos metafísicos da doutrina da
virtude).

Temos visto que, em opinião de Kant, o espírito humano não constitui nem cria o objeto em
sua totalidade. Isto é, embora as coisas, assim que percIbídas e conhecidas, são relativas a nós
no sentido de que só as percebemos e as conhecemos através das forma a priori insere na
estrutura do sujeito humano, são no entanto, coisas em si mesmas, embora não possamos as
conhecer tal como em si mesmas são. Para dizê-lo simplísimamente: não criámos as coisas
segundo sua existência ontológica, do mesmo modo que o homem que leva gafas de cor não cria
as coisas que vê. Se supomos que essas gafas não podem ser deposto nunca, o homem verá
sempre as coisas daquela determinada cor, e a aparência das coisas se deverá pois a um fator
presente ao sujeito que percebe. Mas disso não se segue que as coisas não existam com
independência do sujeito que percebe. Por isso Kant se negou a admitir que a supressão da coisa-
em-si por Fichte representasse um desenvolvimento legítimo de sua própria filosofia. Mas, ao
mesmo tempo, é difícil negar que algumas das notas que fazem parte do Opus postumum indicam
que para o final de sua vida Kant estava desenvolvendo seu pensamento de um modo que permite
ver razoavelmente nele uma antecipação do idealismo especulativo alemão. Mas não é correto
interpretar a orientação do pensamento de Kant em seus últimos anos baseando em algumas
notas e excluindo outras que expressam um ponto de vista diferente. Se tomamos o Opus
postumum em seu conjunto, parece claro que Kant não abandonou nunca totalmente os
elementos realistas de seu pensamento. Mas em um ulterior momento da discussão da filosofia
de Kant teremos de dizer algo mais a respeito do Opus postumum.
Capítulo XI
Os problemas da primeira crítica.

1. O problema geral da metafísica.

Se atendemos aos prólogos da primeira e as segunda edições da Crítica da razão pura e dos
Prolegómenos a toda metafísica futura,[306] bem como às primeiras seções desta obra,
observamos que o autor acentua manifestamente o problema da metafísica. É ou não possível a
metafísica? Não se pergunta, naturalmente, se é possível escrever tratados de metafísica ou
dedicar à especulação metafísica. A questão é se a metafísica pode alargar nosso conhecimento
da realidade. Os problemas capitais da metafísica são para Kant Deus, a liberdade e a
imortalidade. Por isso podemos expressar a questão do modo seguinte. Possa a metafísica dar-
nos/dá-nos conhecimento seguro da existência e a natureza de Deus, a liberdade humana e a
existência de uma alma espiritual e imortal no homem?

Uma pergunta assim pressupõe claramente uma dúvida. E em opinião de Kant há razão de
sobre para essa dúvida inicial, isto é, para a proposta do problema da metafísica. Teve um tempo
no qual “se chamou à metafísica rainha de todas as ciências; e se um toma os desejos por
realidades[307] sem dúvida merecia esse título de honra, tida conta da destacada importância, de
seu tema”.[308] Kant não negou nunca a importância dos temas principais de que se ocupa a
metafísica. Mas nos tempos presentes, observa Kant, a metafísica está desacreditada. E a coisa
compreende-se. A matemática e a ciência natural progrediram e nesses campos há uma grande
área de conhecimento geralmente aceitado. Ninguém põe seriamente em dúvida esse fato. A
metafísica, em mudança, é uma liza de disputas sem fim. “É impossível indicar um livro, como
se pode, em mudança, assinalar os Elementos de Euclides, e dizer: eis a metafísica, aí
encontrarão o nobilísimo objeto desta ciência, o conhecimento de um ser supremo e de um
mundo futuro, facilitado pelos princípios da razão pura”[309]. O fato é que a metafísica, a
diferença da física, não encontrou" nenhum método científico seguro cuja aplicação lhe permita
resolver seus problemas. E" isto nos move a perguntar “por que não se achou até agora esse
seguro caminho da ciência? É talvez impossível o achar?”[310]

O caráter inconcluyente da metafísica, sua incapacidade para encontrar até agora um método
de confiança que leve a conclusões verdadeiras, ai tendência constante a desandar todos seus
passos e voltar a começar sempre desde o princípio são rasgos que contribuíram a produzir uma
difundida indiferença respecto da metafísica e suas pretensões. Em verdadeiro sentido essa
indiferença é injustificada, pois “é vão professar indiferença respecto destas questões cujos
objetos não podem ser indiferentes à natureza humana”[311]. Ademais, os que se professam
indiferentes tomam eles mesmos atitudes metafísicas, embora não se dêem conta do fato. Por
outra parte, essa indiferença não é, em opinião de Kant, fruto de mera ligereza; mais bem é
expressão de uma verdadeira maturidade de julgamento que se nega a se contentar com
conhecimento ilusorio ou pseudociencia. Por isso deveria servir de estímulo para empreender
uma investigação Crítica da metafísica, submetendo ao tribunal da razão.

Que forma tem de tomar essa investigação Crítica? Para poder dar resposta a essa pergunta
temos de recordar o que significa para Kant metafísica. Como vimos no capítulo anterior, Kant
discrepa da doutrina de Locke segundo a qual todos nossos conceitos procedem em última
instância da experiência. Também não aceitava, pelo demais, a contraposta doutrina das ideias
innatas. Mas ao mesmo tempo achava que há conceitos e princípios que a razão forma por si
mesma por motivo da experiência.

O menino não nasce, por exemplo, com a ideia de causalidad. Mas por motivo da experiência
sua razão forma esse conceito por si mesma. É um Conceito a priori no sentido de que não
procede da experiência, senão que se aplica a ela e a governa em verdadeiro sentido. Há, pois,
conceitos e princípios a priori fundados na estrutura do espírito mesmo. Estes conceitos são
“puros” no sentido de que por si mesmos estão vazios de todo conteúdo empírico ou material
empírico. Agora bem: os metafísicos supuseram que a razão pode aplicar esses conceitos e
princípios para prender realidades suprasensibles e coisas em si, ou seja, não meramente tal
como se nos aparecem. Assim nasceram os vários sistemas de metafísica dogmática. Mas o
suposto dos metafísicos era precipitado. Não podemos considerar como dado que os conceitos
e princípios a priori da razão possam ser usado para trascender a experiência, ou seja, para
conhecer realidades não dadas na experiência. Antes de mais nada temos de empreender uma
investigação Crítica das potências da razão pura mesma. Esta é a tarefa descurada pelos filósofos
dogmáticos; o dogmatismo descreve-se precisamente como o suposto de que seja possível
progredir no conhecimento sobre a mera base de conceitos puramente filosóficos, utilizando
princípios que a razão tem desde antigo o costume de usar, “sem se perguntar dantes de que
modo e com que direito chegou a razão a esses princípios. O dogmatismo é, pois, o procedimento
dogmático da razão pura sem Crítica prévia de suas próprias capacidades”[312]. Kant propõe
empreender esta Crítica.

O tribunal ante o qual tem de comparecer a metafísica não é pois, “senão a investigação
Crítica (Kritik) da razão pura mesma”, o qual significa ‘uma investigação Crítica da faculdade
da razão respecto de todos os conhecimentos que pode aspirar a conseguir independentemente
de toda experiência’[313]. Trata-se, pois, de averiguar “que e quanto podem conhecer o
entendimento e a razão[314] aparte de toda experiência”[315]. Suponhamos com Kant que a
metafísica especulativa é uma ciência (ou suposta ciência) não empírica que pretende trascender
a experiência e atingir um conhecimento de realidades puramente inteligibles (não sensíveis)
por médio de conceitos e princípios a priori. Dada esta concepção da metafísica, a validade de
sua pretensão estará obviamente determinada pela resposta à questão de que e quanto pode
conhecer o espírito prescindiendo da experiência.

Para responder a essa questão faz falta uma investigação crítica da faculdade de razonar,
segundo expressa-se Kant. No curso deste capítulo ficará claro, segundo espero, o que isso quer
dizer. Mas pode ser útil precisar desde o primeiro momento que Kant não pensa em um estudo
psicológico da razão considerada como entidade psíquica, isto é, como um objeto entre outros
objetos. Pensa na razão respecto do conhecimento a priori que ela possibilite. Ou seja: interessa-
se pelas condições puras presentes no sujeito humano como tal para possibilitar o conhecimento
de objetos. Uma investigação assim se chama, segundo sua terminología, “trascendental”.

Uma das tarefas principais da Crítica da razão pura consiste em mostrar de maneira
sistemática que são essas condições. E é importante entender o tipo de condições a que se refere
Kant. Há, sem dúvida, condições empíricas da percepción de coisas ou da aprendizagem de
verdades. Por exemplo: é impossível ver coisas em uma escuridão completa; a visão requer luz.
E há muitas verdades científicas que não poderiam ser descoberto sem a ajuda de instrumentos.
Há, por outra parte, condições empíricas subjetivas, condições dadas ou não no sujeito
conhecedor mesmo. Impossível ver as coisas se um padece uma doença da vista em estado
avançado. E na prática há gente que não pode entender coisas que outros entendem com relativa
facilidade. Mas Kant não se interessa pelas condições empíricas. O que lhe interessa são as
condições não-empíricas, ou condições “puras”, do conhecimento humano como tal. Dito de
outro modo: Kant estuda os elementos formais da consciência pura. João, Pedro, Luis,
indivíduos concretos, não se consideram sequer nesta investigação, ou só ficam incluídos nela
assim que ejemplificaciones do sujeito humano como tal. As condições do conhecimento que
valem para o sujeito humano como tal valerão também, como é óbvio, para João, Pedro e Luís.
Mas Kant estuda as condições necessárias do conhecimento dos objetos, não as condições
empíricas variáveis. E se as condições resultam ser tais que as realidades que trasciendan a
experiência sensível não possam ser objeto de conhecimento, se terá mostrado que as pretensões
da metafísica especulativa são vazias e vãs.

Kant fala respeitosamente de Wolff chamando-lhe “o maior de todos os filósofos


dogmáticos”[316], e está claro que quando fala de metafísica dogmática pensa principalmente,
embora não exclusivamente, no sistema leibnizo-wolffiano. Por isso poderíamos pensar que sua
investigação a respeito da possibilidade ou a imposibilidad da metafísica é em realidade um
estudo da capacidade que tenha um verdadeiro tipo de metafísica de alargar nosso conhecimento
da realidade, coisa que seria objeto demasiado estreito de uma investigação assim. Pois há outras
ideias de metafísica que não são a wolffiana. Mas embora é verdade que Kant descura demasiado
outras noções de metafísica, não pode ser insistido muito nessa objeción limitadora, pois
conceitos como os de causa e substância, por exemplo, se utilizam em outros sistemas
metafísicos que não são o de Wolff. E se o estatuto e a função desses conceitos fossem os que
Kant mostra no curso da primeira Crítica, não poderiam ser usados para atingir conhecimento
das realidades suprasensibles. Deste modo a Crítica kantiana do poder da razão, se fosse uma
Crítica válida, afetaria a muitos outros sistemas filosóficos, e não só ao de Wolff. Dito de outro
modo: o campo de investigação de Kant pode ser demasiado estreito em seu ponto de partida,
no sentido de que identifique a metafísica com um determinado tipo de metafísica; mas a
investigação desenvolve-se de tal modo que as conclusões conseguidas ao final têm um amplo
campo de aplicação.

Também vale a pena observar que Kant não usa o termo ‘metafísica’ sempre no mesmo
sentido. O estudo da capacidade da razão respecto do conhecimento puro a priori chama-se
filosofia Crítica, enquanto a apresentação sistemática do inteiro corpo de conhecimento
filosófico conseguido ou acessível pelo poder da razão pura (ou seja, a priori) chama-se
metafísica. Quando este último termo se usa nesse sentido, a filosofia Crítica é uma preparação
ou propedéutica da metafísica, com o que cai fora dela. Mas também pode ser aplicado o termo
‘metafísica’ à totalidade da filosofia pura (não empírica), com inclusão do que costuma chamar
Kant filosofia Crítica; neste caso a filosofia Crítica é a primeira parte da metafísica. Ademais,
se tomamos o termo ‘metafísica’ no sentido da apresentação sistemática do inteiro corpo de
conhecimento filosófico atingido pelo poder da razão pura, podemos entender por ‘
conhecimento’ conhecimento em sentido estrito ou incluir na extensão do termo o conhecimento
pretendido ou ilusorio que muitos filósofos acharam alcanzable por pura razão. Se entendemos
a palavra ‘conhecimento’ no primeiro desses dois sentidos, Kant, evidentemente, não recusa a
metafísica. Achava, pelo contrário que a metafísica nesse sentido pode ser desenvolvido, em
princípio ao menos, de forma sistemática e completa. E seus Elementos metafísicos da ciência
natural são uma contribuição nesse sentido. Mas se o termo ‘metafísica’ usa-se para significar
o conhecimento pretendido ou ilusorio de realidades suprasensibles, então uma das tarefas da
filosofia Crítica consiste em expor a vaciedad das pretensões dessa pseudociencia. Por último
temos de distinguir também entre a metafísica como disposição natural e a metafísica
considerada como ciência. O espírito tem uma tendência natural a suscitar problemas como os
de Deus e a imortalidade; e embora devemos tentar compreender por que ocorre isso, Kant não
deseja extirpar essa tendência, nem acha que seja possível o fazer, embora isso fosse desejável.
A metafísica como predisposición natural é um fato e, portanto, obviamente possível. Mas a
metafísica como ciência, se por tal se entende um conhecimento científico de entes
suprasensibles, não foi nunca uma realidade na opinião de Kant. Toda demonstração
supostamente conseguida até agora é inválida, segundo pode ser mostrado, ou seja, é uma
pseudo-demonstração. Portanto, podemos justamente perguntar-nos/perguntá-nos se é possível
a metafísica considerada como ciência.

Todo isso pode parecer muito complicado e confuso. Mas não o é na prática tanto como o
parece nesse breve resumem. Em primeiro lugar, o mesmo Kant refere-se aos diferentes usos do
termo ‘metafísica’[317]. Em segundo local, o contexto deixa em claro o sentido no qual usa Kant
o termo na cada caso. Mas o fato de que o termo tenha em seus escritos mais de um sentido é
sem dúvida de alguma importância. Pois se ignora-se esse fato, pode ser concluído
precipitadamente que Kant se contradiz, que em uns passos admite a metafísica e em outros a
recusa; enquanto em realidade pode não ter nenhuma contradição entre passos assim.

2. O problema do conhecimento a priori.

Mas embora a possibilidade da metafísica como ciência (ou seja, como ciência de objetos
próprios, que trascienden a experiência sensível) seja para Kant um problema importante, se
trata, no entanto, só de uma parte do problema geral considerado na Crítica da razão pura. Pode
ser dito que esse problema geral é o da possibilidade do conhecimento a priori.

Por conhecimento a priori não entende Kant um conhecimento relativamente a priori, a


priori respecto de tal ou qual experiência ou tipo de experiência. Se um põe uma prenda de vestir
tão cerca do fogo que a prenda se chamusca ou arde, podemos dizer que já a priori tinha que
saber que isso ia ocorrer. Ou seja: em base à experiência passada o homem poderia saber dantes
de sua ação o efeito que esta ia ter. Não precisava esperar a ver o que ocorreria. Mas este
conhecimento prévio seria a priori só respecto de uma determinada experiência. Kant não está
pensando nesse conhecimento relativamente a priori. Pensa em um conhecimento que seja a
priori respecto de toda experiência.
Há que ter cuidado neste ponto para não inferir precipitadamente que Kant está pensando
em ideias innatas que se supõem presentes no espírito humano dantes de toda experiência, em
um sentido temporário da palavra ‘dantes’. Conhecimento puro a priori não significa
conhecimento explicitamente presente ao espírito dantes de que este comece a experimentar
coisa alguma; significa conhecimento não derivado da experiência, embora não apareça como o
que normalmente chamaríamos ‘conhecimento’ senão por motivo da experiência. Consideremos
os seguintes célebres e muito citados enunciados. "Não pode ter dúvida de que todo nosso
conhecimento começa com a experiência... Mas embora todo nosso conhecimento começa com
a experiência, disso não se segue que todo ele proceda da experiência”[318]. Kant coincide com
os empiristas, como Locke, em que “todo nosso conhecimento começa com a experiência”.
Nosso conhecimento, pensa Kant, tem de começar com a experiência porque a faculdade
cognoscitiva, como ele diz, não pode ser posto em exercício senão mediante a afección de nossos
sentidos pelos objetos. Dadas as sensações, a matéria prima da experiência, pode começar a
trabalhar o espírito. Mas, ao mesmo tempo, embora nenhum conhecimento seja temporariamente
anterior à experiência, é possível que a faculdade cognoscitiva forneça elementos a priori
tomados de si mesma, por motivo das impressões sensíveis. Neste sentido os elementos a priori
não procedem da experiência.

Mas por que tem de pensar Kant que seja possível a existência de conhecimento a priori? A
resposta é que estava convencido da existência de tal conhecimento. Kant coincidia com David
Hume em que não é possível derivar da experiência a necessidade nem a universalidade
estrita[319]. Disso se segue para ambos que “a necessidade e a universalidade estrita são signos
seguros de conhecimento a priori e se apresentam inseparavelmente juntas”[320]. É fácil mostrar
que possuímos conhecimentos expresables em julgamentos necessários e universais. “Se deseja-
se um exemplo tomado das ciências, basta com apanhar qualquer proposição da matemática. Se
deseja-se um exemplo tomado das operações mais correntes do entendimento, poderá servir a
proposição de que toda mudança tem de ter uma causa”[321]. Esta última proposição é “impura”
no sentido de Kant, porque o conceito de mudança procede da experiência. Mas apesar disso a
proposição é a priori, embora não seja um exemplo de conhecimento puro a priori. Pois é um
julgamento necessário e estritamente universal.

Há, pois, uma área considerável de conhecimento a priori. Kant reconhecia sua dívida para
com Hume. "Confesso abertamente que foi o pensamento de David Hume o que faz anos
interrompeu por vez primeira meu sonho dogmático e deu uma direção completamente nova a
meus estudos no terreno da filosofia especulativa”[322]. Mas embora Kant ficava convencido
pela discussão do princípio de causalidad por Hume e admitia com este que o elemento de
necessidade no julgamento não pode ser justificado por via puramente empírica, se negava a
aceitar a explicação psicológica que Hume dá da origem daquela necessidade a base da
associação de ideias. Quando digo que todo acaecimiento tem de ter uma causa meu julgamento
expressa um conhecimento a priori, não é simples expressão de uma expectativa habitual
mecanicamente produzida pela associação de ideias. Kant faz questão de que essa necessidade
não é “puramente subjetiva”[323]; a dependência causal de todo acaecimiento, acontecimento ou
mudança é coisa conhecida, e conhecida a priori. Ou seja, meu julgamento não é simplesmente
uma generalização de minha experiência de casos particulares, nem precisa de confirmação
empírica para que possa ser conhecido sua verdade. Por isso, embora Hume estava no justo ao
dizer que na experiência não está dada nenhum relacionamento necessário entre o acaecimiento
e a causa, sua explicação psicológica da origem da ideia de necessidade é, no entanto,
inadequada. O que aqui temos é um exemplo de conhecimento a priori.

E não é nem muito menos o único exemplo. Hume atendeu principalmente ao


relacionamento causal, mas Kant achou “cedo que o conceito de conexão entre causa e efeito
não é nem muito menos o único pelo qual o entendimento pensa conexões entre coisas a priori"
(Prólogo). Há, pois, uma área considerável de conhecimento a priori.

Mas, se está fora de dúvida a existência de conhecimento a priori, por que se pergunta Kant
pela possibilidade desse conhecimento? Pois se dá-se, é que é possível, naturalmente. A resposta
diz neste ponto que para os campos (a matemática e a física puras) nos que, segundo a convicção
de Kant, há evidentemente conhecimento a priori, a questão não é se esse conhecimento é
possível, senão como o é. Admitida sua possibilidade (já que existe), como é essa possibilidade?
Como podemos ter o conhecimento a priori que temos, por exemplo, em matemática?

Mas no caso da metafísica especulativa a pretensão de possuir conhecimento a priori é


suspecta. Por isso neste caso nos perguntamos se é possível, não já como é possível. Se a
metafísica dá-nos conhecimento de Deus ou da imortalidade, por exemplo, esse conhecimento,
segundo a concepção kantiana da metafísica, tem de ser a priori. Tem de ser independente da
experiência, no sentido de que não dependerá logicamente de julgamentos puramente empíricos.
Mas fornece-nos a metafísica tal conhecimento? É em princípio sequer capaz de fazê-lo?

3. As divisões deste problema.

Temos de tentar precisar esses problemas. E para fazê-lo temos de referir às distinções de
Kant entre os diferentes tipos de julgamentos.

Em primeiro lugar temos que distinguir entre julgamento analítico e julgamento sintético.
Julgamentos analíticos são aqueles nos quais o pregado está conteúdo, implicitamente ao menos,
no conceito do sujeito. Diz-se que são “julgamentos explicativos” (Erläuterungsurteile)[324],
porque o pregado não acrescenta ao conceito do sujeito nada que não esteja já contido nele
explícita ou implicitamente. E sua verdade baseia-se na lei de contradição. Não podemos negar
uma proposição assim sem cair em contradição lógica. Kant cita como exemplo “todos os corpos
são extensos”. Pois a ideia de extensão está contida na ideia de corpo. Em mudança, os
julgamentos sintéticos afirmam ou negam de um sujeito um pregado que não está contido no
conceito do sujeito. Por isso se chamam “julgamentos ampliativos” (Erweiterungsurteile)[325],
já que alargam o conceito dado pelo sujeito. Segundo Kant, “todos os corpos são pesados” é um
exemplo de julgamento sintético, pois a ideia de importância ou gravidade não está contida no
conceito de corpo como tal.

Temos de distinguir também dentro da classe geral dos julgamentos sintéticos. Em todos os
julgamentos sintéticos se acrescenta, como vimos, algo ao conceito do sujeito. Afirma-se uma
conexão (por limitar-nos/limitá-nos agora ao julgamento afirmativo) entre o pregado e o sujeito,
mas o pregado não pode ser obtido do sujeito, por assim o dizer, mediante mera análise. Agora
bem: esta conexão pode ser puramente factual e contingente, e neste caso dá-se só em e pela
experiência. Quando isto ocorre, o julgamento é sintético a posteriori. Tomemos a proposição
“Todos os membros da tribo X são baixos” e suponhamos que é verdadeira. É sintética, pois não
podemos obter a ideia de bajura por mera análise do conceito de pertence à tribo X[326]. Mas a
conexão entre a escassa estatura e o pertence à tribo está dada exclusivamente em e pela
experiência, e o julgamento é simplesmente resultado de uma série de observações. Sua
universalidade não é estrita, senão suposta e comparativa. Embora no momento de que se trate
não tenha um só membro da tribo que não seja baixo, no futuro pode ter um ou mais membros
altos. Não podemos saber a priori que todos os membros são baixos; este é um assunto factual
e contingente.

Mas segundo Kant há outra classe de proposições sintéticas, nas quais a conexão entre o
pregado e o sujeito, embora não cognoscible por mera análise do conceito do sujeito, é apesar
disso necessária e estritamente universal. Estas se chamam proposições sintéticas a priori. Kant
dá como exemplo “Todo o que ocorre tem sua causa”[327]. A proposição é sintética porque o
pregado, ter uma causa, não está contido no conceito do que ocorre, isto é, de acaecimiento. É
um julgamento ampliativo, não um julgamento explicativo. Mas ao mesmo tempo é um
julgamento a priori, pois carateriza-se pela necessidade e a universalidade estrita, os signos dos
julgamentos a priori. A proposição ‘todo o que ocorre tem uma causa’ não significa que no que
atinge nossa experiência todos os acaecimientos tiveram causas e que é razoável esperar,
enquanto a experiência não diga o contrário, que os acaecimientos futuros terão também causa.
Significa que todo acaecimiento, sem exceção possível, tem causa. A proposição depende da
experiência em verdadeiro sentido, a saber, que só pela experiência adquirimos a ideia de coisas
que ocorrem, de acaecimientos. Mas a conexão entre o pregado e o sujeito está dada a priori.
Não é uma mera generalização de experiência atingida por indução, nem precisa confirmação
empírica. Sabemos a priori ou por antecipado que todo acaecimiento tem de ter uma causa, e a
observação de uma conexão assim no caso dos acaecimientos que caem dentro do campo de
nossa experiência não acrescenta nada à certeza do julgamento.

Acho que estaria fora de local o interromper o curso da problemática kantiana com uma
discussão da muito disputada questão das proposições sintéticas a priori. Mas em atenção ao
leitor que até o momento não se tivesse interessado por estas questões, vale a pena observar
brevemente que a existência de proposições sintéticas a priori é geralmente recusada pelos
lógicos modernos, particularmente, como é natural, pelos empiristas e positivistas. Sua proposta
da problemática é bastante diferente do de Kant, mas não é necessário atender agora a este tema.
O principal do assunto é que enquanto a distinção geral entre proposições sintéticas e
proposições analíticas não produz nenhuma dificuldade, muitos filósofos se negam a admitir a
existência de proposições sintéticas que sejam a priori.

Se uma proposição é necessária, então é analítica. E se uma proposição não é analítica, então
é sintética a posteriori, por usar a linguagem de Kant. Dito de outro modo: a tese empirista diz
que se uma proposição faz algo mais que analisar as significações de termos ou ilustrar as de
símbolos, ou seja, se nos dá informação a respeito de realidade extralingüística, então a conexão
entre seu pregado e seu sujeito não é necessária nem pode ser uma conexão necessária. E todas
as proposições sintéticas são a posteriori no sentido da terminología de Kant. Uma proposição
cuja verdade se base simplesmente no princípio de contradição é, como Kant dizia, analítica.
4jna proposição cuja verdade não descanse simplesmente no princípio de contradição não pode
ser necessariamente verdadeira. Não há local para uma terceira classe de proposições além das
analíticas e as empíricas (que correspondem aos julgamentos sintéticos a posteriori de Kant).

Kant, em mudança, estava convencido de que há proposições sintéticas a priori, ou seja,


proposições que não são meramente “explicativas”, senão que alargam nosso conhecimento da
realidade, mas que são ao mesmo tempo a priori (ou seja, necessárias e estritamente universais).
Portanto, o problema geral de como é possível o conhecimento a priori pode ser expressado do
seguinte modo: como são possíveis as proposições sintéticas a priori? Como é que podemos
saber a priori algo a respeito da realidade? Mas esta pergunta geral pode-se subdividir em
bastantees outras mais particulares tendo em conta os locais onde encontramos proposições
sintéticas a priori.

Estas se encontram, em primeiro lugar, na matemática. “Há que observar antes de mais nada
que as proposições matemáticas propriamente tais são sempre julgamentos a priori e não
empíricos, já que incluem o conceito de necessidade e este não pode ser derivado da
experiência”[328]. A proposição 7 + 5 = 12 não é uma generalização empírica que admita
exceções possíveis. É uma proposição necessária. Mas ao mesmo tempo, e segundo Kant, essa
proposição não é analítica no sentido dantes descrito, senão sintética. O conceito de doze não se
obtém nem pode ser obtido por mera análise da ideia da união de sete e de cinco. Pois esta ideia
não implica por si mesma o conceito de doze como número decorrente da união. Só a intuición
nos permite chegar à ideia de 12. “Portanto, a proposição aritmética é sempre sintética”[329]. Ou
seja, é sintética a priori, já que, como vimos, é uma proposição necessária e, portanto, não pode
ser sintética a posteriori.

Também as proposições da geometria pura são proposições sintéticas a priori. Por exemplo,
“que uma linha reta é a distância mais curta entre dois pontos é uma proposição sintética. Porque
meu conceito de reta não contém nenhuma noção de quantidade, senão só de qualidade. Por
conseguinte, o conceito da mais curta está acrescentado, e não pode ser derivado mediante
análise do conceito de linha reta. Portanto, a intuición tem que nos prestar aqui sua ajuda, por
médio da qual se faz possível esta síntese”[330]. Mas além de ser sintética, a proposição é
necessária e, portanto, a priori. Não é uma generalização empírica.

Os geómetras, observa Kant, podem utilizar algumas proposições analíticas; mas faz questão
de que todas as proposições da matemática pura propriamente tal são proposições sintéticas a
priori. A matemática pura não é para Kant, como o foi pára Leibniz, uma ciência puramente
analítica baseada no princípio de contradição, senão que é uma ciência de caráter construtivo.
No capítulo seguinte terá que dizer algo mais a respeito da concepção kantiana da matemática,
ao tratar sua teoria do espaço e do tempo. Pelo momento bastará com observar o problema que
surge desta doutrina de que as proposições matemáticas são proposições sintéticas a priori:
como é possível a ciência matemática pura? Sem dúvida conhecemos a priori verdades
matemáticas. Mas como é isso possível?

Em segundo local encontram-se proposições sintéticas a priori também na física. Tomemos,


por exemplo, a proposição “em todas as mudanças do mundo corpóreo (material) a quantidade
de matéria permanece constante”. Segundo Kant esta proposição é necessária e, portanto, a
priori. Mas também é sintética. Pois no conceito de matéria não está pensada sua permanência,
senão só sua presença no espaço por ela enchido. Desde depois que a física em general não
consta simplesmente de proposições sintéticas a priori. Mas “a ciência natural (a física) contém
julgamentos sintéticos a priori como princípios”[331]. Se chamamos ciência natural pura, ou
física pura, ao conjunto desses princípios, propõe-se a questão: “Como é possível a ciência
natural pura, ou física pura?” Possuímos conhecimento a priori nessa esfera. Mas como é
possível que o possuamos?

Kant achava que há proposições sintéticas a priori também em moral; mas este tema pode
ser deixado pendente até o capítulo dedicado a sua teoria ética, já que pelo momento estamos
considerando os problemas suscitados e discutidos na Crítica da razão pura. Assim chegamos,
pois, ao tema da metafísica. A metafísica não aspira meramente a analisar conceitos. Contém,
sem dúvida, proposições analíticas, mas estas não são proposições metafísicas propriamente
ditas. A metafísica aspira a alargar nosso conhecimento da realidade. Portanto, suas proposições
têm que ser sintéticas. Mas, ao mesmo tempo, se a metafísica não é uma ciência empírica (e por
suposto que não o é), então suas proposições têm que ser a priori. Do qual se segue que se a
metafísica é possível, tem que constar de proposições sintéticas a priori. “E assim a metafísica,
ao menos segundo sua pretensão, consta puramente de proposições sintéticas a priori”[332]. Kant
alega como exemplo a proposição “o mundo tem de ter um primeiro começo”[333].

Mas, como vimos, a pretensão científica da metafísica é suspecta. Portanto, aqui a questão
não é como é possível a metafísica como ciência, senão se a metafísica como ciência é possível.
Neste ponto temos de apelar a uma distinção já feita, a saber, a distinção entre a metafísica como
disposição natural e a metafísica como ciência. Já que Kant pensa que a razão humana se vê
naturalmente movida a suscitar problemas que não são resolubles empiricamente, poderá muito
naturalmente se perguntar como é possível a metafísica considerada como disposição natural.
Mas na medida em que duvida de se está justificada a pretensão metafísica de ser uma ciência
capaz de resolver seus próprios problemas, nessa medida a questão pertinente é a de se realmente
é possível uma metafísica considerada como ciência.

Aqui enfrentamo-nos, pois, com quatro problemas. Primeiro: como é possível a ciência
matemática pura? Segundo: como é possível a ciência natural pura, ou física pura? Terceiro:
como é possível a metafísica assim que disposição natural? Quarto: é possível a metafísica assim
que ciência? Kant estuda estas questões na Crítica da razão pura.

4. A revolução copernicana de Kant.

Se consideramos a questão geral de como é possível o conhecimento a priori ou como são


possíveis os julgamentos sintéticos a priori, e se ao mesmo tempo temos presente o acordo de
Kant com Hume pelo que faz à imposibilidad de derivar dos dados empíricos a necessidade e a
universalidade estrita, veremos o difícil que ia ser para o filósofo o sustentar que o conhecimento
consista na adequação do espírito com seus objetos. A razão dessa dificuldade é óbvia. Se para
conhecer objetos o espírito tem que adecuarse a eles, e se, por outra parte, não pode achar nesses
objetos, assim que empiricamente dados, conexão necessária alguma, se faz impossível explicar
como podemos formar julgamentos necessários e estritamente universais que resultam de fato
verificados e que, como sabemos de antemão ou a priori, têm que o ser sempre. Pois não se trata
só, por exemplo, de que apaziguemos que certos acaecimientos já experimentados tenham causa;
é que, ademais, sabemos de antemão que todo acaecimiento tem causa. Mas se reduzimos a
experiência ao meramente dado, não podemos descobrir nenhum relacionamento causal
necessária. Portanto, é impossível explicar nosso conhecimento de que todo acaecimiento tem
de ter uma causa; a hipótese de que o conhecimento consiste simplesmente na adequação do
espírito a seus objetos não permite essa explicação, dados aqueles princípios.

Por isso sugere Kant outra hipótese. “Admitiu-se até agora que todo nosso conhecimento
tem que adecuarse aos objetos. Mas todas as tentativas feitas para averiguar a priori algo deles
mediante conceitos, para alargar assim nosso conhecimento, fracassaram até agora partindo
desse suposto. Vejamos, portanto, se não progrediremos mais nas tarefas da metafísica com a
suposição inversa, a saber, que os objetos têm que adecuarse a nosso conhecimento. Isto, desde
depois, concorda melhor com a possibilidade que estamos buscando, a saber, a de um
conhecimento a priori dos objetos que determine algo deles dantes de que nos sejam dados”[334].
Esta hipótese, observa Kant, é análoga à proposta por Copérnico. Copérnico viu que embora o
Sol parece se mover ao redor da Terra de Leste a oeste, não podemos inferir justificadamente
disso que a Terra esteja fixa e que o Sol se mova em torno dela, pela singela razão de que o
movimento observado do Sol seria o mesmo (ou seja, os fenômenos seriam precisamente os que
são) se fosse a Terra a que se movesse ao redor do Sol, e o observador humano com ela. Os
fenômenos imediatos são os mesmos com ambas hipóteses. A questão consiste em se não há
fenômenos astronómicos que só possam ser explicado de acordo com a hipótese heliocéntrica,
ou que, pelo menos, se expliquem com ela melhor e mais economicamente que com a hipótese
geocéntrica. A ulterior investigação astronómica mostrou que tal era o caso. Analogamente,
aponta Kant, a realidade empírica ficará sem alterar utilizando a hipótese de que para ser
conhecidos (ou seja, para ser objetos, se por ‘ objeto’ entendemos objeto do conhecimento) os
objetos têm que adecuarse ao espírito, e não ao inverso. E se o conhecimento a priori pode ser
explicado com a nova hipótese, enquanto é inexplicable com a velha, aqui se terá obviamente
um argumento em favor daquela.

A “revolução copernicana” de Kant não implica a tese de que a realidade possa ser reduzido
ao espírito humano e a suas ideias. Kant não afirma que o espírito humano acha as coisas ao as
pensar. O que diz é que não podemos conhecer coisas, que as coisas não podem ser objetos de
nosso conhecimento, mais que na medida em que se submetem a certas condições a priori do
conhecimento postas pelo sujeito. Se supomos que o espírito humano é puramente pasivo no
conhecimento não podemos explicar o conhecimento a priori que sem dúvida possuímos.
Admitamos, pois, que o espírito é ativo. Esta atividade não significa a criação de entes a partir
da nada. Significa mais bem que o espírito impõe, por assim o dizer, ao material último da
experiência suas próprias forma cognoscitivas, determinadas pela estrutura da sensibilidade e
do entendimento humano, e que as coisas não podem ser conhecidas se não é por médio dessas
forma. Mas ao falar da imposição pelo espírito de suas próprias forma cognoscitivas à matéria
prima, por assim o dizer, do conhecimento não se está dizendo que o sujeito humano faça isso
deliberadamente, conscientemente e com intenção. O objeto assim que dado à experiência
consciente, o objeto a respeito do qual pensamos (uma árvore, por exemplo) está já submetido
a essas forma cognoscitivas que o sujeito humano lhe impõe como por necessidade natural, pelo
mero fato de ser esse sujeito o que é, ou seja, por sua estrutura natural de sujeito conhecedor.
Assim, pois, as forma cognoscitivas determinam a possibilidade dos objetos, se por ‘ objeto’ se
entende o objeto de conhecimento precisamente e como tal. Em mudança, se a palavra entende-
se como significativa das coisas em si, ou seja, tal como existem fora de todo relacionamento
com o sujeito conhecedor, então, desde depois, não podemos dizer que os objetos estejam
determinados pelo espírito humano.

Talvez possa ser clarificado um pouco o assunto tomando a imagem, por suposto grosseira,
do homem com gafas de cor ao que dantes nos referíamos. Por uma parte é óbvio que este
homem que vê o mundo de cor — ponhamos vermelho — porque leva gafas cujas lentes estão
tingidas de vermelho, não cria as coisas que vê no sentido em que se diz que Deus é o Criador.
Se não tivesse coisas que lhe afetassem, ésto é, que estimulassem sua capacidade visual, não
veria nada em absoluto. Por outra parte, empero, nada poderia ser visto por ele, ou seja, nada
poderia ser objeto de visão para ele, se não se apresentasse como vermelho. De todos modos,
para que a analogia possa ser aplicado há que precisar o seguinte e importante ponto. Um homem
que se põe gafas vermelhas o faz deliberadamente, de maneira que se vê as coisas vermelhas é
porque queira. Para que a analogia funcione terá, pois, que imaginar um homem com a visão
constituída de tal modo desde o berço que só pode ver vermelho. O mundo que se lhe apresenta
na experiência é pois, um mundo vermelho. E este mundo é realmente o ponto de partida para
suas reflexões. Fazem-se então possíveis duas hipótese para essa reflexão: ou bem todas as
coisas são vermelhas, ou bem há coisas de diferentes cores[335], mas que aparecem todas como
vermelhas por causa de algum fator subjetivo (como efetivamente ocorre no caso da analogia).
Espontaneamente nosso homem se inclinaria pela primeira hipótese. Mas pode ocorrer-lhe que
no curso do tempo tropece com dificuldades para explicar certos fatos baseando em sua hipótese.
Isto pode lhe mover a ter em conta a outra. E se descobre que certos fatos podem ser explicado
mediante esta segunda hipótese, enquanto eram inexplicables com a primeira, com a hipótese de
que todas as coisas são vermelhas, terá que adotar a segunda hipótese. Nunca será capaz de ver
as cores “reais” das coisas, e as aparências serão para ele as mesmas após a mudança de hipótese
que dantes, do mesmo modo que o movimento aparente do Sol é exatamente o mesmo para o
homem que aceita a hipótese heliocéntrica que para o que professa a geocéntrica. Mas agora
saberá por que as coisas se apresentam assim. O homem que aceita a hipótese heliocéntrica
saberá que o movimento aparente do Sol ao redor da Terra se deve ao movimento da Terra e ao
seu próprio com ela. O homem que vê todas as coisas vermelhas terá razões para supor que esta
aparência das coisas se deve a uma condição subjetiva sua. Analogamente, o homem que aceita
a “revolução copernicana” de Kant tem razões para achar, por exemplo, que alguns modos de
aparecimento das coisas (a coordenação espacial, por exemplo, ou a conexão mútua por
relacionamentos necessários de causa-efeito) se devem às condições subjetivas a priori do
conhecimento que estão presentes em sua mesma subjetividad. Não será capaz, por suposto, de
conhecer as coisas aparte de sua sustentação a essas condições ou forma a priori, mas saberá
por que o mundo empírico é o que é para sua consciência.

recordámos já a alusão de Kant, no prólogo aos Prolegómenos, à influência de Hume sobre


seu pensamento. No prólogo à segunda edição da Crítica da razão pura Kant chama a atenção
a respeito da influência que tiveram sobre ele a matemática e a física ao lhe sugerir a ideia de
sua “revolução copernicana”. Em matemática, uma revolução assim tem que se ter produzido
muito cedo. Quienquiera que fosse o grego que por vez primeira demonstrou as propriedades do
triângulo isósceles, é evidente que o fez baixo a iluminação de uma luz nova que caiu sobre ele.
Pois viu que não bastava com contemplar o diagrama visível de um triângulo nem a ideia desse
diagrama presente a sua memória. Compreendeu que tinha que demonstrar as propriedades do
triângulo mediante um processo ativo de construção. E, em general, a matemática converteu-se
em ciência quando chegou a ser construtiva segundo conceitos a priori. Pelo que faz à física, a
revolução chegou bem mais tarde. Com os experimentos de Galileo, de Torricelli e de outros
caiu sobre a física uma luz nova. Os físicos compreenderam finalmente que embora o cientista
tem que se acercar sem dúvida à natureza para aprender dela, não tem que o fazer com o mero
estado de ânimo de um aluno. Tem que se acercar a ela como um juiz, a obrigando a responder
a perguntas que ele mesmo lhe propõe, do mesmo modo que um juiz insiste cerca de uma
testemunha para que responda às perguntas que lhe propõe seguindo um plano de investigação.
O cientista tem que acercar à natureza com princípios em uma mão e experimentos na outra,
para a obrigar a responder a questões propostas de acordo com um plano ou objetivo do
pesquisador. O cientista não tem que se pôr a seguir à natureza passivamente, como um menino
em andaderas. Só quando os físicos compreenderam que tinha que obrigar à natureza, por assim
o dizer, a adecuarse a suas finalidades prévias se fez possível o progresso real nesta ciência[336].
E estas revoluções na matemática e na física sugerem que talvez progridamos melhor também
em metafísica se supomos que os objetos têm que adecuarse a nosso espírito, em vez de proceder
segundo a outra hipótese. Como mostrou Hume, o conhecimento a priori não pode ser explicado
com a segunda hipótese. Olhemos, pois, se pode ser explicado com a primeira.

Como pode ajudar a “revolução copernicana” a explicar o conhecimento a priori? Um


exemplo pode facilitar-nos/facilitá-nos uma ideia prévia. Sabemos que todo acaecimiento tem
de ter uma causa. Mas, como mostrou Hume, nenhum cúmulo de acaecimientos particulares,
por grande que seja, pode bastar para produzir esse conhecimento. Disso inferia Hume que não
pode ser dito que sabemos que todo acaecimiento tem causa. O mais que podemos fazer, em sua
opinião, é tentar achar uma explicação psicológica de nossa crença ou convicção ao
respecto[337]. Para Kant, em mudança, sabemos certamente que todo acaecimiento tem de ter
uma causa. E este é um exemplo de conhecimento a priori. Com que condição é possível esse
conhecimento? Com a condição necessária de que os objetos, para ser objetos (ou seja, para ser
conhecidos), estejam submetidos aos conceitos ou categorias a priori do entendimento humano,
uma das quais é a causalidad. Pois dada essa condição nada entrará no campo de nossa
experiência se não é ejemplificando o relacionamento causal, do mesmo modo que, voltando a
nossa anterior ilustração, nada pode entrar nunca no campo da visão do homem cuja vista é tal
que vê todas as coisas vermelhas se não é como ejemplificación do vermelho. Se os objetos da
experiência estão por necessidade determinados ou constituídos parcialmente como tais pela
imposição das categorias mentais, e se a causalidad é uma destas, então podemos saber por
antecipado ou a priori que nada ocorrerá nunca dentro do inteiro campo da experiência humana
se não é com uma causa. E alargando esta ideia para além do exemplo particular da causalidad
podemos explicar todo o âmbito do conhecimento a priori.

falei de “ hipótese” kantiana. Pelo que faz a sua concepção inicial se tratava, desde depois,
de uma hipótese. “Olhemos se não podemos sair melhor livrados supondo que...”: esse é o giro
mental típico com o que Kant introduz a ideia. Mas depois Kant observa que, embora a ideia lhe
foi sugerida pela revolução da ciência natural ou física, na filosofia Crítica não podemos
experimentar com objetos de modo análogo àquele com o qual o físico pode fazer experimentos.
Aqui ocupamo-nos do relacionamento entre os objetos e a consciência em general, e não
podemos isolar os objetos de seu relacionamento com o sujeito conhecedor para ver se isto
repercute em uma diferença neles. Um procedimento assim é por princípio impossível. Mas, ao
mesmo tempo, se a nova hipótese permite-nos explicar o que não pode ser explicado de nenhuma
outra maneira, e se conseguimos ademais demonstrar as leis que subyacen a priori à natureza
(considerada como a soma dos objetos da experiência possível), conseguirei também provar a
validade do ponto de vista que ao princípio se adotou como hipótese.

5. Sensibilidade, entendimento, razão e a estrutura da primeira


Crítica.

“Dois são as fontes do conhecimento humano, as quais brotam talvez de uma raiz comum,
mas desconhecida, a saber, a sensibilidade e o entendimento. Pela primeira são-nos dados os
objetos; pela segunda são pensados”[338]. Kant distingue aqui entre os sentidos ou a sensibilidade
(Sinnlichkeit) e o intelecto ou entendimento (Verstand), e diz-nos/dí-nos que os objetos são
dados pelo sentido e pensados pelo entendimento. Mas esta afirmação, se toma-se isoladamente
e sem referência ao contexto, pode originar facilmente uma interpretação errada do pensamento
de Kant, razão pela qual serão convenientes umas poucas palavras de comentário.

Temos visto que Kant não coincide com os empiristas na tese de que todo conhecimento
humano procede da experiência. Pois há segundo ele um conhecimento a priori que não pode
ser explicado envelope a base de princípios puramente empiristas. Ao mesmo tempo, no entanto,
Kant coincide com os empiristas na tese de que os objetos não são dados na experiência sensível.
Mas a palavra ‘dado’ pode produzir aqui uma confusão. Para expor o assunto grosseiramente,
digamos que o pensamento não pode trabalhar com os objetos senão quando estes estão dados
pelos sentidos; mas disto não se segue que o “dado” não seja já uma síntese de matéria e forma,
de tal modo que a forma é imposta pela sensibilidade humana. Kant pensava que o dado é
efetivamente dita síntese. Portanto, a palavra ‘dado’ tem de tomar no sentido de dado à
consciência, sem pressupor que os sentidos prendam coisas em si mesmas, coisas tal como
existem com independência da atividade sintética do sujeito humano. A mesma experiência
sensível contém já essa atividade, síntese com as intuiciones sensíveis a priori de espaço e
tempo. As coisas-em-si não estão nunca dadas como objetos; o que o entendimento encontra
como dado por assim o dizer, é já síntese de matéria e forma. O entendimento sintetiza então
ulteriormente os dados da intuición sensível segundo seus conceitos puros (não empíricos) ou
categorias.

Assim, pois, a sensibilidade e o entendimento cooperam para constituir a experiência e para


determinar os objetos assim que objetos, embora suas respetivas contribuições sejam
distinguibles. Isto significa que a função dos x conceitos puros ou categorias do entendimento
(Verstand) consiste em sintetizar os dados da intuición sensível. Portanto, essas categorias são
inaplicables a realidades que não estejam nem possam estar dadas na experiência sensível. E
disso se segue que nenhuma metafísica pode pretender legitimamente ser uma ciência, já que as
metafísicas consistem em um uso dos conceitos puros ou categorias do entendimento (como os
conceitos de causa e substância) para trascender a experiência, como diz Kant, e descrever uma
realidade suprasensible. Uma das tarefas do filósofo é, consequentemente, expor a vaciedad de
tal pretensão.
Assim, pois, a função dos conceitos puros ou categorias do entendimento consiste em
sintetizar a multiplicidad do sentido; seu uso encontra-se em sua aplicação aos dados da intuición
sensível. Mas há também certas ideias que, ainda não sendo meras abstrações da experiência,
não são aplicáveis aos dados da intuición sensível. Trascienden a experiência no sentido de que
não há na experiência nem pode ter nela objetos dados que correspondam a elas. Tais são, por
exemplo, as ideias da alma como princípio espiritual e de Deus. Como se produzem essas ideias?
O espírito humano tem uma tendência natural a buscar princípios absolutos ou incondicionados
de unidade. Assim busca o princípio incondicionado[339] da unidade de todo pensamento
categorial na ideia da alma como sujeito pensante ou ego. E busca os princípios incondicionados
da unidade de todos os objetos da experiência na ideia de Deus, o Ser supremamente perfeito.

As “ideias trascendentales”, como o lume Kant, dependem segundo ele da razão (Vernunft).
Temos de observar que Kant usa esta palavra com diversos graus de rigor. Quando lume à
primeira Crítica Kritik der reinem Vernunft (Crítica da razão pura), a palavra ‘razão’, assim
que recolhe o conteúdo total da obra, inclui também a sensibilidade, o entendimento e a razão
no sentido estrito que agora vamos clarificar. Neste sentido estrito a razão (Vernunft) distingue-
se do entendimento (Verstand) e ainda mais da sensibilidade (Sinnlichkeit). Refere-se à
inteligência humana assim que tenta unificar uma multiplicidad referindo a um princípio
incondicionado, tal como Deus.

Agora bem: esta tendência natural da razão, considerada em si mesma, não é para Kant coisa
de pouca importância. Pelo contrário, Kant considera que as ideias trascendentales exercem uma
importante função regulatória. Por exemplo, a ideia do mundo como totalidade, como sistema
total dos fenômenos causalmente relacionados, nos move constantemente a desenvolver
hipóteses científicas explicativas a cada vez mais amplas, sínteses conceptuais a cada vez mais
amplas dos fenômenos. Dito de outro modo, essa ideia regulatória serve como uma espécie de
objetivo ideal cuja noção estimula o espírito para renovados esforços.

Mas aqui surge a questão de se essas ideias possuem algo mais que uma função regulatória.
Podem ser fonte de conhecimento teorético de realidades correspondentes? Kant está
convencido de que não. Em sua opinião, toda tentativa de utilizar essas ideias como base para
uma metafísica científica está predestinado ao falhanço. Se procedemos assim, nos veremos
sumidos em falacias e antinomias lógicas. Dada nossa posse dessas ideias, é fácil compreender
a tentação de usar de um modo “trascendente”, ou seja, de estender nosso conhecimento
teorético para além do campo da experiência. Mas há que resistir a essa tentação.

Tendo em conta as considerações esboçadas nesta seção, podemos entender facilmente a


estrutura geral da Crítica da razão pura. A obra divide-se em duas grandes partes, a primeira
das quais se titula Transzendentale Elementarlehre (Doutrina trascendental dos elementos).
Como indica a palavra ‘trascendental’[340], esta parte se ocupa dos elementos a priori (forma ou
condições) do conhecimento. Se subdivide em duas partes principais, Die transzendentale
Acsthetik (Estética trascendental) e Die transsendentale Logik (Lógica trascendental). Na
primeira das duas Kant estuda as forma a priori da sensibilidade e mostra como são possíveis
as proposições sintéticas a priori da matemática. A Lógica trascendental se subdivide em
Transzcndcntal Analityk (Analítica trascendental) e Transzendentale Dialektik (Dialética
trascendental). Na Analítica estuda Kant os conceitos puros do entendimento, ou categorias, e
mostra como são possíveis as proposições sintéticas a priori da ciência natural. Na Dialética
considera dois temas principais: a disposição natural à metafísica e a questão de se a metafísica
(a metafísica especulativa de tipo tradicional) pode ser uma ciência. Como já se disse, Kant
afirma o valor da metafísica como disposição natural. Mas recusa sua pretensão de ser uma
verdadeira ciência que forneça conhecimento teorético da realidade puramente inteligible.

A segunda das duas partes principais da Crítica da razão pura chama-se Transzendentale
Methodenlehre (Doutrina trascendental do método). No local da metafísica especulativa ou
“trascendente” que pretendia ser uma ciência de realidades trascendentes à experiência, Kant
considera a fundação de uma metafísica “trascendental” que compreenderia o inteiro sistema do
conhecimento a priori, incluídos os fundamentos metafísicos da ciência natural. Não diz que
proporcione já esse sistema trascendental na Crítica da razão pura. Se consideramos o sistema
completo do conhecimento a priori como um edifício, podemos dizer que a Doutrina
trascendental dos elementos, a primeira das duas grandes partes da Crítica, examina os materiais
e suas funções, enquanto a Doutrina trascendental do método contempla o plano do edifício e é
“a determinação das condições formais de um sistema completo da razão pura”[341]. Por isso diz
Kant que a Crítica da razão pura esboça arquitectónicamente o plano do edifício, e que é “a
ideia completa da filosofia trascendental, mas não esta ciência mesma”[342]. Falando
propriamente, a Crítica da razão pura não é mais que a propedéutica do sistema da filosofia ou
metafísica trascendental. Mas falando mais lassamente podemos, desde depois, dizer que o
conteúdo da Crítica, a doutrina dos elementos e a doutrina do método, constituem a primeira
parte da filosofia ou metafísica trascendental.

6. A significação da primeira Crítica no contexto do problema geral


da filosofia kantiana.

No último capítulo mencionou-se o fato de que nos Sonhos de um visionario Kant


apresentava a metafísica como ciência dos limites ou extremos da razão humana. Na Crítica da
razão pura tenta realizar esse programa. Mas há que entender razão no sentido de razão teorética
ou especulativa, razão, por melhor dizer, em sua função teorética. Não podemos ter
conhecimento teórico de realidades que não sejam dadas na experiência sensível ou que não
possam o ser. Sem dúvida há uma reflexão Crítica da razão a respeito de si mesma; mas o
resultado dessa reflexão é primariamente o revelar as condições do conhecimento científico, as
condições da possibilidade dos objetos. Essa reflexão não nos abre um mundo de realidade
suprasensible como objeto de conhecimento teorético.

Ao mesmo tempo, esta delimitação das fronteiras do conhecimento teorético ou cientista não
mostra que Deus, por exemplo, seja impensable, ou que o termo ‘Deus’ seja um sinsentido. O
único que faz é situar a liberdade, a imortalidade e Deus fosse do âmbito da prova e a refutación.
Portanto, a Crítica da metafísica que se encontra na Dialética trascendental despeja o caminho
a uma fé prática ou moral baseada na consciência moral. Por isso pode dizer Kant [343] que teve
que destruir conhecimento para dar local à fé, e que sua destructiva Crítica das pretensões da
metafísica como ciência são um ataque às raízes do materialismo, o fatalismo e o ateísmo. Pois
as verdades de que há uma alma espiritual, que o homem é livre e que Deus existe não descansam
já em argumentos falaces que davam armas aos que negam ditas verdades; agora passaram à
esfera da razão prática ou moral e são objetos de fé, não de conhecimento (este termo se toma
agora em um sentido análogo ao que tem na matemática e a ciência natural).

É um grande erro considerar essa doutrina como uma mera reverência propiciatoria dirigida
ao ortodoxo e devoto, ou como um mero ato de prudência por parte de Kant. Pois a doutrina é
parte de sua solução do grande problema da reconciliação do mundo da ciência com o mundo
da consciência moral e religiosa. A ciência (ou seja, a física clássica) inclui uma concepção de
leis causales que não admite livre albedrío. E o homem considerado como membro do sistema
cósmico estudado pelo cientista não é exceção a essas leis. Mas o conhecimento científico tem
seus limites, e seus limites estão determinados pelas forma a priori da sensibilidade e do
entendimento humanos. Não há nenhuma razão válida, portanto, para dizer que os limites de
nosso conhecimento científico ou teórico coincidam com os limites da realidade. A consciência
moral, quando se desenvolvem seus envolvimentos práticos, nos leva para além da esfera
sensível. Como ente fenoménico há que considerar ao homem sujeito às leis causales e
determinadas; mas a consciência moral, que é ela mesma uma realidade, implica a ideia de
liberdade. Assim, pois, embora não podemos provar cientificamente que o homem é livre, a
consciência moral exige fé na liberdade.

Este ponto de vista está sem dúvida carregado de dificuldades. Não só temos a divisão entre
realidade sensível, fenoménica, e nouménica, ou realidade puramente inteligible; senão que
também nos enfrentamos designadamente com a difícil concepção do homem fenoménicamente
determinado e nouménicamente livre, ou seja, como determinado e livre ao mesmo tempo,
embora em diferentes feições. Estaria fora de local discutir aqui estas dificuldades. Eu tinha duas
intenções ao mencionar este ponto de vista de Kant. Primeiro, interessava-me chamar a atenção
uma vez mais sobre o problema da reconciliação do inundo da física newtoniana com o mundo
da realidade e a religião. Pois se temos presente este problema será mais difícil que as árvores
nos impeça ver o bosque. Em segundo local, interessava-me indicar que a Crítica da razão pura
não se encontra solta, em solitário isolamento respecto dos demais escritos de Kant, senão que
faz parte de uma filosofia total que se foi revelando gradualmente em obras sucessivas. É
verdade que a primeira Crítica tem seus problemas específicos e é, neste sentido, uma obra
independente. Mas, aparte de que a mesma investigação do conhecimento a priori tinha que
continuar no campo da razão prática, ocorre que as conclusões da primeira Crítica são só uma
parte da solução a um problema geral que subyace a todo o pensamento kantiano. E é importante
entendê-lo assim desde o primeiro momento.
Capítulo XII
O conhecimento científico.

1. Espaço e tempo.

O único médio pelo qual nosso conhecimento pode ser relacionado imediatamente com os
objetos é a intuición; assim diz Kant ao começo da Estética trascendental[344]. E uma intuición
não pode ocorrer mais que sr nos é dado um objeto. Do intelecto divino diz-se que é intuitivo e
arquetípico. Isto quer dizer que o intelecto divino cria seus objetos. Mas não ocorre assim com
a intuición humana, a qual pressupõe um objeto. E isto significa que o sujeito humano tem que
ser afetado de algum modo pelo objeto. A capacidade de receber representações (Vorstellungen)
dos objetos mediante a afección pelos mesmos chama-se ‘sensibilidade’ (Sinnlichkeit). “Por
médio, pois, da sensibilidade são-nos dados os objetos, e ela só nos tenta intuiciones”[345].

Se essas observações tomam-se meramente por si mesmas, o termo ‘sensibilidade’ tem


significação vazia, é só a receptividad cognoscitiva ou capacidade de receber representações de
objetos mediante a afección por eles. Mas não devemos esquecer que Kant está também
pensando na intuición divina, considerada precisamente por contraposição à intuición humana;
nesta contraposição precisa-se que a intuición divina é não só arquetípica, senão também
intelectual. Do que se segue que a intuición humana é intuición sensível. E que significa então
a capacidade de receber representações dos objetos mediante a afección por eles (afección dos
sentidos). “O efeito de um objeto na faculdade de representação, na medida em que somos
afetados por dito objeto, é a sensação” (Empfindung).[346] Kant está, pois, de acordo com os
empiristas em que o conhecimento humano de objetos requer sensações. O espírito precisa, por
assim o dizer, ser posto em contato com as coisas através da afección dos sentidos. Kant
pressupõe como óbvio que os sentidos são afetados por coisas externas; e o efeito dessa afección
sobre a faculdade de representação chama-se ‘sensação’. Esta é, pois, uma representação
subjetiva; mas isso não significa que seja causada pelo sujeito.

De todos modos, a intuición sensível não pode ser reduzido simplesmente a afecciones a
posteriori de nossos sentidos pelas coisas. Kant chama “aparência” (Erschemung) ao objeto de
uma intuición empírica sensível. E na aparência podemos distinguir dois elementos. Primeiro a
matéria. Esta se descreve como “o que corresponde à sensação”[347]. Segundo, a forma da
aparência. E esta se descreve como “o que permite que a multiplicidad da aparência se disponha
segundo certos relacionamentos”[348]. Agora bem: a forma, como diferente da matéria, não pode
ser ela mesma sensação se é que a matéria se descreve como o correspondente à sensação.
Portanto, enquanto a matéria está dada a posteriori, a forma tem que cair da parte do sujeito; ou
seja, tem que ser a priori, uma forma a priori da sensibilidade, pertencente à estrutura mesma
da sensibilidade e constitutiva de uma condição necessária de toda intuición sensível. Há,
segundo Kant, duas forma da sensibilidade: o espaço e o tempo. Em realidade, o espaço não é
uma condição necessária de toda intuición empírica; mas, pelo momento, podemos passar este
ponto por alto. Aqui bastará com observar que a tese de que em toda experiência sensível há um
elemento a priori separa a Kant do empirismo puro.

Talvez seja necessário neste ponto fazer algumas observações a respeito da terminología de
Kant, ainda a costa de interromper a exposição de sua teoria do espaço e o tempo. Em primeiro
lugar, o termo ‘representação’ (Vorstellung) usa-se em um sentido muito amplo para cobrir toda
uma série de estados cognoscitivos. De aqui que o termo ‘facultem da representação’ seja
praticamente equivalente ao termo ‘ânimo’ (Gemüt), usado também em um sentido amplísimo.
Em segundo local, o termo ‘objeto’ (Gegenstand) não se usa coerentemente em um só sentido.
Assim, por exemplo, na definição dantes citada ‘objeto’ tem que significar o que o próprio Kant
lume mais adiante ‘coisa-em-si’, a qual é desconhecida. Mas, em general, ‘objeto’ significa
objeto do conhecimento. Em terceiro local: na primeira edição da Crítica da razão pura Kant
distingue entre ‘aparência’ e ‘fenômeno’. “As aparências, na medida em que são pensadas como
objetos segundo a unidade das categorias, se chamam fenômenos”[349]. Portanto, ‘aparência’
significa o conteúdo de uma intuición sensível quando este conteúdo se considera como
“indeterminado” ou sem categorizar, enquanto ‘fenômeno’ significa objetos categorizados. De
fato, no entanto, Kant usa com frequência o termo ‘aparência’ (Erscheinung) em ambos sentidos.

Outra observação mais. Temos visto que a matéria da aparência descreve-se como aquilo
que “corresponde a ” a sensação. Mas em outros locais lemos que a sensação mesma pode ser
chamado “matéria do conhecimento sensível”[350]. E talvez esses dois modos de dizer possam
ser considerado indicativos de duas tendências diferentes, presentes ambas no pensamento de
Kant. A coisa externa que afeta ao sujeito é ela mesma desconhecida; mas ao afetar aos sentidos
produz uma representação. Agora bem: Kant tende às vezes a expressar-se como se todas as
aparências fossem representações subjetivas. E quando domina em sua linguagem este ponto de
vista, é natural que descreva a sensação mesma como a matéria da aparência. Pois, segundo
vimos, a sensação descreve-se como o efeito de um objeto sobre a faculdade de representação.
Mas Kant fala outras vezes como se os fenômenos fossem objetos que não se reduzem a
representações meramente subjetivas; esta é precisamente a tendência que mais com frequência
domina em seu pensamento. Neste caso, se eliminamos mentalmente a contribuição das
categorias ao entendimento dos fenômenos, chegando assim às aparências (no sentido mais
estreito da palavra), é natural que falemos da matéria de uma aparência como aquilo que
“corresponde a ” a sensação.

Os últimos três alíneas que acabamos de escrever não são uma digresión, senão umas notas
ao texto, se se me permite esta contradição nos termos. E agora uma verdadeira digresión, um
breve desenvolvimento da ideia sugerida pela última frase do último dessas três alíneas, pode
ser útil para clarificar a posição de Kant e levar adiante nosso estudo dela. A proposta procede
do mesmo Kant[351].

O mundo da experiência comum consiste evidentemente em uma série de coisas que


possuem qualidades várias e estão em vários relacionamentos as una com as outras. Ou seja:
geralmente dizemos que percebemos coisas, a cada uma das quais pode ser descrito em base a
qualidades e está em relacionamentos várias com outras coisas. E a percepción neste sentido é
claramente faz do entendimento e do sentido em cooperação. Mas tomado o processo total,
podemos tentar abstraer dele todo o que é contribuição do entendimento, para chegar à intuición
empírica ou percepción em um sentido estreito. Assim chegamos à análise lógica das aparências,
ao que talvez possamos chamar conteúdos sensíveis ou dados sensíveis. Mas ainda podemos
adiantar apressar mais a análise. Pois dentro do conteúdo da experiência sensível é possível
distinguir entre o elemento material, que corresponde à sensação indeterminada, e o elemento
formal, os relacionamentos espaço-temporais da multiplicidad da aparência[352]. E o objetivo da
Estética trascendental é precisamente isolar e estudar os elementos formais, considerados como
condição necessária da experiência.

O assunto pode ser formulado do modo seguinte. O mais baixo nível concebible de qualquer
coisa que possa ser chamado conhecimento de objetos ou contato com eles implica pelo menos
o advertir as representações produzidas pela ação das coisas sobre nossos sentidos. Mas não
podemos advertir sensações sem relacionar no espaço e o tempo. Por exemplo: advertir duas
sensações — ou seja, ser conscientes delas — implica o relacionar a uma com a outra dentro do
tempo, dentro de uma ordem de sucessão temporária. Uma sensação chega dantes ou depois que
a outra, ou ao mesmo tempo que ela. O espaço e o tempo constituem, por assim o dizer, o
enquadramento no qual se ordena ou dispõe a multiplicidad da sensação. Assim, pois, o espaço
e o tempo diversificam e unificam (em relacionamentos espaço temporários) a matéria
indeterminada da aparência.

Isso não significa, desde depois, que advirtamos ao princípio sensações desordenadas e que
depois as submetamos às forma a priori do espaço e o tempo. Jamais nos enfrentamos com
sensações desordenadas. Nem é possível que isso ocorra. A tese básica de Kant é precisamente
que o espaço e o tempo são condições necessárias a priori da experiência sensível. O dado na
intuición empírica, aquilo que advertimos, está portanto, se assim pode ser falado, já ordenado.
A ordenação é uma condição da advertência ou consciência, não uma consequência dela. É
verdade que dentro da aparência podemos distinguir entre matéria e forma por um processo de
abstração lógica ou análise. Mas assim que que fazemos mentalmente abstração da forma da
aparência posta pelo sujeito, desaparece sem mais o objeto que advertíamos. Por último, os
objetos da intuición sensível ou empírica, assim que dados à consciência, estão já sujeitos às
forma a priori da sensibilidade. A ordenação ou correlação ocorre já dentro da intuición sensível,
não após ela.

Agora podemos prestar atenção à distinção que Kant formula entre nossos sentidos externos,
pelos quais percebemos os objetos que estão fora de nós (ou, por usar sua linguagem:
representamo-nos objetos como externos a nós), e o sentido íntimo ou interno, por médio do
qual percebemos nossos estados internos[353]. Diz-se que o espaço é “a forma de todas as
aparências dos sentidos externos, ou seja, a condição subjetiva da sensibilidade, necessária para
nos possibilitar a intuición externa”[354]. Todos os objetos externos a nós são, e têm que ser,
representados como existentes no espaço. Do tempo lê-se que é “a forma do sentido interno, isto
é, da intuición de nós mesmos[355] e de nosso estado interno”[356]. Nossos estados psíquicos
percebem-se no tempo como sucessivos uns a outros ou como simultâneos, mas não como
existentes no espaço[357].
Pode parecer que Kant se contradiz, porque imediatamente depois afirma que o tempo é a
condição formal a priori de toda aparência, enquanto o espaço é a condição formal a priori só
das aparências externas. Mas em realidade quer dizer o seguinte. Todas as representações
(Vorstellungen), tenham ou não coisas externas por objeto, são determinações do ânimo[358]. E,
como tais, pertencem a nosso estado interno. Portanto, todas têm que estar também submetidas
à condição formal do sentido interno ou intuición interna, a qual é o tempo. Mas deste modo o
tempo é condição só mediata da aparência externa, enquanto é condição imediata de toda
aparência interna.

falámos do espaço e do tempo como forma puras da sensibilidade e como forma da intuición.
Mas já chamámos a atenção[359] a respeito dos modos diferentes em que Kant usa o termo
‘intuición’. E no que chama a “exposição metafísica” das ideias de espaço e tempo fala delas
como de intuiciones a priori. Não são conceitos de origem empírico. Não posso derivar a
posteriori a representação de espaço partindo de relacionamentos experimentadas entre
aparências externas, porque só pressupondo o espaço intuitivamente posso me representar
aparências externas como algo que tem relacionamentos espaciais. Nem também não posso-me
representar as aparências como existentes simultânea ou sucessivamente sem ter já dantes a
representação de tempo. Pois represento-mas como existentes simultânea ou sucessivamente no
tempo. Posso apagar todas as aparências externas, e a representação de espaço seguirá
subsistente como condição de sua possibilidade. Analogamente posso cancelar com o espírito
todos os estados internos, mas a representação de tempo subsiste. Portanto, o espaço e o tempo
não podem ser conceitos de derivação empírica. Ademais, nem sequer podem ser conceitos, se
por conceitos entendemos ideias gerais. Nossas ideias de espaços formam-se introduzindo
limitações dentro de um espaço unitário que se pressupõe como fundamento necessário de todas
elas; e nossas ideias de tempos diferentes, ou lapsos de tempo, formam-se de um modo análogo.
Mas, segundo Kant, os conceitos gerais não se podem fraccionar desse modo. Portanto, espaço
e tempo são conceitos particulares ou singulares, não gerais. E acham-se no plano perceptivo;
orçamentos pelos conceitos do entendimento, ou categorias, não são, ao inverso, fruto destes.
Assim temos de chegar à conclusão de que e tempo são intuiciones a priori do plano do sentido,
embora não temos de entender por isso que nas representações unitárias de espaço e de tempo
estejamos intuyendo realidades existentes não mentais. As representações de espaço e tempo
são condições necessárias da percepción; mas são condições procedentes do sujeito.

São, pois, o espaço e o tempo irreales para Kant? A resposta a essa pergunta depende das
significações que atribuamos às palavras ‘real᾿ e ‘irreal’. As aparências, os objetos dados na
intuición empírica, estão já, por assim o dizer, temporalizados, e, no caso das aparências
representadas como externas a nós, estão também espacializadas. Portanto, a realidade empírica
é espaço-temporário, e disso se segue que há que afirmar que o espaço e o tempo têm realidade
empírica. Se a pergunta a respeito de se o espaço e o tempo são reais equivale à de se a realidade
empírica carateriza-se por relacionamentos espaço-temporais, a resposta tem de ser afirmativa.
Não experimentamos mais que aparências, e as aparências são o que são, objetos possíveis da
experiência, graças à união de forma e matéria, isto é, pela ordenação da matéria indeterminada
e amorfa da sensação mediante a aplicação das forma puras da sensibilidade. Não pode ter nunca
um objeto do sentido externo que não esteja no espaço, nem pode ter nunca um objeto qualquer,
do sentido externo ou do interno, que não esteja no tempo.[360] Portanto, a realidade empírica
tem necessariamente que se caraterizar por relacionamentos espaciais e temporários. Não é
adequado dizer que as aparências parecem estar no espaço; são no espaço e o tempo. Se poderá
objetar que, segundo Kant, o espaço e o tempo são forma subjetivas da sensibilidade, e que,
portanto, deveriam ser chamado ideais, não reais. Mas o fato é que para Kant não pode ter
realidade empírica aparte da imposição destas forma. Elas entram, por assim o dizer, na
constituição da realidade empírica e são, portanto, elas mesmas empiricamente reais.

Mas ao mesmo tempo, e na medida em que o espaço e o tempo são forma a priori da
sensibilidade humana, o campo de sua aplicação compreende somente as coisas assim que nos
aparecem. Não há razão alguma para supor que se apliquem às coisas em si mesmas,
independentemente de sua lhe nos aparecer. Ainda mais: não pode ser que se lhes apliquem, pois
essas forma são essencialmente condições da possibilidade da aparência. Portanto, enquanto é
correto dizer, por exemplo, que todas as aparências são no tempo, é do todo incorreto afirmar
que todas as coisas ou todas as realidades são no tempo. Se há realidades que não afetam a
nossos sentidos e que não podem pertencer à realidade empírica, essas realidades não podem ser
no espaço e o tempo. Ou seja: não podem ter relacionamentos espaço-temporários. Ao trascender
a realidade empírica essas realidades trascenderán também toda a ordem espaço-temporária.
Ainda mais: as realidades que afetam a nossos sentidos, se se consideram tal como são em si
mesmas, aparte de sua ser objetos da experiência, não são também não no espaço e o tempo. É
possível que nas coisas mesmas tenha algum fundamento pelo qual, como fenômeno, toda coisa
possui determinadas relacionamentos espaciais e não outras; mas este fundamento é-nos
desconhecido e necessariamente seguirá sendo-o. Não é ele mesmo um relacionamento espacial.
Pois o espaço e o tempo não têm aplicação à realidade não-fenoménica.

A fórmula kantiana é, pois, do tenor seguinte. O espaço e o tempo são empiricamente reais
e trascendentemente ideais. São empiricamente reais no sentido de que o dado na experiência é
no espaço (se é um objeto dos sentidos externos) e no tempo. O espaço e o tempo não são ilusões;
Kant faz questão disto. Podemos distinguir entre a realidade e a ilusão baseando nesta teoria
igual que baseando na teoria contrária. Mas o espaço e o tempo são trascendentemente ideais no
sentido de que a única esfera de sua validade é a dos fenômenos, e não se aplicam às coisas-em-
si, consideradas aparte de sua lhe nos aparecer.[361] Esta idealidad trascendente, no entanto,
deixa intata a realidade empírica da ordem espaço-temporária. Por isso Kant não admitiria que
suas teses se identificassem com as do idealismo de Berkeley, segundo o qual existir é perceber
ou ser percebido. Pois Kant afirmava a existência de coisas-em-si que não são percebidas.[362]
Sua revolução copernicana, como ele mesmo diz insistentemente, não ataca à realidade empírica
do mundo da experiência, do mesmo modo que a hipótese heliocéntrica não altera, nem menos
nega, os fenômenos. O assunto em discussão é a explicação dos fenômenos, não seu negación.
E esta concepção do espaço e do tempo é capaz de explicar o conhecimento a priori fundado
nessas intuiciones, coisa que não é capaz de explicar nenhuma outra opinião. Agora temos de
atender a este conhecimento a priori.

2. Matemática.

Kant dá o que ele chama uma ‘'exposição trascendental” do espaço e do tempo. “Entendo
por exposição trascendental a explicação de uma noção como um princípio a partir do qual é
discernible a possibilidade de outros conhecimentos sintéticos a priori. Com este fim requer-se,
primeiro, que esses conhecimentos se desprendam realmente da noção dada e, segundo, que
esses conhecimentos não sejam possíveis mais que com o orçamento de um determinado modo
de explicar a noção."[363] Em sua exposição trascendental do tempo Kant diz muito pouco mais
que os dois fatos seguintes. Primeiro, que o conceito de mudança — e, com ele, o de movimento
(considerado como mudança de local) — só é possível em e pela representação do tempo; e,
segundo, que não é possível explicar o conhecimento sintético a priori presente à doutrina geral
do movimento mais que pressupondo que o tempo é uma intuición a priori. Em mudança, ao
tratar o espaço fala com certa extensão[364] da matemática, particularmente da geometria. E sua
tese geral é que a possibilidade do conhecimento matemático, o qual é sintético a priori, não
pode ser explicado senão baseando na teoria de que o espaço e o tempo são intuiciones puras a
priori.

Tomemos a proposição “É possível construir uma figura com três linhas retas”. Não
podemos deduzir esta proposição por mera análise dos conceitos linha reta e número três. Temos
de construir o objeto (um triângulo) ou, como diz Kant, temos de nos dar um objeto na intuición.
Mas esta intuición não pode ser empírica, porque, do ser, não daria origem a uma proposição
necessária. Portanto, tem de ser uma intuición a priori. E disso se segue que o objeto (o
triângulo) não pode ser nem uma coisa-em-si nem a imagem mental, por assim o dizer, de uma
coisa-em-si. Não pode ser uma coisa-em-si porque as coisas-em-si não nos aparecem, por
definição. E ainda se admitíssemos a possibilidade de intuir uma coisa-em-si, esta intuición não
poderia ser a priori. A coisa teria que lhe me apresentar em uma intuición intelectual a
posteriori, caso de nos ser dada tal intuición. Nem também não podemos supor que o objeto (o
triângulo) seja a imagem mental ou representação de uma coisa-em-si. Pois as proposições
necessárias que conseguimos enunciar mediante a construção de um triângulo se referem ao
triângulo mesmo. Podemos, por exemplo, demonstrar as propriedades do — não só de um —
triângulo isósceles. E não temos garantia alguma de que o necessariamente verdadeiro de uma
representação seja sequer verdadeiro de uma coisa-em-si. Como podemos, pois, construir na
intuición objetos que nos permitam enunciar proposições sintéticas a priori? Não podemos o
fazer senão com a condição de que tenha em nós uma faculdade (Vermögen) de intuición a
priori, condição universal e necessária da possibilidade de objetos da intuición externa. A
matemática não é uma ciência puramente analítica que nos dê exclusivamente informação a
respeito dos conceitos dos conteúdos ou significações dos termos. Dá-nos informação a priori a
respeito dos objetos da intuición externa. Mas isto não é possível mais que se as instituições
necessárias para a construção da matemática se baseiam todas em intuiciones a priori que sejam
precisamente as condições necessárias da mera possibilidade dos objetos da intuición externa.
Assim “a geometria é uma ciência que determina sinteticamente e, no entanto, a priori, as
propriedades do espaço”[365]. Mas não poderíamos determinar deste modo as propriedades do
espaço se o espaço mesmo não fosse uma forma pura da sensibilidade humana, uma intuición
pura a priori, condição necessária de todos os objetos da intuición externa.

A questão pode talvez se desenvolver mais facilmente apelando à discussão que Kant
desenvolve nos Prolegómenos a respeito da objetividad da matemática, isto é, a respeito de sua
aplicabilidad a objetos. A geometria, por tomar um determinado ramo da matemática, está
construída a priori. No entanto, sabemos perfeitamente que a realidade empírica tem que se
conformar sempre a ela. O geómetra determina a priori as propriedades do espaço, e suas
proposições serão sempre verdadeiras da ordem espacial empírico. Mas como pode o geómetra
formular enunciados necessariamente verdadeiros a priori e que tenham validade objetiva
respecto do mundo empírico externo? Isso só lhe será possível se o espaço cujas propriedades
determina é uma forma pura da sensibilidade humana, forma por cuja exclusiva função nos são
dados os objetos e que se aplica só aos fenômenos, não às coisas-em-si. Uma vez aceitada esta
explicação “é fácil entender, e provar ao mesmo tempo inapelavelmente, que todos os objetos
externos de nosso mundo sensível têm que concordar necessariamente e do modo mais estrito
com as proposições da geometria”[366].

Kant utiliza o caráter a priori da matemática para provar sua teoria do espaço e o tempo. E
é interessante observar o relacionamento entre sua posição e a platónica. Platón também estava
convencido do caráter a priori da matemática. Mas explicava-o postulando uma intuición dos
“objetos matemáticos”, os quais são entes inteligibles singulares não fenoménicos e subsistentes
por si mesmos em algum sentido. Os princípios de Kant excluem essa linha de explicação, e
Kant acusa precisamente a Platón de abandonar o mundo dos sentidos e refugiar em um reino
ideal vazio no qual o espírito não pode achar fundamento seguro. Mas ao mesmo tempo
compartilha a convicção platónica do caráter a priori do conhecimento matemático embora sua
explicação do mesmo seja outra.

Algumas referências a Leibniz podem ajudar-nos/ajudá-nos também a alumiar a concepção


kantiana da matemática. Para Leibniz, todas as proposições matemáticas, incluídos os axiomas,
podem ser demonstrado com a ajuda de definições e do princípio de contradição. Para Kant, os
axiomas fundamentais não podem ser demonstrado com o princípio de contradição. A geometria
é de caráter axiomático. Mas Kant sustenta que os axiomas fundamentais da geometria
expressam uma visão da natureza essencial do espaço, representada em uma intuición subjetiva
a priori. Também é possível, naturalmente, sustentar ao mesmo tempo que os axiomas são
indemostrables e que não representam intuición alguma da natureza essencial do espaço. Pois
podem ser entendido como postulados arbitrários, segundo a tendência, por exemplo, do
matemático D. Hilbert.

Por outra parte, e voltando a Leibniz, segundo este o desenvolvimento da ciência matemática
procede analiticamente. O único que precisamos são definições e o princípio de contradição.
Com isso podemos proceder analiticamente. Para Kant, como já vimos, a matemática não é uma
ciência puramente analítica: é sintética, requer intuición e procede construtivamente. E isto é tão
verdade da aritmética quanto da geometria. Agora bem: se aceitamos o ponto de vista
principalmente representado por Bertrand Russell, segundo o qual a matemática é em última
instância reducible à lógica, no sentido de que a matemática pura pode em princípio deduzir de
certos conceitos primitivos e certas proposições indemostrables da lógica, então recusaremos,
naturalmente, a teoria de Kant. Consideraremos que a teoria de Kant está refutada pelos
Principles of Mathematics e por Principia Mathematica. Mas o entendimento russelliana da
matemática como puramente analítica não é, desde depois, tese universalmente aceitada. E se
pensamos, com L. E. J. Brouwer, por exemplo, que a matemática implica em realidade intuición,
daremos naturalmente mais valor à teoria de Kant, embora não aceitemos sua explicação do
espaço e do tempo. De todos modos, e já que não sou um matemático, não posso tentar averiguar
por mim mesmo quanta verdade há nessa teoria. Limito-me a chamar a atenção sobre o fato de
que os modernos filósofos da matemática não concordam todos, nem muito menos, em que a
matemática seja o que Kant disse que não é, ou seja, uma ciência puramente analítica.
Mas também há que prestar atenção ao rasgo da teoria kantiana da geometria que moveu aos
críticos a sustentar que a teoria ficou destruída pelos posteriores desenvolvimentos da
matemática. Kant entendia por espaço o espaço euclidiano, e por geometria a geometria
euclídea[367]. Disso se segue que se o geómetra, por assim o dizer, o que faz é ler as propriedades
do espaço, então a geometria euclídea é a única geometria. A geometria euclídea se aplicará
necessariamente à realidade empírica, mas não terá nenhum outro sistema geométrico que se
aplique a esta. Desde os tempos de Kant desenvolveram-se geometrias não-euclídeas e se
mostrou que o espaço euclídeo não é senão um dos espaços concebibles. Ademais, a geometria
euclídea não é a única que encaixa com a realidade; a geometria que tem de se usar depende na
cada caso dos fins do matemático e dos problemas que queira tratar. Seria, sem dúvida, absurdo
criticar a Kant por ter tido um preconceito favorável à geometria euclídea. Mas, por outra parte,
o desenvolvimento de outras geometrias fez com que sua posição neste ponto seja insostenible.

A verdade é que, para ser exatos, seria melhor não dizer sem mais que Kant exclua a
possibilidade de toda geometria não-euclidiana. Pois em sua obra lemos, por exemplo, que “não
há contradição no conceito de uma figura fechada por duas linhas retas. Pois os conceitos de
duas linhas retas e de sua interseção não contêm nenhuma negación de uma figura. A
imposibilidad não se encontra no conceito mesmo, senão na construção do conceito no espaço,
ou seja, nas condições e determinações do espaço. Mas estas condições e determinações têm sua
própria realidade objetiva, ou seja, aplicam-se a coisas possíveis porque contêm a priori a forma
da experiência em general”[368]. Mais ainda tomando este passo no sentido de que uma
geometria não-euclidiana é uma mera possibilidade lógica, Kant afirma claramente que uma
geometria assim não pode ser construído na intuición, e para Kant isto é em realidade tanto como
dizer que não pode ter um sistema geométrico não-euclidiano. A geometria não-euclídea pode
ser pensable no sentido de que não fica eliminada pela mera aplicação do princípio de
contradição. Mas, como vimos, a matemática não se baseia, segundo Kant, só no princípio de
contradição: não é uma ciência analítica, senão uma ciência sintética. Portanto, a construibilidad
é essencial para um sistema geométrico. E dizer que só a geometria euclidiana pode ser
construído é em realidade dizer que não pode ter sistemas não-euclidianos.

Portanto, se admitimos o caráter construtivo da geometria e resulta que é possível construir


geometrias não-euclidianas, então é óbvio que a teoria kantiana da geometria não é aceitável em
sua tenor literal. E o que sistemas não-euclidianos sejam inclusive aplicáveis fala na contramão
da teoria kantiana de que a intuición do espaço euclídeo é uma condição universal e necessária
da possibilidade dos objetos. Mas o que seja ou não possível revisar a teoria kantiana da
subjetividad do espaço para a fazer compatível com os posteriores desenvolvimentos da
matemática não é uma questão na qual me senta disposto a opinar. Desde um ponto de vista
puramente matemático o assunto não tem importância. Tem-a desde um ponto de vista
filosófico, mas neste terreno podem ser apresentado também outras razões para negar a teoria
kantiana da idealidad trascendental do espaço e o tempo[369].

Em qualquer caso, admitindo que Kant provasse a verdade de sua teoria do espaço e o tempo,
com isso daria resposta a sua primeira pergunta, a saber, como é possível a ciência matemática?,
como podemos explicar a possibilidade do conhecimento sintético a priori que sem dúvida
possuímos na matemática? Este conhecimento é explicable se e só se o espaço e o tempo são
empiricamente reais e trascendentemente ideais no sentido dantes exposto.
Uma última observação. O leitor pode ter pensado que é sumamente paradójico por parte de
Kant o tratar a matemática no plano da sensibilidade. Mas Kant, naturalmente, não pensava que
a aritmética e a geometria se desenvolvam pelos sentidos sem o uso do entendimento. O buscado
era o fundamento necessário do trabalho do espírito ao desenvolver sistemas de proposições
matemáticas. E para Kant esse fundamento necessário são as forma a priori da sensibilidade, as
intuiciones puras do espaço e o tempo. Em sua opinião, toda intuición humana é sensível, e se
na matemática faz falta intuición, também esta terá de ser de caráter sensível. Kant pode ser tido
equivocado ao pensar que toda intuición humana é necessariamente sensível. Mas, em qualquer
caso, não supunha o absurdo de que os sentidos construam sistemas matemáticos sem a
cooperação do entendimento.

3. Os conceitos puros ou categorias do entendimento.

Podemos começar o estudo da Analítica trascendental desenvolvendo algo este importante


ponto da cooperação do sentido e o entendimento no conhecimento humano.

O conhecimento humano nasce de duas fontes principais presentes no ânimo (Gemüt). A


primeira é a faculdade ou poder de receber impressões; por ela nos é dado o objeto. A intuición
sensível fornece-nos dados, e não podemos obter por nenhuma outra via objetos assim que
dados. A segunda fonte principal do conhecimento humano é a faculdade de pensar os dados
por médio de conceitos. A receptividad do espírito para com as impressões chama-se
sensibilidade (Sinnlichkeit). A faculdade de produzir espontaneamente representações chama-se
entendimento (Verstand). E a cooperação de ambas faculdades é necessária para o conhecimento
de objetos. “Sem a sensibilidade não nos seria dado objeto algum, e sem o entendimento nenhum
objeto seria pensado. Os pensamentos sem conteúdo são vazios; as intuiciones sem conceitos
são cegas... Estas duas potências ou faculdades não podem trocar suas funções. O entendimento
é incapaz de intuir e os sentidos são incapazes de pensar. O conhecimento não pode surgir senão
da cooperação unida de ambos”[370].

Mas embora a cooperação de ambas potências é necessária para o conhecimento, não


devemos passar por alto as diferenças entre elas. Podemos distinguir entre a sensibilidade e suas
leis, por um lado, e o entendimento e as suas por outro. Já se considerou a ciência das leis da
sensibilidade. Portanto, agora temos de atender à ciência das leis do entendimento, que é a
lógica.

Mas a lógica que aqui tem de nos ocupar não é a lógica formal, a qual atende só às forma do
pensamento, fazendo abstração de seu conteúdo e das diferenças entre as classes de objetos a
respeito dos quais podemos pensar[371]. Aqui ocupamo-nos do que Kant lume “lógico
trascendental”. Esta lógica não se apresenta para substituir à lógica formal da tradição, a qual é
simplesmente aceitada por Kant, senão que se dá como uma nova ciência mais. Ao igual que a
pura lógica formal, se ocupa dos princípios a priori do conhecimento, mas, a diferença desta,
não faz abstração de todo o conteúdo do conhecimento, isto é, do relacionamento do
conhecimento a seu objeto. Pois interessa-se pelos conceitos e princípios a priori do
entendimento e por sua aplicação a objetos; não por sua aplicação a esta ou aquela determinada
classe de objetos, senão por sua aplicação a objetos em general. Dito de outro modo: a lógica
trascendental ocupa-se do conhecimento a priori de objetos na medida em que este
conhecimento é obra do entendimento. A Estética trascendental, que estudámos dantes,
considera as forma puras da sensibilidade assim que condições a priori necessárias para que nos
sejam dados os objetos na intuición sensível. A lógica trascendental estuda os conceitos e
princípios a priori do entendimento assim que condições necessárias para pensar objetos (isto
é, os dados da intuición sensível).

A questão pode ser proposto como segue. Kant pensava que há no entendimento conceitos
a priori pelos quais se sintetiza a multiplicidad dos fenômenos. Um desses conceitos é o de
causalidad. Portanto, há local para um estudo sistemático destes conceitos e dos princípios neles
baseados. Ao realizar esse estudo descobriremos os modos pelos quais o entendimento humano
sintetiza necessariamente os fenômenos e possibilita o conhecimento.

A segunda parte da Lógica trascendental, a saber, a Dialética trascendental, estuda o abuso


destes conceitos e princípios a priori e sua extensão ilegítima às coisas em general, incluindo as
que não nos podem ser dadas como objetos no sentido próprio do termo. Mas a consideração
desta segunda parte ficará para o capítulo seguinte. Pelo momento ocupamo-nos da primeira
parte, a Analítica trascendental. E nossa primeira tarefa consiste em averiguar quais são os
conceitos a priori do entendimento (Analítica dos conceitos).

Como empreender essa tarefa? É óbvio que não podemos nos dedicar a formar um inventario
completo de todos os conceitos possíveis, para separar logo os conceitos a priori dos que são a
posteriori ou empíricos, abstraídos da experiência sensível. Embora isto fosse possível na
prática, teríamos que contar com um critério ou método de distinção entre conceitos a priori e
conceitos empíricos. E se possuíssemos um método para averiguar que conceitos são puramente
a priori, é possível que o uso do método nos permitisse conseguir nossos fins sem necessidade
de começar por estabelecer aquele inventario geral. Portanto, o que importa é saber se existe de
fato algum modo de averiguar os conceitos a priori do entendimento de um modo direto e
sistemático. Precisamos um princípio, ou, como diz Kant, “um fio conductor (Leitfaden)
trascendental”, para descobrir esses conceitos.

Kant encontra o fio conductor na faculdade do julgamento, que é para ele o mesmo que
facultem do pensamento. “Podemos reduzir todas as operações do entendimento a julgamentos,
de tal modo que pode ser representado o entendimento como a capacidade de julgar. Pois,
segundo o que se disse dantes, é uma faculdade de pensar”[372]. Mas que é um julgamento?
Julgar, ou pensar, é unificar diferentes representações para formar um conhecimento por médio
de conceitos[373]. No julgamento sintetizam-se as representações por médio de conceitos. Está
claro que não podemos limitar o número dos julgamentos possíveis se nos referimos a
julgamentos concretos. Mas podemos determinar o número de modos possíveis de julgar, isto é,
o número dos tipos lógicos de julgamento considerados segundo a forma. E, em opinião de Kant,
os lógicos fizeram-no já assim, mas não elaboraram ulteriormente o problema, não pesquisaram
a razão pela qual só são possíveis exatamente essas forma de julgamento. Mas precisamente
neste local podemos achar nosso “fio conductor trascendental”. Pois a cada forma de julgamento
está determinada por um conceito a priori. Portanto, para descobrir a lista dos conceitos puros
a priori do entendimento não temos mais que examinar a tabela dos tipos lógicos de julgamento
possíveis.
O entendimento não intuye, senão que julga. E julgar é sintetizar. Agora bem: há certos
modos fundamentais de sintetizar (funções de unidade no julgamento, como diz Kant), que se
manifestam nos tipos lógicos possíveis do julgamento. Estes tipos manifestam a estrutura a
priori do entendimento, considerado como potência unificadora ou sintetizadora. Assim
podemos descobrir as funções sintetizadoras fundamentais do entendimento. “Deste modo
podem ser achado todas as funções do entendimento se se consegue expor completamente as
funções da unidade no julgamento. E a seção seguinte mostrará que isso pode ser feito com
grande facilidade”[374].

viemos falando de conceitos a priori ou charutos do entendimento; Kant chama-os também


categorias, termo que provavelmente é preferível. O entendimento, que é a faculdade
unificadora, sintetizadora ou juzgadora, possui uma estrutura categorial a priori. Isto quer dizer
que, pelo fato de ser o que é, necessariamente sintetiza representações segundo certos modos
fundamentais, segundo certas categorias básicas. Sem essa atividade sintetizadora não é possível
o conhecimento de objetos. Portanto, as categorias do entendimento são condições a priori do
conhecimento. São, isto é, condições a priori da possibilidade de que os objetos sejam pensados.
E se não são pensados, não pode ser dito realmente que os objetos sejam conhecidos. Pois, como
vimos, a sensibilidade e o entendimento cooperam na produção do conhecimento, embora suas
funções difiram e possam ser considerado por separado.

Agora podemos dar as tabelas kantianas dos tipos de julgamento, ou de funções lógicas do
julgamento. Por pura conveniência dou ao mesmo tempo a tabela de categorias. O esquema
conjunto mostra que categoria corresponde, ou se supõe corresponder, à cada função lógica. As
tabelas encontram-se no primeiro capítulo da Analítica dos conceitos[375].
Julgamentos Categorias
I.Quantidade I. Quantidade
1)Universal 1)Unidade
2)Particular 2)Pluralidad
3)Singular 3)Totalidade
II.Qualidade II.Qualidade
4)Afirmativo 4)Realidade
5)Negativo 5)Negación
6)Indeterminado 6)Limitação
III.Relacionamento III.Relacionamento
7)Categórico 7)Inherencia e subsistencia (substância e acidente)
8)Hipotético 8)Causalidad e dependência (causa e efeito)
9)Disyuntivo 9)Comunidade (reciprocidad entre agente e paciente)
IV.Modalidade IV.Modalidade
10)Problemático 10) Possibilidade-imposibilidad
11)Asertórico 11) Existência-inexistência
12)Apodíctico 12) Necessidade-contingencia

Kant observa que sua lista de categorias não está feita a esmo, como a de Aristóteles, senão
mediante a aplicação sistemática de um princípio. Por isso contém todos os conceitos puros ou
categorias do entendimento. (Todos os originarios, pois em realidade há mais conceitos puros
do entendimento, mas derivados (a priori) e subsidiarios) Kant o lume predicables, para
distinguir das categorias ou predicamentos, mas não se propõe dar uma lista deles, explicitando
assim o sistema completo dos conceitos puros, originais e derivados, do entendimento. Basta-
lhe para seus fins com dar a lista dos conceitos originais ou categorias.

Kant era, de todos modos, excessivamente otimista ao pensar que dava uma lista completa
das categorias. Pois está claro que seu princípio de determinação das categorias se baseia na
aceitação de certos pontos de vista a respeito do julgamento, os quais procediam da lógica de
seu tempo. Seus sucessores poderiam revisar a lista ainda no caso de que aceitassem a ideia geral
de umas categorias a priori.

Talvez valha a pena observar que, segundo Kant, a terceira categoria da cada tríade surge da
combinação da segunda com a primeira. Assim, por exemplo, a totalidade é pluralidad
considerada como unidade; a limitação é realidade combinada com negación; a comunidade é a
causalidad de uma substância determinante de e determinada por outra substância; e a
necessidade é a existência dada pela possibilidade da existência[376]. Esta interpretação do
esquema triádico pode parecer forçada; mas tendo em conta a central posição que ocupará depois
na filosofia hegeliana a ideia do desenvolvimento triádico por tese, antítese e síntese, vale a pena
prestar atenção às correspondentes observações de Kant.
4. A justificativa da aplicação das categorias

Segundo Kant, pois, há doze categorias a priori do entendimento. Mas qual é a justificativa
de seu uso na síntese de fenômenos? Qual é a justificativa de sua aplicação a objetos? Este
problema não se apresenta a propósito das forma a priori da sensibilidade. Pois, como vimos,
não pode nos ser dado objeto algum como não seja mediante o sometimiento da matéria
indeterminada da sensação às forma do espaço e o tempo. Portanto, seria estúpido perguntar que
justifica a aplicação das forma da sensibilidade aos objetos. Estas forma são condição necessária
de que tenha objetos. Mas a situação é diferente pelo que faz às categorias do entendimento. Os
objetos estão já dados, por assim o dizer, na intuición sensível. Não poderiam ser esses objetos,
as aparências, tais que a aplicação das categorias do entendimento os deformasse ou falseara?
Temos, pois, de mostrar que a aplicação está justificada.

Kant chama dedução trascendental das categorias ao ato dessa justificativa. A palavra
‘dedução’ pode aqui produzir um equívoco. Pois sugere uma descoberta sistemática das
categorias, e isto foi já levado a cabo. Neste contexto, pois, e como explica o mesmo Kant,
dedução significa justificativa. Pelo que faz à palavra ‘trascendental’, há que a entender por
contraposição a ‘ empírica’. Kant não vai justificar a aplicação das categorias pelo procedimento
de mostrar que seu uso é empiricamente fecundo em tal ou qual ciência, por exemplo. Senão
que o vai fazer mostrando que são condições a priori de toda experiência. Por isso pode dizer
que o objetivo da dedução trascendental é mostrar que os conceitos a priori ou categorias do
entendimento são as condições a priori da possibilidade da experiência.

É possível definir com mais precisão o problema. Também o espaço e o tempo são condições
a priori da experiência. Mas são condições necessariamente requeridas para que nos sejam dados
objetos. Portanto, a tarefa da dedução trascendental consiste em mostrar que as categorias são
condições necessariamente requeridas para que os objetos sejam pensados. Dito de outro modo:
uma justificativa da aplicação das categorias a objetos tem de tomar a forma de uma
demonstração de que os objetos não podem ser pensado senão por médio das categorias
sintetizadoras do entendimento. E como o conhecimento dos objetos implica que estes sejam
pensados, mostrar que os objetos não podem ser pensado senão por médio das categorias é
mostrar que não podem ser conhecidos se não é por médio das categorias. E mostrar isto é
mostrar que o uso das categorias está justificado, ou seja, que as categorias têm validade
objetiva.

Esta linha de pensamento está claramente implicada pela revolução copernicana de Kant. O
uso das categorias não pode ser justificado apelando à tese de que o espírito tem de adecuarse
aos objetos. Mas se os objetos, para ser conhecidos, têm de adecuarse ao espírito, e se isto
significa que têm de submeter às categorias do entendimento para ser objetos no pleno sentido
da palavra, não fará falta mais justificativa do uso das categorias.

O argumento da dedução trascendental kantiana não é em modo algum fácil de seguir. Mas
no curso do mesmo introduz o filósofo uma ideia importante. Por isso vale a pena se esforçar
por dar uma breve exposição do argumento, ainda aceitando o risco de simplificar com excesso
a marcha das ideias. Ao empreender a tentativa limito-me, de todos modos, à dedução tal como
se apresenta na segunda edição da Crítica da razão pura, versão que difere consideravelmente
da que Kant oferecia na primeira edição.

Kant define o objeto do conhecimento como “aquilo em cujo conceito se unifica a


multiplicidad de uma intuición dada”[377]. Sem síntese não pode ter conhecimento de objetos.
Não se poderia, efetivamente, chamar conhecimento a um mero fluxo, por assim o dizer, de
representações sem conexão. Agora bem: a síntese é obra do entendimento. “A conexão (Kant
utiliza os termos Verbindung e conjunctio) de uma multiplicidad não nos pode ser nunca dada
pelo sentido...; pois é um ato da espontaneidad da faculdade de representação. E se deve ser
chamado entendimento a essa faculdade para distinguir da sensibilidade, então toda conexão,
seja consciente ou inconsciente, seja da multiplicidad da intuición ou de vários conceitos..., é
um ato do entendimento. Damos a este ato o nome geral de síntese”[378].

Além dos conceitos de multiplicidad e de sínteses, a ideia de conexão ou conjunción contém


outro elemento mais: a representação da unidade da multiplicidad. Portanto, a conexão pode ser
descrito como “a representação da unidade sintética da multiplicidad”[379].

Neste contexto não se refere Kant ao conceito a priori ou categoria de unidade que figura na
lista das categorias. Ou seja, não afirma que toda conexão implique a aplicação dessa categoria.
Senão que a aplicação de qualquer categoria, a de unidade igual que qualquer outra, pressupõe
a unidade da qual está falando neste contexto. Pode-se, pois, perguntar: de que está falando Kant
neste contexto? Está falando da unidade que consiste no relacionamento com um objeto
perceptivo e pensante. Os objetos pensam-se por médio das categorias, mas não seriam
pensables sem essa unidade prévia. Dito de outro modo: o trabalho sintetizador que realiza o
conhecimento não é possível mais que dentro da unidade da consciência.

Isto significa que a multiplicidad da intuición ou percepción não pode ser pensada e se
converter assim em objeto de conhecimento mais que se a percepción e o pensamento estão
unificados em um sujeito de tal modo que a autoconsciencia possa acompanhar todas as
representações. Kant expressa isto dizendo que o Eu penso, o cogito, tem que poder acompanhar
todas as representações de um. Não é necessário que pense sempre explicitamente meu
percepción e meu pensamento como meus. Mas sem a possibilidade dessa consciência não pode
ser dado unidade à multiplicidad da intuición, não é possível conexão alguma. “O eu penso tem
que poder acompanhar todas minhas representações, pois em outro caso poderia estar
representado em mim algo que, em mudança, não poderia ser pensado. E isto é o mesmo que
dizer que a representação seria impossível ou, ao menos, que não seria nada para mim... Portanto,
toda multiplicidad de intuición tem um relacionamento necessário com o eu penso no mesmo
sujeito no qual se dá essa multiplicidad”[380]. Seria absurdo dizer que tenho uma ideia se não há
uma autoconsciencia que possa a acompanhar. E seria absurdo dizer que a multiplicidad da
percepción é pensada se essa mesma consciência não pode acompanhar a percepción e o
pensamento.

Kant chama “apercepción pura” a esse relacionamento entre o sujeito e a multiplicidad da


intuición (ou seja, o relacionamento expresso ao dizer que o eu penso tem de poder acompanhar
sempre a essa multiplicidad), e assim a distingue da apercepción empírica, ou seja, da
consciência empírica e contingente de um determinado estado psíquico como estado meu. A
consciência empírica que acompanha a representações diferentes é fragmentaria. Em uns
momentos exerço efetivamente algum ato empírico de autoconsciencia como acompañamiento
de uma representação dada; mas outras vezes não o faço. A consciência empírica, ao igual que
as representações às que acompanha, não está unificada. Mas a possibilidade de um eu penso
idêntico que acompanhe a todas as representações é uma condição permanente da experiência.
E pressupõe uma unidade trascendental (não empírica) da autoconsciencia, a qual não me é dada
como um objeto, senão que é a condição necessária fundamental para que tenha objetos para
mim. Se não pudesse ser levado a multiplicidad da intuición à unidade da apercepción, não
poderia ter experiência, conhecimento. Ou, por dizê-lo menos subjetivamente, não poderia ter
objetos.

Kant não pensa, desde depois, que seja necessário tomar primeiro consciência do próprio
sujeito ou ego dantes de poder sintetizar nada. Não se tem consciência prévia de um ego auto-
idêntico permanente. Só mediante os atos dirigidos ao dado me faço consciente desses mesmos
atos como meus. A autoconsciencia e a consciência do cognoscitivamente relacionado com a
mismidad estão vinculadas de tal modo no eu que a consciência deste não é uma experiência
temporariamente prévia. Mas a unidade da apercepción (no sentido de que o eu penso tem de
poder acompanhar todas minhas representações) e a unidade trascendental da consciência são
condições a priori da experiência. Sem conexão não há experiência. E a conexão implica a
unidade da apercepción.

Ao falar da unidade da consciência, da unidade da percepción e o pensamento em um sujeito


como condição da experiência, Kant diz, aparentemente, coisas óbvias. Mas, em todo caso, serão
coisas óbvias que parecem passar por alto aqueles que esquecem, por assim o dizer, o sujeito
assim que sujeito e atendem só ao ego empírico como objeto ao que consideram correto dissolver
em uma série de acaecimientos psíquicos, ou descrever como mera construção lógica, como a
classe de ditos acaecimientos. Se temos em conta a estes fenomenistas, resulta que Kant está
puntualizando uma questão de soma importância.

Aqui, de todos modos, se propõe o problema de que tem tudo isto que ver com a justificativa
da aplicação das categorias. A resposta, dita brevemente, é assim. Não é possível nenhuma
experiência objetiva, nenhum conhecimento de objetos, se a multiplicidad da intuición não está
conexa em uma autoconsciencia. Mas toda síntese é obra do entendimento, de modo que a
multiplicidad da representação se leva à unidade da apercepción por obra do entendimento.
Agora bem: o entendimento sintetiza por médio de suas categorias a priori. Portanto, não é
possível nenhuma experiência objetiva, nenhum conhecimento de objetos, salvo por aplicação
das categorias. O mundo da experiência forma-se mediante a cooperação da percepción e o
entendimento na aplicação das forma a priori da sensibilidade e das categorias do entendimento.
Portanto, as categorias referem a objetos, ou seja, têm referência objetiva, porque todos os
objetos, para ser objetos, têm que adecuarse a elas.

Vale a pena citar literalmente a Kant neste ponto. “A multiplicidad dada em uma intuición
sensível cai necessariamente baixo a originaria unidade sintética da apercepción. Pois só assim
é possível a unidade da intuición. Mas a operação do entendimento pela qual se põe baixo uma
apercepción a multiplicidad das representações dadas (intuiciones ou conceitos) é a função
lógica do julgamento. Assim, pois, toda multiplicidad, assim que dada em uma intuición
empírica, está determinada respecto de uma das funções lógicas do julgamento, aquela, isto é,
pela que se põe baixo uma consciência.

Agora bem: as categorias não são senão essas funções do julgamento assim que a
multiplicidad da intuición dada se determina respecto delas. Portanto, a multiplicidad de uma
intuición dada está necessariamente submetida às categorias”[381]. E “uma multiplicidad contida
em uma intuición que eu chame minha se representa por médio da síntese do entendimento como
pertencente à unidade necessária da autoconsciencia. E isto ocorre por médio da categoria”[382].

5. O esquematismo das categorias.

Mas ainda se propõe outro problema. Temos, por uma parte, os múltiplos dados da intuición,
e, pela outra, uma pluralidad de categorias. Que determina qual ou quais categorias se aplicam?
Precisamos que algo nos indique um nexo conectivo. Tem que ter alguma proporção ou
homogeneidad entre os dados da intuición sensível e as categorias, se é que os primeiros têm de
ser subsumidos baixo as segundas. Mais “os conceitos puros do entendimento e as intuiciones
empíricas (ou sensíveis em general) são completamente heterogéneos; os conceitos puros do
entendimento não podem ser nunca descobertos em uma intuición. Como é possível, pois, a
subsunción das intuiciones baixo aqueles conceitos e, com ela, a aplicação das categorias às
aparências?”[383] Esta é a questão.

Para resolver o problema recorre Kant à imaginação (Einbildungskraft), concebida como


potência ou facultem mediadora entre o entendimento e a sensibilidade. Da imaginação diz Kant
que é produtora e portadora de esquemas. Um esquema é, em general, uma regra ou um
procedimento para a produção de imagens que esquematizan ou delimitam, por assim o dizer,
uma categoria, de tal modo que permitem sua aplicação a aparências. O esquema mesmo não é
uma imagem, senão que representa um procedimento geral para a constituição de imagens.
“Chamo a essa representação de um procedimento geral da imaginação para dotar a um conceito
de sua imagem esquema correspondente a esse conceito”[384]. Por ser geral, o esquema tem
afinidad com o conceito; e a imagem, por ser particular, tem afinidad com a multiplicidad da
intuición. Deste modo a imaginação consegue mediar entre os conceitos do entendimento e a
multiplicidad da intuición.

Kant não foi, desde depois, o primeiro filósofo que acentuou a função mediadora da imagem.
O aristotelismo medieval, por exemplo, atribuiu já essa função à imagem. Mas é óbvio que a
apelação a este tema na filosofia de Kant é e tem que ser diferente da que se dá no aristotelismo
medieval. Para este último a imagem é resultado de processos no plano do sentido, e serve a sua
vez como base para a abstração intelectual. Para Kant, em mudança, a imagem é um produto
espontâneo da potência de imaginação, a qual trabalha segundo um esquema produzido por ela
mesma. Não temos de esquecer nunca que para Kant o objeto tem que adecuarse ao espírito, e
não ao inverso.

Kant clarifica seu pensamento mediante uns exemplos matemáticos. Posso, por exemplo,
produzir uma imagem do número cinco colocando cinco pontos um depois de outro do modo
seguinte: (…). Mas o esquema do número cinco não é essa imagem nem nenhuma outra imagem,
senão a representação de um método pelo qual possa ser representado uma multiplicidad em
uma imagem de acordo com verdadeiro conceito. O esquema permite reunir o conceito com a
multiplicidad dos fenômenos. Ou seja, permite a aplicação do conceito aos fenômenos. Kant dá
também um conceito não matemático, a saber, o conceito de cão. O esquema deste conceito é
uma regra para produzir uma representação necessária para aplicar o conceito a algum animal
determinado.

Essas ilustrações podem, em realidade, desorientar e confundir gravemente. Pois aqui


ocupamo-nos primariamente não de conceitos matemáticos, e ainda menos de ideias empíricas
a posteriori como o conceito de cão, senão das categorias puras do entendimento. E não de
esquemas ou regras para a produção de imagens que possamos eleger ou alterar, senão de
esquemas trascendentales que determinam a priori as condições nas quais possa ser aplicado
uma categoria a uma multiplicidad qualquer. Os exemplos kantianos, tomados da aplicação de
conceitos matemáticos e ideias a posteriori aos dados da percepción, pretendem só servir como
introdução à noção geral de esquema.

Os esquemas trascendentales das categorias determinam as condições nas quais podem ser
aplicado as categorias às aparências. Isto significa para Kant a determinação das condições
temporárias nas quais uma categoria é aplicável a aparências. Pois a situação no tempo é o único
rasgo comum a todas as aparências, incluídos os estados do eu empírico. Por isso diz Kant que
“os esquemas não são senão determinações temporárias a priori segundo regras”[385]. O tempo
é a condição formal da conexão ou conjunción de toda representação. E a determinação
trascendental do tempo, que é um produto da imaginação, tem, por assim o dizer, um pé na cada
campo. É homogénea com a categoria da qual é esquema, pois é universal e descansa em uma
regra a priori. E é homogénea com a aparência, pois o tempo está contido em toda representação
empírica da multiplicidad. “Assim, pois, uma aplicação da categoria às aparências se faz
possível por médio da determinação trascendental do tempo, a qual, como esquema dos
conceitos do entendimento, permite a subsunción destas (as aparências) baixo os primeiros”[386].

Kant não discute por extenso os esquemas das várias categorias, e o que diz é em alguns
casos muito difícil de entender. Como não desejo enredarme em dilatados problemas de
exégesis, me limitarei a citar uns poucos exemplos.

A propósito das categorias de relacionamento Kant diz que o esquema da categoria de


substância é “a permanência do real[387] no tempo, ou seja a representação do real como sustrato
da determinação empírica do tempo, como sustrato, pois, que permanece enquanto todo o demais
muda”[388]. Para que o conceito de substância seja aplicável aos dados da percepción, tem que
ser esquematizado ou determinado pelo esquema da imaginação, e isto implica a representação
da substância como um sustrato permanente da mudança no tempo. A categoria não é aplicável
às aparências mais que nesta forma esquematizada.

O esquema da categoria de causa é “o real que, uma vez posto, é sempre seguido por alguma
outra coisa. Consiste, portanto, na sucessão da multiplicidad, na medida em que esta sucessão
está submetida a regra”[389]. Com isso não quer Kant dizer que o conceito de causalidad seja
meramente o de sucessão regular. Quer dizer que a categoria de causa não é aplicável a
aparências mais que se está esquematizada pela imaginação de tal modo que implique a
representação da sucessão regular no tempo.

O esquema da terceira categoria de relacionamento, o de comunidade ou reciprocidad entre


agente e paciente é “a coexistencia das determinações (acidentes) do uso com as do outro
segundo uma regra geral”[390]. Também não neste ponto diz Kant que a coexistencia de
substâncias com seus acidentes seja todo o conteúdo do conceito de interação. Mas sim que esse
conceito não pode ser aplicado a fenômenos mais que se recebe uma forma que implique esta
representação de coexistencia no tempo.

Por último apelaremos às duas últimas categorias da modalidade. O esquema da categoria


de existência é ser em um determinado tempo, enquanto o esquema da categoria de necessidade
é o ser um objeto em todo tempo. A necessidade assim que categoria não significa simplesmente
ser em todo tempo. Significa, como vimos dantes, a existência dada pela mera possibilidade da
existência. Mas, segundo Kant, a categoria não poderia ser aplicado se a imaginação não a
determinasse respecto do tempo de tal modo que incluísse a representação de ser ou existência
em todo tempo. Esta ideia pertence à categoria esquematizada. E o que se aplica é sempre a
categoria esquematizada.

Tudo isto suscita um problema que pode ser indicado brevemente aqui. Como vimos, Kant
usa os termos ‘categoria’ e ‘conceito puro’ ou ‘conceito a priori’ para se referir à mesma coisa.
Agora bem, as categorias se descrevem como funções lógicas. São forma puras do entendimento
que possibilitam as sínteses, mas que, tomadas em si mesmas e aparte de sua aplicação a
aparências, não representam objetos alguns. Portanto, é lícito perguntar se a palavra ‘conceito’
não é mau nome para essas funções. Em seu comentário à Crítica da razão pura[391] o professor
Kemp Smith sustenta que quando Kant fala das categorias está normalmente pensando nos
esquemas. Portanto, o capítulo a respeito do esquematismo das categorias contém meramente
sua definição diferida. As categorias propriamente ditas, assim que forma puras do
entendimento, são funções lógicas sem conteúdo nem significação determinados. Por exemplo,
o conceito de substância é o que Kant lume o esquema da categoria de substância. E não há local
para um conceito puro de substância diferente da noção de substância definida no esquema.

Sem dúvida há bastantees argumentos que alegar em favor dessa interpretação. Se fixamo-
nos nos conceitos matemáticos, pode ser sustentado que a representação de uma regra ou
procedimento geral de construção de triângulos é o conceito de triângulo. Mas, por outra parte,
embora é verdade que Kant diz que as categorias sem esquematizar não têm significação
suficiente para nos dar o conceito de um objeto, e que são “só funções do entendimento para a
produção de conceitos”[392], no entanto, lhes atribui algum conteúdo, embora esse conteúdo não
seja suficiente para representar um objeto. “A substância, por exemplo, se prescindimos da
determinação temporária de permanência, não significa nada mais que um algo que pode ser
pensado como sujeito sem ser pregado de nenhuma outra coisa”[393]. É possível que “não possa
fazer nada” com essa ideia, como diz Kant. Mas isso significa só que não posso aplicar esse
conceito para representar um objeto, pois um objeto é um objeto possível da experiência, e a
experiência é experiência sensível. E fica o fato de que Kant atribui alguma significação, algo
de conteúdo, à categoria sem esquematizar. Esta significação não é o suficientemente
determinada para dar conhecimento; mas é pensable como possibilidade lógica. Segundo Kant,
os metafísicos tentaram usar as categorias puras como fonte de conhecimento das coisas-em-si.
E usar as categorias desse modo é abusar delas. Mas a mera possibilidade de que se abuse delas
pressupõe que tem alguma significação, por tênue que seja.

6. Princípios sintéticos a priori.

O entendimento produz a priori certos princípios que formulam as condições da


possibilidade da experiência objetiva, ou seja, da experiência de objetos. A mesma coisa pode
ser dito de outro modo: o entendimento produz a priori certos princípios que são regras ou
normas para o uso objetivo das categorias. Portanto, para averiguar esses princípios basta com
considerar a tabela das categorias esquematizadas. “A tabela das categorias dá-nos o script
natural para a tabela dos princípios (Grundsätze) porque estes últimos não são mais que regras
para o uso objetivo das primeiras”[394].

Os princípios correspondentes às categorias da quantidade são chamados por Kant “axiomas


da intuición”. Kant não os enuncia explicitamente, mas nos diz que seu princípio geral é “Todas
as instituições são magnitudes extensas”[395]. Este é um princípio do entendimento puro, de
maneira que não pode ser um princípio matemático (pelo demais, ninguém se inclinará a pensar
que o seja). Os princípios matemáticos procedem das intuiciones puras pela mediação do
entendimento, não se derivam do entendimento puro mesmo. Por outra parte, este princípio dos
axiomas da intuición explica, segundo Kant, por que as proposições sintéticas a priori da
matemática são aplicáveis à experiência: Por exemplo: o que a geometria afirma da intuición
pura de espaço tem que ser válido para as intuiciones empíricas se todas as intuiciones são
magnitudes extensas. E como o princípio mesmo é condição da experiência objetiva, a
aplicabilidad da matemática é também uma condição da experiência objetiva. A isso podemos
acrescentar que se o princípio dos axiomas da intuición explica por que as proposições sintéticas
a priori da matemática são aplicáveis à realidade fenoménica, então esse mesmo princípio
explica a possibilidade da física matemática.

Kant chama “antecipações da experiência” aos princípios correspondentes às categorias


esquematizadas da qualidade. O princípio geral dessas antecipações é “em todas as aparências,
o real que é objeto da sensação tem magnitude intensiva, isto é, grau”[396]. Ao discutir o esquema
das categorias da qualidade Kant sustentava que esse esquema implica a representação de grau
de intensidade, noção que implica a sua vez a possibilidade de aumento em intensidade e
diminuição até zero (negación). Agora nos diz, por motivo do princípio geral das antecipações
da experiência, que todas as percepciones empíricas, por conter sensação, têm de possuir graus
de intensidade. Portanto, este princípio fornece uma base a priori para a medição matemática da
sensação.

Se tomamos juntos esses dois princípios, o dos axiomas da intuición e o das antecipações da
experiência, comprovaremos que nos permitem fazer previsões a respeito de intuiciones ou
percepciones futuras. Não podemos, desde depois, predizer a priori que serão nossas futuras
percepciones, nem podemos predizer a qualidade das percepciones empíricas (pois as
percepciones contêm sensações). Não podemos, por exemplo, predizer que o próximo objeto da
percepción será vermelho. Mas podemos predizer que todas as intuiciones ou percepciones serão
magnitudes extensas e que todas as percepciones empíricas que contêm sensação terão uma
magnitude intensiva.

Kant reúne esses dois princípios como princípios matemáticos, ou do uso matemático das
categorias. Ao dizer isso Kant não está pensando que esses princípios sejam proposições
matemáticas. Pensa que afetam à intuición e que justificam a aplicabilidad da matemática.

Os princípios correspondentes às categorias esquematizadas do relacionamento chamam-se


“analogias da experiência”. E seu princípio geral subjacente diz “A experiência não é possível
mais que mediante a representação de uma conexão necessária das percepciones”[397]. A
experiência objetiva, isto é, o conhecimento de objetos dos sentidos, não é possível sem uma
síntese de percepciones que implica a presença de uma unidade sintética da multiplicidad à
consciência. Mas essa unidade sintética, que compreende conexões, é obra do sujeito, é a priori.
E as conexões a priori são necessárias. Portanto, a experiência não é possível mais que pela
representação de conexões necessárias entre objetos da percepción.

Kant considera as três analogias como regras ou scripts para o uso empírico do entendimento
na descoberta de concretas conexões. E as analogias correspondem respetivamente ao que Kant
lume os três modi do tempo, a saber, a permanência, a sucessão e a coexistencia. A melhor
maneira de entender esta doutrina consiste em atender às analogias mesmas. Estas se formulam
assim. Primeira: “Em toda mudança de aparências permanece a substância, e sua quantum não
aumenta nem diminui na natureza”[398]. Segunda: “Todas as mudanças ocorrem segundo a lei
de conexão de causa e efeito”[399]. Terça: “Todas as substâncias, assim que percIbídas como
coexistentes no espaço, se encontram em completa interação”[400].

Esses princípios correspondem respetivamente, como é óbvio, às categorias esquematizadas


do relacionamento, a saber, substância e acidente, causa e efeito, e comunidade ou interação
entre agente e paciente. São princípios a priori, ou seja, prévios à experiência. Mas embora
falam-nos de relacionamentos ou proporções, não predizem nem nos permitem predizer o termo
desconhecido. Portanto, como indica Kant, diferem das analogias matemáticas. A primeira
analogia, por exemplo, não nos diz que é a substância permanente da natureza; só nos diz que a
mudança implica substância e que, seja a substância que seja e quanta seja, conserva sua
quantidade total. E o princípio valerá igual se decidimos, sobre base empírica, que a substância
ou sustrato da mudança na natureza deve ser chamado matéria (como pensa Kant) que se
decidimos lhe chamar energia ou de outro modo. Dito grosseiramente: esta analogia diz-nos/dí-
nos que a quantidade total de matéria ou substância básica da natureza se conserva inalterada,
mas não nos diz qual é. Não podemos descobrir isso a priori. A segunda analogia diz-nos/dí-
nos que todas as mudanças são causales e que a cada efeito dado tem de ter uma causa
determinante. Mas embora conheçamos o efeito, pelo mero uso da segunda analogia não
podemos descobrir a causa. Temos que recorrer à experiência, à investigação empírica. A
analogia, o princípio, é de caráter regulativo: guia-nos no uso da categoria de causalidad. Quanto
à terceira analogia, é do todo óbvio que não nos diz nem que coisas coexisten no espaço nem
quais são suas interações. Mas diz-nos/dí-nos a priori e em general o que temos de buscar.

Os princípios correspondentes às categorias da modalidade chamam-se “postulados do


pensamento empírico em general”. São como segue[401]. Primeiro: “O que concorda com as
condições formais da experiência (intuición e conceitos) é possível". Segundo: “O conexo com
as condições materiais da experiência (ou seja, da sensação) é real”. Terceiro: “Aquilo cuja
conexão com o real está determinada segundo as condições gerais da experiência é (existe como)
necessário".

É importante compreender que, segundo Kant, esses postulados se referem só ao


relacionamento do mundo, dos objetos da experiência, com nossas faculdades cognoscitivas. O
primeiro postulado, por exemplo, diz que só o que pode ser submetido às condições formais da
experiência é um existente possível, por assim o dizer, ou seja, um existente dentro da realidade
empírica. Não afirma o princípio que não possa ter algum ente ou alguns entes que trasciendan
a realidade empírica por trascender as condições formais da experiência possível. Deus, por
exemplo, não é um existente possível no mundo físico; mas essa afirmação não equivale à de
que não tenha nem possa ter um Deus. Um ser espiritual infinito trasciende a aplicação das
condições formais da experiência, e não é, portanto, possível como objeto físico ou
experimentado. Mas o ser divino é logicamente possível, ao menos no sentido de que em sua
ideia não se discierne contradição alguma. E pode ter motivos para crer em um ser assim.

Como fica dito, os postulados o são do pensamento empírico. O segundo, portanto, dá-nos
uma definição ou explicação da realidade no uso empírico deste termo. O princípio diz
substancialmente que na ciência não pode ser aceitado como real nada que não esteja conexo
com uma percepción empírica, e com a sensação, portanto, segundo a análise da experiência.
Quanto ao terceiro postulado, refere-se à inferência do percIbídou ao não percIbídou segundo
as analogias da experiência e determinadas leis empíricas. Se tomamos, por exemplo, a segunda
analogia da experiência, e tomamo-la só, o único que podemos dizer é que, dado certa mudança
ou acaecimiento, tem que ter tido uma causa; e não podemos determinar a priori qual é a causa.
Mas se tomamos ademais as leis empíricas da natureza, poderemos dizer, sobre a base da
ocorrência de uma determinada mudança ou acaecimiento, que um determinado relacionamento
causal é necessária e que tem de existir uma causa determinada; não o poderemos dizer, desde
depois, com necessidade absoluta, mas sim com necessidade hipotética.

7. A possibilidade da ciência pura da natureza.

Não só, pois, é a matemática aplicável à natureza, senão que, ademais, há um verdadeiro
número de princípios que se derivam das categorias do entendimento e são, portanto, a priori.
É, pois, possível uma ciência pura da natureza. A física em sentido estrito é uma ciência
empírica. Kant não pensou nunca que pudéssemos deduzir a priori o inteiro corpo da física. Mas
há uma ciência universal da natureza, uma propedéutica da física, como o lume Kant nos
Prolegomena[402], embora também fala dela como de uma física universal e general[403]. É
verdade que não todos os conceitos que se encontram na parte filosófica da física, ou
propedéutica física, são puros em sentido kantiano; alguns deles dependem da experiência. Kant
dá como exemplos os conceitos de movimento, impenetrabilidad e inércia[404]. E não todos os
princípios desta ciência universal da natureza são universais em sentido estrito. Alguns deles se
aplicam só a objetos do sentido externo, e não a objetos do sentido interno (isto é, aos estados
psíquicos do ego empírico). Mas, por outra parte, há entre eles princípios que se aplicam a todos
os objetos da experiência, internos ou externos; por exemplo, o princípio de que os
acaecimientos estão causalmente determinados segundo leis constantes. Em qualquer caso, há
uma ciência pura da natureza, no sentido de que essa ciência consta de proposições que não são
hipóteses empíricas e, no entanto, nos permitem predizer o curso da natureza; e são proposições
sintéticas a priori.

Se recordará que um dos principais problemas de Kant na Crítica da razão pura consistia
em explicar a possibilidade dessa ciência pura da natureza. E a questão de sua possibilidade tem
sua resposta, como vimos, nas seções anteriores deste capítulo. É possível uma ciência pura da
natureza porque os objetos da experiência, para ser objetos da experiência, têm que adecuarse
necessariamente a certas condições a priori. Dada esta adequação necessária, sabemos que o
complexo de proposições sintéticas a priori derivadas imediata ou mediatamente das categorias
a priori do entendimento se verificará sempre. Dito brevemente, “os princípios da experiência
possível são então ao mesmo tempo leis universais da natureza cognoscibles a priori. E deste
modo resolve-se o problema contido em nossa segunda pergunta, Como é possível a ciência
pura da natureza?”[405]

Podemos formular o assunto também de outro modo. Os objetos, já para ser objetos, se têm
que relacionar com a unidade da apercepción, com a unidade da consciência. E relacionam-se
com ela mediante seu subsunción baixo certas forma a priori ou categorias. O complexo dos
objetos possíveis da experiência forma assim uma natureza respecto da unidade da consciência
em general. E as condições necessárias para esse relacionamento são o fundamento das leis
necessárias da natureza. Não há para nós natureza sem síntese; e a síntese a priori dá leis à
natureza. Estas leis necessárias são em verdadeiro sentido impostas pelo sujeito humano; mas
são ao mesmo tempo leis objetivas, porque são válidas — e necessariamente válidas — para
todo o âmbito da experiência possível; ou seja, para a natureza assim que complexo dos objetos
possíveis da experiência.

Com isso resolveu Kant com inteira satisfação desde seu ponto de vista os problemas
suscitados por Hume. A física newtoniana postula a uniformidade da natureza. A experiência
não pode provar a uniformidade da natureza. Não pode mostrar que o futuro se vá parecer ao
passado, no sentido de mostrar que há leis da natureza universais e necessárias. Mas enquanto
Hume contentou-se com observar que temos uma crença natural na uniformidade da natureza e
com tentar dar uma explicação psicológica dessa crença, Kant tentou provar dita uniformidade.
Convinha com Hume em que não pode ser provado por indução empírica, e por isso sustentou
que a uniformidade se desprende do fato de que a natureza, assim que complexo dos objetos da
experiência possível, tem que adecuarse às condições a priori da experiência objetiva. Este fato
é o que nos permite conhecer a priori algumas verdades que são fundamentais para a física
newtoniana[406].

Também pode ser dito que Kant realizou a empresa de justificar a física newtoniana. Mas o
termo ‘justificar’ presta-se a confusões. Pois em verdadeiro sentido a única justificativa que
precisa um sistema científico é seu fecundidad. Isto é, resulta possível sustentar que a única
justificativa de verdadeira importância para um sistema científico é a justificativa a posteriori.
Mas Kant achava que a física newtoniana implica pressupostos que não podem ser justificado
teoréticamente a posteriori. Por isso se lhe propunha a questão da possibilidade de uma
justificativa teorética a priori. E Kant estava convencido de que essa justificativa era possível
com uma condição a saber, com a condição de aceitar o ponto de vista de sua revolução
copernicana. Muito do que Kant diz é já sem dúvida anacrônico ou muito discutible. Mas seguem
sem ser questões esgotadas, nem muito menos, as de se a ciência natural implica ou não
orçamentos e, caso afirmativo, a questão de qual é o estatuto lógico desses orçamentos. Por
exemplo, Bertrand Russell diz no conhecimento humano que há um verdadeiro número de “
postulados” da inferência científica que não se derivam da experiência nem podem ser provado
empiricamente. Depois, certamente, passa a dar uma explicação parcialmente psicológica e
parcialmente biológica da génesis dessas crenças naturais, seguindo assim as impressões de
Hume mais que as de Kant, o qual tentava mostrar que os orçamentos da física têm uma
referência objetiva e por que a têm e fornecem conhecimento. Mas, por outra parte, Bertrand
Russell coincide com Hume e com Kant em que o empirismo puro é inadequado como teoria do
conhecimento. Portanto, e apesar de sua hostilidade para com Kant, Russell acaba por
reconhecer a realidade do problema com o que se enfrentou Kant. E isto é o que me propunha
mostrar.

8. Fenômenos e nóumenos.

Já observará o leitor que as categorias do entendimento, tomadas por si mesmas, não nos dão
conhecimento dos objetos. E as categorias esquematizadas aplicam-se só aos dados da intuición
sensível, isto é, a aparências. As categorias não nos podem dar conhecimento das coisas, “exceto
na medida em que podem ser aplicado à intuición empírica. Isto é, as categorias não servem
mais que para possibilitar o conhecimento empírico. E isto é o que se chama experiência”[407].
Por tanto, o único uso legítimo das categorias respecto do conhecimento das coisas é sua
aplicação a objetos possíveis da experiência. Isto, diz Kant, é uma conclusão de grande
importância, porque determina os limites do uso das categorias e mostra que são válidas só para
os objetos dos sentidos. Não nos podem dar conhecimento teorético ou cientista de realidades
que trasciendan a esfera do sentido.

O mesmo há que dizer, desde depois, dos princípios a priori do entendimento. Estes se
aplicam só a objetos possíveis da experiência, ou seja, a fenômenos, a objetos assim que dados
na intuición empírica ou sensível. “A conclusão final de toda esta seção é, portanto, que todos
os princípios do entendimento puro são estrita e exclusivamente princípios a priori da
possibilidade da experiência; e só a esta se referem todas as proposições sintéticas a priori. Sua
possibilidade mesma baseia-se inteiramente neste relacionamento”[408]. Portanto, os princípios
referentes à substância e à causalidad determinada, por exemplo, valem só de e para os
fenômenos.

Deste modo nosso conhecimento de objetos restringe-se à realidade fenoménica. Mas


embora não podemos atravessar os limites da realidade empírica ou fenoménica e conhecer o
que se encontra para além deles, não temos direito a afirmar que não tenha mais que fenômenos.
E Kant introduz a ideia de noumena , ideia que chegou o momento de examinar.

A palavra noumenon significa etimológicamente objeto do pensamento. E Kant lume às


vezes aos noumena entes do entendimento (Verstandeswesen)[409]. Mas com dizer que
noumenon significa objeto do pensamento não adiantamos nada no entendimento da doutrina de
Kant. E até podemos confundir-nos/confundí-nos respecto dela, pois a expressão pode nos fazer
pensar que Kant divide a realidade em sensibilia ou objetos do sentido e intelligibilia ou
noumena assim que objetos presos pelo puro pensamento. E a palavra noumenon pode-se sem
dúvida usar nesse sentido. “As aparências na medida em que são pensadas como objetos segundo
a unidade das categorias se chamam fenômenos. Mas se suponho (a existência de) coisas que
são simplesmente objetos do entendimento e que, ao mesmo tempo, podem ser dadas como
objetos à intuición, embora não à intuición sensível, senão a uma intuición intelectual, então as
coisas desta classe se chamariam noumena ou intelligibilia”[410]. Mas embora a palavra
noumenon pode ser usado deste modo, a noção de que os seres humanos tenham ou possam ter
intuición intelectual é precisamente uma das posições filosóficas que Kant tem mais resolvido
interesse em refutar. Para Kant toda intuición é sensível. Por isso o melhor é eliminar toda
consideração etimológica a propósito da palavra noumenon e atender ao uso efetivo que faz dela
Kant, uso que ele mesmo dilucida laboriosamente.

Na primeira edição da Crítica da razão pura Kant distingue entre “objeto trascendental” e
noúmeno. A ideia de aparência implica a ideia de algo que aparece. Como correlato da ideia de
uma coisa que aparece se tem a ideia de uma coisa que não aparece, isto é, de uma coisa em si
mesma, aparte de sua aparecer. Mas se tentativa abstraer de todo aquilo que no objeto se refere
às condições a priori do conhecimento, ou seja, da possibilidade dos objetos do conhecimento,
chego à ideia de um “algo” desconhecido, de um desconhecido e até incognoscible X. Este X
incognoscible é completamente indeterminado; é um algo em general, e nada mais. Por exemplo,
a ideia do X correspondente a uma vaca não é diferente da ideia do X correspondente a um cão.
Assim temos a ideia do objeto trascendental, ou seja “a ideia completamente indeterminada de
algo em general”[411]. Mas isso não é ainda a ideia de um noumenon. Para transformar o objeto
trascendental em um noumenon tenho de supor uma intuición intelectual na que possa ser dado
o objeto. Dito de outro modo: enquanto o conceito de objeto trascendental é meramente um
conceito-limite, o noumenon concebe-se como uma realidade inteligible, uma realidade positiva
que poderia ser objeto de uma intuición intelectual.

Uma vez feita essa distinção, Kant diz que não possuímos faculdade de intuición intelectual,
e que não podemos conceber sequer sua possibilidade, isto é, que não podemos nos fazer um
conceito positivo dela. Ademais, embora a ideia de um noumenon como coisa-em-si (ein Ding
an sich) não contém nenhuma contradição lógica, não podemos ver a possibilidade positiva dos
noumena considerados como objetos possíveis da intuición. Portanto, não pode ser admitido a
divisão dos objetos em fenômenos e noumena. Por outra parte, o conceito de noumenon é
imprescindible como conceito limite; podemos chamar noúmenos, noumena, às coisas em si,
isto é, às coisas consideradas assim que não aparecem. Mas nosso conceito será problemático.
Não afirmamos que tenha noúmenos que pudessem intuirse se possuíssemos uma faculdade de
intuición intelectual. Mas, ao mesmo tempo, também não temos direito a afirmar que as
aparências esgotem a realidade; e a ideia dos limites da sensibilidade comporta com ela, como
conceito correlativo, o conceito indeterminado, negativo, do noúmeno.

A debilidade dessa explicação consiste em que Kant diz ao princípio que a palavra noumenon
significa algo mais que o significado pelo objeto trascendental e depois exclui esse algo mais
para dar uma interpretação do noúmeno que não parece diferir em absoluto de sua interpretação
do objeto trascendental. De todos modos, na segunda edição clarifica esta confusão, ao menos
aparente, distinguindo com sumo cuidado entre dois sentidos da palavra noumenon, embora sua
doutrina dos limites de nosso conhecimento fica sem alterar em absoluto por essa ulterior
precisão.

Há primeiro o sentido negativo da palavra noumenon. “Se entendemos por noumenon uma
coisa na medida em que não é objeto de nossa intuición sensível, abstrayendo assim de nosso
modo de intuirla, então isso é um noúmeno no sentido negativo do termo”[412]. A observação a
respeito desse abstraer de nosso modo de intuir o noúmeno não tem de entender no sentido de
que, segundo Kant, possamos intuir ou intuyamos de um modo não sensível. Kant quer dizer
que se entendemos por noumenon coisa assim que não objeto da intuición sensível, e se ao
mesmo tempo não admitimos nenhuma outra classe de intuición, conseguimos a ideia de
noúmeno no sentido negativo do termo.

Este sentido negativo do termo põe-se em contraste com um possível sentido positivo. “Se
entendemos por isso (por noúmeno) um objeto de uma intuición não sensível, então supomos
um tipo particular de intuición, a saber, a intuición intelectual, a qual, empero, não é nossa, e
cuja mera possibilidade não podemos sequer ver; mas isto seria um noúmeno no sentido positivo
do termo”[413]. Assim, pois, um noúmeno no sentido positivo do termo seria um intelligibile, o
objeto de uma intuición intelectual. Mas já que, segundo Kant, não dispomos dessa intuición,
podemos passar por alto pelo momento o sentido positivo do termo e voltar ao uso do mesmo
em sentido negativo.

Kant faz questão de que o conceito de noúmeno é indispensável, pois este conceito está
vinculado com toda sua teoria da experiência. “A doutrina da sensibilidade é também a doutrina
dos noúmenos em sentido negativo”[414]. Se estivéssemos dispostos a dizer que o sujeito humano
é criador no pleno sentido da palavra, poderíamos suprimir a distinção entre fenômenos e
noúmenos. Mas se o sujeito limita-se a contribuir, por assim o dizer, os elementos formais da
experiência, não podemos abandonar a distinção. Pois a ideia de coisas que se adecúan às
condições a priori da experiência implica a ideia da coisa-em-si.

Por outra parte, dada a restrição do uso cognoscitivo das categorias à realidade fenoménica,
segue-se não só que não podemos conhecer os noúmenos no sentido de conhecer suas
caraterísticas, senão também que não podemos afirmar dogmaticamente que existam. A unidade,
a pluralidad e a existência são categorias do entendimento. E embora podemos pensar os
noúmenos como existentes, a aplicação das categorias deste modo que ultrapassa seu campo
próprio de aplicação não produz conhecimento. Portanto, a existência de noumena é
problemática, e a ideia de noumenon ou coisa-em- sim resulta ser ela também um conceito
limite (Grenzbegriff)[415]. O entendimento limita a sensibilidade “ao dar o nome de noumena às
coisas consideradas em si mesmas e não como fenômenos. Mas ao mesmo tempo limita-se a si
mesmo, a saber, se proíbe conhecer essas coisas por médio de categorias e se impõe o a pensar
simplesmente como um algo desconhecido”[416].

Na primeira seção deste capítulo vimos como se expressa Kant a respeito de nossa afección
por objetos. Kant partiu da posição própria do sentido comum, segundo a qual as coisas
produzem um efeito no sujeito, efeito que origina a sensação; esta se define, efetivamente, como
“o efeito de um objeto na faculdade de representação, na medida em que somos afetados pelo
objeto”[417]. Mas este ponto de vista do sentido comum parece implicar a afirmação de que há
coisas-em-si. Pois parece implicar uma inferência da sensação como efeito à coisa-em-si como
causa. Assim lemos, analogamente, nos Prolegómenos que as coisas-em-si são incognoscibles
tal como são em si mesmas, mas que “as conhecemos através das representações que nos tenta
sua influência em nossa sensibilidade”[418]. É óbvio que ao se expressar assim Kant se expõe à
acusação de estar aplicando o princípio de causalidad para além dos limites que ele mesmo lhe
tinha traçado. Por isso essa foi uma objeción corrente a sua doutrina dos noumena considerados
como coisa-em-si: sua existência afirma-se como resultado de uma inferência causal, quando,
pelos mesmos princípios de Kant, a categoria de causa não pode ser aplicado senão a fenômenos.
Ao afirmar a existência do noúmeno como causa da sensação Kant, se disse, entra em
contradição consigo mesmo, é inconsecuente com seus próprios princípios. Sem dúvida
compreende-se que Kant fale desse modo, pois nunca achou que as coisas pudessem ser reduzido
simplesmente a suas representações. E, portanto, era natural que postulara uma causa ou várias
causas externas de nossas representações. Mas embora isso seja compreensível, fica o fato de
uma inconsecuencia manifesta. E sim quer ser mantido a concepção kantiana da função da
categoria de causa, então há que abandonar a noção do noúmeno como coisa-em-si.

Embora esse tipo de objeción seja sem dúvida relevante quanto atende-se exclusivamente às
observações de Kant a respeito da causa de nossas representações, temos visto que o filósofo
adota uma proposta diferente quando discute explicitamente a distinção entre fenômenos e
noúmenos. Neste caso a ideia de noúmeno não se apresenta como surgida de uma inferência da
sensação a sua causa, senão como correlato inseparável da ideia de fenômeno. Neste contexto
não se nos apresentam as representações subjetivas por um lado e suas causas externas por outro.
Mais bem se nos apresenta a ideia de um objeto que se aparece e, de acordo com a ideia que
assim temos, e como puro conceito limite, a ideia do objeto aparte de seu aparecer. É como se o
noúmeno fosse o reverso de uma imagem, a cara que não vemos nem podemos ver, mas cuja
noção indeterminada acompanha necessariamente à ideia da cara que vemos. Ademais, embora
Kant acha manifestamente que há noumena, se abstém de afirmar sua existência, ao menos em
contexto teórico. E esta proposta não parece lhe expor à objeción mencionada na alínea anterior.
Pois embora usemos a categoria de causa para pensar o noúmeno, este uso é problemático, não
asertórico. E não se produz nenhuma dificuldade particular pela aplicação desta categoria, senão
que as dificuldades que se encontrem se deverão também ao uso de qualquer outra categoria.

Uma última observação sobre este ponto. Nesta seção considerámos o noúmeno como a
coisa que aparece, mas aparte de sua aparecer. Ou seja, temo-lo estado considerando como o
que Kant chama coisa-em-si (Ding an sich). Mas Kant fala também do eu livre, não empírico, e
de Deus, os considerando noumena, dotados de realidade nouménica. Também fala em certa
ocasião de Deus como coisa-em-si. Este modo de falar está justificado por seus orçamentos. Pois
Deus não é um fenômeno nem pode possuir realidade fenoménica ou empírica. Portanto, tem
que ser concebido como noumenon, como coisa-em-si, e não como algo que se nos apareça.
Ademais, todo o dito a respeito da inaplicabilidad das categorias aos noumena vale também
respecto de Deus. Por outra parte, se em rigor Deus é pensado, não o é como simples correlato
de aparências espaço-temporárias. O conceito de Deus não é o conceito de algo que aparece,
mas considerado aparte de seu aparecer. Pois não pode ser dito que Deus apareça. Portanto, os
termos noumenon e coisa-em-sim aplicados a Deus não têm precisamente o mesmo sentido que
têm quando se aplicam do modo dantes descrito. Assim, pois, é melhor reservar toda ulterior
discussão da ideia de Deus para quando cheguemos, no capítulo seguinte, ao estudo da Dialética
trascendental. Pois esta é a parte da primeira Crítica na que Kant discute a ideia de Deus, ao
tratar das ideias trascendentales da razão pura.

9. A refutación do idealismo.

O uso da palavra idealismo por Kant difere nos diferentes estádios do desenvolvimento de
seu pensamento. Não há nos escritos de Kant um uso coerente e invariável do termo. Está claro
que seu antipatía por essa etiqueta foi diminuindo, até que ao final ele mesmo chama a sua
filosofia idealismo trascendental, ou crítico, ou problemático. Mas quando fala deste modo Kant
pensa na doutrina da incognoscibilidad das coisas-em-si. Não afirma que em sua opinião existam
só o eu humano e suas ideias. Esta é, pelo contrário, uma doutrina à que ataca, como cedo se
verá. E se é lícito chamar idealismo crítico à doutrina de Kant, não menos acertado é a qualificar
de realismo crítico, tendo em conta que o filósofo não se decidiu nunca a abandonar a ideia das
coisas-em-si. De todos modos, não penso me embarcar agora em discussões estéreis a respeito
de qual é a melhor nomenclatura para a filosofia de Kant. Em vez disso atenderei a seu refutación
do idealismo, a seu refutación, isto é, do que Kant chamava o idealismo empírico ou material,
para o distinguir do idealismo trascendental ou formal. Desde seu ponto de vista a aceitação
deste último implica a recusación daquele outro.

Ambas edições da Crítica da razão pura contêm uma refutación do idealismo, mas vou
limitar minhas considerações à versão dada pela segunda edição. Nela distingue Kant duas
classes de idealismo, o problemático e o dogmático. Segundo o idealismo do primeiro tipo,
atribuído a Descarte, a existência das coisas externas no espaço é dudosa e indemostrable, e não
há mais que uma proposição empírica verdadeira: Existo. Segundo o idealismo dogmático,
atribuído a Berkeley, o espaço, junto de todos os objetos cuja condição inseparável é, é
impossível, de modo que os objetos presentes no espaço são meros produtos da imaginação.

Esses sumários das posições reais de Descarte e Berkeley, se realmente consideram-se como
sumários descritivos, são inadequados, por falar moderadamente. Berkeley não pensava que
todos os objetos externos fossem meros produtos da imaginação no sentido em que normalmente
se entenderá essa descrição kantiana. E, pelo que faz a Descarte, é verdade que admitia que
aplicássemos uma dúvida “hiperbólica” à existência das coisas externas finitas, mas também
sustentava que a razão pode superar essa dúvida. Kant pode perfeitamente ter pensado que a
demonstração cartesiana da existência de coisas finitas aparte do eu é inválida. Mas essa
convicção não justifica sua afirmação de que segundo o idealismo problemático a existência das
coisas externas no espaço e no tempo seja indemostrable, se é que depois vai atribuir essa opinião
a Descarte. De todos modos, a exatidão das observações históricas de Kant é assunto de menor
importância em comparação com seu tratamento das duas posições que descreveu.

Kant diz muito pouco a respeito do idealismo dogmático. Limita-se a observar que é
inevitável se consideramos que o espaço é uma propriedade das coisas- em-si; pois neste caso o
espaço, junto de todos os objetos dos que é condição inseparável, é uma inentidad (Unding).
Mas esta posição ficou excluída na Estética trascendental. Dito de outro modo: se admite-se que
o espaço é uma propriedade das coisas-em-si, pode ser mostrado que o conceito de espaço é o
conceito de algo irreal e impossível. E o conceito arrasta em sua ruína também às coisas das que
se supõe ser uma propriedade e que, portanto, têm que ser consideradas como meros produtos
da imaginação. Mas já se mostrou na Crítica que o espaço é uma forma a priori da sensibilidade,
a qual se aplica só a fenômenos e não a coisas-em-si. Estas últimas ficam intatas, por assim o
dizer, enquanto se mostra que o espaço possui realidade empírica.

O tratamento do idealismo problemático, o atribuído a Descarte, é mais detalhado. O ponto


principal é que toda a proposta cartesiana é integralmente falso. Pois Descarte pressupõe que
temos consciência de nós mesmos com independência e anterioridad respecto da experiência de
coisas externas, e então se pergunta como o eu, já verdadeiro de sua própria existência, pode
conhecer que há coisas externas. Contra esta posição sustenta Kant que a experiência interna
não é possível mais que por médio da experiência externa.

A argumentación de Kant é um pouco retorcida. Sou consciente de minha existência como


existência determinada no tempo[419]. Mas toda determinação no tempo, isto é, respecto da
sucessão, pressupõe a existência de algo permanente na percepción. Mas esse algo permanente
não pode ser nada dentro de mim mesmo, já que é a condição de minha existência no tempo. Do
que se segue que a percepción de minha própria existência no tempo é possível só pela existência
de algo real fosse de mim, e só graças a ela. A consciência no tempo está assim necessariamente
vinculada com a existência de coisas externas, não meramente com a representação de coisas
externas a mim.

O afirmado por Kant é, pois, que não posso ser consciente de mim mesmo senão
mediatamente, ou seja, através da consciência imediata de coisas externas. “A consciência de
minha própria existência é ao mesmo tempo consciência imediata da existência de outras coisas
fora de mim”[420]. Dito de outro modo, a autoconsciencia não é um dado primeiro: chego a ser
consciente de mim mesmo ao perceber as coisas externas. Portanto, não se propõe sequer a
questão de inferir de minha existência a de coisas externas.

É evidente que Kant diz aqui uma coisa sólida, a saber, que um é consciente de si mesmo
concomitantemente com atos de atenção dirigidos ao que não é um mesmo. Mas para utilizar
este fato contra Descarte, Kant teria que mostrar que essa tomada de consciência de mim mesmo
é impossível a não ser que existam coisas externas, não somente representações ou ideias
minhas. Mostrar isto é, pois, o ônus da argumentación. Mas o próprio Kant vê-se obrigado a
admitir que “não pode ser concluído que toda representação intuitiva de coisas externas implique
a existência destas coisas, pois pode perfeitamente ser o mero efeito da faculdade da imaginação
nos sonhos, igual que na loucura”[421]. Apesar disso sustenta que esses produtos imaginativos
são reproduções de percepciones externas prévias, as quais seriam impossíveis sem a existência
de objetos externos. “Nossa tarefa consistiu em provar só que a experiência interna em general
não é possível mais que pela experiência externa em general”[422]. A questão de se uma
percepción determinada é ou não é puramente imaginativa se tem que decidir de acordo com as
particularidades do caso.

Este tratamento do idealismo pode deixar muitas coisas sem tocar satisfatoriamente, mas ao
menos evidencia a insistencia de Kant na realidade empírica do mundo da experiência
considerado como um tudo. Dentro da esfera da realidade empírica não podemos conceder
legitimamente um estatuto privilegiado ao eu empírico, reduzindo os objetos externos,
dogmática ou problemáticamente, a ideias ou representações do eu empírico. Pois a realidade
empírica do sujeito é inseparável da realidade empírica do mundo externo. Ou seja: a consciência
dos dois fatores, sujeito e objeto, não pode desmembrarse de tal modo que chegue a ser um
problema real o suposto problema da inferência da existência de objetos diferentes do eu
empírico.

10. Observações finais.

Numerosas Críticos de detalhe da teoria kantiana da experiência podem ser formulado desde
dentro do enquadramento geral da filosofia kantiana, ou seja, por quem aceitem o ponto de vista
geral do filósofo e estejam dispostos a considerar-se kantianos ou neo-kantianos. Por exemplo,
pode ser criticado a ideia kantiana de ter fornecido uma tabela completa das categorias baseada
na tabela do julgamento que tomou, com poucas mudanças, da lógica formal que lhe era familiar.
Mas essa Crítica não exigirá um abandono do ponto de vista geral representado pela doutrina
kantiana das categorias. Também é possível criticar a ambigüedad própria do costume kantiana
de falar umas vezes de “ categorias” e outras de conceitos a priori. Mas pode ser dissipado a
ambigüedad sem ver-se obrigado a arrojar toda a teoria pela borda. De todos modos, não nos
vamos interessar pelo Críticos de detalhe que podem ser construído desde dentro do
enquadramento geral do sistema. Em um volume posterior se dirá algo a respeito dos neo-
kantianos.

Se contemplamos a teoria kantiana da experiência como uma tentativa de explicar a


possibilidade do conhecimento sintético a priori, nosso julgamento a respeito dela dependerá
obviamente em grande parte de que admitamos ou recusemos a existência de proposições
sintéticas a priori. Se pensamos que não há proposições dessa classe, temos que chegar
inevitavelmente à conclusão de que nem sequer se apresenta o problema de explicar um
conhecimento sintético a priori. Diremos, por exemplo, que Kant se equivocou ao pensar que o
geómetra lê as propriedades do espaço contemplando uma intuición a priori. Falando a
terminología kantiana, todas as proposições serão então analíticas ou sintéticas a posteriori. Em
mudança, se pensamos que há proposições sintéticas a priori, reconheceremos pelo menos que
o problema kantiano era um problema real. Pois a mera experiência sensível não nos apresenta
conexões necessárias nem verdadeira universalidade.

Mas de todo isso não se segue que se aceitamos a existência de conhecimento sintético a
priori nos vejamos obrigados a aceitar também a hipótese da revolução copernicana de Kant.
Pois é possível admitir que há proposições sintéticas a priori e sustentar ao mesmo tempo que
há uma intuición intelectual que dá fundamento a essas proposições. Não penso, certamente, me
comprometer a sustentar que o geómetra desfrute de uma intuición do espaço na que possa ler,
por assim o dizer, suas propriedades. Prescindo integralmente do problema da matemática. Ou
seja: ao falar de proposições sintéticas a priori não penso nas proposições da matemática pura,
senão nos princípios metafísicos, como o princípio de que todo o que devém tem uma causa. E
por intuición não entendo aprehensión direta de realidades espirituais como Deus, senão
aprehensión intuitiva do ser implicada pelo julgamento de existência a respeito do objeto
concreto da percepción sensível. Dito de outro modo: se, em dependência da percepción
sensível, o espírito pode discernir a estrutura inteligible, objetiva, do ser, pode enunciar
proposições sintéticas a priori que têm validade objetiva para as coisas-em-si. Não vou
desenvolver ulteriormente este ponto de vista. Minha intenção ao mencioná-lo consiste
simplesmente em indicar que não estamos obrigados a eleger entre o empirismo por um lado e
a filosofia Crítica de Kant por outro.
Capítulo XIII
O ataque à metafísica.

1. Observações preliminares.

Se admitimos e pressupomos a análise da experiência objetiva[423] descrito no capítulo


anterior, pode parecer que não tenha realmente nada mais que dizer a respeito da metafísica.
Pois da Estética trascendental e da Analítica trascendental tomadas juntas seguem-se
diretamente certas conclusões gerais a respeito do tema. Em primeiro lugar: a metafísica é
possível, e possível como ciência, na medida na qual possa ser chamado metafísica — metafísica
da experiência objetiva — ao criticismo trascendental mesmo. Segundo: se se explicitara
completamente o inteiro sistema das proposições sintéticas a priori referentes à ciência natural
pura teríamos desenvolvida uma metafísica da natureza ou da ciência natural. Terceiro: A
metafísica de tipo tradicional é uma possibilidade psicológica na medida em que o espírito pode
usar as categorias sem esquematizar para pensar coisas-em-si e formar ideias que não contenham
contradição lógica. Assim, por exemplo, é psicologicamente possível pensar as coisas-em-si
como substâncias. Quarto: mas esse proceder, que supõe a aplicação das categorias fosse do
campo de sua aplicação legítima, não pode fornecer conhecimento. A função cognoscitiva das
categorias encontra-se em sua aplicação a objetos assim que dados na intuición sensível, ou seja,
em sua aplicação a fenômenos. As coisas-em-si não são nem podem ser fenômenos. E não
possuímos nenhuma faculdade de intuición intelectual que possa fornecer objetos para uma
aplicação metafenoménica das categorias. Portanto fica excluída a metafísica de tipo clássico,
assim que fonte possível de conhecimento objetivo. Por seguir utilizando o mesmo exemplo,
diremos que a aplicação da categoria de substância às coisas-em-si não fornece conhecimento
algum destas. Quinto: não podemos utilizar os princípios do entendimento para inferir a
existência de seres suprasensibles, como Deus. Pois os princípios do entendimento, como as
categorias nas quais se fundam, são de aplicação limitada. Sua referência objetiva reduz-se aos
fenômenos. Portanto, não podem ser usado trascendiendo a experiência (em sentido kantiano).

Mas a atitude de Kant respecto da metafísica, tal como se manifesta na Crítica da razão
pura, é mais complicada do que essa série de conclusões permitiria o supor. Como já vimos,
Kant achava que o impulso metafísico é um impulso inextirpable do espírito humano. É possível
a metafísica considerada como disposição natural. E, ademais, é valiosa. Ao menos na Dialética
trascendental Kant tende a apresentar a razão (Vernunft) pura como uma faculdade diferente ou
distinguible do entendimento (Verstand). A razão produz as ideias trascendentales que não se
pode, certamente, usar para aumentar o conhecimento científico dos objetos, mas que ao mesmo
tempo cumprem uma positiva função “regulativa”. Por isso Kant tem ainda que pesquisar a
origem e o sistema dessas ideias e determinar sua função precisa.
Ademais, Kant não se contenta com dizer simplesmente que o conhecimento que pretende
fornecer a metafísica tradicional é ilusorio. Kant deseja também ilustrar e confirmar a verdade
dessa afirmação sua mediante uma Crítica detalhada da psicologia especulativa, da cosmología
especulativa e da teología natural ou filosófica. Fá-lo no segundo livro da Dialética
trascendental.

Que entendia Kant por ‘ dialética trascendental’? Kant pensava que os gregos entendiam por
dialética a arte da disputa sofística. Esta ideia do uso histórico da palavra é muito inadequada,
mas a coisa importa pouco para nossos presentes fins. O importante aqui é que Kant entendia a
dialética como uma “lógica da aparência” no sentido de ilusão (eine Logik dê Scheins)[424]. Mas
ele mesmo, naturalmente, não se propunha suscitar ilusões sofísticas. Dialética significa para ele
o tratamento crítico do razonar falso ou sofístico. E dialética trascendental significa uma Crítica
do entendimento e da razão em atenção a suas pretensões de fornecer-nos/fornecê-nos
conhecimentos das coisas-em-si e de realidades suprasensibles. “A segunda parte da lógica
trascendental tem que ser, portanto, uma Crítica desta aparência (ou ilusão) dialética. E chama-
se dialética trascendental não por ser uma arte de produzir dogmaticamente essa ilusão (arte que,
desgraçadamente, é muito corrente entre os que praticam a varia prestidigitación metafísica),
senão por ser uma Crítica do entendimento e a razão desde o ponto de vista de seus usos
metafísicos. Seu objeto é expor a falsa ilusão implicada pelas infundadas pretensões dessas
faculdades, e substituir suas pretensões de descobrir novas verdades e alargar nosso
conhecimento, coisa que elas acham poder fazer pelo mero uso de princípios trascendentales,
por sua própria função de proteção do entendimento puro contra a ilusão sofistica”[425].

Nesse passo temos uma concepção puramente negativa da função da dialética trascendental.
Mas como o abuso das ideias e os princípios trascendentales pressupõe seu génesis e sua
presença, e como esses princípios têm um verdadeiro valor, a dialética trascendental se encontra
também com a função positiva de determinar de um modo sistemático quais são as ideias
trascendentales da razão pura e quais são suas funções próprias e legítimas. “As ideias da razão
pura não podem em modo algum ser dialéticas em si mesmas; o abuso delas é o que acarreta o
que nos vejamos envolvidos em enganos e ilusões por médio delas. Pois as ideias da razão pura
nascem em nós pela natureza mesma de nossa razão, e não é possível que este tribunal supremo
que julga dos direitos e as pretensões de nossas especulações contenha em si mesmo ilusões e
enganos originarios. Portanto, podemos presumir que estas ideias terão sua função sã e própria,
determinada pela constituição de nossa razão”[426].

2. As ideias trascendentales da razão pura.

Uma caraterística filosófica que Kant compartilhava com Wolff era o respeito, por não dizer
paixão, pela disposição sistemática e pela dedução. vimos como deduze Kant as categorias do
entendimento partindo das forma do julgamento. Na Dialética trascendental vemos-lhe
deduzir[427] as ideias da razão pura partindo das forma da inferência mediata, ou seja, da
inferência silogística[428]. A mim a dedução me parece sumamente artificial e nada convincente.
Mas a ideia geral pode ser reproduzido por médio dos passos seguintes.
O entendimento (Verstand) ocupa-se diretamente de fenômenos, e unifica-os em
julgamentos. A razão (Vernunft) não se ocupa diretamente de fenômenos dessa maneira, senão
só indireta ou mediatamente. Ou seja, a razão aceita os conceitos e os julgamentos do
entendimento e tenta unificar à luz de um princípio superior. Tomemos como exemplo um
silogismo indicado pelo próprio Kant: “Todos os homens são mortais; Todos os estudiosos são
homens; Logo todos os estudiosos são mortais”. A conclusão entende-se como consequência da
premisa maior por médio de ou com a condição da premisa menor. Mas está claro que também
podemos proceder a buscar a condição da verdade da premisa maior. Isto é, podemos tentar
apresentar a premisa maior “Todos os homens são mortais” como conclusão ela mesma de um
prosilogismo. Isto se consegue, por exemplo, com o silogismo seguinte: “Todos os animais são
mortais; Todos os homens são animais; Portanto, todos os homens são mortais”. Nossa nova
premisa maior pode ser entendido agora como unificação de toda uma série de julgamentos
como “Todos os homens são mortais”, “Todos os gatos são mortais”, “Todos os elefantes são
mortais”. E depois podemos submeter a premisa maior "Todos os animais são mortais” a um
processo análogo, mostrando ao final como conclusão de um prosilogismo e unificando deste
modo um campo mais amplo ainda de julgamentos vários.

Nos exemplos dados até agora é óbvio que a razão não produz espontaneamente esses
conceitos e julgamentos. Nesses exemplos a razão ocupa-se do relacionamento deductiva entre
julgamentos fornecidos pelo entendimento em seu uso empírico. Mas é um rasgo peculiar da
razão o que não se contente, em nenhum estádio atingido neste processo de unificação, com
nenhuma premisa que seja ainda ela mesma condicionada, que possa, isto é, se apresentar como
conclusão de um prosilogismo. A razão busca o incondicionado. E o incondicionado não é dado
na experiência.

Neste ponto temos de mencionar uma distinção feita por Kant e que é importante para a linha
de pensamento expressada na Dialética trascendental. Proceder para acima, por assim o dizer,
na corrente de prosilogismos é uma máxima lógica da razão pura. Ou seja: a máxima lógica da
razão empurra-nos a buscar uma unificação a cada vez maior do conhecimento, a tender a cada
vez mais para o incondicionado, para uma condição última que não esteja ela mesma
condicionada. Mas a máxima lógica, tomada em si mesma, não afirma que a corrente do
razonamiento possa atingir jamais um algo incondicionado. Nem sequer afirma que exista algo
incondicionado. O único que faz é nos mover a fazer como se existisse, ao exhortamos
constantemente a completar nosso conhecimento condicionado, como diz Kant. Mas se supõe-
se que a sequência de condições atinge o incondicionado e que há um incondicionado, então a
máxima lógica se converte em princípio da razão pura. E uma das tarefas principais da Dialética
trascendental consiste em estabelecer se este princípio é objetivamente válido ou não. Não se
discute a máxima puramente lógica. Mas estamos justificados ao supor que a sequência de
julgamentos condicionados se unifique realmente no incondicionado? Ou é esse suposto a fonte
da falacia e o engano metafísicos?

Há segundo Kant três tipos possíveis de inferência silogística: o categórico, o hipotético e o


disyuntivo. Estes três tipos de inferência mediata correspondem às três categorias do
relacionamento, a saber, a substância, a causa e a comunidade ou reciprocidad. E em
correspondência com os três tipos de inferência há três classes de unidade incondicionada
postulada ou assumida pelos princípios da razão pura. Na série ascendente dos silogismos
categóricos a razão tende para um conceito que represente algo que seja sempre sujeito e nunca
pregado. Se ascendemos mediante uma corrente de silogismos hipotéticos, a razão exige uma
unidade incondicionada na forma de um orçamento que não pressuponha a sua vez nada
diferente de se, ou seja, um orçamento último. Por último, se a ascensão produz-se por uma
corrente de silogismos disyuntivos, a razão pede uma unidade incondicionada na forma de um
agregado ou conjunto de membros da divisão disyuntiva tal que se complete a divisão.

Parece-me óbvia a razão pela qual Kant tenta derivar as três classes de unidade
incondicionada partindo de três tipos da inferência silogística. Ao deduzir as categorias do
entendimento queria evitar o tipo casual de dedução que imputa a Aristóteles, e substituir por
uma dedução sistemática e completa. Dito de outro modo: desejava mostrar ao mesmo tempo
quais são as categorias e por que são essas e não outras. Por isso tentou deduzir dos tipos lógicos
do julgamento, pressupondo que sua classificação destes tipos era completa. Analogamente, ao
deduzir as ideias da razão pura Kant deseja mostrar ao mesmo tempo quais são essas ideias e
por que têm que ser essas precisamente (essas ideias ou, como ele se expressa, essas classes de
ideias). Por isso tenta as derivar dos três tipos de inferência mediata que, de acordo com a lógica
formal por ele aceitada, são os únicos tipos possíveis. Em todo esse processo podemos
contemplar a paixão de Kant pela disposição sistemática e arquitectónica.

Mas durante a dedução das ideias da razão pura Kant introduz uma linha de pensamento
suplementar que facilita muito o entendimento do conjunto. Introduz a ideia dos
relacionamentos mais gerais em que podem ser encontrado nossas representações. Estes
relacionamentos são três. Primeiro, o relacionamento ao sujeito. Segundo, o relacionamento de
nossas representações aos objetos como fenômenos. Terceiro, o relacionamento de nossas
representações aos objetos como objetos do pensamento em general, sejam fenômenos ou não.
Podemos considerar esses relacionamentos por separado.

Em primeiro lugar exige-se para a possibilidade da experiência, como vimos no capítulo


anterior, que todas as representações se relacionem com a unidade da apercepción, no sentido
de que o eu penso tem de poder as acompanhar a todas. Agora bem: a razão tende a completar
esta síntese mediante a suposição de um sujeito incondicionado, um ego ou sujeito pensante
permanente, concebido como substância. A razão, isto é, tende a completar a síntese da vida
interior passando do ego empírico condicionado a um sim mesmo pensante e incondicionado,
um sujeito substancial que não é nunca pregado.

Em segundo local, e atendendo agora ao relacionamento de nossas representações com os


objetos assim que fenômenos recordaremos que o entendimento sintetiza a multiplicidad da
intuición sensível segundo a segunda categoria do relacionamento, isto é, segundo o
relacionamento causal. Agora bem: a razão tenta completar esta síntese atingindo uma unidade
incondicionada, concebida como a totalidade das sequências causales. O entendimento fornece-
nos, por assim o dizer, relacionamentos causales a cada uma das quais pressupõe outros
relacionamentos causales. A razão postula uma última presuposición que não pressuponha nada
mais a sua vez (e na mesma ordem), e esta presuposición é a totalidade das sequências causales
de fenômenos. Assim nasce a ideia de mundo, concebido como a totalidade das sequências
causales.
Em terceiro local, ou seja, pelo que faz ao relacionamento de nossas representações aos
objetos de pensamento em general, a razão busca uma unidade incondicionada na forma da
condição suprema da possibilidade de todo o pensable. Assim nasce a concepção de Deus como
a união de todas as aperfeiçoe em um Ser[429].

Temos, pois, três ideias principais da razão pura, a saber, a alma como sujeito substancial
permanente, o mundo como totalidade dos fenômenos causalmente relacionados, e Deus como
perfección absoluta, como unidade das condições dos objetos do pensamento em general. Estas
três ideias não são innatas. Mas também não são empiricamente derivadas. Nascem como
resultado do impulso natural da razão pura para a complección das sínteses realizadas pelo
entendimento. Como já se disse, isto não significa que a razão pura leve adiante a atividade
sintetizadora do entendimento considerada como constituição dos objetos mediante a imposição
das condições a priori da experiência que chamamos categorias. As ideias da razão pura não são
“constitutivas”. A razão tem um impulso natural para a unificação das condições da experiência,
e fá-lo avançando para o incondicionado nas forma que se acabam de estudar. Ao fazê-lo
ultrapassa obviamente a experiência. Por isso lume Kant “ideias trascendentales” às ideias da
razão pura, embora mais adiante falará da terceira ideia, a ideia de Deus, a chamando “ideal
trascendental”. Pois Deus concebe-se como a perfección suprema e absoluta.

Essas três ideias formam os principais temas unificadores dos três ramos da metafísica
especulativa segundo a classificação de Wolff. “O sujeito pensante é o tema da psicologia, a
totalidade de todos os fenômenos (o mundo) é o tema da cosmología, e a entidade que contém a
condição suprema da possibilidade de todo o que pode ser pensado (o Ente de todos os entes) é
o tema da teología. Deste modo a razão pura fornece sua ideia para uma doutrina trascendental
da alma (psychologia rationalis), para uma ciência trascendental do mundo (cosmologia
ralionalis) e para uma doutrina trascendental de Deus (theologia transecndentalis)”[430].

Mas, já que, segundo Kant, não possuímos faculdade alguma de intuición intelectual, os
objetos correspondentes a essas três ideias não nos podem ser dados intuitivamente. Nem de
modo intelectual nem do modo experiencial descrito no capítulo anterior. Nem a alma
substancial, nem o mundo como totalidade de todas as aparências, nem o Ser supremo, Deus,
nos podem ser dados na experiência. Não são nem podem ser fenômenos. E suas ideias não
nascem pela sumisión do material da experiência às condições a priori desta, senão pela
unificação das condições da experiência no incondicionado. Pode, portanto, esperar-se que se a
razão faz delas o uso que Kant lume “trascendente”, pretendendo demonstrar a existência e a
natureza dos objetos correspondentes e alargar assim nosso conhecimento teorético objetivo, se
verá sumida em argumentaciones sofísticas e em antinomias. Para mostrar que assim ocorre em
realidade, e inevitavelmente, Kant dispõe um exame crítico da psicologia, racional, a cosmología
especulativa e a teología filosófica. Vamos considerá-las sucessivamente.

3. Os paralogismos da psicologia racional.

Kant concebe a psicologia racional como uma disciplina que procede segundo linhas
cartesianas e argumenta a partir do cogito até chegar à alma como substância simples
permanente, no sentido de autoidéntica no tempo, ou seja, através de todas as mudanças
acidentais. Em sua opinião a psicologia racional tem de proceder a priori, pois não é uma ciência
empírica. Por isso parte da condição a priori da experiência, a unidade da apercepción. “Eu
penso é, pois, o único texto da psicologia racional, partindo do qual tem de desenvolver seu
inteiro sistema”[431].

Se temos em conta o dito no capítulo anterior, é fácil entender a linha de Crítica que vai
adotar Kant. É uma condição necessária da possibilidade da experiência o que o Eu penso possa
acompanhar todas as representações de um. Mas o ego como condição necessária da experiência
não está dado na experiência; é um ego trascendental, não o ego empírico. Portanto, embora é
psicologicamente possível pensá-lo como substância unitária, no entanto, a aplicação de
categorias, como as de substância e unidade, não pode dar conhecimento neste contexto. Pois a
função cognoscitiva das categorias encontra-se em sua aplicação a fenômenos, 110 a noúmenos.
Podemos argumentar até chegar à conclusão de que o ego trascendental, como sujeito lógico, é
uma condição necessária da experiência, no sentido de que a experiência é inteligible só porque
os objetos, para ser objetos, têm que relacionar com a unidade da apercepción; mas não podemos
chegar assim à existência do ego trascendental como substância. Pois isto implicaria um abuso
de categorias como as de existência, substância e unidade. O conhecimento científico está
vinculado ao mundo dos fenômenos, mas o ego trascendental não pertence a esse mundo: é um
conceito-limite. Kant poderia, pois, dizer com Ludwig Wittgenstein que “o sujeito não pertence
ao mundo, senão que é um limite do mundo”[432].

Segundo Kant, a psicologia racional contém um paralogismo fundamental, um silogismo


logicamente falaz. Este silogismo pode ser formulado do seguinte modo:

O que não pode ser pensado mais que como sujeito não existe mais que como sujeito, e é,
portanto, substância;
Mas um ser pensante, considerado simplesmente como tal, não pode ser pensado senão como
sujeito;
Depois existe só como tal, ou seja, como substância[433].

Que esse silogismo é um paralogismo se segue do fato de que contém quatro termos. O meio-
termo, “aquilo que não pode ser pensado mais.que como sujeito”, se entende em um sentido na
premisa maior e em outro sentido na premisa menor. Na premisa maior há uma referência a
objetos do pensamento em general, incluindo os da intuición. E é verdade que a categoria de
substância se aplica a um objeto dado ou que possa ser dado na intuición e que não possa ser
pensado mais que como sujeito, no sentido de não se poder pensar como pregado. Mas na
premisa menor o que não pode ser pensado mais que como sujeito se entende em relacionamento
com a autoconsciencia como forma de pensamento, e não em relacionamento com objetos da
intuición. E não se segue em modo algum que a categoria de substância possa ser aplicado a um
sujeito neste sentido. Pois o ego da pura autoconsciencia não está dado na intuición e não é, por
assim o dizer, um candidato à aplicação da categoria.

Há que observar que Kant não põe em dúvida a verdade de nenhuma dessas duas premisas
quando se tomam por si mesmas, isoladas. Pois de fato a cada premisa é para ele uma proposição
analítica. Por exemplo, se o ser pensante da premisa menor, que se considera puramente como
tal ser pensante, se entende como o ego da apercepción pura, é analiticamente verdade que não
pode ser pensado mais que como sujeito. Mas neste caso a palavra ‘sujeito’ não se usa no mesmo
sentido em que a utiliza a premisa maior. E não podemos passar à conclusão sintética de que o
ego da apercepción pura exista como substância.

Não é necessário entrar mais na discussão da psicologia racional por Kant para ver o
importante papel que ocupa em sua Crítica o conceito de intuición. O ego permanente não está
dado na intuición; em isto Kant concorda com Hume. Portanto, não lhe podemos aplicar a
categoria de substância. Mas é óbvio que alguém quererá pôr em dúvida a opinião de que o ego
permanente não está dado na intuición. E até no caso de que não o esteja tal como o interpreta
Kant, podemos perfeitamente considerar que sua ideia de intuición é demasiado restrictiva. Em
qualquer caso poderá ser argumentado que a presuposición e a condição necessária de toda
experiência é precisamente um ego permanente, e que se a experiência é real, sua condição
necessária tem de ser real. E se afirmar isto supõe um uso das categorias para além da esfera que
lhes foi atribuida, então resultará discutible esta mesma restrição de seu uso. Em mudança, uma
vez aceitadas as premisas de Kant será praticamente impossível evitar suas conclusões. A
validade da Dialética trascendental depende em grande parte, manifestamente, da validade da
Estética trascendental e a Analítica trascendental.

Vale a pena observar que na medida em que Kant acha que todos os acaecimientos
fenoménicos estão determinados causalmente, está em verdadeiro sentido dentro de seu interesse
o manter o ego permanente na esfera da realidade nouménica externa à experiência. Pois isto lhe
vai permitir depois postular a liberdade. Mas, ao mesmo tempo, ao situar o eu permanente na
esfera nouménica e para além do alcance da intuición, Kant impossibilita qualquer
argumentación respecto da existência do eu neste sentido. Sem dúvida podemos afirmar a
existência do ego empírico, pois este é dado na intuición interna. Mas o ego empírico é a
mismidad assim que estudada em psicologia. É um objeto no tempo, reducible a estados
sucessivos. O ego não reducible a uma sucessão de estados e que não pode ser pensado senão
como sujeito não está dado na intuición, não é um objeto e, portanto, não pode ser afirmado
dogmaticamente dele que exista como substância simples.

4. As antinomias da cosmología especulativa.

Temos visto que, segundo Kant, a cosmología especulativa baseia-se na ideia do mundo
como totalidade da sequência causal dos fenômenos. A cosmología especulativa tenta alargar
nossos conhecimentos do mundo como totalidade dos fenômenos mediante proposições
sintéticas a priori. Mas Kant sustenta que esse procedimento conduz a antinomias. Produz-se
uma antinomia quando é possível demonstrar duas proposições contradictorias ao mesmo tempo.
E se a cosmología especulativa conduz inevitavelmente a antinomias, então há que concluir que
seu objetivo é impossível, que é um erro aspirar a construir uma ciência do mundo considerado
como totalidade dos fenômenos. Este ramo da metafísica especulativa não é nem pode ser uma
ciência. Dito de outro modo: o fato de que a cosmología especulativa produza antinomias mostra
que não podemos fazer um uso científico da ideia trascendental do mundo como totalidade dos
fenômenos.

Kant discute quatro antinomias. Supõe-se que a cada uma delas corresponde a uma das
quatro classes de categorias. Mas não há necessidade de fazer questão deste ponto típico de
correlação sistemática. Proponho passá-lo por alto e discutir brevemente as quatro antinomias.
a) As proposições conflictivas da primeira antinomia são como segue. “Tese: O mundo tem
um começo no tempo e é também limitado quanto ao espaço. Antítese: O mundo não tem começo
nem limites no espaço, senão que é infinito respecto do tempo e do espaço”[434]. A tese
demonstra-se do modo seguinte. Se o mundo não tem um começo no tempo, tem que ter ocorrido
uma série infinita de acaecimientos. Ou seja, dantes do momento presente tem que estar
completa uma série infinita. Mas uma série infinita não pode estar nunca completa. Portanto, o
mundo tem de ter tido um começo no tempo. Pelo que faz à segunda parte da tese: se o mundo
não é limitado no espaço, tem que ter uma totalidade infinita dada de coisas coexistentes. Mas
não podemos pensar um total dado infinito de coisas coexistentes que encham todos os espaços
possíveis se não é mediante a adição sucesiya, parte por parte ou unidade por unidade, até
completar a soma. Mas não podemos considerar completa esta adição ou síntese senão
pressupondo para sua complección um tempo infinito. E isso implica a contemplação de um
tempo infinito como tempo decorrido, coisa impossível. Portanto, não podemos considerar o
mundo como um total dado infinito de coisas coexistentes que enchem todos os espaços
possíveis. Temos que o considerar como espacialmente limitado, ou finito.

A antítese demonstra-se do modo seguinte. Se o mundo começou no tempo, tem que ter tido
um tempo vazio dantes de que começasse o tempo. Mas no tempo vazio não é possível nenhum
devir ou começar. Não faz sentido dizer que algo chegou a ser em um tempo vazio. Portanto, o
tempo não tem começo. Quanto à infinitud espacial do mundo, suponhamos, em graça ao tema,
que o mundo é finito e limitado no espaço. Então tem que existir em um espaço vazio, no vazio.
E neste caso tem de ter um relacionamento com o espaço vazio. Mas o espaço vazio não é nada;
e um relacionamento com a nada é ela mesma uma nada. Portanto, o mundo não pode ser finito
e limitado espacialmente; tem que ser espacialmente infinito.

A primeira vista Kant parece adotar uma posição diametralmente oposta à de santo Tomás
de Aquino[435]. Pois enquanto este último sustentava[436] que jamais se tinha demonstrado
filosoficamente que o mundo tenha um começo no tempo nem que não o tenha, Kant parece
dizer que ambas tese são demostrables. E podemos observar de passagem que sua demonstração
da tese de que o mundo tem um começo no tempo é a mesma proposta por san Buenaventura
em apoio dessa doutrina, e que santo Tomás negou a validade dessa argumentación[437]. Mas
em realidade Kant pensa que ambas argumentaciones se baseiam em fundamentos falsos. A
demonstração da tese descansa supondo que podemos aplicar aos fenômenos o princípio da
razão pura que diz que dado o condicionado está também dada a totalidade das condições e,
consequentemente, o incondicionado. A demonstração da antítese baseia-se supondo que o
mundo dos fenômenos é o mundo das coisas-em-si. Supõe, por exemplo, que o espaço é uma
realidade objetiva. E dados esses supostos, as argumentaciones são válidas[438]. Mas o mesmo
fato de que então possam ser demonstrado as duas proposições contradictorias mostra que os
supostos não são admissíveis. Não podemos evitar a antinomia senão adotando o ponto de vista
da filosofia Crítica e abandonando os pontos de vista do racionalismo dogmático e do sentido
comum acrítico. Esta é precisamente a questão que Kant deseja deixar em claro, embora não
pode ser dito que o faça plenamente. Seria confusionario, embora correto em um sentido, dizer
que à longa Kant chega à posição de santo Tomás. Pois de acordo com o ponto de vista de Kant
a futilidad intrínseca de toda tentativa de provar filosoficamente que o mundo tem um começo
no tempo ou que não o tem não pode ser apreciado mais que adotando uma filosofia que não
era, certamente, a de santo Tomás de Aquino.

b) A segunda antinomia é como segue. “Tese: Toda substância composta do mundo consta
de partes simples, e não existe nada que não seja simples ou composto de partes simples.
Antítese: Nenhuma coisa composta do mundo consta de partes simples, e não existe em nenhum
local uma coisa simples”[439].

A demonstração da tese toma a seguinte forma. Se as substâncias compostas não constassem


de partes simples, então ao fazer abstração de toda composição não ficaria absolutamente nada.
Mas essa hipótese pode ser excluído, já que a composição é um relacionamento meramente
contingente. Portanto, o composto tem que constar de partes simples. E disto se segue que todo
o que existe tem que ser simples ou composto de partes simples.

A antítese pode ser demonstrado do modo seguinte. Uma substância composta ocupa espaço.
E esse espaço tem que constar de tantas partes quantas sejam as da substância composta.
Portanto, a cada parte desta última ocupa espaço. Mas todo o que ocupa um espaço tem de
constar de uma multiplicidad de partes. E a cada uma destas ocupará espaço, pelo que conterá,
a sua vez, partes. E assim indefinidamente. Portanto, não pode ter coisa composta que conste de
partes simples. Nem pode ter coisas simples.

Ao igual que na primeira antinomia, a tese representa a posição do racionalismo dogmático.


Todas as substâncias compostas constam de substâncias simples como as mónadas leibnizianas.
E também igual que na primeira antinomia, a antítese representa um ataque empirista ao
racionalismo dogmático. Mas a tese trata noúmenos como se fossem fenômenos, objetos dados
na experiência; e a antítese trata fenômenos, corpos extensos, como se fossem noumena.
Também neste caso, o único modo de sair da antinomia consiste em adotar a posição da filosofia
Crítica e reconhecer que o que é verdadeiro dos fenômenos assim que fenômenos não pode ser
afirmado dos noumena, dos quais não possuímos conhecimento objetivo[440].

c) A terceira antinomia refere-se à causación livre. “Tese: A causalidad a tenor das leis da
natureza não é a única causalidad da que possam ser derivado os fenômenos do mundo. Para
explicá-los há que admitir outra causalidad, a causalidad livre. Antítese: Não há liberdade, senão
que toda coisa do mundo ocorre exclusivamente de acordo com as leis da natureza”[441].

A tese argumenta-se do modo seguinte. Suponhamos que não há mais que uma classe de
causalidad, a saber, a causalidad segundo as leis da natureza. Neste caso um acaecimiento dado
determina-se por um acaecimiento prévio, e assim sucessivamente e sem limite. Não pode então
ter um começo primeiro e, consequentemente, a série das causas não pode ser completado. Mas
é lei da natureza que nada ocorre sem causa suficientemente determinada a priori. E esta lei não
se cumpre se a causalidad de toda causa é ela mesma efeito de uma causa antecedente. Portanto,
tem que ter uma causalidad absolutamente espontânea que origine uma série de fenômenos
segundo causas naturais.

A argumentación da antítese é, resumidamente, do seguinte tenor. Uma causación livre,


espontânea, pressupõe um estado da causa sem nenhum relacionamento causal (como efeito)
com o estado anterior. Mas esse orçamento é contrário à lei causal natural e faria impossível a
unidade de )a experiência. Portanto, não se achará liberdade na experiência; a liberdade é uma
mera ficção do pensamento.

Nesta antinomia, e por começar pelo princípio, não está nada claro de que fala Kant. A
argumentación da tese sugere que está pensando na produção da série causal natural por uma
causa primeira cuja atividade causal é completamente espontânea no sentido de que não depende
ela mesma de causa alguma. E em suas observações sobre esta tese afirma explicitamente que
estava pensando na origem do mundo. Mas depois acrescenta que se há uma causa livre da série
total das sequências causales fenoménicas podemos admitir, dentro do mundo, causas livres de
diferentes séries de fenômenos.

Pelo que faz à antítese, é natural a entender como referente à liberdade humana. Prima facie,
pelo menos, faz sentido considerar um estado do sujeito humano como determinado causalmente
por outro estado; mas não faz sentido algum suscitar a questão do relacionamento causal entre
estados quando se trata de Deus. No entanto, em suas observações a respeito da antítese Kant
introduz a ideia de uma causa livre existente fosse do mundo. E observa que embora admitamos
a existência de uma causa assim não podemos admitir causas livres dentro do mundo.

À vista dessa ambigüedad, ou seja, do âmbito indeterminado da aplicação da tese e da


antítese, é difícil manter que a antinomia se resolva pela observação de que a tese e a antítese se
referem a coisas diferentes. Mas não pode ter antinomia propriamente dita se a tese e a antítese
não se referem às mesmas coisas. Se a tese afirma que pode ser demonstrado a existência de
uma causa livre da série total de sequências causales fenoménicas e a antítese afirma que não há
tal causa, teremos uma antinomia para valer. E se a tese afirma que pode ser provado que há
uma causalidad livre dentro do mundo, enquanto a antítese diz que pode ser provado que não há
causalidad livre dentro do mundo, teremos também antinomia. Mas se a tese afirma que pode
ser provado que há uma causa livre da série total das sequências causales fenoménicas, a qual
causa está fora da série, enquanto a antítese afirma que não há uma causalidad livre dentro da
série fenoménica, então não há propriamente antinomia.

Não é minha intenção negar que a terceira antinomia cabe em grande parte dentro do
esquema geral das antinomias kantianas. A demonstração da tese, se esta se entende como
referente a uma causa primeira da série total de sequências causales fenoménicas, não é válida
mais que supondo que possamos completar a série usando a ideia trascendental de mundo como
totalidade para alargar nosso conhecimento teorético. Portanto, a tese representa o ponto de vista
do racionalismo dogmático. E a antítese, já se tome como formulación de que não é possível
nenhuma demonstração da existência de uma causa primeira da série total, já no sentido de que
não pode ter causas livres dentro da série, representa o ponto de vista empirista. Mas se a
antinomia não pode ser resolvido mais que adotando o ponto de vista da filosofia Crítica, então
este último ponto de vista não deve ser introduzido na argumentación da tese nem da antítese, e
isso é precisamente o que faz Kant ao argüir a antítese, já que afirma que a admissão da
causalidad livre destrói a possibilidade da unidade da experiência. E embora talvez não seja
necessário entender seus formulaciones no sentido de seu peculiar ponto de vista, de todos
modos é difícil evitar a impressão de que essa é a maneira mais natural das interpretar.
Mas que ocorre com a antinomia quando se adota explicitamente o ponto de vista crítico? A
argumentación da tese, se esta se entende como referente a uma causa espontânea da série total
dos fenômenos, descansa em um abuso da ideia trascendental de mundo. Pelo que faz à antítese,
a negación da liberdade, se trata de uma afirmação só válida para a esfera dos fenômenos. Por
isso Kant tem via livre para afirmar mais adiante que o homem é nouménicamente livre e
fenoménicamente determinado. Se adotamos esse ponto de vista podemos dizer que pára Kant
são verdadeiras a tese e a antítese se se entendem adequadamente. A tese, ou seja, que a
causalidad segundo as leis da natureza não é a única classe de causalidad, é verdadeira, embora
não é verdade que possamos a provar. A antítese, a afirmação de que não há liberdade, é
verdadeira se se toma como exclusivamente referida ao mundo fenoménico, e não é verdadeira
se se entende como referente a toda realidade. Só adotando o ponto de vista da filosofia Crítica
podemos, segundo Kant, separar o verdadeiro do falso da tese e a antítese, e nos pôr acima das
crasas contradições nas quais se some a razão por seu uso dogmático.

d) A quarta antinomia refere-se à existência de um ser necessário. “Tese: Pertence ao mundo,


como parte sua ou como causa sua, algo que existe como ser absolutamente necessário. Antítese:
Não existe em nenhum local, nem no mundo nem fora dele, um ser necessário como causa do
mundo”[442].

A tese se arguye, pelo que faz à existência de um ser necessário, mediante o suposto fato de
que a série das condições pressupõe uma série completa de condições até o incondicionado, o
qual existe necessariamente. Kant sustenta então que este ser necessário não pode ser pensado
como trascendente ao mundo dos sentidos e que, portanto, tem que ser idêntico com a inteira
série cósmica ou com uma parte dela.

A antítese argumenta-se mostrando que não pode ter nenhum ser necessário nem dentro nem
fora do mundo. Não pode ter um primeiro membro da série das mudanças que seja ele mesmo
necessário e não causado. Pois todos os fenômenos são determinados no tempo. Nem também
não pode ser necessária a inteira série cósmica se nenhum membro dela é necessário. Portanto,
não pode ter nenhum ser necessário no mundo, nem como idêntico com ele nem como idêntico
com uma parte dele. Mas também não pode ter um ser necessário que exista fosse do mundo
como causa deste. Pois se causa a série das mudanças cósmicos, então tem que começar a atuar.
E se começa a atuar é que está no tempo. E se está no tempo, está no mundo, não fora dele.

Há, sem dúvida, sobreposições importantes entre as antinomias terceira e quarta. Pois
embora na quarta antinomia Kant introduz um termo novo, o termo ‘ser absolutamente
necessário’, usa ao mesmo tempo a linha de argumentación já utilizada na terceira antinomia
para mostrar que tem que ter uma causa puramente espontânea da série dos fenômenos. Por isso
há certa razão na Crítica que sustenta que Kant apresenta esta antinomia para arrendondar o
número quatro, já que se supõe que a cada antinomia corresponde a uma das quatro classes de
categorias. E efetivamente as categorias da necessidade e a contingencia pertencem à quarta
classe de categorias, enquanto a causalidad pertence à terceira classe, às categorias do
relacionamento. Mas resulta que ao argüir a tese da quarta antinomia Kant utiliza precisamente
uma argumentación causal.
É um fato notável, sublinhado por Kant em suas observações à antítese da quarta antinomia,
que os mesmos fundamentos utilizados para argüir a tese sirvam também para argumentar a
antítese. Depois de de o qual Kant passa a afirmar que a razão cai com frequência em desacordo
consigo mesma ao considerar um mesmo objeto desde diferentes pontos de vista. E se a tese e a
antítese representam pontos de vista diferentes, o comentário de Kant pode sugerir que talvez
sejam ambas verdadeiras. A antítese, isto é, poderia ser correta assim que representa a afirmação
de que não há nenhum ser necessário no mundo e a tese de que não pode ter demonstração da
existência de um ser assim fosse do mundo. Mas a tese pode ser também verdadeira assim que
afirmação de que há um ser assim. que existe fora do mundo, embora nunca possamos dizer que
sabemos que existe.

Considerando as antinomias em seu conjunto, aprecia-se que as teses representam o ponto


de vista da metafísica racionalista dogmática, enquanto se supõe que as antíteses representam o
ponto de vista empirista. Kant, desde depois, compartilha este último assim que considera
perfeitamente correta a Crítica empirista das pretensões da metafísica quanto ao incremento de
nosso saber. Mas ao mesmo tempo é evidente que não se adere à filosofia empirista como tal.
Em sua opinião o empirismo, embora saudável em sua Crítica negativa da metafísica
especulativa, é ele mesmo um sistema dogmático que limita dogmaticamente a realidade aos
fenômenos e os trata como se fossem coisas-em-si. As pretensões da metafísica especulativa não
são o único que há que expor. Ao aceitar a Crítica empirista da argumentación metafísica há que
se levantar ao mesmo tempo acima das estrecheces do empirismo dogmático (muito identificado
com o materialismo) e deixar espaço, por assim o dizer, para a realidade nouménica. A
metafísica sustenta-se por interesses morais e religiosos. E embora este fato move
frequentemente aos metafísicos a propor argumentaciones inconsistentes, temos de reconhecer
que a metafísica representa níveis da vida humana que não barrunta sequer o empirismo craso.
Kant pensa que com a filosofia Crítica é possível obviar as falacias da metafísica e o
materialismo e o mecanicismo dogmáticos do empirismo craso. Limitando o conhecimento a
sua esfera própria pomo-nos acima das antinomias e damos pé à fé prática baseada na
experiência moral. A liberdade humana, por exemplo, não pode ser admitido dentro da esfera
fenoménica, mas apesar disso pode ser uma realidade; mais adiante no sistema kantiano resulta
ser um postulado necessário da consciência moral.

5. A imposibilidad de demonstrar a existência de Deus.

Kant lume ideal trascendental à terceira ideia trascendental da razão pura. Inicialmente é a
ideia da soma total de todos os pregados possíveis e contém a priori os dados de todas as
possibilidades particulares. O espírito, subindo pela série dos silogismos disyuntivos, encontra
a condição incondicionada de todos os pregados particulares, a cada um dos quais exclui
pregados contradictorios ou incompatíveis, e a acha na ideia de um agregado de todos os
pregados. Esta é a ideia do agregado ou a soma total de todas as aperfeiçoe possíveis. Mas na
medida mesma em que essa soma total se pensa como a condição incondicionada de todas as
aperfeiçoe particulares, resulta pensada também como protótipo desta última, como aquilo do
que se derivam todas as aperfeiçoe e ao que se aproximam, e não como um mero conceito
abstrato do agregado de todas as aperfeiçoe empíricas particulares. Pensa-se, pois, como um ser
real, como a realidade suprema. A ideia do Ser perfectísimo, do Ens perfectissimum, é, pois a
ideia do ente mais real, do Ens realissimum. Não pode ser pensado esse Ser como mero agregado
ou yuxtaposición, por assim o dizer, de aperfeiçoe empíricas, limitadas e com frequência
incompatíveis. Tem que ser pensado como união de aperfeiçoe puras, ilimitadas, em um Ser
simples. Ademais, a condição incondicionada de toda perfección e realidade limitada possível
se pensa como necessariamente existente. Assim chegamos à ideia de Deus como Ser supremo
individual, necessariamente existente, eterno, simples e omniperfecto, o qual não é um agregado
de realidades finitas, senão condição incondicionada e causa última delas. E esta ideia constitui
o tema da teología natural ou filosófica[443].

A concepção kantiana do proceder da razão pura é clara. A razão busca a unidade


incondicionada de todos os pregados possíveis. Não pode a achar no agregado — no sentido
material de agregado — das aperfeiçoe empíricas, senão que tem que ir para além do
condicionado. Deste modo objetiva a indeterminada meta de sua busca em um Ens
perfectissimum. E este se “hipostatiza” em Ens realissimum, que é um ente individual. Por
último, este ente se personifica no Deus do teísmo. Mas com esse processo de objetivación a
razão ultrapassa toda experiência possível. Não temos direito a afirmar que há um Ser que é Ens
perfectissimum e Ens realissimum, ou seja, que há um objeto correspondente à representação de
uma soma total de todas as aperfeiçoe possíveis. E embora a razão admita que só podemos
possuir conhecimento analógico (ou simbólico) do Ser supremo, o mero fato de objetivar a ideia
de uma totalidade de aperfeiçoe significa que estendemos o uso das categorias para além de seu
campo de aplicação próprio.

É óbvio que de acordo com as premisas de Kant não é possível uma demonstração da
existência de Deus. Mas Kant deseja deixar explicitamente em claro essa imposibilidad
mostrando que toda linha de argumentación ao respecto é falaz. A tarefa não é tão ingente como
possa ser achado. Pois segundo Kant não há mais que três modos de argüir a existência de Deus
na metafísica especulativa. A razão pode partir do que poderia ser chamado o como do mundo
sensível, ou seja, de seu caráter assim que aparentemente manifesta uma finalidade, e passar a
afirmar Deus como causa dessa finalidade. Neste caso temos o argumento “físico-teológico”.
Outra via consiste em que a razão parta da existência empírica para chegar a Deus como causa
última desta existência. Neste caso temos o argumento “cosmológico”. A terça consiste em que
a razão arranque da ideia de Deus para passar à existência divina. Neste caso temos o argumento
“ontológico”.

Ao tratar essas três linhas de prova Kant começa pela terça. Pois o movimento do espírito
para Deus na metafísica está sempre guiado pelo ideal trascendental da razão pura, que é o
objetivo de seu impulso. É, pois, muito adequado partir do argumento a priori que vai da ideia
de Deus à existência divina. Por outra parte, Kant está convencido de que para chegar a Deus
pelas outras linhas de argumentación resulta à sobremesa necessária apelar ao argumento
ontológico. Este último é pois o argumento fundamental e o que dantes temos de considerar.

a) A forma geral do argumento ontológico, tal como Kant o tem presente, pode ser formulado
como segue[444]. No conceito de um ser perfectísimo está incluída a existência. Pois, de não ser
assim, esse conceito não seria o de ser perfectísimo. Portanto, se um ser assim é possível, então
esse ser existe necessariamente. Pois a existência está incluída na noção plena de sua
possibilidade. Mas o conceito de um ser perfectísimo é o conceito de um ente possível. Logo
esse ente existe necessariamente.
Também pode ser formulado a argumentación deste modo. A ideia do Ens realissimum é a
ideia de um ser absolutamente necessário. E se um ser assim é possível, então existe. Pois a ideia
de um ser necessário meramente possível (e não atualmente existente) é uma ideia
contradictoria. Mas a ideia de um ser absolutamente necessário é a ideia de um ente possível.
Portanto existe um Ens realissimum, ou seja, Deus.

Kant observa que não tem nenhum sentido dizer que a ideia de um ser necessário meramente
possível seja uma ideia contradictoria. Para pensar um ser bem como meramente possível tenho
de eliminar mentalmente sua existência. E então não tem por que se originar contradição alguma.
“Se faz-se abstração de sua existência, faz-se abstração da coisa com todos seus pregados. Como
possa então ter local para nenhuma contradição?”[445] O que diz que Deus não existe não está
suprimindo a existência e deixando os pregados, como o de omnipotencia, por exemplo, senão
que está suprimindo todos os pregados e o sujeito junto deles. Portanto, o julgamento de que
Deus não existe não é autocontradictorio, embora seja falso.

Pode ser dito que o caso do Ens realissimum é único. Posso negar a existência de qualquer
outro ser sem cair em autocontradicción, pois a existência não pertence ao conceito ou a ideia
de nenhum outro ente. Mas pertence ao conceito do Ens realissimum. Portanto, não posso
admitir sem autocontradicción a possibilidade do Ens realissimum e negar ao mesmo tempo sua
existência.

A resposta de Kant move-se do modo seguinte. Em primeiro lugar, nossa incapacidade de


ver contradições lógicas na ideia de Deus não constitui prova alguma de que o Ens realissimum
seja positivamente possível. Em segundo local, todo argumento que proceda da ideia do Ens
realissimum a sua existência carece de valor, pois é reducible a uma mera tautología. Está claro
que se introduzo a existência na mesma ideia de um ser pode inferir que esse ser existe. Mas
todo o que estou dizendo com isso é que um ente existente existe. E isso é verdade, mas
tautológico. Se posso inferir que o ente existe partindo de seu conceito ou ideia é pura e
exclusivamente porque dantes introduzi a existência na ideia, prejuzgando assim a questão.
Dizer que argumento da possibilidade à atualidade é autoengaño, quando um começou por
incluir a atualidade na possibilidade.

Kant afirma, pois, que toda proposição existencial é sintética, e nenhuma analítica. Portanto,
é possível negar sem contradição interna qualquer proposição existencial. Os defensores do
argumento ontológico contestariam dizendo que Kant ignora o verdadeiro centro da
argumentación. Em todos os demais casos as proposições de existência são sintéticas, mas o
caso do ser perfectísimo é único. Pois neste caso, e só nele, a existência está contida na ideia do
sujeito. Portanto, pode ser obtido dele por mera análise, se é possível se expressar assim neste
caso. Kant replicará que isso é possível pelo simples fato de que já introduzimos a existência no
conceito, prejuzgando a questão. Mas o crente no argumento ontológico sustentará que a
realidade é que a existência é um pregado que pertence necessariamente a este sujeito.

Para Kant a existência não é pregado. Se fosse-o, se seguiria disso que ao afirmar a existência
de uma coisa se acrescenta algo à ideia dessa coisa. Mas então não se afirma a mesma coisa que
estava previamente representada na ideia. A verdade é que ao dizer que algo existe não se faz
mais que pôr ou afirmar o sujeito com todos seus pregados. Portanto, ao negar a existência de
Deus não se nega um pregado de um sujeito, senão que se aniquila mentalmente o sujeito total
junto de todos seus pregados. E isso não dá local a nenhuma contradição lógica.

Podemos, pois, chegar à conclusão de que “todo o esforço e todas as tentativas dedicadas à
famosa demonstração ontológica ou cartesiana da existência de um ser supremo partindo só de
conceitos é trabalho perdido. Tão insensato é esperar fazer-se mais rico em conhecimento
mediante meras ideias como pensar em aumentar a riqueza de um comerciante acrescentando
zeros a suas contas”[446].

b) A formulación kantiana do argumento cosmológico em favor da existência de Deus


baseia-se em Leibniz. “Se algo existe, tem que existir um ente absolutamente necessário. Agora
bem: existo ao menos eu. Portanto, existe também um ente absolutamente necessário. A premisa
menor contém uma experiência; a premisa maior razona de uma experiência em general à
existência de um ente necessário”[447].

É bastante óbvia a linha de Crítica que Kant seguirá ante esse argumento. Em sua opinião,
a premisa maior baseia-se em um uso “trascendente” — o que quer dizer um abuso — do
princípio de causalidad. Toda costure contingente tem uma causa. Este princípio é válido dentro
do reino da experiência sensível, e só nele possui significação. Não o podemos usar para
trascender o mundo assim que dado na experiência sensível. Ademais, segundo Kant o
argumento cosmológico implica a complección da série dos fenômenos na unidade
incondicionada de um ser necessário. E embora a razão tem um impulso natural a fazer isso, o
submeter a esse impulso não pode aumentar nosso conhecimento.

Não fará falta detalhar mais esta Crítica, que é uma consequência imediata da concepção
kantiana dos limites do conhecimento humano. Mas há um ponto de seu tratamento do
argumento cosmológico que merece atenção agora. Trata-se da tese de que para passar da ideia
de um ser necessário à afirmação de Deus há que recorrer, implicitamente ao menos, ao
argumento ontológico.

O conceito de um ser necessário é indeterminado. Embora admitamos que a reflexão a


respeito da experiência nos leva a um ser necessário, não podemos descobrir suas propriedades
pela experiência. Por isso nos vemos obrigados a buscar um conceito adequado à ideia de ser
necessário. E a razão acha ter encontrado o que precisa com o conceito de um Ens realissimum.
Então passa a afirmar que o ser necessário é o Ens realissimum, o ser mais real ou perfeito. Mas
isso é proceder com meros conceitos, costure caraterística do argumento ontológico. Por outra
parte, se um ser necessário é um Ens realissimum, um Ens realissimum é um ser necessário. E
com isto dizemos que o conceito de um ser supremamente real ou perfeito compreende a
necessidade absoluta da existência; mas isso é precisamente o argumento ontológico.

Bastantees filósofos e historiadores da filosofia parecem ter suposto sem mais exame que a
tentativa kantiano de mostrar que o argumento cosmológico cai no ontológico de um modo
necessário é uma argumentación concluyente. Mas a tentativa de Kant parece-me muito pouco
convincente; ou, mais bem, convincente só se se admite que o argumento baseado na experiência
nos leva não à afirmação da existência de um ser necessário, senão só à vadia ideia de um ser
necessário. Neste caso, efetivamente, e tal como diz Kant, teríamos que buscar um conceito
determinante que incluísse em seu conteúdo a existência, e assim poderia ser deduzido a
existência da ideia determinada de um ser necessário. Neste ponto ficaríamos envolvidos no
argumento ontológico. Em mudança, se o argumento baseado na experiência conduz-nos/condu-
nos à afirmação da existência de um ser necessário, então a tentativa de determinar a priori os
atributos necessários desse ser não tem nada que ver com o argumento ontológico, o qual atende
primariamente a deduzir a existência da ideia de um ser possível e não a deduzir atributos da
ideia de um ser cuja existência foi já afirmada sobre bases diferentes de sua possibilidade mera.
Pode ser dito que Kant parte de que o argumento baseado na experiência nos conduz só à vadia
ideia de um ser necessário. Mas esta não é uma razão adequada para sustentar que o argumento
cosmológico apele necessariamente ao ontológico. A questão de se o argumento baseado na
experiência é ou não válido não é questão de interesse para o concreto ponto que estamos
discutindo. Pois fica o fato de que se alguém, embora seja erroneamente, está convencido de que
provou a existência de um ser necessário se baseando em algo que não seja a possibilidade a
priori de. dito ser, sua posterior tentativa de determinar os atributos desse ser não é o mesmo
procedimento que se segue no argumento ontológico.

c) Kant começa sua discussão da demonstração físico-teológica da existência de Deus


repetindo uma vez mais pontos de vista gerais que excluem desde o primeiro momento toda
demonstração a posteriori da existência de Deus. Por exemplo, “todas as leis referentes à
transição de efeitos a causas, e inclusive toda extensão sintética de nosso conhecimento, se
referem exclusivamente a experiência possível, e, portanto, aos objetos do mundo sensível; e só
em relacionamento com estes últimos têm significação”[448]. Se as coisas são assim, está claro
que não poderá ser demonstração válida nenhuma argumentación que vá da finalidade na
natureza a uma causa trascendente dessa finalidade.

Os passos principais do argumento físico-teológico são como segue. Em primeiro lugar


observamos no mundo signos manifiestos de disposição teleológica, ou seja, de adaptação de
meios afins. Em segundo local, observamos que esta adaptação de meios afins é contingente, no
sentido de que não pertence à natureza das coisas. Terceiro: tem que existir, portanto, uma causa
ao menos desta adaptação, e esta causa, ou essas causas, têm de ser inteligentes e livres. Quarto:
os relacionamentos recíprocos que existem entre as diferentes partes do mundo, relacionamentos
que produzem um sistema harmonioso análogo a uma obra de arte, justificam a inferência de
que há uma causa assim, e só uma.

Kant, pois, interpreta a demonstração da existência de Deus pela finalidade como um


argumento baseado em uma analogia com a adaptação construtiva humana dos meios aos fins.
E efetivamente tinha-se apresentado a argumentación desse modo durante o século XVIII[449].
Mas, aparte das objeciones que podem ser suscitado já desde o ponto de vista dessa
interpretação, Kant observa que “esta demonstração poderia no máximo assentar a existência de
um arquiteto do mundo, cuja atividade estaria limitada pelas possibilidades do material com que
trabalha; mas não a existência de um criador do mundo...”[450]. Esta objeción é obviamente
verdadeira. A ideia de finalidade ou plano leva-nos diretamente à ideia de um planificador, mas
não, de um modo direto, à conclusão de que esse planificador seja também o criador das coisas
sensíveis finitas segundo sua substância. Por isso arguye Kant que para demonstrar a existência
de Deus em sentido próprio a argumentación físico-teológica tem de recabar a ajuda da
argumentación cosmológica. E isto significa segundo Kant apelar à argumentación ontológica.
Portanto, também a argumentación físico-teológica depende, embora indiretamente, do
argumento ontológico. Portanto, e aparte de outras considerações Críticas, a existência de Deus
não pode ser demonstrado sem o uso do argumento ontológico, e este é falaz. As três
argumentaciones têm deste modo algumas falacias em comum, aparte de ter a cada uma delas
as suas próprias.

A teología natural, ou “teología trascendental”, como com frequência diz Kant, carece
portanto de valor quando lha considera desde o particular ponto de vista da demonstração da
existência de Deus. Desde este ponto de vista a teología trascendental é uma tentativa de
conseguir essa demonstração por médio de ideias trascendentales ou princípios teoréticos que
não têm aplicação fosse do campo da experiência. Mas o limitar-se a dizer que Kant recusa a
teología natural é correr o risco de dar uma impressão falsa de sua posição. Sem dúvida é isso
verdade, já que descreve a teología natural como uma especulação que infere “os atributos e a
existência de um autor do mundo partindo da constituição do mundo e da ordem e a unidade
observables nele”[451]. E uma tentativa assim é “completamente estéril”[452]. Mas, por outra
parte, a afirmação meramente negativa de que Kant recusa a teología natural pode dar a falsa
impressão de que recuse toda teología filosófica. E é um feito com que admite o que às vezes
chama “teología moral”[453]. “Mais adiante mostraremos que as leis da moralidade não só
pressupõem a existência de um Ser supremo, senão que a postulan justificadamente (embora só
desde o ponto de vista prático, desde depois), já que estas leis são elas mesmas absolutamente
necessárias em outro relacionamento”[454]. E uma vez chegados à fé prática (moral) em Deus,
podemos utilizar os conceitos da razão para pensar o objeto de nossa fé de um modo coerente.
É verdade que sempre estaremos dentro da esfera da fé prática; mas, tendo-o sempre em conta,
podemos utilizar os conceitos da razão para construir uma teología racional.

Estas últimas observações arrojam sem dúvida uma luz completamente diferente sobre o
enunciado de que Kant recusa a teología natural. Ajudam-nos, efetivamente, a delimitar a
significação desse enunciado. A Crítica da teología natural tem uma função dúplice. Expõe as
falacias presentes nas demonstrações teoréticas da existência de Deus e mostra que a existência
de Deus não pode ser demonstrado. Mas a natureza mesma de critica-a mostra que também não
pode ser demonstrado a inexistência de Deus. Mediante a razão não podemos provar nem refutar
a existência de Deus. Portanto, a Crítica da teología natural deixa o caminho aberto para a fé
prática ou moral. Orça a fé, a razão pode então corrigir e apurar nossa concepção de Deus.
Embora em seu uso especulativo a razão não pode demonstrar a existência de Deus, “é, no
entanto, de uso útilísimo para corrigir nosso conhecimento do ser supremo uma vez suposto que
este conhecimento possa ser derivado corretamente de alguma outra fonte; pois a razão fá-lo
coerente consigo mesmo e com todos os demais conceitos de objetos inteligibles, e o apura de
todo o que é incompatível com o conceito de um Ser supremo, bem como de toda mistura de
limitações empíricas”[455].

Por outra parte, embora as supostas provas da existência de Deus são todos argumentos
falaces, no entanto, podem ter um uso positivo. Assim, por exemplo, o argumento físico-
teológico, pelo que Kant sempre teve verdadeiro respeito, pode preparar o espírito para receber
o conhecimento (prático) teológico, e lhe dar “uma direção reta e natural”[456], embora não pode
fornecer fundamento seguro para uma teología natural.
6. O uso regulativo das ideias trascendentales da razão pura.

vimos já que as ideias trascendentales da razão pura não têm uso “constitutivo”. Ou seja, não
nos dão conhecimento dos objetos correspondentes. As categorias esquematizadas do
entendimento, quando se aplicam a dados da intuición sensível, “constituem” objetos e nos
permitem assim os conhecer. Mas as ideias trascendentales da razão pura não são aplicáveis aos
dados da intuición sensível. Nem também não há intuición puramente intelectual que possa
facilitar seus objetos, pois não dispomos de uma faculdade assim. Portanto, as ideias
trascendentales não têm uso constitutivo nem aumentam nosso conhecimento. Se utilizamo-las
para trascender a esfera da experiência e afirmar a existência de realidades não dadas na
experiência cairemos inevitavelmente nas falacias que a Dialética trascendental se propõe
descobrir.

Por outra parte, e segundo diz-nos/dí-nos o mesmo Kant, a razão humana tem uma inclinação
natural a ultrapassar os limites da experiência; Kant diz inclusive que as ideias trascendentales
engendram uma “ilusão irresistible”[457]. Não pensa, desde depois, que seja impossível corrigir
essas ilusões. Mas acha que o impulso que as produz é um impulso natural, e que a correção foi
posterior ao domínio de dito impulso. Dito historicamente: a metafísica especulativa é anterior
à Dialética trascendental. E esta última, embora permite-nos em princípio evitar as ilusões
metafísicas, não pode destruir o impulso que as produz e as impõe. A causa disso é que “as ideias
trascendentales são tão naturais (à razão) como as categorias o são ao entendimento”[458].

Agora bem: se as ideias trascendentales são naturais à razão, será porque têm algum uso
adequado e próprio. “Assim, pois, as ideias trascendentales terão com toda probabilidade seu
uso próprio e consequentemente inmanente”[459]. Isto é, terão um uso em relacionamento com a
experiência, embora este uso não consistirá em nos permitir conhecer objetos correspondentes
às ideias mesmas. Pois não há tais objetos inmanentemente à experiência, e se damos às ideias
um uso trascendente sucumbimos de modo inevitável, como vimos, à ilusão e a falacia. Qual é,
pois, o uso próprio das ideias? É o uso que Kant lume “regulativo”.

A tarefa especial da razão consiste em dar uma disposição sistemática a nossos


conhecimentos. Por isso podemos dizer que “o entendimento é um objeto da razão igual que a
sensibilidade o é do entendimento. Tarefa da razão é produzir uma unidade sistemática em todas
as operações empíricas possíveis do entedimiento, igual que o entendimento unifica a
multiplicidad dos fenômenos por médio de conceitos e os põe baixo leis empíricas”[460]. Neste
processo de sistematización a ideia atua como princípio regulativo de unidade.

Em psicologia, por exemplo, a ideia do ego como sujeito simples permanente estimula uma
maior unificação dos fenômenos psíquicos, como os desejos, as emoções, os atos da imaginação,
etcétera; e a psicologia empírica empreende a tarefa de pô-los reunidos baixo leis para formar
um esquema unificado. Nesta tarefa é-lhe muito útil a ideia trascendental do ego como sujeito
simples permanente. Verdadeiro que esse ego trascendental não está dado na experiência. E se
a presença da ideia nos tienta ao erro de afirmar dogmaticamente a existência do correspondente
objeto, ultrapassaremos os limites do legítimo, mas isso não anulará o fato de que a ideia foi de
grande valor como princípio heurístico.

Pelo que faz à ideia cosmológica de mundo, se trataria realmente de um obstáculo para a
ciência se se entendesse como afirmação de que o mundo é uma totalidade fechada, por assim o
dizer, uma série completa. Mas quando se toma sem essa afirmação, a ideia de mundo como
série indeterminada de acaecimientos estimula ao espírito para que proceda sempre adiante ao
longo da corrente causal. Kant precisa que não pensa que ao seguir uma série natural esteja
sempre proibido dar com algum termo relativamente primeiro. Por exemplo, não está proibido
achar os primeiros membros de uma determinada espécie orgânica, se a evidência empírica o
justifica. A ideia cosmológica não nos diz que tem de achar e daí não tem de achar a investigação
científica. É um estímulo, um princípio heurístico que nos deixa insatisfechos, por assim o dizer,
com as percepciones presentes e nos move sem termos a conseguir maior unificação científica
dos fenômenos naturais segundo leis causales.

Por último, a ideia trascendental de Deus como inteligência suprema e causa do universo
nos leva a pensar a natureza como unidade teleológica sistemática. E esta presuposición ajuda
ao espírito em seu estudo da natureza. Kant não pensa, por suposto, que o estudo do olho vá
culminar com o enunciado de que Deus deu olhos a certas criaturas com certos fins. Afirmar
isso seria em qualquer caso afirmar algo que não conhecemos nem podemos conhecer. Mas
imaginando a natureza como se fosse obra inteligente de um autor inteligente, ficamos
predispuestos, ou assim o pensa Kant, a levar adiante o trabalho de investigação científica por
subsunción baixo leis causales. Talvez seja possível interpretar como segue a ideia de Kant: a
noção de natureza como obra de um criador inteligente implica a ideia da natureza como sistema
inteligible. E este orçamento é um motor para a investigação científica. Deste modo a ideia
trascendental de Ser supremo pode ter um uso regulativo e inmanente.

As ideias trascendentales constituem, pois, a base de uma filosofia do como-se, por recolher
o título da célebre obra de Vaihinger. Em psicologia resulta prático proceder como se os
fenômenos psíquicos se relacionassem com um sujeito permanente. É útil para a investigação
científica em general o atuar como se o mundo fosse uma totalidade que se estende
indefinidamente para o passado em séries causales, e como se a natureza fosse obra de um
criador inteligente. Essa utilidade não prova que as ideias sejam verdadeiras no sentido de que
existam os objetos correspondentes. Nem também não afirma Kant que a verdade do enunciado
de que há Deus consista na utilidade “inmanente” da ideia de Deus. Kant não apresenta uma
interpretação pragmatista do conceito para valer. Mas, por outra parte, compreende-se muito
bem que os pragmatistas possa entender a Kant como um precursor de sua própria filosofia.

7. Metafísica e imaginação.

Se recordará que as duas perguntas de Kant a respeito da metafísica eram: Como é possível
a metafísica assim que disposição natural? É a metafísica possível como ciência? Já estão dadas
as respostas correspondentes. Mas pode valer a pena o relacionar essas respostas com a seção
anterior, ou seja, com o dito a respeito do uso regulativo das ideias trascendentales da razão
pura.
A metafísica assim que disposição natural (ou seja, a disposição natural à metafísica) é
possível por causa da natureza mesma da razão humana. Esta última, como vimos, tenta por sua
própria natureza unificar os conhecimentos empíricos do entendimento. E este impulso natural
à unificação sistemática produz as ideias de uma unidade incondicionada, em várias forma. O
único uso propriamente cognoscitivo dessas ideias é regulativo, no sentido dantes explicado, e,
portanto, “inmanente”. Mas ao mesmo tempo há uma tendência também natural a objetivar essas
ideias. E então a razão tenta justificar a objetivación nas vários ramos da metafísica. Ao fazê-lo
ultrapassa sem dúvida os limites do conhecimento humano. Mas esta trasgresión não altera o
fato de que as ideias são naturais à razão. Não se abstraen da experiência, nem são innatas no
sentido próprio desta palavra. Nascem da natureza mesma da razão. Por isso as ideias
consideradas simplesmente como tais não apresentam problema algum. Ademais possibilitam o
desenvolvimento dos postulados necessários da experiência moral. O ideal trascendental (a ideia
de Deus), por exemplo, possibilita a “teología moral”, isto é, uma teología racional baseada na
consideração da consciência moral. Não se trata, portanto, de condenar o impulso natural à
metafísica como algo perverso em si mesmo.

Mas a metafísica é impossível como ciência. Ou seja, não existem os objetos que
corresponderiam às ideias trascendentales da razão pura e que seriam os objetos da metafísica
especulativa entendida como ciência. Portanto, não pode ter ciência desses objetos. A função
das ideias não é “constitutiva”. Desde depois que se por ‘ objetos’ entendemos meramente
entidades, incluindo nelas as realidades desconhecidas e incognoscibles, não poderemos dizer
que não há ‘objetos’ correspondentes às ideias do eu simples permanente e de Deus[461]. Mas a
palavra ‘objeto’ deve ser usado como termo correlativo a nosso conhecimento. São objetos
possíveis as coisas que podem nos ser dadas na experiência. Mas as realidades — se há —
correspondentes às ideias trascendentales não podem ser dadas na experiência ao não ter
faculdade de intuición intelectual. Portanto, é perfeitamente correto dizer que não há objetos
correspondentes às ideias. E neste caso é óbvio que não pode ter ciência deles.

Agora bem: embora falando propriamente não há objetos correspondentes às ideias


trascendentales, podemos pensar realidades às que refiram as ideias de alma e de Deus. E as
ideias têm contido embora não as projetemos, por assim o dizer, nas realidades correspondentes.
Portanto, a metafísica não é um sinsentido. Não podemos conhecer por médio da razão
especulativa que há uma alma simples permanente ou que existe Deus; mas as ideias da alma e
de Deus estão exentas de contradição lógica. Não são termos sem sentido. O suposto
conhecimento metafísico é pseudoconocimiento, ilusão, não conhecimento em absoluto, e todas
as tentativas feitas de provar que é conhecimento são falaces; mas as proposições metafísicas
não são sem sentidos pelo mero fato de ser metafísicas.

Assim se me apresenta a posição caraterística de Kant, e ela lhe diferencia dos positivistas
modernos que consideram a metafísica como sinsentido. Há que admitir ao mesmo tempo que a
interpretação da posição de Kant não é tão inequívoca como a anterior exposição pode fazer
supor. Pois às vezes parece que Kant diga, ao menos por envolvimento, que a metafísica
especulativa carece de significação. Assim por exemplo escreve Kant que “os conceitos de
realidade, substância, causalidad e até necessidade na existência perdem toda significação e se
convertem em vazios signos de conceitos, carentes de conteúdo, assim que me arrisco aos
utilizar fosse do campo dos sentidos”[462]. E não se trata de uma mostra única desse giro mental.
É muito possível que, como pensam alguns intérpretes, a aparente diversidade dos modos
kantianos de falar da significação dos termos utilizados na metafísica tradicional tenha que ver
com uma anterior diversidade implícita em sua exposição das categorias. Estas se chamam
conceitos a priori do entendimento. Na medida em que são conceitos, até as categorias ainda
sem esquematizar terão de ter algum conteúdo. Portanto, até em sua aplicação fosse do campo
da experiência possuem alguma significação pelo menos. Mas também diz Kant que as
categorias são funções lógicas do julgamento. Neste caso parece dar-se a consequência de que
não se convertem em conceitos, por assim o dizer, ou não dão origem a conceitos mais que uma
vez esquematizadas. As categorias sem esquematizar não teriam, em mudança, contido algum
por si mesmas. Seriam, consequentemente, sinsentidos ao aplicar-se fosse do campo da
experiência. Termos como Ens realissimum e ser necessário careceriam de conteúdo.

Por todo isso poderia ser afirmado que o pensamento kantiano tende à conclusão de que as
proposições da metafísica especulativa são sinsentidos. Mas embora essa conclusão siga-se sem
dúvida de uma das principais correntes de seu pensamento, é seguro que não representa sua
posição geral. Parece-me completamente óbvio que um homem que fez questão da importância
inexorável dos problemas fundamentais da metafísica e que tentou mostrar a legitimidade
racional da fé prática na liberdade, a imortalidade e Deus não achava realmente que a metafísica
é simples sinsentido vazio. Sustentava, certamente, que se as categorias se aplicam a Deus, não
só são incapazes de dar conhecimento de Deus, senão que têm um conteúdo tão vadio e
indeterminado que não passam de meros símbolos do desconhecido. Podemos, certamente,
pensar a Deus; mas pensamo-lo exclusivamente por médio de signos. Produzimos uma
concepção simbólica do desconhecido. Pensar a Deus a base das categorias esquematizadas
equivaleria a introduzir a Deus no mundo sensível. Por isso tentamos eliminar com o
pensamento, por assim o dizer, a esquematización, e aplicar o termo substância, por exemplo,
só analogicamente. Mas a tentativa de eliminar a referência de um conceito assim ao mundo dos
sentidos nos deixa com um mero símbolo, desprovisto de conteúdo determinado. Portanto, nossa
ideia de Deus é meramente simbólica.

Quando não se trata mais que do uso regulativo ou, como diz, inmanente, do ideal
trascendental, Kant não sente preocupação alguma pela vaguedad da ideia. Pois ao fazer um uso
regulativo da existência de Deus não afirmamos que exista um ser correspondente a essa ideia.
Neste uso pode ser deixado de lado a questão de que é Deus em Si mesmo, e a questão de se
existe. Utilizamos a ideia como "ponto de vista” que permite à razão realizar sua obra de
unificação. “Dito brevemente, esta coisa trascendental não é mais que o esquema do princípio
regulativo por médio do qual a razão estende a unidade sistemática a toda a experiência na
medida do possível”[463].

Podemos acrescentar, como conclusão, que a filosofia kantiana da religião se baseia em uma
reflexão sobre a razão prática, ou seja, sobre a razão em seu uso moral. Para clarificar-se o modo
como Kant pensava a respeito de Deus há que dirigir a sua teoria moral. Na Crítica da razão
pura Kant ocupa-se de delimitar o âmbito de nosso conhecimento teorético; e suas observações
a respeito do uso regulativo da ideia de Deus não devem ser tomado como uma exposição da
significação dessa ideia para a consciência religiosa.
Capítulo XIV
moralidadee e religião.[464]

1. A aspiração de Kant.

Temos visto que Kant considerava dados e seguros nosso conhecimento ordinário de objetos
e nosso conhecimento científico. Ciência física queria dizer para ele física newtoniana. E é óbvio
que não considerava tarefa do filósofo o substituir a física clássica por outro sistema, nem o
declarar que nosso conhecimento ordinário das coisas não é conhecimento. O que ocorre é que,
dados nossa experiência ordinária e nosso conhecimento científico, o filósofo pode distinguir,
mediante um processo de análise, entre os elementos formais e materiais, a priori e a posteriori,
presentes em nosso conhecimento teorético dos objetos. A tarefa do filósofo crítico consiste em
identificar e apresentar ditos elementos a priori de um modo sistemático.

Agora bem: além de nosso conhecimento de objetos originariamente dados na intuición


sensível existe o conhecimento moral. Pode ser dito, por exemplo, que sabemos que há que dizer
a verdade. Mas este conhecimento não o é do que existe, isto é, do comportamento efetivo dos
homens, senão do que deve ser, ou seja, de como devem ser comportado os homens.

E este conhecimento é a priori, no sentido de que não depende do comportamento efetivo


dos homens. Embora todos eles mintam, seguirá sendo verdade que não devem mentir. Não
podemos verificar a afirmação de que os homens devem ser verazes pelo procedimento de
examinar se efetivamente o são ou não. Essa afirmação é verdadeira com independência da
conduta dos homens, e neste sentido é verdadeira a priori. Pois a necessidade e a universalidade
são os rasgos da aprioridad. Está claro que ao afirmar “os homens devem dizer a verdade” nosso
conhecimento da existência de homens depende da experiência. Mas o julgamento tem de conter
ao menos um elemento a priori. E para Kant a tarefa primeira do filósofo moral consiste em
identificar os elementos a priori de nosso conhecimento moral e mostrar sua origem. Neste
sentido podemos imaginar ao filósofo moral perguntando-se por como são possíveis as
proposições sintéticas a priori da moral.

É óbvio que a realidade dessa tarefa não supõe o abandono de todos nossos ordinários
julgamentos morais para produzir um sistema novo de moralidade. Significa descobrir os
princípios a priori segundo os quais julgamos quando emitimos julgamentos morais. No último
capítulo vimos que segundo Kant há certas categorias e princípios a priori do julgamento. Mas
Kant não pensava estar fornecendo um conjunto novo de categorias. Kant queria mostrar,
simplesmente, como se originam na estrutura do entendimento as categorias que fundamentam
os princípios sintéticos a priori de nosso conhecimento teorético. Queria também relacionar com
a razão pura (usando aqui ‘razão’ em sua acepción mais ampla). Assim também agora, no terreno
da moral, Kant deseja descobrir a origem dos princípios fundamentais segundo os quais
julgamos todos quando julgamos moralmente; encontrará essa origem na razão prática.

Kant não sustenta nunca, por suposto, que todos sejamos explicitamente conscientes dos
princípios a priori da moralidade. Se fôssemo-lo, seria supérflua a tarefa de identificá-los. Nosso
conhecimento moral tomado em bloco contém uma variedade de elementos; e a primeira tarefa
do filósofo moral, embora não a única, consiste em descobrir o elemento a priori, o libertando
de todos os elementos empiricamente derivados, e mostrar sua origem na razão prática.

Que é a razão prática? É a razão[465] em seu uso prático (moral) ou função prática. Dito de
outro modo, “em última instância (não há) mais que uma só razão, a qual tem de se distinguir
simplesmente em sua aplicação”[466]. Embora uma em última instância, a razão, diz-nos/dí-nos
Kant, pode ser ocupado de seus objetos de dois modos. Pode determinar o objeto, previamente
dado por alguma outra fonte diferente da razão; ou pode fazê-lo real. “O primeiro caso é o
conhecimento racional teorético, o segundo é o conhecimento racional prático"[467]. Em sua
função teorética a razão determina ou constitui o objeto dado na intuición, no sentido exposto
no capítulo anterior. Aplica-se a um dado dado por outra fonte diferente da razão mesma. Em
mudança, em sua função prática a razão é a fonte de seus objetos; ocupa-se da eleição moral, da
aplicação de categorias aos dados da intuición sensível. Podemos dizer que se ocupa da produção
de eleições ou decisões morais de acordo com a lei que procede dela mesma. Por isso diz Kant
que enquanto em seu uso teorético a razão se ocupa de objetos da potência cognoscitiva, em seu
uso prático se ocupa “dos fundamentos da determinação da vontade, a qual é a faculdade de
produzir objetos correspondentes a ideias ou de se determinar a si mesma para os produzir
(independentemente de que baste ou não a capacidade física para isso), ou seja, a faculdade de
determinar sua causalidad”[468]. Dito com linguagem plana, a razão teorética atende ao
conhecimento, enquanto a razão prática dirige-se à eleição de acordo com a lei moral e, quando
isso é fisicamente possível, à realização da decisão na ação. Conviria acrescentar que Kant fala
umas vezes da razão prática como diferente da vontade e capaz de influir nesta, mas outras vezes
identifica ambas. O primeiro uso sugere a imagem da razão prática que move à vontade por
médio do imperativo categórico. O segundo mostra que para Kant a vontade é uma faculdade
racional, não um impulso cego. E ambos giros parecem necessários, pois a razão prática tomada
a forma da vontade de acordo com um princípio ou máxima[469], e podemos distinguir entre as
feições cognoscitivos e as feições voluntários da questão. Mas não temos de sublinhar a feição
cognoscitivo, o conhecimento de um princípio moral, até o ponto de identificar com a razão
prática e excluir a vontade. Pois da razão prática diz Kant que produz seus objetos, que os faz
reais. E é a vontade a que produz eleição e ação de acordo com conceitos e princípios morais.

dissemos que, segundo Kant, o filósofo moral tem de achar na razão prática a fonte do
elemento a priori do julgamento moral. Portanto, não podemos dizer que Kant espere que o
filósofo derive a inteira lei moral, forma e conteúdo, do conceito de razão prática. Isso se segue
já da afirmação de que o filósofo se interessa pela descoberta da fonte, na razão prática, do
elemento a priori do julgamento moral. Pois a afirmação implica que há um elemento a
posteriori empiricamente dado. Isto é do todo óbvio, desde depois, no caso de qualquer
julgamento moral singular, como, por exemplo, o julgamento de que estou moralmente obrigado
neste momento e local a contestar a uma verdadeira carta de uma determinada pessoa. Podemos
distinguir entre o conceito de obrigação moral como tal e as condições empiricamente dadas de
tal ou qual obrigação particular. Ademais, quando Kant diz que a razão prática ou a vontade
racional é a fonte da lei moral, está pensando na razão prática como tal, não na razão prática tal
como se encontra em uma determinada classe de seres finitos, isto é, nos seres humanos. Kant
não pensa, por suposto, que tenha seres racionais finitos diferentes dos homens. Mas seu tema é
o imperativo moral assim que afeta a todos os seres suscetíveis de sustentação a obrigação, sejam
homens ou não o sejam. Kant estuda, pois, o imperativo moral considerado dantes de toda
referência à natureza humana e as condições empíricas desta. E já que a razão prática entende-
se deste modo sumamente abstrato, as leis morais, que não fazem sentido mais que no suposto
da existência de seres humanos, não podem ser deduzido do conceito de razão prática. Por
exemplo, seria absurdo pensar no mandamiento “Não cometerá adultério” como aplicado a
espíritos puros; pois esse mandamiento pressupõe corpos e a instituição do casal. Temos de
distinguir entre a ética pura, ou metafísica dos costumes, que trata do princípio supremo, ou os
princípios supremos, da moralidade e da natureza da obrigação moral como tal, e a ética
aplicada, a qual aplica o princípio supremo, ou os princípios supremos, às condições da natureza
humana, apelando à ajuda do que Kant chama ‘antropologia’, ou conhecimento da natureza
humana.

A ideia geral da divisão entre a metafísica dos costumes e a ética aplicada é bastante clara.
A física, como vimos, pode ser dividido em física pura, ou metafísica da natureza, e física
empírica. Analogamente, a ética ou filosofia moral pode ser dividido em metafísica dos
costumes e ética aplicada ou antropologia prática. Mas ao passar aos detalhes da divisão
produzem-se algumas dificuldades. Assim, por exemplo, esperaríamos que a metafísica dos
costumes, ou metafísica da moral, prescindiera plenamente da natureza humana e atendesse
exclusivamente a certos princípios fundamentais que se aplicassem depois à natureza humana
no que Kant chama antropologia prática. Mas na introdução à Metafísica dos costumes (1797)
Kant admite que inclusive na metafísica da moral temos de ter com frequência em conta a
natureza humana como tal, com objeto de manifestar as consequências dos princípios morais
universais. Isso não quer dizer, desde depois, que a metafísica da moral possa ser fundado na
antropologia. “Uma metafísica dos costumes não pode ser fundado na antropologia, mas sim
que pode ser aplicado a esta”[470]. Mas se a aplicação dos princípios morais à natureza humana
é admissível na parte metafísica da ética, a segunda parte desta, ou seja, a antropologia moral ou
prática, tende a converter em um estudo das condições subjetivas, favoráveis ou desfavoráveis,
da realização dos preceitos morais. Esta parte se ocupará, por exemplo, da educação moral. Estes
são os temas da antropologia prática aos que aludirá Kant ao descrever sua função na introdução
à Metafísica dos costumes.

Tenho aqui, pois, a dificuldade. Segundo Kant, faz falta uma metafísica da moral que
prescinda de todo fator empírico. E Kant reprocha a Wolff o ter misturado fatores a priori e
empíricos em seus escritos de ética. Mas, por outra parte, Kant manifesta certa tendência a
introduzir na parte metafísica das ética leis morais que parecem conter elementos empíricos.
Assim, por exemplo, escreve que “O mandamiento Não mentir não é válido só para seres
humanos, como se outros seres racionais não tivessem que se interessar por ele; e o mesmo
ocorre com todas as demais leis morais em sentido próprio”[471]. Mas embora este preceito é a
priori no sentido de que vale com independência do modo como efetivamente se comportem os
seres humanos, é discutible que seja a priori no sentido de não depender em absoluto da
“antropologia”[472].
De todos modos, o ponto principal que Kant deseja deixar em claro é que “A base da
obrigação não tem de buscar na natureza humana nem nas circunstâncias do mundo no qual está
situado (o homem), senão a priori, simplesmente nos conceitos da razão pura”[473]. Temos de
explicitar uma ética pura que “aplicada ao homem, não tome nada em absoluto do conhecimento
do homem mesmo, senão que lhe de leis a priori como a ser racional”[474]. Interessa-nos
realmente achar na razão mesma a base do elemento a priori do julgamento moral, o elemento
que possibilita as proposições sintéticas a priori da moral. A tarefa não é, desde depois, deduzir
todas as leis e os preceitos morais mediante uma mera análise dos conceitos da razão pura
prática. Kant não pensou nunca que uma dedução assim fosse realizable.

Mas embora não podemos dizer todas as leis e todos os preceitos morais do conceito da razão
pura prática, a lei moral tem que se fundar ultimamente nesta razão. E como isto equivale a achar
a fonte última dos princípios da lei moral na razão considerada em si mesma, sem referência a
particulares condições humanas, Kant se separa evidentemente neste ponto de todos os filósofos
morais que tentam achar a base última da lei moral na natureza humana como tal ou em algum
rasgo dela, ou em algum fator da vida humana ou sociedade. Na Crítica da razão prática alude
Kant a Montaigne como autor da tese que fundamenta a moralidade na educação, a Epicuro
como fundamentador da moral na sensação física do homem, a Mandeville como propugnado;
da constituição política como fundamento, e a Hutcheson como partidário de fundar a moral nos
sentimentos morais do homem. Kant afirma então que todas essas supostas fundamentaciones
são “evidentemente incapazes de fornecer o princípio geral da moralidade”[475]. Podemos
também observar que a teoria moral de Kant, ao fundar a lei moral na razão, é incompatível com
as modernas teorias emocionais da ética. Dito brevemente: Kant recusa o empirismo e deve ser
considerado como um racionalista em moral; isso sempre que com esse qualificativo não se
pretenda indicar estritamente ao partidário da tese de que a lei moral é deducíble por mera análise
a partir de algum conceito fundamental.

No seguinte resumem da teoria moral de Kant interessamo-nos particularmente pela parte


metafísica da ética. Ou seja, interessamo-nos principalmente pelo que Kant lume metafísica dos
costumes (não metafísica especulativa). Kant não achava que a moralidade pudesse ser fundado
na teología natural. Em sua opinião, a fé em Deus funda-se na consciência moral e não, ao
inverso, a lei moral na fé em Deus. E nosso tratamento se baseará na Fundamentación da
metafísica dos costumes e na segunda Crítica. O texto explicitamente titulado Metafísica dos
costumes não me parece acrescentar grande coisa — se é que acrescenta algo — necessária para
um breve resumem da teoria moral kantiana.

Na Fundamentación da metafísica dos costumes lemos que a metafísica da moral tem que
pesquisar “a fonte dos princípios práticos que têm de se encontrar a priori em nossa razão”[476].
E da Fundamentación mesma diz Kant que não é “mais que a investigação e o estabelecimento
do princípio supremo da moralidade”[477], pelo que constitui um tratado completo. Por outra
parte, o texto não pretende ser uma Crítica completa da razão prática. Portanto, alude e remete
à segunda Crítica. Este fato fica indicado pelos rótulos das partes principais da Fundamentación.
A primeira parte trata da transição do conhecimento moral comum ou ordinário ao conhecimento
moral filosófico; a segunda parte estuda a transição da filosofia moral popular à metafísica da
moral; e a terça trata o passo final da metafísica da moral à Crítica da razão pura prática.
A estrutura da Crítica da razão prática recorda a da primeira Crítica. Não há nela, desde
depois, nada que corresponda à Estética trascendental. Mas a obra divide-se em uma Analítica
(que procede de princípios a conceitos, e não de conceitos a princípios, como na primeira
Crítica) e uma Dialética que estuda as ilusões da razão em seu uso prático, mas formula ademais
um ponto de vista positivo. Kant acrescenta a todo isso uma Metodologia da razão pura e prática
que trata do método necessário para fazer subjetivamente prática a razão objetivamente prática.
Ou seja, esta parte considera o modo no qual as leis da razão pura prática podem aceder ao
espírito humano e influir nele. Mas esta seção é breve, e talvez figure na obra mais por dar algo
correspondente à Doutrina trascendental do método que por razões a mais peso.

2. A boa vontade.

O que se tenham citado tantas vezes as primeiras palavras da Fundamentación da metafísica


dos costumes não é motivo suficiente para não as reproduzir aqui: “É impossível imaginar nada
no mundo ou fora dele que possa ser chamado absolutamente bom, exceto a vontade boa”[478].
Mas embora Kant começa seu tratado deste modo tão dramático, não acha estar dando uma
informação nova e sensacional. Em sua opinião, não faz mais que explicitar uma verdade
presente, de modo, ao menos, implícito, no conhecimento moral ordinário. De todos modos, se
considera obrigado a explicar que quer dizer ao afirmar que a vontade boa é o único que pode
ser chamado bom sem mais esclarecimento.

O conceito de bondade pura ou absoluta pode ser explicado sem dificuldade maior. As posses
externas, como a riqueza, por exemplo, podem ser objeto de abuso, como todo mundo sabe.
Portanto, não são bens puros ou absolutos. E o mesmo pode ser dito do talento, como, por
exemplo, o entendimento rápido. Um criminoso pode possuir e usar mau talentos consideráveis.
O mesmo pode ser dito de rasgos naturais do caráter, como a valentia. Podem ser utilizado ou
manifestar na perseguição de um fim mau. Em mudança, uma vontade boa não pode ser má em
nenhum caso. É um bem sem necessidade de precisão alguma.

Tomada em si mesma, essa afirmação parece uma tautología, pois uma vontade boa é boa
por definição, e é analiticamente verdadeiro que uma vontade boa é sempre boa. Por isso Kant
passa a explicar o que entende por vontade boa. Quer dizer, por de repente, uma vontade boa em
si mesma, e não só respecto de alguma outra coisa. Assim, por exemplo, podemos dizer de um
doloroso tratamento quirúrgico que é bom, mas não em si mesmo, senão em relacionamento
com o benéfico efeito que vai produzir. Em mudança, o conceito kantiano de vontade boa é
conceito de uma vontade sempre boa em si mesma, por virtude de seu valor intrínseco, e não só
por seu relacionamento com a produção de algum fim, como, por exemplo, a felicidade. Mas
nos interessará saber quando uma vontade é boa em si mesma, ou seja, quando tem valor
intrínseco. Segundo Kant, não pode ser dito que uma vontade seja boa em si mesma só porque
causa, por exemplo, boas ações. Pois posso desejar, por exemplo, uma boa ação que as
circunstâncias físicas me impeça realizar. Mas minha vontade será boa apesar disso. Que é, pois,
o que a faz boa? Se temos de evitar a mera tautología, teremos que dar algum conteúdo ao termo
‘boa’ quando se aplica à vontade, e não nos contentar com dizer que uma vontade boa é uma
vontade que é boa, ou que a vontade é boa quando é boa.
Para dilucidar a significação do termo ‘boa’ (ou ‘bom’, ou ‘bem’) quando se aplica à vontade
Kant atende ao conceito de dever, que é para ele o rasgo mais destacado da consciência moral.
Uma vontade que faça pelo dever é uma vontade boa. Há que formular a ideia com precisão,
atendendo bem aos relacionamentos lógicos de inclusão entre ambos termos. Pois a vontade de
Deus é boa, embora seria absurdo dizer que Deus cumpre com Seu dever. Efetivamente: o
conceito de dever ou de obrigação implica o conceito da possibilidade, ao menos, da
autoconquista, do obstáculo que há que superar. E a vontade divina não se concebe como
submetida a obstáculo possível algum em seu querer o bem. Portanto, para falar com precisão
há que evitar dizer que uma vontade boa é a que faz pelo dever; há que dizer que uma vontade
que faz pelo dever é uma vontade boa. A uma vontade do tipo da divina, concebida como sempre
e necessariamente boa, lume Kant, com um nome especial, “vontade santa”. E se prescindimos
do conceito de vontade santa e limitamos a atenção a uma vontade finita submetida a obrigação,
podemos permitir-nos/permití-nos dizer que a vontade boa é a que faz pelo dever. Mas está claro
que a noção de fazer pelo dever requer ulterior dilucidación.

3. O dever e a inclinação.

Kant distingue entre ações realizadas de acordo com o dever e ações feitas por, ou por mor
do dever. O exemplo utilizado por ele mesmo servirá para deixar em claro a natureza desta
distinção. Suponhamos um comerciante sempre atento a não exigir a seus clientes um pagamento
excessivo. Seu comportamento é sem dúvida concorde com o dever; mas disso não se segue que
faça de tal modo por mor do dever, ou seja, pelo fato de que é seu dever fazer assim. Também
pode ser abstido de extorsionar a seus clientes por meros motivos de prudência, por exemplo,
pensando que a honradez é a conduta mais comercial. Portanto, a classe das ações realizadas de
acordo com o dever é bem mais extensa que a classe das ações realizadas por mor do dever.

Só têm valor moral segundo Kant, as ações realizadas por mor do dever. Kant toma o
exemplo da conservação da vida própria. “Preservar a vida própria é um dever e, ademais, todo
mundo tem a inclinação imediata à conservar”[479]. Esses são os dois supostos. Se preservo
minha vida simplesmente porque tenho a inclinação a fazê-lo assim, minha ação não tem valor
moral segundo Kant. Para ter esse valor, minha ação tem que se realizar por causa de que é dever
meu o preservar minha vida, ou seja, por um sentido de obrigação moral. Kant não diz
explicitamente que seja moralmente mau o preservar a vida própria simplesmente porque um
deseja a preservar. Pois a ação estaria nesse caso de acordo, ao menos, com o dever, e não seria
incompatível com ele, como o seria em mudança o suicídio. Mas não tem valor moral. Por um
lado não é uma ação moral, embora, por outro lado, seria difícil a chamar inmoral no sentido em
que o é o suicídio.

Talvez seja errônea a concepção; mas Kant pensa, em todo caso, que e a concepção
implicitamente sustentada por todo o que possui concepções morais, e a que um sujeito assim
reconhecerá como verdadeira se reflete envelope o problema. De todos modos, Kant tende a
complicar algo as coisas ao dar a impressão de que, em sua opinião, o valor moral de uma ação
realizada por mor do dever aumenta em proporção inversa à inclinação a realizar a ação. Dito
de outro modo: Kant justifica em parte a interpretação de que, segundo sua doutrina, quanto
menor seja a inclinação a cumprir com o dever, maior é o valor moral da ação se realmente se
realiza no sentido do dever. E este ponto de vista conduz à estranha conclusão de que quanto
mais odiemos cumprir nosso dever, tanto melhor moralmente, sempre que o cumpramos. Ou,
por dizer de outro modo: quanto mais tenhamos que nos dominar para cumprir com nosso dever,
tanto mais morais somos. E se isso se admite, parece se impor a conclusão de que quanto mais
baixas sejam as inclinações de um homem, tanto mais alto será seu valor moral se supera aquelas
inclinações. Mas este ponto de vista é contrário à convicção comum de que a personalidade
íntegra na que coincidem a inclinação e o dever conseguiu um nível de desenvolvimento moral
superior ao do homem no qual a inclinação e o desejo estão em guerra permanente com o
sentimento do dever.

De todos modos, embora Kant escreve às vezes de um modo que a primeira vista dá a
impressão de apoiar uma interpretação assim, o que principalmente lhe interessa assentar é
simplesmente que quando um homem faz seu dever na contramão de suas inclinações, o fato de
que faz por mor do dever e não meramente pela inclinação fica mais claro do que o estaria se se
tivesse sentido naturalmente inclinado a fazer de dito modo. Ao falar do homem benéfico ou
filántropo Kant afirma, efetivamente, que a ação de fazer bem aos demais não tem valor moral
se é mero efeito de uma inclinação natural que brote de um temperamento espontaneamente
simpatético. Mas não diz que seja mau ou indeseable possuir um temperamento assim. Pelo
contrário, as ações que surgem de uma satisfação natural pelo aumento da felicidade dos demais
são “oportunas e laudables”[480]. Kant pode ter sido rigorista em ética; mas seu interesse em
precisar a diferença entre fazer por mor do dever e fazer por satisfazer os desejos e as inclinações
naturais de um não tem de se entender mau, no sentido de que o filósofo fosse incapaz de aplicar
o ideal do homem completamente virtuoso que consegue superar e transformar todos os desejos
dantes em conflito com o dever. Nem também não há que interpretar no sentido de que em
opinião de Kant o homem verdadeiramente virtuoso seja o que carece completamente de
inclinações. Ao falar do mandamiento evangélico de amar a todos os homens, Kant observa que
é impossível ordenar o amor assim que afección (assim que amor “patológico”, como ele diz);
mas que sim pode ser ordenado a beneficencia por mor do dever (amor “prático”), inclusive ao
homem que tenha aversão pela ação benéfica. E com isso, por suposto, Kant não está afirmando
que seja melhor sentir aversão pela ação benéfica e realizar as devidas acione benéficas que ter
uma inclinação natural às realizar. Pelo contrário, Kant afirma explicitamente que é melhor
realizar gostosamente o dever. E seu ideal moral, como veremos mais adiante, é a maior
aproximação possível à virtude completa, à santa vontade de Deus.

4. O dever e a lei.

Temos visto que uma vontade boa manifesta-se na ação por mor do dever, e que há que
distinguir entre fazer por mor do dever e fazer pela mera inclinação ou por desejo. Mas
precisamos alguma indicação mais positiva a respeito do que significa fazer por mor do dever.
E Kant diz-nos/dí-nos que significa fazer por reverência à lei, isto é, à lei moral. “O dever é a
necessidade de fazer por reverência à lei”[481].

Por lei entende Kant a lei como tal. Fazer por mor do dever é fazer por reverência à lei como
tal. E a caraterística essencial (a forma, podemos dizer) da lei como tal é a universalidade, a
universalidade estrita que não admite exceção alguma. As leis físicas são universais; também o
é a lei moral. Mas enquanto todas as coisas físicas, incluído o homem assim que coisa puramente
física, concordam inconsciente e necessariamente com a lei física, os seres racionais, e só eles,
são capazes de fazer de acordo com a ideia de lei. Portanto, as ações de um homem, para que
tenham valor moral, têm que ser realizadas por reverência à lei. Seu valor moral procede segundo
Kant não de seus resultados, efetivos ou buscados, senão da máxima do agente. E para dar valor
moral às ações esta máxima tem que consistir em evitar segundo a lei ou em fazer segundo a lei,
e por respeito ou reverência à lei.

E assim lemos que a vontade boa, o único bem sem restrições, se manifesta na ação por mor
do dever; que o dever significa ação por respeito ou reverência à lei; e que a lei é essencialmente
universal. Mas tudo isto nos deixa com um conceito sumamente abstrato, por não dizer vazio,
do fazer por mor do dever. E apresenta-se a questão de como traduzir esse conceito à vida moral
concreta.

Dantes de dar resposta a essa questão é necessário distinguir entre máximas e princípios. Na
terminología técnica de Kant um princípio é uma lei moral objetiva fundamental fundada na
razão pura prática. É um princípio segundo o qual fariam todos os homens se fossem agentes
morais puramente racionais. Uma máxima é um princípio subjetivo de volición. Ou seja, é um
princípio segundo o qual faz um agente na realidade, e que determina suas decisões. Estas
máximas, naturalmente, podem ser de diversas classes, e podem concordar ou não com o
princípio objetivo, ou os princípios objetivos, da lei moral.

Esta exposição da natureza das máximas pode parecer incompatível com o dito a respeito da
opinião de Kant segundo a qual o valor moral das ações está determinado pela máxima do
agente. Pois se uma máxima pode discrepar da lei moral, como pode dar valor moral às ações
por ela inspiradas? Para resolver esta dificuldade temos de praticar uma distinção mais entre
máximas empíricas ou materiais e máximas a priori ou formais. As primeiras referem-se a fins
ou resultados desejados; não as segundas. A máxima que confere valor moral às ações tem de
ser do segundo tipo. Ou seja, não tem que referir a objeto algum do desejo sensual nem a
resultado algum que possa ser obtido pela ação, senão que tem que ser a máxima de obedecer à
lei universal como tal. Isto é, se o princípio subjetivo da volición é a obediência à lei moral
universal, por mero respeito à lei, as ações regidas por essa máxima terão valor moral, pois serão
realizadas por mor do dever.

Uma vez praticadas essas distinções podemos voltar à questão da tradução do abstrato
conceito kantiano de ação por mor do dever à linguagem da concreta vida moral. “Já que envolva
privado à vontade de todos os impulsos (ou todos os estímulos) que lhe podia proporcionar o
seguir uma lei particular, o único que pode ainda lhe servir de princípio é a conformidade
universal das ações à lei em general. Ou seja: tenho de fazer sempre de tal modo que possa ao
mesmo tempo querer que minha máxima seja lei universal”[482]. A palavra ‘máxima’ tem de
significar neste contexto o que dantes chamámos máximas empíricas ou materiais. O respeito
ou a reverência à lei, que produz a máxima formal que manda fazer por obediência à lei como
tal, exige que ponhamos todas nossas máximas materiais na forma da lei como tal, forma que é
a universalidade. E agora temos de nos perguntar se podemos querer que uma máxima dada se
converta em uma lei universal. Por de repente, possa uma máxima assim tomar a forma da
universalidade?
Kant oferece um exemplo. Imaginemos a um homem em uma situação angustiosa, e que só
pode ser libertado do apresso formulando uma promessa que não tem a intenção de cumprir. Ou
seja: nosso homem não pode melhorar sua situação senão mentindo. É-lhe lícito fazê-lo? Se faz
desse modo, sua máxima dirá que tem direito a formular uma promessa sem intenção da cumprir
(ou seja, que tem direito a mentir) se só por esse médio pode ser livrado de uma situação
desastrosa. Portanto, podemos propor a questão do seguinte modo: possa esse homem querer
que a tal máxima se converta em lei universal? Uma vez universalizada, essa máxima afirmaria
que todo mundo pode fazer uma promessa sem intenção da cumprir (ou que todo mundo tem
direito a mentir) quando se encontra em uma dificuldade da que não pode ser livrado por outros
meios. Segundo Kant, é impossível querer essa universalización, pois isso equivaleria a querer
que o mentir se converta em lei universal. Portanto, a máxima não pode tomar a forma da
universalidade. E se uma máxima não pode entrar como princípio em um esquema possível de
lei universal tem de ser recusada como máxima.

Longe de mim o supor que esse exemplo seja incriticable. Mas não desejaria que a discussão
de objeciones possíveis escondesse o ponto principal que Kant deseja deixar fundado. Parece-
me tratar-se do seguinte. Na prática, todos fazemos de acordo com o que Kant lume máximas,
ou seja, que todos temos princípios subjetivos de volición. Agora bem: uma vontade finita não
pode ser boa mais que se está motivada pelo respeito ou a reverência à lei universal. Portanto,
para que nossas vontades possam ser moralmente boas temos que nos perguntar se podemos
querer que nossas máximas, nossos princípios subjetivos de volición, se convertam em leis
universais. Se não o podemos, temos de recusar essas máximas. Se podemos querê-lo, se nossas
máximas podem intervir como princípios em um esquema possível de legislação moral
universal, então a razão exige que as admitamos e as respeitemos em virtude de nosso respeito
à lei como tal[483].

Há que observar que até este momento Kant se dedicou a clarificar a ideia de ação por mor
do dever. De acordo com sua concepção e sua terminología, temo-nos estado movendo no que
Kant lume o conhecimento moral da razão humana comum. “A necessidade de fazer por puro
respeito à lei prática é o que constitui o dever, ao qual deve ceder qualquer outro motivo, porque
o dever é a condição de que uma vontade seja boa em si mesma; e o valor de uma vontade assim
está acima de toda outra coisa. Deste modo chegámos ao princípio do conhecimento moral sem
abandonar o da razão humana comum”[484]. E embora ordinariamente os homens não concebem
dito princípio nessa forma abstrata, no entanto, o conhecem implicitamente, e este é o princípio
no qual descansam seus julgamentos morais.

O princípio do dever — que sempre tenho de fazer de tal modo que possa querer que minha
máxima se converta em lei universal — é uma formulación do que Kant lume o imperativo
categórico. Agora podemos atender a este tema.

5. O imperativo categórico.

Como vimos, há que praticar uma distinção entre princípios e máximas. Os princípios
objetivos da moralidade podem ser também princípios subjetivos da volición que funcionem
como máximas. Mas também pode ter uma discrepância entre os princípios objetivos da
moralidade e as máximas ou princípios subjetivos da vontade de um homem. Se fôssemos todos
agentes morais puramente racionais, os princípios objetivos da moralidade governariam sempre
nossos atos, ou seja, seriam também sempre princípios subjetivos de volición. Mas na prática
somos capazes de fazer envelope a base de máximas ou princípios subjetivos de volición
incompatíveis com os princípios objetivos da moralidade. E isto significa que estes últimos se
nos apresentam como mandamientos ou imperativos. Temos, pois, a experiência da obrigação.
Se nossas vontades fossem santas, não poderia ser falado sequer de ordens nem de obrigações.
Mas já que não o são (embora a vontade santa é o ideal), a lei moral tomada necessariamente
para nós a forma de um imperativo. A razão pura prática dá ordens, e nosso dever consiste em
vencer os desejos que entrem em conflito com essas ordens.

Ao definir a noção de imperativo Kant traça uma distinção entre ordem e imperativo.[485]
“Chama-se ordem ou mandamiento (da razão) a noção de um princípio objetivo assim que impõe
a uma vontade sua necessidade, e chama-se imperativo à fórmula do mandamiento ou a ordem.
Todos os imperativos se expressam com a noção de dever ser e mostram assim o relacionamento
entre uma lei objetiva da razão e uma vontade que, por causa de sua constituição subjetiva, não
está necessariamente determinada por ela”[486]. Ao dizer que o princípio objetivo impõe sua
necessidade ou é “constrictivo” (nötigend) para uma vontade Kant não quer sustentar, desde
depois, que a vontade humana lhe obedeça necessariamente. O importante é, pelo contrário, que
a vontade não segue necessariamente os ditados da razão, com a consequência de que a lei se
aparece ao agente como algo externo que exerce uma constricción ou pressão sobre a vontade.
Neste sentido diz-se que a lei é “constrictiva” da vontade. Mas a vontade não está
“necessariamente determinada” pela lei. A terminología de Kant é talvez confusa, mas não auto-
contradictoria.

Há três classes de imperativos, de acordo com as três classes ou sentidos diferentes da ação
boa. E como só um desses imperativos é o moral, tem importância entender a distinção kantiana
entre os três tipos.

Tomemos a proposição “Se quer aprender francês tem que aplicar estes meios”. Este é um
imperativo. Mas a seu respecto há que observar duas coisas. Primeira, que as ações ordenadas
se concebem como boas para conseguir um verdadeiro fim. Não se ordenam como ações que
tenham de ser realizadas por si mesmas, senão só como médios. Por isso se diz que este
imperativo é hipotético. Em segundo local, a finalidade de que se trata não é das que todo mundo
busca por natureza. Um homem pode desejar aprender francês ou não o desejar. O imperativo
diz só que se deseja aprender francês, terá que aplicar certos meios, ou seja, terá que realizar
certas ações. Kant chama a este tipo de imperativo hipotético problemático, ou imperativo de
habilidade.

Não é difícil entender que esse tipo de imperativo não é o moral. tomámos o exemplo da
aprendizagem do francês. Igual podíamos ter recorrido ao exemplo de converter-se em um
perfeito ladrão. “Se quer chegar a ser um ladrão perfeito, ou seja, roubar sem ser descoberto,
tem de aplicar os meios seguintes.” O imperativo de habilidade, ou imperativo técnico, como
poderíamos o chamar, não tem por si mesmo nada que ver com a moralidade. As ações
ordenadas o são simplesmente como úteis para a consecución de uma finalidade que um pode
desejar ou não desejar, e cuja perseguição pode ser compatível ou não com a lei moral.
Consideremos agora a proposição “Deseja a felicidade por uma necessidade de natureza;
portanto, tem de realizar estas ações”. Também aqui temos um imperativo hipotético, no sentido
de que ordena certas ações como médios para um fim. Mas não é um imperativo hipotético
problemático. Pois o desejo de felicidade não é uma finalidade que possamos nos propor ou
evitar, ao modo como, a nosso gosto, podemos nos propor ou não a finalidade de aprender
francês, a de nos converter em ladrões perfeitos ou em bons carpinteros, etc. O imperativo não
diz “se” deseja a felicidade; afirma que desejamos a felicidade. É, pois, um imperativo hipotético
asertórico.

Em alguns sistemas éticos este imperativo achou-se de natureza moral. Kant não admite, em
mudança, que seja precisamente o moral um imperativo hipotético qualquer, igual se é
problemático que se é asertórico. Em minha opinião, Kant é demasiado contundente e global em
seu tratamento das teorias éticas teleológicas. Quero dizer que não me parece que considere
suficientemente uma distinção que se impõe entre diferentes tipos de éticas teleológicas. A
“felicidade” pode ser considerado, efetivamente, como um estado subjetivo que se adquire por
médio de certas ações, mas é diferente destas. E neste caso as ações consideram-se boas
simplesmente assim que médios respecto de um fim ao que são exteriores. Mas “felicidade” —
se é que traduzimos deste modo corrente a voz aristotélica eudaimonía[487] — pode ser entendido
também como uma atualização objetiva das potencialidades do homem assim que homem (ou
seja, como uma atividade), e neste caso as ações que se consideram boas não são puramente
externas ao fim. Mas Kant responderia a isto, provavelmente, que então temos uma ética baseada
na ideia da perfección da natureza humana e que, embora essa ideia tem significação moral, não
pode nos dar o princípio supremo da moralidade que ele se propõe encontrar.

Em qualquer caso, Kant recusa todos os imperativos hipotéticos, problemáticos ou


asertóricos, na busca do imperativo moral. Portanto, o imperativo moral tem que ser categórico.
Ou seja, tem que ordenar ações não como médios de nenhum fim, senão por boas em si mesmas.
Isso é o que Kant lume imperativo apodíctico. “O imperativo categórico, que declara que uma
ação é objetivamente necessária em si mesma sem referência a finalidade alguma, ou seja, sem
finalidade alguma diferente de si mesma, é válido como princípio prático apodíctico”[488].

Que é esse imperativo categórico? Todo o que podemos dizer dele puramente a priori, ou
seja, pela consideração do mero conceito de imperativo categórico, é que ordena a conformidade
com a lei em general. Ou seja, ordena que as máximas que nos servem de princípios de volición
se adecúen à lei universal. “Não há, pois, mais que um imperativo categórico, que é: Obra só
segundo a máxima que te permita ao mesmo tempo querer que essa máxima se converta em lei
universal”[489]. Imediatamente depois dá Kant outra formulación do imperativo: “Obra como se
a máxima de tua ação tivesse de converter por tua vontade em lei universal da natureza”[490].

Na última seção encontramos o imperativo categórico expresso negativamente, e já dantes,


em uma nota à página 302, observei que não se pode nem falar de deduzir regras concretas de
conduta partindo do conceito de lei universal como tal. Também aqui temos de recordar que
Kant não pensa que possam ser deduzido concretas regras de conduta partindo do imperativo
categórico, no sentido em que pode ser deduzido das premisas a conclusão de um silogismo. O
imperativo não serve de premisa para a dedução por pura análise, senão como critério para julgar
da moralidade de concretos princípios da conduta. De todos modos, pode ser dito que as leis
morais se derivam em algum sentido do imperativo categórico. Suponha-se que dou dinheiro a
uma pessoa pobre que se encontra em situação de grande miséria e em um momento em que não
há ninguém que tenha melhor direito a minha ajuda. A máxima de minha ação, o princípio
subjetivo de meu volición, é, por exemplo, que darei esmola a um indivíduo que realmente
precise essa ajuda sempre que não tenha ninguém que tenha mais justificadas pretensões a meu
apoio. Então pergunto-me se posso querer que essa máxima seja uma lei universal válida para
todos (a lei, pois, de que todo mundo deve prestar ajuda ao que realmente a precisa, se não há
outra pessoa com melhor direito a ela). E decido que sim. Então minha máxima está moralmente
justificada. A lei moral que aceito assim não é, obviamente, deducible por mera análise a partir
do imperativo categórico, pois introduz ideias que não estão contidas neste. Mas, por outra parte,
também pode ser dito que a lei está deduzida do imperativo categórico, no sentido de que se
obtém mediante a aplicação do imperativo.

É noção kantiana general que a lei moral ou prática como tal é estritamente universal; a
universalidade é, por assim o dizer, sua forma. Portanto, todos os princípios concretos da
conduta têm de compartilhar essa universalidade se é que pretendem com razão o qualificativo
de morais. Mas Kant não deixa muito em claro o que entende por “ ser capaz” ou “não ser
capaz”, ou poder ou não poder, querer que a máxima da conduta de um se converta em lei
universal. Um tenderia naturalmente a entender essas expressões no sentido da ausência ou
presença, respetivamente, de contradição lógica ao tentar universalizar as próprias máximas.
Mas Kant introduz a este respecto uma distinção. “Algumas ações são de tal natureza que suas
máximas não podem ser concebido sequer, sem contradição, como lei universal”[491]. Kant
parece aqui falar de contradição lógica entre a máxima e sua formulación como lei universal.
Mas em outros casos falta essa “imposibilidad intrínseca”; “e apesar disso segue sendo
impossível querer que a máxima se alce à universalidade de uma lei da natureza, porque uma
vontade assim se contradiria a si mesma”[492]. Neste caso Kant parece pensar em casos nos quais
pode ser dado a uma máxima a formulación de uma lei universal sem incurrir em contradição
lógica, mas, em mudança, não pode ser querido essa lei, porque a vontade expressa na lei se
encontraria em antagonismo, ou em contradição, como diz Kant, consigo mesma assim que
firme adesão a alguma finalidade ou algum desejo cuja consecución ou satisfação seria
incompatível com a observancia dessa lei.

Kant dá uma série de exemplos. O quarto deles o é do segundo tipo de incapacidade de


querer que a máxima própria se converta em lei universal. Um homem que desfruta de grande
prosperidade vê que outros se encontram na miséria e que ele poderia lhes ajudar. Mas adota a
máxima de não preocupar da miséria dos demais. Pode ser convertido essa máxima em uma lei
universal? Pode ser feito sem contradição lógica. Pois não há contradição lógica em uma lei que
diga que as gentes prósperas não têm que prestar assistência aos que estão na miséria. Mas,
segundo Kant, o homem próspero não pode querer essa lei sem entrar em contradição ou
antagonismo com sua própria vontade. Pois sua máxima primeira era expressão de uma egoísta
ignorância dos demais, e estava acompanhada pelo firme desejo de obter ele mesmo ajuda de
outros em caso de se encontrar em um dia em situação de miséria, desejo que ficaria negado ao
querer a lei universal em questão.

O segundo exemplo de Kant o é de contradição lógica implicada na conversão da máxima


em lei universal. Um homem precisa dinheiro e não pode o obter mais que prometendo que o
devolverá, embora sabe muito bem que não poderá o devolver. A reflexão mostra-lhe que não
pode converter a máxima (quando preciso dinheiro, o peço prestado e prometo o devolver,
embora sei que não poderei o fazer) em lei universal sem contradição. Pois a lei universal
destruiria toda confiança nas promessas, e a máxima dessa ação pressupõe a confiança nas
promessas. O texto indica que Kant pensa que a lei mesma seria autocontradictoria, pois essa lei
diria que todo o que se encontre em necessidade e não possa paliarla senão fazendo uma
promessa que não pode cumprir pode fazer essa promessa. Mas é difícil ver que essa proposição
seja autocontradictoria, embora sim é possível que não possa ser querida sem as incoherencias
em que insiste Kant.

É verdade que não é coisa do basear tudo nas caraterísticas e os defeitos de uns exemplos.
Os exemplos podem ser sempre objetables. O importante é a teoria que esses exemplos
pretendem ilustrar. Mas ocorre que a teoria mesma não está nada clara. Parece-me, repito, que
Kant não clarificou adequadamente a significação das expressões ‘poder’ e 'não poder’ (querer),
‘ser capaz’ e ‘não ser capaz’ (de querer) aplicadas a que a máxima da conduta própria se converta
em lei universal. De todos modos, parece claro que por trás desses exemplos podemos ver a
convicção de que a lei moral é essencialmente universal, e que é inmoral fazer exceções em
favor de um mesmo por motivos egoístas. A razão prática ordena-nos levantar-nos/levantá-nos
acima de desejos e de máximas que choquem com a universalidade da lei.

6. O ser racional como fim em si mesmo.

Temos visto que segundo Kant há “só um” imperativo categórico, a saber: “Obra só segundo
a máxima pela qual possa ao mesmo tempo querer que essa máxima se converta em lei
universal”. Mas também temos visto que Kant dá outra formulación ao imperativo categórico, a
saber: “Obra como se a máxima de tua ação tivesse de converter por tua vontade em lei universal
da natureza”. E ainda dá mais formulaciones. Cinco, ao todo, segundo parece; mas Kant mesmo
diz-nos/dí-nos que são três. Assim afirma, por exemplo: “Os três modos dantes citados de
apresentar o princípio da moralidade são no fundo outras tantas fórmulas de uma mesma lei, a
cada uma das quais implica os outras dois”[493]. Portanto, ao dar várias formulaciones do
imperativo categórico Kant não se está contradizendo com sua anterior afirmação de que há “só
um” imperativo assim. Segundo diz-nos/dí-nos, as diferentes formulaciones pretendem acercar
à intuición uma ideia da razão por médio de uma verdadeira analogia, e acercá-la assim também
ao sentimento. A última formulación das agora trascritas utiliza uma analogia entre a lei moral
e a lei natural. E em outros locais Kant utiliza a fórmula seguinte: “Pergunta-te se poderia
considerar a ação que te propõe fazer como objeto possível de tua vontade se ocorresse segundo
uma lei natural em um sistema da natureza do que você mesmo fosse parte”[494]. Esta
fórmula[495] pode ser a mesma que o imperativo categórico em sua forma originaria, no sentido
de que esta é seu princípio, por assim o dizer; mas é óbvio que a ideia de sistema natural é um
acrescentado ao imperativo categórico tal como se expressa ao princípio.

Supondo que as duas formulaciones já mencionadas do imperativo categórico possam ser


considerado como uma só, chegamos depois à que Kant lume segundo formulación ou modo de
apresentar o princípio da moralidade. O desenvolvimento é um tañía complicado.
expusemos, diz-nos/dí-nos Kant, o conteúdo do imperativo categórico. “Mas não chegámos
a demonstrar que tenha um tal imperativo, que tenha uma lei prática da razão que de ordens
absolutas por si mesma e sem outros impulsos, nem que o obedecer a essa lei seja dever”[496].
Assim surge a questão de se é uma lei prática necessária (uma lei que imponha obrigação) para
todos os seres racionais o julgar sempre suas ações mediante máximas que eles possam querer
como leis universais. Se assim é efetivamente, então tem que ter uma conexão sintética a priori
entre o conceito da vontade de um ser racional como tal e o imperativo categórico.

O tratamento deste tema por Kant não é fácil de seguir e dá a impressão de ser muito pouco
preciso. Kant diz que o que serve à razão como fundamento objetivo da autodeterminação desta
é a finalidade. E se há um fim, uma finalidade, fixado pela razão só (e não pelo desejo subjetivo),
esse fim será válido para todos os seres racionais e servirá, portanto, de fundamento para um
imperativo categórico que vincule as vontades de todos os seres racionais. Esta finalidade não
pode ser um fim relativo afixado pelo desejo, pois tais fins dão só origem a imperativos
hipotéticos. Portanto, tem que ser um fim em si mesmo, com valor absoluto e não meramente
relativo. “Supondo que tivesse algo cuja existência tivesse valor absoluto em si mesma, algo
que, como fim em si mesmo, pudesse ser fundamento de leis determinadas, então o fundamento
de um possível imperativo categórico, ou seja, de uma lei prática, se encontraria em isso e só em
isso”[497]. Se há um princípio prático supremo que seja um imperativo categórico para a vontade
humana, “tem que ser tal que, derivado da concepção do que necessariamente é um fim para
todos, porque é um fim em si mesmo, constitua um princípio objetivo da vontade e possa deste
modo servir como lei prática universal”[498].

Há algum fim assim? Kant postula que o homem, e todo ser racional, é um fim em si mesmo.
Portanto, o conceito de ser racional como fim em si mesmo pode servir como fundamento do
princípio prático supremo, ou lei prática suprema. “O fundamento deste princípio é que a
natureza racional existe como fim em si... Portanto, o imperativo prático é: Obra de tal modo
que trate à humanidade, em tua pessoa ou na dos demais, sempre e ao mesmo tempo como um
fim e nunca meramente como um médio"[499] As palavras “ao mesmo tempo” e “meramente”
são de importância pelo seguinte: é impossível não fazer uso de outros seres humanos como
médios. Ao ir ao cabeleireiro, por exemplo, vai utilizar-se lhe como médio para um fim que não
é ele mesmo. Por isso a lei kantiana diz que inclusive nesses casos tenho de evitar tratar ao ser
racional meramente como médio, ou seja, como se não tivesse mais valor que o de médio para
minha finalidade subjetiva.

Kant aplica esta formulación do imperativo categórico aos mesmos casos que usou para
ilustrar a aplicação do imperativo em sua primeira formulación. O suicida que se destrói a si
mesmo para sustraerse a circunstâncias dolorosas se utiliza a si mesmo, que é uma pessoa, como
mero médio de um fim relativo, como é a manutenção de condições soportables até o fim da
vida. O homem que faz a promessa para obter um benefício quando não tem intenção da cumprir
ou sabe muito bem que não poderá a cumprir, utiliza ao homem ao que faz a promessa como
mero médio ao serviço de um fim relativo.

Podemos observar de passagem que Kant utiliza este princípio também em La Paz perpétua.
Um monarca que utiliza soldados em guerras de agressão empreendidas por seu próprio
engrandecimiento ou pelo de seu país utiliza seres racionais como meros meios para a obtenção
de um fim desejado. Por isso pensa Kant que os exércitos permanentes teriam de ser abolidos
com o tempo, porque o enrolar a homens para que matem ou sejam morridos implica um uso
deles como meros instrumentos em mãos do estado, e não pode ser reconciliado facilmente com
os direitos da humanidade, fundados no valor absoluto dos seres racionais como tais.

7. A autonomia da vontade.

A ideia de respeitar toda vontade racional como fim em si mesma e de não a tratar como
mero médio para a consecución do objeto dos próprios desejos nos conduz à “ideia da vontade
de todo ser racional assim que hacedor de lei universal”[500]. Em opinião de Kant a vontade do
homem considerado como ser racional tem que se respeitar como fonte do direito ao que
reconhece como universalmente vinculante. Este é o princípio da autonomia da vontade,
contraposto ao da heteronomía.

Tenho aqui, com maior ou menor precisão, um das propostas kantianos da autonomia da
vontade. Todos os imperativos condicionados pelo desejo ou a inclinação, pelo “interesse”,
como diz Kant, são imperativos hipotéticos. Portanto, um imperativo categórico tem que ser
incondicionado. E a vontade moral, que obedece ao imperativo categórico, não tem que estar
determinada pelo interesse, ou seja, não tem que ser heterónoma, não tem que estar a graça, por
assim o dizer, de desejos e inclinações que façam parte de uma série causalmente determinada.
Tem, pois, que ser autônoma. E dizer que uma vontade moral é autônoma é o mesmo que dizer
que ela se dá a si mesma a lei à qual obedece.

Agora bem, a ideia de imperativo categórico contém implicitamente a ideia de autonomia da


vontade. Mas esta autonomia pode ser expressado explicitamente na formulación do imperativo.
Neste caso temos o princípio “não fazer nunca senão segundo uma máxima que possa ser sem
contradição uma lei universal e, portanto, fazer sempre de tal modo que a vontade possa ser
considerado a si mesma ao mesmo tempo como hacedora de lei universal mediante sua
máxima”[501]. Na Crítica da razão prática o princípio expressa-se do modo seguinte: “Obra de
tal modo que a máxima de tua vontade possa ser sempre ao mesmo tempo válida como princípio
produtor de lei universal”[502].

Kant refere-se à autonomia da vontade chamando-a “princípio supremo da moralidade”[503]


e “único princípio de todas as leis morais e dos deveres correspondentes”[504]. Em mudança, a
heteronomía da vontade é “a fonte de todos os princípios espúreos da moralidade”[505]; longe de
poder fornecer a base da obrigação, a heteronomía da vontade “contrapõe-se ao princípio da
obrigação e à moralidade da vontade”[506].

Se aceitamos a heteronomía da vontade aceitamos também o suposto de que a vontade está


submetida a leis morais que não são resultado de sua própria legislação de vontade racional. E
embora já aludimos a algumas das teorias éticas que, segundo Kant, aceitam esse suposto, será
útil para clarificar o pensamento de Kant o nos referir de novo brevemente a elas. Na Crítica da
razão prática[507] Kant cita a Montaigne porque este funda os princípios da moralidade na
educação, a Mandeville porque os funda na constituição política, a Epicuro porque os funda na
sensação física (no prazer) e a Hutcheson porque os funda no sentimento moral. Todas essas
teorias são o que Kant lume subjetivas ou empíricas; as duas primeiras apelam a fatores
empíricos externos, as duas últimas a fatores empíricos internos. Há, por outra parte, teorias
objetivas ou racionalistas, ou seja, teorias que fundam a lei moral em ideias da razão, Kant se
refere a dois tipos destas teorias. O primeiro tipo, atribuído aos estoicos e Wolff, funda a lei e a
obrigação morais na ideia de perfección interna, enquanto o segundo, atribuído a Crusius, funda-
as na vontade de ‘ Deus. Kant recusa todas essas teorias. Kant não afirma que careçam de
significação moral nem que nenhuma delas tenha nada que contribuir à ética. Mas sustenta que
nenhuma delas é capaz de dar os princípios supremos da moralidade e a obrigação. Por exemplo,
à tese de que a norma da moralidade é a vontade de Deus se pode ainda responder com a pergunta
de por que temos de obedecer a Deus. Não diz Kant que não tenha que obedecer à vontade divina
manifesta, senão que, dantes disso, há que começar por reconhecer como dever a obediência a
Deus. Portanto, dantes de obedecer a Deus temos que legislar como seres racionais. A autonomia
da vontade moral é, consequentemente, o princípio supremo da moralidade.

Está claro que o conceito da autonomia da vontade moralmente legisladora não faz sentido
a não ser que façamos uma distinção no homem, entre o homem considerado puramente como
ser racional, como vontade •moral, e o homem como criatura submetida também a desejos e
inclinações que podem entrar em conflito com os ditados da razão. E isto é o que Kant pressupõe,
naturalmente. A vontade ou razão prática considerada como tal é a legisladora, e o homem,
considerado como submetido a uma diversidade de desejos, impulsos e inclinações, deve
obedecer.

Não há dúvida de que Kant estava em alguma medida influído por Rousseau em sua teoria
da autonomia da vontade. Como vimos, Rousseau distinguia entre a “vontade geral”, sempre
justa e fonte real das leis morais, e a vontade meramente privada, já tomada particularmente, já
tomada junto de outras vontades privadas na “vontade de todos”. E Kant utiliza essas ideias no
contexto de sua filosofia. Não é imprudente supor que a posição central dada por Kant em sua
ética ao conceito de boa vontade reflete, em alguma medida ao menos, a influência do estudo de
Rousseau.

8. O reino dos fins.

A concepção dos seres racionais como fins em si mesmos, unida à ideia da vontade racional
ou razão prática como legisladora moral, nos leva ao conceito do reino dos fins (ein Reich der
Zwecke). “Entendo por reino a união sistemática de seres racionais mediante leis comuns”[508].
E como tais leis têm em conta os relacionamentos que se estabelecem entre aqueles seres como
médios e fins, segundo a expressão de Kant, é razoável chamar ao conjunto reino dos fins. Um
ser racional pode pertencer a esse reino de dois modos. Pertence-lhe como membro se, ainda
dando ele mesmo leis, está também submetido a elas. E pertence-lhe como soberano ou cabeça
suprema (Oberhaupt) se ao legislar não está submetido à vontade de ninguém. Talvez deva ser
interpretado este passo de Kant no sentido de que todo ser racional é ao mesmo tempo membro
e soberano, pois nenhum ser racional está submetido à vontade de outro enquanto legisla. Mas
também é possível, e talvez mais provável, que Oberhaupt tenha de se entender como referente
a Deus. Pois Kant diz depois que um ser racional não pode ocupar o local de chefe supremo
mais que se é “um ser do todo independente, sem necessidades nem limitação do poder adequado
a sua vontade”[509].
Este reino dos fins tem de entender segundo uma analogia com o reino da natureza; as leis
auto-impostas do primeiro são análogas às leis causales do último. E, como observa Kant, é “só
um ideal”[510]. Mas ao mesmo tempo é uma possibilidade. “Seria efetivamente realizado por
máximas conforme com a lei prescrita pelo imperativo categórico para todos os seres racionais,
se essas máximas fossem seguidas universalmente[511]. E os seres racionais deveriam fazer como
se mediante suas máximas fossem membros legisladores de um reino dos fins. (Aqui temos,
pois, outra variante do imperativo categórico.) Podemos dizer que o ideal do desenvolvimento
histórico é a instauración real do reino dos fins.

9. A liberdade como condição da possibilidade de um imperativo


categórico.

O imperativo categórico diz que todos os seres racionais (todos os seres racionais sometibles
a algum imperativo) devem fazer de verdadeiro modo. Devem fazer só segundo aquelas
máximas que eles possam ao mesmo tempo querer, sem contradição, como leis universais. O
imperativo formula, pois, uma obrigação. Mas em opinião de Kant é uma proposição sintética a
priori. Por uma parte, a obrigação não pode ser obtido por mera análise do conceito de vontade
racional. E o imperativo categórico não é, portanto, uma proposição analítica. Por outra parte, o
pregado tem que estar necessariamente relacionado com o sujeito, pois, a diferença dos
hipotéticos, o imperativo categórico é incondicionado e vincula ou obriga necessariamente à
vontade a fazer de um modo determinado. É, efetivamente, uma proposição prática sintética a
priori. Isto significa que não alarga nosso conhecimento teorético dos objetos, como o fazem as
proposições sintéticas a priori que consideramos ao discutir a primeira Crítica. Orienta-se à
ação, à realização de ações boas em si mesmas, não a nosso conhecimento da realidade empírica.
Mas apesar disso é uma proposição ao mesmo tempo a priori — independente de todos os
desejos e inclinações — e sintética. Por isso se propõe a questão de como é possível esta
proposição prática sintética a priori.

Aqui temos uma questão parecida à proposta na primeira Crítica e nos Prolegómenos a toda
metafísica futura. Mas com uma diferença. Como vimos, não faz falta perguntar se são possíveis
as proposições sintéticas a priori da matemática e da física uma vez admitido que essas ciências
contêm proposições dessa classe. Pois o desenvolvimento mesmo de ditas ciências mostra a
possibilidade de tais proposições. A única pergunta pertinente é como são possíveis. Mas no
caso da proposição prática ou moral sintética a priori temos de começar, segundo Kant, por
deixar em claro sua possibilidade.

Parece-me que a proposta kantiano do problema pode confundir bastante. Não sempre é fácil
ver com precisão que problema está formulando Kant, pois o formula de modos diferentes e tais
que a equivalencia de suas significações não é evidente sem mais. Admitamos, no entanto, que
o problema consiste em buscar uma justificativa da possibilidade de uma proposição prática
sintética a priori. Em seu terminología, isso significa se perguntar pelo ‘‘terceiro termo” que
une o pregado com o sujeito ou, talvez mais precisamente, que possibilita uma conexão
necessária entre o pregado e o sujeito. Pois se o pregado não pode ser obtido do sujeito por mera
análise, então tem que ter um terceiro termo que os uma.
Este “terceiro termo” não pode ser nenhuma coisa do mundo sensível. Não podemos
estabelecer a possibilidade de um imperativo categórico por referência a nenhum elemento da
série causal dos fenômenos. A necessidade física nos daria heteronomía, enquanto estamos
precisamente buscando o que possibilita o princípio da autonomia. Kant acha-o na ideia de
liberdade. Kant busca a condição necessária da possibilidade da obrigação e da ação por mor do
dever, de acordo com um imperativo categórico; e acha essa condição necessária na ideia de
liberdade.

Podemos dizer breve e simplesmente que Kant acha “na liberdade” a condição da
possibilidade de um imperativo categórico. Mas em sua opinião não pode ser demonstrado a
existência da liberdade. Portanto, será provavelmente mais exato dizer que a condição da
possibilidade de um imperativo categórico tem de encontrar em “ a ideia da liberdade”. Com
isto não quer ser dito que a ideia da liberdade seja uma mera ficção em sentido corrente. Em
primeiro lugar, a Crítica da razão pura mostrou que a liberdade é uma possibilidade negativa,
no sentido de que a ideia da liberdade não contém nenhuma contradição lógica. E, em segundo
local, não podemos fazer moralmente, por mor do dever, mais que baixo a ideia de liberdade. A
obrigação, o “dever”, implica liberdade, a liberdade de obedecer ou desobedecer à lei. Nem
podemos considerar-nos/considerá-nos como hacedores de leis universais, como moralmente
autônomos, mais que baixo a ideia de liberdade. A razão prática ou a vontade de um ser racional
“tem de considerar-se a si mesma livre, ou seja, a vontade de um ser assim não pode ser vontade
própria mais que baixo a ideia da liberdade”[512]. A ideia de liberdade é, pois, praticamente
necessária; é uma condição necessária da moralidade. Por outra parte, a Crítica da razão pura
provou que a liberdade não é logicamente contradictoria, ao mostrar que tem de pertencer à
esfera da realidade nouménica e que a existência de uma tal esfera não é logicamente
contradictoria. E já que nosso conhecimento teorético não penetra nessa esfera, a liberdade não
é suscetível de demonstração teorética. Mas o suposto da liberdade é uma necessidade prática
para o agente moral, não uma mera ficção arbitrária.

A necessidade prática da ideia de liberdade implica, pois, que nos consideremos pertencentes
não só ao mundo do sentido, ao mundo regido pela causalidad determinada, senão também ao
mundo inteligible ou nouménico. O homem pode ser considerado a si mesmo desde dois pontos
de vista. Como pertencente ao mundo dos sentidos se encontra submetido às leis naturais
(heteronomía). Como pertencente ao mundo inteligible se encontra baixo leis que se fundam
exclusivamente na razão. “E assim os imperativos categóricos são possíveis porque a ideia de
liberdade me converte em membro de um mundo inteligible, em consequência do qual, e
supondo que eu não fosse mais que isso, todas minhas ações seriam sempre conforme com a
autonomia da vontade; mas já que ao mesmo tempo me intuyo como membro do mundo
sensível, a realidade é que minhas ações devem ser assim. E este “devem” categórico implica
uma proposição sintética a priori...”[513]

O assunto pode ser resumido do modo seguinte, utilizando palavras de Kant. “Portanto, a
questão de como é possível um imperativo categórico pode receber resposta na medida em que
possa ser esgrimido o único orçamento que o faz possível, a saber, a ideia de liberdade; e também
se pode discernir a necessidade desse orçamento, que é suficiente para o uso prático da razão,
ou seja, para a convicção da validade deste imperativo e, portanto, da lei moral. Mas nenhuma
razão humana pode discernir como é possível este orçamento mesmo. Mas supondo que a
vontade de uma inteligência é livre, então sua autonomia, a condição formal essencial de sua
determinação, é uma consequência necessária”[514]. Ao dizer que nenhuma razão humana pode
discernir a possibilidade da liberdade Kant se refere, desde depois, à possibilidade positiva. Não
temos penetração intuitiva na esfera da realidade nouménica. Não podemos demonstrar a
liberdade nem, portanto, podemos demonstrar a possibilidade de um imperativo categórico. Mas
podemos indicar a única condição com a qual é possível um imperativo categórico. E a ideia
desta condição é uma necessidade prática para o agente moral. E em opinião de Kant isto é do
todo suficiente para a moralidade, embora a imposibilidad de demonstrar a liberdade indica, sem
dúvida, as limitações do conhecimento teorético humano.

10. Os postulados da razão prática: a liberdade, a ideia kantiana do


bem perfeito, a imortalidade, Deus, a teoria geral dos postulados.

O dito a respeito da necessidade prática da ideia de liberdade leva-nos naturalmente à teoria


kantiana dos postulados da razão prática. Pois a liberdade é um deles. Os outros dois são a
imortalidade e Deus. Deste modo se reintroducen como postulados da razão em seu uso prático
ou moral as ideias que Kant considerava temas principais da metafísica, mas das que estimava
que trascienden as limitações da razão em seu uso teorético. E dantes de considerar a teoria
kantiana dos postulados em general pode ser útil estudar brevemente a cada um desses
postulados designadamente.

a) Não fica muito imprescindible que dizer a respeito da liberdade. Como vimos, a razão
humana não pode dar uma demonstração teorética de que o ser racional seja livre. Mas também
não pode ser mostrado que a liberdade seja impossível. E a lei moral obriga-nos a supor a
liberdade, autorizando-nos assim à admitir. A lei moral obriga-nos a isso na medida em que o
conceito de liberdade e o do princípio supremo da moralidade “estão tão inseparavelmente
unidos que é possível definir a liberdade prática como independência da vontade respecto de
todo o que não seja a lei moral exclusivamente”[515]. Por causa desta conexão inseparável diz-
se que a lei moral postula a liberdade.

Temos de notar a dificuldade da posição na que se situa Kant. Já que não há faculdade de
intuición intelectual, não podemos observar ações que pertençam à esfera nouménica; todas as
ações que podemos observar, sejam externas ou internas, têm de ser objetos dos sentidos
externos e internos. Isso quer dizer que todas elas são ações dadas no tempo e submetidas às leis
da causalidad. Portanto, não podemos estabelecer uma distinção entre dois tipos de ações
experienciadas, dizendo que estas são livres e aquelas determinadas. Se admitimos, pois, que o
homem, como ser racional, é livre, nos vemos também obrigados a sustentar que umas mesmas
ações podem ser determinadas e livres.

Desde depois que Kant percebe claramente a dificuldade. Se desejamos salvar a liberdade,
observa, “não nos fica mais caminho que atribuir a existência de uma coisa assim que
determinable no tempo, e portanto também seu causalidad segundo a lei da necessidade natural,
à mera aparência, e atribuir ao mesmo tempo libertem precisamente a esse mesmo ser assim
que coisa-em-si”[516]. E então pergunta-se: “Como é possível chamar completamente livre a um
homem no mesmo momento e respecto da mesma ação na qual está submetido a uma inevitável
necessidade natural?”[517] Dá uma resposta a base das condições temporárias. Na medida em
que a existência de um homem está submetida às condições do tempo, suas ações fazem parte
do sistema mecânico da natureza e estão determinadas por causas antecedentes. “Mas esse
mesmo sujeito, que por outro lado é consciente de si mesmo como coisa-em-si, considera sua
existência também assim que não sujeita às condições do tempo e se contempla como
exclusivamente determinable por leis que ele se dá por médio da razão”[518]. Ser determinable
só por leis auto-impostas é ser livre.

Na opinião de Kant o depoimento da consciência apoia esta tese. Quando contemplo como
passados atos meus que foram contrários à lei moral tendo aos atribuir a fatores causales que me
desculpem. Mas fica em pé o sentimento de culpa; e a razão disso é que quando se trata da lei
moral, da lei de minha existência suprasensible e supratemporal, a razão não reconhece
diferenças de tempo. Reconhece simplesmente que a razão é minha, sem referência ao tempo de
sua realização.

Apesar de tudo é difícil a tese de que o homem é nouménicamente livre e empiricamente


determinado respecto das mesmas ações. Mas com toda sua dureza é uma tese que Kant, dadas
suas premisas, não pode obviar.

b) Dantes de enfrentar-nos/enfrentá-nos diretamente com o segundo postulado da razão


prática, a imortalidade, faz falta dizer algo a respeito da concepção kantiana do summum bonum,
do bem sumo. Pois sem conhecer algo o que Kant pensa deste tema é impossível seguir sua
doutrina dos postulados segundo e terceiro (o terceiro é Deus).

A razão busca uma totalidade incondicionada também em sua função prática. E isso significa
que busca a totalidade incondicionada do objeto da razão prática ou vontade, objeto ao qual se
dá o nome de summum bonum. Mas este termo é ambiguo. Pode significar o bem supremo ou
mais alto no sentido do bem que não é condicionado. E pode significar o bem perfeito no sentido
de um todo que não é a sua vez parte de outro todo maior. A virtude é o bem supremo e
incondicionado. Mas disso não se segue que seja o bem perfeito no sentido de objeto total dos
desejos de um ser racional. E em concreto a felicidade tem que incluir no conceito de bem
perfeito. Assim, pois, se por summum bonum entendemos o bem perfeito, este tem de incluir
virtude e felicidade.

É muito importante entender a opinião de Kant a respeito do relacionamento entre esses dois
elementos do bem perfeito. A conexão entre eles não é lógica. Se fosse lógica ou analítica, como
diz Kant, o esforço por ser virtuoso, por fazer com que a vontade própria concorde perfeitamente
com a lei moral, seria o mesmo que a busca racional da felicidade. E Kant não pode ser contradito
com sua convicção, constantemente repetida, de que a felicidade não é nem pode ser o
fundamento da lei moral. Portanto, a conexão entre os dois elementos do bem perfeito é sintética,
no sentido de que a virtude produz felicidade como a causa produz o efeito. O summum bonum
“significa o bem íntegro, o bem perfeito no qual, empero, a virtude, como condição, é sempre o
bem supremo, porque não tem a sua vez condição alguma; enquanto a felicidade, embora sem
dúvida agradável para o que a possui, não é absolutamente boa por si mesma, nem em todo
respecto, senão que sempre pressupõe como condição o comportamento moralmente bom”[519].
Assim, pois, não pode ser descoberto por análise a verdade da proposição de que a virtude e
a felicidade constituem os dois elementos do bem perfeito. O homem que busca a felicidade não
pode descobrir mediante a análise dessa ideia que é um homem virtuoso. Nem o homem
virtuoso, pese ao que disseram os estoicos, pode descobrir que é feliz pela mera análise da ideia
de ser virtuoso. As duas ideias são diferentes. Mas ao mesmo tempo a proposição, embora
sintética, é a priori. A conexão entre a virtude e a felicidade é praticamente necessária, no
sentido de que reconhecemos que a virtude deve produzir felicidade. Não podemos dizer, desde
depois, que o desejo de felicidade seja o motivo da busca da virtude. Pois dizer isso seria
contradictorio com a ideia de fazer por mor do dever, e substituiria a autonomia da vontade por
sua heteronomía. Mas temos de reconhecer a virtude como causa eficiente da felicidade. Pois a
lei moral ordena-nos, segundo Kant, promover o summum bonum no qual a virtude e a felicidade
se relacionam como a condição ao condicionado, a causa ao efeito.

Mas como é possível sustentar que a virtude produz necessariamente felicidade? A evidência
empírica não parece apoiar uma afirmação assim. Embora às vezes ocorra que a virtude e a
felicidade se manifestam juntas, o fato é do todo contingente. Assim parece que se nos imponha
uma antinomia. Por um lado, a razão prática exige uma conexão necessária entre a virtude e a
felicidade. Por outro lado, a evidência empírica mostra que não há tal conexão necessária.

A solução kantiana dessa dificuldade consiste em mostrar que a afirmação de que a virtude
produz necessariamente felicidade é falsa só condicionalmente. Ou seja, que é falsa só com a
condição de que consideremos que a única existência que pode ter um ser racional é a existência
neste mundo, e aquela afirmação, portanto, no sentido de que a virtude exerce neste mundo uma
causalidad produtiva de felicidade. O enunciado de que a busca de felicidade produz virtude
seria absolutamente falso; mas o enunciado de que a virtude produz felicidade é falso não
absolutamente, senão só condicionalmente. Pode, pois, ser verdadeiro se está justificado o
pensar que um existe não só como objeto físico neste mundo sensível, senão também como
nóumeno em um mundo inteligible e suprasensible. E a lei moral, inseparavelmente unida com
a ideia de liberdade, exige que se cria isso. Temos, pois, de admitir que a realização do summum
bonum é possível, e que o primeiro elemento, a virtude, que é o bem supremo ou mais alto,
produz o segundo elemento, a felicidade, se não imediatamente, sim ao menos mediatamente
(através da mediação de Deus).

c) A concepção da existência em outro mundo ficou já aludida no que se acaba de dizer. Mas
Kant propõe-se explicitamente o problema do postulado da imortalidade por médio de uma
consideração do primeiro elemento do bem perfeito, a virtude.

A lei moral manda-nos promover o summum bonum, o qual é objeto necessário da vontade
racional. Isto não quer dizer que a lei moral nos ordene buscar a virtude porque esta causa a
felicidade. Ocorre simplesmente que a razão prática nos ordena buscar a virtude, a qual causa a
felicidade. Agora bem: a virtude à que se nos ordena aspirar é segundo Kant a concordancia
perfeita da vontade e o sentimento com a lei moral. Mas esta concordancia completa com a lei
moral é a santidad, “uma perfección da qual não é capaz nenhum ser racional do mundo sensível
em nenhum momento de sua existência”[520]. Portanto, se a virtude perfeita é ordenada pela
razão em seu uso prático e, ao mesmo tempo, não é alcanzable por nenhum ser humano em
nenhum momento, então o elemento primeiro do bem perfeito se tem que realizar na forma de
um progresso indefinido, infinito, para o ideal. “Mas este progresso infinito não é possível mais
que sobre a base do suposto de uma duração infinita da existência e da personalidade do mesmo
ser racional, e isto se chama imortalidade da alma”[521]. Já que a consecución do primeiro
elemento do summum bonum cuja obtenção é mandamiento da lei moral só é possível supondo
que o alma é imortal, a imortalidade da alma se apresenta como postulado da razão pura prática.
Não é demostrable pela razão em seu uso teorético, o qual só pode mostrar que a imortalidade
não é logicamente impossível. Mas já que a ideia de imortalidade está inseparavelmente
conectada com a lei moral, há que postular a imortalidade. Negar isto é, à longa, negar a lei
moral mesma.

Suscitaram-se objeciones muito várias contra a doutrina kantiana do segundo postulado.


Disse-se, por exemplo, que é uma doutrina autocontradictoria. Pois, por uma parte, a
consecución da virtude tem que ser possível, já que é ordenada pela razão prática; portanto, se
não pode ser atingido nesta vida, tem que ter outra vida na que possa ser conseguido. Mas, por
outra parte, a virtude não é alcanzable nunca, nem nesta vida nem em nenhuma outra. Não há
mais que um processo infinito para um ideal inalcanzable. Parece, pois, que a lei moral ordene
o impossível. Também se tem objetado que não podemos considerar a consecución da santidad
como um mandamiento da lei moral. Mas, qualquer que seja a força destas objeciones, o fato é
que Kant deu muita importância a essa ideia da lei moral que ordena a santidad como meta ideal.
Em sua opinião, a negación dessa ordem implica uma degradação da lei moral, um rebajamiento
dos critérios com o fim de adecuarlos à debilidade da natureza humana.

d) A mesma lei moral que nos move a postular a imortalidade como condição da obediência
ao mandamiento que nos impõe buscar a santidad nos move também a postular a existência de
Deus como condição da conexão sintética necessária entre virtude e felicidade.

Kant descreve a felicidade como “o estado de um ser racional no mundo, tal que na totalidade
de sua existência tudo procede segundo seu desejo e sua vontade”[522]. A felicidade depende,
pois, da harmonia entre a natureza física e o desejo e a vontade do homem. Mas o ser racional
que está no mundo não é autor do mundo, nem pode governar a natureza de tal modo que se
estabeleça aliás uma conexão necessária entre a virtude e a felicidade, com a última
proporcionada à primeira. Portanto, se há uma conexão sintética a priori entre a virtude e a
felicidade, no sentido de que a felicidade tenha de seguir à virtude e ser proporcionada a ela
como a sua condição, temos de postular “a existência de uma causa do tudo da natureza, que
seja diferente da natureza e contenha o fundamento dessa conexão, a saber, da harmonia exata
da felicidade com a moralidade”[523].

Dito ser tem que ser concebido como capaz de proporcionar a felicidade à moralidade
segundo a concepção do direito. A felicidade deve ser proporcionado à moralidade segundo o
grau no qual os seres racionais finitos façam da lei moral o princípio determinante de seu
volición. Mas um ser capaz de atuar segundo a concepção do direito ou a lei é um ser inteligente
ou racional, e seu causalidad será sua vontade. Portanto, o ser postulado como causa da natureza
tem de se conceber como ativo pela inteligência e a vontade. Dito de outro modo: tem de ser
concebido como Deus. Ademais, temos de conceber a Deus como omnisciente, já que Lhe
vemos como ciente de todos nossos estados internos; e como omnipotente, já que se Lhe concebe
como capaz de levar a existência um mundo no qual a felicidade esteja exatamente
proporcionada à virtude; e assim sucessivamente pelo que faz aos demais atributos.

Kant recorda-nos que não está afirmando neste contexto o que negou na primeira Crítica, a
saber, que a razão especulativa possa demonstrar a existência e os atributos de Deus. A admissão
da existência de Deus é, desde depois, uma admissão pela razão; mas esta admissão é um ato de
fé. Podemos dizer que é uma fé prática, já que vai vinculada com o dever. Temos o dever de
promover o summum bonum. Portanto, podemos postular sua possibilidade. Mas não podemos
conceber realmente a possibilidade de que se realize o bem perfeito senão supondo que existe
Deus. Portanto, embora a lei moral não nos impõe diretamente a fé em Deus, se encontra na base
desta fé.

e) Como observa Kant, os três postulados têm em comum o fato de que “procedem todos
eles do princípio da moralidade, o qual não é um postulado, senão uma lei”[524]. Mas apresenta-
se o problema de se pode ser dito que esses postulados alarguem nosso conhecimento. Kant
contesta: “Certamente, mas só desde um ponto de vista prático”[525]. O enunciado habitual de
sua concepção é que os postulados aumentam nosso conhecimento não desde o ponto de vista
teorético, senão exclusivamente desde o ponto de vista prático. Com tudo, não está em modo
algum claro que quer dizer isso. Se Kant quer dizer só que é praticamente útil, no sentido de
moralmente beneficioso, o fazer como se fôssemos livres, como se tivéssemos alma imortal e
como se tivesse Deus, sua concepção não ofereceria grandes dificuldades, independentemente
de que nos convencesse ou não, desde o ponto de vista intelectual. Mas em realidade Kant parece
ter pensado algo bem mais complexo que isso.

Pois diz-nos/dí-nos, efetivamente, que nem a alma livre e imortal nem Deus estão dados
como objetos da intuición e que “não há, por tanto, ampliação do conhecimento de objetos
suprasensibles dados”[526]. O qual não parece ser mais que uma tautología. Pois se Deus e a
alma não são objetos dados, está claro que não podemos os conhecer como objetos dados. Mas
depois Kant diz-nos/dí-nos também que, embora Deus e a alma livre e imortal não são dados
como objetos de nenhuma intuición intelectual, no entanto, o conhecimento que a razão teorética
tem do suprasensible fica aumentado no sentido de que se vê obrigada a admitir “que há tais
objetos”[527]. Ademais, dada a segurança que a razão prática tem da existência de Deus e da
alma, a razão teorética pode pensar essas realidades suprasensibles por médio das categorias; e
estas, assim aplicadas, “não são vazias, senão que têm significação”[528]. Sem dúvida insiste
Kant em que as categorias não podem ser utilizado para conceber de modo determinado o
suprasensible “mais que na medida em que o suprasensible se define por pregados
necessariamente conexos com a finalidade prática pura dada a priori e com a possibilidade
desta”.[529] Mas fica o fato de que por médio da ajuda fornecida pela razão prática, ideias que
para a razão especulativa eram só regulatórias tomam uma forma determinada como modos de
pensar as realidades suprasensibles, embora essas realidades não sejam dadas como objetos da
intuición, senão afirmadas por causa de seu relacionamento com a lei moral.

Por isso me parece possível sustentar que Kant está substituindo por um tipo novo de
metafísica a metafísica que recusou na Crítica da razão pura. No caso das ideias do eu
trascendental e de Deus, a razão especulativa pode lhes dar corpo, por assim o dizer, graças à
razão prática. E isto é possível porque a razão prática tem uma posição de prevalência quando
cooperam as duas.[530] “Se a razão prática não pudesse supor e pensar como dado mais que o
que a razão especulativa lhe pode oferecer por si mesma, então seria esta a que predominaría.
Mas se admitimos que a razão prática tem princípios a priori próprios seus que implicam
necessariamente certas teses teoréticas, embora ao mesmo tempo estão sustraídos a toda visão
possível da razão especulativa (à qual, empero, não têm de contradizer), então se propõe o
problema de qual é o interesse superior (não qual tem que ceder, pois não têm por que entrar
necessariamente em conflito)...”[531] “Tudo isto significa que a questão consiste em saber se tem
de prevalecer o interesse da razão especulativa, recusando determinadamente todo o que proceda
de fonte diferente de si mesma, ou o interesse da razão prática, de tal modo que a razão
especulativa recolha as proposições que lhe oferece a razão prática e tente “as combinar com
seus próprios conceitos”.[532] Em opinião de Kant tem de prevalecer o interesse da razão prática.
Verdadeiro que isso não pode ser mantido se a razão prática se considera em dependência de
inclinações e desejos sensíveis. Pois neste caso a razão especulativa teria que recolher toda classe
de fantasías arbitrárias. (Kant menciona a ideia mahometana do Paraíso.) Dito de outro modo,
Kant não se propõe animar ao simples pensamento desiderativo. Mas se a razão prática entende-
se como a mesma razão pura em sua capacidade prática, ou seja, assim que julga segundo
princípios a priori, e se se comprova que há certas teses ou posições teoréticas inseparavelmente
vinculadas com o exercício da razão pura em seu uso prático, então a razão pura em seu uso
teorético tem de aceitar essas posições e tem de tentar as pensar coerentemente. Se não aceitamos
essa primacía da razão prática, teremos que admitir um conflito dentro da razão mesma, pois a
razão pura prática e a razão pura especulativa são fundamentalmente uma só e a mesma razão.

Também o fato de que admita diferenças de grau no conhecimento prático me parece indicar
claramente que Kant está construindo uma nova metafísica baseada na consciência moral. A
ideia de liberdade está tão unida com os conceitos de lei e dever morais que não podemos admitir
a obrigação e negar a liberdade. “Devo” implica "posso” (isto é, posso obedecer ou
desobedecer). Mas não podemos dizer que a concepção do summum bonum ou bem perfeito
implique a existência de Deus igual que a obrigação implica liberdade. A razão não pode decidir
com certeza absoluta se a proporcionalización da felicidade à virtude implica a existência de
Deus. Isto é: a razão não pode negar absolutamente a possibilidade de que a ação das leis
naturais, sem a suposição de um Criador sábio e bom, produza uma situação na que se realize
essa proporcionalidade. Há, pois, um espaço para a decisão, para a fé prática, que descansa em
um ato da vontade. Não podemos demonstrar a liberdade, a qual é por tanto e em verdadeiro
sentido um objeto de fé. Mas fica o fato de que não podemos aceitar a existência da lei moral e
negar a liberdade, enquanto é, em mudança, possível aceitar a existência da lei moral e ficar em
dúvida respecto da existência de Deus, embora a fé nesta seja mais concorde com as exigências
da razão.

Por todo isso seria errôneo dizer que Kant recusa lisa e claramente a metafísica. É verdade
que recusa a metafísica dogmática assim que construção a priori baseada em princípios
teoréticos a priori, ou assim que prolongamento ou extensão da explicação científica dos
fenômenos. Mas embora não chame “metafísica” à teoria geral dos postulados, esta o é em
realidade: é uma metafísica baseada na consciência moral da lei e a obrigação. Não nos tenta
nenhuma intuición da realidade suprasensible, e seus argumentos estão condicionados pela
validade da consciência moral e a análise kantiano da experiência moral. Mas há, de todos
modos, posições razonadas pelo que faz à realidade suprasensible. E por isso é perfeitamente
lícito falar de uma “metafísica” kantiana.

11. Ideias de Kant a respeito da religião.

Temos visto que, segundo Kant, a moralidade não pressupõe a religião. Ou seja, o homem
não precisa a ideia de Deus para ser capaz de reconhecer seu dever, e o motivo último da ação
moral é o dever pelo dever mesmo, não a obediência aos mandamientos divinos. Mas, por outra
parte, a moralidade conduz à religião. “Através da ideia do ser supremo como objeto e fim último
da razão pura prática, a lei moral conduz à religião, isto é, ao reconhecimento de todos os deveres
como mandamientos divinos, não como sanções, como ordens arbitrárias de uma vontade
alheia, contingentes em si mesmas, senão como leis essenciais de toda vontade livre em si
mesma, mas que, de todos modos, se têm de entender como mandamientos do Ser supremo
porque só de uma vontade moralmente perfeita (santa e boa) e, ao mesmo tempo, omnipotente,
e, portanto, só pela harmonia com essa vontade, podemos esperar atingir o bem supremo que a
lei moral nos impõe o dever de nos pôr como objeto de nosso esforço.”[533] A lei moral ordena-
nos fazer-nos/fazê-nos dignos da felicidade, não que sejamos ou nos façamos felizes. Mas como
a virtude produz felicidade e como esta realização do summum bonum não pode ser conseguido
senão por ação divina, podemos esperar a felicidade por médio da ação divina, de um Deus cuja
vontade, como vontade santa, deseja que Suas criaturas sejam dignas da felicidade, enquanto,
assim que vontade omnipotente, pode lhes facilitar essa felicidade. “A esperança da felicidade
começa com a religião”.[534]

Este ponto de vista volta a apresentar na religião dentro dos limites da mera razão (1793).
O prólogo à primeira edição desta obra começa do modo seguinte: “A moralidade, assim que
fundada no conceito do homem como ser livre, mas que ao mesmo tempo se submete por sua
razão a leis absolutas, não precisa a ideia de outro ser situado acima do homem para que este
reconheça seu dever, nem precisa nenhum motivo mais que a lei mesma para que o homem
cumpra com dito dever”.[535] Mas, por outra parte, a questão do resultado final da ação moral e
da harmonização possível das ordens moral e natural não pode ser coisa indiferente para a razão
humana. E à longa “a moralidade conduz inevitavelmente à religião”,[536] pois só pela mediação
divina pode ser tido aquela harmonização.

A religião verdadeira consiste segundo Kant em “ que em todos nossos deveres


consideremos a Deus como o legislador universal ao que se deve reverencia”.[537] Mas que quer
dizer reverenciar a Deus? Quer dizer obedecer à lei moral, fazer pelo dever mesmo. Dito de
outro modo: Kant dava escasso valor às práticas religiosas, assim que expressões da adoración
e a oração, e igual às privadas que às públicas. Esta atitude resume-se nas palavras seguintes,
com frequência citadas: “Todo o que o homem se considera capaz de fazer para comprazer a
Deus, como não seja uma vida moral, é mera ilusão religiosa e espúrea adoración de Deus”.[538]

Como é natural, essa indiferença respecto das práticas religiosas no sentido ordinário da
palavra vai junta com a indiferença respecto das variedades dogmáticas da religião. Mas trata-
se das variedades assim que tais. Pois, de acordo com sua substância, uns credos serão
eliminados por incompatíveis com a verdadeira moralidade, enquanto outros serão inaceitáveis
para a razão pura. Mas Kant recusa, em todo caso, a ideia de uma revelação única das verdades
religiosas, e ainda mais a ideia de uma Igreja autoritaria que afirme poder custodiar e interpretar
a revelação. Não digo que recusasse simplesmente a ideia de uma Igreja Cristã visível, com uma
fé baseada nas Escrituras, pois explicitamente não o fez. Mas a Igreja visível não é para ele mais
que uma aproximação ao ideal da Igreja invisível universal, a qual é, ou seria, a união espiritual
de todos os homens na virtude e o serviço moral a Deus.

Não me proponho discutir o tratamento kantiano dos diversos dogmas cristãos.[539] Mas
talvez valha a pena observar que Kant mostra uma marcada tendência a eliminar, por assim o
dizer, as associações históricas que acarretam certos dogmas, e a descobrir para estes
significações que encaixem bem com sua própria filosofia. Assim, por exemplo, não nega o
pecado original, senão que, pelo contrário, o afirma contra os que imaginam que o homem é
naturalmente perfeito. Mas as ideias de uma Queda histórica e de um pecado herdado
substituem-se pela noção de uma propensión básica do homem a fazer por mero egoísmo e sem
consideração das leis morais universais, propensión que é um fato empírico do que não podemos
dar uma explicação suficiente, embora a Biblia a dá em linguagem imaginativo. Deste modo
afirma Kant o dogma, no sentido de que o admite verbalmente, enquanto ao mesmo tempo o
interpreta por via racionalista, de tal modo que pode recusar, por um lado, a doutrina protestante
extrema da depravación da natureza humana e, por outra parte, as teorias otimistas da perfección
natural do homem. Esta tendência a conservar os dogmas cristãos dando-lhes uma interpretação
racionalista se manifestará bem mais evidentemente em Hegel. Mas este último, com seu
razonada distinção entre os modos de pensar característicos da religião e da filosofia, produziu
uma filosofia da religião bem mais profunda que a de Kant.

Portanto, podemos dizer que a interpretação kantiana da religião era de caráter moralista e
racionalista. Mas, embora essa afirmação esteja justificada, pode induzir a erro. Pois pode
sugerir que o conteúdo da verdadeira religião, tal como o entende Kant, não conta entre seus
elementos o que podemos chamar piedade ante Deus. E isto não é verdade. É verdade que Kant
mostra muito pouca simpatia pela mística: mas já temos visto que para ele a religião significa o
entendimento de nossos deveres como mandamientos divinos (no sentido, ao menos, de que o
cumprimento deles harmoniza com a finalidade querida pela santa vontade de Deus como fim
último da criação). E no Opus postumum aparece a concepção da consciência do dever como
consciência da presença divina. É impossível, desde depois, saber como desenvolveria e
sistematizado Kant as várias ideias contidas nas notas que compõem este volume postumo. Mas
parece que embora conservava intata a ideia de que a lei moral é a única via válida de acesso à
fé em Deus, Kant estava acentuando a noção de inmanencia de Deus e a concepção de que nossa
percepción da liberdade e da obrigação moral é percepción da presença divina.

12. Observações finais.

Não me parece possível negar que há uma verdadeira grandeza na teoria ética de Kant. Sua
exaltação radical, sem compromissos, do dever, e seu insistencia no valor da personalidade
humana são rasgos que sem dúvida merecem respeito. Ademais, uma grande parte do que Kant
diz encontra eco genuíno na consciência moral. Assim, por exemplo, e pese a todas as diferenças
nas concretas convicções morais, é rasgo comum de toda consciência moral a convicção de que
os problemas se produzem quando as consequências não têm, em algum sentido ao menos,
significação direta, e a lei moral tem que ser obedecida quaisquer sejam suas consequências.
Todo o que tem uma convicção moral sente, por usar uma linguagem popular, que há que traçar
uma linha de separação, embora não todos possam ser posto de acordo respecto do local
adequado para a traçar. A máxima fiat iustitia, ruat coelum[540] pode ser entendido muito
facilmente como expresiva da visão moral do homem corrente. E Kant chamou acertadamente
a atenção a respeito do caráter universal da lei moral. O fato de que sociedades e indivíduos
diferentes tenham ideias morais algo diversas não altera o outro fato de que o julgamento moral
como tal pretende sempre validade universal. Quando digo que devo fazer tal ou qual coisa
afirmo ao menos implicitamente que qualquer outra pessoa posta na mesma situação teria que
fazer do mesmo modo, pois o que digo é que o justo é o fazer. Até o que adota uma teoria
“emocional” da ética tem que explicar essa pretensão de universalidade do julgamento moral. A
afirmação de que devo realizar a ação X é obviamente, neste e em outros respectos, de tipo
diferente do do enunciado de que gosto das azeitonas, e assim há que o reconhecer embora se
entenda o primeiro como expressão de uma emoção ou de uma atitude, e não como a aplicação
de um princípio supremo da razão.[541]

Mas, por outra parte e embora reflete em certa medida a consciência moral, a teoria ética de
Kant está exposta a objeciones sérias. É fácil entender por que Hegel e outros criticaram a
explicação kantiana do princípio supremo da moralidade se baseando em sua formalismo, em
seu caráter formal. É verdade que, desde verdadeiro ponto de vista, as objeciones opostas à teoria
ética de Kant em razão de sua formalismo e sua “vaciedad” carecem de sentido. Pois na ética
pura, distinguida da aplicada, Kant queria precisamente achar o elemento “formal” do
julgamento moral, prescindiendo da “matéria” empiricamente dada. E daí ia ser o elemento
formal senão um elemento formal? Ademais: que valor tem o reproche de formalismo, dado que
o imperativo categórico, embora aplicável ao material empiricamente dado, não foi nunca
proposto por Kant como premisa da dedução de concretas regras de conduta mediante a mera
análise deductivo? O imperativo categórico tem de servir como critério ou pedra de toque da
moralidade de nossos princípios subjetivos de volición, não como premisa de uma dedução
analítica que levasse até um concreto código moral. Mas o que passa é que então se propõe a
questão de se o princípio kantiano da moralidade pode realmente servir de critério ou pedra de
toque. Já dantes observámos a dificuldade innegable à hora de tentar entender com precisão de
que se está falando quando se diz que um agente racional “é capaz de ” ou “não é capaz de ”,
“pode” ou “não pode” querer que suas máximas se convertam em lei universal. E pode
perfeitamente ocorrer que essa dificuldade tenha que ver com a abstração e a vaciedad do
imperativo categórico.

Alguns filósofos opuseram-se ao racionalismo de Kant, a sua ideia de que a lei moral se base
em última instância na razão e de que seus princípios supremos sejam promulgados por esta.
Mas suponhamos que Kant tenha razão em sua opinião de que a lei moral é promulgada pela
razão. Então propõe-se o problema de se, como ele pensava, o conceito de dever possui primacía
absoluta ou bem é primeiro o conceito de bem, e o de dever lhe é subordinado. E aparte de
qualquer outra consideração, pode ser sustentado que a segunda tese é mais adequada como
enquadramento interpretativo da consciência moral. É verdade que toda teoria teleológica da
ética que tome a forma do utilitarismo, do de Bentham, por exemplo, fica aberta à objeción de
que converte o julgamento especificamente moral em um julgamento empírico não moral, o que
quer dizer que explica a moral pelo procedimento de anularia. Mas com isso não está dito que o
mesmo tenha de ser verdade respecto de toda interpretação teleológica da moral. E não pode ser
dito que Kant resolva definitivamente a questão pelo que faz a outras éticas teleológicas.

Quanto à filosofia kantiana da religião, encontra-se manifestamente, em vários de suas


feições, baixo a influência do Iluminismo. Assim, por exemplo, ao interpretar a consciência
religiosa Kant dá demasiado pouca importância às religiões históricas, à religião tal como
efetivamente existiu. Hegel tentaria mais tarde pôr remédio a este defeito. Mas, considerada em
seu conjunto, a filosofia kantiana da religião é claramente um elemento de sua tentativa geral de
reconciliar o mundo da física newtoniana, o mundo da realidade empírica regida por leis causales
que excluem a liberdade, com o mundo da consciência moral, que é o mundo da liberdade. Por
si mesma, a razão teorética só nos pode dizer que não vê nenhuma imposibilidad no conceito de
liberdade nem na ideia de uma realidade nouménica, supraempírica. O conceito da lei moral,
por sua conexão indestructible com a ideia de liberdade, dá-nos a segurança prática da existência
dessa realidade e de nosso pertence a ela assim que seres racionais. E a razão teorética, sobre a
base dessa segurança, pode tentar pensar a realidade nouménica na medida em que a razão
prática legitima nossa suposição ao respecto. Mas, pelo que nós sabemos, só Deus é capaz de
realizar a harmonização última dos dois reinos. Portanto, se o “interesse” da razão prática tem
de prevalecer, e se a lei moral exige, implicitamente ao menos, esta harmonização última, temos
justificativa suficiente para realizar um ato de fé em Deus, embora a razão, em sua função
teorética, seja incapaz de demonstrar que Deus existe.

Mas embora estejamos legitimados para atender à religião e para esperar de Deus a criação
de uma situação na qual a felicidade seja patrimônio da virtude, é óbvio que aqui e agora não
contamos mais que com uma yuxtaposición do reino da necessidade natural e o reino da
liberdade. Na medida em que a razão nos diz que não há imposibilidad lógica neste último reino,
podemos dizer que os dois são logicamente compatíveis. Mas é difícil que isto satisfaça as
exigências da reflexão filosófica. Pois, antes de mais nada, a liberdade expressa-se em ações que
pertencem à ordem empírico, natural. E o espírito deseja achar alguma conexão entre as duas
ordens ou reinos. Talvez não seja capaz de achar uma conexão objetiva, no sentido de que não
possa demonstrar teoréticamente a existência de uma realidade nouménica, nem mostrar com
precisão como se relacionam objetivamente a realidade empírica e a nouménica. Mas o espírito
busca ao menos uma conexão subjetiva, no sentido de uma justificativa, para ele mesmo, da
transição do modo de pensar concorde com os princípios da natureza ao modo de pensar
concorde com os princípios da liberdade.

Mas para dar com o tratamento kantiano deste tema temos de considerar a terça crítica, a
Crítica da faculdade de julgar ou, como se costuma traduzir abreviadamente, Crítica do
julgamento.
Capítulo XV
Estética e teleología.

1. A função mediadora do julgamento.

Ao final do anterior capítulo aludiu-se à necessidade de algum princípio de conexão, ao


menos no terreno do espírito, entre o mundo da necessidade natural e o mundo da liberdade. A
esta necessidade refere-se Kant na introdução à Crítica do julgamento.[542] Entre o domínio do
conceito de natureza ou realidade sensível e o domínio do conceito de liberdade, ou realidade
suprasensible, há um abismo de tal natureza que não é possível nenhuma transição do primeiro
ao segundo por médio do uso teorético da razão. Parece, pois, que há dois mundos separados,
nenhum dos quais pode influir no outro. Mas o mundo da liberdade tem de ter uma influência
no mundo da natureza se é que os princípios da razão prática têm de realizar na ação. Portanto,
tem de ser possível pensar a natureza de tal modo que seja compatível, pelo menos, com a
possibilidade de atingir nela fins em harmonia com as leis da liberdade. Portanto, tem que ter
algum fundamento ou princípio de unidade que “faça possível te transição do modo de pensar
concorde com os princípios do um (o mundo) ao modo de pensar concorde com os princípios
do outro”.[543] Dito de outro modo: buscamos um elo de enlace entre a filosofia teorética,
telefonema por Kant filosofia da natureza, e a filosofia moral ou prática que se funda no conceito
de liberdade. E Kant encontra esse elo de enlace em uma Crítica do julgamento que é “um médio
para unir em um todo as duas partes da filosofia”.[544]

Para explicar por que Kant apela agora a um estudo do julgamento para achar o enlace que
busca há que começar por aludir a sua teoria das potências ou faculdades do espírito. Em uma
tabela que se encontra ao final da Crítica do julgamento [545] Kant distingue três potências ou
faculdades do espírito.[546] São a faculdade cognoscitiva em general, a faculdade de sentir prazer
ou desgosto e a faculdade de desejar. Isto sugere em seguida a ideia de que o sentimento medie
de alguma maneira entre o conhecimento e o desejo. Depois distingue Kant três faculdades
cognoscitivas, a saber, o entendimento (Verstand), a faculdade de julgar ou julgamento
(Urteilskraft) e a razão (Vernunft). E isto também sugere que o julgamento média em algum
sentido entre o entendimento e a razão, e que tem algum relacionamento com o sentimento.

Na Crítica da razão pura estudámos as categorias e os princípios a priori do entendimento,


os quais exercem uma função “constitutiva” e possibilitam um conhecimento de objetos, da
natureza. Também considerámos as ideias da razão pura segundo sua capacidade especulativa,
com a que exercem uma função “regulativa”, não constitutiva. E na Crítica da razão prática
mostrou-se que há um princípio a priori da razão pura em seu uso prático, o qual rege pelo que
faz à faculdade de desejar (in Ansehung dê Begehrungsvermögens).[547] Não fica, pois, senão se
perguntar se a faculdade de julgar, da que Kant diz que é uma facultem mediadora entre o
entendimento e a razão, possui seus próprios princípios a priori. Se assim é, temos de nos
perguntar se esses princípios têm uma função constitutiva ou regulativa. E designadamente: dão
esses princípios leis a priori para o sentimento, ou seja, para a capacidade de sentir prazer ou
desgosto? De ser assim, teríamos ao final um esquema claro e denso. O entendimento dá leis a
priori à realidade fenoménica, possibilitando assim um conhecimento teorético da natureza. A
razão pura, em seu uso prático, legisla respecto do desejo. E o julgamento legisla para o
sentimento, o qual é, por assim o dizer, um meio-termo entre o conhecimento e o desejo, igual
que o julgamento mesmo média entre o entendimento e a razão.

Portanto, e utilizando a terminología técnica da filosofia Crítica, é possível propor o


problema de tal modo que se ponha de relevo a analogia dos objetos das três Críticaséc. Tem a
faculdade de julgar seu próprio ou seus próprios princípios a priori? E se o(s) tem, quais são
suas funções e seu campo de aplicação? Por último, se a faculdade de julgar, pelo que faz a seus
princípios a priori, se relaciona com o sentimento de um modo análogo a como o entendimento
se relaciona com o conhecimento e a razão (em seu uso prático) com o desejo, ficará claro que
a Crítica do julgamento é uma parte necessária da filosofia Crítica, não um mero adendo que
pode ser acrescentado ou não.

Mas que entende Kant por julgamento neste contexto? “A faculdade de julgar em general é
a capacidade de pensar o particular como contido no universal.”[548] Mas temos de distinguir
entre julgamento determinante e julgamento reflexionante. “Dado o universal (a regra, o
princípio, a lei) então a faculdade de julgar que subsume o particular baixo o universal é
determinante, inclusive quando a faculdade, assim que faculdade trascendental de julgar, dá a
priori as condições baixo as quais unicamente o particular se pode subsumir baixo o universal.
Mas se só está dado o particular e para isso a faculdade de julgar tem de achar o universal, então
o julgamento é meramente reflexionante.”[549] Ao estudar a Crítica da razão pura vimos que há
segundo Kant categorias e princípios a priori do entendimento dados, em última instância, com
a estrutura desta faculdade. E o julgamento limita-se a subsumir particulares baixo esses
“universais” como baixo algo dado a priori. Este é um exemplo de julgamento determinante.
Mas também há, evidentemente, muitas leis gerais que não estão dadas, senão que há que
descobrir. Assim, por exemplo, as leis empíricas da física não estão dadas a priori. Também não
estão dadas a posteriori, no sentido em que o estão as entidades singulares. Sabemos a priori,
por exemplo, que todos os fenômenos são membros de séries causales; mas não conhecemos a
priori leis causales particulares. Também não dão-se-nos a posteriori como objetos da
experiência. Temos que descobrir as leis empíricas generais baixo as quais subsumir o
individual. Este é o trabalho do julgamento reflexionante, cuja função, portanto, não é
meramente subsuntiva, pois, como diz Kant, tem que achar o universal baixo o qual subsumir o
particular. Aqui temos de estudar o julgamento reflexionante.

Desde nosso ponto de vista ao menos, as leis empíricas são contingentes. Mas o cientista
tenta constantemente subsumir leis empíricas baixo outras leis empíricas mais gerais. Não se
contenta nunca com deixar suas leis, por assim o dizer, umas ao lado de outras, senão que tenta
descobrir relacionamentos entre elas. O cientista aspira a construir um sistema de leis
interrelacionadas. E isso quer dizer que em sua investigação se deixa guiar pelo conceito de
natureza como unidade inteligible. Os princípios a priori da ciência fundam-se em nosso
entendimento. Mas “as leis empíricas especiais... têm-se que considerar... como se (als ob) um
entendimento que não é o nosso as tivesse predispuesto para nossas faculdades cognoscitivas,
com objeto de possibilitar um sistema de experiência segundo leis especiais da natureza”.[550]
Kant acrescenta que com isto não declara que o cientista tenha de pressupor a existência de
Deus. Mas sim que o cientista pressupõe uma unidade da natureza, como a que se teria se a
natureza fosse obra de um espírito divino, se fosse um sistema inteligible adaptado a nossas
faculdades cognoscitivas. A ideia de Deus utiliza-se aqui em sua função regulativa. E em
realidade o que interessa a Kant deixar sentado é simplesmente que toda investigação científica
se guia pelo suposto, tácito ao menos, de que a natureza é uma unidade inteligible, isto é,
inteligible para nossas faculdades cognoscitivas. Neste princípio baseia-se o julgamento
reflexionante. É um princípio a priori, no sentido de que não está derivado da experiência, senão
que é um orçamento de toda investigação científica. Mas não é um princípio a priori no mesmo
sentido em que são a priori os princípios considerados na Analítica trascendental. Ou seja, não
é uma condição necessária da existência de objetos da experiência, senão um princípio heurístico
necessário que nos guia no estudo dos objetos da experiência.

O conceito da natureza unificada pelo fundamento comum de suas leis em uma inteligência
ou um espírito sobrehumano que adapta o sistema a nossas faculdades cognoscitivas é o conceito
da finalidade da natureza. “Mediante este conceito a natureza representa-se como se uma
inteligência contivesse o fundamento da unidade da multiplicidad de suas leis empíricas. A
finalidade da natureza é, pois, um especial conceito a priori cuja fonte última está na faculdade
do julgamento reflexionante.”[551] E Kant sustenta que o princípio da finalidade da natureza é
um princípio trascendental da faculdade ou capacidade de julgar. É trascendental porque refere-
se a objetos possíveis do conhecimento empírico em general e não se baseia ele mesmo em
observações empíricas. Segundo Kant, seu caráter trascendental evidencia-se ao considerar as
máximas de julgamento que origina. Entre os exemplos que dá[552] se encontram “a natureza
procede pelo caminho mais curto” (lex parsimoniae) e “a natureza não dá saltos” (lex continui
in natura). Essas máximas não são generalizações empíricas; são regras ou máximas a priori que
nos guiam na investigação empírica da natureza. E descansam no princípio geral a priori da
finalidade da natureza, ou seja, na adaptação desta a nossas faculdades cognoscitivas respecto
da unidade última de suas leis empíricas.

A validade desse princípio a priori do julgamento é subjetiva, não objetiva. Dito na


linguagem de Kant, o princípio não prescreve nada nem legisla para a natureza considerada em
si mesma. Não é um princípio constitutivo, no sentido de condição necessária para que tenha
objetos. E não implica a proposição de que tenha finalidade (em sentido ontológico) na natureza.
Não podemos deduzir dele a priori que tenha realmente causa finais que atuem na natureza. O
princípio legisla para o julgamento reflexionante, e convida-lhe a considerar a natureza como se
esta fosse um todo finalístico adaptado a nossas faculdades cognoscitivas. E ao dizer que o
princípio é a possibilidade da natureza entendemos que possibilita um conhecimento empírico
da natureza respecto de suas leis empíricas, não que possibilite a natureza no sentido no qual o
fazem as categorias e os princípios do entendimento. Desde depois que o princípio fica
empiricamente verificado em um sentido real. Mas em se mesmo é um princípio a priori, não
um resultado da observação; e, como princípio a priori, é uma condição necessária não dos
objetos mesmos, os quais se consideram já dados, senão do uso do julgamento reflexionante no
estudo desses objetos. Portanto, Kant não está enunciando o dogma metafísico de que há causa
finais ativas na natureza. O filósofo afirma meramente que, por ser o julgamento reflexionante
o que é, toda investigação empírica da natureza implica desde o primeiro momento a
consideração da natureza como se esta contivesse um sistema de leis empíricas unificadas pelo
fato de se fundar todas elas em uma inteligência diferente da nossa, e que são adequadas a nossas
faculdades cognoscitivas.

Desde depois que não podemos considerar à natureza desse modo sem lhe atribuir finalidade.
Kant dá-se perfeitamente conta disso. “Mas o que a ordem da natureza segundo suas leis
particulares, segundo a variedade e a heterogeneidad possíveis ao menos e que trascienden nossa
capacidade de entendimento, esteja apesar disso adaptado a nossa faculdade cognoscitiva, isso,
assim que se me atinge, é um feito contingente. E a descoberta desta ordem é uma tarefa do
entendimento, uma tarefa que se realiza tendo em conta uma finalidade necessária do
entendimento, a saber, a unificação dos princípios da natureza. E a faculdade de julgar tem então
que atribuir essa finalidade à natureza, por causa de que o entendimento não pode prescrever lei
alguma à natureza neste respecto.”[553] Mas a atribuição a priori de finalidade à natureza não
constitui um dogma a priori a respeito da natureza mesma; é uma atribuição que se faz tendo
em conta nosso conhecimento. Dito de outro modo: o princípio a priori do julgamento é, como
já se disse, um princípio heurístico. Se depois em nossa investigação empírica achamos que a
natureza cumpre com esse princípio, o fato, no que se nos atinge, será um fato puramente
contingente. Enquanto a ideia de que tem que cumprir com ele é um suposto a priori, um
princípio heurístico do julgamento.

Agora bem, a finalidade da natureza pode ser representado de dois modos. Em primeiro
lugar, a finalidade de um objeto dado da experiência pode ser representado como uma
concordancia da forma do objeto com a faculdade cognoscitiva, mas sem referência da forma a
algum conceito para determinar o conhecimento do objeto. A forma do objeto considera-se como
fundamento de um prazer que vem da representação do objeto. E quando julgamos que a
representação vai necessariamente acompanhada por este prazer e que, consequentemente, deve
ser placentera para todos (e não só para o sujeito determinado que percebe aqui e agora a forma
do objeto), temos um julgamento estético. O objeto chama-se belo e a faculdade de julgar
universalmente sobre a base do prazer que acompanha à representação se chama gosto.

Em segundo local pode ser representado a finalidade de um objeto dado da experiência como
uma "concordancia de sua forma com a possibilidade da coisa mesma, segundo um conceito da
coisa que precede a e contém o fundamento de sua forma”.[554] Dito de outro modo: a coisa
representa-se respecto de sua forma como cumprimento de uma finalidade da natureza. Quando
julgamos que assim é, emitimos um julgamento teleológico.

Assim, pois, uma Crítica do julgamento tem de prestar atenção ao julgamento estético e ao
julgamento teleológico, distinguindo cuidadosamente entre eles. O primeiro é puramente
subjetivo, não no sentido de que o julgamento não contenha pretensão de universalidade (pois a
contém), senão no sentido de que é um julgamento a respeito da concordancia da forma de um
objeto (objeto natural ou obra de arte) com as faculdades cognoscitivas sobre a base do
sentimento causado pela representação do objeto, e não por referência a conceito algum. Por
isso diz Kant que a faculdade de julgar esteticamente é “um poder especial de julgar as coisas
de acordo com uma regra, não segundo conceitos”.[555] Em mudança, o julgamento teleológico
é objetivo no sentido de que julga que um objeto dado cumpre um fim concebido da natureza, e
não que seja fundamento de determinados sentimentos do sujeito. Kant diz-nos/dí-nos que a
capacidade de formular tais julgamentos “não é nenhuma faculdade especial, senão,
simplesmente, o julgamento reflexionante em general...”[556]

Por último, o conceito regulativo da finalidade da natureza serve como nexo entre o domínio
do conceito da natureza e o domínio do conceito da liberdade. Porque embora esse conceito não
constitui a natureza no sentido em que a constituem as categorias e os princípios do
entendimento, nem legisla tendo em conta a ação, como o faz o princípio a priori da razão pura
prática, no entanto, nos capacita para pensar a natureza como algo não inteiramente alheio, pelo
dizer assim, à realização dos fins. As obras de arte são expressões fenoménicas do reino
nouménico do valor, e a beleza que a apreciação estética dessas obras nos permite ver nos objetos
naturais nos capacita para contemplar a natureza mesma como manifestação fenoménica da
mesma realidade nouménica à que Kant lume às vezes “sustrato suprasensible”.[557] O conceito
de finalidade da natureza, que tem sua expressão no julgamento teleológico, nos permite
conceber a possibilidade de uma realização de fins na natureza em harmonia com as leis desta.

Kant formula estas ideias também do modo seguinte. Um estudo dos princípios a priori do
entendimento mostra que só conhecemos a natureza como fenômeno. Mas ao mesmo tempo
implica que há uma realidade nouménica ou "suprasensible”. O entendimento deixa-a, no
entanto, completamente indeterminada. Como vimos ao considerar os conceitos de fenômeno e
noúmeno em conexão com a primeira Crítica, o termo noumenon se tem que tomar em sentido
negativo. O julgamento, em razão de seu princípio a priori para julgar a natureza, leva-nos a
considerar que a realidade nouménica do “sustrato suprasensible”, tanto dentro quanto fosse de
nós, é determinable por médio da faculdade intelectual, pois representa a natureza como
expressão fenoménica da realidade nouménica. E a razão, por sua lei prática a priori, determina
a realidade nouménica mostrando-nos como temos da conceber. “Deste modo a faculdade de
julgar possibilita a transição do domínio do conceito de natureza ao do conceito de
liberdade.”[558]

dedicámos esta seção a argumentaciones esboçadas por Kant em sua introdução à Crítica do
julgamento. O corpo principal desta obra divide-se em duas partes; a primeira estuda o
julgamento estético e a segunda o julgamento teleológico. O interesse principal da obra
encontra-se, naturalmente, nessas duas partes. Mas assim que que se atende ao tratamento
detalhado do julgamento estético, por exemplo, se tem a tentação do considerar simplesmente a
teoria estética de Kant, ou seja, do entender isolado e por si mesmo, como uma parte fechada de
sua filosofia. Por isso me pareceu conveniente me deter algo para falar da linha geral de
pensamento que, por retorcida que seja, serve em qualquer caso para mostrar que a terça Crítica
era para Kant uma parte integrante de seu sistema e não uma combinação de duas monografías
dedicadas a temas em si mesmos interessantes, mas sem relacionamento intrínseca com as duas
primeiras Críticas.

2. A analítica do belo.

Seguindo o costume dos autores ingleses, Kant chama julgamento de gosto (dá
Geschmacksurteil) ao julgamento que declara bela uma coisa. A palavra “gosto” sugere
imediatamente subjetividad, e já temos visto que em opinião de Kant o fundamento deste
julgamento é subjetivo. Kant pensa que a imaginação refere a representação ao sujeito mesmo,
ao sentimento de prazer ou desgosto. O fundamento de nosso julgamento de que uma coisa é
bela ou feia é o modo no qual nossa faculdade de sentimento fica afetada pela representação do
objeto. Em linguagem moderno podemos dizer que para Kant o julgamento de gosto é uma
proposição emocional que expressa sentimento, não conhecimento conceptual. Como observa
Kant, uma coisa é o conhecimento conceptual de um edifício e outra a apreciação de sua beleza.

Mas embora o fundamento do julgamento de gosto é subjetivo, o que realmente dizemos é


sem dúvida algo a respeito da coisa, a saber, que esta é bela. O fundamento do enunciado é o
sentimento; mas quando digo que um objeto é belo não estou enunciando nada a respeito de
meus sentimentos particulares. Um enunciado assim seria um julgamento psicológico
empiricamente verificable (em princípio ao menos). Não seria um julgamento de gosto como
tal. Este último produz-se só se declaro que uma coisa é bela. Portanto, há local para uma
analítica do belo (Analitik dê Schönen), embora a beleza não possa ser considerado como
qualidade objetiva de um objeto sem relacionamento com o fundamento subjetivo do julgamento
que afirma que o objeto é belo.

A analítica kantiana do belo toma a forma de um estudo do que chama os quatro “momentos”
do julgamento de gosto. Esses quatro momentos estão relacionados, de modo talvez vazio, com
as quatro forma lógicas do julgamento, a saber, qualidade, quantidade, relacionamento e
modalidade. Digo que de modo talvez vazio porque o julgamento de gosto não é ele mesmo um
julgamento lógico, embora, segundo Kant, implica uma referência ou relacionamento ao
entendimento. De todos modos, o estudo da cada momento do julgamento de gosto redunda em
uma definição parcial do belo. Dão-se-nos mais ou menos quatro dilucidaciones da significação
do termo ‘belo’. E a discussão kantiana do tema tem interesse em si, completamente aparte da
correlação dos quatro momentos com as quatro forma lógicas do julgamento.

A consideração do julgamento de gosto desde o ponto de vista da qualidade leva-nos à


seguinte definição da beleza. “O gosto é a capacidade de julgar de um objeto ou de um modo de
representá-lo por médio de uma satisfação ou insatisfacción inteiramente desinteresadas. O
objeto de uma satisfação assim se chama belo.”[559] Ao dizer que uma apreciação estética é
inteiramente desinteresada (sem interesse algum, ohne alles Interesse) Kant não pretende
significar que se trate de uma situação de aburrimiento. Quer dizer que se trata de uma satisfação
contemplativa. O julgamento de gosto implica que o objeto chamado belo causa satisfação sem
referência ao desejo, à faculdade apetitiva. Basta um singelo exemplo para recolher a ideia de
Kant. Suponha-se que estou contemplando a pintura de um fruto e digo que é bela. Se com isso
quero dizer que gostaria de comer-me o fruto se fosse real, relacionando assim o quadro com o
apetito, meu julgamento não seria um julgamento de gosto no sentido técnico kantiano, isto é,
não seria um julgamento estético, e estaria utilizando com abuso a palavra ‘bela’. O julgamento
estético implica que a forma da coisa é placentera precisamente como objeto de contemplação,
sem referência alguma ao apetito ou desejo.

Kant distingue entre o agradável (dá Angenehme), o belo (dá Schöne) e o bom (dá Gate), e
designa assim três relacionamentos nas quais podem estar as representações com os sentimentos
de prazer e desgosto ou dor. O agradável é o que satisfaz a inclinação ou o desejo, e é
experimentado pelos animais igual que pelos homens. O bom é o objeto da estimativa; é aquilo
ao qual se atribui valor objetivo. Concierne a todos os seres racionais, incluindo, se os há, aos
seres racionais não humanos, ou seja, seres racionais vos incorpore. O belo é simplesmente o
que gosta, sem referência alguma à inclinação nem ao desejo. Só o experiencian os seres
racionais, mas não todos os seres racionais. Pois implica percepción sensível, e, portanto,
concierne só aos seres racionais dotados de corpo.

Ademais, o julgamento estético é segundo Kant indiferente à existência. Por recolher o


singelo exemplo dantes dado: se relaciono a fruta pintada com minha apetito ou desejo, é que
estou interessado por sua existência, no sentido de que desejo que o fruto seja real, para poder o
comer. Mas quando o contemplo esteticamente o fato de que o fruto seja só representado, e não
existente nem, portanto, comible, não tem a menor importância.

Por último, Kant precisa que quando diz que o julgamento estético carece de todo interesse
não quer significar que não possa ou não deva ir acompanhado por interesse algum. É indudable
que os homens têm em sociedade interesse por comunicar o prazer que sentem na experiência
estética. E Kant diz que isso. é um interesse empírico pelo belo. Mas embora pode acompanhar
o julgamento de gosto e combinar-se com ele, o interesse não é o fundamento determinante.
Considerado em si mesmo, o julgamento é desinteresado.

Atendendo agora ao estudo do julgamento de gosto segundo a quantidade, Kant define o


belo como “aquilo que gosta universalmente sem conceito”.[560] Podemos considerar essas duas
caraterísticas por separado.

O fato já assentado de que o belo é o objeto de uma satisfação inteiramente desinteresada


implica que é objeto, ou deveria ser objeto, de uma satisfação universal. Suponha-se que sou
consciente de que meu julgamento de que uma estátua dada é bela é um julgamento
completamente desinteresado. Isto significa que sou consciente de que meu julgamento não
depende de nenhuma condição privada que me seja peculiar. Ao pronunciar o julgamento sou
“livre”, como diz Kant, não estou movido pelo desejo, nem obedeço também não ao imperativo
moral nem a nenhum outro imperativo.[561] Portanto, acho que tenho razão ao atribuir a outros
uma satisfação análoga à que experimento em mim mesmo; pois a satisfação não se funda no
premio obtido por minhas inclinações privadas. Por isso falo da estátua como se a beleza fosse
uma caraterística objetiva sua.

Consequentemente distingue Kant, pelo que faz à universalidade, entre o julgamento


referente ao agradável e o julgamento referente ao belo. Quando digo que o sabor das azeitonas
é agradável posso admitir perfeitamente que alguém diga: “Você o encontra agradável, mas para
mim é desagradable”. Pois reconheço que minha afirmação se baseia na sensação ou o gosto
privado e que de gustibus non est disputandum. Mas quando digo que uma obra de arte é bela
pretendo tacitamente, segundo Kant, que é bela para todos. Ou seja: pretendo que o julgamento
não se baseia em sentimentos puramente privados, de maneira que só tenha validade para mim
mesmo, senão em sentimentos que atribuo a outros ou que exijo de outros. Portanto, temos de
distinguir entre o julgamento de gosto em sentido técnico kantiano e outros julgamentos que, no
uso corrente da linguagem, tenderíamos a chamar também de gosto. Ao enunciar os primeiros
pretendemos validade universal, coisa que não fazemos no caso dos últimos. Só os julgamentos
do primeiro tipo se referem ao belo.

Como é natural, Kant não pensa que quando um lume belo a uma estátua cria
necessariamente que todos a consideram bela. Kant quer dizer que ao formular seu julgamento
o sujeito sustenta implicitamente que os demais deveriam reconhecer a beleza da estátua. Pois,
consciente de que seu julgamento é “livre” no sentido dantes citado, atribui aos demais uma
satisfação análoga à sua ou sustenta que deveriam a sentir.

Que tipo de exigência ou pretensão é esta? Não podemos demonstrar logicamente que um
objeto é belo. Pois a pretensão de validade universal com a qual apresentamos o julgamento
estético não tem referência alguma à faculdade cognoscitiva, senão só ao sentimento de prazer
ou dor da cada sujeito. Dito com palavras de Kant, o julgamento não se baseia em conceitos,
senão no sentimento. Portanto, não podemos justificar nossa pretensão de validade universal do
julgamento por nenhum processo de argumentación lógica. O único que podemos fazer é
convencer aos demais de que voltem a olhar, e com mais atenção, o objeto de que se trate,
esperando que ao final seus sentimentos se acordarão e que coincidirão com nosso próprio
julgamento. Ao emitir o julgamento achamos falar, por assim o dizer, com voz universal, e
reclamamos o sentimento dos demais; mas os demais assentirão só sobre a base de seus próprios
sentimentos, não em virtude de conceitos que possamos alegar. “Assim podemos ver que no
julgamento de gosto o único postulado é essa voz universal respecto da satisfação, sem a
intervenção de conceitos.”[562] Podemos chamar quanto queiramos a atenção sobre os diferentes
rasgos do objeto, para persuadir aos demais de que o objeto é belo. Mas o asentimiento dos
demais, caso de produzir-se, será resultado de uma verdadeira satisfação sentida, não baseada
em conceitos.

Que é essa satisfação, esse prazer do que fala Kant? Diz-nos/Dí-nos que não é nenhuma
emoção (Rührung), a qual é “uma sensação na que o placentero se produz só por médio de uma
contenção momentânea e subsiguiente libertação mais poderosa da força vital”.[563] A emoção
neste sentido interessa para a experiência do sublime, mas não para a do belo. Mas dizer que a
satisfação, o estado de prazer que é o motivo determinante do julgamento de gosto, não é a
emoção, não equivale a explicar que é. Também podemos propor a questão desta outra forma:
qual é o objeto da satisfação ou o prazer de que fala Kant? Pois se soubéssemos que é o que o
suscita, de que ou em que há satisfação, poderíamos também saber de que classe de satisfação
ou de prazer se trata.

Para contestar à pergunta assim formulada podemos atender ao estudo kantiano do terceiro
momento do julgamento de gosto, que corresponde à categoria de relacionamento. Sua discussão
deste momento terceiro arroja a definição seguinte: “A beleza é a forma da finalidade de um
objeto, assim que percIbída sem representação alguma de fim ou utilidade”.[564] A significação
desta definição não será imediatamente evidente. Valerá a pena comentá-la algo.

A ideia básica não é difícil de captar. Quando contemplamos uma flor, uma rosa, por
exemplo, podemos ter o sentimento de que “não há que a tocar mais”, por assim o dizer, o
sentimento, isto é, de que sua forma encarna ou satisfaz plenamente uma finalidade. Mas, ao
mesmo tempo, não nos representamos em concreto nenhuma finalidade realizada na rosa. Não
se trata só de que se alguém nos perguntasse pela finalidade encarnada na rosa seríamos
incapazes de lhe dar resposta clara; é que, ademais, não nos imaginamos nem representamos
finalidade alguma. E, no entanto e em algum sentido, sentimos sem conceitos que há uma
finalidade realizada na flor. Talvez seja possível expressar o assunto deste outro modo. Há uma
sensação de significação, mas não representação conceptual do significado. Há uma consciência
de finalidade, mas não conceito do fim buscado ou conseguido.

Sem dúvida pode ter um conceito de fim que acompanhe à experiência da beleza. Mas Kant
não admitirá que um julgamento de gosto é “puro” se pressupõe um conceito de finalidade. Kant
distingue entre o que chama beleza “livre” ou “exenta” e beleza “aderente”. Ao dizer que uma
flor é bela não temos, com toda segurança, conceito de nenhuma finalidade realizada na flor. A
beleza desta é livre, e nosso julgamento de gosto é puro. Mas ao julgar que um edifício, por
exemplo, uma igreja, é belo, podemos ter um conceito da finalidade atingida e perfeitamente
realizada no edifício. A beleza deste se chama então aderente, e nosso julgamento de gosto ao
respecto é impuro, no sentido técnico de que não é simplesmente uma expressão do sentimento
de satisfação ou prazer, senão que contém um elemento conceptual. Um julgamento estético é
puro só se a pessoa que o emite não tem conceito algum de finalidade, ou bem se faz abstração
desse conceito, supondo que o tenha, no momento de julgar.

Kant faz questão deste ponto porque deseja sustentar o caráter especial e único do
julgamento estético. Se este julgamento implicasse um conceito de finalidade objetiva, de
perfección, seria “um julgamento tão cognoscitivo como o julgamento pelo qual se declara que
algo é bom”.[565] Mais de fato o fundamento determinante do julgamento estético não é nenhum
conceito nem pode, portanto ser o conceito de uma finalidade determinada. “Diz-se que um
julgamento é estético precisamente porque seu fundamento determinante não é um conceito,
senão o sentimento (do sentido interno) daquela harmonia no jogo das faculdades mentais, na
medida em que pode ser experimentado pelo sentimento.”[566] Kant admite que podemos formar
e formamos critérios da beleza e que, no caso do homem, formamos um ideal de beleza que é
ao mesmo tempo expressão visível de ideias morais. Mas faz questão de que “o julgamento
formado de acordo com um critério assim não pode ser nunca puramente estético, e o julgamento
formado segundo um ideal de beleza não é um mero julgamento de gosto”.[567]

A quarta definição parcial da beleza, procedente de uma consideração do julgamento de


gosto segundo a modalidade da satisfação do sujeito pelo objeto, é como segue: “O belo é aquilo
que sem nenhum conceito se reconhece como objeto de uma satisfação necessária”.[568]

Esta necessidade não é objetiva-teorética. Pois se fosse-o, teria que saber a priori que todo
mundo assentirá a um julgamento de gosto. E as coisas, certamente, não ocorrem assim. Um
pretende validade universal para seu julgamento, mas não sabe se de fato lhe será reconhecida.
Também não trata-se de uma necessidade prática, ou seja, do resultado de uma lei objetiva que
nos dissesse como há que fazer. É o que Kant chama necessidade instância, “isto é, necessidade
do asentimiento de todos a um julgamento considerado como exemplo de uma lei geral que não
pode ser formulado”.[569] Ao dizer que uma coisa é bela pretendo que todos a descrevam como
bela; e esta pretensão pressupõe um princípio universal do que é exemplo o julgamento. Mas o
princípio não pode ser um princípio lógico. Portanto, há que o considerar como um sentido
comum (ein Gemeinsinn); não um sentido comum (sensus communis) na sentido corrente da
expressão. Pois este último julga por conceitos e princípios, embora sejam vagamente
representados. Em estética, em mudança, referimo-nos com esse termo ao “efeito decorrente do
livre jogo de nossas faculdades cognoscitivas”.[570] Ao emitir um julgamento estético
pressupomos que o jogo dessas faculdades produzirá uma verdadeira satisfação análoga à nossa
em todos os que percebam o objeto de que se trate.

Que direito temos a pressupor esse sentido comum? Não podemos provar sua existência;
mas é orçamento como condição necessária da comunicabilidad dos julgamentos estéticos.
Segundo Kant os julgamentos, junto da convicção que os acompanha, têm de possuir
comunicabilidad universal. Mas os julgamentos estéticos não podem ser comunicado por
conceitos e apelando a alguma regra lógica universal. Portanto, o “sentido comum” é a condição
necessária de sua comunicabilidad. E este é nosso fundamento para pressupor esse sentido
comum.

Há que entender em general que nesta “analítica do belo” Kant não se dedica a dar regras
nem indicações para educar e cultivar o gosto estético. Explicitamente nega essa intenção no
prólogo à Crítica do julgamento. Kant ocupa-se primária e fundamentalmente da natureza do
julgamento estético, do que podemos dizer dele a priori; ou seja, de sua universalidade e de seus
rasgos necessários. No curso de sua discussão chama obviamente a atenção para ideias que, as
aceitemos ou não, merecem, desde depois, a consideração do leitor interessado. E “desinterés”
do julgamento estético e a noção de finalidade sem conceito de fim concreto podem ser dado
como exemplos ao respecto. Mas a questão fundamental é provavelmente a de se o julgamento
estético expressa sentimento, no sentido de que este é o único fundamento determinante do
julgamento puro de gosto, ou se é em algum sentido um julgamento de conhecimento. Se
dizemos que a exposição de Kant é demasiado subjetivista e que o julgamento estético expressa
em realidade conhecimento objetivo de uma classe que Kant não admite, nos vemos,
naturalmente, obrigados a precisar que classe de conhecimento é esse. E se não conseguimos o
fazer, o falhanço será a primeira vista um motivo para pensar que a exposição kantiana é
acertada. Mas esta é uma questão respecto da qual é o leitor mesmo o que tem de dizer sua
opinião.

3. A analítica do sublime.

A obra de Edmund Burke Philosophical Inquiry into the Origin of Our Ideias of the Sublime
and the Beautiful (Investigação filosófica a respeito da origem de nossas ideias do sublime e o
belo, 1756) era em opinião de Kant a investigação mais importante publicada neste campo. Mas
embora seguiu a distinção de Burke entre o belo e o sublime,[571] Kant pensava que o tratamento
dado pelo autor inglês ao tema era “puramente empírico” e “fisiológico”,[572] e considerava que
fazia falta uma “exposição trascendental” dos julgamentos estéticos. Já que já estudámos a
concepção kantiana do julgamento de gosto assim que julgamento a respeito do belo, podemos
passar agora à analítica do sublime. Proponho-me, empero, tratar o tema de modo mais breve.

O belo e o sublime (dá Erhabene) têm alguns rasgos comuns. Por exemplo, ambos causam
prazer; e o julgamento de que algo é sublime não pressupõe também não nenhum conceito
determinado. Mas também há consideráveis diferenças entre eles. Por exemplo, o belo tem que
ver com a qualidade mais que com a quantidade; o sublime, mais com a quantidade que com a
qualidade. A beleza natural, como vimos, se relaciona com as forma de um objeto; e forma
implica limitação. Em mudança, a experiência do sublime está relacionada com a ausência de
forma no sentido de limitação, sempre que esta carência de limites represente-se junto da noção
de totalidade. (Assim, por exemplo, a imponente grandeza do oceano tempestuoso se sente como
ilimitada, mas se representa como uma totalidade.) Deste modo pode Kant vincular a beleza com
o entendimento e o sublime com a razão. A experiência estética do belo não depende, como
vimos, de nenhum conceito determinado. Apesar disso implica a livre colaboração das
faculdades, que são neste caso a imaginação e o entendimento. O belo, como determinado que
é, se sente como adequado à imaginação, e a imaginação se considera como de acordo com o
entendimento, que é uma faculdade de conceitos, respecto de uma intuición dada. O sublime,
em mudança, faz violência à imaginação, ultrapassa-a e domina. Por isso se representa como
relacionado com a razão, que é a faculdade das ideias indeterminadas da realidade. Na medida
em que implica ausência de limites, o sublime não é adequado para nossa faculdade de
representação imaginativa, senão que a ultrapassa e a violenta. E na medida em que essa ausência
de limites se associa com a totalidade, o sublime pode ser considerado, segundo palavras de
Kant, como “exibição” de uma ideia indeterminada da razão. Outra diferença consiste em que
enquanto o prazer produzido pelo belo pode ser descrito como uma alegria positiva que se
prolonga em tranquila contemplação, o sublime produz assombro e temor mais que alegria
positiva. E a experiência do sublime relaciona-se com a emoção no sentido aludido na seção
anterior, a saber, como uma detenção momentânea e posterior desencadenamiento mais intenso
de força vital. Por último, o belo, embora seja diferente do atraente, pode ir junto disso, enquanto
o atraente (Reiz) e o sublime são incompatíveis.

Partindo do fato (real ou suposto) de que o sublime se experimenta como violentador da


imaginação e inacordable com nossa capacidade de representação, Kant conclui que os objetos
naturais se chamam sublimes impropriamente. Pois o termo expressa aprovação, e como vamos
aprovar o que em algum sentido se experimenta como hostil a nós? “Não pode ser chamado
sublime ao amplo oceano tempestuoso. Sua visão é terrível; o homem tem de abrigar já muito
várias ideias no espírito para poder harmonizar essa visão com um sentimento sublime em si
porque mediante ele o espírito se move a abandonar o reino do sensível e a se ocupar de ideias
que implicam uma finalidade superior.”[573] Há objetos naturais aos que pode ser chamado
propriamente belos. Mas falando com propriedade a sublimidad é própria de nossos sentimentos,
não dos objetos que os ocasionam.

Kant distingue entre o sublime matemático e o sublime dinâmico, segundo que a imaginação
refira o movimento mental conteúdo na experiência do sublime à faculdade cognoscitiva ou à
do desejo. O sublime matemático define-se como “aquilo que é absolutamente grande”[574] ou
“aquilo em comparação com o qual todo o demais é pequeno”[575] Entre seus exemplos dá Kant
o de San Pedro de Roma. O sublime dinâmico experimenta-se, por exemplo, quando nos
enfrentamos com o espetáculo do terrível poder físico da natureza, achando ao mesmo tempo
em nosso espírito e nossa razão uma superioridad sobre essa força física.[576]

4. A dedução dos julgamentos estéticos charutos.


Segundo Kant, os julgamentos puros de gosto (ou seja, os julgamentos a respeito da beleza
de objetos naturais) precisam dedução, no sentido de justificativa. O julgamento estético exige
a priori que ao representar um objeto dado todos sentam o tipo particular de prazer (procedente
da colaboração da imaginação e o entendimento) que é fundamento determinante do julgamento.
Já que este é um julgamento determinado emitido por um determinado sujeito, e já que seu
fundamento determinante é subjetivo (e não o conhecimento objetivo de uma coisa), se propõe
o problema da justificativa de sua pretensão de validade universal. Não é possível a justificar
por demonstração lógica, pois não se trata de um julgamento lógico. Nem também não podemo-
la justificar apelando a um consentimento universal, pois, deixando aparte o fato de que em
modo algum coincide a gente em seus julgamentos estéticos, a pretensão de consentimento
universal se formula a priori. É um rasgo essencial do julgamento como tal, independente,
portanto, dos fatos empíricos relativos ao asentimiento geral ou a sua ausência. Portanto, a
justificativa não pode tomar a forma de uma dedução lógica nem a de uma indução empírica que
pretendessem sentar a verdade do julgamento considerado segundo sua pretensão de validade
universal.

O tratamento kantiano desta matéria consiste substancialmente em precisar as condições nas


quais pode ser justificado a pretensão de asentimiento universal. Se o julgamento estético baseia-
se em um fundamento puramente subjetivo, no prazer ou desgosto procedentes da colaboração
das faculdades de imaginação e entendimento respecto de uma representação dada, e se temos
direito a pressupor em todos os homens uma estrutura análoga das faculdades cognoscitivas e
dos relacionamentos entre elas, então ficará justificada a pretensão de validade universal com
que se apresenta o julgamento estético. Mas este julgamento descansa em fundamentos
puramente subjetivos. E a comunicabilidad das representações e do conhecimento em general
garante nosso orçamento de que em todos os homens são análogas as condições subjetivas do
julgamento. Portanto, está justificada a pretensão de consentimento universal.

Não me parece que esta dedução[577] nos faça avançar grande coisa. Kant diz-nos/dí-nos que
não faz falta dedução alguma no caso dos julgamentos a respeito do sublime natural, pois só por
impropiedad se chama sublime à natureza. Propriamente, o termo refere-se a nossos
sentimentos, não aos fenômenos naturais que os ocasionam. Mas no caso do julgamento estético
charuto precisa-se dedução, porque nele se faz uma afirmação sobre um objeto respecto de sua
forma, e esta afirmação implica uma pretensão de validade universal a priori. A fidelidade ao
programa geral da filosofia Crítica exige uma dedução ou justificativa de um julgamento assim.
Mas o que em realidade nos diz Kant no curso da dedução é quase exclusivamente que a
pretensão de validade universal está justificada se está justificado o orçamento de que em todos
os homens são análogas as condições subjetivas do julgamento, e que a comunicabilidad justifica
essa presuposición. Talvez seja verdade que isso concorda bem com o esquema geral da filosofia
crítica, já que a possibilidade do julgamento estético considerado como proposição sintética a
priori se remete a condições subjetivas. Mas um podia esperar algo mais quanto a condições da
parte do objeto. Sem dúvida os fundamentos determinantes do julgamento de gosto são, segundo
Kant, subjetivos. Mas, como já vimos, Kant admite como qualificação própria o que se chame
belos a objetos naturais, enquanto considera que o sublime se prega só impropriamente da
natureza.
5. A arte e o gênio.

Até o momento atendemos só à beleza de objetos naturais.[578] Agora temos que atender ao
tema da arte. A arte em general “distingue-se assim que fazer (facere) da natureza assim que
fazer ou atuar (agere), e seu produto ou resultado distingue-se do produto ou resultado da outra
como a obra (opus) do efeito (effectus)”.[579] “As belas artes (die schöne Kunst, a arte bela),
assim que diferente das meramente agradáveis (die angenehme Kunst), é um tipo de
representação que tem seu fim em si mesmo, mas pese a isso, e embora não tenha finalidade
alguma externa a ela, promove a cultura das faculdades mentais em vistas da comunicação
social.”[580]

É próprio, segundo Kant, dos produtos das belas artes o impor-nos/impo-nos a consciência
de que são produtos da arte e não natureza. Mais, por outra parte, a finalidade de sua forma tem
de parecer tão livre da constricción de regras arbitrárias como se fosse um produto da natureza.
Kant não pensa. desde depois, que não se tenham de observar regras na produção de uma obra
de arte. O que pensa é que seu observancia não deve resultar penosamente manifesta. A obra de
arte, para sê-lo, tem de ter a aparência da “liberdade” da natureza. Mas trate da natureza ou da
obra de arte, sempre podemos dizer que “é belo aquilo que gosta no mero ato do julgar (não na
sensação nem por médio de um conceito)”.[581]

As belas artes são obra do gênio, e o gênio é o talento ou dom natural que dá regras à arte.
Este pressupõe regras pelas quais um produto se represente como possível. Mas estas regras não
podem ter como fundamentos determinantes conceitos propriamente ditos. Portanto o artista, se
é artista autêntico, ou gênio, não pode arbitrar suas regras por médio de conceitos. E disso se
segue que é a natureza mesma assim que faz no artista (por médio da harmonia de suas
faculdades) a que deve dar regras à arte. Portanto, é possível definir ao gênio como “a disposição
mental innata (ingenium) pela qual a natureza dá regras à arte”.[582]

Estaria fora de local o discutir longamente aqui as ideias de Kant a respeito da arte e o gênio.
Basta com mencionar dois pontos. Primeiro: entre as faculdades que Kant atribui ao gênio se
encontra o espírito (Geist) descrito como princípio animador da alma. É “a faculdade de
apresentar ideias estéticas”,[583] e uma ideia estética é uma representação da imaginação que
ocasiona muito pensamento embora não tenha conceito que lhe seja adequado, com a
consequência de que não pode chegar a ser plenamente inteligible por via de linguagem. Por
conseguinte, uma ideia estética é a contrapartida de uma ideia racional, a qual, ao inverso, é um
conceito para o qual não pode ter intuición nem representação imaginativa adequada.

O segundo ponto que vale a pena observar é a insistencia de Kant na originalidad do gênio.
“Todo mundo está de acordo em que o gênio se opõe completamente ao espírito de
imitação.”[584] Disso se segue a imposibilidad de ensinar o gênio. Mas não que o gênio possa
prescindir de regras e de preparação técnica. A originalidad não é a única condição essencial do
gênio assim que produtor de obras de arte.

6. A dialética do julgamento estético.


tivemos ocasião de observar a paixão de Kant pela arquitetura sistemática. Está de manifesto
na Crítica do julgamento igual que nas duas primeiras Críticaséc. E do mesmo modo que Kant
dá uma dedução do julgamento puro de gosto, assim também fornece uma breve Dialética do
julgamento estético,[585] a qual contém a formulación de uma antinomia e sua solução.

A antinomia é como segue: “Tese: o julgamento de gosto não se baseia em conceitos, porque,
de ser assim, admitiria discussão (seria determinable mediante prova e demonstração). Antítese:
o julgamento de gosto baseia-se em conceitos, porque, de não ser assim, e apesar de sua
diversidade, não poderíamos discutir a respeito dele (não poderíamos pretender para nosso
julgamento o asentimiento necessário de outros)”.[586]

A solução da antinomia consiste em mostrar que a tese e a antítese não são contradictorias,
pois a palavra ‘conceito’ não se entende do mesmo modo nas duas proposições. A tese diz que
o julgamento de gosto não se baseia em conceitos determinados, o qual é verdade. Na antítese
dizemos que o julgamento de gosto se baseia em um conceito indeterminado, que é o do sustrato
suprasensible dos fenômenos. E também isto é verdade. Pois, segundo Kant, esse conceito
indeterminado é o conceito do fundamento geral da finalidade subjetiva da natureza para o
julgamento; e isto se requer como base da pretensão de validade universal para o julgamento.
Mas o conceito não nos dá conhecimento algum do objeto, nem pode nos facilitar nenhuma
demonstração do julgamento. Portanto, a tese e a antítese podem ser ambas verdadeiras e,
portanto, compatíveis; com o que se dissipa a aparente antinomia.

7. O belo como símbolo do bem moral.

O fato de que o julgamento de gosto descanse em algum sentido no conceito indeterminado


do sustrato suprasensible dos fenômenos indica que há verdadeiro nexo entre a estética e a moral.
Pois o julgamento estético pressupõe indiretamente esse conceito indeterminado, e a reflexão
sobre a lei moral dá um conteúdo determinado à ideia do suprasensible ou inteligible. Por isso
não é surpreendente que Kant diga que “o belo é o símbolo do bem moral”[587] e que “o gosto é
no fundo uma capacidade de julgar a ilustração sensível das ideias morais (por médio de uma:
certa analogia implicada em nossa reflexão a respeito de umas e outras)”.[588]

Que entende Kant por símbolo? Seu exemplo pode ilustrá-lo bem. Um estado monárquico
pode ser representado como um corpo vivo se está regido por leis que brotem do povo,[589] e
pode ser representado por uma máquina se está regido pela vontade individual absoluta de um
autócrata. Mas em ambos casos a representação é meramente simbólica. Em realidade, o
primeiro tipo de estado não é como um corpo, nem o outro tem nenhum parecido literal com
uma máquina. Mas, por outra parte, há uma analogia entre as regras segundo as quais refletimos
envelope o tipo de estado e seu causalidad, por um lado, e envelope o símbolo representativo e
seu causalidad por outro. Kant baseia pois sua ideia de simbolismo na analogia. E apresenta-se
a questão de quais são os pontos de analogia entre os julgamentos morais e os estéticos, ou entre
o belo e o moralmente bom, que justificam nossa visão do um como símbolo do outro.

Há uma analogia entre o belo e o bem moral no fato de que ambos gostam imediatamente.
Ou seja, há semelhança entre eles no fato de que ambos gostam imediatamente; mas há ao
mesmo tempo uma diferença. Pois o belo gosta na intuición reflexionante, e o bem moral gosta
no conceito. Por outra parte, o belo gosta à margem de todo interesse; e embora o bem moral
está realmente vinculado a um interesse, este interesse não precede ao julgamento moral, senão
que lhe segue. Também se trata, pois, de analogia mais que de semelhança estrita. Ademais, no
julgamento estético a imaginação encontra-se em harmonia com o entendimento, e esta
harmonia é análoga à harmonia moral da vontade consigo mesma segundo a lei universal da
razão prática. Há, por último, uma analogia entre a pretensão de universalidade do princípio
subjetivo do julgamento de gosto e a pretensão de universalidade do princípio objetivo da
moralidade.

O modo de expressar-se Kant pode sugerir às vezes a ideia de um moralismo em sua


concepção da experiência estética. Assim diz que “a verdadeira propedéutica dos fundamentos
do gosto é o desenvolvimento de ideias morais e da cultura do sentimento; pois só quando a
sensibilidade é concorde com isso pode o verdadeiro gosto tomar uma forma determinada e
invariável”.[590] Mas Kant não pretende reduzir a estética ao julgamento moral. Como vimos,
Kant faz questão das caraterísticas especiais da primeira. O que quer deixar sentado é que a
experiência estética constitui um elo de enlace entre o mundo sensível tal como este se apresenta
no conhecimento científico e o mundo suprasensible tal como se prende na experiência moral.
Pensando principalmente em isso chama Kant a atenção sobre as analogias entre o belo e o bem
moral.

8. O julgamento teleológico.

Temos visto que o julgamento de gosto refere-se à forma da finalidade de um objeto na


medida em que esta finalidade se percebe sem representação alguma do fim. Trata-se, pois, em
verdadeiro sentido, de um julgamento teleológico. Dito com a terminología de Kant, trata-se de
um julgamento teleológico subjetivo formal. É formal no sentido de que não se ocupa de explicar
a existência de nada. Pois não se refere por si mesmo a nenhuma existência, senão primariamente
a representações. E é subjetivo no sentido de que se refere aos sentimentos da pessoa que enuncia
o julgamento. Ou seja, afirma uma conexão necessária entre a representação de um objeto como
final e o prazer que acompanha essa representação.

Além do julgamento teleológico formal subjetivo existe também o julgamento teleológico


formal objetivo. Este se encontra, segundo Kant, na matemática. Tenho aqui um de seus
exemplos: em uma figura tão singela como é a circunferencia se encontra o fundamento da
solução de numerosos problemas geométricos. Por exemplo, se deseja-se construir um triângulo,
dados a base e o ângulo oposto, o círculo é “o local geométrico de todos os triângulos que
cumprem essa condição”.[591] E o julgamento a respeito da adequação do círculo para essa
finalidade é um julgamento teleológico, porque afirma “finalidade”. E é um julgamento
teleológico formal porque não está afetado por coisas externas e seu relacionamento causal, nem
se refere a elas. Na matemática pura não se diz nada “da existência das coisas, senão só de sua
possibilidade”.[592] Mas é um julgamento objetivo, não subjetivo, porque não faz nenhuma
referência aos sentimentos ou os desejos da pessoa que emite o julgamento.
Além dos julgamentos teleológicos formais há julgamentos teleológicos materiais, os quais
se referem a coisas existentes. E também estes julgamentos podem ser subjetivos ou objetivos.
São subjetivos se enuncian fins humanos, e objetivos se referem-se a fins presentes na natureza.
A segunda parte da Crítica do julgamento estuda esta quarta classe de julgamentos, ou seja, os
julgamentos teleológicos materiais objetivos. E quando Kant diz simplesmente “julgamento
teleológico” está pensando nesta classe de julgamentos precisamente.

Mas ainda há que praticar uma distinção mais. Quando afirmamos que na natureza há
finalidade, podemos pensar em uma finalidade relativa (também telefonema externo) ou em uma
finalidade interna. Por exemplo, dizer que os renos existem para que os esquimales comam carne
é afirmar um caso de finalidade relativa ou externa, pois isso isto é que o fim natural do reno é
servir a algo externo a si mesmo. Em mudança, se dizemos que o reno é um fim natural em si
mesmo, entendendo por isso que é um todo orgânico cujas partes são interdependentes e existem
para o todo do que são partes, estaríamos afirmando um caso de finalidade interna. Ou seja, o
fim natural do reno põe-se aqui nele mesmo considerado como todo orgânico, e não em
relacionamento com algo externo e diferente do reno mesmo.

Consideremos agora o primeiro caso, a saber, que o reno existe para os seres humanos. Isto
pretende ser uma explicação da existência do reno. Mas não é propriamente uma explicação
causal. Pois uma explicação causal (de acordo com a categoria esquematizada da causalidad)
nos diria simplesmente como chegam a existir os renos. Não nos diria por que existem. O
julgamento teleológico relativo pretende dar-nos/dá-nos uma resposta à questão do por que. Mas
a resposta poderá ser no máximo hipotética. Isto é, a resposta tem de começar por pressupor que
existem seres humanos ali no norte. Mas não há estudo da natureza, por detalhado que seja, que
possa provar que tem que ter seres humanos no extremo norte. Por isso, embora seja
psicologicamente compreensível que tendamos a pensar que os renos existem para os esquimales
e a erva para as ovelhas e as vacas, o fato é que pelo que faz ao conhecimento é tão oportuno
dizer que os seres humanos podem existir no extremo norte pelo fato de que ali há renos, e que
as ovelhas e as vacas conseguem viver em alguns locais e não em outros porque nos primeiros
há alimento adequado e nos outros não. Dito de outro modo, e ainda prescindiendo de outras
objeciones possíveis à afirmação de finalidades externas na natureza, o fato é que, ainda as
tendo, nossos julgamentos não poderiam ser nunca absolutos. Jamais encontraremos justificativa
para afirmar de modo absoluto que os renos existem para os homens e a erva para as ovelhas e
as vacas. É possível que esses julgamentos sejam verdadeiros, mas não podemos saber se o são,
pois não podemos ver nenhuma conexão necessária que funde sua verdade.

Os julgamentos de finalidade interna são, em mudança, julgamentos teleológicos absolutos;


afirmam de algum produto da natureza que esse produto é em si mesmo um fim da natureza
(Naturzweck). No caso da finalidade relativa dizemos que uma coisa existe por mor de alguma
outra coisa se esta encarna um fim da natureza. Mas no caso da finalidade interna dizemos que
uma coisa encarna um fim da natureza pelo mero fato de ser a coisa o que é, e não por seu
relacionamento com alguma outra. Assim surge a questão de quais são as condições requeridas
para enunciar um julgamento desta classe.

“Direi provisionalmente que uma coisa existe como fim da natureza se é causa e ejecto de si
mesma, embora em dois sentidos.”[593] Kant toma o exemplo de uma árvore. Não se trata só de
que a árvore produza outro membro da mesma espécie: é que se produz também a si mesmo
como indivíduo. Pois no processo que chamamos crescimento recebe e organiza a matéria de tal
modo que podemos considerar o inteiro processo como um processo de autoproducción.
Ademais, há um relacionamento de interdependencia entre uma parte e o tudo. As folhas, por
exemplo, são produzidas pela árvore; mas, por outra parte, as folhas conservam à árvore, pois
sua perda repetida poderia acarretar a morte da árvore.

Ao tentar definir mais precisamente a coisa como fim da natureza Kant observa que as partes
têm de se relacionar de tal modo entre elas que produzam um tudo por seu causalidad. Ao mesmo
tempo o todo pode ser considerado como causa final da organização das partes. “Em um produto
assim da natureza não só existe a cada parte por médio de todas as demais partes, senão que lha
contempla ademais como existente para todas as demais e para o tudo, ou seja, como instrumento
(órgão).”[594] Não é essa, no entanto, uma descrição suficiente, pois uma parte de um relógio,
por exemplo, pode ser considerado como existente só por mor das demais e do tudo, sem que
por isso seja um produto da natureza. Há que acrescentar, portanto, que as partes se têm que
considerar como produtoras recíprocas as una das outras. Só um produto assim pode ser
considerado fim da natureza, pois é um ser não só organizado, senão autoorganizado.
Consideramo-lo dotado em si mesmo de uma força formadora (eine bildende Kraft) que não
existe em produções ou máquinas artificiais, como o relógio. O relógio tem força motora (eine
bewegende Kraft), mas não força formadora.

Assim temos um princípio para estimar a finalidade interna dos seres organizados. “Este
princípio, que é ao mesmo tempo uma definição, diz: Um produto organizado da natureza é
aquele no qual todo é, reciprocamente fim e médio. Nada nele é em vão, sem fim nem atribuible
a um cego mecanismo natural.”[595] Este princípio procede da experiência no sentido de que seu
formulación está provocada pela observação de seres orgânicos. Mas ao mesmo tempo, “tendo
em conta a universalidade e a necessidade que prega dessa finalidade”,[596] não pode ser baseado
meramente em fundamentos empíricos. Tem que fundar em um princípio a priori, a ideia de um
fim da natureza, a qual é uma ideia regulativa (não constitutiva).

E Kant diz que o princípio recém citado pode ser entendido como máxima para o uso dessa
ideia regulativa ao estimar a finalidade interna dos seres orgânicos.

Mas apesar de todo se propõe o problema de se podemos nos declarar satisfeitos com uma
dicotomía da natureza. Pode ser dito que a finalidade interna não se verifica mais que em seres
autoorganizados. Pois, qualquer que seja a realidade em sentido absoluto, o fato, pelo menos, é
que não podemos dar uma explicação adequada desses seres a base da mera causalidad
mecânica, ou seja, por médio só da categoria esquematizada da causalidad. Mas isto não ocorre
quando se trata de seres inorgánicos, a cujo propósito não parece que precisemos o conceito de
finalidade. Teremos, pois, de contentar-nos/contentá-nos com escindir, por assim o dizer, a
natureza, utilizando o conceito de causalidad final no caso de certos tipos de seres e não em
outros?

Segundo Kant, essa dicotomía não nos pode deixar indiferentes. Pois a ideia de finalidade,
de fim da natureza, é uma ideia regulativa para a interpretação da natureza pelo julgamento. E
ela nos leva à noção da natureza como sistema de fins, noção que nos impõe a sua vez o referir
a natureza assim que empiricamente dada na percepción sensível a um sustrato suprasensible.
Em realidade, já a mera ideia de fim natural nos leva para além da esfera da experiência sensível.
Pois a ideia não está dada na mera percepción sensível; é um princípio regulativo para julgar do
percIbídou. E por natureza tendemos a unificar o tudo da natureza à luz desta ideia. “Uma vez
descoberta na natureza uma força que engendra produtos que não podemos pensar senão de
acordo com o conceito de causa final, vamos para além e podemos julgar que essas coisas
pertencem a um sistema de fins que... não precisam que busquemos um princípio de sua
possibilidade para além do mecanismo causal cego. Pois a primeira ideia desse fundamento leva-
nos já para além do mundo do sentido, porque a unidade do princípio suprasensible se tem que
considerar válida deste modo não só para certas espécies de seres naturais, senão para a inteira
natureza como sistema.”[597]

Sem dúvida importa entender que o princípio da finalidade na natureza é para Kant uma
ideia regulativa do julgamento reflexionante, e que as máximas a que dá local são principos
heurísticos. Não há que confundir a ciência natural com a teología e, portanto, não há que
introduzir o conceito de Deus na ciência natural para explicar a finalidade. “Para manter-se
estritamente dentro de seus limites, a física prescinde da questão de se os fins naturais
(Naturzwecke) são intencionales ou não; pois propor-se esta questão seria invadir território
alheio (a saber, o da metafísica). Basta apenas que tenha objetos explicables respecto de sua
forma interna ou intimamente cognoscibles só por médio de uma lei natural que não possamos
pensar senão tomando como princípio a ideia de fins.”[598] A ideia de fim da natureza ou fim
natural é um princípio heurístico útil e até inevitável em tratando-se de ciência natural. Mas
embora a teleología leva naturalmente à teología, no sentido de que uma visão teleológica da
natureza conduz com naturalidade ao suposto de que a natureza é obra de um Ser inteligente que
faz com um fim, no entanto, isso não significa que a existência de Deus possa ser considerado
como uma conclusão demostrable sobre a base da ciência natural. Pois a ideia regulatória do
julgamento reflexionante e as máximas que regem seu uso são princípios subjetivos. Pelo lado
da alma, o julgamento teleológico ajuda-nos a salvar o abismo aberto entre as esferas fenoménica
e nouménica, mas não pode ser a base de uma metafísica dogmática.

9. Teleología e mecanicismo.

Como vimos, Kant concentra a atenção em torno do que chama finalidade interna, ou seja,
a finalidade manifesta dentro de um ser orgânico pelos relacionamentos entre as partes e das
partes com o tudo. No caso destes seres é insuficiente uma explicação puramente mecanicista.

Mas a situação não é tão singela como poderia o sugerir essa formulación da posição de
Kant. Por uma parte, as categorias são constitutivas respecto da experiência. E embora isso não
nos diga nada a respeito da realidade nouménica ou suprasensible, nos indica ao menos que
todos os fenômenos têm de ser explicables a base da causalidad mecânica, ou que têm de se
considerar explicables desse modo. Por outro lado, a consideração dos seres orgânicos leva-nos
a usar a ideia de finalidade em sua interpretação. Como diz Kant, o entendimento sugere uma
máxima para julgar as coisas corpóreas, enquanto a razão sugere outra. E essas duas máximas
do julgamento parecem incompatíveis. Assim se produz uma antinomia ou, pelo menos, a
aparência de uma antinomia que Kant discute baixo o rótulo geral de Dialética do julgamento
teleológico.
A antinomia formula-se, por de repente, do modo seguinte. “A primeira máxima do
julgamento é a proposição: Toda produção de coisas materiais e de suas forma tem de se julgar
possível exclusivamente segundo leis mecânicas. A segunda máxima é a contraproposición:
Alguns produtos da natureza material não podem ser estimado possíveis em acordo exclusivo
com leis puramente mecânicas. (Para julgá-los faz falta uma lei de causalidad diferente, a de
causa-as finais.)”[599]

Kant observa que se convertemos essas máximas em princípios constitutivos da


possibilidade dos objetos nos encontramos efetivamente com uma contradição, porque teremos
nesse caso os enunciados seguintes. “Proposição: Toda produção de coisas materiais é possível
segundo leis meramente mecânicas. Contraproposición: Alguma produção de coisas materiais
não é possível segundo leis meramente mecânicas.”[600] E esses dois enunciados são claramente
incompatíveis. Mas o julgamento não nos fornece princípios constitutivos da possibilidade dos
objetos. Nem é possível dar demonstração a priori de nenhum desses dois enunciados. Por isso
há que se ater à primeira formulación da antinomia, na qual se trata de duas máximas para julgar
objetos materiais de acordo com as leis empíricas da natureza. A tese de Kant é que neste caso
as duas máximas não estão em contradição.

A razão pela qual não se contradizem é a seguinte. Ao dizer que tenho de julgar que a
produção de coisas materiais é possível segundo leis meramente mecânicas (ou seja, sem
introduzir a ideia de finalidade), não afirmo que a produção de coisas materiais seja só possível
desse modo. Afirmo só que devo a considerar possível exclusivamente dessa maneira. Dito de
outro modo: formulo o princípio de que na investigação científica da natureza tenho de empurrar,
por assim o dizer, a explicação mecanicista da natureza até onde seja possível. E isto não me
impede julgar que respecto de certas coisas materiais não posso fornecer explicação adequada a
base da causalidad mecânica, e que tenho de introduzir a ideia de causalidad final. Com isto não
afirmo dogmaticamente que não seja possível produzir seres orgânicos pela operação das causas
mecânicas. Só digo que não vejo como pode ser aplicado neste caso o princípio geral de
explicação da produção de coisas materiais pela causalidad mecânica, e que me vejo movido a
considerar esses seres como fins, como portadores de finalidades naturais, embora a ideia de fim
natural não seja completamente clara para mim mesmo.

Kant observa que na história da filosofia se deram diferentes modos de explicar a finalidade
na natureza. Agrupa-os baixo dois rótulos gerais: idealismo e realismo. O primeiro sustenta que
essa finalidade é inconsciente, e o segundo sustenta que é consciente. Baixo o rótulo idealismo
inclui Kant o sistema dos atomistas gregos, segundo o qual todo se deve à ação das leis do
movimento, e o sistema de Spinoza, segundo o qual a finalidade surge fatalmente na natureza
pelo caráter da substância infinita. E baixo o realismo coloca o hilozoísmo (por exemplo, a teoria
de uma alma do mundo) e o teísmo.

Parece-me que Kant escolheu mau essa terminología. Parece-me impropio chamar
“idealismo” às filosofias de Demócrito e Epicuro. Mas o principal é que segundo Kant o teísmo
é, com muito, o sistema de explicação mais aceitável. Epicuro tenta explicar a finalidade da
natureza pela cega casualidade; mas deste modo “não se explica nada, nem sequer as ilusões de
nosso julgamento teleológico”.[601] O sistema de Spinoza leva à conclusão de que tudo é
finalístico, pois todo se segue necessariamente da substância, e finalidade significa à sobremesa
essa necessidade. Mas o dizer que uma coisa é teleológica simplesmente porque é uma coisa
equivale a afirmar que nada é final. Sem dúvida, observa Kant, a doutrina spinoziana do Ser
originario é difícil de refutar; mas isso se deve antes de mais nada a que não é compreensível.
Quanto ao hilozoísmo, “a possibilidade de uma matéria viva não pode sequer se pensar; seu
conceito implica uma contradição, porque a carência de vida, a inertia, constitui o caráter
essencial da matéria”.[602] Portanto, não nos fica mais que o teísmo, o qual é superior a todos os
demais fundamentos de explicação porque refere a finalidade da natureza a um ser primeiro que
atua inteligentemente.

Mas embora o teísmo é superior a todas as demais explicações da finalidade na natureza,


não é possível o demonstrar. “Que prova, em última instância, a teleología mais completa? Prova
que tenha um Ser inteligente dessa natureza? Não. O único que prova é que segundo a
constituição de nossas faculdades cognoscitivas e na consiguiente combinação da experiência
com os princípios supremos da razão, não podemos formar conceito algum da possibilidade de
um mundo tal se não é pensando uma causa suprema do mesmo que atua intencionalmente.
Portanto, não podemos afirmar objetivamente que existe um Ser inteligente originario, senão
que só podemos o afirmar subjetivamente, para o uso de nossa faculdade de julgar em sua
reflexão a respeito dos fins naturais, os quais não podem ser pensado segundo mais princípio
que o da causalidad intencional de uma causa suprema."[603]

Uma vez mais, portanto, a ideia de finalidade natural (Naturzweck) é um princípio regulativo
que origina máximas heurísticas do julgamento. Estas resultam úteis, e até imprescindibles, para
julgar dos seres orgânicos.

E assim chegamos naturalmente, primeiro, ao conceito da totalidade da natureza como


sistema de fins e, segundo, ao conceito de uma causa inteligente da natureza. Mas trata-se em
tudo isto das consequências de uma ideia regulatória subjetiva, não de demonstração objetiva.
Por outra parte, também não pode ser demonstrado que a causalidad final seja impossível na
natureza. É verdadeiro que não podemos entender de modo positivo como se conciliariam em
última instância a causalidad mecânica e o final, como podem estar submetidas as coisas, ao
mesmo tempo, a dois tipos de lei causal. Mas subsiste a possibilidade de que essa reconciliação
se dê no “sustrato suprasensible” da natureza, ao qual não temos acesso. E o teísmo fornece-nos
o melhor enquadramento para pensar o universo, embora não é possível demonstrar
teoréticamente a verdade objetiva do teísmo.

10. Físico-teología e ético-teología.

Para o final da Crítica do julgamento Kant discute uma vez mais as deficiências de uma
teología baseada na ideia de finalidade natural (físico-teológica, como ele o lume). Segundo
vimos ao considerar sua Crítica da metafísica especulativa, a argumentación da existência de
Deus baseada na evidência empírica da finalidade ou intenção na natureza não pode nos levar,
no melhor dos casos, mais que ao conceito de um planificador ou arquiteto da natureza. Mas não
nos pode conduzir ao conceito de uma causa suprema da existência do universo. Também não
pode-nos servir para determinar nenhum atributo do arquiteto supremo, salvo a inteligência.
Designadamente, não pode servir para determinar os atributos morais desse Ser. Kant acrescenta
agora que o argumento físico-teológico não pode nos levar senão ao conceito de “ um
entendimento artístico (Kunstverstand) para finalidades soltas”,[604] e ainda isso no melhor dos
casos. Isso significa que a reflexão a respeito de certos tipos de seres materiais (organismos) nos
levaria ao conceito de uma inteligência sobrehumana manifesta nesses seres, mas não ao
conceito de uma sabedoria (Weisheit)[605] divina que criasse o universo inteiro para um fim
último supremo. Pois, entre outras coisas, o argumento físico-teológico baseia-se em dados
empíricos, e o universo assim que totalidade não é um dado empírico. Não podemos referir os
fins “soltos” que encontramos na natureza à unidade de um fim último comum.

Mas se acercamo-nos ao problema desde outro ponto de vista, a saber, desde o ponto de vista
da consciência moral, a situação é diferente. Como vimos no capítulo XIV, a lei moral exige que
postulemos a existência não já de uma inteligência sobrehumana, senão de Deus, a causa
suprema infinita de todas as coisas finitas. E temos de conceber a Deus como criador e
sostenedor do universo para um fim último. Qual pode ser esse fim? Segundo Kant, tem que ser
o homem. “Sem o homem, a criação inteira seria um mero deserto, vão e sem finalidade
última.”[606] “Mas só assim que ser moral reconhecemos ao homem como fim da criação.”[607]
Temos de contemplar a finalidade da criação como uma finalidade moral, como o pleno
desenvolvimento do homem assim que ser moral, em um realizado reino dos fins que inclui,
consequentemente, a felicidade humana na harmonização final das ordens físico e moral.

Por isso um tenderia a dizer que na concepção de Kant a “teología moral” (ou ético-teología)
complementa e salva as deficiências do físico-teología. E efetivamente expressa-se Kant às
vezes nesse sentido. Mas também faz questão de que a teología moral é do todo independente
do físico-teología, no sentido de que não a pressupõe. Kant chega efetivamente a dizer que a
teología física é “uma teleología física mau interpretada e que só serve como preparação
(propedéutica) da teología”.[608] Só lha pode chamar teología na medida em que apela aos
princípios da teología moral. Mas nela mesma e por si mesma não merece o nome de teología,
pois perfeitamente poderia levar a uma “demonología”, isto é, à concepção indeterminada de
uns poderes sobrehumanos, ou de um poder sobrehumano também indefinido. Dito de outro
modo: Kant, embora conserva seu respeito pelo argumento físico-teológico para a demonstração
da existência de Deus, põe o acento no argumento moral.

Mas este “não facilita nenhuma demonstração objetivamente válida da existência de Deus;
não prova ao cético que há Deus, senão que, se se propõe pensar de um modo coerente com a
moralidade, tem que admitir o suposto desta proposição entre as máximas de sua razão
prática”.[609]

Não podemos demonstrar a existência nem os atributos de Deus. Esta é uma questão de fé
prática, não de conhecimento teorético.

Essa fé é livre; não é possível obrigar ao espírito a assentir mediante prova teorética alguma.
Mas vale a pena precisar que Kant não afirma que essa fé moral seja irracional. Pelo contrário,
“a fé (como habitus, não como actus) é o modo moral de pensar (Denkungsart) da razão, assim
que crença no inacessível pelo conhecimento teorético”.[610] Para ter conhecimento teorético de
Deus teríamos que utilizar as categorias do entendimento. Mas embora é possível usá-las para
pensar a Deus analógica ou simbolicamente, seu uso não nos pode dar conhecimento dele. Pois
as categorias não dão conhecimento de objetos mais que mediante sua função de princípios
constitutivos da experiência. E Deus não é para Kant um objeto possível da experiência. Por
outra parte, a crença em Deus baseia-se na razão em seu uso prático ou moral. Portanto, não
pode ser dito que seja irracional.

Pode parecer que esta volta de Kant ao tema da teología filosófica ao final da Crítica do
julgamento seja uma repetição supérflua. E é sem dúvida uma repetição; mas não supérflua.
Porque volta a sublinhar sua opinião de que enquanto os julgamentos estético e teleológico nos
permitem conceber a natureza como campo possível da causalidad final, só a razão prática nos
capacita para dar forma determinada, por assim o dizer, à realidade nouménica vagamente
implicada pela experiência estética e pela experiência da finalidade “objetiva” de certos produtos
da natureza.
Capítulo XVI
Observações a respeito do opus postumum.

1. A transição da metafísica da natureza à física.

A Crítica do julgamento apareceu em 1790. Desde 1796 até 1803, no ano anterior ao de sua
morte, Kant esteve dedicado a preparar materiais para uma obra que tinha que estudar a transição
da metafísica da natureza à física. Em sua opinião essa obra era necessária para colmar uma
lagoa de sua filosofia. Os manuscritos que deixou foram publicados por Adickes como Opus
postumum[611] ou obra póstuma de Kant. Como pode ser esperado de uma série de notas com
material para uma obra sistemática, abundam no manuscrito as repetições. Ademais, enquanto
alguns pontos desenvolvem-se relativamente, outros estão mal apontados. Também não é
sempre fácil dilucidar a significação dos enunciados de Kant, nem harmonizar pontos de vista
em aparência discrepantes. Em relacionamento, o comentarista é com frequência incapaz de
decidir com alguma certeza a respeito da direção na qual desenvolveria Kant seu pensamento se
pudesse o fazer, que ideias descartaria e quais conservaria, ou como reconciliaria pontos de vista
que, para nós ao menos, resultam difíceis de harmonizar. O estudo da cronología de aponte-os
não eliminou essas dificuldades de interpretação. Portanto, toda exposição da evolução das
opiniões de Kant tal como estas se revelam no Opus postumum está destinada a ser muito
problemática. Mas isto, por suposto, não quer dizer que o texto careça de interesse ou que possa
ser desprezado como mera raridade de velhice.

A metafísica da natureza oferecia-nos o conceito de matéria como a móvel no espaço (dá


Bewegliche im Raum)[612] e nos apresentava suas leis na medida em que estas são determinables
a priori. A física ocupa-se, em mudança, de “ as leis das forças que movem a matéria, assim que
dadas na experiência”.[613] A primeira vista pode parecer que não faz falta nenhuma ponte,
nenhuma transição que leve da uma à outra. Mas Kant não era dessa opinião. Pois a
experiência[614] não é coisa simplesmente dada, senão construída. E a física, assim que estuda
as leis das forças motoras da matéria dadas na experiência, pressupõe algo correspondente a um
esquematismo dos conceitos a priori da metafísica da natureza, esquematismo que constituirá
como uma ponte entre dita metafísica e as representações empíricas. “A transição de uma ciência
a outra tem de contar com alguns conceitos intermédios (Zwischenbegriffe) dados na primeira e
aplicados à segunda, e que pertencem ao território da uma e ao da outra. De não ser assim este
progresso não seria uma transição regular (ein gesetzmässiger Uebergang), senão um salto
(Sprung), no qual um não sabe para onde vai e após o qual, ao olhar atrás, não vê também não
realmente seu ponto de partida.”[615]

Kant parece buscar um esquema da física no sentido de umas antecipações da investigação


empírica da natureza. A mera observação empírica das forças motoras da matéria não pode ser
chamado física, se é que a física é uma ciência. Assim que ciência, a física implica sistema, não
mero agregado de observações. E a sistematización ocorre segundo princípios a priori que nos
dão, por assim o dizer, linhas rectoras da investigação empírica. “Não podemos tomar da
intuición empírica mais que o que já pusemos nela para a física.”[616] Portanto “tem que ter
princípios a priori segundo os quais se coordenem as forças motoras em relacionamento as una
com as outras (ou seja, segundo o elemento formal), enquanto as forças motoras em si mesmas
(segundo o elemento material, o objeto) se consideram empiricamente”[617]. Algumas verdades
determinadas são deducibles a priori; mas também temos antecipações problemáticas da
investigação empírica da natureza, no sentido de que sabemos que tem que se dar tal ou qual
situação, embora só a verificação empírica possa nos dizer qual se dá.

Kant aspira, pois, a elaborar um “esquematismo da faculdade de julgar para as forças


motoras da matéria”[618]. A metafísica da natureza, que nos fornece o conceito de matéria como
aquilo que está sujeito a movimento no espaço, tem uma tendência natural à física, ou seja, à
fundamentación de uma doutrina empírica sistemática da natureza. Mas para que isso seja
possível precisamos um conceito mediador ou intermédio.

E este conceito é o da matéria assim que dotada de forças motoras. Este conceito é em parte
empírico, na medida em que o sujeito concebe umas forças motoras da matéria baseando na
experiência. Mas também é em parte a priori, pois os relacionamentos das forças motoras entre
sim implicam a priori certas leis, como as de atração e repulsión. Assim, pois, o conceito de
matéria como dotada de forças motoras é apto para atuar como conceito intermédio
(Zwischenbegriff) entre o puramente a priori e o puramente a posteriori ou empírico. E Kant
propõe considerar as forças motoras da matéria de um modo característico: “O melhor modo de
classificar as forças motoras da matéria é segundo a disposição das categorias, segundo sua
quantidade, qualidade, relacionamento e modalidade”.[619]

Desde verdadeiro ponto de vista, portanto, o Opus postumum é um programa de elaboração


da transição da metafísica da natureza à física. Mas esta transição cai baixo o tema geral da
construção da experiência pelo sujeito. E, efetivamente, Kant dá nos manuscritos tanta
importância a esta ideia que alguns leitores acharam ver nestes textos o nascimento de um
sistema puramente idealista. Interessa-me agora dizer algo a respeito desta questão.

2. A filosofia trascendental e a construção da experiência.

No Opus postumum ocupam um local destacado as ideias da razão pura. Segundo Kant, o
sistema das ideias é o fundamento da possibilidade da totalidade da experiência. “A filosofia
trascendental é o sistema do conhecimento sintético por conceitos a priori.”[620] Se tomamos
esta proposição tal qual, tenderemos à interpretar como alusiva exclusivamente ao sistema das
categorias e dos princípios a priori do entendimento. Mas não é isso precisamente o que quer
dizer Kant. A palavra ‘sistema’, que significa “sistema completo da possibilidade do todo
absoluto da experiência”,[621] alude ao sistema das ideias da razão pura. “A filosofia
trascendental é filosofia pura (não misturada com elementos empíricos nem com elementos
matemáticos) em um sistema de ideias da razão especulativa e moral-prática, na medida em que
constitui um todo incondicionado.”[622] E este sistema é possível “pela postulación de três
objetos. Deus, o Mundo e a ideia de dever”;[623] ou, como também podemos dizer, é possível só
se se põem os objetos Deus, o Mundo “e o homem no Mundo, assim que submetido aos
princípios do dever”.[624] Na medida em que o homem é no Mundo, podemos dizer que “a
totalidade dos seres é Deus e o Mundo”.[625] Por isso se diz que a filosofia trascendental é “a
doutrina de Deus e o Mundo”.[626] E também que “o supremo ponto de vista da filosofia
trascendental está em dois ideias, interrelacionadas, de Deus e o Mundo”.[627] Na ideia de Deus
pensamos a totalidade da realidade suprasensible ou nouménica, e na ideia do Mundo pensamos
a totalidade da realidade sensível. A cada ideia contém um “máximo”, e podemos dizer que “há
um Deus e um Mundo”[628].

As duas ideias juntas formam a ideia do Universo. “A totalidade das coisas, universum, que
compreende a Deus e ao Mundo.”[629] Aparte de Deus e o Mundo não pode ter nada. Mas embora
as duas ideias estão relacionadas, o relacionamento não é de simples coordenação. O Mundo
pensa-se como subordinado a Deus, o sensível subordinado ao suprasensible, o fenoménico ao
nouménico. Trata-se de Deus e o Mundo como “entia non coordinata, sejam subordinata”.[630]
Ademais, o relacionamento entre eles é sintética, não analítica. Ou seja, que é o homem como
sujeito pensante o que pensa e relaciona essas ideias. “Deus, o Mundo e o sujeito que relaciona
ambos objetos, estando o pensamento no mundo. Deus, o Mundo e o que os une em um sistema,
o princípio inmanente pensante do homem (mens) no mundo.”[631] “Deus, o Mundo e eu, o ser
pensante no mundo, que os vincula. Deus e o Mundo são dois objetos da filosofia trascendental,
e (sujeito, pregado e cópula) existe o homem pensante; o sujeito que os une em uma
proposição.”[632]

Kant não quer dizer que as ideias de Deus e o Mundo sejam aprehensiones conceptuais de
objetos dados na experiência. Em verdadeiro sentido, desde depois, Deus e o Mundo pensam-se
como objetos, isto é, como objetos do pensamento; mas não estão dados como objetos. As ideias
são o pensamento da razão pura assim que constitui-se como sujeito pensante. Não são “meros
conceitos, senão leis do pensamento que o sujeito se dita a si mesmo. Autonomia”.[633] Ao
pensar essas ideias o sujeito dá-se a si mesmo um objeto e se constitui ele mesmo assim que
consciente. “O primeiro ato da razão é a consciência.”[634] Mas “tenho de ter objetos de meu
pensamento, e tenho de prendê-los, pois em outro caso não sou consciente de mim mesmo
(cogito, sum; não se trata de ergo ). É autonomia rationis purae. Pois sem isso não teria ideias...
como um animal, sem saber que sou”.[635] As ideias fornecem o material para a construção da
experiência pelo sujeito. “Estas representações não são meros conceitos, senão também ideias
que fornecem o material (dêem Stoff) das leis sintéticas a priori por médio de conceitos.”[636]
Deus e o Mundo não são “substâncias externas a minhas ideias, senão o pensamento pelo qual
nos fazemos objetos por médio de conhecimentos sintéticos a priori e somos subjetivamente
autocreadores (Selbstschöpfer) dos objetos que pensamos”.[637]

Assim, pois, a construção da experiência pode ser representado como um processo do que
Kant lume autoposición, autoconstitución, etc. A partir da ideia de Mundo, por assim o dizer, há
um processo contínuo de esquematización que é ao mesmo tempo um processo de objetivación.
E este processo é obra do sujeito nouménico que se põe a si mesmo. As categorias são atos pelos
quais o sujeito se põe a si mesmo e se constitui a si mesmo como objeto de uma experiência
possível. E o espaço e o tempo, dos que repetidamente se afirmou que são intuiciones subjetivas
puras e não coisas nem objetos de percepciones, se vêem agora como produtos primitivos da
imaginação, intuiciones obra do sujeito. Este se constitui ou se põe a si mesmo como objeto, ou
seja, como ego empírico e como objeto que afeta ao ego empírico. Por isso podemos dizer que
o sujeito se afeta a si mesmo.

A transição da metafísica da natureza à física, tema explícito do Opus postumum, pode ser
contemplado à luz desse esquema geral. Trata-se de mostrar que os tipos possíveis de forças
motoras da natureza e os tipos possíveis de qualidade experimentada pelo sujeito em sua reação
a essas forças podem ser derivado da autoposición do sujeito por um processo de
esquematización. Pelo menos isso há que mostrar, se se sustenta que é o sujeito mesmo o que
constrói a experiência.

Não disimula Kant o fato de que esta teoria da construção da experiência pela autoposición
do sujeito é em verdadeiro sentido uma concepção idealista. “A filosofia trascendental é um
idealismo, na medida em que o sujeito se constitui a si mesmo.”[638] Ademais, esta filosofia
apresenta um notável parecido, a primeira vista ao menos, com a de Fichte, o qual publicou em
1794 seu Fundamento da inteira teoria da ciência. O parecido faz-se muito llamativo quando
Kant interpreta a coisa-em-si como modo de se pôr o sujeito a si mesmo ou se fazer objeto. “O
objeto em si (noumenon) é uma mera coisa do pensamento Gedankending (ens rationis), em
cuja representação se põe o sujeito mesmo.”[639] Esse objeto em si é “a mera representação da
atividade própria do sujeito”.[640] O sujeito projeta, por assim o dizer, sua própria unidade, ou
sua própria atividade de unificação, na ideia negativa da coisa-em-si. O conceito da coisa-em-
sim converte-se em um ato do sujeito que se autopone. A coisa-em-si “não é uma coisa real”,[641]
“não é uma realidade existente, senão só um princípio”,[642] “o princípio do conhecimento
sintético a priori da multiplicidad da intuición sensível em general e da lei de sua
coordenação”.[643] E este princípio deve-se ao sujeito em sua construção da experiência. A
distinção entre aparência e coisa-em-si não vos una distinção entre objetos, senão que vale só
para o sujeito.

Mas os parecidos entre a teoria kantiana da construção da experiência, tal como se esboça
ou alude ao menos no Opus postumum, e o idealismo trascendental subjetivo de Fichte[644] não
justificam a afirmação dogmática de que em sua idade idosa Kant abandone a doutrina da coisa-
em-si e derive a realidade inteira a partir da autoposición do sujeito nouménico. Afirmar isso
seria exagerar o uso de certos termos e reprimir umas afirmações em benefício de outras. Assim,
por exemplo, há no Opus postumum alíneas que evidentemente repetem sem mais a doutrina da
coisa-em-si que se encontra na Crítica da razão pura. Um dessas alíneas diz que embora a coisa-
em-si não é dada como objeto existente, nem pode o ser, é de todos modos “um cogitabile (e
precisamente no sentido de necessariamente pensable), que não pode ser dado, senão
pensado...”[645] A ideia da coisa-em-si é correlativa com a de aparência. É mais: em um par de
ocasiões Kant parece ir mais longe do que poderia ser esperado nesta direção realista. “Se
entendemos o mundo como aparência, então o mundo mesmo prova precisamente a existência
(Dasein) de algo que não seja aparência.”[646] Kant pareça pois dizer às vezes que a coisa-em-si
é singelamente a coisa que aparece quando lha considera aparte de sua aparecer. Pelo que faz ao
uso da palavra ‘idealismo’ para nomear a filosofia trascendental, não parece que, assim que fato
linguístico, implique nenhum ponto de vista novo ou revolucionário na obra de Kant. Pois, como
vimos, a filosofia trascendental é o sistema das ideias da razão pura. E quando no Opus
postumum Kant sublinha o caráter problemático (não asertórico) dessas ideias, é evidente que
não se está apartando em absoluto da doutrina dos Críticaséc.

O fato decisivo parece-me ser que no Opus postumum Kant tenta mostrar que dentro do
enquadramento da filosofia crítica pode dar resposta aos que consideram que a teoria da coisa-
em-si é incoerente e supérflua. Sem dúvida pode ser sustentado que nesse esforço por reformular
suas opiniões de tal modo que ficassem contestados seus críticos e que ficasse de manifesto que
sua filosofia continha já todo o válido dos desenvolvimentos de Fichte e outros, Kant tendeu
bastante a transformar seu sistema em um sistema de idealismo trascendental charuto. Mas isso
não é o mesmo que dizer que Kant tenha repudiado definitivamente ou abandonado alguma vez
o ponto de vista geral que é característico dos Críticaséc. Eu não acho que o fizesse.

3. A objetividad da ideia de Deus.

Voltando à ideia de Deus, podemos observar antes de mais nada que Kant distingue
cuidadosamente entre a questão do que significa o termo ‘Deus’, ou seja, a questão do conteúdo
da ideia de Deus, e a questão de se Deus existe, ou seja, o problema de se há um ser que possua
os atributos compreendidos na ideia de Deus.

“Deus não é a alma do mundo... O conceito de Deus é o conceito de um ser que é causa
suprema das coisas do mundo e é pessoa.”[647] Deus concebe-se como o ser supremo, a
inteligência suprema, o bem supremo, o qual possui direitos e é uma pessoa. “Um ser para o
qual todos os deveres humanos sejam ordens suas é Deus.”[648] O homem pensa a Deus segundo
os atributos que fazem dele (do homem) um ser da esfera nouménica. Mas na ideia de Deus
esses atributos elevam-se, por assim o dizer, ao grau máximo ou absoluto. Por exemplo: o
homem é livre, mas seu ser contém receptividad, e sua liberdade não é absoluta. Deus, em
mudança, concebe-se como espontaneidad e liberdade supremas, sem receptividad nem
limitação. Pois enquanto o homem é um ser finito e composto, no sentido de que pertence às
esferas nouménica e fenoménica, Deus se concebe como realidade nouménica infinita. O mundo
entende-se como a totalidade da realidade sensível; mas concebe-se como subordinado ao poder
criador de Deus e a sua vontade intencional e santa. Como vimos já, o relacionamento entre as
ideias de Deus e Mundo não é uma coordenação, senão uma subordinación, porque o mundo se
entende como dependente de Deus.

Agora bem: há algumas formulaciones do Opus postumum que, se se tomam isoladas — ou


seja, se se entendem em seu sentido natural —, tendem a sugerir que Kant abandonou a noção
de uma existência de Deus independente da ideia de Deus. Assim, por exemplo, enquanto diz
que a ideia de Deus é necessária, no sentido de que é inevitavelmente pensada pela razão pura
como ideal, Kant afirma ao mesmo tempo que essa ideia representa “uma coisa do
pensamento”[649] (ens rationis).[650] Pois “o conceito desse Ser não é o conceito de uma
substância, ou* seja, de uma coisa que existe com independência de todo pensamento, senão a
ideia (autocriatura, Selbstgeschöpf), coisa de pensamento, ens rationis de uma razão que se
constitui ela mesma como objeto de pensamento e produz, segundo os princípios da filosofia
trascendental, proposições e um ideal a priori respecto dos quais não faz sentido perguntar se
existem; pois trata-se de um conceito trascendente”.[651]
A primeira vista, ao menos, esse passo afirma claramente e de modo explícito que a ideia de
Deus é um ideal fato pelo homem, uma criatura do pensamento, e que não há um Ser divino
extramental que corresponda a essa ideia. Mas em outros locais do Opus postumum Kant busca
um argumento moral para a demonstração da existência de Deus que seja mais singelo e mais
direto que o já proposto na segunda Crítica. E este fato contradiz evidentemente a ideia de que
em sua idade idosa Kant abandonasse a crença em Deus como realidade objetiva,
particularmente se se tem em conta que há mais elementos para julgar que conservou, pelo
contrário, aquela fé até sua morte. A verdade é que o Opus postumum consta em grande parte
de ocorrências, de ideias que se lhe apresentavam a Kant e que este anotava para as considerar
ulteriormente; e não é nada surpreendente, em realidade, o que em verdadeiro número dessas
notas apareçam linhas de pensamento divergentes que não podemos harmonizar nem reconciliar.
Mas, por outra parte, há que observar que as ideias expressas na última alínea citada podem ser
posto em paralelo, parcial ao menos, embora extenso, com o dito no Críticos, e que nestas Kant
ofereceu também, apesar disso, uma justificativa da crença em Deus. Portanto, embora a
discrepância dessas linhas de pensamento seja mais rotunda no Opus postumum que no Críticos,
o fato mesmo não é coisa nova.

Já na Crítica da razão pura punha Kant em claro que, em sua opinião, a ideia de Deus,
considerada como criação da razão pura, é a ideia de um "ideal trascendental”. Não expressa
nenhuma intuición de Deus, nem podemos deduzir a existência de Deus partindo da ideia. Estas
opiniões voltam a aparecer no Opus postumum. Não temos intuición de Deus. “Vemos-lhe como
em um espelho, nunca cara a cara.”[652] É impossível deduzir a existência de Deus partindo da
ideia de Deus;[653] esta ideia é uma criação da razão pura, um ideal trascendental. Ademais,
embora pensamos a Deus como substância infinita, Deus não é nem pode ser uma substância,
porque Deus trasciende as categorias do entendimento humano. Portanto, uma vez admitido esse
ponto de vista, não faz sentido perguntar se há um Ser divino que corresponda à ideia de Deus,
pelo menos na medida em que esta ideia implica que se pensa a Deus segundo as categorias.
Esta conclusão repete no substancial a doutrina da primeira Crítica. Mas, como vimos, na
segunda Crítica Kant ia para além e oferecia uma justificativa moral ou prática da crença em
Deus. E no Opus postumum dá ademais umas indicações para seguir ou desenvolver essa linha
de pensamento.

Na segunda Crítica Kant justificava a fé em Deus como um postulado da razão prática.


Chegamos, ou podemos chegar, à fé em Deus por reflexão a respeito das exigências da lei moral
respecto da síntese de virtude e felicidade. No Opus postumum Kant busca uma transição mais
imediata que leve da consciência da lei moral à fé em Deus. Assim apresenta o imperativo
categórico de tal modo que este contém em si mesmo o preceito de considerar todos os deveres
humanos como mandamientos divinos. “Na razão moral-prática encontra-se o imperativo
categórico de considerar todos os deveres humanos como mandamientos divinos.”[654] “Vê-lo
tudo em Deus. O imperativo categórico. O conhecimento de meus deveres como mandamientos
divinos enunciados por médio do imperativo categórico.”[655] “O conceito de Deus é o conceito
de um sujeito externo a mim e que impõe obrigações.”[656] O imperativo categórico é para nós
a voz de Deus, e Deus é manifesto na consciência da obrigação moral e pela lei moral.
Desde depois que Kant faz questão de que isso não é uma demonstração da existência de
Deus como substância existente fosse do espírito humano. Também faz questão de que não se
acrescenta nada à força da lei moral pelo fato da considerar mandamiento divino, e em que se
um homem não crê em Deus, isso não elimina nem prejudica a força obrigatória do imperativo
categórico.[657] É fácil entender que não atendendo mais que a afirmações assim possa ser
chegado à conclusão de que a palavra ‘Deus’ se converteu para Kant em simples sinónimo do
imperativo categórico, ou em nome de uma projeção puramente subjetiva da voz que fala por
médio da lei moral. Mas, como vimos, partindo das premisas de Kant não era possível uma
demonstração da existência de Deus como substância particular. E a menos de dispor-se a
recusar a doutrina da autonomia da vontade presente à segunda Crítica, Kant está obrigado a
dizer que a força moral do imperativo categórico não depende de que o consideremos expressão
de uma ordem ou um mandamiento da Divinidad. Mas de todo isso não se segue necessariamente
que Deus seja para Kant um mero nome do imperativo categórico. O que se segue é que o único
acesso a Deus que temos é o facilitado pela consciência moral. Não é possível nenhuma
demonstração teorética da existência de Deus. E essa é precisamente a doutrina da Crítica. Mas
no Opus postumum Kant parece buscar uma conexão mais direta entre a consciência da
obrigação e a fé em Deus. “Liberdade baixo leis; os deveres como ordens divinas. Há Deus.”
[658]

Talvez devamos interpretar à luz deste desejo de achar uma justificativa mais imediata da fé
em Deus os passos do Opus postumum que a primeira vista parecem equivaler à afirmação do
argumento a priori ou ontológico da existência de Deus. Kant diz-nos/dí-nos, por exemplo, que
“a ideia (Gedanke) de Deus é ao mesmo tempo fé nele e em Seu caráter pessoal”.[659] E “a mera
ideia (Crie) de Deus é ao mesmo tempo um postulado de Sua existência. Pensar-lhe e crer nele
é uma proposição idêntica”.[660] Se relacionamos essas afirmações com a tese de que “um ser
necessário é aquele cujo conceito é ao mesmo tempo demonstração suficiente de sua
existência”,[661] poderíamos chegar a supor que Kant, depois de ter recusado o argumento
ontológico na Crítica da razão pura, chegou ao aceitar no Opus postumum. Mas é muito
improvável que essa seja a situação. Kant não parece estar falando de demonstração teorética,
como pretendia ser o argumento ontológico, senão de uma “demonstração suficiente” para a
consciência moral, ou seja, suficiente desde o ponto de vista puramente prático ou moral. “O
princípio de cumprir todos os deveres como mandamientos divinos na religião prova a liberdade
da vontade humana... e é ao mesmo tempo, em relacionamento com os princípios práticos
charutos da razão, uma demonstração da existência de Deus como Deus único.”[662] Não se trata
de ter primeiro uma. ideia da essência divina para deduzir dela a existência de Deus. Trata-se de
que através da consciência do imperativo categórico se chega à ideia de Deus que me fala em e
através da lei moral. Ter esta ideia de Deus e crer nele são uma e a mesma coisa. Ou seja,
conceber a Deus como inmanente em mim, como sujeito que ordena moralmente, é lhe conceber
como existente. Mas esta consciência de Deus como inmanente à consciência moral é uma
“demonstração suficiente” de Sua existência só para essa consciência.

Se esta interpretação é correta (e dificilmente pode um afirmar nada cortantemente nesta


questão), poderemos dizer que Kant oferece algo bem como um análogo ou equivalente moral
do argumento ontológico. Os propugnadores deste o entenderam como uma demonstração
teorética da existência de Deus, demonstração tal que uma vez entendida impõe a aceitação.
Kant não admite a existência de nenhuma demonstração assim. Mas pensa que há algo análogo
a ela. Conceber a Deus como sujeito que dá ordens morais, algo inmanente à consciência moral,
e ter fé religiosa nele são uma e a mesma coisa. Mas isso não significa que partindo da ideia
puramente abstrata de um supremo legislador moral possamos deduzir teoréticamente a
existência desse legislador divino, de tal modo que se imponha ao espírito a aceitação da
conclusão. O que quer dizer é que dentro da consciência moral e para ela, a ideia da lei como
voz de um legislador divino é equivalente à fé na existência de Deus. Pois ter essa ideia de Deus
é para a consciência moral postular Sua existência. É possível que esta linha de argumentación
não resulte muito convincente. Pois pode-se argüir que à longa equivale à tautología de que crer
em Deus é crer em Deus. Mas é ao menos evidente que Kant está buscando uma aproximação
mais direta à crença em Deus, baseada também na consciência moral, mas mais rectilínea que a
já desenvolvida na segunda Crítica. E está claro que não podemos saber como desenvolveria
essa nova proposta se pudesse o fazer.

4. O homem como pessoa e como microcosmos.

Temos visto que a síntese das ideias de Deus e Mundo é obra do homem, do sujeito pensante.
Isto é possível porque o homem mesmo é um ser intermédio e mediador, e o conceito de homem
é um conceito mediador, Pois o homem tem, por assim o dizer, um pé na cada campo. Pertence
à esfera suprasensible e à sensível, à nouménica e à fenoménica; e através da consciência moral
o sensível se subordina ao suprasensible. A razão humana pode deste modo pensar a totalidade
do ser suprasensible na ideia de Deus, e a totalidade do ser sensível na ideia de Mundo; e sintetiza
estas ideias ao pôr entre elas um relacionamento pela qual a ideia de Mundo se subordina à ideia
de Deus.

Que o homem pertence à ordem ou esfera sensível é coisa evidente. Ou seja, é evidente que
pertence à classe dos seres físicos orgânicos. E como tal, o homem está submetido às leis da
causalidad determinada. Mas sua vida moral manifesta sua liberdade; e, assim que livre, o
homem pertence à ordem nouménico, ou esfera nouménica. “O homem (que é um ser do mundo
[ein Weltwesen]) é ao mesmo tempo um ser que possui liberdade, propriedade que se encontra
fora de. os princípios causales do mundo, mas que, no entanto, pertence ao homem.”[663] E
possuir liberdade é possuir espírito. “Há pois um ser acima do mundo, a saber, o espírito do
homem.”[664] Mas ser livre em virtude de um princípio espiritual é ser uma pessoa. “O ser
corpóreo vivo é animado (animal). Se é uma pessoa, é um ser humano.”[665] O homem é pessoa
assim que é um ser livre, autoconsciente, moral.

Significa isso que o homem esteja, por assim o dizer, escindido em dois elementos? O que
obviamente significa é que podemos distinguir entre o homem como noúmeno e o homem como
fenômeno. “O homem no mundo pertence ao conhecimento do mundo; mas o homem assim que
consciente de seu dever no mundo não é fenômeno, senão noúmeno, e não é coisa, senão
pessoa.”[666] Mas embora o homem possui esta natureza dúplice, há unidade da consciência. “Eu
(o sujeito) sou pessoa, não só consciente de mim mesmo, senão também como objeto de
intuición no espaço e no tempo e assim que tal pertencente ao mundo.”[667] Possuo “a
consciência de minha existência no mundo no espaço e o tempo”.[668] Esta unidade, que é ao
mesmo tempo unidade de dois princípios, se manifesta na consciência moral. “Há em mim uma
realidade que, diferente de mim mesmo no relacionamento causal de eficiência (nexus
effectivus), obra sobre mim (agit, facit, operatur). Dita realidade, que é livre, ou seja,
independente da lei natural no espaço e o tempo, me dirige interiormente (me justifica ou me
condena); e eu, homem, sou eu mesmo essa realidade...”[669] Ademais, minha liberdade pode
trasponerse em ação dentro do mundo. “Há no homem um princípio ativo, embora suprasensible,
o qual, independentemente da natureza e da causalidad natural, determina fenômenos e se chama
liberdade.”[670]

Se Kant desenvolvesse sua teoria da construção da experiência, poderia, efetivamente,


derivar o eu empírico e o homem fenoménico da autoposición do eu nouménico tendo em conta
a autorrealización moral. Mas isso não passa de ser a afirmação de que na filosofia kantiana
mesma há fundamentos para o desenvolvimento da posição que adotou Fichte. E este último
manteve sempre, efetivamente, que seu sistema era um desenvolvimento coerente de tendências
internas ao kantismo. Mas tal como estão os textos, o que encontramos é mais bem o conceito
metafísico do homem como microcosmos que pensa o macrocosmos, a saber, o Universo. O
Universo assim que pensado pelo homem nas ideias regulativas de Deus e o Mundo é uma
projeção da natureza dúplice daquele. Nenhuma das duas ideias representa nenhum objeto dado.
E partindo da ideia regulativa de Deus como cria trascendental não podemos deduzir a existência
de Deus como substância. Na medida em que Sua existência é dada ou manifesta, o é só à
consciência moral em sua percepción da obrigação. Mas, como vimos, isto deixa sem resolver
o problema da existência objetiva de Deus. É a realidade correspondente ao termo ‘Deus’
simplesmente o princípio suprasensible presente ao homem mesmo, o eu nouménico? Ou é um
ser diferente do homem e conhecido só em e pela consciência da obrigação? Eu acho que a
segunda resposta é a que representa as convicções de Kant. Mas não pode ser dito que as
anotações do Opus postumum resolvam concluyentemente a questão. Esta obra ilustra mais bem
a tendência do kantismo a transformar em um sistema de idealismo trascendental que subordina
o ser ao pensamento ou os identifica em última instância. Não acho que Kant mesmo desse esse
passo decisivo. Mas a tendência está implícita em seus escritos, embora Kant não aceitasse com
agrado a ideia de Fichte de que devia eliminar de seu sistema o elemento de realismo, de “
dogmatismo”, como dizia Fichte. De todos modos, é impropio interpretar a filosofia de Kant a
referindo exclusivamente ao idealismo especulativo que lhe aconteceu. Se tomamo-la, como é
devido, por si e em si mesma, a filosofia kantiana pode ser entendido como uma original
tentativa de resolver o problema da reconciliação dos dois reinos da necessidade e a liberdade,
não pela redução de um a outro, senão mediante a descoberta de seu ponto de contato na
consciência moral do homem.
Capítulo XVII
Resumo conclusivo.

1. Observações prévias.

No prólogo a este tomo observei que os volumes IV, V e VI desta História, que
compreendem em conjunto a filosofia dos séculos XVII e XVIII, constituem uma trilogía. Isto
é, que podem ser considerado como um conjunto. Ao princípio do volume IV situou-se um
capítulo de introdução aos temas tratados pelos três volumes. Prometi dar então um resumem
conclusivo comum ao final do volume VI.

O objetivo deste repaso conclusivo não é dar uma sinopsis das várias filosofias discutidas na
trilogía, senão tentar alguma discussão da natureza, a importância e o valor dos principais estilos
de filosofias, ou movimentos filosóficos, dos séculos XVII e XVIII. Será necessário limitar a
discussão a alguns temas escolhidos. Ademais, embora sem dúvida se fará referência a filósofos
individuais, às vezes será necessário tratar complexos movimentos de pensamento, que
compreendem a filósofos discrepantes entre si em importantes respectos, como se
representassem estilos de filosofar homogéneos, ou até sistemas filosóficos homogéneos. Dito
de outro modo: proponho-me uma discussão de tipos ideais, por assim o dizer, e de
generalizações que precisariam importantes precisões. Este procedimento não é desejável em si,
mas me parece um modo legítimo de chamar a atenção a respeito de certos rasgos do pensamento
filosófico do período estudado, sempre que as várias filosofias se tratem em outras páginas por
seus próprios méritos.

2. O racionalismo continental.

Na introdução ao volume IV prestou-se especial atenção ao desejo de Descarte de superar o


novo escepticismo da Renascença, que era, entre outras coisas, escepticismo a respeito da
possibilidade de resolver os problemas metafísicos e de conseguir a verdade na metafísica. E
temos visto que Descarte contemplou a matemática como modelo do razonamiento claro e
verdadeiro. Descarte desejava dar à filosofia uma clareza e uma certeza análogas à clareza e à
certeza das matemáticas, e destilar, por assim o dizer, do método matemático um método que
permitisse ao espírito proceder de um modo ordenado e passo a passo, sem confusão nem erro.

Compreende-se facilmente que Descarte apelasse à matemática como modelo de


razonamiento se se tem em conta seus próprios estudos e talentos, bem como os avanços
contemporâneos naquele campo. Nem também não é excecional nenhum outro rasgo deste caso
de influência de fatores extra-filosóficos no pensamento filosófico. Pois embora a filosofia tem
uma continuidade própria, no sentido de que podemos dar uma exposição inteligible de seu
desenvolvimento histórico, essa continuidade não é absoluta, como se a filosofia percorresse um
caminho completamente isolado, sem conexão com outros fatores culturais. Sua continuidade
pode ser visto influída de modos diversos por outros fatores. Por exemplo, a filosofia pode ser
visto influída por outros fatores quanto ao método adequado que tem de utilizar. A tendência de
Descarte a ver na matemática um modelo de método pode ejemplificarlo. Outro exemplo é as
modernas tentativas de interpretar a metafísica como uma série de hipótese mais gerais que as
das ciências particulares, interpretação que reflete também a influência de um modelo extra-
filosófico, a saber, o método hipotético-deductivo da física moderna. Por outra parte, a filosofia
pode ser influída por fatores extra-filosóficos também respecto de seu tema, ou respecto da
importância que há que dar a algum tema. Na Idade Média a filosofia esteve assim muito influída
pela teología, a “rainha das ciências”. Nos primeiros decenios do século XIX podemos ver
refletir no sistema de Hegel a consciência do desenvolvimento histórico que se expressou no
crescimento da ciência histórica. O marxismo mostra obviamente a influência da consciência
crescente da importância dos fatores econômicos na história da civilização e da cultura. A
filosofia de Bergson devia muito não só à hipótese científica da evolução, senão também aos
estudos de psicólogos e sociólogos. O pensamento de Whitehead está influenciado pela transição
da física clássica à moderna. Também pode estar a filosofia influída por fatores extra-filosóficos
respecto da formulación de seus problemas. Por exemplo, o problema do relacionamento entre
a alma e o corpo é um problema clássico e recorrente; mas o progresso das ciências particulares
afetou aos modos de propor-se esse problema aos diversos filósofos. O progresso da mecânica
fez com que o problema apresentasse-se aos filósofos do século XVII baixo uma luz
determinada, enquanto os modernos desenvolvimentos da psicologia deram-lhe uma coloración
diferente, por assim o dizer, para a visão de pensadores mais tardios. Em verdadeiro sentido
pode ser dito que se trata do mesmo problema, de um problema “perenne”; mas em outro sentido
podemos dizer que se trata de problemas diferentes, no sentido, isto é, de que há que tomar por
força em consideração fatores relevantes diferentes, os quais afetam a nossa concepção e nossa
formulación do problema básico.

Isto não é senão um reconhecimento de fatos empíricos, e não a proclamación da relatividad


da verdade. É insensato negar os dados históricos a que apelam os partidários da teoria do
relativismo. Mas disso não se segue necessariamente que o reconhecimento dos dados históricos
implique a aceitação da tese de que os sistemas de filosofia não podem ser julgado senão desde
o ponto de vista de seu contexto histórico e sua situação, e que não é possível nenhum julgamento
absoluto a respeito da verdade ou a falsidade de suas proposições. É difícil negar que no curso
de seu desenvolvimento a filosofia (ou seja, as opiniões dos filósofos) se viu influída por fatores
extra-filosóficos. Mas isso não nos impede discutir, sem referência a ditos fatores, a questão de
se as proposições enunciadas pelos filósofos são verdadeiras ou falsas.

Voltando à admiração de Descarte pelo modelo do método matemático, podemos recordar


que também outros destacados filósofos racionalistas do período moderno prekantiano sentiram
vivamente a influência de dito modelo; um exemplo é Spinoza. Mas o que na história da filosofia
do século XVII se chama racionalismo[671] não é uma mera preocupação pelo método. É natural
pensar que a filosofia pode aumentar nosso conhecimento da realidade.[672] É essa uma
expectativa espontânea, de modo que as dúvidas a respeito da capacidade da filosofia a este
respecto são posteriores a essa expectativa, não anteriores a ela. Por todo isso é compreensível
que o destacado sucesso da aplicação da matemática à ciência física a partir da Renascença
inclinasse a alguns filósofos a pensar que a aplicação à filosofia de um método análogo ao
matemático lhes permitiria não só sistematizar o já conhecido e dar forma de conhecimento, por
assim o dizer, a proposições verdadeiras ainda não demonstradas logicamente, senão também
aumentar nosso conhecimento mediante a dedução de verdades desconhecidas ou não
reconhecidas. A ideia de utilizar a matemática para o progresso da ciência física não era nova,
certamente. Já Rogerio Bacon, por exemplo, insistia durante o século XIII na necessidade do
fazer assim. Mas até a Renascença não pode ser falado realmente de sucessos da aplicação da
matemática à física. E era natural que alguns filósofos postrenacentistas tentassem a aplicação à
filosofia de um método análogo ao da matemática, com objeto de alargar o âmbito de nosso
conhecimento da realidade. Dito de outro modo, os racionalistas interessavam-se não só pela
metodologia, senão também pelo uso do método adequado para descobrir verdades novas, para
aumentar nosso conhecimento positivo da realidade.

Agora bem: se combinamos a ideia de dar à filosofia um método análogo ao da matemática


com a ideia de deduzir a partir de proposições fundamentais ou já demonstradas outras
proposições que nos dêem novo conhecimento factual da realidade, chegamos à ideia de um
sistema deductivo de filosofia que será afim ao da matemática em sua forma deductiva, mas
diferente dele no sentido de que o sistema de filosofia nos fornecerá verdades a respeito da
realidade existente. Não digo que essa distinção fora universalmente admitida pelos pensadores
renacentistas e postrenacentistas. Galileo, por exemplo, não concebia a matemática como uma
ciência puramente formal que desenvolve os envolvimentos de definições e axiomas
convencionalmente eleitos, senão como um saber que nos revela o coração mesmo da natureza,
que nos permite ler o livro da natureza. Mas está claro que uma proposição a respeito das
propriedades do triângulo, por exemplo, não nos diz que tenha objetos triangulares, enquanto os
grandes filósofos racionalistas do período moderno prekantinno se consideravam dedicados ao
estudo da realidade existente.

A aplicação com sucesso da matemática à ciência física sugere de um modo natural que o
mundo é inteligible, “racional”. Assim, por exemplo, segundo Galileo Deus escreveu o livro da
natureza com carateres matemáticos. E se a filosofia tem de ser um sistema deductivo e tem de
dar-nos/dá-nos, ao mesmo tempo, certa informação factual a respeito do mundo, é obviamente
necessário supor que o mundo é de tal natureza que a filosofia consegue essa combinação de
rasgos. Na prática, isso significa que o relacionamento causal tem de assimilar ao
relacionamento de envolvimento lógica. E efetivamente achamos nos filósofos racionalistas a
tendência a essa assimilação.

Suponhamos agora que o mundo seja um sistema racional no sentido de que possui uma
estrutura inteligible que o filósofo pode reconstruir mediante um processo deductivo. A filosofia
pode ser representado então como o despliegue da razão mesma, de tal modo que o
desenvolvimento sistemático do conhecimento filosófico nos revela a estrutura objetiva da
realidade. Mas se o sistema da realidade pode ser reconstruído mediante um processo deductivo
que representa o despliegue da razão, então não é innatural postular uma teoria de ideias ao
menos virtualmente innatas. Pois o autodespliegue da razão significará o desenvolvimento de
um sistema filosófico pelo espírito e por seus próprios meios, se assim pode ser dito. E o sistema
estará prefigurado no espírito na forma de ideias virtualmente presentes desde o começo, embora
a experiência seja necessária como ocasião de sua atualização. Com isto não quero dizer que um
sistema deductivo de filosofia implique necessariamente a teoria innatista. Mas se o sistema
representa-se como um despliegue do espírito mesmo e se esta descrição significa algo mais que
o desenvolvimento dos envolvimentos lógicos de certas definições e certos axiomas livremente
eleitos ou derivados de algum modo da experiência, parecerá obrigada alguma versão da teoria
das ideias innatas. E a doutrina de umas ideias virtualmente innatas encaixa com o conceito do
autodespliegue do espírito ou razão muito melhor que uma teoria que postule ideias innatas
atuais.

Se a filosofia tem de basear-se em ideias virtualmente innatas e se suas conclusões têm de


ser verdadeiras com certeza, está claro que essas ideias têm que representar visões intuitivas
reais de essências objetivas. Ademais, precisaremos alguma segurança de que no processo da
dedução filosófica estejamos tratando da realidade existente, e não simplesmente do reino da
possibilidade. Por isso podemos entender facilmente o entusiasmo dos metafísicos racionalistas
pelo argumento ontológico para a demonstração da existência de Deus; se essa argumentación
é válida, permite uma inferência imediata da ideia à existência da realidade última, Deus, o Ser
absolutamente perfeito e necessário.

Como pode ser usado esse argumento em uma reconstrução deductiva da estrutura da
realidade? Do modo seguinte. Se apressamos a analogia entre o desenvolvimento de um sistema
deductivo de matemática e a construção de um sistema filosófico, chegamos à necessidade de
começar a filosofia com uma proposição que expresse a existência do ser último (uma
proposição tomada como análogo dos axiomas fundamentais da matemática), bem como à de
deduzir o ser finito mediante uma assimilação do relacionamento causal à de envolvimento
lógica. Por isso precisamos ter assegurada a existência do princípio metafísico primário, ou ser
último. E o argumento ontológico, que procede diretamente da ideia deste ser a sua existência,
é bem mais afim às exigências de um sistema puramente deductivo que um argumento a
posteriori que infira explicitamente a existência de Deus partindo da existência de seres finitos.
Pois, dito na linguagem da lógica, o que queremos é passar do princípio à conclusão, e não da
conclusão ao princípio.

A anterior interpretação do racionalismo é, certamente, descrição de um tipo ideal, do que


poderia ser chamado racionalismo charuto ou ideal. Essa interpretação não pode ser aplicado
sem mais aos grandes sistemas da filosofia continental prekantiana. Dos três principais sistemas
racionalistas discutidos no volume IV o que mais se acerca à anterior descrição é o de Spinoza.
Descarte, como já então vimos, não começa com a realidade última, senão que arranca da
existência do eu finito como sujeito pensante.

E não pensou também não que a existência do mundo pudesse ser deduzido da existência de
Deus. Leibniz, por sua vez, distinguia entre verdades necessárias, ou de razão, e verdades
contingentes, ou de fato. Apresentava a distinção como relativa a nosso conhecimento finito,
mas, em qualquer caso, a praticava. E não achava que a criação das mónadas que realmente
existem fora logicamente deducible da essência divina por um processo de razonamiento
baseado no princípio de não-contradição. Para explicar o passo da ordem das essências
necessárias ao das existências contingentes Leibniz apelava ao princípio da perfección ou o
ótimo, não ao princípio de não-contradição.
Mas embora a descrição interpretativa do racionalismo que dei dantes não possa ser aplicado
sem mais a todos os sistemas geralmente chamados de metafísica racionalista, representa, ao
menos, uma tendência presente a todos eles. E nas observações introdutórias a este capítulo
adverti que utilizaria tipos ideais e admitiria generalizações que em sua aplicação a casos
particulares iam precisar sem dúvida precisões e correções.

Não me parece que seja necessário discutir pelo longo a teoria das ideias innatas. Parece-me
que, ao menos em suas grandes linhas, fica claramente justificada a Crítica que Locke fez dessa
teoria para mostrar que é uma hipótese supérflua. Se a teoria das ideias virtualmente innatas
significa só que o espírito é capaz de formar certas ideias, então todas as ideias podem ser
chamado innatas. Mas neste caso não terá interesse a questão. A teoria não pode ter interesse
mais que no caso de que algumas ideias se derivem da experiência enquanto outras não podem
ser derivado da experiência. Mas que significa derivar da experiência? Se a experiência reduz-
se à recepção de impressões (no sentido de Hume) e se as ideias concebem-se como efeitos
automáticos ou representações fotográficas de impressões, resulta muito difícil, se não
impossível, explicar certas ideias como derivadas da experiência. Por exemplo: não temos
impressão alguma de uma perfección absoluta nem de uma infinitud absoluta. Mas se admitimos
a atividade construtiva do espírito, já não me parece necessário admitir, por exemplo, que a ideia
de perfección absoluta tenha de ser innata ou diretamente impressa por Deus. Desde depois que
se a ideia fora em realidade a intuición da perfección absoluta não poderíamos explicar sua
origem servindo da atividade sintetizadora do espírito baseada na experiência da perfección
finita e limitada. Mas não parece ter razão suficiente para dizer que tenhamos intuiciones da
perfección absoluta e da infinitud absoluta. Por isso podemos dar uma explicação empírica da
origem dessas ideias, sempre que não afirmemos ao mesmo tempo que derivação a partir da
experiência significa representação fotográfica dos dados imediatos da percepción sensível e
introspección. Não é que a teoria das ideias innatas afirme uma imposibilidad lógica. Trata-se
mais bem de que redunda em uma hipótese supérflua à qual pode ser aplicado com fruto “a
navalha de Ockham”. o princípio de economia. Desde depois que a teoria pode ser transformado
ao modo em que o fez Kant para obter sua teoria das categorias a priori, as quais são, por assim
o dizer, forma para conceitos, e não conceitos ou ideias no sentido ordinário. Mas uma vez
transformada desse modo, a teoria não pode já realizar sua função clássica de dar uma base ao
sistema metafísico no sentido em que entendiam a metafísica os racionalistas prekantianos.

A recusación da teoria das ideias innatas implica recusación do ideal racionalista, se este se
entende como o ideal de deduzir um sistema da realidade partindo simplesmente dos meios do
espírito mesmo, sem recorrer à experiência. Pois este ideal implica a teoria das ideias
virtualmente innatas. Mas a recusación da teoria não implica necessariamente a do ideal (como
tal) de uma metafísica deductiva em general. Pois poderíamos chegar aos princípios
fundamentais de uma tal metafísica partindo da experiência. Ou seja: a experiência pode ser a
ocasião de nossa visão da verdade de certas proposições metafísicas fundamentais. Tomemos,
por exemplo, a proposição “todo o que chega ao ser o faz pela ação de uma causa extrínseca”.
As ideias de génesis (chegar ao ser) e de causalidad obtêm-se pela experiência, não são ideias
innatas.[673] São, ademais, ideias diferentes. Isto é: a ideia de ser causado não se obtém por mera
análise da ideia de chegar a ser, não em um sentido que fizesse verdadeira a afirmação de que a
proposição dada é uma tautología. Portanto, a proposição é sintética. Mas se, como acho, a
proposição expressa um entendimento de uma conexão objetiva necessária, não será uma
proposição sintética a posteriori, não será uma generalização empírica que possa resultar
verdadeira ou falsa. Pelo contrário, terá de ser uma proposição sintética a priori, não no sentido
de ser innata, senão no sentido de que sua verdade é logicamente independente da verificação
empírica.[674] E se há um número suficiente de proposições deste tipo, resultará talvez possível
dar à metafísica geral ou ontología a forma de uma ciência deductiva.

Mas disso não se segue, certamente, que possamos deduzir proposições existenciales
partindo de proposições do tipo indicado. A proposição “todo o que chega ao ser o faz pela ação
de uma causa extrínseca” afirma que se algo chega ao ser, o faz pela ação de uma causa
extrínseca, mas não diz que tenha, tenha ou vá ter algo que chegue ao ser. Nem podemos deduzir
da proposição a conclusão de que tenha, tenha ou vá ter algo dessa classe. Dito mais
precisamente: de duas proposições nenhuma das quais seja de existência não podemos deduzir
logicamente uma conclusão existencial. Podemos, por exemplo, deduzir proposições que sejam
verdadeiras de todos os seres finitos se há seres finitos. Mas não podemos deduzir que tenha
seres finitos. Dito de outro modo: se admitimos que pode ter proposições sintéticas a priori,
então podemos também deduzir um esquema da realidade, no sentido de um corpo de
proposições que serão verdadeiras das coisas existentes se há coisas existentes. Mas não
podemos deduzir que esta condição se cumpra de fato. Ficamos na esfera da possibilidade.

De proposições que afirmam algo que tem que ser verdadeiro de toda coisa existente não
podemos deduzir mais que proposições do mesmo tipo. Ou seja, de proposições necessárias não
podemos deduzir proposições contingentes, proposições cujas contrárias podem ser verdadeiras.
E isto vale igual se limitamos as proposições necessárias às da lógica formal e a matemática
pura que se admitimos princípios metafísicos necessariamente verdadeiros. Dito de outro modo:
se partimos de premisas que pertençam à metafísica geral ou ontología e procedemos
dedutivamente, nos mantemos dentro da esfera da metafísica geral ou ontología. De premisas
assim não podemos deduzir as proposições verdadeiras pertencentes ao corpo de nenhuma
ciência particular. Sem dúvida podemos aplicar a classes particulares de coisas finitas princípios
metafísicos que são necessariamente verdadeiros de toda coisa finita. Mas isso não é o mesmo
que deduzir de premisas metafísicas as proposições da química ou da botánica. Se supomos que
a proposição segundo a qual todo o que chega ao ser o faz pela ação de uma causa extrínseca é
uma proposição metafísica necessariamente verdadeira, chegamos à conclusão de que se existe
a costure câncer de pulmão, essa coisa terá causa ou causas extrínsecas. Mas não podemos
deduzir da metafísica quais são essas causas.

Não pretendo afirmar que Descarte, por exemplo, achasse efetivamente que podemos partir
de verdades metafísicas gerais e deduzir logicamente delas todas as verdades da ciência natural,
prescindiendo do experimento, a observação, a hipótese e a verificação empírica. Mas a
tendência do racionalismo consistia em assimilar o inteiro corpo das proposições verdadeiras a
um sistema matemático no qual todas as conclusões se encontram logicamente implicadas pelas
premisas fundamentais. E na medida em que os racionalistas alimentavam o ideal dessa
assimilação se entregavam, certamente, a um sonho vão.

Como fica dito, é impossível deduzir uma proposição de existência partindo de duas
premisas nenhuma das quais é uma proposição existencial. Mas aqui apresenta-se-nos a questão
de se partindo de uma proposição de existência podemos deduzir outras proposições de
existência, de tal modo de que a existência do princípio ontológico último pudéssemos deduzir
a existência do ser finito ou dependente. Dito de outro modo: podemos arrancar da afirmação da
existência do ser absolutamente perfeito e infinito e deduzir a existência do ser finito?

Para fazê-lo teríamos que poder demonstrar ou provar das duas uma coisas. Ou bem que a
significação do termo ‘ser infinito' contém já como parte de si mesma a significação do termo
‘ser finito’; ou bem que a natureza do ser infinito é tal que tem que causar necessariamente
(criar) ser finito. No primeiro caso teríamos uma filosofia monista. Afirmar a existência do ser
infinito seria já afirmar a existência do ser finito, já que esta está já compreendida de algum
modo no primeiro. Se demonstrasse já a existência do ser infinito — por exemplo, mediante o
argumento ontológico —, nos bastaria com analisar o termo ‘ser infinito’ para mostrar que existe
o ser finito. No segundo caso não daríamos necessariamente em uma filosofia monista; mas de
todos modos o ser finito, embora diferente de Deus, procederia dele por uma necessidade da
natureza divina.

Pelo que faz à primeira alternativa, o termo ‘ser infinito’ se usa em contraposição ao termo
‘ser finito’ e compreende a este último só no sentido de que implica a negación da finitud (e
assim esta aparece em sua significação;. A afirmação da existência do ser infinito implica a
negación de que esse ser seja finito, não a negación de que tenha ser finito existente como
modificação do infinito. Talvez se pense que o termo ‘ser infinito’ é vazio se se toma segundo
uma distinção que o contraponha ao termo ‘ser finito’, e que para lhe dar contido temos de
entender no sentido do complexo infinito dos seres finitos. Mas neste caso a afirmação de que
existe o ser infinito equivaleria à afirmação de que o número dos seres finitos é infinito. E seria
tão huero dizer que se deduze a existência do ser finito a partir da do ser infinito como dizer que
a existência de canecas de chá se deduze da afirmação de que o número de canecas de chá é
infinito. Neste contexto interessa-nos a dedução do ser finito a partir do ser infinito uma vez
conhecida a existência deste. Mas se afirmar a existência do ser infinito fosse afirmar que o
número dos seres finitos é infinito, não poderíamos dizer que sabemos que há ser infinito
enquanto não soubéssemos que o número dos seres finitos é infinito. E neste caso não se
apresentaria sequer a ideia de deduzir a existência dos seres finitos.

Pelo que faz à segunda alternativa, ou seja, a demonstrar que Deus cria por necessidade de
Sua natureza, que base pode ser dado a essa afirmação? Se por Deus entendemos um ser perfeito
e infinito, afirmar a existência de Deus é afirmar a existência de um ser que por sua natureza é
autosuficiente. Ou seja, a criação de ser finito não pode acrescentar a Deus nada do qual
carecesse. E neste caso não parece que tenha fundamento algum para afirmar a necessidade da
criação. É significativo o que Leibniz, ao tentar explicar a criação divina, recorresse à ideia de
necessidade moral, em vez da a de necessidade metafísica. Mas uma vez entendido Deus como
o ser absolutamente perfeito, não parece ter fundamento para afirmar a necessidade da criação
em nenhum sentido da palavra ‘necessidade’.

Desde depois que se estivéssemos discutindo o teísmo e o panteísmo como tais teríamos que
considerar todo este tema do relacionamento entre o finito e o infinito. Mas o que discutimos é
um ponto particular, a saber, a dedução do ser finito a partir do infinito uma vez conhecida a
existência deste. E esta questão implica uma distinção entre o finito e o infinito, pois trata-se de
deduzir a existência do finito a partir do infinito. Portanto, se o termo ‘ser infinito’ analisa-se de
tal modo que signifique simplesmente um número infinito de seres finitos, então desaparece sem
mais o problema da dedução tal como inicialmente se entendia. Todo o que faz falta é uma
análise de ‘ ser infinito', e essa análise dissolve o problema. A pergunta inicial carece de
significação. Mas se mantemos a distinção essencial para que o problema seja significativo (ou
seja, a distinção entre o finito e o infinito), então não parece ter fundamento para uma dedução
da existência do ser finito a partir da do ser infinito. E o único que nos ocupava era esta dedução,
não os problemas que surgem quando se procede ao inverso e se afirma a existência do infinito
partindo da do finito.

Resumam-nos de forma dogmática essas reflexões Críticaséc. Em primeiro lugar, não


podemos deduzir de premisas que afirmem o que tem de ser verdadeiro de toda coisa, se é que
existe alguma, a conclusão de que existe algo. Em segundo local, de premisas que afirmam o
que necessariamente tem de ser verdadeiro de toda coisa não podemos deduzir conclusões
factualmente verdadeiras, mas que pudessem ser falsas. Em terceiro local, não podemos arrancar
da afirmação do ser infinito para deduzir a existência do ser finito. Portanto, não podemos
construir uma metafísica puramente deductiva segundo o modelo do sistema matemático, se por
metafísica puramente deductiva entendemos uma metafísica na qual a afirmação do ente que é
primeiro na ordem ontológico corresponde às premisas fundamentais do sistema matemático, e
a dedução da existência do mundo dos seres finitos corresponde à dedução das conclusões no
sistema matemático.

É óbvio que esses comentários críticos não afetam aos sistemas de Descarte, Spinoza e
Leibniz mais que na medida em que se acercam ao que chamei tipo ideal de racionalismo. E
fazem-no em graus diversos. Não pretendo dizer que esses filósofos não ensine nada verdadeiro
nem interessante. No pior dos casos, esses filósofos ofereceram-nos interessantes visões do
mundo. E suscitaram, ademais, importantes problemas filosóficos. Por outra parte ofereceram
programas para a investigação ulterior. Assim, por exemplo, a descrição por Spinoza da
consciência ou o sentimento da liberdade como ignorância das causas determinantes pode ser
interpretado retrospectivamente como uma incitación ao desenvolvimento da psicologia
profunda. E o sonho leibniziano de uma linguagem simbólica ideal tem uma importância óbvia
nos campos da lógica e da análise linguística. Mas nada disso altera o fato de que a história do
racionalismo continental pré-kantiano contribuiu a mostrar que a filosofia metafísica não pode
adotar uma forma sugerida por uma analogia estreita com a forma deductiva da matemática pura.

3. O empirismo britânico.

O empirismo britânico é um movimento de pensamento que tem para a filosofia


contemporânea muito maior importância que o racionalismo continental prekantiano. Hume é
hoje um pensador vivo em um sentido em que não o é Spinoza. Efetivamente desenvolveu-se o
empirismo dos séculos XVII e XVIII , e a linguagem no qual se expressa agora é algo diferente
do utilizado pelos empiristas clássicos. Designadamente, hoje acentuam-se as considerações
lógicas mais que as psicológicas. Mas fica o fato de que o empirismo exerce uma poderosa
influência no pensamento moderno, particularmente, desde depois, na Inglaterra, enquanto a
influência exercida pelos filósofos racionalistas prekantianos sobre os pensadores mais
metafísicos de nossos dias não se deve a sua proximidade ao que chamei tipo ideal de
racionalismo, senão a outras feições de seu pensamento.

Ao discutir o empirismo britânico clássico tropeça-se com uma dificuldade análoga à que se
apresenta quando se discute o racionalismo como tal. Pois os filósofos dos séculos XVII e XVIII
que se classificam tradicionalmente como empiristas diferem muito em suas opiniões. Se
interpreta-se o empirismo à luz de seu ponto de partida, ou seja, à luz da tese de Locke segundo
a qual todas as ideias procedem da experiência, então é óbvio que temos de começar por situar
a Locke entre os empiristas. Mas se interpreta-se o movimento à luz de seu ponto de chegada na
filosofia de Hume, então teremos de admitir que as filosofias de Locke e Berkeley, embora
contêm elementos empiristas, não são sistemas puramente empiristas. Mas esta dificuldade é,
certamente, inevitável se propomo-nos discutir o empirismo como conjunto de doutrinas e como
tipo ideal, mais que como movimento histórico. E nesta seção proponho-me atender ao
empirismo tal como principalmente o representa Hume. Por isso advirto antecipadamente que
se que meus comentários terão maior significação para uma discussão do pensamento de Hume
que para o estudo de Locke ou de Berkeley.

Também é verdade que o empirismo de Hume pode ser contemplado desde vários pontos de
vista. Pode ser entendido como doutrina psicológica a respeito da origem e a formação das
ideias, ou como doutrina epistemológica a respeito da natureza, o alcance e os limites do
conhecimento humano. Podemos entendê-lo como uma teoria lógica dos diferentes tipos de
proposições ou como um ensaio de análise conceptual, de análise de conceitos como espírito,
corpo, causa, etc. Mas todas essas feições se unificam por obra do mesmo Hume na ideia da
ciência da natureza humana, o estudo do homem em suas atividades cognoscitivas e razonadoras
e em sua vida moral, estética e social. Como vimos ao considerar no volume V o pensamento
de Hume, o filósofo aspirava a uma ampliação da “filosofia experimental” ao que ele chamava
“temas morais”, usando o termo em sentido muito amplo. Um estudo do homem não é sem mais
sinal de empirismo. O homem foi igualmente objeto de estudo para os racionalistas, por não
falar já dos filósofos gregos, medievais e renacentistas. Mas, como se acaba de dizer, a aspiração
de Hume consistia em aplicar a esse tema o método da “filosofia experimental”. E isto
significava para ele uma limitação à evidência oferecida pela observação. Certamente temos de
esforçar-nos/esforçá-nos por achar as causas mais simples e menos numerosas que possam
explicar os fenômenos. Mas ao fazer isto não podemos ultrapassar os fenômenos, no sentido de
apelar a entidades ocultas, a substâncias não observadas. Pode ser que tenha causas ocultas; mas
embora tenha-as, não podemos as ter em conta na ciência experimental do homem. Temos de
tentar descobrir leis gerais (o princípio da associação de ideias, por exemplo) que correlaten os
fenômenos e permitam a predição verificable. Mas não temos de esperar, nem menos pretender,
descobrir causas últimas que trasciendan o nível fenoménico. E há que recusar toda hipótese que
o pretenda.

Dito de outro modo, o plano de Hume consiste em alargar à filosofia em general as limitações
metodológicas da física newtoniana. Por isso não é absurdo dizer que ao modo como o
racionalismo continental estava influído pelo modelo da dedução matemática, assim o
empirismo de Hume estava baixo a influência do modelo da física newtoniana. O próprio Hume
deixa-o bem em claro em sua introdução ao Treatise of Human Nature. Por isso é razoável
considerar o racionalismo e o empirismo como experimentos: o experimento de ver até que
ponto é aplicável à filosofia o modelo matemático (racionalismo) e o experimento de aplicar à
filosofia as limitações metodológicas da física clássica (empirismo).[675]

A análise reductivo é provavelmente o rasgo do método de Hume que mais imediatamente


chama a atenção do leitor. Entendo por análise reductivo uma análise do complexo que o reduz
ao simples ou relativamente simples, e uma análise dos todos que os reduz a suas partes
constitutivas. O uso da análise reductivo não era, em si, nenhuma novidade. Sem ir mais longe,
podemos recordar a redução por Locke das ideias complexas a ideias simples, ou a análise, por
Berkeley, das coisas materiais reduzindo-as a aglomerados de fenômenos, de “ ideias", como o
dizia. Mas Hume aplicou este método de investigação bem mais radicalmente que seus
predecessores. Baste com citar sua análise da causalidad e do eu.

Não poderemos dizer, desde depois, que a filosofia de Hume fosse toda análise e nada
síntese. Pois, entre outras coisas. Hume tentava reconstruir o complexo partindo de seus
elementos. Assim tentava mostrar, por exemplo, como surge nossa complexa ideia do
relacionamento causal Também realizou Hume uma atividade de síntese no sentido de dar um
quadro geral do território, por assim o dizer, do conhecimento humano e da natureza da
experiência moral. Mas excluía a síntese metafísica de tipo tradicional. Esta ficava eliminada
pelas limitações metodológicas que se impunha Hume e pelos resultados de sua análise. Por
exemplo: dado sua análise da causalidad, Hume não podia sintetizar a multiplicidad dos objetos
fenoménicos pelo procedimento dos relacionar, como os efeitos com a causa, com um Um que
trasciende os objetos sintetizados. Locke e Berkeley podiam proceder assim; Hume não.
Portanto, embora seria incorreto dizer que não há síntese alguma no desenvolvido empirismo de
Hume, podemos afirmar legitimamente que em comparação com os sistemas racionalistas a
filosofia de Hume é uma filosofia analítica. Isso significa que seu rasgo mais evidente é a análise
reductivo, não a síntese tal como a entenderiam os metafísicos racionalistas.

Todo isso pode ser expressado também de outro modo. Hume interessava-se pela análise de
termos como ‘causa’, 'eu', ‘justiça’, etc. Seu tema não era a dedução da existência de uma coisa
a partir de outra. E seu empirismo não permitia sequer deduções assim. Portanto, ficava fora de
seu campo de interesses toda síntese metafísica de tipo racionalista. O acentuado tinha de ser
necessariamente a análise. E pode ser dito que uma filosofia plenamente empirista tem de ser
predominantemente analítica. Nas filosofias de Locke e Berkeley a análise, embora sem dúvida
presente, predomina menos que na filosofia de Hume. E a razão disso é que suas filosofias são
empiristas só parcialmente.

Nada há que reprochar, certamente, à análise como tal. Nem podemos também não reprochar
a um filósofo o que se dedique primariamente à análise. Aparte de que as sínteses metafísicas
construídas sem uma cuidadosa análise prévia dos termos e as proposições podem ser meros
castelos de naipes, é muito natural que filósofos diferentes tenham atitudes mentais diferentes.
Ademais, o fato de que os resultados da análise de Hume excluam as sínteses metafísicas de tipo
tradicional não pode ser tomado como prova suficiente de que essa análise seja defeituosa. O
empirista diria mais bem que tanto pior para a metafísica.

Mas embora não possa ser feito objeción alguma à análise assim que tal, talvez seja possível
objetar aos supostos ou as hipóteses implícitas na prática da análise por um determinado filósofo.
E parece-me que a prática da análise reductivo por Hume está orientada por um suposto errôneo,
a saber, o suposto de que os constituintes reais da experiência humana são “percepciones”
discretas, atômicas. Uma vez suposto — ou provado, como ele achava — que todas as ideias se
derivam de impressões[676] e que essas impressões são “existências diferentes”, não fica senão
aplicar esse orçamento à análise das ideias que parecem de importância ou interesse. E se no
processo de aplicação tropeçamos com casos nos quais não pareça se cumprir o princípio geral,
porque leva a incoherencias insuperables, será inevitável pôr em dúvida a validade daquele
princípio geral.

A análise do eu por Hume parece exemplo adequado. O eu se resolve em “ percepciones”


diferentes. Mas o mesmo Hume admite que tendemos a substituir esta noção de objetos
relacionados (percepciones diferentes) pela noção de identidade, e que essa tendência é tão
intensa que chegamos a imaginar algo substancial como conexão das percepciones. Disso se
segue que o que há que reconstruir partindo das percepciones diferentes tem de ser um algo ao
que razoavelmente possamos atribuir dita tendência. Mas tal como está a questão não podemos
o fazer. Se o eu consiste, como diz Hume, em uma série ou um faça de percepciones, não há
nada do qual possa ser dito razoavelmente que tem a tendência a imaginar algo substancial que
liga as percepciones. Hume nota a dificuldade. Admite sua perplexidade e confessa abertamente
que não sabe como corrigir sua opinião para lhe evitar essa incoherencia. Mas sua admissão
mostra em realidade que sua análise fenomenista do eu não funciona adequadamente. E esta
conclusão permite pôr também em dúvida o suposto geral de que os constituintes últimos da
experiência humana são impressões discretas, atômicas.

Pode-se objetar às anteriores considerações Críticas que não é correto falar neste contexto
de supostos ou orçamentos. A análise reductivo não é uma suposição, senão um método, e Hume
mostra, ao menos a satisfação sua, que esse método pode ser aplicado com bom resultado a
ideias como as de causalidad e eu. Talvez possa ser pensado que a aplicação não é boa no caso
do eu, por exemplo. Mas isso não é uma razão para dizer que tenha um suposto prévio.

É verdade que Hume tenta mostrar em casos concretos que podemos analisar as significações
de palavras como ‘eu’ a base da ideia de percepciones diferentes. E neste sentido é verdade que
não pressupõe que isso possa ser feito. Mas o que sem dúvida pressupõe é uma hipótese de
trabalho: que nossas ideias podem ser explicado a base de impressões discretas. E fá-lo porque
supõe tacitamente, também como hipótese de trabalho, que os constitutivos últimos da
experiência humana são impressões discretas, atômicas, dados empíricos com os quais se
constrói a interpretação do mundo. Hume supõe que podemos reduzir nossa interpretação do
mundo aos dados empíricos que são objeto direto da consciência, e que esses dados são
“impressões”. Mas ao realizar essa redução empirista Hume esquece-se do eu que intervém na
experiência como sujeito, para concentrar nos objetos imediatos da introspección. Este
procedimento pode provavelmente relacionar com o esforço por aplicar o método da “filosofia
experimental” a “ temas morais”. Mas seu resultado, no caso da análise do eu, mostra as
limitações do método.

Em general e sempre temos de ter cuidado em não confundir os resultados da abstração com
os dados últimos da experiência. Perceber é uma forma de experienciar. E é possível que dentro
da percepción possamos distinguir, por abstração, algo correspondente ao que Hume chama
impressões. Mas disso não se segue que as impressões sejam constituintes em ato da percepción,
de modo que possamos reconstruir a experiência inteira a base de impressões. Ainda menos se
segue disso que o que percebemos conste de impressões. Pode parecer ingênuo dizer que no
perceber temos de distinguir entre sujeito, objeto e ato de percepción. A observação pode parecer
uma reflexão meramente linguística, ou seja, uma lembrança do tipo sujeito-verbo-objeto da
proposição. Mas quando se elimina o sujeito, é o sujeito mesmo o que pratica a eliminação. E
se eliminamos o objeto assim que diferente da percepción, damos finalmente no solipsismo.

Parece-me que as linhas de Crítica que sugeri aqui podem ser aplicado não só à filosofia de
Hume, senão também a certas versões modernas de sua empirismo. Alguns empiristas tentaram
evitar o dar a impressão de que sua análise fenomenista é metafísico, teoria ontológica. Assim,
por exemplo, segundo a teoria da “construção lógica” é possível, em princípio ao menos, traduzir
enunciados a respeito do espírito por outros enunciados que não contêm a palavra ‘espírito’ ou
‘alma’, senão que mencionam em seu local fenômenos ou acaecimientos psíquicos, de tal modo
que se o primeiro enunciado é verdadeiro (ou falso), os enunciados equivalentes são também
verdadeiros (ou falsos) e vice-versa. Analogamente, um enunciado a respeito de uma mesa pode
ser traduzido (em princípio ao menos) por enunciados nos quais não aparece a palavra ‘mesa’,
senão a menção de dados sensíveis em seu local, e com um relacionamento de equivalencia
verititiva entre o enunciado primeiro e sua tradução. Por isso se diz então que uma mesa é uma
“construção lógica” com dados dos sentidos, e o espírito uma “construção lógica” feita de
fenômenos ou acaecimientos psíquicos. Deste modo o fenomenismo apresenta-se como uma
teoria lógica ou linguística, e não como uma teoria ontológica. Mas parece-me difícil que tenha
sucesso este ingenioso tentativa de evitar a admissão de que o fenomenismo é uma teoria
metafísica oposta a qualquer teoria metafísica não-fenomenista. Em qualquer caso, sempre
poderia ser perguntado como é possível, dado essa análise do espírito, a construção da
construção lógica. Ademais, se a análise de objetos físicos, como uma mesa, implica que
percebemos dados sensíveis (e é difícil ver como poderia ser evitado esse envolvimento), então
se pode argüir que o solipsismo é a única consequência necessária, a menos de optar pela
estranha teoria de que os dados sensíveis são entidades soltas.

Pode objetarse a todo isso que. seja ou não válida minha Crítica a Hume, em todo caso não
afeta ao rasgo mais importante de seu empirismo, que é sua teoria lógica. Os velhos empiristas
consideravam a filosofia desde um ponto de vista psicológico. Locke, por exemplo, começava
por perguntar pela origem das ideias. E essa é uma questão psicológica. Hume segue-lhe por
esse caminho ao pôr a origem de quase todas as ideias nas impressões. Mas embora essas
questões psicológicas são importantes ao considerar a história do empirismo, o valor permanente
do empirismo clássico consiste sobretudo em sua contribuição à teoria lógica. Este é a feição do
pensamento de Hume que convém sublinhar. É a feição que mais diretamente lhe vincula ao
empirismo moderno.

A observação é acertada, em minha opinião, pelo que faz à vinculação de Hume com o
empirismo moderno. Como vimos ao estudar a filosofia de Hume no volume V, o filósofo
traçava uma distinção entre razonamiento demostrativo, o qual se refere aos "relacionamentos
entre ideias” e se encontra, por exemplo, na matemática pura, e razonamiento moral, o qual se
refere às “questões de fato” e não dá local à demonstração lógica. Quando, por exemplo,
argüimos de um efeito a sua causa, nossas conclusões podem ser mais ou menos prováveis; mas
sua verdade não é demonstrada nem pode o ser. Pois sempre é concebible e possível o contrário
de uma situação de fato; esse contrário não implica nunca uma contradição lógica. Em mudança,
na matemática pura, quando se trata de relacionamentos entre ideias e não de questões de fato,
a afirmação da contrária da conclusão de uma demonstração implica contradição.

Hume ocupa-se aqui de duas classes de razonamiento, e sua condição é que o razonamiento
a respeito de questões de fato não equivale à demonstração. Não podemos, por exemplo,
demonstrar a existência de uma coisa partindo da existência de outra. Podemos sentir-nos/sentí-
nos seguros a respeito da verdade de nossa conclusão; mas se prescindimos de estados de ânimo
e atendemos só à feição lógica da questão, temos de admitir que as conclusões conseguidas ao
razonar sobre questões de fato não podem ser verdadeiras.

No empirismo moderno mantém-se este ponto de vista, mas o que se acentua é uma distinção
entre dois tipos de proposições. De uma proposição que, por falar a linguagem de Hume, enuncie
um relacionamento entre ideias se diz que é analítica e verdadeira a priori (se é verdadeira). Ou
seja: sua verdade é logicamente independente de toda verificação empírica. De uma proposição
que, segundo a linguagem de Hume, se refira a questões de fato se diz que é sintética. Sua
verdade não pode ser conhecida sem mais elemento que a proposição mesma, senão que precisa
verificação empírica. É a verificação empírica a que mostra se a proposição é verdadeira ou
falsa. A proposição contrária é sempre possível logicamente. Portanto, nenhuma verificação
empírica, por grande que seja, pode lhe dar mais que um alto grau de probabilidade.

Como é óbvio, essa classificação das proposições exclui a possibilidade de proposições


existenciales que sejam necessariamente verdadeiras. Mas, tal como a interpretam os empiristas,
a classificação exclui também toda proposição que, ainda sem afirmar a existência de nenhuma
coisa, pretenda ser informativa a respeito da realidade e, ao mesmo tempo, verdadeira a priori,
no sentido de que sua verdade não possa ser refutada empiricamente, nem sequer em princípio.
Seja, por exemplo, o enunciado de que todo o que chega ao ser ou começa a existir o faz pela
ação de uma causa. Em opinião de Hume a verdade deste enunciado não se aprecia por intuición,
senão que é concebible seu contrário. Também não é demostrable sua verdade. Portanto, é uma
generalização empírica, uma hipótese que pode ser em general verificada, mas que, em princípio
ao menos, admite refutación empírica. E suponho que se Hume vivesse hoje consideraria que o
que costuma se chamar “indeterminación infra-atômica” é uma confirmação de sua tese a
respeito do estatuto lógico do princípio de causalidad.

Assim, pois, falando a linguagem do empirismo moderno se diz que há proposições


analíticas, que em algum sentido são “tautologías”, e proposições sintéticas a posteriori, ou
hipóteses empíricas; mas não há proposições sintéticas a priori. Todas as proposições propostas
como sintéticas a priori resultam ser, em fim de contas, tautologías manifesta ou disimula

dá, ou generalizações empíricas que podem desfrutar de um grau de probabilidade alto, mas
cuja verdade não pode ser conhecida senão por análise da proposição mesma.

O problema das proposições sintéticas a priori é demasiado complicado para discutí-lo aqui.
Mas pode valer a pena chamar a atenção a respeito dos pontos seguintes. Suponhamos que os
fenômenos agrupados baixo o rótulo de indeterminación infra-atômica ou subatómica possam
ser interpretado de tal modo que ainda seja possível apresentar o princípio de causalidad como
aspirante à categoria de proposição sintética a priori. E admitamos que o princípio de causalidad
afirma que todo o que chega ao ser ou começa a existir o faz pela ação de uma causa.[677] Em
verdadeiro sentido, o empirista tem toda a razão quando diz que a negación dessa proposição
não implica nenhuma contradição lógica. Isto é: não há contradição verbal entre as proposições
“X chega ao ser" e “X não tem causa”. Se tivesse entre elas uma contradição verbal, o princípio
de causalidad — tal como se formulou dantes — seria uma proposição analítica no sentido em
que o empirista entende este termo. É, pois, possível compreender as significações das palavras
castelhanas (ou inglesas, ou francesas, etc.) utilizadas ao formular o princípio de causalidad e,
no entanto, não ver nenhuma conexão necessária entre chegar ao ser ou começar a existir e ser
causado. Dificilmente poderá ser sustentado que o que negue essa conexão necessária não
entende as palavras utilizadas para formular o princípio. Acho, pois, que teremos que mostrar
que há um nível de entendimento mais profundo que o ordinariamente mentado ao falar da
significação de palavras.[678] Mostrado isso, poderá ser sustentado que embora a posição do
empirista não pode ser assaltada ao nível de reflexão no que ela se põe, se pode, no entanto,
apreciar seu inadecuación ao passar ao nível do entendimento metafísica.

É óbvio que essas observações não resolvem a questão de se há ou não há proposições


sintéticas a priori. As observações em questão fazem-se mais bem com o propósito de indicar o
que há que mostrar para sustentar que há proposições tais. O leitor pode pensar que há outro
modo de resquebrajar a posição do empirista, a saber, negando que as proposições da matemática
pura, por exemplo, sejam puramente formais no sentido de “ tautologías”: dito de outro modo,
pode ser sustentado que as proposições da matemática pura são em verdadeiro sentido
proposições a respeito da realidade, embora não sejam proposições de existência. Mas se
realmente dispomo-nos a sustentar que são proposições sintéticas a priori, e não proposições
analíticas no sentido em que o empirista usa estes termos, temos que estar dispostos a explicar
em que sentido dão informação da realidade.

Voltemos a Hume. Dada sua classificação das proposições, é claramente impossível


construir um sistema deductivo a priori de metafísica cujas proposições sejam infaliblemente
verdadeiras da realidade. Nem também não, dado sua análise da causalidad, podemos partir dos
dados da experiência e inferir a existência de Deus por um argumento causal ao modo como
Locke e Berkeley o achavam possível. Mas a primeira vista parece que siga sendo possível
considerar as teorias metafísicas como hipóteses com graus vários de probabilidade.

É verdade, desde depois, que Hume discutiu alguns problemas metafísicos. E parece ter
reconhecido gostosamente que é mais provável que tenha uma causa da ordem do universo com
alguma remota analogia com a inteligência humana que a hipótese contrária. Mas, por outra
parte, parece-me que das premisas gerais de Hume se segue que os termos usados para denotar
entidades metafísicas carecem de significação quando se usam nesse contexto. Pois as ideias
derivam-se de impressões. E se pensamos que temos uma determinada ideia porque usamos uma
determinada palavra e, por outra parte, não podemos indicar, nem sequer em princípio, a
impressão ou as impressões das quais se deriva essa ideia, nos veremos obrigados a reconhecer
que em realidade não temos tal ideia. E neste caso o termo é vazio. Também é verdade que
Hume reconheceu exceções possíveis a essa regra geral de que as ideias seguem às impressões.
Mas desde depois que não fez essa concessão em favor da metafísica. E embora o local em que
condena a metafísica como absurdo sinsentido é um passo meramente retórico, acho por minha
parte que essas linhas representam a conclusão à que levam logicamente as premisas de Hume,
pelo menos se sublinhamos a tese de que as ideias são imagens desdibujadas de impressões.
Neste caso as teorias metafísicas não podem ser hipóteses genuínas.

Parece, pois, sustentável que o empirismo de Hume, se se lhe desenvolve até atingir as
conclusões que contém implicitamente, conduz à recusación da metafísica como mera
palabrería. E este desenvolvimento ocorreu no século xx por obra dos neopositivistas.
positivistas lógicos ou empiristas radicais, segundo os quais os enunciados metafísicos não
podem ter mais que significação “emocional”.[679] Deste modo voltamos a dar com um vínculo
entre a filosofia de Hume e o moderno empirismo radical.

Pode objetarse que esta interpretação equivale a tratar o pensamento de Hume como uma
espécie de preparação do neopositivismo, e que este tratamento é defeituoso por várias razões.
Em primeiro lugar, a importância contemporânea do pensamento de Hume parece radicar mais
na acentuación dada à análise filosófico em general que em sua antecipação do neopositivismo
designadamente, o qual, ao menos em sua primitiva forma dogmática, resultou ser uma fase
passageira. Em segundo local, um tratamento do pensamento de Hume como preparação do de
outros filósofos, positivistas ou não, esquece inevitavelmente a interpretação da experiência
humana por Hume. Esteja-se ou não de acordo com o que diz, o fato é que a explicação por
Hume do alcance e dos limites do conhecimento humano, seu exame da vida afectiva, moral e
estética do homem e sua teoria política, todo o qual constitui em seu conjunto a tentativa de
desenvolver uma ciência do homem, ficam escurecidos e esquecidos se se faz questão de tratar
o pensamento de Hume em função de posteriores desenvolvimentos filosóficos.

Acho que essas objeciones são fundadas. Mas, por outra parte, o tratamento da filosofia de
Hume à luz do posterior empirismo ajuda a destacar a importância atual daquela. E tem interesse
fazê-lo, embora com isso limitemos nossa consideração a um só das feições da importância que
teve em sua época. O empirismo de Hume sofre por vários defeitos graves. Por exemplo, sua
atomização da experiência é em minha opinião um erro fundamental; sua teoria das ideias não
me parece sustentável; e pode-se perfeitamente sustentar que Kant foi em verdadeiro sentido
mais “empírico” que Hume com seu insistencia na unidade trascendental da apercepción como
condição básica da experiência humana. Mas os defeitos da filosofia de Hume não diminuem
sua importância histórica. E embora em alguns respectos seu pensamento encaixa em esquemas
velhos,[680] sua concentração em torno da análise é sem dúvida um dos principais títulos com
que conta o filósofo para que lhe consideremos um pensador vivo.

4. O Iluminismo e a ciência do homem.

Na introdução ao volume IV observamos que a ideia de uma ciência do homem que tem
Hume representa muito bem o espírito do Iluminismo do século XVIII. E ao estudar o
Iluminismo francês neste volume vimos que filósofos como Condillac tentaram desenvolver as
teorias psicológicas e epistemológicas de Locke para chegar a uma explicação empírica da
génesis e o desenvolvimento da vida moral do homem; Montesquieu estudou a estrutura e o
crescimento das sociedades; Rousseau e outros formularam teorias políticas; os fisiócratas
começaram o estudo da economia ; e pensadores como Voltaire, Turgot e Condorcet esboçaram
teorias do desenvolvimento histórico à luz dos ideais da Idade da Razão. Todos esses estudos
psicológicos, éticos, sociais, políticos, históricos e econômicos podem ser agrupado juntos baixo
o rótulo geral de estudo científico do homem.

Ao empreender esse estudo, os filósofos aos que costumamos considerar representantes


típicos do Iluminismo aspiravam ao libertar de orçamentos teológicos e metafísicos. Acho que
este é um dos rasgos mais destacados do pensamento desta época. Não se aspira tanto a deduzir
um sistema amplo de princípios auto-evidentes quanto a compreender os dados empíricos os
pondo em correlação baixo leis empiricamente verificadas. Condillac, por exemplo, quer dar
uma explicação empírica do desenvolvimento da vida mental, e Montesquieu tenta agrupar os
vários dados do desenvolvimento de sociedades diferentes baixo leis universais. Em general, a
proposta empírico de Locke teve uma influência amplísima. E há uma grande diferença entre a
atmosfera, por assim o dizer, dos grandes sistemas do racionalismo continental (do século XVII)
e o pensamento do Iluminismo do século XVIII. A atmosfera do primeiro está feita de dedução,
a do último de indução. É verdade que esta afirmação, como qualquer outra generalização rápida,
precisa matización e precisões. Por exemplo, dificilmente se associará a ideia de indução com o
nome de Wolff, o herói da Aufklärung alemã. Mas a generalização chama, em qualquer caso, a
atenção, embora seja muito simplificatoriamente, sobre uma diferença real no espírito e a
atmosfera de ambos períodos filosóficos.

Pode ser iluminista essa diferença mediante uma alusão à teoria moral. A teoria moral de
Spinoza era uma parte de todo um grandioso sistema exposto dedutivamente, e estava
intimamente relacionada com doutrinas metafísicas. Em mudança, nas teorias morais de Hume
na Inglaterra ou de Helvecio e os enciclopedistas na França encontramos uma insistencia na
autonomia da consciência moral e na separação da ética da teología.

Analogamente, embora a ideia do contrato social (na teoria política) não se deriva de nenhum
estudo dos dados empíricos, senão que constitui uma tentativa de dar uma justificativa racional
à autoridade política, no entanto. não pode ser dito que os teóricos políticos do século XVIII se
inclinem muito por deduzir a sociedade e a autoridade partindo de doutrinas teológicas e
metafísicas. Mais bem se interessam pelas necessidades observadas do homem. E esta proposta
é, certamente, o que permite a Hume substituir a ideia racionalista do contrato social pela ideia
empírica da utilidade sentida.

Com isso não quero dizer que os homens do Iluminismo não contribuíssem seus próprios
supostos. Como vimos, supunham uma teoria do progresso segundo a qual o progresso consiste
na progressiva racionalização do homem, e esta racionalização implica sua emancipación da
superstição religiosa e das forma irracionais de governo eclesiástico ou civil. Em sua opinião,
os frutos do progresso estavam otimamente representados por suas próprias pessoas, pelos
librepensadores iluministas dos salões de Paris; e o ulterior progresso consistiria em difundir as
ideias que defendiam e em reformar a sociedade de acordo com os ideais do Iluminismo. Uma
vez realizada a reforma da estrutura social, os homens progrediriam em moralidade e em virtude.
Pois o estado moral do homem depende em grande parte de seu ambiente e da educação.

Talvez se objete ao dito que a teoria do progresso mantida pelos homens do Iluminismo era
uma generalização empírica, e não um suposto prévio. E embora no século XIX a ideia tenda a
tomar a forma de um “dogma”, especialmente quando se achou sustentada pela teoria da
evolução em mudança para os pensadores do século XVIII foi mais bem uma hipótese flexível.
Inclusive quando Turgot antecipa a lei comtiana dos três estádios do pensamento humano, o que
faz é propor uma hipótese baseada no estudo dos dados históricos, não um esquema a priori ao
que tenha qua adaptar os dados.

É sem dúvida verdade que para os pensadores do Iluminismo a teoria do progresso se


baseava em fatos históricos. Não a apresentavam como uma conclusão obtida de premisas
metafísicas. Mas também é verdade que funcionou como um orçamento, baseado em um
julgamento de valor. Ou seja, os enciclopedistas e os que compartilhavam sua concepção
formaram primeiro seus ideais do homem e da sociedade, e depois interceptaram o progresso
como um movimento para a realização desses ideais. O procedimento não tem nada de raro,
desde depois. Mas significa, por exemplo, que aqueles filósofos estudaram a história humana
baseando em um orçamento que influía indevidamente em sua interpretação da história. Assim
foram incapazes de apreciar a contribuição da Idade Média à cultura européia. A Idade Média
apresentava-se-lhes inevitavelmente como a Idade Escura. Pois se progresso quer dizer avanço
para a realização dos ideais representados pelos philosophes do século XVIII, então implica a
libertação respecto de alguns dos rasgos destacados da cultura medieval. A luz estava
representada pelos pensadores progressivos do século XVIII, e o avanço da “razão" era
incompatível com a religião medieval ou com uma filosofia intimamente sócia à teología. Neste
sentido os homens do Iluminismo tinham seu próprio “dogma”.

Seu ponto de vista acarretava também o que fossem incapazes de fazer justiça a importantes
feições da natureza e da vida humana. É um exagero dizer que os philosophes não tivessem
entendimento de nenhuma feição da vida humana que não fosse a vida da razão analítica
emancipada. Hume, por exemplo, fazia questão da grande importância do sentimento e afirmava
que a razão é e tem de ser escrava das paixões.[681] E Vauvenargues sublinhava também a
importância do lado afectivo da natureza humana. Embora os ataques de Rousseau aos
enciclopedistas não careçam de fundamento, não pode ser dito que representem toda a verdade.
Por outra parte, os philosophes mostravam pouco aprecio, por exemplo, da vida religiosa do
homem. Seria absurdo recorrer ao deísta Voltaire ou ao ateu d’Holbach para encontrar um
entendimento profundo da religião. D’Holbach esboçou uma filosofia naturalista da religião,
mas seu produto não resiste a comparação com as filosofias idealistas da religião que se
encontram no século seguinte. Os librepensadores racionalistas do século XVIII estavam
demasiado preocupados com a ideia da emancipación do homem respecto do que consideravam
peso aplastante das correntes da superstição e o clero, e isso lhe impedia ter um entendimento
profundo da consciência religiosa.

Este elemento de superficialidad manifesta-se, por exemplo, na corrente materialista da


filosofia ilustrada. Como vimos, não pode ser chamado indiscriminadamente materialistas aos
philosophes. Mas teve entre eles materialistas, os quais oferecem o espetáculo um tanto cômico,
do sujeito humano dedicado a se reduzir, por assim o dizer, a objeto puramente material. É fácil
compreender a repugnancia que o Sistema da natureza de d'HoIbach produziu no Goethe
estudante. E d'Holbach não foi o materialista mais grosseiro.
Mas a superficialidad de algumas feições da filosofia do Iluminismo francês não tem de nos
esconder a importância histórica do movimento. Rousseau fica aparte. Suas ideias têm interesse
por si mesmas e exerceram uma influência considerável em pensadores posteriores, como Kant
e Hegel. Mas embora os enciclopedistas e outros filósofos afins dos que Rousseau decidiu se
separar tio ocupam talvez na história da filosofia um local tão importante, no entanto, exerceram
uma influência que não pode ser ignorado, senão que há que estimar, segundo me parece, não
tanto desde o ponto de vista dos “resultados" definitivos que possam ser registrado quanto desde
o ponto de vista de sua contribuição à constituição de uma mentalidade geral. Talvez seja lícito
dizer que os filósofos típicos do Iluminismo francês representam a ideia de que o
aperfeiçoamento do homem, seu bem-estar e sua felicidade são coisas que estão em suas próprias
mãos. Se liberta-se da ideia de que seu destino depende de um poder sobrenatural cuja vontade
se expressa através da autoridade religiosa, e se segue a via que lhe prescreve a razão, o homem
é capaz de criar o médio social no qual pode florescer a verdadeira moralidade humana e no qual
é possível promover o bem maior do maior número possível. A ideia, mais tarde tão difundida,
de que o desenvolvimento do conhecimento científico e uma organização mais racional da
sociedade acarretariam inevitavelmente um aumento da felicidade humana e a consecución de
ideias morais sãs foi um desenvolvimento do ponto de vista do Iluminismo. É verdade que
também outros fatores, como o progresso da ciência técnica, resultaram necessários para que a
ideia tomasse essa forma desenvolvida. Mas a ideia básica de que o bem-estar econômico
depende do exercício da razão emancipada das trava da autoridade, dos dogmas religiosos e de
dudosas doutrinas metafísicas floresceu já no século XVIII. Não se tratava já, como na Reforma,
de substituir o dogma católico pelo protestante senão de substituir a autoridade pelo "livre
pensamento", pela autonomia da razão.

Desde depois que estas observações não têm por objeto expressar um acordo com o ponto
de vista de homens como Voltaire. Sua ideia da razão era limitada e estreita. Exercer a razão
significava para eles lisa e claramente pensar como pensavam os philosophes, enquanto pára
todo o que acha que Deus se revelou a Si mesmo é racional aceitar esta revelação e irracional a
recusar. Em qualquer caso, os homens do Iluminismo não estavam tão livres de orçamentos e
de preconceitos como eles gostavam de imaginar. Seu racionalismo otimista tropeçou
obviamente com um sério obstáculo no século XX. Mas nada disso altera o fato de que no século
XVIII tomou forma clara uma concepção que exerceu uma influência considerável no
pensamento moderno. Os ideais de liberdade de pensamento e de tolerância, que têm o
desempenhar uma função tão importante na civilização da Europa e da América, encontraram
expressão clara nos escritos dos filósofos do século XVIII.[682] Sem dúvida podemos acrescentar
que os filósofos do Iluminismo francês deram um poderoso estímulo aos estudos científicos, por
exemplo, à psicologia. E alguns deles, como d'Alembert, fizeram contribuições reais ao
progresso do conhecimento extra-filosófico. Mas acho que a principal importância de todos eles
se encontra em sua contribuição à formação de uma mentalidade ou ponto de vista geral.

Em certa medida a filosofia do Iluminismo expressava o desenvolvimento das classes


médias. Desde o ponto de vista econômico, a classe média tinha-se estado desenvolvendo já
durante bastante tempo. Mas nos séculos XVII e XVIII sua ascensão refletiu-se em correntes do
pensamento filosófico que na França eram hostis ao ancien régime e contribuíam a preparar o
caminho para uma organização diferente da sociedade. Terá que confessar que estas observações
têm um perfume marxista, mas não por essa razão têm de ser necessariamente errôneas.
Quero ainda chamar a atenção a respeito de um problema particular que propõe a filosofia
do século XVIII. Temos visto que os representantes típicos do Iluminismo tendiam a fazer
questão da separação entre a ética e a teología e a metafísica. Acho que no fundo de sua atitude
há um autêntico problema filosófico. Mas alguns dos escritores do Iluminismo escureceram a
natureza desse problema em vez do clarificar. Refiro-me aos dedicados a argumentar que a
religião, e particularmente o cristianismo dogmático, exerce uma influência perniciosa na
conduta moral, com a consequência de que o deísmo ou o ateísmo — segundo os autores — é
mais apto para conduzir à moralidade e a virtude. Este modo de falar escurece a natureza da
questão filosófica a respeito do relacionamento entre a ética por um lado e a metafísica e a
teología por outro. Pois, por de repente, a questão de se a virtude é mais frequente entre cristãos
ou entre não-cristãos não é uma questão filosófica. E, em segundo local, ao dizer que o deísmo
é mais apto para levar à moralidade e a virtude que o catolicismo v o protestantismo estamos
dizendo implicitamente que há uma conexão entre as crenças metafísicas e a moral, pois o
deísmo é, evidentemente, uma forma de metafísica. E teria que pôr em claro qual é o tipo de
conexão que se deseja afirmar.

A questão filosófica de que se trata não é, desde depois, o problema de se o discurso a


respeito da conduta humana pode ser distinguido do discurso a respeito da existência e os
atributos de Deus, ou a respeito de coisas consideradas simplesmente como seres. Pois é óbvio
que pode ser distinguido. Dito de outro modo: está completamente claro que a ética ou filosofia
moral tem seu próprio tema. Assim o reconheceram, por exemplo, Aristóteles no mundo antigo
e santo Tomás na Idade Média.

A questão imediata consiste em se os princípios morais fundamentais podem ser derivado


de premisas metafísicas ou teológicas. Mas esta questão pode ser formulado também de um
modo mais amplo, sem referência precisa alguma a premisas metafísicas nem teológicas.
Suponhamos que um diz: “Somos criaturas de Deus; portanto, devemos obedecer-lhe”. O
primeiro enunciado é um enunciado factual. O segundo é um enunciado moral. E o que falou
afirma que o primeiro enunciado implica o segundo. Por conseguinte, e propondo a questão de
uma forma geral, podemos perguntar-nos/perguntá-nos se pode ser derivado de um enunciado
factual um enunciado a respeito do que deve ser feito, um enunciado moral. Esta formulación
geral da questão aplica-se não só ao exemplo que dei, senão também, ponhamos por caso, à
dedução de enunciados morais partindo de enunciados factuales a respeito de caraterísticas da
natureza humana, sem referência a verdades teológicas.

Observaremos que David Hume formulou explicitamente esta questão: “Em todo sistema da
moralidade por mim encontrado até agora observei sempre que o autor procede durante algum
tempo segundo o modo ordinário de razonar, e estabelece a existência de um Deus ou faz
observações relativas a questões humanas, quando, de repente, me vejo surpreendido pelo fato
de que em vez das correntes cópulas das proposições, é e não é, não encontro já mais que
proposições conexas por deva e não deve. Esta mudança é imperceptible, mas tem a maior
importância. Pois como este deve e não deve expressa um novo relacionamento ou afirmação, é
necessário a observar e a explicar, e, ao mesmo tempo, há que dar uma razão do que parece
completamente inconcebível, a saber que este novo relacionamento possa ser deduzido de outras
que são completamente diferentes dela”.[683] Mas embora Hume suscitou explicitamente esta
questão, os utilitaristas tenderam a passá-la por alto, e só na moderna teoria ética se lhe tem
reconhecido importância.

A questão é. desde depois, importante. Pois importa não só para a ética autoritaria, senão
também para a teleología do tipo que afirma que a natureza humana é de tal ou qual constituição,
ou que o homem busca tal ou qual fim. e deriva depois enunciados normativos daqueles
enunciados factuales. chamei a atenção a respeito deste problema por sua importância, não
porque me proponha agora uma discussão plena da questão e da resposta adequada. Pois essa
discussão implicaria, por exemplo, uma análise dos enunciados normativos, e esta é uma tarefa
mais adequada para um tratado de teoria ética que para uma história da filosofia. De todos
modos, e para evitar todo entendimento equívoca de minhas observações, valerá a pena dizer
explicitamente que não penso que tenha que abandonar a ideia de uma ética teleológica. Pelo
contrário acho que o conceito de bem é capital em ética e que o “dever" tem de se interpretar em
função da ideia de bem. Por outra parte, todo partidário de uma ética teleológica tem de ter em
conta o problema suscitado por Hume. E vale a pena indicar que depois das polêmicas
expressões dos escritores iluministas franceses a respeito da separação da ética da metafísica e
a teología se encontra um autêntico problema filosófico. Não acho que seja surpreendente o que
fosse precisamente Hume o que desse ao problema uma formulación clara e explícita.

5. A filosofia da história.

Na última seção recordou-se a tendência dos filósofos do Iluminismo francês a entender a


história como uma marcha fazia o racionalismo do século XVIII, uma marcha da escuridão à
luz; e a tendência a esperar do futuro uma marcha progressiva ulterior que consistiria na
realização plena dos ideais da Idade da Razão. A parte quarta do presente volume dedicou-se ao
nascimento da filosofia da história no período moderno prekantiano. Por isso será oportuno fazer
neste resumem algumas observações a respeito da filosofia da história. Mas as observações têm
de ser breves, pois a discussão da ideia da filosofia da história resulta mais oportuna a propósito
de pensadores posteriores que a desenvolveram em grande. Aqui me contentarei com sugerir
algumas linhas de pensamento para a reflexão do filósofo.

Se por filosofia da história entende-se uma Crítica do método filosófico, então é óbvio que
a filosofia da história é uma empresa possível e legítima. Pois exatamente igual que é possível
examinar o método científico, assim também o será o empregar o método ou os métodos
utilizados pelos historiadores. Podemos suscitar perguntas a respeito do conceito de fato
histórico. a respeito da natureza e a função da interpretação de dados, a respeito da função da
reconstrução imaginativa; etcétera. Podemos discutir as normas de seleção observadas pelos
historiadores e podemos perguntar-nos/perguntá-nos que orçamentos, se os há, estão implícitos
na interpretação e a reconstrução históricas.

Mas quando falamos de Bossuet, Vivo, Montesquieu, Condorcet, Lessing ou Herder como
filósofos da história não estamos pensando nessas investigações metahistóricas. Pois essas
investigações referem-se à natureza e o método da historiografía, mais que ao curso dos
acaecimientos históricos. E ao falar de filosofia da história pensamos em interpretações do curso
dos acaecimientos históricos, não em uma análise do método do historiador, de suas normas de
seleção, de seus orçamentos, etc. Pensamos na busca de esquemas ou de um esquema do curso
da história, e de teorias de leis universais que se supõem ativas na história.

É um pouco ambigua essa expressão de esquemas da história. Podemos dizer que os


historiadores mesmos se ocupam de tais esquemas. O autor de uma história de Espanha, por
exemplo, ocupa-se indubitavelmente de construir esquemas factuales inteligibles. Não nos
entrega uma série de enunciados históricos inconexos, como “A batalha das Navas de Tolosa
ocorreu em 1212", “Granada foi reconquistada em 1492”. Mais bem tenta nos mostrar como
chegou a ocorrer aquele ou aquele outro acontecimento, por que Alfonso VIII ou Isabel I fizeram
como fizeram; e tenta ilustrar os efeitos que a tal batalha teve na vida e na cultura da península,
etc. Ao tentar todo isso começa inevitavelmente por apresentar um esquema dos acaecimientos
mesmos. Mas não por isso lhe consideramos filósofo da história em vez de historiador. Ademais,
o mero fato de que um determinado historiador trabalhe com uma rede de malha bem mais grossa
e se ocupe de um âmbito histórico bem mais amplo não basta também não para o incluir baixo
o rótulo de “ filósofo da história”.

Mas a busca de um esquema na história pode significar algo mais que isso. Pode significar
uma tentativa de mostrar que há na história um esquema necessário, uma estrutura que toma a
forma de movimento para uma meta que será atingida com independência dos motivos dos
indivíduos, ou a forma de uma série de ciclos cujo decurso e cujo ritmo estão determinados por
leis universais. No caso destas teorias sim que falaríamos de filosofia da história.

Mas também neste ponto pode ser praticado uma distinção. Por um lado, um homem pode
achar que em seu estudo da história descobriu certos esquemas recorrentes, e então pode tentar
explicar essa recurrencia a base da ação de certas leis. Ou também pode pensar que o curso
factual da história manifesta um movimento para uma situação que ele considera desejável e que
se impõe apesar dos obstáculos. Por outro lado, um homem pode chegar ao estudo da história
com uma crença prévia, derivada da teología ou da metafísica, segundo a qual a história humana
se move inevitavelmente para a realização de um verdadeiro fim. E com essa crença no espírito
tenta então ver como o curso efetivo dos acaecimientos históricos pode lhe confirmar seus
pontos de vista. A distinção separa uma filosofia da história empiricamente fundada de uma
filosofia da história cuja tese básica seja uma teoria a priori, no sentido de contribuída já
completa ao estudo da história.

A distinção parece muito clara quando se formula assim em abstrato. Mas não sempre é fácil
colocar a um filósofo da história em uma dessas duas categorias. Talvez seja possível em seguida
colocar a Montesquieu na primeira categoria. Pois Montesquieu parece ter pensado que as leis
que ele considerava ativas na história se inferiam do curso real dos acontecimentos. Bossuet
pertence claramente à segunda categoria, pois sua convicção de que na história se realiza um
plano divino providencial, procedia obviamente da teología. E também Hegel pertencerá a esta
categoria, pois explicitamente afirma que ao estudar o curso da história o filósofo contribui a
esse estudo a verdade (que se supõe demonstrada no que chamaríamos metafísica) de que a razão
é soberana na história, ou seja, de que a Razão Absoluta se manifesta no processo histórico. Mas
não é já tão fácil classificar a escritores como Condorcet. Podemos, ao menos, dizer de autores
de modo que formularam um julgamento de valor a respeito do espírito do Iluminismo, e que
este julgamento influiu em sua interpretação da história. Ou seja esses autores enunciaban um
julgamento de valor aprobatorio a respeito da cultura que consideravam decorrente do passado
e incoactivamente expressa no espírito do Iluminismo, e depois interpretavam o passado à luz
desse julgamento. Como se observou já, essa situação afetava, por exemplo, a sua interpretação
da Idade Média, a qual constituía para eles um movimento regresivo dentro daquele movimento
geral para adiante. Dito de outro modo: sua interpretação da história e sua construção de
esquemas estavam penetradas e influenciadas por julgamentos de valor. Uma observação
análoga pode ser feito, desde depois, respecto de alguns historiadores dos que em general não
se pensa que sejam filósofos da história. Gibbon pode ser um exemplo oportuno. Mas Condorcet
parece ter suposto que no desenvolvimento histórico atua uma lei de progresso (e está claro que
seu conceito do que é progresso implica julgamentos de valor). Por esta razão pode ser dito que
Condorcet é um filósofo da história. É verdade que seu suposto não está muito claro, e que
constantemente fez questão da necessidade de esforço humano, particularmente no terreno da
educação, com objeto de melhorar o homem e a sociedade humana. Mas essa confiada fé
otimista no progresso histórico desde a escuridão para a luz supõe um suposto implícito a
respeito de verdadeiro movimento teleológico do desenvolvimento histórico.

Não me parece possível prescindir a priori de toda filosofia da história. Pelo que faz às
filosofias da história que pretendem ser generalizações obtidas do estudo objetivo dos dados
históricos, a questão principal consiste em se a evidência empírica é efetivamente tal que faz
provável a verdade da teoria em questão. Sem dúvida podemos suscitar o problema de se o
conceito de lei histórica, tal como se dá, por exemplo, na filosofia de Vico, não supõe já que há
repetição na história; e se assim o achamos, podemos perfeitamente criticar essa suposição. Mas
a Crítica terá que basear em uma apelação à evidência histórica. E se responde-se que o conceito
de lei histórica não implica a ideia de repetição na história, senão que se baseia em analogias e
parecidos entre acaecimientos diferentes ou períodos diferentes, toda discussão destes temas terá
que fazer à luz da evidência disponível. Pode interessar-nos/interessá-nos sustentar que o
conceito de lei histórica é eliminable a priori mediante uma apelação à liberdade humana. Mas
embora a liberdade e a iniciativa humanas seriam incompatíveis com a ação do que poderíamos
chamar “leis de bronze”, é talvez possível elaborar uma concepção da lei histórica que seja
compatível com a liberdade humana. Dito de outro modo: talvez seja possível elaborar uma
teoria de ciclos culturais de laxa estrutura e que não convertam em sinsentido a capacidade
decisoria humana. E a questão de se há fundamente suficiente para desenvolver uma teoria assim
terá de decidir à luz dos dados históricos. Por outra parte, e deixando a um lado a questão de se
a divisão da história em ciclos culturais é legítima e tem fundamento, teremos também que nos
perguntar se os telefonemas leves que se supõe regem o ritmo desses ciclos são algo mais que
perogrulladas ou proposições que o historiador mesmo seria perfeitamente capaz de enunciar
sem nenhuma ajuda filosófica.

Pelo que faz às filosofias da história nas quais o filósofo contribui abertamente ao estudo do
desenvolvimento histórico uma crença derivada da teología ou da metafísica, há que dizer ao
menos em favor destes autores que são honrados, no sentido de que seus orçamentos se
formulam explicitamente. Desde este ponto de vista estas filosofias da história são preferíveis
àquelas outras que em realidade pressupõem que a história se move inevitavelmente para certa
meta, mas sem formular esse suposto de modo explícito. Por outra parte, a crença tomada da
teología ou da metafísica pode ser perfeitamente verdadeira. Pode ser perfeitamente verdade —
e em minha opinião é-o — que a providência divina atua na história e que o plano divino se
realizará tanto se os seres humanos o querem como se não. Mas isso não significa que essa
crença seja de muita utilidade para o estudo da história. Os acaecimientos históricos têm suas
causas fenoménicas e sem uma revelação especial não podemos saber como se relaciona o curso
efetivo dos acaecimientos com a providência divina. Podemos conjeturar e especular, é
verdadeiro; podemos ver na ruína de uma nação um símbolo do julgamento divino, ou da
caducidad das coisas deste mundo. Mas nem a conjetura nem o decifrado dos signos desde o
ponto de vista da fé permite predição alguma. Se essas atividades são o que entendemos por
filosofia da história, então a filosofia da história é sem dúvida possível. Mas então é uma
empresa talvez proveitosa, e em qualquer caso inocente, que o homem de fé pode levar a cabo
se o deseja, sem conseguir com ela conhecimento científico. Aparte de que se nos precipitamos
ao supor que conhecemos o plano providencial e que podemos discernir por reflexão filosófica
seu modo de operar na história é provável que nos vejamos obrigados a justificar todo o que
ocorra.

Com estas observações não pretendo recusar inteiramente a ideia de uma filosofia da história
que vá para além de investigações metahistóricas como a análise do método e dos orçamentos
do historiador. Desejo expressar simplesmente, uma séria dúvida a respeito da validade da ideia.
Acho que é possível uma teología da história. Mas seu alcance é muito limitado, pois está dado
pelos limites da revelação. E duvido que seja possível ir para além de onde chegou san Agustín.
Mas se deixamos a Bossuet e atendemos aos filósofos da história do século XVIII, vemo-los
substituir a teología pela filosofia com a convicção de que assim dão a suas teorias da história o
caráter de conhecimento científico. E duvido de que a filosofia da história seja capaz de ter esse
caráter. Verdadeiro que os filósofos formulam enunciados verdadeiros; mas a questão é se esses
enunciados verdadeiros são ou não verdades das que o historiador pode enunciar por si mesmo.
Dito de outro modo: a questão estriba em saber se o filósofo como tal pode fazer algo mais no
desenvolvimento de uma interpretação sintética da história que o historiador mesmo. Se não
pode, então não há local a uma filosofia da história no sentido em que usámos o termo. Mas é
difícil, desde depois, traçar uma linha de demarcación tajante entre a história e a filosofia da
história. Se incluímos nesta também as amplas generalizações, é óbvio que possa as fazer o
historiador como tal.

6. Immanuel Kant.

Os três volumes desta História dedicados à filosofia dos séculos XVII e XVIII terminam
com uma discussão do sistema kantiano. Se esperará deste repaso conclusivo que contenha
também algumas reflexões a respeito do pensamento de Kant. Não me proponho dar agora um
resumem de sua filosofia: dei um, preliminar, na introdução ao volume IV, e seria superfino
outro resumem mais depois do extenso tratamento do pensamento kantiano oferecido neste
volume. Também não proponho-me uma refutación direta do kantismo. Em vez disso desejo
fazer algumas observações gerais a respeito dos relacionamentos da filosofia kantiana com a
filosofia anterior e com o idealismo especulativo alemão que lhe aconteceu. E também quereria
chamar a atenção a respeito das questões dimanantes da filosofia kantiana.

Parece-me que todo mundo sente uma natural tentação de representar a filosofia de Kant
como a confluencia das duas correntes do racionalismo continental e o empirismo britânico. A
tentação é natural porque não faltam os fundamentos óbvios dessa visão. Por exemplo, Kant
nasceu filosoficamente na versão escolástica da filosofia de Leibniz apresentada por Wolff e
seus sucessores, e depois experimentou o trauma, por assim o dizer, da Crítica empirista de
Locke, que lhe acordou de seu sonho dogmático. Ademais, podemos perfeitamente indicar a
influência de ambos movimentos na construção da filosofia kantiana. Por exemplo, a descoberta
da autêntica filosofia de Leibniz como coisa diferente da filosofia de Wolff e de seus sucessores,
teve uma grande influência no espírito de Kant. E podemos recordar que Leibniz afirmava o
caráter fenoménico do espaço e do tempo. A teoria kantiana do a priori pode ser representado
realmente em verdadeiro sentido como um desenvolvimento da teoria leibnizíana das ideias
virtualmente innatas, com a diferença de que na filosofia kantiana as ideias se convertem em
funções categoriales innatas. Por outra parte, recordaremos também que o próprio Hume
sustentava a existência de uma contribuição subjetiva na formação de certas ideias complexas,
como a do relacionamento causal. E assim podemos representar a teoria kantiana do a priori
como uma construção influída pela posição de Hume à luz da convicção de Kant de que a física
newtoniana nos oferece proposições sintéticas a priori. Dito de outro modo: Kant não se limitou
a oferecer uma resposta ao empirismo e ao fenomenismo de Hume, senão que ademais, ao
formular essa resposta, utilizou sugestões procedentes do filósofo britânico mesmo, embora este
último não visse toda a significação nem todas as possibilidades delas.

Mas séria absurdo apresentar a filosofia kantiana como uma síntese de racionalismo
continental e empirismo britânico no sentido de um agregado de elementos tomados de duas
correntes opostas de pensamento. Ao igual que qualquer outro filósofo, Kant estava submetido
à influência de seus contemporâneos e de seus predecessores. E embora podem ser apresentado
discrepâncias quanto à importância da influência de Leibniz por um lado e Hume por outro, não
podemos discutir sequer o fato mesmo de que ambos exerceram alguma influência no
desenvolvimento do pensamento kantiano. Igual, dito seja de passagem, que Wolff e seus
discípulos. Mas elementos que poderão ser derivados de ou sugeridos por outras filosofias são
também recolhidos por Kant e fundidos em um sistema que está bem longe de ser um mero
agregado Era um sistema que aspirava a superar a metafísica racionalista e o empirismo, não a
combinar coisas incompatíveis.

A inadecuación dessa descrição do sistema kantiano como síntese de empirismo e


racionalismo fica clara se recordamos seu problema fundamental. o problema que atravessa toda
sua filosofia. Como vimos. Kant enfrentava-se com o problema de conseguir uma harmonização
do mundo da física newtoniana, o mundo da causalidad mecanicista e o deterninismo, com o
mundo da liberdade. É verdade que também Descarte se tinha enfrentado com um problema
análogo; este não era específico e privativo de Kant, senão um problema surgido da situação na
qual a ciência natural começou seu notável progresso. O importante, empero, é que ao forcejear
com este problema Kant submeteu a exame crítico o racionalismo e o empirismo, e elaborou sua
própria filosofia não como uma síntese desses dois movimentos, senão como um triunfo sobre
eles. Kant pensava que o empirismo é inadequado por causa de que é incapaz de explicar a
possibilidade do conhecimento sintético a priori. Se tomamo-nos em sério o conhecimento
científico, não podemos aceitar o empirismo radical, embora admitamos que todo conhecimento
procede da experiência. Temos que recorrer a uma teoria do elemento formal a priori do
conhecimento. Ou seja, que não podemos explicar a possibilidade do conhecimento científico
supondo só que a experiência é simplesmente dada. Temos de dar também seu local à construção
da experiência pelo sujeito, se é que queremos dar razão da possibilidade de conhecimento a
priori. Mas isto não significa que tenhamos que aceitar a metafísica racionalista. O que se toma
em sério a experiência moral, a liberdade e a religião pode achar que a metafísica dogmática dos
filósofos racionalistas, pelo menos a dos que admitem a liberdade, oferece uma base racional
segura à fé na liberdade, a imortalidade e Deus. Mas não é assim. A metafísica racionalista não
se sustenta em frente à Crítica, e a vaciedad de sua pretensão gnoseológica fica empiricamente
de manifesto pelo conflito dos sistemas, bem como pela evidente incapacidade da metafísica
para atingir resultados seguros. A teoria do a priori, a Crítica trascendental do conhecimento,
mostra por que ocorre isso necessariamente. Mas ao mesmo tempo que mostra a vaciedad da
metafísica dogmática, esta nova ciência revela também as limitações do conhecimento
científico. E para todo o que se tome em sério a consciência moral e as crenças e as esperanças
intimamente associadas com ela fica aberto o caminho para uma crença racionalmente legítima,
embora cientificamente indemostrable, na liberdade, a imortalidade e Deus. As grandes verdades
da metafísica situam-se então para além do alcance da Crítica pelo mero ato de transladar da
posição de conclusões de argumentos metafísicos sem validade a uma conexão com a
consciência moral, a qual é um elemento tão fundamental do homem como possa o ser sua
capacidade de conhecimento científico.

É óbvio que ao elaborar sua filosofia Kant utilizou sugestões e ideias procedentes de outros
filósofos. Os especialistas podem perfeitamente identificar a origem e o desenvolvimento de tal
ou qual ideia da filosofia kantiana. Mas este fato não justifica a corrente maneira de dizer
segundo a qual o sistema kantiano é uma combinação de racionalismo e empirismo. Kant
coincidia com a Crítica empirista da metafísica racionalista, mas ao mesmo tempo coincidia
com os metafísicos quanto à importância dos principais problemas metafísicos e quanto à
existência de uma esfera de realidade nouménica à qual não tem acesso a ciência física. Mas
essa dupla coincidência não indica que seja possível combinar o empirismo com o racionalismo.
O acordo parcial de Kant com a cada um desses movimentos, junto de seu desacordo na cada
caso, compõe um impulso que lhe move a desenvolver sua filosofia própria e original. O fato
mero do conhecimento científico elimina a possibilidade de adotar um empirismo craso. E a
análise crítica da possibilidade e das condições deste conhecimento põe fora de local a opção
pela metafísica dogmática. Mas o homem não é só “entendimento”; é também um agente moral.
E sua consciência moral revela-lhe sua própria liberdade e justifica uma segurança prática na
realidade espiritual, enquanto sua experiência estética ajuda-lhe a ver o mundo físico como
manifestação deesa realidade. Desde depois que em alguma medida podemos ver na filosofia
kantiana a culminación de prévias linhas de pensamento. E assim não é implausible o considerar
sua teoria da construção da experiência pelo sujeito como um desenvolvimento original
decorrente de uma combinação da teoria racionalista das ideias virtualmente innatas com a
tendência empirista a falar como se os objetos imediatos da experiência fossem fenômenos,
impressões ou dados sensíveis. Não penso em modo algum negar que tenha continuidade na
história da filosofia, nem o fato de que a filosofia de Kant tomou a forma que efetivamente lhe
é própria a causa, em grande parte, do caráter do pensamento filosófico imediatamente anterior
a ela. Mas ao mesmo tempo pode ser afirmado que em verdadeiro sentido Kant se voltou de
costas tanto ao empirismo quanto ao racionalismo. Dito de outro modo: para poder dizer
justificadamente que o sistema de Kant é uma “síntese” de racionalismo e empirismo há que
entender o termo ‘síntese’ em um sentido que se aproxime ao que lhe deu Hegel, ou seja, no
sentido de que Kant inseriu em um sistema original os elementos de valor positivo (segundo seu
ponto de vista) que tinha nos sistemas anteriores, mediante uma incorporação que transforma
necessariamente esses elementos mesmos.

Agora bem: se é verdade que Kant se voltou de costas à metafísica racionalista, à qual
chamava “dogmatismo podre", pode resultar difícil explicar como é que essa filosofia critica foi
seguida na Alemanha por uma série de sistemas metafísicos cujos autores, ademais, se
consideravam os verdadeiros sucessores de Kant, elaboradores de seu pensamento no sentido
adequado. Mas se tem-se em conta a tensão existente entre a teoria kantiana da construção da
experiência pelo sujeito e sua doutrina da coisa- em-sim resulta fácil compreender por que o
idealismo especulativo alemão nasceu da filosofia Crítica.

A doutrina kantiana da coisa-em-si não carecia, certamente, de dificuldades. Aparte de que


a natureza da coisa-em-sim se declarava incognoscible, nem sequer podia ser afirmado sua
existência como causa do material da sensação sem abusar (de acordo com as premisas
kantianas) das categorias de causalidad e existência. Não há dúvida de que Kant se dava conta
deste fato. Por isso, embora lhe parecia que o conceito de fenômeno exige como correlato o de
coisa-em-si. porque o primeiro não faz sentido sem o segundo, no entanto, sustentava que não
temos de afirmar dogmaticamente a existência da coisa-em-si, embora não possamos evitar o a
pensar. Está claro que Kant considerava absurdo o reduzir a realidade a uma mera construção
do sujeito e que, portanto, pensava que manter o conceito de coisa-em-si é um assunto de sentido
comum. Mas, por outra parte, dava-se conta da dificuldade de sua posição e tentava achar
fórmulas que lhe evitassem a autocontradicción e lhe permitissem ao mesmo tempo manter um
conceito que lhe parecia imprescindible. Pode ser entendido a atitude de Kant nesta matéria.
Mas também são compreensíveis as objeciones de Fichte à teoria da coisa-em-si, que lhe parecia
uma superfluidad e até uma monstruosidad. Em sua opinião, era necessário eliminar a coisa-em-
si em benefício do idealismo; e Kant aparecia-se-lhe como um homem que tentava se explicar
as coisas dos dois modos possíveis ao mesmo tempo, pelo que dava em umas inconsistencias
inevitáveis. Uma vez aceitada a teoria kantiana da intervenção do sujeito na construção da
experiência, Fichte achava-se obrigado a seguir adiante até chegar a uma filosofia plenamente
idealista.

Este passo implicava necessariamente uma transição da teoria do conhecimento à metafísica.


Se elimina-se a coisa-em-si. tem-se como consequência que o sujeito cria inteiramente o objeto,
e não só molda, por assim o dizer, um material dado. E a teoria fie que o sujeito cria o objeto é
obviamente uma teoria metafísica, embora se chegue a ela pela via da Crítica do conhecimento.

Mas que é esse sujeito criador? Quando Kant falava da construção da experiência pelo
sujeito se referia ao sujeito individual. É verdade que introduzia o conceito do eu trascendental
como condição lógica da experiência; mas também neste caso se tratava do eu individual, do eu
que é sempre sujeito e nunca objeto. Mas se transformamos esta condição lógica da experiência
em um princípio metafísico que cria o objeto, nos será difícil o identificar com o eu finito
individual sem cair no solipsismo. Pois nesta situação ocorrerá que pára Pedro Martínez todos
os demais seres humanos serão objetos e, portanto, criação sua. Além do qual, certamente, o
próprio Pedro Martínez assim que ego fenoménico, assim que objeto, será criação de Pedro
Martínez assim que ego trascendental. Portanto, se eliminamos a coisa-em-si e transformamos
o eu trascendental kantiano, condição lógica da experiência, em princípio metafísico supremo,
nos vemos levados ao final ao interpretar como sujeito infinito universal que produz o sujeito
finito e o objeto finito. E com isso estamos já inteiramente sumidos em um sistema metafísico
de pura cepa.

Não me proponho discutir aqui as fases da filosofia de Fichte ou a história do idealismo


especulativo germánico em general. Esses temas correspondem ao volume seguinte desta
História. Só queria indicar que os gérmenes do idealismo especulativo estavam já presentes na
filosofia crítica. Desde depois que o idealismo especulativo se dedica a reduzir todas as coisas a
um supremo princípio metafísico do qual podem ser deduzido filosoficamente de um modo ou
outro, enquanto Kant não se propôs nunca um programa assim. E há também uma diferença
manifesta de atmosfera e de interesse entre a filosofia Crítica e os sistemas filosóficos que a
aconteceram. Mas, por outra parte, a “sucessão” não é meramente temporária; os sistemas do
idealismo especulativo têm com a filosofia de Kant uma conexão mais íntima que o mero
relacionamento cronológico. Se aceita-se este fato e recusa-se isso que nasceu da filosofia
kantiana, não é possível aceitar esta assim que ponto de partida daquilo. Isto significa na prática
a necessidade de submeter a exame crítico as feições idealistas e subjetivistas do pensamento de
Kant. Pois se reafirmam-se essas feições e elimina-se a coisa-em-si, não há mais remédio que
acompanhar aos sucessores de Kant pelo caminho que empreenderam.

É fácil compreender que mediado no século XIX se lançasse o grito Voltemos a Kant!” e
que os neokantianos se dedicassem a elaborar e desenvolver as posições Críticas,
epistemológicas e éticas de Kant sem cair no que consideravam extravagancias fantásticas dos
idealistas especulativos. Kant era primordialmente para eles o autor da primeira Crítica,
paciente, metódico, meticuloso, analítico; e pensaram que os sistemas dos grandes metafísicos
idealistas, desde Fichte até Hegel representavam uma traição ao espírito de Kant. Este ponto de
vista é perfeitamente compreensível. Mas também me parece innegable que o sistema kantiano
levava por si mesmo ao desenvolvimento (ou à exploração) que experimentou em mãos dos
idealistas especulativos. Podemos dizer em apoio da atitude dos neokantianos que Kant
substituiu deliberadamente a velha metafísica, que recusava, por uma nova forma de metafísica,
uma metafísica do conhecimento ou da experiência, e que considerava que esta nova metafísica
era capaz de dar conhecimento real, enquanto sem dúvida negaria que a metafísica hegeliana do
absoluto, por exemplo, fora conhecimento de nenhuma classe. Dito de outro modo: Kant teria
desautorizado aos que pretendiam ser seus herdeiros, como efetivamente recusou as primeiras
tentativas de Fichte de melhorar a filosofia Crítica mediante a eliminação da coisa-em-si. Mas
embora um possa estar seguro de que Kant não consideraria com benevolência os voos
metafísicos de seus sucessores, isto não muda o fato de que lhes forneceu um prometedor
fundamento para suas construções.

Mas é possível sublinhar outras feições da filosofia kantiana, diferentes dos acentuados por
seus sucessores idealistas, e apresentar assim o sistema como orientado em direção
completamente diferente. Pode ser dito que a recusación da metafísica dogmática por Kant era
algo mais que uma recusación dos sistemas do racionalismo continental de Descarte. Leibniz e
seus discípulos. Pois Kant sustentou o caráter falaz de toda pretendida demonstração metafísica,
e mostrou que o conhecimento metafísico é impossível. É verdade que ofereceu por sua vez uma
metafísica nova; mas esta metafísica era em todo caso uma análise das condições subjetivas da
experiência. Kant não pretendeu nos dar conhecimento da realidade chamada nouménica. Sem
dúvida admitia a crença nessa realidade, mas essa admissão era no fundo incoerente com sua
exposição da função das categorias. Pois as categorias não têm conteúdo nem significação mais
que em sua aplicação a fenômenos. Por tanto, admitindo as premisas de Kant, carece de sentido
falar de uma realidade nouménica. Sem dúvida podemos examinar a natureza dos julgamentos
científicos, morais e estéticos. Mas de acordo com os princípios kantianos não podemos usar o
julgamento moral como base para nenhum tipo de metafísica. Kant não admitiria também não a
validade desta interpretação de seu pensamento. Mas pode ser sustentado que de fato o grande
serviço prestado por Kant consistiu em mostrar que todo o cognoscible pertence à esfera das
ciências, e que a metafísica não só não é uma ciência, senão que carece de sentido. No máximo
pode ter significação “emocional”. E a isso equivale em realidade a teoria kantiana da fé prática
se se lhe dá seu valor concreto.

Dito de outro modo: pode ser sustentado que embora o sistema kantiano deu diretamente
nascimento aos sistemas do idealismo especulativo, em realidade é uma estação a médio
caminho do positivismo. E suponho que os positivistas quererão contemplar deste modo. Seguro
que não seguirão a Kant em sua teoria das proposições sintéticas a priori e das condições de sua
possibilidade. Mas considerarão que a parcial recusación da metafísica pelo filósofo é um passo
pelo bom caminho; e tenderão a sublinhar as feições de sua filosofia que parecem apontar na
direção de uma recusación ainda mais radical da metafísica, embora Kant mesmo não entendesse
todo o envolvimento daquelas feições.

Mas o fato de que metafísicos e positivistas possam uns e outros apresentar motivos para
afirmar que o sistema kantiano aponta no sentido de seu tipo respetivo de filosofar não nos
obriga em nada a concluir que tenhamos

7. Observações finais.

Para terminar, podemos considerar brevemente o enunciado, às vezes formulado, de que


enquanto a filosofia medieval se ocupava do problema do ser, a filosofia moderna se ocupou do
problema do conhecimento.[684]

É difícil discutir essa afirmação. Se entende-lha em um sentido parecido àquele no qual se


diz que a astronomia se ocupa dos corpos celestes e a botánica se ocupa das plantas, o enunciado
será obviamente falso. Por de repente, os filósofos medievais tinham bastante que dizer a
respeito do conhecimento. E em segundo local, se ocupar do problema do ser quer dizer ocupar-
se de problemas de existência, da explicação metafísica da realidade empírica e do problema do
Um e o Múltiplo, então não poderá ser dito que o problema do ser não se tenha apresentado ao
pensamento de homens como Descarte, Spinoza e Leibniz.

Pelo demais, essas afirmações que dizem que “a filosofia medieval” e “a filosofia moderna”
se interessam respetivamente por tal ou qual coisa ficam obviamente expostas à Crítica de que
contêm simplificações ilegítimas de situações complexas. Ou seja: esses enunciados provocam
a fundada objeción de que falar de filosofia medieval e de filosofia postrenacentista como se se
tratasse de unidades homogéneas é uma conduta confusionaria. A filosofia medieval, por
exemplo, compreende as sínteses metafísicas sistemáticas de Tomás de Aquino ou Duns Scoto.
mas também as reflexões Críticas de Nicolás de Autrecourt, o Hume da Idade Média. E a
filosofia postrenacentista não foi também não de uma só peça. Comparando a santo Tomás com
Kant é verdade que a teoria do conhecimento ocupa um local mais importante no pensamento
deste que no daquele. Mas se tomamos para nossa comparação outros pensadores medievais e
modernos, nosso julgamento a respeito da medida na qual a cada um se preocupava de problemas
epistemológicos pode variar muito.

A tentativa de dar uma interpretação geral do mundo e da experiência humana pode ser
achado igualmente na filosofia medieval e na dos séculos XVII e XVIII. Nem sequer Kant
ocupou-se só da questão Que posso saber? Também lhe interessavam outras que ele mesmo
formulou: Que devo fazer? Que posso esperar? A reflexão sobre esses problemas não nos leva
só até a filosofia moral propriamente dita, senão também até os postulados da lei moral. E
embora a imortalidade e a existência de Deus não sejam, segundo Kant, demostrables, com isso
se nos abre uma visão geral do mundo na qual se harmonizam a ciência, a moral e a religião. A
Crítica do processo da razão mostra-nos as limitações do conhecimento determinado. mas não
destrói a realidade nem a importância dos principais problemas metafísicos.[685] E embora as
soluções sejam questão de fé moral ou prática, não de conhecimento, é natural e legítimo que a
razão tente se formar uma visão geral da realidade que vá para além da matemática e da ciência,
do campo, isto é, do conhecimento “teorético”.

É verdade que a medida na qual Hume, por exemplo, podia tentar uma interpretação geral
dessa natureza baseando nos princípios de seu filosofar tinha de ser muito modesta. A natureza
da realidade em si mesma e as causas últimas dos fenômenos estavam segundo ele envolvidas
em um mistério impenetrável. No que se refere à explicação metafísica, o mundo era para ele
um enigma. O agnosticismo era a única atitude razoável. Por isso sua filosofia era primariamente
Crítica e analítica. Mas o mesmo pode ser dito de alguns pensadores do século XIV. A diferença
é que estes esperavam que a revelação e a teología lhes fornecessem uma visão geral da
realidade, enquanto Hume não o pensava assim.

Mais embora é possível acumular por várias razões exceções à tese de que a filosofia
medieval se ocupa do problema do ser e a filosofia moderna se ocupa do problema do conhecer,
a afirmação pode ser útil para chamar a atenção a respeito de certas diferenças que se dão entre
o pensamento medieval e o postrenacentista. Se tomamos a filosofia medieval em seu conjunto,
podemos dizer que não predomina nela o problema da objetividad do conhecimento. Assim o
mostra, em minha opinião, o que um filósofo como santo Tomás de Aquino achasse que
percebemos diretamente os objetos físicos, como as árvores e as mesas. Nosso conhecimento
natural dos seres espirituais charutos é em mudança indireto e analógico: não temos intuición
natural de Deus. Mas percebemos as árvores, as mesas, os homens, não nossas próprias
modificações subjetivas ou nossas ideias de árvores, mesas e homens. É verdade que podemos
formar julgamentos falsos a respeito da natureza do que percebemos. Posso julgar, por exemplo,
que um objeto distante é um homem quando em realidade é um arbusto. Mas o modo de corrigir
esse erro consiste em fazer o que sempre fazemos, ou seja, em examinar o objeto mais de perto.
O problema do erro apresenta-se, por assim o dizer, só sobre a profundidade de uma teoria
realista da percepción, a teoria de sentido comum segundo a qual temos percepción imediata dos
objetos connaturales ao conhecimento humano. Santo Tomás não era, certamente, tão ingênuo
como para supor que conheçamos necessariamente todo o que achamos conhecer. Mas se achava
que temos acesso direto, por assim o dizer, ao mundo, que o espírito é capaz de prender as coisas
por sua ser inteligible, e que no ato autêntico de conhecimento a alma conhece que está
conhecendo. Portanto, embora podia discutir questões a respeito da origem, as condições e as
limitações do conhecimento, e a respeito da natureza e as causas dos julgamentos errôneos, as
questões gerais a respeito da objetividad do conhecimento não tinham, em mudança, muito
sentido para ele, pois não entendia as ideias como telas postas entre a alma e as coisas.

Se seguimos a Locke em sua interpretação das ideias como objetos imediatos da percepción
e o pensamento, é em mudança natural nos perguntar se nosso “conhecimento” do mundo é
realmente conhecimento, ou seja, se nossas representações correspondem a uma realidade
existente com independência do espírito. Não quero dizer com isso que todos os filósofos dos
séculos XVII e XVIII mantivessem uma teoria representacionista da percepción e se sumissem
assim no problema da correspondência entre nossas representações e as coisas representadas.
Locke mesmo não sustentou de modo coerente a teoria da representação. E se, seguindo a
Berkeley, descrevemos os objetos físicos como faz de “ ideias”, o problema da correspondência
entre as ideias e as coisas não chega sequer a se propor. O problema surge só se se diz que as
ideias têm uma função representativa e são objetos imediatos da percepción e do conhecimento.
Mas se surge o problema, então impõe-se em primeiro plano a questão de se nosso conhecimento
prima facie do mundo é realmente conhecimento objetivo. E então é natural tratar esta questão
dantes de embarcar em qualquer síntese metafísica. A epistemología, ou teoria do conhecimento,
converte-se em algo básico em filosofia.

Por outra parte, embora o filósofo medieval não entendeu a alma, desde depois, como um
recipiente puramente pasivo de impressões, de todos modos concebeu sua atividade como uma
penetração da estrutura inteligible objetiva da realidade.[686] Dito de outro modo; pensou que a
alma se adecúa aos objetos, não que os objetos tenham de adecuarse à alma para que seja possível
o conhecimento.[687] O filósofo medieval não concebe o que chamamos o mundo como uma
construção mental. Mas dadas as filosofias de Hume e de Kant, resulta natural perguntar-se se o
que chamamos o mundo é talvez uma construção lógica situada, por assim o dizer, entre nosso
espírito e a realidade em si, ou as coisas em si. E se admitimos que este é um autêntico problema,
nos sentiremos naturalmente inclinados a dar muita mais importância à teoria do conhecimento
que se estivéssemos convencidos de que o sujeito não constrói a realidade empírica, senão que
capta sua natureza inteligible.

Acho que sim temos presente o desenvolvimento da filosofia postrenacentista,


especialmente no empirismo britânico e no pensamento de Kant, nos será fácil entender a
importância que posteriormente se deu à teoria do conhecimento ou epistemología. Kant,
sobretudo, exerceu uma grande influência neste sentido. Sem dúvida são possíveis atitudes
diferentes respecto da importância que assim se deu na discussão filosófica aos problemas da
objetividad do conhecimento. Podemos pensar que isso foi um progresso desde a ingenuidad
realista até um entendimento ñus sutil e profunda dos problemas básicos da filosofia. Ou
podemos pensar que o problema da objetividad do conhecimento arraiga em uns supostos
errôneos. Ou que é néscio falar do "problema crítico". Temos de tentar formular questões bem
definidas. E ao fazê-lo podemos achar que alguns supostos problemas que pareciam muito
importantes quando se expressavam com termos vadios sor pseudoproblemas ou se resolvem
por si mesmos. Mas qualquer que seja nossa atitude respecto da importância dada à teoria do
conhecimento, me parece claro que esse problema é de um tipo que não se apresentava
naturalmente ao espírito do filósofo medieval, senão que foi estimulado por desenvolvimentos
da filosofia dos séculos XVII e XVIII.

Com essas observações não pretendo insinuar que a importância dada à epistemología ou
teoria do conhecimento na filosofia moderna se deva exclusivamente aos empiristas britânicos
e a Kant. É óbvio que a teoria do conhecimento era já primordial na filosofia de Descarte. E até
podemos descrever a diferença entre o racionalismo e o empirismo como diferenças de crença a
respeito das origens do conhecimento e dos modos do aumentar. Assim pode ser dito que desde
os começos mesmos da filosofia moderna a epistemología ocupou uma posição importante e
destacada. Mas também é verdade que Kant particularmente exerceu uma influência poderosa
nessa proposta da epistemología no primeiro termo da discussão filosófica, embora não seja
mais que pelo fato de que seu destructiva crítica da metafísica por médio de uma Crítica
trascendental do conhecimento pareceu implicar que o tema do filósofo era precisamente a teoria
do conhecimento. E, desde depois, todo o que deseje refutar sua crítica da metafísica terá
necessariamente que partir de um exame de suas doutrinas epistemológicas.

O fato, brevemente discutido na última seção, de que a filosofia de Kant conduziu, de modo
um tanto paradójico, a um novo florecimiento de especulação metafísica pode parecer um dado
contra a afirmação de que Kant exerceu uma influência potente no processo filosófico que
concentrou a atenção em torno da epistemología. E é verdade que o idealismo especulativo da
primeira metade do século XIX não nasceu como uma reação contra a epistemología kantiana,
senão como desenvolvimento do que aos sucessores de Kant lhes pareceu envolvimentos
próprios do ponto de vista deste. Fichte arrancou da teoria do conhecimento, e dela nasceu seu
metafísica idealista. Os neokantianos podem ter considerado o idealismo especulativo como uma
traição ao verdadeiro espírito de Kant. Mas isso não anula o fato de que a marcha à nova
metafísica discurrió pela via da teoria do conhecimento. No volume seguinte desta História
estuda-se como ocorreu essa transição desde a filosofia crítica de Kant até a metafísica idealista.
Versão editada por “Beyond”.
APÉNDICE
Breve bibliografía.

Obras gerais

Ao final do volume IV desta história, De Descarte a Leibniz, encontram-se indicações a


respeito da bibliografía geral.

Algumas obras consideradas de particular utilidade destacam-se mediante um asterisco. Mas


a falta deste não deve ser entendido como menor aprecio do valor dos demais livros.

À bibliografía geral do volume IV vale a pena acrescentar estes títulos também de tema
amplo:

Becker, C. L., The Heavenly City of the Eighteenth-Century Philosophers, New Haven,
1932.

Cassirer, E., * A filosofia do Iluminismo (trad. de E. Imaz), 2.a ed., México (Fundo de Cultura
Econômica), 19S0.

Hazard, P., * A crise da conscience européenne (1680-1715), 3 vols., Paris, 1935.

— * A pensée européenne au XVIII siecle, de Montesquieu á Lessing, 3 vols., Paris, 1946.


Trad. castelhana, O pensamento europeu no século XVIII, Madri, Guadarrama.

Hibben, J. G., The Philosophy of the Enlightenment, Londres e Nova York, 1910.

Wolff, H. M., Die Weltanschauung der deutschen Aufklarung, Berna, 1949. Wundt, M., Die
deutsclie Sclmlmetaphysik im Zeitalter der Aufklarung. Tubinga, 1945.

Capítulos I-II: o Iluminismo francês

1. Bayle

Textos

Dictionnaire historique o critique, 2 vols., Rotterdam, 1695-7; 4 vols., 1730; ulteriores


edições.

Œuvres diverses, 4 vols., Haia, 1727-1731.

Système da Philosophie, Haia, 1737.


Estudos

André, P., A jeunesse de Bayle, Genebra, 1953.

Bolin, W., Bayle, sein Leben und seine Schriften, Stuttgart, 1905.

Cazes, A., P. Bayle, sa vie, ses idées, são influence, são ocuvre, Paris, 1905.

Courtines, L. P., Bayle's Relation with England and the English, Nova York, 1938.

Deschamps, A., A genèse du scepticisme érudit chez Bayle, Bruxelas, 1878.

Devolve, J., Essai sul Pierre Bayle, religion, critique et philosophie positive, Paris, 1906.

Raymond, M., Pierre Bayle, Paris, 1948.

2. Fontenelle

Textos

Œuvres, 1724 e outras edições, 3 vols., Paris, 1815; 5 vols., Paris, 1924-1935. De Vorigine
dê fables, ed. Crítica de J.-R. Carré, Paris, 1932.

Estudos

Carré. J.-R., A philosophie de Fontenelle ou lhe sourire da raison, Paris, 1932.

Edsall, H. Linn, The Ideia of History and Progress in Fontenelle and Voltaire (em Studies
by Members of the French Department of Yale University, New Haven, 1941, págs. 163-184).

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Laborde-Milan, A., Fontenelle, Paris, 1905.

Maigron, L., Fontenelle. Vhomme, Vccuvre, Vinfluence, Paris, 1906.

3. Montesquieu

Textos

Œuvres, ed. E. Laboulaye, 7 vols., Paris. 1875-1870 Œuvres, ed. A. Masson, 3 vols., Paris,
1950-195*
De Vesprit dê lois, com intr. de G. Truc, 2 vols., Paris, 1945.

Estudos

Barriére, P., Um grand provincial: Charles-Louis Secondat, barón da Brcde et de


Montesquieu, Burdeos, 1946.

Carcassonne, E., Montesquieu et lhe problcme da constitution fran^aise an XVI11^ se dele,


Paris, 1927.

Cotta, Séc.. Montesquieu e a scienza della societá, Turín, 1953.

Dedieu, J., Montesquieu, Vhoinme et Vccuvre, Paris, 1943.

Duconseil, N., Macchiavelli et Montesquieu, Paris, 1943.

Durkheim, Séc., Montesquieu et Rousseau, précurseurs da sociologie, Paris, 1953


(reimpresión da edição de 1892).

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1939.

Lkvin, L. M., The Political Doctrine of Montesquieu's Esprit dê Lois: Its Classical
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Raymond, M., Montesquieu, Friburgo, 1946.

Sorel, A., Montesquieu, Paris, 1887.

Trescher, H., Montesquieus Einfluss auf die Geschichts- tind Staatsphilosophie bis zum
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— Montesquieus Einfluss auf die philosophischen Grundlagen der Staatslehre Hegels,


Munich, 1918 (Schmoliers Jahrbuch, vol. 42, págs. 471-501, 907-944). Vidal, E., Saggio sul
Montesquieu, Milão, 1950.

Veja-se também

Cabeen, D. C., Montesquieu: A Bibliography, Nova York, 1947.

Deuxihne centenaire de l’Esprit dê Lois, Burdeos, 1949.

Revue Internationale de philosopliie, 1956, núms. 3-4.


4. Maupertuis

Textos

Œuvres, 4 vols., Lyon, 1768 (2.* ed.).

Estudos

Brunet, P., Maupertuis, 2 vols., Paris, 1929.

5. Voltaire

Textos

Œuvres, ed. Beuchot, 72 vols., Paris, 1828-1834.

Œuvres, ed. Moland, 52 vols., Paris, 1878-1885.

Traite de Métapltysique, ed. H. T. Patterson, Manchester, 1937 Dictionnaire philosophique,


ed. J. Benda, Paris, 1954.

Lettres philosophiqucs, ed. F. A. Taylor, Oxford, 1943.

Bencesco, G., Voltaire, Bibliographic de ses ccuvres, 4 vols., Paris, 1882-1892. Estudos

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Riflexions et máximes, Londres, 1936.

Estudos

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Merlant, J., De Montaigne á Vauvenargues, Paris, 1914.

Paléologue, G. M., Vauvenargues, Paris, 1890.

Rocheblave, Séc., Vauvenargues ou a symphonie inachevíe, Paris, 1934. Souchon, P.,


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— Vauvenargues, Paris, 1954.

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7. Condillac

Textos

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Œuvres pliilosophiques, ed. G. Lhe Roy, 3 vols., Paris, 1947-51.

Lettres inédites a Gabriel Cramer, ed. G. Lhe Roy, Paris, 1952.

Estudos

Baguenault de Púchese, G., Condillac, sa vie, sa philosophie, são influence, Paris, 1910.

Bianca, G., A volontá nel pensiero dei Condillac, Catania, 1944.

Bizzarri, R., Condillac, Brescia, 1945.

Dal Pra, M., Condillac, Milão, 1947.

Dewaule, L., Condillac et a psychologie anglaise contemporaine, Paris, 1892. Didier, ].,
Condillac, Paris, 1911.

Lenoir, R., Condillac, Paris, 1924.

Lhe Roy, G., A psychologie de Condillac, Paris, 1937.

Meyer, P., CondiUac, Zurich, 1944.

Razzoli, L., Pedagogia dei CondiUac, Parma, 1935.

Torneucci, L., II problema deU’esperiensa dal Locke ao CondiUac, Mesina, 1937.


8. Helvecio

Textos

Œuvres, 7 vols., Deux-Ports, 1784; 5 vols., Paris, 1792.

Choix de textes, ed. e introd. de J. B. Séverac, Paris, 1911.

Estudos

Oumming, I., Helvetius, Londres, 1955.

Grossman, M., The Philosophy of Helvetius, Nova York, 1926.

Horowitz, I. L., C. Helvetius, Philosopher of Democracy and Enlightenmcnt, Nova York,


1954.

Keim, A., Helvétius, sa vie et são aeuvre, Paris, 1907.

Limentani, L., Lhe teorie psicologiche dei C. A. Helvétius, Padua, 1902.

Mazzola, F„ A pedagogia d'Elvetio, Palermo, 1920.

Mondolfo, R., Saggi per a storia della morale utilitaria, II: Lhe teorie morali e politiche dei
C. A. Helvetius, Padua, 1904.

Stanganelli, I., A teoria pedagógica dei Helvetius, Nápoles, 1939.

9. Enciclopédia

Textos

Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné dê sciences, dê arts et dê mctirrs. 28 vols., Paris,


1751-1772.

Suplemento em 5 vols.: Amsterdã, 1776-1777.

Índices em 2 vols., ed. por F. Mouchon, Amsterdã, 1780-1781.

Estudos

Charuer, G., e R. Mortier, Une suite de VEncyclopédie, lhe “ Journal Ency- clopédique”
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Ducros, L., Lhes encyclopédistes, Paris, 1900.

Duprat, P., Lhes encyclopédistes, leurs travaux, leur doctrine et leur influence, Paris, 1865.

Gordon, D. H., e N. L.. Torrey, The Censoríng of Diderot"s Encyclopaedia, Nova York,
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Grosclaude, Ou., Um audacieux message, VEncyclopédie, Paris, 1951.

Hubert, R., Lhes sciences sociais dans VEncyclopédie, Paris, 1923.

Mornet, D., Origine-lhes intellectueUes da révolution franfaise (1715-87), Paris, 1933.

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10. Diderot

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Œuvres, ed. A. Billy, Paris, 1952.

Corresponda tice, ed. A. Babelon, Paris, 1931.

Estudos

Barker, J. E., Diderot’s Treatment of the Christian Religião, Nova York, 1931. Billy, A., Vie
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Cresson, A., Diderot, Paris, 1949.

Gerold, K. G., Herder und Diderot. Ihr Einblick in die Kunst, Francfort, 1941. Gillot, H.,
Denis Diderot. L’homme. Ses idées philosophiques, esthétiques ct littéraires, Paris, 1938.

Hermand, P., Lhes idées morais de Diderot, Paris, 1923.


Johannson, V., Études sul Diderot, Paris, 1928.

Lhe Gras, J., Diderot et l’Encyclopédie, Amiens, 1938.

Lefebvre, H., Diderot, Paris, 1949.

Lópelmann, M., Der junge Diderot, Berlim, 1934.

Loy, J. R., Diderot's determined Fatalist. A critical Apprcciation of “Jacques lhe fataliste”,
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Lúe, J., Diderot. L’artiste et lhe philosophe. Suivi de textes choisis de Diderot, Paris, 1938.

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Mauveaux, J., Diderot, l’encyclopédiste et lhe penseur, Montbéliard, 1914. Mesnard, Ou.,
Lhe cas Diderot, Étude de caractérologie littéraire Paris, 1952. Morley, Diderot and the
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Rosenkranz, K., Diderots Leben und Werke, 2 vols., Leipzig, 1886.

Thomas, J., L’humanisme de Diderot, 2 vols., Paris, 1938, 2.* ed.

Venturi, F., Jeunesse de Diderot, Paris, 1939.

11. D’Alembert

Textos

Œuvres philosophiques, ed. Bastien, 18 vols., Paris, 1805.

Œuvres et correspondance inédites, ed. C. Henry, Paris, 1887.

Discours sul l’Encyclopédie, ed. F. Picavet, Paris, 1919.

Traite de dynamique, Paris, 1921.

Estudos

BeRTRAnd, D’Alembert, Paris, 1889.

Muller, M., Essai sul a philosophie de Jean d'Alembert, Paris, 1926.


12. A Mettrie

Textos

Œuvres philosophiques, 2 vols., Londres, 1791; Berlim, 1796.

Estudos

Bergmann, E., Die Satiren dê Herrn Machine, Leipzig, 1913.

Boissier, R., A Mettrie, Paris, 1931.

Picavet, F., A Mettrie o critique-a allemande, Paris, 1889.

Poritzky, E. E., J. Ou. da Mettrie. Sein Leben und seine IVerke, Berlim, 1900.

Rosenfeld-Cohen, L. D.. From Beast-machine to Manmachine. The Theme of Animal Soul


in French letters from Descarte to A Mettrie, ivith a Preface by P. Hazard, Nova York e Londres,
1940.

Touloup, G. F., Um precurseur méconnu. Offray da Mettrie, médecin-phi- losophe, Paris,


1938.

13. D’Holbach

Textos

Systéme da nature, Amsterdã, 1770.

Systéme social, Londres, 1773.

A politique naturelle, Amsterdã, 1773.

A morale iiniverselle, Amsterdã, 1776.

Estudos

Cushing, M. P., Barón d’Holbach, Nova York, 1914.

Hubert, R., D’Holbach et ses amis, Paris, 1928.

Naville, P., P. T. D’Holbach et a philosophie scientifique au XVIII’ siécle, Paris, 1943.


Plejánov, G. V., Essays in the History of Materialism, ed. inglesa trad. por R. Fox, Londres,
1934.

Wickwaer, W. H., Barón d’Holbach. A Prelude to tlie French Révolution, Londres, 1935.

14. Cabanis

Textos

Œuvres, ed. Thurot, Paris, 1823-1825.

Lettre á Fauriel sul cause-lhes premiéres, Paris, 1828.

Estudos

Picavet, F., Lhes idéologues, Paris, 1891.

Tencer, M., A psycho-physiologie de Cabanis, Toulouse, 1931.

Vermeil de Conchard, T. P., Trois études sul Cabanis, Paris, 1914.

15. Buffon

Textos

Histoire naturelle, générale et particuliére, 44 vols., Paris, 1749-1804.

Nouveaux extraits, ed. F. Gohin, Paris, 1905.

Estudos

Dandin, H., Lhes méthodes de classification et l’idée de série em botaniquc ct em zoologie


de Linné á Lamarck (1740-1790), Paris, 1926.

Dimier, L.( Buffon, Paris, 1919.

Roule, L., Buffon et a description da na ture, Paris, 1924.

16. Robinet

Textos
Da nature, 4 vols., Amsterdã, 1761-66.

Considfrations sul a gradation na tur elle dê forme de l’étre, ou lhes essais da nature qui
apprend á faire l'homme, Paris, 1768.

ParalUle da condition et lhes facultés de l’homme avec a condition et lhes facultís dê autres
animaux, Bouillon, 1769.

Estudos

Albert, R., Die philosophie Robinets, Leipzig, 1903.

Mayer, J., Robinet, philosophe da nature (Revue dê Sciences humaines, Lille, 1954, págs.
295-309).

17. Bonnet

Textos

Œuvres, 8 vols., Neuchátel, 1779-1783.

Mémoires autobiographiques, ed. R. Savioz, Paris, 1948.

Estudos

Bonnet, G., Ch. Bonnet, Paris, 1929.

Claparéde, E., A psychologie anima-lhe de Ch. Bonnet, Genebra, 1909.

Lemoine, A., Ch. Bonnet de Genive, philosophe et naturaliste, Paris, 1850.

Savioz, R., A philosophie de Ch. Bonnet, Paris, 1948.

Trembley, J., Mémoires pour servir á l’histoire da vie et dê ouvrages de M. Bonnet, Berna,
1794.

18. Boscovich

Textos

Theoria philosophiae naturalis redige ad unicam legem virium in natura existem- tium,
Viena, 1758.
(A segunda edição, Veneza, 1763, contém também o De anima et Deo e o De spatio et
tempore.)

Opera pertinentia ad opticam et astronomiam, 5 vols., Basani, 1785.

Estudos

Evellin, F., Quid de rebus vel corporeis vel incorporem senserit Boscovich, Paris, 1880.

Gill, H. V., Séc. J., Roger Boscovich, S.f. (1711-1787), Forerunner of Modern Physical
Theories, Dublín, 1941.

Nedelkovicr, D., A philosophie naturelle et relativiste de R. J. Boscovich, Paris, 1922.

Oster, M., Roger Joseph Boscovich ais Naturphilosoph, Bonn, 1909.

Whyte, L. L., R. J. Boscovich, Séc. J., F. R. Séc. (1711-1787), and the Mathematics

of Atomism (Note and Records of the Royal Society of London, vol. 13, núm. 1, junho de
1958, págs. 38-48).

19. Quesnay e Turgot

Textos

Œuvres économiques et philosophiques de F. Quesnay, ed. por A. Oncken, Paris, 1888.

Œuvres de Turgot, ed. por Dupont de Nemours, 9 vols., Paris, 1809-11. Suplemento ed. por
Dupont, Daire e Duggard, 2 vols., Paris, 1884.

Œuvres de Turgot, ed. G. Schelle, 5 vols., Paris, 1913-32.

Estudos

Bourthoumieux, C., Essai sul lhe fondement philosophique dê doctrines économiques.


Rousseau contre Quesnay, Paris, 1936.

Fiorot, D., A filosofia política dei fisiocrati, Padua, 1952.

Gjgnoux, C. ]., Turgot, Paris, 1946.

Schelle, G., Turgot, Paris, 1909.

Stephens, W. W., Life and Writings of Turgot, Londres, 1891.


Vigreux, P., Turgot, Paris, 1947.

Weuleresse, G., Lhe mouvement physiocratique em France de 1756 á 1770, Paris, 1910.

-A physiocratie sous lhes ministdres de Turgot et de Necker, Paris, 1950.

Capítulos III-IV: Rousseau

Textos

Œuvres complete, 13 vols., Paris, 1910. (Há, ademais, outras edições das obras de Rousseau;
mas, em mudança, não há nenhuma edição Crítica completa.) Correspondance générale de J. J.
Rousseau, ed. por T. Dufour e P: P. Plano, 20 vols., Paris, 1924-34.

Lhe Contrat social, édition comprenant, avec lhe texte définitif, lhes versions primitives de
l’ouvrage, collationnées sul lhes manuscrits autographes de Getiéve et de Neuchátel, ed.
Dreyfus-Birsac, Paris, 1916.

Du ccntrat social, intr. e notas de G. Beaulavon, Paris, 1938 (quinta edição). Annales da
Société J.-J. Rousseau, Genebra, desde 1905.

Sénélier, J., Bibliographie générale dê Œuvres de J.-J. Rousseau, Paris, 1949.

Estudos

Attisani, A., Vutilitarismo dei G. G. Rousseau, Roma, 1930.

Baldanzi, E. R., II pensiero religioso dei G. G. Rousseau, Florencia, 1934. Bouvier, B., J.-J.
Rousseau, Genebra, 1912.

Brunello, B., G. G. Rousseau, Módena, 1936.

Buck, R., Rousseau und die deutsche Romantik, Berlim, 1939.

Burgelin, P., A phüosophie de l’existence de J.-J. Rousseau, Paris, 1952. Casotti, M.,
Rousseau e l’educazione morale, Brescia, 1952.

Chapman, J. W., Rousseau, Totalitarian or Liberalf, Nova York, 1956. Chaponniére, P.,
Rousseau, Zurich, 1942.
Notas
[1]
De l’esprit dê lois, Préface. <<

[2]
Ibid., II, 1. <<

[3]
Ibid., II, 4. <<

[4]
Ibid., III, l. <<

[5]
De l’esprit dê lois, III, 2. <<

[6]
Ibid., I, 3. <<

[7]
As leis são, no sentido mais geral, “os relacionamentos necessários decorrentes da natureza
das coisas” (De l’esprit dê lois, I, 1) <<

[8]
Ibid., I, 1. <<

[9]
Ibid. <<

[10]
Ibid. <<

[11]
Ibid. <<

[12]
Ibid. <<

[13]
De l’esprit dê lois, XI. 3. <<

[14]
Ibid. <<

[15]
Ibid., XI, 5. <<

[16]
De l’esprit dê lois, XI, 6. <<

[17]
Essai de cosmologie, 2ª parte; Œuvres, I, ed. 1756, pp. 29-30. <<

[18]
Ibid., p. 30. <<

[19]
Ibid., p. 31. <<

[20]
Ibid., p. 42. <<

[21]
Ibid., pp. 42-43. <<
[22]
Ibid., p. 44. <<

[23]
Système da Nature, LXII; Œuvres, II, pp. 164-163. <<

[24]
Maupertuis, Paris, 1929. <<

[25]
Voltaire não conheceu pessoalmente a Hume, pelo que sentiu muita admiração. Hume, por
sua vez, era um pouco reservado em sua atitude respecto do filósofo francês, embora decidiu-se
a escrever-lhe uma respetuosa carta desde Paris estando Voltaire em Ferney. <<

[26]
Philosophie de Newton, I, 1. <<

[27]
Ibid. <<

[28]
Ibid. <<

[29]
Ibid. <<

[30]
I, 7. <<

[31]
7. <<

[32]
I. 4. <<

[33]
Ibid. <<

[34]
Philosophie de Newton, I, 4. <<

[35]
Ibid. <<

[36]
13. <<

[37]
9. <<

[38]
Ibid. <<

[39]
Tratado de Metafísica; 8. <<

[40]
Introdução ao conhecimento do espírito humano, II, 42. <<

[41]
Ibid., I, 1. <<

[42]
Introdução ao conhecimento do espírito humano, I, 15. <<

[43]
Ibid., II, 22. <<
[44]
Ibid. <<

[45]
Ibid. <<

[46]
Ibid. <<

[47]
Ibid., III, 43. <<

[48]
Ibid. <<

[49]
Ibid. <<

[50]
Introdução ao conhecimento do espírito humano, III, 44. <<

[51]
Réflexions et maximes, 222. <<

[52]
Intr., III, 44. <<

[53]
Reflexions et maximes, 124. <<

[54]
Ibid., 127. <<

[55]
Ibid., 151. <<

[56]
Ibid., 154-155. <<

[57]
III, V. <<

[58]
Tratado das sensações, I, I, 2. <<

[59]
Ibid., I, I, 15. <<

[60]
Tratado das sensações, I, III, 1. <<

[61]
Ibid., I, III, 5. <<

[62]
Ibid., I, III, 9. <<

[63]
Ibid., I, VI, 3. <<

[64]
Ibid., 1, VII, 1. <<

[65]
Ibid., I, XII, 1-2. <<
[66]
Tratado das sensações, II, V, 4. <<

[67]
Ibid., II, V, 5. <<

[68]
Ibid., I, IV, 7. <<

[69]
Ibid., IV, IX, 1. <<

[70]
II, 21, 31 e ss. <<

[71]
Ibid., 33. <<

[72]
II, 11. <<

[73]
Ibid., IV, IX, 3. <<

[74]
Tratado das sensações, IV, V, nota. <<

[75]
Ibid. <<

[76]
Do homem, tradução inglesa (OnMan ) de W. Hooper em 1777, I, 127. 2, 7 do texto francês.
<<

[77]
Ibid., I, 121. <<

[78]
Ibid., I, 122. <<

[79]
Ibid., I, 199. Texto francês 2, 18. <<

[80]
Ibid., I, 200. Texto francês 2, 19. <<

[81]
Ibid., II, 17; Hooper I, 194. <<

[82]
Do homem, X, 1; Hooper II, 392, 395. <<

[83]
Ibid., X, 10; Hooper II, 436. <<

[84]
Ibid., Hooper II, 433. <<

[85]
Ibid., Hooper I, VI. <<

[86]
Ibid., VI, 9; Hooper II, 105. <<

[87]
Do homem, I. 13; Hooper I, 58-59. <<
[88]
Ibid., Hooper I, 60. <<

[89]
Éléments de philosophie, na edição de 1759 de Mélanges de littérature, d'histoire et de
philosophie, IV, 3-6. <<

[90]
Éléments de philosophie, na edição de 1759 de Mélanges de littérature, d'histoire o de
phitosophie, IV, 59. <<

[91]
L'art de jouir ou l'école da volupté, 1751 <<

[92]
VI, 370. <<

[93]
Neste capítulo e nos seguintes utilizaremos as seguintes abreviaturas: D.A. para o Discurso
sobre as artes e as ciências; D.D. para o Discurso sobre a desigualdade; D.E. para o Discurso
sobre a economia; É. para o Émile, e C.Séc. para o Contrato Social. Os textos citam-se segundo
a edição da Everiman's Library. <<

[94]
D.A., 130. <<

[95]
D.A .,130. <<

[96]
Ibid., 131. <<

[97]
Ibid., 132. <<

[98]
Ibid., 133. <<

[99]
Ibid. <<

[100]
D.A .,134. <<

[101]
Ibid. <<

[102]
Ibid., 135. <<

[103]
Ibid., 136. <<

[104]
Ibid., 140. <<

[105]
Ibid., 147. <<

[106]
Ibid., 152. <<

[107]
Ibid. <<
[108]
D.D., 175-176. <<

[109]
Ibid., 177. <<

[110]
Ibid., 184. <<

[111]
Ibid., 185. <<

[112]
Ibid., 186. <<

[113]
D.D., 203. <<

[114]
Ibid., 191. <<

[115]
Ibid., 192. <<

[116]
D.D., 194. <<

[117]
Ibid., 207. <<

[118]
Ibid., 215. <<

[119]
Ibid., 219. <<

[120]
No século seguinte Hegel praticou uma distinção entre a sociedade civil e o estado. <<

[121]
D.D., 221. <<

[122]
Ibid. <<

[123]
Ibid., 228. <<

[124]
Ibid. <<

[125]
Ibid., 174. <<

[126]
Ibid., 238. <<

[127]
Ibid. <<

[128]
D.D., 245. <<

[129]
D.E., 253. <<

[130]
Ibid. <<
[131]
D.E., 254. <<

[132]
Ibid., 255. <<

[133]
Ibid., 260. <<

[134]
D.E., 258. <<

[135]
Ibid., 259. <<

[136]
Ibid. <<

[137]
DM., 253. <<

[138]
Ibid., 256. <<

[139]
D.E., 286. <<

[140]
Ibid., 183. <<

[141]
É., II, 61. <<

[142]
Ibid., IV, 173. <<

[143]
D.D., 197, nota 2. <<

[144]
É., IV, 174. <<

[145]
Œuvres, 1865, III, 647. <<

[146]
D.D., 198. <<

[147]
Ibid., 199. <<

[148]
É., IV. 174 <<

[149]
Ibid., 184. <<

[150]
Œuvres, 1865, III, 64. <<

[151]
É., II, 61. <<

[152]
D.D., 199. <<
[153]
É., IV, 173. <<

[154]
Ibid., 215. <<

[155]
Ibid., 173. <<

[156]
D. A .,153-154. <<

[157]
É., IV, 252. <<

[158]
Ibid., 253. <<

[159]
Ibid., 249. <<

[160]
Ibid., 237. <<

[161]
Ibid., 239. <<

[162]
Ibid. <<

[163]
Ibid., 242. <<

[164]
IV, 197. <<

[165]
C.Séc., II, 3, 25. <<

[166]
C.Séc., I, 3, 5. <<

[167]
Ibid. <<

[168]
Ibid., 8. <<

[169]
C.Séc., I, 6, 14. <<

[170]
Ibid., 15. <<

[171]
C.Séc., I. 8, 19. <<

[172]
Ibid. <<

[173]
Ibid., 18. <<

[174]
C.Séc., I, 8, 19. <<

[175]
Ibid. <<
[176]
C.Séc., I, 7, 17. <<

[177]
Ibid., III, 18, 89. <<

[178]
Ibid. <<

[179]
Ibid., II, 1, 22. <<

[180]
C.Séc., III, 15, 83. <<

[181]
C.Séc., II, 3. 25. <<

[182]
Ibid., 6. 34. <<

[183]
Ibid. <<

[184]
Recorde-se a doutrina escolástica segundo a qual todo o que o homem queira o quer sub
specie boni. <<

[185]
C.Séc., II, 3, 25. <<

[186]
Ibid., 26-. <<

[187]
Ibid., IV, 8. 116. <<

[188]
Ibid., II. 3, 25-26. <<

[189]
C.Séc., IV, 2, 94. <<

[190]
Ibid. <<

[191]
Ibid., I, 4, 10. <<

[192]
C.Séc., IV. 2, 93. <<

[193]
Ibid., I, 7, 18. <<

[194]
Ibid., IV, 2, 94. <<

[195]
C.Séc., III, I, 50. <<

[196]
Ibid. <<

[197]
Ibid., 18, 89. <<
[198]
Ibid., 1, 53. <<

[199]
Ibid. <<

[200]
Ibid. <<

[201]
A palavra “tiránico” assa-se aqui em seu sentido ordinário. Na linguagem técnica de
Rousseau um tirano é uma personagem que usurpa autoridade real, enquanto um déspota é o que
usurpa poder soberano. “Assim o tirano pode não ser um déspota, enquanto o déspota é sempre
um tirano” (C.Séc., III, 10, 77). <<

[202]
C.Séc., III, 9, 73. <<

[203]
Ibid., 3, 57. <<

[204]
Ibid., 4” 59. <<

[205]
Ibid., 5, 60-61. <<

[206]
Ibid., 11, 77. <<

[207]
Ibid., 15, 83. <<

[208]
C.Séc., I, 8, 19. <<

[209]
Filosofia do Direito (Philosophy of Right), versão ingl. de T. M. Knox. Oxford, 1942, 156-
157. <<

[210]
C. S., IV, 7, 111. <<

[211]
A afirmação é correta pelo que faz à influência direta do pietismo em Thomasius e seus
seguidores, pois tendia a sustraer a religião e a teología à esfera da reflexão filosófica. Mas teria
que a enfatizar. Assim, por exemplo, também há que ter em conta o pietismo em alguma medida,
como se verá no volume seguinte, para entender o desenvolvimento do pensamento de Hegel.
<<

[212]
Há que acrescentar que a divisão wolffiana da filosofia teve grande influência em
posteriores manuais e tratados escolásticos. <<

[213]
Cfr., por exemplo, Gilson, Being and some philosophers (2. ª ed. inglesa corrigida e
aumentada, Toronto, 1952). <<

[214]
Prolegomena, 2. <<
[215]
Seção 6. <<

[216]
Estética, seção 14. <<

[217]
Estética, seção I. Cfr. Prolegomena, seção 1 <<

[218]
Seção 9. <<

[219]
Pág. 218 da tradução inglesa da Estética por D. Ainslie. <<

[220]
Ibid., 219. <<

[221]
Crusius aplica o princípio do modo seguinte, por exemplo: A inexistência do mundo é
pensable. Portanto, tem que ter sido criado. Portanto, existe Deus. <<

[222]
Foi precisamente seu interesse pela educação o que fez com que Frederick se negasse a
difundir em seu território a bula de Clemente XIV que suprimia a Companhia de Jesús. Não
queria o rei que se fechassem as escolas que os jesuitas sustentavam em suas terras. <<

[223]
Seção 1. <<

[224]
A educação do gênero humano, seção 17. <<

[225]
Ibid., seção 86. <<

[226]
A educação do gênero humano, seções 94-98. <<

[227]
Hamann diz que ao princípio a cada fenômeno da natureza era para o homem um signo, um
símbolo, uma garantia de comunicação divina, palavra viva. A linguagem era uma resposta
natural à percepción da natureza como palavra divina. <<

[228]
Dichtung und Wahrheit, III, 12. <<

[229]
Esta obra, utilizada por Herder para sua própria Metacrítica, não se publicou durante a vida
de Hamann. Começou a escrevê-la em 1781, no mesmo ano que apareceu a Critica da razão
pura. <<

[230]
O quinto volume, aparecido em 1804, leva a data de 1803. Também o sexto se publicou
postumamente (1804). <<

[231]
Em seus últimos anos Herder deixou de ter bons relacionamentos com Goethe, o qual
declarou que Herder estava afetado por um “enfermizo espírito de contradição”. Quanto a
Schiller, a outra grande figura representativa do clasicismo alemão, há que dizer que nunca foi
muito aficionado a Herder pois, como admirador que era de Kant, se sentia ofendido per os
ataques de Herder à filosofia crítica. Esses ataques, pelo demais, iam contra a corrente e
contribuíram a isolar a seu autor. <<

[232]
A atividade de Jacobi continuou durante a primeira parte do século XIX. <<

[233]
1415 b, 5-8. <<

[234]
Para a interpretação dessa tese pelo que faz à poesia se veja o vol. I desta História, págs.
360-361. <<

[235]
Ennéadas, III, 2. <<

[236]
Cfr. vol. II, págs. 91-95. <<

[237]
Dessein général. <<

[238]
Discours, II, 13. <<

[239]
Ibid., III, 1. <<

[240]
Ibid., III, 7. <<

[241]
O fruto do trabalho de Muratori foi a grande obra Rerum italicarum scriptores. <<

[242]
Em 1723 Vico coincidiu à obtenção da cátedra de direito civil, mas não teve sucesso. <<

[243]
Opere, I, 136; Bari, 1929. <<

[244]
Cito a autobiografía pela edição inglesa de M. H. Fisch e T. G. Bergin, Cornell University
Press, 1944. Aqui pág. 138. <<

[245]
Autobiografía, 155. <<

[246]
Opere, III, 5. <<

[247]
Opere, IV, 2, 164. <<

[248]
B. Croce, Aesthetic, trad. ao inglês por D. Ainslie. Londres, 2.ª ed., 1929, 220. <<

[249]
Avant-propos. <<

[250]
Nouvelles considérations sul l’histoire. <<

[251]
Mais informação sobre Lessing encontrará o leitor no capítulo VI, págs. 126-131. <<
[252]
Este volume, págs. 136-142, às que o leitor fica remetido. <<

[253]
Prólogo, XIII, 6. As ideias citam-se pela edição Suphan das obras de Herder, Berlim, 1877-
1913. <<

[254]
XIII, 102. <<

[255]
XIII, 162. <<

[256]
Ibid., 183. <<

[257]
XIII, 182. <<

[258]
Ibid., 340. <<

[259]
Ibid., 383. <<

[260]
XIV, 85. <<

[261]
Goethe consultava a Herder como a uma autoridade em questões de cultura grega. <<

[262]
XIV, 202. <<

[263]
XIV, 144. <<

[264]
Ibid., 213. <<

[265]
Assim, por exemplo, Herder aprecia agora mais as medidas reformistas de Frederick o
Grande. Ao princípio pensava inclusive escrever com otimismo a respeito da Revolução
Francesa; o aparecimento do Terror moveu-lhe a ignorar as seções correspondentes. <<

[266]
XVII, 138. <<

[267]
Ao tratar esta fase fala Herder de “ espírito do Mundo”, Weltgeist, termo que reaparecerá
em Hegel. <<

[268]
3, 5; W II, 163. Citam-se sempre as Obras (Werke, W) editadas pela Academia Prusiana
das Ciências. — Cfr. a Bibliografía. <<

[269]
3, 1; W II, 154-155. <<

[270]
Prólogo; W II, 66. <<

[271]
Kant recusava já explicitamente, em um ensaio a respeito do conceito de quantidade
negativa (1763), a noção de que o método matemático tenha de se usar em filosofia, embora ao
mesmo tempo declarava que há verdades matemáticas que podem ser filosoficamente
significativas e fecundas (W II, 167-168). <<

[272]
Investigação, I, 1; W II, 277. <<

[273]
Ibid., I, 1; W II. 277. <<

[274]
Ibid. <<

[275]
Kant descreve a metafísica como “a filosofia referente aos princípios últimos de nosso
conhecimento” (Investigação, 2; W II, 283). <<

[276]
Investigação, 2; W II, 283. <<

[277]
Investigação, I, 4; W II, 283. <<

[278]
Investigação, 2; W II, 286. <<

[279]
Investigação, 4, 2; W II, 299-300. <<

[280]
Investigação, 4, 2; W II, 299. <<

[281]
Sonhos, 1, 2; W II, 329. <<

[282]
Sonhos, 1, 3; W II, 342. <<

[283]
Sonhos, 2, 3; W II, 369. <<

[284]
Sonhos, 2, 3; W II, 373. <<

[285]
W II, 378. <<

[286]
W II, 383. <<

[287]
Da forma e os princípios, 3, 14, 5; W II, 400. <<

[288]
Da forma e os princípios, 3, 15, D; W II, 403. <<

[289]
Da forma e os princípios, 2, 5; W II, 394. <<

[290]
Da forma e os princípios, 2, 4; W II, 392. <<

[291]
Da forma e os princípios, 2, 10; W II, 396. <<

[292]
Da forma e os princípios, 2, 8; W II, 395. <<
[293]
Da forma e os princípios, 5, 23; W II, 410. <<

[294]
Ibid., 411. <<

[295]
. Da forma e os princípios, 2, 9; W II, 396. <<

[296]
W X, 97. <<

[297]
Ibid., 98. <<

[298]
W II, 395, e X, 98. <<

[299]
Cfr. W X, 123. <<

[300]
Cfr. W X, 122. <<

[301]
W X, 130. <<

[302]
Ibid. <<

[303]
A terminología de Kant é ainda insegura. Fala de “ os conceitos puros do entendimento”
(die reinem Verstandesbegriffe), de “ representações intelectuais” (intellectuale [sic]
Vorstellungen) e de “ axiomas da razão pura” (die axiomata der reinem Vernunft). <<

[304]
W X, 132. <<

[305]
Quanto aos temas históricos, Kant publicava em 1784 sua Ideia de uma história geral em
sentido cosmopolita (Crie zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht). <<

[306] As referências aos escritos de Kant nos capítulos XI-XIII devem ser interpretado do modo
seguinte: A denota a primeira edição da Crítica da razão pura, e B a segunda. Estes textos
encontram-se, respetivamente, nos volumes IV e III da edição crítica de Kant editada pela
Academia Prusiana das Ciências (cfr. Bibliografía). Os números situados imediatamente após A
e B indicam as seções tal como aparecem em dita edição (que são as correspondentes à paginação
das edições alemãs originais). <<

[307]Prol. denota os Prolegómenos a toda metafísica futura, contidos no vol. IV da edição


crítica alemã. 'Os números situados imediatamente após. Prol. indicam as seções da edição
alemã (cfr. Bibliografía). <<

[308]
A VIII. <<

[309]
Prol., 4. <<
[310]
B XV. <<

[311]
A X. <<

[312]
B XXXV. <<

[313]
A XII. <<

[314]
A distinção entre entendimento e razão pode ser passado por alto pelo momento. Se
explicará depois. <<

[315]
A XVII. <<

[316]
B XXXVI. <<

[317]
Cfr., por exemplo, B 869-870. <<

[318]
B 1. <<

[319]
A universalidade baseada em indução não é para Kant universalidade estrita, senão “suposta
e comparativa”, e admite exceções. Se, baseando em minha experiência pessoal, afirmo que os
seres humanos não vivem mais de cem anos, a universalidade de minha afirmação é “suposta”.
A universalidade estrita não tem exceção possível. <<

[320]
B 4. <<

[321]
B 4-5. <<

[322]
Prol., Prólogo. <<

[323]
B 5. <<

[324]
B 11; A 7. <<

[325]
Ibid. <<

[326]
Desde depois que o julgamento pode ser feito analítico definindo ae tal modo o pertence à
tribo que contenha a baixa estatura. Mas então nos estaríamos movendo no reino das definições
nominais e de seus envolvimentos, não estaríamos tratando da realidade empírica, da tribo que
realmente existe. <<

[327]
B 13; A 9. <<

[328]
B 14 <<
[329]
B 16. <<

[330]
B 16. <<

[331]
B 17. <<

[332]
B 18. <<

[333]
B 18. <<

[334]
B 16. <<

[335]
Para os fins desta analogia há que permitir o uso da linguagem ordinária ou quotidiano, sem
tecnicismo algum. Trata-se, obviamente, de uma mera analogia ou ilustração, e não de uma
exposição cuidadosa a respeito do estatuto ontológico das cores. <<

[336]
É óbvio que Kant não imagina que o trabalho do cientista consista cu projetar simplesmente
na natureza teorias preconcebidas. Kant está pensando no processo de hipótese, dedução e
experimento controlado no qual o físico não é, desde depois, mero receptor pasivo de impressões
da natureza. <<

[337]
No prólogo aos Prolegómenos Kant observa acertadamente que Hume não pôs nunca em
dúvida que o conceito de causa é indispensável para a vida. <<

[338]
B 29; A 19. <<

[339]
‘Incondicionado’ assim que trasciende as condições subjetivas da sensibilidade e o
entendimento. <<

[340]
“Chamo conhecimento trascendental a todo o referente não a objetos, senão a nosso modo
de conhecer objetos, na medida em que este conhecimento é possível a priori” (B 25; A 11-12).
<<

[341]
B 735-736. <<

[342]
B 28; A 13. <<

[343]
B 30. <<

[344]
A palavra “intuición” (Anschauung) pode ser referido, como em castelhano, ao ato de intuir
ou ao intuido. No presente contexto a palavra está usada no primeiro sentido. Mas Kant usa-a
frequentemente no segundo. <<

[345]
B 33; A 19. <<
[346]
B 34; A 19. <<

[347]
B 34; A 20. <<

[348]
B 34; em A 20 a formulación é algo diferente. <<

[349]
A 248. <<

[350]
A 50; B 74; Prol 11. <<

[351]
Cfr. A 20-22; B 35-36. <<

[352]
Falando propriamente, a forma da aparência é, como dissemos, o que permite que a
multiplicidad da aparência (sensações ou o que corresponde à sensação) se ordene segundo
certos relacionamentos. Mas também pode ser falado mais lassamente, entendendo que os
relacionamentos em questão são o elemento formal da aparência. <<

[353]
Kant coincidiria com Hume em que pela introspección percebemos estados psíquicos, mas
não um ego ou alma permanente. Mais adiante se falará deste tema. <<

[354]
B 42; A 26. <<

[355]
Kant refere-se aqui ao ego empírico, não à alma espiritual. <<

[356]
B 49; A 33. <<

[357]
Recordemos que Hume observava que não podemos dizer propriamente que um estado
interno esteja à direita ou à esquerda de outro. <<

[358]
Dá Gemüt significa em alemão conversacional “o ânimo”, no sentido amplo que inclui a
sede da afetividade. Kant usa o termo muito lassamente. Isto e a falta de equivalentes de ‘ ânimo’
produz em algumas línguas traduções muito discutibles. (Os ingleses traduzem por ’ mind’.) O
essencial é que Gemüt é no léxico da Crítica bem mais amplo que Verstand. (N. do T.) <<

[359]
Cfr. nota primeira deste capítulo. <<

[360]
‘Objeto’ tem de tomar-lhe aqui, naturalmente, no sentido de objeto do conhecimento
humano, objeto para nós. <<

[361]
Recordaremos neste ponto que na concepção kantiana aparecer significa estar submetido às
forma a priori da sensibilidade. <<

[362]
A questão de se podia ou não sentar coerentemente esta afirmação não é problema que pelo
momento nos ocupe. <<
[363]
B 40. <<

[364]
O discurso de Kant resulta extenso se acrescenta-se à seção titulada “exposição
trascendental da noção de espaço” as partes de interesse ao respecto das “observações gerais
sobre a Estética trascendental”. <<

[365]
B 40. <<

[366]
Prol. 13, observação 1. <<

[367]
Também Leibniz entendia por espaço o espaço euclídeo. <<

[368]
B 268; A 220-221. <<

[369]
Em verdadeiro sentido também Leibniz sustentava a idealidad trascendente do espaço e do
tempo, mas com referência ao pensamento de Deus, não ao nosso, como faz Kant. E para Kant
a diferença é da maior importância. <<

[370]
B 75; A 51. <<

[371]
Por exemplo, ao levantar um quadro, por assim o dizer, das forma do pensamento eductivo
atendemos simples e exclusivamente a essas forma. Por isso todo o assunto pode ser expressado
simbolicamente, sem referência a objetos. <<

[372]
B 94; A 69. <<

[373]
Segundo Kant, o julgamento é conhecimento mediato de um objeto, representação de
representação de objeto. A única representação que refere imediatamente a um objeto é a
intuición. Um conceito refere imediatamente a alguma outra representação, ou seja, a uma
intuición ou a outro conceito. <<

[374]
B 94; A 69 <<

[375]
B 95, 106; A 70, 80. <<

[376]
Assim, o conceito de um ser necessário seria o conceito de um ser cuja possibilidade implica
a existência, ou seja, um ser que não pode ser meramente possível. Mas, para Kant, este conceito
não é objetivamente aplicável <<

[377]
B 137. <<

[378]
B 129-130. <<

[379]
B 130. <<
[380]
B 132. <<

[381]
B 143. <<

[382]
B 144. <<

[383]
B 176; A 137-138. <<

[384]
B 179-180; A 140. <<

[385]
B 184; A 145. <<

[386]
B 178; A 139. <<

[387]
A realidade, como lemos na seção a respeito das categorias, é aquilo cujo conceito indica
um ser no tempo. <<

[388]
B 183; A 144. <<

[389]
B 183; A 144. <<

[390]
B 183-184; A 144. <<

[391]
Pág. 340; cfr. Bibliografía. <<

[392]
B 187; A 147. <<

[393]
B 186; A 147. <<

[394]
B 200; A 161. <<

[395]
B 202; A 162. <<

[396]
B 207; A 166. <<

[397]
B 218, que difere da versão de A 176-177. <<

[398]
B 224; A 182. <<

[399]
B 232; A 189. <<

[400]
B 256; A 211. <<

[401]
B 265-266; A 218. <<
[402]
15. <<

[403]
Ibid. <<

[404]
Ibid. <<

[405]
Prol 23. <<

[406]
Para Kant, ‘física’ queira muito naturalmente dizer física newtoniana, e dada a situação
histórica dificilmente podia significar outra coisa. É evidente, pelo demais, que há um
relacionamento entre os princípios de Kant tal como se enumeram na Analítica dos princípios e
a concepção newtoniana do mundo físico. Por exemplo, um princípio que afirma que todas as
mudanças se produzem de acordo com relacionamentos causales necessárias não seria
compatível com uma física que admitisse o conceito de indeterminación. <<

[407]
B 347. <<

[408]
B 294. <<

[409]
Cfr. Prol 32; B 309. <<

[410]
A 248-249. <<

[411]
A 253. <<

[412]
B 307. <<

[413]
Ibid. <<

[414]
Ibid. <<

[415]
B 311. <<

[416]
B 312. <<

[417]
A 19; B 34. <<

[418]
Prol 13, observação 2 <<

[419]
Kant fala aqui, por suposto, do eu empírico, o que percebo introspectivamente só em seus
estados sucessivos. Ei ego trascendental não está determinado no tempo, mas também não é
dado como objeto à autoconsciencia. É pensado como condição da unidade trascendental da
apercepción. <<

[420]
B 276. <<
[421]
B 278. <<

[422]
Ibid. <<

[423]
Experiência objetiva no sentido de experiência ou conhecimento de objetos. A análise da
experiência moral não se considerou ainda. E a experiência moral não é uma experiência de
objetos no sentido no qual temos estado usando o termo. <<

[424]
B 349; A 293. <<

[425]
B 88; A 63-64. <<

[426]
B 697. <<

[427]
Esta dedução das ideias da razão para corresponde à dedução metafísica das categorias do
entendimento, isto é, à derivação sistemática das categorias a partir das forma do julgamento.
Na Dialética não pode ter nada que corresponda exatamente à dedução trascendental ou
justificativa da aplicação das categorias a objetos, pois as ideias não podem ser aplicado a
objetos. Mas de todos modos, como as ideias têm uma função “regulativa”, a exibição deste fato
resulta de algum modo análoga à dedução trascendental das categorias. <<

[428]
Inferência mediata porque é um silogismo a conclusão não se deriva da premisa maior senão
por mediação da premisa menor, a qual é uma condição da dedução. <<

[429]
Kant admite que a teoria segundo a qual a mera forma do silogismo disyuntivo implica
necessariamente a ideia suprema da razão pura, a ideia do ser de todos os seres (Wesen aller
Wesen) “parece a primeira vista muito paradójica" (B 393). Tero promete ulterior tratamento da
questão (cfr. as seções a respeito do ideal trascendental, B 599 ss.). Não podemos discutir mais
o tema neste local. <<

[430]
D 391-392; A 334-335. <<

[431]
B 401; A 343. <<

[432]
Tractatus logico-philosophicus, 5632. <<

[433]
B 410-411; cfr. A 348. <<

[434]
B 454-455. <<

[435]
As presentes alusões à filosofia medieval não têm de entender no sentido de que eu pense
que Kant tivesse presentes aos medievais. Não conheço prova de que os conhecesse o suficiente
para que isso fosse possível. Faço as alusões porque considero-as de interesse geral. <<
[436]
A posição de santo Tomás estuda-se no vol. II desta História, págs. 357-358. <<

[437]
Cfr. vol. II, desta História, págs. 262-264. <<

[438]
Disso não se segue, por verdadeiro, que tenhamos de coincidir com Kant quanto à afirmação
dessa validade. Pode interessar-nos/interessá-nos afirmar que nenhuma das duas é válida, ou que
só o é uma das duas argumentaciones. Para a discussão das argumentaciones de teses e antíteses
nas quatro antinomias kantianas o leitor pode recorrer, por exemplo, ao Commentary toKant ’s
Critique of Pure Reason do professor N. Kemp Smith, págs. 483-506. <<

[439]
B 462-463. <<

[440]
Pode-se argüir que em realidade não há antinomia alguma, se baseando c:i que a tese pode
ser interpretado como referente a mónadas leibnizians, e a antítese como referente a corpos
extensos no espaço. <<

[441]
B 472-473. <<

[442]
B 480-481 <<

[443]
A proposta de Kant precede da filosofia wolffiana. Baumgarten, por exemplo, propunha a
ideia de Deus por médio da noção de Ens perfectissimum, identificado depois com o Ens
realissimum. <<

[444]
Para o argumento ontológico tal como o dá san Anselmo, cfr. vol. II desta História, págs.
166-168. As variantes apresentadas por Descarte e Leibniz encontram-se no vol. IV, páginas
108-112 e 300-303. <<

[445]
B 623. <<

[446]
B 630. <<

[447]
B 632-633. <<

[448]
B 649-650. <<

[449]
Kant não tinha presentes, desde depois, as Evidences de Paley, pois esta obra não apareceu
basta 1802. <<

[450]
B 655. <<

[451]
B 660. <<

[452]
B 664. <<
[453]
Este termo não se refere, desde depois, à teología moral no sentido de estudo da aplicação
prática dos princípios morais cristãos. Refere-se a uma teología filosófica ou doutrina de Deus
baseada nas exigências ou os postulados da lei moral. <<

[454]
B 662. <<

[455]
B 667-668. <<

[456]
B 665. <<

[457]
B 670; cfr. A 297-298. <<

[458]
B 670. <<

[459]
B 671. <<

[460]
B 692; cfr. A 302. <<

[461]
Kant, desde depois, achava que há realidades nouménicas às que chamamos alma e Deus,
embora sem dúvida diria que não sabia nem podia saber se assim é. Os argumentos destinados
a provar a existência a alma e a existência de Deus são falaces, mas as ideias por se mesmas não
produzem antinomias. Em mudança, a ideia cosmológica produz antinomias, e neste sentido é
ela o único membro de uma classe aparte. <<

[462]
B 707. <<

[463]
B 710. <<

[464]
Nas notas a este capítulo F. significará a Fundamentación da metafísica dos costumes, RPr.
Crítica da razão prática, e R. A religião dentro dos limites da mera razão. Estas três obras estão
respetivamente contidas nos volumes IV, V e VI da edição crítica. As cifras dadas a seguir dessas
abreviaturas dos títulos indicam seções ou páginas dessa edição, segundo os casos. <<

[465]
A palavra ‘razão’ tem de entender-se aqui no amplo sentido indicado pelos títulos das duas
primeiras Críticos, não no sentido estreito de faculdade da inferência mediata. <<

[466]
F. 391. <<

[467]
Crítica da razão pura, B X. <<

[468]
RPr. 29-30. <<

[469]
Mais adiante se aludirá às diferenças de significação entre ambos termos. <<

[470]
W VI, 217. <<
[471]
F. Prólogo 389. <<

[472]
É possível que Kant esteja pensando em Satanás, o que engana ao homem, e que o preceito
valha também para “o pai da mentira”. <<

[473]
F. Prólogo 389. <<

[474]
Ibid. <<

[475]
RPr. 70. <<

[476]
F. Prólogo 389-390. <<

[477]
F. Prólogo 392. <<

[478]
F. 393. <<

[479]
F. 397 <<

[480]
F. 398. <<

[481]
F. 400. <<

[482]
F. 402. <<

[483]
Está claro que não se pode nem falar de deduzir regras concretas de conduta do conceito
de lei universal como tal. O conceito usa-se como comprovação da admisibilidad ou
inadmisibilidad de máximas, não como premisa da qual pudessem ser deduzido. <<

[484]
F. 403. <<

[485]
Kant não utiliza muito a distinção, razão para a qual não vale a pena se preocupar muito ao
respecto. <<

[486]
F. 413. <<

[487]
Pode ser visto uma exposição da teoria ética de Aristóteles no vol. I desta História, capítulo
XXXI. <<

[488]
F. 415. <<

[489]
F. 421. <<

[490]
Ibid. <<
[491]
F. 424. <<

[492]
Ibid. <<

[493]
F. 436. <<

[494]
RPr. 122. <<

[495]
Esta fórmula está claramente pressuposta pelo primeiro exemplo que dá Kant da aplicação
do imperativo categórico, o exemplo do homem reduzido a uma miséria desesperada e que se
pergunta se pode ser suicidado (F. 421-422). <<

[496]
F. 425. <<

[497]
F. 428. <<

[498]
F. 428-429. <<

[499]
F. 429. <<

[500]
F. 431. <<

[501]
F. 434. <<

[502]
RPr. 54. <<

[503]
F. 440. <<

[504]
RPr. 58. <<

[505]
F. 441. <<

[506]
RPr. 58. <<

[507]
RPr. 69. <<

[508]
F. 433. <<

[509]
F. 434. <<

[510]
F. 433. <<

[511]
F. 438. <<
[512]
F. 448. <<

[513]
F. 454. <<

[514]
F. 461. <<

[515]
RPr. 167-168. <<

[516]
RPr. 170. <<

[517]
RPr. 171. <<

[518]
RPr. 175. <<

[519]
RPr. 199. <<

[520]
RPr. 220. <<

[521]
Ibid. <<

[522]
RPr. 224. <<

[523]
RPr. 225. <<

[524]
RPr. 238. <<

[525]
RPr. 240. <<

[526]
RPr. 243. <<

[527]
RPr. 244. <<

[528]
RPr. 246. <<

[529]
RPr. 255. <<

[530]
Não há dúvida de que essa forma de se expressar pode induzir a confusão. Pois, em última
instância, como dantes vimos, não há mais que uma razão, embora tenha funções ou usos
distinguibles. <<

[531]
RPr. 216-217. <<

[532]
Ibid. <<

[533]
RPr. 233. <<
[534]
RPr. 235. <<

[535]
Rel. 3. <<

[536]
Rel. 6. <<

[537]
Rel. 103. <<

[538]
Rel. 107. <<

[539]
O leitor pode ir, por exemplo, à obra de C. C. J. Webb, Kant’s Philosophy of Religion (cfr.
Bibliografía). <<

[540]
Faça-se justiça, embora se desplome o céu (N. do Editor) <<

[541]
Não quero dizer com isto que os defensores da teoria emocional da ética, nas várias forma
em que esta se desenvolveu, não admitam este rasgo do julgamento moral. <<

[542]
A Kritik der Urteilskraft (Critica do julgamento) encontra-se no vol. V da edição crítica. A
citaremos mediante a abreviatura J. Em cita-as indicam-se as seções do texto. <<

[543]
J 20 <<

[544]
J 20. <<

[545]
J 58. <<

[546]
O termo usado por Kant é Gemüt mais literalmente traduzível por ‘ ânimo’. Mas já se
indicou que Kant usa o termo muito lassamente, para se referir a todas as faculdades e atividades
psíquicas. <<

[547]
J 5. <<

[548]
J 25. <<

[549]
J 26. <<

[550]
J 27. <<

[551]
J 28. <<

[552]
J 31. <<

[553]
J 39. <<
[554]
J 48-49. <<

[555]
J 52. <<

[556]
Ibid. <<

[557]
Cfr. J 56. <<

[558]
J 56. <<

[559]
J 16. <<

[560]
J 32. <<

[561]
Ao introduzir aqui a ideia de imperativo moral não quero dizer, desde depois, que este seja
uma condição privada, como o é a inclinação. Cito-o só para completar a noção de “ livre” no
sentido em que Kant usa este termo a propósito do julgamento estético. <<

[562]
J 25. <<

[563]
J 43. <<

[564]
J 61. <<

[565]
J 47. <<

[566]
J 47. <<

[567]
J 60-61. <<

[568]
J 68. <<

[569]
J C2-63. <<

[570]
J 64 65. <<

[571]
Com isso não quero dizer que Burke seja o primeiro em distinguir entre o belo e o sublime.
<<

[572]
J 128. <<

[573]
J 77. <<

[574]
J 80. <<
[575]
J 84. <<

[576]
A observação kantiana de que o espetáculo de um oceano tempestuoso, por exemplo, ou de
um vulcão em erupção resulta agradável quando se contempla desde local seguro produziu
sarcásticos comentários de Schopenhauer. <<

[577]
Os detalhes da dedução têm de ver-se na mesma Crítica do julgamento, J 131 ss. <<

[578]
A julgar por como cita Kant neste contexto o exemplo do tulipán, deveu de ter predilección
por esta flor. <<

[579]
J 173. <<

[580]
J 179. <<

[581]
J 180. <<

[582]
J 181. <<

[583]
J 192. <<

[584]
J 183. <<

[585]
Também acrescenta Kant à primeira parte da Crítica do julgamento um adendo dedicado à
“Doutrina do método do gosto”. Mas é um texto muito breve. <<

[586]
J 234. <<

[587]
J 258. <<

[588]
J 263. <<

[589]
Nach inneren Volksgesetzen (J 256) escreve Kant. E talvez esteja pensando basicamente na
ideia rousseauniana da lei como expressão da vontade geral. <<

[590]
J 264. <<

[591]
. J272. <<

[592]
. J 279. <<

[593]
J 286. <<

[594]
J 291. <<
[595]
J 295-296. <<

[596]
J 296. <<

[597]
J 304. <<

[598]
J 307-308. <<

[599]
J 314. <<

[600]
J 314-315. <<

[601]
J 325. <<

[602]
J 327. <<

[603]
J 335-336. <<

[604]
J 408. <<

[605]
J 408. <<

[606]
J 410. <<

[607]
J 413. <<

[608]
J 410. <<

[609]
J 424 nota. <<

[610]
J 462. <<

[611]
O Opus postumum encontra-se nos volumes XXI-XXII da edição Crítica de Berlim. Em
cita-as dá-se volume e página. <<

[612]
XXI 526. <<

[613]
XXII 497 <<

[614]
A experiência é ‘‘a unidade absoluta do conhecimento dos objetos dos sentidos”. XXII 497.
<<

[615]
XXI 525-526. <<
[616]
XXII 323. <<

[617]
XXI 291. <<

[618]
Ibid. <<

[619]
XXI 291. <<

[620]
XXI 81. <<

[621]
XXI 104. <<

[622]
XXI 77. <<

[623]
XXI 81. <<

[624]
XXI 82. <<

[625]
XXI 150. <<

[626]
XXI 6. <<

[627]
XXI 35. <<

[628]
XXI 20. <<

[629]
XXI 22. <<

[630]
XXII 62. <<

[631]
XXI 34. <<

[632]
XXI 36-37. <<

[633]
XXI 93. <<

[634]
XXI 105. <<

[635]
XXI 82. <<

[636]
XXI 20. <<

[637]
XXI 21. <<

[638]
XXI 85. <<
[639]
XXII 36. <<

[640]
XXII 37. <<

[641]
XXII 24. <<

[642]
XXII 34. <<

[643]
XXII 23. <<

[644]
‘Subjetivo’ no sentido de que o princípio ultimo do ser e do conhecer é o sujeito; e
‘trascendental' no sentido de que o sujeito é o sujeito charuto ou trascendental, não o eu empírico;
‘idealismo’, por último, no sentido de que não há nessa filosofia fator algum que não seja
reducible em última instância ao autoponerse do sujeito ou eu trascendental. <<

[645]
XXII 23. <<

[646]
XXI 440. <<

[647]
XXI 19. <<

[648]
XXI 17 <<

[649]
Ein Cedankending. <<

[650]
XXI 32-33. <<

[651]
XXI 27 <<

[652]
XXI 33. <<

[653]
Alguns passos do Opus postumum parecem a primeira vista contradictorios dessa
afirmação. Atenderemos em seguida a este problema. <<

[654]
XXI 12. <<

[655]
XXI 15. <<

[656]
Ibid. <<

[657]
Cfr. XXII 64. <<

[658]
XXII 104. <<
[659]
XXII 62. <<

[660]
XXII 109. <<

[661]
XXII 113. <<

[662]
XXII 111 <<

[663]
XXI 42. <<

[664]
Ibid. <<

[665]
XXI 18. <<

[666]
XXI 61. <<

[667]
XXI 42. <<

[668]
XXI 24. <<

[669]
XXI 25. <<

[670]
XXI 50. <<

[671]
Como já se precisou na introdução ao volume IV, ‘racionalismo’, usada neste contexto, não
significa só a tentativa de basear a filosofia na razão, em vez do fazer em intuiciones místicas.
Também não há que entender aqui esse termo no sentido que se lhe tem dado em tempos
posteriores e que implica a negación da religião revelada e talvez de toda religião. Desde depois
que teve racionalistas neste sentido durante os séculos XVII e XVIII; mas o termo não se usa
nesse sentido quando se diz, por exemplo, que Descarte era racionalista. <<

[672]
Prefiro usar a este propósito o termo 'realidade' que o termo ‘mundo’, porque o
conhecimento filosófico poderia também referir a um Ser, Deus, que trasciende o mundo. <<

[673]
Esse enunciado poderia ser expressado, desde depois, de uma forma mais “linguística”, sem
utilizar a palavra ‘cria’. Pode ser dito, por exemplo, que aprendemos o uso dos termos pela
experiência, ou por definição ostensiva. <<

[674]
utilizei o termo kantiano ‘proposição sintética a priori'. E o uso deste termo pode provocar
confusão pois embora coincido com Kant em que há proposições que não são nem tautologías
nem generalizações empíricas meramente prováveis, não aceito a interpretação kantiana de seu
estatuto. Em minha opinião, essas proposições expressam o entendimento da estrutura objetiva
inteligible do ser. Mas, por outra parte, o termo é conveniente e usa-se hoje em dia
frequentemente sem exigir que seu uso implique a interpretação propriamente kantiana. <<
[675]
Desde depois que o que Hume chamava “filosofia experimental” ou seja, a física, não se
considera hoje parte da filosofia. E também poderia ser dito que parte do que ele considerava
próprio da ciência da do homem teve a separar da filosofia, particularmente se se têm em conta
as limitações metodológicas em que pensava Hume. Refiro-me sobretudo à psicologia empírica.
<<

[676]
Como vimos no volume V, Hume admite a possibilidade de exceções a essa regra.
apresenta-nos uma série gradual de matizes de azul na qual falte um matiz, somos capazes de
acrescentar o membro que falta, no sentido de formular sua “ideia”, embora não tenha impressão
prévia ao respecto. Mas aparte dessas exceções possíveis. Hume impõe em todo local sua regra
geral. <<

[677]
Note-se que o princípio não diz nada a respeito da operação dessa causa. Ou seja, que sua
aplicação não se limita à causalidad mecânica ou determinada. <<

[678]
É óbvio que não podemos definir ‘entender as significações dos termos por ver uma conexão
necessária entre as significações dos termos’. Pois neste caso o enunciado de que todo o que
entende as significações dos termos vê a conexão necessária entre elas seria uma afirmação
equivalente à tautología de que todo o que vê a conexão necessária a vê. <<

[679]
A ideia mesma de significação “emocional” tem sua base na filosofia de Hume. Pois embora
este complica sua teoria ética mediante a introdução de elementos utilitarista”, sua ideia básica
e radical do julgamento moral é que este julgamento expressa “sentimento”, sentimentos
específicos, é a saber, de aprovação ou condenação, Os pregados morais são termos “emotivos”,
não descritivos. <<

[680]
Por exemplo, embora Hume pôs-se explicitamente como tema os limite de nosso
conhecimento, e não a natureza da realidade em se mesma, constantemente faz incursões pela
ontología. E sua tendência a falar como se os objetes da percepción fossem modificações
subjetivas é uma desgraçada herança de seus predecessores. <<

[681]
Acerca cita afirmação, cfr. vol. V, 319 e 320-327. <<

[682]
Não quero dizer com isto que a tolerância seja incompatível com a fé em uma religião
revivia. Refiro-me a uma conexão histórica de fatos, não a uma conexão lógica de ideias. Não
há que interpretar “liberdade de pensamento” de tal modo que seja tautológico dizer que os
ideais de “ liberdade de pensamento” e tolerância são inseparáveis. <<

[683]
Treatise, I, 3, 1. <<

[684]
Alguns autores tomistas sustentam que santo Tomás se interessava pelo ato de existir,
enquanto os metafísicos racionalistas postrenacentistas se ocupavam antes de mais nada da
dedução de essências. Acho que essa interpretação tem uma ponta para valer. Mas não podemos
dizer legitimamente que Descarte, por exemplo, ignorasse os problemas da existência. Em
qualquer caso, o que me interessa nesta seção é a posição que ocupou a teoria do conhecimento
na filosofia medieval e na moderna, e não discutir a tese que acabo de citar. <<
[685]
Como se observou na seção anterior, pode ser sustentado que a doutrina kantiana de Ias
categorias conduz à conclusão de que os problemas propriamente metafísicos devem ser
excluído do âmbito dos problemas reais. Pera Kant, desde depois, não o achou assim. Pelo
contrário, fez questão da importância dos problemas que considerava capitais da metafísica. <<

[686]
Esta afirmação é verdadeira ao menos pelo que faz aos metafísicos medievais. <<

[687]
Em verdadeiro sentido podemos dizer que para santo Ti mais e Aquino também as coisas
têm que adecuarse ao sujeito para que seja possível o conhecimento. Pois embora em sua opinião
todo ente é inteligible em si, o sujeito humano é de tal natureza e possui tal estrutura
cognoscitiva, por asi o dizer, que o âmbito natural de seu conhecimento é limitado. Para que seja
possível o conhecimento humano como tal se requerem condições por ambas partes, a do sujeito
e a do objeto. Mas este ponto de vista é diferente do da revolução copernicana de Kant. <<

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